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25 LITERATURA BRASILEIRA: PROSA Unidade II 3 O ROMANTISMO O Romantismo foi um movimento artístico, filosófico e cultural que teve início na Alemanha, com o movimento denominado Sturm und Drang (tempestade e impulso), na segunda metade do século XVIII até grande parte do século XIX. Mais do que um movimento, o Romantismo foi uma visão de mundo, um modo de vida que se espalhou por toda Europa e se tornou a expressão de um mundo que gira em torno do indivíduo. Consequência das contradições da Revolução Industrial e da burguesia ascendente, o Romantismo expressa os sentimentos dos descontentes com as novas estruturas: a nobreza decadente e a pequena burguesia que ainda não ascendeu. Por isso, faz uso de uma linguagem que coloca em evidência o subjetivo. Seu início está ligado à crise do pensamento clássico e se caracterizou, assim, por uma perspectiva de mundo contrária ao racionalismo, que se identificava com o tradicionalismo aristocrático. Dessa forma, o movimento romântico buscava critérios estéticos que fossem relativos, valorizando o conhecimento intuitivo e a rebeldia individual. Com a crise da razão, o que serve de alicerce ao homem romântico é a valorização do sentimento, da passionalidade. O sujeito, ao pensar a natureza, a vê fora dele como objeto, consequentemente, se enxerga separado dela. Então, para que se una a ela novamente, ele precisa senti-la, pois o sentir é sintético e une as coisas, enquanto o pensar é analítico as separa. O homem romântico só encontra seu lugar no seu interior e seu íntimo, pois a subjetividade é atemporal e atópica, isto é, como seu interior não está sujeito às categorias de espaço e tempo, e não é organizado segundo as normas do mundo fora dele, ele está em plena liberdade. Se o desejo é colocar a liberdade em primeiro lugar, é preciso abster-se do mundo exterior, o que demonstra a apreensão desse pensar revolucionário e subjetivista. Os autores românticos, portanto, voltam-se para si mesmos, retratando amores trágicos e ideais utópicos, marcando o século XIX com a subjetividade, a emoção e a centralização na figura do “Eu”. É essa postura que vai dar as nuances do movimento romântico. Vejamos algumas características do Romantismo e como elas são moldadas a partir do olhar particular e da relativização dos conceitos, contrariando as verdades absolutas do pensamento racional:

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Unidade II3 O ROMANTISMO

O Romantismo foi um movimento artístico, filosófico e cultural que teve início na Alemanha, com o movimento denominado Sturm und Drang (tempestade e impulso), na segunda metade do século XVIII até grande parte do século XIX.

Mais do que um movimento, o Romantismo foi uma visão de mundo, um modo de vida que se espalhou por toda Europa e se tornou a expressão de um mundo que gira em torno do indivíduo.

Consequência das contradições da Revolução Industrial e da burguesia ascendente, o Romantismo expressa os sentimentos dos descontentes com as novas estruturas: a nobreza decadente e a pequena burguesia que ainda não ascendeu. Por isso, faz uso de uma linguagem que coloca em evidência o subjetivo.

Seu início está ligado à crise do pensamento clássico e se caracterizou, assim, por uma perspectiva de mundo contrária ao racionalismo, que se identificava com o tradicionalismo aristocrático. Dessa forma, o movimento romântico buscava critérios estéticos que fossem relativos, valorizando o conhecimento intuitivo e a rebeldia individual.

Com a crise da razão, o que serve de alicerce ao homem romântico é a valorização do sentimento, da passionalidade. O sujeito, ao pensar a natureza, a vê fora dele como objeto, consequentemente, se enxerga separado dela. Então, para que se una a ela novamente, ele precisa senti-la, pois o sentir é sintético e une as coisas, enquanto o pensar é analítico as separa.

O homem romântico só encontra seu lugar no seu interior e seu íntimo, pois a subjetividade é atemporal e atópica, isto é, como seu interior não está sujeito às categorias de espaço e tempo, e não é organizado segundo as normas do mundo fora dele, ele está em plena liberdade.

Se o desejo é colocar a liberdade em primeiro lugar, é preciso abster-se do mundo exterior, o que demonstra a apreensão desse pensar revolucionário e subjetivista.

Os autores românticos, portanto, voltam-se para si mesmos, retratando amores trágicos e ideais utópicos, marcando o século XIX com a subjetividade, a emoção e a centralização na figura do “Eu”. É essa postura que vai dar as nuances do movimento romântico.

Vejamos algumas características do Romantismo e como elas são moldadas a partir do olhar particular e da relativização dos conceitos, contrariando as verdades absolutas do pensamento racional:

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• subjetividade: todas as temáticas são tratadas por meio de uma perspectiva pessoal e particular, negando a objetividade clássica;

• egocentrismo: decorre diretamente dessa visão que força a oposição entre o mundo interno do sujeito, confortável e livre e o mundo exterior, que se volta contra o sujeito por negar-lhe a liberdade;

• escapismo psicológico: como o sujeito nega o mundo exterior, ele não aceita a realidade e busca refúgio no sonho, no passado (mítico, heroico e medieval, por ser uma época obscura) ou na morte, como uma drástica ruptura;

• sentimentalismo: se os valores são particulares, relativos ao sujeito, então exaltam-se os sentimentos, os sentidos e os impulsos;

• idealização: as coisas não são vistas como realmente são, mas como o sujeito romântico acha que deveriam ser;

• pessimismo ou “mal do século”: Ao homem é impossível realizar-se, pois é impossível a concretização do sonho de negação do mundo exterior, desse modo, cai em profunda tristeza, angústia, solidão, inquietação, desespero e frustração, levando-o, muitas vezes, ao suicídio;

• fusão do grotesco e do sublime: o romantismo procura captar o homem em sua plenitude, como um todo, colocando em foco tanto sua beleza idealizada quanto o lado feio e obscuro de cada ser humano.

As características ligadas à subjetividade também estão ligadas à corrente romântica que possuía Lord Byron como mentor, conhecida como byronismo. Essa corrente valorizava um estilo de vida boêmia que retratasse cenas da vida noturna voltadas para o vício e os prazeres da bebida, do fumo e do sexo. Essa forma de ver o mundo é certamente decorrente de uma perspectiva egocêntrica e narcisista que acaba resvalando no pessimismo e, por vezes, no satanismo. Como consequência dessa perspectiva, os textos literários mostram preferência pela noite ao dia, pois a luz revela a realidade e nas trevas estão as forças inconscientes da alma: o sonho e a imaginação:

• Liberdade de criação: se opõe diretamente a escrita convencional do movimento anterior, o Arcadismo;

• culto ao fantástico: o mistério, o sobrenatural, tudo que busca representar o sonho, a imaginação, ou seja, a liberdade de expressão e de pensamento, dando vazão ao mundo interior;

• naturalismo e nativismo: a fascinação pela natureza e pelo exótico advindo das formas mais livres de vida encontradas em estado de natureza, bem como a negação da vida em sociedade, posto que é a vida em sociedade que corrompe o homem.

A partir da valorização do sonho e da utopia surgem os utopistas, com os quais pensa-se que a felicidade da sociedade reside no campo, pois se afasta dos fatos sociais e da busca frenética pelo acúmulo de propriedades, o que explicaria a valorização do naturalismo e do nativismo:

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• religiosidade: a valorização da vida espiritual e do divino como válvulas de escape para as frustrações do mundo real representa um ponto de apoio para o homem perturbado do Romantismo;

• naturalismo ou patriotismo: a exaltação da pátria decorre das preocupações com a sociedade e de seus ideais de reforma política e econômica, ainda influenciados pelos ecos da Revolução Francesa1.

Como é possível perceber, por meio das características elencadas anteriormente, ao contrário da natureza árcade que era decorativa, a natureza romântica é expressiva e se vale de valores contraditórios com os quais reage aos valores utilitaristas da burguesia. Sua produção escrita também encerra as mesmas contradições e ambiguidades.

3.1 O Romantismo no Brasil

Em nossa terra, o Romantismo tem início por volta de 1830, ainda sob a euforia da Independência, em 1822, que agrega um clima de conscientização nacionalista ao cenário nacional, embora esse “nacionalismo” corroborasse a manutenção do regime monárquico no Brasil, regime este avesso aos ideais republicanos e abolicionistas.

Desde a Independência, o país vivia as dissidências entre os federalistas, que lutavam por um governo mais democrático e por maior autonomia das províncias, e os centralistas, que faziam parte da aristocracia e eram imperialistas. Essas dissidências geraram rebeliões contrárias à monarquia e à escravidão, tais como a Cabanagem (1833 – 1839), a Balaiada (1838 – 1841), a Sabinada (1837 – 1838), a Revolução Farroupilha (1835 – 1845) e a República Juliana (1839).

No âmbito literário, essas contradições políticas estão representadas pelos escritores regionalistas, que se alinhavam ideologicamente aos federalistas, e pelos escritores que idealizavam uma cultura nacional que se definia de acordo com os padrões românticos importados, encontrando, portanto, ecos no Modernismo como veremos posteriormente.

Grande parte dos nossos escritores saiu de famílias abastadas do campo e da alta classe média e absorveu os padrões românticos europeus por meio de aspirações de fundar em um passado mítico baseado na recente nobreza do país, o que revelava, portanto, as ambiguidades e contrapontos entre a moral do homem antigo e a grosseria dos novos ricos ou, então, entre a coragem do sertanejo e as vilezas do homem citadino.

A Literatura do Brasil faz parte das literaturas do Ocidente da Europa. No tempo da nossa Independência, proclamada em 1822, formou-se uma teoria

1 No Brasil, como veremos mais adiante, esse pensamento foi insuflado pelos ideais de independência, que tiveram seus primeiros ventos no século anterior, com as Conjurações Mineira e Baiana. Esse período equivale ao período do Arcadismo, do qual não trataremos nessa apostila por ser essencialmente poético, mas ele terá a devida relevância na apostila Literatura Brasileira: Poesia.

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nacionalista que parecia incomodada por este dado evidente e procurou minimizá-lo, acentuando o que haveria de original, de diferente, a ponto de rejeitar o parentesco, como se quisesse descobrir um estado ideal de começo absoluto. Trata-se de atitude compreensível como afirmação política, exprimindo a ânsia por vezes patética de identidade por parte de uma nação recente, que desconfiava do próprio ser e aspirava ao reconhecimento dos outros. Com o passar do tempo foi ficando cada vez mais visível que a nossa é uma literatura modificada pelas condições do Novo Mundo, mas fazendo parte orgânica do conjunto das literaturas ocidentais (CÂNDIDO, 1999).

3.2 O projeto de literatura nacional

A literatura se fez linguagem de celebração e terno apego, favorecida pelo Romantismo, com apoio na hipérbole e na transformação do exotismo em estado de alma. O nosso céu era mais azul, as nossas flores mais viçosas, a nossa paisagem mais inspiradora que a de outros lugares (CÂNDIDO, 1989).

A temática romântica ganha nuances próprias em virtude do clima de nacionalismo, como vimos no texto de Antônio Cândido.

Contribuíram para isso obras de pintores brasileiros que buscavam valorizar o país, retratando a exuberância da natureza, reinventando o bom selvagem ao aproximar o índio do herói medieval e se apropriando de fatos históricos importantes, contribuindo para a formação de uma identidade nacional, já mencionada anteriormente. Podemos elencar dentre as obras desse período: Rio Panahyba, de Rugendas, e Independência ou morte, de Pedro Américo, que podemos ver a seguir.

Figura 3 – Rio Panahyba

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Figura 4 – Independência ou morte

O quadro a seguir mostra um esquema temático das produções românticas no Brasil e suas características e influências.

Quadro 6

Produções românticas Características

Primeiros românticosInício do movimento que ainda revela preocupação com a estética clássica. Chamado de “romantismo oficial”, tinha apoio do imperador e buscava consolidar o nacionalismo.

Romantismo nacional e popular Volta-se para as raízes nacionais e adotam o romance como maior forma de sua expressão.

Ultrarromantismo Conhecido como individualista e subjetivo, tem influência do “mal do século”, do pessimismo e da boemia.

Condoreirismo

Caracteriza-se pela preocupação com as questões políticas e sociais. Influenciados por Vitor Hugo, os autores produziram uma literatura engajada nos ideais republicanos e abolicionistas.

Nossos estudos se concentram na produção em prosa da literatura romântica no Brasil, por isso, ficaremos restritos ao Romantismo Nacional e ao Ultrarromantismo, posto que os primeiros românticos e o romantismo condoreiro são os segmentos nos quais predominou a poesia.

3.2.1 A prosa romântica

A produção romântica em prosa, no Brasil, tem sua estreia com a publicação em folhetim da obra A Moreninha, de Joaquim Manuel de Macedo.

O folhetim é uma narrativa publicada em diversos capítulos e foi largamente consumido pelo público, ávido por tramas simples e ações heroicas. Dessa forma, o gênero romance ganhou público leitor no Brasil.

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O crítico literário Antônio Soares Amora, em A Literatura Brasileira (v. 2), foi quem primeiro organizou por temas os romances românticos brasileiros. O quadro a seguir apresenta sua classificação.

Quadro 7

Romances Características

Romance histórico Caracteriza o período de formação da nação brasileira, remetendo-se ao passado colonial.

Romance urbano Sua temática está centrada nas tensões amorosas das classes alta e média do Rio de Janeiro.

Romance indianistaTem como protagonista o índio que, alçado a herói, recupera a temática do bom selvagem de Rousseau, dignificando a ancestralidade do brasileiro.

Romance regionalistaAmbientados em regiões rurais distantes da capital do Império, o Rio de Janeiro. Ganha nuance nacionalista à medida que se preocupa com questões sociais.

3.2.2 Autores

Joaquim Manuel de Macedo (1820 - 1882)

Joaquim Manuel de Macedo nasceu no Rio de Janeiro, em 24 de junho de 1820, e se formou em medicina pela Faculdade do Rio de Janeiro. Produziu trabalhos literários de trama de enredo adocicado, envolvendo amores prejudicados por intrigas e final feliz com os quais seduziu os leitores da época. Essa fórmula fez de Macedo o escritor mais lido do período. Joaquim Manuel de Macedo morreu no Rio de Janeiro, em 11 de abril de 1882, e escreveu, entre outros livros, A moreninha (1844), O moço loiro (1845), A luneta mágica e várias peças de teatro.

Vejamos um trecho de A Moreninha, romance que inaugura a literatura romântica em prosa:

D. Carolina passou uma noite cheia de pena e de cuidados, porém, já menos ciumenta e despeitada; a boa avó livrou-a destes tormentos. Na hora do chá, fazendo com habilidade e destreza cair a conversação sobre o estudante amado, dizendo:

— Aquele interessante moço, Carolina, parece pagar-nos bem a amizade que lhe temos, não entendes assim?...

— Minha avó... eu não sei.

— Dize sempre, pensarás acaso de maneira adversa?...

A menina hesitou um instante e depois respondeu:

— Se ele pagasse bem, teria vindo no domingo.

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— Eis a injustiça, Carolina. Desde sábado à noite que Augusto está na cama, prostrado por uma enfermidade cruel.

— Doente?! exclamou a linda Moreninha, extremamente comovida. Doente?... Em perigo?

— Graças a Deus, há dois dias ficou livre dele; hoje já pôde chegar à janela, assim me mandou dizer Felipe.

— Oh! pobre moço!... se não fosse isso, teria vindo ver-nos!...

E, pois, todos os antigos sentimentos de ciúme e temor da inconstância do amante se trocaram por ansiosas inquietações a respeito de sua moléstia.

No dia seguinte, ao amanhecer, a amorosa menina despertou, e buscando o toucador, há uma semana esquecido, dividiu seus cabelos nas duas costumadas belas tranças, que tanto gostava de fazer ondear pelas espáduas, vestiu o estimado vestido branco e correu para o rochedo.

— Eu me alinhei, pensava ela, porque enfim... hoje é domingo e talvez... como ontem já pôde chegar à janela, talvez consiga com algum esforço vir ver-me.

E quando o sol começou a refletir seus raios sobre o liso espelho do mar, ela principiou também a cantar sua balada:

“Eu tenho quinze anos

E sou morena linda”.

Mas, como por encantamento, no instante mesmo que ela dizia no seu canto:

“Lá vem sua piroga

Cortando leve os mares”

Um lindo batelão apareceu de longe, voando com asa intumescida para a ilha.

Com força e comoção desusadas bateu o coração de d. Carolina, que calou-se para só empregar no batel quem vinha atentas vistas, cheias de amor e de esperanças. Ah! era o batel suspirado.

Quando o ligeiro barquinho se aproximou suficiente, a bela Moreninha distinguiu dentro dele Augusto; sentado junto a um respeitável ancião, a quem não pode conhecer (...).

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Augusto, com efeito, saltava neste momento para fora do batel, e depois deu a mão a seu pai para ajudá-lo a desembarcar; dona Carolina, que ainda não mostrava dar fé deles, prosseguiu seu canto até que quando dizia:

“Quando há de ele correr

Somente para me ver...”

Sentiu que Augusto corria para ela. Prazer imenso inundava a alma da menina, para que possa ser descrito; como todos prevêem, a balada foi nesta estrofe interrompida e d. Carolina, aceitando o braço do estudante, desceu do rochedo e foi cumprimentar o pai dele.

Ambos os amantes compreenderam o que queria dizer a palidez de seus semblantes e os vestígios de um padecer de oito dias, guardaram silêncio e não tiveram uma palavra para pronunciar; tiveram só olhares para trocar e suspiros a verter. E para que mais? (MACEDO, 1998).

No livro, o personagem Augusto aposta com amigos que não ficaria apaixonado por mais de 15 dias por mulher alguma. Sua pena se perdesse a aposta seria a de escrever um romance para esses amigos. O romance A Moreninha é, portanto, o fruto dessa aposta e um exercício de metalinguagem do autor.

Augusto é estudante e colega de Felipe, cuja irmã é Carolina. Quando criança, Augusto jurara amar eternamente uma menina da qual já não lembra mais nem mesmo o nome. Jovem, fica inconstante em seus amores até que conhece Carolina, por quem se apaixona.

No final da história, Augusto e Carolina ficam noivos e ela faz com que ele se case com ela, pois lhe revela que é sua amada de infância.

O livro é um exemplo clássico do Romantismo, pois gira em torno de uma heroína perfeita e de um herói que luta para ter o amor daquela, e contra os obstáculos para a realização do que prometera.

No livro, são representados os costumes do Rio de Janeiro por volta de 1840 e a classe dos estudantes, da qual Macedo fazia parte na época em que escreveu o livro.

A obra de Macedo apresenta todo o esquema e desenvolvimento dos romances românticos iniciais: descrição dos costumes da sociedade carioca e de festas e tradições, costuradas com um estilo fluente e leve, de linguagem simples, trama fácil e com a vitória do amor.

José de Alencar (1829 - 1877)

Político, jornalista, advogado e escritor, José Martiniano de Alencar nasceu em Mecejana, no Ceará, no ano de 1829. No texto em prosa, é o principal representante da corrente literária indianista. Estudou direito em Olinda e em São Paulo e, formado, passou a advogar no Rio de Janeiro. No jornal Gazeta

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Mercantil, publicou várias crônicas e dois romancetes: Cinco minutos e A viuvinha, em 1856 e 1857, respectivamente. Em 1857, com a publicação de O guarani, lançado em folhetim, Alencar alcança enorme sucesso.

Seus romances se dividem em quatro tipos:

• romances urbanos: Cinco minutos (1860), A viuvinha (1860), Lucíola (1862), Diva (1864), A pata da gazela (1870), Sonhos d’ouro (1872), Senhora (1875) e Encarnação (1877);

• romances históricos: O Guarani (1870), As minas de prata (1865) e A guerra dos mascates (1873).

• romances indianistas: O Guarani (1870), Iracema (1875) e Ubirajara (1874);

• romances regionalistas: O gaúcho (1870), O tronco do ipê (1871), Til (1872) e O sertanejo (1876).

Seus romances indianistas enaltecem a figura do índio, comparando-o a heróis belos e virtuosos e aproximando-o do herói medieval, como podemos ver no personagem de O Guarani, Peri, que tipifica o bom selvagem mostrando-se respeitador de sua realidade social, na qual o senhor é o homem branco a quem ele deve obediência, respeito e lealdade. Podemos observar isso no trecho a seguir, que exalta a coragem e a lealdade do índio:

Era uma onça enorme; de garras apoiadas sobre um grosso ramo de árvore, e pés suspensos no galho superior, encolhia o corpo, preparando o salto gigantesco.

Batia os flancos com a larga cauda, e movia a cabeça monstruosa, como procurando uma aberta entre a folhagem para arremessar o pulo; uma espécie de riso sardônico e feroz contraia-lhe as negras mandíbulas, e mostrava a linha de dentes amarelos; as ventas dilatadas aspiravam fortemente e pareciam deleitar-se já com o odor do sangue da vítima.

O índio, sorrindo e indolentemente encostado ao tronco seco, não perdia um só desses movimentos, e esperava o inimigo com a calma e serenidade do homem que contempla uma cena agradável: apenas a fixidade do olhar revelava um pensamento de defesa.

Assim, durante um curto instante, a fera e o selvagem mediram-se mutuamente, com os olhos nos olhos um do outro; depois o tigre agachou-se, e ia formar o salto, quando a cavalgata apareceu na entrada da clareira. Então o animal, lançando ao redor um olhar injetado de sangue, eriçou o pêlo, e ficou imóvel no mesmo lugar, hesitando se devia arriscar o ataque.

O índio, que ao movimento da onça acurvara ligeiramente os joelhos e apertava o forcado, endireitou-se de novo; sem deixar a sua posição, nem tirar os olhos do animal, viu a banda que parara à sua direita.

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Estendeu o braço e fez com a mão um gesto de rei, que rei das florestas ele era, intimando aos cavaleiros que continuassem a sua marcha.

Como, porém, o italiano, com o arcabuz em face, procurasse fazer a pontaria entre as folhas, o índio bateu com o pé no chão em sinal de impaciência, e exclamou apontando para o tigre, e levando a mão ao peito:

— É meu!... meu só!

[...] Os sopros tépidos da brisa que vinham impregnados dos perfumes das madressilvas, e das açucenas agrestes, ainda excitavam mais esse enlevo e bafejavam talvez nessa alma inocente algum pensamento indefinido, algum desses mitos de um coração de moça aos dezoito anos.

Ela sonhava que uma das nuvens brancas que passavam pelo céu anilado, rogando a ponta dos rochedos se abria de repente; e um homem vinha cair a seus pés tímidos e suplicantes.

Sonhava que corava; e um rubor vivo acendia o rosado de suas faces; mas a pouco e pouco esse casto enleio ia se desvanecendo, e acabava num gracioso sorriso que sua alma vinha pousar nos lábios.

Com o seio palpitante, toda trêmula e ao mesmo tempo contente e feliz, abria os olhos; mas voltava-os com desgosto, porque, em vez do lindo cavalheiro que ela sonhara, via a seus pés um selvagem [...] (ALENCAR, 1999b).

Esse romance figura também entre os romances históricos, pois mistura os elementos do romance, como o índio idealizado, a elementos da história, como as bandeiras e personagens que realmente existiram, como D. Antônio de Mariz, pai de Cecília no romance.

Em Iracema, Alencar defende a união entre o nativo e o colonizador que dá origem à nação brasileira. Iracema é uma obra que denota as grandes características de Alencar: paisagista e pintor de perfis feminino. Vejamos um trecho do romance que mostra o primeiro encontro entre os protagonistas:

Além, muito além daquela serra, que ainda azula no horizonte, nasceu Iracema.

Iracema, a virgem dos lábios de mel, que tinha os cabelos mais negros que a asa da graúna, e mais longos que seu talhe de palmeira.

O favo da jati não era doce como seu sorriso; nem a baunilha recendia no bosque como seu hálito perfumado.

Mais rápida que a corça selvagem, a morena virgem corria o sertão e as matas do Ipu, onde campeava sua guerreira tribo, da grande nação tabajara. O pé grácil e nu, mal roçando, alisava apenas a verde pelúcia que vestia a terra com as primeiras águas.

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Um dia, ao pino do Sol, ela repousava em um claro da floresta. Banhava-lhe o corpo a sombra da oiticica, mais fresca do que o orvalho da noite. Os ramos da acácia silvestre esparziam flores sobre os úmidos cabelos. Escondidos na folhagem os pássaros ameigavam o canto.

Iracema saiu do banho: o aljôfar d’água ainda a roreja, como à doce mangaba que corou em manhã de chuva. Enquanto repousa, empluma das penas do gará as flechas de seu arco, e concerta com o sabiá da mata, pousado no galho próximo, o canto agreste.

A graciosa ará, sua companheira e amiga, brinca junto dela.

Às vezes sobe aos ramos da árvore e de lá chama a virgem pelo nome; outras remexe o uru de palha matizada, onde traz a selvagem seus perfumes, os alvos fios do crautá, as agulhas da juçara com que tece a renda, e as tintas de que matiza o algodão.

Rumor suspeito quebra a doce harmonia da sesta. Ergue a virgem os olhos, que o sol não deslumbra; sua vista perturba-se.

Diante dela e todo a contemplá-la está um guerreiro estranho, se é guerreiro e não algum mau espírito da floresta. Tem nas faces o branco das areias que bordam o mar; nos olhos o azul triste das águas profundas. Ignotas armas e tecidos ignotos cobrem-lhe o corpo.

Foi rápido, como o olhar, o gesto de Iracema. A flecha embebida no arco partiu. Gotas de sangue borbulham na face do desconhecido.

De primeiro ímpeto, a mão lesta caiu sobre a cruz da espada; mas logo sorriu. O moço guerreiro aprendeu na religião de sua mãe, onde a mulher é símbolo de ternura e amor. Sofreu mais d’alma que da ferida.

O sentimento que ele pôs nos olhos e no rosto, não o sei eu. Porém a virgem lançou de si o arco e a uiraçaba, e correu para o guerreiro, sentida da mágoa que causara.

A mão que rápida ferira, estancou mais rápida e compassiva o sangue que gotejava. Depois Iracema quebrou a flecha homicida: deu a haste ao desconhecido, guardando consigo a ponta farpada.

O guerreiro falou:

— Quebras comigo a flecha da paz?

— Quem te ensinou guerreiro branco, a linguagem de meus irmãos? Donde vieste a estas matas, que nunca viram outro guerreiro como tu?

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— Venho de bem longe, filha das florestas. Venho das terras que teus irmãos já possuíram, e hoje têm os meus.

— Bem-vindo seja o estrangeiro aos campos dos tabajaras, senhores das aldeias, e à cabana de Araquém, pai de Iracema (ALENCAR, 1999a).

O trabalho com as metáforas, a delicadeza ao falar da natureza e a mesclagem da língua portuguesa e do tupi-guarani, que cria um hibridismo linguístico, aproximam o romance da linguagem poética, o que fez com que Iracema fosse conhecido como um poema em prosa.

Em 1929, na Academia Brasileira de Letras, sugeriu-se que o nome do romance, Iracema, fosse um anagrama de América, mas nunca se pôde comprovar que essa tenha sido uma intenção do autor.

Outro romance de Alencar que merece destaque é o romance urbano Senhora, publicado em 1875, um dos últimos romances do autor e cuja personagem feminina possui intenso magnetismo.

Senhora é um romance conduzido de um ponto de vista feminino no qual a mulher, que comumente se aproxima ao estado de objeto, exige a condição de sujeito da história. A senhora de Alencar chama-se Aurélia Camargo e alia a sedução à inteligência.

A maior força desse enredo de amor e engano está nos personagens. Os protagonistas mostram ao leitor valores que não dependem da condição sexual ou econômica de cada um, mas da retomada de uma identidade perdida, que culmina no casamento por interesse.

Vejamos um pequeno trecho da obra em que a força da personagem Aurélia fica evidente ao opor-se a Lemos, seu tutor:

Opôs-se formalmente Aurélia; e declarou que era sua intenção viver em casa própria, na companhia e D. Firmina Mascarenhas.

— Mas atenda, minha menina, que ainda é menor.

— Tenho dezoito anos.

— Só aos vinte e um é que poderá viver sobre si e governar-se.

— É a sua opinião? Vou pedir ao juiz que ele há de atender-me.

A vista desse tom positivo, o Lemos refletiu, e julgou mais prudente não contrariar a vontade da menina. Aquela idéia do pedido ao juiz para remoção da tutela não lhe agrada. Pensava ele que às mulheres ricas e bonitas não faltam protetores de influência (ALENCAR, 1999c).

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José de Alencar consolidou o gênero romance no Brasil e tinha a ambição de traçar, pelo viés do romance, um panorama da história e da cultura nacionais para estabelecer uma linguagem brasileira. Assim, sua obra contribui para a criação de uma identidade nacional. O escritor morreu aos 48 anos no Rio de Janeiro e deixou seis filhos.

Manuel Antônio de Almeida (1831-1861)

Manuel Antônio de Almeida nasceu no Rio de Janeiro em 17 de novembro de 1831. Órfão de pai aos dez anos, pouco se sabe sobre seus estudos elementares e preparatórios. Ele foi aprovado em 1848 nas matérias necessárias ao ingresso na faculdade de medicina, tendo também estudado belas artes. Anonimamente, publicou os folhetins que compõem o romance Memórias de um sargento de milícias, reunidos em livro em 1854 (primeiro volume) e em 1855 (segundo volume) sob o pseudônimo de “Um brasileiro”. O nome Manuel Antônio de Almeida apareceu apenas na terceira edição, póstuma, em 1863.

O escritor faleceu em um naufrágio no Rio de Janeiro, em 28 de novembro de 1861.

Memórias de um sargento de milícias diferencia-se dos demais romances de costumes do Romantismo brasileiro por representar a visão do povo desvinculada da visão da rica burguesia. O livro retrata as classes mais baixas da sociedade brasileira de forma espontânea, com malícia, crítica e humor, satirizando o clero e a falsa moral.

Vejamos rapidamente um trecho da obra que evidencia suas características:

Moravam ordinariamente um pouco arredados das ruas populares, e viviam em plena liberdade. As mulheres trajavam com certo luxo relativo aos seus haveres: usavam muito de rendas e fitas; davam preferência a tudo quanto era encarnado, e nenhuma delas dispensava pelo menos um cordão de ouro ao pescoço; os homens não tinham outra distinção mais do que alguns traços fisionômicos particulares que os faziam conhecidos (ALMEIDA, 1997).

Contrariando os hábitos da época, o romance apresenta um anti-herói que, nesse aspecto, seguindo o modelo romântico, vence o inimigo e casa com a mocinha, mas não por seus próprios valores de honra e coragem, mas pela astúcia e malandragem.

Antônio Cândido, que aborda aspectos importantes na obra de Manuel Antônio de Almeida no texto Dialética da malandragem, mostra que o romance é “profundamente social”, posto que se constrói em consonância com uma sociedade que existiu, e sugere que o romance se aproxima, verdadeiramente, da dinâmica social do Brasil na primeira metade do século XIX, período em que é ambientado. Isso se confirma a partir de comparações com documentos históricos que mencionam a sociedade brasileira durante a presença da Corte em nossas terras, como vemos nos documentos descritos no livro 1808, de Laurentino Gomes, que também nos remetem ao romance.

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Visconde de Taunay (1843 - 1899)

Alfredo d’Escragnolle-Taunay nasceu no Rio de Janeiro, no seio de uma família aristocrática. Seu avô paterno, o pintor Nicolau Antônio, viera da França para fundar a Academia de Belas Artes do Rio de Janeiro. Seu pai, o também pintor Félix Taunay, tornara-se preceptor de D. Pedro II. Alfredo d’Escragnolle-Taunay cursou engenharia na Escola Militar e, como segundo-tenente, participou da expedição que tentou repelir os paraguaios que dominavam o sul da província de Mato Grosso. A derrota militar que se seguiu, ocasionada pela falta de víveres e pela cólera, seria retratada de forma pungente em A retirada de Laguna, relato escrito em francês, já que o futuro visconde era bilíngue.

Terminada a guerra do Paraguai, Taunay se tornou professor de geologia da Escola Militar. Em 1872, publicou Inocência, sua principal obra. Em 1886, alcançou o Senado, mas, por fidelidade ao Imperador, abandonou a política após a proclamação da República. Diabético, morreu na capital federal com 55 anos de idade.

Martins Pena (1815 - 1848)

Luis Carlos Martins Pena nasceu no dia 5 novembro de 1815, no Rio de Janeiro. Filho de João Martins Pena, e Francisca de Paula Julieta Pena ficou órfão de pai quando tinha apenas um ano de idade e, de mãe, aos dez. Foi criado por tutores que o incentivaram a aprender as artes do comércio e acabou por dedicar-se à carreira diplomática. Estimulado pelo ator João Caetano, começou a escrever teatro. Hoje, Martins Pena é considerado o fundador da comédia de costumes no teatro brasileiro. Suas peças teatrais giram em torno de casamentos, heranças, dívidas, festas da cidade e da roça, pequenas intrigas domésticas etc. Esses temas, por serem cotidianos, agradaram em demasia o público. Em suas peças cômicas, satiriza o clero e os abusos dos políticos.

Nos serviços públicos, Pena alcançou o cargo de adido em Londres, para onde viajou em 1847. Tuberculoso, deixou a fria Londres para retornar ao Brasil, porém, não completou a viagem: faleceu em 07 de dezembro de 1848, em Lisboa.

Álvares de Azevedo (1831 - 1852)

Manuel Antônio Álvares de Azevedo, o Byron brasileiro, nasceu em São Paulo. Aos 16 anos, ingressou na Faculdade de Direito do Largo São Francisco. O autor é responsável por uma obra poética que reflete a dualidade romântica entre a religiosidade e o satanismo e encabeça o movimento ultrarromântico no Brasil.

Interessa-nos sua prosa da fase ultrarromântica, representada pelos contos do livro Noite na taverna e a peça teatral Macário. Contista, seu único livro de contos fantásticos possui histórias que dialogam tendo como fio condutor seis amigos que se reúnem em uma taverna e começam a contar histórias de traição, desonra, incesto, infanticídio, sexo, mistério e morte, desequilibradamente.

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Essa obra revela características que têm pontos de contato com o Romantismo gótico, bastante cultivado na Alemanha e na Inglaterra nas obras Drácula, de Bram Stocker, Fausto, de Goethe, e Frankenstein, de Mary Shelley.

Toda a obra de Álvares de Azevedo foi publicada postumamente, posto que ele morreu de tuberculose aos 19 anos.

Leia um dos contos de Noite da taverna, cujo título é Solfieri, e perceba como a obra desse jovem escritor possui uma atmosfera noturna e funesta, muito diferente do que vimos até agora no Romantismo brasileiro.

Solfieri

...Yet one kiss on your pale clayAnd those lips once so warm – my heart! My heart.Byron, Cain.

Sabeis-lo. Roma é a cidade do fanatismo e da perdição: na alcova do sacerdote dorme a gosto a amásia; no leito da vendida se pendura o crucifixo lívido. É um requintar de gozo blasfemo que mescla o sacrilégio à convulsão do amor, o beijo lascivo à embriaguez da crença

Era em Roma. Uma noite, a lua ia bela como vai ela no verão por aquele céu morno. O fresco das águas se exalava como um suspiro do leito do Tibre. A noite ia bela. Eu passeava a sós pela ponte de ***. As luzes se apagaram uma por uma nos palácios, as ruas se faziam ermas e a lua de sonolenta, se escondia no leito das nuvens. Uma sombra de mulher apareceu numa janela solitária e escura. Era uma forma branca. – A face daquela mulher era como de uma estátua pálida à lua. Pelas faces dela, como gotas de uma taça caída, rolavam fios de lágrimas.

Eu me encostei à aresta de um palácio. A visão desapareceu no escuro da janela... e daí um canto se derramava. Não era só uma voz melodiosa: havia naquele cantar um como choro de frenesi, um como gemer de insânia: aquela voz era sombria como a do vento à noite nos cemitérios cantando a nênia das flores murchas da morte.

Depois, o canto calou-se. A mulher apareceu na porta. Parecia espreitar se havia alguém nas ruas. Não viu ninguém: saiu. Eu segui-a.

A noite ia cada vez mais alta: a lua sumira-se no céu e a chuva caía às gotas pesadas: apenas eu sentia nas faces caírem grossas lágrimas de água, como sobre um túmulo prantos do órfão.

Andamos longo tempo pelo labirinto das ruas: enfim, ela parou; estávamos num campo. Aqui, ali, além, eram cruzes que se erguiam entre o ervaçal. Ela ajoelhou-se. Parecia soluçar: em torno dela passavam as aves da noite.

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Não sei se adormeci: sei, apenas, que quando amanheceu achei-me a sós no cemitério. Contudo, a criatura pálida não fora uma ilusão: as urzes, as cicutas do campo-santo estavam quebradas junto a uma cruz.

O frio da noite, aquele sono dormido à chuva, causaram-me uma febre. No meu delírio passava e repassava aquela brancura de mulher, gemiam aqueles soluços e todo aquele devaneio se perdia num canto suavíssimo...

Um ano depois voltei a Roma. Nos beijos das mulheres, nada me saciava; no sono da saciedade me vinha aquela visão...

Uma noite e após uma orgia, eu deixara dormida no leito a bela condessa Barbora. Dei um último olhar àquela forma nua e adormecida com a febre nas faces e a lascívia nos lábios úmidos, gemendo ainda nos sonhos como na agonia voluptuosa do amor. Saí. Não sei se a noite era límpida ou negra; sei apenas que a cabeça me escaldava de embriaguez. As taças tinham ficado vazias na mesa: aos lábios daquela criatura eu bebera até a última gota do vinho do deleite...

Quando dei acordo de mim, estava num lugar escuro: as estrelas passavam seus raios brancos entre as vidraças de um templo. As luzes de quatro círios batiam num caixão entreaberto. Abri-o. Era o de uma moça. Aquele branco da mortalha, as grinaldas da morte na fronte dela, naquela tez lívida e embaçada, o vidrento dos olhos mal-apertados... Era uma defunta! E aqueles traços todos me lembraram uma idéia perdida... Era o anjo do cemitério! Cerrei as portas da igreja que, ignoro porque, eu achara abertas. Tomei o cadáver nos meus braços para fora do caixão. Pesava como chumbo...

Sabeis a história de Maria Stuart degolada e do algoz, “do cadáver sem cabeça e do homem sem coração”, como a conta Brantôme? – Foi uma idéia singular, a que eu tive. Tomei-a no colo. Preguei-lhe mil beijos nos lábios. Ela era bela assim. Rasguei-lhe o sudário, despi-lhe o véu e a capela, como o noivo os despe à noiva. Era mesmo uma estátua: tão branca era ela. A luz dos tocheiros dava-lhe aquela palidez de âmbar que lustra os mármores antigos. O gozo foi fervoroso – cevei-lhe em perdição aquela vigília. A madrugada passava já frouxa nas janelas. Àquele calor de meu peito, à febre de meus lábios, à convulsão de meu amor, a donzela pálida parecia reanimar-se. Súbito, abriu os olhos empanados. Luz sombria alumiou-os como a de uma estrela entre névoa, apertou-me em seus braços, um suspiro ondeou-lhe nos beiços azulados... Não era já a morte: era um desmaio. No aperto daquele abraço havia, contudo, alguma coisa de horrível. O leito de lajes, onde eu passara uma hora de embriaguez, me resfriava. Pude, a custo, soltar-me naquele aperto do peito dela... Nesse instante, ela acordou...

Nunca ouvistes falar de catalepsia? É um pesadelo horrível aquele que gira ao acordado que emparedam num sepulcro; sonho gelado em que se sentem os membros tolhidos e as faces banhadas de lágrimas alheias, sem poder revelar a vida!

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A moça revivia a pouco e pouco. Ao acordar, desmaiara. Embucei-me na capa e tomei-a nos braços coberta com seu sudário, como uma criança. Ao aproximar-me da porta, topei num corpo. Abaixei-me e olhei: era algum coveiro do cemitério da igreja, que aí dormira de ébrio, esquecido de fechar a porta...

Saí. Ao passar a praça encontrei uma patrulha.

— Que levas aí?

A noite era muito alta: talvez me cresse um ladrão.

— É minha mulher, que vai desmaiada...

— Uma mulher? Mas, essa roupa branca e longa? Serás, acaso, roubador de cadáveres?

Um guarda aproximou-se. Tocou-lhe a fronte: era fria.

— É uma defunta.

Cheguei meus lábios aos dela. Senti um bafejo morno. – Era a vida, ainda.

— Vede – disse eu.

O guarda chegou-lhe os lábios: os beiços ásperos roçaram pelos da moça. Se eu sentisse o estalar de um beijo... o punhal já estava nu em minhas mãos frias...

— Boa noite, moço. Podes seguir – disse ele.

Caminhei. – Estava cansado. Custava a carregar o meu fardo e eu sentia que a moça ia despertar. Temeroso de que ouvissem-na gritar e acudissem, corri com mais esforço...

Quando eu passei a porta, ela acordou. O primeiro som que lhe saiu da boca foi um grito de medo...

Mal eu fechara a porta, bateram nela. Eram um bando de libertinos, meus companheiros, que voltavam da orgia. Reclamaram que abrisse.

Fechei a moça no meu quarto e abri. Meia hora depois eu os deixava na sala, bebendo ainda. A turvação da embriaguez fez que não notassem a minha ausência. Quando entrei no quarto da moça, vi-a erguida. Ria de um rir convulso, como a insânia, e frio como a folha de uma espada. Trespassava de dor ouvi-la.

Dois dias e duas noites levou ela de febre, assim. Não houve sanar-lhe aquele delírio, nem o rir do frenesi. Morreu depois de duas noites e dois dias de delírio.

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À noite, saí. Fui ter com um estatuário que trabalhava perfeitamente em cera e paguei-lhe uma estátua dessa virgem.

Quando o escultor saiu, levantei os tijolos de mármore do meu quarto e, com as mãos, cavei aí um túmulo. Tomei-a, então, pela última vez nos braços, apertei-a a meu peito, muda e fria, beijei-a e cobri-a, adormecida no sono eterno, com o lençol de seu leito. Fechei-a no seu túmulo e estendi meu leito sobre ele,

Um ano, – noite a noite – dormi sobre as lajes que a cobriam... Um dia, o estatuário me trouxe a sua obra. Paguei-lha e paguei o segredo...

— Não te lembras, Bertram, de uma forma branca de mulher que entreviste pelo véu do meu cortinado? Não te lembras que eu te disse que era uma virgem que dormia?

— E quem era essa mulher, Solfieri?

— Quem era? Seu nome?

— Quem se importa com uma palavra quando sente que o vinho queima assaz os lábios? Quem pergunta o nome da prostituta com quem dormiu e sentiu morrer a seus beijos, quando nem há dele mister por escrever-lho na lousa?

Solfieri encheu uma taça e bebeu-a. Ia erguer-se da mesa, quando um dos convivas tomou-o pelo braço.

— Solfieri, não é um conto, isso tudo?

— Pelo inferno, que não! Por meu pai, que era conde e bandido! Por minha mãe que era a bela Messalina das ruas! Pela perdição que não! Desde que eu próprio calquei aquela mulher com meus pés na sua cova de terra, eu vo-lo juro! – guardei-lhe como amuleto a capela de defunta. Ei-la!

Abriu a camisa e viram-lhe ao pescoço uma grinalda de flores mirradas.

— Vedes-la? Murcha e seca, como o crânio dela (AZEVEDO, 1988).

4 REALISMO-NATURALISMO

O Realismo e o Naturalismo, juntamente com o Parnasianismo na poesia, são os movimentos literários mais expressivos que surgem na segunda metade do século XIX e perduram até o início do século XX. Aparecem como uma reação ao Romantismo e se desenvolvem a partir da observação da realidade por meio da razão e da ciência. Os movimentos literários surgem primeiramente na França e se estendem a numerosos países europeus.

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O auge da Revolução Industrial somado aos avanços da ciência e da tecnologia são os responsáveis pelos novos rumos da arte e do pensamento. O desenvolvimento científico dá espaço para uma visão que se volta para a valorização da intelectualidade, o que culmina no cientificismo. Como consequência, surge o materialismo em oposição à metafísica, tão valorizada no movimento anterior, o Romantismo.

Na passagem do Romantismo para o Realismo, há uma mudança da valorização do belo e do ideal para a valorização do real e do objetivo.

No Realismo, vê-se uma clara reação contra as excentricidades presentes na cultura romântica, advindas do egocentrismo, e contra suas falsas idealizações de paixão amorosa. Vê-se também grande respeito pela objetividade dos fatos, advindo dos estudos políticos e sociais como o positivismo, de Augusto Comte, e o determinismo geográfico e biológico, de Hypolyte Taine. Além disso, o respeito pela objetividade dos fatos advém ainda das pelas ciências exatas e experimentais como o evolucionismo, de Darwin, a dialética, de Hegel, e o progresso tecnológico.

Assim, em lugar do egocentrismo romântico e da liberdade individual e rebelde, verifica-se um enorme interesse pela ciência, pelo progresso e pela razão, por isso, o “Eu” perde lugar para a sociedade e existe uma preocupação por descrever, analisar e até mesmo criticar a realidade.

Os escritores realistas, motivados pelas teorias científicas e filosóficas, desejavam captar o homem e a sociedade em sua totalidade. Não há mais espaço para a face sonhadora e idealizada da vida, é preciso voltar-se para o cotidiano massacrante, o amor adúltero, o egoísmo humano e as diferenças de classes.

A visão subjetiva e parcial da realidade é, portanto, substituída por uma visão objetiva, fiel, sem distorções. Os realistas apontam as falhas e, no lugar dos heróis, surgem pessoas comuns, cheias de problemas e limitações.

Stendhal e Balzac foram os precursores do realismo literário, criando um detalhado retrato da sociedade francesa. Balzac olha os indivíduos como representantes de grupos sociais e esses indivíduos só possuem significado dentro das narrativas se expressarem as vivências e as ideias de seus grupos. Stendhal desenvolve o método analítico de observação psicológica e seus personagens são construídos através de pormenores mínimos.

A tentativa de apreender o real também está na pintura de Courbet, a seguir, que mostra um detalhe da vida mundana, como o trabalho, sem idealizações, o que pode ser observado, por exemplo, no cansaço da moça recostada nos sacos de grãos.

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Figura 5 – Les Criblueses de blé, 1954. Obra de Courbet

No artigo Le réalisme, de 1857, o jornalista francês Jules François Félix Husson Champfleury transferiu os conceitos da pintura de Courbet para a literatura e, no mesmo ano, publicou-se o romance Madame Bovary, de Flaubert, que retrata a burguesia a partir das emoções de uma mulher infeliz da classe média, Ema Bovary.

Ema Bovary reflete sobre a impossibilidade de suas fantasias sentimentais e sonha com uma vida diferente e excitante. Porém, as decepções com o marido e com a busca por um mundo de beleza que os textos românticos lhe haviam mostrado a levam ao adultério. É a impotência e a alienação românticas que culminam em uma crítica ao utilitarismo da burguesia. Por fim, Ema prefere o arsênico à asfixia do cotidiano.

Apesar de o romance ter sido largamente criticado e censurado, jovens escritores no mundo inteiro tomam o autor de Madame Bovary como modelo e se inspiram em sua obra para desenvolver os princípios realistas.

Com o desdobramento do Realismo, surge o Naturalismo, no qual se destaca um posicionamento mais determinista que ressalta os aspectos físicos e biológicos do homem, fazendo com que este seja visto mais como um animal ou tomado por uma patologia, ou seja, o homem passa a ser um caso a ser analisado.

O Naturalismo teve como principal expoente Émile Zola, autor francês que levou às últimas consequências a proposta de representação fiel do cotidiano comum das classes mais baixas.

Ambos os movimentos literários possuem muitos pontos de contato, tais como o cientificismo, materialismo, crítica, por isso, o período é chamado Realismo-Naturalismo. Embora tenham pontos de contato, também guardam suas diferenças, que serão expostas no próximo item, que trata das características.

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4.1 Características do Realismo-Naturalismo

As características do Realismo-Naturalismo são:

• objetividade: os realistas fogem à subjetividade dos românticos e têm preocupação com a verdade e com a exatidão dos fatos, por isso, se valem do método analítico e da observação. O apelo às impressões sensoriais por meio da descrição objetiva é um detalhe que corrobora com a verossimilhança e foi largamente explorado pelos naturalistas;

• impessoalidade: o escritor deve manter a neutralidade e tentar não confundir sua visão particular com a visão e os motivos dos personagens. Por isso, há um domínio das narrativas em terceira pessoa, pois esta favorece a impressão de que os personagens agem sem interferência nenhuma;

• verossimilhança: o escritor deve reproduzir fielmente o real, um dos princípios centrais do movimento que o leva a renunciar a tudo que pareça improvável ou fantástico. O leitor precisa crer na veracidade do texto, como se este fosse a própria realidade, e, para isso, a literatura deve refletir a vida, e para esta mimese, são necessárias a observação e a experiência;

• contemporaneidade: se os românticos tinham fascínio pelo passado, os realistas, pela necessidade da verossimilhança, escrevem sempre sobre fatos, situações e personagens relacionados com o presente e com a vida contemporânea.

As grandes cidades, com suas chances de realização pessoal, amorosa e intelectual e, ao mesmo tempo, com seus horrores, seduzem os artistas, fazendo-os descobrir as contradições da modernidade. Por isso, os textos desse período compreendem a crítica social e a análise psicológica, características que partem do cenário europeu e encontram seguidores no Brasil;

• pessimismo: descrentes da burguesia e da justiça, os artistas do período assumem posições de crítica e indignação e alguns enxergam no socialismo – em geral utópico – a saída. Outros, como os russos Tolstói e Dostoievski, voltam-se para um cristianismo primitivo como única alternativa para a humanidade. A maioria, contudo, expressa seu desprezo pelos valores burgueses, o que faz com que muitos caiam na amargura e no niilismo.

Entre os escritores, há uma espécie de cultivo do sofrimento como matéria-prima de suas narrativas. Observe esse posicionamento na abertura de Ana Karênina, de Leon Tolstói, romance publicado entre 1873 e 1877 e que corrobora com o pessimismo e o niilismo: “todas as famílias felizes são iguais. As infelizes o são cada uma à sua maneira” (TOLSTÓI, 2004);

• perfeição formal: A linguagem é vista como fruto do trabalho e não da inspiração, por isso, é uma decorrência de sínteses, de cortes do supérfluo, de despojamento do acessório.

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O escritor realista-naturalista luta com as palavras, tornando-se obcecado pela forma e pela adequação entre o pensamento e a ideia.

Vejamos agora um quadro que destaca as características que revelam as diferenças entre o Naturalismo e o Realismo.

Quadro 8

Realismo Naturalismo

Origem: França, com Honoré de Balzac. Origem: França, com Émile Zola.

Romance documental, vale-se de observação e análise.

Romance experimental, vale-se da experimentação científica.

Fotografia da realidade, imitação do real.

Elabora experiências que vão além das observações e tira conclusões.

Crítica impessoal. Denúncia engajada e preocupações políticas e sociais.

Temas selecionados e preocupação formal e estética.

Retrato de aspectos degradantes e sórdidos e o estilo fica em segundo plano.

Reprodução da realidade interior por meio da análise psicológica.

Valorização dos aspectos exteriores: ambiente, classe, família etc.

Volta-se para o indivíduo e, portanto, faz uso da psicologia.

Volta-se para o coletivo, o social e vale-se da biologia e da patologia.

Centra-se nas classes dominantes. Volta-se para as camadas inferiores da sociedade: proletariado, marginais etc.

Indireto, procura provocar no leitor as conclusões.

Direto, deixa clara suas conclusões, cabendo ao leitor apenas as acatar ou refutar.

4.2 O Realismo-Naturalismo no Brasil

No Brasil, o Realismo culmina com a crise do segundo reinado e a implantação dos governos militares dos marechais2, bem como com o surto de industrialização começado em 1870.

A filosofia positivista, advinda da Europa, somada ao pensamento republicano e abolicionista foram terrenos fecundos para uma cultura que se urbanizava, o que implicou em uma valorização da vida citadina, o que marca o cosmopolitismo do final do século XIX.

Essas transformações sociais influenciaram a produção literária e de outras áreas da comunicação. Nesse período, ocorreu o fortalecimento do jornalismo, com José do Patrocínio; da crítica literária, com José Veríssimo e Araripe Júnior; dos estudos históricos, com Joaquim Nabuco, Oliveira Lima e Capistrano de Abreu; das pesquisas culturais e da história da literatura, sobretudo com Sílvio Romero; dos ensaios, com Tobias Barreto e Euclides da Cunha, além do fortalecimento também das crônicas e dos contos.

O escritor deixa de ser marginalizado, principalmente pelo ar de intelectualidade das obras, e a fundação da Academia Brasileira de Letras, em 1897, corrobora com esse fato, oficializando a literatura no Brasil.

2 Os governos transitórios do Marechal Deodoro da Fonseca e Floriano Peixoto.

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O escritor mais importante do período é Machado de Assis, cuja publicação de Memórias Póstumas de Brás Cubas, em 1881, dá início ao Realismo em terras brasileiras.

Aluísio de Azevedo encabeça a corrente Naturalista, publicando, no mesmo ano, O Mulato.

Na tradicional história da literatura brasileira, considera-se 1893 como data final do Realismo, ano em que são publicados Missal e Broquéis, ambos de Cruz e Souza, marco, portanto, do início do Simbolismo na literatura brasileira. Entretanto, é importante estar atento para o fato de que essas obras registram o início do Simbolismo, mas não o término do Realismo, pois nenhum movimento acaba abruptamente, sempre existe um período de transição.

Confirma isso o fato de que D. Casmurro, uma das maiores obras de Machado de Assis, data de 1900, e Esaú e Jacó, do mesmo autor, data de 1904.

Veremos posteriormente que, no final do século XIX e nos primeiros 20 anos do século XX, três estéticas literárias convivem paralelamente, a saber: o Realismo e suas manifestações, o Simbolismo e o Pré-modernismo. Essa configuração perdura até o advento da Semana de Arte Moderna, em 1922.

4.2.1 A prosa realista

No Brasil, o romance realista surge com Machado de Assis e suas inúmeras obras, das quais trataremos em momento posterior. Já o romance naturalista passa a ser cultivado por Aluísio de Azevedo, cuja obra mais representativa é O Cortiço, e por Júlio Ribeiro, com A Carne.

Oposição ao idealismo e ao romantismo, isto é, à idealização e ao subjetivismo que abordam temas desligados da vida comum, a narrativa realista teve como principais características a localização precisa do ambiente, a descrição de costumes e acontecimentos contemporâneos em seus mínimos detalhes, a reprodução da linguagem de forma que se aproximasse mais do coloquial, do familiar e do regional e a busca da objetividade na descrição e análise das personagens.

No Romantismo, identifica-se claramente o gosto pelo personagem tipo (mocinha casadoira, pai tirano, o índio bom) e de construção linear, ao passo que no Realismo, tem-se comumente a construção de personagens esféricas que dificilmente podem ser simplificadas, dada a sua profundidade psicológica.

A literatura realista é também marcada pela ausência de herói. Por meio da mimese, os autores mostram-se mais preocupados em realizar um maior aprofundamento do personagem, aprimorando sua construção psicológica.

Outra característica dos textos Realistas e Naturalistas é o apelo aos órgãos dos sentidos e à exaltação dos sentidos, pois a experimentação faz parte da comprovação empírica, ressaltando a sensação como algo fundamental ao conhecimento do mundo. Assim, temos a descrição objetiva apoiando-se em impressões olfativas, auditivas ou táteis, como podemos ver nos textos a seguir, sendo que o primeiro é do romance Dom Casmurro e o segundo é do romance O Cortiço, de Aluísio de Azevedo:

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[...] Sentou-se. “Vamos ver o grande cabeleireiro”, disse-me rindo. Continuei a alisar os cabelos, com muito cuidado, e dividi-os em duas porções iguais, para compor as duas tranças. Não as fiz logo, nem assim depressa, como podem supor os cabeleireiros de ofício, mas devagar, devagarinho, saboreando pelo tato aqueles fios grossos, que eram parte dela. O trabalho era atrapalhado, às vezes por desazo, outras de propósito para desfazer o feito e refazê-lo. Os dedos roçavam na nuca da pequena ou nas espáduas vestidas de chita, e a sensação era um deleite. Mas, enfim, os cabelos iam acabando, por mais que eu os quisesse intermináveis [...] (ASSIS, 2009).

[...] das portas surgiam cabeças congestionadas de sono; ouviam-se amplos bocejos, fortes como o marulhar das ondas; pigarreava-se grosso por toda a parte; começavam as xícaras a tilintar; o cheiro quente do café aquecia, suplantando todos os outros; trocavam-se de janela para janela as primeiras palavras, os bons-dias; reatavam-se conversas interrompidas à noite; a pequenada cá fora traquinava3 já, e lá dentro das casas vinham choros abafados de crianças que ainda não andam. No confuso rumor que se formava, destacavam-se risos, sons de vozes que altercavam4, sem se saber onde, grasnar de marrecos, cantar de galos, cacarejar de galinhas [...] (AZEVEDO, 2009).

Não cabe no texto realista-naturalista o amor idealizado e o platonismo, por isso, a temática gira em torno do adultério e das relações sexualizadas, que são muitas vezes bestializadas, procedimento conhecido como zoomorfização (mais verificado nos textos naturalistas).

Os textos naturalistas, por ilustrarem que nada na natureza humana é indigno e sim matéria para estudo, também mostram certo amoralismo e indiferença, dos quais decorre a preferência por temas controversos como o sexo, o homossexualismo, os vícios e as taras.

Dessa forma, repleto de complexa descritividade e minuciosidade, os textos desse período são caracterizados por sua lentidão.

4.3 Autores

Dentre os autores mais importantes do movimento realista no Brasil, Machado de Assis cultiva no romance realista uma narrativa polida, com magnífico aprofundamento psicológico das personagens. O romance machadiano reflete e critica a sociedade capitalista analisando meticulosamente a ação do indivíduo burguês, por isso, grande parte dos romances e contos do autor recebe como título um nome próprio ou faz referência a alguém em específico, como Dom Casmurro, O Alienista e Memórias Póstumas de Brás Cubas.

A prosa realista machadiana toma como ponto de partida o homem improdutivo, assim, a maioria de seus personagens não produzem nada e vivem do capital.

3 Traquinava: do verbo traquinar; fazer travessuras.4 Altercavam: do verbo altercar; discutir e provocar polêmicas.

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O romance naturalista foi cultivado por Aluísio Azevedo e por Júlio Ribeiro.

Raul Pompéia é um caso particular, pois seu romance O Ateneu apresenta características naturalistas, realistas e impressionistas.

A narrativa naturalista é marcada pela análise social a partir de grupos humanos marginalizados, enfatizando assim o coletivo, o que também pode ser visto nos títulos dos romances: O mulato, O cortiço, Casa de pensão.

Machado de Assis (1839 – 1908)

Joaquim Maria Machado de Assis nasceu a 21 de junho de 1839 no Morro do Livramento, no Rio de Janeiro. Descendente de família humilde (filho de um pintor mulato e de uma lavadeira de origem portuguesa), Machado foi um autodidata. Em 1844, com a publicação do poema Ela, o autor estreou nas letras. No ano seguinte, começou a trabalhar como aprendiz de tipógrafo, passou a revisor e colaborou com artigos em vários jornais da época. Em 1869, casou-se com Carolina Xavier de Novais, portuguesa de boa cultura e irmã do poeta Faustino Xavier de Novais, amigo de Machado.

Machado é o mais bem-sucedido, o mais profundo e o mais universal de nossos escritores. À época, D. Pedro II era o imperador de nosso país e, por ser grande apreciador da arte literária e por conhecer o valor intelectual do escritor, Machado de Assis conseguiu uma privilegiada posição social e tornou-se um grande romancista pela originalidade e agudeza na concepção da vida, pela profunda análise dos sentimentos, pela extraordinária capacidade em caracterizar os personagens, pela sobriedade e pela concisão do estilo.

Machado de Assis foi um dos fundadores da Academia Brasileira de Letras, em 1897, e foi proclamado seu primeiro presidente, posição que ocupou até sua morte (1908).

Machado foi romancista, contista e poeta; além disso, nos deixou algumas peças de teatro e inúmeras críticas, crônicas e correspondência.

A prosa machadiana

Costuma-se dividir a prosa machadiana em duas fases distintas: uma com influências românticas, outra com influências realistas. A primeira apresenta o autor preso aos princípios da escola romântica, sendo chamada por isso de fase romântica ou de amadurecimento; a segunda fase apresenta o autor completamente definido dentro das ideias realistas, sendo, portanto, chamada de fase realista ou de maturidade.

A primeira fase da prosa machadiana evidencia certa crença nos valores da época, os textos ainda privilegiam a estrutura de folhetim e os personagens esboçam um esquematismo psicológico.

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Apesar de romanescos, os romances e contos dessa época já indicavam algumas características que mais tarde se consolidariam na obra de Machado: o amor contrariado, o casamento por interesse, a preocupação psicológica e a ironia.

Os principais romances do autor são Ressurreição (1872), A mão e a luva (1874), Helena (1876), Iaiá Garcia (1878), Memórias Póstumas de Brás Cubas (1881), Quincas Borba (1891), Dom Casmurro (1899), Esaú e Jacó (1904) e Memorial de Aires (1908), as principais obras de contos são Papéis avulsos, Histórias sem data, Várias histórias, Páginas recolhidas, Relíquias de casa velha e Contos fluminenses e Histórias da meia-noite e as obras poéticas são Crisálidas, Falenas, Ocidentais e Americanas.

É sabido que Machado de Assis foi um ótimo crítico literário de sua obra e da literatura de um modo geral. Nos trechos a seguir, verifique como ele tinha consciência de sua evolução como autor.

Texto escrito para a publicação de uma das edições do romance Ressureição (Advertência da nova edição, 1905).

Este foi o meu primeiro romance, escrito aí vão muitos anos. Dado em nova edição, não lhe altero a composição nem o estilo, apenas troco dois ou três vocábulos, e faço tais ou quais correções de ortografia. Como outros que vieram depois, e alguns contos e novelas de então, pertence à primeira fase da minha vida literária (ASSIS, 2006).

Abaixo, a Advertência para uma das reedições de Helena:

Esta nova edição de Helena sai com várias emendas de linguagem e outras, que não alteram a feição do livro. Ele é o mesmo da data em que o compus e imprimi diverso do que o tempo me foi depois, correspondendo assim ao capítulo da história do meu espírito, naquele ano de 1876.

Não me culpeis pelo que lhe achardes romanesco. Dos que então fiz, este me era particularmente prezado. Agora mesmo, que há tanto me fui a outras e diferentes páginas, ouço um eco remoto ao reler estas, eco de mocidade e fé ingênua. É claro que, em nenhum caso, lhes tiraria a feição passada; cada obra pertence ao seu tempo (ASSIS, 2010).

Observa-se, portanto, que o próprio autor tem a dimensão exata de sua obra, assumindo, ironicamente, uma posição paternal ao comentar e pedir desculpas pelas publicações da primeira fase, relembradas como fruto de uma época de fé ingênua.

A segunda fase da prosa machadiana é a que mais atrai nossa atenção, pois nela se encontram as verdadeiras obras-primas do romancista e contista. É nessa fase que encontramos o aprofundamento psicológico das personagens, os seres vistos em sua complexidade psíquica e características como o egoísmo, o pessimismo e o negativismo, mostrando a descrença nos indivíduos e na organização social, sobretudo através da ironia ou do chamado sense of humor, inspirado nos ingleses Sterne e Swift.

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Observa-se também o refinamento da linguagem da narrativa. O autor se vale de uma linguagem corretíssima e clássica, de frases curtas, da técnica dos capítulos curtos e do diálogo com o leitor, que são as principais características de seus textos realistas, ao lado da análise da sociedade e dos valores que a sociedade cria para justificar sua própria existência e da crítica aos valores românticos.

Vale ressaltar que a análise psicológica das personagens, a metalinguagem e o tema da miséria humana tratados com ironia e sutileza pelo autor aprofundam as personagens cíclicas e complexas que Machado cria com habilidade tanto nos romances como nos contos.

Também cabe aqui elencar a obra escrita para o teatro, embora sejam textos cujo valor maior está mais na leitura dos diálogos do que propriamente na encenação teatral. Grande parte dessa obra teatral é contemporânea à produção romântica do autor. São elas: Queda que as mulheres têm pelos tolos, Desencanto, Quase ministro, O Caminho da porta, Protocolo, Não consultes o médico, Os deuses de casaca, Tu, só tu, puro amor, esta última inspirada no episódio de Inês de Castro, extraído de Os Lusíadas, de Camões, foi encenada quando da comemoração do tricentenário do poeta.

Crônicas, contos e romances

Até hoje, nenhum autor brasileiro foi tão rico para a literatura escrita em prosa quanto Machado de Assis. Assim, vamos dedicar esse tópico da apostila aos três gêneros mais produzidos pelo autor: a crônica, o conto e o romance.

Saiba mais

Para conhecer as crônicas de Machado de Assis, sugerimos a seguinte leitura:

ASSIS, M. Melhores crônicas. São Paulo: Global, 2003.

Machado de Assis foi exímio cronista. Militante na imprensa, valeu-se da crônica sarcástica e indireta como instrumento de crítica social, partindo de episódios rotineiros. Talvez por isso, por ser indireto, muitos autores o julguem omisso em relação ao seu posicionamento diante da causa abolicionista, julgamento este que perde força diante de textos como o apresentado a seguir. Trata-se de uma crônica publicada no jornal Gazeta de Notícias, em 19 de maio de 1888, ou seja, seis dias depois de assinada a Lei Áurea5.

5 A Lei Áurea (Lei Imperial n.º 3.353), sancionada em 13 de maio de 1888, extinguiu a escravidão no Brasil. Foi precedida pela lei n.º 2.040, Lei do Ventre Livre, de 1871, que libertou todas as crianças nascidas de pais escravos, e pela lei n.º 3.270, Lei Saraiva-Cotejipe, de 1885, que regulava “a extinção gradual do elemento servil”. A Lei Áurea foi assinada pela princesa imperial do Brasil, Dona Isabel.

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Bons dias!

Eu pertenço a uma família de profetas après coup, post factum, depois do gato morto, ou como melhor nome tenha em holandês. Por isso digo, e juro se necessário fôr, que tôda a história desta lei de 13 de maio estava por mim prevista, tanto que na segunda-feira, antes mesmo dos debates, tratei de alforriar um molecote que tinha pessoa de seus dezoito anos, mais ou menos. Alforriá-lo era nada; entendi que, perdido por mil, perdido por mil e quinhentos, e dei um jantar.

Neste jantar, a que meus amigos deram o nome de banquete, em falta de outro melhor, reuni umas cinco pessoas, conquanto as notícias dissessem trinta e três (anos de Cristo), no intuito de lhe dar um aspecto simbólico.

No golpe do meio (coup du milieu, mas eu prefiro falar a minha língua), levantei-me eu com a taça de champanha e declarei que acompanhando as idéias pregadas por Cristo, há dezoito séculos, restituía a liberdade ao meu escravo Pancrácio; que entendia que a nação inteira devia acompanhar as mesmas idéias e imitar o meu exemplo; finalmente, que a liberdade era um dom de Deus, que os homens não podiam roubar sem pecado.

Pancrácio, que estava à espreita, entrou na sala, como um furacão, e veio abraçar-me os pés. Um dos meus amigos (creio que é ainda meu sobrinho) pegou de outra taça, e pediu à ilustre assembléia que correspondesse ao ato que acabava de publicar, brindando ao primeiro dos cariocas. Ouvi cabisbaixo; fiz outro discurso agradecendo, e entreguei a carta ao molecote. Todos os lenços comovidos apanharam as lágrimas de admiração. Caí na cadeira e não vi mais nada. De noite, recebi muitos cartões. Creio que estão pintando o meu retrato, e suponho que a óleo.

No dia seguinte, chamei o Pancrácio e disse-lhe com rara franqueza:

— Tu és livre, podes ir para onde quiseres. Aqui tens casa amiga, já conhecida e tens mais um ordenado, um ordenado que...

— Oh! meu senhô! fico.

— ... Um ordenado pequeno, mas que há de crescer. Tudo cresce neste mundo; tu cresceste imensamente. Quando nasceste, eras um pirralho dêste tamanho; hoje estás mais alto que eu. Deixa ver; olha, és mais alto quatro dedos...

— Artura não qué dizê nada, não, senhô...

— Pequeno ordenado, repito, uns seis mil-réis; mas é de grão em grão que a galinha enche o seu papo. Tu vales muito mais que uma galinha.

— Justamente. Pois seis mil-réis. No fim de um ano, se andares bem, conta com oito. Oito ou sete.

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Pancrácio aceitou tudo; aceitou até um peteleco que lhe dei no dia seguinte, por me não escovar bem as botas; efeitos da liberdade. Mas eu expliquei-lhe que o peteleco, sendo um impulso natural, não podia anular o direito civil adquirido por um título que lhe dei. Êle continuava livre, eu de mau humor; eram dois estados naturais, quase divinos.

Tudo compreendeu o meu bom Pancrácio; daí pra cá, tenho-lhe despedido alguns pontapés, um ou outro puxão de orelhas, e chamo-lhe bêsta quando lhe não chamo filho do diabo; cousas tôdas que êle recebe humildemente, e (Deus me perdoe!) creio que até alegre.

O meu plano está feito; quero ser deputado, e, na circular que mandarei aos meus eleitores, direi que, antes, muito antes da abolição legal, já eu, em casa, na modéstia da família, libertava um escravo, ato que comoveu a tôda a gente que dêle teve notícia; que êsse escravo tendo aprendido a ler, escrever e contar, (simples suposições) é então professor de filosofia no Rio das Cobras; que os homens puros, grandes e verdadeiramente políticos, não são os que obedecem à lei, mas os que se antecipam a ela, dizendo ao escravo: és livre, antes que o digam os poderes públicos, sempre retardatários, trôpegos e incapazes de restaurar a justiça na terra, para satisfação do céu.

Boas noites (ASSIS, 1973, p. 489-491).

O posicionamento irônico do autor está em expor um personagem que se vale do regime escravista e tenta reverter o jogo para si ao alforriar apenas um escravo. Ao fazer bastante alarde sobre isso, ele acabaria passando por um homem bom e visionário.

Machado tenta deixar evidente o real posicionamento da elite da época, mas aborda a temática com sarcasmo, divertindo seu leitor, o que torna o texto, de teor altamente crítico, mais leve e debochado.

As crônicas machadianas em sua maioria não possuem título e sim a data da publicação, que serve de referência para que sejam encontradas e para que o leitor veja como esse grande autor da literatura brasileira dialogou com o mundo e a época em que viveu.

Existe uma grande divergência entre os críticos de Machado em relação a classificá-lo como melhor contista do que romancista ou vice-versa. O fato é que o conto, nas mãos de Machado de Assis, ganhou densidade e profundidade jamais vistas na nossa literatura.

Sob o gênero do conto, Machado falou de tudo: do amor, das paixões passageiras, da alma humana, da vaidade e da traição. É nos contos que Machado exercita com maestria a dicotomia entre essência e aparência, construindo uma crítica ácida a respeito da burguesia, que, sob sua pena, despe-se de suas máscaras revelando uma consciência frágil, que transita facilmente entre a ética e o interesse, como podemos ver no conto O caso da vara, a seguir:

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O caso da vara

Damião fugiu do seminário às onze horas da manhã de uma sexta-feira de agosto. Não sei bem o ano, foi antes de 1850. Passados alguns minutos parou vexado; não contava com o efeito que produzia nos olhos da outra gente aquele seminarista que ia espantado, medroso, fugitivo. Desconhecia as ruas, andava e desandava, finalmente parou. Para onde iria? Para casa, não, lá estava o pai que o devolveria ao seminário, depois de um bom castigo. Não assentara no ponto de refúgio, porque a saída estava determinada para mais tarde; uma circunstância fortuita a apressou. Para onde iria? Lembrou-se do padrinho, João Carneiro, mas o padrinho era um moleirão sem vontade, que por si só não faria cousa útil.

Foi ele que o levou ao seminário e o apresentou ao reitor:

Trago-lhe o grande homem que há de ser, disse ele ao reitor.

— Venha, acudiu este, venha o grande homem, contanto que seja também humilde e bom.

A verdadeira grandeza é chã. Moço...

Tal foi a entrada. Pouco tempo depois fugiu o rapaz ao seminário. Aqui o vemos agora na rua, espantado, incerto, sem atinar com refúgio nem conselho; percorreu de memória as casas de parentes e amigos, sem se fixar em nenhuma. De repente, exclamou:

— Vou pegar-me com Sinhá Rita! Ela manda chamar meu padrinho, diz-lhe que quer que eu saia do seminário... Talvez assim...

Sinhá Rita era uma viúva, querida de João Carneiro; Damião tinha umas idéias vagas dessa situação e tratou de a aproveitar. Onde morava? Estava tão atordoado, que só daí a alguns minutos é que lhe acudiu a casa; era no Largo do Capim.

— Santo nome de Jesus! Que é isto? Bradou Sinhá Rita, sentando-se na marquesa, onde estava reclinada.

Damião acabava de entrar espavorido; no momento de chegar à casa, vira passar um padre, e deu um empurrão à porta, que por fortuna não estava fechada a chave nem ferrolho.

Depois de entrar espiou pela rótula, a ver o padre. Este não deu por ele e ia andando.

— Mas que é isto, Sr. Damião? bradou novamente a dona da casa, que só agora o conhecera. Que vem fazer aqui!

Damião, trêmulo, mal podendo falar, disse que não tivesse medo, não era nada; ia explicar tudo.

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— Descanse; e explique-se.

— Já lhe digo; não pratiquei nenhum crime, isso juro, mas espere.

Sinhá Rita olhava para ele espantada, e todas as crias, de casa, e de fora, que estavam sentadas em volta da sala, diante das suas almofadas de renda, todas fizeram parar os bilros e as mãos. Sinhá Rita vivia principalmente de ensinar a fazer renda, crivo e bordado.

Enquanto o rapaz tomava fôlego, ordenou às pequenas que trabalhassem, e esperou. Afinal, Damião contou tudo, o desgosto que lhe dava o seminário; estava certo de que não podia ser bom padre; falou com paixão, pediu-lhe que o salvasse.

— Como assim? Não posso nada.

— Pode, querendo.

— Não, replicou ela abanando a cabeça, não me meto em negócios de sua família, que mal conheço; e então seu pai, que dizem que é zangado!

Damião viu-se perdido. Ajoelhou-se-lhe aos pés, beijou-lhe as mãos, desesperado.

— Pode muito, Sinhá Rita; peço-lhe pelo amor de Deus, pelo que a senhora tiver de mais sagrado, por alma de seu marido, salve-me da morte, porque eu mato-me, se voltar para aquela casa.

Sinhá Rita, lisonjeada com as súplicas do moço, tentou chamá-lo a outros sentimentos. A vida de padre era santa e bonita, disse-lhe ela; o tempo lhe mostraria que era melhor vencer as repugnâncias e um dia... Não nada, nunca! redarguia Damião, abanando a cabeça e beijando-lhe as mãos, e repetia que era a sua morte. Sinhá Rita hesitou ainda muito tempo; afinal perguntou-lhe por que não ia ter com o padrinho.

— Meu padrinho? Esse é ainda pior que papai; não me atende, duvido que atenda a ninguém...

— Não atende? interrompeu Sinhá Rita ferida em seus brios. Ora, eu lhe mostro se atende ou não...

Chamou um moleque e bradou-lhe que fosse à casa do Sr. João Carneiro chamá-lo, já e já; e se não estivesse em casa, perguntasse onde podia ser encontrado, e corresse a dizer-lhe que precisava muito de lhe falar imediatamente.

— Anda, moleque.

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Damião suspirou alto e triste. Ela, para mascarar a autoridade com que dera aquelas ordens, explicou ao moço que o Sr. João Carneiro fora amigo do marido e arranjara-lhe algumas crias para ensinar. Depois, como ele continuasse triste, encostado a um portal, puxou-lhe o nariz, rindo:

— Ande lá, seu padreco, descanse que tudo se há de arranjar.

Sinhá Rita tinha quarenta anos na certidão de batismo, e vinte e sete nos olhos. Era apessoada, viva, patusca, amiga de rir; mas, quando convinha, brava como diabo. Quis alegrar o rapaz, e, apesar da situação, não lhe custou muito. Dentro de pouco, ambos eles riam, ela contava-lhe anedotas, e pedia-lhe outras, que ele referia com singular graça. Uma destas, estúrdia, obrigada a trejeitos, fez rir a uma das crias de Sinhá Rita, que esquecera o trabalho, para mirar e escutar o moço. Sinhá Rita pegou de uma vara que estava ao pé da marquesa, e ameaçou-a:

— Lucrécia, olha a vara!

A pequena abaixou a cabeça, aparando o golpe, mas o golpe não veio. Era uma advertência; se à noitinha a tarefa não estivesse pronta, Lucrécia receberia o castigo do costume. Damião olhou para a pequena; era uma negrinha, magricela, um frangalho de nada, com uma cicatriz na testa e uma queimadura na mão esquerda. Contava onze anos. Damião reparou que tossia, mas para dentro, surdamente, a fim de não interromper a conversação. Teve pena da negrinha, e resolveu apadrinhá-la, se não acabasse a tarefa. Sinhá Rita não lhe negaria o perdão... Demais, ela rira por achar-lhe graça; a culpa era sua, se há culpa em ter chiste.

Nisto, chegou João Carneiro. Empalideceu quando viu ali o afilhado, e olhou para Sinhá Rita, que não gastou tempo com preâmbulos. Disse-lhe que era preciso tirar o moço do seminário, que ele não tinha vocação para a vida eclesiástica, e antes um padre de menos que um padre ruim. Cá fora também se podia amar e servir a Nosso Senhor. João Carneiro, assombrado, não achou que replicar durante os primeiros minutos; afinal, abriu a boca e repreendeu o afilhado por ter vindo incomodar “pessoas estranhas”, e em seguida afirmou que o castigaria.

— Qual castigar, qual nada! Interrompeu Sinhá Rita. Castigar por quê? Vá, vá falar a seu compadre.

— Não afianço nada, não creio que seja possível...

— Há de ser possível, afianço eu. Se o senhor quiser, continuou ela com certo tom insinuativo, tudo se há de arranjar. Peça-lhe muito, que ele cede. Ande, Senhor João Carneiro, seu afilhado não volta para o seminário; digo-lhe que não volta...

— Mas, minha senhora...

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—Vá, vá.

João Carneiro não se animava a sair, nem podia ficar. Estava entre um puxar de forças opostas. Não lhe importava, em suma que o rapaz acabasse clérigo, advogado ou médico, ou outra qualquer cousa, vadio que fosse, mas o pior é que lhe cometiam uma luta ingente com os sentimentos mais íntimos do compadre, sem certeza do resultado; e, se este fosse negativo, outra luta com Sinhá Rita, cuja última palavra era ameaçadora: “digo-lhe que ele não volta”. Tinha de haver por força um escândalo. João Carneiro estava com a pupila desvairada, a pálpebra trêmula, o peito ofegante. Os olhares que deitava a Sinhá Rita eram de súplica, mesclados de um tênue raio de censura. Por que lhe não pedia outra cousa? Por que lhe não ordenava que fosse a pé, debaixo de chuva, à Tijuca, ou Jacarepaguá? Mas logo persuadir ao compadre que mudasse a carreira do filho... Conhecia o velho; era capaz de lhe quebrar uma jarra na cara. Ah! Se o rapaz caísse ali, de repente, apoplético, morto! Era uma solução — cruel, é certo, mas definitiva.

— Então? Insistiu Sinhá Rita.

Ele fez-lhe um gesto de mão que esperasse. Coçava a barba, procurando um recurso. Deus do céu! um decreto do papa dissolvendo a Igreja, ou, pelo menos, extinguindo os seminários, faria acabar tudo em bem. João Carneiro voltaria para casa e ia jogar os três setes.

Imaginai que o barbeiro de Napoleão era encarregado de comandar a batalha de Austerlitz... Mas a Igreja continuava, os seminários continuavam, o afilhado continuava cosido à parede, olhos baixos esperando, sem solução apoplética.

— Vá, vá, disse Sinhá Rita dando-lhe o chapéu e a bengala.

Não teve remédio. O barbeiro meteu a navalha no estojo, travou da espada e saiu à campanha. Damião respirou; exteriormente deixou-se estar na mesma, olhos fincados no chão, acabrunhado. Sinhá Rita puxou-lhe desta vez o queixo.

— Ande jantar, deixe-se de melancolias.

— A senhora crê que ele alcance alguma coisa?

— Há de alcançar tudo, redargüiu Sinhá Rita cheia de si. Ande que a sopa está esfriando. Apesar do gênio galhofeiro de Sinhá Rita, e do seu próprio espírito leve, Damião esteve menos alegre ao jantar que na primeira parte do dia. Não fiava do caráter mole do padrinho. Contudo, jantou bem; e, para o fim, voltou às pilhérias da manhã. A sobremesa ouviu um rumor de gente na sala, e perguntou se o vinham prender.

— Hão de ser as moças.

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Levantaram-se e passaram à sala. As moças eram cinco vizinhas que iam todas as tardes tomar café com Sinhá Rita, e ali ficavam até o cair da noite.

As discípulas, findo o jantar delas, tornaram às almofadas do trabalho. Sinhá Rita presidia a todo esse mulherio de casa e de fora. O sussurro dos bilros e o palavrear das moças eram ecos tão mundanos, tão alheios à teologia e ao latim, que o rapaz deixou-se ir por eles e esqueceu o resto. Durante os primeiros minutos, ainda houve da parte das vizinhas certo acanhamento, mas passou depressa. Uma delas cantou uma modinha, ao som da guitarra, tangida por Sinhá Rita, e a tarde foi passando depressa. Antes do fim, Sinhá Rita pediu a Damião que contasse certa anedota que lhe agradara muito. Era a tal que fizera rir Lucrécia. — Ande senhor Damião, não se faça de rogado, que as moças querem ir embora. Vocês vão gostar muito.

Damião não teve remédio senão obedecer. Malgrado o anúncio e a expectação, que serviam a diminuir o chiste e o efeito, a anedota acabou entre risadas das moças. Damião, contente de si, não esqueceu Lucrécia e olhou para ela, a ver se rira também. Viu-a com a cabeça metida na almofada para acabar a tarefa. Não ria; ou teria rido para dentro, como tossia. Saíram às vizinhas, e a tarde caiu de todo. A alma de Damião foi-se fazendo tenebrosa, antes da noite. Que estaria acontecendo? De instante a instante, ia espiar pela rótula, e voltava cada vez mais desanimado. Nem sombra do padrinho. Com certeza, o pai fê-lo calar, mandou chamar dous negros, foi à polícia pedir um pedestre, e aí vinha pegá-lo à força e levá-lo ao seminário. Damião perguntou a Sinhá Rita se a casa não teria saída pelos fundos, correu ao quintal e calculou que podia saltar o muro. Quis ainda saber se haveria modo de fugir para a Rua da Vala, ou se era melhor falar a algum vizinho que fizesse o favor de o receber. O pior era a batina; se Sinhá Rita lhe pudesse arranjar um rodaque, uma sobrecasaca velha... Sinhá Rita dispunha justamente de um rodaque, lembrança ou esquecimento de João Carneiro.

— Tenho um rodaque do meu defunto, disse ela, rindo; mas para que está com esses sustos? Tudo se há de arranjar, descanse.

Afinal, à boca da noite, apareceu um escravo do padrinho, com uma carta para Sinhá Rita. O negócio ainda não estava composto; o pai ficou furioso e quis quebrar tudo; bradou que não, senhor que o peralta havia de ir para o seminário, ou então metia-o no Aljube ou na presiganga. João Carneiro lutou muito para conseguir que o compadre não resolvesse logo, que dormisse a noite, e meditasse bem se era conveniente dar à religião um sujeito tão rebelde e vicioso. Explicava na carta que falou assim para melhor ganhar a causa. Não a tinha por ganha, mas no dia seguinte lá iria ver o homem, e teimar de novo. Concluía dizendo que o moço fosse para a casa dele.

Damião acabou de ler a carta e olhou para Sinhá Rita. Não tenho outra tábua de salvação, pensou ele. Sinhá Rita mandou vir um tinteiro de chifre, e na meia folha da própria carta escreveu esta resposta: “Joãozinho, ou você salva o moço, ou nunca mais nos vemos”. Fechou a carta com obreia, e deu-a ao escravo, para que a levasse depressa. Voltou a reanimar o

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seminarista, que estava outra vez no capuz da humildade e da consternação. Disse-lhe que sossegasse que aquele negócio era agora dela.

— Hão de ver para quanto presto! Não, que eu não sou de brincadeiras!

Era a hora de recolher os trabalhos. Sinhá Rita examinou-os, todas as discípulas tinham concluído a tarefa. Só Lucrécia estava ainda à almofada, meneando os bilros, já sem ver; Sinhá Rita chegou-se a ela, viu que a tarefa não estava acabada, ficou furiosa, e agarrou por uma orelha.

— Ah! Malandra!

— Nhanhã, nhanhã! pelo amor de Deus! Por Nossa Senhora que está no céu.

— Malandra! Nossa Senhora não protege vadias!

Lucrécia fez um esforço, soltou-se das mãos da senhora, e fugiu para dentro; a senhora foi atrás e agarrou-a.

— Anda cá!

— Minha senhora, me perdoe!

— Não perdôo, não.

E tornaram ambas à sala, uma presa pela orelha, debatendo-se, chorando e pedindo; a outra dizendo que não, que a havia de castigar.

— Onde está a vara?

A vara estava à cabeceira da marquesa, do outro lado da sala Sinhá Rita, não querendo soltar a pequena, bradou ao seminarista.

— Sr. Damião, dê-me aquela vara, faz favor?

Damião ficou frio... Cruel instante! Uma nuvem passou-lhe pelos olhos. Sim, tinha Jurado apadrinhar a pequena, que por causa dele, atrasara o trabalho...

— Dê-me a vara, Sr. Damião!

Damião chegou a caminhar na direção da marquesa. A negrinha pediu-lhe então por tudo o que houvesse mais sagrado, pela mãe, pelo pai, por Nosso Senhor...

— Me acuda, meu sinhô moço!

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Sinhá Rita, com a cara em fogo e os olhos esbugalhados, instava pela vara, sem largar a negrinha, agora presa de um acesso de tosse. Damião sentiu-se compungido; mas ele precisava tanto sair do seminário! Chegou à marquesa, pegou na vara e entregou-a a Sinhá Rita (ASSIS, 1990).

Fazendo um breve comentário, vemos que todos os personagens desse conto manipulam alguém ou tentam manipular por algum motivo que sempre se revela bastante pessoal, como, por exemplo, Sinhá Rita, por capricho, e Damião, por sua necessidade de encontrar alguém que respaldasse sua saída do seminário. Dessa forma, os interesses pessoais no conto são colocados acima dos valores morais.

Damião manipula Sinhá Rita pela primeira vez quando põe em dúvida sua importância em relação ao padrinho, pois, sabendo do caso amoroso entre os dois, questiona a importância de Sinhá Rita, dizendo “Meu padrinho? Esse é ainda pior que papai; não me atende, duvido que atenda a ninguém...”. Em um segundo momento, quer apadrinhar Lucrécia, que riu por causa de uma brincadeira que ele fez, mas, por interesse, corrobora seu castigo. Podemos observar que, no momento em que quer apadrinhar a negrinha, Damião já se sente livre, acreditando que Sinhá Rita conseguirá fazer com que não o devolvam ao seminário. Como as coisas se complicam e Sinhá Rita parece ser a única pessoa que se mantém firme ao seu lado, ele não apadrinha Lucrécia, mostrando, com isso, que já se sente devedor de Sinhá Rita.

João Carneiro quer castigar Damião, mas, se o fizer, a amante ficará brava com ele, o que ela deixa a entender no diálogo reticente que mantém com João Carneiro. Assim, ele o apadrinha. Já logo de início, percebe-se que sua autoridade em relação ao afilhado é perdida diante da amante, que o chama de Joãozinho, revelando a intimidade entre os dois. Por fim, João Carneiro se mostra com medo da retaliação da amante e do próprio afilhado, que se coloca como sabedor do caso dos dois ao escolher a casa da amante do padrinho para se abrigar.

Sinhá Rita quer se mostrar com poder em relação ao amante; é uma mulher boa, mas é a amante do padrinho, portanto, está em uma posição delicada. Subjugada, a vaidade de Sinhá Rita faz com que ela queira comprovar sua importância junto de João Carneiro, mandando-o buscar para que se comprove (“ Ora, eu lhe mostro se atende ou não...”). Suas manifestações de carinho para com Damião mostram que ela tem confiança nela mesma.

O conto encerra também uma dicotomia entre os personagens Lucrécia e Damião, dicotomia essa que evidencia de imediato uma segregação: ele é branco, ela é negra; ele é homem, ela é mulher; ele é livre (e luta por manter-se livre), ela não o é. Por isso, Lucrécia suplica por medo: ela só pode contar com a piedade dos senhores.

O cruel instante passa a ser o da escolha de Damião entre apadrinhar ou castigar Lucrécia. É nesse momento do clímax do conto que o narrador se mune de uma ironia corrosiva que coloca o leitor diante de si mesmo e o faz pensar se ele também não teria tomado a mesma decisão se fosse a própria pele que estivesse em jogo.

Passar a vara para Sinhá Rita é um momento simbólico e ao mesmo tempo real. A vara simboliza o poder, analogamente ao termo jurídico, pois somente aquele que está de posse da vara é que pode

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julgar o outro. Assim, Damião teve a oportunidade de salvar a pequena escrava da punição e opta por não fazê-lo, visto que, se intercedesse, seria ele o alvo da vara.

Machado de Assis mostra aqui uma burguesia cheia de falhas, mas que se apoia em si mesma, se arranja através da troca de favores e de barganhas. É através dos favores que o homem branco se entende, como afirma o maior crítico de Machado de Assis, Roberto Schwarz. Esses arranjos, barganhas e pactos só acontecem entre aqueles que têm poder para negociar.

No ensaio Esquema de Machado de Assis, Antonio Candido (2004) salienta a transformação do homem em objeto do homem como um dos temas recorrentes na obra machadiana. A relação entre Rita e Lucrécia e também entre Damião e Rita é baseada nessa transformação, que é inerente à condição humana, não estando, portanto, ligada à particularidade de um povo ou nação.

Machado dá a esse conto uma dimensão jurídica, já sugerida desde o título, pela palavra vara, que se refere ao castigo de Lucrécia e alude à insígnia e ao cargo dos juízes, isto é, figurativamente, se refere ao poder. Dessa forma, o bruxo de Cosme Velho6 faz com que a história assuma proporções maiores do que o mero desejo de um jovem de abandonar a batina. Sua intenção é falar do poder e das organizações sociais, por isso, mune-se da sutileza de um caso que parece, à primeira vista, particular, mas, como vimos, se estende para o todo.

Esboçados brevemente a crônica e o conto machadianos, passemos ao romance.

A ficção brasileira, como já foi dito, atinge seu ponto mais alto com Machado de Assis e o romance inaugural do Realismo no Brasil, Memórias Póstumas de Brás Cubas, apresenta uma verdadeira revolução estética.

Não é possível separar o Machado contista do romancista, entretanto seus romances têm sido largamente estudados ao longo dos anos e, a partir desses estudos, pôde-se chegar a alguns aspectos da ficção machadiana.

Uma das características de sua obra, tanto dos contos como dos romances, é a ruptura com a linearidade, pois os fatos acabam por obedecer a uma ordem interna cujo liame é feito pela consciência do personagem, pela curiosidade bisbilhoteira no narrador ou por ambos, sobretudo quando narrador e personagem se dão na mesma pessoa, como vemos no trecho de Memórias Póstumas de Brás Cubas:

Algum tempo hesitei se devia abrir estas memórias pelo princípio ou pelo fim, isto é, se poria em primeiro lugar o meu nascimento ou a minha morte. Suposto o uso vulgar seja começar pelo nascimento, duas considerações me levaram a adotar diferente método: a primeira é que eu não sou propriamente

6 Bruxo do Cosme Velho é um apelido dado a Machado de Assis, que ganhou força quando Carlos Drummond de Andrade publicou o poema: “A um bruxo, com amor”, em que faz referência à casa de número 18, da rua Cosme Velho, no bairro de mesmo nome no Rio de Janeiro, lugar em que morou Machado de Assis.

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um autor defunto, mas um defunto autor, para quem a campa foi outro berço; a segunda é que o escrito ficaria assim mais galante e mais novo (ASSIS, 1998).

Outra característica intrínseca ao romancista, embora também observada em alguns contos, é o discurso metalinguístico, pois é comum o narrador interromper a narrativa para comentar o romance ou discorrer sobre algum personagem em particular, ou ainda para advertir o próprio leitor. Nesses comentários, que muitas vezes encerram ironia, encontramos o estilo agudo do autor, que mais do que simplesmente dialogar com o leitor, confessa nas entrelinhas dessa fala o que muitas vezes o enredo não diz. Observe o trecho abaixo:

Se isto vos parecer enfático, desgraçado leitor, é que nunca penteastes uma pequena, nunca pusestes as mãos adolescentes na jovem cabeça de uma ninfa... Uma ninfa! Todo eu estou mitológico. Ainda há pouco, falando dos seus olhos de ressaca, cheguei a escrever Tétis; risquei Tétis, risquemos ninfa; digamos somente uma criatura amada, palavra que envolve todas as potências cristãs e pagãs (ASSIS, 2009).

Bento Santiago, ao resgatar essa memória de seu passado fala veladamente de seu desejo por Capitu, o que se observa na expressão “potências cristãs e pagãs”.

Não podemos nos esquecer de que Bentinho fora criado para ser padre, embora já tivesse descoberto que não tinha vocação para isso. A junção dessas duas palavras trai sua consciência, revelando que se sentia em pecado, por isso, sintetiza sua admiração e seu desejo pela amiga na palavra “ninfa”, o que só pôde ser percebido no diálogo do narrador com o leitor.

Os temas machadianos se desenvolvem na sociedade carioca do século XIX, ou seja, na sociedade de seu tempo. Nela buscou o universalismo dos grandes temas científicos e filosóficos, tais como a moral, as patologias, o ciúme e o sadismo. Por isso, sua ficção se vale, via de regra, de um narrador que se mostra desencantado com a vida e com o mundo, desacreditado dos valores da sociedade e que assume, portanto, uma postura niilista7. Seu pessimismo está totalmente justificado pela sua descrença na humanidade, que se revela em seus textos de maneira cínica, hipócrita, interesseira e egoísta, o que faz com que sua literatura possua um tom acre, de humor negro, o qual se costuma chamar de ironia.

Machado, para retratar essa humanidade decepcionante, conduziu com excelência a construção de personagens com exemplar densidade psicológica, a fim de penetrar no microrrealismo da consciência dos indivíduos. É esse realismo psicológico que atrai no texto machadiano e dá maior densidade à sua narrativa. Por outro lado, ela confere à obra uma impressão de lentidão.

Cabe agora a leitura de pelo menos dois trechos dos romances mais conhecidos da fase realista de Machado de Assis, a saber: Memórias Póstumas de Brás Cubas e Dom Casmurro.

7 Niilismo é a redução ao nada (vem da palavra latina nihil, que quer dizer nada), isto é, a negação de todo e qualquer princípio, seja ele religioso, político ou social.

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Mas, lembre-se, o texto de Machado de Assis pede um leitor maduro, capaz de mergulhar numa obra em que a ação está no interior (das personagens), e não no exterior. Seu estilo prima pelo equilíbrio e concisão somada a uma gramática correta e sóbria. Seu texto tira o leitor da inação, pois é um convite à reflexão densa sobre a alma humana, por isso, sua obra é tão afeita à releitura:

Parece que esses textos de Machado não ficam inertes – como os melhores vinhos em suas garrafas – fechados dentro dos livros. Eles se remexem e transformam. Como se fossem entidades, criaturas, seres – semelhantes a nós – vivos (AGUIAR, 2008, p. 116).

Saiba mais

Vale a pena assistir ao filme e à minissérie indicados a seguir, ambos baseados na obra de Machado de Assis:

MEMÓRIAS póstumas de Brás Cubas. Dir. André Klotzel. Brasil. 2001. 101 min.

CAPITU. Dir. Luiz Fernando Carvalho. Brasil. 2008. 150 min (divididos em cinco capítulos).

Para concluir nossos estudos acerca de Machado, observe a seguir as características do autor. Vale a pena compará-las às características apresentadas no quadro sinóptico do Realismo-Naturalismo, ilustrado anteriormente.

Quadro 9

Humor e ironiaUso da função metalinguística quando das interrupções do narrador para uma conversa com o leitor e quando das digressões sobre variados assuntos.

Pessimismo niilista Influência de Schopenhauer.

A miséria humana Egoísmo, adultério, corrupção, interesse etc.

UniversalismoOs temas abordados por Machado independem do tempo e do espaço porque se constituem em atitudes essencialmente humanas.

Machado de Assis é considerado um dos maiores escritores da língua portuguesa. Segundo o crítico literário Alfredo Bosi (1980), “o ponto mais alto e equilibrado da prosa realista brasileira acha-se na ficção de Machado de Assis”.

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Raul Pompéia (1863-1895)

Raul d’Ávila Pompéia nasceu em 12 de abril de 1863, em Jacuacanga, Angra dos Reis, Rio de Janeiro. Aos dez anos de idade, mudou-se com família para a cidade do Rio de Janeiro e foi matriculado como interno no colégio Abílio, dirigido pelo doutor Abílio César Borges, Barão de Macaúbas. Aos 16 anos, transferiu-se para o colégio Pedro II em regime de externato. No ano seguinte, 1880, publicou seu primeiro romance: Uma tragédia no Amazonas. Mais tarde, estudou Direito, colaborando também com jornais e revistas como partidário das ideias republicanas e abolicionistas. Suicidou-se em 1895, no dia de Natal.

Raul Pompéia entrou para a história da literatura graças a O Ateneu, que possui influências naturalistas, realistas, expressionistas e impressionistas. O Ateneu tem caráter autobiográfico e garantiu ao autor lugar entre os maiores romancistas brasileiros.

O Ateneu: crônica de saudades, como o próprio subtítulo indica, é um livro de memórias, ou seja, o tempo da ação é anterior ao tempo da narração. O personagem Sérgio, já adulto, narra seu tempo de aluno interno no Ateneu. A narrativa é feita em primeira pessoa e Sérgio é o personagem-narrador, o que permite entrar no mundo das confissões interiores.

Veja a seguir um trecho da obra para compreender o que foi dito anteriormente:

“Vais encontrar o mundo”, disse-me meu pai, à porta do Ateneu. “Coragem para a luta.” Bastante experimentei depois a verdade deste aviso, que me despia, num gesto, das ilusões de criança educada exoticamente na estufa de carinho que é o regime do amor doméstico, diferente do que se encontra fora, tão diferente, que parece o poema dos cuidados maternos um artifício sentimental, com a vantagem única de fazer mais sensível a criatura à impressão rude do primeiro ensinamento, têmpera brusca da vitalidade na influência de um novo clima rigoroso. Lembramo-nos, entretanto, com saudade hipócrita, dos felizes tempos; como se a mesma incerteza de hoje, sob outro aspecto, não nos houvesse perseguido outrora e não viesse de longe a enfiada das decepções que nos ultrajam.

Eufemismo, os felizes tempos, eufemismo apenas, igual aos outros que nos alimentam, a saudade dos dias que correram como melhores. Bem considerando, a atualidade é a mesma em todas as datas. Feita a compensação dos desejos que variam, das aspirações que se transformam, alentadas perpetuamente do mesmo ardor, sobre a mesma base fantástica de esperanças, a atualidade é uma. Sob a coloração cambiante das horas, um pouco de ouro mais pela manhã, um pouco mais de púrpura ao crepúsculo — a paisagem é a mesma de cada lado beirando a estrada da vida.

“Eu tinha onze anos” (POMPEIA, 1999).

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Percebe-se a crítica de Raul Pompéia àquela estrutura velha e viciada, um microcosmo moldador dos meninos que lá estudam e deformador de suas personalidades.

É perceptível na obra seu caráter confessional, espécie de regresso psicanalítico no qual o personagem principal redesenha os fantasmas da adolescência vivida num colégio interno, tais como a má direção, os comportamentos equivocados de professores, a violação da pureza, a explosão libidinosa da adolescência, o homossexualismo, a ganância desmesurada e, por fim, a desumanização do ser humano corrompido pelo dinheiro e pela busca de posição social.

As principais obras do autor são: Uma tragédia no Amazonas (1880), seu primeiro romance; O Ateneu (1888); As jóias da coroa (1888), contrário à monarquia e publicado como folhetim na Gazeta de Notícias; e Canções sem metro (1900), seu livro de poesia.

Aluísio de Azevedo (1857-1913)

Aluísio Tancredo Gonçalves de Azevedo nasceu a 14 de abril de 1857, em São Luís do Maranhão. Após os primeiros estudos em sua terra natal, foi para o Rio de Janeiro estudar pintura e desenho. Na cidade, trabalhou como caricaturista. Influenciado pelo materialismo positivista, escreveu artigos de caráter político a partir dos quais ataca a hipocrisia, o conservadorismo da sociedade maranhense e o clero. Nessa ação, já exercita a própria veia crítica do realismo-naturalismo. Em 1880, publicou Uma lágrima de mulher e no ano seguinte inaugurou o naturalismo com o romance O mulato.

Em função do primor de O mulato, Casa de pensão e, principalmente, de O cortiço – considerada a obra prima do autor –, é como naturalista que Aluísio Azevedo deve ser estudado, pois segue as lições de Émile Zola e de Eça de Queirós ao escrever romances de tese, elaborados como análise estético-literária dos males da sociedade.

Aluísio Azevedo confere vida própria aos pequenos agrupamentos humanos, como o cortiço. Seus protagonistas caminham para a degradação social e moral por força da opressão social e do determinismo das leis naturais, isto é, o homem submetido às leis da raça (hereditariedade e instinto), do meio (geográfico e social) e do tempo (circunstâncias históricas).

Veja agora como essas características aparecem no capítulo de abertura da principal obra naturalista do autor, O Cortiço:

Eram cinco horas da manhã e o cortiço acordava, abrindo, não os olhos, mas a sua infinidade de portas e janelas alinhadas.

Um acordar alegre e farto de quem dormiu de uma assentada sete horas de chumbo. Como que se sentiam ainda na indolência de neblina as derradeiras notas da ultima guitarra da noite antecedente, dissolvendo-se à luz loura e tenra da aurora, que nem um suspiro de saudade perdido em terra alheia.

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[...] das portas surgiam cabeças congestionadas de sono; ouviam-se amplos bocejos, fortes como o marulhar das ondas; pigarreava-se grosso por toda a parte; começavam as xícaras a tilintar; o cheiro quente do café aquecia, suplantando todos os outros; trocavam-se de janela para janela as primeiras palavras, os bons-dias; reatavam-se conversas interrompidas à noite; a pequenada cá fora traquinava8 já, e lá dentro das casas vinham choros abafados de crianças que ainda não andam. No confuso rumor que se formava, destacavam-se risos, sons de vozes que altercavam9, sem se saber onde, grasnar de marrecos, cantar de galos, cacarejar de galinhas. De alguns quartos saiam mulheres que vinham pendurar cá fora, na parede, a gaiola do papagaio, e os louros, à semelhança dos donos, cumprimentavam-se ruidosamente, espanejando-se10 à luz nova do dia.

Daí a pouco, em volta das bicas era um zunzum crescente; uma aglomeração tumultuosa de machos e fêmeas. Uns, após outros, lavavam a cara, incomodamente, debaixo do fio de água que escorria da altura de uns cinco palmos. O chão inundava-se. As mulheres precisavam já prender as saias entre as coxas para não as molhar; [...] os homens, esses não se preocupavam em não molhar o pêlo, ao contrário metiam a cabeça bem debaixo da água e esfregavam com força as ventas e as barbas, fossando e fungando contra as palmas da mão. As portas das latrinas não descansavam, era um abrir e fechar de cada instante, um entrar e sair sem tréguas. “Não se demoravam lá dentro e vinham ainda amarrando as calças ou as saias; as crianças não se davam ao trabalho de lá ir, despachavam-se ali mesmo, no capinzal dos fundos, por detrás da estalagem ou no recanto das hortas (AZEVEDO, 2009).

Em O Cortiço, a principal personagem é o próprio cortiço, como afirma Antonio Candido (2010): “O romance é o nascimento, vida, paixão e morte de um cortiço”. Já as personagens são psicologicamente superficiais, desconstruindo o drama moral, já que são vistas de fora.

As principais obras do autor são:

• romances: Uma Lágrima de Mulher (1879), O Mulato (1881), Memórias de um Condenado (1882), Mistério da Tijuca (1882), Casa de Pensão (1884), Filomena Borges (1884), O Coruja (1885), O Homem (1887), O Cortiço (1890), A Mortalha de Alzira (1894) e Livro de uma Sogra (1895);

• contos: Demônios (1893) e Pegadas (1897);

• teatro: A Flor de Lis (1882), Casa de Orates (1882), Fritzmac (1889), Os Doidos (1879), O Esqueleto (1890), A República (1890), Um Caso de Adultério (1891), Em Flagrante (1891), Venenos que Curam (1886) e O Caboclo (1886);

• crônica: O Touro Negro (1898).

8 Traquinava: do verbo traquinar; fazer travessuras.9 Altercavam: do verbo altercar; discutir, provocar polêmicas.10 Espanejando-se: do verbo espanejar; sacudir o pó das asas batendo-as.

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Adolfo Caminha (1867-1897)

Adolfo Caminha é um dos fundadores do Centro Republicano e ativo participante da vida intelectual da cidade. Em 1891, muda-se para o Rio de Janeiro, onde se dedicou ao jornalismo e à literatura, escrevendo algumas das obras-primas do Naturalismo como A normalista e Bom crioulo.

A normalista é a história de um incesto no qual a protagonista do romance é seduzida pelo padrinho. Bom crioulo, por sua vez, aborda a questão do homossexualismo no ambiente militar. O personagem Amaro se envolve amorosamente com um jovem grumete, que acaba sendo seduzido por uma portuguesa. A descoberta da traição leva Amaro a assassinar seu amante. Veja dois fragmentos da obra Bom crioulo:

Seguia-se o terceiro preso, um latagão de negro, muito alto e corpulento, figura colossal de cafre, desafiando, com um formidável sistema de músculos, a morbidez patológica de toda uma geração decadente e enervada, e cuja presença ali, naquela ocasião, despertava grande interesse e viva curiosidade: era o Amaro, gajeiro da proa, – o Bom Crioulo na gíria de bordo.

[...]

Aleixo passava nos braços de dois marinheiros, levado como um fardo, o corpo mole, a cabeça pendida para trás, roxo, os olhos imóveis, a boca entreaberta. O azul-escuro da camisa e a calça branca tinham grandes nódoas vermelhas. O pescoço estava envolvido num chumaço de panos. Os braços caíam-lhe, sem vida, inertes, bambos, numa frouxidão de membros mutilados (CAMINHA, 2009).

As principais obras do autor são:

• romances: A normalista (1892), Bom crioulo (1895) e A tentação (1896);

• contos: Judith (1893) e Lágrimas de um crente (1893);

• crônica: No país dos Ianques (1894);

• crítica: Cartas literárias (1895).

Domingos Olímpio (1851-1906)

Escritor naturalista formado em direito, exerceu o jornalismo como abolicionista e republicano. No Rio, publicou sua principal obra, Luzia-Homem, e passou a escrever sob o pseudônimo de Pojucan.

Luzia-Homem tematiza a violência e o sadismo que florescem com a literatura naturalista. O texto, como já evidencia o título, explora a dualidade da personagem principal: ela é bonita, gentil e retirante da seca, mas também tem força igual ou superior à de um homem. Veja a seguir trechos da obra:

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Sob os músculos poderosos de Luzia-Homem estava a mulher tímida e frágil, afogada no sofrimento que não transbordava em pranto, e só irradiava, em chispas fulvas, nos grandes olhos de luminosa treva (OLÍMPIO, 1998).

Raulino recuou, cortado de terror, ante o cadáver; e, num turbilhão de cólera, rugiu arrepiado, apertando os dentes, e, com uns gestos, que eram crispações medonhas de fera, esquadrinhou o terreno, buscando e rebuscando o criminoso (OLÍMPIO, 1998).

As principais obras do autor são Luzia-Homem (1903) e O Almirante (1904-1906).

O Naturalismo apresenta romances experimentais cuja influência do darwinismo é plena, já que o modelo enfatiza a natureza animal do homem, pois esse, antes da razão, deixa-se levar pelos instintos naturais como o sexo. Essa abordagem da sociedade não deixa de constituir uma crítica social, embora a crítica se concentre nas classes mais baixas dessa sociedade.

É comum notar que a constante repressão social leva a taras ou patologias, tão ao gosto naturalista, e em função disso, os romances apresentam temas comumente proibidos para a época, como o homossexualismo tanto masculino quanto feminino, questões que ainda hoje são tabus, do mesmo modo que o é o sexo e a descoberta da sexualidade de uma forma geral.

Exercícios

Questão 1: Leia o excerto abaixo, extraído de Iracema, de José de Alencar:

“Além, muito além daquela serra, que ainda azula no horizonte, nasceu Iracema.

Iracema, a virgem dos lábios de mel, que tinha os cabelos mais negros que a asa da graúna e mais longos que seu talhe de palmeira.

O favo da jati não era doce como seu sorriso; nem a baunilha recendia no bosque como seu hálito perfumado.

Mais rápida que a ema selvagem, a morena virgem corria o sertão e as matas do Ipu, onde campeava sua guerreira tribo, da grande nação tabajara. O pé grácil e nu, mal roçando, alisava apenas a verde pelúcia que vestia a terra com as primeiras águas.

Um dia, ao pino do sol, ela repousava em um claro da floresta. Banhava-lhe o corpo a sombra da oiticica, mais fresca do que o orvalho da noite. Os ramos da acácia silvestre esparziam flores sobre os úmidos cabelos. Escondidos na folhagem os pássaros ameigavam o canto.

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Iracema saiu do banho: o aljôfar d’água ainda o roreja, como à doce mangaba que corou em manhã de chuva. Enquanto repousa, empena das penas do gará as flechas de seu arco, e concerta com o sabiá da mata, pousado no galho próximo, o canto agreste.

A graciosa Ará, sua companheira e amiga, brinca junto dela. Às vezes sobe aos ramos da árvore e de lá chama a virgem pelo nome, outras remexe o uru de palha matizado, onde traz a selvagem seus perfumes, os alvos fios do crautá, as agulhas da juçara com que tece a renda, e as tintas de que matiza o algodão.

Rumor suspeito quebra a doce harmonia da sesta. Ergue a virgem, os olhos, que o sol não deslumbra; sua vista perturba-se” (ALENCAR, 1999).

A partir da leitura do fragmento de Iracema, responda:

Sabemos que há uma intenção temática na composição de Iracema. Através da descrição da heroína, explique essa intenção, sintetizando o ideal de Brasil no século XIX.

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Questão 2: Leia o texto abaixo:

A feição deles é serem pardos, maneira de avermelhados, de bons rostos e bons narizes, bem feitos. Andam nus, sem cobertura alguma. Não fazem o menor caso de encobrir ou de mostrar suas vergonhas; e nisso têm tanta inocência como em mostrar o rosto. [...] Os cabelos seus são corredios. E andavam tosquiados, de tosquia alta, mais que de sobre-pente, de boa grandura e rapados até por cima das orelhas. E um deles trazia por baixo da solapa, de fonte a fonte para detrás, uma espécie de cabeleira de penas de ave amarelas [...] (CAMINHA, 1500).

O texto acima é uma descrição do índio, feita na época do descobrimento do Brasil. Estabeleça uma comparação entre esta descrição e a descrição de Iracema, no texto anterior.

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Questão 3. O texto seguinte, de Afrânio Coutinho, grande teórico e pensador da literatura brasileira, diz respeito às questões 03 e 04. Leia-o com atenção.

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“O problema da nacionalidade literária foi colocado, dentro da atmosfera do Romantismo, em termos essencialmente políticos. Misturadas literatura e política, a autonomia política transferia-se para literatura, e confundiram-se independência política e independência literária” (COUTINHO, 2002).

Segundo o texto, para os românticos:

A) A autonomia política e a autonomia literária foram duas faces de um mesmo processo de emancipação.

B) Autonomia política e autonomia literária mantiveram entre si uma relação de causa e efeito.

C) A autonomia literária sempre se seguiu à emancipação política.

D) Emancipação política e emancipação literária foram processos que se concretizaram independentemente um do outro.

E) Emancipação política e emancipação literária são processos que nunca se concretizaram realmente no Brasil.

Questão 4: Segundo o texto:

A) Romantismo foi uma escola literária de atmosfera essencialmente política.

B) No Romantismo, literatura e política interpenetram-se e exercem influência mútua, numa interdependência dialética.

C) Pode-se dizer que a política usou a literatura em suas campanhas, mas o inverso não é válido, pois a literatura não se valeu da política.

D) Independência política e independência literária são fenômenos distintos, que só se misturam em consequência de um erro de interpretação.

E) Romantismo foi uma escola literária de atmosfera nada política.

Questão 5: Segundo o crítico literário Alfredo Bosi, nos romances indianistas, como Iracema e O Guarani, “a entrega do índio ao branco é incondicional e implica em sacrifício e abandono de sua origem. [...] O risco de sofrimento e morte é aceito pelo selvagem sem qualquer hesitação” (BOSI, 1992a). A partir do que estudamos sobre o indianismo no Romantismo brasileiro, explique esse comportamento dos índios em relação aos brancos.

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Questão 6: Segundo Alfredo Bosi, o segundo momento romântico no Brasil mostra uma “existência doentia e artificial, desgarrada de qualquer projeto histórico e perdida no próprio narcisismo” (BOSI, 1980). Explique essa afirmação do autor.

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Questão 7: Uma característica, já presente em romances de José de Alencar encontra em Machado de Assis o ponto mais alto da narrativa brasileira no século XIX. Trata-se:

A) Do traço regionalista, que estende e procura completar a visão das terras do Brasil.

B) Do aprofundamento da análise psicológica das personagens, notadamente das femininas.

C) Da preocupação com o homem do sertão brasileiro, cuja vida é tema de romances e contos.

D) Da vertente indianista, preocupada em ampliar o conhecimento das coisas brasileiras.

E) Da identificação das situações criadas entre as personagens na trama narrativa.

Questão 8: Os naturalistas foram acusados de explorar a sociedade exibindo seus aspectos sórdidos e os ambientes viciosos em que as classes mais baixas aparecem cometendo seus “delitos”. Analisando o contexto sócio-histórico que favorece o naturalismo, diga se você concorda ou não com essa afirmação e explique sua resposta.

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Questão 9: Leia o texto e responda as questões a seguir:

“Inácio estremeceu, ouvindo os gritos do solicitador, recebeu o prato que este lhe apresentava e tratou de comer, debaixo de uma trovoada de nomes, malandro, cabeça de vento, estúpido, maluco.

— Onde anda que nunca ouve o que lhe digo? Hei de contar tudo a seu pai, para que lhe sacuda a preguiça do corpo com uma boa vara de marmelo, ou um pau; sim, ainda pode apanhar, não pense que não. Estúpido! Maluco!

Olhe que lá fora é isto mesmo que você vê aqui, continuou, voltando-se para D. Severina, senhora que vivia com ele maritalmente, há anos. Confunde-me os papéis todos, erra as casas, vai a um escrivão em vez de ir a outro, troca os advogados: é o diabo! É o tal sono pesado e

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contínuo. De manhã é o que se vê; primeiro que acorde é preciso quebrar-lhe os ossos.. Deixe; amanhã hei de acordá-lo a pau de vassoura!

D. Severina tocou-lhe no pé, como pedindo que acabasse. Borges espeitorou ainda alguns impropérios, e ficou em paz com Deus e os homens.

Não digo que ficou em paz com os meninos, porque o nosso Inácio não era propriamente menino. Tinha quinze anos feitos e bem feitos. Cabeça inculta, mas bela, olhos de rapaz que sonha, que adivinha, que indaga, que quer saber e não acaba de saber nada. Tudo isso posto sobre um corpo não destituído de graça, ainda que mal vestido. O pai é barbeiro na Cidade Nova, e pô-lo de agente, escrevente, ou que quer que era, do solicitador Borges, com esperança de vê-lo no foro, porque lhe parecia que os procuradores de causas ganhavam muito. Passava-se isto na Rua da Lapa, em 1870.

Durante alguns minutos não se ouviu mais que o tinir dos talheres e o ruído da mastigação. Borges abarrotava-se de alface e vaca; interrompia-se para virgular a oração com um golpe de vinho e continuava logo calado.

Inácio ia comendo devagarinho, não ousando levantar os olhos do prato, nem para colocá-los onde eles estavam no momento em que o terrível Borges o descompôs. Verdade é que seria agora muito arriscado. Nunca ele pôs os olhos nos braços de D. Severina que se não esquecesse de si e de tudo.

Também a culpa era antes de D. Severina em trazê-los assim nus, constantemente. Usava mangas curtas em todos os vestidos de casa, meio palmo abaixo do ombro; dali em diante ficavam-lhe os braços à mostra. Na verdade, eram belos e cheios, em harmonia com a dona, que era antes grossa que fina, e não perdiam a cor nem a maciez por viverem ao ar; mas é justo explicar que ela os não trazia assim por faceira, senão porque já gastara todos os vestidos de mangas compridas. De pé, era muito vistosa; andando, tinha meneios engraçados; ele, entretanto, quase que só a via à mesa, onde, além dos braços, mal poderia mirar-lhe o busto. Não se pode dizer que era bonita; mas também não era feia. Nenhum adorno; o próprio penteado consta de mui pouco; alisou os cabelos, apanhou-os, atou-os e fixou-os no alto da cabeça com o pente de tartaruga que a mãe lhe deixou. Ao pescoço, um lenço escuro, nas orelhas, nada. Tudo isso com vinte e sete anos floridos e sólidos” (ASSIS, 2007).

Durante todo o texto, vemos que o narrador faz julgamentos acerca das personagens. A partir dos julgamentos do narrador, diga qual é o tratamento dado à personagem D. Severina. Justifique sua resposta com elementos do texto.

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Questão 10. No Realismo, vimos que toda a idealização romântica é substituída por uma postura racional e objetiva. Qual a influência dessa postura nos textos realistas? Explique sua resposta.

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