livro edufes ronaldo azeredo o mínimo múltiplo incomum da poesia concreta

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    R O NAL D O

    A ZE R E D O

    concreta

    o mnimo

    mltiplo

    da poesia

    (in)comum

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    Editora filiada Associao Brasileira das Editoras Universitrias (Abeu)Av. Fernando Ferrari 514 Campus de Goiabeiras

    CEP 29 075 910 Vitria Esprito Santo, BrasilTel.: +55 (27) 4009-7852 E-mail: [email protected]

    Reitor |Reinaldo CenoducateVice-Reitora |Maria Aparecida Sanos Corra BarreoSuperintendente de Cultura e Comunicao |Ruh de Cssia dos ReisSecretrio de Cultura | Orlando Lopes AlberinoCoordenador da Edufes |Washingon Romo dos Sanos

    Conselho EditorialCleonara Maria Schwarz, Eneida Maria Souza Mendona, Giancarlo Guizzardi, Gilvan Venura da Silva, Glcia Vieira dos Sanos, JosArmnio Ferreira, Maria Helena Cosa Amorim, Sandra Soares Della Fone, Wilberh Clayhon Ferreira Salgueiro.

    Comit CientficoAlexandre de Pdua Carrieri, Alfredo Vizeu, Ana Crisina de Souza Vieira, Anna Marina Madureira Barbar Pinheiro, Anonia de LourdesColbari, Annio Pires, Cludio Gonijo, Cleverson Renan da Cunha, Denise Bomempo Birche de Carvalho, Diana Gonalves Vidal, Ed-mundo Incio Jnior, Eduardo Davel, Elen Crisina Geraldes, Evando Nascimeno, Fbio Vergara Cerqueira, Flvia Luciane Consoni, FlvioCarneiro, Goiandira Camargo, Henrique Anoun, Jaime Ginzburg, Jane Cruz Praes, Jos Heleno Rota, Jos Luiz Pereira Brites, Jos PedroLuchi, Jussara Maria Rosa Mendes, Lucdio Biancheti, Luiz Carlos Simon, Marcelo Paiva de Souza, Mrcio Seligmann-Silva, Marcos An-onio Lopes, Marcus Vinicius de Freias, Maria Manuela dos Reis Marins, Marlia Rohier, Michael Soubbonik, Muriel de Oliveira Gavira,

    Paulo Robero Sodr, Renan Frigheto, Renao Kilpp, Renao Lara de Assis, Rosani Umbach, Surama Conde S, Tarcsio Mauro Vago, ValerBrach, Vladimir Oliveira da Silveira.

    Reviso de Texto |Fernanda Scopel FalcoProjeto Grfico e Diagramao |Izabelly PossatoCapa |Izabelly Possato e Willi Piske JniorReviso Final | Marli Siqueira LeieFoto da Autora |Guilherme Ferrari

    Leie, Marli Siqueira, 1963-L533r Ronaldo Azeredo : o mnimo mliplo (in)comum da poesia concrea / Marli Siqueira Leie. - Viria : EDUFES, 2013. 136 p. : il. ; Publicao digializada

    Inclui bibliografia. ISBN: 978-85-7772-160-3

    1. Azeredo, Ronaldo, 1937-2006 - Crica e inerpreao. 2. Poesia concrea. 3. Poesia visual. 4. Lieraura experimenal. 5. Poesia brasileira - Hisria e crica. I. Tulo.

    CDU: 821.134.3(81)-95

    Dados Inernacionais de Caalogao-na-publicao (CIP)

    (Biblioeca Cenral da Universidade Federal do Esprio Sano, ES, Brasil)

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    VITRIA 2013

    MARLI SIQUEIRA LEITE

    R O NAL D O

    A ZE R E D O

    concreta

    o mnimomltiplo

    da poesia

    (in)comum

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    Dedico e agradeo:

    Aos netos de Azeredo: Alexandre, Henrique e Fbio.

    Ao grandioso matriarcado do poeta: Amedea, Carla, Ecila, Lygia,Da. Chiquita... e Soia e Beatriz, que vieram depois.

    Ao parceiro e amigo de Ro: Augusto de Campos.

    A Marcelo Tpia, por me coniar a antologia abortada do poetapara efeito de estudo.

    Aos professores doutores Lino Machado, Wilberth Salgueiro eMarcelo Paiva: pelo apoio intelectual.

    Capes: pelo incentivo pesquisa.

    A Graa: que me ensinou a ser gente.

    Aos Siqueira, aos Andrs, aos Batista Leite: pelas dores e delciasque vivemos juntos.

    A Dora, Henrique e Kak: amor maior.

    Poesia de pedra bruta, pedra pura, pedra prima?

    Augusto de Campos

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    SUMRIO

    PREFCIO ............................................................................................................................................................................................. 09

    PRELDIO ............................................................................................................................................................................................ 11

    PRENNCIO ........................................................................................................................................................................................ 12

    DO PLANO PILOTO CONCRETIZAO DO PROJETO ..................................................................................................... 15

    EXPERIMENTALISMO, POESIA VISUAL E POESIA CONCRETA:

    TRS NOES A SEREM ESCLARECIDAS ............................................................................................................................... 19

    O experimentalismo na literatura ............................................................................................................................................ 19

    Sobre a poesia visual ....................................................................................................................................................................... 21

    Sobre a poesia concreta ................................................................................................................................................................. 31

    O EXPERIMENTALISMO DO POETA: O MNIMO MLTIPLO COMUM DO GRUPO ............. ................... ............. 43

    Um breve histrico do carioca-paulista Ronaldo Azeredo ............................................................................................. 43

    Ronaldo Azeredo: Por que mnimo? Por que mltiplo? Por que (in)comum? .................. ................... ........ 52

    RO, DE RONALDO: O PRENNCIO DE UMA POESIA ....................................................................................................... 55

    O poema, o poeta e a constelao concretista ...................................................................................................................... 55ro e os primeiros passos do poeta na ruptura com o verso ........................................................................................ 59

    VELOCIDADE E OUTROS POEMAS DA FASE MATEMTICA: A PROFUSO VERBIVOCOVISUAL .......... 67

    Dos primeiros passos com ro ao texto emblema do movimento .............................................................................. 67

    O poema velocidade: mbile verbal-geomtrico ......................................................................................................... 73

    O SALTO PARTICIPANTE E O POEMA SEMITICO DA DCADA DE 1960 .................... ................... .................... ...... 81Portes abrem para a poesia participante ............................................................................................................................. 81

    labor torpor: a poesia como jogo de linguagens .............................................................................................................. 88

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    MULHER DE PROLAS E CU MAR: NA FRONTEIRA ENTRE A POESIA E AS ARTES PLSTICAS ......... 95

    De prola em prola... a catapora ............................................................................................................................................... 95

    cu mar: na fronteira entre a poesia e as artes plsticas ............................. ................... .................... ................... ........ 99

    ANOS 1980: ENQUANTO DUROU: VISUALIZAO DO EFMERO ........................................................................ 103

    NOITENOITENOITE: TRS NOITES, TRS TEMPOS, TRS DIMENSES DA OBRA DO POETA ................ 107

    CONSIDERAES FINAIS ............................................................................................................................................................ 117

    REFERNCIAS BIBLIOGRFICAS ............................................................................................................................................ 125

    Relativas obra de Ronaldo Azeredo .................................................................................................................................... 125

    Relativas ao restante do material consultado .................................................................................................................... 126

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    PREFCIO

    A pequena, mas criativa e instigante, obra de Ronaldo Azeredo (1937/2006), levanta diversas questes. Trata-se de

    um poeta (talvez fosse mais adequado cham-lo de criador ou inventor) que nunca fez versos como esses so con-

    vencionalmente deinidos e entendidos. Comeou direto na poesia concreta e desta evoluiu rapidamente para criaes

    puramente visuais, muitas vezes abolindo a prpria palavra, que resultaram, inalmente, em livros-objetos ou apenas

    objetos (na forma de uma pirmide, por exemplo). As invencionices de Ronaldo nos provocam. A poesia para ele podia

    prescindir do verso (ou mesmo da palavra). Trata-se do senti(pensa)mentoprojetado espacialmente, seja no suporte

    papel, explorado de vrias formas, seja em qualquer outro material ou meio de expresso.

    A potica experimental de Ronaldo - longa trajetria que se inicia no minimalismo verbal (resisto/resto/ro), passa

    pelos seus hoje j clssicos poemas visuais (Velocidadetalvez seja o mais emblemtico deles), chegando at um livro-

    -ttil como L bis os dois ganha agora, merecidamente, este primeiro e pioneiro estudo de mbito universitrio daprofessora/pesquisadora Marli Siqueira Leite, da Universidade Federal do Esprito Santo. Aqui so analisadas as v-

    rias dimenses da obra desse criador nico, quase inclassiicvel, singular e solitrio no cenrio cultural brasileiro e

    mesmo internacional (lembre-se que diversos poemas de Ronaldo integram importantes antologias de poesia visual

    em todo o mundo).

    Marli volta-se para uma obra pouco conhecida, que rompe com gneros e fronteiras e, muitas vezes, enigmtica, em

    sua aparente simplicidade. O que o leitor encontra neste livro uma dedicada e detalhada anlise das diversas fases

    do trabalho produzido por Ronaldo, apoiada em selecionada bibliograia (inclusive de dicil acesso), slida pesquisa e

    contato direto com o prprio poeta, com artistas amigos e familiares. O resultado uma viso abrangente dessa obra,

    um esforo de compreenso e penetrao na mesma. A autora faz seu percurso com segurana e acrescenta informa-

    es e dados esclarecedores relacionados potica de Ronaldo.

    Numa nica e rarssima carta que me escreveu, em 1974 (reproduzida na edio especial do Suplemento Literrio de

    Minas Gerais, de 2006, dedicada aos 50 anos da poesia concreta), Ronaldo airmava: detesto falar - adoro pensar.

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    Seu trabalho fruto disso: um olhar-pensamento sobre o mundo e a vida, os signos que nos envolvem no dia a dia. De

    agora em diante para fruir plenamente as invenes de Ronaldo ser fundamental percorrer esta anlise de sua obra

    por Marli. Espera-se que ela desperte o interesse e a curiosidade de artistas e estudiosos das artes visuais, hoje dis-

    seminadas pela internet. Ronaldo foi, com certeza, um precursor nessa rea, com sua sensibilidade e seu rigor cons -

    trutivo. Suas exploraes poticas podem (e devem) alimentar novas pesquisas e criaes quem sabe at verses ou

    releituras no espao virtual da globosfera.

    Carlos vila

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    PRELDIO

    A seguir, a autoapresentao de Marli Siqueira Leite antecipa, de modo muito mais pertinente do que eu consegui-

    ria fazer, o que este livro sobre Ronaldo Azeredo agora nas mos do leitor: um estudo a respeito de boa parte da

    produo do poeta concretista e ps-concretista nascido no Rio de Janeiro, mas logo associado, nos anos 1950, aos

    componentes paulistas do grupo Noigandres(Augusto e Haroldo de Campos e Dcio Pignatari), como, por algum tem-

    po, ao mesmo grupo se juntariam Ferreira Gullar e Wlademir Dias-Pino, naquele perodo de retomada das agitaes

    vanguardistas da primeira metade do sculo. Um estudo que, necessariamente, no seu incio traz ro, de 1954, com a

    sua verbalidade sincopada, a sua fragmentao antidiscursiva, e chega tridimensionalidade do poema-objeto noite-

    noitenoite, de 1990, passando por vrias outras composies, entre elas a obrigatria velocidade, de 1957, trabalho

    dos mais bem realizados no mbito do concretismo.

    Uma das caractersticas instigantes da trajetria de Azeredo a seguinte: ter ele partido da discursividade mnima at

    chegar ao poema no-verbal, modalidade de produo perante a qual o leitor hesita, no sabendo se est abordan-

    do um produto do campo literrio ou do terreno das artes visuais ou das artes plsticas ou o que talvez seja mais

    correto em termos de avaliao de algo que pe em xeque as fronteiras entre esses domnios. De modo competente,

    o que Marli faz no seu livro acompanhar tal trajetria incomum, lanando mo de dois procedimentos principais:

    ela tanto contextualiza as obras escolhidas num quadro amplo, que lhes assegura a inteligibilidade (ou insero na

    moldura esttico-social, na ambincia coletiva que lhes d sentido), quanto as analisa em detalhe, mergulhando nos

    seus pormenores mais ntimos (ou reveladores das singularidades de Ronaldo Azeredo enquanto autor, no por acasodadas a ver j numa composio cujo sintomtico ttulo era ro, a assinatura inusitada de um jovem que, com apenas

    17 anos, apresentava um texto no apenas experimental, ousado, mas, o que era e sempre mais dicil, de uma

    ousadia, uma experimentao muito bem-sucedidas em termos de realizao artstica).

    A palavra e a no-palavra (a visualidade e mais) estejam, portanto, com o poeta e a sua estudiosa atenta, nas pginas

    seguintes.

    Lino Machado

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    PRENNCIO

    O que o leitor encontrar nas pginas seguintes fruto de minha dissertao de Mestrado em Letras, pela Universi-

    dade Federal do Esprito Santo, defendida em maro de 2011, sob o ttuloRonaldoAZeredo: o mnimo mltiplo

    (in)comum da poesia concreta. As observaes pontuais, apresentadas pela banca examinadora formada pelos

    professores doutores Lino Machado (orientador), Marcelo Paiva de Souza e Wilberth Claython F. Salgueiro foram, de

    imediato, incorporadas ao texto original. As que exigiam maior flego, entretanto, icaram registradas para a continui-

    dade da pesquisa, o que confere concluso desta etapa o carter de rito de passagem, a partir do qual novas relexes

    e descobertas certamente se faro, ainda que o caminho at aqui percorrido seja digno de divulgao.

    O interesse pelo estudo acadmico da poesia de Ronaldo Azeredo (pelo que foi possvel investigar, nico at o momen-

    to) partiu de minhas primeiras experincias como educadora, no incio dos anos 1990. frente de trs grupos de sexta

    srie do ensino fundamental como professora de portugus, no Colgio Madre Alix, em So Paulo, demonstrei, desdeos primeiros anos de proisso, um interesse em explorar a poesia na escola. A cada ano, um novo projeto surgia, ora

    desenvolvido a partir de um determinado tema, ora pautado por textos de um autor especico, ora norteado por certo

    estilo (quadras, sonetos, poemas visuais, etc.). Em um desses trabalhos, propus o estudo de velocidade, de Azeredo.

    A ideia da leitura vocalizada da obra, que se tornou um emblema do Concretismo, despertou, de pronto, a curiosidade

    e a ateno dos estudantes.

    Ao im daquela aula bastante movimentada, um aluno se apresentou como neto do autor, fato que me levou a um en-

    volvimento ainda maior com a produo do poeta. Alexandre passou, ento, a comunicar os novos feitos do av: Agora

    ele est bolando um poema para ser tateado (era o projeto de L bis os dois, de cujo lanamento eu participaria em

    2002). Ambos me presentearam com cu mar, um trabalho em parceria com Hermelindo Fiaminghi, artista tambm

    integrante do movimento. Em 2001, fui professora de Henrique, irmo de Alexandre. Desse convvio mais prximo,

    surgiu um convite para um ch com poesia na casa dos meninos. O tempo passou e pude perceber que o poeta era

    de pouca fala: deu uma nica entrevista em toda a sua vida, em 2005, para a revista Trpico. A deciso do encontro,

    portanto, era uma iniciativa, alm de espontnea, rara. Na ocasio, deu-se uma troca de presentes: levei a Azeredo

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    minha monograia de concluso de um curso de formao do educador, na qual registrei minhas experincias com a

    poesia (com a dele, inclusive) em sala de aula, e ele me presenteou com noitenoitenoite, um poema-objeto em forma

    de pirmide, de 1991.

    Depois do lanamento de L bis os dois, Ronaldo telefonou, sugerindo-me a escrita de um artigo sobre o trabalho. O

    livro se inicia com um mtodo de leitura e compe-se, na sequncia, de pginas em branco, nas quais um corpo de

    mulher se estende metafrica e metonimicamente em texturas, volumes e salincias. Aquilo me parecia admirvel,

    porm no me sentia, naquele momento, preparada para tecer consideraes mais apuradas sobre o texto.

    A resposta sugesto do poeta, enim, concretiza-se, de certa forma, com o estudo aqui apresentado, embora a an-

    lise desta obra, sua ltima publicao, tenha icado para uma prxima etapa, dadas as diiculdades de apresentaodo material e a necessidade do recorte. O interesse pelo estudo, enim, originou-se e se fortaleceu em uma trajetria

    marcada por acaso e planejamento, espontaneidade e rigor, sensibilidade e razo, caractersticas reconhecidas e des-

    tacadas tambm no percurso potico de Ronaldo Azeredo, como o leitor poder conferir nas pginas seguintes.

    Marli Siqueira Leite

    Maro de 2011

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    DO PLANO PILOTO CONCRETIZAO DO PROJETO

    A pesquisa desenvolvida, cujo resultado se expe neste livro, buscou investigar, organizar, classiicar e analisar a pro-

    duo potica de Ronaldo Azeredo, um dos integrantes do Concretismo, que marcou a poesia brasileira da dcada

    de 1950, causando polmica, determinando inluncias e tomando outros rumos nos anos seguintes. Representado,

    sobretudo, por trs cones Dcio Pignatari, Haroldo de Campos e Augusto de Campos , o movimento, originado no

    Brasil (e em simultneo na Europa), no se limitou, evidentemente, a esses trs poetas. Nele se incluiu, entre outros,

    Ronaldo Azeredo, cuja obra alvo deste estudo.

    Os objetivos especicos relacionados acima carregam, entretanto, desde a gnese do projeto de pesquisa, o seu con-

    junto de opostos. Se o que se buscou, a princpio, foi investigar, organizar, classiicar e analisar a produo de Azere-

    do, a iniciativa se deu com o intuito maior de, ao im e ao cabo, permitir o conhecimento dos poemas e sua libertao

    de certas amarras conceituais e interpretativas, lanando-os para o escrutnio de outros leitores. Diante da impossibi-

    lidade da apresentao do conjunto da obra, bem como da anlise de todos os seus textos em particular, optou-se pelaseleo de alguns mais representativos, dada a limitao de espao e tempo que cerca qualquer trabalho acadmico

    como este. Contudo, escolher misso sempre arriscada: lidar com poesia risco.

    preciso, portanto, de antemo, assumir a seleo feita neste momento e, inevitavelmente, o enfrentamento de um

    paradoxo presente em todo exerccio crtico: levantar possibilidades de leitura de uma obra, tendo cincia do quo

    incerta e sempre questionvel a tarefa do analista e do quanto essa leitura se faz limitadora. Quando no, intil. Mas

    o intil-til de Joo Cabral de Melo Neto, em O artista inconfessvel: Fazer o que seja intil. / No fazer nada in-

    til. / Mas entre fazer e no fazer / mais vale o intil do fazer. / [...] fazer: porque ele mais dicil / do que no fazer...

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    (MELO NETO, 2008, p. 358). Trata-se, enim, de um impasse vivido pelo crtico literrio: embora dirigindo e limitando

    a leitura, o estudioso dessa rea, alm de outras atribuies, tambm chama para si a tarefa de dar a ver. Ainal, como

    apreciar ou rejeitar algo que no est posto?

    A pesquisa buscou se pautar por tal justiicativa. Por ter percorrido uma trajetria curiosa e bastante diferenciada Ronaldo Azeredo deu sinais, logo cedo, de uma ruptura com o verso e explorou, com determinao, mltiplas lingua-

    gens ao longo de seu percurso e por apresentar um trabalho desaiador em termos gricos, o que diicultou a sua

    divulgao, a obra do poeta carece de estudo10. Dentre os integrantes do grupo Noigandres11, Azeredo foi o menos en-

    volvido com a teoria do movimento, apesar de endossar os propsitos assinados pelos irmos Campos e por Pignatari,

    e o mais avesso exposio. Prope-se, portanto, aqui, a partir, sobretudo, da teoria formulada pelos prprios poetas

    concretistas, analisar e ressaltar uma obra bastante peculiar, de uma poca marcada por um boomde criatividadee pelo surgimento, no Brasil, de uma poesia que cultiva a palavra em sua visualidade e sonoridade, deixando, desse

    modo, rica contribuio literatura brasileira.

    Diferentemente do nmero de vinte e nove trabalhos, contabilizado por Ronaldo Azeredo e declarado em entrevista a

    Carlos Adriano, para a revista Trpico, em 2005, chegou-se, ao inal da pesquisa, a trinta e dois poemas e um projeto de

    trabalho, que no chegou a ser concretizado, alm de seis textos em prosa (o nmero, os ttulos e as datas de criao/

    divulgao das obras foram conferidos e conirmados pela esposa de Ronaldo, Amedea Azeredo). No se descarta,

    porm, a possibilidade de que outros trabalhos sejam descobertos futuramente. Buscando facilitar a percepo dos

    movimentos da produo do poeta ao longo do tempo, marcada por um constante experimentalismo, optou-se por um

    critrio diacrnico para a seleo das obras. A partir da ordem cronolgica, considerou-se, para o agrupamento dos

    poemas, a variao das linguagens exploradas e da concepo estrutural de cada um, a im de que as nuances de sua

    poesia pudessem ser mais facilmente reconhecidas.

    Dessa forma, elencam-se os trabalhos dos anos 1950 a 1990, dcada a dcada, em retrospectiva. O primeiro, ro

    (1954) uma trovoada de rebeldia de um jovem bomio de apenas dezessete anos , abrir o estudo; velocidade

    10 importante ressaltar que, em 1985, as editoras Timbre e Expresso, em conjunto, chegaram a publicar uma reunio das produes do poeta at

    aquele perodo. Por problemas de impresso, entretanto, a obra, com o ttulo Pensamento impresso(AZEREDO, 1985), foi recolhida. Para a pesquisa e

    por intermdio do editor Marcelo Tpia, teve-se acesso ao raro material: referncia valiosa para o estudo.

    11 Grupo que reuniu os concretistas e teve como expoente a revista de mesmo nome, atravs da qual as produes poticas, assim como as relexes econsideraes tericas sobre elas, eram apresentadas aos leitores. O nome da revista e do grupo foi uma iniciativa de Augusto de Campos. A palavra no

    original, enoi gandres uma expresso provenal de sentido incerto, oriundo de um poema do trovador Arnaut Daniel e referido no canto XX de Ezra

    Pound (POUND, 1989, p. 185). Segundo Augusto de Campos, a expresso enigmtica talvez signiique antdoto do tdio.

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    (1957), tido como um dos emblemas do Concretismo, liderar o grupo das

    produes da fase ortodoxa, cuja linguagem verbivocovisual12e a aixao

    pelo movimento, pelo geometrismo e pela simetria se destacam; portes

    abrem (1961-1962) e labor torpor (1964) representaro as duas outras

    vertentes da dcada de 1960, a da poesia participante e a dos poemas-cdigoou semiticos; o poema-cartum sem ttulo, referido pelo autor por mulher de

    prolas (1971) e o poema-cartaz cu-mar (1978) marcaro a proximidade

    da poesia com as artes plsticas; seguindo ainda nessa direo, enquanto

    durou (1984) traduzir a produo dos anos 1980 e, por im, noitenoitenoi-

    te (1990), um poema-objeto tridimensional, fechar o conjunto de anlises,

    atestando o experimentalismo do poeta.

    O levantamento dessas vertentes da produo em foco no se limita s apre-

    sentadas. Considerando as incurses do autor pela msica (pensamento

    impresso, de 1974, em parceria com o compositor Gilberto Mendes) e pelo

    vdeo (Po de Acar, de 1999), outras tendncias ainda poderiam ser iden-

    tiicadas, no fosse a necessidade do recorte. Diferentes critrios, inclusive,

    poderiam ser adotados para tal organizao. Porm, importante reairmar

    que o intuito maior do estudo foi o de incidir luz sobre um conjunto represen-

    tativo da obra potica de Ronaldo Azeredo, despertando a curiosidade e o in-

    teresse de um nmero maior de leitores por seu trabalho: tarefa, sem dvida,

    bastante desaiadora.

    12 A palavra-valise verbivocovisual foi cunhada pelo escritor irlands James Joyce, igura impor-

    tante do paideuma concretista, ao se referir a uma linguagem que explora a palavra em sua visuali-

    dade e sonoridade, aspectos caracterizadores de sua produo literria.

    (AZEREDO, 1977, [s/p]) 1. Pea do poema

    quebra-cabea armar, produo de 1977, a

    ser montado no inal deste livro.

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    EXPERIMENTALISMO, POESIA VISUAL E POESIA CONCRETA:

    TRS NOES A SEREM ESCLARECIDAS

    O experimentalismo na literatura

    Associado, muito comumente, rea da cincia, o adjetivo experimental, como a prpria expresso sugere, relativo

    a experincia; designa o que fruto de experimentao, pesquisa, estudo, mtodo. No campo esttico, costuma-se

    relacionar experimentalismo a toda iniciativa que ousa romper com o modo mais tradicional ou costumeiro de con-

    cepo e execuo de um trabalho, ou seja, designa toda atitude de oposio a um passado (pelo menos o imediata-

    mente anterior), de quebra de valores e renovao, em termos formais ou temticos, constituindo-se, portanto, aes

    de vanguarda. Mas no teria, a princpio, toda iniciativa no plano da arte e da poesia algo de utpico e experimental?

    A pergunta suscita outra, que segue em direo oposta: toda inovao no se estrutura e se alimenta tambm do que

    busca negar e superar? Em certo sentido, a resposta airmativa, pois se est no plano da inventividade, da criao.

    Porm, possvel, sim, reconhecer, em diversos momentos da histria, iniciativas estticas que romperam mais ra-

    dicalmente com os padres estabelecidos at ento, provocando transformaes profundas no modo de produzir e

    compreender tal universo, ainda que, nas entranhas do novo, resida o velho, importante ressaltar.

    O poeta, professor e estudioso de literatura Philadelpho Menezes, falecido precocemente, em seu estudo A crise do

    passado, ao discorrer sobre os vastos e polmicos conceitos de modernidade e ps-modernidade (ou metamoder-

    nidade, como ele prefere), refere-se a obras do im da Idade Mdia e incio da Moderna, marcadas por uma reviso dosvalores e da esttica medievais, como bons exemplos de experimentalismo literrio j naquela poca, embora esses

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    trabalhos ainda mantivessem traos da produo do perodo anterior. o caso de Decameron(1342-52), de Giovanni

    Boccaccio, obra que funde a novela medieval e a moderna, traduzida em uma lngua baixa popular, no caso o italiano,

    incomum para a poca (MENEZES, 1994, p. 14).

    Gargntua, de Rabelais, mais um exemplo desse perodo medieval, j em mutao, citado pelo pesquisador. Atravsdo riso e da carnavalizao, a obra desmantela toda uma reverncia aos valores religiosos e espiritualidade, deini-

    dores da produo dessa poca, atravs do humor e do riso carnavalesco. O plano esttico comea a ganhar autonomia

    frente religio e a se vincular, j por inluncia da cincia e da tecnologia, s questes cotidianas e relativas lingua-

    gem (MENEZES, 1994, p. 20). Outro caso ainda a ser mencionado o Canzoniere(1470), de Francesco Petrarca, que

    valoriza os modelos greco-romanos, uma das caractersticas da literatura renascentista, e demonstra larga conscin-

    cia de linguagem na construo precisa de seus sonetos. Petrarca, inclusive, foi o responsvel pela fortuna do soneto.O entendimento do poema como construo, a explorao de certa visualidade (no soneto V do Canzoniere, o nome/

    corpo da amada Laureta estende-se pelo poema, em um acrstico inovador) e a valorizao do humor: todos so

    traos do experimentalismo do autor renascentista.

    Aps um sculo, mais um caso de ruptura com os moldes convencionais a ser destacado: o clssico Dom Quixote de

    La Mancha(1605), de Miguel de Cervantes, uma pardia satrica dos romances de cavalaria, produzida em lngua

    vulgar, o espanhol, e em linguagem popular. O posicionamento crtico frente aos devaneios mirabolantes das nar-

    rativas tpicas do perodo medieval projeta-se na igura do idalgo, deslocado de seu tempo e lugar, ridicularizado e

    enfraquecido pela sociedade moderna, provocando, ao mesmo tempo, o sentimento de compaixo e identiicao do

    leitor (MENEZES, 1994, p. 23). Outro trao de modernidade presente na obra de Cervantes a ser realado o dilogo

    estabelecido entre o autor e o leitor, de forma bem-humorada e metalingustica.

    Se, na Idade Mdia, sustentava-se a crena em uma unidade religiosa, em um parasopost-morteme em uma transcen-

    dncia do real, na Era Moderna, prope-se uma abordagem racional da realidade, baseada no empirismo e marcada pelo

    pensamento utpico associado ao histrico: o paraso buscado, ao invs de se projetar para um futuro distante e misterioso,

    torna-se uma possibilidade a ser perseguida e vivida no presente. A autonomia da cincia (como tambm da moral e da

    arte) frente religio redireciona, dessa maneira, as atenes humanas para os valores terrenos, para a experincia e para a

    observao direta dos fatos que iro fundamentar o conhecimento. Os avanos cognitivos, por sua vez, ultrapassam as pos-

    sibilidades de transmisso do saber, dadas as limitaes da linguagem, esta ainda muito presa e condicionada ao controle

    das camadas dominantes. Essa crise da linguagem contribui para uma postura antiintelectualista, mais voltada experi-

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    mentao e s inovaes. O latim escolstico d lugar, ento, s lnguas vulgares.

    A escrita perde seu carter sagrado e se populariza. O meio rural converte-se em

    representao de atraso e retrocesso, e a cidade, em sinnimo de prosperidade e

    progresso. Trata-se, portanto, de um perodo de grandes reviravoltas no modo de

    viver e compreender a existncia, a cincia, a moral e a arte.

    Recuperar, embora muito resumidamente, o contexto do incio da Idade Mo-

    derna, no qual as iniciativas estticas transgressoras se manifestaram de ma-

    neira mais radical e articulada pela primeira vez, bastante oportuno, para

    se entender a amplitude do conceito de experimentalismo, no o limitando ao

    campo da visualidade, ainda que este seja o interesse maior deste trabalho,tendo em vista as caractersticas da obra de Ronaldo Azeredo. Esclarecer so-

    bre os primeiros momentos dessa trajetria de uma ousadia mais sistemtica

    no mbito da literatura permitir, certamente, uma viso mais precisa das

    experincias posteriores. O que se pretende pontuar, enim, a amplitude do

    conceito, que engloba um vasto campo de experincias, como a poesia sonora,

    a poesia total (que envolve teatro, msica, vdeo, pintura), a poesia intersig-

    nos (que destaca os signiicados da imagem fora da palavra, segundo Phila-

    delpho Menezes, 1998, p. 95), e, no mbito da visualidade, a poesia concreta.

    Sobre a poesia visual

    O percurso do experimentalismo entrecruza-se, com certa constncia, com

    o da visualidade, explorada desde o incio das civilizaes. Antes mesmo da

    escrita alfabtica, a arte rupestre j demonstrava o importante papel das ima-

    gens para a comunicao humana e esses registros pr-histricos coniguram

    as primeiras experincias estticas de que se tem notcia.

    Era natural que a fora da imagem se manifestasse tambm no incio dessaaventura da escrita, que surge motivada justamente pelos aspectos visuais, Ilust. 2. Arte rupestre

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    como conirmam vrios estudos. Na prpria origem do alfabeto atual, podem-se reconhecer aspectos icnicos (ou

    de semelhana) e indiciais (ou de contiguidade), que, com o tempo, perderam espao para o carter simblico (ou de

    convencionalidade) do signo verbal.

    Os pensadores Giambattista Vico (1668-1744) e Waldo Emerson (1803-1882) chegaram, inclusive, a defender a tese

    mitopotica de uma linguagem original, ednica ou admica, na qual as palavras parecem revelar metaforicamente

    o halo das coisas, como esclarece Haroldo de Campos em Ideograma lgica, poesia, linguagem (CAMPOS, 1977, p.

    33). Nesse sentido, sustenta Emerson, citado por Campos: Constata o etimologista que a mais morta das palavras foi

    algum dia uma igura brilhante. A linguagem poesia fssil (EMERSON, apudCAMPOS, 1977, p. 34).

    A escrita chinesa est entre as que mais conservaram essa visualidade do signo verbal, dado o seu carter ideogr-

    mico. Seus tracejos encerram ideias, situaes, colocando em relao e em conlito elementos cnicos, explorando os

    processos analgicos, a sincronicidade e a simultaneidade e exigindo, pois, uma leitura gestltica.

    O ilsofo, poeta e orientalista norte-americano Ernest Francisco Fenollosa (1853-1908) debruou-se exaustivamente

    sobre o estudo dos ideogramas chineses em busca da compreenso do vnculo entre as palavras e as coisas, em gran-

    Ilust. 3. Dos primeiros registros da palavra letra do alfabeto: A (ZATZ, 1991, p. 39).

    Ilust. 4. Sequncia de ideogramas chineses, nas quais se pode notar o processo de

    montagem pelo qual essa escrita se compe (CAMPOS, 1977, p. 149 e 154).

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    de parte, inluenciado por Emerson (CAMPOS, 1977, p. 17). Em seu histrico

    ensaio, publicado postumamente por Ezra Pound em 1919 e intitulado Os

    caracteres da escrita chinesa como instrumento para a poesia, Fenollosa res-

    salta o aspecto potico dessa escrita (FENOLLOSA apud CAMPOS, 1977, p.

    115-162), que, nas palavras do linguista russo Roman Jakobson (1896-1982),visa a pr em evidncia o carter palpvel dos signos (JAKOBSON, apud

    CAMPOS, 1977, p. 32). isso que o estudioso orientalista busca demonstrar

    em relao a essa lngua.

    A verdade que quase toda palavra chinesa escrita exatamente o quechamamos palavra subjacente, embora no seja abstrata. No pertence

    exclusivamente a nenhuma parte do discurso; , pelo contrrio, abran-

    gente. No se trata de algo que no nem substantivo nem adjetivo nem

    verbo, mas sim, de algo que tudo isso ao mesmo tempo e em todas as

    ocasies. O uso pode fazer com que o signiicado integral se incline um

    pouco ora para um lado, ora para outro, segundo o ponto de vista, mas em

    todos os casos o poeta tem a liberdade de com ele lidar to rica e concreta-mente quanto a Natureza (FENOLLOSA, apudCAMPOS, 1977, p.133-134).

    Pode-se notar, enim, que as questes relativas ao carter potico da escrita

    chinesa so vastas, dadas a sua iconicidade e a sua organizao parattica.

    Tais aspectos sero obrigatoriamente retomados ao longo deste texto, j que

    a poesia em destaque ter, no ideograma, um dos princpios bsicos da teoria

    que a acompanha.

    Embora as lnguas no geral tenham perdido, com o tempo, sua motivao na-

    tural, os poetas buscam, desde a Grcia Antiga, manter viva essa originalidade

    do signo verbal. o caso do grego Smias de Rodes, autor de um conjunto de

    trabalhos nos quais os aspectos visuais so explorados de maneira precursora.

    Dentre eles, O ovo, de 325 a.C., tido como o primeiro nesse estilo.

    Ilust. 5. O ovo, Smias de Rodes, IV a.C. (apud

    PAES, 2001, p. 42).

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    O texto se desenha na forma caligrmica de um ovo, atravs da tcnica da

    technopaegnia, que consiste na composio dos poemas nas linhas de con-

    torno do objeto retratado, signiicando, tambm, jogo, brincadeira ou diver-

    so de arte (PAES, 1994, p. 1). A obra trata do nascimento de um pssaro

    canoro, o rouxinol (entre os gregos, smbolo de poesia), e do canto de mee ilhote, respectivamente nesse momento primordial. Pelas mos de Her-

    mes, o mensageiro dos deuses, o novo pssaro lanado ao mundo para que

    reproduza, por conta prpria, o ritmo da cano. Em grego, aedoo signiica

    cantar, celebrar, e aedo, cantor, trovador (PAES, 1994, p. 2). Desse modo, o

    canto evocado se traduz por poesia: fruto de esforo e fonte do novo. O texto

    exige do leitor um olhar que compreenda no s o aspecto visual: deve-se

    partir do primeiro verso, passando, em seguida, ao ltimo; depois, ao segun-

    do e ao penltimo, indo sempre das extremidades ao centro, de forma no

    linear e anticonvencional. O processo de leitura, assim, renova-se, reforando

    a imagem do (n)ovo: foco central do texto13.

    Avanando ainda mais nessa linha do tempo, encontram-se as obras igu-

    rativas do perodo medieval, conhecidas por carmen iguratum ou carmina

    igurata: poemas mimticos, produzidos nos primeiros sculos cristos, a

    partir da mesma tcnica grega mencionada acima e sobre temtica religiosa

    ou mstica.

    O texto de Hrabanus Maurus (autor de um conjunto de poemas intitulados

    De laudibus sanctae crucis, todos com temtica religiosa) reverte o sentido

    tradicional da leitura: sempre horizontal, da direita para a esquerda. A obra,

    alm disso, pode ser decifrada como um todo ou em partes, princpio tambm

    explorado por Mallarm e pelos concretos.

    13 Sobre a relao entre este poema de Smias de Rodes e produes contemporneas como Ovo-

    novelo de Augusto de Campos, Gota a gota de Ana Cristina Cesar e Rio: o ir de Arnaldo Antunes,

    todas em forma circular consulte-se o estudo do pesquisador e poeta capixaba Douglas Salomo

    (SALOMO, 2009).

    Ilust 6. A traduo do poema por Jos Paulo

    Paes (PAES, 2001, p. 43).

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    Diante das facilidades e dos avanos da escrita alfabtica, gutemberguiana,

    a visualidade no teve grande destaque no Renascimento. No Barroco, en-

    tretanto, a dimenso visual volta a ser explorada, muito em funo de um

    projeto de retomada e valorizao de experincias estticas da Antiguidade e

    da Idade Mdia. Segundo a escritora, artista plstica e professora portuguesaAna Hatherly, a tendncia ao hermetismo e erudio leva o poeta barroco a

    lanar mo do jogo, do ludismo, explorado no como recurso (apenas) orna-

    mental, mas como modalidade alegrica apta a atrair o leitor para pensamen-

    tos mais complexos: A alegoria precisamente a materializao do esforo

    de representao do conceito ou, como refere Gilbert Durand, [...] a alegoria

    a traduo concreta de uma ideia dicil de apreender ou de exprimir em umaforma simples (HATHERLY, 1983, p. 73).

    Ressurgem, pois, nesse perodo, os labirintos de letras, os acrsticos, as es-

    critas roplicas (compostas de versos que crescem ou decrescem na pgina,

    como O ovo, de Smias de Rodes) os enigmas, os ecos, as mandalas, os rebus

    (substituio de slabas por letras, algarismo ou iguras), os anagramas, oslogogramas (forma de anagrama mltiplo), os lipogramas (tcnica que con-

    siste na eliminao sistemtica de uma ou vrias letras em uma composio),

    os textos-amuleto (poemas encantatrios, mgicos), os emblemas (represen-

    taes ideogramticas), etc. Em todas essas produes, bastante frequentes

    no Barroco, continuam a ser evidentes a origem hermtica e a funo ldica,

    como se pode notar em obras de esprito parecido na Grcia Antiga (e mesmo

    antes) e no perodo medieval.

    A seguir, texto do tipo labirinto, no qual a frase palindrmica ORE FERO NITE

    SOL, FLOS ET IN ORE FERO (Sol, brilhai com [vossa] face feroz, assim como

    uma lor em boca fera, em traduo de Leni Ribeiro) preenche toda a quadrcula:

    Na obra, a frase destacada anteriormente pode ser lida da esquerda para a di -

    reita e da direita para a esquerda, bem como de cima para baixo e de baixo para

    cima. A letra O, que inicia e inaliza a frase mantendo sua circularidade, apare-

    Ilust. 7. Trabalho do monge beneditino

    germnico Hrabanus Maurus (apud

    historyoinformation.com).

    d d b l d f i f d

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    ce no quadrado verbal de forma estratgica: no centro e nas pontas, reforando

    as mltiplas direes da leitura e o processo labirntico da composio.

    Passa-se, agora, s experincias visuais da segunda metade do sculo XIX,

    quando a valorizao de modalidades no versiicatrias de escrita ganhaum novo impulso com a obra dos simbolistas franceses Charles Baudelaire

    (1821-1867) e Stphane Mallarm (1842-1898). Baudelaire, poeta, tradutor

    e crtico, considerado o precursor da poesia moderna, embora, deva-se ad-

    mitir, o conceito de moderno seja polmico e bastante escorregadio. O mun-

    do passa novamente por profundas transformaes e a produo literria

    desse perodo, como no poderia deixar de ser, relete essas perturbaes.Conforme Gonzalo Aguilar, o verso, como categoria ideolgico-formal, entra

    em crise, desvinculando-se do rigor da mtrica e se abrindo para a constitui-

    o de outros ritmos:

    A harmonia entre poeta, palavra e mundo da qual o verso seria um

    agente entra em crise irreversvel: o lugar social do poeta j no o

    mesmo, nem tampouco o a nova paisagem que enfrenta. As relexes

    dos poetas franceses da segunda metade do sculo XIX sobre a persis-

    tncia do verso como forma giram, frequentemente, em torno desse

    problema, e vrios deles abandonam o verso metriicado pelo verso

    livre, pelo poema em prosa ou como no caso de Un Coup de Ds, de

    Stphane Mallarm, em 1897 por formas que quebram e disseminam

    o verso no espao da pgina (AGUILAR, 2005, p. 177).

    A ruptura com o verso tradicional conigura-se, de forma ainda mais radical

    (e visual), na obra modelar de Mallarm: Um lance de dados (1897). A va-

    lorizao do suporte, a utilizao espacial da pgina, a variao tipogrica

    das fontes, em letras em caixa alta e baixa, promovendo a simultaneidade de

    leitura e o movimento: tudo isso, em uma s obra, vem propor uma reviso

    Ilust. 8. Labirinto de letras, Frei Thomas de

    Sousa, sc. XVIII (HATHERLY, 1983, p. 312).

    do conceito e do modo de se fazer e ler poesia Na sequncia uma das pginas de Un Coup de Ds e sua traduo por

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    do conceito e do modo de se fazer e ler poesia. Na sequncia, uma das pginas de Un Coup de Ds e sua traduo por

    Haroldo de Campos, que recupera criativamente os efeitos poticos do texto original, reproduzindo os aspectos visu-

    ais e sonoros paronomsias, assonncias e aliteraes e concretizando, desse modo, aquilo que o prprio tradutor

    chamou de transcriao (o trabalho acompanhado de uma extensa e detalhada explicao dos critrios de seleo

    de palavras adotados durante o processo):

    A obra de Mallarm, matematicamente planejada, um acmulo de possibilidades, incorporando, paradoxalmen-

    te, o acaso.

    Todo esse conjunto de novas possibilidades de se estruturar e compreender o poema determinante para a produo

    posterior: os caligramas do tambm francs Guillaume Apollinaire (1880-1918), as manifestaes radicais das van-

    guardas europeias, as produes concretistas (no Brasil e na Europa) e a poesia visual produzida aps esse perodo.

    claro que cada um desses trabalhos marcado por especiicidades. Algumas sero, certamente, detalhadas aqui.

    Mallarm, por exemplo, potencializou a imagem de uma forma estrutural de dentro para fora do poema , criando

    Ilust. 9. Um lance de dados jamais abolir o acaso, em traduo de Haroldo de Campos (PIGNATARI; CAMPOS; CAMPOS, 1974, p. 153-173).

    constelaes de palavras (cada conjunto de estrelas com luz prpria sig

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    constelaes de palavras (cada conjunto de estrelas , com luz prpria, sig-

    niicando na mesma dimenso de seu conjunto e permitindo mltiplas com-

    binaes e leituras). J o trabalho de Apollinaire, autor do livro Caligrammes

    (srie de poemas cuja forma imita a do objeto retratado, termo que acabou

    designando todo texto com tais caractersticas), evidencia o igurativo a es-trutura, aqui, exterior s palavras e se impe ao poema , de maneira se-

    melhante ao que ocorre nos carmina igurata, exempliicados anteriormente

    (embora tambm entre os dois ltimos casos haja sensveis diferenas no

    modo de se tratar o aspecto visual, importante destacar).

    Enquanto os carmina iguratapareciam tentar esconder/revelar a imagemde Cristo ou o elemento de cunho religioso em uma espcie de caa-palavras

    a desaiar o leitor, os caligramas coniguram o texto na forma daquilo a que

    desejam aludir, de maneira clara e nada enigmtica. No texto ao lado, por

    exemplo, as palavras caem ao longo da pgina, em uma inclinao pluvial.

    Avanando nessa linha diacrnica da visualidade, desde os primeiros passos da

    aventura da escrita at as experincias vanguardistas de Guillaume Apollinaire,

    chega-se a um momento no qual se explorou radicalmente a fora da imagem,

    em manifestaes artstico-literrias que ultrapassaram suas fronteiras: os mo-

    vimentos das vanguardas europeias. A Europa vivia um perodo de euforia no

    incio do sculo XX. Tempos de acelerao do processo industrial, de conquistas

    tecnolgicas importantes e de descobertas cienticas e mdicas substanciais.

    O Futurismo, o primeiro desses movimentos, surgiu na Itlia, nessa poca, com

    o manifesto assinado por Filippo Tommaso Marinetti (1876-1944) e publicado

    no jornal francs Le Figaro. O documento propunha um rompimento deiniti-

    vo com o verso tradicional como unidade caracterizadora da poesia e, em seu

    lugar, institua as parole in libert, que extrapolavam os limites da mtrica,

    rompiam o espao desordenadamente e instauravam o verso livre, este adota-

    do posteriormente pelos primeiros modernistas brasileiros Manuel Bandeira,

    Mrio e Oswald de Andrade, entre outros.

    Ilust. 10. Il Pleut, Chuva(APOLLINAIRE, 1919).

    Nota-se no poema de Marinetti a explorao anticonvencional da pgina a

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    Nota se, no poema de Marinetti, a explorao anticonvencional da pgina, a

    variao tipogrica, a mistura de palavras, linhas e sinais: recursos j anun-

    ciados por Mallarm.

    Ao ampliar os conceitos artsticos, os futuristas permitiram maior aproxima-o entre as artes: poesia, pintura, escultura, msica, dana, teatro, cinema.

    Pretenderam, ainda, penetrar em outras reas: alm de supervalorizarem o

    poder da mquina, proclamaram a guerra e sustentaram, inclusive, alguns

    ideais fascistas. Se esse incio do movimento propunha a destruio de tudo

    quanto havia no campo das manifestaes artsticas (e no s), seu segundo

    momento, menos radical, j nas dcadas de 1930 e 1940, conigurava-se de

    forma mais construtiva e equilibrada. Os concretistas parecem ter absorvido

    traos, sobretudo, deste perodo.

    A seguir, uma sntese dos propsitos futuristas pelos prprios:

    Arte Vida explosiva. Italianidade paroxista. Antimuseu. Anticultu-

    ra. Antiacademia. Antilgica. Antigracioso. Anti-sentimental. Contra

    cidades mortas. Modernolatria. Religio da novidade originalidade

    velocidade. Inigualismo. Intuio e inconscincia criadora. Esplendor

    geomtrico. Esttica da mquina. Herosmo e palhacismo na arte e na

    vida. Caf-concerto, sicofolia e saraus futuristas. Destruio da sin-

    taxe. Imaginao sem ios. Sensibilidade geomtrica e numrica. Pala-

    vras em liberdade rumoristas. [...] Sntese de forma-cor. O espectador no

    centro do quadro. Dinamismo plstico. Estados de alma. Linha-fora.

    Transcendentalismo sico. Pintura abstrata de sons, rumores, odo-

    res, pesos e foras misteriosas. Compenetrao e simultaneidade de

    tempo-espao, longe-perto, externo-interno, visto-sonhado. Arquite-

    tura pura (ferro-cimento). Imitao da mquina. [...] Tatilismo e tbuas

    tteis. Em busca de novos sentidos. Palavras em liberdade e snteses

    teatrais olfativas [...] (apudFAUSTINO, 2004, p. 258-259).

    Ilust. 11. Poema de Filippo Tommaso Mari-

    netti e capa da obra, de 1915, que divulgou

    o Manifesto futurista, elaborado em 1909

    (MENEZES, 1998, p. 17).

    Embora todos os movimentos da vanguarda europeia Futurismo, Expressionismo, Cubismo, Dadasmo e Surre-

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    g p , p , ,

    alismo fossem movidos por uma preocupao comum em libertar os processos artsticos dos hbitos herdados,

    instituindo novos padres estticos (S o contraste nos enlaa com o passado, exaltam os dadastas no Manifesto

    Dad 1918, AGUILAR, 2005, p. 40), cada um, a seu modo, vai priorizar uma forma de manifestar esse desejo de no

    conciliao. E os concretistas iro recuperar e rever alguns aspectos dessa produo, assimilando, alm das ten-dncias dos autores e dos movimentos j citados, caractersticas da produo de um grupo especico de escritores

    a serem mencionados.

    As experincias no campo da visualidade ganham novas possibilidades, a partir dos anos 1960, diante dos avanos tec-

    nolgicos, que ampliam as estratgias de utilizao do espao e de explorao do movimento e da sonoridade. A imagem,

    desse modo, continua sendo reairmada, rumo a uma poesia de plurilinguagens, como sugerem os trabalhos a seguir:

    Em Cidade, de Ana Aly, que rene signos de vrias naturezas, as letras da palavra ttulo do texto vo compondo,

    caligramicamente, o designde um centro urbano, com seus prdios e milhes de janelas-estrelas na noite escura.

    As janelas aparecem tambm como furos dos antigos cartes (hoje, j dispensados e descontextualizados) dos pri-

    meiros computadores. J o trabalho de Philadelpho Menezes reproduz, a princpio, a imagem de uma caixa de goma

    de mascar. No poema, entretanto, o logotipo da marca (que acabou designando o produto), (con)funde dois voc-

    bulos chicletes e clichs na palavra valise: clichetes. O clich, que gruda como goma de mascar (goma de

    mascarar) na mente (sabor mental) do consumidor e do qual dicil se desvencilhar, produto de um processo

    mecnico e inconsciente. Em outras palavras, o autor prope uma crtica ao consumo, baseado na marca e na apa-

    Ilust. 12. Cidade, de 1984, da artista e poeta

    Ana Aly (ALY, 1988).

    Ilust. 13. Poema sem ttulo de Philadelpho

    Menezes, de 1984 (MENEZES, 1988).

    rncia, fruto de muita repetio pelas campanhas publicitrias (como no

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    p p p p (

    ato repetitivo do mascar). Outro contraste proposto pela obra se faz na ima-

    gem da foice e do martelo, smbolo socialista, em oposio ao consumismo

    estimulado pelo sistema capitalista.

    J a srie de caligraias de Arnaldo Antunes, ilustrada ao lado, explora, como

    sugere o ttulo da exposio realizada em So Paulo em 2003, a escrita

    mo, em traos irregulares e disformes, que escorrem (como sangue) pelo

    espao em branco.

    O poema de Antunes prope a proximidade visual, sonora e semntica daspalavras instante, instinto, tanto, tinta, texto (o T, solto no espao,

    pode ser lido como X), expondo a intensidade do instante da criao potica

    e a ideia de como essas instncias arte/poesia/vida esto imbricadas e

    indissociadas, na perspectiva desse multiartista.

    Como se pde notar, o percurso da visualidade longo e rico em meandros. A

    inteno, aqui, foi mostrar, muito sinteticamente, essa vastido, uma vez que

    o foco do trabalho de Ronaldo Azeredo est exatamente em seu experimen-

    talismo e na valorizao da imagem, e os alicerces de sua obra, na explorao

    dos princpios bsicos da poesia concreta: conceito a ser esmiuado a seguir.

    Sobre a poesia concreta

    Se a poesia visual se conigura como todo tipo de escrita que valoriza, princi-

    palmente, aspectos do plano das imagens, tendo, portanto, um sentido abran-

    gente e surgindo e ressurgindo ao longo da histria da literatura, a poesia

    concreta, diferentemente, est circunscrita a um momento especico, com

    caractersticas bastante deinidas. Para compreend-la melhor, imprescin-

    dvel situar a sua gnese historicamente.

    Ilust. 14. Instanto 3, de Arnaldo Antunes,srie Caligraias, de 2003 (ANTUNES, 2010).

    Final da dcada de 1940: o Brasil passa por um aquecimento econmico importante; So Paulo, como outros gran-

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    des centros brasileiros, avana velozmente em seu processo industrial; o crescimento da capital paulista estimula a

    construo de inmeros edicios como o da sede do Banespa (Banco do Estado de So Paulo), no centro da cidade

    , atraindo grandes projetos arquitetnicos (Almanaque da Folha de So Paulo, 2010). O setor cultural e artstico vive

    tambm sua efervescncia. Em 1947, inaugura-se o Museu de Arte de So Paulo, iniciativa do empresrio de comu-nicao Assis Chateaubriand, com base em projeto do jornalista, crtico de arte e arquiteto talo-brasileiro Pietro

    Maria Bardi. O MASP, nessa poca, situava-se na rua Sete de Abril, no centro de So Paulo, s em 1969, a instituio

    transferida para a Avenida Paulista, para o edicio projetado pela arquiteta modernista Lina Bo Bardi (esposa de

    Bardi), no qual as obras so dispostas sobre vidros transparentes e espalhadas ao longo dos pavimentos, propondo

    uma aproximao da arte com o pblico.

    Ainda em 1948 e no prdio da Sete de Abril, inaugurado o Museu de Arte Moderna. Essas instituies comeam a se

    abrir, no s para exposies de pinturas e esculturas, mas, tambm, para mostras de arquitetura e de designem geral

    e para eventos variados, inclusive de moda. O MASP, por exemplo, chegou a organizar uma mostra sobre a Histria da

    Cadeirae outra, intituladaArte Popular Pernambucana(AGUILAR, 2005, p. 57), demonstrando, portanto, a sua aber-

    tura para outras manifestaes artsticas, alm da pintura e da escultura estritamente.

    J em 1950, ocorre a exposio do arquiteto e escultor modernista de origem sua, Max Bill. O artista, fundador da

    Escola Superior da Forma de Ulm, na Alemanha, recebe, com a obra Unidade Tripartida, o Grande Prmio Internacio-

    nal de Escultura na I Bienal de So Paulo, ocorrida no MAM (BANDEIRA, 2002, p. 32-33). importante ressaltar que A

    Escola Superior da Forma foi fundada por Max Bill sobre os moldes da alem Bauhaus, que formou vrias geraes de

    arquitetos e propunha uma aliana entre as artes e a arquitetura. Com as bienais, realizadas nas instituies referidas,

    So Paulo torna-se uma das referncias mundiais da arte contempornea. O museu deixa de ser apenas um espao

    para a exibio de obras e passa a ser, tambm, um local de experincias, funcionando, inclusive, como escola. Tornou-

    -se comum, nessa poca, a realizao de cursos no espao do museu, como de pintura, escultura, desenho industrial,

    modelagem, vitrinismo, o que conirma a tendncia a uma arte prxima do cotidiano da cidade. De acordo com Mario

    Pedrosa, um dos diretores do MAM: A funo do museu moderno entra a: ele o stio privilegiado onde essa experi-

    ncia se deve fazer e decantar (PEDROSA, apudAGUILAR, 2005, p. 59).

    A maneira tradicional na exposio dos objetos d lugar a uma organizao sincrnica e no linear, na qual passado e

    presente misturam-se em prol de outras identidades. A capital paulista se destaca, mais uma vez, como grande centro

    de manifestaes artsticas e culturais. preciso lembrar que a Semana de Arte Moderna, em 1922, e o surgimento do

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    Modernismo ocorreram tambm na cidade de So Paulo. Alm do cenrio comum, os dois movimentos foram impul-

    sionados pelas artes plsticas, com as quais a poesia caminhou junto e dialogou. Oswald de Andrade chegou a dizer,

    em 1948, sobre essa nova poesia a concreta: So Paulo retoma o caminho vanguardista que iniciou em 1922

    (ANDRADE, 1976, p. 151).

    Todo esse cenrio, enim, determinante para o surgimento da poesia concreta: uma resposta inquietao diante

    do avano da cidade, das novas tecnologias e das iniciativas no campo das artes, da arquitetura e do design. Ao

    romperem com a sintaxe tradicional e com o verso, os concretos investem no isomorismo fundo-forma, espao-

    -tempo; no uso da pgina como elemento potico; na conjuno dos aspectos verbais, sonoros e visuais do signo; na

    valorizao da palavra como uma unidade autnoma (com destaque para os substantivos e os verbos), bem como

    de seus componentes slabas e letras. Investem, portanto, no signo verbal em sua materialidade e concretude. O

    termo poesia concreta, inclusive, surge dessa ideia. A expresso foi usada pela primeira vez por Dcio Pignatari

    para se referir obra de E. E. Cummings. Augusto de Campos fez meno expresso nas apresentaes do grupo

    Ars Nova, nas quais os poemas da srie Poetamenosforam vocalizados. Em carta a Pignatari, datada de 10 de maio

    de 1956, Campos airma:

    POESIA (ou arte ou literat/) CONCRETA, q v. j havia sugerido stricto sensu p/ cummings, e q adotei

    amplamente nos espetculos do ars nova, pode caracterizar melhor q a palavra ideograma (espec-

    ica, de um tipo de poema) a nossa posio: (a est uma questo menor de terminologia e estratgia)

    (CAMPOS, apudBANDEIRA, 2002, p. 71).

    O grupo tinha, como principais referncias, a poesia de Stphane Mallarm, os caligramas de Guillaume Apollinaire,

    a obra potica dos norte-americanos Ezra Pound e E. E. Cummings (1894-1962), a prosa ciclpica de James Joyce

    (1882-1941) e aspectos dos movimentos de vanguarda ocorridos na Europa. Dentre as produes brasileiras, as

    obras de Oswald de Andrade (1890-1954) e dos autores, ento contemporneos, Joo Cabral de Melo Neto (1920-

    1999) e Joo Guimares Rosa (1908-1967). Os concretistas fazem questo de esclarecer, no entanto, que as bases

    de sua poesia no esto fundadas em todo o conjunto da produo desses escritores. Eles destacam, claramente,

    aquelas cujos traos correspondem aos ideais do grupo. Nesse sentido, esclarece Augusto de Campos em Ponto,

    periferia, poesia concreta:

    Como processo consciente, pode-se dizer que tudo comeou com a publicao de Un Coup de Ds

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    (1897), o poema-planta de Mallarm, a organizao do pensamento em subdivises prismticas da

    Ideia, e a espacializao visual do poema sobre a pgina. Com James Joyce, o autor dos romances Ulys-

    ses(1914-1921) e Finnegans Wake(1922-1939), e sua tcnica de palimpsesto, de narrao simultnea

    atravs de associaes sonoras. Com Ezra Pound e The Cantos, poema pico iniciado por volta de 1917,

    e onde o poeta trabalha h 40 anos, empregando o seu mtodo ideogrmico, que permite agrupar coe-

    rentemente, como um mosaico, fragmentos de realidades dspares. Com E. E. Cummings, que desintegra

    as palavras, para criar com suas articulaes uma dialtica de olho e flego, em contato direto com a

    experincia que inspirou o poema (PIGNATARI; CAMPOS; CAMPOS, 1975, p. 40).

    A valorizao do suporte como componente sgnico , sem dvida, uma das grandes contribuies de Mallarm. Com

    o verso em crise, a pgina em branco passa a delimitar/ampliar esse vazio. O branco silncio verbal entra na com-

    posio do ritmo, no mais impresso pela mtrica tradicional e pela tnica dos versos. O texto se esparrama no espao

    e, com a explorao da variedade tipogrica, as possibilidades de leitura da obra se expandem, indicando outras dire-

    es e sentidos. O poeta francs concebe um modo de pensar e executar o poema, tratado por ele de subdivises pris-

    mticas da Ideia: cada constelao de palavras, como j se disse anteriormente, adquire luz prpria e diz na mesma

    dimenso de seu todo. A composio, rigorosamente pensada, acaba por constituir-se em obra aberta, circular e ml-

    tipla, incorporando e explorando o imprevisto: um lance de dados jamais jamais abolir o acaso (MALLARM, 1974,

    p. 153-173). Dessa forma, cria-se um polo dialtico entre racionalidade e acaso, caracterizador da obra mallarmaica.

    Segundo Umberto Eco, [...] uma obra de arte, forma acabada efechadaem sua perfeio de organismo perfeitamente

    calibrado, tambm aberta, isto , passvel de mil interpretaes diferentes, sem que isso redunde em alterao de

    sua irreproduzvel singularidade14(ECO, 1986, p. 40). Tais princpios vo compor a base da teoria da poesia concreta.

    Para mencionar um exemplo de como o mtodo de Mallarm foi absorvido pelos brasileiros (e por alguns estrangeiros,

    como se ver logo mais), pode-se recorrer srie Poetamenos(1953), de Augusto de Campos, de uma fase consideradaainda pr-concreta. Todos os textos ocupam a pgina de forma espacializada e lidam com a alternncia das fontes, em

    caixa alta e baixa (nos moldes de Mallarm), e das cores (neste caso, uma diferena em relao ao francs) vermelho,

    azul, amarelo, laranja e verde , demonstrando a uma proximidade com a pintura (com forte inluncia de Piet Mondrian,

    14 A expresso obra aberta comumente associada ao crtico e escritor italiano Umberto Eco, que, desde 1958, vem se dedicando a essa questo.

    Porm, segundo o prprio Eco, Haroldo de Campos j havia se referido a esse conceito, como se pode conferir no prefcio da edio brasileira de Obra

    aberta, publicado pela primeira vez em 1968: mesmo curioso que, alguns anos antes de eu escrever Obra Aberta, Haroldo de Campos, num pequenoartigo, lhe antecipasse os temas de modo assombroso, como se ele tivesse resenhado o livro que eu ainda no tinha escrito, e que iria escrever sem ter

    lido seu artigo (ECO, 1986, p. 17).

    sobretudo de sua srie Boogie Woogie, de 1942-1943) e com a msica concretas. O uso da cor, associado variao das

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    fontes, contribui para a construo de uma pauta sonora, imprimindo uma melodia de timbres, conceito formulado pelo

    compositor austraco Arnold Schoenberg (1874-1951), criador da msica dodecafnica. Nos poemas da srie, cada cor

    corresponde a uma voz distinta, e a composio global se faz da dissonncia entre os timbres variados. Essa relao com a

    msica, apenas referida supericialmente aqui, uma constante no trabalho do poeta paulista, muito interessado pela pro-duo do j citado Schoenberg e por Anton Webern (1883-1945), Giacinto Scelci (1905-1988) e John Cage (1912-1992)15.

    Em dias dias dias, a seguir, as letras de Lygia Azeredo, a amada, espalham-se, separando-se e unindo-se, num jogo

    de presena e ausncia, em um movimento constante (e ertico):

    Toda a srie segue nessa direo. importante destacar que os textos abordam os aspectos formais j apontados, mas

    revelam, de modo todo prprio, um acentuado lirismo, embora os concretistas condenem as subjetividades exacer-

    badas. Gonzalo Aguilar destaca essa contradio: [...] preciso diferenciar as duas orientaes que se contrapem

    15 Sobre a relao entre a poesia de Augusto de Campos e a msica de vanguarda do sculo XX, pode-se consultar o estudo de Marcus Vincius Marvila,

    pela Universidade Federal do Esprito Santo (MARVILA, 2010).

    (CAMPOS, 2001, p. 77. [1953])

    udio 1. No link, a interpretao do poema na voz de Caetano Veloso: http://tinyurl.com/3dd6bgc.

    no material de Poetamenos: o uso concreto das cores e o uso expressionista da linguagem. Essa incongruncia, que a

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    posterior atividade do concretismo potico tornou mais evidente, desembocou historicamente em uma represso

    dessa subjetividade lrica que se manifestava de um modo to particular nessa srie de poemas (AGUILAR, 2000, p.

    292). Esse lirismo bastante particular tambm poder ser observado na produo de Ronaldo Azeredo, sobre a qual

    se discorrer ao longo deste livro.

    De Mallarm, passa-se produo do escritor irlands James Joyce. Deste, vem a proposta de comunho entre palavra-

    -som-imagem, na busca de uma linguagem verbivocovisual, palavra-valise cunhada por ele, para designar as mlti-

    plas dimenses do signo verbal em sua prtica literria. O autor faz uso da tcnica de palimpsesto, que consiste em

    verdadeiras montagens lxicas e, em termos estruturais, constri sua obra de modo circular, onde cada parte

    princpio, meio e im (CAMPBELL; ROBINSON, apudPIGNATARI; CAMPOS; CAMPOS, 1975, p. 30). O esquema crculo-

    -vicioso, alm de ser um dos elos entre Joyce e Mallarm, rege a produo dos concretos, como se poder observar em

    vrios trabalhos de Ronaldo Azeredo, e, tambm, o eixo norteador de Grande serto: veredas(1956), de Joo Guima-

    res Rosa, autor brasileiro apreciadssimo pelo grupo Noigandres. A contao de Riobaldo, personagem central da

    narrativa, inicia-se com um travesso e a expresso enigmtica Nonada, podendo signiicar no, nada e inaliza-

    -se, depois de mais de quinhentas pginas sem subdivises em captulos, com a expresso travessia, seguida do

    smbolo de ininito: o im transforma-se em retorno ao nada inicial (ROSA, 1986, p. 7 e 568). Desse modo, o Grande

    serto: veredasde Rosa e o Finnegans Wakede Joyce constituem-se em prosas do tipo, riverrun (riocorrente) para

    usar umportemanteau joyciano: uma obra em movimento, sem im, aberta.

    Por intermdio de Ezra Pound, os jovens poetas vo aprofundar-se no princpio do ideograma. Antes, porm, de se

    tratar desse aspecto, cabe lembrar que a contribuio de Pound no se limita, evidentemente, ao importante resgate

    feito por ele do ideograma e de toda a pesquisa de Fenollosa acerca da escrita chinesa. Como crtico e estudioso de

    literatura, ele elaborou uma teoria para sustentar suas posies. A classiicao, por exemplo, proposta pelo estudioso

    para a compreenso da poesia parece bastante eicaz: de maneira simpliicada, fanopeiaseria o destaque imagem;

    melopeia, msica; logopeia, dana das palavras ante o intelecto. Ao explorar esses trs universos, a linguagem po-

    tica se constitui em verbivocovisual. Como poeta, Pound tanto experimentou essas vertentes da linguagem quanto

    se utilizou do princpio do ideograma em suas produes. A respeito desse modo de construo, esclarece Fenollosa:

    Neste processo de compor, duas coisas reunidas no produzem uma terceira coisa, mas sugerem alguma relao

    fundamental entre elas (FENOLLOSA, apudPIGNATARI; CAMPOS; CAMPOS, 1975, p. 28).

    Tal princpio pode ser claramente notado em Life, de Dcio Pignatari. A dis-

    d d h / d

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    posio do texto numa sequncia de seis pranchas/pginas se organiza de

    forma progressiva: a cada prancha/pgina, um novo trao se inclui, alterando

    gradativamente o signo e redimensionando os seus sentidos.

    Como em um processo cinematogrico (nos moldes das montagens, com sal-

    tos e sobreposies, do cineasta sovitico Sergei Eisenstein 1889-1948), as

    letras de Life vo se transformando com o acrscimo de uma linha a cada

    pgina. Na penltima, a justaposio das letras compe o ideograma chins

    sol e, na ltima, aps uma reorganizao, life (vida). A palavra, embora

    s aparea na ltima prancha, est contida no ideograma e, em uma leituragestltica, pode ser percebida, tambm, na sequncia das quatro primeiras

    pranchas/pginas, ainda que o I anteceda o L: parte e todo, desse modo,

    se reairmam. No trabalho de Pignatari, a escrita ocidental, indiciada pelo vo-

    cbulo em ingls e marcada por uma arbitrariedade maior entre signiicante-

    -signiicado, aproxima-se do princpio da escrita oriental, ideogrmica: o mo-

    vimento, caracterizador da vida e metonimicamente representado pelo sol,concretiza-se na composio do texto, no virar de pgina acionado pelo leitor,

    que ilumina a obra a partir da ao viviicadora do poeta. O signo contra a

    vida, a arte pretende ser um signo de recuperao da vida, vida, memria na

    carne, airma o autor de Life (PIGNATARI, 2004, p. 13). O texto exige, para

    tanto, um olhar especial, gestltico.

    Para esclarecer, Gestalt uma teoria da Psicologia que se preocupa com o es-

    tudo da percepo e envolve leis, relacionadas a seguir, em uma sntese sim-

    pliicadora de Gonzalo Aguilar:

    [...]proximidade(unio das partes por igualdade de condies no sen-

    tido de mnima distncia); semelhana(tendem a agrupar os elemen-

    tos da mesma classe ou semelhantes); encerramento(as linhas que

    (PIGNATARI, 1958, [s.p.])udio 2. No link, a vocalizao do poema

    pelo autor: http://tinyurl.com/6yv9wu3.

    circundam uma supercie so captadas como unidade); boa continuidade(iguras como o crculo ou

    o quadrado so percebidas como contnuas ainda que estejam sobrepostas a outras); movimento co-

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    o quadrado so percebidas como contnuas, ainda que estejam sobrepostas a outras); movimento co

    mum (agrupao de elementos que se movem do mesmo modo em direo a outros); pregnncia(os

    elementos que tm maior grau de regularidade, simplicidade, simetria e estabilidade impem-se como

    unidade) e experincia (a experincia prvia do sujeito coopera com as leis anteriormente citadas)

    (AGUILAR, 2005, p. 196).

    A poesia concreta vai contar com tais princpios para a compreenso de suas obras. Leis teis, portanto, para a anlise

    das produes de Ronaldo Azeredo, na sequncia do estudo.

    Outro autor que resgata os aspectos do ideograma E. E. Cummings. A fragmentao da sintaxe e da palavra, valori-zando o fonema; o uso inusitado dos parnteses e da pontuao, criando ambiguidades e multiplicidades de leitura, e

    o trabalho textual, explorando, de maneira acentuada, a verticalidade, so traos do poeta norte-americano tambm

    incorporados pelos concretistas.

    O texto se compe de uma frase, a leaf falls(uma folha cai), que perpassa uma palavra, loneliness

    (solitude). Na leitura de Rogrio Camara: Os cortes no texto, a intraposio da frase no corpo

    da palavra, a verticalidade do poema e o movimento simultneo das letras no sentido horizontal/

    vertical sugerem a lutuao e a queda da folha. O lento desenrolar da cena, deinido por relaes

    semntico-formais, conceitua a solido (CAMARA, 2000, p. 98). Tal aspecto reforado pelo l,

    que remete ao algarismo 1, como tambm ao one, de loneliness, sugerindo isolamento. Esse

    recurso da fragmentao com a valorizao do fonema como componente sgnico foi bastante ex-

    plorado por Azeredo, como se poder notar, mais frente, nas anlises de ro, o primeiro poema,

    de 1954, e em velocidade, um clssico do Concretismo, de 1957-1958.

    Guillaume Apollinaire, embora no referido por Augusto de Campos no trecho citado, deixa tam-

    bm sua contribuio poesia estudada. Os concretistas fazem, no entanto, algumas ressalvas

    em relao ao autor, acreditando que o princpio adotado pelo poeta francs no exatamente o

    que rege a produo do grupo, em funo do carter igurativo dessa produo. Se se considerar o

    poema concreto tpico, podem-se notar, realmente, diferenas estruturais entre as obras. Porm,alguns trabalhos de Augusto de Campos, como o Ovonovelo, bem como os poemas circulares

    l(a

    leaffa

    ll

    s)onel

    iness

    (CUMMINGS, apud

    CAMARA, 2000, p. 99)

    da dcada de 1960, os Popcretos, exploram, de certo modo, o princpio dos caligramas. Alm dessas proximidades e

    diferenas talvez o que resuma a contribuio de Apollinaire poesia concreta esteja em seus ideais tomados pelos

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    diferenas, talvez o que resuma a contribuio de Apollinaire poesia concreta esteja em seus ideais, tomados pelos

    brasileiros como uma sntese do que pretendiam: Nada de narrao, diicilmente poema. Se quiserem: poema ideogr-

    ico. Revoluo: porque preciso que nossa inteligncia se habitue a compreender sinttico-ideograicamente em lugar

    de analtico-discursivamente (APOLLINAIRE, apudPIGNATARI; CAMPOS; CAMPOS, 1975, p. 100).

    Aopaideumaestrangeiro delineado at aqui, cabe acrescentar, ainda, a prosa experimental da norte-americana Ger-

    trude Stein. Do ciclo de amizades de Pablo Picasso (modelo do artista, inclusive), Matisse, Apollinaire, Pound e Joyce,

    dentre outros, a escritora redigiuAutobiograia de Alice B. Toklas, que relata justamente a reunio de jovens escritores

    e artistas na Paris do incio do sculo XX, na busca de novos rumos para as artes.

    Alm desses, que outros contatos foram determinantes para a articulao do movimento? Como se deu sua origem

    no Brasil e qual a viso dos poetas do grupo em relao a sua gnese? Nesse sentido, esclarece Haroldo de Campos:

    A poesia concreta como evoluo de formas nasceu no Brasil e na Europa, atravs da pesquisa apar-

    tada de autores (grupo noigandres, de So Paulo de um lado; Eugen Gomringer, Berna/Ulm, de outro)

    que tendiam para concluses comuns e realizaes at certo ponto semelhantes. E o importante que,

    no Brasil, nasceu da meditao das conquistas formais perfeitamente caracterizadas no mbito de nos-

    sa histria potica, como sejam os poemas-minuto de Oswald de Andrade e o construtivismo poemtico

    de um Joo Cabral de Melo Neto, que contriburam tanto para a demarcao de um elenco bsico de

    autores imprescindveis para a ediicao de uma nova tradio potica, em lngua portuguesa, quanto,

    para Eugen Gomginger, em lngua alem, um Arno Holz para no se falar na comum cogitao dopai-

    deumaMallarm (Un Coup de Ds), Apollinaire, Joyce, Cummings, Pound-e/ou-William Carlos Williams)

    (PIGNATARI; CAMPOS; CAMPOS, 1975, p. 154).

    O maranhense Ferreira Gullar, que iniciou seu percurso potico aliado ao grupo paulista, revelou, desde cedo, uma po-

    sio divergente quanto origem do movimento. Contrapondo-se s inluncias de umpaideumaestrangeiro, Gullar

    acreditava no carter nacional da poesia concreta e destacava, ainda, o papel importante do leitor para a funcionali-

    dade da obra. O grupo de So Paulo, diferentemente, defendia a autonomia do poema. Depois de sua participao na

    I Exposio Nacional de Arte Concreta, em 1956 (em So Paulo) e 1957 (no Rio de Janeiro), o escritor rompe com ogrupo, criando, com artistas cariocas, um movimento dissidente: o Neoconcretismo.

    O trabalho do suo-boliviano radicado na Alemanha, Eugen Gomringer, citado por Haroldo de Campos, vem corrobo-

    rar a tese de que o surgimento da poesia concreta se deu simultaneamente no Brasil e na Europa Dcio Pignatari re-

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    rar a tese de que o surgimento da poesia concreta se deu simultaneamente no Brasil e na Europa. Dcio Pignatari re-

    sidiu por um tempo no exterior e conheceu Gomringer, que, na poca, desenvolvia suas pesquisas na Escola Superior

    da Forma de Ulm. A identidade foi imediata e o dilogo se manteve vivo entre os poetas.

    Essa quadrcula de Gomringer construda pela repetio de uma nica palavra: silencio, em espanhol. O sentido da

    expresso se faz da relao entre o texto verbal e o vazio deixado por ele no centro. Assim, o branco da pgina/pausa

    sonora explorado frente ao bloco formado pela repetio da palavra, resultando, pelo contraste, a concretizao do

    silncio. A ausncia, desse modo, torna-se presena. Cabe ainda acrescentar que o poema sem ttulo avenidas/aveni-das y lores, do mesmo autor, de 1949, ano de O jogral e a prostituta negra de Dcio Pignatari, que j dava sinais

    das pretenses do grupo paulista.

    O engenheiro, poeta, professor e crtico portugus Ernesto M. de Melo e Castro (1932) outro a conirmar certa

    sincronicidade com os ideais dos brasileiros e de Eugen Gomringer. Ainda que o movimento denominado por seus

    integrantes de poesia experimental (o adjetivo experimental sendo usado aqui, portanto, em stricto sensu) tenhasido articulado e delagrado em Portugal s na dcada de 1960 e tenha absorvido muito da teoria formulada pelos

    brasileiros, Melo e Castro j vinha demonstrando, em seus trabalhos, desde o incio dos anos 1950, certo esprito con-

    cretista, como relata o autor nesse sentido:

    Creio ser interessante referir aqui a capa do meu primeiro livro, Sismo, publicado em 1952 (edio do

    autor). Compe-se o pequeno livro de seis textos em prosa, entre o ensaio e o conto, que nada anunciam

    de concretismo, antes revelam um hipersubjetivismo [...]. Mas recordo-me muito bem dos cuidados

    (GOMRINGER, apudBANN, 1967 [1954])

    que mereceram de mim as sucessivas maquetas da capa, por mim realizadas, at chegar a um arranjo

    satisfatrio e equilibrado em relao ao esprito geomtrico que informava o livro e sintaxe dura em

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    que os textos estavam escritos. Desse modo, ao procurar o equilbrio de tenses entre as coordenadas

    visuais da capa, o ttulo, o esprito e a sintaxe dos textos que compunham o livro, eu estava intuitiva-

    mente (inocentemente) a realizar o meu primeiro poema concreto (CASTRO, 1993, p. 41-42).

    Dentre as produes poticas brasileiras, destacam-se as obras de Oswald de Andrade e Joo Cabral de Melo

    Neto. O primeiro vinha de um ostracismo literrio e foi recuperado e revisto pelos poetas paulistas, tendo, in-

    clusive, seus livros reeditados. Com seus poemas-minuto pelo carter experimental e inovador, pelo poder de

    sntese, pelas rupturas sintticas e fragmentaes , Oswald tornou-se uma grande referncia para o grupo e um

    dos autores mais apreciados pelo jovem Azeredo.

    Este trabalho de Oswald de Andrade caracteriza-se pelo minimalismo de sua

    construo, composta de duas expresses apenas amor e humor. As pa-

    lavras possuem quatro e cinco letras, respectivamente, mas quatro fonemas:

    trs idnticos (produzindo uma rima) e um destoante (as vogais a e u). O

    uso da cor vermelha em amor, ainda que a associao vermelho-amor seja

    bastante previsvel, um recurso inovador para a poca. Os concretos tam-

    bm vo explorar a cor em seus trabalhos, embora a variao cromtica, para

    eles, extrapole o simbolismo convencional, como se viu em Dias dias dias, de

    Poetamenos. Considerando as letras iniciais maisculas das duas palavras, em

    uma leitura em diagonal, da esquerda para a direita, pode-se reconhecer, no

    poema de Oswald de Andrade, a interjeio AH, de prazer e alegria, unindo

    assim, tambm semanticamente, as expresses amor e humor.

    Outra igura importante para o grupo foi Joo Cabral de Melo Neto: elo en-

    tre os concretistas e os modernistas de 1922. Do pernambucano, vem o rigor

    construtivo, a conscincia plena da linguagem e o racionalismo no fazer po-

    tico. Abaixo, estrofe de Antiode, um dos poemas de Psicologia da composi-

    o, destacada por Augusto de Campos em artigo de Teoria da poesia concreta

    (PIGNATARI; CAMPOS; CAMPOS, 1975, p. 41):

    (ANDRADE, 1994, p. 21)

    Flor a palavra

    lor, verso inscrito

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    no verso, como as

    manhs no tempo

    (MELO NETO, 2008, p. 77)

    Para concluir esta etapa, tomar-se-o aqui as palavras dos idealizadores brasileiros do movimento. Todos os traos

    identiicados no conjunto das produes mencionadas at aqui, enim:

    [...] convergem para um novo conceito de composio, para uma nova teoria da forma uma organofor-

    ma onde noes tradicionais como princpio-meio-im, silogismo, verso tendem a desaparecer e ser

    superadas por uma organizao potico-gestaltiana, potico-musical, potico-ideogrmica da estrutu-

    ra: POESIA CONCRETA (PIGNATARI; CAMPOS; CAMPOS, 1975, p. 31).

    Seria, entretanto, essa poesia um todo uniforme, coeso e linear? Certamente, no. Ao ser perguntado, em entrevista de

    1971, que futuro veria para o Concretismo, Dcio Pignatari respondeu:

    A poesia concreta mudou, tem mudado, vai mudar. No um ismo. preciso saber delimitar, se-

    lecionar o que estamos falando. Qual poesia concreta? [...] Poesia Concreta 1956; Poesia Concreta

    1958; Poesia Concreta 1962; Poesia Concreta 1965. E assim mesmo distinguindo peculiaridades in-

    dividuais embora nosso duradouro trabalho em equipe seja uma experincia e um fenmeno dos

    mais notveis em nossa ou em outras literaturas, no que se refere sobrevivncia e independncia

    criativas (PIGNATARI, 2004, p. 19).

    As nuances dessa produo da fase pr-concreta, no incio da dcada de

    1950, passando pela matemtica ou ortodoxa, participante, dos anos

    1960, quando o ciclo evolutivo dessa poesia parece ter-se esgotado sero

    abordadas mais detalhadamente a partir da anlise da obra de Ronaldo Aze -

    redo, compreendendo, ainda, a sua produo posterior a tal perodo.

    (AZEREDO, 1977, [s/p])

    15. Outra pea do poema-quebra-cabea ar-mar, a ser montado no inal do livro.

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    O EXPERIMENTALISMO DO POETA:O MNIMO MLTIPLO COMUM DO GRUPO

    Um breve histrico do carioca-paulista Ronaldo Azeredo

    Nascido em 1937, no Rio de Janeiro, no bairro bomio de Vila Isabel, mais precisamente na Rua Teodoro da Silva,

    onde viveu tambm Noel Rosa, seu compositor preferido, Ronaldo Pinto de Azeredo surpreende o cunhado Augusto

    de Campos, em 1954, aos dezessete anos, com o seu primeiro poema: ro. Filho de militar, caula em uma famlia de

    predominncia feminina a me, Chiquita Pinto de Azeredo, e as irms, Lygia e Ecila Azeredo , o jovem era de tem-

    peramento alegre, brincalho e rebelde, chegando a fugir de casa algumas vezes, para o desgosto do pai, bastante

    rgido, conforme relatam Augusto e Lygia Campos (informao verbal).

    Antes, porm, dessa aproximao com Augusto de Campos, preciso esclarecer que a famlia passou um perodo em

    Osasco, em funo das atividades militares do patriarca. dessa poca o contato com Dcio Pignatari, que tambm

    residia nesse municpio da Grande So Paulo e ia de trem para a capital, a im de cursar Direito no Largo So Francisco.

    Era comum os irmos Azeredo seguirem juntos com Pignatari, no mesmo trem, por conta dos estudos. A aproximao

    de Ronaldo com os poetas do Noigandresse d, portanto, por esse contato inicial com um dos articuladores do mo-

    vimento e pela relao de suas irms intelectuais com o grupo: Lygia, que se tornou namorada de Augusto e, desde

    ento, sua companheira, e Ecila, ex-namorada de Dcio e, posteriormente, esposa de Jos Lino Grnewald, outro a

    se juntar aos concretos mais frente. Com ro, a gua, a e z, o poeta, poca com dezenove anos, participa da I

    Exposio Nacional de Arte Concreta, no Museu de Arte Moderna de So Paulo, e da revista Noigandresn. 3, em 1956.

    A mostra, realizada por pintores, escultores e poetas, transferida, no ano seguinte, para o prdio do Ministrio da

    Educao e Cultura, no Rio de Janeiro. Com o evento na ento capital federal, o movimento ganha mais repercusso.

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    Ainda em 1957, Ronaldo se muda para So Paulo e conhece Amedea Pomelli, uma paulista descendente de italianos.

    Casa-se com ela em 1959 e, embora os amigos e integrantes do grupo se concentrassem em Perdizes, os dois vo mo-

    rar no bairro do Cambuci, em uma casa oferecida pelos pais da jovem, imvel prximo residncia e ateli do pintor

    Alfredo Volpi (principal referncia de Azeredo nas artes plsticas), de acordo com Amedea (informao verbal).

    Abaixo, foto do poeta junto aos companheiros:

    O jovem passa a cursar publicidade, um impulso signiicativo para a arte da criao, mas acaba atuando proissionalmente

    em rea diversa, como funcionrio da Sabesp, empresa de economia mista, responsvel pelo servio de saneamento bsico

    do Estado de So Paulo. L, trabalha por mais de trinta anos, responsabilizando-se, sobretudo, pelo atendimento da regio

    do Vale do Paraba. Da poesia, porm, no se distancia. De acordo com a esposa, o companheiro muitas vezes se acomodava

    na poltrona da sala de estar ou em seu escritrio, fechava os olhos e icava em absoluto silncio. Desses instantes, nasceriam

    novos projetos. O prximo passo seria buscar meios e parceiros para concretizar os seus impulsos criativos.

    Ilust. 16. Em sentido anti-horrio, Ronaldo Azeredo, Dcio Pignatari e Jos Lino Grnewald. Rio de Janeiro, 1960.

    Todo esse conjunto de relaes e atividades do poeta, associado a seu percur-

    so geogrico, ecoa em grande parte de sua produo: labirintexto, um mapa