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LITERATURA SURDA NOS LIVROS DIGITAIS Carmen Elisabete de Oliveira- UNIOESTE 1 Orientadora: Lourdes Kaminski Alves- UNIOESTE 2 RESUMO: Este artigo tem como objetivo apresentar a proposta de pesquisa sobre Literatura Surda Infantil e a importância da produção de materiais literários destinados às pessoas surdas. Essa literatura é apresentada por meio de contos, piadas, narrativas, histórias que contemplam temas relacionados à vivência dos surdos na comunidade ouvinte. Nos materiais impressos as histórias são apresentadas por meio das imagens, e o texto é apresentado pela escrita da língua de sinais- Signwriting, na própria língua de sinais e também em língua portuguesa. Conforme Karnopp (2008) essa literatura só passou a ser conhecida e divulgada a partir da oficialização da Língua Brasileira de Sinais- Libras, em 2002 como a forma de comunicação e expressão de pessoas surdas do Brasil. A partir desse evento as produções em Libras foram veiculadas, inicialmente por livros impressos, e posteriormente com o avanço tecnológico pelos livros digitais, fato que impulsionou as produções literárias de/para pessoas surdas. Atualmente temos uma diversidade de materiais digitais em Libras, porém isto não significa que sejam linguisticamente acessíveis aos surdos. Diante disso, deixaremos algumas reflexões a respeito da produção dos livros digitais e a compreensão das histórias por crianças surdas. PALAVRAS-CHAVE: Literatura Surda; Livros Digitais; Compreensão; Surdos. INTRODUÇÃO A Literatura no Brasil teve como ponto de partida as escritas de imigrantes, jesuítas, missionários, viajantes que elaboravam documentos, relatos sobre nossa terra recentemente descoberta pelos portugueses. Alguns registros datam as primeiras escrituras literárias no Brasil a partir do século XV, entretanto esses escritos não eram considerados como literatura por apresentar semelhança com a crônica histórica. Ao comparar os estudos existentes da Literatura 1 Especialização em Docência de Libras e Intérprete pela Universidade Tuiuti do Paraná; Mestranda em Letras pela Universidade Estadual do Oeste do Paraná UNIOESTE/Campus de Cascavel. 2 Doutorado em Literatura Comparada e Teoria Literária pela Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho – Unesp. Pós-doutorado em Letras: Cultura e Contemporaneidade pelo Programa de Pós-graduação em Letras da Pontifícia Universidade Católica do Rio. Pós-doutorado em Letras pelo Programa de Pós-graduação em Letras Neolatinas da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Docente na categoria Associado na Universidade Estadual do Oeste do Paraná.

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LITERATURA SURDA NOS LIVROS DIGITAIS

Carmen Elisabete de Oliveira- UNIOESTE1

Orientadora: Lourdes Kaminski Alves- UNIOESTE2

RESUMO: Este artigo tem como objetivo apresentar a proposta de pesquisa sobre Literatura

Surda Infantil e a importância da produção de materiais literários destinados às pessoas surdas.

Essa literatura é apresentada por meio de contos, piadas, narrativas, histórias que contemplam

temas relacionados à vivência dos surdos na comunidade ouvinte. Nos materiais impressos as

histórias são apresentadas por meio das imagens, e o texto é apresentado pela escrita da língua

de sinais- Signwriting, na própria língua de sinais e também em língua portuguesa. Conforme

Karnopp (2008) essa literatura só passou a ser conhecida e divulgada a partir da oficialização

da Língua Brasileira de Sinais- Libras, em 2002 como a forma de comunicação e expressão de

pessoas surdas do Brasil. A partir desse evento as produções em Libras foram veiculadas,

inicialmente por livros impressos, e posteriormente com o avanço tecnológico pelos livros

digitais, fato que impulsionou as produções literárias de/para pessoas surdas. Atualmente temos

uma diversidade de materiais digitais em Libras, porém isto não significa que sejam

linguisticamente acessíveis aos surdos. Diante disso, deixaremos algumas reflexões a respeito

da produção dos livros digitais e a compreensão das histórias por crianças surdas.

PALAVRAS-CHAVE: Literatura Surda; Livros Digitais; Compreensão; Surdos.

INTRODUÇÃO

A Literatura no Brasil teve como ponto de partida as escritas de imigrantes, jesuítas,

missionários, viajantes que elaboravam documentos, relatos sobre nossa terra recentemente

descoberta pelos portugueses. Alguns registros datam as primeiras escrituras literárias no Brasil

a partir do século XV, entretanto esses escritos não eram considerados como literatura por

apresentar semelhança com a crônica histórica. Ao comparar os estudos existentes da Literatura

1Especialização em Docência de Libras e Intérprete pela Universidade Tuiuti do Paraná; Mestranda em Letras pela

Universidade Estadual do Oeste do Paraná – UNIOESTE/Campus de Cascavel. 2Doutorado em Literatura Comparada e Teoria Literária pela Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho – Unesp.

Pós-doutorado em Letras: Cultura e Contemporaneidade pelo Programa de Pós-graduação em Letras da Pontifícia Universidade Católica do Rio. Pós-doutorado em Letras pelo Programa de Pós-graduação em Letras Neolatinas da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Docente na categoria Associado na Universidade Estadual do Oeste do Paraná.

Brasileira e da Literatura Surda, percebe-se que há muito a estudar sobre a segunda, pois os

registros e as pesquisas na área são incipientes. Conforme Karnopp (2008) a oficialização da

Língua Brasileira de Sinais- Libras com a Lei nº 10.436/2002 foi a motivação para que a

comunidade surda brasileira iniciasse os registros de histórias, narrativas, piadas, resultado de

suas experiências visuais.

Constituída e representada por elementos linguísticos e culturais dos usuários nativos

da Libras, essa produção nominada de Literatura Surda inspirou criações, traduções e

adaptações de histórias principalmente direcionadas ao público infantil surdo, que até a

oficialização da Libras tinha pouco acesso à literatura infantil produzida especialmente para a

criança ouvinte, visto que as histórias são disponibilizadas na língua portuguesa escrita – que

para a maioria das crianças surdas torna a compreensão complexa, e algumas histórias pelos

livros digitais, que apesar de atrativos para os surdos apresenta narrativas na língua oral.

O interesse em estudar Literatura Surda surgiu com a experiência profissional na

educação de surdos em que propomos a turma de 2º ano do ensino fundamental, uma atividade

para conhecer e explorar a vida das formigas. Iniciamos o estudo a partir da fábula de La

Fontaine: A Cigarra e a Formiga, e na sequência construímos com os alunos vários formigueiros

de garrafas PET; esses eram ligados entre si por mangueira transparente, cada um com colônias

de formigas de espécies diferentes, pois nosso objetivo foi observar o comportamento, a vida e

a movimentação entre os formigueiros.

Com a observação das formigas em seu habitat, os alunos perceberam que cada grupo

era responsável por tarefas diferentes e questionaram sobre a comunicação das formigas, e se

os insetos sabiam a língua de sinais. Diante disso, surgiu a ideia de produzir uma adaptação da

fábula e a nomeamos como: A Cigarra Surda e as Formigas. No decorrer do estudo

organizamos coletivamente o livro, que apresentava ilustrações grandes, texto com desenho dos

sinais, texto em Língua Portuguesa e Signwriting (língua de sinais escrita), tudo produzido em

sala de aula. No entanto nosso trabalho despertou o interesse de uma Organização Não

Governamental – ONG que atende os surdos em nossa cidade, e procurou patrocínio para a

publicação daquele que seria um dos primeiros livros de Literatura Surda no Brasil. Foi

publicado em 2005 pela CORAG- gráfica do governo do RS com uma tiragem de mil

exemplares, que foram distribuídos gratuitamente para as escolas interessadas. Alguns

exemplares foram enviados para a Secretaria de Educação de outros Estados. O livro gerou a

peça de teatro com o mesmo nome e apresentada em língua de sinais na Mostra da Cultura

Surda, evento anual organizado pela comunidade surda, sendo assistida por mais de 50 escolas

da região.

A fábula da Cigarra Surda e as Formigas foi das primeiras publicações no Brasil e

organizada em material impresso, pois não tínhamos conhecimento e suporte para publicá-los

em formato digital, o que seguramente é um recurso interessante para a criança surda, pelo fato

de receberem as histórias sinalizadas. Dada a importância dessa literatura para os surdos e pelo

desejo de contribuir com estudos nesse campo, propomos nessa pesquisa trabalhar com a

Literatura Surda Infantil nos Livros Digitais. A busca no Portal da Capes – Dissertações e Teses,

e no Portal de Periódicos revela que há carência de estudos na área. Conforme levantamento

bibliográfico observamos que parte do material disponível sobre o tema foi organizado por

docentes do Curso de Licenciatura em Letras/Libras -Modalidade a Distância, ofertado na

Universidade Federal de Santa Catarina – UFSC. Outras publicações encontradas são resultado

de trabalhos acadêmicos de surdos como Silveira (2000), Mourão (2011), Rosa (2011). Os

pesquisadores surdos sustentaram suas investigações em Estudos Culturais com autores como

Strobel (2009), Karnoop et.al (2011), Morgado (2011), Rosa (2011), nossa pesquisa tem a

mesma sustentação pois há uma correlação natural entre Literatura Surda e Estudos Culturais

Nossa proposta busca investigar, conhecer e analisar como a apresentação das imagens,

textos, e a sinalização das histórias nos livros digitais em Libras interfere na (in) compreensão

das histórias infantis por surdos. Assim, trabalharemos com oficinas de histórias e com

dinâmicas que permitam analisar a compreensão pelas crianças surdas cuja a idade limite será

13. Os participantes serão estudantes de uma escola especial da cidade de Cascavel/PR, e de

estudantes de classe especial de uma escola de ensino regular no RS. Uma das histórias

selecionadas para esse estudo faz parte do corpus analisado na investigação de Rosa (2011):

Um mistério a resolver: O mundo das bocas mexedeiras (OLIVEIRA; CARVALHO;

OLIVEIRA, 2008) que é uma criação, a outra história escolhida pela pesquisadora é de

(MOURÃO, 2013) A Fabula da Arca de Noé, cujo autor é surdo. Ambas serão analisadas

segundo critérios determinados.

Com esse objetivo foram programadas duas sessões em cada escola, com atividades

distintas que geram dados e possibilitam diferentes olhares nas análises, assegurando assim

resultados fidedignos. Cada história tem uma atividade inspirada no trabalho de Capovilla

(2003), criador do Teste de Vocabulário Receptivo de Sinais da Libras (TVRSL1). Ele é parte

da bateria de onze testes originais de desenvolvimento das competências de leitura, escrita e

compreensão de sinais, é um instrumento normatizado e validado para avaliar a compreensão

de sinais da Libras. Todas as etapas da coleta de dados são filmadas por se tratar de dados em

uma língua visuoespacial. Os vídeos das sessões de histórias serão analisados com a ferramenta

ELAN – EUDICO Language Annotator, que permite ao pesquisador criar, editar, visualizar e

procurar anotações através de dados de vídeo e áudio. Com essas ferramentas validadas por

pesquisadores renomados, esperamos chegar a considerações que possam ser utilizadas em

futuras produções para o aperfeiçoamento das publicações digitais para surdos. A pesquisa está

em andamento, por isso não apresentaremos os resultados. Discorreremos sobre alguns aspectos

da literatura surda.

1 LITERATURA SURDA

As publicações sobre os surdos e a língua de sinais são raras. No entanto, as histórias

são contadas e circulam na língua de sinais, que repassa, de uma geração para outra, os

valores, o orgulho de ser surdo, os feitos dos líderes surdos, as histórias de vida e as

dificuldades de participação em uma sociedade ouvinte. Desse modo, a literatura surda é,

num certo sentido, uma tradição “em sinais” [..] (KARNOPP, 2010, p.18)

É consenso entre pesquisadores como Karnoop (2008), Rosa (2009), Mourão (2011),

Hessel (2015) que, os relatos, as histórias, as piadas sempre estiveram presentes na vida dos

surdos, pois como qualquer povo falante de uma língua oral, ou de sinais todos tem Cultura e

Literatura própria. As vivências, as narrativas as histórias, traduzem as experiências do povo

surdo, assim foram difundidos e transmitidos de geração a geração por meio da língua de sinais.

Não existe um consenso em relação à definição de Literatura Surda, entretanto apresentaremos

um dos conceitos

Literatura surda é a produção de textos literários em sinais, que traduz a

experiência visual, que entende a surdez como presença de algo e não como

falta, que possibilita outras representações de surdos e que considera as

pessoas surdas como um grupo linguístico e cultural diferente (KARNOPP,

2010, p.161).

A autora ao afirmar que a literatura surda traduz as experiências visuais, por ser a forma

como os surdos veem e entendem o mundo, assinala que quando o autor é surdo o foco nas

obras é o uso da língua de sinais por pessoas surdas, o pertencimento cultural, a questão da

identidade e da cultura surda está sempre presente nos textos e/ou nas imagens. Entretanto,

alguns livros analisados pela autora não representam os traços culturais desse povo, trazendo

personagens surdos ligados à ideia de superação ou de compensação da surdez. É preciso estar

ciente de que o objetivo dessa literatura está longe de mostrar a surdez como doença, mas sim

como diferença linguística, por meio dela os surdos buscam fortalecer sua língua, identidade e

cultura dando visibilidade às expressões linguísticas e produções artísticas da comunidade, seja

pela literatura impressa, pelo teatro, ou publicações na internet e nas redes sociais.

Por mais que o ouvinte seja fluente na Libras, tenha conhecimento sobre a

Cultura Surda e participe ativamente da comunidade, ele vai ter experiências

diferentes que o surdo vivencia. Por isso, o surdo, geralmente, tem capacidade

de produzir histórias que serão mais facilmente absorvidas e compreendias por

outros surdos, além de contar experiências com as quais outros surdos

facilmente irão identificar-se. (ROSA, 2011, p.43)

Para o autor, a produção literária para surdos quando elaborada por seus pares mostra

com propriedade a cultura e as maneiras como percebem o mundo por meio das experiências

essencialmente visuais, diferente da pessoa ouvinte que ao escrever literatura para surdos vai

apresentar as narrativas sob seu ponto de vista na condição de ouvinte, mesmo que seja

conhecedor profundo da língua de sinais. Apesar do distanciamento dos pontos de vista, os

surdos aprovam as produções, pois acreditam que elas devem ser ampliadas em benefício do

povo surdo. As produções em Literatura Surda são classificadas por pesquisadores como

Mourão (2011) em três categorias: tradução, adaptação e criação.

1.1 Tradução cultural na Literatura Surda

Na Literatura Surda é possível encontrar livros publicados na modalidade de tradução

em que as obras são traduzidas da Língua Portuguesa para a Libras. Vários clássicos estão

disponíveis em Libras como no caso do Pequeno Príncipe, Chapeuzinho Vermelho, Os três

Porquinhos, entre outras, e recentemente alguns contos de Machado de Assis foram

disponibilizados em Libras, o que para os surdos é excelente se considerarmos que esse autor

utiliza vocabulário complexo constituindo um desafio para a maioria dos leitores, e para o surdo

a atividade de ler e compreender esse autor é ainda maior. O objetivo da tradução cultural de

acordo com Rosa (2011) “é esclarecer para os surdos as histórias da literatura convencional,

através da Libras, das expressões bem claras e da locação bem marcada dos personagens”. A

maior parte desse tipo de obra é traduzida nos livros digitais por surdos, pois como usuários da

língua tem legitimidade para criar sinais para os personagens, e consideram na tradução as

questões da cultura surda. Conforme a editora Arara Azul, uma das produtoras dos materiais

em Libras, os objetivos das publicações são principalmente produzir materiais com registros,

fatos e acontecimentos relativos ao povo surdo brasileiro. Mourão (2011, p.54) dispõe que “tais

materiais contribuem para o conhecimento e divulgação do acervo literário de diferentes

tempos e espaços, já que são traduzidos para a língua utilizada pela comunidade surda”.

No ambiente online e em bibliotecas escolares é possível acessar livros didáticos com

janela interativa em Libras. Conforme Pissinatti (2016), o Projeto Pitanguá (2007) apresentou

a proposta do Livro Didático Digital Bilíngue traduzidos por Clélia Regina Ramos, que faz

parte do PNLD LIBRAS e publicados pela Editora Arara Azul. Esse material é destinado aos

alunos ouvintes de escolas regulares mas incluiu Libras, por entender que pode haver surdos

inclusos, dessa forma os conteúdos das disciplinas ficam acessíveis a esses estudantes por meio

da língua de sinais.

1.2 Adaptação cultural na Literatura Surda

Além das obras traduzidas, temos algumas adaptações de clássicos. Esta modalidade

conta com várias obras adaptadas por surdos, e algumas obras adaptadas em parceria com

ouvintes. Para Rosa (2011) na adaptação é preciso respeitar a cultura dos surdos, a identidade

surda, e o modo como percebem os acontecimentos no mundo dos ouvintes, nelas são realizadas

substituições das características dos personagens e dos acessórios que os acompanham.

Um exemplo disso é a história da Cinderela Surda (SILVEIRA, ROSA,

KARNOPP, 2003) que foi adaptada, pois na história original a Cinderela é

ouvinte, pertencente a uma família ouvinte que faz uso da oralidade, sendo

que na história aparecem acessórios utilizados por ouvintes, como, por

exemplo, um sino. A equipe que fez a adaptação desta história idealizou

algumas substituições, tais como: a Cinderela passou a ser surda, usuária da

língua de sinais e o sino foi substituído por um relógio, pois este é mais visual.

Outra adaptação feita foi a substituição do sapato pela luva, a qual Cinderela

perdeu ao sair do baile. A luva foi escolhida por ser um simbolismo na Língua

de Sinais. (ROSA, 2011, p.42)

Essa categoria faz uma releitura das obras aproximando à vivência dos surdos, e abre a

possibilidade para que as crianças surdas conheçam a obra original e estabeleçam comparações

com a obra adaptada, além de reconhecer a cultura dos surdos e proporcionar sua identificação

com os personagens. Como descrito por Gava (2010) para a construção das histórias em Libras,

o primeiro grupo de pesquisadores organizou uma estrutura para embasá-las: desenhos

precisam ser claros e bem elaborados; deve conter a escrita da língua de sinais (Signwriting)

para auxiliar na leitura; conter texto em língua portuguesa: para apropriação da segunda língua

pela criança. Conforme Mourão (2011) as histórias e contos adaptados “empoderam” a

comunidade surda, pois valorizam a cultura, a língua, a identidade e trazem representações

sobre os surdos.

As histórias adaptadas ainda são encontradas em pequeno número, podemos citar a

Cinderela Surda (KARNOPP, HESSEL, ROSA, 2003) primeiro livro de literatura infantil no

Brasil escrito em língua de sinais, a Rapunzel Surda (KARNOPP, HESSEL, ROSA, 2005), O

Patinho Surdo (ROSA, KARNOPP, 2005); A Cigarra Surda e as Formigas (OLIVEIRA,

BOLDO, 2005). Os livros mencionados apresentam as histórias em língua de sinais escrita:

Signwriting que conforme Karnopp (2008) é um sistema de escrita que expressa as

configurações de mãos, os movimentos, as expressões faciais, e os pontos de articulação das

línguas de sinais. A autora observa que para escrever e ler em Signwriting é preciso saber uma

língua de sinais. Na modalidade adaptação as produções em Cd e Dvd ainda são incipientes, há

o predomínio dos livros impressos.

1.3 Produção/criação na Literatura Surda

É a categoria mais importante na concepção de pesquisadores, contudo a que engloba

menos obras literárias por ser do tipo criação, ela demonstra com fidelidade o pensar do sujeito

surdo e suas percepções de mundo. Certamente a Literatura Surda quando pensada e produzida

pelo surdo tem características diferentes das produzidas pelas pessoas ouvintes, pelo fato de

vivenciarem situações de modos distintos. Apontamos algumas obras criadas que revelam a

cultura surda: O feijãozinho surdo: Liège Gemelli Kuchenbecker (2009), um mistério a resolver:

o mundo das bocas mexedeiras, traduzida pela pedagoga surda Luciane Rangel e apresentada

em Libras por Nelson Pimenta (2008); as luvas mágicas do papai noel, de Cláudio Henrique

Mourão e Alessandra Klein (2012). Dos livros citados apenas O mundo das bocas mexedeiras

é disponibilizado em livro digital.

Os livros digitais nesta modalidade ainda são raros. Há muitas produções de

histórias em diversos momentos e locais, como nas associações, nas ruas, nas

escolas, mas isto ainda não é divulgado por editoras, de modo a atingir um

número maior de pessoas. No futuro, pode ser que se perceba a importância

de incentivar a publicidade de tais histórias em livros digitais. Por enquanto,

seu acesso é compartilhado na internet, através dos sites como youtube, por

exemplo, ou disponibilizados diretamente pelos autores. (ROSA, 2011, p.43)

Concordamos com Mourão (2011) quando declara que podemos considerar uma obra

como criação quando os textos são construídos a partir de um movimento de ideias que podem

surgir nas comunidades surdas, associações de surdos, em que há circulação e debate de ideias

a respeito de determinados temas e situações experienciadas. O autor acrescenta que

Se os surdos tivessem uma experiência mais intensa com histórias, com textos

literários (em sinais ou através de leituras), essa aprendizagem na escola ou

em seus lares, com os professores ou pais contando histórias, eles teriam mais

possibilidade de imaginação, reflexão, emoção e se tornariam como uma

fábrica de histórias, de subjetividades literárias, logo produzindo ideias e

criatividade. Com conhecimento e experiências, sua subjetividade literária

possibilitaria a criação de histórias. (MOURÃO, 2011, p.54).

Seguramente a criança em contato com o mundo da literatura, com práticas de leitura

em sua língua, no caso dos surdos em Signwriting e Libras, consegue depreender as

informações e acontecimentos em um sistema linguístico do qual é usuário com mais clareza,

o que pode instigar sua criatividade, e favorecer o surgimento de novas histórias e narrativas

que enriquecem as produções em Literatura Surda.

2 LIVROS DIGITAIS

Os livros digitais são histórias produzidas utilizando filmagens em Libras, com todos os

elementos que são pertinentes a uma produção em vídeo, enquanto que os materiais

impressos são histórias impressas em papel, com a presença de textos em Português, da

Língua de Sinais escrita e dos desenhos claros e atrativos. (ROSA, 2011)

Nem sempre os registros em língua de sinais estiveram ao alcance da comunidade surda,

pois como não havia recursos e tecnologias, os acontecimentos, as histórias permaneciam

apenas na memória, com isso muitas narrativas se perderam. Os livros digitais em Libras

começaram a ser produzidos no final da década de 90 com avanço tecnológico que possibilitou

ao povo surdo fazer o registro da sua língua. Dessa forma pesquisadores da área fizeram uma

coletânea de narrativas, histórias, fábulas e organizaram esses materiais para produção e

divulgação por meios digitais com o objetivo de proporcionar aos surdos uma leitura sinalizada,

com os movimentos da língua de sinais. Conforme apontamento de Gava

Com o advento da tecnologia, de filmadoras, gravadores, e da possibilidade

de impressão de textos e imagens, assim como a escrita de sinais surge a

Literatura Surda Contemporânea e um vasto leque de opções se abre para

leitores e autores. As histórias ganham cor e formas, surge a poesia, os livros

visuais e o exercício de criatividade torna-se uma variável cada vez mais

presente. (GAVA, 2015.p.62)

Como consequência o povo surdo passou a exteriorizar sua cultura (re) criando

narrativas, histórias, piadas. Nesse movimento houve engajamento de pessoas ouvintes

produtores de histórias, escritores simpatizantes com a cultura surda que contribuíram com as

publicações. Conforme pesquisadores a primeira obra digital foi no ano de 1999, produzida pela

Editora LSB Vídeo com o título “Literatura em LSB – Poesia — Fábula – Histórias Infantis”.

A princípio as histórias eram em fitas VHS, posteriormente apareceram em CDs e DVDs.

Entretanto foi a partir do ano de 2000 que a produção passou a ser efetiva, com a editoração e

difusão de histórias sinalizadas pelo INES – Instituto Nacional de Educação de Surdos, e na

sequência em 2002 pela Editora Arara Azul, o sucesso dessa literatura foi imediato e ganhou

apoio da Secretaria de Educação Especial do Ministério da Educação- SEESP/MEC que

financia materiais para ser distribuído às escolas inclusivas. Cabe destacar que a LSB Vídeo foi

a pioneira no Brasil a produzir e divulgar materiais digitais em Libras e iniciou suas atividades

em 1999 com o prof. Me. Nelson Pimenta de Castro, surdo, e pelo prof. Me. Luiz Carlos Barros

de Freitas, ouvinte, que dispõem de uma grande equipe composta por desenhistas, instrutores,

pedagogos e professores surdos. Pissinatti (2016) faz considerações acerca das produções no

Brasil e em outros países

Algumas editoras que comercializam essas obras, são específicas em obras

para surdos, como é o caso das editoras Arara Azul e LSB Vídeo. Isto não

ocorre somente no Brasil, mas também em outros países. Na França, por

exemplo, há a editora Monica Company, que comercializa obras

desenvolvidas por autores surdos, e em Portugal, a editora Surd'Universo.

Com o desenvolvimento das tecnologias da informação e comunicação -TIC,

o acesso às editoras e às produções […] podemos dizer que se gerou uma

demanda de produção e venda em razão da preocupação não só com a

formação pedagógica, mas também com o acesso cultural dos sujeitos surdos

à produção literária. (PISSINATTI, 2016, p.30).

Como a pesquisadora observa as produções literárias para surdos, além de divulgar e

reafirmar a língua e a cultura dessa comunidade, é também um novo nicho no mercado que

deve ser ampliado conforme as demandas sociais, onde certamente a inserção dos surdos nessa

produção se torna imprescindível. No site da editora Arara azul os materiais bilíngues podem

ser “degustados” pelo leitor, dessa forma é possível analisar se o formato da apresentação, a

linguagem utilizada na tradução servem aos propósitos do professor ou do interessado na

aquisição. Rosa (2011) argumenta sobre a relevância desse material, pois atualmente os surdos

têm nos livros digitais em Libras uma gama de clássicos literários para crianças, jovens e

adultos, que anteriormente eram encontrados apenas em material escrito em Língua Portuguesa.

Além das obras direcionadas às crianças, a editora Arara Azul em 2005 presenteou o povo surdo

com vários contos de Machado de Assis em Material bilíngue Português/Libras em CD-ROM.

Destacamos que as narrativas machadianas antes incompreensíveis à maioria dos surdos

por conter um vocábulo complexo e utilizar a ironia, poucas vezes compreendidas em suas

entrelinhas, atualmente é acessível linguisticamente a surdos jovens e adultos, em consequência

despertou interesse pela literatura “para maiores”, pois até então a literatura surda disponível

era direcionada às crianças. A grande vantagem da literatura surda nos livros digitais é que

auxilia na depreensão das histórias, por ser elaborada com base nas experiências visuais, ser

narrada em língua de sinais e realçar elementos da cultura surda. No entanto, Rosa (2011) afirma

ser imprescindível que o professor faça uma análise da história antes de apresentá-la, e verifique

se há pistas ou uso de estratégias para sua compreensão, além disso a língua de sinais deve

corresponder ao nível linguístico das crianças, sem esquecer que em nosso país as línguas de

sinais estão sujeitas aos regionalismos, da mesma forma que a língua oral.

Ainda hoje grande parte dos materiais bilíngues- Língua Portuguesa/Libras são

produzidos pelo Instituto Nacional de Educação de Surdos- INES e a LSB Vídeo ambos no Rio

de Janeiro, por isso os sinais encontrados nos materiais são de uso do povo surdo de onde se

situam suas sedes. Em virtude disto, “alguns surdos podem não entender tudo o que é exposto

no vídeo, e dependem de estratégias para entender os sinais pelo contexto” (ROSA, 2011, p.36).

O mesmo autor observa que embora exista materiais digitais em Libras, muitas crianças estão

em processo de aquisição da língua e não tem um domínio que permita depreender os fatos

sinalizados. Assim como as crianças, alguns surdos adultos com limitações no uso e na

compreensão da língua, também podem apresentar a mesma dificuldade em entender as

histórias e narrativas nos livros digitais.

Sendo assim, o entendimento das crianças com relação às histórias sinalizadas, depende

de alguns fatores como: clareza dos sinais, nível linguístico, estratégias utilizadas, expressões

faciais, corporais e não manuais, uso de classificadores entre outros. Entendemos que é

necessário haver uma observação minuciosa na elaboração desses materiais no que se refere

aos fatores mencionados, uma vez que os livros digitais devem ser pensados na acessibilidade

para surdos e ouvintes uma vez que muitos trazem a língua de sinais e o texto em língua

portuguesa, e é um material inclusivo para os dois lados: o mundo dos surdos e o mundo dos

ouvintes.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

O mergulho realizado no universo incrível da Literatura Surda, permitiu evidenciar o

quanto foi importante a oficialização da Libras no Brasil, pois foi a partir dela que a comunidade

surda alçou voos mais altos, e conquistou o direito de usar sua língua, ter acesso ao mundo

acadêmico e literário, portanto é essencial que se desenvolvam mais pesquisas relativas ao tema,

tendo em vista o quanto empodera e valoriza a cultura surda. É pela literatura que os surdos

expressam seus sentimentos, sua arte, e atualmente registram e divulgam com os recursos

tecnológicos disponíveis – as filmagens, os vídeos realizados com aparelhos celulares, os CDs,

DVDs e a internet. É inegável as contribuições das produções em Livros Digitais, para que a

Literatura Surda tenha alcançado tanto espaço. Da mesma forma, a internet, como espaço

democrático, acessível e inovador é um veículo de comunicação muito acessado e utilizado

pelos surdos, pois as produções caseiras podem ser postadas e comentadas, favorecendo a

divulgação de tudo o que acontece no Brasil e no mundo na área da surdez. Cada vez mais as

pessoas estão conectadas com o mundo, para os surdos o compartilhamento de experiências

com seus pares reforça o sentimento de pertencimento a uma comunidade linguística que tem

seus direitos, sua língua e cultura reconhecida.

Essa explosão e divulgação da cultura surda impulsionou pesquisas na área, que apesar

de ainda incipientes em relação ao amplo leque de pesquisas sobre a literatura brasileira, tem

muito a oferecer e a contribuir para que as futuras gerações de surdos tenham mais registros

sobre seu povo, sua língua, porque agora com a tecnologia a memória dessa comunidade não

será esquecida, nem apagada.

REFERÊNCIAS

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Mato Grosso – UFMT Cuiabá –MT. p.61-75. Disponível em <www.periodicos.ufpb.br> Acesso

em: 07 set 2016.

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2008.

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