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Ligada etimologicamente à agricultura, a cultura tornou-se um universo de valores e com isso, de poder. Toda crise política, econômica ou ambiental é de fato uma crise cultural. Sem pretender inventar a roda, mas acenando possibilidades de se rodar o Engenho, essas teias trazem algumas histórias. São histórias de pessoas, de famílias, de movimentos sociais contemporâneos como a Rede Ecovida de Agroecologia, o Slow Food e o Cultura Viva Comunitária. Questionando formas de pensar que apontam para a superação histórica do modo de vida rural, dos métodos artesanais de produção e dos conhecimentos orais, propõe-se uma maior aproximação com as dinâmicas da vida, cíclicas, engenhosas, longe da alienação da sociedade de consumo. Sintam-se convidados para um café com beiju na quentura do forno da farinha polvilhada, deste modo colocamos nossas ideias à mesa e comemos o que somos. Ao leitor, um bom apetite!

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  • ENGENHO substantivo masculino

    1 capacidade de criar, produzir com arte (...)

    2 Derivao: por extenso de sentido. essa capacidade posta em prtica; criao, produo, realizao. (Houaiss)

    CULTURA substantivo feminino

    1 Rubrica: agricultura.

    ao, processo ou efeito de cultivar a terra; lavra, cultivo.(Houaiss)

    Ligada etimologicamente agricultura, a cultura tornou-se um universo de valores e com isso, de poder. Toda crise poltica, econmica ou ambiental de fato uma crise cultural. Por assim dizer, a pior degradao da natureza a do prprio homem e o pior desastre ambi-ental a desigualdade social e os padres de produo e consumo que a sustentam, sejam eles alimentares, tecnolgicos ou artsticos. Sem pretender inventar a roda, mas acenando possibilidades de se rodar o Engenho, essas teias trazem algumas histrias.

    So histrias de pessoas, de famlias, de movimentos sociais contemporneos como a Rede Ecovida de Agroecologia, o Slow Food e o Cultura Viva Comunitria. Estas histrias materializam-se nas interven-es de um Ponto de Cultura, o Engen-hos de Farinha, conduzido pelo coletivo do Cepagro - Centro de Estu-

    dos e Promoo da Agricultura de Grupo. Questionando formas de pensar que apontam para a super-ao histrica do modo de vida rural, dos mtodos artesanais de produo e dos conhecimentos orais, prope-se uma maior aproximao com as dinmicas da vida, cclicas, engenho-sas, longe da alienao da sociedade de consumo.

    Aqui a cultura viva e a agri(cultura) ecolgica, como sempre foram. De modo singelo, engendram-se metodo-logias em educao que desescon-dem os lugares de produo como espaos de encontro e troca. So tmidas iniciativas mas que no deixam de atrever propostas de polti-cas pblicas para a cultura e agricultura, assim como em desen-volvimento, turismo e sade. Sintam-se convidados para um caf com beiju na quentura do forno da farinha polvilhada, deste modo colocamos nossas ideias mesa e comemos o que somos.

    Ao leitor, um bom apetite!

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    capa engenho.pdf 1 18/06/14 13:24

  • Florianpolis, 2014

    teias agroecolgicas

    Gabriella Pieroni

  • Ponto de Cultura Engenhos de Farinhawww.engenhosdefarinha.wordpress.comCoordenao - Gabriella Pieroni e Fernando AngeolettoEquipe Tcnica - Ana Carolina Dionsio, Eduardo Daniel Rocha, Fabiano Gregrio, Philipe Belletini, Javier Bartaburu, Mirian Abee Flora Castellano

    Engenhos da Cultura: teias agroecolgicasEdio de textos e imagens - Gabriella PieroniPesquisa e Redao - Gabriella PieroniTextos adicionais - Ana Carolina DionsioReviso Geral - Ana Carolina Dionsio e Gabriella PieroniFotografias - Fernando Angeoletto e Ana Carolina Dionsio (Acervo Ponto de Cultura Engenhos de Farinha/Cepagro); Sandra Alves, Pedro Malamam, Anne Corsten, Juliana Adriano, Marina Pinto e Leonardo LepschConcepo da capa - Sandra Alves e Gabriella PieroniImagem da capa - Gravuras de Franklin Cascaes (Acervo do Museu de Arqueologia e Etnologia Professor Oswaldo Rodrigues)Editorao eletrnica - Alysson MouraFinalizao - Fernando Angeoletto e Sandra AlvesProduo - Florimage Servios Grficos Ltda ME

    Centro de Estudos e Promooda Agricultura de Grupowww.cepagro.org.br [email protected]+55 (48) 33343176

    Coordenao Geral - Charles Onassis Peres LambCoordenao do Eixo Urbano - Marcos Jos de AbreuCoordenao do Eixo Rural - Marcelo Farias

    Apoio:

    Pieroni, Gabriella Cristina 1983- Engenhos da Cultura: teias agroecolgicas/ Gabriella Cristina Pieroni. - Florianpolis:

    Ponto de Cultura Engenhos de Farinha/Cepagro, 2014. 92 p.: Il ISBN ISBN: 978-85-67297-05-7 1. Histria do Brasil. 2. Cultura brasileira. 3. Educao. 4. Agroecologia. I. Ttulo.

    II. Autor.

    CDD 390

  • Dedicado a Joo Manoel Ramos (Seo Bil) e Antnio Furtado (Seo Biega)

  • sumrio05 | ApresentAo

    07 | ArticulAes comunitriAs

    12 | rodAr o engenho

    17 | AtrAvs dAs lentes

    20 | nA descobertA do sAbor

    24 | tecer A teiA

    26 | dilogos

    28 | expAndir A discusso

    32 | pedrAs no cAminho

    39 | nA minhA cAsA tem um engenho

    41 | A rede dos engenhos dA grAnde floriAnpolis

    43 | bem vindos Aos engenhos

    44 | os ns dA rede

    53 | nA trAmA dA ecovidA

    55 | homens e mulheres de terrA e mAr

    57 | do locAl pArA o mundiAl

    61 | os locAis culturA locAl

    65 | sAber fAzer e fAzer sAber

    67 | o po dA terrA

    71 | rAmAs e rumos

    74 | feitos de fArinhA

    76 | sAber o ponto do sAbor

    78 | degustAes polticAs

    79 | comemos o que somos

    84 | fArinhA e festA

    87 | teceles

    91 | refernciAs

  • 6apresentao

    A fora da cultura ligada aos engenhos de farinha de mandioca do litoral catarinense e sua possibilidade de ressignificao atravs da agroecologia so o mote de onde partem as diversas aes apresentadas nesta publicao. Para preservar esta expresso cultural as atividades aqui narradas buscam inserir os engenhos de farinha, seus produtos, servios e conjunto de conhecimentos nas atuais dinmicas econmicas e scio-ambientais das comunidades onde se situam. Neste sentido, o Programa Cultura Viva do Ministrio da Cultura foi criado em 2004 provocando um novo olhar sobre as manifestaes culturais brasileiras, que foram reconhecidas em suas formas mais espontneas. Em menos de uma dcada, esta iniciativa extrapolou sua condio de poltica de governo tornando-se um verdadeiro movimento social e cultural brasileiro. Em 2009, o coletivo do Cepagro - Centro de Estudos e

    Promoo da Agricultura de Grupo reconheceu-se neste movimento tornando-se um dos cerca de 4000 Pontos de Cultura implantados no Brasil. A entidade promove a organizao popular para a prtica da agroecologia e atualmente articula o Ncleo Litoral Catarinense da Rede Ecovida e faz parte do Movimento Slow Food. Partindo de um projeto com fragilidades estruturais e baixo oramento, as iniciativas do Ponto de Cultura Engenhos de Farinha foram potencializadas por um frtil encontro entre os histricos da Rede Ecovida, do Movimento Slow Food e do Cultura Viva. Esta publicao narra a construo destas teias que alinhavam redes de trabalho, princpios, temticas e atores sociais diversos que se complementam.

  • 7Na primeira parte do livro temos um pequeno registro de metodologias utilizadas, tanto em cursos e oficinas como na construo de formatos de eventos que buscam o dilogo entre comunidades de base, pesquisadores e gestores pblicos. Num segundo momento, a criao e consolidao da Rede dos Engenhos Artesanais da Grande Florianpolis apresentada em seus trnsitos locais e globais, revelando cada um dos engenhos como espaos histrico-culturais e pedaggicos e tambm de produo agroecolgica. Nas sees seguintes, a histria das populaes tradicionais do litoral catarinense convida a refletir sobre os papis destas culturas na atualidade. Por fim, o uso poltico da salvaguarda de bens culturais imateriais

    inspirou uma proposta coletiva, baseada nas articulaes evidenciadas durante a publicao, do registro do modo de fazer a farinha polvilhada de Santa Catarina enquanto Patrimnio Cultural Imaterial, processo ainda em andamento. A partir desta perspectiva, finalizamos este pequeno retrato do tempo presente com a sensao de novos desdobramentos na construo destas teias, sinal que elas permanecem vivas, assim como a (agri) cultura dos engenhos. Uma boa leitura!

  • 8articulaes comunitrias

    J foi dito que um Ponto de Cultura pode acontecer at embaixo de uma rvore. E por que no embaixo de uma rama de maniva, um p de aipim? Ou no girar de um engenho de farinha, espao vivo de trabalho e de educao por excelncia, onde modos espontneos de construo e troca de conhecimento so consolidados atravs de pocas e geraes? Se o atual desafio da educao escapar de formatos que oprimem a autonomia dos seres, urgente a redescoberta destes outros lugares, que muitas vezes se encontram bem em frente aos nossos olhos: num quintal, numa horta, num canto abandonado da cidade, num velho engenho de farinha. Nestes locais possvel priorizar, ao invs da disciplinarizao, o encontro, substrato de toda transformao social. Para serem consolidadas e reconhecidas enquanto boas prticas, necessrio que estas experincias sejam transformadas em metodologias reaplicveis, ou no que se convencionou chamar hoje de tecnologias sociais.

    Por outros lugares de educao e cultura

    Ningum educa a ningum, ningum educa a si mesmo, os homens se educam entre si, mediatizados pelo mundo. Paulo Freire - educador

    1 As tecnologias sociais podem aliar saber popular, organizao social e conhecimento tcnico-cientfico. Importa essencialmente que sejam efetivas e reaplicveis, propiciando desenvolvimento social em escala.

    As aes do PdC Engenhos de Farinha privilegiam a articulao comunitria e princpios da educao no-formal

  • 9As intervenes ocorridas entre 2010 e 2014 na Grande Florianpolis foram elaboradas de forma participativa com as famlias e grupos envolvidos. Buscou-se respeitar o carter voltil das conjunturas comunitrias, que variam de acordo com os mais diversos motivos: das estaes do ano aos contextos polticos locais, de questes familiares de sade ao calendrio de festas das localidades. Quando uma ao cultural considera esta sazonalidade - assim como devem observ-la cozinheiros e agricultores -, aliando-se aos ritmos comunitrios e inserindo-se neles no como corpo estranho, mas como um elemento fortalecedor, a temos um trabalho de base, ou o que

    preferimos chamar de trabalho de beija-flor. Aos poucos, foram sendo identificados

    atores, espaos e iniciativas estratgicas para se tornarem braos multiplicadores das aes do Projeto. Conselhos comunitrios, associaes de agricultores, institutos culturais, escolas, grupos de mes e de jovens e mdias locais foram

    mapeados e agregados a uma rede, atravs de reunies com seus representantes. Das parcerias mais consolidadas temos: em Angelina (SC), o Grupo de Mes e Amigas de Garcia e Coqueiros, e a Associao de Moradores de Coqueiros, o Grupo de Mes Nosso Espao e a Escola Fundamental Joo Frederico Heck. Em Florianpolis, a Escola Desdobrada da Costa da Lagoa, o Casaro e Engenho dos Andrade, a Associao Engenho, alm de mdias independentes como o Jornal da Lagoa, Portal Daqui na Rede e TV Floripa. Em Garopaba, a Associao de Produtores Orgnicos e Coloniais de Garopaba, a Associao Amigos do Meio Ambiente e o Projeto Gaia Village. Em Palhoa, o Grupo de Mes das Trs Barras e a Escola Reunida Municipal Bento Jos do Nascimento. O Instituto BoiMamo em Bombinhas e a Associao Comunitria Rural de Imbituba (Acordi), que realizam

    A batalha agora muito mais longa. As mudanas materiais,

    as relaes de propriedade, nem sequer so o mais

    importante. O fundamental so as mudanas culturais

    e estas transformaes exigem muitssimo tempo.

    Jos Mujica - Presidente do Uruguai

  • 10

    articulaes semelhantes com populaes ligadas ao modo de vida dos engenhos nas regies norte e sul do estado, so importantes parceiros territoriais. Alm destes, grupos de agricultores do Ncleo Litoral Catarinense da Rede Ecovida e outras escolas das redes municipais de ensino j receberam atividades do PdC Engenhos de Farinha.Estas articulaes tambm foram responsveis por

    delineamentos temticos dentro do plano de trabalho do Projeto, que foi ganhando seus recortes. O vis de gnero teve destaque no apoio s agricultoras dos grupos de mes de Palhoa e Angelina, que se renem periodicamente para a troca de experincias e produo de artesanato. Mes, agricultoras, artess: mulheres que assumiram o papel de multiplicadoras de aes culturais e ambientais devido posio central que ocupam na famlia e, portanto, na vida social e poltica das comunidades.

    Quando a educao afasta-se da cultura, ela perde sua alma e quando a cultura se afasta da educao, ela perde seu corpo. Clio Turino - historiador e idealizador

    do Programa Cultura Viva

    Da palha de milho que voava em nossos paiis descobrimos que podamos fazer lindas flores

    Catarina Gelsleuchter, articuladora do Grupo de Agroecologia Terra Viva.

  • 11

    o caso do Grupo Terra Viva de Agroecologia, que representa a Rede Ecovida em Angelina. Desde 2007 o Cepagro realiza capacitaes para gerao de renda junto

    a este grupo. A partir de 2011, com o foco histrico-cultural do PdC Engenhos de Farinha, iniciou-se um ciclo de oficinas que revolveram as memrias das prticas de subsistncia destas mulheres.

    Nestas oficinas surgiram modos de fazer sabo, remdios caseiros, processamento do urucum, esteiras e balaios de taboa, peri e taquara. O processo gerado culminou com formaes para a diversificao do artesanato que j produziam, visando retomada do manejo de fibras naturais. Estas atividades se tornaram um dos carros-

    O engenho roda, no apenas no seu ancestral e

    mecnico ofcio de produzir o alimento, mas tambm na sua funo contempornea

    de gerar sonhos.

  • 12

    chefes das aes do projeto e foram conduzidas pela facilitadora em economia solidria Mirian Abe.Recortes de gerao tambm foram demarcados pelas

    articulaes. O trabalho com as crianas nas escolas e com os adolescentes dos grupos de jovens formaram pblicos para cursos e oficinas diversas. Os adultos foram envolvidos em seminrios e aes com as universidades, enquanto os produtores, guardies dos saberes de engenho, se transformaram em professores nas oficinas de modos de fazer. Nestas atividades, o engenho de farinha foi se tornando uma extenso da sala de aula, um laboratrio para experimentar interfaces entre disciplinas convencionais como cincias, histria e geografia, e contedos informais como educao alimentar e ambiental.

    Jos Antnio Furtado (Zezinho), proprietrio do Engenho da Encantada, em Garopaba, recebe a visita da Escola Areias de Palhocinha, em 2011.

  • 13

    A antiga e rstica edificao do engenho, mais do que um museu, se transformou em um espao histrico-cultural e pedaggico, acolhendo atividades que agregam sentidos contemporneos a conhecimentos que estavam deixando de existir. Durante as oficinas de Modos de Fazer, o desafio foi transformar saberes tradicionais em contedos a serem apreendidos, e os detentores destes fazeres em professores, sem pender para o anacronismo ou para a folclorizao.

    Nos ltimos anos foi acesa a discusso sobre a importncia das populaes tradicionais e dos saberes cultivados pelos seus modos de vida no enfrentamento de questes sintomticas da sociedade, tanto em termos ambientais como sociais, principalmente em relao sade pblica. Estas

    culturas tambm guardam modos nicos de preservao da agrobiodiversidade e vnculos entre homem e natureza construdos durante sculos. So curandeiras, parteiras, raizeiros, cantadores, artesos, pescadores, agricultores e extrativistas detentores de conhecimentos empricos a cada dia mais imprescindveis. Da utilizao de matrias-primas locais na construo de casas ou confeco de instrumentos musicais aplicao de plantas medicinais em tratamentos caseiros, do cultivo de uma variedade de alimento ao aproveitamento de todas as suas partes em diversas receitas, do manejo de espcies crioulas de um rio s danas e cantos de celebrao, estes conhecimentos, que num passado recente foram negados para a afirmao do saber cientfico, j sofrem hoje um assdio por parte dos mesmos setores que os desmereceram.

    rodar o engenho

    Tudo girava numa complexa

    engrenagem composta no

    apenas por peas de madeira,

    mas por gestos e palavras

    Vivncias culturais e oficinas de modos de fazer

  • 14

    Relacionada de modo transversal a temticas econmicas e sociais, a cultura vem sendo considerada um motor da sustentabilidade. Este posicionamento ficou evidente durante a Rio +20, a Conferncia das Naes Unidas sobre Desenvolvimento Sustentvel realizada em 2012 no Rio de Janeiro. Nesta ocasio, a cultura foi decretada como o 4 pilar do desenvolvimento sustentvel, ampliando o trip prosperidade econmica, bem-estar social e preservao ambiental proposto 20 anos antes na Eco92, a primeira Conferncia.Paralelamente entrou em tramitao no Congresso

    Nacional o Projeto de Lei 1786/2011, que institui a Poltica Nacional Gri para proteo e fomento transmisso dos saberes e fazeres de tradio oral. O texto foi criado no mbito da Ao Gri Nacional que, atravs da articulao da Secretaria de Cidadania Cultural do MinC e do Ponto de Cultura Gros de Luz (Lenis, BA), busca a preservao das tradies comunitrias orais e a valorizao dos guardies destas memrias os Gris* como Patrimnio Cultural Brasileiro.

    *Os Gris so lderes que tm a misso ancestral de receber e transmitir os ensinamentos das e nas comunidades, como um fio condutor entre as geraes e culturas. O ser Gri ritualstico, sua vida formada por uma preparao onde ele tem o dever de escutar por um determinado tempo o que para aquela comunidade sagrado e posteriormente transmitir esses ensinamentos. Fonte: Ministrio da Cultura.

    D.Norberta fabrica chapu de palha da costa no engenho das Trs Irms, Palhoa (SC).

  • 15

    As oficinas de modos de fazer se tornaram uma mescla de repasses de tcnicas com narrativas de histrias de familiares, ao passo que muitos oficineiros se descobriram exmios professores, sendo reconhecidos pela educao formal e por especialistas. A prtica do feitio artesanal da farinha polvilhada e derivados de engenho reavivada

    O engenho de Angelina acolheu

    grupos que acompanharam o feitio artesanal de farinha polvilhada, melado, acar e

    a confeco de balaios de taquara

    com o mestre-engenheiro Celso

    Gelsleuchter.

  • 16

    O casal Celso e Catarina Gelsleuchter ministrou em 2012 um workshop sobre a mandioca durante o Terra Madre, encontro bianual do Movimento Slow Food em Turim, na Itlia. Falando em nome dos produtores de mandioca, eles compartilharam a mesa com pesquisadores e gastrnomos de renome internacional.

    anualmente na Farinhada do Engenho da Costa da Lagoa com o mestre-forneiro Zico e a famlia Ramos, ou em Santo Antnio de Lisboa, com os Andrade. s margens da Lagoa da Encantada, em Garopaba, o mestre Biega tomou pelo cheiro o ponto da torra da farinha e confeccionou manualmente peas de engenho at o fim da vida. Em Paulo Lopes, Osmar e Dionsia Marcelino se dividem entre a produo artesanal de farinha e de derivados como cuscuz, beiju e bijajica, assim como Joo e Rosa do Nascimento, da comunidade das Trs Barras, em Palhoa. Ali tambm vivem as trs irms Maura, Vilma e Incia do Nascimento, que se tornaram muito conhecidas na recepo de agroturistas e na transmisso de suas receitas de engenho. No tardou muito para que estes guardies dos saberes de engenho se aproprissem da importncia de suas experincias para a atualidade e assumissem espontaneamente seus lugares de gris.

  • 17

    Joo Victor e Augusto, jovens documentaristas das Trs Barras, registram a torrefao da farinha polvilhada no engenho do casal

    Joo e Rosa do Nascimento.

  • 18

    Como estmulo cultura digital, os primeiros aportes recebidos pelo Cepagro quando se transformou em Ponto de Cultura foram investidos em equipamentos de produo audiovisual: cmeras, trip, notebooks e uma ilha de edio. Com estas ferramentas foi possvel realizar o documentrio Velho Engenho Novo, resultado do mapeamento das propriedades que iriam compor a Rede dos Engenhos. Para facilitar a construo desta Rede e conect-la a possveis parceiros, criou-se o blog engenhosdefarinha.wordpress.com. Neste panorama, foram oferecidos, em 2012 e 2013, dois cursos que aproximaram ainda mais a linguagem audiovisual com os temas do escopo do projeto.O Curso Bsico Itinerante de Produo de Vdeo

    ocorreu entre maro e agosto de 2012, mediando um

    ATRAVS DAS LENTES#culturadigital no dilogo entre geraes

    Enfim, para avivar o velho e atiar o novo. Porque a cultura brasileira no pode ser pensada fora desse jogo, dessa dialtica permanente entre a tradio e a inveno, numa encruzilhada de matrizes milenares e informaes e tecnologias de ponta.Gilberto Gil

  • 19

    intercmbio entre adolescentes de 4 localidades da Ilha de Santa Catarina que esto ligadas ao modo de vida dos engenhos: Costa da Lagoa, Santo Antnio de Lisboa, Serto do Peri e Campeche. O objetivo era a produo coletiva de um vdeo atravs da abordagem de elementos bsicos do audiovisual como roteiro, linguagem e edio. Alm disso, foram discutidos os conceitos de urbano e rural e as interconexes entre estes universos no contexto de cada uma das comunidades, que compartilham formaes histricas semelhantes. Os adolescentes contaram no vdeo suas experincias nas expedies itinerantes pelos recantos da ilha em busca de memrias do passado de suas famlias, mesclando a linguagem ficcional com o documentrio. A vivncia do curso foi frutfera tambm para a equipe ministrante, composta por: Rafael Boeing, historiador e cineasta; Gabriella Pieroni, historiadora; Fernando Angeoletto, fotgrafo, Giliard Orionita, muselogo; Hlene Chauveu, gegrafa (pesquisadora da Universidade de Lyon), alm da parceria com Alex Vailati, cineasta e pesquisador do NAVI - Ncleo de Antropologia Visual da UFSC. Com uma equipe to vasta, os encontros do curso se tornaram campo para diversas experimentaes, que contriburam para pesquisas e para a construo de metodologias em mdia-educao e educao do campo. Dentro da mesma estratgia, o curso Patrimnios da

    Terra: Educao Patrimonial atravs da experincia audiovisual ocorreu entre outubro de 2013 e fevereiro de 2014 numa articulao com a Escola Reunida Municipal

    Prof. Bento Jos do Nascimento, na comunidade das Trs Barras, em Palhoa. Desta vez, a metodologia utilizou as categorias de Patrimnio Cultural Imaterial do Iphan (modos de fazer,

    *Cultura digital um conceito que parte da ideia de

    que a revoluo das tecnologias digitais

    , em essncia, cultural e de que o uso de tecnologia

    digital muda os comportamentos. O

    uso pleno da Internet e do

    software livre cria possibilidades de

    democratizar os acessos

    informao e ao conhecimento,

    maximizar os potenciais dos bens

    e servios culturais e potencializar a

    produo cultural, criando inclusive novas formas de

    arte. Fonte: Ministrio da

    Cultura.

    Durante o curso Patrimnios da Terra, pescador do Rio Madre compartilha conhecimentos com jovens das Trs Barras.

  • 20

    edificaes, formas de expresso, celebraes e objetos), tratadas pela historiadora Gabriella Pieroni, e contedos sobre audiovisual, abordados pela realizadora Sandra Alves, da produtora Vagaluzes Filmes. Focadas em registros da agri(cultura) e da pesca artesanal, nas sadas para captao de imagens foram registrados feitios de farinha e processados de engenho, trajetos de barco pelo Rio da Madre, visita ao Parque Estadual da Serra do Tabuleiro, alm de entrevistas com mestres da tradio oral de suas comunidades.

    O termo tradio remete transmisso oral de conhecimentos e valores atravs do tempo. No entanto, para que seja aberto este canal de dilogo entre tempos histricos e valores culturais distintos, preciso que os elementos a serem transmitidos utilizem linguagens que se comuniquem sem rudos com a contemporaneidade. Neste sentido, torna-se equivocado conceber a tradio como algo estanque, cristalizado no tempo, ou de uma autoridade inquestionvel. Quando isso acontece, h o risco da proliferao de violncias e aprisionamentos no cultivo de culturas autoritaristas, machistas e que legitimam desigualdades. Para se questionar uma tradio preciso conhec-la, para ento agregar-lhe outros sentidos, comuns e atuais. No fenmeno da mundializao, os valores dos povos tradicionais passam a estar num contato mais frequente com novas prticas, muitas vezes influenciadas por uma indstria cultural. As metodologias do projeto, baseadas nos encontro entre tradio e inovao, mostraram que a cultura digital pode ser considerada uma aliada da difuso da diversidade cultural, operando nas fronteiras entre as culturas e promovendo saudveis dilogos, mesmo que conflituosos. No trato das culturas tradicionais de engenho, a equipe do projeto avaliou que, mais do que resgatar ou reforar identidades de uma ou outra cultura, o interessante mesmo foi expor estas tradies diferena.

    Dizer atravs do tempo, dizer atravs das lentes

  • 21

    NA DESCOBERTA DO SABOR

    o prazer ldico de degustar histrias e alimentosOs envolvidos no Projeto foram descobrindo que este se tratava no apenas de um Ponto de Cultura, mas tambm de agri(culturas). As reflexes deixaram claro que a perda dos modos de fazer e da

    Conhecer as manhas e as manhs, o

    sabor das massas e das mas

    Almir Sater

    Atiar a curiosidade das crianas um dos primeiros passos das Oficinas do Sabor que constituem outro eixo fundamental das metodologias experimentadas pelo Ponto de Cultura Engenhos de Farinha. Estas atividades combinam a educao alimentar com a valorizao da histria dos alimentos e populaes tradicionais atravs de seus sabores.

  • 22

    agrobiodiversidade implica tambm no desaparecimento de diversos sabores. A padronizao e pasteurizao dos alimentos industrializados, com aromatizantes e conservantes qumicos, diminui a sensibilidade dos receptores degustativos do corpo. Pouco a pouco, as pessoas que comem muito estes produtos perdem a capacidade de reconhecer e apreciar os aromas e sabores naturais. A alimentao proporcionada pela monocultura extensiva do agronegcio nos furta, alm da sade, o direito ao prazer, bandeira central do movimento Slow Food. No caso do pblico infantil a questo se agrava, pois um

    bombardeio publicitrio estimula o consumo de doces, salgadinhos, refrigerantes e enlatados com alto teor de acar, gorduras ou sal e com baixo valor nutricional. Nos ltimos anos, esta realidade provocou uma alterao nos indicadores de insegurana alimentar da FAO (Organizao das Naes Unidas para Alimentao e Agricultura) que, alm da desnutrio, passou a considerar tambm os problemas de obesidade, hipertenso e diabetes, inclusive em crianas. Trazendo para o contexto local, uma pesquisa recente do Departamento de Nutrio da UFSC aponta que a obesidade j alcana quase 10% das crianas de 6 a 10 anos em Santa Catarina. S em Florianpolis, 18% dos meninos e meninas nesta faixa etria apresentam sobrepeso, mostrando como a ingesto mnima de calorias nem sempre sinnimo de alimentao de qualidade.

  • 23

    Buscando contribuir para a superao deste quadro, o PdC Engenhos de Farinha passou a fortalecer o eixo de Agricultura Urbana do Cepagro, que j aposta em prticas de educao alimentar associadas agroecologia atravs do Programa Educando com a Horta Escolar e a Gastronomia (PEHEG). As atividades realizadas em conjunto ao longo de 2013 agregaram valor a ambas iniciativas. As aes contaram tambm com a experincia acumulada na atuao do PdC no movimento Slow Food, que tem a educao sensorial como foco de trabalho. Deste modo, os chefs de cozinha do Convivium Mata Atlntica/Slow Food Fabiano Gregrio e Philipe Belletini se tornaram educadores do gosto, colaborando na construo e execuo de metodologias que conciliaram temas diversos em torno da mesa.

    O PEHEG realiza aes pedaggicas

    que buscam promover a

    segurana alimentar e nutricional dos

    estudantes e trabalhar a educao ambiental atravs de

    atividades agrupadas em trs

    eixos: O lixo e a reciclagem, A Horta

    Escolar e Alimentao

    Saudvel. A equipe tcnica do Cepagro foi responsvel pela implementao do Programa na Rede

    Municipal de Ensino de Florianpolis

    entre 2010 e 2013.

  • 24

    Em 2013, foram realizadas 18 sadas a campo com crianas da rede pblica de ensino no CICLO VIVENGENHO Da roa ao prato: pass(e)ando pelos engenhos de farinha, que tem duas aes centrais: A escola vai ao engenho e O engenho vai escola. Na primeira, alunos e educadores visitam os engenhos para conhecer e praticar o cultivo e processamento da mandioca, tendo em vista os aspectos histricos e culturais ligados produo. Nestas visitas, agricultores, chefs de cozinha e educadores ambientais cooperam em dinmicas que envolvem oficinas sensoriais, degustaes de produtos agroecolgicos, contao de histrias, desenhos e exibies de filmes. J quando O engenho vai a escola, as mesmas metodologias so levadas s salas de aula, conciliadas transversalmente com disciplinas como histria, cincias e arte.

    O estudante Eduardo Homem, de 8 anos, quer ser chef de cozinha quando for adulto. Seu interesse o levou cozinha da Escola Bsica Municipal Dilma Lcia dos Santos, em Florianpolis, onde o graduando em Gastronomia Diogo Pires lhe mostrou um pouco da preparao do almoo Slow Food servido naquele dia durante um evento do PdC Engenhos de Farinha.

  • 25

    Tecer a teiaA cultura agroalimentar dos engenhos

    nos movimentos sociaisUma trama agindo em sinergia, tendo os eventos do PdC Engenhos de Farinha como ponto sensvel de contato, foi surgindo ao longo destes 4 anos de atividades. Teias culturais agroecolgicas foram tecidas a partir do contato com outros movimentos e organizaes que partilham de princpios como a manuteno da agroviodiversidade e

    O Cultura Viva Comunitria (http://culturavivacomunitaria.org/cv/) uma plataforma digital que rene Pontos, Pontes e Pontinhos de Cultura espalhados em doze pases da Amrica Latina: Argentina, Bolvia, Brasil, Chile, Colmbia, Costa Rica, El Salvador, Guatemala, Honduras, Mxico, Peru, Uruguai. Por meio de iniciativas de arte, educao e comunicao popular, cada um destes fios visa fortalecer o tecido cultural comunitrio para promover transformaes sociais.

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    diversidade cultural. As relaes desenhadas e fortalecidas nestes eventos embasam a prpria criao do Ponto de Cultura Engenhos de Farinha que, partindo de aes localizadas na Grande Florianpolis, busca traar pontos em comum com parceiros de atuao local e global para o apoio mtuo entre iniciativas. Assim, somam-se as histrias de lutas de movimentos sociais contemporneos como a Rede Ecovida de Agroecologia o Movimento Slow Food Brasil e a Rede Cultura Viva Comunitria, esta que expande a ideia da Cultura Viva nas articulaes latinoamericanas.

    Criado em 1986 na Itlia, o Movimento Slow Food (www.slowfood.com) pauta-se pelo princpio de que os alimentos tm que ser bons (frescos, saborosos e saudveis), limpos (produzidos e consumidos sem causar danos ao meio-ambiente ou sade das pessoas) e justos (com preos acessveis para os consumidores e sem implicar na explorao da fora de trabalho de quem o produz). Atualmente rene mais de 100 mil membros em 150 pases.

    Formalizada em 1998, a Rede Ecovida de Agroecologia (www.ecovida.org.br) rene cerca de 3 mil famlias de agricultores, alm de tcnicos e consumidores em 170 municpios do Rio Grande do Sul, Santa Catarina, Paran e So Paulo. Organizados em grupos locais e ncleos regionais, estes atores implementam a certificao participativa de alimentos orgnicos, num processo que fortalece a agricultura familiar e serve de referncia para outras entidades dentro e fora do pas.

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    DilogosOs seminrios do PdC Engenhos de FarinhaO carter autnomo do trabalho em rede demanda encontros peridicos, fundamentais para o amadurecimento dos debates e das estratgias de ao em coletivo. Neste sentido, foram realizados 7 seminrios entre 2010 e 2013 para firmar os enlaces desta teia.

    Agricultora urbana e agente comunitria da Revoluo dos Baldinhos Lene Rodrigues e os produtores da Rede Ecovida Zezinho Furtado e Catarina Gelsleuchter compartilham o alimento no Engenho dos Andrade

    O encontro precursor foi em dezembro de 2010, no Engenho dos Andrade, em Santo Antnio de Lisboa, celebrando o Dia da Terra Madre, data do Movimento Slow Food que comemora o alimento local, limpo e justo. Dentro de uma primeira movimentao da Rede dos Engenhos e procurando consolidar vnculos entre o Cepagro e seus pares locais do Slow Food, foram convidados representantes das propriedades mapeadas e do recm-formado Convvio Engenhos de Farinha. Ali foram consolidadas duas caractersticas dos eventos seguintes: a celebrao da pluralidade das matrias-primas locais catarinenses presente nos pratos elaborados pelos eco-chefs do Convvio Mata Atlntica e a escolha do Dia da Terra Madre como data-referncia do grupo.

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    O engenho de Angelina sediou o Dia da Terra Madre da Rede Slow Food/SC de 2011.

    O Dia da Terra Madre 2011, sediado em Angelina, saiu do eixo urbano para o stio de Catarina e Celso Gelsleuchter agricultores ligados Rede Ecovida de Agroecologia e ao Movimento Slow Food - compondo um dos 1022 eventos realizados mundialmente para a celebrao da data naquele ano. A maior variedade de organizaes presentes contribuiu para a diversificao do debate, que contemplou a cadeia alimentar em todas as suas etapas: da gesto comunitria de resduos orgnicos preservao das matrias-primas do estado, passando tambm pela apresentao do Circuito de Comercializao da Rede Ecovida.

    Realizado em maio de 2012, o 8 Encontro Ampliado da Rede Ecovida de Agroecologia reuniu mais de mil agricultores familiares do Sul do Brasil na UFSC Universidade Federal de Santa Catatina, em Florianpolis. Na programao, o 3 Seminrio PdC/Slow Food interagiu com a Feira de Saberes e Sabores, montada na praa central da Universidade, trazendo degustao de pratos preparados com matrias-primas dos Convivia e Fortalezas e oficinas de percepo sensorial.

    De volta Florianpolis, o Dia da Terra Madre 2012 aconteceu no stio pedaggico Flor de Ouro, integrante da Rede Ecovida. Alm do coletivo Slow Food/SC, o seminrio contou com a participao das crianas do Pontinho de Cultura Alecrim Dourado e do grupo cnico-musical Cantadores de Engenho, ambos parceiros do Instituto BoiMamo, de Bombinhas (SC).

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    Expandir a discussoO Ciclo Patrimnio Agroalimentar em DebateA consolidao da rede catarinense do Slow Food foi um desdobramento dos eventos realizados entre 2010 e 2012. A partir da, o coletivo PdC/Slow Food percebeu a necessidade de aprofundar temas j amadurecidos internamente. A discusso foi levada para universidades e escolas durante eventos multidisciplinares envolvendo as comunidades de base, formando o Ciclo Patrimnio Agroalimentar em Debate que, em 2013, completou 4 edies. Nestes seminrios, agricultores, pesquisadores, estudantes, mestres de engenhos e representantes governamentais e da sociedade civil, entre outros setores, discutiram solues pertinentes salvaguarda dos saberes tradicionais ligados a cadeias agroalimentares locais, alm de formas de apoio produo e comercializao de produtos e servios dos territrios articulados pelo Cepagro e pelo coletivo Slow Food/SC.

    I Patrimnio Agroalimentar em Debate, maro de 2013, IFSC.

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    Celebrando as manifestaes culturais dos engenhos na roda de ratoeira com os parceiros do Engenho do Serto em Bombinhas.

    Foi com auditrio lotado e mesa farta que pesquisadores, representantes de entidades governamentais, da Rede Ecovida e do Movimento Slow Food, lderes extrativistas, agricultores, estudantes, professores e eco-chefs discutiram as diversas relaes entre saberes tradicionais, alimentao e cadeias produtivas durante o primeiro seminrio do ciclo Patrimnio Agroalimentar em Debate, realizado em Maro de 2003 no campus Continente do Instituto Federal de Santa Catarina (IFSC), em Florianpolis. A busca de alternativas para o funcionamento de engenhos artesanais de farinha de mandioca que combinem a preservao da sua atividade como patrimnio cultural com a legalizao e valorizao dos seus produtos foi um dos temas discutidos. Tambm foram abordados as conquistas alcanadas e os impasses enfrentados pelos pescadores artesanais das Reservas Extrativistas Marinhas do Pirajuba e da Ibiraquera, representados ali por suas lideranas.

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    Com a tnica de que os engenhos no morreram, uma intensa troca de saberes, experincias e at mesmo receitas marcou o segundo seminrio do ciclo, promovido em maio de 2013 no Museu Comunitrio Engenho do Serto, em Bombinhas, integrando tambm a programao da Semana Nacional de Museus. Promovido pelo PdC Engenhos de Farinha em parceria com o Instituto Boi Mamo, o evento reuniu representantes da Epagri, Univali, Fundao de Cultura da Prefeitura de Bombinhas, estudantes do ensino mdio e mestres de engenho locais. Nesta etapa, as atividades estiveram focadas na farinha e outros derivados da mandioca. Aps uma rodada de visitas a engenhos, que naquele ms estavam em plena ao, os participantes discutiram a importncia destes espaos tanto para a preservao da memria e dos saberes tradicionais ligados gastronomia quanto para o sustento financeiro e a segurana alimentar das comunidades envolvidas na produo.

    O terceiro seminrio do ciclo ocorreu em Rancho Queimado durante o encontro do Ncleo Litoral Catarinense da Rede Ecovida, em setembro de 2013. Reunidos no Engenho da Famlia Junckes, os agricultiores debateram o futuro da produo de mandioca e derivados. Tambm realizaram com a mediao da equipe do PdC, um diagnstico participativo e planejamento estratgico da atividade agri(cultural), alm de um mapeamento de roas e engenhos do territrio.

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    Patrimnio Agroalimentar em debate na Escola Dilma Lcia, Florianpolis.

    Com a nfase dada educao nas atividades do PdC em conjunto com o PEHEG ao longo de 2013, a equipe resolveu levar este debate para dentro da escola com o apoio do PdC Baleeira. Assim, a Escola Bsica Municipal Dilma Lcia dos Santos, em Florianpolis, recebeu o 4 Patrimnio Agroalimentar em debate, com o tema Sul da Ilha Unido pela Segurana Alimentar. Professores, nutricionistas, representantes de Conselhos de Segurana Alimentar e Nutricional e de Alimentao Escolar, da Secretaria Municipal de Educao e da Rede Ecovida de Agroecologia e membros da comunidade discutiram a qualidade da alimentao no contexto escolar. Os estudantes assistiram ao documentrio Muito Alm do Peso e participaram de oficinas do gosto. O evento comemorou tambm o Dia da Terra Madre, com os chefes do Convivium Mata Atlntica/Slow Food, preparando as refeies da escola com ingredientes exclusivamente orgnicos.

  • PEDRAS NO CAMINHODesafios histricos na manuteno da cultura e economia

    dos Engenhos de Farinha

    A abordagem do Cepagro sobre os engenhos de farinha v os aspectos produtivos e culturais como peas de uma mesma engrenagem, um diferencial em relao a aes que olham para estes espaos e saberes apenas pelo vis preservacionista da memria ou da

    identidade aoriana. O que sobressai no contato com as comunidades que os engenhos de farinha no morreram enquanto agroindstrias familiares e a retomada desta produo inaugura uma dinmica econmica embasada na agroecologia e no arcabouo histrico-cultural. Este incentivo

    produo e ao consumo de farinha e derivados surgiu como soluo criativa para preservar a espontaneidade destas

    O ser culturalmente diferente no deve ser sinnimo de ser pobre e para superar a pobreza no deve-se

    renunciar riqueza cultural existente nas reas ruraisJaime Urrutia, historiador e antroplogo, Centro Regional para

    a Salvaguarda do Patrimnio Imaterial da Amrica Latina

    Legislaes sanitrias e ambientais e a evaso do jovem no campo so entraves a serem superados pelas famlias proprietrias de engenhos artesanais.

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    manifestaes culturais, alm de ser uma estratgia em desenvolvimento rural sustentvel. O crescimento da procura por farinha polvilhada artesanal, o aumento no preo da mandioca e ainda o reconhecimento destes alimentos pelos ramos da gastronomia e nutrio so alguns dos maiores indcios de que a roda dos engenhos no deve parar. Apesar de um cenrio positivo estar se desenhando para a manuteno desta produo, alguns entraves histricos ainda so enfrentados pelas famlias proprietrias de engenho e precisam ser superados. Um dos mais graves o surgimento de normatizaes

    restritivas no espao de trabalho do engenho de farinha por parte da vigilncia sanitria, apontado por bibliografias e pelos prprios produtores como grande vilo no declnio da produo e brusco desaparecimento dos engenhos de farinha no estado desde a dcada de 60. Um adendo legislao sanitria exigindo paredes de azulejo nos espaos de produo de alimentos ocorrido em 1976 o mais citado. Desde ento, por descaso e invisibilidade, os engenhos de farinha vm sendo enquadrados de forma equivocada em normas elaboradas para estabelecimentos produtores/industrializadores de alimentos, onde no so consideradas suas especificidades tcnicas e espaos tradicionais. Esta questo tambm vem comprometendo outros sistemas agroalimentares locais, sendo o caso mais emblemtico o dos queijos fabricados com leite cru, tcnica condenada, mas que preserva sabores nicos e tradies seculares. No Brasil, os instrumentos legais que protegem estes produtos ainda so incipientes se compararmos a alguns pases da Europa onde o turismo gastronmico tem relevncia econmica e que, por isso, mantm chancelas como indicaes geogrficas e denominaes de origem para os alimentos.

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    Para lidar com estes desequilbrios est em marcha um processo de incluso produtiva com segurana sanitria das atividades de processamento dos derivados da agricultura familiar por parte da Agncia Nacional de Vigilncia Sanitria (Anvisa). A partir da incidncia poltica ativa de representantes da sociedade civil como o Frum da Soberania e Segurana Alimentar e Nutricional e Frum Brasileiro de Economia Solidria, reivindica-se um olhar diferenciado para estas atividades. Em 2012, foi aberta uma consulta pblica sobre o tema, que culminou na aprovao, em outubro do mesmo ano, de uma resoluo que racionaliza, simplifica e padroniza procedimentos e requisitos de regularizao do microempreendedor individual (MEI) e do agricultor familiar junto ao Sistema Nacional de Vigilncia Sanitria.

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    A ao faz parte do Programa Brasil Sem Misria do governo federal.O PdC opinou nesta consulta pblica e buscou absorver este processo ao longo do ciclo Patrimnio Agroalimentar em Debate, reunindo rgos como IPHAN, Epagri, Cidasc e Conselhos de Segurana Alimentar e Nutricional e de Alimentao Escolar para se posicionarem diante do tema. Espera-se que os registros de bens culturais imateriais tambm venham somar nestes avanos legais para a salvaguarda dos sistemas agroalimentares locais, pois a arbitrariedade das normatizaes apenas de carter punitivo compromete bens histricos e culturais, como o caso do azulejamento e da troca de materiais de telhado nos engenhos de farinha, alm de alteraes nas tcnicas de processamento. Legislaes ambientais que condenam prticas tradicionais de plantio tambm so costumeiramente citadas por produtores de farinha como responsveis pela decadncia da produo de mandioca em Santa Catarina. A questo atual e polmica quando se tratam de prticas advindas de sistemas agrcolas quilombolas e indgenas, ligadas ao modo de vida destes povos. Os entraves apontados, somados falta de polticas de apoio agricultura familiar, agravam o principal limitante colocado pelos guardies das manifestaes culturais e espaos histricos dos engenhos de farinha: a evaso do jovem do campo e, principalmente, o desinteresse destas novas geraes pelas atividades tradicionais. Trs questes despontaram nos debates do PdC Engenhos de Farinha para a superao destes desafios: a necessidade da construo de polticas pblicas participativas e transversais - que possam inclusive unir aes entre os Ministrios da Cultura, do Desenvolvimento Agrrio e do Meio Ambiente, tendo a cu ltura agroa l imentar como e lo- , o avano nos instrumentos legais especficos que olham para estas atividades e a valorizao destes alimentos e conhecimentos por parte de um mercado consumidor mais consciente.

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    Diagnstico Coletivo no Encontro do Ncleo Litoral Catarinense

    Durante o Encontro do Ncleo Litoral Catarinense da Rede Ecovida, realizado em setembro de 2013 em Rancho Queimado (SC), produtores de mandioca, proprietrios de engenho e equipe tcnica do Cepagro se reuniram para discutir questes em comum, utilizando a metodologia participativa FOFA. Atravs de um dilogo mediado, foram identificadas coletivamente fortalezas e fraquezas (entendidas como questes internas dos grupos) e oportunidades e ameaas (de agentes e parceiros externos) para a manuteno da cultura e economia dos engenhos.

    - Valor histrico e cultural- Cuidados especiais com a produo- Produo de alimentos com alto valor nutricional- Muita diversidade- Ligao com a histria e memrias das famlias- Amor pelo trabalho e pela natureza- Sade da famlia

    - Influncias das alteraes climticas na produo- Novas geraes abandonam as atividades agrcolas- Apelo ao uso de agrotxicos no cultivo- Perda das qualidades de aipim (agrobiodiversidade) e principalmente de mandioca (indicada para produo de farinha e derivados)- Pouca tecnologia de produo- Depreciao das edificaes e engrenagens dos engenhos com o passar do tempo

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    - Rede Ecovida de Agroecologia- Ponto de Cultura Engenhos de Farinha/CEPAGRO- Movimento internacional Slow Food- Compras Coletivas Ecossolidrias- Agroturismo/Acolhida na Colnia- Possibilidade de prestao de servio em educao, cultura e turismo- Registro dos modos de fazer dos engenhos como Patrimnio Cultural Imaterial- Feiras agroecolgicas- Motivaes para os jovens se manterem nas atividades

    - Pouco apoio governamental para a agricultura familiar- Diminuio dos produtores- Polticas pblicas pouco participativas- Falta de incentivo para o jovem se manter no campo- Perda de sabores antigos- Especulao imobiliria avanando sobre as propriedades agrcolas- Valorizao da lgica da sociedade de consumo em detrimento dos princpios do mundo rural- Rigidez nas normas sanitrias de classificao do produto produzido artesanalmente- Entraves das leis ambientais que condenam prticas tradicionais

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    Cultura eu acho que preservar aquilo que nossos antepassados deixaram. Porque se no cuidar deste patrimnio que eles deixaram espalhado por a,amanh ou depois eu vou perguntarpra minha filha O que um engenhode farinha?, No sei, pai. Mas, quandoela falar, se algum perguntar pra elano colgio aonde tem um engenho defarinha, Ah, l na minha casa tem umengenho de farinha agroecolgico!Zezinho, agricultor da Rede dos Engenhos e da Rede Ecovida

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    Na minha casa tem um engenho de farinha

    agroecolgicoA prtica agroecolgica nos engenhos de farinha tem um duplo potencial de ao. Ao mesmo tempo em que o engenho, enquanto ncleo familiar de produo , por excelncia, um local de vivncia e disseminao da agroecologia, esta desponta como ferramenta estratgica de salvaguarda da cultura de engenho estimulando, atravs de prticas econmicas diversificadas, a vivacidade desta expresso cultural e no a sua folclorizao. O engenho de farinha sempre foi ecolgico em sua

    essncia. No entanto, com as mudanas ocorridas no universo rural em consequncia da chamada Revoluo Verde, uma cadeia produtiva apoiada no uso de agrotxicos, mecanizao e monocultivo extensivo foi imposta s comunidades para a afirmao de um modelo de desenvolvimento urbano-indutrial. A agroecologia enquanto cincia representa um enfrentamento a este modelo, agregando os saberes locais em um conjunto de conceitos, princpios e mtodos que permitem estudar, manejar e avaliar um ecossistema agrcola, oferecendo diretrizes para uma agricultura mais sustentvel, ambientalmente sadia, socialmente justa e economicamente vivel.

    A minha propriedade eu trabalho toda ecolgica, eu no uso plstico, s uso a cobertura morta, t tentando trabalhar o mximo com composto feito na propriedade. Pra mim agroecologia a sade da famlia inteira, porque o nosso engenho ele no polui. Eu tenho nascente de gua no final da lomba e no pode ser um engenho que vai jogar a manipueria toda l e vai pro lenol fretico e vai poluir tudo. Ento eu fao uma captao da gua da manipueira e boto em bombonas que eu uso de inseticida na horta, a no vai nada pra terra. Zezinho - Engenho de Garopaba.

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    Algumas mudanas estruturais nos engenhos de farinha foram estimuladas pelo Cepagro, colocando em prtica o que seria um ideal de Engenho de Farinha Agroecolgico: espao diversificado de produo orgnica e certificao participativa, centro agroturstico, pedaggico e histrico-cultural que gera renda ao envolver famlias e comunidade nestas atividades. Alm do aproveitamento da manipueira - resduo da produo de farinha que em doses concentradas pode ser poluente - como inseticida biolgico para a horta, a tecnologia social do banheiro seco tambm foi incorporada ao modelo, respondendo necessidade de autonomia do engenho dentro da propriedade. Mais do que uma soluo ecolgica de saneamento bsico, o banheiro seco agrega o contedo da gesto de resduos s atividades de educao ambiental promovidas no engenho.

    O banheiro seco do Engenho da Encantada foi construdo atravs de uma oficina com a participao da comunidade.

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    A rede dos engenhos da grande FLORIANPOLIS

    Do mapeamento aos intercmbios

    Eu acho que muito bom porque quando a gente fica sozinho a gente enfraquece e quando fica junto com os outros a gente se fortalece. (...) Se a gente tem um fogo lenha, e tem diversos paus de lenha queimando ele continua queimando, mas se a gente tirar um e deixar ele queimando sozinho l, ele vai indo e apaga. Ento a gente se junta e um fortalece o outro e d nimo e passa algumas experincias. Catarina Gelsleuchter

    O trabalho em rede tem se revelado uma potente ferramenta de organizao social, que atravs da descentralizao abre portas para que realidades diversas possam conviver num coletivo, trocando experincias, articulando-se politicamente e promovendo intervenes conjuntas sem a necessidade de homogeneizar comportamentos, ideologias ou eleger lideranas nicas. O modelo acompanha as complexidades da sociedade contempornea, onde as tecnologias de informao aceleram as possibilidades de reconhecimento entre pares e a diversidade vem tona como um valor a ser enaltecido.

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    A criao da Rede dos Engenhos da Grande Florianpolis surgiu como espao de troca entre famlias com histrias peculiares e especificidades locais, mas que compartilham

    do ideal de manter seus lugares produtivos e elementos histrico-culturais vivos. Aps o mapeamento

    inicial, que originou a produo do vdeo-documentrio Velho Engenho Novo e do

    Mapa de Visitao dos Engenhos Artesanais da Grande Florianpolis, partiu-se para os encontros entre os proprietrios de engenho. Os espaos de intercmbio criados, alm de motivar a articulao poltica pelo reconhecimento de suas histrias de vida propiciaram ainda o exerccio da convivncia e coletividade. Apesar disso, um desafio ainda latente no

    desenvolvimento desta proposta a conquista da autonomia da Rede dos Engenhos da Grande Florianpolis, que ainda sobrevive a partir da mediao do Cepagro. Uma soluo encontrada para estimular a sustentabilidade desta rede foi construir o oramento do projeto de forma que, dentro dos limites do convnio assumido, fosse possvel investir o custeio das atividades nas comunidades envolvidas. Assim, as despesas com alimentao, transporte e material de consumo foram prioritariamente gastas nestas localidades, transformando o projeto em uma espcie de incubadora da Rede dos Engenhos no fomento gerao de renda, a exemplo dos cafs agroecolgicos, eventos e agroturismo. Esta metodologia foi crucial para o empoderamento destas famlias e pode servir como modelo de desenvolvimento territorial com identidade cultural e construo de polticas culturais nos municpios onde atua.

    Eu conheci vrios engenhos que no conhecia antes, um

    pouquinho diferente que o nosso. Uns tem umas coisinhas

    a mais, outras a menos, mas coisa de engenho

    tradicional mesmo. A troca de experincias vale muito.

    Zezinho

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    bem vindos aos engenhosMapa de Visitao dos

    Engenhos Artesanais da Grande Florianpolis

    10 km

    Bombinhas

    Porto Belo

    TijucasCanelinha

    So Joo BatistaNova Trento`

    Major Gercino

    Angelina

    Brusque

    Governador Celso Ramos

    Biguau

    Antnio Carlos

    Santo Amaroda Imperatriz

    Rancho Queimado

    So Jos

    Palhoa

    Paulo Lopes

    Garopaba

    So Bonifcio

    So Martinho Imbituba

    Florianpolis

    101

    101

    101

    282

    P O N T O D E C U LT U R A

    www.engenhosdefarinha.wordpress.com

    MAPA DE VISITAOEngenhos Artesanais de Florianpolis e regio

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    os ns da redeEngenho da Trs Irms

    As trs irms Incia, Maura e Vilma e a matriarca Norberta Nascimento

    Partindo da capital catarinense no sentido sul so apenas dois quilmetros que separam a movimentada rodovia BR 101 do universo rural da localidade das Trs Barras. Ali, trs irms compartilham suas vidas entre a roa e o Engenho de Farinha da famlia. Incia, Maura e Vilma no esquecem da prpria histria construda no entorno deste engenho. Juntas elas plantam, colhem, processam a mandioca e preparam

    deliciosas iguarias, de fama consagrada entre os apreciadores. A partir da participao em diversos projetos e principalmente do vnculo com o Cepagro, foram conquistando apoio para manter o engenho em p. Para isto, recebem grupos de visitantes e repassam seus saberes nas oficinas do Ponto de Cultura Engenhos de Farinha de forma espontnea e bem humorada. A receita da bijajica, quitute de base indgena e aoriana

    tpico do litoral sul, se tornou muito conhecida a partir da receita das trs irms, que j deram uma aula especial no Curso de Gastronomia do IFSC e foram convidadas para o evento anual da revista Prazeres da Mesa, em So Paulo. A sobrinha Jaqueline Prudncio, gegrafa e educadora, articuladora da comunidade e vincula os engenhos de farinha s atividades das escolas onde leciona. O engenho das Trs Irms, atualmente, compe os roteiros de cicloturismo da operadora Caminhos do Serto (www.caminhosdoserto.com.br) e da Expedio Gastronmica Mata Atlntica (www.mataatlanticaslow.org). Fica na estrada das Trs Barras (entrada direita aps o Restaurante Trs Barras da BR 101), Palhoa. Fone (48) 3283-9036 / 3283-9046

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    Engenho da Famlia Nascimento

    Ainda em Trs Barras, a poucos metros do Engenho das Trs Irms est o Engenho de Rosa e Joo, que tambm filho da matriarca Norberta. A famlia tem a honra de manter ativos os dois ltimos engenhos da localidade, que tambm c o n h e c i d a como Baixada dos Engenhos. Dona Rosa e Seu Joo tm enorme amor terra, pois dela sempre tiraram seu sustento. A farinha de mandioca ainda uma das principais fontes de renda do casal, que tambm produz a bijajica, o cuscuz e o beiju, alm de verduras agroecolgicas, que eles vendem nas feiras locais. Joo ainda mantm artesanais todas as etapas da produo, guardando tambm as ltimas variedades e roas de mandioca da localidade. A excelente farinha polvilhada produzida ali matria-prima do piro do tradicional restaurante O Navegador, no Rio de Janeiro, onde chega mensalmente pelos correios. Rosa, famosa pela habilidade culinria no preparo dos quitutes de engenho, uma das atuais guardis do feitio da bijajica para produo comercial, o que contribuiu para o produto entrar para Arca do Gosto do Slow Food, catlogo de matrias-primas e receitas em extino que merecem ser preservadas. O casal recebe visitantes e grupos de escolas para ensinar saberes e compartilhar seus sabores. (Entrada direita aps o Restaurante Trs Barras da BR 101), Palhoa. Fone (48) 9985-6845.

    O casal Joo e Rosa Nascimento mantm o engenho em funcionamento durante quase todo o ano, produzindo farinha polvilhada, beiju, cuscuz, bijajica e verduras.

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    Engenho da Encantada

    Situado no municpio de Garopaba, de fama internacional por suas belssimas praias aptas ao surfe, o engenho de farinha de Rose Furtado e Jos Antnio Furtado (Zezinho) reage intensa especulao imobiliria e decadncia scio-cultural causada pelo

    turismo de massa na regio. O engenho de farinha agroecolgico funciona com um banheiro seco e a manipueira aproveitada como insumo biolgico na horta da propriedade, que fornece frutas e verduras orgnicas para a merenda escolar do municpio. Zezinho herdou do pai a tcnica de reconhecer a farinha pelo cheiro. Filho nico de Seu Biega e Dona Cotinha, que trabalharam toda a vida na agricultura e na produo da farinha, chegou a abandonar o trabalho com a famlia para ser caminhoneiro durante 10 anos. Retornou casa e agricultura com o projeto de plantar alimentos orgnicos e manter o engenho de farinha em funcionamento. Seu stio Encanto dos Orgnicos est ativo h 12 anos e certificado pela Rede Ecovida. Rose, esposa de Zezinho, aprendeu a receita da bijajica da famlia e produz processados de engenho, pes integrais e geleias para feiras e eventos do Ponto de Cultura Engenhos de Farinha, com perspectivas da criao de uma agroindstria familiar. O stio ainda recebe escolas e grupos de agroturistas. Fica na Rodovia SC 343, km 7, pouco depois da entrada para a Praia da Barra, Garopaba. Fone (48) 9667-8719.

    O mestre Biega tomava o ponto da farinha pelo cheiro e construiu mo seu engenho beira da Lagoa da Encantada em Garopaba.

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    Engenho da Famlia Marcelino

    No municpio de Paulo Lopes temos o engenho de farinha da famlia Marcelino, tambm um dos ltimos de sua localidade ainda em funcionamento. Osmar Marcelino j trabalhou numa indstria farinheira, e hoje mantm seu Engenho de Farinha Artesanal dentro do stio agroecolgico certificado pela Rede Ecovida, onde produz farinha, beiju e cuscuz, vendidos em feiras e no prprio local. A proprietria Dionzia Marcelino uma das guardis das receitas tradicionais do litoral catarinense, a exemplo do piro de aorda e da bijajica. Em 2010, Osmar foi contar a histria da famlia na Itlia, representando os produtores de farinha polvilhada e os proprietrios de engenho de Santa Catarina no Terra Madre, evento internacional do Slow Food realizado a cada dois anos pela valorizao do produto local, limpo e justo. O engenho fica prximo praa central de Paulo Lopes, o acesso pela rua de terra esquerda do cemitrio da cidade. Fone (48) 9143-4497.

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    Engenho da Famlia GelsleuchterPelas colinas do

    municpio de Angelina, adentra-se um cenrio cultural de colonizao alem para chegar a Coqueiros, localidade rural onde est o engenho da famlia Gelsleuchter. ltimo ativo nesta regio, o engenho desfruta do potencial hdrico das encostas da serra,

    sendo movido por uma bela roda dgua. Alm de farinha e polvilho de mandioca, o casal de proprietrios Celso e Catarina produz mel, acar mascavo, melado e geleias orgnicas, entre outros quitutes tpicos. Buscando uma soluo ecolgica para suas prticas rurais diante do avano do uso de agrotxicos na regio, a famlia passou a integrar o Ncleo Litoral Catarinense da Rede Ecovida, recebendo o certificado de conformidade orgnica da propriedade em 2012. A unio rede do Ponto de Cultura Engenhos de Farinha potencializou o reconhecimento da propriedade como referncia em agroecologia em nvel regional e global. Em 2010 e 2012 o casal Celso e Catarina foi representar os produtores de farinha de mandioca na Itlia por ocasio do Terra Madre, encontro internacional do Slow Food, e em 2011 o engenho da famlia sediou a edio catarinense do Terra Madre Day. Catarina articuladora do grupo Terra Viva de Agroecologia (Rede Ecovida), que tem sua base nos grupos de mulheres das localidades de Garcia e Coqueiros. O marido Celso, com o apoio dos filhos Ricardo e Mrcio e do neto Juliano, mantm o engenho a plenos vapores na recepo de agroturistas, escolas, promoo de farinhadas e fornecimento de produtos para o grupo de Compras

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    Casaro e Engenho dos Andrade

    Coletivas Ecossolidrias. A encantadora propriedade possui uma rea estruturada para eventos, pomar e camping beira-rio. Fica a 20 km do centro de Angelina no sentido do distrito do Garcia, 1km depois de terminar o asfalto. Fone para agendamentos (48) 3274-1457 - ramal 33, [email protected]

    Situado na capital catarinense, o Engenho dos Andrade pode ser considerado o museu da farinha polvilhada de Santa Catarina. Ambientado num casaro de 1860 no bairro histrico de Santo Antnio de Lisboa, o nico engenho do estado tombado pelo Patrimnio Histrico Estadual (IPHAN), e por isso passou por uma restaurao completa em 2010. A famlia Andrade, proprietria do engenho, reconhecida no municpio pela promoo da cultura aoriana e da memria da colonizao. O engenho promove todos os anos a Divina Farinhada, que recebeu este nome por ter sido incorporada Festa do Divino do distrito, uma das mais tradicionais da cidade. Dentro do calendrio de festividades do espao cultural Museu Casaro Andrade tambm destacam-se a Festa do Carro de Boi e o concurso de forneiros, realizado no inverno durante a Farinhada. O engenho dos Andrade abre nos finais de semana das 10h s 15h para visitao e atividades culturais, boi-de-mamo e venda de produtos. Fica no Caminho dos Aores, 1180, Florianpolis. Fone (48) 3235-2572, [email protected]

    O Ponto de Cultura Arreda Boi da Barra da Lagoa se apresenta no Engenho dos Andrade

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    Engenho da Costa da LagoaCompe o cenrio da bacia da

    Lagoa da Conceio no seu recanto mais preservado, a Costa da Lagoa, comunidade que tem acesso apenas por barco ou trilha. Tradicionalmente de propriedade da famlia Ramos, descendentes de Benta e Manuel Ramos (Bil), o engenho do incio do sculo XIX foi vendido na dcada de 80, mas teve sua revitalizao garantida atravs da ao comunitria, que partiu de novos moradores. Nos ltimos 15 anos, a prtica feitio

    artesanal da farinha ganhou novos significados nesta comunidade que j foi grande expoente da produo na ilha de Santa Catarina. Com a gradual recuperao do terreno e edificao promovida pela Associao Engenho foi possvel iniciar uma ocupao diferente do espao que se transformou num centro cultural. Desde ento o engenho da Vila Verde acolhe iniciativas culturais, projetos e a j consagrada Farinhada da Costa da Lagoa, que ocorre todos os anos em agosto. Apesar de fazer parte da paisagem cultural do Caminho da Costa da Lagoa, tombado pelo IPUF , a sobrevivncia deste engenho ainda se encontra ameaada, pois os incentivos pblicos so frgeis e passageiros. Mesmo assim as Farinhadas nunca deixam de acontecer, fruto da autogesto da comunidade, da fora da tradio da famlia Ramos e do apoio de artistas, pesquisadores e apaixonados pela histria do local. Fica na Vila Verde, ponto 08 da barca da Cooperbarco, que parte do trapiche do centrinho da Lagoa, Florianpolis. Fones (48) 9941-1657 e (48) 9923-2942.

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    Museu Comunitrio Engenho do SertoMultiplicador da cultura dos

    engenhos no litoral norte de Santa Catarina, o Engenho do Serto tambm um Ponto de Cultura, o que contribui para que seja um importante espao de aprendizado e referncia histrica na comunidade de Bombinhas. Em 1997, com a aquisio de um antigo engenho de farinha, o Instituto BoiMamo iniciou um processo rumo preservao do patrimnio material e imaterial da regio com o compromisso de manter a memria cultural da comunidade expressa na arquitetura, gastronomia, literatura popular, danas, msicas, crenas, artesanato. Em 1999, alm de salvaguardar usos e costumes da pequena vila de pescadores recm-emancipada, iniciou-se outro desafio: mapear os demais engenhos de farinha dessa regio. Parte deste trabalho resultou no projeto aprovado pelo MinC/IPHAN para criao de um Museu Histrico na comunidade de Bombinhas. Desta forma, o Engenho do Serto, alm de atrativo turstico-cultural, tornou-se sobretudo referncia histrica da regio. Em 2007 foi inserido no cadastro nacional como Museu Comunitrio; em 2008 recebeu o selo Cultura Viva; em 2009 tornou-se o Ponto de Cultura Escola Terra Engenho do Serto. Em meio a causos e objetos da poca do povoamento aoriano, so realizadas oficinas de arte-educao sobre aspectos da cultura popular local e percepo ambiental para adolescentes, alm de aulas para ps-graduandos. Na primeira quinta-feira de cada ms realizada a Tarde do Beiju, Contos e Cantigas, iniciativa da Fundao Cultural de Bombinhas para promover o encontro da comunidade e trocar histrias, enquanto so feitos e saboreados alimentos tpicos dos engenhos. Rua Abacate, 452 Sertozinho, Bombinhas. Fone (47) 3393-3099, www.engenhodosertao.com.br/museu.

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    Engenho Comunitrio da ACORDI

    Engenho Colonial Famlia Junckes

    Foi montado como smbolo de resistncia de muitas famlias dos Areais da Ribanceira, regio do municpio de Imbituba que sofre com intensa especulao imobiliria e industr ia l izao. Os agricultores, que passaram por diversos episdios de desapropriao de suas

    terras, agora mobilizam-se em torno deste engenho e promovem a Feira da Mandioca de Imbituba em junho, nas comemoraes de So Joo. Contato: (48) 9608-4027 e 3255-7139, [email protected].

    Outro engenho roda dgua numa rea de colonizao alem, no municpio de Rancho Queimado. Alm de participar da associao de agroturismo Acolhida na Colnia, o stio tambm certificado pela Rede Ecovida. Ali

    so produzidos farinha de mandioca, mel, melado, morangos e hortalias (nem sempre disponveis para venda). Grupos a partir de 5 pessoas podem ver como o engenho funciona e degustar uma garapa feita na hora ( cobrada uma taxa de R$ 5). Fica na localidade de Rio Pequeno, a 17km do centro de Rancho Queimado. Fone (48) 9973-5431.

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    na trama da ecovidaOs engenhos na Rede Ecovida de AgroecologiaNa base da criao da Rede dos Engenhos da Grande Florianpolis est uma organizao social mais abrangente, a Rede Ecovida de

    Agroecologia, formada atualmente por 27 ncleos regionais, que por sua vez so compostos por cerca de 20 ONGs e 200 grupos de produtores em 170 municpios do Rio Grande do Sul, Santa Catarina, Paran e So Paulo. Juntos, cooperativas de agricultores familiares e consumidores, pequenos comerciantes, entidades de assessoria e pesquisadores promovem e viabilizam a agroecologia em suas regies. Enquanto referncia na construo da metodologia de Sistemas Participativos de Garantia, este movimento social vem protagonizando nos ltimos anos o debate acerca dos marcos legais da agricultura orgnica no Brasil. O histrico de lutas das entidades que formalizaram a Rede Ecovida em 1998 comeou na dcada de 70, em oposio ao modelo de produo do agronegcio implantado na ditadura militar com a Revoluo Verde. Atualmente, a Rede Ecovida um dos principais Organismos Participativos de Avaliao da Conformidade (OPAC) credenciado pelo MAPA, contando com mais de 1200 propriedades certificadas, enquanto outras 800 esto com o processo em andamento.

    Atravs da rede, agora ns somos conhecidos no territrio brasileiro como uma propriedade certificada como orgnico. Porque a Rede Ecovida agora ela uma certificadora que reconhecida dentro do Brasil todo. Zezinho, Rede Ecovida e Rede dos Engenhos.

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    O Cepagro articula e presta assessoria tcnica aos grupos do Ncleo Litoral Catarinense da Rede Ecovida, presente em 18 municpios do litoral e encostas da serra catarinense. Em 2012 este ncleo foi protagonista de uma conquista histrica para a agricultura familiar

    no Brasil, inaugurando o primeiro Box de produtos agroecolgicos em uma Ceasa do pas. Na ocasio, l estavam Catarina e Celso, os grupos de mes de Angelina e Palhoa, Zezinho e Rose, os chefes de cozinha Fabiano e Philipe e demais membros da equipe do PdC Engenhos de Farinha, celebrando juntos este marco. Desde ento, a promoo do Box 721, localizado em So Jos, na Grande Florianpolis, passou a ser um dos carros-chefes da atuao do PdC na capital, levando os produtos dos agricultores agroecolgicos como apresentao cultural em diversos eventos. A rede temtica formada a partir da articulao dos engenhos de farinha nasceu como fortalecedora dos grupos da Rede Ecovida nas comunidades tradicionais de plantio e processamento de mandioca e derivados. A existncia de um Ponto de Cultura dentro da Rede Ecovida potencializa uma das misses centrais desta organizao, que estimular o intercmbio, o resgate e a valorizao do saber popular. A atuao do projeto junto a estes agricultores proporcionou tambm a abertura de novas frentes de trabalho, extrapolando a produo de alimentos orgnicos e incentivando o agroturismo, a valorizao de produtos com identidade cultural e do artesanato com matrias-primas locais. Atividades que surgem como possibilidades de diversificao na gerao de renda das propriedades e colaboram nos debates pela construo de procedimentos para a certificao de tais produtos e servios dentro da Rede Ecovida de Agroecologia.

    Rede Dos Engenhos Da Grande Florianpolis No Encontro Do Nucleo Litoral Catarinense Da Rede Ecovida De Agroecologia

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    Do local para o mundialOs engenhos no Movimento Slow Food

    e Rede Terra Madre

    Comer um ato agrrio Wendel Berry, poeta e agricultor

    Produzir alimentos uma ato gastronmico Manisfesto Slow Food

    da combinao destas duas mximas, que sugerem uma viso menos compartimentada e mais poltica dos hbitos agroalimentares, que vem se formando a filosofia do movimento internacional Slow Food. Originado em 1986 e sediado no pequeno povoado italiano de Bra, o movimento uma resposta da sociedade civil degradao sociocultural e ambiental causada pelo modo de vida inspirado no fenmeno global do Fast-Food. O Slow Food amplia o olhar sobre padres insustentveis de produo e consumo de alimentos que esto acelerando os ritmos da vida e a extino do patrimnio agroalimentar mundial. Pela atualidade e relevncia dos temas que vem levantando nas ltimas dcadas - preservao da biodiversidade e povos tradicionais, valorizao das economias locais e da agricultura familiar -, o movimento conquistou em 25 anos de existncia a adeso de mais de 100.000 membros em 150 pases. Possui escritrios em sete pases, sendo que recentemente foi fundada a

    Comunidades do alimento de 150 pazes do mundo reunidas no Terra Madre 2010, edio do encontro bianual do Movimento Slow Food sediada em Turim, Itlia.

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    Associao Slow Food Brasil. A rede global conecta chefes de cozinha, agricultores, pescadores, consumidores, educadores, artistas e empreendedores sociais, que se organizam atravs de Convivia (grupos temticos locais), Fortalezas (grupos focados em alimentos em risco de extino) e comunidades do alimento (para apoio aos produtores). Todos estes atores se encontram a cada dois anos em Turim, na Itlia, para o Terra Madre e o Salone del Gusto, considerado a maior feira de gastronomia sustentvel do mundo. Tendo a FAO como parceira, o movimento estruturado institucionalmente atravs da Fundao Slow Food para a Biodiversidade e da Universidade de Cincias Gastronmicas, ambas situadas na Itlia. O Slow Food atua no seio do capitalismo de mercado, com scios e parceiros transitando da alta gastronomia turstica europeia a programas de combate fome e pela segurana alimentar e nutricional na Amrica Latina e frica. Atravs destas instituies, faz incidncia poltica junto a governos locais de diversos pases onde atua. Oficializada em 2013, a Associao Slow Food Brasil j conta com 40 convvia, espalhados por todas as regies do pas, sendo que 2 deles esto em Santa Catarina. A Rede Catarina Slow Food articula-se atravs de eventos e aes conjuntas entre os Convivia Engenhos de Farinha, articulado pelo Cepagro e PdC, e Mata Atlntica, composto principalmente por chefs de cozinha. O Convivium dos Engenhos de Farinha nasceu em 2007 sob a liderana de Cludio Andrade, e j comps a delegao brasileira no Terra Madre Itlia em 4 ocasies. Entre seus objetivos est o apoio a produtores e gestores culturais que mantm os espaos e saberes tradicionais dos engenhos vivos. Alm disso, busca salvaguardar a cultura dos engenhos, promovendo a troca de experincias sobre receitas e modos de fazer, bem como estimulando a educao patrimonial e alimentar e o fortalecimento mtuo de iniciativas. O grupo aberto participao de todos os interessados, bastando entrar em contato para participar das aes e se associar.

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    homens e mulheres de terra e mar

    Do rancho ao engenho a expresso biocultural do territrio

    Roda de raspagem da mandioca em racho de pesca. Ibiraquera (SC), 2010. Fotografia: Juliana AdrianoO litoral catarinense foi o destino dos povos guaranis que, desde as primeiras dcadas do sculo XVI, realizaram longas marchas guiadas por sua ancestral cosmologia, em busca da Terra sem Males. Com a chegada de famlias do Arquiplago dos Aores a partir de 1750, iniciou-se a ocupao que hoje matriz cultural do territrio. Para alm de construes identitrias e independente de suas origens, as populaes desta regio sempre foram de terra e mar. no entrelaamento das atividades da pesca artesanal e

    da agricultura familiar que as populaes desta costa construram sua sobrevivncia, seja ela fsica ou cultural, material e simblica. Os ranchos de pesca e engenhos de

    Aleluia, aleluia, peixe no prato farinha na cuia.

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    farinha se complementam enquanto espaos familiares de trabalho e encontro das comunidades que h sculos interagem com os recursos naturais ofertados pelo bioma da Mata Atlntica, mobilizando ancestrais conhecimentos.

    Difcil no ligar a pesca artesanal farinha. O pessoal

    da Ibiraquera agora t armando

    as tarrafas, as fotos da farinhada

    as tarrafas da tainha em cima

    do forno, branca de polvilho,

    pronta pra ser lanada ao mar

    quando chega a safra da tainha. nossa histria de pesca artesanal. De Ibiraquera a

    Paulo Lopes ainda tem engenhos,

    no desistam, a gente ainda quer continuar sendo,

    alm de pescador, agricultor.

    Maria Aparecida Ferreira, liderana

    comunitria da Resex Ibiraquera

    Aqui no litoral de Santa Catarina t acontecendo

    algo muito srio. A invaso de reas de pesca artesanal

    para construir grandes hotis, prdios, to correndo com todo pescador artesanal.Seu Vado, pescador da Reserva

    Extrativista Marinha de Pirajuba

    Sinuosos recortes geogrficos formam baas, lagunas, mangues e ilhas cobertos da mida e verde Mata Atlntica. No litoral catarinense, a paisagem responsvel por uma alta biodiversidade, aprazvel pesca, ao extrativismo e receptiva ao cultivo da mandioca.

    O sustento destas famlias garantido pelo encontro nutritivo e gustativo do pescado artesanal e da farinha fininha e branquinha produzida em Santa Catarina. A farinha polvilhada, o berbigo, a tainha, a anchova, a corvina, dentre inmeros peixes crioulos desta costa, se destacam nos pratos da culinria local, formando a base

    da alimentao das comunidades litorneas.O berbigo um molusco rico em minerais e de sabor

    sem igual, muito apreciado na gastronomia mediterrnea, onde conhecido como vongole. Seu extrativismo

    artesanal tradicional nos Ranchos de Pesca do litoral catarinense, onde encontrado em abundncia. Com foco na atividade, a Reserva Extrativista do Pirajuba est localizada na principal rea de expanso urbana da capital catarinense e foi decretada em contrapartida ao impacto causado pela construo de uma

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    rodovia s margens da baa centro-sul. Esta rea de baixio muito propcia coleta do berbigo e complementa a renda de diversas famlias de pescadores e extrativistas. Apesar da existncia de uma unidade de conservao no local, o extrativismo de berbigo caminha para a completa extino na comunidade e muitas famlias se encontram em situao de vulnerabilidade scio-ambiental.A secular pesca da tainha o milagre dos peixes do

    litoral de Santa Catarina. Toneladas de cardumes do pescado migram do extremo sul do continente para a costa catarinense em busca de guas mais quentes para a reproduo. Artesanal por excelncia, a pesca feita atravs do arrasto, reunindo comunidades inteiras

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    Muito mais que produzir comida para o corpo, a pesca da tainha e o feitio artesanal da farinha fornecem alimento para o imaginrio cultural destas comunidades, ao se transformarem em rituais sazonais de inverno. Reunindo as famlias numa mesma temporada de produo, fundem os gestos do trabalho a uma alegre celebrao pela fartura do alimento. A religiosidade da Festa do Divino e da Procisso de Nossa Senhora dos Navegantes, o folguedo do Boi-de-Mamo, as cantorias da Ratoeira e do Terno-de-Reis tambm so expresses que nasceram nos ptios dos engenhos de farinha e nas varandas dos ranchos de pesca, movimentando estes espaos nas demais estaes do ano.

    beira-mar num verdadeiro espetculo cultural. Apesar de seu valor histrico e importncia econmica, a atividade tambm se encontra ameaada pelos impactos da pesca industrial e pela situao de marginalidade que se encontra o pescador artesanal da zona costeira do pas.

    Festa de Nossa Senhora dos Navegantes na Costa da Lagoa, 2012

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    os locais da cultura local

    Referncias Culturais como construes coletivas usual que o universo da cultura receba um papel secundrio, coadjuvante aos aspectos polticos, econmicos, religiosos ou at mesmo ambientais de uma sociedade. No por acaso. Quando associada apenas ao lazer ou mera erudio, a cultura pode tornar-se uma clssica ferramenta de poder. O prprio Engenho de Farinha j esteve em meio a disputas pela construo de uma hegemonia poltica no estado de Santa Catarina entre a identidade germnica e a aoriana.Longe de serem neutras, as manifestaes

    culturais elaboram-se e so elaboradas na constante criao dos valores que conduzem as aes humanas. Decidir se um modo de falar, um lugar, uma

    cano ou um prato da culinria local ou no um elemento que deve ser cultivado por todos determinante para uma sociedade. Mas quem teria a legitimidade para fazer tais escolhas? A adoo da noo de referncia cultural no tratamento de tais temas, que surgiu a partir da dcada de 70 no Brasil, trouxe uma viso mais antropolgica da cultura, considerando que seus elementos no tem um valor por si s, pela deciso tcnica de um especialista ou poltica de um governante, mas devem nascer de processos de construo coletiva. A ideia prope o reconhecimento de espaos pblicos de construo e validao destes patrimnios culturais como as escolas, centros comunitrios, lugares de religiosidade e trabalho, hortas comunitrias, parques e praas em vez do arbitrrio e

    O campo dos valores no um mapa em que se tenham fronteiras demarcadas, rotas seguras, pontos de chegada precisos. , antes, uma arena de conflito, de confronto de avaliao, valorizao. Por isso, o campo da cultura e, em consequncia, o do patrimnio cultural, um campo eminentemente poltico. Ulpiano Bezerra de

    Menezes, historiador da cultura

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    oneroso financiamento de mega eventos ou da construo de monumentos e centros de cultura e folclore. Enquanto polticas centralizadoras em relao cultura permanecem, expresses vivas como o canto de lavadeiras, as tcnicas de pesca ou artesanato, ou mesmo a arte urbana dos grafites se encontram muitas vezes ameaados, sobrevivendo de iniciativas independentes. No Brasil, este modo de ver motivou a criao do

    Inventrio Nacional de Referncias Culturais (INRC) e o surgimento de polticas de salvaguarda de bens culturais imateriais e vem norteando at mesmo programas de democratizao da cultura como o Cultura Viva.

    Patrimnio no s o que voc toca, mas aquilo que te toca

    A ideia de patrimnio cultural foi ampliada. Ao lado de consagrados monumentos da arte e arquitetura, surgem em p de igualdade os modos de criar, fazer e viver, expresses que na Amrica Latina representam grande parte de nossa herana cultural, predominantemente oral. O registro de bens culturais de natureza imaterial foi criado em 2000 e regulamentado

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    em 2006 como instrumento legal, e sua metodologia de reconhecimento dos bens culturais j vem sendo apropriada por movimentos sociais brasileiros.

    Pensar em patrimnio agora, pensar com transcendncia, alm das paredes, alm dos quintais, alm das fronteiras. incluir as gentes, os costumes, os sabores, os saberes. No mais somente as edificaes histricas, os stios de pedra e cal. Patrimnio tambm o suor, o sonho, o som, a dana, o jeito, a ginga, a energia vital e todas as formas de espiritualidade da nossa gente. O intangvel, o imaterial.

    Gilberto Gil.

    O exemplo do Vale do Ribeira:direito a terra, preservao e cultura

    Localizado entre duas grandes metrpoles brasileiras, So Paulo e Curitiba, o Vale do Ribeira considerado um dos mais importantes corredores socioambientais do pas, com remanescentes da Mata Atlntica e uma grande diversidade cultural e biolgica. Atualmente ameaado por projetos de infraestrutura como a construo de estradas e principalmente de grandes barragens, o territrio e suas populaes esto sendo abalados pelo modelo corrente de desenvolvimento. Neste cenrio, o tema do direito terra surgiu abraado ao reconhecimento do patrimnio cultural atravs do Programa Inventrio de Referncias Culturais dos Quilombos do Vale do Ribeira. A demanda nasceu de 16 comunidades quilombolas e foi executada pelo ISA - Instituto Scio Ambiental. Num momento delicado de transformao do territrio onde vivem, estas comunidades optaram por lanar luzes em suas expresses culturais como forma de resistncia. Atravs de oficinas participativas que ocorreram entre 2010 e 2013, debruaram-se sobre sua prpria histria, trazendo tona modos de plantio e processamento de alimentos como o milho e a mandioca. Celebraes da religiosidade afrodescendente, lugares e edificaes de referncia cultural para as comunidades tambm foram reelaboradas, gerando acervos, publicaes e audiovisuais de grande valor para a luta poltica de preservao da regio, assim como para o patrimnio cultural brasileiro.

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    Mdio Rio Negro:pioneiros no reconhecimento da (agri)cultura da mandioca

    Em 2007, a Associao das Comunidades Indgenas do Mdio Rio Negro, utilizando a mesma metodologia do IPHAN, enviou uma demanda de registro do Sistema Agrcola Tradicional do Rio Negro como Patrimnio Cultural Imaterial. Novidade no tratamento de bens culturais, este sistema agrcola foi entendido ali como um conjunto formado por plantas cultivadas, espaos, redes sociais, cultura material, sistemas alimentares, saberes, normas e direitos, que esto enraizados no cotidiano de mais de 22 povos indgenas desta regio. Registrado em 2010 como Patrimnio Cultural Imaterial do Brasil, o Sistema Agrcola Tradicional do Mdio Rio Negro est ancorado no cultivo da mandioca brava com uma notvel quantidade de variedades de mandioca preservadas atravs de um mtodo tradicional de troca e plantio que prioriza, alm da produtividade da planta, a garantia de sua diversidade gentica. A coivara, modo de plantio por queima e pousio da terra abrindo clareiras na mata, outro saber fundamental para este sistema agrcola e evita o efeito degradante da monocultura. Encoivarar a terra para plantar uma herana cultural indgena ainda praticada em todo territrio brasileiro, mas que ironicamente vem sendo criminalizada pelas leis ambientais. O reconhecimento deste sistema agrcola abriu precedente para o processo de salvaguarda dos inmeros sistemas alimentares ligados mandioca em todas as regies do pas, incluindo o territrio do litoral catarinense.

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    Saber fazere fazer saber

    O modo de fazer a farinha polvilhada como bem cultural imaterial

    Ao longo de 2013, os membros da Rede dos Engenhos de Farinha foram esclarecidos atravs do PdC sobre os processos de salvaguarda nas polticas de Patrimnio Cultural Imaterial do Brasil. Uma forte demanda pelo registro da cultura ligada aos engenhos de farinha surgiu a partir do evento Patrimnio Agroalimentar em Debate, ocorrido em maro de 2013, quando agricultores e membros dos rgos pblicos IPHAN, Epagri e Cidasc participaram do painel Os engenhos e o patrimnio cultural. Diversas categorias passveis de registro foram aventadas

    A alva e fina farinha polvilhada derramada no meio-arqu do forno do engenho, sobe pelos ares, recobre os telhados e fantasia as pessoas que acompanham o seu peculiar modo de fazer, fruto da interpenetrao das culturas de base guarani e aoriana.

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    pelos envolvidos com base na metodologia do IPHAN: a Farinhada enquanto celebrao, o sistema agrcola de cultivo, o ofcio do forneiro. Por fim, o modo de fazer a farinha polvilhada de Santa Catarina foi escolhido como a forma de salvaguarda que mais se afina com as necessidades contemporneas de manuteno da cultura e economia dos engenhos. Tendo a entidade Cepagro como proponente e o PdC como espao de articulao, iniciou-se a construo de um dossi sobre estas expresses, com registros das atividades que ainda ocorrem por todo o litoral catarinense e encostas da serra, compondo um acervo de documentos fotogrficos, audiovisuais e textuais. Em 2014, cartas de anuncia e apoio das populaes envolvidas, parceiros, representaes culturais e cientficas diversas tambm se uniram ao processo participativo de indicao do modo de fazer a farinha polvilhada de Santa Catarina como bem cultural imaterial, que ser levado aos rgos competentes em nvel estadual e nacional. Espera-se que em breve este bem cultural figure ao

    lado do modo artesanal de fazer o queijo mineiro, registrado no livro dos Saberes em 2008, ou mesmo do ofcio das paneleiras de Goiabeiras, em Vitria (ES), registrado em 2002. O Crio de Nazar do Par entrou para o livro das Celebraes em 2004 e a Pintura Corporal e Arte Grfica da Etnia Wajpi do Amap foi reconhecida em 2002. Em 2005, foram registrados o modo de fazer a viola de cocho dos artesos do Mato Grosso do Sul e o Ofcio das Baianas do Acaraj da Bahia. Assim como estas, cerca de 30 expresses culturais brasileiras j foram reconhecidas como bens culturais imateriais nacionais e outras tantas encontram-se em processo de inventariamento. Um dos diferenciais que do legitimidade a este instrumento legal que qualquer organizao da sociedade civil pode propor o registro de um bem cultural, desde que esteja amparada pela anuncia dos detentores do bem a ser registrado.

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    O Po da TerraA mandiocultura nas razes do Brasil

    Macax e i r a , m a n i v a , a i p i m , cassava, uaipi, castelinha, xagala, candinga, moogo, mucamba ou simplesmente mandioca brava, mansa ou doce. Tantos so os seus nomes quanto os ttulos que vem arrecadando: po dos trpicos, po-de-pobre, po da Amrica, po do caboclo... E aquele mais carinhoso, a Rainha do Brasil, cunhado pelo estudioso da cultura brasileira Lus da Cmara Cascudo em meno sua versatilidade e onipresena na alimentao brasileira. A matria-prima dos engenhos de farinha foi presenteada ao litoral catarinense pelos guaranis, que trouxeram as primeiras ramas do tubrculo para a regio. Mais tarde, a mandioca tornou-se a soluo agroalimentar das famlias vindas dos Aores, que aprimoraram o seu processamento. Mas a famosa raz no exclusividade destas terras. Alm de dar em todos os biomas do Brasil, permanece entranhada na cultura de diversas regies. Por estes e outros atributos, cantada por repentistas, citada por poetas e ressaltada por autores como Gilberto Freyre e Josu de Castro, em obras-primas de interpretao do Brasil. A relevncia histrica do alimento a prpria expresso das diversidades culturais que vo do Mxico

    Seu Pedro, mandiocultor da Costa da Lagoa e a colheita da Farinhada, 2006. Fotografia Leonardo Lepch.

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    selva missioneira na Argentina, cobrindo a Amaznia, o semi-rido nordestino, o chaco paraguaio e tambm o sul do Brasil. Nestes territrios, uns usam o tucupi, outros apreciam uma boa tapioca, h aqueles que a cozinham com carne seca, outros com frutos do mar. E das farinhas nem se fala: da puba do norte polvilhada do sul, variveis de cores, sabores e texturas revelam modos de fazer muito antigos.

    Da oca de Mani Onu: alimento do sculo

    A ancestralidade da mandioca muito conhecida, mas sua contemporaneidade foi reforada pela Organizao das Naes Unidas para Alimentao e Agricultura (FAO), que a elegeu como alimento do sculo 21. Sua planta foi domesticada pelos povos do Brasil central e Amaznia h mais de 10 mil anos, sendo que h vestgios de 5 mil anos atrs modos de processamento e alimentao das

    variedades da raiz nestas regies. Atualmente, sabe-se que a mandioca cultivada e saboreada em mais de 80 pases, constituindo a base energtica da dieta de cerca de 500 milhes de pessoas.Atravs do Programa Economizar para Crescer,

    criado em 2013 pela ONU, a raiz brasileira foi declarada um cultivo prioritrio pela segurana e soberania alimentar dos povos na superao de crises scio-ambientais de vrios gneros. Recentemente, a mandioca se tornou tambm a queridinha dos profissionais da sade, visto que, em relao a outras fontes de carboidrato, libera a glicose mais lentamente para o corpo, alm de ser rica em vitaminas, fibras, calorias e isenta de glten. Por isso, sua produo e consumo muito estimulada no combate fome. Apesar de seus benefcios, este cultivar, mantido em grande parte pela

    Variado