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8/20/2019 Livro de Cabeceira http://slidepdf.com/reader/full/livro-de-cabeceira 1/4 SÃO PAULO, SP "O Livro de Cabeceira" - sob a perspectiva do Falasser (Apresentação de The Pillow book de Peter Greenaway) Cynthia Farias O propósito de tomar um filme como tema de uma noite de trabalho consiste em tentar demonstrar, assim como anuncia Lacan (1965) em “Homenagem a Marguerite Duras”, quais caminhos a obra de arte desbrava revelando o que a psicanálise ensina (p. 200). Arte e psicanálise, cada qual a seu modo, servem-se da linguagem de seu tempo para demonstrar o que se anuncia além da norma sobre a qual o discurso se apoia. Pillow Book (1996), filme de Peter Greenaway, cineasta, autor e artista multimídia britânico, revelou a verdade e o gozo que excedia o pacto discursivo de sua época, colocando à sua maneira, o corpo e o gozo da carne em cena. É um filme contemporâneo pela forma como articula corpo e linguagem. Se permite uma leitura pela via do sujeito e da falta-a-ser, nos convida, sobretudo, ao enigma do parlêtre que pela fala faz do corpo palco do acontecimento sexual.  “Quando Deus fez o primeiro modelo de barro de um ser humano, Ele pintou os olhos, os lábios ... e o sexo. Depois ele pintou o nome de cada pessoa para que o dono jamais esquecesse. Se Deus aprovou Sua criação, Ele trouxe à vida o modelo de barro pintado, assinando seu próprio nome”. Assim renasce a cada aniversário Nagiko Kiyohara, sob a tinta, a carícia do pincel e o nome de seu criador. Em seu aniversário de quatro anos, Nagiko recebe como presente de sua tia o diário de uma dama-da-corte da imperatriz. Trata-se do Livro de cabeceira de Sei Shonagon, mulher, sensível, elegante e de caráter forte, que registra com inteligência e engenhosidade suas observações em forma de listas aparentemente arbitrárias. Ao som da leitura de “Das coisas elegantes e que fazem o coração bater mais forte”, a pequena Nagiko

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SÃO PAULO, SP 

"O Livro de Cabeceira" - sob a perspectiva do Falasser 

(Apresentação de The Pillow book de Peter Greenaway)

Cynthia Farias

O propósito de tomar um filme como temade uma noite de trabalho consiste em tentardemonstrar, assim como anuncia Lacan(1965) em “Homenagem a MargueriteDuras”, quais caminhos a obra de artedesbrava revelando o que a psicanálise

ensina (p. 200). Arte e psicanálise, cadaqual a seu modo, servem-se da linguagemde seu tempo para demonstrar o que seanuncia além da norma sobre a qual odiscurso se apoia.

Pillow Book (1996), filme de Peter Greenaway, cineasta, autor eartista multimídia britânico, revelou a verdade e o gozo que excedia opacto discursivo de sua época, colocando à sua maneira, o corpo e ogozo da carne em cena. É um filme contemporâneo pela forma como

articula corpo e linguagem. Se permite uma leitura pela via do sujeitoe da falta-a-ser, nos convida, sobretudo, ao enigma do parlêtre quepela fala faz do corpo palco do acontecimento sexual.

 “Quando Deus fez o primeiro modelo de barro de um ser humano,Ele pintou os olhos, os lábios ... e o sexo. Depois ele pintou o nomede cada pessoa para que o dono jamais esquecesse. Se Deus aprovou

Sua criação, Ele trouxe à vida o modelo debarro pintado, assinando seu próprionome”. Assim renasce a cada aniversárioNagiko Kiyohara, sob a tinta, a carícia dopincel e o nome de seu criador.

Em seu aniversário de quatro anos,Nagiko recebe como presente de sua tia odiário de uma dama-da-corte daimperatriz. Trata-se do Livro de cabeceirade Sei Shonagon, mulher, sensível,elegante e de caráter forte, que registracom inteligência e engenhosidade suasobservações em forma de listas

aparentemente arbitrárias. Ao som da leitura de “Das coisaselegantes e que fazem o coração bater mais forte”, a pequena Nagiko

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surpreende, pela fresta da porta, o encontro do pai com seu editor.Se, para ela, o que testemunhou desse encontro só seria esclarecidomais tarde, o gozo em jogo na cena já habitava seu corpo.

O gosto pela escrita e a submissão paterna: sublimação e gozo que

Nagiko procura articular após o casamento arranjado com um atletapouco afeito às letras. Dedica seu tempo à escrita de seu diário sobre “As coisas que irritam”. Descoberto por seu marido, o livro équeimado e ela, por sua vez, ateia fogo a toda propriedade, ato queculmina com seu exílio. Esse não será o único incêndio em sua vida.

Se não há um significante que guie os seres em matéria de sexo,fica-se à deriva da escrita traumática que vivificou o corpo. Nagikonão desiste de tentar escrever a relação entre a letra e o sexo. Oracomo papel, ora como pincel, passa de um amante a outro em busca

dessa experiência inaugural que marcou seu corpo e conclui: os bonscalígrafos não são bons amantes, os bons amantes não são bonscalígrafos, testemunhando a relação sexual que não existe.

Na repetição necessária do sintoma que insiste em escrever o quenão cessa de não se escrever do trauma, ela se depara com acontingência. O tradutor inglês diante da insatisfação de Nagiko comseus rabiscos, lhe entrega a caneta e diz: “Use meu corpo como aspáginas de um livro, o seu livro”. Ela foge. Porém, instigada por esseencontro, decide escrever um livro no corpo de um de seus amantes.

Pede ao fotógrafo apaixonado que a persegue, e cuja pele não lheserve como papel, que fotografe o texto escrito no corpo daquelehomem e o transforme em livro. Entrega-o ao editor que o rejeitacom as seguintes palavras: “É inviável a publicação deste material.Não vale o papel em que está escrito”. 

Aconselhada por sua dama a seduzir o editor, segue então ocaminho que seu sintoma lhe impõe como destino, encontrandofinalmente sua condição de gozo. Duas cenas se sobrepõem: alembrança infantil dos encontros do pai com o editor e suaatualização ao surpreender o editor de seu falecido pai com oamante, Jerome, o tradutor inglês que havia oferecido o corpo comosuporte para sua escrita.

Nagiko vai até a livraria para seduzir e convencer o editor apublicá-la e é surpreendida ao se deparar com o jovem tradutoringlês junto com o editor.

Tomados de intensa paixão, Nagiko e Jerome se entregam ao amore ao gozo. Jerome escreve em seu corpo a saudação paterna e elapode experimentar o que Sei Shonagon escreve: “Tenho certeza de

que há duas coisas na vida que são dignas de confiança. Os prazeres

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da carne e os prazeres da literatura. Eu tive a sorte de desfrutardessas duas coisas da mesma forma”. 

Greenaway pretende neste filme especular sobre uma fantasiaerótica que conjuga duas fascinações sem limites: o corpo e a

literatura (Greenaway, 2007) e toma a escrita oriental por implicarnela própria o corpo do calígrafo. “E, se as palavras foram feitas pelocorpo, onde haveria um lugar melhor para depositar essas palavrasdo que de volta no corpo?, diz o autor. (Greenaway, 2004).

No entanto, o sexo atesta a impossibilidade do significante recobrirtotalmente o corpo. Nesse ponto, Nagiko responde com seu sintoma,insistindo em apagar o trauma, recobrindo o enigma do gozo do pai.A vingança é sua solução sintomática para juntar sexo e texto.

O amante escreve em seu corpo como seu pai fazia e se propõe aajudá-la a publicar seu livro junto a esse editor oferecendo seu corpocomo papel.

Seu amante se propõe alevar em seu próprio corpo “O primeiro dos 13 livros”,que decide escrever para “honrar seu pai”. O editor,fascinado, retém consigo os

objetos de seu desejo: aescrita e o corpo. Ela,enciumada com asubmissão de seu amanteao editor, envia-lhe outrosquatro livros escritos noscorpos de homens que escolhe aleatoriamente: "O livro do inocente”, “O livro do idiota”, “O livro do impotente”, “O livro do exibicionista”.Jerome, com medo de perdê-la, a procura desesperado e, diante desua recusa, é convencido pelo fotógrafo a forjar seu suicídio. A farsaexcede os limites e sua morte se consuma. Sobre seu corpo morto,Nagiko escreve seu sexto livro: “O livro do amante”. Numa grandefogueira, queima seus livros, roupas e sapatos. “Queimei meus livros,minhas roupas e sapatos, as fotografias e os diários. Foi o segundogrande incêndio de minha vida. O primeiro me tirara do Japão. Osegundo me trouxera de volta."

Ao tomar conhecimento da morte de Jerome, o editor abre asepultura e profana o corpo, transformando a pele do amante em seulivro de cabeceira.

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  O corpo do amante morto sobre o qual ela havia escrito o sexto deseus treze livros, “O livro do amante” é profanado de sua sepultura etransformado em livro pelo editor.

Nagiko, grávida, ao saber da existência desse livro que o editor

guarda dentro da caixa de madeira que lhe serve de travesseiro,remete a cada vez um novo livro no corpo de um homem, comooferta de troca: "O livro do sedutor", “O livro da juventude”, "O livrodos segredos", "O livro do silêncio”, “O livro do traído”, “O livro dosfalsos inícios” e, finalmente, o décimo terceiro livro, “O livros da

morte”. No corpo de um jovemlutador de sumô, denuncia aperversão do editor e consumasua vingança. O editor entregafinalmente o livro ao portador

que com uma adaga corta seupescoço.

A vingança que envelopa oenigma que se apresenta aNagiko não evita o gozo que

há na submissão de seu pai e de seu amante ao editor e, delaprópria, ao seu sintoma, como conclui Heloisa Caldas em seu texto “Uma caligrafia cinematográfica: Sobre escrita, corpo, cinema epsicanálise”.

No entanto, submeter-se ao sintoma no desfecho trágico não apagasua submissão à escrita, resquício do gozo que vivificou seu corpo.No dia de seu aniversário de 28 anos, tempo em que o Livro deCabeceira de Sei Shonagon completava 1000 anos, Nagiko sepulta “Olivro do Amante” sob um bonsai e recebe seu bebê repetindo em seucorpo o ritual que recebera de seu pai. Pode então escrever seupróprio livro de cabeceira, sua própria lista das “coisas que fazem ocoração bater mais forte".