linhas tortas: reflexões sobre literatura nas crônicas de

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1. INTRODUÇÃO Graciliano Ramos se consagrou na história literária nacional. Escritor, artista, intelectual e político engajado, o autor publicou romances que passaram a integrar o cânone literário em nossa ficção e são objeto de múltiplas e constantes investigações acadêmicas, seja sob a análise autobiográfica, sociológica ou eminentemente textual. Mas, a obra literária de Graciliano Ramos compreende muito mais do que os seus romances mais conhecidos pelos leitores e reconhecidos pela crítica literária. As crônicas do autor são exemplos de bons textos literários que receberam menos atenção por parte de críticos e acadêmicos, a despeito de todos os aspectos literários a serem estudados. A elaboração estética das crônicas do autor é obviamente distinta daquela de seus romances e memórias, mas é inegável que Graciliano deixou sua boa marca na imprensa, pertencendo ao rol dos inúmeros escritores renomados em função da escrita de outros gêneros que atuaram como cronistas, tais como Machado de Assis, Manuel Bandeira, Carlos Drummond de Andrade, Vinícius de Moraes e Rachel de Queirós. No Brasil, a crônica é caracteristicamente conhecida como gênero fronteiriço entre a literatura e o jornalismo, decorrente da modernização da imprensa e da popularização dos jornais diários no país no século XIX, que oportunizaram a criação de novos espaços jornalísticos para uma manifestação artístico-cultural leve e despretensiosa. Dentro desse contexto brasileiro moderno de crônica, Graciliano publicou seus textos originalmente em jornais e periódicos de Alagoas, do Rio de Janeiro, capital política e cultural à época, e de Portugal. Ao que parece, Graciliano iniciou a atividade de cronista em 1915, assinando seus textos sob pseudônimos e, com alguns pequenos intervalos, contribuiu para jornais até 1952, sendo, a princípio, “uma atividade voltada principalmente para a obtenção de recursos que completassem o magro orçamento.” 1 . Mas mesmo suas crônicas tendo sido escritas para uma situação temporal específica, como os textos do gênero são produzidos, 1  GARBUGLIO, J. C.; BOSI, A.; FACIOLI, V. Graciliano Ramos. Coleção Escritores Brasileiros. Antologia e Estudos.  São Paulo: Ática. 1987. p. 118.  1

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Page 1: Linhas Tortas: Reflexões sobre Literatura nas Crônicas de

1. INTRODUÇÃO

Graciliano Ramos se consagrou na história literária nacional. Escritor, 

artista, intelectual e político engajado, o autor publicou romances que passaram a 

integrar o cânone literário em nossa ficção e são objeto de múltiplas e constantes 

investigações   acadêmicas,   seja   sob   a   análise   autobiográfica,   sociológica   ou 

eminentemente textual. Mas, a obra literária de Graciliano Ramos compreende muito 

mais do que os seus romances mais conhecidos pelos leitores e reconhecidos pela 

crítica  literária.  As crônicas do autor  são exemplos de bons  textos  literários que 

receberam menos atenção por parte de críticos e acadêmicos, a despeito de todos 

os aspectos  literários a serem estudados. A elaboração estética das crônicas do 

autor é obviamente distinta daquela de seus romances e memórias, mas é inegável 

que Graciliano deixou sua boa marca na imprensa, pertencendo ao rol dos inúmeros 

escritores renomados em função da escrita de outros gêneros que atuaram como 

cronistas,   tais  como Machado de Assis,  Manuel  Bandeira,  Carlos Drummond de 

Andrade, Vinícius de Moraes e Rachel de Queirós.

No   Brasil,   a   crônica   é   caracteristicamente   conhecida   como   gênero 

fronteiriço entre a literatura e o jornalismo, decorrente da modernização da imprensa 

e da popularização dos jornais diários no país no século XIX, que oportunizaram a 

criação de novos espaços jornalísticos para uma manifestação artístico­cultural leve 

e despretensiosa. Dentro desse contexto brasileiro moderno de crônica, Graciliano 

publicou seus textos originalmente em jornais e periódicos de Alagoas, do Rio de 

Janeiro, capital política e cultural à época, e de Portugal. Ao que parece, Graciliano 

iniciou a atividade de cronista em 1915, assinando seus textos sob pseudônimos e, 

com alguns pequenos intervalos, contribuiu para jornais até 1952, sendo, a princípio, 

“uma   atividade   voltada   principalmente   para   a   obtenção   de   recursos   que 

completassem o magro orçamento.”1. Mas mesmo suas crônicas tendo sido escritas 

para uma situação temporal específica, como os textos do gênero são produzidos, 

1  GARBUGLIO,   J.   C.;   BOSI,   A.;   FACIOLI,   V.  Graciliano   Ramos.  Coleção   Escritores Brasileiros. Antologia e Estudos.  São Paulo: Ática. 1987. p. 118.  

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as crônicas perduram e tendem a perdurar por um tempo mais longo ainda, pois 

foram compiladas em dois livros, ambos publicados post­mortem, em 1962: Viventes 

das Alagoas e Linhas tortas.  

O presente estudo se limitará a estudar  Linhas tortas, que conta com 

aproximadamente uma centena de crônicas escritas em diferentes momentos da 

vida do autor. Nas crônicas reunidas nesse livro, o leitor se depara com um universo 

temático   extenso,   já   que   Graciliano   escreve   sobre   os   mais   variados   assuntos: 

cinema,   teatro,   religião,   hinos   nacionais,   esmola,   realidade   nordestina,   política 

nacional e guerras mundiais, por exemplo. Mas o assunto predominante desse livro 

é   a   literatura,   seja   através   de   uma   abordagem   específica   e   explícita   sobre   a 

concepção de literatura de Graciliano, seja através de uma abordagem indireta ao 

falar sobre concursos, prêmios, mercado editorial e crítica literária.

Essa constante preocupação do autor com os assuntos literários em 

Linhas tortas motivou a focar a presente pesquisa nas crônicas em que o autor faz 

reflexões   diretas   sobre   o   campo   literário,   objetivando   extrair   e   trazer  à   luz   a 

concepção de literatura para Graciliano Ramos. Para tanto, o conhecimento prévio 

dos aspectos da trajetória biográfica e da construção da obra do autor enquanto 

ficcionista é extremamente relevante. 

Do estilo de vida, partiu­se da premissa de que o autor foi homem ativo 

nas letras, no comércio e na política nacional. Homem público e político, Graciliano 

foi eleito prefeito de Palmeira dos  Índios em 1927, diretor da Imprensa Oficial de 

Alagoas em 1930, diretor da Instrução Pública de Alagoas em 1933, tornou­se preso 

político em 1936, foi membro do Partido Comunista do Brasil em 1945, presidente da 

Associação Brasileira de Escritores em 1951 e 1952. Cidadão ativo, Graciliano foi 

um escritor engajado com a realidade nacional e “no seu quase século como homem 

de letras, fez da sua atividade um permanente motivo de reflexão. Escritor de ficção, 

poeta  bissexto,   teórico  da   literatura  e   cidadão  envolvido  em   todas  as  questões 

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candentes vividas pelo povo brasileiro.”2 E, ainda que os elementos biográficos não 

possam explicar a totalidade e grandeza da obra de Graciliano Ramos, porque “a 

arte pressupõe algo diferente e mais amplo do que as vivências do artista”3 e seus 

textos ultrapassem os limites autobiográficos, ela pode indicar pistas que auxiliam na 

compreensão da prática  literária do autor,  já  que  literatura e experiência de vida 

confundiam­se na obra   literária  de  Graciliano,  como bem destaca Wander  Mello 

Miranda.

Literatura  e  experiência  confundem­se  na  obra de Graciliano Ramos (1895­1953) como se fossem a urdidura de uma trama comum. Romances, memórias, contos e textos circunstanciais parecem repetir a afirmação do escritor – “Nunca pude sair de mim mesmo. Só posso escrever o que eu sou” – chamando a atenção para o espaço autobiográfico em que sua obra se insere.4 (grifos meus)

Além dessa demonstração de comprometimento de Graciliano com a 

realidade brasileira enquanto cidadão, da leitura dos romances do autor, também se 

depreende a preocupação e o comprometimento com  temas sociais  e  históricos 

nacionais de sua época, sem, entretanto, resvalar para a literatura apologética ou 

panfletária. Esse estilo de produção do Graciliano, utilizando a arte literária como um 

tipo de conhecimento da realidade, será uma das diretrizes deste estudo. 

Do estilo   literário,  além do  referido  compromisso do escritor  com a 

realidade histórico­social,  o   fato  de  o escritor  ser  notadamente   reconhecido pela 

agudeza e precisão de suas frases, pelo poder de síntese dos seus enredos e pelo 

exercício minucioso de linguagem, valendo­se da “poupança verbal; a preferência 

dada aos nomes de coisas e, em conseqüência, o parco uso de adjetivos.”5, indica 

que a função de literatura defendida por Graciliano em suas crônicas deverá estar 

relacionada   ao   labor   técnico­artístico,   sendo,   essa,   portanto,   outra   diretriz   do 

presente estudo.

2  ABEL,  Carlos Alberto  dos Santos.  Graciliano Ramos: cidadão e artista.  Brasília:  Editora Universidade de Brasília, 1999. p. 19.

3 CÂNDIDO, Antônio. Literatura e Sociedade. Estudos de teoria e história literária. 5ª Ed. São Paulo: Companhia Editora Nacional. p. 22. 

4 MIRANDA, Wander Mello. Graciliano Ramos. São Paulo: Publifolha, 2004. p. 8.5  BOSI, Alfredo.  História Concisa da Literatura Brasileira. 41ª ed. São Paulo: Cultrix. 2003. 

p.404.

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Em linhas gerais, essas são as duas vertentes que nortearão o estudo 

das crônicas em Linhas tortas para, ao final, se apresentar a concepção de literatura 

de Graciliano Ramos. O corpus para essa análise será composto de crônicas em 

que o autor faz reflexões diretas sobre a concepção de literatura, excluindo­se, a 

princípio, os textos que somente tangenciam o tema. Mas, por ser oportuno, ao final 

do texto será  feito um resumo das demais crônicas sobre o tema literário e que 

tratam preponderantemente da crítica literária, do mercado editorial, de concursos, 

para complementar o entendimento sobre a visão de literatura para Graciliano.

2. A CRÔNICA NA OBRA LITERÁRIA DE GRACILIANO RAMOS

Graciliano  Ramos  iniciou  a  carreira  de  escritor   como cronista  e  ao 

longo de toda sua vida, com algumas pausas e intervalos, deu prosseguimento à 

atividade literária e colaborou com jornais e periódicos. 

Inicialmente,   em   1915,   Graciliano   assinou   suas   crônicas   sob 

pseudônimos,   tais   como   G.R,   J.   Calisto   e   R.O,   por   talvez   crer   que   a   crônica 

possuísse   status   “menor”   dentre   os   gêneros   literários.  A  par   dessa  hipótese,  o 

presente   trabalho   somente   apresenta   esse   costume   do   autor,   sem,   contudo, 

pretender esgotar as possibilidades de significação da adoção de pseudônimos, até 

porque, segundo Brito Broca, à época em que Graciliano adotava pseudônimos nas 

suas crônicas, tal atitude era modismo dentre os literatos, conforme se depreende 

da leitura do seguinte trecho:  “os pseudônimos estavam em moda na época e nas 

cidades pequenas muita  gente  deles se utilizava para  intrigar  os  leitores,  pois  a 

identificação nem sempre se fazia com a facilidade que se pode imaginar.” 6   

6 BROCA, Brito. Prefácio. Linhas tortas. 5ª Ed. São Paulo: Martins. 1972. p. 9­10.

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Ricardo Ramos confessa que em conversa com seu pai,  Graciliano 

teria se oposto à publicação dessas crônicas assinadas sob pseudônimos por crer 

que não sobrariam textos de boa qualidade literária, bem como também alerta o filho 

quanto à qualidade dos textos publicados com as iniciais G.R e R.O: 

Às vésperas de morrer, na linha das disposições finais, ele me instruiu a respeito de sua obra juvenil e avulsa, ao que escrevera antes do aparecimento do seu primeiro livro.  Foi   taxativo:   “O que assinei  com meu nome, pode publicar;  no que usei  as iniciais GR, leia com cuidado, veja bem; no que usei RO, tenha mais cuidado ainda; no que fiz sem assinatura ou sem iniciais não presta, deve ser tudo besteira, mas pode escapar uma ou outra página menos infeliz. Já com pseudônimo não, não sobra nada, não deixe sair.7

Ainda que assim o autor tenha se pronunciado, não se pode cogitar 

que   suas   crônicas   não   contenham   elaborações   estéticas,   mesmo   aquelas 

produzidas   sob   pseudônimos,   nem   se   pode   supor   que   desmereceriam   a   obra 

literária de Graciliano. Ao contrário, as crônicas no mínimo auxiliam na compreensão 

da totalidade da obra do autor, como bem destaca Brito Broca: 

(...) Embora se trate de uma atividade quase marginal na grande obra do romancista de   “Angústia”,   a   importância  que  ele  adquiriu  em nossas   letras,  não dispensa  o conhecimento dessas páginas. O mínimo que elas podem oferecer será um subsídio indispensável para um estudo completo do escritor.  Porque tais crônicas marcam, três etapas da vida de Graciliano Ramos e por  conseguinte  da evolução do seu espírito.8

Na leitura de Valentim Facioli, as crônicas de Graciliano não possuem 

as   mesmas   qualidades   dos   romances   ou   memórias,   mas,   consideradas   as 

diferenças,   há   textos  do  autor   que   se  destacam  como  obras­primas  no   gênero 

decorrentes da melhor tradição brasileira no gênero:

As crônicas e artigos de Graciliano certamente não têm a estatura textual de suas melhores   páginas   de   romance   ou   memória.   Ainda   assim,   em   seu   conjunto, respeitadas as diferentes condições de produção, circulação e consumo, são escritos que estão de  longe de desmerecer  o autor.  Muitos são obras­primas no gênero, 

7 RAMOS, Ricardo. Lembranças de Graciliano. In: GARBUGLIO, J. C.; BOSI, A.; FACIOLI, V. Graciliano Ramos. Coleção Escritores Brasileiros. Antologia e Estudos.   São Paulo: Ática. 1987. p. 19.  

8 BROCA, Brito. Prefácio. Linhas tortas. p. 7.

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continuação  segura  da  melhor   tradição  brasileira  no   ramo,   cuja   fonte  principal  é Machado de Assis.9 

Como   romancista,   Graciliano   é   reconhecido,   dentre   outras 

características,   pela   agudeza   e   precisão   de   suas   frases   e   pela   constante 

preocupação   social.   O   cronista   Graciliano   também   adota   a   linguagem   concisa, 

simples e breve nas suas crônicas para abordar  temas literários,   fazer crítica de 

costumes e  instigar reflexões sociais,  transmitindo ao leitor sua visão peculiar de 

mundo. Valentim Facioli define o texto das crônicas de Graciliano como “um texto 

quase sempre forte, de termos próprios, alimentado de uma originalidade limitada 

pela   intenção de  fazer  o   leitor   ler  de   leve,  sem,  no  entanto,  deixá­lo  de   todo à 

vontade, desprevenido e incauto.” 10 Nesse tom corriqueiro de conversa, comum ao 

gênero   da   crônica   e   despretensiosamente,   Graciliano   registra   sua   preocupação 

social de modo ímpar.

2.1 DO OFICIAL AO JORNAL

Antes de comentar sobre os livros de crônicas do autor é importante 

destacar que a crônica nem sempre teve essa aparência de texto modesto com que 

Graciliano   já   trabalha.   Ela   não  nasceu   com   esse   ar   leve,   de   conversa   fiada  e 

despretensiosa. No início, ela esteve intimamente ligada ao tempo e à história, em 

que o cronista era escritor profissional pago pelo Estado para narrar feitos históricos, 

registrando­os  em  livros  oficiais,  assim como  o   fez  Pero  Vaz  de  Caminha,  que 

relatou em 1500 a descoberta ao Brasil ao rei D. Manuel. Inclusive, isso nos permite 

afirmar   que   a   “nossa   literatura   nasceu,   pois,   com   a   circunstância   de   um 

descobrimento: oficialmente, a Literatura Brasileira nasceu da crônica.” 11

9  GARBUGLIO,   J.   C.;   BOSI,   A.;   FACIOLI,   V.  Graciliano   Ramos.  Coleção   Escritores Brasileiros. Antologia e Estudos.  p. 118.  

10  GARBUGLIO,   J.   C.;   BOSI,   A.;   FACIOLI,   V.  Graciliano   Ramos.  Coleção   Escritores Brasileiros. Antologia e Estudos.  p. 118.  

11 SÁ, Jorge de. A crônica. São Paulo. Ed. Ática, 2002. p.6

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Esse sentido da crônica como atividade histórica e oficial foi mudando 

com o decorrer dos tempos, passando dos  livros oficiais às folhas de jornais, da 

linguagem formal à coloquial. Mas mesmo na concepção moderna da crônica, assim 

entendida  como um gênero   literário  atrelado ao  jornalismo,  perdura  a  noção  de 

narrativa cronológica dos costumes sociais e de fusão de literatura e história.

O cronista, em sua origem, era o guardião da história do povo, dos momentos que mereciam ser registrados para a posterioridade. Cedendo o lugar para o historiador, ele passou a se ocupar do rés­do­chão da história e do jornal. (...) Talvez seja o caso de  dizer  que  o  cronista   foi   promovido  de  historiador  a  contador  de  histórias   (ou estórias, como prefere o Guimarães), pois agora as fábulas do cotidiano é que são colocadas em ata, registradas e resgatadas do turbilhão do tempo para adquirirem diversos, múltiplos significados, desde que a crônica consiga superar seu consorte e adversário: o tempo.12

Nesse sentido contemporâneo do termo, em que a crônica é entendida 

como “um gênero  literário de prosa, ao qual menos  importa o assunto, em geral 

efêmero,   do   que   as   qualidades   de   estilo,   a   variedade,   a   finura   e   argúcia   na 

apreciação, a graça na análise de fatos miúdos e sem importância, ou na crítica de 

pessoas”13,  sua origem está   relacionada ao  folhetim que começou na França no 

século XIX e foi trazido com sucesso para o Brasil. Esse precursor da crônica era 

um   espaço   destinado   ao   entretenimento   do   leitor,   com   narrativas   que   não   se 

concluíam no dia da publicação e criavam a expectativa do público em relação à 

continuidade do texto.

No   contexto   brasileiro,   a   consolidação   da   crônica   na   concepção 

moderna do termo está ligada diretamente ao avanço da imprensa e à popularização 

dos  jornais nacionais em meados do século XIX, época em que o  jornal oferece 

outros atrativos além das notícias cotidianas e passa a incrementar suas folhas com 

caricaturas e crônicas, por exemplo, como bem destaca Afrânio Coutinho em:

(...) a crônica vem a incorporar­se aos hábitos de nossa imprensa quando se deu o desenvolvimento   da   imprensa   com   a   sua   modernização,   ao   serem   adotadas   as ilustrações a pena e os clichês fotográficos, quando se aumenta o número de páginas 

12 CRUZ, Dilson Ferreira da. Estratégias e máscaras de um fingidor: a crônica de Machado de  Assis. Dissertação de Mestrado. Universidade de São Paulo. 2001. p. 27.

13 COUTINHO, Afrânio. A Literatura no Brasil. 6ª ed. v. 6. São Paulo: Global, 2003. p. 121.

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das edições. Dispondo de maior espaço o jornal se enriquece de atrativos e, com o noticiário, o grave artigo de fundo e as seções ordinárias, transforma a crônica em matéria   cotidiana,   como   recreio   do   espírito,   amável   e   brilhante   cintilação   da inteligência.14   

 Nesse sentido, guardadas as peculiaridades da produção, circulação e 

consumo   da   crônica   no   âmbito   jornalístico,   os   cronistas   brasileiros   abusam   da 

liberdade temática e no carisma para conquistar o público e oferecer textos mais 

leves   do   que   as   notícias,   apostando   “(...)   no   abuso   da   subjetividade   e   na 

desconcentração do texto para criar peças que funcionam como oásis de respiração 

e bom gosto no meio das crises e tragédias de um jornal.”15  

Contudo, como bem salienta Davi Arrigucci Jr, a crônica brasileira não 

se  reduz a  um apêndice de  jornal.  Escritores brasileiros  renomados utilizaram o 

espaço da crônica para desenvolverem textos  literários de relevo estético. Nesse 

sentido, segue transcrito excerto do texto do referido crítico sobre a relevância da 

crônica no Brasil:

(...)   seria   injusto   reduzi­la  a  um apêndice  do   jornal,  pelo  menos no  Brasil,  onde dependeu   na   origem   da   influência   européia,   alcançando   logo,   porém,   um desenvolvimento próprio extremamente significativo.  Teve aqui um florescimento de fato surpreendente como forma peculiar, com dimensão estética e relativa autonomia, a   ponto   de   constituir   um   gênero   propriamente   literário,   muito   próximo   de   certas modalidades da épica e às vezes também da lírica, mas com uma história específica e bastante expressiva no conjunto da produção literária brasileira, uma vez que dela participaram   grandes   escritores,   sem   falar   naqueles   que   ganharam   fama   sendo sobretudo cronistas.16 (grifos meus)

Mesmo   a   crônica   tendo   se   desenvolvido   de   forma   diferenciada  no 

contexto brasileiro, afastando­se do relato histórico e configurando­se como gênero 

literário específico, muitos críticos a tratam como gênero periférico e menor, não lhe 

conferindo notoriedade no campo literário,  conforme destaca Antonio Candido no 

excerto que segue: 

14 Ibidem. p. 123.15  SANTOS, Joaquim Ferreira dos.  As cem melhores crônicas brasileiras.  Rio de Janeiro: 

Objetiva. 2007. p. 16.16 ARRIGUCCI JUNIOR, Davi.  Enigma e comentário: ensaios sobre literatura e experiência. 

São Paulo: Companhia das Letras. 1987. p. 53. 

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A crônica não é um “gênero maior”. Não se imagina uma literatura feita de cronistas, que lhe dessem o brilho universal dos grandes romancistas, dramaturgos e poetas. Nem se pensaria em atribuir um Prêmio Nobel a um cronista, por melhor que fosse. Portanto, parece mesmo que a crônica é um gênero menor.17

Apesar de alguns escritores e críticos não creditarem importância ao 

gênero no contexto brasileiro,  em que a crônica é  a  “primeiríssima paixão pelas 

letras, através dos jornais, de um povo com pouco acesso aos livros” 18, a saga da 

crônica nos aproximadamente 150 anos no Brasil é cheia de bons textos literários 

que ultrapassam os  limites da comunicação em massa e do cotidiano e acabam 

adquirindo uma vida mais longa. Davi Arrigucci Jr destaca bem essa persistência da 

crônica, que pela qualidade literária tende a ultrapassar os significados imediatos da 

historicidade das relações sociais.

Não raro ela adquire assim, entre nós, a espessura de texto literário, tornando­se, pela   elaboração   da   linguagem,   pela   complexidade   interna,   pela   penetração psicológica e social, pela força poética ou pelo humor, uma forma de conhecimento de meandros sutis de nossa realidade e de nossa história. Então, a uma só vez, ela parece penetrar agudamente na substância íntima de seu tempo e esquivar­se da corrosão dos anos, como se nela se pudesse sempre renovar, aos olhos de um leitor atual, um teor de verdade íntima, humana e histórica, impresso na massa passageira dos fatos esfarelando­se na direção do passado19. (grifos meus)

Nesse   mesmo   sentido,   Antonio   Candido   destaca   a   persistência   da 

crônica na literatura brasileira e também a permanência dos textos por um período 

maior do que o instante para o qual foi produzido, especialmente quando reunidos 

em livros.

Um fenômeno interessante da literatura brasileira é a persistência da crônica. Antes se chamou folhetim, e sempre achou quem a cultivasse com tão boa mão, que os seus produtos, efêmeros em teoria, se reúnem não obstante com felicidade no livro, resistindo bem à  prova deste  veículo  de escritos destinados a vida mais   longa.20 

(grifos meus) 

17  CANDIDO, Antônio.  A crônica:  o gênero,  sua  fixação e suas  transformações no Brasil. Campinas. Ed. Unicamp. 1992, p. 13.  

18 SANTOS, Joaquim Ferreira dos. As cem melhores crônicas brasileiras. p. 20. 19 ARRIGUCCI JUNIOR, Davi. Enigma e comentário: ensaios sobre literatura e experiência. p. 

53.20 CANDIDO, Antonio. Textos de intervenção. Org. Vinícius Dantas. Ed. 34ª São Paulo: Duas 

Cidades. 2002. p. 205. 

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Diante   de   todo   o   exposto,   podemos   verificar   que   a   crônica   se 

desenvolveu com peculiaridade na literatura brasileira. O cronista brasileiro moderno 

se afastou do profissional estatal que fazia relato histórico e também se distanciou 

do folhetinista. Ele se aproximou do jornalista, observou os fatos contemporâneos e 

as condições de produção, circulação e consumo da crônica e passou a adotar um 

estilo próprio de cativar o leitor, de expor sua opinião e principalmente de produzir 

bons   textos   literários.   Enfim,   essa   preocupação   estética   do   cronista   moderno 

conferiu à crônica brasileira moderna o status de gênero literário específico.

2.2 VIVENTES DAS ALAGOAS E LINHAS TORTAS

Dentro  desse  contexto  de  desenvolvimento  da   crônica  moderna  no 

Brasil é que se inserem as crônicas de Graciliano Ramos, publicadas originalmente 

em jornais e revistas do Rio de Janeiro, de Alagoas e de Portugal e reunidas em 

dois livros, Viventes das Alagoas e Linhas tortas.

Os  textos   reunidos no   livro  Viventes  das Alagoas  foram publicados 

inicialmente na revista  Cultura Política,  editada pelo Departamento de Imprensa e 

Propaganda  (DIP),  órgão criado em 1939 para  controlar,  orientar  e  coordenar  a 

produção   cultural   durante   o   Estado   Novo,   e   também   no   periódico   português 

Atlântico. As crônicas desse livro referem­se à produção de 1941 a 1944 e foram 

publicadas à  época com o nome de  Quadros e costumes do Nordeste.  Quando 

reunidas em livro, Jorge Amado sugeriu o título de Viventes das Alagoas à Livrarias 

Martins.21

  

Já  Linhas tortas,  objeto do presente estudo, é o compêndio de textos 

do autor produzidos e publicados em diferentes momentos, no período de 1915 a 

1952.  As   crônicas   reunidas  nesse   livro   foram selecionadas  por  Heloisa  Ramos, 

21 ABEL, Carlos Alberto dos Santos. Graciliano Ramos: cidadão e artista. p. 22.

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Ricardo Ramos e James Amado,  sendo que a  maioria  dos  textos originais  está 

arquivada   no   Fundo   Graciliano   Ramos,   no   Instituto   de   Estudos   Brasileiros   da 

Universidade de São Paulo. 

Estruturalmente, esse livro se divide em duas partes, sendo que na 

primeira   parte   as   crônicas   são   escritas   para   jornais   de   circulação   regional   e 

assinadas sob pseudônimos, enquanto que, na segunda, são escritas para jornais e 

revistas de grande circulação e assinadas com seu nome próprio.

A primeira parte de Linhas tortas abrange o período de publicação das 

crônicas de 1915 a 1921. Inclui o início da atividade de cronista de Graciliano Ramos 

em 1915, quando suas crônicas são publicadas no Jornal de Alagoas, de Maceió, e 

no Jornal  Paraíba do Sul, em ambos sob o pseudônimo R.O. E também os textos 

publicados entre  janeiro e abril  de 1921 para o Jornal  O  Índio,  de Palmeira dos 

Índios, sob o pseudônimo de J. Calisto. Os textos dessa primeira parte do livro são 

numerados por algarismos romanos e totalizam 28 crônicas. 

A   segunda   parte   do   livro   refere­se   às   crônicas   publicadas 

originalmente por vários  jornais e revistas no período de 1935 a 1952, em que o 

autor Graciliano Ramos assina os textos com seu nome próprio. No decorrer desse 

período,   o   cronista   já   possui   reconhecimento   da   crítica   literária   decorrente   da 

publicação de seus quatro  romances  iniciais,  sendo eles,  Caetés  em 1933,  São 

Bernardo em 1934, Angústia em 1936 e Vidas secas em 1938.

Em todo o livro, Graciliano abusa de seu estilo preciso para exteriorizar 

seu   posicionamento   intelectual   em   relação   às   condições   sociais,   econômicas   e 

políticas do Brasil da época. Os assuntos abordados em Linhas tortas variam desde 

reflexões  sobre   temas   frívolos  até   a   crítica  de   costumes,   havendo   textos  sobre 

diversos assuntos,  tais como teatro, cinema, religião,  loteria,  prostituição,  futebol, 

hinos, semana santa, jornalismo, guerra, corrupção e organização do poder estatal.

   

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Contudo, há certa prevalência do tema literário. Das 71 crônicas que 

compõem a segunda parte do livro, 40 referem­se à literatura explicitamente, seja 

sobre  produção,   mercado,   crítica,   concursos  ou  outros  assuntos   relacionados   à 

literatura. Assim, pode­se dizer que Graciliano assume o papel de teorizador acerca 

da literatura e também a posição de crítico literário ao utilizar o espaço jornalístico 

para fazer crítica de rodapé. 

3. REFLEXÕES SOBRE LITERATURA EM LINHAS TORTAS 

As crônicas datadas de 1915 e 1921 contidas na primeira  parte  de 

Linhas tortas  refletem um escritor mais preocupado com a temática social do que 

com a atividade literária. Essa relação se inverte na segunda parte do livro, em que 

os   assuntos   literários   predominam   nos   textos   escritos   de   1935   a   1952. 

Provavelmente   esses   enfoques   temáticos   distintos   entre   as   épocas   estejam 

relacionados com as vivências do escritor, já que na primeira fase Graciliano ainda 

objetivava   construir   uma   carreira   literária,   sem   possuir   uma   produção   que 

espelhasse seus ideais  literários, enquanto que na segunda fase essa carreira  já 

estava consolidada, podendo ele defender o seu conceito de literatura com base na 

sua produção. Assim, para alcançar o objetivo do presente estudo, a fundamentação 

das  idéias se sustentará  especialmente nas crônicas de  Linhas tortas  publicadas 

originariamente nos anos 30 e 40, por haver nesse período mais textos reflexivos do 

autor sobre seu ideal de literatura e, inclusive, por se tratar de período peculiar do 

romance na história literária nacional, em que tais decênios são lembrados como “a 

era do romance brasileiro”.22   

3.1 PANORAMA DO ROMANCE DE 30

22 BOSI, Alfredo. História Concisa da Literatura Brasileira. p. 388­389.

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Essa “era do romance” deve créditos à tradição brasileira iniciada no 

Romantismo   e   às   inovações   marcantes   do   Realismo,   do   Simbolismo   e   do 

Impressionismo.   As   influências   desses   estilos   contribuíram   tanto   nos   aspectos 

técnicos   quanto   temáticos   para   a   produção   dos   romances   de   30   e   40,   mas, 

sobretudo,   essas   experiências   foram   fundamentais   na   incorporação   de   temas 

nacionais, como bem destaca Afrânio Coutinho:

Sobretudo,   no   que   concerne   à   seleção   dos   temas,   a   incorporação   do   material brasileiro, seja de fonte regional, seja de origem urbana, foi feita através de uma série de fórmulas, o indianismo, o sertanismo, o caboclismo, os ciclos regionais (sociais e econômicos) da seca, do cangaço, do garimpo, do gaúcho, do cacau, até das cidades e subúrbios.23   

Além dessas experiências anteriores que foram fundamentais para a 

realização   da   ficção   dos   anos   30   e   40,   há   que   se   considerar   a   importante 

contribuição do Modernismo, já que o experimentalismo estético do modernismo de 

1922 oportunizou aos ficcionistas subseqüentes o uso de uma linguagem literária 

diferenciada,   como  bem destacou  Alfredo  Bosi   ao   reconhecer  as   influências  do 

modernismo na produção dos romances de 30.

A prosa de ficção encaminhada para o “realismo bruto” de Jorge Amado, de José Lins do Rego, de Érico Veríssimo e, em parte, de Graciliano Ramos, beneficiou­se amplamente da “descida” à linguagem oral, aos brasileirismos e regionalismos léxicos e sintáticos, que a prosa moderna tinha preparado. E até mesmo em direções que parecem espiritualmente mais afastadas de 22 (o romance  intimista de Otávio de Faria, Lúcio Cardoso, Cornélio Pena), sente­se o desrecalque psicológico “freudiano­surrealista” ou “freudiano­expressionista” que também chegou até nós com as águas do Modernismo.24         Mas, não obstante essa influência do modernismo de 22, o romance 

de  30  não  pode  ser   considerado  um natural  desmembramento  do  modernismo, 

como se fosse uma segunda fase dessa experiência, até porque já ficou dito que 

suas influências diretas são mais longínquas do que o modernismo.

Afora  tais  contribuições,  a  produção  literária do século XIX  também 

deixou como legado para os romancistas de 30 e 40 duas tradições aparentemente 

distintas na  ficção brasileira.  Uma tradição se constitui  na produção do romance 

23 COUTINHO, Afrânio. A Literatura no Brasil. 6ª ed. v. 5. São Paulo: Global, 2003. p. 266.24 Ibidem. p. 385.

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social­regional,  em que predomina a relação do homem com o meio em que se 

situa; a outra, na produção do romance psicológico ou intimista, em que predomina a 

relação do homem consigo mesmo e seus conflitos em sociedade. Afrânio Coutinho 

defende que ambas as vertentes tiveram um ponto de partida em comum: a obra 

literária de José de Alencar.25  Já Luís Bueno traz a fala de Jorge Amado em seu 

discurso  de  posse  na  Academia  Brasileira  de  Letras,  para  mostrar  a  crença do 

escritor baiano em dois caminhos de origem distintos: um de José de Alencar e outro 

de   Machado   de   Assis.26  Independente   da   raiz,   o   fato   é   que   há   a   tendência   à 

classificação   da   ficção   modernista,   separando   a   produção   romanesca   em   duas 

correntes supostamente autônomas: regionalista e psicológica, definidas por Afrânio 

Coutinho nos seguintes termos:

a) Corrente social e territorial. O quadro predomina sobre o homem, seja o ambiente das  zonas   rurais,   com os  seus  problemas  geográficos  e   sociais   (seca,  cangaço, latifúndio,  banditismo etc.);  seja o urbano e suburbano, a vida de classe média e proletariado,   as   lutas   de   classes.   Adota,   de   modo   geral,   a   técnica   realista   e documental.(...)b) Corrente psicológica, subjetiva, introspectiva e costumista. Herdeira do Simbolismo e   do   Impressionismo,   ligada   também   ao   Neo­espiritualismo   e   à   reação   estética, desenvolve­se no sentido da indagação interior, acerca de problemas da alma, do destino, da consciência, da conduta, em que a personalidade humana é colocada em face de si mesma ou analisada nas suas reações aos outros homens.27

Essa   polarização   da   obra   nacional,   que   perpassa   a   passagem   do 

século   XIX   para   o   século   XX,   ganha   contornos   relevantes   nos   anos   30   e   40, 

especialmente  devido  ao   “processo de engajamento  pelo  qual  a   intelectualidade 

brasileira passou nos anos 30.”28.  As transformações histórico­sociais do período, 

tanto  no  contexto  nacional,   com o  Estado  Novo  (1937­1945),  como no  contexto 

internacional,   com a   II  Guerra  Mundial,  motivaram  os  escritores  desse  período, 

independente  da   vertente  escolhida,   social   ou  psicológica,   a   fazerem   romances 

empenhados com os seus valores, a ponto de Alfredo Bosi dizer que “de um modo 

sumário, pode­se dizer que o problema do engajamento, qualquer que fosse o valor 

25 COUTINHO, Afrânio. A Literatura no Brasil. 6ª ed. v. 5. p. 264.26 BUENO, Luís. Uma história do romance de 30. São Paulo: Editora da Universidade de São 

Paulo; Campinhas: Editora da Unicamp. 2006. p. 31.27 Ibidem. p. 275.28 Ibidem. p. 36.

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tomado como absoluto pelo intelectual participante, foi a tônica dos romancistas que 

chegaram à idade adulta entre 30 e 40”29 

Por certo que essa divisão da produção romanesca nacional auxilia na 

compreensão   do   estilo   literário   da   época,   mas   ela   também   encerra   problemas 

quando da análise de obras literárias. Isso porque as tendências não se separam 

assim   tão   claramente   e   existem   escritores   que   escreveram   textos   literários 

fronteiriços,   com  aspectos   tanto  do   romance   social­regional   quanto  do   romance 

psicológico, como bem esclarece Alfredo Bosi: 

A   costumeira   triagem   por   tendências   em   torno   dos   tipos  romance   social­regional/romance psicológico ajuda só até certo ponto o historiador literário; passado esse limite didático vê­se que, além de ser precária em si mesma (pois regionais e psicológicas são obras­primas como São Bernardo e Fogo Morto), acaba não dando conta das diferenças internas que separam os principais romancistas situados em uma mesma faixa.30

Para superar as dificuldades de classificação da ficção modernista em 

romance   social   e   romance   psicológico,   Alfredo   Bosi   sugere   a   distribuição   do 

romance moderno em quatro tendências, de acordo com o grau crescente de tensão 

entre o “herói” e o seu mundo:

a) romances de tensão mínima. Há  conflito, mas este configura­se em termos de oposição verbal,  sentimental quando muito:  as personagens não se destacam visceralmente da estrutura e da paisagem que as condicionam. Exemplos,  as histórias populistas de Jorge Amado, os romances ou crônicas da classe média de Érico Veríssimo e Marque Rebelo, e muito do neo­regionalismo documental mais recente.

b) romances de tensão crítica.    O herói opõe­se e resiste agonicamente às pressões    da natureza e do meio social, formule ou não em ideologias explícitas, o seu mal­estar permanente. Exemplos, obras maduras de José Lins do Rego (   Usina, Fogo     Morto   ) e todo Graciliano Ramos;   

c) romances de tensão interiorizada. O herói não se dispõe a enfrentar a antinomia eu/mundo pela ação: evade­se, subjetivando o conflito. Exemplos, os romances psicológicos   em   suas   várias   modalidades   (memorialismo,   intimismo,   auto­análise...) de Otávio de Faria, Lúcio Cardoso, Cornélio Pena, Cyro dos Anjos, Lygia Fagundes Telles, Osman Lins...;

d) romances de tensão transfigurada. O herói procura ultrapassar o conflito que o constitui existencialmente pela transmutação mítica ou metafísica da realidade. Exemplos, as experiências radicais de Guimarães Rosa e Clarice Lispector. O 

29 BOSI, Alfredo. História Concisa da Literatura Brasileira. p. 390.30 Ibidem. p. 390.

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conflito, assim “resolvido”, força os limites do gênero romance e toca a poesia e a tragédia.31 (grifos meus)

Essa classificação não elide as áreas fronteiriças dentro da produção 

de alguns autores da época. E, a par da problemática da classificação da ficção dos 

anos 30 e 40 em romance social­regional versus  romance psicológico, o binômio é 

reiterado nos diversos estudos literários do período porque a presença ou não da 

realidade brasileira  no enredo era costumeiramente utilizada como parâmetro  de 

qualidade  do   romance,   sendo  a  presença  avaliada  positivamente  e  a  ausência, 

negativamente, como bem explica Luis Bueno:

O que interessa perceber aqui é que, na base da tradição do romance brasileiro, a maior ou menor proximidade do intelectual em relação à realidade brasileira, mais do que definir duas linhas independentes de desenvolvimento, serve como parâmetro de avaliação das obras. (...) A conseqüência necessária desse estado de coisas é que a “outra” linha de desenvolvimento do romance brasileiro, a que não privilegia o contato direto   com   essa   realidade,   fica   sendo   não   uma   alternativa,   mas   um   elemento marginal.32

Diante de tal juízo de valor dos escritores da época, durante os anos 

30   e   40,   o   romance   psicológico   é   considerado   periférico   na   produção   literária 

nacional, havendo uma conseqüente predominância do romance social­regional em 

detrimento   ao   experimentalismo   estético   e   às   preocupações   intimistas.   Nesse 

contexto   é   que  Graciliano   Ramos   se   sobressai   pela   produção   original   de   seus 

principais romances: Caetés (1933), São Bernardo (1934), Angústia (1936) e Vidas 

secas  (1938),   destacando­se   principalmente   por   ampliar   os   limites   do   romance 

regional ao construir personagens reflexivos com problemas psicológicos e morais. 

Por   essa   capacidade   de   conciliar   os   assuntos   regionais   com   os   conflitos 

psicológicos   e   também   pelos   demais   valores   artísticos   inovadores   que   o   autor 

confere aos seus textos é que Alfredo Bosi o reconheceu como “o ponto mais alto de 

tensão entre o eu do escritor e a sociedade que o formou.”33.

31 BOSI, Alfredo. História Concisa da Literatura Brasileira. p. 392.32 BUENO, Luís. Uma história do romance de 30. p. 33.33 Ibidem. p. 400.

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3.2 LITERATURA COMO FORMA DE CONHECIMENTO DO MUNDO

Como   romancista,   Graciliano   demonstrou   que   sabia   fazer   essa 

conciliação das vertentes da tradição romanesca, apresentando inovações artísticas 

sem ter renegado a realidade social brasileira. Enquanto teórico e crítico literário nas 

crônicas das décadas de 30 e 40 reunidas em Linhas tortas, Graciliano se deteve a 

comentar   a   produção   literária   do   momento   que   viveu,   defendendo   em   diversos 

momentos o comprometimento dos escritores nacionais com a realidade brasileira e 

criticando   os   ficcionistas   que   só   narravam   os   fatos   contidos   na   imaginação.   A 

crônica “Norte e Sul”, de abril de 1937, serve de exemplo desse posicionamento do 

autor.

Essa distinção que alguns  cavalheiros procuram estabelecer  entre  o   romance do norte e romance do sul  dá  ao  leitor a  impressão de que os escritores brasileiros formam dois grupos, como as pastorinhas do Natal, que dançam e cantam filiadas ao cordão azul ou ao cordão vermelho.Realmente a geografia não tem nada com isso. Não podemos traçar no mapa uma linha divisória dos campos onde os cordões cantam e dançam.O que há é que algumas pessoas gostam de escrever sobre coisas que existem na realidade, outras preferem tratar de fatos existentes na imaginação.34   

No contexto nacional, o romance social­regional se desenvolveu com 

grande   relevo   no   regionalismo   nordestino,   mas   o   texto   citado   deixa   claro   que 

Graciliano não é a favor da segregação da produção literária em romance do norte e 

romance   do   sul,   em   alusão   à   generalização   de   que   ao   sul   cabia   o   romance 

psicológico   e   ao   norte,   o   romance   social­regional.   Graciliano   afirma   que   a 

diferenciação dos textos literários não pode ser resolvida na delimitação do espaço 

geográfico dos enredos ou de seus escritores, mas sim na referência à realidade 

brasileira. Além disso, deixa claro que a referência à realidade nacional não exclui a 

possibilidade de imaginação, mas os assuntos da ficção se misturam com “as facas 

de ponta,  chapéus de couro, cenas espalhafatosas, religião negra, o cangaço e o 

eito,  coisas que existem realmente”35.  Na mesma crônica,  Graciliano persiste  na 

defesa de que ao escritor, amigo da vida, cabe relacionar no mundo estético uma 34 RAMOS, Graciliano. Linhas tortas. 21ª ed. Rio de Janeiro: Record, 2005. p. 191.35 Ibidem. p. 192.

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visão crítica das relações sociais brasileiras, porque “os inimigos da vida torcem o 

nariz e  fecham os olhos diante da narrativa crua, da expressão áspera”36.  Ainda 

critica   esses   “inimigos   da   vida”   preocupados   somente   com   os   problemas 

psicológicos que defendem enredos, personagens e conflitos distantes do dia­a­dia 

do leitor brasileiro e “querem que se fabrique nos romances um mundo diferente 

deste, uma confusa humanidade só de almas, cheias de sofrimentos atrapalhados 

que  o   leitor   comum não  entende.  Põem essas  almas   longe  da   terra,   soltas  no 

espaço.”37 Essa alusão específica do autor aos personagens com “almas longe da 

terra”, de forma depreciativa, denota exatamente a importância que o mundo real 

possui no juízo de valor de Graciliano. 

Em   outros   momentos   dessa   mesma   crônica,   fica   claro   esse 

engajamento do autor nos preceitos da literatura social, repulsando os autores que 

renegam nossa realidade e “são delicados, são refinados, os seus nervos sensíveis 

em demasia não toleram a imagem da fome e o palavrão obsceno”38 e para os quais 

“a miséria é incômoda”39, apesar de fazer parte do nosso dia­a­dia. Ao final e com 

tom agudo, Graciliano incorpora a voz dos seus criticados e parece reproduzir o tom 

de ordem que os romancistas intimistas utilizariam para repudiar a literatura social, 

escrevendo   “Vamos  falar  mal  de   todos  os   romancistas  que  aludem à   fome e  à 

miséria   das   bagaceiras,   das   prisões,   dos   bairros   operários,   das   casas   de 

cômodos”40.   Sarcasticamente   reproduz   o   que   seria   o   final   de   uma   oração   dos 

romancistas  intimistas e conclui  essa crônica com esse  rogar:  “E a  literatura se 

purificará,   tornar­se­á   inofensiva  e  cor­de­rosa,   não  provocará   o  mau  humor  de 

ninguém, não perturbará a digestão dos que podem comer. Amém.”41

É importante destacar que apesar de Graciliano se posicionar sobre a 

importância da temática nacional na literatura brasileira, seu juízo crítico não está 

sedimentado somente na defesa do nacional como critério qualitativo dos romances. 

36 RAMOS, Graciliano. Linhas tortas. p. 192.37 Ibidem. p. 192.38 Ibidem. p. 192.39 Ibidem. p. 192.40 Ibidem. p. 193.41 Ibidem. p. 193.

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Ao contrário. O autor aponta como ingênua essa postura de “patriotismo farfalhudo”42 

e escreve que “a mania indígena de se comparar o literato cá da terra a um figurão 

estrangeiro, hábito inocente e antigo, sempre em moda, é apenas um meio de fazer 

crítica   e   não   deve   ser   tomado   a   sério.”43.   A   crítica   de   Graciliano   em   diversos 

momentos referia­se à postura dos autores nacionais de se recusarem a escrever 

sobre a realidade histórica e social brasileira e remeterem aos espaços estrangeiros, 

ainda que desconhecidos deles, “(...) um sujeito, sem nunca sair do Rio de Janeiro, 

imitava a algaravia de Lisboa e procurava assunto para obra de ficção do Egito e da 

Índia.”44

Além   desse   ideal   de   literatura   brasileira   social   ter   balizado   toda  a 

crítica e a própria obra literária de Graciliano Ramos, ele é assunto recorrente em 

outras crônicas do autor, como no texto “O romance de Jorge Amado”, de 17  de 

fevereiro  de  1935.  Na  abordagem  inicial  desse   texto,  o  autor   critica  a   literatura 

produzida   por   cidadãos   elitistas,   a   literatura   “exercida   por   cidadãos   gordos, 

banqueiros, acionistas, comerciantes, proprietários, indivíduos que não acham que 

os outros tenham motivo para estar descontentes”45. Assim, para ele, somente os 

detentores dos poderes econômicos e políticos pareciam ignorar os problemas da 

realidade  social   brasileira,   especialmente  os  decorrentes  da   industrialização  dos 

centros urbanos na década de 30. Para Graciliano, portanto, seriam esses cidadãos 

de posses que auferiam lucros, que viviam confortavelmente e que renegavam os 

problemas   da   pobreza   urbana,   que   poderiam   fazer   uma   literatura 

descompromissada   com os  problemas   sociais   locais   e   preocupada  com   “coisas 

agradáveis”. Inclusive, o texto inicial da crônica também dá conta dessa idéia:

Há uma literatura antipática e insincera que só usa expressões corretas, só se ocupa de coisas agradáveis, não se molha em dias de inverno e por isso ignora que há pessoas que não podem comprar capas de borracha. Quando a chuva aparece, essa literatura fica em casa, bem aquecida, com as portas fechadas. E se é obrigada a sair,  embrulha­se, enrola o pescoço e  levanta os olhos, para não ver a lama nos sapatos.46

42 Ibidem. p. 254.43 RAMOS, Graciliano. Linhas tortas. p. 361.44 Ibidem. p. 129.45 Ibidem. p. 127.46 Ibidem. p. 127.

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Enfim,   é   com   essas   cores   que   Graciliano   pintou   o   ficcionista 

descompromissado com a visão crítica social. Interessante notar que na descrição 

desses   romancistas   Graciliano   citou,   dentre   tantas   atividades   empresariais 

“banqueiros, acionistas, comerciantes, proprietários”, o adjetivo “gordo”, sugerindo a 

ausência de fome dessas pessoas. Em “Os donos da literatura”, crônica publicada 

em setembro de 1937, portanto, dois anos depois de “O romance de Jorge Amado”,  

Graciliano retoma o mesmo adjetivo,  inclusive, em grau superlativo para também 

depreciar os detentores de capital que se julgavam donos da  literatura:  “pessoas 

razoáveis,  bons pais de família, com dinheiro no banco e muita consideração na 

praça, homens gordos, gordíssimos”47. Essa escolha da palavra chama a atenção 

porque o autor é caracteristicamente reconhecido pela escolha minuciosa e seletiva 

dos adjetivos e, portanto, “gordo” deve possuir um significado especial para o autor, 

além da simples definição lexical daquele “que tem gordura (tecido adiposo) ou que 

tem uma quantidade de gordura acima da usual; obeso, cheio, corpulento”48.  Em 

oposição,  o  adjetivo   “magro”  é   bastante  utilizado  no   romance  Vidas  secas  para 

definir as agruras físicas dos personagens, a exemplo de “(...) Meteu os dedos finos 

pelo rasgão, coçou o peito magro”49, ou “Todos o abandonavam, a cadelinha era o 

único vivente que lhe mostrava simpatia. Afagou­a com os dedos magros e sujos, e 

o animal encolheu­se para sentir bem o contato agradável (...)”50 ou ainda “Sentiu­se 

fraco e desamparado, olhou os braços magros, os dedos finos, pôs­se a fazer no 

chão desenhos misteriosos.”51 Esses exemplos demonstram o peso de cada adjetivo 

para o minucioso Graciliano.

Em   “O   romance   de   Jorge   Amado”,   Graciliano   também   chama   a 

atenção para os problemas sociais que parecem imperceptíveis aos olhos desses 

escritores “gordos”, que rogam pela literatura cor­de­rosa e inofensiva e que só se 

ocupam de coisas agradáveis, alertando que:  “Nos algodoais e nos canaviais no 

47 RAMOS, Graciliano. Linhas tortas. p. 139.48 HOUAISS, Dicionário da Língua Portuguesa.49 RAMOS, Graciliano. Vidas secas. 31ª ed. São Paulo: Martins. 1973. p. 90.50 Ibidem. p. 94.51 Ibidem. p. 100.

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Nordeste,  nas  plantações de cacau e de  café,  nas  cidadezinhas decadentes  do 

interior,   nas   fábricas,   nas   casas   de   cômodos,   nos   prostíbulos,   há   milhões   de 

criaturas que andam aperreadas.”52 

Esse posicionamento e comprometimento de Graciliano em relação à 

concepção da literatura social, preocupada com a fome, a seca, as desigualdades 

sociais e as agruras e más condições de vida no meio rural e urbano, não pode ser 

confundido com a defesa da produção literária panfletária ou apologética. Apesar de 

Graciliano ter sido homem público e político filiado ao Partido Comunista do Brasil 

(PCB), o autor não utiliza o texto literário para fomentar ideais políticos­partidários e/

ou apresentar solução para os problemas sociais. Nesse sentido, inclusive, vale citar 

o destaque de Carlos Alberto dos Santos Abel em descrever Graciliano como “Um 

político, um político socialista, apaixonado pela humanidade, mas sua literatura não 

é panfletária, não trabalha com teses e concepções apriorísticas. Jamais, a pretexto 

de fazer literatura, impinge­nos a sua ideologia.”53 Sobre o assunto,   Wander Melo 

Miranda afirma que “indiscutivelmente articulado com a prática literária que constitui, 

em nenhum momento faz essa prática resvalar para as facilidades do panfleto ou 

ceder à sedução das relações imediatas.”54 O entendimento de João Roberto Maia 

da Cruz a esse respeito é de que:

Outra questão que  merece realce é a da opção do escritor pela separação relativa entre as esferas de sua prática literária e de sua militância política. Como se sabe, Graciliano   foi   membro   disciplinado   do   PCB.  Sua   filiação   partidária   não   afetou, todavia,   sua   independência   artística.  Jamais   esteve   na   situação   daqueles   que aceitaram   as   concepções   estreitas   do   partido   a   respeito   de   literatura.   Como Drummond, teve lucidez suficiente para não cultivar as ilusões de parte considerável dos escritores que se situavam à  esquerda; por  isso,  nunca pretendeu assumir a função de porta­voz e consciência crítica da classe operária. Mostrou­se consciente de que os escritores engajados não podiam atingir as massas. Além do que há de ilusório em tal pretensão, isso significaria seguir a rota do rebaixamento estético, pois a obra deveria ser simplificada para facilitar o acesso a sua “mensagem”.55  (grifos meus)

52 Ibidem. p. 128.53 ABEL, Carlos Alberto dos Santos. Graciliano Ramos: cidadão e artista. p. 21.54 MIRANDA, Wander Mello. Graciliano Ramos. p.9.55 CRUZ, João Roberto Maia da. Apontamentos sobre a obra de Graciliano Ramos. Disponível 

em: <http://www.ucm.es/info/especulo/numero35/graramos.html>. Acesso em 1º.OUT.08.

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Partindo da premissa de que Graciliano distinguia a esfera literária da 

esfera política, evita­se qualquer leitura reducionista dos textos do autor e se pode 

perceber  que assumir  uma concepção de  literatura  engajada,  para  o  autor,  não 

significa   vincular   ao   texto   literário   os   ideais   partidários   e   sim   um   empenho   na 

realidade  histórico­social   nacional.   Sob   outro   enfoque,   essa   concepção   torna­se 

bastante evidente na análise da crônica “O fator econômico no romance brasileiro”, 

publicada em 15 de julho de 1945. Ao iniciar esse texto, Graciliano já instiga o leitor 

sobre   a   qualidade   da   produção   literária   nacional,   afirmando   que  “A   leitura   dos 

romances brasileiros, até dos melhores, quase sempre nos dá a impressão de que 

os nossos escritores não conseguem fazer senão trabalhos incompletos.”56. Para o 

autor,  essa  imperfeição se deve à  constante  ausência  de  referência  aos  fatores 

externos à obra literária no romance brasileiro, o que prejudica a narrativa, tornando­

a inverossímil.

Graciliano afirma que falta aos ficcionistas brasileiros “a observação 

cuidadosa dos  fatos que devem contribuir  para a  formação da obra de arte.”57  , 

referindo­se,   nesse   momento,   aos   fatos   econômicos,   porque   os   escritores 

“abandonaram a outras profissões tudo quanto se refere à economia.”58  Essa crítica 

reflete  mais  um posicionamento  do  autor  em  relação  à   função  da   literatura.  Ao 

defender a existência dos fatores econômicos no romance nacional como elemento 

fundamental, Graciliano defende que a literatura é um instrumento de compreensão 

do homem e do mundo tal como ele é na realidade.

A tônica desse texto é a importância da relação entre a arte e a vida, 

especialmente nos aspectos econômicos. Dentre as falhas que podem ocorrer num 

romance pela ausência desses aspectos, Graciliano destaca os aspectos materiais 

de   subsistência  dos   personagens,   o   que   o   faz   ironizar   sobre   a   irrealidade  e  o 

mistério da vida de um capitalista, cuja riqueza não se explica, de um agricultor, que 

56 RAMOS, Graciliano. Linhas tortas. p. 361.57 Ibidem. p. 362.58 Ibidem. p. 362.

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não vivencia o cotidiano de suas plantações,  e de um operário,  que parece não 

trabalhar. 

Um cidadão é capitalista. Muito bem. Ficamos sem saber donde lhe veio o capital e de que maneira  o  utiliza.  Outro  é  agricultor.  Não visita  as plantações,   ignoramos como se entende com os moradores se a safra lhe deu lucro. O terceiro é operário. Nunca  o  vemos  na   fábrica,   sabemos  que   trabalha  porque  nos  afirmam que   isto acontece mas seus músculos nos aparecem ordinariamente em repouso.59 

Além   desses   exemplos   na   construção   dos   personagens   na   sua 

individualidade,   Graciliano   aponta   outra   falha   na   vivência   dos   personagens   na 

coletividade. Ele aponta a falta de realismo dos romances nacionais por não traduzir 

as relações naturais e existentes entre as classes de empresários e trabalhadores, 

já   que   os   escritores   apresentam   “ora   o   capitalista,   ora   o   trabalhador,   mas   as 

relações  entre  as  duas  classes  ordinariamente  não  se  percebem”60.  Como para 

Graciliano essas relações econômicas não são de pólos distintos e independentes, 

deveriam ser consideradas com proximidade nos romances nacionais.

João Roberto Maia da Cruz destaca que o autor “criticou com vigor o 

déficit   que   via   na   literatura   brasileira   quanto   à   representação   das   condições 

materiais   da   existência”61,   referindo­se   justamente   a   esse   posicionamento   de 

Graciliano em relação à ausência de justificativas do modo de produção e circulação 

de bens e capitais no interior do romances brasileiros. 

Na   mesma   crônica   “O   fator   econômico   no   romance   brasileiro”, 

Graciliano critica os romancistas que se valem de “coisas de natureza subjetiva” na 

produção de seus textos e defendem que não desejam ser fotógrafos da vida e nem 

reproduzir fidedignamente os acontecimentos da vida. E, então, Graciliano os instiga 

perguntando “Mas então por que põem nomes de gente nas suas idéias, por que as 

vestem, fazem que elas andem e falem, tenham alegrias e dores?”62. 

59 Ibidem. p. 364.60 RAMOS, Graciliano. Linhas tortas. p. 364.61 CRUZ, João Roberto Maia da. Apontamentos sobre a obra de Graciliano Ramos. Disponível 

em: <http://www.ucm.es/info/especulo/numero35/graramos.html>. Acesso em 1º.OUT.08.62 Ibidem. p. 366.

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Por outro lado, ao defender a referência aos acontecimentos sociais e 

históricos na ficção, Graciliano defende o posicionamento do romance social  e a 

função da literatura como meio de conhecimento do mundo, mas refuta a idéia de 

pura mimese: 

Está visto que não desejamos reportagens, embora reportagens sejam excelentes. De  ordinário,  entrando  em  romance,  elas  deixam de  ser   jornal  e  não chegam a constituir literatura. É inútil copiar bilhetes, pedaços de noticiários, recibos, anúncios e cartazes.63

Esperadamente  percebe­se  que a   realidade que Graciliano defende 

nas   obras   literárias   nacionais   não   se   limita   à   reprodução   pura   e   simples   dos 

acontecimentos   histórico­sociais.   Inesperado   seria   se   o   autor   apontasse   essa 

limitação à criação literária ou se alguém assim o interpretasse, até porque, à época 

de publicação dessa crônica (1945), Graciliano já havia publicado a maioria de seus 

romances e demonstrado que a literatura social e a mimese balizaram sua criação 

artística. Inclusive por isso é  que Graciliano ficou caracteristicamente marcado na 

história literária nacional como autor que ampliou os limites do “realismo absoluto” 

para abarcar uma “visão crítica das relações sociais” num tom de protesto, como 

bem destaca Alfredo Bosi no texto que segue transcrito.   

Mas, sendo um realismo absoluto antes um modelo ingênuo e um limite da velha concepção mimética da arte que uma norma efetiva da criação literária, também esse romance novo precisou passar pelo crivo das interpretações da vida e da História para conseguir dar um sentido aos seus enredos e às suas personagens.  Assim, o realismo “científico” e “impessoal” do século XIX preferiram os nossos romancistas de 30 uma visão crítica das relações sociais. Esta poderá apresentar­se menos áspera e mais   acomodada   às   tradições   do   meio   em   José   Américo   Almeida,   em   Érico Veríssimo e em certo José Lins do Rego, mas daria à obra de Graciliano Ramos a grandeza severa de um testemunho e de um julgamento.64 (grifos meus)

Mas, para Graciliano, apontar essa visão crítica das relações sociais 

não consiste em condenar ou perdoar os personagens, cabendo ao escritor expor os 

fatos e analisá­los de um modo distante, sem idéias preconcebidas e moralismo.

63 Ibidem. p. 368.64 BOSI, Alfredo. História Concisa da Literatura Brasileira. p. 389.

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E o indivíduo que matou os filhos e deu um tiro na cabeça? De que se alimentava esse malvado, a que gênero de trabalho se dedicava? Certamente ele é um malvado. Mas a obrigação do romancista não é condenar nem perdoar a malvadez: é analisá­la, explicá­la. Sem ódios, sem idéias preconcebidas, que não somos moralistas.65

Esse posicionamento do escritor engajado a quem compete expor os 

conflitos sociais, mas não solucioná­los, coaduna­se com o pensamento do teórico 

marxista Engels,  no trecho que segue transcrito  apud  Carlos Alberto  dos Santos 

Abel:

Os russos e noruegueses modernos, que escrevem excelentes romances, são todos poetas de tese. Mas creio que a tese deve brotar da própria situação e da própria ação, sem que seja explicitamente formulada. O poeta não é obrigado a dar já pronta ao leitor a solução histórica futura dos conflitos sociais que descreve.66  

Ao   final   da   crônica   “O   fator   econômico   no   romance   brasileiro”, 

Graciliano reitera a importância de se fazer referência ao elemento econômico nos 

romances para  que se   tenha uma obra   literária  completa,  porque para  ele   “não 

podemos tratar convenientemente das relações sociais e políticas, se esquecemos a 

estrutura econômica da região que desejamos apresentar em livro”67, enfatizando a 

defesa da literatura como forma de conhecimento do mundo e do homem.

3.3 LITERATURA COMO ARTE 

Ainda que defenda o engajamento, por crer que a literatura seja um 

meio   de   conhecimento   do   mundo   e   do   homem,   o   autor   não   desconsidera   a 

concepção de que literatura também é a arte da linguagem. Ao contrário. Graciliano 

aponta em diversas crônicas, em especial em “Os sapateiros da literatura” e “Os 

tostões do sr. Mário de Andrade”,  que o conhecimento e o domínio da linguagem 

são   essenciais   à   produção   de   boas   obras   literárias.   Essas   duas   crônicas   de 

Graciliano datam de 1939 e são mais bem compreendidas no seu contexto original 

65 RAMOS, Graciliano. Linhas tortas. p. 369.66 ABEL, Carlos Alberto dos Santos. Graciliano Ramos: cidadão e artista. p. 22.67 RAMOS, Graciliano. Linhas tortas. p.368.

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de   publicação,   devido   à   polêmica   literária   instaurada   entre   o   autor   e   Mário   de 

Andrade.

A  polêmica   se   iniciou  com a  publicação  da   crônica   “A  palavra  em 

falso”, de Mário de Andrade, em 06 de agosto de 1939, no Diário de Notícias. Nesse 

texto, o autor teceu comentários sobre aspectos de análise de texto literário, usando 

como exemplo os textos “Onda raivosa”, de Joel Silveira e “Irmandade”, de Newton 

Sampaio. Para ele, esses e outros autores pecam em não se deter pacientemente 

na elaboração de seus textos, fazendo­os às pressas, com linguagem simples e sem 

preocupação estética. Para Mário, o problema não está por si só na simplicidade, 

mas na utilização dessa linguagem como “ideal de perfeição literária”68, porque, para 

ele, “o  ideal,  digo mais: a  lei  moral do artista digno, é  o  fazer melhor, o esforço 

contínuo de se realizar cada vez melhor em sua personalidade.”69 

Joel Silveira, autor do livro de contos criticado por Mário de Andrade, 

se manifestou sobre o assunto no texto “O tostão e o milhão”,  no hebdomadário 

Dom Casmurro.  Por sua vez, Graciliano também se manifestou sobre o assunto, 

através da crônica “Os sapateiros da literatura”, consignando em texto que a crítica 

de Mário se restringe a dizer o óbvio:  que o escritor  deve dominar a  linguagem 

artística. E, antes mesmo de Graciliano expor a sua opinião sobre o assunto, ele 

apresenta esse posicionamento de Mário nos seguintes termos:  

Em resumo, o sr. Mário de Andrade sustentou, com citações e argumentos de peso, esta coisa intuitiva: um sujeito que se dedica ao ofício de escrever precisa, antes de tudo, saber escrever. Há tempo o Sr. Rubem Braga, num artigo curto, desprovido de citações e com poucos argumentos, tinha dito o mesmo. Isto é quase uma verdade laplaciana.70 

Graciliano concorda com Mário que o literato somente poderá produzir 

textos  literários se  tiver habilidade com a  linguagem. Para Graciliano, da mesma 

forma como um sapateiro  tem que ter o conhecimento e a habilidade para fazer 

68 ANDRADE, Mário de, Vida literária. São Paulo: Hucitec. Edusp, 1993. p. 9369 Ibidem. p. 9470 RAMOS, Graciliano. Linhas tortas. p. 267­268.

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sapatos, o escritor também deve dominar a técnica da arte literária da palavra. Para 

trabalhar   com   essa   idéia,   Graciliano   faz   comparações   entre   o   romancista   e   o 

sapateiro:

Dificilmente podemos coser idéias e sentimentos, apresentá­los ao público, se nos falta a habilidade indispensável à tarefa, da mesma forma que não podemos juntar pedaços de couro e razoavelmente compor um par de sapatos, se os nossos dedos bisonhos não conseguem manejar a faca, a sovela, o cordel e as ilhós.71

Graciliano se vale dessa comparação entre  o escritor  e  o  sapateiro 

para destacar a  importância da técnica no desenvolvimento de qualquer ofício. A 

dúvida de Graciliano reside em entender por que os rapazes do  Dom Casmurro 

torceram o nariz à opinião de Mário, já que a necessidade de domínio da linguagem 

técnica para fazer a literatura é algo tão certo quanto a necessidade de domínio de 

faca, sovela, cordel e ilhós para fazer sapatos. Com fundamento nesse raciocínio, 

Graciliano defende que ele e os rapazes do  Dom Casmurro  são os sapateiros da 

literatura, porque utilizam a linguagem para fazer literatura, que é ofício e meio de 

sobrevivência,   confessando   que   redigia   as   crônicas   pela   remuneração,   já   “que 

dentro  de  poucas horas  serão pagas e   irão  transformar­se  num par  de  sapatos 

bastante necessários. Para ser franco, devo confessar que esta prosa não se faria 

se os sapatos não fossem precisos.”72

Desse modo, percebe­se que Graciliano se filia aos ideais de literatura 

como arte, como defendido por Mário de Andrade, mas ao mesmo tempo, defende a 

forma   com   que   os   técnicos   da   linguagem   artística,   os   sapateiros   da   literatura, 

precisam se manter materialmente. Em oposição a esses sapateiros da literatura, 

Graciliano destaca que “certamente há outros literatos por nomeação. (...) indivíduos 

que se vestem bem, comem direito,  gargarejam discursos, dançam e conversam 

besteira com muita suficiência.”73  

71 Ibidem. p. 268.72 RAMOS, Graciliano. Linhas tortas. p. 268.73 Ibidem. p. 269.

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Na seqüência, em 27 de agosto de 1939, Mário de Andrade publicou 

outra crônica, intitulada “A raposa e o tostão”, reiterando seu posicionamento sobre 

a concepção da  literatura como arte,  argumentando que a  técnica estava sendo 

substituída pelo “brilho disfarçador” e o cuidado da  forma por uma vaga (e aliás 

facilmente intimidada) intenção social.”74, que os escritores estavam se valendo da 

fase de apressada  improvisação,  de despreocupação com a arte  para  comentar 

qualquer assunto pragmático. E, por fim, reforça seu ideal de que “Não há obra­de­

arte sem forma e a beleza é um problema de técnica e de forma.” E, no caso da 

literatura, Mário explica que a compreensão da forma da arte literária é mais difícil 

do que a das demais formas de arte, porque “a beleza se prende imediatamente ao 

assunto”, já que o material da arte literária é a palavra, que por ter “um valor impuro” 

e ser um “elemento imediatamente interessado”, dificulta a distinção entre o que é o 

trabalho estético com as palavras e o que é a mensagem contida nas palavras.

Em “Os  tostões do sr.  Mário  de Andrade”,  de 1939,  mais uma vez 

Graciliano concorda com a concepção da literatura como arte defendida por Mário 

de Andrade. Contudo, o autor critica o modo como Mário defende esse pensamento, 

porque para Graciliano, Mário “dividiu os nossos escritores em duas classes – a dos 

contos de réis (...)  e a dos tostões”, o que prejudica a boa causa defendida por 

Mário. Essa interpretação que Graciliano faz do texto de Mário de Andrade e o seu 

posicionamento crítico ficam bem claros ao escrever que 

O que nos  desagrada nessa  questão,  hoje  morta,  é  notar  que o  crítico  paulista, colocando em alguns escritores etiquetas com preços muito elevados e rebaixando em demasia o valor de outros, vai tornar antipática a boa causa que defende.75 (grifos meus)

A par da interpretação de Graciliano sobre o texto de Mário, o que nos 

interessa destacar  nesse momento é  a  idéia  de que Graciliano concorda com a 

defesa de Mário de Andrade em relação à valorização do domínio técnico da arte 

literária, manifestando expressamente mais um ideal sobre literatura. Essa reflexão 

74  ANDRADE, Mário de.  O empalhador de passarinho.  4ª Ed. Belo Horizonte:  Ed. Itatiaia, 2002. p.105.

75 RAMOS, Graciliano. Linhas tortas. p. 272.

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sobre a literatura como arte volta a ser comentada pelo autor na crônica que encerra 

Linhas tortas,   intitulada “Uma palestra” e publicada originalmente em fevereiro de 

1952, conforme se percebe da leitura do trecho inicial, que segue:

Ouvi,   com  espanto,   um  escritor   afirmar   que,   em  literatura   e   noutras   coisas,  era necessário   suprimir   a   técnica.   Não   nos   disse   porquê:   referiu­se   apenas   à necessidade.  Essa   economia   de   razões   levou­me  a   impugná­lo   do  mesmo  jeito: declarei, simplesmente, o contrário do que ele declarou.76

Nesse texto, fica bem claro o posicionamento de Graciliano sobre a 

técnica   literária.   Mas   em   seus   pensamentos   mais   específicos   sobre   o   assunto, 

Graciliano escreve que só a técnica não resolve o problema do bom texto literário, 

porque se assim fosse “qualquer pessoa alcançaria bom êxito folheando um desses 

manuais   que   nos   ensinam,   em   duzentas   páginas,   a   maneira   favorável   de 

escrever.”77.   Em   outros   pensamentos   sobre   o   trabalho   artístico,   comenta   e 

questiona­se   sobre   algumas   fórmulas   prontas   para   a   prosa   e   para   a   poesia, 

escrevendo que:

Em   conversa,   um   crítico   português   jogou­me   esta   fórmula:   dez   por   cento   de inspiração e noventa por cento  de  transpiração. Chega­me também à  memória a receita do espanhol a propósito de versos: maiúscula no princípio, rima no fim, talento no meio.Mas   pergunto   a   mim   mesmo   se   a   busca   da   rima   não   influirá   no   talento,   se   a transpiração demasiada não será vantajosa à inspiração. Acho que sim.78

Postas   as   reflexões   sobre   a   exata   medida   da   técnica   literária, 

Graciliano conclui  ao final  desse texto que cabe ao  literato cuidar para trabalhar 

artisticamente com as palavras,  mas sem cair  no pedantismo e na ausência  de 

clareza, porque “se não conseguimos ser claros, para que trabalhamos? O nosso 

interesse é que todas as pessoas nos entendam, de vante a ré.”79 Fica evidente o 

quanto Graciliano está  distante dos escritores que apostam no hermetismo e na 

incompreensibilidade. 

76 Ibidem. p. 391.77 Ibidem. p. 392.78 Ibidem. p. 392.79 RAMOS, Graciliano. Linhas tortas. p. 396.

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Além dos trechos supramencionados extraídos das crônicas de Linhas 

tortas para fundamentar a idéia de literatura como arte defendida por Graciliano, vale 

citar também a declaração do autor em entrevista em 1948, transcrita na contracapa 

da edição de Linhas tortas que consta como referência deste trabalho:   

Deve­se escrever da mesma maneira como as lavadeiras lá de Alagoas fazem seu ofício. Elas começam com uma primeira lavada, molham a roupa suja na beira da lagoa ou riacho, torcem o pano, molham­no novamente, voltam a torcer. Colocam anil,   ensaboam   e   torcem   uma,   duas   vezes.   Depois   enxáguam,   dão   mais   uma molhada, agora jogando a água com a mão. Batem o pano na laje ou na pedra limpa e dão mais uma torcida e mais outra, torcem até não pingar do pano uma só gota. Somente depois de ter  feito tudo isso é  que elas dependuram a roupa lavada na corda ou no varal, para secar. Pois quem se mete a escrever devia fazer a mesma coisa. A palavra não foi feita para enfeitar, brilhar como ouro falso; a palavra foi feita para dizer.

Desse modo, pode­se concluir que essa concepção de literatura como 

arte defendida por Graciliano não tem a ver com a de “arte pela arte”, em que o 

escritor  nega qualquer   finalidade prática ao  texto,  não o relaciona com a vida e 

defende a arte como primeiro plano. A defesa de literatura como arte para Graciliano 

deve ser entendida como trabalho artístico minucioso de escolha de palavras, de 

uso preciso das frases e da clareza, mas nunca desvinculada da realidade social. 

Enfim, em meio às preocupações sociais, Graciliano também se preocupa com a 

produção estética, refletindo e defendendo a literatura como arte em diversos textos 

de Linhas tortas.         

                              

  

3.4 OUTRAS LINHAS TORTAS: A CRÍTICA E A VIDA LITERÁRIA

Além   das   reflexões   sobre   literatura   como   conhecimento   e   arte, 

Graciliano também explora o campo literário em suas crônicas reunidas em Linhas 

tortas, para refletir e comentar, dentre outros assuntos, sobre o mercado editorial, a 

publicação   de   um   novo   livro,   a   construção   de   um   personagem,   a   Academia 

Brasileira de Letras, concursos  literários e a crítica  literária nacional.  Sobre esse 

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último   tema,   vale   transcrever   e   analisar   textos   de   momentos   distintos   para 

demonstrar o posicionamento irônico do autor.

Na primeira das crônicas citadas, publicada em 3 de junho de 1915, 

Graciliano   aborda   a   crítica   de   rodapé,   retratando   um   crítico   literário   que,   pela 

necessidade   de   trabalhar   para   dois   jornais   com   posicionamentos   institucionais 

diversos, se contradiz e se obrigar a ter posicionamentos diferentes sobre o mesmo 

tema. Ao iniciar o texto, Graciliano já esclarece que

Escrevi há tempos em dois jornais hebdomadários que se publicavam por aí além. Eu trabalhava por necessidade. Aliás não me sujeitaria talvez a pertencer a duas folhas que pensavam (ou diziam pensar, o que vem a ser o mesmo) de maneira inteiramente diversa. Uma elogiava tudo incondicionalmente. Outra fazia uma oposição sistemática a todas as coisas.Com um bocado de diplomacia, conseguia eu sustentar­me de um e de outro lado. Equilibrava­me. 80

Prossegue o texto, demonstrando um caso concreto em que o crítico 

precisou se curvar aos interesses de seus empregadores e, sem realizar a leitura de 

um livro, baseado somente nas informações de um amigo, se manifestou em dois 

textos de forma antagônica sobre o primeiro livro da senhorita Gertrudes. Em uma 

crítica,  excedeu  as  qualidades  e  na  outra,  as   imperfeições.  Reproduziu  os  dois 

textos na crônica e ao final alertou o leitor:

Como vêem os  leitores,  não poupei à  sonetista os encômios que convêm a uma rapariga bonita, nem as acres censuras que todo o crítico que se preza deve atirar a um mau poeta, embora o poeta vista saias e a gente não tenha lido sua obra.A coisa mais fácil do mundo é fazer crítica, fiquem sabendo, principalmente a crítica literária. Eu, pelo menos, acho facílimo. As duas amostras que apresento são um ótimo exemplo. Examinem os senhores.Retirem dali os chavões, galicismos e as tolices, e vejam o que resta...81 

Resta clara a opinião de Graciliano sobre a postura do crítico literário, 

que em defesa de seu trabalho pode manifestar opinião diversa à sua, recorrendo a 

adjetivos,   frases,   conceitos   prontos   e   chavões   típicos   da   crítica   literária,   para 

escrever   sobre   livros   que   não   foram   lidos   e   consignar   um   entendimento   que 

80 RAMOS, Graciliano. Linhas tortas. p. 50.81 RAMOS, Graciliano. Linhas tortas. p. 53.

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ultrapassa a sua subjetividade e perpassa a política ideológica do jornal. Não me 

parece que o autor critique o fato de o escritor trabalhar para dois jornais com visões 

distintas e sim, o arbítrio da crítica literária amparada somente na percepção inicial 

do crítico e destituída de uma análise objetiva. Até porque, o autor demonstra já no 

início da crônica que os dois trabalhos são o meio de sobrevivência do narrador, 

porque   o   escritor   é   um   profissional.   E   em   outros   textos,   Graciliano   mostra 

consciência de que o escritor,  o  jornalista e o crítico brasileiro não possuem um 

reconhecimento salarial pelo seu trabalho e precisam ganhar seu sustento material 

de variadas formas, seja possuindo dois trabalhos ou seja como servidor público. 

Tanto assim o é, que Graciliano comenta que o literato “não almoça todos os dias, 

mas todos os dias escreve algumas tiras”82, e referencia “(...) as dificuldades em que 

se acham quase  todos num país  onde a profissão  literária  ainda é  uma remota 

possibilidade e os artistas em geral se livram da fome entrando no funcionalismo 

público.”83,  ou ainda, solidariza­se com os anúncios de um ex­colega,  jornalista e 

escritor brasileiro que fez publicar dois anúncios à procura de emprego e donativos, 

os quais foram transcritos na crônica “Um amigo em talas” nos seguintes termos:

Intelectual desempregado. Amadeu Amaral Júnior, em estado de desemprego, aceita esmolas, donativos, roupa velha, pão dormido. Também aceita trabalho.(...)Escrevo poesias, crônicas, contos (policiais, psicológicos, de aventura, de terror, de mistério), novelas, discursos, conferências. Sei inglês, francês, italiano, espanhol e um bocado de alemão. Dêem­me trabalho pelo amor de Deus ou do diabo.84 

Essa opinião de Graciliano sobre a crítica literária descompromissada 

publicada em 1915, quando o autor tinha 23 anos, parece ter permanecido na idéia 

do autor até  pelo  menos 1934,   já  em sua  idade madura,  quando publicou outra 

crônica sobre o assunto, intitulada “As opiniões do respeitável público”, reiterando o 

posicionamento sobre a ausência de atitude reflexiva por parte da crítica literária 

nacional. 

O escritor  profissional   teria  muitas   surpresas  se   reparasse  em algumas opiniões anônimas,  ou quase anônimas, que às vezes aparecem nos  jornais.  Não repara. 

82 Ibidem. p. 60.83 Ibidem. p. 365.84 Ibidem. p. 177.

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Ordinariamente só liga importância à crítica de pessoas sisudas, que podem levá­lo para cima ou arrasá­lo. Sabemos que nem sempre isso é honesto, que um cidadão, por simpatia ou antipatia, por estar situado à direita ou à esquerda, ataca ou defende perfeitamente uma obra que não foi lida. Já o velho Balzac ensinava receitas úteis para esse gênero de trabalho.85

Novamente de um modo mordaz, aludindo ao pensamento do escritor 

francês Balzac, Graciliano aponta a possibilidade da crítica literária não ser honesta 

e  objetiva,   por   crer   que  os   críticos,   ainda   que   profissionais,   façam  sua  análise 

independente da leitura da obra, com fundamento somente na simpatia ou antipatia 

que tem em relação ao escritor. Em outro momento, Graciliano também pondera que 

muitas vezes a crítica literária se limita a fazer um breve resumo da história criticada 

sem   efetuar   um   trabalho   analítico   de   compreensão   e   julgamento   do   texto, 

escrevendo   que   “Apesar   de   não   ser   crítico,   poderia   livrar­me   de   dificuldades 

fazendo,   como   outros,   um   resumo   da   história,   sem   tirar   daí   nenhuma 

conseqüência.”86

Além disso, Graciliano ataca a crítica literária em outro momento, ao 

publicar uma crônica sobre o literato em esboço que “lamenta a imbecilidade dos 

homens, que lhe não erguem altares”, descrevendo esse escritor como ser que se 

posiciona   com   arrogância   e   vive   em   conjunto   com   os   demais   escritores   numa 

espécie de seita, sugerindo que o funcionamento do espaço literário se dê na base 

de troca de elogios e favores na crítica literária.

Assim,   cada   um   dos   sócios   da   comunidade   encontra   sempre   quem  o   enalteça, despendendo   grande   cópia   de   adjetivos   ruidosos.   O   sócio   elogiado   deve   por amabilidade e por gratidão retribuir todos os encômios recebidos e afirmando que o sujeito que o honrou é simplesmente um gênio.Para   isso  escreve   um  artigo  no   qual   introduz   sagazmente   vários   sinônimos   dos qualificativos que lhe foram aplicados.É inútil dizer que o artigo será cortesmente e generosamente recompensado.Por semelhante processo, com modo, suave, todos são grandes, pelo menos a seus próprios olhos.87

85 RAMOS, Graciliano. Linhas tortas. p. 221.86 Ibidem. p. 161.87 Ibidem. p. 62.

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Apesar dessa descrença de Graciliano em relação à  crítica  literária, 

observa­se nas crônicas de Linhas tortas que o autor também se valeu do espaço do 

jornal para tecer críticas a obras  literárias de vários escritores,  tais como Aurélio 

Buarque de Holanda, Eça de Queirós, Guimarães Rosa, José Lins do Rego, Mário 

de Andrade, Rachel de Queirós. Então, de certo modo, ao falar dos críticos literários, 

Graciliano se auto­referenciou. 

 

Em   outros   momentos,   Graciliano   criticou   a   recepção   dos   leitores 

brasileiros em relação aos  textos nacionais.  Na crônica  intitulada  “Romances”,  o 

autor comenta que possuímos textos literários de qualidade extraordinária, mas que 

não são consumidos nem pelo público  interno, porque os  leitores desconfiam da 

qualidade literária e adquirem os romances franceses por mais caros que sejam: 

Possuímos excelentes romances que não são lidos. Os críticos garantem a qualidade deles, os editores fazem uma propaganda terrível em jornal e em cartaz,  mas os leitores desconfiam e vão direto à exposição dos livros franceses. (...)Os   romances brasileiros   custam uma  ninharia  e  envelhecem nas  prateleiras  dos editores. Os romances franceses estão pela hora da morte e são procurados com avidez.88 

E   ao   constatar   esse   perfil   do   leitor   brasileiro,   Graciliano   sugere 

ironicamente que os escritos literários brasileiros de qualidade fossem exportados, 

traduzidos  para  uma   língua  estrangeira  e   importados  novamente  para  consumo 

interno, como se fazia com outros produtos manufaturados. Ou ainda, no mesmo 

tom sarcástico, comenta que se os governantes do Estado pensassem sobre esse 

comportamento  do   leitor   brasileiro,   poderiam  intervir   e   traduzir   algumas  novelas 

indígenas para o francês, que seriam consumidas rapidamente independentemente 

do preço cobrado.

(...) poderíamos vender alguns para fora e depois comprá­los de novo, exatamente como   fazemos   com   certos   produtos,   que   saem   daqui   e   voltam   melhorados, empacotados e recomendados por uma gente qualquer, que julgamos superiores.(...)O governo, se se ocupasse com isso, mandaria passar algumas novelas indígenas para o francês. Talvez elas não fossem vendidas lá fora. Não faria mal. Viria para 

88 RAMOS, Graciliano. Linhas tortas. p. 206.

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aqui a tiragem toda. Vendo­as em línguas de branco, o público arregalaria o olho, convencer­se­ia de que estava diante de mercadoria boa e cairia no logro: daria vinte mil­réis por uma brochura que aqui se vende por seis.89

Comentando a mesma atitude do  leitor brasileiro que menospreza a 

produção literária nacional e supervaloriza a estrangeira, Graciliano publica a crônica 

Bahia de Todos os Santos, para informar que o texto “Jubiabá”,  de Jorge Amado, 

escritor do realismo social da década de 30 refutado por parte da crítica nacional, 

havia sido traduzido por Michel Berveiller e Pierre Hourcade e publicado pela N.R.F 

sob o título “Bahia de tous les Saints” em um volume de quase trezentas páginas. 

Ironizando a postura dos leitores nacionais mal­formados, que valorizam a produção 

estrangeira em detrimento da nacional, Graciliano supõe que essa tradução para 

língua francesa de um texto de Jorge Amado, comumente criticado como ofensivo 

aos bons costumes sociais, já conferiria ao romance um status literário superior.

Jubiabá é, pois, uma espécie de contrabando literário – e está aí o maior elogio que podemos fazer­lhe; tem de impor­se por suas virtudes. Infelizmente foi publicado pela N.R.F. e custa vinte e oito francos, que, traduzidos no Brasil, significam aí uns vinte e dois mil–réis.  Seria melhor ter saído numas dessas brochuras de capa amarelada que se vendem a três francos e meio. Melhor para o público europeu, é claro. Entre nós o  livro ganha por estar em  língua estrangeira e ser  caro.  Pessoas  finas que desprezam o volume da José Olympio ilustrado por Santa Rosa vão achar excelente a   mercadoria   importada.   O   que   será   muito   bom:   o   romance   de   Jorge   Amado conquistará mais alguns leitores indígenas.90

Fica   claro   que   o   autor   quer   provocar   o   leitor   da   crônica,   que 

provavelmente também é o leitor das obras de ficção, a refletir sobre os valores da 

obra  literária  nacional,  sobre a desconfiança preexistente em relação ao produto 

interno   e   o   consumo   impensado   dos   romances   franceses,   como   se   tais   obras 

fossem sinônimos de refinamento estético e as obras nacionais fossem inferiores. 

Graciliano   demonstra   claramente   que   esse   posicionamento   é   legado   do 

comportamento  submisso de povo colonizado,   “indígena”,  aos  padrões europeus 

colonizadores, herança que as “pessoas finas” cultuam também no espaço literário. 

89 RAMOS, Graciliano. Linhas tortas. p. 207.90 Ibidem. p. 166.

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Além de se manifestar sobre a crítica literária, o mercado editorial e a 

recepção  dos   leitores  brasileiros   sobre  os   livros  nacionais,   chama   a   atenção  o 

posicionamento crítico do autor como julgador no concurso  literário  Humberto  de 

Campos, instituído pela Livraria José Olympio em 1938.  Linhas tortas possui duas 

crônicas sobre esse mesmo assunto:  “Um livro inédito” e “Conversa de bastidores”.  

O   primeiro   texto   do   autor,   publicado   em   20   de   agosto   de   1939,   refere­se   ao 

julgamento do concurso em que Graciliano Ramos votou no livro Maria perigosa, de 

Luís Jardim, vencedor por apenas um voto em relação ao segundo colocado, que 

era um livro de contos assinado pelo pseudônimo Viator. Como o julgamento não foi 

tranqüilo,   Graciliano   fez   questão   de   justificar   seu   voto,   afirmando   que   preferiu 

escolher “um livro que não sobe demais nem desce muito”91  e que votou “contra 

esse   livro   de  Viator.   Votei   porque   dois   dos   seus   contos   me   parecem  bastante 

ordinários: a história dum médico morto na roça, reduzido à condição de trabalhador 

de eito, e o namoro mais ou menos idiota dum engenheiro com uma professora dum 

grupo escolar.”92. Não obstante as críticas ferozes, Graciliano lamenta que o escritor 

que   assine   sob   pseudônimo   Viator   não   apareça   na   vida   literária,   até   porque 

Prudente de Morais “acha que ele fez alguns dos melhores contos que existem em 

língua portuguesa.”93  Já na crônica “Conversa de bastidores”, publicada em 16 de 

maio de 1946, Graciliano comenta que em 1944 foi  apresentado a J. Guimarães 

Rosa, um secretário de Embaixada, recém­chegado da Europa, que se apresentou 

como   Viator.   Enfim,   eles   puderam   conversar   sobre   os   contos   submetidos   ao 

julgamento no concurso literário Humberto de Campos, Guimarães Rosa concordou 

com os apontamentos de Graciliano e disse haver suprimido os textos mais fracos, 

para publicar posteriormente um livro. Em 1946, Graciliano comenta a publicação do 

referido livro, intitulado Sagarana, tecendo inúmeros comentários elogiosos ao texto 

de Rosa e termina o texto afirmando que “certamente ele fará um romance, romance 

que não lerei, pois, se for começado agora, estará pronto em 1956, quando os meus 

ossos começarem a esfarelar­se.”94 Rosa escreveu Grande sertão: veredas, que foi 

publicado em 1956, mas Graciliano faleceu em 1953.

91 RAMOS, Graciliano. Linhas tortas. p. 216.92 Ibidem. p. 216.93 Ibidem. p. 216.94 Ibidem. p. 355.

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Em síntese, as crônicas mencionadas servem de exemplo de como 

Graciliano valeu­se do espaço  jornalístico para refletir  diretamente sobre os mais 

diversos  assuntos  do   campo   literário.  São  numerosos  os   fragmentos  de  Linhas 

tortas  não   transcritos   neste   trabalho   que,   em   maior   ou   menor  grau,   permitem 

profundas reflexões sobre literatura.

  

4. CONCLUSÃO 

Diante de todo o exposto, pode­se concluir que Linhas tortas é um livro 

de crônicas de grande importância para o estudo do gênero literário e da obra de 

Graciliano Ramos. Verificou­se que essas linhas publicadas em jornais no período 

de 1915 a 1952 possuem as características da melhor tradição da crônica brasileira, 

em que os escritores abusam da subjetividade para, de forma a cativar o leitor a 

uma   leitura   leve   e   rápida,   apresentar   importantes   reflexões   sociais,   políticas   e 

literárias.   Além   disso,  Graciliano   valeu­se   de   seu   estilo   preciso   e,   em   diversos 

momentos,   do   seu   sarcasmo,   mas   dentre   os   assuntos   tratados,   privilegiou   os 

assuntos literários.  

Ao se   limitar  o  presente  estudo  às  crônicas  em que  Graciliano   faz 

reflexões diretas sobre a sua concepção de literatura para apresentar o ideal de arte 

literária   tal   como a pensou o  autor,   separou­se  um corpus de  textos  publicados 

originalmente nos anos 30 e 40 e, disso decorreu a necessidade de se reconstruir o 

panorama da produção literária do romance dessa época. Consignou­se que, nesse 

período conhecido como a “era do romance brasileiro”, a produção romanesca se 

polarizou entre o romance social­regional, em que predomina a relação do homem 

com o meio em que se insere, e o romance psicológico, em que predomina a relação 

do homem consigo mesmo e seus conflitos em sociedade. E, a par de todos os 

problemas   dessa   classificação   da   ficção   em   romance   social   versus   romance 

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psicológico,   o  binômio  é   costumeiramente  utilizado,   visto   que,  nesse  período,  a 

referência à realidade nacional nos enredos é vista como parâmetro de qualidade do 

texto. Como conseqüência dessa valoração, o romance social­regional, entendido 

como manifestação literária para conhecimento do mundo, predomina em relação ao 

romance psicológico, entendido como manifestação literária estética e intimista.

Depois de traçado breve panorama literário do romance de 30 e 40, 

apresentou­se como Graciliano enxergava esse contexto e qual foi seu juízo de valor 

em relação aos textos da época, mostrando através de excertos das crônicas “Norte 

e Sul”, de abril de 1937, “O romance de Jorge Amado”, de 17 de fevereiro de 1935, 

“Os donos da literatura”, de setembro de 1937, e “O fator econômico no romance 

brasileiro”, de 15 de julho de 1945, que o posicionamento do autor é no sentido de 

que o escritor deve ser engajado, apresentar os problemas nacionais, indo além da 

pura mimese para apresentar uma visão crítica da realidade social brasileira. Ficou 

claro que esse engajamento não pode ser confundido com uma produção literária 

panfletária  ou apologética.  Graciliano soube distinguir  a esfera  literária  da esfera 

política   e   defendeu   a   produção   literária   comprometida   com   a   realidade   social 

nacional,   por   crer   que,   em   primeiro   plano,   a   literatura   seja   uma   forma   de 

conhecimento   do   homem   e   do   mundo.   Através   de   trechos   das   crônicas   “Os 

sapateiros da literatura” e “Os tostões do Sr. Mário de Andrade”, ambas de 1939, e 

do   texto   “Uma palestra”,   de  1952,  pode­se  concluir  que  além da concepção de 

literatura como forma de conhecimento de mundo,  Graciliano também defendeu a 

literatura   como   a   arte   da   linguagem   clara,   afastando­a   do  hermetismo   e   da 

incompreensibilidade.   Defendeu   uma   concepção   de  literatura   como   arte 

desvinculada   da   “arte   pela   arte”   e   vinculada   ao   trabalho  artístico  minucioso  de 

escolha de palavras e de uso preciso das frases, sempre relacionada à realidade 

social brasileira.

Para complementar as reflexões de Graciliano sobre a literatura como 

forma de  conhecimento do mundo e como arte da  linguagem, apresentou­se um 

resumo de algumas outras crônicas de  Linhas tortas  que versam sobre assuntos 

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literários. Apesar dessas outras linhas não exprimirem explicitamente a concepção 

de literatura do autor, elas apresentam o posicionamento de Graciliano em relação à 

crítica literária, ao mercado editorial e aos concursos literários, de modo que também 

auxiliam a   refletir   sobre  as  possíveis   funções  da   literatura,   tal   como  as  pensou 

Graciliano. 

Espera­se com as reflexões sobre literatura feitas no presente estudo 

contribuir com os estudos acadêmicos sobre a obra literária de  Graciliano Ramos, 

divulgando a profundidade e a riqueza das crônicas do autor, porque Linhas tortas é, 

sem dúvida, um livro capaz de encantar seus leitores pela beleza de seus textos e 

auxiliá­los a compreender a concepção de literatura do autor.

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REFERÊNCIAS

ABEL,  Carlos  Alberto  dos Santos.  Graciliano  Ramos:  cidadão e  artista.  Brasília: Editora Universidade de Brasília, 1999.

ANDRADE, Mário de, Vida literária. São Paulo: Hucitec. Edusp, 1993.

______. O empalhador de passarinho. 4ª ed. Belo Horizonte: Ed. Itatiaia, 2002. 

ARRIGUCCI   JUNIOR,   Davi.  Enigma   e   comentário:   ensaios   sobre   literatura   e  experiência. São Paulo: Companhia das Letras, 1987.

BOSI, Alfredo.  História concisa da literatura brasileira.  41ª ed. São Paulo: Cultrix, 2003.

BROCA, Brito. Prefácio. Linhas tortas. 5ª ed. São Paulo: Martins, 1972.

BUENO, Luís. Uma história do romance de 30. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo; Campinhas: Editora da Unicamp, 2006.

CANDIDO, Antonio. Literatura e sociedade. Estudos de teoria e história literária. 5ª ed. São Paulo: Companhia Editora Nacional. s.d.

______.  A   crônica:   o   gênero,   sua   fixação   e   suas   transformações   no   Brasil. Campinas. Ed. Unicamp, 1992.

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______.  Textos  de   intervenção.  Org.  Vinícius  Dantas.  34ª  ed.  São  Paulo:  Duas Cidades, 2002.

COUTINHO, Afrânio. A Literatura no Brasil. 6ª ed. v. 5 e 6. São Paulo: Global, 2003.

CRUZ,  Dilson Ferreira  da.  Estratégias e  máscaras  de um  fingidor:  a  crônica  de  Machado de Assis. Dissertação de Mestrado. Universidade de São Paulo, 2001.

CRUZ, João Roberto Maia da.  Apontamentos sobre a obra de Graciliano Ramos. Disponível em: <http://www.ucm.es/info/especulo/numero35/graramos.html>. Acesso em 1º.OUT.08.

GARBUGLIO, J. C.; BOSI, A.; FACIOLI, V.  Graciliano Ramos.  Coleção Escritores Brasileiros. Antologia e Estudos.  São Paulo: Ática, 1987.

MIRANDA, Wander Mello. Graciliano Ramos. São Paulo: Publifolha, 2004.

RAMOS, Graciliano. Angústia.  56ª ed. Rio de Janeiro: Record, 2003.

______. Linhas tortas. 21ª ed. Rio de Janeiro: Record, 2005.

______. São Bernardo. 76ª ed. Rio de Janeiro: Record, 2003.

______. Vidas secas. 31ª ed. São Paulo: Martins, 1973.

RAMOS,  Ricardo.   Lembranças  de  Graciliano.  In:  GARBUGLIO,   J.  C.;  BOSI,  A.; FACIOLI, V. Graciliano Ramos. Coleção Escritores Brasileiros. Antologia e Estudos. São Paulo: Ática, 1987.

SÁ, Jorge de. A crônica. São Paulo. Ática, 2005.

SANTOS,   Joaquim   Ferreira   dos.  As   cem   melhores   crônicas   brasileiras.   Rio   de Janeiro: Objetiva, 2007.

SANTOS, Robson dos. Literatura em fragmentos: história, política e sociedade nas crônicas de Graciliano Ramos. Dissertação (mestrado) – Universidade Estadual de Campinas, 2006.

Site  oficial   de  Graciliano  Ramos.  Disponível  em:  <http://www.graciliano.com.br/>. Acesso em 05.ago.2008.

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ANEXO A 

Norte e Sul 

Essa distinção que alguns cavalheiros procuram estabelecer entre o romance do norte e o romance do sul dá ao leitor a impressão de que os escritores brasileiros formam dois grupos, como as pastorinhas do Natal, que dançam e cantam filiadas ao cordão azul ou ao cordão vermelho. 

Realmente a geografia não  tem  nada  com  isso.  Não podemos  traçar  no mapa  uma  linha divisória dos campos onde os cordões cantam e dançam. 

O que  há  é  que  algumas pessoas gostam de  escrever  sobre  coisas  que existem na realidade, outras preferem tratar de   fatos   existentes   na   imaginação. Esses fatos  e   essas  coisas  viram mercadorias. O crítico, munido de balanças e outros   instrumentos adequados, pode medi­las, pesá­las, decidir sobre a mão­de­obra e a qualidade da matéria­prima, até certo ponto aumentar ou reduzir a procura, mas quem julga definitivamente é o freguês, que compra e paga. 

O fabricante que não acha mercado para o seu produto zanga­se, é natural, queixa­se  com razão da estupidez pública,  mas não deve atacar  abertamente  a exposição do vizinho.  O ataque  feito  por  um concorrente não merece crédito,  o consumidor desconfia dele. 

Ora, nestes últimos tempos surgiram referências pouco lisonjeiras às vitrinas onde os autores nordestinos  arrumam  facas  de  ponta,  chapéus  de  couro,  cenas espalhafatosas,  religião  negra,  o cangaço e o eito, coisas que existem realmente e são recebidas com satisfação pelas criaturas vivas.  

As  mortas,  empalhadas  em bibliotecas,  naturalmente  se  aborrecem disso, detestam   o   Sr.   Lins   do   Rego,   que   descobriu   muitas   verdades   há   séculos, escondidos no fundo dos canaviais, o sr. Jorge Amado,  responsável  por  aqueles 

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horrores  da  Ladeira  do  Pelourinho,  a  sra.  Rachel  de  Queiroz, mulher que se tornou indiscreta depois do “João Miguel”.

Os inimigos da vida torcem o nariz e fecham os olhos diante da narrativa crua, da expressão áspera. Querem que se fabrique nos romances um mundo diferente deste, uma confusa humanidade só de almas, cheias de  sofrimentos  atrapalhados que  o  leitor  comum  não  entende.  Põem essas almas longe  da  terra,  soltas  no espaço.   Um   espiritismo   literário   excelente   como   tapeação.   Não admitem as dores ordinárias, que sentimos por as encontrarmos em  toda a parte, em nós e  fora de nós. A miséria é incômoda. Não toquemos em monturos. 

São  delicados,  são   refinados,  os  seus  nervos  sensíveis  em demasia  não toleram a     imagem da   fome e  o  palavrão  obsceno.  Façamos  frases  doces.  Ou arranjemos torturas interiores, sem causa. É bom não contar que a moenda da usina triturou o rapaz, o tubarão comeu o barqueiro e um sujeito meteu a faca até o cabo na barriga do outro. Isso é desagradável. 

É mesmo. É desagradável, mas é verdade. E o que é mais desagradável, e também verdade, é   reconhecer que, apesar de haver sido muitas vezes xingada essa  literatura o público se  interessa por ela. 

Orientemos o público.  A ordem é  apitar,  estrilar   reduzir  ao silêncio alguns tipos indesejáveis. 

Não  há  grupo  do  norte  nem  grupo  do  sul,  está  claro. Mas  realmente  os nordestinos   têm escrito inconveniências. Pois não é que o sr. Amando Fontes foi dizer que as filhas dos operários se prostituem? 

Ataquemos o sr. Amando Fontes e outros, os que têm aparecido ultimamente do Ceará até a Bahia, excetuando os que não disseram nada. Vamos falar mal de todos os romancistas que aludem à fome e à miséria  das  bagaceiras,  das  prisões, dos  bairros  operários,  das  casas  de  cômodos. Acabemos tudo isso. 

E a literatura se purificará, tornar­se­á inofensiva e cor­de­rosa, não provocará o mau humor de ninguém, não perturbará a digestão dos que podem comer. Amém. 

 abril de 1937

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ANEXO B 

O romance de Jorge Amado 

   Há   uma  literatura    antipática    e     insincera    que   só    usa    expressões corretas,  só  se  ocupa  de coisas  agradáveis,  não  se molha  em  dias  de  inverno e   por    isso    ignora   que   há    pessoas   que   não podem   comprar   capas   de borracha.  Quando a chuva aparece, essa literatura  fica  em  casa,  bem aquecida, com as portas  fechadas. E se é obrigada a sair, embrulha­se, enrola o pescoço e levanta os olhos, para não ver a  lama nos sapatos. Acha que tudo está direito, que o Brasil  é  um mundo e que somos felizes. Está  claro que ela não sabe em que consiste esta felicidade, mas contenta­se com afirmações e ufana­se do seu país. Foi ela que, em horas de  amargura,  receitou  o  sorriso  como excelente  remédio para a crise. Meteu a caneta nas mãos de poetas da Academia e compôs hinos patrióticos; brigou com os   estrangeiros   que   disseram  cobras  e   lagartos  desta região   abençoada; inspirou   a   estadistas   discursos   cheios   de   inflamações,   e antigamente   redigiu   odes   bastante ordinárias;    tentou,   na   revolução   de   30, pagar   a   dívida   externa   com   donativos   de   alfinetes   para gravatas, botões, broches e moedas de prata. Essa literatura   é    exercida   por   cidadãos   gordos, banqueiros, acionistas, comerciantes, proprietários, indivíduos que não acham que os outros tenham motivo para estar descontentes. 

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  ­ Vai tudo muito bem – exclamam, como o papagaio do naufrágio.     Ora,   não   é   verdade   que   tudo   vá   assim   tão   bem.   Umas   coisas   vão 

admiravelmente,   porque   há   literatos   com   ordenados   razoáveis;   outras   vão   mal, porque os vagabundos que dormem nos bancos do passeio não  são  literatos  nem capitalistas.   Nos algodoais   e   nos   canaviais   do   Nordeste,   nas plantações de cacau e de café, nas cidadezinhas decadentes do  interior, nas fábricas, nas casas de cômodos, nos prostíbulos, há milhões de criaturas que andam aperreadas.    

Os srs. Jorge de Lima e Henrique Pongetti pensam de outra forma: o primeiro gosta da lama do sururu e da maleita; o segundo afirma que um agricultor se deita na rede, joga um punhado de sementes por  cima  da  varanda  e  tem  safra.  Mas o sr. Jorge de Lima nunca   apanhou   sururu e conhece remédio para maleita, que é medico. E o sr. Pongetti, se arrastasse a enxada no eito de sol a sol, saberia que aquilo pesa e a terra é dura. Dizer que a nossa gente não tem vontade de trabalhar é brincadeira.  Apesar dos vermes, da sífilis, da cachaça, da seca e de outros males, ela trabalha desesperadamente e vive, comendo da banda podre, está claro. 

É natural que a literatura nova que por aí andam construindo se ocupe com ela. Sempre vale mais que descrever os lares felizes, que não existem, ou contar histórias sem pé nem cabeça, coisas bonitas arrumadas em conformidade com as regras,  como há   tempo,  quando um sujeito,  sem nunca sair  do  Rio  de  Janeiro, imitava  a   algaravia  de  Lisboa  e  procurava  assunto  para  obra  de  ficção do Egito e da Índia. 

Os escritores atuais  foram  estudar  o  subúrbio,  a  fábrica,  o  engenho,  a prisão   da     roça,  o  colégio  do  professor  cambembe.  Para   isso   resignaram­se a abandonar o asfalto e o café, viram de perto muita porcaria, tiveram a coragem de falar errado,  como  toda  a gente,  sem dicionário, sem gramática, sem manual de retórica.   Ouviram   gritos,   pragas,   palavrões,   e   meteram   tudo   nos   livros   que escreveram.  Podiam  ter  mudado  os  gritos  em suspiros,  as  pragas  em orações. Podiam, mas acharam melhor por os pontos nos ii.

O sr. Jorge Amado é  um  desses  escritores  inimigos  da  convenção  e  da metáfora, desabusados,  observadores  atentos.  Conheceu,  há  alguns  anos,  um casarão de três andares  na Ladeira do  Pelourinho,  Bahia,  e  resolveu  apresentar­nos     os     hóspedes     que     lá     encontrou     –   vagabundos,     ladrões,  meretrizes, operários,  crianças  viciadas,  agitadores,  seres  que  se  injuriavam – em diversas línguas: árabes,  judeus,  italianos, espanhóis, pretos,  retirantes do Ceará  etc.  Até bichos. Essa fauna heterogênea não se mostra por atacado na obra do romancista baiano: forma uma cadeia que se principia no violonista que percorreu a França, a Alemanha, outros países e acaba no rato que dorme junto à esteira de um mendigo. 

O que liga os anéis da cadeia não é o trabalho, como o titulo do livro,  Suor, poderia fazer­nos supor: é  a miséria,  a miséria  completa,  nojenta,  esmolambada, sem  nenhuma  espécie  de  amparo. 

Todos os habitantes do prédio vivem na  indigência ou aproximam­se dela. Sente­se, de fato, no livro o cheiro de suor, pois logo no começo surgem à porta alguns   trabalhadores do cais do porto. Esses trabalhadores, porém, à exceção do preto   Henrique,   mexem­se   pouco.   Sentimos   bem   é   o   fedor   de   muitas   coisas misturadas:   lama,  pus,  cachaça,    urina,     roupa   suja,    sêmen    ­    uma   grande imundície apanhada com minudências excessivas. 

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O   autor   examinou   de   lápis   na   mão   a   casa   de   cômodos   e   muniu­se   de anotações, tantas que reproduziu com   todos   os   erros, uma   carta em que   se agencia dinheiro para  igreja, uma notícia  de jornal, um  recibo e um desses escritos extravagantes que as pessoas supersticiosas copiam, com receio   de   que    lhes chegue  desastre,  e  remetem  a  dez  indivíduos  de  suas  relações.  Esse amor à verdade, às vezes prejudicial a um romancista, pois pode fazer­nos crer que lhe falta imaginação, dá a certas páginas de Suor um ar de reportagem. 

A   impressão   esmorece   logo:   algumas   linhas   adiante   vemos   uma   cena admirável em que os personagens saem do papel, movem­se naturalmente, falam, sobretudo falam. O sr. Jorge Amado arranjou diálogos excelentes. Há   frases que resumem uma situação. “Sim. Eu sou professor. E no meu cargo...” O caráter de um tipo esboçado com oito palavras. 

O  livro do sr.  Jorge Amado não é  propriamente um romance, pelo menos romance como os que estamos habituados a ler. É uma série de pequenos quadros tendentes a mostrar o ódio que os ricos   inspiram aos moradores da hospedaria. Essas criaturas passam  ràpidamente, mas vinte delas ficam gravadas na memória do     leitor.  Discutem,   fuxicam,  brigam,   fazem confidências  e dão  rendez­vous  no corrimão   perigoso   da   escada.   As   expressões   que   atiram   à   classe   média   são ferozes. Uma prostituta fala de um coronel: “Sujo. Que monturo de homem”. 

Tudo natural quando os pobres se manifestam em palavrões de gíria, quase sempre numa linguagem  obscena  em  excesso,  nada  literária,  está  visto,  mas que  tem  curso  na  Ladeira  do Pelourinho e até em lugares de boa reputação. O autor  falha, porém, nos pontos em que a revolta de sua   gente   deixa   de   ser instintiva  e  adota  as  fórmulas  inculcadas  pelos  agitadores.  As  figuras de Álvaro Lima, do anarquista espanhol, do comunista judeu, não tem relevo, apesar de serem as mais trabalhadas. Quando elas aparecem, o livro   torna­se quase campanudo, por causa das explicações, das definições, que dão aos   três personagens um ar pedagógico   e   contrafeito.  O   preto   Henrique,   as  moças  do     terceiro     andar,     o mendigo,  os  fregueses  da  bodega  do  Fernandez,  as  meretrizes, exprimem­se ingenuamente.    Chega   um   desses   homens,     traduz   a     fala    em    linguagem política,     de   cartaz     –     e     sentimos     um     pouco     mais     ou    menos     o     que experimentamos   quando   vemos    letras explicativas   por   baixo   de   desenhos traçados  a  carvão  nas  paredes.  Não  nos  parece  que  o  autor, revolucionário, precisasse     fazer  mais     que     exibir     a  miséria    e     o     descontentamento    dos hospedes  do casarão. A obra não seria menos boa por isso.  

O sr. Jorge Amado tem dito várias vezes que o romance moderno vai suprimir o personagem, matar  o  indivíduo. O  que  interessa  é  o  grupo  –  uma  cidade inteira,  um  colégio,  uma  fábrica,  um engenho de açúcar. Se isso fosse verdade, os   romancistas   ficariam   em   grande   atrapalhação.   Toda   a   análise   introspectiva desapareceria. A obra ganharia em superfície, perderia em profundidade. 

Ora, em   Suor    há   personagens,   personagens   poucos   numerosos.   Não percebemos  ali  o movimento das massas. Na casa do Pelourinho vivem seiscentos moradores,   mas   apenas     travamos   relações     com     alguns     deles.   Dão­se     a conhecer     em     palestras     animadas     e     os     casos     íntimos     tomam   grande importância.   Às   vezes   as   pessoas   aparecem   isoladas,   uma   tocando   violino   e chorando glórias perdidas,   outra   pensando   em   uma   aldeia   da   Polônia.   O sapateiro   espanhol   apresenta­se conversando com um gato, o homem de braços 

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cortados é amigo de uma cobra, o mendigo Cabaça entende­se  com um  rato. Sinal de   misantropia.   Em   uma   passagem,   garotos,     soldados,   estudantes,   martirizam Ricardo   Bitencourt   Viana,   ótimo   sujeito,   que   auxilia   as   viúvas   e   oferece bonecas   às crianças. Depois de gritos, protestos, ameaças inúteis com o guarda­chuva quebrado, o homem fecha­se no quarto e vai arrumar ninharias na mala, só, feliz, esquecido da cambada que o atormentava. O autor   sente   necessidade de meter em   casa os   seus personagens:   não   se dão   bem na   rua. O   que mais ressalta   no     livro   são   os   caracteres     individuais.   Certas     figuras   estão admiravelmente     lançadas,   mas,     quando     entram     na   multidão,     tornam­se inexpressivas. O  que  sentimos  é  a  vida  de  cada  um; desgraças miúdas, vícios, doenças, manias. 

O  sr.  Jorge  Amado  embirra  com  os  heróis.  Acha,  por  isso,  que,  em Suor   o   personagem principal é o prédio. História. Não   é muito difícil emprestar qualidades humanas a um gato, a   uma cobra,   a   um   rato.   Já    houve   quem humanizasse  até  formigas. Com  um  imóvel  a  coisa  é  diferente. Dizer que ele “vive da vida dos que nele habitam” é jogo de palavras. Em Suor há um personagem de carne e  osso  muito  mais  importante  que  os  outros;  é  Jorge  Amado,  que morou   na   Ladeira   do Pelourinho, 68 e    lá  conheceu Maria Cabassu e    todos aqueles seres estragados que  lhe  forneceram material para um excelente romance. 

 17 de fevereiro de 1935 

ANEXO C 

Os donos da literatura

Um dia destes, à porta de certa livraria, um poeta queixava­se amargamente dos donos da literatura.

­ Que donos? perguntou alguém.E surgiram na conversa alguns nomes, que não se reproduzem aqui porque 

isto seria indiscrição. Em todo o caso fica registrada a amargura do poeta.

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Há realmente uns figurões que se tornaram, com habilidade, proprietários da literatura nacional, como poderiam ser proprietários de estabelecimentos comerciais, arranha­céus, usinas, charqueadas ou seringais. São muito importantes e formam um pequeno sindicato que representa a inteligência indígena lá fora, nos pontos em que ela precisa aparecer de casaca.

Impossível  saber  por  que esses cavalheiros  fingem adotar  ofício   tão  ruim, podendo dedicar­se a negócios rendosos, a política por exemplo, ou outra qualquer indústria. É preciso admitir que ser literato é bonito, embora o tipo que se enfeita com este nome nunca tenha escrito coisa nenhuma.

Se não fosse assim, não se compreenderia que pessoas razoáveis, bons pais de família, com dinheiro no banco e muita consideração na praça, homens gordos, gordíssimos, escolhessem uma profissão excelente para matar a fome os sujeitos que pretendem viver dela. Está claro que não ganham nada, isto é, ganham uma espécie de glória. Exatamente como se não ganhassem nada.

Mas  é   uma  concorrência  desleal,  é   uma  desonestidade.  O  poeta  que   se lamentava na porta da livraria tem razão.

Há uma literatura que ninguém tem, que talvez nem tenha sido produzida, que se  oferece  ao  estrangeiro,  não  em volumes,  mas  nas   figuras  de  cidadãos  bem educados, que falam com perfeição línguas difíceis e sabem freqüentar embaixadas. Há outra, suada, ainda bem fraquinha, mas enfim uma coisa real, arranjada não se sabe como por indivíduos bem ordinários.

A   primeira   comparece   a   sessões   solenes   e  manifesta­se   em   discurso;   a segunda atrapalha­se e mete os pés pelas mãos na presença de gente de cerimônia e só desembucha no papel.

A literatura honorária, escorada e oficial, vive sempre lá fora, chega aqui de passagem e quando aparece, é vista de longe, rolando em automóvel; a literatura efetiva,  mal   vestida  e  de   segunda   classe,  mora   no   interior   ou   vegeta  aqui,   no subúrbio, e viaja a bonde, às vezes de pingente.

Está   errado   tudo.   Por   que   é   que   essas   duas   instituições,   que   não   têm parentesco e usam o mesmo nome, não entram em combinação?

Já que a primeira, constituída pelos patrões, é bem alimentada e não produz, e a segunda, a da gentinha, trabalha com a barriga colada ao espinhaço, podiam entender­se. A primeira daria um salário (ou ordenado, que é o nome decente) à segunda, e esta faria livros que, com alguns consertos na ortografia e na sintaxe, poderiam ser assinados por ministro, conselheiro, desembargador e outros letrados deste gênero.

setembro de 1937

ANEXO D

O fator econômico no romance brasileiro 

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A leitura dos romances brasileiros, até dos melhores, quase sempre nos dá a impressão   de   que   os   nossos   escritores   não   conseguem   fazer   senão   trabalhos incompletos. Sem nos deixarmos vencer pelo pessimismo que nos leva a olhar com desconfiança   a   obra   de   arte   nacional,   pessimismo   às   vezes   interrompido bruscamente por acessos de exaltação ingênua, meio infantil, devemos reconhecer que nos trabalhos de ficção brasileiros falta alguma coisa.

A   mania   indígena   de   se   comparar   o   literato   cá   da   terra   a   um   figurão estrangeiro, hábito inocente e antigo, sempre em moda, é apenas um meio de fazer crítica e não deve ser tomada a sério.

Perguntamos  com desânimo  se  estamos  condenados  a   ver   surgirem nas vitrinas livros que fazem barulho e em menos de um ano morrem e se enterram, a elogiar outros que um patriotismo vesgo afirma serem ótimos e ninguém lê.

Prudente de Morais Neto me dizia há alguns anos que atribuía a deficiência dos nossos romances à  escassez de material   romanceável.  Discordei.  Se o mal fosse de natureza objetiva,  estaríamos definitivamente  perdidos,  a  menos que o meio se transformasse. Não devia ser isso.

Faltava­nos naquele tempo, e ainda hoje nos falta, a observação cuidadosa dos   fatos  que  devem  contribuir   para  a   formação   da  obra  de  arte.  Numa  coisa complexa como o romance o desconhecimento desses fatos acaba prejudicando os caracteres e tornando a narrativa inverossímil.

Parece­nos que novelistas mais ou menos reputados julgaram certos estudos indignos de atenção e  imaginaram poder   livrar­se  deles.  Assim,  abandonaram a outras   profissões   tudo   quanto   se   refere   à   economia.   Em   conseqüência   disso, fizeram uma construção de cima para baixos, ocuparam­se de questões sociais e questões políticas, sem notar que elas dependiam de outras mais profundas, que não podiam deixar de ser examinadas.

Talvez os amadores que falam tanto em Balzac e fingem imitá­lo não hajam percebido que este escritor em um só livro estuda a fabricação do papel, a imprensa de Paris, casas editoras, teatros, restaurantes, oficinas de impressão etc. Levantada essa   base   econômica, é   que   principia   a   mover­se   a   sociedade   balzaquiana, políticos, nobre, jornalistas, militares, negociantes, prostitutas e ladrões, tipos vivos que ainda nos enchem de admiração. Mesmo as figuras exageradas, que resvalam para  o   folhetim,   familiarizam­se  com as outros:  o   jogo,  a   finança,  a   indústria,  o comércio, aquele mundo de negócios, tudo as conduz para a realidade, quase para a atualidade, apesar de se terem afastado muito de nós, de se haverem iluminado com velas de cera e viajado em diligências.

Os romancistas brasileiros, ocupados com a política, de ordinário esquecem a produção,  desdenham o número,  são  inimigos de estatísticas.  Excetuando­se as primeiras  obras  de   José   Lins  do  Rego  e  as  últimas  de   Jorge  Amado,   em que assistimos à decadência da família rural, queda motivada pela vitória da exploração gringa sobre os engenhos de bangüê  e as fazendas de cacau, o que temos são criações mais ou menos arbitrárias, complicações psicológicas, às vezes um lirismo atordoante, espécie de morfina, poesia adocicada, música de palavras.

Lendo certas novelas, temos o desejo de perguntar de que vivem as suas personagens.   Está   claro   que   os   autores   não   conseguem   furtar­se   a   algumas explicações referentes a este assunto, mas fazem­no como quem toca em matéria 

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desagradável,   percebemos   que   eles   se   repugnam   e   não   querem   deter­se   em minúcias.

Um cidadão é capitalista. Muito bem. Ficamos sem saber donde lhe veio o capital   e  de  que maneira  o  utiliza.  Outro  é  agricultor.  Não  visita  as  plantações, ignoramos como se entende como os morados e se safra lhe deu lucro. O terceiro é operário. Nunca o vemos na fábrica, sabemos que trabalha porque nos afirmam que isto acontece mas os seus músculos nos aparecem ordinariamente em repouso.

Não surpreendemos essas pessoas no ato de criar riqueza. A riqueza surge criada, como nas histórias maravilhosas, faz­nos pensar no deserto, onde o povo eleito recebia alimento do céu. Torna­se irreal, misteriosa ­ e como é indispensável à existência humana, irrealidade e mistério transmitem­se aos indivíduos que circulam na maior parte dos livros nacionais.

Não   me   refiro,   está   claro,   às   combinações   pacientes   e   caprichosas   de vocábulos  sonoros,   infelizes quebra  cabeças do  tempo em que um sujeito,  sem nunca   sair   do   Rio   de   Janeiro,   descrevia   sertões   absolutamente  desconhecidos, quando não se aventurava a mais longas viagens pelo Egito e pela Índia. Tudo aí é falso, naturalmente, e hoje nos espantamos de que alguém se tenha dedicado a essas   composições.   Espantamo­nos   porque   vivemos   numa   época   de   lutas   e dificuldades, mal  pensamos que no princípio do século os homens  tinham vagar para divertimentos inúteis.

Refiro­me à literatura nascida nestes últimos anos, diferente da que existia na pasmaceira anterior à outra guerra, diferente em quantidade e qualidade.

Testemunhas   do   conflito   em   que   se   debatem   o   capital   e   o   trabalho,   os romancistas brasileiros nos apresentam ora o capitalista, ora o trabalhador, mas as relações entre as duas classes ordinariamente não se percebem. Temos de um lado hábitos elegantes, sutilezas, conversações corretas, nada parecidas às que ouvimos na rua, insatisfação, torturas complicadas que a gente vulgar não pode sentir; do outro lado, bastante miséria, ódio e desejo de vingança.

Ignoramos, porém, se os sofrimentos daqueles homens requintados têm uma origem puramente religiosa ou se eles criam desgostos por falta de ocupação.

E,  não  tendo visto  o  operário  no serviço, dificilmente acreditamos que ele manifeste ódio a um patrão invisível e queira vingar­se. Em Suor, de Jorge Amado, as   personagens   descansam   ou   se   exercitam   nos   movimentos   de   greve,   e   em Jubiabá   mexe­se   uma   grande   vagabunda,   que   vive   de   pequenos   furtos   e contrabandos.   O   trabalho   aparece   aí   quase   como   um   prazer   e   torna   meio inconseqüente este livro notável, que tem passagens como a sentinela de defuntos, umas das melhores páginas escritas no Brasil.

Procuramos a razão da indiferença dos nossos escritores para os assuntos de natureza econômica. Talvez isso se relacione com as dificuldades em que se acham quase todo num país onde a profissão literária ainda é uma remota possibilidade e os   artistas   em   geral   se   livram   da   fome   entrando   em   funcionalismo   público. Constrangidos  pelo   orçamento   mesquinho,   esses  maus   funcionários   buscam  na ficção   um   refúgio   e   esquecem   voluntariamente   as   preocupações   que   os acabrunham.   Sendo   assim,   temos   de   admitir   que   são   exatamente   cuidados excessivos de ordem dinâmica que lhes tiram o gosto de observar os fatos relativos à  produção.  O que eles  produzem,   rende pouco,   rende uma  insignificância,  e  é possível que não queiram pensar nisso.

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Acontece que alguns escritores se habituam a utilizar em romance apenas coisas de natureza subjetiva. Provavelmente há o receio de que, sendo comércio e indústria, oferta e procura etc. vistos muito de perto, a questão social venha à baila. Deve existir também um pouco do velho preconceito medieval que jogava para um plano secundário os produtores.

Como   quer   que   seja,   vemos   aqui   nos   livros   uma   pequena   humanidade incompleta,   humanidade   que   às   vezes   sente   e   pensa,   mas   é   absolutamente desprovida das necessidades essenciais. Com certeza os nossos autores dirão que não desejam ser fotógrafos, não têm o intuito de reproduzir com fidelidade o que se passa na vida. Mas então por que põem nomes de gente nas suas idéias, por que as vestem, fazem que elas andem e falem, tenham alegrias e dores?

Pode efetivamente haver grandeza nesses monstros, mas é inegável que são monstros. Abandonando os fatos objetivos,  investigando exclusivamente o interior dos seus tipos, alguns escritores geraram uma fauna de seres estranhos em que há um pouco de homens, muito de espíritos e demônios.

Afinal   essas   complicações   internas   escapam   ao   leitor   comum   e   apenas despertam a curiosidade das pessoas mais ou menos monstruosas.  E às vezes fazem   que   gênios   se   embaracem   para   resolver   questões   miúdas,   facilmente liquidáveis por sujeitos medíocres que tenham os seus negócios bem arrumados.

Foi o que sucedeu a Dostoievski na parte relativa à situação financeira das personagens de Crime e Castigo. Raskolnikoff e a irmã, Sônia e o resto da família do bêbado estão arrasados,  dificilmente poderiam continuar a   figurar na história. Nesse ponto surge Svidrigailoff e suicida­se, deixando aos necessitados o dinheiro preciso para o romance acabar. Certamente Svidrigail morreu direito e teve antes o cuidado de passar a noite num pesadelo que é uma verdadeira maravilha, mas isto não impede que ele haja dado cabo da vida expressamente com o fim de deixar alguns milhares de rublos àquela gente sem recursos.

É   possível   que   esse   nobre   exemplo   tenha   contribuído   para   que   certos romancistas vejam apenas metade de um homem. Essa metade pode crescer muito, pode ser a metade de um gigante, mas será sempre metade, e isto não nos agrada.

Deixemos de parte as inteligências capazes de forjar humanidade diferente da nossa,   humanidade   de   hospícios,   cheia   de   aberrações,   seres   semelhantes   às figuras   mitológicas   que   representam   animais   e   homens   num   corpo   só.   O   lado humano confunde­se com um deus, o lado animal é qualquer coisa parecida com o diabo.  Mas há  desequilíbrio.  Às vezes a divindade pesa demais,  outras vezes o inferno prevalece.

Queremos a fusão dessas idealizações loucas. Somos criaturas medíocres, nem deuses nem diabos. E não nos  interessa,  fora das obras eternas  feitas por degenerados  extraordinários,   a   representação   de   anomalias.   Leitores   comuns   e perfeitamente  equilibrados,  buscarmos  na  arte   figuras  vivas,   imagens  de  sonho; tipos que se comportem como toda a gente, não nos mostrem ações e idéias que brigam com as nossas.

Está visto que não desejamos reportagens, embora certas reportagens sejam excelentes. De ordinário, entrando em romance, elas deixam de ser  jornal e não chegam a constituir literatura. É inútil copiar bilhetes, pedaços de noticiário, recibos anúncios e cartazes.

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Mas   se   essas   cópias   nos   desagradam,   mais   desagradáveis   achamos   a imitação de obras exóticas que nenhuma relação têm conosco. Simulando horror excessivo ao regional, alguns romancistas pretendem tornar­se à pressa universal. Não há, porém, sinal de que o universo principie a interessar­se pelas nossas letras, enquanto nós nos interessamos demais por ele e voluntariamente desconhecemos o que aqui se passa.

Para   sermos   completamente   humanos,   necessitamos   estudar   as   coisas nacionais,  estudá­las de baixo para cima. Não podemos tratar convenientemente das relações sociais e políticas, se esquecemos a estrutura econômica da região que desejamos apresentar em livro.

Quando um negociante toca fogo na casa, devemos procurar o motivo deste lamentável   acontecimento,   não   contá­lo   como   se   ele   fosse   apenas   um   arranjo indispensável ao desenvolvimento da história que narramos. Se um cavalheiro mata os filhos e se suicida é com não afirmarmos precipitadamente que ele endoideceu: vamos tomar informações, tentar saber em que se ocupava o homem, que ordenado tinha, quanto devia à dona da pensão. Geralmente ninguém queima o negócio nem se suicida à toa.

Dizer que um ato reprovável  foi  praticado porque o seu autor obedeceu a impulso irresistível é pouco: isto satisfaz o leitor de notas policiais. Seria razoável que tentassem descobrir a causa do impulso, não se limitassem a apresentar­nos o comerciante   incendiário  como desonesto,  assassino como um sujeito  perverso  e louco.

Admitimos sem esforço a desonestidade e a loucura, mas precisamos saber por   que   elas   existem,   não   queremos   que   sejam   presentes   do   escritor   às personagens, O romancista não é nenhum deus para tirar criaturas vivas da cabeça.

Romanceando por exemplo o crime e a loucura, está visto que ele deve visitar os  seus  heróis  na  cadeia  e  no  hospício  mas,  se  quiser   realizar  obra  completa, precisa conhecê­los antes de chegar aí, acompanhá­los na fábrica ou na loja, no escritório ou no campo de plantação. Necessariamente o ofício desses homens deve ter contribuído para que as coisas se passassem deste ou daquela forma.

É intuitivo que o negociante deitou fogo ao estabelecimento porque os seus lucros reduziam. Digam­nos como se operou a redução.

E  o   indivíduo  que  matou os   filhos  e  deu um  tiro  na  cabeça? De  que  se alimentava esse malvado, a que gênero de trabalho se dedicava? Certamente ele é um   malvado.   Mas   a   obrigação   do   romancista   não   é   condenar   nem   perdoar   a malvadez: é analisá­la, explicá­la, explicitá­la. Sem ódios, sem idéias preconcebidas, que não somos moralistas.

Estamos diante de um fato. Vamos estudá­lo friamente.Parece   que   este   advérbio   não   será   bem   recebido.   A   frieza   convém   aos 

homens de ciência. O artista deve ser quente, exaltado. E mentiroso.Não sei por quê. Acho que o artista deve procurar dizer a verdade. Não a 

grande   verdade,   naturalmente,   Pequenas   verdades,   essas   que   são   nossas conhecidas.

15 de julho de 1945

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ANEXO E

Os sapateiros da literatura

Foi uma questão muito séria que não chamou, como esperávamos, a atenção dos interessados e morreu no nascedouro. O sr. Mário de Andrade, num dos seus excelentes rodapés do Diário de Notícias, condenou, entre amável e acrimonioso, a literatura   feita   à   pressa,   abundante   nestes   dias   de   confusão.   Um   dos   nossos grandes homens de letras divergiu azedamente do escritor paulista. Este voltou à carga   e   afinal   o   sr.   Joel   Silveira,   no   hebdomadário   Dom   Casmurro,   fechou   a discussão rápida com uma nota curiosa que infelizmente não foi examinada pelos entendidos. Os telegramas de guerra mataram essa pendência que agora procuro desenterrar.

Em resumo, o sr. Mário de Andrade sustentou, com citações e argumentos de peso, esta coisa intuitiva: um sujeito que se dedica ao ofício de escrever precisa, antes  de   tudo,  saber  escrever.  Há   tempo o sr.  Rubem Braga,  num artigo curto, desprovido de citações e com poucos argumentos, tinha dito o mesmo. Isto é quase uma verdade laplaciana.

Dificilmente podemos coser idéias e sentimentos apresentá­los ao público, se nos falta a habilidade indispensável à tarefa, da mesma forma que não podemos juntar pedaços de couro e razoavelmente compor um par de sapatos, se os nossos dedos bisonhos não conseguem manejar a favela, a sovela, o cordel e as ilhós. A comparação  efetivamente  é  grosseira:   cordel  e   ilhós  diferem muito  de  verbos  e pronomes. E expostos à venda romance e calçado, muita gente considera o primeiro um   objeto   nobre   e   encolhe   os   ombros   diante   do   segundo,   coisa   de   somenos importância. Essa distinção é  o preconceito. Se eu soubesse bater sola e grudar palmilha, estaria colando, martelando. Como não me habituei a semelhante gênero de  trabalho,  redijo umas  linhas,  que dentro de poucas horas serão pagas e  irão transformar­se  num par  de  sapatos  bastante necessários.  Para ser   franco,  devo confessar que esta prosa não se faria se os sapatos não fossem precisos. Por isso desejo que o fabricante deles seja honesto, não tenha metido pedaços de papelão nos   tacões.   E   espero   também   que   meus   fregueses   fiquem   satisfeitos   com   a mercadoria que  lhes ofereço, aceitem as minhas  idéias ou pelo menos, em falta disto, alguns adjetivos que enfeitam o produto.

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Evidentemente o sr. Mário de Andrade, homem de cultura e gosto, não iria aproximar um escritor  dum operário.  Mas agora estou pensando nos rapazes do Dom Casmurro. E não atino com a razão por que eles torceram o nariz à opinião do crítico.

Afinal, que são os rapazes do Dom Casmurro? Os sapateiros da literatura. Não   se   zanguem,   é   isto.  Somos   sapateiros,   apensa.  Quando,   há   alguns   anos, desconhecidos,   encolhidos   e   magros,   descemos   das   nossas   terras   miseráveis, éramos retirantes, os flagelados da literatura. Tomamos o costume de arrastar os pés no asfalto, freqüentamos as livrarias e os jornais, arranjamos por aí ocupações precárias e ficamos na tripeça, cosendo, batendo, grudando.

Certamente há outros que são literatos por nomeação. Necessitamos letras, como qualquer país civilizado, e escolhemos para representá­las um certo número de indivíduos que se vestem bem, comem direito, gargarejam discursos, dançam e conversam besteira com muita suficiência.

Os rapazes do  Dom Casmurro,  uns pobres­diabos, não sabem fazer nada disso.  Peçam ao  sr.   Joel  Silveira  ou  ao  sr.  Wilson  Louzada  uma conferência  a respeito   do   namoro   e   verão   o   desastre:   as   moças   da   platéia   se   chatearão horrivelmente.

Restam, pois, a esses desgraçados, a essas criaturas famintas as sovelas e a faca miúda com que se corta o couro. Mas é preciso que a faca e as sovelas sejam bem manejadas. Quando lá foram disserem: “Esta crônica está bem­feita, este livro é  mais ou menos  legível”,  os autores, uns  infelizes, pensarão: “Bem. Não há  no mundo uma pessoa que tenha  interesse em elogiar­nos. Fizemos qualquer coisa apreciável, é claro.” E dormirão tranqüilos um sono curto. 

Enfim as sovelas furam e a faca pequena corta. São armas insignificantes, mas são armas.      

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ANEXO F

Os tostões do sr. Mário de Andrade

O sr.  Mário  de  Andrade,  há   algum  tempo,   lamentando  o  mau  gosto  e  a imperícia que atualmente reinam e desembestam na literatura nacional, utilizou uma linguagem espirituosa e monetária: dividiu os nossos escritores em duas classes – a dos   contos   de   réis,   pelo   menos   centenas   de   mil­réis,   onde   se   metem   alguns indivíduos que arrumam idéias com desembaraço, e a dos tostões, gavetinha que encerra criaturas de munheca emperrada e escasso pensamento. O sr. Joel Silveira, sergipano bilioso, incluiu­se modestamente na segunda categoria, tomou a defesa do troco miúdo, dos níqueis literários que enchem revistas, jornais, cafés, livrarias, cômodos ordinários em pensões do Catete.

Enquanto o autor de  Macunaíma  exige acatamento à  tradição e à regra, o jovem contista  de  Onda  raivosa  se mostra  desabusado e   rebelde:  não chega a atacar a cultura, mas refere­se a ela com tristeza, julga­a remota e inacessível ao homem comum.

Há uma técnica na arte, diz o sr. Mário de Andrade, Romain Rolland foi mais longe:   afirmou,   creio   eu,   que   a   arte   é   uma   técnica.   O   moço   nortista   repele semelhantes   exigências.   Vivemos   arrasados,   o   numerário   foge,   há   dívidas   e abundantes e falta­nos vagar para os cortes, as emendas necessárias. Não faz mal que a produção artística saia capenga.

O   que   nos   desagrada   nessa   questão,   hoje   morta,   é   notar   que   o   crítico paulista,   colando   em   alguns   escritores   etiquetas   com   preços   muito   elevados   e rebaixando em demasia o valor de outros, vai   tornar antipática a boa causa que defende, prepara terreno favorável ao paradoxo sustentado pelo sr. Joel Silveira. E teremos   então   uma   demagogia   louca.   “Somos   tostões,   perfeitamente;   um 

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considerável número de tostões. Somem tudo isto e verão a quantia grossa que representamos.”

Não   há   nada   mais   falso.   Mas   os   indivíduos   que   se   imaginam   com   boa cotação no mercado naturalmente se encolhem, silenciosos por vaidade ou por não quererem molestar os níqueis comparando­se a eles. E as moedinhas devem andar rolando por  aí,   satisfeitas,  areadas,  brilhantes,  pensando mais  ou  menos assim: “Joel Silveira é dos nossos, inteiramente igual a qualquer um de nós. Ignorante que faz medo, nunca leu um livro. Conversa mal, não vai além destas pilhérias que a gente larga nos cafés. Mora numa casa cheia de pulgas, é amarelo como flor de algodão e tem a fala arrastada. Pobrezinho, com certeza come pouco ou não come. Pensa pouco ou não pensa. Um tostão, como eu, como tu, como aquele. Podemos supor que Joel Silveira valha mais de um tostão? Não podemos, razoavelmente, porque ele chegou perto de nós e gritou: Eu sou um tostão. Entretanto Joel Silveira inventa uns negócios que sujeitos entendidos elogiam. Ora se Joel, tão arrastado, tão amarelo, tão barato, faz contos e crônicas interessantes, por que não faremos nós coisa igual? Mexamo­nos, fundemos sociedades e pinguemos em revistas os nossos cinco vinténs de literatura.”

Um desastre. É  necessário pôr  fim a essa confusão, que nos pode render muito prejuízo. Já existe por aí uma quantidade enorme de livros ruins. E o sr. Joel Silveira não é tostão, nunca foi. Escreveu um excelente artigo para demonstrar que não sabe escrever.

1939ANEXO G

Uma palestra

Não   me   aventuro   a   discussões:   limito­me   a   dar   alguns   palpites,   que provavelmente não serão aceitos, pois contrariam juízos bastante espalhados. Acho­me  talvez  em erro,  mas  arrisco­me a   falar,   procurando   fugir  a  dificuldades  que possam comprometer­me. Vamos ao essencial.

Ouvi, com espanto, um escritor afirmar que, em literatura e noutras coisas, era   necessário   suprimir   a   técnica.   Não   nos   disse   porquê:   referiu­se   apenas   à necessidade.  Essa economia de   razões  levou­me a  impugná­lo  do  mesmo  jeito: declarei simplesmente o contrário do que ele declarou. E o caso morreu, sem perda nem ganho para o auditório.

Não é conveniente, porém, ficarmos aí: reconheceremos sem esforço que o dito   desse   homem   não   tem   pé   nem   cabeça.   Se   no   trabalho   simples   não   nos eximimos da aprendizagem, como evitá­la em trabalho complexo, na produção de um livro?

Ali por volta de 1935 realizou­se em Moscou uma enquête sobre a literatura soviética.  Lembro­me da  resposta  de  Romain Rolland.  Havia nela  uma  frase de arrojo:   “A arte  é  uma  técnica”  –  o  avesso do que ainda neste  país  asseveram, reproduzindo conceitos em moda entre  1922 e 1930. Com certeza o romancista exagerou:  se a definição dele  fosse  justa, qualquer pessoa alcançaria bom êxito folheando um desses manuais que nos ensinam, em duzentas páginas, a maneira favorável de escrever. Isso não basta, suponho.

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Em conversa, um crítico português jogou­me está fórmula: dez por cento de inspiração e noventa por cento de transpiração. Chega­me também à  memória a receita do espanhol  a propósito  de versos:  maiúsculas no princípio,  rima no fim, talento no meio. 

Mas pergunto a mim mesmo se a busca da rima não influirá no talento, se a transpiração   demasiada   não   será   vantajosa   à   inspiração.   Acho   que   sim.   É   o pensamento de um sujeito medíocre, estão julgando os senhores. De acordo, mas se me for possível, em rija labuta, reduzir um pouco a mediocridade, considero­me bem pago.

Um cavalheiro nos amola querendo atenuar os prováveis  defeitos de uma novela forjada em quinze dias. Falhas naturais, não é verdade? Foi a pressa. Quem exigiu tanta pressa? O nosso autor exporia obra mais aceitável se agüentasse dois anos, teimoso e paciente, o suadouro mencionado pelo crítico português. O dever do tipo que se dedica a este ofício é diminuir as suas imperfeições. Impossível dar cabo delas. Bem, já é um triunfo minorá­las. Não devemos confiar às cegas num amável dom que a Divina Providência nos ofereceu. Em primeiro lugar não é certo havermos recebido   tal   presente;   E,   admitindo­se   a   dádiva,   não   nos   ensinou   as   regras indispensáveis à fatura de um romance.

Essas   miudezas   são   na   verdade   horrivelmente   chatas.   Surgiram   na   aula primária, alongam­se, originam complicações – e não conseguimos livrar­nos delas. Não conseguimos, que o pensamento vem daí,  dessas pequenas arrumações de insignificâncias.   Se   não   tivéssemos   o   verbo,   seríamos   animais,   na   opinião   dos entendidos.  O  grito   –   emoções   traduzidas   em  berros.   Depois   a   interjeição.  Em seguida a onomatopéia. Tornamo­nos afinal palradores, distanciamo­nos dos nossos irmãos mais velhos – e no fim da semana bíblica Deus viu que isto era bom. E aqui estamos a remexer idéias, impossíveis há alguns milênios, quando a humanidade vivia em nudez.

Temos o direito de achar desagradáveis as palavras que nos impingiram na infância, a maneira de flexioná­las e juntá­las. Mas é com essa matéria­prima, boa ou má, que fabricamos nossos livros.

No   Brasil,   nesse   infeliz   meio   século   que   se   foi,   indivíduos   sagazes,   de escrúpulos medianos, resolveram subir rápido criando uma língua nova do pé para a mão, uma espécie de esperanto, com pronomes e infinitos em greve, oposicionistas em demasia, e preposições no fim dos períodos. Revolta, cisma, e devotos desse credo   tupinambá   logo   anunciaram   nos   jornais   uma   frescura   que   se   chama “Gramatiquinha da fala brasileira”.

Essa gramatiquinha não foi  publicada, é  claro: não existe  língua brasileira. Existirá,   com   certeza,   mas   por   enquanto   ainda   percebemos   a   prosa   velha   dos cronistas.   De   fato,   na   lavoura,   na   fábrica,   na   repartição,   no   quartel,   podemos contentar­nos com a nossa gíria familiar. Seria absurdo, entretanto, buscarmos fazer com ela  um romance.  Às  vezes a  expressão  vagabunda  consegue  estender­se, dominar os vizinhos, alargar­se no tempo e no espaço.

Homens sabidos queimam as pestanas para dizer­nos porque uma palavra se fina sem remédio e outra tem fôlego se sete gatos. Respeitamos esses homens, quando eles metem uma delas no dicionário,  respiramos com alívio. Estamos na presença de uma autoridade. No correr do tempo, achamos falhas nas autoridades e vamos corrigindo, com hesitações e dúvidas, um ponto, outro ponto. Mas afinal é 

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bom que ela nos oriente. Desejamos saber o que nos diz, embora, depois de refletir, a mandemos para o inferno com muitos desaforos, redigidos, está visto, na sintaxe que abominamos. Enfim paciência. O homem tem rugas e cabelos brancos.

Não toleramos é que um novato nos ordene, esquecendo a regra, desrespeito aos   frades.  Por  quê?  Os   frades  não  nos   fizeram mal  e  não   terem morrido  em automóveis, em aeroplanos, não é motivo para que os matemos no papel. Já não existem galeões nem caravelas, mas a gente da minha terra abrasada, população que nem se pode lavar, conserva expressões dos mareantes aqui desembarcados no século XVI. 

Perguntaram­me há dias por que uma personagem sertaneja, esquecida em livro meu, se mexe de vante a ré. Sei lá! Sei que ela fala assim. Perdida no interior, longe   da   água,   a   minha   parentela   exprime­se   desse   modo.   –   “Como   vai,   seu Fulano?” – “Assim, assim. Por aqui, navegando.” Navegar ali é impossível; contudo a palavra persiste, como no tempo das galés e dos bergantins. – “Anda ao socairo dele.”  Talvez  isso em Portugal  se   tenha arcaizado,  mas no sertão do Nordeste, descendentes dos marujos que endureceram manejando socairos ainda guardam a locução esquisita, hoje corrompida. Não dizem ao socairo dizem assucar.

O que não existe, ao sul, ao norte, a leste, a oeste, são as novidades que pretenderam   enxertar   na   literatura,   com   abundância   de   cacofonias,   tapeações badaladas por moços dispostos a encoivarar duas dúzias de poemas em vinte e quatro horas e manufaturar romances com o vocabulário de um vendeiro.

Ninguém   por   estas   bandas,   que   me   conste,   usou   na   linguagem   falada preposições em  fim de  período.  Essa  construção   inglesa  não nos dará  nenhum Swift. Porque em francês se diz  jouer avec, o literato nacional descobre a pólvora escrevendo: “Temos aqui  uma coisinhas para a gente brincar com.” Tencionarão justificar  isso lembrando a sintaxe dos  índios, mas a verdade é  que não falamos nheengatu, e a composição insensata, alegremente recebida por garotos propensos a conquistar a glória num mês, é falsa.

De nenhum modo insinuo que devemos escrever como Frei Luís de Sousa, mas   isto   não   é   razão   para   acolhermos   extravagâncias.   Nos   dois   casos   há pedantismo e ausência de clareza.  E se não conseguirmos ser claros, para que trabalharmos? O nosso interesse é que todas as pessoas nos entendam, de vante a ré.

fevereiro de 1952    

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