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GRNDSRT~V E R T I G E N S D E U M

ENIGMA

Marcelo Marinho(Doutor em Literatura Comparada, Sorbonne Nouvelle)

REE d i t o r a

RELiLi

L E T R A

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© 1998, 2001 Marcelo Marinho

Reservam-se todos os direitos desta edição à

LETRA LIVRE EDITORA LTDA.Rua Indiara, 14079040-830 • Campo Grande -MSRepública Federativa do BrasilTel • Fax (67) [email protected]

Impresso no Brasil / Printed in Brazil

Universidade Católica Dom BoscoEditora UCDBAvenida Tamandaré, 600079117-900 • Campo Grande - [email protected]

É proibida a reprodução parcial ou integral desta obra, porquaisquer meios de difusão, inclusive pela internet, semprévia autorização da Editora.

Capa, projeto gráfico, diagramação eeditoração eletrônica: Slogan Publicidade Ltda.Revisão: Ângela Cristina do Rego Catônio

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)(Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil)

M338g

Marinho, Marcelo. Grnd Srt~ vertigens de um enigma /Marcelo Marinho. — Campo Grande : LetraLivre, 2001. 232p.; cm.

ISBN 85-86399-11-6 (broch.)

1.Literatura comparada. I. Título. CDD: 809

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A Hebe, Évelin, Mayara, Alexandre, Yuri,Pageaux, Louis-Philippe, Ângela, Marilda,

e a todos os amigos que participam desta travessia.

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9“Em qualquer caso nunca é o terra-a-terra.

A terra é sempre o pretexto (...)Aquilo é o texto pago para ter

o direito de esconder uma porção de coisas...para quem não precisa de saber.”

(Guimarães Rosa, em carta a Fernando Camacho)

O leitor destas linhas deve estar intrigado com oenigmático GRND SRT~ encontrado na cobertura destelivro; pois continuará intrigado porquanto o enigma iniciaagora sua circular decifração. Esse deambulante leitor, poentocaminheiro em busca de vertigens e enigmas, tem portanto,em suas mãos, uma publicação resultante de cinco anos depesquisas concluídas (ou provisoriamente encerradas) noâmbito de uma formação doutoral, realizada na Faculdadede Literatura Comparada da Universidade da SorbonneNouvelle, sob a orientação do crítico e comparatista Daniel-Henri Pageaux. Essas pesquisas têm sua pedra fundadora noconjunto das idéias desenvolvidas por Pageaux em seusseminários de Literatura Comparada. Com base nasdiscussões aí fomentadas em torno do nascimento e daformação da linguagem segundo os Diálogos de Platão,apresentou-se, no seminário de Poética da Tradução,conduzido naquela faculdade por Jany Berreti, um estudocomparativo entre Grande Sertão: Veredas, sua segundaversão francesa e a tradução italiana. Naquele trabalho inicial,cuja versão escrita encerrava-se em duas dezenas de páginas,certas evidências — colocadas em tela por intermédio dasescolhas vocabulares operadas pelos tradutores — apontarampara um romance construído como um meta-romance ou,em outros termos, para um romance que, ao longo de suaspáginas, discorre, preferencialmente, sobre si mesmo,malgrado a presença de inúmeros outros possíveis substratosde leitura. O desenvolvimento dessas idéias iniciais deve-se,portanto, ao lúcido incentivo desse orientador e pesquisadorcomparatista que depositou uma inabalável crença pioneirana eventual natureza essencialmente lúdica e meta-romanescaocultada pela fina e delicada tecelagem do chef-d’oeuvre deJoão Guimarães Rosa.

A leitura de Grande Sertão como um romanceeminentemente auto-referenciado é uma proposta esteada,

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10 igualmente, na consulta a textos críticos canônicos que seoferecem como leitura obrigatória para toda abordagem daobra rosiana. Entre esses autores, podemos citar AntônioCândido, Cavalcanti Proença, Eduardo de Faria Coutinho,Walnice Nogueira Galvão, Kathrin Rosenfield, ManuelAntônio de Castro, Mary Lou Daniel e, necessariamente, ascorrespondências trocadas entre Guimarães Rosa e seus maisabrangentes (nem sempre os mais completos) críticos, asaber, seus tradutores. Essa maior abrangência infere-se dofato de que, em situação de tradução, esses leitoresprivilegiados são constrangidos a analisar o romance em suaintegralidade (mesmo que fragmentos sejam suprimidos ouprofundamente alterados por falta de interpretaçãoadequada). Dessa forma, como ensina Daniel-Henri Pageaux,as traduções seriam uma “espécie de texto segundo, de meta-texto”, um texto interpretativo que abrange o conjunto daobra: vale dizer, uma poderosa ferramenta para a leiturainterpretativa do tecido poético original. Assim, o percursode leituras aqui proposto constrói-se também, ainda que emmenor medida, sobre as traduções em francês, italiano eespanhol.

Daqueles textos críticos canônicos e obrigatórios,derivou-se, nas quase cinco décadas que transcorreram apósa publicação do romance, um número incalculável de textos,baseados necessariamente nas leituras pioneiras e originaisdaqueles e alguns outros autores. Os refaturados textos-mosaico, em sua condição de produto derivado datransformação de uma matéria-prima-primeira, trançam, porvezes, um emaranhado de repetitivos fios interpretativos,tanto em termos de referências bibliográficas, quanto emtermos de idéias. A degustação intelectual dessa massa críticadeixa, como conseqüência, um certo “arrière-goût”, um“gostinho” persistente, de retomada e de remanejamentode idéias que buscaremos, obrigatoriamente, evitar nodesenvolvimento das idéias que orientam nossa abordagemde Grande Sertão: Veredas.

Para as pesquisas que agora vêm a lume, além dosacervos bibliográficos da USP, UFRJ, PUC-Minas, UnB eBiblioteca Nacional, foi necessária uma busca iterativa erecorrente em poentos e, por vezes, bem abastecidos sebosde diversas cidades, de Campo Grande, Goiânia e Brasília aBelo Horizonte, Rio de Janeiro e São Paulo, de Paris e Madri

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11 a Roma, Assunção e Santiago do Chile. Essa (prazerosa) buscaitinerante tornou-se necessária pelo fato de que importantestextos críticos encontram-se esgotados e jamais viramreedição, malgrado sua importância fundamental para acompreensão da obra de Guimarães Rosa. Entre os autoresque solicitam uma urgente reedição, poderíamos, com osnomes de Mary-Lou Daniel e Manuel Antônio de Castro,iniciar uma lista de grande extensão. Também livros de difícilacesso como Joãozito, de Vicente Guimarães, ou Em memóriade Guimarães Rosa, são documentos biográficos defundamental importância para a compreensão daquilo quechamaremos, ao longo do nosso trabalho, de “bélicas letras”.

Ao proceder à leitura dos textos críticos sobre Rosa, oleitor notará que a polissemia de um romance-rio comoGrande Sertão: Veredas implica, forçosamente, naemergência de uma paisagem exegética plural e radicalmenteinfensa ao consenso. Para retomar as idéias de Barthes arespeito da abordagem analítica de romances polissêmicos(“plurais”), seria lícito dizer que “se acede a eles por váriasentradas, das quais nenhuma pode ser seguramente declaradaa principal”1 . Assim, um crítico pode se encontrar bastanteindeciso sobre a entrada interpretativa a explorar, tal como,por exemplo, Mário Vargas Llosa, quando esse notável escritorparece hesitar entre três das possíveis leituras: “Epopéia doSertão, Torre de Babel ou Manual do Satanismo?”2 . Entreos mais extensos estudos publicados, em data recente, sobrea obra de Guimarães Rosa, vale sublinhar o trabalho do críticoe professor francês Francis Utéza, que identifica, noemaranhado de múltiplas relações entre os personagens,referências às ciências esotéricas, leitura que poderia,eventualmente, convergir ao “Manual de Satanismo” sobreo qual fala Vargas Llosa. Ainda que, como o leitor verá aolongo das próximas páginas, o Demo seja uma preciosa chavede leitura face ao combate entre os jagunços do sertão, épreciso, todavia, constatar que as ciências esotéricasconstituem apenas uma das múltiplas facetas da erudiçãodo escritor mineiro.

Com efeito, Guimarães Rosa possuía sólidosconhecimentos em zoologia, botânica, geografia, medicina(médico por formação, ele manifestava grande interesse pelapsiquiatria); e – o que nos interessa sobremaneira neste

1 Roland BARTHES, S/Z, p. 12.2 Mario Vargas LLOSA,prefácio a Diadorim, p.11.

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12 estudo – extensos conhecimentos filosóficos, idiomáticos elingüísticos (o que lhe valerá, em 1934, o segundo lugar nodisputadíssimo concurso de admissão para a carreiradiplomática). Assim, cabe ao leitor perguntar-se, face aoumbral sagrado do texto-enigma (que nos perdoem opleonasmo da imagem), se a chave do romance não deveriaser procurada sob a palavra, junto à soleira da porta.

A palavra (multifacetada e plurissignificante) será,portanto, a unidade textual mínima transformada em chavepara a busca da abertura interpretativa de uma entre asmúltiplas entradas possíveis para textos plurais, conformeas noções sobre as quais discorre Barthes; assim, nossoencaminhamento metodológico observará, principalmente,as indicações de trabalho elaboradas por Jean Starobinski, apartir do fecundo e producente método estilístico de LéoSpitzer.

“Partir de uma apreensão provisória (à maneira de Heidegger,é preciso insistir no valor dos prefixos: a-preender, pro-visório)do sentido global do texto; fixar-se em seguida sobre o estudodo um detalhe aparentemente periférico, aí aplicar todos osrecursos da ciência e da intuição (lembrando-se do que diziaAby Warburg: ‘le bon Dieu se cache dans le détail’, Deusesconde-se nos detalhes); confrontar o detalhe assim iluminadoe o conjunto anteriormente pressentido; perguntar-se se há entreum e outro uma conformidade de significação; partir em buscade novos detalhes que viriam corroborar uma intuição que setorna paulatina ou gradativamente mais provável; nãonegligenciar, malgrado si próprio, as eventuais objeções, asdúvidas legítimas, ou os recursos à contra-prova; continuarconstantemente prevenido contra o risco de comprometer todaa operação analítica por intermédio de um pré-conceito inicial:tal é o método favorito de Spitzer, um vai-e-vém entre o todo ea parte e entre a parte e o todo, no qual se determina (comfreqüência pelo estalo instantâneo de uma compreensãoiluminadora) uma evidência ou sentido óbvio que o textoocultava com zelo desde o seu início, que toda leitura atentahavia percebido de maneira obscura, mas que se elucidadoravante à clara luz do dia pela virtude da explicação”3 .

Nessa perspectiva, a hipótese global do trabalhoconstruiu-se, ao longo das pesquisas, com base no “estalo”(de Vieira) provocado por pequenos detalhes de aparência

3 Jean STAROBINSKI,“Léo Spitzer et lalecture stylistique”, inLéo Spitzer, Études destyle, p. 30.

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13 insignificante e com apoio em um amplo panorama elaboradoem torno dos textos críticos propostos para a obra deGuimarães Rosa. No presente estudo, essa hipótese detrabalho servirá como ponto de partida para a leitura de outrosdetalhes de aparência anódina (o “terra-a-terra” ao qual aludeRosa) ao primeiro contato “naïf”, “ingênuo”, de leitor como texto; todavia, esses detalhes podem apresentar umafundadora importância se postos em confronto com osprotocolos de leitura encontrados no romance. Dessa forma,serão utilizados os mais variados recursos da ciência lingüísticacom vistas à interpretação do segmento textual a serdecodificado. Na seqüência do trabalho, será realizado umconstante esforço de construção de novas hipóteses detrabalho com base nas mínimas unidades de significação doromance, em um movimento hermenêutico que partirásempre do detalhe particular rumo à generalidade doconjunto, como orienta Starobinski.

Essa decodificação será feita, inicialmente, comsuporte na análise de certas características do discursopoético, noções comentadas por Daniel-Henri Pageaux,principalmente em seu Literatura Geral e Comparada: osprocessos de formação de neologismos ou de invenção detoda espécie de nomes; a transposição de classes gramaticais;a contagem estatística de ocorrências de palavras e de outrascomponentes verbais; a análise sêmica e a construção decampos semânticos; as relações metonímicas, metafóricas,homonímicas e homofônicas estabelecidas entre as palavras;as variantes de uma palavra por mudança de entonação (osparônimos); e vários outros recursos da análise lingüísticasistematizados pelos textos que compõem o nosso suportemetodológico. Os detalhes assim iluminados serão entãoconfrontados com o sentido global definido como hipóteseinicial de trabalho. Da mesma forma, será preciso seguir asnoções propostas por Pageaux e considerar-se, cari-nhosamente, as indicações de leitura encontradiças noparatexto (declarações do autor, cartas enviadas ou trocadascom os tradutores, e com outros correspondentes,fotografias, documentos diversos, as ilustrações solicitadaspelo autor para seu Grande Sertão, as eventuais solicitaçõesa editores e tradutores, etc.), em paralelo à decodificaçãodos protocolos de leitura encontradiços no curso do própriotexto.

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14 Uma rede, trama, ou constelação de detalhes interligadostornará possível, neste caso, a fundação de um plano de leituraou a materialização de uma camada textual palimpsésticaque, por sua vez, deverá confirmar ou infirmar a hipóteseglobal do trabalho. Em outras palavras, o sentido global poderáse confirmar a partir de uma rede de convergências de idéiasou conceitos tecida ou estruturada ao fio dos detalhes textuaisanalisados. Esse encaminhamento hermenêutico, que tendedo detalhe particular à generalidade, é um encaminhamentono qual o texto determina o método de análise, e não ocontrário. Da mesma maneira, não se trata, de forma alguma,de buscar uma qualquer camada de significações que o autorteria introduzido em seu texto de forma inconsciente,malgrado si próprio, pois não se trata de proceder a umaleitura psicocrítica do romance; será preciso, com maispropriedade, buscar um certo sentido óbvio ocultado pelotexto desde seu início e indicado pelo próprio autor, nasmais diversas ocasiões, tanto no texto quanto no paratextoromanescos.

Para esta análise, o trabalho será desenvolvido segundoquatro momentos hermenêuticos que correspondem àsquatro partes que estruturam a apresentação do estudo. Noprimeiro momento, ou na primeira parte do estudo, serãopropostas a decodificação dos protocolos de leitura, acontagem das ocorrências das palavras mais freqüentes esua interpretação, a construção de campos semânticos, adecodificação do paratexto imediato do romance (osdesenhos da capa e folhas de rosto), a definição de um novotema possível para a leitura da obra. O segundo momento,ou segunda parte do estudo, pode se conceber como aconseqüência do momento precedente, pois aí serãoanalisados o valor simbólico dos personagens circunjacentesa Riobaldo, o valor simbólico da topografia romanesca e daseqüência de eventos ficcionais inseridos no discurso donarrador, assim como as relações entre teoria e práticaliterárias em Guimarães Rosa. O terceiro momento seráconsagrado à leitura do romance em seus aspectosintertextuais metapoéticos. No quarto momento, serãoabordados aspectos simbólicos relativos à ficcionalização dopróprio personagem central – o loquaz Riobaldo –, suasmotivações à ação, seus projetos sertanejos, sua genealogia,seus estímulos e dificuldades na árdua tarefa de dar fim a

david
Sublinhar
david
Sublinhar
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15 seu terrível inimigo, o silente Hermógenes Saranhó.Esse movimento dialético deverá permitir a localização

– tanto na cena literária brasileira quanto também nainternacional – do autor (principalmente no que concerne àsua filosofia da linguagem da literatura); de seu trabalho deescrita (sobre a palavra-objeto, a palavra-enigma e a tramapalimpséstica); e, enfim, de seu romance. Ao final desseestudo, será talvez possível entrever “o autor tal como ele seinventou por intermédio de sua obra, e não tal como eleteria existido anteriormente a ela”4 , conforme propõe JeanStarobinski, numa das maneiras de se locupletar a visadahermenêutica. Nesse percurso, será necessário acompanhar,em detalhe, as indicações de Guimarães Rosa e partir doaspecto terra-a-terra do texto para se chegar às vertigensextáticas de um enigma em epifânica decodificação.

4 Idem, Ibid., p. 26.

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Ondulado
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“...dos centos milhares de assuntos certosque parecem mágica de rastreador,(...) o senhor podia rechear livro.”

(Riobaldo, ao comentar o papel de “um bom entendedor, num bando”)

Para darmos início a este longo e acidentado percursonáutico de decifração sobre águas nunca dantes navegadasao longo das poéticas veredas rosianas, será preciso sublinhar,com Mario Vargas Llosa em sua introdução à segunda versãofrancesa de Diadorim, que, para W.H. Auden, “a valoraçãode uma obra literária pode ser determinada em razão donúmero de leituras virtualmente possíveis dessa obra”5 . Ora,no que concerne a Grande Sertão: Veredas, de JoãoGuimarães Rosa (Cordisburgo, MG, 1908 — Rio de Janeiro,RJ, 1967), brilhantes e incansáveis exegetas propõem, a cadadia, novas e renovadoras leituras, depois da publicação doromance no doravante honorável ano de 1956. As múltiplaspossibilidades de leitura para esse romance levam AntônioCândido a afirmar:

“Na extraordinária obra-prima Grande Sertão: Veredas há

de tudo para quem souber ler, e nela tudo é forte, belo,

impecavelmente realizado. Cada um poderá abordá-la a seu

gosto, conforme o seu ofício; mas em cada aspecto aparecerá o

traço fundamental do autor: a absoluta confiança na liberdade

de inventar.”6

Por esse viés, ao leitor será útil lembrar-se, desde já, queo termo “palimpsesto” pode, com grande propriedade,caracterizar as múltiplas camadas de significação desseromance, pois o termo designa aqueles pergaminhosmedievais cuja escrita é esmaecida ou apagada por fricção,com vistas ao reaproveitamento do suporte para gravação deoutro texto. Assim, um texto imediatamente visível podeencobrir outros textos, e caberá ao leitor-pesquisador —armado com as necessárias ferramentas intelectuais emetodológicas — a busca dos textos subjacentes,documentos por vezes tão ou mais importantes quanto otexto imediatamente acessível ao mais apressado dospassantes.

5 Citado por MarioVargas LLOSA, noprefácio à segundaversão francesa deGrande Sertão: Veredas,p. 12.

6 Antônio CÂNDIDO,“O Homem dosavessos”, in Tese eantítese, p. 121.

I. O “almanaque” GRND SRT~:palimpsestos e protocolos de leitura

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18 Nesse contexto de busca e criação de sentidos para otexto poético impresso, a leitura de Grande Sertão: Veredasque define nossa hipótese de trabalho é aquela que seencontra o mais próximo possível da palavra em sua dimensãode manifestação artística: o romance como obra que se querreflexão — metafórica — sobre a criação literária, sobre agênese da obra poética e, ainda, sobre a vocação e asmotivações pragmáticas do escritor. Essa leitura assumeigualmente o encaminhamento de uma concepção singulardos mecanismos lingüísticos, apontada de forma subreptícianas páginas do romance. Tal hipótese de trabalho se constróicom base em estudos já realizados por inúmerospesquisadores, mas também em conformidade comdeclarações feitas por Rosa a seu tradutor italiano, EdoardoBizzarri:

“(...) os meus livros, em essência, são ‘antiintelectuais’ —

defendem o altíssimo primado da intuição, da revelação, da

inspiração, sobre o bruxulear presunçoso da inteligência reflexiva,

da razão, a megera cartesiana. (...) Por isto mesmo, como apreço

de essência e acentuação, assim gostaria de considerá-los: a)

cenário e realidade sertaneja: 1 ponto; b) enredo: 2 pontos; c)

poesia: 3 pontos; d) valor metafísico-religioso: 4 pontos.”7

A metafísica à qual Guimarães Rosa faz alusão será aquiconsiderada, numa hipótese inicial de trabalho, como marcaformal da filosofia que concebe a linguagem e a literaturacomo locus de nascimento do universo. O romance será,portanto, objeto de uma busca de camadas palimpsésticasmarcadas por reflexões de natureza metalingüística emetapoética.

Por essa vertente, o leitor terá grande proveito emrebuscar as estantes de sua biblioteca e lançar um argutoolhar sobre algum poento exemplar das edições do romancepublicadas, até o ano de 1982, pela José Olympio. Essaspreciosas edições trazem, em suas orelhas e folha de rosto,enigmáticos desenhos — expressamente solicitados por Rosaao ilustrador Poty — que orientam, sob forma de enigma,um certo percurso de leitura sobre as veredas do Sertão.Tais ilustrações, como veremos ao longo deste trabalho, sãode fundamental importância para a leitura de palimpsestosmetapoéticos do romance, malgrado o fato de que a atual

7 João GuimarãesROSA,Correspondência comseu tradutor italiano(Edoardo Bizzarri), p.58.

I. O “almanaque”GRND SRT~:palimpsestos eprotocolos deleitura

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19 editora tenha arbitrariamente suprimido os desenhos dasedições recentes, em perfeito descaso às propostas do autor.Todavia, as remissões feitas ao longo da próxima centena depáginas referem-se à 26ª edição, publicada pela NovaFronteira em 1993, doravante denominada apenas “gsv”.Busquemos, entrementes, saciar a sede intelectual do leitore decifrar algumas das propostas pacientemente urdidas —ou entretecidas — pelas mãos fiandeiras do genial tecelãode enigmas, o bardo de Cordisburgo, João Guimarães Rosa.

O Herói Problemático: Veredas Mortas, Veredas Altas

Em um primeiro momento, o leitor notará que, sob formade um monólogo interior (se aceitarmos a tese segundo aqual, nesse romance, o interlocutor é imaginário8 ), oprotagonista-narrador conta sua história pretérita a ummisterioso interlocutor denominado apenas como “senhor”.Através do Sertão, das áridas terras, após uma série de aliançase inversões de alianças entre jagunços, o herói leva combateao terrível Hermógenes. Enquanto atende pelo nome deRiobaldo — o rio vazio9 —, ele conhece tão somente derrotasem batalhas contra seu adversário.

A incompletude sugerida por essa escolha onomástica(um rio carente de sua plenitude) pode, doravante, se portarcomo uma primeira referência ao mundo da literatura, pelorecurso — na figura do herói incompleto — a um “heróiproblemático”, no sentido lukàcsiano do termo.

No entanto, após um suposto pacto com o diabo, queteria ocorrido no lugar conhecido como “Veredas Mortas”,Riobaldo assume o nome de “Urutu Branco” e acaba poreliminar seu adversário do universo do Sertão. Após a vitóriasobre Hermógenes, Riobaldo, transformado em Urutu,retorna ao lugar do pacto e toma conhecimento de que as“Veredas Mortas” não mais existem. Ou antes, o heróidescobre que, após o desaparecimento de Hermógenes, olocal será conhecido por intermédio do topônimo “VeredasAltas”10 (gsv 532).

Assim, o advento da vitória sobre Hermógenes terá porcorrelato a “revitalização” — sob uma alta forma de vida —daquelas veredas sertanejas: de “veredas mortas” que foram,passarão a incontestes “veredas altas”. Apresenta-se, aqui,

8 Nessa perspectiva,notaremos com grandeproveito as observaçõesfeitas por WilsonMartins: “O livro não é,assim, um longo monó-logo interior (embora atese se possa defendercom alguma verossimi-lhança), nem mesmoum monólogo solitário;é um diálogo solipsísticoou monologante, emque as intervenções eopiniões do ‘outro’ sãosugeridas pelas própriasrespostas e comentáriosdo narrador”. Cf. WilsonMARTINS, “Guima-rães Rosa na sala deaula”, in M.L. Daniel,João Guimarães Rosa:travessia literária,p. XXIII.9 Rio baldo/baldio; cf.leitura proposta porM. Cavalcanti PROENÇA(Trilhas do GrandeSertão, p. 14) e reto-mada, em um sentidodiverso, por J.C.Fonseca SANTOS (No-mes dos Personagens emGuimarães Rosa ,p. 153): “Seria, pois,Riobaldo, o rio que sefrustrou, perdendo ocurso de Diadorimafluente?” Notemos,entretanto, que o pró-prio G. Rosa chama aatenção para esseaspecto na etimologiado nome, visto que ZéBebelo transformaRiobaldo em “siô Baldo”(gsv 190).10 No sertão deGu imarãe s Rosa ,“veredas” pode tambémrepresentar algo como“férteis sendeiros”,conforme acepção dotermo na região serta-neja.

I. O “almanaque”GRND SRT~:palimpsestos eprotocolos deleitura

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20 uma primeira variação toponímica, um redobramento oudesdobramento de nome que pode se portar como imagemsimbólica de um outro espaço de significação, de uma outraforma significante. O desdobramento de topônimos mereceo seguinte comentário do narrador: “E tanta explicação dou,porque muito ribeirão e vereda, nos contornados por aí,redobra nome” (gsv 60). Ora, se há um desdobramentotoponímico, é por que há também desdobramento de função:ao afirmar que dois fluxos de água (“ribeirão e vereda”)podem ter o mesmo nome, pois esse nome “redobrou-se”ou desdobrou-se, o narrador parece apontar no sentido dedois possíveis fluxos textuais ou fluxos de significado, deduas possíveis leituras para o mesmo nome11 .

Ao se deparar com um nome, o leitor é portantoconvidado a buscar delimitar os vários espaços definidos peloredobramento, explícito ou implícito, desse nome. No casodas veredas que passam de “Mortas” a “Altas”, o significadosimbólico do espaço topográfico deverá ser buscado, ao longodeste trabalho, na oposição semântica entre esses dois termosque se apresentam de forma antitética.

Essa função segunda, desdobrada, estaria portanto“encoberta” sob a capa do novo nome, como podemosobservar na afirmação de Riobaldo em torno dos falso everdadeiro nomes de Reinaldo-Diadorim (que, afinal decontas, se chama Maria Deodorina, nome sob o qual seesconde seu verdadeiro sexo): “nome não dá: nome recebe.Da razão desse encoberto, nem resumi curiosidades”(gsv 134). O narrador indica, nessa passagem, que é preciso“não resumir curiosidades”, não reduzi-las, mas sim dar livrecurso à curiosidade e à intuição para a busca de toda equalquer pista que conduza ao significado encoberto sob onome, significado subjacente ao texto. Ou, sob outravertente, o narrador indicaria que é preciso não resumir o“encoberto” a “curiosidades”, não reduzir o significadosubjacente ou adjacente a simples notações dignas de meracuriosidade e desprovidas de nexo com o conjunto do textoque, por sua vez, explicita abertamente sua condição deenigma em decifração perpétua.

Riobaldo sugere, portanto, que o “nome [apresentadono texto] não dá”, explicitamente, significado ao leitor; commais propriedade, o nome solicita que o leitor complete seusignificado, o “nome recebe” o sentido que o leitor lhe agregar,

11 Na segunda página doromance, o narradorafirma que dar nomeequivale a dar forma:“dar a ele assim essesnomes de rebuço, é queé mesmo um quererinvocar que ele formeforma”. E “dar nomes derebuço”, inventar no-mes, seria portantorepresentar outras for-mas existentes em esta-do latente. Sublinhe-seaqui que são nossos osgrifos em negrito que oleitor, ao ongo desteestudo, encontrará nastranscrições do romance.

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21 segundo sua maior ou menor sensibilidade diante do texto.Tal será a obra aberta propugnada por Guimarães Rosa, aquelaque se inicia com o travessão do texto impresso (signo queexplicita ao leitor a condição ficcional e editorial do romance)e que se conclui com a lemniscata, o símbolo “ ”, tambémimpresso nas páginas do romance, signo que lança o textono espaço múltiplo das infinitas leituras palimpsésticas.Assim, nada é despojado de sentido na narração de Riobaldo,como afirma o próprio jagunço: “Agora: o tudo que eu conto,é porque acho que é sério preciso” (gsv 149). E a funçãoessencial exercida pelo ato de nomear, nesse romance, estáimplícita até mesmo no número de ressurgências do termo“nome” e seus derivados ao longo do texto: nada menos de162 ocorrências ao longo de 538 páginas. Ana Maria Machadoassim analisa a função do nome em Grande Sertão: Veredas:

“Os Nomes são escolhidos tendo em vista sua polissemia,

não sua univocidade. O próprio autor nega que sua narrativa

seja um ‘rol de nomes’ (gsv 265) e não quer se gabar de ‘retentiva

cabedora, nome por nome’ (gsv 397). Pelo contrário, afirma

que os Nomes importam porque ‘ficaram em assento de sustos

e sofrimentos’ (gsv 265), captando o dinâmico e o

transformável. Dessa maneira, os nomes próprios em Guimarães

Rosa não têm nada a ver com a reificação ou com uma

simplificação, mas admitem leituras múltiplas, além de serem

também múltiplos os Nomes referentes ao mesmo personagem,

vindo a polinomásia somar-se à polissemia.”12

Tal como os topônimos, também os antropônimos sedesdobram e instauram o texto no espaço do vago e doimpreciso por intermédio da polinomásia. Nesse sentido, aolongo deste estudo, buscaremos decifrar as possíveis razõesque levaram à transmutação sofrida pelas “Veredas Mortas”,doravante “Veredas Altas”, sempre em função da busca depreenchimento para o vácuo existencial que conduz Riobaldo,o “rio vazio” ou herói problemático, em sua busca pelasveredas da plenitude; da sua necessária transmutação emUrutu ao vislumbrar a forma de atingir seus objetivos; e daimprescindível eliminação de Hermógenes do espaçosertanejo. Para que a interpretação permaneça nas trilhaspreviamente balizadas por Rosa, será necessário lançar um

12 A n a M a r i a MA-CHADO, Recado doNome, p. 27.

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22 olhar inquiridor sobre as cláusulas do contrato de leituraque se constrói por intermédio do discurso do itineranteRiobaldo.

Decodificação da obra literária: protocolos de leitura

Dos aspectos inicialmente abordados neste estudo,infere-se a validade de se falar em construção do textoestruturada em diferentes camadas arqueológicas ou, ainda,de se comparar a elaboração do romance à criação de umfolheado (no sentido gastronômico do termo) ficcional,superposição de leituras que Gérard Genette chamariapalimpséstica. Nesse sentido, para retomar aquela idéia quese tornou um lugar comum do pensamento heracliteano,poderíamos lembrar de Rio-baldo e seu fluxo narrativo semretenção para afirmar, de forma parafrástica, que “jamaisentramos duas vezes no mesmo romance-rio (roman fleuve)rosiano”.

Nesse contexto, é representativo o ponto de vistaapontado pelo erudito autor no primeiro entre os quatroinusitados prefácios que ilustram Tutaméia. Nesse fragmento,intitulado de maneira simbólica “Aletria e hermenêutica”, oMineiro de Cordisburgo tece considerações sobre aspossibilidades interpretativas do texto literário, afirmandoque a leitura deve ser orientada não no sentido do significadoostensivamente explicitado na obra (tal como, por exemplo,uma determinada “busca da mensagem do autor”, práticaassaz difundida nas instituições de ensino brasileiras), massim no sentido dos significados subjacentes ao texto, aquelesque, como já vimos nas idéias propostas por W.H. Auden,podem determinar o valor da obra. O romancista sertanejoescreve: “O livro pode valer pelo muito que nele não deveucaber”13 .

Essa inversão de perspectiva é ilustrada por GuimarãesRosa, ainda no prefácio intitulado “Aletria e hermenêutica”,com uma definição de “rede” tomada a Augusto dos Anjos:“uma porção de buracos, amarrados com barbante...”. Tal“paradoxo, acrescenta Rosa, traz-nos o ponto-de-vista dopeixe”14 . Eis aqui uma imagem que certamente agradaria aManoel de Barros, o poeta das águas. Com efeito, se, para ospeixes, o essencial da rede se resume aos vãos por onde

13 João GuimarãesROSA, Tu tamé ia ,“Aletria e herme-nêutica”, p. 17.14 Idem, Ibid., p. 14.

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23 escapar, para Rosa contará o significado subjacente, velado,invisível à primeira leitura e preso aos fios da trama do textode maneira indissociável: assim como uma rede sem vãosnão saberia ser rede, o texto rosiano sem o sentido veladonão saberia ser texto literário. Tais imagens são paradoxaisposto que contrariam a visão habitual que podemos ter douniverso. Os paradoxos, segundo diz Monique Balbuena emsua análise da obra rosiana, constituem forma privilegiadade agregar palimpsésticas camadas significantes ao texto.Justificando sua asserção, a pesquisadora e tradutora cita oromancista:

“‘Os paradoxos existem para que ainda se possa exprimir

algo para o qual não existem palavras’, disse uma vez Guimarães

Rosa. Na verdade, o paradoxo é um meio de insistir na

interrogação, na dúvida, na interpretação infindável, pois ele

exige texto e mais textos que vão se superpondo,

ininterruptamente, como numa cadeia de espelhos. Comentários

sobre comentários sobre comentários, como nas tradições

talmúdicas e cabalistas; narrativas sobre narrativas sobre

narrativas, como em Rosa. Nesse interminável caminhar sobre

o texto, que com o paradoxo vela e revela, se perfaz a travessia.”15

Os caminhos sobre o texto projetam-se sobre váriascamadas significantes, e seu percurso não poderia ser linear,sob risco de se perderem importantes elementos para ainterpretação do romance. A travessia deverá, portanto,acompanhar as variações intempestivas do fluxo irrepresávelda prosa de Riobaldo, criando um percurso iterativo em que,no mais das vezes, será necessário retornar a trechos jápercorridos para lograr a chegada a bom porto. Talvez sejaessa uma das sugestões contidas na figura da lemniscata (¥),imagem que remete a um perpétuo movimento gráfico deretorno ao mesmo ponto, ainda que, nesse ponto, se tornevisível a possibilidade de bifurcação de caminhos ou trilhas.

A leitura iterativa: constelações ou teias significantes

Grande Sertão: Veredas, afirmam alguns, pode ser lidocomo um longo poema narrativo, narrativa para a qual seuscríticos forjaram a expressão “prosoema”, mot-malise tão ao

15 Monique BALBU-ENA, Poe e Rosa à luzda cabala, p. 115.

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24 gosto do romancista mineiro. A abolição das fronteiras entreprosa e poesia em Guimarães Rosa é longamente comentadapor Pedro Xisto em célebre artigo16 . E a construção desentido, mais que em qualquer romance brasileiro, não deveser efetuada única e exclusivamente em percurso linear, mastambém — e sobretudo — no percurso que se aproximadaquela trilha iterativa solicitada, por exemplo, pela leiturade “Lance de Dés”, de Stéphane Mallarmé, aspecto jáapontado por Augusto de Campos em artigo pioneiro. Note-se, entrementes, que Riobaldo, não por acaso, lança umenigmático “Artes que foi, que fico pensando (...). Ao quê?Não me dê, dês.” (gsv 93, grifo nosso), que pode ser vistocomo uma sutil referência ao poema malarmeano, sobretudose lembrarmos que o Demônio também é apresentado como“o Dado”, “o Dê”, “o Di” (pronúncia para o nome, em inglês,da letra “d”).

Em razão da prática rosiana de fusão de idiomas distintospara a criação de novas palavras, é possível também observarno “Demônio”, “Dê” ou “Demo”, em última instância, umaestrutura bilíngüe em que entrariam os idiomas português efrancês: “Demo”, “dê-mot”, dê a palavra; ou “dé-mot”, dado-palavra — leitura em que “um lance de dês” tornar-se-ia asugestiva imagem poética de “um lance de palavras”. “Artes”,diz Riobaldo, “dês” e “dê-mot” ou “des mots” (palavras):haverá, certamente, aqui, uma sutil alusão à palavra artística,à palavra poética, sob forma de mais um enigma.

Nesse caso, é útil observar o célebre “Un coup de désjamais n’abolira le hasard”, “um lance de dados jamais poderáabolir o acaso”, de Mallarmé. Nessa dupla perspectiva, aprodução e a reprodução, ou a criação e a recriação do textopoético serão fruto também do acaso, como, por exemplo,aquele que determinará o encontro entre uma certa obra eum certo leitor, acaso que determinará o percurso intelectualpercorrido pelo leitor até o momento de seu encontro comaquela obra; em outras palavras, a fortuna determinará opatamar de rendimento intelectual do leitor, o acasodeterminará a capacidade de interpretação do leitorconfrontado àquele texto. A Arte também é debitária dosencontros fortuitos.

16 Pedro XISTO, “Àbusca da poesia”, inEduardo COUTINHO(org.), Guimarães Rosa,p. 114 sqq.

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17 Augusto deCAMPOS, “Um lancede dê s do GrandeSertão”, in Eduardo F.Coutinho (org.), Gui-marães Rosa, p. 329.Grifo nosso.

Constelações de signos: a palavra irradiante

Por essa vertente, vale lembrar que Augusto de Camposconsagra o célebre artigo “Um Lance de Dês no GrandeSertão” ao romance que compõe a matéria do presenteestudo. Nesse artigo, o crítico sublinha o processo deconstrução de sentido, em Rosa, Joyce e Mallarmé, segundouma constelação de signos que se iluminam mutuamente. Arespeito de Rosa, Mallarmé e Pound, Campos escreve:

“Quem, em primeiro lugar, buscou dar ao discurso poético

uma configuração específica de estrutura ‘musical’, que

superassse o mero fluxo linear, foi Mallarmé. Em Un coup de

dés a articulação do poema obedece a um sistema de constelação

temática. Há um tema principal seccionado em quatro subtemas

(un coup de dés... jamais... n’abolira... le hasard), cada um deles

subdividido em temas e subtemas acessórios, e todos eles inter-

relacionados, produzindo em conjunto o efeito de um

contraponto. Ezra Pound aplica aos seus Cantos uma estrutura

reminiscente de fuga musical. Certos motivos reiterados,

glosados e entremeados uns aos outros, formando uma tecedura:

como que sujeito, resposta, contra-sujeito.”17

Ora, na ilustração solicitada a Poty para as orelhas doromance, Rosa orienta o ilustrador no sentido de espalharalgumas estrelas sobre a superfície da folha. Essa ilustração,como veremos em capítulo abaixo, é repleta de elementospictóricos que remetem ao universo da literatura. Mastambém o discurso metapoético de Riobaldo faz alusões aestrelas em estado de decifração: “Aí podia ser mais? A peta,eu querer saldar: que isso não é falável. As coisas assim agente mesmo não pega nem abarca. Cabem é no brilho danoite. Aragem do sagrado. Absolutas estrelas!” (gsv 372).Riobaldo, em um discurso fortemente marcado porparataxes, associa o indizível (“não falável”), a compreensãoou interpretação (“pegar e abarcar”), o supratexto ousignificado subjacente (“poder ser mais”) e o brilho noturnodas estrelas. Leitura um pouco arbitrária, caro leitor? Talvezum pouco precipitada, é preciso concordar com suaobservação; mas, veja bem: qual seria a pronúncia sertanejapara o nome de nosso herói problemático, o loquaz Riobaldo?

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26 “Riobardo”, diz você? Bem, então um pouco dedesconstrução para “pegar e abarcar” o “não falável”:“Riobardo” é, também, “R”, “io” e “bardo”, pois não? E“bardo”, ilustre leitor, não fará parte, justamente, do universodas Letras?

O narrador que, pretensamente, fala sobre corpos celestesque são as estrelas é, portanto, um desdobramento de umbardo, de um poeta, de um autor literário. A componente“io” indica, até mesmo, que Riobaldo é o desdobramentoficcional do próprio autor do romance, o bardo do Sertão.As estrelas que sustentam a noite tornam-se, assim, umequivalente metafórico daquela “rede” imaginada porAugusto dos Anjos e utilizada por Rosa para ilustrar o conceitode que “o livro pode valer pelo muito que nele não deveucaber”, o texto vale seu supratexto, pela sua transcendência(“aragem do sagrado”), pela sua tentativa desesperada dedizer o indizível, segundo a feliz fórmula de Roland Barthes.

Tecedura, teia ou tecido significante: o texto

Dessa constelação de signos sugerida por Riobaldo (aoempós de Mallarmé) e anunciada por Augusto de Campos,poderíamos comparar os pontos luminosos aos nós de umagrande teia de aranha em que cada nó se instaura como pontosensível da rede de finíssimos fios entrelaçados, tramadosentre si, interdependentes e transmissores de mensagensvibráteis e repercutidas de um ponto a outro da redecomunicante. Não por acaso Campos serve-se das imagensda “constelação” e da “tecedura” no mesmo trecho de suaanálise. Sob esse aspecto, certas propostas de Riobaldo,aparentemente enigmáticas, são, em verdade, luminosasindicações para que o leitor possa se guiar na selva oscurados signos: “Eu sei. Eu quero é que o senhor repense; e asminhas tolas palavras. E, olhe: tudo quanto há, é aviso. Matara aranha em teia.” (gsv 146). Analisemos o sentido veladodessa proposição paratática: decodifiquemos, inicialmente,a imagem da teia de aranha; em seguida, a figura do próprioaracnídeo. Notemos, portanto: segundo o jagunço, a aranhanão deve ser encontrada, seguida e morta fora da teia, emum percurso linear qualquer que pudesse desenvolver aaranha em seu deslocamento sobre artificiais paredes ou

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27 calçadas. Lembre-se ainda que “teia”, em espanhol, é “tela”,e, em francês “toile”: sempre um tecido.

Essa aranha, segundo o narrador (aquele que tece odiscurso), deve ser procurada segundo as múltiplasbifurcações da tessitura dessa mesma teia (cujo avatarparoxístico é a imagem da lemniscata, “ ”, uma teia, formadapor apenas um fio, que traz a possibilidade de infinitas ereiteradas bifurcações), pois “tudo quanto há é aviso”, adverteo narrador. Em outras palavras, cada bifurcação é nócomunicante da teia ou do tecido, é indicação dos fios aseguir para que a aranha não perca sua caça, ou para que ocaçador não perca sua aranha; a teia corresponde, portanto,à imagem do tecido significante, em que cada nó é pontoluminoso da constelação de signos.

Entretanto, que sentido teria o ato de se matar umahumilde e simples aranha “desimportante” em um romanceque trata de grande guerra entre portentosos jagunços? “Tudoquanto há é aviso”, reforça Riobaldo, e essa morte faz partede indicações para o traçado adequado de uma trilha deleitura. Analisemos, portanto, os significados do verbo“matar”. A partir da locução do personagem do alemão Vupes,Riobaldo interpreta o sentido desse verbo: “[Vupes] Mesmodizia: — ‘Senhor atira bem, porque atira com o espírito.Sempre o espírito é que acerta...’ Soante que dissesse: sempreo espírito é que mata...” (gsv 106). Assim, “matar” é umato praticado com o espírito, e equivale a “acertar”, lograrseus objetivos. Os acertos do espírito ocorrem no plano dasidéias, dos conceitos, das interpretações, afirma o bardoRiobaldo. Não por acaso a recomendação sobre o modo deeliminar o aracnídeo relaciona-se com o ato de “repensarpalavras”. Ora, a metáfora da teia de aranha como um tecidotextual complexo e emaranhado também é utilizada nocélebre conto “Famigerado”, merecedor de duas versõesfilmográficas. Nesse conto, em que se trata exatamente dasmúltiplas possibilidades de interpretação para uma palavra(no caso, “famigerado”), o narrador, duplo do médico ruralGuimarães Rosa, é constrangido a analisar a mensagemsubreptícia do discurso de um perigoso jagunço; ainterpretação errônea traria graves conseqüências — talvezaté a morte — para o desatento decodificador da mensagem;o narrador conclui:

“O que frouxo falava: de outras, diversas pessoas e coisas,

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28 da Serra, do São Ão, travados assuntos, inseqüentes, como

dificultação. A conversa era para teias de aranha. Eu tinha de

entender-lhe as mínimas entonações, seguir seus propósitos e

silêncios. Assim no fechar-se o jogo, sonso, no me iludir, ele

enigmava”.18

A sugestão de “matar a aranha em teia” equivale,portanto, à indicação de proceder à interpretação dosignificado da palavra “aranha” no interior de um conjuntodo qual essa entidade ficcional faz parte, no interior do texto.Em outros termos, equivale à sugestão de decifrar um enigma,de decodificar um discurso que se serve de alusões (“falarfrouxo”) para “iludir”, criar ilusões. Vale ainda sublinhar, nessapassagem de “Famigerado”, outros aspectos próprios ao textopoético: a densidade poética que origina a “dificuldade” deleitura; alterações de sentido provocadas por alterações em“mínimas entonações” (guarde-se este exemplo: “reis” poderáse transformar, no falar nordestino, em “réis”); os“propósitos” do autor (pensemos nas amputações e correçõesrealizadas pela Nova Fronteira sobre o texto original de Rosa);as idéias subjacentes carreadas sob forma de “silêncio”; odiscurso literário como diálogo, “conversa” entre autor epersonagens, entre personagens e leitor, entre textos distintos(a “conversa” intertextual), entre o bardo e o “senhor” (sejaele quem for); a função lúdica do “jogo” literário davertiginosa decifração de enigmas.

Retornemos, nessa perspectiva, à aranha que é preciso“matar em teia”. Se considerarmos a aranha como umpersonagem alegórico na passagem em destaque, essaexpressão indica a necessidade de interpretação do valorsimbólico do personagem “aranha” inserido nas malhas dateia, essa estrutura coesa e organizada em forma de fios, emforma de trama ou tela, em forma de tecido. Ora, Riobaldo,logo às primeiras páginas do romance, parece se referir à suaprópria feitura por intermédio de palavras, à sua própriaconstrução sob forma de texto, quando afirma que “feito[Riobaldo] estava pendurado em teião de aranha... Aonde?”(gsv 12). Se “feito”, numa primeira leitura, cumpre a funçãode simples conjunção comparativa, em uma segunda leiturapode se oferecer como particípio passado do verbo “fazer”.Nesse caso de figura, o jagunço estaria aludindo ao seu

18 João GuimarãesROSA, “Famigerado”,in Primeiras Estórias,p. 15. Grifo nosso.

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29 processo de construção enquanto personagem agregado, deforma vital (“pendurado” para não cair), à trama narrativa, à“grande teia” (teião) que remete à grande malha textual, aogrande tecido significante, ao grande romance: ao “GrandeSertão”. Riobaldo se compara, portanto, a um aracnídeoagregado, de forma indissociável, aos fios da grande teia porele tecida, construída, costurada ou cerzida — paralembrarmos do apelido “cerzidor”, dado ao jagunço em razãode seus tiros perfeitos, em razão da justeza de sua pontaria.

Nesse sentido, a questão “Aonde?”, levantada pelopróprio jagunço ao final de sua afirmação categórica, pareceressaltar a necessidade de questionamento quanto ao lugar,quanto à localização espacial sugerida nesse discurso,questionamento quanto à veracidade desse discurso, ouquanto às intenções subjacentes às “tolas palavras” que épreciso “repensar”. E é preciso repensá-las exatamente postoque “tolo” indica aquilo “que não faz sentido, disparatado”,“que não tem razão de ser”, conforme indicam dicionáriosde língua portuguesa. Ademais, tal como apresentada porRosa na interrogação fática do bardo Riobaldo, “aonde” éforma irregular: ainda uma forma que solicita a atenção doleitor voraz, presos às vertigens do enigma. “Aonde” traz,note-se desde já, um “A” expletivo, um “A” sem sua sintáticafunção prepositiva original. Ao longo do presente estudo,veremos que outras construções expletivas colocam em cenacertas letras do alfabeto.

Entrementes, resta um conjunto de questões, inferidasdessa exposição de fatos textuais: esse local a ser repensado,como quer Riobaldo, remeteria então a uma qualquer teiade aranha real, concreta, presa à qual estaria uma aranhareal, concreta, simples referência zoológica ou regionalista,simples motivo pictórico? Estaria essa aranha transmitindouma simples informação documentária, como no sintagma“a aranha tece a teia”, analisado por Max Bense e comentadopor Haroldo de Campos, em oposição à informação estética(metalingüística) oferecida por uma aranha em poema deJoão Cabral de Melo Neto19 ? Seria gratuita a presença dessaaranha no texto, tal qual deixaria supor uma leitura ingênua,desprovida de conhecimentos prévios, daquela moscaomnipresente em composições pictóricas da Renascença?Ou esse local (“aonde?”) remeteria ao desdobramentosimbólico dessa teia, dessa trama, desse tecido, dessatessitura: o próprio texto?

19 Cf. Haroldo deCAMPOS, “De latraduction commecréation et commecritique”, in TransformerTraduire, CollectifChange, p. 71.

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30 É fácil observar que, nesse caso, o personagem “Riobaldo”equivaleria ao personagem “aranha”, e sua interpretaçãodeverá ser realizada segundo a estrutura nodal e ramificadado texto, segundo pontos nodais que irradiam sentido emdireção ao texto em sua integralidade, em uma malha designificações interpenetrantes. Riobaldo abandona suacondição de mero jagunço para se transformar em umelemento textual que solicita interpretação segundo “asmínimas entonações”, “propósitos e silêncios” do narrador.A noção de texto — oral ou impresso — enquanto tessiturade palavras aparece em outras ocasiões ao longo do romance.Tal é o caso, por exemplo, nesta frase de Riobaldo: “Não,que não — fio e digo. Há-de-o, outras coisas...” (gsv 136).Aqui, Riobaldo “fia”, como a aranha, ao mesmo tempo emque diz, e as duas ações tornam-se redundantes ouequivalentes. Ora, o texto é entidade construída a partir decombinações de letras e repetição iterativa e aleatória (o“dé” de Mallarmé) de palavras, e o jagunço faz alusão àexistência virtual de letras (Há “D” e “O”, ou “a”, “d”, “o”para a dicção e a fiação20 ) e às possibilidades de repetiçõesde palavras (“não e não”, advérbio apresentado em parredundante). Essa frase, como tantas outras do romance emtela, revela alto grau de hermetismo sob forma aparente delocução gratuita ou esvaziada de sentido, sob forma de merojogo lúdico calcado tanto em relações de homofonia ouhomonimia quanto na função expletiva de certas palavras.Ademais, “outras coisas” indica a existência de aspectossubjacentes ou adjacentes ao texto, aquele “silêncio” quecorresponde ao “muito que não deveu caber no livro”.

No processo de leitura dessa enigmática obra literária,por conseqüente, é quase sempre preciso recorrer a outraspassagens do texto para estabelecer um “início de sentido”,segundo a formidável fórmula proposta por Rolland Barthes.E elaborar um início de sentido segundo o fio, a tecedura, éexatamente a atitude que Riobaldo solicita a seu interlocutor:“O senhor fia?... O senhor tece? Entenda meu figurado.”(gsv 159). Assim, para que essa interpretação escape ao riscode cair sob a pecha de arbitrariedade, vejamos um outrotrecho em que “dicção” e “fiação” se apresentam comonoções equivalentes:

“Tal, e outras, contou o seo Ornelas, senhor de prosa muito

renovada. Pelo que, por todo o seroar, deixei com ele a mão;

20 Nos próximoscapítulos retornaremossobre a recorrência deconstruções expletivasno romance em tela.Lembremos, desde já,que também oparatexto — asilustrações solicitadaspor Rosa para seuromance — orienta oleitor no sentido decompletar o universo dosertão com o auxílio deletras.

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31 ainda que às vezes eu ficasse em dúvida: se competia, sendo eu

um chefe, aturar que um outro fiasse e tecesse, guiando a fala”

(gsv 406).Esse trecho, mais explícito, traz a lume a noção de que a

construção da prosa e o ato de fiar e tecer são equivalentes esimbolizam uma certa atitude de “guiar a fala”, de conduzira produção oral ou sonora. Essa atitude, diz Riobaldo, é aquelaque compete a um chefe de jagunços. Vemos, assim, esboçar-se uma malha de significações: texto, sonoridade,personagens, jagunço, nós comunicantes da grande teia dearanha e seu emaranhado de fios vibráteis. Note-se que umacerta disputa se estabelece entre o bardo Riobaldo e Ornelas,“senhor de prosa muito renovada”, sempre no âmbito daprodução ou da construção de um discurso. Observe-se,atentamente, que Ornelas, pai da almejada e etérea Otacília,conduz o trabalho em forma de serão (conforme indica“seroar”), ou seja, um trabalho em que pesa o esforço coletivo.Sublinhe-se também que, já em Crátilo, de Platão, surgeuma comparação analógica entre as figuras do orador e dotecelão, numa imagem portanto clássica e assentada entreaqueles que se ocupam de estudos da linguagem.

Nesse sentido, a noção de texto/teia, a partir da imagem-pretexto da aranha-personagem, é extremamenteemblemática. Assim, ao observarmos outras ocorrênciasdesse par simbólico, notaremos que o par estabelece vínculostextuais com outras noções recorrentes no romance, talcomo, na pintura impressionista, cores puras dispostas sobrea tela permitem ao observador situado a uma razoáveldistância uma compreensão do conjunto. Se Gauguin pregavapor “la couleur pure! Il faut tout lui sacrifier...”, Rosa poderiatalvez dizer “a palavra pura! Sacrifique-se a ela o terra-a-terra do texto...” Essa fatura verbal impressionista poderáser vista em uma enigmática proposição, inicialmentedesvinculada do contexto imediato, lançada por Riobaldosob pretexto de recurso a elementos temáticos telúricos:“Aquelas aranhas grandes armavam de árvore para árvorevelhices de teia” (gsv 208). Riobaldo fala, aqui, de “aranhas”e “teias”; para tanto, ele serve-se do dêitico “aquelas”,pronome demonstrativo que remeteria a uma qualquer noçãojá citada anteriormente. Note-se que a última referência a“aranhas e teias” se encontra-se em trecho situado a nada

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32 menos de 62 páginas passadas, e essa proposição enigmáticaparece, por conseqüente, inteiramente gratuita no contextoem que se insere. De maneira freqüente, Guimarães Rosaintercala noções e imagens mutuamente complementarescom proposições desprovidas de nexo lógico em relação aocurso da narração, fato que dificulta sobremaneira a leituralinear.

Assim, grande é o número de travessões parentéticos(mais de 1300 ocorrências de travessões, ou 650 paresparentéticos, posto que têm a função de parênteses que seabrem e se fecham), marca formal de fragmentação do textoe de um discurso com forte teor digressivo. Esseprocedimento estilístico, tal qual o amálgama de narrativasanafóricas e catafóricas vigente em Grande Sertão: Veredas,mimetiza o fluxo sem retenções do pensamento, conformeserá analisado em páginas subseqüentes. Por essa vertente,poucas não foram as comparações tecidas entre GuimarãesRosa e James Joyce, aquele Joyce da Torre de Babel que é opoli-idiomático Ulisses.

Retornando à proposição de Riobaldo, se nela tivéssemos“algumas aranhas” no lugar de “aquelas aranhas”, a proposiçãoseria perfeitamente compreensível dentro de um contextoregionalista. Entretanto, o pronome demonstrativo “aquelas”remete, necessariamente, a “aranhas” citadas anteriormenteno texto; ora, é preciso sublinhar o fato de que não há amenor referência ao inseto entre as páginas 146 e 208. Oleitor é convidado, portanto, a remeter-se a um ponto damalha significante que se situa em página extremamenteafastada da página que se encontra sob seus olhos. A leituradeixa de ser linear para se tornar iterativa, e o leitor deve sepostar em posição recuada em relação ao texto para acompreensão de conjunto, tal como o observador de umacomposição impressionista deve se afastar do quadro paraevitar enxergar apenas borrões privados de sentido. Emfunção dessa “sintaxe rítmica, pontuada, pontilhada depausas”21 , nas palavras de Augusto de Campos, ao observarsomente uma única ocorrência da palavra (no caso, “aranha”),o leitor perderá o sentido global do texto. Esse será o sentidoimplícito na própria locução transcrita, pois as teias são tecidas(“as aranhas armavam”, teciam ou davam estrutura textual)entre árvores que se encontram forçosamente afastadas noespaço. Essas árvores podem, facilmente, representar os

21 Augusto deCAMPOS, “Um lancede dês do GrandeSertão”, in Eduardo F.Coutinho (org.), Gui-marães Rosa, p. 324.

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33 elementos da natureza (base da fatura regionalista doromance) utilizados no texto e passíveis de leitura einterpretação, elementos ligados pelo fio da aranha ou pelafala de Riobaldo (“fio e digo”, afirma o bardo que é “feitoaranha”); nessas imagens, o mito de Aracne, tecelã debelíssimas tramas, deverá ser lembrado com atenção. Nessesentido, vale reter as palavras de Barthes, transcritas porSuzi Sperber em seu estudo sobre Rosa:

“A distorção dos signos existe na língua, na qual Bally a estuda

a propósito do francês, e do alemão; há distaxia todas as vezes

que os signos (de uma mensagem) não estão mais simplesmente

justapostos, uma vez que a linearidade (lógica) é perturbada (o

predicado precedendo, por exemplo, o sujeito). (...) estando

fracionado o signo, seu significado é repartido sob diversos

significantes, distantes uns dos outros e os quais, tomados

isoladamente uns dos outros, não podem ser compreendidos.”22

Tais noções ilustram com propriedade a necessidade dese “matar a aranha em teia”, e refletem as declarações deGuimarães Rosa em relação à decodificação de sua obra: “Jáa construção orgânica e não emendada, do conjunto, teráfeito necessário por vezes ler-se duas vezes a mesmapassagem”. Nessa declaração, segundo Lenira Covizzi, oromancista revela “ter inserido conscientemente umsignificado sotoposto em seus escritos, que tal significadonão é visível ‘a olho nu’, e que não é separável da suaexpressão, porque a estrutura é habilmente traçada e nãoformada de elementos justapostos.”23 Nessa perspectiva, oleitor notará que, à página 208, a imagem da teia interpola-se, sob forma de parataxe, com noções tais como “guerra”,“cavalo”, “cavalgar”, “alegria”, “alma”, “poeira”, “rinchar bem”(produzir sons adequados). Essas noções são recorrentes noromance e merecem detalhada análise nas entrelinhas dotecido textual, posto que a enigmática frase (relembremo-la: “Aquelas aranhas grandes armavam de árvore para árvorevelhices de teia”), e o parágrafo na qual se insere, situam-seinteiramente no âmbito do vago e do impreciso. Ora, asnoções de “vago” e de “impreciso” são elementosindissociáveis do conjunto do texto e material poéticodeterminante na construção da teia-texto por intermédiodo discurso de Riobaldo. Não por acaso, o jagunço afirma:

22 Suzi FranklSPERBER, GuimarãesRosa: signo e sentimento,p. 06.23 Lenira MarquesCOVIZZI, O insólitoem Guimarães Rosa eBorges, p. 90.

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34 “Mas eu sou do sentido e reperdido. Sou do deslembrado.Como vago vou. (...) Conforme foi. Eu conto; o senhor meponha ponto” (gsv 468). O narrador lança aqui mais umprotocolo de leitura no sentido de orientar o leitor aestabelecer a sintaxe do texto (“colocar ponto, pontuar” odiscurso vago para encontrar o sentido velado, “reperdido”,para decifrar o enigma) e, também por esse meio, tornarpreciso, claro, aquilo que se encontra vago e indeterminadono seu modo de contar.

O Sertão e a Literatura: metáforas metapoéticas

Nesta perspectiva, a noção de vago é expressa, de maneiraexplícita, em várias outras passagens do romance, por vezesem construções herméticas ou, em uma primeira leitura,construções desprovidas de sentido, como em “vago dosgerais”, sintagma que retiramos da seguinte passagem:

“Órfão de conhecença e de papéis legais, é o que a gente

mais vê, nestes sertões. Homem viaja, arrancha, passa: muda

de lugar e de mulher, algum filho é o perdurado. Quem é pobre,

pouco se apega, é um giro-o-giro no vago dos gerais, que nem

os pássaros de rios e lagoas.” (gsv 31)Esse trecho poderia ser lido como uma banal referência

às precárias condições de vida do sertanejo, e daria margema mais uma leitura sociológica do romance. Entretanto,segundo indicações do autor a seus tradutores, o aspectoanedótico (o “terra-a-terra”), em sua obra, é anódino econtraproducente em termos de leitura interpretativa24 . Será,portanto, preciso buscar um significado simbólico para oselementos do texto: buscar a precisão de um navegar semprepreciso. Para tanto, é necessário, desde já, construir umahipótese de trabalho que será confirmada ou infirmada aolongo de nosso estudo. Essa hipótese de trabalho será,necessariamente, arbitrária, tal como o é o consagrado signode Saussure. Contudo, é hipótese construída a partir deleituras já realizadas por inúmeros pesquisadores. Assim, hajavista as inúmeras referências ao mundo da lingüística e daliteratura efetuadas por esses pesquisadores, faremos umaanálise da passagem acima transcrita segundo uma perspectivaem que “gerais” e “sertão” poderiam se instaurar como

24 Nesse sentido,Antônio Cândido escre-verá, a respeito deGrande Sertão:Veredas:“Numa literatura deimaginação vasqueira,onde a maioria costeiao documento bruto, édeslumbrante essa na-vegação no mar alto,esse jorro de imaginaçãocriadora na linguagem,na composição, noenredo, na psicologia.”Antônio CÂNDIDO,“O Homem dos Aves-sos”, in Tese e Antítese,p. 118.

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35 representação simbólica desse universo literário, dando-seao “vago dos gerais” um sentido mais preciso, ainda que nãounívoco ou definitivo.

Essa hipótese de trabalho se constrói, igualmente, a partirdas noções trazidas a lume no texto transcrito, noçõesperfeitamente pertinentes dentro de um contexto literário:“conhecimento”, “papéis”, “viagem”, “passagem”, “lugar”,“produção” (na figura do filho que perdura) e “genealogia”ou “filiação”. Igualmente, como vimos, Guimarães traz, aointerior de seu romance, representações metafóricas dopróprio ato de escrita e de sua decifração, configuradas nosprotocolos de leitura que o ávido e sequioso leitor teve aocasião de observar até o momento presente. Nessaperspectiva, o romance em análise seguiria aquilo que AdrianMarino definiu como “orientação do romance moderno”,ou seja, a tendência segundo a qual a literatura torna-se cadavez mais um “problema, uma mediação e um debate de idéiasliterárias”. Para Marino, os escritores modernos são, comfreqüência, também críticos literários, ensaístas quecomentam sua própria obra e tecem reflexões sobre a“linguagem, sobre a comunicação literária, sobre aspossibilidades das técnicas literárias e seus limites”. Assim,a “literatura moderna se caracteriza por uma forte tendênciaintrospectiva, auto-reflexiva, auto-analítica”25 .

Ora, se a modernidade de Grande Sertão: Veredas remeteao prisma da literatura auto-reflexiva, seria fácil ver, nessapassagem situada, de forma emblemática, logo ao início doromance, uma alusão ao leitor carente de recursos, “pobre”,privado de aparelho crítico eficaz e atualizado, praticante deuma leitura aleatória (“viaja, arrancha, passa”, “um giro-o-giro”) que não se fixa (“pouco se apega”) em topônimos ouelementos espaciais (noções implícitas ao termo “lugar”),que não se fixa em construções onomásticas ou característicasde personagens (noções implícitas ao termo “mulher”).Entretanto, esse leitor despreparado porventura deixa“perdurar”, permanecer ao longo do tempo, talvez sob formaimpressa (o crítico?), talvez sob forma de cursos ministrados(o professor?), atividades de transmissão de informações quefazem perdurar o conhecimento em torno de um assunto, oproduto de sua leitura, produto de seu contato com a“mulher” (personagens) e o “lugar” (espaço), produto quevem a ser o seu “filho” ou sua criação crítica, se considerarmos

25 Adrian MARINO, LaCritique des IdéesLittéraires, p. 18.

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36 que todo ato de leitura implica na criação de significadospara o texto. Eis aqui um “aviso ao leitor” emanado deGuimarães Rosa e amalgamado à trama narrativa, logo aoseu início, sob pretexto de cor local ou sob forma de registrosociológico em uma perspectiva de literatura pretensamenteregionalista. Lembremos mais uma vez as declarações doautor: “O terra-a-terra é sempre o pretexto. [...] Aquilo é otexto pago para ter o direito de esconder uma porção decoisas... para quem não precisa de saber e não aprecia.”26

Suas intenções são aqui claramente explicitadas em relaçãoao crítico ou leitor privado de um patamar mínimo deremuneração/rendimento intelectual.

Vale observar que a expressão “giro-o-giro” é uma variantearbitrária de “giro-giro”, que representa o ato de circularsem objetivo concreto. E Guimarães terá ocasião de aludirao “giro da memória” (gsv 103), processo de reconstruçãomnemônica, base do conhecimento. Em um discurso oral,esse “o” intermediário desaparece sob forma de elisão: qualserá a função de uma letra impressa no romance, sem funçãosintática e inaudível em situação de leitura? Se nada é estérilno discurso de Riobaldo, nesta leitura proposta em torno douniverso literário será válido ver, por intermédio desseemprego expletivo da letra “o”, uma configuração, sob formade sinédoque, do conjunto sobre o qual se constrói a estruturada palavra literária: a letra “o” representa o conjunto dasletras, e “giro-o-giro” corresponde a girar em torno do “o” e,por extensão, a girar em torno do alfabeto que, por sua vez,dão nascimento às Letras, as Belas Letras ou Literatura.“Giro-o-giro” representaria, assim, o ato de girargratuitamente em torno das letras e, portanto, em torno dapalavra poética, o ato de sobrevoar sem pouso, como“pássaros de rios e lagoas” (que evidentemente não podempousar sobre a superfície aquática; e veremos adiante que anoção de água remete, nesse romance, ao plano das idéias),o significado expresso — ou significados expressos — pelaobra literária.

Nessa perspectiva, o sintagma “papéis legais” remete,em seu sentido próprio, a textos escritos e registrados oupassados em cartório; ou, em outros termos, a papéis devalor reconhecido: um texto consagrado num determinadocontexto. No trecho em tela, posto que o “órfão” édesprovido de “conhecença e papéis legais”, esses textos

26 Apud Francis UTÉZA,Metafísica do GrandeSertão, p. 106.

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37 consagrados são, por interpolação semântica, aquelestransmissores de algum conhecimento sobre umdeterminado assunto, são aqueles que fazem “perdurar” oconhecimento, função de qualquer “papel legal”. Ora, nalinha (ou linhagem, para retomar um termo genealógico) deprodução de conhecimento, é preciso prover-se de um pai— os textos lidos, o conhecimento adquirido — paraconcretizar a vinda a lume de um filho — os textos escritos,ou conhecimento produzido —. O “órfão”, privado degenealogia (influências genéticas), privado de “conhe-cimentos” e de textos recohecidos (“papéis legais”) seriaincapaz de gerar uma produção textual de valor, poderiaapenas gerar uma linhagem abastardada. Estaríamos, aqui,totalmente imersos no líquido (amniótico?) intertextual.Nessa perspectiva, a respeito do crítico despreparado,desprovido de leituras prévias e capacidade de sintetizarvínculos textuais, Guimarães Rosa terá a ocasião de declarar:

“Bem, um crítico que não tem o desejo nem a capacidade

de completar junto com o autor um determinado livro, que

não quer ser intérprete ou intermediário, que não pode ser,

porque lhe faltam condições, deveria se abster da crítica.”27

Vale também observar uma prática muito curiosa edivertida na biografia do grande bardo dos Gerais: Rosacoleciona os recortes das críticas publicadas a respeito dasua obra; as críticas positivas são conservadas de formaconvencional; as críticas negativas são mantidas de cabeçapara baixo, como se fossem destinadas a castigos ou torturasmedievais pelos séculos dos séculos. Apesar de seu aspectolúdico, a prática do romancista revela o seu insofismávelapreço pelos críticos privados dos mínimos rudimentos deleitura interpretativa, dos críticos incapazes de percorrer ecompletar os percursos de uma obra aberta. Para evitar aeste estudo o desprazer de uma desconfortável sessão depau-de-arara intelectual, será preciso buscar, na seqüênciado trabalho, a construção de redes, malhas, teias ou tecidosde signos. Ou, em outros termos, será preciso buscar certaspalavras-chave, certas imagens-chave que formem aconstelação significante sobre a qual fala Mallarmé em seu“Un Coup de Dés”. Em continuação a este primeiro percursolúdico sobre as trilhas do grande enigma, analisaremos certosconjuntos léxicos de grande recorrência nesse romance total,

27 Gunter LORENZ,“Diálogo com Gui-marães Rosa”, inEduardo F. Coutinho(org.), Guimarães Rosa,p. 75.

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38 nesse romance ápice da literatura brasileira, ou da Literaturatout court.

A Arte no Grande Sertão: balizas para um quixotescopercurso eqüestre

O leitor ávido de enigmas observará que uma das palavras-chave mais recorrentes no texto é o vocábulo “arte”, cujasenigmáticas aparições na tessitura significante perfazem ototal de sessenta e cinco ocorrências, algo como uma apariçãoem cada grupo de oito páginas, consideradas aí as variantes“artimanha” (três ocorrências), “arteirice” (uma ocorrência),“malasartes” (más artes: uma ocorrência), “desarte” (umaocorrência) e “artinha” (uma ocorrência). Um tal volume deocorrências pareceria espantoso num romance de combateentre jagunços, não fosse seu autor o imprevisível GuimarãesRosa. Talvez por essa razão maior atenção não tenha sidodada à palavra “arte”, julgada provavelmente como incidentalem um romance cujos motivos e temas (cujo paratextoigualmente) conduzem o grande público, no mais das vezes,e os críticos, por vezes, a leituras sem grandes vínculos coma noção de Arte, tal como será possível verificar em umaleitura do conjunto de textos críticos publicados sobre obardo das veredas sertanejas.

Assim, a despeito do significado dúbio do termo “arte”nesse contexto, Nei Leandro de Castro não o inclui em seuglossário de Grande Sertão: Veredas28 , trabalho inicialmentepublicado pela José Olympio, a mesma editora de GuimarãesRosa, e reeditado posteriormente pela Achiamé, símbolo deuma feliz recepção por parte do público. Nos estudos quetivemos a ocasião de apreender ao longo de nossas pesquisassobre o romance, pudemos observar que a palavra “arte”não causa estranheza a nenhum dos autores, malgrado suasituação marginal em relação a um campo semântico29

definido por jagunços e outros elementos sertanejos. Valenotar que são desconsideradas, para fins interpretativos nesteestudo, ocorrências como aquelas encontradiças, sob formaanagramática, em “Suzarte” (o jagunço farejador, comquatorze ocorrências), “fartura” (quatro ocorrências),“Fazenda Baluarte” (três ocorrências), “adeparte” (trêsocorrências), “cartucho”, “cartucheira” ou “encartuchado”

28 Nei Leandro deCASTRO, Universo eVocabulário do GrandeSertão, p. 205.29 Não se entrará, nopresente estudo, nomérito das virtualmenteinfindáveis discussõeslingüísticas, de naturezaaltamente especializada,sobre as distinções entre“campo semântico”,“ c a m p o l e x i c a l ” ,“c ampo t emát i co ,nocional ou conceitual”;a noção de “camposemântico” será ado-tada, para fins de estudopoético, com base naidéia de “(...) conjuntosorganizados cujos ele-mentos têm um deno-minador semânticocomum, se delimitamreci-procamente e sãodelimitados pelos ele-mentos periféricos deoutros campos”. RobertGal i s son e Danie lCoste, Dicionário dedidática de línguas, p.103. Os campos semân-ticos serão construídos,portanto, com esteio emtraços semânticos com-partilhados entre dife-rentes conceitos ounoções.

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39 (dezessete ocorrências) ou ainda “parte” e suas variantes(cento e vinte ocorrências), estas últimas geralmenteinterligadas à noção de arte, como na expressão “Tem partes.Tem artes” (gsv 445). Nesse mesmo sentido, será possívelobservar igualmente a “contaminação semântica” (expressãode Rosa) de “arte” em palavras derivadas de “partir” e“particular”, entre outras, cujas ocorrências serão, todavia,desconsideradas neste trabalho analítico, pela extensão quetal assunto pode ocupar ao longo do estudo: apenas a formacanônica “arte” fornecerá extensa matéria para as reflexõesdo leitor.

No mais das vezes, quando a aparição da palavra nãooferece um certo tom de gratuidade, um certo aspecto lúdico,o vocábulo “arte” viria substituir a interjeição “arre”, e passaassim quase despercebida no fluxo do texto. Nessaperspectiva, observamos que “arre” ocorre, nessa formacanônica, por duas vezes, já às páginas 4 e 6, e, em variantes,por duas vezes, já às páginas 2 (“apre”) e 3 (“arres”), páginasinaugurais do texto romanesco. Somente à página 7 a palavra“arte” fará irrupção à superfície do texto, após ficarperfeitamente claro que “arre” é o termo esperado para aexpressão de interjeições. Teríamos aqui um protocolo deleitura segundo o qual torna-se absolutamente necessária adistinção entre “arre” e “arte”, entre o valor exclamativo doprimeiro e o valor simbólico do segundo. Ademais, seconsiderarmos que “arre”, em sua forma canônica, ocorreapenas e tão somente vinte e quatro vezes ao longo doromance — e quatro delas já nas seis primeiríssimaspáginas —, em uma proporção média de um para três emrelação a “arte”, notaremos que essas palavras cumprem umafunção específica e fundamental no texto.

Claro está que, se onde dever-se-ia encontrar “arre”encontra-se “arte”, as expressões “arre” remanescentes emsua forma original contaminam-se, em termos semânticos,com os significados possíveis da palavra “arte”. Dessa forma,o termo “arte” aumenta o número de suas ocorrências auma quantidade próxima da centena, em um romance decinco centenas de páginas. Vale dizer: romance regional,místico-religioso ou de experimentos lingüísticos, por certo;mas, sobretudo, romance que insere na trama narrativa nítidasalusões ao mundo das Artes. Daí virá, talvez, o “valormetafísico” que Rosa pede a seu tradutor italiano para

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40 considerar como o mais importante de todos os aspectosencontradiços em sua obra. O leitor poderá, agora, montarseu quixotesco cavalo e percorrer as trilhas eqüestres demoinhos que enganam os incautos e assemelham-se amonstros, mas são apenas moinhos: a palavra “arte” não é oque parece ser — dragões deslocados na selva oscura dossignos rosianos —, ela representa apenas e tão somente aquiloque, em verdade, ela é — a palavra “arte”.

“Arte” e sua malha significante: interpolação de signos

Nesse sentido, lancemos um olhar sobre os campossemânticos do “senhor”, campos que gravitam e rodopiam,de forma vertiginosa, em torno das ocorrências da palavra“arte”. Vale lembrar, ainda uma vez, o caráter paratático elivre-associativo das proposições de Guimarães Rosa, jáamplamente analisado por diversos críticos. O leitor poderácomeçar por verificar quais são os personagens introduzidosna narração quando há uma qualquer irrupção dessa intrigantee instigante palavra enigmática. Nos trechos em que aparecea palavra “arte”, os personagens apresentados de maneirapositiva são Zé Bebelo (gsv 62, 93, 115, 324, 385, 424),Selorico Mendes (gsv 94, 182), Medeiro Vaz (gsv 93, 434),Joca Ramiro (gsv 93, 102, 114), Alaripe e Quipes (gsv 508).De maneira negativa são apresentados Hermógenes(gsv 173, 492) e Ricardão (gsv 115). Vale observar quetambém o Liso de Sussuarão é apresentado de maneiranegativa quando da ocorrência de “arte”, pois o local assimdenominado “não concedia passagem a gente viva” (gsv 25).

Consideradas a polissemia das palavras e a ambigüidadedas frases, para retomar aqui a distinção sobre a qual falaPaul Ricoeur30 , agruparemos as noções que formamconstelação em torno do núcleo criado pela irrupção dapalavra “arte”. Esse agrupamento será efetuado segundo oseguinte método: a cada aparição do vocábulo “arte”, serãorepertoriadas e elencadas as idéias presentes na mesma frase,parágrafo, ou seqüência narrativa. O conjunto de noções assimformado deverá permitir o estabelecimento de campossemânticos associados por Guimarães Rosa à idéia de “arte”,sob forma explícita, metafórica ou metonímica. Esta leituraexclui a leitura linear usualmente praticada para textos

30 Paul RICOEUR,Teoria da Interpretação,p. 11.

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41 romanescos, e segue a “teia de aranha” de que fala Riobaldo,ou a imagem da célebre “constelação” malarmeana.Naturalmente, o texto é aqui lido como um longo poemanarrativo, cuja interpretação poderá trazer elementos para atambém possível leitura linear: uma e outra leituras secomplementam. Assim, o primeiro grupo de idéias quegravita em torno das quase cem aparições da palavra “arte”pode ser constituído em torno da noção de “guerra”, umdos temas explícitos do texto:

Campo semântico da guerra: o “V” da Vitória

Estas são as noções oriundas do campo semântico daguerra que se interpolam, por contigüidade, com o conceitode “arte”, sugerindo que o caráter bélico da contenda entreos jagunços deve ser interpretada no campo da realizaçãoartística: “autoridade”, “autoridade” (gsv 62), “lutas”, “ganharem combate”, “estratagemas” (gsv 102), “armas” (gsv 115),“morte” (gsv 135), “combates”, “tiroteios”, “perigos”,“vencidos”, “altas coragens,” (gsv 160), “ordens de guerra”,“abrir fogo de surpresa” (gsv 173), “rifle” (gsv 182),“julgamento” (gsv 222), “bala de metebucha (que poderiaentupir o bocamorte)” (gsv 223), “caçava” (gsv 251), “crime”(gsv 260), “armar (de falar)” (gsv 292), “disfarçados”, “oensejo de Zé Bebelo” (gsv 311), “balas e caixas, os bornais ecapangas, patronas e cartucheiras” (gsv 324), “inimigo” (gsv358), “inimigo errar o tiro” (gsv 381), “gatilho”, “lei”, “leal”(gsv 434), “rifle”, “matava”, “bala” (gsv 492), “atirado” (gsv493), “rifle-papo”, “máuser”, “fogo”, “mirei”, “chefe”,“comandar”, “reger”, “cantão (quartel)”, “guerra” (gsv 516),“baque”, “retumbo”, “coronha”, “A vitória! Ah — a vitória”(gsv 523), “tá-tá, tiro” (gsv 525).

A lista não é exaustiva, pois vários termos se repetem aolongo do texto em posição justaposta à palavra “arte”. Todavia,é fácil notar que “guerra” e “arte” se interpolam de tal formaque seria lícito, desde já, forjar o designativo “guerra artística”ou “arte guerreira” para a contenda que se trava no romance.Esse designativo, claro está, registra-se aqui como hipótesede trabalho, a ser confirmada ou infirmada ao longo de nossaleitura.

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42 Campo semântico do sertão: jagunços, viagens, cavalos edemônios

O segundo grupo de idéias agregadas à noção de “arte”remeteria ao universo sertanejo, ao mundo do jagunço, comseus percursos iterativos, seus veículos (o cavalo) e suassuperstições. Para essa “guerra artística”, aí estariam oscontendores, o campo de batalha, e os meios de locomoção.Certas noções que conduzem rumo a uma leitura mística datravessia sertaneja encontram-se igualmente associadas àsirrupções da palavra “arte” ao longo do texto: “pecados”,“navego” (gsv 7), “diabo” (gsv 8), “passagem”, “raso”,“escampo dos infernos” (gsv 25), “viaja”, “caminhar” (gsv93), “altas artes de jagunços” (gsv 94), “selas”, “cavalo”,“estrada” (gsv 213), “cão” (gsv 246), “cavalo” (gsv 251),“demônio gemedeiro” (gsv 337), “demônio regedor” (gsv341), “Coisa-Má” (gsv 359), “função do jagunço” (gsv 373),“fama de jagunço” (gsv 385), “viagem”, “jagunçagem;”(gsv 387), “o Oculto”, “nas Veredas Mortas”, “encruzilhada(o local, em forma da letra ‘x’, em que aparecem entidadessobrenaturais)” (gsv 413), “Cão” (gsv 445), “cavalosespantavam (...) refugando”, “viajante”, “saber do mundo”(gsv 472), “diabo” (gsv 477), “travessia”, “norte” (gsv 497),“água de vereda” (gsv 504), “caminho” (gsv 508).

Campo semântico da produção artística: reflexõesmetalingüísticas

O terceiro grupo, simbólica ou paradoxalmente o maiore mais importante, é aquele que se encontraria escondidosob as folhas (impressas), tal qual aqueles “jagunços‘disfarçados de mbaiá’, isto é, revestidos com moitas verdese folhagens, embaiados, reforça o narrador”31 , conforme apertinente observação de Cavalcanti Proença quanto aospersonagens do romance. As folhas sob as quais se disfarça osigno rosiano seriam símbolo daquele “direito de esconderuma porção de coisas... para quem não precisa de saber”32

levado a efeito por Guimarães Rosa, segundo suas declaraçõesa Fernando Camacho e conforme os vertiginosos enigmasaté agora analisados no presente estudo. Este terceiro grupo,mais que os dois primeiros, será formado por intermédio da

31 Manoel CavalcantiPROENÇA, Trilhas doGrande Sertão, p. 74.32 Apud FrancisUTÉZA, Metafísica doGrande Sertão, p. 106.

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43 interpretação de virtuais metáforas, metonímias, anagramase logogrifos utilizados por Guimarães Rosa em seu texto. Adecodificação dessas construções em forma de enigma pode,em princípio, parecer “mágica de rastreador” (gsv 351),conforme os dizeres de Riobaldo. Ao longo deste trabalho,teremos a ocasião de observar que o romance inteiro seconstrói e se oferece como um grande e vertiginoso enigmadestinado à eterna decifração, como sugere o magnéticoabismo sem fim da lemniscata.

As noções que formam este terceiro grupo, cujasinterpretações virtualmente possíveis colocamos entreparênteses, giram velozes em torno da própria idéia deprodução artística, seja ela textual, verbal, musical, gráficaou plástica. A extensão desta lista deve-se ao fato de queboa parte dos termos empregados por Rosa está aí transcrita:o leitor poderá se certificar por si próprio, sem consulta aoromance, de que as noções oriundas do fazer artísticoimpregnam o romance de forma sub-reptícia e indelével33 .

“Empastadas semanticamente” (expressão de Rosa) pelavizinhança da palavra “arte”, estas noções podem, todas,remeter ao espaço da criação estética, em qualquer de suasformas, assim como aos desdobramentos das funções emodos de exsitência da obra de arte: “pecados (erros)”,“emendado”, “se começou”, “altas idéias” (gsv 7),“proclamar” (conforme “declamar”), “lei (regras)” (gsv 8),“raso (em oposição a profundo)” (gsv 25), “soava”, “falava”,“falava”, “diferente”, “autoridade”, “autoridade” (gsv 62),“o viver cerzidinho (a tessitura das palavras que recriam avida)”, “pensando”, “sabia sem saber (intuição)”, “diverso”,“A (a), o (o), quê (q)? Não me dê (d), dês (série de letras-Letras justapostas)”, “resposta”, “calado”, “alto” (gsv 93),“conversar”, “contava”, “casos”, “Altas artes de jagunços:histórias” (gsv 94), “(arti)manhas”, “traçadas”, “maço deestórias”, “estratagemas” (gsv 102), “cantar uma cantiga”(gsv 106), “influência”, “contar”, “vida” (gsv 123), “conto”,“ouvindo” (gsv 126), “morte e amor (dois dos grandes topoïda expressão artística)” (gsv 135), “casos”, “contando”,“perigos”, “altas coragens” (gsv 160), “viola”, “conto”, “voz”,“resumo”, “traço”, “respirar” (gsv 173), “pensando” (gsv182), “sazão (temporada)”, “sentimento”, “vida” (gsv 207).

33 O leitor poderáanalisar, de formaintegral , as inter-polações semânticasque impregnam oconjunto das ocor-rências da palavra“arte”, em sua formacanônica, nas seguintespáginas do romance: 7,8, 14, 25, 62, 66, 72,78, 93, 94, 102, 106,115, 123, 126, 129,135, 160, 173, 182,207, 213, 222, 223,225, 236, 242, 246,251, 260, 274, 292,304, 311, 324, 331,337, 341, 348, 358,359, 373, 381, 385,387, 395, 409, 413,422, 424, 429, 434,443, 445, 469, 470,472, 477, 492, 493,496, 497, 504, 505,507, 508, 516, 523,525.

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44 E ainda: “f ’losofou:” (gsv 213), “ninguém ao certo nãosabia” (incerteza ou intuição), “ouviu”, “não sendo dos usos”(gsv 222), “julgamento”, “bizarria” (diferente, inusitado) (gsv242), “julgamento” (gsv 246), “diferente” (gsv 251),“contava”, “miúcias”, “medo de esbarrar de contar”, “sabia”(gsv 260), “viva o nome!”, “borrusco” (gsv 274), “armar defalar” (gsv 292), “entendi” (gsv 304), “difarçados”,“folhagens” (gsv 311), “expunha”, “recomendava” (gsv 324),“guinchava”, “gemedeiro” (gsv 337), “reproduzi” (gsv 358),“pactário”, “sinais”, “Coisa-Má” (gsv 359), “acontecido”,“recordação”, “desatino”, “cisado”, “escogitando”, “não temseu que (q), nem p’ra que (q)”, “vive”, “raciocina”, “Sonharsó não”, “novidades”, “clareza”, “idéias”, “inventavalembrança”, “pensava” (gsv 373), “grito”, “pensar” (gsv 381),“verdade instantânea dum fato”, “falso narrar”, “aspectos”,“fama”, “final” (gsv 385), “instantes sempre meus” (a solidãonecessária ao criar artístico, o “capinar solitário”), “estribar”,“uso”, “extraordinárias cousas”, “admirassem e vissem”,“precisão de fazer”, “influência estorvar em monte depessoas” (gsv 387).

As alusões a conceitos de natureza artística se alinhamao longo do texto: “soubesse não soubesse”, “ciência”, “oOculto (também letra ‘o’ oculta)”, “encruzilhada (em formada letra ‘x’)”, “formava”, “segredo (enigma)” (gsv 413),“finíssimas artimanhas” (gsv 424), “adestros” (gsv 429),“fruta peçonhenta” (resultado inadequado, produtomalogrado), “lei”, “leal” (gsv 434), “discordada”, “partes”,“neblinas de Siruiz” (canção de Siruiz), “vertentes do viver”(a vida vertida em expressão artística) (gsv 445), “saudade”(topos romântico), “audácias (inovações)” (gsv 469), “ver”,“tocou”, “gritos”, “entusiasmável”, “saber do mundo” (gsv472), “concebeu”, “emendo”, “não refleti”, “razão”, “terprazos”, “projeto formasse pormenores” (gsv 477), “gritos”,“uivos”, “linha” (gsv 492), “mão direita (adestro)”, “quasepor si (automatismo)”, “sei”, “dizer”, “fantasias,” (gsv 493),“errado” (gsv 497), “medito”, “cantando esperto que sesemelha trabalho”, “aos-fins-e-fatos (a narrativa)” (gsv 504),“regulando”, “semelhasse”, “invenção”, “surtos” (delírios ouessa dos oníricos), “pássaros (sua música)”, “pé (de verso?)”,“olhar”, “remedindo” (gsv 508), “mirei e admirei”,“superior”, “alturas”, “reger (uma orquestra)”, “cantão”(grande canto musical), “guerra” (entre correntes estéticas)”

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45 (gsv 516), “baque”, “retumbo” (sonoridades), “A vitória! Ah— a vitória (notar a repetição, aparentemente gratuita, deletras, conforme outros exemplos acima)” (gsv 523), “tá-tá,tiro (sonoridade onomatopaica ou mimética)”, “silêncio(alternado com a sonoridade, cria o ritmo)” (gsv 525).

Observa-se, por conseqüência, que várias são as noçõesoriundas do campo da produção ou da reflexão estéticasque informam, por interpolação semântica, a narração dojagunço Riobaldo. Nessa perspectiva, certas frases lançadaspelo narrador apontam, de maneira bastante explícita, ocaminho da guerra literária. Lancemos, portanto, um olharinquisidor sobre essas frases, sem “resumir curiosidade” (gsv134), conforme sugere o bardo Riobaldo.

A Arte da guerra: travessias literárias

Entre as múltiplas ocorrências do termo “arte” que dãoorigem à extensa malha de significações acima explicitada,efetuou-se uma seleção de frases em que a malha significativase encontra, de maneira mais evidente e inequívoca, associadaao tema da guerra artística e da travessia sertaneja. Entretanto,o leitor terá grande proveito em analisar, nas páginas doromance, a miríade de outros significados sotopostos ao textoe ainda não explorados pela crítica. Tais construções mereceme solicitam interpretação, e este estudo não tem a pretensãode esgotar o assunto; mesmo porque o próprio GuimarãesRosa conclui seu romance com o emprego sugestivo dalemniscata, lançando o texto no espaço das infinitaspossibilidades interpretativas, tarefa inimaginável para umsó pesquisador. O presente trabalho, nessa óptica, inscreve-se antes no espaço aberto do diálogo interpretativo do queno círculo fechado do monólogo dogmático. Quanto aoromance no qual se interpola a noção de guerra literária, ocorte analítico se fará aqui por intermédio do agrupamentodas frases segundo temas que informam, de maneirasubliminar, a narrativa de Riobaldo, conforme os eixos designificação assim definidos: o papel de Zé Bebelo, o ofíciodo jagunço, a criação artística.

As frases selecionadas e reproduzidas nas próximaspáginas receberão, com o objetivo de fomentar a discussão,uma proposta provisória de leitura. Salvo engano, as traduções

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46 do romance são as únicas abordagens críticas efetivamenterealizadas dos fragmentos de texto em que ocorre a palavra“arte”; todavia, os tradutores optaram por suprimir essapalavra em suas versões para o francês, italiano e, em menormedida, para o espanhol. Tornamos a sublinhar que talocorrência foi até o momento preterida pela crítica strictosensu (visto que toda tradução é uma forma de crítica), aoproveito de temas e motivos desvinculados da auto-reflexãoestética e imediatamente mais acessíveis à superfície do texto.

O papel de Zé Bebelo: o poder do discurso no Sertão dasArtes

O personagem de Zé Bebelo, que teremos a ocasião deanalisar mais detalhadamente em páginas subseqüentes, éapresentado várias vezes, de maneira positiva, por intermédioda palavra “arte”, como nesta passagem: “Soava no que [ZéBebelo] falava, artes que falava, diferente na autoridade, mascom uma autoridade muito veloz” (gsv 62). Nota-se, pelaafirmação do bardo Riobaldo, que o discurso de Bebelodeverá, sob toda evidência, remeter ao espaço definido pelas“artes”, conforme sugere a frase. Zé Bebelo, chefe dejagunços, excelente orador, lidera em função de seu discursoartístico, discurso que ressoa, que provoca ecos, que é ouvidopor intermédio de sucessivas repetições, como se fosse odiscurso de um grande escritor ou poeta (aquele que exerceuma “autoridade veloz”), um discurso que será sempreretomado, imitado ou citado intertextualmente.

As interpolações semânticas prosseguem na falaenigmática de Riobaldo, como na frase “Nest’artes, só nissoele [Zé Bebelo] pensava, quase que” (gsv 78), forma desugerir que o objeto exclusivo dos pensamentos de Zé Rebeloencontra-se no plano das Artes. Assim, em “Zé Bebelo VazRamiro — viva o nome! (...) No borrusco, o Hermógenescorria, longes, de nós, sempre. Às artes que fugiam”(gsv 274), o leitor notará que a arte de Bebelo opõe-se aHermógenes e a seus sectários, pois esses jagunços fogem “àarte”, afastam-se dela no mesmo instante em que corremdo bardo Riobaldo, de Zé Bebelo e seu bando. Os jagunçosque seguem Hermógenes evoluem (“correm”) no “borrusco”,ou, em outras palavras, no borrão, mancha, rascunho, obra

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47 estética mal concebida ou executada. Portanto, o texto indicaque a oposição entre Hermógenes e Zé Bebelo ocorre noplano das artes. Ademais, o leitor terá a oportunidade denotar que essa arte é caracterizada pelo ato de falar (“artesque falava”) e de nomear (“viva o nome!”), condições queconferem a essa arte, objeto das contendas entre Hermógenese Bebelo/Riobaldo, o estatuto de artes da linguagem.

O ofício do jagunço: as Bélicas Letras

A guerra entre jagunços prossegue no âmbito das artes:“Dei gritos. Arte que abria no rifle; e matava. Donde era queestava o Hermógenes? A uivos, atrás duns, rompemos emlinha na vereda. Todo buriti levou bala.” (gsv 492) AquiRiobaldo afirma, de maneira subreptícia, que, com seu riflee sua voz (“uivos), com seus gritos, está abrindo a arte (“arteque abria”), está buscando novas formas de expressãoartística. Novamente a sonoridade da fala é associada à guerrae ao ofício dos beligerantes jagunços, além da introdução daidéia de uma busca de novos e abertos horizontes estéticos.A essa guerra artística e sonora, Hermógenes só pode fugir,e seus sectários encontram-se mudos, passivos nessa veredasobre a qual Riobaldo abre, em “linha na vereda”, uma arteque se faz sobre linhas que, ao olhar do leitor arguto, setransformam na imagem das pautas do papel; e vale aqui alembrança de que cadernos e cadernetas são o suporteutilizado por Guimarães Rosa para sua escritura.

O ofício verbal e artístico do jagunço é anunciado desdecedo nas páginas do romance: “Mas [Selorico Mendes]gostava de conversar, contava casos. Altas artes de jagunços— isso ele amava constante — histórias” (gsv 94). O ofíciodos jagunços, sugere Riobaldo, é o ofício artístico de contarhistórias. A indicação é clara: os jagunços guerreirosparticipam de uma guerra artística, e posto que sua arte é ade contar histórias, essa guerra provavelmente será literária.E, note-se bem, Selorico é contador de “altas artes”, dizRiobaldo, cabendo ao leitor lembrar-se das “Veredas Altas”34

e, em associação livre, das “Altas Literaturas” que dão títuloa um lúcido estudo de Leyla Perrone-Moisés em torno decertos expoentes da Literatura Universal, aquela Weltliteratursobre a qual discorre Goethe. O contador Selorico, o bardo

34 Por esse prisma, valeobservar que Willi Bolleterá a ocasião de falar deuma “geografia simbó-lica” de Grande Sertão:Veredas. Para Bolle, atopografia das VeredasMortas, veredas que secruzam, remeteriasimbolicamente à topo-grafia da Mesopotâmia,região em que nasceramas primeiras cidades e,portanto, a civilização; elocal onde foi inventadaa escrita. Emerge aqui,subjacente aos ele-mentos regionais con-cretos do romance, aimagem da palavraescrita e, por conse-qüente, da próprialiteratura. Willi BOLLE,“O pacto no GrandeSertão – Esoterismo ouLei Fundadora?”, inRevista USP, p. 38.

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48 Riobaldo e o loquaz Zé Bebelo lutam do lado da AltaLiteratura, das Grandes e Belas Letras, sugere o metadiscursodo narrador.

As locuções metanarrativas espalham-se ao longo dotexto: [Selorico conta] “As lutas dos joca-ramiros, osbarulhos, as manhas traçadas para se ganhar em combate,maço de estórias de toda raça de artes e estratagemas.”(gsv 102) Se “manha” tem como sinônimo “arte”, as“manhas traçadas” remetem à qualquer arte registrada emforma de traços, da arte pictórica à arte literária, na formade “toda raça de artes”. Note-se novamente, nessa passagem,que o “barulho”, a sonoridade, é importante nessa guerraliterária, na qual Selorico Mendes exerce o importante papelde narrador ou, em outros termos, de tradutor, pois eletraduz, sob forma de “estórias” ou de discurso artístico, osbélicos acontecimentos do sertão. Nesse contexto, os “maçosde estórias” remetem, sob toda evidência, a “maços de folhascontendo estórias”, pois “maço” é um conjunto de objetosatados por intermédio de fios, tal como os livrosencadernados no processo anterior à moderna colagem dodorso, como se vê nas antigas edições do romance em tela.Nesse processo, cabe sublinhar para a futura interpretaçãode outras passagens do romance, formam-se blocos comfolhas cuidadosamente dobradas pelas mãos dos artesãos,cosendo-se posteriormente os blocos entre si. Assim, o ofíciodos jagunços desenvolve-se em torno da palavra artística, daficção e da sonoridade bélica.

A criação artística: do pacto demoníaco ao turbilhão musicaldo discurso

Na continuidade de seu percurso em meio à selva oscura,o leitor notará o próprio objeto do pacto feito por Riobaldocom o Demo (Dê-mot), com o “Que-Diga” ou “Não-Sei-Que-Diga”, é a arte: “O que ele [Diadorim] soubesse, nãosoubesse, não tinha ciência de coisa nenhuma, da arte emque eu tinha ido estipular o Oculto, nas Veredas Mortas, noermo da encruzilhada... Aquilo não formava meu segredo?”(gsv 413). Por intermédio da arte, Riobaldo “estipula Ooculto”, a letra oculta, a letra-enigma (“segredo”) a serbuscada peilo leitor, revelada à luz do grande dia. Esse

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49 segredo, diz o narrador, é “formado”, é um segredo que serelaciona com “formato” ou “forma”. Por intermédio dessepacto, Hermógenes será eliminado da belicosa contenda e osertão aprenderá a existência das “Veredas Altas”.

Essa idéia retoma e complementa a afirmação na qual, jáà página sete do romance — página repleta de preciososprotocolos de leitura, conforme veremos ao longo desteestudo — o narrador anuncia que suas reflexões tambémse desenvolvem no espaço definido pela arte e pela busca deidéias de plana superior, “altas idéias”: “Bem, mas o senhordirá, deve de: e no começo — para pecados e artes, as pessoas— como por que foi que tanto emendado se começou? (...)Sou só um sertanejo, nessas altas idéias navego mal” (gsv 7).As “altas idéias” sobre as quais o bardo “navega” podemremeter às águas das “Veredas Altas” em que se trans-formarão, após o fim de Hermógenes, as antigas e inférteis“Veredas Mortas”. Os “pecados” e “emendas” remetem, sobtoda evidência, a erros e consertos que, conforme refleteRiobaldo, marcam os aspectos formais da arte desde o seunascimento, cabendo ao jagunço a correção de tais erros,com vista à materialização, por intermédio do gesto denomear ou de renomear, das “Veredas Altas”. Riobaldoprossegue, ao longo do romance, suas alusões enigmáticas arespeito das artes, alertando ao “senhor-leitor” que é precisoatenção para “saber” ou descobrir o sentido oculto: “As graçasd’arte — sabe o senhor (...)” (gsv 422). E as artes, claroestá, são artes da palavra, artes da ficção, “estórias”, frutosda fantasia e da imaginação, como anuncia o bardo sertanejo:“Só estas minhas artes de dizer — as fantasias...” (gsv 493).

Os textos críticos desconsideram, de maneirasurpreendente, as recorrências desse tema no romance emtela. Ademais, se a guerra transcorre efetivamente no espaçoda palavra artística, Riobaldo terá a ocasião de afirmar que avitória, nessa guerra, se fará no plano da sonoridade, do“baque”, do “retumbo”, vitória carreada pelos ventos, ar emmovimento (assim como, coincidentemente, também o somé resultado do ar em movimento): “A arte que prometi:que, mais baque, mais retumbo, a gente ganhava: a genteganhava... a gente ganhava! Antes bati uma palmada firme,no liso da minha coronha. A vitória! Ah — a vitória — eu nomeio dela, que com os ventos arrastado...” (gsv 522-523)Riobaldo, carregado com violência pelo vento, situa-se em

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50 meio à vitória, exatamente como o Diabo posta-se em meioao redemoinho, turbilhão provocado pelo deslocamento doar; o leitor se lembrará, ainda uma vez, que também o som éo resultado do deslocamento do ar: a vitória na guerra artísticae os sons interligam-se e interpolam-se, simbolicamente, deforma coesa e indissociável, noção de grande importânciapara a seqüência do presente estudo. O passante desavisadodesconcerta-se com as vertigens do enigma, assim como omais atento leitor corre o risco de perder os sentidos emmeio a esse redemoinho de signos que arrasta consigo umturbilhão de imagens ocultadas com zelo sob o discurso deRiobaldo.

Para, à espreita de futuros pesquisadores-rastreadores,suspender esta abordagem das ocorrências da palavra “arte”em Grande Sertão: Veredas, sublinhe-se que o Liso doSussuarão é o espaço que, por excelência, se encontra aosantípodas da arte, conforme afirma Riobaldo: “Depois, dearte: que o Liso do Sussuarão não concedia passagem a genteviva, era o raso pior havente, era um escampo dos infernos.”(gsv 24-25). Esse espaço topográfico pretensamentesertanejo representa, segundo Riobaldo, um espaço “raso” e“liso” sobre o qual a vida (que “é igual à literatura”, diz Rosa)não tem como se desenvolver, lançar raízes para se nutrir,fixar-se sem fatais deslizes, idéias que teremos a ocasião dedesenvolver na terceira parte deste estudo.

Entrementes, observa-se que a palavra “arte”, pelo seuemprego ambíguo e impreciso na locução de Riobaldo,conduz o texto rumo à participação do leitor na construçãodo sentido, rumo ao romance aberto. Ora, o leitor criteriososabe que a obra aberta, em sua condição de texto ambivalentee plurissignificante, serve-se, preferencialmente, de certasfiguras de linguagem que solicitam a participação ativa doleitor. Entre tais figuras, os oxímoros e as parataxes têmparticipação privilegiada na construção da plurissignificaçãodo romance. Por essa razão, dos aspectos ambíguos da palavra“arte”, passaremos a analisar a construção de oxímoros eparataxes, assim como a forma que lhes permite acrescentarsentidos vagos e ambíguos no tecido discursivo do bardo dosertão.

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51 A palavra-dado, oxímoros e parataxes: a obra aberta

Entre as figuras de linguagem mais recorrentes emGuimarães Rosa, as parataxes e oxímoros parecem recolherem si uma certa concepção da literatura propugnada peloromancista em suas raras declarações sobre a significação desua obra: o texto literário que se quer espaço privilegiado dovago e do impreciso, do dúbio e do ambivalente, da palavraplurissignificante e do leitor atuante. Os oxímoros, pelo seupoder de condensação dessas noções poéticas, talvez sejama figura de linguagem mais emblemática desse romance, poisestabelecem planos de leitura em que noções antagônicas seconfrontam e forçam a indeterminação do significado, forçama participação do leitor na decodificação do signo, conduzemo texto a uma perspectiva de obra aberta — e vale lembrarnovamente aqui a presença da sugestiva lemniscata doencerramento do romance.

Claro está que tais oxímoros conduzem o texto a umaforma “abarrocada” de escrita, notadamente em seconsiderando também os hipérbatos, antíteses, anacolutos,empréstimos a idiomas estrangeiros, construções anafóricas,parênteses, parataxes e assíndetos que se espalham sobre asuperfície do texto. Quanto a uma certa estética literária“abarrocada”, ao longo deste estudo o leitor observará outroimportante aspecto da cosmovisão barroca encontradiça emRosa: a relevância dos aspectos visuais do texto, fazendocom que o signo valha ou signifique por si mesmo. Nesseaspecto, os oxímoros refletem “as formas do falso” (gsv 318),a imagem das ambigüidades ou ambivalências barrocas difusasao longo do texto, das quais a expressão recorrente “sei enão sei” constitui o exemplo paroxístico, tradução privilegiadada afirmação dubidativa de Riobaldo: “eu senhor de certezanenhuma” (gsv 310). Sob essa óptica, o narrador afirma que“os falsíssimos do demo se reproduzem. O senhor vá meouvindo, vá mais me entendendo” (gsv 326): os falsos sedesdobram ao longo do texto, e o leitor deve buscar overdadeiro (aquilo que estará a “mais”, estará agregado aotexto sob forma subjacente) diante do “demo”, do“demonstrado” explícito, ou do “dê-mot”, “dê-palavra”.Note-se ainda que “dé-mot” remeteria ao “dado-palavra”com suas seis faces significantes, cubo lingüístico que semprereserva surpresas a quem o manipula, tal como as surpresas

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52 trazidas pelo multifacetado oxímoro. As noções de “formasdo falso” (gsv 318), “certeza nenhuma” (gsv 310) e“falsíssimos do demo” (gsv 326) são lançadas por Riobaldo,sublinhe-se, em páginas muito próximas entre si e, para suainterpretação, solicitam o agrupamento segundo a imagemde teia ou malha significante entretecida pelo fio do discursodo narrador.

Nessa perspectiva, o leitor poderá colher, no romance,alguns entre os múltiplos exemplos de oxímoros espalhadosao longo do texto, com o objetivo de proceder à suaimpossível decifração. Nos textos críticos que tivemos aocasião de consultar ao longo de nosso estudo, não logramosencontrar nenhuma análise nem referência detalhada aosoxímoros rosianos. Assim, um virtual primeiro exemplo deoxímoro, tomado ao acaso no texto, poderia ser “ódiosossegado” (gsv 21). Nesse caso de figura, as noções de“ódio” e “sossego” excluem-se e anulam-se mutuamente,pois remetem ao mesmo espaço definido pelas reaçõesemocionais; enquanto “ódio” implica em uma explosãoemocional, “sossego” remete a tranqüilidade, calma. Restaao leitor decidir-se sobre o estado de espírito que poderiacorresponder à noção de “ódio sossegado”, resta ao leitorposicionar-se diante daquele “indécidable du sens”(indecidível do sentido) sobre o qual explana Barthes. Emtodo o caso, a expressão, por si só, não apresenta um sentidoclaro e unívoco, ou talvez nem mesmo apresente um sentido:a presença participativa do leitor torna-se essencial àconstrução do significado da obra.

Um segundo exemplo poderia ser, ao grado dolançamento fortuito dos dados-palavra, “santas vinganças”(gsv 263), expressão talvez já vista anteriormente pelo leitor,ainda que sob outras formas. Nessa expressão, a condiçãode oxímoro advém do universo religioso, cujos preceitosindicam que um gesto de “vingança” não poderia ser vistocomo um ato “santo”, mas sim um gesto inspirado por forçasdemoníacas. A idéia de “santidade” descarta a possibilidadede atos vingativos, e novamente o leitor será chamado apostar-se no espaço intervalar entre duas noções que seexcluem e se anulam mutuamente. Tais condições são asmesmas que caracterizam o sintagma “punições maravilhosas”(gsv 310), composto por duas palavras que remetem auniversos radicalmente opostos entre si, no mesmo momento

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53 em que uma qualifica a outra, havendo um certo número detraços semânticos que permanecem flutuantes ou em posiçãodefinitivamente aleatória e de impossível determinação, talcomo o elétron que rodopia veloz em sua órbita intangível.

Um estranho oxímoro será utilizado por Riobaldo paracaracterizar Seô Habão: “teus duros olhos moles” (gsv 389).Nessa expressão, a oposição semântica entre termosjustapostos parece sugerir que o personagem de Habão,representado metonimicamente pelos seus olhos (metonímiada parte pelo todo, ou sinédoque, como determinam osestudiosos do Grupo m), não é aquilo que aparenta ser; ouantes, Habão caracteriza-se por uma aparência que ocultauma essência muito distinta (diametralmente oposta) de seuaspecto visível ou sensível (noções que se depreendem dacondição tátil ou visual da rigidez ou maleabilidade de um“duro” objeto “mole”), ainda que ambos possam serapreendidos, de forma pertinente, pelo observador. Anatureza ambígua do personagem de Habão será detalhadano penúltimo capítulo deste estudo, haja vista o enigmasabiamente ocultado por Rosa no espaço intervalar situadoentre a forma sensível e a condição inteligível desse oximóricopatrão sertanejo. Esse enigma, se decifrado ao leitor nestafase parcial de apreeensão do sentido global desse romancemetaliterário, poderia conduzi-lo a um desbragado acessode riso, pela quase absurda imagem construída pelo genialbardo do sertão e sonegada com desvelo de amante ao olhardos meros curiosos. Assim, o leitor deverá esperar,pacientemente, a chegada dos capítulos que concluem esteestudo no célere turbilhão dos abismos da metaliteratura.

Para encerrar esta análise de oxímoros, trabalho queocuparia um número desmedido de páginas em função dafortíssima recorrência, em Rosa, dessa emblemática figurade linguagem, poderíamos observar a relação oximórica quese estabelece no próprio título do romance, se considerarmos“veredas” como um possível qualificativo para “grandesertão”, haja vista a relação paratática existente entre ostermos, como será analisado logo adiante. Sob forma explícitaou sugerida, as idéias se opõem em profusão nesse títuloenigmático: por um lado, esterilidade, grande extensão,ausência de água e vegetação, morte; por outro lado,fertilidade, extensão reduzida, presença de água e vegetação,vida. Haveria ainda uma possível oposição entre aspectos

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54 sensíveis ou aparentes (ver, em “veredas”) e inteligíveis (ser,em “sertão”). Assim, o próprio título, sob forma oximórica,desloca o leitor do universo das certezas rumo ao espaço daalienação dos sentidos, perturba a lógica e desvanece asecurizante razão experimentada nos objetos e noçõescotidianas e pedestres. Quanto às parataxes, o que dizerdaquela que também rege esse enigmático título, “grandesertão: veredas”? Se, como sublinha D.H. Pageaux, asparataxes são uma raridade estilística na elaboração de títulosde romances, não poderíamos ver nesse recurso estilísticoum certo protocolo de leitura? Com efeito, também FrancisUtéza observa, nessa parataxe, uma relação adversativa queé assim explicada:

“GRANDE SERTÃO: VEREDAS. Três palavras, reunidas

em duas expressões a priori geográficas, compõem uma unidade

intermediada pelos dois pontos que as colocam em uma relação

ao mesmo tempo de oposição e de complementaridade. Um

espírito ocidental reconhecerá aí sobretudo a oposição: o sertão

acaba toda a confusão e tumultuosa massa do mundo sensível,

caos ilimitado de que só uma parte ínfima nos é dado conhecer,

— precisamente a que se avista ao longo das veredas, tênues

canais de penetração e comunicação. Assim o sinal : entre os

dois elementos do título teria valor adversativo, estabelecendo

a oposição entre a imensa realidade inabrangível e suas mínimas

parcelas acessíveis, ou, noutras palavras, entre o intuível e o

conhecível.”35

Conforme também sublinha Roberto Schwarz, odiscurso de Riobaldo é fortemente marcado pelas construçõesparatáticas, fatura estilística que pode simbolizar umarepresentação do mundo segundo uma perspectivaimpressionista (no sentido pictórico do termo) oufragmentária:

“Trata-se de uma espécie de técnica pontilhista. Caminho

semelhante deverá seguir a fruição da obra: deixa-se tomar

pela dinâmica da frase e vai recebendo a seqüência das

impressões; importante não é o desenho lógico da sucessão,

mas o acúmulo; o efeito é dado pelo curto-circuito (recurso

poético) entre segmentos cuja ligação gramatical, fosse

35 Francis UTÉZA,Metafísica do GrandeSertão, p. 56.

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55 importante, seria precária. Exemplo: Riobaldo, lembrando seu

amor insólito por Diadorim, diz ‘que vontade era de pôr meus

dedos, de leve, o leve, nos meigos olhos dele, ocultando, para

não ter de tolerar assim o chamado, até que ponto esses olhos,

sempre havendo, aquela beleza verde, me adoecido, tão

impossível’ (gsv p. 36). Com malabarismo, infidelidade e

muita perda, seria fácil recompor nosso exemplo sem atentado

à gramática.”36

Para Jean-Paul Bruyas, a parataxe seria a construçãológico-sintática mais marcante do texto rosiano, pois aí sãoencontrados sobretudo “enunciados (palavras ou grupo depalavras auto-suficientes gramaticalmente e pelo sentido)extremamente curtos”, dispostos no encadeamento da falado narrador segundo pausas rítmicas (com ou sem pontuaçãomarcada) que os deixam sutilmente separados ou isolados,“justapostos em vez de ligados, ou ligados de uma formadiferente da que se espera, o que aumenta a acentuação, aautonomia de cada enunciado, sua força enquanto segmentodistinto.”37

A construção de uma narrativa paratática, na qualsuprimem-se as conjunções e os nexos lógicos, é umprocedimento que apresenta um grande número deobstáculos ao trabalho de um autor literário. Por essa razão,diz Suzy Sperber, o texto rosiano, profundamente marcadopor tal técnica estilística, demonstra “a sua consciência nosprocessos de justaposição e ruptura dos elementos dosintagma e da narrativa”.38 Mary Lou Daniel sublinha que asupressão dessas conjunções acarreta a supressão conscientedos vínculos lógicos explicitamente construídos entre asorações principais e as orações subordinadas do texto. Poresse viés, o autor “deixa para o leitor a responsabilidade deassumir o elo ausente para completar o significado da frase.”39

As conjunções são suprimidas e as orações são justapostaspor intermédio de signos diacríticos como “:” (dois pontos)ou “;” (ponto-e-vírgula): uma rápida contagem desses signosmostrará que, em uma média de 500 páginas de texto, hámais de 2.250 ocorrências de “:” e 1.140 de “;”, em umacadência estatística extremamente representativa de umacerta concepção da literatura e do universo. Assim, asupressão das conjunções ou a justaposição pura e simplesde orações serão características da sintaxe de Grande Sertão:

36 Roberto SCHWARZ,“Grande Sertão: Estu-dos”, in Eduardo F.Coutinho (org.), Gui-marães Rosa, p. 381.37 Jean-Paul BRUYAS,Técnicas, estruturas evisão em Grande Sertão:Veredas”, in Eduardo F.Coutinho (org.), Gui-marães Rosa, p. 461.38 Suzi Frankl SPER-BER, Guimarães Rosa:signo e sentimento, p. 43.39 Mary Lou DANIEL,João Guimarães Rosa.Travessia Literária, p.124.

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56 Veredas, estilo que se apresenta como mímese do discursooral sertanejo, simbolicamente representado pela fala deRiobaldo. Tal supressão será fonte privilegiada de poesia, poispermite o adensamento das camadas significantes de seutexto.

Se as supressões de conjunções tornam ambivalentesou ambíguos os significados das frases, a pontuação utilizadapelo romancista tem a função antes rítmica do que gramatical,pois marcam uma pausa discursiva que reflete momentosde dúvidas e incertezas no plano da lógica ou doencadeamento do pensamento. Assim, com freqüência oromancista separa a oração subordinada da principal tambémpor intermédio de um ponto, ainda que no plano lógico asduas orações constituam um só período mental, comolembram Nelly Coelho e Ivana Versiani.40 Essa fragmentaçãodo texto, segundo Wilson Martins, ocorre também em outrosdiversos níveis lógicos:

“Os princípios da arte narrativa exposto por Riobaldo não

significam outra coisa senão que ele ordena a estrutura por

meio de metáforas e metonímias, zeugmas e anacolutos de

composição, isto é, como se a técnica e o espírito das figuras

de linguagem se transpusessem para os recursos propriamente

literários em que os diversos ‘blocos’ da intriga fossem tomados

como outras tantas palavras ou grupos sintáticos.”41

Cavalcanti Proença ressalva, com veemência, que taisconstruções em Guimarães Rosa não constituem um “sistemaarbitrário, e nem tampouco hermetismos intencionais”. Oromancista apenas acentuou o movimento observável na falado sertanejo, tanto no plano da sintaxe quanto no plano dasexpressões idiomáticas, colocando em relevo as virtuaispossibilidades já encontradas na língua.42 Nesse sentido,Lenira Covizzi faz uma contundente avaliação da arte literáriarepresentada pela obra de Guimarães Rosa:

“Arte fascinante porque espanta, amedronta, comunica a

consciência dolorosa e lúcida de que as palavras não esgotam

a expressão da realidade. Então o autor não tenta mais

convencer o leitor: torna-o cúmplice, aliado de suas

perplexidades. Não propõe soluções ou resoluções, mas

dominações através de elaboração, contenção,

40 Cf. Nelly NovaesCOELHO e IvanaVERSIANI, GuimarãesRosa: dois estudos, p.101-139.41 Wilson Martins,“Prefácio”, in Mary LouDANIEL, João Gui-marães Rosa. TravessiaLiterária, p. XXIII.42 Manoel CavalcantiPROENÇA, “Trilhas doGrande Sertão”, inAugusto dos Anjos eoutros ensaios, p. 223.

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57 experimentação, arbitrariedade procurada gerando

ambigüidade proposital, criando um universo fragmentário

que se quer uno.”43

Ainda que, num contraponto ao lúcido Proença,Covizzi se mostre um pouco precipitada em colar a etiquetade arbitrariedade ao discurso rosiano (aspectos que o leitorterá a ocasião de apreender em páginas vindouras, cujas linhasversarão sobre a noção de arbitrariedade do signo em permeioà guerra dos jagunços), deve-se concordar com sua leiturano sentido em que o fluxo ao mesmo tempo fragmentário eininterrupto do discurso conduz à perplexidade, ao espantoe ao receio de auto-entrega face ao turbilhão vertiginoso quecaracteriza a tentativa desesperada de se tanger o intangível,de se ponderar o imponderável, de se dizer o indizível, receioface ao abandono à fruição do enigma que é a obra de arte.O leitor, amedrontado ao se sentir tragado pelo magnetismopoderoso do enigma e da dissolução da razão, pelo embatefurioso entre a “megera cartesiana” e a intuição (conformeas palavras de Rosa), pode se sentir tentado a sustentar-seem aspectos sólidos e concretos do livro (o “terra-a-terra”),a evitar o pélago voraz da perplexidade e da dúvida, a prevenir-se contra a possibilidade de resvalar rumo à vertigem do“claro abismo”. Nesse sentido, oxímoros e parataxesconstituem, portanto, um importante elemento estilísticoda escrita rosiana, exatamente aquele que, por intermédiodo emprego de uma quantidade mínima de palavras, permitea criação de um espaço ambíguo e aberto a múltiplasinterpretações, permite ao leitor o vislumbre da tentadora ehipnótica serpente da indecisão dos sentidos.

Adverbialização: o mentiroso sufixo -mente

Em paralelo às parataxes e outros aspectos da escritarosiana, Mary-Lou Daniel estudou, com excelentes resultadosinterpretativos, os processos de formação de palavras emGuimarães Rosa. Um grande número de pesquisadoresseguiu as trilhas abertas pela norte-americana, e grande é onúmero de trabalhos que descrevem, em termos lingüísticos,as técnicas de criação de neologismos postas em prática peloromancista. Entre essas técnicas, a formação de advérbiospor sufixação ocorre com uma freqüência inusitada. Rosa

43 Lenira MarquesCOVIZZI, O insólitoem Guimarães Rosa eBorges, p. 41.

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58 serve-se de substantivos, verbos, advérbios, adjetivos e atépronomes possessivos para a criação de inesperadosadvérbios, tais como esses exemplos retirados, também aogosto da fortuna, de Grande Sertão: Veredas:

“Antesmente” (gsv 10), “tresmente” (gsv 19),

“imaginalmente” (gsv 37), “talmente” (gsv 44), “tãomente”

(gsv 57), “direitamente” (gsv 53), “descritamente” (gsv 60),

“gostadamente” (gsv 77), “bastantemente” (gsv 133),

“sempremente” (gsv 151), “maiormente” (gsv 157),

“depressamente” (gsv 220), “desolhadamente” (gsv 244),

“mestremente” (gsv 299), “deusdadamente ele discorresse”

(gsv 332), “mãomente” (gsv 375), “preta-e-brancamente”

(gsv 388), “diabralmente” (gsv 433), “parmente” (gsv 20),

“formosuramente” (gsv 257).O que salta aos olhos do leitor é o fato de que esses

advérbios de modo, formados a partir do sufixo advervial -mente agregado à palavra-base, permitem, todos, umasegunda leitura assaz emblemática: esses termos, em princípioderivados por processo de sufixação, podem também serformados por processo de aglutinação entre o termo base ea palavra “mente”. Parece bastante evidente que Rosa procuraimpregnar as noções subjacentes ao texto com a imagem dointelecto, pensamento, entendimento, alma, imaginação oudesígnio, acepções indicadas pelos dicionários para o vocábulo“mente”. Assim, o semema “mente”, sob todas as suas formasde manifestação, ocorre aproximadamente 350 vezes ao longodo texto e impregna, de forma sub-reptícia ou sub-liminar,o conjunto das noções circunjacentes.

Em certas ocorrências, os advérbios formados em“mente” podem remeter, de forma bastante clara, à noçãode “inspiração”. Seria possível dizer que, em Rosa, o sufixo -mente mente: mentindo, engana o leitor incauto, talvez aquelemesmo quixotesco leitor que veja quiméricos monstros nafigura de moinhos, condição na qual seria possível entrever,paradoxalmente, um dos grandes méritos desse personagemde Cervantes que, conforme a fórmula genial de MichelFoulcault, ganha as estradas e lê o mundo para comprovar oslivros. Em outras palavras, Dom Quixote não lê os livrospara confirmar sua percepção do universo; ele lê o universopara confirmar suas cavalgadas pelos caminhos da poesia.

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59 Entrementes, retornemos às veredas do sertão e lancemosum olhar sobre os mais significativos entre os múltiplosexemplos de emprego do semema “mente” espalhados aolongo do romance.

Logo após o pacto com o “Que-Diga”, Riobaldo terá aocasião de dizer: “estouradamente achei: fortes idéias!”(gsv 420). O advérbio “estouradamente” indica, sob todaevidência, um “estouro da mente”, uma explosão de “fortesidéias”, uma inspiração súbita e incontida. A presença dosubstantivo “mente” em substituição ao sufixo “-mente”parece bastante óbvia, sobretudo se considerarmos que ofruto do “estouro” resume-se em “idéias”. Graças ao pactocom o “Que-Diga” Riobaldo acede, portanto, à inspiração, ea travessia do Liso do Sussuarão será então viável graças àpossibilidade de “sair de novamente por ali, por terras eguerras” (gsv 368). “Novamente”, “mente nova”: graças àinspiração demiúrgica, inspiração de que se depreendemnovas idéias, novas realidades, o bardo Riobaldo atravessaráo Liso e vencerá Hermógenes.

Ora, após atravessar o Liso do Sussuarão, Riobaldoencontra Maria da Luz e Hortência, e delas desfruta comomerecido prêmio. No nome destas personagens, é fácil ver aIluminação (Maria dá Luz) e o Alimento (Hortência, horta).Hortência dirá a Riobaldo: “Tu achou a gente casual aqui, noafrutado. Tu veio e vai, fortunosamente. Tu não repartindo,tu tem?...” (gsv 466). A noção de alimento repete-se em“afrutado” (em que é possível ler também “desfrute”), eesse neologismo é formado por intermédio da aglutinaçãode “A” (nome da primeira letra do alfabeto, derivação dosemítico aleph e do hieróglifo “cabeça de vaca”) e “fruta”,possível metáfora para “produto” ou “criação”: esse “produto”ou “alimento” vale no campo das letras, no âmbito daliteratura. Assim, “fortunosamente” pode ser decompostoem “mente fortunosa”, e Hortência parece indicar que seuestatuto é o de personagem encontrada ao grado dainspiração, da boa fortuna, do lance de dados inapto a aboliro acaso. Essa boa fortuna terá seu equivalente em“deusdadamente” (gsv 332), “mente dada por Deus”,imagem que remete a Diadorim, “presente de Deus”,conforme a virtual etimologia grega do nome, ou a“Deodorina” (mas também “Diá-dorim”: Deus e o Diabocoexistem no personagem, pois em Rosa “tudo é e não é”).

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60 Daí ser possível ver em “Tu não repartindo, tu tem?...” umaeventual alusão reflexiva sobre o dom e a inspiração literários(dádivas de Deus e/ou frutos de um pacto faustiano comMefistófeles), assim como sobre a necessidade de repartir oproduto da inspiração (o “a-frutado”) — os personagens e otexto literário — com o público leitor.

Construções expletivas no Sertão das Letras: homonimiase homofonias

Quanto aos elementos textuais sem sentido aparente àsuperfície do texto, Cavalcanti Proença é um dos primeiroscríticos a sublinhar a forte recorrência de expletivos emGrande Sertão: Veredas, lembrando, na ocasião, que “a sintaxedesigna o expletivo como elemento desnecessário à analise”44 .Uma rápida leitura do romance permitiria observar o usosistemático da letra “a” com valor expletivo, sem funçãosintática nas orações em que se apresenta, ainda que por

44 Manoel CavalcantiPROENÇA, “Trilhas doGrande Sertão”, inAugusto dos Anjos eoutros ensaios, p. 218.

Para que essa leitura melhor se justifique, notemos que,logo após Hortência servir-se do neologismo “fortunosamente”para indicar o modo pelo qual foi encontrada à saída do Liso,Riobaldo afirma: “eu conseguia meditar minhamente”(gsv 466). Se houvesse alguma dúvida quanto à inspiraçãoque levou Riobaldo à Travessia do Liso, à Iluminação e aoAlimento literário (“afrutado”), Riobaldo reforça a idéia deque se trata aqui de meditar sobre a própria mente, de refletirsobre os processos de funcionamento da imaginação, da criação,da inspiração. Esse é também o sentido possível para adeclaração de Riobaldo ao aproximar-se o fim da narrativa: “osenhor mesmo se prepare; que para fim terrível, terrivelmente”(gsv 494). “Terrível”, em sua acepção arcaica, pode remeter a“extraordinário, formidável, remarcável, excelente, grande,exorbitante”. E a inspiração necessária para a conclusãoinesperada, grande, magnífica de uma narrativa somente podeser oriunda de uma mente “terrível”, no sentido arcaico dotermo. Vemos, portanto, que nada é gratuito em Grande Sertão:Veredas: até mesmo o sufixo mente e conduz o leitor a trilhasafastadas do sentido subjacente do texto, as trilhas ocultas dacriação artística. O romance conduz o leitor, de forma reiterada,à perda do sentido, à dissolução da razão, à vertigem do enigma.

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61 vezes exerça a função de pseudo-preposição ou, em outrasocasiões, exerça o papel de interjeição com pseudo-valorexclamativo. Observa-se, igualmente, a forte recorrência devocábulos soltos, sem aparente função sintática no texto,que são homônimos das letras do abecedário. Tal é o caso dapreposição “de”, dos verbos “dê” e “há”, do advérbio,conjunção ou pronome relativo “que”, dos pronomes pessoais“ele” e “te”, do pronome demonstrativo “esse”, dos artigosdefinidos “o” e “a”, das preposições “a” e “se”, das interjeições“ah!”, “ih!”, “hê” ou “bê”, do substantivo “ás”, entre outroscasos de figura.

Dessa forma, o leitor é constantemente confrontado aonome das letras que compõem o alfabeto, letras que tambémdão origem às palavras que, por sua vez, dão forma ao mundo.Esses nomes de letras, repita-se, encontram-se soltos ao longodo texto. Entre os múltiplos empregos expletivos ou alusivosaos nomes das letras, notem-se os seguintes exemploscolhidos aleatoriamente ao longo do romance:

“dá-que, dá-que” (gsv 12), “há-de-o” (gsv 15), “De em de,

sempre” (gsv 18), “Hê, bê?...” (gsv 61), “Diadorim me chamou

adeparte” (gsv 64: a-dê-p-arte), “vai-te, volta-te.” (gsv 77), “A

bom,” (gsv 100) “Mais, mais, há-de dará é para diante, quando

se formar combate!” — uns proseavam.” (gsv 113), “Que modo

quê?” (gsv 178), “os lugares em que deviam-de. Arre”

(gsv 181), “eu podia pôr meu afinco o-farto destravado, no

querer combater” (gsv 190), “A cujo!” (gsv 197), “à de se

doidar” (gsv 218), “A simples íamos cercar bonito os Judas,

não tinham escape” (gsv 263), “A diversos” (gsv 274), “A em

pé, agora formada” (gsv 289), “O em usos...” (gsv 317), “no

posto-que?” (gsv 320), “A pra efetuar fogo. A ordem não era-

de?” (gsv 321), “A bem. Ã e nós?” (gsv 323), “A por perto”

(gsv 330), “Ih, que’s, menino!” (gsv 348), “A não” (gsv 380),

“Aí eu estava livre, a limpo de meus tristes passados” (gsv 386),

“A com a gente, a que viessem.” (gsv 391), “Ah, ô gente, oh e

eles” (gsv 393), “Há-de há, meu povo!” (gsv 394), “Aonde é

que jagunço ia? À vã, à vã.” (gsv 394), “De a de lado.” (gsv 396),

“Tanta doideira fiz? A prazo.” (gsv 409), “Seja o que,

companheiro velho? E eh lá isso?...” (gsv 419), “Se é se é, Chefe?

I. O “almanaque”GRND SRT~:palimpsestos eprotocolos deleitura

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62 A-hem?” (gsv 419), “A reto.” (gsv 430), “nem refiro que [a

travessia] fosse difícil-ah” (gsv 448), “Tudo de bom socorro,

em az [de a a z]. A uns lugares estranhos.” (gsv 448), “Ah-oh!

Aoh, mas ninguém não vê o demônio morto...” (gsv 452), “Ao

quê? Não me dê, dês.” (gsv 93), “Uma doidice, de quê?”

(gsv 109), “Que Diga” (Diga “Q”).Nesses exemplos, é possível observar que tal

procedimento ocorre, de maneira exemplar, com a palavra“que”, cujas funções sintáticas são as de conjunção, pronome,preposição ou partícula expletiva; ou com o substantivo ouinterjeição “quê”. Esses termos são repetidos à exaustão noromance em tela, sem que se possa determinar-lhes a funçãoem muitas das frases nas quais se encontram. Tais termospodem facilmente remeter à palavra “quê”, nome da letra q.Esse emprego poético de palavras sobre bases homonímicasé o mesmo analisado por Augusto de Campos em sua leituraanalógica das obras de Joyce e Mallarmé:

“O leitor incauto há de impressionar-se, por exemplo, com

a aparente integridade das palavras do Lance de dados, em

contraste com a violenta deformação léxica joyciana. Greer

Cohn e Hayman demonstram, porém, que as palavras do poema

de Mallarmé estão em perpétua revolução por detrás da máscara

de impassibilidade, sofrendo um processo de montagem, por

homonímia, que não está longe do de Joyce. Exemplos

apontados por D. Hayman: pénultième (onde a segunda sílaba

vale também como o substantivo NUL); legs en disparition (em

que verifica, com a palavra LEGS, um trocadilho bilíngüe: a)

leg = legado, em francês — b) legs = pernas, em inglês).”45

Segundo Campos, em Joyce encontra-se uma profusãode construções que seguem esse modelo. Quanto a Rosa,ainda segundo essa óptica, Campos desmonta a palavra“nonada” e encontra o equivalente de peNULtième (nul =nada)46 , afirmando, contudo, que o romancista brasileiropouco se serve desta técnica estilística, afirmação que o leitordo presente estudo poderá invalidar com um rápido olharnos exemplos elencados acima. Ademais, Augusto deCampos não estende a validade de sua análise ao conjuntodo texto rosiano, daí deduzindo que “Guimarães Rosa não

45 Augusto deCAMPOS, “Um lancede dês do GrandeSertão”, in Eduardo F.Coutinho (org.),Guimarães Rosa,p. 323.46 Idem, Ibid., p. 333.

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63 foi tão longe quanto Joyce nos experimentos lingüísticos. Écerto. Mas em compensação nenhum outro prosador emnossa língua se avizinhou tanto do grande escritor irlandês.”47

Subjaz, à analise crítica proposta por Campos, a idéia de queo valor do texto rosiano depende de sua capacidade de“avizinhar-se” do modelo joyciano, ainda que não possa “irtão longe”, não possa transpor as técnicas utilizadas peloirlandês. Essa idéia constrói-se em inobservância ao fato deque as próprias letras podem imiscuir-se no conjunto dotexto sob forma homonímica.

O próprio Riobaldo indica que as ocorrências da palavra“que” devem remeter às letras do alfabeto, ao universo dasletras, sob espécie de “sobredito”, de supratexto: “Que nãoexiste, que não, que não, é o que minha alma soletra. (...) Eforam esses monstros, o sobredito” (gsv 263). Nota-se,portanto, ao arrepio de Campos, que Rosa vai muito alémde Joyce, pois serve-se de unidades lingüísticas mínimas paraa construção do sentido em constelação de significados:“soletra”, “só-letra”, ou o mundo das letras. Nessaperspectiva, seria possível aproximar a letra “q” do significadodo hieróglifo que lhe deu origem, por intermédio do nomesemítico “quof”: a forma romana “q” remete a “nó”, noshieróglifos egípcios; e “nó” remete a “teia”, “tessitura”,“tecido” e, por conseqüente, texto.

O leitor do presente trabalho poderia abrir uma pausaparentética em sua leitura e obstar que nada permitiria, notexto, essa alusão intempestiva aos hieróglifos egípcios. Comcerteza. Todavia, no próximo capítulo veremos que oparatexto do romance, ou as ilustrações solicitadas a Poty,remetem o texto e seu tecido de letras exatamente às beirasdo delta do Nilo e à esfinge devoradora de passantesdesatentos ao significado do enigma. Acrescentemos, quantoao hieróglifo que deu origem à letra “q”, que “nó” é tambémo que faz exatamente um “cerzidor”, tal qual Riobaldo. Areiterada repetição do nome da letra “q”, no romance emtela, servirá como forma de indicar ao leitor, por intermédiode alusões à escrita hieroglífica, que o objeto que está emsuas mãos é um artefato feito de nós, é um texto, é umproduto da literatura.

Malgrado a afirmação de Augusto de Campos segundo aqual “Joyce parece mais difícil”48 , não apenas Rosa superaJoyce no emprego subreptício de termos homonímicos, como

47 Idem, Ibid., p. 348.48 Idem, Ibid., p. 348.

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64 também passa pela escrita ideogramática e, em sua delicadaconstrução da trama significativa do romance, vai muito alémdo simples e inócuo plurilingüismo joyceano. Para utilizar aimagem da tecelagem, diríamos que a trama rosiana apresentamuitos mais pontos ou nós por linha de texto/tecido do quea rústica tapeçaria joyceana. Ademais, Rosa, ao contrário deJoyce, tem o cuidado de homogeneizar a matéria textualbuscada alhures, fiando a matéria bruta na delicada roca dalíngua brasileira. E que o leitor perdoe, ao presente estudo,um rompante de deslocado e tresloucado nacionalismo:parece-nos evidente que Rosa supera, em muito, os joguinhosde palavras joyceanos que o brilhante Augusto de Campos,num inoportuno rasgo de subserviência cultural, quersuperiores ao elaboradíssimo tecido verbal da obra-mestredo nosso bardo do sertão. Assim é que o leitor terá a ocasiãode observar que, em paralelo à aparentemente gratuitainserção dos nomes das letras ao longo do texto, ocorretambém a alusão a certas características imanentes aoemprego das letras, tal como é possível entrever em “letreiro”,“deletrear”, ou o “soletrar” já analisado neste estudo. Eisaqui outras ocorrências que solicitam interpretação por partedo leitor:

“dali do Vespê, tocamos [ao Liso]” (gsv 34: V, S, P), “cada

recanto dos gerais, (...) referido deletreado” (gsv 36), “Mas hei-

de!” (gsv 77), “De ás, eu pensava claro, acho que de bês não

pensei não. Eu queria o ferver.” (gsv 104), “Buriti-do-Á, beira

de vereda” (gsv 180), “acabar com aqueles zebebelos” (gsv 181:

Z. B. B.), “se o Ele [“L”?] desse nele, por um vir?” (gsv 185),

“no acampo, debaixo de forma. Arte, o julgamento?” (gsv 222,

a-campo, campo do a), “é o que minha alma soletra” (gsv 263),

“Combatemos o quanto mais pudemos — está aí. Consoante

começou” (gsv 265), “Ao que jagunço é isto — o senhor ponha

letreiro” (gsv 313), “Ah. Isto era. Ah, e então?” (gsv 317), “Isso,

de arrevés, eu li com hagá” (gsv 328), “o ‘Sencler das ilhas’, e

que pedi para deletrear” (gsv 333), “Outro homem quis me

vender uma arara mansa, que a qual falava toda palavra que

tem á.” (gsv 335), “eu mais forte do que o Ele” (gsv 371), “o

Dê?!” (gsv 435), “Esses, eles!” (gsv 485: S, S, S... L, L, L...),

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65 “Doidice, tontura de espírito... — eu repensei, reposto em pé.

Xô! O ypsilone dum jegue eu era — zote, do que arrenego,

cabeça orelhalmente?” (gsv 505: P, X, Y, Z, Urutu dirige-se ao

Paredão; fim da guerra, logo, fim do abecedário), “O do Demo...”

(gsv 528), “cujo nome é Aesmeralda...” (gsv 528).Por conseqüente, “ler”, como afirma Riobaldo, é

também “deletrear” (gsv 333), discernir as letras, ou dar-lhes nome. Grande Sertão: Veredas remeteria, por esseprisma, àquele “almanaque grosso, de logogrifos echaradas” (gsv 7) do qual fala Riobaldo, logo ao início doromance, semeando ao longo de sua narração sugestivosprotocolos de leitura. É portanto preciso “deletrear” osempregos expletivos ou redundantes encontrados noenigmático romance. Ora, Haroldo de Campos,comentando Max Bense, observa que a redundância deveser obrigatoriamente desprezível em obras estéticas49 ,posto que as repetições remetem necessariamente a novosaspectos significativos para a compreensão da obra, nuncaao mesmo significado já expresso pelo termo retomadoem processo de repetição. Assim, observaremos ainda ouso reiterado da preposição ou conjunção “consoante” (21ocorrências ao longo do romance), cujo sentido próprio éo de “conforme ou segundo”. Todavia, uma segunda leituraseria possível para o termo: “soa com”, “que temconsonância”, “fonemas ou letras”, “rimas”, são acepçõesdicionarísticas para o termo “consoante” que se tornamvirtuais sugestões de sentido para o romance, pistas queindicam a necessidade de se considerar a musicalidadedas letras e das palavras. Ademais, “consoante” remete àestrutura consonantal do texto rosiano, ao “amor aoconsonantismo” ao qual alude Rosa em uma de suas cartascomentadas por Mary Lou Daniel50 .

Assim, se o texto indica, de forma subliminar, que oespaço sertanejo deve ser entendido como espaço dasletras, Letras ou Literatura, ou ainda como espaçolingüístico, o leitor verá, em capítulos adiante, que oparatexto é ainda mais rico em indicações nesse sentido.Continuemos, portanto, nosso percurso náutico sobre aságuas revoltas desse maelström vertiginoso que são osenigmas do sertanejo bardo Riobaldo.

49 Haroldo deCAMPOS, “De latraduction commecréation et commecritique”, in TransformerTraduire, CollectifChange, nº 14, p. 72.50 Mary Lou DANIEL,João Guimarães Rosa.Travessia Literária,p. 59.

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“Somente renovando a língua é que se pode renovar o mundo. (...)Sou precisamente um autor que cultiva a idéia antiga, porém sempre moderna,de que o som e o sentido de uma palavra pertencem um ao outro. Vão juntos.

A música da língua deve expressar o que a lógica da língua obriga a crer.”(Guimarães Rosa, em entrevista a Günter Lorenz)

O leitor, mareado pelas flutuações semânticas e pelasinversões abruptas de sentido no fluxo irrepresável designificados, mas que resiste bravamente à tentação deabandonar a barca que o conduz rumo aos mistériosinsondáveis da outra margem do Styx literário, seráreconfortado, nas páginas seguintes, com uma travessia emáguas de relativa bonança. Se, como quer o folclore, “osertão ainda vai virar mar”, o leitor terá a oportunidade deexplorar, ao longo destas páginas, certos mares já percorridospor outras embarcações, e poderá vislumbrar paradisíacasilhas semânticas que merecem o desembarque parareconhecimento, num percurso deambulante entre o sertãoliterário e as poéticas veredas que desaguam nos mares darepresentação literária.

Orfeu e o Verbo: a catabase órfica em busca do logos

O leitor teve a ocasião de observar, até o presentemomento, que a noção de arte, assim como o uso expletivode termos que remetem ao nome das letras e, por fim, anoção de inspiração demiúrgica informam a fatura enigmáticado romance. Essas referências mergulham o texto no espaçoda literatura, e a busca à palavra, conjunção de letras à qualacede-se por intermédio da inspiração, fazem, nesse universo,pensar em Orfeu à busca de Eurídice no espaço ferozmenteguardado por Cérbero. Note-se, en passant, que “Cérbero”é um sugestivo anagrama para “Cérebro”, essa “imaginal-mente” (gsv 37) de um autor que oculta palavras sob a tramade um texto artístico entretecido sob múltiplas formas, dalogogrífica à anagramática ou da metonímica à metafórica,da homonímica à homofônica ou da criptográfica à lúdica.

II. Da vertigem de um enigma à motivaçãodo signo: a reinvenção da palavra

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68 Em todas essa formas, o que se sobressai é o insolúvelEnigma da poesia.

Assim, numa leitura em que o mito de Orfeu seria umadas fontes intertextuais para a elaboração de Grande Sertão:Veredas, observa-se que a vitória final de Riobaldo sobreHermógenes tem seu preço: Riobaldo perderá, aí, seu alterego, sua alma, o enigmático Reinaldo-Diadorim. Oselementos da catabase órfica como busca do verbo, do logos,da resposta última, encontram-se aí agrupados. A verdadeúltima, aquela que concerne o personagem de Diadorim eque Riobaldo busca sem sabê-lo, é diluída no acontecimentode sua morte. A travessia — termo chave, de forterecorrência no texto51 , e com o qual Guimarães encerraseu romance antes de inusitadamente relançá-lo com osímbolo “ ” — de Riobaldo-Urutu-Orfeu52 espelha, nessaleitura, a travessia de Rio/Baldo-Styx, o rio vazio, rio damorte, “vereda morta”.

A batalha, cujo sucesso permitiria a reunião definitivade Riobaldo e Diadorim, desenrola-se em espaço que onarrador não teme descrever como espécie de abismoinfernal: “De mais longe, agora davam uns tiros, esses tirosvinham de profundas profundezas” (gsv 527). Esse abismo,para Orfeu, apresenta-se como espaço de seres mortos,cuja entrada é ferozmente protegida por Cérbero, omonstruoso cão de três cabeças, espaço em que reinaHades53 e que “veredas mortas” poderiam tambémsimbolizar. Assim, a passagem riobaldiana (travessia órficade regresso) do plano inferior — as “veredas mortas” sobrea qual vige o Demo, ou as “profundas profundezas” davargem do Tamanduá-tão — ao plano superior — as“veredas altas” —, terá por correlato, para Urutu-Orfeu,a perda de Eurídice-Diadorim. Não por acaso Hermógenesarrastará Diadorim consigo rumo ao mundo dos mortos noexato momento em que, repetindo o gesto de Orfeu,Riobaldo lança um olhar inquiridor sobre o duelo travado afaca: “E eu estando vendo!” (gsv 526), exclama o narrador.

Ao detrimento dessa cabível leitura, cujas raízesencontramos na mitologia grega, abordaremos, em capítuloabaixo, o pacto com o diabo como uma retomada do velhomito de Fausto, aqui considerado como uma transposiçãodo mito das Musas. Entrementes, lançaremos um olhar

II. Da vertigem deum enigma à moti-vação do signo: are i n v e n ç ã o d apalavra

51 Algo como sessentaocorrências, contadastambém suas variantes.52 Como teremos oca-sião de observar na se-qüência de nosso estu-do, assim como Orfeu,Riobaldo, ao tornar-seUrutu em imediataconseqüência do pactosupostamente ocorridonas Veredas Mortas,acederá ao domíniosobre a fala, produçãofundamen-talmentesonora, cujo avatarparoxístico encontra-remos no canto do mito-lógico enamorado deEurídice.53 Cujo heterônimo seráHermes: Hermógenesseria, pela etimologia deseu nome, “filho deHermes”?

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69 curioso sobre o paratexto imediato do romance, asilustrações concebidas para a segunda edição dessa obramestra da Alta Literatura.

O hieróglifo do Grande Sertão: da pintura rupestre aonascimento da escrita

Os enigmáticos desenhos solicitados por Guimarães Rosaao ilustrador Poty54 , concebidos com o objetivo de ilustraras orelhas e a folha de rosto da segunda edição de GrandeSertão: Veredas, trazem uma série de figuras que deixamperplexo até mesmo o mais ingênuo dos poentos caminheirosrosianos. Entre as versões inicial e definitiva, estão, aídispostas, imagens que remetem, em princípio, a um percursodefinitivamente sertanejo: rios, peixes, canoas, ramos deplantas, palmeiras, cavalos e bois, serpentes, aves, casebres eestrelas. O leitor sente-se confortado pela identificação dasfiguras e emite um prolongado suspiro de alívio. Entretanto,cuidado, senhor: implacáveis crotalídeos e felídeos estão àespreita nessas labirínticas veredas.

Na versão definitiva do desenho, linhas perpendicularesentre si sugerem prováveis coordenadas geográficas quepermitam a correta localização do espaço representado; maso leitor pode aí se perder, pois, contrariamente às verticais ehorizontais dos clássicos meridianos e paralelos, as linhasapresentam-se em diagonal quanto às margens do papel e àposição dos elementos desenhados. O enxadrista Rosa pareceiniciar seus lances e situar seu leitor sobre um enorme (grandeser/tão?) tabuleiro de xadrez – um de seus exercíciosintelectuais preferidos – e advertir, brincando com os sentidosnos campos do senhor: atenção, passante; consumir este“mapa” com moderação, pois o excesso pode ser prejudicialà saúde.

Os desatentos receberão xeque-mate em quatro lances.Na primeira versão dos desenhos, elaborada por Poty

sob a atenta orientação de Rosa, há, em forma de cabeçalhoque inaugura ou introduz a ilustração, letras desenhadas queformam a fragmentária mensagem “GRND SRT~”. Aodiscernir e restaurar as letras suprimidas, chega-se,obviamente, a um fragmento do título do romance, aqueleque remete ao pólo estéril do par dicotômico “sertão-

54 Ver Em memória deGuimarães Rosa, p.119, capa e folha derosto das edições doromance publicadaspela José Olympio. ANova Fronteira, pas-mem!, suprimiu ai lustração de suasedições por julgá-lasalheias ao tema doromance. Bem, houve jáquem propusesse a“correção” gramatical eortográfica dessa obraenigmática...

II. Da vertigem deum enigma à moti-vação do signo: are i n v e n ç ã o d apalavra

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70 veredas”. Na seqüência da leitura da representação pictórica,a imagem do Sertão pouco a pouco se desvanece: aqui,cavaleiros montados mais parecem pinturas rupestres; ali,solitárias letras irrompem e descaracterizam o pretenso mapa;acolá, dunas e morros pontiagudos sugerem um cabaldesconhecimento da geologia sertaneja; alhures, tridentes,símbolos musicais, matemáticos e lingüísticos instauram oespaço no plano das decifrações sígnicas e das decodificaçõessimbólicas. Por essa razão, “GRND SRT~” inaugura aimagem: esse signo parcial sugere que é preciso completar odesenho com o auxílio ou o emprego de letras. Em outrostermos, Rosa adverte a seu leitor que é necessário introduzirletras para que o paratexto possa representar, compropriedade, o conjunto do romance.

Assim, no conjunto dos componentes desse aparentelogogrifo disposto na versão inicial, nota-se, ao lado dotridente (no percurso desse tabuleiro de xadrez, pensemos,en passant, na tridêntea figura de Mefistófeles, personagemde “Chronos Kai Anagke”, ou “Tempo e Destino”, contopublicado, em 1930, em torno de pactos enxadrísticos,‘redemunhos’ e inspirações fáusticas), um delta emolduradopor um círculo, como se fosse um alvo a ser atingido; aomesmo tempo, a própria imagem do rio constrói-se aísegundo a figura de um delta. Às margens do rio em delta,dunas de areia, tal com aquelas que o viajante jamaisencontrará no sertão. Um pouco adiante, morros marcadospor agudos vértices, desconhecidos na topologia do espaçosertanejo. Senhor leitor, lance, sobre o delta e seus adornos,um dardo inquisidor, sugere a moldura do desenho.

E, por dedução elementar, o bravo leitor, que resisteainda aos xeques sucessivos de Rosa, julgará evidente a idéiade que Rosa solicitou a Poty elementos pictóricos queremetessem ao mais famoso e arenoso delta fluvial, o Deltado Nilo, em cujas margens estarão dispostos os inúmerosmonumentos sobre os quais se gravam os hieróglifosdecifrados por Champollion. Essa leitura é confortada pelastrês pontiagudas montanhas (exatamente como não as háno sertão, observe-se bem), de tamanhos diferentes eproporcionais entre si, que refletem as famosas pirâmidesde Quéops, Quéfren e Miquerinos. Ademais, as dunas deareia, ausentes do sertão, são características próprias dodeserto em torno ao Nilo e às pirâmides egípcias.

II. Da vertigem deum enigma à moti-vação do signo: are i n v e n ç ã o d apalavra

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71 Da mesma forma, o leitor verá o desenho de um boideitado em postura ereta, apoiado sobre as patas dianteiras,atitude corrente e plausível entre os bovinos quando emestado de descanso; todavia, nesse desenho, a silhueta doanimal mostra suas patas esticadas e lançadas adiante, quandona realidade o ruminante sertanejo dobra suas patas dianteirase as recolhe sob si, por questões de configuração anatômica.É fácil lembrar-se, pela vertente oposta, que as patas lançadasà frente e a postura ereta caracterizam, com toda propriedade,a célebre esfinge de Gizé que, em companhia das pirâmides,se encontra às beiras do Nilo e seu Delta. Nesse sentido, oleitor lembrar-se-á que da esfinge pode vir a conhecidíssimavoz de comando perfeitamente aplicável à poesia e, maisespecificamente, a Grande Sertão: Veredas: “decifra-me oute devoro”. Mas não cessam por aí as indicações do romancistamineiro: as figuras elaboradas por Poty, tal qual nos desenhosegípcios encontradiços sob dunas e sobre paredes depirâmides, são apresentadas de perfil bi-dimensional, emdesconhecimento às leis de perspectiva, e certos pássaros,por sua forma pictórica, remetem inexoravelmente aosdesenhos egípcios e à imagem dos hieróglifos. Vê-se atémesmo a imagem de Íbis, ave característica das margens doNilo, sagrada para os egípcios e personificação do deus Toth.

No presente instante, um leitor mais afoito, premidopelo tempo reservado a cada lance e acossado pelos assaltosconstantes de cavalos e peões rosianos, talvez queira lançarreis e torres de marfim por terra e protestar, veemente: oque vêm fazer o Egito, hieróglifos e pinturas rupestres emmeio à terrível guerra dos jagunços de Urutu e Hermógenes?A ele, será aconselhado: calma, senhor leitor. Se as águas domar do Nilo quiserem te afogar, segura na mão de Diadorime vai...

Às margens plácidas desse Nilo rosiano, entre vacas,cavalos, palmeiras e outros tantos símbolos pretensamentesertanejos e explicitamente enigmáticos, nota-se ummisterioso vAB emblematicamente entrecruzado – em quese sobressai, pelo seu tamanho, a imagem da letra “A” –, eesparsas letras “A”, “D”, “J”, “G” e “R”. Tais letras apresentam-se, por vezes, inseridas em figuras geométricas que lhesservem de moldura, sugerindo, sob forma de paratextocontratual e regente de cláusulas de leitura, que a letraemoldurada pode se tornar a própria obra de arte; o leitor

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72 constatará, igualmente, que a noção de tamanho ou grandezadas letras é extremamente produtiva para a leitura doromance. Também o “GRND SRT~” postado em cabeçalho,logo à entrada do desenho, solicita que o leitor acrescenteletras para completar o sentido da imagem. Nessa mesmailustração, em rodapé, encontra-se uma lemniscata ( ),sugestão de infinitas possibilidades de leitura para o desenhoe, por extensão, para o romance, encerrado igualmente poruma lemniscata, e representado, nomeadamente (GRNDSRT~), pelo desenho. As vertigens do enigma desconcertam,nesse percurso, o leitor acomodado às leituras imediatas eunívocas.

Por esse viés, note-se desde já que, em uma de suascartas enviadas ao tradutor francês Jean-Jacques Villard,Guimarães Rosa, ao comentar a função hermenêutica dalemniscata que encerra o romance, falará de “hieróglifo”55

de Grande Sertão: Veredas. Nesse sentido, pensemos naexpressão “aí, Zé, ôpa”, cunhada no poema “Cara de Bronze”e anagrama lúdico de “a poesia”, conforme Guimarãesdecifrou a um de seus tradutores56 ; possivelmente, sem apreciosa indicação de Rosa, o metapoético anagrama-enigma,durante tanto tempo ignorado pelos críticos, estaria até hojesolicitando uma pertinente leitura. Assim como, semChampollion (sem sua Pedra de Roseta, para pensarmos emRosa), talvez os hieróglifos egípcios solicitassem, ainda hoje,correta decifração.

Note-se ainda que, na mesma ilustração em tela,imediatamente ao lado de “vAB” apresenta-se a figura deuma cabeça de vaca (ou de boi), motivo pictórico “sertanejo”(as aspas deixam aqui em suspenso o valor pretextual a seragregado a esse epíteto) que é várias vezes repetido nodesenho. Se, por um lado, a consoante inicial de “vaca”, aletra “v” (também simbolizada graficamente pelos chifresdo animal), encontra-se em “vAB” (e também o “b” de “boi”),por outro lado, “cabeça de vaca” é o hieróglifo que deu origemà forma gráfica da vogal semítica aleph e que, após passagempela forma gráfica (aproximada) “ ”, terminou por assumir,no alfabeto romano, a forma da letra “A”. Observe-se,igualmente, que a forma “ ” é apresentada, em rodapé, naversão final: vale aqui pensar no labiríntico Jorge Luis Borgese em seu El Aleph, de 1949, obra metaliterária como grandeparte das grandes obras do século XX, conforme assinala,

55 Cf. Alda BALTAR,Analyse de la traductionfrançaise de GrandeSertão: Veredas, p. 22.56 Cf. Guimarães ROSA,Correspondência comseu tradutor italiano,Edoardo Bizzarri, p. 60.

II. Da vertigem deum enigma à moti-vação do signo: are i n v e n ç ã o d apalavra

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73 entre tantos outros literatos, o comparatista Adrian Marino.Essa letra inicial do alfabeto, ao lado de “B” de “boi”

(base da economia agrária do sertão), também participa damisteriosa construção aglutinada “vAB” que faz pensar emum virtual mot-valise. Ora, se, como lembra Manuel Antôniode Castro, a palavra pode ser vista como o gesto que inaugurao cosmos (antes da palavra, “nonada”, sugere o crítico a partirdas idéias expressas por Guimarães Rosa57 ), antes da letra“A”, no alfabeto ocidental, também não há nada: com a letra“A” inicia-se a construção do universo através da palavra.Assim, se “cabeça de vaca” pode remeter o leitor à terra dosfaraós e do deus Toth, se o desenho do boi remete o leitor àimagem da esfinge, a cabeça de boi (ou de vaca), o “”-A”,representará o hieróglifo-enigma a ser decifrado com a ajudade Rosa e sua Pedra de Roseta.

Note-se, portanto, que, na ilustração solicitada a Poty,há uma série de desenhos que, tal qual a cabeça de vaca (oude boi), remetem necessariamente aos hieróglifos egípciosque deram origem ao alfabeto greco-romano, após passagempelo alfabeto semítico. Nesse encadeamento genealógico, asarmas dispostas em “x” equivalerão à letra semítica “tau”, o“t” romano; o peixe da ilustração definitiva remete a “samec”,ou “x”; a água da vereda representa “mem”, ou “m”; aserpente, “nun” ou “n”; a cabeça, “rech” ou “r”; a casa, “beth”ou “b”; o cajado na mão do cavaleiro ou do canoeiro, “lamed”ou “l”; o gancho logo abaixo do cajado ou o tridente, “vau”,“f” ou “u”; a boca branca em destaque no rosto negro, “pé”ou “p”; os olhos brancos também destacados em outro rostonegro, “ayin” ou “o”; as mãos que se vêem nos buritis, “iod”,ou “i”; a palma que se vê no buriti em forma de mãoespalmada, “kaf ”, ou “k”; os pássaros em forma debumerangue, “gimet”, ou “c”; a cerca representada pela pautamusical, “heth”, ou “h”; uma silhueta humana, “hé” ou “e”;a lua em forma de foice, “zayin”, ou “z”; uma espiral ou um“d” que se enrolam em forma de nó, “quof ” ou “q”;montanhas em forma de dentes, “chin”, ou “s”.58

O leitor sucumbirá às múltiplas evidências do enigma ejulgará, acertadamente, que tais representações configuramo espaço egípcio do qual advém, por mutações sucessivas, oalfabeto romano. Em outras palavras, Guimarães Rosaorientou Poty no sentido de que transcrevesse todo oalfabeto, todas as letras que são a base das Letras, da literatura,

57 Manuel Antônio deCASTRO, O homemprovisório no GrandeSer-tão, p. 44.58 Essas relações foramestabelecidas com basena tabela “Origem dasLetras do Alfabeto”, deautoria de Luiz CarlosCagliari, anexada sobforma de encarte aolivro Alfabetização eLingüística, editado pelaScipione. Observar, emreprodução, a tabela deequivalências entrehieróglifos, alfabeto eilustrações feitas porPoty.

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74 Correspondências entre hieróglifos, alfabetos e desenhosconcebidos por rosa para as orelhas de seu romance

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75 sob a forma sertanejamente estilizada de hiéroglifos ou, comoveremos, sob suas formas derivadas. Mas, pergunta-se oincrédulo leitor, com que finalidade Rosa inscreveria essasletras em uma pretensa ilustração do universo sertanejo?

Observe-se, nesse sentido, que as letras “g”, “j” e “v”, deinvenção romana e sem correspondentes hieroglíficos, sãoapresentadas por Rosa segundo a forma que lhes foi dadaem Roma. A letra “d”, derivada do hieróglifo que representa“porta”, foi desenhada por Poty segundo sua forma grega,delta (D), mas também sob suas formas tanto romana quantomanuscrita, esta última no interior de uma vereda-pautamusical. Todo o alfabeto brasileiro encontra-se aírepresentado, pois o “w” e o “y”, ausentes na ilustração, nãofazem parte deste abecedário. Dessa forma, ao completar odesenho com letras, em cega obediência às orientações deRosa (“GRND SRT~” assim o solicita), o leitor concluiráque a substituição dos elementos pretensamente sertanejospor seus equivalentes alfabéticos transforma o “universo dosertão” em “universo das letras”: o romance regional aponta-se, em seu paratexto, como romance metalingüístico oumetaliterário. A própria constelação mallarmeana de signosencontra seu reflexo nesse desenho formado por letras,símbolos e... estrelas.

Essas letras remetem, como sói acontecer, a seudesdobramento metonímico, as Belas Letras ou a Literatura.A guerra do jagunço torna-se assim pretexto para uma guerrade natureza poética, e a literatura assumirá aqui umadimensão amplamente metaliterária. Por essa razão o heróichama-se Riobaldo: segundo a pronúncia sertaneja para seunome, é fácil chegar-se a “Riobardo”; ou, com mais precisão,a R-io-bardo; em outros termos, a “R” de Rosa, a “io” (“eu”,em italiano) e a “bardo” (poeta guerreiro que compõe versosao mesmo tempo líricos e épicos, tal como o faz o nosso vatesertanejo). Sob forma especular, o autor apresenta-se comoseu próprio personagem narrador; e sua presença no espaçosertanejo será sugerida também na ilustração feita por Poty,pois lá encontraremos, em sua grafia ocidental, as letras...JGR, as iniciais do autor.

Ora, observa-se que a profusão de armas dispostas em“x” na ilustração remete, como vimos, à letra “t” ou a “tau”;igualmente, na versão pictórica final, ao lado das armas em“x” que representam o hieróglifo “marca”, há um desenho

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76 em forma de cruz isométrica (algo como o semítico “+”,“tau”) e uma cruz em forma de “t”, três etapas de um mesmoprocesso evolutivo. Desse conjunto de elementos logogríficosinfere-se a questão: será lícito ver aqui uma das múltiplaspossíveis origens para o Grande Ser “Tau”? Haverá no títulodo romance a sugestão de especulações ontológicas em tornoda grandeza das Letras? Ora, isso é o que também indica oenigmático símbolo vAB, cujas formas aglutinadas trazemimplícita a oposição entre letras grandes e letras pequenas.

Seja como for, as letras efetivamente dispostas em suaforma romana parecem indicar ao leitor a necessidade dedecodificação dos desenhos em sua qualidade de “hieróglifos”do Grande Sertão, conforme pista proposta por Rosa aotradutor Jean-Jacques Villard em torno da lemniscata queacompanha os numerosos e enigmáticos símbolos dispostoslado a lado na ilustração de Poty. Também a folha de rostotraz imagens que, pela sua forma e sua disposição em colunasverticais, mais se assemelham a papiros hieroglíficos que aoutra forma qualquer de representação pictórica. Assim, épossível observar que a referência aos hieróglifos egípcios,transpostos sob a forma pretextual de elementos pictóricossertanejos, coloca em cena o próprio processo de formaçãodo alfabeto romano, sobretudo se o sequioso leitor considerarque, na ilustração, estão presentes pintura rupestre,hieróglifos e fragmentos dos alfabetos semítico, grego eromano, cinco fases de um só processo evolutivo. Ademais,o desenho, repetido inúmeras vezes, do pássaro que é aimagem de Íbis, traz à ilustração, como por acaso, a figurado deus Toth, o criador da... escrita e o inventor da...linguagem.

Com mais propriedade, será possível dizer que o genialGuimarães Rosa indica, de uma maneira ainda maisespetacular e por intermédio de seu pretextual paratextosertanejo, que o objeto de sua literatura é o próprio processode formação das palavras, prática lingüística à qual oromancista sertanejo aplicou-se com afinco para oaprimoramento da expressão poética. Por extensão, a assuntosobre o qual discorre o bardo Riobaldo é a própria formaçãoou o nascimento da linguagem. Tal interpretação, comoveremos nas páginas seguintes, poderá orientar uma série denovas perspectivas de leitura para esse romanceplurissignificante e, como a lemniscata deixa entrever,

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77 vertiginosa e abertamente ( ) enigmático.As idéias aqui inferidas são de uma evidência tão explícita

— no que tange à primeira versão do desenho — que Rosaparece ter optado por eliminar um bom número dessas pistasde leitura na versão definitiva, ainda que inserisse outras,como um ser antropomorfo com cabeça de pássaro que faráo leitor pensar na figura de um escriba que porta uma tochade luz (reflexo de um outro portador de luz, “lux+fero”:Lúcifer) ou na imagem do próprio Toth, deus egípcio daescrita e da aprendizagem, patrono dos astrônomos, doscurandeiros e dos encantadores, deus que melhor exprime aforça da palavra criadora e que, por esse viés, transmite aoshomens a paixão de conhecer e de construir. Se o bardo dosertão elaborou uma obra para decifração perpétua e pelosséculos dos séculos, as orelhas apontam um percurso deleitura que serve de atalho, no sertão da literatura, aos leitoresmais sequiosos e mais impacientes quanto à chegada àsmargens de aquáticas veredas e de seu irrepresável fluxocontínuo de significações.

As infinitas possibilidades de leitura do romance refletem,aqui, as potencialmente infinitas possibilidades decombinação de movimentos e posições em um tabuleiro dexadrez. Basta ao leitor lembrar-se da célebre fábula em quegrãos são colocados sobre as casas de um tabuleiro de xadrez,dobrando-se a quantidade de grãos a cada nova casa: umgrão na primeira, dois na segunda, quatro na terceira, esucessivamente até a sexagésima-quarta casa. A soma dosgrãos assim distribuídos atinge o abismo numérico de umalgarismo formado pelo número 2 seguido de 19 zeros:20.000.000.000.000.000.000 de unidades. E as possíveiscombinações dos movimentos enxadrísticos resultam damultiplicação dessa cifra por outro algarismo vertiginoso. Sãopossibilidades que ilustram, por outro lado, as combinaçõesanagramáticas da poesia, cuja teoria teve seu esboço emSaussure e cujos artíficios Rosa utiliza, em múltiplas ocasiões,como no caso do anagrama “Aí, Zé, ôpa!”.

Para avançarmos um pouco mais nossas peças sobre essasuperfície marcada por linhas paralelas e perpendiculares(como as dispostas por Poty no desenho feito para as orelhasdo romance), vejamos a descrição, feita por Rosa em “KronosKai Anagke” (o título em grego já sugere a dimensão deenigma), da composição enxadrística executada por um

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78 Zviazline inspirado por Mefistófeles, o Dê, o O: “(...) emergulhando em si mesmo, iniciou belíssima combinação,própria de seu estilo imaginoso e exuberante”. Ao enlevadoleitor caberá observar, nessa e em outras linhas de Rosa, aanalogia entre o jogo de xadrez e a literatura: “(...) reis, rainhas,bispos, cavaleiros, torres e peões multiplicavam-se, cresciam,adquirindo vida e movimento. Em pouco foi toda umamultidão enchendo uma planície. Como um filmesobrenatural, ele assistiu o desenrolar de toda a História. Eviu papas e imperadores, e reis e guerreiros, e frades ebandidos, e camponeses.” Eis, aqui expostos, os ingredientespara a fértil literatura dispostos pelo bardo sertanejo sobre a“planície” da folha em branco, matéria para contos e maiscontos de reis (e seus súditos). E, não por acaso, a batalhafinal em que Riobaldo alcançará a vitória sobre Hermógenesse desenrolará sobre uma planície, o campo do Tamanduá-tão. E o leitor terá a ocasião de apreender, em páginas abaixo,a relação que pode haver entre Tamanduá-tão e GrandeSertão, entre Tamanduá-tão e Belas e Altas Letras.

Na perspectiva das múltiplas possibilidades de leiturainterpretativa e para desvelar novas e renovadas camadaspalimpsésticas de Grande Sertão: Veredas, busque-se, então,ao detrimento de mortas veredas regionalistas e segundo asorientações do romancista mineiro, as altas veredasmetapoéticas. E que nos tragam de volta, a galope, oimportante fragmento paratextual do romance — osdesenhos das orelhas —, suprimido ao arrepio do bardosertanejo. Nesse sentido, observa-se, ao longo deste estudo,que a letra “A”, talvez a mais recorrente, no romance, emtermos de emprego expletivo, e a mais redesenhada nailustração de Poty (sobretudo em forma de cabeça de vaca)pode servir como importante índice de leitura para essa obracriptogramática, anagramática ou hieroglífica. Portanto, comoo leitor teve a ocasião de apreender na leitura das orelhas doromance, o “hieróglifo do Grande Sertão” sugere que oromance coloca em cena a origem das palavras e seu processode formação. A que gênero de leitura poderia nos endereçar,por esse prisma, a denominação chave que é Urutu Branco?

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79 O crótalo Urutu Branco, Crátilo e Hermógenes: Platão e ointertexto rosiano

Vejamos, inicialmente, a que instâncias poderia nosremeter “Urutu Branco”, o nome adotado, após o pacto nas“Veredas Mortas”, pelo personagem de Riobaldo. Segundoas definições dos dicionários de língua portuguesa, “urutu”,do tupi uru’tu, é o nome que designa várias espécies deserpentes da família das crotálidas ou dos crotalídeos. “Urutu”designa tanto a cobra cascavel quanto certas subespécies dacobra jararaca, das quais eis aqui algumas denominações:urutu estrela, urutu dourado, urutu cruzeira, surucucu,patioba, juricana, uricana, etc. Notemos, entretanto — enós retornaremos a esse importante tópico em nossaanálise —, que elas são todas de cor escura, ainda que aexistência de exemplares albinos seja registrada, conformeressalva Marie-Hélène Piwnik59 . Urutu é, por conseqüente,um réptil inexistente na Europa, excetuados, evidentemente,os exemplares mantidos em cativeiro. Maryvone Lapouge-Pettorelli, para sua tradução de Grande Sertão: Veredas,declara ter seguido

“as indicações de Guimarães Rosa recomendando

‘expressamente’ a seu primeiro tradutor francês, assim como a

seu tradutor italiano, que, na medida em que flora e fauna

brasileiras são desconhecidas na Europa, buscassem ajuda

preferencialmente em vocábulos usitados em seus países; e,

sobretudo — surpreendente proposta —, que não hesitassem,

no caso de nomes compostos, a acoplar um vocábulo brasileiro

e um vocábulo da língua de recepção, ‘a sonoridade, no caso

presente, tendo tanta ou mais importância que a veracidade’”60 .Assim, à primeira vista, a possibilidade de conservar em

idioma brasileiro a alcunha do personagem — ou antes, emtupi, língua que se encontra na origem etimológica dovocábulo “urutu” —, não deveria ser necessariamentedesconsiderada. Observa-se, todavia, que tanto a primeiraquanto a segunda tradução francesa retomam o termo de“crotale”. Registremos, por enquanto, que esse termo, emfrancês, refere-se unicamente à cobra cascavel, serpent àsonnette. No entanto, para um brasileiro possuidor deconhecimentos básicos em zootaxia61 , assaz fácil será

59 Observação feitadurante a apresentaçãodeste estudo de dou-toramento à banca exa-minadora.60 Diadorim, “Note dela traductrice”, p. 20.61 Guardemos em men-te os profundos conhe-cimentos de G. Rosano domínio da zoologia,que levarão HenriquetaLisboa a escrever, emartigo pioneiro: “perce-bem-se em toda a linhafartos conhecimentosde zoologia e de botâ-nica à raiz de seu entu-siasmo pela terra”.Henriqueta LISBOA,“A poesia de Grandesertão: veredas”, inRevista do Livro, nº 12,p.145.

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80 classificar a cobra urutu sob a rubrica “crótalo”. O próprionarrador de Grande Sertão: Veredas indica a necessidade deconsiderar-se o termo “urutu” segundo uma perspectivazootáxica, quando diz: “os jagunços meus, os riobaldos, raçade Urutu-Branco” (gsv 450). Assim, os riobaldos não são“urutus”, são antes da raça dos urutus: são, por conseqüente,crótalos.

Ora, como vimos, o crótalo “Urutu Branco” opõe-se aum personagem cujo nome de batismo é Hermógenes, nomeno qual K.H. Rosenfeld vê “uma multiplicidade deressonâncias arcaicas”62 ; desnecessário seria dizer que talnome, em nosso país, é de extrema raridade, e que seuencontro nos deixaria quase espantados; deste contextopodemos deduzir que um tal antropônimo apresenta,indubitavelmente, uma função simbólica extremamenteprecisa no texto.

Como bem observou João Adolfo Hansen, essepersonagem é sempre apresentado como “o Hermógenes,sempre com o ‘o’ da designação”63 . Hermógenes torna-seassim uma referência específica, determinada, precisa, nãofortuita ou aleatória. Ainda segundo J.A. Hansen, o artigodefinido indica, no caso deste personagem, uma suficiênciada linguagem que implica a existência de apenas um nomepara apenas uma coisa, assim como Selorico Mendes eQuelemém são determinados pelo possessivo “meu”.

Ora, o nome de Hermógenes determina não apenas um,mas ao menos dois planos de leitura; portanto haveria, narealidade, pelo menos duas coisas para um só nome. Umadessas coisas seria caracterizada, portanto, como uma “formado falso” ou, com mais propriedade, como simples pretexto;a outra seria aquela que J.A. Hansen indica comonecessariamente única por força do artigo definido. Nessesentido, a duplicidade do personagem de Hermógenes seráanalisada com mais detalhes em capítulo subseqüente, adespeito da leitura que imediatamente nos é oferecida pelopar antagônico Hermógenes/Crótalo. Passemos portanto aessa leitura doravante insofismável do texto e que nos pareceaquela cabível por força de determinação do artigo definido.

Do exposto até o presente momento neste estudo, infere-se que, na medida em que o crótalo “Urutu” se opõe aHermógenes, o cultivado leitor poderá se lembrar do neo-platonismo já analisado por inúmeros pesquisadores na obra

62 Kathrin H. ROSEN-FIELD, Descaminhos doDemo, p. 70.63 João Adolfo HAN-SEN, “A Terceira Mar-gem”, in Revista IEB, p.56.

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81 rosiana, colocar em tela o conjunto dos Diálogos de Platão e,sem mais delongas, aproximar crótalo de Crátilo, paronomásiafacilmente operável64 .

Notemos, entretanto, que o atento leitor deste trabalhopoderia, no presente momento, obstar que procedemos auma incursão sobre os minados terrenos da super-interpretação. Parece-nos, ao contrário, que nos encontramosem terreno seguro e bem balizado pelo poliglota romancista:nessa análise, acompanhamos com minúcia — palavraretomada em oito ocasiões ao longo deste romance do espaçoaberto, do infinito — os protocolos de leitura semeadospelo autor sobre as veredas desta grande obra literária. Assim,pela decomposição e recomposição onomástica dopersonagem do alemão Vupes, Guimarães Rosa coloca sobportentosos holofotes a necessidade de proceder àdesmontagem de nomes (e alcunhas) dados a seuspersonagens, “processo de metamorfose etimológica” jásublinhado por Augusto de Campos em artigo pioneiro65 :

“Pois ia me esquecendo: o Vupes! [...] E como é mesmo

que o senhor fraseia? Wusp? É. Seo Emílio Wuspes... Wúpsis...

Vupses. Pois esse Vupes —“ (gsv 58)Neste sentido — e adiante retornaremos sobre a

fundamental importância das escolhas onomásticas emGuimarães Rosa —, notaremos com o comparatista Daniel-Henri Pageaux que, nesse romance, para lograr o acesso aosentido velado até mesmo sob as próprias ocorrênciasonomásticas, “será necessário dobrar o nome, destrinchá-lo,duplicá-lo, isolá-lo, invertê-lo para, por fim, nosaproximarmos de algumas entre as múltiplas significaçõesque o nome pode sugerir”66 . Wilson Martins tece um longocomentário em torno do ato de nomear em Guimarães Rosaque é útil transcrever:

“O processo que consiste em dar aos personagens nomes

‘significativos’, seja com vista a efeitos humorísticos, seja como

recurso de caracterização, não é novo em literatura, nem, de

resto, tem relações diretas com a questão que nos preocupa. J.

B. Rudnyckyj, estudando as funções do nome próprio na obra

literária, lembra que em Gogol, por exemplo, um nome próprio

‘significativo’ substitui uma longa descrição da pessoa e serve

64 Por exemplo , apesquisadora KathrinRosenfield associa orosiano Hermógenes aoCrátilo, ainda que naperspectiva da “ambi-valência maldita da raçade Hermes, ou seja, dodeus Pã e seus decen-dentes.” Kathrin H.ROSENFIELD, Desca-minhos do Demo, p. 55.65 Augusto de CAM-POS, “Um Lance de“Dês” no GrandeSertão”, in EduardoF.Coutinho (org.),Guimarães Rosa,p. 341.66 Noções propostas emseu seminário de Lite-ratura Comparada, naSorbonne, em 18 demaio de 1995.

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82 de base para a criação imaginária da figura no espírito do leitor.

Assim, Taras Bul’ba adquire desde logo uma configuração sólida

já que ‘bul’ba’ significa batata. Tchecov, igualmente, utilizava

nomes próprios que insinuassem desde logo alguma coisa sobre

o caráter do figurante. Outros já estudaram as implicações

humorísticas que se contêm em certos nomes no romance de

Dostoiévski. No que se refere a Guimarães Rosa, é certo, como

observa Mary Lou Daniel, que, a exemplo de todo escritor típico,

emprega o nome próprio como instrumento de grande

originalidade expressiva, isto é, como instrumento significante

que ultrapassa de longe as simples intenções de pitoresco.”67

A função de logogrifos exercida pelos nomes em GrandeSertão: Veredas é sublinhada pelo próprio narrador em seucomentário sobre as alterações sofridas por alguns topônimossertanejos em razão da arbitrariedade de alguns governantes-logotetas: “Todos os nomes eles vão alterando. É em senhas”(gsv 32). As alterações tornam-se, portanto, senhas paradecodificação de certas mensagens amalgamadas ousubjacentes ao texto.

O grosso volume definido pelas 540 páginas de GrandeSertão reflete, por intermédio das senhas alfabéticasespalhadas ao longo de suas folhas, aquele “almanaque grosso,de logogrifos e charadas” (gsv 7) ao qual alude o narrador.Não por acaso o assinante desse almanaque tão apreciadopor Riobaldo chama-se Vito Soziano: transcrevendo oudesconstruindo esse nome, chega-se a “Vida Sósia”, ou vidade igual aparência. Por conseqüente, a vida desse romanceespecular deveria ser interpretada como a vida de seuhomólogo, o almanaque de logogrifos cujas páginas sãopercorridas e completadas, letra após letra, pelas mãos doletrado jagunço.

Assim, lembraremos ainda uma vez que, já para a segundaedição do romance, Guimarães Rosa havia orientado oilustrador Poty quanto aos detalhes necessários para ailustração destinada a preencher as orelhas do livro. Nessailustração, o leitor notará, por duas vezes, o sintagma “grandesertão” transformado em “grnd srt~”68 por intermédio desupressão das vogais e manutenção de um til que representaa posição do acento tônico que, em aparência, deve ser

67 Wilson MARTINS,“Guimarães Rosa emsala de aula”, in MaryLou DANIEL, JoãoGuimarães Rosa.Travessia Literária,p . XXIV.68 Francis Utézaretomará o enigmáticogrupo de letras parailustração da capa deseu Metafísica doGrande Sertão.

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83 conservado em seu lugar original. Tal desenho encontra-seno alto da ilustração, em posição-chave, como se deledependessem os outros elementos da composição pictórica,como se por intermédio dele fosse possível agregar sentidoao restante do enigma. Ora, a supressão ou substituição devogais é o processo necessário para transformação de“Crótalo” em “Crátilo”, pois as consoantes permanecem asmesmas, havendo apenas alteração vocálica parcial, semmudança do acento tônico. Nessa transmutação vocálica ourecomposição alfabética que permite associar o bardoRiobaldo ao personagem de Platão, até mesmo o “C”maiúsculo de “Crótalo” justifica-se por tratar-se de nomepróprio, substituto de “Urutu”.

Talvez aqui esteja, igualmente, o significado para apermanência do til, em posição original, na ilustração de Poty,quando da supressão das vogais segundo orientação doromancista, pois o til indica a sílaba tonicamente acentuada,cuja posição permanece inalterada no processo detransformação de “Crótalo” em “Crátilo”. Ademais, abaixode “grnd srt~” há precisamente uma figura em forma de...serpente. Nenhum elemento será gratuito nessa composiçãoparatextual, a exemplo do elaboradíssimo tecido textual.

Dessa maneira, para retornar ao par paronomásticocrótalo/Crátilo, teremos em vista que, no diálogo de Platãoao qual empresta seu nome, Crátilo opõe-se a Hermógenes;como é notório, esse diálogo tem por assunto a origem daspalavras: enquanto Crátilo nele defende a tese da palavracomo propriedade natural da coisa, a teoria da motivação dosigno, Hermógenes sustenta a teoria contrária. Ora, o bardoRiobaldo, ao comentar o processo de formação/informaçãoque o conduziu à transformação em Crótalo-Crátilo — e àconseqüente vitória sobre Hermógenes —, alude a relatosantigos que contribuíram para esse processo de transformaçãoe transmutação:

“Em tal já sabia do modo completo, o que eu tinha de

proceder, sistema que tinha aprendido, as astúcias muito sérias.

Como é? Aos poucos, pouquinhos, perguntando em conversa a

uns, escutando de outros, me lembrando de estórias antigo

contadas.” (gsv 354)O leitor notará que o ato de “escutar” é de grande

importância no aprendizado das “astúcias” para derrotar

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84 Hermógenes, e a dimensão sonora do signo não deverá sernegligenciada nessa guerra de jagunços. Essas “estórias antigocontadas” podem ociosamente remeter aos Diálogos dePlatão, compostos sob forma de diálogos ficcionais há quasetrês milênios, veículos daquela “idéia antiga, porém sempremoderna” da qual fala Guimarães Rosa69 e que teremos aocasião de analisar adiante em nosso trabalho. Neste sentido,vale notar que o narrador afirma “lembrar-se” das “estórias”,sem entretanto dizer tê-las ouvido de alguém: permaneceem aberto a possibilidade de contato direto com um textolido, com um texto impresso. Ademais, “estórias” é termoforjado por Guimarães para designar textos de ficção, comoo são, em sua base formal, os Diálogos, diferenciando-seassim “estória”, ficção, de “história”, realidade.

Portanto, do contexto aqui exposto, infere-se que areferência intertextual é facilmente operável por intermédiodo vocábulo “urutu” no interior da língua e da culturabrasileiras, com base em um certo conhecimento de zootaxiaque não faltava ao genial bardo do sertão; a referência a Platãotalvez fosse mais delicada de se construir em outros paísesde língua portuguesa, como, por exemplo, em Macao, ondea serpente “urutu”, se conhecida, deve com certeza atenderpor outro nome. O leitor poderá notar outras passagens emque a família dos crótalos opõe-se aos jagunços da estirpedos hermógenes. Assim ocorre quando Riobaldo,combatendo ainda ao lado de Hermógenes, experimenta umgrande temor em relação a certas serpentes pertencentes aogrupo taxinômico dos crótalos:

“Pensar que, num corisco de momento, se podepremer a mão numa rodilha grossa de cascavel, numamorte certa dessas. Pior é a surucucu, que passeialonge, noturnazã, monstro: essa é o que há com maisdoida ligeireza nesse mundo. Rezei a jaculatória deSão Bento” (gsv 178).

Surucucu é um dos sinônimos de Urutu, e nesse trechoo vocábulo está parataticamente associado, sob formaadversativa, a “jaculatória”, forma de falar segundoautomatismos. Os hermógenes, entre os quais encontra-seRiobaldo naquele momento, caracterizam-se, porconseqüente, pelo ato de falar sob forma automática. Ora,rezar é sinônimo de fazer orações; representados nesse trechopor Riobaldo, os hermógenes, portanto, fazem ou constróem

69 Cf. GünterLORENZ, “Diálogocom Guimarães Rosa”,in Eduardo F. Coutinho(org.), Guimarães Rosa,p. 88.

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85 suas orações (sintáticas) segundo as regras impostas pelohábito, como forma de proteger-se da Surucucu-Urutu,posto que temem a mordida do crótalo, imagem simbólicade Crátilo.

Vale observar que o autor da primeira versão francesa,Jean-Jacques Villard, traduz “cascavel” como “crotale”, esurucucu como “anaconda”, feito que merecerá umaobservação de Guimarães Rosa, em correspondênciaenviada ao tradutor, alertando que “anaconda”, réptil nãovenenoso, corresponde a “sucuri” ou “sucruiú”, e não asurucucu70 . Essa observação permite entrever umaindicação não apenas factual de coloração ecológica nonome da serpente, mas também um índice da futuratransformação de Tatarana (Riobaldo em combate ao ladode Hermógenes) em Urutu (Riobaldo contraHermógenes), pois, somente sob a pele (ou sob capa)deste peçonhento réptil, Riobaldo poderá eliminar oshermógenes das trilhas impressas no grande sertão.Entretanto, Riobaldo pressente seu aspecto de ofídiotambém quando pensa em Diadorim:

“Eu devia de ter principiado a pensar nele do jeito de que

decerto cobra pensa: quando mais-olha para um passarinho

pegar. Mas — de dentro de mim: uma serepente. Aquilo me

transformava, me fazia crescer dum modo, que doía e prazia.”

(gsv 254)Riobaldo pressente que o desejo de posse sobre Diadorim

somente poderá ser satisfeito por intermédio da vitória sobreHermógenes, e para tanto será preciso “se transformar”(assumir outra forma — de escrita?), “crescer”(literariamente?), assumir o papel ou a pele de Crótalo-Crátilo. Assim, pouco após o pacto, Riobaldo experimenta asensação de sua própria transmutação em crótalo: ele afirmahaver algo dentro de si que, sob um pedido de benção presonum escapulário, pode queimar “a pele de minhas carnes,que debaixo dele meu peito todo torcesse que nem pedaçoquebrado de má cobra” (gsv 388). Claro está que oescapulário traz “orações” (atente-se ao sentido gramaticaldo vocábulo) realizadas de forma automática, característicaque se opõe à nascente condição de crótalo-Crátiloexperimentada pelo bardo do sertão.

70 Cf. Alda BALTAR,Analyse de la traductionfrançaise de GrandeSertão: Veredas (Dia-dorim) de GuimarãesRosa: Essai d’étude con-trastive, p. 38.

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86Sofistas, Heráclito e o formalismo: metafísica, linguageme a motivação do signo

Nas trilhas intertextuais e metalingüísticas abertas pelatransformação de Tatarana em Urutu-Crátilo, nota-se queo personagem de Riobaldo, logo ao início de GrandeSertão: Veredas, faz uma espantosa confissão a seuinterlocutor (imaginário ou ficcionalmente real,desdobramento do leitor ou do autor, esse não é, nopresente estudo, o tema de nossa análise): “Ah, não é porfalar: mas, desde o começo, me achavam sofismado deladino. E que eu merecia de ir para cursar latim, em AulaRégia — que também diziam” (gsv 7). Sofismado,particípio passado do verbo sofismar, raciocinar porsofismas, torna-se aqui um adjetivo imaginário que nãopoderia, sob hipótese alguma, ser aplicado a enteshumanos. Tal adjetivo seria, por conseqüente, impróprionessa construção. Talvez a palavra esteja aqui empregada,sob pretexto de oralidade, em substituição a “cismado”.Vejamos alguns possíveis significados para o vocábulo“ladino”:

ladino. [do lat. latinu.] Adj. 1. Intelectualmente fino.

2. Astuto, manhoso, esperto; finório. 3. Bras. Dizia-se do

escravo ou do índio que já falava português, tinha instrução

religiosa e sabia fazer o serviço ordinário da casa ou dos

campos. 7. Qualquer um dos dialetos sefarditas falados na

Grécia, Turquia, Palestina e Norte da África.71

A associação virtualmente possível entre “ladino” econhecimentos enciclopédicos ou idiomáticos72 é de sumaimportância para a leitura do texto, visto que a fraseseguinte do original rosiano refere-se exatamente aoaprendizado de idiomas; no caso em tela, ser ladinoequivale ao mérito de conhecer o latim. Assim, apolissemia reverbera de todos seus fogos na proposiçãooriginal e, por esse viés, será preciso considerar que, porderivação lexical, o neologismo “sofismado” é indissociávelde sofisma e, por conseqüente, dos sofistas. Assim, vemosGuimarães Rosa, já nas primeiríssimas páginas e no interiordo próprio texto — espaço ficcional em que poderemos

71 Aurélio Buarque deHolanda FERREIRA,Novo dicionário da línguaportuguesa.72 Poderíamos ver, noprocesso de aprendi-zagem de Riobaldo, umaalusão à infância deJoãozito, o tímido garotoque já aos oito anos deidade aperfeiçoava-se emfrancês — estudado emregime auto-didático,desde seus seis anos deidade, graças a umagramática e um pequenodicionário recebidoscomo presente de umamigo de seu pai — aomesmo tempo em que seiniciava em holandês comFrei Canísio Zoetmuel-der. Vicente Guimarães,tio e amigo de infância deGuimarães, escreve:“menino já era notado edestacado, de inteligênciae memória incomuns”,(...) “espalhou-se a suafama de inteligente eestudioso, sua prodigiosamemória comentada era,e seu saber de criança,respeitado”. Eis aqui,talvez, o modelo dojovem, precoce e “ladi-no” professor que vailecionar para Zé Bebelo.(Cf. Vicente GUIMA-RÃES, Joãozito, infânciade João Guimarães Rosa,p. 29 e sqq.). Essa nãoserá a única referênciapassível de urdir umacerta tessitura identitáriaentre Riobaldo eGuimarães Rosa, confor-me veremos em capí-tulos adiante.

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87 observar uma certa reflexividade73 do signo —,comunicar, de uma maneira clara e indiscutível, algunsentre seus múltiplos propósitos com respeito àssignificações que deveríamos decodificar em sua obra: aodizer-se “sofismado”, não se põe Riobaldo no partido dossofistas, ao lado de Crátilo, em favor da relação motivadaentre som e significação? Nessa perspectiva, Ducrot eTodorov escrevem sobre Crátilo:

“É em respeito à atribuição dos nomes às coisas que os

sofistas levantavam o problema. Segundo o Crátilo de Platão,

duas escolas estavam em disputa. A primeira, representada por

Crátilo, e que segue mais ou menos explicitamente Heráclito,

sustenta que há uma relação natural entre os nomes e as coisas

por eles designadas; ou, pelo menos, que, sem essa relação, não

existe nome autêntico. No que concerne, ainda, aos nomes

primitivos — ou seja, aqueles sobre os quais a etimologia não

tem mais domínio — procura-se uma relação direta entre seu

significado e sua sonoridade, supondo aos sons elementares um

valor representativo natural (i exprime a leveza, d e t a parada,

etc). A idéia de que a palavra é uma obscura revelação do

Verdadeiro, entra em conflito, já em Crátilo, com a tese,

inspirada por Demócrito e ligada a uma corrente de pensamento

relativista (‘o homem é a medida de todas as coisas’), segundo a

qual a atribuição dos nomes faz parte do arbitrário”74 .Ora, em uma entrevista concedida a Günter Lorenz,

Guimarães Rosa afirma seu credo na motivação do signo,aludindo igualmente ao fato de que essa noção tem suasorigens em tempos remotos: “Sou precisamente um escritorque cultiva a idéia antiga, porém sempre moderna, de que osom e o sentido de uma palavra pertencem um ao outro.Vão juntos. A música da língua deve expressar o que a lógicada língua obriga a crer”75 . Nesse sentido, vale observar que,para o romancista, a motivação do signo acarreta barreirasintransponíveis para o tradutor: “cada língua guarda em siuma verdade interior que não pode ser traduzida”76 . Comose não bastassem essas barreiras naturais existentes em cadaidioma, é fácil constatar que Guimarães Rosa agrega, à suaobra, uma miríade de outros obstáculos de difícil transposição

73 Reflexividade nosentido Dällenbachianodo termo: “retorno doespírito da narrativasobre seu próprio esta-do e sobre seus própriosatos” (Lucien DÄ-LLENBACH, Le récitspéculaire. Essai sur lamise en abyme, p. 60).A.R. Miketen assimdescreve o retorno dotexto sobre si mesmo:“Entenda-se que anarrativa deste romancefecha-se com palavraTravessia, isolada entrepontos. Por outro lado,esta mesma narrativainicia-se com Nonada,também destacadaentre pontos. Portanto:o esquema circular, danarrativa que propõeum retorno sobre simesma, não está afas-tado da estrutura doGrande Sertão.” Anto-nio Roberval MIKE-TEN, Travessia deGrande Sertão: Vere-das, p. 23.74 Oswald DUCROT eTzvetan TODOROV,Dictionnaire encyclo-pédique des sciences dulangage, p. 171.75 Günter LORENZ,“Diálogo com Guima-rães Rosa”, in EduardoF. Coutinho (org.),Guimarães Rosa, p. 88.76 Idem, Ibid., p. 87.

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88 para o leitor e, principalmente, para o tradutor, mesmoo melhor dotado de excelente aparelho crítico e deprofundos conhecimentos do idioma brasileiro,sobretudo pelo fato de que Grande Sertão: Veredas éum romance no qual o autor enuncia e desenvolve, sobforma velada, uma certa filosofia da linguagem e, comoveremos em capítulo abaixo, a coloca em prática emseu próprio texto.

Esse projeto filosófico-lingüístico-literário, note-sedesde agora, implica no necessário pacto com Lúcifer ena fundamental travessia do Liso do Sussuarão. Aconclusão do projeto encontra-se na Batalha doTamanduá-tão, momento em que Hermógenes ou osigno arbitrário é eliminado do espaço sertanejo-literário. A importância do pacto nos projetos deRiobaldo é sublinhada por Manuel Antônio de Castro,que anota a locução do narrador77 : “...aquele projetoqueria ser e ação!” (gsv 354). O projeto de vitória sobreHermógenes exige uma concepção intelectual quedefina a essência do objeto (o “ser” do objeto, a teoriasobre o objeto) e a atitude pragmática em função dessateoria (a “ação” sobre o objeto). O objeto, sobre o qualelabora-se o projeto, remete o leitor ao universo dosigno motivado. As cenas do pacto, da travessia e dabatalha final teriam, portanto, um significadosubjacente, sotoposto à camada superficial do texto,sotoposto à narrativa anedótica ou factual, lançando oleitor nos domínios do plurissignificante, do vago e domúltiplo. Nessa perspectiva, vale notar que, paraGuimarães Rosa, o caráter essencial do fazer poéticoseria o embaçamento semântico, o “não dito” ou o“sobredito”, pois “o livro pode valer pelo muito quenele não deveu caber”, como escreve o autor sertanejono primeiro entre os quatro prefácios de Tutaméia —texto chave, segundo Paulo Rónai, para interpretaçãoda obra e da filosofia rosianas —. Por conseqüência,nas obras do erudito autor-diplomata, o leitor — vistoa dimensão de obra aberta inerente nesse projeto deescrita —, é concebido como ente participante daconstrução do texto, da busca do sentido ocultado sobas profundezas epifânicas da palavra poética.

77 Manuel Antônio deCASTRO, O Homemprovisório no Grande Ser-tão, p. 59.

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89 Quanto às correspondências entre Riobaldo e o afilosofia, o leitor notará que, conforme sublinhamDucrot e Todorov no texto transcrito acima, a correntefilosófica representada por Crátilo é aquelaestreitamente ligada a Heráclito. Ora, o escritor mineironão faz segredo de suas amarras à filosofia heracliteana,e, em uma passagem de Ave Palavra — passagem quetraz à tona seus tempos de diplomata passados naAlemanha sob o nazismo —, ele as torna explícitas:“Tratemos de Heráclito, de Sófocles — arre ondeia asuástica sobre Himeto, Olimpo e Parnaso.”78

Analisemos esse período sintático: o escritor aí propõeque tratemos de um assunto, e o leitor encontra-se,súbita e aparentemente, face a outro; na realidade, umparalelismo é estabelecido no interior da proposição. Aestrutura sintática da oração apresenta-se sob formaparatática, aquela que conduz a escritura de GuimarãesRosa: é notório o amor do escritor pelo vago e pelomúltiplo, expresso na supressão sistemática decoordonantes sindéticos e na adjunção profusa desímbolos diacríticos tais como dois-pontos [:] ou ponto-e-vírgula [;], que por vezes indicam as trilhas da livreassociação de idéias, instrumento privilegiado depoesia79 . Assim, em paralelo à total ausência deconjunções como “portanto, afinal, todavia”, marcasintática da supressão de vínculos lógicos explícitos,poderemos lembrar que há, no romance em tela, maisde 1.630 ocorrências de dois-pontos [:] — excetuadosaqueles que introduzem a fala de outro personagem —e mais de 1.140 de ponto-e-vírgula [;] ao longo do texto,freqüência muito superior ao usual em obras literáriasescritas em língua portuguesa. Talvez somente ClariceLispector perfaça semelhante média.

Nessa proposição enigmática de Rosa, o leitorobservará que o Parnaso, como já o sabemos depois de,por exemplo, Leconte de Lisle e Herédia, éintrinsecamente ligado aos experimentos formais emliteratura. Assim, a estrutura paratática do períodooratório citado permite, em situação de leitura, a criaçãode um vínculo lógico entre Heráclito e o Parnaso, entrea corrente filosófica que conduz ao signo motivado por

78 João GuimarãesROSA, Ave, palavra,p. 16.79 Guimarães Rosa, emcarta a Edoardo Bizzarri,após fornecer a nomen-clatura científica de umcerto número de plantassertanejas para fins detradução, explicita suavisão sobre as relaçõesnecessárias entre o vagodos sentidos e a poesia:“Mas, enfim, não creioque esses nomes deplantas e árvores, à guisade documentação, se-jam importantes. Ande-mos antes para o reinodo transcendente, dopoético, do vago.” Gui-marães Rosa, Corres-pondência com seutradutor italiano, p. 74.Nesse sentido, lembre-se que a pesquisadoraI. Versiani sublinha, emG. Rosa, a “tendência aomitir ou obscurecer onexo sintático entreorações”. Nelly NovaesCOELHO e IvanaVERSIANI, GuimarãesRosa: dois estudos,p. 137.

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90 um lado, e os experimentos formais por outro. Em umanecessária releitura dessa proposição alusiva e elusiva,o leitor verá ainda que, na segunda parte do períodooratório transcrito, o Olimpo, morada dos Deuses, ésintaticamente associado ao Parnaso, morada das novefilhas de Zeus, as Musas. Ambos remetem igualmentea Heráclito, e haveria, portanto, no plano da associação deidéias80 , um elo entre a inspiração demiúrgica (representadapelas Musas), o signo motivado (a filosofia heracliteana) e osdeuses, seres superiores que talvez representassem, dentrodo universo literário, o panteão dos literatos.

Nessa frase de Guimarães Rosa, para quem literatura evida formam uma única e indissociável noção81 , estariamreunidas as três idéias que formam a tríade motora para opoeta cratiliano: o experimento formal, a inspiração, a bemlograda carreira literária. Idéias que, como o leitor terá aocasião de apreender ao longo deste trabalho, se instauramcomo temas centrais em Grande Sertão: Veredas.

Assim, a suástica, símbolo da ameaça nazista que pesasobre o planeta, parece representar, simbolicamente, para oescritor, um outro perigo igualmente grave que ameaçaria asartes (literárias, pelo menos), naquele momento. Essemomento é, como por acaso, aquele em que os estudoslingüísticos ganham grande impulso sob efeito das teorias deFerdinand de Saussure, sob efeito do signo arbitrário. O leitorse perguntará: seria lícito ver, nessa exígua passagem de AvePalavra, uma alusão velada à teoria saussuriana do signoarbitrário tomado como um elemento opressor da criaçãoliterária? Arre! A natureza elíptica do pensamento deGuimarães Rosa tornaria possível uma tal leitura destepequeno — mas quão representativo — fragmento de seusescritos.

Note-se, ainda, na ilustração paratextual solicitada aPoty, a presença de uma vereda e uma cerca desenhadas emforma de pauta musical: tais desenhos remetem, de maneirasugestiva, à musicalidade comunicativa ou significante emsua própria sonoridade. Ademais, no fluxo da vereda há odesenho de uma letra “A”, devidamente emoldurada comouma obra de arte. O “A”, letra inicial de “arte” e de “alfabeto”,ao emoldurar-se, endereça o leitor à forma artística das letras:a literatura. Assim, o fluxo da vereda literal (ou literária)

80 A associação livre deidéias como técnicaestílistica é patente emGuimarães Rosa.Assim, em cartas a seutradutor italiano ver-sando sobre termosutilizados em “ORecado do Morro”, oromancista explicitaalgumas dessas trilhasassociativas percorridaspara a escrita do texto.Como exemplos tiradosda correspondência,teríamos o neologismo“loxias”, que é assimexplicado pelo autor:“deve ser (?) [sic]sabedorias complicadas,sentenças pedantes.(Há um sabor preten-samente erudito, notermo que o caipirausou. Note como ele dáar de grego, lembra...logia ou doxia, oulaxodrômica, etc.)”; ou,ainda, “mujo”: “grandevalor, de som e deaspecto, sinto nestapalavra. (Associaçãocom caramujo, sujo,mujik, mugido?...)”.Guimarães ROSA,Correspondência comseu tradutor italiano,p. 42 e 44.81 O romancistadeclara: “às vezes quaseacredito que eu mesmo,João, sou um contocontado por mimmesmo. É tão impe-rativo...”. Apud. GünterLorenz, “Diálogo comGuimarães Rosa”,p. 71.

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91 deve acompanhar as pautas e as notas musicais, segundosolicitado pelo romancista ao ilustrador. Por conseqüente,na ilustração, as letras dispõem-se e fluem em função de suamusicalidade expressiva: eis aí, soberba e habilmentemascarado por Guimarães Rosa no paratexto do romance, opróprio signo motivado. Por essa razão, Riobaldo pensa na“língua anterior a Babel”, a língua do “tempo em que tudoera falante”, e afirma: “só um bom tocado de viola é quepodia remir a vivez de tudo aquilo” (gsv 127). O signomotivado representado pela musicalidade significante seráo único capaz de revitalizar o idioma, a comunicação humana,sugere o narrador-guerreiro. E Saussure, em sua condiçãode conceptor maior da constritiva teoria do signo arbitrário,poderá se tornar, como veremos em páginas adiante, umimportante elemento para a leitura de passagens-chave doenigmático meta-romance sertanejo.

Silente Hermógenes: o jagunço arbitrário

Assim, em franca oposição ao ato de criação artística,poderíamos ver a condição coercitiva do signo arbitrário.Por essa vertente, é fácil observar, no romance em tela, queo verbo demiúrgico não parece se encontrar do lado deHermógenes: esse personagem não possui, sob forma alguma,o dom da palavra, e quando lhe é dado falar, tal será feito“numa voz rachada em duas, voz torta, entortada” (gsv 230),ou seja, numa voz que não saberia conhecer a plenitude. Suavoz, “desgovernada desigual, voz que se safafa” (gsv 100),que escapa e que se repete (conforme sugerido peloneologismo “safafa”, resultante da repetição da última sílabade “safa”, escapa), é só “um barulho de boca e goela, qualum rosno” (gsv 100), é som desprovido de significação, qualaqueles produzidos pelos animais na “goela”, longe de umaexpressão verdadeiramente cerebrina. Não por acaso, osobrenome do jagunço, “Saranhó”, é o nome de uma abelhaou remete a “saranha”, nome de um peixe, animais que nãoproduzem som vocal e cujos cérebros são de dimensãoreduzidíssima. Hermógenes, em sua natureza antes animaldo que humana, é jagunço que age “calado curto” (gsv 179)ou, em outras palavras, é desprovido de voz producente oupertinente, e suas ações trazem resultados de pouco ounenhum alcance (pespectiva indicada pelo vocábulo “curto”),

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92 talvez precisamente em função de seu visceral silêncio. Valeobservar que “saranha” é gíria para “palavreado”, discursosem objetivo preciso, sem intensão de expressividade.

Assim, lembraremos, com Gérard Genette, que“Hermógenes é também, para nós, o herói epônimo de umatradição que tem sua foz em Saussure”82 . E a própria “vozrachada em duas”, desdobrada em duas, sugere que a vozoriginal de Hermógenes deva ser entendida como a voz deuma outra entidade, imagem simbólica refletida pela figurado cruel jagunço desprovido de voz verdadeira. Porconseqüente, a partir das palavras de Genette, poderíamosdizer que a voz de Hermógenes corresponde à voz pautadapelo signo arbitrário83 , conduzida pelos ensinamentos e leisoriundos das teorias saussurianas. Hermógenes seria, assim,um personagem alegórico representando o próprio signoarbitrário. Ora, Riobaldo afirma justamente que “...OHermógenes tem pautas...” (gsv 38). Ao substituir a palavra“pacto” por sua forma popular sertaneja “pautas”, oromancista parece apontar na direção de uma perspectivade leitura segundo a qual o termo “pautas” pode sugerircertas linhas guias ou determinadas balizas de escrita, talcomo encontradiças nos papéis pautados. O termo podeigualmente sugerir uma delimitação de assunto a serabordado, como nas pautas de reuniões ou de tribunais.

Seja como for, “pautas” implica formalmente umadelimitação, uma constrição, uma ordem discursiva a serestritamente seguida. E tal é o sentido dado por Riobaldo aessa palavra: “uma receita, a norma dum caminho certo,estreito” (gsv 427), um “norteado” (gsv 427). Ora,Riobaldo, ao não encontrar esse “caminho certo”, julga haver“miséria em [sua] mão” (gsv 427), de onde subentende-seque esse “caminho certo” deve ser procurado à mão,instrumento privilegiado de escrita.

Em uma perspectiva de leitura ambivalente, “pautas”denota simplesmente “pacto”, e a cena de um pactodemoníaco, segundo Riobaldo, apresenta “tudo errado,remedante, sem completação... O senhor imaginalmentepercebe?” (gsv 37). Ora, como vimos em capítulo anterior,o advérbio “imaginalmente” pode ser decomposto nosintagma “mente imaginal”, ou imaginativa, e o desconcerto,a incompletude do pacto podem, por essa vertente,relacionar-se com os processos de criação de imagens por

82 Gérard GENETTE,Mimologiques, p. 33.83 J.C. Garbugliosublinha em Hermó-genes a inadequaçãoentre a palavra e a coisarepresentada, pois osilente jagunço é apre-sentado como “misturade cavalo e cobra.Quero dizer, não é coisadefinível. Esse vulto queatravessa o espírito donarrador, inapreensívelem substância, não seconcretiza na palavraque cria a imagemresvaladiça que repro-duz o movimento fugi-dio.” José Carlos GAR-BUGLIO, O mundomovente de GuimarãesRosa, p. 86.

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93 intermédio da mente, por intermédio da imaginaçãodemiúrgica. Esse pacto desconexo seria o pacto-pauta queRiobaldo afirma existir entre Hermógenes e o “Que-Diga”,o Demo, o “Dê-mot”: um pacto em que o jagunço traidortorna-se delimitado, incompleto, errado, imitativo; e sua voz,como vimos, reflete essas cláusulas de seu pacto. Nessesentido, vale observar que “pauta”, “pauteação” e “pautear”ocorrem em dez ocasiões ao curso da narração, e “pacto”ocorre em dezenove. A fronteira é tênue entre as noções de“pacto” e “pauta”, que implicam, ambas, a dimensão escritaou gráfica do texto, assim como a imagem do papel pautado,aspectos que virão à superfície de leitura quando daressurgência desses vocábulos no romance. Vale notar que opacto/pauta tem que ser “assinado” (gsv 37), e novamenteressurge a imagem da palavra escrita e estampada.

Entretanto, a palavra produzida oralmente pode tambémrelacionar-se com a idéia de pacto. Durante o episódio daFazenda dos Tucanos, ao combater ao lado de Zé Bebelo emmomento anterior à transformação em Urutu, Riobaldorecomenda de “não se fabricar rumor nenhum, de não sepautear sem necessidade” (gsv 305). Em outras palavras,de não se produzir nenhum som desprovido de significadorelevante (“rumor”), pois isso equivale a buscar um caminho(“pauta”, como visto acima) desnecessário. Esse é o caminhoque, de forma geral, delimita o procedimento doshermógenes, pois tais jagunços, durante o julgamento de ZéBebelo (gsv 231), no intuito de produzir “altas palavras”,têm o valor de sua produção “questionada”, já que somenteconseguem “barulhos na voz”, ou seja, sons desprovidos designificado, fala incompleta e incompreensível84 . Essa faladesprovida de significados é recusada por Riobaldo: “Meusouvidos expulsavam para fora a fala dele [Hermógenes].Minha mão não tinha sido feita para encostar na dele”(gsv 162). Ora, são precisamente os ouvidos, receptores desons, que recusam essa fala; e as mãos do narrador,intrumentos privilegiados da escrita, não se concebem comofadadas a acompanhar, por não estarem “encostadas”, omovimento traçado pelas mãos de Hermógenes. Em outraspalavras, poderíamos dizer que Riobaldo recusa os sons e aescrita regidos pelo signo arbitrário, signo fragmentário eincompleto, característica daquele Hermógenes “sem tinonem prosápia” (gsv 154), sem idéias nem ascendência.

84 Para evitar a trans-crição de extenso trechodo livro, remetemos oleitor à página 231 doromance.

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94 Nessa perspectiva, o presente que Hermógenes oferecea Riobaldo é simbólico: “um nagã, e caixas de balas”(gsv 162). Ora, se “balas”, nessa guerra literária, podemrepresentar metaforicamente as palavras com as quais se dáo combate, a arma pode representar o veículo das palavras:o idioma. “Nagã”, em sua acepção bélica primeira, é o nomedado a um revólver antigo, de cano comprido, conformeindica o dicionário Caldas Aulete, arma “de tanto só cano”(gsv 162), nos diz Riobaldo, salientando o aspecto deconduto fechado e delimitado da arma. Entretanto, “nagã”é também o termo que designa “uma das línguas faladas naIndochina”, segundo o mesmo dicionário; e cumpre lembraraqui o grande interesse e conhecimento de Guimarães Rosaem torno dos idiomas orientais. Por conseqüente, seHermógenes serve-se de seus pertences pessoais paraconquistar Riobaldo e presenteia o letrado jagunço com umidioma incompreensível em pleno sertão brasileiro, o gestotorna-se aqui símbolo da fala desprovida de significação, dafala incompleta que caracteriza Hermógenes e seusseguidores. Entretanto, Riobaldo afirma ter, seja como for, acapacidade de rechear o nagã, recebido de Hermógenes, combalas-palavras e, por esse meio, abater seu pressentidoadversário (gsv 162), deixá-lo “esbagaçado (...) a poder debalas” (gsv 508). Ou, em outras palavras, Riobaldo afirmapoder reverter contra seu antagonista o poder mortal da armaque é um idioma hermético e desconhecido, transformando-o em um idioma comunicativo, idioma portanto inacessívelàquele Hermógenes desprovido de fala comunicativa, feitoque o eliminaria ou excluiria, juntamente com seusseguidores, do universo dos jagunços. Vale lembrar, assim, oprocedimento estílistico rosiano de empréstimos tomados aidiomas estrangeiros e transformados em pertinentesvocábulos no interior do espaço definido pelo idiomaportuguês85 . Seria essa a “nagã” recheada de balas porRiobaldo? Todos os elementos do texto conduzem a essaleitura.

Seria lícito, igualmente, em função dos conhecimentosem zoologia do romancista diplomata, lembrar que “nagã”pode também ser a corruptela — técnica de todo correntena escrita rosiana — de “nagana”, doença africana queacomete cavalos e é transmitida pela mosca “tsé-tsé”, ouseja, sugestão de uma doença do sono que torna o cavalo

85 “Esmarte” (gsv: inglêssmart), “esloxo” (cb:inglês slash), “mopoame”(cb: tupi “desordem”),“estarvo” (cb: inglêsstarvation), “abocabaque”(gsv: latim “ab hoc e abhac”, falar a torto e adireito) seriam algunsexemplos desse proce-dimento, aliás correnteem James Joyce. Eduar-do Coutinho escreveigualmente: “Ao intitularseu primeiro livro com ovocábulo Sagarana, com-posto da raiz germânicasaga e do sufixo tupi -rana, Guimarães Rosa jádefinia a sua posição comrelação à linguagem. Estevocábulo hídrico, forma-do de elementos oriundosde idiomas que nãotinham qualquer relaçãoentre si, indicava o seurompimento com ospadrões gramaticaistradicionais e proclamavaadesão a um conceito deliberdade estética.”Eduardo F.COUTINHO, “Guima-rães Rosa e o processo derevitalização da lingua-gem”, in Eduardo F.Coutinho (org.), Guima-rães Rosa, p. 208.Segundo N.L. de Castro,o pesquisador norte-ame-ricano William MyronDavis propõe 150 novasinterpretações para ter-mos constantes no roman-ce em tela, “com base emlínguas exóticas tais comoo persa, o árabe, o indo-nésio, o chinês, o japonês,o sânscrito, o russo, oservocroata, etc.” NeiLeandro de CASTRO,Universo e Vocabulário doGrande Sertão, p. 9.Confirme-se aqui o fatode que, ao arrepio dogrande Augusto deCampos, Guimarães Rosasupera, em larga medida,James Joyce, esse autor-fetiche (para alguns) quenão transpõe os umbraissagrados e permanece noadro da Alta Literaturabuscada pelo bardo dosertão, uma literaturamulti-idiomática decan-tada no riquíssimo filtroda cultura popular.

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95 inapto ao trabalho. Ora, “cavalo” é o nome dado, em certasreligiões de crenças mediúnicas, ao médium que pode“receber” ou “incorporar” entidades espirituais, à pessoa emestado de possessão espiritual, em transe. Para GuimarãesRosa, conforme suas correspondências e declarações, o atode escrita é um ato somente possível em estado de possessão,como o foram os dias que antecederam a entrega de GrandeSertão: Veredas à editora José Olympio, nas palavras do autor.Note-se que a imagem do cavalo está presente na expressão“De repente o diabo me cavalga” (Mich reitet auf einmal derTeufel), utilizada por Rosa em entrevista a Günter Lorenz86 ,ao buscar explicar, de forma alusiva, a sua concepção doprocesso de inspiração: “Não preciso inventar contos, elesvêm a mim, me obrigam a escrevê-los”87 . Dessa forma,Guimarães terá a ocasião de declarar que a semana queantecedeu a entrega de Grande Sertão: Veredas ao editorJosé Olympio foi um período de intensa mediunidade. Nesseperíodo o romancista passou “três dias e duas noitestrabalhando sem interrupção, sem dormir, sem tirar a roupa,sem ver a cama: foi uma verdadeira experiência trans-psíquica, estranha, sei lá, eu me sentia um espírito sem corpo,pairante, levitando, desencarnado — só lucidez e angústia”88 ,escreve Rosa.

Essa concepção da inspiração poética pode ser observadano bardo Riobaldo, transido pensador noctívago, veículo dapossessão (inspiração) que permite o ato noturno deprodução narrativa ou escrita, condição perfeitamenterepresentada na cena do pacto. A “doença do sono” (nagã-nagana) com que Hermógenes presenteia o “cavalo-médium”Tatarana, o Cerzidor da costura precisa, visaria a anular apossibilidade de Riobaldo vencer seu inimigo pelo acesso àpalavra epifânica. Haveria aqui outro dos enigmas quetransformam Grande Sertão: Veredas no “almanaque grossode logogrifos e charadas”, forma escritural praticada por Rosadesde sua infância, tal como sugerem cartas logogríficasescritas por Rosa e publicadas por sua filha Vilma, noindispensável Relembramentos.

Assim, Hermógenes, em ato contíguo ao feito de estardelimitado em suas pautas, age e comanda segundo asdelimitações da lei dos usos e costumes, e o personagem édenunciado por Riobaldo “como lei minha entranhada,costume quieto definitivo, dos cavos do continuado que tem

86 Günter LORENZ,“Diálogo com Guima-rães Rosa”, in EduardoF. Coutinho (org.),Guimarães Rosa, p. 71.87 Idem, Ibid.88 Vilma GuimarãesROSA, Relembramen-tos: João GuimarãesRosa, meu pai, p. 322.

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96 na gente” (gsv 346), lei do “incutido do incerto meacostumando” (gsv 204). Hermógenes representa, portanto,uma certa lei do ato “incerto” (vale dizer: duvidoso, mastambém incorreto, impreciso), lei dos costumes, lei incutidae arraigada nas práticas de Riobaldo89 , pelo menos até omomento do pacto e de sua transformação em Urutu-Crótalo-Crátilo. Nos acontecimentos anteriores ao pacto,Riobaldo tem igualmente que “obedecer a ele[Hermógenes]”, e seu “querer não correspondia ali”(gsv 179): sua vontade em nada vale ou nada pode para aexecução de projetos literários que contrariem a leihermogênea dos costumes. Não por acaso Hermógeneschegou no mundo dos jagunços “a pago do Governo”(gsv 229), para, dessa maneira, fazer aplicar a lei e a ordem.Essa lei dos costumes, vigente no plano lingüístico e literário,é comentada por Guimarães Rosa:

“A consciência está desperta, mas falta o vigor da língua. A

maldição dos costumes é notada e os autores aceitam sem crítica

a chamada linguagem corrente, porque querem causar sensação,

e isso não pode ser.”90

Mas a validade desta lei, a vigência ou regência deHermógenes, são questionadas por Riobaldo, que afirma:“defini o alvará do Hermógenes, referi minha cedência”(gsv 270). Jagunço não tem lei, declara o narrador91 ;portanto, Urutu não mais cederia às constrições impostaspor Hermógenes, pelo signo arbitrário, e o Crótalo-Crátilo,por conseqüente, “define” ou delimita a validade do “alvará”,licença legal e temporária para a prática de determinadaatividade. Segundo esse “alvará”, Hermógenes, “homem nãodefinitivo” (gsv 161), pauteia seus gestos, sua fala, suasatitudes. A rejeição a Hermógenes enquanto desdobramentosimbólico das teorias saussurianas é imagem que adjaz emoutras passagens da narração de Riobaldo, tais como:

“Alt’arte abri o meu maior sentir: que eu havia de ter a

vitória... Dali, o Hermógenes não saía com vida, maneira

nenhuma, testamental. Tive ódio dele? Muitos ódios. Só não

sabia por quê. Acho que tirava um ódio por causa de outro,

cosidamente, assim seguido de diante para trás o revento todo.

A modo que o resumo da minha vida, em desde menino, era

para dar cabo definitivo do Hermógenes — naquele dia, naquele

89 “A sobreexistênciados hermógenes chegaao leitor por intermédiode fragmentos informa-tivos, onde predomina odifuso, uma sombraperturbante de neces-sário desaparecimento,como condição essen-cial para o equilíbriorompido dos sertões. Éo oponente obscuro queRiobaldo não consegueiluminar com clarezapara poder empreendero combate, anulando-o.” José Carlos GAR-BUGLIO, O mundomovente de GuimarãesRosa, p. 39.90 Günter LORENZ,“Diálogo com Guima-rães Rosa”, in EduardoF. Coutinho (org.),Guimarães Rosa, p. 85.91 Em resposta a ZéBebelo, quando este fazapologia à lei do gover-no, à página 293.

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97 lugar.” (gsv 505)O ódio por Hermógenes, indica o narrador, é, na

realidade, ódio por um “outro”. Hermógenes nãocorresponde à sua própria entidade, como diz Riobaldo, masa uma outra: “E nem ele, naquela hora, não era. Era umnome, sem índole nem gana, só uma obrigação de chefia”(gsv 175). Hermógenes não é Hermógenes, é apenas “umnome” que corresponde a alguma outra noção, noção adotadaou seguida por hábito (“sem gana”), por força de comandoao qual não se ousa contrariar, obrigação imposta por alguémprovido de autoridade para fazê-lo. Aquele sentimento derepulsa ou rejeição, o ódio, é experimentado no âmbito dasartes, ou das “alt’artes”, na esfera “testamental”, testa-mental,no plano cerebrino. Quem seria, por conseqüente, esse“outro” representado por Hermógenes, cuja presença estácosida, cerzida, costurada nos eventos-reventos vistos,cronologicamente, do tempo mais recente para o tempo maisremoto? Os re-ventos, em sua dimensão de ar emmovimento, representariam os sons, ou mesmo ecos, poissão “re-ventos”, ventos que sopram de forma repetida.

Invertendo o curso do tempo “de trás para diante”,conforme orientação do narrador, veremos que oHermógenes primordial, aquele de Platão, situa-se na poeirado tempo; o Hermógenes mais recente, aquele que impedea livre expressão de Urutu, aquele que desenvolveu, demaneira definitiva para tantos e tantos lingüistas, a teoria dadimensão arbitrária do signo (sobretudo tomado em suaestrutura sonora, construída de “re-ventos”, ar emmovimentos alternados), seria Saussure. Ainda uma vez,observamos que a batalha de Riobaldo, seu ódio, seriam,portanto, motivados por aquele que é o desdobramentorecente, nos eventos relacionados aos estudos lingüísticos,da figura de Hermógenes. Assim, no trecho acima transcrito,o narrador afirma que o “resumo de sua vida” — ou o resumode Grande Sertão: Veredas —, cabe na batalha do Tamanduá-tão, momento chave em que Hermógenes (ou o signoarbitrário) é eliminado do espaço sertanejo. A batalha emque Hermógenes é vencido, diz Riobaldo, transcorre “debaixode forma” (gsv 525), é uma guerra pela forma. Sobre essabatalha teremos a ocasião de apresentar uma análise detalhadaadiante em nosso trabalho. Notemos, nesse sentido, que a

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98 inadequação entre o nome (forma) e a coisa representada(conteúdo), conseqüência inelutável de um signo que se querarbitrário, é observada por Davi Arrigucci Jr. no próprionome do jagunço silente:

“Por outro lado, já no seu nome completo — Hermógenes

Saranhó Rodrigue Felipes —, a marca do plural (/s/) como que

salta de Rodrigue, onde deveria estar, para o Felipes, numa

paródia caricatural e também grotesca, indiciando mais uma

vez a divisão (filipe, convém lembrar, se diz, por exemplo, das

sementes unidas do algodão, do grão do café ou dos dedos

grudados do pé).”92

Como igualmente observa Francis Utéza, Hermógenesnão faz jus aos nomes todos que porta, e é a própria imagemda inadequação entre o nome e a coisa: por conseqüente,até mesmo a palavra inteligível é inadequada para ocuparespaço em sua boca:

“Mas, para fazer alarde de todos aqueles nomes, seria

imprescindível merecê-los: nome não dá, nome recebe. Ora bem,

Felipes — da família dos amigos dos cavalos — Hermógenes

não é muito: na Macaúba, ele obriga seus homens a abandonar

as montarias e, sobretudo, é ele que ordena a matança dos cavalos

na Fazenda dos Tucanos. Da parte aérea do Dragão — cavalo-jibóia — apenas conservou um zurro esquisito que lhe serve de

sinal de retirada. Rodrigue — Senhor da Glória, em alto alemão

— ele também não é: nunca o vemos ganhar a menor vitória, a

não ser pela fuga ou pela a traição. Finalmente, da abelha Saranhósó parece ter o ferrão e o veneno!”93

Ademais, o próprio Platão indica em Hermógenes ainadequação entre a palavra e a idéia representada, conformesublinha Émile Chambry, assim como a inabilidade discursivadesse contendedor de Crátilo-Crótalo. Em Crátilo, quandoSócrates apresenta a etimologia do nome de Hermes e o definecomo deus da palavra, Hermógenes, “aquele que é da raça deHermes”, conforme indica o significado de seu próprio nome,terá a oportunidade de concluir, admirado: “Por Zeus, Craátilotinha razão de me recusar o nome de Hermógenes (filho deHermes), eu não tenho muitos recursos de palavras”94 . Note-se que, entre alguns dos jagunços, há um sentimento difuso

92 Davi ARRIGUCCIJr., “O Mundo Mistura-do: Romance e Expe-riência em GuimarãesRosa”, in Novos Estudos:CEBRAP, p. 14.93 Francis UTÉZA,Metafísica do GrandeSertão, p. 294.94 Cf. Émile CHAM-BRY, “Notice sur leCratyle”, in Platão,Protagoras et autresdialogues, p. 385.

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99 e inconsciente de desaprovação ou recusa em relação a essehomem com alvará provisório, tal como é possível ver emSô Candelário, que “não gostava do Hermógenes! Sendoque ele podia até nem saber disso...” (gsv 232). Após suavitória, Urutu deseja que seu adversário seja completamenteesquecido, extraviado, que dele nada mais se saiba, que o“enterrem separado (...), num aliso (...), adonde ninguémache, nunca se saiba...” (gsv 531). A matéria hermogêneaserá decomposta no aliso, será fundida ou amalgamada como a-liso e escorregadio, o a-donde será esquecido, expurgadodo mundo das letras e dos jagunços. Superinterpretação?Lembremos, com Augusto de Campos, que “em GuimarãesRosa nada ou quase nada parece haver de gratuito. As maisousadas invenções lingüísticas estão sempre em relaçãoisomórfica com o conteúdo.”95 E, posto que vem à tona o a-liso, a letra lisa, registre-se que Hermógenes, segundo onarrador, “nasceu formado tigre” (gsv 9), “era danado detigre” (gsv 181). E o tigre sertanejo é a suçuarana, animalque, em princípio, empresta seu nome ao Liso que os jagunçosdeverão atravessar para vencer o Hermógenes, conformeanálise detalhada em capítulo adiante e segundo indica odesenho de um felino na sugestiva ilustração de Poty. À esperada decifração de mais esse vertiginoso enigma, lancemos umolhar sobre as manifestações do signo motivado no tecidosonoro desse enigmático romance metalingüístico.

Preâmbulos ao signo motivado: sutilezas de um discursometalingüístico

Assim, cabe ao leitor interrogar-se sobre as formas demanifestação, na práxis de Guimarães Rosa, das teoriaslingüísticas e literárias sugeridas nas metáforas de seuromance. Quais “veredas vivas” ou “Veredas Altas” Rosa sepropõe a percorrer? Ele afirma, com efeito, que cada detalhede sua obra é portador de sentido, que nada foi aí deixadoao domínio do acaso: “Porque não narrei nada à-toa: sóapontação principal, ao que crer posso. Não esperdiçopalavras. Macaco meu veste roupa. O senhor pense, o senhorache. O senhor ponha enredo” (gsv 270). Mais uma vez oleitor é chamado a participar da criação do texto, a situar aintriga, a colocar enredo; dessa maneira, G. Rosa insiste no

95 Augusto deCAMPOS, “Um Lancede “Dês” no GrandeSertão”, in E.F.Cou-tinho, Guimarães Rosa,p. 334.

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100 feito de que é sob os olhos do leitor que o romance seconstitui, toma forma, e que é imprescindível nunca esqueceresse aspecto essencial do texto. O próprio termo “apontação”remete tanto ao ato de indicar uma direção — como no casodos protocolos de leitura — quanto àquele de tomar notassob forma escrita. “Narrar, palavras, concisão expressiva (não‘esperdiçar’), enredo, escritura, achar (ler ou interpretar)”:eis reunidos, nessa curta passagem do romance, vários termosque poderíamos agrupar no interior do campo lexicalcorrespondente ao feito literário.

Ademais, o narrador apresenta-se como alguém que selembra do futuro, dos eventos que ainda não ocorreram:“Ah, eu estou vivido, repassado. Eu me lembro das coisas,antes delas acontecerem... Com isso minha fama clareia?Remei vida solta. Sertão: esses seus vazios” (gsv 22). Essasintuições ou premonições são aquelas que caracterizam opoeta, vaticinador cujo dom maior é o de prever o porvir.Seguindo a vertente das imagens metafóricas literárias, éfácil oboservar que o ato de “remar” num qualquer fluxolíquido remeteria ao ato de servir-se dos braços (ou mãos)para deslocar-se sobre o fluxo de significados, tal qual o faz oescritor em estado de criação poética, ou o leitor em situaçãode leitura. Ademais, se os perigos do fazer literário podemser representados pelo leitmotiv “viver é muito perigoso”, setravessia é o trajeto (por intermédio do ato de remar) entreo travessão inicial e a lemniscata final, símbolos tipográficosdo texto impresso, “vida solta” seria a literatura semconstrições de espécie alguma, cuja travessia bem logradaestaria à base da “fama” vinda a lume, “clareada”, “explicada”,segundo as palavras do narrador.

Não por acaso, nos momentos que antecedem a batalhaem que Zé Bebelo é feito prisioneiro, Riobaldo associa vivere literatura, vida e relato: “a vida da gente vai em erros,como um relato sem pés nem cabeça” (gsv 212). Nessaperspectiva, o Sertão baldio, vazio, pode, na figura de Rio-baldo, transformar-se em rio baldio que se locupleta porintermédio da palavra. Esse seria o sentido de “remar pelosertão”, legível na estrutura paratática que reúne as duasproposições acima transcritas, leitura que simbolizaria o atoriobaldiano de conduzir a literatura pelas férteis veredas doárido sertão. Sob esse ângulo interpretativo, qual o significadodeste símbolo gráfico, “ ”, a lemniscata, que se situa no

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101 final do romance? Eis aí um símbolo gráfico que, sobretudo,é também um símbolo mudo. Para Daniel-Henri Pageaux,esse símbolo encerra o romance como forma de significar,de maneira indiscutível, que se trata aqui de um texto escrito,e não de um discurso oral, como proposto por certosexegetas96 . Igualmente, esse símbolo orienta a leitura sob osigno de um texto aberto, acrescenta o comparatista, postoque tal símbolo gráfico abre o texto sobre o infinito, e aquipoderemos entrever a obra aberta sobre a qual discorreUmberto Eco. Vale notar que G. Rosa sublinhou o fato deesse símbolo é de natureza imprescindível na estrutura deseu romance.97 Da mesma forma, o travessão inicial queintroduz a fala de Riobaldo mergulha esse personagem, aomesmo tempo, no interior do espaço diegético, e torna-semarca formal da presença de um outro narrador — ou umnarratário —, aquele que consigna as palavras do herói soba forma escrita.

Para buscar elementos que estabeleçam uma possívelcorrespondência entre teoria e prática poéticas na obrarosiana, observaremos inicialmente uma eventual relaçãomotivada entre tessitura sonora e significação nesse romancemetanarrativo. Para encontrarmos novas pistas de leitura,deveríamos, para entrée de jeu, nos interrogar sobre as razõesque teriam levado o autor a escolher um nome como “urutu”em detrimento de outro como “crótalo”. Busca de sutileza,de opacidade? Eis aqui uma razão que nos parece suficiente,pois conduz ao caminho do lúdico e do hermético sobre osquais fala Cavalcanti Proença. Mas, então, por que não adotarnomes como “patioba”, “maracá”, ou outros do gênero? Quefunção teria esse inesperado “branco” acrescentado a “urutu”posto que, como tivemos a oportunidade de sublinhar, aocorrência dessa cor, salvo em raros casos de albinismo, parecenão ter registro no que concerne aos crotalídeos?

Realização fônica e significação: o nome e a coisa

O signo permanece, sem dúvida, arbitrário, e não saberiapossuir uma qualquer propriedade inerente ao referente.Saussure escreve, ao referir-se às unidades mínimas designificação, aos semas, que “o relevante na palavra não é osentido em si mesmo, mas as diferenças fônicas que

96 Noções propostas emseu seminário de Litera-tura Comparada, naSorbonne, em 18 demaio de 1995.97 Em sua tese dedoutorado versandosobre a tradução deJ.J. Villard, Alda Baltarobserva a insistência deG. Rosa para que alemniscata fosse conser-vada. Após receber umexemplar da traduçãofrancesa, o autor escre-verá a J.J. Villard:“Também gostei muitoda ‘cinta’ que a Editorapôs no livro — com osinal do Infinito, o 8deitado ou lemniscataque é o hieroglifo doGrande Sertão.” Cf.Alda BALTAR, Analysede la traductionfrançaise de GrandeSertão: Veredas,p. 22.

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102 permitem distinguir essa palavra de todas as outras, pois sãoessas diferenças que portam a significação”98 . Assim, somenteos desvios fônicos prestam-se à decodificação lingüística.Tynianov acrescenta que “se alinharmos palavras disparatesmas apresentando sonoridade semelhante, essas se tornarãoaparentadas — trata-se da falsa etimologia, segundo Jakobson,uma das interpenetrações ominipresentes da escriturapoética, linguagem múltipla mas orientada”99 . Haveria, porconseqüente, transferência semântica nas relações decontigüidade entre palavras de sonoridades aproximadas,mesmo se, nessa série de palavras, algumas estão presentestão somente na “série mnemônica virtual” à qual aludeSaussure. Em outros termos, haverá transferências mesmoque certas palavras de uma série não se manifestem demaneira aberta à consciência e que somente operem relaçõesassociativas no âmbito da memória involuntária, dosubsconsciente, como ocorre na transferência entre “saranhó”e “saranha” analisada acima. Se, por efeito de contigüidade,as dissemelhanças forem portanto abolidas ao proveito decertas semelhanças, a sonoridade terá operado a transferênciade um semantismo que não lhe é próprio; ou ela terá, ainda,permitido ao destinatário efetuar por si mesmo atransferência — segundo diferentes graus de consciênciaatualizadora —.

Tal funcionamento lingüístico constitui, de maneiraevidente, uma das principais formas de procedimentopoético, posto que induz a polissemia sob um ânguloprivilegiado; para Meschonnic, nessa mesma perspectiva, “apoética deve situar a metaforização no estudo da polissemiainerente a uma escritura, a um texto, a uma obra”100 . Comoigualmente afirma Emil Staiger, o valor dos versos líricos —e, por extensão, também da prosa rosiana — provém daunidade entre a significação da palavra e a significação damúsica sugerida pelo ritmo, pela utilização alternada ourecorrente de vogais abertas ou fechadas, orais ou nasais, edas consoantes, segundo o modo de produção e o local doaparelho fônico em que essas são produzidas. As repetiçõesde sons, palavras ou versos não devem ser negligenciadasquando da interpretação do texto. Assim, “todos julgamsentir ou pressentir algo ao escutar [versos líricos], mesmoquando não conhecem a língua estrangeira [em queporventura estejam escritos]. Ouvem os sons e ritmos, e

98 Fe r d i n a n d d eSAUSSURE, Cours deLinguistique générale, p.163.99 Citado por HenriMESCHONNIC, Pourla poétique, p. 77.100 Henri MESCHO-NNIC, Pour la poétique,p. 130.

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103 sentem-se tocados pela disposição (Stimmung) do poeta, semnecessitarem de compreensão lógica.(...) A música élinguagem que se comunica sem palavras”101 . Sob essa óptica,seria lícito falarmos de associações de imagens motivadaspor realizações fônicas? Para Meschonnic, “as recorrênciassonoras, ecos e ataques consonânticos provocam a busca deredes associativas”102 . Todavia, que tipo de associaçãoteríamos o direito de esperar?

“O homem medida de todas as coisas”

Como é notório, a leitura silenciosa não saberia existir:em situação de leitura, as palavras do texto sempre ressoam— ou provocam uma determinada sensação sonora — noscorredores dos circuitos de pensamento, no “ouvido interior”,segundo nomenclatura adotada por Antônio Cândido103 . Deuma frase escrita mal construída, não dirá o leitor que ela“não soa bem”? Ora, para Guimarães Rosa a sonoridade podeaté mesmo desvelar a verdade adormecida sob a aparênciavisual dos objetos do mundo. É o que afirma o narrador danovela “São Marcos”, quando, sob efeito de cegueiramomentânea, tenta encontrar seu caminho no mundo:“Ouvindo. Passara toda minha atenção para os ouvidos. (...)Tão claro e inteiro me falava o mundo, que, por ummomento, pensei poder sair dali, orientando-me pelaescuta.”104 Esse narrador é o mesmo que, após maravilhar-se diante da magia evocada pela sonoridade encontrada emuma lista de nomes de “reis leoninos” gravada “a canivete ouponta de faca” sobre um entrenó de bambu — planta cujocolmo, por suas qualidades sonoras, não raro é utilizado nafabricação de instrumentos musicais —, afirma:

“SargonAssarhaddonAssurbanipalTeglattphalasar, SalmanassarNabonid, Nabopalassar, NabucodonosorBelsazarSanekherib(...) Sim, que, à parte o sentido prisco, valia o ileso gume

do vocábulo pouco visto e menos ainda ouvido, raramenteusado, melhor fora se jamais usado.”105

101 Emil STAIGER,Conceitos fundamentaisde poética, p. 22.102 Henri MESCHO-NNIC, Pour la poétique,p. 75.103 Antônio CÂNDI-DO, “Literatura epersonagem”, in Antô-nio Cândido, A Persona-gem de Ficção, p. 13.104 João GuimarãesROSA, Sagarana,p. 264.105 Idem, Ibid., p. 253.

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104 Poderíamos portanto afirmar, com base nos aspectos atéagora analisados e com lastro tanto nos escritos de váriospesquisadores quanto na correspondência do autor, que nesseromance brasileiro a sonoridade — de vocábulos forjadosou consagrados, de termos resgatados do desuso ourevitalizados após anos de desgaste —, ocupa uma posiçãocapital: teríamos nós, então, o direito de supor que o autor,dentro de uma perspectiva cratiliana da produção da fala,segue uma linha lógica segundo a qual a tríplice repetição, napalavra “urutu”, da vogal posterior fechada /u/ representaria,por analogia metafórica com o local de sua articulação noaparelho fonador, um espaço fechado e profundamenteinteriorizado? Se considerarmos que o tema central da obra(caso houvesse um tema que se pudesse afirmar central)remete à figura de Satã106 , ao pacto faustiano com o diabo,lícito seria dizer que Guimarães procede à escolha devocábulos segundo um encaminhamento capaz de operaruma criação metafórica de abissais profundidades, sugerindo,na realização fônica da palavra “urutu”, a imagem do próprioinferno onde erra Mefistófeles. Ora, o leitor terá a ocasiãode analisar em detalhe, em páginas posteriores, a questão dopacto e sua função literária simbólica. Por essa vertente, serápossível vislumbrar, nesse romancista, uma busca derecriação, por intermédio do procedimento que Meschonnice Fònagy chamam de “metáfora sonora” (metáfora que nãoseria, sob hipótese alguma, onomatopaica), de um certo“espaço abissal” ou “ambiente infernal”: o leitor transporia apalavra “urutu” entre sons provenientes das escurasprofundidades da glota.

Para nomear seu personagem, o escritor poderia terrecorrido, entre tantos outros, ao vocábulo “surucucu”, umdos sinônimos de “urutu” e, como esse, constituído, no planovocálico, apenas e tão somente por vogais /u/. Haveria, entreas duas ocorrências idiomáticas, uma diferença de sentido(conotativo, subentenda-se)? No plano da sonoridade, seriapossível afirmar que as consoantes exercem, também elas,um papel pertinente na analogia metafórica? Vejamosinicialmente o sentido que poderia ser sugerido pelaconsoante /r/, presente em ambos os vocábulos. Com baseem estudos efetuados pelo eminente lingüista Ivan Fònagycom entrevistados franceses, ingleses e húngaros — métodoque nos obriga a circunscrever a pertinência desses estudos

106 Vale lembrar aproximidade sonoraentre “sertão” e “satã”.

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105 a uma área geocultural bastante restrita —, o pesquisadorafirma que os entrevistados referem-se às consoantes /r/como mais “briguentas” — temos aqui ainda outraincontornável metáfora — do que a consoante /l/107 . O /r/,igualmente, “é freqüente nos poemas de inspiração agressivaem poetas alemães e húngaros”108 . E, ainda, fazendo variar afreqüência de ocorrência consonantal no interior de um“poema probalitário” (sic) e submetendo esse poema aentrevistados para apreciação fonológica, o lingüista observouque “a consonância dura, dominada por p, t, k, sugeriu [aosentrevistados] um poema guerreiro”109 . Fònagy acrescenta:

“Poderíamos pensar que a sensação de uma mais forte

contração muscular (o enrijecimento dos músculos) estaria na

origem da “rigidez” que opõe as oclusivas surdas (tensas) ou o /

r/ a /l/; que o movimento lingual dinâmico que constitui o /r/

apical vibrante poderia essa r ligado ao aspecto ‘briguento’ de /

r/. Há provavelmente uma relação entre o caráter fechado de /

i/ — a distância extremamente reduzida entre língua e palato

— e a idéia de ‘pouco tamanho’ ou ‘pouca espessura’. (...) A

associação entre som agudo (freqüências formânticas elevadas)

de /i/ influencia igualmente os julgamentos, fazendo lembrar a

voz dos pequenos animais, das mulheres ou das crianças, e o

som de /u/ fazendo lembrar a voz dos grandes animais da floresta,

ou dos adultos do sexo masculino e corpulentos”110 .Essas conclusões ficam, evidentemente (e

virtualmente), à mercê das contestações, e pode-se obstarque uma tal perspectiva não teria validade indiscutívelpara todos os idiomas praticados no planeta; todavia, ainexistência da preposição ou, na vertente oposta, dadeclinação, por exemplo, em um bom número de línguasnaturais, não implica na impossibilidade de sua existênciaem tantas outras línguas. Tudo ocorre como se GrandeSertão: Veredas quisesse sugerir a possibilidade, ainda queválida apenas para algumas poucas palavras de umdeterminado idioma, de relações naturais — ouartificialmente antropomórficas (para transpor opensamento relativista democritiano, não é o homemmedida de todas as coisas?) — entre o som e o sentido;sendo tal possibilidade somente verificável no âmbito de

107 Ivan FÒNAGY, LaVive Voix. Essais psycho-phonétiques, p. 64.108 Idem, Ibid., p. 64.109 Idem, Ibid., p. 67.110 Idem, Ibid., p. 73.

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106 uma área de saber compartilhado, área que forçosamentedeverá ser circunscrita pelo pesquisador. Tal perspectiva, demaneira evidente, não teria pertinência quando estivermosfrente a palavras como “heterodiegético” ou “hipossistolia”,por exemplo, vocábulos criados com sapientíssimos intuitoscientíficos. Assim, no segundo prefácio de Tutaméia —intitulado, de maneira emblemática, “Hipotrélico” —,Guimarães Rosa escreve que “terá de ser agreste ou incultoo neologista, e ainda melhor se analfabeto for”. Em outrostermos, no processo de criação de novas palavras para umajusta expressão do universo, o excesso de ciência (ou derazão, a “megera cartesiana”) pode ser uma barreiraintransponível: somente a intuição primitiva, intuição de seresinfensos às coercitivas “pautas” lingüísticas e abertos à umaeventual motivação do signo, pode dar nascimento ao Verbodemiúrgico.

Será interessante notar, en passant, que um dos sucessoscomerciais da indústria militar brasileira veio à luz na figurade um carro de combate simbolicamente batizado de“Urutu”; e esse nome não foi proposto, parece evidente,como homenagem ao grande escritor Guimarães Rosa. Narealidade, notórios apresentam-se os cuidados que, nosdomínios do marketing e da publicidade comercial, sãodedicados à criação de marcas industriais; a sonoridade daspalavras aí é tratada com extremo zelo, e não somente emfunção de considerações eufônicas: qual seria o beligerantecomprador que faria a aquisição de um carro de combateque atendesse pelo nome de “gueguê”, “lumu” ou “guilu”,por exemplo? Pensemos também nos velozes (nomes)“Ferrari”, “Passat”, “Vectra”, “Ômega”, nos acolhedores“Gol”, “Uno”, “Kangoo” ou, ainda, naqueles veículosautomotores que serão vendidos em diferentes países sobuma denominação adaptada, traduzida, se podemos dizê-lo, para integrar-se ao sistema de signos que rege o imagináriodesse outro povo. Incompatibilidade, portanto, entre apalavra e a idéia que ela deve representar? De onde viria essaincompatibilidade se não da tessitura sonora da palavra,tessitura que porta em si e per se forte carga de significação?Essa significação, ao que tudo indica, depreende-se decomplexas equações analógicas percebidas pelo ser humanoentre a noção a ser representada e as relações de esforço ede deslocamento espacial que caracterizam, no aparelho

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107 fonador, o ato de realização e de exteriorização da produçãoverbal ou sonora.

Metáforas sonoras: uma nova apreensão do universo

Prossigamos nas trilhas das cratilianas correspondênciasentre tessitura sonora e significação: fonte de representaçõesmetafóricas, elas teriam, por conseqüência, influenciado aescolha do autor quanto às múltiplas possibilidades existentespara dar nome a seu personagem central em Grande Sertão:Veredas. Por intermédio de sua escolha, Guimarães Rosaparece querer organizar os sons de maneira a fazer surgir alembrança de certas (e certeiras) sensações, elaborando, pormeio desse procedimento, as metáforas sonoras sobre as quaisfala Henri Meschonnic. Com efeito, “crótalo” não teria,conforme nosso entendimento, o mesmo poder evocadorou sugestivo que aquele operado por “urutu”. Nessaperspectiva, a observação é válida também para vocábuloscomo “cobra”, “serpente”, “cascavel” ou, ainda, um bomnúmero de outras possibilidades no âmbito da línguaportuguesa, aí compreendido “surucucu”, cujo efeito nosparece, com mais propriedade, cômico ou infantil111 . Tal“aspecto ameaçador” seria talvez reforçado seconsiderássemos o conjunto do sintagma no qual a palavravem inserida: “urutu branco”112 . É fácil observar o simbolismoimplícito no vocábulo “branco”, que sugere o aspectoimpoluto de algo ainda “inexplorado”, “virgem” — como a“moça branca de Siruiz” —; tal leitura pode remeter a umprovável “crátilo branco”, símbolo de uma inexploradamotivação do signo a ser corajosamente percorrida, trabalhadasobre a superfície também branca do papel, exemplificada etornada repleta (como rio-baldo) por intermédio da poesia.Nesse sentido, vale lembrar que, como bem observouWalnice Nogueira Galvão, à medida que o romance avança,Riobaldo locupleta-se e conquista confiança em seus valores:inicialmente pede significação para sua vida (arte), depoisjulgamento, e por fim afirma-se capaz de julgar por simesmo113 . “Urutu Branco” também é, em função de suacondição albina, símbolo de um desvio da norma ou de umaexistência rara e acessível a poucos.

Todavia, parece-nos possível analisar o termo “branco”

111 G. Rosa sublinha ahilaridade observável notermo forjado “espri-pou”. Apud. Correspon-dência com seu tradutoritaliano, p. 45.112 Em carta a seutradutor EdoardoBizzarri, Guimarãesdefine “bronho” como“escuro-e-ameaçador,torvo-assustante” (Ibid.,p. 27). Notemos, em“bronho”, a nasalizaçãoda vogal posteriorfechada, e as consoantesnasal, plosiva e apicalvibrante, estruturasonora próxima à de“branco”. Acerca de“bronzes”, Rosa escreve:“a palavra, em si, éfortíssima: com o grupoconsonantal BR e o ONnasal e mugidor...”(Ibid., p. 50). Quantoa “onho”: “só por si já éhorrível” (Ibid., p. 54).Na vertente oposta,“sarajava”, para G. Rosa, “verbo só em aa,belíssimo! Irradia”, étodo luminosidade(Ibid., p. 35).113 Cf. WalniceNogueira GALVÃO, Asformas do falso: umestudo sobre a ambi-güidade no GrandeSertão: Veredas, p. 85.Vale acrescentar que,durante a travessia doLiso, Riobaldo sugere osucesso do andamentopelo qual se tornarápleno: “eu apalpei oscheios” (gsv 450).

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108 também em função da sua estrutura sonora, pois a sonoridade“branco” (a despeito de seus significados denotativos) talvezpermita agregar a “urutu” uma certa sugestão de clausura,de espaço eventualmente sombrio e ameaçador, o que nãoaconteceria com vocábulos tais como “amarelo” ou “claro”.A causa desse efeito sugestivo será talvez a adjunção a “urutu”,por acoplamento sintagmático, da vogal nasal /ã/, da semi-vogal fechadda /w/, das consoantes plosivas /b/ e /k/, e daconsoante apical vibrante /r/. Essa é a interpretação à qualestaríamos tentados, sobretudo se colocássemos emconfronto os sintagmas “urutu branco” e “crotale blanc”,das duas versões francesas: esse último parece-nos maisenfraquecido, mais aplainado e desbastado, mais suave emenos ameaçador que o original rosiano. Talvez a duplaocorrência da consoante “líquida” /l/ (crotale blanc),consoante menos “briguenta” que o /r/, estivesse na origemdo esmorecimento semântico sofrido pela imagem. Nessalinha cratiliana de raciocínio, o leitor poderá também seperguntar se os tradutores franceses teriam adotado “crotaleblanc” em função da total transmutação fonética (urututornar-se-ia cômico como /yryty/) que o idioma francês teriaoperado, caso eventualmente tivesse conservado o nome“urutu” em sua grafia original. A grafia “ouroutou”,equivalente fonético do tupi “urutu”, também se prestariaao riso entre os leitores franceses, pois faria pensar emestereotipadas florestas africanas de histórias em quadrinhosinfantis.

Seja como for, parece-nos que, tomada fora de contexto,a definição proposta pelos dicionários franceses não poderiaaconselhar a tradução de “urutu” como “crotale”. A meradefinição não confere ao vocábulo “crotale” uma cargasugestiva com suficiente poder de apavorar o leitor, tal comosolicita a fatura romanesca original que recria, também pelasugestões sonoras, o ambiente faustiano em que evoluem ospersonagens.

Assim, o nome “urutu”-/urutu/ seria análogo à coisa-referente (crotalus terrificus terrificus) no sentido em quesua audição pode sugerir, segundo o contexto, a mesmasensação de medo que o ofídio provoca à sua vista. Asemelhança, todos sabemos, está à base da metáfora. EOswald Ducrot sublinha que muitos filósofos e lingüistastendem a ver na metáfora a origem da própria linguagem

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109 humana.114 Considerando-se que a metáfora é uma das basesda poesia, e observardas as características da poesia concretaelencadas por Alfredo Bosi, talvez seja possível dizer queRosa é o único autor brasileiro a lograr poesia concreta emprosa:

“Na medida em que o material significante assume o

primeiro plano, verbal e visual, o poeta concreto inova em

vários campos que se podem assim enumerar:

a) no campo semântico: ideogramas (‘apelo à comunicaçao

não-verbal’, segundo o Plano-Piloto cit.); polissemia,

trocadilho, nonsense...;

b) no campo sintático: ilhamento ou atomização das partes

do discurso; justaposição; redistribuição de elementos;

ruptura com a sintaxe da proposição;

c) no campo léxico: substantivos concretos, neologismos,

tecnicismos, estrangeirismos, siglas, termos plurilíngües;

d) no campo morfológico: desintegração do sintagma nos seus

morfemas; separação dos prefixos, dos radicais, dos sufixos;

uso intensivo de certos morfemas;

e) no campo fonético: figuras de repetição sonora (aliterações,

assonâncias, rimas internas, homoteleutons); preferência dada

às consoantes e aos grupos consonantais; jogos sonoros;

f) no campo topográfico: abolição do verso, não-linearidade,

uso construtivo dos espaços brancos; ausência de sinais de

pontuação; constelações; sintaxe gráfica.

Se procurarmos um princípio lingüístico geral subjacente

a esses processos compositivos, ressaltará, sem dúvida, o da

substituição da estrutura frásica, peculiar ao verso, por

estruturas nominais; estas, por sua vez, relacionam-se

espacialmente, tanto na direção horizontal como na vertical.

Outra norma comum à maioria dos poemas concretos já

compostos é a exploração das semelhanças sonoras

(paronomásia), no pressuposto de que há relações não-

arbitrárias entre o significante e o significado.”115

114 Oswald DUCROT,Dictionnaire encyclo-pédique des sciences dulangage, p. 350.115 Alfredo BOSI,História Concisa daLiteratura Brasileira,p. 533-534.

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110 Múltiplos serão, nessa lógica que deságua no universo dapoesia concreta, os elementos de reflexão que conduzem oleitor numa onírica viagem em região de Cratília. EmGuimarães Rosa, portanto, o encaminhamento de escriturasupõe que a seqüência de sons, em sua dimensão demovimentos (articulatório, vibratório, ondulatório, etc. —forçosamente figuráveis e figurados no espaço e no tempo),possa representar, metaforicamente, um conceito ou umasensação (por exemplo, o medo ou a angústia). No presentecaso de figura, essas representações derivam-se de relaçõesque ocorrem no plano da intensidade, da duração, da força,da luminosidade (ainda outra vez uma metáfora), segundo omodo e o local de produção do som; som que, nestemomento, poderíamos definir como vocálico ou consonantal.

Revitalizando a linguagem: propostas para uma novacosmovisão

A fronteira entre prosa e poesia encontra-se, portanto,abolida em Guimarães Rosa. A palavra poética é a matériaprivilegiada sobre a qual trabalha o autor (abstração feita,logicamente — haja vista o espantoso número de camadaspalimpsésticas que compõem o romance —, de outrosaspectos de sua obra, aspectos aliás estudados em grandenúmero de textos que lhe são consagrados), o que tornaainda mais delicada toda e qualquer operação de interpretaçãopara este romance. Não obstante, havemos de convir, oescritor não saberia criar ex-nihilo o seu texto inovador, poisele dispõe, para seu trabalho, de enormes recursos provindosde seu próprio idioma, como sublinha Eduardo Coutinho:

“O escritor não inventa ‘significantes’ inteiramente novos,

dissociados das formas existentes em sua língua; ele não cria

uma língua própria, independente da sua. Ao contrário, sua tarefa

é explorar as possibilidades latentes dentro do sistema da língua

com que está lidando e conferir existência concreta àquilo que

existia até então como algo meramente em potencial”116 .As noções propostas por Eduardo Coutinho iluminam,

sob mais de um aspecto, certas passagens de Grande Sertão:Veredas. Assim, dentro de uma perspectiva de utilização das

116 Eduardo COUTI-NHO, “GuimarãesRosa e o processo derevitalização da lingua-gem”, in Eduardo F.Coutinho (org.), Gui-marães Rosa, p. 205.

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111 virtualidades da língua, encontraremos exemplos bastanteemblemáticos logo nas primeiras páginas da obra de G. Rosa.Por exemplo, pensemos neste espantoso “sozinhozinho” enas dificuldades que ele poderia carrear aos leitores maisapressados: “É na boca do trabuco: é no téretê-retém... Esozinhozinho não estou, há-de-o” (gsv 15). Mais do quesublinhar a recorrência massiva, nos processos decomunicação (notadamente oral) no Brasil, do sufixo -inho(e -ão), Guimarães Rosa busca agregar ao vocábulo “sozinho”uma certa dose de sobrecarga semântica. Sob esse ponto devista, Eduardo Coutinho analisa com fineza a escolhaestilística rosiana e dela propõe uma visão lúcida eesclarecedora:

“A palavra ‘só’, exclusivamente conceitual em português,

não contém em si mesma nenhuma conotação emocional. O

poeta anônimo, ao sentir certa vez qua o vocábulo era insuficiente

para expressar a sua solidão, decidiu, então, acrescentar-lhe un

sufixo diminutivo -inho, bastante usado na língua com sentido

de intensidade (cf. ‘cedinho’, muito cedo, ‘devargazinho’, muito

devagar). E o resultado foi a palavra ‘sozinho’, significando ‘muito

só’. Entretanto, com o desenvolvimento da língua, ‘sozinho’ veio

a perder o seu significado poético e passou a ser usado como

um simples sinônimo de ‘só’. E Guimarães Rosa, percebendo a

inexpressividade do vocábulo ‘sozinho’, procurou reavivar o seu

significado originário, servindo-se do mesmo processo que

acreditava tivesse sido utilizado um dia. Assim, repetiu o sufixo

diminutivo no final do vocábulo e criou a forma

‘sozinhozinho’”.117

No entanto, poderíamos observar que, para G. Rosa, asonoridade também exerce um importante papel nesseprocesso de revitalização da linguagem sobre o qual explanaEduardo Coutinho. Com efeito, sob uma ótica cratiliana,poderíamos ver, nesses sufixos escolhidos pelo autor, muitomais do que um simples material lexical: um materialsonoro. A transcrição fonológica do sufixo ([iñw]) nospermitiria ver a vogal anterior fechada /i/ — a qualassociamos facilmente às pequenas dimensões — esboçarum movimento de encolhimento (ou de interiorização) peloefeito da contigüidade com a nasal /ñ/ e com a semi-vogal

117 Eduardo COUTI-NHO, “GuimarãesRosa e o proces-so derevitalização da lingua-gem”, in EduardoCoutinho, GuimarãesRosa, p. 204-205.

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112 posterior /w/. Ou pelo menos é esse o movimento queparece efetuar o aparelho fonador, se porventuraconsiderarmos o deslocamento das tensões musculares.Ao agregar uma tal carga sonora a um vocábulo que jáapresentava carga semelhante, e visto o conteúdosemântico dessa palavra118 , Guimarães Rosa busca reforçaras potencialidades sugestivas da palavra. Tal é, porexemplo, o que ocorre no caso dessa onomatopéia —téretê-retém — de forte valor expressivo, em razão de suaproximidade textual em relação à alcunha “Tatarana”, naqual Riobaldo pressente uma certa motivação do signo,pouco antes da batalha em que Zé Bebelo é feitoprisioneiro: “Quando ele [Sô Candelário] falava Tatarana,eu assumia que ele estava sério prezando minha valia deatirador” (gsv 213). “Tatarana”, alcunha e onomatopéiaque urdem firme tessitura e bem podem sugerir que oalvo ou munição destes “tiros” prossegue sendo a palavra,que o ponto de mira de Riobaldo-Rosa prossegue sendoexpressivas inovações lingüísticas tais como esserevitalizado “sozinhozinho” que, no texto rosiano, vemimediatamente após o trabuco e a referida construçãoonomatopaica que mimetiza a sonoridade da arma de fogode Tatarana, lagarta de fogo (conforme a origemetimológica da palavra, do tupi tata’rana, “semelhante aofogo”). Som e arma mortal, arma precisa, seguem juntos;som é arma mortal, como podemos ver na justaposição emútua contaminação semântica de “boca” e “morte”:

“Nem cento-e-cinquenta braças era o eito, jaculação

minha. Aquilo servia até para carga de bocamorte. E mais de

um, eu etcétera, aí, pelo que sei, pelo que vejo. Mas só aqueles

que para morrer estavam com dia marcado. Minto? O senhor

releve idéias.” (gsv 183)O “trabuco”, em processo de transmutação com raízes

na etimologia popular e como resultado de transmigraçãosêmica advinda à palavra “bacamarte”, será aqui rebatizadocomo “bocamorte”, como já havia sublinhado Mary LouDaniel119 . Essa arma tem seu alcance medido em funçãoda “jaculação”, da palavra oral que serve de carga para oinusitado “bocamorte”. E o poder mortal da boca é assimposto em relevo, como já amplamente estudado por

118 A análise sêmicapermitiria a desobstru-ção do sema “peque-nez” no vocábulo “só”.Neste sentido, não écomum sentir-se “me-nor”, “pequeno”, ao ver-se só, isolado do conjun-to? Nestas ocasiões, atendência à interiori-zação é sinal de ummovimento contrário àexpansão, ao alarga-mento, movimento quetambém é sugerido pelatessitura sonora dosufixo “inho”.119 Mary Lou DANIEL,João Guimarães Rosa.Travessia Literária,p. 68.

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113 diversos críticos, alhures, no episódio dos crimescometidos por Maria Mutema120 . Ademais, notaremos que“tirar de eito”, na região nordeste do Brasil, significa “levarvitória, vencer”. A vitória será, portanto, fruto da palavra,da “jaculação” precisa e certeira, da sonoridade da voz infalívele mortal. E ainda uma vez Guimarães Rosa frisa que há nessapassagem matéria a ser decifrada, “idéias a serem relevadas”,postas em evidência. Não por acaso, Riobaldo afirma, paracompletar essa idéia: “Pontaria, o senhor concorde, é umtalento todo, na idéia. O menos é no olho, compasso”(gsv 139). O acerto, “dom de Deus” (gsv 139), não é no“olho”, e sim no ouvido, no “compasso” da música daspalavras, única entidade capaz de exprimir com justeza asidéias. Note-se que “talento” remete igualmente ao espaçodefinido pelas produções de cunho artístico e “pontaria”remete aos pontos ou signos diacríticos que marcam o ritmodo texto. Quanto às armas utilizadas para esse acerto musical,notaremos que Riobaldo serve-se de “clavina” e “clavinote”(gsv 139), nomes que apresentam, em sua composição, apalavra “clave”, termo que remete, claro está, ao universoda notação musical. Sonoridade e significação caminham empar no discurso enigmático do bardo Riobaldo.

Som e significação: movimentos cratilianos

Sob essa ótica, vejamos, de maneira sucinta, as relaçõesfonológicas que ocorrem no interior do período sintáticoque se apresenta como passagem chave do romance, namedida em que esse período sempre é ressaltado em itálicase constitui a epígrafe e o leitmotiv de Grande Sertão: Veredas,ponto sobre o qual o texto retorna incessantemente e emtorno do qual a rede de significações fila-se e organiza-se:“O diabo na rua, no meio do redemunho”. Consideremos,inicialmente, a transcrição fonológica (para um falar da regiãosertaneja):

A dinâmica da progressão das vogais é aparentementeclara: elas passam da anterioridade à posterioridade; no fim

120 Maria Mutemaintroduz chumbo fundi-do (matéria utilizada,como por acaso, emtipografia e, logo, emtextos impressos) noouvido de seu marido,e depois conduz o PadrePonte à morte através dedeclarações feitas noconfessionário. “Os doiscrimes de Maria Mute-ma são, formal-mente,um só. O crime éexecutado mediante aintrodução de algo nocérebro pelo condutoauditivo, algo que sesolidifica ou se conso-lida, e mata. Tambémem ambos os casos ocrime é um pacto entreduas pessoas — umagente e um receptorpassivo — e com omesmo efeito: a mortepara o receptor, adanação para o agente.”Walnice Nogueira GAL-VÃO, As formas dofalso: um estudo sobre aambigüidade no GrandeSertão: Veredas, p. 120.Vale lembrar que, paraRiobaldo, “bala é umpedacinhozinho demetal...”, chumbo fun-dido e moldado para oimpacto, tal qual asfontes gráficas utilizadasem tipografia. Asnoções de “bala” e“palavra” encontram-se,por esta vertente,intimamente relacio-nadas.

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114 do período, elas se nasalisam por contigüidade com asconsoantes nasais. Quanto às consoantes, elas acompanhamum movimento progressivo que vai da bilabialidade oclusiva(/b/) à nasalidade bilabial (/m/) e palatal (/ñ/); no entanto,há recorrência da consoante alveolar (/d/), que apresenta,contudo, uma realização africada e dentalizada no início doperíodo. O (/r/), posto que em início de palavra, apresenta-se como consoante uvular vibrante, e vem ao final do primeirohemistíquio e no meio do segundo. Assim, aparentementecria-se, por analogia com as relações (de tensão muscular)que se estabelecem no aparelho fonador, uma metáfora demovimento entre exterior e interior, ou, com maispropriedade, um movimento composto de idas e vindas queé paulatinamente interiorizado a cada ciclo. O (/r/) vibranteparece poder criar uma certa representação imagináriasimbolizando um movimento giratório. Esbocemos, então,um modelo esquemático desse movimento hipotético:

Desse virtual movimento rotacional que o leitor teráentrevisto na frase-chave do romance, Antonio Miketenescreverá:

“Na variante da estrutura fônica da frase, a palavra

redemunho reforça o jogo paronomásico com demônio, cognome

do Diabo, e destaca o fonema R, ao compor uma aliteração

com a palavra rua. Redemunho, corruptela de redemoinho, tem

ponto de amarraem direção ao interiorem direção ao exteriorretorno de sons fonicamente próximosmovimento giratório

II. Da vertigem deum enigma à moti-vação do signo: are i n v e n ç ã o d apalavra

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115 o sentido dicionarístico de movimento rápido de rotação ou em

espiral; massa de ar que gira rapidamente; encontro de ventos

opostos. Ou ainda, como diz Riobaldo: ‘Redemoinho: o senhor

sabe: — A briga de ventos.’ Essa frase se revela, assim, como

uma ruidosa reprodução lingüística do ruído do vento que varre

o sertão, sempre anunciando a presença do Diabo. O R, som

privilegiado no texto, vai ser o gerador das relações timbrísticas

onde se manifesta o elemento ar. Com efeito, sobressaindo desse

conteúdo, o R interfere no sentido do tema profundo e promove

uma autêntica semântica fonética ao longo de suas reverberações.

Note-se a utilização desse fonema como reprodutor do ruído

do vento, quando, na solidão sombria da noite das Veredas

Mortas, Riobaldo espera realizar o pacto e a hórrida presença

do Diabo ruge no ar: ‘Nós dois, e tornopío do pé-de-vento — o

ró-ró girado mundo a fora, no dobar, funil de final, desses

redemoinhos: ... o Diabo, na rua. No meio do redemunho...’”121

Pela associação de uma certa construção sonora com valorde expressão mimética em relação à idéia proposta pela frase,teria Guimarães Rosa almejado criar uma imagem metafóricada espiral, do turbilhão que corresponde ao vocábulo“redemoinho”? E por que razão temos aqui o emprego de“redemunho” em substituição ao canônico “redemoinho”122 ?De onde vem a força expressiva desta frase? Seja como for,se o leitor lançar um olhar acurado sobre as traduções doromance, ele verá que essa força parece ausente na versão“Le diable dans la rue, au milieu du tourbillon” que figuratanto na primeira quanto na segunda tradução francesa, adespeito de suas abordagens do original radicalmentedistintas, de suas diferentes decodificações do folheadoficcional. Com efeito, observaremos, nas versões francesasdesse leitmotiv rosiano, a recorrência da consoante “líquida”/l/ e das vogais anteriores /i/ e /a/, condição que pareceaerar e suavizar a expressão sonora resultante da leitura dafrase.

Ainda que sob um ponto de vista distinto daquele queconduz nossa análise, Leonardo Arroyo observa na macro-estrutura do texto um certo movimento espiralado que bempoderia ser visto como uma construção mimética daquele

121 Antonio RobervalMIKETEN, Travessia deGrande Sertão: Veredas,p. 73.122 Sobre a variante“redemunho”, Augustode Campos dirá: “Aliás,parece-nos mais ricaesta variante pelo nexofonético (que adquireressonâncias semânticasna contexto) criadoentre as palavras demô-nio e redemunho: aprópria maneira degrafar este vocábulo,embora possa estarligada à especial pronún-cia da fala sertaneja, tema vantagem de acentuarainda mais a proximi-dade entre as duas pala-vras.” Augusto deCAMPOS, “Um lancede ‘Dês’ do GrandeSertão”, in CoutinhoEduardo F. (org.),Guimarães Rosa,p . 333.

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116 rodopiar iterativo do “redemunho”: “O caráter popular danarrativa de Riobaldo infere-se também dos seus planosmúltiplos de descrição (vai e vem, subida e descida, volteios,a interpenetração até confusa dos níveis descritivos) ondenão há continuidade discursiva de desenvolvimento.”123

Para Javier Domingo, há em Grande Sertão: Veredas “unestraño ritmo — una especie de sístole-diástole, un constantedar saltos a la luz, una succesión de espasmos”124 , reflexodaquele “turbilhão-mandala [que] se reproduz en abyme”observado por Francis Utéza.125 Jean-Paul Bruyas vêigualmente uma possível estrutura mimética no movimentoimpresso à narração de Riobaldo: “como todo bom prosador,o autor sabe alternar ritmos e estruturas opostas e essaoposição reforça cada um deles na sua ordem. Digamosapenas que o contínuo, o legato, em enunciados bastanteamplos, é estatisticamente muito mais raro. Seu usocorresponde a um repouso na vida psíquica do personagemque fala: instantes de sonho, momentos de calma.Inversamente, o staccato traduz ou a ação precipitada, ouestados psíquicos da ordem da violência ou da rispidez.”126

Davi Arrigucci Jr. escreve que “a aventura se cumpre,portanto, num movimento de círculo, que encerra sem secerrar no entanto de todo, salvo no fim da luta, e se reproduzde algum modo no fluxo da fala do narrador, em ritmo devórtice, de águas em rodopio ou torvelinho, redemoinhadoe suscitado de dentro do próprio verbo, das volutaslabirínticas do discurso algo barroco, a imagem da divisão edo desconcerto — do demo, sempre glosado nos motivosrecorrentes do Viver é muito perigoso e de O diabo na rua nomeio do redemoinho...: frase do subtítulo que, no Paredão,marca o desenlace e o desencontro fatal.”127 Assim, poucosnão são os críticos propensos a exarar um parecer conduzidopelo signo motivado. Ora, conforme observado porSusi Sperber em anotação aposta pelo romancista em páginade Homero, para Guimarães Rosa, a imagem do movimentoimpresso pelo redemoinho pode ser “perfeito, sintético,inexcedível! Exatamente a teoria do ‘turbilhão de idéias’ nagênese das emoções (...).”128 Teria Guimarães Rosa logradotranspor para o plano da macro-estrutura narrativa aconstrução mimética, ou cratílica, observável no leitmotivde seu romance?

Eis aqui questões de difícil solução. Com relação às

123 Leonardo ARROYO,A Cultura popular emGrande Sertão: Vere-das, p. 21.124 Citado por NeyLeandro de CASTRO,Universo e Vocabuláriodo Grande Sertão,p. 19.125 Francis UTÉZA,Metafísica do GrandeSertão, p. 387.126 Jean-Paul BRUYAS,“Técnicas, estruturas evisão em Grande Sertão:Veredas”, in Eduardo F.Coutinho (org.), Gui-marães Rosa, p. 462.127 Davi ARRIGUCCIJr., “O Mundo Mistu-rado: Romance e Expe-riência em GuimarãesRosa”, in Novos Estudos:CEBRAP, p. 23.128 Suzi Frankl SPER-BER, Guimarães Rosa:signo e sentimento,p. 121.

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117 interpretações propostas para o leitmotiv e para o conjuntodo romance, talvez fosse útil retomar as palavras lançadas porBóris Pasternak a respeito das traduções russas — falhas,segundo o escritor — de Rilke: “A culpa não é dos tradutores.Eles estão acostumados a traduzir o significado e não o tomdaquilo que é dito, ora, aqui tudo é uma questão de tom”129 .Tais noções valerão para os tradutores de Rosa, pretéritos efuturos, transidiomáticos ou simplesmente intérpretes doromance (críticos, professores, autores de leiturasintersemióticas em linguagem cinematográfica, teatral,pictórica, musical ou fotográfica, entre outras múltiplaspossibilidades de tradução).

Logo, em Grande Sertão: Veredas, Guimarães Rosa traz àcena — no interior da própria ficção — a representação decertos procedimentos relativos à gênese de sua obra. Essa visãodo mundo (da criação literária) conduz à sua própria imagemespecular: o poder da literatura, por intermédio do verbodemiúrgico, será aquele de transcriar o mundo, de actualizá-lo, de representar um mundo possível, como se nota em certaspassagens do discurso de Riobaldo: “Não escrevo, não falo! —para assim não ser: não foi, não é, não fica sendo! (...)”(gsv 530) ou “(...) e ele estava com raiva tanta, que tudoquanto falava ficava sendo verdade” (gsv 74). Essa visão domundo nos deixa perplexos diante de questões que parecembastante distantes de desvelarem suas respostas. Assim, faceao Urutu-Crátilo, resta ao leitor perguntar-se se o ouvidohumano seria capaz de decodificar o esforço muscular ligadoà produção dos sons e agregar-lhe significações (laterais,potenciais, como diria Tynianov), agregar-lhe valoressemânticos necessários à obra polissêmica, como sugere, deforma magistral, o romance de Guimarães Rosa.

Seja qual for a resposta a essas questões em aberto, nesseoriginalíssimo romance o assunto e a forma sob a qualapresenta-se o assunto remetem ao universo da literatura.Grande Sertão: Veredas poderia então se classificar entreaquelas obras auto-reflexivas que Adrian Marino qualifica como“obras inclassificáveis, semi-teóricas, semi-poéticas, feitas porpoetas desdobrados em críticos que transformam a literaturaem um verdadeiro ato crítico.”130 Prossigamos, porconseqüente, nestas promissoras “veredas altas” abertas porUrutu-Crátilo, pelo signo motivado, e analisemos outrosvirtuais elementos literários sotopostos en abyme nessapalimpséstica obra romanesca.

129 Citado por Haroldode CAMPOS, op. cit.,p. 76.130 Adrian MARINO,La Critique des IdéesLittéraires, p. 20.

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“Não preciso inventar contos, eles vêm a mim,me obrigam a escrevê-los.

Acontece-me algo assim como vocês dizem em alemão: ‘de repente o diabo me cavalga’,

que neste caso se chama precisamente inspiração.”(Guimarães Rosa, em entrevista a Günter Lorenz)

A vitória de Urutu Branco sobre Hermógenes remeterá,portanto, a uma segunda ficção cuja leitura somente serápossível no plano formado pela constelação de significadosdo universo platônico. Assim, essa ficção é proposta comoresolução ao problema lançado por Crátilo, de Platão. Nela,a intertextualidade e a polissemia reverberam com todo seubrilho. Nessa perspectiva, o romance assume-se, porconseqüente, como seu próprio objeto de escritura. Talperspectiva implica, evidentemente, uma forte sobrecargasemântica, sobrecarga que somente virá decifrada pelo atentoleitor potencial diante do qual o autor de Grande Sertão:Veredas, com um piscar de olhos, confessa-se exaurido emsuas forças para lograr total domínio sobre o alcance de vôode sua própria obra. Assim, Rosa revela, ventríloquo, porintermédio da fala de seu personagem-narrador, Riobaldo-Tatarana: “No que narrei, o senhor talvez até ache mais doque eu, a minha verdade” (gsv 531). Essa reflexão, demaneira evidente, remete aos significados potenciais da obraliterária, e indica ao leitor a necessidade de acompanhar osmeandros das variações ocorridas no espaço textual paraenfim atingir uma compreensão que se queira globalizante.

Em seu meta-discurso, Riobaldo frisa: “Eu quero é queo senhor repense minhas tolas palavras. E, olhe: tudo quantohá, é aviso” (gsv 146). Tais reflexões constituem, sob todaevidência, referência intertextual às idéias propostas porAndré Gide em Paludes, obra exemplar no que tange aoprocedimento estilístico da mise en abyme: “Antes de explicarmeu livro aos outros, espero que outros mo expliquem. (...)E o que nele me interessa sobretudo, é aquilo que aí coloqueisem sabê-lo, — essa parte de inconsciente, que eu chamaria

III. Grande Sertão e o universo dasLetras: do pacto faustiano às “AltasLiteraturas”

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120 parte de Deus”131 . A parte de Deus, em Gide, talvezcorresponda, em Grande Sertão: Veredas, à parte de Satã, oQue-Diga ou Não-sei-que-diga, nomes que remetem, sobtoda evidência, à questão da inspiração no ato de criaçãoliterária. Assim, o que nos interessa nessa confluência deperspectivas seria, com mais propriedade, a parte datranscendência na gênese da obra literária, os fatores genéticosque escapam à pura e reta racionalidade, e que prosseguemmuito além do inteligível. Dessa forma, caberá ao leitor abusca, em Grande Sertão: Veredas, de possíveis alusões aopapel da inspiração na atividade de criação literária.

O Pacto Faustiano ou a inspiração poética: mise en abyme

O leitor, ainda que esgotado pelas trilhas vertiginosasdos enigmas do sertão, guarda a lembrança de que o pactoque conduziu Riobaldo à vitória sobre Hermógenes tem porconseqüência funesta o desaparecimento ou a perda deDiadorim. Sobre a transformação de Tatarana em UrutuBranco, Flávio Aguiar acrescenta que “o Urutu Branco não émais o Tatarana; Riobaldo perdeu a pontaria que poderiasalvar o amigo/amor”132 . Ora, ao se transformar em Urutu-Crátilo, Riobaldo adquire ou recebe o dom de dizer oindizível; portanto, Hermógenes não será eliminado porintermédio do tiro certeiro do Cerzidor-Tatarana, tiro quecorresponde à palavra gramaticalmente perfeita: Hermógenesserá eliminado por intermédio de Diadorim. Contudo, emato contíguo, Hermógenes, em seu caminho de retorno aomundo inferior, arrastará consigo aquele que foi a companhiainseparável de Riobaldo.

Vejamos as noções a que remete o personagemsexualmente ambivalente de Reinaldo Diadorim Deodorina.Ao pensar na possibilidade de “fugir junto com” Diadorim,sua inseparável companhia, a imagem que vem a Riobaldo éa de um vulto que se desloca “como o rio redobra” (gsv 158),como um rio e seu duplo, o desdobramento simbólico deum rio(baldo). Assim, segundo o narrador, Riobaldo eDiadorim poderiam ser vistos como duas partes de um sóconjunto, formariam um só corpo físico sob a ação da luz:“Diadorim e eu, a sombra da gente uma só formava”(gsv 215). As delimitações físicas entre os dois personagens

131 André GIDE,Paludes, p. 11.132 Flávio AGUIAR, “OPacto e o pacto letrado”,in Organon, p. 86.

III. Grande Sertãoe o universo dasLetras: do pactofaustiano às “AltasLiteraturas”

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121 parecem assim abolidas, e torna-se difícil, para o narrador,determinar a sua própria identidade: “eu era dois, diverso?”(gsv 431). As semelhanças entre ambos manifesta-se atémesmo no espaço onomástico, fato que leva Diadorim aconcluir: “‘Riobaldo... Reinaldo...’ — de repente ele deixouisto em dizer: — ‘...Dão par, os nomes de nós dois...’”(gsv 123). Por outro lado, quando Riobaldo descreve certascaracterísticas de Diadorim, o jagunço termina por ressaltaras múltiplas semelhanças entre ambos: “acho que eu tambémera assim” (gsv 49). Nesse sentido, Diadorim é tambémdescrito, pelo narrador, como uma entidade cuja existênciaé vinculada ao espaço interior do jagunço cratiliano:“Diadorim era um sentimento meu” (gsv 272). Já em umadas últimas páginas do romance, o narrador torna maisprecisas suas indicações de leitura: “deixei meu corpo quererDiadorim; minha alma?” (gsv 510). Diadorim seria portantoa alma, e por essa razão, como os anjos, tem o sexo indefinidoao longo das páginas do romance. Não por acaso, um dospatrônimos do personagem é “da Fé”, ou talvez também “dáfé”133 , atitude inerente à alma, não ao intelecto (o qualfornece “convicção”, não “fé”). Assim, a justeza dos tiros deTatarana já não servem para eliminar Hermógenes — ou osigno arbitrário —, e será preciso servir-se da alma, pois“sempre o espírito é que mata...” (gsv 106).

Ora, na perspectiva de um pacto faustiano eventualmenteconcluído entre Riobaldo e o “Que-Diga”, o Demo, o “Dê-mot”, o leitor notará que as diferentes versões, populares oueruditas, do pacto com Lúcifer, rezam sempre a cláusula daperda da alma ao termo do contrato. Segundo esse contrato,o pactuário obtém as mais diversas vantagens durante umperíodo de sua vida. As versões literárias, no mais das vezes,prevêem o acesso a uma ilimitada capacidade criadora, tantono domínio científico quanto no domíno artístico. Quantoao preço do pacto, o próprio narrador afirma: “O pagar é aalma” (gsv 37). Assim, ao final do romance Riobaldo retornaàs Veredas Mortas “como se, tudo revendo, refazendo, [ele]pudesse receber outra vez o que não tinha tido, reporDiadorim em vida?” (gsv 532): o jagunço imagina poderdesfazer o pacto que lhe deu a vitória sobre Hermógenes,sobre o signo arbitrário, mas que lhe tirou Diadorim, suaalma.

O leitor, imbuído de um espírito goethiano, observará

133 Conforme sublinha,com pertinência, JúliaC.F. Santos, em seuNomes dos Personagensem Guimarães Rosa,p. 120.

III. Grande Sertãoe o universo dasLetras: do pactofaustiano às “AltasLiteraturas”

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122 que o pacto fáustico, em sua qualidade de motivo literário, éo tema que pode ser encontrado em uma emblemáticametanarrativa situada logo nas primeiras páginas desteromance (p. 69-70, em um conjunto de 538 páginas),posição estrutural assaz sintomática de um certo protocolode leitura. Nessa passagem, Riobaldo conta a seu interlocutora história de um pacto estabelecido entre dois jagunços,Davidão e Faustino. Riobaldo, vale notar, frisa o fato de jáhaver contado essa história, anteriormente, a umadeterminada pessoa vinda àquelas paragens para pescar norio. Segundo esse pacto,

“...o Davidão dava a ele [Faustino] dez contosde réis, mas, em lei de caborje — invisível nosobrenatural — chegasse primeiro o destino doDavidão morrer em combate, então era o Faustinoquem morria, em vez dele” (gsv 69).

Ora, durante muito tempo nada lhes acontece: “Ah, eassim e assim foram, durante os meses, escapos, alteraçãonenhuma não havendo; nem feridos eles não saíam. . .”(gsv70). Essa intriga, Riobaldo já havia contado anteriormentea um certo “rapaz de cidade grande, muito inteligente, vindocom outros num caminhão, para pescarem no Rio”(gsv70)134 , que havia atentamente escutado o relato. Ao ouvira história, o rapaz pescador afirma que o argumento narrativoexposto por Riobaldo apresenta-se como “assunto de valor,para se compor uma história em livro. Mas que [precisa] deum final sustante, caprichado” (gsv70). Entretanto, segundoas informações em posse do narrador, Davidão e Faustinoacabam por deixar a vida de jagunço e terminam por seestabelecer em um lugar qualquer como proprietários deterras. Assim, o final “real” desta história de pacto entrejagunços é vaga e banal, e necessita de reformulação porintermédio da prosa de ficção.

Ao visto da conclusão banal dessa estória falsamente reale da conclusão mirífica proposta pelo rapaz pescador,Riobaldo termina por afirmar que, diante da “continuaçãoinventada” (gsv70) da ficção literária, “no real da vida, ascoisas acabam com menos formato, nem acabam” (gsv70).Segundo Riobaldo-Guimarães, a função da arte seria, então,aquela de contrapor-se à banalidade inerente ao real porintermédio das belezas virtuais de um mundo possível. Belezas,note-se bem, intrinsecamente ligadas ao “formato”, à forma:

134 Rio...baldo? Qual osignificado desta enigmá-tica e inesperada maiús-cula? Tratar-se-ia do RioSão Francisco? Tratar-se-ia de “pescaria” no Styx,rio da mitologia grega,conforme visto na se-gunda parte destaanálise? Ou fala-se, poracaso e com mais pro-priedade, deste rapazmuito inteligente, vindode Minas Gerais e quetornou-se diplo-matano... Rio de Janeiro? Nãofoi então neste Rio queele “pescou” seuromance?

III. Grande Sertãoe o universo dasLetras: do pactofaustiano às “AltasLiteraturas”

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123 fim à disjunção entre forma e conteúdo, se necessidade aindahouvesse de reunir em um só conjunto as duas noções.Lancemos um olhar sobre os personagens dessa narrativaque parece refletir alguns elementos do romance que a acolhe.“Davidão”, como o leitor pôde notar, apresenta-se como aforma aumentativa irregular de Davi: em seu lugaresperaríamos, com mais certeza, o aumentativo “Davizão”135 .Ao decompor essa alcunha inusitada, encontraremos “Dá-vidão”: eis aqui, portanto, Mefistófeles, um dos pólos dopacto faustiano. Este seria o pólo do pacto binário, oucontratante, que concede excelentes condições de vida —conforme o termo popular “vidão”, vida fácil ou agradável —, segundo o texto escrito e devidamente assinado de umcontrato em que a palavra impressa sobre a folha apresentanão pouca importância.

No outro pólo do contrato — do lado daquele que“recebe o vidão” em troca de sua alma — encontramosexatamente um pequeno Fausto: Faustino. SegundoRiobaldo, chegada a hora da morte, Faustino entrega a almano lugar de Davidão; em outras palavras, ele entrega a almaa Davidão. Assim “Faustino” (diminutivo — por adjunçãodo sufixo -ino — de Fausto)136 , prefiguraria, nessametanarrativa, a mise em abyme do personagem Riobaldo,aquele que pactua com o “Que Diga” para vencerHermógenes e o signo arbitrário, acabando por perder suaalma, Diadorim. O próprio diminutivo “Faustino” sugere queessa metanarrativa é, de uma certa maneira, um resumo,um condensado ou resenha do romance: uma “pequenaficção” como representação especular da “grande ficção” quea contém inserida em si. Por intermédio da conclusão aleatória(logo, ficcional) e da imagem especular dessa metanarrativa,o romance que a engloba assume-se em sua dimensão deescrita literária e torna-se, por essa vertente, seu própriotema.

Guimarães Rosa deixa aqui subentendido que o objetosobre o qual escreve em Grande Sertão: Veredas não é outrosenão o próprio romance Grande Sertão: Veredas. Ou antes,com mais propriedade, o tema do romance é, entre tantosoutros aspectos, o próprio romance e a linguagem que nele éutilizada. E o tema faustiano não é novidade para o leitordeste romance, como podemos ver nestas palavras deFranklin de Oliveira: “abrindo a trilha da crítica conteudística,

135 J. Santos propõeoutra interpretação: “Oacréscimo do aumen-tativo em DAVIDÃO,parece-nos relacionadocom uma certa impor-tância (por riqueza ouautoridade) do perso-nagem.” Júlia Con-ceição Fonseca SAN-TOS, Nomes dosPersonagens em Guima-rães Rosa, p. 18.136 Nessa perspectiva,V.M. de Camposescreve: “(...) é possívelque o leitor se perca, opróprio Guimarães Rosase encarregou de irmostrando o caminho –o que existe para serdescoberto na sua obraestá sempre no texto.Quando Fausto, aDivina Comédia, ateologia ou os livrossagrados hindus impre-gnam sua narrativa, porexemplo, o texto apre-senta uma profundadisseminação de ele-mentos significativosorientando a leitura.”Vera Mascarenhas deCAMPOS, Borges &Guimarães: Na esquinado Grande Sertão,p. 98.

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124 mostrei como o tema faustiano (o pacto com o Diabo)permeava todo o Grande sertão — tese que depois foi, parahonra minha, endossada por um mestre da estirpe de AntônioCândido e um crítico da categoria de Roberto Schwarz.”137

O leitor terá notado que Dá-vidão concede a Faustino,em troca de sua alma, a vantagem de “dez contos de réis”,contudo “invisíveis”, imateriais, impalpáveis: estranha quantiaessa em dinheiro que o pactuário não poderá tocar. Logo,parece evidente que a dimensão invisível ou oculta dos“contos de réis” nada mais é do que outro protocolo deleitura em que Guimarães Rosa indica a necessidade de tornarvisível o significado subjacente ao nome, sentido escondidosob aquilo que tem aparência de natural: os contos são“invisíveis sobre o natural”, sobre a superfície do texto, indicao narrador, ou sobre a aparência natural do texto. Asvantagens são recebidas em “lei de caborje”, em lei deOcultismo (pensemos no “O oculto”), em texto que é precisodesvelar ou decifrar. Busquemos, portanto, o “artificial” quese opõe ao “natural”, ou os artifícios empregados pelo autorem seus enigmas ocultos.

Seguindo as observações de Davi Arrigucci Jr. em tornodas possíveis variações de entonação na leitura do texto138 ,façamos variar, apenas um pouquinho, a abertura das vogaisdo texto. Por essa vertente, é fácil observar que “dez contosde réis” seriam nada menos que... “dez contos de reis”, dezcontos reais, dez contos de alto valor. Esses contos, de formaevidente, deverão ser sobretudo interpretados como obrasliterárias, ademais de seu possível valor de quantia monetária(que remeteria, virtualmente, a um prêmio literário). Essesdez contos, dez “estórias”, concedidos por Dá-vidão (leia-setambém: Dê-mot, Dá-Contos139 ) são concedidos sob formade leis invisíveis, leis ainda não escritas, e cabe aqui a questão:as leis ainda não escritas do signo motivado? A literaturaconcedida pelo “Que-Diga” a Faustino-Urutu seria construídasobre a motivação do signo? Tal é a perspectiva indicada pelotexto, pois, após o pacto, Riobaldo obtém “fôlego, de fôlego,de fôlego” (gsv 371) ou, em outras palavras, Urutu terá,doravante, excelentes condições físicas para produzir sons,dimensão em que o signo pode demonstrar sua motivação.Francis Utéza já havia sublinhado que o pacto ou a cena dopacto inscreve-se no espaço de sacralização e derepresentações sonoras:

137 Franklin deOLIVEIRA, “RevoluçãoRoseana”, in CoutinhoEduardo F. (org.),Guimarães Rosa,p. 181.138 David Arrigucci Jr.,crítico que, em compa-nhia de Antônio Cân-dido e do bibliófilo JoséMindlin, gravou umaversão recitada deGrande Sertão: Veredas,afirma: “é impres-sionante a oralidade dotexto. É lendo em vozalta que a gente percebea riqueza. Às vezes,mudando a entonaçãode algumas palavras, agente descobria novossentidos”. Citado porJorge CALDEIRA, in“Veredas Vocais”,Bravo, p. 84.139 Lembremos aindauma vez que “vida eliteratura” são uma sóentidade paraGuimarães Rosa.

III. Grande Sertãoe o universo dasLetras: do pactofaustiano às “AltasLiteraturas”

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125 “Quando o protagonista atinge o lugar fatal, já não enxerga

nada! Não há luar, apenas o Cruzeiro do Sul se distingue

vagamente. Riobaldo só recebe mensagens auditivas dum

espaço cujas formas a noite acaba de abolir. Nestas condições,

forçosamente, apagando-se a realidade exterior, só se impõe

uma certeza, a própria vida interior do herói, que repercute

através das vibrações sonoras captadas pelos ouvidos. Naquela

solidão fundamental, o protagonista fortifica-se contra o pavor,

afirmando seu machismo: se Satanás comparecer, encontrará

com quem falar! No entanto, o narrador frisa bem que o que

estava sentindo não tinha nada a ver com o medo físico: tremia

sob efeito do thambos – do espanto metafísico provocado pela

aproximação do sagrado –, que o jagunço aliás domina ao fazer

surgir do fundo da consciência a certeza da afirmação de si.”140

Entretanto, o pagamento do pacto (literário) porintermédio da entrega da alma poderá, ainda, encontraruma plausível explicação em palavras de Miguel deUnamuno transcritas por Rosa em seu caderno de notas“Imagem-sensação. Seara Alheia”141 . Com efeito,Unamuno escreve: “Cuando me creáis más muerto,retemblaré en vuestras manos. Aqui os dejo mí alma— libro, hombre —, mundo verdadero. Cuando vibrestodo entero, soy yo, lector, que en ti vibro.” Segundoessas noções propostas por Unamuno e encampadas porRosa, Diadorim — alma que é entregue ao final doromance — poderia equivaler ao livro-estória que seconclui e que é entregue àquele diabo-público com oqual se faz um pacto-contrato de leitura e em quem olivro-alma viverá-sobreviverá doravante, enigma a serdecifrado através dos séculos. Seria redundância falarnovamente aqui de plurissignificação ou camadaspalimpsésticas.

À medida que avançam nossas leituras do textoRosiano, parece-nos cada vez mais evidente que suas538 páginas estão escritas sob a mais pura forma depoema (barroco, simbolista, parnasiano, concreto,cubista, dadaísta, nadaísta, etc.: amálgama de todos os“ismos” até agora encontrados em literatura), ainda que

140 Francis UTÉZA,Metafísica do GrandeSertão, p. 314.141 Suzi Frankl SPER-BER, Guimarães Rosa:signo e sentimento, epí-grafe não paginada.

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126 o romance possa ser igualmente lido de forma linear peloleitor habituado às “leis do costume” que regem a leitura detextos convencionais em prosa. Talvez fosse redundante dizerque esse romance escreve-se como “Um Lance de Dês”expandido em volumoso conjunto de páginas, sob pretextoformal de prosa narrativa. Muito permanece a ser exploradonas entrelinhas do texto, caso seja lícito entrever um conjuntofechado de leituras potencialmente possíveis para tal obra.Pela multiplicidade de virtuais combinações operáveis entreuma palavra e o restante do texto — esteja o texto fisicamentepróximo ou afastado desta palavra, sobre a superfície dasfolhas impressas —, talvez coubesse aqui transcrever aavaliação proposta por Mario Vargas Llosa: “uma das obrasformalmente melhor logradas do século.”142

Assim, para “urutu-crótalo”, o pacto com o diaboconstituiria a transposição do mito das Musas, o acesso àcriação literária, a tomada de posse sobre a palavra, sobre oVerbo, o Logos. De “raso jagunço atirador, cachorrando poresse sertão” (jagunço sem profundidade, farejando sem nadaencontrar, abdicando de sua condição humana para, tal qualo “saranhó”, agir como um animal), afeito à prática de “trançaro vazio” (tecer ou compor o texto vazio de sentido, o rio-baldio) por “acostumação” e “por causa dos outros”(gsv 355), Riobaldo passará a chefe inconteste de jagunços,terminando por vencer o signo arbitrário representado porHermógenes. Saber se há ou não possibilidade de pactoequivale a definir, de maneira peremptória, a possibilidadede existência da inspiração criadora. Tal indagação constituiuma das obsessões maiores de Guimarães Rosa, como deixaentrever a maior parte de seus escritos143 . Com efeito, naapresentação de Sagarana, pode-se ler: “Guimarães Rosadizia que a inspiração é um estado de transe: ‘só escrevoatuado’. À filha e também escritora Vilma, confessou: ‘Àsvezes visualizo, mesmo dormindo, uma estória completa.Acordo e vou escrevê-la’”144 . Por essa razão, o romancistaafirma que, diante da imperiosa necessidade de dar vazão àinspiração, “a invenção é um demônio sempre presente...”145

nessa perspectiva, em “carta de Guimarães Rosa a JoãoCondé, revelando segredos de Sagarana”, o escritoracrescenta, em relação a seu conto “Conversa de Bois”:

“Aqui, houve fenômeno interessante, o único caso, nesse

livro, de mediunismo puro. Eu planejara escrever um conto

de carro-de-bois com o carro, os bois, o guia e o carreiro.

142 Cf. contracapa deDiadorim, tradução deM. Lapouge-Pettorelli.143 Guimarães alude atémesmo a técnicas quepermitiriam a criação deum estado propício àinspiração: “Apondo amente a problemas semsaída, desses, o que ozenista pretende éatingir o satori, ilumi-nação, estado aberto àsintuições e reaispercepções” (Tutaméia,p. 12).144 Sagarana, 39ªedição, 1993, 1ª orelhade capa.145 Trecho de cartaenviada a EdoardoBizzarri. Correspon-dência com seu tradutoritaliano, p. 68.

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127 Penosamente, urdi o enrêdo, e, um sábado, fui dormir,

contente, disposto a pôr em caderno, no domingo, a história

(n. 1). Mas, no domingo caiu-me do ou no crânio, prontinha,

espécie de Minerva, outra história (n. 2)”146 .Guimarães parece querer embrulhar as pistas (do ou

no: imanente ou transcendente?) no tangente à suaconcepção do ato de criação poética. Ou será que elesimplesmente nos faz parte de suas reflexões, as quaistambém não lhe trazem uma resposta pertinente edefinitiva? Nesse sentido, Rosa afirma ser supersticiosona medida em que a superstição não é o ilusório, massim poesia, “percepção e arejo, psíquico automotismo,uma respiração cutânea do espírito, talvez...”147 Em seutrabalho sobre a obra rosiana, Mary Lou Daniel fazreferências a certa carta de Guimarães Rosa, em que oautor declara opor “escrúpulo crítico a fenômenosparanormais”, ainda que afirme que sua vida é marcadapor uma miríade de fatos desse gênero, tais como “sonhospremonitórios, telepatia, intuições, séries encadeadasfortuitas, toda a sorte de avisos e pressentimentos... Noplano da arte e criação — já de si em boa parte subliminarou supraconsciente, entremeando-se nos bojos domistério e equivalente às vezes quase à reza — decertose propõem mais essas manifestações.”148

Por essa vertente, Otto Lara Rezende observa que oinstrumento de escrita preferido por Rosa é o lápis,instrumento, próximo do fetiche, de que Guimarães Rosaocupa-se com atenção desmedida. Ao preparar-se paracomeçar o trabalho de escrita, Rosa efetua um ritual queconsiste no “trabalho prévio de rabiscar, escrever umaou outra palavra, desenhar garatujas, até que o ‘santo’baixasse e se punha a escrever febrilmente”. Esse ritual,para o escritor, tem a função de prepará-lo para ainspiração mediúnica. Para Rosa, o texto já se encontraescrito em algum lugar do universo e cabe ao escritorapenas o papel de “intermediário, escolhido para recolhero texto, quase psicografá-lo.”149 Como eco às questõesdos escritor sobre essas questões, Riobaldo interroga-se, de maneira recorrente ao longo de Grande Sertão:Veredas, sobre a existência do diabo e sobre a efetividadedo pacto. Por vezes, Riobaldo parece querer definir a

146 João GuimarãesROSA, Sagarana,p. 10.147 Vilma GuimarãesROSA, Relembra-mentos: João GuimarãesRosa, meu pai, p. 303.148 Mary Lou DANIEL,João Guimarães Rosa.Travessia Literária,p. 181.149 Cf. Vilma Guim-arães ROSA, Relembra-mentos: João GuimarãesRosa, meu pai, p. 328.

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128 questão, mas, logo em seguida, retoma novamente o fiode suas conjecturas:

“Pois não existe! E, se não existe, como é que se pode se

contratar pacto com ele? (...) pode também ser que tudo é

mais passado revolvido remoto, no profundo, mais crônico:

que quando um tem noção de resolver a vender a alma sua,

que é porque ela já estava dada vendida, sem se saber; e a

pessoa sujeita está só é certificando o regular dalgum velho

trato (...)” (gsv 30).Assim, o leitor nunca fica seguro quanto ao papel

assumido pelo Demo no espaço diegético. Mas parece-nosque é exatamente o diabo aquele que detém o poder doVerbo: com efeito, Guimarães dá-lhe o emblemático nomede “o Que-Diga”, nome ressaltado em itálicas — marcaformal de heterogeneidade discursiva, logo de um discursovindo de alhures, a ser compreendido alhures — e por trêsvezes já na segunda página de seu romance; ou ainda “o Não-sei-que-diga” (gsv30). Esse nome simbólico é composto apartir do tempo presente do modo subjuntivo do verbo“dizer”, modo e tempo que introduzem um aspectodubitativo ou volitivo na expressão. Ele poderia ser lido, em“o Que-Diga”, como uma autorização ou ordem manifestapara a tomada da palavra: que ele diga, que você diga. Essaautorização ou ordem vem, portanto, daquele com quem sefaz pacto, o diabo (dê-mot). Em “o Não-sei-que-diga”150

parece se manifestar o domínio sobre o saber dizer, sabercomo dizer, saber o que dizer. Esse domínio, naturalmente,seria aquele exercido e outorgado por Mefistófoles.

Seja como for, após os eventos ocorridos nas “VeredasMortas”, “urutu branco” assume o lugar de “Tatarana”, aqueleque tem a pontaria certeira, que nunca erra o alvo: aqueleque emprega a palavra tal como ela é consagrada pelos usose costumes? Tal é o que se pode ler logo na terceira páginado romance — vemos aqui, ainda uma vez, protocolos deleitura cerzidos ou alinhavados ao longo das veredas iniciaisdo texto —, quando Riobaldo relembra seus tempos dejuventude, seus tempos de aprendizado na arte de atirar,ressalvando que “mocidade é tarefa para mais tarde sedesmentir” (gsv 15): “Vivi puxando difícil de difícel, peixevivo no moquém: quem mói no asp’ro, não fantaseia” (gsv 3).Esse atirador dócil às regras, afeito às convenções gramaticais— docilidade e afeição simbolizadas nessa elimininação do

150 Como de praxe emGuimarães Rosa, eisaqui mais uma inusitadaexpressão lingüística. Aocorrência mais usualdesta forma expressivapoderia ser encontradaem “não sei o que eudeva fazer”, sugestivade um estado deintrospecção, de exameinterior das atitudespossíveis diante deincontornáveis adversi-dades. Contudo, encon-tramos em páginasiniciais de Jubiabá, deJorge Amado, odesignativo “Não-sei-que-diga” para o Demo;em Raquel de Queiroz,acadêmica escritoracearense, há uma ex-pressão similar àquelado demiurgo sertanejo:“não sei o que faça” (AsTrês Marias, São Paulo,Abril, 1982, p. 186).

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129 popular “difícel” em favor de sua forma ortográfica culta —, é incapaz de atingir o plano da fantasia, “ele não fantaseia”,afirma Riobaldo — condição sine qua non para moldagemda literaridade de uma obra. Nessa sua fase da juventude,fase de aprendizado, Riobaldo sente-se como “um peixe vivosobre a grelha (no moquém)”, ou seja, um peixe fora de seuhabitat natural, a água, um peixe destinado ao consumoimediato (e definitivo). Seja como for, o pacto (e amaturidade carreada pelos anos de prática na arte dajagunçagem) trará a Riobaldo a iluminação (lembremos:lux+fero, “aquele que porta a luz”), a capacidade de outrar-se151 nos domínios da fantasia, e as idéias passam a chegar-lhe por si mesmas:

“E, o que eu fazia, era que eu pensava sem querer, o pensar

de novidades. Tudo agora reluzia com clareza, ocupando

minhas idéias, e de tantas coisas passadas diversas eu inventava

lembrança, de fatos esquecidos em muito remoto, neles eu

topava outra razão; sem que fosse por minha própria vontade.

Até eu não puxava por isso, e pensava o qual, assim mesmo,

quase sem esbarrar, o tempo todo” (gsv 373).Entretanto, as idéias sozinhas, isoladas, as fantasias sem

tessitura alfabética ou textual, não saberiam por si própriascriar um bom contador de histórias: é também preciso possuiro dom do verbo. Esse dom, logo após o pacto, parece atingir,de maneira fulminante, o jagunço Riobaldo, e seus próximosterminam por se dar conta dessa mudança:

“— ‘Uai, tão falante, Tatarana? Quem te veja...’ — me

perguntaram; o Alaripe me perguntou.

(...) Assim a eles eu disse. Tanto enquanto riam,

apreciando me ouvir, eu contei a estória de um rapaz

enlouquecido devagar (...). Mais me acudiam dessas fantasias”

(gsv 374).Após o pacto para vencer Hermógenes, como vemos,

Riobaldo passa ao plano das “fantasias” profusas, e K.H.Rosenfield observa que “o que distingue a fala de Riobaldoagora é sua presença de espírito, a resposta imediata quecombina instantaneamente analogias de imagens e sons, sempreocupação com a convivência lógica do dito; ‘eu meespiritava só para arrelias e inconveniências’ (gsv 376) – dizRiobaldo desta sua disposição à paródia.”152 Em outras

151 Lembraremos deFernando Pessoa e suacapacidade de “outrar-se” na adoção deheterônimos. Pensare-mos igualmente naprofusão de persona-gens chamados João emGrande Sertão: Veredas:João Nonato; Concliz;Bugre; Vereda; Goanhá;Brandão; Vaqueiro;Duque; Frio; Tatu;Curiol; Salústio João;Sicrano João; JoãozinhoBem-Bem; Seo Joãozi-nho; Jõe Bexiguento;Jõe Engrácio; eventual-mente Joé Cazuzo etodos os José. Joca é oapelido usual de JoãoCarlos, e teríamos aindaas localidades de SãoJoão Branco, São Joãodas Altas, São JoãoLeão. Vale notar que, nahora da decisiva batalhacontra o signo arbitrário,somente João Concliz échamado (gsv 489);ora, “concliz” é pássaroapreciado exatamentepor seu canto. E JoãoConcliz é jagunço quevai “dobrando umassovio comprido semfim” (gsv 489), execu-ta o duplo de umamúsica infinita (¥).Conforme observouJúlia C.F. Santos, já em“Cara de Bronze”, onarrador explicita a suacapacidade de assumiroutros nomes e, portan-to, de tornar-se outrospersonagens: “nestaestória, eu também mechamarei José”. Cf JúliaC.F. Santos, Nomes dosPersonagens emGuimarães Rosa, p. 36.152 Kathrin HolzermayrROSENFIELD, Gran-de Sertão: Veredas.Roteiro de leitura,p. 69.

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130 palavras, em função do poder sobre o Verbo concedido peloDê-mot, em função dos “dez contos” obtidos de Dá-vidão,o Urutu não mais “mói no asp’ro”, conforme a enigmáticaexpressão cunhada por G. Rosa, pois doravante “fantaseia”sob influência de uma iluminação súbita. Dessa luz, K.H.Rosenfield escreve ainda: “por ironia, o pacto que levouRiobaldo a chamar por Satanás (figura da morte) terminasendo um pacto com Lúcifer, com a luz e a vida.”153

Entretanto, é fácil observar que uma certa recusa em definir,de maneira peremptória, a efetividade do pacto atravessaincólume as páginas do romance, e tal recusa parece refletircom muita propriedade a dualidade das idéias do autor,dividido entre duas concepções da gênese literária: a primeiratranscendente, divina ou metafísica, e a segunda material ousimplesmente mnemônica, puramente humana eantropocêntrica, com tudo aquilo que poderia ser implicadoem termos de imperfectibilidade. Assim, haja vista omisticismo do autor, parece-nos que, mais do que emqualquer outra parte, manifesta-se aqui a dicotomiahamletiana “ser ou não ser”, posto que “tudo é e não é” (gsv5), motivo heracliteano (e hamletiano) de forte recorrênciaem Grande Sertão: Veredas, ambivalência ontológica quedetermina as condições de realização dos projetos individuaisde existência.

Um projeto de escrita sagrada: a recriação da linguagem

Se, para Rosa, “literatura é vida”, qualquer projeto deexistência corresponderá a um projeto de escrita, como épossível entrever nos projetos do bardo Riobaldo,desdobramento simbólico do bardo Guimarães. Assim,senhor do verbo criador — domínio adquirido porintermédio do pacto —, Riobaldo empreende, com o intuitode eliminar Hermógenes, a travessia do “Liso do Sussuarão”,o “raso”, superfície escorregadia, sem profundidade (asuperfície da folha em branco, objeto de angústias para ocriador literário?); tal travessia configura-se como forma deapropriar-se daquilo que ainda não pertence a ninguém, postoque essa travessia, nenhum ser, antes de Riobaldo, havialogrado, malgrado a tentativa (naturalmente fadada aoinsucesso) de Joca Ramiro.153 Idem, Ibid., p. 67.

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131 Esta travessia é repleta de riscos, posto que se instauracomo essência do viver e “viver é muito perigoso”, nos avisaincansavelmente o jagunço. Para executá-la, novos caminhosserão necessários, “caminho de gado”, dirá Riobaldo, umdaqueles caminhos pelos quais assim que o primeiro passa,outros tantos seguem bovinamente: “Travessia — do sertão— a toda travessia. (...) E fomos. Terras muito deserdadas,desdoadas de donos, avermelhadas campinas. Lá tinha umcaminho novo. Caminho de gado. Arte que eu achei o meuprojeto” (gsv 443). Através dessa interjeição (arte! — nolugar de arre?), de cuja ocorrência em território brasileironão temos registro, Riobaldo-Guimarães deixa entrever queo projeto de travessia do Liso, “travessia — do sertão — atoda travessia” (gsv 443), instaura-se como seu projetoartístico: é preciso vencer a aridez da literatura, revitalizá-la154 .

Com efeito, a ocorrência canônica “arre”, que tanto servepara expressar cólera ou fastio quanto para incitar animais àmarcha, é de grande freqüência na região sertaneja. Em seusescritos, Guimarães faz uso reiterado da interjeição em suaforma convencional. Assim o vimos, por exemplo, em trechocitado de Ave, palavra, ou já nas primeiras páginas de GrandeSertão: Veredas (p. 3, 4, 6, 10...), forma de alertar quantoao significado a ser conferido à moldagem posterior dainterjeição “arte!”, empregada no plano do enunciado, noplano do combate mortal travado entre Urutu e Hermógenes,noções já analisadas no presente estudo. Nesse sentido, valerelembrar que a interjeição “arre” ocorre apenas 24 vezes aolongo do romance, enquanto a palavra “arte” ocorre nadamenos de 65 vezes, aí incluídas certas variações como“arteirices” ou “artifícios”. E poucas não serão as noçõespertencentes ao campo semântico das artes, como vimos naprimeira parte deste trabalho, que fazem freqüentes irrupçõesna superfície do texto.

Vale notar que, nesse meta-romance, até mesmo asescolhas onomásticas trazem em si elementos sugestivosquanto ao papel da arte na narrativa deste romance: bastapensar no jagunço Suzarte, ao lado do qual Riobaldo combatena crucial batalha do Tamanduá-tão. Suzarte é um jagunçorastreador que, em companhia de Tipote e João Goanhá,decifra os signos espalhados pelas veredas sertanejas:

“E bastantes outras coisas eles decifravam assim, vendo

154 Em carta datada de11.V.1947, Rosa alude àaridez da literatura deseu tempo, e o início datravessia no sentido deuma mudança literária:“Toda arte, dagora pordiante, terá de ser, maise mais, construçãoliterária. Já entramosnos tempos novos, jáestamos reabilitando aarte, depois do longo einfeliz período derelaxamento, de avaca-lhação da língua, dedesprestígio do estilo,de primitivismo fácil ede mau-gosto. Se vocêler o que têm escrito osnossos melhores críticos(Antônio Cândido,Álvaro Lins, LauroEscorel, Almeida Sales,etc.), nos últimos 5anos, poderá sentir a‘virada’, a mudança dedireção na literatura demelhor classe.” VicenteGUIMARÃES, João-zito. Infância de JoãoGuimarães Rosa, p. 132.

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132 espiado o que de graça no geral não se vê. Capaz de

divulgarem até os usos e costumes das criaturas ausentes,

dizer ao senhor se aquele seô Habão era magro ou gordo, seria

forreta ou mão-aberta, canalha inteirado ou razoável homem-

de-bem. Porque, dos centos milhares de assuntos certos que

parecem mágica de rastreador, só com o Tipote e o Suzarte o

senhor podia rechear livro. E ainda antes do meio-dia subir,

desemalocaram duas gordas novilhas, carneadas fartas para a

nossa refeição. Um bom entendedor, num bando, faz muita

necessidade.” (gsv 351)Entre os elementos rastreados pelos jagunços, os

“assuntos” ou temas decodificados ou “decifrados” por esses“bons entendedores” bastariam para encher um livro, afirmao narrador. Esses rastreadores exercerão papel fundamentalna travessia do Liso e na eliminação de Hermógenes. Elesacompanham Riobaldo em seu projeto artístico, buscando,por conseqüente, assuntos para preenchimento do livro —o projeto de escrita — ao término do qual Hermógenes nãomais terá espaço entre os sertanejos. O “bom entendedor”,diz Riobaldo, busca “divulgar”, tornar conhecida, a existência(“usos e costumes”) de personagens (“criaturas”) ausentes,ou presentes nas entrelinhas ou em camadas palimpsésticasdo texto. O “bom entendedor” poderá “desemalocar”, tirardo esconderijo-enigma, “gordas novilhas”, reses ou cabeçasde vaca excelentes para alimentação, cabeças de vaca que,como o leitor pôde verificar, remetem à própria letra “A” eao conjunto do alfabeto, remetem às letras, gordas Letrasou Altas Literaturas.

Estando aqui estabelecida a dimensão de projeto literárioencontradiça no projeto de travessia do Liso155 , analisaremos,em capítulos posteriores, a função de certas escolhasonomásticas e toponímicas dentro de uma provávelmetanarrativa que se oferece como construção en abyme deGrande Sertão: Veredas. Para tanto, seguiremos as indicaçõesdo narrador segundo as quais é necessário “ver espiado”,analisar as minudências, para encontrar, com muito trabalho,aquilo que “de graça”, sem esforço, “não se vê”, não édecodificável. Não por acaso Guimarães Rosa lança um alertaquanto à decodificação dos topônimos espalhados ao longode seu romance; sob forma de queixume, Riobaldo afirma

155 J.C. Garbuglioobserva a importânciado verbo na travessia doLiso do Sussuarão: “Naverdade, a palavra,veículo de transposiçãopara alcançar a outramargem, se converte elaprópria em objeto.” JoséCarlos GARBUGLIO,O mundo movente deGuimarães Rosa, p. 92.

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133 que as localidades do Sertão tornam-se irreconhecíveis emfunção das constantes mudanças de denominação que aíocorrem: “Todos os nomes eles vão alterando. É em senhas”(gsv 32). Ora, as alterações ocorrem em “senhas”, emcódigos que necessitam que o intérprete os decifre, indica oautor. As “senhas” se apresentam de forma passiva, não sealteram por si próprias e refletem, por esse viés, o aspectovoluntário de uma mudança operada por logotetas-regentes;as mudanças de nome regem-se, nesse caso, pela força davolição em torno de um ato de nomear significativamente.O leitor, mais uma vez, é chamado a completar as obscurase enigmáticas proposições de Guimarães Rosa no sentidode, individualmente, construir significados para o projetode construção global e coletiva do universo da literatura.

Liso do Sussuarão: o escorregadio signo arbitrário

Segundo a perspectiva de execução de um provávelprojeto de escrita literária, o “Liso do Sussuarão” abreigualmente uma importante possibilidade de leitura:“sussuarão” representa a forma apocopada e transposta parao gênero masculino de “suçuarana”, mamífero de coloraçãoamarelo-avermelhada da família dos felídeos, tambémconhecido como jaguaruna, onça-parda, puma ou onça-vermelha, e cujo nome científico é Felis Concolor. A palavra“suçuarana” é de origem tupi e significa, naquele idioma,“semelhante ao veado”; aqui o leitor terá certamentelembrado de “Sagarana”, “semelhante à saga”; da mesmaforma, o leitor se lembrará do desenho de um felídeo que,na ilustração final de Poty, percorre um espaço desértico edesprovido das mínimas condições de existência. Atransformação, por apócope, de “ana” em “ã” traz à luz, novae renovadamente, esse sufixo arcaico, num processo de forterecorrência na obra do autor mineiro, feito que é sublinhadocom pertinência por Mary-Lou Daniel156 . Essa constanteestilística é também observada por Cavalcanti Proença,Oswaldino Marques e Ney Leandro de Castro que, a partirde sua análise da “forma anasalada e apocopada”157 “abreviã”,sublinha que

“Oswaldino Marques enquadra os vocábulos dessa forma

num ‘grupo de substantivos adjetivados, de emprego

156 Mary Lou DANIEL,João Guimarães Rosa.Travessia Literária,p. 47-48.157 Nei Leandro deCASTRO, Universo eVocabulário do GrandeSertão, p. 46.

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134 obrigatório no gênero feminino, de vez que a hipotética forma

masculina reconduziria ao substantivo originário’. E acrescenta:

‘Tais adjetivos, que parecem ser de especial predileção de João

Guimarães Rosa, se caracterizam por seu extraordinário

ineditismo e intenso poder lírico, todos terminados pela sonora

voz nasal ã’.”158

Assim, durante a Batalha do Tamanduá-tão, Riobaldoafirma que seu objetivo é o de “castigar onça assassinã”(gsv 519), possível indicação no sentido de orientar a leiturade “onça suçuarana” como “onça suçuarã”. Entretanto, oespaço topográfico atravessado pelos jagunços tem comonome “Liso do Sussuarão”, e não “da Sussuarã”. A passagemde “ã” a “ão”, por paragoge, cumpriria, em princípio, umafunção meramente eufônica, pois “liso do sussuarão” soariamelhor que “liso da sussuarã”; ou, ainda, a função de agregarao toponímico uma sonoridade de sugestiva aparênciainquietante, algo ameaçadora, processo de nasalização aliásde todo corriqueiro em Grande Sertão: Veredas. Para FrancisUtéza, essa paragoge não seria apenas uma ocorrênciaincidental, mas uma sugestão de “forças masculinasexacerbadas”159 ; assim, o crítico afirma que “Sussuarão soacomo aumentativo masculino do nome do jaguar em tupi,sussuarana (...)”160 , grafando o nome do felino tal qualGuimarães o faz em seu romance. Eventualmente, essaparagoge poderia sugerir ao leitor, por intermédio desonoridades que rimam, a necessidade de estabelecer umasolução de continuidade entre elementos chaves do texto:Davidão, Grande Sertão, Paredão, Tamanduá-tão, Sussuarão,Ricardão e, talvez, o travessão que inaugura o texto. Se trêspontos no espaço determinam um plano, teríamos aqui umnúmero mais do que suficiente para determinar um plano(ou camada palimpséstica) de leitura. É possível que, já aoinício do romance, Guimarães indique a necessidade deproceder à junção destes termos terminados em “ão”, paraefeito de interpretação do texto, ao lançar o lapidar “vem opão, vem a mão, vem o são, vem o cão” (gsv 5).

Isso posto, vale notar que a grafia canônica para o nomedo felino sertanejo solicita o emprego de “ç”, no momentoem que Guimarães Rosa toma a liberdade de grafar a alusãoao telúrico animal com o emprego de “ss”, em nítido (e

158 Idem, Ibid.159 Francis UTÉZA,Metafísica do GrandeSertão, p. 86.160 Idem, Ibid.

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135 inócuo?) descaso às regras ortográficas. Assim, os jagunços,sob ordens de Medeiro Vaz, pescam na “Lagoa Sussuarana”,segundo a edição de 1972161 . Ora, a edição do romancedatada de 1988 traz “Lagoa Suçuarana” (gsv 43), varianteposteriormente “corrigida” pelo zelo de algum (ir-)responsável pela revisão. Da mesma forma, o “suassuapara”da 8ª edição torna-se “suaçuapara” na 26ª edição162 . Todavia,o lúcido Antônio Cândido sublinha a existência de uma certa“lagoa Sussuarana, que os mapas registram”163 , topônimografado com “ss”, segundo o renomado crítico. Essa lagoaestaria situada no estado da Bahia, mas Antônio Cândido seabstém de fornecer detalhes de localização que permitissema verificação, em mapas ou guias geográficos, da grafia corretado topônimo.

No sentido oposto, pesquisas realizadas junto ao InstitutoBrasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) podem conduziro leitor a um também acidente hidrográfico com o nome de“Córrego Suçuarana”164 , grafado com “ç”, situado emAlcobaça, município localizado no extremo sul da Bahia elimítrofe com o estado de Minas Gerais, portantoespacialmente mais próximo à região em que, pretensamente,transcorrem as aventuras de Riobaldo.

Em que pese a pouca pertinência, para nosso trabalho,de exatidões cartográficas165 , vale lembrar, no planoortográfico, que o “Cadastro Pluviométrico da Paraíba”166

indica um posto de medidas também chamado “Suçuarana”,no município de Tanhaçu, com precisas coordenadasgeográficas (14º9’ - 41º13’) que remetem ao estado da Bahia,assim como um outro denominado “Sussuarana”, no interiorda “Fazenda São João do Piauí” (8º37’ - 41º49’), cuja grafiaacreditamos relevar do arbitrário do proprietário da fazendaou do digitador que tabulou os dados. Talvez seja também ocaso da localidade registrada pelo Departamento de Estradasde Rodagem da Bahia, cujas obras concluídas no período1995/96 prestam conta de um trecho rodoviário de umaextensão de 49 Km entre Sussuarana e Contendas, narodovia federal BR407167 . Uma consulta ao Guia QuatroRodas permite ver, nessa rodovia, a cidade ou vilarejo deSuçuarana, a uma distância de aproximadamente 160 Kmde Minas Gerais, distância de pouca monta para as dimensõesdo território brasileiro, e próximo a Contendas do Sincorá,Brumado e Vitória da Conquista168 . A título de curiosidade

161 8ª edição, Rio deJaneiro, José Olympio,1972, p. 45.162 Respectivamente,páginas 136 e 152. Àspáginas 26, 27, 34 da26ª edição, novamente“Sussuarão” vem “cor-rigido”: Liso do Suçua-rão, quando às páginas30 e 31 da 8ª ediçãotem-se Sussuarão. No-te-se que, na 26ª edição,“Sussuarão” virá assimgrafado apenas emquatro ocasiões, en-quanto a forma “corrigi-da” “Suçuarão” ou “Su-çuarana” aparecerá onzevezes.163 Antônio CÂNDI-DO, Tese e antítese,p. 126. Francis Utézatambém alude a estalagoa, com esta mesmagrafia. Op. Cit., p. 86.164 Jurandyr PiresFERREIRA (dir.), Enci-clopédia dos MunicípiosBrasileiros, vol. XX,Rio de Janeiro, IBGE,1958, p. 26. Essa obraé anterior à reformaortográfica que preconi-za o emprego de “ç”para termos de origemindígena.165 J.C. Garbuglio subli-nha a pouca pertinênciade precisões histórico-geográficas para a com-preensão do significadotextual do Liso do Sus-suarão, pois trata-seaqui de um “processode redimensionamentoda realidade”: “Suaexistência geográfica,nos mapas do sertão,quando muito podeconduzir ao conhe-cimento duma regiãoárida, semidesértica,onde a sobrevivência setorna difícil e até

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136 e face ao poder sugestivo desses topônimos em relação àtrama de nosso romance, vale registrar a proximidadegeográfica das localidades denominadas Veredinhas eEncruzilhada. Estaríamos quase imersos no espaço definidopelas erranças de Riobaldo.

No que concerne às variantes do termo zoológico,Walnice Nogueira Galvão, grande especialista do romanceem tela, registra a forma “suassurana”169 , provavelmente apartir do próprio texto do romance, em cujas páginas ocorre,por três vezes, a forma “suassu-apara” — que designa o “veadocurvo” —, e suassu-puçu, com uma só aparição no texto.Guimarães Rosa registra, em seu romance, suassu-puçu comoespécimen macho da suassu-apara170 (gsv 469). Em suaanálise de “Meu tio o Iauaretê”, Walnice N. Galvão escreve:

“Então, jaguaretê, a onça verdadeira, a onça legítima,

é tanto a pinima (pintada = pinima, em tupi), como a pixuna,

a canguçu, o tigre, a onça e o jaguar. Resta a questão da

maçaroca e da suaçurana, que não pertencem ao parentesco

do narrador: ‘Mas suassurana não é meu parente, parente meu

é a onça-preta e a pintada...’. Essa afirmação implica dois

elementos: primeiro, a distinção de exclusão; segundo,

suaçurana é -rana, não é -etê, ou seja, parece onça mas não é

a onça legítima e verdadeira, que todas as outras são.

Acrescente-se a informação do texto de que a suaçurana é

medrosa, até abandona os filhotes na fuga. Novo recurso a

Von Ihering esclarece: a sussuarana, que é como ele grafa a

palavra, assim como Guimarães Rosa grafa cangussu em vez

de canguçu, também é da família dos felídeos, mas de espécie

diferente, Felis concolor, onça-parda ou onça-vermelha. O

nome que lhe dão norte-americanos e europeus é puma; os

caçadores distinguem variedades como a de lombo preto e a

ruiva, bem como a maçaroca (pêlo crespo, em tupi).”171

Malgrado as variantes encontradas no texto transcritoacima, os dicionários Aurélio e Caldas Aulete registram apenasa ocorrência de suaçu, suaçuapara, suaçuetê, suaçupita,suaçupuçu, suaçutinga e suaçuarana, todos derivados do tupisuasu. Suaçurana, suassurana ou sussuarana não sãoregistrados. Vale, portanto, segundo os dicionários, a grafia

169 Walnice NogueiraGALVÃO, MitológicaRosiana, p. 20.170 Em seu glossário,Castro registra, igual-mente, “suassuapara”, apartir da grafia propostapor Guimarães Rosa.Nei Leandro de CAS-TRO, Universo e Voca-bulário do GrandeSertão, p. 179.171 Walnice NogueiraGALVÃO, Op. Cit., p.20.

mesmo impossível,onde a falta de água nãopermite ou dificulta avida, onde o homem sesente esmagado eimponente diante daforça do meio.” JoséCarlos GARBUGLIO,O mundo movente deGuimarães Rosa, p. 96.166 Cadastro Pluvio-métrico da Paraíba, JoãoPessoa, UniversidadeFederal da Paraíba, empágina da internet(dca.ufpb.br) consul-tada em 07 de maio de1998.167 Em sua home-pagecujo endereço éwww.cprm.gov.br/sureg.sa/pagesusa.html,em 07/05/98.168 Nicolino SPINA(dir.), Guia QuatroRodas Brasil 97, mapa,São Paulo, Abril, 1997.

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137 “suçuarana”. Assim, lícito seria dizer que qualquer grafiaalusiva ao felídeo solicitaria o emprego do “ç”, malgrado umacerta liberdade que se permitem determinados organismosou repartições públicas, fato que pode induzir em erro atémesmo pesquisadores do porte de Antônio Cândido eWalnice Nogueira Galvão, responsável pela edição crítica deGrande Sertão: Veredas na coleção Archives, da UNESCO.Entretanto, com vistas ao presente estudo, registremos aimportante noção proposta por essa pesquisadora segundo aqual “suaçurana é -rana, não é -etê, ou seja, parece onça masnão é a onça legítima e verdadeira.” Haverá, portanto, aqui,mais um desdobramento de elementos simbólicos do texto,mais uma tranposição de significação conduzindo àquelas“formas do falso” (gsv 318) que deram título a umimportante ensaio de W.N. Galvão. Essa “onça suçuarana-sussuarão” não é verdadeira, não representa nenhuma onça,mas sim outro conceito qualquer que é preciso buscar noconjunto do texto.

Por conseqüência, o leitor poderá dizer que GuimarãesRosa, profundo conhecedor de localidades sertanejas e demúltiplos idiomas — entre os quais aquele que se encontraà origem do termo “suçuarana” —, além de fino e minuciosoanotador de termos de todos acabites e seus respectivossignificados, não poderia estar equivocado quanto àqueladenominação múltiplas vezes repetida em seu romance,quanto à configuração — no simples e inaugural gesto denomear — de um espaço chave no desenvolvimento danarrativa, no percurso que leva o bardo Crótalo-Crátilo aeliminar o silente Hermógenes.

O leitor encontrará aqui, por conseguinte, outro daqueleslogogrifos ou enigmas cuja chave estará nas letras impressasao longo das páginas: outra daquelas “formas do falso” queimplicam a necessidade de buscar o verdadeiro ocultado comzelo sob algum falso aspecto indicado pela forma. Pode-selembrar, com J.C. Garbuglio, da existência de sentidossubjacentes à palavra no episódio em que, diante deJazevedão, Riobaldo “lê o codificado, mas suspeita daexistência do cifrado, o que está impresso no signo e o querepousa em estado de latência, como peculiaridade,disfarçada, do emissor, numa palavra dupla, mas facilmentedecifrável pelo outro, pelo destinatário: as autoridadespoliciais.”172 Ora, se a autoridade policial é quem verifica os

172 José CarlosGARBUGLIO, Omundo movente de Gui-marães Rosa, p. 125.Wilson Martins teráigualmente a ocasião decomentar a “sucessivadecifração de enigmasem que Grande Sertãoafinal se resolve.”Wilson Martins, “Gui-marães Rosa em sala deaula”, in Mary LouDANIEL, João Guima-rães Rosa. TravessiaLiterária, p . XXIV.M.C. Proença comentao emprego rosiano deassociações morfo-semânticas, dando co-mo exemplo um virtualapaziguador que, emG.R., se chamaria Ân-gelo Natalino, Olivério,Colombo ou Agnelo,por contigüidade se-mântica: “O mais im-portante é acentuar queo prosseguir na marchanos levaria ao herméticoe ao lúdico. O hermé-tico, aliás, participa dolúdico, pelo desejo depropor adivinhações decriar dificuldades aquem lê. Não seráhermético e lúdico,simultaneamente, nosprimeiros degraus daescala, a língua dolimpim-guapá?” ManoelCavalcanti PROENÇA,Trilhas do GrandeSertão, p. 71.

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138 indícios e as pistas para decifrar o enigma oculto, para lançarum olhar de detetive sobre nosso enigma poético-metalingüístico, poderíamos assim estruturar os indícioscontidos na significativa transposição gráfica que transmutaa essência da suçuarana:

SUÇUARANA > SUÇUARÃ > SUÇUARÃO > SUSSUARÃO

O leitor terá, nesse instante, observado a nítidaparonomásia que pode haver entre “Liso do Sussuarão” e “Lisodo Saussure”, termo cifrado sob a forma efetivamente impressano texto.

Essa relação paronomástica, de base inicialmente sonora,é reforçada pela necessária semelhança gráfica operadavoluntariamente pelo romancista, a partir da substituição de“ç” por “ss”, posto que a simples relação homofônica deixariamenor margem a uma interpretação pertinente. Da mesmaforma, a transposição de gêneros justifica, doravante, o “lisodo sussuarão”, pois o artigo definido feminino inviabilizaria outornaria dificultosa uma qualquer aproximação do texto como nome do lingüista suíço. É igualmente essa transposição quepermite a criação de vínculos textuais entre Sussuarão, Sertão,Davidão, Paredão e Tamanduá-tão, estabelecendo-se assim oplano de leitura ao qual aludimos anteriormente e no qual seinsere o presente processo de decodificação do enigma literário.

Em tal perspectiva, o “Liso do Sussuarão” equivalerá, sobtessitura paronomástica, ao “Liso do Saussure”, sintagma querepresentaria a propriedade escorregadia do signo arbitráriopara a justa expressão das idéias, para a eficaz moldagem dosdevaneios literários, para a exata representação do ser. EsseLiso do Saussure é o espaço “não-onde” (gsv 448), é o espaçodo não-ser, e essa definição corresponderia à concepção rosianasegundo a qual “o material lingüístico existente e comum aindabasta para folhetos de propaganda e discursos políticos, masnão para a poesia, nem para pronunciar verdades humanas”173 ,pois “a língua é o espelho da existência, mas também daalma.”174 Uma língua incompleta, como a de Hermógenes-Saussure, construída sobre a premissa do signo arbitrário, nãosaberia pronunciar verdades correspondentes ao Ser tomadoem toda sua completude, ao poético “Ser-Tau”, “Ser-Tão-Grande” que reflete o “Ser Humano”.

173 Cf. GünterLORENZ, “Diálogocom Guimarães Rosa”,in Coutinho Eduardo F.Guimarães Rosa, 1983,p. 89.174 Idem, Ibid., p. 88.

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139 O leitor poderia objetar que nada prova que GuimarãesRosa tenha lido Saussure. Ora, bastará observar que nabiblioteca de Guimarães Rosa, hoje pertencente ao acervo doInstituto de Estudos Brasileiros da Universidade do Estadode São Paulo, encontra-se, entre uma miríade de títulosheteróclitos, o Cours de Linguistique Générale de Ferdinandde Saussure, em uma edição de 1949 — portanto anterior aoGrande Sertão: Veredas — publicada em Paris aos cuidadosda Payot.175 Dessa forma, também Francis Utéza, ainda quesob outra perspectiva, enxerga no espaço do Liso uma forteinadequação entre a palavra e a coisa:

“Nenhum termo preciso serve a esse espaço deliqüescente

– aquela coisa; toda tentativa de definição passa pela negativa

no grau supremo: taperão, aumentativo de tapera, que designa

em tupi uma aglomeração de ruínas; fofo ocado: informe, mole,

vão e, ainda mais, árido; arrevesso: ao inverso, retomado.

Domínio oco da loucura, o Liso não tem horizonte que lhe fixe

o limite.”176

Sob essa vertente, posto que a teoria saussuriana exclui apossibilidade da motivação do signo a partir da estrutura sonorada palavra, o Liso do Sussuarão refletirá a inadequação à falacaracterística de Hermógenes e se portará como veículo daausência de sons: “Só saiba: o Liso do Suçuarão (sic) concebiasilêncio, e produzia uma maldade — feito pessoa!”177 (gsv 39-40). Esse Liso, local onde Riobaldo tem “rompência de gritar”(gsv 40), é, na realidade, a representação simbólica de umapessoa, nos diz o narrador nessa passagem, como se aindahouvesse dúvidas quanto à figura de Saussure refletida naimagem deste espaço. Essa pessoa é aquela que Riobaldo desejaeliminar das trilhas sertanejas: “surgidamente, aí, principiouum desejo que tive — que era o de destruir alguém, a certapessoa” (gsv 146), “livrar o mundo do Hermógenes”(gsv 478), epônimo de Saussure. Assim, a “rompência degritar” experimentada pelo jagunço ao tentar atravessar o Lisopoderá indicar a necessidade de eliminar Hermógenes com opoder de seus gritos178 , como nos sugere o próprio narradorquando afirma: “eu ia erguer mão e gritar um grito mandante— e o Hermógenes retombava” (gsv 478). Assim, assaz fácilé perceber que a morte do signo arbitrário encontra-se nadimensão da sonoridade significante, do signo motivado.

Portanto, para a travessia do Liso, da superfície escorradia

175 Conforme relaçãodos livros dessa biblio-teca particular, publi-cada por Suzi FranklSperber em seu Caos eCosmos: leituras deGuimarães Rosa,p. 195.176 Francis UTÉZA,Metafísica do GrandeSertão, p. 85.177 Novamente o revisorda Editora NovaFronteira se permite acorreção do textooriginal de GuimarãesRosa. À página 41 da 8ªedição temos “Sussua-rão”. Somente à página444 da 26ª ediçãoteremos, enfim, a grafiaoriginal do romancistasertanejo.178 “Grito” e osderivados de “gritar”ocorrem nada menos de136 vezes ao longo dotexto, e essas noçõesestão quase sempreassociadas aos proce-dimentos de guerra e aoato de matar.

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140 da palavra saussuriana, somente um Urutu-Crátilo, em posseda palavra plena e possuído pela inspiração, lograria sucesso.Feito o pacto com o “dê-mot” e armado com a ferramenta dosigno motivado, o bardo Urutu, para sua vitória sobre o Liso,encontra “tudo de bom socorro, em az. A uns lugaresestranhos.” (gsv 448). O bom socorro, é fácil notar, encontra-se no espaço definido entre “a” e “z”, na dimensão das letrasdo alfabeto, diz Riobaldo: das letras vem a arma contra o signoarbitrário. Entretanto, o “a”, para o sucesso desta travessia,torna-se ou reflete “lugares estranhos”, tal como poderíamosver ao “pôr ponto” nessa frase gramaticalmente... estranha,seguindo as reiteradas indicações do narrador a seuinterlocutor179 : “A: uns lugares estranhos.” O “estranho” é oinesperado, o inusitado, o inédito. Por conseqüente, o “a”encontradiço em lugares estranhos, durante essa travessia, seriao “a” — ou as letras de “a” a “z” —, combinadas em palavrasinéditas, numa língua “pessoal, produto do próprio autor” 180 ,segundo seria possível ver até mesmo em declarações doromancista em torno da insuficiência expressiva da língua.

Assim, como bem observou K.H. Rosenfield, “são asinvenções constantes de Urutu Branco que modificam edistorcem a guerra jagunça tradicional, abrindo perspectivasvitais — por exemplo, o nascimento de um novo Riobaldo, ametamorfose do Liso Sussuarão numa terra que oferece tudoo que é preciso à sobrevivência e o encontro com Hortênsia eMaria da Luz (...)”181 ; são portanto as inovações de Crótalo-Crátilo que conduzem ao alimento (Hortênsia, de horta) e àiluminação (Maria dá luz), sem esquecermos que Riobaldobuscou um pacto precisamente com... Lúcifer, aquele que portaa luz. Assim, em Sussuarão, por relação antitética, teríamosrepresentado, por intermédio dos enigmas rosianos, o signomotivado que dará origem à justa expressão do Universo. Asleituras “regionalizantes” do romance conservam, no percursodo Liso do Sussuarão, somente um certo aspecto quepoderíamos talvez chamar de “anedótico”, posto que essasleituras tendem tão somente a representar detalhes, ouaspectos secundários, sem generalização e sem nenhum alcancede maior profundidade. Nesse sentido, vale retomar LeonardoArroyo quando ele afirma, a partir da leitura de um ensaio dePilar Gómez Bedate em torno de traduções do romance, quetambém “os tradutores não compreenderam a transcedênciado pensamento de João Guimarães Rosa em relação à

179 “Eu conto; o senhorme ponha ponto”(gsv 468).180 Cf. Günter LO-RENZ. Op. Cit., p. 89.

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141 língua.”182 O texto rosiano fenece aqui por lhe estancarem,em seu caule lingüístico, o fluxo da seiva revitalizadora.

Vale lembrar que, já à página 9, Riobaldo afirma queHermógenes — para Genette, lembremos, “o herói epônimoda tradição que tem sua foz em Saussure” —, “foi que nasceuformado tigre”, felino inexistente no Sertão; Hermógenes étambém apontado como a “onça assassinã-sussuarã” (gsv 574)que cumpre eliminar. Essa onça-Hermógenes poderá serinterpretada como transposição ou desdobramento, natessitura ou cerzidura do malha romanesca significante, daqueleemblemático par “suçuarana-sussuarão” que é precisoatravessar, romper de lado a lado como um hímen virginal,para chegar a uma nova linguagem, a uma nova poesia: “amoça virgem de Siruiz” (gsv 101)183 . Com efeito, a imagemou a canção de Siruiz parecem orientar as buscas deRiobaldo184 . Entretanto, o narrador faz uma revelaçãosimbólica: “O que eu queria saber não era próprio do Siruiz,mas da moça virgem, moça branca, perguntada, e dos pés-de-verso como eu nunca tive poder de formar um igual”(gsv 152). Essa procurada “moça virgem” é “branca” como afolha virgem de papel à espera de que uma poesia nova seja aídepositada. Riobaldo indica buscar a “moça Virgem” emmesmo tempo que os “pés-de-verso” nunca antes formados— forma virgem, ainda não explorada, de poesia —. A poesiavirgem e a moça virgem parecem se corresponder. Nessesentido, pensemos em Hermógenes-onça atravessado pelafolha de uma faca — arma branca como o papel que tambémvem em folhas —, e veríamos esse ato de defloração levado aefeito sobre sussuarana-Saussure, onça-pessoa — que “produzmaldade” (gsv 40) — rompida pela escrita inaugural sobre opapel branco, moça virgem branca, forma de uma nova poesia.

Estaríamos aqui diante de super-interpretação? Ou diantedaqueles “assuntos certos que parecem mágica de rastreador”(gsv 351) dos quais fala Riobaldo? Guimarães Rosa pareceindicar, por intermédio de seu narrador, que muitas possíveisinterpretações de sua obra — “assuntos certos”, corretos,observações acertadas por força de se rastrear a palavra comocão-mestre185 — terão o aspecto de “mágicas” ou trabalhode ilusionistas para o “crítico despreparado”186 ao qual oromancista faz alusão em entrevista a Günter Lorentz.

Não por acaso, as imagens utilizadas pelo narrador pararepresentar a travessia daquele espaço raso, liso como uma

181 Kathrin HolzermayrROSENFIELD, Osdescaminhos do demo.Tradição et ruptura emGrande Sertão. Vere-das, p. 216.182 Leonardo ARROYO,A Cultura popular emGrande Sertão: Vere-das, p. 26.183 M.A. de Castroobserva que o percursode Riobaldo podecorresponder a umatravessia literária embusca do novo: “GrandeSertão: Veredas é opercurso da demanda dalinguagem, da poesia,moça virgem de Siruiz.E que é a virgindadesenão a totalidade depossibilidades de vida?”Manuel Antônio deCASTRO, O Homemprovisório no GrandeSer-tão, p. 80.184 Acerca do papel daCanção de Siruiz naorientação dos gestos deRiobaldo, D. ArrigucciJr. escreve: “Um poetano meio dos jagunçosentoa a balada, formamesclada da poesia quese liga à tradição daépica oral, ao mesmotempo que serve àexpressão lírica. Acanção atinge profunda-mente Riobaldo, que otransforma num ho-mem de letras; a partirdali será também umfazedor de versos. Oepisódio da Fazenda SãoGregório reúne ostermos do tópico deci-sivo no modo de ser eno destino de Riobaldo,juntando armas e letras,ao mesmo tempo quearticula esse motivoimportante na caracteri-zação do personagem ao

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142 membrana, remetem ao ato de penetração fálica que extingüea membrana virginal: “a gente suprisse de varar o Liso emboas farsas, se chegava lá sem ser esperados, arrastava aquelepessoal por dura surpresa — acabou-se com aquilo!” (gsv 27);“varava o Liso” (gsv 446); “rasgamos sertão” (gsv 448),imagem do sertão rompido como um hímen. O narrador afirmaainda sentir-se com poder, sentir-se potente para odefloramento simbólico: “o que ninguém ainda não tinha feito,a gente se sentia no poder fazer” (gsv 34). Assim, em relaçãoao momento de iniciar a travessia-defloramento do Liso, onarrador lembra-se do vaticínio de um jagunço: “E o que erapara ser. O que é pra ser — são as palavras! Ah, porque. Porquê? Juro que: pontual nos instantes de o raso se pisar, umsujeito dos companheiros, um João Bugre, me disse, ou dissea outro, do meu lado: — ‘...O Hermógenes tem pauta... Elese quis com o Capiroto...’” (gsv 37). João Bugre diz, sob formaparatática, que a travessia do Liso é dificultosa pois essa árduatarefa contraria as cerceantes pautas de Hermógenes. Assim,conforme indica João Bugre — um possível heterônimo deJoão-Riobaldo-Rosa: “buGRe”, com as iniciais de GuimarãesRosa —, atravessar o Liso equivale a vencer ou ultrapassar as“pautas” de Hermógenes, os limites aos quais se sujeita ojagunço saussuriano, suas margens de escrita.

Vale observar que, no trecho acima transcrito, “pontual”tanto pode equivaler a “em ponto” na expressão “no instanteem ponto”, no instante exato, quanto pode remeter ao ato depisar, ou adentrar o Liso, sob forma “pontual”, sob forma depontos, acompanhado de símbolos diacríticos. As letras já têmseu espaço de expressão nesse início de travessia: “Ah (A),porque (Q). Por quê (Q)? Juro que (Q).” Simples repetiçõesredundantes, gratuitas, ou meramente eufônicas? Veremosabaixo que esse ato de nomear as letras ao início da travessianão deveria ser visto como ato meramente lúdico. Do trechoacima transcrito, observamos ainda que o momento exato doinício da travessia é marcado pela questão sobre “o que erapra ser”, sobre aquilo que deveria ser, sobre a essência e amotivação daquilo que está para ser executado: a própriatravessia. Riobaldo define a questão e afirma que a essênciadessa tarefa “são as palavras”. O momento exato, “pontual”,em que a travessia-defloramento se inicia é igualmentemarcado pela fala, pela palavra sonora de João Bugre-buGRe.E, nessa perpectiva, o veículo ou instrumento da travessia-

motivo da donzelaguerreira, de largahistória na tradiçãoépica popular daPenínsula Ibérica epresente na tradiçãoliterária do regionalismobrasileiro.” Davi ARRI-GUCCI Jr., “O MundoMisturado: Romance eExperiência em Guima-rães Rosa”, in NovosEstudos: CEBRAP,p. 27.185 A necessidade de serastrear idéias como cãomestre, farejador atentoe perseverante, é anoção exposta porRiobaldo logo ao iníciodo romance (página 8),outro importante proto-colo de leitura estrate-gicamente situado deforma a orientar possí-veis interpretações dotexto.186 Ver a primeira partedeste trabalho.

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143 defloramento está assim indicado nos próprios argumentosdo narrador: “são as palavras!” Por intermédio da palavra-falo,o defloramento poderá remeter à “moça virgem de Siruiz”sonhada por Urutu-Crátilo: uma nova poesia.

Para descrever o momento exato do início desta travessiacujo instrumento é a palavra, o narrador profere uma série desentenças desprovidas de nexo lógico entre si, pelo menos àprimeira abordagem. Essas sentenças poderiam ser lidas comoos versos soltos de, por exemplo, um malarmeano “Lance deDês”. Ora, em carta datada de 4 de novembro de 1964 aHarriet de Onís, sua tradutora americana, Guimarães Rosaindica a forma de tradução a ser adotada: “O que melhor nosaproximará: traduzir como se fosse poesia, poemas, versos, enão prosa prosaica.”187 Seguindo as indicações do autor,façamos, em forma de estrofes, uma disposição — arbitrária,claro está — destas sentenças enigmáticas188 :

“O senhor vê e vê?Alguém a alto me levou, alguém, salvo a um seguinte.Águas não desmanchavam meu torrão de sal.Ah, nem eu não tive incerteza em mente.Assim fomos.Aí eu em frente adiante.A fortes braços de anjos sojigado.O digo?Os outros, a em passo em passo,usufruíam quinhão da minha andraja coragem.Rasgamos sertão.Só o real.Se passou como se passou,nem refiro que fosse difícil-ah;essa vez não podia ser!Sobrelégios?Tudo ajudou a gente, o caminho mesmo se economizava.As estrelas pareciam muito quentes.Nos nove dias, atravessamos.Todos; bem, todos, tirante um.Que conto.” (gsv 448)

Neste hipotético e virtual poema em prosa, o leitornotará, sem dificuldade, a repetição reiterada dos nomes deletras dispostos de forma subjacente em um texto

187 João GuimarãesROSA, “O Texto, umanimal bravo e vivo(fragmentos da corres-pondência com Harrietde Onís)”, in Jornal daTarde. São Paulo, 18/5/96.188 Vera Mascarenhas deCAMPOS, em seuBorges & Guimarães:Na esquina do GrandeSertão, adota a trans-posição de parágrafosem estrofes para análiseda prosa rosiana, assimjustificando-se: Esclare-ce-se que o procedi-mento estratégico dedividir trechos da prosados autores em segmen-tos sonoros paralelos, sóse justifica em face damelhor o que visualiza-ção do aspecto apon-tado. Vale para o mo-mento o que PedroXisto diz em ‘À Procurada poesia’, relativa-mente a GuimarãesRosa: ‘A ocasionalestrofação ou versifica-ção, aqui (...) não passade simples hipótese ouinstrumento de trabalhopara determinadavisualização crítica. Euma visualização con-creta da obra, semnenhuma especulativaatribuição de intençõesao Autor, nem, muitomenos, nenhuma pre-sunção (que seria, emtodo sentido, imper-tinência, de lhe rema-nejar a expressão poéti-ca’.” Vera Mascarenhasde CAMPOS, Borges &Guimarães: Na esquinado Grande Sertão,p. 125.

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144 inicialmente redundante ou desprovido de sentido: “Osenhor vê (V) e vê (V)? Alguém a (A) alto me levou, alguém,salvo a (A) um seguinte”; “Ah (A), nem eu não tive incertezaem mente”; “O (O) digo? Os (O, O, O) outros, a (A)em ( ) passo em ( ) passo”; “só o (O) real”; “se (C) passoucomo se (C) passou, nem refiro que fosse difícil-ah (A)”;“Que (Q) conto”; “sem em-errar ( ) ponto” (gsv 448).Nesse sentido, vale lembrar que Riobaldo, ao tentar esclarecera questão da inexistência do Demo (dê mot) afirma: “é oque minha alma soletra” (gsv 263). Soletrar as idéias, defini-las em termos de letras, é, portanto, a atitude preconizadapelo narrador.

Essas alusões aos nomes de letras ao longo do texto jáforam analisadas no capítulo versando sobre as construçõesexpletivas, e somente sublinharemos aqui que é um processode todo recorrente ao longo do romance. Entretanto, notrecho em tela, as alusões ocorrem de forma ostensiva esugestiva, posto que, como vimos, o narrador afima que aessência da travessia “são as palavras”, e palavras são formadaspor... letras. Nesse trecho, algumas afirmações quanto aopapel das letras durante a travessia, agora fadada ao sucessopelas luzes de Lúcifer, são perfeitamente legíveis na superfíciedo texto: Riobaldo conta o “Q”, diz o “O”; o “A” não é difícil,o “O” é real (de alto valor); não há incerteza quanto ao “A”,não há erro quanto ao “ ”.

Ainda que essas alusões não estejam sob a tessitura deum discurso linear lógico, elas podem ser vistas como os nósde uma teia de aranha189 cujos fios estão visceralmenteconectados entre si, cujos fios transmitem mensagensvibráteis ao conjunto formado por nós, fios... e aranhas.Tenhamos sempre em mente o “Lance de Dês”; nesse caso,Grande Sertão: Veredas seria romance que dispensa a leituralinear para solicitar a leitura iterativa, espiralada — como,por exemplo, o espiralado definido pelo movimento doredemoinho —. No caso em tela, a mensagem transmitidaao longo dos fios trançados e cerzidos por Riobaldo talvezfosse: esse texto é formado de letras, que formam palavras,que formam frases, que se separam por intermédio depontuação diacrítica.

Assim, como reflexo daquele “pisar pontual” visto acima— ato de adentrar o espaço saussuriano acompanhando-sede símbolos diacríticos —, o narrador afirma que a ociosa

189 Conforme análise naprimeira parte desteestudo.

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145 travessia foi efetuada “sem em-errar ponto”: a pontuaçãoque acompanha a tessitura executa-se de forma conveniente,em paralelo ao adequado emprego de letras para a criaçãodas palavras “estranhas” imprescindíveis a uma bem logradatravessia e à criação de uma nova poesia. O Liso do Sussuarão,espaço de letras e pontos a ser rompido, rasgado, deflorado,remeterá, portanto, à “Língua do Saussure”190 , espaço a serexplorado para a criação de uma nova poesia.

Logogrifos e epístolas: a “guerra literária” e a batalha doTamanduá-Tão

Do exposto acima, o “Tamanduá-tão” deveria, segundoos fortes vínculos sonoros virtualmente possíveis em suarelação com outros elementos de nossa análise, permitir aabertura de outra trilha no Grande Sertão. Esses vínculos,conforme a análise feita em “Liso do Sussuarão”, criam-seinicialmente a partir da tessitura sonora das palavras quenomeiam esses elementos, esses nós da teia-tessitura-textosignificante. Com efeito, o topônimo, muitas vezes citado,ocupa posição chave dentro do romance: já à página 16 abatalha é referida; e em múltiplas outras ocasiões, como o“Que-Diga”, o sintagma é grafado em caracteres itálicos,marca formal de um discurso inserto (e portanto incerto,dúbio, ambíguo) no hipertexto e cujo sentido deve serbuscado também alhures. Essa disposição do topônimo emcaracteres itálicos, heterogêneos ao usual no texto —sobretudo num texto que se quer, à primeira abordagem,reprodução oral, e não escrita — é insistentemente repetidaem uma mesma página (gsv 483), para que não haja dúvidasquanto à intenção do autor. Nesse sentido, Guimarães Rosaindica ainda que, determinando os limites geográficos doTamanduá-tão, “duma banda, existia um travessão (...)”(gsv 483), talvez o travessão inaugural de Grande Sertão:Veredas, forma de alertar quanto à dimensão de discursoescrito assumida pelo texto. Todavia, ao sublinhar a dimensãográfica do texto, o autor alerta também quanto à importânciaa ser dada a qualquer variação na forma impressa, índicedaquelas “formas do falso” (gsv 318) às quais já aludimos eque deram título a um pertinente ensaio de Walnice NogueiraGalvão.

190 O leitor terá notadoa relação parnomásticaexistente entre os doissintagmas:Liso do Sussuarão —Língua do Saussure

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146 As pretensas razões da guerra entre os bandos deHermógenes e de Riobaldo são falsas, afirma o jagunço:“aquilo era o crer da guerra. Por que causa? Porque JocaRamiro constava de assassinado morrido? A razão normal decoisa nenhuma não é verdadeira, não maneja” (gsv 310).Assim, a batalha decisiva do romance tem motivações outrasque uma simples busca de vingança, conforme a fácil leituraoferecida pelo próprio texto acima transcrito. Se a “razãonormal” “não é verdadeira”, qual seria a verdadeira razão detão cruenta guerra decidida nos campos do Tamanduá-tão?Dirimir a questão parece implicar a busca de respostas nofolheado narrativo. E o próprio narrador indica a necessidadede interpretação — com posterior explicação —, por partedo leitor, deste simbólico topônimo: “Campos do Tamanduá-tão — o senhor aí escreva: vinte páginas... Nos campos doTamanduá-tão. Foi grande batalha” (gsv 482). Riobaldosugere a seu interlocutor o uso de vinte páginas escritas paraque o Tamanduá-tão possa ser satisfatoriamente descrito191 .Sua primeira indicação é quanto à dimensão da batalhatranscorrida naqueles campos, “batalha grande” como oGrande Sertão. Nesse sentido e a partir do exposto acima,lancemos, inicialmente, um olhar sobre a topografia do local:o leitor notará, facilmente, uma segunda homologia entre“Tamanduá-tão” e “Grande Sertão”: ambos têm como limitedemarcatório um travessão.

“Tamanduá-tão é o varjaz — que dum topo de ladeira se

avistava; e para lá descemos por encanado de cava, quase grota,

que a vertente entalha. Mas mais de mil bois, ou cavalos eéguas uns oitocentos, se carecesse, cabiam de bom pastar ali

naquele baixadão, de raso em raso. Ao muito escuro, duma

banda, existia um travessão de mato. Outro braço de mata,

da outra banda. Com que, contornada essa mata, a gente estava

sempre naquilo que Tamanduá-tão é: a enorme vargem.

Porque, para tudo quanto havia, o nome era aquele só — que

Mata-Grande do Tamanduá-tão e Mata-Pequena do

Tamanduá-tão, e tudo. A de baixo, o fim do varjaz (...)”

(gsv 483-484)Como se vê, nessa descrição os elementos que

caracterizam o Tamanduá-tão são:1. a quantidade de animais que podem aí caber, de “raso em

191 W.N. Galvão obser-va: “Mas para o final danarração, quando otexto pregresso já estáde grande extensão.Riobaldo passa a aludirfrancamente ao fato deambos – narrador einterlocutor – estaremfazendo um registroescrito e a medir aimportância do que estárelatando em função donúmero de páginas quedevem ser redigidas. Onúmero de páginaspassa a ser critério daimportância do passonarrado, mediante avisofeito de antemão pelonarrador ao interlocutor.(...) A última batalha, naqual Diadorim morre,vale este conselho:‘Campos do Tamanduá-tão – o senhor aí escreva:vinte páginas... Noscampos do Tamanduá-tão. Foi grande batalha’(gsv 482). Também, àaltura, até ilustração elejá pretende para o texto:‘A bem, como é que voudar, letral, os lados dolugar, definir para osenhor? Só se a uso depapel, com grande de-buxo. O senhor formeuma cruz, traceje. Quetenha os quatros braços,e a ponta de cada braço:cada uma é uma ...’(gsv 483); assim é omapa verbal do Taman-duá-tão. Ao contar oarremate da batalha,quando Riobaldo tres-passa, ao ver sem poderintervir o duplo a facaentre Diadorim eHermógenes, novamen-te é tomado pelosentimento da impene-trabilidade da vida e desua natureza distinta da

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147 raso”, ou seja, sobre uma superfície plana;2. o “mato”, ou “mata”, que delimita a extensão ouabrangência do espaço definido por Tamanduá-tão;3. a oposição entre Mata-Grande e Mata-Pequena, ou,simplesmente, entre grande e pequeno;4. o nome, “aquele nome só”, como essência de tudo, comodefinição do local;5. a questão de saber se há um “só” nome ou, também,eventuais outros nomes, pois Riobaldo afirma haver um sónome e, no entanto, enuncia dois, desdobrados, o nome“grande” e o nome “pequeno”;6. a dimensão grandiosa encontradiça nos campos doTamanduá-tão.

Vejamos inicialmente a oposição entre Mata-Grande eMata-Pequena. “Mata”, claro está, denota conjunto deárvores silvestres, ou pequena floresta. Entretanto, “mata”é também forma conjugada no presente do indicativo doverbo “matar”. Ora, o verbo “matar” — aqui representado,sob forma polissêmica, pelo seu presente do indicativo“mata” — é também verbo utilizado para o ato de “decifrar”,como na expressão de registro familiar “matar uma charada”,resolver um enigma, ou “matar uma questão”. Assim, “matar”poderia remeter a um enigma em que se opõem as noçõesde “grande” e “pequeno”. Não será necessário, aqui, lembraro grande apreço do autor mineiro por enigmas e charadas192 .E nem tampouco a importância de aspectos visuaisverificáveis em seu processo de rememoração e escrita193 .

Vale observar que a descrição do local inicia-se com aexpressão “Tamanduá-tão é o varjaz”, e esse enigmáticoneologismo pode servir, com muita propriedade, como índicena trama narrativa: ele indicaria, a partir do verbo “jazer”amalgamado a “vargem”, o desenlace fúnebre da trama.Entretanto, em outra perspectiva, poderíamos ver aqui maisum protocolo de leitura, pois “varjaz”, segundo o textotranscrito, tem seu limite inicial em “travessão” e seu limitefinal em “A de baixo”, descrição em que, ao mesmo tempo,surgem a dimensão da letra (“A” expletivo) e o aspecto gráficodo texto (“travessão”)194 . “Tamanduá-tão”, como texto,solicita tradução, informa o narrador: “A gente vinha acabandoa serra. Serra da Chapada. Somente para dali descer, etraduzir essas campinas, a grandeza de vargem” (gsv 484).“Tamanduá-tão” deverá ser, por conseqüente, considerado

192 Já durante suainfância Joãzito prati-cava a escrita logogrí-fica, conforme é possí-vel observar em umacarta-enigma escrita auma de suas irmãs ereproduzida por VilmaGuimarães Rosa, emRelembramentos, p. 66.193 Pensemos no “cegoBorromeu”, que acom-panha Urutu rumo àvitória.194 Em uma perspectivaintertextual, MoniqueBalbuena lembra, emseu estudo sobre Gui-marães Rosa, que “oSoneto per Eccos deBento Teixeira Pintoinaugura entre nós apreocupação com osefeitos de ordem visualno texto poético.”Monique BALBUENA,Poe e Rosa à luz dacabala, p. 191. Verreprodução em anexo.

do texto. ‘Vida vencidade um, caminhos todospara trás, é história queinstrui vida do senhor,algum? O senhor encheuma caderneta...’(gsv 527)” WalniceNogueira GALVÃO, Asformas do falso: umestudo sobre a ambigüi-dade no Grande Sertão:Veredas, p. 90.

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148 em sua dimensão textual para correta interpretação, da qualo aspecto de “grandeza” não deverá ser excluído.

Ademais, a partir dos modelos canônicos “subjaz” e“adjaz”, verbos que indicam a ação de “estar ao lado” ou“estar oculto e subentendido”, “varjaz” pode sugerir umacerta construção em que agrupam-se, em mais um entre osmúltiplos mots-valise do romance, as noções de “vário” e“jaz”. Indica-se, assim, uma trilha de leitura em que aqualidade de um estado vário, múltiplo, plurissignificante,caracteriza esse topônimo fundamental ao desenvolvimentodo romance195 . O próprio narrador indica a existência designificados adjacentes (“varjacentes”?) à sua narração:“Conto o que fiz? O que adjaz.” (gsv 524). Por conseqüência,o enunciado transcrito associa, de forma extremamentecoesa, “Tamanduá-tão” e aglutinação, processo largamenteusado também por Lewis Carrol, James Joyce e... OdoricoMendes, entre outros. A charada proposta poderia, portanto,situar-se nesse nível de composição de palavras. Ademais,considerando-se a eventual charada subjacente a serdecifrada, vale dizer que ela se instaura na oposição entre“grande” e “pequeno”. E quais seriam os dados da charada?O narrador informa:

“A bem, como é que vou dar, letral, os lados do lugar,

definir para o senhor? Só se a uso de papel, com grandedebuxo. O senhor forme uma cruz, traceje. Que tenha os

quatro braços, e a ponta de cada braço: cada uma é uma...

Pois, na de cima, era donde a gente vinha, e a cava.” (gsv 483,

grifo nosso)Os “dados” da charada são em forma de letras (“letral”),

conduzindo a um provável logogrifo que se instaura àsuperfície do texto. As letras devem ser desenhadas(“debuxo”), e possivelmente teríamos a letra “A”, pois, em“a cava”, poderia haver um “A” substantivado, e “cava” seriasubstantivo adjetivado, formas que correspondem, nessecaso, ao processo de transposição de classes gramaticaisrecorrente na obra de Rosa. Em “cava”, buraco ou poço,temos a oposição semântica entre alto e baixo, entre subir edescer; teríamos também o anagrama de “vaca”, e no alto(em “cima”) da “cava-vaca” haveria... a “cabeça de vaca”, ouo aleph, a própria letra “A”. Assim, vale lembrar, igualmente,a forte recorrência do “a” expletivo ao longo do texto, forma

195 Cavalcanti Proençasugere apenas um pro-cesso de sufixação paraesta palavra, ignorandoa possibilidade deconstrução de um mot-valise. M. CavalcantiPROENÇA, Trilhas doGrande Sertão, p. 224.N.L. Castro somenteindica, para “varjaz”, osignificado de “aumen-tativo não registrado devarja.” Ney Leandro deCASTRO, Universo eVocabulário do GrandeSertão, p. 193.

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149 de sublinhar a importância dessa letra na construção datessitura significante. Os outros dados do logogrifo foramvistos acima: oposição entre grande e pequeno, mot-valiseou aglutinação, quantidade de animais visíveis, nomesvirtualmente formados por intermédio da combinação deletras.

Em que pesem os riscos de extrapolarmos os limites daobra aberta propugnada por Guimarães Rosa, parece-nospossível que, para “borrar” ou esconder o significado dotopônimo “Tamanduá-tão” em termos de representação douniverso literário, o romancista tenha se servido de umaantiga charada, ainda hoje em voga nas brincadeiras entrecrianças. Fora deste emprego inusitado de um logogrifoinfantil196 num romance que narra uma grande guerra entrejagunços — guerra que tem por objeto a motivação dosigno —, seria extremamente difícil encontrar um sentidopara as noções empregadas na descrição do “campo doTamanduá-tão”, e bem sabemos que nada é gratuito ouredundante nesse autor de vertiginosos enigmas.

Assim, nesse logogrifo bastante conhecido em terrasbrasileiras, a partir das letras de uma palavra inicialmentefora do campo semântico delimitado pela zoologia,pergunta-se ao interlocutor o número possível de nomesde animais visíveis naquele conjunto de letras. Claro estáque tal palavra deverá ser desenhada, “debuxada”, pois osnomes dos animais serão formados em função dacombinação virtual das letras dispostas sobre a superfícieda folha, “de raso em raso”, uma das quais é “grande”, emrelação às outras, “pequenas”.

Sigamos, portanto, as indicações de Riobaldo e tracemosum esboço deste jogo de perspicácia proposto às criançaspara “matar a grande charada”. O desenho, “letral”,distribuído em letras, está disposto em cruz, nos informaRiobaldo. Pensando no mot-valise “varjaz”, teremos emmente o misterioso vAb condensado ou soldado, como ummot-valise, solicitado a Poty para a ilustração da primeiraedição do romance. Segundo as orientações do narrador,da ponta de um dos braços da cruz, o braço superior, temosum “a cava”, ou seja, um “A” que desce abaixo. O resto dacharada é conhecido por boa parte da população do país, esomente terá o ar de arbitrário para o leitor que esperar deGuimarães Rosa um texto totalmente explícito e

196 Também CavalcantiProença sugere umprocesso de construçãolúdica para esse topô-nimo, ainda que soboutra perpectiva: “Lú-dico é o nome de Ta-manduá-tão. A origem,segundo o processopopular, está bem expli-cada: O vaqueiro Suzar-te vai espreitar os Judase volta esbaforido. Malsaltou do lombo docavalo arrebentado,‘tomou um átimo erelatou: — Eles estão’(No Tamanduá es-tão).” Manoel Caval-canti PROENÇA, “Tri-lhas do Grande Sertão”,in Augusto dos Anjos eoutros ensaios, p. 230.Assim como o dicio-nário Caldas Aulete,K.H. Rosenfield lembraque “‘tamanduá’ signi-fica, além do animal,‘questão moral difícilde resolver’, de formaque [‘tamanduá’]coloca-se como proble-mas que exige umasolução e um sentidoéticos.” Kathrin Holzer-mayr ROSENFIELD,Grande Sertão: Vere-das. Roteiro de leitura,p. 84. Lúdico, questãoque exige resposta,enigmático: eis “Taman-duá-tão”.

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150 desprovido das inusitadas surpresas que esse romancistasempre reserva a seu público:

SAPATO

Observe-se o desenho (“debuxo”) acima: nele, a vogal“A” apresenta-se em tipo gráfico de tamanho superior aosoutros, como no enigmático vAb solicitado a Poty. Assim, àquestão-enigma “o nome de quantos animais você vê aqui?”,a criança certamente responderá, após desmontar e recompora palavra portmanteau, “dois: sapa e pato”.

Nesse momento, seu interlocutor colocará em jogo aperspicácia da criança e dirá, forçando no registro popularda pronúncia e referindo-se unicamente ao grande “A”: “ó otamanh’-du-á”, “olhe o tamanduá”. Seriam, portanto, três,os animais visíveis: sapa, pato e... tamanduá. Esse últimonome adjaz, subjaz, ou... “varjaz” no texto impresso sobre afolha.

Qual poderia ser a relação existente entre esse enigma— no qual “tamanduá” remete a “tamanho do A” — e arepresentação simbólica do universo literário queencontramos sob forma difusa ao longo das páginas deGrande Sertão: Veredas?

Notemos, inicialmente, que é sobre esse grande A, sobrea ponta superior da cruz assim desenhada, que Urutu Brancovem com seu bando, ponto sobre o qual dirigem-se osjagunços, nos informa Riobaldo ao dizer que “na [ponta] decima, era donde a gente vinha”. Em outras palavras, osjagunços dirigem-se ao alto do grande “A”. O local, ou o posto,é desejado por todos os beligerantes, acrescenta o jagunço:“A gente chega, é onde o inimigo também quer” (gsv 482).“Tamanduá-tão” reflete, tanto no tecido sonoro quanto naestrutura métrica (quatro sílabas com acento principal naúltima, terminada em “ão”), o “Grande Sertão”.Decompondo-se “Tamanduá-tão”, chega-se facilmente a“tamanho do ‘A’ tão”. Ora, como já observado por inúmerosexegetas, “Grande Sertão” pode ser invertido em “Ser-TãoGrande”. Por analogia operável a partir do advérbio deintensidade “tão”, chegaríamos a “tamanho do ‘A’ tão grande”,ou o “A” como um “ser tão grande”, entidade tão grande.Valem aqui as preciosas indicações de Riobaldo segundo asquais é necessário uma leitura de trás para frente e do meio

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151 para o final, leitura iterativa obrigatória, conforme vimos noinício da segunda parte deste estudo.

A batalha do Tamanduá-tão, a batalha do “tamanh’-du-á-tão”, torna-se, portanto, a batalha do tamanho do “A”, dotamanho da letra, ou, sob forma metonímica, do tamanhodas letras: batalha pelo tamanho (ou crescimento) das BelasLetras197 , batalha pela Alta Literatura.

Essa guerra literária, sublinhe-se bem, seria aquelaanunciada por Guimarães Rosa ao também escritor VicenteGuimarães, em carta datada do dia 11 de maio de 1947,após a vinda a lume de Sagarana: “Agora, porém, a hora é decombate de ofensiva” contra a “má literatura simplista ecalhorda, que reinou e abundou entre nós (...)”, “no meioda guerra literária que está sendo pelejada.”198 Por essa razãoRiobaldo indica que sua guerra deve ser interpretada emoutra camada palimpséstica: “isso de guerra é mesmice,mesmagem” (gsv 265). Ou, em outras palavras, a guerraentre jagunços é apenas pretexto, e interpretá-la apenas comoacontecimento pseudo-histórico equivale a repetir o óbvio,a “mesmice” ou “mesmagem”, equivale a tecer um discursocrítico sem pertinência ou novidade. Essa é, porconseqüência, a batalha pela maneira de conduzir as Letras a“ser-tão grande”: a batalha pela vitória sobre o signo arbitrário.Não por acaso essa vitória será conseguida com o auxíliod’“aquilo [que] era munição de contos e contos de réis”(gsv 121): munição para contos de real valor literário,conforme já vimos em outras ocasiões199 . Igualmente, nailustração solicitada a Poty, as armas dos jagunços estãodispostas em forma de “x”, em forma de letras. Ademais,essa vitória, nos informa o narrador, transcorre no planoartístico e no plano da sonoridade significante:

“A arte que prometi: que, mais baque, mais retumbo, a

gente ganhava: a gente ganhava... a gente ganhava! Antes bati

uma palmada firme, no liso da minha coronha. A vitória! Ah

— a vitória — eu no meio dela, que com os ventos arrastado...”

(gsv 522-523)A vitória artística se fará com o auxílio da sonoridade

mimética, ou cratílica, representada por esses dois termosque bem podem sugerir a noção por eles representada:“baque” (som seco e curto, sem ressonância) e “retumbo”

197 Nessa perspectiva,K.H. Rosenfield obser-va, com pertinência, o“sentido da batalha ‘fi-nal’ não como términomas como reabertura.”Kathrin HolzermayrROSENFIELD, Osdescaminhos do demo.Tradição e ruptura emGrande Sertão. Vere-das, p. 217.198 Cf. Vicente GUI-MARÃES, Joãozito.Infância de João Gui-marães Rosa, p. 133-sqq.199 Vale observar, assim,nessa guerra literária, “aprogressiva desorien-tação de Zé Bebelo e oseu declínio. Este erra ocaminho, fato perfeita-mente simbólico quefaz ver como ele desco-nhecia qual a verdadeiraluta e onde ela é travada.Leva o bando para luga-res desconhecidos, eficam completamenteperdidos.” Manuel An-tônio de CASTRO, OHomem provisório noGrande Ser-tão, p. 58.A desorientação de ZéBebelo será analisadaem detalhe ao longo depáginas posteriores.

III. Grande Sertãoe o universo dasLetras: do pactofaustiano às “AltasLiteraturas”

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152 (som grave, ressoante)200 ; nessas duas ocorrênciaslingüísticas, teríamos uma perfeita adequação entre apalavra e a coisa representada, provável razão de suaescolha pelo romancista. Note-se ainda que Urutu, emsua vitória, acompanha o rumo dos ventos; ora, vento,lembre-se mais uma vez, é resultado do ar emmovimento, exatamente como os... sons. Os ventos davitória carream também as letras “A” e “Q” (o leitor selembrará do “nó” hieroglífico que remete à teia e àconstelação de sentidos), símbolos metonímicos douniverso das Letras.

Pelo prisma da correspondência entre planoromanesco e universo das Letras, é lícito observar queos contendores desta grande batalha, os criadoresliterários, almejam todos atingir o topo do “A”, o topodas letras-Letras, carreando consigo a possibilidade deengrandecer a Literatura. Tal é o “combate velho doTamanduá-tão” (gsv 16), afirma Riobaldo, e essa é maisuma preciosa indicação quanto às sugestões de sentidoa serem agregadas ao topônimo e à batalha, posto que ahistória da l iteratura é construída, desde suasantiqüíssimas origens, de fluxos e refluxos entrecorrentes estéticas oponentes. E mesmo o combatelingüístico remonta aos idos de Platão: três milêniosde combates muito, muito velhos, conforme sugeridopelo jagunço-narrador.

Mais uma vez o leitor deste trabalho poderia se vertentado a encontrar aqui a “fruta peçonhenta”(gsv 434) da superinterpretação, a “doença amaldita[da] arte” (gsv 434), doença do “a” maldito, que levao “a” artístico ou literário à morte. Entretanto, Riobaldoindica que a “guerra de jagunços” não é simplesmentea “guerra de jagunços”, mas sim uma outra guerra, maissutil, subjacente ao texto: “Era a outra guerra. A genteficávamos aliviados. Aquilo dava um sutil enorme.”(gsv 260). Se “sutil enorme” é mais um dessesoxímoros que refletem o “indecidível dos sentidos”,

III. Grande Sertãoe o universo dasLetras: do pactofaustiano às “AltasLiteraturas”

200 Lembremos demimético verso deCamões: “Ferido o arretumba e assovia.”

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153 na expressão de Barthes, a expressão indica anecessidade de observação de ínfimos detalhes textuaispara o acesso a leitura radicalmente distinta, de“enorme” diferença. Portanto, o próprio narrador alerta,como ademais já vimos no início deste capítulo, que aguerra dos jagunços sertanejos deve ser entendida comoa representação de uma outra guerra maior, ainda queo nexo ou elo entre essas guerras seja “sutil” e poucotransparente ao leitor desatento, habituado ao “giro-o-giro” estéril e inócuo. Se a guerra dos jagunços é umaguerra pelo “Tamanho-do-Á”, pela Alta Literatura, quemsão esses contendedores disfarçados sob cartucheiras e“bocamortes”? Quem é, afinal de contas, essemisterioso bardo Riobaldo?

III. Grande Sertãoe o universo dasLetras: do pactofaustiano às “AltasLiteraturas”

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154 IV. O bardo Riobaldo e seu fardão: ainvenção de um narrador

“[Grande Sertão: Veredas]é uma ‘autobiografia irracional’

ou melhor, minha auto-reflexão irracional.”(Guimarães Rosa, em entrevista a Günter Lorenz)

O pronunciado gosto do romancista mineiro pelainvenção de indecifráveis oxímoros reflete-se até mesmo nasraríssimas declarações feitas pelo autor a respeito do sentidoa ser agregado a sua obra, como é possível ver nestes paresantitéticos e inconciliáveis que são “autobiografia irracional”(em que se opõem as noções de realidade e de imaginário) e“auto-reflexão irracional” (em que se opõem a lógicarigidamente sistematizada e o pensamento aleatório ouassociação livre de idéias). Todavia, a declaração do autorpermite ver, no personagem de Riobaldo, um desdobramentosimbólico do autor Guimarães Rosa, bardo em guerra contraas “pequenas Letras”, noção que o leitor pôde apreendercom base nas correspondências enviadas pelo genialromancista a privilegiados interlocutores. Destarte,percorreremos, nas próximas páginas, trilhas de leituras quese assentam, de maneira precária e corrediça, no intangívelespaço intervalar situado entre biografia e ficção.

Romance da vocação: a trajetória de um bardo

O leitor terá observado, em suas deambulações pelouniverso das grandes e das pequenas Letras, que o combatelevado por Riobaldo conduz o personagem do roman-fleuve-vazio à plenitude da palavra: o herói descobre a estética queserá sua, constrói sua visão do mundo e torna-se “UrutuBranco”. Quanto a esse processo de formação e descobertada vocação, Davi Arrigucci Jr. observará que “numa misteriosabalada, a canção de Siruiz, o narrador entrevê os marcos deseu destino: a moça virgem, a vocação para armas e letras —tudo o que buscará entender, ao repassar o vivido e sua paixãoerrante por Diadorim”.201 Por essa vertente, será possíveldizer que, em termos de correntes literárias, esse meta-

201 Davi ARRIGUCCIJr., “Resumo da Ópera”,in Bravo, p. 85.

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155romance pode se inscrever no espaço de passagem entre oromance de vocação e o romance de literatura,privilegiadamente especular, que o seguiu. A vocação deescritor encontraria uma representação metafórica naquelade jagunço, o homem das travessias, tal como poderíamosfacilmente inferir das reflexões do próprio narrador:

“No formato da forma, eu não era valente nem

mencionado medroso. Eu era um homem restante trivial. A

verdade que diga, eu achava que não tinha nascido para aquilo,

de ser sempre jagunço não gostava. Como é, então, que um se

repinta e se sarrafa? Tudo sobrevém. Acho que é do

influimento comum, e do tempo de todos. Tanto um prazo

de travessia marcada, sazão, como os meses de seca e os de

chuva. Será? Medida de muitos outros igualasse com a minha,

esses também não sentindo e não pensando. Se não, por que

era que eram aqueles aprontados versos (...)?” (gsv 54 )Nessa pequena passagem, o leitor terá notado o grande

número de palavras que remetem ao universo da produçãoartística. O criador, nesse caso de figura, é aquele que securva, de uma certa forma, às premissas e coerções formais— como parece indicar esse estranho sintagma “formato daforma”, talvez utilizado como avatar estilístico para aexpressão “em aparência”. Se a interpretação desses “repinta”e “sarrafa” não se apresenta de forma unívoca (estariaRiobaldo falando de pintura e de escultura? “Sarrafar” refere-se, efetivamente, ao ato de cortar, e o verbo “repintar” nãooferece grande ambigüidade), no mesmo fragmento do textoencontramos noções como “formato da forma”, ou “versos”,entre os múltiplos elementos que remetem ao campo lexicaldas artes. Essas reflexões versariam então sobre a vocaçãoartística? A resposta parece estar subjacente ao conjunto dotexto. De qualquer forma, Riobaldo, 340 páginas adiante,termina por concluir positivamente sobre sua vocação paraas artes de jagunços, contadores de estórias: “Ah, não, eubem que tinha nascido para jagunço” (gsv 396). Se o leitorconsiderar que, para Guimarães Rosa, os contadores deestórias exercem, socialmente, uma função sacerdotal202 , asopções vocacionais de Riobaldo-Cerzidor resumem-se emuma só e única alternativa: “Eu podia ser: padre sacerdote,

IV. O bardo Rio-baldo e seu fardão:a invenção de umnarrador

202 Guimarães ROSA,Correspondência comseu tradutor italiano,p. 58.

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156 se não chefe de jagunços; para outras coisas não fui parido”(gsv 8). Nessa asserção do narrador, W.N. Galvão observao aspecto letrado que poderia haver na atividade dosacerdócio em meio sertanejo: “com extraordinária acuidade,Riobaldo localiza o destino letrado possível para um habitantedo sertão, que é o do padre e não aquele em que pensariauma mente urbana – escritor – cientista, poeta, etc.”203

Assim, a vocação de Riobaldo é uma só: as Letras; e suatrajetória é aquela que conduz do inexpressivo signo arbitrárioà pluri-significante motivação do signo, trajetória que permitecompletar o rio-baldio e transformá-lo num Urutu em todasua plenitude — como sugere, nesse nome, a sonoridadeque parece completar um ciclo completo sobre si mesma,tal como a figura da serpente que, à imagem perfeita docírculo, fecha-se e engole-se a si mesma —.

Jagunço João “io bardo” Guimarães Rosa: uma“autobiografia irracional”

Em que pese a total disjunção entre a figura do eu-líricoe o autor de uma obra, entre um personagem e seu criador,entre ficção e realidade, o leitor poderá se lembrar,entretanto, que Guimarães Rosa declara que Grande Sertão:Veredas é obra simbólica e ficcionalmente autobiográfica.No conjunto de sua obra, por vezes, certas analogias entreautor e seus personagens são virtualmente passíveis de leituraà superfície do texto. O próprio romancista parece semearalgumas pistas por intermédio da escolha onomástica operadapara nomear alguns entre seus principais personagens. Assim,partindo de Moimeichego (moi, me, ich, ego), veríamos queMiguilim remeteria também a Gui(marães) e Mi (“me”, eminglês); Grivo, aquele que vai “buscar poesia”204 , traz em siG.R., as iniciais do autor; Pedro Orósio (o esperado seria“Osório”) escreve-se a partir de “Rosa” e “io” (“eu”, emitaliano); Dona Rosalina, óbvio está, tem Rosa em seu nome;assim como, provavelmente, Cara de Bronze: roze, rose, Rosa.Vale observar que Guimarães Rosa relaciona essespersonagens ao “papel quase sacerdotal dos contadores deestórias”205 , enquanto Pedro Xisto, num célebre artigocomentado elogiosamente por Guimarães Rosa em carta aEdoardo Bizzarri206 , escreve que “o chefe Riobaldo — o

203 Walnice NogueiraGALVÃO, As formas dofalso: um estudo sobre aambigüidade no GrandeSertão: Veredas, p. 81.204 Guimarães ROSA,Correspondência comseu tradutor italiano,p. 60.205 Idem, Ibid., p. 58.206 Idem, Ibid., p. 61.Nessa carta Rosa elogiaa capacidade elucidativade Xisto, que “desco-bre” as mensagens sub-jacentes ao texto.

IV. O bardo Rio-baldo e seu fardão:a invenção de umnarrador

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157 Professor — conduz os seus jagunços, os companheiros,pelos caminhos livres e concretos da expressão poética —outra questão de vida ou morte”207 . Pedro Xisto enumera,em seguida, uma longa série de nomes de jagunçoscantadores, e, por essa vertente, inscreve Riobaldo entre“os quase sacerdotais contadores de estórias” sobre os quaisfala Guimarães.

O grande número de personagens chamados João já foisublinhado, neste estudo, no capítulo que versa sobreFaustino e Davidão. Haverá talvez um desdobramento semlimites da figura do próprio autor entre alguns dos jagunçosque combatem Hermógenes e o signo arbitrário. Por essarazão Riobaldo afirma ter “presenças” (gsv 375), no plural:os personagens desdobram-se e remetem a um só elementoalegórico. Simbolicamente, um dos jagunços queacompanham Riobaldo chama-se exatamente... o “Duzentos”,em itálicas (gsv 280), cabendo a questão: haveria duzentosduplos de Riobaldo em seu bando? Ao lado do “Duzentos”,combate o “Testa-em-pé”, “ladino” (se “ladino” é aquele queconhece vários idiomas...) como Riobaldo, e fisicamentesemelhante a Rosa, como seu cognome indica. Observemos,nesse sentido, que os dois personagens que ladeiam Riobaldodurante a travessia do Liso do Sussuarão-Saussure, queservem também como auxiliares no ato de guiar os jagunçosatravés daquele espaço nunca dantes navegado, são o cegoBorromeu e o menino Guirigó.

Guirigó, sempre chamado de “menino Guirigó”, eBorromeu, o cego, acompanharão constantemente Riobaldoao longo da travessia e durante a batalha do Tamanduá-tão;conforme diz Urutu, flanqueado por ambos: “eu meando osdois, ao alcance de qualquer minha mão” (gsv 397).Sublinhe-se, nessa locução, que ambos estarão ao alcance damão, instrumento privilegiado de escrita. Nessa perspectiva,é possível observar que a técnica estilística de Rosa conduz otexto, por vezes, a uma linguagem anterior àquela fase degramaticalização que transcorre durante o aprendizado dajovem criança208 . Rosa, por essa vertente, age no sentido de“chegar ao criançamento das palavras”, noção sobre a qualdiscorre o rosiano poeta Manoel de Barros209 . Note-se: omenino Guirigó, tal como descrito pelo narrador, “nem eraninguém, nem aceitava regra nenhuma de vida do mundo,nem estava ali (...)” (gsv 349). Se “vida é literatura”, “regra

207 Pedro XISTO, “ÀBusca da Poesia”, inEduardo F. COUTI-NHO (org.), Guima-rães Rosa, p. 120.208 Daí, as confusõesentre classes grama-ticais, as aglutinações,prefixações e sufixaçõesem profusão, osneologismos múltiplos.Daí também, no planosemântico, as transmu-tações entre os reinosvegetal, mineral eanimal, ou entre onatural e o cultural:homens-animais, pal-meiras-habitação, e todauma série de repre-sentações simbólicas.209 “Temos de molecaro idioma para que elenão morra de clichês”.Gramática Expositivado Chão, Rio de Janeiro,Civilização Brasileira,p. 312. Vale trans-crever, nesse sentido, asnoções propostas porSigmund Freud: “Naépoca em que a criançaaprende a manejar otesouro verbal de sualíngua materna, senteum franco prazer em‘experimentar o jogo’,unido as palavras semlevar em conta o seusentido, com o objetivode alcançar um efeito deprazer no ritmo, narima. Este prazer vai-lhesendo proibido por suaprópria razão, até deixá-lo limitado àquelascombinações de pala-vras que formam umsentido. Porém, poste-riormente, superando aslimitações do materialverbal, modifica aspalavras por meio dedeterminados afixos,transformando suasformas (reduplicação)

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158 de-vida” é regra de linguagem: o menino não aceita essas regras,pois é agramaticalizado, ele desconhece as regras dagramática210 . E se Guirigó não é ninguém, se não tem presençafísica no universo dos jagunços, sua existência transcorre noplano da abstração: trata-se de mais um personagem alegórico(gui-rigórico? É fácil observar o anagrama). Por conseqüência,Guirigó representaria, sob forma alegórica, uma idéia abstratatal como, por exemplo, a noção de infância.

Assim, notaremos que, em perfeita analogia com a rebeldiacaracterística de Guirigó, Riobaldo se confere exatamente o“direito [que] era contrariar as regras todas do chefe que antesfora; para mim, só mesmo o que servia era à solta a lei daacostumação” (gsv 395). Assim, nas “obras” de Urutu,Diadorim só vê “dansação e desordem” (gsv 412): na “arte”deste jagunço, só haveria música e transgressão de regras.Riobaldo, por conseqüente, dá vazão à busca da sonoridadeexpressiva e ao descaso às regras bem ordenadas da gramática,aspectos que também encontramos na escrita pré-gramaticalização de Guimarães Rosa211 . Por uma tal vertente,“o menino Guirigó” pode, igualmente, ser visto como odesdobramento de Gui(marães) R(osa) igó (“igual”) menino.Não por acaso Guirigó será também chamado de “dioguim”(gsv 419): di-o-guim, “di” (duas vezes, o duplo); “o” (artigodefinido); “guim”, que oferece claramente a leitura de“Guimarães”, em abreviatura. Seria ainda possível ver “ioguim”, “eu guimarães”, na designação dada ao menino. Poressa razão, Guirigó é caracterizado, de maneira aparentementepleonástica ou redundante, como “menino-de-infância”(gsv 419), ou, em outros termos, menino que pertence auma infância bem determinada — aquela do autor? —. Seupapel, no curso das bem logradas travessia do Liso e batalhado Tamanduá-tão, seria portanto o de emprestar a Riobaldo-Rosa a capacidade de “chegar ao criançamento das palavras”,pois, como diz o narrador, “o menino Guirigó [tem]atrevimento de ensinar” (gsv 421). Essa fala agramaticalizadanão é, como convém, um discurso gramaticalmente correto,convencional, e pode servir como modelo ou conselho aojagunço em sua guerra contra o signo arbitrário:

“Dada a mais cachaça ao menino Guirigó e ao cegoBorromeu: para eles falarem coisas diferentes do que certas,por em si desencontradas, diversas de tudo. Conselhos medavam?” (gsv 412)

ou criando um idiomaespecial – o que se podeobservar em determi-nadas categorias deenfermos mentais.”Citado por IreneGilberto SIMÕES, Asparagens mágicas,p. 116.210 Pensemos desde jáem Gramacedo, cujaanálise é proposta nopróximo capítulo.

211 No sentido de umalinguagem correspon-dendo àquela dascrianças pré ou semi-alfabetizadas, linguagenscom matizes miméticasou cratílicas, é útil notaras observações deJ.A. Hansen: “Além dareclassificação erecategorização, Rosacostuma agir por meioda etimologia e, ainda,da falsa etimologia,quando relaciona osignificado de um termocom uma representaçãosinestésica do objetoque o termo designa.”João Adolfo HANSEN,“Terceira Margem”, inRevista do Instituto deEstudos Brasileiros,p. 59.

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159 Assim, Guirigó e Borromeu são guias, conselheiros queRiobaldo tem sempre ao alcance da mão em sua tarefa deeliminar o signo arbitrário do espaço sertanejo. Ora, sob todaevidência, esses guias pertencem ao universo imaginário deRiobaldo-Urutu, pois se o sertão “é dentro da gente”(gsv 270), Urutu terá a ocasião de perguntar a Borromeu:“‘Você é o Sertão?!’” (gsv 523); ou, em outros termos, “vocêvive dentro de mim, em meu imaginário?”. Acerca deBorromeu, o narrador comenta:

“Ele gostava de conversar, mas também preparava no

silêncio. Ia sacolejando em cima da sela do animal, noutra

quietação diversa. Podia dar conselho? — ‘Arte de jagunço,

meu Chefe? Isto é ofício bonito, para o vivo.’” (gsv 395)Borromeu, além de gostar igualmente de conversar,

contar casos, tal como os jagunços que acompanhamRiobaldo-Urutu, também indica ao leitor que o ofício dojagunço desenvolve-se no plano artístico, é um ofício estético(“bonito”). Seus assuntos e conselhos são “preparados nosilêncio”, na meditação contemplativa do abandono sobre asela do cavalo, veículo da possessão. Em “cego Borromeu”, éfácil encontrar a palavra “ego” (eu), e o verbo borrar, ouapagar212 , conjugado na primeira pessoa do singular: “eu borroo meu”213 . Ademais, Borromeu afirma: “...O que não vejo,não devo; não consumo...” (gsv 395). Assim, o personagemrepresentaria simbolicamente a necessidade de não consumiras regras semi-petrificadas da “gramática dos outros”, anecessidade de esquecer o aspecto gráfico, memorizadovisualmente, das palavras, para lhes dar outra forma, baseadanão mais na memória visual214 , mas sim na audição ou novocabulário agramaticalizado de Guirigó, vocabulário aindanão registrado graficamente, inédito e inexplorado como “amoça virgem e branca de Siruiz”.

Será útil lembrar, aqui, certa página das correspondênciasde Guimarães Rosa em que o romancista cita (e avaliza) aleitura proposta por Paulo Rónai para os contos rosianos: “Alinha simbólica é predominante nos ‘contos’, onde o enredopropriamente dito serve apenas de acompanhamento”215 .Essa leitura mostra-se perfeitamente aplicável ao conjuntoda obra do erudito escritor, posto que os personagens portam-se antes como símbolos do que como agentes de umaqualquer seqüência de acontecimentos. Por essa vertente,

212 “Borrar” podetambém remeter a“manchar”, “deixarconfuso, vago”, como apoesia propugnada porGuimarães Rosa ou ossignificados proposi-tadamente escondidosem camadas palim-psésticas ao longo dotexto. Entretanto, épossível pensar nacegueira momentâneado narrador de “SãoMarcos”, que passa aorientar-se e a ler omundo com o auxílio daaudição. O mesmoocorre em “Conversa deBois”, em “BurrinhoPedrês”, entre outros.213 Lembremos daspossíveis varições deentonação na leitura dotexto, conforme subli-nhado por Davi Arri-gucci Jr.214 F. Utéza assiminterpreta o simbólicoato de fechar os olhoslevado a efeito porUrutu durante a batalhado Tamanduá-tão, refle-xo da cegueira de Bor-romeu (gsv 488):“Urutu-Branco se fechapara o mundo exteriorna certeza paradoxal deque se trata da únicaatitude adequada paradominar o caos.” FrancisUTÉZA, Metafísica doGrande Sertão, p. 326.215 Guimarães ROSA,Correspondência comseu tradutor italiano,p. 58.

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160 vale notar que Riobaldo afirma suas qualidades de “cãomestre” (gsv 8), farejador de idéias, e diz que “dificultoso,mesmo, é um saber definido o que quer, e ter o poder de iraté no rabo da palavra” (gsv 150). Ora, essas afirmações deRiobaldo nada mais são do que a reformulação, sob espécieliterária, daquelas asserções lançadas por Guimarães ementrevista a Lorenz: “uma palavra, uma única palavra ou frasepodem me manter ocupado durante horas ou dias”216 . MariaNeuma Cavalcante sublinha que essas idéias lembramigualmente certa asserção de Flaubert: “A respeito de umapalavra ou de uma idéia, faço buscas, eu me perco em leiturasou em sonhos e divagações sem fim [...]”217 . Assim, comovimos ao longo deste trabalho, as atitudes e reflexões deRiobaldo apresentam-se, em muito, como imagem especulardas atitudes e reflexões apontadas por Guimarães Rosa ementrevistas e correspondências. E o caráter de Riobaldoenquadra-se perfeitamente na descrição proposta por Rosapara o artista ideal, justificando-se longa transcrição decorrespondência datada de 11 de maio de 1947 — a mesmacarta em que o romancista anuncia a “guerra literária”:

“Agora, vou explicar. Quando escrevo, não estou pensando

em obter tal ou tal efeito cultural ou educativo. O artista é

uma autarquia, sente, pensa e cria, em termos absolutos, dando

expressão à sua necessidade íntima, realizando a sua arte.

Assim, o artista terá de ser: 1) humilde: trabalhará com

profunda humildade, em face da arte, a fim de não criar-se

dificuldades ao escoamento da inspiração; 2) independente:

para poder obedecer com pura humildade à sua inspiração,

precisa de isolar-se de influências imediatas, ambientais: é

como alguém que estivesse compondo uma música, enquanto

outros, em torno, estão assobiando outras músicas, de ritmos

diferentes; tem de fechar de vez em quando os ouvidos; 3)

corajoso: precisa de não ficar peado pelas fórmulas consagradas,

e atirar-se para adiante, seguindo a sua inspiração, até onde

ela o levar; 4) profundamente sincero: a sua arte deve expressar-

se de acordo com a totalidade do seu ser, com os seus

conhecimentos, sua cultura, sua filosofia da vida, com as

palavras com as quais pensa (assim, quando se pensa com

216 Günter LORENZ,“Diálogo com Guima-rães Rosa”, in CoutinhoEduardo F. (org.),Guimarães Rosa, p. 79.217 Citado por MariaNeuma Barreto CA-VALCANTE, em seuartigo “Cadernetas deviagem: os caminhos dapoesia”, in MartaRossetti BATISTA(dir.), Revista doInstituto de EstudosBrasileiros, p. 236.

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161 determinado nível de erudição, em palavras e frases, seria

pecado contra o Espírito Santo, acovardar-se e, por medo de

vaias da plebe, usar da preocupação de rebaixar seu estilo,

para ficar ao alcance de todos); 5) infinitamente paciente: ainspiração só fornece um aceno, uma formulazinha, que é

preciso trabalhar, com humilde paciência, desenvolver, podar,

alterar, desbastar, transformar, enfim, em quimo artístico, sob

pena de, se o não fizer, não corresponder magnitude da própria

inspiração. Tudo isto vai aqui muito solenemente, porque,

segundo concebo, arte é coisa seríssima, tão séria quanto a

natureza e a religião. Aliás, filosoficamente, essa é uma das

idéias contidas, de modo discreto e difuso, nas ‘Histórias de

Fadas’.”218

Os personagens que acompanham Riobaldo em sua lutacontra o signo arbitrário são também representaçõessimbólicas de certas características da escrita rosiana, ou daliteratura tout court. Nesse sentido, o leitor observará quehá, em “Riobaldo”, conforme a pronúncia sertaneja para onome (“Riobardo”), o enigmático “io bardo”, “eu poeta”,com o “R”, inicial de Rosa, anteposto. Se o leitor se lembrarque “bardo” designa, originalmente, entre os celtas, um poetaao mesmo tempo heróico e lírico219 , tal como é a narrativaapresentada em Grande Sertão: Veredas, “io bardo” é opróprio símbolo do desdobramento autor-narrador ao qualalude o bardo mineiro de Cordisburgo, pois Guimarães teráa ocasião de declarar, a respeito de seu meta-romance, que“é uma ‘autobiografia irracional’ ou melhor, minha auto-reflexão irracional. Naturalmente que me identifico com esselivro.”220 Assim, o nome “Riobaldo” indica, à própriasuperfície do texto, a analogia anunciada pelo romancista:Rosa será, doravante, o cratiliano “io bardo”, o poeta guerreiroem luta contra o signo arbitrário, o romancista que atravessaa escorradia língua de Saussure e se bate pelo tamanho do“A”, pelo engrandecimento das Letras.

Valem aqui as pertinentes observações feitas porVera Campos, a partir de noções propostas por Barthes eAna Luíza Machado: “a onomástica, em Rosa, tem merecidoensaios fecundos. Justifica-o não só a abundância de nomes,como também o significado secreto, enigmático queassumem”, pois o nome é um “um signo polissêmico e

218 Vicente GUIMA-RÃES, Joãozito. Infânciade João GuimarãesRosa, p. 136-137.219 Cf. Caldas Aulete.220 Gunter LORENZ,“Diálogo com Guima-rães Rosa”, in CoutinhoEduardo F. (org.),Guimarães Rosa.,p . 94.

IV. O bardo Rio-baldo e seu fardão:a invenção de umnarrador

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162 hipersêmico, que oferece várias camadas de semas e cuja leituravaria à medida que a narrativa se desenvolve e se desenrola.”Nessa perspectiva, a pesquisadora cita Rolland Barthes: “Umnome próprio deve ser sempre interrogado cuidadosamente,pois o nome próprio é, por assim dizer, o príncipe dossignificantes; suas conotações são ricas, sociais e simbólicas.”221

Assim, é mais que legítima a desmontagem e reconstrução donome “Riobaldo” a partir de “R”, “io” e “bardo”, forma deconstruir uma certa identificação simbólica entre o autor e oveículo de sua voz, o narrador. Assim, esse narrador-jagunçonão será nada menos do que a imagem simbólica do própriomédico-romancista, como indica a mise en abyme que seprefigura, com humor, quando Guimarães Rosa sugere suaidentidade naquela de Urutu Branco, ao tecer um comentárioaparentemente sem ligações com o fluxo dos acontecimentossertanejos:

“O que, quando eu já ia saindo, acharam de me dizer?

Isto:

— Mas, você já vai, mesmo, nego? Visita-de-médico?

Como não pude sofrear meu rir” (gsv 467).A expressão idiomática “visita-de-médico” é, na realidade,

um dos mais velhos lugares-comuns da língua portuguesa: elenão mais prestaria nem mesmo ao menos esgarçado sorriso. Ea aversão de Rosa pelos lugares-comuns é mais que notória,conforme também sublinha Curt Meyer-Clason ao lembraruma das cartas recebidas do romancista com indicaçõescategóricas quanto a não deixar em seu texto nem ao menosum lugar-comum222 . Aquela proposição em torno da “visitade médico” deverá, portanto, ser compreendida exteriormenteao texto: no lugar de empregar uma expressão idiomática banal— o que nos teria deixado perplexos em um romanceconstruído com tanta maestria —, o médico-autor sobe aopalco, visita seus personagens no interior do próprio texto ebrinca alegremente com seu achado. Se por um lado Riobaldoé “io bardo”, por outro lado é capaz de cumprir o papel demédico, assim como Rosa é o bardo médico e diplomata, queri de suas farsas poéticas: aqui, em trocadilhos, ri o bardo.Autor de belas farsas em que se ocultam enigmasmetaliterários, Guimarães Rosa, com um sutil piscar de olhosao leitor, acena, nessa passagem, sob forma lúdica, com asfolhas daquilo que poderíamos chamar o tríptico literário: leitor— autor — personagem.

221 Vera Mascarenhas deCAMPOS, Borges &Guimarães: Na esquinado Grande Sertão,p. 138.222 Comunicação feitapor Curt Meyer-Clasonno “I Seminário Interna-cional Guimarães Ro-sa”, Belo Horizonte, 27de agosto de 1998.

IV. O bardo Rio-baldo e seu fardão:a invenção de umnarrador

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163 Loquaz Zé Bebelo: a superação de um mestre do discursologorrágico

Ao longo dessas páginas em que Rosa desdobra-se em“io bardo” e leva um feroz combate contra o signo do maiscélebre lingüista suíço, o silente Hermógenes, epônimo deSaussure e grande adversário de Riobaldo-Tatarana, opõe-setambém a Zé Bebelo, “aquela mente de prosa” (gsv 276),tal como o falante jagunço é definido por Riobaldo. Essaadversidade entre Hermógenes e Zé Bebelo223 prossegueinclusive nas próprias comparações tecidas por Riobaldo:

“Entremeando, eu comparava com Zé Bebelo aquele

homem [Hermógenes]. Nessa hora, eu gostava de Zé Bebelo,

quase como um filho deve gostar do pai. As tantas coisas me

tonteavam: eu em claro. De repente, eu via que estava

desejando que Zé Bebelo vencesse, porque era ele mesmo

quem estava com a razão” (gsv 147).Assim, enquanto faz parte dos hermógenes e dá combate

a Zé Bebelo, Riobaldo pressente que se encontra do ladoerrado do contencioso bélico-letrista, pois a razão está como falante jagunço Bebelo, e não com o jagunço desprovidode voz. É interessante observar que, no trecho em tela,Riobaldo lança a sugestão de uma filiação simbólica entreele e Zé Bebelo: conservemos, portanto, em mente, essapossível filiação, dado de grande importância para a seqüênciadeste estudo. Com efeito, as relações entre Riobaldo e ZéBebelo são de natureza extremamente complexa: após tersido aprendiz de Riobaldo, Zé Bebelo torna-se seu mestrenos bandos de jagunços. Em seguida, Riobaldo deserta eencontra Diadorim. Tanto aluno quanto mestre tornam-se,então, adversários. Posteriormente, pelo simples poder deseu discurso, Riobaldo salvará o antigo companheiro de armasno episódio de seu julgamento por Joca Ramiro e pelos chefesjagunços. Esse episódio servirá como funesto pretexto paraque Hermógenes elimine o valoroso chefe cujo filho éReinaldo-Diadorim224 . Após a morte de Joca Ramiro,Riobaldo e Zé Bebelo tornam-se ainda uma vezcorreligionários com o intuito de eliminar Hermógenes — osigno arbitrário — e Ricardão — cujo único objetivo é o deamealhar fortuna por intermédio da jagunçagem, como oleitor é informado já ao início do romance225 —. Por fim,

223 Para J.C. Garbuglio,essa oposição escreve-seem termos de continu-idade e inovação: “Oque sentimos na obrasão dois momentosdistintos de umarealidade geográfica, osertão, configurados,latu sensu, em doispersonagens represen-tativos de cada umadessas fases, uma decor-rente da outra e continu-ando-a historicamente,embora com a intro-dução de elementosmodificadores da tradi-ção: Hermógenes e ZéBebelo. Hermógenes, ofilho das sombras, é ojagunço formado nocostume antigo, do ser-tão que se perde notempo.” José CarlosGARBUGLIO, O mun-do movente de Guima-rães Rosa, p. 97.224 J.C. Garbuglioobserva ainda que osilente jagunço nãosuporta a possibilidadede sobrevida da ino-vação simbolizada porBebelo: “Hermógenesvive o inusitado aconte-cimento que contrariaos hábitos, aceitos pelouso e estatuídos emnormas de proce-dimento. (...) A quaseabsolvição do inimigo,punido apenas com aexpulsão do sertão, oleva a elaborar um planoque conduz o própriochefe à morte, por serele o aceitante oficial donovo, das modificaçõesintroduzidas.” JoséCarlos GARBUGLIO,O mundo movente deGuimarães Rosa, p. 98.225 “Ricardão, mesmo,queria era ser rico em

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164 Zé Bebelo deixa a vida de jagunço, posto que Riobaldo torna-se, após o suposto pacto com o diabo (dê-mot), mais forteque o loquaz antigo chefe de jagunços.

Mas a força de José Bebelo, em que elementos consiste?Zé Bebelo, para Riobaldo, representa o homem em busca dasabedoria, a personificação da própria inteligência: “Ali, quemse alembrava de Zé Bebelo eram minhas horas de muitainteligência” (gsv 457). As manifestações da força são, porconseqüente, oriundas do saber, objeto das buscas de JoséRebelo Adro Antunes: “Aquele queria saber tudo, dispor detudo, poder tudo, tudo alterar” (gsv 62). O saber será fontedo poder de inovação, de rompimento com a tradiçãorepresentada por Hermógenes, jagunço que é a própriarepresentação antinômica do loquaz e verborrágico José. Masqual é esse saber buscado e manejado pelo chefe dejagunçagem? A pista de leitura talvez se encontre no própriopersonagem, posto que o parceiro-adversário de Riobaldo vêseu nome paulatinamente transmutado no decorrer das páginasdo romance: “Zé Bebelo”, “Zebebéo” (gsv 321), “Zebebel”(gsv 63): Zé Babel?

Será lícito vislumbrar, em meio a essas mutaçõesonomásticas, o monumento em que se entrecruzam todos aslínguas faladas do planeta226 ? Quando, acerca de GrandeSertão: Veredas, Vargas Llosa fala de “Torre de Babel”227 , teriao autor peruano o intuito de indicar essa perspectiva? Sejacomo for, G. Rosa parece remeter a essa pista de leituraquando afirma almejar, para suas criações literárias, “a línguafalada antes de Babel”228 . Zé Bebelo poderia, portanto,apresentar-se como a representação simbólica de um certoamálgama idiomático, reflexo daquele idioma nagã queRiobaldo afirma poder transformar em signos comunicativosno interior do espaço sertanejo229 . Nessa perspectiva, valeobservar que Zé Bebelo é apresentado, quando de seujulgamento, como um ser impalpável, desprovido de matéria,o qual não se pode tocar ou reter nas mãos:

“Também o que eu não entendia possível era Zé Bebelopreso. Ele não era criatura que se prende, pessoa coisa de sehaver às mãos. Azougue vapor...

E ia ter o julgamento.Tanto que voltamos, amanhã cedinho estávamos lá, no

acampo, debaixo de forma. Arte, o julgamento? O que issotinha de ser achei logo que ninguém ao certo não sabia.”(gsv 222)

paz: por isso guerreava”(gsv 9), era “brutocomercial” (gsv 154):eis aqui um jagunçomovido por interessespecuniários, ao qual épreciso dar combate,subentende-se a partirdas palavras deRiobaldo. “Bruto”,inculto, tosco e descui-dado (em português),ou carente de beleza(em italiano): essepersonagem repre-sentará, no universo dasLetras, a sub-literatura,por essência comercial,descuidada e sem com-promissos estéticos.

226 Nessa perspectiva,Günter Lorenz nosinforma que, além doportuguês e do es-panhol, G. Rosa falavafluentemente francês,inglês, alemão e italiano.Além disso, possuíaconhecimentos sufici-entes para ler livros emlatim, grego clássico,grego moderno, sueco,dinamarquês, servo-croata, russo, húngaro,persa, chinês, japonês,hindu, árabe e malaio(op. cit., p. 82).227 Título de seuprefácio à segundatradução francesa doromance. Diadorim,p. 11.228 Cf. carta do autordatada do dia 3 denovembro de 1964 ecitada por M.L. DANIEL, op. cit.,p. 26.229 Cf. “SilenteHermógenes”, capítulosupra.

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165 Segundo os dicionários de língua portuguesa, “azougue”designa o mercúrio, mas também, “pessoa muito esperta”.Essa “pessoa esperta ou ladina”, segundo o narrador,apresenta-se como ser etéreo, aéreo, em forma de vapor.Trata-se de uma entidade abstrata, e não concreta,personagem alegórico em um romance alegórico. Zé Bebelopoderia, portanto, representar, apropriadamente, as noçõesabstratas que definem uma língua ou idioma. Entretanto, ojulgamento de Zé Bebelo será também o julgamento da Arte,conforme indicam a indagação de Riobaldo (“Arte, oJulgamento?) e sua orientação no sentido de que, quanto aoepisódio, o significado que “tinha de ser achei logo queninguém ao certo não sabia”, tornando-se necessário buscaro significado ocultado sob a palavra. Nessa perspectiva,convém sublinhar, desde já, que o julgamento ocorre emum “acampo”230 , “debaixo de forma”. Também a sentençade condenação pronunciada por Ricardão poderá ser lidacomo referência ao universo das Artes: “é a misericórdiaduma boa bala, de mete-bucha, e a arte está acabada eacertada. Assim que veio, não sabia que o fim mais fácil éesse?” (gsv 233) Em sua sentença, Ricardão propõe aexecução sumária de Zé Bebelo, e o fim da arte propugnadapelo falante jagunço. O “fim” dessa “arte” poderá ser tambémsua correção-acabamento ou “acerto”, segundo critériospróprios de Ricardão, e o objeto do julgamento seria assim o“erro” ou “acerto” no âmbito da produção artística, no planoda forma estética.

Note-se que também no domínio artístico se fará a defesado incansável prosador: “Artes o advogo” (gsv 236), afirmaRiobaldo, lançando as palavras que permitirão a absolviçãode Bebelo-Rebelo. Se o fluxo das veredas pode corresponderao fluxo textual, Riobaldo terá a ocasião de falar sobre “orebelo dum rio cheio” (gsv 343) — forma adversativa derio-baldo, rio vazio —. Estaríamos, portanto, diante dojulgamento de “Rebelo”, ou da rebeldia contra os cânonesartísticos? Diante do julgamento das inovações estéticastambém anunciadas pelo nome do personagem: re-belo, onovamente (“nova-mente”, mente nova) belo? Será Bebeloum inovador sertanejo, como deixam entrever todos osindícios e pistas de leitura?231

Quando de sua prisão por Joca Ramiro, evento que oconduzirá ao episódio do julgamento, Zé Bebelo alerta: “o

230 “Acampo” é variantearbitrária e não despro-vida de significadosimbólico para“acampamento”.231 J.C. Garbugliosublinha a oposição en-tre continuidade einovação no episódio dojulgamento: “O julga-mento de Zé Bebelo,como já vimos, funcionacomo o ponto derepartição entre o antigoe o novo, pois marca oinício de passagem damentalidade de um parao outro.” José CarlosGARBUGLIO, Omundo movente deGuimarães Rosa, p. 98.

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166 que o senhor vê não é o que o senhor vê, compadre: é o queo senhor vai ver” (gsv 222). Teríamos aqui outro protocolode leitura orientando o leitor no sentido de buscar umsignificado oculto ( que “não se vê”), um significadosubjacente ao texto, para os eventos narrados à superfíciedo texto e imediatamente legíveis. Assim, nesse episódiocapital do julgamento, as duas primeiras palavras que ZéBebelo pronuncia em direção aos jagunços, para sua própriadefesa, são, como por acaso, “altas artes”. O julgamento deZé Bebelo, tal como indicado por ele mesmo, mas tambémpor Riobaldo e Ricardão, está intrinsecamente ligado às artes.Retomemos, portanto, ao notável trecho em que é preparadoo julgamento, passagem já transcrita alguns parágrafos acimae que anuncia o espaço do acontecimento belestrista: trata-se de um “acampo, debaixo de forma. Arte, o julgamento?”Seria lícito ver em “acampo” apenas uma inédita e meravariação de “acampamento”? Ou deveremos, com maispropriedade, decompor esse pretenso neologismo em “a-campo”, campo do “A”, metonímico campo das letras-Letras?Talvez seja essa a decisão mais acertada, sobretudo seconsiderarmos que o julgamento de Bebelo-Linguagem oude Bebelo-Arte se dará “debaixo de forma”, forma que sequer lingüística ou artística no... campo das Letras. Doravante,podemos considerar que o julgamento de Zé Bebelo remete,de maneira indubitável, a um julgamento de letras artísticasou literárias.

Note-se que a possível execução de Bebelo, propostapor Ricardão, seria realizada por intermédio de uma “bala demete-bucha”, processo antigo em que a pólvora é socada nocano da arma e, posteriormente, a bala é também inseridanaquele conduto, entupindo-se ou fechando-se, porconseqüência, o caminho que conduz à boca da arma. Ora,Ricardão somente se refere ao procedimento que leva aofechamento da boca, sem definir qual seria o conduto a serentupido. É fácil deduzir que a boca a ser calada seria a dopróprio Zé Bebelo. Por outro lado, a arma que se serve da“bala de mete-bucha” pode ser o bacamarte, tambémchamado por Riobaldo de “bocamorte”, cuja “carga”, segundoo narrador, é “jaculação” (gsv 183). A morte propugnadapor Ricardão é resultante da fala e resume-se ao silêncioimposto ao inimigo por intermédio da palavra.

Zé Bebelo, Zé Babel: pretenso chefe jagunço que se

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167 transforma, ao desfolhar do enigma, em símbolo de umartístico mosaico idiomático, sob espécie literária, chefe queé preciso calar, no entendimento de Ricardão, sectário deHermógenes. Nessa perspectiva, o leitor poderá se lembrardo célebre e pioneiro artigo em que Augusto de Campostraça um pertinente estudo comparativo entre GuimarãesRosa, Mallarmé e James Joyce: nesse artigo, o ilustre crítico— em que pese uma certa dose de eurocentrismoencontradiça em suas idéias — situa o irlandês Joyce emuma posição próxima à da Babel Universal, em função deseus experimentos lingüísticos232 . Ora, se no espaço sertanejoZé Bebelo, o prosaico, pode ser interpretado comorepresentação simbólica de Babel, poderemos entrever emJosé Rebelo, José Babel, exatamente um certo logorrágico...Joyce Babel.

Essa aproximação paronomástica é facilmente operávelpelo mais inocente dos leitores do vertiginoso enigmametalingüístico. Zé Bebelo se transforma em símbolo datransposição literária, sob motivo sertanejo, da figura e dosexperimentos de James Joyce, cuja escrita aproxima-se,segundo Augusto de Campos, da Babel Universal233 . Se afiliação literária entre Guimarães Rosa e James Joyce é,segundo boa parte da crítica, patente234 , numa relação que éamplamente discutida em diversos estudos, talvez seja lícito— e compulsório — enxergar reflexos desta filiação no amorquase filial experimentado por Riobaldo-Rosa em relação aJosé-Joyce Bebelo, relação genealógica já explicitada no iníciodo presente capítulo. Essa genealogia, conforme esclarece onarrador, realiza-se no plano das idéias, pois Zé Bebelo seriaa fonte inspiradora de Riobaldo: “Zé Bebelo me alumiou”(gsv 271), ou, em outros termos, trouxe luz, claridade àsidéias do jagunço em situação de combate ao signo arbitrário.Talvez também por essa razão José Antunes se chame Bebelo:bebê-lo, beber dessa fonte inspiradora235 . Não por acasoRiobaldo bebe do “restilo” (gsv 296) que Zé Bebelo lheoferece: restilo é a cachaça que inebria, “alumia”, mas étambém re-estilo, estilo retrabalhado236 .

Entretanto, notaremos que o bem falante Zé Bebelo-ZéBabel detém, como vimos, o saber cujo veículo são as línguas.Ora, ao transmitir seus conhecimentos, Zé Bebelo o faz deforma inadequada, sob forma verborrágica e repetitiva,segundo o narrador: “Começava por aí, durava um tempo,

232 Augusto de Campos,“Um Lance de ‘Dês’ noGrande Sertão”, inE.F.Coutinho, Guima-rães Rosa, p. 348.233 Nesse sentido, valeobservar que K.H.Rosenfield sugere umainteressante inter-pretação que poderiacorroborar a idéia deuma aversão experi-mentada por Riobaldoem relação à prosa egestos artificiosos deBebelo-Belzebu-Babel:“Riobaldo descobre arealidade ameaçadoraque corresponde àinscrição anagramáticado ‘Belzebu’ no nomede Zé Bebelo e acua apaixão maligna desdedemônio que ‘gostaprático da guerra’ comartifícios da linguagem.Em vez de matar otraidor, ele nega avalidade da existênciado sujeito particular,passional e mortífero,anunciando assim demaneira figurada aruptura como o seu“reino”. Zé Bebelo – o‘arteiro’, o astuciosoinventor de estrata-gemas guerreiros – évencido por um outrotipo de ‘arte’: invençãoque se depreende doplano das realidadesconcretas da guerra,jogando com os duplose múltiplos sentidos daspalavras.” Kathrin RO-SENFIELD, Os desca-minhos do demo. Tradi-ção et ruptura em Gran-de Sertão. Vereda,p. 26.234 “Embora [Guima-rães Rosa] jamais tenhachegado à radicalidadeda derradeira fase doautor de Finnegans

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168 crescendo voz na fraseação, o muito instruído no jornal. Iame enjoando. Porque completava sempre a mesma coisa.”(gsv 111-112). Vemos assim que sua voz transmite umconhecimento versando sobre eventos acidentais, tais comoo fazem notícias vistas em jornais, eventos em que se mudamos personagens mas repete-se o acontecimento, em que faltaa necessária transcendência poética. Na vertente oposta, onarrador parece indicar, nas entrelinhas do texto, anecessidade de dar vazão ao conhecimento de noçõesessenciais à existência humana. Por essa razão, Riobaldodemarca-se das atitudes de Zé Bebelo: “aquela mente deprosa já me aborrecia” (gsv 276). Notamos, portanto, queos sentimentos de Riobaldo por Zé Bebelo transcorrem noplano da ambigüidade. Essa ambigüidade se traduz em termosde rejeição e dependência: “Zé Bebelo era a perdição, mastambém só ele podia ser a salvação nossa” (gsv 305). ZéBebelo é o elemento inadequado, todavia imprescindível,para uma bem lograda vitória. Por essa razão, Riobaldo lançauma questão que ficará sem resposta, ao tentar saber se ZéBebelo “servia ou atraiçoava” (gsv 304) à causa dos jagunços.

Essa ambigüidade também se inscreve na própria figurade Zé Bebelo, que reúne em si, de forma oximórica, paresantitéticos, como indica o texto: o jagunço nasceu na“bondosa vila mateira do Carmo da Confusão” (gsv 242).“Vila mateira” sugere a noção de uma oximórica “cidadeflorestal” cujo nome endereça o leitor a uma tambémoximórica “confusão calma”. Caso “mateira” possa remetera “matar”, haveria ainda o par oximórico “matadora bondosa”.Zé Bebelo é o paradoxo (ou oxímoro) personificado emjagunço: ao mesmo tempo ele representa rebeldia einstrumento da lei; ele combate ao lado do governo e dosjagunços; ele é elemento do campo e da cidade237 . Valeobservar que essa “cidade da confusão” pode facilmenteremeter a... Babel. Ademais, Zé Bebelo restringe-se aprojetos, às opacas neblinas da volição, quando imprescindívelse faz a passagem de projetos a atos concretos, norteadospor firmes convicções: “Mas Zé Bebelo era projetista. Eu,eu ia por meu constante palpite. Usando de toda ajuda queme vinha, mas prevenido sempre contra o Maligno: que oque rança, o que azeda” (gsv 451). Riobaldo serve-se desua intuição para levar a contento um objetivo de escriturapoética, para preservar as Letras (aqui representadas pelo

237 “Zé Bebelo –anagrama de Belzebu –luta de maneiraperversa: para oGoverno, mas combandos de jagunços.Nunca fica muito claroquais os interesses porele definidos, e o olharde Riobaldo vai diretoao centro do problemaao jagunços, mas pelo‘prazer prático’ daguerra – guerra pelaguerra que emendaconsigo mesma: estéril

Wake”, escrevem Mas-saud Moisés e JoséPaulo Paes, em seuPequeno Dicionário deLiteratura Brasileira,São Paulo, Cultrix,1980, p. 373. Observa-remos, nesse sentido, asdivergências que come-çam a se manifestar nasambivalentes relaçõesentre Zé Bebelo eRiobaldo.235 Pensemos desde jáem Tipote, jagunçorastreador de “fontes”para o sucesso datravessia.236 Mais uma vez J.C.Garbuglio observa compertinência a solução decontinuidade existenteentre Bebelo e Urutu:“O continuador de ZéBebelo, como chefe debando e como assimi-lador deste mundo deZé Bebelo, é Riobaldo,o narrador, o homem dosertão, que o tomacomo padrão imitável enorma de procedi-mento.” José CarlosGARBUGLIO, Omundo movente deGuimarães Rosa, p. 99.

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169 forma expletiva “q” ou pelo ambíguo “o”) de um processoputrefatório (“rançar” ou “azedar”).

Como observa Francis Utéza, Zé Bebelo chama-se JoséRebelo Adro Antunes: ele traz em seu nome o termo “Adro,de Atrium, o pórtico do templo”238 , e, por essa vertente,está condenado a permanecer na entrada do templo (literário?lingüístico?), a não penetrar eficazmente no universo dalinguagem também simbolizado em seu nome. Bebelocondena-se a projetos sem execução, a delimitaçõesintransponíveis. Riobaldo transpõe as delimitações queimobilizam Zé Bebelo e passa sem delongas aos atos. Essesatos só poderiam, segundo as evidências até agoraexplicitadas, relacionar-se com experimentos formais tendopor objeto a linguagem (e sua mais nobre forma demanifestação, o fazer poético). Assim, Riobaldo sugere queZé Bebelo tem a intuição daquela “verdade duma coisa, forte”(gsv 293), mas que não logra captar a extensão total dessessentimentos, a razão do confronto entre os hermógenes e oszé-bebelos: “Aquele homem me sabia, entendia meusentimento. A ser: que entendia meu sentimento, mas sóaté uma parte — não entendia o depois-do-fim, oconfrontante. Assemelhado a ele, pensei” (gsv 296). Esseconfronto lingüístico somente poderá ser compreendido“depois-do-fim” de Hermógenes, depois de vencida a batalhaque Zé Bebelo não logrou vencer com suas manobras e“artimanhas”.

O “sentimento” ou intuição de Riobaldo parecemremeter, pela estrutura paratática da frase transcrita, àinusitada expressão — pelo menos no contexto — “A ser”.Tomemos “ser” como substantivo, a despeito de sua possívelforma verbal nessa construção: o “A” torna-se entidade sobrea qual age a intuição de Riobaldo. Se lembrarmos que essaintuição ocorre dentro do espaço literário, comodemonstrado até o presente momento, e se pensarmos notítulo do romance, chegaremos a uma possível sugestão desentido para “A ser”. “Grande Sertão”, ser-tão grande: aintuição de uma necessária vitória sobre Hermógenes, sobreo signo motivado, remeteria a um provável “A ser-tão grande”;em outras palavras, a vitória sobre o signo motivado conduziriaa um “A tão grande”, a uma grande letra: por metonímia(também representada por “o” e “l”), a engrandecidas evaloradas Letras, a “Altas Artes” ou Altas Literaturas.

238 Francis Utéza,Metafísica do GrandeSertão, p. 237.

como o Liso do Sussu-arrão. Daí a necessidadede fazer com que estepersonagem assine, emum momento crucial danarrativa, com seu nomecivil; ‘Rebelo’, o quesignifica etimologi-camente: ‘entrar semprede novo em guerra’ (re-bellum).” KathrinHolzermayr ROSEN-FIELD, Os descaminhosdo demo. Tradição etruptura em GrandeSertão. Veredas,p. 76.

IV. O bardo Rio-baldo e seu fardão:a invenção de umnarrador

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170 Lembremos ainda uma vez de uma certa definiçãoproposta por Riobaldo: “altas artes de jagunços: histórias”(cf. gsv 94). As Altas Literaturas são aquelas em que Riobaldoe Bebelo tanto divergem quanto convergem, segundo oaspecto considerado: “Não nas artes que produzia, mas noarmar de falar assim — ele era razoável” (gsv 292). Logo, aLiteratura produzida por Bebelo é inadequada, ainda quesua intuição caminhasse no sentido adequado, pelo menosquanto à forma (armadura ou estrutura formal representadospor “armar”). Tal infração poética ou estilística deriva-se dofato de que Zé Babel Adro Antunes ignora o podersignificante do som, como seu sobrenome indica: Antunesou, considerando-se o verbo inglês “untune”, aquele quetira do tom, incapaz de produzir música, bardo fora desintonia, jagunço rebelde que tira da sintonia, desconcertado,desalinhado com a música do universo; segundo o bardo, oJoyce “rebel” “untunes” a literatura. Tal leitura encontraráeco nas palavras de Guimarães Rosa: “(...) entretanto, nofundo, enquanto vou escrevendo, eu traduzo, extraio demuitos outros idiomas.”239 Por essa razão, já na Fazenda dosTucanos, ao preencher cartas sob orientação do loquaz jagunçocandidato a prebendas oficiais, Riobardo-Rosa começa amarcar suas distâncias em relação a Zé Bebelo-Joyce Babel:

“A amizade dele eu para longe de mim já encostava —

porquanto que, por mão minha, no incerto, ele podia ainda

vir a precisar de ser matado. Eu estava em claro. Eu tinha

preenchido aqueles bilhetes e cartas, amanuense, os linguados

de papel — eu compartia as culpas. A invencionice de

ambicioneiro” (gsv 306).Riobaldo se distancia de Bebelo, de suas “invencionices”

inexpressivas e ambiciosas, e pressente que precisará matá-lo (depois de bebê-lo) por intermédio de sua própria mão,por intermédio de sua escrita. Assim, K.H. Rosenfieldsublinha, nessa passagem, “a ‘voz de combinação’ e não deautoridade com a qual Zé Bebelo o guia, no meio do combate,para um cômodo a fim de ditar cartas”240 , voz pautada em“combinações” ou convenientes acordos gramaticais.Destarte, sob orientação de Zé Bebelo, a escrita que Riobaldoproduz é escrita de “amanuense”, simples expedienteburocrático e automático de “preencher” papéis e mais papéis(referência ao célebre monólogo de Moly Bloom?), sem

239 Apud. GünterLORENZ, “Diálogocom Guimarães Rosa”,p. 70.240 Kathrin HolzermayrR O S E N F I E L D ,Grande Sertão: Vere-das. Roteiro de leitura,p. 59.

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171 significado expressivo, ato que repete, sob forma gráfica ouimpressa, a loquacidade sem metas de um orador que “nãodesistia de palavrear, a raleza de projetos, como faz-de-conta.A mó de moinho, que, nela não caindo o que moer, móiassim mesmo, si mesma, mói, mói”241 (gsv 356). Aqui, oleitor notará que essa situação de um moinho que se mói a simesmo poderá remeter a uma certa linguagem literária que,não logrando temas sobre os quais se expressar, toma-se comoseu próprio, único e exclusivo tema, a ponto de consumir-se, esvaecer-se, como a pedra de moinho girando sobre simesma, moendo-se a si mesma.

Haverá, portanto, nas críticas lançadas pelo “io-bardo”ao encontro das práticas sertanejas de Zé Babel, umacondenação velada (ma non troppo) a um certo plurilingüismogratuito encontradiço em James Joyce, condição que serápreciso depassar em benefício das “Altas Artes”.242 Aexpressão pejorativa “invencionice de ambicioneiro” qualificanegativamente os procedimentos de Bebelo que, por outrolado, é chamado de “velho” (gsv 385) por Urutu-Crátilo,no momento em que o bardo cratiliano busca assumir acondução dos jagunços ruma às saídas “de novamente”(gsv 368), de mente nova. Ao intelectualmente obsoleto eultrapassado, cabe substituir novas e eficazes propostas paraa construção de um novo universo, para a fertilização dasáridas planícies do Sertão. Ora, o próprio Zé Bebelo,enquanto ainda rebelde (seu nome traz o inglês “rebel”, que,ao lado de “untunes”, também sugere que o personagemdeve ser interpretado no plano da língua e da cultura inglesas,como Joyce), lança a idéia que conduzirá, posteriormente, ànecessidade de substituir o velho pelo novo: “Velho é, o quejá está de si desencaminhado. O velho valeu enquanto foinovo...” (gsv 227). O leitor deverá aqui levantar a questãosobre a probabilidade de, no embate entre Crótalo eHermógenes, James Joyce representar a “perdição” mastambém a “salvação” características de Bebelo, um caminhoinadequado — posto que “velho” e “desencaminhado” —mas necessário para vencer o signo arbitrário. Sejam quaisforem as corrediças respostas a esses vertiginosos enigmas,em Grande Sertão: Veredas o texto literário toma-se comoseu próprio tema crítico, conduz o processo de seu própriojulgamento e apresenta, sob forma de palimpsestos, a suaprópria condição auto-reflexiva. Prossigamos, um pouco mais,

241 Donaldo Schülersublinha o aspectomimético dessa frase:“Aqui a reiteração de modá a imagem acústica domovimento rotativo damó. As experiências doconcretismo são realiza-das com proveito.”Donaldo SCHÜLER,“Grande Sertão: Vere-das — Estudos”, inEduardo F. Coutinho(org.), Guimarães Rosa,p. 374.242 Sobre esse aspecto,D. Schüler escreve: “Oromancista irlandêscriou uma linguageminternacional, recorren-do a mais de umadezena de línguas. Nãohá possibilidades deatingi-lo sem o auxíliode intérpretes especiali-zados.” DonaldoSCHÜLER, “GrandeSertão: Veredas — Estu-dos”, in Eduardo F.Coutinho (org.), Gui-marães Rosa, p. 377.Por essa razão, lembre-mos, G. Rosa afirmaquerer a língua anteriora Babel, e não aplurilíngua de Babel. Asnoções propostas porK.H. Rosenfield po-dem vir em comple-mento a essa leitura: “As‘artimanhas’ insidiosas,silenciosas e inarticu-ladas de Zé Bebelosubstituem-se agora as‘artes’ de Riobaldo,baseadas na invençãosimbólica (os discursosaparentemente malu-cos) com as quais esteconsegue salvar a si e aosseu companheiros damorte e da aniquilação.”Kathrin HolzermayrROSENFIELD, Osdescaminhos do demo.Tradição et ruptura emGrande Sertão.Veredas, p. 215.

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172 nessas veredas especulares e lancemos um olhar sobre agenealogia “irracional” do bardo Riobaldo.

Padrinho Selorico Mendes e a jagunçagem: a genealogiade um bardo

A árvore genealógica de Riobaldo parece ter suas raízesno solo da efabulação: Selorico Mendes, o padrinho-pai,padre-padrone do futuro bardo Urutu-Crátilo, à imagem deboa parte dos jagunços sertanejos, “contava casos. Altas artesde jagunços — isso ele amava constante — histórias”(gsv 94). Nota-se, desde já, que esse personagem evolui noespaço definido pelas artes de jagunços, pela arte de contar,pela literatura. E, diz o texto, a figura de Selorico remete àsArtes em sua forma mais elevada, mais elaborada: as “AltasArtes” (o leitor terá em vista a imagem das Veredas Altas).Riobaldo, após a vitória sobre Hermógenes, acreditando sero afilhado de Selorico Mendes, terá verificada a suspeita,nunca antes confirmada, de que, na realidade (ficcional), eleé filho desse rico proprietário de terras sertanejas; assim,antes de eliminar Hermógenes e receber a notícia da herançadeixada por seu pai Selorico, Riobaldo “nunca soubeautorizado o nome dele” (gsv 31). Assim, o narrador declaraque Selorico o “deixou por herdeiro, em folha de testamento”(gsv 97), notando-se aqui uma certa redundância entre“folha” e “testamento”. Por conseqüência, Riobaldoterminará por receber essas propriedades — “fazendões defazendas” (gsv 1), local em que se faz, em que se produz,conforme a etimologia do termo — por meio de transmissãohereditária, por meio de uma “cédula de testamento”(gsv 534), outra construção redundante em que se sublinhaa importância do papel escrito e de valor reconhecido. Porintermédio desses papéis legais, o bardo Riobaldo poderámanifestar sua riqueza, o bardo poderá “sê-lo rico”.

O papel ou a folha, suportes do texto escrito, sobre osquais estão registrados a herança e a prova de filiação,adquirem tanta importância quanto a própria transmissãode posses. Naquelas terras herdadas por filiação genealógica,o narrador terminará seus plácidos dias entre lembranças,reapropriando-se, por intermédio da memória, um passadoora revoluto. Ora, Walnice Galvão observa que “é por via do

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173 padrinho que se prepara o destino duplo do Riobaldo, para asarmas e para as letras. Do padrinho vem o adestramento nasduas ordens instrumentais.”243 Por essa vertente bélico-bel-letrista, Riobaldo-Guimarães sugere reivindicar sua inscriçãona reta filiação — literária ou registrada sobre papel — do poetaromântico brasileiro Manuel Odorico Mendes (1799-1864),humanista e conhecedor de vários idiomas, tradutor de Virgílio(Eneida Brasileira) e de Homero, introdutor de inumeráveisneologismos miméticos em suas versões para o idioma portuguêsda Ilíada e da Odisséia244 . A partir da leitura da obra de Odorico,Haroldo de Campos observa a grande proximidade existenteentre as construções idiomáticas levadas a efeito pelos doisautores245 , fato que confere à filiação Riobardo-Selorico umgrande significado simbólico.

A respeito das traduções de Odorico Mendes, Alfredo Bosiescreve: “Suas versões, estritamente literais, foram julgadasindigestas quando não ilegíveis; opinião discutível na medidaem que o literalismo pode concorrer para a forja de um léxiconovo e colar-se ao espírito do original.”246 O leitor terá notado,nessa apresentação de Odorico Mendes, pontos de confluênciacom a opinião de certos críticos (privados daquele “patamarmínimo de rendimento intelectual” a que alude, sugestivamente,Riobaldo) em relação à obra de Guimarães Rosa. Silveira Bueno,nessa perspectiva, recrimina em Rosa aquilo que exalta notradutor: “Odorico Mendes, atendo-se, no geral, aos melhoresautores clássicos portugueses, especialmente a Filinto Elísio dequem se fez discípulo, não duvidou, como o mestre grego, deusar palavras de outras procedências, empregando galicismos,italianismos, e o que é mais notável, recorrendo aos modismosdo Brasil.”247 Por outra vertente, Ana Luíza Costa afirma que“um vínculo muito forte une os dois autores, um mesmopreceito orienta suas opções estéticas: o enriquecimento doportuguês através do diálogo fecundo e canibalesco entre váriaslínguas.”248 Citando Haroldo de Campos, a pesquisadoracomplementa:

“Para Haroldo Campos, as traduções de Odorico Mendes‘prepararam terreno para as invenções vocabulares’ deSouzândrade, de Guimarães Rosa e da criativa tradução brasileirado Ulysses, de Antônio Houaiss. Invertendo a formulação doscríticos, podemos dizer que foi Guimarães Rosa quempreparou terreno para a leitura e fruição das traduções deOdorico.”249

243Walnice NogueiraGALVÃO, As formas dofalso: um estudo sobre aambigüidade no GrandeSertão: Veredas, p. 78.244 “As traduções deHomero do poeta pré-romântico maranhenseManuel Odorico Men-des (1799-1864) sóforam publicadas após asua morte: a Ilíada, em1874; a Odisséia, em1928. Segundo SilveiraBueno, que assina oprefácio da edição desua Ilíada, datada de1956 (Biblioteca Clás-sica, vol. XXXVII, SãoPaulo, Atena), cabe aOdorico o mérito de tersido o primeiro tradutorde Homero para oportuguês: no final doséculo passado, AntônioJosé Viale publicouapenas alguns episódiosda Ilíada; somente em1945 foi editada emPortugal a traduçãointegral do padre M.Alves Correia. (...) Nãopodemos afirmar queGuimarães Rosa tenhalido as traduções deOdorico Mendes.” AnaLuiza Martins COSTA,“Rosa, Ledor de Ho-mero”, in Revista USP,p. 72. Notemos, toda-via, que Rosa declaraque Miguel de Una-muno poderia ter sidoseu avô: a filiação assu-me, em seu discurso,um caráter totalmentesimbólico. Cf. GünterLORENZ, “Diálogocom Guimarães Rosa”,in Eduardo F. Coutinho(org.), Guimarães Rosa,p. 68.245 “De la traductioncomme création etcomme critique”, inCollectif Change, 14,p. 77.

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174 Nessa perspectiva, o bardo-narrador — nesseromance, um desdobramento metafórico do bardo-autor— sublinha os laços que o unem, através da palavra, a Selorico:“acho que nós dois éramos mesmo pertencentes” (gsv 97).O verbo “pertencer” é aqui apresentado, sob a forma passiva“ser pertencente”, como verbo intransitivo, quando narealidade trata-se de um verbo transitivo indireto. Cabe aquia questão sobre o complemento de objeto solicitado peloverbo “pertencer”, que implica em “pertencer a algo ou aalguém”. Assim, pelo grau de abertura que Rosa deixa aoleitor, poderemos ver que Riobaldo-Guimarães e Selorico-Odorico serão pertencentes a um conjunto mais amplo, e,nesse caso, pertencentes a uma mesma linhagem, talvezaquela linhagem humanística, lingüística e literária que guioua vida desses autores. Por essa razão, no momento de servir-se de suas armas para dar seqüência ao combate artístico,Riobaldo diz: “Artes que carreguei o rifle, escorei, repetente.(...) Mas eu estava era de repente pensando em meu padrinhoSelorico Mendes” (gsv 182). Riobaldo sente-se repetir (elese diz “repetente”) algo já feito anteriormente, pensa emSelorico-Odorico. Esse pensamento faz com que o jagunçosuspenda, provisoriamente, seu tiro, para melhor centrar suavisada bélico-bel-letrista.

Nesse sentido, observaremos que, entre as armasfornecidas por Selorico ao adolescente Riobaldo, duranteseus anos de aprendizado, uma apresenta-se em “formatode folha de gravatá” (gsv 95). Essa arma, Selorico haviamandado forjar para si próprio — e vale observar que setrata, aqui de uma espada, arma branca como a folha depapel —. O termo “gravatá” pode ser resultante, porintermédio de processo derivativo de todo corrente emGuimarães Rosa, de “gravatã/gravatão”. Ora, “gravatão” éum vocábulo que remete à noção de “homem prosapioso,pedante, que conta vantagens”, atitude que é aliásabertamente adotada por Selorico em locução transcrita, noromance, imediatamente após o termo “gravatá-gravatão”.Essa atitude é anunciada no mesmo parágrafo e em quatrolinhas antecedentes, forma de dar curso à tessiturasignificante, quando o narrador afirma que Selorico “segabava, goga” (gsv 95). “Goga” é derivado de gogó, termofamiliar para designar a imagem do pedante, mas tambémlocal sobre o qual se ata o nó da gravata. Nessa perspectiva,

246 Alfredo BOSI,História Concisa daLiteratura Brasileira,p. 138.247 Citado por AnaLuiza Martins COSTA,“Rosa, Ledor de Ho-mero”, in Revista USP,p. 65.248 Idem, Ibid., p. 67.249 Idem, Ibid., p. 68.

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175 “gravatá-gravata” sugere igualmente a possibilidade desufocar-se por enforcamento ou estrangulamento. E a forma— de gravatá, gravatão, gravata — que caracteriza a arma-folha (branca) dada como oferenda pode se transformar emsinônimo de morte para quem se serve dessa folha ou dessaforma-fôrma. Talvez esse “formato de folha” nada mais sejado que o reflexo daquela “preciosidade rebarbativa”250 que,segundo Haroldo de Campos, muitos críticos, desde SílvioRomero, buscaram encontrar nas traduções de OdoricoMendes.

Tendo em mente a análise realizada de algumasconstruções rosianas significantes em sua própria estruturasonora, vale observar que a mesma técnica mimética ésublinhada por Haroldo de Campos em Odorico Mendes,tradutor que “logra criar a transcrição onomatopaica dobarulho do mar, uma constante na epopéia homérica”251 ,como nos versos “muge horríssona vaga e o mar reboa/ comsopro hórrido e ríspido encapelam/ o clamoroso pélago...” Eas semelhanças entre Riobaldo-Rosa e Selorico-Odorico sãoinicialmente postas em relevo por sertanejos que, ao observaro aspecto do padrinho e do afilhado, notam a grandesemelhança mútua. O narrador comentará: “me disseramque não era à-toa que minhas feições copiavam retrato deSelorico Mendes” (gsv 102). “Feições” remete tanto aosaspectos fisionômicos quanto aos aspectos simplesmenteformais de qualquer natureza, assim como também ao verbo“fazer”. “Retrato” remete a retratar ou retraçar, e “copiar”sugere a dimensão de modelo. A expressão “à-toa” traz o “A”(novamente, as Letras) e, possivelmente, o verbo “toar”,produzir sonoridade musical. Eis aí uma série de indicaçõesperfeitamente legíveis no sentido de filiar Riobaldo-Rosa aSelorico-Odorico em termos de traçado de letras, de modelointertextual, de fatura artística. Vemos, assim, que a narrativatoma sob sua responsabilidade o código pelo qual éapresentada. Logo, será possível deduzir que as “altas artesde jagunços — histórias” preferidas por Selorico-Odoriconão são as suas próprias, mas aquelas de autoria alheia,conforme Riobaldo indica a seus interlocutores:

“E as mais coisas meu padrinho descrevia com muitoagrado, de que tinha ouvido sincera narração. As lutas dosjoca-ramiros, os barulhos, as manhas traçadas para se ganhar

250 Haroldo deCAMPOS, “De latraduction commecréation et commecritique”, in CollectifChange, 14, p. 76.251 Idem, Ibid., p. 78.

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176 em combate, maço de estórias de toda raça de artes eestratagemas. De ouvir meu padrinho contar aquilo, secomprazendo sem singeleza, começava a dar em mim umenjôo. Parecia que ele queria se emprestar a si as façanhasdos jagunços, e que Joca Ramiro estava ali junto de nós,obedecendo mandados, e que a total valentia pertencia aele, Selorico Mendes. Meu padrinho era antipático. Ficavamais sendo. Eu achava. Num lugar parado, assim, na roça,carece de a gente de vez em quando ir alterando os assuntos.”(gsv 102-103)

As “lutas dos joca-ramiros” re-contadas (“descritas” ou“di-escritas”), de segunda mão (ouvidas em “sincera narração”),serão, portanto, alusão às façanhas contadas por Homero (nãoestará “Ramiro” muito próximo, foneticamente, de“Homero”?252 ), texto escrito (“traçado”, grafado ou impresso,em “maço de estórias”, conjunto de estórias “atadas no mesmoliame”, informa Silveira Bueno, tal como um livro) sob formaartística e traduzido, re-escrito por Selorico-Odorico, comacento na sonoridade mimética (os “barulhos” dos quais falaRiobaldo) para re-criação das imagens do original, conformeHaroldo de Campos assinala em seu estudo das traduções deOdorico. As façanhas tomadas em empréstimo por Selorico,suas fontes de criação literária, são sempre as mesmas, e essarepetição é inadequada para a “roça”, o espaço rural, dizRiobaldo; esse espaço rural poderá ser a imagem simbólica doBrasil ficcionalizado por Rosa, o Brasil representado pelo Sertão.Nesse espaço, é preciso alterar os assuntos “traçados”, presosem “maços de estórias”, amarrados em liame, encadernadoscomo um livro: é preciso reformular a literatura.

Nesse sentido, relembremos que a enumeração ad libitumde nomes de jagunços também se porta como referênciaintertextual ao mundo da literatura, posto que retoma aquelaenumeração de nomes do Malévolo utilizada por Dante naDivina Comédia (Inferno, XXI)253 . Essa seria uma formaencontrada pelo autor para enfatizar o fato de que ospersonagens de seu romance são, antes de tudo, personagens.E, ademais, personagens da literatura, aqui entendidos tantosob o plano da ficção criada — criaturas do plano do enunciado— quanto sob o plano da criação de ficção — criadores doplano da enunciação —. Nessa perspectiva, D. ArrigucciJr. observa: “quando os jagunços chegam à Fazenda São

252 Se “Homero” podesignificar “cego”, em“Ramiro” temos “a-miro”, prefixo negativoe verbo “mirar” ou olhar,sugestão de uma virtualimpossibilidade de ver,enxergar: simples eexcessiva coincidência?Ou pertinente protoco-lo de leitura dispostopor Rosa em seu ro-mance-total?253 Cf. Pedro XISTO,“À Busca da Poesia”, inEduardo F. Coutinho(org.), Guimarães Rosa,p. 132. Ver igualmenteG. Rosa, Correspon-dência com seu tradutoritaliano, p. 52.

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177 Gregório, e se apresenta para Riobaldo o mundo das armas,esse já surge conjugado ao mundo das letras e da poesia.”254

A formação de Riobaldo acontece no espaço das Letras, sobmúltiplas influências que refletem sua genealogia múltiplaou indeterminada.

Por essa vertente, o leitor terá notado que a filiação deRiobaldo oscila entre as figuras de Selorico e de Gramacedo,provável amante de Bigri, mãe do heróico jagunço, conformesublinha Francis Utéza a partir das observações de DanteMoreira Leite, pois Bigri teria sido abandonada por Seloricoe recolhida por Gramacedo. Para o crítico francês,“Gramacedo” seria derivado do grego gramar, “receber umacorreção”, e cedo; o personagem remeteria possivelmente auma imagem simbólica de um pai castigador255 . Ora, o gregogramma representa “letra” ou “escrita”, conforme indicamos dicionários. Gramacedo poderia sugerir, sob esse pontode vista, ou o aprendizado da gramática (cujas regrasortodoxas são sabiamente negligenciadas em Grande Sertão:Veredas) ou a prática da escrita em um período recuado dainfância, uma primeira escrita ou escrita da juventude. Caso“Gramacedo” possa efetivamente remeter a uma letra,gramma, precocemente praticada, esses escritos poderiamrepresentar aqueles versos de amor que todo adolescentegrafa sobre as folhas de seu caderno. Tal é o que poderíamosver ao decompor o nome abominado por Urutu Branco:Gramacedo, GR AMA CEDO — Guimarães Rosa ama cedo?Esse amor precoce seria aquele eventualmente disposto em“pés-de-verso” pelo romancista? Riobaldo terá a ocasião defalar sobre o tempo (“sazão”) em os amores banais(“sentimentos serenos”) são vertidos em arte: “Além do queera sazão de sentimento sereno: arte que a vida mais regateia”(gsv 207). Essa arte, entretanto, é “regateada”, ou seja,abundante ou desprovida de valor.

Esse amor precoce poderia, igualmente, remeter àqueleamor-interesse pela gramática de vários idiomas jáexperimentado pelo menino Joãozito, conforme ensinaVicente Guimarães, tio e companheiro de infância doromancista, em seu Joãozito. Infância de João GuimarãesRosa. Na perspectiva de uma gramática — precocementeabsorvida — que conduza à produção excessivamentebalizada e normatizada de textos escritos256 , o sobrenomede Gramacedo é também significativo: Guedes, no qual o

254 Davi ARRIGUCCIJr., “O Mundo Mistu-rado: Romance eExperiência em Guima-rães Rosa”, in NovosEstudos: CEBRAP,p. 27.255 Francis UTÉZA,Metafísica do GrandeSertão, p. 399.256 Cavalcanti Proençaobserva, com humor:“Mas, com toda a suacoragem de investircontra as formastradicionais, GuimarãesRosa não conseguiuperder o medo here-ditário que nos põeinsones, em vigíliaslongas, perscrutandonos desvãos da frase dosduendes da correçãogramatical. Acredi-tamos na Mula-sem-cabeça da preposição‘em’ regendo oscomplementos dosverbos de movimento;respeitamos o Caiporaque exige pronomeenclítico no imperativoe sujeito posposto nasinterrogações; e nosintimidamos com olobisomem, ultimamen-te tão ativo, tão minu-cioso em proibir, sobpena de danação literá-ria, que a preposiçãoregente de infinitivo secontraia com pronome,ou com o artigo donome-sujeito. O escri-tor andou se assustandocom o lobisomem e, nãopodendo chegar àsujeição total do ‘deele’, ou ‘de o’, usa oapóstrofo que respeita aregra, sem quebrar apronúncia popular: ‘Nãodo fato d’ele talencarecer.’ — ‘O ventovinha bom da parted’eles chegarem.’ —

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178 francês “guides”, guias, não é difícil de se observar, sobretudose lembrarmos que os Guedes, família de Gramacedo,conduzem Bigri e Riobaldo à confluência do de-Janeiro e doSão Francisco (gsv 32). Sob essa vertente, cabe a perguntase também Bigri não seria outro heterônimo de GuimarãesRosa, em sua condição de gestador-genitor do personagemRiobaldo. Decompondo Bigri, teríamos BI-GR-I: duplo (bi)Guimarães Rosa, eu (I, em inglês). Basta lembrarmos, aindauma vez, de Moimeichego: qual leitor teria, esponta-neamente, sem orientação do romancista, decomposto essenome em moi-me-ich-ego257 ?

Entretanto, caso “Gramacedo” possa remeter a umqualquer aspecto relacionado ao amor, haveria então umsentimento ambíguo de atração e repulsão implícito ouadjacente à figura deste personagem. Com efeito, o narradordeclara que, desde sua infância, ele experimenta uma aversãoilimitada pelo eventual companheiro de Bigri: “O senhorsabe: a coisa mais alonjada de minha primeira meninice, queeu acho na memória, foi o ódio, que eu tive de um homemchamado Gramacedo...” (gsv 32). Gramacedo representariaassim, com mais propriedade, a gramática precocementeaprendida? Essa dicotomia amor/ódio poderá, nesse caso,ser entendida desta forma: interesse precoce peloaprendizado da gramática, aversão também precoce pela suaaplicação em textos. Não por acaso Guimarães afirma que,desde sua infância, “queria ser diferente dos demais, e elesnão souberam deixar escritas suas estórias.”258 Para remeterà aversão posterior do autor, já amadurecido, pela regrasgramaticais codificadas em rígidos blocos legislativos, bastaretomar a entrevista concedida a Günter Lorenz em queGuimarães declara não poder submeter-se “à tirania dagramática e dos dicionários dos outros. A gramática e achamada filologia ciência lingüística, foram inventadas pelosinimigos da poesia.”259

Nessa perspectiva, é possível encontrar sugestões deelementos literários na figura dos jagunços que acompanhama vida de Riobaldo. Essas sugestões registram-se aqui sobum veio puramente especulativo, meramente hipotético,ilustrações que solicitariam estudos de maior envergadurapara ampliar, de forma efetivamente producente, a presenteleitura do papel desses personagens. Entretanto, lembraremosaqui as idéias de Sartre a respeito do caráter interrogativo

‘Nem mandou dar nadade comer mas disselicença d’a gente dor-mir’. Mas, de repente,se esquece da simpatiapara conjurar o Cão edeixa a pena correr:‘Mas, mesmo antes dagente entrar em terrasdo Palhão’.” ManoelCavalcanti PROENÇA,“Trilhas do GrandeSertão”, in Augusto dosAnjos e outros ensaios,p . 228.

257 Orientação fornecidaa Edoardo BIZZARRI.Cf. Correspondênciacom seu tradutor ita-liano, p. 61.258 Günter LORENZ,“Diálogo com Guima-rães Rosa”, in CoutinhoEduardo F. (org.)Guimarães Rosa, p. 69.259 Idem, Ibid., p. 70.

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179 do Verbo poético, quando, a partir de certos versos deRimbaud, o filósofo afirma que, no interior do espaço definidopelo texto poético,

“Ninguém é questionado, ninguém questiona: o poeta é

ausente. E a interrogação não comporta respostas, ou antes,

ela é sua própria resposta. É, então, uma falsa interrogação?

Mas seria absurdo crer que Rimbaud ‘quis dizer’: todo mundo

tem seus defeitos. Como dizia Bréton de Saint-Paul Roux :

‘Se ele tivesse querido dizer, ele teria dito’. E ele não quis

dizer outra coisa. Ele fez uma interrogação absoluta; ele

conferiu à bela Palavra uma existência interrogativa. Eis a

interrogação tornada coisa, como a angústia de Tintoreto

tornara-se céu amarelo. É não mais uma significação, é uma

substância...”260

Ora, no romance em tela, nota-se um trabalho conscientee voluntário de representação do mundo das Letras por partedo autor (Rosa não “quis dizer”: ele diz e repete, sob formade enigmas, sua concepção do universo literário); assim, asquestões sobre o estatuto poético de certos jagunços serãoaqui levantadas como propostas sugestivas de leitura, valendopelo seu caráter interrogativo dentro da perspectiva que regea elaboração deste trabalho. Dessa forma, o leitor notaráque o narrador multiplica as indicações no sentido de umarepresentação do universo literário e afirma que, para ojagunço, “a vida já está assentada: comer, beber, apreciarmulher, brigar, e o fim final” (gsv 44). Ora, aqui estãoagrupados os grandes topoi da literatura: a luta pelasobrevivência ou as formas de sobreviver segundo a extraçãosocial; o amor; os conflitos; e, à guisa de conclusão, o desfechoda narrativa. A “vida” seria, por conseqüente, o próprio textoficcional; e o jagunço aquele agente ativo que determina(“assenta”) o fim, o desfecho, a conclusão do texto-vida.Não por acaso, o narrador complementa: “Ao que jagunço éisto — o senhor ponha letreiro” (gsv 313). A definição dojagunço, por conseqüente, dá-se no âmbito do letreiro,conjunto das letras: a literatura.

Sob essa óptica, lancemos um olhar sobre os jagunçosque acompanham o narrador em sua batalha contra o signoarbitrário. Vejamos, por exemplo, Suzarte, cujo nome aparece14 vezes ao longo do romance, sobretudo em episódios-chave

260 Citado por Haroldode CAMPOS, “De latraduction commecréation et commecritique”, in CollectifChange, 14, p. 73.

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180 tais como a Batalha do Tamanduá-tão. Esse jagunço, emconjunto com Tipote e João Vaqueiro, é rastreador. Em certoepisódio do romance, o narrador afirma que os três“rastreavam redobrados, onde em redor, remedindo omundo a olho e faro. Tudo eles achavam, tudo sabiam; empouquinhas horas, tudo tradiziam” (gsv 350). Ora,“redobrar” pode ser aqui entendido como “desdobrar”, ou“duplicar-se”, e os três rastreadores, como inumeráveis outrosfragmentos do romance (nós da teia significante), tornam-se imagens simbólicas de outros elementos em curso dedecodificação ou de decifração. “Suzarte” poderia ser nomeresultante de processo de aglutinação entre o francês “sous”,“sob”, e arte: algo como “sob arte”, sob efeito da arte. Talvezo jagunço seja imagem daquele “sous”-ândrade, Sousândrade,cuja estética Costa Lima aproxima de Guimarães Rosa pelavertente de uma escrita de cunho barroco261 , e cujasprincipais fontes Haroldo de Campos encontra exatamenteem... Odorico Mendes262 .

Assim, posto que cada autor tem um seu estilo próprio,Suzarte, entre outras características do universo das Letras,com seus olhos observa “estilos de vento, para guardar emsua memória (...)” (gsv 480) — e reproduzi-los, com o auxíliode Tipote e João Vaqueiro? —. Lembremos, mais uma vez,que vento é o ar em movimento, assim como também o é osom, o efeito sonoro, uma das preocupações centrais deOdorico Mendes em suas traduções de Homero. Nessesentido, o termo “tradiziam” pode ser visto como mot-valiseem que encontramos “dizer” e “traduzir”, ou simplesmentepalavra criada a partir da junção entre o prefixo “tra-”,“através”, e o verbo “dizer”. De qualquer forma, traduzirimplica em buscar a palavra justa — conceitual, sonora,imagística — para uma determinada idéia. Nesse caso, osjagunços rastreadores “diriam através” daquilo que “achame sabem”, “encontram e aprendem”: por essa razão sãorastreadores, ou, em outras palavras, seguem rastros, traçosimpressos sobre uma superfície, os quais serão retidos namemória (conforme o hábito de Suzarte) e apreendidos paraposterior emprego em processo de informação junto a outraspessoas. Esses traços, segundo Riobaldo, são encontrados a“olho”, mas o “faro”, ou intuição, reveste-se de grandeimportância nessa leitura do “mundo”, nesse ato de “remediro mundo”.

261 Luiz Costa LIMA,“O mundo em pers-pectiva: GuimarãesRosa”, in Eduardo F.Coutinho (org.), Guim-arães Rosa, p. 512.262 Haroldo de CAM-POS, op. cit., p. 79.

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181 Ora, é fácil observar, desde já, que “medidas” podemrelacionar-se à literatura, no caso em que sejam imagenssimbólicas das “medidas métricas” de um verso, com o“formato da forma” (gsv 54) da qual fala Riobaldo. E nãopor acaso encontraremos outro jagunço, de fundamentalimportância à vitória sobre Hermógenes, que será designadocom o emblemático nome de Quipes, possível transcriçãode “qui-pés!” — forma exclamativa para “que pés!” —,segundo os “pés-de-verso” que Riobaldo almeja “formar”ou construir (gsv 152) a partir da fonte encontrada na“Canção de Siruiz”. Talvez seja também esta a explicaçãopara o “pé-pubo” (gsv 147), pé podre, de Hermógenes. Já adimensão gráfica dos traços impressos, sugerida pelos rastrosdeixados sobre a superfície do sertão, encontra seu espelhono nome do jagunço que procura tais traços para em seguidaretransmiti-los: Tipote, tipo-T, fonte ou caráter tipográficorepresentado pela letra “T”. Lembremos, nesse sentido, queos primeiros trabalhos de Guimarães Rosa foram impressossob forma tipográfica, pois o uso generalizado do “off-set”desenvolveu-se posteriormente a esses trabalhos. A figurade Tipote poderia ser interpretada, em conseqüência, comosugestão do poder — inerente ao texto impresso — demultiplicar-se, tipograficamente, o conhecimento sobre omundo, sobre a alma humana.

Será interessante notar a existência de um quartorastreador que também contribuirá para a vitória sobreHermógenes: Nelson. Precisamente no momento em queUrutu está à frente de seus jagunços, “instruindo o caminho”(gsv 336), Nelson encontra-se a seu lado. Quando Nelsonfala, é em “contrabaixo” (gsv 336), ou seja, musicalmente.A Riobaldo, Nelson “pedia para escrever carta” (gsv 280)ou, em outros termos, solicitava a produção de um textoescrito. É fácil decompor “Nelson” em nel-son (no som,dentro do som) ou em neo-som, o novo som: o somsignificante provido de motivação. Destarte, Suzarte, Nelsone Quipes “tapejam”, enquanto Tipote vai “trilhar e entender”(gsv 447). “Tapejar” é neologismo derivado provavelmentede “tapejara”, guia ou bom conhecedor de uma região.Entretanto, é também possível ver nesse termo o verbofrancês “taper”, bater, e portanto marcar um ritmo. Osjagunços, personagens alegóricos que poderiam ter seusnomes grafados como “sob-arte”, “que-pés!” e “neo-som”,

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182 aparentemente, conduzem seus colegas de armas (o “tau”)sob um ritmo sonoro, ritmo novo, ritmo poético ou artístico.

Tipote, como vimos, remeteria às trilhas impressas e aostextos fontes de entendimento, fontes gráficas (tipo t) nasquais Tipote vai buscar “os socorros: alguma grota duvidáveld’água” (gsv 447), algum poço d’água, alguma... fonte. Valelembrar de Bebelo como fonte de inspiração para Riobaldo,fonte da qual Riobaldo recebe “restilo”, aguardente; por essarazão chama-se Bebelo: “bebê-lo”. Ademais, se o narradorafirma que é preciso colocar em dúvida a realidade desta“grota”, o costume popular de intercambiar “r” e “l” napronúncia de certas palavras (como “pobrema”!) poderia levarà leitura de “grota” como “glota”, termo grego que remeteriaa “língua” ou “linguagem”. A “grota-fonte” simbolizaria,portanto, o próprio discurso no qual o tapejara busca seusocorro. Notemos que, para Riobaldo, o socorro líquido vemem forma de pensamento, de idéias que podem provocar o“estralo de Vieira”, a inspiração: “De repente, de repente,tomei em mim o gole de um pensamento — estralo de ouro:pedrinha de ouro. E conheci o que é socorro” (gsv 131).Nessa perspectiva, João Vaqueiro, jagunço que retorna 22vezes ao longo do texto, poderia talvez remeter ao escritor-diplomata João em suas andanças e rememorações sertanejas(ou bucólicas, no sentido em que o termo pode relacionar-se a “boi”)263 em busca de idéias inspiradoras e de motivosregionalistas para traduzir-transdizer o mundo, em busca doelemento regional para dar expressão ao universal.

Estes quatro jagunços, pelo seu trabalho conjunto debuscar traços impressos para recriá-los sob outra forma epara retransmiti-los como modo de conhecimento do mundo,ilustrariam talvez o caráter intertextual da obra literária. Nãopor acaso Riobaldo fala de “influimento” (gsv 54) ou“influição” (gsv 202) em relação às atividades exercidas pelosjagunços pertencentes aos diferentes bandos. E esseinfluimento é experimentado durante o ato de transformara vida por intermédio da atividade de contar, da atividadede verter o mundo sob forma de palavra artística: “eu tiveuma influência para contar artes de minha vida” (gsv 123).Ademais, em “influimento” e “influição” temos “fluir”, noçãoque caracteriza o deslocamento de um líquido, “gole de umpensamento” buscado na “grota-glota-discurso”. Esseevidente fluxo intertextual pode relacionar-se com o fato de

263 Lembremos dequando Rosa acom-panhou, a cavalo, acaminhada de umrebanho de gado, sobresponsabilidade dovaqueiro Manuelzão.

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183 que Guimarães Rosa “tinha uma concepção meio mediúnicada literatura. Tudo já estava escrito, dizia ele. O escritor, nocaso JGR, era apenas o intermediário, escolhido para recolhero texto, quase psicografá-lo.”264 Ademais, pelo fato detrabalharem “redobrados” como os volantes de um só e únicotríptico, ou “desdobrados” segundo imagens complementaresde um só conceito, os três jagunços poderiam remeter auma representação simbólica complementar de Riobaldo,contador de caso entre contadores de casos, narrador entrenarradores. E tal seria, talvez, o sentido daquele “por queera que eu também não podia ser assim, como o Jõe?”(gsv 192) lançado por Riobaldo em relação a um dos jagunçosque o acompanham em seus périplos: Jõe que é tambémJoão (nome de vários personagens do romance), que seriatambém imagem especular do narrador em sua guerra contraos hermógenes265 .

Assim, os jagunços de Grande Sertão: Veredas são, emsua maioria, caracterizados pela sua capacidade de observaro mundo, de contar casos, de falar ou de ouvir, conforme adescrição dada pelo narrador quando da reunião dos jagunçospara o combate final contra Hermógenes (gsv 480). Ojagunço Fafafa, pelo construção onomatopaica de seu próprionome, representa essa capacidade ilimitada de falar. Ojagunço Alaripe talvez apresente, em seu nome, a junção de“alarido”, clamor de vozes, e “pé(-de-verso)”. Lindorífico,conforme o modelo “frigorífico” (“que produz o frio”), seriaaquele que, musicalmente, com “o propuxado das sanfonas”(gsv 205), produziria o belo. O rastreador Rozendo Pio,instrutor de Riobaldo adolescente, traz em seu nome osobrenome do romancista (Rosa), assom como “io” e umcerto aspecto religioso configurado pelo termo “pio”266 .Treciziano, endoudecido pela travessia do Liso de Suassuarão-Saussure, ataca o bardo Riobaldo à saída do Liso e é morto afaca; esse representativo jagunço traz em seu nome, sob formaanagramática, a palavra “crítico” ou “crítica”: por essa razão,tal como Hermógenes, será calado por intermédio de umaarma branca, como branca é a folha de papel.

Como observa, com pertinência, Jean-Paul Bruyas, osertão de Guimarães Rosa é uma miríade de nomes soltos,uma revoada de palavras: ao assentarem-se as palavras, oque fica “é uma ausência”267 . Como ao fecharem-se as páginasde um livro. E essa ausência é símbolo do espaço a ser

264 Vilma GuimarãesROSA, Relembra-mentos: João GuimarãesRosa, meu pai, p. 328.265 Afrânio Coutinhoindica a necessidade deuma análise aprofun-dada em torno daonomástica rosiana: “Agaleria de nomes deGuimarães Rosa chegaa impressionar pelaabundância e regulari-dade do sistema, e, maisque isso, pelo caráter deironia trágica quesugerem. Sente-se quetêm um significadomuito grande nas his-tórias, e que não resul-tam de escolhas arbi-trárias, ao contrário,fazem parte integrantede seu sentido estético,em que significante esignificado se encon-tram para emprestar-lhes valor de sinal.”Afrânio COUTINHO,“Duas anotações”, inEduardo F. Coutinho(org.), Guimarães Rosa,p . 292.266 Lembremos queRiobaldo afirma ternascido para “padre oujagunço, para outra coisanão servia”.267 Cf. Jean-Paul BRU-YAS, “Técnicas, estru-turas e visão em GrandeSertão: Veredas”, inCoutinho Eduardo F.Guimarães Rosa,p. 468.

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184 preenchido pelo leitor, completado conforme reiteradasorientações do romancista. Nesse sentido, o leitor encontraráalgumas alusões a autores reais nos nomes dos jagunços, comoé possível ver no par Selorico-Odorico ou em José-JoyceBabel. Seria o jagunço Drumõo uma alusão a CarlosDrummond de Andrade? Dos Anjos, talvez Cyro, amigopróximo de Guimarães268 ? Ou Augusto dos Anjos, cujo Eu(1912) encontra-se na lista dos dez melhores livros daliteratura brasileira segundo anotação de Rosa encontradaem uma de suas cadernetas? Titão Passos, a partir da inversãoque nos daria “tão-ti”, “tão como tu” e, eventualmente, “tãoGuimarães”269 , poderia representar Guimarães Passos, poetaparnasiano e experimentador formal, autor de um largamentedifundido Tratado de Versificação (1916)? Seja como for,essa leitura caminharia na direção daquele “pacto letrado”sobre o qual fala Flávio Aguiar, pacto a ser passado entre os“homens de letras”270 no sentido de moldar uma matérialatino-americana sob uma forma nova e adequada, nãodevendo ser ignorada, para tanto, a possibilidade demotivação do signo.

Seô Habão, o dominador patrão sertanejo: “capitão emválidos títulos”

Ora, certas cláusulas de um “pacto letrado” regemtambém as relações de força entre o bardo Riobaldo e opouco maleável Habão, Capitão da Guarda Nacional. Opersonagem de Seô Habão desenvolve com Riobaldo umaambígua relação de domínio e gratificação ou retribuição,relação que é marcada igualmente por uma certo sentimentode aversão. É Habão quem, após o pacto, oferece Siruiz, ocavalo da vitória, ao jagunço; oferece ajuda financeira paraque Urutu leve a cabo seu projeto de derrotar Hermógenes;vai em busca de notícias de Otacília; traz a notícia da fortunaherdada pelo narrador em função de sua filiação genealógicaa Selorico Mendes e em função de um testamento cujascláusulas são favoráveis a Riobaldo em razão de sua vitóriasobre Hermógenes. As relações entre Riobaldo e Habão sãodiscutidas em termos de contrato comercial, pois, entre eles,há sempre um “negócio que carecia ainda de algum ponto”(gsv 390). “Negócio” é termo que remete a relações

268 Essa amizade estreitaé comentada por VilmaGuimarães Rosa em seuR e l e m b r a m e n t o s ,p. 355.269 Vale sublinhar,quanto aos processos decomposição de nomesem textos rosianos, oelucidativo comentáriode W.N. Galvão acercados pseudôn imosadotados pelo roman-cista em concursosliterários: “Os pseu-dônimos são, além deSoares Guiamar, Meu-riss Aragão (ambosanagramas de Guima-rães Rosa) e Sá AraújoSégrim (anagrama de J.Guimarães Rosa), todoscoerentes no somarnomes conhecidos aoutros inventados. (...)Ei-los aqui, finalmente,neste último livro, nãotrês mas quatro poetasa n a g r a m á t i c o s ,acrescidos que foram demais um, por nomeRomaguarri Sães, ana-grama, como os doisprimeiros, de Guima-rães Rosa, e não de J.Guimarães Rosa, comoo terceiro.” WalniceNogueira GALVÃO,“Heteronímia em Gui-marães Rosa”, in RevistaUSP, p. 21. Grifonosso.270 Cf. Flávio AGUIAR,“O Pacto e o pactoletrado”, in Organon,p. 85-92.

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185 comerciais, e “ponto” tanto pode indicar algum assunto aser tratado (ponto a ser discutido) quanto a forma depontuação do contrato, questão de posicionamento de umponto ou uma vírgula que podem alterar os termos docontrato. Seja como for, a necessidade de “pontos” implicaa dimensão escrita do texto. Portanto, as relações —comerciais, lembremos — entre Riobaldo e Habãoconstróem-se em cima de um texto escrito, das suas variantessegundo acordo firmado entre as partes.

Seô Habão é caracterizado como sendo comandante oupatrão sertanejo. Sobre o sertão, lança “olhares de dono”(gsv 363), com o intuito de “reparar em todas as coisas,como era que estavam em que pé” (gsv 363), apondo sobreos objetos um “cuidar comercial” (gsv 363) com o qual“vigiava os traços simples do arredor” (gsv 362). Seô Habão“media, conferia, reprovava” (gsv 364), “esfiando o assuntonas pontas dos dedos, tostões” (gsv 389). Ao término desuas avaliações, “dava balanço” (gsv 363). Seô Habão tem,portanto, um olhar de administrador ou gerente sobre ouniverso sertanejo, e até mesmo os assuntos discutidos nosertão são destrinchados (“desfiados”) e avaliadosmonetariamente, “na ponta dos dedos”, transformados emdígitos (algarismos ou letras?) nas atividades cotidianas dozelador sertanejo. Habão fragmenta (“esfia”) assuntos comoquem conta “tostões”, como quem fizesse cálculos sobre oganho possível com a exploração de um determinado assunto.O leitor se lembrará neste instante que, no pacto concluídoentre Davidão e Faustino, as vantagens recebidas em trocada alma são “dez contos de réis”, ou, conforme esta leitura,dez textos literários de alto valor271 . Ora, Habão “esfia” o“assunto” em “tostões”; “tostão” é antiga medida monetáriaequivalente a cem réis: logo, “tostões” são frações de...“contos de réis”272 . Esses fragmentos de contos equivalem,segundo o narrador, a “fiapos de assunto”, fragmentos deum discurso. Assim, se um conjunto de tostões forma umconto de réis, uma soma ou conjunto de tostões-assuntosforma, sob toda evidência, um conto literário.

Ademais, “esfiar” equivale a desfazer um tecido, a separaros fios uns dos outros, a desmontar a trama ou urdidura dosfios, a desfazer a tessitura com que se apresenta o assunto:assunto que é, por essa vertente, apresentado em forma detexto. Aqui caberiam com exatidão as palavras de Meschonnic

271 Sagarana, a título decuriosidade, compõe-sede nove contos — quasedez —, ainda que omanuscrito original fossecomposto de doze.Lembremos as palavrasde Rosa em entrevistadada a Günter Lorenz:“Não preciso inventarcontos, eles vêm a mim,me obrigam a escrevê-los”.272 Um milhão de réisequivalem a um contode réis.

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186 em torno da decodificação literária: “da mesma maneira quea frase estabelece o sentido da palavra, e não a palavraestabelece o sentido da frase — é a obra que estabelece osentido da palavra na obra”273 . As atividades desenvolvidaspor Habão no universo das Letras somente poderão serdecifradas após a interpretação de Riobardo-Urutu, Faustino,Selorico, José Babel... e prossegue a lista interminável deenigmas metaliterários.

Sobre o calculista personagem sertanejo, Francis Utézaescreve: “Seô Habão, orelhudo como os vates, [é] Midas doSertão que vem da Vertente do Resplendor entregar ao novoMessias o cavalo Siruiz”274 . Ora, “vate”, em português, ésinônimo de poeta, e Seô Habão entrará, por essa vertente,no mundo da poesia; logo, esse Midas que distribui regaliase presentes necessários à vitória sobre Hermógenes podetambém ser visto como o Mecenas, protetor de escritores eoutros criadores artísticos. Esse procedimento de auxílio ouproteção financeira, segundo o narrador, é característico deHabão: “Homem, esse! Ele queria me oferecer dinheiro,com seus meios queria me facilitar” (gsv 387). Nessa locuçãode Riobaldo, não terá escapado ao leitor a inversão simbólica,em que “esse”, ou “S”, vem orientar a leitura no sentido deindicar nesse “homem” uma certa dimensão “letral”(gsv 483), literal ou literária. Entretanto, sua prática domecenato, como vimos, não é desinteressada, e tem sempreem mira a possibilidade de lucros financeiros. Na realidade,ele quer os jagunços todos trabalhando sob suas ordens, semcontestações possíveis, pois ele “cobiçava [os jagunços] paraescravos” (gsv 365). Qual seria esse patrão tirano que oferecedinheiro a seus trabalhadores, em adiantamento por serviçosfuturos, e que, em contrapartida, exerce com mão de ferroo controle até mesmo sobre o assunto a ser tratado, sobre os“traços” deixados na superfície do sertão, sobre o “pé(-de-verso?)” com que se apresentam as diversas situações factuais?“Quem era?” (gsv 389), indaga Riobaldo, de forma solta notexto, indicando ao leitor a necessidade de buscar a verdadeiraidentidade do patrão sertanejo.

O nome desse patrão pode indicar uma promissora pistade leitura: Seô Habão, senhor A-bão, senhor do A-bão e doA-ruim275 . Ou, em outras palavras, senhor que determina aletra boa e a letra inadequada, as boas Letras e as Letrasruins, notadamente a partir de critérios comerciais, como

273 Henri MESCHO-NNIC, op. cit., p. 20.274 Francis UTÉZA,Metafísica do GrandeSertão, p. 329.275 Lembremos do “a-mal” provocado emRiobaldo pela imobili-zação de seus dedos epela diminuição de suacapacidade toráxica,conforme analisado em“Almejada Otacília”.Neste sentido, valertranscrever a análise dosvirtuais logogrifos rosi-anos proposta por K.H.Rosenfield: “’Alegria eHermenêutica’ – títuloaparentemente absurdodo primeiro prefácio deTutaméia – alerta sobrea necessidade do‘desvio’ literal, da in-venção de combinaçõese de relações virtuais,como único acesso àinterpretação.” KathrinHolzermayr ROSEN-FIELD, Os descaminhosdo demo. Tradição etruptura em GrandeSertão. Veredas,p. 15.

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187 seria precisamente o caso desse patrão de jagunços que vivecontando tostões e fazendo balanços de perdas e ganhos.Seô Habão, nesse conjunto de representações metafóricasdo universo da literatura, deverá ser interpretado, porconseqüência, como imagem simbólica do editor literário.

Assim, ao falar de Habão, o narrador apresenta sua “causamaior: agenciar, por seus bons préstimos” (gsv 534). Ora, éo editor quem busca o prêmio ou notícias sobre o prêmioliterário para os escritores editados sob seus cuidados; quemagencia, na falta de um agente literário, a promoção da obrapublicada; quem aconselha o autor quanto a possíveisvariações em seu original. Nesse sentido, o narrador afirmaque Seô Habão “conservava os olhos sem olhar, num vagarvago, circunspecto, pensava aqueles capítulos” (gsv 365),clara alusão à uma provável avaliação literária efetuada pelopatrão de bardos sertanejos. Não por acaso, esse patrão écapitão — tem patente de comando — “em válidos títulos”(gsv 350), e “títulos”, ainda uma vez nesse plurissignificanteromance, remetem tanto a “diploma” ou “documento oficial”quanto a títulos... de livros. Os “válidos títulos” seriam, nessaperspectiva, aqueles que apresentam valia, valor estético ouvalor comercial, e o personagem de Habão caracteriza-sepelo seu poder de comando, ou escolha, ou determinação,sobre esses títulos. Por essa razão, ao buscar notícias deOtacília, o capitão Habão tem, igualmente, a capacidade de“nomear [as pessoas] pelos altos títulos” (gsv 389), ou referir-se às pessoas segundo os títulos que lhes pertençam. EstaráHabão, tal qual um empresário do mercado editorial,referindo-se aos autores segundo os títulos de suas obras?Essa atitude será perfeitamente plausível, sobretudo por setratar, nesta leitura ora em curso, de uma corrida ao prêmioliterário, como veremos a seguir.

“Capitão” é também palavra derivada de caput, “cabeça”,e pode sugerir, por essa vertente, o aumentativo de cabeça:nesse caso, Seô Habão seria “o grande cabeça”, o pensador,o orientador intelectual dos jagunços. A menos que algumjagunço se recuse a seguir suas orientações, como será o casode Riobaldo.

Após a avaliação dos “capítulos”, a atividade de Habão éa “fazeção de rapadura” (gsv 365) por intermédio dos“trabalhos redobrados” (gsv 365) dos sertanejos que paraele trabalham. Ora, “redobrados”, como vimos em diversas

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188 outras ocasiões, pode ser índice de uma significaçãodesdobrada, significação outra. Notemos, portanto, que a“rapadura” apresenta-se como um bloco em forma deparalelepípedo de pouca espessura: digamos, como um...livro. E a rapadura é um produto de pouco valor econômico,devendo ser comercializado em grande quantidade para umadequado retorno financeiro: tal como, por exemplo, aspublicações sub-literárias. Ademais, a preparação da“rapadura de Seô Habão” exige “trabalhos redobrados”, outrabalhos de “redobrar”. Ora, tal é o procedimento detrabalho verificado no processo de encadernamento de livros.Vale notar que o fabrico de “rapaduras” apresentaria aindauma outra semelhança com o fabrico de livros no momentoem que ambos os processos exigem o emprego de grandescilindros rotatórios que prensam (ou... imprensam) a matériabruta de origem vegetal (cana por um lado, papel por outro)para a obtenção do produto acabado. Essas rapaduras podem,por essa vertente, instaurar-se como imagem simbólica doslivros impressos, encadernados e publicados por um prováveleditor, senhor das boas e das más letras, autoridade em títulosprovidos ou desprovidos de valor.

Habão, como vimos, é Capitão da Guarda-Nacional:exerce, portanto, igualmente, a chefia na função de guardaralgo pertencente à nação. Ora, se ele guarda, comanda,observa e avalia “títulos”, “capítulos”, “pés”, “traços”,“assuntos” de uma região, se ele reproduz literatura comorapadura (notemos a proximidade sonora existente entre asduas palavras), sua provável função será, por conseqüência,a de conservar a literatura de um país. Daí a sua patente deGuarda (livros) Nacional. Talvez por essa razão, sua principalcaracterística, seu traço físico mais marcante, seja o fato deestar condenado a carregar consigo, onde quer que vá, orelhastão grandes (gsv 389): essas orelhas remeteriam àquelasextremidades impressas e dobradas para dentro quecaracterizam as capas das obras editadas: as orelhas dos livrosguardados por seu Habão. Ademais, “abão” é o aumentativoirregular para “aba”, sinônimo de “orelha”, no caso da capados livros: “abão” e “orelhão” equivalem-se. E as “abas” ou“orelhas” dos livros são sempre de responsabilidade do editor.Ainda que o autor queira servir-se desse importante espaçoparatextual para orientar seus leitores quanto às possibilidadesde leitura de sua obra, como é o caso de Guimarães Rosa.

IV. O bardo Rio-baldo e seu fardão:a invenção de umnarrador

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189 Entretanto, em sua atividade, Habão quer “reduzir tudoa conteúdo”276 , a “recontadas repetições”, e “ordem quedava, havia de ser costumeira e surda”, pois esse patrãosertanejo, avesso a riscos e perdas, “não esperdiçava nem oátomo dumas felpas” (gsv 366). É fácil observar que Habão,enquanto imagem do editor, faz a distinção entre forma econteúdo, no momento em que o projeto de Riobaldo situa-se no âmbito do “formato da forma” (gsv 54). Igualmente,as indicações de trabalho oriundas de Habão orientam nosentido do costumeiro, da ausência de inovações, na direçãode retomar aquilo que já foi contado, recontado e repetidoinúmeras vezes, sem a possibilidade de inserção de novosfios (“felpas”) no tecido poético. Ademais, suas indicaçõesnão abrem espaço para a sonoridade significante propugnadapor Urutu, pelo fato de comandar e ordenar o trabalho demaneira “surda”, sem atenção aos sons. Sua “gana” é a deque o conjunto dos jagunços “pudesse dar os braços, paracapinar e roçar, e colher, feito jornaleiros dele” (gsv 365).Para ele, os jagunços trabalhariam como “jornaleiros”, comremuneração segundo a produção diária. No plano da narraçãode estórias que é o das “altas artes de jagunços”, os jagunçostrabalhariam contando o cotidiano, tal qual em jornais, como trabalho premido pelo tempo, produzindo uma quantidademínima de laudas diárias segundo os desejos do patrão. ParaHabão, nesse trabalho contam “só os carros-de-boi carreandocana” (gsv 366), com destino às prensas rotatórias que darãoorigem às rapaduras; em outras palavras, conta apenas oprocesso de produção, o volume de peças de “rapadura-literatura” produzidos.

Guimarães Rosa serve-se, em outras ocasiões, demetáforas agrárias para representar a atividade literária. Talé o caso nesta declaração do romancista citada porSusy Sperber: “Bom tempo depois, o autor reviu o originaldo livro, e nelle mexeu, na forma, mínima modificações:nenhum acréscimo, quasi que suppresões sòmente, já que,nesse alto gênero de lavoura, mais valem capina e poda doque adubação e enxêrto (sic).”277 Nesse sentido, vale observaras palavras lançadas por Quelemém a Riobaldo, noçõesperfeitamente cabíveis no universo da produção literária:“Riobaldo, a colheita é comum, mas o capinar é sozinho...”(gsv 46). Assim, o capinar solitário278 , o trabalho sobre asfolhas (vegetais-impressas), remeterão, sob toda evidência,

276 Em torno damotivação do signo e daliteratura de sua época,Guimarães Rosa decla-ra: “Sou precisamenteum escritor que cultivaa idéia antiga, porémsempre moderna, deque o som e o sentidode uma palavra perten-cem um ao outro. Vãojuntos. A música dalíngua deve expressar oque a lógica da línguaobriga a crer. NestaBabel espiritual devalores em que hojevivemos, cada autordeve criar seu próprioléxico, e não lhe sobranenhuma alternativa; docontrário, simplesmentenão pode cumprir suamissão. Estes jovenstolos que declaramabertamente que não setrata mais da língua, queapenas o conteúdo temvalor, são pobres coita-dos dignos de pena. Omelhor dos conteúdosde nada vale, se a línguanão lhe faz justiça.”Apud. Günter LO-RENZ. “Diálogo comGuimarães Rosa”, p. 88-89. (Grifo nosso.) Eisaqui uma alusão àliteratura engajada prati-cada pelos escritores deuma certa época, que,em Grande Sertão,encontra eco na críticaao editor que solicitatextos engajados a seusautores.277 Suzi Frankl SPER-BER, Guimarães Rosa:signo e sentimento, p. 103.278 Escreve CecíliaPrada: “Extremamentesensível às críticas,descrevendo a si própriocomo ‘lento e dasacos-tumado capiau’, Rosafez a sua grande litera-tura naquelas condições

IV. O bardo Rio-baldo e seu fardão:a invenção de umnarrador

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190 à lavoura textual, à produção solitária de literatura que seráconsumida por todos. Talvez, em outra perspectiva, “carros-de-boi” seja uma referência à uma certa literatura regionalde grande aceitação por parte do público durante umdeterminado período de nossas letras, alusão àquela literaturabrasileira “orientada para o ‘regionalismo’, ou seja, para osertão ou para a Bahia”279 , segundo palavras de GuimarãesRosa. Essa boa aceitação por parte do público levaria o editora solicitar, entre seus escritores, mais textos dessa categoriapara colocá-los no mercado.

Desse patrão afeito ao costumeiro, o narrador dirá: “SeoHabão me olhou com tanta norma desusada, que eu sentiminhas falsidades” (gsv 365). E somente após se livrar deHabão e de suas “normas desusadas” ou ultrapassadas,encarregando-o com a incumbência de buscar notícias deOtacília (gsv 390), e transformando-se em Urutu-Crátilo,Riobaldo empreenderá com proveito seu intento de derrotarHermógenes. Por essa vertente, vale observar que Riobaldoafirma que “carecia de sair de novamente por ali, por terrase guerras”, em companhia de João Goanhá, e Seo Habão éum “transtorno” diante desta necessidade (gsv 368). Ora,“sair de novamente” é “sair de mente nova”, com idéias novaspara a guerra pelo tamanho das letras, a “guerra literária”.Ademais, João Goanhá é também João “go-anhã”, “João seguecom o diabo”, se considerarmos o inglês “go” e o tupi-guarani“anhã”280 . Não por acaso, Goanhá recebe o qualificativo de“richarte” (gsv 244), ou “rica arte”. Ressurge, assim, a figurado pacto para acesso à inspiração e à palavra demiúrgica,desta feita em oposição às solicitações habituais do editorde livros.

Dessa forma, para contrabalançar os atos nefastos dopatrão sertanejo, Riobaldo deseja que Seô Habão seja exilado“em estranhas terras, adonde ele fosse preta-e-brancamentedesconhecido de todos” (gsv 388). Novamente o narradorindica que a área de atuação de Habão seriam as Letras,letras impressas em preto sobre o papel branco, espaço dasletras onde (“a-donde”) a figura do editor seria ignorada enão mais deveria exercer seu poder de controle sobre as“altas artes dos jagunços”, forma de dar nascimento às“Férteis e Altas Veredas” no “Árido e Grande Sertão daLiteratura”, conforme uma expressiva linguagem derivadado signo motivado de Urutu-Crátilo, o beligerante bardo doSertão.

de ’exílio, silêncio ehabilidade” que JamesJoyce definiu comoparâmetros da criaçãoliterária.’ Cecília PRA-DA, “A Travessia deJoão”, in ProblemasBrasileiros, http://www.uol.com.br/sesc/spu/spupb604.htm,página consultada em 9/02/98.

279 Apud. GünterLORENZ. “Diálogocom Guimarães Rosa”,p. 66.280 O romancistacomenta a origem eti-mológica tupi-guaranide “anhã”, e sublinhaainda a existência dotermo próximo “Ngaa”,adversário de Deus, namitologia siberiana.Guimarães Rosa, Cor-respondência com seutradutor italiano, p. 54.

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191 Ora, se os jagunços são caracterizados, no discurso deRiobaldo, por aspectos que remetem ao universo das Letras,o bardo narrador traz igualmente à luz certas preocupaçõesdesses bravos guerreiros da poesia que, em ocasiões fortuitas,podem até mesmo orientar, determinar ou fixar o assuntodessa troca mútua de idéias e locuções literárias:

“O Jesualdo, Fafafa e João Vaqueiro não esbarravam de

falar, mais o Alaripe também, repesavam as vantagens da

Santa Catarina. No que eu pensava? Em Otacília. Eu parava

sempre naquela meia-incerteza, sem saber se ela sim-se. Ao

que nós todos pensávamos as mesmas coisas; o que cada um

sonhava, quem é que sabia?” (gsv 168).O leitor terá notado que as “vantagens” da Fazenda Santa

Catarina despertam, por conseqüência, a cobiça ou a ambiçãoconjunta dos jagunços, e, por essa vertente, essas “vantagens”chegam até mesmo a orientar o discurso desses beligerantescontadores de caso, pois eles não param ou não “esbarram”de pensar e falar sobre esse tema. Ao visto e ao balançodessas vantagens, todos passam a pensar “as mesmas coisas”e deixam de lado os sonhos individuais e os pensamentosnão consensuais, e passam a formar uma grande família dejagunços aparentados pelo poder do pensamento único. Abre-se aqui uma importante trilha para a leitura do romance:lancemos um olhar sobre o personagem que detém a possedessa enorme e tão cobiçada propriedade, personagem queé capaz de interferir no próprio alinhamento ídeo-genealógico,na composição de famílias de combatentes bélico-letristas.

Almejada Otacília: o Verbo e a Verba

Otacília, a noiva prometida de Riobaldo, é umpersonagem que não participa, de forma ativa, da tramanarrativa, mas que, entretanto, está omnipresente no discursode Riobaldo: o narrador faz nada menos de 105 referênciasao nome “Otacília”. De onde se deduz a importância dessepersonagem ausente, ao qual o jagunço faz somente alusões:excetuados os episódios em que Riobaldo a entrevê atravésde um “enquadro de janela” (gsv 162), “começ[a] aconhecê[-la]” e apaixona-se pela mocinha, e aquele em que,

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192 após a vitória sobre Hermógenes, Otacília é “entregue” aovencedor pelas mãos de seus familiares, a “pretendida”(gsv 534) — ou almejada — de Riobaldo somente seconfigura, textualmente, no plano imaginário dos desejosexpressos pelo beligerante cavaleiro sertanejo, preservando-se de toda e qualquer manifestação física ao longo doseventos. Vale notar que Otacília apresenta-se de maneiraantagônica a Diadorim, e os dois personagens formam umpar antitético e inconciliável na vida do narrador.

Otacília é um personagem etéreo também pela suadescrição física: o narrador alude vagamente a seu rostoredondo (ela é “moça da carinha redonda” (gsv 135), informaRiobaldo) e seus cabelos são compridos. A tais aspectos seresume a descrição física de Otacília, quando tantos outrospersonagens são descritos pelos pés, mãos, orelhas, boca,olhos ou dentes, pela corpulência ou fragilidade. Nota-seassim uma certa carência descritiva que terá o efeito de diluiro personagem no texto. Talvez por essa razão nenhum estudomais aprofundado tenha sido publicado — ao menos entreos textos dos quais tivemos notícias ou aos quais tivemosacesso — em torno deste personagem, ao longo dos quasecinqüenta anos que transcorreram desde que o romance veioa lume. Entretanto, o personagem de Otacília torna-sefundamental exatamente por essa sua capacidade de se diluirno texto, de se tornar uma presença difusa e constante,imagem etérea e abstrata que retorna de forma subreptícia erecorrente a cada grupo de cinco páginas281 .

Por conseqüente, outros traços que não os fisionômicosou psicológicos caracterizam esse personagem, e esses traçossituam-se todos na esfera do poder e da fortuna, da fartura:sua fazenda, a Santa Catarina, é propriedade de “vaca e leite”(gsv 276), possui “grandes gados em léguas de alqueires”(gsv 167) e produz “farto leite” (gsv 163), “excelentesproduções” (gsv 170), e essas são algumas entre “asvantagens da Santa Catarina” (gsv 168), vantagenseconômicas, claro (e caro) está para Riobaldo. Ademais,Otacília tem grande poder em suas mãos, conforme salientao jagunço: “o que uma mocinha assim governa...” (gsv 167).Logo, quando Riobaldo pensa em seu casamento comOtacília, ele lembra-se somente dos aspectos materiais querefletem uma fruível conquista financeira: “roupagens”,“festa”, “mesa grande” e farta, “dote” (gsv 171), “terno de

281 A fundamentalimportância de Otacíliaé sugerida pelo próprioromancista: em cartaenviada a EdoardoBizzarri, GuimarãesRosa propõe um brindesomente a três persona-gens: “Diadorim, Otací-lia e Riobaldo”. G. Rosa,Correspondência comseu tradutor italiano,p. 89.

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193 sarjão” (gsv 534) que portará em conseqüência docasamento, “camisa de cassa branca” (gsv 331) e “camisolafina de ló” (gsv 332) que Otacília trará em seu convíviocomum. Se lembrarmos de Riobaldo mendigando quandomenino, no momento de de seu encontro com Diadorim,notaremos que o contato com Otacília, seu vislumbre atravésdo enquadramento de um janela, acendeu no bardo guerreirouma forte cobiça, ainda que o jagunço negue essadeterminante “ambição de teres e haveres” (gsv 171)experimentada nos momentos em que pensa em suaprometida. Vejamos esse trecho em que o narrador refere-se ao seu primeiro contato com Otacília:

“Coração mistura amores. Tudo cabe. Conforme contei

ao senhor, quando Otacília comecei a conhecer, nas serras

dos gerais, Buritis Altos, nascente de vereda, Fazenda Santa

Catarina. Que quando só vislumbrei graça de carinha e riso e

boca, e os compridos cabelos, num enquadro de janela, por o

mal aceso de uma lamparina” (gsv 162).Otacília é definitivamente apresentada segundo termos

oriundos do campo semântico relacionado ao registromonetário. Se “graça de carinha” remete inicialmente a “rostogracioso”, “graça”, em uma segunda leitura, pode remeter a“gratuito ou de nenhum valor monetário”, enquanto“carinha” representaria seu oposto, “oneroso”, “de grandecusto ou valor monetário”, “de difícil e laboriosa obtenção”.Teríamos aqui mais uma construção oximórica, processo detodo recorrente na técnica rosiana de escrita, símbolo daquele“indécidable du sens” do qual fala Barthes. Nesta perspectiva,a cobiça acesa no guerreiro pela imagem da mocinha (ouapenas seu rosto, “riso e boca”, e “cabelos”) seria, segundo anarração do jagunço, um “mal aceso” por uma lamparinaque iluminou a figura de Otacília em um final de tarde. Essaé a leitura que podemos entrever na inversão do hipérbato“por o mal aceso de uma lamparina” (gsv 162), lamparinaque mostra a Riobaldo “a graça da carinha”, a imagem docaro e do barato, a imagem dos objetos de pouco ou muitovalor monetário, conforme a relação de objetos vislumbradospelo jagunço ao pensar em seu casamento com a “moça dacarinha redonda” (gsv 135), conforme o leitor teve a ocasiãode apreender alguns parágrafos acima.

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194 Na inversão desse hipérbato, o advérbio “mal”transforma-se em substantivo, e o substantivo “aceso”transforma-se em particípio passado de acender; a proposiçãooriginal e relativamente confusa simplifica-se e torna-se “domal aceso por uma lamparina”. Eis, portanto, uma nítidaalusão à cobiça, leitura pertinente dentro do contexto emtela. Da mesma forma, a expressão “começar a conhecer”não seria adequada à descrição do primeiro contato comuma pessoa, aqui compreendida em sua dimensão deentidade física, e não de seus aspectos emocionais oupsicológicos. Nesse caso, caberia, com mais propriedade,simplesmente “conhecer uma pessoa”, conhecimento quese trava de maneira instantânea e imediata. O nome “Otacília”deixaria assim de apenas designar ou individualizar umapessoa qualquer, e passaria a indicar alguma noção abstratacujo conhecimento ocorre de maneira gradativa. Nessaperspectiva, notemos o que diz Ana Luiza Machado a respeitodo ato de nomear em Guimarães Rosa:

“O Nome é um signo, polissêmico e hipersêmico, que

oferece várias camadas de semas e cuja leitura varia à medida

que a narrativa se desenvolve e se desenrola. Não há mais um

sentido único de leitura, mas uma decifração e recriação

permanente, feita de dedução e de intuição, de sensibilidade

e de exploração das diferentes possibilidades de atualização

daquilo que é dito potencialmente pelo Nome.”282

Se o nome deixa de ser meramente designativo para sersugestivo, vale observar que a expressão “começar aconhecer” poderia ser aplicado somente a entidades abstratascomo, no caso em tela, males representados pela ganância epela cobiça, ou, ainda, pelas vantagens — no sentido abstrato— da riqueza. Otacília assume a dimensão de personagemalegórico, tal como Hermógenes, Urutu Branco e todosaqueles que remetem o texto às abissais profundidades doenigma. Tal leitura pode ser esteada em outra proposição deRiobaldo, quando o narrador novamente se lembra de Otacíliae pensa nas vantagens que a “mocinha de cara redonda” podelhe trazer quando for entregue em casamento, quando lhefor “ministrada” (gsv 276) com suas posses, suas “vacas eleite” (gsv 276), quando lhe for entregue ou outorgada emcerimônia pública (de casamento), ato “solene” (gsv 171);

282 Ana Maria MA-CHADO, O Recado doNome, p. 19.

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195 nessas condições, Riobaldo experimenta “uma vontade vãde ser dono de meu chão, meu por posse e continuadostrabalhos, trabalho de segurar a alma e endurecer as mãos”(gsv 163). Assim, Riobaldo associa a espera da riqueza, daposse de bens, com um trabalho a ser desenvolvido com asmãos, trabalho cujo objetivo é o de não deixar que a almaescape, noção sobre a qual retornaremos adiante em nossotrabalho. Por outro lado, poderemos ver que o “leite” queacompanhará a vinda de Otacília pode ser um anagrama de“elite”. Com seu trabalho desenvolvido com as mãos, o bardojagunço aspiraria, portanto, a aceder à fortuna e à elite.

Esses aspectos são ainda observáveis quando Riobaldointerroga-se: “Otacília era, a bem-dizer, minha noiva?”(gsv 276). O hífen que liga “bem” e “dizer” é de empregoarbitrário (ou expletivo) nessa construção, e parece indicar avontade do autor de sublinhar a expressão. Nesse sentido,poderíamos invertê-la e notaremos que a expressão assiminvertida presta-se à leitura segundo a qual o jagunço falanovamente de “bens”, de “posses” (“a dizer bens”, a arrolaros bens recebidos com Otacília), e a questão remete à dúvidado jagunço sobre o fato de ser ou não destinado ou prometidoà fortuna, à riqueza, às posses materiais. Ora, o narradorafirma ainda, de maneira simbólica, que “coração misturaamores. Tudo cabe” (gsv 162), tal como lemos no trechotranscrito acima. De tal declaração deduzimos que o amorpor Otacília é, portanto, um amor em que devem serdecantados os elementos misturados, para que essesentimento e a figura da “mocinha” possam ser decifradossegundo o texto. Esses elementos componentes do amorpodem ser da mais vária natureza, conforme a expressão“tudo cabe no amor (por Otacília)” sugere de maneiraemblemática. Assim, das alusões à riqueza vistas acima,observamos que sentimentos e posse de bens estãomisturados nas alusões ao amor por Otacília.

Essas alusões ao desfrute material de bens e posses seráconstante nas expressões relacionadas a Otacília: a moça dacarinha redonda “se orçava linda” (gsv 534), “contava[moedas?]” (gsv 164), estaria “pagando companhia”(gsv 534), ofereceria “um adianto [crédito] de amor”(gsv 534), e “por conta de Otacília” (gsv 57), com asdespesas pagas pela mocinha, Riobaldo poderia comparecernos Buritis Altos, nas altas palmas. Ela é “moça bem

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196 arrumada” (gsv 499), “exata [como as finanças?]” (gsv 119),suas flores são “baronesas” (gsv 271), ela é toda “usos-frutos”(gsv 275). Ora, ao pensar nela Riobaldo diz que é preciso“puxa[r] de arranco, das palavras (...), todo [seu] verdadeirosignificado” (gsv 499). Qual seria então esse verdadeirosignificado? Vejamos as indicações do narrador:

“Otacília. O prêmio feito esse eu merecia?”(gsv 135)

Eis aqui a chave para decodificação de Otacília, objetodos desejos de Riobaldo e de todos os bardos jagunços quenele concentram seus pensamentos, tão almejado prêmioque pode vir em forma de moeda, peça redonda com a efígiede uma jovem em sua ocorrência canônica no Brasil e embom número de países, ou em forma de troféu, taçacomemorativa de uma vitória que bem podemos encontrarno antropônimo Otacília, O-tacília, taça em pequenoformato, réplica de uma grande taça.

Seria essa taça em ouro, segundo Ouro-tacília, ouro-taça,permitiria ver? Lembremos que o pai de Otacília chama-seSor Amadeu, “se or ama deu”, “se amor deu ouro”: leituraplausível segundo esse contexto, mas que conservaremosno âmbito das leituras hipotéticas. De qualquer forma,Riobaldo espera que Sor Amadeu lhe entregue, em ato“solene” (gsv 171) no qual receberá também sua taçaOtacília, “um buritizal em dote, conforme o uso dos antigos”(gsv 171). Ora, o buriti é uma palma, como aquela quesimboliza as premiações artísticas: receber buritis equivale areceber palmas ou premiações. E, para o ato “solene”, ojagunço estará portando “terno de sarjão” (gsv 534), possívelimagem daquele centenário fardão acadêmico que, comopor acaso, Guimarães trajou quando de sua posse naAcademia Brasileira de Letras. Cerimônia, usos e veste“conforme ao uso dos antigos”283 , conforme o usoconsagrado: esses são os desejos de Riobaldo.

Cabe aqui observar, atentamente, que, na ilustraçãosolicitada a Poty para as orelhas do romance, cujos elementospretensamente regionais remetem, por intermédio dehieróglifos, ao mundo das letras, ao lado da figura das palmas-buritis, há o desenho de um ramo vegetal muito semelhanteà trama bordada sobre os fardões da Academia Brasileira deLetras, inclusive com pequenos traços que representampontos de bordado, sugestão de que a consagração literária

283 Nesse sentido, éilustrativa a cartaenviada por Rosa a E.Bizzarri anunciando queviajaria para a cerimôniade outorga de umacondecoração ao tradu-tor italiano, viagem como intuito de “entregar-lhe, aí em São Paulo,com solene momento, oDiploma e as Insígnias”.Em aparência, o gostode Riobaldo pelo solenee oficial em cerimôniasliterárias reflete o gostodo romancista. Guim-arães Rosa, Correspon-dência com seu tradutoritaliano, p. 17.

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282 Emir MONEGAL,“Em busca de Guima-rães Rosa”, p. 60.283 Apud Vilma Guima-rães ROSA, Relembra-mentos: João Guima-rães Rosa, meu pai,p. 329.

também é um dos temas ocultos nas páginas do romance.Essa ilustração inspirou a caricatura, elaborada para este livro,em que estão presentes, sobre o fardão da Academia, o ramo(os louros bordados sobre o próprio fardão), a letra “A” (e oalfabeto representado na forma da cabeça de vaca), o Crótalo(e Crátilo, o signo motivado), a Suçuarana (representaçãosimbólica de Saussure), Toth (e a criação da linguagem, mastambém Lúcifer, portador da luz verbal), o prêmio “Otacília”,o “vAb” que remete a “Tamanho-do-Á”, o enigma (na figurado boi em forma de esfinge), as armas-letras (e o “GrandeSer Tau”) e a lemniscata ( , ou a obra aberta).

Ao visto dos símbolos dispostos no desenho de Poty(imagens reflexivas do romance e fonte de inspiração para acaricatura, em anexo, do bardo em seu fardão cravejado deenigmas), e ainda que nenhum crítico ou biógrafo tenhaaventado explicitamente a possibilidade de um pacto faustianoefetuado pelo próprio romancista com vistas à consagraçãoliterária (e não seremos nós a fazê-lo, frise-se bem), o atônitoleitor notará que Otto Lara Resende deixa transparecer oespectro desse pacto ao lembrar que foi procurado por Rosalogo após o nome do romancista ter aparecido, em jornal,como possível candidato ao Prêmio Nobel. Naquela ocasião,Rosa solicitou que Otto “evitasse associar o seu nome aoNobel”, pois, segundo o romancista, “o Nobel mata”. Essaobsessão temerosa pela morte está também associada àconsagração literária que corresponderia à posse na AcademiaBrasileira de Letras. Rosa concorrera à Academia em 1957,sendo preterido; concorrera, novamente, em 1963, sendoacolhido, por unanimidade, como um dos grandes nomes daliteratura brasileira. Por inexplicável razão, Rosa adiou sua possepor quatro anos e, no ano que antecedeu a data enfim fixadapara o evento de consagração literária, o bardo viveu como seestivesse se despedindo dos lugares visitados, diz EmirMonegal282 . “Curiosamente, morreu 48 horas depois de tomarposse”283 , acrescenta Lara Resende. Se o discurso de posse naAcademia está repleto de referências à morte, o romancista,poucas horas antes de falecer, oferece um dicionário à suamulher, Aracy, em cujas páginas apõe uma dedicatória, redigidaem alemão, língua do Fausto, com a qual despede-se compalavras consoladoras a respeito da própria morte, como seum contrato qualquer expirasse e o débito natural fosse quitadocom a entrega da própria alma, segundo as cláusulas impostas

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199 por um Mefistófeles invisível, um Lúcifer portador de luzesverbais.

E, claro está, nesse contexto de pactos e prêmios, nessepercurso em que se confundem os bardos guerreiros, aexpressão “moça de carinha redonda” (única descrição deotacília) reflete a imagem da moeda cunhada com a efígie deuma jovem (apenas “riso e boca”, e “cabelos”), até mesmopelo duplo sentido de “carinha”: o termo remete ao substantivo“rosto” mas, igualmente, com a função de adjetivo, o termoremete a “dispendiosa”, “obtida com grandes sacrifícios”, “tidaem grande valor ou estima”, conforme orientam os dicionários.Assim, “cara redonda” seria também, em construção sintáticainversa, a “redonda cara”, redonda custosa, peça redonda dedifícil obtenção ou alto valor: a moeda. Por conseqüente, “aefígie da moça cunhada sobre a peça redonda que é carinha”,que é de difícil obtenção, será uma pertinente leitura ouinterpretação para aquela expressão banal, velho lugar comumao qual Rosa votaria tanta aversão285 , expressão inexpressivaque remeteria, à primeira vista, à tão desgastada e repetidadescrição física “moça de carinha redonda”. A interpretaçãoserá extremamente produtiva dentro de uma perspectiva derepresentação do universo literário.

Nesse sentido, Riobaldo diz, de maneira emblemática,que o “tiritozinho de sua [Otacília] voz, eu guardei e recebi”(gsv 164). Ora, “tiritar”, bater com os dentes, e “tilintar”,produzir sons com moedas que se chocam, são verbos cujasestruturas sonoras permitem uma facílima aproximaçãoparonomástica. Assim, a oração do jagunço traz novamente àtona a figura da moeda cujo tilintar encontra eco no “tiritozinhoda voz da moça de carinha redonda”, e que é preciso “recebere guardar”, verbos intrinsecamente relacionados comatividades financeiras e comerciais. O leitor observará ainda,com proveito, que a flor que Otacília diz chamar-se “casa-comigo” (gsv 164) chama-se também, e não por acaso, “liro-liro”, nome que faz pensar em liras e libras, moedasrespectivamente italiana e inglesa. O nome “liro-liro” faz pensartambém no francês “tire-lire”, “cofrinho”. Note-se, assim, queRiobaldo diz que essa “flor é figurada” (gsv 164), orientandomais uma vez o leitor a buscar o sentido figurado, e nãoapenas folclórico, botânico ou anedótico em seu discurso-enigma.

Igualmente, notaremos que Otacília é vista por Riobaldosob um “enquadro de janela”, fato ao qual o narrador faz

285 Rosa declara: “Mas,o mais importante, sem-pre, é fugirmos dasformas estáticas, cedi-ças, inertes, estereoti-padas, lugares-comuns,etc.” João GuimarãesRosa, “O Texto, umanimal bravo e vivo(fragmentos da corres-pondência com Harrietde Onís)”, in Jornal daTarde. São Paulo, 18/5/96.

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200 duas alusões (gsv 135, 162) com o intuito de alertar o leitorsobre sua importância no desenvolvimento do romance.Assim, o formato retangular da janela que enquadra aquelaimagem pode remeter ao formato retangular das cédulasmonetárias, que normalmente trazem impressa uma efígiesimbólica, também “riso e boca”, e “cabelos”. Nesse sentido,Otacília é também descrita como “figurinha de rosto”(gsv 135), e, no Brasil, a preposição “de” é muitas vezesutilizada, em registro popular, como substituição à preposição“com”, tal como no exemplo “Maria está de perfumefrancês”; ou, ainda, “vou comer de colher”, “leite dechocolate”, entre outros. Nesse caso, Otacília representariauma figurinha, um impresso, com a estampa de um rosto,tal qual se apresentam as cédulas bancárias. A “moça dacarinha redonda” é também descrita como “fina de recanto”(gsv 163), ou possível corpo físico de pouca espessura(“fina”) e com cantos bem definidos (“recantos”), tal comotambém se apresentam as cédulas, e seu casamento coincidejustamente com o tempo em que “deu o verde nos campos”(gsv 534) de Riobaldo, fato que pode facilmente remeterao surgimento de uma profusão de bilhetes verdes, cédulascomo a moeda norte-americana, a célebre “verdinha”. Essamultiplicação de “verdes-verdinhas” recompensará Riobaldoapós sua vitória sobre Hermógenes, mas representarátambém a transformação do árido sertão em férteis e verdesveredas.

Ademais, se Otacília representa o formato e a estampade cédulas, carreando consigo o verde ao mundo do heróicojagunço, notaremos que a mocinha é entregue, comoalmejada, “dada, (...) como pretendida” (gsv 534), aRiobaldo, em mesmo tempo que a “cédula (de testamento)”(gsv 534) que outorgou ao jagunço a fortuna merecida erecebida em função de sua filiação genealógica ao contadorde casos Selorico-Odorico Mendes. Claro está que essaúltima cédula pode, sob forma metonímica, representar umconjunto de cédulas bancárias que gratificariam Urutu pelasua vitória sobre Hermógenes. Estaríamos aqui imersos nasmúltiplas águas da plurissignificação, do “indécidable dusens”.

Otacília é portanto um prêmio. Entretanto, vale observar,no texto transcrito, um hipérbato que pode ser ilustrativo,pois há uma inversão na posição do substantivo “prêmio feito”e do pronome demostrativo “esse” na construção que seria,

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201 originalmente, “esse prêmio feito eu merecia?”: a mocinhatorna-se, por intermédio do hipérbato, um “prêmio feitoesse” (gsv 135), “prêmio feito S”. É igualmente possível aleitura mais explícita em que o “prêmio é feito um S’”, prêmiofeito letras, prêmio “letral”, literal ou literário. Por essa razão,Habão, “homem, esse”, o editor literário, é encarregado porRiobaldo de partir em busca de notícias de Otacília, o prêmio.E, como todo prêmio literário, Otacília é a “glória” (gsv 448),“sol dos rios” (gsv 482), ou seja, luz que ilumina os “fluxosde texto”, os romans-fleuve, os romances-rio286 . Tal seriaprecisamente uma função cumprida pelos prêmios literários:colocar sob o foco dos holofotes os méritos desta ou daquelaobra literária, fato que, naturalmente, implica no aumentoda procura pela obra e acresce a retribuição financeira daqueleque serviu-se de suas mãos para estabelecer o manuscrito.Assim, ao ter sua mão e seus dedos imobilizados porferimentos recebidos pouco antes de chegar à Fazenda dosTucanos, Riobaldo teme nunca mais ser visto, notado, porOtacília, teme que Otacília nunca mais lance os olhos,holofotes solares, sobre ele:

“Assim a primeira vez que me sucedia um a-mal, isso me

perturbasse. O que me sofria até nas margens do peito, e nos

dedos da mão, não me concedendo movimentos. Muito temi

por meu corpo.. ‘Ah, minha Otacília.’ — eu gemi em mim —

‘Pode que nunca mais você me veja, e então nem viúva minha

você não vai ser...’” (gsv 281)O leitor terá notado que a ausência de movimentos

dáctilos acarreta, para o bardo Riobaldo, um “a-mal” que olevará à um estado de perturbação, de contrariedade. Esse“a-mal” é também conseqüência de uma limitação(simbolizada por “margens”) pneumológica ou toráxica(representada por “peito” ou pulmões) subseqüente aosferimentos. A expressão “a-mal” é construída a partir doemprego expletivo de “a”, e remeteria, nesse contexto, aoespaço literal ou, com mais propriedade, literário. Portanto,o contratempo sofrido por Riobaldo representaria umainadequação momentânea na produção de fala e de escritaque conduziria ao feitio de letras desprovidas de qualidadesdiversas (“a-mal produzido”, em oposição a “a-bem logrado”).Naturalmente, tais inadequações, manifestadas no interiorde “margens” (da folha impressa), conduzem também à

286 E romance-rio seriaexatamente GrandeSertão: Veredas, segun-do a percuciente análisede Davi Arrigucci Jr.:“Desde o princípio,estamos, por assimdizer, diante do rio dafala. Essa impressão defluxo fluvial da fala ésempre poderosa por-que depende certamen-te do ritmo de fatocaudaloso e ininterruptodo discurso e do seumovimento de recor-rências e remoinhos,com pontos de tensãode luta, de celérecorrenteza e precipi-tação de ações violentase passionais, alternadoscom largos remansoslíricos, desenhandocontrações e distensõesno hausto do relato. Asugestão fluvial estáposta já no título, pelapresença do termoveredas, que no falarregional do sertão signi-fica o curso fluvial pe-queno, além da acepçãonormal de trilha oucaminho: ‘Rio é só o SãoFrancisco, o Rio doChico. O resto pequenoé vereda’.” Davi ARRI-GUCCI Jr., “O MundoMisturado: Romance eExperiência em Guima-rães Rosa”, in NovosEstudos: CEBRAP,p. 23.

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202 redução das possibilidades de receber Otacília e suas palmas.Por essa vertente, torna-se então compreensível o desejo,

manifestado por Riobaldo, de adquirir posses por intermédiodo “trabalho de segurar a alma e endurecer as mãos”(gsv 163): trabalho de servir-se incansavelmente das mãospara o ato de escrita daqueles textos que fixam a alma humanade forma perene, posto que a obra literária, de forma geral,tem o cunho de fixar a alma humana a partir de umadeterminada cosmovisão particular do autor. Assim as “altasartes de jagunços” remeterão,claro está, a “estórias” escritasnecessariamente por intermédio das mãos.

Entretanto, o narrador adverte: se Otacília é um “prêmio”(gsv 135), ela é também “um juízo vago” (gsv 519). Caberiacolocar as mãos que escrevem a serviço de um julgamentofalível e perecível? Em função da retribuição financeira, váriossão os autores que assim o fazem, e esses estariamrepresentados na figura de Ricardão, “bruto comercial”, “rico,dono de fazendas, [que] somente vivia pensando em lucros,querendo dinheiro e ajuntando” (gsv 154). Ricardão é,igualmente, “o homem das beiras do Verde Pequeno”(gsv 232), do verdinho, ou da verdinha, conforme adenominação popular da moeda norte-americana. O (córregoou remanso) Verde Pequeno pode também representar ofluxo (de texto) que se torna pequeno, insignificante, porestar ligado ao verde simbólico da recompensa monetária.Não por acaso Ricardão será eliminado na Batalha doTamanduá-Tão, a batalha pelo tamanho das Letras. Vera LúciaAndrade observa que esse rico jagunço é “figura bastanteambígua, na medida em que sintetiza em sua pessoa umtríplice poder. Ricardão dispõe da ‘força’ da jagunçagem, do‘dinheiro’ que lhe rendem as fazendas, bem como da proteçãoda lei, amigo que é de importantes políticos.”287 Sublinhemosque “fazendas” é termo derivado de “fazer”, e “bruto”, emportuguês, remete a “tosco, mal acabado”, enquanto, emitaliano, indica “má aparência”.

Por esse prisma, indica-se que o fazer do gananciosojagunço é portanto mal-acabado, incompleto, desprovido deestética, e esse bardo afeito ao lucro precisa de proteçãooficial para sobreviver. Ora, Urutu-Crátilo é, para a fortunafinanceira dos Ricardões, uma grande ameaça, daí a razão deseu combate: “Ricardão, mesmo, queria era ser rico em paz:para isso guerreava” (gsv 9). Suas motivações no combate

287 Vera Lúcia ANDRA-DE, “Conceituação dejagunço e jagunçagemem Grande Sertão:Veredas”, in Eduardo F.Coutinho (org.), Gui-marães Rosa, p. 494.

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203 contra o signo motivado são meramente financeiras. Issoposto, vale dizer, mesmo de forma redundante, que o autorque pauta sua escrita em função dos prêmios literários é umautor que não desfruta de plena liberdade de criação. E tal éo sentimento experimentado por Riobaldo em relação aOtacília, seu prêmio, moça da carinha redonda que governacom grande poder sobre os sertanejos, tal como o leitor játeve a ocasião de observar e como entrevemos novamenteneste trecho:

“Otacília, minha noiva, que era para ser dona de tantos

territórios agrícolas e adadas pastagens, com tantas vertentes

e veredas, formosura dos buritizais. O que era isso, que a

desordem da vida podia sempre mais do que a gente? Adjaz

que me aconformar com aquilo eu não queria, descido na

inferneira. Carecia de que tudo esbarrasse, momental meu,

para se ter um recomeço. E isso era. Pela última vez, pelas

últimas. Eu queria minha vida própria, por meu querer

governada.” (gsv 311-312)Riobaldo recusa-se a se conformar-se com o domínio da

moça de carinha redonda sobre as atividades sertanejas, edeseja governar-se a si próprio no uso da mente (“momental”)e das mãos para a fixação da alma, sob pena de ceder àmotivação do prêmio e somente transcrever a “desordemda vida”. Assim, os domínios territoriais de Otacília — aFazenda Santa Catarina — apresentam “réguas” (gsv 163)em suas cercas, sugestão de um trabalho medido e controladopor aquele que confere o prêmio. Da mesma forma, nosdomínios de Otacília há “um valor viável em tudo que [é]cordato e correntio” (gsv 163), outra sugestão quanto ànecessidade do escritor em conformar-se cordatamente àsidéias correntes, ao consagrado, ao “velho [que] valeuenquanto foi novo” (gsv 227), para enfim obter o “valor emestado viável”, virtual, o prêmio almejado cujo logro, tal comoOtacília, é “uma incerteza” (gsv 390). Essa busca do consensopode apagar o ímpeto criador do artista, e, não por acaso, naSanta Catarina, “a fogo-apagou sempre cantava, sempre”(gsv 163), prenúncio da extinção daquele fogo demiúrgicoque governa o ato de criação288 . Ademais, para Riobaldoesse canto “tem um cheiro de folhas de assa-peixe”(gsv 163), cheiro de folhas levadas ao fogo que se queimam

288 Em que peseAntônio Cândido iden-tificar, em Otacília, afigura da musa inspira-dora; a menos que as“verdinhas” sejamverdadeiras musas paraalguns... Cf. VeraMascarenhas de CAM-POS, Borges & Guima-rães: Na esquina doGrande Sertão, p. 168.Entretanto, ao visto daguerra levada contraHermógenes (alegoriado signo arbitrário), K.HRosenfield sublinha,com pertinência, a“ambivalência quemarca toda a campanhade Urutu Branco,culminando na hesi-tação entre a procura deOtacília e os prepara-tivos da guerra.” KathrinHolzermayr RO-SENFIELD, Os desca-minhos do demo. Tradi-ção et ruptura em Gran-de Sertão. Veredas,p. 170.

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204 e que se perdem no próprio gesto de trabalharrepresentado pelo ato de preparar o alimento.

Assim, o gesto da escrita torna-se desprovido desentido pois não mais pode dar vazão à busca da “ordemda vida”, visto que se desenvolve como uma atividadepragmática regida pela busca de um prêmio. E essaescrita pragmática assemelha-se à redação de uma carta,atividade não artística e com objetivos práticos bemdelimitados. Por essa razão, Riobaldo diz: “quando eupensava nela [Otacília-prêmio], era mesmo comoestivesse escrevendo uma carta” (gsv 376). Assim, como objetivo de tentar escrever versos para agradar aOtacília, o jagunço termina escrevendo uma carta“incompleta”, pela “metade” (gsv 432), pois se tratade “ordenada lembrança, igualzinha repetição”(gsv 433), e seus assuntos são “singelos”, meras“lembranças” (gsv 432). Riobaldo desgosta-se“diabralmente” (gsv 433) daquela carta que, por essemotivo, não será enviada, talvez como aquele premiadoMagma que Guimarães Rosa recusou-se durante todaa sua vida a enviar para edição289 . Nesse sentido, valelembrar a notória participação do autor, no início desua carreira, em diversos concursos literários com oobjetivo de aumentar sua renda financeira. Estará aquio sentido figurado daquele enigmático “mocidade étarefa para mais tarde se desmentir” (gsv 15) lançadopelo narrador logo ao início do romance? “A poesiaprofissional, tal como se deve manejá-la na elaboraçãode poemas, pode ser a morte da poesia verdadeira”290 ,afirma Guimarães Rosa, talvez em alusão velada ao seuMagma e em complemento à idéia de tarefas juvenisque mais tarde serão renegadas pelo autor.

A respeito de Otacília, Riobaldo diz ainda a seuinterlocutor: “Ela era risonha e descritiva de bonita;mas, hoje-em-dia, o senhor bem entenderá, nem ficavabem conveniente, me dava pejo de muito dizer”(gsv 163). Dessa afirmação do narrador, deduzimos quea presença de Otacília implica em que muito se descreva(ela é “descritiva”), em que muito se diga (ela solicita“muito dizer”), gestos a serem cumpridos de maneiraagradável (risonha e bonita). Entretanto, o narrador

289 Quanto a umpossível Magma quenão veio a lume, que nãoentrou em erupção eque, portanto, não setransformou em cinzasno processo de combus-tão com o ar (do leitor),vale observar as emble-máticas palavras deM.A. de Castro: “Tãogrande fora a impressãodeixada pela cantiga deSiruiz que ele [Rio-baldo] também passa acompor versos. Sãoadmirados por ele elouvados pelos outros,mas com o passar dotempo esqueceu-se ediz, metaforicamente,‘... Não deram cinza’.Não deram cinza por-que não eram brasasvivas, isto é, poesia.”Manuel Antônio deCASTRO, O Homemprovisório no GrandeSer-tão, p. 64.290 Cf. Günter LO-RENZ, “Diálogo comGuimarães Rosa”, inEduardo F. Coutinho,Guimarães Rosa, p. 70.

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205 lança a ressalva de que “hoje-em-dia”, no estado atualdos feitos (literários?), não convém assim fazê-lo, eRiobaldo sente “pejo”, pudor em dar vazão àquelaselegantes descrições e dizeres excessivos solicitados pelafigura de Otacília, pela sua visão ou vislumbre, pelodesejo de possuí-la, pelo desejo de ser agraciado com oprêmio.

Notemos, no sentido de nossa leitura, que Riobaldo,nesse trecho de sua narração, reforça a necessidade deque o leitor proceda a um esforço imperioso de uma“boa” interpretação, uma interpretação adequada,proceda a uma leitura dos significados adjacentes (ouvarjacentes, para lembrarmos o mot-valise “varjaz”, osubentendido vário, múltiplo, o “indécidable du sens”).Para tanto, o bardo, em seu processo de comunicaçãocom o “senhor” (aqui tomado como desdobramentodo leitor) — serve-se do modo imperativo já presenteno Decálogo divino: “o senhor bem entenderá”(gsv 163). Ou, parafraseando o Decálogo: “não tomarásem falso, o Nome”; tal, em hipótese alguma, indica overbo conjugado num futuro atemporal. E, nessesentido, compreende-se a dicotomia encontradiça,segundo Riobaldo, entre, de uma parte, os seguidoresdo Urutu-Crótalo-Crátilo e, de outra parte, Otacília, oprêmio “S”: “...eu podia desdeixar meus homens? Etinha de ir. Não por bons-e-belos, ah. Mas minhaOtacília vinha...” (gsv 500). Se Riobaldo porventuradecidisse abandonar seus homens para ir em buscadaquela Otacília-prêmio cuja vinda é esperada, essegesto em nada poderia se relacionar com uma motivaçãoética (por bons) ou estética (por belos), mas apenascom interesses motivados pelas vantagens trazidas poraquela “moça da carinha redonda”.

Por esse conjunto de razões, o bardo Riobaldo oscilaentre a necessidade imperiosa de acompanhar Diadorime o desejo irresistível de partir em busca de Otacília:Diadorim é quem ensina Riobaldo a apreciar oselementos do cosmos (como o manuelzinho-da-croa),mas também é quem lhe ensina a dar o nome correto aesses elementos, quem lhe ensina a nomear — Diadorimé símbolo do Verbo —; Otacília, por sua vez, é imagem

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206 alegórica da busca de recompensas materiais — ela seráo símbolo da Verba —. Eis aí , portanto, o pardicotômico que faz vacilar o poeta, o binômio que podedefinir a realização de Pequenas ou de Grandes Letras,como o ladino leitor, ao cerrar as páginas do romance,terá facilmente percebido: todo bardo partirá em busca,ávido e sequioso, ou do Verbo, ou da Verba.

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207 À guisa de conclusão verdadeiramenteprovisória

“Daí, pois, como já se disse, exigir a primeira leitura paciência, fundada na certeza que, na segunda, muita coisa, ou tudo,

se entenderá sob luz inteiramente outra.” (Schopenhauer, citado por Rosa em Tutaméia)

Considerando-se os elaboradíssimos enigmas desseuniverso eminentemente especular — dos quais é tempode suspender, provisoriamente, a vertiginosa decifração—, vale lembrar, com Adrian Marino, que o fenômeno daliteratura auto-reflexiva é símbolo da “lucidez moderna,do recuo que permite ao autor um melhor julgamentosobre sua obra, atitude que se torna uma interrogação,uma experiência e uma justificativa contínuas,desdobradas em uma verdadeira aventura pessoal”291 . Osequioso leitor confronta-se, portanto, nas páginas GrandeSertão: Veredas, a um jogo vertiginoso de imagensespelhadas no qual se oculta uma metafórica reflexãometapoética sobre aspectos tão distintos da produçãoliterária que até mesmo as figuras do editor, do prêmioliterário e de seu poder sobre a atividade de criação estãoaí incluídas. Essa profusão de enigmas transforma oromance em um extenso “almanaque” (gsv 7) semelhanteao de Vito Soziano, um almanaque em decifraçãofragmentária que é “sósia” da vida do ser humano, essecomplexo, parcelar e indecifrável enigma de si mesmo.

Nesta proposta de conclusão ou de encerramentoprovisório para o estudo que ora chega a seus momentosfinais, e à espera de que outros pesquisadores dêem cursoao ininterrupto movimento da lemniscata rosiana, seriapossível dizer, ao recapitularem-se os textos críticoselaborados ao longo das cinco últimas décadas, queinúmeros estudiosos avizinham-se e roçam perigosamenteo sentido óbvio ocultado (“o Oculto” ou “o O oculto” dobardo Riobaldo) pelo romance desde o seu início, desdeo travessão inicial que inaugura o discurso literário. Comum pouco mais de descuido ou de negligência para comas bem assentadas regras da crítica literária, para com obom senso, essas leituras seriam sorvidas pelo maelström-

291 Adrian MARINO,La Critique des IdéesLittéraires, p. 19.

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208 turbilhão-redemunho do enigma poético que circula veloz,indomável e desvairado, sob a superfície corrediça do Lisodo Sussuarão e do universo do Grande Sertão.

Sob essa óptica, o leitor terá notado que certos exegetasde Guimarães Rosa tecem um grande número de referênciasao Verbo poético como tema subjacente em Grande Sertão:Veredas. Tais referências são observadas em leituras as maisdifluentes possíveis, como na análise proposta por Willy Bolesegundo a qual o espaço definido pelas Veredas Mortas –posteriormente transformadas em Veredas Altas – remetemà imagem da Mesopotâmia e ao surgimento da civilizaçãohumana, assim como à imagem do nascimento da escrita e,por extensão, da própria literatura. Da mesma forma, WalniceGalvão terá sublinhado a suma importância da presença detextos escritos ao longo da vida de Riobaldo, e será LeonardoArroyo quem chamará a atenção do leitor sobre o papelessencial da assinatura postada à superfície da folha e,portanto, sobre o papel da palavra impressa no pactoestabelecido entre Riobaldo (Faustino, o pequeno Fausto,como vimos) e o “Que-Diga” (o demônio, o demo “des mots”Mefistófeles Dá-vidão, em nossa leitura). Nessa ordem deidéias, Walnice Galvão terá ocasião de indicar, de formapertinente, o aspecto simbolicamente letrado da naturezadesse jagunço pretextual, desse “Riobardo” cujo nome é umaespecular referência ao universo da literatura. A pesquisadorapropõe sua leitura em uma lúcida análise das possibilidadesoferecidas ao belicoso sertanejo para o desenvolvimento desua vocação de homem das letras. Essas observaçõesapontarão para uma uma leitura da obra como representaçãometafórica do romance da vocação, e tal será feito porintermédio da figura do jagunço letrado que, em váriasocasiões, questiona-se a respeito de suas vocações sertanejas.

Por sua vez, Manuel Antônio de Castro define e sublinhao valor simbólico dos signos impressos (o travessão inaugurale a lemniscata) sobre a folha branca, esse suporte essencialda escrita, e afirma que esses signos, ao se encontrarem emum texto poético, tornam-se marcas formais que estabelecemuma estreita relação mútua entre as noções de poesia e devida. A esses signos, Daniel-Henri Pageaux acrescenta osdois pontos do título, e afirma que a presença ostensiva einaugural de tais signos impressos em um romance marcadopela oralidade (pré-textual) servirá como indício de um texto

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209 literário que considera, sobretudo, o código por cujointermédio se constrói. Nessa perspectiva, Castro colocaráem relevo a idéia de que a existência humana materializa-sepor intermédio do Verbo poético, por intermédio da palavrademiúrgica, e suas idéias resvalarão o vertiginoso abismo dodiscurso eminentemente metapoético do bardo Riobaldo.Nelly Coelho, por essa vertente, observa que o ato de contar,em Rosa, equivale ao ato de viver, segundo o modeloapontado por Scherazade em Mil e uma noites.

É preciso notar que o Verbo demiúrgico é, igualmente,uma das noções comentadas por Kathrin Rosenfield em suasleituras de Grande Sertão: Veredas, e essa pesquisadora farátambém várias referências à origem da linguagem humanaem lúcidos comentários sobre o romance. Essas idéias semprese acercam do sentido velado ou oculto pelos enigmasdispersados cuidadosamente por Rosa sobre as páginas deseu “almanaque” literário; no entanto, essas idéias evitam ofosso abissal da noção de texto poético claramente especularque o leitor teve a ocasião de apreender ao longo deste estudo.Nesse sentido, caberá ao sempre lúcido e clarividenteCavalcanti Proença propor, em primeiríssima mão, a idéiade escrita lúdica em Guimarães Rosa, notadamente no quetange ao topônimo Tamanduá-tão; por esses viés, tambémKathrin Rosenfield verá nesse topônimo um enigma a serdecifrado. Por essa vertente, o sentido velado dametanarrativa é sempre mais ou menos roçado de muitoperto pelos críticos, fato que apontou para a necessidade dese rebuscar a palavra, com métodos de arqueólogo, na buscade uma possível chave para o claro enigma. Nesse aspecto,as cartas enviadas pelo romancista a seus tradutores são ricasem indicações de uma escrita que se quer lúdica e de umapoética que se oferece em enigma. Ao retomar apenas umentre os inúmeros exemplos possíveis, será útil pensar nascartas escritas a Edoardo Bizzarri: sem o socorro das chaveshermenêuticas indicadas por Rosa, talvez o jogo lúdico queé encontrado em “Moi-me-ich-ego” ou em “Aí, Zé, opa!”teria passado despercebido até o presente momento. Pode-se assim deduzir que será preciso publicar, o mais rápidopossível, o conjunto das cartas enviadas por Rosa a seusdiferentes tradutores, de preferência em uma ediçãoagrupada e comentada pelos especialistas da obra rosiana.Enquanto não houver esta publicação, as leituras dessa obra-

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210 monumento correm o risco de permanecer nas camadas designificação que desconsideram os enigmas e os sentidossubjacentes cuidadosamente dispostos, por Rosa, sobre asuperfície “letral” das páginas impressas.

É assim, ao que nos parece, que Flávio Aguiar terá ocasiãode falar sobre a escrita rosiana em termos de “batalha literária”conduzida por um romancista em busca de uma língua poéticaeminentemente brasileira, e, por esse viés, o crítico tambémse avizinhará, arriscadamente, do vertiginoso sentido ocultodessa guerra riobaldiana a favor da expressividade dalinguagem e pela grandeza das letras, guerra conduzida como objetivo de dar forma ao “grande ser tau”, à grande letra, àGrande e Alta Literatura. Pode-se dizer, portanto, que osentido óbvio recoberto pelo nome e pelo apelido doRiobardo-Urutu-Crátilo é entrevisto por um grande númerode críticos, mas a chave para a decodificação dessa guerraliterária e lingüística ocultou-se cuidadosamente sob a palavra,ao portal de entrada desse espaço literário eminentementeespecular. Destravar as portas dessa obra, cujos ares lembrama Caixa de Pandora, pode parecer temerário em razão doredemoinho e do demo (“des mots”) que aí circulam erodopiam velozes e intangíveis. Não por acaso, “vertigem”deriva-se do latim “vertigine”, redemoinho, esse vácuo emrotação que provoca desvario, tontura e temor, que provocaalienação dos sentidos, que conduz ao delíquio ou àdeliqüescência da razão. Mas “vertigem” é também umfenônemo de desejo irrepresável e irresistível, forma súbitade se chegar ao paroxismo das paixões humanas, à explosãodos sentimentos e sensações que são a base da revelaçãoepifânica.

Assim, será preciso notar que o próprio romancista seencarregou de indicar ao leitor as passagens às quais serápreciso prestar redobrada atenção para se chegar às vertigensdo enigma em decifração, para se decifrar, com sucesso,alguns entre os múltiplos sentidos do poliédrico enigma, paraque o leitor não se torne a presa fácil da esfinge devoradorade passantes desatentos. O leitor observará, portanto, que aexpressão, em princípio privada de sentido, “vem o pão,vem a mão, vem o são, vem o cão”, pode facilmente servircomo advertência para que a leitura se construa em tornodos vocábulos-chave que terminam em “ão”. Assim, o célebredesenho elaborado por Poty mostra uma figura que remete

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211 tanto à imagem de uma serpente quanto à imagem de um tilde enormes proporções: estão aí indicações que remetem,de maneira insofismável, ao plano de leitura criado pelo Cão,Sussuarão, Davidão, Habão, Ricardão, Tamanduá-tão,Paredão, Grande Sertão, entre outros, num plano de leituraque se constrói de maneira clara (ou à maneira de um claroenigma) em torno da noção de signo motivado ou arbitrário,em torno de Crátilo e Hermógenes.

São, portanto, vários os críticos que propõem uma leiturade Grande Sertão: Veredas com base na noção de linguagemmimética ou, em outros termos, de signo motivado. Entreesses críticos, seria possível citar os nomes de Walnice Galvão,Vera Mascarenhas de Campos, Kathrin Rosenfield, NeyLeandro de Castro, Mary Lou Daniel, Donaldo Schuler, Jean-Paul Bruyas, Antônio Miketen e Davi Arrigucci Jr, assimcomo outros. Ora, a motivação do signo é uma noçãodesenvolvida e sustentada por Heráclito e Crátilo, milêniosantes de ser retomada por Guimarães Rosa para a fatura deseu romance. Após as analogias encontradas por Francis Utézaentre o romance e as idéias de Heráclito, será KathrinRosenfield quem comentará, em sua leitura de GrandeSertão, várias passagens do Crátilo de Platão, texto quepoderá doravante ser lido como uma chave para adecodificação de uma certa camada palimpséstica doromance, pois Crátilo – esse discípulo de Heráclito – torna-se ele mesmo uma espécie de personagem intertextual emetapoético oculto sob a pele do jagunço letrado que éRiobaldo, o “io-bardo” do signo motivado.

Com base nas idéias defendidas por Crátilo, GuimarãesRosa terá, talvez, logrado uma eficiente demonstração, aolongo das páginas de seu romance-total, de que a teoria dosigno arbitrário é pouco producente em termos deexpressividade artística, em termos da construção verbal denovas visões do universo, em termos de criação demiúrgicade mundos ainda possíveis e sempre inéditos. Futurospesquisadores poderão buscar, nas camadas metalingüísticasdo romance, idéias e conceitos que solicitam sistematização,assim como respostas que não se oferecem, de forma alguma,por si mesmas, para questões essenciais da filosofia dalinguagem.

Entrementes, com esteio no estudo que se encerra aquipro-visoriamente, é possível afirmar que o estilo de um autor

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212 não saberia sofrer nenhum processo de dissociação notangente ao caráter de sua obra (espelho do homem), pois,como diz Rosa, “o caráter do homem é seu estilo, sualinguagem”292 . O estilo bem logrado de um autor caracteriza-se também pelo poder de acréscimo ou agregação demúltiplas camadas de sobrecarga semântica (às vezesredundantes ou, mais precisamente, redundantes eplurissignificantes ao mesmo tempo) ao texto, aquilo queRosa chama de “empastamento semântico”. Nessa ordemde idéias, a palavra, em Grande Sertão: Veredas, éextremamente emblemática, posto que formidavelmente ricaem significações laterais, adjacentes ou subjacentes. O leitorpoderá então considerar que, em Guimarães Rosa, oandamento estilístico faz pensar, de maneira patente, emuma fatura poética de natureza impressionista, haja vista asconstruções paratáticas, elípticas e oximóricas que equivalemà justaposição textual de palavras em estado bruto, tal comoacontece com o débito de cores puras sobre a tela, semmistura cromática prévia sobre a palheta, na fatura estéticaadotada pelos impressionistas. Sob tal óptica, o texto rosianosolicitará ao observador um grande recuo para a realizaçãoda leitura interpretativa, ou a obra será fragmentária eparcialmente entrevista, tornando-se impossível a apreensãode seu conjunto significante, de sua totalidade ou de suacompletude.

Assim, Rosa sublinha, freqüentemente, a necessidadede se proceder à re-leitura do seu texto, e tal será feito demaneira exemplar na coletânea de “estórias” intituladaTutaméia, essa obra que apresenta, de maneira inusitada,dois sumários ou dois ambivalentes índices de matéria. Essesíndices, ao mesmo tempo semelhantes e distintos, sãoapresentados, respectivamente, no início e o no final dacoletânea, forma de se oferecer ao leitor a recomendaçãoexpressa de sempre recomeçar uma leitura terminada masnunca acabada da obra literária. Nesse sentido, a epígrafe deTutaméia é extremamente emblemática, pois o bardosertanejo serve-se de Schopenhauer para anunciar a suaconcepção da leitura poética: “Daí, pois, como já se disse,exigir a primeira leitura paciência, fundada na certeza que,na segunda, muita coisa, ou tudo, se entenderá sob luzinteiramente outra.”

Em eco às idéias propostas por Schopenhauer e abraçadas

292 Apud Günter LO-RENZ, “Diálogo comGuimarães Rosa”, p. 78.

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213 por Rosa, Roland Barthes afirma que “quando se relêum texto, é para se obter, como sob efeito de umadroga (a droga do eterno recomeço e da perpétuadiferença), não o verdadeiro texto, mas o texto plural:o mesmo e o novo”293 . Assim, a palavra poética nãosaberia ser, de forma alguma, uma palavra apreendidade forma fixa e imutável, pois ela é antes o veículo deuma iterativa metaformose verbal, de um fluxoirrepresável de significações, a palavra poética remeteao abismo ou redemoinho da vertiginosa soma desentidos possíveis para o universo. Ora, como sublinhaMeschonnic, “uma palavra rica em sentidos não temvários sentidos, mas um sentido sob vários planos”294 .Resta ao leitor, em seu poento percurso sobre asveredas rosianas, perguntar-se: como desvelar, emsituação de leitura, o sentido dos vocábulos sem terpreviamente desvelado os planos de significação queformam a base para interpretação do vocábulo? Comoconstruir um percurso de leitura balizado na polissemiacorrediça de palavras tais como “conto, carinha, palma-buriti, veredas, cavalo, nagã, títulos”, entre tantasoutras palavras que tivemos a ocasião de analisar aolongo do presente estudo?

O romance palimpséstico do bardo sertanejooferece um bom número de obstáculos ao viandantemarcado pela pressa em completar seu “giro-o-giro”obrigatório no vago dos sertões. Por essa razão, o leitorarguto e sequioso também deverá pensar na escritalúdica de Guimarães Rosa e nas inúmeras relaçõeshomofônicas que permeiam as páginas do romance,tal como acontece com o topônimo chave que éTamanduá-tão (“tamanho-do-A-tão”), ou como ocorrecom esses vocábulos todos que remetem, de maneirainquestionável, aos nomes das letras do alfabeto porcujo intermédio o bardo terá a privilegiada tarefa dedar forma ao universo. Ademais, também certasrelações homofônicas inter-idiomáticas, como no jogovisível em “demo” e “des mots”, ou “Antunes” e“untunes”, são de fundamental importância para oacréscimo de cargas de plurissignificação ao discursometapoético do bardo Riobaldo, para a mulplicação

293 Roland BARTHES,S/Z, p. 23.294 Henri MESCHO-NNIC, Pour la poétique,p. 56.

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214 das camadas de leitura do romance, para a elaboraçãode um texto de elevado valor poético.

Posto que múltipla (plural, diria Barthes), uma obrade grande valor literário não poderia sofrer leiturasdefinitivas: segundo o modelo oferecido pelo LivroSagrado dos cristãos, será preciso, forçosamente,interpretar e reinterpretar esse romance chave daliteratura brasileira, esse possível exemplar bemlogrado da Weltliteratur sobre a qual discorre Goetheem suas entrevistas com Eckermann, segundo aluminosa lembrança de Daniel-Henri Pageaux295 .Nesse sentido, vale observar que Conversações comEckermann, de Goethe, faz justamente parte dabiblioteca deixada por Guimarães Rosa, conformesublinha Francis Utéza. A visada literária doromancista mineiro parece, portanto, se construirsegundo a noção de texto múltiplo e orientado pelabusca de uma literatura que se quer universal porintermédio de elementos pretensamente regionais. Poressa razão, em função da multiplicidade de leituraspossíveis para esse meta-romance, o presente estudotem o cuidado de não encerrar ou descartar nenhumapossibilidade interpretativa, e permanece atento àproposta de novas perspectivas hermenêuticas, denovas pistas de leitura para essa tempestade polifônicaque é Grande Sertão: Veredas. O estudo encerra-secom a questão: essas pistas poderiam desobstruir oacesso a veredas ainda inexploradas e a novasabordagens críticas diante desse pluralíssimo epalimpséstico romance?

Lembremos, ainda uma vez, à guisa de conclusão(sempre pro-visória, para acompanhar os eficazesconselhos de Starobinski), desse desenhoencomendado por Guimarães Rosa a Poty, no qual sevê a imagem de uma vereda em forma de pautamusical; pensemos também em João Concliz, misturade bardo-jagunço (João io-bardo Rosa) e de pássarocanoro (concliz), e seu “assobio comprido sem fim”,sonoridade desdobrada em música privada de cercas,privada de limitações, chegaríamos então a imagenssimbólicas de Veredas musicais infinitas, caminho que,

295 Daniel-HenriPAGEAUX, A litera-tura comparada, p. 19.

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215 ademais, também é indicada pela lemniscata querelança o romance rumo ao espaço infinito dasmúltiplas leituras possíveis, característica que, semnenhum enigma para o leitor, é válida apenas paraobras literárias de grande expressividade poética.Haverá aqui, certamente, novas e fertilíssimas veredaspara a travessia do vertiginoso redemoinho do GrandeSertão, esse vital redemoinho poético concebido peloenigmático e genial bardo João Guimarães Rosa.

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39ª. ed., 1993, 386 p.)Tutaméia. Terceiras Estórias. Rio de Janeiro, José Olympio, 1967, 194 p. (Rio de

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II.II. OBRA POÉTICA EM VERSOS:

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