literatura policial brasileira: dificuldades e especificidades

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Miscelânea, Assis, v. 16, p.15-33, jul.-dez. 2014. ISSN 1984-2899 15 1 ______________________________________________________________ LITERATURA POLICIAL BRASILEIRA: DIFICULDADES E ESPECIFICIDADES 1 Brazilian crime fiction: difficulties and particularities Sandra Reimão 2 RESUMO: Este estudo visa a identificar e analisar algumas características prevalentes na literatura policial brasileira. Para tanto, percorre algumas dessas narrativas destacando especificidades dos protagonistas e dos crimes narrados. Como observação geral, percebe-se a exacerbação dos traços cômicos como um mecanismo para assinalar e sublinhar diferenças destas narrativas brasileiras em relação a modelos europeus e norte-americanos do gênero. PALAVRAS-CHAVE: literatura policial; ficção policial; Brasil. ABSTRACT: The aim of this paper is to identify and analyse common features of Brazilian crime fiction. It will look at several of the sekinds of narratives and will draw attention to certain particularities of the protagonists and the crimes described. In general, one can conclude that the retends to be a greater number of comedic elements in the Brazilian genre when compared to European and North-American models. KEYWORDS: crime literature; crime fiction; Brazil. OBSERVAÇÕES INICIAIS Roger Bastide, em três de dezembro de 1943, no jornal Diário de S. Paulo, escreveu uma observação sobre a literatura policial brasileira que, posteriormente, se revelou um prognóstico verdadeiro: esse tipo de romance deveria se diferenciar dos estrangeiros e poderia até mesmo incluir a “caricatura desses romances”. Citando: 1 Este artigo, em grande parte, retoma, com modificações, trechos do livro Reimão, S. Literatura policial brasileira. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2005. 2 Sandra Reimão é Professora Livre-docente da Universidade de São Paulo (USP) na Escola de Artes, Ciências e Humanidades (EACH) e no Programa de Pós-Graduação em Comunicação da Escola de Comunicações e Artes (PPGCOM-ECA) e pesquisadora de Produtividade em Pesquisa do CNPq (1D). Publicou, entre outros, o livro Repressão e resistência: censura a livros na ditadura militar. São Paulo: Edusp/FAPESP, 2011.

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Page 1: Literatura policial brasileira: dificuldades e especificidades

Miscelânea, Assis, v. 16, p.15-33, jul.-dez. 2014. ISSN 1984-2899 15

1 ______________________________________________________________

LITERATURA POLICIAL BRASILEIRA: DIFICULDADES E

ESPECIFICIDADES1

Brazilian crime fiction: difficulties and particularities

Sandra Reimão

2

RESUMO: Este estudo visa a identificar e analisar algumas características prevalentes na

literatura policial brasileira. Para tanto, percorre algumas dessas narrativas destacando

especificidades dos protagonistas e dos crimes narrados. Como observação geral, percebe-se a

exacerbação dos traços cômicos como um mecanismo para assinalar e sublinhar diferenças

destas narrativas brasileiras em relação a modelos europeus e norte-americanos do gênero.

PALAVRAS-CHAVE: literatura policial; ficção policial; Brasil.

ABSTRACT: The aim of this paper is to identify and analyse common features of Brazilian

crime fiction. It will look at several of the sekinds of narratives and will draw attention to certain particularities of the protagonists and the crimes described. In general, one can conclude that the

retends to be a greater number of comedic elements in the Brazilian genre when compared to

European and North-American models. KEYWORDS: crime literature; crime fiction; Brazil.

OBSERVAÇÕES INICIAIS

Roger Bastide, em três de dezembro de 1943, no jornal Diário de

S. Paulo, escreveu uma observação sobre a literatura policial brasileira que,

posteriormente, se revelou um prognóstico verdadeiro: esse tipo de romance

deveria se diferenciar dos estrangeiros e poderia até mesmo incluir a

“caricatura desses romances”. Citando:

1 Este artigo, em grande parte, retoma, com modificações, trechos do livro Reimão, S.

Literatura policial brasileira. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2005.

2 Sandra Reimão é Professora Livre-docente da Universidade de São Paulo (USP) na Escola de

Artes, Ciências e Humanidades (EACH) e no Programa de Pós-Graduação em Comunicação da

Escola de Comunicações e Artes (PPGCOM-ECA) e pesquisadora de Produtividade em Pesquisa

do CNPq (1D). Publicou, entre outros, o livro Repressão e resistência: censura a livros na ditadura militar. São Paulo: Edusp/FAPESP, 2011.

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Na Europa e na América do Norte há um público para os

romances policiais e, ao lado dele, para satisfazê-lo, escritores

especializados em romance policial.

No Brasil também existe um público para esse gênero, mas os

romances oferecidos à sua curiosidade são traduções de autores

estrangeiros. Não há um Simenonnem um Conan Doyle

brasileiro. [...] há a possibilidade de um romance brasileiro.

Que devesse, no entanto, está visto, tomar formas diferentes

dos romances europeus ou norte-americanos. Poderia mesmo

incluir um elemento de caricatura destes romances. (BASTIDE

apud AMARAL (org.), 2010, p. 295-296)

Esse artigo percorre algumas narrativas policiais brasileiras em

busca de características específicas tanto dos protagonistas, quanto dos

crimes narrados.

Inicialmente, façamos uma breve observação sobre a discussão da

possibilidade da existência de narrativas policiais no Brasil.

Dois argumentos costumam ser utilizados para explicar as

dificuldades do nascimento e da expansão da literatura policial no Brasil: a

precariedade da vida cotidiana e a violência policial.

Essas duas observações são pertinentes, porém é preciso notar, por

outro lado, que também foi pertinente o caminho trilhado por alguns

escritores brasileiros: incorporar as precariedades do cotidiano de um país em

desenvolvimento à narrativa policial e com isso conferir-lhe especificidade.

Tal característica pode ser observada já em O mistério, publicada em 1920,

considerada a primeira narrativa brasileira franca e explicitamente policial

(MEDEIROS; ALBUQUERQUE, 1979, p. 205).

A partir dessa primeira incursão no gênero, de maneira paulatina e

gradualmente crescente, vão sendo editados mais textos do gênero de autores

brasileiros. Essa produção acelera a partir da década de 1990.

Como característica geral, cremos poder dizer que há, na literatura

policial brasileira, uma exacerbação e ampliação do cômico, e que os

recursos cômicos aumentados se tornam veículos para sublinhar as limitações

das regras vigentes nos clássicos policiais, bem como para assinalar que, em

solos brasileiros, essas regras precisam ser alteradas.

A partir de 1990, há enorme crescimento de títulos de literatura

policial de autores brasileiros, isto dá-se correlatamente a dois outros

processos de expansão: o crescimento do número de exemplares de livros

publicados por ano no Brasil e a ampliação da aceitação da produção

brasileira de literatura de entretenimento.

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Em 1988, o crítico literário José Paulo Paes, em um trabalho

intitulado “Por uma literatura brasileira de entretenimento (ou: O mordomo

não é o único culpado)” (PAES, 1990), já assinalava a lacuna no mercado

brasileiro em termos de autores que pudessem ser enfocados como

produzindo literatura de massa e salientava esta lacuna como algo prejudicial,

pois dava lugar ao best-seller traduzido. José Paulo Paes observa também

que, até os anos 1960, o fato de o mercado de livros no Brasil ser pequeno e

pouquíssimos autores viverem de literatura fez com que praticamente não

existisse literatura de entretenimento no Brasil, uma vez que cada autor

queria escrever a sua obra-prima e não se preocupava com o mercado.

A crescente presença do autor nacional entre os preferidos do

público leitor é marcante no setor esoterismo/autoajuda/espiritualidade, mas

pode ser verificada também em outros segmentos da produção literária

ficcional, com destaque para a literatura policial, em especial, o policial noir

que conhece um boom entre nós a partir de meados dos anos 1970 – ou seja,

durante a ditadura militar brasileira (1964-1985).

Ao transpor o gênero policial para o Brasil, muitos de nossos

escritores acentuam seu viés cômico e utilizam esse traço reforçado para

salientar facetas da inadequação entre regras do gênero e a realidade

brasileira.

Citemos um trecho nesse sentido: em O mistério do fiscal, a

precariedade de um relógio de bar de uma cidadezinha brasileira dá ocasião

para o texto se autorreferir e contrapor-se, em defasagem irônica, aos

clássicos do gênero:

Aqui, talvez, melhor seria ter começado o capítulo com ‘eram

exatamente tantas horas e tantos minutos, quando o delegado

entrou no Café e Bar Central, (...) com vistas a dar maior

precisão aos fatos e permitir que o leitor siga,

cronologicamente, o desvendar das ações, usando-se, assim, de

certa técnica narrativa já empregada, com êxito, por notáveis

mestre do romance policial. Entretanto não me parece de bom

tom repetir – pelo menos insistentemente – as mesmas técnicas,

e, além disso, o velho relógio de parede do Café e Bar Central,

que há muito já não batia as horas, apenas marcando-as

pachorentamente no seu mostrador de apagados números

romanos, achava-se também com falta de um dos ponteiros – o

menor, para ser exato – de tal modo que o observador

infalivelmente diria ser a metade de qualquer hora, pois o

ponteiro restante não mais se movia, apontando

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inexoravelmente para baixo, em linha reta. (CORRÊA, 1982,

p. 26)

DETETIVES TROPICAIS – MELLO BANDEIRA, TONICO ARZÃO, TURÍBEO, RAUL,

ED MORT E ESPINOSA

O mistério foi escrito, alternadamente, em capítulos, por Coelho

Neto, Afrânio Peixoto, Medeiros e Albuquerque, e Viriato Corrêa e é

considerada como a primeira incursão brasileira no gênero policial. Este texto

foi publicado inicialmente, em 1920, no jornal A Folha, em forma de

folhetim e, a seguir, foi lançado em livro pela Companhia Editora Nacional.

Em O mistério, o Major Mello Bandeira é um detetive policial

encarregado de investigar um caso de assassinato. Mello Bandeira já aparece,

desde o início, como uma figura relacionada à literatura policial europeia: é

descrito como o ‘Sherlock da cidade’. Esta característica será, nesta

personagem, motivo de situações cômicas, por exemplo, quando Mello

Bandeira põe cães rastreadores a procurar o criminoso, eles acabam se

voltando contra o próprio investigador, que esquecera em seus bolsos as

luvas e os sapatos do assassino.

Mello Bandeira procura ser, como Holmes, uma máquina de

raciocinar. Mas, ao final, vamos surpreendê-lo em uma atitude carinhosa para

com uma das moças detidas para investigação. Em O mistério, a

metalinguagem é levada às últimas instâncias. Os autores começam a se citar

mutuamente e, finalmente, um dos autores, Viriato Corrêa, torna-se

personagem, já que aparece no texto como advogado de defesa da

personagem Pedro Albergaria.

Se na literatura policial enigma clássica os jogos intertextuais têm

por função básica marcar a identidade de um texto no interior do gênero,

em O mistério, temos por exagero a ironização do próprio uso destes jogos.

Tonico Arzão, protagonista de Quem matou Pacífico?, de Maria

Alice Barroso, também é um detetive tropical que não consegue ser uma fria

máquina raciocinante – e não o consegue porque além de sentimental, é

místico e supersticioso. Tonico Arzão é um detetive que apresenta

características pessoais opostas às dos protagonistas da literatura policial

enigma clássica: ao invés de sofisticado e elegante, é desdentado e “capiau”.

Assim, ao invés de ser pura máquina pensante, mescla razão, intuição e

misticismo.

Um caso de certa forma semelhante ao de Tonico Arzão é o do

cabo Turíbeo, protagonista de O mistério do fiscal dos canos e Assassinato

do casal de velhos, de Glauco Rodrigues Corrêa.

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Por seu turno, Raul, protagonista de Malditos Paulistas, de Marcos

Rey, é o protótipo do pequeno malandro, cuja habilidade maior é o “jogo de

cintura”. Raul é aquele malandro que, mesmo na contravenção, só quer o que

não seja perigoso. Em suma, atividades que não requerem o uso da violência

e sim daquilo que Raul sabe que tem: “cabeça, picardia, manha e cancha”.

Luis Fernando Veríssimo, por sua vez, criou um detetive, chistoso

até no nome: Ed Mort. Seu livro Ed Mort e outras histórias, publicado em

1979, sob a forma de paródia do policial noir, deu origem a álbuns de história

em quadrinhos e a um filme de longa metragem. A obra se estrutura em seis

contos, em que a situação ficcional é sempre a mesma: Ed está desocupado e

sem dinheiro em seu escritório, chega uma mulher e pede que ele localize seu

marido. Ele o faz e, por algum motivo, a cliente não o paga. No conto

seguinte, vamos encontrá-lo novamente desocupado e sem dinheiro.

O exagero é o principal recurso cômico de Veríssimo nesses

contos. Parodiando os protagonistas das narrativas noir que são,

normalmente, rudes e sem recursos financeiros, Ed Mort exacerba essas

características: “respondi, arranjando as sobrancelhas na posição Cínico Sim

Mas Você Pode Me Recuperar” (VERISSIMO, 1979, p. 112), “Meus móveis

eram escandinavos. Caixotes de bacalhau norueguês” (VERISSIMO, 1979, p.

143). Até a caneta que Ed utilizava era alugada, entre outras características. A

exacerbação dos clichês do gênero nos contos de Veríssimo, cujo

protagonista é Ed Mort, tem por função rebater e espelhar a própria série

literária, por meio da brincadeira cômica com o gênero.

Espinosa é o nome do detetive protagonista dos romances policiais

de Luiz Alfredo Garcia-Roza, que exerce a função de delegado: O silêncio da

chuva, Achados e perdidos, Vento Sudoeste, Uma janela em

Copacabana, Perseguido, Na multidão, Céu de Origami e Um lugar

perigoso.

Esse delegado possui dois grandes vícios – hobbies: colecionar

livros e andar pelo Rio de Janeiro antigo. É claro que estes dois “vícios” são

o cenário de muitas histórias em que o delegado se envolve e dão ocasião

para muitas de suas deduções e achados. A especificidade da personagem

Espinosa consiste no fato de que, apesar de ser um detetive dedutivo-

racional, ele não pode ser classificado como um gênio ou uma infalível

máquina raciocinante. Trata-se apenas de um sujeito de habilidades medianas

esforçando-se para acertar no seu trabalho.

Em uma entrevista ao jornal Folha de São Paulo, publicada em

seis de dezembro de 2003 Garcia-Roza explicita sua opção por trabalhar com

um protagonista mediano: “O que pretendo com o Espinosa é mostrar que

pode haver uma polícia inteligente e essa inteligência não precisa ser a do

grande gênio. O policial pode ser um homem comum e (...) um sujeito ético”.

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Espinosa é, apenas, um “tira”, um simples e honesto “tira”. Ou como diz a

personagem: “Não sou guerreiro, sou tira; não sou herói, sou funcionário

público; tampouco sou filósofo, tenho apenas nome de filósofo”. Os

procedimentos de Espinosa ao buscar esclarecer um determinado crime estão

próximos das formas de atuação dos detetives do chamado romance policial

clássico ou policial enigma, pois ele sempre utiliza métodos racionais de

investigação. Além disso, apesar de um pouco cínica, essa personagem é

basicamente gentil, praticamente, nunca recorre à violência física.

Muitas das ironias e das críticas de Luiz Alfredo Garcia-Roza, nas

narrativas que envolvem seu personagem Espinosa, dizem respeito à própria

polícia. Vejamos apenas dois exemplos: “Num país marcado por tamanha

desigualdade, a função da polícia não pode ser outra senão impedir o terceiro

mundo de invadir o primeiro, Espinosa sabia disso, alguns poucos como ele

também sabiam, os demais eram tão marginais quanto os bandidos que eles

prendiam” (GARCIA-ROZA, 1999, p. 44).

No decorrer da história da literatura policial brasileira encontramos

vários textos em que os protagonistas não reiteram as características globais

dos clássicos do gênero: Mello Bandeira sucumbe a sentimentos de afeto;

Tonico Arzão, ao misticismo; e o delegado Espinosa, assim como o cabo

Turíbeo, afasta-se do gênero policial enigma por não ser uma “poderosa”

máquina raciocinante, mas sim apenas um detetive bem intencionado e

moderadamente dotado; Raul e Ed Mort são malandros e debochados.

Notemos que, nessas personagens centrais, suas características

pessoais alteram o modelo narrativo da literatura policial clássica, pois têm

algo a ver com uma difusa ideia de brasilidade, a qual resulta em:

exacerbação dos sentimentos e da sexualidade; misticismo; ingenuidade; e

limitação intelectual. Essas especificidades, na maioria das vezes, conferem

as chave cômica ao enredo. Desse modo, por meio de suas histórias, indica-se

que quanto mais brasileira for uma personagem, mais patente se torna a

discrepância entre esta e a literatura policial enquanto modelo transposto, e

mais necessária se torna a chave cômica para assinalar e, ao mesmo tempo,

dar a dimensão desta defasagem.

O MISTÉRIO, A IRONIA E O CRIME ‘MORALMENTE JUSTIFICÁVEL’

O mistério, considerada como a primeira incursão brasileira no

gênero policial, é um texto bastante irônico. Nele, avultam ironias contra a

polícia, o sistema jurídico e o próprio gênero policial. Em que pese o caráter

bastante debochado do texto, não deixa de ser curioso notar que essa

narrativa relata um “crime justo”, ou seja, um crime que o autor admite ter

cometido e todos sabem que ele está dizendo a verdade, mas todos também

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acreditam haver justificativas morais suficientes para o ato criminoso e,

portanto, não consideram justo punir seu autor (no caso, filho mata suposto

pai).

Esta questão do crime moralmente justificável reaparecerá,

algumas vezes, na literatura policial brasileira, como, por exemplo, nos

contos “Carlão”, de Medeiros e Albuquerque, “Um candelabro apaga uma

vida” e “Não pode o mais fez o menos”, de Luiz Lopes Coelho. Nestes dois

últimos contos, temos a presença do Dr. Leite, protagonista de vinte e três,

dos trinta e três, contos de Luiz Lopes Coelho, publicados em livro.

Assim, por exemplo, em “Um candelabro apaga uma vida”, temos

o assassinato do marido pela esposa que ele maltratava. Este assassinato,

muito provavelmente, foi presenciado pelo sogro da vítima, que se recusa a

denunciar a filha. Dr. Leite não insiste nem na denúncia, nem na confissão,

por julgar o crime como moralmente justificável e priorizar seu julgamento

pessoal a um veredicto do sistema judiciário.

CRIMES IMPUNES, ‘JUSTIÇA’ COM AS PRÓPRIAS MÃOS E NARRATIVAS DE

CONTRAVENTORES

Ao lado da temática do crime moralmente justificável,

encontramos, também, em nossa literatura policial, a presença de crimes

impunes, por ser do interesse de alguns ou de muitos. Esta temática foi

explorada por Miguel Jorge, em Veias e vinhos, que aborda a absurda e

dramática tentativa de Pedro e Altino da Cruz de escaparem do papel de

“bode expiatório” do assassinato de toda uma família (com exceção de um

bebê). Os reais culpados desse assassinato eram agentes da “polícia paralela”,

que forneciam “proteção” aos comerciantes. Nesta busca para provar sua

inocência, a cada passo dos acusados corresponde outro da máquina policial

que o incorpora e o anula.

A temática do crime impune, que pode ser vista como um espelho

ficcional da descrença de todos nós, brasileiros, na eficácia de nosso sistema

judiciário-penitenciário, torna-se mais complexa e a função que acabamos de

atribuir-lhe é reforçada, se atentarmos para a presença de textos em que

temos como desfecho a “justiça com as próprias mãos”.

Podemos observar tal tipo de desfecho em vários contos de Luiz

Lopes Coelho, como em “A magnólia perdida”, no qual uma mulher que

percebe estar sendo envenenada pelo marido, ao invés de denunciá-lo e pedir

proteção, vinga-se.

Desfechos, envolvendo a “justiça com as próprias mãos”, podem

ser encontrados também nos romances O crime é um caso de marketing, de

Barbosa Lessa, e Crime na Baía Sul, de Glauco Rodrigues Corrêa. Neste

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último texto, a “justiça com as próprias mãos” é sobreposta ao sistema

judiciário, ou seja, o assassino é preso e, dentro da prisão, é morto pelo pai do

menino que fora vítima de homicídio desse réu. Para este pai, a punição

através do encarceramento era pouca frente ao crime praticado.

A crítica à polícia enquanto instituição e a denúncia de falhas no

sistema judiciário, constantes em nossa literatura policial enigma, fazem

também com que boa parte das narrativas policiais brasileiras se situe de

maneira diversa dos clássicos do gênero que são narrativas “delimitadoras da

culpabilidade”, já que esta literatura nacional “espalha” e aponta toda uma

tessitura de culpas e omissões que, em nossa sociedade, contorna o crime.

Além de indicar a possibilidade de impunidade, mesmo quando há um

culpado explícito.

O relato de diversos tipos de crime tem grande incidência na

literatura policial brasileira, trata-se de uma técnica narrativa, em que

aparecem os “discursos do criminoso”, ou seja, nesses textos, o contraventor

é o porta-voz de seu crime.

O narrador pode ser um contraventor disfarçado, como

em Crime na Baía Sul, de Glauco Correa, e “Ninguém mais se perderá por

Luba”, conto de Luiz Lopes Coelho. Também, pode ser explícito, pois se

confessa voluntariamente ao leitor, como em Malditos Paulistas, de Marcos

Rey.

Muitas das narrativas em que o contraventor é o narrador induzem-

nos, do ponto de vista de uma teoria dos gêneros, à questão da

impossibilidade de se limitar claramente o gênero policial. Nas narrativas

deste formato, a descrição da violência se torna central, e não o desvendar do

crime, como seria mais característico da literatura policial.

De outro ponto de vista, poderíamos ver, no espaço concedido à

fala do contraventor, uma consequência da percepção da violência como a

única saída viável? Seria necessário, portanto, dar ouvidos para os que assim

agiram?

Esta percepção da violência necessária, talvez, seja um caminho

para entendermos a explosão do romance policial noir entre nós a partir de

meados dos anos 1970 – ou seja, durante a ditadura militar brasileira (1964-

1985). Neste âmbito de indagações, citemos quatro romances

policiais noir: A região submersa, de Tabajara Ruas; Malditos paulistas, de

Marcos Rey; Veias e vinhos, de Miguel Jorge; e A grande arte, de Rubem

Fonseca.

Trata-se de narrativas, cujo núcleo da ação transcorre no Brasil, ou

seja, são textos que envolvem – em maior ou menor medida – em seus

enredos, problemas específicos da sociedade brasileira: a questão da

repressão política nas décadas 1960 e 1970; os mortos sem sepultura; os

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desaparecimentos inexplicados; os pseudos-assaltantes mortos em falsos

assaltos (Tabajara Ruas); o contrabando de pedras preciosas (Marcos Rey); o

desamparo do Estado ao cidadão comum (Miguel Jorge); e a rota da cocaína

Bolívia-Brasil (Rubem Fonseca).

Parece-nos que o uso de técnicas narrativas próximas ao modelo

do romance policial noir, por autores brasileiros, pode ser vinculado ao

período de repressão política no Brasil. Talvez, os anos “pesados” das

décadas 1960 e 1970 tenham requisitado dos autores brasileiros que

repensassem formas de retratá-los e denunciá-los.

A ditadura militar brasileira é também o período em que se passa a

narrativa policial que Ada Pellegrini, professora universitária com produção

acadêmica consolidada na área do direito, publicou em 2006. A trama

construída por Ada Pellegrini, intitulada Morte na USP, envolve um serial

killer fictício que age na Faculdade de Direito e em outros setores da USP,

em 1971. O âmbito acadêmico de atuação da autora está presente na escolha

do local em que se desenvolve a trama, nas atuações e nos nomes dos

personagens secundários (muitos deles reconhecíveis), bem como na

construção das duas personagens centrais: o detetive Otero e o assassino.

Ambos, o detetive e o assassino, travam batalhas jurídicas com argumentos,

contra-argumentos e blefes legais. A narrativa tem como porta-voz a

assassina ficcional, a serial killer que teria matado cinco professores e

funcionários da USP.

Destaque-se que, na construção do texto de Morte na USP, há um

jogo bem construído com o leitor: a autora insere, sem aviso prévio, mas com

marcas claras, no meio de uma narrativa em terceira pessoa, trechos do

discurso mental do assassino. Cabe ao leitor decifrar as falas do assassino e

tentar desvendar seus futuros procedimentos. Em certa altura do relato, duas

personagens chegam a tematizar esse procedimento narrativo de dar voz, de

tentar ouvir a psique do assassino. Após um longo relato de um suspeito, um

dos investigadores diz: “fiquei arrepiado com o depoimento”, e a psiquiatra

responde: “É natural. Perscrutar a mente humana pode ser doloroso”

(PELLEGINI, 2006, p. 154). E instigante, poderíamos acrescentar.

Morte na USP não é um livro cômico, como a própria autora

adverte, “é um livro jocoso, escrito em tom sério”. A autora explica: “jocoso,

porque brinca com a realidade e se deleita com o paradoxo – no sentido

filosófico de algo que contradiz o senso comum, a doxa – usando a estrutura

da redução ao absurdo”. Lembremos que os assassinatos são imaginários e

que muitas das personagens são reconhecíveis. A autora, ironicamente,

adverte, também, que “o tom é sério, pois serial killers, conspirações e

crimes passionais são assuntos para gente grande”(PELLEGINI, 2006, p.

xiii).

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Na correlação entre ambiente acadêmico e narrativa policial,

assinalemos ainda os casos de: Isaias Pessotti, psicólogo e estudioso da

história da ciência, que localizou seus três romances, Aqueles cães malditos

de Arquelau, O manuscrito de Mediavilla e A lua da verdade, no fim da

Idade Média e início da Moderna; Reginaldo Prandi, autor que, no romance

Morte nos búzios, faz com que seu tema de pesquisa, o candomblé, seja o

espaço onde se desenrola a trama e, também, o próprio motivo do(s) crime(s);

Ana Callado, professora universitária que publicou um livro com título

ambivalente: Uma aula de matar; Felipe Pena e Marcus Freitas, professores,

respectivamente, da Universidade Federal Fluminense e da Universidade

Federal de Minas Geral, com os bem articulados romances: O marido

perfeito mora ao lado e Peixe morto.

Sobre textos que têm por narrador contraventores/criminosos não

podemos deixar de nos referir, pela força narrativa e jornalística, ao livro

República dos assassinos, de Aguinaldo Silva, que “entra na mente” de um

policial de uma quadrilha de “extermínio”. Entre reportagem e literatura

policial, este livro foi traduzido para o francês por Evelyne Jacobs e

publicado pela editora Gallimard, Paris, na Série Noire, em 2003.

RUBEM FONSECA, MANDRAKE E UM PAÍS CHAMADO BRASIL

Em A grande arte, de Rubem Fonseca, um assassinato de

prostitutas, provavelmente, associado à perda de uma fita de videocassete,

por um de seus clientes, é a chave do crime para que o protagonista, Dr.

Mandrake. Esta personagem detetivesca, um advogado que pretende ser

escritor, começa a desvendar e nos apresentar o intrincado relacionamento da

prostituição com as quadrilhas organizadas, os distribuidores de tóxicos, os

traficantes, a rota da cocaína e, por fim, o acobertamento legal que as grandes

empresas prestam a essas atividades.O papel do Brasil na rota internacional

da cocaína é um dos dados da ação de A grande arte.

Os livros de Rubem Fonseca tornaram-se, a partir de meados dos

anos 1970, um sucesso de vendas. Em 1975, a editora Artenova publicou, do

autor, o volume de contos Feliz Ano Novo. Este livro foi interditado pela

censura federal em 1976, o que propiciou maior divulgação da obra. A

produção de Rubem Fonseca representou certa “retomada de fôlego” do

gênero policial no Brasil e se tornou referência para vários escritores

posteriores, como, Luis Henrique, em Não foi o vento que a levou; Muniz

Sodré, em Bola da vez; Daniel Krasucki, em Assassinato na Rua Maranhão;

Tony Bellotto, em BR 163; e, especialmente, Patrícia Melo, nas obras iniciais

Acqua Toffana e Elogio da mentira.

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Depois de reaparecer em E do meio do mundo prostituto só amores

guardei ao meu charuto, a personagem Mandrake retornou, recentemente, no

romance Mandrake, a Bíblia e a bengala, que reúne dois textos: a novela

“Mandrake e a Bíblia da Mogúncia” e “Mandrake e a bengala Swaine”.

A novela “Mandrake e a Bíblia da Moguncia” é narrada em

primeira pessoa pelo protagonista (“Meu nome é Mandrake. Sou advogado

criminalista”). A narração se dá não como mimese direta do fluxo de

pensamento do protagonista, mas sim como proveniente de um narrador

consciente de sua função, que se assume enquanto tal e conversa com o

leitor. Essa maneira da voz narrativa percorre todo o texto, porém, em alguns

momentos, há uma explicitação mais detalhada dessa angulação, que busca

fornecer direcionamento para o leitor. Esses momentos metalinguísticos, em

que pese serem algumas vezes excessivamente esquemáticos e

simplificadores, são também um espaço em que a intertextualidade com a

série literária, especialmente, a literatura policial, se constrói.

Vejamos um caso: a cena de entrada da cliente Karin Altolaguirre

no escritório de Mandrake.

Era uma mulher jovem, esguia, vestida com elegante descrição,

parecia ter saído de um conto de fadas com seu rosto inocente,

sua tez clara e os cabelos de um castanho-claro viçoso. A visão

de uma mulher bonita é sempre uma epifania, o aparecimento

de uma divindade, e o sentimento que nos domina, não fosse

presidido por Eros, seria parecido com aquele que a música

desperta em nós. Não tenho vergonha da minha libido, é a

energia fisiológica e psíquica associada a toda atividade

humana construtiva; ela se opõe a Tanatos, o instinto da morte,

fonte de todos os impulsos destrutivos. Sei que para muitos

esse raciocínio é mais literário do que científico e pode parecer

que estou usando Freud para fazer minhas racionalizações. O

que posso responder? (FONSECA, 2005, p. 9-10)

Esta cena retoma, pela enésima vez na vez na história da literatura

policial, a entrada da Srta. Wonderely no escritório do detetive Sam Spade,

no início de O falcão maltês, de Dashiell Hammett, narrativa paradigmática

do gênero noir.

Nos textos de Hammett, como disse Lacassin (1974, tomo II, p.

23), “reina (...) uma espécie de sexualidade fatigada que atinge as pessoas e

as coisas”. Esta sexualidade difusa é transmitida pela descrição dos objetos,

das pessoas e das situações, e também pelas características do protagonista,

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um protagonista que “não se caracteriza mais por uma inteligência abstrata,

mas que recupera um corpo cheio de exigências”.

Vejamos a cena:

Uma voz respondeu ‘muito obrigada’, tão suavemente que

apenas a clara pronúncia tornava as palavras inteligíveis, e uma

jovem transpôs a porta. Caminhava devagar, com passos

hesitantes, fitando em Spade uns olhos azul-cobalto, que se

mostravam ao mesmo tempo tímido e investigadores. [...] Era

alta e de uma esbeltez flexível, sem angulosidades. Tinha o

talhe ereto e o colo alteado, pernas longas, mãos e pés estreitos.

[...] Dentes alvos brilhavam na meia lua feita pelo sorriso

tímido.

Spade levantou-se cumprimentando e indicando com a mão de

dedos grossos a cadeira de braços feita de carvalho [...] Spade

recostou-se na cadeira e perguntou – Em que posso ser-lhe útil,

Srta. Wonderley? [...] O enleio que fora gradualmente causado

pelos insinuantes sorrisos, acenos de cabeça e encorajamentos

de Spade, deixara-a vermelha de novo [...] (HAMMETT, 1980,

p. 295-296)

A cena é cinematográfica: uma voz suave e com perfeita pronúncia

precede, em off, a entrada da cliente. A sexualidade paira, nesta cena, pela

minuciosa descrição da mulher, o que atesta a atenção expectante e

exploradora de Spade, e pelas contraposições suavidade/aspereza,

segurança/timidez, em que ressoa a contraposição masculino/feminino. Note-

se, também, os nomes das personagens: Srta. Wonderley e Sam Spade,

maravilha e espada (do jogo de cartas).

Essa descrição, com detalhamentos que revelam expectativas e

contraposições significantes, elaborada por Dashiell Hammett, foi substituída

por Rubem Fonseca pela voz narrativa reflexiva da personagem do detetive.

Isto representou um ganho na metalinguagem, um decréscimo na exploração

dos sentimentos e das sensações da personagem central, e na empatia do

leitor.

Tal como a maioria dos desfechos das narrativas policias que

começam com a entrada de uma ‘femme fatale’ que procura um ente querido

desaparecido, também, na novela “Mandrake e a Bíblia da Mogúncia”, o

protagonista descobre, ao final, ter sido ludibriado por essa cliente.

Se o envolver-se diretamente na ação retoma alguns traços do

policial noir, em “Mandrake e a Bíblia da Mogúncia”, há também elementos

constitutivos do policial enigma clássico, tal como a narrativa iniciar-se no

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passado depois do caso encerrado: “(...) Sou advogado criminalista. O caso

que vou relatar comprova (...) que a verdade é mais estranha que a ficção

porque não é obrigada a obedecer o possível.”

A trama central de “Mandrake e a Bíblia da Mogúncia” articula-se

a partir do fato real da existência de dois exemplares da Bíblia impressa por

Johannes Gutenberg no ano de 1.445 (cada um deles em dois volumes) na

Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro. Esses raros exemplares do primeiro

livro impresso no mundo fazem parte da Coleção ‘Real Biblioteca’, trazida

para o Brasil por D. João VI, em 1808, quando a Família Real e a Corte

Portuguesa (cerca de 15.000 viajantes) transferiram-se para o Brasil para

escapar das invasões napoleônicas. A partir desse dado, o autor concebe

então um Clube de Bibliomaníacos que teria conseguido roubar um dos

exemplares e o levado para fora do País.

Em contraposição à trama central, em que praticamente todos os

envolvidos têm algum grau de culpa e conseguem escapar com o objeto

furtado, há a história de Dona Neide que, por sentir-se culpada e como

autopunição, não consegue seguir os conselhos do advogado Mandrake e

omitir para a polícia, em depoimento, que estava falando ao celular quando

atropelou uma pessoa. A história de Dona Neide é prosaica e cruel – aqui não

cabem ilusões.

Tanto a história de Karin (que consegue fugir do país com um bem

cultural público), quanto a história de Dona Neusa (corroída pela culpa das

consequências de um ato não pensado) são histórias de enredos céticos e

desesperançados. Essas histórias são inversas as da personagem Mandrake,

da história em quadrinhos criada em 1934, por Lee Falk e Phil Dakes, em que

há reviravoltas surpreendentes e esperançosas, pois as armas podem, por

magia e hipnose, se transformarem em buquês de flores.

GARCIA-ROZA – E A CULPA DE TODOS NÓS

O primeiro romance policial de Garcia-Roza foi O silêncio da

chuva – uma intrincada história que começa com o suicídio de um executivo

que deixa uma carta e 20 mil dólares como um “presente” para que a polícia

não divulgasse que sua morte fora autoinduzida. No entanto, antes da polícia,

um desocupado acha o cadáver, a carta e o dinheiro. Ao final da narrativa, o

leitor fica sem saber o que o delegado Espinosa fará com os elementos

materiais que “sobraram” do crime e que podem beneficiar alguns dos

envolvidos.

Certa ambiguidade nos desfechos é uma característica das

narrativas policiais de Garcia-Roza. Em Vento Sudoeste, Gabriel, um rapaz

triste e solitário, que mora com a mãe e está às vésperas de fazer 30 anos,

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procura o delegado Espinosa com uma estranhíssima história – no aniversário

anterior, um vidente dissera que ele cometeria um assassinato deliberado

antes de seu aniversário de 30 anos. Gabriel está assustado com o anúncio e

seu aniversário está chegando. Depois da conversa com Espinosa, a amiga

que levara Gabriel para conversar com o delegado é assassinada. Há uma

série de assassinatos de pessoas próximas a Gabriel. Dona Alzira, mãe do

rapaz, acha que o filho está possuído pelo demônio e pede ajuda a um padre

que não acredita em sua interpretação. Há uma versão final “oficial” para

explicar os crimes, mas, no seu íntimo, o delegado Espinosa tem outra

interpretação para os fatos, para ele o criminoso é outro, só que, como diz: “o

que eu acho é muito fantasioso para constar de um inquérito policial (...)

Passado algum tempo, acho que ele vai me procurar (...) Não sei o que virá

primeiro: a confissão ou a loucura” (GARCIA-ROZA, 1999).

Esta falta de uma interpretação final unívoca, de um

desvendamento claro que geraria um tranquilizador veredicto, capaz

de delimitar a culpa de um crime aos criminosos e transgressores, faz com

que, neste aspecto, os romances policiais de Garcia-Roza possam ser vistos

como dialogando com clássicos da literatura policial noir.

Céu de origami se inicia com o delegado Espinosa afastado por

licença médica e se recuperando de uma cirurgia, pois havia sido esfaqueado

(referência à narrativa anterior Perseguido). Nesse afastamento, o delegado

começa a pensar em aposentadoria e no que seria sua vida, se deixasse de ser

delegado. Tais pensamentos fazem com que se sinta como que

“desmaterializado: “Sentado em sua cadeira de balanço, fechou os olhos e

imaginou o dentista Marcos Rosalbo se desmaterializando (...) Era a fantasia

que também o assombrava em relação ao delegado Espinosa”. (GARCIA-

ROZA, 2009)

Neste momento, Espinosa é procurado pela esposa do

desaparecido Marcos Rosalbo, a qual lhe pede ajuda para localizá-lo. Marcos

Rosalbo era um homem metódico que, até o instante de seu desaparecimento,

cumprira rigorosamente com seus compromissos e, depois, sumira. Sem

sinais de violência. Sem lacunas a serem explicadas. Simplesmente

desaparecido

Essa demanda faz com que Espinosa volte à ativa e para o Brasil,

para o Rio de Janeiro, e conduza sua própria vida. Tal retorno começa pela

observação de que “o que pouca gente sabe é que umas quinze pessoas

desaparecem por dia na cidade do Rio de Janeiro, são mais de quatrocentas

por mês, cinco mil por ano”. O mais surpreendente é que dessas pessoas,

“que saem de casa pela manhã para trabalhar, procurar emprego, fazer

compras no supermercado, visitar um parente no hospital, ou simplesmente

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passear”, a grande maioria some definitivamente, “permanece desaparecida

para sempre”.

Nesse Rio de Janeiro atual, o delegado Espinosa observa que,

transcorridos quase 30 anos do fim da ditadura militar, só agora a população

brasileira começa a ter outra visão do policial, que “não é mais visto como

agente da repressão política”. E complementa: “É verdade que ainda (o

delegado) não se transformou plenamente em agente de investigação. Um dia

chega lá”. O grande limite para uma polícia eficaz no Brasil hoje é a

corrupção da corporação “a corrupção atingiu um nível insuportável,

equiparável apenas à corrupção política”.

A decisão de envolver-se com o caso, esclarece o narrador, “não

era o desejo irresistível de procurar uma pessoa desaparecida”, mas sim

“certamente, era o desejo de testar até quando suportaria ficar, ele próprio,

desaparecido”.

Ao final, as aparentes inocências se revelam mortalmente

criminosas e o desaparecido, que assim agira, em termos, para salvar sua

própria vida, acaba se tornando, sem querer, um assassino. Enlouquecido pela

culpa do assassinato, o desaparecido comete suicídio. Ninguém, nem o

delegado Espinosa, consegue prever a ação e evitá-la: “O barulho do tiro

encheu o quarto antes do salto simultâneo dos três policiais conseguir evitá-

lo”. Todos são espectadores passivos, parcialmente omissos e parcialmente

culpados.

PEQUENA OBSERVAÇÃO FINAL

O crescimento da atividade de edição de livros no Brasil nas

últimas duas décadas é inegável. Disto decorre maior aceitação, por parte do

público leitor, do autor de ficção nacional. Essa aceitação resulta em: altas

frequências em feiras de livros, presença de livros em listagens de mais

vendidos e destaques de obras em prateleiras de livrarias. Em síntese, é

notável o crescimento do interesse do leitor de ficção pela atividade de

escritores brasileiros em contraposição ao escritor estrangeiro.

O aquecimento do mercado de livros no Brasil e a aceitação do

autor brasileiro emolduram e configuram nosso cenário atual de literatura

ficcional de entretenimento. Nesse âmbito, pode-se notar o crescimento e a

consolidação da literatura policial de autoria brasileira.

Nosso percurso por narrativas brasileiras de literatura policial

mostrou que, ao mesmo tempo em podem ser perfiladas como pertencentes

ao gênero por se afinarem com seus modos de fazer, muitas dessas narrativas

introduzem traços e características brasileiros. Essa presença de elementos

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locais propicia o questionamento, algumas vezes, irônico, da própria

existência do gênero no Brasil, um país em desenvolvimento.

Quanto à personagem principal das narrativas policiais – o detetive

–, vimos que a introdução de características de alguma forma presente na

ideia de povo brasileiro, como misticismo, sensualidade, ginga, malícia e

limitação intelectual, faz com que seja necessário à narrativa assinalar a

diferença dessa personagem em relação aos seus modelos e, essa sinalização

se faz, muitas vezes, pelo viés cômico.

Lembremos que consta do folclore político brasileiro que o

presidente francês Charles de Gaulle teria dito a frase “Le Brésil n’est pas um

payssérieux”, nos anos 1960. Verdade ou não, a frase tornou-se de uso

corrente no Brasil, em tom de autoironia, sempre atribuindo essa suposta

origem.

A chave cômica é utilizada nas narrativas policiais brasileiras aqui

abordadas como um instrumento de sinalização da defasagem entre as

personagens brasileiras e os protagonistas dos clássicos do gênero, e sublinha

a ideia, quer de “máquina de raciocínio” ou de “detetive duro de matar”,

como algo inverossímil, artificial, e que, no mínimo, não se coaduna com que

o, digamos, para usar uma expressão célebre de Roberto Schwarz, “tamanho

fluminense”, dessas personagens.

Em relação às tramas abordadas pela literatura policial de autor

brasileiro, o percurso que realizamos mostrou uma grande presença de temas

complexos, como crime moralmente justificado, justiça com as próprias

mãos, crime impune e narrador como contraventor. Esses elementos

assinalam a necessidade de alterações, no que se refere à trama e à estrutura

de construção, em relação aos clássicos do gênero, para que as narrativas

possam se assentar em solos brasileiros. Muitas vezes, os escritores de

literatura policial brasileira usaram a comicidade e a ironia como recursos

para assinalar a especificidade do Brasil e a necessidade dessas alterações.

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