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MITOS 16/01/2016 MITOS e MÍSTICAS DO NORDESTE (Literatura de cordel) Walter Tenório Pontes SUMÁRIO INTRODUÇÃO 1 SUMÁRIO INTRODUÇÃO 1 A visão dos vencidos , Concepção de messianismo, Misticismo e religião e O além-túmulo. Eternidade . Notas à introdução 10 PRIMEIRA PARTE: MESSIANISMO SERTANEJO Capítulo I Messias Antônio Conselheiro 14 Canudos e outros movimentos messiânicos 14 Antônio Conselheiro preocupa o clero 14 Emissário divino 15 Construção da Nova Jerusalém 17 Notas ao capítulo I 21 Capítulo II Messianismo cooperativista 23 Construtor de igrejas 24 Profeta da esperança 26 Vigário de uma religião mestiça 27 Um verdadeiro missionário 27 Notas ao capítulo II 29 Capítulo III Conselheiro e o sebastianismo 31 Poetas nacionalistas 31 Conselheiro contra a República 33 D. Sebastião no sertão da Bahia 33 Inferno se transforma em Céu 35 Notas ao capítulo III 40 SEGUNDA PARTE: O APOCALIPSE NO NORDESTE Capítulo I Padre Cícero, Vigário de Juazeiro 43 Juazeiro do Norte, a Nova Jerusalém 44 Um deus de carne e osso Crença e castigo 50 A Terra purificada pelo sangue e o fogo 50 Notas ao capítulo I 52 Capítulo II Um castigo medieval 53 Pessoas transformadas em animais 54 A onça, animal sagrado 56 Uma moça transformada em cobra Protestante transformado em jegue 57 Notas ao capítulo II 59 Capítulo III Uma religião mestiça Os fetichismos indígena e africano Profecias em forma de folhetos A flauta encantada Apocalipse

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MITOS 16/01/2016

MITOS e MÍSTICAS DO NORDESTE (Literatura de cordel)Walter Tenório Pontes

SUMÁRIO

INTRODUÇÃO 1

SUMÁRIOINTRODUÇÃO 1A visão dos vencidos ,Concepção de messianismo,Misticismo e religião e O além-túmulo. Eternidade .

Notas à introdução 10

PRIMEIRA PARTE: MESSIANISMO SERTANEJOCapítulo IMessias Antônio Conselheiro 14Canudos e outros movimentos messiânicos 14Antônio Conselheiro preocupa o clero 14Emissário divino 15Construção da Nova Jerusalém 17Notas ao capítulo I 21

Capítulo IIMessianismo cooperativista 23Construtor de igrejas 24Profeta da esperança 26Vigário de uma religião mestiça 27Um verdadeiro missionário 27Notas ao capítulo II 29

Capítulo IIIConselheiro e o sebastianismo 31Poetas nacionalistas 31Conselheiro contra a República 33D. Sebastião no sertão da Bahia 33Inferno se transforma em Céu 35Notas ao capítulo III 40

SEGUNDA PARTE: O APOCALIPSE NO NORDESTECapítulo IPadre Cícero, Vigário de Juazeiro 43Juazeiro do Norte, a Nova Jerusalém 44Um deus de carne e ossoCrença e castigo 50A Terra purificada pelo sangue e o fogo 50Notas ao capítulo I 52

Capítulo IIUm castigo medieval 53Pessoas transformadas em animais 54A onça, animal sagrado 56Uma moça transformada em cobraProtestante transformado em jegue 57Notas ao capítulo II 59

Capítulo IIIUma religião mestiçaOs fetichismos indígena e africanoProfecias em forma de folhetosA flauta encantadaApocalipse

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Notas ao capítulo III

Capítulo IVA vinda da Besta-FeraA Besta-Fera e outros mitosA Fera no século XVIINúmeros apocalípticosA Fera chegará antes de 1980Notas ao capítulo IV

Capítulo VA voz de Frei DamiãoOs santos, os cangaceiros e a políticaDeserto vai virar marProfecias contraditóriasNotas ao capítulo V

Capítulo VIUm sonho extraordinárioRomaria a JuazeiroComo escapar do holocaustoA esperança messiânica continuaPadre Cícero recebido pelo Papa Notas ao capítulo VI

Capítulo VIIAs orações popularesA oração talismãMundo místico do sertãoOração popular contra as profeciasComo evitar a fome, a peste, a seca e a guerraEvitar um exemploO vendedor de oraçõesNotas ao capítulo VII

TERCEIRA PARTE: A VIDA DO ALÉM-TÚMULO – O INFERNO NO SERTÃOCapítulo IDante e os poetas populares 115Os Guias no Inferno 115Culto dos mortos 116A passagem de uma vida à outra 117As aventuras de Lampião no Inferno 118Notas ao capítulo I 120

Capítulo IIO cantador Riachão contra o Diabo 121Desafio de um cantador fantástico 122Simbolismo das cores 122Amarelo, cor da astúcia 123Mau cheiro do enxofre 123Notas ao capítulo II 125

Capítulo IIIUm personagem diabólico 126O Diabo é preto? 126Um poeta contra a ciência 129Culto ao Diabo 130Divindades infernais contra divindades celestes 132Notas ao capítulo III 134

Capítulo IVUma festa no Inferno 136Sanfoneiro contratado por SatãDistância e itinerário para o Inferno 138Um baile danado 140Como sair do Inferno 142Notas ao capítulo IV 144

Capítulo VDiabo agricultor 147Trigo no sertão 146Um camponês nas malhas de Satã 148

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Galo canta à meia-noite 149Sanfoneiro tem mais sorte que o camponês 150Notas ao capítulo V 152

Capítulo VIInferno é três vezes maior que o mundo 154Revoluções infernais 155Eleição democrática 156Lampião toma posse 157Paraíso no Inferno 158Notas ao capítulo VI 160

Capítulo VIILampiãoNotas ao capítulo VII

Capítulo VIIIEncontro no Céu do mal e do bem 169Mito e ritos do renascimento 170Transportes cósmicos 172Lampião e Satã no Céu 173Coexistência entre o bem e o mal 179Notas ao capítulo VIII 180

REFLEXÕES E CONCLUSÃO 182Os cangaceiros, heróis do povo e elite da cultura popular, e cultura, uma convergência erudita 183185Representatividade e legitimidade da poesia popular 186Perspectiva de pesquisas 187Bibliografia 188Índice onomástico 198Xilogravuras 202

- 1 -IntroduçãoSeria o messianismo um componente do sentimento individual e do comportamento social do povo do Nordeste do Brasil? Afirmá-lo seria peremptório, negá-lo, muito arriscado.A elaboração e a defesa de uma tese devem supor, necessariamente, senão opiniões favoráveis ou desfavoráveis, pelo menos, um acordo de princípio sobre os temas a abordar.Estas primícias, corretas do ponto de vista formal, ou formador, manifestam-se muito limitativas durante um trabalho de pesquisa à medida que se avança no terreno anteriormento escolhido. É por isso que o trabalhode pesquisa científica deve ser concebido da maneira mais maleável e livre possível. Agindo assim, o pesquisador terá como única obrigação, como única lei, a realidade do terreno de estudo e, em consequência, a sua pesquisa avançará objetivamente apoiada na realidade. Mas é necessário dizer que a "objetividade" não é coisa simples.Há momentos, talvez muitos, durante os quais ela não é explícita. É preciso procurá-la, interpretá-la, compreendê-la e, sobretudo, interrogá-la.Eis aí o método que dirigiu o nosso trabalho. Sem pretender o título de pesquisa sociológica, não poderíamos deixar de solicitar a ajuda de uma metodologia sociológica de análise e de interpretação. Em o fazendo, procuramos compreender uma parte do fenômeno social e cultural da sociedade nordestina do Brasil, em particular a dos sertões.A poesia popular, a literatura de cordel, é, com efeito, uma manifestação social e cultural, mais que uma manifestação literária na sua concepção clássica.O conhecimento ou a procura das belas-letras não devem ser a preocupação dos poetas populares.Quanto ao nosso trabalho, é preciso dizer que não partimos do exame direto do terreno físico e social, mas sobretudo do fato cultural, da expressão literária, da poesia popular, na sua forma escrita, a literatura de cordel. Os modestos e simpáticos folhetos são a nossa matéria-prima. Desse modo, ficaremos no reino "literário", embora essencialmente popular.Passemos, então, a algumas definições que nos parecem indispensáveis para a compreensão deste trabalho.Primeiramente, falemos de popular. Devemos compreender esta expressão como "o que vem do povo, feito pelo povo". Esta concepção apresenta certos inconvenientes, especialmente em sua definição ideológica, no sentido de que o termo popular, do povo, nem sempre corresponde ao que consideramos ser o verdadeiro interesse do povo, como classe social mais numerosa e menos favorecida. Mas este "conceito social" não convém quando falamos de poesia popular do Nordeste brasileiro. Esta poesia ou literatura de cordel é popular na medida em que é produzida por representantes da classe ou de camadas populares, as mais numerosas e as mais desfavorecidas da sociedade agrária da região, ela mesma, pouco desenvolvida social e economicamente.

- 2 -Então, qual é o interesse e o "charme" da literatura de cordel? Primeiramente, ela é a manifestação

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imediata, ingênua, de um passado e de um presente sobre o qual foi construído e desenvolvido todo um sistema de civilização dominante, ao serviço das camadas mais favorecidas. Os nossos poetas populares nem sempre reagem como representantes da cultura dominada, sob um ângulo de visão dos vencidos, como diria N. Wacthel (1), mas como vulgarizadores da história e dos ensinamentos recebidos ao longo dosséculos. Não obstante, a poesia popular nos aparece como a mais autêntica expressão "mensurável" de uma comunidade ou população determinada. Sua forma repetitiva, às vezes improvisada, aparece como umespelho social e sociológico do povo sertanejo em geral.

Em seguida, o que nos atrai na poesia popular, particularmente na literatura de cordel, é o fator estético, seu vocabulário, sua sintaxe, sua entonação, sua rima e seu ritmo que são indênticos aos do falar da regiãode onde ela é originária. Os poetas populares não são imitadores nem tradutores. Eles são a voz mais próxima, a mais direta, a mais autêntica dos meios socioculturais de onde eles surgem e aos quais eles se endereçam.Eis aí como compreendemos a palavra popular, em especial na concepção da poesia popular, que neste trabalho se aplica à literatura de cordel do Nordeste do Brasil. Aqui nos apoiamos sobre uma afirmação importante, uma espécie de "declaração de princípio" de alguém que estudou, ensinou e acompanhou a literatura de cordel durante mais de dois decênios, declarando que estamos diante "da única forma de literatura realmente lida e ouvida pelo povo" (2). Tratando-se de um país de mais 200 milhões de habitantes,essa declaração parece-nos ainda mais importante e deve nos fazer refletir ainda mais.Passemos agora à questão inicial deste trabalho, precisamente as concepções do vocábulo messianismo. Todavia, antes de tentar responder a essa interrogação, o que seria resumir antecipadamente o conteúdo deste trabalho, vamos tentar fazer as aproximações semânticas que nos inspiraram os folhetos de cordel, classificados, a priori, no campo temático do messianismo, isto é, do messianismo do Nordeste.Sabemos que messianismo é definido habitualmente como “a crença no messias”; sendo este o ser excepcional que conduzirá o povo eleito ao paraíso terrestre. O paraíso pode ser simbolizado, como nas religiões judaico-cristãs, pela cidade de Jerusalém ou outras "cidades santas" que possam responder às mesmas aspirações de redenção.Ora, todos esses acontecimentos, que chamaríamos sociorreligiosos, que se produziram no Nordeste nas últimas décadas do século XIX e nas primeiras de nossa época, que tiveram como fonte de inspiração um personagem excepcional (um messias ou profeta) e como cenário uma crença "religiosa" manifestada por um comportamento coletivo de caráter fanático, podem ser classificados facilmente no campo geral do messianismo. O messias e os acontecimentos compõem os elementos do quadro e da estrutura indispensáveis ao surgimento da crença e do movimento messiânico (3).

- 3 -Em termos de Nordeste, quando e como encontraremos os messias e seus messianismos? Veremos as personagens e os acontecimentos mais importantes da história "místico-religiosa" ou dessa religião popular a partir do século XIX, através do olhar e da voz dos poetas populares da região. A literatura erudita, originária do Nordeste, que se inspirou nos mesmos termos, não será ausente neste trabalho. Em particular,tentaremos ressaltar as proximidades de pensamento e de linguagem que são bastante frequentes.Poetas populares e escritores eruditos passeiam lado a lado neste universo cultural que se chama Nordeste. Parece-nos que as origens sociais diferentes e as possibilidades intelectuais e materiais tão distantes umas das outras não impediram essas duas formas e expressão socioculturais de manifestar uma mesma visão de mundo.Algumas personagens marcaram a história do Nordeste, sobretudo no nível das camadas populares e médias do campo, das vilas e das cidades do interior. Esses personagens místico-religiosos tiveram enormeinfluência sobre as populações e os acontecimentos sociais dos sertões. � verdade que outras regiões do Brasil conheceram também outros acontecimentos carregados de misticismo, mas nunca com tanta intensidade e profundidade.Pensamos no fenômeno da crença mística, nos poderes miraculosos de certas pessoas e no dogma da infalibilidade de certas ideias.Poderiamos pensar que existe uma tendência religiosa intrínseca às populaçoes nordestinas. Mas esse cárater propriamente religioso não pode ser defendido em relação aos habitantes das campanhas; talvez setrate de um caráter carismático e supersticioso, de medo. Essas populações, historicamente abondanadas àsua triste sorte, desenvolveram cultos e crenças como uma fuga para a frente à procura de compreensão e de solução para suas augústias e solidão. Respostas desesperadas apareceram, calmantes e lenitivos paraesses males materiais e espirituais. Misticismo e profetismo encontraram um terreno favorável, ajudados portoda sorte de agentes sociais, preponderantes e interessados, da sociedade dominante do Nordeste brasileiro que puderam intervir nos momentos oportunos.É nesse quadro histórico e sociocultural que a literatura de cordel se desenvolveu, como a literatura erudita. Elas foram, e ainda são, o reflexo desse complexo místico-religioso que tentamos estudar.Esta problemática é apresentada às vezes diretamente, abordando personagens e acontecimentos históricos, suas vidas, milagres e aventuras; outras vezes por intermédio da ficção, da imaginação mais ou menos intelectualizada. Nesta ordem de ideias, duas personagens mereceram a atenção e a estima previlegiadas dos poetas: Padre Cícero Romão Baptista (4) e Antônio Conselheiro (5).Verems também Frei Damião (6), sucessor do primeiro, que, no entanto, não atingiu o mesmo nível de popularidade. Os acontecimentos místicos e muito mitificados da história do Nordeste, como Canudos (7) e Pedra Bonita (8), completarão o quadro de nossas pesquisas. A literatura de cordel e a erudita se impregnaram e se inspiraram enormemente desses elementos.

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-4 -A este nível desta introdução, julgamos necessário explicar o significado da expressão Mmístico-religioso, utilizada ao longo deste trabalho, principalmente na segunda parte. Somos conscientes de que o emprego sobretudo do vocábulo místico não corresponde sempre à sua definição clássica e corrente na Europa, isto é, de uma doutrina religiosa que procura atingir a perfeição pela contemplação até alcançar o estado de êxtase. Mas nós não vacilamos em adotar a definição e o uso feito desse vocábulo no Brasil, em particular no Nordeste, seja entre os poetas populares, seja na literatura erudita, como entre os cientistas sociais, sociólogos, etnólogos e historiadores. Místico significa globalmente tudo o que diz respeito a uma religião, à crença espiritual e ao sobrenatural. A palavra é empregada nessa acepção ainda mais quando se trata de descrever ou se referir a ideias e práticas religiosas consideradas como estranhas e misteriosas. Místico e misterioso estão muito próximos quando se tem que tratar de crenças e manifestações do espírito, no sentido religioso, sobrenatural e mesmo das ciências ocultas.Vejamos a seguir alguns exemplos da utilização de mística e misticismo:

R-uiu todo misticismoO-nde a falsa pregaçãoD-issipou milhares de vidasO-bscurecendo o sertãoL-ivre Deus. Pai Verdadeiro,F-indo Antônio ConselheiroO-utro não apareça, não. (9)

Eis como o poeta popular Rodolfo Coelho Cavalcante que, aliás, aplica seu nome ao acróstico final de seu folheto, concebe as atividades do profeta de Canudos: "Todo o misticismo caiu".Se agora olharmos do lado histórico, veremos o indispensável Euclides da Cunha dar a mesma interpretação. O extrato seguinte foi escolhido entre muitos outros com o mesmo sentido:“[...] todas as crenças, ingênuas, do fetichismo bárbaro às aberrações católicas, [...] se condensaram no seumisticismo feroz e extravagante [...]". (10)Euclides da Cunha não resistiu, então, a associar as crenças fetichistas dos índios autóctones às aberrações católicas para compor o misticismo do Conselheiro.Seguindo a mesma linha relativa a compreensão e emprego dos vocábulos místico ou misticismo, embora analisando mais profundamente o aspecto messiânico dos acontecimentos, vejamos o que nos diz, mais próximo de nós, a socióloga Maria Isaura Perreira de Queiroz: “encontramos então nos movimentos messiânicos um tipo determinado de religião, definido pela existência de dois temas místicos básicos, [...] mas só serão messiânicos os que tratarem da instalação do Milênio por um enviado divino”. (11)

- 5 -Messianismo e misticismo, assim, são difíceis de se separar quando se trata do Brasil.No que concerne ao Padre Cícero e à cidade santa de Juazeiro, a denominação e associação de misticismoe religião são totalmente generalizadas, embora não encontremos muitos poemas populares em que o vocábulo seja expresso; é a ideia que é implícita. Entretanto, nos textos eruditos, é a regra geral. Veja-se a impressão do jornalista Edmar Morel, que não hesita em insistir com o mesmo tema:"Senti, ao primeiro contato com o povo, que o Padre Cícero deixara uma cidade nas trevas do analfabetismo e de um profundo misticismo”. (12)E sobre Padre Cícero:"Dominavo-o, nesse tempo, fundo misticismo". (13)E, aliando o misticismo às atividades sobrenaturais do taumaturgo, o jornalista testemunha no sentido do que Padre Cícero era:"Influenciado por estranho e profundo misticismo, acreditava nos milagres [...]" (14)Segundo todos esses testemunhos a propósito da natureza mítico-religiosa dos dois mais importantes messias do Nordeste, Antônio Conselheiro e Padre Cícero, e dos acontecimentos históricos sobre os quais eles exerceram todo o peso das suas personalidades, pensamos poder reivindicar significados particulares ao Brasil, e ao Nordeste em especial, do significante místico e de suas variações. Resta-nos, ainda, dar a palavra a dois sociólogos, um brasileiro e o outro francês (talvez brasileiro de coração), que se interessam muito pelas concepções globais das camadas populares a propósito das crenças religiosas ou místicas. Vejamos antes de tudo a aproximação do sociólogo Joaquim Alves:"Das questões que agitam o Nordeste, a que desperta mais interesse pela controvérsia, que vem suscitandohá quase meio século, é por certo, a religiosa, cujo centro vital é Joazeiro, irradia-se pelos sertões, entre os rurígenas de todas as classes, a influência pessoal do Padre Cícero. Das informações colhidas nas viagens que temos feito nos sertões nordestinos e limítrofes e do estudo sobre as tendências místicas da nossa gente [...]". (14)E sobre as crenças e a atitude de certas personagens:"Pertence a todo o sertão o modo peculiar das crenças dos seus filhos, que, onde julgam necessário, erigem ermidas para renderem homenagem e dirigirem suas preces ao Deus de sua consciência". (14)

- 6 -"Perdido no meio das catingas, a visão dum místico destaca sítio onde constroe um santuário e erege seu orago". (15)Em seguida vejamos o que lemos na obra de Roger Bastide, cujo título já é bastante significativo, Imagens do Nordeste místico, em branco e preto."As religiões, crendices populares, magia negra, formas velhas e novas de manifestações sobrenaturais,

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todo o mundo místico que sobrenada nas águas primitivas e atuais da alma humana, foram coligidas e analisadas pelo conhecido professor." (16)Trata-se aí de comentários do crítico Geraldo de Freitas sobre o trabalho e as pesquisas de Bastide. Mas vejamos também a síntese do autor, ele mesmo, sobre o que viu a propósito da problemática das crenças e manifestações religiosas no Nordeste:"O misticismo do Nordeste não é apenas uma meditação sobre a agonia e a finalidade das coisas". (17)É necessário, desse modo, aceitar essas definições de místico e misticismo, sem o que a expressão místico-religioso empregada ao longo deste trabalho, particularmente na segunda parte, não será compreendida. A argumentação e a compreensão dos feitos e das crenças expostas pelos poetas populares, assim como as análises que fazemos, são apoiadas globalmente sobre os conceitos que se veem ser expostos.Resta agora explicar a inclusão da eternidade num trabalho no qual as duas primeiras partes têm por títulos e temas de pesquisa o messianismo e o misticismo religioso. Bem entendido, a eternidade é um velho tema de pesquisa e de especulações, desenvolvido por todas as religiões do mundo desde que elas existem. Ora, nada mais natural que esse tema acompanhe os seus “aparentados”, tratados anteriormente. Messianismo e misticismo, certamente, são considerados como parte do domínio das coisas espirituais. A esperança messiânica, a vida mística e a eternidade, "o Além", completam-se num quadro filosófico e religioso bastante lógico. Lamentamos, mas, de uma certa maneira, seremos obrigados a contrariar esse esquema lógico e naturalmente apresentado. Como teremos a oportunidade de ver durante odesenvolvimento deste trabalho, a literatura de cordel nos fornecerá materiais que oscilarão entre o religiosoe o social. Dizemos literatura de cordel porque é a versão ou as versões que nos oferecerão os poetas populares, inicialmente do messianismo e do misticismo sertanejos, e em seguida de seus conceitos de eternidade. Por eternidade, deve-se compreender a vida do Além, a vida do além-túmulo. É necessário fazer a distinção. A eternidade sugere duas ideias, dois esquemas de pensamento imediatos. O primeiro seria a concepção, digamos, religiosa. Todos os crentes dignos deste nome contam com uma vida eterna, apartir da separação da matéria e do espírito. Alguns se sentem no direito de esperar a eternidade, livres dossofrimentos e das preocupações terrestres, numa palavra, o Paraíso, ou sua etapa mais ou menos passageira, o Purgatório. Outros, procurando evitar de pensar seriamente, são menos seguros; temem um futuro eterno menos feliz como os primeiros, os "eleitos".

- 7 -Todos os crentes, em suma, serão colocados num lugar segundo suas vidas terrestres ou, mais precisamente, segundo o tipo de vida que eles viveram ou que praticaram. Suas ações no planeta Terra, boas ou más, são registradas, e todos terão de se explicar no momento oportuno.Alguns merecerão o Paraíso, enquanto os outros, os sem chance, serão enviados ao Inferno; como castigo pelos seus pecados graves, continuarão suas vidas de miséria e de má sorte ad vitam aeternam. Resumindo, é a ideia de recompensa e de castigo que é implícita na concepção religiosa de vida eterna ou de eternidade.A outra versão de eternidâde é mais vaga para não dizer fluida. Existiria uma vida eterna que prolongaria a vida do espírito, depois da separação do corpo, que nao é o espírito, no sentido religioso corrente? Seria uma espécie de fogo invisível, uma força não muito definida, qualquer coisa que existiria na atmosfera ou noAlém, mas que teria assim mesmo uma existência real, perceptível, mas não visual? Em suma, deve existir "qualquer coisa" depois da morte, mas não se sabe bem o que é nem onde ela está. É natural que esta visão de eternidade ou de vida eterna seja mais difícil de compreender e menos admitida pelos comuns dos mortais. Em comparação com a versão religiosa, com o seu esquema lógico de Inferno, Purgatório e Paraíso, a versão de vida eterna "em todos os lados e em lugar nenhum" é muito pouco compreendida. O gênero humano e, certamente, a espécie animal em geral precisam de proteção, de segurança, mesmo queesse elemento reste muito longe, veja-se utópico, é sempre uma esperança, um objetivo. Não é por acaso que se formaram todos esses messianismos, misticismos e mitos de todo gênero. A gente procura se assegurar, de uma maneira ou de outra, aqui na Terra ou no indefinido Além.Essas digressoõs nos parecem necessárias a fim de introduzir o tema da eternidade em termos de poesia popular nordestina. Os nossos poetas populares não se fecharam numa torre de marfim; eles reagem a partir de um passado e de um meio ambiente sociocultural determinados. Nós o observaremos nas primeira e segunda partes deste trabalho. A terceira parte, a eternidade, o Além, também não será qualquer coisa isolada ou abstrata. Ela seguirá certos esquemas de pensamento, refletirá um passado cultural do qual todoo mundo ocidental se mostra impregnado. Haverá inovações, quase revoluções, se nos colocarmos sob uma ótica de conceitos morais conservadores e preceitos religiosos atuais. Vejamos, assim, como isso vai se produzir.Primeiramente, é preciso rever as noções de eternidade.Para os poetas populares do Nordeste brasileiro, trata-se muito claramente do "Além", de uma vida além-túmulo, diríamos mesmo que para eles não há passagem entre a vida terrestre e a "outra" vida. Não há, sobretudo, separação da matéria e do espírito.Depois da morte, a vida continua para as mesmas pessoas que continuam a desempenhar o mesmo papel que anteriormente. Em geral, o papel dessas pessoas ou desses personagens não muda em nada. Muda o quadro, o cenário, a sociedade, mas os mesmos atores continuam a viver.

- 8 -Outro aspecto muito importante a destacar nessa vida do Além, construída pela poesia popular, é a ausência quase total da noção de punição, de castigo. Dizemos quase total porque há sempre alguns vestígios de punição ou de recompensa. Seria talvez mais conveniente falar de uma certa separação.

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Os bons e puros do nosso mundo continuariam suas vidas nos lugares bons e puros do outro mundo; os maus, os elementos nocivos, não seriam aceitos nesses lugares.Como exemplo, basta dizer que, na poesia popular, Padre Cícero e Antônio Conselheiro têm uma vida pacata no Céu, enquanto o célebre cangaceiro Lampião e os seus comparsas vivem naturalmente no Inferno, "fazendo das suas". Pode-se dizer que isso representa o esquema mais tradicional do ponto de vista religioso: os bons, no Paraíso, e os maus, no Inferno.Mas a realidade do além-túmulo é mais complexa. Parece-nos que existem noções bem pronunciadas da visão messiânica do mundo na poesia popular, mesmo quando se trata da vida do além-tumulo. Na poesia popular o assunto é bem claro, existem os "bons" e os "maus” messias, como heróis "positivos" e "negativos" (18).Vejamos alguns títulos de folhetos sobre a eternidade para facilitar a explicação:A entrada de Padre Cícero no Céu visto por uma donzela de 13 anos; (19)Antônio Conselheiro, o Santo Guerreiro de Canudos; (20)Chegada de Lampião no Céu; (21)A briga de Antônio Silvino com Lampião no Inferno; (22)A chegada de Lampião no Inferno; (23)A eleição do Diabo e a posse de Lampião no Inferno. (24)Para os dois primeiros folhetos, não há problema. Os dois profetas, após uma vida terrestre durante a qual eles pregaram a esperança messiânica da construção do Paraíso em Juazeiro e Canudos, continuam a inspirar as mesmas crenças através de sucessores ou poetas. Simplesmente, se eles chegaram ao Paraíso celeste, seu regresso ao planeta Terra é anunciado em muitos folhetos que nós veremos mais adiante.Quanto aos dois outros poemas, que serão analisados na parte 3 deste trabalho, nós podemos constatar a presunção que os célebres cangaceiros deveriam também ser recebidos no paraíso com relação a Antônio Silvino: "diz-se mesmo que lá está" (25). Seriam apenas fantasias dos poetas populares, ou existiria qualquer coisa no ar para as pessoas dos sertões? Segundo os dois últimos folhetos, a noção de Inferno, como nós veremos, muda completamente. Trata-se de umlugar muito animado, moderno e "vivo". Lampião lá se instala, é eleito prefeito e empreende melhoramentos que foram, durante muitos decênios, os sonhos messiânicos das populações das vilas e cidades do Nordeste: instalação da hidrelétrica de Paulo Afonso, irrigação dos campos, calçamento das ruas, etc. (26). Desse modo nós veremos um Inferno paradisíaco, dotado de instalações modernas, como a eletricidade. Nesse momento ocorre uma grande modificação. Esse lugar, normalmente escuro, sombrio e sem nenhumaluz, aparece muito claro e bem iluminado, graças à energia de Paulo Afonso. Isso se opõe a todas as concepções antigas que afirmam o contrário.

- 9 -Ora, se o inferno não é mais um local sombrio e escuro, ele se torna claro e alegre. Seremos informados das grandes festas que se realizam. As "pessoas" se distraem, fazem festas e muitas outras atividades. Somente essas revelações representam já uma completa revolução relativamente à "vida" no Inferno, mas, como que para reforçar suas ideias, os poetas populares põem em dúvida outros conceitos tradicionais.O Inferno não é mais um lugar de acesso irreversível, a gente pode passar sem ser obrigado de ficar ad aeternum, a gente pode fazer um passeio. A esse propósito, os poetas populares nos contam histórias de pessoas vivas que vão ao além-túmulo por algum tempo para desempenhar um trabalho determinado, cumprem os seus compromissos perante os diabos e seus pensionistas e, em seguida, voltam para casa tranquilamente. Talvez essa concepçao não seja completamente nova. Por exemplo, pensemos no poeta Dante Alighieri que, já no século XIV, fez umas viagens ao Inferno e mesmo em locais mais nobres do além-túmulo. Mas Dante foi, antes de tudo, um ser excepcional, foi o genial poeta da Divina Comédia. No Nordeste, é diferente. Não os poetas que passeiam no Inferno, mas pessoas como todo mundo, tocadores de sanfona, cangaceiros, etc.Talvez para desmistificar as ideias sobre o além-túmulo, os poetas populares nos contarão outras aventurasinfernais e diabólicas. Inferno e diabruras são considerados como uma simples continuação da vida terrestre, nada mais. Haverá certos diabos que vêm à Terra, bem fantasiados, para buscar seus clientes, às vezes pessoas de bem. Essas viagens são repetidas. Os diabos conseguem se fazer necessários e ocupar boas posições. Isto reforça a ideia de que os enviados de Satã não são tão maus assim. Isso explica a grande popularidade que eles desfrutam no Nordeste brasileiro, pelo menos na versão da literatura de cordel.Os poetas populares nos transmitem certos aspectos importantes do sentimento e da psicologia das populações rurais, ou de origem do interior do Nordeste, e talvez do Brasil, país ainda bastante ligado à terra, não obstante sua urbanização relativamente rápida. Messianismo sertanejo, O Apocalipse no Nordeste e A vida do Além-túmulo – o Inferno no sertão, embora sejam os títulos das três partes separadas desta tese, constituem a expressão de um conjunto de ideias manifestadas pelos modestos poetas populares, com relação às inquietudes espirituais de um povo em luta permanente contra as insuficiências sociais e culturais de toda ordem. Não é muito surpreendente ver se desenvolverem tantos comportamentose crenças, confusas, místicas e messiânicas, entre uma população tão sofredora em regiões bloqueadas historicamente por um tipo de sociedade que, em alguns aspectos, lembraria certas estruturas velhas, próximas da Idade Média, como, por exemplo, as enormes propriedades agrárias improdutivas. Tentaremos,neste trabalho, analisar o reflexo mais fiel e mais direto do sentimento e da indagação social e cultural do povo dos sertões do Nordeste, através dos versos de seus poetas populares, da sua literatura de cordel.

- 10 -1- WACTHEL, Nathan. La vision des vaincus. Paris: Gallimard, 1971.

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2- CANTEL, Raymond. Colóquio organizado pela universidade de Roma em 1978, sob a direção de LucianaStegagno Picchio.3- QUEIROZ, Maria Isaura Pereira de. Réforme et Révolutions dans les sociétés traditionnelles. Paris: Anthropos, 1968.4- Padre Cícero Romão Baptista, 1844-1934. Termina seus estudos eclesiásticos em 1870. Em 1872 é nomeado vigário de Juazeiro do Norte, Distrito do Crato, Ceará. Sua vila conta 32 casas à sua chegada. Em1889, ocorre o primeiro milagre do Padre Cícero, a hóstia se transforma em sangue na boca de uma fiel na hora da comunhão. Em 1897, Padre Cícero é proibido de exercer os atos religiosos. Ele vai a Roma para conversar com o Papa. Volta ao Brasil em 1888. A hierarquia mantém a proibição.5- Antônio Conselheiro, nome verdadeiro: Antônio Vicente Mendes Maciel. Os detalhes de seu estado civil são pouco conhecidos. Sobre sua família, Euclides da Cunha nos informa que "os Maciéis viviam entre Quixeramobim e Tamboril, Ceará. Vieram pela lei fatal dos tempos, a fazer parte dos grandes feitos criminosos do Ceará, em uma guerra de família". (Os sertões, p.153). Antônio Conselheiro foi o chefe espiritual do célebre acontecimento místico-religioso chamado Guerra de Canudos. Todas as informações conhecidas confirmam que ele era analfabeto ou inculto.6- Frei Damião, missionário de origem italiana, viveu no Brasil muitos anos. Aos 80 anos ainda desenvolvia grande atividade no Nordeste, onde seus sermões f oram sempre muito ouvidos.7- Canudos: lugar ou campo do sertão de Bahia, que deu nome a um dos acontecimentos místico-religiososdos mais dramáticos da história do Brasil. Esse acontecimento insurrecional teve uma tal importância que motivou na época a intervenção do governo dos Estados Unidos da América.8- Pedra Bonita: localidade situada no distrito de Vila Bela, alto sertão de Pernambuco, nos confins do Rio Pajeú. Acontecimentos de caráter místico e fanático que se produziram nos anos 1836-1837. Milhares de fanáticos dos sertões foram sacrificados a golpes de faca e outras armas brancas por ordem do chefe espiritual, o profeta popular Antônio Ferreira, o Iluminado. O profeta anunciava a chegada do reino encantado d'El Rei Dom Sebastião, o Desejado. Segundo o místico Antônio Ferreira, os dois rochedos chamados Pedra Bonita, ou porta do reino, seriam abertos depois de serem lavados com o sangue das crianças e dos inocentes.9- CAVALCANTE, Rodolfo Coelho. Antônio Conselheiro. l. ed. Salvador, Bahia, p.8.10- CUNHA, Euclides da. Os sertões.12. ed. Rio de Janeiro: Livraria Francisco Alves, 1933, p.150.11- QUEIROZ, M.I. Pereira de. O messianismo no Brasil e no mundo. São Paulo: Domínio, 1965, p.330.12- MOREL, Edmar. Padre Cícero o santo de Juazeiro. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1966, p.1.13- Idem, p.17.14- Ibidem.15- ALVES, Joaquim. Nas fronteiras do Nordeste. Ceará: Typografia Urânia, p. VII e 162. A data da edição não é indicada, mas há uma dedicatória do autor assinada 18-VI-32.16- BASTIDE, Roger. Imagens do Nordeste místico, em preto e branco. Rio de Janeiro: Gráfica O Cruzeiro, 1945.17- Id., p. 35.18- PONTES, Walter Tenório. Machismo, literatura de cordel. Lisboa: Edição Rolim, 1981.19- ATHAYDE, João Martins de. Folheto sem data de publicação.20- CAVALCANTE, Rodolfo Coelho. Idem.21- PACHECO, José. Chegada de Lampião no Céu.22- LEITE, José Costa. A Briga de Antônio Silvino com Lampião no Inferno.23- PACHECO, José. Idem.24- O exemplar que possuímos desse folheto não indica o nome do autor; no entanto, no local reservado normalmente para a impressão deste nome está indicado "editor-proprietário João da Silva”. Trata-se de uma cessão de direitos relativamente corrente entre os poetas populares.25- Como o título do folheto indica, os dois famosos cangaceiros se encontram no Inferno. Uma luta gigantesca se produz entre os dois personagens que são apoiados por aliados ferrenhos. Como Lampião é apoiado por todos os diabos e pelos outros pensionistas infernais, Antônio Silvino se encontra numa posição muito difícil e em situação de vencido. Nesse momento, um feito extraordinário acontece: emissários dos Céus chegam ao Inferno para tirar o bom cangaceiro da dificuldade e conduzi-lo ao Céu. A seguir as últimas estrofes do folheto:

Porém no mesmo momentoChegou o anjo da guardae o anjo São Miguelcada qual com uma espadavieram tirar Silvinodaquela grande enrascada.

-12 -Os diabos tiveram medoquando os anjos ali chegaramsoltaram Antônio Silvinoarrepiados ficaramos anjos pegaram na mãode Antônio Silvino e levaram.

Entregaram ele a S. PedroS. Pedro aproximou-se

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deu um abraço em Silvinodele penalizou-semandou ele entrar e dizemque ele agora salvou-se.

PRIMEIRA PARTEMESSIANISMO SERTANEJO

-14 -CAPÍTULO IO MESSIAS ANTÔNIO CONSELHEIRONenhum estudo sobre o sentimento messiânico, notadamente sobre o misticismo religioso ou leigo do povo do Nordeste, não pode desconhecer, antes de tudo, o personagem excepcional do messias Antônio Conselheiro (1) e do movimento messiânico e insurrecional de Canudos (2). É evidente que Canudos não foi o primeiro movimento ou acontecimento messiânico que se produziu no Brasil, nem mesmo no Nordeste.Outros o precederam e o seguiram (3). O século XIX bem como as primeiras décadas do século XX foram ricos em acontecimentos desse tipo. Pensamos particularmente nos movimentos messiânicos ou nas explosões rurais do Nordeste. Nestes dois últimos séculos, os acontecimentos de Pedra Bonita (4), em 1836, do carismático Antônio Ferreira, muito particularmente, que o inspiraram estudos históricos e sociológicos, como o Romance d'A Pedra do Reino, de Ariano Suassuna, e Pedra Bonita, de José Lins do Rego.Cronologicamente, chegamos aos acontecimentos de Canudos, cujo apogeu se situa em 1896-97, período marcado pela exterminação dos crentes e seguidores do movimento, executados fisicamente pelas forças armadas e policiais do Estado brasileiro da época (5). Este movimento, em particular seu chefe espiritual, Antônio Conselheiro, será o objeto de estudo desta primeira parte. A importância histórica e social bem como a repercussão popular de Canudos justificam sua escolha entre os outros acontecimentos messiânicos. Deve-se destacar a contradição que existe entre a enorme repercussão que atingiu o Conselheiro no Nordeste e no Brasil em fins do século (6), a grande esperança fanática que provocaram as peregrinações do taumaturgo e os poucos traços deixados nos meios de expressão popular da época, como, por exemplo, na literatura de cordel. Os folhetos, as cantorias, com efeito, sobre Canudos ou sobre o Conselheiro são raros. Este fenômeno é assinalado por diversos autores (7), sem que tenhamos uma explicação plausível sobre o porquê. O pouco, ou a quase ausência, de traços deixados pelos movimentos messiânicos brasileiros na literatura popular é, então, um fenômeno geral, à exceção do Padre Cícero e um pouco do messias Antônio Conselheiro. Graças aos poetas populares Rodolfo Coelho Cavalcante (8) e J. Sara (9), o messianismo do Nordeste, através do personagem extraordiário de Antônio Conselheiro e da legenda do rei Dom Sebastião, será estudado a seguir.Vejamos o folheto Antônio Conselheiro, de Rodolfo Coelho Cavalcante, que começa seu poema com informações histórico-biográficas sobre o personagem iluminado:Fim de século dezoitoNa Bahia apareceuUm Pregador cearenseQue dizia: – Quem sou eu?– Sou o Emissário DivinoSalvador do NordestinoQue ouve o conselho meu. (10)

- 15 -Não sabemos de onde vem a referência ao século XVIII. Os historiadores mais avisados e os documentos oficiais informam que a Campanha de Canudos se desenvolveu, no seu apogeu, entre 1896 e 1897. É evidente que o Conselheiro, um pregador cearence, começou suas exortações alguns anos antes dessa data. Euclides da Cunha, a maior autoridade na matéria, situa o começo das viagens desse personagem na década de 1970. Na época, o Conselheiro empreendia peregrinações nos sertões da Bahia, Sergipe e outras regiões (11). Ele avalia a duração dessas viagens nestes termos: "Na sua romaria ininterrupta de vinte anos".O conselheiro não era ainda muito conhecido, mas já o bastante para inquietar o clero da Bahia. O arcebispo do Estado fez chegar aos párocos da região uma circular para preveni-los sobre os perigos das atividades do Conselheiro. O arcebispo se pronunciava em termos muito significativos já em 1882; o peregrino de Canudos era acusado de abalar "as consciências, enfraquecendo, não pouco, a autoridade destes lugares" (12).É costume ver o poeta popular trocar algumas datas, assim como a origem de certas professias. Essa prática viria da vontade dos poetas que "têm liberdade" (13), ou seria simplesmente falta de informação precisa? Não se pode dizer.O que podemos é tentar algumas aproximações. É verdade que, no sentimento popular, certas ideias não são muito claras, em particular relativamente às predições místico-religiosas, às profecias e a certos acontecimentos trágicos da região nordestina. O século XIX foi especialmente repleto em matéria de acontecimentos e ajuntamentos sociorreligiosos, nos quais o fanatismo atingiu um alto grau. Já citamos Pedra Bonita (1836) e Canudos (1896-1897), mas convém lembrar o fenômeno de Juazeiro do Norte, onde o personagem central, idolatrado durante algumas décadas, foi o Padre Cícero Romão Baptista, e os acontecimentos de Caldeirão, lugar do município do Crato, Estado do Ceará, nos anos de 1936-1938 cujo profeta, o Beato Lourenço, era um dos discípulos do Padre Cícero.

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Esses acontecimentos deixaram traços profundos no subconsciente das populaçõess do Nordeste, sobretudo das regiões rurais, sertanejas. Como se trata do século XIX e da primeira metade do XX, pensamos que quase toda a população nodestina foi atingida, direta ou indiretamente, pelas ideias místico-messiânicas que dominaram essa série de acontecimentos.Nos primeiros versos do folheto Antônio Conselheiro, o autor nos informa que "fim do século dezoito/ na Bahia apareceu/ um pregador cearence". Como não vemos onde Rodolfo Coelho Cavalcante encontrou esta data, e diante do surgimento dos eventos místico-religiosos e sociais do século XIX, pensamos que ele se enganou simplesmente. Ainda mais, digamos que a relação entre o século e os anos não é sempre clara nos meios populares: os anos 1800 devem ser confundidos com o século XVIII.Mas deixemos a querela de datas e examinemos os outros aspectos da chegada do Conselheiro à Bahia. Segundo nosso poeta Coelho Cavalcante, o profeta se apresentava já num estilo um tanto misterioso: “Quem sou eu? / Sou o Emissário divino”.

-16 -Veja-se lá, nada menos que o “Emissário de Deus”.Como sempre acontece com esses personagens messiânicos, eles são os salvadores da humanidade: salvador do nordestino, não desse ou daquele homem ou mulher, mas daqueles que têm confiança n'Ele: "que ouve o conselho meu". Observamos que o verbo ouvir tem, em geral, o sentido de “escutar”. Aqui, ele tem um significado mais amplo. O poeta quer significar “seguir, aceitar, os conselhos sem tergiversar”.É o sentido carismático. Essa ideia nos envia a outros personagens imbuídos desse sentimento misterioso, dessa missão divina, que percorreram o Nordeste nos anos 1800. Vejamos o que nos conta o velho eremitaZé Pedro, sobre a chegada de outro iluminado a Pedra Bonita em 1836, segundo o texto erudito e muito popular do escritor nordestino José Lins do Rego.“Ele se chama Ferreira, vem no corpo de Antônio Ferreira, vencer os demônios, abrir a porta dos homens que não querem abrir para os pobres, botar os pobres no lugar dos ricos e os ricos no lugar dos pobres” (14).É a missão divina dos personagens que vem à Terra, nos sertões, para fazer o bem e a justiça; para salvar as pessoas.Enquanto Antônio Conselheiro se dirige a todo o Nordeste, “[...] que ouve o conselho meu”; Antônio Ferreiravem para vencer os demônios e abrir a porta da felicidade aos pobres.E o Conselheiro continua:

Trago a palavra de DeusQue é a Espada da VerdadeSou o caminho daqueleque deseja a Eternidade. (15)

Aí o poeta utiliza uma linguagem mais simbólica, de acordo com o objetivo espiritual, a eternidade. Ele confirma que o profeta nos mostra o caminho, único, talvez. É a mesma linguagem que apresenta um outro poeta popular, Dila Soares, quando transmite as palavras de um outro profeta do Nordeste, o célebre Padre Cícero:

do padre beijou a mãoo padre disse seguimoso caminho da salvação. (16)

E, para confirmar o bom caminho, ele acrescenta:

Siga por esse caminhoque será um felizardo. (17)

Porém, continuemos com o nosso Conselheiro que, de certa maneira, se diferenciou em palavras e atos dosseus colegas, os outros profetas. Ele tinha preocupações sociais mais aparentes; a justiça e a igualdade entre os homens eram mais percebidas nas suas prediçõs e nos seus conselhos:

Seja moço ou seja VelhoOuvindo meu EvangelhoTem que fazer caridade. (Grifos nossos) (18)

- 17 -O poeta Coelho Cavalcante não disfarça as suas palavras. Trata-se bem da evangelização dos sertões. Nosso pregador cearense tinha seu próprio evangelho e se dirigia a todos os meios sociais, a todas as idades. Mas era preciso ter cuidado porque a eternidade tem suas condições, um preço.É preciso fazer a caridade: "Tem que fazer caridade". Poderiamos dizer que todos os evangelhos pregam a caridade. Isto não é muito original. Mas o Conselheiro é diferente. Ele se mostra mais radical, mais exigentecom os seus discípulos:

� Só peço aos meus seguidores

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� que cuidem da Salvação� vendendo tudo que tem– E entregando ao seu irmão. (Grifos nossos) (19)

Aí ele parece mais conciliador: “Só peço [...]”, mas o emprego do verbo pedir é bastante ilusório, pois ele lança uma grande ameaça:

O reino já se aproximaquem não ollhar para cimaFica inficado no chão (Grifo nosso) (20)

Veja-se a felicidade eterna que se aproxima. Mas aquele que não olhar para cima, para o Céu, ou para o próprio Conselheiro, que não seguir os seus conselhos, fica inficado (sic) no chão, no Inferno? Evidentemente, a expressão “só peço”, seguida da ameaça terrível, é um simples eufemismo do poeta. Ele não traduz a dura vontade do messias.Por enquanto estamos na apresentação de nosso personagem, pelo menos do que nos mostra o poeta Coelho Cavalcante. Ele nos descreve Antônio Conselheiro, suas palavras, suas promessas, seu caráter e sua personalidade. O profeta é muito exigente com seus fiéis, mas não se recusa a se explicar diante deles e justificar suas exigências materiais.

– Caso e batizo de graçaNão pago imposto tambémPorque a terra é de Deusnão pertecendo a ninguém...Construirei a CidadeQue se chama na verdadeA "Santa Jerusalém". (21)

Vejamos agora os verbos casar e batizar na primeira pessoa do singular do presente do indicativo. É uma forma transitiva direta, pessoal, bastante utilizada na linguagem popular habitual do Nordeste.

Em relação à filosofia e às preocupações sociais do Conselheiro, esta estrofe pode nos explicar muitas coisas. Ela nos remete a alguns versos das estrofes anteriores: “vendendo tudo que tem/ E entregando ao seu irmão”. (22)Será que devemos vender todos os nossos bens e entregar o resultado pecuniário a nossos irmãos de religião, a nossos camaradas ou irmãos de família, a nossos iguais? Ou melhor, a expressão “ao seu irmão”significa ao Conselheiro, o grande irmão e profeta?

- 18 -Parece-nos que, sem cometer heresia, o seu irmão é muito bem o messias Antônio Conselheiro. Isto mostraria um sentido prático bem desenvolvido da parte de um profeta.Mas, para sua defesa, digamos que ele justifica a sua atitude: “Caso e batizo” de graça. Estaríamos então diante de um ministro de finanças muito eficiente que cobraria antecipadamente o preço de serviços que poderiam ser pedidos depois: casamentos e batizados.O profeta, porém, não ficava só nos serviços religiosos. Sua religião invadia o domínio da administração. Nesse ponto, ele se aproximava de certos cangaceiros que se colocavam em oposição ao regime dominante e se chocavam com a percepção das finanças: “Não pago imposto também”.Eis uma característica deste profeta contestatário. O que nos declara o poeta Coelho Cavalcante, nesses versos na primeira pessoa, é confirmado por vários historiadores da Campanha de Canudos. Segundo esses historiadores, a recomendação de não pagamento de impostos foi o pretexto principal invocado pelasautoridades para decidirem os primeiros ataques e perseguições contra o Conselheiro.

"Os Conselheiristas se rebelam contra a cobrança de impostos. Segundo Euclides da Cunha, o primeiro incidente do gênero ocorreu em Bom Conselho, num movimentado dia de feira, quando estava reunida ali não só a população da localidade, mas de suas redondezas. O Conselheiro manda arrancar os editais de cobrança de impostos e com eles faz uma fogueira em praça pública." (23)

É muito interessante observar que um personagem tão convencido de sua missão divina, de suas preocupações sobre o destino do povo nordestino se interesse e ataque com tanta decisão e violência as prerrogativas da administração. Os domínios temporais e intemporais se confundem. Muitas explicações são avançadas a propósito dessa tomada de posição de Antônio Conselheiro, mas nós ficamos, por enquanto, nas motivações apresentadas pelos poetas populares:

Porque a terra é de DeusNão pertencendo a ninguém.

De toda maneira, o profeta tem suas razões na qualidade de enviado de Deus, emissário divino, e não se sabe por que ele deveria pagar impostos de uma terra que pertence a Deus. Ele vai mais longe. Quer dizer que ele realiza melhor seu projeto temporal, mesmo conservando seus objetivos messiânicos:

Construirei a Cidade

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Que se chama na verdadeA “Santa Jerusalém”. (24)@

- 19 -Eis aí mais um ponto sobre o qual a literatura popular e a literatura de inspiração popular estão sempre de acordo.Os personagens místicos que se sucederam no Nordeste do século XIX procuraram sempre construir um lugar sagrado e conduzir seus fiéis até lá; um lugar reservado aos puros, como a Vila Santa de Jerusalém. No caso de Antônio Conselheiro, esse lugar se chamava Belo Monte; para o Padre Cícero, era Juazeiro e, para Antonio Ferreira, Pedra Bonita. Essas três cidades diferentes, esses três nomes nordestinos, simbolizam a mesma ideia, o mesmo mito da redenção do povo escolhido, eleito, que chega à Terra Prometida.Não é por acaso que o poeta R. Coelho Cavalcante, que deve conhecer a história de Canudos, diz que a cidade do Conselheiro se chama "A Santa Jerusalém", quando, na realidade, o profeta a batizou de "Belo Monte".É a ideia judeu-cristã, materializada no nome mesmo de Jerusalém (isto é, a paz surgirá), que nosso poeta pretende, talvez, nos transmitir.É nesta cidade santa, ou nas outras do mesmo gênero, que o povo de Deus, no nosso caso os pobres sertanejos, encontrarão a felicidade eterna. Este mito religioso serve a camuflar as dificuldades e as misérias do momento, sobretudo quando ele é interpretado por pessoas menos avisadas. De toda maneira, nossos profetas sertanejos interpretam um velho sonho do Apocalipse:"Enfim aparece uma ilha de verdura: a Igreja onde estão os puros. A castidade é o sinal destes bem-aventurados". (25)Naturalmente esta ilha de verdura não é acessível a todo mundo. Sacrifícios os mais excessivos eram exigidos aos que desejavam lá chegar. O primeiro dever era a obediência cega ao profeta do momento. No caso do Conselheiro, não foram os milagres, como Padre Cícero, que lhe deram tanto prestígio e poder junto das camadas populares. Ele se caracterizou por seus sonhos e promessas messiânicas. Digamos que, ao contrário dos outros pregadores, o nosso Conselheiro adotou uma orientação mais pragmática, mais positiva, seja no terreno prático, como o não pagamento de impostos, seja no terreno espiritual. Com essa orientação, ele atingiu as camadas populares e médias da população, segundo informa o poeta Coelho Cavalcante:

O estranho MissionárioNa sua "Santa Missão"Espalhava o fanatismoPrometendo SalvaçãoPai de Família enpregadoPor ele catequizadoSe juntava a multidão. (26)

Ressaltemos que no segundo verso a expressão “Santa Missão” no original é impressa em negrito e certas palavras dos outros versos começam com letras maiúsculas.

-20 -Eis Santa Missão, Missionário, Salvação e Pai de Família. Pensamos que o poeta deseja chamar a atenção dos leitores para a seriedade e importância da história que ele nos está contando. Um missionário em sua santa missão que, de um lado espalhava, suscitava o fanatismo de pessoas bem estabelecidas, pai de família empregado, isto é, que tinha um trabalho, uma situação. Não se tratava só de miseráveis retirantes. Essa revelação do poeta popular é confirmada por estudiosos e historiadores:

"Conquistava assim as simpatias não somente dos pobres, mas também daqueles que, possuindo uma nesga de terra e algumas reses, mal assegurando com isto o sustento da família, não podiam, de forma alguma, satisfazer absurdas exigências fiscais – os pequenos proprietarios” (27).

É interessante observar que no folheto Antônio Conselheiro, Rodolfo Coelho Cavalcante privilegia o aspectosocial do eremita. A linguagem assim como os temas abordados são essencialmente de natureza social, como estamos observando.Trata-se de um personagem que alia temas místico-religiosos judeu-cristãos a ideias sociais bastante atuais. É a imagem de um iluminado messiânico moderno, muito preocupado com os problemas do espírito e da vida material, mesmo social. A preocupação de justiça do Conselheiro é sublinhada em cada estrofe, em cada verso.

-21 -1- QUEIROZ, M.I. Pereira de. Réforme et Révolution dans les sociétés traditionnelles. Paris: Anthropos, 1968. & O messianismo no Brasil e no Mundo. São Paulo: Domínio, 1965.2- Ver nota 3.3- QUEIROZ, Maria Isaura Pereira de. "Sem pretender esgotar a lista assinala 18 movimentos messiânicos no Brasil depois de 1817. Eis os mais importantes:

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- A cidade do Paraíso Terrestre, do profeta Silvestre José Dos Santos, antigo soldado da milícia provincial, no Monte Rodeador. Estado de Pernambuco, 1817-1820; - O Reino Encantado, de Antônio Ferreira, em Vila Bela, Pernambuco, 1836. O mesmo que Pedra Bonita já citado;- O Império de Belo Monte (Canudos), de Antônio Conselheiro;- Os Santarrões, em São Leopoldo. Rio Grande do Sul, 1872, este movimento foi conduzido pelos colonos alemães, José Jorge e Jacobina Maurer.- A cidade Santa de Juazeiro, do Padre Cícero, a partir de 1872;- A guerra Santa, dos ‘monges’ João Maria e José Maria, no Contestado, região entre os estados do Paranáe Santa Catarina;- O Caldeirão e o Circo dos Santos, do beato José Lourenço, afilhado de Padre Cícero, entre 1936 e 1938, Ceará.4- Pedra Bonita, localidade situada no município de Vila Bela, Pernambuco, palco de movimento messiânicoe de acontecimentos trágicos em 14 de maio 1838, quando dezenas de crentes, crianças e adultos foram sacrificados para preparar a chegada de um mundo novo.5- CUNHA, Euclides da. Os sertões. & FACÓ, Rui. Cangaceiros e fanáticos.6- Alguns autores estão convencidos de que o ressurgimento de certos mitos, como de movimentos messiânicos e místicos, no sentido empregado neste trabalho, coindidem ou são consequência de períodos agitados do ponto de vista social, econômico e político. No Brasil do século XIX, lembremos a Revolução de1817 em Pernambuco, a Abolição da Escravidão do negro en 1888, e a Proclamação da República em 1889.7- CANTEL, Raymond. Les prophéties dans la littérature populaire du Nordeste. In: Cahiers do Monde Hispanique e Luso-Brésilien, n.15, 1970.8- Rodolfo Coelho Cavalcante é um poeta dos mais ativos. Ele reside em Salvador, Bahia, onde se ocupa também da Ordem dos Poetas Populares e de outras associações.9- J. Sara ou Jota Sara. Há poucas informações sobre este poeta. Seu nome verdadeiro seria J. Aires.11- CUNHA, Euclides da. Os sertões, p.181.12- FACÓ, Rui. Cangaceiros e fanáticos. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1965, p. 54.13- PACHECO, José. In: Chegada de Lampião no Céu nos diz: “Poeta tem liberdade / Sagrado dom da natureza / Conforme a literatura / Escrever o que tem vontade”.14- Idem, p. 89.15- Apocalise, c XIV, cf. RENAN, Ernest. Histoire des origines du Christianisme, l'Antichrist. Paris: Calman-Levy, p. 422. O autor diz: “au milieu de flots de colère apparait maintenant un ilôt de verdure”.

CAPÍTULO II

MESSIANISMO COOPERATIVISTA

Pelo Cooperativismo Os fanáticos viviamTrabalhavam sem salários Os que ganhavam comiamSe conseguissem dinheiroEntregavam ao ConselheiroAssim nada possuíam. (Grifos nossos) (28)

Qual é o significado que pode ter cooperativismo para o poeta? Uma espécie de comunismo primitivo no qual os militantes, ou fiéis, trabalham apenas para ter o que comer? Podemos compreender também para se vestir, ter uma casa para morar e outros meios de satisfazer as necessidades da vida.Segundo nosso poeta, os fiéis tinham a possibilidade de fazer alguns trabalhos fora do circuito do Profeta, mas: "Se conseguissem dinheiro/ entragavam ao Conselheiro". Supomos que os fiéis podiam comercializar os produtos de seus trabalhos, de suas roças, mas deveriam entregar ao Conselheiro o seu resultado pecuniáio. É a regra geral nas comunidades religiosas.Era corrente nas comunidades da Idade Média e, atualmente, entre certos grupos político-socio-não-conformistas.Trata-se de uma espécie de promessa exigida pelos guias espirituais, emissários do bem divino. Aliás, essainterpretação é confirmada pela estrofe seguinte:

Quem seguisse o PregadorA casa não mais voltavaDeixava mulher e filhosDe uma vez se separavaEra Conselheiro o AmigoE o mais era InimigoCerto de que se salvava. (29)

Era pois a abdicação total ao Conselheiro ou à causa, particularidade de votos religiosos radicais e sectários, pois "Era o Conselheiro o Amigo/ E o mais era Inimigo". A oposição é total entre as duas categorias, amigo x inimigo.

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O simbolismo que começamos a observar no poeta Coelho Cavalcante nos conduz a pensar que a composição dos sinais, das letras, tem grande importância. Segundo o poeta, depois de exigir a doação total dos fiéis, dos discípulos, o Conselheiro se diz só “o Amigo”; tudo o mais é “Inimigo”.

- 24 -Todavia, voltemos à utopia místico-social de Antônio Conselheiro. Suas exigências, suas normas não eram privadas de uma certa sedução. Vejamos as impressões de Euclides da Cunha a este sujeito:

Anunciava, idêntico, o Juízo de Deusa desgraça dos poderosos, o esmagamento domundo profano, o reino de mil anos e suas delícias. (30)

E o autor se interroga: “não haverá, com efeito, nisto, um traço superior do Judaismo?”. (31)

Parece que os messias sertanejos se inspiram nas mesmas fontes. O interessante é saber como esse sentimento se arraigou tão profundamente nas populações, a tal ponto que essas ideias serviram de base místico-teórica a todos esses personagens e acontecimentos sociorreligiosos que dominaram o Nordeste nos séculos XIX e XX. Ao mesmo tempo, essas ideias se apoiam sobre as condições históricas e sociais daregião. Os poetas que se inspiram em Padre Cícero, Conselheiro ou Pedra Bonita não fazem mais que refletir esse sentimento profundo.

Como que respondendo a Euclides da Cunha, vejamos o que dizia Silvio Romero a propósito de Antônio Conselheiro e de sua penetração no Nordeste:“Chama-se Antônio e o povo o denominava O Conselheiro. Não tinha doutrina sua e andava munido de um exemplar das Normas Marianas, donde tirava a ciência!”. (32)Parece-nos, então, que todos estão de acordo em dizer que o profeta não tinha uma doutrina própria, apesar de sua enorme influência nos sertões dos anos 1870/80.Isso não é surpreendente, pois o mesmo fenômeno se produziu com os outros profetas do Nordeste, como Antônio Ferreira, de Pedra Bonita; o Beato Lourenço, de Caldeirão; e mesmo o Padre Cícero e Frei Damião,sem falar de outros menos conhecidos. A este propósito, ver a página 21. Enfim, a história e a ideologia sãosempre as mesmas, isto é, de base judeu-cristã.Entretanto, o que encontramos de diferente no profeta de Canudos, o que o distingue dos outros, é o seu messianismo, sua dominante otimista. Ele não prevê somente provações. Ele se apresentava diante do povo como um revoltado contra as injustiças e os sofrimentos das camadas populares. À sua maneira, em consequência de sua fé difusamente cristã, ele não pretendia tudo destruir, ao contrário, como nos informa Rodolfo Coelho Cavalcante:

Em toda Aldeia que elePassava ia ConstruindoCapelas e mais CapelasCom a multidão seguindo...Dessa forma era o retratoDo mais afoito BeatoQue do Norte Tinha vindo. (33)

-25 -Assim, O Conselheiro construía capelas com os seus fiéis por onde passavam. Era sua maneira de demonstrar a seriedade de sua missão provando que não era contra a Igreja Católica oficial. Ele construía igrejas que poderiam ser ocupadas pelos padres após sua passagem. Apesar disso, sofreu perseguições das forças da ordem pública a pedido da Igreja Católica. Sobre sua obra de construtor, vejamos o que diz o poeta J. Sara (34):

Desapareceu uma manhãE seguiu sua penitênciaNa Vila-Rica do Bom JesusFez a sua residênciaConstruiu uma capelaDo sertão inda a mais belaQue lhe rende reverência. (35)

Parece que esse "poeta visionário", o Conselheiro e não J. Sara, na expressão de Ariano Suassuna, marcava sua passagem nos campos e nas aldeias sertanejas com os seus sermões messiânicos e, sobretudo, pela construção de capelas. Vejamos também o que diz Manuel Diegues Junior:“O folheto descreve as obras que ele fez, a prisão que lhe foi ordenada, as injúrias que sofreu, sualiberdade, já no Ceará e a sua volta a Bahia, erguendoigrejas por onde passava. E gente de toda origem o acompanhava.” (36)

Diegues Junior resume o folheto O meu Folclore. Trata-se, talvez, da maior publicação do gênero literatura

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de cordel, completamente fora do comum, com suas 48 páginas, e, ao mesmo tempo, um dos raros folhetossobre o Conselheiro. A destacar a própria linguagem do intelectual Diegues Junior, que emprega o verbo erguer no gerúndio como que para nos dar o seu sentimento sobre o Conselheiro. (37) Veja-se, também, o que nos ensina o mestre Aurélio Buarque de Hollanda.

“Erguer: (1) Levantar, elevar, alçar. Quando o sacerdoteergue a hóstia, os fiéis se ajoelham.(2) Levantar, erguer, edificar. Ergueram a catedralem poucos meses [...] etc.” (38)

É o verbo adequado para comentar um poema que narra a vida e obra de um personagem tão messiânico. Entretanto, o verbo no gerúndio, erguendo, dá a impressão de que o profeta empregava seu tempo a erguer, construir igrejas, não era uma ocupação excepcional: "erguendo igrejas por onde passava". É, portanto, o sentimento transmitido pela poesia popular, pela literatura e história eruditas.

-26 -O messianismo de Antônio Conselheiro que nos é transmitido pela literatura de cordel, com as suas predições igualitárias e cooperativistas: "pelo cooperativismo / os fanáticos viviam", e seu elã construtor, contrasta com a imagem que temos do Padre Cícero, ou de Frei Damião. Estes últimos, como outros peregrinos dos sertões, passaram na poesia popular por causa do medo que suas palavras e sermões suscitavam entre o povo dessas regiões. Observamos que, em geral, as palavras, os sonhos e as outras manifestações desses apóstolos, segundo os folhetos consultados e outros documentos de vulgarização, são de inspiração apocalíptica. Os versos de J. Sara confirmam o que é dito anteriormente em relação ao aspecto messiânico do Conselheiro e as ameaças e punições inerentes aos outros enviados dos Céus:

Todo o povo ia apreciarEle lia seu BreviárioFazia alguns sermõesEra um grande missionárioE pregava a caridadeÉ um apóstolo da verdadeEste homem foi vigário (39)

Não se vê nenhuma referência às clássicas profecias de terror, aos sinais do fim do mundo, nem mesmo às invocações a poderes sobrenaturais, a milagres e castigos, habituais nos folhetos que contam a vida e os poderes de Padre Cícero, Frei Damião e outros. Pensamos, com base nesses versos e os outros citados anteriormente, que o povo gostava de ouvir os sermões do Conselheiro, "um grande missionário", de lhe pedir conselhos, porque ele pregava a caridade. Era um “apóstolo da Verdade”. O emprego da contração da, certamente intencional, reforça a impressão de que o profeta era muito apreciado e seguido por seus ouvintes. O último vocábulo parece exprimir a ideia do poeta J. Sara. O povo deveria ouvir e compreender seu profeta, que era um "apóstolo da Verdade". As pessoas procuravam vê-lo e ouvir palavras de esperança, mensagem de otimismo. Isso é dito com insistência pelo poeta. Vejamos também os versos seguintes:

Todo o povo ia apreciarEle lia o seu BreviárioEste homem foi vigário (Grifo nosso)

Apreciar: julgar, avaliar, ponderar; examinar, considerar, calcular, estimar. (40)

Em todas as definições do verbo apreciar no Dicionário Aurélio, constatamos que o sentido mais completo do vocábulo é "compreender". "Todo o povo" não estava interessado pelas profecias de catástrofes comuns em outros profetas, mas pelas palavras de esperança.

-27 -O verso seguinte é esclarecedor sobre um aspecto também importante do Conselheiro. "Ele lia o seu breviário". Trata-se da leitura cotidiana dos padres oficiais, dos salmos e ofícios do dia. E essas leituras e esses ofícios são feitos, normalmente, para que a gente os entenda. São preces, conselhos, máximas, exemplos morais ou religiosos. Esta prática, este rito, supõe, por ser eficiente, uma audiência, um público. Aseguir, veremos a síntese, a confirmação do papel que pretendia desempenhar o Conselheiro:“Este homem foi um vigário”.Conselheiro, um homem e um vigário. Os poetas populares utilizam sempre um vocabulário que chegue naturalmente a se adaptar ao falar das pessoas às quais eles se dirigem, que às vezes não sabem ler, ou o sabem muito pouco. Sabe-se, entretanto, que a poesia popular tem uma longa tradição oral e, por isso, ela é transmitida em leituras públicas em voz alta. Isto nos parece oportuno a propósito da palavra vigário, qualidade altamente estimada pelos habitantes do interior, das aldeias e dos campos. E a ideia do padre paternalista e poderoso ao mesmo tempo, sem a soberba da autoridade política ou administrativa, sem a conotação paternalista-ameaçadora de um coronel (41). O vigário é o conselheiro de todos os momentos, do batismo aos últimos instantes, à morte. É a imagem do representante do "todo-poderoso", de tudo que

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representa a religião católica oficial, do ponto de vista histórico e cultural, mesmo para essa religião "mestiça" do povo sertanejo, muito difusa e complexa ao mesmo tempo.Continuando a apresentação do seu personagem, do seu caráter e de suas altas qualidades morais e espirituais, de sua prática missionária, como "um grande missionário", nosso poeta J. Sara decidiu terminar sua estrofe com uma afirmação e um apelo à meditação, como alguém que consultou seu sentimento íntimoe sua responsabilidade de poeta popular:“Este homem foi vigário”.Eis por que pensamos ser interessante aprofundar a análise social e linguística do substantivo vigário. A denominação gramatical da palavra como substantivo nos deixa muito aquém de seu sentido real, especialmente do ponto de vista histórico e cultural. Naturalmente não pretendemos diminuir ou mudar a definição gramatical e oficial, que nos conferem os dicionários, da palavra vigário, pároco, representando localmente todo um dispositivo administrativo eclesiástico. Mas não pensamos que o poeta popular consulteos dicionários antes de compor os seus versos. E, em consequência, não pensamos que J. Sara, como todos os seus colegas poetas populares da literatura de cordel, tenha consultado esses livros eruditos oficiais antes de qualificar o Conselheiro como um vigário.

-28 -A definição dos dicionários é implícita. Mas o importante é a compreensão assimilada pela prática, pela vidacotidiana, pelas relações de todos os dias da população com seus vigários. Vejamos, por exemplo, como esse sentimento é expresso por um personagem popular do romance Pedra Bonita, de José Lins do Rego, preocupado com a chegada de um iluminado nos sertões, à sua região:Era um homem do interior, de pés no chão, de fala mansa.– Pois, seu Vigário, apareceu este sujeito dizendo que faz milagres. Ele diz que pobre fica rico. Que a pobreza vai desaparecer, que o mundo só fica com gente de posses iguais.– O Velho Zé Pedro que mora por lá há anos falou para o povo que o homem é igual ao santo dos antigos.– Vindo hoje aqui à vila eu me lembrei de falar com seu vigário.– Disse para mim "Vou falar com seu vigário da história da Pedra." (42)

Veja-se que “um homem do interior, de pés no chão”, descalço, vem falar com seu vigário, sobre alguém fora do comum que apareceu no sertão. O verbo falar deve ser compreendido num sentido bastante amplo: falar, informar e, sobretudo, ouvir seu vigário. Conhecemos bem essa maneira sertaneja de utilizar uma palavra, um verbo, a fim de transmitir um sentido exatamente contrário ao sentido habitual da língua portuguesa oficial (43). A maneira aparentemente negligente do matuto: "eu me lembrei de falar com seu vigário", quer dizer justamente pedir conselho ou saber a opinião do pároco, da autoridade, mais do que a do "seu vigário".Seria fácil argumentar que o autor dessas palavras, José Lins do Rego, é um romancista erudito que, por isso mesmo, não pode ser classificado como poeta popular. Absolutamente certo. Mas também é certo que o romance Pedra Bonita conta, em linguagem popular, os acontecimentos que tiveram lugar nos sertões de Pernambuco, em 1836, de onde o autor tirou o título e a maior parte dos nomes antênticos dos participantesdesse episódio histórico.Sem pretender analisar o livro de José Lins do Rego, pois o que nos interessa é apenas constatar o valor popular de sua linguagem e da proximidade do falar sertanejo, lancemos um olhar num comentário de Aurélio Buarque de Holanda Ferreira publicado em 1938:“Outras incorreções da linguagem [...] que veio a fixar-se como uma das qualidades mais puras e marcantesao escritor nordestino”. (44) Assim, poetas populares e escritores eruditos interpretaram igualmente o sentimento popular sobre o vocábulo "vigário" e, mais ainda, as qualidades, a transcendência da função de padre, de sacerdote, admitida como sendo a do personagem de Antônio Conselheiro. Para resumir, para sintetizar, vejamos estes versos de J. Sara:

E um apóstolo da VerdadeEste homem foi vigário. (45)

-29 -

28- CAVALCANTE, Rodolfo Coelho. Antônio Conselheiro. folheto, p. 4.29- Idem.30- CUNHA, Euclides da. op. cit., p. 172-3.31- Ibidem.32- ROMERO, Silvio. Cantos populares do Brasil. Rio de Janeiro: José Olympio Editora, 1945, p. 45.33- CAVALCANTE, R. Coelho. op. cit., p. 2.34- A informação sobre a identidade do poeta popular J. Sara é dada pelo prof essor Raymond Cantel, cf. DIEGUES JR., Manuel. Ciclos temáticos na literatura de cordel. In: Literatura popular em verso. Estudos, Tomo I, Rio de Janeiro: Edição da Casa Rui Barbosa, 1973, p. 114-115.35- J. Sara. O meu folclore. Cf. DIEGUES JR., M. op. cit. p. 114-115.36- SUASSUNA, Ariano. Romance d'A Pedra Bonita. Rio de Janeiro: José Olympio, 1972.37- DIEGUES JR., M. op. cit., p. 11538- FERREIRA, Aurélio Buarque de Holanda. Novo Dicionário Aurélio. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1975.39- SARA, J. op. cit., p. 115.40- FERREIRA, Aurélio Buarque de Holanda. op. cit.

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41- Coronel/coronelismo: o termo coronel é utilizado com respeito pelas populações rurais a propósito de um chefe político local ou de uma pessoa influente, de um proprietário de terras. Ele tem suas origens nos autênticos ou honoríficos coronéis da Guarda Nacional, criada pelo Regente Feijó, em 1831. cf. LEAL,VictorNunes. Coronelismo: the Municipality and Representatif Governement in Brazil. Cambridge Latin American Studies, Cambridge; PONTES, W. Tenório. La prépondérance masculine dans la littérature populaire du Nordeste du Brésil. Paris Sorbonne-III, 1976, p. 29.42- REGO, José Lins do. op. cit., p. 246-7.43- Um traço do falar enérgico dos sertões, este os Belos Montes. 2. ed. Arraial Bendego, município de Euclides da Cunha, Bahia, 1957. Por incrível que pareça, tudo isso é o título do folheto de J. Sara.

-31 -CAP�TULO III - ANTÔNIO CONSELHEIRO E O SEBASTIANISMO

Embora alguns autores digam que o sebastianismo, isto é, o messianismo português, não influenciou as lendas e a literatura populares do Nordeste, nós não podemos deixar de constatar uma grande identificaçãoao espírito messiânico encarnado por D. Sebastião por todos os movimentos proféticos e messiânicos ocorridos no Brasil no século XIX e primeiras décadas do século XX, especialmente os do Nordeste. Essa influência é patente nos episódios sangrentos de Pedra Bonita e de Canudos, no fanatismo popular ao Padre Cícero e à cidade de Juazeiro. Entretanto, é verdade que a poesia popular pouco registrou de maneira direta os feitos históricos e as lendas em torno do rei D. Sebastião, o que é surpreendente, dada a implantação sentimental, cultural e histórica de Portugal no Brasil. A história, a cultura e o imaginário europeu marcaram e deixaram traços profundos na cultura brasileira. Citemos, como exemplo, todo o ciclo carolíngio, com seus heróis e suas aventuras, que foi adotado, compondo mesmo um gênero da literatura de cordel dos mais ricos e produtivos. (46).Não há propriamente explicações válidas para o ostracismo do mito de D. Sebastião pela literatura popular, ainda mais que, segundo um estudo do prof essor José Calazans, as profecias de Antônio Conselheiro se inspiravam repetidamente em certos temas do milenarismo relativos à volta de D. Sebastiâo (47). O professor Raymond Cantel avança uma hipótese indicando que o espírito nacionalista dos poetas popularesseria a causa desse fenômeno: "il faut y ajouter que les espoirs messianiques des Nordestinos se sont transférés et restent fixés encore aujourd'hui sur la personne du trop célèbre Padre Cícero Romão Batista". (48)Mas, apesar da pouca produção dos poetas populares relativamente aos acontecimentos messiânicos nordestinos, salvo o caso do Padre Cícero, que será tratado na segunda parte deste trabalho, mais inspirado nos textos religiosos, em particular do Apocalipse cujas "esperanças" e ideologia são o fantasma do medo e das catástrofes materiais, sociais e espirituais. Convém lembrar e destacar a existência do folheto de J. Sara intitulado História da Guerra de Canudos – 1898. O interesse desse folheto é, antes de tudo, o de ser um dos raríssimos dedicados a Antônio Conselheiro e à Guerra de Canudos. Com relação à parte histórica e biográfica do Conselheiro, o autor não hesitou em fazer um amálgama desse personagem e do sebastianismo. Remarcamos que o nome de El Rei D. Sebastião é mencionado sete vezes, o que é considerável em se tratando de um folheto a propósito de Canudos, acontecimento brasileiro, produzido no fim do século XIX. Para apoiar essa tese, vejamos alguns versos de J. Sara:

-32 -Reuniu-se tanta gentePara o dia da redençãoEsperavam o SalvadorE o Rei D. Sebastião. (49)

O poeta não vacila diante do peso das palavras. Sua linguagem e a ambiência que ele pretende criar e fazer passar são propriamente de estilo messiânico. "Redenção, Salvador e D. Sebastião vão juntos. O salvador, bem entendido, é Antônio Conselheiro, que vem ao mesmo tempo que o outro salvador e redentor, o rei D. Sebastião:

Do céu baixou uma luzQuem não fizer o bemDom Sebastião já vemMandado do Bom Jesus. (50)

Uma luz desceu do céu. Trata-se sempre do Consellheiro que, segundo o poema "O povo dizia na reza", se fazia acompanhar do "Rei Encoberto".Ao mesmo tempo, o poeta cria uma contradição. Anunciando o retorno de D. Sebastião e do Conselheiro, ele coloca a esperança secular portuguesa no centro do movimento de Canudos:

Morrer, sofrer e rezarPorque iam ressuscitarCom D. Rei Sebastião. (51)

Morrer, sofrer e rezar são as palavras de ordem que J. Sara propõe. Isso, porém, não é definitivo porque as pessoas podem ressuscitar com D. Sebastião. Ao mesmo tempo, o poeta nos informa que havia rumores em todo o sertão sobre a presença do rei D. Sebastião em Belos Montes, num ambiente bastante

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paradisíaco.

Espalhavam mil boatosPor todo aquele SertãoEm Belos Montes já estavaO D. Rei SebastiãoDos Montes corria azeiteA água do rio era leiteAs pedras convertiam-se em pão. (52)

Os milagres eram extraordinários, superiores aos de Jesus Cristo, que transformou a água em vinho e multiplicou o pão e o peixe para alimentar os apóstolos. Em Belos Montes, o azeite corria das colinas, o leitesubstituía a água dos rios, e as pedras viravam pão para todo mundo. (53)Mas a associação popular de D. Sebastião e do Conselheiro à época de Canudos não ficava nesses versos.Os boatos eram cades vez mais insistentes:

- 33 -Lá dentro da cidadeSó se falava em MonarquiaD. Sebastião está chegandoPara o reino da BahiaA corte era Belos MontesQuem não vir logo a esta fonteDepois não se aceitaria. (54)

Nessa estrofe vemos aparecer o tema da Restauração portuguesa (55) e da Monarquia brasileira. Como vimos anteriormente, Antônio Conselheiro e seus miseráveis fanáticos de Canudos foram acusados de lutar em favor da Monarquia brasileira recentemente destronada (56). É interessante a aproximação desses dois períodos, português e brasileiro, que na realidade foram separados por alguns séculos.O poeta J. Sara volta à parte histórica da Campanha de Canudos, traçando a derrota da expedição do célebre general Moreira Cesar, infligida pelos fanáticos do Conselheiro:

Morreu o Moreira CesarÀs duas da madrugadaCorreram perdendo tudoArma, tropa e a BoiadaTamarindo e SalomãoQue defendiam o Canhão Morreram à beira da estrada. (57)

Convém remarcar o emprego do vocábulo boiada cujo significado corrente é “uma quantidade de bois”. Na estrofe precedente, o significado é mais amplo, compreende também cavalos e outros animais. Esta interpretação é sugerida pelo fato de que a expedição do general Moreira Cesar contra os resistentes de Canudos era apoiada fortemente por tropas da cavalaria militar (58). Além disso, podemos verificar que "boiada" segue as palavras "arma" e "tropa", o que a assimila a um vocabulário militar.As estrofes seguintes contam todas as fases da guerra de Canudos com uma preocupação histórica remarcável. Mas o que nos interessa em particular é a aproximação entre o sebastianismo e o conselheirismo. É por isso que voltamos aos versos messiânicos de J. Sara, sobretudo aqueles onde o rei português é evocado. A estrofe seguinte é a última na qual o poeta menciona o nome de D. Sebastião ligado aos acontecimentos do sertão da Bahia no fim do século XIX:

Tomaram todo armamentovíveres e muniçãoE espelharam boatosQue D. Rei SebastiãoChegou em Belos MontesTransformou a água das fontesEm leite e as pedras em pão. (59)

-34 -Assim, podemos concluir facilmente que o sebastianismo tinha uma grande penetração popular no Nordestedo século passado. Sua aproximação ou utilização pelo iluminado sertanejo Antônio Conselheiro não é evidente. Reproduzimos a seguir algumas palavras do prof essor R. Cantel que, apesar de sua hipótese sobre a substituição do messianismo português por um messianismo sertanejo em torno de Padre Cícero, diz que: "José Calazans a étudié le cas d'Antônio Conselheiro et il invoque, après Euclides da Cunha, diverspapiers recueillis à Canudos après la bataille, dont un ABC et de nombreux quatrains qui font alusion à D. Sebastiao" (60). Isto seria a prova, além do raro folheto de J. Sara, da influência do sebastianismo sobre o profeta Antônio Conselheiro.Enfim, para concluir este capítulo e esta primeira parte de nosso trabalho, deixemos a palavra aos poetas populares; primeiramente a J. Sara que, a nosso ver, exprime o sentimento popular das pessoas do interior

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nordestino nos versos seguintes:

O Conselheiro foi ao céuE a Deus pediu perdãoSão Pedro lhe respondeuDescansa aí teu bastãoCriarei um lugar novoPra descanso do teu povoAté vir a redenção. (61)

O Conselheiro vai deixar repousar seu bastão de pelegrino, mas a crença messiânica não vai se acabar por isso. E São Pedro lhe assegura que seu sonho, sua utopia messiânica será realizada. Um lugar novo, a Terra Prometida, será criado para o descanso, a paz, do povo do sertanejo.Canaã terá chegado? Os sonhos do Conselheiro e as promessas de São Pedro foram realizados? Passemos a palavra ao poeta Maxado Nordestino que, de Feira de Santana (62), em 1976, nos diz:

Falou Antônio ConselheiroQue o mar virava sertãoE o sertão virava marVindo dom SebastiãoJá tem mui realidadePra quem lê com atenção. (63)

O rei D. Sebastião guarda seu lugar ainda no ano de 1976 como símbolo messiânico do povo nordestino, segundo afirmações do nosso Bom Jesus Conselheiro. Maxado Nordestino não fica aí, entretanto. Ele nos oferece uma nova leitura das profecias do Conselheiro, "Pra quem lê com atenção", explicando que:

- 35 -O rio São Francisco jáTem lago artificialQue é o maior do mundoInundou o carnaubalTem-se 300 quilômetrosD'água pelo carrascal. ( 64)

Vê-se aí a profecia realizada, o sertão virou mar ou, pelo menos, um lago de 300 quilômetros em plena região árida, desértica. A crença messiânica renasce graças à nova leitura das profecias do Conselheiro. O poeta vai mais longe ainda, ele atinge o coração mesmo do reino do nosso messias:

Mas vamos falar agoraDa região do beatoDo rio Vaza-BarrisCaatinga de pau-de-ratoOnde o povo jagunçoSofreu muito desacato. (65)

O povo do profeta, "o povo jagunço" (66), muito sofreu dos insultos e das privações, mas a redenção é ao alcance da mão. A "felicidade" não tardará. A eterna falta d'água dos sertões e suas misérias habituais vão desaparecer. A felicidade e o paraíso em país de secas significa a abundância do líquido precioso. Mas:

Seu "Império Belos Montes"Conhecido por CanudosTambém jaz em baixo d'águaCoberto por mar-açudeSuas águas salobrasMas o rio é doce em tudo. (67)

Sem sair da problemática messiânica do Nordeste, nosso bom poeta continua a propor sua nova leitura das profecias de Antônio Conselheiro. Mesmo se apoiando sobre grandes obras da engenharia civil: barragens e irrigações artificiais construídas há mais de 40 anos (68), quer dizer, realizações bem materiais e concretas, esses versos continuam a se alimentar ou a alimentar a crença messiânica das populações do interior brasileiro. Esse sentimento popular seria ainda tão vivo? A estrofe seguinte responde pela afirmativa:

O santo prometeu darUm rio de leite e melCom barrancas de cuscuzPara quem amargava o felHoje com terra irrigadaO inferno virou céu. (69)

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-36 -Vimos mais atrás que São Pedro reforçou as profecias do Conselheiro, prometendo criar um lugar novo para os sertanejos. Por isso, não é surpreendente observar a continuação atualmente dos mitos messiânicos dos profetas do Nordeste. O poeta popular só faz traduzir em termos modernos as predições de antanho. Em o fazendo, bem entendido, ele contribui para a continuação dessas crenças. Notemos um outro aspecto interessante nos versos de Maxado Nordestino, isto é, a fidelidade ao caráter positivo do Conselheiro, relativo a empreendimentos e construção de obras de engenharia. Durante a sua vida, o taumaturgo ficou célebre pela construção de igrejas e por um certo sentido social de organização da economia dos seus domínios. Com a nova leitura das profecias, associando-as à construção de barragens, irrigações e todo um plano de transformações de vastas regiões sertanejas, o poeta segue a tradição de seus colegas antigos se expressando com mais lucidez, sem, entretanto, afastar-se das crenças populares. Vejamos como ele traduz as palavras do Bom Jesus Conselheiro:

Todo profeta é JesusEm sentido figuradoO leito de leite é melE seu gado pastoradoE os campos dando floresTendo cana pro melado. (70)

Sabemos que Conselheiro se dizia emissário divino, enviado de Deus. Seguindo essa lógica, o povo do interior o considerava, às vezes, como a encarnação de Jesus Cristo, daí a denominação de "Bom Jesus Conselheiro", ser divino capaz de receber as mensagens de Deus. Já em 1879, Silvio Romero registrava a quadra anômima seguinte:

Do céu Veio uma luzQue Jesus Cristo mandouSanto Antônio ApparecidoDos castigos nos livrou! (71)

Eis porque o poeta Maxado Nordestino diz, com razão, que "todo profeta é Jesus" (72). Ao mesmo tempo, ele populariza as célebres profecias relativas à transformação da água dos rios em leite e mel, das pedras em cuscuz. Muito pragmático, porém, nosso trovador explica:

Ali só faltava águaPra dar milho pro cuscuz. (73)Com água e irrigaçãoDá tudo naquela rocha. (74)

As profecias são quase reduzidas a uma questão de engenharia hidráulica. O poeta está em vias de desmistificar as santas predições, estrada perigosa e complexa, ainda mais que ele mesmo nos reconduz à linguagem e às formulações ao gosto dos personagens místicos:

-37 -Ali já houve um milagreE tem peixes pra danar. (75)

No espaço de dois versos, caímos num contexto quase religioso e bíblico. Três palavras nos levam lá: "milagre", "peixe" e "danar". As duas primeiras se referem ao milagre da "multiplicação" tão propagado pelo cristianismo, a terceira dispensa comentários. Milagre e danar são vocábulos que habitualmente não andamjuntos, aqui eles devem ser compreendidos, sobretudo "danar" (danado), no sentido do falar nordestino (76),cuja sintaxe e vocabulário nem sempre seguem a língua oficial brasileira, o português.Mas continuemos a nova leitura das profecias do messias Antônio Conselheiro. A nosso aviso, o poeta Maxado Nordestino vai atravessar uma etapa insólita e bastante contraditória relativa à reputação do messias de Canudos.

Só lamentamos que a vilaFicasse ali sepultadaMesmo isso foi previstoPelo chefe da jagunçadaNão ter pedra sobre pedraÉ a lição consumada. (77)

O pobre Conselheiro é rebaixado à condição de bandido mercenário (jagunço), nem mesmo de "cangaceiro", que seria mais honorável. Será a verdadeira intenção do poeta? Ou deixou-se ele levar por um simples excesso de linguagem? Seríamos favoráveis à segunda hipótese. Como sabemos, os fiéis do Conselheiro e dos outros messias e profetas do Brasil eram tratados de "jagunços", espécie de malfeitores dos campos, quando a sociedade global, o establisment, decidia eliminá-los.Como vimos no terceiro verso, o poeta nos assegura das capacidades proféticas do Conselheiro. Mesmo a submersão das vilas tinha sido prevista. É verdade que a célebre predição: "O sertão vai virar mar" pode

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tudo englobar. O que é certo é a interpretação do poeta dizendo que as barragens do vale do Rio São Francisco "é a lição consumada". Mas falta a aparição de uma predição, a mais importante, talvez, do ponto de vista histórico-utópico luso-brasileiro, para que a esperança messiânica sobreviva, para que o mito se perpetue. (78)

Só falta chegar o tempoDe vir rei sebastiãoRessurgir naquelas águas99?????? no sertão Para salvar o seu povoDe toda destruição. (79)

-38 -Eis-nos reenviados ao sebastianismo, como vimos em várias ocasiões nos capítulos precedentes, todos associados ao "Conselheirismo". O bardo Maxado Nordestino renova em toda a sua legitimidade a continuação do messianismo lusitano, transportando-o ao sertão do Nordeste brasileiro. Bem entendido, istonão é de sua única iniciativa. Outros poetas populares já o fizeram. A novidade é que esta ressurgência do sebastianismo explode no Brasil atual. Lembremos que o folheto Profecias do Conselheiro, subtitulado O sertão já virou mar, é datado de 1976. Seria o poeta Maxado Nordestino um caso isolado? Sem nos aventurar muito nos meandros das crenças e utopias, pode-se dizer que este tema é abordado pelos poetaspopulares, como Rodolfo Coelho Cavalcante e J. Sara, assim como por escritores eruditos, tais como ArianoSuassuna e José Lins do Rego, para não falar dos autores e obras mais citados nesta primeira parte deste trabalho. É normal pensar que o sebastianismo, por Antônio Conselheiro interposto, poderá ser encontrado em outros poetas e escritores populares e eruditos do Brasil atual.Isso não seria muito surpreendente, pois, ao exame dos principais movimentos messiânicos que se desenvolveram no Nordeste no século XIX e nas primeiras décadas do século atual (80), verificamos a presença bastante acentuada do mito português criado a partir dos famosos versos de Bandarra no século XVI.Nós dissemos anteriormente que o sebastianismo foi transposto ao Nordeste de nossos dias, entre outros, pelos versos do poeta Maxado Nordestino. Agora, verificamos que se trata mais do que uma simples transposição. Dom Sebastião ressurgirá "naquelas águas para salvar seu povo de toda destruição". Ora, a observação que fazemos imediatamente é relativa à expressão "seu povo". Evidentemente trata-se das populações dos sertões nordestinos, em particular da Bahia. Esse povo é considerado como pertecente ao rei português, mesmo tão longe no tempo e no espaço do efêmero reino deste Rei Encoberto. Poderíamos argumentar que, durante três séculos, o Brasil fez parte da Coroa portuguesa e, em consequência, os meiospopulares, messias e poetas inclusos se colocariam muito naturalmente entre os seus sujeitos.Poderíamos igualmente racionalizar de maneira oposta. O poeta consideraria D. Sebastião como um mito brasileiro, um messias do Nordeste, de tal maneira essa crença messiânica estaria ancorada na sua população. Dessa forma, iria se produzir um fenômeno de integração completa, isto é, o povo se considera pertencente a alguém que lhe pertence ou que faz parte dele, de suas crenças, de suas utopias; uma simbiose bem natural.Para defender essa tese, lembremos o sentido profundo da palavra povo no falar do Nordeste; meu povo = “minha família, os meus”. Não é por acaso, então, que o poeta diz que D. Sebastião ressurgirá das águas brasileiras para salvar "seu povo". A esses argumentos de ordem linguística, acrescentemos que todos os profetas ou messias aparecidos no Nordeste depois de 1817 até os anos 1930/1940 – exceção de Padre Cícero do Juazeiro do Norte – insistiam sobre o retorno do Rei Encoberto para a redenção do povo do sertão.

- 39 -O profeta Silvestre José dos Santos, de Monte Rodador (Pernambuco), em 1817, construiu uma capela ao lado de uma grota encantada, onde ele ouvia a voz de uma santa e de onde surgiria D. Sebastião (o Encantado, o Encoberto). Em Pedra Bonita, localidade também situada no sertão de Pernambuco, em tornode 1836, o messias João Ferreira dizia que "o reino seria desencantado" e surgiria na terra com a chegada próxima do rei e de sua corte. Em Canudos, 1896-1897, era a vez de Antônio Conselheiro, que pregava a saída do Redentor das águas do oceano. E, quase em nossos dias, em Caldeirão (Serra do Araripe, Ceará),justamente em 1935-1936, o santo José Lourenço, fiel do Padre Cícero, aparentemente menos próximo do sebastianismo, não é totalmente estranho ao fenômeno (81).Finalmente, vejamos também nos versos de Maxado Nordestino, que nos propõe uma nova leitura das profecias do Conselheiro, associando-as às grandes obras hidráulicas e de irrigação do rio São Francisco, integrando-as ao sebastianismo e ao messianismo dos sertões do Nordeste. Sua contribuição é ainda mais de tendênia nacionalista, pois, em vez de falar das águas do mar, o oceano Atlântico que liga o Brasil a Portugal, passando pela África, o poeta diz que se trata das águas do São Francisco, o rio da unidade nacional brasileira:

O rio São Francisco jáTem lago artificialSeu "Império Belos Montes"Conhecido por CanudosTambém jaz em baixo d'águaA lagoa imita o mar

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Tem ondas de metro atéSó falta chegar o tempoDe vir rei SebastiãoRessurgir naquelas águas. (82)

-40 -46- PONTES, W. Tenório, op. cit., cap 2. ANDRADE, Mário de. Danças dramáticas do Brasil. São Paulo: Martins, 1959, Tomo I. GALVÃO, Walnice Nogueira. Fiction moderne et représentation médiévale: un cas. In: Ideologie, littérature et société en Amérique Latine. Université de Bruxelles, 1975.47- CALAZANS, José. O tempo de Antônio Conselheiro. In: QUEIROZ, Maria Isaura Pereira de, op. cit., p. 204.48- CANTEL, Raymond, op. cit, p. 61.50- SARA, J., op. cit., p. 6.51- Idem, p. 9. Ibid., p. 10.52- Ibid., p. 1053- O messianismo na literatura de cordel pode ser confundido com o Eldorado, tema do poeta Manuel Camilo dos Santos, no seu folheto Viagem a São Suruê, que damos a última estrofe:

Lá existe tudo quanto é de belezatudo quanto é bom, belo e bonitoparece um lugar santo e benditoou o jardim da Divina Naturezaimita muito bem pela grandezaa terra da antiga promissãopara onde Moisés e Aarãoconduzia o povo de Israelonde dizem que corria leite e mele caía manjar do céu no chão.

54- SARA, J., op. cit., p. 16.55- Como em Portugal no século XVI, ver AZEVEDO, João Lúcio de. Bandarra e o sebastianismo. In: Boletim da Segunda Classe, Academia de Ciências de Lisboa, Tomo II, p. 193/201, Coimbra, 1918.56- A tese segundo a qual Antônio Conselheiro era um monarquista ferrenho tem vários adeptos; outros pensam que sua oposição a certas medidas da República, como a campanha contra o pagamento de impostos, era apenas uma coincidência com a novidade do regime republicano proclamado em 1889. Lembre-se de que o maior período de repressão contra o movimento de Canudos vai de 1895 a 1897, quer dizer, nos primeiros anos da República.57- SARA, J., op. cit., p. 25.

- 41 -(58) É interessante conhecer alguns números que são altos sobre o fenômeno de Canudos. QUEIROZ, Maria Isaura Pereira de, op. cit., p. 25, nos ensina que: "no seu apogeu, o império de Belo Monte contava 8.000 habitantes". FACÓ, Rui, op. cit. p.121, diz que: "foram mobilizados 12.000 homens em armas, e que 5.000 foram mortos nos combates". Esse escritor acrescenta que o próprio Ministro da Guerra veio em pessoa inspecionar a quarta expedição, a do general Moreira César. A tudo isto se deve somar o material de guerra, de transporte, animais e todo o sistema de apoio logístico, sem dúvida enorme para a época.59- SARA, J., op. cit., p. 26.60- CALAZANS, José, op. cit. p. 50-52. In: CANTEL, R. op. cit. p. 61.61- SARA, J., op. cit. p. 40.62- Feira de Santana, importante município do sertão da Bahia.63- MAXADO NORDESTINO. Profecias do Conselheiro (O sertão já virou mar). 3. ed. Feira de Santana, 1976.Com este autor começamos, talvez, uma nova geração de poetas populares. Maxado Nordestino é o pseudônimo do jornalista Franklin Machado, profissional domiciliado em São Paulo, autor de uma vasta bibliografia no gênero de folhetos de cordel.64- MAXADO NORDESTINO, op. cit. p. l.65- Idem, p. 2.66- Jagunço, jagunçada: expressão pejorativa para indicar camponeses, trabalhadores agrícolas pobres revoltados contra as condições de vida em que vivem.67- MAXADO NORDESTINO, op. cit., p. 2.(68- Ver as informações de M. LE LANNOU sobre os projetos de colonização da bacia do Rio São Francisco, nota 108, p.207 deste trabalho.69- MAXADO NORDESTINO, op. cit., p.3.70- Idem.71- ROMERO, Silvio. Cantos populares do Brasil. Rio de Janeiro: José Olympio, 1954, p. 46.

-42 -72- QUEIROZ confirma esta asserção. Ela fala da tipologia do messias: "a descrição corrente de um personagem messiânico é a de um ser extraordinário, dotado de atributos heroicos ou sagrados [...]". In: op.

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cit., p.114.73- NORDESTINO, Maxado, op. cit. p. 3.74- Idem.75- Ibid., p.3.76- V. nota 43, p. 42.77- MAXADO NORDESTINO, op. cit., p. 4.78- "A expectativa da chegada desse herói, santo ou emissário divino". QUEIROZ, M.I. Pereira de, op. cit., p. 111.79- MAXADO NORDESTINO, op. cit., p. 4.80- Monte Rodeador, Pedra Bonita, Canudos e Caldeirão. V. nota 3.81- CUNHA, Euclides da. Os sertões; LEITE, A.R. de Souza. Pedra Bonita ou Reino Encantado; FACÓ, Rui.Cangaceiros e fanáticos; QUEIROZ, M.I. Pereira de. O messianismo no Brasil e no mundo.82- MAXADO NORDESTINO, op. cit.2a Parte

CAPÍTULO I

É muito difícil estimar com precisão o número de folhetos e de outras publicações populares cujo tema principal é o Padre Cícero Romão Baptista. A pessoa, a vida e a obra deste santo homem dominaram de talmaneira o Nordeste e o Norte do Brasil durante mais de 60 anos que seria um esforço de pesquisa praticamente destinado à imperfeição. Em compensação, pode-se afirmar, sem nenhuma possibilidade de erros, que "nosso padrinho" é, de longe, a personalidade, morta ou viva, mais abordada pela poesia popularem versos (1).A literatura erudita, originária de terras do Nordeste ou nelas inspirada, foi também muito influenciada por esse personagem. Ao mesmo tempo, pode-se dizer, sem exageros, que a crença e todo o movimento em torno do Padre Cícero se beneficiaram da sensibilização engendrada por toda esta produção popular e literária. Cantos populares e textos eruditos se inspiraram na mesma fonte e ajudaram, às vezes exageradamente, a implantação e o desenvolvimento da crença e do movimento messiânico do Padre Cícero, aos estudiosos, de dizer qual é a parte do sentimento profundo do povo neste fenômeno.

Padre Cícero Romão Baptista foi o vigário de Juazeiro do Norte, cidade do Estado do Ceará, de 1872 a 1934. Sua vila de Juazeiro veio a ser um lugar santo para esta religião sertaneja, mistura de catolicismo e de superstição, de ritos, de fé primitiva. Peregrinações se sucedem há várias décadas. Hoje, mais de 50 anos depois da morte do Padrinho, Juazeiro continua a ser visitada por multidões de fiéis. Sobretudo, todos os anos, no dia 2 de novembro, os peregrinos vêm orar na igreja do Padre Cícero; eles vêm aos milhares agradecer suas curas ou fazer novos votos. Essas romarias a Juazeiro são,elas mesmas, acontecimentos populares de grande importância. O mito do Padre Cícero ultrapassou sempre o quadro místico-religioso, para atingir o domínio social e politico.

- 44 -Ao mesmo tempo, esse santo homem, tão estimado e venerado pelas populações sertanejas, é utilizado porcertos interesses políticos do Nordeste, geralmente contrários aos próprios interesses dos seus fiéis. Veremos como essa situação é apresentada por escritores de tendências diferentes. As ligações do Padre Cícero com o mundo do cangaço são muito remarcadas. Teremos ocasião de ver como esse fato é percebido pela literatura popular, assim como pelos escritores eruditos do Nordeste. Parece-nos que religião, misticismo, fanatismo, coronelismo e cangaço se dão bem. Este tema é abordado por poetas populares, romancistas, sociólogos e historiadores, cada qual à sua maneira, com a sua linguagem.Juazeiro do Norte, a vila santa, é um tema também tão desenvolvido nos folhetos como nos textos eruditos. Rachel de Queiroz, romancista brasileira tão conhecida, fala da vila do Padre Cícero nestes termos: "Juazeiro, a nova Jerusalém" (2). É claro que Juazeiro representava e representa ainda o lugar santo, o começo de uma vida nova para grande quantidade de crentes. Vejamos o que diz o teatrólogo Dias Gomes,na peça A revolução dos beatos, que se situa em torno de 1920 e aborda o tema do fanatismo e do misticismo: "Juazeiro se transformou na Nova Jerusalém" (3). Esta cidade é um lugar privilegiado, onde se produzem milagres, onde os peregrinos vêm para curar seus males, físicos ou morais. Pode acontecer que eles venham para se arrependerem, para exorcizar seus pecados. Uma só palavra pronunciada contra Meu Padrinho Cícero é uma blasfêmia que é necessário purgar em Juazeiro. É aqui que se pode esperar o perdão. Os votos dos penitentes são apreciados proporcionalmente aos sofrimentos e aos sacrifícios que eles se impuseram. A esse propósito, vejamos o que nos conta o poeta popular Severino Gonçalves, no folheto A moça que virou cobra (4). Trata-se de uma moça que profanou o Padre Cícero:

Leitores do CearáHá 21 de JaneiroDeu-se um exemplo assombrosoCom a filha de um fazendeiroJesus Cristo a castigouPorque ela profanouDo padre do Juazeiro. (5)

Constatamos nessa primeira estrofe diversos temas da poesia popular. Alguns têm relação com o assunto deste capítulo: o misticismo das populações e da sociedade do Nordeste. Padre Cícero e Juazeiro, a Nova Jerusalém, têm já um lugar de destaque. Devem-se também ressaltar algumas referências linguísticas que

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são características da linguagem místico-religiosa. As palavras assombroso, castigou e profanou se encontram em todos os textos populares e eruditos que abordam esse tema. Esses vocálulos aparecem também em suas variantes assombro, castigo, etc. Chamamos a atenção para duas palavras que são de uma importância excepcional: filha e fazendeiro.

-45 -Seria cansativo calcular o número de vezes que elas aparecem na poesia popular e na literatura erudita, sobretudo quando são abordados dramas do gênero aventura e social. Podemos dizer mesmo que estamosdiante de um vocabulário mítico, por seu conteúdo histórico e social. O substantivo fazendeiro exige uma definição social, pois ele é considerado como uma espécie de barão, grande proprietário de terras com todos os poderes que resultam dessa posição, do ponto de vista econômico e social. Pensamos que o significado dessa palavra é ainda mais amplo. Por exemplo, vejamos como o concebe Jorge Amado: "Silva Castro tornou-se um daqueles senhores feudais do Sertão" (6). A propósito de filha de fazendeiro, vejamos o que nos diz outro conhecedor, que é Ariano Suassuna:"Condessa, é a princesa, filha de fazendeiro rico" (7). É necessário então levar em conta essas concepções da expressão filha de fazendeiro, para compreender o que vai se passar:

Na fazenda Cana Verdeessa moça residianão acreditava em Deuse nem na Virgem Mariaela chamou um romeirocom seu gesto desordeiropor esta forma dizia. (8)

Pensamos que é bom esclarecer o sentido de algumas palavras empregadas pelo poeta, antes de analisarmos a questão de conteúdo, isto é, o pecado de nossa herética. Primeiramente, vejamos o vocábulofazenda, que lembra e dá origem a fazendeiro, o que nos coloca diante da relação perfeita de causa e efeitoda sociedade agrária do Nordeste. Não existe drama, que seja apresentado objetivamente pelos sociólogos ou pelo gênio criador dos artistas, onde essas palavras não representem o interesse principal, o ponto dramático por excelência do texto. Há também variações linguísticas e sociológicas que devem ser pontuadas: fazenda lembra “engenho”, “propriedade”. Encontramos essas palavras em todas as obras populares e eruditas da região, na maior parte das vezes em oposição a outras palavras do mesmo universo social e econômico, como roça, roçado, sítio, vaqueiro, etc. Nós o constataremos com mais precisão no capítulo relativo às questões sociais, onde veremos o fenômeno do coronelismo e do cangaceirismo. No que diz respeito à linguagem mística, vejamos a palavra romeiro. Podemos compreendê-la como peregrino. Mas trata-se de um peregrino especial, antes de tudo porque ele acompanha uma romaria à procura de um ser vivo, de um santo homem, que foi sempre considerado o Padre Cícero. Claro está que o mito, a crença ao Padre Cícero persiste além da sua morte. Mas o fato muito importante é que essa crença e esse mito surgiram e se desenvolveram enormemente durante a sua vida. Há certamente outros personagens que suscitaram tanto ou mais interesse. Mas o interessante no caso desse homem é que o fenômeno se instalou numa região bastante grande e muito populosa. A fanatização em torno de sua vida e de seus poderes milagrosos penetraram profundamente nas camadas populares e resiste à evoluçãosociocultural e econômica que se produzem ultimamente no Nordeste e no Brasil.

- 46 -A grande quantidade de folhetos, orações, cantorias e livros de toda sorte escritos sobre esse personagem que se veem hoje em dia são a prova dessa afirmção. As romarias a Juazeiro, os milhares e milhares de pessoas que vão todos os anos pagar uma promessa, ou pedir graças ao Padrinho, fazem parte da história cotidiana do povo nordestino e das regiões vizinhas. Podemos adiantar, sem risco de erro, que em uma casa sertaneja podem faltar muitas coisas, mas é certo que jamais faltará uma fotografia do Padre num quadro pendurado numa parede da sala de visitas, a peça principal da casa.Outra característica constante da crença no Padre Cícero é a defesa de um certo status quo religioso, social, econômico e político. Veremos através da literatura de cordel como as palavras e a crença ao santo do Nordeste foram sempre utilizadas para combater as outras religiões, os novas-seitas. Os romeiros eram sempre instigados contra os protestantes por ordem do próprio Padre Cícero. É fora de dúvida que ele desempenhou um papel em favor da ordem estabelecida.Vejamos, por exemplo, o significado da palavra desordeiro, utilizada na estrofe acima transcrita. Trata-se dealguém que é contra a ordem. Esta é simbolizada pela crença na pessoa do Padre Cícero. Nesse caso, o poeta deixa o terreno puramente linguístico para entrar no social. Um desordeiro é um malfeitor, ele faz parte do sistema regulado pelo direito positivo, e não do religioso.Quais as conotações da palavra desordeiro podemos desenvolver? Por exemplo, ordem x desordem; ordeiro e cordeiro x desordeiro. Nestas variações encontramos significados mais próximos da Lei, do Direito, da Justiça; alguém ou alguma coisa que é contra a ordem estabelecida. Em nosso caso, a ordem estabelecida, a Lei, são ao mesmo tempo o Padre Cícero, a crença em seus milagres, em suas predições, em seus ensinamentos religiosos e mesmo em suas orientações sociais. Todos aqueles que não o seguem,que não creem no Padrinho, estão fora da lei, são desordeiros. Em nosso exemplo, é a filha do fazendeiro. E qual é a desordem que ela causou? Qual é o seu pecado?

A moça disse: eu não creio

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naquele catimbozeiroque fazendo bruxariaseduziu o mundo inteirolaçando a humanidadepor meio de falsidadeconquistou o Juazeiro. (9)

Veja-se aí a heresia: “eu não creio”. Crer, crença, cruzada.Em língua corrente, são vocábulos carregados de religiosidade: crer em Deus, ter fé, a necessidade de ter uma crença. O poeta popular emprega o verbo nesse sentido. A palavra crer faz parte da linguagem, do código místico ligado ao personagem do Padre Cícero. Nosso poeta, porém, não fica só nessas palavras. Ele vai desenvolver todo um inventário de vocábulos cujo campo semântico deve se adaptar à personalidade e ao contexto do tema que ele vai tratar. Seu vocabulário é muito significativo.

- 47 -Aqui convém lembrar que a religião representada por Padre Cícero, o catolicismo romano, era considerada normal, a norma religiosa, apesar dos seus problemas com a hierarquia romana. Não esqueçamos que se trata de um padre católico com todo o peso que essa qualidade representa numa paróquia do interior. Entretanto, há o lado misterioso, sobrenatural, místico que, na imaginação popular, não poderia deixar de associá-lo a essa outra religião popular brasileira, os cultos afro-brasileiros dos terreiros. É o culto do bem e do mal, dos milagres, dos mau-olhados, das macumbas de toda sorte. Os poderes milagrosos do Padre Cícero não poderiam deixar de se identificar com a feitiçaria. É por isso que o poeta, pela boca da filha do fazendeiro, trata-o de catimbozeiro. É ele que "fazendo bruxaria seduziu o mundo inteiro". O mundo que o poeta concebe é o sertão cujo centro é Juazeiro. Catimbozeiro, adjetivo que qualifica a pessoa que faz catimbó: prática da feitiçaria ou baixo espiritismo.A filha do fazendeiro não poderia ir mais longe na sua heresia. No entanto, ela insiste: Padre Cícero é não somente um feiticeiro, mas também um sedutor que seduziu o mundo inteiro através de falsidades, mentiras, calúnias, etc. “Laçando a humanidade [...] / conquistou o Juazeiro” (10). O laço, como se sabe, é uma corda com um nó preparado para amarrar, prender alguém ou alguma coisa. Em nosso caso, o laço serviu para prender, amarrar a humanidade. Esta palavra serve para nos orientar para a ideia do centro do mundo que seria Juazeiro. Isso tudo a serviço do mito místico-religioso em torno de Padre Cícero. Aliás, esse sentimento é expresso também por alguns eruditos já citados neste capítulo (11). Encontramos frequentemente esta concepção nos poetas populares, seja quando eles abordam a figura de meu Padrinho, seja quando eles falam de personagens como Antônio Conselheiro e de outros iluminados. Trata-se de uma constante na poesia popular. A "escolha" desses temas demonstra, mais uma vez, a identificação desses poetas com o sentimento coletivo das populações do Nordeste.Vejamos agora o que nos diz um outro poeta que também abordou o tema da profanação do nome do pároco de Juazeiro:

No Rio Grande do NorteNum pequeno povoadoum crente metido a Santopor nome de Romualdoprofanou do Padre Cícerovirou um jegue adubado. (12)

Veja-se aqui o crente que se atreve a blasfemar contra nosso Padre Cícero. Como na poesia anterior, encontramos uma outra pessoa que se atreveu a pôr em dúvida a natureza sagrada do profeta doNordeste. Desta vez se trata de um crente. Este vocábulo merece alguns comentários. Sobretudo, não se deve compreendê-lo como o definem os dicionários oficiais: crente, ter fé, religioso, etc. Aqui se trata da utilizaçãoe da compreensão corrente no Nordeste, isto é, a pessoa que professa o protestantismo. Na palavra crente pode haver um significado positivo ou negativo; vamos tentar penetrar o contexto.

-48 -Crente, no sentido positivo, quer dizer alguém sério, responsável do ponto de vista religioso ou outro; é, em geral, uma expressão de elogio. Na segunda hipótese, o significado negativo, quer dizer alguém que se considera sério demais, sectário, fanático, dogmático. É a interpretação costumeira da literatura de cordel e da linguagem popular em geral, encontrada em muitos folhetos que abordam temas religiosos. Os crentes são os novas-seitas. Mas voltemos ao verso citado: "O crente metido a santo". Veja-se aí que um protestante não pode pretender ser santo. É impossível. A palavra metido seguida da preposição “a” reforçaa nota pejorativa ligada à condição de crente. O poeta vai direto ao conteúdo negativo: “é um crente metido a [...]”. E por que essa desqualificação? Precisamente porque o pobre homem ousou profanar o nome do Padre Cícero. Em consequência, ele foi transformado em um jumento, "virou um jegue adubado". Apesar dea palavra jegue ser bastante pejorativa, ele teve uma consolação com o vocábulo adubado, isto é, forte. O exemplo indicado pelo Novo Dicionário Aurélio é bastante pertinente: "ao jantar, dão-lhe carne, [...] e um prato d’ arroz e algum guisado com farto molho, para adubar o arroz".Vemos assim que há vários pontos emcomum nos dois folhetos que citamos. Primeiramente, é o personagem do Padre Cícero que é o centro das histórias, seus milagres e poderes sobrenaturais. Em seguida, é a questão do pecado e da heresia daqueles que ousam desafiar esse santo homem, daqueles que não são fiéis. Finalmente, é o tipo de castigo que cai sobre os heréticos: a metamorfose em animal. Aliás, aqui tocamos num ponto muito

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sensível, uma das constantes da literatura de cordel, a transformação dos humanos em animais. Porém, não se devem esquecer a linguagem e o vocabulário comuns aos dois folhetos, de caráter místico-religioso e mítico, ao mesmo tempo. Como dissemos nas primeiras páginas deste trabalho, a dedicação e a fé em Padre Cícero não é um privilégio dos poetas populares. Poetas e escritores eruditos seguem o mesmo caminho. Às vezes, eles vão mais longe, como, por exemplo, o poeta Ascenso Ferreira:

O homem de minha terra tem um Deus-de-carne-e-osso– Um Deus verdadeiro– Meu padrinho Padre Cícero do Juazeiro. (13)

É claro que Ascenso Ferreira interpreta a crendice popular do sertanejo. Mas, ao mesmo tempo, ele é um porta-voz da deificação do pároco de Juazeiro. Tratar-se-ia de simples interpretação ou de uma identificação ao sentimento popular? É bem conhecido que esse poeta, embora de origem burguesa, sempre empregou uma linguagem bem próxima do falar do povo, sobretudo quando ele canta a vida e as coisas da várzea, dos engenhos e do Recife. Aqui ele toca num ponto sensível dos habitantes dessas regiões ao utilizar uma das diferentes denominações do Padre Cícero Romão Baptista. As expressões Meu Padrinho ou Meu Padim contêm, ao mesmo tempo, respeito e afeição. O primeiro significado é mais característico da sociedade do Nordeste em geral.

-49 -Padrinho é considerado pelos fiéis e não fiéis como um protetor, diante das dificuldades deste mundo e das incertezas do "outro". É uma garantia contra o mal, em vez de uma proteção para o bem. A utilização desse apadrinhamento pelos cangaceiros, todos devotos do Padre Cícero, é uma prova disso.O poeta Asenso Ferreira não exagera quando considera Meu Padrinho Padre Ciço como um Deus de carnee osso. Nas camadas superiores da sociedade, sobretudo entre os proprietários de terras dos sertões, existe uma aparência de devoção, na medida em que este comportamento beneficia seus interesses. Além disso, Padre Cícero chegou a ser um grande proprietário agrário. A este propósito, é interessante consultar o livro Cangaceiros e fanáticos, de Rui Facó (14), particularmente as informaeçõs sobre o testamento deixado por nosso santo homem.Voltemos, porém, à nossa poesia de cordel, em particular A moça que virou cobra. Lembremos que, após cometer a heresia de comparar Padre Cícero a um feiticeiro, a filha do fazendeiro lança-lhe um enorme desafio utilizando um vocabulário que nos recoloca no terreno místico-religioso:

Só creio no Padre CíceroQuando ele me castigarfazer eu cair das pernasmeus braços se deslocarcriar ponta e nascer dentecorrer virada serpentemordendo quem encontrar. (15)

Antes de analisar o vocabulário religioso, notemos o emprego do infinitivo do verbo fazer em vez do subjuntivo fizer. Esta utilização é corrente nos meios populares do Nordeste e se aplica a vários verbos quando a ação se passa no futuro ou no condicional.Procuremos, porém, quais são as intenções da filha do fazendeiro, que é cada vez mais provocadora:

Quando eu andar feito cobracom o bucho pelo chãoos dentes como uns espetosa cauda como um dragãoo olho encarnado e feiodaí em diante eu creiono Padre Cícero Romão. (16)

Apesar do tom provocador e embora ela se declare não devota, a moça deixa subsistir dúvidas muito sérias.Ela admite que poderia acreditar no Padre Cícero "Quando [...]". Este vocábulo é empregado no sentido de "se", condicional por excelência. Ora, sabemos que uma conjunção pode substituir outra, por exemplo:Só creio no Padre Cícero / quando ele me castigar = Se ele me castigar e Quando eu andar feito cobra =Se eu andar feito cobra.

A reserva deixa supor algumas possibilidades de compromisso. É o caso de dizer que alguns "infiéis" não são assim tão seguros, não. Apesar da comparação de nosso Padrinho a um feiticeiro, a moça está pronta a se ajoelhar se as condições que ela impõe forem realizadas. Ela propõe aquilo que considera impossível. O vocabulário e o comportamento de nossa infiel são mais do que significativos e nos conduzem diretamente às concepções das crenças ou não crenças em certos poderes sobrenaturais. Vejamos, assim, alguns vocábulos das duas estrofes citadas: creio, do verbo crer; segundo Aurélio Buarque De Holanda, "terconfiança, ter fé", sobretudo ter fé no espiritual, nos poderes sobrenaturais, nos milagres e nos castigos do Padre Cícero. O poeta emprega creio (no Padre Cícero) no começo da primeira estrofe e no fim da segunda. É difícil encontrar uma palavra mais carregada de espiritualidade, de religiosidade. “Eu creio”,

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neste contexto, não poderia ter mais intensidade do que a evocada pelo poeta. É verdadeiramente a crença no divino, ou talvez no diabólico, isto é, nos poderes que teria o pároco de Juazeiro do Norte de transformar as pessoas incrédulas em cobras.Castigar, veja-se a ideia de punição, de castigo, em todo o seu esplendor. O castigo não é a resposta ao pecado, sua consequência? O exorcismo, a autopunição, o sacrifício carnal serviriam para expulsar os males espirituais e os pecados da "carne". Castigar é empregado pelo poeta popular com toda a conotação religiosa própria aos fanáticos de toda sorte.Mais uma vez, poetas populares e escritores eruditos do Nordeste falam a mesma linguagem. Citemos uma passagem de A revolução dos beatos, de Dias Gomes:“Beato (Iluminado:) Quando sangue do Santo Boi encharcar, a terravai virar fogo. E o fogo vai limpar o mundo de todos os pecados. De todos os vícios. De todosos crimes!” (17)

Aqui o castigo chegará pelo fogo. Ele queimará a terra. Então, esta e seus ocupantes serão purificados, sem pecados. O dramaturgo, sem dúvida, inspira-se no Apocalipse, particularmente das profecias anunciadas na abertura do 7.° Selo: "Des archanges apparaissent et jettent du charbon en braise sur la Terre..." (18). Encontra-se sempre a ideia de castigar a terra e os homens. A mesma ideia é desenvolvida pelo poeta popular, "só creio no Padre Cícero / Quando ele me castigar".No que respeita ao autor erudito Dias Gomes, o símbolo do sagrado não é o Padre Cícero, mas “o Santo Boi”, que é escolhido para representar a ideia

- 51 -religiosa. O autor escolheu um boi, um “santo boi”, para representar a ideia do misticismo tão arraigada nas populações camponesas do Nordeste. Terá sido por azar ou uma escolha deliberada que fez do boi a entidade ou personagem que, por seu sacrifício, virá purgar todos os pecados? É difícil responder. Em todo caso, é do sagrado que se trata.Poetas populares e escritores eruditos, repetimos, inspiram-se nas mesmas fontes. Os primeiros, mais realistas, menos fictícios, veem Padre Cícero como a materialização do miraculoso, do sagrado. Os outros, intelectuais, sarcásticos, iconoclastas, inspirando-se do mesmo passado cultural e religioso, o judeu-cristianismo, utilizarão, por vezes, o místico para pregar a destruição mesma de certos mitos religiosos.O que nos parece interessante reafirmar, e as citações que vimos provam, é a natureza religiosa do emprego da palavra castigar, utilizada nos dois gêneros da literatura, o popular e o erudito.Para concluir, vejamos a seguir o antepenúltimo verso da primeira estrofe. A filha do fazendeiro continua a expor as condições segundo as quais ela viria a ser uma devota do Padre Cícero: “correr virada serpente”. Primeiramente, notemos o emprego do verbo virar no particípio passado. O poeta escolheu essa fórmula cujo sentido não corresponde exatamente às definições oficiais da língua portuguesa, mas no sentido de transformar, mudar, o que representa mais uma característica do falar sertanejo. Ao contrário, se consultarmos o Novo Dicionário Aurélio, verificamos que o verbo virar pode ter uma origem céltico-latina significando inclinar-se para um lado ou para o outro. Eis um exemplo do clássico Camões: "O capitão, que em tudo o mouro cria, virando as velas, à Ilha demandava". Mas o problema é que as populações rurais do Nordeste falam uma outra língua.

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1- CANTEL, Raymond. In: Seminário na Universidade da Sorbonne, Paris, 1977-78.2- DIEGUES JR., op. cit., p. 113.3- QUEIROZ, Rachel de, op. cit., p. 11.4 - DIAS, Gomes, op. cit., p. 300.5 - A moça que virou cobra. Segundo Literatura popular en verso, Antologia, tomo 1, edição da Casa de Rui Barbosa, Rio de Janeiro, 1961, o autor deste folheto é Severino Gonçalves. Ao contrário, no exemplar desse folheto que possuímos, não está indicado o nome do seu autor. A xilogravura impressa na capa do folheto é diferente e é colocada ao inverso com relação à reprodução da antologia citada. Nas citações de nosso trabalho, citamos a paginação do folheto da nossa coleção.6 - GONÇALVES, Severino. p.1.7 - AMADO, Jorge. ABC de Castro Alves. São Paulo: Martins, 1945, p. 29.8 - SUASSUNA, Ariano. A Pedra do Reino, p. 52.9 - GONÇALVES, Severino. p.2.10 - Idem, p. 3.11 - Laço, estratagema, ardil, traição.12 - Ver notas 3, 6, 7, 8.13 - PONTUAL, José Pedro. O crente que profanou do Padre Cícero, editor Edson Pinte, p. l.14 - FERREIRA, Ascenso. Poemas 1922-1953, Recife: edição I. Nery da Fonseca, 1955, p. 58.15 - FACÓ, Rui, op. cit.16 - GONÇALVES, Severino. p. 3.17 - Ibid.18 - GOMES, Dias, op. cit. p. 306.19 - RENAN, Ernest. Histoire des origines du Christianisme, l'Antéchrist. Paris: Calman-Levy, 1942: "Et ils ont lavé leur robe dans le sang de l'Agneau". "L'Agneau les fera paitre et les conduira aux sources de la vie".E Renan nos explica: "L'ange alors remplit son encensoir des charbons de l'autel et les jette sur Terre (imité d'Ezechiel, X). Ces charbons en atteignant la surface du globe, produisent du tonnerre, des éclaires, des

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voix, des secousses''.Id. p. 390-3.

-53 - Capítulo II

UM CASTIGO MEDIEVALVirar, virada, virado são palavras das mais usadas pela literatura popular. Elas correspondem a um dos temas frequentemente abordados por seus poetas. Trata-se do velho castigo do imaginário popular, de conteúdo religioso, que faz que as pessoas sejam transformadas em animais. Para o Nordeste, este tema seria uma maneira de fuga para a frente, uma tentativa de escapar a um destino miserável: epidemias, secas, pobreza.Aliás, é conhecido o sentimento popular que sempre se preocupou pela sorte desses seres irracionais. As comparações, as transformações e a vida dos animais em geral, mesmo no aspecto religioso, estiveram sempre misturadas à imaginação popular há muitos séculos. Vejamos o que nos diz a esse propósito M. Meyer, etnógrafo interessado por este assunto: "L'imagerie populaire est antérieure à l'invention de l'imprimerie à caractères mobiles, elle a ses racines dans le Moyen-Age: l'artisan populaire pouvait donner libre cours à son esprit moqueur et à ses sentiments critiques et satiriques: singeries, la truie que file, le combat du chat et de la souris, les scènes du ‘monde à rebours’, les représentations de proverbes et de dictons... Le monde renversé représentant le faible qui se venge du fort, on peut y voir une allégorie so-ciale." (19)É claro que Meyer nos fala de um mundo animado e brincalhão, satírico e sarcástico. Mas é interessante saber que essas fábulas faziam parte da vida na Idade Média. O tema da punição, virar animal, retorna em nossos dias pela poesia popular do Nordeste, para dar a conhecer os dramas e a realidade sociocultural de suas populações. No que diz respeito ao aspecto religioso indicado por M. Meyer, vemos que ele se aproxima da produção popular atual. Basta dar uma olhada nos títulos dos folhetos nos quais são contadas a vida, as transformações, as presepadas dos animais. Seria muito longo citar todos os exemplos, citaremostítulos da série, do gênero, relativo à metamorfose de seres humanos em animais, no estilo:

A mulher que virou [...]O homem que virou lubisomem [...].

-54 -Quando se trata de Nordeste, a literatura popular não é a única a se afeiçoar a esse tema. Vejamos um exemplo, entre tantos outros, do nosso célebre Jorge Amado, que nos conta em Jubiabá as facetas de um pai de santo, outra espécie de santo homem:"Um dia um menino disse a Balduino que Jubiabá virava lubisomem. Outro afirmou que ele tinha o diabo preso numa garrafa [...] Cresce as unhas, depois vira lubisomem numa noite de lua grande." (20)Seguindo esse exemplo, voltemos ao significado do verbo virar. Trata-se bem de se transformar, se metamorfosear. E é justamente nesse sentido que a filha do fazendeiro lança terrível desafio ao Padre Cícero (capítulo anterior), desafio místico, antes de tudo. Ela se transformaria em uma devota, acreditaria nos milagres e nas profecias, se ela mesma virasse uma cobra. Neste ponto é bom lembrar que este substantivo, este animal é do gênero feminino. Como tal, ele tem um caráter misterioso, perigoso, envenenador e pecador. É o sentido apresentado pelo poeta popular.A serpente, a cobra, é o animal bíblico por excelência. No sentimento popular, é o animal mais repugnante, aquele que conduziu ao pecado os primeiros habitantes do paraíso terrestre. Este vocábulo significa vilania,traição e maldade. Este significado não é particular ao Nordeste. Ele é do domínio da cultura ocidental, judeu-cristã. A literatura só faz juntar-se a essa concepção ligada às serpentes desde Adão e Eva.Os animais são tratados, em geral, com simpatia e mesmo amizade pela poesia popular. Reserva-se a eles um caráter fantástico, maravilhoso. Eles são apresentados como uma espécie de complemento do homem, frequentemente com muito respeito. A cobra é, talvez, um dos poucos exemplos de animais que não tem essa consideração. Ao contrário, ela é vista com bastante desprezo. A literatura de cordel lhe reserva trabalhos ingratos, vergonhosos. A cobra foi escolhida pelo poeta popular tendo em conta essa particularidade, que contrasta com a regra geral no reino animal. Esta tradicão dos poetas populares sobre a presença dos animais nos seus folhetos é, aliás, confirmada por Manuel Diegues Junior: "Velhas narrativas, em contos maravilhosos ou em novelas tradicionais, consagram o papel desses animais. No caso do Brasil, o homem do Nordeste sabe quanto deve ao boi. (21)Parece-nos que, no Nordeste, é uma questão de gratidão. Temos dúvidas com relação a certos animais.

-55 -Naturalmente, o boi tem um lugar especial. Fala-se mesmo de um Ciclo do Boi: Boi Esbácio, Boi Surubim, Boi Misterioso, etc.O boi, ou o touro, é, sem dúvida alguma, o mais prestigioso dos animais do Nordeste e na literatura popular.Já o vimos "sagrado" na peça de Dias Gomes A revolução dos beatos: "mas esse [...] não é um boi comum". (22)

Contrastando também com o caráter inglório que é reservado à cobra, deve-se notar o grande prestígio que desfruta o cavalo, aliás muito ligado ao Ciclo do Boi. O cavalo, aliás, confunde-se com o homem, numa espécie de unidade física e espiritual (não religioso). Antes de citar exemplos da poesia popular,

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consideremos as opiniões de sociólogos e escritores brasileiros.Euclides da Cunha, em seu famoso Os sertões, sintetizou o fenômeno dizendo que "por onde passa o boi passa o vaqueiro com o seu cavalo" (23). Não se poderia ser mais convencido da unidade homem-boi-cavalo. Na mesma ordem de ideia, lembremos um outro animal, o cachorro, companheiro inseparável. Seu lugar ao lado do homem, como, aliás, a do boi e do cavalo, foi muito bem exposta por Graciliano Ramos ao relatar a vida e os dramas de um vaqueiro nordestino. Veremos o cão Baleia ao lado do Vaqueiro. É um companheiro inseparável e compreensivo, a única possibilidade de comunicação que encontra, na sua solidão das caatingas, este homem dos sertões. Graciliano Ramos (24) interpretou na sua totalidade o drama e a realidade do homem tanto quanto a da caatinga e do sertão nordestinos. Ao mesmo tempo, ele compreendeu muito bem o sentimento popular ao integrar o cachorro Baleia ao destino deste outro ser da região, o Vaqueiro. É uma afirmação sobre o papel que têm os animais ao lado do povo sertanejo.Aqui não podemos deixar de citar O auto da compadecida, de Ariano Suassuna. Esta peça célebre, inspirada diretamente nos romances populares (25), desenvolve sua trama a partir da história de um cachorro, mais propriamente do seu enterro "cristão católico". O sentimento popular, o misticismo e a realidade do interior do Nordeste encontraram uma grande possibilidade de síntese. Mais uma vez, somos confrontados ao papel e ao lugar reservados aos animais na sociedade da região. Mas não se trata do papel vergonhoso reservado à cobra, apesar de espécie de sacralização, que lhe é atribuída, na medida emque ela é considerada como um "gênio do mal".Mas continuemos o estudo relativo ao papel que desempenham os animais nos conceitos socioculturais e mesmo na vida cotidiana nordestina. Falemos agora de um outro animal sagrado, a onça. Mistério, fantasia,ferocidade e astúcia insuperáveis, eis a onça dos sertões. Ela faz parte desse conjunto de animais, como o boi, o cavalo e o cachorro, que mereceriam um estudo social e cultural que estabelecesse o seu verdadeiro sentido e posição ao lado das populações dos campos.

- 56 -Citaremos apenas alguns exemplos da poesia popular e da literatura erudita a fim de melhor avaliar o sentimento popular dos habitantes dessas regiões. Também consideramos interessante fazer a comparaçãodo conceito desses animais em relação à famosa cobra sobre a qual fala o poeta popular no folheto A moçaque virou cobra.A onça, apesar de toda a sua ferocidade, é apresentada, ao contrário da cobra, quase amigavelmente. Seu mistério e sua valentia são bastante respeitados e fazem parte do ambiente natural dos sertões. É alguma coisa que, não obstante todos os perigos reais e imagiários, pertence ao meio ambiente natural, aceita pelas populações autóctones. Vejamos, por exemplo, como se expressa o clássico José de Alencar, em seuromance regionalista O sertanejo, ao relatar um movimento estranho na caatinga: “[...] é [...] onça, defunto, lubisomem; é o velho bruxo. Jó, é verdade!Exclamaram muitas vozes em roda. O tinhoso; ideia de chamar o capelão para atacar com as armas da igreja e obrigá-lo a sair do mato". (26)Enfim, em seguida às iniciativas de um outro personagem lengendário,um vaqueiro corajoso, que decide enfrentar o tinhoso, a gente descobre que era a onça que rodava nos matos em torno da casa-grande. Que amálgama consistente, mítico e religioso, constituído por um animal, o medo das coisas do outro mundo (o defunto); o lubisomem (essa criação maravilhosa, imprecisa e maldefinida da cultura místico-religiosa do Nordeste); e do homem (o velho Jó).José de Alencar, fiel à inspiração popular do romance regionalista, refletiu muito bem o imaginário-realidadeda cultura do Nordeste relativa ao lugar e ao papel do animal na região.Vê-se bem que a descrição misteriosa e simpática da onça não tem nada a ver com o papel que representa a famosa cobra. Podemos dizer que esta é a mal-amada entre todos os animais do Nordeste. A cobra, a serpente, é o símbolo da traição da feitiçaria, do mal, da maldição, do pecado. Ela corresponde, enfim, à concepção mística da cultura bíblica, inteiramente assimilada pelo povo do sertão. Essa concepção religiosada serpente foi, evidentemente, escolhida por nosso poeta popular. É a filha do fazendeiro que diz: "correr virada serpente", se transformar numa cobra.Como vimos nessas primeiras estrofes do folheto A moça que virou cobra, o poeta utiliza um vocabulário carregado de misticismo. Podemos afirmar também que os escritores eruditos se colocam no mesmo ângulode visão linguístico e semântico quando evocam as histórias e os problemas do Nordeste. Também vimos na primeira estrofe do folheto O crente que profanou do Padre Cícero, que o poeta José Pedro Pontual adota a mesma orientação religiosa na escolha do tema e do vocabulário.

- 57 -Como vimos, este poeta evoca a história de um crente, um protestante, que não acreditava no Padre Cícero. No outro folheto, era uma moça que cometia uma heresia em relação ao pároco milagroso, espécie de feiticeiro. Os dois personagens, os dois infiéis, viraram um jegue e outro uma cobra.Depois de suas metamorfoses, os dois infiéis começam uma vida de calvário feita de sofrimentos e de humilhações. Eles andam por todos os sertões, sofrem o opróbio por onde passam. São a vergonha e a tristeza para suas famílias.Eles são mostrados como exemplo para todos aqueles que ousem duvidar da santidade e dos poderes miraculosos do Padre Cícero. O castigo infligido a esses dois seres, transformados em bestas desprezadas por todos, deve servir de exemplo e de aviso aos não devotos. Esses irracionais percorrem todas as estradas, aldeias, cidades e campos do Nordeste. Eles contam suas histórias, seus infortúnios e suas desesperanças. Como em peregrinação, eles erram para todo lado. Todavia, pode haver uma esperança deperdão para seus pecados. Eles podem voltar a ser humanos. Há uma possibilidade de serem absolvidos. Épreciso que eles cheguem à cidade santa de Juazeiro do Norte, a Nova Jerusalém, sede do império do

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Padre Cícero. Veja-se como fala a cobra:

Eu vou para o Juazeiroassistir uma missãoque vai haver hoje à tardena matriz da Conceiçãochegou a hora marcadavou assistir à chegadado Frade Frei Damião. (27)

Um novo personagem surge no folheto A moça que virou cobra, o Frei Damião. Trata-se de um profeta recente que percorre o Brasil depois da década de 1940. Ele se apresenta como o sucessor de Padre Cícero.Seus milagres já são numerosos, suas profecias proclamadas por todos os lados: nas igrejas, nas missões. Elas são repetidas por todas as bocas da região. Parece-nos que o regime político instalado após 1964 se apropriou desse personagem. Ele é o novo salvador da nação. É a redenção de todos os pecados das pessoas simples das campanhas brasileiras. Vejamos, pois, alguns exemples do folheto O crente que profanou do Padre Cícero:

Com 5 dias depoisele entrou no Joazeiro. (28)

Chegou na hora que estava padrinho Frei Damiãojunto com todos romeirosfazendo um grande sermãoo jumento deu um rinchode assombrar qualquer cristão. (29)

-58 -Vemos, então, voltar ao tema da cidade santa, o lugar onde todos os infiéis, os pecadores, os fiéis, os romeiros e mesmo os cangaceiros devem vir para se purificar de suas faltas, de seus pecados, de seus crimes. Muitos anos após a morte de Padre Cícero, continua-se a exaltar as práticas, as crenças e os ritos do Padre de Juazeiro.O novo profeta, apesar de sua idade avançada, entrou em cena para realimentar as crenças e ilusões místicas do "zé-povinho". A gente o chama também Padrinho; como outrora ao Padre Cícero. Os poetas populares, com suas crenças e seus sentimentos, fazem-se o eco desse novo profeta, Frei Damião. É verdade que, em sua simplicidade, os poetas de cordel tentam responder às questões dos fiéis. Ontem, sobPadre Cícero; hoje, Frei Damião.

Ao fim dos dois folhetos que analisamos, o milagre se produz. A cobra e o jegue voltam a ser seres humanos. A filha do fazendeiro e o crente heréticos no começo das histórias transformam-se em fiéis obedientes do Padre Cícero e de Frei Damião. A devoção ao Padre Cícero se mantém desde o começo do século XX. Durante a sua vida, eram as romarias a Juazeiro do Norte que reuniam multidões de fanáticos, devotos e curiosos de todos os tipos. Essa religião, metade cristã e metade pagã, é praticada cegamente pelas populações nordestinas durante algumas décadas.Uma retificação, porém, é necessária fazer-se, com relação a um dos animais escolhidos para transformar ocrente que profanou do Padre Cícero. O jegue (jumento, burro, burrico, jerico, etc.) merece um outro tratamento do homem dos sertões. Não é justo assemelhá-lo a um castigo por uma blasfêmia ao santo do Nordeste. Ao contrário, esse animal, tão útil e integrado à ecologia sertaneja, merece mais consideração. Ele foi e ainda é, em muitas ocasiões, o único meio de transporte de pessoas e de cargas nessas grandes regiões de acesso difícil das caatingas e dos sertões. As pessoas dessas paragens devem ter um sentimento de reconhecimento por esses burricos. Ainda mais para certos espíritos religiosos, sua utilizaçãona história bíblica, como meio de transporte na fuga do Pequeno Jesus e de sua santa mãe, a Virgem Maria, deveria inspirar sentimentos de gratidão e de ternura. A menos que nossos poetas populares, mais uma vez, sejam os intérpretes fiéis do espírito contraditório do povo do sertão a propósito das informações veiculadas pelos canais da história religiosa oficial. Diremos também que o número de folhetos que narram as transformações de pessoas em animais irracionais, por causa de heresias religiosas ou pecados, é muitoelevado. Essa prática "literária" representaria um grande desvio dos poetas e do povo em relação à tradiçãojudeu-cristã na qual esse fenômeno é talvez muito raro. Tratar-se-ia de um fenômeno de origem pagã?

-59 -19 - MEYER, Mauritz. In: Actas do Congresso Internacional de Etnografia de Santo Tirso. Portugal: Edição Lisboa, 1965.20 - AMADO, Jorge. Jubiabá. São Paulo: Martins, 1960, p. 29, 43- 44.21 - DIEGUES JR., Manuel, op. cit., p.48.22 – GOMES, Alfredo Dias, op. cit., p. 302-4.23- CUNHA, Euclides da. Os sertões. p. 116.24 - RAMOS, Graciliano. Vidas secas.25 - "História do cavalo que defecava dinheiro", lenda popular do Nordeste. Ver SUASSUNA, Ariano. O autoda compadecida.

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26 - ALENCAR, José de. O Sertanejo. Rio de Janeiro: Aguilar, 1965, p. 906-7. Romance Regionalista. Convém lembrar que a "onça" já era observada como um animal sagrado no século XVI. Com efeito, o poeta Dante Alighieri nas suas viagens ao Inferno indicou várias visões desta fera. "Lonza"; pantera, leopardo, lince híbrido. Um dos três animais simbólicos que no prólogo da Divina comédia lançam Dante na floresta obscura. Ela simboliza a luxúria, a concupiscência da carne (In: "Enfer," I, p. 31-43). Ver MASSERON, Alexandre. Index, avec une introduction à la bibliographie dantesque. Paris: Edition Albin Michel, 1950, p. 175.27 - GONÇALVES, Severino, op. cit., p.7.28 - PONTUAL, José Pedro, op. cit.29 - Ibid. , p.7. Frei Damião é o novo messias que sucede Padre Cícero. É a continuação da crença messiânica. Ver QUEIROZ, Maria Isaura Pereira de. Classification des messianismes brésiliens. In: Archivesde sociologie des religions, numéro 5, Clermond-Ferrand, França, 1958.

- 60 -CAPÍTULO III: UMA RELIGIÃO MESTIÇA

O fenômeno do fanatismo ao Padre Cícero não é um acontecimento único na história do Brasil, em particular no Nordeste. Já falamos de um outro místico, Antônio Conselheiro. É um caso mais virulento e mais dramático do que o Padre Cícero. No Nordeste, a região mais problemática do Brasil, os problemas sociais e culturais se apresentam de maneira mais complexa do que em outras regiões.Esse território foi sempre o terreno favorável para o nascimento e desenvolvimento desse tipo de fenômeno.Num certo sentido, podemos comparar esses acontecimentos a situações vividas na Idade Média. A Europa, com seus conflitos em torno da possessão de terras, suas cruzadas e guerras de religião, suas epidemias, suas perdições de todo tipo, lembra o Nordeste de nossos séculos. O século XIX e boa metade do século XX foram a idade de ouro dessas manifestações místico-religiosas no Nordeste. Romances, peças de teatro, poesias, ensaios sociológicos e textos históricos nos contaram esses sucessos. Vejamos ainda o que nos diz o inevitável Euclides da Cunha se referindo ao sentimento religioso da gente do Nordeste particularmente à época de Canudos: "Está na phase de um monoteismo incomprehendido eivadode misticismo extravagante, em que se debate o fetichismo do índio e do africano. A sua religião é, como êle – mestiça". (30)

Não podemos, é claro, desconhecer a enorme importância das análises de Euclides da Cunha sobre o problema do fanatismo no Brasil na época de Antônio Conselheiro. Mas, ao mesmo tempo, não podemos aceitar essa interpretação etnológica: "em que se debate o fetichismo do índio e do africano". Isto é verdadepara certas manifestações percebidas nos homens de sociedades naturais, inclusive em certas épocas da pré-história e começo da história brasileiras, mas o misticismo e o fanatismo das populações do Nordeste têm razões mais imediatas.

-61-

É evidente que as condições de vida nessa região, as relações sociais, sobretudo nos campos e nos serfões, a miséria endêmica são, em grande parte, responsáveis desse fenômeno. Ontem, Canudos e Pedra Bonita, hoje, Padre Cícero e Frei Damião. O fenômeno não é o fato da mistura de raças e de cultos fetichistas, mas o resultado de anos e anos de miséria e de obscurantismo. Senão, como explicar sua persistência, muitos séculos passados, no Nordeste atual.Vejamos sempre como a literatura de cordel reproduz esse sentimento místico-religioso das populações sertanejas, rurais. É preciso incluir na definição de população rural a imensa quantidade de pessoas emigradas para os grandes centros urbanos, inclusive para o Sul e Sudeste do Brasil, como Rio de Janeiro e São Paulo. Esta cidade representa hoje em dia grande centro de produção e de difusão de nossos pequenos livros, os folhetos de cordel.Fiéis a suas raízes populares, os poetas de cordel não hesitam em abordar os problemas que tocam profundamente as populações oriundas dos campos nordestinos.Vejamos, por exemplo, como é apresentado o messias Frei Damião, notando-se que é preciso, desde o começo, legitimar o aparecimento desse novo personagem; dúvidas e constestações devem ser evitadas. Devemos interpretar como um tipo de metáfora o título do folheto de José Costa Leite, um dos poetas mais produtivos atualmente, O Frei Damião sonhou com o Padre Cícero Romão. Nosso poeta entra diretamente na questão da legitimidade de Frei Damião. Ele estabelece traços espirituais que justificam a sucessão entre os dois ministros da Igreja Católica do Nordeste. Aqui é interessante remarcar que Padre Cícero é um autêntico sertanejo do Ceará, e Frei Damião é um europeu nascido na Itália. No Brasil isso não é um problema. Ao contrário, a adoção deste último é uma prova a mais da universalidade cultural da poesia popular. Vejamos, pois, a apresentação da obra:

Quem amar a Jesus CristoCom fé no seu coraçãoouça esta profeciaquem manda é Frei Damiãodum manuscrito que achouna noite que ele sonhoucom padre Cícero Romão. (31)

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Inicialmente, é um folheto destinado a todos aqueles que amam Jesus Cristo. O poeta indica mesmo a maneira de amar: com fé no seu coração. Veja-se lá a volta do tema da fé, da crença. Trata-se de um vocábulo cheio de religiosidade. Não é por acaso que nosso poeta emprega a palavra “fé” desde os primeiros versos de seu folheto. Já vimos que nos folhetos dedicados ao Padre Cícero, a questão essencial é a fé, a crença no santo homem. O problema agora é colocado em um nível mais alto, é a fé em Jesus Cristo.

-62 -Deveríamos dizer que o problema é posto, talvez, em um nível superior, porque nessa religião “mestiça" do sertão, a questão da hierarquia é bastante complexa quando se trata do Padrinho Padre Cícero e de outros personagens místicos da região. Veremos que "Amar Jesus Cristo / Com fé no coração" é a condição de base para compreender o que vai se passar. O terceiro verso diz: "Ouça esta profecia". Aqui os comentáriossão quase supérfluos. Profecias é a palavra que convém para definir e situar sem qualquer dúvida o pensamento e a escolha da linguagem do poeta. Profecia e messianismo formam um todo na poesia popular de caráter místico. Convém lembrar que a escolha linguística e a semelhança de tratamento não é um privilégio da literatura de cordel. Vejamos, por exemplo, as recomendações do autor dramático Dias Gomes, na peça A revolução dos beatos:

Beato: (avança para Bastião de cruz em punho, em atitude agressivamente profética). (32)

O gosto da nossa literatura popular e erudita pelos temas proféticos e messiânicos se encontra já em autores do século XVII, como o Padre AntônioVieira, este grande religioso e pensador luso-brasileiro. Teremos ocasião de observar esses antecedentes ao longo deste trabalho.Por enquanto, fiquemos na atualidade. Olhemos a profecia sobre a qual fala nosso poeta popular, pois é Frei Damião que manda, ordena. Trata-se de um manuscrito que ele teria recebido do Padre Cícero duranteum sonho, isto é, quando dormia. Na verdade o sonho é a fórmula que encontrou o autor para indicar a anunciação do Padre Cícero ao Frei Damião. Foi a ocasião para este receber o testamento de meu padrinho Cícero. Era um pequeno livro escrito no estilo do cordel:

Este meu livrinho étodo escrito em poesiapara quem ama a JesusFilho da Virgem Maria. (33)

Como na primeira estrofe, o poeta se dirige aos fiéis, àqueles que amam Jesus. Quanto aos outros, ele parece lhe negar o livrinho:

mas quem ama o satanaze odeia o Pai dos paisnão leve esta profecia. (34)

Os infiéis não têm direito de levar a profecia. Levar, no sentido de “comprar”. Os folhetos, em princípio, são divulgados e vendidos pelos próprios autores nos mercados e nas feiras. Os espectadores-clientes são bastante exigentes; só se decidem a comprar um folheto depois de ouvir a sua leitura e as explicações dadas em voz alta, um tanto cantada, pelos próprios autores.

-63 -Quer dizer, "não se leva" uma poesia, sem antes conhecer a história. É claro que, segundo essas duas estrofes, o Frei Damião é reconhecido como sucessor do Padre Cícero. Ele teve um sonho, recebeu uma anunciação e sabe onde se encontra o testamento espiritual do antigo pároco de Juazeiro. É ele quem vai continuar a missão, as profecias e talvez fazer milagres.O poeta nos explica em detalhes como se passou a anunciação e revela o lugar onde se pode encontrar o testamento do Padre Cícero. Antes, porém, de enumerar as profecias contidas no testamento, o poeta define suas ideias fundamentais, as eternas concepções do bem e do mal. O bem é representado por aqueles que amam Jesus Cristo, aos quais o pequeno livro e as profecias são destinados. O mal é representado pelos que não amam o Cristo, são os filhos de Satanás, os irmãos da Besta-Fera:

Mas quem for filho do Diabodescendente de Caimvai correr no fim da eraé irmão da Besta-Ferafuja de perto de mim. (35)

O vocabulário não poderia ser mais próximo dos escritos bíblicos. Ideias antigas que passam pela linguagem dos poetas populares a fim de formar expressões ricas de significados misteriosos: o mal, o medo, a maldição, "vai correr no fim da era / é irmão da Besta-Fera [...]". Veja-se o aparecimento de um desses seres misteriosos, místicos, do qual todo mundo ouviu falar no Nordeste: a Besta-Fera, ser aterrorizante, fantástico (como a besta do Apocalipse). Folhetos, histórias orais, as mais diversas, foram feitos para descrever as suas crueldades. É uma coisa maldefinida que pode servir para fazer medo às crianças e a entreter a sede de mistério dos adultos, símbolo mesmo de tudo o que há de perverso, feroz. Ela faz parte da mitologia animal dos sertões, como seu irmão nativo, o lobisomem. Misérias de toda sorte

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lhe são associadas.Estamos diante de um dos temas preferidos do poeta José Costa Leite, que escreveu vários folhetos onde essas feras aparecem constantemente. Segundo o poeta, a Besta-Fera é portadora de todos os males, como dizia o Padre Cícero:

A besta fera faladaque o Padre Cícero diziabrevemente vai chegarpra cumprir-se a profecia. (36)

É a imagem de maldição que contribui para criar a atmosfera de medo propícia a predispor as pessoas a aceitarem toda sorte de profecia. É por isso que o autor faz apelo tão frequente a esse animal misterioso, o qual ele coloca em evidência em quase todos os seus folhetos de caráter místico-religioso.No poema que estamos analisando, o apelo à Fera é uma espécie de palavra-ideia, que é preciso propagar a fim de preparar a entrada em cena de um personagem tão místico como Frei Damião. Medo e crença vão juntos. A atmosfera e o ambiente são ideais.

-64 -O autor é um especialista do suspense. É como em alguns filmes policiais: situações muito comuns, enredos mais que banais e que funcionam sempre. Tudo isso compõe uma montagem de expectativa, de ansiedade e de terror. Em relação ao folheto O Frei Damião sonhou com o Padre Cícero, o autor continua a evocar os nomes e as palavras próprias às situações místico-religiosas. Essa linguagem serve para aureolara imagem do novo profeta do Nordeste:

Frei Damião outro diaestava no Juazeirosonhou uma elevação. (37)

A cidade de Juazeiro aparece novamente. Foi nessa cidade-santuário que Frei Damião"sonhou uma elevação". Palavra superior, elevação, ascensão. É durante a missa que os padres praticam a elevação do pão e do vinho para consagrá-los. No poema que analisamos não é do Corpo de Cristo que se trata, pois:

Com o padre Cícero Romão. (38)Que foi por Deus enviado. (39)

Um mensageiro divino veio falar ao novo profeta. Este é o eleito de Deus para continuar a missão do Padre Cícero. Como que para revalorizar o que era um simples sonho no início do poema, o autor o apresenta agora como uma verdadeira aparição, pois:

falou com Frei Damiãoque não estava acordado. (40)

Que privilégio para Frei Damião. Ele viu e falou com Padre Cícero após sua morte. Esta simples expressão do poeta sensibilizará profundamente a gente do Nordeste, os milhares ou milhões de devotos do Padrinho Cícero. Quem não desejaria rever o Padrinho dos sertões? Os fiéis devotos dessa religião mestiça, especial, sonham e desejam merecer tal graça. Tudo, então, seria feito para atingir essa elevação. Aqui, lembramos da célebre passagem do acordo, do jeito, imaginado e executado pelo mais sabido dos heróis da literatura popular, o anti-herói João Grilo, com o sanguinário cangaceiro Severine De Aracaju, na peça deAriano Suassuna O auto da compadecida.

Chicó: Ah, eu estava morto.Severino: Morto?Chicó: Completamente morto. Vi nossa senhora e Padre Cícero no céu.Severino: E que foi que Padre Cícero lhe disse?Chicó: Disse: "Essa é a gaitinha que eu abençoei antes de morrer. Vocês devem dá-la a Severino, que precisa dela mais do que vocês".Severino: Ah meu Deus, só poderia ser meu padrinho padre Cícero mesmo. – João, me dê essa gaitinha!

-65 -João Grilo: Então me solte e solte Chicó.Severino: É verdade?João Grilo: Eu lhe dei uma oportunidade de conhecer Meu Padrinho Padre Cícero e você me paga desse modo!Severino: De conhecer Meu Padrinho? Nunca tive essa sorte. Fui uma vez ao Juazeiro só para conhecê-lo, mas pensaram que eu ia atacar a cidade e fui recebido à bala.João Grilo: Mas pode conhecê-lo agora.Severino: Como? (41)

E, a seguir, João Grilo expõe seu acordo diabólico ao cangaceiro Severino:

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João Grilo: Seu cabra lhe dá um tiro de rifle, você vai visitá-lo. Então eu toco na gaita e você volta. (41)

É incrível, mas João Grilo consegue convencer o cangaceiro. Este ordena a um dos seus cabras de lhe dar um tiro, na esperança de ver Padrinho Cícero no céu. João Grilo e seu camarada Chicó escapam assim de uma morte certa.

Essa pequena história, tão alegre e satisfatoriamente transposta por Ariano Suassuna, é mais uma prova dofanatismo inspirado pelo Padre Cícero. Tudo é aceito por seus devotos.Suassuna, como o poeta popular Costa Leite, assimilou muito bem o sentimento que domina os fiéis do pároco de Juazeiro. Eis porque o poeta popular imagina esse sonho-aparição para legitimar a chegada de Frei Damião, que será o porta-voz oficial do Padre Cícero. Sua legitimidade, seu direito, vem do privilégio deter visto e falado com o Padrinho. Frei Damião, por isso, terá uma audiência imensa junto do povo simples do Nordeste, sobretudo o de origem rural. Ele utilizará os mesmos argumentos, provocará as mesmas situações, servir-se-á da mesma linguagem para atingir a multidão de devotos.Predições, missões e profecias, todos os meios serão bons para perpetuar o mito do fabuloso Padrinho de Juazeiro. O misticismo exagerado será o centro de seus sermões. As ameaças e o medo continuarão a ser inculcados nas populações sertanejas. Os temas religiosos e morais serão os preferidos, sem esquecer as notas de caráter social e político sob uma perspectiva conservadora, reacionária.O atual pregador, como o antigo, coloca-se sem cerimônia ao lado dos interesses conservadores da situação econômica, social e política vigente no país. A poesia popular não escapa a essa corrente. Eis porque ela tanto explora o tema místico-religioso. Sua linguagem é bem apropriada ao contexto. Nossos poetas não têm nemhuma dificuldade para abordar esses temas. É uma consequência natural entre eles.

- 66 -Os poetas populares são oriundos, como se sabe, das camadas mais modestas das regiões menos desenvolvidas e mais isoladas do país. Seus folhetos, suas poesias, não são mais que o reflexo do sentimento e das crenças ainda profundas nos homens e mulheres do Nordeste. Esta tendência é mais forte na população de origem rural.Voltemos, porém, a Frei Damião, depois do seu sonho com o Padre Cícero. Os poetas nos contam em detalhe como se passou a entrevista, a aparição, “uma elevação". O objetivo desse encontro era a entrega de um pequeno livro no qual Padre Cícero tinha anotado suas profecias para muitos anos:

É um manuscrito antigoescrito por minha mãofalando na carestiae na maldita corruçãoque contamina o Brasile até perto de 2 milele dar explicação. (42)

Vejam-se lá as profecias até o ano 2000. Verdadeiramente essa data é um marco; mesmo para as profeciasdo Padre Cícero, o santo homem está bem atualizado e de acordo com a data escolhida pelos futurólogos mundiais em suas "predições" para o ano 2000. Somente em nosso caso trata-se de um velho manuscrito, oque lhe confere mais valor. Enfim, passemos às profecias propriamente ditas:

Meus filhos o mundo velhoestá sendo castigadofome, seca e carestiaE crime por todo ladotodo dia ver-se exemploninguém espere bom tempopois o tempo está mudado. (43)

É o apocalipse que se aproxima; castigo divino sobre um povo já tão sofredor. Qual seria o pecado dessa gente? Apesar de sua fidelidade, crença, sofrimentos cotidianos, ainda tem quem lhe prometa a fome, a seca e a vida cara até o ano 2000, e crimes por todo lado!Realmente não é uma mensagem de otimismo que é portador o Frei Damião. Que infelicidades! Um messianismo supernegativo!Com efeito, quando se fala de fome e seca ao povo do Nordeste, que já é a prática do necessitado, é o desespero total. É como "falar de corda em casa de enforcado". Quando esse povo, que depois de sempre sofrer da seca e da fome, recebe um novo messias, é para ouvir dizer que tudo isso vai continuar. Diante dessa catástrofe eterna, é o caso de se perguntar: com que rima tudo isso?O poeta de cordel, em geral, não tem uma visão crítica da história, da aventura, do cangaço, da religião e de outros temas de que ele gosta tanto de abordar, quando transcreve todos esses problemas, graças a seutalento poético, no mesmo nível de compreensão e da sensibilidade de milhares, de milhões de seus leitores e ouvintes:

- 67 -ele exprime seus próprios sentimentos, sem procurar muito – como o faria seu colega erudito –,

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compreendê-los ou fazer passar uma ideia, uma mensagem própria. Nascido e criado em um meio no qual a história e as ideias dominantes foram sempre orientadas para a continuidade do status social e econômico, o poeta popular é um tipo de vulgarizador, veículo de uma determinada cultura, mesmo que esta não corresponda aos próprios interesses de sua camada ou classe social. Quando o poeta José Costa Leite imagina e cria uma aparição do Padre Cícero ao Frei Damião, no Brasil atual, ele só faz colocar o seu talento e sua linguagem privilegiada a servico de ideias muito conservadoras. Esse tema e a linguagem mística contribuem para manter entre os leitores e ouvintes as ideias do passado, do fatalismo imobilizador:

Meus filhos mundo velhoestá sendo castigadofome, seca e carestiae crime por todo lado. (44)

O paternalismo e o tom superior evocam já um conteúdo carismático. É bem difícil contestar alguém que nos trata de "Meus filhos". É o tratamento complexo de afeição e de superioridade. Qualquer coisa que vem de cima. Mesmo no vocabulário religioso, a expressão "meu filho", paternal e altiva, opõe-se a "meu irmão”, mais simples. Sabemos que nas religiões populares, mais próximas da gente simples por sua linguagem e seus ritos, os seus ministros, padres e Oguns (45) se dirigiam a seus fiéis com esta última expressão.Parece que a gente se comunica mais facilmente com "meu irmão" que utilizando a expressão "meu filho". O tratamento paternalista se opõe ao tratamento fraternal.A seguir, vejamos a velha ideia do castigo, da punição. O “mundo velho" exprime a ideia, no falar popular doNordeste, de qualquer coisa conhecida e indefinida ao mesmo tempo: "coisa sem jeito, sofrida e experiente". É a ideia de uma filosofia vaga e sonhadora. Então, coisa sem jeito merece ser castigada. Por que todo mundo deve ser castigado, não se sabe. Talvez por causa do "pecado original". Deve ser a ideia que o poeta procura veicular. Isto reproduz um pensamento religioso assegurando que todos nós somos pecadores desde o nascimento. No caso de nossa poesia, é preciso preparar as pessoas para a mensagemdas profecias até o ano 2000. É necessário começar a culpabilizar o povo para que ele seja receptivo às predições messiânicas e místicas. Tudo é preparado para o sucesso de Frei Damião: o pecado original, a perspectiva de fome, de seca, de vida cara e de crimes. O medo se instala, ou continua a dominar os habitantes dos campos, do interior.

68Entretanto, Padre Cícero e Frei Damião são padres católicos romanos. Suas presenças físicas, suas vestimentas e seus ritos contribuem também para alimentar a obediência e a crença em seus mitos. São ritos à antiga, muito anteriores ao Concílio Vaticano II. Não há nenhum ecumenismo em suas práticas e atitudes, nem mesmo em relação às outras religiões cristãs.A esse propósito, vimos o folheto do crente "que virou jegue" por ter profanado o nome de Padre Cícero. Não é por acaso que se trata de um devoto da Igreja Reformada, aliás, "quase pastor", coma nos diz o poeta Edson Pinto. É, pois, nesta mesma ordem de ideias que uma das primeiras chamadas à ordem nas profecias do Padre Cícero é a obrigação de assistir à missa.

Aviso as moças solteirasque deixem o uso modernodevem ir ouvir a missae pedir paz a Deus Eterno. (46)

A chamada à ordem é dirigida às jovens com hábitos modernos. O poeta não explica o que ele entende por isso. A estrofe seguinte, porém, é mais clara. Desta vez, a advertência é destinada aos homens casados não muito "católicos":

O homem que é casadoe a mulher não considera. (47)

Este tipo de homem casado terá um destino trágico:

este vai ser derretidonos entes da Besta-Fera. (48)

É sempre o conselho, seguido da ameaça de uma punição terrível. Mais uma vez o poeta faz referência à Besta-Fera. Aliás, José Costa Leite manifesta uma nítida preferência pelas terras místico-religiosas. Ele compôs muitos folhetos desse gênero, os quais veremos nos capítulos seguintes.

-69 -30 - CUNHA, Euclides da. Os sertões. p. 139.31 - LEITE, José Costa. O Frei Damião sonhou com o Padre Cícero. p. 1.32 - GOMES, Dias. A revolução dos beatos. p. 323.33 - LEITE, José Costa, op. cit., p.1.34 - Idem.35 - Ibid.36 - LEITE, José Costa. A vinda da Besta-Fera. p. l.

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37 - LEITE, José Costa. O Frei Damião sonhou com o Padre Cícero. p. 2.38 - Idem.39 - Ibid, estrofe 4.40 - Ibid.41 - SUASSUNA, Ariano. O auto da compadecida. p. 125-7.42 - LEITE, José Costa. O Frei Damião sonhou com o Padre Cícero. p. 2.43 - Ibid, p. 3.44 - Ibid, p. 3.45 - Ogum (plural oguns): orixá que preside as lutas e as guerras; deus nagô da guerra. Espírito de raça branca encarnado em alguns santos da iconografia católica, principalmente São Jorge, Novo Dicionário Aurélio.46 - LEITE, José Costa. O Frei Damião sonhou com o Padre Cícero. p. 3.47 – Idem,.estrofe 5.48 - ibid, p. 4.

- 70 -Capítulo IVA VINDA DA FERA DO APOCALIPSE

Este folheto tem como título justamente A vinda da Besta-Fera.A justaposição de dois nomes que têm o mesmo significado, isto é, animal muito feroz, gigantesco, contra o qual não há defesa humana, é uma forma da linguagem utilizada pelos poetas populares. A expressão é corrente no interior do Nordeste, para definir um bicho ou qualquer coisa indefinível, misteriosa e diabólica. É o mais infeliz dos animais selvagens, pior ainda, é o Apocalipse em forma de bicho.É costume comparar os grandes criminosos a esse bicho. As histórias e as aventuras da Besta-Fera são numerosas. Nenhum outro animal fantástico pode substituí-la na imaginação popular. É por isso que seu nome corre de boca em boca entre os poetas populares, particularmente quando se trata de temas religiosos. No folheto O Frei Damião sonhou com o Padre Cícero, que é composto de oito páginas, isto é, a menor quantidade de um folheto de cordel, o poeta emprega a expressão Besta-Fera quatro vezes. Se nós contarmos o nome de Frei Damião e o de Padre Cícero no mesmo folheto, constataremos que o primeiro aparece sete vezes, e o segundo, cinco vezes. Esses números falam por eles mesmos. A citação desses três personagens na proporção indicada dá-nos uma ideia da importância da Besta-Fera, bicho místico e mítico entre as pessoas de origem rural do Nordeste. É muito significativo que o animal apareça em tal proporção no folheto dedicado a dois padres católicos.Contemos agora os nomes do Frei Damião e do Padre Cícero no folheto A vinda de Besta-Fera, no qual a chegada da Fera é próxima como prometeram, ou ameaçaram, mil vezes, as profecias. É também um livreto de oito páginas e 36 estrofes. Muito bem, a Besta é citada 28 vezes, o Padre Cícero e o Frei Damião cinco e três respectivamente.Parece-nos fora de dúvida que esse animal monstruoso desempenha um papel muito importante entre os poetas de cordel sensíveis aos temas religiosos. Claro está que a Besta-Fera não é uma invenção da poesia popular nemproduto original do misticismo nordestino, como o são Padre Cícero e Frei Damião. Ela também não é o resultado da fantasia criativa,

- 71 -às vezes muito rica, do povo sertanejo. Poderíamos aplicar esses comentários a outras ideias e personagens "autênticos" do universo psicocultural dos nordestinos, como João Grilo e Pedro Malsarte, esses heróis burlescos tão apreciados, como Oliveiros e o Cavaleiro Roldão, etc. (49). Todos esses personagens e todas as aventuras, ou histórias, fazem parte da psicologia e da cultura universal ou, pelo menos, ocidental. Eles existem há séculos e séculos. Em compensação, o que é autêntico e puramente nordestino é a maneira como esses personagens se assimilaram e como eles se situam em relação à história e à realidade da região e do país.Os poetas populares, eles mesmos, fazem parte das realidades do Nordeste com sua literatura de cordel, sua linguagem e suas utopias. Eis como se pode interpretar a Besta-Fera, que é a versão popular da Fera do Apocalipse. É interessante assim mesmo observar como os poetas de cordel se apropriaram desse mito judeu-cristão, sob o pretexto de reproduzir as profecias de Padre Cícero e de Frei Damião.Esse fenômeno é ainda mais interessante quando se pensa que ele é recolocado no tempo e no espaço do Nordeste do século XX. Sem pretender nos aventurar muito nas estradas eruditas do passado, pois nosso estudo tenta se limitar ao espaço físico e cultural do Nordeste brasileiro, vamos fazer uma pequena incursãono domínio da cultura luso-brasileira do século XVII. Trata-se de uma aproximação do personagem real, brilhante, messiânico e profético que foi o Padre Antônio Vieira.Essa aproximação se justifica pelo caráter e a linguagem místico-religiosa desse homem de letras e de religião. A figura da Fera do Apocalipse foi também abordada pelo Padre Vieira nos seus célebres sermões e tratados. Naturalmente, esses escritos são conforme às condições lusitanas e europeias da época. É essamaneira hábil e brilhante do célebre jesuíta que retém nossa atenção. Vemos aí um outro parentesco importante dos místicos contemporâneos do Nordeste. Citemos para começar as informações de Raymond Cantel, num estudo sobre as profecias e o messianismo na obra do Padre Vieira:"Nous sommes, en effet, à la veille d'une nouvelle flambée messianique, qui n'interesse plus seulement le Portugal, mais l'Europe entière. A l'étranger, ce sont surtout les juifs qui s'agient. Ils promettent la venue du Messie et son triomphe pour 1666... Parmi les chrétiens, on parle beaucoup des prophéties sur la

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destruction de Rome, comme de celles de Nostradamus. Il y a là un mouvement fait d'inquiétudeSs et d'espérances dont Vieira. porte témoignage en 1665, au moins pour l'Italie". (50)Vejamos agora algumas palavras do próprio Vieira: "Aqui chegam agora uns padres de Itália e dizem que para o ano que vem se esperam lá grandes mudanças no mundo". (51)

- 72 -A seguir, as explicações de Cantel:"Au Portugal, ce bouleversement est prévu en fonction des espérances de chacun: venue du Messie, retour de D. Sebastião destruction de la puissance turque". (52)

É remarcável como o Padre Vieira prometia toda sorte de mudanças para Portugal. Era a véspera de uma data, 1666, interpretada e adaptada sabiamente e de maneira muito messiânica. Parece-nos que o Padre Vieira era o único a se apegar a essa data misteriosa: "De même que la date, le fondement de ces espérances est commun aux trois courants. Tout repose sur l'interprétation d'un passage du chapitre XIII de l'Apocalypse. Après avoir annoncé sa venue, et la puissancede la bête qui règnera sur le monde, Saint Jean révèle que tous - les riches comme les pauvres, les petits comme les grands - seront soumis à son empire... Saint Jean ajoute, car c'est un nombre et ce nombre d'hommes est six cent soixante six. Viejre, on s'en souvient, continuait à considérer les textes des Ecritures comme inspirés jusque dans les moindres détails". (53)Veja-se como se pronunciava o Padre Vieira:

"O de seis, diz São Jerónimo, significa os trabalhos desta vida, porque em seis dias fabricou Deus o mundo". (54)

Segundo Raymond Cantel, Vieira continuava a interpretar o Apocalipse com a intenção de aplicá-lo a Portugal. Os números 666 ou 1666 eram um dos seus temas de estudo e de interpretação. Outros autores se debruçaram sobre esses números, como, por exemplo, Françoisí Feuardent, convencido de que a Fera do Apocalipse representava Mahomet e sua seita. (55)Assim, pela leitura dessas citações, estimamos que as profecias relativas à Besta-Fera vêm de muito longe. Os tratados e os sermões do Padre Vieira, cultural e cronologicamente mais próximos da cultura brasileira, deixaram, evidentemente, traços profundos em nosso país. Parece claro que a coincidência entre as referências de Vieira e dos poetas populares com relação à Fera do Apocalipse, apesar de três séculos de distância, vem de leituras comuns e de uma mesma base cultural. Textos bíblicos e vulgarizações diversas sempre serviram de material de leitura e de prédicas nas igrejas, missões e escolas.Os escritos bíblicos foram sempre popularizados por intermédio de produções escritas, visuais e orais. Esta última expressão foi a que atingiu o poeta popular em geral, pouco habituado à leitura. Vejamos, assim, a quarta estrofe do folheto A vinda da Besta-Fera:

Talvez até que ela cheguedaqui para o fim de mêspois não tem dia nem horao padre disse uma vezque ela é o malditoE na testa traz escrito 666. (Grifo nosso) (56)

- 73 -O poeta teria sido indiretamente influenciado pelo Padre Vieira? Não é impossível, dado que os textos desteúltimo tiveram grande penetração no Brasil. Preferimos, porém, a hipótese da leitura ou de conhecimento por via oral dos escritos bíblicos. A nosso ver, trata-se de coincidência baseada sobre a mesma origem de formação cultural e histórica.O Padre Vieira, como as demais correntes messiânicas do século XVII, interpretava a vinda da Besta-Fera como um acontecimento positivo. Havia mesmo variedades dessas tendências otimistas:"Il existe trois courants messianiques. Le premier est celui des juifs et des nouveaux chrétiens qui attendent la venue du Messie, comme leurs coreligionnaires des autres pays européens. Il y a ensuite celui des sébastianistes qui annoncent pour 1666 le retour de D. Sebastião. Il y a enfin celui qui est représenté par Vieira et ceux qui espèrent, comme lui, pour la même année, la destruction de la puissance turque". (57)

No caso dos místicos nordestinos, ou pelo menos entre os poetas populares, os devotos e outros divulgadores nacionais, a interpreta ção vinda da Besta-Fera do Apocalipse é bastante catastrófica e se origina nas "profundezas", senão vejamos:

O inferno pegou fogoe satanaz revoltou-sebreve vem o anti-cristoagora tudo danou-sea coisa está apertandode mais a mais piorandoa besta-fera soltou-se. (58)

Parece que a Besta-Fera esteve presa no Inferno. Ela escapou por causa de um incêndio e virá à Terra

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para castigar todo o mundo. Representando Mahomet, segundo Padre Vieira, Feuardent e outros pensadores do século XVII, o animal é, aos olhos dos poetas populares, a encarnação do Demônio, de Satã. É o anti-Cristo. Ela está livre e vem para:

A besta-fera está solta e vem fazer confusão. (59)

Mas, muito importante, existe uma possibilidade de enfrentar a Besta-Fera. Existe uma força superior e maisforte:

Vamos pedir auxíliodo Padre Cícero Romãoque a ladeira dos oitentavai ser pesada e cruentaafirmou Frei Damião. (60)

- 74 -Agora, o problema de data se recoloca. No século XVII pensadores messiânicos se debruçaram sobre hipóteses as mais eruditas para fixar a data fatal da chegada da Besta-Fera. Vimos os números apocalípticos de 666.En seguida, o ano de 1666, quando deveriam se produzir acontecimentos extraordinários. Essas datas, esses cálculos eruditos, partem da idade de Jesus Cristo, e o seu múltiplo por 2. Assim, o ano 666 seria o começo dessas interpretações.No Nordeste do Brasil, no século XX, a poesia popular, em sua linguagem característica, não hesita em fixaruma outra data fatal:

que a ladeira oitentavai ser pesada e cruenta. (61)

Como os folhetos de cordel, em geral, não mencionam datas de publicação, somos obrigados, a cada vez, de fazer uma espécie de equação para poder estabelecer algumas datas ou aproximações. Se partirmos dareferência ao Padre Cícero, que faleceu em 1934, esse folheto apareceu depois desse ano. Em seguida, devemos ter em conta a referência a Frei Damião, falecido em 1997. Finalmente, como o autor do folheto, felizmente ainda estava vivo em 1978, nos sentimos no direito de deduzir que a data de "oitenta" à qual se refere o poeta é 1980.A vinda da Besta-Fera do Apocalipse nos sertões do Nordeste é então iminente Ao menos, é o que afirma Frei Damião pela boca dos poetas populares.Uma "revolução" deve se produzir nessa data, se bem que o poeta não esteja tão convencido como seus antepassados portugueses, Bandarra, Vieira, etc.Parece que, pela primeira vez, saímos do ciclo rigoroso e complexo dos números "666" e "1666" e de seus múltiplos variantes, a despeito das explicações científicas do Padre Vieira. Veja-se como ele explicava a sua teoria genial da escritura do número 1666 em algarismos romanos: “MDCLXVI. Porque todos os números do abecedário latino se acham completamente na conta deste ano, sem acrescentar, nem diminuir, nem trocar ou alterar a ordem deles, porque o M vale mil, o D quinhentos; o C cem, o L cinquenta, o X dez, o V cinco, e o I um; todos juntos pela mesma ordem vêm a fazer 1666: MDCLXVI.” (62)E como nos explica R. Cantel, "cette perfection ne pourrait être que le signe d'une totalité d'un accomplissement" (63). Evidentemente› a totalidade, a realização de VIEIRA, era uma espécie de redenção para seu país. Era o milagre dos milagres, materializado pela volta do príncipe encantado, D. Sebastião. Sem dúvida, a expulsão dos turcos era a condição primordial. O reino de Portugal poderia, assim, recomeçar sobre uma nova estrada de uniões, conquistas e glória.

- 75 -Entre os messiânicos brasileiros do século XX, Padre Cícero e Frei Damião, as esperanças são o contrário das europeias. Devem-se temer períodos de sofrimentos e de castigos. As pessoas cometeram muitos pecados. É preciso castigá-las. Não há qualquer esperança de redenção e de vida nova.A verdade, segundo os versos populares, são as promessas de sofrimento e de miséria a partir de 1980. Eles são inspirados, bem entendido, nos sonhos e nas palavras dos santos homens, como Padre Cícero ou Frei Damião. O ciclo de 666 está rompido. O estilo e o pensamento místico continuam. O apego popular a essas crenças é sempre presente. Senão, como compreender o interesse da poesia popular de nossos diaspor esses temas?Do ponto de vista formal, os atuais "pensadores" e divulgadores não utilizam a mesma linguagem. Em torno do ano 2000, no Nordeste do Brasil, expressões como "pesada e cruenta" merecem algumas explicações. Pensamos que Frei Damião emprega uma outra linguagem quando ele se dirige a seus ouvintes. Sua formação eclesiástica e europeia lhe dá outros meios de comunicação. Subsistem, porém, afinidades com as populações sertanejas. Elas são de caráter espiritual, no sentido religioso do termo.Do ponto de vista da divulgação das ideias e das profecias, é o poeta de cordel que encontra a boa palavra,a linguagem adequada para se fazer entender pelas pessoas do país:

A ladeira dos oitentavai ser pesada e cruenta. (64)

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Por que a ladeira dos oitenta? Para começar, porque uma ladeira representa sempre um esforço físico, sobretudo nos meios modestos. "Subir uma ladeira" é um esforço pessoal, deve-se contar com seus fracos meios, isto é, mais trabalho e dificuldades. Além disso, no Nordeste não são comuns os relevos topográficos muito importantes. Uma ladeira é mais que uma colina. Ela seria percebida quase como uma montanha com tudo o que isso representa como dificuldades para chegar ao cimo. As pessoas modestas não dispõem de meios artificiais, motores ou outros, para facilitar as suas vidas. Subir a ladeira significa mais dificuldades, importantes ou impossíveis.A seguir, estudaremos as causas da data fatídica dos "oitenta". O poeta deve situar "sua" profecia a partir de 1978, como vimos anteriormente. Falando de ladeira, quer dizer da noção de subida, no sentido material,ele a confirma pela perspectiva de oitenta, ainda uma outra subida em relação a 1978. Tratar-se-ia, então, de subidas sucessivas.Pensamos que o poeta procura dar uma ideia de superlatividade, criar um clima em crescendo no tempo e no espaço. Certamente, ele tem o direito de se oferecer certas fantasias e abstrações. Talvez por uma questão de estilo ou de ambiência, de suspense poético. Ele se permite variar as datas, passar sem dificuldades de uma predição à outra. Os leitores ou ouvintes devem fazer uma espécie de ginástica mental para compreendê-lo.

- 76 -Quando o poeta fala de “ladeira dos oitenta”, pensamos que ele coloca um ou vários anos antes dessa data.Mas, fazendo-se uma volta ao passado, revendo as três estrofes anteriores, constatamos que há um problema de data, com relação à vinda da Besta-Fera. Com efeito, o poeta lança algumas ameaças:

Talvez até que ela cheguedaqui para o fim do mêspois não tem dia nem hora. (65)

Poderíamos pensar que o nosso bardo evita se comprometer muito. Diante de seus leitores, ele não quer assumir a responsabilidade de uma data precisa para o começo das catástrofes. Entretanto, ele quer ser fielàs palavras atribuídas a Padrinho Cícero e a Frei Damião, que anunciaram a vinda da Besta-Fera em 1980.É evidente também que nosso poeta toma todas as precauções, do ponto de vista profético e comercial. Eleé bastante prudente e emprega com sobriedade seus recursos de linguagem: “Talvez até que ela chegue”.Como se não bastasse empregar a palavra talvez, uma das mais fluidas da língua portuguesa, ele acrescenta “até que”. Eis aí um superlativo condicional da língua brasileira do Nordeste: talvez que / pode ser / quem sabe / vamos ver / sei não/, etc.Tudo é possível, tudo é válido. Paralelamente à utilização de expressões desse tipo nos meios populares ouna linguagem corrente da região, pode-se remarcar o emprego de palavras ou expressões sem qualquer implicação concreta mesmo por pessoas importantes, hábeis na arte de falar para não dizer nada. Aqui, nosvem à ideia uma "saída" do presidente Juscelino Kubitschek, durante uma conferência de imprensa. Tratava-se de uma questão complicada politicamente, e a resposta positiva ou negativa do presidente complicaria a situação. Forçado pela insistência do jornalista, o presidente Kubitschek saiu-se com essa joiado falar para não dizer nada:“Sabe? Eu não sou, nem contra, nem a favor. Antes pelo contrário.”Como todos os cristãos, nosso poeta tem o direito de tomar suas precauções. E, para assegurar ainda maisa sua retaguarda, depois de um pequeno passo à frente, "daqui para o fim do mês", e em seguida ele se recupera: “pois não tem dia nem hora”.Atenção, a Besta-Fera pode chegar daqui para o fim do mês ou... não se sabe quando. A data de 80 não é muito certa, não! Contrariamente aos antigos pregadores e divulgadores, nossos poetas populares são menos afirmativos.

- 77 -49 - PONTES, W. Tenório. La prépondérance masculine dans la litterature populaire du Nordeste du Brésil. Sorbonne - Paris, 1976.50 - CANTEL, Raymond. Prophétisme et messianisme dans l'oeuvre d'Antonio Vieira. Paris: CNRS, 1960, p.110.51 - Idem.52 - Ibid., p.111.53 - Ibid.54 - Ibid., p.112.55 - Ibid., p. 113. O autor cita François Feuardent, que foi pregador na Ordem dos Cordeliers. Nascido em Coutances, França, (1539-1610), ele teria sido o inspirador do Padre Vieira quanto ao número 666.56 - LEITE, José Costa. A vinda da Besta-Fera. p. l.57 - CANTEL, R., op. cit., p.110-111.58 - LEITE, J. Costa, op. cit., p.2.59 - Ibid.60 - Ibid.61 - Ibid.62 - CANTEL, R., op. cit., p.114.63 - Ibid.64 - LEITE, J. Costa op. cit., p.2.65 - Id., p.l.

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- 78 -Capítulo VA VOZ DE FREI DAMIÃODeixemos as contradições das datas para a aparição da Besta-Fera e procuremos descobrir o espírito e o conteúdo das predições de Padre Cícero e de Frei Damião. Teremos sempre os folhetos como fonte de informação. As profecias veiculadas pelas poesias populares têm um caráter punitivo. Elas pregam a remissão dos pecados pelo castigo, outra ideia, aliás, que se origina nos escritos bíblicos.Quanto aos folhetos de cordel, há uma certa mistura de inspiração, isto é, de profecias. A confusão é corrente entre as predições atribuídas ao Padre Cícero e Frei Damião, assim como a Antônio Conselheiro (66). Este último, aliás, é um simples homem do povo, não muito cultivado, enquanto os outros dois são padres da Igreja Católica, possuidores de uma formação intelectual superior.Antes de estabelecer ou rejeitar a verdadeira origem de certas predições divulgadas pelos poetas populares, tentaremos avaliar a importância desses personagens para a psicologia individual ou coletiva do povo nordestino. Faremos apelo a alguns autores eruditos e pesquisadores interessados nos fenômenos culturais e sociais da região.Para começar, vejamos como se expressa José Lins do Rego, em seu importante e indispensável romance A Pedra Bonita, a propósito do complexo psicocultural da gente do Nordeste: “ a vida de sertanejo: vem santos, vem cangaceiros, vem a volante. (67)Lins do Rego não poderia ser mais feliz na elaboração dessa síntese da vida de sertanejo. Ele atingiu o alvo. Essa trilogia, santo, cangaceiro e volante, contribuiu fortemente para a formação da amálgama social das populações sertanejas. O autor parece estar convencido. Pela palavra santos, ele quer nos falar dessa linhagem de santos homens que percorrem o Nordeste. Pensamos não trair o pensamento do romancista considerando como os mais célebres dessa lista, Antônio Conselheiro, Padre Cícero e Frei Damião.É bem natural que os intelectuais e poetas populares reflitam nas suas obras o fenômeno do misticismo e do fanatismo da região; cada um à sua maneira, na sua linguagem particular, pois eles se dirigem a públicos diferentes. A coincidência de temas e de personagens não pode se explicar pela influência do meioambiente, geográfico, social e cultural.

- 79 -Com relação à diferença de interpretação do sentimento messiânico do Nordeste e o que é expresso pelos pensadores europeus no século XVII, ela é motivada pela realidade vivida por cada um desses autores. Os europeus, com o seu otimismo messiânico (68) em contradição com o catastrofismo dos brasileiros, forçados pelas condições de vida dramáticas do país.Eis aí a tendência ou o gosto pelos temas bíblicos na imaginação fantástica dos nordestinos e de seus profetas:

O Sertão vai virar praiae a praia vai virar Sertão. (69)

Isso seria um verdadeiro fim de mundo. Só um espírito perturbado poderia imaginar um tal acontecimento, ou fazer uma tal profecia. Segundo Euclides da Cunha, ela foi vista pela primeira vez nas notas de Antônio Conselheiro:

"Em 1896 há de rebanhos mil correr da praia para o Sertão; então o Sertão virará praia e a praia virará Sertão". (70)

É inegável que essas frases são belas. Elas são dignas de um espírito iluminado, como o do Conselheiro. Aliás, a gente as vê por todos os lados nas poesias populares, apesar da confusão quanto à sua origem. Elas são vistas também entre intelectuais e artistas contemporâneos, como em Glauber Rocha (71). Nós as escutamos e vimos nas canções e cenas finais do filme Deus e o Diabo na terra do sol.Entre os poetas populares, temos José Costa Leite nos apresenta essa profecia no folheto Frei Damião sonhou com o Padre Cícero Romão, com uma redaçãoum pouco diferente: “O Sertão vai virar praia / e a praia virar Sertão”. (72)Na citação de Costa Leite, falta o verbo “vai” no segundo verso. Além disso, o Conselheiro empregou o verbo no futuro, “virará”.

Antes de continuar a comparação da poesia popular, das notas do Conselheiro e das profecias de Padre Cícero e Frei Damião, voltemos ao filme de Glauber Rocha. Este cineasta, também homem do Nordeste, transpôs em imagens as palavras fantásticas do Conselheiro. As cenas finais do filme citado mostram as ondas do oceano invadindo o deserto das areias sertanejas. São imagens de excepcional beleza plástica. Glauber Rocha dá a impressão de levar muito a sério o sentimento místico das populações do Nordeste. Veem-se nos seus filmes personagens místicos representando a psicologia coletiva da região; multidão de fanáticos, de santos em peregrinação para a terra prometida; cangaceiros com os conflitos sociais que eles simbolizam. Obra de um intelectual moderno, os filmes de Glauber Rocha se integram perfeitamente ao complexo cultural do Nordeste como um “primo rico" da literatura de cordel.

- 80 -Voltemos, porém, às profecias do Padre Cícero, em particular às que passaram às mãos de Frei Damião,

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segundo o poeta Costa Leite. Trata-se do decênio fatídico da década de 1980:

de 80 por dianteé que vai haver confusãobriga filho contra paié irmão contra irmãoLouvado seja Jesusque foi cravado na cruztendo de nós compaixão. (73)

A desordem será completa. A confusão social vai começar pela desintegração familiar. O problema de data persiste. Bem entendido, não se trata mais da série 666, mas da década de 1980. Querendo atualizar "suas" predições, o autor se engana de inspiração indicando que são as predições de Padre Cícero quando,na realidade, se trata do Conselheiro. Mas ele mantém assim mesmo um certo mito em torno da sua data. Vimos que o ano de 1896 seria o começo das grandes transformações, segundo as palavras de Antônio Conselheiro. Segundo Padre Cícero e o poeta Costa Leite, os acontecimentos se produzem em 1980. Duas décadas de catástrofes nos ameaçam e o fim de tudo será no ano 2000. Resta, porém, uma diferença de cem anos, que poderá representar algum mistério. Mas veremos a seguir como nosso poeta organiza seu calendário até 96:

No ano 81vai começando os clamoresa aflição das afliçõese o horror dos horrores. (74)

O ano 81 se anuncia cheio de ameaças, horrores e aflições. Não há precisões. Fica-se nas generalidades. O poeta nos reserva dificuldades ainda mais importantes. Ele escolhe um ritmo em crescendo:

No ano 82vai faltar milho e feijãoem toda zona sertanejanão vai haver produçãoo povo fica sem comermuita gente vai sofrersem ter alimentação. (75)

Aí constatamos um elemento linguístico bem interessante. Parece-nos que profetas e poetas adaptam o estilo profético antigo às condições da vida local. Padre Cícero, na qualidade de bom sertanejo, apesar do seu messianismo rigoroso, conhece bem os hábitos alimentares de seus compatriotas. O feijão e o milho vão faltar. É uma perspectiva ameaçadora.

- 81-É bem conhecido que o problema de alimentação, isto é, a falta de mercadorias, é uma realidade secular em vários pontos do planeta Terra. No Nordeste do Brasil, ela atinge uma intensidade trágica. Historicamente, a situação foi sempre precária nessa região, sempre submetida a toda sorte de calamidades, em particular às secas e à fome periódicas. Os profetas, por intermédio dos poetas populares,são cada vez mais pessimistas:

No ano 83o inverno vai chegarlogo no mês de Janeirovê-se o trovão ribumbaro que não tiver morridofica num canto encolhidosem força pra trabalhar. (76)

Deveríamos dizer: eis aí uma boa notícia. O inverno vai chegar em janeiro. Vai ser a abundância. Para uma região onde a característica é a falta de água, a perspectiva de chuvas deveria alegrar todo mundo. Infelizmente, não. Os profetas sabem bem o que eles dizem. Serão inundações, a calamidade das grandes enchentes, o dilúvio. É certo. Numa região onde a seca é a causa predominante de todos os males naturais,a chegada das chuvas, teoricamente, seis meses antes da data prevista, não pode ser uma boa coisa. E nosso poeta não facilita as coisas: "vê-se o trovão ribumbar / o que não tiver morrido".As profecias são realmente trágicas. Quase todo mundo vai morrer. Além do conteúdo das predições, observamos expressões características da linguagem popular. Põe-se aqui um problema de compreensão do verso "o que não tiver morrido". Esse “o que" deve ser compreendido como “o qual", "a coisa", ou “todas as coisas". “Tudo"? Neste último caso, devemos incluir as pessoas, os animais, a vegetação e as plantações em geral. Se, entretanto, interpretamos "o que" por "quem", pronome pessoal, devemos pensar que o autor deseja falar de pessoas, de seres humanos. Se aprofundarmos um pouco mais os efeitos desastrosos que podem produzir as chuvas torrenciais que chegarão seis meses antes da época prevista, épreferível guardar a primeira hipótese linguística. Assim, “o que" representaria a totalidade de tudo que vive,animal e vegetal.

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Vejamos agora a expressão verbal "não tiver morrido". Ela é formada pelo futuro do subjuntivo do verbo "ter", mais o particípio passado do verbo "morrer". Tudo isso nos dá a ideia de um futuro condicional negativo, isto é, “tudo o que não será morto”.Essa maneira de falar nos leva a pensar que a ideia do poeta é no condicional e as consequências das profecias serão funestas, como se ele quisesse dizer: "se alguém ou alguma coisa escapar do dilúvio, não poderá viver normalmente".

82 -O poeta Costa Leite é bastante fecundo, já o dissemos, com relação às poesias de caráter profético. Conhecemos vários de seus poemas bastante diferentes do ponto de vista linguístico, mas sempre sobre o mesmo tema. É por isso que pensamos ser interessante comparar algumas estrofes que mencionam a mesma data e as mesmas profecias. Veremos o poeta popular manejar um vocabulário variado e rico, no qual o simbolismo sertanejo está presente, sobretudo na segunda estrofe. Vejamos a seguir duas estrofes deste poeta, sendo a primeira do folheto Frei Damião sonhou com o Padre Cícero, a segunda de A voz de Frei Damião:

No ano 83o inverno vai chegarlogo no mês de Janeirovê-se o trovão ribumbaro que não tiver morridofica num canto encolhidosem força pra trabalhar. (77)

Em 83 verãopouca roupa e muita malamuito chapéu e pouca cabeçapouca vida e muita balamuita seca e pouco pastomuita guerra e pouco rastomuita sala e pouca fala. (78)

Já citado anteriomente, estudamos seu vocabulário, suas formas verbais muito particulares, suas previsões climáticas. Com relação à segunda estrofe, constatamos imediatamente uma total oposição relativamente às "predições meteorológicas". A primeira anuncia um inverno diluviano, devastador. Lembremos que o inverno no Nordeste é a estação das chuvas, e não do frio, como em outras regiões ou países. No que se refere à segunda estrofe, notamos que ela prevê uma grande seca, "muita seca e pouco pasto".Como no sertão nordestino a seca é habitual, pensamos que, se Frei Damião decidiu profetizar tanta seca epouco pasto, é porque vai se produzir uma calamidade enorme, fora do comum.Ressaltamos aí a primeira contradição, e não das menores, entre as profecias do Padre Cícero e as de Frei Damião. Enquanto o primeiro prediz para a mesma época chuvas diluvianas, o segundo anuncia uma seca excepcional. O poeta nos coloca em face de um grave dilema: qual das duas previsões é a boa? Pois os dois personagens são profetas excepcionais e quase divinos. E, por princípio, não se deve pôr em dúvida as palavras desses iluminados, é uma questão de fé. Seria uma falta de atenção da criatura com relação aos conselhos do criador, isto é, de Padre Cícero, ou, simplesmente, uma revolta do primeiro profeta contra o segundo?Nosso poeta Costa Leite assume uma grave responsabilidade. É certo que seus leitores e ouvintes observarão a contradição e devem colocar a questão: qual das duas versões é a boa? Se uma é exata, a outra é completamente falsa, pois não se podem conciliar chuvas e secas. Neste caso, é preciso tirar as conclusões: um dos dois profetas se enganou, o que é impossível, pois isto se oporia ao dogma sagrado da infalibilidade em matéria de fé, de crença religiosa.Que personagem, que ideia mitificada pelo dogma da infalibilidade resistiria à demolição de sua própria coluna de sustentação? O carisma seria muito afetado. Seria um problema de consciência muito grave para os fiéis de Padrinho Cícero e de seu sucessor, o Frei Damião, que, aliás, tem o hábito de ler ou ouvir as poesias de cordel e levá-las muito a sério. Não pode haver duas verdades. O poeta Costa Leite tomou uma grande responsabilidade.

A esse nível, poderia ser colocado um problema de confiança entre os leitores ou ouvintes e seu poeta. Este, por intermédio de seus folhetos, revelou uma grave contradição entre as profecias de dois homens santos muito estimados, venerados. Pode-se procurar saber se existe realmente diferença entre as duas profecias para o ano 83, ou se o poeta inventou ou inventa histórias somente para vender os seus folhetos. Diga-se de passagem que esses dois folhetos foram escritos em datas diferentes.Os folhetos de cordel são coisa muito séria. Eles são enraizados como fonte de informação e de formação nas populações rurais do Nordeste há cerca de um século. Quase toda a informação nos campos sertanejos em muitas décadas passou por esse meio de divulgação e de cultura. Não seria exagerado considerar esse fenômeno como o elemento maior da cultura popular do Nordeste entre os séculos XIX e XX. Eis por que estimamos que é importante assinalar a oposição entre as duas estrofes dos livretos de José Costa Leite.Voltemos, porém, aos aspectos formais e à estrutura linguística da segunda estrofe do folheto A voz de Frei Damião. Trata-se de uma construção oposicional. Ela se manifesta no interior mesmo de cada verso e, ao mesmo tempo, entre um verso em relação ao outro. Veremos duas frases que se opõem em cada verso,

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ligadas pela conjunção "e" que serve, às vezes, como elemento de ligação e, outras vezes, como elemento de oposição. É evidente que esse esquema foi organizado pela vontade do poeta. Pode-se, desde já, notar a riqueza de vocabulário, sobretudo se o compararmos com o outro folheto, Frei Damião sonhou com o Padre Cícero, e se observarmos as oposições linguísticas no contexto nordestino.Imaginemos, pois, o quadro abaixo substituindo a conjunção “e” pelo símbolo "x", no sentido de "contra", "versus". Os advérbios são colocados na mesma coluna, e os substantivos numa outra, a fim de pôr em evidência as oposições:

v. 2) pouca x muita = roupa x malav. 3) muito x pouca = chapéu x cabeçav. 4) pouca x muita = vida x balav. 5) muita x pouco = seca x pastov. 6) pouco x muita = guerra x rastov. 7) muita x pouca = sala x fala

Primeiramente, observemos que o poeta construiu sua estrofe com pouquíssimas palavras. Os advérbios "pouco e muito” são colocados em oposição nos versos, no interior mesmo de cada verso. Esses advérbios,opostos entre eles, são seguidos de substantivos que se opõem, eles mesmos, por seus significados. Pensamos, outrossim, que a oposição entre as frases constituídas pelas primeiras e terceiras palavras nos versos 2, 3, 4 e 5 são modificadas nos versos 6 e 7 simplesmente por uma questão de rima poética. Nestes dois útimos versos, a oposição se faz entre as frases contituídas pelas primeiras e quartas palavras.

-84 -Dessas oposições estruturais pensamos tirar já uma conclusão. O poeta pretendeu dramatizar a situação, descrever um quadro completamente caótico, no qual nada mais é possível.Vejamos os detalhes de cada verso, de cada palavra. Aqui podemos descobrir o pensamento "profético" do nosso poeta:“pouca roupa e muita mala”.Numa situação normal, as pessoas podem ter ou comprar muitas roupas e tecidos. Estes objetos enchem os armários ou são arrumados nas malas. Não é, porém, a situação prevista pelas profecias “pouca ou nenhuma roupa” e, em consequência, muitas malas ou malas vazias.

“muito chapéu e pouca cabeça”.Neste terceiro verso, a oposição pode ser interpretada diferentemente. Trata-se sempre de uma época catastrófica, a Besta-Fera fazendo misérias em todos os domínios: epidemias, inundações, numerosos mortos. Em consequência, sertanejos mortos por milhares, e chapéus que não têm cabeças para cobrir; chapéus de palha pendurados em definitivo nos cabides. Pensamos que essa interpretação é confirmada pelo verso seguinte: “pouca vida e muita bala”. I

Confirmando o verso 3, “muito chapéu e pouca cabeça”, o autor entra num outro domínio. Não será por causa das catástrofes naturais, mas por "morte matada", o velho sistema de implicações sociopolíticas do Nordeste dos cangaceiros e dos coronéis: crimes e vinganças, liquidados por balas ou armas brancas. Parece-nos que o poeta se aproxima do terreno social, pois na estrofe seguinte desse folheto ele nos diz que: "surgirá revoluções". Cabeças vão ser "cortadas" em grande quantidade. Isso não é surpreendente, pois se trata das predições de Frei Damião que, apesar do tom profético, não hesita em abordar temas sociais da atualidade, naturalmente ao gosto conservador e sectário.

“muita seca e pouco pasto”.

Aqui voltamos ao domínio do natural. Quando reina a seca, é lógico que o pasto desapareça, são fenômenos que se opõem na mentalidade nordestina. Isto é bem exposto pelo poeta no verso acima. Não lhe vem à ideia que outras soluções poderiam ser encontradas para compensar as dificuldades periódicas do clima. Habitualmente muito apegado à terra, apesar das correntes migratórias de muitos anos, os sertanejos são muito sensíveis a esses problemas que, aliás, foram objeto de muitos estudos. Por exemplo, vejamos como Euclides da Cunha viu o problema do clima nos desertos do Nordeste. A seguir uma das várias passagens nas quais ele tratou do assunto.

Calor de dia, frio de noite.Deserto no verão, paraíso no inverno. (79)

-85 -Bem entendido, a maneira de apreender esses fenômenos e sobretudo a sua solução não é a mesma para Euclides da Cunha e para os poetas populares. O que é comum às duas partes é o interesse pelos problemos da terra, à sua situação climática e às consequências para os costumes e a vida dos habitantes. Voltemos, porém, ao verso de Costa Leite:“muita guerra e pouco rasto”.

Nesse verso, o poeta, ou o profeta, retoma o tema do extranatural. Antes de analisar a oposição no interior

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do verso, vejamos o sentido do importante vocábulo rasto. Trata-se de uma forma popular de rastro, sinônimo de pegada; traço, marca dos pés sobre a areia. A palavra é correntemente usada nos sertões. Existe mesmo o adjetivo rastejador para definir a pessoa, em geral homem, capaz de seguir e descobrir alguém, talvez um criminoso, a muitas léguas de distância, somente com base nas pegadas deixadas no chão, mesmo se a terra é seca e quente; é o rasto ou rastro.O que é menos simples é saber por que o poeta colocou essas duas palavras em oposição: guerra e rasto.Aparentemente os dois vocábulos se completam se levarmos em conta o contexto guerreiro das predições. As guerras mobilizam muita gente, que marcha e deixa muitos rastos e mortos.Mas, como estamos globalmente no domínio do religioso, do místico, das profecias de Frei Damião, citaremos um exemplo do Dicionário Aurélio, embora a sua origem seja alentejana e não nordestina do Brasil:

De rastos. A rastos:O povo leva / Com devoção/Nossa Senhora / Da Conceição,/De monte em monte,/ Por onde estão /Velhos de rastos, / Olhos no chão, /E as mãos cruzadas / Em oração. (80)

A nosso ver, a oposição no interior do verso "muita guerra e pouco rasto" é mais simples. O poeta quis mostrar que, em vez de penitências, de preces, procissões (pouco rasto), haverá lutas e violência (muita guerra).Resta, porém, o recurso a um vocábulo muito corrente nos sertões brasileiros e também no sul de Portugal, no Alentejo. Isso, entretanto, não é raro entre os poetas de cordel que utilizam um vocabulário, para não dizer estruturas poéticas, próximo e às vezes idêntico ao falar português dos séculos XVI e XVII. A este propósiito, vejamos o que nos diz o erudito Manuel Cavalcanti Proença, na Introdução à Antologia, in; Literatura Popular em verso:"O autor de folhetos de poesia popular tem a sua tradição, como é infalível, em Portugal; e Baltasar Dias, autor de Imperatriz Porcina (1660) [...], encontra o tema ‘versado’ em sextilhas e corrente, ainda hoje, no Brasil [...]". (81)

- 86 -Finalmente, chegamos ao último verso, à última oposição da estrofe que estudamos. O poeta se exprime por símbolos, por palavras cujos significados são menos aparentes, menos diretos: “muita sala e pouca fala”.Este verso é, a nosso ver, a síntese dos anteriores. A oposição principal se encontra entre os substantivos sala e fala. Estamos sempre num contexto geral de crise, de catástrofe generalizada. “Muita sala” é o resultado das doenças, assassinatos e mortes em grande quantidade. A sala é a peça da casa na qual os camponeses expõem os defuntos antes do enterro. No Nordeste, é na sala que se faz a incelência, o velório, as últimas homenagens ao falecido. Nessas ocasiões há pouca conversação, pouca fala. Ouvem-secantos ou murmúrios em uníssono, sem acompanhamento musical. É neste sentido que compreendemos a metáfora, a oposição fala e sala.Como vimos pela análise de cada verso e de cada vocábulo da estrofe precedente, a impressão geral que nos transmite o poeta é que o ano 83 vai ser um período mortífero. Isto é confirmado, digamos anunciado, pelos versos do mesmo autor em A voz de Frei Damião:No ano 82o negócio vai ser sérioaté chover bastantemas surgirá um mistériogrande fome reinaráe a febre botarámuitos para o cemitério. (82)

- 87 -66 - Nota 69.67 - REGO, José Lins do. Pedra Bonita. p. 233, 234.68 - Ver páginas 101-105 e CANTEL, Raymond. Les prophéties dans la littérature populaire du Nordeste. In:Cahiers du Monde Hispanique et Luso-brésilien, Caravelle 15,1970, p. 57-72.69 - Essas profecias são atribuídas a Antônio Conselheiro por Euclides da Cunha, que as encontrou em cadernos manuscritos entre os sobreviventes de Canudos. Os Sertões. Rio de Janeiro: Livraria Francisco Alves, 1933, p. 171-172.70 - Glauber Rocha, cineasta brasileiro, realizador de filmes de sucesso na década de 1960, sob a etiqueta do Cinema Novo, como: Barravento, 1962; Deus e o Diabo na terra do sol, 1964; Terra em transe, 1967; Antônio das Mortes, 1969; O leão de sete cabeças, 1970; Cabeças cortadas, 1970. 71 - O historiador e crítico de cinema Alex Viany escreve, a propósito de Glauber Rocha e do misticismo do Nordeste, as seguintes palavras: "Deus e o Diabo na terra do sol, filmado inteiramente no sertão da Bahia é uma espécie de tríptico sobre o camponês do Nodeste. Este último, inicialmente confrontado ao misticismo de Antônio Conselheiro, e ao cangaço de Lampião, descobre finalmente o caminho da luta consciente". In: ROCHA, Glauber. Revisão Crítica do Cinema. Rio deJaneiro: Civilização Brasileira, 1963.

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72 - LEITE, José Costa, op. cit., p. 4.73 - Id.74 - LEITE, José Costa. O Frei Damião sonhou com o Padre Cícero Romão, p.5., st.1.75 - Ibid. st. 2.76 - LEITE, José Costa. O Frei Damião sonhou com o Padre Cícero Romão, p.5., st. 3.77 - LEITE, José Costa. O Frei Damião sonhou com o Padre Cícero Romão , p.5., st.3.78 - LEITE, José Costa. A voz de Frei Damião, p. 3.79 - CUNHA, Euclides da Os Sertões. Edição Laemert, p. 49-50.80 - Novo Dicionário Aurélio. O exemplo é do Conde de Monsaraz, in: “Musa alentejana”. Entendemos que, embora o exemplo seja português falado em Portugal, pode servir ao Nordeste brasileiro. Aliás, a paisagem física e climática do Alentejo lembra muito as regiões sertanejas.81 - PROENÇA, Manuel Cavalcanti. In: Literatura popular em verso. Antologia, Tomo I, p.2.82 - LEITE, José Costa. A voz de Frei Damião, p.3., st.2.

-88 -CAPÍTULO VIUM SONHO EXTRAORDINÁRIOOs poetas populares variam. Eles mudam a maneira de apresentar os problemas, algumas datas podem sermodificadas, mas os temas de inspiração e preocupação são muito próximos uns dos outros. Seus personagens preferidos são os mesmos, o que reforça nossa ideia de que poesia popular e povo nordestino, em particular o originário das regiões rurais, formam uma mesma componente sociocultural. Eles têm as mesmas crenças e superstições, preocupações e sensibilidades globalmente idênticas.Para apoiar esta tese, encontramos um outro poeta, nascido em Bom Jardim, Pernambuco, em 1937, que reside em Caruaru, a capital do Agreste. Falamos de Dila Soares, poeta e proprietário de uma pequena papelaria-tipografia cujo nome é:Arte Folheto São JoséFolhetos em grosso e varejoCarimbos, clichês, etc.Nosso poeta-proprietário, como muitos dos seus colegas, não resiste ao impacto das profecias, tão populares e enraizadas nas populações dos sertões. Desta vez, o iluminado que teve a graça de receber a mensagem sagrada não foi um padre, como Frei Damião, mas um simples romeiro, um homem do povo, como milhares de outros fiéis do Meu Padrinho Cícero.Estamos na mesma década de 80. A profecia é igualmente anunciada através de um sonho. Digamos que esta fórmula está na linha clássica das anunciações religiosas, como técnica e como linguagem das comunicações místico-religiosas.

Vamos então estudar o folheto O sonho de um romeiro com o Padre Cícero Romão, do poeta Dila Soares. Como de costume, a publicação não indica a data nem o número da edição. Eis a primeira estrofe:

Concentro pedindo a deusuma forte inspiraçãopara este livro que pededo bom leitor atençãoO Sonho (d) um Romeirocom o Padre Cícero Romão. (83)

-89 -O poeta desde o início se concentra, reúne toda a sua atenção e força, pedindo inspiração a deus. A primeira observação vem do fato de que a palavra deus é escrita em letra minúscula ao longo do folheto. Isso poderia ser por razões técnicas como a falta do caractere D em maiúscula, normal nas pequenas tipografias, ou, o que seria muito mais sério, por uma questão de hierarquia diante da invocação do Padre Cícero, que é o centro de interesse da poesia:

Em 25 de Julhodestinou-se um Romeirofazer sua romariana matriz de Joazeirodo Padre Cícero Romãoo nosso bom conselheiro. (84)

Naturalmente, a peregrinação a Joazeiro, escrito com “o”, quando a maioria dos poetas e do povo o escrevee pronuncia com “u”. Juazeiro volta ao centro das preocupações. O que é novo é o sentimento expresso porDila Soares, no sentido em que cada Romeiro, fiel e devoto, deve fazer a sua romaria, sua peregrinação.Falar de romeiro que faz uma romaria é um pleonasmo. Vimos o verso "fazer uma romaria", como para explicar que se trata de um dever, de uma obrigação dos fiéis do Padre Cícero. Fazendo a romaria, cumpre-se o dever religioso e, ao mesmo tempo, pode-se ser admitido no círculo dos iluminados:

Viajou do piauícom deus no seu coraçãologo no primeiro dia

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não achou habitaçãorezou dormiu e sonhoucom o Padre Cícero Romão. (85)

Nos versos seguintes, o poeta nos dá alguns detalhes do sonho do Romeiro, detalhes que são mais ou menos na linha geral dos sonhos com o Padre Cícero. Observamos, contudo, alguns elementos novos oferecidos por Dila Soares. No misticismo que envolve o profeta de Juazeiro, veremos surgir certos elementos "científicos". O poeta está dividido entre a religião e a astrologia. Dila Soares, porém, não é o único. Ele tem um ilustre colega, o Cronista-Fidalgo, Rapsodo-Acadêmico e Poeta-Escrivão D. Pedro Dinís Ferreira Quaderna que, durante um desses momentos nos quais ele sonha com os seus ideais utópicos, pensa que:“Pode ser, também, a respiração fogosa dessa outra Fera, a Divindade, Onça-Malhada que é dona da Parda, e que, há milênios, acicata a nossa Raça, puxando-a para o alto, para o Reino e para o Sol.” (86)Ariano Suassuna, como Dila Soares, e por que não Padrinho Cícero, tenta expressar o sentimento dessa religião místico-popular do Nordeste brasileiro. O "reino" significa este aspecto metafísico das crenças populares ao nível mesmo das "coisas" não conhecidas e imaginadas da astrologia, do sistema solar:

-90 -O Padre disse ao romeiroestamos no apuroestá chegada a erados 3 dias de escuropor evolução dos astros vamos prever o futuro. (87)

Padre Cícero é dado como conhecedor dos astros. Ele vai estudá-los para prever o futuro. Por uma vez, talvez, ele renuncia à sua inspiração divina. Mas ele vai nos anunciar, com insistência, os dias do juízo final.Sinais vão aparecer no céu. A luz, o sol, vão nos faltar. Entretanto, ainda não será o fim. Outros sinais vão aparecer. Todavia, será possível escapar ao holocausto: o fogo e a luz sagrados são recomendados por Padre Cícero:

Use fósforos e velas bentase o tição da fogueirapara os dias de escuroque mal não aconteceránas casas que acenderestá clara a vida inteira. (88)

Nessa estrofe encontramos algumas indicações sobre o período ou o mês, mas não há data precisa. Quando ele diz: "e o tição da fogueira", parece-nos que pode ser o mês de junho. É na semana de São Joãoque se faz a fogueira, com tições e jogos tradicionais, com base nas superstições antigas. Fazem-se juramentos variados. Passando-se sobre dois tições em brasa, braços cruzados, a gente torna-se compadre, comadre, afilhado ou afilhada de fogo. São juramentos muito sérios, como os de sangue. Também se utiliza o tição para curiosas adivinhações. Aurélio Buarque de Holanda diz que, na linguagem e nas crenças populares, o tição é assimilado ao Diabo. Esta comparação venha talvez da cor preta do tição apagado, o carvão. Podemos aqui oferecer um testemunho pessoal no sentido de que certas crenças e práticas supersticiosas em torno da fogueira, do fogo em brasa, são também originárias da cultura indígena do Brasil. Vimos várias vezes em Bom Conselho, Pernambuco, "os caboclos", os índios "civilizados", que vivem nas aldeias da região, apagar em grandes fogueiras em brasa dançando sobre elas com os pés descalços, na época de São João. Tratar-se-ia de um rito ligado ao mito da purificação do corpo e do espírito. (89)Para os profetas e poetas, é preciso deixar o tição, o fogo e a luz acesos. É a única chance de salvação.Continua a existir, porém, uma questão de data. Para Dila Soares, que nos conta o sonho de um romeiro, o sinal dos três dias escuros chegará em “junho”. Mas, para o colega José Costa Leite, que nos fala do sonhode Frei Damião, trata-se do mês de maio:

E na besta-fera vemmontado o anti-Cristofalando em religiãodizendo: eu sou Jesus Cristo

-91 -ninguém acredite nelefaço ciente que eleé satanaz está visto. (90)

E ele continua com mais precisão:

Porque em 98todos esperam o futuro

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que verão no mês de maioos 3 dias do escuroninguém pense ser tolicefoi palavra que Deus disseserá castigo seguro. (91)

Como vimos, de vez em quando descobrimos diferenças entre as profecias do Padre Cícero e as do seu discípulo Frei Damião. A memória dos poetas seria fraca quando eles interpretam as palavras santas? Não é somente uma questão de data. Às vezes, Padre Cícero faz apelo aos astros, recurso não muito católico, enão seria do gosto do Frei Damião, o qual é mais sensível às previsões apocalípticas no gênero religioso. Vejamos outras estrofes de Dila Soares:

Os 3 dias de escuroSerá de grande afliçãoSolta-se os espíritos mauspara fazer mal visãonas casas que acender velade Jesus tem proteção. (Grifos nossos) (92)

E para que não se ponha em dúvida o valor e a origem de suas palavras:

E disse para o romeiroque esse dia chegavaas suas santas palavrasse cumpria e não passavaos 3 dias de escurosempre sempre ele falava. (Grifos nossos) (93)

Eis que o Padre Cícero nos fala de "espíritos maus" que vêm "para fazer mal visão". Aqui nós nos defrontamos com expressões mais características da linguagem do espiritismo popular. São os "espíritos maus” que vão ser liberados para fazer "mal visão", "assombrações”. São palavras do mesmo tipo que "almas penadas, almas do outro mundo", etc. E, segundo a crença popular, os “espíritos maus" não aceitama morte do corpo e por isso eles voltam ao planeta Terra para fazer o mal, para fazer "assombrações". Eles "ficam penando ao deus-dará", até o dia do julgamento final. Preveem-se mesmo reencarnações até que os espíritos maus se purifiquem, se arrependam de seus pecados, de suas más ações.Tudo isso faz parte das crenças místicas dessa religião popular do Nordeste, na qual se veem os "espíritos maus", as "assombrações", os "lobisomens", as "mulas sem cabeça", etc. É interessante remarcar o amálgama que faz o poeta entre as crenças católicas e os espíritos, o que é totalmente a imagem da realidade popular nesse domínio.

-92 -Padre Cícero representa o lado católico na qualidade de sacerdote desta religião, apesar da suspensão de seus direitos de oficiar pela hierarquia romana. Aliás, as medidas eclesiásticas de disciplina contra o pároco de Juazeiro nunca foram compreendidas por seus fiéis (94). O profeta de Juazeiro, ou o poeta, era perfeitamente consciente do seu papel messiânico.

Nesta hora o Padre Cíceroa sua mão levantoue disse filho me ouveque profetizar eu voude 74 por diantecomo o tempo mudou. (95)

Parece mesmo que Padre Cícero preocupou-se com os problemas da "produtividade" na agricultura: "os que souber trabalhar / Vai colher a sua roça". Confiando-os a "Deus", ele aconselhava a seus devotos a tomar algumas precauções bem sábias: "guarde previna o futuro". Parece que o poeta é fiel a uma das preocupações"materiais" do Padre Cícero, quando ele aborda esses problemas de produção na agricultura. Alguns autores asseguram que o profeta do Nordeste era um dos maiores ou o maior proprietário agrário doCariri (96):“A medida patriótica posta em prática para este fim foi colocar nas fazendas de amigos pessoas pobres que chegavam decididas a ficar [...] De tal maneira que, a produção ainda maior, os proprietários faziam mais lucros.” (97)

Diríamos que o poeta Dila Soares é sensível a esta espécie de preparação ideológica. Dos romeiros para a estimulação da produção dos campos sertanejos, sobretudo nas terras dos amigos do Padre Cícero e da "situação política" do momento. Sua interpretação dessas profecias é bem característica:

76 em techo é grande a contradiçãoo agricultor se esforçaa fim de arranjar o pão

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plantas nasce variadasé grande a lamentação. (98)

O ano 82todos plante com cuidadoe ver se pode guardaro pouco que for lucradovamos confiar em deuspara ter bom resultado. (99)

Antes de 82, ele é assim mesmo mais otimista:

79 é médioem parte tem variedadeem outra se lucra bemmas a desonestidadesemelha a desunião pra ver desonestidade. (100)

A terminologia profético-agrícola é relativamente rica: O agricultor se esforça / plantas nasce variadas / todos plante com cuidado / em parte tem variedade / em outra se lucra bem. / semelha a desunião.

Há uma outra característica na linguagem do poeta Dila Soares observada no folheto O sonho de um romeiro com o Padre Cícero Romão. Em particular a partir das profecias de 74, notamos uma certa sobriedade ao início de cada estrofe, como se tratasse de interpretar a modéstia e a desconfiança das pessoas do campo. Repetimos os primeiros versos "pronunciados" por Padre Cícero a partir de 74:74 em parte – deixa modificação75 em parte – os que souber trabalhar76 em trecho – é grande a contradição77 é uma página – Jesus faz sua igualdade78 traz um grau – contra a natureza humana79 é médio – em parte tem variedade80 é ano médio – em parte se lucra bem ano 81 – há média e variaçãoO ano 82 – todos plante com cuidado83 também – tem partes que tem melhora84 vem – com sua média promessa85 vem – com seu laço apertado. (101)

-94 -Verificamos que em 12 estrofes o poeta utiliza um vocabulário bastante moderado, econômico, orientando-se com vocábulos quantitativa e qualitativamente médios e prudentes. Constatamos que este vocabulário, mesmo variado do ponto de vista formal, conserva o mesmo significado embora com certa diferença de intensidade. Todas essas palavras têm um sentido qualitativo ou quantitativo, por exemplo: partes (cinco vezes), médio ou média (quatro vezes), variado ou variação (duas vezes), e trecho, página, grau, cuidado, melhora e igualdade (uma vez cada).A particularidade desse vocabulário é notada também pela impressão de que o poeta pretende sempre falarda qualidade ou da quantidade da produção agrícola, dos roçados, ou da situação meteorológica nos sertões. As consequências dessas profecias são menos apocalípticas que as de outros poetas, com relaçãoàs décadas de 70/80. As palavras de Padre Cícero são interpretadas de maneira menos dramática por Dila Soares. Mas o tom messiânico é sempre presente e determinante.

Depois desses verbos moderados, o poeta nos prepara assim mesmo para assistir a acontecimentos muito sérios:

85 vemcom seu laço apertadomais padrinho Cícero disseromeiro tenha cuidadoquem resa pra deus não perderese que o tempo é chegado. (102)

Para começar, constatamos que Dila Soares utiliza a expressão “laço apertado” com o sentido de dificuldade, de controle, de gravidade. É o mesmo significado que observamos no poeta Severino Gonçalves, no folheto A moça que virou cobra. Neste folheto, era o Padre Cícero que prendia as pessoas, os devotos, "laçando a humanidade / por meio de falsidade" (103). Em Dila Soares, é o ano 85 que chega com seu "laço apertado". No último verso, "rese que o tempo é chegado", nosso poeta adota completamente o tom messiânico. A seguir, há outros sinais bíblicos:

86 vem trazera predita profecia

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que meu padrinho no sermãorelembrava todo diaé o tempo do rosárioda Santa Virgem Maria. (104)

A linguagem dos poetas é sempre clara, sem hesitações. O adjetivo predita é empregado para chamar a atenção dos ouvintes para as predições e profecias de Padre Cícero, pronunciadas muitas vezes anteriormente. Trata-se de profecias já conhecidas. É o vocábulo que convém para invocar as famosas predições.

-95 -Antes de aprofundar o conhecimento de graves provações, vemos que o poeta nos coloca diante de outra realidade religiosa dos nordestinos. Vimos anteriormente as tendências "espíritas" e "astrológicas" do PadreCícero: "dos 3 dias de escuro / por evolução dos astros" (105) e "solta-se os espíritos maus / para fazer mal visão" (106). Desta vez, o poeta apresenta um dos aspectos dos mais importantes da "religiosidade" do nordestino, e do brasileiro em geral: o culto à Santa Virgem Maria. Não há poeta popular, escritor erudito, profeta, santo ou "cangaceiro que se preze" que não seja devoto da Santa Virgem Maria. É um culto à parte.Uma maneira de ter a consciência tranquila. Um ditado popular que diz: “Quem a boca de meu filho beija, a minha adoça”.No caso da devoção à Santa Virgem, parece que o objetivo visado é outro. Ela representa um excelente advogado, maternal, junto do Todo-Poderoso, Nosso Senhor Jesus Cristo. Sua sensibilidade e seu coração de mulher, embora virgem, sejam talvez mais próximos das fraquezas humanas. Vejamos alguns versos do Romanceiro popular anônimo do Nordeste a esse propósito. Trata-se de um julgamento no céu:

O Diabo: Lá vem a compadecidaMulher em tudo se mete!Maria:Meu filho, perdoe esta alma,Tenha dela compaixão!Não se perdoando esta alma,Faz-se é dar mais gosto ao cão:Por isto absolva ela,Lançai a vossa bênção.Jesus: Pois minha mãe leve a alma,Leve em sua proteção,Diga às outras que recebam,Façam com ela união.Fica feito o seu pedido,Dou a ela a salvação. (107)

Pensamos que esses versos mostram suficientemente o apego popular ao culto à Virgem Maria. Veremos outras manifestações também eloquentes quando estudarmos os fenômenos das orações e do cangaço pela voz da poesia popular. Por enquanto, continuemos a ver o que anuncia O sonho de um Romeiro com oPadre Cícero Romão:

o 88 aparece sinais no céu e na terracomo disse meu padrinhoa profecia não errareze ofereça a deusque seu poder não encerra. (108)

Padre Cícero, por romeiro ou poeta interposto, retorna ao tema dos sinais proféticos. Será o anúncio da chegada de um outro cavaleiro com uma grande espada que vem estabelecer a paz e a abundância no sertão? O que nos dizem os versos seguintes, porém, é que devemos ter cuidado, obedecer às ordens e ficar bem direitinhos:

-96 -Ele é uma luz de deusque clareia o caminhopara o romeiro seguirem passos bem direitinhoo Padre Cícero Romãoé o nosso digno padrinho. (109)

Como os demais colegas, o poeta Dila Soares considera "nosso digno Padrinho" como uma luz de Deus. É ele que iluminará a estrada da salvação em direção à Meca do Nordeste, Juazeiro do Ceará. Os mitos da divindade do Padre Cícero e da cidade de Juazeiro continuam a inspirar a literatura de cordel. Isso, porém, não vai sem uma compensação, sem uma recompensa. Meu Padrinho velará do Céu por todos aqueles quevão a Juazeiro. É preciso alimentar o mito:

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Como os meus afilhadosque vem ao Joazeirono céu rogo a deus por todosdo primeiro ao derradeirotodos são filhos de deusnão deixe de ser romeiro. (110)

É interessante notar que o poeta insiste para a continuidade do mito da cidade santa de Juazeiro. Só na estrofe que vimos se encontram duas vezes esse tema "como os meus afilhados / que vem ao Joazeiro / nocéu rogo a deus por todos / não deixe de ser romeiro". Além da compensação de velar do Céu por todos osque vêm a Juazeiro, o Padre Cícero recomenda (ordena): "todos são filhos de deus"/ "não deixe de ser romeiro". Parece-nos que as duas atitudes, ser devoto e romeiro, devem-se conceber e praticar ao mesmo tempo, a do culto a Juazeiro ultrapassa os aspectos místico-religiosos. Assim se pronuncia o jornalista e escritor Rui Facó: "O documento, assinado e registrado em cartório, evoca primeiramente o nome prestigioso do padre que se transformava em chefe político, se juntando ao nome. Para muitos, o problema do município que ele governava. Nesta cidade de Juazeiro do Padre Cícero, município do mesmo nome. A denominação oficial era simplesmente Juazeiro”. (111)

Remarquemos ainda um ponto interessante nas três últimas estrofes. O vocábulo deus é citado quatro vezes, o que não é desprezível, pois o de Padre Cícero aparece duas vezes. Como sempre, deus é escrito em caractere minúsculo. Em todo o folheto, sejam 36 estrofes de 6 versos, as sextilhas clássicas da literatura de cordel, o vocábulo deus é impresso oito vezes com inicial minúscula. A hipótese de falta do D maiúsculo pode ser admitida por se tratar de uma pequena tipografia do interior. Mas nós continuamos a preferir a hipótese da vontade consciente do autor de estabelecer a hierarquia entre "deus", ser longínquo e abstrato, e o Deus do Nordeste, como indicou Ascenso Ferreira:

- 97 - “o homem da minha terra tem um Deus-de-carne-e-osso Um Deus verdadeiro Meu padrinho Padre Ciço do Joazêro.” (112)

Sobre o mesmo assunto, vejamos o que nos diz um outro especialista da literatura popular:

“No campo da religião, os folhetos são porta-voz do povo que se apega aos protetores, guardiães, como Padre Cícero.” (113)

Assim, o sonho do romeiro chega quase a seu fim. O poeta Dila Soares nos explica como as coisas vão se passar:E puxou da batina em um dos bolsos tirouuma oração bem escritaao romeiro entregoudisse é de São Miguellhe dou bênção e viajou. (114)

Veja-se aí um novo elemento introduzido por esta estrofe. Queremos falar de uma outra forma da literatura popular, outra forma de expressão da religião popular do Nordeste brasileiro, isto é, as orações. Essas pequenas preces têm um lugar especial entre a população dessa região. Não se exagera ao dizer-se que existem adeptos fervorosos dessa leitura em todos os meios da sociedade nordestina. As preces são impressas, em geral, no verso, lado oposto, das pequenas imagens de santos, nas últimas capas dos folhetos de cordel e outras publicações modestas. Elas são distribuídas nas igrejas, missões e nos catecismos. Essas orações têm um poder de proteção aos seus portadores, como um talismã. Em alguns casos, segundo o tipo de prece, elas podem "fechar o corpo". É claro que, se essas orações distribuídas diretamente por Padre Cícero, Frei Damião ou, se a encontramos em Juazeiro, elas têm um valor inestimável.Chegamos agora ao ponto culminante da aventura do nosso romeiro, segundo a descrição do poeta. Como vimos na estrofe precedente, Padre Cícero entregou diretamente uma oração ao romeiro. Agora é o milagredos milagres. O poeta não hesitou. Parece que foi ele próprio que "sonhou". Sua linguagem e sua imaginação místico-fantasistas encontraram a conclusão mais fantástica que se poderia imaginar:

O romeiro acordou-seo papel estava na mãoele muito satisfeitodisse nessa ocasiãomeu sonho foi verdadecom o Padre Cícero Romão. (115)

Eis aí o supermilagre: quando o romeiro “acordou-se”, a oração, o papel impresso, estava nas suas mãos. Que mistério, que poder extraordinário pode produzir este prodígio? O poeta nos conta um sonho de um romeiro com Padre Cícero. "Simplesmente", ao fim do sonho, o romeiro “acorda-se” e descobre que ele

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possui entre as mãos uma oração, uma folha de papel impressa com uma oração do Arcanjo São Miguel. (116)

-98 -Aqui estamos em face de um mistério, de uma graça suprema. Os espíritos superiores, iluminados, têm esse direito, essa chance. O poeta não hesita em imaginar esta aventura, pois se trata de Padre Cícero. Para ele tudo é possível e imaginável. É uma questão de fé. E, para justificar esta maravilhosa aventura, elenos recita: "O meu sonho foi verdade". Dessa maneira, nosso poeta Dila Soares, tão moderado ao início de sua história, acrescenta a sua pedra ou o seu tijolo, à teoria sobre a veracidade dos sonhos. Segundo sua ideia e seus versos, um sonho anuncia uma verdade quando ele deixa uma prova material e física de sua passagem.Mas não se deve surpreender. Tudo isso faz parte do imaginário nordestino, cujos poetas de cordel, também devotos, se fazem porta-vozes. O misticismo é um dos elementos psicoculturais do homem dos sertões nordestinos. As causas são diversas. A literatura de cordel não pretende explicá-las. (116) Ela é apenas um espelho, nem o único nem o menos importante. É compreensível que os folhetos procurem satisfazer e alimentar os mitos nos quais mergulham as populações do Nordeste, sobretudo as de origem rural. Há os que imaginam a entrega de orações, de papéis aos romeiros durante os seus sonhos, outros, mais modestos, dizem que:

Esta oração foi achadana Igreja de Belém. (117)

A ideia essencial e o objetivo a atingir são os mesmos:

Quem rezar ela lhe livrade todos males que vema Beata mocinha rezoupra século sem fim amém. (118)

-99 -83 - SOARES, Dila. O sonho de um romeiro com o Padre Cícero Romão. p.1., st.l.84 – Id., st.2.85 - SOARES, Dila. O sonho de um romeiro com o Padre Cícero. p. 1., st.3.86 – SUASSUNA. Ariano. A pedra do reino, p. 2.87 - SOARES, Dila. O sonho de um romeiro com o Padre Cícero, p.2., st.4.88 - Id., p.3., st.1.89 - Na região existe uma localidade chamada Aldeia, no município de Águas Belas, onde vivem descendentes de índios, os chamados caboclos.90 - LEITE, Costa. A voz de Frei Damião.91 - Id. p.7 92 - SOARES, Dila., op. cit., p. 3.93 - Id.94 - A situação do Padre Cícero junto da hierarquia católica não mudou, mas o que impressionou as pessoas simples que o veneravam e que o rodeavam foi que ele esteve na Santa Sé, falou pessoalmente com o Papa e voltou cheio de imagens sagradas bentas pelo Santo Padre. Além disso, Padre Cícero voltou com o projeto de construção, em Juazeiro, de uma grande igreja como a de Jerusalém. Ver FACÓ, Rui. Cangaceiros e Fanáticos & QUEIROZ, Maria Isaura Pereira de. O Messianismo no Brasil e no Mundo.95 - SOARES, Dila, Op. cit. p.3.96 - Afirmação do Dr. Floro Bartolomeu, deputado, médico e guia político do Padre Cícero, em livro publicado em 1932. In: QUEIROZ , M.I. Pereira de 97 - FACÓ, Rui, op. cit.98-102 - SOARES, Dila, op., cit.103 - GONÇALVES, Severino, op. cit., p.3., st..2.

- 100 -104-6 - SOARES, Dila, op. cit.107 - Epígrafes transcritas por Ariano Suassuna na peça O auto da compadecida, inspirada do romanceiro popular do Nordeste, em particular de O castigo da soberba, cujo autor é desconhecido.108-10 - SOARES, Dila, op. cit.111 - FACÓ, Rui, op. cit.112 - FERREIRA, Ascenso, op. cit., p.58.113 - PROENÇA, Ivan Cavalcanti. A ideologia do cordel. Rio de Janeiro: Imago, 1976, p. 64.114 /115 - SOARES, Dila, op. cit., p.,8.116 - "Os poetas populares estão descobrindo outras vias e, por intermédio de seus folhetos, eles dirigem as suas mensagens e instruem o povo que, por este meio, toma conhecimento dos problemas nacionais, mesmo quando eles divulgam, criticam, fazem elogios da vida quotidiana". MAIOR, Mário Souto. Introdução à literatura de cordel. Antologia, Tomo I. São Paulo: Global, 1976, p.14.117 - LEITE, José Costa. A voz de Frei Damião, p .8, st.2.118 - Id.

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- 101 -CAPÍTULO VIIAS ORAÇÕES POPULARESEm contrapartida às ondas de medo, de terror e de maldições de todo gênero anunciadas nas profecias do estilo Padre Cícero, Frei Damião e congêneres, é preciso também fornecer alguma esperança positiva. De um lado, as punições apocalípticas são infligidas, e do outro, a possibilidade de salvação, de remissão. Os atores e o cenário são os mesmos. Em nome dos mesmos princípios e das crenças de sempre, o círculo se fecha; as pessoas não veem outras possibilidades de saída em face das promessas de terror. Mas o gênio popular não poderia aceitar esta situação. Ele descobriu e adotou um antídoto, as pequenas "orações", como, por exemplo:Oração do Arcanjo São MiguelOh poderoso São Miguel livra-me dos meus inimigos em casa dormindo, viajando, nos negócios, não serei perseguido nem ofendido por animais peçonhentos, curai-me de todas as doenças, defendei a mim minha família e meus amigos das pragas, má vontade, mau vizinho bruxarias tudo quanto é ruim, das tentações dodemônio livrai-me São Miguel amém. Rese:33p 3AM Gp. (119)

Eis que o penitente faz sua invocação. Em seguida, ele se crê protegido. Não se trata de profecias catastróficas. Agora, convém invocar a proteção dos santos oficiais da Igreja. Mas o autor da oração não está convencido, ele faz apelo a uma entidade superior. Na mesma folha, seguindo-se à penitência recomendada, ele acrescenta:

Ofereço a sagrada morte e paixão de N. Senhor Jesus Cristo em louvor de suas 5 chagas para que me livre dos inimigos visíveis e invisíveis viajando dormindo ou acordado não tenha poder de me ofender nem prisão nem faca nem arma nem fogo nem falsos nada seja contra mim com o poder de deus padre filho espírito Santo Jesus Maria José o anjo de minha guarda seja minha guia, nessa vida e na outra. Amém. (120)

Essas transcrições completas nos pareceram necessárias para abrir este capítulo consagrado às orações populares em curso no Nordeste do Brasil. Esta matéria constitui um complemento à literatura popular. Estimamos que essas preces sejam também um produto da mesma situação social e cultural, do mesmo complexo sociológico de onde emergem os poetas populares. O contexto, como a linguagem mística e religiosa, responde às mesmas necessidades espirituais e culturais, no sentido de saber, conhecer. Em facedas dificuldades, do medo e do desconhecido, precisa-se encontrar um lenitivo.

- 102 -Com relação aos folhetos de cordel deve-se dizer que em grande número eles trazem impresso na última capa esse tipo de oração. Muitas vezes os autores da poesia são os mesmos das orações. Também pode-se dizer que esta produção, como o folheto, inspira-se na literatura oficial da Igreja Católica. Isso não é um problema, ao contrário, é enriquecedor, como pensa Silvio Romero:"O interesse da poesia popular é todo etnográfico. O fato mais apreciável é que as variações de um mesmo canto nos permitem conhecer a maneira como cada povo modificou, adaptou a lição primitiva a seu próprio meio". (121)

Vejamos, pois, como o autor da oração do Arcanjo São Miguel se exprime:“[...] não serei perseguido nem ofendido por animais peçonhentos [...] dos inimigos visíveis, invisíveis viajando dormindo ou acordado [...][...] nem prisão nem faca nem arma [...][...] má vizinho bruxarias [...] ”. (122)

Poderíamos dizer que se trata de versos de cordel. O vocabulário, a sintaxe e a ortografia não são muito diferentes. Existem mesmo orações em versos rimados com o cordel. Vejamos o Bendito seguinte:

O Padre Cícero Romãoé um santo mensageirovisitou Frei Damiãona matris do Juazeiro. (123)

Os personagens e o lugar sagrado retornam:

O Padre Cícero Romãovisitou Juazeirotrazendo sua bençãopra todo povo romeiro. (124)

Como estamos vendo, a diferença fundamental entre a poesia popular e a oração se refere ao domínio das consequências. Enquanto a poesia popular de caráter místico e profético se inspira no Apocalipse, adaptado às condições locais, e tem como resultado todas as maldições e catástrofes imagináveis, as orações, que consideramos também como uma forma de literatura popular, pregam a salvação, a remissão dos pecados e a necessidade de proteção contra as grandes dificuldades, materiais e espirituais. Quanto à

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forma, vejamos como ela se aproxima do cordel:

Eu creio em Deus PoderosoSalvo estou, salvo estareiSalvo sempre anoiteçoE salvo amanhecereiSou limpo igualmente a luzSalvo assim como JesusFoi salvo e salvo serei. (125)

Eis, portanto, a clássica estrofe de sete versos, ou verso de sete pés, heptassílabos, tão utilizada pelos poetas populares. Não vemos nenhuma diferença entre essas frases e os versos da literatura de cordel, rimadas geralmente em redondilha maior.Vejamos agora o vocabulário e o emprego de certas formas verbais e adverbiais, na última estrofe citada. Trata-se de uma oração, A força do Credo, que pensamos ser de autoria de José Costa Leite:

“Salvo sempre anoiteço / E salvo amanhecerei” (Grifos nossos)

Esses dois verbos são utilizados na primeira pessoa do singular: "eu anoiteço" e "eu amanhecerei". Trata-sede formas verbais correntes no falar popular. Entretanto, elas são habitualmente conjugadas na forma impessoal, na terceira pessoa do singular (126). O advérbio igualmente corresponde a outro emprego do falar popular, no lugar do adjetivo igual ou da conjunção como:

“Sou limpo igualmente a luz / Sou limpo como a luz / Sou limpo da mesma forma que a luz.”

A ausência do acento sobre o “a” antes do feminino “luz” confirma esta interpretação de “igualmente a”. O autor da oração talvez não tenha pensado em tudo isso, porque ele se expressou simplesmente como é o hábito na região.Vejamos ainda alguns versos da oração A força do Credo, que está impressa na última capa do folheto A vinda da Besta-Fera, de José Costa Leite:

Nas águas do Rio JordãoTambém me batizareiJesus, Maria e JoséEntre os três me guardareiMe amparo no santuárioÉ onde me trancarei. (127)

Ainda uma vez observamos o espírito fantasista da poesia popular místico-religiosa. Inicialmente o fiel, ou o autor (?), deseja se batizar nas águas do Jordão, o que não será muito fácil, pois nós estamos nos sertões do Nordeste do Brasil, um pouco longe da Palestina. É o apelo ao simbolismo da poesia popular que prevalece. É o caso também dos dois versos "dentro do santo sacrário / é onde me trancarei". Sempre objetos e lugares sagrados. Mas o simbolismo ou as intenções do autor da oração nos conduz ainda mais longe:

- 104 -Com o leite da Santa VirgemMeu corpo eu banhareiNos braços da Virgem MãeÉ onde descansareiDos males eu me arredoCom as Santas Forças do CredoEternemente andarei. FIM. (128)

E, como sempre ao fim, o autor faz sua oferenda: “Oferecido às 5 chagas de Cristo.”

A Santa Virgem certamente não foi consultada. É o que nós pensamos. Em todo caso, em questões de crenças e de misticismos no Nordeste, tudo é possível. Misticismo e mitologia andam juntos. Não é por acaso que Ariano Suassuna ofereceu seu "romance armorial-popular brasileiro, A Pedra Bonita, à [...] meu mundo mítico do Sertão" (129). Voltando à oração, é legítimo pensar que é preciso muito leite da Santa Virgem para que os possuidores do papelzinho se possam banhar. O leite é empregado como líquido branco, sagrado e purificador da alma, e talvez do corpo. A esse propósito, poderíamos procurar exemplos na literatura portuguesa do século XVI, por exemplo, o branco, empregado como símbolo de pureza por Gil Vicente, autor clássico, muito sensível ao sentimento popular da época. Nós nos permitimos citar alguns exemplos encontrados pelo professor Paul Teyssier, em suas pesquisas sobre o vocabulário das cores em Gil Vicente (130): "La couleur blanche valorisée (pureté, beauté, etc.):Sahio nua face brancaparecia de cristalBlanca, estais, colorada,Virgem sagrada!

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E sobre a Virgem Maria: ‘Ave rosa, blanca flor!’.” (131)É o simbolismo das cores, interpretado com concepções místico-religiosas. A poesia popular não escapa a essa ideologia. O que é perigoso é a assimilação dessas ideias a outros domínios, ao campo racial, por exemplo. Seria inaceitável ver todas as qualidades do lado do branco, e todos os defeitos do lado do preto. Seria o emprego do tradicional maniqueísmo do bem e do mal, do branco e do preto.Vejamos a seguir o emprego do verbo arredar no sentido de “se afastar”.

105 É preciso lembrar que esta oração está impressa na última capa do folheto A vinda da Besta-Fera. É evidente que isso não foifeito por acaso, mas constitui uma norma quase geral na poesia popular. A "coincidência", aliás, foi observada pelo professor Raymond Cantel num artigo sobre o messianismo no Nordeste (132). Após terrores, hecatombes apocalípticas, contra as quais não há defesa humana, é prudente oferecer algumas esperanças, mesmo espirituais. Isso se reproduz entre os poetas populares. Sobre este assunto, vejamos, de perto, uma outra oração, denominada Oração do Padre Cícero, impressa no folheto O fim do mundo está próximo, do poeta Manoel Tomaz de Assis.Inicialmente, notemos que o autor atribui o escrito a Padre Cícero. Isso representa já um sucesso junto do público e uma garantia de proteção suplementária para aqueles que levam o folheto.Em seguida, do ponto de vista das apreciações gerais, notemos a oposição folheto x oração. Para começar os títulos:

O fim do mundo está próximo x Oração do Padre Cícero.

Aparentemente, não há oposição entre essas palavras ditas tão simplesmentete. Mas, para os autores de cordel, habituados ao jogo de palavras da poesia popular ,“fim do mundo" representa o mal, a Besta-Fera, enquanto oração, Padre Cícero, simbolizam o bem, a esperança de salvação, de proteção. Senão, vejamos os detalhes:

"O Padre Cícero é quem me guia, me recomenda a Deus, à Virgem Maria e aos apóstolos, meus irmãos [...]". (133)

Todos os que levarão esta oração deverão estar convencidos de que Padre Cícero será seu guia. Eles aceitarão seguir o rumo indicado por este. Os devotos deverão se recomendar a Deus e à Virgem Maria, entidades superiores, e a seus irmãos, os apóstolos. Como vemos, os fiéis tomam todas as garantias, aliás, com certa familiaridade, "meus irmãos"Em seguida, a oração menciona outros santos, sobretudo N.S. das Dores, N.S. de Fátima e a Virgem da Conceição, sempre com a intenção de ter mais proteção. Isso não é especial, é a tradicional devoção à Santa Virgem Maria e suas variações. O que é mais insólito são as afirmações feitas em seguida:"Serei banhado no sangue de N.S. Jesus Cristo [...] Serei bento com o sangue de Cristo [...]”. (134)Veja-se que o autor não se contenta de invocar os aspectos espirituais do Cristo para ter as proteções desejadas. Como na oração precedente, A força do Credo, ele invoca elementos bens materiais: "Serei banhado no sangue" e "Serei bento com o sangue de Cristo". Aliás, na outra oração, o autor prometia o banho "com o leite da Santa Virgem".

- 106 -Como vemos, o misticismo dessa religião popular está pronto a invocar e prometer práticas bastante materiais para atingir "a salvação eterna". Observamos também que o poeta, se pode-se dizer, estabelece uma relação de causa e efeito entre as duas frases. Sua frase simples introduz poucas palavras diferentes para explicar os objetivos visados: o devoto será banhado no sangue de Cristo e, em consequência, ele será bento.É evidente que essas invocações de elementos materiais pelos autores nordestinos não são a interpretaçãoda literatura místico-religiosa judeu-cristã. As águas do Jordão, o leite da Santa Virgem e o sangue de Cristo, embora sacralizados, são temas e símbolos citados há séculos. O sangue, em particular, tem um poder purificador extraordinário. Os seres que têm o direito de fornecer sangue para manter esse mito vão do cordeiro, passam por Cristo e podem incluir as crianças ingênuas. O Apocalipse foi, no início da era cristã, a primeira literatura a propagar essa ideia. Existiria documentação mais antiga, como as predições dos antigos profetas, como Isaías, Jeremias, Ezequiel e outros (135). Como essas histórias tão antigas são reproduzidas no Nordeste e, sobretudo, como a literatura popular a incorporou é o que nos interessa neste momento. Eis algumas explicações que podem nos aproximar do nosso assunto: “Quando a poesia popular começou? Com o Padre Anchieta, seus atos, seus mistérios, etc. É fácil de perceber que a poesia popular nasceu da inspiração indígena espontânea, em contato com a influência religiosa.” (136)

É o que nos diz o folclorista Rodrigues de Carvalho, o grande pesquisador nordestino. Esta opinião explicaria uma parte do apego de nossos poetas populares atuais aos temas místico-religiosos. Mas vejamos a opinião mais radical de um outro especialista da cultura brasileira, Roger Bastide, quando fala da poesia de Ascenso Ferreira: "En alliant l'intuition à la science, il a réalisé quelque chose de très difficile: la poésie populaire. En effet, le peuple ne fait pas de la poésie populaire, ou s'il en fait c'est une mauvaise copie de la poésie des

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bourgeois, ou alors, il chante des sentiments élémentaires avec les termes traditionnelles et un vocabulaire d'une pauvreté extrême." (137)

Nossa preocupação principal neste trabalho não é interpretar as opiniões sobre a origem da poesia popular.Essas opiniões nos interessam, no entanto, quando elas podem nos ajudar a nos aproximar do conhecimento do porquê da linguagem e dos temas desta poesia. Será que Roger Bastide conhecia a literatura de cordel quando emitiu a sua opinião? Senão, como interpretar o sentimento e as expressões do poeta popular Manoel Tomaz de Assis: “serei banhado no sangue de N.S. Jesus Cristo. Não serei preso nem ferido pelos meus inimigos, visíveis e invisíveis, carnais e espirituais. Como meu Senhor Jesus Cristo andou 9 meses no ventre da Virgem Maria.” (138)

- 107 -O desejo de se purificar com o sangue do Cristo ou com o leite da Santa Virgem não é novo, nem originário do Nordeste, tampouco da imaginação de nossos poetas em geral. Nesse sentido Roger Bastide tem razão:tudo isso é a repetição de mitos seculares, milenares. Além disso, essas ideias, ou esses sentimentos elementares só servem para impedir um melhor desenvolvimento cultural e social das classes populares. Elas são o caldo de cultura no qual são adormecidas milhares e milhões de pessoas. Em contrapartida, o que é preciso dizer também é que a repetição dessas ideias pelos poetas populares não é somente o resultado do doutrinamento secular feito pelas religiões e culturas oficiais. Não se deve esquecer que a poesia popular e a literatura em geral são, em grande parte, o reflexo do meio social e cultural onde elas são produzidas. Os sacrifícios de animais, os banhos de sangue ou mesmo o ato de beber esse líquido são ainda hoje praticados ritualmente nos cultos afro-brasileiros, muito ativos no país.Com respeito à Oração do Padre Cícero, a preocupação mística de utilizar substâncias físicas, particularmente do sangue, corresponde também a uma realidade histórica do Nordeste; o fenômeno do cangaço, os crimes políticos e familiares, e os acontecimentos de Pedra Bonita, Canudos e Caldeirão estão aí para confirmá-lo.Quando o autor da oração diz que será banhado e bento pelo sangue de Cristo, mesmo repetindo um velho mito religioso, ele exprime ao mesmo tempo uma ideia de autodefesa, uma espécie de exorcismo que o protege. Senão, vejamos:

Não serei preso nem ferido pelos meus inimigos [...]nem meu sangue (será) derramado [...]ndarei livre de todos os meus inimigos, carnais e espirituais.

Ora, o poeta ou o portador da oração deseja bem que o sangue de Cristo seja derramado, mas não o seu. Ele deseja se proteger e se preservar.Mas voltemos aos problemas de linguagem, de vocabulário precisamente. O autor escolheu bem a sua palavra: carnais. Seria mais fácil escolher outros adjetivos, como pessoais ou materiais. A expressão o “inimigo pessoal” é corrente e compreensível em todos os lados; ela exprime a ideia de um adversário físico perigoso. Por que então a escolha do vocábulo carnais? A resposta nos parece clara se ficarmos no campo semântico da linguagem mítico-religiosa. Englobamos nesse campo semântico a produção popular e a de origem ou de inspiração popular que circulam pelos brasis afora.Perguntemos mais uma vez a definição ao Mestre Aurélio (139). Ele nos diz que a palavra carnal pode evocar as “paixões carnais”, qualquer coisa de sensual. Ele acrescenta que isso pode significar uma ideia de parentesco, primo ou irmão carnal. No que respeita à intenção do autor, pensamos que as duas hipóteses são possíveis: paixão carnal ou parentesco. A paixão e a carne são assuntos tratados abundantemente nos escritos bíblicos. A paixão carnal é, em geral, o prelúdio a comportamentos julgados condenáveis e causa de pecados. Não é necessário insistir sobre esse ponto.

-108 -Em contrapartida, o que nos parece menos claro é a associação de inimigo e de carne: “inimigos carnais”. Conhecemos já o fenômeno de irmãos consanguíneos. Em princípio um irmão é um amigo e se, além disso,ele é ligado por outros elementos de consanguinidade, podemos contar que se trata de um amigo ainda mais próximo e de uma amizade ainda mais sólida, bem fraternal. O autor da oração, utilizando esses significantes para exprimir significados contrários se coloca numa posição contraditória. Quer dizer que a expressão “inimigo carnal” seria o oposto de “amigo carnal”. Isso nos parece formalmente justo.Mas aprofundemos o assunto. Admitindo que “amigo carnal” deve ser incluído no campo semântico de “irmão carnal”, isto é, o amigo mais íntimo, o melhor, o mais seguro, a respeito do qual não pode haver dúvidas. Nesse caso, temos o direito de tirar a conclusão semântica no sentido de que “inimigo carnal” é a oposição total, é o pior dos inimigos, o mais perigoso, mais terrível, o pior. Ora, contra um tal tipo, é preciso se proteger. Uma "simples" proteção material, armada, não é suficiente; é preciso uma proteção superior, espiritual, mística.É, pois, nesse nível de compreensão que os devotos concebem suas orações, como também os poetas. Assaltados por inimigos de toda sorte, pessoais e coletivos, as pessoas dos sertões tiveram que procurar um meio "superior" de defesa. As orações são essa proteção, em nome das ideias espirituais antigas. É nesse contexto que podemos compreender uma parte das causas que levaram a poesia popular a esse gênero de literatura, a repetir sem parar essa ideologia místico-religiosa, essas fórmulas sentimentais elementares.Pensamos também que o vocabulário, a linguagem em geral da poesia popular, além da temática, são

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motivados pelo contexto histórico e cultural da região. Vejamos o que nos diz o último parágrafo da Oração do Padre Cícero: “quem rezar ou possuir esta oração livra-se (de) todos os perigos”.“Esta oração defende de fome, peste, guerra e seca, da vinda da besta-fera, das 3 noites de escuro [...]”. (140)Naturalmente são as pessoas das classes populares que consomem esse tipo de literatura, seja pela leitura, seja pela audição. Exatamente os perigos contra os quais pretendem proteger as pequenas orações atingem mais seriamente os meios mais modestos. Não há nada de excepcional a esse estado de coisas. Nas classes populares encontramos obrigatoriamente as populações de trabalhadores agrários, os sertanejos e outros. Não é por simples repetição ou por coincidência que o autor fala com tanta veemência de fome, guerra e seca.Todos aqueles que conhecem um pouco a história e a realidade nordestinas não estranharão o vocabulário.Apenas a palavra “guerra” merece algumas explicações. As referências às guerras não são numerosas na literatura de cordel, no sentido de guerra entre países. É curiosa,

- 109 -portanto, a comparação dessas guerras com episódios guerreiros que conheceu o povo nordestino. Uma das citações mais antigas na qual se estabelece a comparação dos conceitos de guerra no sentido europeu e mundial e a concepção sertaneja, através da literatura de cordel, é encontrada num folheto anônimo de 1927, publicado em Currais Novos (141), com o título Entrada do réprobo Lampião no Rio Grande do Norte:

Mossoró merece serSeu nome denominadoIgualmente aos BelgasNaquele tempo passadoQue investiu a AlemanhaQuinze dias de campanhanão fugiu um soldado. (142)

É evidente que o autor se refere à Primeira Guerra Mundial. A atitude do povo e das tropas belgas é comparada à resistência da população da Vila de Mossoró, Rio Grande do Norte, ao ataque de Lampião em1927. Esta operação está muito presente na memória do povo e na história do cangaço, pois foi a primeira vez que uma população civil, armada, resistia aos assaltos do famoso bando de Lampião, já muito forte e tristemente célebre.Assim, o conceito de guerra para os sertanejos é bastante ligado às guerras do cangaço, fenômeno que dominou a história do interior do Nordeste durante muitas décadas.Ao mesmo tempo, é preciso procurar mais longe ainda para compreender melhor o significado de "guerra", quando a palavra aparece numa oração. Para já, podemos dizer que há "guerras" e "guerras", para o nordestino. Vejamos agora um outro conceito do célebre Antônio Conselheiro:“Em verdade vos digo, quando as nações brigam com as nações, o Brasil com o Brasil, a Inglaterra com a Inglaterra, a Prússia com a Prússia, das ondas do mar D. Sebastião sairá com todo seu exército.” (143)Voltamos, pois, a um outro campo semântico da palavra guerra. É claro que, quando os países começam a brigar entre eles, ou o Brasil contra ele mesmo, entramos num estado de beligerância concreto. O Conselheiro pronunciou essas palavras no último quarto do século XIX, em torno dos anos 1888-90. Não havia à época nenhuma guerra entre os países europeus ou americanos. Mas, em compensação, o Brasil atravessava um período muito agitado. Lembremos alguns acontecimentos históricos dessa época: o Nordeste sofria em 1877-79 umas das secas mais catastróficas e mais longas de sua história. Foi a triste seca de 77, citada pelas populações ainda hoje. "Calcula-se que um terço da população do Ceará morreu ou emigrou: 300.000 pessoas". (144) Em 1888, a Monarquia sancionou as leis de abolição da escravidão negra em todo o território nacional. Muitos grupos de antigos escravos entraram em luta armada, em guerra,com os seus antigos senhores.

- 110 -Em 1889, foi proclamada a República do Brasil. Este acontecimento não se fez sem dificuldades e choques,sobretudo nas zonas rurais, a tal ponto que o movimento místico-religioso de Canudos é considerado como parte da luta antirrepublicana.A esses acontecimentos, ajuntemos a proliferação de bandos de cangaceiros que se multiplicaram no Nordeste: Jesuino Brilhante, Antônio Silvino, Lampião, etc. Esses grupos fizeram a "guerra" durante algumas décadas, sobretudo nos sertões. O sertanejo e seus poetas, pois, têm porque se fazer uma ideia de "guerra". Sobretudo a guerra, ou as guerras, do cangaço marcou profundamente o espírito, o pensamento e a psicologia do povo nordestino. Eis porque vemos nas orações a palavra guerra ao lado da trilogia fome, peste e seca. Este último vocábulo é, aliás, a eterna guerra do homem dos sertões desérticos. Os outros vocábulos fazem parte do mesmo infortúnio. (145)Finalmente, a Oração do Padre Cícero vai terminar com a penitência tradicional: "3 Pai-Nosso, 3 Ave-Maria,3 Glória ao Pai", e pela oferenda habitual à "N.Sra do Livramento e Padre Cícero de Juazeiro".A oração, a penitência e a oferenda terminaram, mas a última capa do folheto ainda nos propõe algumas informações na parte de baixo da página: “todos façam por onde ser bom para evitar o exemplo”.É a tradicional palavra de ordem moral, nada de mais normal nesse tipo de literatura. Mas, surpresa: o verbo evitar é empregado em vez do verbo dar. Vejamos o que nos explica o Dicionário Aurélio sobre o verbo evitar: "Fugir, desviar-se de, esquivar-se, impedir, atalhar, poupar". Nada nos satisfaz, nem de perto,

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nem de longe. Não se pode admitir que, após a prece, a penitência e a oferenda, cheios de promessas e devotos sagrados e místicos, se possa aconselhar aos fiéis a evitar o exemplo. Note-se que o exemplo indicado é o de ser bom, "todos façam por ser bom". Até segunda ordem, vemos uma forte contradição nesta máxima moral:“Todos façam por onde ser bom para evitar o exemplo”.Qual é o exemplo recomendado pelo conselho? Ser bom! Então, é preciso evitar de o ser. Ou, precisamente, “evitar o exemplo de ser bom”. Se pudéssemos substituir o verbo evitar pelo verbo “dar”, obteríamos o resultado desejado pelo oráculo:“todos façam por onde ser bom para dar o exemplo”.Ora, com esta proposição, compreenderíamos que é preciso dar o exemplo de “ser bom” a todos os outros fiéis. Isto é natural e de acordo com as palavras de ordem moral. Mas nós não estamos autorizados pelo autor da oração a substituir os seus verbos. Poderíamos pensar que se trata de erro de impressão, o que é muito comum nos folhetos de cordel. Mas nos exemplos dados não se trata disso. Com efeito, vimos um outro folheto de José Costa Leite, cujo título é: "O rapaz que virou bode porque profanou de Frei Damião " no qual a Oração de Padre Cícero é impressa na última capa, com o mesmo conselho moral: “todos façam por onde ser bom para evitar o exemplo”.Aparentemente voltamos ao ponto de partida. Evitar em vez de Dar. É preciso, então, aceitar esta metáfora a exemplo de outras curiosidades do "linguajar" sertanejo. Existem outras expressões ou palavras nas quaiso sentido corrente é exatamente o contrário de outras regiões do país. Vejamos alguns exemplos:Vou chegando = vou saindo; café fresco = café quente; cabra danado = cabra bom.

E mais, quando alguém faz uma pergunta e a resposta é negativa, a construção desta implica o não seguido de um verbo. Ora, no Nordeste, não é assim, não. Exemplo:“– Bonito, Chicó, onde foi que você ouviu isso? De sua cabeça é que não saiu, que eu sei. –Saiu mesmo não, João.” (146)

Admitindo-se que as pesquisas no nível dos verbos “evitar” e “dar” não avançaram muito, nós nos viramos para a palavra exemplo. A linguagem mística dá a este vocábulo significados muito variados. Como sabemos, grande número de folhetos de cordel fazem imprimir nas últimas capas orações e conselhos de salvação da alma, de esperanças. Citaremos a seguir alguns folhetos apocalípticos com as respectivas orações:O sonho de um Romeiro com o Padre Cícero Romão / Oração do Arcanjo São Miguel. (147)O Frei Damião sonhou com o Padre Cícero Romão / Bendito. (148)A voz de Frei Damião / Oração de N. Senhor do Bonfim. (149) A vinda da Besta-Fera / A força do Credo. (150) O fim do mundo está próximo / Oração do Padre Cícero. (151)

- 112 -

Depois da leitura desses folhetos e das orações, pensamos ter compreendido a lógica dos poetas populares, em relação à frase que estamos examinando:“Todos façam por ser bom para evitar o exemplo.”Então o que devemos evitar? O exemplo, isto é, o “castigo”: o fim do mundo, o pecado, as três noites de luz (?), a fome, a peste, a guerra, a seca, a Besta-Fera e todas as outras maldades anunciados nas profecias, nos folhetos.Tudo isso nos fecha na lógica das crenças místico-religiosas. A poesia popular desempenha o seu papel. Conscientemente, ou não, ela é um poderoso instrumento de divulgação dessas ideias e dessas palavras. Para isso ela dispõe de meios muito eficientes, ela fala a linguagem popular, a linguagem dos sertões. Como vimos, de um lado, as profecias amaldiçoadas e, do outro lado, as orações benfazejas e, no fim da página, para reforçar uma máxima moral religiosa. Na mesma linha profética pode-se encontrar outro tipo de poesia popular, encontrada aqui e lá, como o indica Silvio Romero:

Quem ouvir e não aprenderQuem souber e não ensinarNo dia de JuízoA sua alma penará! (152)

As profecias, as catástrofes naturais, os milagres, as misérias sociais, o complexo cultural e as crenças maldefinidas fazem com que as orações tenham grande sucesso nos diversos setores da sociedade sertaneja. Por sertões, entendemos todas as regiões do interior do Nordeste, campos, vilas e cidades, de predominância rural. Mesmo personagens temidos e sanguinários, como os cangaceiros, nunca negligenciaram as suas pequenas orações impressas em papel ordinário, guardadas com muito cuidado num bolso de suas vestes. Seria uma maneira de ter perto deles, todos os momentos, um "anjo da guarda", um talismã.Autores ou fabricantes dessas orações encontram um mercado consumidor amplo e variado. Podemos constatar a sua grande penetração sobretudo nos meios populares de origem rural. Como exemplo e confirmação, citemos o dramaturgo Dias Gomes que, na peça A revolução dos beatos, construiu um importante personagem com o nome de "o vendedor de orações". O célebre autor de O pagador de promessas (153) soube observar a importância, nos meios populares, dessa corrente religiosa que é

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veiculada e alimentada por essas aparentemente simples "pequenas orações".

- 113 -(119) SOARES, Dila. O sonho de um romeiro com o Padre Cícero.120 - Id.121 - ROMERO, Silvio. In: MOTA, Leonardo. Cantadores. Fortaleza: Imprensa Universitária do Ceará, 1961,p. 43.122 - SOARES, Dila, op. cit.123, 124 e 125 - LEITE, José Costa. “Bendito”. In: O Frei Damião sonhou com o Padre Cícero.126 - FERREIRA, Aurélio Buarque de Holanda. Novo Dicionário Aurélio. l. ed.127 - LEITE, José Costa. “A força do Credo”. In: A vinda da Besta-Fera.128 - Id.129 - SUASSUNA, Ariano. A pedra do reino. 2. ed.130 - VICENTE, Gil. 1465-1507.131 - TEYSSIER, Paul. Seminário "Formation et Recherche en langue et civilisation luso-brésilienne", Universidade Paris-Sorbonne, 1977-78.132 - CANTEL, Raymond. Les prophéties dans la littérature populaire du Nordeste. In: Cahiers du Monde Hispanique et Luso-brésilien Caravelle, 15, 1970.133 - ASSIS, Manoel Tomaz de. Orações do Padre Cícero. In: O fim do mundo está próximo.134 - Id.135 - "Il (Jean) n'a pour cela qu'à copier les déclamations des anciens prophètes contre Babylone, contre Tyr".RENAN, Esnest. Histoire des Origines du Christianisme – L'Antéchrist. Paris: Calman-Lévy, 1924.136 - CARVALHO, Rodrigues de. O cancioneiro do Norte. Rio de Janeiro: Ministério de Educação e Cultura,1967, p. 40-45.137 - BASTIDE, Roger. Prefácio a Poemas, de Ascenso Ferreira.138 - ASSIS, José Tomaz de, op. cit.139 - FERREIRA, Aurélio Buarque de Holanda. Novo Dicionário Aurélio. 1. ed. 1975.140 - ASSIS, José Tomaz de, op. cit.141 - Currais Novos. Município do Rio Grande do Norte, perto da fronteira da Paraíba, ao extremo norte de massivo da Borborema. O município é banhado por três rios, Currais Novos, Cipó e Tororó. Esta localizaçãolhe confere certa importância como lugar de passagem e comunicação dos sertões do Nordeste.

- 114 -142 - ANDRADE, Mário de. Danças dramáticas do Brasil. São Paulo: Martins, s/d., p.183. Tomo I.143 - CUNHA, Euclides da. Os sertões,p.171-172.144 - TEÓFILO, R. História da seca no Ceará (1877-1880). Rio de Janeiro, 1922, p.104-105. In: FACÓ, Rui. Cangaceiros e fanáticos, p.132.145 - A propósito dos problemas causados pelas secas, vejamos dois textos de homens do Nordeste: "Dionísia dos Anjos, a mulher antropófaga, de Pombal, que matou e comeu uma criança de 5 anos durante a seca de 77". In: ALMEIDA, José Américo de. A bagaceira. Rio de Janeiro: José Olympio, 1971, p.42. "Durante a seca de 77... ela chegou, solteira, em companhia de seu povo que morreu de fome". In: REGO, José Lins do. Fogo morto. Lisboa: Livros do Brasil, s/d.146 - SUASSUNA, Ariano. O auto da compadecida, p.56-57. Euclides da Cunha também observou esta maneira sertaneja de "falar negativo". Os sertões, p. 604. 147 - SOARES, Dila. O sonho de um romeiro com o Padre Cícero.148 - LEITE, José Costa. O Frei Damião sonhou com o Padre Cícero.149 - Id. A voz de Frei Damião.150 - Id. A vinda da Besta-Fera.151 - ASSIS, Manoel Tomaz de. O fim do mundo está próximo.152 - ROMERO, Sílvio. In: CUNHA, Euclides da. Os sertões, p. 196.153 - GOMES, Dias. O pagador de promessas. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1972.

- 1153a.PARTE

CAPÍTULO IDANTE ALIGHIERI E OS POETAS POPULARES

Como para afirmar que o Inferno não é nem uma exclusividade florentina, nem um lugar reservado aos poetas antigos ou medievais, como Virgílio e Dante, sobretudo a este último, conhecedor do caminho e da vida do além-túmulo, os poetas populares do Nordeste brasileiro fizeram a descoberta desse local fantásticoque é o Inferno! O Inferno, com seus personagens e suas leis, sua arquitetura e topografia, é descrito em pleno século XX por intermédio dos folhetos de cordel. É claro que não podemos esperar de nossos poetas contemporâneos, sertanejos, nem mesmo a linguagem, nem a mesma estrutura formal e intelectual como a do poeta florentino Dante Alighieri. O quadro social e humano, com efeito, é bem diferente, assim como os dados históricos. Veremos que os poetas populares são pessoas bem próximas de nós e da gente dos sertões. Não há reis, príncipes nem papas. Os conflitos e os pecados são menos aureolados. Veremos

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personagens que pertencem a um outro tipo de "aristocracia", a dos guerreiros, como Lampião e outros representantes do mesmo gênero. O "pecado" do cangaço será castigado e classificado segundo uma certahierarquia infernal. Quando Dante faz sua fantástica viagem ao além-túmulo, não poderia imaginar que numerosos colegas seus, os modestos poetas de cordel, mais de seis séculos depois da publicação da Divina comédia (1), poderiam se entusiasmar ao contar outras viagens, acontecimentos variados e a vida cotidiana no Inferno. Esta "omissão" do genial florentino se explica, simplesmente, por que ele viajou apenas em "terras" já conhecidas, com personagens conhecidos, como, por exemplo, o poeta Virgílio. Dante não poderia falar e descrever "terras desconhecidas". Em Florença, os poetas e pensadores só podiam "viajar" num mundo conhecido. Nos anos 1300, o Novo Mundo "não existia" ainda. As intrigas, as cortesanias, os pecados morais e materiais só podiam ser conhecidos a partir de uma realidade social e cultural concreta, europeia, em particular florentina ou romana. A cada época, a cada terra ou, a cada inferno, os seus poetas.Eis porque, no século XX, no Nordeste do Brasil, iremos conhecer o Inferno numa viagem ao além-túmulo, guiados, não por Virgílio, Beatriz ou São Bernardo (2), mas pelos poetas-cantadores da literatura de cordel. É esta literatura popular que nos explicará a "vida eterna", os sofrimentos e as aventuras infernais, "dantescas", dos persongens e dos heróis tradicionais do universo nordestino,

- 116 -misturados a outros heróis da mitologia ocidental ou planetária. Como o domínio deste nosso trabalho é a poesia popular do Nordeste, seus poetas e sua linguagem, é natural que demos prioridade à produção originária dessa região. Comparações com a literatura erudita não serão excluídas, embora em matéria do além-túmulo os intelectuais nacionais não sejam muito produtivos.Como dissemos anteriormente, a literatura de cordel sobre o Além se apresenta de maneira tão variada, que seremos obrigados a escolher somente alguns exemplos dos gêneros e subgêneros mais comuns e, aomesmo tempo, mais representativos, a fim de poder fazer uma síntese da visão do mundo que compreende uma boa dose de messianismo e de misticismo "religiosos".Antes de ver precisamente que poetas e quais folhetos iremos estudar, citemos algumas impressões do etnólogo Lorenzo Fernandez sobre o comportamento do povo galego diante da morte, embora não se trate diretamente do povo nordestino brasileiro, mas que vão nos ajudar a compreender o comportamento deste em ocasiões semelhantes:

" [...] O morto segue vivindo a caron do vivo, intervinindo nos seus feitos, aproveitando os seus istrumentos, dandolle conselles e anunciadolle o porvir, ben que, como seres que son xa do outro mundo, a sua actuacion en torno os vivos non sempre sena benéfica [...][...] De ehi o respeto e a veneracion con que o noso pobo trata todo o que fai referencia os mortos, non soin polo que o temor poida por nestas relacions, senon tamén polo que sinifican de continuidade nas relacions que se mantiveron colles durante a vida terria [...][...] Unha vella tradicion mantén ainda antre nos a lembranza de iste sentimento nas frias e longuas noites do inverno venen as alminas dos difuntos a se quentaren onda a lareira por esta razon deixanse en moitos sitios preto do lume uns croios que conservan a calor, ou, polo menos, unhas brasas acesas antre a borrallapra que istes nocturnos visitantes se quenten a seu Caron [...]". (3)

A seguir, vejamos as impressões de Euclides da Cunha, desta vez sobre a atitude sertaneja relativa à morte:

“O culto dos mortos é impressionante [...], inhuma-se a beira das estradas, para que não fiquem abandonados [...] A terra é o exílio insuportável, o morto um bem-aventurado sempre O falecimento de uma criança é um dia de festa [...]” (4)

Segundo esse autor, o culto da morte é um dado fundamental do nordestino. Essa afirmação é muito complexa e merece um aprofundamento. Outras reflexões essenciais sobre a psicologia social do homem dos sertões, que mostrou sempre uma grande coragem em face da morte, devem ser evocadas. Lembremo-nos do fenômeno do cangaço,

- 117 -da "vendeta" político-familiar, da violência das relações sociais no interior das terras, nas fazendas e nos engenhos dos "coronéis". Recorramos ao exemplo de um personagem do romance Fogo morto, que interpreta este atavismo da gente dos campos, esse gosto pela violência, muitas vezes mortífera:“Gosto do povo do Sertão por isto; meu pai tinha terra no Cariri, tinha trinta homens de rifle. Ali é na bala, meu compadre. É do que gosto.” (5)

Vimos as reflexões de sociólogos e escritores eruditos. Agora convém nos aproximar da poesia popular. Mais do que todas as outras expressões da cultura do Nordeste, a literatura de cordel vai nos conduzir a refletir sobre o problema da morte e, sobretudo, sobre esta "outra" vida, a do além-túmulo. Encontraremos os aspectos religioso, moral e filosófico, profundamente integrados à ideia de que a vida no além-túmulo seguiria um curso normal, à imagem da vida terrestre, como uma espécie de segundo ato de uma peça de teatro. Os mesmos atores continuam a desempenhar os seus papéis, como eles faziam na Terra. Essa ideianos é transmitida pela maior parte dos pequenos folhetos do gênero "espiritual". Os atores continuam os seus papéis num "cenário" diferente, num contexto sociocultural semelhante ao do primeiro ato, da vida terrestre.

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Vejamos inicialmente alguns títulos de folhetos que contam histórias de viagens e aventuras no Inferno. Trata-se de visitas de pessoas humanas ou de "ex-pessoas humanas" ao Além, ou de viagens de representantes do "mestre Lúcifer" ao nosso mundo terrestre, o da superfície, do exterior:Peleja de Riachão com o Diabo;Peleja de um Embolador de Coco com o Diabo. (6)Esses dois folhetos, escolhidos entre muitos outros do gênero, apresentam encontros extraordiários de célebres poetas populares ou cantadores com seus "confrades" misteriosos, incrivelmente dotados na arte da cantoria (7). Os poetas escolheram a mais clássica das estruturas da cantoria, da embolada, a peleja, naqual cada parceiro, digamos adversário, deve provar sua superioridade oratória, ou seja, seus recursos linguísticos, sua astúcia mais fina e o maior dom de imaginação. A linguagem popular encontra instrumentos privilegiados de expressão nesse gênero de folheto. Cada cantador deve ser mais dotado que o outro e mais malandro. É no nível da arte da oratória que a peleja deve se completar.

Em seguida, veremos folhetos que abordam acontecimentos terra a terra, histórias do dia a dia, com personagens menos heróicos, mas característicos do panomara sertanejo, que se encontram um dia diante de situações inexplicáveis, do domínio do real-imaginário Trata-se de fenômenos que a gente não compreende, mas são contados como "histórias verídicas" nos folhetos:

- 118O Diabo e o camponês eO sanfoneiro que foi tocar no Inferno

Estes dois folhetos são do famoso José Costa Leite, um dos grandes especialistas dos temas místico-religiosos. (8) Aqui, não se trata de pelejas, de combates oratórios ou outros, mas dos poderes e da capacidade excepcional do Diabo em diferentes domínios da atividade humana. Sua história diabólica será utilizada para conquistar as boas almas dos sertanejos. Será que ele vai conseguir o que procura?Continuando nossa exploração sobre os mistérios do Além, iremos tomar conhecimento agora do folheto degênero moral. Como se trata de viagens ao Inferno, temos o direito de pensar que existe un conteúdo religioso, o qual será desenvolvido pelos poetas de cordel cujo ideal judeu-cristão da criação do mundo é mais ou menos implícito, embora não muito claro. Com efeito, essa religião mestiça, como diz Euclides da Cunha, reserva-nos boas surpresas. Veremos isso nos folhetos:Estória de Marieta, a moça que dançou no Inferno eO Satanaz reclamando a corrução de hoje em dia

O primeiro folheto é de Joaquim Batista de Sena, e o segundo, de José Costa Leite.Enfim, mas não para terminar, examinaremos as presepadas (9) deste personagem demoníaco que é Lampião, o Rei do Cangaço, através de suas diversas estadas no Inferno e suas múltiplas atividades além-túmulo. Quase todos os poetas populares são fascinados pela história e pelas "histórias" de Lampião. Não satisfeitos com os 1.001 folhetos narrando a vida terrestre e os 30 anos de cangaço do famoso cangaceiro, admirado e odiado pelas populações nordestinas, os poetas imaginam e idealizam sempiternamente o personagem, suas proezas e presepadas. Três folhetos ilustrarão a "vida" e as "aventuras" infernais de Lampião. É necessário compreender infernal no sentido próprio, a vida do além-túmulo do famoso cangaceiro, pois que a sua vida terrestre não foi diferente desse mesmo qualificativo, isto é, infernal. Os trêsfolhetos recenseados nos propõem, sem dificuldades, uma espécie de segundo livro, de continuação da "vida" do personagem. Isto ilustra bem o sentido filosófico do nordestino, particularmente do sertanejo, com relação à morte. Esta representa apenas uma outra etapa da vida. Vejamos os três títulos que estudaremos nos capítulos seguintes: A chegada de Lampião no Inferno, de José Pacheco;A eleição do Diabo e a posse de Lampião no Inferno, de João José da Silva;O futebol no Inferno, de José Soares.

- 119 -

- 120 -1 - Dante Alighieri, nascido em Florença, Itália, em1265. Falecido em 1321, em Ravena. Autor da Divina comédia. É considerado o pai da poesia italiana. O livro sobre o Inferno foi composto entre 1304 e 1307.2 - Virgilio (Publius Virgilius Maro), poeta latino, autor da epopeia nacional A Eneida (em torno de 76 a 19 a. C.). Beatriz (Béatrice Portinari), inspiradora de Dante, e são Bernardo, que simboliza a contemplação, foram os guias e os companheiros de Dante nas suas viagens de além-túmulo. Ver PEZARD, André. Dante,oeuvres complètes. Paris: Pleiade-Galimard, 1965, em especial nota 59, p. 1648.3 - FERNANDEZ, Lorenzo. As casas dos mortos. In: Actas do Congresso Internacional de Etnografia de Santo Tirso. Portugal: Edição Lisboa, 1965, volume 2, 29.a secção.4 - CUNHA, Euclides da. Os sertões, p. 142-143.5 - REGO, José Lins do. Fogo morto, p. 30.6 - ATHAYDE, João Martins de. Peleja de Riachão com o Diabo. Proprietário-editor Filhas de José Bernardo da Silva, também poeta popular, falecido em Juazeiro, no dia 20 de março de 1976.7 - Cantoria: arte de improvisar e de cantar versos, acompanhados de viola ou rabeca.

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8 - José Costa Leite, especialista dos temas do fim do mundo e proféticos. Ver DIEGUES JR, M. op. cit., p.123.9 - Presepadas: palavra formada do latim praesepe (presépio) mais a terminação -ada. A literatura de cordel o concebe como ato de astúcia, de malandragens. Ver PONTES, W. Tenorio. Machismo. Lisboa: Edição Rolim, s/d. Capítulo 2.

- 121 -CAPÍTULO II: RIACHÃO CONTRA O DIABO

A obra completa de Dante, concebida e descrita há mais de seis séculos, não fala de encontros oratórios, de combates poéticos que poderiam se desenrolar entre o Diabo e personagens vivos, isto é, vivendo ainda no mundo terrestre. É verdade que o poeta florentino nos falou de sua viagem extraordinária ao Inferno, ao Purgatório e mesmo ao Paraíso no século XIV. Ele deixou mesmo uma impressão de que conhecia uma "passagem secreta" por onde a gente podia ir e vir, quando bem o desejasse. Mas Dante não nos contou seos mestres do Inferno faziam viagens à Terra, encarnados em seres bem vivos de nosso planeta. Muito bem, os poetas populares do Nordeste, em pleno século XX, viram ou ouviram falar desses acontecimentos e decidiram contá-los e nos fazer tomar conhecimento deles. Escolheram a clássica “peleja” da literatura de cordel, as sextilhas rimadas em xaxaxa (10). Para começar, pois, vejamos a apresentação do famoso cantador Manuel Riachão (11):

Riachão estava cantandona cidade do Assuquando aparece um negroda espécie de urubutinha a camisa de solae as calças de couro cru. (12)

Nosso muito famoso Riachão vai pagar sua celebridade. Sem que tenha procurado, ele se encontra em facede um personagem muito misterioso: um poeta, um cantador como ele. Aliás, fatos fortuitos como esse que nos vai contar João Martins de Athayde não são muito raros. Poetas e cantadores famosos nos sertões são surpreendidos, de tempos em tempos, por outros colegas, às vezes muito estranhos, que desejam desafiá-los. As astúcias mais extravagantes são desenvolvidas nessas ocasiões, a título de desafio. Mas observemos inicialmente a maneira brasileira de empregar o verbo cantar no gerúndio para exprimir a ação que é interrompida no momento em que atinge o seu apogeu: "estava cantando", quando lhe apareceu "um negro da espécie de urubu". Esses versos revelam um certo racismo que atribui tudo o que é mau à cor negra (13). Um “negro", neste caso, não é apenas uma questão de cor, mas uma indicação de raça. Esta ideia se explicita mais adiante. Os dois últimos versos não têm nada de especial, pois a sola e o couro cru são materiais utilizados normalmente para fabricar as roupas dos vaqueiros do sertão (14). É possível também que o "couro cru" seja utilizado para dar a ideia do personagem misterioso que aparece em virtude do seu cheiro forte, ácido. O poeta Martins de Athayde é, em geral, muito fino e perspicaz na formulação dessas imagens.

-122 -A segunda estrofe começa a estruturar a peleja e apresentar o segundo personagem, o adversário de Riachão:

Beiços grossos e viradoscomo a sola dum chineloum olho muito encarnadoO outro muito amareloesse chamou Riachãopara cantar um martelo. (15)

Constatamos que a caracterização racial é detalhada. Na primeira estrofe era questão de um negro. Agora os detalhes são mais precisos: "beiços grossos e virados / como a sola dum chinelo". Então, estamos bem informados de que se trata de alguém da raça negra. Até agora não há nada de particular. A dificuldade se manifesta quando o poeta escolhe um tipo racial para simbolizar o persongem que se chama o "Diabo". Masisso não é realmente uma surpresa. Sabemos que a poesia popular, inconscientemente, talvez seja porta-voz de ideias conservadoras, retrógradas mesmo (16), que subsistiria inclusive entre as camadas populares, aliás bastante mestiçadas, da sociedade brasileira. Todavia, notemos também o emprego de outras cores nessa estrofe; no cordel tudo não é preto, não. Duas outras cores são escolhidas para "pintar" a "cara do Diabo". Essas cores, embora façam parte do quadro cromático universal, não deixam de caracterizar a paisagem psicocultural do Nordeste, em especial dos sertões, do interior:“um olho muito encarnado / O outro muito amarelo”.Parece-nos que, além do quadro cromático, há fundamentalmente um simbolismo a desenvolver nessas cores. Primeiramente, deve-se lembrar que se trata de cores tradicionais, junto com o azul, utilizadas em toda sorte de aventura do imaginário nordestino. Nós as vemos presentes, por exemplo, em todas as manifestações do folclore musical e coreográfico da região, nas festas e danças populares, como diz Mário de Andrade (17). Isso nos lembra os "cordões azul e encarnado" das Pastorinhas e dos Reisados, e outras danças histórico-religiosas. Essas cores se opõem virilmente nas cavalhadas, nas quais se observam os

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eternos "Doze Pares da França" que, no Nordeste, são 24 (= a 12 pares), cada um dos cavaleiros tendo uma cor para defender (18).Mas, para o poeta Martins de Athayde, essas cores têm um sentido particular: o diabo tem um olho encarnado e o outro amarelo. Para a primeira qualificação, pensamos em um vermelho agressivo e brilhante, cheio de sol e de luminosidade, de fogo. Isso contrastaria com a concepção de obscuridade do Inferno, residência do Diabo. Sobre esta cor o Dicionário Aurélio nos ensina que, além das tonalidades do vermelho e do escarlate, o vocábulo é o particípio passado de encarnar, isto é, dar o aspecto da carne a uma escultura, em geral santos e outras imagens barrocas. Ele informa que o encarnado transforma-se em substantivo na expressão: "O encarnado deste Santo precisa de restauração", quer dizer de carne. O encarnado, então, é a cor da carne.

- 123 -Vejamos agora o amarelo. Não nos deixemos cair na facilidade, pensando que se trata de uma simples questão de cor, problema banal. Há uma riqueza psicossemântica, às vezes contraditória, no vocábulo amarelo. O emprego desta palavra, com muitos significados, existe há muitos séculos. Em especial, com relação aos idiomas ibéricos, vamos voltar ao século XVI, no qual o amarelo era corrente no falar português e espanhol, ou galaico-português. Veja-se o que nos diz o professor Paul Teyssier nas suas pesquisas sobre o vocabulário das cores e da luz em Gil Vicente (19), que empregou o amarelo, ou amarillo, com 22 significados diferentes.Entre os numerosos exemplos citados por Paul Teyssier, transcrevemos apenas os que têm relação direta com este nosso trabalho:cette couleur maladive n'interesse pas seulement la peau mais aussi les yeux:Los ojos travo amarillosCe teint blême est celui de la maladie. Le diable Bélia, vaincu par le Christ, a tous les symptomes d''une grave maladie:Pois assi tremo e estou amarello.Diabo: Oh mi duque y mi castillo, mi alma desesperadasiempre fuistes amarillo hecho oro de martilloEsta es huessa posada.Duque: Cortesia (20)E Paul Teyssier acrescenta: "Dans le symbolisme des couleurs, le jaune représente le désespoir".

No Nordeste, porém, o amarelo é mais do que uma cor. Isso é muito complexo. Entre outras definições, podemos lembrar sua representação clássica da riqueza e do poder, pela assimilção à cor do ouro. Em seguida, contraditoriamente, ela simboliza a doença, a fraqueza. Como corolário a esta representação se usa a expressão "amarelo fedorento", que define alguém desagradável ou doentio. Com relação ao Diabo, oamarelo, ou amarelado, tem o mau cheiro do enxofre, motivo pelo qual os que tiveram a ocasião de encontrar o Diabo “sabem muito bem que ele fede a enxofre”. Eis porque o poeta Martins de Athayde se exprime assim:

O negro soltando um gritoali desapareceuduma catinga de enxofrea casa toda se encheu. (21)

Como vimos, o amarelado e o cheiro de enxofre simbolizam o Diabo na imaginação popular. Por isso, o poeta parece ter escolhido com segurança o encarnado e o amarelo para identificar os olhos do representante de Satã, como um personagem de caráter agressivo,

- 124 -sanguinário e violento, e ao mesmo tempo doentio, fedorento e repulsivo. Só essas pinceladas nos dão já a ideia do adversário extraordinário que vai pelejar contra o grande Riachão. É realmente uma coisa infernal.Mas não esqueçamos que estamos no Nordeste, em especial próximo do sertão, onde o simbolismo das cores é bastante complexo. Ainda sobre o amarelo, pensemos nas palavras do escritor Paulo Dantas, numacrítica à peça O auto da compadecida, de Suassuna:"O tipo de João Grilo, ‘amarelo’ nordestino, cujas proezas são contadas em abc, dentro da peça de Ariano Suassuna simboliza e representa muito bem o engenho popular da nossa raça, gente intuitiva e telúrica, imaginosa e sofrida". (22)

- 125 -(10) xaxaxa, é a estrutura da rima utilizada com frequência pela peleja, por causa do seu ritmo cantado. O acento tônico se faz sobre os versos em “a”.11 - Manuel Riachão, cantador popular nascido em Araruna, Paraíba, onde viveu e cantou, em fins do século XIX e começos do XX. In: Dicionário biobibliográfico de repentistas e poetas de bancada. Universidade de João Pessoa e Centro de Ciência e Tecnologia de Campina Grande, 1978.

(12) ATHAYDE, João Martins de Peleja de Riachão com o Diabo, p.1.

13 - Ver página 146, exemplo oposto, ou seja, o branco valorizado. In TEYSSIER, Paul. Gil VICENTE

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(1465-1537), op. cit.14 - Gibão de couro do vaqueiro, "forma grosseira de campeão medieval perdido no nosso tempo", cf. CUNHA, Euclides da. Os sertões, p.119, e "vestimenta antiga que cobria os homens do pescoço à cintura", cf. FERREIRA, A. B. de H. Novo Dicionário Aurélio. Pessoalmente penso que se trata, simplesmente, da solução "ecológica" encontrada pelos homens do sertão e da caatinga que aproveitavam o couro do boi para fazer roupas de trabalho resistentes ao meio ambiente.15 - ATHAYDE, J. Martins de, op. cit., p. l.16 - Ver PROENCA, Ivan Cavalcanti. A ideologia do cordel. Rio de Janeiro: Imago, 1976.17 - ANDRADE, Mário de. Danças dramáticas do Brasil. São Paulo: Martins, 1959. - CARNEIRO, Edison. O folclore Nacional. Rio de Janeiro: Souza, 1954. - Idem, Os pares de França. In: Cadernos Brasileiros, n. 54, Rio de Janeiro, 1968.18 - SUASSUNA, Ariano. A pedra do reino. Folheto LIII, Meus doze pares de França.19 - VICENTE, Gil. 1465-1537. Achamos que o recurso a este autor clássico se justifica em virtude da inspiração popular de muitos dos seus escritos.20 - TEYSSIER, Paul. Reitor, professor na Unversidade de Paris-Sorbonne. Seminário: "Formation de recherche en langue et civilisation luso-brésilienne", Paris, 1977-78.21 - ATHAYDE, J. Martins de, op. cit., p.16.22 - DANTAS, Paulo. In: SUASSUNA, Ariano. O auto da compadecida.

- 126 -CAPÍTULO III UM PERSONAGEM DIABÓLICO

Seguindo as definições da palavra amarelo, simbolizada, entre outros, pelo popular João Grilo, podemos completar o quadro da personalidade do Diabo no pensamento do povo. Esta cor definiria um tipo astucioso, uma espécie de mágico, "meio espírita", tendo os meios de realizar proezas as mais espetaculares, sobre-humanas. No capítulo anterior, estudamos alguns aspectos do encarnado e do amarelo, agora são os lados social e sociológico simbolizados pelo "negro" que retorna.

Riachão disse: eu não cantocom negro desconhecidoporque pode ser escravoe andar aqui fugidoisso é da cauda à nambue entrada a negro enxerido. (23)

O cantador Riachão não está ainda decidido a aceitar o desafio. Ele desconfia que o seu pretenso adversário não dispõe da necessária classe para desafiá-lo. A peleja é, antes de tudo, uma característica dapoesia popular e reclama parceiros de um mesmo nível. Antes de ver a resposta do Diabo, podemos destacar certos vocábulos muito significavos, num plano geral da linguagem popular do Nordeste:“Negro-escravo-fugido / cauda a nambu / negro enxerido”. (24)A qualificação racial “negro” retorna simbolizando o mal, em espécie, o Diabo. Esse tema persistirá durante todo o folheto de Martins de Athayde, a exemplo dos versos seguintes:

E ficou mais espantadovende o negro feito diabode bigode, chifre e raboe balançou o ganzá. (25)

Na terceira estrofe da peleja de Riachão com o Diabo, a classificação negro aparece duas vezes. Mas o mais curioso é a associação “ negro/escravo fugido”. Isto coloca antes de tudo um problema de cronologia ou, ainda, de história. Sabendo-se que a abolição da escravatura negra se deu em 1858, o cantador Riachão, ou o poeta Martins de Athayde, não concebia um negro que não fosse na qualidade de escravo. Ora, sabemos que, antes da promulgação das leis de abolição da escravatura, muitos negros, individualmente ou em grupos, conseguiam fugir dos domínios de seus senhores. Mais uma vez, a poesia popular reflete uma realidade conservadora. Um preto sozinho só poderia ser um escravo em fuga.

- 127 -Do ponto de vista da história da literatura de cordel em si mesma, esses versos levantam um outro problema ou, talvez, um ponto interessante a estudar. O poema que estamos estudando seria contemporâneo da época da escravatura no Brasil? En caso positivo, estaríamos em face de um folheto com cerca de um século (26). Pode ser também que a versão oral seja daquela época, o que é possível, que tenha chegado até os nossos dias e o poeta João Martins de Athayde decidiu colocá-la em versos escritos. A favor desta hipótese, transcrevemos a última estrofe do folheto cujo exemplar é datado de Juazeiro do Ceará, 20 de março de 1976, o que poderá ser apenas uma data de edição:

Esta história que escrevinão foi por mim inventadaum velho daquela épocatem ainda decoradaminhas aqui são as rimas

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exceto elas, mais nada. (27)

Verificamos, pois, como o poeta apreendeu essa história: por intermédio de um "velho daquela época". Seráentão uma história de fins da escravatura, na qual o Diabo representava os escravos em fuga, ou em luta por suas liberdades.Depois dessas considerações sobre o significado das cores, sobretudo do preto, e de acontecimentos históricos transmitidos pela poesia popular, passemos aos versos de Martins de Athayde que, seguindo a estrutura da peleja, dá agora a palavra ao Diabo, sempre presunçoso:

N - Sou livre como o ventoa minha linguagem é nobresou dos mais ilustradosque o sol no mundo cobrenasci dentro da grandeza não saí da raça pobre. (28)

A característica da peleja é que os adversários devem responder ao desafio da estrofe anterior e, ao mesmo tempo, conservar o tema inicial, o mote, e lançar a deixa para a estrofe que vai suceder. O tema principal aqui é a qualidade de escravo, pejorativa, que Riachão jogou contra o cantador misterioso, identificado no momento pela letra N (negro).O personagem N apresenta sua carta de identidade tentando se colocar à altura de Riachão, célebre e consagrado. Ele reafirma sua condição de pessoa livre, "apesar da sua cor", e diz que sua linguagem é nobre. Por linguagem, compreenda-se a arte de fazer versos, pois é através da poesia que a peleja se realizará. As palavras: livre, nobre, ilustre e grandeza, convêm perfeitamente a esse tipo de duelo. É um vocabulário escolhido especialmente para enganar Riachão, para esconder o aspecto misterioso e sobrenatural do personagem que quer se introduzir no "círculo nobre" dos poetas populares. Aliás, observamos que, entre os poetas que compuseram pelejas, o Diabo tenta sempre se introduzir no meio dos cantadores populares,empregando a polidez e a astúcia.

- 128 -Vejamos agora um outro exemplo, este do poeta José Costa Leite, sempre muito erudito em questão de sobrenatural:

Disse o diabo: É um prazereu cantar com o amigopode pegar no artigodo côco de embolar. (29)

Vejam-se lá as palavras simpáticas pronunciadas pelo Diabo metamorfoseado em cantador de embolada: prazer e amigo. É a fórmula clássica para se fazer aceitar como poeta ou cantador.Essa ideia do Diabo simpático, cantador, poeta popular, é desenvolvida pela literatura de cordel. Nós a vemos em todos os lados. Os dois folhetos que ora estudamos são um exemplo, pois foram escolhidos entre outros com a mesma orientação. É o caráter dos poetas populares, eles mesmos, que surgem como personalidades alegres e simpáticas, astuciosas e inteligentes. A imaginação popular do Nordeste se libera,certamente, através das pelejas de cordel. Histórias as mais fantásticas são contadas com personagens e combatentes famosos. Mas o traço mais importante da peleja é a inteligência, o saber astucioso de cada perceiro. Todos os domínios são admitidos: científico, religioso, social, etc.Voltemos, porém, a Riachão e ao Diabo. O primeiro parece aceitar as explicações dadas pelo segundo, sobretudo sobre a sua condição de “homem livre”. Em consequência, ele lança seu primeiro desafio:

me diga que tempo faz? (30)

O Diabo começa a perder a paciência e, em vez de responder, passa à provocação:

Vamos entrar em duelosó com a minha presençao senhor está amarelo. (31)

A cor amarela reaparece. Aqui ela simboliza o medo, francamente sugerido pelos versos do Diabo, apesar do tratamento respeitoso que ele emprega com o seu adversário: “o senhor”. A seguir, a peleja começa a esquentar, as provocações são mais sérias. Após as apresentações de uso, os contendores passam a provocações mutuamente. É preciso que os combatentes se piquem:

Vejo um vulto tão pequenoque nem o posso enxergar. (32)É o desprezo:Julgo que nem é precisonem a viola afinarpela ramagem da árvoreVê-se o fruto qu'ela dá. (33)

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- 129 -A imagem é bela: conforme a aparência das folhas, podemos estimar a qualidade das frutas. No nosso caso, Riachão crê que, segundo a "aparência" do seu adversário, este não pode ser um grande cantador popular. Essa não é a opinião do outro:

Riachão, isto é frasede homem muito atrasadoporque são vistos fenômenosque na terra têm se dadouma cobra tão pequena mata um boi agigantado. (34)

O cantador desconhecido replica e aconselha Riachão a ter cuidado. Ele lhe cita fenômenos e coisas inexplicáveis que acontecem. O exemplo mencionado é bem característico do meio físico e cultural do sertão: cobra e boi.Passemos a seguir à fase principal da peleja, na qual cada adversário vai mostrar suas próprias qualidades.O Diabo, ou Negro, como o chama Riachão, não economiza seus esforços e surpreende este último a cada instante. É este caráter extremamente informal, uma espécie de inteligência ou sabedoria maligna, que vai dominar ao longo deste folheto de 16 páginas.Riachão, um pouco desconfiado, diz:

Você nao é Josuéque mandou o sol parare esse parou três diaspara a guerra acabarnem Moisés que com a varafez o mar secar. (35)

A evocação de nomes e exemplos bíblicos não deixa de acrescentar um novo tom místico e mitológico ao debate. Mas o outro cantador vai mais à frente: “Faço tudo que quiser”. (36)E ele insiste com a história judaica lembrada nos versos de Riachão:

Salomão também faziao que queria fazerpor meio de mágica e químicaquis novamente nascermas em vez do nascimentoconseguiu ele morrer. (37)

Um tema novo aparece, o da magia. Ele representa o aspecto misterioso e mágico deste ser misterioso queaparece de repente no universo dos poetas populares. Magia e ciência confundidas, o poeta Martins de Athayde se aventura em uma querela histórico-religiosa:

- 130 -Salomão facilitouconfiado na ciênciaencaminhou tudo bemmas faltou-lhe a paciênciase no fosse aquele errotinha tido outra existência. (38)

A peleja continua num clima de desafio bastante acentuado. O erro de Salomão não é levado em conta por Riachão. Em contrapartida, ele começa a se interrogar quanto à verdadeira identidade do personagem contra o qual está pelejando. O dito personagem deixa o cantador perplexo fazendo revelações curiosas sobre sua vida e seus antecedentes familiares:

Riachão disse consigode onde veio este enteque de toda minha vidaconhece perfeitamente?este será o diaboque está figurando gente? (39)

A ideia de que o Diabo conhece ou adivinha a vida de todo o mundo seria o pensamento popular expresso nesses versos de Martins de Athayde. Essa mesma ideia, encontramos no poeta José Costa Leite, através destas palavras simples, proferidas por um cantador "normal":

Mas meu bizavô viviaa uns 100 anos atrazvocê é moço demaise veio aqui se pabular. (40)

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O embolador de coco, como Riachão, cada vez mais admirado, deseja saber como seu adversário conhece antecedentes tão antigos. Então, o Demônio responde com evasivas e mistério:

O negro disse Rapazfalo com sinceridadevocê não sabe, é verdadedas voltas que o mundo dá. (41)

É a ideia antiga do Demônio genial que tudo sabe e tudo pode. Isto é afirmado com mais insistência nos versos seguintes, sempre com uma certa aura um tanto filosófica e abstrata; o Diabo nao teria começo nem fim:

N: O Senhor pergunta assimde que parte venho eueu venho de onde não vaipensamento como o seueu saí do idealprimeiro que apareceu. (42)

- 131 -Estamos diante de um quase culto ao Demônio, se nos fiamos nas palavras do poeta. Ideias complexas de medo e crença no Demônio, que não nos surpreende completamente tendo em conta o sentimento místico-religioso das populações sertanejas. Mas a nossa peleja continua. As perguntas do cantador Riachão são cada vez mais complicadas. O seu parceiro, no entanto, não se deixa confundir. Do mistério à ciência, todosos domínios são abordados. Vejamos, por exemplo, as explicações sobre a chuva:

N: A água em estado líquidopor meio de abaixamentoque há na temperaturaforma nuvem condensadado vento movendo as nuvensé disso a chuva formada. (43)

A querela continua com mais vivacidade e com ameaças:

R: Não tenho superiorsou filho da liberdadee não conto a minha vidapois não há necessidadeporque não sou foragidonem vocé é autoridade. (44)

N: E preciso advertir-lhefazer-lhe observaçãome trate com muito jeitocante com muita atençãoveja que não se descuidee passe o pé pela mão. (45)

“Passar ou meter os pés pelas mãos”, eis uma expressão típica para informar que o adversário não deve seenganar, não deve dar passos em falso. O cantador N começa a se enervar, faz ameaças, lembra os seus supostos poderes. Mas é um começo de desespero de causa. O nosso célebre Riachão não se deixa intimidar. É a classe que começa a prevalecer. Parece que o Demônio perde a esperança de "catequizar" um grande cantador. E o poeta muda de técnica poética, em lugar dos contendores, é ele próprio que aparece como narrador da peleja:

Arre lá! lhe disse o negrovocê é caso sem jeitoeu com toda paciênciaestou-lhe enricando direitovocê ver que está erradofaz que não ver o defeito. (46)

Aqui fazemos um parêntese para ressaltar o emprego de um verbo nordestino, essa língua portuguesa particular. Trata-se de “enricar”. (47)

- 132 -Mas mesmo essa promessa de enriquecimento não corrompe o nosso Riachão que, como bom cristão, se conforma e se resigna com a sua situação:

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R: É muito feliz o homemque com tudo se consolaposso morrer na pobrezame achar pedindo esmolaDeus me dar para passarciência e esta viola. (48)

O cantador se contenta de sua ciência, de seu dom. Ele vive com a sua poesia e sua viola. (49) E, para terminar a peleja e se livrar desse personagem que lhe turva o pensamento, ele invoca nomes sagrados, inimigos tradicionais do Demônio, o qual entra em pânico só com a menção do nome de Deus:

O negro olhou Riachãocom os olhos de cão danadoRiachão gritou: Jesushomem Deus sacramentado!Valha-me a Virgem Mariaa mãe do Verbo Encarnado! (50)

Então o Demônio perdeu o controle. Riachão apelou para poderes superiores aos de um cantador popular: Jesus, Deus e a toda-poderosa Virgem Maria, mãe do Verbo Encarnado. (51)

O negro soltando um gritoali desapareceuduma catinga de enxofrea casa toda se encheuos cães uivaram na ruao chão da casa tremeu. (52)

É verdade que, segundo a tradição dos ensinamentos religiosos, ou talvez da mitologia da cultura cristã, o Demônio não pode suportar os nomes e os símbolos sagrados da Igreja. Aliás, é o que nos confirma o poeta João Martins de Athayde nos últimos versos que lemos. Mas também é verdade que, segundo outras vozes não menos autorizadas da literatura de cordel, o Demônio pode muito bem resistir à invocação das divindades cristãs se ele, do seu lado, invocar as divindades diabólicas. Pelo menos é o que nos assegura uma grande autoridade na matéria, o conhecidíssimo José Costa Leite:

disse o negro: Cante em 10pra ver quem sabe cantar (53)

E o cantador responde:

- 133 -Valha-me S. SeverinoSanto Cosme e DamiãoSanto Enoc e S. RomãoS. Alfredo e S. Firmino Santo Antônio e S. Quirinoe o anjo S. GabrielS. Bento e S. RafaelS. Nestor e S. José S. Paulo e S. Josuéo arcanjo S. Miguel. (54)

Aí, então, o Diabo não hesitou e apelou para as suas grandes divindades:

Chamo o diabo Três ContigoPonta de Faca e QueléQuiabo Duro e QuicéCão Capado e cão PerigoCão Fuzuê, cão CastigoCanguinha e ForrobodóCão Coxinho e cão cotóCão Muchila e capatazLucifer e Satanaza negra dum Peito Só. (55)

Para que não se pense que essas invocações são simples invenções ou fantasias do poeta Costa Leite, aconselhamos os interessados em "demonologia” a consultar dicionários e textos especializados. Para começar, consulte-se o Novo Dicionário do Mestre Aurélio, que já apresenta uma boa lista de nomes de demônios indicando, outrossim, uma certa tradição de não se pronunciar os verdadeiros nomes de satanás, preferindo-se as alcunhas muito variadas, por uma questão de superstição.É o caso de se perguntar qual é a diferença nos meios populares entre a religião e a superstição?

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- 134 –23 - ATHAYDE, Martins de. Peleja de Riachão com o Diabo, p.1., st.3.24 - Nambu: espécie de perdiz. Pássaro sem cauda, razão por que não pode voar muito. O poeta, o cantador, indica, pois, que o escravo não pode ir muito longe.25 - LEITE, José Costa. Peleja de um Embolador de Coco com o Diabo p.4., st.2.26 - Informamos que a primeira poesia de cordel escrita em folheto data de 1889. Trata-se de uma poesia de BARROS, Leandro Gomes de. In: ALMEIDA, Horácio de. Literatura popular em verso. Rio de Janeiro: Casa de Rui Barbosa, 1976, Tomo II, p. 2-3.27 - ATHAYDE, Martins de. Peleja de Riachão com o Diabo, p.16, st.3.28 - Op. cit., p.2. A Bibliografia Prévia de Leandro Gomes e Barros, Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro, 1971, p.64., atribui o poema a este autor. Mas o Catálogo da Casa de Rui Barbosa, Rio de Janeiro, 1961, registrou o folheto sob o n° 868, indicando João Martins de Athayde como o verdadeiro autor. Esta segunda hipótese é confirmada por um espécime do folheto editado em Fortaleza, Ceará, a 20.03.76, que possuímosem nossa coleção particular.29 - LEITE, J. Costa. Peleja de um Embolador de Coco com o Diabo, p.1., st.4.(30) - ATHAYDE, J. Martins de. Peleja de Riachão com o Diabo, p.2.,(31) Id., st.3.(32) - Ibid., st.4.(34) - ATHAYDE, J. Martins de. Peleja de Riachão com o Diabo, p.2.,1".,.5;(35) - Id. p. 3., st.3.(36) - Ibid., st.4.(37) - ATHAYDE, J. Martins de. Peleja de Riachão com o Diabo, p.3., st.5.(38) - Id., p.4., st.1.(39) - Ibid, p.7., st.4.(40) - LEITE, J. Costa. Peleja de um Embolador de Coco com o Diabo, p.2., st.7. (41) - Id., p.3.,st.1.(42) - ATHAYDE, J. Martins de. Peleja de Riachão com o Diabo, p.13., st.2.43) - ATHAYDE, J. Martins de. Peleja de Riachão com o Diabo, p.16., st.1.44) - Id., st. 4(45) - Ibid., st.5.

� 135 -

46 - Ibid., p.15, st.2.47 - Enricar, como enriquecer.(48) - ATHAYDE, J. Martins de. Peleja de Riachão com o Diabo, p.15, st.3.49 - Viola: espécie de violão, em geral com quatro cordas. Serve para acompanhar os cantadores populares, como a rabeca, espécie de violino, também com quatro cordas.50 - ATHAYDE, J. Martins de. Peleja de Riachão com o Diabo, p.15, st.4.51 - Verbo Encarnado: a segunda pessoa da Santíssima Trindade, muito citado pela poesia popular.(52) - ATHAYDE, J. Martins de. Peleja de Riachão com o Diabo, p.16, st.l.53 - LEITE, J. COSTA. O embolador de coco, p.4. - As décimas são versos em dez sílabas utilizadas nas emboladas, glosas, martelo, martelo agalopado e galope-à-beira-mar. A estrutura das rimas é: aabbaccddc.54 e 55 - Id.

� 136 -� CAPÍTULO IV UMA FESTA NO INFERNO

Seria a tradicional carência agrícola do Nordeste, devido a uma organização econômica da propriedade rural que leva os sertanejos a imaginar soluções milagrosas às suas dificuldades? Ou então, não seria mais uma faceta dessa religião popular, mistura de misticismo e de fetichismo, que faz com que os camponeses, depois de anos e anos de safras insuficientes, de calamidades, de desesperanças, voltem-se mesmo em direção do poder maldito representado pelos diversos diabos? Tantos anos de crenças sociais e religiosas, e de apelo às entidades do bem não conseguiram satisfazer às necessidades espirituais e materiais da população camponesa do Nordeste. Suas ilusões místicas, construídas por séculos de cultura religiosa lhe conduzem a uma certa cumplicidade com o domínio do mal, representado pelo Diabo, enviado do todo-poderoso Lúcifer. Foram precisos muitos decênios de sofrimento e de desesperança para que esses seres simples que são os camponeses corram o risco de cair no abismo do Inferno, de certa maneira, de vender suas almas ao Demônio, esperando resolver suas dificuldades agrícolas, isto é, alimentares.E essa aventura perigosa que nos conta, não sem inquietações, o famoso José Costa Leite, no folheto O Diabo e o camponês (56). Na verdade o poeta pede desculpas por narrar esta história que, segundo ele, foi inspirada por Deus:

Sou poeta popularjá que Deus assim me fezcom o dom de fazer versos

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vou descrever desta vezo folheto intituladoo Diabo e o Camponês. (57)

Não é a culpa do poeta se ele vai "descrever o folheto", pois que ele tem o dom (divino?) de fazer versos. Ele se acha na obrigação de contar esta história, de testemunhar diante da opinião pública. Aliás, é interessante remarcar a formulação dos versos: "Vou descrever desta vez o folheto intitulado". Isto revela a concepção dos poetas populares sobre o significado do vocábulo folheto, este instrumento escrito da literatura de cordel. Ele é concebido como uma história, um fato, que eles ouviram falar, ou que conhecem, isto é, viram.Do mesmo autor, estudaremos também o folheto O sanfoneiro que foi tocar no Inferno. Contrariamente à história anterior, desta vez se trata de alguém que faz uma pequena viagem além-túmulo. O objetivo é menos dramático que o da história do camponês, mas, assim mesmo, a personalidade enganadora do Diabo é posta em cena, o qual passa sua vida a complicar o caminho das boas almas sertanejas. Bem entendido, o poeta resguarda a sua responsabilidade, como no primeiro folheto, senão vejamos:

� 137 -� Deus é grande e poderosoo seu poder é eternoconfiando nele eu traçoneste pequeno cadernoa história do Sanfoneiroque foi tocar no Inferno. (59)

Eis que o poeta traça, desenha, no sentido de escrever, num pequeno caderno, a história de um tocador de sanfona que um dia foi ao Inferno, conduzido por um Diabo, encarnado em um negro. A assimilação do Diabo aos tipos de raça negra é um hábito (60). Vejamos como se passou o encontro do sanfoneiro com o Diabo:

Num 24 de Agostodia de S. Bartolomeu. (61)

A referência a S. Bartolomeu indicaria a fé católica do poeta? Ele insiste sobre o dia desse santo, apoiado pela mãe do sanfoneiro que tentava convencer seu filho a renunciar ao seu projeto:

A velha disse: meu filhohoje é dia de invernoe é 24 de Agostoouça o pedido maternoaonde vai tocar hojeele disse: no inferno! (62)

As condiçoõs meteorológicas não são as mesmas em todos os continentes. Na Europa e regiões do hemisfério Norte é costume se dizer a noite de S. Bartolomeu. No sertão do Ceará diz-se o dia, que, aliás, coincide com o inverno tropical. A velha, convencida da decisão de seu filho, talvez já sob a influência diabólica, faz apelo a nomes e símbolos místicos para esse tipo de ocasião.

Ela disse: credo em cruzmisericórdia, S. Braz (63)

E o filho responde:

hoje eu tocoaté para o satanaz. (64)

Nosso sanfoneiro parte furioso e não tarda a encontrar o que procurava:

Com meia hora depoisele avistou um negrãoescanchado n'um cavalopreto da cor de carvão. (65)

Notemos que o poeta insiste cada vez mais sobre o qualificativo que representa o Diabo e seu cavalo: "preto cor de carvão". Esta observação é válida para todo o folheto no qual o Diabo é chamado negro ou negrão. Em todo caso, ele começa a traçar a personalidade enganadora, astuciosa do representante de Satã, utilizando uma linguagem bastante familiar nos sertões em geral, o que facilitará a comunicação com o sanfoneiro, sem provocar desconfianças:

- 138 -

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Ele avistando o negrode nada desconfiouo negro disse: rapazagora mesmo eu vouprocurar um sanfoneiroque o povo, em casa mandou. (66)

Eis uma expressão bem familiar para designar a família e os próximos: "o povo". E para reforçar a familiaridade "em casa mandou". (67).O diabo já se sente vitorioso: “Vai dar certo pra danado”. (68)Como vimos anteriormente, a linguagem nordestina apresenta certas contradições, ou curiosidades. O emprego do vocabulo danado é um exemplo interessente. Habitualmente a palavra significa uma ação ou coisa diabólica, amaldiçoada, pertencendo ao campo semântico de tudo que é negativo, maldito. Na linguagem popular da região, entretanto, ele é empregado num sentido positivo, isto é, como uma espécie de superlativo: “é bom pra danar”, “é danado de bom”, “este é danado de quente”, etc. O poeta Costa Leite utiliza os dois sentidos; vejamos já o negativo:

E quando Sebastiãojá se achava montadona garupa do cavalosentiu um mau cheiro danadode enxofre e creolinaque ficou desconfiado. (69)

Um pouco depois, no sentido positivo, um grau superlativo de velocidade:

Subindo serra e descendonuma carreira danada. (70)

Com relação ao estranho cavaleiro, parece que Sebastião, o sanfoneiro, tenha começado a se desconfiar; trata-se de alguém esquisito. A indicação da distância e a velocidade do cavalo confirmam a sua desconfiança, mas agora ele não pode mudar de ideia: "daqui lá são seis mil léguas / mas eu chego em meia hora". (71)Um grande mistério persiste para saber aonde ele vai. Mesmo Dante, que traçou um plano arquitetural do Inferno, nunca precisou o local exato por onde se possa entrar. Isso é um mistério. (72) Nosso poeta de cordel segue, pois, a tradição na matéria:

Disse o negro: feche os olhospor dois minutos somenterapaz fechou os olhose quando abriu novamenteviu que haviam chegadoem um lugar diferente. (73)

- 139 -O acordeonista não tem mais dúvidas. Não é um sonho nem uma visão. Ele está, em carne e osso, no outromundo. Suas palavras iniciais, ditas sem pensar, transformaram-se em realidade. Ele consegue, assim mesmo, descrever a aparência e a frequentação do lugar "era um palácio escuro". Esta descrição entra no campo semântico da cor preta, pois escuro é a ausência de luz, e por isso propício à habitação dos diabos, que eles mesmos são "negros".

Já agora começamos a nos convencer de que na concepção da poesia popular a vida do além-túmulo, em espécie do Inferno, constitui uma simples continuação da vida terrestre; apenas uma mudança de cenário. Senão, vejamos os versos seguintes:

Era um palácio escuroe o rapaz foi mandadoa um grande salão de dançaaonde era esperadopara tocar na sanfonaum frevo quente e queimado. (74)

Um grande baile é organizado no Inferno, numa sala de dança. Um Diabo é enviado à Terra, seis mil léguasde distância, para ir buscar um sanfoneiro. Este vem ao Inferno, em carne e osso, com sua sanfona bem material, para animar a festa. O baile é bastante animado, com mais de mil pessoas que, apesar de estaremmortas, condenadas a viver num tal lugar, não abondonam seus hábitos terrestres de distração. O poeta, pela voz do sanfoneiro Sebastião, descreve como se passou o baile, com detalhes musicais e coreográficos, e sobre os convivas. Algumas expressões linguísticas são interessantes a ressaltar, elas revelam uma certa influência urbana, mesmo estando ligadas ao falar rural, mais natural para a literatura de cordel.Vejamos antes o tipo da música pedida pela assistência: "um frevo quente e queimado". O frevo, como se

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sabe, é a música tradicional e viva dos carnavais do Nordeste, de origem recifense, Pernambuco (75). Ele deve ser “quente e queimado" ao mesmo tempo. Trata-se de uma metáfora, bem entendido, pois o frevo já é naturalmente "quente" quanto à vivacidade, virilidade, movimentado e muito rápido. Pode-se supor que, sedeve ser queimado, seria mais apropriado dizer frevo endiabrado, diabólico. É, sem dúvida, a intenção do poeta: “só se ouvia a zuada / dos sapatos pelo chão”. (76)Pode-se mesmo pensar que, nesse Inferno, as pessoas têm um bom nível de vida. Parece que todos estavam calçados, visto a zuada (77), o barulho feito pelos sapatos batendo no chão. O sanfoneiro diz que o salão era iluminado e ele estimou o número de participantes graças à zuada dos calçados: sapatos, botas,chinelos:

- 140 -Era a maior gritariadentro do arrasta pée a negrada gritava:manda brasa, atola o pécatuca pra ver se vai. (78)

Vejamos algumas explicações sobre certas palavras: “arrasta-pé” é uma onomatopeia que significa dança, formada pelo barulho ritmado dos pés dos dançadores; “manda brasa” convém muito bem ao local da festa que se passa no Inferno, aparentemente a 6 mil léguas de distância, o que, geograficamente, já não pode ser localizado no Nordeste (6 mil léguas é igual a 36 mil quilômetros), é uma expressão da gíria carioca, do Rio de Janeiro, pois que quer dizer força, animação, entusiasmo, etc. É como a expressão “atola o pé”, que significa também muito dinamismo da música e dos dançarinos. A forma verbal atola corresponde normalmete à terceira pessoa do verbo atolar, de origem rural; ele representa as pessoas que andam nos caminhos encharcados dos campos, cheios de lama, no período das chuvas. Nos versos que estudamos, tem um outro significado, de origem motorizada, isto é, apoiar a fundo o acelerador do automóvel para que ele corra mais rapido, de origem urbana. A seguir temos a palavra catuca, terceira pessoa de catucar, isto é,beliscar, fazer cócegas ao perceiro ou parceira de dança. Na nossa estrofe, é uma ordem também ao sanfoneiro, que deve catucar os teclados da sanfona com bastante animação e rapidez. Esta ideia é confirmada nos versos seguintes:

Puxa o fole sanfoneiroemburaca empurra o dedoe seja muito ligeirodeixe a sanfona gemerque o meu pé é maneiro. (79)

Mais duas palavras merecem comentários, pois o contexto linguístico que escolheu nosso poeta Costa Leiteé bem característico dos forrós nordestinos. Mais uma vez na Terra ou no Além, as coisas se passam da mesma maneira. O vocábulo emburaca, terceira pessoa de emburacar, fazer um buraco. No folheto quer dizer a mesma coisa que as palavras anteriores: entusiasmo, força, vivacidade; tudo isso para esquentar o sanfoneiro. Em seguida, vem o adjetivo maneiro, que quer dizer leve, de pouco peso. Na festa do Inferno, e de outros lugares, quer dizer simplesmente alguém que dança bem.Como dissemos antes, trata-se de um vocabulário com certa influência urbana, mas que está ligado ao meio rural, com uma certa dose de vulgaridade, antes que popular, no sentido tradicional da poesia de cordel. O poeta Costa Leite, aliás, dá provas sempre de dominar esses falares espalhados no Nordeste, campos e cidades confundidos. Os versos atuais são uma prova a mais de sua versatilidade. Eis porque fazemos esses comentários linguísticos ao longo deste capítulo, a fim de melhor situar os personagens no meio ambiente sertanejo, como esse sanfoneiro tão típico e essa figura de Diabo (ou diabos) tão contraditória.

- 141 -Um pouco mais de paciência para algumas expressões da linguagem onomatopaica destes versos relatados pelo sanfoneiro Sebastião.“ Era o maior rela bucho.” (80) “Rela bucho”, expressão de origem gestual e sonora. Rela vem do verbo ralar, mudado para relar, cujo significado é raspar; bucho é como barriga, isto é, ventre. Quando a gente dança, os ventres, as barrigas dos parceiros se tocam, se raspam, se relam provocando um pequeno barulho surdo e ritmado.Finalmente, com respeito à descrição desse famoso baile no Inferno, contado por um sanfoneiro sertanejo, notemos que nem a língua francesa escapou ao "festival" linguístico do poeta Costa Leite: “era o maior rela bucho e dentro do fuzuê”. (81). Fuzuê, fuzarca, festa, confusão, briga sem feridos graves, animação com muito barulho. Como hipótese de trabalho, podemos admitir que o vocáulo fuzuê poderia ser uma deformação do verbo francês fuser, que quer dizer fundir, dissolver, difundir, arder sem explodir, que não estaria muito longe do significado de fuzuê, festa, etc. Lembremos, por exemplo, que a quadrille, dança de origem francesa, é muito respaldada no Nordeste, desde o século XIX, e seus passos e sua coreografia sãodados numa mistura de francês e português, ou talvez de um francês abrasileirado.Agora, vamos abordar o ponto crucial do folheto, ou melhor, atingimos o aspecto moral ou espiritual da história. Utilizando o estilo narrativo, como na Divina comédia (82), é o poeta popular, ele mesmo, que contaesta parte da viagem ao Inferno, colocando-se mesmo como testemunho de certos acontecimentos:

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O Sanfoneiro perdidoavistou uma prisãoaonde viu muita gentena maior lamentaçãochorando, dando gemidoe viu até um irmão. (83)

Eis que se anuncia o lado desagradável da viagem ao Inferno. Não se pode viver só de festas e de fuzuês. As pessoas choram e gemem. O poeta cita mesmo uma prisão. Pensávamos que o Inferno era em si mesmo uma grande prisão, mas não. O poeta narrador deixa entender que, mesmo lá embaixo, há certas categorias de pessoas que são privadas de liberdade. Mas o mais fantástico é o último verso, onde ele diz: “E viu até um irmão”. Não foi o poeta que viu, foi o sanfoneiro. Isso parece que não o surpreendeu muito. Mas o importante é a concepção apresentada por nosso poeta popular contemporâneo no sentido de que o Inferno pode ser visitado por “pessoas vivas”, como, aliás, na época do poeta florentino Dante Alighieri.

- 142 -O irmão disse: meu manoque estás fazendo aquí?tu vieste aqui em vidaeu vim depois que morriisto aqui é o infernocheguei nunca mais saí. (84)

Eis um verdadeiro desafio aos teólogos: poderá alguém ir vivo ao Inferno, encontrar e falar com alguém quepara lá foi depois de morto? Não estamos certos da resposta dos teólogos ou dos "infernólogos". Mas o certo é que os poetas respondem afirmativamente. A cena descrita por nosso poeta narrador é eloquente, é a prova.Os poetas populares não somente contam histórias de pessoas de carne e osso que foram ao além-túimulo,mas puderam dar um salto ao Céu. Somente eles não explicam como se pode ir e voltar. Entretanto, eles nos dão alguns conselhos, menos egoístas, portanto, que o colega Dante Alighieri:

não fique prisioneironão coma comida algumae nem aceite dinheiro. (85)

Pensamos que o poeta Costa Leite continua fiel a certos preceitos morais e alimentares, talvez uma maneira de evitar a corrupção que, em certas ocasiões, pode levar ao pecado. Mas ele não nos indica o caminho, a estrada de volta do Inferno. Como já vimos, esse poeta é um verdadeiro especialista de questões místico-religiosas. Os temas bíblicos, as crenças apocalípticas do fim do mundo, são tratados regularmente em seus numerosos folhetos (86). Não é surpreendente que ele se interesse também pela vida no Inferno. Histórias como O sanfoneiro que foi tocar no Inferno ou O Diabo e o camponês são apenas a transposição em linguagem e em trama aceitáveis pelo leitores e ouvintes dos sertões da crença e dos preceitos cristãos, dos quais ele parece estar convencido. Ao mesmo tempo, podemos pensar que suas recomendações para sair do Inferno são apenas uma forma de dramatizar suas poesias, segundo a fantasiade poeta e contador de histórias. Ele vai mais longe. Como nos conselhos tipo lições de moral:

O rapaz viu no Infernomoça quente sacodidaque usa saia ligadae mulher casada enxeridaque atraiçoa o maridoe usa calça comprida. (87)

E mais adiante: “quem rouba em peso e medida / quem só vive em cabaré.” (88)

- 143 -Corajoso, nosso bardo denuncia crimes contra a economia popular, mas também os homens que vão aos cabarés, esses locais condenados.Curioso é que, apesar dos preceitos religiosos de igualdade entre os seres humanos, o Inferno, nestes versos, parece ser visitado mais pelas mulheres:

Mulher feia e ciumentaque aperreia o marido. (89)

Que tenham cuidado:

Mulher que engana o maridochegando lá, Lúcifermonta no seu espinhaço. (90)

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Eis que as condenações atingem mais o sexo fraco. Tratar-se-ia de reminiscências bíblicas com respeito ao sexo feminino ou, simplesmente, o reflexo terrestre de uma sociedade machista talvez predominante no Nordeste do Brasil? (91). O poeta que nos transmite as impressões do sanfoneiro Sebastião desde seu reterno do Inferno nos dá uma informação muito curiosa sobre a infidelidade conjugal. Segundo vimos nos versos anteriores, "mulher que engana marido / chegando lá, Lúcifer / monta no seu espinhaço". Mas, para o sexo forte, a coisa é diferente:porém já não é pecadomarido enganar mulher. (92)

Como se vê, esses versos populares sintetizam perigosamente, mas talvez de maneira realista, uma sociedade misógina na qual a preponderância masculina seria ainda a linha dominante. Será ainda a situação que prevalece no Nordeste atual? Não podemos responder neste trabalho, pois desviaríamos muito do seu objetivo.No entanto, é interessante observar, assim mesmo, que poetas populares, tão impregnados das ideias místico-religiosas, como é o caso de José Costa Leite, considerem necessário transpor este dogma da imunidade e da preponderância do sexo masculino mesmo na vida do Além. Os conselhos de boa conduta dados pelos poetas de Cordel se dirigirão apenas ao sexo feminino.

- 144 -(56, 57) - LEITE, José Costa. O Diabo e o camponês, edição do autor, Condado (Município do Estado de Pernambuco).58-59 - LEITE, J. Costa. O sanfoneiro que foi tocar no Inferno. p. l.60 - Ver capítulos anteriores.(61, 2 e 3) - LEITE, J. Costa. O sanfoneiro que foi tocar no Inferno, p.1. Na memória popular dos sertanejos e pessoas do campo, O dia de S. Bartolomeu é muito perigoso.64 - Id. A literatura de cordel segue a tradição que identifica o mal na figura de Satã e seus parceiros. Mas, ao mesmo tempo, achamos contraditório que esse personagem e seus derivados sejam um dos temas maispopulares na poesia popular do Nordeste.65/6 - LEITE, J. Costa. O sanfoneiro que foi tocar no Inferno, p.2.67 - Povo, meu povo: a família, minha família.68/71 - LEITE, J. Costa. O sanfoneiro que foi tocar no Inferno, p.3.

(72) Vejamos o que disse Dante, sobre a entrada e o caminho do Inferno:"Au milieu du chemin de notre vie Je me retrouvai dans une forêt obscure, égaré hors de la voie droite""Je ne sais bien dire comment j'y entrai tant j'étais plein de sommeil à ce point" - In: ALIGHIERE, Dante. l' Enfer, Chant. I.Seu tradutor em francês diz que: "Le lieu de la scène nous est inconnu, nous ignorons où se trouve cette forêt."MASSERON, Alexande. Pour comprendre la Divine Comédie,édition Desclés De Bower, Paris, 1939, p. 5.(73, 74) - LEITE, J. Costa. O sanfoneiro que foi tocar no Inferno, p.4.

- 145 -

(75) Frevo: seria uma deformação de ferver, popularmente dito “frever”.Vejamos uma descrição bastante sugestiva:"É marcial e militar (sic). Freme, se agita, se remexe como peixes ao serem fritos, ao som das marchas endiabradas". Ainda: "[...] a sensualidade carioca sopra, abranda a violência dos gestos, mas a loucura do frevo continua sempre as danças individuais dos capoeiras de outrora, diante dos bandos em balada". BASTIDE, Roger. Imagens do Nordeste Místico, em Preto e Branco. Rio de Janeiro: O Cruzeiro, 1945, p.234-5.(76) LEITE, J. Costa. O sanfoneiro que foi tocar no Inferno, p.4.(77) Zuada = algazarra, do árabe “al-gazara”. Barulho.(78/81) - LEITE, J. Costa. O sanfoneiro que foi tocar no Inferno(82) A propósito do estilo narrativo em poesia, em particular nas "viagens ao além", vejamos outro exemplo do poeta florentino e comentários de outro especialista, PEZARD, André: "Dante emploie le style narratif tout au long de son ouvrage,à exemple des premiers vers de la Divine Comédie:“Au milieu du chemin de notre vieJe me trouvai par une selve obscureEt vis perdue la droiturière voie"-DANTE: Oeuvres complètes. Traduction et Commentaires: André Pezard. Paris: Gallimard, 1965, p.883.(83/5) - LEITE, J. Costa. O sanfoneiro que foi tocar no Inferno, p. 6.(86) Eis alguns títulos de outros folhetos do mesmo autor:A vinda da Besta-Fera, A voz de Frei Damião, Frei Damião sonhou com o Padre Cícero,

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A vaca misteriosa que falou profetizando.(87/ 90) - LEITE, J. Costa. O sanfoneiro que foi tocar no Inferno, p. 6.

- 146 -

91 - Ver PONTES,W. Tenório. La Prépondérance Masculine dans la littérature de Cordel, op. cit.92 - LEITE, J. Costa. O sanfoneiro que foi tocar no Inferno, p.7.

- 147-CAPÍTULO V - O DIABO AGRICULTORNeste capítulo iremos estudar um outro aspecto das facetas do mestre Diabo, desta vez no terreno agrícola.Porém, nas páginas seguintes, faremos um retorno ao nosso sanfoneiro Sebastião, para tentar descobrir como ele saiu do Inferno.Por enquanto, trata-se de um Diabo que vem ao sertão transformado em camponês, com a intenção de conquistar a alma ou a consciência de nossos pequenos camponeses nordestinos. Para isso, ele emprega todos os seus poderes mágicos, eexplorando as dificuldades do tecido social e econômico da região. Como se diz, "ele vai pescar em águas turvas":

O diabo desceu a terrasentindo dor de barrigadizendo: vou convecê-lodo contrário; a gente brigapreciso ganhar aquelecamponês de uma figa. (93)

Para começar, notemos a novidade da expressão do primeiro verso: "O diabo desceu a terra". O poeta põe em dúvida a velha teoria que coloca o inferno no interior da Terra, como o diz o clássico Dante, na Divina comédia (94). Em nosso verso, temos a impressão de que o Inferno é colocado em lugar mais alto que a Terra, pois o narrador diz que o Diabo "desceu" à Terra.O personagem se introduziu na casa de um camponês e começou a fazer "seus milagres":

E o camponês espantadodisse sozinho consigo:– as plantações dos vizinhos morreram todas! e meu trigoestá cada vez mais verdepara o verão eu nem ligo. (95)

Parece-nos que o representante de Satã já tinha um lugar assegurado. Ele tinha conseguido ganhar a primeira parte da partida. Agora é passar à fase seguinte do projeto, isto é, desviar o camponês para o caminho do pecado. Mais uma vez o poeta segue a linha da moral religiosa.

- 148 -Bem entendido, Costa Leite é bastante apegado aos temas religiosos. Sua linguagem, seu vocabulário e a escolha de seus temas são inspirados na história e na mitologia místico-religiosa. Verifiquemos que, nesta última estrofe, ele reproduz, com outras palavras, exemplos gerais que vêm de outros continentes. Apesar de sua história se passar no sertão, seco e árido, ele indica um produto que não tem nenhuma relação com a produção tradicional da região, isto é, o trigo (96). Será por acaso? Pensamos que não. O poeta escolheu o trigo, este produto bíblico por excelência, nas terras áridas do Nordeste, para construir convenientemente a estrutura religiosa de seu folheto. Ao mesmo tempo, notemos que o emprego da cor verde, mesmo se ela tem aí um valor simbólico, demonstra o pouco conhecimento do desenvolvimento deste cereal (97). "...e meu trigo / está cada vez mais verde".Outra particularidade, desta vez linguística, do último verso: "para o verão eu nem ligo". O verbo ligar (98) autoriza várias interpretações. Aurélio Buarque de Holanda nos propõe 24 possibilidades, mas só uma se aproxima do significado que indica o poeta, isto é, o emprego do vocábulo no sentido de não se preocupar, não dar importância.Vejamos a seguir o desenvolvimento da aventura do Diabo nos campos. Satisfeito com o seu sucesso ao nível agrícola, ele prepara um terreno perigoso sobre o qual se arrisca escorregar o camponês. Os vícios sempre foram catalogados como pecados no código religioso vigente.

O Diabo transformado em homemchegou sorrir de contentedisse da sabra do trigoo sr. destile aguardenteuma bebida boafaz o povo ficar quente. (99)

É évidente que no Nordeste não se faz aguardente com o trigo, mas com a cana-de-açúcar, que há em abundância. Mas aí o poeta procura ser coerente uma vez que pôs o trigo nos campos sertanejos:

O Diabo foi no Inferno

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muito contente, talveze a Satã, rei das trevasdisse que o camponêsestava botando o povono vício da embriaguês. (100)

Eis que o Diabo camponês se refere a seu superior, "O rei das trevas". O camponês sertanejo que "vendeu sua alma" para conseguir boas safras, dinheiro e poder, encarrega-se daqui para a frente de perverter seus colegas, seus conterrâneos, "o povo". Não será difícil vislumbrar nesta história sertaneja a presença do pecado da "cobiça", da ambição. O pobre, material ou espiritualmente, vende sua alma ou seus princípios para obter recursos superiores aos de sua classe socioeconômica. Isso representaria uma infração aos costumes e ao conformismo estabelecidos pela fé e a ética religiosas. A sorte do infeliz componês é estigmatizada no acróstico final das últimas estrofes do folheto:

- 149 -Como porco e como loboO camponês inda ficou Se embriagando, brigouTerminou ficando boboAlmejando fazer roubo.

Ligeiro a alma perdeuE o Diabo conheceuInda hoje está contenteTendo o camponês na menteE tudo dele, hoje é seu. (101)

A astúcia, o logro e os poderes mágicos, talvez miraculosos, do Diabo são bem descritos nesta história. É um dos aspectos no qual as pessoas veem o Diabo. Às vezes mágico, possuidor de poderes extraordinários, "diabólicos"; é o gênio do mal (102), temido e admirado. A história do camponês é uma ilustração disso, como vários outros exemplos. O mesmo se pode dizer da história de O sanfoneiro que foi tocar no Inferno; o Diabo, astucioso e enganador, aproveita-se do mau caráter de um rapaz: "muito bruto e malcriado", que num momento de cólera, de depressão, decidiu ir tocar no Inferno. Mas, ao contrário do camponês, o sanfoneiro Sebastião teve a chance de encontrar seu irmão lá no Além, que lhe confiou algunssegredos para não ficar nesse lugar de maldição. Entre esses conselhos, observamos que não se deve aceitar dinheiro nem comida do Diabo:

comida não aceitouquando foram lhe pagarele também recusou. (103)

As razões dessas recomendações não são muito claras. Deve-se entender uma referência ao pecado da gula ou simplesmente uma precaução contra os venenos diabólicos que poderiam ser misturados à comida? Somos antes pela primeira hipótese, considerando a "queda" habitual do poeta Costa Leite pelos temas religiosos. Em todo o caso, vejamos como se desenrolou o processo de volta à Terra do nosso tocador destemido:

A meia noite em pontoquando o galo cantouo negro com o cavaloa ele se apresentouele montou na garupao cavalão embalou. (104)

O "negro" manteve a sua palavra. À meia-noite em ponto, como quer a tradição nesse tipo de histórias, no momento em que o “galo cantou”, ele se apresentou com seu cavalo maravilhoso para trazer o músico ao reino da Terra. Esses versos nos colocam o domínio do ritual.Acontecimentos desse gênero só são levados a sério se são produzidos de madrugada, a partir de meia-noite; é indispensável que o galo acorde e cante. A indicação do rei dos poleiros é o sinal da influência das práticas místico-religiosas afro-brasileiras, apesar do desprezo do poeta com relação aos praticantes dessas religiões, os quais, segundo o narrador da viagem, já se encontram no Inferno, sem direito de sair, em companhia de um persongem não muito recomendável: "sedutor e xangozeiro". (105)

- 150 -Façamos, porém, alguns comentários sobre o emprego dos vocábulos garupa e embalou. Este último está escrito entre parênteses no texto original. Quanto à garupa, é um termo comum ao vocabulário ligado ao cavalo enquanto meio de transporte. "Dar uma garupa" a alguém significa transportá-lo ao mesmo tempo noseu próprio cavalo, atrás da sela. É um uso corrente nas regiões rurais. O segundo vocábulo, empregado naterceira pessoa do imperfeito do verbo embalar, tem um significado bem particular no texto que estudamos, pois aí significa correr com grande velocidade. Normalmente, este verbo significa balançar, embalar uma

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criança. Na poesia, o emprego de embalar lembra o uso da palavra abalar, comum em Portugal, no sentido de partir rapidamente: “e quando chegou em casa / contou o que foi passado”. (106)De agora em diante, nosso poeta-narrador sai do comum. Para começar, ele nos conta a viagem verídica de um sanfoneiro ao Inferno. Nesse lugar, o sanfoneiro tocou muito, viu coisas animadas e até encontrou um irmão que tinha morrido antes (a ideia de vivos que veem e conversam com os mortos seria espiritismo e não catolicismo?). São coisas que acontecem nesse Nordeste afora. Tivemos ocasião de ver as apariçõesdo sacerdote católico Padre Cícero a certos romeiros e a seu sucessor, o Frei Damião. Mas agora a coisa é mais séria, pois o poeta popular revoluciona com suas narrações. Senão, vejamos a estrofe seguinte, a última do folheto do sanfoneiro:

Ele disse que o infernoé uma cidade asseadaLampião é o prefeitoe fez praça ajardinadaestá fazendo o calçamentoe já tem água encanada. (107)

Por uma vez, o poeta popular é um verdadeiro porta-voz dos "sonhos reais" das populações do interior do Nordeste. Não são mais as transposições do romanceiro medieval europeu para um meio ambiente brasileiro, não é mais o ideal judeu-cristão, nem a mística-religiosa propagada pelas palavras e ações de iluminados que percorrem os sertões. Agora, o poeta ataca ou reproduz o real, o concreto; ele descreve um lugar, uma cidade limpa, jardins verdes, ruas calçadas, água encanada. O conforto moderno, pois. É o intérprete e o reflexo, na linguagem da poesia de cordel, das reivindicações de decênios das populações do interior. O poeta popular se faz o porta-voz das aspirações das populações urbanas e mesmo rurais diante dos administradores e políticos. Mas, como não está completamente convencido da eficácia de suas reivindicações, embora justas e necessárias, ele reforça seu apelo, invocando o nome, o patrocínio poderoso do mais prestigioso e temido herói do sertão, o Rei do Cangaço, Lampião. Não é grave que ele seja morto e só esteja no Inferno, pois ele é poderoso, e seu exemplo de bom administrador deve ser imitado:

- 151 -“Até luz de Paulo Afonso.”(108) “Lampião já quer botar.” (109)Eis aí o grande "sonho" dos anos 50 em todo o interior nordestino: "...luz de Paulo Afonso". A força e a luz da hidroelétrica de Paulo Afonso. Dois heróis, duas vaidades do Nordeste se reúnem: Lampião e a cachoeira de Paulo Afonso.E, para provar a força e o poder de Lampião, nosso poeta popular acrescenta:Com a filha de Lúciferbreve ele vai se casare no dia do casamentoele quer inaugurar. (110)

Lampião, genro de Lúcifer e, por que não, seu sucessor no reino de todos os infernos. Aquele que foi o “Rei do Cangaço”, o “Imperador dos Sertões”, não hesitará. Ele está pronto para afrontar todas as lutas e guerras para conquistar esse posto. Veremos nos capítulos seguintes, sua entrada e suas presepadas nas profundezas do inferno.

- 152 -93 - LEITE, J. Costa. O Diabo e o camponês, p.5.94 - Sobre o centro do Inferno, não podemos deixar de lembrar os versos e a concepção do genial poeta de Florença, pensando, ao mesmo tempo, nos nossos poetas populares. Vejamos alguns versos de Dante ecomentários de André Pézard: "Dante: […] descendo tao baixo, até as entranhas, em cujo centro, o Inferno onde aceitou descer Beatriz, e nessas entranhas da terra, centro do sistema do mundo, empíreo que abraçatudo, sem limites. In: ALIGHIERI, Dante. Obras completas, p. 893..95 - LEITE, J. Costa. O Diabo e o camponês, p.7.96 - A referência ao trigo nas terras secas e áridas dos sertões é curiosa, pois esse produto não figura na lista de produções agrícolas da região. Vejamos como se pronuncia um geólogo, especialista e conhecedor das terras sertanejas: "As condições são radicalmente diferentes no Nordeste semiárido onde a caatinga (floresta branca) é uma associaçao completa xerofítica. A maior parte das árvores, raquíticas e de tamanho medíocre, não têm pequenas folhas cinzentas no período das chuvas […]. Todas são espinhosas e lenhosas. A vegetação é esparsa sobre um solo quase inexistente". Pierre Monbeig. Le Brésil. Paris: P.U.F.,1968, p. 20.97 - Mais uma vez o trigo é citado, embora com uma indicação da cor verde quando, em realidade, o trigo apresenta uma cor amarelo-ouro.Talvez o verde indicado pelo poeta simbolize a vitalidade e a força que demonstra atualmente esse camponês, ajudado pelo "Diabo-agricultor".

98 - Novo Dicionário Aurélio, l. ed.99/101 - LEITE, J. Costa. O Diabo e o camponês..102 - A cada momento vemos ressaltados aspectos diferentes e contraditórios do Demônio. Aqui, é o

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gênio do mal que aparece, segundo as teorias antigas do bem e do mal, representadas pelas qualidades míticas desse personagem.103/4 - LEITE, J. COSTA. O sanfoneiro que foi tocar no Inferno.

- 153 -105 - Xangozeiro: aquele que pratica o xangô, culto afro-brasileiro. Xangô é um dos orixás (divindades) dos mais poderosos, em relação aos relâmpagos e ao fogo. Ele equivale, ao mesmo tempo, a S. Jerônimo, Santa Bárbara e ao Arcanjo Gabriel, do culto católico. As referências aos cultos afro-brasileiros pelos poetasde cordel são raras; vemos aqui já uma influência urbana, das costas brasileiras. Ver: Edison Carneiro, Candomblés da Bahia; e Roger Bastide, Imagens do Nordeste, em Branco e Preto.106/7 - LEITE, J. Costa. O sanfoneiro que foi tocar no Inferno.108 - Dada a enorme importância do Rio São Francisco e da Cachoeira de Paulo Afonso para o Nordeste em geral e em particular para os sertoes áridos, assunto aliás tratado abundantemente pela literatura de cordel, pensamos ser interessante transcrever o texto seguinte: “A moda foi na época a planificação de imensas bacias fluviais nas regiões áridas; o Brasil sacrificou com entusiasmo toda a parte meridional do Nordeste seco constituindo esta bacia do São Francisco, denominado pelos brasileiros como ‘o rio da unidade nacional’, de tal maneira ele participou na história do povoamento da região. Em virtude de sua posição geográfica ele constituíra um novo polo da Federação nacional. Uma Comissão do Vale do São Francisco recebeu a missão de fazer desse imenso vale, não mais uma dolorosa estrada de migrações, mas um eixo de povoamento sólido […]. Duas enormes barragens foram construídas, para baixo, a de Paulo Afonso e, para cima, a de Três Marias em Minas Gerais, e outras barragens nos afluentes menores no curso dos afluentes (…) A ressureição de toda essa grande região se constituíra de centros metodicamente dotados de escolas, hospitais, lojas e armazéns entre Pirapora e a usina de Paulo Afonso, região cuja extensão representa mais de 1200 quilômetros de Sul a Norte". LANNOU, M. LE. Le Brésil. Paris: Armand Collin, 1955, p.93-94.109/110 - LEITE, J. Costa. O sanfoneiro que foi tocar no Inferno.

- 154CAPÍTULO VI: O INFERNO É TRÊS VEZES MAIOR QUE O MUNDO

Como estamos constatando, a visão do Inferno dos poetas populares do Nordeste é bastante dinâmica. À concepção teológica de tristeza, de sofrimentos e de escuridão, a poesia popular opõe a noção de vida real,de uma certa alegria, de claridade e animação. Mas, como se trata de Inferno, seria melhor pôr esses adjetivos entre parênteses. Mas os poetas nos "cantam" a vida do Além com uma tal vivacidade que somos obrigados a tratar normal e corretamente a descrição e a análise de suas narrações. Deve-se ver com naturalidade tudo o que é concebido naturalmente. O mundo terrestre e o Além fariam parte do mesmo conjunto? É a impressão que temos depois da leitura dos folhetos de cordel. Senão, vejamos, as aventuras eleitorais do herói dos sertões, o cangaceiro Lampião, que empreende uma campanha eleitoral com vistas ao controle do Inferno, num estilo bem democrático e ao mesmo tempo na tradição nordestina:

Um cabra de Antônio Silvinopor nome de Zelaçãomorto 24 anosbaixou em uma sessãocontou um drama modernodizendo que no infernoestava em revolução. (111)

Para começar, o folheto faz apelo ao rito das sessões espíritas para contar sua história. A referência ao espiritismo parece puramente ritual não implicando conceito religioso. Trata-se, sobretudo, de um drama moderno e revolucionário. Essas duas categorias, aliás, integram satisfatoriamente a tradição da vida social e política da região, pelo menos no que concerne o título do folheto: A eleição do Diabo e a posse de Lampião no Inferno. À primeira vista, existe aí uma contradição. Um é eleito, porém, é o outro que é empossado! A democracia tem suas particularidades. Veremos como essa contradição se realiza no Nordeste. Talvez o problema não seja propriamente infernal. A legislação e as práticas eleitorais são muito diversas por todos os lados. Mas fiquemos na interpretação de uma realidade histórica feita pelos modestospoetas populares brasileiros. Aliás, eles não são os únicos a colocar no Além a crítica de comportamentos de uma sociedade real, atual. Para não diversificar muito nossos parâmetros de comparação, lembremos a genial Divina comédia, na qual o clássico Dante tanto criticou e estigmatizou personagens e costumes da sociedade italiana de sua época.

- 155 -Nosso poeta anônimo passa facilmente do rito espírita, que pretende pôr em comunicação os mortos com pessoas vivas, por intermédio de outras pessoas mais dotadas espiritualmente, os médiums, a um outro rito mitológico, o qual assegura a renovação eterna da vida: à morte, sucederia uma outra vida, e assim sucessivamente (112).

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Dizendo: lá no infernoninguém termina a quinzenahá grande revoluçãotem morrido tanto cãoque quem ver contar faz pena. (113)

Como é natural nas revoluções, há muitos mortos. Isso não é muito lógico, pois se trata da morte "de muito cão". Ora, em princípio, os diabos e os outros pensionistas do Inferno já estão mortos. Nesse caso, trata-se de uma segunda morte, que será seguida de uma outra vida, etc. É o ciclo mitológico do eterno renascimento.Aqui, abrimos um rápido parêntese a título de curiosidade linguística, para reproduzir alguns nomes de Diabos que foram mortos em lutas eleitorais:

Morreu Gambeta e TraçaioCapataz e FormigueiroParafuso e Quebra RossoCoxo Cascudo e CangeiroCotó Capado e PontinhaCanela suja e CanuguinhaSirigaita e Cachimbeiro. (114)

A lista dos diabos é grande. Nós já observamos a importância desses personagens, espécie de gênios do mal, quando tomamos conhecimento de uma peleja entre um cantador de viola e um Diabo, no capítulo II. Era um combate entre o bem e o mal, este simbolizado, como de hábito, por um demônio, enviado de Satã.No atual folheto, trata-se de um combate entre duas potências do mal, que disputam o governo do Império do Mal, o Inferno:

Deu-se esse grande desastreno dia da eleiçãoSatanaz no trono delefez uma reuniãoquando Capataz falouo juiz candidatouLúcifer e Lampião. (115)

Eis que tudo segue o rito democrático, nessa espécie de paraíso infernal: a reunião, o juiz eleitoral e os candidatos. Esses personagens praticam um ideal de vida social que eles não puderam viver em suas primeiras vidas na Terra. Passemos, porém, ao resultado da eleição:

- 156 -Todos diabos votaramno dia da eleiçãocontaram todos os votosno fim da apuraçãoLampião ganhou 500Lúcifer ganhou 600e cincoenta e um milhão. (116)

Bem entendido,o autor adapta o resultado da eleição a uma necessidade do ritmo e da rima de seus versos.Parece que Lampião ganhou 500 milhões de votos, e Lúcifer, 650 milhões. A eleição é favorável então a este último, que tem 151 milhões de votos a mais. Não há problemas. Lúcifer é eleito democraticamente. Mas não esqueçamos que estamos no Inferno (ou no Nordeste?).

Lúcifer gritou alegre / daqui eu sou pretendente. (117)

Diríamos que o jogo democrático não interessa mais:

Lampião disse: molequenão seja tão indecentecom macho não tenho carinhometeu-lhe a mão no fucinhoque quebrou dente por dente. (118)

A violência se instala. O valente Lampião, nordestino típico, não poderia reagir de outra maneira. A palavra mitológica macho é pronunciada. Derrotado segundo as leis da democracia, ele recorre à lei do sertão, a força. E a luta, a peleja, explode. Insistimos que o racismo continua no que concerne à assimilação do Diabo às pessoas de raça negra: moleque é a denominação muito pejorativa utilizada para designar as pessoas indesejáveis, inferiores e, bem entendido, de cor negra. A seguir, o poeta anônimo narra uma enorme briga entre Lampião e as tropas de Satã, todos os tipos de diabo participaram da batalha infernal. Mas o Rei do Cangaço vai impor sua força e superioridade. Rei dos Sertões, ele será o Prefeito do Inferno.

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Os poderes materiais e os mistérios de Lúcifer não chegaram para mudar o destino de Lampião. Ele vai escrever no caderno as suas decisões, leis e decretos:Lampião disse: negradahoje a porca torce o rabona vida materiallutei que quase me acabohoje boto no cadernoque dentro deste infernonão fica nem um diabo. (119)

Observemos ainda a referência à primeira vida do herói, na vida material. Ele confirma que lutou muito e, nessa segunda vida, continuará a lutar para preparar um lugar à sua medida; talvez um Paraíso: expulsão de todos os diabos, dos maus elementos, da oposição.

- 157 -Enfim, o grande Lúcifer, como um general civilizado, habituado às leis da guerra, abdica de seus direitos e poderes:

Chamou Lampião e disseamigo eu vou lhe dizerpor mim a questão está findatome conta do podereu já jurei no cadernoque o trono do infernoquem determina é você. (120)

Lampião é reconhecido como Prefeito do Inferno, homem superior, predestinado, sem dúvida. Ele impõe a sua lei e expulsa os malfeitores:

quero que vocês conheçameu como superiorquem falar vai pra tabicano inferno aqui só ficadiabo trabalhador. (121)

Trata-se talvez de uma coincidência, mas todos os folhetos relativos aos personagens excepcionais do Nordeste, como Padre Cícero, Antônio Conselheiro e agora Lampião, fazem a apologia ao trabalho. Os messias do sertão, em nosso mundo ou no além-túmulo, não negligenciam os aspectos da produção material. Talvez, para a construção de um paraíso, seja preciso pessoas produtivas e superiores. Aliás, é o que nos conta o poeta, por intermédio de Lampião que, após sua vitória, vai fazer uma verdadeira limpeza de todos os elementos considerados indesejáveis: “expulsou diabos que encheram / 70 mil caminhão”. (122)

Pegou as almas dos crentesos espíritos macumbeirosas almas dos amancebadosos zumbis dos feiticeirosdisse essas almas à toavou mandar pra Alagoaspra casa dos catimbozeiros. (123)

É claro que Lampião quer construir um verdadeiro Paraíso no Inferno. Isto contradiz totalmente as noções seculares sobre esse local, se nos limitamos à noção imediata desses vocábulos. Mas é preciso ir mais longe. É pena que este folheto não indique a data da sua edição, pois poderíamos estabelecer um paralelo entre o golpe de Estado do Rei do Cangaço no Inferno e a situação político-social vigente no Brasil depois de 1964. Não seria impossível que o poeta popular, aliás anônimo, tenha querido mostrar a situação imposta pela força ao país, simbolizada pelo reino fantástico de Lampião no Inferno. Expulsando ou eliminando todos os elementos indesejáveis, ou “subversivos” (?), Lampião criará um Inferno de pessoas puras,

- 158 - na sua maneira de apreciar. Observamos também nesses versos a noção de banimento, de exílio, pelo fato de que milhares de almas, de diabos, sãoexpulsos, enviados extramuros, espalhados em todas as direções da Terra:

Soltou 6 mil em Bezerros4 mil em Camucim1100 mil em Jaburu10 mil em Caruaru

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o resto em Belo Jardim. (124)

Trata-se de localidades distantes do centro ou das capitais. Além disso, ele designa de maneira discriminatória antigos maus elementos como agentes do Estado-Inferno, mesmo para cargos que normalmente deveriam ser eleitos:

Gambeta é o delegadoSatanaz é o prefeitoCouxinho é o promotorCapataz o senadorLúcifer juiz de direito. (125)

Tudo é perfeitamente organizado. Todo o corpo institucional da nação é constituído. O Paraíso funcionará às maravilhas, ainda mais que não haverá o elemento popular, o povo, pois os indesejáveis foram banidos, espalhados para todos os lados. E, para obter "sua sociedade perfeita", Lampião organizará uma sociedadede elite:

Só tem vaga no infernopra homem capitalistacomo bem para doutormecânico e aviadorengenheiro e motorista. (126)

E, como se a política do novo soberano infernal não fosse explícita, nosso poeta acrescenta:

Mas deste pessoal abaixonão aguento desaforotrabalhador de alugadomulher que possui namoradoeu já tirei do cadernosó entra no meu infernoquem tiver dente de ouro. (127)

O ouro, naturalmente, é o símbolo da riqueza e de boas qualidades. Vimos na estrofe precedente que a primeira qualidade para entrar no Inferno-Paraíso é ser homem capitalista. Em contrapartida, o reino é interdito, antes de tudo, ao trabalhador alugado, isto é, assalariado.Como dissemos na introdução deste trabalho, a noção tradicional de Inferno é muito controvertida pelos poetas populares. Admitindo que o autor tenha desejado apresentar e criticar a situção vigente no país, depois de 1964, ele o situa no Inferno, recentemente povoado por uma certa elite, ou pessoas escolhidas, da linha justa.

- 159 -Essas pessoas, normalmente, deveriam ir para o Paraíso, mas, para confirmar sua visão do mundo, ou do seu mundo, como diria Mircea Eliade (128), nosso poeta anônimo, pela voz de Lampião, instala-se na sua utopia universal: “Vou fabricar esse inferno / 3 vezes maior que o mundo.” (129)

- 160 -111 - A eleição do Diabo e a posse de Lampião no Inferno. Na capa do folheto está indicado: João José Da Silva, editor-proprietário. Trata-se, pois, de uma obra comprada cujo autor é desconhecido.112 - ELIADE, Mircea. Aspects du mythe. Paris, Idées Gallimard, 1963. Ver em particular o capítulo III: "Mythes et rites de renouvellement".113/127 e 129 - A eleição do Diabo e a posse de Lampião no Inferno.(128) - ELIADE, Mircea. op. cit., p.56-57: "Le monde est toujours notre monde, le monde où l'on vit".

- 161 -CAPÍTULO VIIFUTEBOL NO INFERNOConhecemos bem a paixão dos brasileiros pelo futebol. O sangue esquenta, os espectadores exultam e os estádios vibram na euforia popular a cada encontro futebolístico. O povo do Nordeste não faz exceção a essa alegria brasileira. E os poetas brasileiros, noblesse oblige, não podem ignorar essa realidade. José Soares se qualifica de poeta-repórter e, por isso, especializado mais ou menos nos temas e acontecimentosda atualidade. Morando em Recife, capital de Pernambuco, ele dispõe de todos os meios de informação para estar a par da atualidade nacional e internacional. A imprensa, o rádio e a televisão estão à sua disposição. Conhecemos vários de seus folhetos sobre a atualidade (130). Isso não quer dizer que este poeta "se urbanizou" completamente. É verdade que ele dispõe de uma boa bibliografia relativa aos temas

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modernos, mas, do ponto de vista da linguagem, das ideias e dos sentimentos, ele resta como os demais colegas, bastante ligado à temática e a conteúdos tradicionais. A origem rural do nosso poeta-repórter tem asua significação. Poderíamos dizer, talvez, que se trata de um poeta popular um pouco especial. Conhecemos já neste nosso trabalho um outro poeta popular de tipo especial, pelo menos quanto ao nível cultural e profissional. Falamos do poeta (jornalista) Maxado Nordestino que, embora residindo em São Paulo onde exerce a profissão de jornalista, produz uma poesia semelhante às outras produções da literatura de cordel.José Soares, fazendo-se conhecer como poeta-repórter, deixa-nos entrever seu sonho pessoal de ser jornalista. Talvez sua origem social o tenha impedido de aceder a esta profissão. O homem, então, aproveitando de seu dom e de sua perspicácia, descobriu uma outra maneira de ser jornalista, exprimindo-se com a ajuda das sextilhas clássicas da literatura de cordel. Veremos nas páginas seguintes alguns versos do poeta José Soares, extraídos de seu folheto O futebol no Inferno. A preocupação jornalística é evidente. Trata-se de tema e acontecimento da atualidade brasileira que interessa e apaixona as pessoas de todas as classes sociais, sobretudo as de origem popular. É certo que este folheto, apesar da pouca quantidade de páginas, apenas quatro, vai ser bem recebido pelo público. A outra observação diz respeito ao estilo simples dos versos, talvez mais uma característica do jornalismo esportivo que vai direto ao público, ou à rede:

O futebol no infernoestá a maior confusãovai haver melhor de trêspra vê quem é campeãoo time de Satanazou o quadro de Lampião. (Grifos nossos) (131)

- 162 -Como de costume, este folheto não indica a data de publicação, o que nos impede de o situar no tempo e num contexto real da sociedade.A alegria do futebol tem sido uma constante moderna do povo brasileiro, principalmente das camadas populares e médias da população (132). Observa-se mesmo que, em certas ocasiões, esta paixão é exagerada, como nos encontros entre clubes importantes do campeonato nacional, entre representantes de cada Estado da Federação. A Copa do Mundo é também um período de exaltação nacional. Quando acabamos de escrever o original manuscrito deste trabalho, estávamos saindo de uma Copa do Mundo de Futebol, a de 1978, ocasião em que tomamos conhecimento do folheto de José Soares. Esse dado pode nos aproximar da data de produção e publicação de O futebol no Inferno, o que seria lógico para um poeta-repórter, colado à atualidade. Esses elementos são interessantes a observar no que respeita um estudo bibliográfico de cada autor, além do interesse geral do contexto social e cultural de cada país. Com relação a nosso poeta-repórter, notamos já uma terminologia especializada: “vai haver melhor de três”, quer dizer que estamos na fase final de um torneio ou campeonato e as duas equipes finalistas vão disputar o primeiroluger. A atualidade se impõe em tais ocasiões (133). O abrasileiramento do vocabulário futebolístico, de origem inglesa, é de rigor: o “time de Satanás”, em lugar de team. A transcrição da linguagem fonética prevalece, o que é normal na literatura de cordel, basicamente oral.Mas vejamos a seguir o que poderíamos chamar de conteúdo no folheto de José Soares. Dissemos no princípio deste capítulo que ele está no mesmo nível formal e ideológico que os outros poetas populares, apesar de certa preferência pelos temas urbanos e atuais. Em primeiro lugar, ele imagina uma partida de futebol no Inferno. Isso já o integra na concepção geral da literatura de cordel no sentido de que a vida no Além, em particular no Inferno, é bastante dinâmica e "viva"; lá embaixo nada impede os seus pensionistas de exercer suas atividades favoritas. Em segundo lugar, verificamos que a luta gigantesca entre as duas potências do mal, Lampião e Satanás, continuam em um outro terreno. Aqui ela se produz no terreno esportivo, como além do terreno eleitoral e político. José Soares segue então sua linha ideológica geral simbolizada pelo combate dessas duas forças do mal, com um certo favoristismo por Lampião, o herói preferido dos nordestinos, muitas vezes defensor do bem, embora por meios condenáveis. A este propósito, já vimos que ele é considerado como o “benfeitor” do Inferno, instalando luz, água, calçamento, etc., e expulsando os indesejáveis.Voltemos, porém, à nossa partida de futebol, que vai nos colocar em face de números e de resultados fantásticos, infernais:

Lampião ganhou um turnosatanaz outro também no jogo domingo passadoempatou de cem a cem. (134)

- 163 -O jogo empatou, cem a cem. Notemos que a noção de tempo é normal: “no jogo domingo passado”. Mas, quanto ao espaço, não há dúvida de que se trata de outra coisa, é “no inferno todo inteiro”.Em seguida, é a formação das equipes, do terreno de jogo, do árbitro, etc. Lampião é dado sempre como favorito e como contestador, papel um pouco simpático:

O jogo era quarta-feiraporém Lampião não quis

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porque Lampião só fazo que lhe vem ao narize já houve um pau da molestana escolha do juiz. (135)

Notemos a expressão “um pau da molesta”, que significa muita discussão, certamente muita briga. O árbitroé um elemento de grande importância nestas ocasiões. Diríamos que estamos bem em nosso querido planeta Terra.Alguns nomes próprios merecem interesse. O árbitro se chama Plutão, o que não satisfaz a Lampião:

não agradou a Lampiãoque disse que esse juizsó torcia pelo cão. (136)

Satã é chamado cão, seu apelido mais conhecido no Nordeste. Triste comparação para o nosso estimado cachorro sertanejo. Na verdade mais uma dessas contradições da linguagem popular.Então Lampião, que não aceita a indicação do árbitro, faz apelo à Comissão Esportiva de Arbitragem. A situação é bloqueada, pois os dois contendores têm força igual, por enquanto. Finalmente, a imprensa se interessa pelo problema e faz proposições: “porém a rádio Capeta / opinou para um sorteio”. (137)Eis aí mais um apelido para designar Satã, o Capeta (138). Enfim, decide-se por um sorteio de árbitro que, mesmo assim, provoca certas reservas:

Quando fizeram o sorteiojuiz foi berimbaulampião disse pra eleeu toda vida fui mauapite o jogo direitose não quizer levar pau. (Grifo nosso) (139)

- 164 -Lampião conserva a sua imagem de contestador violento. A peleja futebolística no Inferno é uma ocasião mais para demonstrar a luta pelo poder do Reino do Mal; sua lei, a única que ele conheceu na vida terrestre, é a lei da força, da violência. Os personagens diabólicos se colocam contra ele no terreno do futebol. Mesmo o árbitro não merece sua confiança, como os juízes dos tribunais na sua passagem pela Terra. Quanto a Berimbau, temos mais uma vez a influência urbana dos ritos afro-brasileiros.Vejamos agora a lista das duas equipes, que não deixa de ter um certo interesse:

O goleiro de satanazchama-se DR. BUCÚum zagueiro é seu puticacentrefó papacú. (140)

Alguns nomes são impressos em letras maiúsculas, como “DR. BUCÚ”, presumivelmente de origem tupi, o que não é muito claro, pois significa um tubérculo vegetal. Em seguida alguns abrasileiramentos, como “goleiro” (de goal), “centrefó” (de center-four). Eis os jogadores da equipe de Satã:

O meio campo de satãé feito por cão rabicholao ponta direita é pencana esquerda caçarolao armador é cão coxoé coxo mas joga bola. (141)

Contrastando com esses apelidos infernais, vejamos alguns jogadores da outra equipe, que lembram as origens do cangaço sertanejo:

Vamos saber a escalado time de Lampiãocurisco, chapéu de couro jabuti e masagãochucurié e pé de quenga. (142)

Veremos agora a narração da partida propriamente dita, que vai interessar muito o público do Inferno. E, como sempre, a visão dinâmica, viva e apaixonada do Inferno, do além-túmulo, onde as "pessoas vivem" como na Terra. Mas, além do respeito inicial às regras do "football association" (143) que vimos no abrasileiraraento da posição de cada jogador, notemos as dimensões apocalípticas do terreno e do número de jogadores:

O campo lá no infernotem muita descomposturaé mil metros de comprimento

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por quinhentos de larguraas traves é 80 metrospor setenta de altura. (144)

- 165 -

são 80 jogadoresquarenta pra cala lado.(145)O campo tem quatro barras mais só joga dois goleiros.(146)Joga com 40 bolas (147)vinte e quatro juízes (148)A bola pesa cem quilose é de aço maciço (149)

Depois de observar a curiosidade gramatical do emprego do verbo ser em vez de ter, notemos as dimensões gigantescas do terreno, a quantidade de jogadores e o peso excepcional da bola.Não esqueçamos, porém, que o Inferno, mesmo, tem uma superfície mais do que excepcional, como nos disse Lampião: "Vou construir esse inferno/ 3 vezes maior que o mundo". (150)Vejamos mais uma vez o tema da violência e da valentia em geral representadas pelo personagem de Lampião, fiel à sua tradição terrestre. Vimos no capítulo precedente e em alguns versos de José Soares. E a apologia à força bruta continua:

Lampião só joga brutoE na base do chinelo. (151).

Se o juiz marcar um pênaltina barra de Lampiãoaí briga todo mundo. (152)

Lampião quando se danadá até no delegado. (153)

A violência é a medida do adversário. Lampião e Satanás são apoiados por um ambiente adequado: o climaé de guerra. Preveem-se jogadas perigosas, por isso, os responsáveis pela boa ordem do jogo tomam precauções muito sérias:

E quarenta bandeirinhasarmados de mosquetãoo juiz apita o jogocom uma granada de mãopra sacudir no primeiroque fizer reclamação. (154)

- 166 -A parada é federal, como se diz. Não esqueçamos que esse jogo representa mais um combate entre o Rei do Cangaço contra o Rei do Inferno, pela disputa do poder. Todos os meios são bons. Vimos no capítulo anterior que o poeta beneficiou Lampião que, embora tenha perdido na eleição democrática, se acampara do governo infernal graças a um clássico “golpe de estado”. A vida além-túmulo, porém, tem suas dificuldades. Ela pode evoluir em diferentes direções. Temos a impressão de que nosso poeta-repórter hesita em tomar posição. Os dois adversários são tão importantes que ele toma suas distâncias. Poderíamos dizer que a popularidade dos dois personagens é quase igual nesse velho Nordeste. Hoje é Lampião que domina, amanhã poderá ser Lúcifer, ou um dos seus sinônimos. A poesia popular viveu sempre nesse dilema. Não é por acaso que se diz que, entre os personagens "históricos" do Nordeste aos quais a literaturade cordel se refere, encontramos principalmente o Padre Cícero, Lampião e o Diabo. Com relação ao primeiro, não há dúvida, todos os poetas estão de acordo em afirmar que está no Céu, onde vive tranquilamente sem qualquer contestação. Quanto a Lampião, é uma outra coisa, seu caráter contestador e guerreiro o colocam em situações difíceis. Como durante sua vida terrestre ele "infernou" a vida de populações inteiras, é preciso que se faça um bom lugar poronde passa. Um lugar à sua altura, pois, como diz o ditado: “quem foi rei sempre será majestade!”. Mas o problema é que nosso Lampião não pode escolher. No além-túmulo ele só pode escolher entre dois lugares,o Céu ou o Inferno, pois a situação intermediária, isto é, o Purgatório, não é levado muito a sério, não, pela literatura de cordel. Ora, o primeiro lugar citado é, em princípio, interdito a todos os cangaceiros (exceto a Antônio Silvino, um caso à parte!) e especialmente a Lampião, embora ele tenha tentado ir para lá, como veremos no capítulo seguinte. Então só lhe resta um lugar, o Inferno. Mas, nesse lugar, já existe um soberano, Mestre Lúcifer.Eis a dificuldade, o obstáculo, a nossos poetas populares para nos dizer como esta questão de natureza eterna vai se resolver. Um dia é o Rei do Cangaço que predomina; no outro, é o Rei do Inferno. Estamos em face da fantasia dos poetas populares, ou essa questão reflete aspectos transcendentais que inquietam

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os leitores e ouvintes do cordel, isto é, uma grande parte da população nordestina. Para já não podemos responder. Enviamos a especulação a outras pesquisas no terreno social e físico do Nordeste. Limitemo-nos, neste trabalho, a revelar, analisar e comentar o sentido dos versos da poesia popular nordestina. Nesta perspectiva, olhemos para a conclusão de O futebol no Inferno, do poeta-repórter José Soares que, anosso ver, hesita em tomar uma decisão e envia a solução do problema para mais tarde, a uma outra ocasião, à eternidade, talvez:

o jogo dura três dias (154 b)Satanaz quer adiar o jogopara dia de juízo. (154 c)

- 167 -130 - SOARES, José: O eclipse e o cometa Kohoutek O divórcio no Brasil O encontro de J. K. com Getúlio Vargas no Céu Coisas do Sertão131, 134 a 149 - Idem, O futebol no Inferno.132 - O estádio do Maracanã comporta 250 mil espectadores. Eis um comentário publicado no jornal Movimento, de 7/13 de maio de 1975: "Seu Domingo Viana da Silva, rubro-negro desde o fim dos anos 30,quando emigrou de Alagoas, não cabe em si de contente e diz com orgulho que desse jeito será preciso construir outro Maracanã. Assim não dá mais. No domingo, o Maracanã estava botando gente pelo ladrão, não dava pra todo mundo. Se o Flamengo for nessa batida, vão ter que construir um estádio ainda maior. O Maracanã ficou pequeno para a torcida do Flamengo".133 - Ver CANTEL, Raymond. Temas da atualidade na literatura de cordel. São Paulo: Universidade de S. Paulo, Escola de comunicação, 1972.143 - Regras da Fifa.O futebol no Inferno, p.4., st.2.

.- 168 -150 - A eleição do Diabo e a posse de Lampião no Inferno.151/154 - O futebol no Inferno, p. 6., st.2...- 169 -

CAPÍTULO VIIIENCONTRO NO CÉU DO BEM E DO MAL

Como vimos nos capítulos anteriores, a vida além- túmulo parece bastante animada. Esse dinamismo é devido ao espírito imaginativo de nossos poetas de cordel, que estão na expectativa de mensagens ou da descoberta de viajantes que passeiam no Além ou de personagens que vêm desse lugar para visitar nosso planeta Terra. Por enquanto, o Inferno é o lugar mais animado e vivo que há. Isto deve ser levado ao créditodos pensionistas virulentos, apaixonados e apaixonantes que lá vivem. Conflitos de toda ordem levam esses seres a afrontamentos às vezes “mortais”. Este termo é, pelo menos, surpreendente na medida em que no Além todos já são mortos. Eis um grande paradoxo, ou então estamos diante de duas hipóteses muito sérias. Uma se refere à concepão de vida eterna, não uma eternidade no sentido religioso, mas como uma “outra vida” que apenas muda de lugar e na qual as pessoas continuam a desejar as mesmas coisas e a desempenhar as mesmas atividades que outrora. A outra hipótese nos conduz ao mito muito antigo da renovação (reencarnação?), segundo a qual à morte sucederia uma outra vida que terminaria por um outro falecimento, e assim sucessivamente (155). Vimos também que a noção tradicional de pecado e castigo, este, como consequência do primeiro, não é muito respaldado entre os poetas populares, pelo menos entre os que estudamos, que, aliás, são bastante representativos. As pessoas vão para o Inferno não porque elastiveram uma vida de pecados, por isso devem ser castigadas, mas, ao contrário, porque desejam viver no além-túmulo o mesmo tipo de vida de outrora. Haverá, assim mesmo, uma espécie de separação. Alguns, talvez os bons, vão para o Céu, a exemplo de Padre Cícero, Frei Damião e o cangaceiro Antônio Silvino. Quanto a este último, a noção de bom já é difícil de comprender. E os maus vão para ou “ao” Inferno, onde continuarão os seus calvários, suas lutas e seus desafios, o que, na verdade, não representa um castigo, mas a continuação do mesmo esquema da vida terrestre. Exemplo típico dessa categoria é o famoso Lampião, "prefeito do Inferno". Assim, distingue-se na poesia popular um reconhecimento de vida eterna, simbolizada por vários tipos de aventuras e ações extraterrestres. A Terra representa apenas "nosso mundoatual", mas haveria "outros mundos".

Entretanto, não se deve ver nessas ideias um corpo de doutrina coerente e sem falhas. Nada disso. Nossospoetas populares são o reflexo de toda uma cultura de predominância cristã, enriquecida de elementos culturais e sociais autóctones e africanos. Essas contribuições são irregulares, variadas em quantidade e conteúdo, e sofrem forte influência do meio ambiente, sobretudo rural.

- 170 -A partir desse contexto cultural e social, pensamos que será interessante conhecer a vida de um outro local situado no Além, seguindo sempre as descrições da literatura de cordel. Antes de entrar nesse outro local,

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diga-se que a poesia popular parece à vontade para narrar o que se passa no Inferno; em todo caso, ela é mais produtiva quando se trata de falar desse local. Constatam-se mais animação e vida no Inferno que no Céu, menos interessante e atraente, um tanto monótono. O pouco de animação que se observa no Céu é provocado provisoriamente por elementos que vivem habitualmente no Inferno. Eis porque vamos apresentar alguns folhetos que narram a vida no paraíso celeste e descrevem as preocupações de personagens já famosos na vida do além-túmulo em geral. Isto quer dizer que nosso critério de escolha de folhetos e de poetas é no sentido da continuação das aventuras de certos personagens, como da problemática “vida terrestre e outras vidas”, direta ou indiretamente percebida em autores populares conhecidos. Assim, dois folhetos vão nos conduzir ao Céu:O Satanaz reclamando a corrução de hoje em dia, de José Costa Leite; O grande debate de Lampião com São Pedro, de José Pacheco.Observamos desde já que esses dois heróis da poesia popular, ou da consciência popular nordestina, continuam suas disputas, mesmo quando se encontram num lugar que lhes é pouco favorável. Quanto aos dois poetas, digamos que Costa Leite segue sua linha tradicional de apego às preocupações religiosas e morais, enquanto José Pacheco, mais imaginativo, preocupa-se com as proezas e com o destino, terrestre e de além-túmulo, do célebre cangaceiro Lampião (156).Observamos, outrossim, que o interesse desses dois folhetos é essencialmente o conceito da vida do além-túmulo, comum aos dois, assim como aos outros folhetos estudados nesta terceira parte de nosso trabalho. A referência a Satanás (Satanaz) e a Lampião é o traço comum das poesias estudadas. Neste capítulo não fazemos necessariamente a comparação entre os dois folhetos, mas os estudamos paralelamente. Comecemos, então, pelas intenções moralizadoras de mestre Satã:

Com fé em Deus Verdadeiroe na Santa Virgem Mariapara os queridos leitoresvou traçar em poesiaO Satanaz reclamandoa Corrução de Hoje em Dia. (157)

Em seguida, o poeta nos explica como Satanás chegou ao Céu. É interessante observar a diferença do meio de transporte para chegar ao Inferno ou ao Céu. Para o primeiro, o mesmo autor nos informou que a viagem se fez no popular cavalo (158). Ao passo que, para ir ao Céu, é necessário utilizar meios de transporte cósmicos, como veremos a seguir. É, talvez, a noção tradicional do Inferno no interior da Terra; e o Céu nas alturas, no espaço sideral:

- 171 -Num dia tempestuosodebaixo dum temporalSatanaz montou no ventocom sua ideia infernale resolveu bater na portade Deus Pai Celestial. (159)

Agora, vamos passar aos versos de José Pacheco, cuja preocupação é, por enquanto, diferente de seu colega Costa Leite. Mas ele se aproxima de algo mais adiante:

Para me certificarda morte de Lampiãoarrumei o matulãoe andei pra me acabarnão escapou-me um lugardo Brasil ao estrangeiropercorri o mundo inteiroprocurando a realezaaté que tive a certezada morte do cangaceiro. (160)

Aí nesses versos, há duas observações importantes. Primeiramente, é de saber o lugar onde se encontra Lampião, no Brasil ou no estrangeiro. Parece-nos que o poeta não está convencido da morte do herói. Em seguida, notemos o tratamento real que é dispensado ao personagem. “Realeza” precede a denominação cangaceiro, o que confirma que o banditismo sertanejo das décadas anteriores, de 1800 a princípios de 1900, é considerado como um fenômeno social de natureza um tanto nobre; trata-se de um banditismo de honra, de guerras do cangaço, não de um banditismo ordinário.Como o primeiro autor, o atual poeta imagina meios de transporte de dimensão universal, assimilando astros, santos e fadas:

E atravessei os maresmontado em um planetaque ao som duma trombetavinha descendo dos aresvisitando aqueles lares

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terra de santos e fadanaquela mesma jornadaencontrei no arrebolcheguei na terra do solna casa da madrugada. (161)

Costa Leite e José Pacheco utilizam, assim, meios de transporte extraordinários para conduzir personagensinfernais aos lugares superiores.

Com respeito a Pacheco, todos os meios lhe são necessários para descobrir, não o tempo, mas o seu herói perdido. Como vimos na primeira estrofe, ele partiu para verificar a veracidade sobre a morte de Lampião. Ora, para encontrar um tal personagem, é preciso empregar meios de alcance cósmico: os mares,os planetas, etc.

- 172 -Mais uma vez notamos que a visão do mundo da poesia popular apresenta aspectos inovadores e perturbadores. A tendência geral é no sentido de apresentar Lampião e Satanás como símbolos do mal, confinados definitivamente nas “profundezas escuras do inferno”. Mas os poetas populares contrariam muitas vezes essa doutrina, a começar pela escuridão do Inferno e, no caso atual, no que concerne ao localonde se podem encontrar esses personagens. Na estrofe anterior, lemos que o poeta visitou "terra de santos e de fadas", à procura do seu herói. Deve-se dizer, além disso, que ele encontrou grande compreensão e ajuda de poderes universais, segundo o que nos informa nos versos seguintes:

Ela me deu um abraçoprestou-me bem atenção mandou chamar o verãono reino do mestre espaçodepois chegou o mormaçoe saiu muito vexadoporque estava ocupadono palácio da manhãtratando da sua irmãmulher do vento gelado. (162)

Como se vê, o poeta popular viaja no espaço. O cosmo é o lugar de seus passeios. Aí, ele dispõe mesmo de uma certa intimidade: a madrugada lhe dá um abraço, tão brasileiro e popular. Mas o poeta, narrador e explorador, não se deixa levar por essas gentilezas, pois ele tem um objetivo preciso em sua viagem através do universo. Ele continuará sua busca:

continuei a viagemcom boa capa de luvaporque a terra é de chuvae mora dona friagem. (163)

Não esqueçamos as estações e o clima. Mesmo durante essa viagem cósmica, a noção de chuva e de frio, talvez de inverno, é presente. Continuemos a viagem antes que o poeta precise mais claramente seus objetivos:

No reino da branca auroraencontrei a brisa mansaque vinha trazer lembrançaà princesa deuza da floraa neve naquela horaem sua alcova dormiadepois o sol lhe surgiadesfazer-lhe do regaçoenquanto pelo espaçoe neve branca corria. (l64)

O poeta José Pacheco nos descreve o formidável espetáculo da natureza, através de um vocabulário simples e sugestivo. Notemos os versos nos quais ele nos diz como a neve foi despertada pelo sol.

- 173"a neve naquela hora / em sua alcova dormia / depois o sol lhe surgia / desfazer-lhe do regaço". Tudo, porém, não é do domínio da natureza lírica do poeta. É preciso voltar ao concreto objetivo da viagem:

Pra saber de Lampiãoqual foi a parada suasubi à terra da luaescanchado num trovão

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encontrei um anciãovelho, barbado e corcundoque vinha do fim do mundome viu e foi me contandoque viu São Pedro açoitandoum espírito vagabundo. (165)

Esses versos revelam alguns problemas de sintaxe ou, talvez, uma exegese mais aprofundada. Este não é, porém, o interesse no momento. Esclareçamos apenas que o terceiro verso quer dizer: subi da terra à lua. Isto dito, compreendemos que a lua se encontra em local mais alto que a Terra, e que é uma etapa da viagem entre a Terra e o Céu. Outra revelação interessante é que o poeta foi da Terra à lua montado num trovão. O linguajar rural, escanchado, é integrado à dimensão cósmica. O trovão montado por um poeta poderia sugerir os superfoguetes extraplanetários atuais, com seus barulhos e imagens de fogo e de fumaça em combustão. Com respeito ao ídolo Lampião, o poeta começa a mudar de tratamento, apesar do cenário cósmico no qual ele é procurado. Os últimos versos nos dizem que um velho viu São Pedro açoitar um espírito vagabundo. É verdade que o poeta não se compromete muito nessa história que lhe foi contada pelo velho. Notemos também que o fim do mundo é apresentado com uma noção de espaço, de distância, enão de destruição. Essa noção se integra à visão global da literatura de cordel, que concebe como um todo o Além, a Terra, o Inferno e o Céu.O que marca entre os poetas de cordel é a noção de continuidade entre a vida terrestre e o além-túmulo. Vemos, a todo momento, que tudo se passa no além-túmulo como aqui no nosso planeta Terra, seja do ponto de vista do comportamento e das relações humanas, seja do ponto de vista da disposição dos objetose das coisas materiais, como, por exemplo, a construção de imóveis. Vejamos, mais uma vez, a confirmação desse conceito do Além, poético certo, massimbólico, sem dúvida:

Chegou no céu Lampiãoa porta estava fechadaele subiu a calçadaali bateu com a mãoninguém lhe deu atençãoele tornou a baterouviu S. Pedro dizerdemore-se lá, quem é?estou tomando cafédepois vou lhe receber. (166)

- 174 -Vemos os hábitos bem corriqueiros:S. Pedro depois da jantagritou para Santa Zulmiratraz o cigarro caipira. (167)

Nota-se, ainda, que a mulher, mesmo santificada e vivendo no Céu, não perde as suas funções domésticas bem tradicionais; Sao Pedro, patrão e chefe de família, depois de uma boa janta à mesa, pede-lhe o clássico cafezinho e o cigarro caipira. Mas nosso São Pedro, mesmo sendo um chefe senhorial importante, não deixa de se lamentar da sua condição de empregado:

abriu a porta do meiofalando até agastadotriste do homem empregadoque só lhe chega aperreio. (168)

Além de ser obrigado a se deslocar depois do jantar, parece que o popular São Pedro vai nos falar de acontecimentos desagradáveis, aliás, descritos com o mesmo conteúdo nos dois folhetos que analisamos:

Abriu na frente o portãoficou na trave escoradobranco da cor de um finadoquando avistou Lampião. (169)

Vejamos agora como Costa Leite conta a chegada de Satã ao Céu:

São Pedro veio atendê-locom uma faca na mãoquando viu o Satanazchega ficou sem açãobranco da cor duma velamal batia o coração (170)

Os dois poetas estão de acordo para descrever o choque sofrido pelo porteiro do Céu quando viu chegar os

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dois famosos personagens diabólicos. Estes, porém, não se aperriaram e explicaram calmamente o objetivoda visita:

Lampião lhe respondeunão venha com seu insultovocé é um santo brutoque ofensa lhe fiz eu?e mesmo o céu é não seuvocê também é mandadoportanto esteja avisadose não deixar eu entrarnós vamos experimentarquem é que tem bom guardado. (171)

- 175A remarcar igualmente a irreverência dos poetas populares com relação aos santos e entidades sagradas, São Pedro é aqui chamado de “santo bruto”. Ao mesmo tempo, vemos ressurgir o tema de empregador e deempregado, e de propriedade particular. Tratando-se do Céu, essas noções não deixam de ter um certo interesse. É sempre a reprodução de esquemas sociais terrestres. Notamos a mesma concepção nos versos de Costa Leite, para Satanás interposto:

Satanaz disse a São Pedro– E você aqui quem é? seu senhor me respeitavocê em mim não tem févenha bem calmo senãovou dar-lhe de ponta-pé. (172)

Nos dois folhetos os versos são escritos na terceira pessoa quando se trata da conversação entre Lampião, Satã e S. Pedro, e mesmo com Jesus:

Disse Jesus: Que desejas,onde não foi convidadodisse o Diabo: Senhor Reio mundo está desgraçadoa corrução é demaisvim lhe fazer avisado. (173)

Eis que o tradicional personagem símbolo do “mal” se preocupa com o excesso de corrupção no mundo. Mas de que corrupção se trata e quais são:as razões de suas preocupações:[...] Eu não tenhomais lugar suficienteo inferno está cheinhoe todo dia chega gente. (174)

Eu já fiz 18 andaresno inferno o mês passadocom 6 mil apartamentose uma puxada dum ladonão tem uma vaga sójá está tudo lotado. (175)

Parece que a preocupação de Satanás é só de ordem material: ele não tem mais lugares para os maus elementos que chegam todos os dias. Além disso, ele se dirige a Jesus como a um superior hierárquico, a um patrão, apresentando uma lista de reclamações bastante importantes. Nota-se uma preocupação bem discriminatória, de classe, digamos:

Eu queria gente boaque lá só tem gente ruimeu queria misturarpois não fica bom assimos bons ficar para os outrose os ruins para mim. (176)

- 176 -

Eu só queria levarpadre e Juiz de direitopastor, cabo e comissário

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delegado e prefeitocandidata vigaristaeu quero levar de eito. (177)

Essas preocupações de mestre Satã lembram outros viajantes célebres no Inferno, onde viram personalidades importantes. Pensamos no poeta Dante que, já no século XIV, revelava a presença de magistrados, príncipes e até de papas no Inferno da península italiana. Entre os poetas populares do Nordeste, pela voz de Satanás, observamos que a instalação de personalidades no Inferno é ainda ao nível da reivindicação. Veremos se isso será satisfeito. Em contrapartida, observaremos que o poeta se contradizum pouco quando faz a descrição de todas as pessoas e dos pecados terrestres que os conduziriam aos domínios de Satanás. Solicitando que não lhe enviem somente “gente ruim”, ele estabelece um vasto código pelo qual seria fácil fazer a verdadeira separação de maus e bons candidatos. Isso não surpreende com relação a José Costa Leite, por causa de sua “queda” pelos temas religiosos e morais do estilo tradicional. O que surpreende no seu folheto que estamos analisando é o fato de que ele possa simplesmente admitir a entrada do Diabo no Céu onde, apesar da oposição de S. Pedro, ele consegue uma entrevista com Nosso Senhor, às vezes chamado de Jesus Cristo. Satã ousa mesmo a dar conselhos a este para desembaraçar a Terra dos maus elementos:

Era bom que o Senhormandasse uma chuva quentepara do povo corrutoacabar com a sementepra depois apareceroutra raça novamente. (178)

Eis a tradição religiosa do castigo por meios apocalípticos, um fio condutor deste poeta. Mas voltemos um pouco ao outro “agente do mal”, nosso célebre Lampião, a fim de conhecer a continuação de sua visita ao Céu. Nosso viajante tenta se justificar perante S. Pedro:

É certo que fui bandidoperverso, estrompa vorazporém quem foi não é maisé mesmo que não ter sido. (179)

O Rei do Cangaço começa também a mudar de tom. Pode-se dizer que o ambiente divino o faz mais moderado. Vê-se que a predominância da moral religiosa faz seu caminho entre os apologistas da violência na Terra e no Inferno, impondo uma certa contrição no Céu. Parece que o herói procura uma espécie de perdão; primeiramente de São Pedro, que decidirá sua introdução junto de Jesus Cristo. O cangaceiro faz apelo à sabedoria popular para se introduzir no Paraíso:

- 177 -mesmo eu sou garantidopor um provérbio que tenhoescrito sobre um desenhopor pessoas elevadaso qual diz: águas passadasnão dão voltas a meu engenho. (180)

São Pedro, porém, não quer ouvir o suplicante. A situação se degrada. Lampião volta a seu estado natural eo diálogo muda de tom. Os interlocutores passam a uma fase de ameaças e muito em breve passam às vias de fato. Remarcamos o tom irrespeitável de Lampião, que não reconhece mais nenhuma autoridade a São Pedro, pois o objetivo de sua visita é contatar personalidades superiores. É claro que o poeta aceita a teoria ou o hábito no sentido de que o patrão está mais apto a compreender os problemas reais e os estados de alma das pessoas em busca de remissão, de arrependimento. Exemplo disso é o diálogo que vai se desenrolar: São Pedro começa:

Não quero articulaçãovocê aqui nada temé como você tambémlhe respondeu Lampiãoé porque do seu patrãovocê transmite o mandado. (181)

Os peleadores iniciam o embate. Observamos que os movimentos clássicos do duelo, da peleja, atingem seu apogeu. O parceiro responde a cada ataque do adversário. Lampião, bem entendido, insiste com seus argumentos para tentar abrir uma falha na argumentação do seu antagonista. Será que esta insistência sobre este problema de patrão e empregado não revelaria uma intenção velada de Lampião com respeito ao poder, ao governo do Céu? Não podemos responder. O cangaceiro insiste:

eu tenho visto empregadosair do trabalho expulso

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sem direção sem recursopor qualquer trabalho errado. (182)

A partir daí a situação é bloqueada e passa a um nível superior, de guerra aberta. São Pedro faz apelo aos santos guerreiros:

S. Pedro ergueu-se nos pése disse de cara feia afávelpra dar num cabra de peianão precisa oito nem deze gritou por S. Moisés– Vamos dar no bandoleirosaltou no meio do terreiroaté preparar a facagritando: quebra uma estacaarranque um pau do chiqueiro. (183)

178 -A batalha é desequilibrada. Lampião está só contra entidades muito importantes que se alinham ao lado de S. Pedro. Veremos nessa luta celeste, além deste último, figuras da importância de um São Moisés, santos guerreiros, como São Paulo, com sua faca na cinta; Santa Jacinta que representa o setor feminino mais radical e aguerrido, a tal ponto que o afável Santo Augusto tenta lhe barrar o caminho de ataque contra Lampião, ouvindo daquela santa imprecações do estilo: “arreda que tu não pode / eu pego o cabra sozinho(a)”. Mas toda essa tropa celeste não chega para vencer o nosso herói das caatingas nordestinas. Aluta é tremenda, já não chegam os reforços humanos, ou melhor, santificados. Apesar dos apelos de Santa Jacinta, o governo celeste vai utilizar a artilharia pesada:

Porém antes de pegardesceu um grande coriscojogado por S. Franciscoda porta do quinto andarnum tremendo ribombarum trovão também desceuo espaço escureceuveio um forte pé de ventoLampião neste momentodali desapareceu. (184)

Como vimos no início do folheto, o poeta José Pacheco tem grande predileção pelos recursos cósmicos. Para lutar contra o grande herói dos sertões, o cangaceiro Lampião, sozinho sem suas tropas, tudo é permitido, tudo é invocado. A ousadia, a virulência do sertanejo não é perdoada. Ele não consegue ver nem falar com “o grande patrão”. Representaria essa atitude intransigente um julgamento de valor, segundo o qual um grande pecador não teria direito de se apresentar diante de Jesus Cristo, representante direto e único de Deus, cujo nome, aliás, não é mencionado. Ou trata-se de uma astúcia poética para evitar um afrontamento direto dessas potências tão transcendentais para o povo nordestino, como são Lampião e o Deus, todo-poderoso? Questões difíceis de responder. O que sabemos, porém, é que o “anjo do mal”, Satã,tem mais sorte que o nosso Lampião. O primeiro, apesar de sua reputação infernal e a oposição de São Pedro, consegue ser entrevistado pelo Cristo, o patrão. Vimos que ele se atreve mesmo a dar conselhos ao filho de Deus, que lhe responde com muita indulgência:

Disse Jesus: Satanazvocê não sabe julgaresse povo pecadorpode se regenerarhavendo arrependimentoinda pode se salvar. (185)

Eis a ideologia cristã do perdão pelo arrependimento. Mas uma coisa que ele não pode transigir é a propósito de seus poderes celestes:

Volte para o seu lugaraqui quem manda sou eudesapareça daqui

- 179 -Satanaz chega gemeudeu um estrando medonhoe dali desapareceu. (186)

No fim das contas, a sorte das duas potências contestadoras é equivalente. Hesitamos, porém, de insistir

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com a expressão “potência do mal”, pois ela é bastante tradicional. Lampião e Satanás, apesar de suas vidas e obras de agitação e guerras, ousam tentar entrar no Céu, esse paraíso dos Bem-Aventurados. Eles desejam descutir sobre problemas morais que existem na Terra (e não no Inferno?) e pedir perdão de seus pecados. Mas tudo isso não é importante. O que se deve considerar é que o sentimento popular expresso pela poesia de cordel vai no sentido de que dois personagens, como Lampião e Satanás, apesar de viveremnum lugar chamado Inferno, não devem ter complexos: o além-túmulo é um universo englobando a Terra, o Inferno, a Lua, os ventos, os oceanos, todos os astros e o Céu. A viagem através desses elementos é livre e acessível a todos, mas há restrições para a entrada no Paraíso, com base em considerações morais e religiosas, segundo uma classificação do bem e do mal, às vezes não muito clara e evidente. Outra ideia que se pode tirar da leitura completa dos dois folhetos é que a animação e a vivacidade permanente do Inferno, habitado por seres cheios de ambições e de angústias, de “seres humanos”, opõe-se à visão calma, monótona de um céu habitado por seres puros e sem preocupações, perturbados, de vez em quando, por visitas insólitas e inadmissíveis.Finalmente, é evidente que os dois personagens bastante populares da literatura de cordel, Lampião e Satanás, não são aceitos no Paraíso Celeste. Eles vão voltar certamente ao Inferno, para continuarem a luta pelo poder e inspirar outras histórias e folhetos de cordel. Lá embaixo eles estarão num contexto mais conforme à ideia e à sensibilidade populares dos nordestinos.

- 180 -(155) Ver ELIADE, Mircea. Aspects du Mythe.156 - LEITE, José Costa. A vinda da Besta-Ferra; A voz de Frei Damião; O Frei Damião sonhou com o Padre Cícero Romão. - Pacheco, José. Chegada de Lampião no Inferno e Chegada de Lampião no Céu.157 - LEITE J. Costa. O Satanaz reclamando a corrução de hoje em dia.158 - Idem, O Sanfoneiro que foi tocar no Inferno.159 - Idem, O Satanaz reclamando a corrução de hoje em dia.160/169 - PACHECO, José. O grande debate de Lampião com São Pedro.170 - LEITE, J. Costa. O Satanaz reclamando a corrução de hoje em dia. 171 - PACHECO, José: O grande debate de Lampião com São Pedro., 172 /178 - LEITE, J. Costa. O Satanaz reclamando a corrução de hoje em dia179/184 - PACHECO, José. O grande debate de Lampião com São Pedro.185/6 - LEITE, J. Costa. O Satanaz reclamando a corrução de hoje em dia.

- 182 -

REFLEXÕES e CONCLUSÃO

- 183 -O complexo cultural do Nordeste apresenta aspectos bem particulares, surpreendentes mesmo. A convergência temática da literatura popular e da literatura erudita é um desses pontos de convergência. A linguagem, o vocabuário, a sintaxe, o ritmo e a entonação das frases e, essencialmente, os temas abordados por uns e por outros são pontos de contato bastante sérios. Falamos, naturalmente, da literatura erudita originária do Nordeste do Brasil, em particular a partir de 1920. Esta data não tem um sentido rigorosamente histórico, mas, sobretudo, um quadro sociocultural determinado. Pensamos em escritores e poetas saídos de camadas sociais e culturais absolutamente diferentes, muitas vezes em oposição ao meio socioeconômico de onde eles emergem. Ao longo deste trabalho citamos e comparamos alguns representantes da “cultura dos letrados”. A sorte bem como as origens desses intelectuais não têm nada de parecido com as de nossos poetas populares. Além do nível de vida, social e econômico, os escritores eruditos podem alcançar posições as mais renomadas na cena literária do país, como, por exemplo, a “imortalidade” que lhes é conferida pela Academia Brasileira de Letras. É o caso de José Lins do Rego, de José Américo de Almeida e outros. Este último, além disso, fez uma carreira política importante como governador do Estado da Paraíba, terra de grandes poetas populares, e ministro de vários governos da República. Citemos ainda a reputação de romancistas e dramaturgos, como Jorge Amado, Dias Gomes, Ariano Suassuna e Rachel de Queiroz, todos preocupados e inspirando-se em temas histórico-populares dos sertões e do Nordeste brasileiro.Do ponto de vista social, essas personalidades não têm nada em comum com os poetas populares, homenssaídos das camadas mais modestas da sociedade brasileira e de nível de vida, às vezes, miserável. Não é inútil lembrar que esses poetas populares são, em geral, pessoas de poucas letras, que não frequentaram escolas ou, se o fizeram, foi num período bem reduzido. Parece-nos evidente que a celebridade e o prestígio intelectual não constituem as suas preocupações. Eles são simplesmente a expressão da consciência popular do meio do qual eles emergem e no qual eles vivem. Destaquemos as reflexões de doisautores europeus, bastante distantes no tempo e no espaço, que se debruçaram sobre a problemática da poesia e da cultura populares. Essas reflexões nos interessam na medida em que elas nos ajudam a situar

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a poesia popular do Nordeste brasileiro num quadro mais amplo. Primeiramente, vejamos as palavras do pensador Montaigne:"La poésie populaire et purement naturelle a des naïvetés et graces par où elle se compare à la principale beauté de la poésie parfaite selon l'art". (1)Em seguida, citemos um contemporâneo, o universitário, também francês, Bernard Muralis, que afirma:"Le peuple est à la fois créateur et dépositaire d'une culture et d'un art spécifique par opposition à la culture et à l'art des classes lettrées". (2)

(- 184)Bem, essas reflexões, reafirmando a beleza e a preeminência da criação popular, enviam-nos ao espaço geográfico e cultural do Nordeste brasileiro, onde os artistas eruditos e populares se expressam da mesma maneira, como vimos em várias ocasiões. A coincidência é observada inclusive no plano das perspectivas, como vemos nas palavras de um personagem de José Lins do Rego: "É por isso que eu digo todo dia: homem para endireitar este mundo só mesmo o capitão Antônio Silvino". (3)Em seguida, comparemos o que diz o mesmo Antônio Silvino, na poesia popular de Chagas Batista:

Eu vi que por muito povoEu me achava cercado.Alguns pediam-me esmolas,Então não me fiz rogado.Uns quatrocentos mil réisCom os pobres distribuí. (4)

Vemos, pois, que o intelectual e o poeta popular traçam o mesmo perfil do cangaceiro Antônio Silvino, chamado de “capitão” na primeira citação. É importante assimilar ainda que as duas expressões culturais manifestam preocupações bastante próximas. Vemos uma espécie de comunidade ideológica cada vez queas duas literaturas abordam o mesmo assunto; a mesma história e o mesmo desenvolvimento temático de personagens marcados por traços de caráter e de comportamentos psicológico e social semelhantes. Basta dizer que se trata apenas de coincidência? Talvez não. É preciso ir mais além. Pensamos que as duas expressões, a popular e a erudita, interpenetram-se e completam-se num mesmo espaço histórico, cultural e social, que é chamado Nordeste. A situação dessa região é tal, sobretudo nos campos, nos sertões, que os artistas não podem deixar de refleti-la. A escolha dos temas, o desenvolvimento dramático das histórias e dos personagens não são, propriamente, uma escolha. É o reflexo natural do meio, enrequecido pela contribuição pessoal de cada produtor, erudito ou popular.2 - MOURALIS, Bernard. Les Contres Littératures, p.118.3 - REGO, José Lins do. Fogo morto, p.184.4 - BATISTA, Francisco das Chagas. A história de Antônio Silvino. In: Literatura popular em versos, p. 338.

- 185 -Seguindo, então, essas observações, atingimos o primeiro ponto de interrogação de nossas pesquisas, que se traduz pela questão seguinte: por que poetas populares e escritores eruditos do Nordeste fazem a mesma aproximação e propõem a mesma perspectiva sociocultural, a propósito dos acontecimentos históricos e das indagações espirituais ou filosóficas das populações sertanejas?Como suporte a essa questão, lembremos as semelhanças de tratamento dos diversos intervenientes em temas como o do cangaço, das crenças psicorreligiosas, do misticismo e do messianismo, assim como do além-túmulo. A esse propósito, isto é, a coincidência temática entre intelectuais e poetas populares, em espécie, na persistência de temas medievais, vejamos o que pensa a socióloga Walnice Nogueira Galvão:"Si nous cherchons à expliquer par l'histoire les raisons de cette représentation, si fréquente, nous pouvons la justifier à deux niveaux. Au premier niveau, on peut trouver des éléments historiques, encore que fragmentaires et superficiels, qui permettent une analogie abusive avec le Moyen-Age (...) Voilà pour l'un des niveaux. L'autre, provient d'un phénomène culturel curieux. Dans cette immense région appelée le Sertão, a survécu jusqu'aujourd'hui une littérature populaire dont les thèmes et les formes constituent des survivances médiévales. Même la langue que l'on parle dans ces régions est archaïque, ou archaïsante, par rapport à la langue des centres urbains, qui est marquée par l'immigration et les tranformations [...]"E a socióloga continua sua exposição para tentar explicar ou compreender a coincidência existente entre a cultura erudita e a popular, acrescentando: "Ce qui m'étonne, c'est que les intellectuels le répètent!". (5)A outra grande questão que somos levados a colocar na conclusão deste trabalho se refere à representatividade e à legitimidade dos poetas populares, da literatura popular em versos do Nordeste do Brasil, enquanto expressão mais direta e a mais fiel dos sentimentos ou da consciência popular das populações rurais dessa grande região. Por população rural, compreendemos as pessoas que vivem no interior, nos sertões, ou daí originárias. Não nos parece lógico que, pelo fato de emigrar para Recife, Rio de Janeiro ou São Paulo, as pessoas percam fundamentalmente a sua bagagem cultural, seu comportamento psíquico e sentimental, e outros elementos que compõem e condicionam a sua visão do mundo. Essa questão, que para nós já é uma resposta, foi sugerida por todos esses folhetos que “cantam” sem descontinuar as esperanças messiânicas representadas por um Antônio Conselheiro e outros iluminados, pela “sacralidade” de um Padre Cícero e sucessores, pelas aventuras terrestres e extraterrestres de um Lampião e de um Antônio Silvino, assim como pela “dessacralização” ou desmitificação da eternidade, do Além. O Inferno e o Céu, este de maneira menos continuada, são apresentados e glosados como lugares de lutas e disputas, de ambições e de pelejas bem humanas, como no nosso querido planeta Terra. Amém!

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(5) GALVÃO, Walnice Nogueira. "Fiction Moderne et Représentation Médiévale: un cas”. In: Idéologies, Littérature et Société en Amérique Latine. Edição da universidade de Bruxelles, 1975.

- 186Observamos, outrossim, que a poesia popular revela um conceito muito natural diante da morte. Esta decorre de uma continuação, de um segundo ato de uma mesma peça, que não tem fim. Os poetas populares, ou as populações que eles interpretam, procurariam a explicação ou a justificação de uma vida terrestre de curto tempo, de certa maneira frustrante. Explicações não encontradas na Terra continuam a ser procuradas no Além: Conselheiro, Padre Cícero e Silvino estão nos céus; Lampião e Satanás disputam o império dos infernos; o camponês e o acordeonista procuram alianças malditas para iludir suas dificuldades terrestres. Enfim, são válvulas de escape para compensar as incompreensões dos "mistérios" deste mundo.Finalmente, gostaríamos de colocar dois problemas que não foram expressos formalmente ao longo deste trabalho, mas se encontram subjacentes em muitas ocasiões, e mesmo em algumas formulações.Dissemos na introdução deste estudo que empregaríamos uma certa dose da pesquisa sociológica para analisar alguns aspectos culturais do Nordeste brasileiro, sem com isso pretender chegar a resultados de uma análise propriamente científica. Nossa intenção foi de pôr em paralelo, de vez em quando, a literatura popular em verso com a literatura dos letrados, e de comparar essas duas tangentes da cultura regional e brasileira com os sentimentos e a realidade social e cultural dos sertões e do Nordeste em geral. Sobretudo,este nosso trabalho permanece um estudo literário, pois ele se baseia essencialmente sobre material escritoou oral da poesia popular.Eis porque consideramos que a literatura de cordel deve ser vista e apreciada no sentido mais amplo possível. Trata-se, a nosso ver, do fenômeno cultural mais expressivo e representativo da região. Ela é o espelho mais fiel do Nordeste profundo, do Sertão, dos campos, do interior. Seus heróis, seus cangaceiros, seus santos, suas crenças e mitos são o símbolo, a representação, dos homens e das mulheres desse amplo e populoso Nordeste. Estamos convencidos, na qualidade de pesquisador e de sertanejo, que é possível e viável conhecer a realidade social objetiva, assim como as indagações espirituais e filosóficas do povo do Nordeste e de boa parte do Norte do Brasil, através da leitura e do estudo desses livrinhos que são os folhetos de cordel, atualmente, com um bom século de existência escrita. A grande dificuldade, porém, para a sistematização de um estudo está no problema das datas das primeiras produções. Mas isso poderá ser compensado pelo testemunho pessoal de muitos poetas populares que vivem atualmente e continuarão a poetar por muitos anos. Também pode-se interrogar as pessoas de suas famílias, amigos e contemporâneos. Enfim, todo um material de suporte socioantropológico a explorar.Na mesma linha de estudo, podem-se ainda consultar os jornais e as publicações do interior, atuais e antigos, que se podem encontrar nas bibliotecas, prefeituras e círculos literários que podemos ainda descobrir por estes sertões afora. Descobertas importantes poderiam ser feitas, seja por intermédio de publicações difíceis de encontrar nos mercados ou pela audição e informação da versão oral do cordel, talvez a mais original e pura, a “cantoria”.

- 187 -Finalmente, para concluir este trabalho, deixamos aqui a ideia de que outras pesquisas devem continuar no mesmo terreno da poesia e da cultura populares nordestinas em geral. Este é o propósito que pretendemos expor nas linhas anteriores. A literatura de cordel, ainda bastante viva e produtiva, talvez não será eterna. Sobretudo em face do “ataque” possante dos aparelhos audiovisuais contemporâneos.Walter Tenório Pontes

188BIBLIOGRAFIA

- 189 -A) TEXTOS UTILIZADOS E CITADOSI - Bibliografia geralALENCAR, José de. O sertanejo. Rio de Janeiro: Aguilar, 1955.ALIGHIERI, Dante. La Divine Comédie. Paris: Albin Michel, 1950.________________. Oeuvres Complètes. Traduction et Commentaires d'André Pezard.Paris: Gallimard, 1965.________________. Avec une étude et choix de textes de Lucienne Portier. Paris: Editions Pierre Seghers, 1965.ALMEIDA, José Américo de. A bagaceira, Rio de Janeiro: José Olympio, 1971.ALVES, Joaquim. Nas fronteiras do Nordeste. Ceará: Typografia Urânia, s/d.AMADO, Jorge. ABC de Castro Alves. São Paulo: Martins, 1945. . Jubiabá. São Paulo: Martins, 1960.ANDRADE, Mário de. Danças dramáticas do Brasil. São Paulo: Martins, 1959.AZEVEDO, João Lucio de. Bandarra e o Sebastianismo. In: Boletim da Segunda Classe. Academia das Ciências de Lisboa, Coimbra, 1918, Tomo XI.BASTIDE, Roger. Imagens do Nordeste Místico, em preto e branco. Rio de Janeiro: O Cruzeiro, 1945.BASTIDE, Roger. Prefácio a Poemas: 1922-1953, de Ascenso Ferreira.HOLANDA, Aurélio Buarquede. Prefácio a Pedra Bonita, de José Lins do Rego. HOLANDA, Sérgio Buarque de. Visão do Paraíso ( os motivos edênicos no descobrimento e colonização do

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Brasil), Rio de Janeiro, José Olympio, 1959.CALAZANS, José. No Tempo de Antônio Conselheiro. Bahia, 1959.

- 190 -CANTEL, Raymond. Prophétisme et Messianisme dans l'oeuvre d'Antônio Vieira. Paris: CNRS, 1960.CARNEIRO, Edison. Candomblés de Bahia. Publicações do Museu do Estado da Bahia, 1948._________________. O folclore nacional. Rio de Janeiro: Editora Souza, 1954._________________. Os doze pares de França. In: Cadernos brasileiros, n. 45. Rio de Janeiro, 1968.CUNHA, Euclides da. Os sertões. Rio de Janeiro: Laemert et Cia. 1903._________________. Os sertões. 13. ed. Rio de Janeiro, 1933.DANTAS, Paulo. Os sertões de Euclides da Cunha e outros sertões. São Paulo: Conselho Estadual de Cultura, 1962.ELIADE, Mircea. Aspects du Mythe. Paris: Gallimard, 1963.FACÓ, Rui. Cangaceiros e fanáticos. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1965.FERNANDEZ, Lorenzo Joaquim. As casas dos mortos. In: Actas do Congresso Internacional de Etnografia de Santo Tirso, vol. 2, 29. sec. Lisboa, 1965 .FERREIRA, Ascenso. Poemas - 1922-1953. Recife: Editora I. Nery da Fonseca, 1955.FERREIRA, Aurélio Buarque de Holanda. Novo Dicionário Aurélio. l. ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1975.FERREIRA, Jurandyr Pires. Enciclopédia dos municípios brasileiros. Rio de Janeiro: IBGE, 1958.GALVÃO, Walnice Nogueira. Fiction Moderne et représentation médiévale: un cas. In: Ideologies, Littératureet société en Amérique Latine. Bruxelles: Editions de l'Université de Bruxelles, 1975.GOMES, Dias. A revolucão dos beatos. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1972.____________. O pagador de promessas. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1972.LE LANNOU, M. Le Brésil. Paris: Armand Collin, 1955.LEAL, Victor Nunes. Coronelismo: the municipality and representatif governement in Brazil. Cambridge: Cambridge Latin American Studies, 1977.LEITE, Antônio Áttico Souza. Memória sobre a Pedra Bonita ou Reino Encantado. In: Revista do Instituto Archeológico de Pernambuco. Tomo XI, Recife, 1903/4.

- 191 -MASSERON, Alexandre. Index avec une introduction à la bibliographie dantesque. Albin Midhel, 1950.____________________. Pour comprendre la Divine Comédie. Paris: Desclés, De Brower, 1939. MEYER, Mauritz. Quelques thèmes médiévaux d'imagerie populaire. In: Actas do Congresso Internacional de Santo Tirso, 29. sec. Lisboa, 1965.MONBEIG, Pierre. Le Brésil. Paris: Presses Universitaires Françaises, 1968.MONTAIGNE. Essais. Tome I. Paris: Editions Garnier Frères, 1962.MOREL, Edmar. Padre Cícerro, o Santo de Juazeiro. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1966.MOURALIS, Bernar. Les Contre-Littératures. Paris: PUF, 1975.QUEIROZ, Maria Isaura Pereira de. Classifications des Messianismes Brésiliens. In: Archives de Sociologie des Religions. n.5, Clermont-Ferrand._____________________________. Réforme et révolution dans les sociétés traditionnelles. Paris: Editions Anthropos, 1968._____________________________. O messianismo no Brasil e no mundo. São Paulo: Dominus, 1965.

- 192 -QUEIROZ, Rachel de. A beata Maria do Egito. Rio de Janeiro: José Olympio, 1958.RAMOS, Graciliano. Vidas Secas. Rio de Janeiro: José Olympio, 1965.REGO, José Lins do. A Pedra Bonita, Rio de Janeiro: José Olympio, 1956.________________. Fogo morto. Lisboa: Livros do Brasil, s/d.RENAN, Ernest. Histoire des origines du christianisme: l'Antéchrist. Paris: Calman-Levy, 1924.ROCHA, Glauber. Revisão crítica do cinema brasileiro. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1953.ROMERO, Sílvio. Contos populares do Brasil. Tomos I e II. Rio de Janeiro: José Olympio, 1954. SUASSUNA, Ariano. Romance da Pedra Bonita. Rio de Janeiro: José Olympio, 1972._________________. O auto da compadecida. Rio de Janeiro: Agir, 1971.TEÓFILO, R. História da seca no Ceará (1877-1880). Rio de Janeiro, 1922.TEYSSIER, Paul. Formation de Recherche en Langue et Civilisation.Luso-Bresilienne. Seminário na Universidade de Paris IV, Sorbonne, 1977-78.WATCHEL, Nathan. La vision des Vaincus. Paris: Gallimard, 1971.

II - Orações, Cantoria e Folhetos

ASSIS, Manuel Tomaz de. Oração do Padre Cícero. In: O fim do mundo está próximo.ATHAYDE, João Martins de. Peleja de Riachão com o Diabo. Editor-proprietário filhas de José Bernardo da Silva.BATISTA, Francisco das Chagas. A história de Antônio Silvino.CAVALCANTE, Rodolfo Coelho. Antônio Conselheiro, l.ed. Salvador, 1977.DANTAS, Zé; GONZAGA, Luiz. A Volta da Asa Branca. In: Modinhas. n.6. São Paulo: Luzeiro Editora, s/d.

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GONÇALVEZ, Severino. A moça que virou cobra.LEITE, José Costa. A força do Credo. In: A vinda da Besta-Fera._______________. Bendito. In: O Frei Damião sonhou com o Padre Cícero Romão._______________. A Briga de Antônio Silvino com Lampião no Inferno._______________. A vaca misteriosa que falou profetizando._______________. A vinda da Besta-Fera._______________. A voz de Frei Damião._______________. O Diabo e o camponês_______________. O Frei Damião sonhou com o Padre Cícero Romão._______________. O sanfoneiro que foi tocar no Inferno._______________. O Satanaz reclamando a corrução de hoje em dia._______________. Peleja do embolador de côco como o Diabo.MAXADO NORDESTINO (Machado, Franklin). Profecias de Conselheiro (O sertão já virou mar). 3. ed. Feirade Santana, 1976.PACHECO, José. A Chegada de Lampião no Inferno.______________. O grande debate de Lampião com São Pedro.PONTUAL, José Pedro. O crente que profanou do Padre Cícero.Ed. Edson Pinto.SANTOS, Camilo Manuel dos. Viagem a São Sarué. SARA, J. (José Aires). 1893 – História da Guerra de Canudos – 1898.SILVA, João José da. A eleição e a posse de Lampião no Infeno.SOARES, Dila. Oração do Arcanjo São Gabriel. In: O sonho de um romeiro com o Padre Cícero Romão.____________. O sonho de um romeiro com o Padre Cícero.

-193-SUASSUNA, Ariano. O castigo da soberba. In: O auto da compadecida._________________. História do cavalo que defecava dinheiro. In: O auto da compadecida.

- 194 -

� III - Bibliografia especializada em literatura popular em versos

BARROS, Leandro Gomes de. Literatura popular em verso. Antologia, Tomo II. Rio de Janeiro: Casa de Rui Barbosa, 1976.CANTEL, Raymond. Les prophéties dans la Littérature Populaire du Nordeste. In: Cahiers du Monde Hispanique et Luso-Brésilien, Caravelle 15, 1970._________________. Temas da Atualidade na Literatura de Cordel. São Paulo: Universidade de São Paulo/Escola de Comunicações e Artes, 1972.DICIONÁRIO Biobibliográfico de Repentistas e Poetas de Bancada, Universidade de João Pessoa e Centro de Ciência e Tecnologia de Campina Grande (Paraíba), 1978.DIEGUES JR, Manuel. Ciclos Temáticos na Literatura de Cordel. In: Literatura popular em versos. Estudos, Tomo I. Rio de Janeiro: Casa de Rui Barbosa, 1953.Literatura Popular em Verso. Antologia, Tomo I, Rio de Janeiro: Casa de Rui Barbosa, 1964.Literatura Popular em Verso. Catálogo, Tomo I, Rio de Janeiro: Casa de Rui Barbosa, 1961.Literatura Popular em Verso. Estudos, Tomo I, Rio de Janeiro: Casa de Rui Barbosa, 1973.MAIOR, Mário souto. Prefácio à literatura popular em verso. Antologia, Tomo II.MOTA, Leonardo. Cantadores (poesia e linguagem do sertão cearense). Fortaleza: Imprensa Universitária do Ceará, 1961.PONTES, Walter Tenório. La Prépondérance Masculine dans la Littérature Populaire du Nordeste du Brésil. Paris: Sorbonne-Nouvelle, 1976/77.____________________. Machismo, literatura de cordel. Lisboa, Edições Rolim.RODRIGUES DE CARVALHO. O cancioneiro do Norte. Rio de Janeiro: Ministério de Educação e Cultura, 1967.ROMERO, Sílvio. Contos populares do Brasil. Rio de Janeiro: José Olympio, 1954.

- 195 -______________. A Poesia Popular no Brasil, Rio de Janeiro: José Olympio, s/d.

-196 -B) TEXTOS UTILIZADOS

ALMEIDA, José Américo de. O boqueirão. Rio de Janeiro: Editora Leitura, 1971.AMADO, Jorge. Capitães da areia. São Paulo: Martins, 1958.AMEAL, João. Littérature portugaise. Paris: Editions du Sagitaire, 1949.BARTHES, Roland. Le degré zéro de l'Ecriture, Paris: Editions du Seuil, 1953.________________. Critique et Vérité. Paris: Editions du Seuil, 1966.BORBA FILHO, Hermílio. A donzela Joana, Petrópolis: Vozes, 1966._____________________. História do espetáculo, O Cruzeiro, Rio de Janeiro, 1968.CARNEIRO, Edison. O Quilombo dos Palmares. São Paulo: Companhia Editora Nacional, 1958.

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_________________. A linguagem popular da Bahia. Riode Janeiro: Edição do autor, 1951.CHARPENTREAU, J .; KAES, R. La Culture Populaire en France. Paris: Les Editions Ouvrières, 1962.DUARTE, Florentino; PACHECO, José; SOARES, José; LEITE, José Costa; BATISTA, Abrão. Literatura de cordel. Antologias, Tomos I e II. São Paulo: Global, 1976.ESCARPIT, Robert (sous la direction de). Le littéraire et le social. Paris: Flammarion, 1970.GOLDMAN, Lucien. Pour une Sociologie du Roman. Paris: Gallimard, 1964.LUKÁCS, Geyörgy. Histoire et conscience de classe. Paris: Les Editions de Minuit, 1960.MELO NETO, João Cabral de. Morte e Vida Severina, Rio de Janeiro: José Olympio, 1974.PORTO, Adolpho Faustino. O município. Esse desconhecido. Prefeitura do Recife, 1959.

- 197 -QUEIROZ, Rachel. O caçador de tatu. Rio de Janeiro: José Olympio, 1967.RAGAN, Michel. Histoire de la Littérature Prolétarienne en France, Albin Michel, 1974.RAMOS, Graciliano. São Bernardo. São Paulo: Martins, 1969.ROSA, João Guimarães. Grande sertão: veredas. Rio de Janeiro: José Olympio, 1968.ROSENFELD, Anatol. Prefácio a Teatro de Dias Gomes. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1972.

- 198 -ÍNDICE ONOMÁSTICOAIRE, José (J. Sara): 21ALENCAR, José: 59ALIGHIERI, Dante: 9, 59, 120, 121, 138, 141, 144, 152, 154ALMEIDA, José Américo de: 114ALMEIDA, Horácio de: 134ALVES, Joaquim: 5, 11AMADO, Jorge: 45, 52, 54, 59ANDRADE, Mário de: 40, 114, 125ASSIS, Manoel Tomaz de: 106, 113, 114ATHAYDE, João Martins de: 11, 120, 121, 122, 125, 127, 129, 132, 134, 135AZEVEDO, João Lucio de: 47BANDARRA, Gonçalo Anes: 38BARROS, Leandro Gomes de: 134BARTOLOMEU, Floro: 99BASTIDE, Roger: 6, 11, 106, 113, 145, 153CALAZANS, José: 30, 34, 40, 41CAMÕES: 51CANTEL, Raymond: 10, 21, 29, 34, 40, 52, 71, 72, 74, 77, 87, 113, 167CARNEIRO, Edison: 125, 153CAVALCANTE, Rodolfo Coelho: 4, 10, 11, 14, 15, 17, 18, 19, 20, 21, 28, 29, 38CUNHA, Euclides da: 4, 10, 15, 18, 21, 21, 24,.28, 29, 42, 59, 60, 69, 85, 87, 114, 116, 118, 120, 125DANTAS, Paulo: 125DANTAS, Zé (José): 29DIAS, Baltazar: 55, 121DIEGUES JR, Manuel: 29, 52, 54, 59ELIADE, Mircea: 160FACÓ, Rui: 21, 21, 41, 42, 49, 52, 99, 100FERNANDEZ, Joaquim Lorenzo: 116, 120FERREIRA, Aurélio Buarque de Holanda: 25, 38, 29, 69, 87, 90, 113, 125, 148FEUARDENT, François: 77FREITAS, Geraldo de: 6GALVÃO, Walnice Nogueira: 40, 251GOMES, Dias: 50, 52, 59, 62, 69, 112, 114GONÇALVEZ, Severino: 44, 52, 52, 59, 99GONZAGA, Luiz: 29KUBITSCHEK, Juscelino (Presidente): 108LANNOU, M. Le: 12, 158LEAL, Victor Nunes: 29LEITE, Antônio Áttico Souza: 57LEITE, José Costa: 11, 61, 63, 65, 68, 69, 77, 79, 80, 82, 85, 87, 99, 100, 103, 111, 114, 118, 120, 128, 133,134, 135, 136, 138, 140, 142, 143, 144, 146, 152, 153, 170, 171, 174, 175, 176, 180, 181MAIOR, Mário Souto: 100MASSERON, Alexandre: 59, 144MAXADO NORDESTINO (MACHADO FRANKLIN), 34, 35, 37, 38, 41, 42MEYER, Mauritz: 53, 59MONBEIG, Pierre: 152MONSARAZ, Conde de: 121MOREL, Edmar: 5, 11, 17MOTA, Leonardo: 113NOSTRADAMUS: 100PACHECO, José: 11,22, 118, 170, 171, 172, 178, 180, 181

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PEREIRA, Ascenso: 48, 49, 52, 96, 100, 106PEZARD, André: 120, 145PINTO, Edson: 97PONTES, Walter Tenório: 11, 29, 40, 77, 120, 146PONTUAL, José Pedro: 120, 145, 97PROENÇA, Ivan Cavalcante: 100, 121PROENÇA, Manuel Cavalcante: 85, 87QUEIROZ, Maria Isaura Pereira de: 4, 10, 11, 21, 41, 42, 59, 99QUEIROZ, Rachel de: 52, 56, 59 52RAMOS, Graciliano: 59REGO, José Lins do: 15, 28, 29, 38, 78, 87, 114, 120RENAN, Ernest: 22, 52, 113RIACHÃO, Manuel: 169ROCHA, Glauber: 79, 87RODRIGUES DE CARVALHO: 113ROMERO, Sílvio: 29, 41, 102, 113, 114SENA, Joaquim Batista de: 118SANTOS, Manuel Camilo dos: 40, 47SARA, J. (José Aires): 14, 21, 26, 27, 29, 30, 31, 33, 34, 40, 41SILVA, João José da: 119SOARES, Dila: 16, 88, 89, 91, 92, 93, 94, 97, 98, 99, 100, 113, 114SOARES, José: 119, 161, 162, 167SUASSUNA, Ariano: 25, 29, 38, 52, 55, 59, 64, 69, 99, 100, 104, 113, 114, 125TÉÓFILO, R.: 114TEYSSIER, Paul: 104, 113, 123, 125VIANY, Alex: 87VICENTE, GIL: 104, 113, 123, 125VIEIRA, Antônio: 62, 71, 72VIRGÍLIO (Publius Virgilius Maro): 120WATCHEL, Nathan: 10

- - - - - - - - - - - - - - - - - -

Concepção de messianismo, Misticismo e religião , O além-túmulo eternidade .

Notas à introdução 10

PRIMEIRA PARTE: MESSIANISMO SERTANEJOCapítulo IMessias Antônio Conselheiro 14Canudos e outros movimentos messiânicos 14Antônio Conselheiro preocupa o clero 14Emissário divino 15Construção da Nova Jerusalém 17Notas ao capítulo I 21

Capítulo IIMessianismo cooperativista 23Construtor de igrejas 24Profeta da esperança 26Vigário de uma religião mestiça 27Um verdadeiro missionário 27Notas ao capítulo II 29

Capítulo IIIConselheiro e o sebastianismo 31Poetas nacionalistas 31Conselheiro contra a República 33D. Sebastião no sertão da Bahia 33Inferno se transforma em Céu 35Notas ao capítulo III 40

SEGUNDA PARTE: O APOCALIPSE NO NORDESTECapítulo IPadre Cícero, Vigário de Juazeiro 43Juazeiro do Norte, a Nova Jerusalém 44Um deus de carne e ossoCrença e castigo 50A Terra purificada pelo sangue e o fogo 50Notas ao capítulo I 52

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Capítulo IIUm castigo medieval 53Pessoas transformadas em animais 54A onça, animal sagrado 56Uma moça transformada em cobraProtestante transformado em jegue 57Notas ao capítulo II 59

Capítulo IIIUma religião mestiçaOs fetichismos indígena e africanoProfecias em forma de folhetosA flauta encantadaApocalipseNotas ao capítulo III

Capítulo IVA vinda da Besta-FeraA Besta-Fera e outros mitosA Fera no século XVIINúmeros apocalípticosA Fera chegará antes de 1980Notas ao capítulo IV

Capítulo VA voz de Frei DamiãoOs santos, os cangaceiros e a políticaDeserto vai virar marProfecias contraditóriasNotas ao capítulo V

Capítulo VIUm sonho extraordinárioRomaria a JuazeiroComo escapar do holocaustoA esperança messiânica continuaPadre Cícero recebido pelo Papa Notas ao capítulo VI

Capítulo VIIAs orações popularesA oração talismãMundo místico do sertãoOração popular contra as profeciasComo evitar a fome, a peste, a seca e a guerraEvitar um exemploO vendedor de oraçõesNotas ao capítulo VII

TERCEIRA PARTE: A VIDA DO ALÉM-TÚMULO – O INFERNO NO SERTÃOCapítulo IDante e os poetas populares 115Os Guias no Inferno 115Culto dos mortos 116A passagem de uma vida à outra 117As aventuras de Lampião no Inferno 118Notas ao capítulo I 120

Capítulo IIO cantador Riachão contra o Diabo 121Desafio de um cantador fantástico 122Simbolismo das cores 122Amarelo, cor da astúcia 123Mau cheiro do enxofre 123Notas ao capítulo II 125

Capítulo IIIUm personagem diabólico 126O Diabo é preto? 126Um poeta contra a ciência 129Culto ao Diabo 130

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Divindades infernais contra divindades celestes 132Notas ao capítulo III 134

Capítulo IVUma festa no Inferno 136Sanfoneiro contratado por SatãDistância e itinerário para o Inferno 138Um baile danado 140Como sair do Inferno 142Notas ao capítulo IV 144

Capítulo VDiabo agricultor 147Trigo no sertão 146Um camponês nas malhas de Satã 148Galo canta à meia-noite 149Sanfoneiro tem mais sorte que o camponês 150Notas ao capítulo V 152

Capítulo VIInferno é três vezes maior que o mundo 154Revoluções infernais 155Eleição democrática 156Lampião toma posse 157Paraíso no Inferno 158Notas ao capítulo VI 160

Capítulo VIILampiãoNotas ao capítulo VII

Capítulo VIIIEncontro no Céu do mal e do bem 169Mito e ritos do renascimento 170Transportes cósmicos 172Lampião e Satã no Céu 173Coexistência entre o bem e o mal 179Notas ao capítulo VIII 180

REFLEXÕES E CONCLUSÃO 182Os cangaceiros, heróis do povo e elite da cultura popular, e cultura, uma convergência erudita 183185Representatividade e legitimidade da poesia popular 186Perspectiva de pesquisas 187Bibliografia 188Índice onomástico 198Xilogravuras 202- 1 -IntroduçãoSeria o messianismo um componente do sentimento individual e do comportamento social do povo do Nordeste do Brasil? Afirmá-lo seria peremptório, negá-lo, muito arriscado.A elaboração e a defesa de uma tese devem supor, necessariamente, senão opiniões favoráveis ou desfavoráveis, pelo menos, um acordo de princípio sobre os temas a abordar.Estas primícias, corretas do ponto de vista formal, ou formador, manifestam-se muito limitativas durante um trabalho de pesquisa à medida que se avança no terreno anteriormento escolhido. É por isso que o trabalhode pesquisa científica deve ser concebido da maneira mais maleável e livre possível. Agindo assim, o pesquisador terá como única obrigação, como única lei, a realidade do terreno de estudo e, em consequência, a sua pesquisa avançará objetivamente apoiada na realidade. Mas é necessário dizer que a "objetividade" não é coisa simples.Há momentos, talvez muitos, durante os quais ela não é explícita. É preciso procurá-la, interpretá-la, compreendê-la e, sobretudo, interrogá-la.Eis aí o método que dirigiu o nosso trabalho. Sem pretender o título de pesquisa sociológica, não poderíamos deixar de solicitar a ajuda de uma metodologia sociológica de análise e de interpretação. Em o fazendo, procuramos compreender uma parte do fenômeno social e cultural da sociedade nordestina do Brasil, em particular a dos sertões.A poesia popular, a literatura de cordel, é, com efeito, uma manifestação social e cultural, mais que uma manifestação literária na sua concepção clássica.O conhecimento ou a procura das belas-letras não devem ser a preocupação dos poetas populares.Quanto ao nosso trabalho, é preciso dizer que não partimos do exame direto do terreno físico e social, mas sobretudo do fato cultural, da expressão literária, da poesia popular, na sua forma escrita, a literatura de cordel. Os modestos e simpáticos folhetos são a nossa matéria-prima. Desse modo, ficaremos no reino "literário", embora essencialmente popular.

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Passemos, então, a algumas definições que nos parecem indispensáveis para a compreensão deste trabalho.Primeiramente, falemos de popular. Devemos compreender esta expressão como "o que vem do povo, feito pelo povo". Esta concepção apresenta certos inconvenientes, especialmente em sua definição ideológica, no sentido de que o termo popular, do povo, nem sempre corresponde ao que consideramos ser o verdadeiro interesse do povo, como classe social mais numerosa e menos favorecida. Mas este "conceito social" não convém quando falamos de poesia popular do Nordeste brasileiro. Esta poesia ou literatura de cordel é popular na medida em que é produzida por representantes da classe ou de camadas populares, as mais numerosas e as mais desfavorecidas da sociedade agrária da região, ela mesma, pouco desenvolvida social e economicamente.

- 2 -Então, qual é o interesse e o "charme" da literatura de cordel? Primeiramente, ela é a manifestação imediata, ingênua, de um passado e de um presente sobre o qual foi construído e desenvolvido todo um sistema de civilização dominante, ao serviço das camadas mais favorecidas. Os nossos poetas populares nem sempre reagem como representantes da cultura dominada, sob um ângulo de visão dos vencidos, como diria N. Wacthel (1), mas como vulgarizadores da história e dos ensinamentos recebidos ao longo dosséculos. Não obstante, a poesia popular nos aparece como a mais autêntica expressão "mensurável" de uma comunidade ou população determinada. Sua forma repetitiva, às vezes improvisada, aparece como umespelho social e sociológico do povo sertanejo em geral.

Em seguida, o que nos atrai na poesia popular, particularmente na literatura de cordel, é o fator estético, seu vocabulário, sua sintaxe, sua entonação, sua rima e seu ritmo que são indênticos aos do falar da regiãode onde ela é originária. Os poetas populares não são imitadores nem tradutores. Eles são a voz mais próxima, a mais direta, a mais autêntica dos meios socioculturais de onde eles surgem e aos quais eles se endereçam.Eis aí como compreendemos a palavra popular, em especial na concepção da poesia popular, que neste trabalho se aplica à literatura de cordel do Nordeste do Brasil. Aqui nos apoiamos sobre uma afirmação importante, uma espécie de "declaração de princípio" de alguém que estudou, ensinou e acompanhou a literatura de cordel durante mais de dois decênios, declarando que estamos diante "da única forma de literatura realmente lida e ouvida pelo povo" (2). Tratando-se de um país de mais 200 milhões de habitantes,essa declaração parece-nos ainda mais importante e deve nos fazer refletir ainda mais.Passemos agora à questão inicial deste trabalho, precisamente as concepções do vocábulo messianismo. Todavia, antes de tentar responder a essa interrogação, o que seria resumir antecipadamente o conteúdo deste trabalho, vamos tentar fazer as aproximações semânticas que nos inspiraram os folhetos de cordel, classificados, a priori, no campo temático do messianismo, isto é, do messianismo do Nordeste.Sabemos que messianismo é definido habitualmente como “a crença no messias”; sendo este o ser excepcional que conduzirá o povo eleito ao paraíso terrestre. O paraíso pode ser simbolizado, como nas religiões judaico-cristãs, pela cidade de Jerusalém ou outras "cidades santas" que possam responder às mesmas aspirações de redenção.Ora, todos esses acontecimentos, que chamaríamos sociorreligiosos, que se produziram no Nordeste nas últimas décadas do século XIX e nas primeiras de nossa época, que tiveram como fonte de inspiração um personagem excepcional (um messias ou profeta) e como cenário uma crença "religiosa" manifestada por um comportamento coletivo de caráter fanático, podem ser classificados facilmente no campo geral do messianismo. O messias e os acontecimentos compõem os elementos do quadro e da estrutura indispensáveis ao surgimento da crença e do movimento messiânico (3).

- 3 -Em termos de Nordeste, quando e como encontraremos os messias e seus messianismos? Veremos as personagens e os acontecimentos mais importantes da história "místico-religiosa" ou dessa religião popular a partir do século XIX, através do olhar e da voz dos poetas populares da região. A literatura erudita, originária do Nordeste, que se inspirou nos mesmos termos, não será ausente neste trabalho. Em particular,tentaremos ressaltar as proximidades de pensamento e de linguagem que são bastante frequentes.Poetas populares e escritores eruditos passeiam lado a lado neste universo cultural que se chama Nordeste. Parece-nos que as origens sociais diferentes e as possibilidades intelectuais e materiais tão distantes umas das outras não impediram essas duas formas e expressão socioculturais de manifestar uma mesma visão de mundo.Algumas personagens marcaram a história do Nordeste, sobretudo no nível das camadas populares e médias do campo, das vilas e das cidades do interior. Esses personagens místico-religiosos tiveram enormeinfluência sobre as populações e os acontecimentos sociais dos sertões. � verdade que outras regiões do Brasil conheceram também outros acontecimentos carregados de misticismo, mas nunca com tanta intensidade e profundidade.Pensamos no fenômeno da crença mística, nos poderes miraculosos de certas pessoas e no dogma da infalibilidade de certas ideias.Poderiamos pensar que existe uma tendência religiosa intrínseca às populaçoes nordestinas. Mas esse cárater propriamente religioso não pode ser defendido em relação aos habitantes das campanhas; talvez setrate de um caráter carismático e supersticioso, de medo. Essas populações, historicamente abondanadas àsua triste sorte, desenvolveram cultos e crenças como uma fuga para a frente à procura de compreensão e de solução para suas augústias e solidão. Respostas desesperadas apareceram, calmantes e lenitivos paraesses males materiais e espirituais. Misticismo e profetismo encontraram um terreno favorável, ajudados por

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toda sorte de agentes sociais, preponderantes e interessados, da sociedade dominante do Nordeste brasileiro que puderam intervir nos momentos oportunos.É nesse quadro histórico e sociocultural que a literatura de cordel se desenvolveu, como a literatura erudita. Elas foram, e ainda são, o reflexo desse complexo místico-religioso que tentamos estudar.Esta problemática é apresentada às vezes diretamente, abordando personagens e acontecimentos históricos, suas vidas, milagres e aventuras; outras vezes por intermédio da ficção, da imaginação mais ou menos intelectualizada. Nesta ordem de ideias, duas personagens mereceram a atenção e a estima previlegiadas dos poetas: Padre Cícero Romão Baptista (4) e Antônio Conselheiro (5).Verems também Frei Damião (6), sucessor do primeiro, que, no entanto, não atingiu o mesmo nível de popularidade. Os acontecimentos místicos e muito mitificados da história do Nordeste, como Canudos (7) e Pedra Bonita (8), completarão o quadro de nossas pesquisas. A literatura de cordel e a erudita se impregnaram e se inspiraram enormemente desses elementos.

-4 -A este nível desta introdução, julgamos necessário explicar o significado da expressão místico-religioso, utilizada ao longo deste trabalho, principalmente na segunda parte. Somos conscientes de que o emprego sobretudo do vocábulo místico não corresponde sempre à sua definição clássica e corrente na Europa, isto é, de uma doutrina religiosa que procura atingir a perfeição pela contemplação até alcançar o estado de êxtase. Mas nós não vacilamos em adotar a definição e o uso feito desse vocábulo no Brasil, em particular no Nordeste, seja entre os poetas populares, seja na literatura erudita, como entre os cientistas sociais, sociólogos, etnólogos e historiadores. Místico significa globalmente tudo o que diz respeito a uma religião, à crença espiritual e ao sobrenatural. A palavra é empregada nessa acepção ainda mais quando se trata de descrever ou se referir a ideias e práticas religiosas consideradas como estranhas e misteriosas. Místico e misterioso estão muito próximos quando se tem que tratar de crenças e manifestações do espírito, no sentido religioso, sobrenatural e mesmo das ciências ocultas.Vejamos a seguir alguns exemplos da utilização de mística e misticismo:

R-uiu todo misticismoO-nde a falsa pregaçãoD-issipou milhares de vidasO-bscurecendo o sertãoL-ivre Deus. Pai Verdadeiro,F-indo Antônio ConselheiroO-utro não apareça, não. (9)

Eis como o poeta popular Rodolfo Coelho Cavalcante que, aliás, aplica seu nome ao acróstico final de seu folheto, concebe as atividades do profeta de Canudos: "Todo o misticismo caiu".Se agora olharmos do lado histórico, veremos o indispensável Euclides da Cunha dar a mesma interpretação. O extrato seguinte foi escolhido entre muitos outros com o mesmo sentido:“[...] todas as crenças, ingênuas, do fetichismo bárbaro às aberrações católicas, [...] se condensaram no seumisticismo feroz e extravagante [...]". (10)Euclides da Cunha não resistiu, então, a associar as crenças fetichistas dos índios autóctones às aberrações católicas para compor o misticismo do Conselheiro.Seguindo a mesma linha relativa a compreensão e emprego dos vocábulos místico ou misticismo, embora analisando mais profundamente o aspecto messiânico dos acontecimentos, vejamos o que nos diz, mais próximo de nós, a socióloga Maria Isaura Perreira de Queiroz: “encontramos então nos movimentos messiânicos um tipo determinado de religião, definido pela existência de dois temas místicos básicos, [...] mas só serão messiânicos os que tratarem da instalação do Milênio por um enviado divino”. (11)

- 5 -Messianismo e misticismo, assim, são difíceis de se separar quando se trata do Brasil.No que concerne ao Padre Cícero e à cidade santa de Juazeiro, a denominação e associação de misticismoe religião são totalmente generalizadas, embora não encontremos muitos poemas populares em que o vocábulo seja expresso; é a ideia que é implícita. Entretanto, nos textos eruditos, é a regra geral. Veja-se a impressão do jornalista Edmar Morel, que não hesita em insistir com o mesmo tema:"Senti, ao primeiro contato com o povo, que o Padre Cícero deixara uma cidade nas trevas do analfabetismo e de um profundo misticismo”. (12)E sobre Padre Cícero:"Dominavo-o, nesse tempo, fundo misticismo". (13)E, aliando o misticismo às atividades sobrenaturais do taumaturgo, o jornalista testemunha no sentido do que Padre Cícero era:"Influenciado por estranho e profundo misticismo, acreditava nos milagres [...]" (14)Segundo todos esses testemunhos a propósito da natureza mítico-religiosa dos dois mais importantes messias do Nordeste, Antônio Conselheiro e Padre Cícero, e dos acontecimentos históricos sobre os quais eles exerceram todo o peso das suas personalidades, pensamos poder reivindicar significados particulares ao Brasil, e ao Nordeste em especial, do significante místico e de suas variações. Resta-nos, ainda, dar a palavra a dois sociólogos, um brasileiro e o outro francês (talvez brasileiro de coração), que se interessam muito pelas concepções globais das camadas populares a propósito das crenças religiosas ou místicas. Vejamos antes de tudo a aproximação do sociólogo Joaquim Alves:"Das questões que agitam o Nordeste, a que desperta mais interesse pela controvérsia, que vem suscitando

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há quase meio século, é por certo, a religiosa, cujo centro vital é Joazeiro, irradia-se pelos sertões, entre os rurígenas de todas as classes, a influência pessoal do Padre Cícero. Das informações colhidas nas viagens que temos feito nos sertões nordestinos e limítrofes e do estudo sobre as tendências místicas da nossa gente [...]". (14)E sobre as crenças e a atitude de certas personagens:"Pertence a todo o sertão o modo peculiar das crenças dos seus filhos, que, onde julgam necessário, erigem ermidas para renderem homenagem e dirigirem suas preces ao Deus de sua consciência". (14)

- 6 -"Perdido no meio das catingas, a visão dum místico destaca sítio onde constroe um santuário e erege seu orago". (15)Em seguida vejamos o que lemos na obra de Roger Bastide, cujo título já é bastante significativo, Imagens do Nordeste místico, em branco e preto."As religiões, crendices populares, magia negra, formas velhas e novas de manifestações sobrenaturais, todo o mundo místico que sobrenada nas águas primitivas e atuais da alma humana, foram coligidas e analisadas pelo conhecido professor." (16)Trata-se aí de comentários do crítico Geraldo de Freitas sobre o trabalho e as pesquisas de Bastide. Mas vejamos também a síntese do autor, ele mesmo, sobre o que viu a propósito da problemática das crenças e manifestações religiosas no Nordeste:"O misticismo do Nordeste não é apenas uma meditação sobre a agonia e a finalidade das coisas". (17)É necessário, desse modo, aceitar essas definições de místico e misticismo, sem o que a expressão místico-religioso empregada ao longo deste trabalho, particularmente na segunda parte, não será compreendida. A argumentação e a compreensão dos feitos e das crenças expostas pelos poetas populares, assim como as análises que fazemos, são apoiadas globalmente sobre os conceitos que se veem ser expostos.Resta agora explicar a inclusão da eternidade num trabalho no qual as duas primeiras partes têm por títulos e temas de pesquisa o messianismo e o misticismo religioso. Bem entendido, a eternidade é um velho tema de pesquisa e de especulações, desenvolvido por todas as religiões do mundo desde que elas existem. Ora, nada mais natural que esse tema acompanhe os seus “aparentados”, tratados anteriormente. Messianismo e misticismo, certamente, são considerados como parte do domínio das coisas espirituais. A esperança messiânica, a vida mística e a eternidade, "o Além", completam-se num quadro filosófico e religioso bastante lógico. Lamentamos, mas, de uma certa maneira, seremos obrigados a contrariar esse esquema lógico e naturalmente apresentado. Como teremos a oportunidade de ver durante odesenvolvimento deste trabalho, a literatura de cordel nos fornecerá materiais que oscilarão entre o religiosoe o social. Dizemos literatura de cordel porque é a versão ou as versões que nos oferecerão os poetas populares, inicialmente do messianismo e do misticismo sertanejos, e em seguida de seus conceitos de eternidade. Por eternidade, deve-se compreender a vida do Além, a vida do além-túmulo. É necessário fazer a distinção. A eternidade sugere duas ideias, dois esquemas de pensamento imediatos. O primeiro seria a concepção, digamos, religiosa. Todos os crentes dignos deste nome contam com uma vida eterna, apartir da separação da matéria e do espírito. Alguns se sentem no direito de esperar a eternidade, livres dossofrimentos e das preocupações terrestres, numa palavra, o Paraíso, ou sua etapa mais ou menos passageira, o Purgatório. Outros, procurando evitar de pensar seriamente, são menos seguros; temem um futuro eterno menos feliz como os primeiros, os "eleitos".

- 7 -Todos os crentes, em suma, serão colocados num lugar segundo suas vidas terrestres ou, mais precisamente, segundo o tipo de vida que eles viveram ou que praticaram. Suas ações no planeta Terra, boas ou más, são registradas, e todos terão de se explicar no momento oportuno.Alguns merecerão o Paraíso, enquanto os outros, os sem chance, serão enviados ao Inferno; como castigo pelos seus pecados graves, continuarão suas vidas de miséria e de má sorte ad vitam aeternam. Resumindo, é a ideia de recompensa e de castigo que é implícita na concepção religiosa de vida eterna ou de eternidade.A outra versão de eternidâde é mais vaga para não dizer fluida. Existiria uma vida eterna que prolongaria a vida do espírito, depois da separação do corpo, que nao é o espírito, no sentido religioso corrente? Seria uma espécie de fogo invisível, uma força não muito definida, qualquer coisa que existiria na atmosfera ou noAlém, mas que teria assim mesmo uma existência real, perceptível, mas não visual? Em suma, deve existir "qualquer coisa" depois da morte, mas não se sabe bem o que é nem onde ela está. É natural que esta visão de eternidade ou de vida eterna seja mais difícil de compreender e menos admitida pelos comuns dos mortais. Em comparação com a versão religiosa, com o seu esquema lógico de Inferno, Purgatório e Paraíso, a versão de vida eterna "em todos os lados e em lugar nenhum" é muito pouco compreendida. O gênero humano e, certamente, a espécie animal em geral precisam de proteção, de segurança, mesmo queesse elemento reste muito longe, veja-se utópico, é sempre uma esperança, um objetivo. Não é por acaso que se formaram todos esses messianismos, misticismos e mitos de todo gênero. A gente procura se assegurar, de uma maneira ou de outra, aqui na Terra ou no indefinido Além.Essas digressoõs nos parecem necessárias a fim de introduzir o tema da eternidade em termos de poesia popular nordestina. Os nossos poetas populares não se fecharam numa torre de marfim; eles reagem a partir de um passado e de um meio ambiente sociocultural determinados. Nós o observaremos nas primeira e segunda partes deste trabalho. A terceira parte, a eternidade, o Além, também não será qualquer coisa isolada ou abstrata. Ela seguirá certos esquemas de pensamento, refletirá um passado cultural do qual todoo mundo ocidental se mostra impregnado. Haverá inovações, quase revoluções, se nos colocarmos sob uma ótica de conceitos morais conservadores e preceitos religiosos atuais. Vejamos, assim, como isso vai

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se produzir.Primeiramente, é preciso rever as noções de eternidade.Para os poetas populares do Nordeste brasileiro, trata-se muito claramente do "Além", de uma vida além-túmulo, diríamos mesmo que para eles não há passagem entre a vida terrestre e a "outra" vida. Não há, sobretudo, separação da matéria e do espírito.Depois da morte, a vida continua para as mesmas pessoas que continuam a desempenhar o mesmo papel que anteriormente. Em geral, o papel dessas pessoas ou desses personagens não muda em nada. Muda o quadro, o cenário, a sociedade, mas os mesmos atores continuam a viver.

- 8 -Outro aspecto muito importante a destacar nessa vida do Além, construída pela poesia popular, é a ausência quase total da noção de punição, de castigo. Dizemos quase total porque há sempre alguns vestígios de punição ou de recompensa. Seria talvez mais conveniente falar de uma certa separação.Os bons e puros do nosso mundo continuariam suas vidas nos lugares bons e puros do outro mundo; os maus, os elementos nocivos, não seriam aceitos nesses lugares.Como exemplo, basta dizer que, na poesia popular, Padre Cícero e Antônio Conselheiro têm uma vida pacata no Céu, enquanto o célebre cangaceiro Lampião e os seus comparsas vivem naturalmente no Inferno, "fazendo das suas". Pode-se dizer que isso representa o esquema mais tradicional do ponto de vista religioso: os bons, no Paraíso, e os maus, no Inferno.Mas a realidade do além-túmulo é mais complexa. Parece-nos que existem noções bem pronunciadas da visão messiânica do mundo na poesia popular, mesmo quando se trata da vida do além-tumulo. Na poesia popular o assunto é bem claro, existem os "bons" e os "maus” messias, como heróis "positivos" e "negativos" (18).Vejamos alguns títulos de folhetos sobre a eternidade para facilitar a explicação:A entrada de Padre Cícero no Céu visto por uma donzela de 13 anos; (19)Antônio Conselheiro, o Santo Guerreiro de Canudos; (20)Chegada de Lampião no Céu; (21)A briga de Antônio Silvino com Lampião no Inferno; (22)A chegada de Lampião no Inferno; (23)A eleição do Diabo e a posse de Lampião no Inferno. (24)Para os dois primeiros folhetos, não há problema. Os dois profetas, após uma vida terrestre durante a qual eles pregaram a esperança messiânica da construção do Paraíso em Juazeiro e Canudos, continuam a inspirar as mesmas crenças através de sucessores ou poetas. Simplesmente, se eles chegaram ao Paraíso celeste, seu regresso ao planeta Terra é anunciado em muitos folhetos que nós veremos mais adiante.Quanto aos dois outros poemas, que serão analisados na parte 3 deste trabalho, nós podemos constatar a presunção que os célebres cangaceiros deveriam também ser recebidos no paraíso com relação a Antônio Silvino: "diz-se mesmo que lá está" (25). Seriam apenas fantasias dos poetas populares, ou existiria qualquer coisa no ar para as pessoas dos sertões? Segundo os dois últimos folhetos, a noção de Inferno, como nós veremos, muda completamente. Trata-se de umlugar muito animado, moderno e "vivo". Lampião lá se instala, é eleito prefeito e empreende melhoramentos que foram, durante muitos decênios, os sonhos messiânicos das populações das vilas e cidades do Nordeste: instalação da hidrelétrica de Paulo Afonso, irrigação dos campos, calçamento das ruas, etc. (26). Desse modo nós veremos um Inferno paradisíaco, dotado de instalações modernas, como a eletricidade. Nesse momento ocorre uma grande modificação. Esse lugar, normalmente escuro, sombrio e sem nenhumaluz, aparece muito claro e bem iluminado, graças à energia de Paulo Afonso. Isso se opõe a todas as concepções antigas que afirmam o contrário.

- 9 -Ora, se o inferno não é mais um local sombrio e escuro, ele se torna claro e alegre. Seremos informados das grandes festas que se realizam. As "pessoas" se distraem, fazem festas e muitas outras atividades. Somente essas revelações representam já uma completa revolução relativamente à "vida" no Inferno, mas, como que para reforçar suas ideias, os poetas populares põem em dúvida outros conceitos tradicionais.O Inferno não é mais um lugar de acesso irreversível, a gente pode passar sem ser obrigado de ficar ad aeternum, a gente pode fazer um passeio. A esse propósito, os poetas populares nos contam histórias de pessoas vivas que vão ao além-túmulo por algum tempo para desempenhar um trabalho determinado, cumprem os seus compromissos perante os diabos e seus pensionistas e, em seguida, voltam para casa tranquilamente. Talvez essa concepçao não seja completamente nova. Por exemplo, pensemos no poeta Dante Alighieri que, já no século XIV, fez umas viagens ao Inferno e mesmo em locais mais nobres do além-túmulo. Mas Dante foi, antes de tudo, um ser excepcional, foi o genial poeta da Divina Comédia. No Nordeste, é diferente. Não os poetas que passeiam no Inferno, mas pessoas como todo mundo, tocadores de sanfona, cangaceiros, etc.Talvez para desmistificar as ideias sobre o além-túmulo, os poetas populares nos contarão outras aventurasinfernais e diabólicas. Inferno e diabruras são considerados como uma simples continuação da vida terrestre, nada mais. Haverá certos diabos que vêm à Terra, bem fantasiados, para buscar seus clientes, às vezes pessoas de bem. Essas viagens são repetidas. Os diabos conseguem se fazer necessários e ocupar boas posições. Isto reforça a ideia de que os enviados de Satã não são tão maus assim. Isso explica a grande popularidade que eles desfrutam no Nordeste brasileiro, pelo menos na versão da literatura de cordel.Os poetas populares nos transmitem certos aspectos importantes do sentimento e da psicologia das populações rurais, ou de origem do interior do Nordeste, e talvez do Brasil, país ainda bastante ligado à

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terra, não obstante sua urbanização relativamente rápida. Messianismo sertanejo, O Apocalipse no Nordeste e A vida do Além-túmulo – o Inferno no sertão, embora sejam os títulos das três partes separadas desta tese, constituem a expressão de um conjunto de ideias manifestadas pelos modestos poetas populares, com relação às inquietudes espirituais de um povo em luta permanente contra as insuficiências sociais e culturais de toda ordem. Não é muito surpreendente ver se desenvolverem tantos comportamentose crenças, confusas, místicas e messiânicas, entre uma população tão sofredora em regiões bloqueadas historicamente por um tipo de sociedade que, em alguns aspectos, lembraria certas estruturas velhas, próximas da Idade Média, como, por exemplo, as enormes propriedades agrárias improdutivas. Tentaremos,neste trabalho, analisar o reflexo mais fiel e mais direto do sentimento e da indagação social e cultural do povo dos sertões do Nordeste, através dos versos de seus poetas populares, da sua literatura de cordel.

- 10 -1- WACTHEL, Nathan. La vision des vaincus. Paris: Gallimard, 1971.2- CANTEL, Raymond. Colóquio organizado pela universidade de Roma em 1978, sob a direção de LucianaStegagno Picchio.3- QUEIROZ, Maria Isaura Pereira de. Réforme et Révolutions dans les sociétés traditionnelles. Paris: Anthropos, 1968.4- Padre Cícero Romão Baptista, 1844-1934. Termina seus estudos eclesiásticos em 1870. Em 1872 é nomeado vigário de Juazeiro do Norte, Distrito do Crato, Ceará. Sua vila conta 32 casas à sua chegada. Em1889, ocorre o primeiro milagre do Padre Cícero, a hóstia se transforma em sangue na boca de uma fiel na hora da comunhão. Em 1897, Padre Cícero é proibido de exercer os atos religiosos. Ele vai a Roma para conversar com o Papa. Volta ao Brasil em 1888. A hierarquia mantém a proibição.5- Antônio Conselheiro, nome verdadeiro: Antônio Vicente Mendes Maciel. Os detalhes de seu estado civil são pouco conhecidos. Sobre sua família, Euclides da Cunha nos informa que "os Maciéis viviam entre Quixeramobim e Tamboril, Ceará. Vieram pela lei fatal dos tempos, a fazer parte dos grandes feitos criminosos do Ceará, em uma guerra de família". (Os sertões, p.153). Antônio Conselheiro foi o chefe espiritual do célebre acontecimento místico-religioso chamado Guerra de Canudos. Todas as informações conhecidas confirmam que ele era analfabeto ou inculto.6- Frei Damião, missionário de origem italiana, viveu no Brasil muitos anos. Aos 80 anos ainda desenvolvia grande atividade no Nordeste, onde seus sermões f oram sempre muito ouvidos.7- Canudos: lugar ou campo do sertão de Bahia, que deu nome a um dos acontecimentos místico-religiososdos mais dramáticos da história do Brasil. Esse acontecimento insurrecional teve uma tal importância que motivou na época a intervenção do governo dos Estados Unidos da América.8- Pedra Bonita: localidade situada no distrito de Vila Bela, alto sertão de Pernambuco, nos confins do Rio Pajeú. Acontecimentos de caráter místico e fanático que se produziram nos anos 1836-1837. Milhares de fanáticos dos sertões foram sacrificados a golpes de faca e outras armas brancas por ordem do chefe espiritual, o profeta popular Antônio Ferreira, o Iluminado. O profeta anunciava a chegada do reino encantado d'El Rei Dom Sebastião, o Desejado. Segundo o místico Antônio Ferreira, os dois rochedos chamados Pedra Bonita, ou porta do reino, seriam abertos depois de serem lavados com o sangue das crianças e dos inocentes.9- CAVALCANTE, Rodolfo Coelho. Antônio Conselheiro. l. ed. Salvador, Bahia, p.8.10- CUNHA, Euclides da. Os sertões.12. ed. Rio de Janeiro: Livraria Francisco Alves, 1933, p.150.11- QUEIROZ, M.I. Pereira de. O messianismo no Brasil e no mundo. São Paulo: Domínio, 1965, p.330.12- MOREL, Edmar. Padre Cícero o santo de Juazeiro. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1966, p.1.13- Idem, p.17.

14- Ibidem.15- ALVES, Joaquim. Nas fronteiras do Nordeste. Ceará: Typografia Urânia, p. VII e 162. A data da edição não é indicada, mas há uma dedicatória do autor assinada 18-VI-32.16- BASTIDE, Roger. Imagens do Nordeste místico, em preto e branco. Rio de Janeiro: Gráfica O Cruzeiro, 1945.17- Id., p. 35.18- PONTES, Walter Tenório. Machismo, literatura de cordel. Lisboa: Edição Rolim, 1981.19- ATHAYDE, João Martins de. Folheto sem data de publicação.20- CAVALCANTE, Rodolfo Coelho. Idem.21- PACHECO, José. Idem.22- LEITE, José Costa. Idem.23- PACHECO, José. Idem.24- O exemplar que possuímos desse folheto não indica o nome do autor; no entanto, no local reservado normalmente para a impressão deste nome está indicado "editor-proprietário João da Silva”. Trata-se de uma cessão de direitos relativamente corrente entre os poetas populares.25- Como o título do folheto indica, os dois famosos cangaceiros se encontram no Inferno. Uma luta gigantesca se produz entre os dois personagens que são apoiados por aliados ferrenhos. Como Lampião é apoiado por todos os diabos e pelos outros pensionistas infernais, Antônio Silvino se encontra numa posição muito difícil e em situação de vencido. Nesse momento, um feito extraordinário acontece: emissários dos Céus chegam ao Inferno para tirar o bom cangaceiro da dificuldade e conduzi-lo ao Céu. A seguir as últimas estrofes do folheto:

Porém no mesmo momentoChegou o anjo da guardae o anjo São Miguel

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cada qual com uma espadavieram tirar Silvinodaquela grande enrascada.

-12 -Os diabos tiveram medoquando os anjos ali chegaramsoltaram Antônio Silvinoarrepiados ficaramos anjos pegaram na mãode Antônio Silvino e levaram.

Entregaram ele a S. PedroS. Pedro aproximou-sedeu um abraço em Silvinodele penalizou-semandou ele entrar e dizemque ele agora salvou-se.

26- Veja-se comentário de M. Le Lannou, nota 108.PRIMEIRA PARTEMESSIANISMO SERTANEJO-14 -CAPÍTULO IO MESSIAS ANTÔNIO CONSELHEIRONenhum estudo sobre o sentimento messiânico, notadamente sobre o misticismo religioso ou leigo do povo do Nordeste, não pode desconhecer, antes de tudo, o personagem excepcional do messias Antônio Conselheiro (1) e do movimento messiânico e insurrecional de Canudos (2). É evidente que Canudos não foi o primeiro movimento ou acontecimento messiânico que se produziu no Brasil, nem mesmo no Nordeste.Outros o precederam e o seguiram (3). O século XIX bem como as primeiras décadas do século XX foram ricos em acontecimentos desse tipo. Pensamos particularmente nos movimentos messiânicos ou nas explosões rurais do Nordeste. Nestes dois últimos séculos, os acontecimentos de Pedra Bonita (4), em 1836, do carismático Antônio Ferreira, muito particularmente, que o inspiraram estudos históricos e sociológicos, como o Romance d'A Pedra do Reino, de Ariano Suassuna, e Pedra Bonita, de José Lins do Rego.Cronologicamente, chegamos aos acontecimentos de Canudos, cujo apogeu se situa em 1896-97, período marcado pela exterminação dos crentes e seguidores do movimento, executados fisicamente pelas forças armadas e policiais do Estado brasileiro da época (5). Este movimento, em particular seu chefe espiritual, Antônio Conselheiro, será o objeto de estudo desta primeira parte. A importância histórica e social bem como a repercussão popular de Canudos justificam sua escolha entre os outros acontecimentos messiânicos. Deve-se destacar a contradição que existe entre a enorme repercussão que atingiu o Conselheiro no Nordeste e no Brasil em fins do século (6), a grande esperança fanática que provocaram as peregrinações do taumaturgo e os poucos traços deixados nos meios de expressão popular da época, como, por exemplo, na literatura de cordel. Os folhetos, as cantorias, com efeito, sobre Canudos ou sobre o Conselheiro são raros. Este fenômeno é assinalado por diversos autores (7), sem que tenhamos uma explicação plausível sobre o porquê. O pouco, ou a quase ausência, de traços deixados pelos movimentos messiânicos brasileiros na literatura popular é, então, um fenômeno geral, à exceção do Padre Cícero e um pouco do messias Antônio Conselheiro. Graças aos poetas populares Rodolfo Coelho Cavalcante (8) e J. Sara (9), o messianismo do Nordeste, através do personagem extraordiário de Antônio Conselheiro e da legenda do rei Dom Sebastião, será estudado a seguir.Vejamos o folheto Antônio Conselheiro, de Rodolfo Coelho Cavalcante, que começa seu poema com informações histórico-biográficas sobre o personagem iluminado:Fim de século dezoitoNa Bahia apareceuUm Pregador cearenseQue dizia: – Quem sou eu?– Sou o Emissário DivinoSalvador do NordestinoQue ouve o conselho meu. (10)

- 15 -Não sabemos de onde vem a referência ao século XVIII. Os historiadores mais avisados e os documentos oficiais informam que a Campanha de Canudos se desenvolveu, no seu apogeu, entre 1896 e 1897. É evidente que o Conselheiro, um pregador cearence, começou suas exortações alguns anos antes dessa data. Euclides da Cunha, a maior autoridade na matéria, situa o começo das viagens desse personagem na década de 1970. Na época, o Conselheiro empreendia peregrinações nos sertões da Bahia, Sergipe e outras regiões (11). Ele avalia a duração dessas viagens nestes termos: "Na sua romaria ininterrupta de vinte anos".O conselheiro não era ainda muito conhecido, mas já o bastante para inquietar o clero da Bahia. O arcebispo do Estado fez chegar aos párocos da região uma circular para preveni-los sobre os perigos das

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atividades do Conselheiro. O arcebispo se pronunciava em termos muito significativos já em 1882; o peregrino de Canudos era acusado de abalar "as consciências, enfraquecendo, não pouco, a autoridade destes lugares" (12).É costume ver o poeta popular trocar algumas datas, assim como a origem de certas professias. Essa prática viria da vontade dos poetas que "têm liberdade" (13), ou seria simplesmente falta de informação precisa? Não se pode dizer.O que podemos é tentar algumas aproximações. É verdade que, no sentimento popular, certas ideias não são muito claras, em particular relativamente às predições místico-religiosas, às profecias e a certos acontecimentos trágicos da região nordestina. O século XIX foi especialmente repleto em matéria de acontecimentos e ajuntamentos sociorreligiosos, nos quais o fanatismo atingiu um alto grau. Já citamos Pedra Bonita (1836) e Canudos (1896-1897), mas convém lembrar o fenômeno de Juazeiro do Norte, onde o personagem central, idolatrado durante algumas décadas, foi o Padre Cícero Romão Baptista, e os acontecimentos de Caldeirão, lugar do município do Crato, Estado do Ceará, nos anos de 1936-1938 cujo profeta, o Beato Lourenço, era um dos discípulos do Padre Cícero.Esses acontecimentos deixaram traços profundos no subconsciente das populaçõess do Nordeste, sobretudo das regiões rurais, sertanejas. Como se trata do século XIX e da primeira metade do XX, pensamos que quase toda a população nodestina foi atingida, direta ou indiretamente, pelas ideias místico-messiânicas que dominaram essa série de acontecimentos.Nos primeiros versos do folheto Antônio Conselheiro, o autor nos informa que "fim do século dezoito/ na Bahia apareceu/ um pregador cearence". Como não vemos onde Rodolfo Coelho Cavalcante encontrou esta data, e diante do surgimento dos eventos místico-religiosos e sociais do século XIX, pensamos que ele se enganou simplesmente. Ainda mais, digamos que a relação entre o século e os anos não é sempre clara nos meios populares: os anos 1800 devem ser confundidos com o século XVIII.Mas deixemos a querela de datas e examinemos os outros aspectos da chegada do Conselheiro à Bahia. Segundo nosso poeta Coelho Cavalcante, o profeta se apresentava já num estilo um tanto misterioso: “Quem sou eu? / Sou o Emissário divino”.

-16 -Veja-se lá, nada menos que o “Emissário de Deus”.Como sempre acontece com esses personagens messiânicos, eles são os salvadores da humanidade: salvador do nordestino, não desse ou daquele homem ou mulher, mas daqueles que têm confiança n'Ele: "que ouve o conselho meu". Observamos que o verbo ouvir tem, em geral, o sentido de “escutar”. Aqui, ele tem um significado mais amplo. O poeta quer significar “seguir, aceitar, os conselhos sem tergiversar”.É o sentido carismático. Essa ideia nos envia a outros personagens imbuídos desse sentimento misterioso, dessa missão divina, que percorreram o Nordeste nos anos 1800. Vejamos o que nos conta o velho eremitaZé Pedro, sobre a chegada de outro iluminado a Pedra Bonita em 1836, segundo o texto erudito e muito popular do escritor nordestino José Lins do Rego.“Ele se chama Ferreira, vem no corpo de Antônio Ferreira, vencer os demônios, abrir a porta dos homens que não querem abrir para os pobres, botar os pobres no lugar dos ricos e os ricos no lugar dos pobres” (14).É a missão divina dos personagens que vem à Terra, nos sertões, para fazer o bem e a justiça; para salvar as pessoas.Enquanto Antônio Conselheiro se dirige a todo o Nordeste, “[...] que ouve o conselho meu”; Antônio Ferreiravem para vencer os demônios e abrir a porta da felicidade aos pobres.E o Conselheiro continua:

Trago a palavra de DeusQue é a Espada da VerdadeSou o caminho daqueleque deseja a Eternidade. (15)

Aí o poeta utiliza uma linguagem mais simbólica, de acordo com o objetivo espiritual, a eternidade. Ele confirma que o profeta nos mostra o caminho, único, talvez. É a mesma linguagem que apresenta um outro poeta popular, Dila Soares, quando transmite as palavras de um outro profeta do Nordeste, o célebre Padre Cícero:

do padre beijou a mãoo padre disse seguimoso caminho da salvação. (16)

E, para confirmar o bom caminho, ele acrescenta:

Siga por esse caminhoque será um felizardo. (17)

Porém, continuemos com o nosso Conselheiro que, de certa maneira, se diferenciou em palavras e atos dosseus colegas, os outros profetas. Ele tinha preocupações sociais mais aparentes; a justiça e a igualdade entre os homens eram mais percebidas nas suas prediçõs e nos seus conselhos:

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Seja moço ou seja VelhoOuvindo meu EvangelhoTem que fazer caridade. (Grifos nossos) (18)

- 17 -O poeta Coelho Cavalcante não disfarça as suas palavras. Trata-se bem da evangelização dos sertões. Nosso pregador cearense tinha seu próprio evangelho e se dirigia a todos os meios sociais, a todas as idades. Mas era preciso ter cuidado porque a eternidade tem suas condições, um preço.É preciso fazer a caridade: "Tem que fazer caridade". Poderiamos dizer que todos os evangelhos pregam a caridade. Isto não é muito original. Mas o Conselheiro é diferente. Ele se mostra mais radical, mais exigentecom os seus discípulos:

� Só peço aos meus seguidores� que cuidem da Salvação� vendendo tudo que tem– E entregando ao seu irmão. (Grifos nossos) (19)

Aí ele parece mais conciliador: “Só peço [...]”, mas o emprego do verbo pedir é bastante ilusório, pois ele lança uma grande ameaça:

O reino já se aproximaquem não ollhar para cimaFica inficado no chão (Grifo nosso) (20)

Veja-se a felicidade eterna que se aproxima. Mas aquele que não olhar para cima, para o Céu, ou para o próprio Conselheiro, que não seguir os seus conselhos, fica inficado (sic) no chão, no Inferno? Evidentemente, a expressão “só peço”, seguida da ameaça terrível, é um simples eufemismo do poeta. Ele não traduz a dura vontade do messias.Por enquanto estamos na apresentação de nosso personagem, pelo menos do que nos mostra o poeta Coelho Cavalcante. Ele nos descreve Antônio Conselheiro, suas palavras, suas promessas, seu caráter e sua personalidade. O profeta é muito exigente com seus fiéis, mas não se recusa a se explicar diante deles e justificar suas exigências materiais.

– Caso e batizo de graçaNão pago imposto tambémPorque a terra é de Deusnão pertecendo a ninguém...Construirei a CidadeQue se chama na verdadeA "Santa Jerusalém". (21)

Vejamos agora os verbos casar e batizar na primeira pessoa do singular do presente do indicativo. É uma forma transitiva direta, pessoal, bastante utilizada na linguagem popular habitual do Nordeste.

Em relação à filosofia e às preocupações sociais do Conselheiro, esta estrofe pode nos explicar muitas coisas. Ela nos remete a alguns versos das estrofes anteriores: “vendendo tudo que tem/ E entregando ao seu irmão”.Será que devemos vender todos os nossos bens e entregar o resultado pecuniário a nossos irmãos de religião, a nossos camaradas ou irmãos de família, a nossos iguais? Ou melhor, a expressão “ao seu irmão”significa ao Conselheiro, o grande irmão e profeta?

- 18 -Parece-nos que, sem cometer heresia, o seu irmão é muito bem o messias Antônio Conselheiro. Isto mostraria um sentido prático bem desenvolvido da parte de um profeta.Mas, para sua defesa, digamos que ele justifica a sua atitude: “Caso e batizo” de graça. Estaríamos então diante de um ministro de finanças muito eficiente que cobraria antecipadamente o preço de serviços que poderiam ser pedidos depois: casamentos e batizados.O profeta, porém, não ficava só nos serviços religiosos. Sua religião invadia o domínio da administração. Nesse ponto, ele se aproximava de certos cangaceiros que se colocavam em oposição ao regime dominante e se chocavam com a percepção das finanças: “Não pago imposto também”.Eis uma característica deste profeta contestatário. O que nos declara o poeta Coelho Cavalcante, nesses versos na primeira pessoa, é confirmado por vários historiadores da Campanha de Canudos. Segundo esses historiadores, a recomendação de não pagamento de impostos foi o pretexto principal invocado pelasautoridades para decidirem os primeiros ataques e perseguições contra o Conselheiro.

"Os Conselheiristas se rebelam contra a cobrança de impostos. Segundo Euclides da Cunha, o primeiro incidente do gênero ocorreu em Bom Conselho, num movimentado dia de feira, quando estava reunida ali não só a população da localidade, mas de suas redondezas. O Conselheiro manda arrancar os editais de cobrança de impostos e com eles faz uma fogueira em praça pública." (23)

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É muito interessante observar que um personagem tão convencido de sua missão divina, de suas preocupações sobre o destino do povo nordestino se interesse e ataque com tanta decisão e violência as prerrogativas da administração. Os domínios temporais e intemporais se confundem. Muitas explicações são avançadas a propósito dessa tomada de posição de Antônio Conselheiro, mas nós ficamos, por enquanto, nas motivações apresentadas pelos poetas populares:

Porque a terra é de DeusNão pertencendo a ninguém.

De toda maneira, o profeta tem suas razões na qualidade de enviado de Deus, emissário divino, e não se sabe por que ele deveria pagar impostos de uma terra que pertence a Deus. Ele vai mais longe. Quer dizer que ele realiza melhor seu projeto temporal, mesmo conservando seus objetivos messiânicos:

Construirei a CidadeQue se chama na verdadeA “Santa Jerusalém”.

- 19 -Eis aí mais um ponto sobre o qual a literatura popular e a literatura de inspiração popular estão sempre de acordo.Os personagens místicos que se sucederam no Nordeste do século XIX procuraram sempre construir um lugar sagrado e conduzir seus fiéis até lá; um lugar reservado aos puros, como a Vila Santa de Jerusalém. No caso de Antônio Conselheiro, esse lugar se chamava Belo Monte; para o Padre Cícero, era Juazeiro e, para Antonio Ferreira, Pedra Bonita. Essas três cidades diferentes, esses três nomes nordestinos, simbolizam a mesma ideia, o mesmo mito da redenção do povo escolhido, eleito, que chega à Terra Prometida.Não é por acaso que o poeta R. Coelho Cavalcante, que deve conhecer a história de Canudos, diz que a cidade do Conselheiro se chama "A Santa Jerusalém", quando, na realidade, o profeta a batizou de "Belo Monte".É a ideia judeu-cristã, materializada no nome mesmo de Jerusalém (isto é, a paz surgirá), que nosso poeta pretende, talvez, nos transmitir.É nesta cidade santa, ou nas outras do mesmo gênero, que o povo de Deus, no nosso caso os pobres sertanejos, encontrarão a felicidade eterna. Este mito religioso serve a camuflar as dificuldades e as misérias do momento, sobretudo quando ele é interpretado por pessoas menos avisadas. De toda maneira, nossos profetas sertanejos interpretam um velho sonho do Apocalipse:"Enfim aparece uma ilha de verdura: a Igreja onde estão os puros. A castidade é o sinal destes bem-aventurados". (25)Naturalmente esta ilha de verdura não é acessível a todo mundo. Sacrifícios os mais excessivos eram exigidos aos que desejavam lá chegar. O primeiro dever era a obediência cega ao profeta do momento. No caso do Conselheiro, não foram os milagres, como Padre Cícero, que lhe deram tanto prestígio e poder junto das camadas populares. Ele se caracterizou por seus sonhos e promessas messiânicas. Digamos que, ao contrário dos outros pregadores, o nosso Conselheiro adotou uma orientação mais pragmática, mais positiva, seja no terreno prático, como o não pagamento de impostos, seja no terreno espiritual. Com essa orientação, ele atingiu as camadas populares e médias da população, segundo informa o poeta Coelho Cavalcante:

O estranho MissionárioNa sua "Santa Missão"Espalhava o fanatismoPrometendo SalvaçãoPai de Família enpregadoPor ele catequizadoSe juntava a multidão. (26)

Ressaltemos que no segundo verso a expressão “Santa Missão” no original é impressa em negrito e certas palavras dos outros versos começam com letras maiúsculas.

-20 -Eis Santa Missão, Missionário, Salvação e Pai de Família. Pensamos que o poeta deseja chamar a atenção dos leitores para a seriedade e importância da história que ele nos está contando. Um missionário em sua santa missão que, de um lado espalhava, suscitava o fanatismo de pessoas bem estabelecidas, pai de família empregado, isto é, que tinha um trabalho, uma situação. Não se tratava só de miseráveis retirantes. Essa revelação do poeta popular é confirmada por estudiosos e historiadores:

"Conquistava assim as simpatias não somente dos pobres, mas também daqueles que, possuindo uma nesga de terra e algumas reses, mal assegurando com isto o sustento da família, não podiam, de forma alguma, satisfazer absurdas exigências fiscais – os pequenos proprietarios” (27).

É interessante observar que no folheto Antônio Conselheiro, Rodolfo Coelho Cavalcante privilegia o aspecto

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social do eremita. A linguagem assim como os temas abordados são essencialmente de natureza social, como estamos observando.Trata-se de um personagem que alia temas místico-religiosos judeu-cristãos a ideias sociais bastante atuais. É a imagem de um iluminado messiânico moderno, muito preocupado com os problemas do espírito e da vida material, mesmo social. A preocupação de justiça do Conselheiro é sublinhada em cada estrofe, em cada verso.

-21 -1- QUEIROZ, M.I. Pereira de. Réforme et Révolution dans les sociétés traditionnelles. Paris: Anthropos, 1968. & O messianismo no Brasil e no Mundo. São Paulo: Domínio, 1965.2- Ver nota 3.3- QUEIROZ, Maria Isaura Pereira de. "Sem pretender esgotar a lista assinala 18 movimentos messiânicos no Brasil depois de 1817. Eis os mais importantes:- A cidade do Paraíso Terrestre, do profeta Silvestre José Dos Santos, antigo soldado da milícia provincial, no Monte Rodeador. Estado de Pernambuco, 1817-1820; - O Reino Encantado, de Antônio Ferreira, em Vila Bela, Pernambuco, 1836. O mesmo que Pedra Bonita já citado;- O Império de Belo Monte (Canudos), de Antônio Conselheiro;- Os Santarrões, em São Leopoldo. Rio Grande do Sul, 1872, este movimento foi conduzido pelos colonos alemães, José Jorge e Jacobina Maurer.- A cidade Santa de Juazeiro, do Padre Cícero, a partir de 1872;- A guerra Santa, dos ‘monges’ João Maria e José Maria, no Contestado, região entre os estados do Paranáe Santa Catarina;- O Caldeirão e o Circo dos Santos, do beato José Lourenço, afilhado de Padre Cícero, entre 1936 e 1938, Ceará.4- Pedra Bonita, localidade situada no município de Vila Bela, Pernambuco, palco de movimento messiânicoe de acontecimentos trágicos em 14 de maio 1838, quando dezenas de crentes, crianças e adultos foram sacrificados para preparar a chegada de um mundo novo.5- CUNHA, Euclides da. Os sertões. & FACÓ, Rui. Cangaceiros e fanáticos.6- Alguns autores estão convencidos de que o ressurgimento de certos mitos, como de movimentos messiânicos e místicos, no sentido empregado neste trabalho, coindidem ou são consequência de períodos agitados do ponto de vista social, econômico e político. No Brasil do século XIX, lembremos a Revolução de1817 em Pernambuco, a Abolição da Escravidão do negro en 1888, e a Proclamação da República em 1889.7- CANTEL, Raymond. Les prophéties dans la littérature populaire du Nordeste. In: Cahiers do Monde Hispanique e Luso-Brésilien, n.15, 1970.8- Rodolfo Coelho Cavalcante é um poeta dos mais ativos. Ele reside em Salvador, Bahia, onde se ocupa também da Ordem dos Poetas Populares e de outras associações.9- J. Sara ou Jota Sara. Há poucas informações sobre este poeta. Seu nome verdadeiro seria J. Aires.11- CUNHA, Euclides da. Os sertões, p.181.12- FACÓ, Rui. Cangaceiros e fanáticos. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1965, p. 54.13- PACHECO, José. In: Chegada de Lampião no Céu nos diz: “Poeta tem liberdade / Sagrado dom da natureza / Conforme a literatura / Escrever o que tem vontade”.14- Idem, p. 89.15- Apocalise, c XIV, cf. RENAN, Ernest. Histoire des origines du Christianisme, l'Antichrist. Paris: Calman-Levy, p. 422. O autor diz: “au milieu de flots de colère apparait maintenant un ilôt de verdure”.

CAPÍTULO II

MESSIANISMO COOPERATIVISTA

Pelo Cooperativismo Os fanáticos viviamTrabalhavam sem salários Os que ganhavam comiamSe conseguissem dinheiroEntregavam ao ConselheiroAssim nada possuíam. (Grifos nossos) (28)

Qual é o significado que pode ter cooperativismo para o poeta? Uma espécie de comunismo primitivo no qual os militantes, ou fiéis, trabalham apenas para ter o que comer? Podemos compreender também para se vestir, ter uma casa para morar e outros meios de satisfazer as necessidades da vida.Segundo nosso poeta, os fiéis tinham a possibilidade de fazer alguns trabalhos fora do circuito do Profeta, mas: "Se conseguissem dinheiro/ entragavam ao Conselheiro". Supomos que os fiéis podiam comercializar os produtos de seus trabalhos, de suas roças, mas deveriam entregar ao Conselheiro o seu resultado pecuniáio. É a regra geral nas comunidades religiosas.Era corrente nas comunidades da Idade Média e, atualmente, entre certos grupos político-socio-não-conformistas.

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Trata-se de uma espécie de promessa exigida pelos guias espirituais, emissários do bem divino. Aliás, essainterpretação é confirmada pela estrofe seguinte:

Quem seguisse o PregadorA casa não mais voltavaDeixava mulher e filhosDe uma vez se separavaEra Conselheiro o AmigoE o mais era InimigoCerto de que se salvava. (29)

Era pois a abdicação total ao Conselheiro ou à causa, particularidade de votos religiosos radicais e sectários, pois "Era o Conselheiro o Amigo/ E o mais era Inimigo". A oposição é total entre as duas categorias, amigo x inimigo.O simbolismo que começamos a observar no poeta Coelho Cavalcante nos conduz a pensar que a composição dos sinais, das letras, tem grande importância. Segundo o poeta, depois de exigir a doação total dos fiéis, dos discípulos, o Conselheiro se diz só “o Amigo”; tudo o mais é “Inimigo”.

- 24 -Todavia, voltemos à utopia místico-social de Antônio Conselheiro. Suas exigências, suas normas não eram privadas de uma certa sedução. Vejamos as impressões de Euclides da Cunha a este sujeito:

Anunciava, idêntico, o Juízo de Deusa desgraça dos poderosos, o esmagamento domundo profano, o reino de mil anos e suas delícias. (30)

E o autor se interroga: “não haverá, com efeito, nisto, um traço superior do Judaismo?”. (31)

Parece que os messias sertanejos se inspiram nas mesmas fontes. O interessante é saber como esse sentimento se arraigou tão profundamente nas populações, a tal ponto que essas ideias serviram de base místico-teórica a todos esses personagens e acontecimentos sociorreligiosos que dominaram o Nordeste nos séculos XIX e XX. Ao mesmo tempo, essas ideias se apoiam sobre as condições históricas e sociais daregião. Os poetas que se inspiram em Padre Cícero, Conselheiro ou Pedra Bonita não fazem mais que refletir esse sentimento profundo.

Como que respondendo a Euclides da Cunha, vejamos o que dizia Silvio Romero a propósito de Antônio Conselheiro e de sua penetração no Nordeste:“Chama-se Antônio e o povo o denominava O Conselheiro. Não tinha doutrina sua e andava munido de um exemplar das Normas Marianas, donde tirava a ciência!”. (32)Parece-nos, então, que todos estão de acordo em dizer que o profeta não tinha uma doutrina própria, apesar de sua enorme influência nos sertões dos anos 1870/80.Isso não é surpreendente, pois o mesmo fenômeno se produziu com os outros profetas do Nordeste, como Antônio Ferreira, de Pedra Bonita; o Beato Lourenço, de Caldeirão; e mesmo o Padre Cícero e Frei Damião,sem falar de outros menos conhecidos. A este propósito, ver a página 21. Enfim, a história e a ideologia sãosempre as mesmas, isto é, de base judeu-cristã.Entretanto, o que encontramos de diferente no profeta de Canudos, o que o distingue dos outros, é o seu messianismo, sua dominante otimista. Ele não prevê somente provações. Ele se apresentava diante do povo como um revoltado contra as injustiças e os sofrimentos das camadas populares. À sua maneira, em consequência de sua fé difusamente cristã, ele não pretendia tudo destruir, ao contrário, como nos informa Rodolfo Coelho Cavalcante:

Em toda Aldeia que elePassava ia ConstruindoCapelas e mais CapelasCom a multidão seguindo...Dessa forma era o retratoDo mais afoito BeatoQue do Norte Tinha vindo. (33)

-25 -Assim, O Conselheiro construía capelas com os seus fiéis por onde passavam. Era sua maneira de demonstrar a seriedade de sua missão provando que não era contra a Igreja Católica oficial. Ele construía igrejas que poderiam ser ocupadas pelos padres após sua passagem. Apesar disso, sofreu perseguições das forças da ordem pública a pedido da Igreja Católica. Sobre sua obra de construtor, vejamos o que diz o poeta J. Sara:

Desapareceu uma manhãE seguiu sua penitênciaNa Vila-Rica do Bom Jesus

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Fez a sua residênciaConstruiu uma capelaDo sertão inda a mais belaQue lhe rende reverência. (35)

Parece que esse "poeta visionário", o Conselheiro e não J. Sara, na expressão de Ariano Suassuna, marcava sua passagem nos campos e nas aldeias sertanejas com os seus sermões messiânicos e, sobretudo, pela construção de capelas. Vejamos também o que diz Manuel Diegues Junior:“O folheto descreve as obras que ele fez, a prisão que lhe foi ordenada, as injúrias que sofreu, sualiberdade, já no Ceará e a sua volta a Bahia, erguendoigrejas por onde passava. E gente de toda origem o acompanhava.” (36?)

Diegues Junior resume o folheto O meu Folclore. Trata-se, talvez, da maior publicação do gênero literatura de cordel, completamente fora do comum, com suas 48 páginas, e, ao mesmo tempo, um dos raros folhetossobre o Conselheiro. A destacar a própria linguagem do intelectual Diegues Junior, que emprega o verbo erguer no gerúndio como que para nos dar o seu sentimento sobre o Conselheiro. Veja-se, também, o que nos ensina o mestre Aurélio Buarque de Hollanda.

“Erguer: (1) Levantar, elevar, alçar. Quando o sacerdoteergue a hóstia, os fiéis se ajoelham.(2) Levantar, erguer, edificar. Ergueram a catedralem poucos meses [...] etc.” (38)

É o verbo adequado para comentar um poema que narra a vida e obra de um personagem tão messiânico. Entretanto, o verbo no gerúndio, erguendo, dá a impressão de que o profeta empregava seu tempo a erguer, construir igrejas, não era uma ocupação excepcional: "erguendo igrejas por onde passava". É, portanto, o sentimento transmitido pela poesia popular, pela literatura e história eruditas.

-26 -O messianismo de Antônio Conselheiro que nos é transmitido pela literatura de cordel, com as suas predições igualitárias e cooperativistas: "pelo cooperativismo / os fanáticos viviam", e seu elã construtor, contrasta com a imagem que temos do Padre Cícero, ou de Frei Damião. Estes últimos, como outros peregrinos dos sertões, passaram na poesia popular por causa do medo que suas palavras e sermões suscitavam entre o povo dessas regiões. Observamos que, em geral, as palavras, os sonhos e as outras manifestações desses apóstolos, segundo os folhetos consultados e outros documentos de vulgarização, são de inspiração apocalíptica. Os versos de J. Sara confirmam o que é dito anteriormente em relação ao aspecto messiânico do Conselheiro e as ameaças e punições inerentes aos outros enviados dos Céus:

Todo o povo ia apreciarEle lia seu BreviárioFazia alguns sermõesEra um grande missionárioE pregava a caridadeÉ um apóstolo da verdadeEste homem foi vigário (39)

Não se vê nenhuma referência às clássicas profecias de terror, aos sinais do fim do mundo, nem mesmo às invocações a poderes sobrenaturais, a milagres e castigos, habituais nos folhetos que contam a vida e os poderes de Padre Cícero, Frei Damião e outros. Pensamos, com base nesses versos e os outros citados anteriormente, que o povo gostava de ouvir os sermões do Conselheiro, "um grande missionário", de lhe pedir conselhos, porque ele pregava a caridade. Era um “apóstolo da Verdade”. O emprego da contração da, certamente intencional, reforça a impressão de que o profeta era muito apreciado e seguido por seus ouvintes. O último vocábulo parece exprimir a ideia do poeta J. Sara. O povo deveria ouvir e compreender seu profeta, que era um "apóstolo da Verdade". As pessoas procuravam vê-lo e ouvir palavras de esperança, mensagem de otimismo. Isso é dito com insistência pelo poeta. Vejamos também os versos seguintes:

Todo o povo ia apreciarEle lia o seu BreviárioEste homem foi vigário (Grifo nosso)

Apreciar: julgar, avaliar, ponderar; examinar, considerar, calcular, estimar. (40)

Em todas as definições do verbo apreciar no Dicionário Aurélio, constatamos que o sentido mais completo do vocábulo é "compreender". "Todo o povo" não estava interessado pelas profecias de catástrofes comuns em outros profetas, mas pelas palavras de esperança.

-27 -O verso seguinte é esclarecedor sobre um aspecto também importante do Conselheiro. "Ele lia o seu

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breviário". Trata-se da leitura cotidiana dos padres oficiais, dos salmos e ofícios do dia. E essas leituras e esses ofícios são feitos, normalmente, para que a gente os entenda. São preces, conselhos, máximas, exemplos morais ou religiosos. Esta prática, este rito, supõe, por ser eficiente, uma audiência, um público. Aseguir, veremos a síntese, a confirmação do papel que pretendia desempenhar o Conselheiro:“Este homem foi um vigário”.Conselheiro, um homem e um vigário. Os poetas populares utilizam sempre um vocabulário que chegue naturalmente a se adaptar ao falar das pessoas às quais eles se dirigem, que às vezes não sabem ler, ou o sabem muito pouco. Sabe-se, entretanto, que a poesia popular tem uma longa tradição oral e, por isso, ela é transmitida em leituras públicas em voz alta. Isto nos parece oportuno a propósito da palavra vigário, qualidade altamente estimada pelos habitantes do interior, das aldeias e dos campos. E a ideia do padre paternalista e poderoso ao mesmo tempo, sem a soberba da autoridade política ou administrativa, sem a conotação paternalista-ameaçadora de um coronel (41). O vigário é o conselheiro de todos os momentos, do batismo aos últimos instantes, à morte. É a imagem do representante do "todo-poderoso", de tudo que representa a religião católica oficial, do ponto de vista histórico e cultural, mesmo para essa religião "mestiça" do povo sertanejo, muito difusa e complexa ao mesmo tempo.Continuando a apresentação do seu personagem, do seu caráter e de suas altas qualidades morais e espirituais, de sua prática missionária, como "um grande missionário", nosso poeta J. Sara decidiu terminar sua estrofe com uma afirmação e um apelo à meditação, como alguém que consultou seu sentimento íntimoe sua responsabilidade de poeta popular:“Este homem foi vigário”.Eis por que pensamos ser interessante aprofundar a análise social e linguística do substantivo vigário. A denominação gramatical da palavra como substantivo nos deixa muito aquém de seu sentido real, especialmente do ponto de vista histórico e cultural. Naturalmente não pretendemos diminuir ou mudar a definição gramatical e oficial, que nos conferem os dicionários, da palavra vigário, pároco, representando localmente todo um dispositivo administrativo eclesiástico. Mas não pensamos que o poeta popular consulteos dicionários antes de compor os seus versos. E, em consequência, não pensamos que J. Sara, como todos os seus colegas poetas populares da literatura de cordel, tenha consultado esses livros eruditos oficiais antes de qualificar o Conselheiro como um vigário.

-28 -A definição dos dicionários é implícita. Mas o importante é a compreensão assimilada pela prática, pela vidacotidiana, pelas relações de todos os dias da população com seus vigários. Vejamos, por exemplo, como esse sentimento é expresso por um personagem popular do romance Pedra Bonita, de José Lins do Rego, preocupado com a chegada de um iluminado nos sertões, à sua região:Era um homem do interior, de pés no chão, de fala mansa.– Pois, seu Vigário, apareceu este sujeito dizendo que faz milagres. Ele diz que pobre fica rico. Que a pobreza vai desaparecer, que o mundo só fica com gente de posses iguais.– O Velho Zé Pedro que mora por lá há anos falou para o povo que o homem é igual ao santo dos antigos.– Vindo hoje aqui à vila eu me lembrei de falar com seu vigário.– Disse para mim "Vou falar com seu vigário da história da Pedra." (42)

Veja-se que “um homem do interior, de pés no chão”, descalço, vem falar com seu vigário, sobre alguém fora do comum que apareceu no sertão. O verbo falar deve ser compreendido num sentido bastante amplo: falar, informar e, sobretudo, ouvir seu vigário. Conhecemos bem essa maneira sertaneja de utilizar uma palavra, um verbo, a fim de transmitir um sentido exatamente contrário ao sentido habitual da língua portuguesa oficial (43). A maneira aparentemente negligente do matuto: "eu me lembrei de falar com seu vigário", quer dizer justamente pedir conselho ou saber a opinião do pároco, da autoridade, mais do que a do "seu vigário".Seria fácil argumentar que o autor dessas palavras, José Lins do Rego, é um romancista erudito que, por isso mesmo, não pode ser classificado como poeta popular. Absolutamente certo. Mas também é certo que o romance Pedra Bonita conta, em linguagem popular, os acontecimentos que tiveram lugar nos sertões de Pernambuco, em 1836, de onde o autor tirou o título e a maior parte dos nomes antênticos dos participantesdesse episódio histórico.Sem pretender analisar o livro de José Lins do Rego, pois o que nos interessa é apenas constatar o valor popular de sua linguagem e da proximidade do falar sertanejo, lancemos um olhar num comentário de Aurélio Buarque de Holanda Ferreira publicado em 1938:“Outras incorreções da linguagem [...] que veio a fixar-se como uma das qualidades mais puras e marcantesao escritor nordestino”. (44) Assim, poetas populares e escritores eruditos interpretaram igualmente o sentimento popular sobre o vocábulo "vigário" e, mais ainda, as qualidades, a transcendência da função de padre, de sacerdote, admitida como sendo a do personagem de Antônio Conselheiro. Para resumir, para sintetizar, vejamos estes versos de J. Sara:

E um apóstolo da VerdadeEste homem foi vigário. (45)

-29 -28- CAVALCANTE, Rodolfo Coelho. Antônio Conselheiro. folheto, p. 4.29- Idem.30- CUNHA, Euclides da. op. cit., p. 172-3.

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31- Ibidem.32- ROMERO, Silvio. Cantos populares do Brasil. Rio de Janeiro: José Olympio Editora, 1945, p. 45.33- CAVALCANTE, R. Coelho. op. cit., p. 2.34- A informação sobre a identidade do poeta popular J. Sara é dada pelo prof essor Raymond Cantel, cf. DIEGUES JR., Manuel. Ciclos temáticos na literatura de cordel. In: Literatura popular em verso. Estudos, Tomo I, Rio de Janeiro: Edição da Casa Rui Barbosa, 1973, p. 114-115.35- J. Sara. O meu folclore. Cf. DIEGUES JR., M. op. cit. p. 114-115.36- SUASSUNA, Ariano. Romance d'A Pedra Bonita. Rio de Janeiro: José Olympio, 1972.37- DIEGUES JR., M. op. cit., p. 11538- FERREIRA, Aurélio Buarque de Holanda. Novo Dicionário Aurélio. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1975.39- SARA, J. op. cit., p. 115.40- FERREIRA, Aurélio Buarque de Holanda. op. cit.41- Coronel/coronelismo: o termo coronel é utilizado com respeito pelas populações rurais a propósito de um chefe político local ou de uma pessoa influente, de um proprietário de terras. Ele tem suas origens nos autênticos ou honoríficos coronéis da Guarda Nacional, criada pelo Regente Feijó, em 1831. cf. LEAL,VictorNunes. Coronelismo: the Municipality and Representatif Governement in Brazil. Cambridge Latin American Studies, Cambridge; PONTES, W. Tenório. La prépondérance masculine dans la littérature populaire du Nordeste du Brésil. Paris Sorbonne-III, 1976, p. 29.42- REGO, José Lins do. op. cit., p. 246-7.43- Um traço do falar enérgico dos sertões, este os Belos Montes. 2. ed. Arraial Bendego, município de Euclides da Cunha, Bahia, 1957. Por incrível que pareça, tudo isso é o título do folheto de J. Sara.

-31 -CAP�TULO III - ANTÔNIO CONSELHEIRO E O SEBASTIANISMO

Embora alguns autores digam que o sebastianismo, isto é, o messianismo português, não influenciou as lendas e a literatura populares do Nordeste, nós não podemos deixar de constatar uma grande identificaçãoao espírito messiânico encarnado por D. Sebastião por todos os movimentos proféticos e messiânicos ocorridos no Brasil no século XIX e primeiras décadas do século XX, especialmente os do Nordeste. Essa influência é patente nos episódios sangrentos de Pedra Bonita e de Canudos, no fanatismo popular ao Padre Cícero e à cidade de Juazeiro. Entretanto, é verdade que a poesia popular pouco registrou de maneira direta os feitos históricos e as lendas em torno do rei D. Sebastião, o que é surpreendente, dada a implantação sentimental, cultural e histórica de Portugal no Brasil. A história, a cultura e o imaginário europeu marcaram e deixaram traços profundos na cultura brasileira. Citemos, como exemplo, todo o ciclo carolíngio, com seus heróis e suas aventuras, que foi adotado, compondo mesmo um gênero da literatura de cordel dos mais ricos e produtivos. (46).Não há propriamente explicações válidas para o ostracismo do mito de D. Sebastião pela literatura popular, ainda mais que, segundo um estudo do prof essor José Calazans, as profecias de Antônio Conselheiro se inspiravam repetidamente em certos temas do milenarismo relativos à volta de D. Sebastiâo (47). O professor Raymond Cantel avança uma hipótese indicando que o espírito nacionalista dos poetas popularesseria a causa desse fenômeno: "il faut y ajouter que les espoirs messianiques des Nordestinos se sont transférés et restent fixés encore aujourd'hui sur la personne du trop célèbre Padre Cícero Romão Batista". (48)Mas, apesar da pouca produção dos poetas populares relativamente aos acontecimentos messiânicos nordestinos, salvo o caso do Padre Cícero, que será tratado na segunda parte deste trabalho, mais inspirado nos textos religiosos, em particular do Apocalipse cujas "esperanças" e ideologia são o fantasma do medo e das catástrofes materiais, sociais e espirituais. Convém lembrar e destacar a existência do folheto de J. Sara intitulado História da Guerra de Canudos – 1898. O interesse desse folheto é, antes de tudo, o de ser um dos raríssimos dedicados a Antônio Conselheiro e à Guerra de Canudos. Com relação à parte histórica e biográfica do Conselheiro, o autor não hesitou em fazer um amálgama desse personagem e do sebastianismo. Remarcamos que o nome de El Rei D. Sebastião é mencionado sete vezes, o que é considerável em se tratando de um folheto a propósito de Canudos, acontecimento brasileiro, produzido no fim do século XIX. Para apoiar essa tese, vejamos alguns versos de J. Sara:

-32 -Reuniu-se tanta gentePara o dia da redençãoEsperavam o SalvadorE o Rei D. Sebastião. (49)

O poeta não vacila diante do peso das palavras. Sua linguagem e a ambiência que ele pretende criar e fazer passar são propriamente de estilo messiânico. "Redenção, Salvador e D. Sebastião vão juntos. O salvador, bem entendido, é Antônio Conselheiro, que vem ao mesmo tempo que o outro salvador e redentor, o rei D. Sebastião:

Do céu baixou uma luzQuem não fizer o bemDom Sebastião já vemMandado do Bom Jesus. (50)

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Uma luz desceu do céu. Trata-se sempre do Consellheiro que, segundo o poema "O povo dizia na reza", se fazia acompanhar do "Rei Encoberto".Ao mesmo tempo, o poeta cria uma contradição. Anunciando o retorno de D. Sebastião e do Conselheiro, ele coloca a esperança secular portuguesa no centro do movimento de Canudos:

Morrer, sofrer e rezarPorque iam ressuscitarCom D. Rei Sebastião. (51)

Morrer, sofrer e rezar são as palavras de ordem que J. Sara propõe. Isso, porém, não é definitivo porque as pessoas podem ressuscitar com D. Sebastião. Ao mesmo tempo, o poeta nos informa que havia rumores em todo o sertão sobre a presença do rei D. Sebastião em Belos Montes, num ambiente bastante paradisíaco.

Espalhavam mil boatosPor todo aquele SertãoEm Belos Montes já estavaO D. Rei SebastiãoDos Montes corria azeiteA água do rio era leiteAs pedras convertiam-se em pão. (52)

Os milagres eram extraordinários, superiores aos de Jesus Cristo, que transformou a água em vinho e multiplicou o pão e o peixe para alimentar os apóstolos. Em Belos Montes, o azeite corria das colinas, o leitesubstituía a água dos rios, e as pedras viravam pão para todo mundo.Mas a associação popular de D. Sebastião e do Conselheiro à época de Canudos não ficava nesses versos.Os boatos eram cades vez mais insistentes:

- 33 -Lá dentro da cidadeSó se falava em MonarquiaD. Sebastião está chegandoPara o reino da BahiaA corte era Belos MontesQuem não vir logo a esta fonteDepois não se aceitaria. (54)

Nessa estrofe vemos aparecer o tema da Restauração portuguesa (55) e da Monarquia brasileira. Como vimos anteriormente, Antônio Conselheiro e seus miseráveis fanáticos de Canudos foram acusados de lutar em favor da Monarquia brasileira recentemente destronada (56). É interessante a aproximação desses dois períodos, português e brasileiro, que na realidade foram separados por alguns séculos.O poeta J. Sara volta à parte histórica da Campanha de Canudos, traçando a derrota da expedição do célebre general Moreira Cesar, infligida pelos fanáticos do Conselheiro:

Morreu o Moreira CesarÀs duas da madrugadaCorreram perdendo tudoArma, tropa e a BoiadaTamarindo e SalomãoQue defendiam o Canhão Morreram à beira da estrada. (57)

Convém remarcar o emprego do vocábulo boiada cujo significado corrente é “uma quantidade de bois”. Na estrofe precedente, o significado é mais amplo, compreende também cavalos e outros animais. Esta interpretação é sugerida pelo fato de que a expedição do general Moreira Cesar contra os resistentes de Canudos era apoiada fortemente por tropas da cavalaria militar (58). Além disso, podemos verificar que "boiada" segue as palavras "arma" e "tropa", o que a assimila a um vocabulário militar.As estrofes seguintes contam todas as fases da guerra de Canudos com uma preocupação histórica remarcável. Mas o que nos interessa em particular é a aproximação entre o sebastianismo e o conselheirismo. É por isso que voltamos aos versos messiânicos de J. Sara, sobretudo aqueles onde o rei português é evocado. A estrofe seguinte é a última na qual o poeta menciona o nome de D. Sebastião ligado aos acontecimentos do sertão da Bahia no fim do século XIX:

Tomaram todo armamentovíveres e muniçãoE espelharam boatosQue D. Rei SebastiãoChegou em Belos MontesTransformou a água das fontesEm leite e as pedras em pão. (59)

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-34 -Assim, podemos concluir facilmente que o sebastianismo tinha uma grande penetração popular no Nordestedo século passado. Sua aproximação ou utilização pelo iluminado sertanejo Antônio Conselheiro não é evidente. Reproduzimos a seguir algumas palavras do prof essor R. Cantel que, apesar de sua hipótese sobre a substituição do messianismo português por um messianismo sertanejo em torno de Padre Cícero, diz que: "José Calazans a étudié le cas d'Antônio Conselheiro et il invoque, après Euclides da Cunha, diverspapiers recueillis à Canudos après la bataille, dont un ABC et de nombreux quatrains qui font alusion à D. Sebastiao" (60). Isto seria a prova, além do raro folheto de J. Sara, da influência do sebastianismo sobre o profeta Antônio Conselheiro.Enfim, para concluir este capítulo e esta primeira parte de nosso trabalho, deixemos a palavra aos poetas populares; primeiramente a J. Sara que, a nosso ver, exprime o sentimento popular das pessoas do interior nordestino nos versos seguintes:

O Conselheiro foi ao céuE a Deus pediu perdãoSão Pedro lhe respondeuDescansa aí teu bastãoCriarei um lugar novoPra descanso do teu povoAté vir a redenção. (61)

O Conselheiro vai deixar repousar seu bastão de pelegrino, mas a crença messiânica não vai se acabar por isso. E São Pedro lhe assegura que seu sonho, sua utopia messiânica será realizada. Um lugar novo, a Terra Prometida, será criado para o descanso, a paz, do povo do sertanejo.Canaã terá chegado? Os sonhos do Conselheiro e as promessas de São Pedro foram realizados? Passemos a palavra ao poeta Maxado Nordestino que, de Feira de Santana (62), em 1976, nos diz:

Falou Antônio ConselheiroQue o mar virava sertãoE o sertão virava marVindo dom SebastiãoJá tem mui realidadePra quem lê com atenção. (63)

O rei D. Sebastião guarda seu lugar ainda no ano de 1976 como símbolo messiânico do povo nordestino, segundo afirmações do nosso Bom Jesus Conselheiro. Maxado Nordestino não fica aí, entretanto. Ele nos oferece uma nova leitura das profecias do Conselheiro, "Pra quem lê com atenção", explicando que:

- 35 -O rio São Francisco jáTem lago artificialQue é o maior do mundoInundou o carnaubalTem-se 300 quilômetrosD'água pelo carrascal. ( 64)

Vê-se aí a profecia realizada, o sertão virou mar ou, pelo menos, um lago de 300 quilômetros em plena região árida, desértica. A crença messiânica renasce graças à nova leitura das profecias do Conselheiro. O poeta vai mais longe ainda, ele atinge o coração mesmo do reino do nosso messias:

Mas vamos falar agoraDa região do beatoDo rio Vaza-BarrisCaatinga de pau-de-ratoOnde o povo jagunçoSofreu muito desacato. (65)

O povo do profeta, "o povo jagunço", muito sofreu dos insultos e das privações, mas a redenção é ao alcance da mão. A "felicidade" não tardará. A eterna falta d'água dos sertões e suas misérias habituais vão desaparecer. A felicidade e o paraíso em país de secas significa a abundância do líquido precioso. Mas:

Seu "Império Belos Montes"Conhecido por CanudosTambém jaz em baixo d'águaCoberto por mar-açudeSuas águas salobrasMas o rio é doce em tudo. (67)

Sem sair da problemática messiânica do Nordeste, nosso bom poeta continua a propor sua nova leitura das profecias de Antônio Conselheiro. Mesmo se apoiando sobre grandes obras da engenharia civil: barragens

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e irrigações artificiais construídas há mais de 40 anos (68), quer dizer, realizações bem materiais e concretas, esses versos continuam a se alimentar ou a alimentar a crença messiânica das populações do interior brasileiro. Esse sentimento popular seria ainda tão vivo? A estrofe seguinte responde pela afirmativa:

O santo prometeu darUm rio de leite e melCom barrancas de cuscuzPara quem amargava o felHoje com terra irrigadaO inferno virou céu. (69)

-36 -Vimos mais atrás que São Pedro reforçou as profecias do Conselheiro, prometendo criar um lugar novo para os sertanejos. Por isso, não é surpreendente observar a continuação atualmente dos mitos messiânicos dos profetas do Nordeste. O poeta popular só faz traduzir em termos modernos as predições de antanho. Em o fazendo, bem entendido, ele contribui para a continuação dessas crenças. Notemos um outro aspecto interessante nos versos de Maxado Nordestino, isto é, a fidelidade ao caráter positivo do Conselheiro, relativo a empreendimentos e construção de obras de engenharia. Durante a sua vida, o taumaturgo ficou célebre pela construção de igrejas e por um certo sentido social de organização da economia dos seus domínios. Com a nova leitura das profecias, associando-as à construção de barragens, irrigações e todo um plano de transformações de vastas regiões sertanejas, o poeta segue a tradição de seus colegas antigos se expressando com mais lucidez, sem, entretanto, afastar-se das crenças populares. Vejamos como ele traduz as palavras do Bom Jesus Conselheiro:

Todo profeta é JesusEm sentido figuradoO leito de leite é melE seu gado pastoradoE os campos dando floresTendo cana pro melado. (70)

Sabemos que Conselheiro se dizia emissário divino, enviado de Deus. Seguindo essa lógica, o povo do interior o considerava, às vezes, como a encarnação de Jesus Cristo, daí a denominação de "Bom Jesus Conselheiro", ser divino capaz de receber as mensagens de Deus. Já em 1879, Silvio Romero registrava a quadra anômima seguinte:

Do céu Veio uma luzQue Jesus Cristo mandouSanto Antônio ApparecidoDos castigos nos livrou! (71)

Eis porque o poeta Maxado Nordestino diz, com razão, que "todo profeta é Jesus" (72). Ao mesmo tempo, ele populariza as célebres profecias relativas à transformação da água dos rios em leite e mel, das pedras em cuscuz. Muito pragmático, porém, nosso trovador explica:

Ali só faltava águaPra dar milho pro cuscuz. (73)Com água e irrigaçãoDá tudo naquela rocha. (74)

As profecias são quase reduzidas a uma questão de engenharia hidráulica. O poeta está em vias de desmistificar as santas predições, estrada perigosa e complexa, ainda mais que ele mesmo nos reconduz à linguagem e às formulações ao gosto dos personagens místicos:

-37 -Ali já houve um milagreE tem peixes pra danar. (75)

No espaço de dois versos, caímos num contexto quase religioso e bíblico. Três palavras nos levam lá: "milagre", "peixe" e "danar". As duas primeiras se referem ao milagre da "multiplicação" tão propagado pelo cristianismo, a terceira dispensa comentários. Milagre e danar são vocábulos que habitualmente não andamjuntos, aqui eles devem ser compreendidos, sobretudo "danar" (danado), no sentido do falar nordestino (76),cuja sintaxe e vocabulário nem sempre seguem a língua oficial brasileira, o português.Mas continuemos a nova leitura das profecias do messias Antônio Conselheiro. A nosso aviso, o poeta Maxado Nordestino vai atravessar uma etapa insólita e bastante contraditória relativa à reputação do messias de Canudos.

Só lamentamos que a vilaFicasse ali sepultada

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Mesmo isso foi previstoPelo chefe da jagunçadaNão ter pedra sobre pedraÉ a lição consumada. (77)

O pobre Conselheiro é rebaixado à condição de bandido mercenário (jagunço), nem mesmo de "cangaceiro", que seria mais honorável. Será a verdadeira intenção do poeta? Ou deixou-se ele levar por um simples excesso de linguagem? Seríamos favoráveis à segunda hipótese. Como sabemos, os fiéis do Conselheiro e dos outros messias e profetas do Brasil eram tratados de "jagunços", espécie de malfeitores dos campos, quando a sociedade global, o establisment, decidia eliminá-los.Como vimos no terceiro verso, o poeta nos assegura das capacidades proféticas do Conselheiro. Mesmo a submersão das vilas tinha sido prevista. É verdade que a célebre predição: "O sertão vai virar mar" pode tudo englobar. O que é certo é a interpretação do poeta dizendo que as barragens do vale do Rio São Francisco "é a lição consumada". Mas falta a aparição de uma predição, a mais importante, talvez, do ponto de vista histórico-utópico luso-brasileiro, para que a esperança messiânica sobreviva, para que o mito se perpetue. (78)

Só falta chegar o tempoDe vir rei sebastiãoRessurgir naquelas águas99?????? no sertão Para salvar o seu povoDe toda destruição. (79)

-38 -Eis-nos reenviados ao sebastianismo, como vimos em várias ocasiões nos capítulos precedentes, todos associados ao "Conselheirismo". O bardo Maxado Nordestino renova em toda a sua legitimidade a continuação do messianismo lusitano, transportando-o ao sertão do Nordeste brasileiro. Bem entendido, istonão é de sua única iniciativa. Outros poetas populares já o fizeram. A novidade é que esta ressurgência do sebastianismo explode no Brasil atual. Lembremos que o folheto Profecias do Conselheiro, subtitulado O sertão já virou mar, é datado de 1976. Seria o poeta Maxado Nordestino um caso isolado? Sem nos aventurar muito nos meandros das crenças e utopias, pode-se dizer que este tema é abordado pelos poetaspopulares, como Rodolfo Coelho Cavalcante e J. Sara, assim como por escritores eruditos, tais como ArianoSuassuna e José Lins do Rego, para não falar dos autores e obras mais citados nesta primeira parte deste trabalho. É normal pensar que o sebastianismo, por Antônio Conselheiro interposto, poderá ser encontrado em outros poetas e escritores populares e eruditos do Brasil atual.Isso não seria muito surpreendente, pois, ao exame dos principais movimentos messiânicos que se desenvolveram no Nordeste no século XIX e nas primeiras décadas do século atual (80), verificamos a presença bastante acentuada do mito português criado a partir dos famosos versos de Bandarra no século XVI.Nós dissemos anteriormente que o sebastianismo foi transposto ao Nordeste de nossos dias, entre outros, pelos versos do poeta Maxado Nordestino. Agora, verificamos que se trata mais do que uma simples transposição. Dom Sebastião ressurgirá "naquelas águas para salvar seu povo de toda destruição". Ora, a observação que fazemos imediatamente é relativa à expressão "seu povo". Evidentemente trata-se das populações dos sertões nordestinos, em particular da Bahia. Esse povo é considerado como pertecente ao rei português, mesmo tão longe no tempo e no espaço do efêmero reino deste Rei Encoberto. Poderíamos argumentar que, durante três séculos, o Brasil fez parte da Coroa portuguesa e, em consequência, os meiospopulares, messias e poetas inclusos se colocariam muito naturalmente entre os seus sujeitos.Poderíamos igualmente racionalizar de maneira oposta. O poeta consideraria D. Sebastião como um mito brasileiro, um messias do Nordeste, de tal maneira essa crença messiânica estaria ancorada na sua população. Dessa forma, iria se produzir um fenômeno de integração completa, isto é, o povo se considera pertencente a alguém que lhe pertence ou que faz parte dele, de suas crenças, de suas utopias; uma simbiose bem natural.Para defender essa tese, lembremos o sentido profundo da palavra povo no falar do Nordeste; meu povo = “minha família, os meus”. Não é por acaso, então, que o poeta diz que D. Sebastião ressurgirá das águas brasileiras para salvar "seu povo". A esses argumentos de ordem linguística, acrescentemos que todos os profetas ou messias aparecidos no Nordeste depois de 1817 até os anos 1930/1940 – exceção de Padre Cícero do Juazeiro do Norte – insistiam sobre o retorno do Rei Encoberto para a redenção do povo do sertão.

- 39 -O profeta Silvestre José dos Santos, de Monte Rodador (Pernambuco), em 1817, construiu uma capela ao lado de uma grota encantada, onde ele ouvia a voz de uma santa e de onde surgiria D. Sebastião (o Encantado, o Encoberto). Em Pedra Bonita, localidade também situada no sertão de Pernambuco, em tornode 1836, o messias João Ferreira dizia que "o reino seria desencantado" e surgiria na terra com a chegada próxima do rei e de sua corte. Em Canudos, 1896-1897, era a vez de Antônio Conselheiro, que pregava a saída do Redentor das águas do oceano. E, quase em nossos dias, em Caldeirão (Serra do Araripe, Ceará),justamente em 1935-1936, o santo José Lourenço, fiel do Padre Cícero, aparentemente menos próximo do sebastianismo, não é totalmente estranho ao fenômeno (81).Finalmente, vejamos também nos versos de Maxado Nordestino, que nos propõe uma nova leitura das profecias do Conselheiro, associando-as às grandes obras hidráulicas e de irrigação do rio São Francisco,

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integrando-as ao sebastianismo e ao messianismo dos sertões do Nordeste. Sua contribuição é ainda mais de tendênia nacionalista, pois, em vez de falar das águas do mar, o oceano Atlântico que liga o Brasil a Portugal, passando pela África, o poeta diz que se trata das águas do São Francisco, o rio da unidade nacional brasileira:

O rio São Francisco jáTem lago artificialSeu "Império Belos Montes"Conhecido por CanudosTambém jaz em baixo d'águaA lagoa imita o marTem ondas de metro atéSó falta chegar o tempoDe vir rei SebastiãoRessurgir naquelas águas. (82)

-40 -46- PONTES, W. Tenório, op. cit., cap 2. ANDRADE, Mário de. Danças dramáticas do Brasil. São Paulo: Martins, 1959, Tomo I. GALVÃO, Walnice Nogueira. Fiction moderne et représentation médiévale: un cas. In: Ideologie, littérature et société en Amérique Latine. Université de Bruxelles, 1975.47- CALAZANS, José. O tempo de Antônio Conselheiro. In: QUEIROZ, Maria Isaura Pereira de, op. cit., p. 204.48- CANTEL, Raymond, op. cit, p. 61.50- SARA, J., op. cit., p. 6.51- Idem, p. 9. Ibid., p. 10.52- Ibid., p. 1053- O messianismo na literatura de cordel pode ser confundido com o Eldorado, tema do poeta Manuel Camilo dos Santos, no seu folheto Viagem a São Suruê, que damos a última estrofe:

Lá existe tudo quanto é de belezatudo quanto é bom, belo e bonitoparece um lugar santo e benditoou o jardim da Divina Naturezaimita muito bem pela grandezaa terra da antiga promissãopara onde Moisés e Aarãoconduzia o povo de Israelonde dizem que corria leite e mele caía manjar do céu no chão.

54- SARA, J., op. cit., p. 16.55- Como em Portugal no século XVI, ver AZEVEDO, João Lúcio de. Bandarra e o sebastianismo. In: Boletim da Segunda Classe, Academia de Ciências de Lisboa, Tomo II, p. 193/201, Coimbra, 1918.56- A tese segundo a qual Antônio Conselheiro era um monarquista ferrenho tem vários adeptos; outros pensam que sua oposição a certas medidas da República, como a campanha contra o pagamento de impostos, era apenas uma coincidência com a novidade do regime republicano proclamado em 1889. Lembre-se de que o maior período de repressão contra o movimento de Canudos vai de 1895 a 1897, quer dizer, nos primeiros anos da República.57- SARA, J., op. cit., p. 25.- 41 -(58) É interessante conhecer alguns números que são altos sobre o fenômeno de Canudos. QUEIROZ, Maria Isaura Pereira de, op. cit., p. 25, nos ensina que: "no seu apogeu, o império de Belo Monte contava 8.000 habitantes". FACÓ, Rui, op. cit. p.121, diz que: "foram mobilizados 12.000 homens em armas, e que 5.000 foram mortos nos combates". Esse escritor acrescenta que o próprio Ministro da Guerra veio em pessoa inspecionar a quarta expedição, a do general Moreira César. A tudo isto se deve somar o material de guerra, de transporte, animais e todo o sistema de apoio logístico, sem dúvida enorme para a época.59- SARA, J., op. cit., p. 26.60- CALAZANS, José, op. cit. p. 50-52. In: CANTEL, R. op. cit. p. 61.61- SARA, J., op. cit. p. 40.62- Feira de Santana, importante município do sertão da Bahia.63- MAXADO NORDESTINO. Profecias do Conselheiro (O sertão já virou mar). 3. ed. Feira de Santana, 1976.Com este autor começamos, talvez, uma nova geração de poetas populares. Maxado Nordestino é o pseudônimo do jornalista Franklin Machado, profissional domiciliado em São Paulo, autor de uma vasta bibliografia no gênero de folhetos de cordel.64- MAXADO NORDESTINO, op. cit. p. l.65- Idem, p. 2.66- "Segundo o estudo de casos concretos descobrimos os elementos principais da crença: 1. condições sociais miseráveis para uma coletividade; 2. o desejo de uma mudança social expresso pela esperança que um ‘herói’ ou ‘santo’ restabelecerá

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para o povo as condições prévias de felicidade ou o conduzirá ao Paraíso terrestre; 3. a expectativa da chegada desse herói, santo ou emissário divino". QUEIROZ, M.I. Pereira de. Classifications des Messianismes Brésiliens. In: Archives de Sociologie desReligions, n. 5, Clermond Ferrand, 1958, p. 111.67- MAXADO NORDESTINO, op. cit., p. 2.(68- Ver as informações de M. LE LANNOU sobre os projetos de colonização da bacia do Rio São Francisco, nota 108, p.207 deste trabalho.69- MAXADO NORDESTINO, op. cit., p.3.70- Idem.71- ROMERO, Silvio. Cantos populares do Brasil. Rio de Janeiro: José Olympio, 1954, p. 46.

-42 -72- QUEIROZ confirma esta asserção. Ela fala da tipologia do messias: "a descrição corrente de um personagem messiânico é a de um ser extraordinário, dotado de atributos heroicos ou sagrados [...]". In: op.cit., p.114.73- NORDESTINO, Maxado, op. cit. p. 3.74- Idem.75- Ibid., p.3.76- V. nota 43, p. 42.77- MAXADO NORDESTINO, op. cit., p. 4.78- "A expectativa da chegada desse herói, santo ou emissário divino". QUEIROZ, M.I. Pereira de, op. cit., p. 111.79- MAXADO NORDESTINO, op. cit., p. 4.80- Monte Rodeador, Pedra Bonita, Canudos e Caldeirão. V. nota 3.81- CUNHA, Euclides da. Os sertões; LEITE, A.R. de Souza. Pedra Bonita ou Reino Encantado; FACÓ, Rui.Cangaceiros e fanáticos; QUEIROZ, M.I. Pereira de. O messianismo no Brasil e no mundo.82- MAXADO NORDESTINO, op. cit.2a Parte

CAPÍTULO I

É muito difícil estimar com precisão o número de folhetos e de outras publicações populares cujo tema principal é o Padre Cícero Romão Baptista. A pessoa, a vida e a obra deste santo homem dominaram de talmaneira o Nordeste e o Norte do Brasil durante mais de 60 anos que seria um esforço de pesquisa praticamente destinado à imperfeição. Em compensação, pode-se afirmar, sem nenhuma possibilidade de erros, que "nosso padrinho" é, de longe, a personalidade, morta ou viva, mais abordada pela poesia popularem versos (1).A literatura erudita, originária de terras do Nordeste ou nelas inspirada, foi também muito influenciada por esse personagem. Ao mesmo tempo, pode-se dizer, sem exageros, que a crença e todo o movimento em torno do Padre Cícero se beneficiaram da sensibilização engendrada por toda esta produção popular e literária. Cantos populares e textos eruditos se inspiraram na mesma fonte e ajudaram, às vezes exageradamente, a implantação e o desenvolvimento da crença e do movimento messiânico do Padre Cícero, aos estudiosos, de dizer qual é a parte do sentimento profundo do povo neste fenômeno.

Padre Cícero Romão Baptista foi o vigário de Juazeiro do Norte, cidade do Estado do Ceará, de 1872 a 1934. Sua vila de Juazeiro veio a ser um lugar santo para esta religião sertaneja, mistura de catolicismo e de superstição, de ritos, de fé primitiva. Peregrinações se sucedem há várias décadas. Hoje, mais de 50 anos depois da morte do Padrinho, Juazeiro continua a ser visitada por multidões de fiéis. Sobretudo, todos os anos, no dia 2 de novembro, os peregrinos vêm orar na igreja do Padre Cícero; eles vêm aos milhares agradecer suas curas ou fazer novos votos. Essas romarias a Juazeiro são,elas mesmas, acontecimentos populares de grande importância. O mito do Padre Cícero ultrapassou sempre o quadro místico-religioso, para atingir o domínio social e politico.

- 44 -Ao mesmo tempo, esse santo homem, tão estimado e venerado pelas populações sertanejas, é utilizado porcertos interesses políticos do Nordeste, geralmente contrários aos próprios interesses dos seus fiéis. Veremos como essa situação é apresentada por escritores de tendências diferentes. As ligações do Padre Cícero com o mundo do cangaço são muito remarcadas. Teremos ocasião de ver como esse fato é percebido pela literatura popular, assim como pelos escritores eruditos do Nordeste. Parece-nos que religião, misticismo, fanatismo, coronelismo e cangaço se dão bem. Este tema é abordado por poetas populares, romancistas, sociólogos e historiadores, cada qual à sua maneira, com a sua linguagem.Juazeiro do Norte, a vila santa, é um tema também tão desenvolvido nos folhetos como nos textos eruditos. Rachel de Queiroz, romancista brasileira tão conhecida, fala da vila do Padre Cícero nestes termos: "Juazeiro, a nova Jerusalém" (2). É claro que Juazeiro representava e representa ainda o lugar santo, o começo de uma vida nova para grande quantidade de crentes. Vejamos o que diz o teatrólogo Dias Gomes,na peça A revolução dos beatos, que se situa em torno de 1920 e aborda o tema do fanatismo e do misticismo: "Juazeiro se transformou na Nova Jerusalém" (3). Esta cidade é um lugar privilegiado, onde se produzem milagres, onde os peregrinos vêm para curar seus males, físicos ou morais. Pode acontecer que eles venham para se arrependerem, para exorcizar seus pecados. Uma só palavra pronunciada contra Meu Padrinho Cícero é uma blasfêmia que é necessário purgar em Juazeiro. É aqui que se pode esperar o

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perdão. Os votos dos penitentes são apreciados proporcionalmente aos sofrimentos e aos sacrifícios que eles se impuseram. A esse propósito, vejamos o que nos conta o poeta popular Severino Gonçalves, no folheto A moça que virou cobra (4). Trata-se de uma moça que profanou o Padre Cícero:

Leitores do CearáHá 21 de JaneiroDeu-se um exemplo assombrosoCom a filha de um fazendeiroJesus Cristo a castigouPorque ela profanouDo padre do Juazeiro. (5)

Constatamos nessa primeira estrofe diversos temas da poesia popular. Alguns têm relação com o assunto deste capítulo: o misticismo das populações e da sociedade do Nordeste. Padre Cícero e Juazeiro, a Nova Jerusalém, têm já um lugar de destaque. Devem-se também ressaltar algumas referências linguísticas que são características da linguagem místico-religiosa. As palavras assombroso, castigou e profanou se encontram em todos os textos populares e eruditos que abordam esse tema. Esses vocálulos aparecem também em suas variantes assombro, castigo, etc. Chamamos a atenção para duas palavras que são de uma importância excepcional: filha e fazendeiro.

-45 -Seria cansativo calcular o número de vezes que elas aparecem na poesia popular e na literatura erudita, sobretudo quando são abordados dramas do gênero aventura e social. Podemos dizer mesmo que estamosdiante de um vocabulário mítico, por seu conteúdo histórico e social. O substantivo fazendeiro exige uma definição social, pois ele é considerado como uma espécie de barão, grande proprietário de terras com todos os poderes que resultam dessa posição, do ponto de vista econômico e social. Pensamos que o significado dessa palavra é ainda mais amplo. Por exemplo, vejamos como o concebe Jorge Amado: "Silva Castro tornou-se um daqueles senhores feudais do Sertão" (6). A propósito de filha de fazendeiro, vejamos o que nos diz outro conhecedor, que é Ariano Suassuna:"Condessa, é a princesa, filha de fazendeiro rico" (7). É necessário então levar em conta essas concepções da expressão filha de fazendeiro, para compreender o que vai se passar:

Na fazenda Cana Verdeessa moça residianão acreditava em Deuse nem na Virgem Mariaela chamou um romeirocom seu gesto desordeiropor esta forma dizia. (8)

Pensamos que é bom esclarecer o sentido de algumas palavras empregadas pelo poeta, antes de analisarmos a questão de conteúdo, isto é, o pecado de nossa herética. Primeiramente, vejamos o vocábulofazenda, que lembra e dá origem a fazendeiro, o que nos coloca diante da relação perfeita de causa e efeitoda sociedade agrária do Nordeste. Não existe drama, que seja apresentado objetivamente pelos sociólogos ou pelo gênio criador dos artistas, onde essas palavras não representem o interesse principal, o ponto dramático por excelência do texto. Há também variações linguísticas e sociológicas que devem ser pontuadas: fazenda lembra “engenho”, “propriedade”. Encontramos essas palavras em todas as obras populares e eruditas da região, na maior parte das vezes em oposição a outras palavras do mesmo universo social e econômico, como roça, roçado, sítio, vaqueiro, etc. Nós o constataremos com mais precisão no capítulo relativo às questões sociais, onde veremos o fenômeno do coronelismo e do cangaceirismo. No que diz respeito à linguagem mística, vejamos a palavra romeiro. Podemos compreendê-la como peregrino. Mas trata-se de um peregrino especial, antes de tudo porque ele acompanha uma romaria à procura de um ser vivo, de um santo homem, que foi sempre considerado o Padre Cícero. Claro está que o mito, a crença ao Padre Cícero persiste além da sua morte. Mas o fato muito importante é que essa crença e esse mito surgiram e se desenvolveram enormemente durante a sua vida. Há certamente outros personagens que suscitaram tanto ou mais interesse. Mas o interessante no caso desse homem é que o fenômeno se instalou numa região bastante grande e muito populosa. A fanatização em torno de sua vida e de seus poderes milagrosos penetraram profundamente nas camadas populares e resiste à evoluçãosociocultural e econômica que se produzem ultimamente no Nordeste e no Brasil.

- 46 -A grande quantidade de folhetos, orações, cantorias e livros de toda sorte escritos sobre esse personagem que se veem hoje em dia são a prova dessa afirmção. As romarias a Juazeiro, os milhares e milhares de pessoas que vão todos os anos pagar uma promessa, ou pedir graças ao Padrinho, fazem parte da história cotidiana do povo nordestino e das regiões vizinhas. Podemos adiantar, sem risco de erro, que em uma casa sertaneja podem faltar muitas coisas, mas é certo que jamais faltará uma fotografia do Padre num quadro pendurado numa parede da sala de visitas, a peça principal da casa.Outra característica constante da crença no Padre Cícero é a defesa de um certo status quo religioso, social, econômico e político. Veremos através da literatura de cordel como as palavras e a crença ao santo do Nordeste foram sempre utilizadas para combater as outras religiões, os novas-seitas. Os romeiros eram

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sempre instigados contra os protestantes por ordem do próprio Padre Cícero. É fora de dúvida que ele desempenhou um papel em favor da ordem estabelecida.Vejamos, por exemplo, o significado da palavra desordeiro, utilizada na estrofe acima transcrita. Trata-se dealguém que é contra a ordem. Esta é simbolizada pela crença na pessoa do Padre Cícero. Nesse caso, o poeta deixa o terreno puramente linguístico para entrar no social. Um desordeiro é um malfeitor, ele faz parte do sistema regulado pelo direito positivo, e não do religioso.Quais as conotações da palavra desordeiro podemos desenvolver? Por exemplo, ordem x desordem; ordeiro e cordeiro x desordeiro. Nestas variações encontramos significados mais próximos da Lei, do Direito, da Justiça; alguém ou alguma coisa que é contra a ordem estabelecida. Em nosso caso, a ordem estabelecida, a Lei, são ao mesmo tempo o Padre Cícero, a crença em seus milagres, em suas predições, em seus ensinamentos religiosos e mesmo em suas orientações sociais. Todos aqueles que não o seguem,que não creem no Padrinho, estão fora da lei, são desordeiros. Em nosso exemplo, é a filha do fazendeiro. E qual é a desordem que ela causou? Qual é o seu pecado?

A moça disse: eu não creionaquele catimbozeiroque fazendo bruxariaseduziu o mundo inteirolaçando a humanidadepor meio de falsidadeconquistou o Juazeiro. (9)

Veja-se aí a heresia: “eu não creio”. Crer, crença, cruzada.Em língua corrente, são vocábulos carregados de religiosidade: crer em Deus, ter fé, a necessidade de ter uma crença. O poeta popular emprega o verbo nesse sentido. A palavra crer faz parte da linguagem, do código místico ligado ao personagem do Padre Cícero. Nosso poeta, porém, não fica só nessas palavras. Ele vai desenvolver todo um inventário de vocábulos cujo campo semântico deve se adaptar à personalidade e ao contexto do tema que ele vai tratar. Seu vocabulário é muito significativo.

- 47 -Aqui convém lembrar que a religião representada por Padre Cícero, o catolicismo romano, era considerada normal, a norma religiosa, apesar dos seus problemas com a hierarquia romana. Não esqueçamos que se trata de um padre católico com todo o peso que essa qualidade representa numa paróquia do interior. Entretanto, há o lado misterioso, sobrenatural, místico que, na imaginação popular, não poderia deixar de associá-lo a essa outra religião popular brasileira, os cultos afro-brasileiros dos terreiros. É o culto do bem e do mal, dos milagres, dos mau-olhados, das macumbas de toda sorte. Os poderes milagrosos do Padre Cícero não poderiam deixar de se identificar com a feitiçaria. É por isso que o poeta, pela boca da filha do fazendeiro, trata-o de catimbozeiro. É ele que "fazendo bruxaria seduziu o mundo inteiro". O mundo que o poeta concebe é o sertão cujo centro é Juazeiro. Catimbozeiro, adjetivo que qualifica a pessoa que faz catimbó: prática da feitiçaria ou baixo espiritismo.A filha do fazendeiro não poderia ir mais longe na sua heresia. No entanto, ela insiste: Padre Cícero é não somente um feiticeiro, mas também um sedutor que seduziu o mundo inteiro através de falsidades, mentiras, calúnias, etc. “Laçando a humanidade [...] / conquistou o Juazeiro” (10). O laço, como se sabe, é uma corda com um nó preparado para amarrar, prender alguém ou alguma coisa. Em nosso caso, o laço serviu para prender, amarrar a humanidade. Esta palavra serve para nos orientar para a ideia do centro do mundo que seria Juazeiro. Isso tudo a serviço do mito místico-religioso em torno de Padre Cícero. Aliás, esse sentimento é expresso também por alguns eruditos já citados neste capítulo (11). Encontramos frequentemente esta concepção nos poetas populares, seja quando eles abordam a figura de meu Padrinho, seja quando eles falam de personagens como Antônio Conselheiro e de outros iluminados. Trata-se de uma constante na poesia popular. A "escolha" desses temas demonstra, mais uma vez, a identificação desses poetas com o sentimento coletivo das populações do Nordeste.Vejamos agora o que nos diz um outro poeta que também abordou o tema da profanação do nome do pároco de Juazeiro:

No Rio Grande do NorteNum pequeno povoadoum crente metido a Santopor nome de Romualdoprofanou do Padre Cícerovirou um jegue adubado. (12)

Veja-se aqui o crente que se atreve a blasfemar contra nosso Padre Cícero. Como na poesia anterior, encontramos uma outra pessoa que se atreveu a pôr em dúvida a natureza sagrada do profeta doNordeste. Desta vez se trata de um crente. Este vocábulo merece alguns comentários. Sobretudo, não se deve compreendê-lo como o definem os dicionários oficiais: crente, ter fé, religioso, etc. Aqui se trata da utilizaçãoe da compreensão corrente no Nordeste, isto é, a pessoa que professa o protestantismo. Na palavra crente pode haver um significado positivo ou negativo; vamos tentar penetrar o contexto.

-48 -Crente, no sentido positivo, quer dizer alguém sério, responsável do ponto de vista religioso ou outro; é, em

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geral, uma expressão de elogio. Na segunda hipótese, o significado negativo, quer dizer alguém que se considera sério demais, sectário, fanático, dogmático. É a interpretação costumeira da literatura de cordel e da linguagem popular em geral, encontrada em muitos folhetos que abordam temas religiosos. Os crentes são os novas-seitas. Mas voltemos ao verso citado: "O crente metido a santo". Veja-se aí que um protestante não pode pretender ser santo. É impossível. A palavra metido seguida da preposição “a” reforçaa nota pejorativa ligada à condição de crente. O poeta vai direto ao conteúdo negativo: “é um crente metido a [...]”. E por que essa desqualificação? Precisamente porque o pobre homem ousou profanar o nome do Padre Cícero. Em consequência, ele foi transformado em um jumento, "virou um jegue adubado". Apesar dea palavra jegue ser bastante pejorativa, ele teve uma consolação com o vocábulo adubado, isto é, forte. O exemplo indicado pelo Novo Dicionário Aurélio é bastante pertinente: "ao jantar, dão-lhe carne, [...] e um prato d’ arroz e algum guisado com farto molho, para adubar o arroz".Vemos assim que há vários pontos emcomum nos dois folhetos que citamos. Primeiramente, é o personagem do Padre Cícero que é o centro das histórias, seus milagres e poderes sobrenaturais. Em seguida, é a questão do pecado e da heresia daqueles que ousam desafiar esse santo homem, daqueles que não são fiéis. Finalmente, é o tipo de castigo que cai sobre os heréticos: a metamorfose em animal. Aliás, aqui tocamos num ponto muito sensível, uma das constantes da literatura de cordel, a transformação dos humanos em animais. Porém, não se devem esquecer a linguagem e o vocabulário comuns aos dois folhetos, de caráter místico-religioso e mítico, ao mesmo tempo. Como dissemos nas primeiras páginas deste trabalho, a dedicação e a fé em Padre Cícero não é um privilégio dos poetas populares. Poetas e escritores eruditos seguem o mesmo caminho. Às vezes, eles vão mais longe, como, por exemplo, o poeta Ascenso Ferreira:

O homem de minha terra tem um Deus-de-carne-e-osso– Um Deus verdadeiro– Meu padrinho Padre Cícero do Juazeiro. (13)

É claro que Ascenso Ferreira interpreta a crendice popular do sertanejo. Mas, ao mesmo tempo, ele é um porta-voz da deificação do pároco de Juazeiro. Tratar-se-ia de simples interpretação ou de uma identificação ao sentimento popular? É bem conhecido que esse poeta, embora de origem burguesa, sempre empregou uma linguagem bem próxima do falar do povo, sobretudo quando ele canta a vida e as coisas da várzea, dos engenhos e do Recife. Aqui ele toca num ponto sensível dos habitantes dessas regiões ao utilizar uma das diferentes denominações do Padre Cícero Romão Baptista. As expressões Meu Padrinho ou Meu Padim contêm, ao mesmo tempo, respeito e afeição. O primeiro significado é mais característico da sociedade do Nordeste em geral.

-49 -Padrinho é considerado pelos fiéis e não fiéis como um protetor, diante das dificuldades deste mundo e das incertezas do "outro". É uma garantia contra o mal, em vez de uma proteção para o bem. A utilização desse apadrinhamento pelos cangaceiros, todos devotos do Padre Cícero, é uma prova disso.O poeta Asenso Ferreira não exagera quando considera Meu Padrinho Padre Ciço como um Deus de carnee osso. Nas camadas superiores da sociedade, sobretudo entre os proprietários de terras dos sertões, existe uma aparência de devoção, na medida em que este comportamento beneficia seus interesses. Além disso, Padre Cícero chegou a ser um grande proprietário agrário. A este propósito, é interessante consultar o livro Cangaceiros e fanáticos, de Rui Facó (14), particularmente as informaeçõs sobre o testamento deixado por nosso santo homem.Voltemos, porém, à nossa poesia de cordel, em particular A moça que virou cobra. Lembremos que, após cometer a heresia de comparar Padre Cícero a um feiticeiro, a filha do fazendeiro lança-lhe um enorme desafio utilizando um vocabulário que nos recoloca no terreno místico-religioso:

Só creio no Padre CíceroQuando ele me castigarfazer eu cair das pernasmeus braços se deslocarcriar ponta e nascer dentecorrer virada serpentemordendo quem encontrar. (15)

Antes de analisar o vocabulário religioso, notemos o emprego do infinitivo do verbo fazer em vez do subjuntivo fizer. Esta utilização é corrente nos meios populares do Nordeste e se aplica a vários verbos quando a ação se passa no futuro ou no condicional.Procuremos, porém, quais são as intenções da filha do fazendeiro, que é cada vez mais provocadora:

Quando eu andar feito cobracom o bucho pelo chãoos dentes como uns espetosa cauda como um dragãoo olho encarnado e feiodaí em diante eu creiono Padre Cícero Romão. (16)

Apesar do tom provocador e embora ela se declare não devota, a moça deixa subsistir dúvidas muito sérias.Ela admite que poderia acreditar no Padre Cícero "Quando [...]". Este vocábulo é empregado no sentido de

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"se", condicional por excelência. Ora, sabemos que uma conjunção pode substituir outra, por exemplo:Só creio no Padre Cícero / quando ele me castigar = Se ele me castigar e Quando eu andar feito cobra =Se eu andar feito cobra.

A reserva deixa supor algumas possibilidades de compromisso. É o caso de dizer que alguns "infiéis" não são assim tão seguros, não. Apesar da comparação de nosso Padrinho a um feiticeiro, a moça está pronta a se ajoelhar se as condições que ela impõe forem realizadas. Ela propõe aquilo que considera impossível. O vocabulário e o comportamento de nossa infiel são mais do que significativos e nos conduzem diretamente às concepções das crenças ou não crenças em certos poderes sobrenaturais. Vejamos, assim, alguns vocábulos das duas estrofes citadas: creio, do verbo crer; segundo Aurélio Buarque De Holanda, "terconfiança, ter fé", sobretudo ter fé no espiritual, nos poderes sobrenaturais, nos milagres e nos castigos do Padre Cícero. O poeta emprega creio (no Padre Cícero) no começo da primeira estrofe e no fim da segunda. É difícil encontrar uma palavra mais carregada de espiritualidade, de religiosidade. “Eu creio”, neste contexto, não poderia ter mais intensidade do que a evocada pelo poeta. É verdadeiramente a crença no divino, ou talvez no diabólico, isto é, nos poderes que teria o pároco de Juazeiro do Norte de transformar as pessoas incrédulas em cobras.Castigar, veja-se a ideia de punição, de castigo, em todo o seu esplendor. O castigo não é a resposta ao pecado, sua consequência? O exorcismo, a autopunição, o sacrifício carnal serviriam para expulsar os males espirituais e os pecados da "carne". Castigar é empregado pelo poeta popular com toda a conotação religiosa própria aos fanáticos de toda sorte.Mais uma vez, poetas populares e escritores eruditos do Nordeste falam a mesma linguagem. Citemos uma passagem de A revolução dos beatos, de Dias Gomes:“Beato (Iluminado:) Quando sangue do Santo Boi encharcar, a terravai virar fogo. E o fogo vai limpar o mundo de todos os pecados. De todos os vícios. De todosos crimes!” (17)

Aqui o castigo chegará pelo fogo. Ele queimará a terra. Então, esta e seus ocupantes serão purificados, sem pecados. O dramaturgo, sem dúvida, inspira-se no Apocalipse, particularmente das profecias anunciadas na abertura do 7.° Selo: "Des archanges apparaissent et jettent du charbon en braise sur la Terre..." (18). Encontra-se sempre a ideia de castigar a terra e os homens. A mesma ideia é desenvolvida pelo poeta popular, "só creio no Padre Cícero / Quando ele me castigar".No que respeita ao autor erudito Dias Gomes, o símbolo do sagrado não é o Padre Cícero, mas “o Santo Boi”, que é escolhido para representar a ideia

- 51 -religiosa. O autor escolheu um boi, um “santo boi”, para representar a ideia do misticismo tão arraigada nas populações camponesas do Nordeste. Terá sido por azar ou uma escolha deliberada que fez do boi a entidade ou personagem que, por seu sacrifício, virá purgar todos os pecados? É difícil responder. Em todo caso, é do sagrado que se trata.Poetas populares e escritores eruditos, repetimos, inspiram-se nas mesmas fontes. Os primeiros, mais realistas, menos fictícios, veem Padre Cícero como a materialização do miraculoso, do sagrado. Os outros, intelectuais, sarcásticos, iconoclastas, inspirando-se do mesmo passado cultural e religioso, o judeu-cristianismo, utilizarão, por vezes, o místico para pregar a destruição mesma de certos mitos religiosos.O que nos parece interessante reafirmar, e as citações que vimos provam, é a natureza religiosa do emprego da palavra castigar, utilizada nos dois gêneros da literatura, o popular e o erudito.Para concluir, vejamos a seguir o antepenúltimo verso da primeira estrofe. A filha do fazendeiro continua a expor as condições segundo as quais ela viria a ser uma devota do Padre Cícero: “correr virada serpente”. Primeiramente, notemos o emprego do verbo virar no particípio passado. O poeta escolheu essa fórmula cujo sentido não corresponde exatamente às definições oficiais da língua portuguesa, mas no sentido de transformar, mudar, o que representa mais uma característica do falar sertanejo. Ao contrário, se consultarmos o Novo Dicionário Aurélio, verificamos que o verbo virar pode ter uma origem céltico-latina significando inclinar-se para um lado ou para o outro. Eis um exemplo do clássico Camões: "O capitão, que em tudo o mouro cria, virando as velas, à Ilha demandava". Mas o problema é que as populações rurais do Nordeste falam uma outra língua.

-52 -

1- CANTEL, Raymond. In: Seminário na Universidade da Sorbonne, Paris, 1977-78.2- DIEGUES JR., op. cit., p. 113.3- QUEIROZ, Rachel de, op. cit., p. 11.4 - DIAS, Gomes, op. cit., p. 300.5 - A moça que virou cobra. Segundo Literatura popular en verso, Antologia, tomo 1, edição da Casa de Rui Barbosa, Rio de Janeiro, 1961, o autor deste folheto é Severino Gonçalves. Ao contrário, no exemplar desse folheto que possuímos, não está indicado o nome do seu autor. A xilogravura impressa na capa do folheto é diferente e é colocada ao inverso com relação à reprodução da antologia citada. Nas citações de nosso trabalho, citamos a paginação do folheto da nossa coleção.

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6 - GONÇALVES, Severino. p.1.7 - AMADO, Jorge. ABC de Castro Alves. São Paulo: Martins, 1945, p. 29.8 - SUASSUNA, Ariano. A Pedra do Reino, p. 52.9 - GONÇALVES, Severino. p.2.10 - Idem, p. 3.11 - Laço, estratagema, ardil, traição.12 - Ver notas 3, 6, 7, 8.13 - PONTUAL, José Pedro. O crente que profanou do Padre Cícero, editor Edson Pinte, p. l.14 - FERREIRA, Ascenso. Poemas 1922-1953, Recife: edição I. Nery da Fonseca, 1955, p. 58.15 - FACÓ, Rui, op. cit.16 - GONÇALVES, Severino. p. 3.17 - Ibid.18 - GOMES, Dias, op. cit. p. 306.19 - RENAN, Ernest. Histoire des origines du Christianisme, l'Antéchrist. Paris: Calman-Levy, 1942: "Et ils ont lavé leur robe dans le sang de l'Agneau". "L'Agneau les fera paitre et les conduira aux sources de la vie".E Renan nos explica: "L'ange alors remplit son encensoir des charbons de l'autel et les jette sur Terre (imité d'Ezechiel, X). Ces charbons en atteignant la surface du globe, produisent du tonnerre, des éclaires, des voix, des secousses''.Id. p. 390-3.

-53 - Capítulo II

UM CASTIGO MEDIEVALVirar, virada, virado são palavras das mais usadas pela literatura popular. Elas correspondem a um dos temas frequentemente abordados por seus poetas. Trata-se do velho castigo do imaginário popular, de conteúdo religioso, que faz que as pessoas sejam transformadas em animais. Para o Nordeste, este tema seria uma maneira de fuga para a frente, uma tentativa de escapar a um destino miserável: epidemias, secas, pobreza.Aliás, é conhecido o sentimento popular que sempre se preocupou pela sorte desses seres irracionais. As comparações, as transformações e a vida dos animais em geral, mesmo no aspecto religioso, estiveram sempre misturadas à imaginação popular há muitos séculos. Vejamos o que nos diz a esse propósito M. Meyer, etnógrafo interessado por este assunto: "L'imagerie populaire est antérieure à l'invention de l'imprimerie à caractères mobiles, elle a ses racines dans le Moyen-Age: l'artisan populaire pouvait donner libre cours à son esprit moqueur et à ses sentiments critiques et satiriques: singeries, la truie que file, le combat du chat et de la souris, les scènes du ‘monde à rebours’, les représentations de proverbes et de dictons... Le monde renversé représentant le faible qui se venge du fort, on peut y voir une allégorie so-ciale." (19)É claro que Meyer nos fala de um mundo animado e brincalhão, satírico e sarcástico. Mas é interessante saber que essas fábulas faziam parte da vida na Idade Média. O tema da punição, virar animal, retorna em nossos dias pela poesia popular do Nordeste, para dar a conhecer os dramas e a realidade sociocultural de suas populações. No que diz respeito ao aspecto religioso indicado por M. Meyer, vemos que ele se aproxima da produção popular atual. Basta dar uma olhada nos títulos dos folhetos nos quais são contadas a vida, as transformações, as presepadas dos animais. Seria muito longo citar todos os exemplos, citaremostítulos da série, do gênero, relativo à metamorfose de seres humanos em animais, no estilo:

A mulher que virou [...]O homem que virou lubisomem [...].

-54 -Quando se trata de Nordeste, a literatura popular não é a única a se afeiçoar a esse tema. Vejamos um exemplo, entre tantos outros, do nosso célebre Jorge Amado, que nos conta em Jubiabá as facetas de um pai de santo, outra espécie de santo homem:"Um dia um menino disse a Balduino que Jubiabá virava lubisomem. Outro afirmou que ele tinha o diabo preso numa garrafa [...] Cresce as unhas, depois vira lubisomem numa noite de lua grande." (20)Seguindo esse exemplo, voltemos ao significado do verbo virar. Trata-se bem de se transformar, se metamorfosear. E é justamente nesse sentido que a filha do fazendeiro lança terrível desafio ao Padre Cícero (capítulo anterior), desafio místico, antes de tudo. Ela se transformaria em uma devota, acreditaria nos milagres e nas profecias, se ela mesma virasse uma cobra. Neste ponto é bom lembrar que este substantivo, este animal é do gênero feminino. Como tal, ele tem um caráter misterioso, perigoso, envenenador e pecador. É o sentido apresentado pelo poeta popular.A serpente, a cobra, é o animal bíblico por excelência. No sentimento popular, é o animal mais repugnante, aquele que conduziu ao pecado os primeiros habitantes do paraíso terrestre. Este vocábulo significa vilania,traição e maldade. Este significado não é particular ao Nordeste. Ele é do domínio da cultura ocidental, judeu-cristã. A literatura só faz juntar-se a essa concepção ligada às serpentes desde Adão e Eva.Os animais são tratados, em geral, com simpatia e mesmo amizade pela poesia popular. Reserva-se a eles um caráter fantástico, maravilhoso. Eles são apresentados como uma espécie de complemento do homem, frequentemente com muito respeito. A cobra é, talvez, um dos poucos exemplos de animais que não tem essa consideração. Ao contrário, ela é vista com bastante desprezo. A literatura de cordel lhe reserva trabalhos ingratos, vergonhosos. A cobra foi escolhida pelo poeta popular tendo em conta essa

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particularidade, que contrasta com a regra geral no reino animal. Esta tradicão dos poetas populares sobre a presença dos animais nos seus folhetos é, aliás, confirmada por Manuel Diegues Junior: "Velhas narrativas, em contos maravilhosos ou em novelas tradicionais, consagram o papel desses animais. No caso do Brasil, o homem do Nordeste sabe quanto deve ao boi. (21)Parece-nos que, no Nordeste, é uma questão de gratidão. Temos dúvidas com relação a certos animais.

-55 -Naturalmente, o boi tem um lugar especial. Fala-se mesmo de um Ciclo do Boi: Boi Esbácio, Boi Surubim, Boi Misterioso, etc.O boi, ou o touro, é, sem dúvida alguma, o mais prestigioso dos animais do Nordeste e na literatura popular.Já o vimos "sagrado" na peça de Dias Gomes A revolução dos beatos: "mas esse [...] não é um boi comum". (22)

Contrastando também com o caráter inglório que é reservado à cobra, deve-se notar o grande prestígio que desfruta o cavalo, aliás muito ligado ao Ciclo do Boi. O cavalo, aliás, confunde-se com o homem, numa espécie de unidade física e espiritual (não religioso). Antes de citar exemplos da poesia popular, consideremos as opiniões de sociólogos e escritores brasileiros.Euclides da Cunha, em seu famoso Os sertões, sintetizou o fenômeno dizendo que "por onde passa o boi passa o vaqueiro com o seu cavalo" (23). Não se poderia ser mais convencido da unidade homem-boi-cavalo. Na mesma ordem de ideia, lembremos um outro animal, o cachorro, companheiro inseparável. Seu lugar ao lado do homem, como, aliás, a do boi e do cavalo, foi muito bem exposta por Graciliano Ramos ao relatar a vida e os dramas de um vaqueiro nordestino. Veremos o cão Baleia ao lado do Vaqueiro. É um companheiro inseparável e compreensivo, a única possibilidade de comunicação que encontra, na sua solidão das caatingas, este homem dos sertões. Graciliano Ramos (24) interpretou na sua totalidade o drama e a realidade do homem tanto quanto a da caatinga e do sertão nordestinos. Ao mesmo tempo, ele compreendeu muito bem o sentimento popular ao integrar o cachorro Baleia ao destino deste outro ser da região, o Vaqueiro. É uma afirmação sobre o papel que têm os animais ao lado do povo sertanejo.Aqui não podemos deixar de citar O auto da compadecida, de Ariano Suassuna. Esta peça célebre, inspirada diretamente nos romances populares (25), desenvolve sua trama a partir da história de um cachorro, mais propriamente do seu enterro "cristão católico". O sentimento popular, o misticismo e a realidade do interior do Nordeste encontraram uma grande possibilidade de síntese. Mais uma vez, somos confrontados ao papel e ao lugar reservados aos animais na sociedade da região. Mas não se trata do papel vergonhoso reservado à cobra, apesar de espécie de sacralização, que lhe é atribuída, na medida emque ela é considerada como um "gênio do mal".Mas continuemos o estudo relativo ao papel que desempenham os animais nos conceitos socioculturais e mesmo na vida cotidiana nordestina. Falemos agora de um outro animal sagrado, a onça. Mistério, fantasia,ferocidade e astúcia insuperáveis, eis a onça dos sertões. Ela faz parte desse conjunto de animais, como o boi, o cavalo e o cachorro, que mereceriam um estudo social e cultural que estabelecesse o seu verdadeiro sentido e posição ao lado das populações dos campos.

- 56 -Citaremos apenas alguns exemplos da poesia popular e da literatura erudita a fim de melhor avaliar o sentimento popular dos habitantes dessas regiões. Também consideramos interessante fazer a comparaçãodo conceito desses animais em relação à famosa cobra sobre a qual fala o poeta popular no folheto A moçaque virou cobra.A onça, apesar de toda a sua ferocidade, é apresentada, ao contrário da cobra, quase amigavelmente. Seu mistério e sua valentia são bastante respeitados e fazem parte do ambiente natural dos sertões. É alguma coisa que, não obstante todos os perigos reais e imagiários, pertence ao meio ambiente natural, aceita pelas populações autóctones. Vejamos, por exemplo, como se expressa o clássico José de Alencar, em seuromance regionalista O sertanejo, ao relatar um movimento estranho na caatinga: “[...] é [...] onça, defunto, lubisomem; é o velho bruxo. Jó, é verdade!Exclamaram muitas vozes em roda. O tinhoso; ideia de chamar o capelão para atacar com as armas da igreja e obrigá-lo a sair do mato". (26)Enfim, em seguida às iniciativas de um outro personagem lengendário,um vaqueiro corajoso, que decide enfrentar o tinhoso, a gente descobre que era a onça que rodava nos matos em torno da casa-grande. Que amálgama consistente, mítico e religioso, constituído por um animal, o medo das coisas do outro mundo (o defunto); o lubisomem (essa criação maravilhosa, imprecisa e maldefinida da cultura místico-religiosa do Nordeste); e do homem (o velho Jó).José de Alencar, fiel à inspiração popular do romance regionalista, refletiu muito bem o imaginário-realidadeda cultura do Nordeste relativa ao lugar e ao papel do animal na região.Vê-se bem que a descrição misteriosa e simpática da onça não tem nada a ver com o papel que representa a famosa cobra. Podemos dizer que esta é a mal-amada entre todos os animais do Nordeste. A cobra, a serpente, é o símbolo da traição da feitiçaria, do mal, da maldição, do pecado. Ela corresponde, enfim, à concepção mística da cultura bíblica, inteiramente assimilada pelo povo do sertão. Essa concepção religiosada serpente foi, evidentemente, escolhida por nosso poeta popular. É a filha do fazendeiro que diz: "correr virada serpente", se transformar numa cobra.Como vimos nessas primeiras estrofes do folheto A moça que virou cobra, o poeta utiliza um vocabulário carregado de misticismo. Podemos afirmar também que os escritores eruditos se colocam no mesmo ângulode visão linguístico e semântico quando evocam as histórias e os problemas do Nordeste. Também vimos na primeira estrofe do folheto O crente que profanou do Padre Cícero, que o poeta José Pedro Pontual

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adota a mesma orientação religiosa na escolha do tema e do vocabulário.

- 57 -Como vimos, este poeta evoca a história de um crente, um protestante, que não acreditava no Padre Cícero. No outro folheto, era uma moça que cometia uma heresia em relação ao pároco milagroso, espécie de feiticeiro. Os dois personagens, os dois infiéis, viraram um jegue e outro uma cobra.Depois de suas metamorfoses, os dois infiéis começam uma vida de calvário feita de sofrimentos e de humilhações. Eles andam por todos os sertões, sofrem o opróbio por onde passam. São a vergonha e a tristeza para suas famílias.Eles são mostrados como exemplo para todos aqueles que ousem duvidar da santidade e dos poderes miraculosos do Padre Cícero. O castigo infligido a esses dois seres, transformados em bestas desprezadas por todos, deve servir de exemplo e de aviso aos não devotos. Esses irracionais percorrem todas as estradas, aldeias, cidades e campos do Nordeste. Eles contam suas histórias, seus infortúnios e suas desesperanças. Como em peregrinação, eles erram para todo lado. Todavia, pode haver uma esperança deperdão para seus pecados. Eles podem voltar a ser humanos. Há uma possibilidade de serem absolvidos. Épreciso que eles cheguem à cidade santa de Juazeiro do Norte, a Nova Jerusalém, sede do império do Padre Cícero. Veja-se como fala a cobra:

Eu vou para o Juazeiroassistir uma missãoque vai haver hoje à tardena matriz da Conceiçãochegou a hora marcadavou assistir à chegadado Frade Frei Damião. (27)

Um novo personagem surge no folheto A moça que virou cobra, o Frei Damião. Trata-se de um profeta recente que percorre o Brasil depois da década de 1940. Ele se apresenta como o sucessor de Padre Cícero.Seus milagres já são numerosos, suas profecias proclamadas por todos os lados: nas igrejas, nas missões. Elas são repetidas por todas as bocas da região. Parece-nos que o regime político instalado após 1964 se apropriou desse personagem. Ele é o novo salvador da nação. É a redenção de todos os pecados das pessoas simples das campanhas brasileiras. Vejamos, pois, alguns exemples do folheto O crente que profanou do Padre Cícero:

Com 5 dias depoisele entrou no Joazeiro. (28)

Chegou na hora que estava padrinho Frei Damiãojunto com todos romeirosfazendo um grande sermãoo jumento deu um rinchode assombrar qualquer cristão. (29)

-58 -Vemos, então, voltar ao tema da cidade santa, o lugar onde todos os infiéis, os pecadores, os fiéis, os romeiros e mesmo os cangaceiros devem vir para se purificar de suas faltas, de seus pecados, de seus crimes. Muitos anos após a morte de Padre Cícero, continua-se a exaltar as práticas, as crenças e os ritos do Padre de Juazeiro.O novo profeta, apesar de sua idade avançada, entrou em cena para realimentar as crenças e ilusões místicas do "zé-povinho". A gente o chama também Padrinho; como outrora ao Padre Cícero. Os poetas populares, com suas crenças e seus sentimentos, fazem-se o eco desse novo profeta, Frei Damião. É verdade que, em sua simplicidade, os poetas de cordel tentam responder às questões dos fiéis. Ontem, sobPadre Cícero; hoje, Frei Damião.

Ao fim dos dois folhetos que analisamos, o milagre se produz. A cobra e o jegue voltam a ser seres humanos. A filha do fazendeiro e o crente heréticos no começo das histórias transformam-se em fiéis obedientes do Padre Cícero e de Frei Damião. A devoção ao Padre Cícero se mantém desde o começo do século XX. Durante a sua vida, eram as romarias a Juazeiro do Norte que reuniam multidões de fanáticos, devotos e curiosos de todos os tipos. Essa religião, metade cristã e metade pagã, é praticada cegamente pelas populações nordestinas durante algumas décadas.Uma retificação, porém, é necessária fazer-se, com relação a um dos animais escolhidos para transformar ocrente que profanou do Padre Cícero. O jegue (jumento, burro, burrico, jerico, etc.) merece um outro tratamento do homem dos sertões. Não é justo assemelhá-lo a um castigo por uma blasfêmia ao santo do Nordeste. Ao contrário, esse animal, tão útil e integrado à ecologia sertaneja, merece mais consideração. Ele foi e ainda é, em muitas ocasiões, o único meio de transporte de pessoas e de cargas nessas grandes regiões de acesso difícil das caatingas e dos sertões. As pessoas dessas paragens devem ter um sentimento de reconhecimento por esses burricos. Ainda mais para certos espíritos religiosos, sua utilizaçãona história bíblica, como meio de transporte na fuga do Pequeno Jesus e de sua santa mãe, a Virgem Maria, deveria inspirar sentimentos de gratidão e de ternura. A menos que nossos poetas populares, mais

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uma vez, sejam os intérpretes fiéis do espírito contraditório do povo do sertão a propósito das informações veiculadas pelos canais da história religiosa oficial. Diremos também que o número de folhetos que narram as transformações de pessoas em animais irracionais, por causa de heresias religiosas ou pecados, é muitoelevado. Essa prática "literária" representaria um grande desvio dos poetas e do povo em relação à tradiçãojudeu-cristã na qual esse fenômeno é talvez muito raro. Tratar-se-ia de um fenômeno de origem pagã?

-59 -19 - MEYER, Mauritz. In: Actas do Congresso Internacional de Etnografia de Santo Tirso. Portugal: Edição Lisboa, 1965.20 - AMADO, Jorge. Jubiabá. São Paulo: Martins, 1960, p. 29, 43- 44.21 - DIEGUES JR., Manuel, op. cit., p.48.22 – GOMES, Alfredo Dias, op. cit., p. 302-4.23- CUNHA, Euclides da. Os sertões. p. 116.24 - RAMOS, Graciliano. Vidas secas.25 - "História do cavalo que defecava dinheiro", lenda popular do Nordeste. Ver SUASSUNA, Ariano. O autoda compadecida. p. 21.26 - ALENCAR, José de. O Sertanejo. Rio de Janeiro: Aguilar, 1965, p. 906-7. Romance Regionalista. Convém lembrar que a "onça" já era observada como um animal sagrado no século XVI. Com efeito, o poeta Dante Alighieri nas suas viagens ao Inferno indicou várias visões desta fera. "Lonza"; pantera, leopardo, lince híbrido. Um dos três animais simbólicos que no prólogo da Divina comédia lançam Dante na floresta obscura. Ela simboliza a luxúria, a concupiscência da carne (In: "Enfer," I, p. 31-43). Ver MASSERON, Alexandre. Index, avec une introduction à la bibliographie dantesque. Paris: Edition Albin Michel, 1950, p. 175.27 - GONÇALVES, Severino, op. cit., p.7.28 - PONTUAL, José Pedro, op. cit., p.?.29 - Ibid. , p.7. Frei Damião é o novo messias que sucede Padre Cícero. É a continuação da crença messiânica. Ver QUEIROZ, Maria Isaura Pereira de. Classification des messianismes brésiliens. In: Archivesde sociologie des religions, numéro 5, Clermond-Ferrand, França, 1958.

- 60 -CAPÍTULO III: UMA RELIGIÃO MESTIÇA

O fenômeno do fanatismo ao Padre Cícero não é um acontecimento único na história do Brasil, em particular no Nordeste. Já falamos de um outro místico, Antônio Conselheiro. É um caso mais virulento e mais dramático do que o Padre Cícero. No Nordeste, a região mais problemática do Brasil, os problemas sociais e culturais se apresentam de maneira mais complexa do que em outras regiões.Esse território foi sempre o terreno favorável para o nascimento e desenvolvimento desse tipo de fenômeno.Num certo sentido, podemos comparar esses acontecimentos a situações vividas na Idade Média. A Europa, com seus conflitos em torno da possessão de terras, suas cruzadas e guerras de religião, suas epidemias, suas perdições de todo tipo, lembra o Nordeste de nossos séculos. O século XIX e boa metade do século XX foram a idade de ouro dessas manifestações místico-religiosas no Nordeste. Romances, peças de teatro, poesias, ensaios sociológicos e textos históricos nos contaram esses sucessos. Vejamos ainda o que nos diz o inevitável Euclides da Cunha se referindo ao sentimento religioso da gente do Nordeste particularmente à época de Canudos: "Está na phase de um monoteismo incomprehendido eivadode misticismo extravagante, em que se debate o fetichismo do índio e do africano. A sua religião é, como êle – mestiça". (30)

Não podemos, é claro, desconhecer a enorme importância das análises de Euclides da Cunha sobre o problema do fanatismo no Brasil na época de Antônio Conselheiro. Mas, ao mesmo tempo, não podemos aceitar essa interpretação etnológica: "em que se debate o fetichismo do índio e do africano". Isto é verdadepara certas manifestações percebidas nos homens de sociedades naturais, inclusive em certas épocas da pré-história e começo da história brasileiras, mas o misticismo e o fanatismo das populações do Nordeste têm razões mais imediatas.

-61-

É evidente que as condições de vida nessa região, as relações sociais, sobretudo nos campos e nos serfões, a miséria endêmica são, em grande parte, responsáveis desse fenômeno. Ontem, Canudos e Pedra Bonita, hoje, Padre Cícero e Frei Damião. O fenômeno não é o fato da mistura de raças e de cultos fetichistas, mas o resultado de anos e anos de miséria e de obscurantismo. Senão, como explicar sua persistência, muitos séculos passados, no Nordeste atual.Vejamos sempre como a literatura de cordel reproduz esse sentimento místico-religioso das populações sertanejas, rurais. É preciso incluir na definição de população rural a imensa quantidade de pessoas emigradas para os grandes centros urbanos, inclusive para o Sul e Sudeste do Brasil, como Rio de Janeiro e São Paulo. Esta cidade representa hoje em dia grande centro de produção e de difusão de nossos pequenos livros, os folhetos de cordel.Fiéis a suas raízes populares, os poetas de cordel não hesitam em abordar os problemas que tocam profundamente as populações oriundas dos campos nordestinos.Vejamos, por exemplo, como é apresentado o messias Frei Damião, notando-se que é preciso, desde o começo, legitimar o aparecimento

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desse novo personagem; dúvidas e constestações devem ser evitadas. Devemos interpretar como um tipo de metáfora o título do folheto de José Costa Leite, um dos poetas mais produtivos atualmente, O Frei Damião sonhou com o Padre Cícero Romão. Nosso poeta entra diretamente na questão da legitimidade de Frei Damião. Ele estabelece traços espirituais que justificam a sucessão entre os dois ministros da Igreja Católica do Nordeste. Aqui é interessante remarcar que Padre Cícero é um autêntico sertanejo do Ceará, e Frei Damião é um europeu nascido na Itália. No Brasil isso não é um problema. Ao contrário, a adoção deste último é uma prova a mais da universalidade cultural da poesia popular. Vejamos, pois, a apresentação da obra:

Quem amar a Jesus CristoCom fé no seu coraçãoouça esta profeciaquem manda é Frei Damiãodum manuscrito que achouna noite que ele sonhoucom padre Cícero Romão. (31)

Inicialmente, é um folheto destinado a todos aqueles que amam Jesus Cristo. O poeta indica mesmo a maneira de amar: com fé no seu coração. Veja-se lá a volta do tema da fé, da crença. Trata-se de um vocábulo cheio de religiosidade. Não é por acaso que nosso poeta emprega a palavra “fé” desde os primeiros versos de seu folheto. Já vimos que nos folhetos dedicados ao Padre Cícero, a questão essencial é a fé, a crença no santo homem. O problema agora é colocado em um nível mais alto, é a fé em Jesus Cristo.

-62 -Deveríamos dizer que o problema é posto, talvez, em um nível superior, porque nessa religião “mestiça" do sertão, a questão da hierarquia é bastante complexa quando se trata do Padrinho Padre Cícero e de outros personagens místicos da região. Veremos que "Amar Jesus Cristo / Com fé no coração" é a condição de base para compreender o que vai se passar. O terceiro verso diz: "Ouça esta profecia". Aqui os comentáriossão quase supérfluos. Profecias é a palavra que convém para definir e situar sem qualquer dúvida o pensamento e a escolha da linguagem do poeta. Profecia e messianismo formam um todo na poesia popular de caráter místico. Convém lembrar que a escolha linguística e a semelhança de tratamento não é um privilégio da literatura de cordel. Vejamos, por exemplo, as recomendações do autor dramático Dias Gomes, na peça A revolução dos beatos:

Beato: (avança para Bastião de cruz em punho, em atitude agressivamente profética). (32)

O gosto da nossa literatura popular e erudita pelos temas proféticos e messiânicos se encontra já em autores do século XVII, como o Padre AntônioVieira, este grande religioso e pensador luso-brasileiro. Teremos ocasião de observar esses antecedentes ao longo deste trabalho.Por enquanto, fiquemos na atualidade. Olhemos a profecia sobre a qual fala nosso poeta popular, pois é Frei Damião que manda, ordena. Trata-se de um manuscrito que ele teria recebido do Padre Cícero duranteum sonho, isto é, quando dormia. Na verdade o sonho é a fórmula que encontrou o autor para indicar a anunciação do Padre Cícero ao Frei Damião. Foi a ocasião para este receber o testamento de meu padrinho Cícero. Era um pequeno livro escrito no estilo do cordel:

Este meu livrinho étodo escrito em poesiapara quem ama a JesusFilho da Virgem Maria. (33)

Como na primeira estrofe, o poeta se dirige aos fiéis, àqueles que amam Jesus. Quanto aos outros, ele parece lhe negar o livrinho:

mas quem ama o satanaze odeia o Pai dos paisnão leve esta profecia. (34)

Os infiéis não têm direito de levar a profecia. Levar, no sentido de “comprar”. Os folhetos, em princípio, são divulgados e vendidos pelos próprios autores nos mercados e nas feiras. Os espectadores-clientes são bastante exigentes; só se decidem a comprar um folheto depois de ouvir a sua leitura e as explicações dadas em voz alta, um tanto cantada, pelos próprios autores.

-63 -Quer dizer, "não se leva" uma poesia, sem antes conhecer a história. É claro que, segundo essas duas estrofes, o Frei Damião é reconhecido como sucessor do Padre Cícero. Ele teve um sonho, recebeu uma anunciação e sabe onde se encontra o testamento espiritual do antigo pároco de Juazeiro. É ele quem vai continuar a missão, as profecias e talvez fazer milagres.O poeta nos explica em detalhes como se passou a anunciação e revela o lugar onde se pode encontrar o testamento do Padre Cícero. Antes, porém, de enumerar as profecias contidas no testamento, o poeta define suas ideias fundamentais, as eternas concepções do bem e do mal. O bem é representado por

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aqueles que amam Jesus Cristo, aos quais o pequeno livro e as profecias são destinados. O mal é representado pelos que não amam o Cristo, são os filhos de Satanás, os irmãos da Besta-Fera:

Mas quem for filho do Diabodescendente de Caimvai correr no fim da eraé irmão da Besta-Ferafuja de perto de mim. (35)

O vocabulário não poderia ser mais próximo dos escritos bíblicos. Ideias antigas que passam pela linguagem dos poetas populares a fim de formar expressões ricas de significados misteriosos: o mal, o medo, a maldição, "vai correr no fim da era / é irmão da Besta-Fera [...]". Veja-se o aparecimento de um desses seres misteriosos, místicos, do qual todo mundo ouviu falar no Nordeste: a Besta-Fera, ser aterrorizante, fantástico (como a besta do Apocalipse). Folhetos, histórias orais, as mais diversas, foram feitos para descrever as suas crueldades. É uma coisa maldefinida que pode servir para fazer medo às crianças e a entreter a sede de mistério dos adultos, símbolo mesmo de tudo o que há de perverso, feroz. Ela faz parte da mitologia animal dos sertões, como seu irmão nativo, o lobisomem. Misérias de toda sorte lhe são associadas.Estamos diante de um dos temas preferidos do poeta José Costa Leite, que escreveu vários folhetos onde essas feras aparecem constantemente. Segundo o poeta, a Besta-Fera é portadora de todos os males, como dizia o Padre Cícero:

A besta fera faladaque o Padre Cícero diziabrevemente vai chegarpra cumprir-se a profecia. (36)

É a imagem de maldição que contribui para criar a atmosfera de medo propícia a predispor as pessoas a aceitarem toda sorte de profecia. É por isso que o autor faz apelo tão frequente a esse animal misterioso, o qual ele coloca em evidência em quase todos os seus folhetos de caráter místico-religioso.No poema que estamos analisando, o apelo à Fera é uma espécie de palavra-ideia, que é preciso propagar a fim de preparar a entrada em cena de um personagem tão místico como Frei Damião. Medo e crença vão juntos. A atmosfera e o ambiente são ideais.

-64 -O autor é um especialista do suspense. É como em alguns filmes policiais: situações muito comuns, enredos mais que banais e que funcionam sempre. Tudo isso compõe uma montagem de expectativa, de ansiedade e de terror. Em relação ao folheto O Frei Damião sonhou com o Padre Cícero, o autor continua a evocar os nomes e as palavras próprias às situações místico-religiosas. Essa linguagem serve para aureolara imagem do novo profeta do Nordeste:

Frei Damião outro diaestava no Juazeirosonhou uma elevação. (37)

A cidade de Juazeiro aparece novamente. Foi nessa cidade-santuário que Frei Damião"sonhou uma elevação". Palavra superior, elevação, ascensão. É durante a missa que os padres praticam a elevação do pão e do vinho para consagrá-los. No poema que analisamos não é do Corpo de Cristo que se trata, pois:

Com o padre Cícero Romão. (38)Que foi por Deus enviado. (39)

Um mensageiro divino veio falar ao novo profeta. Este é o eleito de Deus para continuar a missão do Padre Cícero. Como que para revalorizar o que era um simples sonho no início do poema, o autor o apresenta agora como uma verdadeira aparição, pois:

falou com Frei Damiãoque não estava acordado. (40)

Que privilégio para Frei Damião. Ele viu e falou com Padre Cícero após sua morte. Esta simples expressão do poeta sensibilizará profundamente a gente do Nordeste, os milhares ou milhões de devotos do Padrinho Cícero. Quem não desejaria rever o Padrinho dos sertões? Os fiéis devotos dessa religião mestiça, especial, sonham e desejam merecer tal graça. Tudo, então, seria feito para atingir essa elevação. Aqui, lembramos da célebre passagem do acordo, do jeito, imaginado e executado pelo mais sabido dos heróis da literatura popular, o anti-herói João Grilo, com o sanguinário cangaceiro Severine De Aracaju, na peça deAriano Suassuna O auto da compadecida.

Chicó: Ah, eu estava morto.Severino: Morto?Chicó: Completamente morto. Vi nossa senhora e Padre Cícero no céu.Severino: E que foi que Padre Cícero lhe disse?

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Chicó: Disse: "Essa é a gaitinha que eu abençoei antes de morrer. Vocês devem dá-la a Severino, que precisa dela mais do que vocês".Severino: Ah meu Deus, só poderia ser meu padrinho padre Cícero mesmo. – João, me dê essa gaitinha!

-65 -João Grilo: Então me solte e solte Chicó.Severino: É verdade?João Grilo: Eu lhe dei uma oportunidade de conhecer Meu Padrinho Padre Cícero e você me paga desse modo!Severino: De conhecer Meu Padrinho? Nunca tive essa sorte. Fui uma vez ao Juazeiro só para conhecê-lo, mas pensaram que eu ia atacar a cidade e fui recebido à bala.João Grilo: Mas pode conhecê-lo agora.Severino: Como? (41)

E, a seguir, João Grilo expõe seu acordo diabólico ao cangaceiro Severino:

João Grilo: Seu cabra lhe dá um tiro de rifle, você vai visitá-lo. Então eu toco na gaita e você volta. (41)

É incrível, mas João Grilo consegue convencer o cangaceiro. Este ordena a um dos seus cabras de lhe dar um tiro, na esperança de ver Padrinho Cícero no céu. João Grilo e seu camarada Chicó escapam assim de uma morte certa.

Essa pequena história, tão alegre e satisfatoriamente transposta por Ariano Suassuna, é mais uma prova dofanatismo inspirado pelo Padre Cícero. Tudo é aceito por seus devotos.Suassuna, como o poeta popular Costa Leite, assimilou muito bem o sentimento que domina os fiéis do pároco de Juazeiro. Eis porque o poeta popular imagina esse sonho-aparição para legitimar a chegada de Frei Damião, que será o porta-voz oficial do Padre Cícero. Sua legitimidade, seu direito, vem do privilégio deter visto e falado com o Padrinho. Frei Damião, por isso, terá uma audiência imensa junto do povo simples do Nordeste, sobretudo o de origem rural. Ele utilizará os mesmos argumentos, provocará as mesmas situações, servir-se-á da mesma linguagem para atingir a multidão de devotos.Predições, missões e profecias, todos os meios serão bons para perpetuar o mito do fabuloso Padrinho de Juazeiro. O misticismo exagerado será o centro de seus sermões. As ameaças e o medo continuarão a ser inculcados nas populações sertanejas. Os temas religiosos e morais serão os preferidos, sem esquecer as notas de caráter social e político sob uma perspectiva conservadora, reacionária.O atual pregador, como o antigo, coloca-se sem cerimônia ao lado dos interesses conservadores da situação econômica, social e política vigente no país. A poesia popular não escapa a essa corrente. Eis porque ela tanto explora o tema místico-religioso. Sua linguagem é bem apropriada ao contexto. Nossos poetas não têm nemhuma dificuldade para abordar esses temas. É uma consequência natural entre eles.

- 66 -Os poetas populares são oriundos, como se sabe, das camadas mais modestas das regiões menos desenvolvidas e mais isoladas do país. Seus folhetos, suas poesias, não são mais que o reflexo do sentimento e das crenças ainda profundas nos homens e mulheres do Nordeste. Esta tendência é mais forte na população de origem rural.Voltemos, porém, a Frei Damião, depois do seu sonho com o Padre Cícero. Os poetas nos contam em detalhe como se passou a entrevista, a aparição, “uma elevação". O objetivo desse encontro era a entrega de um pequeno livro no qual Padre Cícero tinha anotado suas profecias para muitos anos:

É um manuscrito antigoescrito por minha mãofalando na carestiae na maldita corruçãoque contamina o Brasile até perto de 2 milele dar explicação. (42)

Vejam-se lá as profecias até o ano 2000. Verdadeiramente essa data é um marco; mesmo para as profeciasdo Padre Cícero, o santo homem está bem atualizado e de acordo com a data escolhida pelos futurólogos mundiais em suas "predições" para o ano 2000. Somente em nosso caso trata-se de um velho manuscrito, oque lhe confere mais valor. Enfim, passemos às profecias propriamente ditas:

Meus filhos o mundo velhoestá sendo castigadofome, seca e carestiaE crime por todo ladotodo dia ver-se exemploninguém espere bom tempopois o tempo está mudado. (43)

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É o apocalipse que se aproxima; castigo divino sobre um povo já tão sofredor. Qual seria o pecado dessa gente? Apesar de sua fidelidade, crença, sofrimentos cotidianos, ainda tem quem lhe prometa a fome, a seca e a vida cara até o ano 2000, e crimes por todo lado!Realmente não é uma mensagem de otimismo que é portador o Frei Damião. Que infelicidades! Um messianismo supernegativo!Com efeito, quando se fala de fome e seca ao povo do Nordeste, que já é a prática do necessitado, é o desespero total. É como "falar de corda em casa de enforcado". Quando esse povo, que depois de sempre sofrer da seca e da fome, recebe um novo messias, é para ouvir dizer que tudo isso vai continuar. Diante dessa catástrofe eterna, é o caso de se perguntar: com que rima tudo isso?O poeta de cordel, em geral, não tem uma visão crítica da história, da aventura, do cangaço, da religião e de outros temas de que ele gosta tanto de abordar, quando transcreve todos esses problemas, graças a seutalento poético, no mesmo nível de compreensão e da sensibilidade de milhares, de milhões de seus leitores e ouvintes:

- 67 -ele exprime seus próprios sentimentos, sem procurar muito – como o faria seu colega erudito –, compreendê-los ou fazer passar uma ideia, uma mensagem própria. Nascido e criado em um meio no qual a história e as ideias dominantes foram sempre orientadas para a continuidade do status social e econômico, o poeta popular é um tipo de vulgarizador, veículo de uma determinada cultura, mesmo que esta não corresponda aos próprios interesses de sua camada ou classe social. Quando o poeta José Costa Leite imagina e cria uma aparição do Padre Cícero ao Frei Damião, no Brasil atual, ele só faz colocar o seu talento e sua linguagem privilegiada a servico de ideias muito conservadoras. Esse tema e a linguagem mística contribuem para manter entre os leitores e ouvintes as ideias do passado, do fatalismo imobilizador:

Meus filhos mundo velhoestá sendo castigadofome, seca e carestiae crime por todo lado. (44)

O paternalismo e o tom superior evocam já um conteúdo carismático. É bem difícil contestar alguém que nos trata de "Meus filhos". É o tratamento complexo de afeição e de superioridade. Qualquer coisa que vem de cima. Mesmo no vocabulário religioso, a expressão "meu filho", paternal e altiva, opõe-se a "meu irmão”, mais simples. Sabemos que nas religiões populares, mais próximas da gente simples por sua linguagem e seus ritos, os seus ministros, padres e Oguns (45) se dirigiam a seus fiéis com esta última expressão.Parece que a gente se comunica mais facilmente com "meu irmão" que utilizando a expressão "meu filho". O tratamento paternalista se opõe ao tratamento fraternal.A seguir, vejamos a velha ideia do castigo, da punição. O “mundo velho" exprime a ideia, no falar popular doNordeste, de qualquer coisa conhecida e indefinida ao mesmo tempo: "coisa sem jeito, sofrida e experiente". É a ideia de uma filosofia vaga e sonhadora. Então, coisa sem jeito merece ser castigada. Por que todo mundo deve ser castigado, não se sabe. Talvez por causa do "pecado original". Deve ser a ideia que o poeta procura veicular. Isto reproduz um pensamento religioso assegurando que todos nós somos pecadores desde o nascimento. No caso de nossa poesia, é preciso preparar as pessoas para a mensagemdas profecias até o ano 2000. É necessário começar a culpabilizar o povo para que ele seja receptivo às predições messiânicas e místicas. Tudo é preparado para o sucesso de Frei Damião: o pecado original, a perspectiva de fome, de seca, de vida cara e de crimes. O medo se instala, ou continua a dominar os habitantes dos campos, do interior.

68Entretanto, Padre Cícero e Frei Damião são padres católicos romanos. Suas presenças físicas, suas vestimentas e seus ritos contribuem também para alimentar a obediência e a crença em seus mitos. São ritos à antiga, muito anteriores ao Concílio Vaticano II. Não há nenhum ecumenismo em suas práticas e atitudes, nem mesmo em relação às outras religiões cristãs.A esse propósito, vimos o folheto do crente "que virou jegue" por ter profanado o nome de Padre Cícero. Não é por acaso que se trata de um devoto da Igreja Reformada, aliás, "quase pastor", coma nos diz o poeta Edson Pinto. É, pois, nesta mesma ordem de ideias que uma das primeiras chamadas à ordem nas profecias do Padre Cícero é a obrigação de assistir à missa.

Aviso as moças solteirasque deixem o uso modernodevem ir ouvir a missae pedir paz a Deus Eterno. (46)

A chamada à ordem é dirigida às jovens com hábitos modernos. O poeta não explica o que ele entende por isso. A estrofe seguinte, porém, é mais clara. Desta vez, a advertência é destinada aos homens casados não muito "católicos":

O homem que é casadoe a mulher não considera. (47)

Este tipo de homem casado terá um destino trágico:

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este vai ser derretidonos entes da Besta-Fera. (48)

É sempre o conselho, seguido da ameaça de uma punição terrível. Mais uma vez o poeta faz referência à Besta-Fera. Aliás, José Costa Leite manifesta uma nítida preferência pelas terras místico-religiosas. Ele compôs muitos folhetos desse gênero, os quais veremos nos capítulos seguintes.

-69 -30 - CUNHA, Euclides da. Os sertões. p. 139.31 - LEITE, José Costa. O Frei Damião sonhou com o Padre Cícero. p. 1.32 - GOMES, Dias. A revolução dos beatos. p. 323.33 - LEITE, José Costa, op. cit., p.1.34 - Idem.35 - Ibid.36 - LEITE, José Costa. A vinda da Besta-Fera. p. l.37 - LEITE, José Costa. O Frei Damião sonhou com o Padre Cícero. p. 2.38 - Idem.39 - Ibid, estrofe 4.40 - Ibid.41 - SUASSUNA, Ariano. O auto da compadecida. p. 125-7.42 - LEITE, José Costa. O Frei Damião sonhou com o Padre Cícero. p. 2.43 - Ibid, p. 3.44 - Ibid, p. 3.45 - Ogum (plural oguns): orixá que preside as lutas e as guerras; deus nagô da guerra. Espírito de raça branca encarnado em alguns santos da iconografia católica, principalmente São Jorge, Novo Dicionário Aurélio.46 - LEITE, José Costa. O Frei Damião sonhou com o Padre Cícero. p. 3.47 – Idem,.estrofe 5.48 - ibid, p. 4.

- 70 -Capítulo IVA VINDA DA FERA DO APOCALIPSE

Este folheto tem como título justamente A vinda da Besta-Fera.A justaposição de dois nomes que têm o mesmo significado, isto é, animal muito feroz, gigantesco, contra o qual não há defesa humana, é uma forma da linguagem utilizada pelos poetas populares. A expressão é corrente no interior do Nordeste, para definir um bicho ou qualquer coisa indefinível, misteriosa e diabólica. É o mais infeliz dos animais selvagens, pior ainda, é o Apocalipse em forma de bicho.É costume comparar os grandes criminosos a esse bicho. As histórias e as aventuras da Besta-Fera são numerosas. Nenhum outro animal fantástico pode substituí-la na imaginação popular. É por isso que seu nome corre de boca em boca entre os poetas populares, particularmente quando se trata de temas religiosos. No folheto O Frei Damião sonhou com o Padre Cícero, que é composto de oito páginas, isto é, a menor quantidade de um folheto de cordel, o poeta emprega a expressão Besta-Fera quatro vezes. Se nós contarmos o nome de Frei Damião e o de Padre Cícero no mesmo folheto, constataremos que o primeiro aparece sete vezes, e o segundo, cinco vezes. Esses números falam por eles mesmos. A citação desses três personagens na proporção indicada dá-nos uma ideia da importância da Besta-Fera, bicho místico e mítico entre as pessoas de origem rural do Nordeste. É muito significativo que o animal apareça em tal proporção no folheto dedicado a dois padres católicos.Contemos agora os nomes do Frei Damião e do Padre Cícero no folheto A vinda de Besta-Fera, no qual a chegada da Fera é próxima como prometeram, ou ameaçaram, mil vezes, as profecias. É também um livreto de oito páginas e 36 estrofes. Muito bem, a Besta é citada 28 vezes, o Padre Cícero e o Frei Damião cinco e três respectivamente.Parece-nos fora de dúvida que esse animal monstruoso desempenha um papel muito importante entre os poetas de cordel sensíveis aos temas religiosos. Claro está que a Besta-Fera não é uma invenção da poesia popular nemproduto original do misticismo nordestino, como o são Padre Cícero e Frei Damião. Ela também não é o resultado da fantasia criativa,

- 71 -às vezes muito rica, do povo sertanejo. Poderíamos aplicar esses comentários a outras ideias e personagens "autênticos" do universo psicocultural dos nordestinos, como João Grilo e Pedro Malsarte, esses heróis burlescos tão apreciados, como Oliveiros e o Cavaleiro Roldão, etc. (49). Todos esses personagens e todas as aventuras, ou histórias, fazem parte da psicologia e da cultura universal ou, pelo menos, ocidental. Eles existem há séculos e séculos. Em compensação, o que é autêntico e puramente nordestino é a maneira como esses personagens se assimilaram e como eles se situam em relação à história e à realidade da região e do país.Os poetas populares, eles mesmos, fazem parte das realidades do Nordeste com sua literatura de cordel,

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sua linguagem e suas utopias. Eis como se pode interpretar a Besta-Fera, que é a versão popular da Fera do Apocalipse. É interessante assim mesmo observar como os poetas de cordel se apropriaram desse mito judeu-cristão, sob o pretexto de reproduzir as profecias de Padre Cícero e de Frei Damião.Esse fenômeno é ainda mais interessante quando se pensa que ele é recolocado no tempo e no espaço do Nordeste do século XX. Sem pretender nos aventurar muito nas estradas eruditas do passado, pois nosso estudo tenta se limitar ao espaço físico e cultural do Nordeste brasileiro, vamos fazer uma pequena incursãono domínio da cultura luso-brasileira do século XVII. Trata-se de uma aproximação do personagem real, brilhante, messiânico e profético que foi o Padre Antônio Vieira.Essa aproximação se justifica pelo caráter e a linguagem místico-religiosa desse homem de letras e de religião. A figura da Fera do Apocalipse foi também abordada pelo Padre Vieira nos seus célebres sermões e tratados. Naturalmente, esses escritos são conforme às condições lusitanas e europeias da época. É essamaneira hábil e brilhante do célebre jesuíta que retém nossa atenção. Vemos aí um outro parentesco importante dos místicos contemporâneos do Nordeste. Citemos para começar as informações de Raymond Cantel, num estudo sobre as profecias e o messianismo na obra do Padre Vieira:"Nous sommes, en effet, à la veille d'une nouvelle flambée messianique, qui n'interesse plus seulement le Portugal, mais l'Europe entière. A l'étranger, ce sont surtout les juifs qui s'agient. Ils promettent la venue du Messie et son triomphe pour 1666... Parmi les chrétiens, on parle beaucoup des prophéties sur la destruction de Rome, comme de celles de Nostradamus. Il y a là un mouvement fait d'inquiétudeSs et d'espérances dont Vieira. porte témoignage en 1665, au moins pour l'Italie". (50)Vejamos agora algumas palavras do próprio Vieira: "Aqui chegam agora uns padres de Itália e dizem que para o ano que vem se esperam lá grandes mudanças no mundo". (51)

- 72 -A seguir, as explicações de Cantel:"Au Portugal, ce bouleversement est prévu en fonction des espérances de chacun: venue du Messie, retour de D. Sebastião destruction de la puissance turque". (52)

É remarcável como o Padre Vieira prometia toda sorte de mudanças para Portugal. Era a véspera de uma data, 1666, interpretada e adaptada sabiamente e de maneira muito messiânica. Parece-nos que o Padre Vieira era o único a se apegar a essa data misteriosa: "De même que la date, le fondement de ces espérances est commun aux trois courants. Tout repose sur l'interprétation d'un passage du chapitre XIII de l'Apocalypse. Après avoir annoncé sa venue, et la puissancede la bête qui règnera sur le monde, Saint Jean révèle que tous - les riches comme les pauvres, les petits comme les grands - seront soumis à son empire... Saint Jean ajoute, car c'est un nombre et ce nombre d'hommes est six cent soixante six. Viejre, on s'en souvient, continuait à considérer les textes des Ecritures comme inspirés jusque dans les moindres détails". (53)Veja-se como se pronunciava o Padre Vieira:

"O de seis, diz São Jerónimo, significa os trabalhos desta vida, porque em seis dias fabricou Deus o mundo". (54)

Segundo Raymond Cantel, Vieira continuava a interpretar o Apocalipse com a intenção de aplicá-lo a Portugal. Os números 666 ou 1666 eram um dos seus temas de estudo e de interpretação. Outros autores se debruçaram sobre esses números, como, por exemplo, Françoisí Feuardent, convencido de que a Fera do Apocalipse representava Mahomet e sua seita. (55)Assim, pela leitura dessas citações, estimamos que as profecias relativas à Besta-Fera vêm de muito longe. Os tratados e os sermões do Padre Vieira, cultural e cronologicamente mais próximos da cultura brasileira, deixaram, evidentemente, traços profundos em nosso país. Parece claro que a coincidência entre as referências de Vieira e dos poetas populares com relação à Fera do Apocalipse, apesar de três séculos de distância, vem de leituras comuns e de uma mesma base cultural. Textos bíblicos e vulgarizações diversas sempre serviram de material de leitura e de prédicas nas igrejas, missões e escolas.Os escritos bíblicos foram sempre popularizados por intermédio de produções escritas, visuais e orais. Esta última expressão foi a que atingiu o poeta popular em geral, pouco habituado à leitura. Vejamos, assim, a quarta estrofe do folheto A vinda da Besta-Fera:

Talvez até que ela cheguedaqui para o fim de mêspois não tem dia nem horao padre disse uma vezque ela é o malditoE na testa traz escrito 666. (Grifo nosso) (56)

- 73 -O poeta teria sido indiretamente influenciado pelo Padre Vieira? Não é impossível, dado que os textos desteúltimo tiveram grande penetração no Brasil. Preferimos, porém, a hipótese da leitura ou de conhecimento por via oral dos escritos bíblicos. A nosso ver, trata-se de coincidência baseada sobre a mesma origem de formação cultural e histórica.O Padre Vieira, como as demais correntes messiânicas do século XVII, interpretava a vinda da Besta-Fera como um acontecimento positivo. Havia mesmo variedades dessas tendências otimistas:

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"Il existe trois courants messianiques. Le premier est celui des juifs et des nouveaux chrétiens qui attendent la venue du Messie, comme leurs coreligionnaires des autres pays européens. Il y a ensuite celui des sébastianistes qui annoncent pour 1666 le retour de D. Sebastião. Il y a enfin celui qui est représenté par Vieira et ceux qui espèrent, comme lui, pour la même année, la destruction de la puissance turque". (57)

No caso dos místicos nordestinos, ou pelo menos entre os poetas populares, os devotos e outros divulgadores nacionais, a interpreta ção vinda da Besta-Fera do Apocalipse é bastante catastrófica e se origina nas "profundezas", senão vejamos:

O inferno pegou fogoe satanaz revoltou-sebreve vem o anti-cristoagora tudo danou-sea coisa está apertandode mais a mais piorandoa besta-fera soltou-se. (58)

Parece que a Besta-Fera esteve presa no Inferno. Ela escapou por causa de um incêndio e virá à Terra para castigar todo o mundo. Representando Mahomet, segundo Padre Vieira, Feuardent e outros pensadores do século XVII, o animal é, aos olhos dos poetas populares, a encarnação do Demônio, de Satã. É o anti-Cristo. Ela está livre e vem para:

A besta-fera está solta e vem fazer confusão. (59)

Mas, muito importante, existe uma possibilidade de enfrentar a Besta-Fera. Existe uma força superior e maisforte:

Vamos pedir auxíliodo Padre Cícero Romãoque a ladeira dos oitentavai ser pesada e cruentaafirmou Frei Damião. (60)- 74 -Agora, o problema de data se recoloca. No século XVII pensadores messiânicos se debruçaram sobre hipóteses as mais eruditas para fixar a data fatal da chegada da Besta-Fera. Vimos os números apocalípticos de 666.En seguida, o ano de 1666, quando deveriam se produzir acontecimentos extraordinários. Essas datas, esses cálculos eruditos, partem da idade de Jesus Cristo, e o seu múltiplo por 2. Assim, o ano 666 seria o começo dessas interpretações.No Nordeste do Brasil, no século XX, a poesia popular, em sua linguagem característica, não hesita em fixaruma outra data fatal:

que a ladeira oitentavai ser pesada e cruenta. (61)

Como os folhetos de cordel, em geral, não mencionam datas de publicação, somos obrigados, a cada vez, de fazer uma espécie de equação para poder estabelecer algumas datas ou aproximações. Se partirmos dareferência ao Padre Cícero, que faleceu em 1934, esse folheto apareceu depois desse ano. Em seguida, devemos ter em conta a referência a Frei Damião, falecido em 1997. Finalmente, como o autor do folheto, felizmente ainda estava vivo em 1978, nos sentimos no direito de deduzir que a data de "oitenta" à qual se refere o poeta é 1980.A vinda da Besta-Fera do Apocalipse nos sertões do Nordeste é então iminente Ao menos, é o que afirma Frei Damião pela boca dos poetas populares.Uma "revolução" deve se produzir nessa data, se bem que o poeta não esteja tão convencido como seus antepassados portugueses, Bandarra, Vieira, etc.Parece que, pela primeira vez, saímos do ciclo rigoroso e complexo dos números "666" e "1666" e de seus múltiplos variantes, a despeito das explicações científicas do Padre Vieira. Veja-se como ele explicava a sua teoria genial da escritura do número 1666 em algarismos romanos: “MDCLXVI. Porque todos os números do abecedário latino se acham completamente na conta deste ano, sem acrescentar, nem diminuir, nem trocar ou alterar a ordem deles, porque o M vale mil, o D quinhentos; o C cem, o L cinquenta, o X dez, o V cinco, e o I um; todos juntos pela mesma ordem vêm a fazer 1666: MDCLXVI.” (62)E como nos explica R. Cantel, "cette perfection ne pourrait être que le signe d'une totalité d'un accomplissement" (63). Evidentemente› a totalidade, a realização de VIEIRA, era uma espécie de redenção para seu país. Era o milagre dos milagres, materializado pela volta do príncipe encantado, D. Sebastião. Sem dúvida, a expulsão dos turcos era a condição primordial. O reino de Portugal poderia, assim, recomeçar sobre uma nova estrada de uniões, conquistas e glória.

- 75 -Entre os messiânicos brasileiros do século XX, Padre Cícero e Frei Damião, as esperanças são o contrário

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das europeias. Devem-se temer períodos de sofrimentos e de castigos. As pessoas cometeram muitos pecados. É preciso castigá-las. Não há qualquer esperança de redenção e de vida nova.A verdade, segundo os versos populares, são as promessas de sofrimento e de miséria a partir de 1980. Eles são inspirados, bem entendido, nos sonhos e nas palavras dos santos homens, como Padre Cícero ou Frei Damião. O ciclo de 666 está rompido. O estilo e o pensamento místico continuam. O apego popular a essas crenças é sempre presente. Senão, como compreender o interesse da poesia popular de nossos diaspor esses temas?Do ponto de vista formal, os atuais "pensadores" e divulgadores não utilizam a mesma linguagem. Em torno do ano 2000, no Nordeste do Brasil, expressões como "pesada e cruenta" merecem algumas explicações. Pensamos que Frei Damião emprega uma outra linguagem quando ele se dirige a seus ouvintes. Sua formação eclesiástica e europeia lhe dá outros meios de comunicação. Subsistem, porém, afinidades com as populações sertanejas. Elas são de caráter espiritual, no sentido religioso do termo.Do ponto de vista da divulgação das ideias e das profecias, é o poeta de cordel que encontra a boa palavra,a linguagem adequada para se fazer entender pelas pessoas do país:

A ladeira dos oitentavai ser pesada e cruenta. (64)

Por que a ladeira dos oitenta? Para começar, porque uma ladeira representa sempre um esforço físico, sobretudo nos meios modestos. "Subir uma ladeira" é um esforço pessoal, deve-se contar com seus fracos meios, isto é, mais trabalho e dificuldades. Além disso, no Nordeste não são comuns os relevos topográficos muito importantes. Uma ladeira é mais que uma colina. Ela seria percebida quase como uma montanha com tudo o que isso representa como dificuldades para chegar ao cimo. As pessoas modestas não dispõem de meios artificiais, motores ou outros, para facilitar as suas vidas. Subir a ladeira significa mais dificuldades, importantes ou impossíveis.A seguir, estudaremos as causas da data fatídica dos "oitenta". O poeta deve situar "sua" profecia a partir de 1978, como vimos anteriormente. Falando de ladeira, quer dizer da noção de subida, no sentido material,ele a confirma pela perspectiva de oitenta, ainda uma outra subida em relação a 1978. Tratar-se-ia, então, de subidas sucessivas.Pensamos que o poeta procura dar uma ideia de superlatividade, criar um clima em crescendo no tempo e no espaço. Certamente, ele tem o direito de se oferecer certas fantasias e abstrações. Talvez por uma questão de estilo ou de ambiência, de suspense poético. Ele se permite variar as datas, passar sem dificuldades de uma predição à outra. Os leitores ou ouvintes devem fazer uma espécie de ginástica mental para compreendê-lo.

- 76 -Quando o poeta fala de “ladeira dos oitenta”, pensamos que ele coloca um ou vários anos antes dessa data.Mas, fazendo-se uma volta ao passado, revendo as três estrofes anteriores, constatamos que há um problema de data, com relação à vinda da Besta-Fera. Com efeito, o poeta lança algumas ameaças:

Talvez até que ela cheguedaqui para o fim do mêspois não tem dia nem hora. (65)

Poderíamos pensar que o nosso bardo evita se comprometer muito. Diante de seus leitores, ele não quer assumir a responsabilidade de uma data precisa para o começo das catástrofes. Entretanto, ele quer ser fielàs palavras atribuídas a Padrinho Cícero e a Frei Damião, que anunciaram a vinda da Besta-Fera em 1980.É evidente também que nosso poeta toma todas as precauções, do ponto de vista profético e comercial. Eleé bastante prudente e emprega com sobriedade seus recursos de linguagem: “Talvez até que ela chegue”.Como se não bastasse empregar a palavra talvez, uma das mais fluidas da língua portuguesa, ele acrescenta “até que”. Eis aí um superlativo condicional da língua brasileira do Nordeste: talvez que / pode ser / quem sabe / vamos ver / sei não/, etc.Tudo é possível, tudo é válido. Paralelamente à utilização de expressões desse tipo nos meios populares ouna linguagem corrente da região, pode-se remarcar o emprego de palavras ou expressões sem qualquer implicação concreta mesmo por pessoas importantes, hábeis na arte de falar para não dizer nada. Aqui, nosvem à ideia uma "saída" do presidente Juscelino Kubitschek, durante uma conferência de imprensa. Tratava-se de uma questão complicada politicamente, e a resposta positiva ou negativa do presidente complicaria a situação. Forçado pela insistência do jornalista, o presidente Kubitschek saiu-se com essa joiado falar para não dizer nada:“Sabe? Eu não sou, nem contra, nem a favor. Antes pelo contrário.”Como todos os cristãos, nosso poeta tem o direito de tomar suas precauções. E, para assegurar ainda maisa sua retaguarda, depois de um pequeno passo à frente, "daqui para o fim do mês", e em seguida ele se recupera: “pois não tem dia nem hora”.Atenção, a Besta-Fera pode chegar daqui para o fim do mês ou... não se sabe quando. A data de 80 não é muito certa, não! Contrariamente aos antigos pregadores e divulgadores, nossos poetas populares são menos afirmativos.

- 77 -49 - PONTES, W. Tenório. La prépondérance masculine dans la litterature populaire du Nordeste du Brésil. Sorbonne - Paris, 1976.

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50 - CANTEL, Raymond. Prophétisme et messianisme dans l'oeuvre d'Antonio Vieira. Paris: CNRS, 1960, p.110.51 - Idem.52 - Ibid., p.111.53 - Ibid.54 - Ibid., p.112.55 - Ibid., p. 113. O autor cita François Feuardent, que foi pregador na Ordem dos Cordeliers. Nascido em Coutances, França, (1539-1610), ele teria sido o inspirador do Padre Vieira quanto ao número 666.56 - LEITE, José Costa. A vinda da Besta-Fera. p. l.57 - CANTEL, R., op. cit., p.110-111.58 - LEITE, J. Costa, op. cit., p.2.59 - Ibid.60 - Ibid.61 - Ibid.62 - CANTEL, R., op. cit., p.114.63 - Ibid.64 - LEITE, J. Costa op. cit., p.2.65 - Id., p.l.

- 78 -Capítulo VA VOZ DE FREI DAMIÃODeixemos as contradições das datas para a aparição da Besta-Fera e procuremos descobrir o espírito e o conteúdo das predições de Padre Cícero e de Frei Damião. Teremos sempre os folhetos como fonte de informação. As profecias veiculadas pelas poesias populares têm um caráter punitivo. Elas pregam a remissão dos pecados pelo castigo, outra ideia, aliás, que se origina nos escritos bíblicos.Quanto aos folhetos de cordel, há uma certa mistura de inspiração, isto é, de profecias. A confusão é corrente entre as predições atribuídas ao Padre Cícero e Frei Damião, assim como a Antônio Conselheiro (66). Este último, aliás, é um simples homem do povo, não muito cultivado, enquanto os outros dois são padres da Igreja Católica, possuidores de uma formação intelectual superior.Antes de estabelecer ou rejeitar a verdadeira origem de certas predições divulgadas pelos poetas populares, tentaremos avaliar a importância desses personagens para a psicologia individual ou coletiva do povo nordestino. Faremos apelo a alguns autores eruditos e pesquisadores interessados nos fenômenos culturais e sociais da região.Para começar, vejamos como se expressa José Lins do Rego, em seu importante e indispensável romance A Pedra Bonita, a propósito do complexo psicocultural da gente do Nordeste: “ a vida de sertanejo: vem santos, vem cangaceiros, vem a volante. (67)Lins do Rego não poderia ser mais feliz na elaboração dessa síntese da vida de sertanejo. Ele atingiu o alvo. Essa trilogia, santo, cangaceiro e volante, contribuiu fortemente para a formação da amálgama social das populações sertanejas. O autor parece estar convencido. Pela palavra santos, ele quer nos falar dessa linhagem de santos homens que percorrem o Nordeste. Pensamos não trair o pensamento do romancista considerando como os mais célebres dessa lista, Antônio Conselheiro, Padre Cícero e Frei Damião.É bem natural que os intelectuais e poetas populares reflitam nas suas obras o fenômeno do misticismo e do fanatismo da região; cada um à sua maneira, na sua linguagem particular, pois eles se dirigem a públicos diferentes. A coincidência de temas e de personagens não pode se explicar pela influência do meioambiente, geográfico, social e cultural.

- 79 -Com relação à diferença de interpretação do sentimento messiânico do Nordeste e o que é expresso pelos pensadores europeus no século XVII, ela é motivada pela realidade vivida por cada um desses autores. Os europeus, com o seu otimismo messiânico (68) em contradição com o catastrofismo dos brasileiros, forçados pelas condições de vida dramáticas do país.Eis aí a tendência ou o gosto pelos temas bíblicos na imaginação fantástica dos nordestinos e de seus profetas:

O Sertão vai virar praiae a praia vai virar Sertão. (69)

Isso seria um verdadeiro fim de mundo. Só um espírito perturbado poderia imaginar um tal acontecimento, ou fazer uma tal profecia. Segundo Euclides da Cunha, ela foi vista pela primeira vez nas notas de Antônio Conselheiro:

"Em 1896 áa de rebanhos mil correr da praia para o Sertão; então o Sertão virará praia e a praia virará Sertão". (70)

É inegável que essas frases são belas. Elas são dignas de um espírito iluminado, como o do Conselheiro. Aliás, a gente as vê por todos os lados nas poesias populares, apesar da confusão quanto à sua origem. Elas são vistas também entre intelectuais e artistas contemporâneos, como em Glauber Rocha (71). Nós as escutamos e vimos nas canções e cenas finais do filme Deus e o Diabo na terra do sol.Entre os poetas populares, temos José Costa Leite nos apresenta essa profecia no folheto Frei Damião

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sonhou com o Padre Cícero Romão, com uma redaçãoum pouco diferente: “O Sertão vai virar praia / e a praia virar Sertão”. (72)Na citação de Costa Leite, falta o verbo “vai” no segundo verso. Além disso, o Conselheiro empregou o verbo no futuro, “virará”.

Antes de continuar a comparação da poesia popular, das notas do Conselheiro e das profecias de Padre Cícero e Frei Damião, voltemos ao filme de Glauber Rocha. Este cineasta, também homem do Nordeste, transpôs em imagens as palavras fantásticas do Conselheiro. As cenas finais do filme citado mostram as ondas do oceano invadindo o deserto das areias sertanejas. São imagens de excepcional beleza plástica. Glauber Rocha dá a impressão de levar muito a sério o sentimento místico das populações do Nordeste. Veem-se nos seus filmes personagens místicos representando a psicologia coletiva da região; multidão de fanáticos, de santos em peregrinação para a terra prometida; cangaceiros com os conflitos sociais que eles simbolizam. Obra de um intelectual moderno, os filmes de Glauber Rocha se integram perfeitamente ao complexo cultural do Nordeste como um “primo rico" da literatura de cordel.

- 80 -Voltemos, porém, às profecias do Padre Cícero, em particular às que passaram às mãos de Frei Damião, segundo o poeta Costa Leite. Trata-se do decênio fatídico da década de 1980:

de 80 por dianteé que vai haver confusãobriga filho contra paié irmão contra irmãoLouvado seja Jesusque foi cravado na cruztendo de nós compaixão. (73)

A desordem será completa. A confusão social vai começar pela desintegração familiar. O problema de data persiste. Bem entendido, não se trata mais da série 666, mas da década de 1980. Querendo atualizar "suas" predições, o autor se engana de inspiração indicando que são as predições de Padre Cícero quando,na realidade, se trata do Conselheiro. Mas ele mantém assim mesmo um certo mito em torno da sua data. Vimos que o ano de 1896 seria o começo das grandes transformações, segundo as palavras de Antônio Conselheiro. Segundo Padre Cícero e o poeta Costa Leite, os acontecimentos se produzem em 1980. Duas décadas de catástrofes nos ameaçam e o fim de tudo será no ano 2000. Resta, porém, uma diferença de cem anos, que poderá representar algum mistério. Mas veremos a seguir como nosso poeta organiza seu calendário até 96:

No ano 81vai começando os clamoresa aflição das afliçõese o horror dos horrores. (74)

O ano 81 se anuncia cheio de ameaças, horrores e aflições. Não há precisões. Fica-se nas generalidades. O poeta nos reserva dificuldades ainda mais importantes. Ele escolhe um ritmo em crescendo:

No ano 82vai faltar milho e feijãoem toda zona sertanejanão vai haver produçãoo povo fica sem comermuita gente vai sofrersem ter alimentação. (75)

Aí constatamos um elemento linguístico bem interessante. Parece-nos que profetas e poetas adaptam o estilo profético antigo às condições da vida local. Padre Cícero, na qualidade de bom sertanejo, apesar do seu messianismo rigoroso, conhece bem os hábitos alimentares de seus compatriotas. O feijão e o milho vão faltar. É uma perspectiva ameaçadora.

- 81-É bem conhecido que o problema de alimentação, isto é, a falta de mercadorias, é uma realidade secular em vários pontos do planeta Terra. No Nordeste do Brasil, ela atinge uma intensidade trágica. Historicamente, a situação foi sempre precária nessa região, sempre submetida a toda sorte de calamidades, em particular às secas e à fome periódicas. Os profetas, por intermédio dos poetas populares,são cada vez mais pessimistas:

No ano 83o inverno vai chegarlogo no mês de Janeirovê-se o trovão ribumbaro que não tiver morrido

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fica num canto encolhidosem força pra trabalhar. (76)

Deveríamos dizer: eis aí uma boa notícia. O inverno vai chegar em janeiro. Vai ser a abundância. Para uma região onde a característica é a falta de água, a perspectiva de chuvas deveria alegrar todo mundo. Infelizmente, não. Os profetas sabem bem o que eles dizem. Serão inundações, a calamidade das grandes enchentes, o dilúvio. É certo. Numa região onde a seca é a causa predominante de todos os males naturais,a chegada das chuvas, teoricamente, seis meses antes da data prevista, não pode ser uma boa coisa. E nosso poeta não facilita as coisas: "vê-se o trovão ribumbar / o que não tiver morrido".As profecias são realmente trágicas. Quase todo mundo vai morrer. Além do conteúdo das predições, observamos expressões características da linguagem popular. Põe-se aqui um problema de compreensão do verso "o que não tiver morrido". Esse “o que" deve ser compreendido como “o qual", "a coisa", ou “todas as coisas". “Tudo"? Neste último caso, devemos incluir as pessoas, os animais, a vegetação e as plantações em geral. Se, entretanto, interpretamos "o que" por "quem", pronome pessoal, devemos pensar que o autor deseja falar de pessoas, de seres humanos. Se aprofundarmos um pouco mais os efeitos desastrosos que podem produzir as chuvas torrenciais que chegarão seis meses antes da época prevista, épreferível guardar a primeira hipótese linguística. Assim, “o que" representaria a totalidade de tudo que vive,animal e vegetal.Vejamos agora a expressão verbal "não tiver morrido". Ela é formada pelo futuro do subjuntivo do verbo "ter", mais o particípio passado do verbo "morrer". Tudo isso nos dá a ideia de um futuro condicional negativo, isto é, “tudo o que não será morto”.Essa maneira de falar nos leva a pensar que a ideia do poeta é no condicional e as consequências das profecias serão funestas, como se ele quisesse dizer: "se alguém ou alguma coisa escapar do dilúvio, não poderá viver normalmente".

82 -O poeta Costa Leite é bastante fecundo, já o dissemos, com relação às poesias de caráter profético. Conhecemos vários de seus poemas bastante diferentes do ponto de vista linguístico, mas sempre sobre o mesmo tema. É por isso que pensamos ser interessante comparar algumas estrofes que mencionam a mesma data e as mesmas profecias. Veremos o poeta popular manejar um vocabulário variado e rico, no qual o simbolismo sertanejo está presente, sobretudo na segunda estrofe. Vejamos a seguir duas estrofes deste poeta, sendo a primeira do folheto Frei Damião sonhou com o Padre Cícero, a segunda de A voz de Frei Damião:

No ano 83o inverno vai chegarlogo no mês de Janeirovê-se o trovão ribumbaro que não tiver morridofica num canto encolhidosem força pra trabalhar. (77)

Em 83 verãopouca roupa e muita malamuito chapéu e pouca cabeçapouca vida e muita balamuita seca e pouco pastomuita guerra e pouco rastomuita sala e pouca fala. (78)

Já citado anteriomente, estudamos seu vocabulário, suas formas verbais muito particulares, suas previsões climáticas. Com relação à segunda estrofe, constatamos imediatamente uma total oposição relativamente às "predições meteorológicas". A primeira anuncia um inverno diluviano, devastador. Lembremos que o inverno no Nordeste é a estação das chuvas, e não do frio, como em outras regiões ou países. No que se refere à segunda estrofe, notamos que ela prevê uma grande seca, "muita seca e pouco pasto".Como no sertão nordestino a seca é habitual, pensamos que, se Frei Damião decidiu profetizar tanta seca epouco pasto, é porque vai se produzir uma calamidade enorme, fora do comum.Ressaltamos aí a primeira contradição, e não das menores, entre as profecias do Padre Cícero e as de Frei Damião. Enquanto o primeiro prediz para a mesma época chuvas diluvianas, o segundo anuncia uma seca excepcional. O poeta nos coloca em face de um grave dilema: qual das duas previsões é a boa? Pois os dois personagens são profetas excepcionais e quase divinos. E, por princípio, não se deve pôr em dúvida as palavras desses iluminados, é uma questão de fé. Seria uma falta de atenção da criatura com relação aos conselhos do criador, isto é, de Padre Cícero, ou, simplesmente, uma revolta do primeiro profeta contra o segundo?Nosso poeta Costa Leite assume uma grave responsabilidade. É certo que seus leitores e ouvintes observarão a contradição e devem colocar a questão: qual das duas versões é a boa? Se uma é exata, a outra é completamente falsa, pois não se podem conciliar chuvas e secas. Neste caso, é preciso tirar as conclusões: um dos dois profetas se enganou, o que é impossível, pois isto se oporia ao dogma sagrado da infalibilidade em matéria de fé, de crença religiosa.Que personagem, que ideia mitificada pelo dogma da infalibilidade resistiria à demolição de sua própria coluna de sustentação? O carisma seria muito afetado. Seria um problema de consciência muito grave para

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os fiéis de Padrinho Cícero e de seu sucessor, o Frei Damião, que, aliás, tem o hábito de ler ou ouvir as poesias de cordel e levá-las muito a sério. Não pode haver duas verdades. O poeta Costa Leite tomou uma grande responsabilidade.

A esse nível, poderia ser colocado um problema de confiança entre os leitores ou ouvintes e seu poeta. Este, por intermédio de seus folhetos, revelou uma grave contradição entre as profecias de dois homens santos muito estimados, venerados. Pode-se procurar saber se existe realmente diferença entre as duas profecias para o ano 83, ou se o poeta inventou ou inventa histórias somente para vender os seus folhetos. Diga-se de passagem que esses dois folhetos foram escritos em datas diferentes.Os folhetos de cordel são coisa muito séria. Eles são enraizados como fonte de informação e de formação nas populações rurais do Nordeste há cerca de um século. Quase toda a informação nos campos sertanejos em muitas décadas passou por esse meio de divulgação e de cultura. Não seria exagerado considerar esse fenômeno como o elemento maior da cultura popular do Nordeste entre os séculos XIX e XX. Eis por que estimamos que é importante assinalar a oposição entre as duas estrofes dos livretos de José Costa Leite.Voltemos, porém, aos aspectos formais e à estrutura linguística da segunda estrofe do folheto A voz de Frei Damião. Trata-se de uma construção oposicional. Ela se manifesta no interior mesmo de cada verso e, ao mesmo tempo, entre um verso em relação ao outro. Veremos duas frases que se opõem em cada verso, ligadas pela conjunção "e" que serve, às vezes, como elemento de ligação e, outras vezes, como elemento de oposição. É evidente que esse esquema foi organizado pela vontade do poeta. Pode-se, desde já, notar a riqueza de vocabulário, sobretudo se o compararmos com o outro folheto, Frei Damião sonhou com o Padre Cícero, e se observarmos as oposições linguísticas no contexto nordestino.Imaginemos, pois, o quadro abaixo substituindo a conjunção “e” pelo símbolo "x", no sentido de "contra", "versus". Os advérbios são colocados na mesma coluna, e os substantivos numa outra, a fim de pôr em evidência as oposições:

v. 2) pouca x muita = roupa x malav. 3) muito x pouca = chapéu x cabeçav. 4) pouca x muita = vida x balav. 5) muita x pouco = seca x pastov. 6) pouco x muita = guerra x rastov. 7) muita x pouca = sala x fala

Primeiramente, observemos que o poeta construiu sua estrofe com pouquíssimas palavras. Os advérbios "pouco e muito” são colocados em oposição nos versos, no interior mesmo de cada verso. Esses advérbios,opostos entre eles, são seguidos de substantivos que se opõem, eles mesmos, por seus significados. Pensamos, outrossim, que a oposição entre as frases constituídas pelas primeiras e terceiras palavras nos versos 2, 3, 4 e 5 são modificadas nos versos 6 e 7 simplesmente por uma questão de rima poética. Nestes dois útimos versos, a oposição se faz entre as frases contituídas pelas primeiras e quartas palavras.

-84 -Dessas oposições estruturais pensamos tirar já uma conclusão. O poeta pretendeu dramatizar a situação, descrever um quadro completamente caótico, no qual nada mais é possível.Vejamos os detalhes de cada verso, de cada palavra. Aqui podemos descobrir o pensamento "profético" do nosso poeta:“pouca roupa e muita mala”.Numa situação normal, as pessoas podem ter ou comprar muitas roupas e tecidos. Estes objetos enchem os armários ou são arrumados nas malas. Não é, porém, a situação prevista pelas profecias “pouca ou nenhuma roupa” e, em consequência, muitas malas ou malas vazias.

“muito chapéu e pouca cabeça”.Neste terceiro verso, a oposição pode ser interpretada diferentemente. Trata-se sempre de uma época catastrófica, a Besta-Fera fazendo misérias em todos os domínios: epidemias, inundações, numerosos mortos. Em consequência, sertanejos mortos por milhares, e chapéus que não têm cabeças para cobrir; chapéus de palha pendurados em definitivo nos cabides. Pensamos que essa interpretação é confirmada pelo verso seguinte: “pouca vida e muita bala”. secas ou mortos por chapéus deque essa

Confirmando o verso 3, “muito chapéu e pouca cabeça”, o autor entra num outro domínio. Não será por causa das catástrofes naturais, mas por "morte matada", o velho sistema de implicações sociopolíticas do Nordeste dos cangaceiros e dos coronéis: crimes e vinganças, liquidados por balas ou armas brancas. Parece-nos que o poeta se aproxima do terreno social, pois na estrofe seguinte desse folheto ele nos diz que: "surgirá revoluções". Cabeças vão ser "cortadas" em grande quantidade. Isso não é surpreendente, pois se trata das predições de Frei Damião que, apesar do tom profético, não hesita em abordar temas sociais da atualidade, naturalmente ao gosto conservador e sectário.

“muita seca e pouco pasto”.

Aqui voltamos ao domínio do natural. Quando reina a seca, é lógico que o pasto desapareça, são fenômenos que se opõem na mentalidade nordestina. Isto é bem exposto pelo poeta no verso acima. Não

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lhe vem à ideia que outras soluções poderiam ser encontradas para compensar as dificuldades periódicas do clima. Habitualmente muito apegado à terra, apesar das correntes migratórias de muitos anos, os sertanejos são muito sensíveis a esses problemas que, aliás, foram objeto de muitos estudos. Por exemplo, vejamos como Euclides da Cunha viu o problema do clima nos desertos do Nordeste. A seguir uma das várias passagens nas quais ele tratou do assunto.

Calor de dia, frio de noite.Deserto no verão, paraíso no inverno. (79)

-85 -Bem entendido, a maneira de apreender esses fenômenos e sobretudo a sua solução não é a mesma para Euclides da Cunha e para os poetas populares. O que é comum às duas partes é o interesse pelos problemos da terra, à sua situação climática e às consequências para os costumes e a vida dos habitantes. Voltemos, porém, ao verso de Costa Leite:“muita guerra e pouco rasto”.

Nesse verso, o poeta, ou o profeta, retoma o tema do extranatural. Antes de analisar a oposição no interior do verso, vejamos o sentido do importante vocábulo rasto. Trata-se de uma forma popular de rastro, sinônimo de pegada; traço, marca dos pés sobre a areia. A palavra é correntemente usada nos sertões. Existe mesmo o adjetivo rastejador para definir a pessoa, em geral homem, capaz de seguir e descobrir alguém, talvez um criminoso, a muitas léguas de distância, somente com base nas pegadas deixadas no chão, mesmo se a terra é seca e quente; é o rasto ou rastro.O que é menos simples é saber por que o poeta colocou essas duas palavras em oposição: guerra e rasto.Aparentemente os dois vocábulos se completam se levarmos em conta o contexto guerreiro das predições. As guerras mobilizam muita gente, que marcha e deixa muitos rastos e mortos.Mas, como estamos globalmente no domínio do religioso, do místico, das profecias de Frei Damião, citaremos um exemplo do Dicionário Aurélio, embora a sua origem seja alentejana e não nordestina do Brasil:

De rastos. A rastos:O povo leva / Com devoção/Nossa Senhora / Da Conceição,/De monte em monte,/ Por onde estão /Velhos de rastos, / Olhos no chão, /E as mãos cruzadas / Em oração. (80)

A nosso ver, a oposição no interior do verso "muita guerra e pouco rasto" é mais simples. O poeta quis mostrar que, em vez de penitências, de preces, procissões (pouco rasto), haverá lutas e violência (muita guerra).Resta, porém, o recurso a um vocábulo muito corrente nos sertões brasileiros e também no sul de Portugal, no Alentejo. Isso, entretanto, não é raro entre os poetas de cordel que utilizam um vocabulário, para não dizer estruturas poéticas, próximo e às vezes idêntico ao falar português dos séculos XVI e XVII. A este propósiito, vejamos o que nos diz o erudito Manuel Cavalcanti Proença, na Introdução à Antologia, in; Literatura Popular em verso:"O autor de folhetos de poesia popular tem a sua tradição, como é infalível, em Portugal; e Baltasar Dias, autor de Imperatriz Porcina (1660) [...], encontra o tema ‘versado’ em sextilhas e corrente, ainda hoje, no Brasil [...]". (81)

- 86 -Finalmente, chegamos ao último verso, à última oposição da estrofe que estudamos. O poeta se exprime por símbolos, por palavras cujos significados são menos aparentes, menos diretos: “muita sala e pouca fala”.Este verso é, a nosso ver, a síntese dos anteriores. A oposição principal se encontra entre os substantivos sala e fala. Estamos sempre num contexto geral de crise, de catástrofe generalizada. “Muita sala” é o resultado das doenças, assassinatos e mortes em grande quantidade. A sala é a peça da casa na qual os camponeses expõem os defuntos antes do enterro. No Nordeste, é na sala que se faz a incelência, o velório, as últimas homenagens ao falecido. Nessas ocasiões há pouca conversação, pouca fala. Ouvem-secantos ou murmúrios em uníssono, sem acompanhamento musical. É neste sentido que compreendemos a metáfora, a oposição fala e sala.Como vimos pela análise de cada verso e de cada vocábulo da estrofe precedente, a impressão geral que nos transmite o poeta é que o ano 83 vai ser um período mortífero. Isto é confirmado, digamos anunciado, pelos versos do mesmo autor em A voz de Frei Damião:No ano 82o negócio vai ser sérioaté chover bastantemas surgirá um mistériogrande fome reinaráe a febre botarámuitos para o cemitério. (82)

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- 87 -66 - Nota 69.67 - REGO, José Lins do. Pedra Bonita. p. 233, 234.68 - Ver páginas 101-105 e CANTEL, Raymond. Les prophéties dans la littérature populaire du Nordeste. In:Cahiers du Monde Hispanique et Luso-brésilien, Caravelle 15,1970, p. 57-72.69 - Essas profecias são atribuídas a Antônio Conselheiro por Euclides da Cunha, que as encontrou em cadernos manuscritos entre os sobreviventes de Canudos. Os Sertões. Rio de Janeiro: Livraria Francisco Alves, 1933, p. 171-172.70 - Glauber Rocha, cineasta brasileiro, realizador de filmes de sucesso na década de 1960, sob a etiqueta do Cinema Novo, como: Barravento, 1962; Deus e o Diabo na terra do sol, 1964; Terra em transe, 1967; Antônio das Mortes, 1969; O leão de sete cabeças, 1970; Cabeças cortadas, 1970. O historiador e crítico decinema Alex Viany escreve, a propósito de Glauber Rocha e do misticismo do Nordeste, as seguintes palavras: "Deus e o Diabo na terra do sol, filmado inteiramente no sertão da Bahia é uma espécie de trípticosobre o camponês do Nodeste. Este último, inicialmente confrontado ao misticismo de Antônio Conselheiro, e ao cangaço de Lampião, descobre finalmente o caminho da luta consciente". In: ROCHA, Glauber. Revisão Crítica do Cinema. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1963.72 - LEITE, José Costa, op. cit., p. 4.73 - Id.74 - LEITE, José Costa. O Frei Damião sonhou com o Padre Cícero Romão, p.5., st.1.75 - Ibid. st. 2.76 - LEITE, José Costa. O Frei Damião sonhou com o Padre Cícero Romão, p.5., st. 3.77 - LEITE, José Costa. O Frei Damião sonhou com o Padre Cícero Romão , p.5., st.3.78 - LEITE, José Costa. A voz de Frei Damião, p. 3.79 - CUNHA, Euclides da Os Sertões. Edição Laemert, p. 49-50.80 - Novo Dicionário Aurélio. O exemplo é do Conde de Monsaraz, in: “Musa alentejana”. Entendemos que, embora o exemplo seja português falado em Portugal, pode servir ao Nordeste brasileiro. Aliás, a paisagem física e climática do Alentejo lembra muito as regiões sertanejas.81 - PROENÇA, Manuel Cavalcanti. In: Literatura popular em verso. Antologia, Tomo I, p.2.82 - LEITE, José Costa. A voz de Frei Damião, p.3., st.2.

-88 -CAPÍTULO VIUM SONHO EXTRAORDINÁRIOOs poetas populares variam. Eles mudam a maneira de apresentar os problemas, algumas datas podem sermodificadas, mas os temas de inspiração e preocupação são muito próximos uns dos outros. Seus personagens preferidos são os mesmos, o que reforça nossa ideia de que poesia popular e povo nordestino, em particular o originário das regiões rurais, formam uma mesma componente sociocultural. Eles têm as mesmas crenças e superstições, preocupações e sensibilidades globalmente idênticas.Para apoiar esta tese, encontramos um outro poeta, nascido em Bom Jardim, Pernambuco, em 1937, que reside em Caruaru, a capital do Agreste. Falamos de Dila Soares, poeta e proprietário de uma pequena papelaria-tipografia cujo nome é:Arte Folheto São JoséFolhetos em grosso e varejoCarimbos, clichês, etc.Nosso poeta-proprietário, como muitos dos seus colegas, não resiste ao impacto das profecias, tão populares e enraizadas nas populações dos sertões. Desta vez, o iluminado que teve a graça de receber a mensagem sagrada não foi um padre, como Frei Damião, mas um simples romeiro, um homem do povo, como milhares de outros fiéis do Meu Padrinho Cícero.Estamos na mesma década de 80. A profecia é igualmente anunciada através de um sonho. Digamos que esta fórmula está na linha clássica das anunciações religiosas, como técnica e como linguagem das comunicações místico-religiosas.

Vamos então estudar o folheto O sonho de um romeiro com o Padre Cícero Romão, do poeta Dila Soares. Como de costume, a publicação não indica a data nem o número da edição. Eis a primeira estrofe:

Concentro pedindo a deusuma forte inspiraçãopara este livro que pededo bom leitor atençãoO Sonho (d) um Romeirocom o Padre Cícero Romão. (83)

-89 -O poeta desde o início se concentra, reúne toda a sua atenção e força, pedindo inspiração a deus. A primeira observação vem do fato de que a palavra deus é escrita em letra minúscula ao longo do folheto. Isso poderia ser por razões técnicas como a falta do caractere D em maiúscula, normal nas pequenas tipografias, ou, o que seria muito mais sério, por uma questão de hierarquia diante da invocação do Padre Cícero, que é o centro de interesse da poesia:

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Em 25 de Julhodestinou-se um Romeirofazer sua romariana matriz de Joazeirodo Padre Cícero Romãoo nosso bom conselheiro. (84)

Naturalmente, a peregrinação a Joazeiro, escrito com “o”, quando a maioria dos poetas e do povo o escrevee pronuncia com “u”. Juazeiro volta ao centro das preocupações. O que é novo é o sentimento expresso porDila Soares, no sentido em que cada Romeiro, fiel e devoto, deve fazer a sua romaria, sua peregrinação.Falar de romeiro que faz uma romaria é um pleonasmo. Vimos o verso "fazer uma romaria", como para explicar que se trata de um dever, de uma obrigação dos fiéis do Padre Cícero. Fazendo a romaria, cumpre-se o dever religioso e, ao mesmo tempo, pode-se ser admitido no círculo dos iluminados:

Viajou do piauícom deus no seu coraçãologo no primeiro dianão achou habitaçãorezou dormiu e sonhoucom o Padre Cícero Romão. (85)

Nos versos seguintes, o poeta nos dá alguns detalhes do sonho do Romeiro, detalhes que são mais ou menos na linha geral dos sonhos com o Padre Cícero. Observamos, contudo, alguns elementos novos oferecidos por Dila Soares. No misticismo que envolve o profeta de Juazeiro, veremos surgir certos elementos "científicos". O poeta está dividido entre a religião e a astrologia. Dila Soares, porém, não é o único. Ele tem um ilustre colega, o Cronista-Fidalgo, Rapsodo-Acadêmico e Poeta-Escrivão D. Pedro Dinís Ferreira Quaderna que, durante um desses momentos nos quais ele sonha com os seus ideais utópicos, pensa que:“Pode ser, também, a respiração fogosa dessa outra Fera, a Divindade, Onça-Malhada que é dona da Parda, e que, há milênios, acicata a nossa Raça, puxando-a para o alto, para o Reino e para o Sol.” (86)Ariano Suassuna, como Dila Soares, e por que não Padrinho Cícero, tenta expressar o sentimento dessa religião místico-popular do Nordeste brasileiro. O "reino" significa este aspecto metafísico das crenças populares ao nível mesmo das "coisas" não conhecidas e imaginadas da astrologia, do sistema solar:

-90 -O Padre disse ao romeiroestamos no apuroestá chegada a erados 3 dias de escuropor evolução dos astros vamos prever o futuro. (87)

Padre Cícero é dado como conhecedor dos astros. Ele vai estudá-los para prever o futuro. Por uma vez, talvez, ele renuncia à sua inspiração divina. Mas ele vai nos anunciar, com insistência, os dias do juízo final.Sinais vão aparecer no céu. A luz, o sol, vão nos faltar. Entretanto, ainda não será o fim. Outros sinais vão aparecer. Todavia, será possível escapar ao holocausto: o fogo e a luz sagrados são recomendados por Padre Cícero:

Use fósforos e velas bentase o tição da fogueirapara os dias de escuroque mal não aconteceránas casas que acenderestá clara a vida inteira. (88)

Nessa estrofe encontramos algumas indicações sobre o período ou o mês, mas não há data precisa. Quando ele diz: "e o tição da fogueira", parece-nos que pode ser o mês de junho. É na semana de São Joãoque se faz a fogueira, com tições e jogos tradicionais, com base nas superstições antigas. Fazem-se juramentos variados. Passando-se sobre dois tições em brasa, braços cruzados, a gente torna-se compadre, comadre, afilhado ou afilhada de fogo. São juramentos muito sérios, como os de sangue. Também se utiliza o tição para curiosas adivinhações. Aurélio Buarque de Holanda diz que, na linguagem e nas crenças populares, o tição é assimilado ao Diabo. Esta comparação venha talvez da cor preta do tição apagado, o carvão. Podemos aqui oferecer um testemunho pessoal no sentido de que certas crenças e práticas supersticiosas em torno da fogueira, do fogo em brasa, são também originárias da cultura indígena do Brasil. Vimos várias vezes em Bom Conselho, Pernambuco, "os caboclos", os índios "civilizados", que vivem nas aldeias da região, apagar em grandes fogueiras em brasa dançando sobre elas com os pés descalços, na época de São João. Tratar-se-ia de um rito ligado ao mito da purificação do corpo e do espírito. (89)Para os profetas e poetas, é preciso deixar o tição, o fogo e a luz acesos. É a única chance de salvação.Continua a existir, porém, uma questão de data. Para Dila Soares, que nos conta o sonho de um romeiro, o sinal dos três dias escuros chegará em “junho”. Mas, para o colega José Costa Leite, que nos fala do sonho

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de Frei Damião, trata-se do mês de maio:

E na besta-fera vemmontado o anti-Cristofalando em religiãodizendo: eu sou Jesus Cristo

-91 -ninguém acredite nelefaço ciente que eleé satanaz está visto. (90)

E ele continua com mais precisão:

Porque em 98todos esperam o futuroque verão no mês de maioos 3 dias do escuroninguém pense ser tolicefoi palavra que Deus disseserá castigo seguro. (91)

Como vimos, de vez em quando descobrimos diferenças entre as profecias do Padre Cícero e as do seu discípulo Frei Damião. A memória dos poetas seria fraca quando eles interpretam as palavras santas? Não é somente uma questão de data. Às vezes, Padre Cícero faz apelo aos astros, recurso não muito católico, enão seria do gosto do Frei Damião, o qual é mais sensível às previsões apocalípticas no gênero religioso. Vejamos outras estrofes de Dila Soares:

Os 3 dias de escuroSerá de grande afliçãoSolta-se os espíritos mauspara fazer mal visãonas casas que acender velade Jesus tem proteção. (Grifos nossos) (92)

E para que não se ponha em dúvida o valor e a origem de suas palavras:

E disse para o romeiroque esse dia chegavaas suas santas palavrasse cumpria e não passavaos 3 dias de escurosempre sempre ele falava. (Grifos nossos) (93)

Eis que o Padre Cícero nos fala de "espíritos maus" que vêm "para fazer mal visão". Aqui nós nos defrontamos com expressões mais características da linguagem do espiritismo popular. São os "espíritos maus” que vão ser liberados para fazer "mal visão", "assombrações”. São palavras do mesmo tipo que "almas penadas, almas do outro mundo", etc. E, segundo a crença popular, os “espíritos maus" não aceitama morte do corpo e por isso eles voltam ao planeta Terra para fazer o mal, para fazer "assombrações". Eles "ficam penando ao deus-dará", até o dia do julgamento final. Preveem-se mesmo reencarnações até que os espíritos maus se purifiquem, se arrependam de seus pecados, de suas más ações.Tudo isso faz parte das crenças místicas dessa religião popular do Nordeste, na qual se veem os "espíritos maus", as "assombrações", os "lobisomens", as "mulas sem cabeça", etc. É interessante remarcar o amálgama que faz o poeta entre as crenças católicas e os espíritos, o que é totalmente a imagem da realidade popular nesse domínio.

-92 -Padre Cícero representa o lado católico na qualidade de sacerdote desta religião, apesar da suspensão de seus direitos de oficiar pela hierarquia romana. Aliás, as medidas eclesiásticas de disciplina contra o pároco de Juazeiro nunca foram compreendidas por seus fiéis (94). O profeta de Juazeiro, ou o poeta, era perfeitamente consciente do seu papel messiânico.

Nesta hora o Padre Cíceroa sua mão levantoue disse filho me ouveque profetizar eu voude 74 por diantecomo o tempo mudou. (95)

Parece mesmo que Padre Cícero preocupou-se com os problemas da "produtividade" na agricultura: "os

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que souber trabalhar / Vai colher a sua roça". Confiando-os a "Deus", ele aconselhava a seus devotos a tomar algumas precauções bem sábias: "guarde previna o futuro". Parece que o poeta é fiel a uma das preocupações"materiais" do Padre Cícero, quando ele aborda esses problemas de produção na agricultura. Alguns autores asseguram que o profeta do Nordeste era um dos maiores ou o maior proprietário agrário doCariri (96):“A medida patriótica posta em prática para este fim foi colocar nas fazendas de amigos pessoas pobres que chegavam decididas a ficar [...] De tal maneira que, a produção ainda maior, os proprietários faziam mais lucros.” (97)

Diríamos que o poeta Dila Soares é sensível a esta espécie de preparação ideológica. Dos romeiros para a estimulação da produção dos campos sertanejos, sobretudo nas terras dos amigos do Padre Cícero e da "situação política" do momento. Sua interpretação dessas profecias é bem característica:

76 em techo é grande a contradiçãoo agricultor se esforçaa fim de arranjar o pãoplantas nasce variadasé grande a lamentação. (98)

O ano 82todos plante com cuidadoe ver se pode guardaro pouco que for lucradovamos confiar em deuspara ter bom resultado. (99)

Antes de 82, ele é assim mesmo mais otimista:

79 é médioem parte tem variedadeem outra se lucra bemmas a desonestidadesemelha a desunião pra ver desonestidade. (100)

A terminologia profético-agrícola é relativamente rica: O agricultor se esforça / plantas nasce variadas / todos plante com cuidado / em parte tem variedade / em outra se lucra bem. / semelha a desunião.

Há uma outra característica na linguagem do poeta Dila Soares observada no folheto O sonho de um romeiro com o Padre Cícero Romão. Em particular a partir das profecias de 74, notamos uma certa sobriedade ao início de cada estrofe, como se tratasse de interpretar a modéstia e a desconfiança das pessoas do campo. Repetimos os primeiros versos "pronunciados" por Padre Cícero a partir de 74:74 em parte – deixa modificação75 em parte – os que souber trabalhar76 em trecho – é grande a contradição77 é uma página – Jesus faz sua igualdade78 traz um grau – contra a natureza humana79 é médio – em parte tem variedade80 é ano médio – em parte se lucra bem ano 81 – há média e variaçãoO ano 82 – todos plante com cuidado83 também – tem partes que tem melhora84 vem – com sua média promessa85 vem – com seu laço apertado. (101)

-94 -Verificamos que em 12 estrofes o poeta utiliza um vocabulário bastante moderado, econômico, orientando-se com vocábulos quantitativa e qualitativamente médios e prudentes. Constatamos que este vocabulário, mesmo variado do ponto de vista formal, conserva o mesmo significado embora com certa diferença de intensidade. Todas essas palavras têm um sentido qualitativo ou quantitativo, por exemplo: partes (cinco vezes), médio ou média (quatro vezes), variado ou variação (duas vezes), e trecho, página, grau, cuidado, melhora e igualdade (uma vez cada).A particularidade desse vocabulário é notada também pela impressão de que o poeta pretende sempre falarda qualidade ou da quantidade da produção agrícola, dos roçados, ou da situação meteorológica nos sertões. As consequências dessas profecias são menos apocalípticas que as de outros poetas, com relaçãoàs décadas de 70/80. As palavras de Padre Cícero são interpretadas de maneira menos dramática por Dila Soares. Mas o tom messiânico é sempre presente e determinante.

Depois desses verbos moderados, o poeta nos prepara assim mesmo para assistir a acontecimentos muito

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sérios:

85 vemcom seu laço apertadomais padrinho Cícero disseromeiro tenha cuidadoquem resa pra deus não perderese que o tempo é chegado. (102)

Para começar, constatamos que Dila Soares utiliza a expressão “laço apertado” com o sentido de dificuldade, de controle, de gravidade. É o mesmo significado que observamos no poeta Severino Gonçalves, no folheto A moça que virou cobra. Neste folheto, era o Padre Cícero que prendia as pessoas, os devotos, "laçando a humanidade / por meio de falsidade" (103). Em Dila Soares, é o ano 85 que chega com seu "laço apertado". No último verso, "rese que o tempo é chegado", nosso poeta adota completamente o tom messiânico. A seguir, há outros sinais bíblicos:

86 vem trazera predita profeciaque meu padrinho no sermãorelembrava todo diaé o tempo do rosárioda Santa Virgem Maria. (104)

A linguagem dos poetas é sempre clara, sem hesitações. O adjetivo predita é empregado para chamar a atenção dos ouvintes para as predições e profecias de Padre Cícero, pronunciadas muitas vezes anteriormente. Trata-se de profecias já conhecidas. É o vocábulo que convém para invocar as famosas predições.

-95 -Antes de aprofundar o conhecimento de graves provações, vemos que o poeta nos coloca diante de outra realidade religiosa dos nordestinos. Vimos anteriormente as tendências "espíritas" e "astrológicas" do PadreCícero: "dos 3 dias de escuro / por evolução dos astros" (105) e "solta-se os espíritos maus / para fazer mal visão" (106). Desta vez, o poeta apresenta um dos aspectos dos mais importantes da "religiosidade" do nordestino, e do brasileiro em geral: o culto à Santa Virgem Maria. Não há poeta popular, escritor erudito, profeta, santo ou "cangaceiro que se preze" que não seja devoto da Santa Virgem Maria. É um culto à parte.Uma maneira de ter a consciência tranquila. Um ditado popular que diz: “Quem a boca de meu filho beija, a minha adoça”.No caso da devoção à Santa Virgem, parece que o objetivo visado é outro. Ela representa um excelente advogado, maternal, junto do Todo-Poderoso, Nosso Senhor Jesus Cristo. Sua sensibilidade e seu coração de mulher, embora virgem, sejam talvez mais próximos das fraquezas humanas. Vejamos alguns versos do Romanceiro popular anônimo do Nordeste a esse propósito. Trata-se de um julgamento no céu:

O Diabo: Lá vem a compadecidaMulher em tudo se mete!Maria:Meu filho, perdoe esta alma,Tenha dela compaixão!Não se perdoando esta alma,Faz-se é dar mais gosto ao cão:Por isto absolva ela,Lançai a vossa bênção.Jesus: Pois minha mãe leve a alma,Leve em sua proteção,Diga às outras que recebam,Façam com ela união.Fica feito o seu pedido,Dou a ela a salvação. (107)

Pensamos que esses versos mostram suficientemente o apego popular ao culto à Virgem Maria. Veremos outras manifestações também eloquentes quando estudarmos os fenômenos das orações e do cangaço pela voz da poesia popular. Por enquanto, continuemos a ver o que anuncia O sonho de um Romeiro com oPadre Cícero Romão:

o 88 aparece sinais no céu e na terracomo disse meu padrinhoa profecia não errareze ofereça a deusque seu poder não encerra. (108)

Padre Cícero, por romeiro ou poeta interposto, retorna ao tema dos sinais proféticos. Será o anúncio da

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chegada de um outro cavaleiro com uma grande espada que vem estabelecer a paz e a abundância no sertão? O que nos dizem os versos seguintes, porém, é que devemos ter cuidado, obedecer às ordens e ficar bem direitinhos:

-96 -Ele é uma luz de deusque clareia o caminhopara o romeiro seguirem passos bem direitinhoo Padre Cícero Romãoé o nosso digno padrinho. (109)

Como os demais colegas, o poeta Dila Soares considera "nosso digno Padrinho" como uma luz de Deus. É ele que iluminará a estrada da salvação em direção à Meca do Nordeste, Juazeiro do Ceará. Os mitos da divindade do Padre Cícero e da cidade de Juazeiro continuam a inspirar a literatura de cordel. Isso, porém, não vai sem uma compensação, sem uma recompensa. Meu Padrinho velará do Céu por todos aqueles quevão a Juazeiro. É preciso alimentar o mito:

Como os meus afilhadosque vem ao Joazeirono céu rogo a deus por todosdo primeiro ao derradeirotodos são filhos de deusnão deixe de ser romeiro. (110)

É interessante notar que o poeta insiste para a continuidade do mito da cidade santa de Juazeiro. Só na estrofe que vimos se encontram duas vezes esse tema "como os meus afilhados / que vem ao Joazeiro / nocéu rogo a deus por todos / não deixe de ser romeiro". Além da compensação de velar do Céu por todos osque vêm a Juazeiro, o Padre Cícero recomenda (ordena): "todos são filhos de deus"/ "não deixe de ser romeiro". Parece-nos que as duas atitudes, ser devoto e romeiro, devem-se conceber e praticar ao mesmo tempo, a do culto a Juazeiro ultrapassa os aspectos místico-religiosos. Assim se pronuncia o jornalista e escritor Rui Facó: "O documento, assinado e registrado em cartório, evoca primeiramente o nome prestigioso do padre que se transformava em chefe político, se juntando ao nome. Para muitos, o problema do município que ele governava. Nesta cidade de Juazeiro do Padre Cícero, município do mesmo nome. A denominação oficial era simplesmente Juazeiro”. (111)

Remarquemos ainda um ponto interessante nas três últimas estrofes. O vocábulo deus é citado quatro vezes, o que não é desprezível, pois o de Padre Cícero aparece duas vezes. Como sempre, deus é escrito em caractere minúsculo. Em todo o folheto, sejam 36 estrofes de 6 versos, as sextilhas clássicas da literatura de cordel, o vocábulo deus é impresso oito vezes com inicial minúscula. A hipótese de falta do D maiúsculo pode ser admitida por se tratar de uma pequena tipografia do interior. Mas nós continuamos a preferir a hipótese da vontade consciente do autor de estabelecer a hierarquia entre "deus", ser longínquo e abstrato, e o Deus do Nordeste, como indicou Ascenso Ferreira:

- 97 - “o homem da minha terra tem um Deus-de-carne-e-osso Um Deus verdadeiro Meu padrinho Padre Ciço do Joazêro.” (112)

Sobre o mesmo assunto, vejamos o que nos diz um outro especialista da literatura popular:

“No campo da religião, os folhetos são porta-voz do povo que se apega aos protetores, guardiães, como Padre Cícero.” (113)

Assim, o sonho do romeiro chega quase a seu fim. O poeta Dila Soares nos explica como as coisas vão se passar:E puxou da batina em um dos bolsos tirouuma oração bem escritaao romeiro entregoudisse é de São Miguellhe dou bênção e viajou. (114)

Veja-se aí um novo elemento introduzido por esta estrofe. Queremos falar de uma outra forma da literatura popular, outra forma de expressão da religião popular do Nordeste brasileiro, isto é, as orações. Essas pequenas preces têm um lugar especial entre a população dessa região. Não se exagera ao dizer-se que existem adeptos fervorosos dessa leitura em todos os meios da sociedade nordestina. As preces são impressas, em geral, no verso, lado oposto, das pequenas imagens de santos, nas últimas capas dos folhetos de cordel e outras publicações modestas. Elas são distribuídas nas igrejas, missões e nos catecismos. Essas orações têm um poder de proteção aos seus portadores, como um talismã. Em alguns

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casos, segundo o tipo de prece, elas podem "fechar o corpo". É claro que, se essas orações distribuídas diretamente por Padre Cícero, Frei Damião ou, se a encontramos em Juazeiro, elas têm um valor inestimável.Chegamos agora ao ponto culminante da aventura do nosso romeiro, segundo a descrição do poeta. Como vimos na estrofe precedente, Padre Cícero entregou diretamente uma oração ao romeiro. Agora é o milagredos milagres. O poeta não hesitou. Parece que foi ele próprio que "sonhou". Sua linguagem e sua imaginação místico-fantasistas encontraram a conclusão mais fantástica que se poderia imaginar:

O romeiro acordou-seo papel estava na mãoele muito satisfeitodisse nessa ocasiãomeu sonho foi verdadecom o Padre Cícero Romão. (115)

Eis aí o supermilagre: quando o romeiro “acordou-se”, a oração, o papel impresso, estava nas suas mãos. Que mistério, que poder extraordinário pode produzir este prodígio? O poeta nos conta um sonho de um romeiro com Padre Cícero. "Simplesmente", ao fim do sonho, o romeiro “acorda-se” e descobre que ele possui entre as mãos uma oração, uma folha de papel impressa com uma oração do Arcanjo São Miguel.

-98 -Aqui estamos em face de um mistério, de uma graça suprema. Os espíritos superiores, iluminados, têm esse direito, essa chance. O poeta não hesita em imaginar esta aventura, pois se trata de Padre Cícero. Para ele tudo é possível e imaginável. É uma questão de fé. E, para justificar esta maravilhosa aventura, elenos recita: "O meu sonho foi verdade". Dessa maneira, nosso poeta Dila Soares, tão moderado ao início de sua história, acrescenta a sua pedra ou o seu tijolo, à teoria sobre a veracidade dos sonhos. Segundo sua ideia e seus versos, um sonho anuncia uma verdade quando ele deixa uma prova material e física de sua passagem.Mas não se deve surpreender. Tudo isso faz parte do imaginário nordestino, cujos poetas de cordel, também devotos, se fazem porta-vozes. O misticismo é um dos elementos psicoculturais do homem dos sertões nordestinos. As causas são diversas. A literatura de cordel não pretende explicá-las. Ela é apenas um espelho, nem o único nem o menos importante. É compreensível que os folhetos procurem satisfazer e alimentar os mitos nos quais mergulham as populações do Nordeste, sobretudo as de origem rural. Há os que imaginam a entrega de orações, de papéis aos romeiros durante os seus sonhos, outros, mais modestos, dizem que:

Esta oração foi achadana Igreja de Belém. (117)

A ideia essencial e o objetivo a atingir são os mesmos:

Quem rezar ela lhe livrade todos males que vema Beata mocinha rezoupra século sem fim amém. (118)

-99 -83 - SOARES, Dila. O sonho de um romeiro com o Padre Cícero Romão. p.1., st.l.84 – Id., st.2.85 - SOARES, Dila. O sonho de um romeiro com o Padre Cícero. p. 1., st.3.86 – SUASSUNA. Ariano. A pedra do reino, p. 2.87 - SOARES, Dila. O sonho de um romeiro com o Padre Cícero, p.2., st.4.88 - Id., p.3., st.1.89 - Na região existe uma localidade chamada Aldeia, no município de Águas Belas, onde vivem descendentes de índios, os chamados caboclos.

90 - LEITE, Costa. A voz de Frei Damião.91 - Id. p.7 92 - SOARES, Dila., op. cit., p. 3.93 - Id.94 - A situação do Padre Cícero junto da hierarquia católica não mudou, mas o que impressionou as pessoas simples que o veneravam e que o rodeavam foi que ele esteve na Santa Sé, falou pessoalmente com o Papa e voltou cheio de imagens sagradas bentas pelo Santo Padre. Além disso, Padre Cícero voltou com o projeto de construção, em Juazeiro, de uma grande igreja como a de Jerusalém. Ver FACÓ, Rui. Cangaceiros e Fanáticos & QUEIROZ, Maria Isaura Pereira de. O Messianismo no Brasil e no Mundo.95 - SOARES, Dila, Op. cit. p.3.96 - Afirmação do Dr. Floro Bartolomeu, deputado, médico e guia político do Padre Cícero, em livro publicado em 1932. In: QUEIROZ , M.I. Pereira de & FACÓ, Rui, op. cit., p.165.98-102 - SOARES, Dila, op., cit.103 - GONÇALVES, Severino, op. cit., p.3., st..2.

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- 100 -104-6 - SOARES, Dila, op. cit.107 - Epígrafes transcritas por Ariano Suassuna na peça O auto da compadecida, inspirada do romanceiro popular do Nordeste, em particular de O castigo da soberba, cujo autor é desconhecido.108-10 - SOARES, Dila, op. cit.111 - FACÓ, Rui, op. cit.112 - FERREIRA, Ascenso, op. cit., p.58.113 - PROENÇA, Ivan Cavalcanti. A ideologia do cordel. Rio de Janeiro: Imago, 1976, p. 64.114 /115 - SOARES, Dila, op. cit., p.,8.116 - "Os poetas populares estão descobrindo outras vias e, por intermédio de seus folhetos, eles dirigem as suas mensagens e instruem o povo que, por este meio, toma conhecimento dos problemas nacionais, mesmo quando eles divulgam, criticam, fazem elogios da vida quotidiana". MAIOR, Mário Souto. Introdução à literatura de cordel. Antologia, Tomo I. São Paulo: Global, 1976, p.14.117 - LEITE, José Costa. A voz de Frei Damião, p .8, st.2.118 - Id.

- 101 -CAPÍTULO VIIAS ORAÇÕES POPULARESEm contrapartida às ondas de medo, de terror e de maldições de todo gênero anunciadas nas profecias do estilo Padre Cícero, Frei Damião e congêneres, é preciso também fornecer alguma esperança positiva. De um lado, as punições apocalípticas são infligidas, e do outro, a possibilidade de salvação, de remissão. Os atores e o cenário são os mesmos. Em nome dos mesmos princípios e das crenças de sempre, o círculo se fecha; as pessoas não veem outras possibilidades de saída em face das promessas de terror. Mas o gênio popular não poderia aceitar esta situação. Ele descobriu e adotou um antídoto, as pequenas "orações", como, por exemplo:Oração do Arcanjo São MiguelOh poderoso São Miguel livra-me dos meus inimigos em casa dormindo, viajando, nos negócios, não serei perseguido nem ofendido por animais peçonhentos, curai-me de todas as doenças, defendei a mim minha família e meus amigos das pragas, má vontade, mau vizinho bruxarias tudo quanto é ruim, das tentações dodemônio livrai-me São Miguel amém. Rese:33p 3AM Gp. (119)

Eis que o penitente faz sua invocação. Em seguida, ele se crê protegido. Não se trata de profecias catastróficas. Agora, convém invocar a proteção dos santos oficiais da Igreja. Mas o autor da oração não está convencido, ele faz apelo a uma entidade superior. Na mesma folha, seguindo-se à penitência recomendada, ele acrescenta:

Ofereço a sagrada morte e paixão de N. Senhor Jesus Cristo em louvor de suas 5 chagas para que me livre dos inimigos visíveis e invisíveis viajando dormindo ou acordado não tenha poder de me ofender nem prisão nem faca nem arma nem fogo nem falsos nada seja contra mim com o poder de deus padre filho espírito Santo Jesus Maria José o anjo de minha guarda seja minha guia, nessa vida e na outra. Amém. (120)

Essas transcrições completas nos pareceram necessárias para abrir este capítulo consagrado às orações populares em curso no Nordeste do Brasil. Esta matéria constitui um complemento à literatura popular. Estimamos que essas preces sejam também um produto da mesma situação social e cultural, do mesmo complexo sociológico de onde emergem os poetas populares. O contexto, como a linguagem mística e religiosa, responde às mesmas necessidades espirituais e culturais, no sentido de saber, conhecer. Em facedas dificuldades, do medo e do desconhecido, precisa-se encontrar um lenitivo.

- 102 -Com relação aos folhetos de cordel deve-se dizer que em grande número eles trazem impresso na última capa esse tipo de oração. Muitas vezes os autores da poesia são os mesmos das orações. Também pode-se dizer que esta produção, como o folheto, inspira-se na literatura oficial da Igreja Católica. Isso não é um problema, ao contrário, é enriquecedor, como pensa Silvio Romero:"O interesse da poesia popular é todo etnográfico. O fato mais apreciável é que as variações de um mesmo canto nos permitem conhecer a maneira como cada povo modificou, adaptou a lição primitiva a seu próprio meio". (121)

Vejamos, pois, como o autor da oração do Arcanjo São Miguel se exprime:“[...] não serei perseguido nem ofendido por animais peçonhentos [...] dos inimigos visíveis, invisíveis viajando dormindo ou acordado [...][...] nem prisão nem faca nem arma [...][...] má vizinho bruxarias [...] ”. (122)

Poderíamos dizer que se trata de versos de cordel. O vocabulário, a sintaxe e a ortografia não são muito diferentes. Existem mesmo orações em versos rimados com o cordel. Vejamos o Bendito seguinte:

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O Padre Cícero Romãoé um santo mensageirovisitou Frei Damiãona matris do Juazeiro. (123)

Os personagens e o lugar sagrado retornam:

O Padre Cícero Romãovisitou Juazeirotrazendo sua bençãopra todo povo romeiro. (124)

Como estamos vendo, a diferença fundamental entre a poesia popular e a oração se refere ao domínio das consequências. Enquanto a poesia popular de caráter místico e profético se inspira no Apocalipse, adaptado às condições locais, e tem como resultado todas as maldições e catástrofes imagináveis, as orações, que consideramos também como uma forma de literatura popular, pregam a salvação, a remissão dos pecados e a necessidade de proteção contra as grandes dificuldades, materiais e espirituais. Quanto à forma, vejamos como ela se aproxima do cordel:

Eu creio em Deus PoderosoSalvo estou, salvo estareiSalvo sempre anoiteçoE salvo amanhecereiSou limpo igualmente a luzSalvo assim como JesusFoi salvo e salvo serei. (125)

Eis, portanto, a clássica estrofe de sete versos, ou verso de sete pés, heptassílabos, tão utilizada pelos poetas populares. Não vemos nenhuma diferença entre essas frases e os versos da literatura de cordel, rimadas geralmente em redondilha maior.Vejamos agora o vocabulário e o emprego de certas formas verbais e adverbiais, na última estrofe citada. Trata-se de uma oração, A força do Credo, que pensamos ser de autoria de José Costa Leite:

“Salvo sempre anoiteço / E salvo amanhecerei” (Grifos nossos)

Esses dois verbos são utilizados na primeira pessoa do singular: "eu anoiteço" e "eu amanhecerei". Trata-sede formas verbais correntes no falar popular. Entretanto, elas são habitualmente conjugadas na forma impessoal, na terceira pessoa do singular (126). O advérbio igualmente corresponde a outro emprego do falar popular, no lugar do adjetivo igual ou da conjunção como:

“Sou limpo igualmente a luz / Sou limpo como a luz / Sou limpo da mesma forma que a luz.”

A ausência do acento sobre o “a” antes do feminino “luz” confirma esta interpretação de “igualmente a”. O autor da oração talvez não tenha pensado em tudo isso, porque ele se expressou simplesmente como é o hábito na região.Vejamos ainda alguns versos da oração A força do Credo, que está impressa na última capa do folheto A vinda da Besta-Fera, de José Costa Leite:

Nas águas do Rio JordãoTambém me batizareiJesus, Maria e JoséEntre os três me guardareiMe amparo no santuárioÉ onde me trancarei. (127)

Ainda uma vez observamos o espírito fantasista da poesia popular místico-religiosa. Inicialmente o fiel, ou o autor (?), deseja se batizar nas águas do Jordão, o que não será muito fácil, pois nós estamos nos sertões do Nordeste do Brasil, um pouco longe da Palestina. É o apelo ao simbolismo da poesia popular que prevalece. É o caso também dos dois versos "dentro do santo sacrário / é onde me trancarei". Sempre objetos e lugares sagrados. Mas o simbolismo ou as intenções do autor da oração nos conduz ainda mais longe:

- 104 -Com o leite da Santa VirgemMeu corpo eu banhareiNos braços da Virgem MãeÉ onde descansareiDos males eu me arredoCom as Santas Forças do CredoEternemente andarei. FIM. (128)

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E, como sempre ao fim, o autor faz sua oferenda: “Oferecido às 5 chagas de Cristo.”

A Santa Virgem certamente não foi consultada. É o que nós pensamos. Em todo caso, em questões de crenças e de misticismos no Nordeste, tudo é possível. Misticismo e mitologia andam juntos. Não é por acaso que Ariano Suassuna ofereceu seu "romance armorial-popular brasileiro, A Pedra Bonita, à [...] meu mundo mítico do Sertão" (129). Voltando à oração, é legítimo pensar que é preciso muito leite da Santa Virgem para que os possuidores do papelzinho se possam banhar. O leite é empregado como líquido branco, sagrado e purificador da alma, e talvez do corpo. A esse propósito, poderíamos procurar exemplos na literatura portuguesa do século XVI, por exemplo, o branco, empregado como símbolo de pureza por Gil Vicente, autor clássico, muito sensível ao sentimento popular da época. Nós nos permitimos citar alguns exemplos encontrados pelo professor Paul Teyssier, em suas pesquisas sobre o vocabulário das cores em Gil Vicente (130): "La couleur blanche valorisée (pureté, beauté, etc.):Sahio nua face brancaparecia de cristalBlanca, estais, colorada,Virgem sagrada!E sobre a Virgem Maria: ‘Ave rosa, blanca flor!’.” (131)É o simbolismo das cores, interpretado com concepções místico-religiosas. A poesia popular não escapa a essa ideologia. O que é perigoso é a assimilação dessas ideias a outros domínios, ao campo racial, por exemplo. Seria inaceitável ver todas as qualidades do lado do branco, e todos os defeitos do lado do preto. Seria o emprego do tradicional maniqueísmo do bem e do mal, do branco e do preto.Vejamos a seguir o emprego do verbo arredar no sentido de “se afastar”.

105 É preciso lembrar que esta oração está impressa na última capa do folheto A vinda da Besta-Fera. É evidente que isso não foifeito por acaso, mas constitui uma norma quase geral na poesia popular. A "coincidência", aliás, foi observada pelo professor Raymond Cantel num artigo sobre o messianismo no Nordeste (132). Após terrores, hecatombes apocalípticas, contra as quais não há defesa humana, é prudente oferecer algumas esperanças, mesmo espirituais. Isso se reproduz entre os poetas populares. Sobre este assunto, vejamos, de perto, uma outra oração, denominada Oração do Padre Cícero, impressa no folheto O fim do mundo está próximo, do poeta Manoel Tomaz de Assis.Inicialmente, notemos que o autor atribui o escrito a Padre Cícero. Isso representa já um sucesso junto do público e uma garantia de proteção suplementária para aqueles que levam o folheto.Em seguida, do ponto de vista das apreciações gerais, notemos a oposição folheto x oração. Para começar os títulos:

O fim do mundo está próximo x Oração do Padre Cícero.

Aparentemente, não há oposição entre essas palavras ditas tão simplesmentete. Mas, para os autores de cordel, habituados ao jogo de palavras da poesia popular ,“fim do mundo" representa o mal, a Besta-Fera, enquanto oração, Padre Cícero, simbolizam o bem, a esperança de salvação, de proteção. Senão, vejamos os detalhes:

"O Padre Cícero é quem me guia, me recomenda a Deus, à Virgem Maria e aos apóstolos, meus irmãos [...]". (133)

Todos os que levarão esta oração deverão estar convencidos de que Padre Cícero será seu guia. Eles aceitarão seguir o rumo indicado por este. Os devotos deverão se recomendar a Deus e à Virgem Maria, entidades superiores, e a seus irmãos, os apóstolos. Como vemos, os fiéis tomam todas as garantias, aliás, com certa familiaridade, "meus irmãos"Em seguida, a oração menciona outros santos, sobretudo N.S. das Dores, N.S. de Fátima e a Virgem da Conceição, sempre com a intenção de ter mais proteção. Isso não é especial, é a tradicional devoção à Santa Virgem Maria e suas variações. O que é mais insólito são as afirmações feitas em seguida:"Serei banhado no sangue de N.S. Jesus Cristo [...] Serei bento com o sangue de Cristo [...]”. (134)Veja-se que o autor não se contenta de invocar os aspectos espirituais do Cristo para ter as proteções desejadas. Como na oração precedente, A força do Credo, ele invoca elementos bens materiais: "Serei banhado no sangue" e "Serei bento com o sangue de Cristo". Aliás, na outra oração, o autor prometia o banho "com o leite da Santa Virgem".

- 106 -Como vemos, o misticismo dessa religião popular está pronto a invocar e prometer práticas bastante materiais para atingir "a salvação eterna". Observamos também que o poeta, se pode-se dizer, estabelece uma relação de causa e efeito entre as duas frases. Sua frase simples introduz poucas palavras diferentes para explicar os objetivos visados: o devoto será banhado no sangue de Cristo e, em consequência, ele será bento.É evidente que essas invocações de elementos materiais pelos autores nordestinos não são a interpretaçãoda literatura místico-religiosa judeu-cristã. As águas do Jordão, o leite da Santa Virgem e o sangue de

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Cristo, embora sacralizados, são temas e símbolos citados há séculos. O sangue, em particular, tem um poder purificador extraordinário. Os seres que têm o direito de fornecer sangue para manter esse mito vão do cordeiro, passam por Cristo e podem incluir as crianças ingênuas. O Apocalipse foi, no início da era cristã, a primeira literatura a propagar essa ideia. Existiria documentação mais antiga, como as predições dos antigos profetas, como Isaías, Jeremias, Ezequiel e outros (135). Como essas histórias tão antigas são reproduzidas no Nordeste e, sobretudo, como a literatura popular a incorporou é o que nos interessa neste momento. Eis algumas explicações que podem nos aproximar do nosso assunto: “Quando a poesia popular começou? Com o Padre Anchieta, seus atos, seus mistérios, etc. É fácil de perceber que a poesia popular nasceu da inspiração indígena espontânea, em contato com a influência religiosa.” (136)

É o que nos diz o folclorista Rodrigues de Carvalho, o grande pesquisador nordestino. Esta opinião explicaria uma parte do apego de nossos poetas populares atuais aos temas místico-religiosos. Mas vejamos a opinião mais radical de um outro especialista da cultura brasileira, Roger Bastide, quando fala da poesia de Ascenso Ferreira: "En alliant l'intuition à la science, il a réalisé quelque chose de très difficile: la poésie populaire. En effet, le peuple ne fait pas de la poésie populaire, ou s'il en fait c'est une mauvaise copie de la poésie des bourgeois, ou alors, il chante des sentiments élémentaires avec les termes traditionnelles et un vocabulaire d'une pauvreté extrême." (137)

Nossa preocupação principal neste trabalho não é interpretar as opiniões sobre a origem da poesia popular.Essas opiniões nos interessam, no entanto, quando elas podem nos ajudar a nos aproximar do conhecimento do porquê da linguagem e dos temas desta poesia. Será que Roger Bastide conhecia a literatura de cordel quando emitiu a sua opinião? Senão, como interpretar o sentimento e as expressões do poeta popular Manoel Tomaz de Assis: “serei banhado no sangue de N.S. Jesus Cristo. Não serei preso nem ferido pelos meus inimigos, visíveis e invisíveis, carnais e espirituais. Como meu Senhor Jesus Cristo andou 9 meses no ventre da Virgem Maria.” (138)

- 107 -O desejo de se purificar com o sangue do Cristo ou com o leite da Santa Virgem não é novo, nem originário do Nordeste, tampouco da imaginação de nossos poetas em geral. Nesse sentido Roger Bastide tem razão:tudo isso é a repetição de mitos seculares, milenares. Além disso, essas ideias, ou esses sentimentos elementares só servem para impedir um melhor desenvolvimento cultural e social das classes populares. Elas são o caldo de cultura no qual são adormecidas milhares e milhões de pessoas. Em contrapartida, o que é preciso dizer também é que a repetição dessas ideias pelos poetas populares não é somente o resultado do doutrinamento secular feito pelas religiões e culturas oficiais. Não se deve esquecer que a poesia popular e a literatura em geral são, em grande parte, o reflexo do meio social e cultural onde elas são produzidas. Os sacrifícios de animais, os banhos de sangue ou mesmo o ato de beber esse líquido são ainda hoje praticados ritualmente nos cultos afro-brasileiros, muito ativos no país.Com respeito à Oração do Padre Cícero, a preocupação mística de utilizar substâncias físicas, particularmente do sangue, corresponde também a uma realidade histórica do Nordeste; o fenômeno do cangaço, os crimes políticos e familiares, e os acontecimentos de Pedra Bonita, Canudos e Caldeirão estão aí para confirmá-lo.Quando o autor da oração diz que será banhado e bento pelo sangue de Cristo, mesmo repetindo um velho mito religioso, ele exprime ao mesmo tempo uma ideia de autodefesa, uma espécie de exorcismo que o protege. Senão, vejamos:

Não serei preso nem ferido pelos meus inimigos [...]nem meu sangue (será) derramado [...]ndarei livre de todos os meus inimigos, carnais e espirituais.

Ora, o poeta ou o portador da oração deseja bem que o sangue de Cristo seja derramado, mas não o seu. Ele deseja se proteger e se preservar.Mas voltemos aos problemas de linguagem, de vocabulário precisamente. O autor escolheu bem a sua palavra: carnais. Seria mais fácil escolher outros adjetivos, como pessoais ou materiais. A expressão o “inimigo pessoal” é corrente e compreensível em todos os lados; ela exprime a ideia de um adversário físico perigoso. Por que então a escolha do vocábulo carnais? A resposta nos parece clara se ficarmos no campo semântico da linguagem mítico-religiosa. Englobamos nesse campo semântico a produção popular e a de origem ou de inspiração popular que circulam pelos brasis afora.Perguntemos mais uma vez a definição ao Mestre Aurélio (139). Ele nos diz que a palavra carnal pode evocar as “paixões carnais”, qualquer coisa de sensual. Ele acrescenta que isso pode significar uma ideia de parentesco, primo ou irmão carnal. No que respeita à intenção do autor, pensamos que as duas hipóteses são possíveis: paixão carnal ou parentesco. A paixão e a carne são assuntos tratados abundantemente nos escritos bíblicos. A paixão carnal é, em geral, o prelúdio a comportamentos julgados condenáveis e causa de pecados. Não é necessário insistir sobre esse ponto.

-108 -Em contrapartida, o que nos parece menos claro é a associação de inimigo e de carne: “inimigos carnais”. Conhecemos já o fenômeno de irmãos consanguíneos. Em princípio um irmão é um amigo e se, além disso,

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ele é ligado por outros elementos de consanguinidade, podemos contar que se trata de um amigo ainda mais próximo e de uma amizade ainda mais sólida, bem fraternal. O autor da oração, utilizando esses significantes para exprimir significados contrários se coloca numa posição contraditória. Quer dizer que a expressão “inimigo carnal” seria o oposto de “amigo carnal”. Isso nos parece formalmente justo.Mas aprofundemos o assunto. Admitindo que “amigo carnal” deve ser incluído no campo semântico de “irmão carnal”, isto é, o amigo mais íntimo, o melhor, o mais seguro, a respeito do qual não pode haver dúvidas. Nesse caso, temos o direito de tirar a conclusão semântica no sentido de que “inimigo carnal” é a oposição total, é o pior dos inimigos, o mais perigoso, mais terrível, o pior. Ora, contra um tal tipo, é preciso se proteger. Uma "simples" proteção material, armada, não é suficiente; é preciso uma proteção superior, espiritual, mística.É, pois, nesse nível de compreensão que os devotos concebem suas orações, como também os poetas. Assaltados por inimigos de toda sorte, pessoais e coletivos, as pessoas dos sertões tiveram que procurar um meio "superior" de defesa. As orações são essa proteção, em nome das ideias espirituais antigas. É nesse contexto que podemos compreender uma parte das causas que levaram a poesia popular a esse gênero de literatura, a repetir sem parar essa ideologia místico-religiosa, essas fórmulas sentimentais elementares.Pensamos também que o vocabulário, a linguagem em geral da poesia popular, além da temática, são motivados pelo contexto histórico e cultural da região. Vejamos o que nos diz o último parágrafo da Oração do Padre Cícero: “quem rezar ou possuir esta oração livra-se (de) todos os perigos”.“Esta oração defende de fome, peste, guerra e seca, da vinda da besta-fera, das 3 noites de escuro [...]”. (140)Naturalmente são as pessoas das classes populares que consomem esse tipo de literatura, seja pela leitura, seja pela audição. Exatamente os perigos contra os quais pretendem proteger as pequenas orações atingem mais seriamente os meios mais modestos. Não há nada de excepcional a esse estado de coisas. Nas classes populares encontramos obrigatoriamente as populações de trabalhadores agrários, os sertanejos e outros. Não é por simples repetição ou por coincidência que o autor fala com tanta veemência de fome, guerra e seca.Todos aqueles que conhecem um pouco a história e a realidade nordestinas não estranharão o vocabulário.Apenas a palavra “guerra” merece algumas explicações. As referências às guerras não são numerosas na literatura de cordel, no sentido de guerra entre países. É curiosa,

- 109 -portanto, a comparação dessas guerras com episódios guerreiros que conheceu o povo nordestino. Uma das citações mais antigas na qual se estabelece a comparação dos conceitos de guerra no sentido europeu e mundial e a concepção sertaneja, através da literatura de cordel, é encontrada num folheto anônimo de 1927, publicado em Currais Novos (141), com o título Entrada do réprobo Lampião no Rio Grande do Norte:

Mossoró merece serSeu nome denominadoIgualmente aos BelgasNaquele tempo passadoQue investiu a AlemanhaQuinze dias de campanhanão fugiu um soldado. (142)

É evidente que o autor se refere à Primeira Guerra Mundial. A atitude do povo e das tropas belgas é comparada à resistência da população da Vila de Mossoró, Rio Grande do Norte, ao ataque de Lampião em1927. Esta operação está muito presente na memória do povo e na história do cangaço, pois foi a primeira vez que uma população civil, armada, resistia aos assaltos do famoso bando de Lampião, já muito forte e tristemente célebre.Assim, o conceito de guerra para os sertanejos é bastante ligado às guerras do cangaço, fenômeno que dominou a história do interior do Nordeste durante muitas décadas.Ao mesmo tempo, é preciso procurar mais longe ainda para compreender melhor o significado de "guerra", quando a palavra aparece numa oração. Para já, podemos dizer que há "guerras" e "guerras", para o nordestino. Vejamos agora um outro conceito do célebre Antônio Conselheiro:“Em verdade vos digo, quando as nações brigam com as nações, o Brasil com o Brasil, a Inglaterra com a Inglaterra, a Prússia com a Prússia, das ondas do mar D. Sebastião sairá com todo seu exército.” (143)Voltamos, pois, a um outro campo semântico da palavra guerra. É claro que, quando os países começam a brigar entre eles, ou o Brasil contra ele mesmo, entramos num estado de beligerância concreto. O Conselheiro pronunciou essas palavras no último quarto do século XIX, em torno dos anos 1888-90. Não havia à época nenhuma guerra entre os países europeus ou americanos. Mas, em compensação, o Brasil atravessava um período muito agitado. Lembremos alguns acontecimentos históricos dessa época: o Nordeste sofria em 1877-79 umas das secas mais catastróficas e mais longas de sua história. Foi a triste seca de 77, citada pelas populações ainda hoje. "Calcula-se que um terço da população do Ceará morreu ou emigrou: 300.000 pessoas". (144) Em 1888, a Monarquia sancionou as leis de abolição da escravidão negra em todo o território nacional. Muitos grupos de antigos escravos entraram em luta armada, em guerra,com os seus antigos senhores.

- 110 -Em 1889, foi proclamada a República do Brasil. Este acontecimento não se fez sem dificuldades e choques,

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sobretudo nas zonas rurais, a tal ponto que o movimento místico-religioso de Canudos é considerado como parte da luta antirrepublicana.A esses acontecimentos, ajuntemos a proliferação de bandos de cangaceiros que se multiplicaram no Nordeste: Jesuino Brilhante, Antônio Silvino, Lampião, etc. Esses grupos fizeram a "guerra" durante algumas décadas, sobretudo nos sertões. O sertanejo e seus poetas, pois, têm porque se fazer uma ideia de "guerra". Sobretudo a guerra, ou as guerras, do cangaço marcou profundamente o espírito, o pensamento e a psicologia do povo nordestino. Eis porque vemos nas orações a palavra guerra ao lado da trilogia fome, peste e seca. Este último vocábulo é, aliás, a eterna guerra do homem dos sertões desérticos. Os outros vocábulos fazem parte do mesmo infortúnio.Finalmente, a Oração do Padre Cícero vai terminar com a penitência tradicional: "3 Pai-Nosso, 3 Ave-Maria,3 Glória ao Pai", e pela oferenda habitual à "N.Sra do Livramento e Padre Cícero de Juazeiro".A oração, a penitência e a oferenda terminaram, mas a última capa do folheto ainda nos propõe algumas informações na parte de baixo da página: “todos façam por onde ser bom para evitar o exemplo”.É a tradicional palavra de ordem moral, nada de mais normal nesse tipo de literatura. Mas, surpresa: o verbo evitar é empregado em vez do verbo dar. Vejamos o que nos explica o Dicionário Aurélio sobre o verbo evitar: "Fugir, desviar-se de, esquivar-se, impedir, atalhar, poupar". Nada nos satisfaz, nem de perto, nem de longe. Não se pode admitir que, após a prece, a penitência e a oferenda, cheios de promessas e devotos sagrados e místicos, se possa aconselhar aos fiéis a evitar o exemplo. Note-se que o exemplo indicado é o de ser bom, "todos façam por ser bom". Até segunda ordem, vemos uma forte contradição nesta máxima moral:“Todos façam por onde ser bom para evitar o exemplo”.Qual é o exemplo recomendado pelo conselho? Ser bom! Então, é preciso evitar de o ser. Ou, precisamente, “evitar o exemplo de ser bom”. Se pudéssemos substituir o verbo evitar pelo verbo “dar”, obteríamos o resultado desejado pelo oráculo:“todos façam por onde ser bom para dar o exemplo”.Ora, com esta proposição, compreenderíamos que é preciso dar o exemplo de “ser bom” a todos os outros fiéis. Isto é natural e de acordo com as palavras de ordem moral. Mas nós não estamos autorizados pelo autor da oração a substituir os seus verbos. Poderíamos pensar que se trata de erro de impressão, o que é muito comum nos folhetos de cordel. Mas nos exemplos dados não se trata disso. Com efeito, vimos um outro folheto de José Costa Leite, cujo título é: O rapaz que virou bode porque profanou de Frei Damião no qual a Oração de Padre Cícero é impressa na última capa, com o mesmo conselho moral: “todos façam por onde ser bom para evitar o exemplo”.Aparentemente voltamos ao ponto de partida. Evitar em vez de Dar. É preciso, então, aceitar esta metáfora a exemplo de outras curiosidades do "linguajar" sertanejo. Existem outras expressões ou palavras nas quaiso sentido corrente é exatamente o contrário de outras regiões do país. Vejamos alguns exemplos:Vou chegando = vou saindo; café fresco = café quente; cabra danado = cabra bom.

E mais, quando alguém faz uma pergunta e a resposta é negativa, a construção desta implica o não seguido de um verbo. Ora, no Nordeste, não é assim, não. Exemplo:“– Bonito, Chicó, onde foi que você ouviu isso? De sua cabeça é que não saiu, que eu sei. –Saiu mesmo não, João.” (146)

Admitindo-se que as pesquisas no nível dos verbos “evitar” e “dar” não avançaram muito, nós nos viramos para a palavra exemplo. A linguagem mística dá a este vocábulo significados muito variados. Como sabemos, grande número de folhetos de cordel fazem imprimir nas últimas capas orações e conselhos de salvação da alma, de esperanças. Citaremos a seguir alguns folhetos apocalípticos com as respectivas orações:O sonho de um Romeiro com o Padre Cícero Romão / Oração do Arcanjo São Miguel. (147)O Frei Damião sonhou com o Padre Cícero Romão / Bendito. (148)A voz de Frei Damião / Oração de N. Senhor do Bonfim. (149) A vinda da Besta-Fera / A força do Credo. (150) O fim do mundo está próximo / Oração do Padre Cícero. (151)

- 112 -

Depois da leitura desses folhetos e das orações, pensamos ter compreendido a lógica dos poetas populares, em relação à frase que estamos examinando:“Todos façam por ser bom para evitar o exemplo.”Então o que devemos evitar? O exemplo, isto é, o “castigo”: o fim do mundo, o pecado, as três noites de luz (?), a fome, a peste, a guerra, a seca, a Besta-Fera e todas as outras maldades anunciados nas profecias, nos folhetos.Tudo isso nos fecha na lógica das crenças místico-religiosas. A poesia popular desempenha o seu papel. Conscientemente, ou não, ela é um poderoso instrumento de divulgação dessas ideias e dessas palavras. Para isso ela dispõe de meios muito eficientes, ela fala a linguagem popular, a linguagem dos sertões. Como vimos, de um lado, as profecias amaldiçoadas e, do outro lado, as orações benfazejas e, no fim da página, para reforçar uma máxima moral religiosa. Na mesma linha profética pode-se encontrar outro tipo de poesia popular, encontrada aqui e lá, como o indica Silvio Romero:

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Quem ouvir e não aprenderQuem souber e não ensinarNo dia de JuízoA sua alma penará! (152)

As profecias, as catástrofes naturais, os milagres, as misérias sociais, o complexo cultural e as crenças maldefinidas fazem com que as orações tenham grande sucesso nos diversos setores da sociedade sertaneja. Por sertões, entendemos todas as regiões do interior do Nordeste, campos, vilas e cidades, de predominância rural. Mesmo personagens temidos e sanguinários, como os cangaceiros, nunca negligenciaram as suas pequenas orações impressas em papel ordinário, guardadas com muito cuidado num bolso de suas vestes. Seria uma maneira de ter perto deles, todos os momentos, um "anjo da guarda", um talismã.Autores ou fabricantes dessas orações encontram um mercado consumidor amplo e variado. Podemos constatar a sua grande penetração sobretudo nos meios populares de origem rural. Como exemplo e confirmação, citemos o dramaturgo Dias Gomes que, na peça A revolução dos beatos, construiu um importante personagem com o nome de "o vendedor de orações". O célebre autor de O pagador de promessas (153) soube observar a importância, nos meios populares, dessa corrente religiosa que é veiculada e alimentada por essas aparentemente simples "pequenas orações".

- 113 -(119) SOARES, Dila. O sonho de um romeiro com o Padre Cícero.120 - Id.121 - ROMERO, Silvio. In: MOTA, Leonardo. Cantadores. Fortaleza: Imprensa Universitária do Ceará, 1961,p. 43.122 - SOARES, Dila, op. cit.123 - LEITE, José Costa. “Bendito”. In: O Frei Damião sonhou com o Padre Cícero.126 - FERREIRA, Aurélio Buarque de Holanda. Novo Dicionário Aurélio. l. ed.127 - LEITE, José Costa. “A força do Credo”. In: A vinda da Besta-Fera.128 - Id.129 - SUASSUNA, Ariano. A pedra do reino. 2. ed.130 - VICENTE, Gil. 1465-1507.131 - TEYSSIER, Paul. Seminário "Formation et Recherche en langue et civilisation luso-brésilienne", Universidade Paris-Sorbonne, 1977-78.132 - CANTEL, Raymond. Les prophéties dans la littérature populaire du Nordeste. In: Cahiers du Monde Hispanique et Luso-brésilien Caravelle, 15, 1970.133 - ASSIS, Manoel Tomaz de. Orações do Padre Cícero. In: O fim do mundo está próximo.134 - Id.135 - "Il (Jean) n'a pour cela qu'à copier les déclamations des anciens prophètes contre Babylone, contre Tyr".RENAN, Esnest. Histoire des Origines du Christianisme – L'Antéchrist. Paris: Calman-Lévy, 1924.136 - CARVALHO, Rodrigues de. O cancioneiro do Norte. Rio de Janeiro: Ministério de Educação e Cultura,1967, p. 40-45.137 - BASTIDE, Roger. Prefácio a Poemas, de Ascenso Ferreira.138 - ASSIS, José Tomaz de, op. cit.139 - FERREIRA, Aurélio Buarque de Holanda. Novo Dicionário Aurélio. 1. ed. 1975.140 - ASSIS, José Tomaz de, op. cit.141 - Currais Novos. Município do Rio Grande do Norte, perto da fronteira da Paraíba, ao extremo norte de massivo da Borborema. O município é banhado por três rios, Currais Novos, Cipó e Tororó. Esta localizaçãolhe confere certa importância como lugar de passagem e comunicação dos sertões do Nordeste.

- 114 -142 - ANDRADE, Mário de. Danças dramáticas do Brasil. São Paulo: Martins, s/d., p.183. Tomo I.143 - CUNHA, Euclides da. Os sertões,p.171-172.144 - TEÓFILO, R. História da seca no Ceará (1877-1880). Rio de Janeiro, 1922, p.104-105. In: FACÓ, Rui. Cangaceiros e fanáticos, p.132.145 - A propósito dos problemas causados pelas secas, vejamos dois textos de homens do Nordeste: "Dionísia dos Anjos, a mulher antropófaga, de Pombal, que matou e comeu uma criança de 5 anos durante a seca de 77". In: ALMEIDA, José Américo de. A bagaceira. Rio de Janeiro: José Olympio, 1971, p.42. "Durante a seca de 77... ela chegou, solteira, em companhia de seu povo que morreu de fome". In: REGO, José Lins do. Fogo morto. Lisboa: Livros do Brasil, s/d.146 - SUASSUNA, Ariano. O auto da compadecida, p.56-57. Euclides da Cunha também observou esta maneira sertaneja de "falar negativo". Os sertões, p. 604. 147 - SOARES, Dila. O sonho de um romeiro com o Padre Cícero.148 - LEITE, José Costa. O Frei Damião sonhou com o Padre Cícero.149 - Id. A voz de Frei Damião.150 - Id. A vinda da Besta-Fera.151 - ASSIS, Manoel Tomaz de. O fim do mundo está próximo.152 - ROMERO, Sílvio. In: CUNHA, Euclides da. Os sertões, p. 196.153 - GOMES, Dias. O pagador de promessas. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1972.

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- 1153a.PARTE

CAPÍTULO IDANTE ALIGHIERI E OS POETAS POPULARES

Como para afirmar que o Inferno não é nem uma exclusividade florentina, nem um lugar reservado aos poetas antigos ou medievais, como Virgílio e Dante, sobretudo a este último, conhecedor do caminho e da vida do além-túmulo, os poetas populares do Nordeste brasileiro fizeram a descoberta desse local fantásticoque é o Inferno! O Inferno, com seus personagens e suas leis, sua arquitetura e topografia, é descrito em pleno século XX por intermédio dos folhetos de cordel. É claro que não podemos esperar de nossos poetas contemporâneos, sertanejos, nem mesmo a linguagem, nem a mesma estrutura formal e intelectual como a do poeta florentino Dante Alighieri. O quadro social e humano, com efeito, é bem diferente, assim como os dados históricos. Veremos que os poetas populares são pessoas bem próximas de nós e da gente dos sertões. Não há reis, príncipes nem papas. Os conflitos e os pecados são menos aureolados. Veremos personagens que pertencem a um outro tipo de "aristocracia", a dos guerreiros, como Lampião e outros representantes do mesmo gênero. O "pecado" do cangaço será castigado e classificado segundo uma certahierarquia infernal. Quando Dante faz sua fantástica viagem ao além-túmulo, não poderia imaginar que numerosos colegas seus, os modestos poetas de cordel, mais de seis séculos depois da publicação da Divina comédia (1), poderiam se entusiasmar ao contar outras viagens, acontecimentos variados e a vida cotidiana no Inferno. Esta "omissão" do genial florentino se explica, simplesmente, por que ele viajou apenas em "terras" já conhecidas, com personagens conhecidos, como, por exemplo, o poeta Virgílio. Dante não poderia falar e descrever "terras desconhecidas". Em Florença, os poetas e pensadores só podiam "viajar" num mundo conhecido. Nos anos 1300, o Novo Mundo "não existia" ainda. As intrigas, as cortesanias, os pecados morais e materiais só podiam ser conhecidos a partir de uma realidade social e cultural concreta, europeia, em particular florentina ou romana. A cada época, a cada terra ou, a cada inferno, os seus poetas.Eis porque, no século XX, no Nordeste do Brasil, iremos conhecer o Inferno numa viagem ao além-túmulo, guiados, não por Virgílio, Beatriz ou São Bernardo (2), mas pelos poetas-cantadores da literatura de cordel. É esta literatura popular que nos explicará a "vida eterna", os sofrimentos e as aventuras infernais, "dantescas", dos persongens e dos heróis tradicionais do universo nordestino,

- 116 -misturados a outros heróis da mitologia ocidental ou planetária. Como o domínio deste nosso trabalho é a poesia popular do Nordeste, seus poetas e sua linguagem, é natural que demos prioridade à produção originária dessa região. Comparações com a literatura erudita não serão excluídas, embora em matéria do além-túmulo os intelectuais nacionais não sejam muito produtivos.Como dissemos anteriormente, a literatura de cordel sobre o Além se apresenta de maneira tão variada, que seremos obrigados a escolher somente alguns exemplos dos gêneros e subgêneros mais comuns e, aomesmo tempo, mais representativos, a fim de poder fazer uma síntese da visão do mundo que compreende uma boa dose de messianismo e de misticismo "religiosos".Antes de ver precisamente que poetas e quais folhetos iremos estudar, citemos algumas impressões do etnólogo Lorenzo Fernandez sobre o comportamento do povo galego diante da morte, embora não se trate diretamente do povo nordestino brasileiro, mas que vão nos ajudar a compreender o comportamento deste em ocasiões semelhantes:

" [...] O morto segue vivindo a caron do vivo, intervinindo nos seus feitos, aproveitando os seus istrumentos, dandolle conselles e anunciadolle o porvir, ben que, como seres que son xa do outro mundo, a sua actuacion en torno os vivos non sempre sena benéfica [...][...] De ehi o respeto e a veneracion con que o noso pobo trata todo o que fai referencia os mortos, non soin polo que o temor poida por nestas relacions, senon tamén polo que sinifican de continuidade nas relacions que se mantiveron colles durante a vida terria [...][...] Unha vella tradicion mantén ainda antre nos a lembranza de iste sentimento nas frias e longuas noites do inverno venen as alminas dos difuntos a se quentaren onda a lareira por esta razon deixanse en moitos sitios preto do lume uns croios que conservan a calor, ou, polo menos, unhas brasas acesas antre a borrallapra que istes nocturnos visitantes se quenten a seu Caron [...]". (3)

A seguir, vejamos as impressões de Euclides da Cunha, desta vez sobre a atitude sertaneja relativa à morte:

“O culto dos mortos é impressionante [...], inhuma-se a beira das estradas, para que não fiquem abandonados [...] A terra é o exílio insuportável, o morto um bem-aventurado sempre O falecimento de uma criança é um dia de festa [...]” (4)

Segundo esse autor, o culto da morte é um dado fundamental do nordestino. Essa afirmação é muito complexa e merece um aprofundamento. Outras reflexões essenciais sobre a psicologia social do homem dos sertões, que mostrou sempre uma grande coragem em face da morte, devem ser evocadas. Lembremo-nos do fenômeno do cangaço,

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- 117 -da "vendeta" político-familiar, da violência das relações sociais no interior das terras, nas fazendas e nos engenhos dos "coronéis". Recorramos ao exemplo de um personagem do romance Fogo morto, que interpreta este atavismo da gente dos campos, esse gosto pela violência, muitas vezes mortífera:“Gosto do povo do Sertão por isto; meu pai tinha terra no Cariri, tinha trinta homens de rifle. Ali é na bala, meu compadre. É do que gosto.” (5)

Vimos as reflexões de sociólogos e escritores eruditos. Agora convém nos aproximar da poesia popular. Mais do que todas as outras expressões da cultura do Nordeste, a literatura de cordel vai nos conduzir a refletir sobre o problema da morte e, sobretudo, sobre esta "outra" vida, a do além-túmulo. Encontraremos os aspectos religioso, moral e filosófico, profundamente integrados à ideia de que a vida no além-túmulo seguiria um curso normal, à imagem da vida terrestre, como uma espécie de segundo ato de uma peça de teatro. Os mesmos atores continuam a desempenhar os seus papéis, como eles faziam na Terra. Essa ideianos é transmitida pela maior parte dos pequenos folhetos do gênero "espiritual". Os atores continuam os seus papéis num "cenário" diferente, num contexto sociocultural semelhante ao do primeiro ato, da vida terrestre.Vejamos inicialmente alguns títulos de folhetos que contam histórias de viagens e aventuras no Inferno. Trata-se de visitas de pessoas humanas ou de "ex-pessoas humanas" ao Além, ou de viagens de representantes do "mestre Lúcifer" ao nosso mundo terrestre, o da superfície, do exterior:Peleja de Riachão com o Diabo;Peleja de um Embolador de Coco com o Diabo. (6)Esses dois folhetos, escolhidos entre muitos outros do gênero, apresentam encontros extraordiários de célebres poetas populares ou cantadores com seus "confrades" misteriosos, incrivelmente dotados na arte da cantoria (7). Os poetas escolheram a mais clássica das estruturas da cantoria, da embolada, a peleja, naqual cada parceiro, digamos adversário, deve provar sua superioridade oratória, ou seja, seus recursos linguísticos, sua astúcia mais fina e o maior dom de imaginação. A linguagem popular encontra instrumentos privilegiados de expressão nesse gênero de folheto. Cada cantador deve ser mais dotado que o outro e mais malandro. É no nível da arte da oratória que a peleja deve se completar.

Em seguida, veremos folhetos que abordam acontecimentos terra a terra, histórias do dia a dia, com personagens menos heróicos, mas característicos do panomara sertanejo, que se encontram um dia diante de situações inexplicáveis, do domínio do real-imaginário Trata-se de fenômenos que a gente não compreende, mas são contados como "histórias verídicas" nos folhetos:

- 118O Diabo e o camponês eO sanfoneiro que foi tocar no Inferno

Estes dois folhetos são do famoso José Costa Leite, um dos grandes especialistas dos temas místico-religiosos. (8) Aqui, não se trata de pelejas, de combates oratórios ou outros, mas dos poderes e da capacidade excepcional do Diabo em diferentes domínios da atividade humana. Sua história diabólica será utilizada para conquistar as boas almas dos sertanejos. Será que ele vai conseguir o que procura?Continuando nossa exploração sobre os mistérios do Além, iremos tomar conhecimento agora do folheto degênero moral. Como se trata de viagens ao Inferno, temos o direito de pensar que existe un conteúdo religioso, o qual será desenvolvido pelos poetas de cordel cujo ideal judeu-cristão da criação do mundo é mais ou menos implícito, embora não muito claro. Com efeito, essa religião mestiça, como diz Euclides da Cunha, reserva-nos boas surpresas. Veremos isso nos folhetos:Estória de Marieta, a moça que dançou no Inferno eO Satanaz reclamando a corrução de hoje em dia

O primeiro folheto é de Joaquim Batista de Sena, e o segundo, de José Costa Leite.Enfim, mas não para terminar, examinaremos as presepadas (9) deste personagem demoníaco que é Lampião, o Rei do Cangaço, através de suas diversas estadas no Inferno e suas múltiplas atividades além-túmulo. Quase todos os poetas populares são fascinados pela história e pelas "histórias" de Lampião. Não satisfeitos com os 1.001 folhetos narrando a vida terrestre e os 30 anos de cangaço do famoso cangaceiro, admirado e odiado pelas populações nordestinas, os poetas imaginam e idealizam sempiternamente o personagem, suas proezas e presepadas. Três folhetos ilustrarão a "vida" e as "aventuras" infernais de Lampião. É necessário compreender infernal no sentido próprio, a vida do além-túmulo do famoso cangaceiro, pois que a sua vida terrestre não foi diferente desse mesmo qualificativo, isto é, infernal. Os trêsfolhetos recenseados nos propõem, sem dificuldades, uma espécie de segundo livro, de continuação da "vida" do personagem. Isto ilustra bem o sentido filosófico do nordestino, particularmente do sertanejo, com relação à morte. Esta representa apenas uma outra etapa da vida. Vejamos os três títulos que estudaremos nos capítulos seguintes: A chegada de Lampião no Inferno, de José Pacheco;A eleição do Diabo e a posse de Lampião no Inferno, de João José da Silva;O futebol no Inferno, de José Soares.

- 119 -

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- 120 -1 - Dante Alighieri, nascido em Florença, Itália, em1265. Falecido em 1321, em Ravena. Autor da Divina comédia. É considerado o pai da poesia italiana. O livro sobre o Inferno foi composto entre 1304 e 1307.2 - Virgilio (Publius Virgilius Maro), poeta latino, autor da epopeia nacional A Eneida (em torno de 76 a 19 a. C.). Beatriz (Béatrice Portinari), inspiradora de Dante, e são Bernardo, que simboliza a contemplação, foram os guias e os companheiros de Dante nas suas viagens de além-túmulo. Ver PEZARD, André. Dante,oeuvres complètes. Paris: Pleiade-Galimard, 1965, em especial nota 59, p. 1648.3 - FERNANDEZ, Lorenzo. As casas dos mortos. In: Actas do Congresso Internacional de Etnografia de Santo Tirso. Portugal: Edição Lisboa, 1965, volume 2, 29.a secção.4 - CUNHA, Euclides da. Os sertões, p. 142-143.5 - REGO, José Lins do. Fogo morto, p. 30.6 - ATHAYDE, João Martins de. Peleja de Riachão com o Diabo. Proprietário-editor Filhas de José Bernardo da Silva, também poeta popular, falecido em Juazeiro, no dia 20 de março de 1976.7 - Cantoria: arte de improvisar e de cantar versos, acompanhados de viola ou rabeca.8 - José Costa Leite, especialista dos temas do fim do mundo e proféticos. Ver DIEGUES JR, M. op. cit., p.123.9 - Presepadas: palavra formada do latim praesepe (presépio) mais a terminação -ada. A literatura de cordel o concebe como ato de astúcia, de malandragens. Ver PONTES, W. Tenorio. Machismo. Lisboa: Edição Rolim, s/d. Capítulo 2.

- 121 -CAPÍTULO II: RIACHÃO CONTRA O DIABO

A obra completa de Dante, concebida e descrita há mais de seis séculos, não fala de encontros oratórios, de combates poéticos que poderiam se desenrolar entre o Diabo e personagens vivos, isto é, vivendo ainda no mundo terrestre. É verdade que o poeta florentino nos falou de sua viagem extraordinária ao Inferno, ao Purgatório e mesmo ao Paraíso no século XIV. Ele deixou mesmo uma impressão de que conhecia uma "passagem secreta" por onde a gente podia ir e vir, quando bem o desejasse. Mas Dante não nos contou seos mestres do Inferno faziam viagens à Terra, encarnados em seres bem vivos de nosso planeta. Muito bem, os poetas populares do Nordeste, em pleno século XX, viram ou ouviram falar desses acontecimentos e decidiram contá-los e nos fazer tomar conhecimento deles. Escolheram a clássica “peleja” da literatura de cordel, as sextilhas rimadas em xaxaxa (10). Para começar, pois, vejamos a apresentação do famoso cantador Manuel Riachão (11):

Riachão estava cantandona cidade do Assuquando aparece um negroda espécie de urubutinha a camisa de solae as calças de couro cru. (12)

Nosso muito famoso Riachão vai pagar sua celebridade. Sem que tenha procurado, ele se encontra em facede um personagem muito misterioso: um poeta, um cantador como ele. Aliás, fatos fortuitos como esse que nos vai contar João Martins de Athayde não são muito raros. Poetas e cantadores famosos nos sertões são surpreendidos, de tempos em tempos, por outros colegas, às vezes muito estranhos, que desejam desafiá-los. As astúcias mais extravagantes são desenvolvidas nessas ocasiões, a título de desafio. Mas observemos inicialmente a maneira brasileira de empregar o verbo cantar no gerúndio para exprimir a ação que é interrompida no momento em que atinge o seu apogeu: "estava cantando", quando lhe apareceu "um negro da espécie de urubu". Esses versos revelam um certo racismo que atribui tudo o que é mau à cor negra (13). Um “negro", neste caso, não é apenas uma questão de cor, mas uma indicação de raça. Esta ideia se explicita mais adiante. Os dois últimos versos não têm nada de especial, pois a sola e o couro cru são materiais utilizados normalmente para fabricar as roupas dos vaqueiros do sertão (14). É possível também que o "couro cru" seja utilizado para dar a ideia do personagem misterioso que aparece em virtude do seu cheiro forte, ácido. O poeta Martins de Athayde é, em geral, muito fino e perspicaz na formulação dessas imagens.

-122 -A segunda estrofe começa a estruturar a peleja e apresentar o segundo personagem, o adversário de Riachão:

Beiços grossos e viradoscomo a sola dum chineloum olho muito encarnadoO outro muito amareloesse chamou Riachãopara cantar um martelo. (15)

Constatamos que a caracterização racial é detalhada. Na primeira estrofe era questão de um negro. Agora

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os detalhes são mais precisos: "beiços grossos e virados / como a sola dum chinelo". Então, estamos bem informados de que se trata de alguém da raça negra. Até agora não há nada de particular. A dificuldade se manifesta quando o poeta escolhe um tipo racial para simbolizar o persongem que se chama o "Diabo". Masisso não é realmente uma surpresa. Sabemos que a poesia popular, inconscientemente, talvez seja porta-voz de ideias conservadoras, retrógradas mesmo (16), que subsistiria inclusive entre as camadas populares, aliás bastante mestiçadas, da sociedade brasileira. Todavia, notemos também o emprego de outras cores nessa estrofe; no cordel tudo não é preto, não. Duas outras cores são escolhidas para "pintar" a "cara do Diabo". Essas cores, embora façam parte do quadro cromático universal, não deixam de caracterizar a paisagem psicocultural do Nordeste, em especial dos sertões, do interior:“um olho muito encarnado / O outro muito amarelo”.Parece-nos que, além do quadro cromático, há fundamentalmente um simbolismo a desenvolver nessas cores. Primeiramente, deve-se lembrar que se trata de cores tradicionais, junto com o azul, utilizadas em toda sorte de aventura do imaginário nordestino. Nós as vemos presentes, por exemplo, em todas as manifestações do folclore musical e coreográfico da região, nas festas e danças populares, como diz Mário de Andrade (17). Isso nos lembra os "cordões azul e encarnado" das Pastorinhas e dos Reisados, e outras danças histórico-religiosas. Essas cores se opõem virilmente nas cavalhadas, nas quais se observam os eternos "Doze Pares da França" que, no Nordeste, são 24 (= a 12 pares), cada um dos cavaleiros tendo uma cor para defender (18).Mas, para o poeta Martins de Athayde, essas cores têm um sentido particular: o diabo tem um olho encarnado e o outro amarelo. Para a primeira qualificação, pensamos em um vermelho agressivo e brilhante, cheio de sol e de luminosidade, de fogo. Isso contrastaria com a concepção de obscuridade do Inferno, residência do Diabo. Sobre esta cor o Dicionário Aurélio nos ensina que, além das tonalidades do vermelho e do escarlate, o vocábulo é o particípio passado de encarnar, isto é, dar o aspecto da carne a uma escultura, em geral santos e outras imagens barrocas. Ele informa que o encarnado transforma-se em substantivo na expressão: "O encarnado deste Santo precisa de restauração", quer dizer de carne. O encarnado, então, é a cor da carne.

- 123 -Vejamos agora o amarelo. Não nos deixemos cair na facilidade, pensando que se trata de uma simples questão de cor, problema banal. Há uma riqueza psicossemântica, às vezes contraditória, no vocábulo amarelo. O emprego desta palavra, com muitos significados, existe há muitos séculos. Em especial, com relação aos idiomas ibéricos, vamos voltar ao século XVI, no qual o amarelo era corrente no falar português e espanhol, ou galaico-português. Veja-se o que nos diz o professor Paul Teyssier nas suas pesquisas sobre o vocabulário das cores e da luz em Gil Vicente (19), que empregou o amarelo, ou amarillo, com 22 significados diferentes.Entre os numerosos exemplos citados por Paul Teyssier, transcrevemos apenas os que têm relação direta com este nosso trabalho:cette couleur maladive n'interesse pas seulement la peau mais aussi les yeux:Los ojos travo amarillosCe teint blême est celui de la maladie. Le diable Bélia, vaincu par le Christ, a tous les symptomes d''une grave maladie:Pois assi tremo e estou amarello.Diabo: Oh mi duque y mi castillo, mi alma desesperadasiempre fuistes amarillo hecho oro de martilloEsta es huessa posada.Duque: Cortesia (20)E Paul Teyssier acrescenta: "Dans le symbolisme des couleurs, le jaune représente le désespoir".

No Nordeste, porém, o amarelo é mais do que uma cor. Isso é muito complexo. Entre outras definições, podemos lembrar sua representação clássica da riqueza e do poder, pela assimilção à cor do ouro. Em seguida, contraditoriamente, ela simboliza a doença, a fraqueza. Como corolário a esta representação se usa a expressão "amarelo fedorento", que define alguém desagradável ou doentio. Com relação ao Diabo, oamarelo, ou amarelado, tem o mau cheiro do enxofre, motivo pelo qual os que tiveram a ocasião de encontrar o Diabo “sabem muito bem que ele fede a enxofre”. Eis porque o poeta Martins de Athayde se exprime assim:

O negro soltando um gritoali desapareceuduma catinga de enxofrea casa toda se encheu. (21)

Como vimos, o amarelado e o cheiro de enxofre simbolizam o Diabo na imaginação popular. Por isso, o poeta parece ter escolhido com segurança o encarnado e o amarelo para identificar os olhos do representante de Satã, como um personagem de caráter agressivo,

- 124 -sanguinário e violento, e ao mesmo tempo doentio, fedorento e repulsivo. Só essas pinceladas nos dão já a ideia do adversário extraordinário que vai pelejar contra o grande Riachão. É realmente uma coisa infernal.Mas não esqueçamos que estamos no Nordeste, em especial próximo do sertão, onde o simbolismo das cores é bastante complexo. Ainda sobre o amarelo, pensemos nas palavras do escritor Paulo Dantas, numa

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crítica à peça O auto da compadecida, de Suassuna:"O tipo de João Grilo, ‘amarelo’ nordestino, cujas proezas são contadas em abc, dentro da peça de Ariano Suassuna simboliza e representa muito bem o engenho popular da nossa raça, gente intuitiva e telúrica, imaginosa e sofrida". (22)

- 125 -(10) xaxaxa, é a estrutura da rima utilizada com frequência pela peleja, por causa do seu ritmo cantado. O acento tônico se faz sobre os versos em “a”.11 - Manuel Riachão, cantador popular nascido em Araruna, Paraíba, onde viveu e cantou, em fins do século XIX e começos do XX. In: Dicionário biobibliográfico de repentistas e poetas de bancada. Universidade de João Pessoa e Centro de Ciência e Tecnologia de Campina Grande, 1978.

(12) ATHAYDE, João Martins de Peleja de Riachão com o Diabo, p.1.

13 - Ver página 146, exemplo oposto, ou seja, o branco valorizado.14 - Gibão de couro do vaqueiro, "forma grosseira de campeão medieval perdido no nosso tempo", cf. CUNHA, Euclides da. Os sertões, p.119, e "vestimenta antiga que cobria os homens do pescoço à cintura", cf. FERREIRA, A. B. de H. Novo Dicionário Aurélio. Pessoalmente penso que se trata, simplesmente, da solução "ecológica" encontrada pelos homens do sertão e da caatinga que aproveitavam o couro do boi para fazer roupas de trabalho resistentes ao meio ambiente.15 - ATHAYDE, J. Martins de, op. cit., p. l.16 - Ver PROENCA, Ivan Cavalcanti. A ideologia do cordel. Rio de Janeiro: Imago, 1976.17 - ANDRADE, Mário de. Danças dramáticas do Brasil. São Paulo: Martins, 1959. - CARNEIRO, Edison. O folclore Nacional. Rio de Janeiro: Souza, 1954. - Idem, Os pares de França. In: Cadernos Brasileiros, n. 54, Rio de Janeiro, 1968.18 - SUASSUNA, Ariano. A pedra do reino. Folheto LIII, Meus doze pares de França.19 - VICENTE, Gil. 1465-1537. Achamos que o recurso a este autor clássico se justifica em virtude da inspiração popular de muitos dos seus escritos.20 - TEYSSIER, Paul. Reitor, professor na Unversidade de Paris-Sorbonne. Seminário: "Formation de recherche en langue et civilisation luso-brésilienne", Paris, 1977-78.21 - ATHAYDE, J. Martins de, op. cit., p.16.22 - DANTAS, Paulo. In: SUASSUNA, Ariano. O auto da compadecida.

- 126 -CAPÍTULO III UM PERSONAGEM DIABÓLICO

Seguindo as definições da palavra amarelo, simbolizada, entre outros, pelo popular João Grilo, podemos completar o quadro da personalidade do Diabo no pensamento do povo. Esta cor definiria um tipo astucioso, uma espécie de mágico, "meio espírita", tendo os meios de realizar proezas as mais espetaculares, sobre-humanas. No capítulo anterior, estudamos alguns aspectos do encarnado e do amarelo, agora são os lados social e sociológico simbolizados pelo "negro" que retorna.

Riachão disse: eu não cantocom negro desconhecidoporque pode ser escravoe andar aqui fugidoisso é da cauda à nambue entrada a negro enxerido. (23)

O cantador Riachão não está ainda decidido a aceitar o desafio. Ele desconfia que o seu pretenso adversário não dispõe da necessária classe para desafiá-lo. A peleja é, antes de tudo, uma característica dapoesia popular e reclama parceiros de um mesmo nível. Antes de ver a resposta do Diabo, podemos destacar certos vocábulos muito significavos, num plano geral da linguagem popular do Nordeste:“Negro-escravo-fugido / cauda a nambu / negro enxerido”. (24)A qualificação racial “negro” retorna simbolizando o mal, em espécie, o Diabo. Esse tema persistirá durante todo o folheto de Martins de Athayde, a exemplo dos versos seguintes:

E ficou mais espantadovende o negro feito diabode bigode, chifre e raboe balançou o ganzá. (25)

Na terceira estrofe da peleja de Riachão com o Diabo, a classificação negro aparece duas vezes. Mas o mais curioso é a associação “ negro/escravo fugido”. Isto coloca antes de tudo um problema de cronologia ou, ainda, de história. Sabendo-se que a abolição da escravatura negra se deu em 1858, o cantador Riachão, ou o poeta Martins de Athayde, não concebia um negro que não fosse na qualidade de escravo. Ora, sabemos que, antes da promulgação das leis de abolição da escravatura, muitos negros, individualmente ou em grupos, conseguiam fugir dos domínios de seus senhores. Mais uma vez, a poesia popular reflete uma realidade conservadora. Um preto sozinho só poderia ser um escravo em fuga.

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- 127 -Do ponto de vista da história da literatura de cordel em si mesma, esses versos levantam um outro problema ou, talvez, um ponto interessante a estudar. O poema que estamos estudando seria contemporâneo da época da escravatura no Brasil? En caso positivo, estaríamos em face de um folheto com cerca de um século (26). Pode ser também que a versão oral seja daquela época, o que é possível, que tenha chegado até os nossos dias e o poeta João Martins de Athayde decidiu colocá-la em versos escritos. A favor desta hipótese, transcrevemos a última estrofe do folheto cujo exemplar é datado de Juazeiro do Ceará, 20 de março de 1976, o que poderá ser apenas uma data de edição:

Esta história que escrevinão foi por mim inventadaum velho daquela épocatem ainda decoradaminhas aqui são as rimasexceto elas, mais nada. (27)

Verificamos, pois, como o poeta apreendeu essa história: por intermédio de um "velho daquela época". Seráentão uma história de fins da escravatura, na qual o Diabo representava os escravos em fuga, ou em luta por suas liberdades.Depois dessas considerações sobre o significado das cores, sobretudo do preto, e de acontecimentos históricos transmitidos pela poesia popular, passemos aos versos de Martins de Athayde que, seguindo a estrutura da peleja, dá agora a palavra ao Diabo, sempre presunçoso:

N - Sou livre como o ventoa minha linguagem é nobresou dos mais ilustradosque o sol no mundo cobrenasci dentro da grandeza não saí da raça pobre. (28)

A característica da peleja é que os adversários devem responder ao desafio da estrofe anterior e, ao mesmo tempo, conservar o tema inicial, o mote, e lançar a deixa para a estrofe que vai suceder. O tema principal aqui é a qualidade de escravo, pejorativa, que Riachão jogou contra o cantador misterioso, identificado no momento pela letra N (negro).O personagem N apresenta sua carta de identidade tentando se colocar à altura de Riachão, célebre e consagrado. Ele reafirma sua condição de pessoa livre, "apesar da sua cor", e diz que sua linguagem é nobre. Por linguagem, compreenda-se a arte de fazer versos, pois é através da poesia que a peleja se realizará. As palavras: livre, nobre, ilustre e grandeza, convêm perfeitamente a esse tipo de duelo. É um vocabulário escolhido especialmente para enganar Riachão, para esconder o aspecto misterioso e sobrenatural do personagem que quer se introduzir no "círculo nobre" dos poetas populares. Aliás, observamos que, entre os poetas que compuseram pelejas, o Diabo tenta sempre se introduzir no meio dos cantadores populares,empregando a polidez e a astúcia.

- 128 -Vejamos agora um outro exemplo, este do poeta José Costa Leite, sempre muito erudito em questão de sobrenatural:

Disse o diabo: É um prazereu cantar com o amigopode pegar no artigodo côco de embolar. (29)

Vejam-se lá as palavras simpáticas pronunciadas pelo Diabo metamorfoseado em cantador de embolada: prazer e amigo. É a fórmula clássica para se fazer aceitar como poeta ou cantador.Essa ideia do Diabo simpático, cantador, poeta popular, é desenvolvida pela literatura de cordel. Nós a vemos em todos os lados. Os dois folhetos que ora estudamos são um exemplo, pois foram escolhidos entre outros com a mesma orientação. É o caráter dos poetas populares, eles mesmos, que surgem como personalidades alegres e simpáticas, astuciosas e inteligentes. A imaginação popular do Nordeste se libera,certamente, através das pelejas de cordel. Histórias as mais fantásticas são contadas com personagens e combatentes famosos. Mas o traço mais importante da peleja é a inteligência, o saber astucioso de cada perceiro. Todos os domínios são admitidos: científico, religioso, social, etc.Voltemos, porém, a Riachão e ao Diabo. O primeiro parece aceitar as explicações dadas pelo segundo, sobretudo sobre a sua condição de “homem livre”. Em consequência, ele lança seu primeiro desafio:

me diga que tempo faz? (30)

O Diabo começa a perder a paciência e, em vez de responder, passa à provocação:

Vamos entrar em duelosó com a minha presençao senhor está amarelo. (31)

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A cor amarela reaparece. Aqui ela simboliza o medo, francamente sugerido pelos versos do Diabo, apesar do tratamento respeitoso que ele emprega com o seu adversário: “o senhor”. A seguir, a peleja começa a esquentar, as provocações são mais sérias. Após as apresentações de uso, os contendores passam a provocações mutuamente. É preciso que os combatentes se piquem:

Vejo um vulto tão pequenoque nem o posso enxergar. (32)É o desprezo:Julgo que nem é precisonem a viola afinarpela ramagem da árvoreVê-se o fruto qu'ela dá. (33)

- 129 -A imagem é bela: conforme a aparência das folhas, podemos estimar a qualidade das frutas. No nosso caso, Riachão crê que, segundo a "aparência" do seu adversário, este não pode ser um grande cantador popular. Essa não é a opinião do outro:

Riachão, isto é frasede homem muito atrasadoporque são vistos fenômenosque na terra têm se dadouma cobra tão pequena mata um boi agigantado. (34)

O cantador desconhecido replica e aconselha Riachão a ter cuidado. Ele lhe cita fenômenos e coisas inexplicáveis que acontecem. O exemplo mencionado é bem característico do meio físico e cultural do sertão: cobra e boi.Passemos a seguir à fase principal da peleja, na qual cada adversário vai mostrar suas próprias qualidades.O Diabo, ou Negro, como o chama Riachão, não economiza seus esforços e surpreende este último a cada instante. É este caráter extremamente informal, uma espécie de inteligência ou sabedoria maligna, que vai dominar ao longo deste folheto de 16 páginas.Riachão, um pouco desconfiado, diz:

Você nao é Josuéque mandou o sol parare esse parou três diaspara a guerra acabarnem Moisés que com a varafez o mar secar. (35)

A evocação de nomes e exemplos bíblicos não deixa de acrescentar um novo tom místico e mitológico ao debate. Mas o outro cantador vai mais à frente: “Faço tudo que quiser”. (36)E ele insiste com a história judaica lembrada nos versos de Riachão:

Salomão também faziao que queria fazerpor meio de mágica e químicaquis novamente nascermas em vez do nascimentoconseguiu ele morrer. (37)

Um tema novo aparece, o da magia. Ele representa o aspecto misterioso e mágico deste ser misterioso queaparece de repente no universo dos poetas populares. Magia e ciência confundidas, o poeta Martins de Athayde se aventura em uma querela histórico-religiosa:

- 130 -Salomão facilitouconfiado na ciênciaencaminhou tudo bemmas faltou-lhe a paciênciase no fosse aquele errotinha tido outra existência. (38)

A peleja continua num clima de desafio bastante acentuado. O erro de Salomão não é levado em conta por Riachão. Em contrapartida, ele começa a se interrogar quanto à verdadeira identidade do personagem contra o qual está pelejando. O dito personagem deixa o cantador perplexo fazendo revelações curiosas sobre sua vida e seus antecedentes familiares:

Riachão disse consigo

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de onde veio este enteque de toda minha vidaconhece perfeitamente?este será o diaboque está figurando gente? (39)

A ideia de que o Diabo conhece ou adivinha a vida de todo o mundo seria o pensamento popular expresso nesses versos de Martins de Athayde. Essa mesma ideia, encontramos no poeta José Costa Leite, através destas palavras simples, proferidas por um cantador "normal":

Mas meu bizavô viviaa uns 100 anos atrazvocê é moço demaise veio aqui se pabular. (40)

O embolador de coco, como Riachão, cada vez mais admirado, deseja saber como seu adversário conhece antecedentes tão antigos. Então, o Demônio responde com evasivas e mistério:

O negro disse Rapazfalo com sinceridadevocê não sabe, é verdadedas voltas que o mundo dá. (41)

É a ideia antiga do Demônio genial que tudo sabe e tudo pode. Isto é afirmado com mais insistência nos versos seguintes, sempre com uma certa aura um tanto filosófica e abstrata; o Diabo nao teria começo nem fim:

N: O Senhor pergunta assimde que parte venho eueu venho de onde não vaipensamento como o seueu saí do idealprimeiro que apareceu. (42)

- 131 -Estamos diante de um quase culto ao Demônio, se nos fiamos nas palavras do poeta. Ideias complexas de medo e crença no Demônio, que não nos surpreende completamente tendo em conta o sentimento místico-religioso das populações sertanejas. Mas a nossa peleja continua. As perguntas do cantador Riachão são cada vez mais complicadas. O seu parceiro, no entanto, não se deixa confundir. Do mistério à ciência, todosos domínios são abordados. Vejamos, por exemplo, as explicações sobre a chuva:

N: A água em estado líquidopor meio de abaixamentoque há na temperaturaforma nuvem condensadado vento movendo as nuvensé disso a chuva formada. (43)

A querela continua com mais vivacidade e com ameaças:

R: Não tenho superiorsou filho da liberdadee não conto a minha vidapois não há necessidadeporque não sou foragidonem vocé é autoridade. (44)

N: E preciso advertir-lhefazer-lhe observaçãome trate com muito jeitocante com muita atençãoveja que não se descuidee passe o pé pela mão. (45)

“Passar ou meter os pés pelas mãos”, eis uma expressão típica para informar que o adversário não deve seenganar, não deve dar passos em falso. O cantador N começa a se enervar, faz ameaças, lembra os seus supostos poderes. Mas é um começo de desespero de causa. O nosso célebre Riachão não se deixa intimidar. É a classe que começa a prevalecer. Parece que o Demônio perde a esperança de "catequizar" um grande cantador. E o poeta muda de técnica poética, em lugar dos contendores, é ele próprio que aparece como narrador da peleja:

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Arre lá! lhe disse o negrovocê é caso sem jeitoeu com toda paciênciaestou-lhe enricando direitovocê ver que está erradofaz que não ver o defeito. (46)

Aqui fazemos um parêntese para ressaltar o emprego de um verbo nordestino, essa língua portuguesa particular. Trata-se de “enricar”. (47)

- 132 -Mas mesmo essa promessa de enriquecimento não corrompe o nosso Riachão que, como bom cristão, se conforma e se resigna com a sua situação:

R: É muito feliz o homemque com tudo se consolaposso morrer na pobrezame achar pedindo esmolaDeus me dar para passarciência e esta viola. (48)

O cantador se contenta de sua ciência, de seu dom. Ele vive com a sua poesia e sua viola. E, para terminar a peleja e se livrar desse personagem que lhe turva o pensamento, ele invoca nomes sagrados, inimigos tradicionais do Demônio, o qual entra em pânico só com a menção do nome de Deus:

O negro olhou Riachãocom os olhos de cão danadoRiachão gritou: Jesushomem Deus sacramentado!Valha-me a Virgem Mariaa mãe do Verbo Encarnado! (50)

Então o Demônio perdeu o controle. Riachão apelou para poderes superiores aos de um cantador popular: Jesus, Deus e a toda-poderosa Virgem Maria, mãe do Verbo Encarnado. (51)

O negro soltando um gritoali desapareceuduma catinga de enxofrea casa toda se encheuos cães uivaram na ruao chão da casa tremeu. (52)

É verdade que, segundo a tradição dos ensinamentos religiosos, ou talvez da mitologia da cultura cristã, o Demônio não pode suportar os nomes e os símbolos sagrados da Igreja. Aliás, é o que nos confirma o poeta João Martins de Athayde nos últimos versos que lemos. Mas também é verdade que, segundo outras vozes não menos autorizadas da literatura de cordel, o Demônio pode muito bem resistir à invocação das divindades cristãs se ele, do seu lado, invocar as divindades diabólicas. Pelo menos é o que nos assegura uma grande autoridade na matéria, o conhecidíssimo José Costa Leite:

disse o negro: Cante em 10pra ver quem sabe cantar (53)

E o cantador responde:

- 133 -Valha-me S. SeverinoSanto Cosme e DamiãoSanto Enoc e S. RomãoS. Alfredo e S. Firmino Santo Antônio e S. Quirinoe o anjo S. GabrielS. Bento e S. RafaelS. Nestor e S. José S. Paulo e S. Josuéo arcanjo S. Miguel. (54)

Aí, então, o Diabo não hesitou e apelou para as suas grandes divindades:

Chamo o diabo Três ContigoPonta de Faca e Quelé

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Quiabo Duro e QuicéCão Capado e cão PerigoCão Fuzuê, cão CastigoCanguinha e ForrobodóCão Coxinho e cão cotóCão Muchila e capatazLucifer e Satanaza negra dum Peito Só. (55)

Para que não se pense que essas invocações são simples invenções ou fantasias do poeta Costa Leite, aconselhamos os interessados em "demonologia” a consultar dicionários e textos especializados. Para começar, consulte-se o Novo Dicionário do Mestre Aurélio, que já apresenta uma boa lista de nomes de demônios indicando, outrossim, uma certa tradição de não se pronunciar os verdadeiros nomes de satanás, preferindo-se as alcunhas muito variadas, por uma questão de superstição.É o caso de se perguntar qual é a diferença nos meios populares entre a religião e a superstição?

- 134 –23 - ATHAYDE, Martins de. Peleja de Riachão com o Diabo, p.1., st.3.24 - Nambu: espécie de perdiz. Pássaro sem cauda, razão por que não pode voar muito. O poeta, o cantador, indica, pois, que o escravo não pode ir muito longe.25 - LEITE, José Costa. Peleja de um Embolador de Coco com o Diabo p.4., st.2.26 - Informamos que a primeira poesia de cordel escrita em folheto data de 1889. Trata-se de uma poesia de BARROS, Leandro Gomes de. In: ALMEIDA, Horácio de. Literatura popular em verso. Rio de Janeiro: Casa de Rui Barbosa, 1976, Tomo II, p. 2-3.27 - ATHAYDE, Martins de. Peleja de Riachão com o Diabo, p.16, st.3.28 - Op. cit., p.2. A Bibliografia Prévia de Leandro Gomes e Barros, Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro, 1971, p.64., atribui o poema a este autor. Mas o Catálogo da Casa de Rui Barbosa, Rio de Janeiro, 1961, registrou o folheto sob o n° 868, indicando João Martins de Athayde como o verdadeiro autor. Esta segunda hipótese é confirmada por um espécime do folheto editado em Fortaleza, Ceará, a 20.03.76, que possuímosem nossa coleção particular.29 - LEITE, J. Costa. Peleja de um Embolador de Coco com o Diabo, p.1., st.4.(30) - ATHAYDE, J. Martins de. Peleja de Riachão com o Diabo, p.2.,(31) Id., st.3.(32) - Ibid., st.4.(34) - ATHAYDE, J. Martins de. Peleja de Riachão com o Diabo, p.2.,1".,.5;(35) - Id. p. 3., st.3.(36) - Ibid., st.4.(37) - ATHAYDE, J. Martins de. Peleja de Riachão com o Diabo, p.3., st.5.(38) - Id., p.4., st.1.(39) - Ibid, p.7., st.4.(40) - LEITE, J. Costa. Peleja de um Embolador de Coco com o Diabo, p.2., st.7. (41) - Id., p.3.,st.1.(42) - ATHAYDE, J. Martins de. Peleja de Riachão com o Diabo, p.13., st.2.43) - ATHAYDE, J. Martins de. Peleja de Riachão com o Diabo, p.16., st.1.44) - Id., st. 4(45) - Ibid., st.5.

� 135 -

46 - Ibid., p.15, st.2.47 - Enricar, como enriquecer.(48) - ATHAYDE, J. Martins de. Peleja de Riachão com o Diabo, p.15, st.3.49 - Viola: espécie de violão, em geral com quatro cordas. Serve para acompanhar os cantadores populares, como a rabeca, espécie de violino, também com quatro cordas.50 - ATHAYDE, J. Martins de. Peleja de Riachão com o Diabo, p.15, st.4.51 - Verbo Encarnado: a segunda pessoa da Santíssima Trindade, muito citado pela poesia popular.(52) - ATHAYDE, J. Martins de. Peleja de Riachão com o Diabo, p.16, st.l.53 - LEITE, J. COSTA. O embolador de coco, p.4. - As décimas são versos em dez sílabas utilizadas nas emboladas, glosas, martelo, martelo agalopado e galope-à-beira-mar. A estrutura das rimas é: aabbaccddc.54 e 55 - Id.

� 136 -� CAPÍTULO IV UMA FESTA NO INFERNO

Seria a tradicional carência agrícola do Nordeste, devido a uma organização econômica da propriedade

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rural que leva os sertanejos a imaginar soluções milagrosas às suas dificuldades? Ou então, não seria mais uma faceta dessa religião popular, mistura de misticismo e de fetichismo, que faz com que os camponeses, depois de anos e anos de safras insuficientes, de calamidades, de desesperanças, voltem-se mesmo em direção do poder maldito representado pelos diversos diabos? Tantos anos de crenças sociais e religiosas, e de apelo às entidades do bem não conseguiram satisfazer às necessidades espirituais e materiais da população camponesa do Nordeste. Suas ilusões místicas, construídas por séculos de cultura religiosa lhe conduzem a uma certa cumplicidade com o domínio do mal, representado pelo Diabo, enviado do todo-poderoso Lúcifer. Foram precisos muitos decênios de sofrimento e de desesperança para que esses seres simples que são os camponeses corram o risco de cair no abismo do Inferno, de certa maneira, de vender suas almas ao Demônio, esperando resolver suas dificuldades agrícolas, isto é, alimentares.E essa aventura perigosa que nos conta, não sem inquietações, o famoso José Costa Leite, no folheto O Diabo e o camponês (56). Na verdade o poeta pede desculpas por narrar esta história que, segundo ele, foi inspirada por Deus:

Sou poeta popularjá que Deus assim me fezcom o dom de fazer versosvou descrever desta vezo folheto intituladoo Diabo e o Camponês. (57)

Não é a culpa do poeta se ele vai "descrever o folheto", pois que ele tem o dom (divino?) de fazer versos. Ele se acha na obrigação de contar esta história, de testemunhar diante da opinião pública. Aliás, é interessante remarcar a formulação dos versos: "Vou descrever desta vez o folheto intitulado". Isto revela a concepção dos poetas populares sobre o significado do vocábulo folheto, este instrumento escrito da literatura de cordel. Ele é concebido como uma história, um fato, que eles ouviram falar, ou que conhecem, isto é, viram.Do mesmo autor, estudaremos também o folheto O sanfoneiro que foi tocar no Inferno. Contrariamente à história anterior, desta vez se trata de alguém que faz uma pequena viagem além-túmulo. O objetivo é menos dramático que o da história do camponês, mas, assim mesmo, a personalidade enganadora do Diabo é posta em cena, o qual passa sua vida a complicar o caminho das boas almas sertanejas. Bem entendido, o poeta resguarda a sua responsabilidade, como no primeiro folheto, senão vejamos:

� 137 -� Deus é grande e poderosoo seu poder é eternoconfiando nele eu traçoneste pequeno cadernoa história do Sanfoneiroque foi tocar no Inferno. (59)

Eis que o poeta traça, desenha, no sentido de escrever, num pequeno caderno, a história de um tocador de sanfona que um dia foi ao Inferno, conduzido por um Diabo, encarnado em um negro. A assimilação do Diabo aos tipos de raça negra é um hábito (60). Vejamos como se passou o encontro do sanfoneiro com o Diabo:

Num 24 de Agostodia de S. Bartolomeu. (61)

A referência a S. Bartolomeu indicaria a fé católica do poeta? Ele insiste sobre o dia desse santo, apoiado pela mãe do sanfoneiro que tentava convencer seu filho a renunciar ao seu projeto:

A velha disse: meu filhohoje é dia de invernoe é 24 de Agostoouça o pedido maternoaonde vai tocar hojeele disse: no inferno! (62)

As condiçoõs meteorológicas não são as mesmas em todos os continentes. Na Europa e regiões do hemisfério Norte é costume se dizer a noite de S. Bartolomeu. No sertão do Ceará diz-se o dia, que, aliás, coincide com o inverno tropical. A velha, convencida da decisão de seu filho, talvez já sob a influência diabólica, faz apelo a nomes e símbolos místicos para esse tipo de ocasião.

Ela disse: credo em cruzmisericórdia, S. Braz (63)

E o filho responde:

hoje eu toco

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até para o satanaz. (64)

Nosso sanfoneiro parte furioso e não tarda a encontrar o que procurava:

Com meia hora depoisele avistou um negrãoescanchado n'um cavalopreto da cor de carvão. (65)

Notemos que o poeta insiste cada vez mais sobre o qualificativo que representa o Diabo e seu cavalo: "preto cor de carvão". Esta observação é válida para todo o folheto no qual o Diabo é chamado negro ou negrão. Em todo caso, ele começa a traçar a personalidade enganadora, astuciosa do representante de Satã, utilizando uma linguagem bastante familiar nos sertões em geral, o que facilitará a comunicação com o sanfoneiro, sem provocar desconfianças:

- 138 -Ele avistando o negrode nada desconfiouo negro disse: rapazagora mesmo eu vouprocurar um sanfoneiroque o povo, em casa mandou. (66)

Eis uma expressão bem familiar para designar a família e os próximos: "o povo". E para reforçar a familiaridade "em casa mandou". (67).O diabo já se sente vitorioso: “Vai dar certo pra danado”. (68)Como vimos anteriormente, a linguagem nordestina apresenta certas contradições, ou curiosidades. O emprego do vocabulo danado é um exemplo interessente. Habitualmente a palavra significa uma ação ou coisa diabólica, amaldiçoada, pertencendo ao campo semântico de tudo que é negativo, maldito. Na linguagem popular da região, entretanto, ele é empregado num sentido positivo, isto é, como uma espécie de superlativo: “é bom pra danar”, “é danado de bom”, “este é danado de quente”, etc. O poeta Costa Leite utiliza os dois sentidos; vejamos já o negativo:

E quando Sebastiãojá se achava montadona garupa do cavalosentiu um mau cheiro danadode enxofre e creolinaque ficou desconfiado. (69)

Um pouco depois, no sentido positivo, um grau superlativo de velocidade:

Subindo serra e descendonuma carreira danada. (70)

Com relação ao estranho cavaleiro, parece que Sebastião, o sanfoneiro, tenha começado a se desconfiar; trata-se de alguém esquisito. A indicação da distância e a velocidade do cavalo confirmam a sua desconfiança, mas agora ele não pode mudar de ideia: "daqui lá são seis mil léguas / mas eu chego em meia hora". (71)Um grande mistério persiste para saber aonde ele vai. Mesmo Dante, que traçou um plano arquitetural do Inferno, nunca precisou o local exato por onde se possa entrar. Isso é um mistério. (72) Nosso poeta de cordel segue, pois, a tradição na matéria:

Disse o negro: feche os olhospor dois minutos somenterapaz fechou os olhose quando abriu novamenteviu que haviam chegadoem um lugar diferente. (73)

- 139 -O acordeonista não tem mais dúvidas. Não é um sonho nem uma visão. Ele está, em carne e osso, no outromundo. Suas palavras iniciais, ditas sem pensar, transformaram-se em realidade. Ele consegue, assim mesmo, descrever a aparência e a frequentação do lugar "era um palácio escuro". Esta descrição entra no campo semântico da cor preta, pois escuro é a ausência de luz, e por isso propício à habitação dos diabos, que eles mesmos são "negros".

Já agora começamos a nos convencer de que na concepção da poesia popular a vida do além-túmulo, em espécie do Inferno, constitui uma simples continuação da vida terrestre; apenas uma mudança de cenário. Senão, vejamos os versos seguintes:

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Era um palácio escuroe o rapaz foi mandadoa um grande salão de dançaaonde era esperadopara tocar na sanfonaum frevo quente e queimado. (74)

Um grande baile é organizado no Inferno, numa sala de dança. Um Diabo é enviado à Terra, seis mil léguasde distância, para ir buscar um sanfoneiro. Este vem ao Inferno, em carne e osso, com sua sanfona bem material, para animar a festa. O baile é bastante animado, com mais de mil pessoas que, apesar de estaremmortas, condenadas a viver num tal lugar, não abondonam seus hábitos terrestres de distração. O poeta, pela voz do sanfoneiro Sebastião, descreve como se passou o baile, com detalhes musicais e coreográficos, e sobre os convivas. Algumas expressões linguísticas são interessantes a ressaltar, elas revelam uma certa influência urbana, mesmo estando ligadas ao falar rural, mais natural para a literatura de cordel.Vejamos antes o tipo da música pedida pela assistência: "um frevo quente e queimado". O frevo, como se sabe, é a música tradicional e viva dos carnavais do Nordeste, de origem recifense, Pernambuco (75). Ele deve ser “quente e queimado" ao mesmo tempo. Trata-se de uma metáfora, bem entendido, pois o frevo já é naturalmente "quente" quanto à vivacidade, virilidade, movimentado e muito rápido. Pode-se supor que, sedeve ser queimado, seria mais apropriado dizer frevo endiabrado, diabólico. É, sem dúvida, a intenção do poeta: “só se ouvia a zuada / dos sapatos pelo chão”. (76)Pode-se mesmo pensar que, nesse Inferno, as pessoas têm um bom nível de vida. Parece que todos estavam calçados, visto a zuada (77), o barulho feito pelos sapatos batendo no chão. O sanfoneiro diz que o salão era iluminado e ele estimou o número de participantes graças à zuada dos calçados: sapatos, botas,chinelos:

- 140 -Era a maior gritariadentro do arrasta pée a negrada gritava:manda brasa, atola o pécatuca pra ver se vai. (78)

Vejamos algumas explicações sobre certas palavras: “arrasta-pé” é uma onomatopeia que significa dança, formada pelo barulho ritmado dos pés dos dançadores; “manda brasa” convém muito bem ao local da festa que se passa no Inferno, aparentemente a 6 mil léguas de distância, o que, geograficamente, já não pode ser localizado no Nordeste (6 mil léguas é igual a 36 mil quilômetros), é uma expressão da gíria carioca, do Rio de Janeiro, pois que quer dizer força, animação, entusiasmo, etc. É como a expressão “atola o pé”, que significa também muito dinamismo da música e dos dançarinos. A forma verbal atola corresponde normalmete à terceira pessoa do verbo atolar, de origem rural; ele representa as pessoas que andam nos caminhos encharcados dos campos, cheios de lama, no período das chuvas. Nos versos que estudamos, tem um outro significado, de origem motorizada, isto é, apoiar a fundo o acelerador do automóvel para que ele corra mais rapido, de origem urbana. A seguir temos a palavra catuca, terceira pessoa de catucar, isto é,beliscar, fazer cócegas ao perceiro ou parceira de dança. Na nossa estrofe, é uma ordem também ao sanfoneiro, que deve catucar os teclados da sanfona com bastante animação e rapidez. Esta ideia é confirmada nos versos seguintes:

Puxa o fole sanfoneiroemburaca empurra o dedoe seja muito ligeirodeixe a sanfona gemerque o meu pé é maneiro. (79)

Mais duas palavras merecem comentários, pois o contexto linguístico que escolheu nosso poeta Costa Leiteé bem característico dos forrós nordestinos. Mais uma vez na Terra ou no Além, as coisas se passam da mesma maneira. O vocábulo emburaca, terceira pessoa de emburacar, fazer um buraco. No folheto quer dizer a mesma coisa que as palavras anteriores: entusiasmo, força, vivacidade; tudo isso para esquentar o sanfoneiro. Em seguida, vem o adjetivo maneiro, que quer dizer leve, de pouco peso. Na festa do Inferno, e de outros lugares, quer dizer simplesmente alguém que dança bem.Como dissemos antes, trata-se de um vocabulário com certa influência urbana, mas que está ligado ao meio rural, com uma certa dose de vulgaridade, antes que popular, no sentido tradicional da poesia de cordel. O poeta Costa Leite, aliás, dá provas sempre de dominar esses falares espalhados no Nordeste, campos e cidades confundidos. Os versos atuais são uma prova a mais de sua versatilidade. Eis porque fazemos esses comentários linguísticos ao longo deste capítulo, a fim de melhor situar os personagens no meio ambiente sertanejo, como esse sanfoneiro tão típico e essa figura de Diabo (ou diabos) tão contraditória.

- 141 -Um pouco mais de paciência para algumas expressões da linguagem onomatopaica destes versos

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relatados pelo sanfoneiro Sebastião.“ Era o maior rela bucho.” (80) “Rela bucho”, expressão de origem gestual e sonora. Rela vem do verbo ralar, mudado para relar, cujo significado é raspar; bucho é como barriga, isto é, ventre. Quando a gente dança, os ventres, as barrigas dos parceiros se tocam, se raspam, se relam provocando um pequeno barulho surdo e ritmado.Finalmente, com respeito à descrição desse famoso baile no Inferno, contado por um sanfoneiro sertanejo, notemos que nem a língua francesa escapou ao "festival" linguístico do poeta Costa Leite: “era o maior rela bucho e dentro do fuzuê”. (81). Fuzuê, fuzarca, festa, confusão, briga sem feridos graves, animação com muito barulho. Como hipótese de trabalho, podemos admitir que o vocáulo fuzuê poderia ser uma deformação do verbo francês fuser, que quer dizer fundir, dissolver, difundir, arder sem explodir, que não estaria muito longe do significado de fuzuê, festa, etc. Lembremos, por exemplo, que a quadrille, dança de origem francesa, é muito respaldada no Nordeste, desde o século XIX, e seus passos e sua coreografia sãodados numa mistura de francês e português, ou talvez de um francês abrasileirado.Agora, vamos abordar o ponto crucial do folheto, ou melhor, atingimos o aspecto moral ou espiritual da história. Utilizando o estilo narrativo, como na Divina comédia (82), é o poeta popular, ele mesmo, que contaesta parte da viagem ao Inferno, colocando-se mesmo como testemunho de certos acontecimentos:

O Sanfoneiro perdidoavistou uma prisãoaonde viu muita gentena maior lamentaçãochorando, dando gemidoe viu até um irmão. (83)

Eis que se anuncia o lado desagradável da viagem ao Inferno. Não se pode viver só de festas e de fuzuês. As pessoas choram e gemem. O poeta cita mesmo uma prisão. Pensávamos que o Inferno era em si mesmo uma grande prisão, mas não. O poeta narrador deixa entender que, mesmo lá embaixo, há certas categorias de pessoas que são privadas de liberdade. Mas o mais fantástico é o último verso, onde ele diz: “E viu até um irmão”. Não foi o poeta que viu, foi o sanfoneiro. Isso parece que não o surpreendeu muito. Mas o importante é a concepção apresentada por nosso poeta popular contemporâneo no sentido de que o Inferno pode ser visitado por “pessoas vivas”, como, aliás, na época do poeta florentino Dante Alighieri.

- 142 -O irmão disse: meu manoque estás fazendo aquí?tu vieste aqui em vidaeu vim depois que morriisto aqui é o infernocheguei nunca mais saí. (84)

Eis um verdadeiro desafio aos teólogos: poderá alguém ir vivo ao Inferno, encontrar e falar com alguém quepara lá foi depois de morto? Não estamos certos da resposta dos teólogos ou dos "infernólogos". Mas o certo é que os poetas respondem afirmativamente. A cena descrita por nosso poeta narrador é eloquente, é a prova.Os poetas populares não somente contam histórias de pessoas de carne e osso que foram ao além-túimulo,mas puderam dar um salto ao Céu. Somente eles não explicam como se pode ir e voltar. Entretanto, eles nos dão alguns conselhos, menos egoístas, portanto, que o colega Dante Alighieri:

não fique prisioneironão coma comida algumae nem aceite dinheiro. (85)

Pensamos que o poeta Costa Leite continua fiel a certos preceitos morais e alimentares, talvez uma maneira de evitar a corrupção que, em certas ocasiões, pode levar ao pecado. Mas ele não nos indica o caminho, a estrada de volta do Inferno. Como já vimos, esse poeta é um verdadeiro especialista de questões místico-religiosas. Os temas bíblicos, as crenças apocalípticas do fim do mundo, são tratados regularmente em seus numerosos folhetos (86). Não é surpreendente que ele se interesse também pela vida no Inferno. Histórias como O sanfoneiro que foi tocar no Inferno ou O Diabo e o camponês são apenas a transposição em linguagem e em trama aceitáveis pelo leitores e ouvintes dos sertões da crença e dos preceitos cristãos, dos quais ele parece estar convencido. Ao mesmo tempo, podemos pensar que suas recomendações para sair do Inferno são apenas uma forma de dramatizar suas poesias, segundo a fantasiade poeta e contador de histórias. Ele vai mais longe. Como nos conselhos tipo lições de moral:

O rapaz viu no Infernomoça quente sacodidaque usa saia ligadae mulher casada enxeridaque atraiçoa o maridoe usa calça comprida. (87)

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E mais adiante: “quem rouba em peso e medida / quem só vive em cabaré.” (88)

- 143 -Corajoso, nosso bardo denuncia crimes contra a economia popular, mas também os homens que vão aos cabarés, esses locais condenados.Curioso é que, apesar dos preceitos religiosos de igualdade entre os seres humanos, o Inferno, nestes versos, parece ser visitado mais pelas mulheres:

Mulher feia e ciumentaque aperreia o marido. (89)

Que tenham cuidado:

Mulher que engana o maridochegando lá, Lúcifermonta no seu espinhaço. (90)

Eis que as condenações atingem mais o sexo fraco. Tratar-se-ia de reminiscências bíblicas com respeito ao sexo feminino ou, simplesmente, o reflexo terrestre de uma sociedade machista talvez predominante no Nordeste do Brasil? (91). O poeta que nos transmite as impressões do sanfoneiro Sebastião desde seu reterno do Inferno nos dá uma informação muito curiosa sobre a infidelidade conjugal. Segundo vimos nos versos anteriores, "mulher que engana marido / chegando lá, Lúcifer / monta no seu espinhaço". Mas, para o sexo forte, a coisa é diferente:porém já não é pecadomarido enganar mulher. (92)

Como se vê, esses versos populares sintetizam perigosamente, mas talvez de maneira realista, uma sociedade misógina na qual a preponderância masculina seria ainda a linha dominante. Será ainda a situação que prevalece no Nordeste atual? Não podemos responder neste trabalho, pois desviaríamos muito do seu objetivo.No entanto, é interessante observar, assim mesmo, que poetas populares, tão impregnados das ideias místico-religiosas, como é o caso de José Costa Leite, considerem necessário transpor este dogma da imunidade e da preponderância do sexo masculino mesmo na vida do Além. Os conselhos de boa conduta dados pelos poetas de Cordel se dirigirão apenas ao sexo feminino.

- 144 -(56, 57) - LEITE, José Costa. O Diabo e o camponês, edição do autor, Condado (Município do Estado de Pernambuco).58 (?)59 - LEITE, J. Costa. O sanfoneiro que foi tocar no Inferno. p. l.60 - Ver capítulos anteriores.(61, 2 e 3) - LEITE, J. Costa. O sanfoneiro que foi tocar no Inferno, p.1. Na memória popular dos sertanejos e pessoas do campo, O dia de S. Bartolomeu é muito perigoso.64 - Id. A literatura de cordel segue a tradição que identifica o mal na figura de Satã e seus parceiros. Mas, ao mesmo tempo, achamos contraditório que esse personagem e seus derivados sejam um dos temas maispopulares na poesia popular do Nordeste.65/6 - LEITE, J. Costa. O sanfoneiro que foi tocar no Inferno, p.2.67 - Povo, meu povo: a família, minha família.68/71 - LEITE, J. Costa. O sanfoneiro que foi tocar no Inferno, p.3.

(72) Vejamos o que disse Dante, sobre a entrada e o caminho do Inferno:"Au milieu du chemin de notre vie Je me retrouvai dans une forêt obscure, égaré hors de la voie droite""Je ne sais bien dire comment j'y entrai tant j'étais plein de sommeil à ce point" - In: ALIGHIERE, Dante. l' Enfer, Chant. I.Seu tradutor em francês diz que: "Le lieu de la scène nous est inconnu, nous ignorons où se trouve cette forêt."MASSERON, Alexande. Pour comprendre la Divine Comédie,édition Desclés De Bower, Paris, 1939, p. 5.(73, 74) - LEITE, J. Costa. O sanfoneiro que foi tocar no Inferno, p.4.

- 145 -

(75) Frevo: seria uma deformação de ferver, popularmente dito “frever”.Vejamos uma descrição bastante sugestiva:"É marcial e militar (sic). Freme, se agita, se remexe como peixes ao serem fritos, ao som das marchas

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endiabradas". Ainda: "[...] a sensualidade carioca sopra, abranda a violência dos gestos, mas a loucura do frevo continua sempre as danças individuais dos capoeiras de outrora, diante dos bandos em balada". BASTIDE, Roger. Imagens do Nordeste Místico, em Preto e Branco. Rio de Janeiro: O Cruzeiro, 1945, p.234-5.(76) LEITE, J. Costa. O sanfoneiro que foi tocar no Inferno, p.4.(77) Zuada = algazarra, do árabe “al-gazara”. Barulho.(78/81) - LEITE, J. Costa. O sanfoneiro que foi tocar no Inferno(82) A propósito do estilo narrativo em poesia, em particular nas "viagens ao além", vejamos outro exemplo do poeta florentino e comentários de outro especialista, PEZARD, André: "Dante emploie le style narratif tout au long de son ouvrage,à exemple des premiers vers de la Divine Comédie:“Au milieu du chemin de notre vieJe me trouvai par une selve obscureEt vis perdue la droiturière voie"-DANTE: Oeuvres complètes. Traduction et Commentaires: André Pezard. Paris: Gallimard, 1965, p.883.(83/5) - LEITE, J. Costa. O sanfoneiro que foi tocar no Inferno, p. 6.(86) Eis alguns títulos de outros folhetos do mesmo autor:A vinda da Besta-Fera, A voz de Frei Damião, Frei Damião sonhou com o Padre Cícero, A vaca misteriosa que falou profetizando.(87/ 90) - LEITE, J. Costa. O sanfoneiro que foi tocar no Inferno, p. 6.

- 146 -

91 - Ver PONTES,W. Tenório. La Prépondérance Masculine dans la littérature de Cordel, op. cit.92 - LEITE, J. Costa. O sanfoneiro que foi tocar no Inferno, p.7.

- 147-CAPÍTULO V - O DIABO AGRICULTORNeste capítulo iremos estudar um outro aspecto das facetas do mestre Diabo, desta vez no terreno agrícola.Porém, nas páginas seguintes, faremos um retorno ao nosso sanfoneiro Sebastião, para tentar descobrir como ele saiu do Inferno.Por enquanto, trata-se de um Diabo que vem ao sertão transformado em camponês, com a intenção de conquistar a alma ou a consciência de nossos pequenos camponeses nordestinos. Para isso, ele emprega todos os seus poderes mágicos, eexplorando as dificuldades do tecido social e econômico da região. Como se diz, "ele vai pescar em águas turvas":

O diabo desceu a terrasentindo dor de barrigadizendo: vou convecê-lodo contrário; a gente brigapreciso ganhar aquelecamponês de uma figa. (93)

Para começar, notemos a novidade da expressão do primeiro verso: "O diabo desceu a terra". O poeta põe em dúvida a velha teoria que coloca o inferno no interior da Terra, como o diz o clássico Dante, na Divina comédia (94). Em nosso verso, temos a impressão de que o Inferno é colocado em lugar mais alto que a Terra, pois o narrador diz que o Diabo "desceu" à Terra.O personagem se introduziu na casa de um camponês e começou a fazer "seus milagres":

E o camponês espantadodisse sozinho consigo:– as plantações dos vizinhos morreram todas! e meu trigoestá cada vez mais verdepara o verão eu nem ligo. (95)

Parece-nos que o representante de Satã já tinha um lugar assegurado. Ele tinha conseguido ganhar a primeira parte da partida. Agora é passar à fase seguinte do projeto, isto é, desviar o camponês para o caminho do pecado. Mais uma vez o poeta segue a linha da moral religiosa.

- 148 -Bem entendido, Costa Leite é bastante apegado aos temas religiosos. Sua linguagem, seu vocabulário e a escolha de seus temas são inspirados na história e na mitologia místico-religiosa. Verifiquemos que, nesta última estrofe, ele reproduz, com outras palavras, exemplos gerais que vêm de outros continentes. Apesar de sua história se passar no sertão, seco e árido, ele indica um produto que não tem nenhuma relação com a produção tradicional da região, isto é, o trigo (96). Será por acaso? Pensamos que não. O poeta escolheu o trigo, este produto bíblico por excelência, nas terras áridas do Nordeste, para construir convenientemente a estrutura religiosa de seu folheto. Ao mesmo tempo, notemos que o emprego da cor verde, mesmo se ela tem aí um valor simbólico, demonstra o pouco conhecimento do desenvolvimento deste cereal (97). "...e meu trigo / está cada vez mais verde".Outra particularidade, desta vez linguística, do último verso: "para o verão eu nem ligo". O verbo ligar (98)

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autoriza várias interpretações. Aurélio Buarque de Holanda nos propõe 24 possibilidades, mas só uma se aproxima do significado que indica o poeta, isto é, o emprego do vocábulo no sentido de não se preocupar, não dar importância.Vejamos a seguir o desenvolvimento da aventura do Diabo nos campos. Satisfeito com o seu sucesso ao nível agrícola, ele prepara um terreno perigoso sobre o qual se arrisca escorregar o camponês. Os vícios sempre foram catalogados como pecados no código religioso vigente.

O Diabo transformado em homemchegou sorrir de contentedisse da sabra do trigoo sr. destile aguardenteuma bebida boafaz o povo ficar quente. (99)

É évidente que no Nordeste não se faz aguardente com o trigo, mas com a cana-de-açúcar, que há em abundância. Mas aí o poeta procura ser coerente uma vez que pôs o trigo nos campos sertanejos:

O Diabo foi no Infernomuito contente, talveze a Satã, rei das trevasdisse que o camponêsestava botando o povono vício da embriaguês. (100)

Eis que o Diabo camponês se refere a seu superior, "O rei das trevas". O camponês sertanejo que "vendeu sua alma" para conseguir boas safras, dinheiro e poder, encarrega-se daqui para a frente de perverter seus colegas, seus conterrâneos, "o povo". Não será difícil vislumbrar nesta história sertaneja a presença do pecado da "cobiça", da ambição. O pobre, material ou espiritualmente, vende sua alma ou seus princípios para obter recursos superiores aos de sua classe socioeconômica. Isso representaria uma infração aos costumes e ao conformismo estabelecidos pela fé e a ética religiosas. A sorte do infeliz componês é estigmatizada no acróstico final das últimas estrofes do folheto:

- 149 -Como porco e como loboO camponês inda ficou Se embriagando, brigouTerminou ficando boboAlmejando fazer roubo.

Ligeiro a alma perdeuE o Diabo conheceuInda hoje está contenteTendo o camponês na menteE tudo dele, hoje é seu. (101)

A astúcia, o logro e os poderes mágicos, talvez miraculosos, do Diabo são bem descritos nesta história. É um dos aspectos no qual as pessoas veem o Diabo. Às vezes mágico, possuidor de poderes extraordinários, "diabólicos"; é o gênio do mal (102), temido e admirado. A história do camponês é uma ilustração disso, como vários outros exemplos. O mesmo se pode dizer da história de O sanfoneiro que foi tocar no Inferno; o Diabo, astucioso e enganador, aproveita-se do mau caráter de um rapaz: "muito bruto e malcriado", que num momento de cólera, de depressão, decidiu ir tocar no Inferno. Mas, ao contrário do camponês, o sanfoneiro Sebastião teve a chance de encontrar seu irmão lá no Além, que lhe confiou algunssegredos para não ficar nesse lugar de maldição. Entre esses conselhos, observamos que não se deve aceitar dinheiro nem comida do Diabo:

comida não aceitouquando foram lhe pagarele também recusou. (103)

As razões dessas recomendações não são muito claras. Deve-se entender uma referência ao pecado da gula ou simplesmente uma precaução contra os venenos diabólicos que poderiam ser misturados à comida? Somos antes pela primeira hipótese, considerando a "queda" habitual do poeta Costa Leite pelos temas religiosos. Em todo o caso, vejamos como se desenrolou o processo de volta à Terra do nosso tocador destemido:

A meia noite em pontoquando o galo cantouo negro com o cavaloa ele se apresentouele montou na garupao cavalão embalou. (104)

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O "negro" manteve a sua palavra. À meia-noite em ponto, como quer a tradição nesse tipo de histórias, no momento em que o “galo cantou”, ele se apresentou com seu cavalo maravilhoso para trazer o músico ao reino da Terra. Esses versos nos colocam o domínio do ritual.Acontecimentos desse gênero só são levados a sério se são produzidos de madrugada, a partir de meia-noite; é indispensável que o galo acorde e cante. A indicação do rei dos poleiros é o sinal da influência das práticas místico-religiosas afro-brasileiras, apesar do desprezo do poeta com relação aos praticantes dessas religiões, os quais, segundo o narrador da viagem, já se encontram no Inferno, sem direito de sair, em companhia de um persongem não muito recomendável: "sedutor e xangozeiro". (105)

- 150 -Façamos, porém, alguns comentários sobre o emprego dos vocábulos garupa e embalou. Este último está escrito entre parênteses no texto original. Quanto à garupa, é um termo comum ao vocabulário ligado ao cavalo enquanto meio de transporte. "Dar uma garupa" a alguém significa transportá-lo ao mesmo tempo noseu próprio cavalo, atrás da sela. É um uso corrente nas regiões rurais. O segundo vocábulo, empregado naterceira pessoa do imperfeito do verbo embalar, tem um significado bem particular no texto que estudamos, pois aí significa correr com grande velocidade. Normalmente, este verbo significa balançar, embalar uma criança. Na poesia, o emprego de embalar lembra o uso da palavra abalar, comum em Portugal, no sentido de partir rapidamente: “e quando chegou em casa / contou o que foi passado”. (106)De agora em diante, nosso poeta-narrador sai do comum. Para começar, ele nos conta a viagem verídica de um sanfoneiro ao Inferno. Nesse lugar, o sanfoneiro tocou muito, viu coisas animadas e até encontrou um irmão que tinha morrido antes (a ideia de vivos que veem e conversam com os mortos seria espiritismo e não catolicismo?). São coisas que acontecem nesse Nordeste afora. Tivemos ocasião de ver as apariçõesdo sacerdote católico Padre Cícero a certos romeiros e a seu sucessor, o Frei Damião. Mas agora a coisa é mais séria, pois o poeta popular revoluciona com suas narrações. Senão, vejamos a estrofe seguinte, a última do folheto do sanfoneiro:

Ele disse que o infernoé uma cidade asseadaLampião é o prefeitoe fez praça ajardinadaestá fazendo o calçamentoe já tem água encanada. (107)

Por uma vez, o poeta popular é um verdadeiro porta-voz dos "sonhos reais" das populações do interior do Nordeste. Não são mais as transposições do romanceiro medieval europeu para um meio ambiente brasileiro, não é mais o ideal judeu-cristão, nem a mística-religiosa propagada pelas palavras e ações de iluminados que percorrem os sertões. Agora, o poeta ataca ou reproduz o real, o concreto; ele descreve um lugar, uma cidade limpa, jardins verdes, ruas calçadas, água encanada. O conforto moderno, pois. É o intérprete e o reflexo, na linguagem da poesia de cordel, das reivindicações de decênios das populações do interior. O poeta popular se faz o porta-voz das aspirações das populações urbanas e mesmo rurais diante dos administradores e políticos. Mas, como não está completamente convencido da eficácia de suas reivindicações, embora justas e necessárias, ele reforça seu apelo, invocando o nome, o patrocínio poderoso do mais prestigioso e temido herói do sertão, o Rei do Cangaço, Lampião. Não é grave que ele seja morto e só esteja no Inferno, pois ele é poderoso, e seu exemplo de bom administrador deve ser imitado:

- 151 -“Até luz de Paulo Afonso.”(108) “Lampião já quer botar.” (109)Eis aí o grande "sonho" dos anos 50 em todo o interior nordestino: "...luz de Paulo Afonso". A força e a luz da hidroelétrica de Paulo Afonso. Dois heróis, duas vaidades do Nordeste se reúnem: Lampião e a cachoeira de Paulo Afonso.E, para provar a força e o poder de Lampião, nosso poeta popular acrescenta:Com a filha de Lúciferbreve ele vai se casare no dia do casamentoele quer inaugurar. (110)

Lampião, genro de Lúcifer e, por que não, seu sucessor no reino de todos os infernos. Aquele que foi o “Rei do Cangaço”, o “Imperador dos Sertões”, não hesitará. Ele está pronto para afrontar todas as lutas e guerras para conquistar esse posto. Veremos nos capítulos seguintes, sua entrada e suas presepadas nas profundezas do inferno.

- 152 -93 - LEITE, J. Costa. O Diabo e o camponês, p.5.94 - Sobre o centro do Inferno, não podemos deixar de lembrar os versos e a concepção do genial poeta de Florença, pensando, ao mesmo tempo, nos nossos poetas populares. Vejamos alguns versos de Dante ecomentários de André Pézard: "Dante: […] descendo tao baixo, até as entranhas, em cujo centro, o Inferno onde aceitou descer Beatriz, e nessas entranhas da terra, centro do sistema do mundo, empíreo que abraça

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tudo, sem limites. In: ALIGHIERI, Dante. Obras completas, p. 893..95 - LEITE, J. Costa. O Diabo e o camponês, p.7.96 - A referência ao trigo nas terras secas e áridas dos sertões é curiosa, pois esse produto não figura na lista de produções agrícolas da região. Vejamos como se pronuncia um geólogo, especialista e conhecedor das terras sertanejas: "As condições são radicalmente diferentes no Nordeste semiárido onde a caatinga (floresta branca) é uma associaçao completa xerofítica. A maior parte das árvores, raquíticas e de tamanho medíocre, não têm pequenas folhas cinzentas no período das chuvas […]. Todas são espinhosas e lenhosas. A vegetação é esparsa sobre um solo quase inexistente". Pierre Monbeig. Le Brésil. Paris: P.U.F.,1968, p. 20.97 - Mais uma vez o trigo é citado, embora com uma indicação da cor verde quando, em realidade, o trigo apresenta uma cor amarelo-ouro.Talvez o verde indicado pelo poeta simbolize a vitalidade e a força que demonstra atualmente esse camponês, ajudado pelo "Diabo-agricultor".

98 - Novo Dicionário Aurélio, l. ed.99/101 - LEITE, J. Costa. O Diabo e o camponês..102 - A cada momento vemos ressaltados aspectos diferentes e contraditórios do Demônio. Aqui, é o gênio do mal que aparece, segundo as teorias antigas do bem e do mal, representadas pelas qualidades míticas desse personagem.103/4 - LEITE, J. COSTA. O sanfoneiro que foi tocar no Inferno.

- 153 -Xangozeiro: aqule que pratica o xangô, culto afro-brasileiro. Xangô é um dos orixás (divindades) dos mais poderosos, em relação aos relâmpagos e ao fogo. Ele equivale, ao mesmo tempo, a S. Jerônimo, Santa Bárbara e ao Arcanjo Gabriel, do culto católico. As referências aos cultos afro-brasileiros pelos poetas de cordel são raras; vemos aqui já uma influência urbana, das costas brasileiras. Ver: Edison Carneiro, Candomblés da Bahia; e Roger Bastide, Imagens do Nordeste, em Branco e Preto.106/7 - LEITE, J. Costa. O sanfoneiro que foi tocar no Inferno.108 - Dada a enorme importância do Rio São Francisco e da Cachoeira de Paulo Afonso para o Nordeste em geral e em particular para os sertoes áridos, assunto aliás tratado abundantemente pela literatura de cordel, pensamos ser interessante transcrever o texto seguinte: “A moda foi na época a planificação de imensas bacias fluviais nas regiões áridas; o Brasil sacrificou com entusiasmo toda a parte meridional do Nordeste seco constituindo esta bacia do São Francisco, denominado pelos brasileiros como ‘o rio da unidade nacional’, de tal maneira ele participou na história do povoamento da região. Em virtude de sua posição geográfica ele constituíra um novo polo da Federação nacional. Uma Comissão do Vale do São Francisco recebeu a missão de fazer desse imenso vale, não mais uma dolorosa estrada de migrações, mas um eixo de povoamento sólido […]. Duas enormes barragens foram construídas, para baixo, a de Paulo Afonso e, para cima, a de Três Marias em Minas Gerais, e outras barragens nos afluentes menores no curso dos afluentes (…) A ressureição de toda essa grande região se constituíra de centros metodicamente dotados de escolas, hospitais, lojas e armazéns entre Pirapora e a usina de Paulo Afonso, região cuja extensão representa mais de 1200 quilômetros de Sul a Norte". LANNOU, M. LE. Le Brésil. Paris: Armand Collin, 1955, p.93-94.109/110 - LEITE, J. Costa. O sanfoneiro que foi tocar no Inferno.

- 154CAPÍTULO VI: O INFERNO É TRÊS VEZES MAIOR QUE O MUNDO

Como estamos constatando, a visão do Inferno dos poetas populares do Nordeste é bastante dinâmica. À concepção teológica de tristeza, de sofrimentos e de escuridão, a poesia popular opõe a noção de vida real,de uma certa alegria, de claridade e animação. Mas, como se trata de Inferno, seria melhor pôr esses adjetivos entre parênteses. Mas os poetas nos "cantam" a vida do Além com uma tal vivacidade que somos obrigados a tratar normal e corretamente a descrição e a análise de suas narrações. Deve-se ver com naturalidade tudo o que é concebido naturalmente. O mundo terrestre e o Além fariam parte do mesmo conjunto? É a impressão que temos depois da leitura dos folhetos de cordel. Senão, vejamos, as aventuras eleitorais do herói dos sertões, o cangaceiro Lampião, que empreende uma campanha eleitoral com vistas ao controle do Inferno, num estilo bem democrático e ao mesmo tempo na tradição nordestina:

Um cabra de Antônio Silvinopor nome de Zelaçãomorto 24 anosbaixou em uma sessãocontou um drama modernodizendo que no infernoestava em revolução. (111)

Para começar, o folheto faz apelo ao rito das sessões espíritas para contar sua história. A referência ao espiritismo parece puramente ritual não implicando conceito religioso. Trata-se, sobretudo, de um drama

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moderno e revolucionário. Essas duas categorias, aliás, integram satisfatoriamente a tradição da vida social e política da região, pelo menos no que concerne o título do folheto: A eleição do Diabo e a posse de Lampião no Inferno. À primeira vista, existe aí uma contradição. Um é eleito, porém, é o outro que é empossado! A democracia tem suas particularidades. Veremos como essa contradição se realiza no Nordeste. Talvez o problema não seja propriamente infernal. A legislação e as práticas eleitorais são muito diversas por todos os lados. Mas fiquemos na interpretação de uma realidade histórica feita pelos modestospoetas populares brasileiros. Aliás, eles não são os únicos a colocar no Além a crítica de comportamentos de uma sociedade real, atual. Para não diversificar muito nossos parâmetros de comparação, lembremos a genial Divina comédia, na qual o clássico Dante tanto criticou e estigmatizou personagens e costumes da sociedade italiana de sua época.

- 155 -Nosso poeta anônimo passa facilmente do rito espírita, que pretende pôr em comunicação os mortos com pessoas vivas, por intermédio de outras pessoas mais dotadas espiritualmente, os médiums, a um outro rito mitológico, o qual assegura a renovação eterna da vida: à morte, sucederia uma outra vida, e assim sucessivamente (112).

Dizendo: lá no infernoninguém termina a quinzenahá grande revoluçãotem morrido tanto cãoque quem ver contar faz pena. (113)

Como é natural nas revoluções, há muitos mortos. Isso não é muito lógico, pois se trata da morte "de muito cão". Ora, em princípio, os diabos e os outros pensionistas do Inferno já estão mortos. Nesse caso, trata-se de uma segunda morte, que será seguida de uma outra vida, etc. É o ciclo mitológico do eterno renascimento.Aqui, abrimos um rápido parêntese a título de curiosidade linguística, para reproduzir alguns nomes de Diabos que foram mortos em lutas eleitorais:

Morreu Gambeta e TraçaioCapataz e FormigueiroParafuso e Quebra RossoCoxo Cascudo e CangeiroCotó Capado e PontinhaCanela suja e CanuguinhaSirigaita e Cachimbeiro. (114)

A lista dos diabos é grande. Nós já observamos a importância desses personagens, espécie de gênios do mal, quando tomamos conhecimento de uma peleja entre um cantador de viola e um Diabo, no capítulo II. Era um combate entre o bem e o mal, este simbolizado, como de hábito, por um demônio, enviado de Satã.No atual folheto, trata-se de um combate entre duas potências do mal, que disputam o governo do Império do Mal, o Inferno:

Deu-se esse grande desastreno dia da eleiçãoSatanaz no trono delefez uma reuniãoquando Capataz falouo juiz candidatouLúcifer e Lampião. (115)

Eis que tudo segue o rito democrático, nessa espécie de paraíso infernal: a reunião, o juiz eleitoral e os candidatos. Esses personagens praticam um ideal de vida social que eles não puderam viver em suas primeiras vidas na Terra. Passemos, porém, ao resultado da eleição:

- 156 -Todos diabos votaramno dia da eleiçãocontaram todos os votosno fim da apuraçãoLampião ganhou 500Lúcifer ganhou 600e cincoenta e um milhão. (116)

Bem entendido,o autor adapta o resultado da eleição a uma necessidade do ritmo e da rima de seus versos.Parece que Lampião ganhou 500 milhões de votos, e Lúcifer, 650 milhões. A eleição é favorável então a este último, que tem 151 milhões de votos a mais. Não há problemas. Lúcifer é eleito democraticamente. Mas não esqueçamos que estamos no Inferno (ou no Nordeste?).

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Lúcifer gritou alegre / daqui eu sou pretendente. (117)

Diríamos que o jogo democrático não interessa mais:

Lampião disse: molequenão seja tão indecentecom macho não tenho carinhometeu-lhe a mão no fucinhoque quebrou dente por dente. (118)

A violência se instala. O valente Lampião, nordestino típico, não poderia reagir de outra maneira. A palavra mitológica macho é pronunciada. Derrotado segundo as leis da democracia, ele recorre à lei do sertão, a força. E a luta, a peleja, explode. Insistimos que o racismo continua no que concerne à assimilação do Diabo às pessoas de raça negra: moleque é a denominação muito pejorativa utilizada para designar as pessoas indesejáveis, inferiores e, bem entendido, de cor negra. A seguir, o poeta anônimo narra uma enorme briga entre Lampião e as tropas de Satã, todos os tipos de diabo participaram da batalha infernal. Mas o Rei do Cangaço vai impor sua força e superioridade. Rei dos Sertões, ele será o Prefeito do Inferno. Os poderes materiais e os mistérios de Lúcifer não chegaram para mudar o destino de Lampião. Ele vai escrever no caderno as suas decisões, leis e decretos:Lampião disse: negradahoje a porca torce o rabona vida materiallutei que quase me acabohoje boto no cadernoque dentro deste infernonão fica nem um diabo. (119)

Observemos ainda a referência à primeira vida do herói, na vida material. Ele confirma que lutou muito e, nessa segunda vida, continuará a lutar para preparar um lugar à sua medida; talvez um Paraíso: expulsão de todos os diabos, dos maus elementos, da oposição.

- 157 -Enfim, o grande Lúcifer, como um general civilizado, habituado às leis da guerra, abdica de seus direitos e poderes:

Chamou Lampião e disseamigo eu vou lhe dizerpor mim a questão está findatome conta do podereu já jurei no cadernoque o trono do infernoquem determina é você. (120)

Lampião é reconhecido como Prefeito do Inferno, homem superior, predestinado, sem dúvida. Ele impõe a sua lei e expulsa os malfeitores:

quero que vocês conheçameu como superiorquem falar vai pra tabicano inferno aqui só ficadiabo trabalhador. (121)

Trata-se talvez de uma coincidência, mas todos os folhetos relativos aos personagens excepcionais do Nordeste, como Padre Cícero, Antônio Conselheiro e agora Lampião, fazem a apologia ao trabalho. Os messias do sertão, em nosso mundo ou no além-túmulo, não negligenciam os aspectos da produção material. Talvez, para a construção de um paraíso, seja preciso pessoas produtivas e superiores. Aliás, é o que nos conta o poeta, por intermédio de Lampião que, após sua vitória, vai fazer uma verdadeira limpeza de todos os elementos considerados indesejáveis: “expulsou diabos que encheram / 70 mil caminhão”. (122)

Pegou as almas dos crentesos espíritos macumbeirosas almas dos amancebadosos zumbis dos feiticeirosdisse essas almas à toavou mandar pra Alagoaspra casa dos catimbozeiros. (123)

É claro que Lampião quer construir um verdadeiro Paraíso no Inferno. Isto contradiz totalmente as noções seculares sobre esse local, se nos limitamos à noção imediata desses vocábulos. Mas é preciso ir mais

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longe. É pena que este folheto não indique a data da sua edição, pois poderíamos estabelecer um paralelo entre o golpe de Estado do Rei do Cangaço no Inferno e a situação político-social vigente no Brasil depois de 1964. Não seria impossível que o poeta popular, aliás anônimo, tenha querido mostrar a situação imposta pela força ao país, simbolizada pelo reino fantástico de Lampião no Inferno. Expulsando ou eliminando todos os elementos indesejáveis, ou “subversivos” (?), Lampião criará um Inferno de pessoas puras,

- 158 - na sua maneira de apreciar. Observamos também nesses versos a noção de banimento, de exílio, pelo fato de que milhares de almas, de diabos, sãoexpulsos, enviados extramuros, espalhados em todas as direções da Terra:

Soltou 6 mil em Bezerros4 mil em Camucim1100 mil em Jaburu10 mil em Caruaruo resto em Belo Jardim. (124)

Trata-se de localidades distantes do centro ou das capitais. Além disso, ele designa de maneira discriminatória antigos maus elementos como agentes do Estado-Inferno, mesmo para cargos que normalmente deveriam ser eleitos:

Gambeta é o delegadoSatanaz é o prefeitoCouxinho é o promotorCapataz o senadorLúcifer juiz de direito. (125)

Tudo é perfeitamente organizado. Todo o corpo institucional da nação é constituído. O Paraíso funcionará às maravilhas, ainda mais que não haverá o elemento popular, o povo, pois os indesejáveis foram banidos, espalhados para todos os lados. E, para obter "sua sociedade perfeita", Lampião organizará uma sociedadede elite:

Só tem vaga no infernopra homem capitalistacomo bem para doutormecânico e aviadorengenheiro e motorista. (126)

E, como se a política do novo soberano infernal não fosse explícita, nosso poeta acrescenta:

Mas deste pessoal abaixonão aguento desaforotrabalhador de alugadomulher que possui namoradoeu já tirei do cadernosó entra no meu infernoquem tiver dente de ouro. (127)

O ouro, naturalmente, é o símbolo da riqueza e de boas qualidades. Vimos na estrofe precedente que a primeira qualidade para entrar no Inferno-Paraíso é ser homem capitalista. Em contrapartida, o reino é interdito, antes de tudo, ao trabalhador alugado, isto é, assalariado.Como dissemos na introdução deste trabalho, a noção tradicional de Inferno é muito controvertida pelos poetas populares. Admitindo que o autor tenha desejado apresentar e criticar a situção vigente no país, depois de 1964, ele o situa no Inferno, recentemente povoado por uma certa elite, ou pessoas escolhidas, da linha justa.

- 159 -Essas pessoas, normalmente, deveriam ir para o Paraíso, mas, para confirmar sua visão do mundo, ou do seu mundo, como diria Mircea Eliade (128), nosso poeta anônimo, pela voz de Lampião, instala-se na sua utopia universal: “Vou fabricar esse inferno / 3 vezes maior que o mundo.” (129)

- 160 -111 - A eleição do Diabo e a posse de Lampião no Inferno. Na capa do folheto está indicado: João José Da Silva, editor-proprietário. Trata-se, pois, de uma obra comprada cujo autor é desconhecido.112 - ELIADE, Mircea. Aspects du mythe. Paris, Idées Gallimard, 1963. Ver em particular o capítulo III: "Mythes et rites de renouvellement".

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113/127 e 129 - A eleição do Diabo e a posse de Lampião no Inferno.ELIADE, Mircea. op. cit., p.56-57: "Le monde est toujours notre monde, le monde où l'on vit".

- 161 -CAPÍTULO VIIFUTEBOL NO INFERNOConhecemos bem a paixão dos brasileiros pelo futebol. O sangue esquenta, os espectadores exultam e os estádios vibram na euforia popular a cada encontro futebolístico. O povo do Nordeste não faz exceção a essa alegria brasileira. E os poetas brasileiros, noblesse oblige, não podem ignorar essa realidade. José Soares se qualifica de poeta-repórter e, por isso, especializado mais ou menos nos temas e acontecimentosda atualidade. Morando em Recife, capital de Pernambuco, ele dispõe de todos os meios de informação para estar a par da atualidade nacional e internacional. A imprensa, o rádio e a televisão estão à sua disposição. Conhecemos vários de seus folhetos sobre a atualidade (130). Isso não quer dizer que este poeta "se urbanizou" completamente. É verdade que ele dispõe de uma boa bibliografia relativa aos temas modernos, mas, do ponto de vista da linguagem, das ideias e dos sentimentos, ele resta como os demais colegas, bastante ligado à temática e a conteúdos tradicionais. A origem rural do nosso poeta-repórter tem asua significação. Poderíamos dizer, talvez, que se trata de um poeta popular um pouco especial. Conhecemos já neste nosso trabalho um outro poeta popular de tipo especial, pelo menos quanto ao nível cultural e profissional. Falamos do poeta (jornalista) Maxado Nordestino que, embora residindo em São Paulo onde exerce a profissão de jornalista, produz uma poesia semelhante às outras produções da literatura de cordel.José Soares, fazendo-se conhecer como poeta-repórter, deixa-nos entrever seu sonho pessoal de ser jornalista. Talvez sua origem social o tenha impedido de aceder a esta profissão. O homem, então, aproveitando de seu dom e de sua perspicácia, descobriu uma outra maneira de ser jornalista, exprimindo-se com a ajuda das sextilhas clássicas da literatura de cordel. Veremos nas páginas seguintes alguns versos do poeta José Soares, extraídos de seu folheto O futebol no Inferno. A preocupação jornalística é evidente. Trata-se de tema e acontecimento da atualidade brasileira que interessa e apaixona as pessoas de todas as classes sociais, sobretudo as de origem popular. É certo que este folheto, apesar da pouca quantidade de páginas, apenas quatro, vai ser bem recebido pelo público. A outra observação diz respeito ao estilo simples dos versos, talvez mais uma característica do jornalismo esportivo que vai direto ao público, ou à rede:

O futebol no infernoestá a maior confusãovai haver melhor de trêspra vê quem é campeãoo time de Satanazou o quadro de Lampião. (Grifos nossos) (131)

- 162 -Como de costume, este folheto não indica a data de publicação, o que nos impede de o situar no tempo e num contexto real da sociedade.A alegria do futebol tem sido uma constante moderna do povo brasileiro, principalmente das camadas populares e médias da população (132). Observa-se mesmo que, em certas ocasiões, esta paixão é exagerada, como nos encontros entre clubes importantes do campeonato nacional, entre representantes de cada Estado da Federação. A Copa do Mundo é também um período de exaltação nacional. Quando acabamos de escrever o original manuscrito deste trabalho, estávamos saindo de uma Copa do Mundo de Futebol, a de 1978, ocasião em que tomamos conhecimento do folheto de José Soares. Esse dado pode nos aproximar da data de produção e publicação de O futebol no Inferno, o que seria lógico para um poeta-repórter, colado à atualidade. Esses elementos são interessantes a observar no que respeita um estudo bibliográfico de cada autor, além do interesse geral do contexto social e cultural de cada país. Com relação a nosso poeta-repórter, notamos já uma terminologia especializada: “vai haver melhor de três”, quer dizer que estamos na fase final de um torneio ou campeonato e as duas equipes finalistas vão disputar o primeiroluger. A atualidade se impõe em tais ocasiões (133). O abrasileiramento do vocabulário futebolístico, de origem inglesa, é de rigor: o “time de Satanás”, em lugar de team. A transcrição da linguagem fonética prevalece, o que é normal na literatura de cordel, basicamente oral.Mas vejamos a seguir o que poderíamos chamar de conteúdo no folheto de José Soares. Dissemos no princípio deste capítulo que ele está no mesmo nível formal e ideológico que os outros poetas populares, apesar de certa preferência pelos temas urbanos e atuais. Em primeiro lugar, ele imagina uma partida de futebol no Inferno. Isso já o integra na concepção geral da literatura de cordel no sentido de que a vida no Além, em particular no Inferno, é bastante dinâmica e "viva"; lá embaixo nada impede os seus pensionistas de exercer suas atividades favoritas. Em segundo lugar, verificamos que a luta gigantesca entre as duas potências do mal, Lampião e Satanás, continuam em um outro terreno. Aqui ela se produz no terreno esportivo, como além do terreno eleitoral e político. José Soares segue então sua linha ideológica geral simbolizada pelo combate dessas duas forças do mal, com um certo favoristismo por Lampião, o herói preferido dos nordestinos, muitas vezes defensor do bem, embora por meios condenáveis. A este propósito, já vimos que ele é considerado como o “benfeitor” do Inferno, instalando luz, água, calçamento, etc., e expulsando os indesejáveis.Voltemos, porém, à nossa partida de futebol, que vai nos colocar em face de números e de resultados

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fantásticos, infernais:

Lampião ganhou um turnosatanaz outro também no jogo domingo passadoempatou de cem a cem. (134)

- 163 -O jogo empatou, cem a cem. Notemos que a noção de tempo é normal: “no jogo domingo passado”. Mas, quanto ao espaço, não há dúvida de que se trata de outra coisa, é “no inferno todo inteiro”.Em seguida, é a formação das equipes, do terreno de jogo, do árbitro, etc. Lampião é dado sempre como favorito e como contestador, papel um pouco simpático:

O jogo era quarta-feiraporém Lampião não quisporque Lampião só fazo que lhe vem ao narize já houve um pau da molestana escolha do juiz. (135)

Notemos a expressão “um pau da molesta”, que significa muita discussão, certamente muita briga. O árbitroé um elemento de grande importância nestas ocasiões. Diríamos que estamos bem em nosso querido planeta Terra.Alguns nomes próprios merecem interesse. O árbitro se chama Plutão, o que não satisfaz a Lampião:

não agradou a Lampiãoque disse que esse juizsó torcia pelo cão. (136)

Satã é chamado cão, seu apelido mais conhecido no Nordeste. Triste comparação para o nosso estimado cachorro sertanejo. Na verdade mais uma dessas contradições da linguagem popular.Então Lampião, que não aceita a indicação do árbitro, faz apelo à Comissão Esportiva de Arbitragem. A situação é bloqueada, pois os dois contendores têm força igual, por enquanto. Finalmente, a imprensa se interessa pelo problema e faz proposições: “porém a rádio Capeta / opinou para um sorteio”. (137)Eis aí mais um apelido para designar Satã, o Capeta (138). Enfim, decide-se por um sorteio de árbitro que, mesmo assim, provoca certas reservas:

Quando fizeram o sorteiojuiz foi berimbaulampião disse pra eleeu toda vida fui mauapite o jogo direitose não quizer levar pau. (Grifo nosso) (139)

- 164 -Lampião conserva a sua imagem de contestador violento. A peleja futebolística no Inferno é uma ocasião mais para demonstrar a luta pelo poder do Reino do Mal; sua lei, a única que ele conheceu na vida terrestre, é a lei da força, da violência. Os personagens diabólicos se colocam contra ele no terreno do futebol. Mesmo o árbitro não merece sua confiança, como os juízes dos tribunais na sua passagem pela Terra. Quanto a Berimbau, temos mais uma vez a influência urbana dos ritos afro-brasileiros.Vejamos agora a lista das duas equipes, que não deixa de ter um certo interesse:

O goleiro de satanazchama-se DR. BUCÚum zagueiro é seu puticacentrefó papacú. (140)

Alguns nomes são impressos em letras maiúsculas, como “DR. BUCÚ”, presumivelmente de origem tupi, o que não é muito claro, pois significa um tubérculo vegetal. Em seguida alguns abrasileiramentos, como “goleiro” (de goal), “centrefó” (de center-four). Eis os jogadores da equipe de Satã:

O meio campo de satãé feito por cão rabicholao ponta direita é pencana esquerda caçarolao armador é cão coxoé coxo mas joga bola. (141)

Contrastando com esses apelidos infernais, vejamos alguns jogadores da outra equipe, que lembram as origens do cangaço sertanejo:

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Vamos saber a escalado time de Lampiãocurisco, chapéu de couro jabuti e masagãochucurié e pé de quenga. (142)

Veremos agora a narração da partida propriamente dita, que vai interessar muito o público do Inferno. E, como sempre, a visão dinâmica, viva e apaixonada do Inferno, do além-túmulo, onde as "pessoas vivem" como na Terra. Mas, além do respeito inicial às regras do "football association" (143) que vimos no abrasileiraraento da posição de cada jogador, notemos as dimensões apocalípticas do terreno e do número de jogadores:

O campo lá no infernotem muita descomposturaé mil metros de comprimentopor quinhentos de larguraas traves é 80 metrospor setenta de altura. (144)

- 165 -

são 80 jogadoresquarenta pra cala lado.(145)O campo tem quatro barras mais só joga dois goleiros.(146)Joga com 40 bolas (147)vinte e quatro juízes (148)A bola pesa cem quilose é de aço maciço (149)

Depois de observar a curiosidade gramatical do emprego do verbo ser em vez de ter, notemos as dimensões gigantescas do terreno, a quantidade de jogadores e o peso excepcional da bola.Não esqueçamos, porém, que o Inferno, mesmo, tem uma superfície mais do que excepcional, como nos disse Lampião: "Vou construir esse inferno/ 3 vezes maior que o mundo". (150)Vejamos mais uma vez o tema da violência e da valentia em geral representadas pelo personagem de Lampião, fiel à sua tradição terrestre. Vimos no capítulo precedente e em alguns versos de José Soares. E a apologia à força bruta continua:

Lampião só joga brutoE na base do chinelo. (151).

Se o juiz marcar um pênaltina barra de Lampiãoaí briga todo mundo. (152)

Lampião quando se danadá até no delegado. (153)

A violência é a medida do adversário. Lampião e Satanás são apoiados por um ambiente adequado: o climaé de guerra. Preveem-se jogadas perigosas, por isso, os responsáveis pela boa ordem do jogo tomam precauções muito sérias:

E quarenta bandeirinhasarmados de mosquetãoo juiz apita o jogocom uma granada de mãopra sacudir no primeiroque fizer reclamação. (154)

- 166 -A parada é federal, como se diz. Não esqueçamos que esse jogo representa mais um combate entre o Rei do Cangaço contra o Rei do Inferno, pela disputa do poder. Todos os meios são bons. Vimos no capítulo anterior que o poeta beneficiou Lampião que, embora tenha perdido na eleição democrática, se acampara do governo infernal graças a um clássico “golpe de estado”. A vida além-túmulo, porém, tem suas dificuldades. Ela pode evoluir em diferentes direções. Temos a impressão de que nosso poeta-repórter hesita em tomar posição. Os dois adversários são tão importantes que ele toma suas distâncias. Poderíamos dizer que a popularidade dos dois personagens é quase igual nesse velho Nordeste. Hoje é Lampião que domina, amanhã poderá ser Lúcifer, ou um dos seus sinônimos. A poesia popular viveu

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sempre nesse dilema. Não é por acaso que se diz que, entre os personagens "históricos" do Nordeste aos quais a literaturade cordel se refere, encontramos principalmente o Padre Cícero, Lampião e o Diabo. Com relação ao primeiro, não há dúvida, todos os poetas estão de acordo em afirmar que está no Céu, onde vive tranquilamente sem qualquer contestação. Quanto a Lampião, é uma outra coisa, seu caráter contestador e guerreiro o colocam em situações difíceis. Como durante sua vida terrestre ele "infernou" a vida de populações inteiras, é preciso que se faça um bom lugar poronde passa. Um lugar à sua altura, pois, como diz o ditado: “quem foi rei sempre será majestade!”. Mas o problema é que nosso Lampião não pode escolher. No além-túmulo ele só pode escolher entre dois lugares,o Céu ou o Inferno, pois a situação intermediária, isto é, o Purgatório, não é levado muito a sério, não, pela literatura de cordel. Ora, o primeiro lugar citado é, em princípio, interdito a todos os cangaceiros (exceto a Antônio Silvino, um caso à parte!) e especialmente a Lampião, embora ele tenha tentado ir para lá, como veremos no capítulo seguinte. Então só lhe resta um lugar, o Inferno. Mas, nesse lugar, já existe um soberano, Mestre Lúcifer.Eis a dificuldade, o obstáculo, a nossos poetas populares para nos dizer como esta questão de natureza eterna vai se resolver. Um dia é o Rei do Cangaço que predomina; no outro, é o Rei do Inferno. Estamos em face da fantasia dos poetas populares, ou essa questão reflete aspectos transcendentais que inquietam os leitores e ouvintes do cordel, isto é, uma grande parte da população nordestina. Para já não podemos responder. Enviamos a especulação a outras pesquisas no terreno social e físico do Nordeste. Limitemo-nos, neste trabalho, a revelar, analisar e comentar o sentido dos versos da poesia popular nordestina. Nesta perspectiva, olhemos para a conclusão de O futebol no Inferno, do poeta-repórter José Soares que, anosso ver, hesita em tomar uma decisão e envia a solução do problema para mais tarde, a uma outra ocasião, à eternidade, talvez:

o jogo dura três dias (154 b)Satanaz quer adiar o jogopara dia de juízo. (154 c)

- 167 -130 - SOARES, José: O eclipse e o cometa Kohoutek O divórcio no Brasil O encontro de J. K. com Getúlio Vargas no Céu Coisas do Sertão131 e 134/149 - Idem, O futebol no Inferno.132 - O estádio do Maracanã comporta 250 mil espectadores. Eis um comentário publicado no jornal Movimento, de 7/13 de maio de 1975: "Seu Domingo Viana da Silva, rubro-negro desde o fim dos anos 30,quando emigrou de Alagoas, não cabe em si de contente e diz com orgulho que desse jeito será preciso construir outro Maracanã. Assim não dá mais. No domingo, o Maracanã estava botando gente pelo ladrão, não dava pra todo mundo. Se o Flamengo for nessa batida, vão ter que construir um estádio ainda maior. O Maracanã ficou pequeno para a torcida do Flamengo".133 - Ver CANTEL, Raymond. Temas da atualidade na literatura de cordel. São Paulo: Universidade de S. Paulo, Escola de comunicação, 1972.143 - Regras da Fifa.O futebol no Inferno, p.4., st.2.

.- 168 -150 - A eleição do Diabo e a posse de Lampião no Inferno.151/154 - O futebol no Inferno, p. 6., st.2...- 169 -

CAPÍTULO VIIIENCONTRO NO CÉU DO BEM E DO MAL

Como vimos nos capítulos anteriores, a vida além- túmulo parece bastante animada. Esse dinamismo é devido ao espírito imaginativo de nossos poetas de cordel, que estão na expectativa de mensagens ou da descoberta de viajantes que passeiam no Além ou de personagens que vêm desse lugar para visitar nosso planeta Terra. Por enquanto, o Inferno é o lugar mais animado e vivo que há. Isto deve ser levado ao créditodos pensionistas virulentos, apaixonados e apaixonantes que lá vivem. Conflitos de toda ordem levam esses seres a afrontamentos às vezes “mortais”. Este termo é, pelo menos, surpreendente na medida em que no Além todos já são mortos. Eis um grande paradoxo, ou então estamos diante de duas hipóteses muito sérias. Uma se refere à concepão de vida eterna, não uma eternidade no sentido religioso, mas como uma “outra vida” que apenas muda de lugar e na qual as pessoas continuam a desejar as mesmas coisas e a desempenhar as mesmas atividades que outrora. A outra hipótese nos conduz ao mito muito antigo da renovação (reencarnação?), segundo a qual à morte sucederia uma outra vida que terminaria por um outro falecimento, e assim sucessivamente (155). Vimos também que a noção tradicional de pecado e castigo, este, como consequência do primeiro, não é muito respaldado entre os poetas populares, pelo menos entre os que estudamos, que, aliás, são bastante representativos. As pessoas vão para o Inferno não porque elastiveram uma vida de pecados, por isso devem ser castigadas, mas, ao contrário, porque desejam viver no além-túmulo o mesmo tipo de vida de outrora. Haverá, assim mesmo, uma espécie de separação. Alguns,

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talvez os bons, vão para o Céu, a exemplo de Padre Cícero, Frei Damião e o cangaceiro Antônio Silvino. Quanto a este último, a noção de bom já é difícil de comprender. E os maus vão para ou “ao” Inferno, onde continuarão os seus calvários, suas lutas e seus desafios, o que, na verdade, não representa um castigo, mas a continuação do mesmo esquema da vida terrestre. Exemplo típico dessa categoria é o famoso Lampião, "prefeito do Inferno". Assim, distingue-se na poesia popular um reconhecimento de vida eterna, simbolizada por vários tipos de aventuras e ações extraterrestres. A Terra representa apenas "nosso mundoatual", mas haveria "outros mundos".

Entretanto, não se deve ver nessas ideias um corpo de doutrina coerente e sem falhas. Nada disso. Nossospoetas populares são o reflexo de toda uma cultura de predominância cristã, enriquecida de elementos culturais e sociais autóctones e africanos. Essas contribuições são irregulares, variadas em quantidade e conteúdo, e sofrem forte influência do meio ambiente, sobretudo rural.

- 170 -A partir desse contexto cultural e social, pensamos que será interessante conhecer a vida de um outro local situado no Além, seguindo sempre as descrições da literatura de cordel. Antes de entrar nesse outro local, diga-se que a poesia popular parece à vontade para narrar o que se passa no Inferno; em todo caso, ela é mais produtiva quando se trata de falar desse local. Constatam-se mais animação e vida no Inferno que no Céu, menos interessante e atraente, um tanto monótono. O pouco de animação que se observa no Céu é provocado provisoriamente por elementos que vivem habitualmente no Inferno. Eis porque vamos apresentar alguns folhetos que narram a vida no paraíso celeste e descrevem as preocupações de personagens já famosos na vida do além-túmulo em geral. Isto quer dizer que nosso critério de escolha de folhetos e de poetas é no sentido da continuação das aventuras de certos personagens, como da problemática “vida terrestre e outras vidas”, direta ou indiretamente percebida em autores populares conhecidos. Assim, dois folhetos vão nos conduzir ao Céu:O Satanaz reclamando a corrução de hoje em dia, de José Costa Leite; O grande debate de Lampião com São Pedro, de José Pacheco.Observamos desde já que esses dois heróis da poesia popular, ou da consciência popular nordestina, continuam suas disputas, mesmo quando se encontram num lugar que lhes é pouco favorável. Quanto aos dois poetas, digamos que Costa Leite segue sua linha tradicional de apego às preocupações religiosas e morais, enquanto José Pacheco, mais imaginativo, preocupa-se com as proezas e com o destino, terrestre e de além-túmulo, do célebre cangaceiro Lampião (156).Observamos, outrossim, que o interesse desses dois folhetos é essencialmente o conceito da vida do além-túmulo, comum aos dois, assim como aos outros folhetos estudados nesta terceira parte de nosso trabalho. A referência a Satanás (Satanaz) e a Lampião é o traço comum das poesias estudadas. Neste capítulo não fazemos necessariamente a comparação entre os dois folhetos, mas os estudamos paralelamente. Comecemos, então, pelas intenções moralizadoras de mestre Satã:

Com fé em Deus Verdadeiroe na Santa Virgem Mariapara os queridos leitoresvou traçar em poesiaO Satanaz reclamandoa Corrução de Hoje em Dia. (157)

Em seguida, o poeta nos explica como Satanás chegou ao Céu. É interessante observar a diferença do meio de transporte para chegar ao Inferno ou ao Céu. Para o primeiro, o mesmo autor nos informou que a viagem se fez no popular cavalo (158). Ao passo que, para ir ao Céu, é necessário utilizar meios de transporte cósmicos, como veremos a seguir. É, talvez, a noção tradicional do Inferno no interior da Terra; e o Céu nas alturas, no espaço sideral:

- 171 -Num dia tempestuosodebaixo dum temporalSatanaz montou no ventocom sua ideia infernale resolveu bater na portade Deus Pai Celestial. (159)

Agora, vamos passar aos versos de José Pacheco, cuja preocupação é, por enquanto, diferente de seu colega Costa Leite. Mas ele se aproxima de algo mais adiante:

Para me certificarda morte de Lampiãoarrumei o matulãoe andei pra me acabarnão escapou-me um lugardo Brasil ao estrangeiropercorri o mundo inteiroprocurando a realeza

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até que tive a certezada morte do cangaceiro. (160)

Aí nesses versos, há duas observações importantes. Primeiramente, é de saber o lugar onde se encontra Lampião, no Brasil ou no estrangeiro. Parece-nos que o poeta não está convencido da morte do herói. Em seguida, notemos o tratamento real que é dispensado ao personagem. “Realeza” precede a denominação cangaceiro, o que confirma que o banditismo sertanejo das décadas anteriores, de 1800 a princípios de 1900, é considerado como um fenômeno social de natureza um tanto nobre; trata-se de um banditismo de honra, de guerras do cangaço, não de um banditismo ordinário.Como o primeiro autor, o atual poeta imagina meios de transporte de dimensão universal, assimilando astros, santos e fadas:

E atravessei os maresmontado em um planetaque ao som duma trombetavinha descendo dos aresvisitando aqueles laresterra de santos e fadanaquela mesma jornadaencontrei no arrebolcheguei na terra do solna casa da madrugada. (161)

Costa Leite e José Pacheco utilizam, assim, meios de transporte extraordinários para conduzir personagensinfernais aos lugares superiores.

Com respeito a Pacheco, todos os meios lhe são necessários para descobrir, não o tempo, mas o seu herói perdido. Como vimos na primeira estrofe, ele partiu para verificar a veracidade sobre a morte de Lampião. Ora, para encontrar um tal personagem, é preciso empregar meios de alcance cósmico: os mares,os planetas, etc.

- 172 -Mais uma vez notamos que a visão do mundo da poesia popular apresenta aspectos inovadores e perturbadores. A tendência geral é no sentido de apresentar Lampião e Satanás como símbolos do mal, confinados definitivamente nas “profundezas escuras do inferno”. Mas os poetas populares contrariam muitas vezes essa doutrina, a começar pela escuridão do Inferno e, no caso atual, no que concerne ao localonde se podem encontrar esses personagens. Na estrofe anterior, lemos que o poeta visitou "terra de santos e de fadas", à procura do seu herói. Deve-se dizer, além disso, que ele encontrou grande compreensão e ajuda de poderes universais, segundo o que nos informa nos versos seguintes:

Ela me deu um abraçoprestou-me bem atenção mandou chamar o verãono reino do mestre espaçodepois chegou o mormaçoe saiu muito vexadoporque estava ocupadono palácio da manhãtratando da sua irmãmulher do vento gelado. (162)

Como se vê, o poeta popular viaja no espaço. O cosmo é o lugar de seus passeios. Aí, ele dispõe mesmo de uma certa intimidade: a madrugada lhe dá um abraço, tão brasileiro e popular. Mas o poeta, narrador e explorador, não se deixa levar por essas gentilezas, pois ele tem um objetivo preciso em sua viagem através do universo. Ele continuará sua busca:

continuei a viagemcom boa capa de luvaporque a terra é de chuvae mora dona friagem. (163)

Não esqueçamos as estações e o clima. Mesmo durante essa viagem cósmica, a noção de chuva e de frio, talvez de inverno, é presente. Continuemos a viagem antes que o poeta precise mais claramente seus objetivos:

No reino da branca auroraencontrei a brisa mansaque vinha trazer lembrançaà princesa deuza da floraa neve naquela horaem sua alcova dormia

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depois o sol lhe surgiadesfazer-lhe do regaçoenquanto pelo espaçoe neve branca corria. (l64)

O poeta José Pacheco nos descreve o formidável espetáculo da natureza, através de um vocabulário simples e sugestivo. Notemos os versos nos quais ele nos diz como a neve foi despertada pelo sol.

- 173"a neve naquela hora / em sua alcova dormia / depois o sol lhe surgia / desfazer-lhe do regaço". Tudo, porém, não é do domínio da natureza lírica do poeta. É preciso voltar ao concreto objetivo da viagem:

Pra saber de Lampiãoqual foi a parada suasubi à terra da luaescanchado num trovãoencontrei um anciãovelho, barbado e corcundoque vinha do fim do mundome viu e foi me contandoque viu São Pedro açoitandoum espírito vagabundo. (165)

Esses versos revelam alguns problemas de sintaxe ou, talvez, uma exegese mais aprofundada. Este não é, porém, o interesse no momento. Esclareçamos apenas que o terceiro verso quer dizer: subi da terra à lua. Isto dito, compreendemos que a lua se encontra em local mais alto que a Terra, e que é uma etapa da viagem entre a Terra e o Céu. Outra revelação interessante é que o poeta foi da Terra à lua montado num trovão. O linguajar rural, escanchado, é integrado à dimensão cósmica. O trovão montado por um poeta poderia sugerir os superfoguetes extraplanetários atuais, com seus barulhos e imagens de fogo e de fumaça em combustão. Com respeito ao ídolo Lampião, o poeta começa a mudar de tratamento, apesar do cenário cósmico no qual ele é procurado. Os últimos versos nos dizem que um velho viu São Pedro açoitar um espírito vagabundo. É verdade que o poeta não se compromete muito nessa história que lhe foi contada pelo velho. Notemos também que o fim do mundo é apresentado com uma noção de espaço, de distância, enão de destruição. Essa noção se integra à visão global da literatura de cordel, que concebe como um todo o Além, a Terra, o Inferno e o Céu.O que marca entre os poetas de cordel é a noção de continuidade entre a vida terrestre e o além-túmulo. Vemos, a todo momento, que tudo se passa no além-túmulo como aqui no nosso planeta Terra, seja do ponto de vista do comportamento e das relações humanas, seja do ponto de vista da disposição dos objetose das coisas materiais, como, por exemplo, a construção de imóveis. Vejamos, mais uma vez, a confirmação desse conceito do Além, poético certo, massimbólico, sem dúvida:

Chegou no céu Lampiãoa porta estava fechadaele subiu a calçadaali bateu com a mãoninguém lhe deu atençãoele tornou a baterouviu S. Pedro dizerdemore-se lá, quem é?estou tomando cafédepois vou lhe receber. (166)

- 174 -Vemos os hábitos bem corriqueiros:S. Pedro depois da jantagritou para Santa Zulmiratraz o cigarro caipira. (167)

Nota-se, ainda, que a mulher, mesmo santificada e vivendo no Céu, não perde as suas funções domésticas bem tradicionais; Sao Pedro, patrão e chefe de família, depois de uma boa janta à mesa, pede-lhe o clássico cafezinho e o cigarro caipira. Mas nosso São Pedro, mesmo sendo um chefe senhorial importante, não deixa de se lamentar da sua condição de empregado:

abriu a porta do meiofalando até agastadotriste do homem empregadoque só lhe chega aperreio. (168)

Além de ser obrigado a se deslocar depois do jantar, parece que o popular São Pedro vai nos falar de

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acontecimentos desagradáveis, aliás, descritos com o mesmo conteúdo nos dois folhetos que analisamos:

Abriu na frente o portãoficou na trave escoradobranco da cor de um finadoquando avistou Lampião. (169)

Vejamos agora como Costa Leite conta a chegada de Satã ao Céu:

São Pedro veio atendê-locom uma faca na mãoquando viu o Satanazchega ficou sem açãobranco da cor duma velamal batia o coração (170)

Os dois poetas estão de acordo para descrever o choque sofrido pelo porteiro do Céu quando viu chegar osdois famosos personagens diabólicos. Estes, porém, não se aperriaram e explicaram calmamente o objetivoda visita:

Lampião lhe respondeunão venha com seu insultovocé é um santo brutoque ofensa lhe fiz eu?e mesmo o céu é não seuvocê também é mandadoportanto esteja avisadose não deixar eu entrarnós vamos experimentarquem é que tem bom guardado. (171)

- 175A remarcar igualmente a irreverência dos poetas populares com relação aos santos e entidades sagradas, São Pedro é aqui chamado de “santo bruto”. Ao mesmo tempo, vemos ressurgir o tema de empregador e deempregado, e de propriedade particular. Tratando-se do Céu, essas noções não deixam de ter um certo interesse. É sempre a reprodução de esquemas sociais terrestres. Notamos a mesma concepção nos versos de Costa Leite, para Satanás interposto:

Satanaz disse a São Pedro– E você aqui quem é? seu senhor me respeitavocê em mim não tem févenha bem calmo senãovou dar-lhe de ponta-pé. (172)

Nos dois folhetos os versos são escritos na terceira pessoa quando se trata da conversação entre Lampião, Satã e S. Pedro, e mesmo com Jesus:

Disse Jesus: Que desejas,onde não foi convidadodisse o Diabo: Senhor Reio mundo está desgraçadoa corrução é demaisvim lhe fazer avisado. (173)

Eis que o tradicional personagem símbolo do “mal” se preocupa com o excesso de corrupção no mundo. Mas de que corrupção se trata e quais são:as razões de suas preocupações:[...] Eu não tenhomais lugar suficienteo inferno está cheinhoe todo dia chega gente. (174)

Eu já fiz 18 andaresno inferno o mês passadocom 6 mil apartamentose uma puxada dum ladonão tem uma vaga sójá está tudo lotado. (175)

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Parece que a preocupação de Satanás é só de ordem material: ele não tem mais lugares para os maus elementos que chegam todos os dias. Além disso, ele se dirige a Jesus como a um superior hierárquico, a um patrão, apresentando uma lista de reclamações bastante importantes. Nota-se uma preocupação bem discriminatória, de classe, digamos:

Eu queria gente boaque lá só tem gente ruimeu queria misturarpois não fica bom assimos bons ficar para os outrose os ruins para mim. (176)

- 176 -

Eu só queria levarpadre e Juiz de direitopastor, cabo e comissáriodelegado e prefeitocandidata vigaristaeu quero levar de eito. (177)

Essas preocupações de mestre Satã lembram outros viajantes célebres no Inferno, onde viram personalidades importantes. Pensamos no poeta Dante que, já no século XIV, revelava a presença de magistrados, príncipes e até de papas no Inferno da península italiana. Entre os poetas populares do Nordeste, pela voz de Satanás, observamos que a instalação de personalidades no Inferno é ainda ao nível da reivindicação. Veremos se isso será satisfeito. Em contrapartida, observaremos que o poeta se contradizum pouco quando faz a descrição de todas as pessoas e dos pecados terrestres que os conduziriam aos domínios de Satanás. Solicitando que não lhe enviem somente “gente ruim”, ele estabelece um vasto código pelo qual seria fácil fazer a verdadeira separação de maus e bons candidatos. Isso não surpreende com relação a José Costa Leite, por causa de sua “queda” pelos temas religiosos e morais do estilo tradicional. O que surpreende no seu folheto que estamos analisando é o fato de que ele possa simplesmente admitir a entrada do Diabo no Céu onde, apesar da oposição de S. Pedro, ele consegue uma entrevista com Nosso Senhor, às vezes chamado de Jesus Cristo. Satã ousa mesmo a dar conselhos a este para desembaraçar a Terra dos maus elementos:

Era bom que o Senhormandasse uma chuva quentepara do povo corrutoacabar com a sementepra depois apareceroutra raça novamente. (178)

Eis a tradição religiosa do castigo por meios apocalípticos, um fio condutor deste poeta. Mas voltemos um pouco ao outro “agente do mal”, nosso célebre Lampião, a fim de conhecer a continuação de sua visita ao Céu. Nosso viajante tenta se justificar perante S. Pedro:

É certo que fui bandidoperverso, estrompa vorazporém quem foi não é maisé mesmo que não ter sido. (179)

O Rei do Cangaço começa também a mudar de tom. Pode-se dizer que o ambiente divino o faz mais moderado. Vê-se que a predominância da moral religiosa faz seu caminho entre os apologistas da violência na Terra e no Inferno, impondo uma certa contrição no Céu. Parece que o herói procura uma espécie de perdão; primeiramente de São Pedro, que decidirá sua introdução junto de Jesus Cristo. O cangaceiro faz apelo à sabedoria popular para se introduzir no Paraíso:

- 177 -mesmo eu sou garantidopor um provérbio que tenhoescrito sobre um desenhopor pessoas elevadaso qual diz: águas passadasnão dão voltas a meu engenho. (180)

São Pedro, porém, não quer ouvir o suplicante. A situação se degrada. Lampião volta a seu estado natural eo diálogo muda de tom. Os interlocutores passam a uma fase de ameaças e muito em breve passam às vias de fato. Remarcamos o tom irrespeitável de Lampião, que não reconhece mais nenhuma autoridade a São Pedro, pois o objetivo de sua visita é contatar personalidades superiores. É claro que o poeta aceita a teoria ou o hábito no sentido de que o patrão está mais apto a compreender os problemas reais e os estados de alma das pessoas em busca de remissão, de arrependimento. Exemplo disso é o diálogo que

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vai se desenrolar: São Pedro começa:

Não quero articulaçãovocê aqui nada temé como você tambémlhe respondeu Lampiãoé porque do seu patrãovocê transmite o mandado. (181)

Os peleadores iniciam o embate. Observamos que os movimentos clássicos do duelo, da peleja, atingem seu apogeu. O parceiro responde a cada ataque do adversário. Lampião, bem entendido, insiste com seus argumentos para tentar abrir uma falha na argumentação do seu antagonista. Será que esta insistência sobre este problema de patrão e empregado não revelaria uma intenção velada de Lampião com respeito ao poder, ao governo do Céu? Não podemos responder. O cangaceiro insiste:

eu tenho visto empregadosair do trabalho expulsosem direção sem recursopor qualquer trabalho errado. (182)

A partir daí a situação é bloqueada e passa a um nível superior, de guerra aberta. São Pedro faz apelo aos santos guerreiros:

S. Pedro ergueu-se nos pése disse de cara feia afávelpra dar num cabra de peianão precisa oito nem deze gritou por S. Moisés– Vamos dar no bandoleirosaltou no meio do terreiroaté preparar a facagritando: quebra uma estacaarranque um pau do chiqueiro. (183)

178 -A batalha é desequilibrada. Lampião está só contra entidades muito importantes que se alinham ao lado de S. Pedro. Veremos nessa luta celeste, além deste último, figuras da importância de um São Moisés, santos guerreiros, como São Paulo, com sua faca na cinta; Santa Jacinta que representa o setor feminino mais radical e aguerrido, a tal ponto que o afável Santo Augusto tenta lhe barrar o caminho de ataque contra Lampião, ouvindo daquela santa imprecações do estilo: “arreda que tu não pode / eu pego o cabra sozinho(a)”. Mas toda essa tropa celeste não chega para vencer o nosso herói das caatingas nordestinas. Aluta é tremenda, já não chegam os reforços humanos, ou melhor, santificados. Apesar dos apelos de Santa Jacinta, o governo celeste vai utilizar a artilharia pesada:

Porém antes de pegardesceu um grande coriscojogado por S. Franciscoda porta do quinto andarnum tremendo ribombarum trovão também desceuo espaço escureceuveio um forte pé de ventoLampião neste momentodali desapareceu. (184)

Como vimos no início do folheto, o poeta José Pacheco tem grande predileção pelos recursos cósmicos. Para lutar contra o grande herói dos sertões, o cangaceiro Lampião, sozinho sem suas tropas, tudo é permitido, tudo é invocado. A ousadia, a virulência do sertanejo não é perdoada. Ele não consegue ver nem falar com “o grande patrão”. Representaria essa atitude intransigente um julgamento de valor, segundo o qual um grande pecador não teria direito de se apresentar diante de Jesus Cristo, representante direto e único de Deus, cujo nome, aliás, não é mencionado. Ou trata-se de uma astúcia poética para evitar um afrontamento direto dessas potências tão transcendentais para o povo nordestino, como são Lampião e o Deus, todo-poderoso? Questões difíceis de responder. O que sabemos, porém, é que o “anjo do mal”, Satã,tem mais sorte que o nosso Lampião. O primeiro, apesar de sua reputação infernal e a oposição de São Pedro, consegue ser entrevistado pelo Cristo, o patrão. Vimos que ele se atreve mesmo a dar conselhos ao filho de Deus, que lhe responde com muita indulgência:

Disse Jesus: Satanazvocê não sabe julgaresse povo pecadorpode se regenerar

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havendo arrependimentoinda pode se salvar. (185)

Eis a ideologia cristã do perdão pelo arrependimento. Mas uma coisa que ele não pode transigir é a propósito de seus poderes celestes:

Volte para o seu lugaraqui quem manda sou eudesapareça daqui

- 179 -Satanaz chega gemeudeu um estrando medonhoe dali desapareceu. (186)

No fim das contas, a sorte das duas potências contestadoras é equivalente. Hesitamos, porém, de insistir com a expressão “potência do mal”, pois ela é bastante tradicional. Lampião e Satanás, apesar de suas vidas e obras de agitação e guerras, ousam tentar entrar no Céu, esse paraíso dos Bem-Aventurados. Eles desejam descutir sobre problemas morais que existem na Terra (e não no Inferno?) e pedir perdão de seus pecados. Mas tudo isso não é importante. O que se deve considerar é que o sentimento popular expresso pela poesia de cordel vai no sentido de que dois personagens, como Lampião e Satanás, apesar de viveremnum lugar chamado Inferno, não devem ter complexos: o além-túmulo é um universo englobando a Terra, o Inferno, a Lua, os ventos, os oceanos, todos os astros e o Céu. A viagem através desses elementos é livre e acessível a todos, mas há restrições para a entrada no Paraíso, com base em considerações morais e religiosas, segundo uma classificação do bem e do mal, às vezes não muito clara e evidente. Outra ideia que se pode tirar da leitura completa dos dois folhetos é que a animação e a vivacidade permanente do Inferno, habitado por seres cheios de ambições e de angústias, de “seres humanos”, opõe-se à visão calma, monótona de um céu habitado por seres puros e sem preocupações, perturbados, de vez em quando, por visitas insólitas e inadmissíveis.Finalmente, é evidente que os dois personagens bastante populares da literatura de cordel, Lampião e Satanás, não são aceitos no Paraíso Celeste. Eles vão voltar certamente ao Inferno, para continuarem a luta pelo poder e inspirar outras histórias e folhetos de cordel. Lá embaixo eles estarão num contexto mais conforme à ideia e à sensibilidade populares dos nordestinos.

- 180 -(155) Ver ELIADE, Mircea. Aspects du Mythe.156 - LEITE, José Costa. A vinda da Besta-Ferra; A voz de Frei Damião; O Frei Damião sonhou com o Padre Cícero Romão. - Pacheco, José. Chegada de Lampião no Inferno e Chegada de Lampião no Céu.157 - LEITE J. Costa. O Satanaz reclamando a corrução de hoje em dia.158 - Idem, O Sanfoneiro que foi tocar no Inferno.159 - Idem, O Satanaz reclamando a corrução de hoje em dia.160/169 - PACHECO, José. O grande debate de Lampião com São Pedro.170 - LEITE, J. Costa. O Satanaz reclamando a corrução de hoje em dia. 171 - PACHECO, José: O grande debate de Lampião com São Pedro., 172 /178 - LEITE, J. Costa. O Satanaz reclamando a corrução de hoje em dia179/184 - PACHECO, José. O grande debate de Lampião com São Pedro.185/6 - LEITE, J. Costa. O Satanaz reclamando a corrução de hoje em dia.

- 182 -

REFLEXÕES e CONCLUSÃO

- 183 -O complexo cultural do Nordeste apresenta aspectos bem particulares, surpreendentes mesmo. A convergência temática da literatura popular e da literatura erudita é um desses pontos de convergência. A linguagem, o vocabuário, a sintaxe, o ritmo e a entonação das frases e, essencialmente, os temas abordados por uns e por outros são pontos de contato bastante sérios. Falamos, naturalmente, da literatura erudita originária do Nordeste do Brasil, em particular a partir de 1920. Esta data não tem um sentido rigorosamente histórico, mas, sobretudo, um quadro sociocultural determinado. Pensamos em escritores e poetas saídos de camadas sociais e culturais absolutamente diferentes, muitas vezes em oposição ao meio socioeconômico de onde eles emergem. Ao longo deste trabalho citamos e comparamos alguns

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representantes da “cultura dos letrados”. A sorte bem como as origens desses intelectuais não têm nada de parecido com as de nossos poetas populares. Além do nível de vida, social e econômico, os escritores eruditos podem alcançar posições as mais renomadas na cena literária do país, como, por exemplo, a “imortalidade” que lhes é conferida pela Academia Brasileira de Letras. É o caso de José Lins do Rego, de José Américo de Almeida e outros. Este último, além disso, fez uma carreira política importante como governador do Estado da Paraíba, terra de grandes poetas populares, e ministro de vários governos da República. Citemos ainda a reputação de romancistas e dramaturgos, como Jorge Amado, Dias Gomes, Ariano Suassuna e Rachel de Queiroz, todos preocupados e inspirando-se em temas histórico-populares dos sertões e do Nordeste brasileiro.Do ponto de vista social, essas personalidades não têm nada em comum com os poetas populares, homenssaídos das camadas mais modestas da sociedade brasileira e de nível de vida, às vezes, miserável. Não é inútil lembrar que esses poetas populares são, em geral, pessoas de poucas letras, que não frequentaram escolas ou, se o fizeram, foi num período bem reduzido. Parece-nos evidente que a celebridade e o prestígio intelectual não constituem as suas preocupações. Eles são simplesmente a expressão da consciência popular do meio do qual eles emergem e no qual eles vivem. Destaquemos as reflexões de doisautores europeus, bastante distantes no tempo e no espaço, que se debruçaram sobre a problemática da poesia e da cultura populares. Essas reflexões nos interessam na medida em que elas nos ajudam a situar a poesia popular do Nordeste brasileiro num quadro mais amplo. Primeiramente, vejamos as palavras do pensador Montaigne:"La poésie populaire et purement naturelle a des naïvetés et graces par où elle se compare à la principale beauté de la poésie parfaite selon l'art". (1)Em seguida, citemos um contemporâneo, o universitário, também francês, Bernard Muralis, que afirma:"Le peuple est à la fois créateur et dépositaire d'une culture et d'un art spécifique par opposition à la culture et à l'art des classes lettrées". (2)

(- 184)Bem, essas reflexões, reafirmando a beleza e a preeminência da criação popular, enviam-nos ao espaço geográfico e cultural do Nordeste brasileiro, onde os artistas eruditos e populares se expressam da mesma maneira, como vimos em várias ocasiões. A coincidência é observada inclusive no plano das perspectivas, como vemos nas palavras de um personagem de José Lins do Rego: "É por isso que eu digo todo dia: homem para endireitar este mundo só mesmo o capitão Antônio Silvino". (3)Em seguida, comparemos o que diz o mesmo Antônio Silvino, na poesia popular de Chagas Batista:

Eu vi que por muito povoEu me achava cercado.Alguns pediam-me esmolas,Então não me fiz rogado.Uns quatrocentos mil réisCom os pobres distribuí. (4)

Vemos, pois, que o intelectual e o poeta popular traçam o mesmo perfil do cangaceiro Antônio Silvino, chamado de “capitão” na primeira citação. É importante assimilar ainda que as duas expressões culturais manifestam preocupações bastante próximas. Vemos uma espécie de comunidade ideológica cada vez queas duas literaturas abordam o mesmo assunto; a mesma história e o mesmo desenvolvimento temático de personagens marcados por traços de caráter e de comportamentos psicológico e social semelhantes. Basta dizer que se trata apenas de coincidência? Talvez não. É preciso ir mais além. Pensamos que as duas expressões, a popular e a erudita, interpenetram-se e completam-se num mesmo espaço histórico, cultural e social, que é chamado Nordeste. A situação dessa região é tal, sobretudo nos campos, nos sertões, que os artistas não podem deixar de refleti-la. A escolha dos temas, o desenvolvimento dramático das histórias e dos personagens não são, propriamente, uma escolha. É o reflexo natural do meio, enrequecido pela contribuição pessoal de cada produtor, erudito ou popular.2 - MOURALIS, Bernard. Les Contres Littératures, p.118.3 - REGO, José Lins do. Fogo morto, p.184.4 - BATISTA, Francisco das Chagas. A história de Antônio Silvino. In: Literatura popular em versos, p. 338.

- 185 -Seguindo, então, essas observações, atingimos o primeiro ponto de interrogação de nossas pesquisas, que se traduz pela questão seguinte: por que poetas populares e escritores eruditos do Nordeste fazem a mesma aproximação e propõem a mesma perspectiva sociocultural, a propósito dos acontecimentos históricos e das indagações espirituais ou filosóficas das populações sertanejas?Como suporte a essa questão, lembremos as semelhanças de tratamento dos diversos intervenientes em temas como o do cangaço, das crenças psicorreligiosas, do misticismo e do messianismo, assim como do além-túmulo. A esse propósito, isto é, a coincidência temática entre intelectuais e poetas populares, em espécie, na persistência de temas medievais, vejamos o que pensa a socióloga Walnice Nogueira Galvão:"Si nous cherchons à expliquer par l'histoire les raisons de cette représentation, si fréquente, nous pouvons la justifier à deux niveaux. Au premier niveau, on peut trouver des éléments historiques, encore que fragmentaires et superficiels, qui permettent une analogie abusive avec le Moyen-Age (...) Voilà pour l'un des niveaux. L'autre, provient d'un phénomène culturel curieux. Dans cette immense région appelée le Sertão, a survécu jusqu'aujourd'hui une littérature populaire dont les thèmes et les formes constituent des

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survivances médiévales. Même la langue que l'on parle dans ces régions est archaïque, ou archaïsante, par rapport à la langue des centres urbains, qui est marquée par l'immigration et les tranformations [...]"E a socióloga continua sua exposição para tentar explicar ou compreender a coincidência existente entre a cultura erudita e a popular, acrescentando: "Ce qui m'étonne, c'est que les intellectuels le répètent!". (5)A outra grande questão que somos levados a colocar na conclusão deste trabalho se refere à representatividade e à legitimidade dos poetas populares, da literatura popular em versos do Nordeste do Brasil, enquanto expressão mais direta e a mais fiel dos sentimentos ou da consciência popular das populações rurais dessa grande região. Por população rural, compreendemos as pessoas que vivem no interior, nos sertões, ou daí originárias. Não nos parece lógico que, pelo fato de emigrar para Recife, Rio de Janeiro ou São Paulo, as pessoas percam fundamentalmente a sua bagagem cultural, seu comportamento psíquico e sentimental, e outros elementos que compõem e condicionam a sua visão do mundo. Essa questão, que para nós já é uma resposta, foi sugerida por todos esses folhetos que “cantam” sem descontinuar as esperanças messiânicas representadas por um Antônio Conselheiro e outros iluminados, pela “sacralidade” de um Padre Cícero e sucessores, pelas aventuras terrestres e extraterrestres de um Lampião e de um Antônio Silvino, assim como pela “dessacralização” ou desmitificação da eternidade, do Além. O Inferno e o Céu, este de maneira menos continuada, são apresentados e glosados como lugares de lutas e disputas, de ambições e de pelejas bem humanas, como no nosso querido planeta Terra. Amém!(5) GALVÃO, Walnice Nogueira. "Fiction Moderne et Représentation Médiévale: un cas”. In: Idéologies, Littérature et Société en Amérique Latine. Edição da universidade de Bruxelles, 1975.

- 186Observamos, outrossim, que a poesia popular revela um conceito muito natural diante da morte. Esta decorre de uma continuação, de um segundo ato de uma mesma peça, que não tem fim. Os poetas populares, ou as populações que eles interpretam, procurariam a explicação ou a justificação de uma vida terrestre de curto tempo, de certa maneira frustrante. Explicações não encontradas na Terra continuam a ser procuradas no Além: Conselheiro, Padre Cícero e Silvino estão nos céus; Lampião e Satanás disputam o império dos infernos; o camponês e o acordeonista procuram alianças malditas para iludir suas dificuldades terrestres. Enfim, são válvulas de escape para compensar as incompreensões dos "mistérios" deste mundo.Finalmente, gostaríamos de colocar dois problemas que não foram expressos formalmente ao longo deste trabalho, mas se encontram subjacentes em muitas ocasiões, e mesmo em algumas formulações.Dissemos na introdução deste estudo que empregaríamos uma certa dose da pesquisa sociológica para analisar alguns aspectos culturais do Nordeste brasileiro, sem com isso pretender chegar a resultados de uma análise propriamente científica. Nossa intenção foi de pôr em paralelo, de vez em quando, a literatura popular em verso com a literatura dos letrados, e de comparar essas duas tangentes da cultura regional e brasileira com os sentimentos e a realidade social e cultural dos sertões e do Nordeste em geral. Sobretudo,este nosso trabalho permanece um estudo literário, pois ele se baseia essencialmente sobre material escritoou oral da poesia popular.Eis porque consideramos que a literatura de cordel deve ser vista e apreciada no sentido mais amplo possível. Trata-se, a nosso ver, do fenômeno cultural mais expressivo e representativo da região. Ela é o espelho mais fiel do Nordeste profundo, do Sertão, dos campos, do interior. Seus heróis, seus cangaceiros, seus santos, suas crenças e mitos são o símbolo, a representação, dos homens e das mulheres desse amplo e populoso Nordeste. Estamos convencidos, na qualidade de pesquisador e de sertanejo, que é possível e viável conhecer a realidade social objetiva, assim como as indagações espirituais e filosóficas do povo do Nordeste e de boa parte do Norte do Brasil, através da leitura e do estudo desses livrinhos que são os folhetos de cordel, atualmente, com um bom século de existência escrita. A grande dificuldade, porém, para a sistematização de um estudo está no problema das datas das primeiras produções. Mas isso poderá ser compensado pelo testemunho pessoal de muitos poetas populares que vivem atualmente e continuarão a poetar por muitos anos. Também pode-se interrogar as pessoas de suas famílias, amigos e contemporâneos. Enfim, todo um material de suporte socioantropológico a explorar.Na mesma linha de estudo, podem-se ainda consultar os jornais e as publicações do interior, atuais e antigos, que se podem encontrar nas bibliotecas, prefeituras e círculos literários que podemos ainda descobrir por estes sertões afora. Descobertas importantes poderiam ser feitas, seja por intermédio de publicações difíceis de encontrar nos mercados ou pela audição e informação da versão oral do cordel, talvez a mais original e pura, a “cantoria”.

- 187 -Finalmente, para concluir este trabalho, deixamos aqui a ideia de que outras pesquisas devem continuar no mesmo terreno da poesia e da cultura populares nordestinas em geral. Este é o propósito que pretendemos expor nas linhas anteriores. A literatura de cordel, ainda bastante viva e produtiva, talvez não será eterna. Sobretudo em face do “ataque” possante dos aparelhos audiovisuais contemporâneos.Walter Tenório Pontes

188BIBLIOGRAFIA

- 189 -A) TEXTOS UTILIZADOS E CITADOSI - Bibliografia geral

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- 190 -CANTEL, Raymond. Prophétisme et Messianisme dans l'oeuvre d'Antônio Vieira. Paris: CNRS, 1960.CARNEIRO, Edison. Candomblés de Bahia. Publicações do Museu do Estado da Bahia, 1948._________________. O folclore nacional. Rio de Janeiro: Editora Souza, 1954._________________. Os doze pares de França. In: Cadernos brasileiros, n. 45. Rio de Janeiro, 1968.CUNHA, Euclides da. Os sertões. Rio de Janeiro: Laemert et Cia. 1903._________________. Os sertões. 13. ed. Rio de Janeiro, 1933.DANTAS, Paulo. Os sertões de Euclides da Cunha e outros sertões. São Paulo: Conselho Estadual de Cultura, 1962.ELIADE, Mircea. Aspects du Mythe. Paris: Gallimard, 1963.FACÓ, Rui. Cangaceiros e fanáticos. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1965.FERNANDEZ, Lorenzo Joaquim. As casas dos mortos. In: Actas do Congresso Internacional de Etnografia de Santo Tirso, vol. 2, 29. sec. Lisboa, 1965 .FERREIRA, Ascenso. Poemas - 1922-1953. Recife: Editora I. Nery da Fonseca, 1955.FERREIRA, Aurélio Buarque de Holanda. Novo Dicionário Aurélio. l. ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1975.FERREIRA, Jurandyr Pires. Enciclopédia dos municípios brasileiros. Rio de Janeiro: IBGE, 1958.GALVÃO, Walnice Nogueira. Fiction Moderne et représentation médiévale: un cas. In: Ideologies, Littératureet société en Amérique Latine. Bruxelles: Editions de l'Université de Bruxelles, 1975.GOMES, Dias. A revolucão dos beatos. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1972.____________. O pagador de promessas. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1972.LE LANNOU, M. Le Brésil. Paris: Armand Collin, 1955.LEAL, Victor Nunes. Coronelismo: the municipality and representatif governement in Brazil. Cambridge: Cambridge Latin American Studies, 1977.LEITE, Antônio Áttico Souza. Memória sobre a Pedra Bonita ou Reino Encantado. In: Revista do Instituto Archeológico de Pernambuco. Tomo XI, Recife, 1903/4.

- 191 -MASSERON, Alexandre. Index avec une introduction à la bibliographie dantesque. Albin Midhel, 1950.____________________. Pour comprendre la Divine Comédie. Paris: Desclés, De Brower, 1939. MEYER, Mauritz. Quelques thèmes médiévaux d'imagerie populaire. In: Actas do Congresso Internacional de Santo Tirso, 29. sec. Lisboa, 1965.MONBEIG, Pierre. Le Brésil. Paris: Presses Universitaires Françaises, 1968.MONTAIGNE. Essais. Tome I. Paris: Editions Garnier Frères, 1962.MOREL, Edmar. Padre Cícerro, o Santo de Juazeiro. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1966.MOURALIS, Bernar. Les Contre-Littératures. Paris: PUF, 1975.QUEIROZ, Maria Isaura Pereira de. Classifications des Messianismes Brésiliens. In: Archives de Sociologie des Religions. n.5, Clermont-Ferrand._____________________________. Réforme et révolution dans les sociétés traditionnelles. Paris: Editions Anthropos, 1968._____________________________. O messianismo no Brasil e no mundo. São Paulo: Dominus, 1965.

- 192 -QUEIROZ, Rachel de. A beata Maria do Egito. Rio de Janeiro: José Olympio, 1958.RAMOS, Graciliano. Vidas Secas. Rio de Janeiro: José Olympio, 1965.REGO, José Lins do. A Pedra Bonita, Rio de Janeiro: José Olympio, 1956.________________. Fogo morto. Lisboa: Livros do Brasil, s/d.RENAN, Ernest. Histoire des origines du christianisme: l'Antéchrist. Paris: Calman-Levy, 1924.ROCHA, Glauber. Revisão crítica do cinema brasileiro. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1953.

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ROMERO, Sílvio. Contos populares do Brasil. Tomos I e II. Rio de Janeiro: José Olympio, 1954. SUASSUNA, Ariano. Romance da Pedra Bonita. Rio de Janeiro: José Olympio, 1972._________________. O auto da compadecida. Rio de Janeiro: Agir, 1971.TEÓFILO, R. História da seca no Ceará (1877-1880). Rio de Janeiro, 1922.TEYSSIER, Paul. Formation de Recherche en Langue et Civilisation.Luso-Bresilienne. Seminário na Universidade de Paris IV, Sorbonne, 1977-78.WATCHEL, Nathan. La vision des Vaincus. Paris: Gallimard, 1971.

II - Orações, Cantoria e Folhetos

ASSIS, Manuel Tomaz de. Oração do Padre Cícero. In: O fim do mundo está próximo.ATHAYDE, João Martins de. Peleja de Riachão com o Diabo. Editor-proprietário filhas de José Bernardo da Silva.BATISTA, Francisco das Chagas. A história de Antônio Silvino.CAVALCANTE, Rodolfo Coelho. Antônio Conselheiro, l.ed. Salvador, 1977.DANTAS, Zé; GONZAGA, Luiz. A Volta da Asa Branca. In: Modinhas. n.6. São Paulo: Luzeiro Editora, s/d.GONÇALVEZ, Severino. A moça que virou cobra.LEITE, José Costa. A força do Credo. In: A vinda da Besta-Fera._______________. Bendito. In: O Frei Damião sonhou com o Padre Cícero Romão._______________. A Briga de Antônio Silvino com Lampião no Inferno._______________. A vaca misteriosa que falou profetizando._______________. A vinda da Besta-Fera._______________. A voz de Frei Damião._______________. O Diabo e o camponês_______________. O Frei Damião sonhou com o Padre Cícero Romão._______________. O sanfoneiro que foi tocar no Inferno._______________. O Satanaz reclamando a corrução de hoje em dia._______________. Peleja do embolador de côco como o Diabo.MAXADO NORDESTINO (Machado, Franklin). Profecias de Conselheiro (O sertão já virou mar). 3. ed. Feirade Santana, 1976.PACHECO, José. A Chegada de Lampião no Inferno.______________. O grande debate de Lampião com São Pedro.PONTUAL, José Pedro. O crente que profanou do Padre Cícero.Ed. Edson Pinto.SANTOS, Camilo Manuel dos. Viagem a São Sarué. SARA, J. (José Aires). 1893 – História da Guerra de Canudos – 1898.SILVA, João José da. A eleição e a posse de Lampião no Infeno.SOARES, Dila. Oração do Arcanjo São Gabriel. In: O sonho de um romeiro com o Padre Cícero Romão.____________. O sonho de um romeiro com o Padre Cícero.

-193-SUASSUNA, Ariano. O castigo da soberba. In: O auto da compadecida._________________. História do cavalo que defecava dinheiro. In: O auto da compadecida.

- 194 -

� III - Bibliografia especializada em literatura popular em versos

BARROS, Leandro Gomes de. Literatura popular em verso. Antologia, Tomo II. Rio de Janeiro: Casa de Rui Barbosa, 1976.CANTEL, Raymond. Les prophéties dans la Littérature Populaire du Nordeste. In: Cahiers du Monde Hispanique et Luso-Brésilien, Caravelle 15, 1970._________________. Temas da Atualidade na Literatura de Cordel. São Paulo: Universidade de São Paulo/Escola de Comunicações e Artes, 1972.DICIONÁRIO Biobibliográfico de Repentistas e Poetas de Bancada, Universidade de João Pessoa e Centro de Ciência e Tecnologia de Campina Grande (Paraíba), 1978.DIEGUES JR, Manuel. Ciclos Temáticos na Literatura de Cordel. In: Literatura popular em versos. Estudos, Tomo I. Rio de Janeiro: Casa de Rui Barbosa, 1953.Literatura Popular em Verso. Antologia, Tomo I, Rio de Janeiro: Casa de Rui Barbosa, 1964.Literatura Popular em Verso. Catálogo, Tomo I, Rio de Janeiro: Casa de Rui Barbosa, 1961.Literatura Popular em Verso. Estudos, Tomo I, Rio de Janeiro: Casa de Rui Barbosa, 1973.MAIOR, Mário souto. Prefácio à literatura popular em verso. Antologia, Tomo II.MOTA, Leonardo. Cantadores (poesia e linguagem do sertão cearense). Fortaleza: Imprensa Universitária do Ceará, 1961.PONTES, Walter Tenório. La Prépondérance Masculine dans la Littérature Populaire du Nordeste du Brésil. Paris: Sorbonne-Nouvelle, 1976/77.____________________. Machismo, literatura de cordel. Lisboa, Edições Rolim.RODRIGUES DE CARVALHO. O cancioneiro do Norte. Rio de Janeiro: Ministério de Educação e Cultura, 1967.ROMERO, Sílvio. Contos populares do Brasil. Rio de Janeiro: José Olympio, 1954.

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- 195 -______________. A Poesia Popular no Brasil, Rio de Janeiro: José Olympio, s/d.

-196 -B) TEXTOS UTILIZADOS

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- 197 -QUEIROZ, Rachel. O caçador de tatu. Rio de Janeiro: José Olympio, 1967.RAGAN, Michel. Histoire de la Littérature Prolétarienne en France, Albin Michel, 1974.RAMOS, Graciliano. São Bernardo. São Paulo: Martins, 1969.ROSA, João Guimarães. Grande sertão: veredas. Rio de Janeiro: José Olympio, 1968.ROSENFELD, Anatol. Prefácio a Teatro de Dias Gomes. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1972.

- 198 -ÍNDICE ONOMÁSTICOAIRE, José (J. Sara): 21ALENCAR, José: 59ALIGHIERI, Dante: 9, 59, 120, 121, 138, 141, 144, 152, 154ALMEIDA, José Américo de: 114ALMEIDA, Horácio de: 134ALVES, Joaquim: 5, 11AMADO, Jorge: 45, 52, 54, 59ANDRADE, Mário de: 40, 114, 125ASSIS, Manoel Tomaz de: 106, 113, 114ATHAYDE, João Martins de: 11, 120, 121, 122, 125, 127, 129, 132, 134, 135AZEVEDO, João Lucio de: 47BANDARRA, Gonçalo Anes: 38BARROS, Leandro Gomes de: 134BARTOLOMEU, Floro: 99BASTIDE, Roger: 6, 11, 106, 113, 145, 153CALAZANS, José: 30, 34, 40, 41CAMÕES: 51CANTEL, Raymond: 10, 21, 29, 34, 40, 52, 71, 72, 74, 77, 87, 113, 167CARNEIRO, Edison: 125, 153CAVALCANTE, Rodolfo Coelho: 4, 10, 11, 14, 15, 17, 18, 19, 20, 21, 28, 29, 38CUNHA, Euclides da: 4, 10, 15, 18, 21, 21, 24,.28, 29, 42, 59, 60, 69, 85, 87, 114, 116, 118, 120, 125DANTAS, Paulo: 125DANTAS, Zé (José): 29DIAS, Baltazar: 55, 121DIEGUES JR, Manuel: 29, 52, 54, 59ELIADE, Mircea: 160FACÓ, Rui: 21, 21, 41, 42, 49, 52, 99, 100FERNANDEZ, Joaquim Lorenzo: 116, 120FERREIRA, Aurélio Buarque de Holanda: 25, 38, 29, 69, 87, 90, 113, 125, 148FEUARDENT, François: 77FREITAS, Geraldo de: 6GALVÃO, Walnice Nogueira: 40, 251GOMES, Dias: 50, 52, 59, 62, 69, 112, 114GONÇALVEZ, Severino: 44, 52, 52, 59, 99

Page 193: literaturapopulardonordeste.files.wordpress.com · MITOS 16/01/2016 MITOS e MÍSTICAS DO NORDESTE (Literatura de cordel) Walter Tenório Pontes SUMÁRIO INTRODUÇÃO 1 SUMÁRIO INTRODUÇÃO

GONZAGA, Luiz: 29KUBITSCHEK, Juscelino (Presidente): 108LANNOU, M. Le: 12, 158LEAL, Victor Nunes: 29LEITE, Antônio Áttico Souza: 57LEITE, José Costa: 11, 61, 63, 65, 68, 69, 77, 79, 80, 82, 85, 87, 99, 100, 103, 111, 114, 118, 120, 128, 133,134, 135, 136, 138, 140, 142, 143, 144, 146, 152, 153, 170, 171, 174, 175, 176, 180, 181MAIOR, Mário Souto: 100MASSERON, Alexandre: 59, 144MAXADO NORDESTINO (MACHADO FRANKLIN), 34, 35, 37, 38, 41, 42MEYER, Mauritz: 53, 59MONBEIG, Pierre: 152MONSARAZ, Conde de: 121MOREL, Edmar: 5, 11, 17MOTA, Leonardo: 113NOSTRADAMUS: 100PACHECO, José: 11,22, 118, 170, 171, 172, 178, 180, 181PEREIRA, Ascenso: 48, 49, 52, 96, 100, 106PEZARD, André: 120, 145PINTO, Edson: 97PONTES, Walter Tenório: 11, 29, 40, 77, 120, 146PONTUAL, José Pedro: 120, 145, 97PROENÇA, Ivan Cavalcante: 100, 121PROENÇA, Manuel Cavalcante: 85, 87QUEIROZ, Maria Isaura Pereira de: 4, 10, 11, 21, 41, 42, 59, 99QUEIROZ, Rachel de: 52, 56, 59 52RAMOS, Graciliano: 59REGO, José Lins do: 15, 28, 29, 38, 78, 87, 114, 120RENAN, Ernest: 22, 52, 113RIACHÃO, Manuel: 169ROCHA, Glauber: 79, 87RODRIGUES DE CARVALHO: 113ROMERO, Sílvio: 29, 41, 102, 113, 114SENA, Joaquim Batista de: 118SANTOS, Manuel Camilo dos: 40, 47SARA, J. (José Aires): 14, 21, 26, 27, 29, 30, 31, 33, 34, 40, 41SILVA, João José da: 119SOARES, Dila: 16, 88, 89, 91, 92, 93, 94, 97, 98, 99, 100, 113, 114SOARES, José: 119, 161, 162, 167SUASSUNA, Ariano: 25, 29, 38, 52, 55, 59, 64, 69, 99, 100, 104, 113, 114, 125TÉÓFILO, R.: 114TEYSSIER, Paul: 104, 113, 123, 125VIANY, Alex: 87VICENTE, GIL: 104, 113, 123, 125VIEIRA, Antônio: 62, 71, 72VIRGÍLIO (Publius Virgilius Maro): 120WATCHEL, Nathan: 10