paradidatico estrelas tortas

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Estrelas Tortas WALCYR CARRASCO Capa e ilustrações de: Getúlio Delphin Editora Moderna, 1997 ISBN 85-16-01596-3 Digitalizado por SusanaCap www.portaldetonando.com.br/forumnovo/

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  • Estrelas TortasWALCYR CARRASCO

    Capa e ilustraes de: Getlio DelphinEditora Moderna, 1997

    ISBN 85-16-01596-3

    Digitalizado por SusanaCapwww.portaldetonando.com.br/forumnovo/

  • SUMRIO1. Gui............................................................................32. Mariana.................................................................163. Bira.......................................................................244. Ada.......................................................................315. Gui.........................................................................486. Emlio....................................................................577. Bruno....................................................................628. Gilda......................................................................709. Marcella...............................................................7910. Gui.......................................................................86ORIENTAO DE LEITURA..............................89

  • 1. Gui

    "Sua irmnunca mais vaiandar."Foi assimque papaime deu anotcia.Quandoele falou,fiquei umtempotentando entender o que queriadizer, exatamente. Como assim,a Marcella nunca mais vaiandar? Puxa, no por nada,mas a minha irm sempre foi aprincipal jogadora de vlei docolgio. Era s um anomais velha do que eu, mas jparecia uma moa. Na escola, muita gentepensava que ia virar modelo logo logo.(Hoje em dia, muitas meninas se tornammodelo ainda bem novinhas.)

    Marcella era tambm minha companheirona. Sei l, podeat parecer que sou covarde, mas a Marcella vivia me protegen-do, desde pequeno. Talvez porque, quando eu era bem criana,

  • Tive bronquite alrgica. Nem lembro bem como era, mas dizemque eu tossia tanto que at tinham medo de que eu botasse opulmo pra fora. Desde ento, ela cuidava de mim. Sempre meajudava nos trabalhos da escola. Principalmente nos deMatemtica, porque nunca fui muito bom com nmeros. Nasada da escola, se a molecada vinha com brincadeira boba, comoroubar mochila, ela dava uma bronca, e no deixava. A turmavivia brincando, porque a Marcella era superatltica, dasmelhores em Educao Fsica, e eu, no. Nunca fui bom de gol.Pra dizer a verdade, quando os capites iam escolher os times,eu sempre ficava por ltimo.

    E por isso que no conseguia acreditar. Como, justamente aMarcella, nunca mais ia poder andar? No podia ser verdade.

    Tudo tinha acontecido to depressa, que eu ainda estava fa-zendo esforo para entender. Na sexta-feira passada, mame eMarcella tinham sado para visitar vov Gilda. Ela morava numacidade bem perto da nossa, s uma hora e meia de estrada. Eu nopude ir, porque tinha muito trabalho de escola e minhas notasandavam pssimas. Mame disse que voltaria no dia seguinte.Eu ainda falei, quando saram:

    Pede pra vov fazer rosquinhas!Sempre que mame a visitava, vov mandava uns doces

    deliciosos.De madrugada, acordei

    com umas batidas na porta.Era a vizinha, que a gentemal conhecia, porque tinhase mudado para o bairrohavia pouco tempo. Ouviquando meu pai atendeu.Falaram rapidamente.Estava chamando paraatender um telefonemaurgente. Meu pai saiu.

  • Eu sabia que alguma coisa estava acontecendo. Ningum te-lefona para ningum de madrugada. Ainda mais na casa da vizi-nha! A palavra urgente me dava medo. Fiquei na cama, de olhosabertos, curioso. Dali a pouco meu pai entrou, apressado.

    Guilherme, levanta depressa. Tenho de sair. Telefonarampara dona Matilde. Sua me e sua irm sofreram um acidente. Voudeixar voc na casa da vizinha.

    A eu tive certeza de que o problema era grave. Meu pais me chama de Guilherme quando est nervoso. O resto dotempo Gui.

    Que aconteceu, pai?Um caminho bateu no nosso carro.Dei um pulo na cama, com uma dor horrvel no peito. A me... a me morreu, pai?Era incrvel ver meu pai daquele jeito. Parecia... parecia com

    vontade de chorar. Eu pensava que homem desse tamanho nochora nunca! Tive vontade de fazer mais perguntas, mas ele jestava abrindo a cmoda e tirando minha roupa.

    Depressa, Guilherme. Vista-se. Eu no posso deixar vocsozinho aqui em casa. A dona Matilde disse que voc pode passaro resto da noite l na casa dela.

    Ah, pai, deixa eu ir com voc.De jeito nenhum. O hospital frio. Elas esto internadas.Pai, deixa, deixa! Eu quero ficar perto da mame!Vi que ele hesitava. Consegui me vestir rapidamente. Corri

    para o banheiro, escovei os dentes. Acho horrvel o gosto ruim naboca, quando a gente acorda. Samos. Dona Matilde estava naporta da casa dela, com o marido. Meu pai explicou:

    Ele faz questo de ir comigo. Desculpe.Que isso? Coitadinho... deve estar aflito. Mas, se

    quiser, amanh ele pode passar o dia com a gente disse dona Matilde.

    O marido abanou um chaveiro.Posso levar vocs.No se preocupe, pego um txi.

  • Ele insistiu: Que isso? Vocs no vo achar txi nenhum a esta hora.

    Fao questo.Retirou o carro, entramos. Notei que papai estava em ponto de

    bala. Nervoso, emocionado. Quando chegamos, o vizinho avisou:Conte comigo para o que precisar.Obrigado.Descemos. O hospital estava to frio que senti at os ossos

    gelarem. Meu pai foi para a recepo. Explicou quem era. Subi-mos de elevador at um outro corredor, vazio, sem poltronas, comcho cinza. O mdico de planto veio conversar com a gente, comuma prancheta na mo. Era um rapaz, bem mais novo que meupai, e parecia cansado. Ouvi quando explicou:

    Pelo que sei, o motorista do caminho estava dormindo.Atravessou a estrada e bateu no carro delas. Com o impacto, ocarro voou longe. O caminho perdeu completamente o controle ecaiu da ponte.

  • E minha mulher? Minha filha?Calma... calma, meu senhor. Estamos fazendo o poss-

    vel. Sua mulher... aqui est... dona Ada... sofreu fratura em umdos braos. Bateu a cabea, aparentemente sem conseqncias,mas s saberemos amanh, depois da tomografia. A garota,Marcella... tudo indica que estava sem cinto de segurana.Quando o carro recebeu o choque, a porta se abriu e ela...bem... ela voou pelo ar e caiu no asfalto.

    Os dois ficaram um momento em silncio, se olhando. Omdico encheu a boca de ar, como se fosse soprar uma bexiga.Tomou coragem e continuou:

    Sua filha... bem... ela sofreu fratura nas duas pernas...e... tambm... a medula foi afetada, logo acima da bacia.

    Meu pai no estava entendendo. Nem eu.Ela est bem? Corre risco de vida?Tambm houve uma batida forte na cabea, mas tudo in

    dica que um problema mais leve. O problema... o problema maissrio... a leso na medula.

    O mdico ficou quieto um segundo, procurando as palavras.Ainda no podemos avaliar qual a capacidade de

    recuperao de sua filha. Ocorre que as leses nas clulasnervosas... as clulas nervosas no se recuperam, como asoutras. Quando so seccionadas... cortadas, como no caso desua filha... elas perdem a funo.

    No estou entendendo.So as clulas nervosas que conduzem os impulsos do

    crebro por todo o corpo. Os msculos, os membros, funcionamcomandados pelo crebro.

    Claro, isso eu sei.O interior da medula formado por um feixe de clulas...

    de nervos... Quando eles sofrem uma leso... bem... toda a regio comandada pra de funcionar. Fizemos os testes com sua filha. .. as plantas dos ps, por exemplo, no reagem sensao de queimadura... a ccegas...

    Quer dizer que...

  • Subitamente, meu paicomeou a chorar. Fiqueiparado, olhando, sementender o que estavaacontecendo. Na hora,toda essa conversa sobreclulas parecia umatremenda perda de tempo.Eu queria ver mame eMarcella. S mais tarde,lembrando de cadapalavra, consegui entendero que tinha acontecido. Eus percebia que o mdicoestava tentando contaralguma coisa a meu pai.Alguma coisa terrvel.Pouco depois, papai seacalmou. Entrei com ele

    numa pequena sala, com paredes de vidro, onde Marcella estavadeitada, sozinha. Parecia adormecida. Suas pernas estavamengessadas. O tronco tambm. Tinha um curativo na cabea. Umfrasco de soro ao lado da cama, pingando em sua veia. Odiei ocheiro de hospital. Depois, fomos ver mame. Estava em outro lo-cal. Era uma enfermaria com vrios leitos. Adormecida, tambmcom soro na veia, um brao enfaixado e um curativo na testa.

    Mame! eu disse.Ela no me ouviu, claro. Fomos para o saguo... o mdico

    disse que no adiantava ficar ali, porque elas passariam a noitesob cuidados. No acordariam, devido aos remdios. Papai sen-tou-se em um sof verde, muito sujo. Fiquei a seu lado.

    O que aconteceu com Marcella, papai? O que o mdicodisse?

  • Ele me abraou apertado.Depois a gente conversa.Ela... e mame... elas vo morrer?No, querido. Logo estaro de volta pra casa.Abracei papai, preocupado. Mas tambm estava exausto.

    morrendo de sono. Ele me deitou no sof, deixou que mergulhas-se a cabea no seu colo. Adormeci.

    Acordei muito, muito cedo com o barulho. A entrada do hos-pital estava cheia de gente falando, gritando, chorando. Macascom pessoas feridas, transportadas de um lado pro outro. Papaime levou, pela mo, at uma lanchonete. Pediu uma mdia paracada um e um po com manteiga.

    Gui, daqui a pouco voc vai poder falar com sua me.Talvez, tambm, com a Marcella. Mas, depois, voc vai embora.Durante a noite, localizei sua av, e ela deve chegar no nibus dasnove. Vem direto para c, e vai levar voc pra casa.

    Quero ficar aqui, pai!Mais tarde eu tambm vou tomar um banho e dar uma

    passada no trabalho, para explicar o que est acontecendo. Vouavisando: no teime. A situao grave, Gui. Muito grave.

    Voc disse que a mame estava fora de perigo! E a Mar-cella tambm.

    S que...Ele hesitou. melhor que voc saiba de uma vez. Sua irm nunca

    mais vai andar.Ele disse que era importante sermos muito corajosos. Que.

    inclusive, mame ainda no sabia nada sobre isso, e ele teria decontar. Seria muito difcil, porque, afinal de contas, mame queestava no volante quando tudo aconteceu. Eu deveria ser forte.Todos precisariam da minha ajuda.

    Fiquei comovido. claro que iria ajudar papai!Quando foi permitido, subimos. Mame estava meio acorda-

    da, meio dormindo. Papai pegou sua mo. Ada!

  • Bruno!Eu me aproximei. Mame... Querido... e a Marcella? Est bem, Ada. Est muito bem. Agora voc precisa

    descansar.Mame j estava fechando os olhos. Adormeceu quase ime-

    diatamente. Mais tarde, nem se lembraria dessa visita.Voltamos ao saguo. O mdico preferia que Marcella no ti-

    vesse muitas visitas, pelo que entendi. Vov Gilda chegou logo,desesperada, com os olhos vermelhos. De to nervosa, precisou seracompanhada pelo meu tio Marcos, irmo de mame. Ouviu as no-tcias, e chorou mais ainda. Depois, meu tio nos levou para casa.

    Quando parti, no txi, ainda vi a figura de papai, desolado,de p naquele saguo frio.

  • Os dias seguintes foram uma tortura. Vov instalou-se emnossa casa. Ainda bem, porque seno teramos ficado sem roupalimpa, sem comida, sem nada! Papai voltou ao trabalho, mas pas-sava todo o tempo livre no hospital. Mame foi liberada depois detrs dias. Teve sorte: s o problema no brao, que sarou com algu-ma rapidez. Marcella demorou mais. Pelo que soube mais tarde,foi necessria uma operao para colocar a coluna no lugar. Casocontrrio ficaria, tambm, com as costas tortas. Quando, finalmen-te, voltou para casa, ainda tinha as pernas engessadas.

    Foi chocante: no era mais a irm que eu conhecia. Tinha setransformado em outra pessoa. Marcella era alegre, divertida.Agora, deitada na cama, ficava de cara fechada o tempo todo.Quando eu ia falar com ela, dava respostas curtas. No queria sa-ber de papo.

    O ambiente em casa era horrvel. Mame vivia chorando pe-los cantos.

    Foi minha culpa. Se no tivesse resolvido viajar de noite...Vov tambm se lastimava:Se no tivessem resolvido me visitar...A melhor coisa que papai fez foi acabar com os comentrios: Vocs duas, vamos parar com esse negcio de a culpa foi

    minha, se eu tivesse feito isso ou aquilo... Agora no adianta mais.Mame revoltou-se:Credo, Bruno, parece que voc no tem corao!Chega, de uma vez por todas! A gente precisa olhar pra

    frente. Ada, temos que fazer muita coisa... A Marcella vai pre-cisar de tratamento constante, fisioterapia... Quando o segurodevolver o dinheiro do carro, vou completar para comprar umaperua.

    Isso hora de pensar em modelo de cano, Bruno? sim, Ada. S uma perua consegue transportar uma ca

    deira de rodas.Mame comeou a chorar de novo. No podia nem ouvir ta-

    lar em cadeira de rodas. Nem Marcella: Eu no quero cadeira de rodas!

  • - Filha, voc vai precisar explicava papai, paciente. Eu quero voltar a andar!

    - Marcella, quem sabe um dia... a medicina estprogredindo muito... mas por enquanto...

    Eu fico na cama! Fico na cama o resto da vida!Marcella estava insuportvel. Minha vida tambm. Tudo

    que era bom, era oferecido a ela. Vov s fazia os doces de queela gostava. A televiso foi para o quarto dela. Pior, perdi o meu!Pois, agora, eu dormia no cho, e vov na minha cama. Aindapor cima, roncava. Quando pedi pro papai comprar uma camanova pra mim, ele abanou a cabea.

    No vai dar, filho. Vou precisar de muito dinheiro para...Marcella, sempre Marcella! Eu no podia passar perto da

    porta do quarto, que ela gritava:"Gui, me traz um copo d'gua. Gui, me arruma uma laranja!"Gui, Gui! Onde estava aquela irm to legal?

  • Agora eu ia sozinho pra escola. No suportava mais quandoa turma perguntava: " verdade que sua irm virou paraltica?"

    Um dia, o Duda disse que a Marcella tinha ficado aleijada.Deu uma raiva to grande que parti pra cima do linguarudo. Rola-mos no cho. Mordi a orelha dele, quase ficou sem um pedao.Estvamos longe da escola, mas havia muita gente do colgio vol-

  • tando pra casa pela mesma calada. Foi a sorte, porque me agarra-ram antes que eu almoasse a orelha do Duda. Algum levou Dudapara casa (no outro dia ele apareceu com a orelha toda enroladaem um curativo). Ouvi uma voz do meu lado:

    Gui, que besteira! Deixe ele falar o que quiser. No importa. O que vale que a Marcella est melhorando, no ?

    Era a Mariana. No entendi por que parecia to interes-sada. Era da mesma classe da Marcella, mas as duas nuncaforam grandes amigas. Fazia um ano, no sei por qu, tinhambrigado.

    Sabe, Gui, ando com vontade de ver a Marcella. Tudobem aparecer na sua casa?

    Pensei um pouco. No incio, claro, todas as amigasmais prximas tinham passado por l, e at levaram uma cai-xa de bombons, presente de toda a turma do colgio. Mas aMarcella estava sempre sem vontade de conversar. As amigasficavam sentadas a seu lado, um tempo, e a conversa no saa.Marcella parecia sem vontade de receber visitas. Mesmo as-sim, dei fora:

    Vai sim, Mariana.Minha irm passava os dias inteiros olhando pro teto, e isso

    no era legal.Dias depois, Mariana apareceu. Trouxe um presente. Um li-

    vro. Marcella ps de lado, sem nem olhar o ttulo direito. Obrigada.E l ficaram as duas, sem dizer uma palavra.

    - Voc quer mandar recado pra algum do colgio, Marcel-la? perguntou Mariana, levantando-se.

    At eu fiquei chocado com a reao de Marcella, porque elacomeou a gritar.

    Vai, fala que me viu assim! Fala pra todo mundo! Falapro Bira! Gostou do espetculo? Gostou da minha cara depalhaa? Gostou de me ver presa nesta cama?

    Mariana ficou calada, sem saber o que fazer. Vov veiocorrendo da cozinha, mas Mariana fez um gesto, para que no

  • interferisse. Marcella gritou coisas hor-rveis. No final, deu um berro:

    Por que foi acontecer uma coisadessas justo comigo? Por que eu no mor-ri? Por que no morri, Mariana?

    Comeou a chorar, um choro to sen-tido que era de cortar o corao. Marianasentou-se de novo na cama e abraou Mar-cella. E chorou, chorou tambm.

    Foi nesse dia que se tornaram gran-des amigas.

  • 2. Mariana

    Nem sei direito por que entrei nessa histria. Quer dizer, nun-ca fui do tipo boazinha. No me dava bem com a Marcella. Briga-mos, logo no incio do ano, por causa de um doce. Foi assim: aMarcella ganhou uma caixa de bombons do Bira e, no intervalo,ofereceu para vrias colegas da classe. Cheguei perto e, quandoestava estendendo a mo para pegar um, ela comentou, dandorisada:

    Fominha.Fiquei louca da vida. Soltei o bombom como se tivesse me

    dado um choque. A Marcella ainda disse: Pode pegar. Ajuda no regime.

    Foi o mximo da grosseria. Sei que sou meio gordinha e vivo dizendo que nunca mais vou comer doces. Depois, no resisto e

    mando ver. O pior foi que as outras comearam a rir.

    Senti o rosto pegando fogo. Respondi:

    Muquirana. Comaos seus bombons! Tomaraque tenha uma diarria!

    Desde ento, nuncamais conversamos. Prafalar a verdade, eu tinhaat um pouco de inveja da

    Marcella. Quando estavana quadra de vlei, pa-recia que tinha molasnos ps. Voava. Flutuava.No toa que a maiorparte dos garotos do col-gio s pensava nela. O Bira,

  • inclusive.

  • O Bira era o mximo. Eu e todas as garotas da classe tnha-mos essa opinio. Ele, ele... nem sei como explicar... era s omximo. Acho que isso diz tudo. Cabelos castanhos encaracola-dos. Alto. O peito largo, de tanta ginstica. Era capito da equipede basquete. Diziam que ia acabar na televiso, de to bonito. svezes eu olhava no espelho e conferia meu rosto. Feia, eu no sou.Mas nunca me senti preo pra Marcella. Nunca achei que um su-jeito bonito como o Bira pudesse se interessar por mim. Acho queisso, no fundo, me deixava assim, assim... como se o mundo fossemuito injusto comigo. Ningum olhava pra mim. Todos ainda metratavam como se fosse uma menina. A Marcella, no. Quando eusoube do acidente, nem quis acreditar. A Celina, uma colega docolgio, comentou:

    Dizem que ela nunca mais vai poder andar.Fiquei pasma. Como, justo a Marcella? Senti que o mundo

    era bem mais injusto do que eu pensava. Como, justo ela, to bo-nita, to boa jogadora!

    Nas primeiras semanas, eu fiquei sem jeito de ir casa deMarcella. Afinal, estvamos brigadas. Pensei em me aconselharcom algum. Sei que podia ter conversado com minha me, masfiquei sem jeito. Minha me vivia insistindo para eu no comertanto doce e, certamente, no ia gostar da histria da briga. Final-mente resolvi bater um papo com Alice, a bibliotecria da escola.Gosto muito de ler, e sempre me dei bem com ela. Quem v aAlice, aquele jeito de senhora, com idade para ser minha me, noimagina como boa de papo. Quando a gente comea a conver-sar, v que ela tem a cabea superaberta. Contei a ela o que tinhaacontecido.

    Mariana, tem uma coisa que voc precisa entender dis-se a bibliotecria.

    Diz, Alice. Muitas vezes, a gente briga, discute. Mas nada to defi-

    nitivo assim. Mesmo que a Marcella no tivesse sofrido o acidente, lgico que vocs voltariam a conversar um dia. Se voc nofor visit-la, nesse momento to difcil, ela vai pensar que voc

  • realmente no gosta dela. Essa briguinha, que no fundo no foinada, vai se tornar uma coisa importante. Talvez nunca mais vo-cs voltem a ser amigas.

    Mas como que eu fao?Tome coragem, aperte a campainha da casa dela, e entre.

    Mesmo que ela esteja de mau humor, resista. Ela deve estarsofrendo muito.

    A, nem sei por qu, eu tive uma idia: Posso levar um livro pra ela?A Marcella nunca gostou de ler. Achava uma perda de tem-

    po. Agora, presa na cama, com um colete de gesso, talvez mudas-se de opinio. Um livro faz a gente viajar por pases desconheci-dos, conhecer gente nova... descobrir mundos que esto dentroda gente. Eu e Alice escolhemos um belo romance.

  • O livro ficou em cima da minha penteadeira. Eu noachava jeito de ir casa da Marcella. At que, um dia, vi oGui, irmo dela. brigando com o Duda no meio da rua, nasada da aula. Era horrvel de se ver. O Gui estavatranstornado, realmente fora de si, s porque o Duda chamoua Marcella de paraltica. Eu percebi que, no fundo, o Gui noqueria aceitar a verdade. Doa saber que no havia soluo.Quando eles foram separados, puxei conversa. Disse quequeria ir ver a Marcella. O Gui fez uma cara esquisita, acheiat que eu no seria bem recebida. Pensei que ele fosseresponder que a Marcella no gostava de mim, mas ele disse

  • que eu podia ir.

  • Ainda precisei de uns dias para tomar coragem, mas fui. Noincio foi horrvel. O ambiente da casa estava pesado como chumbo.A av, dona Gilda, estava tomando conta da casa. Era impressionan-te olhar para ela. Parecia desgastada, com o rosto todo vincado pelador. Gui tambm estava muito diferente do sujeitinho legal que euconhecia. Parecia menor... olhando bem, percebi que andava com osombros encolhidos, meio corcunda. Era como se uma bomba tivesseestourado no meio da casa. Senti um cheiro no quarto da Marcella!Era mofo! Perguntei se podia abrir a janela, e ela disse que no.

    Estou com frio respondeu, amuada.A televiso estava ligada e ela nem pegou o controle remoto

    para abaixar o volume do som. Ofereci o livro, ela ps de ladosem olhar para o ttulo.

    Marcella j estava sem o gesso, seu tronco estava enfaixado.Mal se via, porque ela usava uma camisola larga, de flanela. Opior era a posio na cama. Parecia uma boneca quebrada. Ficavasentada de um jeito estranho, como se no tivesse foras para fi-car sequer nessa posio (mais tarde descobri que no tinha mes-mo condies de permanecer com a coluna reta sem auxlio).Olhou para mim com uma expresso estranha, que, no incio, noconsegui identificar. Raiva? Ressentimento? Tentei puxar conver-sa, no consegui. De repente, ela gritou:

    Gui! V!Ele veio, de mau humor. Percebi que j no suportava ser

    chamado por ela:Que foi, Marcella?Xixi!Posso ajudar? perguntei.Dona Gilda estava entrando no quarto e respondeu: Ainda bem que voc est aqui!S ento descobri que Marcella havia perdido o controle de suas

    necessidades. Ela percebera que estava molhada ao tocar a calcinhacom a mo. (Mais tarde passou a usar um absorvente especial, masnaquela poca todos ainda estavam aprendendo a lidar com ela.) Aju-dei dona Gilda e Gui a troc-la. No foi fcil. Era preciso erguer as

  • pernas dela como pesavam! para trocar a calcinha. Assim comose troca a fralda de um beb. Fiquei novamente triste, no s por ela,reduzida quela situao, mas tambm pelo Gui. Percebi que ele notinha mais liberdade alguma, pois a av, sozinha, no dava conta doproblema. E era um problema, ah, como era!

    Durante toda a minha vida sempre ouvi as pessoas falaremque se deve ter um comportamento natural com um paraplgico.Pode ser, como descobri com Marcella, que a gente consiga viveruma relao legal. Mas tambm sou contra quem diz que no sedeve julgar que um problema. um problema, sim, e, se as pes-soas considerassem a questo com toda a gravidade, talvez no exis-tissem tantas entradas de metr sem rampa de acesso para cadeirasde rodas, tantos teatros, tantos cinemas cercados por escadarias.

    Eu estava pensando nessas coisas, quando terminamos decuidar da Marcella. A av saiu. Quando eu e ela ficamos a ss,Marcella pareceu se transformar num escorpio, porque comeoua gritar comigo e a dizer coisas horrveis. Como se eu tivesse idol s para ver o estado em que ela estava. Fiquei to brava quenem tive foras para responder. Levantei-me, imediatamente, de-cidida a ir embora. Ela no podia me destratar daquele jeito. Afi-nal, eu tinha ido l com as melhores intenes.

    De repente, ela desabou. Aquela Marcella forte, capaz devencer uma partida de vlei com a fora de um saque. AquelaMarcella furiosa, capaz de me atingir com palavras duras, de di-zer coisas horrveis. Tudo isso desapareceu. Percebi que ela grita-va, porque estava desesperada. S conseguia se debater, como al-gum que cai num rio e est se afogando.

    Por que no morri? ela gritava.Vi o rosto apavorado de Gui nos observando. Nenhuma pala-

    vra poderia descrever o que percebi naquele momento. Era dor, dore dor. Todos sofriam naquela casa, e. de repente, eu estava ali, dep, e seria vergonhoso bancar a ofendida e sair correndo para nuncamais voltar. Marcella estava sofrendo tanto que nenhuma palavraaplacaria aquela dor. A mgoa que suas palavras me causavam noera nada, perto de toda aquela tragdia. De repente, quando ainda

  • estava gritando, Marcella comeou a chorar. Um calor subiu do meupeito. As lgrimas saltaram dos meus olhos. Chorei tambm.

    Quando vi, estvamos abraadas, e tudo o que acontecera defeio e ruim entre ns duas realmente no fazia sentido. Depoisque paramos de chorar, eu disse, simplesmente:

    Gosto de voc, Marcella. Virei aqui sempre! Se quiser,posso pegar as lies da escola e trazer. Quem sabe, voc aindaconsegue salvar o ano?

  • Eu sabia que seria difcil, pois estvamos no final do semes-tre, mas em certas situaes especiais, como a dela, sempre podeser criada uma exceo. Ela nem respondeu. S apertou minhamo. Ainda fiquei l um bom tempo. A emoo foi passando, ecomecei a falar do pessoal. Contei o que estava acontecendo comcada um. A av dela trouxe caf e bolo de chocolate. De repente.Marcella perguntou:

    E o Bira, como vai?No foi preciso dizer mais nada. Ela ainda gostava do Bira.

    Eu precisava falar com ele.

  • 3. Bira

    P, atolei!Que droga, meu! A Mariana tinha que vir com um papo des-

    ses, como se eu fosse o cara mais miservel do planeta, s porqueno tinha ido na casa da Marcella? Eu sabia. Quem no sabia queela tinha dado uma pirueta no asfalto? claro que tava chateado,p. Eu no sou nenhum monstro e juro que tinha me sentido malpra danar. E uma bruta sacanagem do destino, isso que , porquea Marcella sempre foi linda como uma pintura e eu cortava umduro por ela. A gente j tinha "ficado" umas vezes, e eu dizia,pegando nos cabelos dela:

    Minha cestinha!

  • Para um cara louco por basquete como eu, cestinha a me-lhor coisa que algum pode ser. Muitas vezes eu pensei, quandotava em casa, sonhando acordado, que quem sabe eu e a Marcellaainda tivssemos muitas coisas pra viver. Coisas em comum, agente tinha. A gente formava um belo par. Mas a, quando veio anotcia, nem sei direito o que passou pela minha cabea. Eu senti,claro que senti. A eu disse pra mim mesmo: "Amanh eu douuma passada por l".

    Naquele dia no deu, eu tinha treino. Deixei pro outro, e otempo foi passando. A, eu pensei: "Pode ser que ela esteja cha-teada comigo, porque no apareci".

    Fui deixando rolar. "Qualquer dia, eu vou."Depois, eu pensei que seria melhor dar mais um tempo, at

    que ela estivesse menos abalada. Quem sabe no fosse alarme fal-so e ela voltasse a andar, e a gente pudesse sair junto e danar,como antes, e at rolar de rir com as histrias?

    Foi quando a Mariana veio com aquele papo, dizendo que aMarcella queria me ver, etectera, etectera. Eu me senti mal praburro, como se ela estivesse dizendo que eu era culpado de algu-ma coisa. Culpado eu no era, no, porque eu e a Marcella nuncaesclarecemos se namorvamos, embora no fundo talvez a genteestivesse mesmo comeando um namoro. Mas compromisso, as-sim como se falava no tempo dos meus pais, isso no tinha, no.

    Fiquei sem jeito, pronto, foi o que aconteceu. Agora, bravacomigo ela no estava, caso contrrio no iria ficar mandandorecadinho.

    Jamais gostei de coisas tristes, e acho que s estava deixandoaquela fase pssima passar. Me decidi. No outro dia, depois dotreino, fui pra casa da Marcella.

    Fiz tudo como manda o figurino. Meu pai sempre diz que elegante e sofisticado levar flores quando se visita algum. Aindamais quando uma garota doente. Acho que ele pensa assim prin-cipalmente porque scio numa floricultura. Isso facilitava bemas coisas, porque flores so carssimas, e eu nem teria grana pracomprar um presente desses. Passei na floricultura e me deram

  • um mao de flores que j estava ficando passado, mas nem davapra notar se a gente tirasse umas margaridas murchas do meio.

    Cheguei casa da Marcella com as flores, e uma velha, coma cara to murcha que parecia uva-passa (depois fiquei sabendoque era a av), abriu a porta e sorriu. At que era bem simpticasorrindo:

    Entra, entra.Fui entrando com cuidado, porque sei que velha dessa idade

    adora pensar em casamento, principalmente quando v algumcom flores na mo. O irmo da Marcella, o Gui, tambm estaval, e eu o cumprimentei de longe, porque acho que ele meio...sei l, meio fora do esquema. Quando joga futebol capaz de ar-rancar um pedao de grama do campo, mas a bola, mesmo, noacerta nem a pau. A velha perguntou meu nome, e gritou:

    Marcella, tem um moo lindo querendo falar com voc. Eo Bira.

    Eu no sei, no, se sou lindo como todo mundo diz, mas achei falta de gosto a tal senhora ficar gritando pela casa. A Marcella gritou:

    Bira, esperaum pouco. Echamou o Gui.

    Fiquei nasala, me sentindoum palhao comaquele mao deflores na mo,enquanto o Guientrava no quartoe eu ouvia a vozda Marcella:

    Gui,pega o batom.Gui, pega opente!

  • Era chato ficar ouvindo esses pedidos. Deu pra sentir que aMarcella no estava mesmo numa boa, porque, se estivesse, elamesma pegaria o batom, etectera. Pensei que, se um dia ela secasasse, a vida do marido seria um inferno, porque ela sempreprecisaria de algum ajudando, e a tive um calafrio.

    Quando entrei no quarto, ela estava toda arrumada, e perfu-mada, mas o cheiro do quarto era mais forte. Sei l, o quarto pare-cia... parecia um armrio velho, fechado faz tempo. Senti tam-bm um cheiro to forte de lcool, de remdio, que me deu enjo.Notei, na cabeceira da cama, uma pilha de livros, e estranhei, por-que Marcella nunca foi muito de ler. Entreguei as flores, ela agra-deceu, feliz, e pediu para o irmo pr num vaso.

    Gui saiu com o mao, e pensei como a vida dele tambmdevia andar chata, com a Marcella pedindo alguma coisa o tempotodo. Ela perguntou como ia minha vida, e eu comecei a falar docampeonato, porque s conseguia pensar mesmo que dali a duassemanas estaria disputando o campeonato entre colgios, e quetinha de vencer de qualquer jeito. Enquanto eu falava, at esquecique ela estava ali, deitada naquela posio esquisita. A, eu olheipra ela.

    No dava pra olhar e continuar falando. Os olhos dela esta-vam brilhando, como se estivessem olhando um doce. S que odoce era eu. Ela me admirava, prestava uma superateno em to-dos os meus gestos, como se eu fosse... um ser especial. Eraisso... eu era um ser especial, porque agora ela estava naquelacama, e nunca mais... nunca mais?

    verdade, Marcella, verdade que voc...?Ela ficou branca, como se estivesse se ofendendo.Desculpa, eu no quis chatear voc.Pode perguntar, Bira, perguntar no di.Marcella sempre tinha sido corajosa e respondeu como se

    deve: Os mdicos disseram que... acho que eu nunca mais vou

    poder andar como antes... Mas, sabe, Bira, a semana que vem eucomeo a fazer fisioterapia.

  • Ento tem chance.J me disseram que existem casos... bem, insistindo na

    fisioterapia, eu posso conseguir alguma recuperao... e meu paiest providenciando uma cadeira de rodas. Voc no sabe comocusta caro uma boa cadeira... mas toda a famlia est ajudando.Meu tio, que tem um armazm no interior, mandou quase metadedo dinheiro.

    Eu me senti mal ouvindo aquilo. Porque j estava me sentin-do mal desde o comeo. Que a Marcella nunca havia tido muitodinheiro, eu j sabia. Morava naquela casinha antiga e simples,que o pai tinha herdado. Os quartos saindo da sala... muito dife-rente do apartamento novo em que eu morava h um ano. svezes, no colgio, eu ouvia algumas meninas fazendo piada

  • sobre a me dela, dona Ada, que vendia produtos debeleza, desses que se oferecem de porta em porta. Elasdiziam que a me de uma colega tinha comprado, mas oproduto era to ruim que quase arrancava a pele. O pai deMarcella tambm no ganhava muito bem. Trabalhava numafirma pequena, como contador. O dinheiro deles era curto.

    Agora, olhando em volta, eu pensava como que ia ser. AMarcella ia passar a vida toda naquele quarto apertado? Pelovisto, eles no tinham como contratar enfermeira, e a av e oGui que iam cuidar de tudo. E como ia ser a vida daMarcella dali em diante?

    S vi sofrimento pela frente. Eu me senti muito mal, porque,

  • se pudesse, faria alguma coisa. Mas no sabia o que fazer. Porque oque a Marcella gostaria que eu fizesse, ah, no dava, no. Ela queriaque eu fosse o mesmo Bira de antes, que pegava nos cabelos dela edizia coisas legais, mas essas coisas legais, eu dizia pra Marcellaque ria, que fazia piada, que todo mundo achava o mximo.

    Aquela Marcella era outra. Era triste, era encolhida, estavameio torta, e me olhava como se quisesse me abraar, encostar acabea no meu ombro. Eu no tinha palavras bonitas pra dizer! Squeria dar o fora dali. Deixei o assunto ir morrendo, morrendo, e,depois de um certo tempo, levantei e disse que ia embora. Ela pediupra eu ficar, mas dei uma desculpa, disse que voltava outro dia.

    Sa no pinote. Quando cheguei na rua, pensei:"Puxa, ainda bem que no aconteceu uma coisa dessas

    comigo."Foi isso mesmo que pensei. Mas achei que era um pensa-

    mento muito egosta e resolvi que no ia sumir, no. A Marcellaprecisava da minha amizade.

    Tive as melhores intenes. Decidi que iria at a casa delasempre que pudesse. E tem mais: nunca deixaria de levar flores.

    Prometi a mim mesmo ser um cara legal, mas a comearamos treinos para o campeonato. Fui deixando para outro dia, outrodia... Quando vi, j fazia tanto tempo, desde aquela visita, quenem valia a pena voltar. E... tambm, eu tinha conhecido a Cris.P, fiquei amarrado na Cris!

  • 4. Ada

    Durante muito tempo, no pude dormir direito. Simples-mente no me conformava. Passava e repassava cada detalhedaquele dia. De alguma maneira torta, a culpa devia ser minha,embora no entendesse exatamente como. Quando samos, na-quela tarde, percebi que tinha esquecido a l e pedi a Marcellaque fosse buscar. Costumava levar novelos de l para minha metricotar blusas. Ela sempre tricotou to bem! Eu havia compradonovelos azuis para um suter para o Gui, beges para o Bruno everdes para a Marcella. Ainda penso que, se eu no tivesse de-morado mais alguns minutos por causa da l, talvez no estives-se naquele local da estrada, na hora do acidente, e no teria sidoatingida pelo caminho.

  • Lembro tambm da sensao de pnico quando vi aquelajamanta vindo na minha direo, de meu gesto desesperadotentando virar o volante, e da escurido. At hoje no sei por queMarcella estava sem o cinto de segurana. Tambm no sabereidizer nunca se o fecho havia quebrado sem que a gentepercebesse. Marcella no se lembra, e no gosto de me aprofundarno assunto, porque como se eu quisesse culp-la pela prpriatragdia. Mas o sentimento de que, se eu tivesse feito algumacoisa diferente, Marcella no teria sido afetada, ah, essesentimento nunca vai sair do meu corao.

    Quando nasceram meus filhos, foi como se florescesse umjardim de esperanas. Marcella e Guilherme sempre foram baca-nas, prestativos. Bons alunos. Nenhuma me pode dizer que pre-fere este ou aquele filho. E claro que sempre adorei o Gui, meucaula. Mas Marcella era deslumbrante, parecia ter uma luz pr-pria, que ofuscava tudo.

    Nunca apreciei esportes, mas vibrava quando Marcella iapara as quadras, defender o time do colgio. Minhas amigasdiziam que ela era alta para a idade, talvez em um ano ou doispudesse ser modelo. Eu tinha medo (dizem tantas coisas domundo das modelos), mas at gostava de me imaginar cuidan-do dos negcios de minha filha. Quem sabe indo ao Japo...Soube que eles gostam muito de contratar modelos ocidentaisbem jovens.

    Minha vida, e de meu marido, Bruno, foi sempre muito sim-ples. Eu no me formei, como gostaria. Minha famlia do inte-rior, e comecei a trabalhar muito cedo. Minha cidade pequena, emeus pais no tinham condies de me enviar para uma faculdadede fora. Tambm sempre gostei de vendas, e durante muitos anostrabalhei numa loja de tecidos, no balco. Vender gostoso, por-que pode-se conversar com as pessoas. Enfim, no um trabalhorotineiro... Acho que no me acomodaria numa rotina, como meumarido. Ao contrrio de mim, ele gosta de tudo certinho, cheio dehorrios. Bruno gostava de estudar e sei que ainda sonhava fazeruma faculdade e prestar concurso para fiscal de rendas. O fato

  • que casamos muito jovens e isso atropelou seus sonhos, porquelogo Marcella nasceu e ele parou de estudar. Pensava em prestarvestibular e, provavelmente, teria entrado num cursinho, se nofosse o que aconteceu.

    Com o acidente, muitos de nossos sonhos se acabaram. Ha-via tanta coisa que eu esperava fazer! Era s uma questo de jun-tar um pouco mais de dinheiro. Pensava reformar a casa, juntar asala com a garagem. Faria apenas uma cobertura para o carro, nafrente, mas a poderia ter uma sala de jantar. Meu maior sonho erater uma sala de jantar conjugada com a de visitas, com uma mesade madeira bem polida e seis cadeiras. Colocaria um vaso de flo-res no centro da mesa, como vi numa revista de decorao. Tam-bm, quem sabe, eu poderia fazer uma lareira. Sei que os invernosaqui na cidade praticamente no existem, mas eu acho lareira acoisa mais linda do mundo! Tambm pensava em dar um par depatins para o Gui no Natal. Ele queria tanto! Muitos de seus ami-gos at iam de patins para a escola, e ele vivia pedindo um. Mas,depois do acidente, claro, eu soube que at uma queda de patinspode deixar algum paraplgico.

    Um dia, quando fui com Marcella ao centro de fisioterapia,conheci um senhor que havia cado no banheiro e perdera todosos movimentos, at dos braos. A medula muito mais frgil doque se pensa. Decidi jamais dar os patins ao Guilherme, por maisque ele pedisse.

    Foram muitas as coisas que eu deixei de dar ao Guilherme,e sentia um aperto no corao s de pensar no que ele estavapassando. Devia ser difcil para um garoto da idade dele, mas,por mais que eu desejasse, no conseguia que as coisas fossemdiferentes.

    Voltei a trabalhar logo que sa do hospital. O brao enfai-xado no me impediu, porque tenho algumas freguesas fixas queadoram os produtos de maquiagem que represento. So produ-tos muito bons, embora baratos e, por isso, minha clientela no sofisticada. Quando comecei a vender os produtos, at pedi aajuda de Marcella. Ela falou com as amigas, que meapresentaram suas mes e consegui algumas clientes entre elas.Deu errado, porque uma dessas mulheres era alrgica e seurosto ficou idntico a um torresmo depois de usar alguns dosmeus cremes. Marcella ficou furiosa, porque todas as amigas

  • comearam a fazer piada e a me chamar de marreteira. Tambmfiquei brava, e, naquele dia, brigamos muito.

    No somos ricos! expliquei.Seus cosmticos so uma droga! ela disse.Sofri com isso, porque como Marcella poderia me ajudar a

    vender se no gostava dos produtos? Acontece que boa parte doscolegas de minha filha so mais ricos que ns (sustentamos osestudos da Marcella e do Gui com dificuldade, mas queremos queeles tenham o melhor), e a Marcella s vivia falando em perfumefrancs. Queria tanto um frasco que, no ltimo aniversrio dela,comprei a marca que ela queria de uma senhora que vende produ-tos do Paraguai. Sei que foi bobagem, porque tambm vendo per-fumes muito bons. Mas eu queria ver minha filha feliz.

  • No podia perder minhas clientes, ento voltei a trabalhar,porque, em vendas, se a gente pisca, d errado, e tambm porqueprecisvamos de dinheiro. Eu e Marcella fomos socorridas logodepois do acidente e atendidas no pronto-socorro. A seqncia dotratamento, porm, era de lascar. Soubemos, eu e o Bruno, queminha filha precisaria fazer fisioterapia pelo resto da vida. Acon-tece que, com a falta de movimentos, as pernas tendem a se atro-fiar. Vo ficando raquticas. O corpo tambm, sempre na mesmaposio, comea a formar feridas, as chamadas escaras. So feri-das horrveis, que se abrem na carne, muito difceis de cicatrizar.O pulmo tambm pode enfraquecer, e comum, por falta de exer-ccios, a pessoa pegar uma pneumonia.

    A fisioterapia uma forma artificial de reproduzir os movi-mentos do corpo. Embora Marcella no pudesse mexer as pernas,um profissional faria os movimentos por ela, exercitando os ms-culos, para impedir que se atrofiassem. Os movimentos tambmajudariam a impedir as escaras. Alm disso, ela faria exerccioscom os braos para, mais tarde, suportando o corpo todo, conse-guir caminhar. Seria um processo longo, cansativo e... caro.

    Dinheiro, dinheiro, dinheiro!Precisvamos comprar uma cadeira de rodas, urgentemente.

    Tambm precisvamos fazer pequenas reformas na casa, no paradeix-la bonita, como eu pretendia, mas para facilitar os movimen-tos de Marcella. O fisioterapeuta aconselhou que eu instalasse umabarra dentro de casa, mais tarde, para ela se exercitar. Resolvi queseria na garagem e desisti para sempre de meu sonho de ter umasala de jantar. Tambm tivemos de comprar um carro mais adequa-do. Com o dinheiro do seguro meu carro teve perda total e oque tnhamos na poupana, compramos uma perua, na qual pode-ramos colocar uma cadeira de rodas com facilidade. Ainda bem queminha me, Gilda, veio ficar conosco. Eu podia trabalhar mais e,na medida do possvel, tornar a vida de minha filha mais agradvel.

    Trabalhava como louca naqueles dias. Como os meus produ-tos eram baratos, perdi o medo de ir a alguns cortios que ficavamno muito longe de onde morvamos. Arrumei algumas clientes

  • - no quero fazer fofocas, mas elas eram grandes consumidorasde maquiagem e, conforme descobri, trabalhavam a noite todanuma boate do centro da cidade. Mas eu no tinha nada com avida de ningum, e elas eram excelentes pagadoras. Gostavam deme receber depois do almoo. Mais tarde me disseram que, naboate, outras colegas poderiam se interessar e muitas vezes l iaeu, no incio da noite, junto com alguma delas para o centro dacidade. Entrava em alguma daquelas boates com letreiros lumino-sos, para falar com as moas, enquanto a clientela ainda no tinhaocupado as mesas.Assistia a cenas muito pesadas. Mulheres discutindo entre si,falando palavres que eu nem saberia repetir (fui criada comuma educao muito fechada). Certa vez, uma das mulheres cor-tou o rosto da outra com uma faca e chamaram a polcia. Nopude testemunhar, porque no tinha visto, realmente, nada. Souvira os gritos e vira a vtima entrar sangrando no camarim.Mesmo assim, foi horrvel passar algumas horas na delegacia, en-

    tre bbados e algunstipos muito estranhos.Fiquei to assustadaque telefonei para avizinha e pedi parachamar o Bruno. Eleveio me buscar. Navolta, nem conse-guimos falar sobre oassunto. Sei que elequeria pedir que euparasse de freqentaraquel e s ambientes,mas o fato queprecisvamos dedinheiro, e aquela erauma clientela

  • fiel. Para falar a verdade, nunca me desrespeitaram, e certa vezquando contei a histria do meu acidente para uma moa, nordes-tina, ela chorou, e disse que entendia perfeitamente o que eu esta-va passando, porque a maior parte do dinheiro que ganhava iapara uma senhora que criava seus trs filhos, no interior. At mearrepiei, porque no se pode julgar ningum.

    De certa maneira, eu tinha sorte por ter Bruno ao meulado, minha me e meus irmos, que fizeram uma vaquinhaquando chegou o momento de comprar a cadeira de rodas.Tambm era uma sorte ter um filho como Gui, capaz de aju-dar minha me em tudo, e cuidar da irm como um homenzi-nho. No incio, achei que talvez ele no suportasse e, nessecaso, no saberia o que fazer, pois no podia deixar de traba-lhar, de jeito nenhum. Ele era muito til, ajudando a av emtudo, inclusive a levar a irm ao banheiro nas vezes em queela conseguia dar o alarme. Sei que era difcil. Pedi que evi -tasse sair de casa. Nem brincar com os colegas podia. De ma-nh, ele ia escola, mas eu deixava para sair o mais tardepossvel e, assim, mame e Marcella ficavam sozinhas so-mente algumas horas. A vizinha da frente, que chamara Bru-no no dia do acidente, tambm se prontificou a ajudar, masmame s a chamou trs ou quatro vezes, porque Gui estavasempre presente.

    Algum tempo depois, apareceu a Mariana. Pelo jeito que sedavam, acho que era a melhor amiga de Marcella no colgio, eno entendi por que nunca tinha vindo em casa antes. Gordinha,animada, sorridente, tudo melhorou quando ela apareceu. Prin-cipalmente por causa dos livros. Tinha a impresso de que Mar-cella no ligava muito para ler, mas acho que estava enganada,porque, quando Mariana comeou a trazer livros, ela devoravadois ou trs por semana. As duas comearam a passar muito tem-po conversando.

    Finalmente chegou a cadeira de rodas era muito boa.embora ainda no fosse a ideal. Ns sabamos que existiam mo-delos mais avanados, que funcionavam como um pequeno carro.

  • com motor e tudo o mais. O dinheiro ainda no dava para isso,mas, claro, eu e Bruno decidimos poupar tudo, tudo, at com-prarmos a melhor para nossa filha. Pensei que Marcella ia ficarcontente, mas naquele dia ela chorou muito. Sair da cama era umabno, mas, do ponto de vista dela, sentar naquela cadeiraequivalia a aceitar a situao como definitiva.

    Afastamos todos os mveis da sala de encontro parede,para que ela pudesse se locomover o melhor possvel. A televi-so voltou para a sala, porque ela queria poder conversar coma Mariana de noite, e a verdade que passramos os ltimostempos amontoados no quarto dela, mesmo quando Marcellaqueria dormir.

  • Com a cadeira, a vida entrava em outra rotina. Marcella j podiavoltar a estudar e a fazer a fisioterapia pra valer. At ento, fora Bru-no quem fizera com ela alguns exerccios que o mdico ensinara.

    Ningum pode imaginar o que senti vendo Marcella sentarnaquela cadeira pela primeira vez. Enquanto ela estava na cama, como se, talvez, um dia fosse se levantar e andar novamente. Deuum n na garganta e at senti dor no pescoo, de tanto esforopara no chorar.

    Bruno foi at a escola e conversoucom a diretora. O pessoal do

    colgio j tinha previsto nossopedido, e colocou Marcella

    numa classe do trreo, ondeno haveria problemas paraentrar com a cadeira. Foium momento muito difcil,porque eu precisava voltar adirigir e tinha calafrios s depensar nessa hiptese. Oque fazer? Pedi a Bruno que

    me ajudasse. um marido ma-ravilhoso e por isso que eu o amo

    tanto. Samos no domingo e ele me fezsentar ao volante da perua. Comecei a chorar, e ele disse:

    Ada, no d pra fazer o tempo voltar. Foi uma tragdia, e por causa dessa tragdia que voc precisa ser forte. Ningumpensa que voc foi culpada, em nenhum momento eu achei quevoc pudesse ter feito alguma coisa diferente. Estou com o cora-o partido, como voc est, mas sei que foi uma fatalidade, e isso que voc precisa pr na cabea. Agora, coragem. Dirija, por-que nossa filha precisa de voc.

    Consegui agarrar o volante, colocar a marcha e partir. Tinhatanto medo que, na pracinha, achei que as rvores tinham pernas evinham em cima de mim. Bruno conversava comigo. Conseguime acalmar. Era preciso.

  • Entrei numa rotina pesada: acordava cedo e levava Marcellae Gui escola. Corria para atender as clientes mais prximas. Nahora do almoo, pegava os dois. Trs vezes por semana, durante atarde, levava Marcella para a fisioterapia. Era complicado, por-que precisava ficar esperando e, s vezes, perdia a tarde toda. Mi-nhas clientes noturnas eram fundamentais sem elas no conse-guiria faturar nem metade do que precisava. Algumas vezes, saatambm aos sbados tarde.

    No era fcil. O pior que via sempre minha filha triste,magoada, ferida pela vida. O Gui tambm: cada vez mais cala-do, mais dentro de si mesmo. Queria tanto saber o que fazer! Oque mais me partiu o corao foi um dia em que cheguei maiscedo e fiquei esperando na porta, conversando com a me deoutra aluna quem sabe ela se interessaria em comprar os meusprodutos? Vi quando o Bira saiu conversando animado com umagarota, e os dois ficaram na porta, batendo papo, fazendocharminho. Era uma garota alta, magra, com o tipo daMarcella, quando estava bem. O Bira era muito bonito: eulembrava muito bem dele, porque antes eu sempre assistia aosjogos do colgio. Todo mundo dizia que ele namorava aMarcella, embora, na minha opinio, ela fosse muito nova parapensar em namoro. Nesse instante, a Marcella e o Gui saram.Ela j aprendera a virar as rodas da cadeira com alguma rapidez.Quando saiu, o Bira e a garota a olharam. Vi que ele ficou umtanto sem jeito. A garota deu um sorrisinho de superioridade.Detestei aquele sorrisinho, que parecia dizer:

    "A coitada louca por voc."Tive vontade de dar um murro naquele sorriso, mas, claro,

    fiquei quieta, parada, sofrendo. Era bvio que a Marcella era lou-ca pelo Bira, porque lhe lanou um olhar to triste, to magoado,que eu quase chorei. Minha me tinha me contado que o Bira foraem casa. que at levara flores (se bem que um tanto murchas, pa-recia ter achado no lixo, pelo que notei), e eu pensara, depois da-quela visita, que minha filha tinha um amigo de verdade. Ele nun-ca mais apareceu.

  • Minha me me disse tambm que, durante vrias semanas,cada vez que a campainha tocava, a Marcella ficava angustiada,torcendo, na expectativa de que fosse o Bira, com novas flores,novos sorrisos, muitas esperanas. Nunca mais. Com o tempo,ela foi se fechando, dolorida em suas emoes. Uma vez, per-guntei ao Gui:

    Por que o Bira nunca mais veio?Sei l. Acho que ele nem lembra mais dela.Outra vez, quando a Mariana ia saindo, fui com ela at o

    porto: Mariana, sabe... eu acho que a Marcella pensa muito na-

    quele rapaz, o Bira. Ele esteve aqui, com flores. Posso imaginar oque isso significa. Ser que... ser que voc pode pedir pra elevisitar a Marcella de novo, um dia?

    Mariana ficou sem jeito, quando respondeu:Ada, no adianta.No adianta por qu?O Bira est em outra.Mas ele no era amigo da Marcella? At achei que tinham

    um flerte na poca do colgio.Foi outra poca, Ada.Ficamos uma olhando para a outra. Respirei fundo:Mariana, voc acha que ele nunca mais procurou a Mar-

    cella porque ela ficou paraplgica? isso a. Sabe, eu achava o Bira o mximo. Mas depois...

    sei l... ele se comportou de um jeito to frio, to egosta! Agora,quando olho pra ele, nem o acho to bonito assim.

    Mariana partiu e fiquei sozinha com minha dor. Ser que, seeu estivesse numa situao dessas, agiria diferente? Seria capaz denamorar e casar com um rapaz paraplgico? No sei responder, nin-gum sabe, porque a gente nunca sabe o que faria numa situaoextrema. Todos temos aspectos surpreendentes dentro de ns mes-mos. Eu, at hoje, nem sei como pude suportar os momentos maisdifceis, as noites horrveis em que mergulhava a cabea no traves-seiro e chorava baixinho, para no acordar meu marido.

  • No dia em que Marcella encontrou o Bira e a garota (a Cris),eu sofri muito. Vi o olhar que Marcella lanou ao Bira. Um olharde cachorro ferido. Ele desviou o rosto, como se estivesse semjeito. Ento Marcella fez uma coisa que eu admirei. Quando seaproximou deles, cumprimentou:

    Tudo legal, Bira? Tudo legal, Cris?Os dois a observaram, constrangidos. Bira engoliu seco: E a, Marcella?Ela continuou na minha direo. Abri a porta da perua e, com

    a ajuda de Gui, conseguimos instal-la, empurrando a cadeira pe-las rampas que havamos adaptado. Bira e a garota saram andan-do em outra direo. Durante todo o trajeto de volta, eu olhavapelo espelho, via o rosto duro da minha filha, e pensava: "No justo que ela sofra tanto".

  • Foi por isso que, quando Mariana veio com a idia de le-var Marcella ao bailinho, fui inteiramente contra. A escola iafazer uma festa para arrecadar fundos para a Associao dePais e Mestres. Um bailinho. Eu mesma dissera que mandariauma bandeja de sanduches para vender. Afinal, tinham sidomuito legais quando Marcella voltou para a escola. Alguns pro-fessores deram aulas de acompanhamento sem cobrar nada e,quando ela passava pelos portes, eu ficava tranqila, porquesempre havia algum para ajudar a evitar um obstculo ou paraconversar com ela.

    Desde que voltara s aulas, Marcella estava mais leve, eisso me aliviava bastante. Agora... deixar que ela fosse ao baili-nho... ah! isso era muito diferente! Fiquei imaginando Marcel-la, sentada a noite toda na cadeira de rodas, enquanto os paresrodopiavam, de um lado para outro. Bira, to bonito, cercadopelas outras garotas.

    Eu fico com ela, Ada garantiu Mariana.Eu no queria, de jeito nenhum. Imaginei que ela podia co-

    nhecer outro rapaz, se interessar, e sofrer novamente."Quem vai querer namorar uma paraplgica?", eu pensa-

    va. Era melhor que no tivesse esperanas. Gui tambm que-ria ir:

    Deixa, me, deixa!Mas como poderia permitir que ele fosse e Marcella no?

    Mame tambm era contra:Voc precisa descansar, Marcella argumentou.Marcella quase gritou:Descansar mais do que estou descansando, vov?E no bom pegar friagem!Foi uma gritaria. Bruno chegou naquele instante e re-

    solveu: Voc vai, sim, Marcella. Voc promete ficar com ela,

    Mariana? Me, pai, at parece que vou ficar solta no meio de bandi-

    dos! irritou-se Marcella.

  • Acabei concordando. Comprei um tecido lindo, branco,cheio de brilhos. Era um tecido que eu gostava desde a poca emque era mocinha e trabalhava numa loja. Uma espcie de sedasinttica, com bordados de flores em branco. Trouxe tecido para oforro tambm. Minha me sempre costurou bem, e fez para Mar-cella um vestido lindo, comprido, muito rodado.

    No dia da festa, ns a ajudamos a se vestir. Lembrei de umchale espanhol, legtimo, que eu ganhara h muitos anos, e Mar-cella o colocou nos ombros. Emprestei tambm meu colarzinhode prolas (falsas, verdade, mas muito bonitas). Penteamos seucabelo para trs, fazendo um rabo-de-cavalo, que prendemos comum fecho de prolas. Quando ns a ajudamos a sentar na cadeira,e ela abriu o vestido, percebemos que ele praticamente ocultava acadeira. Sentada daquele jeito, ela parecia uma princesa antiga,no trono, e estava linda, linda!

  • Passamos pela casa de Mariana, que apareceu com um vesti-do preto, muito severo para a idade dela, mas eu no disse nada,no queria estragar a festa de ningum. Em seguida, eu e Brunodeixamos os trs, Gui, Marcella e Mariana, no colgio. O ptioestava todo iluminado, enfeitado com flores de papel e, de longe,j dava para ouvir a msica animada.

    Fomos embora tranqilos. Fazia muito tempo que eu e Brunono tnhamos mais momentos sozinhos. A dor, o sofrimento desdea tragdia impedia que pensssemos em ns mesmos. Mas, naquelanoite, o clima era diferente. Nossa filha estava linda, feliz por com-parecer a um bailinho, por ver gente. Gui tambm parecia feliz,menos triste do que costumava estar, e at minha me, sempre todeprimida, estava orgulhosa pelo vestido, pelo sorriso da neta. Aper-tei a mo de Bruno e me aproximei dele, no carro.

  • - Vamos ter uma noite s para ns? ele disse. Nem preciseiresponder. Havamos combinado, com nossos filhos, voltar sdepois da meia-noite para peg-los. A noite estava linda, e Brunoseguiu em direo a uma praa onde costumvamos passear, logodepois do casamento. Era uma praa muito policiada, porquemuitos casais de namorados costumavam ir at l, de noite, paraobservar a cidade, do mirante, olhar a lua e simplesmente ficarjuntos.

  • Estacionamos a perua e samos para passear. Ele colocouos braos em volta de mim, e me senti segura e confortvel.Por algumas horas esqueci a dor, a dureza de meu trabalho,vendendo produtos de beleza na boate, enfim... voltei a mesentir como se fosse aquela garota recm-casada de anos atrs.Compramos sorvete de palitinho. Sabor de uva. E, depois,olhando o mirante, ele me beijou.

    Quando voltamos ao colgio, eu estava leve, feliz. Delonge ouvi a msica. Bruno e eu descemos para buscarnossos filhos. No estavam mais l. Tinha acontecido umacoisa horrvel.

  • 5. Gui

    Sei que tinha prometido ajudar papai e mame, e fazer o m-ximo para Marcella ser feliz, e todas as coisas que a gente garanteque vai fazer nessas horas. Tinha prometido tanta coisa boa que jme sentia um anjo, com as asas crescendo nas minhas costas. Acholegal pensar que podia ser anjo. Quando eu era pequeno, a moaque trabalhava na casa da vov pegava nos dois ossinhos que agente tem saltados nas costas e dizia:

    o toco das asas de anjo que voc perdeu quando nasceu.Eu ficava bravo, furioso, e gritava:No sou anjo, no sou anjo.Depois, ouvindo tantas pessoas falarem coisas lindas dos an-

    jos, eu pensava que devia ser bom me transformar em um, e podervoar bem alto, na altura dos edifcios. Nos ltimos tempos, po-rm, francamente! Eu sentia at os chifrinhos nascerem na minhacabea, de tanta vontade de ser ruim e deixar todo mundo na mo.

    A Marcella tinha virado uma chata. E bota chata nisso! Ver-dade! No podia ouvir o barulho dos meus passos e j gritava:

    "Gui, faz isso! Gui, faz aquilo!" O tempo todo, uma chatea-o. Tinha virado um escravo!

    claro que ficava triste por ver a minha irm na cama, na-quela posio meio cada. Depois, quando chegou a cadeira derodas, tambm era de cortar o corao: a Marcella se locomoven-do no meio da casa, batendo na parede, fazendo voltas e voltaspara entrar por uma porta do jeito certo. As portas em casa somuito estreitas!

    Mais tarde, minha irm voltou para a escola e tambm foimuito duro. Se foi duro pra mim, imagino pra ela! Ver todas ascolegas brincando, correndo, fazendo charminho, e saber que nun-ca, nunca mais poderia fazer aquilo! E pior de tudo: saber que noera passageiro. O dia em que a Marcella viu o Bira foi de doer.Ele tentou fingir que nem tinha visto, quando ela entrou no ptio.Mas Marcella foi at ele e puxou conversa:

  • E a, Bira, nunca mais apareceu! Muito treino.Ele nem falou. Rosnou, pra dizer a verdade. A Cris, que an-

    dava saindo com ele, veio na direo dos dois. Tudo bem, Marcella?Pegou o brao do Bira, e os dois foram saindo: At mais, Marcella.Minha irm ficou parada no ptio, e tive uma vontade dana-

    da de correr at ela, de dar um abrao e gritar:"No se preocupe, eu gosto de voc. Voc no est sozinha." Sque fiquei parado, sem ao, como se tivesse vergonha de dar umabrao em pblico. Vi quando ela movimentou a cadeira de rodascom dificuldade ainda no controlava bem o mecanismo,

    faltava fora nos braos e voltou emdireo a um grupo de amigas, que tinhavisto tudo, em silncio.

    Claro que muitas garotas deixa-

  • ram de falar com a Cris, comose fosse culpa dela. Eu sabiaque no era. Nem do Bira,talvez.

    S eu sabia comoera difcil a vida perto daMarcella. Era uma vidachata, pra dizer a verdade.Por isso, cada vez que aMariana aparecia, eu sentiaum alvio danado. AMariana tinha muita boavontade, e eu podia atsair, brincar na rua. ousimplesmente andar pelacasa sem medo de que, acada passo, minha irmpedisse alguma coisa.

  • Outra coisa que me chateava: ningum mais, em casa, se pre-ocupava comigo. Se meu pai trazia um agrado da rua, era para ela.Se minha av fazia um doce, era sempre o predileto da Marcella.Tudo bem: lgico que ela estava sofrendo muito. Mas nuncamais iam fazer arroz-doce s porque eu gostava e ela no? O tem-po todo me lembravam das minhas responsabilidades:

    "Fica junto da sua irm. No saia, porque ela pode precisarde alguma coisa."

    Ser que o resto da minha vida ia ser assim?Quando a Mariana comeou a falar no bailinho, pensei que

    ia ser outra chateao. (Claro que no imaginei que podia aconte-cer uma coisa to ruim como aconteceu.) Mas, conversa vai, con-versa vem com a turma da escola, mudei de opinio. Ia ser umafesta legal, com coxinha, empadinha, esfiha, doce de todo tipo.Tambm seria legal danar com as garotas da minha turma sebem que a maioria delas andava muito chata. A Gislene vivia como nariz pra cima, fazendo caras e bocas para os mais velhos, daturma do Bira. S que eu no estava nem a, ela que bancasse aboba o quanto quisesse!

    No dia da festa, a Marcella ganhou um vestido branco queparecia de princesa de contos de fadas. Estava linda, de verdade.Eu no ganhei roupa nova, claro, porque ningum nem pensounisso, mas botei uma cala jeans superlegal, combinando com ajaqueta, que ainda me servia muito bem. Fomos para a escola naperua, com papai e mame, e parecia que tudo ia dar certo. Faziatempo que eu no via meus pais to tranqilos. Por um momentoat pensei que tudo iria voltar a ser como era antes do acidente.

    A festa estava superlegal, com uma msica de lascar, e o di-nheiro que meu pai tinha dado foi suficiente pra comprar refrige-rante e sanduches. A Marcella ficou sentada na cadeira, num lu-gar superlegal, perto das cadeiras normais, onde quase todas asgarotas ficavam quando no estavam danando. Abriu o vestido ecolocou o chale nas costas da cadeira de rodas. Quem olhava nempercebia, logo de cara, que se tratava de uma cadeira de rodas.Claro que, observando bem, dava pra notar. Mas, no escuro, s se

  • via mesmo o rosto claro e lindo de Marcella, com o rabo-de-cava-lo, o colar de prolas da mame e o vestido decotado no ombroMinha irm estava linda!

    Tudo parecia to bem que durante certo tempo fui me diver-tir. Acontece que nenhum dos rapazes mais velhos tirou a Gislenepara danar e, quando me aproximei, ela praticamente me empur-rou pra pista. Foi timo, porque a gente se afina muito danando,e s paramos quando minha camisa estava to suada que at davapra torcer. A lembrei de Marcella. Comprei um refrigerante, deium gole, e caminhei na direo dela.

    Um rapaz estava parado em frente cadeira. Eu me aproxi-mei, mas no muito, porque os dois estavam num superpapo. No-tei que no era da turma do colgio. Parecia um pouco mais ve-lho, tinha cabelos pretos escorridos, tambm estava vestido de pre-to e era to magro que parecia um guarda-chuva.

  • - O ano que vem entro no cursinho pra Medicina dizia o tal.

    Que legal! Eu bem que gostaria de estar perto do vesti-bular, mas ainda me falta muito tempo! -- respondeu Marcella, rindo.

    Quer dizer, pra falar a verdade, pra mim tambm. Mas jvou entrar pra ir me preparando bem! No quero perder um ano, emeu pai disse que as vagas para Medicina tm muitos candidatos.

    Tomei mais um gole do refrigerante. A conversa parecia es-tar indo bem.

    Como voc chama? perguntou ele. Marcella, e voc? Emlio.A, quando ele disse a prxima frase, eu gelei: Vamos danar, Marcella?Pelo jeito do rosto dela, percebi que ficou to surpresa quan-

    to eu! Ele no tinha percebido! Notei que a voz de Marcella su-miu, era apenas um fiozinho, quando respondeu:

    No... no d.Emlio riu:Que bobagem! Por que no? Vai ficar a a festa toda?No, que...Vem c!Rindo, certo de que ela s estava fazendo charme, ele pegou

    Marcella pela mo e puxou, como se faz normalmente, quando sequer insistir com algum que est fazendo fita. S que o puxo foimuito forte. Apanhou Marcella desprevenida. Ela caiu no cho. Orapaz, estarrecido, deu um passo atrs.

    Fiquei paralisado. Toda a festa parou, diante da cena. Humi-lhada, minha irm tentava se erguer nos cotovelos, mas no tinhafora para levantar. Comeou a chorar. O colar de prolas se rom-peu e as bolinhas foram caindo de seu pescoo, uma a uma...

    Ningum sabia o que fazer. Por sorte, Mariana estava porperto. Veio correndo, aos gritos:

    Idiota, imbecil! Veja o que fez!

  • Mariana ajoelhou-se no cho notei que no teve medo desujar o vestido preto e abraou Marcella como se fosse me, ouirm mais velha. A, eu tambm criei coragem, corri at elasMuita gente estava tentando ajudar. Ergueram e sentaram minhairm na cadeira de novo. Algumas pessoas cataram as prolascadas, e eu tambm peguei algumas. Coloquei no bolso. O rapazainda tentou falar alguma coisa:

    Desculpa, eu... eu... eu... no... V embora gritou Mariana. V embora!Marcella chorava, sem parar. Algumas pessoas estavam de

    p, ao lado, tentando dizer frases bonitas, ajudar. A diretora veio oferecer:

    Se voc quiser, Marcella, eu abro o escritrio e voc fical, descansando, at sua famlia chegar.

  • A bibliotecria trouxe um copo d'gua. Quero ir pra casa! disse Marcella. Mas no podemos ir pra casa respondi. O papai e a

    mame s chegam depois da...Mariana me interrompeu: Podemos sim, Guilherme. Como? Vocs moram s a onze quadras do colgio. Eu e voc

    ajudamos a Marcella a atravessar as ruas...Fiquei apavorado, porque era noite e, desde o acidente, nun-

    ca tinha sado com a Marcella sem a presena de meu pai ou mi-nha me.

    E a sarjeta? Como a cadeira vai passar? A gente d um jeito. Voc topa, Marcella?Ela fez que sim, ainda humilhada. A diretora concordou: Querem que algum professor os acompanhe? No... no preciso. perto. Qualquer problema, o Gui

    vem correndo at aqui.Apavorado, vi quando Mariana deu impulso na cadeira e

    atravessou o ptio. Fui atrs das duas. Quando atravessamos osportes, ouvi a msica, que continuava, e imaginei Gislene dan-ando com outro garoto.

    Em seguida, nem pensei mais no assunto. A rua pareciaameaadora. Fomos ajudando Marcella que, na maior parte dotempo, movimentava sozinha a cadeira. Estvamos em siln-cio absoluto. Notei que as lgrimas escorriam pelo rosto daminha irm.

    Fora horrvel, horrvel! Imaginei sua dor, sua humilhao,cada no cimento. O vestido estava rasgado na altura do joelho. Oque restou do colar, guardei no meu bolso.

    Sua vida seria sempre assim, uma tragdia? E a minha?Notei os carros na rua, as janelas dos apartamentos ilumina-

    das, e invejei as outras pessoas. As famlias reunidas, vendo tele-viso, conversando. E ns trs ali, na noite triste, voltando paracasa como um time que perdeu o campeonato.

  • De repente, quando j tnhamos atravessado uns trs quartei-res (vencer as sarjetas no foi to difcil assim! Bastava dar umimpulso na cadeira, e pumba, ela subia!), aconteceu uma coisaincrvel. Mariana comeou a cantar. Sem mais nem menos, an-dando ao lado de Marcella, ela comeou a cantar em voz alta.Envergonhado, olhei em volta, para ver se as pessoas estavam sa-indo nas janelas, irritadas. Mas no. E a, ela disse:

    Canta comigo, Gui. Canta, Marcella.Fiquei completamente sem jeito. Ela fez um gesto, incenti-

    vando, e eu comecei a cantar junto, porque era uma msica super-conhecida. A ouvi a voz fraca de Marcella.

  • Ns trs comeamos a cantar, cada vez mais forte, e medi-da que cantvamos a dor ia desaparecendo, o horror daquela noiteevaporando. Ento eu cantava, corria frente da cadeira, faziamicagens, danava, Marcella acompanhava batendo palmas, e fo-mos entrando em novas msicas, e, quando errvamos, era aindamais divertido, porque ramos juntos como bobos e voltvamos acantar. Algumas pessoas abriram as janelas, e nem me importei.

    Chegamos em casa rindo, rindo. Mariana se despediu na por-ta, e eu e Marcella entramos felizes como nos velhos tempos. Es-tvamos to alegres que at vov riu com a gente.Fomos ver televiso e, quando papai e mame chegaram, comcara triste e preocupada, porque tinham sabido de tudo queacontecera na festa, levaram at um choque ao ver Marcella feliz.- Papai, mame, foi uma noite maravilhosa!

    Eles no entenderam nada, mas notei que estavam aliviados.A partir dessa noite, comearam a acontecer muitas coisas

    diferentes.

  • 6. Emlio

    Se vergonha matasse, eu j estava duro e frio. Que vexame!Que vexame! Eu no podia adivinhar, claro que no. A garotaestava sentada... mas h muitas garotas que passam a maior partede uma festa sentadas, fazendo charme.

    Eu tinha acabado de pegar uma sangria, olhei para o lado e avi pela primeira vez. Parecia uma iluso, era linda demais. O ros-to plido, a boca vermelha, o cabelo penteado para trs, o vestidobranco e um colar de prolas no pescoo. Fiquei por perto umtempo, dando uma de Miguel. Uma garota daquelas no podia es-tar sozinha na festa. Quem que ia deixar uma beleza daquelasdando sopa? Ser que naquele colgio s tinha frouxo?

    Fiquei olhando pra garota disfaradamente. No seria legalmostrar que estava na marcao. S amigas vinham conversarcom ela. Um garoto, irmo dela, soube depois, apareceu duas ve-zes para trazer refrigerante. Ela observava o baile com um ar tris-te, romntico. Pensei: 'Tem jeito de ser muito delicada".

    Eu no entendia como aquela garota podia estar sozinha. No meucolgio, no ficaria nem meia hora sem companhia. Talvez naquelecolgio as coisas fossem diferentes. Ou, quem sabe, seria filha de al-gum professor muito bravo, desses que probem namoro. Quem sabe?

    Decidi levar um papo. Nem acreditei quando ela respondeucom um sorriso, como se estivesse contente de me ver ali. No que eu me ache feio, no. Em geral, as garotas dizem que tenhoum tipo legal. Naquela noite, estava com umas roupas pretassupertimas, iguais s de um roqueiro ingls que uma cabea!Mesmo assim, no esperava que fosse to simptica. A conversafoi evoluindo, contei que quero fazer Medicina e achei que a gen-te estava entrando no melhor dos mundos.

    s vezes eu penso: "Como sou burro! Puxa, sou um asno!"Acho que tudo deu errado porque eu estava louco de entusias-

    mo. Pra dizer a verdade, s tive duas namoradas at agora. A primei-ra, foi quando eu tinha onze anos de idade, e foi uma menina que me

  • emprestou um caderno cheio de desenhos romnticos e me mandouum bilhete dizendo que estava apaixonada. Pode, nessa idade? Quasemorri de vergonha, porque Raul, meu irmo mais velho, pegou o bi-lhete e todo mundo, l em casa, morreu de rir. O namoro acabou noato. A outra foi mais tarde, mas foi uma coisa meio maluca. Aconte-ceu quando eu estava na casa de uns primos, durante as frias.

    Fomos para um baile no clube, e l eu conheci uma garota deoutra cidade, mais ou menos da minha idade. Danamos a noitetoda, e eu at aprendi a danar formando parzinho. Depois samospara o jardim e ento eu quis pedir um beijo, mas, em vez de pe-dir, fui aproximando a cabea, ela tambm foi aproximando e a...a gente bateu o nariz. Vexame total. Tentei de novo, entortando opescoo, e deu certo. Encostamos os lbios um no outro. Algumsaiu do clube e disfaramos. Ela me deu um papelzinho com onome dela, rua, nmero e cidade. Prometi escrever, mas a primei-ra carta veio com um carimbo: "Endereo desconhecido". Acheique tinha errado o nmero e mandei vrias cartas, com muitascombinaes, e todas voltavam com o mesmo carimbo. Dava umaraiva ver aquele carimbo!

    At hoje no sei se ela deu o endereo errado, ou se no en-tendi o nmero que estava escrito. Ou se ela mudou, e no tinhacomo me avisar. S sei que fiquei apaixonado muitos anos.

    Sou do tipo romntico, acho. Por isso, quando a garota sen-tada comeou a bater papo, senti um arrepio. Senti que estava meapaixonando.

    Queria danar com ela, rodopiar, quem sabe... quem sabe,beijar? Convidei para danar. Ela disse que no. Notei que seusolhos brilhavam, como se tivesse um sentimento escondido l nofundo. Pensei: "Ela quer danar, mas est fazendo gnero". Insis-ti. Ela negou, cada vez mais envergonhada. No tive dvidas. Pe-guei a mo dela, dei um puxo, amigvel, s pra estimular.

    Foi uma tragdia. Ela despencou, caiu de boca no cho. Acadeira de rodas, vazia. E aquela garota linda, no cho, tentandose erguer, mas no conseguindo. As prolas rolando no cimento.Eu queria que o cho se abrisse.

  • Como fui burro, como fui burro! No tinha percebido. oque d ser romntico: fiquei olhando para a garota como se elafosse uma princesa.

    'Tomara que acontea um terremoto!" pensei. Terre-motos no acontecem por aqui, e eu fiquei esttico. Uma ami-ga dela, e depois o irmo, e mais um monte de pessoas vie -ram ajudar. Vi quando foi colocada na cadeira. Tentei falaralguma coisa, mas ela me olhou de um jeito horrvel. E a ami-ga gritava:

    V embora, v embora!Pensei que no tinha nada que ter vindo festa do colgio

    dos outros. Ca na conversa da turma, e agora estava dando aquelevexame. Fui para um canto... se pudesse, ficaria invisvel. Eu es-tava de carona com meu irmo mais velho, e no tinha como sairde l. Vi quando ela foi embora, escoltada pelo irmo e a amiga.Conversei com umas pessoas. Fiquei sabendo que se chamavaMarcella, e que tinha sofrido um acidente de carro. Ficou parapl-gica. Era mesmo uma pena, uma garota to simptica presa numacadeira de rodas. Naquela noite, tentei esquecer o assunto e atdancei com outras garotas.

    No outro dia, acordei mortificado. Achei que devia, de algu-ma maneira, pedir desculpas. Era chato o que tinha acontecido.Conversei com um colega de classe, que tambm estava na festa,mas ele disse:

    Esquece.Como se fosse fcil! Nos outros dias, fiquei um tempo pen-

    sando nela. Naquela figura bonita, sentada na cadeira, com umvestido de princesa. Tentei conversar com meu irmo, mas elerespondeu:

    O que voc quer com uma paraltica?Odiei a resposta. Primeiro, porque eu no estava querendo

    coisa nenhuma. S me desculpar, talvez. Segundo, porque as pes-soas falam tanto... Vivem dizendo que preciso compreender,ajudar, ser solidrio. Na hora de demonstrar, outra histria. Euqueria fazer alguma coisa. Queria falar com ela.

  • Os dias foram passando, e a Marcella no saa da minha ca-bea. Claro que no fui mais pedir conselho a ningum. Existemcertas situaes nas quais no bastam os conselhos prticos. E pre-ciso consultar o corao. Sentia as batidas dele ficando mais rpi-das, cada vez que pensava nela.

    Um dia, tomei coragem e conversei com a garota que tinhanos convidado para a festa. Ela contou que a Marcella estudavade manh. Por que eu queria saber? Disfarcei, dizendo que aindaestava chateado pelo tombo. No dia seguinte, fiquei de olho, es-perando o fim das aulas.

    Estava decidido a falar com ela, mas foi uma decepo. Umasenhora depois soube que era a me chegou de perua. Mar-cella saiu com o irmo e, ajudada por ele, subiu na perua. Foramembora. Percebi que nunca saa sozinha. Parecia to cercada pe-las pessoas como uma princesa dos contos antigos, no alto da torrede um castelo.

    E eu queria tanto falar comela! Lembrei da amiga furio-

  • sa, que me tocou da festa.Consegui recordar perfei-tamente a cara dela, porqueera meio gordinha, e tinhauns cabelos crespos muitobonitos. Voltei ao colgiodois dias depois, mas nemme preocupei em procurarMarcella. Fiquei de olho, atver a outra, saindo com vriasamigas.

    Preciso falarcom voc eu disse.

    Ela me olhou deum jeito estranho, nome reconheceu.

  • Sou o Emlio. Fui eu.. . voc sabe... eu derrubei sua ami-ga da cadeira... da cadeira de rodas, naquele bailinho.

    Ah, foi voc! Agora estou reconhecendo. Nem parece omesmo, em roupas normais. Naquele dia estava todo de preto, noestava?

    No estava legal?Eu acho que preto uma cor muito triste.Devia achar mesmo. Estava vestida com uma saia verde, blu-

    sa vermelha, e tnis rosa-choque. Parecia um arco-ris!O que voc quer?Falar com a Marcella.Acho que ela no vai querer falar com voc.Sei que foi um vexame.Bota vexame nisso!D uma fora, v... como voc se chama?Mariana.Puxa, Mariana, faz favor... que que tem? E se ela quiser

    falar comigo?Aposto que no quer.Falei, falei, falei. Venci pelo cansao. Mariana acabou con-

    cordando em levar um bilhete.

  • 7. Bruno

    Levei um choque ao encontrar o bilhete escondido dentrodo livro de Marcella. Foi por acaso. O livro estava abandona-do sobre o sof. Peguei um pouco por curiosidade, um poucopor interesse. Houve uma poca em que gostava muito de ler,mas com o trabalho, sempre mergulhado em nmeros, fui per-dendo o hbito. uma pena, porque tenho boas recordaesde alguns livros. Ultimamente, Marcella tem lido muito, e, svezes, eu penso em aproveitar os livros que ela pega na biblio-teca para ler tambm, mas estou planejando entrar numcursinho para a faculdade de Direito, e talvez no tenhatempo para mais nada.

    Quando abri o livro, o bilhete caiu do meio das pginas. Es-tava aberto e li por reflexo. Era de um rapaz, dizendo Marcellaque gostaria de v-la novamente. Um bilhete carinhoso! Tive umasensao muito estranha. Um n no estmago.

    Desde o acidente, eu s conseguia pensar que minha fi-lha tinha se tornado to frgil como um vaso de cristal. Eu queria proteg-la de qualquer maneira, como se, criando umaredoma em torno dela, pudesse faz-la feliz. s vezes me torturava, pensando: "Se eu fosserico, poderia dar muito mais coisas aela".

    Muitas vezes me sentia um fracassado. A falta de dinhei-ro era terrvel. Um tratamento pode ficar muito caro. A cadeira de rodas, consegui comprar graas ajuda da famlia.

  • Breve nos acostumamos adeixar de lado os pequenos lu-xos. Economizvamos no quepodamos. Certa vez. Guilhermereclamou que o tnis estavaapertado. Eu e Ada nos olha-mos, preocupados. No tnha-mos dinheiro nem para um parde tnis dos mais comuns. Eu sdeveria receber em quinze diase, mesmo assim, no sobrarianada. Ada disse:

    Vamos cortar as unhasdo p, Gui. Quem sabe assimfica folgado.

    O p do garoto estava crescendo, e cortar as unhas no adian-tou nada. Foi minha sogra, dona Gilda, quem conseguiu raspar amiservel penso de viva que recebe e comprar o tnis.As despesas eram altas, muito acima do que eu estava acostumadoa gastar. Ainda por cima, levar e trazer Marcella da escola e dafisioterapia ocupava um tempo enorme de Ada. Ela trabalhavamenos e, mesmo conseguindo algumas clientes em boates do cen-tro (eu no gostava nada dessa histria), no faturava o suficiente.Comecei a pegar trabalho extra para fazer em casa. Tornei-mecontador de alguns clientes particulares. De certa maneira, foi umavantagem. Atualmente tantas pessoas me pedem para que eu faaesse trabalho que, em alguns meses, talvez eu possa deixar meu em-prego e montar meu prprio escritrio. Se der certo, poderei ganharbem melhor e arrumar tempo para, finalmente, fazer a faculdade quesempre quis. Acho que a falta de dinheiro tem sido at um incentivo.Foi por tudo isso que, quando Marcella se props a ir escola e fisioterapia na cadeira de rodas, aceitei, mesmo preocupado. SeAda se limitasse a dar carona s em dias de chuva, poderiatrabalhar um pouco mais, e o dinheiro, to importante naquelemomento, deixaria de ser problema.

  • O fato de Marcella, Gui e Mariana terem vindo sozinhos dobaile da escola, na noite em que Marcella caiu na festa, diante detodos, deixou minha filha bem mais segura:

    Se o Gui for comigo, a gente pode ir sem a mame.Quem no gostou da histria foi o Guilherme. A vida do meu

    filho ficou muito complicada, reconheo. Durante os primeirostempos, depois do acidente, nem podia sair de casa. Ficava deplanto, ajudando dona Gilda, minha sogra, a cuidar da Marcella.No gosto nem de pensar nos detalhes horrveis. Mas era ele queajudava a limpar a irm, quando ela se sujava. Transformou-seem um criado, atento a todos os desejos dela. E isso em troca demuito pouco. Porque no sobrava dinheiro nem para comprar umpresente pra ele. Nem para um agrado.

    Tudo se tornou muito difcil porque, antes, era Marcellaque protegia Gui. Era ela, irm mais velha, que o ajudava sem-pre. Com o acidente, a situao tinha se invertido. Agora, almde ajudar a cuidar da irm em casa, ele tinha tambm de acom-panh-la at a escola e a fisioterapia. s vezes, ficava duashoras esperando, enquanto ela fazia os exerccios. Sentado nasala de espera, com cadernos e livros, Gui aproveitava para fa-zer as lies.

    Eu levei Marcella fisioterapia poucas vezes, e confesso queme senti mal. Era um desfile de pessoas com problemas. Aciden-tados dos mais diversos tipos. Alguns paraplgicos tm a lesobem no alto da coluna e s conseguem mover os msculos da face.Soube que, nos Estados Unidos, foi criada uma linha de aparelhospara permitir que pessoas capazes apenas de piscar consigam vi-rar as pginas de um livro.

    E claro que ficava com o estmago doendo ao tomar con-tato com todos esses problemas. A nica coisa que me conso-lava era lembrar do fsico Stephen W. Hawking. At o aciden-te, embora j tivesse ouvido falar nele, no tinha me preocupa-do com os detalhes da histria. Agora, era diferente: descobrique, apesar da dificuldade de movimentos, uma pessoa podeter uma vida brilhante.

  • Stephen Hawking, confinado a uma cadeira de rodas, movi-mentando apenas alguns dedos da mo, conseguiu desenvolver al-gumas das mais importantes teorias da Fsica moderna. Seu livroUma breve histria do tempo tornou-se fundamental entre os inte-ressados no assunto. Sua doena, degenerativa, fez com que fosseperdendo os movimentos cada vez mais. Quando soube da histriadesse homem, inicialmente me admirei: "Como ele conseguiu?"Mais tarde, pensando melhor, descobri que ele conseguiu transfor-mar a doena numa vantagem. Pois, em vez de se lamuriar, apro-veitou o isolamento forado e o tempo livre, j que no podia terum emprego tradicional, para pensar. Para criar. Voou.

    Conheci, no centro de fisioterapia, escritores, msicos. Umrapaz me impressionou muito: paraplgico, com apenas um levemovimento em um dos braos, conseguiu montar uma loja dematerial para piscinas, que dirige com sucesso. Suas funcionriaso ajudam apenas a folhear as listas de preos e a mostrar os produ-tos. ele quem discute, negocia, vende.

    medida que Marcella foi se acostumando com a cadeira derodas, o trajeto at o centro de fisioterapia ficou cada vez maisfcil. Guilherme a ajudava apenas a subir nas sarjetas e a descer,ou quando havia um obstculo qualquer. No centro, alguns tcni-cos exercitavam as pernas de Marcella para que no se atrofias-sem. Faziam isso repetindo artificialmente os movimentos que eladeveria ter se no fosse o acidente. Vrias seqelas, produzidaspela falta de movimento, so evitadas tambm porque a fisiotera-pia ativa a circulao, trabalha os msculos.

    Depois de algum tempo, Marcella comeou a se exercitar nasbarras. O exerccio aparentemente simples, mas o esforo neces-srio imenso. So duas barras colocadas paralelamente ao longode alguns metros. A pessoa deve apoiar as mos nas barras. A jogatodo o corpo para a frente um passo. Bota as mos alguns cen-tmetros frente nas barras, e joga o corpo de novo outro passo.O esforo enorme, porque a pessoa apia todo o peso do corponas mos. a primeira etapa para comear a andar de muletas.Quanto mais tempo levar o exerccio, melhor para o corpo.

  • Quando Marcella comeou os exerccios, tinha muita difi-culdade. Caa muito, mas ia exercitando os braos. Depois de al-gum tempo, j conseguia apoiar o corpo. Pouco a pouco, conse-guiu ter foras para dar alguns passos. Era cansativo, doloroso,mas muito importante.

    Entusiasmado com os progressos de minha filha, instalei barrasna garagem. Passamos a deixar a perua no jardim, mas tudo bem.Marcella se exercitava vrias horas por dia: de manh, antes da aula eno final da tarde. Com isso, comeou a ganhar mais independnciatambm dentro de casa. Para tomar banho, por exemplo, no precisa-va da ajuda de mais ningum. Era uma independncia conquistadaaos poucos, com sofrimento e, por isso mesmo, mais valiosa.

    Assim que comeou a ir sozinha com Guilherme para a es-cola, Marcella passou a dispensar a ajuda do irmo na volta dasaulas. Fiquei contente, porque, muitas vezes, ela se demorava con-versando com os colegas, e ele era obrigado a ficar esperando.Graas a Mariana e outras amigas, Marcella se tornava cada vezmais independente.

    Agora, porm, o bilhete mudava tudo. Bilhete de um rapazpara minha filha! Eu estava surpreso! Quais seriam as intenesdesse rapaz? O que queria com minha filha? Fiquei preocupado, claro. A gente ouve tanta coisa!

    Por que Marcella queria tanto ser independente? Por causadesse rapaz? Quando pediu para ir e voltar da escola sem a me, jestava pensando, possivelmente, no tal de Emlio, que assinava obilhete! Com a me levando-a para todos os lados, era impossvel.

    Nunca fiquei to nervoso quanto naquele dia. Inicialmente,me senti mal, porque parecia que Marcella estava dando um golpeem mim, em Ada, na famlia toda que tanto se preocupava comela. Estava nos enganando! Uma raiva enorme foi crescendo den-tro de mim. "Que falta de juzo!", pensei.

    Quem seria esse rapaz? Que interesse teria ele em minha fi-lha, realmente? Como Marcella se atrevia a trocar bilhetes e a nosenganar? A dizer que voltava das aulas com as amigas, quandoprovavelmente estava se encontrando com o rapaz?

  • Lembrei de vrias situaes. Na ltima semana, tinha idoduas noites seguidas casa de Mariana. Teria ido mesmo casadela? Na ocasio, havia deixado o telefone de Mariana. Disquei onmero. A me da amiga atendeu. Fui objetivo. Expliquei o queestava acontecendo. Ela pareceu preocupada e no ocultou nada.Marcella estivera l apenas uma vez. Na outra, Mariana tambmsara. Aparentemente, tinham ido ao cinema do shopping.

    Elas so muito novas para pensar em rapazes garantiu a me.Suspirei. Aquela, sim, estava fora da realidade. Pois eu sabia

    muito bem que Marcella j pensava em namoros muito antes doacidente. Tinham me contado toda a histria do Bira, e eu me ar-repiei de medo de que minha filha estivesse se interessando poralgum que a fizesse sofrer.

    Era tarde, no podia fazer nada. Deitado na cama, converseilongamente com Ada. Ela tambm ficou preocupada.

    No dia seguinte, quando Ada avisou que voltaria a levarMarcella escola e a busc-la, ela protestou, furiosa:

    No quero! No quer, mas eu vou.Comeou a discusso. Eu j estava preparado. Peguei o bilhete. Voc no tinha o direito de ler, pai! Nem voc de nos enganar. Mas eu no estava mentindo! S quis esperar para ver o

    que aconteceria!Ada chorava:Marcella, voc est sendo ingnua. Esse rapaz s pode ter

    alguma inteno ruim.Por qu? Por que sou paraltica? O Emlio gosta de mim.

    Gosta de conversar comigo.Dona Gilda, minha sogra, assistia cena, espantada. Gui-

    lherme tambm.Voc sabia de alguma coisa, Guilherme? perguntei.No, pai! De jeito nenhum.Pois, agora, tudo vai voltar a ser como antes, j que voc

    no tem juzo, Marcella.

  • Quando eu andava, vocs nem se importavam. Ficvamos preocupados, sim garanti. Mas agora

    voc est mais exposta. Vamos cuidar de voc.A briga foi to feia que ela no foi aula nem fisioterapia. Fui trabalhar deixando uma ordem: nada de sair sozinha. Quando Mariana veio visit-la, noite, Ada a recebeu na sala.

    Foi muito feio o que voc fez, Mariana. Eu? Bancar a vela... j soubemos de tudo. A Marcella est

    saindo com um tal de Emlio, no ? Na outra semana, vocs fo-ram ao cinema do shopping. Quem mais foi?

    Tambm foi o Raul, irmo do Emlio confessou ela. Muito bonito! eu entrei na discusso. E quem esse

    Emlio? Ele... eles se conheceram no baile... Lembra o rapaz que

    puxou a Marcella da cadeira e a derrubou no cho? Esse a? nunca

    fiquei to surpreso. Ele ficou su-

    pertriste com o vexame, e me procurou. Eutambm achava queera um bobo, mas eleme deu um bilhete, euentreguei pra ela. AMarcella adorou re-ceber, seu Bruno! A,eles me pediram paraajudar a marcar umencontro. Foi aps aaula. Depois conhe-ci o irmo dele, e ascoisas foram rolando, rolando...

  • Ada soltou um gemido. Eu estava muito bravo: Pois a partir de agora nada mais vai rolar! Mariana, sei que

    a Marcella gosta muito de voc. No vou proibir que venha nossacasa, porque voc tem sido uma grande amiga. Mas no quero quefique bancando a leva-e-traz de namorados. Entendido?

    Sim, senhor.Mariana entrou no quarto. Ouvi o zunzunzum das duas con-

    versando a noite toda. Marcella chorava. "Melhor chorar agorado que depois, por motivos piores" pensei. Eu estava decidi-do a manter minha proibio.

  • 8. Gilda

    Ai, que bafaf, que confuso!Meus filhos gostam de caoar de mim, dizendo que sou ve-

    lha coroca, talvez porque meus cabelos estejam brancos como fa-rinha de trigo. S que sou mais moderninha que muito jovem queh por a. Eu fiquei abismada de ver a atitude do Bruno com aMarcella. Onde j se viu, um pai, nos dias de hoje, ficar bravoporque a filha anda se encontrando com um garoto da idade dela?Se fosse muito mais velho, pode ser que eu tambm no gostasse.At tentei aconselhar, mais tarde, porque, na hora do rolo, quemabrisse a boca apanhava. Ah, se apanhava! O Bruno estava ver-melho como um pimento e a Ada branca como papel. Eu atpensei: "E a hora da vingana!"

    Quando a Ada era garota... que sufoco! Meus primeiros ca-belos brancos foram por causa dela. Que namoradeira que era!No tinha nem sado das fraldas, e j falava em namorar o filho dodono do armazm. Esse negcio de sair das fraldas modo dedizer, claro. Mas que era bem novinha, ah, era sim! Depois,quando comeou com o Bruno, eu no queria que namorasse forade casa. Sei que coisa de gente antiga, mas l no interior a gentedemorou a se acostumar com certas modernidades.

    Hoje em dia h muita gente que mora junto sem se casar enem por isso mais feliz ou mais infeliz que o resto. O que vale,eu sempre digo, o que est no corao. Se o corao da pessoa ruim, no tem papel, no tem assinatura que resolva. Mas, na po-ca, eu pensava de maneira diferente.

    Agora, que a Ada tambm mudou, mudou. Porque quandose falou que a Marcella tinha ido ao cinema com o tal de Emlio,ela ficou