livia moura raso da catarina

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sobre o raso da catarina região do semiarido bahia

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  • UNIVERSIDADE FEDERAL DA BAHIA INSTITUTO DE GEOCIENCIAS

    PROGRAMA DE PS-GRADUAO EM GEOGRAFIA

    LIVIA MOURA DA SILVA

    A TERRITORIALIDADE E OS PROCESSOS DE

    IDENTIFICAO TERRITORIAL NA SOCIEDADE

    INDGENA PANKARAR-BA

    Salvador 2010

  • LIVIA MOURA DA SILVA

    A TERRITORIALIDADE E OS PROCESSOS DE

    IDENTIFICAO TERRITORIAL NA SOCIEDADE

    INDGENA PANKARAR-BA

    Dissertao apresentada ao Programa de Ps-Graduao

    em Geografia, Instituto de Geocincias, Universidade

    Federal da Bahia, como requisito parcial para obteno do

    ttulo de mestre em Geografia.

    Orientadora: Prof. Dra. Catherine Prost

    Salvador 2010

  • FOLHA DE APROVAO

    Lvia Moura da Silva

    A Territorialidade e os processos de identificao territorial na sociedade indgena

    Pankarar-Ba

    Salvador, ....... de ....................... de 2010.

    __________________________________

    (Catherine Prost, Doutora em

    ___________________________________

    (Guiomar Ins Germani, Doutora em

    ___________________________________

    (Fbio Pedro S. de F. Bandeira, Doutor em

  • __________________________________________________

    S586 Silva, Livia Moura da

    A territorialidade e os processos de identificao territorial

    na sociedade indgena Pankarar-Ba/ Livia Moura da Silva. -

    Salvador, 2010.

    xxf. : il.

    Orientadora: Prof. Dra. Catherine Prost.

    Dissertao (Mestrado) Curso de Ps-Graduao em Geografia, Universidade Federal da Bahia, Instituto de Geocincias, 2011.

    1. Sociedade Indgena Pankarar (Ba). 2. Territorialidade

    humana. 3. ndios - Identidade I. Prost, Catherine. II.

    Universidade Federal da Bahia. Instituto de Geocincias. III. Ttulo.

    CDU: 911.3 (813.8)

    __________________________________________________

    Elaborada pela Biblioteca do Instituto de Geocincias da UFBA.

  • DEDICATRIA

    Aos Pankarar

    E todos aqueles que ao longo dessa

    caminhada deram um pouco de si e levaram

    um pouco de mim

  • RESUMO

    SILVA, Lvia Moura da. A Territorialidade e os Processos de Identificao Territorial

    na Sociedade Indgena Pankarar-Ba. Salvador, 2010. Dissertao (Mestrado em

    Geografia)- Instituto de Geocincias, Universidade Federal da Bahia, Salvador, 2010.

    O principal objetivo deste estudo verificar a relao entre Territrio e Identidade

    territorial gerados a partir dos usos e da conservao dos recursos naturais no Territrio

    Indgena Pankarar-BA. A populao indgena Pankarar encontra-se no interior da

    regio Nordeste brasileira, numa rea denominada Raso da Catarina. As duas Terras

    indgenas Brejo do Burgo e Pankarar abriga uma populao de aproximadamente 1500

    habitantes dividida em quatro aldeias: Brejo do Burgo, Serrota, Chico e Ponta Dgua. De forma geral, a maior parte da populao sobrevive de atividades agrcolas, caa e

    extrativismo de frutos e plantas medicinais, criao de animais dentre outros. Esse

    processo revela a articulao entre o uso dos espaos e evidencia a importncia da

    pluriatividade existente nas atividades cotidianas. Os Pankarar, assim como outros

    povos indgenas do Nordeste, representam o tipo de ndio que enfrentou todos os

    gneros de compulses: culturais e socioeconmicas mas conseguiu sobreviver s

    mesmas, ocupando terras que apresentavam-se como economicamente inviveis para os

    interesses da poca pela sociedade no indgena. Os ndios Panakarar viveram nas

    ltimas trs dcadas um movimento de recriao e revitalizao de rituais, reforando

    sua identidade tnica. O estudo do processo histrico-espacial possuiu extrema

    importncia para as anlises acerca da construo identitria territorial em que se

    verificaram os movimentos de reivindicao e de luta pela demarcao do territrio

    como imprescindveis no processo da construo identitria Pankarar. Nos ltimos cem anos de contato com seus vizinhos regionais, observou-se que, alm do movimento

    de resistncia, ocorreram trocas entre a cultura sertaneja e indgena, manifestas

    sobretudo atravs dos casamentos intertnicos que estreitaram os vnculos entre etnias.

    Dessa maneira, a identidade foi construda e reconstruda a partir das diversas

    contribuies de distintas matrizes culturais. Nesse sentido, as mltiplas territorialidades

    no territrio indgena Pankarar so delineadas espacialmente de acordo com as

    especificidades e necessidades do grupo social e aparecem em distintos momentos no

    cotidiano do grupo. Vale ressaltar que estes vnculos identitrios Pankarar possuem

    lgicas e concepes distintas contrrias ao carter romntico tpico da viso urbana-

    industrial que apresenta uma preocupao excessiva com o uso dos recursos naturais. Com isso, verificou-se que, assim como outras identidades, a identidade Pankarar

    apresenta-se imersa nas aes cotidianas da etnia, ora mais simblicas ora mais

    concretas, num contnuo processo de construo, afirmao, reajuste e reafirmao.

    Palavras-chave: Territrio, Identidade territorial, ndios Pankarar

  • ABSTRACT

    The main intent of this research is to study the relashionship between Territory and

    territorial Identity created by uses and natural resources conservation at Pankarar -

    Bahia indigene territory. Pankarars can be found at Brazilians northeast country region,

    in an area named Raso da Catarina. The two indigene lands in this area, Brejo do Burgo and Pankarar, hold a population of approximately 1500 inhabitants and there are

    four Indian settlement in there: Brejo do Burgo, Serrota, Chico and Ponta Dgua. In a general way, most of people live doing agricultural activities, hunting or extraction of

    fruit and medicinal plants, breeding and others. This process reveals the articulation

    between the use of the spaces and evidence the importance of plurality activities on their

    everyday lives. The Pankarar, like other indigenous peoples of the Northeast, represent

    the kind of Indian who faced all sorts of compulsions: cultural and socioeconomic but

    managed to survive the same, occupying land that they presented as economically

    unviable for the interests of non indigenous society. The Indians Panakarar lived for

    three decades a movement of rebirth and revitalization of rituals, reinforcing their ethnic

    identity. The study of the historical and spatial process had an extreme importance for

    the analysis about the construction of territorial identity where were verified movements

    of claims and fights for the demarcation of the territory as essential in the process of

    identity construction Pankarar. Over the past century of contact with its regional

    neighbors, it was observed that besides the resistance movement, there were exchanges

    with the country culture and indigenous, mainly manifested through intermarriage that

    narrowed the links between ethnic groups. Thus, identity was constructed and

    reconstructed from the various contributions of different cultural matrices. In this sense,

    multiple territoriality in Indian territory are spatially delineated respecting Pankarar

    peculiarities and needs of the social group and appear at different moments in the daily

    group. Its important to mention that these Pankarar identity links have logical and distinct views contrary to the romantic character of the typical urban-industrial vision

    that presents an "excessive" concern with the use of natural resources. Thus, it was

    found that, like other identities, identity Pankarar presents itself immersed in the

    everyday actions of the ethnic group, sometimes more symbolic sometimes more

    concrete, in a continuous process of building, affirmation, reassurance and readjustment.

    Key-words: Territory, Territorial Identity, Indians Panakarar

  • SUMRIO

    AGRADECIMENTOS

    RESUMO

    ABSTRACT

    LISTA DE FIGURAS

    LISTA DE SIGLAS

    1 INTRODUO ...................................................................................................................12

    2 TERRITRIO E IDENTIDADE TERRITORIAL: UMA PERSPECTIVA

    GEOGRFICA......................................................................................................................16

    2.1 DO TERRITRIO A MULTITERRITORIALIDADE COMO SER TRADICIONAL NO

    MUNDO PS-MODERNO? .................................................................................................34

    3 OS POVOS INDGENAS NO NORDESTE BRASILEIRO: CONTEXTO HISTRICO-

    ESPACIAL ........................................................................................................................... 44

    4 FORMAO E DEMARCAO DO TERRITRIO INDGENA PANKARAR:

    PROCESSO HISTRICO E SITUAO ATUAL ...........................................................56

    4.1 CARACTERIZAO DA REA DE ESTUDO .............................................................69

    4.2 O POVO PANKARAR : Usos do territrio.....................................................................81

    4.2.2 ALDEIAS MODOS DE VIDA E USOS DO TERRITRIO

    a) Aldeia Brejo do Burgo..........................................................................................................92

    b) Serrota ..................................................................................................................................97

    c) Ponta Dgua .......................................................................................................................100

    d) Chico ..................................................................................................................................101

    e) Festejos e religiosidade no territrio ..................................................................................104

    4.3 REGIMES DE USOS DA TERRA: SOBREPOSIES NO TERRITRIO

    INDGENA PANKARAR...................................................................................................107

    5 IDENTIDADE TERRITORIAL E CONSERVAO DOS RECURSOS NATURAIS:

    UMA POSSVEL RELAO?............................................................................................115

    6 POLTICAS E GESTO DOS RECURSOS NATURAIS PELAS SOCIEDADES

    TRADICIONAIS: DILOGO DE SABERES ..................................................................120

    7 CONSIDERAES FINAIS ...........................................................................................125

    REFERNCIAS ...................................................................................................................130

  • LISTA DE FIGURAS

    Figura 1: Mapa de localizao da rea de estudo. Mapa do estado da Bahia e mosaico das

    Terras indgenas Pankarar ao sul e Brejo do Burgo ao norte.

    68

    Figura 2: Mapa mosaico das imagens de satlite, localizao da rea de estudo. 73

    Figura 3: Localizao da rea de estudo. Imagem Landsat 7 ETM+, 471 RGB. Ao sul

    delimitao da Unidade de Conservao- Estao Ecolgica Raso da Catarina e Terras

    indgenas Pankarar e Brejo do Burgo ao norte

    74

    Figura 4: Vista area do Riacho do Ton, na dcada de 70. 75

    Figura 5: Etnomapa localizao das baixas, chapadas e aldeias no Territrio indgena

    Pankarar

    76

    Figura 6: Mapa de litologia das TIP 77

    Figura 7: Mapa de relevo das TIP 78

    Figura 8: Relevo: a. Relevo aplainado; b. serra relevo suavemente ondulado 78

    Figura 9: Mapa dos tipos de solo nas TIP 79

    Figura 10: a e b Extrao de lenha depois de tombar a terra (desmatar) os grupos familiares

    coletam lenha para usos na construo civil e na cozinha. Coleta do da bromlia e bolsa de cro

    pronta.

    81

    Figura 11: Terra forte a. Roa e riacho do Ton, aldeia Brejo do Burgo; b. Riacho do Ton,

    aldeia Brejo do Burgo; c. Roa no segundo plano Aldeia Serrota

    82

    Figura 12: Roa no Canyon do Chico b. Canyon do Chico-Neossolo quartzarnico. 82

    Figura 13: : Mapa de vegetao nas TIP 82

    Figura 14: Vegetao a. Caatinga arbrea-arbustiva densa estao seca; b. Caatinga arbrea-

    arbustiva estao chuvosa.

    83

    Figura 15: Aldeia Brejo do Burgo Ilustrao do livro: A gua e os Pankarar

    Figura 16: a. Limpando o rancho na roa de milho na Serra do Cgado, b.Preparando a comida

    na roa; c.milho ensacado; d. batida (quebra) do milho; e. variedade de milho

    85

    Figura 17: a. Coleta de caju- aldeia Serrota; b.ilustrao livro: A gua e os Pankarar,

    c.caju coletado, d. venda de caju na feira de Paulo Afonso, e. castanha de caju, f. quebra da

    castanha de caju assada

    86

    Figura 18: a.Coleta de cro; b. retirada da fibra do cro; c. cro; d. bolsa feita com a fibra do

    cro pronta

    88

    Figura 19: Posto indgena FUNAI, Aldeia Brejo do Burgo. 94

    Figura 20: Fonte Grande dcada de 70. 95

    Figura 21: Aldeia Brejo do Burgo. 95

  • Figura 22: a. Roa cultivo de milho; f. Feijo de arranca; b. vista area delimitao das

    roas; c. Roa cultivo de palma

    96

    Figura 23: a. roa de mandioca no quintal; b. farinha; c. beij no forno da casa de

    Farinha 96

    Figura 24: a. Criao de animais a galinceos; b. cabra; c. porcos 96

    Figura 25: a e c. Ilustrao do livro: A gua e os Pankarar; b. oficina na aldeia 98

    do Chico.

    Figura 26: Casa Aldeia Serrota

    100

    Figura 27: a. retirada do favo de mel do oco; b. armazenamento do mel; 100

    c. peneirao do mel; d. peneirao; e.envasamento; f. exposio do mel

    para venda na feira de Paulo Afonso.

    Figura 28: a. Casca de Umburana; b. Umburana Ilustrao do livro: 101

    A gua e os Pankarar; c. retirada da casca do pau na mata; d. arrumao dos paus para

    venda na feira.

    Figura 29: Criao a. tatu peba; b. ema; c. cutia. 101

    Figura 30: Casa Aldeia Ponta Dgua 103

    Figura 31: Casa Aldeia Chico 104

    Figura 32: a e b Canyon do Chico 105

    Figura 33: Prai 105

    Figura 34: Tor Ilustrao do livro: A gua e os Pankarar; 106

    Figura 35: Prai- ndios com a vestimenta de cro e ao fundo Por- 107

    casa da cincia Pankarar

    Figura 36: a. ndia Pankarar acendendo o cambri; b. umbuzeiro demarcando 107

    os pontos de parada na procisso;c. ndio na procisso.

    Figura 37: a. altar local de reza; b. Prai no cruzeiro do Amaro; c. procisso 108

    no festejo do Amaro;

  • LISTA DE SIGLAS

    FNMA/MMA Fundo Nacional do Meio Ambiente do Ministrio do Meio Ambiente

    FUNAI Fundao Nacional do ndio GEAP Gesto Etnoambiental Pankarar

    ONGs Organizaes No Governamentais

    TIP Terra Indgena Pankarar

    UEFS Universidade Estadual de Feira de Santana

  • 1 INTRODUO

    Os Pankarar, assim como outros povos indgenas, representam o tipo de ndio que

    enfrentou todos os gneros de compulses: culturais, socioeconmicas e conseguiram

    sobreviver s mesmas, ocupando terras que apresentavam-se como economicamente

    inviveis para os interesses da poca pela sociedade no indgena. Mesmo

    descaracterizados fenotipicamente como costuma frisar a populao urbano-industrial, os

    ndios vivem nas ltimas dcadas um movimento de recriao e revitalizao de rituais, que

    refora sua identidade tnica.

    A populao indgena Pankarar encontra-se no interior da regio Nordeste

    brasileira, numa rea denominada Raso da Catarina-Ba (Brasil, 1983). De forma geral, a

    maior parte da populao sobrevive das atividades agrcolas, caa e extrativismo de frutos e

    plantas medicinais da criao de animais dentre outros. Esse processo revela a articulao

    entre o uso dos espaos e evidencia a importncia da pluriatividade existente no seu

    cotidiano.

    O meu contato com os ndios Pankarar deu-se da seguinte maneira: a primeira

    vez que estive na Terra Indgena Pankarar-TIP em 2004, fiquei perplexa com tal

    singularidade e tive a real percepo da diferena entre os biomas Caatinga/ Mata

    Atlntica. Tudo que eu estudei nos livros estava ali sendo vivenciado e sentido pelo meu

    corpo (como quente e seco). A vegetao lindssima, ao mesmo tempo que se mostrava

    forte e exuberante, exibia uma certa sutileza com suas pequenas flores. Com solo arenoso,

    o relevo mostrava-se extensamente plano, entre algumas serras de maior discrepncia

    altimtrica que permitiam olhar a grande formao do Raso da Catarina. Tudo era muito

    distinto do ambiente litorneo no qual eu nasci e estava acostumada. Neste perodo era

    graduanda em Geografia e meu olhar curioso procurava observar atentamente, sentir,

    descrever, classificar e analisar tudo que via.

    Essa primeira experincia foi sem dvida muito importante, pois percebi que o

    povo do Serto antes de tudo um forte, parafraseando Euclides da Cunha (1985).

    Anteriormente tinha passado por outras experincias de estgio em pesquisa na academia,

    sempre relacionadas s questes ambientais, e por fim, ingressara no Grupo de Gesto

    Etnoambiental Pankarar (GEAP) sob a coordenao do professor Dr. Fbio Pedro

    Bandeira, da Universidade Estadual de Feira de Santana (UEFS), para trabalhar como

    voluntria na meta de Educao Ambiental com os professores das escolas na Terra

    Indgena Pankarar. Este trabalho de pesquisa e extenso fazia parte de um projeto mais

    amplo financiado pelo FNMA- Fundo Nacional do Meio Ambiente, que encontrava-se na 2

    epata de execuo. Tal experincia foi extremamente enriquecedora, visto que aprender e

  • trabalhar com um grande grupo de pesquisadores, professores, alunos e comunidade

    tradicional sem dvida enriqueceu a minha formao acadmica, pois sem ela o meu

    percurso inicial no teria sido to profcuo.

    Cumpridas as demandas do projeto diversos questionamentos sempre estavam

    presentes e aguavam o meu desejo enquanto pesquisadora. Alguns deles foram: Como e

    por que este povo estabelece uma relao de afetividade com territrio? Quais critrios os

    ndios utilizam para delimitar de maneira to minuciosa suas terras? Como sabem e

    escolhem os melhores lugares para caar, coletar mel, tirar os remdios? Qual a relao

    entre os encantados em seus rituais com o Tor (dana) e os Prai (dana com vestimenta

    especfica)? Qual a relao entre a conservao dos recursos naturais e os encantados?

    Qual significado da expresso utilizada pelos ndios Pankarar: cada coisa no mato tem

    seu dono? Quais so as atividades exercidas por homens e pelas mulheres? O que

    roa, mata, reserva, casa, quintal? O que Raso, Chapada e Brejo? Onde localizam-se as

    terras fortes e as terras fracas? Como os ndios respeitam as reas das roas uns dos

    outros se no h cercas em todas as reas? Estas e tantas outras questes ao longo do

    tempo de convivncia com os Pankarar foram fomentando meu desejo de estud-los. O

    projeto GEAP findou-se mas o trabalho com os Pankarr no, pois a Especializao em

    Modelagem em Cincias da Terra e do Ambiente da UEFS, na qual fui aprovada em 2007,

    teve a TIP como rea de pesquisa, o trabalho referiu-se ao estudo dos regimes de direito

    de propriedade nas dcadas de 80, 90 e 2000. Ainda nesse caminhar o ingresso no

    Mestrado em Geografia em 2008 na UFBA, tambm teve como sujeitos de pesquisa os

    indios Pankarar, contundo apresentou uma proposta distinta, pois refere-se ao estudo da

    relao entre os processos de identificao territorial e a conservao dos recursos

    naturais na TIP.

    Este estudo possui a temtica territorial como um dos principais questionamentos

    levantados. O principal objetivo do mesmo estudar a relao entre territrio, identidade

    territorial e os usos e conservao dos recursos naturais. Mas por que o Territrio, j que

    houveram tantas crticas e sugestes para trabalhar com outras categorias de anlise da

    cincia geogrfica, como por exemplo: o lugar? O territrio foi a abordagem terico-

    conceitual utilizada para estudar a TIP devido, principalmente, ao processo de luta dos

    Pankarar para assegurar e demarcar suas terras. No se nega no entanto, que alm

    destas relaes e disputas de poder imersas na terra indgena, h um forte sentimento de

    pertencimento que demonstra a construo de suas singularidades e do processo de

    identificao territorial.

    Para isso, a principal questo que motivou esta pesquisa foi: de que maneira se d

    o processo de identificao territorial e quais so as relaes entre Identidade Territorial e

  • conservao dos recursos naturais no Territrio Indgena Pankarar? Nesse sentido, a

    reviso bibliogrfica que subsidiou o estudo teve como conceito base a discusso conceitual

    sobre territrio enquanto categoria de anlise geogrfica. Alm dele, discutiu-se os

    conceitos de identidade, identidade territorial, e cultura. Para enriquecimento das anlises foi

    utilizado o material de campo que possibilitou elaborar algumas inferncias acerca dos

    processos de identificao e suas relaes com o uso dos recursos naturais no grupo social

    na rea estudada.

    Como tal abordagem de estudo ainda no havia sido trabalhada em estudos

    realizados anteriormente na TIP, isso contribuiu e deu maior motivao a pesquisar sobre

    esta temtica, sobretudo por que se trata de uma abordagem relativamente nova dentro da

    cincia geogrfica. Os estudos realizados acerca das populaes tradicionais geralmente

    so da rea de antropologia ou biologia dentre outras cincias. Nesse sentido, a geografia

    pode contribuir de maneira profcua na discusso sobre a temtica territorial relacionada aos

    aspectos ambientais, visto que o olhar geogrfico nas anlises pode vir a ser um

    contribuinte-chave nos estudos de carter socioambiental.

    Para isso, as referncias dos estudos pioneiros na TIP como Bandeira (1993) sobre

    etnobiologia, Maia (1992) sobre poltica e etnicidade e Luz (1985) acerca da histria oral

    Pankarar possibilitaram o reconhecimento da rea de estudo e foram tomados como base

    para o desenvolvimento do mesmo. No mbito da geografia tomou-se como referenciais os

    estudos de Santos (1978, 1985, 2002, 2006), Haesbaert (1999, 2004, 2006, 2007) e Claval

    (1999). Sobre a temtica da cultura e identidade foram utilizados os conceitos de Hall

    (2005), Mitchell (1999). Na definio de povos tradicionais tomou-se como base Little

    (2002), Diegues (2001) e, para a de desenvolvimento sustentvel, Castro (1997) e Sachs

    (2004).

    Visto que a questo norteadora do estudo refere-se aos processos de identificao

    territorial e conservao dos recursos naturais a pesquisa participante e entrevistas foram

    utilizadas para trabalhar com essa temtica, j que necessita de um maior contato com o

    grupo social para conhecer de maneira mais aprofundada sua dinmica interna, costumes

    entre outros. Portanto, na elaborao do presente trabalho dissertativo, foi imprescindvel a

    realizao de entrevistas semi-estruturadas e estruturadas com os ndios Pankarar. De

    modo geral, as conversas deram-se em ambientes com mais de uma pessoa, especialmente

    durante a realizao das atividades cotidianas como trabalho na roa, no quintal, ou na

    cozinha, com durao mdia duas horas. A maior parte das entrevistas foi gravada, o que

    possibilitou a transcrio integral das falas. Alm disso, foram disponibilizados mapas,

  • fotografias, questionrios, diversos dados e informaes pelo GEAP que auxiliou na

    construo das anlises sobre a temtica.

    Nesse sentido, para elucidar as problemticas elencadas pensou-se na seguinte

    estrutura do trabalho. A dissertao possui cinco captulos. O primeiro captulo refere-se

    introduo geral do trabalho. O segundo captulo, intitulado Processos de Territorializao e

    Identificao Territorial nas Sociedades Tradicionais, faz uma discusso a partir do olhar

    geogrfico sobre os conceitos de territrio e de territorializao relacionados aos processos

    de identificao territorial nas sociedades tradicionais. No terceiro capitulo Os povos

    indgenas no nordeste brasileiro: contexto histrico-espacial faz-se um apanhado histrico

    destas populaes indgenas no Nordeste Brasileiro, para enfim chegar ao povo indgena

    Pankarar. O quarto captulo trata das subjetividades e concretudes no territrio indgena.

    No quinto e ltimo captulo foi feita uma abordagem geral sobre as concepes tericas

    acerca da gesto territorial referente aos espaos dos povos tradicionais e como tem sido o

    processo de dilogo entre estas populaes e as sociedades urbano-industriais, sobretudo

    no que se refere implantao de reas prioritrias para conservao e a ocorrncia das

    sobreposies nos territrios dos povos tradicionais, dentre estes os povos indgenas, bem

    como o fomento a execuo de projetos de gesto ambiental nestas reas.

  • 2 TERRITRIO E IDENTIDADE TERRITORIAL: UMA PERSPECTIVA

    GEOGRFICA

    A cincia geogrfica tem como objeto de estudo o espao que, ao

    longo do processo histrico, transformado em espao social pelas distintas

    sociedades, dando-lhe formas, contornos e contedos. Segundo Santos (1985)

    a essncia do espao social, o mesmo considerado como o palco de aes

    das sociedades, em que ocorrem construes e reconstrues atravs de um

    processo dialtico. O espao visto como um conjunto indissocivel, de um

    sistema de objetos e sistema de aes, que considerados conjuntamente

    formam uma totalidade na qual ocorrem os processos histricos. De acordo

    com Santos (2001), os objetos e aes so partes indissociveis construtoras

    do espao, h para isso uma interao entre si:

    De um lado os sistemas de objetos condicionam a forma como se do as aes e, de outro lado, os sistemas de aes leva a criao de objetos novos ou se realiza sobre os objetos pr-existentes. assim que o espao encontra a sua dinmica e se transforma (SANTOS, 2001, p. 63).

    Nesse sentido, o estudo do espao realizado com base nessa

    dinmica que o transforma constantemente reunindo a materialidade e a vida

    que a anima. Desta maneira, o objeto de estudo da geografia refere-se ao

    espao formado pelo conjunto entre o sistema de objetos e sistema de aes.

    De acordo com Santos (2001), ambos os sistemas formam um conjunto

    indissocivel, solidrio e contraditrio e devem ser considerados como um

    quadro nico onde a histria se d. Como afirma o autor nas interaes entre

    os objetos e as aes ocorrem interferncias entre ambos contribuindo com o

    processo de dinamicidade e transformao do espao.

    Nesse processo contnuo de transformao verifica-se que o homem

    vm a cada dia substituindo elementos naturais por objetos artificiais na

    apropriao do espao. Tais processos de interao entre objetos e aes

    produzem como resultado uma multiplicidade de situaes, que podem

    apresentar diversas possibilidades de anlises. As anlises referentes ao

    espao podem ser realizadas atravs das categorias analticas internas,

  • recortes espaciais e por meio dos processos externos ao mesmo. As

    categorias internas de anlise so definidas como regio, lugar, territrio e

    paisagem, bem como, a configurao territorial, diviso territorial do trabalho,

    espao produzido, rugosidades e formas contedo. Enquanto os processos

    externos ao espao referem-se: a tcnica, a ao, os objetos e a norma; os

    eventos so a universalidade e a particularidade, a totalidade, a temporalidade,

    a idealizao e a objetivao, os smbolos e a ideologia.

    Nesta perspectiva, verifica-se a indissociabilidade entre objetos e

    aes devido ao contnuo movimento de produo e reproduo do espao,

    configurado por meio de uma constante sucesso das formas-contedo, ou

    seja, o espao compe-se de objetos com formas, mas tambm possui

    contedo (atores sociais) que interage com estas formas e estas com o

    contedo, num vai-e-vm incessante. Nesse sentido, visto que a totalidade

    dada por um processo contnuo, os espaos se criam e se recriam novamente.

    Assim, a diviso social do trabalho condiciona esse processo com o papel de

    definir os espaos dando-lhes novos contedos e criando novas formas,

    metamorfoseando os objetos e as aes atravs de novas configuraes

    (SANTOS, 2001, p. 25).

    Nesse sentido, visto que as intencionalidades materializam-se sobre os

    espaos, com a ocorrncia concomitante dos processos, funes e formas

    sociais, considera-se que toda formao socioespacial tambm territorial,

    tendo em vista essa interdependncia entre tempo-espao.

    No entanto, para analisar o espao social necessrio estabelecer

    recortes e trabalhar com diversas escalas de anlise. Para isso, neste estudo

    coube fazer um recorte espao-temporal, alm de trabalhar com as

    interelaes entre as escalas geogrficas (local, regional e nacional) devido s

    distintas contribuies e rica possibilidade das mesmas estabelecerem dilogos

    entre si.

    A partir deste ir e vir interescalar, foram elucidados pontos-chave visto

    que as relaes entre o tempo e as territorialidades constituem o territrio,

    formado pelo processo cumulativo da dinmica socioespacial-temporal, onde a

    cada momento tm-se um resultado e uma possibilidade num movimento

  • contnuo. Segundo Moraes (2000) o territrio um produto socialmente

    produzido, bem como um resultado histrico da relao dos grupos humanos

    com o espao. Para enriquecer tal discusso, cabe mencionar os conceitos

    associados e concebidos a partir do territrio, como a territorialidade e

    territorializao visto que ambos permitem a construo concreta e visvel do

    territrio por lhe darem vida e mobilidade.

    As territorialidades para Saquet (2009, p.79) so as relaes sociais que

    podem ser simtricas ou dissimtricas e produzem historicamente cada

    territrio. A territorialidade encontra-se imersa no territrio tendo em vista que

    manifesta-se atravs de um processo (SAQUET 2009 p. 78 apud RAFFESTIN).

    A territorialidade definida como relacional e dinmica, mudando no tempo e

    no espao, conforme as caractersticas de cada sociedade. O territrio acaba

    sendo o resultado das territorialidades efetivadas pelos homens (SAQUET,

    2009, p.79).

    J a territorializao apresenta uma definio distinta: ela refere-se

    ao, ao ato de territorializar; trata de indivduos ou grupos sociais que, a partir

    de suas aes no mundo material, modificam aspectos do mesmo, construindo-

    o e reconstruindo-o conforme suas necessidades. O sujeito que territorializa um

    determinado espao est realizando um processo de territorializao e

    concomitantemente construindo territorialidade, que pode ser individual ou

    coletiva. Conforme Saquet (2009) a territorializao substantivada por

    distintas temporalidades e territorialidades multidimensionais.

    A territorializao o resultado e condio dos processos sociais e espaciais, significa movimento histrico e relacional. Sendo multidimensional, pode ser detalhada atravs das desigualdades e das diferenas e, sendo unitria, atravs das identidades (SAQUET, 2009, p.83).

    Nos processos sociais e espaciais citados pelo autor encontra-se

    associada a noo de temporalidade. O seu carter multidimensional se aplica

    bem rea deste estudo, visto que durante todo processo de construo

    histrica do territrio indgena Pankarar a territorializao contribuiu para a

    construo de uma identidade especfica Pankarar. Nesse sentido, observa-

    se que distintas territorialidades podem ser criadas num mesmo territrio e

  • ainda pode ocorrer sobreposies entre as mesmas. Longe de demonstrar-se

    como algo esttico, puramente fsico com delimitaes fronteirias fixas e

    imveis, o territrio passa adquirir um carter mais abrangente, agrupando

    diversas territorialidades, ora mais fixas ora mais mveis e flexveis. As aes

    praticadas pelos atores sociais nos processos de territorializao mostram-se

    imprescindveis, por dar vida ao processo, estabelecer e legitimar o carter

    social presente nesta perspectiva de abordagem geogrfica. Portanto, no

    cabe estudar apenas a construo de um dado territrio sem o que lhe d vida,

    sem sua alma (leia-se ao dos atores sociais). No estudo espao-territorial,

    torna-se fundamental analisar indissociavelmente a relao tempo-espao-

    sujeitos, tendo em vista as infindas possibilidades e distintas configuraes que

    o territrio pode apresentar a partir dos interesses dos seus atores e

    interferncias das temporalidades e dinmicas sociais a que esto submetidos.

    Nesta perspectiva, analisar as sociedades atravs da relao que as

    mesmas estabelecem com seus espaos territoriais pode ser realizada por

    meio de distintas categorias de anlise da cincia geogrfica (paisagem,

    regio, territrio, lugar). Neste estudo, o territrio foi o conceito-chave utilizado

    por ter respondido de forma mais coerente aos questionamentos da pesquisa,

    tendo em vista que o espao ocupado pelos Pankarar registrou relaes de

    poder, conflitos e disputas essenciais para sua configurao, presentes em

    todo processo histrico na Terra Indgena Pankarar.

    Na perspectiva de Saquet (2007), o territrio no aquele sem atores,

    reduzido ao ambiente fsico, nem aquele restrito a interao entre atores das

    cincias sociais e polticas. O territrio encontra-se imerso nas relaes entre

    sociedade-ambiente e tem como resultado uma grande diversidade

    sociocultural e ambiental. Essa diversidade sociocultural, que representa

    tambm, uma riqueza, pode acarretar conflitos se as diferenas entre os

    grupos se traduz, por divergncias antagnicas.

    O territrio essencialmente contm e contido por/pelas relaes de

    poder que refletem os conflitos de classes. resultado das dinmicas de

    produo imersas nas relaes sociais materializadas cotidianamente, em que

    o uso dos recursos nos mais diversos ambientes gera conflitos e disputas de

  • poder devido s necessidades dos atores sociais. As necessidades de cada

    grupo social dizem respeito desde aspectos essenciais para sobrevivncia

    (alimentao, sade, moradia, segurana, educao) at outros mais

    simblicos, relacionados religiosidade por exemplo. Na Terra indgena

    Pankarar diversos conflitos esto presentes e refletem uma perspectiva de

    leitura diferenciada sobre sua dinmica de formao, visto que os atores

    sociais (ndios, posseiros, Estado, FUNAI, Igreja) possuem interesses

    diferenciados.

    Nesse sentido, a constituio do territrio depende dos arranjos, material

    e imaterial, incluindo valores culturais, sociais e econmicos. Seu estudo pode

    ser um rico caminho para a anlise da formao sociohistrica de um grupo

    social.

    (...) toda sociedade para se reproduzir cria formas, mais ou menos durveis, na superfcie terrestre. No entanto, tais formas obedecem a um dado ordenamento sociopoltico do grupo que as constri, regulando e definindo os modos de apropriao da natureza, os usos do espao e dos recursos nele contidos (MORAES, 2000, p.15).

    Esse ordenamento sociopoltico citado pelo autor reflexo da dinmica

    social onde os usos do solo e dos recursos naturais de forma geral, as formas

    de ocupao, os estabelecimentos e as hierarquias entre os lugares expressam

    os resultados de lutas, hegemonias, violncias, enfim, atos polticos. Para,

    alm disso, a construo do territrio tambm envolve representaes,

    discursos, conscincias, processos de identificao e sentimentos de

    pertencimento. Nesse sentido, as singularidades, particularidades e diversidade

    dos locais so fatores essenciais e contribuem na formao destes territrios.

    Os aspectos peculiares presentes nos territrios podem ser analisados a

    partir das identidades dos vnculos e ideias de pertencimento que os atores

    constroem nos seus espaos de vivncia (palco das aes cotidianas). Os

    estudos do territrio e identidades territoriais tornam-se mais ricos ao se

    estabelecer a relao entre a materialidade destes territrios com as

    subjetividades e as ideias de pertencimento uma vez que estas formam uma

    base de coeso social para que um determinado grupo social se mobilize em

    favor de seu controle sobre o territorio. Da a relevncia de uma abordagem

  • sob a tica geogrfica acerca dos aspectos da Identidade pelo vis das

    Identidades Territoriais. Para Haesbaert (2004), as identidades territoriais, na

    atualidade no se expressam com limites rgidos, e sim num continuum em

    que, cada poro destes espaos pode gerar tanto identidades mais fechadas

    e essencializadas quanto identidades mais flexveis com carter mltiplo e

    hbrido.

    Desta maneira, a anlise do territrio pode ser vista como contribuinte-

    chave na busca da autonomia e desenvolvimento local dos grupos sociais.

    Alm de instrumento complementar, o estudo das diversas territorialidades

    pode auxiliar os grupos sociais a autogovernarem-se, visto que as

    sobreposies reivindicatrias entre os diversos grupos sociais que possuem

    identidades e lgicas socioculturais distintas sobre o mesmo recorte espacial

    refletem mltiplas formas de apropriao da natureza devido aos seus distintos

    modos de vida. Os conflitos gerados entre os grupos hegemnicos da

    sociedade urbano-industrial-capitalista e os grupos tradicionais, que se

    encontram, de modo geral, parcialmente inseridos nesse modelo de sociedade,

    refletem formas particulares de vivenciar e utilizar o territrio. Assim, a

    organizao em resistncia s aes homogeneizadoras um dos

    instrumentos de luta mais utilizados pelos grupos marginalizados. Entre as

    dcadas de 1980 e 1990, tais reivindicaes reverberaram alguns resultados

    positivos como a exigncia de estudos de avaliao de impactos ambientais e

    sociais e sobre planejamento participativo com intuito de empoderar, segundo

    Sachs (2004), as vtimas do desenvolvimento.

    As sociedades modernas podem desenvolver identidades multiterritoriais

    e, ao transferir a organizao e a gesto do territrio para as instituies

    pblicas que passam a controlar os interesses do setor empresarial,

    transformam o espao em unidades privadas avaliadas, sobretudo pelo valor

    de troca em detrimento do valor de uso. Com o argumento de justificativa

    relativo ao crescimento econmico e gerao de emprego, a competio

    entre governos de vrios nveis para atrair capital externo algo extremamente

    presente nos dias atuais o que tem acirrado ainda mais os conflitos entre os

    grupos sociais que possuem interesses distintos.

  • Segundo Zhouri e Laschefski, (2010, p.24) nesse contexto que o Estado

    muitas vezes se alia a segmentos do capital contra as territorialidades de

    outros grupos existentes no interior da nao, tais como os povos indgenas, os

    quilombolas e outros povos tradicionais. Isso tem como reflexo o aumento da

    homogeneidade socioambiental do espao. Nesse sentido, ampliam-se os

    conflitos e disputas territoriais quando ocorre o choque entre os distintos

    interesses dos grupos sociais.

    Entendendo o territrio como patrimnio essencial, para a produo e

    reproduo, que garante a sobrevivncia da comunidade como um todo, o

    estudo das potencialidades de cada territrio pode contribuir para o

    desenvolvimento de polticas que propiciem maior autonomia dos mesmos,

    sobretudo numa escala local. Tais estudos podem auxiliar a democratizao

    das informaes e o processo de busca da autonomia dos grupos sociais, visto

    que a projeo destes num espao mais amplo onde os valores contidos e

    produzidos nos territrios como os fatores ecolgicos, humanos e simblicos-

    culturais passam a adquirir maior visibilidade e podem ser potencializados.

    Alm disso, os estudos podem auxiliar na divulgao da cultura visto que a

    mesma um instrumento-chave na auto-afirmao identitria.

    Portanto, cabe geografia, atravs da anlise sobre a realidade

    socioespacial, trazer contribuies com estudos nesta perspectiva de modo

    que possa ampliar a valorizao e o respeito diversidade cultural, no intuito

    de que os territrios e sociedades locais tenham seus valores reconhecidos, ao

    invs de destrudos pelas determinaes e tendncias homogeneizadoras da

    lgica e modo de produo do sistema econmico global.

    Portanto, ao iniciar esta proposta de estudo verificou-se a necessidade de

    definir espao, principal categoria da anlise geogrfica, com intuito de elucidar

    sob qual perspectiva deteve-se o olhar nas anlises, alm de definir os demais

    conceitos que subsidiaram e complementaram o trabalho posteriormente. Para

    isso, partiu-se do pressuposto de que a essncia do espao social. Alguns

    estudos discutem-no atravs de categorias de anlise (regio, territrio,

    paisagem, lugar), com o intuito de torn-lo mais operacional e adequado a seus

  • objetos de estudo. No entanto, todas essas categorias partem do conceito-

    chave espao, tendo em vista seu carater abrangente de totalidade.

    Nesse caso, o espao no pode ser apenas formado pelas coisas, os objetos geogrficos, naturais e artificiais, cujo conjunto nos d a Natureza. O espao tudo isso, mais a sociedade: cada frao da natureza abriga uma frao da sociedade atual (SANTOS 1988, p.1).

    Tais objetos geogrficos encontram-se distribudos sobre o espao, no

    entanto, o que lhe d vida so os processos sociais imersos nele. Desta

    maneira, visto que a geografia estuda as relaes entre sociedade e natureza

    no que tange aos aspectos socioespaciais, a definio de espao geogrfico

    torna-se conceito chave nas anlises. Como o autor frisa, o espao geogrfico

    deve ser considerado como algo que participa igualmente da condio do

    social e do fsico, um misto, um hbrido (SANTOS 1996, p. 86)

    Nessa perspectiva, a categoria de anlise espao designa uma

    totalidade, um meio material onde ocorrem as relaes entre sociedade e

    natureza. Alm disso, possui uma diversidade que abrange aspectos sociais e

    naturais, onde hibridizaes ocorrem concomitantemente. Nesse sentido,

    Haesbaert, (2004) mesmo com uma abordagem distinta da proposta por

    Santos, contribui com a discusso da perspectiva integrada do espao.

    a concepo do espao como um hbrido entre sociedade e natureza, entre poltica, economia e cultura, e entre materialidade e idealidade, numa complexa interao tempo-espao, como indissociveis entre movimento e relativa estabilidade, recebendo estes nomes de fixos e fluxos, circulao e iconografias, ou o que melhor couber (HAESBAERT, 2004, p.79).

    O espao este hbrido proposto por Santos (2006) e Haesbaert (2004);

    para caracteriz-lo os autores ressaltam a noo de idealidade e materialidade.

    Sendo assim, o espao formado por aspectos objetivos e subjetivos. Tanto o

    material quanto o imaterial se complementam e encontram-se associados nas

    formas-contedo que trazem caractersticas da temporalidade e do movimento,

    onde tempo e espao, por meio dos fixos e fluxos, esto num dinmico e

    incessante processo de mudana.

  • Para a compreenso e anlise dos processos de identificao territorial

    e territorialidades presentes na Terra Indgena Pankarar, foram discutidos

    alguns conceitos-chave que deram subsdio ao trabalho: Territrio,

    Territorialidade, Identidade e Identidade Territorial, alm dos Processos de

    Identificao Territorial, visto que a identidade territorial supracitada encontra-

    se num contnuo processo de movimento. O primeiro deles, Territrio, possui

    um papel norteador no entendimento dos demais conceitos.

    O conceito de Territrio, no processo de sistematizao da geografia,

    inicialmente esteve ligado s cincias naturais. Ratzel o define como uma

    poro do espao apropriada por determinado grupo. Esta concepo vincula-

    se idia de desenvolvimento do Estado como nico agente construtor

    territorial. Valaux, partindo de Ratzel, com enfoque da escola possibilista,

    definia o territrio com um enfoque de dominao poltica, onde, diferena

    dos animais, o homem possui uma capacidade de no deixar-se determinar

    pelo meio.

    Posteriormente, apresentando uma viso distinta, Raffestin, influenciado

    pela concepo de poder foucaultiana, distingue espao e territrio, sendo o

    primeiro anterior ao segundo, ou em outras palavras, o territrio construdo a

    partir do espao. Raffestin (1993) define territrio a partir do seu carter

    poltico ou econmico.

    O territrio que se forma a partir do espao, o resultado de

    uma ao conduzida por um ator sintagmtico (ator que realiza

    um programa) em qualquer nvel. Ao se apropriar de um

    espao, concreta ou abstratamente (por exemplo, pela

    representao), o ator territorializa o espao (RAFFESTIN,

    1993, p. 143).

    Nesta perspectiva, o territrio fruto da apropriao concreta e/ou

    simblica do espao, que passa a externalizar-se materialmente. O poder

    relacional, imerso nas relaes sociais torna-se categoria de anlise essencial

    para a compreenso do territrio. Portanto, tendo em vista a concepo

    proposta por Raffestin a construo do territrio se d por/e atravs das

    relaes marcadas pelo poder. Tal relao pode ser verificada na rea de

    estudo e ser discutida posteriormente ao longo dos captulos.

  • Um dos aspectos de grande relevncia a reivindicao presente na

    rea de estudo onde a garantia do territrio com os limites territoriais bem

    demarcados davam-lhe maior legitimidade enquanto grupo tnico distinto dos

    seus vizinhos habitantes do entorno. Apresentando uma viso mais

    abrangente, Haesbaert (2004) define o territrio em trs vertentes bsicas:

    1) Jurdico-politica, a mais difundida, onde o territrio visto

    como um espao delimitado e controlado atravs do qual se

    exerce um determinado poder mas no exclusivamente

    relacionado ao poder poltico do Estado.

    2) Cultural ou Simblico Cultural: prioriza a dimenso simblica

    mais subjetiva, em que o territrio visto, sobretudo, como

    produto da apropriao/valorizao simblica de um grupo em

    relao ao seu espao vivido.

    3) Econmica: menos difundida, enfatiza a dimenso espacial

    das relaes econmicas, o territrio como fonte de recursos

    e/ou incorporado no embate entre classes sociais e na relao

    capital trabalho, como produto da diviso territorial do trabalho,

    por exemplo (HAESBAERT 2004, p.40).

    O dilogo entre estas trs dimenses possibilita compreender o conceito

    no como algo esttico sem conexo entre as trs vertentes, mas sim como

    uma dinamicidade que pode apresentar maior influncia de uma ou outra,

    tendo em vista que nenhuma delas pode ser pura devido prpria

    complexidade dos processos sociais. Por conta disso, as anlises do maior

    enfoque a uma ou outra concepo a partir da temtica especfica de cada

    estudo. Neste trabalho, tomou como base terico-conceitual a seguinte

    abordagem acerca do territrio;

    Nos tempos atuais o territrio, impregnado de significados, smbolos e imagens, constitui-se em um dado segmento do espao, via de regra delimitado, que resulta da apropriao e controle por parte de um determinado agente social, um grupo humano, uma empresa ou uma instituio. O territrio , em realidade, um importante instrumento da existncia e reproduo do agente social que o criou e o controla. O territrio apresenta, alm do carter poltico, um ntido carter cultural, especialmente quando os agentes sociais so grupos tnicos, religiosos ou de outras identidades (HAESBAERT, 2007).

  • Compartilha-se aqui com a ideia do autor, tendo em vista que a definio

    traz um olhar especfico sobre as relaes polticas e simblicas imersas no

    territrio, o que apresenta forte proximidade com essa pesquisa. Parte-se do

    princpio que o territrio construdo no jogo entre material e imaterial,

    funcional e simblico. Essa concepo de territrio capaz de responder s

    complexidades da realidade contempornea alm de buscar superar os

    dualismos fundamentais: tempo-espao, fixao-mobilidade, funcional-

    simblico. Por isso, as anlises devem partir das:

    perspectivas que valorizam as relaes e os processos: o territrio num sentido relacional e processual (devendo-se mesmo falar mais em processo de territorializao do que de territrio como entidade estabilizada);

    mltiplas temporalidades e velocidades nas quais ele pode ser construdo, desde territrios com maior fixidez at aqueles mais mveis e flexveis;

    conjugao entre um continuum que se estende desde os territrios mais funcionais at aqueles com maior carga (ou poder) simblica (o).

    (...) Hoje num mundo em que o simbolismo da cultura presena fundamental em todas as esferas da vida, o territrio (...) se v cada vez mais mergulhado nas tramas de um poder simblico (...). Se considerarmos, num sentido mais amplo e falando ento mais de espao do que de territrio, de um espao que imanente construo social, podemos afirmar que toda dinmica de construo identitria inerentemente espacial (HAESBAERT, 2007, p. 37,38).

    Visto que o espao encontra-se permeado desse poder simblico imerso

    nas relaes sociais, a construo identitria na terra indgena Pankarar foi

    estudada a partir do dilogo com o que o autor classifica de inerentemente

    espacial. Amplia os conceitos de territrio e de identidade territorial vinculado

    aos processos de identificao, que possuem importante papel nas anlises.

    Ao discutir processos de identificao e identidade territorial, o conceito de

    identidade compreendido a partir da alteridade, alm da relao dialtica e

    luta dos contrrios. Nesse sentido, a ampliao da leitura dos fenmenos

    sociais a partir da dialtica, analisando as transformaes sociais enquanto

    processo, permite deixar de ver as identidades como algo esttico verificando a

    dinamicidade inerente a elas. Conforme Hall (2005) h trs concepes de

    identidade:

  • a) sujeito do iluminismo: baseado na concepo de indivduo centrado que

    emerge quando ele nasce permanecendo idntico ao longo de toda existncia

    do indivduo.

    b) sujeito sociolgico: reflete acerca da crescente complexidade do mundo

    moderno, onde a identidade formada na interao entre o eu e a sociedade.

    A identidade ento costura (ou para usar uma metfora mdica, sutura) o

    sujeito estrutura (HALL, 2005, p. 12).

    Nesse sentido, HALL afirma que as coisas atualmente esto mudando, onde o sujeito que possua uma identidade unificada e estvel, est tornando-se fragmentado, composto no de uma nica, mas de vrias identidades, algumas vezes contraditrias e no resolvidas (HALL, 2005, p. 12).

    Os ndios Pankarar possuem algumas semelhanas com estas

    caractersticas definidoras do sujeito sociolgico discutido por Hall. Observa-se

    que sua identidade formada por uma juno complexa de vrias identidades.

    Estes sujeitos fragmentados depois passam por um processo de reconstruo,

    formando um mosaico identitrio complexo tendo em vista as vrias

    contribuies externas. Vale ressaltar que este assunto ser abordado com

    mais detalhe no capitulo 4.

    c) sujeito ps-moderno: aquele que no possui uma identidade fixa,

    essencial ou permanente. Para o autor neste caso:

    A identidade torna-se uma celebrao mvel formada e transformada continuamente em relao s formas pelas quais somos representados ou interpelados nos sitemas culturais que nos rodeiam (HALL, 2005, p. 13).

    A identidade deve partir do auto-reconhecimento construdo por um

    grupo de indivduos a partir de fatores como laos referentes s relaes de

    parentesco, modos de produo, vinculao institucional, traos tnicos,

    religio e ideologia. Assim, a relao entre identidade e territrio resultante do

    auto-reconhecimento e estabelecimento de laos e vnculos territoriais.

    Desta maneira, ao tratar dos processos de identificao no territrio por

    um indivduo ou grupo, discute-se os significados que tal(is) indivduos

    atribuem ao mesmo. Portanto, a anlise realizada levou em considerao as

  • especificidades e particularidades da etnia indgena Pankarar, tendo em vista

    os distintos aspectos simblicos, materiais, religiosos e culturais de maior

    relevncia para o grupo.

    A cultura estreitamente prxima das relaes de poder foi um dos eixos

    fomentadores dessa leitura da identidade. Segundo Castells (2007) a

    construo social da identidade sempre ocorre em um contexto marcado pelo

    poder e define trs formas e origem de construo da identidade:

    identidade legitimadora: construda pelas instituies dominantes, com o objetivo de expandir e manter a dominao sobre as foras sociais dominadas; identidade de resistncia: produzida pela reao de atores que esto em posies dominadas e que resistem para sobreviver; identidade de projeto: surge quando atores sociais em posies subordinadas constroem uma nova identidade, capaz de redefinir a sua posio na sociedade, e at obter

    transformaes nas estruturas sociais (CASTELLS, 2007).

    De acordo com essa definio, algumas identidades constroem-se pela

    submisso s foras dominantes e outras a partir da contestao destas foras.

    Desta maneira, a identidade possui um carter poltico alm do carter cultural,

    uma vez que o poder imerso nas relaes pode subjugar as populaes ou ser

    contestado por elas. Nesse sentido, as mltiplas manifestaes das

    identidades dependem das intencionalidades do grupo em que esto inseridas

    e estas identidades por sua vez, ora mostram-se mais abertas, inserindo e

    incorporando mudanas com insero de novos valores agregados, ora

    fecham-se com intuito de proteger os elementos considerados essenciais pelo

    grupo para no ocorrer intercambiamento com aspectos culturais externos que

    interfiram negativamente no grupo.

    As imposies do atual modelo hegemnico de desenvolvimento

    levaram a uma tendncia homogeneizadora dos espaos, solapando as bases

    estruturais de algumas culturas utilizando o discurso da substituio em que as

    coisas consideradas arcaicas e ultrapassadas devem ser substitudas pelo

    novo e o moderno. Verifica-se na utilizao deste discurso um dos principais

    objetivos dos atores hegemnicos: desfazer os laos identitrios dos grupos

    sociais com intuito de apropriar-se de seus territrios e espaos de vivncia,

    sobretudo quando estas reas possuem recursos naturais de grande valor e

    interesse econmico.

  • Por conta disso, de acordo com a dinmica dos processos sociais,

    muitas sociedades utilizam discursos de afirmao identitria a partir da

    relao com o territrio, pois para eles necessrio um substrato fsico-

    material para estabelecerem-se. Em virtude destes processos de identificao

    territorial pode-se verificar:

    H nesse caso uma ligao inextricvel entre a construo da

    identidade e a do territrio associado; a afirmao da diferena

    identitria como vinculada diferena territorial e vice versa

    (ARAJO, F.G.B., 2007, p.31).

    No entanto cabe ressaltar algumas distines, pois nem todas

    identidades sociais so territoriais, ou seja, nem todas possuem o territrio

    como eixo central para seu reconhecimento. A identidade espacial um

    componente indissocivel de qualquer processo social; neste estudo a mesma

    adquire a especificidade de identidade territorial visto que trabalha-se com o

    territrio como categoria de anlise.

    toda identidade cultural espacial, na medida em que se realiza no/atravs do espao, mas nem toda identidade territorial no sentido da centralidade adquirida pelo referente espacial em estratgias de apropriao, culturais e polticas dos grupos sociais (HAESBAERT 2007, p. 44).

    Diversas sociedades tradicionais, entre elas os grupos sociais indgenas

    no Brasil bem como de outros pases, apresentam essa relao de

    pertencimento com seus espaos por eles ocupados, o que pode levar leitura

    da possvel presena de identidade territorial pelos atores nestes espaos

    quando tem algum efeito com demais grupos para o uso desses espaos.

    Alguns povos indgenas ressurgiram foram emergindo e adaptando-se

    ao atual contexto histrico e s novas demandas do mercado, que passa a ter

    maior interferncia pressionando os territrios. Segundo Varese (1996, p.207),

    tais povos passam a ter uma relao menos conservadora em termos da

    identidade cultural, tornam-se mais adaptveis a novos ambientes alm de

    utilizar sua etnicidade como estratgia flexvel. Nesse sentido, pode-se

    estabelecer uma relao com a pluralidade cultural e o intercambiamento de

    novos valores culturais, tendo em vista os dilogos que passam a contribuir

  • para o efeito pluralizador (termo a ser discutido posteriormente) vivenciado

    por estes grupos ao longo do tempo.

    Com isso, buscou-se aprofundar neste estudo anlises acerca dos

    processos de identificao territorial e das territorialidades na sociedade

    indgena Pankarar, tendo em vista o estreito vnculo deste grupo com seu

    territrio, uma vez que os mesmos utilizaram-no como um dos instrumentos

    chave no processo de auto-identificao e reconhecimento da comunidade.

    De acordo com Haesbaert (1999), identificar-se implica sempre

    identificar-se com, num sentido relacional, dialgico inserido numa relao

    social. Dessa forma, as identidades apresentam um sentido dialgico-

    relacional onde se encontram em constante movimento ao contrrio do carter

    esttico e estvel das velhas identidades. Nesse sentido, a identidade

    territorial,

    s se efetiva quando um referente espacial se torna elemento central para a identificao e ao poltica do grupo, um espao em que a apropriao vista em primeiro lugar a partir da filiao territorial e onde inclui o potencial de ser acionada em diversos momentos, como instrumento de reivindicao poltica (HAESBAERT, 2007 p. 45).

    Com base nessa perspectiva, a identidade territorial s se concretiza

    quando o substrato concreto e material do espao, referente espacial, torna-se

    elemento central de apropriao do grupo. Insiste-se que ao discutir o conceito

    de identidade territorial, faz-se necessrio abordar o conceito de identidade de

    acordo com a perspectiva dinmica e no esttica. Conforme Serpa (2007),

    [...] identidades constroem-se sempre a partir do reconhecimento de uma

    alteridade. Desta maneira, a territorialidade aparece outro conceito chave na

    discusso, pois ela

    Assim, verifica-se a relao entre territrio e identidade, sobretudo

    quando o autor afirma que Processos identitrios podem surgir tambm a

    partir da relao original entre sociedade e a natureza, redundando em

    atividades que aos poucos vo marcar um estilo de vida caracterstico

    (SERPA, 2007, p.165).

  • Isso pode ser visto nos processos atuantes no territrio, onde, de acordo

    com a dinmica social sobre o espao, a territorialidade, tanto material como

    imaterial, contribui no processo de construo dos espaos de identidade. No

    entanto, adquirindo papel material ou simblico, a territorialidade encontra-se

    estrategicamente relacionada dimenso sociopoltica. Assim, a anlise da

    territorialidade, tendo em vista sua dinamicidade no tempo e no espao, uma

    perspectiva indicativa que auxilia a compreenso dos processos identitrios

    nos territrios.

    Nesse sentido a territorialidade deve ser analisada sob o ponto de vista

    processual em que aes vinculadas s estratgias de poder fazem-se

    presentes. As aes e estratgias de controle inserido neste contexto social

    so materializadas no territrio a partir das aes dos atores sociais. Assim,

    com intuito de complementar a rede estrutural de conceitos que auxiliaram a

    interpretao deste objeto de estudo, cabe ressaltar a importncia do conceito

    de Cultura.

    Partimos do pressuposto da cultura como culturas, distinta da viso

    iluminista anterior Revoluo Francesa, em que a cultura era considerada

    como sendo tudo, e o todo, a soma dos saberes acumulados e transmitidos.

    Segundo Coelho (2008, p.17) a cultura no o todo. Nem tudo cultura.

    Cultura uma parte do todo e nem mesmo a maior parte do todo. O relativismo

    cultural hoje difundido dos estudos de Franz Boas (1858-1942) admite que

    cada cultura possui um valor prprio a ser reconhecido que se manifesta na

    lngua, nas crenas, nos costumes, na arte e que veicula. Para Coelho (2008)

    um esprito prprio (a identidade). Desta forma, cabe aos estudos referir-se s

    culturas (no Cultura) e focar ateno ao elo que une um indivduo a uma

    cultura. Isso sem dvida mais importante para a poltica cultural do que

    aquele objetivo habitual que se preocupa apenas com a reproduo desse elo

    ao refor-lo, preserv-lo, conserv-lo e restaur-lo. Portanto, a concepo de

    cultura como um estado deveria ser substituda pela concepo da cultura

    como ao, a cultura aberta ao poder ser no sentido de experimentar ser uma

    coisa ou outra e experimentar ser uma coisa e outra, livre de toda restrio ou

  • imposio (COELHO, 2008, p. 22). Nesse sentido, compartilha-se com a

    seguinte definio de cultura

    a cultura o meio pelo qual as pessoas transformam o fenmeno cotidiano do mundo material num mundo de signos significativos, ao qual do sentido e atrelam valores (HALL apud COSGROVE e JACKSON, 2000, p.25)

    Este mundo material transformado e repleto de signos e valores

    apresenta uma perspectiva ampla de anlise visto que procura abordar tanto a

    materialidade inerente cultura, quanto os aspectos subjetivos da mesma, ou

    seja, os valores simblicos imersos nesta materialidade. Neste estudo deu-se

    maior nfase no reflexo das implicaes simblicas e sociopolticas do espao,

    tendo em vista a grande diversidade de olhares possveis nos estudos

    culturais, sobretudo acerca das sociedades tradicionais.

    Para isso, foi imprescindvel descortinar, tirar o vu romantizador que

    existe sobre as sociedades tradicionais e dentre estas as populaes

    indgenas. Pois, embora estas populaes vivam de maneira distinta da

    populao urbana, encontram-se imersas no processo da globalizao e esto

    vivendo seu efeito pluralizador embora num ritmo mais lento e desigual

    (HALL, 2005, p.80).

    Tal efeito engloba novas culturas, permitindo s populaes tradicionais

    pluralizar-se ao invs de singularizar-se. As singularidades anteriormente

    exaltadas passam a abrir espao para uma pluralidade, um contato maior com

    o outro, sem perder sua essncia identitria. Ou seja, as culturas dialogam

    entre si, permitem-se adquirir novos valores e prticas, vestem-se com outras

    roupagens, mas no deixam de identificarem-se como nicas. Como o autor

    afirma, alguns grupos abrem-se mais rapidamente a esse efeito pluralizador e

    outros possuem um caminhar mais lento e desigual. No existe

    homogeneidade nas interaes interculturais; cada grupo social possui um

    caminho muito particular e os dilogos acontecem por presses polticas,

    econmicas, culturais, lingusticas. Afinal de contas so distintos os momentos

    histricos vivenciados pelos grupos, portanto tm de fato que ser diferentes. Ao

    comparar uma sociedade tradicional com algum grupo urbano percebe-se que

  • os novos valores e as dinmicas que acabam de surgir so inseridos ou

    absorvidos pelos mesmos de formas distintas.

    Portanto, buscou-se fazer uma anlise dos processos de identificao

    territorial na sociedade indgena Pankarar atravs das relaes sociais de

    produo e reproduo do espao e compreender os processos de

    identificao alm das atuais dinmicas presentes no territrio. A

    territorializao neste espao tornou-se mltipla e complexa, afetando

    diretamente as construes identitrias cada vez mais flexveis e mutveis.

    Isso tem gerado segundo Haesbaert (1999), multiplicidade e/ou ao hibridismo

    cultural, repercutindo na intensificao do fenmeno de multiterritorialidade no

    territrio estudado. Com isso, procurou-se ressaltar as singularidades e

    particularidades das sociedades tradicionais, dentre elas, o povo indgena

    Pankarar, em virtude da possibilidade delas contriburem na construo de

    uma sociedade mais democrtica.

    Nesse sentido, os estudos acerca destas dinmicas sobre o territrio na

    perspectiva geogrfica podem ser vistos como instrumento de poder e

    resistncia, sobretudo no que se refere possibilidade de contribuir na defesa

    do territrio bem como reivindicar o direito de uma participao mais efetiva na

    gesto dos recursos. Alm disso, pode tornar-se um subsdio ao pensar

    polticas que contemplem de fato as especificidades e necessidades das

    comunidades, assim como, pode contribuir no processo de empoderamento e

    busca de autonomia especificamente na sociedade indgena Pankarar.

  • 2.2 DO TERRITRIO MULTITERRITORIALIDADE COMO SER

    TRADICIONAL NO MUNDO PS-MODERNO?

    Atualmente, a estratgia poltica hegemnica neoliberal traz o discurso

    do desenvolvimento sustentvel como essencialmente necessrio soluo

    dos problemas ambientais. Porm, as disputas de poder imersas nas relaes

    sociais, relacionadas a esta temtica, comumente utiliza este conceito

    baseando-se em interesses estritamente econmicos.

    A problemtica imersa nesse discurso traz como concepo

    predominante o preservacionismo ao invs da conservao dos recursos. Uma

    das principais caractersticas do preservacionismo restringir o acesso das

    pessoas aos recursos naturais, enquanto o conservacionismo possui uma

    concepo de uso sustentvel dos mesmos. No entanto, os interesses

    relacionados s atividades econonmicas que sobrexploram os recursos

    naturais, estrategicamente utilizam ambos os conceitos como sinnimos com

    intuito de camuflar os reais interesses de explorao econmica que, por trs

    do discurso ambiental, vm persuadindo a sociedade ao longo dos ltimos 20

    anos. O termo desenvolvimento sustentvel comeou a ser utilizado no

    relatrio Brunltand que deu bases para a conferncia da Terra sediada no Rio

    em 1992. A prpria origem diplomtica implica em uma definio faltando a

    preciso e rigor, pois visou criar um consenso. Posteriormente foi apropriado

    por diversos setores da indstria e da mdia, tornando-se o slogan da conduta

    ambientalmente mais adequada. Tais setores, afirmam preocupar-se com o

    meio ambiente e afirmam agir de acordo com as normas ambientais mas, na

    prtica, observa-se principalmente medidas adotadas pelo mercado em razo

    dos lucros auferidos, sem reverter a tendncia geral e histrica. De fato, tm-se

    um aumento gradual de aes que contribuem com o crescente processo de

    degradao socioambiental.

    O discurso da proteo ambiental integral, alm de restritivo,

    extremamente questionvel. Desde as sociedades pr-histricas h registros

    de usos dos recursos naturais. Os grupos humanos sempre necessitaram

  • intervir de alguma maneira na natureza, visto que eles prprios fazem parte da

    natureza constituindo uma totalidade mltipla e complexa. Nesse sentido, a

    proteo integral que tem como principal objetivo manter o ambiente intocado

    um modelo criado que na prtica no pode ser multiplicado indevidamente,

    tendo em vista a necessidade de o homem utilizar os recursos naturais para

    sua sobrevivncia. No entanto, vlido ressaltar as propores destes usos,

    visto que as sociedades urbano-industriais contemporneas tm sobrexplorado

    de maneira exacerbada os recursos e por isso, tm tornado-se cada vez mais

    urgente rever os padres de produo e consumo do atual sistema econmico

    desenvolvimentista. Portanto, faz-se necessrio uma reflexo crtica sobre

    quais intencionalidades encontram-se por trs do discurso ambiental. Na

    concepo preservacionista um fator de grande relevncia a ser analisado

    refere-se retirada das populaes que vivem em contato com os recursos

    naturais de suas reas h sculos.

    Os preservacionistas argumentam que a proteo dos recursos

    essencial e para isso, necessrio retirar as populaes locais destes espaos

    sobre o pretexto de que as mesmas vm, ao longo dos anos, esgotando os

    recursos disponveis. No entanto, contraditoriamente, diversos estudos trazem

    referncias de que estas populaes vm contribuindo com o aumento da

    biodiversidade nos espaos ao longo do tempo (ADAMS, 1994). O que

    diferencia nitidamente as populaes tradicionais da sociedade urbano-

    industrial a lgica de convvio em grupo, a estreita relao com a natureza, os

    valores ticos alm das relaes de compadrio e auxlio mtuo.

    Nesse sentido, os estudos acerca dos modos de vida destas populaes

    mostram-se relevantes para defender minimamente o respeito diversidade

    sociocultural e ambiental. Vale ressaltar a no homogeneidade da relao entre

    estes grupos com os recursos naturais, visto que estas populaes possuem

    costumes distintos da sociedade urbano-industrial e podem em algum

    momento do seu processo histrico sobrexplorar algum recurso em virtude da

    escassez de outros recursos, privaes de outra ordem (como interferncias

    climticas causando escassez de recursos especficos) ou presso do

    mercado.

  • Nas ltimas dcadas, vem ocorrendo um crescente reconhecimento,

    sobretudo de pesquisadores e mais timidamente da sociedade civil, da

    relevncia dos saberes e dos modos de vida destas populaes e seu papel na

    conservao dos recursos naturais. No entanto, no mbito do mercado, estes

    conhecimentos aceitos passaram a serem vistos como mais uma

    possibilidade de lucro pela indstria. A partir do momento em que esta

    reconheceu a importncia destes conhecimentos, observou-se maior fomento

    pesquisa em algumas reas, pois o objetivo da mesma apoderar-se destes

    conhecimentos para gerar lucro. o caso, por exemplo, da indstria

    farmacutica.

    Nesse sentido, as sociedades tradicionais vivem sob presso do modo

    capitalista de produo, em virtude dos seus conhecimentos ambientais.

    Historicamente, tais populaes encontram-se invisibilizadas, subalternizadas

    (algumas ainda encontram-se nessa situao) e marginalizadas pela sociedade

    urbano-industrial. No entanto, nas duas ltimas dcadas as sociedades

    tradicionais tm vivenciado algumas mudanas aonde o processo de auto-

    empoderamento e valorizao dos aspectos culturais vm tornando-se mais

    visveis. Alm disso, a sociedade urbana passou a considerar como fator de

    grande relevncia cultural e ambiental a contribuio destas populaes

    tradicionais na conservao dos recursos naturais, devido ao manejo mltiplo

    dos ecossistemas comumente realizado em suas prticas cotidianas.

    Estes grupos, ao mesmo tempo em que se encontram pressionados pelo

    poder hegemnico, que fomenta a cada dia sua insero no mercado e insere

    valores culturais relacionados cultura urbano-industrial, tm vivenciado

    concomitantemente uma relativa ressurgncia identitria na medida em que

    conquistam maior autonomia e comeam a sair da condio de

    marginalizadas. Assim, tornam-se mais visveis, adquirem poder e passam a

    lutar por direitos histricos como posse da terra, direito sade, educao

    diferenciada, diversidade cultural, dentre outros.

    As sociedades tradicionais, ao reivindicarem seus territrios, esto

    reivindicando tambm o direito de produzir espao de modo diferente da

    sociedade hegemnica.

  • Diversos estudos tm utilizado novas tecnologias no processo produtivo

    com objetivo de amenizar os processos degradativos provocados por uma

    explorao intensa da natureza. Mas, mesmo com tais esforos, sabe-se que o

    n (entrave) da questo ambiental est nos interesses poltico-econmicos e

    no se referem essencialmente a causas naturais como a mdia afirma e tenta

    convencer a sociedade.

    Nesse sentido, compartilha-se a ideia da crise ambiental como reflexo da

    crise poltica. Para encontrar solues realmente sustentveis necessrio

    substituir o atual modelo hegemnico por um novo projeto poltico, uma vez

    que o sistema capitalista apresenta inmeras vulnerabilidades e mostra-se

    insustentvel, no s do ponto de vista ambiental, mas sobretudo social.

    Acredita-se que alm da crise ambiental, vive-se uma crise social onde grande

    parte dos valores civilizatrios dos diversos grupos sociais, esto sendo

    monopolizados, suprimidos e subjugados em detrimento de uma forma nica

    de pensar.

    Portanto, os estudos e anlises dos espaos sob a perspectiva territorial-

    identitria, adquirem maior relevncia, sobretudo por mostrarem-se coerentes

    visto que possuem uma relao (na maior parte das vezes) mais sustentvel

    com os recursos naturais do que a sociedade urbano-industrial. Dentre a

    extensa diversidade dos modos de vida destas populaes, vale ressaltar

    alguns aspectos como as representaes simblico-materiais imersos na sua

    organizao social, alm das distintas formas de interpretar e agir sobre os

    espaos. Estes grupos comumente chamados de populaes tradicionais

    (DIEGUES, 2008) ao agir sobre os espaos transformando-os, estabelecem e

    criam representaes e intervm concretamente sobre os mesmos. Portanto,

    estudar o sistema de representaes, sobretudo os aspectos relacionados s

    identidades territoriais faz-se necessrio, por causa da importncia dos

    levantamentos acerca do tipo de organizao socioeconmica, os juzos de

    valores e as crenas que os grupos construram e vm construindo ao longo do

    tempo.

    Nesse sentido, ao longo deste estudo surgiram alguns

    questionamentos: 1 Como as populaes tradicionais pode conviver com a

  • sociedade urbano-industrial sem gerar impactos negativos nos seus aspectos

    socioculturais? 2 Qual o olhar mais comum da sociedade urbano-industrial

    sobre os povos tradicionais? Para esta sociedade os povos tradicionais so

    todos iguais? 3 Como estes povos podem permanecer tradicionais no mundo

    ps-moderno? 4 Qual a relao das populaes tradicionais com seus

    territrios? No territrio fsico e bem demarcado com fronteiras ntidas seria

    possvel existir mais de um significado? Haveria possibilidade de ocorrer

    distintas territorialidades dentro de um mesmo territrio? Como seria um

    territrio com mltiplas territorialidades?

    Visto que o atual sistema econmico baseia-se na produo de produtos

    (agrcolas, industrializados) gerando a homogeneizao dos espaos e

    culturas, tem-se como resultado o empobrecimento dos ambientes. Devido ao

    carter monocultor de explorao do sistema mercadolgico, tem ocorrido um

    processo que desencadeou a diminuio da diversidade biolgica das espcies

    nos ecossistemas, resultando em espaos pobres e desgastados. Isso gera a

    queda na produtividade em algumas reas depois de sobrexplorar recursos

    como solo, gua, flora dentre outros, o que leva tais atores a expandir-se para

    novas reas. Por conta disso, os territrios das populaes tradicionais tm

    sido pressionados ao longo das ltimas dcadas. Nesse sentido cabe a

    reflexo: como manter-se com a identidade fechada (viver como uma ilha) se o

    entorno tenta persuadir a populao, seduzindo-a por meio de diversas formas

    que mudou seu modo de vida e seus valores? Como manter-se puramente

    tradicional no mundo globalizado e para uns ps-moderno? Por que a

    sociedade urbano-industrial apresenta um discurso de que as populaes

    tradicionais s podem ser consideradas como tal se viverem do modo mais

    primitivo possvel? Na maior parte das vezes a sociedade urbano-industrial

    utiliza esse discurso com intuito de menosprezar e diminuir a legitimidade das

    populaes tradicionais. As seduzem para viver de acordo com os costumes

    citadinos e depois que conseguem persuadi-las utilizam o discurso de que as

    populaes j no so mais puras e por isso no possuem mais direito

    terra, direito a educao diferenciada, direito diversidade cultural.

    Nesse sentido, estudos acerca destas populaes sob uma perspectiva

    identitria podem ser instrumentos que as auxiliem no seu processo de

  • empoderamento e reconhecimento. Tais conhecimentos so de extrema

    relevncia e necessitam ser registrados, catalogados e documentados para sua

    proteo, tendo em vista que a maior parte destas populaes utiliza a

    oralidade como forma de transmisso do conhecimento, diferente da sociedade

    citadina que utiliza a escrita como registro oficial.

    Cabe inserir na discusso dois possveis olhares dos estudos cientficos.

    Ao mesmo tempo em que estes possuem o potencial de auxiliar tais grupos,

    podem concomitante e contraditoriamente tornar tais populaes mais

    vulnerveis devidos, sobretudo exposio dos seus saberes. Em outros

    termos, quando algum estudo sobre determinado recurso natural publicado

    os interesses sobre o mesmo aumentam e este pode vir a sofrer algum tipo de

    presso e/ou sobrexplorao.

    Nesse sentido, relevante verificar a maneira como estas populaes

    administram as presses sobre os recursos em seus territrios de forma a

    preservar uma cultura e prxis tradicionais num mundo ps-moderno.

    Dentre as diversas formas de administrar tal dinmica sobre os seus

    territrios estas populaes geralmente proporcionam o estabelecimento de

    dilogo com os novos costumes; assim sendo algumas prticas so agregadas

    e modificadas e outras permanecem as mesmas. Neste processo no ocorre

    perda da cultura como alguns estudos apontam; ao invs disso, novos valores

    passam a ser agregados a antigas prticas.

    Para que essa incorporao de novos costumes no sobreponha e anule

    gradualmente antigos costumes, necessrio que a populao possua uma

    identidade forte. Nesse processo novas lideranas surgem nos grupos, tendo

    em vista que os lderes mais antigos de modo geral no possuem vontade e/ou

    disponibilidade em participar de reunies fora de suas comunidades. Portanto,

    verifica-se um movimento de sada dos mais jovens dos seus territrios para

    estudar com intuito de adquirir mais conhecimento tcnico-cientfico e,

    posteriormente, fazer o caminho de retorno comunidade. Vale ressaltar que

    em alguns casos tais jovens no retornam sua comunidade, permanecendo

    nas cidades. No entanto, tem-se visto que os mais politizados e engajados

  • retornam a seus territrios e tornam-se parte do grupo ativo que estabelece

    uma relao dialgica acerca dos distintos interesses dos atores externos.

    Em muitos grupos observam-se significativas mudanas na medida em

    que so implantados projetos relacionados ao desenvolvimento sustentvel,

    estabelecendo relaes com base no dilogo entre as populaes tradicionais

    e a sociedade no tradicional. Para os indgenas, redundante na maior parte

    das vezes falar em projetos sustentveis, educao ambiental,

    desenvolvimento sustentvel, na medida em que para eles tais prticas j

    fazem parte do seu cotidiano. No entanto, ocorrem algumas vezes trocas

    significativas de conhecimentos, algum auxlio da cincia moderna que serve a

    melhorar a disponibilidade de um recurso que est em reduo nas reas

    tradicionais. Inversamente, os conhecimentos tradicionais agregam aos

    estudos cientficos formas de aprimorar seus resultados.

    Contudo, nesse processo de trocas e dilogos, ocorre em algumas

    populaes desagregao e ruptura de alguns valores por causa de disputas

    de poder e brigas por recursos disponibilizados por ONGs e rgos do governo

    federal, deixando as comunidades vulnerveis. Como a disputa de poder algo

    inerente a todas as sociedades, cabe a elas procurar formas de gerenci-los,

    com o fim de no permitir a ruptura dos laos identitrios e de respeito mtuo

    no grupo. Tal exemplo pode ser verificado no captulo 3, com a discusso da

    realidade vivenciada pelos ndios Pankarar.

    Por conta destes conflitos tem-se observado um relativo aumento no

    processo de individualismo em algumas comunidades tradicionais. Como

    exemplo, cita-se trabalhos antes realizados de forma coletiva, que passam a

    ser realizados individualmente ou em ncleos familiares menores. Isso tambm

    verificado nos direitos de propriedade, pois, o acesso terra e alguns

    recursos antes gerido sob regime de propriedade comunal, passa a adquirir um

    carter mais individualizado. Isso vem refletindo na mudana de paradigmas

    nestas populaes.

    Outro fator de relevncia refere-se ao processo de transmisso do

    conhecimento. Foi inserido em muitas populaes o sistema educacional

  • urbano. O mesmo, geralmente, no possui olhar atento diversidade e insere

    na comunidade valores, formas de pensar e de agir tpicos da sociedade

    hegemnica, desqualificando as formas tradicionais de viver. Pode-se observar

    como um dos reflexos desse sistema educacional a mudana comportamental

    dos jovens nas comunidades atravs das mudanas de valores como a

    supervalorizao do consumo de modo geral. (referenciais de beleza urbano,

    consumo de lcool e outras drogas, alm do gosto musical de massa,

    consumo de carros, motos, eletrodomsticos, celulares, entre outros.) O

    processo de auto-identificao entre os jovens pode passar por uma crise

    provocando um choque de valores entre comunidades que apresentam

    caractersticas distintas das suas sobrepondo valores urbanos sobre os

    tradicionais. Mas de modo geral para que estas ocorram, so avaliadas pela

    comunidade antes de serem agregadas. Tais mudanas no ocorrem

    passivamente sem nenhum tipo de discusso sobre sua pertinncia aos

    hbitos e modos de vida da comunidade como muitos afirmam, como pode se

    observar na discusso do captulo 3.

    Nesse sentido, como sugere Haesbaert e Bandeira (2007) na definio

    de identidade territorial, no se espera que tais populaes estejam estticas e

    imveis em ilhas territoriais, conservadas de todo efeito perverso do modo

    capitalista de produo. Sabe-se que todos esto imersos e sofrem os efeitos

    do atual modelo econmico, no entanto cabe conviver com estes atores

    hegemnicos. Para isso o processo de autonomia, reconhecimento e

    empoderamento destas populaes fazem-se necessrio. Mas isso no deve

    ser realizado por meio de projetos assistencialistas das ONGs e demais

    organizaes, impostos de cima para baixo e sem qualquer afinidade com as

    aptides destas populaes. Deve-se levar em considerao, sobretudo suas

    escolhas, o que elas produzem e tal demanda deve partir das prprias

    sociedades em questo. No entanto, sabe-se que os jogos de interesses e as

    disputas de poder diminuem as reais possibilidades destes grupos tornarem-se

    independentes e auto-gerenciarem-se. Importa os grupos serem coesos nas

    relaes de fora com agentes externos.

    Portanto, o questionamento sobre como ser tradicional num mundo ps-

    moderno, est imerso na discusso identitria entre o fechamento ou abertura

  • das populaes a valores e costumes externos aos seus. Nesse sentido,

    encontra-se estreita relao com o territrio e suas mltiplas territorialidades. A

    multiterritorialidade, citada no ttulo deste captulo refere-se nesse sentido em

    partir de uma perspectiva de territrio como algo nico e essencializado para

    estabelecer dilogos e tornar-se um territrio mltiplo agregador de outras

    distintas territorialidades. Segundo Haesbaert e Bandeira (2007) isso possibilita

    a formao do fenmeno de multiterritorializao, aumento da diversidade e

    intercmbio entre as populaes, ao contrrio do que alguns estudos apontam

    como ocorrncia de desterritorializao. No cabe nos dias atuais analisar as

    comunidades com base no essencialismo e fechamento das mesmas tendo em

    vista que o mundo globalizado encontra-se em constante mudana e

    interconexo. Isso pode de certa forma auxiliar estas populaes a sobreviver

    presso externa, gerando formas alternativas de no submeter-se aos

    processos homogeneizantes do capital.

    Nesse sentido, o grupo indgena Pankarar tem realizado algumas

    destas alternativas, fomentando a realizao de projetos com base nas

    atividades com as quais a comunidade possui afinidade e j trabalha no seu

    cotidiano.

    Em virtude destes fatos vale a pena ressaltar a discusso da perspectiva

    do processo de identificao destes povos. Como eles podem contribuir e

    trocar conhecimentos com a sociedade urbano-industrial sem perder sua

    identidade? Estes mundos pode