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Literatura Infanto-Juvenil e Relações Étnico-Raciais no Ensino Fundamental Orientadora: Vera Candau Co-orientador: Daniela Valentim Bolsistas: Ângela Souza Patrícia Sodré Relatório Anual PUC-RIO 2011

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Literatura Infanto-Juvenil e Relações Étnico-Raciais no Ensino

Fundamental

Orientadora: Vera Candau Co-orientador: Daniela Valentim

Bolsistas: Ângela Souza Patrícia Sodré

Relatório Anual PUC-RIO

2011

Departamento de Educação

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Literatura Infanto-Juvenil e Relações Étnico-Raciais no Ensino

Fundamental

Aluna: Ângela Sousa Aluna: Patrícia Sodré

Orientadora: Vera Maria Ferrão Candau Co-orientadora: Daniela Drelich Valentim

Introdução O presente trabalho aborda o tema das relações entre literatura infantil e juvenil e

processos identitários no que diz respeito às relações étnico-raciais, tendo presente a publicação da Lei n. 10.639/03 que institui a obrigatoriedade do ensino de História e Cultura Afro-Brasileira e Africana no currículo escolar da Educação Básica e a aprovação subsequente de Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação das Relações Étnico-raciais em Educação e para o Ensino de História e Cultura Afro-brasileira e Africana no currículo do Ensino Básico, em julho de 2004.

Podemos afirmar que hoje já encontramos no Brasil uma crescente e significativa produção acadêmica acerca do binômio relações raciais e educação (Gomes, 2001, 2008; Munanga, 2001 e Cavalleiro, 2001). Trata-se de um campo de produção de conhecimento que se afirma em todas as modalidades de educação. Vale ressaltar, que este fato é de extrema importância, principalmente no que toca aos sujeitos afro-brasileiros excluídos historicamente da fruição de muitos dos direitos conferidos aos outros grupos sociais. Porém continua havendo um distanciamento entre as disposições legais, algumas produções acadêmicas voltadas à valorização do sujeito afro-brasileiro na construção de uma sociedade mais justa e equitativa e as práticas educativas e pedagógicas que ocorrem nas escolas.

Costa afirma, Com certeza, a partir do momento que o universo escolar passa a tratar cientificamente da história do Continente Africano, de seus países e respectivas matrizes étnico-culturais; do seqüestro e da venda clandestina de negros africanos para o trabalho escravo no Brasil; dos processos ideológicos de construção das categorias de raça e cor que sustentam a pratica do racismo, bem como dos complexos psicológicos que permeiam o imaginário sociocultural brasileiro, a educação nacional será, de fato, um palco no qual se encenam novas performances de igualdade de direitos, liberdade de interação de saberes e respeitos as diferenças (2008, p.35).

Partimos, no presente trabalho de uma concepção de educação nomeada como intercultural que, além de valorizar os diferentes grupos culturais, incluindo os de caráter étnico-racial, nega uma concepção assimilacionista e essencialista no plano da cultura e, sobretudo, reafirma a importância do diálogo entre esses grupos culturais. Operamos com um conceito dinâmico e histórico de cultura, capaz de integrar as raízes históricas e as novas configurações, cultura não como algo fixo dotado de uma essência pré-estabelecida.

Para contribuir com o debate do reconhecimento identitário e valorização da cultura afro-brasileira nos diferentes âmbitos educativos, levando em consideração os avanços legais e no âmbito de estudos e pesquisas, optamos por desenvolver o tema da arte literária infantil

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articulada aos processos de identidade étnico-racial dos afro-brasileiros. A literatura infantil é um espaço plural, aglutinadora de várias leituras e análises, local privilegiado de produção e reprodução simbólica de sentidos e, desse modo, fonte que pode colaborar para a enunciação ou para o apagamento, para a valorização ou subalternidade das identidades.

Desde a publicação da Lei 10.639/03, as escolas e os professores, vêm sendo desafiados a incluir nos currículos praticados (Barbosa, 2003, p.1), uma nova leitura sobre o lugar da África na história da humanidade que não seja o de um silenciamento historiográfico e também sobre o papel dos afro-brasileiros na constituição do Brasil, que não seja o do estigmatizado. Essa releitura e reconstrução não tocam apenas a dimensão curricular, mas vão além, quando pretendem uma mobilização de subjetividades e uma desconstrução de concepções eurocêntricas apreendidas no decorrer da vida de todos nós.

A literatura também passou por esse processo de reformulação buscando assim distanciar-se da visão do negro como objeto, como produto do estereótipo do “feio”, “sujo”, “criminoso” ou “burro”. Autores como Heloisa Pires Lima (2010), Rogério Andrade Barbosa (2006), Sônia Rosa (2009) se dedicam e caminham no sentido de contribuir na construção de um acervo literário infanto-juvenil significativo dentro da temática étnico-racial com esse propósito.

O foco do nosso trabalho é a literatura infanto-juvenil tida como um campo de produção cultural, posto que, para nós, a literatura não descreve o real, mas trabalha com representações. Nosso recorte é étnico-racial, assim nos interessamos em analisar livros que tenham como protagonistas afro-brasileiros e/ou façam releituras dos contos africanos em suas narrativas.

Estamos interessadas em conhecer como esses livros lidam com a questão das diferenças culturais identitárias, que concepções desenvolvem, se buscam ou não empoderar os sujeitos afro-brasileiros e se estimulam o diálogo intercultural ou tratam apenas do reforçar e valorizar os sujeitos afro-brasileiros e as culturas de matriz africana não aprofundando suas relações com os demais grupos sociais.

É importante ressaltar que teoricamente entendemos que as diferenças são sempre construções sociais e as que têm nos mobilizado são aquelas que enfrentam e disputam as relações de poder que as hierarquizam. Rompemos assim com uma visão essencialista da diferença cultural, perspectiva que mascara as normas etnocêntricas e serve apenas para conter tais diferenças.

O texto foi subdividido em cinco partes, além dessa introdução. Na primeira, apresentamos nossos objetivos, em seguida, a metodologia de trabalho, na terceira, os elementos da fundamentação teórica, na quarta, o trabalho da análise dos livros de literatura infanto-juvenil, na quinta, nossas considerações finais seguidas das referências bibliográficas.

1. Objetivos

A pesquisa tem como objetivo analisar as obras de literatura infanto-juvenil contemporânea, editadas a partir de 2004, isto é, após a publicação da Lei 10.639, que tenham afro-brasileiros como protagonistas e/ou que fazem releituras dos contos africanos através de seu enredo específico, que fazem parte do acervo de uma escola pública de ensino fundamental.

Além disso, optamos por analisar os livros que são pedidos com maior freqüência pelos professores e alunos dos grupos de 1° ao 5° ano do ensino fundamental. Chegamos a essa informação a partir da orientação da Coordenadora Pedagógica responsável pelo acervo literário da escola.

Nos interessa responder as seguintes questões: Tais livros ajudam as crianças a perceberem as diferenças culturais étnico-raciais existentes no nosso contexto? Favorecerem que as crianças questionem suas próprias identidades étnico-raciais? Que aspectos étnico-

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raciais neles são explicitados? Contribuem para o empoderamento das crianças afro-brasileiras, de espaços ou práticas oriundas de uma matriz africana? Estimulam o diálogo intercultural entre as crianças?

2. Metodologia

Trata-se de uma pesquisa de base bibliográfica e de natureza qualitativa. Nosso primeiro passo foi empreender uma revisão bibliográfica que nos servisse de

aporte teórico e metodológico. Neste sentido, aprofundamos no campo das relações raciais e educação, da literatura infanto-juvenil e da educação intercultural.

Em seguida, definimos o local onde os livros a serem escolhidos deveriam ser localizados. Optamos por analisar os livros que se constituíssem no acervo de uma escola pública de ensino fundamental. Tendo em vista que as autoras já estagiam, escolhemos a Escola Municipal Artur Ramos que fica no bairro da Gávea e que atende as crianças da educação infantil até o primeiro segmento do ensino fundamental, tendo ao todo 540 alunos, onde uma das autoras realiza seu estágio curricular obrigatório do curso de Pedagogia, referido à disciplina “Prática de Ensino em Escola Fundamental”, desde março deste ano.

Conversamos com a Coordenadora Pedagógica e pedimos sua autorização para conhecer o acervo literário da escola, o que nos foi permitido. Procedemos então ao levantamento dos livros do acervo de sua “sala de leitura” que, na verdade, é a sala da Coordenação Pedagógica ajustada para servir de espaço de leitura, conforme os critérios que definimos, a saber: eles deveriam ter sido editados a partir de 2004, deveriam ter como protagonistas sujeitos afro-brasileiros e/ou fazer releituras dos contos africanos através de seu enredo e serem os pedidos com maior freqüência pelos professores e alunos dos grupos de 1° ao 5° ano do ensino fundamental.

Escolhemos o ano de 2004 como marco inicial das edições, posto que, gostaríamos de perceber as representações dos afro-brasileiros e da cultura de matriz africana após a promulgação da Lei 10.639 que ocorreu em 2003.

Dos 4.716 livros do acervo literário da escola selecionamos 10 livros que atenderam aos nossos critérios. Esse trabalho de campo foi realizado em, aproximadamente, 24 horas. O quadro abaixo visibiliza os livros que selecionamos:

Livros selecionados

Livro Autor/autora Ilustração Editora/ ano

Os tesouros de Monifa

Sônia Rosa Rosinha Campos Brinque Book, 2009.

Lila e o segredo da chuva

David Conway Jude Daly Editora Biruta, 2010.

Os gêmeos do Tambor

Rogério Andrade Barbosa

Ciça Fittipaldi Editora DCL, 2006.

Os nove pentes D’ África

Cidinha da Silva Iléa Ferraz Mazza Edições, 2009.

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Sikulume e os outros contos africanos

Júlio Emílio Braz Luciana Justiniani Ed. Pallas, 2010.

Os Ibejis e o Carnaval

Helena Theodoro Luciana Justiniani Ed. Pallas, 2009.

Sua majestade, o elefante

Luciana Savaget Rosinha Campos Ed. Paulinas, 2006.

Lendas da África Moderna

Heloísa Pires Lima

e Rosa Maria

Tavares Andrade

Denise Nascimento Ed. Elementar,

2010

Betina Nilma Lino Gomes Denise Nascimento Mazza edições,

2009.

Bruna e a Galinha D’Angola

Gercilga de

Almeida

Valéria Saraiva Ed. Pallas, 2009.

Ressaltamos que não empreendemos observação das práticas escolares, assim não acompanhamos a utilização dos livros selecionados pelos professores e alunos na Escola Municipal Artur Ramos. 3. Fundamentação teórica

Três eixos foram utilizados como referência para o aprofundamento teórico-metodológico da problemática focalizada. O primeiro, olha para os processos históricos, políticos e estéticos no que tange às relações étnico-raciais e educação e tem como interlocutores Munanga (1996, 2001), Bernardino (2002), Gomes (2003), Oliveira (2003), Rocha (2003) e Hernandez (2008). O segundo está centrado na problematização da concepção de literatura infanto-juvenil, contrapondo livros com caráter pedagogizante, Soares (1999), que visam ensinar algo dos que são um convite à literatura, partindo de contribuições de Soares e Comitti (199). Além disso, procuramos analisar a representação dos afro-brasileiros no âmbito literário infanto-juvenil, partindo de contribuições de Lima (2001) e Gouvêa (2005). O último eixo trata da educação intercultural proposta por Candau (2006, 2011). 3.1 Relações étnico-raciais e educação: processos históricos, políticos e estéticos.

Hoje, a temática das relações étnico-raciais no contexto brasileiro vem sendo trabalhada na perspectiva das relações de poder expressas por um lado, nos processos de exclusão e, por outro, por demandas que possam reparar esses grupos identitários invisibilizados socialmente, especialmente no que tange: ao silêncio historiográfico sobre a trajetória de luta dos sujeitos individuais e coletivos afro-brasileiros, a urgência e também desafio de desnaturalização das desigualdades raciais e do colonialismo traduzido pela perspectiva branca/eurocêntrica das práticas e saberes e a necessidade de construção de uma nova lógica pautada no diálogo entre culturas que valorize os sujeitos afro-brasileiros, assim como espaços e práticas de matriz africana.

Os sujeitos afro-brasileiros ocupam, inequivocamente, espaços subalternos na sociedade brasileira. Segundo o IPEA (2007),

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A existência de discriminação contra negros no Brasil é hoje reconhecida como fato. Após extensa produção tanto qualitativa como quantitativa, é difícil negar os grandes diferenciais raciais observados em quase todos os campos da vida cotidiana. Negros nascem com peso inferior a brancos, têm maior probabilidade de morrer antes de completar um ano de idade, têm menor probabilidade de freqüentar uma creche e sofrem de taxas de repetência mais altas na escola, o que os leva a abandonar os estudos com níveis educacionais inferiores aos dos brancos. Jovens negros morrem de forma violenta em um maior número que jovens brancos e têm probabilidades menores de encontrar um emprego. Se encontram um emprego, recebem menos da metade do salário recebido pelos brancos, o que leva a que se aposentem mais tarde e com valores inferiores, quando o fazem. Ao longo de toda a vida sofrem com o pior atendimento no sistema de saúde e terminam por viver menos e em maior pobreza que brancos. E isso não decorre apenas da situação de pobreza em que a população negra está majoritariamente inserida. As desigualdades raciais no Brasil são influenciadas de maneira determinante pela prática passada e presente da discriminação racial. (IPEA. Boletim de Políticas Sociais - Acompanhamento e Análise nº13, Edição Especial 2007).

Tais sujeitos resistem e lutam pelo fim das desigualdades raciais e também pelo respeito

às suas diferenças culturais e seus saberes invisibilizados e/ou inferiorizados, numa perspectiva antiracista, visando à construção de uma sociedade mais justa e verdadeiramente democrática.

Um dos caminhos trilhados com o propósito de produzir e reproduzir a desigualdade material e simbólica dos afro-brasileiros foi o silêncio historiográfico no que diz respeito à África e aos africanos escravizados que chegaram ao nosso país. As sociedades africanas foram entendidas a partir do ponto de vista da miséria e da barbárie. Tal visão equivocada se apresenta ligada à

“construção de um conhecimento cuja gênese remonta ao século XVI quando surge o racionalismo como método que se desenvolve e se consolida mais tarde, entre a segunda metade do XVIII e a primeira metade do XIX, passando a dominar o pensamento ocidental. Integra a constituição de um saber moderno que permeia a formulação de princípios políticos, éticos e morais, fundamentando os colonialismos no final do oitocentos. Seus efeitos prolongam-se até os nossos dias, deixando fortes marcas nas ciências humanas e, em particular, na antropologia e na historiografia sobre a África.” (Hernandez, 2008, p.17)

O africano era considerado como componente de uma raça inferior e, portanto, à margem da história e distante do uso da razão. Rocha (2003, p.89) destaca a influência da teoria de Hegel sobre a História Universal que justificou, por tempos, a “ausência de grupos populacionais considerados em estado evolutivo pré-civilizado, dos estudos da História, relegando-os ao rol das excentricidades da etnologia ou antropologia” ciências que se dedicavam ao estudo de sociedades “exóticas”. Percebemos assim processos orientados por preconceitos e pré-noções acerca da África, um continente que possuía um dinamismo interno visibilizado pelos intercâmbios comerciais e culturais, com destaque particular à tradição oral africana e seus aspectos políticos, históricos, sociológicos e antropológicos próprios de seus vários povos.

Segundo Hernandez (2008), até a segunda metade do século XIX não havia estudos diferentes da perspectiva eurocêntrica sobre a História da África, perpetuando as ideias de não-historicidade e estereótipos. Em meados do século XX, os estudos historiográficos e

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antropológicos que destoam da visão eurocêntrica e de estereótipos raciais foram reconhecidos e tratados de maneira crítica, apontando os intercâmbios existentes dentro do próprio continente africano, além de ressaltar a historicidade das diferentes sociedades (África Subsaariana, Central, Meridional) bem como suas próprias organizações sociais e políticas.

Ainda em Hernandez (2008), constatamos percussores como Urvoy (Historie Dês Populations Du Sudan Central, 1936 e Historie Du Bournu, 1949) que utilizou a investigação histórica para resgatar o passado africano numa tentativa de elaborar uma “África descolonizada”. Por sua vez, os afro-americanos pan-africanistas também se empenharam em identificar as especificidades histórico-culturais na África tendo Du Bois (1960) como um dos principais de seus interlocutores. Nas décadas de 70 e 80 do século passado, evidencia-se um crescente movimento de construção de uma nova história a partir de uma epistemologia que visa a desnaturalização do colonialismo e a revitalização dos estudos africanos. Em 1972, Ki-Zerbo, historiador africano, lança o livro “História da África Negra”, um marco para esse processo de revitalização. Em 1981, especialistas e historiadores africanos lançam “História Geral da África”, cujo estudo é contado numa perspectiva eminentemente africana. Hoje vivemos um momento de florescimento dessa historiografia.

Outro elemento que contribui para a produção e reprodução da desigualdade material e simbólica dos afro-brasileiros se refere à naturalização do colonialismo traduzido pela perspectiva branca/eurocêntrica das práticas e saberes. O colonialismo europeu foi o parâmetro/paradigma utilizado para olhar não só a África, mas também o Brasil de modo que ambos tiveram o desenvolvimento de suas historiografias submetidas à lógica do eurocentrismo.

Durante séculos de escravidão, a perversidade do regime escravista materializou-se na forma como o afro-brasileiro era visto e tratado. A diferença impressa pela cor da pele e outros sinais do corpo serviu como um argumento para justificar a colonização e encobrir intencionalidades de exploração seja na economia, como nos processos políticos e sociais. Foi a comparação do afro-brasileiro (colonizado) com o branco europeu (colonizador) que serviu de argumento para a formulação de um padrão normativo pautado no embranquecimento.

Além disso, outro aspecto a ser explicitado refere-se à construção da sociedade brasileira estruturada, entre outras coisas, a partir do mito da democracia racial. Segundo Bernardino (2002),

Uma parcela expressiva da sociedade brasileira compartilha a crença de ter construído uma nação diferentemente dos Estados Unidos e da África do Sul, por exemplo, não caracterizada por conflitos raciais abertos. Além disso, imagina-se que em nosso país as ascensões sociais do negro e do mulato nunca estiveram bloqueadas por princípios legais tais como os conhecidos Jim Crow e o Apartheid dos referidos países. Para os que imaginam e advogam a singularidade paradisíaca brasileira, isto significa dizer que o critério racial jamais foi relevante para definir as chances de qualquer pessoa no Brasil. Em outras palavras, ainda é fortemente difundida no Brasil a crença de que a cultura brasileira antecipa a possibilidade de um mundo sem raças. (2002, p.2)

A democracia racial brasileira e a cordialidade são “mitos” que pretenderam

invisibilizar, silenciar a existência do racismo, sem combatê-lo. Um dos caminhos para a construção de uma representação positiva sobre o afro-brasileiro é a tarefa de desnaturalização das desigualdades raciais. Gomes (2004) afirma que cabe a nós, educadoras e educadores, tal tarefa. E alerta:

Talvez, um primeiro passo a ser dado pelas educadoras e pelos educadores que aceitam o desafio de pensar os vínculos entre educação e identidade negra seja reconhecer que qualquer intervenção pedagógica a ser feita não pode

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desconsiderar que, no Brasil, vivemos sob o mito da democracia racial e padecemos de um racismo ambíguo. A partir daí, é preciso compreender que uma das características de qualquer racismo é sustentar a dominação de determinado grupo étnico/racial em detrimento da expressão da identidade de outros. É no cerne dessa problemática que estamos inseridos, o que significa estarmos em uma zona de tensão. (2004, p.6)

No que tange a revitalização no campo de estudos e pesquisas bem como às lutas contra

a discriminação racial em suas diversas expressões, destaca-se a trajetória de intelectuais negros e dos movimentos negros brasileiros. Não existe uma homogeneidade ideológica dos grupos que compõem o movimento negro, porém, é certo que possuem algumas preocupações comuns. Especialmente voltadas às reivindicações pelos direitos ao trabalho, saúde e educação que contemplem o combate ao racismo estrutural.

A discussão acerca da identidade afro-brasileira e seu processo de empoderamento, aqui entendido como um processo que fortalece a autoconfiança dos grupos sociais marginalizados, visando capacitá-los para a articulação de seus interesses e para a participação na sociedade, além de lhes facilitar o acesso aos recursos sociais disponíveis e o controle sobre estes, vêm ocupando setores militantes, acadêmicos e literários, dentre outros, na perspectiva de enriquecer e apontar novos caminhos que estimulem práticas sociais e políticas públicas.

É importante salientar que optamos por trabalhar com a concepção de identidade negra apresentada por Gomes (2003) que a entende como “uma construção social, histórica, cultural e plural. Implica a construção do olhar de um grupo étnico/racial ou de sujeitos que pertencem a um mesmo grupo étnico/racial sobre si mesmos, a partir da relação com o outro”. Segundo a autora, “construir uma identidade negra positiva em uma sociedade que historicamente, ensina ao negro, desde muito cedo, que para ser aceito é preciso negar-se a si mesmo, é um desafio enfrentado pelos negros brasileiros.” (p.171).

Neste sentido, a discussão acerca da revitalização dos estudos e a visibilização das lutas contra a discriminação racial, perpassa também pelo papel da educação e a importância dos grupos de intelectuais e de movimentos negros na busca por uma educação que reconheça a diversidade cultural e racial brasileiras.

Dessa maneira, a luta por uma educação que valorize as identidades afro-brasileiras, a incorporação nos currículos e nos materiais pedagógicos de componentes próprios das culturas afro-brasileiras, bem como processos históricos de resistência, são elementos que consideramos relevantes para se pensar nas relações étnico-raciais e educação.

Um exemplo, dessa trajetória de luta e reivindicação dos movimentos negros e seus aliados foi a promulgação da Lei 10639/03, que visa favorecer o reconhecimento identitário positivo e valorização da cultura afro-brasileira nos diferentes âmbitos educativos. A Lei 10.639 determina a inclusão da temática História e Cultura Afro-Brasileira e Africana na Educação Básica, no currículo oficial da rede de ensino. Antes dessa, a temática estava prevista nos Parâmetros Curriculares Nacionais (PCNs), dentro do tópico Pluralidade Cultural que, segundo algumas avaliações, trata da diversidade cultural sem problematizar as normas etnocêntricas e os mecanismos de poder que permeiam as relações dos diferentes grupos étnicos-raciais. Neste sentido, os PCNs abriam margem para interpretações e ações equivocadas, como por exemplo, reforçar os estereótipos e a folclorização quando se trata destes diferentes grupos.

Vale ressaltar que as leis são importantes, porém não suficientes. Não basta ter marcos regulatórios sem mudança de mentalidades. Esse desafio tem se dado num processo complexo e conflituoso. Mais do que assumir a diferença cultural no discurso é preciso problematizar os mecanismos de poder que orientam as relações, sobretudo as relações cotidianas de

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escolarização que mantém a desigualdade social. Podemos nos perguntar: até que ponto discutir relações raciais é tarefa da educação? Até que ponto um profissional do campo educativo pode/deve silenciar questões tensas e conflituosas? Para elucidar nosso ponto de vista, trazemos aqui uma situação verídica ocorrida no interior de uma Escola Pública que uma das autoras desse trabalho presenciou:

Crianças da turma do 3° ano do Ensino Fundamental trabalhavam com fragmento do livro "Menina Bonita do laço de fita", de Ana Maria Machado. A professora distribuiu duas folhas de atividades elaboradas por ela para cada criança, uma contendo o fragmento do texto e outra com perguntas sobre o mesmo. Primeiro, foi feita uma leitura em conjunto, posteriormente, deveriam os alunos responder as perguntas relativas aos aspectos técnicos e formais do texto à interpretação do mesmo. Um grupo de cinco crianças, sendo três meninos e duas meninas, começou uma conversa paralela: "Lá na África só tem preto, branco não pode entrar na África..." P. 9 anos; "Não, a gente não pode falar preto, tem que falar negro. Preto é errado..." M. 9 anos . “Ih, eu sou branco então não posso ir na África, será?” N. 9 anos. “Viu M. tu é preta pode ir lá...” J. 8 anos. Enquanto isso, a professora continuava à frente da sala seguindo o roteiro planejado não se deixando permear pelo assunto trazido pelas crianças. E foram muitas questões interessantes trazidas pelas crianças: “tem que falar preto ou negro? A África é só de negros? Ser negro é bonito? Não se fala cabelo duro?”. Embora ouvisse toda conversa a professora não interveio, não fez nenhum tipo de comentário, somente quando uma criança afirmou que pessoas com cabelo “duro” são feias. Nesse momento ela disse que “nem sempre é assim”, completando com um comentário em relação à personagem da história trabalhada: “Gente olha pra menina como ela é bonita, tem enfeites no cabelo como princesa africana, mesmo sendo negra ela é bonita e valoriza isso. Temos que respeitar.”

Com essa experiência em sala de aula podemos observar alguns aspectos importantes tanto no campo da concepção de literatura quanto no campo das relações étnico-raciais. Basta dizer que ser negro é ser bonito e assim consideramos a discussão encerrada? Mais que isso, podemos observar que a fala “mesmo sendo negra ela é bonita”, em essência afirma muita coisa, atitudes preconceituosas estão presentes e se expressam de diversas maneiras. Há extremos em questão, de um lado o silêncio em relação ao tema e de outro, o tratamento do tema só pelo fato da obrigatoriedade. Cumprir a lei, trabalhar com um livro de uma autora consagrada cuja protagonista é negra para afirmar que os negros “podem ser bonitos”, “podem ser aceitos”, é só o caso de respeito ao próximo? Os padrões estéticos europeus são afetados?

Por outro lado, a afirmação da identidade afro-brasileira, a valorização da ancestralidade africana e das culturas de matriz africana são elementos fundamentais que orientam as interrelações culturais e o diálogo entre afro-brasileiros e brancos. Segundo Munanga,

O resgate da memória coletiva e da história da comunidade negra não interessam apenas aos alunos de ascendência negra. Interessam também aos alunos de outras ascendências étnicas, principalmente branca, pois ao receber uma educação envenenada pelos preconceitos, eles também tiveram suas estruturas psíquicas afetadas. Além disso, essa memória não pertence somente aos negros. Ela pertence a todos, tendo em vista que a cultura da qual nos alimentamos quotidianamente é fruto de todos os segmentos étnicos que, apesar das condições desiguais nas quais se desenvolveram, contribuíram cada um de seu modo na formação da riqueza econômica e social e da identidade nacional. (2001, p.9)

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Em linhas gerais, percebemos que a escola é um lócus de manifestações de preconceito e discriminação e que o combate ao racismo e a construção de práticas sócio-educativas que reconheçam e valorizem as manifestações das diferenças culturais é um desafio constante. Entretanto, na escola, a construção de práticas que ajudem a romper noções que tendem à essencialização das identidades, entendendo-as como construções sempre provisórias e inacabadas é também um desafio constante.

É nesse contexto de reconhecimento identitário étnico-racial e valorização da cultura de matriz africana nos diferentes âmbitos educativos que se situa nossa pesquisa fazendo um recorte que visa a arte literária infanto-juvenil, um espaço plural, local privilegiado de produção simbólica de sentidos. Entendemos a literatura não como um espaço de representação neutra, mas de enredos e lógicas que permitem a construção e reconstrução do real.

3.2 Representação dos afro-brasileiros na literatura infanto-juvenil

Neste espaço vamos assumir nossa posição quanto à problematização da concepção de literatura infanto-juvenil, que contrapõe livros com caráter pedagogizante,(Soares, 1999), isto é, que visam ensinar algo, dos que são um convite à literatura. Além disso, apresentamos um panorama histórico que visibiliza a representação dos afro-brasileiros na arte literária infanto-juvenil.

Cabe aqui trazer uma discussão importante no campo da literatura: o processo de escolarização da literatura infantil. A escola é um campo em que se dão negociações de identidades, em que se constrói conhecimentos, porém, muitas vezes prioriza o "pedagogismo" em detrimento da autonomia, do lúdico e da criação. Magda Soares ao dissertar sobre a relação entre escolarização e literatura diz que a arte literária perde sua dimensão estética no momento em que é limitada aos objetivos instrucionais, adquirindo um valor negativo. A literatura é vista como uma ferramenta para a didatização, assim como a escolarização inadequada do texto literário empobrece a formação do leitor.

Partindo desse pressuposto, é necessário buscar estratégias para se trabalhar o tema literário na escola sem que haja distorção, mas sim que as práticas de leitura dialoguem com o contexto social do leitor, sobretudo que a literatura não tenha um caráter servil. A literatura pode levar a criança a olhar o mundo por diferentes perspectivas, possibilitando que entre em contato com as diversas formas de pensar, de escrever e, principalmente, de existir. A literatura permite viajar sem sair do lugar, levar o leitor a um lugar que, concretamente, lhe é totalmente desconhecido podendo, ao menos temporariamente, se desfazer do seu olhar cultural e contextual para olhar sob outra ótica.

De acordo com Soares (1999), é inevitável que a escolarização da literatura aconteça, entretanto, há uma distinção entre uma escolarização adequada e uma escolarização inadequada da literatura:

Adequada seria aquela escolarização que conduzisse eficazmente às práticas de leitura literária que ocorre no contexto social e às atitudes e valores próprios do ideal de leitor que se quer formar; inadequada é aquela escolarização que deturpa, falsifica, distorce a literatura, afastando, e não aproximando o aluno das práticas de leitura literária, desenvolvendo nele resistência ou aversão ao livro e ao ler ( p.47).

A partir dessas provocações acerca do caráter limitado em que se configura a literatura

no âmbito escolar seguimos com reflexões de cunho político, problematizando a área de literatura em seu contexto histórico, social, econômico e cultural. O discurso pedagógico deve dialogar com tais aspectos e não silenciar as relações de poder que permeiam os processos de construção do conhecimento. Comitti (1999) enfatiza a necessidade de “inverter a proposição

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tradicionalmente aceita como verdadeira nos meios relacionados à Educação: não é a descoberta da leitura que conduz o indivíduo ao exercício da cidadania; mas é a descoberta da cidadania que conduz o indivíduo ao exercício ativo da leitura” ( p. 152).

Desta forma, nos posicionamos a favor de uma literatura que seja um espaço plural, aglutinadora de várias leituras e análises, local privilegiado de produção e reprodução simbólica de sentidos e, desse modo, fonte que pode colaborar para a enunciação ou para o apagamento, para a valorização ou subalternidade das identidades.

Com o propósito de demonstrar a construção das representações sobre os afro-brasileiros presentes nas produções literárias destinadas aos jovens e crianças, recorremos ao trabalho de Gouvêa (2005) “Imagens do negro na literatura infantil brasileira: análise historiográfica”, no qual estudou os livros que tiveram mais de uma edição ao longo das três primeiras décadas do século XX. A autora analisou 17 obras.

Segundo a autora, nas duas primeiras décadas do século XX havia a preocupação com a nacionalização da produção cultural vinculada ao ideal civilizatório, glorificando as grandezas do nosso povo e terra identificado-as com a cultura europeia. Nesse período os personagens negros estavam ausentes nas narrativas literárias, o que nos remete à marginalização da população negra na pós-abolição. Porém, a partir da década de 1920, a produção cultural destinada ao público infantil busca falar do país olhando para a sua identidade cultural buscando trabalhar a temática do povo brasileiro, sua linguagem própria e suas raízes raciais e culturais.

A incorporação da temática racial a partir da década de 1920 na literatura infantil fazia interlocução com os discursos produzidos no campo científico e artístico. Num primeiro momento, a presença do negro estava marcada ao passado escravocrata, à sua não civilização. Na medida em que cresciam as discussões acerca da brasilidade e a afirmação do negro na formação racial do país, sua representação na literatura é alterada, entretanto,

Os negros aparecem como personagens estereotipados, descritos a partir de referências culturais marcadamente etnocêntricas que, se buscam construir uma imagem de integração, o fazem a partir do embranquecimento de tais personagens. Na verdade, mais que embranquecer os personagens, a literatura infantil do período dirige-se e produz um leitor modelo identificado com os personagens e as referências culturais brancas, marcando, portanto, um embranquecimento do leitor. (2005, p.79)

Na análise das imagens construídas sobre o negro a autora enumerou três tipos de representações: 1. A negra e o negro velho como contadores de histórias; 2. Pretos e pretas velhos; 3. Corpo animalizado.

Quando a imagem do negro é transferida para o lugar de contador de história é demarcada sua posição de inferioridade sócio-cultural, num caráter de servidão à criança branca. Os negros, por contarem histórias da tradição oral, não desempenham o papel de mediadores da cultura escrita e do padrão normativo, vindo a ocupar uma posição subalterna à de seus ouvintes, brancos consumidores exigentes da cultura escrita. Segundo Gouvêa,

É principalmente a partir da década de 1930 que torna-se maciça a presença, na produção literária destinada à criança, de personagens negros, sobretudo como contadores de histórias, demonstrando a forte presença de traços associados à cultura negra, como a oralidade, a transmissão de histórias de origem africana. Tais histórias eram representadas como carregadas de valor afetivo, contadas por pretas velhas, associadas à ingenuidade, ao primitivismo, apresentando uma estereotipia e simplificação características. É na perspectiva de resgate folclorizado das raízes nacionais que os contadores de história negros eram

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recuperados nas narrativas, como depositários de uma tradição situada no passado, a ser registrada e resgatada através da literatura infantil. (Ibiidem, p. 84)

Das narrativas analisadas, os personagens negros eram descritos como negra velha, a

preta velha, preto velho, ou crianças que partilhavam na posição de servis, o cotidiano das crianças brancas. A autora salienta que é recorrente a diferenciação entre a negra da roça (situado no passado) e a negra da cidade (situado no presente). Outra dicotomia era a figura dócil da negra velha que estava à margem da sociedade civilizada daquela da negra de rua, escandalosa e insolente. Outra característica trazida pela autora foi a presença da associação entre personagens negros e a feitiçaria, remanescente das figuras dos pretos e pretas velhas.

O tema da raça e da animalidade também está presente nos textos. Era o marcador racial que situava os personagens negros nas narrativas, por exemplo, muitos personagens não tinham nome, eram chamados de negrinho, neguinho, preto. O corpo dos personagens negros era coisificado e descrito a partir de elementos estereotipados: cabelo pixaim, beiçudo, nariz de venta. Os textos reproduziam a representação dos negros no campo científico em meados do século XIX, isto é, abaixo dos brancos que ocupavam um lugar privilegiado e superior, dentro de uma cadeia evolutiva.

Temas e questões latentes na nossa sociedade que marcam a trajetória dos afro-brasileiros, como a escravidão, racismo e construção de estereótipos, são salientados nas obras literárias destinadas ao público infantil e juvenil. De acordo com o panorama histórico (três primeiras décadas do século XX) da imagem do negro na literatura infantil, realizado por Gouvêa, é possível refletir como a literatura pode criar oportunidades para se discutir aspectos culturais e históricos sobre tal trajetória, compreendendo valores e crenças que orientam as percepções de mundo são passados através de arranjos simbólicos encontrados na arte enquanto produção cultural. Nesse primeiro momento os afro-brasileiros estavam na posição de subalternos e eram representados de modo depreciativo.

Quanto às representações sobre os afro-brasileiros presentes nas produções literárias destinadas aos jovens e crianças é interessante demarcar o período de reconstrução de um novo cenário e de novas narrativas dedicados aos mesmos. Ione da Silva Jovino (2006), em “Literatura Infanto-juvenil com personagens negros no Brasil”, analisou a produção literária de literatura infantil demarcando o momento de reconstrução das representações dos personagens negros na literatura infantil e juvenil ao longo das décadas de 70, 80 e 90 do século passado.

Para a autora é a partir de 1975 que o tema do negro1 na literatura é abordado de uma maneira diferenciada do período anterior em que os negros estavam numa posição de subalternidade aparecendo com mais freqüência e trabalhado como denúncia ao preconceito e discriminação racial. Entretanto os livros,

terminam por apresentar personagens negros de um modo que repete algumas imagens e representações com as quais pretendiam romper. Essas histórias terminavam por criar uma hierarquia de exposição dos personagens e das culturas negras, fixando-os em um lugar desprestigiado do ponto de vista racial, social e estético. Nessa hierarquia, os melhores postos, as melhores condições, a beleza mais ressaltada são sempre da personagem feminina mestiça e de pele clara. (p.188).

Na década de 80 inicia-se uma linha de rompimento com a imagem estereotipada e de ressignificação. É possível encontrar obras mostrando personagens negros na sua resistência ao enfrentar os preconceitos, resgatando sua identidade racial, desempenhando papéis e

1 Tanto Gouvêa quanto Jovino usam os vocábulos negros, negras.

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funções sociais diferentes, valorizando as mitologias e as religiões de matriz africana, rompendo, assim, com o modelo de desqualificação presente nas narrativas dos períodos anteriores. Neste período destacam-se autores como Joel Rufino dos Santos e Geni Guimarães. Em 90, ocorre um crescimento de obras que visam resgatar e valorizar a tradição africana e afro-brasileiras. Heloísa Pires Lima neste contexto escreve livros que abordam essa temática, como por exemplo, Histórias da Preta (1998).

Segundo Jovino, na literatura infanto-juvenil contemporânea, muitas obras têm buscado uma representação não estereotipada do negro e da cultura negra com o intuito de contribuir com os seguintes temas: uma outra visão de África, uma ilustração de personagens negros que não difunda estereótipos negativos e não corrobore para o racismo, uma valorização dos traços e símbolos da cultura afro-brasileira, tais como as religiões de matrizes africanas, a capoeira, a dança e os mecanismos de resistência diante das discriminações.

Dessa maneira, é possível fazer reflexões, apontamentos sobre a temática, partindo do pressuposto de que não há uma receita a ser seguida, muito menos um caminho único, mas sim a construção de novos caminhos. A literatura enquanto arte literária possibilita romper com os padrões normativos e configura novas perspectivas, tanto de ordem temática quanto de ordem discursiva, abrindo espaço para vozes questionadoras dos próprios sujeitos afro-brasileiros. Assim, tais sujeitos passam a ser protagonistas de sua própria história.

Neste horizonte é necessário pensarmos na posição de subalternidade que os sujeitos afro-brasileiros ocupam na sociedade e na luta por uma reconstrução da própria imagem e do seu papel social. Vimos que a educação é um elemento importante nessa luta por reconhecimento e valorização no campo das relações raciais no Brasil. Partimos, no presente trabalho de uma concepção de educação nomeada como intercultural a ser trabalhada no tópico seguinte. 3.3. Educação intercultural

A construção de uma educação intercultural tem ocupado o grupo de pesquisa no qual estamos inseridas na condição de bolsistas, o GECEC (Grupo de estudos sobre Cotidiano, Educação e Cultura(s)), sob a coordenação da professora Vera Maria F. Candau, vinculada ao Departamento de Educação da PUC-Rio.

A educação intercultural está intrinsecamente ligada a um projeto ético e político orientado à emancipação individual e coletiva. Para nós do GECEC, a educação intercultural foi uma opção assumida dentro do plural universo do multiculturalismo e Candau (2006) a explicita nos seguintes termos:

Assumimos a opção pela educação intercultural, que concebemos como um enfoque que afeta a educação em todas as suas dimensões, promovendo a interação e comunicação recíprocas, entre os diferentes sujeitos e grupos culturais. Orienta processos que têm por base o reconhecimento do direito à diferença e a luta contra todas as formas de discriminação e a desigualdade social. Tenta promover relações dialógicas e igualitárias entre as pessoas e grupos que pertencem a universos culturais diferentes, trabalhando os conflitos inerentes a essa realidade. Não ignora as relações de poder presente nas relações sociais e interpessoais. Reconhece e assume os conflitos, procurando as estratégias mais adequadas para enfrentá-los. Situa-se em confronto com todas as visões diferencialistas que favorecem processos radicais de afirmação de identidades culturais específicas. Rompe com uma visão essencialista das culturas e das identidades culturais. Parte da afirmação de que, nas sociedades em que vivemos, os processos de hibridização cultural são intensos e mobilizadores da construção de identidades abertas, em construção permanente. É consciente dos mecanismos de poder que permeiam as relações culturais (p.9).

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No contexto desse trabalho, nos interessa mais de perto por um lado, os processos de construção/resgate de identidades culturais, dentre elas as étnico-raciais e, por outro, os processos que favoreçam o empoderamento, tendo como ponto de partida liberar a possibilidade, o poder, a potência que cada pessoa a fim de que possa ser sujeito de sua vida e ator social. Para Candau (2011),

O “empoderamento” tem também uma dimensão coletiva, apoia grupos sociais minoritários, discriminados, marginalizados etc., favorecendo sua organização e participação ativa em movimentos da sociedade civil. As ações afirmativas são estratégias que se situam nesta perspectiva. Visam melhores condições de vida para os grupos marginalizados, a superação do racismo, da discriminação de gênero, da discriminação cultural e religiosa, assim como das desigualdades sociais ( p.4).

Examinar as obras literárias infanto-juvenis recentes, que tenham como protagonistas

afro-brasileiros ou se referenciem em contos de matriz africana poderá nos dar pistas para entender se e como essas produções trabalham as diferentes identidades étnico-raciais, que aspectos trabalham, se contribuem para o empoderamento de seus leitores, mas também gostaríamos de saber se essas obras focam apenas no reconhecimento de grupos específicos e não aprofundam na relação destes com outros grupos sociais, o que parece acompanhar uma tendência do momento atual da sociedade brasileira em que variados grupos lutam por seu reconhecimento, reforçam identidades coletivas próprias e exigem que as diferenças estejam presentes no espaço escolar e nas políticas públicas que permitam o acesso e a permanência destes na educação formal, mas ainda pouco sensíveis à promoção de experiências concretas ou práticas pedagógicas que aprofundem o diálogo intercultural.

4. Análise dos livros selecionados

Foram analisados dez livros de acordo com os critérios estabelecidos e apresentados na metodologia de trabalho para esta pesquisa. Os livros apresentam personagens afro-brasileiros e/ou africanos como protagonistas, com exceção do livro Sua majestade, o elefante. Dos dez livros, quatro apresentam personagens afro-brasileiros em situações cotidianas contemporâneas, a saber: Os tesouros de Monifa (2009), Betina (2009), Bruna e a Galinha D’Angola (2009) e Os Ibejis e o Carnaval (2010). Os outros seis tratam de releituras de contos/lendas africanos: Lila e o segredo da chuva (2010), Os gêmeos do Tambor (2006), Os nove pentes D’ África (2009), Sikulume e os outros contos africanos (2010), Sua majestade, o elefante (2006) e Lendas da África Moderna (2010).

A análise dos livros está pautada nas questões norteadoras deste trabalho, lembrando: os livros ajudam as crianças a perceberem as diferenças culturais étnico-raciais existentes no nosso contexto? Favorecem que as crianças questionem suas próprias identidades étnico-raciais? Que aspectos étnico-raciais neles são explicitados? Contribuem para o empoderamento das crianças afro-brasileiras, de espaços ou práticas oriundas de uma matriz africana? Estimulam o diálogo intercultural entre as crianças?

No decorrer das leituras notamos que a temática racial é tratada do ponto de vista de uma produção artística e não de um caráter discursivo e moralizante, como, por exemplo, se exortassem seus leitores, com a frase “não devemos discriminar os negros, mas sim respeitá-los”. Os dez livros trabalhados se opõem às propostas interlocutórias pragmáticas e informativas, se deslocando assim de um viés moralizante. O tratamento como produção artística possibilita à literatura não somente uma ampliação do acervo da criança, mas também um olhar diferenciado quanto à temática das relações étnico-raciais.

As obras dialogam com a concepção da criança como sujeito inteligente, vivo, criativo, com direito a voz e protagonismo. Partem do princípio de que a leitura não é neutra. Dessa

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forma, consideramos que crianças, adolescentes e jovens afro-brasileiros ou não, poderão ter a oportunidade de estar em contato com narrativas e imagens que retratam, que representam a diferença étnico-racial.

Os dez livros cumprem as características pensadas por Jovino (2006), autora com quem já vimos dialogando. Buscam uma representação não estereotipada dos afro-brasileiros e de suas culturas com o intuito de contribuir com os seguintes temas: uma visão diferenciada sobre a África, uma ilustração de personagens afro-brasileiros que não difunda estereótipos negativos e não corrobore para o racismo, uma valorização dos traços e símbolos da cultura afro-brasileira, tais como as religiões de matrizes africanas, ancestralidade e africanidade. Dessa maneira, os afro-brasileiros protagonizariam suas próprias histórias e enquanto leitores têm a possibilidade de ver sua imagem refletida, fortalecendo suas construções identitárias.

Por outro lado, os dez livros também têm em comum a afirmação da identidade cultural, neste caso, a racial, o que exige o reconhecimento da diferença cultural.

É importante ressaltar que teoricamente entendemos que as diferenças são sempre construções sociais e as que têm nos mobilizado são aquelas que enfrentam e disputam as relações de poder que as hierarquizam. Nesse sentido, marcante é a distinção entre diferença e diversidade feita por Silva (2000). Para ele, o conceito de diferença: “refere-se às diferenças culturais entre os diversos grupos sociais, definidos em termos de divisões sociais tais como classe, raça, etnia, gênero, sexualidade e nacionalidade” (2000, p. 42). Ao conceituar diversidade, o autor informa que este termo está associado ao movimento do multiculturalismo, que considera que a “sociedade contemporânea é caracterizada por sua diversidade cultural” (idem, p.44). O autor diferencia os dois termos explicando que diversidade é usada quando se advoga “uma política de tolerância e respeito entre as diferentes culturas”, o que teria “pouca relevância teórica, sobretudo por seu evidente essencialismo cultural, trazendo implícita a ideia de que a diversidade está dada” (ibidem, p. 44). Prefere “o conceito de ‘diferença’, por enfatizar o processo social de produção da diferença e da identidade, em suas conexões, sobretudo, com relações de poder e autoridade” (ibidem, p. 44-45). É com esse entendimento de diferença que operamos.

As protagonistas afro-brasileiras dos livros Os tesouros de Monifa, Betina e Bruna e a Galinha D’Angola, todas elas meninas, estão representadas de maneira positiva se distanciando de estereótipos como o “feio”, o “sujo”, o “inferior”, o “coitado”. As protagonistas não estão em situações de desconforto, subalternidade ou sofrimento, mas em situações comuns e cotidianas. As três obras valorizam aspectos étnico-raciais significativos de uma cultura, como por exemplo, os elementos estéticos que remetem a uma africanidade, a uma estética afro-brasileira que interpreta as marcas fenotípicas, especialmente o cabelo, como belo.

O cabelo crespo, por exemplo, pode ser analisado como um elemento da identidade afro-brasileira e uma forte marca identitária. Muitas crianças afro-brasileiras, principalmente as meninas, passam por processos de manipulação do cabelo. É o “cabelo duro”, “cabelo ruim”, “cabelo Bombril” que precisa ser “adequado”, “bonito” perante aos padrões eurocêntricos. Encontramos na literatura analisada, a defesa de uma beleza de matriz africana que visa desconstruir a negatividade atribuída à textura do cabelo crespo como um caminho para reforçar a auto-estima e superar o caráter monocultural das experiências cotidianas, especialmente no que tange à beleza.

Nilma Gomes em Betina trata do cabelo e uso de tranças como uma técnica corporal que acompanha a história do negro desde a África. Porém, os sentidos de tal técnica foram alterados no tempo e no espaço. Nas sociedades ocidentais contemporâneas, algumas famílias afro-brasileiras, ao arrumarem o cabelo das crianças, sobretudo das mulheres, o fazem na tentativa de romper com os estereótipos de “descabelado” e “sujo”. Outras o fazem

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simplesmente como uma prática cultural de cuidar do corpo. Dessa maneira, essas situações ilustram a estreita relação entre o afro-brasileiro, o cabelo e a identidade étnico-racial que compreende um complexo sistema estético. Um trecho da conversa entre Betina e as amigas da escola exemplifica a tentativa do reconhecimento da identidade afro-brasileira através da valorização do cabelo como um elemento identitário e cultural “Que tranças lindas! Lá vai Betina, de tranças novas! Parecem bordados!” (2009, p.10). Além de afirmar o quanto eram bonitas e próprias da cultura afro-brasileira, também ressalta que as tranças têm uma simbologia que é passada de geração em geração:

É isso mesmo! Na história da minha família, a arte das tranças foi ensinada de mãe para filha, de tia para sobrinha, de avó para neta e assim por diante. Uma mulher foi ensinando para outra até chegar a mim. Mas isso não aconteceu só na minha família. É uma forma muito comum de ensinar e aprender presente na história de muitas famílias brasileiras, principalmente as negras. (Ibidem, p.22)

Sobre esse aspecto étnico-racial dos afro-brasileiros, Gomes (2008) em outro livro assevera que:

A histórias do negro e da negra brasileiros com o cabelo se dá no cerne da constante "lida" em redefinir e reconstruir uma representação estética repleta de riqueza e significado, entretanto, construída no contexto da dominação, da escravidão, da desigualdade social e racial. É nessa "batalha" que o negro constrói sua identidade com força e coragem, mas sempre diante da possibilidade tensa e contraditória de tomar o branco como único modelo de beleza e humanidade (p.226).

Em Os tesouros de Monifa (2009), a menina recebe o tesouro de sua tataravó Monifa no dia do seu aniversário e a partir das ilustrações percebemos os rituais através das modificações de seu cabelo e o embalo das histórias. Sônia Rosa, a autora e Rosinha a ilustradora apresentam com delicadeza a realização dos penteados que passaram de geração em geração, como traço cultural. Vejamos um trecho:

Não sei quanto tempo demorei ali sozinha, quer dizer, sozinha não, com aquelas lembranças... De repente, vi minha mãe e minha vó Abgail na minha frente, pentes nas mãos, preparadas para trançar o meu cabelo. Por causa do meu aniversário, elas iam enfeitando minhas tranças com elástico.” (p.27).

E complementa “enquanto elas caprichavam no meu cabelo, iam também cantarolando

umas cantigas muito antigas que pareciam ter saído da caixa da tataravó Monifa... (p.29).

Além do cabelo, encontramos referências a outros sinais corporais no intuito de valorizar o fenótipo do afro-brasileiro e africano. Em Lendas da África Moderna(2010) a pele negra é qualificada positivamente na história da menina Kikuiu titulada A visionária menina Kikuiu, onde é comparada ao broto de managu, um vegetal tradicional do Quênia. A narrativa também fala do sorriso e dos olhos fazendo alusão à sua beleza:

Ninguém sabe ao certo como se deu a aparição. Há aqueles que dizem que ela tomou a forma de gente a partir do perfume de managu. A beleza de sua pele negra é como broto de managu. O sorriso é como a alegria de encontrar a flor de managu, que se esparrama após a colheita do milho. E os olhos, bem... Vocês já viram os olhos de uma visionária? Parecem ter uma claridade de iluminar pensamentos sem precisar dizer uma só palavra. (p.32).

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A história O brinco de ouro, presente no mesmo livro, também faz referência à pele negra no sentido de valorizá-la. Vejamos:

Ah! Algumas populações que vivem em Gana descendem do antigo império Axânti, que existiu no território atualmente chamado de Gana; o povo Axânti. Como eu dizia, a princesa ganhou o brinco assim que nasceu. Como toda peça do tesouro real Axânti, havia sido confeccionado com o ouro mais puro retirado das minas que existem na região. Gana era conhecida como Costa do Ouro. Mas o presente era grande demais para a criança que só veio a usá-lo, pela primeira vez, quando já estava quase mocinha. Beleza do realce do brinco na sua pele negra, da cor do ébano, chamava atenção. (idem, p.64).

Aparecem nos livros além da ressignificação dos aspectos fenotípicos dos afro-

brasileiros ou africanos, novas considerações acerca do lugar social dos mesmos. Historicamente, a imagem de ambos foi relacionada fortemente na literatura, como já vimos anteriormente nesse texto, ao seu passado de (ex)escravizado e inferiorizado. A historiografia sobre escravidão, na atualidade, aborda estudos sobre as experiências sociais dos afro-brasileiros e africanos escravizados e aponta a existência de práticas diferenciadas na própria configuração da escravidão. Além disso, divergente ao caráter cristalizado do “ser escravo” existiram inúmeras formas de resistência como rebeliões e busca pela liberdade. Em Os tesouros de Monifa (2009), a autora apresenta Monifa como sendo uma africana escravizada inteligente que aprendeu a ler e escrever com seus senhores, e distante da imagem de um sujeito sem história, sem memória ou amórfico:

Tomara que todos vocês saibam ler e escrever. Mesmo eu, como todo o sacrifício, aprendi. Foram os meus senhores que me ensinaram a usar esta língua estranha. Quando cheguei aqui já sabia ler e escrever a língua da minha terra, mas precisei usar a deles. Escrever é uma maneira de se anunciar ao mundo e de se sentir mais gente. É também uma forma de não enlouquecer, de suportar...por isso, esses escritos para mim valem mais do que ouro...” (p. 21)

É possível ler as histórias sem associar os sujeitos escravizados ou livres àqueles açoitados, acorrentados, sem história, como ainda são representados em tantas outras narrativas e em alguns livros didáticos. Consideramos, que não basta apenas ter personagens ou protagonistas africanos ou afro-brasileiros nas narrativas, o que está em questão aqui é como esses personagens são representados, como subalternizados ou empoderados. O livro Os nove pentes d’África (2009), retrata a história de Seu Francisco e sua família. Ele é apresentado como um artista plástico muito sábio que vivia uma vida simples e contagiava a todos com sua alegria serena que fazia seu trabalho render mais e mais. Num determinado momento da história, Seu Francisco vem a falecer, deixando para seus netos, pentes de diferentes significados esculpidos por ele. Cada pente era um presente que simbolizava algo para quem ganhava. O livro toca a temática das relações étnico-raciais, do racismo e das relações de gênero. Trazemos um trecho que demonstra a firmeza e o empoderamento de Seu Francisco diante do ato discriminatório sofrido por sua neta na escola, em conversa com a diretora da instituição (é esta neta quem narra a história):

Engraçado, eu me lembrei agora dos meus sete anos, quando o vô foi chamado à escola porque dei uns tapas num garoto. O pirralho me chamou de macaca. Meu avô foi lá cobrar satisfações e mastigava doze zangões, daqueles de ferrão bem venenoso, mas ouvia a diretora como se não fosse com ele. Ela disse que aquilo não podia ser, ele deveria observar bem, pois, além de bater, era menina batendo em menino, não era atitude adequada a uma mocinha. Ela punha a mão nas

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minhas tranças soltas de mocinha e depois passava na saia, para limpá-las de mim ( p.43).

Seu Francisco responde: Gostaria de saber se a senhora convocou os pais do garoto para uma conversa franca, como fez comigo, e eu lhe agradeço. Não está certo bater, mas ofensas e humilhações também estão erradas, e aqui é uma escola, não é Dona Eliane? Precisa ensinar o certo indistintamente (idem, p. 43). Essa representação do afro-brasileiro que não ocupa mais o lugar do vitimizado, mas o lugar de alguém que exige respeito e luta por justiça racial pode servir de estímulo e exemplo nesse momento histórico em que os movimentos negros e seus aliados lutam por reconhecimento e respeito.

Por outro lado, os afro-brasileiros também são apresentados como ocupando locais sociais de prestígio. Em Lendas da África Moderna(2010), na história O brinco de ouro lemos:

O pai da menina, um diplomata brasileiro, estava prestes a viajar com a família. Sua nova missão exigia mudança para Acra, capital de Gana, Noroeste da África. Ele mal via a hora de vestir seu traje Kentê nas cerimônias pomposas. Mas Gabriela não concordava em viajar outra vez. Nem queria saber pra que lado do mundo ficava o novo país. A mãe também usara toda sua lógica de cientista, tentando explicitar a mudança. Ela estava entusiasmadíssima, pois trabalharia na Universidade de Kumasi, num projeto científico de pesquisa do DNA das plantas para fazer remédios ( p.61).

A afirmação de uma identidade afro-brasileira positiva também passa, nos livros que analisamos, pelos saberes, práticas e conhecimentos que nos remetem a um mundo material e simbólico proveniente da ligação com uma matriz africana, abordando temas como a ancestralidade, a memória e a africanidade.

Em Os Ibejis e o carnaval92010) a cultura afro-brasileira é valorizada com o intuito de fortalecer a “comunidade negra” (p.7) e suas práticas. No caso, faz referência ao carnaval, festa tradicional da cultura popular. Além de ser uma festividade, possui diferentes elementos simbólicos, como os religiosos. Vejamos um trecho da conversa da avó com seus netos Larissa e Neinho, os ibejis personagens do livro:

Vocês sabem que a dança do mestre-sala e porta-bandeira é a dança da reza? Calma, Larissa, já vi pela sua carinha que você ia perguntar por quê! Mas eu explico: a bandeira que a porta-bandeira carrega representa os antepassados do grupo, os ancestrais ilustres da comunidade. Quando ela dança e agita a bandeira, movimenta o ar, passando toda a energia dos fundadores da escola e para as pessoas que estão assistindo. Tudo para nesta hora! Só o mestre-sala e a porta-bandeira dançam na quadra. O mestre-sala apresenta a bandeira para todos, cumprimenta a porta-bandeira e oferece a bandeira para que seja beijada e apreciada pelos convidados e diretores da escola (Ibidem, p.18).

Savaget, autora do livro Sua Majestade, o elefante visitou a África e lá conheceu o autor Mia Couto, que lhe contou uma história sobre um elefante que a inspirou a escrever seu livro valorizando a tradição oral africana. Lendas da África moderna de Lima e Andrade (2010) tem ricas ilustrações que apresentam a temática lendária, também resgatando da cultura africana a tradição oral. Neste livro, são apresentadas as lendas: A língua do griô, A visionária menina Kikuiu. Madiba: a lenda viva! e O brinco de ouro. De acordo com as autoras,

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A lenda nasce do que se ouve por aí. Como não há continente nem época que não tenha sido berçário de uma delas, nunca cessam de aparecer. Então, todo dia é possível um episódio heróico, um ser fora do comum ir virando lenda sem a gente se dar conta, portanto, nem só do passado vivem relatos de encantamento. E também é assim na África moderna que, viva, continua produzindo suas histórias. Alguns feitos extraordinários que de lá chegam como notícias logo viram murmurinhos. Então nasce mais uma lenda da África, no Brasil.(p.7).

As obras literárias analisadas atuam numa perspectiva de rompimento com os padrões normativos no tratamento do continente africano, suas culturas e suas concepções de mundo, algumas diferentes das nossas, ocidentais. Notamos isso quando tratam do papel dos mais velhos, dos griôs como guardiões da memória histórica, da ancestralidade e religiosidade, da relação do humano com a natureza e com o sagrado. Ainda em Lendas da África Moderna encontramos na lenda A língua do griô, apresentada no primeiro capítulo, a força da palavra falada pelo griô, bem como o respeito e a reverência inculcados ao mesmo, como retratado no trecho a seguir:

Cada família, cada criança tinha seu griô. Eles narravam os feitos de todos os antepassados, recordando a força dos ancestrais; eram os guardiões da história de cada um e sabiam a hora certa de contar um detalhe ao revelarem um acontecimento. Conheciam provérbios que ajudavam na compreensão de valiosas verdades. Sabiam transmitir grandes ensinamentos mesmo que por meio de um pequeno conto. Tal qual o ferreiro que forja no fogo a espada extraordinária, os griôs eram hábeis na arte de moldar a palavra. Com tanta sabedoria souberam chegar ao século XXI (Ibidem, p.9).

Traço marcante é a tradição oral africana. Hernandez (2008) ensina que: É encontrada sobretudo nos meios rurais, mas também nos urbanos, no âmbito da vida social, isto é, no mundo mais eletivo da reciprocidade comunitária. Tem como seu principal grupo de expressão 'os guardiões da palavra falada', responsáveis por transmiti-la de geração em geração.Vale registrar que os que detêm o conhecimento da palavra falada transmitem com fidelidade, uma vez que a palavra tem um caráter sagrado derivado de sua origem divina e e das forças nela depositadas. Significa dizer que a fala tem uma ligação direta com a harmonia do homem consigo mesmo e com o mundo que o cerca (p. 28).

Podemos afirmar que os livros favorecem que as crianças e jovens questionem suas identidades étnico-raciais a partir do conhecimento de histórias e raízes africanas, ainda pouco presentes no contexto educacional e midiático. Para os afro-brasileiros, ver sua imagem refletida num livro sendo retratada de forma positiva e empoderada contribui para que esse sujeito se aceite, valorize e tenha orgulho de suas raízes históricas e culturais, das construções de sentidos que vieram com os africanos e que no Brasil foram ressignificadas num diálogo permanente com outras culturas. Os dez livros analisados fazem referência à África, mesmo aqueles que tratam de situações contemporâneas, trazem elementos das tradições africanas e afro-brasileiras, o que pode implicar em olhar para um passado que envolve dor, mas que também envolve resistência, tradição e beleza.

O questionamento das identidades raciais das crianças e jovens afro-brasileiros ou não, é favorecido num contexto de reconhecimento e respeito aos sujeitos e saberes advindos de uma matriz africana e afro-brasileira, o que implica na desconstrução da ordem “harmoniosa” ditada pelo ideal de branqueamento, da miscigenação e do mito da democracia racial que estabeleceram “silenciosamente” um padrão branco.

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O leitor criança ou adolescente afro-brasileiro pode olhar para os livros e reconhecer que existem elementos específicos da sua raça/etnia/cor e vivenciar um sentimento de prazer e grande satisfação. Não se trata de “alienação” de “jogar o lixo da História para debaixo do tapete”, mas um basta numa posição fixada na dor, na carência e na subalternidade visando desconstruir o lugar do africano e do afro-brasileiro de “vítima sofredora” para resgatar e construir empoderamento através da ação pensante e resistência.

Para nós, os livros analisados contribuem para o empoderamento dos afro-brasileiros historicamente inferiorizados, entretanto, não aprofundam na relação destes com outros grupos culturais, ficando focados basicamente no reconhecimento e valorização desse grupo específico. Os livros não apresentam um diálogo explícito com outros grupos culturais, sequer têm personagens brancos ou indígenas, são livros só de afro-brasileiros, o que nos permite ressaltar o quanto é presente a tendência atual na sociedade brasileira dos variados grupos que lutam por reconhecimento, reforçarem suas identidades coletivas próprias e exigirem que estas diferenças estejam presentes no espaço escolar e nas políticas públicas visando uma equidade de oportunidades, entretanto, ainda pouco sensíveis ao aprofundamento do diálogo intercultural. Sem dúvida, é grande o desafio: como construir uma identidade cultural empoderada, capaz de superar os estereótipos numa sociedade profundamente desigual, em diálogo com diferentes grupos culturais, muitas vezes em conflito e até em antagonismo? 5. Considerações Finais

O presente trabalho aborda o tema das relações entre literatura infanto-juvenil e processos identitários no que diz respeito às relações étnico-raciais, tendo presente a publicação da Lei n. 10.639/03 que institui a obrigatoriedade do ensino de História e Cultura Afro-Brasileira e Africana no currículo escolar da Educação Básica e a aprovação subsequente de Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação das Relações Étnico-raciais em Educação e para o Ensino de História e Cultura Afro-brasileira e Africana no currículo do Ensino Básico, em julho de 2004.

Para contribuir com o debate do reconhecimento identitário e valorização da cultura afro-brasileira nos diferentes âmbitos educativos, levando em consideração os avanços legais e no âmbito de estudos e pesquisas, optamos por desenvolver o tema da arte literária infantil articulada aos processos de identidade étnico-racial dos afro-brasileiros. A literatura infantil é um espaço plural, aglutinador de várias leituras e análises, local privilegiado de produção e reprodução simbólica de sentidos e, desse modo, fonte que pode colaborar para a enunciação ou para o apagamento, para a valorização ou subalternidade das identidades.

A pesquisa teve como objetivo analisar as obras de literatura infanto-juvenil contemporânea, editadas a partir de 2004, isto é, após a publicação da Lei 10.639, que tenham afro-brasileiros como protagonistas e/ou que fazem releituras dos contos africanos através de seu enredo específico, que fazem parte do acervo de uma escola pública de ensino fundamental. Além disso, optamos por analisar os livros que são pedidos com maior freqüência pelos professores e alunos dos grupos de 1° ao 5° ano do ensino fundamental.

As nossas questões de pesquisa foram: tais livros ajudam as crianças a perceberem as diferenças culturais étnico-raciais existentes no nosso contexto? Favorecerem que as crianças questionem suas próprias identidades étnico-raciais? Que aspectos étnico-raciais neles são explicitados? Contribuem para o empoderamento das crianças afro-brasileiras, de espaços ou práticas oriundas de uma matriz africana? Estimulam o diálogo intercultural entre as crianças?

Trata-se de uma pesquisa de base bibliográfica e de natureza qualitativa. Selecionamos 10 livros que atenderam aos critérios estabelecidos.

A discussão acerca da identidade afro-brasileira e seu processo de empoderamento, aqui entendido, como um processo que fortalece a autoconfiança dos grupos sociais

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marginalizados, visando capacitá-los para a articulação de seus interesses e para a participação na sociedade, além de lhes facilitar o acesso aos recursos sociais disponíveis e o controle sobre estes, vêm ocupando setores militantes, acadêmicos e literários, dentre outros, na perspectiva de enriquecer e apontar novos caminhos que estimulem práticas sociais e políticas públicas.

Há hoje uma nova configuração no campo da literatura infanto-juvenil que parte da afirmação de uma agenda política que pretende minorar injustiças raciais através de demandas voltadas ao reconhecimento cultural. Após a leitura dos livros selecionados podemos afirmar que os autores dos livros analisados certamente estão engajados nessa perspectiva e tematizam as relações raciais, visibilizam o racismo, empreendem a luta antiracista, criam e recontam uma nova história da África, dos africanos, dos afro-brasileiros.

É provável que todos seus leitores percebam as diferenças culturais do ponto de vista racial existentes no contexto onde vivem, posto que, os livros rompem com o silêncio e/ou uma depreciação das vivências, corpos, estéticas, religiosidades, saberes, conhecimentos e práticas que aqui chegaram com os africanos escravizados e que moldam, em muito, a identidade de todos os brasileiros. Por outro lado, na medida em que desgastam o eurocentrismo branco, desconstroem estereótipos e, consequentemente, as manifestações de preconceito, oportunizam o questionamento e a problematização das pertenças étnico raciais de todos.

Os livros analisados contribuem para o empoderamento das crianças e jovens afro-brasileiros de muitas e significativas maneiras, especialmente deslocando representações cristalizadas existentes na sociedade brasileira. No entanto, o diálogo intercultural é minimizado, não havendo uma preocupação em estimular as relações com as demais pertenças étnico-raciais. Do nosso ponto de vista, os autores correm o risco de construir identidades empoderadas, porém numa perspectiva de “congelamento” identitário.

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