linguagem, tradução e tradição - uevora.pt · 2014. 10. 24. · 1 resumo linguagem, tradução...

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UNIVERSIDADE DE ÉVORA Instituto de Investigação e Formação Avançada Linguagem, Tradução e Tradição _________________________________________________________________________________________ A recepção de Heidegger em português Dissertação de Doutoramento em Filosofia Orientadores: Professora Doutora Irene Borges-Duarte (Universidade de Évora) Professora Doutora Constança Marcondes César (Pontifícia Universidade Católica de Campinas) Maria Adelaide Neto de Mascarenhas Pacheco Évora - 2011

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Page 1: Linguagem, Tradução e Tradição - uevora.pt · 2014. 10. 24. · 1 Resumo Linguagem, Tradução e Tradição. A recepção de Heidegger em língua portuguesa. Devido à persistência

UNIVERSIDADE DE EacuteVORA

Instituto de Investigaccedilatildeo e Formaccedilatildeo Avanccedilada

Linguagem Traduccedilatildeo e Tradiccedilatildeo

_________________________________________________________________________________________

A recepccedilatildeo de Heidegger em portuguecircs

Dissertaccedilatildeo de Doutoramento em Filosofia

Orientadores Professora Doutora Irene Borges-Duarte (Universidade de

Eacutevora)

Professora Doutora Constanccedila Marcondes Ceacutesar (Pontifiacutecia Universidade Catoacutelica de Campinas)

Maria Adelaide Neto de Mascarenhas Pacheco

Eacutevora - 2011

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UNIVERSIDADE DE EacuteVORA

Instituto de Investigaccedilatildeo e Formaccedilatildeo Avanccedilada

Linguagem Traduccedilatildeo e Tradiccedilatildeo

_________________________________________________________________________________________

A recepccedilatildeo de Heidegger em portuguecircs

Dissertaccedilatildeo de Doutoramento em Filosofia

Orientadores Professora Dutora Irene Borges-Duarte (Universidade de

Eacutevora)

Professora Doutora Constanccedila Marcondes Ceacutesar (Pontifiacutecia Universidade Catoacutelica de Campinas)

Maria Adelaide Neto de Mascarenhas Pacheco

Eacutevora - 2011

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Resumo

Linguagem Traduccedilatildeo e Tradiccedilatildeo A recepccedilatildeo de Heidegger em liacutengua portuguesa Devido agrave persistecircncia do latim como liacutengua das comunicaccedilotildees cientiacuteficas e filosoacuteficas e em seguida da hegemonia cultural francesa foi apenas no seacuteculo XX que comeccedilaram a ser traduzidos para portuguecircs os autores mais importantes da tradiccedilatildeo filosoacutefica A primeira consequecircncia desta longa ausecircncia de traduccedilotildees portuguesas de filosofia foi a interrupccedilatildeo da transmissatildeo da tradiccedilatildeo filosoacutefica designadamente dos textos latinos dos pensadores da escolaacutestica peninsular No entanto tal natildeo impediu que esta tradiccedilatildeo humanista esquecida se misturasse de forma ecleacutectica com a filosofia moderna importada em liacutengua francesa e que sua influecircncia se mantivesse presente na cultura e na liacutengua portuguesas Investigou-se o modo como esta situaccedilatildeo hermenecircutica determinou a recepccedilatildeo de Heidegger analisando os escritos de vaacuterias geraccedilotildees de pensadores que comentaram e traduziram em liacutengua portuguesa o filoacutesofo alematildeo entre 1938 e 1989 tendo podido reconhecer a influecircncia daquela tradiccedilatildeo humanista na elaboraccedilatildeo dos principais pontos de vista interpretativos

Abstract Language Translation and Tradition Heideggerrsquos reception in Portuguese Due to Latin‟s persistence as the language used in scientific and philosophical communications and also to the cultural French hegemony it was only in the twentieth century that the works of the main authors of philosophical tradition were translated into Portuguese The first consequence of this long absence of Portuguese translations of philosophical texts was a disruption in the transmission of philosophical tradition namely in the transmission of the Latin texts of the second scholasticism However this has not prevented the blending of this humanist tradition with the modern philosophy translated into French and that this influence has remained in Portuguese culture and language We have studied some writings of several generations of thinkers who have commented and translated the texts of the German philosopher between 1938 and 1989 into the Portuguese language to find out how this ldquohermeneutic situationrdquo had conducted Heideggerbdquos reception We have been able to find the influence of that humanist tradition in giving rise to the main hermeneutic points of view

2

3

Esta dissertaccedilatildeo de Doutoramento foi elaborada no acircmbito do projecto de investigaccedilatildeo ldquoHeidegger em Portuguecircs Da Loacutegica de 1934 aos Contributos para a Filosofiardquo (1936-1938) [POCIFIl (606002004)] do Centro de Filosofia da Universidade de Lisboa e Universidade de Eacutevora e parcialmente financiada pela Bolsa de Investigaccedilatildeo SFRBD289962006 da Fundaccedilatildeo Para a Ciecircncia e Tecnologia Dirijo por isso os meus agradecimentos agraves trecircs instituiccedilotildees acima referidas e especialmente agrave Fundaccedilatildeo Para a Ciecircncia e Tecnologia cujo apoio financeiro tornou possiacutevel a concretizaccedilatildeo da investigaccedilatildeo assim como agrave Professora Doutora Irene Borges-Duarte da Universidade de Eacutevora e agrave Professora Doutora Constanccedila Marcondes Ceacutesar da Pontifiacutecia Universidade Catoacutelica de Campinas cuja orientaccedilatildeo competente e encorajamento tornaram possiacutevel superar as dificuldades inerentes agraves diversas fases da elaboraccedilatildeo do presente trabalho acadeacutemico

4

5

IacuteNDICE

Introduccedilatildeo 9

1 A constituiccedilatildeo da recepccedilatildeo de Heidegger em liacutengua portuguesa como tema a investigar 11

2 O problema filosoacutefico da traduccedilatildeo 16

3 As mudanccedilas de paradigma na teoria da traduccedilatildeo 19

4 A traduccedilatildeo e a sua conexatildeo com a temporalidade 26

5 A recepccedilatildeo de Heidegger como um problema de traduccedilatildeo 34

6 Metodologia usada 39

7 A estrutura da dissertaccedilatildeo 43

Siglas e abreviaturas mais usadas 47

Parte I O conceito fenomenoloacutegico de traduccedilatildeo e o problema da tradiccedilatildeo 49

Capiacutetulo I - A viragem hermenecircutica e o estatuto das liacutenguas 51

1 Linguagem e ldquoabertura ontoloacutegicardquo 55

2 O logos hermenecircutico e o logos apofacircntico 62

3 Linguagem facticidade e existecircncia 66

4 O estado de aberto do Dasein e o projecto lanccedilado 70

5 A Auslegung e a estrutura preacutevia da compreensatildeo 74

6 Rede e Sprache 77

7 A temporalidade como fundamento do ldquoestado de abertordquo do Dasein 83

8 Linguagem e verdade 88

9 Natildeo-ser e finitude 94

10 A libertaccedilatildeo da gramaacutetica em relaccedilatildeo agrave loacutegica 100

11 Liacutengua povo e histoacuteria 106

12 A liacutengua como Ereignis 111

13 Linguagem e poesia 114

14 Poesia e Filosofia ou diaacutelogo entre cumes 118

Capiacutetulo II ndash A pluralidade das aberturas de mundo e o problema hermenecircutico 125

1 Hermenecircutica e historicidade 131

2 Tradiccedilatildeo e traduccedilatildeo 138

3 A reabilitaccedilatildeo do preconceito em Gadamer 142

4 A tradiccedilatildeo 146

5 A produtividade da distacircncia temporal 149

6 A fusatildeo de horizontes e a alteridade 152

7 O conceito hermenecircutico de texto 157

8 A negatividade da experiecircncia hermenecircutica 161

6

Parte II ndash A recepccedilatildeo de Heidegger em Liacutengua portuguesa traduccedilatildeo e questionamento da tradiccedilatildeo 169

Capiacutetulo I - Traduccedilatildeo e tradiccedilatildeo no pensamento portuguecircs e brasileiro 171

1 A orientaccedilatildeo humanista da escolaacutestica peninsular 173 1 1 Os Conimbricences e a traduccedilatildeo de Aristoacuteteles 175 1 2 A Escola de Eacutevora e a interpretaccedilatildeo de Aristoacuteteles agrave luz do novo contexto histoacuterico e dos seus problemas 180 1 3 Apogeu e decadecircncia da tradiccedilatildeo escolaacutestica 184

2 A modernidade pombalina e a decadecircncia da tradiccedilatildeo escolaacutestica 190 2 1 O Projecto pedagoacutegico do iluminismo portuguecircs 193 2 2 A Criacutetica agrave tradiccedilatildeo escolaacutestica e o ecletismo filosoacutefico 197 2 3 Linguagem e traduccedilatildeo 202

3 A mediaccedilatildeo francoacutefona e o ldquoeclipse da filosofiardquo 204 3 1 O ecletismo de Victor Cousin 204 3 2 O Positivismo 207

4 A reacccedilatildeo anti-positivista e a consciecircncia de si mesmo na cultura portuguesa 212 4 1 A viragem de Antero 212 4 2 A heranccedila de Antero e o diaacutelogo com a filosofia europeia 216

5 Traduccedilatildeo e consciecircncia de si na cultura Brasileira 222

6 A liacutengua portuguesa a tradiccedilatildeo e a traduccedilatildeo 227

Capiacutetulo II - Traduccedilatildeo portuguesa de Heidegger 233

1 Recepccedilatildeo de Heidegger em Portugal 235 11 Os primeiros divulgadores 235

111 Delfim Santos 236 112 Vergiacutelio Ferreira 239 113 Antoacutenio Joseacute Brandatildeo 241

12 A compreensatildeo da obra de Heidegger e a sua traduccedilatildeo apoacutes os anos 50 244 121 Pe Manuel Antunes 245 122 Joseacute Enes 248 123 Eudoro de Sousa 249

2 A recepccedilatildeo de Heidegger no Brasil 250 21 Vicente Ferreira da Silva 251 22 Gerd Alberto Bornheim 252 23 Emmanuel Carneiro Leatildeo 253 24 Maria do Carmo Tavares Miranda 254 25 Benedito Nunes 255 26 Ernildo Stein 256

3 Determinaccedilatildeo da perspectiva hermenecircutica 258

4 O Diaacutelogo com ldquoo primeiro Heideggerrdquo Existecircncia e sentido 261 4 1 Delfim Santos 261

411 Positivismo e Metafiacutesica 261 412 Humanismo e existencialismo 269 413 As ciecircncias do espiacuterito 274

4 2 Vergiacutelio Ferreira 283 421 O existencialismo e a morte de Deus 285 422 A Verdade como Apariccedilatildeo e o ser-para-a-morte 290

5 O diaacutelogo com ldquoo segundo Heideggerrdquo e o problema do mito 295 5 1 Eudoro de Sousa e a Trans-objectividade 297 5 2 O sagrado e o significado do drama ritual 300 5 3 Vicente Ferreira da Silva e o ser como Fascinador 308

6 Ontologia e finitude 310 6 1 Gerd Bornheim e a diferenccedila ontoloacutegica 310

611 Os fundamentos existenciais do filosofar 310 612 Destruiccedilatildeo da Metafiacutesica e redescoberta da finitude 315

7

613 A reformulaccedilatildeo heideggeriana da dialeacutectica 319 614 A diferenccedila ontoloacutegica e a centralidade da praxis 323

6 2 Ernildo Stein ndash finitude e circularidade ontoloacutegica 328 621 Ser e Verdade em Heidegger 328 622 Negatividade e finitude 332 623 A circularidade da questatildeo ontoloacutegica 335 624 Linguagem e finitude 339

7 O desvendamento do ser como hermenecircutica 343 7 1 Emmanuel Carneiro Leatildeo 343

711 A novidade da hermenecircutica heideggeriana 343 712 Hermenecircutica e Teologia 346 713 Hermenecircutica da eacutepoca contemporacircnea e pensar originaacuterio de Heidegger 352

7 2 Joseacute Enes e o reencontro com a tradiccedilatildeo 356 721 A noeticidade hermenecircutica em S Tomaacutes de Aquino 358 722 O intuito e os juiacutezos de percepccedilatildeo externa 361 723 A Verdade e o Ser 368 724 A linguagem como via de acesso ao ser e o meacutetodo analiacutetico-expectante 372

Capiacutetulo III - O Diaacutelogo de Vicente Ferreira da Silva com Heidegger 381

1 A determinaccedilatildeo da situaccedilatildeo hermenecircutica 383

2 O estabelecimento progressivo de um ponto de vista interpretativo 388 21 A reformulaccedilatildeo da questatildeo antropoloacutegica e a descoberta do segundo Heidegger 388 22 O homem e o ditado do ser 393 23 O caminho de transiccedilatildeo para uma filosofia da Mitologia 399 24 A destruiccedilatildeo da metafiacutesica da subjectividade como condiccedilatildeo preacutevia para uma filosofia da Mitologia 404 25 Os Mitos como origem 410 26 Panteiacutesmo poeacutetico e Mitologia 415 27 Poesia filosofia e pensamento maacutegico da Origem 419

3 A apropriaccedilatildeo expropriadora de conceitos centrais da filosofia heideggeriana 423 3 1 O Ser como Fascinador 423 3 2 O pocircr-se em obra da verdade do ser 430 3 3 Continuidade da tradiccedilatildeo e ruptura da crise 436 3 4 A quadratura do mundo 441 3 5 O projecto lanccedilado e a recusa projectante 449

4 O questionamento da tradiccedilatildeo humanista 457 4 1 Humanismo e Cristianismo 457 4 2 Apogeu e ocaso da tradiccedilatildeo humaniacutestica 465 4 3 O Homem como lugar de desvendamento do real 471 4 4 A nova religiatildeo coacutesmica e o ciclo natildeo humaniacutestico da cultura 477 4 5 Vicente Ferreira da Silva eacute um pensador anti-humanista 484

5 A traduccedilatildeo como Ereignis em Vicente Ferreira da Silva 492

Conclusatildeo - A traduccedilatildeo como viagem entre diferentes margens 501

1 A histoacuteria das traduccedilotildees portuguesas de filosofia e a decisatildeo pelo futuro da liacutengua 503

2 A interpretaccedilatildeo como traduccedilatildeo apropriada 506

3 A tradiccedilatildeo humanista e a traduccedilatildeo filosoacutefica 512

APEcircNDICE 521

I - Traduccedilotildees de Filosofia em liacutengua portuguesa ateacute 1959 523

1- Traduccedilotildees Portuguesas de Filosofia (ateacute 1959) 523 A primeira traduccedilatildeo portuguesa de filosofia 523 A O seacuteculo XVIII 523

8

B O seacuteculo XIX 524 C A primeira metade do seacuteculo XX 524

1 Filosofia alematilde 524 2 Filosofia Grega 526 3 Traduccedilotildees cientiacuteficas 528

2 - Traduccedilotildees brasileiras de Filosofia (1931-1959) 528 A Filosofia Alematilde 528 B Filosofia grega 529 C Escolaacutestica 530

II - Cronologia da recepccedilatildeo de Heidegger em liacutengua portuguesa 533

1 ndash Traduccedilotildees Portuguesas e Brasileiras de Heidegger 533

2 - Bibliografia criacutetica traduzida para portuguecircs 536

3 - O diaacutelogo com Heidegger em liacutengua portuguesa 539 A Trabalhos acadeacutemicos sobre Heidegger 539

1 Em Portugal 539 2 No Brasil 540

B Estudos monograacuteficos que dialogam com Heidegger 544 C Artigos em revistas e obras colectivas 549

Bibliografia 571

1 Ediccedilotildees de referecircncia dos autores centrais do trabalho 573

a Martin Heidegger Gesamtausgabe 573

b Hans-Georg Gadamer Gesammelte Werke 573

c Vicente Ferreira da Silva Obras Completas 574

2 Bibliografia usada para a elaboraccedilatildeo da dissertaccedilatildeo 574

Parte I sobre o problema filosoacutefico da traduccedilatildeo e sua conexatildeo com a tradiccedilatildeo 574 Textos de Heidegger e Gadamer 574

De Heidegger Martin 574 De Gadamer Hans-Georg 577

Estudos 577 Referecircncias 580

Parte II Traduccedilatildeo e tradiccedilatildeo em Portugal e no Brasil A recepccedilatildeo de Heidegger em portuguecircs 582

A Sobre traduccedilatildeo e transmissatildeo da tradiccedilatildeo filosoacutefica em portuguecircs 582 Estudos de caraacutecter geral 582 Obras representativas dos periacuteodos histoacutericos 583

B Retoacuterica poesia e religiatildeo 586 C O diaacutelogo com Heidegger em liacutengua portuguesa (1938-1989) 590

Estudos sobre a recepccedilatildeo de Heidegger em Liacutengua Portuguesa 590 Textos dos inteacuterpretes de Heidegger 591 Estudos criacuteticos 597 Contextualizaccedilatildeo 599

9

INTRODUCcedilAtildeO

10

11

1 A constituiccedilatildeo da recepccedilatildeo de Heidegger em liacutengua portuguesa

como tema a investigar

Com o desaparecimento do latim como liacutengua universal da comunicaccedilatildeo

cientiacutefica a consciecircncia moderna afirmou-se como uma consciecircncia cindida

entre o fasciacutenio por uma linguagem universal rigorosa e capaz de ler os

segredos do livro do universo e de os partilhar sem ambiguidade realizada

pela matemaacutetica e o pecado original das muacuteltiplas liacutenguas nacionais

colocando entraves agrave comunicaccedilatildeo cientiacutefica agrave partilha das obras-primas da

literatura europeia ao entendimento entre os povos europeus

A siacutendrome de Babel assola desde entatildeo a consciecircncia europeia que se

lanccedilou na traduccedilatildeo como quem lanccedila matildeo de um expediente pragmaacutetico

capaz de minorar o caos e a desordem e assegurar o comeacutercio das

mercadorias das artes e das ideias Os problemas colocados pela praacutetica

desta actividade de traduccedilatildeo haacute muito tematizados por aqueles que se

dedicaram agrave traduccedilatildeo literaacuteria e filosoacutefica vieram tomando relevacircncia

crescente tornando-se objecto de reflexatildeo filosoacutefica e finalmente

convertendo-se em tema de uma ldquodisciplinardquo universitaacuteria com as suas

exigecircncias cientiacuteficas

Se algumas liacutenguas como o alematildeo parecem naturalmente vocacionadas para

a traduccedilatildeo sendo a fixaccedilatildeo do cacircnone linguiacutestico inseparaacutevel da traduccedilatildeo dos

grandes textos sagrados noutras como foi o caso das liacutenguas latinas este

movimento de traduccedilatildeo foi mais tardio e de certo modo entravado e

condicionado pelas circunstacircncias histoacutericas ligadas agrave Contra-Reforma Sendo

as comunicaccedilotildees culturais filtradas pelo poder poliacutetico e religioso e geralmente

confinadas ao espaccedilo delimitado pela Contra-Reforma as afinidades

linguiacutesticas e culturais entre os povos latinos facilitaram as comunicaccedilotildees e

muitas vezes dispensaram as traduccedilotildees

Assim acompanhando a longa vigecircncia da Escolaacutestica Peninsular entre noacutes o

latim manteve-se ateacute muito tarde como liacutengua de ensino da filosofia natildeo tendo

a reforma pombalina modificado esta situaccedilatildeo Posteriormente o lugar do latim

veio a ser ocupado pela liacutengua francesa liacutengua que mediava o acesso agraves

revistas cientiacuteficas e filosoacuteficas e agraves obras escritas pelos filoacutesofos que eram

traduzidas para o puacuteblico francecircs

12

Esta entrada tardia no movimento da traduccedilatildeo filosoacutefica significou um

crescente desfasamento das filosofias moderna e contemporacircnea que se

acentuou rapidamente quando o centro do pensamento filosoacutefico se deslocou

para a Alemanha e a filosofia comeccedilou a ser produzida numa liacutengua a que

fomos ficando quase inteiramente alheios

Foi apenas no periacuteodo da Primeira Repuacuteblica que os intelectuais portugueses

comeccedilaram a sentir a necessidade de fundar filosoficamente as suas opccedilotildees

esteacuteticas religiosas ou poliacuteticas e por conseguinte comeccedilou a ser necessaacuterio

o acesso agraves obras dos grandes pensadores europeus tendo sido realizado um

importante esforccedilo no sentido da traduccedilatildeo e actualizaccedilatildeo do pensamento

cientiacutefico e filosoacutefico1

Puderam assim ser traduzidos autores fundamentais do pensamento

contemporacircneo como Nietzsche Darwin Spencer assim como alguns autores

da tradiccedilatildeo filosoacutefica como Platatildeo ou Santo Agostinho De qualquer modo este

esforccedilo foi natildeo soacute tardio como insuficiente e continuou a ser praacutetica corrente o

recurso agraves traduccedilotildees francesas inglesas ou espanholas quando se tratava de

autores cujos idiomas natildeo eram dominados pelos intelectuais portugueses

como era o caso dos pensadores alematildees Assim as primeiras traduccedilotildees dos

filoacutesofos do idealismo alematildeo foram feitas apenas a partir da deacutecada de 40 de

Kant foi traduzido A Paz Perpeacutetua por Alberto Machado da Cruz em 1941 e Da

Forma e dos Princiacutepios do Mundo Sensiacutevel e Inteligiacutevel por Francisco Mendes

da Luz em 1943 de Hegel a Introduccedilatildeo agrave Histoacuteria da Filosofia por Antoacutenio

Pinto de Carvalho em 1949

Este atraso no movimento de traduccedilatildeo filosoacutefica do qual comeccedilaacutemos

timidamente a recuperar a partir da Primeira Repuacuteblica estaacute longe de ser uma

coisa do passado de facto o movimento de traduccedilatildeo parece ameaccedilado por

vaacuterias debilidades extriacutensecas ligadas agrave exiguidade do puacuteblico a que essas

traduccedilotildees se destinam agrave precariedade do estatuto do tradutor assim como agrave

fragilidade das instituiccedilotildees

1 Cf A minha dissertaccedilatildeo de mestrado A Vida e o Traacutegico em Raul Brandatildeo (FLUL 2003) 9-12

Analisa-se aiacute a extensatildeo e limites da traduccedilatildeo filosoacutefica em Portugal na primeira metade do seacuteculo XX

com particular destaque para o periacuteodo da Primeira Repuacuteblica

13

Esta entrada tardia na tarefa da traduccedilatildeo filosoacutefica testemunha aleacutem disso

uma recusa agrave ldquomediaccedilatildeordquo linguiacutestica que derivou historicamente da hegemonia

cultural do latim ateacute uma eacutepoca tardia e num segundo tempo da hegemonia

cultural francesa2 e teve o efeito de nos expor a decisotildees hermenecircuticas

alheias lendo filosofia em francecircs ficamos inconscientemente expostos a um

ponto de vista interpretativo exterior e portanto impedidos de fazer uma

apropriaccedilatildeo autecircntica da tradiccedilatildeo filosoacutefica

Por outro lado esta recusa da mediaccedilatildeo linguiacutestica cristalizou-se muitas vezes

numa afirmaccedilatildeo dum pensamento proacuteprio associado ao florescimento da

poesia onde encontrou lugar a expressatildeo de uma preocupaccedilatildeo identitaacuteria e de

uma afirmaccedilatildeo e sacralizaccedilatildeo da liacutengua materna

A liacutengua portuguesa ganhou assim o seu proacuteprio rosto fortemente marcado por

uma tradiccedilatildeo poeacutetica e literaacuteria criada no diaacutelogo com a literatura europeia e

com a sua proacutepria histoacuteria tradiccedilatildeo esta que ganhou consciecircncia de si mesma

na obra de pensadores-poetas como Teixeira de Pascoaes e Fernando

Pessoa3

Na sequecircncia da minha contribuiccedilatildeo para a investigaccedilatildeo bibliograacutefica4 jaacute

realizada no acircmbito do projecto ldquoHeidegger em Portuguecircs Da Loacutegica de 1934

aos Contributos para a Filosofia (1936-1938) [POCIFIl (606002004)] propus-

me analisar alguns dos comentaacuterios da obra do filoacutesofo alematildeo em liacutengua

portuguesa para compreender o modo como esta experiecircncia da liacutengua5 teria

2 Cf Ricœur ldquoDeacutefi et bonheur de la traductionrdquo in Sur la traduction Paris 2000 Neste ensaio Ricœur

introduz o conceito de matriz psicanaliacutetica de resistecircncia agrave traduccedilatildeo e associa essa recusa agrave mediaccedilatildeo

linguiacutestica aos efeitos de uma estrateacutegia de dominaccedilatildeo cultural ldquoLa preacutetention agrave l‟autosuffisance le refus

de la meacutediation de l‟eacutetranger ont nourri en secret maints ethnocentrismes linguistiques et plus

gravement maintes preacutetentions agrave l‟heacutegeacutemonie culturelle telle qu‟on a pu l‟observer de la part du latin de

l‟Antiquiteacute tardive agrave la fin du Moyen Acircge et mecircme au-delagrave de la Renaissance de la part aussi du franccedilais

agrave l‟acircge classique de la part de l‟anglo-ameacutericain de nos joursrdquo (Ob cit 10-19) 3 Cf O meu artigo ldquoLigravengua e Histoacuteria em Heidegger e Pascoaesrdquo em Heidegger Linguagem e Traduccedilatildeo

Lisboa 2002 (417-432) Interroga-se aiacute a proximidade entre o pensamento poeacutetico de Pascoaes e alguns

aspectos da ontofenomenologia da linguagem de Heidegger sublinhando-se o papel fundador da histoacuteria

que ambos os autores conferem agrave linguagem enquanto liacutengua dum povo histoacuterico recriada pelos seus

grandes poetas 4 Cf Heidegger em Portuguecircs [em linha] Lisboa Centro de Filosofia da Universidade de Lisboa [2008]

[Consult 20 de Setembro 2009] Disponiacutevel na WWW ltURL=httpwwwmartin-heideggernetgt

5 Ingeborg Schuumlssler pensando a linguagem como Ereignis esclarece a diferenccedila entre a experiecircncia da

linguagem inerente agrave poesia e a experiecircncia da linguagem como ldquofundo disponigravevelrdquo que podemos fazer

nas modernas sociedades de informaccedilatildeo esta eacute a experiecircncia de desocultaccedilatildeo total ldquoparle trop de son

eacuteclaircierdquo e abre o ser como pura presenccedila enquanto a primeira eacute a palavra que abre o ser a partir da

ausecircncia a fim de lhe permitir desenvolver-se na sua essecircncia (ldquoLe langage comme fonds disponible

14

marcado a recepccedilatildeo de Heidegger em portuguecircs Se este rosto retoacuterico e

poeacutetico da nossa liacutengua foi por alguns autores evidenciado como obstaacuteculo natildeo

soacute agrave traduccedilatildeo mas agrave produccedilatildeo filosoacutefica parti do princiacutepio de que ele natildeo

pode poreacutem estar dissociado de uma visatildeo do mundo e de uma tradiccedilatildeo

hermenecircutica6 Pretendi pois surpreender essa presenccedila da tradiccedilatildeo e ver o

modo como ela dispocircs os pensadores que leram e comentaram Heidegger em

liacutengua portuguesa a ouvir o que nos seus textos eacute dito e a entrar em diaacutelogo

com eles7

Tratando-se de um autor que recusa a linguagem da tradiccedilatildeo filosoacutefica e cujas

experiecircncias linguiacutesticas satildeo elas mesmas um incentivo agrave invenccedilatildeo e agrave

criatividade agrave redescoberta de si mesma e das potencialidades de sentido da

liacutengua de chegada dos seus tradutores e inteacuterpretes tinha a convicccedilatildeo de que

a sua traduccedilatildeo e interpretaccedilatildeo natildeo poderia deixar de ser um desafio e um

incentivo a uma maior consciecircncia da nossa liacutengua e da cultura

A minha proacutepria experiecircncia de traduccedilatildeo das Liccedilotildees de Loacutegica de 348- apesar

de se tratar duma obra em que Heidegger usa em boa parte a linguagem da

tradiccedilatildeo filosoacutefica natildeo colocando por isso as mesmas dificuldades de obras

posteriores - veio a reforccedilar esta convicccedilatildeo da importacircncia decisiva da

ldquoexperiecircncia da liacutenguardquo na compreensatildeo e consequentes opccedilotildees de traduccedilatildeo

Pude constatar que alguns pensadores portugueses e brasileiros desde os

anos 30 e 40 natildeo apenas se interessaram a fundo por Heidegger como

(Bestand) et comme eacutevegravenement-appropriement (Ereignis)ldquo in Heidegger Linguagem e Traduccedilatildeo

Lisboa 2002 334-355) 6 Note-se que a tradiccedilatildeo hermenecircutica transportada pela ligravengua se fundamenta na ldquofalardquo preacute-teoacuterica ligada

agrave expressatildeo do sentido captado antes de todo o enunciado teoreacutetico natildeo implicando necessariamente uma

consciecircncia expliacutecita de si mesma nem uma fundamentaccedilatildeo teoacuterica Sobre este ponto cf Ramoacuten

Rodriacuteguez (Hermeneacuteutica y Subjetividad Madrid1993 29) ldquo[] el momento de la comprensioacuten en

sentido estricto el momento en que algo llega a ser entendido en lo que es y como tal enunciado ndash en la

terminologiacutea de Heidegger Auslegung y Aussage ndash son desarrollos de lo ya abierto por el comprender

originalrdquo 7 A importacircncia que a tradiccedilatildeo poeacutetica pode ter na recepccedilatildeo de Heidegger em qualquer liacutengua eacute bem

documentada pela comunicaccedilatildeo de Franccedilois Feacutedier ao Congresso Internacional de Lausanne de 2004 a

propoacutesito da resoluccedilatildeo das dificuldades da traduccedilatildeo francesa do termo Ereignis A utilizaccedilatildeo de

referecircncias da poesia francesa (Verlaine) para chegar a estabelecer a traduccedilatildeo de ldquoAvenancerdquo assim como

a apreciaccedilatildeo da traduccedilatildeo assim conseguida satildeo particularmente elucidativas ldquoAvenance n‟est pas le

miraculeux eacutequivalent franccedilais de Ereignis Cest dans notre langue ce qui nous met en eacutetat de pouvoir agrave

notre tour faire l‟expeacuterience de ce dont Heidegger a fait l‟expeacuterience avec l‟Ereignis Mais l‟ideacutee mecircme

que les deux expeacuteriences puissent ecirctre identiques et donc qu‟elles puissent s‟identifier l‟une agrave l‟autre est

sans doute le dernier avatar d‟un mode de repreacutesentation qui deacutecideacutement ne doit plus avoir cours parce

qu‟il a eacutepuiseacute sa charge de veacuteriteacuterdquo (Heideggers Beitraumlge zur Philosophie Frankfurt am Main 2009 121) 8 Cf Martin Heidegger Loacutegica A pergunta pela essecircncia da linguagem Coord Ciecircntifica de Irene

Borges-Duarte trad de Maria Adelaide Pacheco e Helga Hook Quadrado Lisboa Gulbenkian 2008

15

tiveram a possibilidade de aceder agrave sua obra em alematildeo comentando-a em

ensaios escritos em liacutengua portuguesa Ora eacute preciso sublinhar que sendo

Heidegger um pensador que pensa no confronto com a tradiccedilatildeo e com a

linguagem da tradiccedilatildeo filosoacutefica procedendo a uma recriaccedilatildeo linguiacutestica a partir

de referecircncias literaacuterias poeacuteticas e muitas vezes dialectais a possibilidade de

aceder linguisticamente em alematildeo deu a estes autores portugueses e

brasileiros a uacutenica via para aceder ao sentido originaacuterio dos textos

heideggerianos e poder subtrair-se agrave mediaccedilatildeo francoacutefona

Contudo natildeo haacute duacutevida de que natildeo sentiram a obrigaccedilatildeo de levar a cabo a sua

traduccedilatildeo em sentido estrito Se exceptuarmos o caso isolado da traduccedilatildeo de

Antoacutenio Joseacute Brandatildeo de A Essecircncia da Verdade em 1946 na revista Rumo

apenas nos anos sessenta comeccedilaram a aparecer com alguma regularidade as

traduccedilotildees portuguesas de Heidegger9 e o esforccedilo de aceder linguisticamente

ao pensamento do filoacutesofo alematildeo passou inicialmente entre noacutes para o

grande puacuteblico pela mediaccedilatildeo das traduccedilotildees francesas como vinha

acontecendo desde o seacuteculo XIX a toda a filosofia alematilde

Partindo do pressuposto hermenecircutico de que a interpretaccedilatildeo de um autor

nunca pode ser objectiva nem livre de preconceitos mas que ela eacute dirigida por

uma estrutura preacutevia que determina em cada caso a compreensatildeo10

questionaacutemos de que modo esta ldquosituaccedilatildeordquo pode ter condicionado o ldquocomordquo da

interpretaccedilatildeo

Procuraacutemos identificar este horizonte hermenecircutico ldquopreacuteviordquo que se projectou

sobre os textos de Heidegger interpretados em liacutengua portuguesa procurando

aiacute escutar o eco da tradiccedilatildeo e o efeito do preconceito tendo poreacutem em conta

que essa projecccedilatildeo pode ser a sombra que oculta e distorce ou o horizonte

que se experimenta a si mesmo no confronto com o texto a interpretar e que

neste confronto pode ser ldquoabertordquo de modo originaacuterio encontrar exemplos

9 Cf Borges-Duarte Irene e Saacute Alexandre de A Recepccedilatildeo de Heidegger em Portugal Estudo

bibliograacutefico preliminar in Philosophica 13 Lisboa 1999

10 Cf Friedrich-Wilhelm von Herrmann in ldquoUumlbersetzung als philosophisches Problemrdquo in Zur

philosophischen Aktualitaumlt Heideggers Im Spiegel der Welt Sprache Uumlbersetzung Auseinandersetzung

Frankfurt am Main 1992 110 ldquoJede Uumlbersetzung ist schon Auslegung jede Auslegung aber ist in einer

dreifachen Vor-struktur verfaβt Daher ist es eine Taumluschung und eine Verfehlen der Wesensverfassung

der Auslegung zu meinen Auslegung koumlnne und muumlsse voraussetzungslos und in diesem Sinne objektiv

seinrdquo

16

deste efeito negativo e positivo da tradiccedilatildeo e do preconceito foi o propoacutesito que

presidiu agrave selecccedilatildeo de autores estudados

Com o conhecimento progressivo da totalidade da obra do pensador alematildeo

possibilitado pela publicaccedilatildeo da ediccedilatildeo integral por Vittorio Klostermann a partir

de 75 e com a realizaccedilatildeo das primeiras traduccedilotildees e de muacuteltiplos comentaacuterios

em portuguecircs foi levada a cabo uma apropriaccedilatildeo da obra do pensador alematildeo

em liacutengua portuguesa que tomou corpo num conjunto de textos suficientemente

significativos Pude assim interrogar esses textos a fim de aiacute encontrar essa

complexa operaccedilatildeo hermenecircutica de apropriaccedilatildeo-expropriaccedilatildeo que eacute a

essecircncia de toda a traduccedilatildeo

2 O problema filosoacutefico da traduccedilatildeo

A traduccedilatildeo tornou-se a partir do ensaio de Schleiermacher Uumlber die

verschiedenen Methoden des Uumlbersetzen de 181311 um problema filosoacutefico

tendo sido aiacute abordada a questatildeo da traduccedilatildeo no interior do quadro mais geral

das teorias da linguagem e da natureza do espiacuterito Goethe Schlegel

Humboldt Paul Valeacutery Walter Benjamin Ortega e Gasset reflectiram sobre o

problema da traduccedilatildeo contribuindo para o enriquecimento e definiccedilatildeo dessa

problemaacutetica na sua dupla vertente poeacutetica e filosoacutefica

A partir de 1940 as reflexotildees sobre traduccedilatildeo adquirem um caraacutecter

sistemaacutetico com a organizaccedilatildeo profissional dos tradutores a criaccedilatildeo de

revistas e simpoacutesios internacionais Assistimos por um lado a tentativas de

pensar as relaccedilotildees entre loacutegica formal e os modelos de transposiccedilatildeo linguiacutestica

11

bdquoDer Paraphrast verfaumlhrt mit den Elementen beider Sprachen als ob sie mathematische Zeichen waumlren

die sich durch Vermehrung und Verminderung auf gleichen Werth zuruumlkfuumlhren lieszligen und weder der

verwandelten Sprache noch der Ursprache Geist kann in diesem Verfahren erscheinen [] Die

Nachbildung dagegen beugt sich unter der Irrationalitaumlt der Sprachen sie gesteht man koumlnne von einem

Kunstwerk der Rede kein Abbild in einer andern Sprache hervorbringen das in seinen einzelnen Teilen

den einzelnen Teilen des Urbildes genau entspraumlche sondern es bleibe bei der Verschiedenheit der

Sprachen mit welcher so viele andere Verschiedenheiten wesentlich zusammenhaumlngen nichts anders

uumlbrig als ein Nachbild auszuarbeiten ein Ganzes aus merklich von den Teilen des Urbildes

verschiedenen Teilen zusammengesezt welches dennoch in seiner Wirkung jenem Ganzen so nahe

komme als die Verschiedenheit des Materials nur immer gestatte

Aber nun der eigentliche Uumlbersetzer der diese beiden ganz getrennten Personen seinen Schriftsteller und

seinen Leser wirklich einander zufuumlhren und dem letzten ohne ihn jedoch aus dem Kreise seiner

Muttersprache heraus zu noumltigen zu einem moumlglichst richtigen und vollstaumlndigen Verstaumlndnis und Genuszlig

des ersten verhelfen will was fuumlr Wege kann er hierzu einschlagenldquo Friedrich Schleiermacher Das

Problem des Uumlbersetzens Stuttgart 1963 46-47

17

(Quine Word and Object (1960)) por outro lado e numa perspectiva contraacuteria

a uma indagaccedilatildeo hermenecircutica que se apoia na redescoberta do artigo Die

Aufgabe des Uumlbersetzers de Walter Benjamin publicado pela primeira vez em

1923 assim como nas contribuiccedilotildees de Heidegger e de Gadamer

O problema da traduccedilatildeo tem sido formulado como o da proacutepria possibilidade ou

impossibilidade de autecircnticas transferecircncias de sentido entre diferentes

liacutenguas O postulado da intraduzibilidade apoiou-se originariamente em tabus

de ordem religiosa relativamente agrave possibilidade de traduccedilatildeo para as liacutenguas

humanas do Logos divino e a partir do seacuteculo XV na convicccedilatildeo secular de

uma perda de sentido na traduccedilatildeo da poesia onde a uniatildeo do conteuacutedo e da

forma eacute tatildeo estreita que a sua dissociaccedilatildeo parece ser inadmissiacutevel (Diderot

Lettre sur les sourds et muets (1751)) Os mesmos argumentos satildeo por vezes

aduzidos relativamente agrave prosa sobretudo no domiacutenio da filosofia onde as

dificuldades de traduccedilatildeo do vocabulaacuterio filosoacutefico grego latino ou alematildeo para

outras liacutenguas criam a mesma sensaccedilatildeo de perda de sentido e de um processo

de entropia inerente ao acto de traduzir

Os problemas de traduccedilatildeo no acircmbito da filosofia adquirem contudo um

caraacutecter distinto e uma outra relevacircncia relacionando-se com a proacutepria

natureza do pensamento filosoacutefico e com a sua permanente tensatildeo entre uma

aspiraccedilatildeo agrave universalidade e o seu enraizamento numa situaccedilatildeo histoacuterico-

cultural

O paradigma matemaacutetico e cartesiano assim como o a priori kantiano visaram

dotar o pensamento de um estatuto de universalidade capaz de romper com o

particularismo cultural e o confinamento linguiacutestico Poreacutem os

desenvolvimentos da filosofia da linguagem na Alemanha12 vieram pocircr em

causa esta universalidade da razatildeo Hamann com a sua criacutetica agrave

universalidade do a priori kantiano e Herder com a sua sensibilidade agrave

12

ldquoIt is one of the achievements of Romanticism to have sharpened the sense of locale to have given

specific density to our grasp of geographical and historical particularity Herder was possessed of a sense

of place His ldquoSprachphilosophierdquo marks a translation from the inspired fantastications of Hamann to the

development of genuine comparative linguistics in the early nineteenth century [hellip] Like Leibniz Herder

had a vivid realisation of the atomic quality of human experience each culture each idiom being a

particular crystal reflecting the world in a particular way The new nationalism and vocabulary of race

provided Herder with a ready focus He called for ldquoa general physiognomy of the nations from their

languagesrdquo He was convinced of the irreductible spiritual individuality of each language and particulary

of German whose antique expressive strengths had lain dormant but were now armed for the light of a

new age and for the creation of a literature of world rankrdquo (George Steiner After Babel aspects of

Language and Translation Oxford-New York 1998 81-82)

18

diversidade de liacutenguas e de culturas abriram caminho para a monumental obra

de Humboldt Para Humboldt a linguagem eacute o verdadeiro a priori do

conhecimento e cada liacutengua transporta consigo uma particular ldquoabertura de

mundordquo13 Aplicando este princiacutepio ao grego e ao latim ele iraacute demonstrar

como cada uma destas liacutenguas determina formas proacuteprias e contrastantes de

civilizaccedilatildeo

Por outro lado as filosofias universalistas da linguagem apoiam-se na

convicccedilatildeo de que a traduccedilatildeo interlinguiacutestica que constantemente ocorre e

proporciona contiacutenuas transferecircncias de sentido contraria esta multiplicidade de

aberturas de mundo e exige que se admita a existecircncia de universais

linguiacutesticos Esta tese universalista aparece pela primeira vez formulada por

Roger Bacon rdquoGrammatica una et aedem est secundum substantiam in

omnibus linguis licet accidentaliter varieturrdquo [a gramaacutetica eacute una e a mesma em

substacircncia em todas as liacutenguas consentindo variaccedilotildees acidentais] tendo

posteriormente dado lugar a numerosos estudos estatiacutesticos e etnolinguiacutesticos

visando encontrar estes invariantes linguiacutesticos14

Actualmente estas teses universalistas foram retomadas pela gramaacutetica de

Chomsky15 que parte do princiacutepio de que as diferenccedilas existentes entre as

liacutenguas representam apenas diferenccedilas de estruturas de superfiacutecie que pouco

nos dizem da estrutura profunda subjacente postulada como universal Estas

13

bdquoDie Geisteseigentuumlmlichkeit und die Sprachgestaltung eines Volkes stehen in solcher Innigkeit der

Verschmelzung in einander daszlig wenn die eine gegeben waumlre die andre muumlszligte vollstaumlndig aus ihr

abgeleitet werden koumlnnen Denn die Intellektualitaumlt und die Sprache gestatten und befoumlrdern nur einander

gegenseitig zusagende Formen Die Sprache ist gleichsam die aumluszligerliche Erscheinung des Geistes der

Voumllker ihre Sprache ist ihr Geist und ihr Geist ihre Sprache man kann sich beide nie identisch genug

denken Wie sie in Wahrheit miteinander in einer und ebenderselben unserem Begreifen unzugaumlnglichen

Quelle zusammenkommen bleibt uns unerklaumlrlich verborgen Ohne aber uumlber die Prioritaumlt der einen oder

andren entscheiden zu wollen muumlssen wir als das reale Erklaumlrungsprinzip und als den wahren

Bestimmungsgrund der Sprachverschiedenheit die geistige Kraft der Nationen ansehen weil sie allein

lebendig selbstaumlndig vor uns steht die Sprache dagegen nur an ihr haftet bdquoW v Humboldt Uumlber die

Verschiedenheit des menschlichen Sprachbaues und ihren Einfluszlig auf die geistige Entwicklung des

Menschensgeschlechts Berlin 1936 sect7 37 14

ldquoThe empirical conviction that the human mind actually does communicate across linguistic barriers is

the pivot of universalism To the twelfth-century relativism of Pierre Heacutelie with his belief that the

disaster at Babel had generated as many kinds of irreconcilable grammar as there are languages Roger

Bacon opposed his famous axiom of unityhellipWithout a grammatica universalis there could be no hope of

genuine discourse among men nor any rational science of language The accidental historically moulded

differences between tongues are no doubt formidable But underlying these there are principles of unity

of invariance of organized form which determine the specific genius of human speech Amid immense

diversities of exterior shape all languages are ldquocut from the same patternrdquordquo (George Steiner ob Cit 98) 15

ldquoChomskian grammar is emphatically universalist (but what other theory of grammar ndash structural

stratificational tagmemic comparative ndash has not been so) No theory of mental life since that of

Descartes and the seventeenthndashcentury grammarians of Port Royal has drawn more explicitly on a

generalized and unified picture of innate human capacities[hellip]rdquo (Ibidem 103)

19

ldquoestruturas profundasrdquo seriam elementos inatos do espiacuterito humano que o

tornam capaz de executar certas sequecircncias de operaccedilotildees formais e

engendram as frases que efectivamente vemos e ouvimos Partindo destes

enunciados por meio da aacutervore de derivaccedilatildeo adequada podemos inferir a

estrutura profunda e chegar a um certo grau de elucidaccedilatildeo da sua natureza16

As provas da existecircncia desta estrutura profunda satildeo contudo provisoacuterias e

conjecturais apoiando-se no conhecimento de uma parte diminuta da

totalidade das liacutenguas actualmente activas

A traduccedilatildeo estaacute assim no centro desta controveacutersia sobre a natureza da

linguagem e deveria fornecer com a sua praacutetica de traduccedilatildeo adequada ou os

exemplos efectivos de intraduzibilidade uma demonstraccedilatildeo a favor de uma ou

de outra destas posiccedilotildees Contudo uma coisa eacute reconhecer a importacircncia do

movimento de traduccedilatildeo que constantemente ocorreu nos mais diversos

domiacutenios possibilitando o enriquecimento das liacutenguas e culturas europeias e

outra coisa diferente demonstrar teoricamente a possibilidade de autecircnticas

transferecircncias de sentido entre liacutenguas

Com efeito se as traduccedilotildees que constantemente ocorrem entre liacutenguas

diferentes tecircm como resultado um conjunto de textos dotados dum sentido

partilhaacutevel a questatildeo do estatuto e da dimensatildeo do sentido que eacute comunicado

e traduzido permanece em aberto

3 As mudanccedilas de paradigma na teoria da traduccedilatildeo

A transferecircncia de sentido entre diferentes liacutenguas era tradicionalmente

avaliada a partir dum ideal de fidelidade pensado como correspondecircncia entre

o texto de partida e o texto de chegada Essa correspondecircncia era conseguida

umas vezes seguindo um modelo literal procurando a equivalecircncia entre

unidades linguiacutesticas outras vezes procurando natildeo tanto a fidelidade agrave letra

como ao sentido

Durante seacuteculos os tradutores fundaram este paradigma em Ciacutecero e Horaacutecio e

consideravam-no definitivamente estabelecido pelos claacutessicos inspirando-se

nele para as suas traduccedilotildees filosoacuteficas e literaacuterias A traduccedilatildeo era uma questatildeo

16

Cf Noam Chomsky Syntactic Structures Berlin 195718-34

20

de restituiccedilatildeo do sentido do texto original que no caso da traduccedilatildeo literaacuteria ou

da traduccedilatildeo poeacutetica poderia ainda ser acompanhada de uma exigecircncia de

restituiccedilatildeo da forma17

Contudo esta tarefa de reconstituiccedilatildeo do sentido afigurou-se muitas vezes aos

tradutores uma tarefa que soacute imperfeitamente poderia ser realizada sendo esta

experiecircncia dos limites corrente na traduccedilatildeo das obras poeacuteticas onde o

sentido a forma esteacutetica e a liacutengua se encontram intrinsecamente ligados

Apesar deste ideal de fidelidade nem sempre poder ser alcanccedilado ele orientou

o trabalho do tradutor e estabeleceu-se como cacircnone das traduccedilotildees realizadas

fundamentando-se na ideia da autonomia do pensamento em relaccedilatildeo agrave

linguagem do inteligiacutevel em relaccedilatildeo ao signo sensiacutevel que o comunica

Susan Bassnett em Estudos de Traduccedilatildeo sublinha que as novas perspectivas

desenvolvidas pela Teoria da Traduccedilatildeo se encaminham para o abandono da

via tradicional de avaliaccedilatildeo das perdas e infidelidades ocorridas no processo

centrando-se primordialmente no como da traduccedilatildeo isto eacute na compreensatildeo do

que ocorre na mudanccedila de um sistema de signos linguiacutesticos para outro18

17

Frederik M Rener sublinha como Steiner o caraacutecter tardio da reflexatildeo teoacuterica sobre traduccedilatildeo dando

ainda grande destaque agrave inspiraccedilatildeo dos estudos de traduccedilatildeo em Ciacutecero e S Jeroacutenimo ldquoTranslation began

as a practical skill and remained such for a long period of time It was rather late in its history more

precisely in the 15th and 16th centuries that the first attempts were made to devote a treatise to abstract

questions such as the nature of translation or its subdivisions Yet when these works appeared on the

scene they did not present original ideas apt to revolutionize the field These works were rather efforts

tending to reduce to a system the ideas and customs both current at the time and developed over the

centuries In turn these ideas were taken from the statement and the practice of important translators of

the past In Western Europe Cicero and Jerome held the position of auctores pricipes in matters of

translation and they were consulted on questions of theory as well as practicerdquo (Frederik M Rener

Interpretatio Language and Translation from Cicero to Tytler Amsterdam - Atlanta GA 1989 306)

Frederick Rener chama a atenccedilatildeo para o facto de que a pluralidade de termos latinos usados para designar

a traduccedilatildeo (transferre transvertere transcribere Latine exprimere Latino sermone tradere mutare e

ainda interpretare) sugere que a traduccedilatildeo latina natildeo se restringia ao ideal de fidelidade ao sentido mas

conhecia vaacuterias modalidades de acordo com as caracterigravesticas do texto a traduzir Cigravecero traduzia ldquout

oratordquo que apontava para uma restituiccedilatildeo retoacuterica do sentido e tambeacutem ldquototidem verbisrdquo isto eacute

literalmente Mais agrave frente daremos conta de idecircntico ponto de vista de Susan Bassnett

Esta mesma tese de que por vezes a traduccedilatildeo latina eacute recriaccedilatildeo original do texto grego eacute fundamentada

por F Renner em De Officiis onde Ciacutecero admite abertamente que as ideias defendidas no tratado foram

recolhidas do estoicismo grego natildeo agrave maneira do tradutor mas do ldquoconhecedorrdquo retirando das fontes

estoacuteicas soacute a parte que lhe conveacutem e usando-a de acordo com o seu propoacutesito Ciacutecero faria assim uma

distinccedilatildeo entre a traduccedilatildeo literal e a imitaccedilatildeo criativa (imitatio) ldquoCicero is drawing a dividing line

between the normal approach used when translation (ut interpres) and this technique of creative imitation

while at the same time defining the main features of the latter In using imitatio the translator is said to

have complete freedom with the quantity (quantum) of the original material and the manner in which it is

used (quoque modo) implying a modification of context and of wording The only criterion guiding his

decision is the judgment of the artist himself (iudicio arbitrioque nostro)rdquo (Ob cit 307) 18

Susan Bassnett em Translation Studies chama a atenccedilatildeo para as dificuldades de fazer uma periodizaccedilatildeo

cronoloacutegica da histoacuteria da traduccedilatildeo Embora reconheccedila que houve diferentes concepccedilotildees sobre traduccedilatildeo

que dominaram em certos periacuteodos da histoacuteria a autora chama tambeacutem a atenccedilatildeo para a existecircncia de

21

Tambeacutem George Steiner em Depois de Babel19 mostra que a traduccedilatildeo envolve

uma interpretaccedilatildeo e uma transposiccedilatildeo que natildeo deixa o sentido intacto mas

uma transformaccedilatildeo e mesmo uma recriaccedilatildeo fortemente marcada pela liacutengua de

chegada do tradutor e sistematiza este movimento hermenecircutico em 4 tempos

de que o primeiro seria um investimento de crenccedila na consistecircncia e seriedade

do texto com que se confronta o tradutor na convicccedilatildeo de que ldquoalguma coisa

estaacute alirdquo que merece ser traduzido o segundo tempo seria um movimento de

agressatildeo invasatildeo e apropriaccedilatildeo do sentido do texto que passa pelo seu

desmembramento e dissecaccedilatildeo o terceiro tempo seria o da incorporaccedilatildeo no

campo semacircntico natal e preexistente que admite vaacuterios graus de assimilaccedilatildeo

e de recolocaccedilatildeo da aclimataccedilatildeo completa ou pelo contraacuterio de estranheza e

distanciaccedilatildeo sendo o uacuteltimo tempo o da procura do equiliacutebrio entre o texto de

partida e o de chegada

Este movimento de transposiccedilatildeo natildeo conduz a uma coacutepia que manteacutem o

sentido intacto mas a um duplo que sofre uma inevitaacutevel transfiguraccedilatildeo de

sentido imposta pelos constrangimentos gramaticais e pela mudanccedila de

contexto cultural Esta alteraccedilatildeo de sentido pode ser objecto de avaliaccedilatildeo o

que ele faz detalhadamente a propoacutesito das diferentes traduccedilotildees da poesia de

Shakespeare e de Homero mas tambeacutem de traduccedilotildees de alguns textos de

prosa no domiacutenio da ficccedilatildeo literaacuteria e da filosofia

O novo ponto de vista estabelecido segundo Susan Bassnett a partir dos

novos estudos de traduccedilatildeo dos anos noventa rejeita pois o antigo ideal de

ldquofidelidaderdquo para se centrar na investigaccedilatildeo do que acontece quando um texto

eacute transferido da cultura de partida para a cultura de chegada e estaacute associado

diferentes linhas de abordagem da traduccedilatildeo que natildeo coincidem com um contexto temporal determinado eacute

o caso da opccedilatildeo pela ldquotraduccedilatildeo literalrdquo ou pela ldquotraduccedilatildeo segundo o sentidordquo distinccedilatildeo jaacute estabelecida por

Ciacutecero (Susan Bassnett Translation Studies London 1980 42)

No entanto a constituiccedilatildeo de uma aacuterea disciplinar dos Estudos de Traduccedilatildeo implica segundo a autora

uma mudanccedila de perspectiva retirando a poleacutemica do campo normativo e colocando a ecircnfase na

compreensatildeo do que realmente ocorre em diferentes tipos de traduccedilatildeo ldquoThe translator who makes no

attempt to understand the how behind the translation process is like the driver of a Rolls who has no idea

what makes the car move Likewise the mechanic who spends a lifetime taking engines apart but never

goes out for a drive in the country is a fitting image for the dry academician who examines the how at the

expense of what isrdquo (Ob cit 76) 19

George Steiner leva a cabo uma periodizaccedilatildeo cronoloacutegica da histoacuteria da traduccedilatildeo em 4 periacuteodos o

primeiro estende-se desde Ciacutecero agrave publicaccedilatildeo em 1791 da obra de Alexander Tytler Essay on the

principles of translation o segundo periacuteodo estende-se ateacute agrave publicaccedilatildeo em 1946 de Sous l‟invocation

de Saint Jerocircme de Larbaud o terceiro comeccedila com a publicaccedilatildeo dos primeiros escritos sobre traduccedilatildeo

automaacutetica nos anos quarenta do seacuteculo XX e o uacuteltimo tem origem nos anos sessenta e caracteriza-se por

ldquoum regresso agrave indagaccedilatildeo hermenecircutica quase metafigravesica sobre a traduccedilatildeo e a interpretaccedilatildeordquo largamente

influenciado pela descoberta do manuscrito de Walter Benjamin ldquoDie Aufgabe des Uumlbersetzersrdquo assim

como por Heidegger e Gadamer (Idem After Babel 248-252)

22

a uma nova importacircncia conferida agrave traduccedilatildeo e ao tradutor este jaacute natildeo estaacute

confinado a um papel subserviente mas eacute-lhe conferido um papel criador e

potencialmente subversivo Os novos estudos de traduccedilatildeo comeccedilaram a

explorar as implicaccedilotildees da traduccedilatildeo num quadro cultural e histoacuterico mais

alargado e a ver no tradutor um mediador entre liacutenguas e culturas diferentes e

no acto de traduccedilatildeo uma tarefa arriscada implicando a manipulaccedilatildeo do sentido

e a criatividade20

Este novo ponto de vista sobre a traduccedilatildeo e o papel do tradutor tem-se

traduzido numa crescente aproximaccedilatildeo entre literatura traduzida e literatura

original reconhecendo-se no interior da Literatura Comparada o papel da

primeira na configuraccedilatildeo da histoacuteria das literaturas nacionais O novo estatuto

hermenecircutico reconhecido ao processo de reescrita da traduccedilatildeo levou

progressivamente ao reconhecimento da traduccedilatildeo como o lugar privilegiado

para a reflexatildeo sobre as vaacuterias vertentes do processo literaacuterio

Na literatura traduzida reconhece-se a produccedilatildeo de efeitos nas liacutenguas e nas

literaturas da liacutengua de chegada e por conseguinte a histoacuteria da traduccedilatildeo

tende a incorporar-se na histoacuteria da literatura como uma das suas vertentes

essenciais Joatildeo Barrento em O Poccedilo de Babel sublinha que as traduccedilotildees em

sentido estrito podem ser pensadas como o efeito da proacutepria obra a ser

traduzida enquanto seu efeito especular mas elas arrastam esse efeito

especular para o domiacutenio da liacutengua de chegada e para o corpo vivo da

literatura produzida nessa liacutengua ldquoO espelho gera assim necessariamente um

duplo do texto-primeiro O duplo ndash sabemo-lo por ETA Hoffmann

Maupassant Dostoiewsky Oscar Wilde ou Freud ndash eacute uma estrateacutegia de

sobrevivecircncia do Eu (aqui do texto original como tambeacutem entende Walter

Benjamin) um alter- ego que desmente (embora contraditoriamente porque a

traduccedilatildeo eacute sempre renascimento e morte ndash apagamento do original ndash do Eu

20

Susan Bassnett salienta que este novo interesse pela traduccedilatildeo modificaraacute a nossa compreensatildeo das

ligravenguas e das culturas e levaraacute a uma revisatildeo da histoacuteria das literaturas ldquoResearch in Translation Studies

has barely begun There are dozens of books to be written doctoral theses to be pursued theoretical texts

to be discovered and translated literary history is waiting to be rewritten as the new knowledge filters

through Who would have believed back in the late 1960s that feminism would have transformed the

literary canon forced a revaluation of the process of canonization changed our knowledge about the past

and radically altered our perceptions of language and culture today Yet such changes have happened

and an alternative gender-based perspective has now decisively entered literary study I suggest that we

are witnessing a similar major shift in our perception of cultural history with the work that is taking place

in Translation Studies and the fact that so much work is developing outside the Euro-American tradition

is an indication of the speed and extent of that shiftrdquo (Idem Translation Studies Preface to the revised

edition XVIII-XIX)

23

pelo Outro do Eu no Outro) a impossibilidade de traduccedilatildeo e traz para (tra-duz)

ou introduz na liacutengua de chegada (a liacutengua portuguesa) algo da outra liacutengua e

literaturacultura ndash melhor dizendo transporta idiossincrasias literaacuterias e

culturais alheias in medio linguae atraveacutes da proacutepria liacutengua marcas que de

acordo com factores e vicissitudes histoacuterico-literaacuterios e socioloacutegicos diversos

podem passar em maior ou menor grau para o corpo vivo da liacutengua e da

literatura de chegadardquo21

O reconhecimento das alteraccedilotildees e reconfiguraccedilotildees inerentes agrave traduccedilatildeo e

portanto agrave sua incorporaccedilatildeo nas liacutenguas de chegada levou muitos autores a

substituir a metaacutefora do espelho pela do efeito refractaacuterio Este efeito natildeo pode

ser considerado como uma recepccedilatildeo passiva de um texto traduzido mas um

processo activo de assimilaccedilatildeo que implica o ldquodevorarrdquo e o refazer o texto

original sem eliminar ou negar a sua alteridade assimilaccedilatildeo de que resultaria

uma multiplicidade de traduccedilotildees que satildeo elas mesmas variaccedilotildees assimeacutetricas

implicando flutuaccedilotildees mais ou menos importantes de sentido

O reconhecimento deste efeito de refracccedilatildeo provocado pelas muacuteltiplas

traduccedilotildees de um texto em diferentes liacutenguas torna obsoletas as categorias de

recepccedilatildeo passiva e recepccedilatildeo activa em que tradicionalmente se categoriza a

recepccedilatildeo de um autor estrangeiro Efectivamente a simples leitura que a

traduccedilatildeo possibilita ampliar e multiplicar eacute sempre a leitura dum texto recriado

e duma variaccedilatildeo que iraacute repercutir-se na criaccedilatildeo de obras originais A traduccedilatildeo

e a criaccedilatildeo de obra original natildeo estatildeo separadas por um abismo intransponiacutevel

mas haacute entre elas uma soluccedilatildeo de continuidade assinalada por diversos graus

de assimilaccedilatildeo e incorporaccedilatildeo o que pode legitimar uma extensatildeo do conceito

de traduccedilatildeo ao conjunto das formas diferentes de recepccedilatildeo

Gera-se assim uma tendecircncia para a ldquodessacralizaccedilatildeordquo da obra original que

tende a ser vista ela mesma como resultado de um complexo processo de

traduccedilatildeo George Steiner em Depois de Babel defende a tese de que toda a

histoacuteria da arte como tambeacutem da filosofia consiste mesmo nos seus

momentos criadores mais originais numa retomaccedilatildeo de um nuacutemero limitado de

arqueacutetipos ldquoOs temas de uma boa parte da nossa filosofia arte e literatura satildeo

uma sequecircncia de variaccedilotildees e os gestos por meio dos quais articulamos o

sentido e os valores fundamentais revelam-se quando os examinamos de

21

Joatildeo Barrento O Poccedilo de Babel - para uma poeacutetica da traduccedilatildeo literaacuteria Lisboa 2002 80

24

perto em nuacutemero limitado O ldquoconjunto organizadordquo inicial engendrou uma seacuterie

incomensuraacutevel de variantes e figuras locais (as nossas ldquotopologiasrdquo) mas

parece conter em si proacuteprio natildeo mais que um nuacutemero restrito de unidadesrdquo 22

Esta consideraccedilatildeo da obra original como ldquotraduccedilatildeordquo ou retomaccedilatildeo e

actualizaccedilatildeo de arqueacutetipos remonta na realidade segundo Steiner a antigas

formulaccedilotildees da teoria da traduccedilatildeo a teoria da traduccedilatildeo desde o seacuteculo XVII

define quase sempre trecircs categorias a primeira corresponde agrave traduccedilatildeo

estritamente literal termo a termo a segunda corresponde agrave translaccedilatildeo por

meio de um enunciado fiel ao sentido mas autoacutenomo a terceira categoria eacute a

da imitatio que implica a recriaccedilatildeo variaccedilatildeo e interpretaccedilatildeo paralela podendo

esta categoria incluir por exemplo a relaccedilatildeo de James Joyce com Homero Este

esquema triaacutedico cujas linhas de demarcaccedilatildeo satildeo fluidas autoriza a leitura e

interpretaccedilatildeo de muitas das grandes obras originais como ldquotraduccedilatildeordquo

Assim podemos verificar que antigas categorizaccedilotildees instituiacutedas haacute muito

pelos teoacutericos da traduccedilatildeo hoje recuperadas e revalorizadas pelas modernas

contribuiccedilotildees no domiacutenio da Literatura Comparada e da Filosofia da

Linguagem vieram mostrar que natildeo haacute um fosso intransponiacutevel entre a criaccedilatildeo

de obras originais e a influecircncia de autores estrangeiros e mais radicalmente

mostra que a originalidade absoluta eacute um mito que tem ser substituiacutedo pela

ideia de intertextualidade

Assim entre traduccedilatildeo e tradiccedilatildeo haacute um nexo que os modernos estudos de

traduccedilatildeo vieram pocircr a claro a totalidade dos textos que constituem a tradiccedilatildeo

filosoacutefica e literaacuteria europeia satildeo simultaneamente originais e traduccedilotildees de

outros textos como sublinha Octaacutevio Paz em Traduccioacuten Literatura y

Literalidad ldquoQualquer texto eacute uacutenico e eacute ao mesmo tempo a traduccedilatildeo de outro

texto Nenhum texto eacute original porque a proacutepria linguagem na sua essecircncia jaacute

eacute uma traduccedilatildeo primeiramente do mundo natildeo-verbal e em segundo lugar

porque cada signo e cada frase eacute a traduccedilatildeo de outro signo e de outra frase

22

ldquoThe themes of which so much of our philosophy art literature are a sequence of variations the

gestures through which we articulate fundamental meanings and values are if we consider them closely

quite restricted The initial ldquosetrdquo has generated an incommensurable series of local variants and figures

(our ldquotopologiesrdquo) but in itself it seems to have contained only a limited number of unitsrdquo (George

Steiner After Babel 486)

25

Este argumento pode poreacutem ser revertido sem perder nenhuma da sua

validade todos os textos satildeo originais porque todas as traduccedilotildees satildeo

diferentes Ateacute certo ponto todas as traduccedilotildees satildeo uma invenccedilatildeo e enquanto

tal uacutenicasrdquo23

A relaccedilatildeo com a tradiccedilatildeo filosoacutefica e literaacuteria tornou-se um problema teoacuterico

discutido nas teorias de traduccedilatildeo chamadas poacutes-coloniais para as quais se

tornou pertinente a reflexatildeo sobre a relaccedilatildeo das culturas dominadas com as

culturas dominantes Essa assimetria cultural levava a ver a traduccedilatildeo como

coacutepia inferior ao texto original e na praacutetica da traduccedilatildeo um processo de

moldagem das culturas dominadas por uma tradiccedilatildeo literaacuteria que lhe era alheia

Particularmente na Ameacuterica Latina cujos povos levam a cabo uma busca da

sua identidade cultural desenvolveu-se uma nova visatildeo chamada poacutes-colonial

desta relaccedilatildeo entre traduccedilatildeo e texto original que os coloca em peacute de igualdade

e tende a enfatizar a traduccedilatildeo como apropriaccedilatildeo original e recriaccedilatildeo de uma

tradiccedilatildeo

A mudanccedila de paradigma dos estudos de traduccedilatildeo teve vaacuterias fontes uma das

quais eacute sem duacutevida a praacutetica viva da traduccedilatildeo e o novo contexto da

globalizaccedilatildeo e da multiplicidade dos contactos inter-culturais em que ela eacute

levada a cabo Sob o impacto de tais mudanccedilas veio-se a compreender a

complexidade desse lugar rdquointerrdquo em que ela eacute levada a cabo e que tende a ser

visto mais como um espaccedilo de mediaccedilatildeo e negociaccedilatildeo entre liacutenguas e culturas

diferentes do que como um lugar neutro atraveacutes do qual se processam

transferecircncias de sentido passiacuteveis de serem avaliadas por um ideal de

fidelidade agora julgado ilusoacuterio e mistificador do que realmente ocorre nessas

transferecircncias

23

ldquoCada texto es uacutenico y simultaacuteneamente es la traduccioacuten de otro texto Ninguacuten texto es enteramente

original porque el lenguaje mismo en su esencia es ya una traduccioacuten primero del mundo no-verbal y

despueacutes porque cada signo y cada frase es la traduccioacuten de otro signo e de otra frase Pero ese

razonamiento puede invertirse sin perder validez todos los textos son originales porque cada traduccioacuten

es distinta Cada traduccioacuten es hasta cierto punto una invencioacuten y asigrave constituye un texto uacutenicordquo Octaacutevio

Paz Traduccioacuten Literatura y Literalidad Barcelona 199013

26

4 A traduccedilatildeo e a sua conexatildeo com a temporalidade

No entanto do ponto de vista histoacuterico eacute necessaacuterio ter em conta que esta

mudanccedila de paradigma que ocorre nos estudos de traduccedilatildeo a partir dos anos

noventa foi na realidade antecipada pela filosofia Jaacute em Phaumlnomenologische

Interpretationen zu Aristoacuteteles do semestre de Inverno de 1921192224

Heidegger se confronta com o problema da traduccedilatildeo filosoacutefica e do modo como

ela se interliga com a interpretaccedilatildeo e esta temaacutetica eacute retomada em todos os

ensaios sobre filosofia grega em estreita articulaccedilatildeo com as suas proacuteprias

traduccedilotildees de muacuteltiplos textos gregos

Significativamente foi tambeacutem a relevante e enigmaacutetica experiecircncia de

traduccedilatildeo dos claacutessicos levada a cabo por Houmllderlin25 expressa na sua proacutepria

poesia nas cartas e nas traduccedilotildees ldquoem sentido estritordquo que suscitou a reflexatildeo

de Heidegger sobre a temaacutetica da traduccedilatildeo e constituiu uma das fontes da sua

ontofenomenologia da linguagem

As distorccedilotildees de sentido provocadas pelas operaccedilotildees hermenecircuticas de

traduccedilatildeo e interpretaccedilatildeo marcaram segundo Heidegger as traduccedilotildees latinas

dos filoacutesofos gregos26 com importantes consequecircncias negativas para o

desenrolar da histoacuteria do ocidente enquanto o modelo de traduccedilatildeo autecircntica se

encontra prefigurado em Houmllderlin

24

Cf Martin Heidegger EpF (GA 61) Nesta obra Heidegger analisa e explora as implicaccedilotildees do

enraizamento da interpretaccedilatildeo filosoacutefica na vida faacutectica do Dasein relendo agrave luz desta tese a leitura

medieval e moderna da obra de Aristoacuteteles O conceito de ldquosituaccedilatildeo hermenecircuticardquo que aigrave eacute antecipado

seraacute exposto em AhS (GA 62) 25

Cf George Steiner em After Babel O autor afirma a grande importacircncia das traduccedilotildees (fragmentaacuterias e

muitas vezes feitas para uso privado) de Houmllderlin dos autores claacutessicos como Homero Piacutendaro

Soacutefocles Euriacutepedes Virgiacutelio e Horaacutecio e defende que elas representam um acto hermenecircutico de

violecircncia extrema forccedilando as barreiras linguiacutesticas Steiner sublinha que usando ldquouma literalidade

paradoxalrdquo Houmllderlin construigravea as suas traduccedilotildees numa zona intermediaacuteria entre o antigo e o moderno o

grego e o alematildeo Do mesmo modo a sua primeira poesia representa uma tentativa de renovar o alematildeo

atraveacutes do regresso agrave forccedila da sua fonte originaacuteria reinterpretando o significado dos termos de acordo

com a sua suposta etimologia ldquoHis etymologizing is part of an anti-Enlightenment tactic of linguistic

nationalism and numinous historicism Herder and Klopstock were direct influential forerunners But

Houmllderlin pressed further He was trying to move upstream not only to the historical springs of German

but to the primal energies of human discourserdquo (Ob cit 341) 26

Cf Susan Bassnett em Translation Studies Sobre o estatuto da traduccedilatildeo entre os romanos e a

importacircncia e qualidade das traduccedilotildees latinas a autora demonstra que as posiccedilotildees de Horaacutecio e Ciacutecero

sobre traduccedilatildeo tiveram grande importacircncia para geraccedilotildees de futuros tradutores e ainda que as suas

traduccedilotildees satildeo recriaccedilatildeo e natildeo uma imitaccedilatildeo servil dos textos gregos Segundo Susan Bassnett estes

tradutores latinos tinham como objectivo o enriquecimento da liacutengua romana colocando a ecircnfase nos

criteacuterios esteacuteticos da liacutengua de chegada e natildeo nas noccedilotildees mais riacutegidas de fidelidade ldquoThe art of the

translator for Horace and Cicero then consisted in judicious interpretation of the SL text so as to

produce a TL version based on the principle non verbum de verbo sed sensum exprimere de sensu (of

expressing not word for word but sense for sense) and his responsibility was to the TL readersrdquo (Obcit

44)

27

No entanto a contribuiccedilatildeo mais relevante de Heidegger natildeo seraacute tanto esta

reavaliaccedilatildeo das traduccedilotildees que constituem o cerne da tradiccedilatildeo filosoacutefica mas

sim o ter desconstruiacutedo o acircmbito teoacuterico e metafiacutesico do cacircnone ldquofidelidaderdquo

que vigorava nas teorias dominantes de traduccedilatildeo

Em Heidegger a traduccedilatildeo torna-se ela mesma um problema metafiacutesico que

deve ser pensado em estreita articulaccedilatildeo com a questatildeo do ser e da

linguagem A ligaccedilatildeo indissociaacutevel entre pensamento e linguagem

estabelecida em Sein und Zeit choca frontalmente com a tese da separaccedilatildeo

entre sentido inteligiacutevel e signo sensiacutevel que suportava o paradigma claacutessico de

traduccedilatildeo

Heidegger estabeleceu em Sein und Zeit a historicidade como uma dimensatildeo

intriacutenseca da existecircncia humana o ser do homem tem a sua especificidade

enquanto eacute existecircncia ex-staacutetica podendo em cada instante assumir o

passado projectando-o no porvir em direcccedilatildeo ao futuro Assim a

especificidade ontoloacutegica do ser humano reside no facto de ele natildeo ser isto ou

aquilo mas sim fazer-se a si mesmo assumindo-se como possibilidade ou

projecto A temporalidade eacute o proacuteprio modo de ser do homem enquanto

gestaccedilatildeo de si mesmo ou existecircncia

A linguagem enquanto fala (Rede)27 eacute exerciacutecio de presentificaccedilatildeo em que a

articulaccedilatildeo dos trecircs ecircxtases temporais (passado presente e futuro)

fundamenta a constituiccedilatildeo dum horizonte preacutevio de sentido no qual o mundo

pode aparecer como tal

Heidegger iraacute mais tarde em as Liccedilotildees de Loacutegica do semestre de Veratildeo de

1934 retomar a questatildeo da linguagem enriquecendo a perspectiva

transcendental de Ser e Tempo com a perspectiva histoacuterica e temporal Nessa

obra a linguagem natildeo eacute a fala (Rede) mas ela apresenta-se facticamente

enquanto liacutengua (Sprache)28 isto eacute enquanto fala histoacuterica em que um povo

concreto exprime a imediata compreensatildeo do mundo

27

ldquoDie Rede ist die bedeutungsmaumlβige Gliederung der befindlichen Verstaumlndlichkeit des In-der-Welt-

seins Als konstitutive Momente gehoumlren ihr zu das Woruumlber der Rede (das Beredete) das Geredete als

solches die Mitteilung und die Bekundung Das sind keine Eigenschaften die sich nur empirisch an der

Sprache aufraffen lassen sondern in der Seinsverfassung des Daseins verwurzelte existenziale

Charaktere die so etwas wie Sprache ontologisch erst ermoumlglichenrdquo SuZ GA 2 sect34 162 28

ldquoDie Sprache ist das Walten der weltbildenden und bewahrenden Mitte des geschichtlichen Daseins des

Volkesrdquo LWS GA 38 169 (Cf traduccedilatildeo portuguesa Martin Heidegger Loacutegica A pergunta pela

28

Aiacute Heidegger expotildee uma concepccedilatildeo da histoacuteria fundando-a na temporalidade

intriacutenseca da existecircncia humana a histoacuteria eacute o ir fazendo-se a si mesma da

existecircncia na unidade dos trecircs ecircxtases temporais passado presente e futuro

sendo esta auto-gestaccedilatildeo temporal o modo do acontecer humano

(Geschehen) Nem todo o acontecer eacute poreacutem histoacuterico - histoacuterico eacute apenas

aquele acontecer em que acontece a renovada decisatildeo (Entscheidung29) de um

povo por si mesmo ou por conservar a sua determinaccedilatildeo

Nesta concepccedilatildeo da histoacuteria como temporalidade imanente ao movimento de

auto-gestaccedilatildeo dum povo a partir de si mesmo a importacircncia do passado eacute

totalmente reavaliada O passado natildeo eacute nunca o que estaacute a passar nem a

presenccedila morta do que jaacute passou mas o que desde o antes permanece e eacute

trazido para o presente O acontecer propriamente histoacuterico eacute soacute e apenas

aquele acontecer que o homem toma a cargo como seu e pelo qual se decide

como sendo a sua heranccedila o que faz da histoacuteria um movimento de

actualizaccedilatildeo permanente do passado o retomaacute-lo de forma criativa e

projectiva convertendo-o em tradiccedilatildeo (Uumlberlieferung 30) viva

Ora esta retomaccedilatildeo criadora do passado que o converte em tradiccedilatildeo viva eacute

sempre loacutegico-linguiacutestica daacute-se na linguagem que eacute sempre a liacutengua dum

povo histoacuterico determinado A linguagem eacute assim notificaccedilatildeo (Kunde31) ou

notiacutecia da histoacuteria ela eacute o centro da proacutepria existecircncia histoacuterica de um povo que

cria e conserva mundo e testemunha o modo como numa determinada eacutepoca

histoacuterica um povo assume a abertura ao ser (Offenbarkeit)

Deste modo a hermenecircutica heideggeriana que toma como ponto de partida o

ser do homem como temporalidade e a verdade como desvelamento histoacuterico-

temporal permite ver esse espaccedilo ldquointer-cultural e inter-linguiacutesticordquo em que

trabalham os tradutores como inter-temporalidade As diversas liacutenguas

histoacutericas transportam consigo horizontes de sentido natildeo apenas distintos mas

essecircncia da linguagem coord cientiacutefica de Irene Borges-Duarte trad de Maria Adelaide Pacheco e

Helga Hook Quadrado Gulbenkian 2008) 29

bdquoDas Wesen der Entscheidung haben wir in der Entschlossenheit gesehen Die Entschlossenheit aber ist

kein einmaliger Akt sondern ein Geschehen kraft dessen wir in das Geschehen in dem wir stehen

eingefuumlgt werdenrdquo Ibidem 97 30

bdquoGewesenheit darf aber nicht als Vergangenheit begriffen werden Das von fruumlher her Wesende hat

seine Eigentuumlmliches darin daβ es uumlber jedes Heutige und Jetzige immer schon hinweggegriffen hat Es

west als Uumlberlieferungldquo Ibidem 117 31

bdquoUnter Geschichtskunde verstehen wir die jeweilige Art und Weise der Offenbarkeit in der ein Zeitalter

in der Geschichte steht so zwar daβ diese Offenbarkeit das geschichtliche Sein des Zeitalters mit traumlgt

und mit leitetldquo Ibidem 93

29

incomensuraacuteveis fazendo com que toda a traduccedilatildeo seja uma complexa

operaccedilatildeo hermenecircutica de confrontaccedilatildeo de distintos horizontes histoacuterico-

linguiacutesticos onde se jogam importantes mutaccedilotildees de sentido

De acordo com este novo paradigma o tradutor eacute tambeacutem um viajante algueacutem

que viaja de uma fonte para outra sendo relativamente secundaacuterio saber se

essa viagem decorre entre diferentes liacutenguas ou no interior da mesma liacutengua

pois a apropriaccedilatildeo dum texto do passado e a sua transposiccedilatildeo para o presente

eacute essencialmente uma operaccedilatildeo de traduccedilatildeo ou seja de transposiccedilatildeo para um

novo horizonte histoacuterico-temporal implicando tambeacutem idecircntica apropriaccedilatildeo

expropriadora

Gadamer iraacute retomar esta temaacutetica heideggeriana sublinhando ainda mais

fortemente que toda a traduccedilatildeo atraiccediloa o texto original Retomando a noccedilatildeo

de ciacuterculo hermenecircutico32 estabelecida por Heidegger em Sein und Zeit e

explorando as suas implicaccedilotildees teoacutericas Gadamer mostra que qualquer texto

soacute pode ser compreendido a partir duma antecipaccedilatildeo ou duma expectativa de

sentido que vai em seguida ser corrigida e revista no confronto com ldquoa coisa

mesmardquo

Gadamer leva a cabo a reabilitaccedilatildeo da tradiccedilatildeo e preconceitos33 como

condiccedilotildees preacutevias de toda a interpretaccedilatildeo reconduzindo a pretensatildeo da

Aufklaumlrung de uma razatildeo destituiacuteda de preconceitos a uma utopia

absolutamente inviaacutevel A autonomia absoluta da razatildeo eacute impossiacutevel pois a

razatildeo necessita sempre da garantia externa duma ldquoautoridaderdquo seja ela a do

especialista a de algueacutem que se situa no topo de uma hierarquia ou a de uma

tradiccedilatildeo

O acto de interpretar natildeo pode pois ser livre de preconceitos podendo apenas

interessar a uma teoria hermenecircutica destrinccedilar entre os preconceitos positivos

e fecundos e os prejuiacutezos negativos que encobrem e dificultam o acesso ldquoagraves

coisas mesmasrdquo destrinccedila essa que o proacuteprio processo de compreensatildeo vai

produzindo espontaneamente O inteacuterprete natildeo eacute o que aborda directamente o

32

bdquoDer ldquoZirkelrdquo im Verstehen gehoumlrt zur Struktur des Sinnes welches Phaumlnomen in der existenzialen

Verfassung des Daseins im auslegenden Verstehen verwurzelt ist Seiendes dem es als In-der-Welt-sein

um sein Sein selbst geht hat eine ontologische Zirkelstrukturldquo SuZ GA 2 sect32 153 33

Para Gadamer a autonomia das ciecircncias humanas deve ser fundada na tradiccedilatildeo humanista e no conceito

de Bildung que ela elaborou e natildeo no paradigma metodoloacutegico a que Diltey as subordina cf Jean

Grondin L‟Universaliteacute de l‟ hermeacuteneutique Paris 1993 162-163

30

texto livre de opiniotildees preacutevias mas o que toma consciecircncia dessa opiniatildeo

preacutevia e a potildee expressamente agrave prova procurando a sua legitimaccedilatildeo no texto

que interpreta

A situaccedilatildeo hermenecircutica eacute esse aiacute que natildeo engloba apenas os preconceitos

individuais mas o conjunto de juiacutezos que testemunham o presente histoacuterico e

dele emanam e que delimitam os temas susceptiacuteveis de serem investigados e

as questotildees que podem ocupar o centro da reflexatildeo

No entanto o inteacuterprete se tem uma consciecircncia hermenecircutica eacute tambeacutem

aquele que compreende a alteridade do texto isto eacute entende e aceita que o

texto que interpreta se situa num outro contexto histoacuterico-linguiacutestico que o seu

autor e o acto da sua criaccedilatildeo se inserem num outro horizonte

Esta consciecircncia da alteridade eacute um momento imprescindiacutevel da consciecircncia

hermenecircutica que tem assim que ser tambeacutem uma consciecircncia histoacuterica

sensiacutevel agrave importacircncia da temporalidade e ao facto do sentido de um texto se

poder diversificar e amplificar no decurso de diferentes eacutepocas histoacutericas e de

diferentes geraccedilotildees de leitores A distacircncia histoacuterica eacute assim uma vantagem

hermenecircutica porque representa a possibilidade de o inteacuterprete se confrontar

com uma multiplicidade de leituras dum mesmo texto e as deixar ressoar em si

como uma multiplicidade de vozes A tradiccedilatildeo eacute para Gadamer precisamente

essa multiplicidade que como afirmava Heidegger em Houmllderlin e a Essecircncia

da Poesia ldquoeacute capaz de divergir a partir do mesmordquo

A interpretaccedilatildeo implica assim este ouvir da tradiccedilatildeo como uma multiplicidade

que transporta em si o eco do passado e simultaneamente o escutar essa

multiplicidade de acordo com um horizonte de sentido que eacute sempre imposto

pela situaccedilatildeo presente ldquoNas ciecircncias do espiacuterito eacute ao contraacuterio o presente e

os seus interesses proacuteprios que em cada eacutepoca datildeo uma motivaccedilatildeo particular

ao interesse da investigaccedilatildeo votada agrave tradiccedilatildeordquo34

A reabilitaccedilatildeo da tradiccedilatildeo e do preconceito em Gadamer tem que ser

compreendida em conexatildeo com a noccedilatildeo de histoacuteria efectual

(Wirkungsgeschichte) isto eacute com a noccedilatildeo de uma tradiccedilatildeo que se transmite

efectivamente queiramos noacutes ou natildeo e sob cujo impeacuterio nos situamos sempre

34

bdquoBei den Geisteswissenschaften ist vielmehr das Forschungsinteresse das sich der Uumlberlieferung

zuwedet durch die jeweilige Gegenwart und ihre Interessen in besonderer Weise motiviertldquo WuM GW

1 289

31

qualquer que seja o niacutevel de reflexatildeo em que nos situemos A tradiccedilatildeo opera

em noacutes como uma estrutura preacutevia fazendo de qualquer acto hermenecircutico

uma projecccedilatildeo desse preacutevio isto eacute a actualizaccedilatildeo e desenvolvimento de um

projecto que estaacute sempre jaacute previamente lanccedilado O ciacuterculo hermenecircutico natildeo

eacute assim nada de subjectivo mas um jogo necessaacuterio onde o texto e o inteacuterprete

se movem um agrave volta do outro ldquoO ciacuterculo natildeo eacute de natureza formal ele natildeo eacute

nem subjectivo nem objectivo pelo contraacuterio ele natildeo faz senatildeo apresentar o

compreender como o jogo onde passam um no outro o movimento da tradiccedilatildeo

e o do inteacuterprete A antecipaccedilatildeo de sentido que guia a nossa compreensatildeo de

um texto natildeo eacute um acto da subjectividade mas determina-se a partir da

comunidade (Gemeinsamkeit) que nos liga agrave tradiccedilatildeordquo35

Podemos no entanto perguntar se este conceito de ldquocircularidade

hermenecircuticardquo natildeo poderaacute legitimar a deturpaccedilatildeo da descodificaccedilatildeo de

mensagens principalmente quando elas satildeo emanadas de contextos

culturalmente ou cronologicamente muito distantes Com efeito a

ldquoconsistecircnciardquo da fixaccedilatildeo do sentido do texto que eacute o proacuteprio moacutebil da escrita

poderia dissolver-se no jogo das interpretaccedilotildees dando lugar a uma flutuaccedilatildeo

irrestrita do sentido

O conceito de ldquoidealidade do textordquo proposto por Ricœur vem chamar a

atenccedilatildeo para o facto de o texto impor um modo de ser ou um projecto de

mundo que desvela diante de si mesmo A apropriaccedilatildeo pelo inteacuterprete nada

teria a ver com a relaccedilatildeo entre duas subjectividades devendo antes ser

compreendida como aquilo a que Hans-Georg Gadamer chama a fusatildeo de

horizontes (Horizonntsverschmeltzung) o horizonte do mundo do leitor funde-

se com o horizonte do mundo do escritor A idealidade do texto seria assim o

viacutenculo mediador neste processo de fusatildeo de horizontes

Esta ldquoidealidade do textordquo que exige do leitor-inteacuterprete que pense levado pela

flecha do sentido do texto eacute no entanto um momento dum processo mais

vasto do alargamento das suas proacuteprias possibilidades de projecccedilatildeo Soacute a

interpretaccedilatildeo que segue a flecha do sentido do texto e que tenta pensar em

35

bdquoDer Zirkel ist also nicht formaler Natur Er ist weder subjektiv noch objektiv sondern beschreibt das

Verstehen als das Ineinanderspiel der Bewegung der Uumlberlieferung und der Bewegung des Interpreten

Die Antizipation von Sinn die unser Verstaumlndnis eines Textes leitet ist nicht eine Handlung der

Subjektivitaumlt sondern bestimmt sich aus der Gemeinsamkeit die uns mit der Uumlberlieferung verbindetldquo

Ibidem 298

32

conformidade com ela daacute origem a uma verdadeira auto-compreensatildeo Ricœur

opotildee o ldquosi mesmordquo36 que resulta da compreensatildeo do texto ao ego que

pretende precedecirc-lo e afirma que eacute o texto que com o seu poder universal de

desvelamento de um mundo fornece um ldquosi mesmordquo ao ego Em jogo natildeo estaacute

pois a restituiccedilatildeo do sentido do texto como algo de intemporal e imoacutevel mas

um processo de apropriaccedilatildeo vivo que o integra na compreensatildeo de ldquosi

mesmordquo que finalmente eacute toda a interpretaccedilatildeo e por conseguinte toda a

traduccedilatildeo

Outra importante fonte de mudanccedila nos paradigmas que orientavam a

compreensatildeo da traduccedilatildeo foi o texto de Walter Benjamin Die Aufgabe des

Uumlbersetzers escrito em 1921 como introduccedilatildeo agrave sua traduccedilatildeo dos Tableaux

Parisiens de Baudelaire Aiacute Walter Benjamin repensa a tarefa do tradutor a

partir da multiplicidade das liacutenguas considerando que cada liacutengua actual de per

si impotildee uma restriccedilatildeo e um estreitamento do sentido de que as grandes obras

aspiram a libertar-se A traduzibilidade (Uumlbersetzbarkeit) eacute uma caracteriacutestica

que pertence a certas obras que contecircm em si mesmas a matriz a partir da

qual se desenvolvem as suas muacuteltiplas traduccedilotildees como figuras particulares de

um desenvolvimento orgacircnico

Assim existe uma relaccedilatildeo estreita entre traduccedilatildeo e original a traduccedilatildeo na

verdade sai do original e dela depende mas por outro lado tambeacutem o original

depende da traduccedilatildeo para a sua proacutepria sobrevivecircncia como obra vigente nas

geraccedilotildees futuras Esta sobrevivecircncia natildeo significa apenas que a traduccedilatildeo

comunica a obra a novos puacuteblicos leitores mas sim que na traduccedilatildeo a vida do

original alcanccedila um desenvolvimento renovado mais tardio e mais amplo

A relaccedilatildeo entre original e traduccedilatildeo eacute pensada pois em termos que potildeem em

causa a ideia ldquocorrespondecircnciardquo recorrente nos estudos de traduccedilatildeo entre

ambos natildeo haacute necessariamente uma relaccedilatildeo de semelhanccedila mas uma relaccedilatildeo

36

Ricœur defende que a interpretaccedilatildeo implica a relaccedilatildeo entre desvelamento e a apropriaccedilatildeo aquilo de que

importa apropriarmo-nos eacute o sentido do texto concebido de modo dinacircmico isto eacute o poder de desvelar

um mundo que constitui a referecircncia do texto O sujeito natildeo projecta um a priori sobre o texto pensando

descobri-lo no que lecirc mas ao apropriar-se do sentido do texto o leitor eacute alargado na sua capacidade de

autoprojecccedilatildeo e acede a uma nova autocompreensatildeo ou seja a um ldquosi mesmordquo ldquoSoacute a interpretaccedilatildeo que

obedece agrave injunccedilatildeo do texto que segue a flecha do sentido e que tenta pensar em conformidade com ela

inicia uma nova autocompreensatildeo Nesta autocompreensatildeo eu oporia o Si mesmo que parte da

compreensatildeo do texto ao ego que pretende precedecirc-lo Eacute o texto com o seu poder universal de

desvelamento de um mundo que fornece um Si mesmo ao egordquo Idem Teoria da Interpretaccedilatildeo Lisboa

1987 106

33

de parentesco susceptiacutevel de ser compreendida como um parentesco das

duas liacutenguas em que trabalha o tradutor

Haacute para Walter Benjamin um parentesco entre todas as liacutenguas que natildeo se

explica pela filologia mas sim pelo facto de todas elas serem habitadas por

uma pulsatildeo intriacutenseca ou por um desejo obscuro da ldquoliacutengua purardquo liacutengua que

seraacute a unidade de todas as liacutenguas e dos vaacuterios modos de pensar que

unilateralmente cada uma delas transporta consigo Esta liacutengua universal37

capaz de enunciar a verdade eacute projectada para o fim da histoacuteria numa visatildeo

escatoloacutegica dominada pelo mito de Babel

A tarefa do tradutor eacute assim dar passos no sentido da aproximaccedilatildeo dessa

liacutengua pura ou dessa reversatildeo da multiplicidade e da diferenciaccedilatildeo linguiacutestica

instauradas com Babel Cada traduccedilatildeo digna desse nome constitui-se como

um testemunho desse parentesco entre as liacutenguas natildeo porque ela seja

semelhante ao original mas porque ela se apresenta como prova do

crescimento da linguagem cada traduccedilatildeo representa um determinado estaacutedio

temporal da histoacuteria da linguagem e do seu crescimento em direcccedilatildeo agrave liacutengua

pura

Cada traduccedilatildeo faz-se eco da voz oculta que habita a obra e que aspira a

ldquoressoarrdquo nas outras liacutenguas Ao fazer-se eco dessa voz transpondo a obra

para outra liacutengua natildeo pode no entanto manter intacto o seu conteuacutedo porque

conteuacutedo e forma estatildeo intrinsecamente ligados na obra como jaacute em cada uma

das liacutenguas o estatildeo o campo lexical e o campo semacircntico O encontro da

alteridade e da diferenccedila das liacutenguas impulsiona um livre desenvolvimento da

liacutengua do tradutor cujos limites se alargam para a constituiccedilatildeo dum novo texto

que intersecta o texto original sem se deter nele ldquoDe acordo com isto o que

resta do sentido na relaccedilatildeo da significaccedilatildeo da traduccedilatildeo e do original pode ser

compreendido por meio de uma comparaccedilatildeo Tal como a tangente intersecta o

ciacuterculo apenas de fugida e num uacutenico ponto e tal como esta intersecccedilatildeo e natildeo

o ponto lhe prescreve a lei de acordo com a qual ela prolonga o seu curso ateacute

ao infinito assim a traduccedilatildeo intersecta de fugida e apenas no ponto

37

Cf Steiner em After Babel O autor salienta a importacircncia duma tradiccedilatildeo cabaliacutestica e gnoacutestica na qual

filia o conceito de Walter Benjamin de ldquoligravengua universalrdquo rdquoThis ldquopure languagerdquo [hellip] is like a hidden

spring seeking to force its way through the silted channels of our differing tongues At the ldquomessianic end

of their historyrdquo (again a Kabbalistic or Hasidic formulation) all separate languages will return to their

source of common life In the interim translation has a task of profound philosophic ethical and magical

importrdquo (Ob cit 67)

34

infinitamente pequeno do sentido do original para seguir o seu caminho mais

proacuteprio de acordo com a lei da fidelidade agrave liberdade do movimento da

linguagem38

Embora partindo de outros pressupostos Walter Benjamin vem tambeacutem pocircr em

causa o paradigma da traduccedilatildeo fiel ao texto original e do tradutor como

estando ao serviccedilo do texto Na medida em que exalta a traduccedilatildeo como

recriaccedilatildeo e amplificaccedilatildeo do sentido do texto original e vecirc na liacutengua do tradutor

um passo em frente em direcccedilatildeo agrave ldquoliacutengua purardquo o texto do tradutor sob certo

ponto de vista representa um estaacutedio mais alto da vida da proacutepria obra

possuindo um valor intriacutenseco

A releitura de Derrida de Walter Benjamin em Les Tours de Babel veio

sublinhar a importacircncia da traduccedilatildeo natildeo apenas como forma de comunicaccedilatildeo

inter-linguiacutestica e inter-cultural mas tambeacutem como comunicaccedilatildeo inter-temporal

O tradutor assegura a continuidade e a sobrevivecircncia dum texto atraveacutes do

tempo e deste modo a traduccedilatildeo exprime e realiza a vida da proacutepria obra

desdobrando as suas possibilidades intriacutensecas ao longo de vaacuterias eacutepocas

histoacutericas e cada traduccedilatildeo eacute de certo modo um novo ldquooriginalrdquo numa outra

liacutengua

5 A recepccedilatildeo de Heidegger como um problema de traduccedilatildeo

Um dos aspectos mais significativos das mudanccedilas ocorridas na teoria da

traduccedilatildeo foi a proacutepria extensatildeo do conceito de traduccedilatildeo que jaacute natildeo designa

apenas a transposiccedilatildeo do sentido de uma mensagem para outro coacutedigo

linguiacutestico (traduccedilatildeo inter-linguiacutestica) mas ainda a transposiccedilatildeo de um texto no

interior de uma mesma liacutengua para a proacutepria linguagem do leitor-inteacuterprete e

para o seu contexto histoacuterico-cultural (traduccedilatildeo intra-linguiacutestica)39

38

ldquoWas hiernach fuumlr das Verhaumlltnis von Uumlbersetzung und Original an Bedeutung dem Sinn verbleibt laumlβt

sich in einem Vergleich fassen Wie die Tangente den Kreis fluumlchtig und nur in einem Punkte beruumlhrt und

wie ihr wohl diese Beruumlhrung nicht aber der Punkt der Gesetz vorschreibt nach dem sie weiter ins

Unendliche ihre gerade Bahn zieht so beruumlhrt die Uumlbersetzung fluumlchtig und nur in dem unendlich kleinen

Punkte des Sinnes des Original um nach dem Gesetzte der treue in der Freiheit der Sprach Bewegung

ihre eigenste Bahn zu verfolgenldquo Walter Benjamin Die Aufgabe des Uumlbersetzers GS IV1 19-20 39

ldquoMan meint das laquo Uumlbersetzen raquo sei die Uumlbertragung einer Sprache in eine andere der Fremdsprache in

die Muttersprache oder auch umgekehrt Wir verkennen jedoch daβ wir staumlndig auch schon unsere eigene

Sprache die Muttersprache in ihr eigenes Wort uumlbersetzen Sprechen und Sagen ist in sich ein

Uumlbersetzen dessen Wesen keineswegs darin aufgehen kann daβ das uumlbersetzende und das uumlbersetzte

Wort verschiedenen Sprachen angehoumlren In jedem Gespraumlch und Selbstgespraumlch waltet ein

35

Toda a autecircntica interpretaccedilatildeo eacute traduccedilatildeo uma vez que eacute uma apropriaccedilatildeo

realizada a partir da situaccedilatildeo do inteacuterprete e visando a reconstruccedilatildeo duma

mensagem alheia numa linguagem proacutepria O inteacuterprete ainda quando se

ocupa de um texto escrito na sua proacutepria liacutengua pretende ldquodizer a mesma coisa

de outra maneirardquo procurando equivalentes lexicais ou reconstruindo

argumentos Esta traduccedilatildeo que constantemente ocorre na simples explicaccedilatildeo

de um texto visando aproximar o leitor da obra que em cada caso se

interpreta eacute um processo de mediaccedilatildeo tambeacutem ele implicando a experiecircncia

do malogro da perfeita identidade do sentido que encontramos na traduccedilatildeo em

sentido estrito40

Traduccedilatildeo e interpretaccedilatildeo satildeo pois operaccedilotildees idecircnticas e co-extensivas satildeo

operaccedilotildees hermenecircuticas similares implicando idecircntica operaccedilatildeo de

apropriaccedilatildeo-expropriaccedilatildeo que potildee em jogo diferentes horizontes histoacuterico-

temporais aquele a que pertence o texto de partida e o do proacuteprio tradutor

Mas a centralidade da traduccedilatildeo ficaraacute mais patente se tivermos em mente que

para Heidegger pensar eacute traduzir isto eacute eacute a apropriaccedilatildeo originaacuteria daquilo que

eacute dado como exterior e alheio e a sua traduccedilatildeo numa linguagem proacutepria Com

Heidegger a traduccedilatildeo natildeo eacute um problema filosoacutefico menor porque a traduccedilatildeo eacute

inerente ao pensar que se exerce no acircmbito da linguagem e da histoacuteria e quem

o leva a cabo eacute o homem concreto com uma relaccedilatildeo determinada com a

histoacuteria e o tempo41

urspruumlngliches Uumlbersetzen Wir meinen dabei nicht erst den Vorgang daβ wir eine Redewendung durch

eine andere derselben Sprache ersetzen und uns der laquoUmschreibungraquo bedienen Der Wechsel in der

Wortwahl ist bereits die Folge davon daβ sich uns das was zu sagen ist uumlbergesetzt hat in eine andere

Wahrheit und Klarheit oder auch Fragwuumlrdigkeitrdquo P GA 54 17-18 40

Cf Paul Ricœur em ldquoLe paradigme de la traductionrdquo ldquoDeux voies d‟accegraves s‟offrent au problegraveme poseacute

par lbdquoacte de traduire soit prendre le terme ldquotraductionldquo au sens strict de transfert d‟un message verbal

d‟une langue dans une autre soit le prendre au sens large comme synonyme de l‟interpreacutetation de tout

ensemble signifiant a lbdquo inteacuterieur de la mecircme communauteacute linguistique

Les deux approches ont leur droit la premiegravere choisie par Antoine Berman dans Lbdquoeacutepreuve de lbdquo

eacutetranger tient compte du fait massif de la pluraliteacute et de la diversiteacute des langues la seconde suivie par

George Steiner dans Apregraves Babel s‟adresse directement au pheacutenomegravene englobant que l‟auteur reacutesume

ainsi bdquoComprendre c‟est traduireldquoldquoIdem ldquoLe paradigme de la traductionrdquo in Sur la traduction Paris

2004 21- 22 41

Cf Friedrich-Wilhelm von Herrmann Im Spiegel der Welt Sprache Uumlbersetzung

Auseinandersetzung 108 ldquoDie Uumlbersetzung aus einer Sprache in eine andere Sprache scheint nur ein

begrenztes und uumlberdies untergeordnetes philosophisches Problem zu sein Kaum aber hat sich die

Besinnung auf dieses Phaumlnomenon eingelassen macht sie auch schon die Erfahrung daβ sie aus dem

vermeintlich begrenzten Fragebereich hinaus in eine Weiter philosophischer Grundfragen gefuumlhrt wird

Das Uumlbersetzen vollzieht sich in den Bereichen von Sprache und Geschichte sein Vollzieher aber ist der

Mensch in seinem Verhaumlltnis zu Sprache und Geschichterdquo

36

Para reconhecer a centralidade que a questatildeo filosoacutefica da traduccedilatildeo assume

para Heidegger eacute ainda necessaacuterio ter em conta que ela se liga estreitamente agrave

histoacuteria do ser Com efeito para Heidegger a traduccedilatildeo latina dos termos

fundamentais do pensamento grego natildeo foi uma operaccedilatildeo inofensiva mas

produziu um efeito sob o qual ainda hoje estamos pois nela se jogou a

retracccedilatildeo e o esquecimento do ser e inversamente a superaccedilatildeo do

esquecimento do ser consiste no esforccedilo de superaccedilatildeo dessa mediaccedilatildeo latina

e no regresso agrave experiecircncia originaacuteria do pensamento grego convicccedilatildeo

inseparaacutevel do seu proacuteprio esforccedilo de traduccedilatildeo directa dos termos filosoacuteficos

gregos para o alematildeo42

Eacute este conceito amplo e central de ldquotraduccedilatildeordquo como arriscada transposiccedilatildeo do

pensar para um outro contexto histoacuterico-linguiacutestico que aqui visaremos como

categoria que sendo co-extensiva com a de interpretaccedilatildeo permite pensar a

totalidade dos momentos que constituem a recepccedilatildeo de um autor numa outra

comunidade linguiacutestica Essa recepccedilatildeo de uma obra escrita numa outra liacutengua

envolve diferentes niacuteveis de assimilaccedilatildeo e incorporaccedilatildeo na liacutengua e na cultura

de chegada desde a sua simples leitura e compreensatildeo agrave transposiccedilatildeo

linguiacutestica das obras realizadas pela actividade de tradutores e editores ateacute

aos comentaacuterios em revistas de especialidade aos ensaios e dissertaccedilotildees

acadeacutemicas e finalmente agrave incorporaccedilatildeo na criaccedilatildeo de obras originais

A categorizaccedilatildeo de todos estes modos de assimilaccedilatildeo e incorporaccedilatildeo do autor

estrangeiro num outro contexto histoacuterico-linguiacutestico como ldquotraduccedilatildeordquo permite-

nos centrar a investigaccedilatildeo na experiecircncia inter-linguiacutestica remetendo para a

intermediaccedilatildeo de distintos contextos culturais com a sua complexidade

intriacutenseca tornando a tarefa daquele que interpreta e comenta um difiacutecil

compromisso entre a fidelidade ao texto e a aproximaccedilatildeo ao contexto e aos

problemas do presente histoacuterico do seu leitor43

42

ldquoDas Verhaumlltnis von Uumlbersetzung und Geschichte wird von Heidegger vor allem in zwei

Hinblicknahmen bedacht Zum einen ist es die uumlbersetzende Uumlbernahme des griechischen Denkens

insbesondere der griechischen Grundworte des Denkens durch das Roumlmisch-Lateinische sowie die

uumlbersetzende Aneignung der roumlmisch vermittelten griechischen Grundworte durch das neuzeitliche

Denken Diese erste Hinblicknahme betrifft die Geschichte der Metaphysik als Geschichte des Seins und

der Seinsvergessenheit Die zweite Hinblicknahme auf das genannte Verhaumlltnis ist geleitet von der

denkenden Uumlberwindung der Seinsvergessenheit und besteht in dem denkerischen Bemuumlhen in

unmittelbarem Ruumlckgang auf das griechische Denken dessen verschuumlttete Erfahrungen so freizulegen daβ

diese den Weg in eine urspruumlnglichere Erfahrung des Wesens des Seins weisenrdquo Ibidem 120 43

Cf Ricœur in ldquoUn ldquopassagerdquo traduire l‟intraduisiblerdquo Neste artigo Ricœur refere um intraduzigravevel

inicial encontrado pelo tradutor a diversidade das liacutenguas como conjuntos culturais diferentes atraveacutes

37

Pensar a recepccedilatildeo dum autor de acordo com a categoria da traduccedilatildeo permite

assim anular as distinccedilotildees correntes entre uma recepccedilatildeo passiva e activa que

soacute cabiam no quadro de referecircncia teoacuterico que considerava a leitura dum texto

e a sua interpretaccedilatildeo criacutetica como operaccedilotildees essencialmente distintas

sublinhando antes a constacircncia de certas operaccedilotildees hermenecircuticas baacutesicas

transversais a todas estas formas e geacuteneros literaacuterios

A traduccedilatildeo de Heidegger para as diversas liacutenguas europeias foi desde o

primeiro momento acompanhada de controveacutersias e dificuldades suscitando de

imediato o problema do risco inerente agrave experiecircncia inter-linguiacutestica e dos

limites do traduziacutevel

A influecircncia de Heidegger iniciou-se com a publicaccedilatildeo de Sein und Zeit em

1927 primeira obra onde expocircs o seu pensamento cuja difusatildeo quase

imediata captou a atenccedilatildeo do puacuteblico filosoacutefico de quase toda a Europa A

irradiaccedilatildeo da influecircncia de Heidegger natildeo deixou de crescer a partir desta

data sendo balizada em trecircs grandes periacuteodos44

1ordm Periacuteodo ndash entre 1927 data da publicaccedilatildeo de Sein und Zeit e 1951

data da sua primeira traduccedilatildeo integral realizada por Gaos para o

espanhol

2ordm Periacuteodo ndash entre 1952 e 1975 ano em que foi iniciada a publicaccedilatildeo

das obras completas de Heidegger por Vittorio Klostermann

3ordm Periacuteodo ndash de 1975 ateacute aos nossos dias

Ao longo destes anos uma interpretaccedilatildeo centrada dominantemente na anaacutelise

da existecircncia em Sein und Zeit 45 foi sendo corrigida desde logo pelo proacuteprio

dos quais se exprimem distintas visotildees do mundo que podem enfrentar-se entre si no interior dum mesmo

sistema fonoloacutegico lexical e sintaacutectico fazendo duma cultura nacional uma rede de visotildees do mundo em

competiccedilatildeo oculta Ricœur indica ainda um intraduzigravevel final engendrado pela proacutepria praacutetica da

traduccedilatildeo relacionado com a impossibilidade de estabelecer um criteacuterio absoluto da boa traduccedilatildeo ndash este

criteacuterio absoluto seria o mesmo sentido escrito algures acima e entre o texto de origem e o texto de

chegada bdquoCe troisiegraveme texte serait porteur du sens identique supposeacute circuler du premier au second D‟ou

le paradoxe dissimuleacute sous le dilemme pratique entre fideacuteliteacute et trahison une bonne traduction ne peut

viser qu‟agrave une eacutequivalence preacutesumeacutee non fondeacutee dans une identiteacute de sens deacutemontrablerdquo Idem art cit

in Sur la traduction 60 44

Cf Irene Borges-Duarte em ldquoHeidegger em Portuguecircs Contribuiccedilatildeo para um reportoacuterio bibliograacuteficordquo

in Filosofia volIII nordm12 Lisboa 1989 173-184 45

Cf artigo de Rudolf Bohem L‟ecirctre et le temps d‟une traduction Neste artigo o tradutor (co-autor da

traduccedilatildeo francesa de SuZ editada em 1964 pela Gallimard) reafirma a centralidade de uma filosofia da

existecircncia nesta obra capital de Heidegger ldquoMais je ne peux terminer ces remarques sans donner

expression agrave mon eacutetonnement du fait que cet ouvrage Sein und Zeit de Heidegger bien qu‟il ait eacuteteacute

traduit depuis en plus de vingt langues agrave travers du monde entier et qu‟il soit peut-ecirctre le livre

38

Heidegger que a partir dos primeiros comentaacuterios da sua obra rejeitou que a

sua leitura de o homem como ser-no-mundo pudesse ser interpretada como um

existencialismo e uma reflexatildeo antropoloacutegica - depois por um conhecimento

progressivo da globalidade dos seus textos filosoacuteficos

De facto a divulgaccedilatildeo progressiva da obra de Heidegger veio a possibilitar a

sua compreensatildeo como um pensamento em movimento de constituiccedilatildeo cuja

progressiva elaboraccedilatildeo apesar das descontinuidades natildeo deixa de revelar a

unidade de quem persegue uma questatildeo central questatildeo que desde Sein und

Zeit e ateacute ao fim ocupou Heidegger ininterruptamente o problema do ser

A difusatildeo do pensamento de Heidegger nas vaacuterias liacutenguas europeias foi assim

acompanhada desde o iniacutecio por controveacutersias dificuldades de interpretaccedilatildeo e

mal-entendidos eles mesmos interessantes enquanto sintomas segundo

Heidegger da nossa situaccedilatildeo presente de esquecimento e abandono da

questatildeo do ser Estas transformaccedilotildees de sentido que acompanharam as vaacuterias

traduccedilotildees suscitam a experiecircncia viva da finitude e da imperfeiccedilatildeo de toda a

traduccedilatildeo entendida como restituiccedilatildeo fiel do sentido mas tambeacutem a

consciecircncia do caraacutecter necessariamente histoacuterico e linguisticamente

condicionado da tarefa do tradutor testemunhado directamente pelos

tradutores de Sein und Zeit46

Se a divulgaccedilatildeo progressiva da obra de Heidegger permitiu corrigir as iniciais

distorccedilotildees eacute preciso ter em conta que nenhuma interpretaccedilatildeo eacute poreacutem

independente dum ponto de vista preacutevio problema hermenecircutico colocado por

Heidegger em Sein und Zeit ao mostrar que uma Vor-struktur predetermina

toda a compreensatildeo e por Gadamer ao postular que nenhuma interpretaccedilatildeo

philosophique le plus connu du vingtiegraveme siegravecle a produit si peu d‟effet Ce fut peut-ecirctre a moins

partiellement la faute de Heidegger lui-mecircme il s‟est toujours refuseacute agrave ecirctre consideacutereacute comme un

philosophe de l‟existence voire ldquoexistentialisterdquo et n‟a souligneacute que lintroduction dans Sein und Zeit de

la question de l‟Ecirctre alors que cette derniegravere question nest guegravere eacutelaboreacutee dans le livre tel qu‟il a paru et

qu‟il preacutesente par contre bel et bien une philosophie de l‟existence tout comme lacute Ecirctre et le Neacuteant de

Sartre et la Pheacutenomeacutenologie de la Perception de Merleau-Pontyrdquo (Idem art cit in Translating

Heidegger‟s ndash Sein und Zeit 103) 46

Destes testemunhos eacute particularmente significativo para o presente trabalho o de Christian Sommer

tradutor francecircs em ldquoTraduire La Lingua Heideggerianardquo que a propoacutesito da experiecircncia de traduccedilatildeo de

Heidegger para as liacutenguas latinas afirma rdquoHeidegger tributaire et continuateur d‟une tradition allemande

qui remonte au moins agrave Leibniz entend construire une langue philosophique allemande deacutelatiniseacutee en

renouant par ldquodestructionrdquo avec la terminologie grecque La philosophie a parleacute grec elle parle et

parlera allemand l‟allemand d‟Heidegger Deacutes lors l‟acte de traduire (et d‟interpreacuteter) Heidegger dans

une langue latine meacuteriterait d‟ecirctre plus largement probleacutematiseacute car agrave la ldquodeacutelatinisationrdquo heideggeacuterienne

de la philosophie correspond de fait une ldquorelatinisationrdquo de la philosophie heideggeacuteriennerdquo (Christian

Sommer artcit in Translating Heidegger‟s ndash Sein und Zeit 306-307)

39

se faz independentemente da tradiccedilatildeo e do preconceito estas satildeo as

condiccedilotildees nas quais ouvimos e com as quais podemos entrar numa discussatildeo

interpretativa

Focalizaremos o nosso estudo natildeo na traduccedilatildeo em sentido estrito mas nos

comentaacuterios com que progressivamente os pensadores portugueses e

brasileiros foram levando aos seus leitores a divulgaccedilatildeo do pensamento

heideggeriano por ser aiacute que podemos surpreender mais claramente essa Vor-

struktur que determina a compreensatildeo por vezes obscurecendo-a mas

noutras abrindo uma via de acesso ao sentido dos textos

6 Metodologia usada

Eacute pois partindo deste conceito de traduccedilatildeo estabelecido pela fenomenologia

hermenecircutica 47 que abordaremos a recepccedilatildeo de Heidegger em liacutengua

portuguesa visando natildeo apenas mostrar as deslocaccedilotildees de sentido e as

distorccedilotildees que acompanham a recepccedilatildeo de Heidegger em liacutengua portuguesa

mas ainda avaliaacute-los e interpretaacute-los de acordo com o quadro de referecircncia

teoacuterico e metodoloacutegico que esse conceito determina

Uma investigaccedilatildeo deste geacutenero confronta-se desde logo com a abundacircncia e a

disparidade de fontes a analisar e o risco de dispersatildeo pelo que se impocircs a

definiccedilatildeo de um criteacuterio de selecccedilatildeo do tipo de textos a incluir na anaacutelise As

traduccedilotildees em sentido estrito foram analisadas no seu conjunto e integradas

no contexto geral da histoacuteria da traduccedilatildeo filosoacutefica portuguesa renunciaacutemos a

uma anaacutelise criacutetica das ldquotraduccedilotildeesrdquo em sentido estrito e a produzir quaisquer

juiacutezos de valor sobre a qualidade dos textos produzidos decidindo se se situam

ao niacutevel trivial da amaacutelgama informe de transposiccedilotildees gramaticais irreflectidas

de hiacutebridos gramaticais que natildeo pertencem a nenhuma liacutengua ou se pelo

contraacuterio traduzem uma estrateacutegia coerente de recriaccedilatildeo do texto em liacutengua

portuguesa atenta aos problemas de transposiccedilatildeo do vocabulaacuterio filosoacutefico e

47

Cf Von Herrmann (Im Spiegel der Welt Sprache Uumlbersetzung Auseinandersetzung 111) ldquo[hellip]

Phaumlnomenologie ist nach dem Methodenparagraph von Sein und Zeit das was sich zeigt so wie es sich

von ihm selbst her zeigt von ihm selbst her sehen lassen (SuZ 34) Nicht nur versteht sich die

Phaumlnomenologie Heideggers als hermeneutische als auslegende Phaumlnomenologie sondern auch

umgekehrt bestimmt Heidegger die Auslegung als phaumlnomenologische houmlrend-sehenlassende Auslegung

Und wenn die Auslegung eine wesenhafte Vollzugsbedingung der Uumlbersetzung ist vollzieht sich auch

das Uumlbersetzen nur dann wesensgerecht wenn seine Vorgehensweise phaumlnomenologisch bestimmt istrdquo

40

agraves fontes filoloacutegicas dos textos heideggerianos Esta anaacutelise do maior

interesse e complementar do agora investigado natildeo poderia ser aqui levada a

cabo e esse trabalho dos tradutores interessou-nos apenas enquanto indiacutecio da

difusatildeo do pensamento de Heidegger e da sua introduccedilatildeo no seio do

pensamento portuguecircs

Na traduccedilatildeo que noacutes proacuteprios fizemos da terminologia heideggeriana optaacutemos

por seguir o leacutexico estabelecido pelo projecto Heidegger em Portuguecircs que

acompanhou as traduccedilotildees jaacute publicadas e relativamente a Ser e Tempo

adoptaacutemos o procedimento habitual de seguir a traduccedilatildeo estabelecida por

Gaos

Fomos ainda obrigados a determinar o periacuteodo a investigar tendo como

preocupaccedilotildees os limites impostos pela exequibilidade da investigaccedilatildeo e

tambeacutem a necessidade de nele incluir um nuacutemero suficientemente significativo

de fontes Delimitaacutemos o periacuteodo entre 1938 e 1989 este periacuteodo aparece-nos

naturalmente limitado pela publicaccedilatildeo do primeiro texto de Delfim Santos sobre

Heidegger (ldquoHeidegger e Houmllderlin ou a essecircncia da poesia Revista de

Portugal Lisboa nordm4 193848) no entanto a maior parte dos trabalhos

analisados satildeo posteriores agrave data de 1952 ano seguinte agrave traduccedilatildeo espanhola

de Gaos de Sein und Zeit importante marco no domiacutenio da traduccedilatildeo e da

difusatildeo do pensamento de Heidegger ateacute aiacute conhecido atraveacutes de traduccedilotildees

francesas fragmentaacuterias e parciais49

Embora a partir dos anos 30 jaacute houvesse em Portugal algum conhecimento de

Heidegger atraveacutes de traduccedilotildees francesas soacute a partir dos anos 50 e 60

encontramos um nuacutemero significativo de fontes que permitem fixar uma

tentativa de superar uma leitura centrada na problemaacutetica existencial e os

primeiros esforccedilos para traduzir linguisticamente em portuguecircs uma

compreensatildeo mais globalizante do filoacutesofo alematildeo

Depois do caso isolado que foi a traduccedilatildeo de Vom Wesen der Wahrheit em 46

soacute nos anos sessenta se iniciou a traduccedilatildeo regular das obras de Heidegger 50

com a traduccedilatildeo de Ernildo Stein de Einfuumlhrung in die Metaphysik em 1966 e a

traduccedilatildeo de Uumlber den Humanismus Brief an Jean Beaufret onde a linguagem

48

Cf ldquoO diaacutelogo com Heidegger em ligravengua portuguesa ldquo in Apecircndice do presente trabalho p 539 49

Cf Ricardo Maliandi bdquoHeidegger in Lateinamerikaldquo in Zur philosophischen Aktualitaumlt Heideggers III

Im Spiegel der Welt Frankfurt am Main 1989 199-209 50

CfrdquoTraduccedilotildees Portuguesas e Brasileiras de Heideggerrdquo in Apecircndice da Dissertaccedilatildeo p 533

41

aparece pela primeira vez como a questatildeo fundamental por Carneiro Leatildeo no

Brasil em 1967 e por A Stein em Portugal em 1973

Neste periacuteodo eacute ainda publicado um nuacutemero significativo de obras sobre

Heidegger assim como muacuteltiplos artigos em revistas de liacutengua portuguesa por

autores como Ernildo Stein Zeljko Loparic Eduardo Abranches de Soveral

Manuel Antunes e outros51

Neste segmento temporal encontramos tambeacutem a publicaccedilatildeo de obras de

pensadores que em liacutengua portuguesa procuram encetar um diaacutelogo com

Heidegger tendo esse diaacutelogo um papel estruturante na sua produccedilatildeo

filosoacutefica

Em Portugal Delfim Santos que tinha uma formaccedilatildeo filosoacutefica extensa e

actualizada tornada possiacutevel pela sua condiccedilatildeo de bolseiro na deacutecada de 30

na Aacuteustria e na Alemanha conhecia as obras de Husserl e Heidegger que

divulgou atraveacutes de numerosos artigos e comunicaccedilotildees entre os anos de 1938

e 1966 explorando as implicaccedilotildees duma leitura existencial de Heidegger em

diversos campos da cultura como a educaccedilatildeo o direito e a psicoterapia

O Grupo de Satildeo Paulo centrado nas figuras de Eudoro de Sousa e Vicente

Ferreira da Silva produziu uma reflexatildeo sobre as relaccedilotildees entre histoacuteria

poesia e mito que muito devem agrave leitura de Heidegger como podemos

constatar pela leitura de Ideias Para um Novo Conceito de Homem (1951) de

Vicente Ferreira da Silva e Mitologias I (1981) e Mitologias II (1982) de Eudoro

de Sousa

Joseacute Enes a partir de 1969 tem reflectido sobre o problema do ser e da

linguagem fortemente influenciado pela leitura daquilo a que eacute costume

chamar-se o ldquosegundo Heideggerrdquo inspirando-se nessa leitura para fazer uma

reapropriaccedilatildeo do pensamento de Satildeo Tomaacutes de Aquino e da tradiccedilatildeo

escolaacutestica

Pensamos assim ter seleccionado um periacuteodo suficientemente significativo

pela abundacircncia e relevacircncia dos textos que assinalam a recepccedilatildeo de

Heidegger traduccedilotildees artigos de revistas dissertaccedilotildees acadeacutemicas e obras

originais Dentre esse conjunto diacutespar de fontes procedemos a uma selecccedilatildeo

51

Cf Constanccedila Marcondes Ceacutesar O Grupo de Satildeo Paulo Lisboa 2000 231-243

42

dos autores e dos textos a partir do pressuposto de que uma interpretaccedilatildeo tem

ecircxito apenas quando ela presta atenccedilatildeo e escuta o texto que traduz e o que

nele eacute dito de tal modo que num tal escutar potildee a caminho uma discussatildeo

interpretativa52

Pudemos assim seleccionar como autores mais significativos Delfim Santos

Vergiacutelio Ferreira Eudoro de Sousa Vicente Ferreira da Silva Gerd Bornheim e

Ernildo Stein assim como Joseacute Enes e Emmanuel Carneiro Leatildeo

Um segundo problema metodoloacutegico foi a necessidade de optar entre um

criteacuterio histoacuterico-descritivo que apresentasse a evoluccedilatildeo da interpretaccedilatildeo de

Heidegger de uma geraccedilatildeo de pensadores para outra dando conta da sua

progressiva incorporaccedilatildeo na liacutengua e cultura lusoacutefonas e um ponto de vista

sistemaacutetico capaz de classificar e sistematizar os contributos dos vaacuterios

autores de acordo com a sua direcccedilatildeo interpretativa

Optaacutemos por tentar conciliar os dois criteacuterios procurando num primeiro

momento articular uma perspectiva histoacuterica que integra a traduccedilatildeo de

Heidegger na histoacuteria da traduccedilatildeo portuguesa de filosofia e num segundo

momento articular e agrupar os autores de acordo com a perspectiva

(Blickrichtung) a partir da qual abordam o pensador alematildeo

Na organizaccedilatildeo dos seus textos usaacutemos como criteacuterio as diferentes vias de

acesso ao pensamento heideggeriano independentemente dos autores se

situarem de um ou do outro lado Atlacircntico questatildeo de somenos importacircncia

porquanto autores portugueses e brasileiros dialogam entre si e influenciam-se

reciprocamente no acircmbito da liacutengua comum

Assim pudemos ordenar os textos e os autores de acordo com as 4 direcccedilotildees

interpretativas

Sentido e existecircncia

Ontologia e finitude

Mito e logos

Hermenecircutica e desvelamento do ser

52

ldquoEine Auslegung die eine Uumlbersetzen vorbereitet gluumlckt nur dann wenn sie zu dem auszulegendem

Text und dem in ihm Gesagten uumlbersetzt so daβ sie auf das Gesagte houmlrt und in solchem Houmlren ein

auslegendes Zwiegespraumlch in Gang setztrdquo Friedrich-Wilhelm von Herrmann Im Spiegel der Welt

Sprache Uumlbersetzung Auseinandersetzung 109

43

A compreensatildeo da traduccedilatildeo como Ereignis orientou a selecccedilatildeo do caso

especial de Vicente Ferreira da Silva como objecto de estudo Escolhemos a

anaacutelise do caso deste pensador brasileiro pois ele desenvolveu um

pensamento original em torno da relaccedilatildeo entre mito poesia e filosofia a partir

dum intenso diaacutelogo com o pensamento de Heidegger

7 A estrutura da dissertaccedilatildeo

A presente dissertaccedilatildeo articula-se em duas partes desenvolvendo-se segundo

a disposiccedilatildeo a seguir indicada

A primeira parte apresenta o problema filosoacutefico da traduccedilatildeo e a

fundamentaccedilatildeo dos conceitos fundamentais que suportam a investigaccedilatildeo

articulados em dois capiacutetulos No primeiro capiacutetulo satildeo exploradas as

implicaccedilotildees da viragem hermenecircutica heideggeriana centrando-se a nossa

anaacutelise na articulaccedilatildeo entre linguagem facticidade e existecircncia Aiacute satildeo ainda

analisados os conceitos de ldquosituaccedilatildeo hermenecircuticardquo e ldquociacuterculo hermenecircuticordquo

que atravessam e suportam a nossa investigaccedilatildeo No segundo capiacutetulo seratildeo

analisados os contributos de Gadamer para a elucidaccedilatildeo do problema

hermenecircutico com especial relevacircncia para a reabilitaccedilatildeo dos conceitos de

tradiccedilatildeo e de preconceito assim como para a determinaccedilatildeo da interpretaccedilatildeo

como uma controlada ldquofusatildeo de horizontesrdquo (Horizontverschmelzung)

Na segunda parte abordaremos a problemaacutetica da traduccedilatildeo em Portugal em

trecircs capiacutetulos No primeiro abordaremos a histoacuteria da traduccedilatildeo de filosofia em

Portugal procurando aiacute encontrar as razotildees da recusa agrave mediaccedilatildeo linguiacutestica e

os efeitos dessa recusa no modo como entre noacutes se transmitiu a tradiccedilatildeo

filosoacutefica No capiacutetulo segundo analisaremos a recepccedilatildeo de Heidegger em

Portugal e no Brasil partindo do conceito de ldquosituaccedilatildeo hermenecircuticardquo exposta

por Heidegger em Phaumlnomenologische Interpretationen zu Aristoteles de

192253 Este conceito transversal a toda a investigaccedilatildeo seraacute aqui aplicado agrave

anaacutelise das fontes que assinalam a recepccedilatildeo de Heidegger em Portugal e no

53

ldquoDie folgenden Untersuchungen dienen einer Geschichte der Ontologie und Logik Als Interpretationen

stehen sie unter bestimmten Bedigungen des Auslegens und Verstehens Der Sachgehalt jeder

Interpretation das ist der thematische Gegenstand im Wie seines Ausgelegtseins vermag nur dann

angemessen fuumlr sich selbst zu sprechen wenn die jeweilige hermeneutische Situation auf die Jede

Interpretation relativ ist als genuumlgend deutlich ausgezeichnet verfuumlgbar gemacht wirdldquo AhS GA 62

346-347

44

Brasil permitindo-nos ir mais longe do que uma simples exposiccedilatildeo histoacuterica e

descritiva e fornecendo-nos um princiacutepio teoacuterico e metodoloacutegico capaz de

organizar os dados e mostrar a direcccedilatildeo de um ponto de vista interpretativo No

capiacutetulo terceiro levaremos a cabo a anaacutelise do caso de Vicente Ferreira da

Silva autor no qual essa fusatildeo de horizontes tematizada por Gadamer eacute

particularmente produtiva Escutando o apelo do segundo Heidegger em

direcccedilatildeo agrave questatildeo do ser e da linguagem o pensador brasileiro fez-se tambeacutem

o eco da influecircncia de pensadores portugueses como Eudoro de Sousa e

Agostinho da Silva bem como de outros pensadores latinos e ainda da poetiza

Dora Ferreira da Silva abrindo uma via de acesso original agrave questatildeo da poesia

e da mitologia Na conclusatildeo retomamos o jaacute analisado a fim de determinar se

foram dados passos significativos para a constituiccedilatildeo de qualquer coisa como

um ldquoponto de vistardquo (Blickstand) e ldquouma perspectivardquo (Blickrichtung) capazes

de virem a delimitar um horizonte de compreensatildeo e uma interpretaccedilatildeo

originaacuteria do pensador alematildeo em liacutengua portuguesa

Ao discutirmos se na recepccedilatildeo de Heidegger em liacutengua portuguesa se

verificam as distorccedilotildees provenientes duma relaccedilatildeo inautecircntica com a tradiccedilatildeo

filosoacutefica ou se os autores que puderam ter acesso aos textos originais na

liacutengua alematilde e com ele dialogaram em portuguecircs deram passos significativos

para superar essas distorccedilotildees e alcanccedilar o estatuto de uma verdadeira

interpretaccedilatildeo iremos confrontar-nos com a temaacutetica da tradiccedilatildeo

Seraacute aiacute questionada a presenccedila nos inteacuterpretes de Heidegger em liacutengua

portuguesa da tradiccedilatildeo humanista em confronto com a condenaccedilatildeo

heideggeriana do humanismo e com a sua desvalorizaccedilatildeo do latim e das

liacutenguas latinas Retomaremos pois a discussatildeo jaacute iniciada por Ernesto Grassi e

Franco Volpi em torno desta temaacutetica e da importacircncia dum legado que

constitui o patrimoacutenio comum daquilo a que este segundo pensador chama a

Romanidade Filosoacutefica54

54

Cf Franco Volpi em comunicaccedilatildeo ao Congresso Heidegger Linguagem e Traduccedilatildeo (Lisboa Marccedilo de

2003) intitulada Heidegger el problema de la intraducibilidad y la romanidad filosoacutefica Nesta

comunicaccedilatildeo Franco Volpi defende que Heidegger teria retomado e radicalizado a ideia do idealismo

alematildeo de que a filosofia deveria falar alematildeo como noutro tempo falara grego e procurar um acesso

directo e original ao pensamento heleacutenico evitando a mediaccedilatildeo do latim com a consequente depreciaccedilatildeo

da romanidade e latinidade filosoacuteficas Franco Volpi potildee ainda a hipoacutetese de que Heidegger na sua criacutetica

ao humanismo romano teria acompanhado de perto a afirmaccedilatildeo ideoloacutegica do pangermanismo ldquoTras la

toma de poder por el nacionalismo la cuestioacuten del humanismo romano habiacutea dejado de ser una cuestioacuten

uacutenicamente filosoacutefica neutra habiacutea adquirido importantes connotaciones poliacuteticas El programa

45

A bibliografia apresentada no fim da dissertaccedilatildeo constitui a recompilaccedilatildeo dos

tiacutetulos mais importantes para a elaboraccedilatildeo do trabalho e estaacute organizada em

duas partes

A primeira parte eacute constituiacuteda por um apecircndice contendo um primeiro capiacutetulo

relativo agrave histoacuteria das traduccedilotildees portuguesas de filosofia que pretende dar

conta dos tiacutetulos mais significativos traduzidos em Portugal e no Brasil ateacute

1959 e que foi relevante para a geacutenese da problemaacutetica investigada e um

segundo relativo agrave cronologia da recepccedilatildeo de Heidegger que pretende dar a

conhecer a amplitude desta recepccedilatildeo em Portugal e no Brasil Esta bibliografia

da recepccedilatildeo de Heidegger em portuguecircs estende-se ateacute agrave actualidade

extravasando os limites cronoloacutegicos da investigaccedilatildeo que levaacutemos a cabo mas

possibilita por isso mesmo ldquosituarrdquo o segmento temporal de que nos

ocupaacutemos e melhor compreender o seu significado

Na segunda parte da bibliografia incluem-se as obras de Heidegger e de

Gadamer nas quais fundamos a investigaccedilatildeo assim como a literatura

secundaacuteria sobre os problemas filosoacuteficos da traduccedilatildeo e tradiccedilatildeo Nesta

segunda parte incluiacutemos ainda as obras dos inteacuterpretes de Heidegger em

liacutengua portuguesa que foram analisadas assim como a bibliografia secundaacuteria

relativa aos diversos autores e a bibliografia de contextualizaccedilatildeo temaacutetica

relativa ao pensamento portuguecircs e brasileiro

ideoloacutegico pangermaacutenico reactivoacute y radicalizoacute la cuestioacuten del primado del pueblo alemaacuten frente al cual la

romanidad y la latinidad aparecigravean como derivadas e ldquosecundariasrdquordquo (Op cit 534)

Ainda nesta comunicaccedilatildeo Volpi demonstra a riqueza do vocabulaacuterio latino no acircmbito poliacutetico juriacutedico e

religioso mostrando a sua essencial originalidade em relaccedilatildeo ao contexto da cultura e liacutengua gregas assim

como o seu papel determinante na construccedilatildeo da civilizaccedilatildeo europeia

46

47

SIGLAS E ABREVIATURAS MAIS USADAS

A maior parte das siglas corresponde a obras de Heidegger Quando natildeo se

trate de uma obra sua o nome do autor eacute assinalado entre parecircntesis

SuZ Sein und Zeit

AhS bdquoPhaumlnomenologische Interpretation zu Aristoteles (Anzeige der hermeneutische

Situation)ldquo

EpF Phaumlnomenologische Interpretationen zu Aristoteles Einfuumlhrung in die

phaumlnomenologische Forschung

LWS Logik als die Frage nach dem Wesen der Sprache

WuM Wahrheit und Methode (Gadamer)

GS Gesammelte Schriften (Walter Benjamin)

GA Gesamtausgabe (Martin Heidegger)

HWD bdquoHoumllderlin und das Wesen der Dichtungldquo

UKw bdquoDer Ursprung des Kunstwerkesldquo

WwF bdquoWie wenn am Feiertaghellipldquo

WhD Was heiβt Denken

HH Houmllderlins Hymnen ―Germanien und ―Der Rhein―

GW Gesammelte Werke (Gadamer)

P Parmeacutenides

Buh bdquoBrief uumlber den Humanismusldquo

VWG bdquoVon Wesen des Grundesldquo

GP Die Grundprobleme der Phaumlnomenologie

D bdquoDas Dingldquo

GD bdquoGrundsaumltze des Denkens―

H Holzwege

IuD Identitaumlt und Differenz

HHI Houmllderlins Hymnen bdquo Der Isterldquo

ZW ―Die Zeit des Weltbildesrdquo

48

49

Parte I O conceito fenomenoloacutegico de traduccedilatildeo e o

problema da tradiccedilatildeo

50

51

Capiacutetulo I - A viragem hermenecircutica e o estatuto das liacutenguas

52

53

Heidegger afirmou em Ser e Tempo na continuidade da tradiccedilatildeo de Hamann

Herder e Humboldt que a loacutegica se constitui historicamente como aquele

aspecto da tradiccedilatildeo filosoacutefica que deturpou e vedou o acesso ao ser da

linguagem55

De facto a questatildeo do impeacuterio da loacutegica sobre a gramaacutetica tinha jaacute sido

anteriormente discutida por Hamann e Humboldt e podemos sintetizar a

questatildeo dizendo que Hamann56 abre uma poleacutemica contra o iluminismo

chamando a atenccedilatildeo para o facto de que as categorias loacutegicas a que Kant viria

a chamar as categorias do entendimento determinam as categorias

gramaticais e as regras sintaacutecticas Sob o impeacuterio destas categorias

desenvolve-se um dizer que respeita mais o princiacutepio de identidade do que a

singularidade e a diversidade da experiecircncia mais a abstracccedilatildeo do conceito do

que a materialidade das sensaccedilotildees e os afectos e que privilegia as oraccedilotildees

subordinadas57 Contra este dizer e pensar disciplinado pela norma e pela

razatildeo Hamann viraacute propor a libertaccedilatildeo da linguagem que para ele seraacute a

liberdade poeacutetica da metaacutefora e da transgressatildeo da norma linguiacutestica e para

Humboldt a reivindicaccedilatildeo da libertaccedilatildeo das gramaacuteticas em relaccedilatildeo agrave loacutegica e o

reconhecimento da pluralidade de aberturas do mundo instauradas pelas

diferentes liacutenguas

Esta mudanccedila de paradigma na filosofia da linguagem implica uma posiccedilatildeo

relativista face agrave possibilidade da traduccedilatildeo duma liacutengua para outra assim como

agrave possibilidade de falantes de diversas liacutenguas se entenderem sobre o mesmo

De facto Hamann ao considerar a linguagem como a raiz comum do

ldquoentendimentordquo e da ldquosensibilidaderdquo constitui-a como uma instacircncia alternativa

ao eu transcendental uma vez que para ela podem reclamar-se funccedilotildees

idecircnticas na constituiccedilatildeo da experiecircncia Contudo esta superaccedilatildeo do eu

55

Cristina Lafont defende que a tese heideggeriana da funccedilatildeo de abertura de mundo da linguagem se

insere numa tradiccedilatildeo da filosofia alematilde que designa como ldquoa tradiccedilatildeo de Hamann-Herder-Humboldtrdquo

Esta tradiccedilatildeo critica a filosofia da consciecircncia - cuja concepccedilatildeo da linguagem eacute a de um ldquoinstrumentordquo

para a designaccedilatildeo de entidades extra-linguiacutesticas ou para a expressatildeo de pensamentos preacute-linguiacutesticos ndash e

atribui agrave linguagem um papel constitutivo na nossa relaccedilatildeo com o mundo Cf Idem Lenguaje y apertura

del mundo Madrid (1997) 22 56

Cf Cristina Lafont considera que a criacutetica de Hamann a Kant pode considerar-se como o nuacutecleo desta

mudanccedila de paradigma na filosofia da linguagem ldquoHamann localizoacute en el lenguaje la raiacutez comuacuten del

ldquoentendimientordquo y la ldquosensibilidadrdquo buscada por Kant y con ello confirioacute al lenguaje una dimensioacuten a la

vez empiacuterica e transcendental Es precisamente este paso el que convierte al lenguaje en una instancia que

entra en competencia con el Yo transcendentalrdquo Ibidem 22 57

Cf Johan Georg Hamann As Memoraacuteveis Socraacuteticas Lisboa (1999) 55 ldquoA ignoracircncia socraacutetica era

um sentir Ora entre um sentir e uma proposiccedilatildeo teoacuterica vai uma diferenccedila maior do que aquela que existe

entre um animal vivo e o respectivo esqueleto na sala de Anatomiardquo

54

transcendental significa que agrave universalidade da consciecircncia se contrapotildee a

diversidade das vaacuterias liacutenguas naturais

Assim a unidade transcendental da apercepccedilatildeo seraacute fraccionada em muacuteltiplas

aberturas de mundo ou imagens do mundo correspondentes agraves diversas

liacutenguas naturais Sendo estas aberturas de mundo articuladas nas diferentes

liacutenguas naturais incomensuraacuteveis natildeo soacute resulta impossiacutevel falar de uma

consciecircncia em geral como natildeo tem tambeacutem qualquer sentido falar de um

mundo objectivo constituiacutedo por entidades independentes da linguagem58

Esta tradiccedilatildeo levou tambeacutem a cabo uma criacutetica agrave concepccedilatildeo instrumental da

linguagem dominante desde Aristoacuteteles que centrando-se sobre os nomes

lhes reconhece a funccedilatildeo de designar ou mostrar o ente Humboldt criticando

esta concepccedilatildeo pobre e restritiva das funccedilotildees da linguagem mostra que a

palavra nunca designa directamente o ente mas uma representaccedilatildeo que se

por um lado se refere ao ente por outro lado tem tambeacutem uma dimensatildeo

subjectiva que consiste num modo de apreensatildeo deste (o significado)59

Humboldt ao introduzir esta distinccedilatildeo entre a referecircncia e o significado vai

mostrar que a palavra nunca designa directamente um objecto mas que entre

ambos se interpotildee o universo dos significados e dos conceitos Se palavras

distintas em diferentes liacutenguas se referem ao mesmo objecto isto significaraacute

para Humboldt que cada liacutengua oferece uma perspectiva do mundo proacutepria60

Heidegger insere-se claramente nesta tradiccedilatildeo (embora natildeo a assuma

explicitamente) que reivindica para a linguagem um papel central na

constituiccedilatildeo da experiecircncia atribuindo-lhe como funccedilatildeo central a abertura de

58

A tese de Humboldt de que ldquoa cada ligravengua subjaz uma perspectiva particular de mundordquo eacute uma das

consequecircncias desta viragem na filosofia da linguagem Cf Cristina Lafont (ob cit 24) sublinha que

Humboldt procurou uma saiacuteda para as consequecircncias relativistas desta tese procurando garantir a

objectividade da experiecircncia pela investigaccedilatildeo das condiccedilotildees formais da comunicaccedilatildeo intersubjectiva 59

Cf Bernhard Sylla Hermeneutik der langue Weisgerber Heidegger und die Sprachphilosophie nach

Humboldt Wuumlrzburg (2009) Comentando a contribuiccedilatildeo de Humboldt o autor sublinha a novidade e o

caraacutecter antecipador da sua perspectiva sobre a natureza da linguagem humana agrave qual atribui a funccedilatildeo

primaacuteria de significaccedilatildeo ldquoIn den vorgehenden Paragraphen hatte Humboldt schon die wesentliche

Bedeutung des Lautcharakters von Sprache eroumlrtert wobei der Sprachlaut sich vom tierischen Laut

dadurch unterscheidet dass ersterem die ldquoAbsicht und die Faumlhigkeit zur Bedeutsamkeitrdquo zukomme dh

jeder sprachliche Laut ist artikuliertes Laut Quasi im Vorgriff auf spaumltere Erkenntnisse der

strukturalistischen Phonologie hebt Humboldt in der Folge hervor dass die bedeutungsdifferenzierende

Funktion der Laute und ihre Einbettung in ein Lautsystem ein wesentliches Merkmal der Sprachlaute seildquo

(Idem ob cit 132) 60

bdquo[hellip] si se asume que los signos linguumligravesticos en general solo pueden referirse a algo ldquoindirectamenterdquo

es decir mediante ldquosignificadosrdquo o ldquoconceptosrdquo entonces resulta praacutecticamente inevitable la

consecuencia idealista que Humboldt mismo extrae de esta suposicioacuten a saber que ldquoel hombre vive con

los objetos () exclusivamente tal y como el lenguaje se los presentardquordquo (Cristina Lafont ob cit 27)

55

mundo em detrimento da funccedilatildeo designativa61 Heidegger natildeo apenas assume

e leva agraves uacuteltimas consequecircncias esta tese como pretende fundaacute-la numa

preacutevia confrontaccedilatildeo com a loacutegica capaz de a abalar a partir dos seus

fundamentos confrontaccedilatildeo esta que nenhum dos autores referidos teria sido

capaz de fazer

1 Linguagem e ldquoabertura ontoloacutegicardquo

A histoacuterica confrontaccedilatildeo com Aristoacuteteles desempenha um papel central na

investigaccedilatildeo sobre a essecircncia da linguagem pois na perspectiva de

Heidegger o filoacutesofo grego assume uma particular importacircncia na histoacuteria da

filosofia como autor que se por um lado ainda reproduz o eco longiacutenquo do

pensamento originaacuterio por outro lado abre tambeacutem o caminho para impor o

logos como razatildeo e a loacutegica como ciecircncia normativa do pensamento e da

linguagem

Esse confronto com Aristoacuteteles a propoacutesito da questatildeo da linguagem eacute levado

a cabo em dois momentos essenciais em Ser e Tempo de 1927 e em Logik als

die Frage nach dem Wesen der Sprache tiacutetulo sob o qual foram publicadas as

liccedilotildees de loacutegica do semestre de Veratildeo de 193462 sendo esse confronto levado

a cabo em ambos os momentos na mesma disposiccedilatildeo fenomenoloacutegica

A Fenomenologia eacute para Heidegger63 um meacutetodo de acesso a qualquer

campo de investigaccedilatildeo temaacutetico e por conseguinte tambeacutem agrave investigaccedilatildeo da

61

Cf Bernhard Sylla refere a criacutetica de Heidegger a Humboldt e Herder situando-os ainda no acircmbito

duma metafiacutesica da linguagem mas sintetiza deste modo o aspecto que Heidegger valorizava nestes dois

pensadores bdquoWas Heidegger an Herder und Humboldt schaumltz sind also nicht deren theoretische

Konzeptionen als solche sondern vielmehr die ldquotiefdunklen Ahnungenldquo eines eigentlicheren Geschehens

die im Rahmen der von ihnen befolgten metaphysischen Paradigmen allerdings keine

Entwicklungsmoumlglichkeiten hatten Waumlhrend bezuumlglich Herder hier insbesondere die ungewoumlhnliche

Rolle des Horchens auf Sprache herausgestrichen wird ist es bei Humboldt ein weit grundlegenderer Zug

von Sprache naumlmlich die Eroumlffnung des Horizontes fuumlr dasjenige Verfahren das Heidegger selbst als

einzig wesentliches und ldquoeigentlichesrdquo verfolgte die Umwandlung der gewoumlhnlichen Sprache in eine

andere ldquourspruumlnglichererdquo und ldquoeigentlicherdquoldquo (Idem ob cit 367) 62

Martin Heidegger Loacutegica A pergunta pela essecircncia da linguagem Coord Ciecircntifica de Irene Borges-

Duarte trad de Maria Adelaide Pacheco e Helga Hook Quadrado Lisboa Gulbenkian 2008 63

Cf Otto Poumlggeler in Der Denkweg Martin Heideggers Tuumlbingen 1963 O autor sublinha que

Heidegger nas suas liccedilotildees apoacutes a Primeira Guerra Mundial jaacute colocava objecccedilotildees ao modo como Husserl

desenvolvia a fenomenologia a fenomenologia natildeo partia da intuiccedilatildeo entendida como intuiccedilatildeo de

objectos mas do compreender enraizado na vida como facticidade e historicidade A reduccedilatildeo

fenomenoloacutegica natildeo pode ser vista como o regresso a uma consciecircncia constituinte mas nessa reduccedilatildeo

deve ser conservada a vida faacutectica ldquoHeidegger gruumlndet die Phaumlnomenologie im Verstehen des faktischen

Leben in der Hermeneutik der Faktizitaumlt Die Phaumlnomenologie wird so zur bdquohermeneutische

Phaumlnomenologierdquoldquo (Idem ob cit 70)

56

linguagem O meacutetodo de proceder fenomenoloacutegico visa abrir uma via de

acesso ao ser lutando contra a dissimulaccedilatildeo e o encobrimento em que ele

permanece a maior parte do tempo e Heidegger sintetiza-o nas trecircs indicaccedilotildees

metodoloacutegicas da reduccedilatildeo fenomenoloacutegica da construccedilatildeo fenomenoloacutegica e

da destruiccedilatildeo fenomenoloacutegica64

A destruiccedilatildeo fenomenoloacutegica eacute o exerciacutecio da criacutetica aos fenoacutemenos

dissimuladores que encobrem o ser e deve acompanhar os outros dois

procedimentos metoacutedicos como condiccedilatildeo da possibilidade de

encaminhamento da investigaccedilatildeo no sentido dum progressivo desvelamento do

ser da linguagem

Ora a loacutegica constitui-se historicamente ndash o que Heidegger afirmara em Ser e

Tempo na continuidade da tradiccedilatildeo de Hamann Herder e Humboldt ndash como

aquele aspecto da tradiccedilatildeo filosoacutefica que deturpou e nos vedou o acesso ao ser

da linguagem Desse modo a destruiccedilatildeo da loacutegica impotildee-se como

procedimento metodoloacutegico essencial para que a investigaccedilatildeo possa tomar o

caminho pretendido e chegue a mostrar o ser da linguagem tal como ele

aparece ao olhar compreensivo da reconstruccedilatildeo fenomenoloacutegica ou tal como

ele se mostra a respeito de si mesmo

Nas Liccedilotildees de Loacutegica Heidegger esclarece o sentido em que deve ser tomada

esta ldquodestruiccedilatildeo da loacutegicardquo precisando que destruiacute-la natildeo significa

menosprezaacute-la como supeacuterflua mas apenas compreendecirc-la e abalaacute-la a partir

dos seus fundamentos tarefa que Heidegger afirma estar ainda a dar os seus

primeiros passos ldquoNatildeo se supera o intelectualismo com o mero resmungar

mas atraveacutes da austeridade e do rigor dum pensar completamente novo e

seguro Isso natildeo acontece da noite para o dia nem por encomenda Isso natildeo

acontece enquanto o domiacutenio e o poder da loacutegica tradicional natildeo se tiverem

quebrado Isso exige uma luta na qual o nosso destino espiritual e histoacuterico se

decide uma luta para a qual neste momento nem sequer temos as armas e

em que natildeo conhecemos ainda o adversaacuterio de modo que corremos o risco de

inadvertidamente fazer causa comum com o adversaacuterio em vez de o atacar

64

No curso de Marburgo de 19191920 (GP GA 58) Heidegger discute os trecircs momentos fundamentais

do meacutetodo fenomenoloacutegico a reduccedilatildeo fenomenoloacutegica a construccedilatildeo fenomenoloacutegica e a destruiccedilatildeo

fenomenoloacutegica destinados a facultar o acesso a qualquer campo de investigaccedilatildeo da fenomenologia

Sobre este ponto Cf Friedrich-Wilhelm Von Herrmann A Ideia de Fenomenologia em Heidegger e

Husserl Phainomenon (2003) 180-183

57

Noacutes temos que saber que a nossa histoacuteria espiritual remete para haacute 2000 anos

Esta histoacuteria na sua forccedila instituinte estaacute hoje ainda presente mesmo que a

maioria natildeo suspeite nada dissordquo65

A magnitude desta tarefa de abalar a loacutegica a partir dos seus fundamentos

reside no facto de ela natildeo ser um qualquer domiacutenio do pensar mas aquele

domiacutenio fundante da histoacuteria da nossa cultura sob o impeacuterio do qual se

desenvolveu a nossa histoacuteria espiritual enquanto histoacuteria da racionalidade

teacutecnica e cientiacutefica que mais tarde Heidegger designaraacute por Gestell Abalar a

loacutegica a partir dos seus fundamentos significa abalar os proacuteprios fundamentos

da nossa histoacuteria e assim poder libertar a essecircncia da linguagem ldquoSoacute uma

longa e dolorosa libertaccedilatildeo nos traz para o ar livre e nos prepara para criar a

nova forma da linguagem (Rede)rdquo

A loacutegica constituiu-se com Aristoacuteteles como ciecircncia normativa do pensar e

simultaneamente condicionou a articulaccedilatildeo da linguagem e a sua

normalizaccedilatildeo atraveacutes das categorias da gramaacutetica Atraveacutes do seu impeacuterio

sobre as diversas gramaacuteticas a loacutegica aristoteacutelica constitui-se como ldquosiacutetio de

origem da linguagem faacutecticardquo isto eacute das diversas liacutenguas tal como satildeo

efectivamente usadas para produzir os enunciados cientiacuteficos e as proposiccedilotildees

metafiacutesicas

Assim a loacutegica aristoteacutelica que se manteve praticamente inalterada ao longo

da nossa histoacuteria vigorou e regeu todo o pensar ocidental como instrumento e

propedecircutica do pensar e do conhecer

Natildeo poderemos no entanto compreender a confrontaccedilatildeo de Heidegger com

Aristoacuteteles se natildeo tivermos em conta que esse confronto se estabelece a partir

da partilha de um solo comum claramente estabelecido em Ser e Tempo de

facto em Aristoacuteteles Heidegger encontra ainda a conservaccedilatildeo da noccedilatildeo grega

originaacuteria da linguagem como logos assim como o eco do pensar inaugural

que lhe conferia um papel central na constituiccedilatildeo ontoloacutegica do homem rdquoSeraacute

65

bdquoMit bloszligem Schimpfen wird der Intellektualismus nicht uumlberwunden sondern durch die Haumlrte und

Strenge eines ganz neuen und gesicherten Denkens Es kommt nicht uumlber Nacht und nicht auf Bestellung

Es kommt so lange nicht als Herrschaft und Macht der uumlberlieferten Logik nicht von Grund auf

gebrochen sind Das fordert einen Kampf in dem sich unser geistiges und geschichtliches Schicksal

entscheidet einen Kampf zu dem wir heute noch nicht einmal die Waffen haben und in dem wir heute

noch nicht einmal den Gegner kennen so daβ wir Gefahr laufen unversehens mit dem Gegner

gemeinsame Sache zu machen anstatt ihn anzugreifen Wir muumlssen wissen daβ unsere geistige

Geschichte 2000 Jahre zuruumlck gebunden ist Diese Geschichte ist in ihrer gestaltenden Kraft heute noch

Gegenwart auch wenn die meisten nichts davon ahnenldquo LWS GA 38 89

58

um acaso que os gregos cujo existir quotidiano se tinha colocado

preponderantemente no falar um com o outro e que ao mesmo tempo rdquotinham

olhosrdquo para ver definissem a essecircncia do homem tanto na interpretaccedilatildeo preacute-

filosoacutefica do Dasein como na filosoacutefica como δῷολ ιoacuteγολ ἔχολrdquo66

Se o conceito aristoteacutelico de logos eacute submetido por Heidegger a uma

destruiccedilatildeo fenomenoloacutegica com tal procedimento metodoloacutegico Heidegger

pretende levar a cabo uma desmontagem conceptual que permita reconstruir a

situaccedilatildeo originaacuteria desse conceito Logos no pensamento grego inaugural natildeo

designava a razatildeo mas a identidade essencial entre falar e pensar o homem

eacute para os gregos um ente que fala isto eacute um ente no qual se articula a

compreensatildeo do mundo

Logos neste sentido originaacuterio seraacute traduzido por Heidegger em Ser e Tempo

atraveacutes da palavra alematilde Rede (faladiscurso) e explicitado em Ser e Tempo

como ldquoarticulaccedilatildeo da compreensibilidaderdquo ldquoA fala eacute a articulaccedilatildeo da

compreensibilidade Serve por isso jaacute de base agrave interpretaccedilatildeo e agrave proposiccedilatildeo

O articulaacutevel na interpretaccedilatildeo ou mais originariamente jaacute na fala chamamo-lo

o sentido O articulado na articulaccedilatildeo da fala chamamo-lo enquanto tal o todo

do significadordquo67

A linguagem enquanto logos articula-se originariamente com a questatildeo do ser

e da verdade mas de um outro modo que natildeo aquele que se encontra em

Aristoacuteteles o logos (nesse sentido originaacuterio que agora Heidegger visa

recuperar) natildeo designa a proposiccedilatildeo mas o falar um com o outro no qual se

partilha um sentido comum ou se descobre um mundo na totalidade da sua

significaccedilatildeo

Os quatro momentos estruturais da fala (Rede) que a investigaccedilatildeo

fenomenoloacutegica de Ser e Tempo permitiu aclarar mostram precisamente esta

dimensatildeo simultaneamente totalizante e dialoacutegica da linguagem

66

bdquoIst es Zufall daszlig die Griechen deren alltaumlgliches Existieren sich vorwiegend in das Miteinanderreden

verlegt hatte und die zugleich bdquoAugen hattenldquo zu sehen in der vor philosophischen sowohl wie in der

philosophischen Daseinsauslegung das Wesen des Menschen bestimmten als δῷολ ιoacuteγολ ἔτολldquo SuZ

GA 2 sect34 165 67

bdquoRede ist die Artikulation der Verstaumlndlichkeit Sie liegt daher der Auslegung und Aussage schon

zugrunde Das in der Auslegung urspruumlnglicher mithin schon in der Rede Artikulierbare nannten wir den

Sinn Das in der redenden Artikulation Gegliederte als solches nennen wir das Bedeutungsganzeldquo SuZ

GA 2 sect34 161

59

1 O ldquosobre que se falardquo aponta para a funccedilatildeo de designaccedilatildeo

salientada por Aristoacuteteles a propoacutesito da proposiccedilatildeo cujo sujeito

indica o ente de que se fala Para Heidegger esta funccedilatildeo de

designaccedilatildeo pode contudo ser desempenhada por enunciados

linguiacutesticos natildeo proposicionais como uma ordem ou um desejo

ou uma pergunta

2 O segundo momento estrutural eacute ldquoo que se falardquo isto eacute o que eacute

dito no desejar ordenar perguntar etc e que eacute objecto de

comunicaccedilatildeo

3 O terceiro momento eacute a comunicaccedilatildeo na qual se constitui a

articulaccedilatildeo de ldquoser um com outrordquo

4 O quarto momento eacute a manifestaccedilatildeo ou o expressar-se do estado

de acircnimo pelo tom e a maneira de dizer

Estes 4 momentos apontam inequivocamente para uma concepccedilatildeo de

linguagem que extravasa os limites da proposiccedilatildeo - a fala tem uma estrutura

essencialmente dialoacutegica mesmo quando confinada ao exerciacutecio do

pensamento solitaacuterio pensar eacute falar com o outro como se encontra jaacute

evidenciado na dialeacutectica platoacutenica

Agrave fala (Rede) eacute inerente o ser-com e ela aponta sempre pois para uma

partilha ou um instituir do sentido plano do social de modo que aquele que fala

(e que pensa) eacute sempre jaacute algueacutem que participa dum jogo comunicativo cujas

normas o precedem e condicionam

Cada acto singular de fala exerce-se a partir duma comunhatildeo preacutevia de sentido

que tem uma dimensatildeo simultaneamente compreensiva e afectiva reinstaura e

actualiza essa comunhatildeo ou esse ser-um-com-o-outro ldquoA comunicaccedilatildeo nunca

eacute como um transporte de vivecircncias por exemplo de opiniotildees e desejos do

interior de um sujeito ao interior de outro O ser-aiacute-com eacute essencialmente jaacute

patente na afectividade e compreensatildeo em comum O ser-com eacute partilhado

ldquoexplicitamenterdquo na fala quer dizer jaacute o eacute soacute natildeo eacute partilhado enquanto natildeo

assumido nem apropriadordquo 68

68

bdquoMitteilung ist nie so etwas wie ein Transport von Erlebnissen zum Beispiel Meinungen und

Wuumlnschen aus dem Inneren des einen Subjekts in das Innere des anderen Mitdasein ist wesenhaft schon

60

Se Heidegger tem consciecircncia de seguir o caminho jaacute aberto por Humboldt ao

recuperar este sentido totalizante do logos como discurso instituinte duma

significaccedilatildeo comum ele pretende contudo ir mais longe ldquoA teoria da

significaccedilatildeo natildeo se produz por si comparando as mais e mais diversas liacutenguas

possiacuteveis Tatildeo-pouco basta regressar ao horizonte filosoacutefico dentro do qual W

V Humboldt colocou o problema da linguagem A teoria da significaccedilatildeo tem as

suas raiacutezes na ontologia do Dasein A sua prosperidade e decadecircncia seguem

os destinos destardquo69

A viragem hermenecircutica estaacute aqui claramente indicada como afirmaccedilatildeo radical

da centralidade da linguagem na constituiccedilatildeo da experiecircncia e

simultaneamente como uma viragem que ambiciona tornar-se autenticamente

vigente ultrapassando o plano da simples anaacutelise linguiacutestica em que se movia

Humboldt para cumprir-se no plano da ontologia fundamental Esta viragem

seraacute efectivamente concretizada nos vaacuterios paraacutegrafos de Ser e Tempo

dedicados agrave tarefa de encontrar um lugar ontoloacutegico para a linguagem na

constituiccedilatildeo do ser do homem aiacute conduzindo agrave consideraccedilatildeo de que a

linguagem eacute inerente ao ldquoestado de abertordquo [Erschlossenheit] do Dasein

Assim a elucidaccedilatildeo do estado de aberto do Dasein eacute um aspecto crucial para

compreender a problemaacutetica da linguagem em Ser e Tempo o Dasein move-se

sempre em cada caso num mundo jaacute aberto isto eacute num mundo jaacute

simbolicamente estruturado e por isso mesmo susceptiacutevel de ser

compreendido Mundo natildeo tem por isso o significado ocircntico da totalidade dos

entes ldquodiante dos olhosrdquo que se opotildeem ao Dasein nem tatildeo-pouco o significado

ontoloacutegico do ser desses entes Mundo tem o significado englobante do ldquoem

querdquo o Dasein faacutectico vive e exerce a sua existecircncia e do qual tem sempre uma

compreensatildeo preacute-ontoloacutegica ldquoMundo pode por outro lado ser compreendido

num sentido ocircntico agora poreacutem natildeo como o ente que o Dasein

essencialmente natildeo eacute e que pode encontrar intra-mundanamente mas como o

offenbar in der Mitbefindlichkeit und im Mitverstehen Das Mitsein wird in der Rede bdquoausdruumlcklichrdquo

geteilt das heiszligt es ist schon nur ungeteilt als nicht ergriffenes und zugeeignetesldquo SuZ GA2 sect34 162 69

bdquoDie Bedeutungslehre ergibt sich nicht von selbst durch umfassendes Vergleichen moumlglichst vieler und

entlegener Sprachen Ebensowenig genuumlgt die Uumlbernahme etwa des philosophischen Horizonts innerhalb

dessen W v Humboldt die Sprache zum Problem machte Die Bedeutungslehre ist in der Ontologie des

Daseins verwurzelt Ihr Gedeihen und Verderben haumlngt am Schicksal dieserldquo SuZ GA2 sect34 166

61

ldquoonderdquo um Dasein faacutectico como tal ldquoviverdquo Mundo tem aqui um significado

existencial preacute-ontoloacutegicordquo70

Haacute assim uma conexatildeo estreita entre a linguagem e a estrutura do Dasein

enquanto ser-no-mundo ser-no-mundo significa mover-se no interior duma

abertura ontoloacutegica jaacute aberta na linguagem efectivamente falada e estruturante

dessa totalidade que eacute o mundo A linguagem eacute uma instacircncia uacuteltima inerente

ao estado de aberto do Dasein e que possibilita todo o conhecimento intra-

mundano Nesta funccedilatildeo de abertura de mundo haacute que destacar o seu caraacutecter

globalizante ou holiacutestico integrando toda a articulaccedilatildeo de sentido que eacute

inerente natildeo apenas aos discursos teoacutericos mas muito antes disso e mais

originariamente agrave acccedilatildeo praacutetica do quotidiano ao simples ldquoocupar-se com as

coisas agrave matildeordquo o que mais tarde iraacute tornar possiacutevel a Heidegger a interpretaccedilatildeo

da teacutecnica e da arte como linguagem

A linguagem natildeo estaacute assim prioritariamente ligada ao conhecimento

proposicional e ao comportamento teoreacutetico - como em Aristoacuteteles - sendo este

apenas um caso particular do Besorgen ou do ocupar-se que caracteriza o In-

der-Welt-Sein Tomar este comportamento teoreacutetico como ponto de partida

para a compreensatildeo da linguagem induz uma compreensatildeo restritiva e

empobrecedora da linguagem que assim fica submetida agraves exigecircncias

normativas desse campo de visatildeo ldquoO comportamento praacutetico natildeo eacute ldquoateoreacuteticordquo

no sentido de privado de visatildeo e a sua diferenccedila em relaccedilatildeo ao

comportamento teoreacutetico natildeo reside apenas em que este eacute reflectido e aquele

agido e que a acccedilatildeo para natildeo permanecer cega usa o conhecimento

teoreacutetico mas reflectir eacute originariamente um ocupar-se como o agir tem a sua

visatildeo O comportamento teoreacutetico eacute soacute ver numa direcccedilatildeo precisa privado de

visatildeo englobante O ver numa direcccedilatildeo natildeo eacute porque privado de visatildeo agrave volta

sem regras constroacutei para si o seu cacircnone no Meacutetodordquo71

70

bdquoWelt kann wiederum in einem ontischen Sinn verstanden werden jetzt aber nicht als das Seiende das

das Dasein wesenhaft nicht ist und das innerweltlich begegnen kann sondern als das ldquoworinrdquo ein

faktisches Dasein als dieses ldquolebtrdquo Welt hat hier eine vorontologisch existentielle Bedeutungrdquo SuZ GA

2 sect14 65 71

bdquoDas ldquopraktischerdquo Verhalten ist nicht ldquoatheoretischrdquo im Sinne der Sichtlosigkeit und sein Unterschied

gegen das theoretische Verhalten liegt nicht nur darin daβ hier betrachtet und dort gehandelt wird und

daβ das Handeln um nicht blind zu bleiben theoretisches Erkennen anwendet sondern das Betrachten ist

so urspruumlnglich ein Besorgen wie das Handeln seine Sicht hat Das theoretische Verhalten ist

unumsichtiges Nur-hinsehen Das Hinsehen ist weil unumsichtig nicht regellos seinen Kanon bildet es

sich in der Methoderdquo SuZ GA 2 sect 15 69

62

Rompendo com uma concepccedilatildeo excessivamente restritiva da linguagem que

se encontra instituiacuteda em Aristoacuteteles Heidegger recupera a compreensatildeo mais

originaacuteria da linguagem como esse logos comum de que jaacute falava Heraclito

permitindo-lhe afirmar que ldquotodas as coisas satildeo umrdquo A temaacutetica ontoloacutegica estaacute

assim para Heidegger intrinsecamente ligada com esta funccedilatildeo de ldquoabrir

mundordquo que ele afirma como a funccedilatildeo primeira da linguagem eacute a linguagem

que fixa e institui o sentido do ser em geral

Sendo a linguagem o fio condutor para o esclarecimento da problemaacutetica

ontoloacutegica eacute na confrontaccedilatildeo com Aristoacuteteles e na destruiccedilatildeo de uma

concepccedilatildeo simultaneamente normativa e restritiva do logos que esta temaacutetica

poderaacute ser cabalmente compreendida72

2 O logos hermenecircutico e o logos apofacircntico

Trata-se em primeiro lugar para Heidegger de enfrentar a tradiccedilatildeo filosoacutefica

que traduziu e interpretou logos como rdquo[] razatildeo juiacutezo conceito definiccedilatildeo

fundamento proporccedilatildeordquo O questionamento de Heidegger centra-se na questatildeo

de saber porque se interpretou logos no sentido de proposiccedilatildeo e de juiacutezo ou

seja como siacutentese de conceitos que na sua perspectiva tem a funccedilatildeo de

permitir ver algo em seu estar junto com algo permitir ver algo como algo

A siacutentese implicada nos enunciados verbais que classificamos como

proposiccedilotildees funda-se na funccedilatildeo primordial atribuiacuteda por Aristoacuteteles agrave

linguagem e por ele designada de ἀποθαίλεζζαη (dar a ver algo como algo) A

confrontaccedilatildeo com Aristoacuteteles vai centrar-se nesta primazia atribuiacuteda pelo

filoacutesofo grego agrave funccedilatildeo apofacircntica da linguagem ldquoιoacuteγος no sentido da fala quer

dizer antes o mesmo que δειοῦλ fazer patente ldquoaquilo de que se falardquo na fala

Aristoacuteteles explicou com mais rigor esta funccedilatildeo da fala chamando-lhe

ἀποθαίλεζζαηrdquo73

72

Cf Tatiana Aguilar-Aacutelvarez Bay em El Lenguaje en el Primer Heidegger (Meacutexico 1998) A autora

defende a tese de que Ser e Tempo se desenrola agrave volta do problema central da loacutegica como ciecircncia da

verdade e que eacute nesse contexto que a linguagem assume especial relevacircncia Heidegger reformula o

conceito de logos deslocando o conceito de verdade para a linguagem tema transversal a toda a obra e de

modo algum circunscrita ao apartado que se lhe dedica (Idem ob cit 283) 73

bdquoλoacuteγος als Rede besagt vielmehr soviel wie δελοῦν offenbar machen das wovon in der Rede rdquodie

Rederdquo ist Aristoteles hat diese Funktion der Rede schaumlrfer expliziert als ἀποφαίνεζζαηldquo SuZ GA 2 sect7

32

63

A funccedilatildeo apofacircntica atribui ao logos a possibilidade de dar a ver aquilo de que

se fala aos que falam uns com os outros recobrindo assim simultaneamente a

funccedilatildeo de designaccedilatildeo proacutepria do sujeito da proposiccedilatildeo (que torna patente

aquilo que designa) e a funccedilatildeo de atribuiccedilatildeo inerente agrave predicaccedilatildeo ou

ςύλζεζης que natildeo satildeo aliaacutes distinguidas por Heidegger Na criacutetica ao ldquodar a

ver algo como algordquo caracteriacutestico do logos apofacircntico Heidegger visa

sobretudo o facto de Aristoacuteteles considerar os enunciados verbais como

designando directamente as coisas ldquodiante dos olhosrdquo

E porque a funccedilatildeo da linguagem para Aristoacuteteles consiste no simples permitir

ver algo o mostrado enquanto tal o uumlποθείκελολ o que ldquoestaacute diante dos

olhosrdquo o logos poderaacute tambeacutem ser interpretado como significando razatildeo de

ser ou ratio

Esta funccedilatildeo de designaccedilatildeo dos entes tomada como funccedilatildeo primaacuteria da

linguagem deixa poreacutem de lado a questatildeo do sentido - daiacute que Heidegger

pressuponha natildeo a falsidade da funccedilatildeo apofacircntica da linguagem afirmada por

Aristoacuteteles mas o seu caraacutecter secundaacuterio e derivado Uma funccedilatildeo anterior e

mais fundamental da linguagem eacute por ele pressuposta sob a designaccedilatildeo de

ldquologos hermenecircuticordquo O logos hermenecircutico pode mostrar-se no acto

antepredicativo do simples compreender as coisas agrave matildeo

Heidegger vai em seguida questionar-se sobre o conceito de verdade

dominante na tradiccedilatildeo metafiacutesica a verdade como concordacircncia salientado o

seu caraacutecter superficial e derivado ldquoEsta ideia natildeo eacute em nenhum caso a

primaacuteria no conceito de ἀιήζεηα O ser verdade do ιόγος como ἀιεζεύεηλ quer

dizer no ιέγεηλ como ἀποθαίλεζζαη extrair do seu ocultamento o ente de que

se fala e permitir vecirc-lo descobri-lo como natildeo oculto (ἀιεζές)rdquo74

Aprofundando o seu questionamento sobre a possibilidade ontoloacutegica deste

extrair do ocultamente Heidegger conclui que esta radica no proacuteprio Dasein e

na sua constituiccedilatildeo ontoloacutegica que tem em si mesma a possibilidade de uma

atitude de desocultaccedilatildeo e de abertura relativamente aos entes

74

bdquoDiese Idee ist keinesfalls die primaumlre im Begriff der ἀλήζεηα Das bdquoWahrseinrdquo des λόγος als ἀλεζεύεην

besagt das Seiende wovon die Rede ist im λέγεην als ἀποφαίνεζζαη aus seiner Verborgenheit heraus

nehmen und es als Unverborgenes (ἀλεζές) sehen lassen entdeckenldquo SuZ GA sect7 33

64

Esta atitude natildeo se restringe de modo algum ao logos apofacircntico ou aos

enunciados proposicionais mas eacute antes de mais inerente agrave proacutepria aisthesis e

ao noein este confronto com Aristoacuteteles tem como resultado salientar o

caraacutecter secundaacuterio e derivado dos enunciados proposicionais e a

necessidade de alargar e radicalizar o conceito de logos de modo a dar conta

e a recobrir esta atitude de desocultaccedilatildeo e abertura inerentes ao Dasein

O logos hermenecircutico eacute a expressatildeo encontrada por Heidegger para indicar

esta perspectiva globalizante em que agora se encara a fala de facto

Heidegger aponta para uma linguagem antepredicativa inerente ao Dasein

como ser-no-mundo isto eacute a uma atitude compreensiva e interpretativa do

mundo englobante que fundamenta a possibilidade da linguagem expressa

dos enunciados verbais numa qualquer liacutengua e ainda dos enunciados

proposicionais inerentes a uma atitude teoreacutetica75

Haacute para Heidegger uma linguagem (logos) inerente aos modos preacute-teoreacuteticos

de relacionamento do Dasein com o mundo agrave volta e com os entes intra-

mundanos uma vez que este modo de relacionamento mesmo enquanto

praxis se mostra enquanto um rdquotratar comrdquo orientado para um rdquopara querdquo que

estrutura uma situaccedilatildeo significativa que em cada caso existe Em conformidade

com isto Heidegger diraacute no sect 32 de Ser e Tempo ldquoA indicaccedilatildeo do rdquopara quecircrdquo

natildeo eacute simplesmente o nomear algo mas o nomeado eacute compreendido como

aquilo pelo que haacute que tomar aquilo pelo que se pergunta O aberto no

compreender o compreendido eacute sempre jaacute acessiacutevel de tal maneira que nele

pode destacar-se expressamente o seu rdquocomo quecircrdquo O rdquocomordquo constitui a

estrutura do estado de expresso de algo compreendido constitui a

interpretaccedilatildeo O rdquoandar em tornordquo interpretando no rdquover em tornordquo com o rdquoagrave-

matildeordquo no mundo circundante que o ldquovecircrdquo como mesa porta carro ponte natildeo

necessita forccedilosamente de explicitar o interpretado no rdquover em tornordquo tambeacutem

75

A afirmaccedilatildeo do primado do logos hermenecircutico eacute uma questatildeo central relativamente agrave investigaccedilatildeo

levada a cabo em Ser e Tempo pois conecta-se com a dimensatildeo ontoloacutegica da linguagem ldquoNos

encontramos ante un punto decisivo en la interpretacioacuten heideggeriana del habla La distincioacuten que lleva a

cabo a continuacioacuten explica el alcance que atribuye al lenguaje maacutes adelante La estructura-como que

estaacute en la base del significar se distingue de la siacutentesis y la diaacuteiresis como lo ontoloacutegico de lo loacutegico En

la comprensioacuten que se deriva de la estructura-como nos hacemos con lo que las cosas son no soacutelo con

alguna de sus notas El significado el sentido de algo se da en este aacutembitordquo Tatiana Aguilar-Aacutelvarez

Bay El Lenguaje en el Primer Heidegger 76-77

65

numa proposiccedilatildeo determinante Todo o simples ver antepredicativamente o rdquoagrave-

matildeordquo eacute jaacute em si mesmo interpretativo-compreensorrdquo 76

O simples ver das coisas eacute sempre jaacute uma articulaccedilatildeo da inteligibilidade eacute-lhe

subjacente a compreensatildeo de algo como algo (Als-Struktur)77 que configura

uma funccedilatildeo de abertura ou de interpretaccedilatildeo que eacute inerente ao Dasein

enquanto ser-no-mundo Eacute essa possibilidade que possui o Dasein de olhar agrave

volta compreendendo que faz com que ldquoo mundordquo esteja sempre jaacute

compreendido e interpretado ldquoO olhar agrave volta descobre significa ldquoo mundordquo jaacute

compreendido eacute interpretado O ldquoagrave-matildeordquo entra expressamente no campo do ver

compreensorrdquo78

Heidegger sublinha vaacuterias vezes em Ser e Tempo que esta articulaccedilatildeo da

inteligibilidade eacute preacutevia a qualquer enunciado temaacutetico sobre as coisas que

qualquer enunciado se limita a expressar o rdquocomordquo previamente apropriado

pela interpretaccedilatildeo compreensiva do mundo agrave volta e ainda que esta

apropriaccedilatildeo preacutevia deve jaacute estar presente para que possa ser expressaacutevel num

qualquer enunciado A fala (Rede) eacute precisamente essa articulaccedilatildeo da

inteligibilidade preacutevia a qualquer enunciado e fundante de qualquer discurso

linguiacutestico para os quais Heidegger reserva o termo alematildeo de Sprache

A destruiccedilatildeo fenomenoloacutegica como desmontagem do conceito aristoteacutelico do

logos apofantikos teve pois como resultado possibilitar uma aproximaccedilatildeo da

experiecircncia faacutectica de vida e uma tentativa de reconstruccedilatildeo do conceito de

logos fiel a essa experiecircncia originaacuteria da fala como articulaccedilatildeo totalizante de

sentido em que afinal consiste ldquoum mundordquo ldquoOs entes intra-mundanos satildeo

projectados sem excepccedilatildeo sobre o fundo de mundo isto eacute sobre um todo de

76

bdquoDie Angabe des Wozu ist nicht einfach die Nennung von etwas sondern das Genannte ist verstanden

als das als welches das in Frage stehende zu nehmen ist Das im Verstehen Erschlossene das

Verstandene ist immer schon so zugaumlnglich daβ an ihm sein bdquoals wasrdquo ausdruumlcklich abgehoben werden

kann Das bdquoAlsrdquo macht die Struktur der Ausdruumlcklichkeit eines Verstandenen aus es konstituiert die

Auslegung Der umsichtig-auslegende Umgang mit dem umweltlich Zuhandenen der dieses als Tisch

Tuumlr Wagen Bruumlcke bdquosiehtldquo braucht das umsichtig Ausgelegte nicht notwendig auch schon in einer

bestimmenden Aussage auseinander zu legen Alles vorpraumldikative schlichte Sehen des Zuhandenen ist an

ihm selbst schon verstehend-auslegendldquo SuZ GA 2 sect32 149 77

Joatildeo Paisana chama a atenccedilatildeo para a distinccedilatildeo entre a estrutura ldquoenquanto querdquo (Als-Strucktur)

hermenecircutica (isto eacute ante-predicativa) e a estrutura ldquoenquanto querdquo apofacircntica (predicativa) Cf idem

Histoacuteria da Filosofia e Tradiccedilatildeo Filosoacutefica Lisboa 1993 37 78

ldquoDie Umsicht entdeckt das bedeutet die schon verstandene ldquoWeltrdquo wird ausgelegt Das Zuhandene

kommt ausdruumlcklich in die verstehende Sichtrdquo SuZ GA 2 sect32 148

66

significaccedilatildeo a cujas relaccedilotildees de referecircncia se fixou antecipadamente o ldquoocupar-

se comrdquo enquanto ldquoser no mundordquordquo79

3 Linguagem facticidade e existecircncia

A fenomenologia hermenecircutica limita-se a dar a conhecer e a tornar expliacutecita

essa articulaccedilatildeo da inteligibilidade que o Dasein realiza inexplicitamente e a

levaacute-la progressivamente a uma compreensatildeo expressa Mediante a

interpretaccedilatildeo hermenecircutica realizada em Ser e Tempo Heidegger poderaacute

mostrar que a linguagem deve ser apreendida como a experiecircncia viva da

unidade entre pensar e falar integrando-a no contexto concreto da existecircncia

Assim procede-se a uma deslocaccedilatildeo total do acircngulo de abordagem do

fenoacutemeno linguiacutestico Compreender a linguagem eacute caminhar na via da auto-

interpretaccedilatildeo do Dasein natildeo como um Dasein ideal mas como um Dasein

faacutectico tal como ele vive ou existe em cada dia

Trata-se duma rdquoviragem copernicanardquo no modo de aceder agrave linguagem que

natildeo pode ser tomada como objecto dum discurso cientiacutefico nem de qualquer

intenccedilatildeo normativa escapando inteiramente quer agrave loacutegica tradicional quer agrave

gramaacutetica que lhe foi historicamente subordinada Aceder agrave linguagem implica

compreendecirc-la teoricamente sem deixar de ser fiel agrave nossa experiecircncia viva da

fala

Fiel a esta intenccedilatildeo de tomar como ponto de partida para investigar a

linguagem o Dasein faacutectico enquanto ser jaacute sempre lanccedilado no mundo

Heidegger vai mostrar que o Dasein experiencia-se no seu caraacutecter

fundamental de aberto na modalidade fundamental da Erschlossenheit

enquanto se ocupa dos entes agrave-matildeo e eacute com-os-outros Tomando como ponto

de partida a praxis vital quotidiana - o homem enquanto eacute junto dos entes intra-

mundanos em e pelo cuidado (Sorge) - Heidegger vai mostrar e identificar

fenomenologicamente os modos de relacionamento (Verhaltungen) implicados

no estar ocupado com os entes junto dos quais estamos

79

bdquoDas innerweltlich Seiende uumlberhaupt ist auf Welt hin entworfen das heiβt auf ein Ganzes von

Bedeutsamkeit in deren Verweisungsbezuumlgen das Besorgen als In-der-Welt-sein sich im vorhinein

festgemacht hatldquo SuZ GA 2 sect32 151

67

Neste mostrar e identificar fenomenologicamente as vaacuterias modalidades de

relacionamento Heidegger vai indicar dois modos essencialmente praacuteticos o

Besorgen ou estar ocupado com os entes-agrave-matildeo ldquocuidando derdquo e o Fuumlrsorgen

ou o ldquopreocupar-se comrdquo os entes que tecircm a forma do Dasein (solicitude) Eacute

partindo destas relaccedilotildees praacuteticas do Dasein com os entes que a fenomenologia

hermenecircutica de Heidegger vai pocircr agrave mostra e identificar aquilo que desde o

princiacutepio Heidegger se propotildee investigar o ser do ente

Todavia eacute sabido que Heidegger iraacute encontrar uma diversidade de modos de

ser de que destacamos pela sua pertinecircncia para a temaacutetica da linguagem a

existecircncia (Existenz) o estar-agrave-matildeo (Zuhandensein) e o estar diante dos olhos

(Vorhandensein)

Existecircncia80 eacute o modo de ser proacuteprio do homem que tem como particularidade

ontoloacutegica levar em si mesmo o seu proacuteprio ser ou referir-se a uma

possibilidade de ser ldquoO Dasein determina-se como ente em cada caso

partindo de uma possibilidade que ele eacute e que no seu ser compreende de

alguma maneira Este eacute o sentido formal de o Dasein ter por constituiccedilatildeo a

existecircnciardquo81

O estar-agrave-matildeo eacute o ente de que na praacutetica me sirvo e que assim constituo como

utensiacutelio ou como ldquomeio parardquo e que quando objecto de uma consideraccedilatildeo

80

Cf Tatiana Aguilar-Aacutelvarez Bay em El Lenguaje en el Primer Heidegger rebatendo a leitura de Ser e

Tempo centrada na temaacutetica da existecircncia defende que a necessidade de um desvio para a analiacutetica da

existecircncia em Ser e Tempo deriva da tendecircncia do Dasein a interpretar o seu ser reflexivamente sem se

aperceber que as categorias vaacutelidas para os restantes entes satildeo inadequadas para a existecircncia (sendo esta

temaacutetica secundaacuteria e subordinada agrave questatildeo central explanaccedilatildeo original do tempo como horizonte da

compreensatildeo do ser) ldquoEn la ldquoIntroduccioacutenrdquo Heidegger adelanta lo que va a ser el resultado final de Ser y

Tiempo que tambieacuten se refleja en el tiacutetulo de la obra el sentido del ser del Dasein es la temporalidad

Puesto que en el Dasein se da la comprensioacuten del ser El cometido de la analiacutetica existencial consiste en

mostrar que el tiempo posibilita la comprensioacuten del ser rdquohellipaquello desde lo cual el Dasein en general se

comprende e interpreta aunque no expresamente lo que se dice ldquoserrdquo es el tiempo [hellip] Para hacerlo

evidente asiacute se ha menester de una explanacioacuten original del tiempo como horizonte de la comprensioacuten

del ser partiendo de la temporalidad como ser del Dasein que comprende el Serrdquo

Queda asiacute establecido el criterio seguacuten el cual se efectuacutea la destruccioacuten de la ontologiacutea Levarla a cabo

significa decidir acerca de si se reconoce la funcioacuten ontoloacutegica primordial del tiempo

Independientemente de que se advierta o no el tiempo es el horizonte desde el cual se patentiza el ente

Sin embargo el no hacerlo expliacutecito da lugar al modelo ontoloacutegico que Heidegger pretende superar la

sustancializacioacuten de la temporalidad o el predominio de la presencia Este esquema impide que se

advierta la pertenencia del tiempo a la comprensioacuten del ser y por consiguiente la necesidad de hacer del

anaacutelisis del Dasein el hilo conductor de la ontologiacutea La raiacutez de esta desviacioacuten estaacute en la tendencia del

Dasein a interpretar su ser reflejamente sin darse cuenta de que las categoriacuteas vaacutelidas para el resto de los

entes son inadecuadas para la existencia Superar esta confusioacuten compete a la analiacutetica existenciaacuterias en

tanto que ontologigravea fundamentalrdquo (Idem ob cit 126-127) 81

bdquoDas Dasein bestimmt sich als Seiendes je aus einer Moumlglichkeit die es ist und in seinem Sein

irgendwie versteht Das ist der formale Sinn der Existenzverfassung des Daseinsldquo SuZ GA 2 sect9 43

68

teoreacutetica se pode converter num estar-perante assumindo a condiccedilatildeo de ente

rdquodiante dos olhosrdquo de um observador desinteressado

Tal natildeo eacute o caso da existecircncia como modo de ser que me eacute proacuteprio e que me

diferencia de todo o ente junto de qual habito a existecircncia eacute enquanto modo

de ser uma relaccedilatildeo ao ser (Seinsverhaltnis) o modo de ser do ente que se

relaciona consigo mesmo na medida em que se compreende no seu ser

Esta relaccedilatildeo ao ser que eacute inerente agrave existecircncia constitui o fundamento

ontoloacutegico do caraacutecter aberto do Dasein e configura esta abertura como tendo

simultaneamente um caraacutecter praacutetico expresso no Besorgen e Fuumlrsorgen e

loacutegico-linguiacutestico enquanto compreensivo-interpretativo do sentido englobante

e inerente aos vaacuterios modos de ser Estes dois aspectos praacutetico e loacutegico-

linguiacutestico natildeo podem aliaacutes em rigor ser distinguidos

Em Heidegger tenta-se remontar a qualquer coisa anterior agraves distinccedilotildees

categoriais aristoteacutelicas de teoria poiesis e praxis que a tradiccedilatildeo metafiacutesica

nos legou como domiacutenios da ciecircncia da teacutecnica e da acccedilatildeo eacutetica indicando

uma instacircncia fundadora mais originaacuteria que lhes subjaz e as fundamenta e

que eacute precisamente a linguagem enquanto fala (Rede)

O caraacutecter aberto do Dasein reside precisamente na linguagem enquanto fala

(Rede) ou articulaccedilatildeo da inteligibilidade A fala eacute inerente ao homem que pode

bem ser definido como Heidegger bem salienta comentando Aristoacuteteles como

o ser que fala E a abertura (Welterschlieszligung) instaurada pela linguagem

enquanto fala eacute uma abertura ontoloacutegica ou seja tem a funccedilatildeo de deixar ver

de iluminar e eacute a proacutepria iluminaccedilatildeo onde o ser se desvela e pode sair da

ocultaccedilatildeo82

Heidegger retoma pois a funccedilatildeo de abertura de mundo que Humboldt jaacute

assinalara agrave linguagem dando-lhe no entanto uma importacircncia central e

decisiva porque directamente relacionada com o problema ontoloacutegico A

linguagem eacute originariamente natildeo um meio de comunicaccedilatildeo ou instrumento

como os outros mas uma estrutura existenciaacuteria do Dasein na qual se

82

Cf Tatiana Aguilar-Aacutelvarez Bay rdquoEl habla compete al hombre no en funcioacuten de su particularidad sino

porque ser al modo del Dasein significa ser en el Da estar de antemano en la apertura En este sentido

aunque el habla determina formalmente al Dasein-hombre es una instancia que lo transciende Es decir

el habla es impronta del ser que hay en la existencia el punto de contacto entre lo irrestricto ordene en el

que se basa su universalidad y el Dasein en el que se ejercerdquo (Idem El Lenguaje en el Primer Heidegger

283)

69

configura a sua abertura ontoloacutegica ou a sua possibilidade de uma

compreensatildeo do ser

Assim a distinccedilatildeo entre Rede e Sprache acompanha e ajuda a esclarecer a

distinccedilatildeo entre o plano ocircntico dos entes e o plano ontoloacutegico do ser ldquoOs entes

satildeo independentemente da experiecircncia do saber e dos conceitos com que se

abrem descobrem e definem Mas o ser soacute ldquoeacuterdquo na compreensatildeo do ente a cujo

ser eacute inerente o que se chama compreensatildeo do ser Daiacute que o ser possa natildeo

ser aprisionado em conceitos mas que nunca seja de todo incompreendidordquo83

Contudo natildeo eacute suficiente mostrar que uma compreensatildeo preacute-ontoloacutegica eacute

inerente ao Dasein enquanto ser que fala mas Heidegger tem em vista

esclarecer as condiccedilotildees de possibilidade de tal compreensatildeo radicando-as na

estrutura da existecircncia Ora afirmar que ldquoa essecircncia do Dasein estaacute na sua

existecircnciardquo significa dizer que este se determina como ente em cada caso

partindo duma possibilidade que ele eacute e que compreende no seu ser

Apropriando-se duma possibilidade de ser o Dasein projecta uma

compreensatildeo do ser abrindo em cada caso ldquoum mundordquo Esta abertura

(Erschlossenheit) corresponde ao estar descerrado (Aufgeschlossenheit) do ser

dos entes ao estar descoberto do ser que se encobre e que proporciona sob o

modo do desvelamento (Unverborgenheit) a experiecircncia do acontecer da

verdade

A verdade jaacute natildeo eacute primariamente um atributo da proposiccedilatildeo nem remete para

uma primazia do discurso cientiacutefico como tem sido afirmado pela tradiccedilatildeo

filosoacutefica dominante no ocidente84 mas a verdade pertence em primeiro lugar

ao proacuteprio Dasein pois eacute ele que enquanto responsaacutevel pelo desvelamento

que eacute o acontecer da verdade eacute em primeiro lugar verdadeiro85

83

bdquoSeiendes ist unabhaumlngig von Erfahrung Kenntnis und Erfassen wodurch es erschlossen entdeckt und

bestimmt wird Sein aber ldquoistrdquo nur in Verstehen des Seienden zu dessen Sein so etwas wie

Seinsverstaumlndnis gehoumlrt Sein kann daher unbegriffen sein aber es ist nie voumlllig unverstandenrdquo SuZ GA

2 sect39 183 84

No sect44 de Ser e Tempo Heidegger resume em trecircs teses fundamentais a concepccedilatildeo tradicional da

essecircncia da verdade 1 o lugar da verdade eacute o juiacutezo 2 a essecircncia da verdade reside na correspondecircncia

do juiacutezo com o seu objecto 3 Aristoacuteteles remeteu o lugar da verdade ao juiacutezo e inaugurou a definiccedilatildeo da

verdade como correspondecircncia

A estrateacutegia de Heidegger para criticar este conceito de verdade eacute uma estrateacutegia de confrontaccedilatildeo natildeo

apenas com a verdade como correspondecircncia de Aristoacuteteles mas tambeacutem com o criteacuterio de evidecircncia

avanccedilado pelas filosofias da consciecircncia Cf Cristina Lafont (Lenguaje y apertura del mundo 158-159) 85

Em Ser e Tempo a verdade do enunciado soacute eacute possiacutevel sobre a base do estado de descoberto

(Entdeckheit) entendido como estado de aberto dos entes intramundanos isto eacute o enunciado soacute pode

70

Assim perguntar pela verdade dum discurso teoreacutetico como o discurso

filosoacutefico implica retornar agraves condiccedilotildees faacutecticas da produccedilatildeo desse discurso e

ao modo proacuteprio ou improacuteprio como aquele que fala exerce a sua existecircncia

De facto o Dasein por ser em cada caso a sua possibilidade pode ldquoescolher-

serdquo a si mesmo apropriando-se por si mesmo para si mesmo ou pelo

contraacuterio estar perdido de si mesmo e natildeo chegar a ganhar-se nunca86

A impropriedade que acompanha o exerciacutecio concreto da existecircncia do Dasein

enquanto trabalha e se atarefa com as coisas agrave-matildeo natildeo tem um sentido

negativo mas ela eacute uma determinaccedilatildeo positiva do Dasein que se revela

extremamente importante para compreender a sua possibilidade de retornar a

si mesmo e de exercer de modo apropriado a fala87

4 O estado de aberto do Dasein e o projecto lanccedilado

Este enraizamento existencial da verdade de todo o discurso teoreacutetico pode ser

mais claramente compreendido a partir da ideia de ldquoprojecto lanccediladordquo

(geworfene Entwurf) que desempenha um papel central na tematizaccedilatildeo

heideggeriana da funccedilatildeo hermenecircutica da linguagem

A noccedilatildeo de projecccedilatildeo fundamenta-se na constituiccedilatildeo ontoloacutegica do homem

enquanto ex-sistecircncia isto eacute como ser que se determina em cada caso a partir

de uma possibilidade que ele compreende no seu ser A categoria da

possibilidade eacute ldquoa mais originaacuteria determinaccedilatildeo do ser do homemrdquo pois tudo o

que faz faacute-lo em referecircncia a possibilidades que fazem parte do que ele eacute ldquoO

Dasein natildeo eacute rdquoalgo diante dos olhosrdquo que possua como qualidade adicional a

produzir-se sobre um fundo de mundo jaacute aberto e essa abertura haacute-de jaacute ter acontecido sempre

previamente delimitando as possibilidades dos enunciados dotados de sentido Cf Ibidem 166 86

O estado de aberto dos entes intramundanos constitui-se atraveacutes do estado de aberto do Dasein e eacute

neste que se encontra o fenoacutemeno mais originaacuterio da verdade ldquoEl ldquoestado de abiertordquo se constituye a

traveacutes del ldquoencontrarserdquo el comprender y el habla y concierne cooriginariamente al mundo al ldquoser enrdquo y

al ldquosigrave mismordquordquo Ibidem 181 87

Cf Tatiana Aguilar-Aacutelvarez Bay bdquoExistencia formalmente significa bdquoser relativamente aldquo Esto es un

modo de ser al que le es propio hacerse o proyectarse mediante el ejercicio de las propias posibilidades

En cuanto que existir eacute no tener maacutes remedio que hacerse cargo del propio ser Heidegger lo caracteriza

como ser en cada caso miacuteo como aquello de lo que no puedo desentenderme De aquiacute se sigue que el

Dasein pueda ser impropia o propiamente En el modo de ser de la impropiedad la existencia no sufre

menoscabe no es menos es en una de sus posibles modalidadesldquo (Idem El Lenguaje en el Primer

Heidegger 130-131)

71

de poder algo mas eacute primariamente rdquoser possiacutevelrdquo O Dasein eacute em cada caso

aquilo que ele pode ser e tal como eacute a sua possibilidaderdquo 88

A estrutura deste poder ser eacute o ldquoprojectordquo (Entwurf) que natildeo deve ser

entendido como planificaccedilatildeo deliberada mas como a proacutepria forma de ser do

homem na medida em que ele estaacute sempre orientado em direcccedilatildeo aos seus

possiacuteveis89

Contudo este projecto natildeo deve ser entendido como um projectar-se em

direcccedilatildeo a infinitas possibilidades mas estaacute ele mesmo circunscrito e limitado

pela estrutura formal constituiacuteda pelos trecircs existenciaacuterios da Befindlichkeit do

Verstehen e da Rede

A Befindlichkeit ou seja o sentir-se afectado do Dasein no meio da totalidade

dos entes testemunha a sua condiccedilatildeo faacutectica a sua natureza de projecto

lanccedilado enquanto de-jecccedilatildeo a partir de um onde que se desconhece e numa

direcccedilatildeo que tambeacutem eacute desconhecida A afectividade (Befindlichkeit) eacute o modo

como em cada caso o Dasein eacute afectado pela sua facticidade ou pela sua

condiccedilatildeo de estar sempre jaacute previamente lanccedilado que marca a sua

irremediaacutevel finitude ldquoO ser tornou-se patente como uma carga Porquecirc natildeo se

sabe E o Dasein natildeo pode saber coisa semelhante porque as possibilidades

de rdquoabrirrdquo de que dispotildee o conhecimento permanecem demasiado curtas frente

ao rdquoabrirrdquo originaacuterio dos estados de acircnimo nos quais o Dasein eacute trazido diante

do seu ser como rdquoaiacuterdquordquo 90

A Befindlichkeit eacute o fundamento existenciaacuterio dos diversos estados de acircnimo

ou Stimmungen ocircnticos como o medo a anguacutestia ou o espanto ldquoO que

designamos ontologicamente com o termo afectividade eacute onticamente o mais

conhecido e trivial a tonalidade afectiva o estar afinadordquo 91

88

bdquoDasein ist nicht ein Vorhandenes das als Zugabe noch besitzt etwas zu koumlnnen sondern es ist primaumlr

Moumlglichsein Dasein ist je das was es sein Kann und wie es seine Moumlglichkeit istldquo SuZ GA 2 sect31 143 89

O projecto eacute um projecto hermenecircutico ou um projecto de constituiccedilatildeo de sentido que desvela e abre

um mundo Equiparando este projecto de sentido com a verdade Heidegger pode negar ao conceito de

verdade as propriedades de validade universal necessidade e intemporalidade (CfCristina Lafont

Lenguaje y apertura del mundo 188-189) 90

bdquoDas Sein ist als Last offenbar geworden Warum weiszlig man nicht Und das Dasein kann dergleichen

nicht wissen weil die Erschlieszligungsmoumlglichkeiten des Erkennens viel zu kurz tragen gegenuumlber dem

urspruumlnglichen Erschlieszligen der Stimmungen in denen das Dasein vor sein Sein als Da gebracht istldquo SuZ

GA 2 sect29 134 91

bdquoWas wir ontologisch mit dem Titel Befindlichkeit anzeigen ist ontisch das Bekannteste und

Alltaumlglichste die Stimmung das Gestimmtseinldquo SuZ GA 2 sect29 134

72

A importacircncia da afectividade ou do pathos para a instacircncia da linguagem

enquanto discurso persuasivo era jaacute tema analisado por Aristoacuteteles na

Retoacuterica mas vecirc-se aqui retomada por Heidegger de um modo muito mais

originaacuterio ela eacute a instacircncia que em primeiro lugar abre o Dasein de um modo

inteiramente involuntaacuterio e de um modo igualmente decisivo para a totalidade

daquilo que eacute revelando-o na sua problematicidade Este estado de aberto em

que o Dasein se encontra nos estados de acircnimo abre o mundo como um todo e

torna possiacutevel referir-se a essa totalidade ou o exerciacutecio apropriado de o ldquoIn-

der-Welt-Seinrdquo

Este reconhecimento da importacircncia da afectividade como momento estrutural

do estado de aberto do Dasein natildeo remete no entanto para um irracionalismo

ou para a negaccedilatildeo do papel da razatildeo na compreensatildeo do mundo apelando

apenas para a existecircncia de um modo de rdquoevidecircnciardquo mais originaacuterio que a

evidecircncia racional Na Befindlichkeit o Dasein encontra-se sempre jaacute num

determinado estado de acircnimo que o coloca diante do seu aiacute como enigma

Contudo a Befindlichkeit remete a maior para das vezes o Dasein para uma

fuga a si mesmo cuja constituiccedilatildeo existenciaacuteria eacute designada por Heidegger

como rdquoquedardquo ldquoA afectividade natildeo se limita a abrir o Dasein no seu estado de

lanccedilado e no seu estado de referido ao mundo aberto em cada caso jaacute com o

seu ser eacute inclusivamente a forma de ser existenciaacuteria em que o Dasein se estaacute

entregando constantemente ao rdquomundordquo se deixa rdquoferirrdquo por este de tal forma

que de certo modo se esquiva a si mesmo A constituiccedilatildeo existenciaacuteria de

este esquivar-se ficaraacute clara no fenoacutemeno da quedardquo92

A afectividade lanccedila o Dasein para o mundo fazendo como ele se lhe refira no

modo da abertura ou do fechamento Esta oscilaccedilatildeo entre o existir em

propriedade e o existir inautecircntico que faz do homem um ser instaacutevel e

ambiacuteguo radica neste fundo obscuro de emoccedilotildees que dominam a sua

experiecircncia do mundo Longe de ser um constructo humano a experiecircncia vem

ao encontro do homem e arrasta-o por razotildees desconhecidas e de modo

inesperado toda a experiecircncia decisiva arrasta o ser do homem domina-o

92

bdquoDie Befindlichkeit erschlieszligt nicht nur das Dasein in seiner Geworfenheit und Angewiesenheit auf die

mit seinem Sein je schon erschlossene Welt sie ist selbst die existenziale Seinsart in der es sich staumlndig

an die bdquoWeltrdquo ausliefert sich von ihr angehen laumlszligt derart daszlig es ihm selbst in gewisser Weise ausweicht

Die existenziale Verfassung dieses Ausweichens wird am Phaumlnomen des Verfallens deutlich werdenldquo

SuZ GA 2 sect29 139

73

transforma-o e eacute por ele sofrida rdquode ponta a pontardquo como se indica no termo

grego pathos Eacute essa condiccedilatildeo patoloacutegica da experiecircncia que se indica no

existenciaacuterio da Befindlichkeit e que mais tarde iraacute ser referida por Heidegger

agraves diversas Stimmungen epocais e relacionadas com o devir da histoacuteria

universal e o obscuro domiacutenio da temporalidade (Zeitlichkeit)

O Verstehen (compreensatildeo) natildeo tem uma dimensatildeo cognoscitiva mas

relaciona-se inteiramente com o conceito existenciaacuterio de possibilidade

Compreender como ldquopoder-serrdquo eacute o existenciaacuterio que corresponde agrave

peculiaridade ontoloacutegica do Dasein como ser que natildeo estaacute completo cuja

entidade estaacute sempre por fazer Ser para a existecircncia humana eacute sempre poder-

ser e este poder-ser tem a estrutura dum projectar (Entwerfen) ou dum estar

orientado em direcccedilatildeo a possibilidades Compreender eacute assim antes de mais

compreender-se tomando a seu cargo aquilo que se pode ser

O existenciaacuterio da compreensatildeo (Verstehen) corresponde de algum modo agrave

espontaneidade do entendimento em Kant embora em Heidegger este

existenciaacuterio natildeo remeta para uma faculdade dos conceitos mas antes para

uma compreensatildeo preacute-conceptual orientada para a significaccedilatildeo do mundo

como totalidade ldquoO estado de aberto do compreender abarca enquanto estado

de aberto do por mor de e da significatividade de maneira igualmente originaacuteria

o iacutentegro ser-no-mundo A significatividade eacute aquilo sobre cujo fundo eacute aberto o

mundo enquanto talrdquo 93

Ora este ldquofundo de mundordquo eacute projectado por um compreender que eacute sempre

afectivo donde resulta que ele se projecta natildeo a partir de uma livre decisatildeo

mas a partir de possibilidades limitadas previamente circunscritas pelo modo

como o Dasein se encontra lanccedilado no mundo O poder ser da compreensatildeo

estaacute entrelaccedilado com o ldquojaacute serrdquo que o limita negativamente mas que o orienta

tambeacutem positivamente para determinadas possibilidades de abrir o mundo na

sua significatividade94

93

bdquoDie Erschlossenheit des Verstehens betrifft als die von Worumwillen und Bedeutsamkeit

gleichurspruumlnglich das volle In-der-Welt-sein Bedeutsamkeit ist das woraufhin Welt als solche

erschlossen istldquo SuZ GA2 sect31 143 94

Cristina Lafont (Lenguaje y apertura del mundo 190) chama a atenccedilatildeo para o facto de este conceito

heideggeriano de ldquoprojecto de sentidordquo inerente ao projecto lanccedilado implicar que a verdade ontoloacutegica

tenha um caraacutecter normativo e prescritivo o que foi teoricamente elaborado em Vom Wesen des Grundes

74

O conceito de ldquoprojecto lanccediladordquo implica que o projecto que somos nos escapa

sempre pois nos escapa o iniacutecio do movimento que no entanto noacutes mesmos

somos e de que apenas podemos tomar consciecircncia como abrindo

possibilidades de ser O ter sido jaacute lanccedilado constitui o nuacutecleo da facticidade da

existecircncia as possibilidades do meu poder ser satildeo precisamente enquanto

faacutecticas constituem-se como tal no seio de um estar em situaccedilatildeo para que

remete o proacuteprio conceito de Da-sein ou de ser-aiacute95

O conceito de ldquoprojecto lanccediladordquo (geworfene Entwurf) tem um papel central em

Ser e Tempo e nele reside a finitude constitutiva do Dasein e da sua

possibilidade de intelecccedilatildeo A ideia de lanccedilamento eacute a ideia de que o projecto

que somos estaacute sempre previamente circunscrito ou orientado por um

movimento inicial cuja geacutenese natildeo conhecemos mas que por natildeo ser erraacutetico

mas direccionado nos deixa apenas a liberdade para assumir como nossa a

possibilidade que nos cabe cabendo-nos igualmente a responsabilidade de

encontrar-nos a noacutes mesmos nas nossas possibilidades sempre que de noacutes

mesmos nos extraviamos96

Eacute este compreender originaacuterio que antecipa o conhecimento expliacutecito abrindo

rdquoonderdquo ou ldquoaiacuterdquo do ser implicando a totalidade do In-der-Weltndashsein Projectando-

se em direcccedilatildeo agraves suas possibilidades o Dasein abre o mundo como

significatividade e os entes agrave-matildeo adquirem a qualidade de uacuteteis nocivos

manejaacuteveis dispondo-se segundo um conjunto de categorias e ordenando-se

de acordo com uma finalidade uacuteltima

5 A Auslegung e a estrutura preacutevia da compreensatildeo

A interpretaccedilatildeo que se expressa num conjunto de enunciados teoreacuteticos eacute na

realidade na perspectiva heideggeriana um desenrolar das possibilidades que

95

Tatiana Aguilar-Aacutelvarez Bay sublinha a relaccedilatildeo entre a noccedilatildeo de projecccedilatildeo e de destino (Geschick) em

Ser e Tempo ldquoEsta proyeccioacuten no es absoluta sino que estaacute mediatizada precisamente por el mundo al

que el Dasein estaacute referido de antemano El ser en relacioacuten con los entes que se hacen patentes dentro del

mundo es indisociable del ser faacutectico del hombre es decir de su modo peculiar de existir Heidegger

afirma que esta relacioacuten es el destino de Daseinrdquo (Idem El Lenguaje en el Primer Heidegger 135) 96

ldquoSi toda verdad de enunciados sobre entes intramundanos es relativa al horizonte histoacuterico de nuestro

comprender todo el problema de la verdad se concentra pues en este horizonte y la cuestioacuten decisiva

deberiacutea ser entonces iquestde que forma es posible interrogar tambieacuten por la verdad de este horizonte(hellip)

Esta pregunta resulta superflua para Heidegger en la medida en que eacutel denomina el correspondiente

comprender en tanto que ldquoestado de abiertordquo una verdad ya en sigrave e para sigraverdquo (Cristina Lafont Lenguaje y

apertura del mundo 190-191)

75

jaacute se encontram circunscritas na compreensatildeo e o caraacutecter limitado e

direccionado dessas possibilidades eacute esclarecido por Heidegger a partir daquilo

que ele designa como Vor-struktur da compreensatildeo

Efectivamente a compreensatildeo implica um segundo momento em que algo eacute

compreendido como aquilo que eacute desenvolvendo e apropriando essas

possibilidades compreendendo-as e assim realizando-se como interpretaccedilatildeo

(Auslegung) A interpretaccedilatildeo natildeo remete imediatamente para um conhecimento

teoacuterico mas todo o simples ver antepredicativo o mundo agrave volta eacute jaacute

interpretativo-compreensor o simples agir do quotidiano jaacute implica o interpretar

rdquoalgo como algordquo e esse rdquocomordquo constitui a interpretaccedilatildeo o logos hermenecircutico

que como jaacute referimos eacute anterior a toda proposiccedilatildeo e todo o enunciado

expresso linguisticamente

Este compreender-interpretando abre duplamente a existecircncia e o mundo

designando-se essa dupla abertura como ldquoabertura horizontal ex-staacuteticardquo Esta

abertura horizontal ex-staacutetica eacute aberta pelas possibilidades inscritas no

compreender o que implica que eacute uma abertura limitada circunscrita e

direccionada pela facticidade irrecusaacutevel da existecircncia

Eacute a partir desta abertura aberta pelo compreender originaacuterio que se desenvolve

a compreensatildeo expliacutecita pela qual nos apropriamos expressamente de um

sentido que estava jaacute aberto Aussage (enunciaccedilatildeo) e Auslegung (enquanto

interpretaccedilatildeo expliacutecita traduzida em enunciados) fundam-se num ter jaacute

compreendido aquilo que se vai interpretar

A abertura horizontal extaacutetica projecta sobre a totalidade dos entes um

horizonte de sentido que torna possiacutevel que algo seja compreensiacutevel como

algo abre a possibilidade de compreensatildeo dos entes intra-mundanos tenham

estes ou natildeo a forma do Dasein Esta estrutura projectante ou a preacute-estrutura

(Vorstruktur) da compreensatildeo projecta um campo preacutevio de sentido

estruturado em trecircs momentos ldquoA interpretaccedilatildeo de algo como algo eacute

essencialmente fundada no ter preacutevio no ver e captar preacuteviosrdquo97

O ter preacutevio (Vorhabe) ou o ter antecipadamente eacute o acircmbito intencional que

permite a compreensatildeo O ver preacutevio (Vorsicht) ou a visatildeo projectante no

97

bdquoDie Auslegung von Etwas als Etwas wird wesenhaft durch Vorhabe Vorsicht und Vorgriff fundiertldquo

SuZ GA 2 sect32 150

76

futuro estando expectante em relaccedilatildeo agravequilo que vai aparecer O captar preacutevio

(Vorgriff) eacute a articulaccedilatildeo preacute-conceptual do Vorhabe e do Vorsicht isto eacute a preacute-

captaccedilatildeo natildeo expliacutecita de algo

Para Heidegger toda a interpretaccedilatildeo do mundo se move dentro dos limites e

das possibilidades contidas em cada caso nesta estrutura preacutevia que

seriacuteamos tentados a aproximar do a priori kantiano No entanto a esta

estrutura formal preacutevia a que Heidegger chama a preacute-estrutura da

compreensatildeo distingue-se do plano transcendental da filosofia kantiana do

conhecimento pois natildeo tem um caraacutecter exclusivamente formal Agrave Vor-struktur

eacute inerente um certo conteuacutedo derivado da natureza do Dasein como projecto

lanccedilado em direcccedilatildeo a certas possibilidades concretas e portanto esta

armadura formal projecta em cada caso um sentido determinado sobre a

totalidade dos entes fazendo aiacute surgir uma figura de mundo98

O compreender originaacuterio que eacute projecto lanccedilado (geworfene Entwurf) antecipa

constantemente o conhecimento explicitamente ou discursivamente formulado

a Auslegung e Aussage satildeo desenvolvimentos do que estaacute previamente aberto

pelo compreender originaacuterio Toda a interpretaccedilatildeo se funda num ter

compreendido ou num campo preacutevio de sentido contido na Vorstruktur e

implicada nos seus 3 momentos estruturais 99

Deste modo o conhecimento teoreacutetico eacute apenas um caso particular e derivado

da interpretaccedilatildeo que eacute na sua origem atemaacutetica e holiacutestica e soacute num segundo

tempo pode tornar-se discursiva e conceptual Daqui resulta como importante

consequecircncia que toda a interpretaccedilatildeo inclusivamente a interpretaccedilatildeo que se

expressa em enunciados cientiacuteficos ou proposiccedilotildees metafiacutesicas eacute na realidade

levada a cabo a partir de uma experiecircncia antepredicativa de sentido

98

Sobre a relaccedilatildeo entre a Vor-struktur e o sentido cf SuZ sect32 151 bdquoDer Begriff des Sinnes umfaszligt das

formale Geruumlst dessen was notwendig zu dem gehoumlrt was verstehende Auslegung artikuliert Sinn ist das

durch Vorhabe Vorsicht und Vorgriff strukturierte Woraufhin des Entwurfs aus dem her etwas als etwas

verstaumlndlich wird Sofern Verstehen und Auslegung die existenziale Verfassung des Seins des Da

ausmachen muszlig Sinn als das formal-existenziale Geruumlst der dem Verstehen zugehoumlrigen Erschlossenheit

begriffen werdenldquo 99

Cf Bernhard Sylla sublinha a relaccedilatildeo entre a Vor-struktur e o ciacuterculo hermenecircutico bdquoDas Geschehen

des hermeneutischen Zirkels des Auslegens wird von Heidegger mit Hilfe der Termini Vorhabe Vorsicht

und Vorgriff dargestellt Mit der Terminus Vorhabe soll gesagt werden dass jede Auslegung aus einer

bestimmten Situativitaumlt des Daseins in seinem jeweiligen Bewandtniszusammenhang ihren Ausgang

nimmt Der Begriff Vorsicht zeigt an dass mit der Vorhabe auch ein Um-zu-Verhaumlltnis verbunden ist

dass die Auslegung also mit einer umweltlich-besorgenden Zweckhaftigkeit verbunden ist Der Terminus

Vorgriff soll besagen dass die Auslegung sich zumeist aber nicht notwendigerweise an eine durch

fruumlhere Auslegungen schon ausgebildete Begrifflichkeit bzw Weltausgelegtheit haumlltldquo(Idem Hermeneutik

der langue 252)

77

Esta preacute-estrutura da compreensatildeo natildeo pode ter aquele caraacutecter meramente

vazio e formal que tem o a priori Kantiano que pretende esclarecer as

possibilidades universais da constituiccedilatildeo da experiecircncia A Vor-struktur refere-

se a essa experiecircncia antepredicativa de sentido que se enraiacuteza na facticidade

da existecircncia condicionando o Dasein e fazendo dele precisamente aquilo que

ele eacute um ser aiacute

Condicionando necessariamente todo o enunciado expresso linguisticamente a

preacute-estrutura da compreensatildeo natildeo aponta para a validade universal das

proposiccedilotildees teoreacuteticas do conhecimento cientiacutefico mas para a relativizaccedilatildeo

destas tambeacutem elas assentes no Vorhabe no Vorsicht e num Vorgriiff isto eacute

numa intencionalidade e numa conceptualidade preacutevia que precisa de ser

esclarecida

Ser e Tempo vem esclarecer as condiccedilotildees de todo e qualquer projecto de

interpretaccedilatildeo mostrando por um lado que o sentido radica no Dasein que soacute

ele pode ter sentido ou carecer dele mas que por outro lado natildeo podemos

dizer que o sentido deriva de uma escolha ou eacute a criaccedilatildeo duma subjectividade

auto-referente O Dasein eacute um ser-no-mundo e portanto projecta-se a si

mesmo a partir do aiacute que eacute em cada caso a sua situaccedilatildeo

6 Rede e Sprache

A tese central de Heidegger da primazia do logos hermenecircutico relativamente

ao logos apofacircntico consiste precisamente nesta tese de que a linguagem

proposicional se enraiacuteza numa experiecircncia antepredicativa de sentido O

mostrar algo junto com algo da proposiccedilatildeo natildeo eacute o que nos descobre o ente

pela primeira vez ele foi sempre jaacute descoberto de modo muito mais originaacuterio

na interpretaccedilatildeo antepredicativa

Daqui resulta que a linguagem enquanto conjunto de enunciados verbais se

fundamenta na fala (Rede) entendida como articulaccedilatildeo de sentido Na fala

(Rede) articulam-se a Befindlichkeit isto eacute uma afectividade receptiva que

surge como a heranccedila de algo e a compreensatildeo dinacircmica e projectiva do

Verstehen

78

Esta articulaccedilatildeo a Rede (fala ou discurso) eacute estabelecida em Ser e Tempo

como fundamento ontoloacutegico-existenciaacuteria da linguagem Esta instacircncia da fala

como existenciaacuterio do Dasein eacute a articulaccedilatildeo significativa da

compreensibilidade do ser no mundo que subjaz a todo o enunciado linguiacutestico

e a toda a linguagem faacutectica100

A funccedilatildeo fundamental da fala (Rede) eacute segundo Heidegger estabelece em

Sein und Zeit realizar a abertura ontoloacutegica isto eacute abrir aquele fundo de

mundo ou horizonte de sentido no qual os entes podem aparecer Esta funccedilatildeo

de ldquoabertura de mundordquo eacute nesta obra fixada por Heidegger como a funccedilatildeo

primaacuteria da linguagem o que seraacute reafirmado mais tarde em Houmllderlin e a

Essecircncia da Poesia ldquoA linguagem natildeo eacute soacute um instrumento que o homem

tambeacutem possui aleacutem de muitos outros mas esta daacute acima de tudo a

possibilidade de estar no meio da abertura do ente Apenas onde haacute linguagem

haacute mundordquo101

A linguagem (Sprache) eacute o estado de expresso da fala e ela soacute existe na

pluralidade das liacutenguas facticamente faladas pelos diversos povos

fragmentando-se aiacute numa infinidade de actos de elocutoacuterios A fala enquanto

Rede eacute no entanto um existenciaacuterio do Dasein e portanto eacute uma estrutura

universal do Dasein co-extensiva com o campo de sentido A linguagem

enquanto Rede acolhe toda a experiecircncia antepredicativa de sentido nela se

fundamentando a tese heideggeriana posterior da linguagem como ldquocasa do

serrdquo

O que para noacutes oculta esta vocaccedilatildeo ontoloacutegica inerente a toda a linguagem eacute

o facto de na linguagem faacutectica (Sprache) esta unidade de sentido se

fragmentar numa multiplicidade de palavras que podem converter-se em

instrumentos de comunicaccedilatildeo e de circulaccedilatildeo de informaccedilatildeo e assim virem a

ser tomadas como qualquer outro ente intra-mundano

100

Cf Tatiana Aguilar-Aacutelvarez Bay sublinha que sob a designaccedilatildeo de Rede Heidegger leva a cabo uma

ampliaccedilatildeo da noccedilatildeo de linguagem que toma a forma de ser do Dasein de tal forma que se identifica a sua

funccedilatildeo com o exerciacutecio da existecircncia recobrindo tanto o falar como o ouvir ldquoPara Heidegger el hablar

no es una actividad sectorial o localizada involucra iacutentegramente al existir y le otorga unidad Por esto es

vaacutelido afirmar que el Dasein habla sin interrupcioacuten aun cuando no emita palabrasrdquo (Idem El Lenguaje

en el Primer Heidegger 215) 101

bdquo Die Sprache ist nicht nur ein Werkzeug das der Mensch neben vielen anderen auch besitzt sondern

die Sprache gewaumlhrt uumlberhaupt erst die Moumlglichkeit inmitten der Offenheit von Seiendem zu stehenNur

wo Sprache da ist Welt[hellip]ldquo HWD GA 4 3738

79

Considerando a Rede como o fundamento de toda a linguagem faacutectica ndash rdquoO

fundamento ontoloacutegico-existenciaacuterio da linguagem eacute a falardquo102 - Heidegger

obriga-nos a repensar a nossa relaccedilatildeo com a linguagem e as liacutenguas A

afirmaccedilatildeo da funccedilatildeo essencial da linguagem como a de abrir mundo torna

impossiacutevel tomaacute-la como qualquer outro ente intra-mundano e convertecirc-la em

objecto de uma qualquer ciecircncia Tomar a linguagem como objecto

desmembraacute-la pelos procedimentos analiacuteticos da ciecircncia eacute analisar um

cadaacutever mas a linguagem enquanto liacutengua viva manteacutem pelo contraacuterio a

unidade de um organismo e eacute percorrida pelo sopro do espiacuterito precisamente

enquanto ela abre um mundo103

O fundamentar a linguagem faacutectica (Sprache) no existenciaacuterio da fala abre

caminho para a consideraccedilatildeo da unidade entre pensar e dizer e para admitir a

natureza intrinsecamente linguiacutestica do pensar Como Gadamer natildeo deixaraacute de

sublinhar Heidegger retoma a tese de autores cristatildeos como Santo Agostinho

em De Trinitate da unidade entre o signo sensiacutevel e o sentido inteligiacutevel ldquoPor

conseguinte a palavra que ressoa fora eacute o signo da palavra que brilha dentro

agrave qual corresponde melhor o nome de ldquopalavrardquo Pois aquela que se pronuncia

com a boca da carne eacute a voz da palavra e tambeacutem ela se chama palavra em

virtude de aquilo pelo qual foi assumida para que aparecesse fora Com efeito

102

bdquoDas existenzial-ontologische Fundament der Sprache ist die Rederdquo SuZ GA 2 sect34 160 103

Cf Bernhard Sylla sustenta que a noccedilatildeo de liacutengua (Sprache) em Sein und Zeit ainda eacute indeterminada

sendo correlacionada com a Rede que na forma decaiacuteda da fala quotidiana ou Gerede eacute o seu

fundamento existenciaacuterio ldquoKonzentriert man sich auf eine Interpretation von Sein und Zeit so erscheint

der Begriff Sprache unbestimmt [hellip] Das Verhaumlltnis von Rede und Sprache wird erst deutlicher wenn

man das was Heidegger mit dem Terminus Gerede bezeichnet naumlhert analysiertrdquo (Idem Hermeneutik

der langue 260) Esta vinculaccedilatildeo da linguagem enquanto liacutengua ao existenciaacuterio da Gerede estaria

subjacente agrave conviccccedilatildeo posterior de Heidegger de que toda a articulaccedilatildeo linguiacutestica decaiacutea

necessariamente no ldquojaacute interpretadordquo e conectar-se-ia com a estrateacutegia linguiacutestica do proacuteprio Heidegger

explicaacutevel como fuga a um dizer abertamente articulado ldquoHeidegger wird in Gefolge von Sein und Zeit

mehr und mehr dahin tendieren Eigentliches nicht (offen) artikuliert zu sagen um es so der oumlffentlichen

Ausgelegtheit zu entziehen Dieses Tendenz setzt sich erst allmaumlhlich durch und korreliert immer mit

einem Dennoch-Sagen auf das sich die oumlffentliche Auslegung Heideggers verstaumlndlicherweise stuumltz

Heideggers Strategie des nicht offen artikulierten Sagens wir dagegen nur ansatzweise bemerkt und in der

philosophischen Auslegung Heideggers nicht zureichend beruumlcksichtigtrdquo (Ibidem 265)

Diferente eacute a perspectiva de Tatiana Aacutelvarez para quem a linguagem (Sprache) eacute o modo de expresso da

fala (Rede) isto eacute um dos modos em que ela pode dar-se (el lenguaje es un estado del habla uno de los

modos en que esta pude darse) natildeo estando essenciamente vinculada agrave sua forma decaiacuteda ou Gereda

ldquoUna muestra de la anterioridad del habla respecto al lenguaje ndash anterioridad en el orden de

fundamentacioacuten ndash es que eacuteste se desmiembra si no estaacute respaldado por el hablardquo (Idem El Lenguaje en el

Primer Heidegger 200) No entanto a autora chama a atenccedilatildeo para que a Rede tanto pode expressar-se

pela linguagem como manifestar-se pelo silecircncio defendendo a primazia do silecircncio como fala interior

em Ser e Tempo ldquo No se trata de una afirmacioacuten metafoacuterica El silencio es habla porque al igual que el

lenguaje hace expliacutecita la trama significativa relativa al habla La idea se pone especialmente de

manifiesto en el anaacutelisis heideggeriano de la voz o llamado de concienciardquo (Idem El Lenguaje en el

Primer Heidegger 201)

80

a nossa palavra faz-se de algum modo fora do corpo enquanto assume aquela

em que se manifesta aos sentidos dos homens do mesmo modo que o Verbo

de Deus se fez carne enquanto assumiu aquela em que tambeacutem ele se

manifestou aos sentidos do homemrdquo104

Eacute esta unidade entre pensar e dizer aqui enunciado por Santo Agostinho como

unidade do Verbo com a carne que se encontra reafirmada em Heidegger

apontando inequivocamente para o facto irremediaacutevel de que pensamos numa

linguagem lanccedilados pela flecha do sentido que as palavras jaacute instituiacuteram e

traziam consigo muito antes de cada acto singular de pensamento

A universalidade do discurso metafiacutesico agrave qual aspirava Aristoacuteteles eacute uma

empresa impossiacutevel natildeo porque aos seus conceitos natildeo corresponda qualquer

conteuacutedo positivo de uma experiecircncia como queria Kant mas precisamente

devido a esta natureza linguiacutestica do pensar Toda a experiecircncia eacute sempre e

necessariamente interpretada e poderiacuteamos acrescentar linguisticamente

confeiccediloada sendo esta limitaccedilatildeo intriacutenseca tatildeo efectiva para a metafiacutesica

como para as muacuteltiplas ciecircncias Todo o discurso teoreacutetico se insere numa

figura de mundo aberto pela linguagem e manteacutem a sua vigecircncia apenas no

interior desta

Assim a questatildeo jaacute colocada por Humboldt de que as diversas liacutenguas faladas

pelos povos histoacutericos instauram diferentes aberturas de mundo vecirc-se

retomada por Heidegger e filosoficamente fundamentada na linguagem

enquanto existenciaacuterio do Dasein Este relativismo linguiacutestico implica

naturalmente uma nova posiccedilatildeo perante a traduccedilatildeo filosoacutefica que sempre

ambicionou como correlato do estatuto cientiacutefico da metafiacutesica o rigor

filoloacutegico suficiente para manter intacto o sentido das grandes obras

transpondo-o sem o alterar para outro sistema de signos linguiacutesticos

Subvertendo inteiramente os dados do problema da traduccedilatildeo filosoacutefica

Heidegger iraacute afirmar que a traduccedilatildeo aparentemente literal que pretende

104

laquoProinde uerbum quod foris sonat signum est uerbi quod intus lucet cui magis uerbi competit nomen

Nam illud quod profertur carnis ore uox uerbi est uerbumque et ipsum dicitur propter illud a quo ut foris

appareret assumptum est Ita enim uerbum nostrum uox quodam modo corporis fit assumendo eam in qua

manifestetur sensibus hominum sicut uerbum dei caro factum est assumendo eam in qua et ipsum

manifestaretur sensibus hominum Et sicut uerbum nostrum fit uox nec mutatur in uocem ita uerbum dei

caro quidem factum est sed absit ut mutaretur in carnem Assumendo quippe illam non in eam se

consumendo et hoc nostrum uox fit et illud caro factum estraquo Santo Agostinho De Trinitate Livro XV

XI sect20

81

apresentar-se como uma simples operaccedilatildeo que assegura a passagem do

sentido de uma liacutengua para outra apenas encobre as inevitaacuteveis mutaccedilotildees de

sentido inerentes a uma transposiccedilatildeo linguiacutestica ocultaccedilatildeo que segundo

Heidegger teria sido responsaacutevel pela decadecircncia e pelo desterro do

pensamento ocidental ldquoA traduccedilatildeo dos nomes gregos para a liacutengua latina natildeo

eacute de modo nenhum um acontecimento sem consequecircncias como ainda nos

nossos dias se julga ser Pelo contraacuterio atraacutes da traduccedilatildeo [Uumlbersetzung]

aparentemente literal e portanto aparentemente preservadora [do sentido]

encobre-se um transpor [uumlbersetzen] da experiecircncia grega para um outro modo

de pensar O pensamento romano toma posse das palavras gregas sem uma

experiecircncia igualmente originaacuteria que corresponda agravequilo que elas dizem sem

a palavra grega O desterro [Bodenlosigkeit - falta de solo] do pensamento

ocidental comeccedila com esta traduccedilatildeordquo105

Arrancando os termos da filosofia grega ao contexto histoacutericondashlinguiacutestico a que

pertenciam as obras dos pensadores gregos as traduccedilotildees latinas pretenderam

conferir-lhes uma validade universal e intemporal transformando-os assim em

qualquer coisa de ldquooacutebviordquo e lanccedilando a filosofia no caminho da

Bodenlosigkeit106

Ora o chatildeo (Boden) no qual haacute que voltar a enraizar o pensar eacute antes de

mais para Heidegger a linguagem entendida como linguagem viva de uma

comunidade linguiacutestica A liacutengua grega transporta consigo uma experiecircncia

grega isto eacute uma experiecircncia que nos eacute necessariamente em grande parte

alheia e distante como Heidegger natildeo deixaraacute de constantemente sublinhar A

propoacutesito da traduccedilatildeo de fuacutesis palavra-chave dos primeiros pensadores

gregos comenta Heidegger na sua leitura do poema de Houmllderlin Wie Wenn

105

bdquoFreilich ist diese Uumlbersetzung der griechischen Namen in die lateinische Sprache keineswegs der

harmlose Vorgang fuumlr den er noch heutigentags gehalten wird Vielmehr verbirgt sich hinter der

anscheinend woumlrtlichen und somit bewahrenden Uumlbersetzung ein Uumlbersetzen griechischer Erfahrung in

eine andere Denkungsart Das roumlmisches Denken uumlbernimmt die griechischen Woumlrter ohne die

entsprechende gleichurspruumlngliche Erfahrung dessen was sie sagen ohne das griechische Wort Die

Bodenlosigkeit des abendlaumlndischen Denkens beginnt mit diesem Uumlbersetzenldquo UKw GA 5 13 (Cf

traduccedilatildeo portuguesa Martin Heidegger ldquo A Origem da Obra de Arterdquo in Caminhos de Floresta coord

Cientiacutefica de Irene Borges-Duarte trad Filipa Pedroso e Irene Borges-Duarte Gulbenkian 2002) 106

Esclarecendo a distinccedilatildeo entre estes dois tipos de traduccedilatildeo von Herrmann contrapotildee a traduccedilatildeo literal

(woumlrtliche) agrave traduccedilatildeo restituidora do sentido (wortgetreue) ldquoNur dann wenn eine Uumlbersetzung als

Auslegung sich phaumlnomenologisch vollzieht ist sie keine bloszlig ldquowoumlrtlicherdquo sondern eine ldquowortgetreuerdquo

Uumlbersetzung [] In der Unterscheidung zwischen einer bloszlig woumlrtlichen und eine wortgetreuen

Uumlbersetzung bringt sich der Unterschied zwischen der Wesensbestimmung des Menschen als vernuumlnftiges

Lebewesen und als Dasein zur Geltungldquo (Idem Im Spiegel der Welt Sprache Uumlbersetzung

Auseinandersetzung 112)

82

am Feiertag o seguinte ldquoNatureza natura diz-se em grego θuacuteζις Esta palavra

eacute a palavra fundamental do pensador no iniacutecio do pensar ocidental Mas jaacute a

traduccedilatildeo de θuacuteζις por natura (natureza) transporta o mais tardio para o inicial e

coloca o longiacutenquo no lugar daquilo que soacute eacute proacuteprio do iniacuteciordquo 107

A experiecircncia da traduccedilatildeo autecircntica que se encontra modelarmente

representada em Houmllderlin eacute pois para Heidegger a experiecircncia da

impossibilidade de encontrar a equivalecircncia linguiacutestica e da problematicidade

inerente ao acto de traduzir

A impossibilidade de transpor a experiecircncia grega da fuacutesis108 para a palavra

alematilde de raiz latina ldquoNaturrdquo teria sido para Heidegger essencial na geacutenese do

proacuteprio poema que a partir de certa altura renuncia agravequela palavra alematilde

substituindo-a por ldquodas Heilligerdquo Em total consonacircncia com o que aqui afirma

muito mais tarde em Was Heiszligt Denken Heidegger afirmaraacute ldquoFalar a liacutengua eacute

totalmente diferente de utilizar uma liacutengua O falar habitual natildeo faz senatildeo

utilizar a liacutengua O seu caraacutecter habitual consiste precisamente numa tal

relaccedilatildeo com a liacutengua Ora sendo dado que o pensamento ou de uma forma

diferente a poesia natildeo utiliza os termos mas diz as palavras noacutes estamos

desde que tomamos o caminho do pensar obrigados a prestar especial

atenccedilatildeo ao dizer das palavrasrdquo109

As palavras natildeo satildeo termos que a loacutegica define como expressatildeo uniacutevoca de

conceitos e cujo significado habitual se encontra alinhado nos dicionaacuterios As

107

bdquoNatur natura heiβt griechisch θύζης Dieses Wort ist das Grundwort der Denker im Anfang des

abendlaumlndischen Denkens Aber schon die Uumlbersetzung von θύζης mit natura (Natur) uumlbertraumlgt sogleich

Spaumlteres in das Anfaumlngliche und setzt Entfremdetes an die Stelle dessen was nur dem Anfang eigen istldquo

WwF GA 4 56 108

Cf Hans Jaeger mostra os quatro aspectos essenciais que Heidegger vecirc no conceito grego de fuacutesis

aquilo que permanece recolhendo-se em si mesmo pertence-lhe o brilhar no seu aparecer (phainesthai)

o passar do velamento ao desvelamento (aletheia) o vigorar que em tudo vigora como crescer e abrir-se

ldquoDie Physis wurde von den Griechen im wesentlichen unter vier Aspekten gesehen a) Sie war

grundlegend das Staumlndige das waumlhrende Verweilen die in sich gesammelte Gesammeltheit b) zu ihr

gehoumlrt das Scheinen (phainesthai) sie west in scheinenden- Erscheinenrdquo c) dies scheinende Erscheinen

ist ein Aufgehen aus der Verborgenheit in die Unverborgenheit (phyein verwandt mit ldquoWahrheitrdquo im

Sinne von ldquoaleacutetheiardquo ldquoUnverborgenheitrdquo d) phainesthai heiβt ldquowachsen aufgehenrdquo) als solche ist sie

schlieszliglich ist die Physis in ihrem Verweilen und staumlndigen Waumlhren ein Walten das alles durchwaltet So

ist die Physis auch ldquodas Unheimlicherdquo und das ldquoUumlberwaumlltigenderdquo (to deinon) eine Bedeutung die

Heidegger im ersten Chorlied ldquoVielfaumlltig das Unheimlichehelliprdquo von Sophokles ldquoAntigravegonardquo findetrdquo (Idem

Heidegger und die Sprache Bern Francke Verlag 1971 34) 109

bdquoDie Sprache sprechen ist etwas voumlllig anderes als eine Sprache benuumltzen Das gewoumlhnliche Sprechen

benuumltzt nur die Sprache Seine Gewoumlhnlichkeit besteht gerade in diesem Verhaumlltnis zur Sprache Weil

aber das Denken und auf andere Weise das Dichten nicht Woumlrter benuumltzen sondern die Worte sagen

darum sind wir sobald wir uns auf einen Weg des Denkens begeben auch schon daran gehalten eigens

auf das Sagen des Wortes zu achtenldquo WhD GA 8 133

83

palavras satildeo fontes de sentido enquanto elementos de um contexto global e

desenham uma certa figura de mundo num certo modo dominante do mostrar-

se retraindo-se do ser

Enquanto criaccedilotildees da linguagem os ldquotextosrdquo em sentido eminente satildeo aqueles

que realizam em si a articulaccedilatildeo e o abrir compreensor do sentido que se

projecta a partir da existecircncia e inversamente exigem daquele que os

interpreta a escuta110 como atenccedilatildeo ao acircmbito a partir do qual eles falam

Romper com o sentido ldquooacutebviordquo dos termos filosoacuteficos significa romper com o

seu sentido ldquohabitualrdquo e tomaacute-los como um signo isto eacute como um sinal que soacute

podemos entender a partir duma preacute-compreensatildeo do domiacutenio donde esse

signo surgiu isto eacute do evento do desvelamento do ser que ele assinala111

Heidegger arruiacutena deste modo a tese da separaccedilatildeo entre sentido inteligiacutevel e

signo sensiacutevel que suportava o paradigma claacutessico de traduccedilatildeo e propotildee um

modelo alternativo de traduccedilatildeo

7 A temporalidade como fundamento do ldquoestado de abertordquo do

Dasein

A compreensatildeo das criaccedilotildees linguiacutesticas eacute um problema hermenecircutico no

sentido etimoloacutegico de decifraccedilatildeo de uma mensagem e no sentido teacutecnico e

fenomenoloacutegico que Heidegger daacute a este conceito em Ser e Tempo ldquo[] o

sentido metoacutedico de descriccedilatildeo fenomenoloacutegica eacute interpretaccedilatildeo O λογος da

fenomenologia do Dasein tem o caraacutecter do έρμενεύειν mediante o qual se datildeo

110

Cf Esta capacidade da traduccedilatildeo autecircntica escutar na direcccedilatildeo para que aponta o texto para aleacutem do

proacuteprio texto sublinhada por von Herrmann no citado artigo Uumlbersetzung als philosophisches Problem

deve ser correlacionada com a reinterpretaccedilatildeo heideggeriana da linguagem como Rede Tatiana Aguilar-

Aacutelvarez Bay sublinha a consideraccedilatildeo da fala (Rede) como possibilidade de ouvir ou de escutar (Houmlren)

que imediatamente habilita o Dasein a obedecer ao ser (Horchen) bdquoEn la caracterizacioacuten del habla como

poder oiacuter estaacute impliacutecito el rasgo que a nuestro juicio constituye el elemento esencial de la interpretacioacuten

heideggeriana del lenguaje [] Por tanto como el comprender se resuelve en el oiacuter propio de habla

originaria (Rede) - distinta del lenguaje (Sprache) ndash el hombre es mas un oyente que un hablante Oiacuter

implica por decirlo de modo graacutefico estar metido en el Da-sein esto es en la apertura Aun cuando el

hombre es necesario para que el sentido del ser se revele no se identifica con la apertura que lo hace

posible El caraacutecter de mediacioacuten de ser instrumento para que el ser se manifieste es precisamente el

hablaldquo (Idem El Lenguaje en el Primer Heidegger 216-217) 111

Ivo de Genaro destaca como essenciais ao conceito fenomenoloacutegico de traduccedilatildeo a escuta atenta do

texto a demora na sua linguagem e o deixar-se conduzir pelo seu sentido como meios de aceder ao

desvelamento do ser em que ele se inscreve bdquoUumlbersetzung ins Wesen ndash nichts anderes ist das Sehen der

Phaumlnomenologie ndash ist Sache eines gewandelten Aufenthalts in der Sprache houmlrende Fuumlgsamkeit

Gefuumlgigkeit ins Fuumlhrige Durchholende als welches das Gefuumlge von Welt sich bekundetldquo Ivo de

Gennaro Logos ndash Heidegger liest Heraklit Berlin (2001) 65

84

a conhecer a compreensatildeo do ser inerente ao proacuteprio Dasein o sentido proacuteprio

do ser e as estruturas fundamentais do seu ser peculiar A Fenomenologia do

Dasein eacute hermenecircutica na significaccedilatildeo originaacuteria da palavra a qual designa o

negoacutecio da interpretaccedilatildeordquo112

A Fenomenologia hermenecircutica pensa pois as criaccedilotildees linguiacutesticas a partir do

seu fundamento ontoloacutegico isto eacute a partir das estruturas fundamentais do

Dasein que suportam todo e qualquer projecto de interpretaccedilatildeo que acima

referimos e cuja unidade se fundamenta na temporalidade

A contribuiccedilatildeo fundamental de Heidegger para abalar os fundamentos em que

assentava a filosofia da linguagem reside no facto de ele ter dado um sentido

preciso agrave relaccedilatildeo entre linguagem e temporalidade o logos tomado como

razatildeo ou como linguagem enunciativa reduz o ser a um ldquoeacuterdquo - coacutepula de uma

proposiccedilatildeo - e remete como vimos para uma concepccedilatildeo do ser como

presenccedila ou substacircncia Pelo contraacuterio o logos tomado no seu sentido

originaacuterio de fala (Rede) remete para uma relaccedilatildeo originaacuteria entre ser e

temporalidade Nela se articulam o sido ou a reiteraccedilatildeo do passado e a

projecccedilatildeo do futuro que constituem o estado de aberto do Dasein

O tempo enquanto temporalidade fundamenta a totalidade do estado de aberto

do Dasein atravessando os seus trecircs momentos estruturais e possibilitando a

sua unidade Cada um dos existenciaacuterios se relaciona com um dos trecircs ecircxtases

temporais o compreender tem um caraacutecter dinacircmico e projectivo eacute um

antecipar-se a si mesmo em direcccedilatildeo ao futuro a afectividade pelo contraacuterio

temporaliza-se predominantemente no passado a fala como articulaccedilatildeo da

afectividade e do compreender funda-se na unidade extaacutetica da temporalidade

e natildeo se temporaliza num ecircxtase determinado

No entanto aquilo que aqui importa compreender claramente eacute o que aqui eacute

pensado sob a designaccedilatildeo de ldquoecircxtases temporaisrdquo ou de temporalidade

extaacutetica passado presente e futuro natildeo satildeo segmentos recortados no tempo

linear e objectivo mas relacionam-se com dinacircmica intrinsecamente temporal

112

bdquo [] der methodische Sinn der phaumlnomenologischen Deskription ist Auslegung Der ιόγος der

Phaumlnomenologie des Daseins hat den Charakter des έρκελεύεηλ durch das dem zum Dasein selbst

gehoumlrigen Seinsverstaumlndnis der eigentliche Sinn von Sein und die Grundstrukturen seines eigenen Seins

kundgegeben werden Phaumlnomenologie des Daseins ist Hermeneutik in der urspruumlnglichen Bedeutung des

Wortes wonach es das Geschaumlft der Auslegung bezeichnetldquo SuZ GA 2 sect7 37

85

da existecircncia enquanto projecto lanccedilado A analiacutetica existencial de Ser e

Tempo pensa o tempo como o sentido de ser do Dasein que eacute em si mesmo

temporal (Zeitlich) e o tempo atravessa a estrutura tripartida da existecircncia sem

lhe acrescentar nada mas tornando possiacutevel a sua unidade

De facto o Dasein exerce a sua existecircncia oscilando de forma ambiacutegua e

imprevisiacutevel entre o exerciacutecio apropriado da temporalidade extaacutetica que lhe

permite ser um si mesmo e a queda na presenccedila do presente na dispersatildeo e

na perda de si mesmo em que permanece na maior parte do tempo113 Esta

ambiguidade inerente agrave existecircncia afecta o compreender a afectividade e a

fala modificando esses existenciaacuterios e distorcendo-os em modalidades de

temporalizaccedilatildeo inapropriadas mas igualmente fundamentais e

ontologicamente constitutivas

O compreender eacute o projectar-se em direcccedilatildeo a um possiacutevel e o manter-se

numa possibilidade existencial antecipando-se a si mesmo e lanccedilando-se em

direcccedilatildeo ao futuro ndash este movimento de futuraccedilatildeo eacute inerente agrave existecircncia que eacute

assim porvir (kunftig) Contudo o compreender improacuteprio eacute essencialmente

diferente implica um movimento de projecccedilatildeo que se desvia de si mesmo em

direcccedilatildeo agraves possibilidades abertas pelas coisas e assim o Dasein rdquopreocupa-

serdquo com a urgecircncia dos afazeres esquece-se de si mesmo dispersa-se nas

possibilidades apresentadas pelos sucessos ou fracassos no lidar com as

coisas-agrave-matildeo caindo na presenccedila do presente

Ao contraacuterio o compreender proacuteprio implica o rdquoestado de resoluccedilatildeordquo ou a

apropriaccedilatildeo de si mesmo pelo movimento projectivo em direcccedilatildeo a uma

possibilidade existencial Retornando sobre si mesmo a partir da dispersatildeo do

quotidiano e da preocupaccedilatildeo com o imediato o Dasein apropria-se de si

mesmo O compreender implica pois o projectar-se em direcccedilatildeo ao futuro ou o

advir e a partir dele retroceder sobre si mesmo tomado na sua singularidade

essencial e neste voltar para si mesmo (auf sich zu kommen) o Dasein realiza-

se assim como porvir (Kunftig)

113

Cf Bernhard Sylla bdquoDie Zweideutigkeit bewirkt eine kategorische da existentiale Unsicherheit

hinsichtlich der Unterscheidung von Sein und Seienden und auf tiefere Ebene von Eigentlichkeit und

Uneigentlichkeit Deswegen bezeichnet Heidegger sie als bdquoSteigerung des Verfallensldquo Man muumlsste sogar

sagen dass die Zweideutigkeit nicht nur eine Steigerung des Verfallens ist sondern dessen sbquotiefstes

Wesenbdquo Heidegger vergleichet ihre Wirkung mit derjenigen eines sbquoWirbelsbdquo sozusagen eines

schicksalhaften Maalstromsldquo (Idem Hermeneutik der langue 264)

86

No entanto o conceito de projecto lanccedilado implica como vimos que a

projecccedilatildeo se daacute sempre num ser que jaacute eacute e portanto o poder-ser eacute sempre o

poder ser de um jaacute sido Ao voltar a si mesmo compreendendo o Dasein toma

a seu cargo o ente que ele jaacute eacute e reitera simultaneamente o que ele foi ou o

sido114

O movimento projectivo inerente ao compreender natildeo abre uma possibilidade

arbitraacuteria mas eacute na realidade a reiteraccedilatildeo do sido ou do passado que se

limita a desenvolver as possibilidades nele contidas e a actualizaacute-las Esta

reiteraccedilatildeo do passado implica um movimento de retorno sobre si mesmo

essencialmente projectado no futuro rdquoSe bem que o compreender rdquoocupando-

se derdquo improacuteprio se defina pelo tornar presente aquilo de que se ocupa a

temporalizaccedilatildeo do compreender leva-se a cabo primariamente no futurordquo115

A afectividade tem o caraacutecter passivo e receptivo do rdquoser afectadordquo e potildee o

Dasein diante de si mesmo como projecto sempre jaacute previamente lanccedilado Eacute

na anguacutestia que experimentamos a afectividade proacutepria sentindo-nos

afectados pelo estar lanccedilado no meio dum mundo natildeo-familiar e inoacutespito A

anguacutestia subtrai o Dasein agraves possibilidades mundanas contidas nas coisas de

que se ocupa e coloca-o diante de si mesmo libertando-o para a sua

possibilidade mais proacutepria ou seja para a morte Pelo contraacuterio no estado de

acircnimo improacuteprio do temor o Dasein eacute atraiacutedo pelos entes circundantes de que

se ocupa o temor abre o mundo agrave volta como algo de ameaccedilador

No discurso (Rede) articulam-se o compreender e a afectividade e ela funda-se

por isso mesmo na unidade extaacutetica da temporalidade e natildeo se temporaliza

primariamente num ecircxtase determinado A fala enquanto Rede eacute em si mesma

temporal natildeo porque se refira enquanto linguagem expressa ou Sprache a

acontecimentos que se desenrolam no tempo ou porque use os diversos

tempos verbais Ela eacute temporal originariamente enquanto estrutura

existenciaacuteria isto eacute enquanto fala preacute-gramatical ela deriva em si mesma da

unidade da temporalidade extaacutetica nela se articulando os trecircs ecircxtases da

114

Cf Ramoacuten Rodriacuteguez (Hemeneutica y Subjectividad 30) O autor sublinha que a contribuiccedilatildeo

fundamental de Heidegger no contexto da filosofia da histoacuteria foi ter mostrado a temporalidade como o

sentido do ser do Dasein isto eacute como aquilo que atravessa a estrutura da existecircncia e torna inteligiacutevel a

sua unidade 115

bdquoObzwar sich das uneigentliche besorgende Verstehen aus dem Gegenwaumlrtigen des Besorgten

bestimmt vollzieht sich doch die Zeitigung des Verstehens primaumlr in der Zukunftldquo SuZ GA 2 sect68 339

87

temporalidade o passado o futuro e o presente e por isso ela natildeo se

temporaliza num ecircxtase determinado

A fala enquanto Rede remete para a constante fusatildeo entre o passado e o

futuro como dois horizontes que incessantemente se misturam ao movimento

de futuraccedilatildeo da compreensatildeo pertence necessariamente um passado como

um momento intriacutenseco de si mesmo compreendido no futuro por outro lado o

passado soacute eacute compreendido como passado por esse movimento do projectar

que retorna sobre si a partir do futuro Esta fusatildeo entre os horizontes do futuro

e do passado que constitui o gestar-se apropriado da existecircncia projecta um

horizonte de sentido no qual os entes aparecem como presenccedila

No entanto este horizonte de presenccedila natildeo remete imediatamente para uma

instacircncia discursiva mas para uma desvelaccedilatildeo instantacircnea e intuitiva de

sentido que Heidegger denomina como rdquoolhar instantacircneordquo (Augenblick) o que

tem sido posto em correlaccedilatildeo com o Kairos de Santo Agostinho Este instante

kairoloacutegico do desvendamento do sentido suporta a constituiccedilatildeo ontoloacutegica das

grandes criaccedilotildees linguiacutesticas e como a seguir vemos dos acontecimentos

propriamente histoacutericos

A vocaccedilatildeo ontoloacutegica da linguagem a sua funccedilatildeo de abertura de mundo

(Welterschlieszligung) funda-se pois na unidade dos esquemas horizontais do

futuro do sido e do presente - a fala (Rede) eacute responsaacutevel pela projecccedilatildeo

instantacircnea de um horizonte de inteligibilidade ou pela abertura aberta que

torna possiacutevel o surgimento dos entes Essa diferenccedila entre o horizonte e o

que aparece nesse horizonte esclarece a noccedilatildeo de diferenccedila ontoloacutegica ou a

noccedilatildeo da diferenccedila entre ser e ente

Enquanto linguagem expressa ou Sprache tem o presente um papel

preferencial na sua constituiccedilatildeo No entanto esta articulaccedilatildeo da temporalidade

sob o modo do presentear ou do tornar presente pode fazer-se no modo

inautecircntico da linguagem decaiacuteda do falatoacuterio e da dispersatildeo ou sob o modo

da presenccedila genuiacutena ou instantacircnea iluminaccedilatildeo rdquoO presente mantido na

temporalidade proacutepria ou presente proacuteprio chamamos-lhe o rdquoolhar

instantacircneordquordquo 116 O tempo instantacircneo eacute a temporalidade inerente ao olhar

instantacircneo daquele que a partir do sido se projecta em direcccedilatildeo ao futuro e

116

bdquoDie in der eigentlichen Zeitlichkeit gehaltene mithin eigentliche Gegenwart nennen wir den

Augenblickrdquo SuZ GA 2 sect68 338

88

assim abre de forma originaacuteria um horizonte de presenccedila em que as coisas e

os homens podem fazer frente a uma nova luz fazendo surgir a unidade de

significaccedilatildeo de um mundo117

Mais tarde Heidegger identificaraacute esta dimensatildeo poieacutetica da linguagem isto eacute

este instantacircneo levantar de um mundo originariamente inscrito na linguagem

humana com a obra de arte Esta temporalidade proacutepria das criaccedilotildees

humanas118 enquanto criaccedilotildees linguiacutesticas essencialmente diferente da

temporalidade das coisas ou dos entes da natureza faz da sua compreensatildeo

um problema que de modo algum pode ser resolvido pelas metodologias

usadas nas ciecircncias nem submetido ao seu ideal de objectividade

Eacute a partir deste fundamente ontoloacutegico isto eacute a partir desta oscilaccedilatildeo do

Dasein entre o exerciacutecio apropriado e natildeo apropriado da temporalidade extaacutetica

que podem ser compreendidas todas as criaccedilotildees linguiacutesticas e por

conseguinte eacute tambeacutem nesse plano que pode ser relanccedilada a discussatildeo do

problema da traduccedilatildeo

8 Linguagem e verdade

A confrontaccedilatildeo com Aristoacuteteles levada a cabo em Ser e Tempo a propoacutesito da

natureza da linguagem tem um dos seus mais importantes e emblemaacuteticos

momentos no sect 44 que tem como tiacutetulo O Dasein o Estado de Aberto e a

Verdade (Dasein Erschlossenheit und Wahrheit) Aiacute Heidegger confronta-se

natildeo apenas com Aristoacuteteles mas com a interpretaccedilatildeo que a tradiccedilatildeo metafiacutesica

dele impocircs e que hoje encobre e dificulta o acesso ao que no pensador grego

ainda estava resguardado como pensar originaacuterio a propoacutesito do problema da

verdade A tradiccedilatildeo metafiacutesica impocircs e transmitiu uma mesma significaccedilatildeo do

conceito de verdade como ldquoconcordacircnciardquo do juiacutezo com o seu objecto que

esteve em vigor ateacute Kant e foi por ele mantida num primeiro momento

117

Sobre a pertinecircncia desta ambiguidade estrutural da fala para uma teoria da interpretaccedilatildeo eacute preciso ter

em conta que a tendecircncia para a decadecircncia da Rede em Gerede eacute constitutiva do Dasein levando-o a

constantemente mover-se no jaacute interpretado e no habitual pelo que uma interpretaccedilatildeo autecircntica soacute pode

constituir-se contra esta tendecircncia para cair na confusa e abstracta generalidade das ldquoverdades comunsrdquo

Isto mesmo sublinha Bernhard Sylla na obra acima citada mostrando aleacutem disso como tal consideraccedilatildeo

determinou o exerciacutecio da linguagem pelo proacuteprio Heidegger nas obras posteriores a Ser e Tempo (Cf

Hermeneutik der langue 265) 118

bdquoEin Werk ist nur Werk in dem es der Zumutung der Zu-kunft entspricht und dadurch das Gewesene

in sein verborgenes Wesen befreit uumlberliefertldquo GD GA 79 83

89

enunciou-se a tese de que o lugar da verdade eacute a proposiccedilatildeo e num segundo

momento acompanhando o nascimento da ciecircncia moderna avanccedilou-se a

tese de que essa adequaccedilatildeo das proposiccedilotildees agraves coisas deveria ser objecto de

verificaccedilatildeo pela mostraccedilatildeo empiacuterica do ente por ela designado

Como acima vimos esta decisatildeo de fazer da proposiccedilatildeo o lugar da verdade

repousa no reconhecimento aristoteacutelico da funccedilatildeo apofacircntica da linguagem

ldquoUma proposiccedilatildeo verdadeira significa descobre o ente em si mesmo Depotildee

mostra ldquopermite verrdquo (ἀπόθαλζης) o ente no seu estado de descoberto O ser

verdadeiro (verdade) da proposiccedilatildeo tem que ser entendido como ser

descobridor 119

No entanto a tradiccedilatildeo instituiu uma interpretaccedilatildeo decaiacuteda e deturpada deste

ldquopermitir verldquo pensado por Aristoacuteteles como atributo da proposiccedilatildeo verdadeira

O que Aristoacuteteles teria querido dizer eacute que o logos pode ser encobridor ou

descobridor e esta dupla possibilidade eacute o que eacute relevante para apurar a

natureza da verdade Aristoacuteteles pensaria ainda de acordo com o conceito da

verdade como aletheia dos primeiros pensadores gregos embora dele guarde

apenas um eco distante e natildeo leve a cabo uma formulaccedilatildeo expliacutecita desse

conceito de verdade

Se a tradiccedilatildeo120 deturpou este conceito de verdade impondo a traduccedilatildeo de

aletheia como adequaccedilatildeo como oacutebvia e consensual tal deveu-se a uma

interpretaccedilatildeo restritiva da funccedilatildeo apofacircntica do logos exclusivamente

confinada agrave linguagem proposicional da ciecircncia e da metafiacutesica a proposiccedilatildeo eacute

um tipo especiacutefico de enunciado verbal que designa um ente mostrando-a na

sua presenccedila

A tradiccedilatildeo impocircs uma interpretaccedilatildeo unilateral de Aristoacuteteles valorizando neste

autor natildeo apenas a loacutegica mas a ontologia da presenccedila a que esta se encontra

intrinsecamente ligada Nesta mesma tradiccedilatildeo se inscrevem as filosofias da

consciecircncia e em particular o criticismo kantiano De facto se Kant julga no

119

bdquoDie Aussage ist wahr bedeutet sie entdeckt das Seiende an ihm selbst Sie sagt aus sie zeigt auf sie

bdquolaumlβt sehenrdquo (ἀπόφανζης) das Seiende in seiner Entdecktheit Wahrsein (Wahrheit) der Aussage muszlig

verstanden werden als bdquoentdeckend-seinldquo SuZ GA 2 sect44 218 120

Joatildeo Paisana sublinha em Histoacuteria da Filosofia e Tradiccedilatildeo Filosoacutefica (Lisboa 1993) que a tradiccedilatildeo

nunca veicula o passado na sua totalidade mas implica necessariamente uma funccedilatildeo de selecccedilatildeo nem

todas as obras e acontecimentos do passado satildeo conservadas de igual modo e apenas satildeo conservados e

transmitidos os acontecimentos que podem aparecer como resposta a questotildees presentes A tradiccedilatildeo

porque eacute uma resposta embora natildeo temaacutetica possui necessariamente um caraacutecter selectivo Cf Idem

obcit 18-19

90

tribunal da razatildeo a Metafiacutesica condenando irrevogavelmente a sua pretensatildeo

ao estatuto de ciecircncia isto eacute a sua pretensatildeo a instituir verdades universais e

imutaacuteveis natildeo deixou no entanto de nesse mesmo tribunal exaltar e fundar o

estatuto da ciecircncia como lugar duma verdade universal e intemporal ainda

que duma verdade relativa agrave espeacutecie humana e ao mundo fenomeacutenico

Heidegger confronta-se com esta concepccedilatildeo da verdade imposta pela tradiccedilatildeo

metafiacutesica121 e pela ciecircncia moderna mostrando que subjacente a esta

concepccedilatildeo da verdade como concordacircncia se postula a semelhanccedila entre um

ente (sujeito) com outro (objecto) entendidos como Vorhanden ou como

presenccedila A destruiccedilatildeo fenomenoloacutegica desta concepccedilatildeo de verdade

possibilitou a Heidegger aceder ao sentido originaacuterio da verdade como

desvendamento dos primoacuterdios da filosofia grega Heidegger mostra que a

tradiccedilatildeo metafiacutesica traduzindo aletheia por adaequatio se constitui como

encobrimento e distorccedilatildeo do sentido originaacuterio da palavra grega que apontava

num sentido radicalmente diferente para os primeiros gregos isto eacute para o

prestigioso iniacutecio da nossa civilizaccedilatildeo a verdade era uma experiecircncia preacute-

ontoloacutegica do ser como acontecer remetendo assim para a temporalidade e a

histoacuteria

Heidegger vai retomar esta concepccedilatildeo originaacuteria de verdade e reconstruiacute-la de

acordo com o novo fundamento ontoloacutegico proposto pela analiacutetica do Dasein

ldquoA verdade natildeo tem a estrutura de uma concordacircncia entre o conhecer e o

objecto no sentido de uma semelhanccedila de um ente (sujeito) com outro

(objecto)

O ser verdadeiro como ser descobridor soacute eacute ontologicamente possiacutevel por sua

vez sobre o fundamento do ser-no-mundo Este fenoacutemeno no qual noacutes

reconhecemos uma estrutura fundamental do Dasein eacute o fundamento do

fenoacutemeno originaacuterio da verdade122

121

Esclarecendo a distinccedilatildeo entre conhecimento histoacuterico e tradiccedilatildeo Joatildeo Paisana afirma que o

conhecimento histoacuterico implica sempre a tradiccedilatildeo mas o inverso natildeo eacute verdadeiro O conhecimento

histoacuterico eacute um conhecimento expresso e temaacutetico da tradiccedilatildeo que implica a exegese dos textos em que

essa tradiccedilatildeo se fundamenta e o seu necessaacuterio questionamento ldquoA histoacuteria da filosofia nem eacute redutigravevel agrave

tradiccedilatildeo filosoacutefica nem a uma mera investigaccedilatildeo empiacuterica ela eacute uma disciplina filosoacutefica soacute formulaacutevel a

partir da questatildeo expressa que interroga pela filosofiardquo (Ibidem 31) 122

bdquoWahrheit hat also gar nicht die Struktur einer Uumlbereinstimmung zwischen Erkennen und Gegenstand

im Sinne einer Angleichung eines Seienden (Subjekt) an ein anderes (Objekt)

91

Afirmando que o fundamento da verdade eacute o proacuteprio Dasein enquanto ser no

mundo Heidegger identifica a verdade com a funccedilatildeo de abertura de mundo

que eacute inerente agrave linguagem Esta deslocaccedilatildeo da verdade para o Dasein como

ser-no-mundo vai ter importantes consequecircncias pois ela deixa de ser

primordialmente um problema gnosioloacutegico para passar a ser entendida de um

modo mais radical na sua significaccedilatildeo ontoloacutegica

Com efeito O Dasein natildeo eacute uma consciecircncia abstracta que se confronta com o

mundo constituindo-o como objecto por meio das categorias trata-se duma

consciecircncia situada no mundo sempre jaacute interpretado pela linguagem estaacute jaacute

sempre lanccedilado nesse mundo pela Gworfenheit A verdade que se articula na

linguagem natildeo eacute a posiccedilatildeo dum sujeito mas encontra-se sempre jaacute lanccedilada

como projecccedilatildeo cujo iniacutecio nos escapa

Por outro lado o lugar da verdade natildeo eacute a proposiccedilatildeo mas o logos

hermenecircutico como interpretaccedilatildeo antepredicativa A compreensatildeo do ser dos

entes daacute-se precisamente no Dasein que antes duma compreensatildeo expliacutecita e

temaacutetica tem uma compreensatildeo totalizante e vaga uma preacute-compreensatildeo que

lhe permite colocar a pergunta pelo ser Como poder-ser o Dasein tem a

estrutura do projecto (Entwurf) e compreende projectando Este compreender

projectando eacute o estado de aberto do ser em geral rdquoNo estado de projectado do

seu ser sobre o por mor de em uniacutessono com o estado de projectado sobre a

significatividade (mundo) reside o estado de aberto do ser em geralrdquo123

Neste projectar de possibilidades estaacute antecipada uma compreensatildeo preacute-

ontoloacutegica do ser A interpretaccedilatildeo funda-se neste compreender desenvolvendo

as possibilidades nele projectadas elaborando-as e explicitando-as Mas estas

possibilidades assim apropriadas e desenvolvidas num projecto de

compreensatildeo jaacute estavam previamente lanccediladas no contexto em que o Dasein

vive e fala A condiccedilatildeo de projecto lanccedilado do Dasein implica que ele se

encontra radicalmente limitado na escolha das suas possibilidades de

interpretaccedilatildeo ao movimento de futuraccedilatildeo do projecto pertence de forma

Das Wahrsein als Entdeckend-sein ist wiederum ontologisch nur moumlglich auf dem Grunde des In-der-

Welt-seins Dieses Phaumlnomen in dem wir eine Grundverfassung des Daseins erkannten ist das

Fundament des urspruumlnglichen Phaumlnomens der Wahrheitldquo SuZ GA 2 sect44 218219 123

bdquoIn der Entworfenheit seines Seins auf das Worumwillen ist eins mit der auf die Bedeutsamkeit (Welt)

liegt Erschlossenheit von Sein uumlberhauptldquo SuZ GA 2 sect31 147

92

igualmente originaacuteria um passado que haacute-de ser compreendido como um

momento do ldquosi mesmordquo integrado no futuro

A verdade eacute assim um atributo do discurso que tem em si mesmo a

possibilidade de ser descobridor e de abrir mundo como tambeacutem de encobrir

e cerrar aquilo que poderia abrir duplicidade que traduz a ambiguidade

constitutiva da existecircncia Assim a interpretaccedilatildeo das criaccedilotildees humanas que

pretenda aceder agrave sua verdade originaacuteria tem de apreendecirc-la a partir do seu

enraizamento existencial Os textos apresentados pela tradiccedilatildeo satildeo

notificaccedilotildees do ser na linguagem do homem representam uma possibilidade

de interpretaccedilatildeo que foi positivamente apropriada pelo poeta e o pensador

enquanto possibilidade jaacute lanccedilada na sua existecircncia faacutectica124

Contudo esta exigecircncia de apreender a verdade de um enunciado a partir do

seu horizonte existencial que eacute a condiccedilatildeo da apreensatildeo do seu serndash

verdadeiro eacute uma exigecircncia paradoxal porque por causa do nosso proacuteprio

enraizamento num horizonte temporal natildeo podemos jamais coincidir com a

facticidade da existecircncia que motivou um enunciado verdadeiro O interpretar

esses textos da tradiccedilatildeo eacute sempre uma tentativa de desobstruir de cavar uma

passagem para algo que se oculta e encobre na desocultaccedilatildeo mesma que

assim se instituiu e fixou na escrita

Assim em vez de tentar coincidir com essa impossiacutevel alteridade do texto noacutes

devemos compreendermo-nos nele apropriando-nos positivamente da nossa

proacutepria existecircncia e desenrolando as possibilidades de compreensatildeo nela

contidas isto eacute compreendendo-nos a noacutes mesmos no nosso ser ldquoO Dasein eacute

aberto em relaccedilatildeo agrave sua existecircncia proacutepria ou impropriamente para si mesmo

Existindo compreende-se a si mesmo mas de tal modo que este compreender

natildeo representa um puro apreender mas constitui o ser existencial do faacutectico

poder-ser O ser aberto eacute o de um ente para o qual estaacute em causa este ser O

sentido deste ser isto eacute o cuidado que o torna possiacutevel na sua constituiccedilatildeo

constitui originariamente o ser do poder-ser O sentido do ser do Dasein natildeo eacute

124

Cf Otto Poumlggeler (Der Denkweg Martin Heideggers 90) bdquoDie Wahrheit ist als Erschlossenheit des

Daseins in ihr Eigentlichkeit bdquoWahrheit der Existenzldquo Sie ist durch Geworfenheit und Entwurf

charakterisiert so aber wie Heidegger in Sein und Zeit nur Kurtz andeute durch vorlaufende

Entschlossenheit und damit durch Geschichtlichkeitldquo

93

uma outra coisa que flutue no vazio e ldquoforardquo dele mesmo mas o proacuteprio Dasein

que se compreende a si mesmordquo125

Compreendendo-se a si mesma a existecircncia adquire sentido e projecta aquele

fundo de mundo como significatividade na qual os entes podem aparecer no

seu ser O ser-no-mundo aberto para si mesmo compreende simultaneamente

o ente que ele proacuteprio eacute e o ser dos entes descobertos nesse mundo isto eacute os

entes da natureza as coisas e as criaccedilotildees humanas

O conhecimento ocircntico dos entes no domiacutenio das vaacuterias ciecircncias funda-se ele

mesmo num projectar mais originaacuterio dentro qual se projectou o ideal moderno

de conhecimento metoacutedico e de objectividade e que eacute assim ele mesmo

secundaacuterio e derivado

Contudo o interpretar e traduzir os textos do passado implica o elevar-se a

uma consciecircncia hermenecircutica expliacutecita e coloca uma exigecircncia mais alta a

interpretaccedilatildeo e traduccedilatildeo situam-se na realidade entre o ouvir no texto o que

se situa para aleacutem dele como fundamento da sua verdade e no asssumir e

desenvolver positivamente as possibilidades de compreensatildeo que se

encontram inscritas na proacutepria situaccedilatildeo do inteacuterprete

Aceder agrave verdade de uma interpretaccedilatildeo eacute assim desenrolar um projecto

hermenecircutico que se sabe a si mesmo como possiacutevel na sua possibilidade

compreendendo-se na sua radical incompletude e inacabamento Soacute tem

acesso agrave verdade da interpretaccedilatildeo aquele que se compreende a si mesmo

naquilo que interpreta apropriando-se positivamente das suas proacuteprias

possibilidades hermenecircuticas e mantendo-as enquanto tal

O problema da traduccedilatildeo e da interpretaccedilatildeo deve ser articulado com a

tematizaccedilatildeo heideggeriana do problema da verdade Heidegger desloca-a do

plano da universalidade e da intemporalidade inerente a uma atitude teoreacutetica e

contemplativa em que a colocou a tradiccedilatildeo metafiacutesica desde Platatildeo a Kant

125

bdquoDas Dasein ist ihm selbst hinsichtlich seiner Existenz eigentlich oder uneigentlich erschlossen

Existierend versteht es sich so zwar dass dieses Verstehen kein pures Erfassen darstellt sondern das

existenzielle Sein des faktischen Seinkoumlnnens ausmacht Das erschlossene Sein ist das eines Seienden

dem es um dieses Sein geht Der Sinn dieses Seins das heiβt der Sorge der diese in ihrer Konstitution

ermoumlglicht macht urspruumlnglich das Sein des Seinkoumlnnens aus Der Seinssinn des Daseins ist nicht ein

freischwebendes Anderes und bdquoAuβerhalbldquo seiner selbst sondern das sich verstehende Dasein selbstldquo

SuZ GA 2 sect65 325

94

para o plano da radical singularidade e temporalidade que eacute o da existecircncia

concreta do homem enquanto ser-no-mundo

A verdade natildeo eacute para Heidegger a universalidade abstracta de um enunciado

mas tem a forma da singularidade irrepetiacutevel dum desvendamento do sentido

fundando-se nessa irredutiacutevel singularidade dum Da-sein que se compreende a

si mesmo no exerciacutecio da sua existecircncia faacutectica126

9 Natildeo-ser e finitude

Eacute sabido que em Heidegger haacute um nexo expliacutecito entre a experiecircncia da morte

como possibilidade iminente inexplicaacutevel e infundada e uma viragem no uso da

linguagem o salto da linguagem decaiacuteda da publicidade da certeza cientiacutefica e

da tradiccedilatildeo metafiacutesica genericamente classificada como falatoacuterio [Gerede] para

o exerciacutecio apropriado da linguagem enquanto linguagem originaacuteria (Rede)

esse salto eacute tambeacutem a experiecircncia do fracasso de todo o discurso loacutegico-

demonstrativo com pretensotildees agrave universalidade face agrave anguacutestia do Dasein

diante da possibilidade iminente da sua proacutepria morte

No sect 46 de Ser e Tempo Heidegger confronta os resultados da analiacutetica

existencial com a categoria de totalidade sob a rubrica ldquoDas moumlgliche

Ganzsein des Daseins und das Sein zum Toderdquo demonstrando que se com a

categoria de totalidade pretendermos designar a seacuterie de todos os possiacuteveis

em direcccedilatildeo aos quais se projecta a existecircncia esta soacute pode poreacutem estar

completa no fim isto eacute na morte natildeo podendo por isso ser compreendida pelo

Dasein que jaacute natildeo eacute

Contudo a morte natildeo tem apenas uma funccedilatildeo negativa e desconstrutiva em

relaccedilatildeo agrave possibilidade de uma compreensatildeo metafiacutesica do ser homem Ela

tem uma funccedilatildeo positiva porque esclarece a natureza do Dasein como um ser-

aiacute mostrando a temporalidade intriacutenseca do projecto que ele eacute enquanto

projecto lanccedilado ele estaacute sempre jaacute lanccedilado em direcccedilatildeo agrave sua uacuteltima e mais

caracteriacutestica possibilidade isto eacute estaacute sempre lanccedilado em direcccedilatildeo agrave morte

126

O Seminaacuterio Sobre a Essecircncia da Verdade retoma esta temaacutetica jaacute aberta em Ser e Tempo

desenvolvendo-a numa direcccedilatildeo que Otto Poumlggeler sintetiza deste modo ldquoAuf diese Frage nach der

Wahrheit des Seins fuumlhrt der Vorrang Vom Wesen der Wahrheit hin Er soll durch seinen Gang zeigen

daβ diese Frage eine geschichtlich ist bdquo daβ das Wesen der Wahrheit nicht das leere bdquo Generelleldquo einer

bdquoabstraktenldquo Allgemeinheit ist sondern das sich verbergende Einzige der einmaligen Geschichte der

Entbergung des bdquoSinnesldquo dessen was wir das Sein nennen und seit langem nur als das Seiende im Ganzen

zu bedenken gewohnt sindldquo (Idem Der Denkweg Martin Heideggers 99)

95

Na sua natureza de possibilidade uacuteltima universal ela esclarece a essecircncia dos

possiacuteveis que eacute precisamente a de ainda natildeo serem e mostra que a existecircncia

estaacute afectada por uma radical incompletude

Assim o Dasein natildeo pode ser objecto de um conhecimento totalizante natildeo por

qualquer limitaccedilatildeo da faculdade de conhecer mas pela natureza da existecircncia

que ele eacute ldquoEste ente natildeo tem de modo nenhum o modo de ser de um ente

intra-mundano disponiacutevel O em conjunto do ente tal como o Dasein eacute

enquanto ldquocorrerdquo ateacute que cumpriu o seu ldquopercursordquo natildeo se constitui atraveacutes da

junccedilatildeo ldquosucessivardquo de fragmentos de um ente que jaacute estaacute disponiacutevel em

qualquer modo ou lugar O Dasein natildeo eacute apenas em conjunto quando o seu

ainda natildeo se preencheu tanto mais que entatildeo ele jaacute natildeo eacute O Dasein existe em

cada caso jaacute precisamente de tal modo que sempre lhe pertence o seu ainda

natildeordquo127

Assim se a morte natildeo nos permite pensar o que estaacute para laacute do fim permite-

nos contudo pensar a existecircncia enquanto se situa do lado de caacute dessa uacuteltima

possibilidade mostrando que todas as formas que a existecircncia jaacute alcanccedilou satildeo

apenas a realizaccedilatildeo de possiacuteveis destinados a ser ultrapassados e superados

isto eacute mostra a existecircncia enquanto processo aberto e em transformaccedilatildeo

Eacute o ser-para-morte que nos permite tambeacutem repensar a natureza das criaccedilotildees

linguiacutesticas os textos em sentido geneacuterico como o caso particular dos grandes

textos da tradiccedilatildeo filosoacutefica como possibilidades hermenecircuticas destinadas a

ser superadas e ultrapassadas pelo proacuteprio movimento projectivo da

existecircncia

Contudo o ser-para-a-morte natildeo induz num relativismo niilista pois eacute tambeacutem

o confronto com o abismo da morte que cria a disposiccedilatildeo para a escuta da voz

ldquointeriorrdquo que chama apelando a uma ruptura com a existecircncia improacutepria o

estar ocupado [Besorgen] com as tarefas do quotidiano e a dispersatildeo por

muacuteltiplas possibilidades mundanas

127

ldquoDieses Seiende hat uumlberhaupt nicht die Seinsart eines innerweltlich Zuhandenen Das Zusammen des

Seienden als welches das Dasein bdquoin seinem Verlaufldquo ist bis es bdquoseinen Lauf bdquo vollendet hat konstituiert

sich nicht durch eine bdquofortlaufendeldquo Anstuumlckung von Seiendem das von ihm selbst her schon irgendwie

und ndashwo zuhanden ist Das Dasein ist nicht erst zusammen wenn sein Noch-nicht sich aufgefuumlllt hat so

wenig daβ es dann gerade nicht mehr ist Das Dasein existiert je schon immer gerade so daβ zu ihm sein

Noch-nicht gehoumlrtldquo SuZ GA 2 sect 48 243

96

A natureza desta voz interior ou deste chamamento eacute esclarecida em Ser e

Tempo como um aspecto ou uma manifestaccedilatildeo do uso apropriado da

linguagem enquanto Rede [fala] que esclarece a proacutepria essecircncia da

linguagem enquanto existenciaacuterio ldquoCompreendemos o chamamento [Ruf]

como um modo da fala [Rede] Ele articula a compreensibilidade A

caracteriacutestica da consciecircncia como chamamento natildeo eacute de modo algum apenas

uma ldquoimagemrdquo como a do tribunal da consciecircncia de Kant [] Na tendecircncia do

chamamento a abrir haacute o momento do choque da sacudidela intermitente

Somos chamados da distacircncia para o distante Pelo chamamento eacute alcanccedilado

quem quer ser reconduzido a si mesmo ldquo128

O chamamento [Ruf] eacute o exemplo paradigmaacutetico da Rede [fala] enquanto

linguagem que abala o falatoacuterio o simples falar por falar em que caiacutemos a

maior parte do tempo ou Gerede Na sua linguagem interior e silenciosa

articula-se a Befindlichkeit o ser disposto pelo qual somos lanccedilados a partir do

passado com o Verstehen a compreensatildeo projectante Pela articulaccedilatildeo de

ambos o Dasein apropria-se de si mesmo e das suas possibilidades genuiacutenas e

pode ser um ldquosi mesmordquo [selbst]

A voz interior e silenciosa da consciecircncia natildeo deve ser compreendida na

interpretaccedilatildeo de Heidegger como uma faculdade da alma nem como a voz de

um Deus transcendente nem como uma lei moral mas a partir da estrutura

existenciaacuteria do Dasein como ldquolinguagemrdquo em sentido eminente129

Se o falatoacuterio [Gerede] coloca o Dasein no plano ldquoocircnticordquo em que as coisas

aparecem como simples presenccedila a voz da consciecircncia abre o Dasein para a

sua natureza intrinsecamente temporal projectando-o em direcccedilatildeo agraves suas

possibilidades genuiacutenas e mais radicalmente em direcccedilatildeo agrave possibilidade

universal da morte

128

ldquoDas Rufen fassen Wir als Modus der Rede Sie gliedert die Verstaumlndlichkeit Die Charakteristik des

Gewissens als Ruf ist keineswegs nur ein bdquoBildldquo etwa wie die kantische Gerichtshofvorstellung von

Gewissen [] In der Erschlieβungstendenz des Rufes liegt das Moment des Stoβes des abgesetzten

Aufruumlttelns Gerufen wird aus der Ferne in die Ferne Vom Ruf getroffen wird wer zuruumlckgeholt sein

willldquo SuZ GA 2 sect55 271 129

Tatiana Aacutelvarez sublinha que na anaacutelise da morte levada a cabo em Ser e Tempo Heidegger faz uma

constante contraposiccedilatildeo entre falatoacuterio e silecircncio ambos os fenoacutemenos satildeo derivados da fala mas o

falatoacuterio eacute a linguagem da inautenticidade enquanto o silecircncio eacute um iacutendice de autenticidade e daacute a

entender mais que muitas palavras traduzindo a iacutendole taciturna daquele que compreende a verdade da

sua condiccedilatildeo de ser-para-a-morte (Idem El Lenguaje en el Primer Heidegger 234-235)

97

Natildeo se trata no entanto de retirar o Dasein para fora do mundo e o remeter

ao isolamento da sua consciecircncia mas pelo contraacuterio de desvendar de forma

apropriada a estrutura do homem como ser-no-mundo reafirmando aquilo que

a noccedilatildeo de ciacuterculo hermenecircutico jaacute esclarecia que o homem eacute no mundo

estando jaacute sempre lanccedilado num contexto histoacuterico-linguiacutestico que constitui um

horizonte de compreensatildeo inultrapassaacutevel

O lanccedilamento contra o nada da morte eacute o movimento em ricochete que atira o

que se lanccedila mais para traacutes em direcccedilatildeo agrave sua condiccedilatildeo de projecto jaacute lanccedilado

[Geworfenheit] e assim funda natildeo soacute uma compreensatildeo apropriada da

existecircncia como tambeacutem uma compreensatildeo autecircntica da historicidade

intriacutenseca do Dasein

Eacute neste movimento retroprojectivo que o homem se descobre herdeiro duma

liacutengua e duma histoacuteria que lhe preacute-existem transportando consigo uma figura

de mundo que lhe impotildee necessariamente um horizonte preacutevio e assim

condicionam a sua compreensatildeo projectiva e por conseguinte o ponto de vista

interpretativo em que se funda toda e qualquer filosofia Projectando-se

resolutamente contra o nada o Dasein resolve-se a ser aquilo que jaacute era

apropriando-se de si mesmo e dos seus possiacuteveis

A decisatildeo por uma possibilidade faz-se no entanto pela rejeiccedilatildeo e a anulaccedilatildeo

de outras possibilidades que se encontram unilateralmente excluiacutedas pelo que

o movimento da compreensatildeo projectiva [Entwurf] implica sempre a imposiccedilatildeo

dum campo de visatildeo restritivo e uma negaccedilatildeo

Lanccedilado no mundo pela Geworfenheit relanccedilando-se pela projecccedilatildeo [Entwurf]

em direcccedilatildeo ao futuro o Dasein experimenta-se como a unidade de um ldquosi

mesmordquo a que eacute inerente um projecto de compreensatildeo do ser em geral e

portanto um mundo Assim e soacute assim haacute para o Dasein um mundo ou um aiacute

em que o Dasein se pode inserir de um modo originaacuterio e total que eacute anterior a

toda a distinccedilatildeo entre a conduta teoreacutetica e praacutetica

Contudo ser um ldquosi mesmordquo significa sempre ldquoser culpadordquo [ldquoschuldigseinrdquo] de

excluir e remeter ao nada outras possibilidades existenciais eacute o proacuteprio

movimento de projecccedilatildeo daquele que se projecta em direcccedilatildeo ao que pode ser

que estaacute afectado de natildeo ser ldquoA projecccedilatildeo natildeo eacute apenas determinada como

98

projectada pela negaccedilatildeo do fundamento mas eacute ela mesma que enquanto

projecccedilatildeo eacute essencialmente negaccedilatildeordquo130

A negatividade eacute assim para Heidegger um aspecto constitutivo da estrutura

existenciaacuteria da projecccedilatildeo dando a ver a ausecircncia de um fundamento absoluto

para as escolhas que resultam apenas da necessidade de ldquose ser aquilo que se

pode serrdquo O ser-verdadeiro daquele que se lanccedila corajosamente contra a

morte consiste apenas na firmeza de uma resoluccedilatildeo [Entschlossenheit] de

situar-se no interior de uma abertura ontoloacutegica jaacute aberta na liacutengua e na

histoacuteria permitindo o acesso a uma verdade que natildeo tem outra medida que o

grau de apropriaccedilatildeo das condiccedilotildees previamente inscritas na situaccedilatildeo

A Verdade como desvendamento tem sempre como contrapartida um

encobrimento natildeo eacute a luz do sol do mundo inteligiacutevel que dissipa as sombras e

recorta as formas num fundo de absoluta visibilidade mas luz que iluminando

projecta sombra e oculta mantendo a reserva e o misteacuterio

Esta negatividade constitutiva da estrutura de projecccedilatildeo faz tambeacutem com que

para Heidegger como para Hegel o espiacuterito natildeo possa deter-se em nenhuma

figura da verdade tomando-a como definitiva Eacute certo que ldquoa quedardquo na

presenccedila do presente manteacutem sobre todas as criaccedilotildees humanas ameaccedila da

esclerose do pensamento mas o Dasein que se lanccedila resolutamente contra a

morte manteacutem-se livre para poder decidir-se por um novo comeccedilo ou um novo

lanccedilamento ldquoCom o fenoacutemeno da resoluccedilatildeo [Entschlossenheit] fomos

colocados diante da verdade originaacuteria da existecircncia A resoluccedilatildeo eacute o Dasein

posto a descoberto para si mesmo no seu poder ser faacutectico em cada caso de

tal modo que ele mesmo eacute este pocircr a descoberto e ser posto a descoberto Agrave

verdade pertence o seu correspondente ter-por-verdadeiro A apropriaccedilatildeo

expressa do aberto ou descoberto eacute o estar certo [] O que significa entatildeo a

certeza pertencente a uma tal resoluccedilatildeo Ela deve manter-se no aberto atraveacutes

da decisatildeo Mas isto significa ela natildeo pode justamente obstinar-se na situaccedilatildeo

mas deve compreender que a decisatildeo de acordo como o seu proacuteprio sentido

de abertura tem que manter-se livre para a sua possibilidade faacutectica em cada

130

rdquoDer Entwurf ist nicht nur als je geworfener durch die Nichtigkeit des Grundseins bestimmt sondern

als Entwurf selbst wesenhaft nichtigrdquo SuZ GA 2 sect 58 285

99

caso A certeza da decisatildeo significa manter-se livre para a sua possiacutevel e em

cada caso facticamente necessaacuteria retiradardquo131

Assim ldquoa resoluccedilatildeordquo eacute justamente o inverso de buscar uma fuga diante da

morte eacute estar decidido a ldquomanter a morte como potecircncia dominante da

existecircnciardquo aceitando que em cada caso a verdade eacute limitada por um horizonte

histoacuterico-linguiacutestico finito inultrapassaacutevel e pereciacutevel132

Contudo e por isso mesmo ldquomanter a morte como potecircncia dominante da

existecircnciardquo obriga tambeacutem a reconhecer que esse horizonte soacute pode manter-se

vivo enquanto for moacutevel e se dilatar embora natildeo arbitraria nem

indefinidamente a cada novo lanccedilamento

Eacute assim tambeacutem agrave luz do que ficou dito que podemos compreender que a

problemaacutetica da relaccedilatildeo com os textos que a tradiccedilatildeo nos apresenta tenha que

ser repensada e que a verdade que em cada um deles se anuncia seja a

verdade limitada de um horizonte pereciacutevel que caso se queira manter viva

teraacute de sofrer ser relanccedilada e retomada a partir das possibilidades inscritas na

situaccedilatildeo do leitor actual

Compreensatildeo dum texto traduccedilatildeo e interpretaccedilatildeo satildeo operaccedilotildees

hermenecircuticas similares que testemunham a negatividade e a finitude do

Dasein enquanto projecto lanccedilado ldquoA projecccedilatildeo natildeo eacute soacute determinada como

131

ldquoMit dem Phaumlnomen der Entschlossenheit wurden wir vor die urspruumlngliche Wahrheit der Existenz

gefuumlhrt Entschlossen ist das Dasein ihm selbst in seinem jeweiligen faktischen Seinkoumlnnen enthuumlllt so

zwar daβ es selbst dieses Enthuumlllen und Enthuumllltsein ist Zur Wahrheit gehoumlrt ein ihr je entsprechendes

Fuumlr-wahr-halten Die ausdruumlckliche Zueignung des Erschlossenen bzw Entdeckten ist das Gewiβsein []

Was bedeutet dann die solcher Entschlossenheit zugehoumlrige Gewiβheit Sie soll sich in dem durch den

Entschluβ Erschlossen halten Dies besagt aber sie kann sich gerade nicht auf die Situation versteifen

sondern muβ verstehen daβ der Entschluβ seinem eigenen Erschlieβungssinn nach frei und offen gehalten

werden muβ fuumlr die jeweilige faktische Moumlglichkeit Die Gewiβheit des Entschlusses bedeutet

Sichfreihalten fuumlr seine moumlgliche und je faktisch notwendige Zuruumlcknahmeldquo SuZ GA 2 sect62 307308 132

Cf Alexandre Franco de Saacute em ldquoDa Morte agrave Origem Heidegger e os vindourosrdquo (in A Morte e a

Origem ndash Em torno de Heidegger e de Freud Lisboa 2008) assinala que com a inscriccedilatildeo da

negatividade no proacuteprio ser do Dasein em Ser e Tempo Heidegger inicia a radicalizaccedilatildeo filosoacutefica do

tema da finitude que adquire nos textos posteriores um estatuto cada vez mais originaacuterio podendo-se ler

em Kant e o Problema da Metafiacutesica que ldquomais original que o homem eacute a finitude do Dasein nelerdquo ldquoUma

tal radicalizaccedilatildeo da finitude na estrutura ontoloacutegica do Dasein a afirmaccedilatildeo heideggeriana de um caraacutecter

originaacuterio da negatividade na essecircncia do proacuteprio Dasein natildeo pode deixar de ter o sentido de uma

progressiva deslocaccedilatildeo da sua morte do fim para a origem num processo em que a vida do Dasein e a

vida do animal vivente se comeccedilam radicalmente a separarrdquo (Idem Obcit 57) Esta radicalizaccedilatildeo da

finitude deslocando a morte do fim para a origem articular-se-ia com a mutaccedilatildeo do conceito de Dasein

que apoacutes Ser e Tempo jaacute natildeo designaraacute um ente individual mas o modo de ser do humano que pode ser

compreendido quer individual quer colectivamente ldquoEacute nesse sentido que a partir dos anos 30 Heidegger

poderaacute aludir nas suas liccedilotildees ao ldquonosso Dasein histoacutericordquo (unser geschichtliches Dasein) ou seja a uma

existecircncia histoacuterica colectiva e ao povo como protagonista dessa mesma existecircnciardquo (Idem Obcit

5859)

100

lanccedilada em cada caso pelo natildeo ser do ser fundamento mas enquanto

projecccedilatildeo eacute ela mesma essencialmente natildeo ser Esta determinaccedilatildeo natildeo

significa por sua vez de maneira alguma a propriedade ocircntica do ldquofracassadordquo

ou ldquosem valorrdquo mas um aspecto constitutivo existenciaacuterio da estrutura do ser

do projectarrdquo133

Aquele que compreende compreende apropriando-se livremente de uma

possibilidade hermenecircutica que por ser a sua estaacute jaacute lanccedilada como

possibilidade que nega e anula outras essa unilateralidade em que consiste

toda a interpretaccedilatildeo natildeo eacute contudo nada de arbitraacuterio ou sem valor mas uma

escolha necessaacuteria e por isso mesmo eacute a uacutenica verdade possiacutevel para a

situaccedilatildeo - que em cada caso eacute o aiacute do ser

Liberdade e necessidade satildeo o verso e o reverso do Dasein e da sua

constitutiva finitude ldquoO suposto natildeo-ser eacute inerente ao ser livre do Dasein para

as suas possibilidades existenciais Mas a liberdade soacute eacute na escolha de uma

possibilidade isto eacute em natildeo ter escolhido e natildeo poder escolher tambeacutem

outrasrdquo134

Aceder agrave verdade de uma interpretaccedilatildeo eacute assim justamente o contraacuterio de

uma atitude de imparcialidade mas o assumir e sustentar uma decisatildeo

hermenecircutica que descobre encobrindo que ilumina o real numa certa

direcccedilatildeo e por isso mesmo oculta e mergulha na obscuridade aquilo mesmo

que potildee a descoberto

10 A libertaccedilatildeo da gramaacutetica em relaccedilatildeo agrave loacutegica

Podemos pois compreender que o problema da linguagem em Heidegger natildeo

seja apenas o de apreendecirc-la e descrevecirc-la como fala que se exerce no

exerciacutecio faacutectico da existecircncia

Heidegger vai-se encaminhar no sentido de romper com a linguagem da

metafiacutesica (pensada sob a categoria da Gerede) e de dilatar as possibilidades

133

bdquoDer Entwurf ist nicht nur als je geworfener durch die Nichtigkeit des Grundseins bestimmt sondern

als Entwurf selbst wesenhaft nichtig Diese Bestimmung meint wiederum keineswegs die ontische

Eigenschaft der bdquoerfolglosldquo oder bdquounwertigldquo sondern ein existentiales Konstitutivum der Seinsstruktur

des Entwerfensldquo SuZ GA 2 sect58 285 134

bdquoDie gemeinte Nichtigkeit gehoumlrt zum Freisein des Daseins fuumlr seine existentiellen Moumlglichkeiten Die

Freiheit aber ist nur in der Wahl der einen das heiβt im Tragen des Nichtgewaumlhlthabens und

Nichtauchwaumlhlenkoumlnnens der anderenldquo SuZ GA 2 sect58 285

101

ontoloacutegicas da linguagem exercendo a sua funccedilatildeo desocultante e

desencobridora esforccedilo que seraacute constantemente renovado ao longo de toda a

sua obra e eacute particularmente visiacutevel nos textos do segundo Heidegger135

Este esforccedilo que jaacute estaacute claramente anunciado em Ser e Tempo e

direccionado no sentido apontado pela Geworfenheit da procura de uma

linguagem originaacuteria exige no entanto a confrontaccedilatildeo preacutevia com uma

decaiacuteda tradiccedilatildeo filosoacutefica que impocircs a normalizaccedilatildeo da linguagem atraveacutes da

gramaacutetica e da loacutegica

ldquoOs gregos natildeo tecircm nenhuma palavra para linguagem [Sprache] eles

compreenderam ldquoagrave partidardquo este fenoacutemeno como fala [Rede] Contudo a

reflexatildeo filosoacutefica fixou preferencialmente a atenccedilatildeo no logos como proposiccedilatildeo

e por isso o estudo das estruturas fundamentais das formas e partes

integrantes do discurso seguiu o fio condutor desse logos A gramaacutetica

procurou o seu fundamento na ldquoloacutegicardquo deste logos136

Heidegger retoma a questatildeo do impeacuterio da loacutegica sobre a gramaacutetica jaacute

discutida por Hamann e Humboldt Como acima jaacute referimos Hamann abre

uma poleacutemica contra o iluminismo chamando a atenccedilatildeo para o facto que as

categorias loacutegicas a que Kant viria a chamar as categorias do entendimento

determinam as categorias gramaticais e as regras sintaacutecticas A loacutegica

determinou a constituiccedilatildeo das gramaacuteticas como ciecircncias normalizadoras das

diversas liacutenguas que submetidas a essa universal intenccedilatildeo normalizadora e

disciplinadora se encontram entre si estabelecendo aquela concordacircncia de

categorias gramaticais e de regras sintaacutecticas

Assim a unidade das gramaacuteticas que referia Bacon natildeo testemunha para

Heidegger como para Hamann e Humboldt a existecircncia de universais

linguiacutesticos mas sim algo de muito diferente o impeacuterio universal da loacutegica

135

Mariacutea Fernanda Benedito sustenta que esta busca heideggeriana de renovaccedilatildeo das possibilidades

ontoloacutegicas da linguagem tem que ser correlacionada com a desarticulaccedilatildeo da linguagem e a destruiccedilatildeo da

sua funccedilatildeo comunicativa Heidegger teria como modelo o silecircncio da fala entendida como apelo (Ruf)

diante da morte (Cf Heidegger en su lenguaje Madrid (1992) 56-62) Natildeo eacute este o nosso ponto de

vista como acima esclarecemos pois esse apelo (Ruf) entendemo-lo como apelo agrave ruptura com a Gerede

ou seja agrave linguagem das vagas generalidades e a um exercigravecio ldquoproacutepriordquo da linguagem entendido como

um falar ldquopor si mesmordquo enraizado na existecircncia que natildeo anula mas pressupotildee o destinataacuterio ainda que

o pressuponha de um outro modo Este ponto como em geral o problema da alteridade natildeo se encontra

no entanto suficientemente esclarecido em Ser e Tempo nem talvez nas obras posteriores 136

bdquoDie Griechen haben kein Wort fuumlr Sprache sie verstanden dieses Phaumlnomen ldquo zunaumlchstrdquo als Rede

Weil jedoch fuumlr die philosophische Besinnung des ιόγος vorwiegend als Aussage in den Blick kam

vollzog sich die Ausarbeitung der Grundstrukturen der Formen und Bestandstuumlcke der Rede am Leitfaden

dieses Logos Die Grammatik suchte ihr Fundament in der bdquoLogikldquo dieses Logosrdquo SuZ GA 2 sect34 165

102

impeacuterio esse cujo efeito eacute apagar as marcas linguiacutesticas da diversidade e

singularidade das experiecircncias histoacutericas dos vaacuterios povos

Desse modo a destruiccedilatildeo da loacutegica impotildee-se como procedimento

metodoloacutegico essencial para a libertaccedilatildeo das gramaacuteticas e para que a

linguagem possa mostrar-se como ela aparece ao olhar compreensivo da

reconstruccedilatildeo fenomenoloacutegica ou tal como ela se mostra a respeito de si

mesma

A procura da linguagem ldquoapropriadardquo torna-se a partir daqui um problema

central da filosofia heideggeriana da soluccedilatildeo do qual depende a possibilidade

de um pensar-do-ser No entanto a intensa experimentaccedilatildeo do falar nas zonas

de fronteira da gramaacutetica e a violaccedilatildeo da norma linguiacutestica137 que traduzem o

esforccedilo heideggeriano posterior de ensaiar um outro exerciacutecio da linguagem

devem ser entendidas de maneira adequada e natildeo apenas no sentido negativo

de uma desarticulaccedilatildeo e destruiccedilatildeo da dimensatildeo comunicativa da linguagem

Esta tarefa eacute preparada no seminaacuterio do semestre de Veratildeo de 1934 integrado

na Gesamtausgabe sob o tiacutetulo Die Logik als die Frage nach dem Wesen der

Sprache

ldquoA tarefa duma libertaccedilatildeo da Gramaacutetica em relaccedilatildeo agrave loacutegica necessita

previamente de uma compreensatildeo positiva da estrutura fundamental a priori da

fala [Rede] em geral como existenciaacuterio e natildeo pode ser levada a cabo

simplesmente pelo melhoramento e acabamento do que eacute tradicionalrdquo138

A confrontaccedilatildeo com a loacutegica levada a cabo nas Liccedilotildees de Loacutegica aponta

claramente no sentido de uma ruptura cujo sentido se trata aqui de precisar a

loacutegica aristoteacutelica que se manteve praticamente inalterada ao longo da nossa

histoacuteria vigorou e regeu todo o pensar ocidental como instrumento e

propedecircutica do pensar e do conhecer Atraveacutes do seu impeacuterio sobre as

diversas gramaacuteticas a loacutegica aristoteacutelica constitui-se como ldquosiacutetio de origem da

137

O levantamento sistemaacutetico das decisotildees hermenecircuticas tomadas por Heidegger no campo da

morfologia da sintaxe do leacutexico para a constituiccedilatildeo de uma linguagem apropriada encontra-se em

Bernhard Sylla Hermeneutik der langue 307-362 138

bdquoDie Aufgabe einer Befreiung der Grammatik von der Logik bedarf vorgaumlngig eines positiven

Verstaumlndnisses der apriorischen Grundstruktur von Rede uumlberhaupt als Existenzial und kann nicht

nachtraumlglich durch Verbesserungen und Ergaumlnzungen des Uumlberlieferten durchgefuumlhrt werdenldquo SuZ GA

2 sect34 165166

103

linguagem faacutecticardquo isto eacute das diversas liacutenguas tal como satildeo efectivamente

usadas para produzir os enunciados cientiacuteficos e as proposiccedilotildees metafiacutesicas

Embora Heidegger aceite a definiccedilatildeo tradicional da loacutegica como a ciecircncia das

estruturas formais e regras do pensar haacute que ter em conta que a loacutegica como

ciecircncia do logos eacute consoante o sentido originaacuterio da palavra logos

simultaneamente a ciecircncia do pensar do falar (Reden) e do dizer (Sprechen)

rdquoA loacutegica eacute a ciecircncia do λόγος da fala (Rede) rigorosamente da linguagem

(Sprache)rdquo 139

Portanto questionar a loacutegica seraacute questionaacute-la nesse sentido abrangente de

ciecircncia que visa a normalizaccedilatildeo tanto do pensar como da linguagem sempre

entendidos como unidade essencial como articulaccedilatildeo loacutegico-linguiacutestica

Destruir ou abalar a loacutegica significaraacute pois destruir uma concepccedilatildeo falsa e

dissimuladora que ocultou a verdadeira essecircncia quer do pensamento quer

da linguagem

Poreacutem natildeo basta afirmar que a loacutegica impocircs uma certa concepccedilatildeo sobre a

linguagem mas eacute ainda preciso saber como a impocircs as categorias gramaticais

nasceram da loacutegica mas esta por seu lado foi forjada por uma liacutengua (a

grega) a partir de uma certa maneira de pensar que pela primeira vez se

afirmou no homem grego De modo que a relaccedilatildeo entre loacutegica e linguagem eacute

de certo modo uma relaccedilatildeo circular a loacutegica preacute-formou a nossa compreensatildeo

da linguagem mas por seu lado foi criada pela linguagem isto eacute pela liacutengua

grega

Para Heidegger os fundamentos da Loacutegica devem ser buscados na ontologia

grega e derivados duma certa relaccedilatildeo do Homem com a questatildeo do ser que

historicamente se impocircs na Greacutecia ldquoA loacutegica natildeo eacute pois para noacutes um

adestramento para um melhor ou pior meacutetodo do pensar mas o medir

questionante dos abismos do ser natildeo eacute a ressequida colecccedilatildeo das perpeacutetuas

leis do pensar mas o lugar da questionabilidade do homem da sua medidardquo140

139

bdquoDie Logik ist die Wissenschaft vom ιόγος von der Rede strenggenommen von der Spracheldquo LWS

GA 38 14 140

bdquoDie Logik ist daher fuumlr uns nicht eine Abrichtung zu einem besseren oder schlechteren

Denkverfahren sondern das fragende Abschreiten der Abgruumlnde des Seins nicht die vertrocknete

Sammlung ewiger Denkgesetze sondern Staumltte der Fragwuumlrdigkeit des Menschen seiner Groumlszligeldquo Ibidem

910

104

Abalar a loacutegica eacute pois questionar uma certa compreensatildeo do homem de si

mesmo e uma certa compreensatildeo do ser que emergiram pela primeira vez

entre os gregos e que dominaram e satildeo o fundamento oculto duma tradiccedilatildeo em

que ainda permanecemos

Ora o que caracteriza a nossa compreensatildeo ldquodo que eacuterdquo eacute o modo como ela se

daacute no interior daquilo a que chamamos ldquociecircnciardquo Aquilo que eacute ergue-se diante

do homem como objecto isto eacute como algo que estaacute perante o sujeito como

subsistente Indo mais fundo pergunta-se poreacutem donde emergiu esta

compreensatildeo do homem de si mesmo como sujeito e do ente como objecto A

noccedilatildeo de sujeito teve origem no termo grego hypokeimenon o que subjaz A

ele se refere todo o dizer relativo agravequilo que eacute isto eacute a ele se referem todos os

predicados

A loacutegica institui pois no enunciado um modo de dizer cuja estrutura eacute predicar

o sujeito aquilo que subjaz ou aquilo que eacute a substacircncia Assim a

compreensatildeo do ser que corresponde agrave loacutegica do enunciado proposicional eacute a

compreensatildeo do ser como substacircncia como aquilo que permanece para aleacutem

de toda a mudanccedila

Heidegger afirma que para libertar a linguagem desta ldquoloacutegicardquo temos que

romper com esta ontologia da presenccedila e aceder agrave experiecircncia originaacuteria da

articulaccedilatildeo do sentido ou da compreensatildeo do ser que acompanha o homem

enquanto ele vive trabalha e se gesta a si mesmo enquanto tempo e histoacuteria

Libertar as gramaacuteticas eacute assim uma tarefa que pode ser compreendida

negativamente como destruiccedilatildeo da loacutegica mas que positivamente indica o

retomar as possibilidades que jaacute se encontram nas vaacuterias liacutenguas naturais que

acompanham a existecircncia faacutectica do homem141

Libertar a linguagem da loacutegica significaraacute para Heidegger em primeiro lugar

reconhecer como Humboldt a dignidade e a importacircncia das vaacuterias liacutenguas

141

Sobre a relaccedilatildeo de Heidegger com a gramaacutetica e a linguiacutestica ver Bernhard Sylla (Hermeneutik der

langue 311) ldquoAn bdquometaphysischrdquo gegruumlndeter Sprachwissenschaft kritisiert Heidegger zahlreiche

Einzelaspekte Die zentrale Kritik richtet sich gegen die bdquofataleldquo grammatischen Kategorien Subjekt und

Objekt und den undifferenzierten nur aufs Seiende verweisenden Gebrauch der Kopula [] Neben die

Gebundenheit an grammatische Kategorien ist es vor allem noch die Tendenz zur Desambiguierung zur

Eindeutigkeit die kritisiert wird Diese mache sich einerseits im Lexikalischen bemerkbar insofern die

Tendenz bestehe Homonyme und Polyseme zu identifizieren uns als varianten im Woumlrterbuch

aufzulisten so daβ sie als Einheiten handhabbar werden Vieldeutigkeit darf nach Heidegger aber nie zu

gleichrangiger Nebenordnung fuumlhren sondern sei einerseits Zeichen fuumlr Reichhaltigkeit von Woumlrtern

andererseits Herausforderung zur Detektion der wesentlichen sbquoSemantikbdquoldquo

105

histoacutericas enquanto instauradores de diferentes aberturas de mundo142 Em

vez da ldquomesmidaderdquo assegurada pela loacutegica temos a valorizaccedilatildeo da

multiplicidade e da diversidade de horizontes de sentido transportados pelas

diferentes liacutenguas faladas pelos homens

Eacute esta funccedilatildeo de abertura de mundo ou de instaurar uma compreensatildeo preacute-

ontoloacutegica que jaacute tinha sido assinalada agrave linguagem enquanto Rede que aqui

se recupera para a linguagem faacutectica isto eacute para as diversas liacutenguas

histoacutericas que aqui satildeo analisadas na sua conexatildeo com a vida dos povos

enquanto trabalham e edificam o seu mundo A linguagem enquanto liacutengua

fundamenta-se no povo cujo ser-histoacuterico se trata aqui de compreender de

uma forma que escapara a Humboldt ldquoo povordquo deve ser repensado sobre o

fundamento ontoloacutegico do ser do homem enquanto temporalidade

Como acima referimos Hamann jaacute tinha demonstrado que sob o domiacutenio da

loacutegica se impocircs um dizer que se subordina ao princiacutepio de identidade

ignorando a irredutiacutevel heterogeneidade das experiecircncias que eacute apropriado

para enunciar a abstracccedilatildeo dos conceitos mas recusa a dimensatildeo corporal

das sensaccedilotildees e os afectos Contra este dizer e pensar disciplinado pela

norma e pela razatildeo Hamann viraacute incitar agrave transgressatildeo da norma linguiacutestica e

Humboldt agrave reivindicaccedilatildeo da libertaccedilatildeo das gramaacuteticas em relaccedilatildeo agrave loacutegica e

ao reconhecimento da pluralidade de aberturas do mundo instauradas pelas

diferentes liacutenguas

Heidegger insere-se claramente nesta tradiccedilatildeo (embora natildeo a assuma

explicitamente) radicalizando-a uma vez que ele pretende realizar uma

confrontaccedilatildeo com a loacutegica que pretende abalar a ontologia da presenccedila em

que esta se fundamenta E pretende ao mesmo tempo fundar positivamente

essa libertaccedilatildeo das liacutenguas naturais numa relaccedilatildeo autecircntica do homem com a

temporalidade a multiplicidade das aberturas de mundo das diferentes liacutenguas

adquire assim um soacutelido fundamento ontoloacutegico

Embora esta conexatildeo entre liacutengua (Sprache) e povo (Volk) natildeo tenha a partir

de 36 ocupado um lugar central na filosofia heideggeriana da linguagem em

outras ocasiotildees Heidegger natildeo deixaraacute de afirmar que a multiplicidade de

142

Note-se que Heidegger excluiacutea no entanto a possibilidade de reactivar qualquer liacutengua antiga ou de

pelo contraacuterio construir uma nova liacutengua que acompanhasse o novo iniacutecio do pensar Trata-se antes de

modificar o uso da liacutengua atraveacutes duma reinterpretaccedilatildeo da gramaacutetica e exploraccedilatildeo da etimologia Cf

Bernhard Sylla ob cit 312

106

liacutenguas e dialectos que constituem o falar dos povos143 constitui um legado da

experiecircncia histoacuterica que interessa preservar como o solo em que se deve

enraizar toda a possibilidade do dizer do pensar como se encontra afirmado no

ensaio sobre Hebel

Babel natildeo eacute uma maldiccedilatildeo que se trataria de corrigir mas a condiccedilatildeo

ontoloacutegica do homem como ser histoacuterico e temporal que haacute que positivamente

assumir para desenvolver plenamente as potencialidades ocultas da

linguagem

11 Liacutengua povo e histoacuteria

Para a compreensatildeo desta fundamentaccedilatildeo ontoloacutegica da diversidade de

horizontes de sentido inerentes agraves diferentes liacutenguas eacute essencial tomarmos em

consideraccedilatildeo a distinccedilatildeo estabelecida em Logik als die Frage nach dem Wesen

der Sprache entre a temporalidade inerente agraves coisas e agrave natureza em geral ou

intra-temporalidade (Innerzeitgkeit) e a temporalidade inerente ao ser do

homem (Zeitlichkeit)

Se a primeira se refere a um horizonte temporal dado como um quadro onde

os diversos factos se alinham em relaccedilatildeo de sucessatildeo ou de simultaneidade a

segunda coincide com o movimento de auto-gestaccedilatildeo da existecircncia tal como

foi posto a claro pela analiacutetica do Dasein levada a cabo em Ser e Tempo

Heidegger procede a uma reinterpretaccedilatildeo da histoacuteria fundando-a nesta

temporalidade inerente agrave existecircncia e tendo em conta as aquisiccedilotildees

fundamentais de Ser e Tempo segundo as quais esta pode ser exercida de

forma apropriada pelo Dasein que se lanccedila em direcccedilatildeo agrave morte assumindo a

sua finitude ontoloacutegica e apropriando-se de si como um ldquosi mesmordquo ou pelo

contraacuterio e como acontece na maior parte do tempo perdendo-se na dispersatildeo

das possibilidades e no atarefar-se inerente ao mero fazer pela vida No

primeiro caso temos o exerciacutecio da temporalidade na sua unidade extaacutetica no

segundo a queda na presenccedila do presente

143

A conexatildeo entre liacutengua (Sprache) e povo (Volk) eacute desenvolvida por Heidegger entre 1934 e 1936 em

Logik als die Frage nach dem Wesen der Sprache Einfuumlhrung in die Metaphysik Houmllderlin und das

Wesen der Dichtung e Der Ursprung des Kunstwerkes

107

Em estrita correspondecircncia com esta dupla maneira de exercer a

temporalidade temos duas maneiras de entender a histoacuteria para as quais

Heidegger reserva os conceitos de historiografia (Historie144) e histoacuteria

(Geschichte)145 sendo a primeira entendida segundo o paradigma da ciecircncia e

o seu ideal de objectividade segundo os quais o acontecer da natureza e o

acontecer humano natildeo seriam essencialmente diferentes e a segunda como

auto-gestaccedilatildeo de um povo a partir de si mesmo ou como um acontecer

voluntaacuterio e sapiente do qual pode ser conservada uma notificaccedilatildeo

Este acontecer da histoacuteria (Geschehen) natildeo eacute o simples transcorrer (Vorgaumlnge)

instintivo da vida proacuteprio das plantas e dos animais mas eacute um acontecer

voluntaacuterio e consciente fundado num saber que pode conservar-se como

notificaccedilatildeo (Kunde) ldquoA vida das plantas e dos animais eacute a unidade instintiva

caracteriacutestica de uma totalidade viva O acontecer humano pelo contraacuterio eacute

voluntaacuterio e por isso sapiente e na verdade natildeo apenas em cada caso em si

mesmo de tal modo que o saber e o querer sejam co-determinantes para o

acontecer humano no seu cumprimento mas tambeacutem enquanto este acontecer

enquanto acontecer permanece no saber e tambeacutem de certo modo no querer -

por conseguinte pode ser dele conservada uma notificaccedilatildeo [Kunde] e por isso

esse acontecer eacute susceptiacutevel de ser investigado [erkundbar]rdquo146

Histoacuteria e historiografia satildeo conceitos diferentes da histoacuteria noacutes podemos dizer

que ela eacute aquele acontecer de que pode ser dada e conservada uma

notificaccedilatildeo mas esta notificaccedilatildeo eacute apenas uma preacute-condiccedilatildeo ou uma forma

preacutevia da historiografia A historiografia ou a ciecircncia da histoacuteria visa dar a

inteligibilidade ou a verdade acerca da histoacuteria sendo determinada pela atitude

em relaccedilatildeo agrave essecircncia da verdade Ora noacutes movemo-nos no interior do

conceito de verdade como adequaccedilatildeo do juiacutezo ao seu objecto ou como

objectividade A questatildeo que podemos pocircr eacute no entanto se este ideal de

144

bdquoFuumlr das Erkunden haben die griechen das Wort ἱςηορία gebraucht Dieses Wort bekam erst in Vorlauf

ihrer eigenen Geschichte die Bedeutung von bdquoGeschichtskundeldquo Das Wort bedeutet heute als bdquoHistorieldquo

das Wissen um die Geschichteldquo LWS GA 38 87 145

bdquoWir bestimmen mit dieser Einschraumlnkung Geschichte als Sein des Menschen [hellip] ldquo Ibidem 86 146

bdquoPflanzliches und tierisches Leben ist eigentuumlmlich triebmaumlβige Einheit eines Lebensganzen Das

menschliche Geschehen dagegen ist willentlich und deshalb wissend und zwar nicht nur jeweils in sich

selbst so daβ Wissen und Wille mitbestimmend waumlre fuumlr das menschliche Geschehen in seinem Vollzug

sondern auch insofern als dieses Geschehen als Geschehen im Wissen und gewissermaβen auch im

Wollen bleibt ndash daβ somit eine Kunde davon bewahrt bleiben kann und daβ deshalb dieses Geschehen

erkundbar istldquo Ibidem 86

108

objectividade que a historiografia cientiacutefica persegue permite dar conta daquilo

que eacute essecircncia da histoacuteria e do que constitui o ser-histoacuterico de um determinado

evento

De facto para Heidegger Geschichte e Historie natildeo satildeo apensas coisas

diferentes mas ateacute certo ponto contraacuterias se encararmos Historie no sentido

moderno de ciecircncia da histoacuteria Para esta ciecircncia da histoacuteria os acontecimentos

histoacutericos satildeo sempre acontecimentos passados que porque satildeo passados

podem ser encarados como entes que estatildeo perante como simples ldquoobjectosrdquo

e por isso ser concatenados segundo relaccedilotildees de causa e efeito como os

entes da natureza Ora a histoacuteria no sentido apropriado (Geschichte) eacute o

gestar-se de si mesmo de um povo que se apropria do seu passado e a partir

dele se determina no presente e projecta no futuro Nenhum acontecimento

histoacuterico (Geschehen) pode ser encarado como qualquer coisa de

simplesmente passado pois histoacutericos satildeo apenas os acontecimentos que uma

colectividade toma como seus trazendo-os para o presente e determinando-se

a actualizaacute-los como cumprimento de uma missatildeo e entrega a um destino147

Para compreender a novidade da consciecircncia histoacuterica proposta por Heidegger

podemos confrontaacute-la natildeo apenas com a historiografia cientiacutefica o que o

proacuteprio Heidegger repetidamente fez mas ainda com a filosofia da histoacuteria

hegeliana em cuja vizinhanccedila Heidegger indiscutivelmente se situa na medida

em que para ambos os autores na histoacuteria humana se joga simultaneamente a

histoacuteria do ser

Na filosofia hegeliana da histoacuteria todas as aquisiccedilotildees do espiacuterito humano se

vecircem convertidas em etapas do espiacuterito finito na sua marcha dialeacutectica em

direcccedilatildeo agrave Verdade ou ao momento final de totalizaccedilatildeo em que cada um dos

momentos passados se vecirc simultaneamente integrado e ultrapassado

segundo categoria da Aufhebung

Em Hegel estamos perante uma consciecircncia histoacuterica como consciecircncia do

devir temporal do Espiacuterito que dissolve todas as suas formas e as condena agrave

147

ldquoDas Vergangene ist nicht einfach das Vergehende sondern das noch Bleibende das Weiterwirkende

von fruumlher her noch irgendwie Seiende das von fruumlher noch west sein Wesen treibt das noch Wesende

oder das Gewesene Das Gewesene ist zwar immer ein Vergangenes aber nicht jedes Vergangene ist ein

Gewesenes im Sinne des von fruumlher her Wesenden einerseits also das Vergangene und andererseits das

Gewesene und noch Wesende So unterliegt die Zeitbestimmung der Charakteristik des Vergehens aber

auch des Wesensldquo Ibidem 103

109

finitude e ao transitoacuterio mas que se encontra rigidamente e optimisticamente

dirigido para um telos no qual se anuncia a reconciliaccedilatildeo do espiacuterito consigo

mesmo e a sua realizaccedilatildeo como Ideia

Em Heidegger o tempo arrasta e domina igualmente o ser do homem natildeo

contudo segundo a lei duma inexoraacutevel dialeacutectica mas como poder obscuro

das vaacuterias Stimmungen epocais que impotildeem a cada povo um certo modo de

ldquoestar afinadordquo com uma tonalidade afectiva As Stimmungen epocais lanccedilam e

destinam o ser futuro dos povos de modo essencialmente obscuro mas esse

ser lanccedilado solo comum dum povo histoacuterico eacute o passado ou ldquoo sidordquo ao qual

cada povo deve voltar caso queira ser histoacuterico e poder projectar-se no futuro

O impulso para o futuro ou o movimento de futuraccedilatildeo ao qual corresponde o

existenciaacuterio da compreensatildeo que lanccedila um povo para a frente em direcccedilatildeo

aos seus possiacuteveis eacute lanccedilado em ricochete para traacutes em direcccedilatildeo ao passado

tomando-o natildeo como algo que passou ou que estaacute a passar mas como o sido

(das Gewesene) ou o que desde o antes ainda estaacute a ser como tradiccedilatildeo

Assim a fusatildeo de horizontes temporais com o seu caraacutecter fluido e

imprevisiacutevel embora nunca casual (como Heidegger diraacute mais tarde

obscuramente destinado pelo movimento de destinaccedilatildeo do ser) eacute o nuacutecleo da

consciecircncia histoacuterica heideggeriana148 como em Hegel era a categoria

dialeacutectica da Aufhebung

Esta fusatildeo de horizontes daacute-se em certos momentos privilegiados e

imprevisiacuteveis da histoacuteria (Ereignis)149 e suporta as grandes tarefas dum povo

148

Cf Ramoacuten Rodriacuteguez assinala que agrave historicidade como condiccedilatildeo ontoloacutegica natildeo escapa nenhum

comportamento humano nem mesmo o trabalho cientiacutefico-criacutetico da filosofia Deste modo a tradiccedilatildeo natildeo

pode constituir um obstaacuteculo para a filosofia mas eacute pelo contraacuterio uma condiccedilatildeo de possibilidade para o

questionamento filosoacutefico ldquoLa reflexioacuten filosoacutefica que como acto de inteleccioacuten sabe de su ineludible

historicidad ha de incorporar un discernimiento histoacuterico que se haga cargo del horizonte preciso en que

se encuentra Soacutelo asiacute ldquocon la apropiacioacuten positiva del pasadordquo se pone un interrogar cientigravefico ldquoen la

plena posesioacuten de sus maacutes propias posibilidades de preguntarrdquordquo (Idem Hermeneutica y Subjectividad

40) 149

Alexandre de Saacute contrapotildee a categoria de ldquoEreignisrdquo como exposiccedilatildeo e entrega ao ser ao conceito de

ldquomobilizaccedilatildeo totalldquo desenvolvidos pela ideologia nacional-socialista que impregnava o contexto

histoacuterico-linguiacutestico da Alemanha nos anos 30 em que se inscrevem as Liccedilotildees de Loacutegica ldquoMas na

pertenccedila do Dasein ao ser a apropriaccedilatildeo do Dasein pelo serndashapropriaccedilatildeo que o caraacutecter originaacuterio da

morte assinala ndash tem aqui um caraacutecter diametralmente oposto agrave apropriaccedilatildeo da vida pelo poder Esta

oposiccedilatildeo eacute a chave para a compreensatildeo do conceito heideggeriano de acontecimento-dendashapropriaccedilatildeo

(Ereignis) [hellip] A pertenccedila do Dasein ao ser abre neste natildeo uma subordinaccedilatildeo a uma instacircncia de poder

que o submete mas a sua vinculaccedilatildeo a um acontecimento que precisa dele para que ele mesmo seja

enquanto essecircncia enquanto Wesen entendido no sentido verbal de uma essenciaccedilatildeo (wesung) (Idem

ldquoDa Morte agrave Origem Heidegger e os vindourosrdquo in A Morte e a Origem ndash Em torno de Heidegger e de

Freud 61)

110

histoacuterico enquanto trabalho e criaccedilatildeo das grandes obras que como se

encontra dito em A Origem da Obra de Arte satildeo sempre criaccedilotildees linguiacutesticas

A obra articula e traz ao presente esta fusatildeo de horizonte fazendo brilhar na

sua aparecircncia ldquoum mundordquo

Se ateacute certo ponto Heidegger manteacutem esse conservar do passado e a criaccedilatildeo

do novo caracteriacutesticos da dialeacutectica hegeliana lembremo-nos no entanto que

a dialeacutectica eacute o movimento inerente ao autodesenvolvimento do Espiacuterito

Universal ou da Ideia de que o Espiacuterito de cada povo (Volksgeist) eacute um

momento ou uma forma transitoacuteria Outra coisa muito diferente se passa em

Heidegger para quem a dinacircmica da existecircncia de cada povo eacute por si mesma

criadora de mundo e de histoacuteria graccedilas agrave suacutebita e imediata fusatildeo de horizontes

temporais que acontece no acontecer propriamente histoacuterico ou Ereignis O

mundo de cada povo histoacuterico repousa na sua proacutepria temporalidade como

uma totalidade viva e em crescimento e natildeo eacute um degrau da marcha

progressiva do Espiacuterito do Mundo (Weltgeist) em direcccedilatildeo agrave Liberdade como

em Hegel

Para Heidegger a histoacuteria natildeo tem assim um sentido preciso ou pelo menos

natildeo podemos aceder a ele nem tornaacute-lo inteligiacutevel sendo antes uma irredutiacutevel

multiplicidade que se encontra e entrechoca num movimento essencialmente

e obscuramente destinado pelo tempo - ou como mais tarde Heidegger diraacute

tambeacutem pela histoacuteria do ser150 que se revela subtraindo-se e ocultando-se

envolvendo assim a marcha da histoacuteria humana num fundo de opacidade e de

misteacuterio 151

Esta opacidade fundamental do poder do tempo que suporta e destina a

histoacuteria tem como consequecircncia que as diversas aberturas de mundo satildeo

150

Cf Ramoacuten Rodrigraveguez (ob cit 42) ldquoLa idea de una historia del ser es la invitacioacuten a pensar lo

histoacuterico no a partir de un proceso que transcurre sino de este enviarse (Sichzuschicken) y sustraerse

(Sichentziehen) del ser De ahiacute que el concepto histoacuterico de eacutepoca miente desde este punto de vista no un

determinado corte en la sucesioacuten de los hechos histoacutericos sino el aparecer de una figura del mundo a

partir de la epojeacute de la abstencioacuten o retraimiento del serrdquo 151

Esta obscuridade essencial do poder do tempo faz com que a tradiccedilatildeo tenha um aspecto negativo e se

converta em fonte de encobrimento como sublinha Ramoacuten Rodriacuteguez (ob cit 40) ldquoPero si bien la

historicidad ontoloacutegica hace necesaria una reflexioacuten histoacuterica que asuma conscientemente lo que somos

tal necesidad se ve reforzada por la conviccioacuten [hellip] de que la estructura de transmisioacuten no garantiza la

inteligibilidad de lo transmitido sino que maacutes bien nos lo entrega como un contenido opaco que actuacutea sin

mostrar su propio poder De esta forma encubre maacutes que descubre Es el aspecto negativo de la tradicioacuten

que se encuentra en la base da las cautelas metodoloacutegicas Toda la consideracioacuten heideggeriana del

pasado se encuentra en Ser y tiempo transida de esa doble conciencia que posibilita nuestra

comprensioacuten del mundo siendo a la vez la fuente de su encubrimientordquo

111

incomensuraacuteveis isto eacute cada povo vive no seu mundo e interpreta-se a si

mesmo a partir da sua proacutepria histoacuteria sem que para tal possa ser procurado

outra justificaccedilatildeo ou fundamento

Esta incomensurabilidade das aberturas de mundo instituiacutedas pelas diversas

liacutenguas histoacutericas choca com a tese heideggeriana da supremacia da cultura

europeia em conexatildeo com a ideia da transmissatildeo do legado da origem grega

no entanto haacute que sublinhar que esta ubris europeiacutesta de Heidegger se foi

esbatendo a partir de 1959 data da conferecircncia Houmllderlins Erde und Himmel

em conexatildeo com a tese da igual dignidade ontoloacutegica das vaacuterias civilizaccedilotildees

resultantes dos vaacuterios envios do ser 152

12 A liacutengua como Ereignis

Poreacutem se a histoacuteria (Geschichte) eacute um acontecer nem todo o acontecer

pode ter por si mesmo a dignidade de ser histoacuterico pois histoacuterico eacute soacute aquele

acontecimento ldquoinauguralrdquo que assinala a determinaccedilatildeo dum povo e que pode

ser repetido e actualizado como forccedila imanente e projectiva que manteacutem esse

povo como tal e o faz existir no acircmbito da histoacuteria ldquoA Histoacuteria [Geschichte] eacute

um acontecimento propiacutecio [Ereignis] na medida em que ele acontece

[Geschieht]rdquo153

Para determinar verdadeiramente a essecircncia da histoacuteria eacute preciso clarificar a

noccedilatildeo de Ereignis154 que aparece em Logik e que teraacute uma importacircncia

152

Embora Heidegger defendesse a tese da supremacia da cultura europeia em conexatildeo com a ideia da

transmissatildeo do legado da origem grega esta tese foi-se esbatendo a partir de 1959 data da conferecircncia

Houmllderlins Erde und Himmel pressupondo a partir daiacute a igual dignidade ontoloacutegica das vaacuterias

civilizaccedilotildees resultantes dos vaacuterios envios do ser Cf Maria Adelaide Pacheco ldquoA Europa como Legado

em Gadamerrdquo in Razatildeo e Liberdade II 1425 153

bdquoGeschichte ist ein Ereignis sofern es geschiehtldquo LWS GA 38 87 154

Cf Eacute indispensaacutevel ter em conta a centralidade do termo alematildeo Ereignis assim como o campo

semacircntico que lhe foi associado pela estrateacutegia linguigravestica do segundo Heidegger rdquoNo alematildeo o er- tem

3 significados-base conseguiralcanccedilar algo por completo ou antecipar este alcance (erhalten ersteigen

etc) o deixar aparecerdesabrocharbrotar algo (erwarten erhoffen) o iniacutecio originaacuterio de algo e o seu

crescimento num acontecimento ou processo de caraacutecter transformador (erschauen erroumlten erbluumlhen)

Para aleacutem disso eacute tambeacutem uacutetil saber que o er- proveacutem do alto-alematildeo ar- ir- ou ur- estando portanto

numa relaccedilatildeo de proximidade com o prefixo ur- que exprime a origem a originariedade Vecirc-se

nitidamente que o er- alematildeo reuacutene em si uma espeacutecie de matriz essencial dos traccedilos fundamentais do

Ereignis originariedade transformaccedilatildeo caraacutecter da physis originaacuteria gelassenheit antecipaccedilatildeo utoacutepica

da integraccedilatildeo completa do inteiro da uniatildeo do uno O er- natildeo apenas ganha uma funccedilatildeo lexical eacute antes

elevado embora encobertamente ao estatuto de palavra-chave da filosofia heideggeriana apoacutes a kehrerdquo

(Bernhard Sylla ldquoA Origem e a Fala da Langue em Heideggerrdquo in A Morte e a Origem - Em torno de

Heidegger e de Freud 174) Sobre a problemaacutetica da traduccedilatildeo de ldquoEreignisrdquo para portuguecircs Cf Bernhard

112

fulcral na obra posterior de Heidegger O termo Ereignis natildeo designa todo o

acontecer (Geschehen) mas permite demarcar em todo o acontecer aquele

que eacute histoacuterico daquele que pertencendo agrave histoacuteria eacute no entanto natildeo-

histoacuteria no mesmo sentido em que dizemos que o vale pertence agrave montanha

Ereignis designa aquele acontecer significativo pelo qual um povo se gesta a si

mesmo projectando-se no futuro a partir do seu passado Ereignis eacute o

acontecer instantacircneo da verdade ou o acontecer instantacircneo da resoluccedilatildeo

(Entschlossenheit) em que um povo se decide colectivamente a tomar a cargo

o seu proacuteprio destino ou a sua proacutepria determinaccedilatildeo (Bestimmung) fazendo

assim histoacuteria

Histoacuterico em sentido apropriado natildeo eacute assim nunca um acontecimento

passado nem um acontecimento simplesmente presente nem uma utopia

projectada num longiacutenquo e vago futuro Histoacuterico eacute o Ereignis o

acontecimento propiacutecio em que um povo se experimenta a si mesmo na

unidade nos trecircs ecircxtases temporais em que passado presente e futuro se

articulam de modo simultaneamente luminoso e misterioso

O Ereignis natildeo designa apenas o acontecer humano mas um acontecer no

qual o que estaacute em jogo eacute a compreensatildeo do ser Assim o Ereignis assinala

um acontecer em que natildeo acontece apenas a histoacuteria dum povo nem a histoacuteria

do homem mas onde acontece um modo particular de entrega do ser No

Ereignis o ser apropria-se do homem e o homem apropria-se do ser e essa

reciacuteproca apropriaccedilatildeo daacute-se na linguagem e pela linguagem

A linguagem eacute pois na sua essecircncia um acontecer o que significa que ela

natildeo tem apenas a funccedilatildeo de comunicar informaccedilotildees acerca da histoacuteria nem de

ldquoevocarrdquo eventos mas que ela eacute um acontecer ontoloacutegico que funda a histoacuteria

Assim podemos compreender a afirmaccedilatildeo de Heidegger em Houmllderlin e a

Essecircncia da Poesia de que a linguagem eacute ldquoo supremo acontecimento da

existecircncia humanardquo ldquoo acontecimento que dispotildee da mais elevada

possibilidade de ser do homemrdquo

A linguagem natildeo eacute assim apenas um instrumento de que o homem dispotildee

isto eacute natildeo pode ser tomada como um ente intra-mundano mas tem a funccedilatildeo

Sylla em ldquoHeideggers Er-eignis auf Portugiesischrdquo in Heideggers Beitraumlge zur Philosophie Frankfurt

am Main 2009 463-472

113

de instaurar uma abertura ontoloacutegica na qual os entes podem aparecer com a

configuraccedilatildeo total de um mundo E o abrir loacutegico-linguiacutestico dessa abertura eacute

propriamente aquele acontecer a que se chama na terminologia heideggeriana

o Ereignis

Nesta consideraccedilatildeo da linguagem como Ereignis estatildeo em jogo as diferentes

liacutenguas histoacutericas como tendo a funccedilatildeo essencial da criaccedilatildeo do mundo de um

povo histoacuterico entendendo por ldquomundordquo natildeo apenas as obras de arte as

criaccedilotildees da teacutecnica as religiotildees mas a totalidade dum modo de interpretar-se

a si mesmo e a tudo o que eacute

ldquo Apenas onde haacute linguagem haacute mundo quer dizer esta esfera em permanente

transiccedilatildeo de decisatildeo e de obra de acccedilatildeo e de responsabilidade mas tambeacutem

de arbiacutetrio e de ruiacutedo de decadecircncia e de confusatildeo Somente onde reina

mundo haacute histoacuteria[hellip] a linguagem natildeo eacute um instrumento disponiacutevel mas

aquele acontecimento propiacutecio que dispotildee da mais alta possibilidade de ser do

homemrdquo155

O uso desta categoria de mundo esclarece esta dimensatildeo poieacutetica da

linguagem pelo seu contraste com o mundo tomado como ideia da razatildeo

teoacuterica O mundo como ideia da razatildeo teoacuterica representa o impulso da razatildeo

teoacuterica para a totalizaccedilatildeo do edifiacutecio do saber isto eacute para nada deixar de fora

das siacutenteses dum entendimento legislador da natureza Ora a categoria de

mundo em Heidegger eacute uma categoria que natildeo aponta para uma subjectividade

que legisla sobre os objectos isto eacute sobre a natureza mas para um Dasein

que enquanto falante de uma liacutengua histoacuterica assume a responsabilidade pelo

desvelamento do ser

Na medida em que acolhe o desvelamento do ser o Dasein reuacutene a dispersatildeo e

do caos faz um mundo e este acontece nesse acontecer preacutevio que eacute a

linguagem falada por um povo histoacuterico ldquoMundo natildeo eacute uma ideia da razatildeo

teoacuterica mas mundo notifica-se na notificaccedilatildeo do ser histoacuterico e esta notificaccedilatildeo

eacute o ser revelado do ser do ente no misteacuterio Na notificaccedilatildeo e atraveacutes dela

vigora o mundo

155

bdquo Nur wo Sprache da ist Welt das heiβt der stets sich wandelnde Umkreis von Entscheidung und

Werk von Tat und Verantwortung aber auch von Willkuumlr und Laumlrm Verfall und Verwirrung Nur wo

Welt waltet da ist Geschichte[] Die Sprache ist nich ein verfugbaumlres Werkzeug sondern dasjenige

Ereignis das uumlber die houmlchste Moumlglichkeit des Menschseins verfuumlgtldquo HWD GA 4 3738

114

Poreacutem esta notificaccedilatildeo acontece no acontecer originaacuterio da linguagem Nela

acontece o estar exposto ao ente acontece a entrega ao ser156

A essecircncia do logos enquanto linguagem natildeo aponta assim para a

univocidade da loacutegica nem para o ser como presenccedila mas para o ser como

evento histoacuterico-temporal que acontece na liacutengua de um povo e o constitui

assim como histoacuterico

13 Linguagem e poesia

Com a comunicaccedilatildeo realizada na conferecircncia de 1936 em Roma sob o tiacutetulo

Houmllderlin und das Wesen der Dichtung Heidegger tornou puacuteblico o seu novo

caminho da meditaccedilatildeo sobre a linguagem que inaugurara jaacute em 1934 com as

liccedilotildees dos dois semestres de 1934 respectivamente sobre a Loacutegica e os Hinos

de Houmllderlin

Embora essa meditaccedilatildeo tenha exaltado em Houmllderlin o poeta da poesia e o

grande tradutor da poesia grega ela ocupar-se-aacute em seguida tambeacutem de

outros poetas de liacutengua alematilde como Rilke (ldquoWozu Dichterrdquo in Holzwege)

Stephan George (ldquoDas Wesen der Spracherdquo e ldquoDas Wortrdquo in Unterwegs zur

Sprache) e Georg Trakl (bdquoDie Spracheldquo e bdquoDie Sprache im Gedichtldquo in

Unterwegs zur Sprache)

Esta viragem de Heidegger em direcccedilatildeo agrave poesia natildeo representa nenhum

desvio relativamente aos problemas filosoacuteficos que constituiacuteam o eixo central

de Ser e Tempo significando antes uma continuaccedilatildeo e um aprofundamento da

sua investigaccedilatildeo sobre o ser da linguagem tornada necessaacuteria pela sua

proacutepria experiecircncia das dificuldades em romper com a linguagem da tradiccedilatildeo

metafiacutesica157

Como acima referimos jaacute nas Liccedilotildees de Loacutegica Heidegger afirmara que as

vaacuterias liacutenguas satildeo a poesia originaacuteria comum a um determinado povo Poesia e

156

bdquoWelt ist nicht eine Idee der theoretischen Vernunft sondern Welt kuumlndet sich in der Kunde des

geschichtlichen Seins und diese Kunde ist die Offenbarkeit des Seins des Seienden im Geheimnis In der

Kunde und durch sie waltet die Welt

Diese Kunde aber geschieht im Urgeschehnis der Sprache In ihr geschieht die Ausgesetzheit-in das

Seiende geschieht die Uumlberantwortung an das Seinldquo LWS GA 38 168 157

Cf a obra hoje claacutessica de Hans Jaeger Heidegger und die Sprache (Bern 1971) bdquoHeidegger war an

dem Punkt angelangt wo er spuumlrte daβ die Sprache von Sein und Zeit nicht mehr ausreichte Er hat ja

selbst erklaumlrt warum er den Schluβ des ersten Teils von Sein und Zeit nicht beendet konnte Ihm fehlt die

dazu angemessene Sprache Dazu brauchte der Denker den Dichterldquo (Ob cit 50)

115

linguagem mantecircm ente si uma ligaccedilatildeo tatildeo essencial precisamente porque

cada liacutengua histoacuterica eacute o acontecer fundamental (Ereignis) no qual um povo se

expotildee ao desvelamento histoacuterico-temporal do ser e assim lhe adveacutem o poder

de instituir e criar o seu mundo histoacuterico ldquoA essecircncia da linguagem estaacute aiacute

onde ela acontece como poder criador de mundo isto eacute onde ela comeccedila a

modelar e estruturar o ser do ente A linguagem originaacuteria eacute a linguagem da

poesiardquo 158

Os poetas datildeo voz agrave vontade de soberania de um povo que impotildee a si mesmo

uma certa interpretaccedilatildeo daquilo que eacute e lhe daacute a forma de um mundo Na

linguagem poeacutetica conserva-se e transmite-se a decisatildeo (Entschlossenheit)

pela qual um povo se projectou e se conservou na histoacuteria ela representa ldquoo

domiacutenio do centro de existecircncia histoacuterica do povo que cria e conserva

mundordquo159 A poesia realiza assim a essecircncia da linguagem como ditado

poeacutetico precisamente porque acolhe e interpreta o apelo do ser de acordo com

a memoacuteria de um povo histoacuterico

Se a linguagem tem no seu exerciacutecio apropriado esta funccedilatildeo de levantar um

mundo eacute porque a palavra tem o poder natildeo apenas de nomear mas de ao

nomear fundar doar e instituir um sentido permanente capaz de ordenar o

caos e a desordem criados pela voracidade do tempo A linguagem institui um

sentido permanente capaz de reunir a dispersatildeo e alicerccedilar as grandes

criaccedilotildees colectivas da religiatildeo do Estado e ainda a totalidade das obras

criadas pela arte e pelo trabalho

O Estado eacute o ser histoacuterico do povo e representa o poder de um povo impor a

sua vontade de gestar-se a si mesmo a partir do seu passado e da sua

tradiccedilatildeo e por isso o seu fundamento originaacuterio eacute a linguagem enquanto ditado

poeacutetico ldquoO Estado eacute apenas na medida em que e enquanto acontecer a

158

bdquoDas Wesen der Sprache west dort wo sie als weltbildende Macht geschieht dh wo sie das Sein des

Seienden im voraus erst vorbildet und ins Gefuumlge bringt Die urspruumlngliche Sprache ist die Sprache der

Dichtungldquo LWS GA 38 170 159

Bernhard Sylla sublinha o contexto histoacuterico do seminaacuterio do semestre de Veratildeo de 1934 vendo aiacute os

indiacutecios de um primeiro distanciamento de Heidegger em relaccedilatildeo ao nazismo Este distanciamento seria

particularmente evidente na determinaccedilatildeo do conceito de ldquopovordquo (Volk) a propoacutesito do qual Heidegger

rejeita a compreensatildeo habitual e tambeacutem partilhada pelo nacional-socialismo do povo como corpo alma

ou espiacuterito contrapondo-lhe a tese de que um povo se fundamenta na decisatildeo relativa ao ser que se

expressa no pensar e no poetar ldquoIn der anschlieszligenden breiten Diskussion des Volksbegriffs werden die

uumlblichen und implizit auch nationalsozialistischen Auffassungen von Volk als Koumlrper Seele oder Geist

abgelehnt Diese Ablehnungen muumlnden dann in die These dass nur reine wahrhaft seinsbezogene

Entschlossenheit also ein Einsprung ins seinseroumlffnende Denken und Dichten Dasein als Volk gruumlnden

koumlnneldquo Idem Hermeneutik der langue 300

116

imposiccedilatildeo da vontade de dominaccedilatildeo que nasce da missatildeo e do encargo e

inversamente se torna trabalho e obra O homem o povo o tempo a histoacuteria

o ser o Estado ndash isto natildeo satildeo conceitos abstractos colocados como objectos

para exerciacutecios de definiccedilatildeo mas a relaccedilatildeo da essecircncia eacute sempre uma relaccedilatildeo

histoacuterica Isto quer contudo dizer decidir-se desde o sido para o futurordquo160

Contudo em Houmllderlin e a Essecircncia da Poesia Heidegger viraacute pensar esse

papel fundante da poesia de um modo mais radical Pensando a essecircncia da

poesia a partir da essecircncia da linguagem Heidegger mostra - a partir do

caraacutecter exemplar da poesia de Houmllderlin - que ela natildeo se limita a usar a

linguagem como mateacuteria-prima disponiacutevel mas realiza a autecircntica essecircncia da

linguagem como ldquofundaccedilatildeo do serrdquo a poesia eacute a fundaccedilatildeo do ser pela palavra

e o poeta nomeia os deuses e todas as coisas instituindo e ditando a sua

significaccedilatildeo

Do mesmo modo em Der Ursprung des Kunstwerkes de 3536 toda a

linguagem enquanto liacutengua falada por um povo histoacuterico natildeo eacute poesia pelo

facto de que eacute poetizar originaacuterio mas o poetizar acontece na linguagem

porque esta encerra em si a essecircncia originaacuteria da poesia A liacutengua dum povo

que se assume a si mesmo como histoacuterico eacute tambeacutem a instauraccedilatildeo da abertura

ontoloacutegica originaacuteria que desvela os entes e permite que eles apareccedilam na

Lichtung do ser E eacute no interior desta abertura originaacuteria que podem ter lugar as

criaccedilotildees poeacuteticas em sentido estrito como a criaccedilatildeo das obras de arte em

geral ldquoA arquitectura e as artes figurativas pelo contraacuterio acontecem sempre e

jaacute sempre soacute no espaccedilo aberto do dizer e do nomear Estatildeo imbuiacutedas e

guiadas por este Eacute por isso que permanecem como caminhos e modos

singulares como a verdade se rectifica na obra Satildeo um poetizar ndash em cada

caso e na sua respectiva forma ndash dentro da clareira [Lichtung] do ente a qual jaacute

aconteceu inadvertidamente na linguagemrdquo161

160

bdquoDer Staat ist nur sofern und solange die Durchsetzung des Herrschaftswillens geschieht der aus

Sendung und Auftrag entspringt und umgekehrt zu Arbeit und Werk wird Der Mensch das Volk die

Zeit die Geschichte das Sein der Staat ndashdas sind keine abgezogenen Begriffe als Gegenstaumlnde fuumlr

Definitionsuumlbungen sondern das Wesensverhaumlltnis ist jederzeit ein geschichtliches dh aber

zukuumlnftiggewesenes Sichentscheidenldquo LWS GA 38 165 161

bdquoBauen und Bilden dagegen geschehen immer schon und immer nur im Oumlffenen der Sage und des

Nennens Von diesem werden sie durchwaltet und geleitet Aber gerade deshalb bleiben sie eigene Wege

und Weisen wie die Wahrheit sich ins Werk richtet Sie sind ein je eigenes Dichten innerhalb der

Lichtung des Seienden die schon und ganz unbeachtet in der Sprache geschehen istldquo UKw GA 5 61

117

A linguagem enquanto liacutengua falada por um povo vive no risco da queda e da

degradaccedilatildeo na iminecircncia da perda do seu poder de abrir mundo e de fazer

histoacuteria Na realidade ela vive entre os momentos altos do Ereignis em que se

eleva agrave altura dos grandes combates entre o mundo e a terra e levanta as

grandes obras de arte e a degradaccedilatildeo e a queda na transmissatildeo falsificada

que eacute apenas o esclerosamento da tradiccedilatildeo que transmite

Ateacute mesmo as chamadas liacutenguas histoacutericas estatildeo sempre e inevitavelmente em

risco de decadecircncia e de perda da sua vocaccedilatildeo ontoloacutegica na medida em que

estatildeo sujeitas ao uso e agrave usura quotidianos ao desgaste inerente ao servir

como simples instrumento de comunicaccedilatildeo Por isso eacute na grande poesia que

se encontra salvaguardada contra a tendecircncia para a decadecircncia a vocaccedilatildeo

ontoloacutegica das liacutenguas histoacutericas e pela mesma razatildeo Heidegger valorizaraacute a

poesia como caminho para a libertaccedilatildeo da linguagem originaacuteria o que deve ser

compreendido em estreita ligaccedilatildeo com a dimensatildeo projectiva do Entwurf em

particular do existentieller Entwurf zum Tode Efectivamente o lanccedilamento

contra a morte implica como vimos a consciecircncia de que todo o projecto de

compreensatildeo estaacute constantemente ameaccedilado pela esclerose do pensamento

Ora como Heidegger diraacute em A Origem da Obra de Arte a poesia no seu

prolongado combate entre o mundo e a terra natildeo se limita a expor um mundo

preacute-existente mas cria e institui uma nova verdade que contudo estaacute sempre

ameaccedilada de ruiacutena e perda de fundamento162

Esta dimensatildeo projectiva e instituinte do novo que pertence intrinsecamente agrave

linguagem poeacutetica - na qual reside a sua dimensatildeo propriamente poieacutetica -

confere a esta o estatuto privilegiado de paradigma da linguagem apropriada e

da sua originaacuteria possibilidade ontoloacutegica e assim apela agrave vizinhanccedila e agrave

162

Cf Hans Jaeger sublinha a novidade da tematizaccedilatildeo da questatildeo do ser e da verdade que estaacute implicada

na afirmaccedilatildeo heideggeriana do pocircr-se-em obra da verdade como a essecircncia da obra de arte ldquoWas im

Kunstwerk am Werk ist ist ein ldquoGeschehen der Wahrheitrdquo und die Kunst ist ldquodas Sich-ins-Werk-Setzen

der Wahrheitrdquo des Seienden Diese Wahrheit im Kunstwerk bedeutet natuumlrlich nicht moumlglichst treue

Wiedergabe des Dargestellten auch nicht Uumlbereinstimmung mit dem Wesen der dargestellten Dingerdquo

(Ob cit 44)

Segundo Hans Jaeger este pocircr-se em obra da verdade como prolongado combate entre o mundo e a terra

que acontece na arte eacute uma reformulaccedilatildeo do conceito de verdade de Ser e Tempo na direcccedilatildeo de uma

ruptura mais radical com a metafiacutesica Pensando a verdade como combate entre o mundo e a terra

Heidegger pensa-a como velamentodesvelamento rdquoDas Ins-Werk-Setzen der Wahrheit als das Wesen

des Kunstwerkes ist der ldquoliebende Streitrdquo von Unverborgenheit und Verborgenheit Bisher hatten wir die

Wahrheit bei Heidegger immer als ldquoUnverborgenheitrdquo (griechisch bdquoalegravetheialdquo) kennengelernt Aber das

Wort mit seiner Vorsilbe Un-sagt ja schon daβ die Wahrheit immer aus dem Verborgenheit entborgen

werden muβ also die Verborgenheit zu Wahrheit als Unverborgenheit gehoumlrt mithin Wahrheit nicht ohne

ldquoUn-wahrheitrdquo ist was natuumlrlich nicht Falschheit bedeutetldquo (Ob cit 46-47)

118

proximidade da filosofia A poesia realiza e desenvolve a dimensatildeo poieacutetica da

linguagem porque pode instaurar uma abertura de mundo e vigiar essa

abertura contra a tendecircncia para o cerramento imposta pela decadecircncia e o

extravio (Verfall)

Assim a linguagem pensada como Ereignis eacute para Heidegger a linguagem

criadora aquela que se conecta com temporalidade da criaccedilatildeo isto eacute com o

tempo dos poetas dos pensadores e dos criadores do Estado que

fundamentam o ser-aiacute histoacuterico de um povo o que seraacute designado por

Heidegger em Houmllderlins Hymnen como ldquoo tempo do cumesrdquo163

14 Poesia e Filosofia ou diaacutelogo entre cumes

No entanto porque privilegiou Heidegger a poesia de Houmllderlin e a partir de

trinta e trecircs natildeo deixou de voltar agrave sua poesia e de com ela estabelecer uma

relaccedilatildeo de parentesco Esse parentesco muacuteltiplas vezes reafirmado tem como

fundo a proximidade de Houmllderlin aos gregos com os seus deuses a sua

experiecircncia da natureza e do sagrado

Houmllderlin era para Heidegger como acima referimos o paradigma do tradutor

autecircntico pela sua transposiccedilatildeo da palavra grega para o alematildeo tendo o

diaacutelogo com o poeta atravessado a sua proacutepria obra e inspirado parcialmente a

sua proacutepria linguagem164 No entanto Heidegger natildeo deixa tambeacutem de

sublinhar a distacircncia entre o pensar e o poetar afirmando que o pensador diz o

Ser e o poeta diz o Sagrado e que ambas se situam numa vizinhanccedila como a

de duas montanhas cuja proximidade eacute tambeacutem a separaccedilatildeo Estes cumes

estatildeo muito perto um do outro e os que os habitam compreendem-se por isso

uns aos outros mas eacute tambeacutem nesta proximidade que se encontram separados

pelos abismos que os dividem165

163

bdquoDie Zeit der Schaffenden ndash hochaufwogendes Gebirge die Gipfel der Berge die einsam hineinstehen

in den Aumlther und das heiβt in den Bereich des Goumlttlichen Diese Zeiten des Schaffenden ragen heraus

uumlber das bloβe Nacheinander der eiligen Tage in der Flachheit des Alltӓglichen und sind doch kein

starres zeitloses Daruumlberhinaus sondern Zeiten aufwogend uumlber die Erde hin eigenes Fluten und eigenes

Gesetzldquo HH GA 3952 164

Cf Sobre a influecircncia dos poemas de Houmllderlin na terminologia heideggeriana ver Hans Jaeger ob

Cit 51-59 165

bdquoDiese Gipfel sind sich ganz nahe und so auch die Schaffenden die auf ihnen wohnen muumlssen wo

jeder je seine Bestimmung zum Austrag bringt und von daher die Anderen auf den anderen Gipfeln von

Grund aus versteht Und doch - in dieser Nahe sind sie gerade am getrenntesten durch die Abgruumlnde

zwischen den Bergen an denen jeder stehtldquo HH GA 39 52

119

Eacute a consciecircncia expliacutecita desta distacircncia abissal do pensar ao poeta que nos

permite abordar os textos heideggerianos sobre a poesia como cumprimento e

execuccedilatildeo daquilo que Heidegger pensa ser a traduccedilatildeo autecircntica Em Houmllderlin

e a Essecircncia da Poesia o filoacutesofo escuta o texto do poeta alematildeo dispondo-se

a ouvir nesses textos o eco do mundo grego e da sua experiecircncia originaacuteria do

ser e da linguagem e a traduzi-la para a sua linguagem de pensador

Eacute esta direcccedilatildeo interpretativa que permite a Heidegger em Houmllderlin e a

Essecircncia da Poesia trazer agrave luz a experiecircncia originaacuteria dos gregos da

linguagem como ldquosagardquo ldquoA fundaccedilatildeo do ser estaacute vinculada aos acenos dos

deuses E ao mesmo tempo a palavra poeacutetica natildeo eacute senatildeo a interpretaccedilatildeo da

ldquovoz do povordquo Assim designa Houmllderlin as sagas nas quais um povo se

rememora na sua pertenccedila ao ente no seu todordquo166

A experiecircncia grega do poetar que ressoa em Houmllderlin indica que a poesia

estaacute tambeacutem vinculada ao aceno dos Deuses ela recebe os primeiros sinais do

aceno dos deuses mas interpreta-os na linguagem do povo Os poetas estatildeo

entre os deuses e o povo foram banidos para esse lugar ldquoentrerdquo ambos lugar

solitaacuterio e aparentemente insignificante no qual se decide no entanto o

significado de todas as coisas quem eacute o homem e qual a sua morada

O tiacutetulo do poema ldquoAndenkenrdquo tornou-se para Heidegger a Grundwort do seu

ldquopensar rememoranterdquo que pensando a partir do passado histoacuterico (grego)

consegue tornaacute-lo vivo para o presente e frutuoso para o futuro

Este resguardar vigilante que salvaguarda a experiecircncia originariamente grega

como heranccedila para os vindouros natildeo pode ser dissociada da funccedilatildeo

hermenecircutica do inteacuterprete como aquele que transpotildee (uumlbersetzt) a verdade

da obra para um outro tempo

Ora a essecircncia dessa missatildeo cometida igualmente ao pensador e ao poeta natildeo

eacute pensada por Heidegger como repeticcedilatildeo mimeacutetica mas como a luta do

desvelamento contra o encobrimento e a esclerose luta cuja sucesso depende

da capacidade de vinculaccedilatildeo ao presente histoacuterico do proacuteprio povo

166

bdquoDie Stiftung des Seins ist gebunden an die Winke der Goumltter Und zugleich ist das dichterische Wort

nur die Auslegung der bdquoStimme des Volkesldquo So nennt Houmllderlin die Sagen in denen ein Volk eingedenk

ist seiner Zugehoumlrigkeit zum Seienden in Ganzenldquo HWD GA 4 46

120

O apelo dos deuses deve chegar ao solo da paacutetria e estabelecer uma

vinculaccedilatildeo ao proacuteprio povo do poeta na liacutengua onde ressoa a particularidade

da ldquoHeimatrdquo Eacute na liacutenguandashmatildee que se faz a aprendizagem do que eacute familiar e

proacuteximo mas que permanece muitas vezes distante e alheio aos que estatildeo

nela ocupados (besorgt) Estes ainda natildeo estatildeo preparados para ter como sua

pertenccedila o mais proacuteprio da ldquoHeimatrdquo afirma Heidegger em HeimkunftAn die

Verwandten em nota raacutepida mas de essencial significado

Movendo-se entre dois horizontes histoacuterico-linguiacutesticos a poesia e o

pensamento movem-se entre o distante apelo dos deuses e o ser proacuteximo dum

povo lutando para arrancar ambos ao encobrimento Esta movimentaccedilatildeo entre

horizontes natildeo eacute como um movimento contiacutenuo o deslizar na estrada ldquona qual

todos podem passar ao lado uns dos outroshellip para se encontrarem no meio da

multidatildeordquo mas o percurso arriscado numa ldquovereda pejada de pedras ldquo na qual

se movimenta o solitaacuterio pastor

Trazer o originaacuterio apelo dos deuses a esse centro da existecircncia histoacuterica do

povo eacute reunir o disperso para edificar um mundo tarefa criadora para a qual

Heidegger reserva no ensaio sobre Hebel o termo Aufheben aiacute entendido no

sentido dum recolher o que estaacute disperso e ainda no sentido duma elevaccedilatildeo

transfiguraccedilatildeo e metamorfose Este Aufheben que a poesia e o pensamento

realizam eacute assim sempre simultaneamente um reunir e salvar da dispersatildeo

um conservar aquilo que singulariza um povo dando a isso que se conserva

uma nova forma

A decisatildeo (Entschlossenheit) pela qual um povo se projectou e se conservou

na histoacuteria eacute assim conservada e transfigurada na obra do poeta e do

pensador Aiacute pela mediaccedilatildeo linguiacutestica de ambos o apelo dos deuses fala a

partir do centro de existecircncia histoacuterica dum povo e incita-o a criar e conservar

mundo

Eacute esta experiecircncia essencial da linguagem que Heidegger ldquoarrancaldquo agrave poesia

de Houmllderlin como experiecircncia que nela se encontra simultaneamente revelada

e oculta toda a ldquotraduccedilatildeordquo da poesia de Houmllderlin na linguagem do pensador eacute

121

enfrentamento poleacutemico em direcccedilatildeo ao natildeo-dito ao fundamento impensado

da palavra poeacutetica167

Em A Origem da Obra de Arte Heidegger fundamenta esta experiecircncia da

ldquoverdaderdquo feita no confronto dos textos do poeta ampliando esta compreensatildeo

da linguagem como Dichtung estendendo-a agrave obra de arte em geral ele

especifica esse conceito de ldquoditado poeacuteticordquo como poder instituinte168 A

linguagem natildeo se limita a nomear mas enquanto fala ela institui uma

interpretaccedilatildeo daquilo que eacute isto eacute institui uma abertura de mundo no triplo

sentido da doaccedilatildeo de sentido da fundaccedilatildeo de um mundo e do iniacutecio de uma

eacutepoca histoacuterica ldquo[] A essecircncia do ditado poeacutetico eacute instituiccedilatildeo da verdade

Compreendemos aqui o instituir num triplo sentido instituir como doar

[Schenken] instituir como fundar [Gruumlnden] e instituir como iniciar

[Anfangen]rdquo169

Se este poder de instituir uma nova eacutepoca histoacuterica (Zeitalter) pertence

essencialmente agrave grande poesia aquele mundo que ela patenteia natildeo eacute nunca

uma criaccedilatildeo arbitraacuteria mas aquilo que jaacute estava lanccedilado no aiacute ser de um povo

histoacuterico A obra de arte patenteia e resguarda esse mundo para os vindouros

e eacute assim origem e iniacutecio - eacute o modo fundamental como a verdade vem a ser

Este ldquopocircr-se em obra da verdaderdquo que acontece na arte eacute poreacutem o conflito

entre o mundo e a terra entre o estar encoberto (Verborgenheit) e o natildeo estar

encoberto (Unverborgenheit) que acontecem na obra de arte e satildeo a sua

essecircncia ldquoA verdade rectifica-se [richtet sich in] na obra A verdade estaacute a ser

apenas enquanto combate entre clareira e encobrimento no estar-em-

167

Cf O caraacutecter poleacutemico deste diaacutelogo de Heidegger com a poesia eacute interpretado por Hans Jaeger no

sentido heraclitiano de polemos e segundo este autor pode ser detectado em todos os textos onde o

filoacutesofo interpreta a poesia ldquoHeideggers Uumlbersetzung und Interpretation des Chorlieds aus der

ldquoAntigonardquo ist das erste ldquoZwiegespraumlchrdquo zwischen dem Denker und einem Dichter Wir werden solchen

Dialogen in Form von Erlaumluterungen von jetzt ab immer wieder begegnen Die Erlaumluterung des Chorlieds

ist eine ldquoAuseinandersetzungrdquo im Sinne von Heraklits polemos ein bdquoliebender Streitldquo bei dem Heidegger

in gewisser Weise ebenfalls ldquogewalttaumltigrdquo vorgehtrdquo (Ob cit 36) 168

Cristina Lafont salienta a importacircncia da ampliaccedilatildeo do conceito de verdade em UKw com a dupla

finalidade de atribuir um lugar subordinado ao saber ocircntico isto eacute agrave ciecircncia e de mostrar o seu caraacutecter

derivado em relaccedilatildeo agravequeles aspectos da cultura como a arte a poliacutetica a filosofia que possuem uma

forccedila de ldquoabertura de mundordquo e que graccedilas a ela tecircm capacidade de ldquopocircr em vigor a verdaderdquo entendida

como saber ontoloacutegico de fundo A abertura de mundo como fundaccedilatildeo da verdade seria caracterizada

pelos seguintes traccedilos ldquodoaccedilatildeordquo como acontecer do desocultamento que natildeo depende do ente intra-

mundano ldquofundamentordquo como instauraccedilatildeo de uma ordem normativa e ldquoinigraveciordquo como caraacutecter epocal e

radical novidade e descontinuidade (Ob cit 195-196) 169

bdquoDas Wesen der Dichtung aber ist die Stiftung der Wahrheit Das Stiften verstehen wir hier in einem

dreifachen Sinne Stiften als Schenken Stiften als Gruumlnden und Stiften als Anfangenldquo UKw GA 5 62

122

antagonismo do mundo e da terra A verdade quer ser rectificada na obra

enquanto combate do mundo e da terrardquo170

Visto agrave luz deste novo conceito de verdade o texto poeacutetico como todo o texto

que diz algo essencial apela por si mesmo e a partir da sua natureza veraz agrave

interpretaccedilatildeo e agrave traduccedilatildeo a obra de arte projecta uma verdade para aqueles

que hatildeo-de vir e reclama ser por eles interpretada e salvaguardada

salvaguardaacute-la significa poreacutem acolhecirc-la natildeo como substacircncia imoacutevel que

repousa em si mesma mas deixaacute-la brilhar a partir do seu ser proacuteprio da sua

natureza essencial de conflito entre o mundo e a terra pois ldquoa obra levantando

um mundo e elaborando a terra eacute a contenda deste combate no qual se

conquista o natildeo estar encoberto do ente no seu todo - a verdaderdquo

Ora interpretar a obra eacute entatildeo se este interpretar quer ser conforme com o ser

da obra um resguardar que eacute essencialmente ldquoo instar [innestehen] da

abertura do enterdquo que acontece na obra como insistecircncia no combate que a

obra conformou Este interpretar eacute pois exactamente o contraacuterio da

concordacircncia mas combate polemos que exige uma decisatildeo ldquoResguardar a

obra quer dizer o instar [innestehen] da abertura do ente que acontece na

obra Mas a insistecircncia [Instaumlndigkeit] do resguardar eacute um saber Poreacutem o

saber natildeo consiste num mero conhecer e representar de algo Quem sabe

verdadeiramente do ente sabe aquilo que quer no meio do enterdquo171

Da frequecircncia dos textos poeacuteticos Heidegger ainda recolhe a experiecircncia da

transmissatildeo autecircntica da tradiccedilatildeo ponto que para a presente investigaccedilatildeo tem

uma importacircncia capital a poesia eacute tambeacutem o lugar da conservaccedilatildeo da

tradiccedilatildeo - a tradiccedilatildeo poeacutetica europeia de Soacutefocles a Houmllderlin eacute para

Heidegger um diaacutelogo que atraveacutes do tempo permite que vaacuterias geraccedilotildees

divirjam a partir do mesmo ldquoDesde que o homem se coloca no permanente de

um permanecer soacute entatildeo ele pode expor-se ao mutaacutevel ao vindouro e ao

fugaz porque apenas aquilo que eacute perseverante eacute mutaacutevel Soacute desde que o

tempo rdquovorazrdquo foi dilacerado em presente passado e futuro existe a

170

bdquoDie Wahrheit richtet sich ins Werk Wahrheit west nur als der Streit zwischen Lichtung und

Verbergung in der Gegenwendigkeit von Welt und Erde Die Wahrheit will als dieser Streit von Welt und

Erde gerichtet werdenldquo Ibidem 50 171

Bewahrung des Werkes heiβt Innestehen in der Werk geschehenden Offenheit des Seienden Die

Instaumlndigkeit der Bewahrung aber ist ein Wissen Wissen besteht darin jedoch nicht im bloβen kennen

und Vorstellen von etwas Wer Wahrhaft das Seienden weiβ weiβ was er inmitten des Seienden willldquo

Ibidem 55

123

possibilidade de entrarmos em acordo sobre um permanente Somos um

diaacutelogo desde que o tempo existerdquo172

O diaacutelogo entre as vaacuterias geraccedilotildees de poetas tem ele mesmo a forma poleacutemica

que resulta da exposiccedilatildeo ao poder do tempo e eacute para Heidegger em Houmllderlin

e a Essecircncia da Poesia assim como nas Liccedilotildees de Loacutegica o paradigma de

uma autecircntica transmissatildeo ldquoPor isso a linguagem do poeta natildeo eacute nunca

actual mas sempre sido e futuro O poeta nunca eacute contemporacircneo Os poetas

contemporacircneos deixam-se na verdade classificar como tal mas

permanecem apesar disso um contra-senso A poesia e com ela a linguagem

em sentido proacuteprio acontecem soacute laacute onde o vigorar do ser eacute trazido agrave

intangibilidade superior da palavra originaacuteriardquo173

A palavra originaacuteria eacute assim para Heidegger aquela que se vincula agrave origem

no modo do enfrentamento poleacutemico e natildeo aquela que diz o mesmo pois soacute

podemos entrar em acordo sobre o permanente quando no expomos ao poder

do tempo e agraves suas diversas Stimmungen epocais A obra poeacutetica de Houmllderlin

aparece-lhe precisamente como paradigma e modelo desta linguagem

originaacuteria que conteacutem em si a capacidade de ouvir o distante eco do mundo

grego e de o confrontar com o mutaacutevel o vindouro e o fugaz Ela eacute por isso o

modelo da autecircntica traduccedilatildeo ela eacute diaacutelogo que eacute capaz de divergir a partir do

mesmo porque se expotildee ao tempo e agrave histoacuteria

Esta traduccedilatildeo do grego realizada pela poesia de Houmllderlin deve ser

compreendida como o reverso do ocultamento instituiacuteda pela tradiccedilatildeo

metafiacutesica Trazendo o apelo dos deuses e expondo-o ao poder do tempo com

as suas obscuras Stimmungen epocais o poeta da poesia faz o reverso da

tradiccedilatildeo metafiacutesica com a sua pretensatildeo de universalidade e de

intemporalidade

172

bdquoSeitdem der Mensch sich in die Gegenwart eines Bleibenden stellt seitdem kann er sich erst dem

Wandelbaren dem Kommenden und Gehenden aussetzen denn nur das Beharrliche ist wandelbar Erst

seitdem die bdquoreiβende Zeitldquo aufgerissen ist in Gegenwart Vergangenheit und Zukunft besteht die

Moumlglichkeit sich auf ein Bleibendes zu einigen Ein Gespraumlch sind wir seit der Zeit da es bdquodie Zeit istldquoldquo

HWD GA 4 3940 173

bdquoDeshalb ist die Sprache des Dichters nie heutig sondern immer gewesen und zukuumlnftig Der Dichter

ist nie zeitgenoumlssisch Zeitgenoumlssische Dichter lassen sich zwar organisieren aber sie bleiben trotzdem

ein Widersinn Dichtung und damit eigentliche Sprache geschieht nur dort wo das Walten des Seins in

die uumlberlegene Unberuumlhrbarkeit des urspruumlnglichen Wortes gebracht istldquo LWS GA 38 170

124

Traduccedilatildeo eacute assim tarefa inseparaacutevel do pensar e do poetar e mais

radicalmente tarefa imposta ao homem pelo desvelamento histoacuterico-temporal

da verdade A traduccedilatildeo apropriada teraacute que ser poreacutem pensada ao arrepio da

traduccedilatildeo levada a cabo no interior da histoacuteria da metafiacutesica vinculando-se

antes a este caminhar entre cumes na estreita vereda do pastor metaacutefora na

qual Heidegger pensava a relaccedilatildeo entre poesia e filosofia ou a este polemos

ou diaacutelogo capaz de divergir a partir do mesmo que eacute a tradiccedilatildeo poeacutetica

125

Capiacutetulo II ndash A pluralidade das aberturas de mundo e o

problema hermenecircutico

126

127

Perguntar pela linguagem eacute perguntar pelo ser do homem e o homem eacute um si-

mesmo (der Mensch ist ein Selbst) afirma Heidegger nas Liccedilotildees de Loacutegica

Esta mesmidade natildeo eacute um geacutenero supremo no qual possam desaparecer as

diferenccedilas entre os diversos povos A ela pode aceder-se apenas na decisatildeo

de tomar sobre si a heranccedila de uma tradiccedilatildeo o nosso ldquoser si-mesmordquo eacute o povo

Soacute esta inserccedilatildeo na temporalidade proacutepria da histoacuteria colectiva de um povo nos

pode tornar simultaneamente solidaacuterios sendo um com o outro e responsaacuteveis

por noacutes mesmos e pela nossa determinaccedilatildeo (Bestimmung) ldquoEste triplo sentido

unitaacuterio daquilo a que noacutes chamamos determinaccedilatildeo deixa-nos antes de mais

experimentar encargo e missatildeo trabalho e tonalidade afectiva na sua unidade

soacutebria conforme ao acontecer e com isso tambeacutem o tempo como poder

originaacuterio que harmoniza o nosso ser e em si o determina como acontecer

Deste modo o tempo experimentado como a nossa determinaccedilatildeo natildeo eacute

senatildeo a estrutura do poder [Machtgefuumlge] a grande e uacutenica articulaccedilatildeo [Fuge]

do nosso ser como um ser histoacuterico Ele torna-se a unicidade histoacuterica do

nosso si mesmo Assim o tempo eacute o manancial do povo histoacuterico e do

indiviacuteduo no seio do povo A unidade desta tripla determinaccedilatildeo eacute o caraacutecter

fundamental do acontecerrdquo174

As vaacuterias liacutenguas histoacutericas instituem diferentes ldquoaberturas de mundordquo ou uma

multiplicidade incomensuraacutevel de figuras da verdade cada uma delas sendo

um horizonte intransponiacutevel onde se enraiacutezam as respectivas criaccedilotildees culturais

e tambeacutem as obras filosoacuteficas e cientiacuteficas175

Essa multiplicidade poreacutem origina-se numa mesma fonte originaacuteria o poder

do tempo que dispotildee e destina a histoacuteria atraveacutes do homem e da sua

linguagem a partir da Stimmung epocal e natildeo pode por isso ser objecto de

174

bdquoDieser dreifach-einige Sinn dessen was wir Bestimmung nennen laumlβt uns allererst Auftrag und

Sendung Arbeit und Stimmung in ihrer geschehensmaumlβigen Einheit erfahren damit auch die Zeit als

urspruumlngliche Macht die unser Sein fuumlgt und in sich als Geschehen bestimmt Die Zeit ist so als unsere

Bestimmung erfahren nichts anderes als das Machtgefuumlge die groszlige und einzige Fuge unseres Seins als

eines geschichtlichen Sie wird zur geschichtlichen Einzigkeit unseres Selbst So ist Zeit der Quelltrunk

des geschichtlichen Volkes und des einzelnen im Volk Die Einheit dieser dreifachen Bestimmung ist der

Grundcharakter des Geschehensldquo LWS GA 38 130 175

Cristina Lafont sublinha que em UKw o acontecer da verdade corre por duas vias diferentes por um

lado a histoacuteria intra-mundana do ente e por outro lado a historia do ser que eacute um acontecer faacutectico mas

natildeo intra-mundano que precede a histoacuteria e a torna possiacutevel ldquoDebido a este estatus la ldquohistoria del serrdquo

(como lugar ldquodonde se toman las decisiones esenciales de nuestra historiardquo) representa pues ldquola historia

por excelenciardquo que es siempre la del desvelamiento del serldquo (Ob cit 199)

128

uma total explicitaccedilatildeo discursiva176 Contudo se essas diferenccedilas natildeo podem

ser totalmente inteligiacuteveis natildeo deixam de aparecer e tornar-se patentes nas

grandes criaccedilotildees colectivas e de enraizar o indiviacuteduo isolado numa

comunidade fazendo do Dasein natildeo uma subjectividade encerrada em si mas

um ser um com o outro pertencente a uma comunidade

O exerciacutecio apropriado da existecircncia pelo Dasein como projecto sempre jaacute

previamente lanccedilado (geworfene Entwurf) integra-se assim neste preacutevio

horizonte histoacuterico-linguiacutestico de uma comunidade Esta abertura do indiviacuteduo

aos outros e esta dissoluccedilatildeo de uma certa subjectividade ainda presente na

caracterizaccedilatildeo do Dasein em Ser e Tempo tem contudo o seu contraponto

num certo fechamento dessa comunidade a que Heidegger chama ldquoum povordquo e

que eacute sempre ldquouacutenicordquo enquanto colectividade que salvaguarda a sua

determinaccedilatildeo (Bestimmung) na e pela liacutengua

Assim contra a univocidade da linguagem a que aspira a loacutegica Heidegger

proclama a incontornaacutevel alteridade dos horizontes de sentido transportados

pelas diversas liacutenguas histoacutericas impondo o cuidado por essa alteridade como

tarefa necessaacuteria caso o homem queira ser um si mesmo ou um Da-sein O

ser do homem eacute cuidado pela determinaccedilatildeo (Sorge der Bestimmung) isto eacute

cuidado simultaneamente por aquilo que nega as minhas pretensotildees a um ser

absoluto e que doa todo o sentido

Ora este cuidado tem uma dimensatildeo eacutetica apontando para o dever de colocar

o pensamento ao serviccedilo da linguagem ao inveacutes do que acontece na

representaccedilatildeo comum da linguagem que a considera um simples instrumento

de expressatildeo do pensamento Poesia e filosofia deveratildeo estar ambas cada

uma a seu modo ao serviccedilo da linguagem177

176

Ramoacuten Rodriacuteguez sublinha que embora Ser e Tempo submeta a ideia de sujeito a uma criacutetica constante

e a ideia de abertura ou de estado de aberto natildeo possam entender-se como propriedades de um sujeito o

significado global da obra ainda estaacute imbuiacutedo de um certo subjectivismo a constituiccedilatildeo da realidade eacute

atribuiacuteda ao Dasein que natildeo eacute um sujeito epistemoloacutegico mas a existecircncia humana na sua facticidade O

pensamento tardio de Heidegger eacute a tentativa de consumar o abandono das categorias da subjectividade

abandono que teria surgido quando Heidegger se ocupa da questatildeo da verdade do ser como

desvelamento ldquoLa historia del ser es el modo de pensar el acontecer histoacuterico cuando el pensamiento

trata de hacerse cargo del hecho del desvelamiento [hellip] ldquoHistoria del ser significa envigraveo (destino) del ser

en cuyos enviacuteos tanto el enviar como lo que enviacutea se retraen en la notificacioacuten de si mismosrdquordquo (Ob cit

42) 177

Cristina Lafont sublinha que eacute o caraacutecter totalizante da ldquoabertura de mundordquo produzida pela linguagem

que confere a Heidegger a justificaccedilatildeo para outorgar agrave linguagem a sua primazia em relaccedilatildeo a todos os

fenoacutemenos culturais ldquo [hellip] Heidegger conceptualiza el lenguaje como instancia del elemento del

ldquoarrojamientordquo de tal modo que lardquoapertura del mundordquo ndash que tiene lugar mediante eacutel ndash contiene ya todo

129

No entanto satildeo as implicaccedilotildees metafiacutesicas desta viragem que aqui nos

interessam compreender em toda a sua extensatildeo Se a loacutegica assenta numa

concepccedilatildeo do ser como presenccedila a compreensatildeo heideggeriana da linguagem

estaacute intrinsecamente ligada agrave compreensatildeo do ser como acontecer histoacuterico-

temporal o ser desvenda-se ocultando-se simultaneamente nas liacutenguas dos

diversos povos histoacutericos E essa patecircncia do ser eacute sempre acompanhada de

ocultaccedilatildeo e encobrimento como Heidegger demonstra em A Origem da Obra

de Arte em torno da natureza da obra de arte como luta entre o mundo e a

terra

Como acima jaacute dissemos os diversos horizontes de sentido transportados

pelas vaacuterias liacutenguas histoacutericas e pelas suas criaccedilotildees linguiacutesticas constituem

etapas ou momentos da histoacuteria do ser que contudo se nelas se patenteia e

revela se manteacutem em reserva e se oculta conferindo assim agrave vida histoacuterica um

fundamento impenetraacutevel Estas diversas figuras histoacuterico-linguiacutesticas do ser e

da verdade natildeo mantecircm entre si nenhum nexo loacutegico nem se encaminham

para uma totalizaccedilatildeo como acontecia em Hegel apresentando-se como

totalidades cerradas em si mesmas e carentes de fundamento

O relativismo heideggeriano consiste nesta afirmaccedilatildeo de que nunca podemos

aceder a um ponto de vista exterior ao tempo agrave histoacuteria e agrave liacutengua mas toda a

compreensatildeo eacute ela mesma historicamente situada e por isso mesmo satildeo-lhe

inacessiacuteveis a totalidade dos seus pressupostos178

No entanto este relativismo natildeo eacute nunca um subjectivismo como poderia ateacute

certo ponto ser inferido de Sein und Zeit onde o Dasein ainda podia aparecer

como uma consciecircncia que projecta um horizonte de sentido Apoacutes Sein und

Zeit este horizonte de sentido eacute inerente agraves liacutenguas faladas pelos povos e

depende do movimento de destinaccedilatildeo da histoacuteria

aquello que ldquopuede ser abierto como verdadrdquo Es decir la rdquoapertura de mundordquo que se ha producido en

cada caso merced al lenguaje incluye en siacute ya todas las posibilidades (de significado) las cuales hacen

posible sin duda todo ldquoproyectordquo pero al mismo tiempo tambieacuten lo limitanhelliprdquo (Ob cit 202) 178

O relativismo heideggeriano deriva do facto de conferir agrave linguagem pela sua funccedilatildeo de abertura de

mundo o papel dum uacuteltimo fundamento ldquoEl lenguaje es el uacutenico correlato que satisface completamente

los tres mencionados requisitos exigidos a la ldquoapertura del mundordquo en tanto que ldquofundacioacutenrdquo y por ello

que pude tomarse como modelo para la figura del ldquoproyecto arrojadordquo Este es el caso especialmente en

relacioacuten con la segunda de las propiedades ndash el ldquofundamentarrdquo entendido como lo que establece criterios

ndash y por tanto es el caso tambieacuten para las cuestiones de validez es decir para justificar el calificar la

ldquoapertura del mundordquo de ldquofundacioacuten de la verdad (maacutes originaria)rdquo o criterio uacuteltimordquo (Cristina Lafont

ob cit 203)

130

A consciecircncia histoacuterica como consciecircncia da historicidade do presente e da

relatividade de toda a verdade eacute apoacutes Ser e Tempo o uacutenico modo apropriado

da consciecircncia de si mesmo e a assunccedilatildeo da condiccedilatildeo ontoloacutegica de ser-para-

a-morte Do mesmo modo tambeacutem necessariamente se afigura como

problemaacutetica a compreensatildeo daquelas criaccedilotildees linguiacutesticas alheias ao nosso

horizonte histoacuterico-linguiacutestico pela sua radical alteridade e a estranheza com

que sempre nos aparecem

A incomensurabilidade das aberturas de mundo obriga agrave recolocaccedilatildeo do

problema hermenecircutico sobre um fundamento radicalmente diferente Sempre

que estaacute em causa a interpretaccedilatildeo da acccedilatildeo humana e das suas criaccedilotildees o

ideal de objectividade em que se move a ciecircncia moderna revela-se uma

impossibilidade nos seus proacuteprios termos Movendo-nos no interior do conceito

de verdade como adequaccedilatildeo do juiacutezo ao seu objecto ou como objectividade

exigimos que aquele que conhece possa abstrair-se de si mesmo e dos seus

pressupostos para produzir um juiacutezo capaz de coincidir com o que a coisa eacute

ou pelo menos capaz de instituir universalmente o que a coisa eacute para noacutes

A questatildeo que temos que colocar eacute no entanto se este ideal de objectividade

que a ciecircncia moderna persegue permite dar conta daquilo que eacute essecircncia do

acto hermenecircutico sempre que se trata de interpretar uma obra de arte um

acontecimento histoacuterico ou um texto

Neste caso toda a compreensatildeo eacute necessariamente uma transposiccedilatildeo ela

mesma patente na expressatildeo alematilde Uumlbersetzen179 (traduccedilatildeo) de um

horizonte histoacuterico-linguiacutestico para outro ou de uma abertura de mundo para

outra transposiccedilatildeo que implica simultaneamente uma apropriaccedilatildeo e uma

expropriaccedilatildeo

No traduzir estaacute o homem dirigindo-se agrave fronteira natildeo como a um lugar neutral

onde pode reinar a imparcialidade mas como ao lugar onde deveratildeo ser

tomadas as decisotildees hermenecircuticas fundamentais onde tem que ser levada a

cabo essa ldquoliebende streitrdquo que pode extrair a verdade da sua ocultaccedilatildeo

179

bdquoDie Rede vom Uumlbersetzen als Uumlbersetzen hat es inzwischen zum gefluumlgelten Wort gebracht das in

den Betrachtungen uumlber die bdquo Kunst der Uumlbertragungldquo immer wieder gern zitiert wird Und doch bleibt

der hier genannte Grundzug das Geschehen der Uumlber- als Versetzung bdquoin den Bereich einer gewandelten

Wahrheitldquo in seiner Trageweite zumeist unbedacht Der mitunter mangelnden bdquoAchtung vor der Sprachldquo

entstammen dann auch unzulaumlngliche Bestimmungen zum einen der Notwendigkeit und Moumlglichkeit

sowie zum anderen der wesentlichen Grenzen und Unmoumlglichkeiten des Uumlbersetzensldquo Ivo de Genaro

Logos - Heidegger liest Heraklit 62-63

131

As questotildees filoloacutegicas e a preocupaccedilatildeo de rigor associada agrave filologia tendem

assim a ser desvalorizadas por Heidegger em detrimento do mostrar a ldquoluta

com a palavrardquo que se encontra na geacutenese mesma da obra linguiacutestica e

determina a sua compreensatildeo genuiacutena

Toda a traduccedilatildeo implica uma movimentaccedilatildeo entre o tempo criador da obra que

pugna agrave sua maneira pela conservaccedilatildeo e plenitude da verdade e o tempo da

proacutepria liacutengua que eacute preciso em cada caso arrancar agrave dispersatildeo e agrave

decadecircncia porque natildeo sabemos quem somos se natildeo estivermos afinados

com o nosso tempo histoacuterico

Estas duas tarefas misturam-se e possibilitam-se reciprocamente porque natildeo

podemos saber quem somos se natildeo entrarmos no diaacutelogo com as grandes

criaccedilotildees linguiacutesticas que criam a possibilidade de virmos a saber quem somos

nem podemos compreender essas obras se natildeo comeccedilarmos pode deixar

emergir a questatildeo da liacutengua do tempo que em cada caso somos

Traduzir eacute um transpor de uma margem para outra que eacute tambeacutem ligaccedilatildeo uma

aquisiccedilatildeo e uma incorporaccedilatildeo mas o que afinal estaacute em causa nessa operaccedilatildeo

hermenecircutica eacute a linguagem e o pensamento na sua essencial e paradoxal

(in)traduzibilidade180 Por isso a linguagem eacute ldquoo mais perigoso de todos os

bensrdquo - se por um lado daacute ao homem a possibilidade das supremas

realizaccedilotildees por outro arrasta a possibilidade das supremas derrocadas

Em toda a traduccedilatildeo e interpretaccedilatildeo das grandes obras procedem-se a

mutaccedilotildees de sentido nas quais se decide e se joga a compreensatildeo do ser e eacute

por isso mesmo e natildeo por serem eventos dataacuteveis que decorrem num

momento determinado do tempo que elas satildeo intrinsecamente temporais isto

eacute histoacutericas

1 Hermenecircutica e historicidade

Eacute relativamente aos textos que constituem o legado da tradiccedilatildeo filosoacutefica que o

conceito fenomenoloacutegico de traduccedilatildeo como apropriaccedilatildeo expropriadora coloca

180

bdquoEs ist sogleich einsichtig daβ das Uumlbersetzen als Wesen des Sprechens und Sagens nichts anderes

expliziert als den Grundcharakter des daseinsmaumlszligigen Sprechens Der Mensch spricht uumlbersetzend (ins

Offene) weil er ek-sistierend westldquo Ibidem 64

132

mais interrogaccedilotildees chocando com o imperativo eacutetico de ldquofidelidaderdquo e com a

ideia de ldquotraduccedilatildeo fidedignardquo a que essa tradiccedilatildeo nos acostumou181

Vejamos entatildeo se este imperativo de fidelidade da traduccedilatildeo pode de algum

modo ser compatiacutevel com a temporalidade intriacutenseca do acto hermenecircutico

(Zeitlichkeit) e com as condiccedilotildees de toda a interpretaccedilatildeo

Ao determinar a estrutura da compreensatildeo subjacente a toda a interpretaccedilatildeo

Heidegger tinha mostrado jaacute no sect 32 de Ser e Tempo que todo o conhecimento

humano estaacute fundado numa experiecircncia antepredicativa de sentido ou num

pressuposto que condiciona a proacutepria busca do fundamento que seria suposto

a ciecircncia fazer

Se a compreensatildeo eacute uma projecccedilatildeo em direcccedilatildeo aos seus proacuteprios possiacuteveis

esses possiacuteveis soacute podem ser apropriados a partir de um ter jaacute sido ou seja

de um retorno em direcccedilatildeo a um passado que assim se constitui em algo que

continua a ser projectando-se no futuro

Esta circularidade da compreensatildeo eacute assumida pois natildeo como limite negativo

que restringe o alcance da interpretaccedilatildeo mas positivamente como caminho e

via para aquilo a que poderiacuteamos chamar uma autecircntica interpretaccedilatildeo

dignidade a que nem todo o enunciado teoreacutetico pode legitimamente aspirar

A articulaccedilatildeo dos trecircs ecircxtases temporais que constitui a forma de gestaccedilatildeo da

existecircncia e da sua auto-transmissatildeo histoacuterica mostra como eacute possiacutevel a

sobrevivecircncia do passado no presente e no futuro como parte essencial deles

a presenccedila do passado natildeo eacute a presenccedila de algo de morto e riacutegido mas a

presenccedila de algo que se manteacutem vivo na proacutepria possibilidade de projecccedilatildeo

futura isto eacute como um reservatoacuterio limitado de possibilidades que satildeo

contudo susceptiacuteveis de sucessivas reactualizaccedilotildees Esta fusatildeo entre o

passado e o futuro determina o presente proacuteprio ou instante (Augenblick) da

decisatildeo em que o Dasein se apropria de si mesmo cria a obra ou a

interpretaccedilatildeo originaacuteria

181

Sobre os problemas especiacuteficos da aplicaccedilatildeo deste conceito fenomenoloacutegico de traduccedilatildeo aos textos de

filosofia cf Irene Borges-Duarte em ldquoA traduccedilatildeo como fenomenologia O caso Heideggerrdquo (Heidegger

Linguagem e Traduccedilatildeo Lisboa 2002 452) ldquoMas ldquoaquilo que desse modo na traduccedilatildeo e como traduccedilatildeo

vem a aparecer natildeo eacute algo inteiramente novo mas algo marcado pela gravidade do jaacute de antematildeo dito de

uma determinada forma e numa configuraccedilatildeo determinada o texto de um autor Se a arte da traduccedilatildeo se

joga entre duas liacutenguas e entre dois mundos que nelas moram a arte do tradutor enquanto veiacuteculo

ontoloacutegico desse jogo move-se aleacutem disso entre duas diacutevidas aquela que tem para com o dito e a que

tem para com a sua figura faacutectica concreta para com o texto e o seu autorrdquo

133

Pelo facto de toda a interpretaccedilatildeo implicar esta projecccedilatildeo eacute que Heidegger

indica que toda a interpretaccedilatildeo deve apropriar-se previamente das suas

possibilidades reconhecendo identificando e assumindo como tais os

pressupostos desse acto interpretativo residindo neste regresso a si mesma a

noccedilatildeo de ciacuterculo hermenecircutico ldquoO cumprimento das condiccedilotildees fundamentais

de um possiacutevel interpretar radica antes em natildeo comeccedilar por desconhecer as

condiccedilotildees essenciais para levaacute-lo a cabo O decisivo natildeo eacute sair do ciacuterculo mas

entrar nele de modo justo Este ciacuterculo do compreender natildeo eacute um ciacuterculo em

que se move uma qualquer forma de conhecimento mas eacute a expressatildeo da

estrutura existenciaacuteria do preacutevio [Vor-Struktur] peculiar ao proacuteprio Daseinrdquo 182

Ora as Liccedilotildees de Loacutegica vieram esclarecer que essa antecipaccedilatildeo de sentido

ou essa estrutura existenciaacuteria do preacutevio eacute a pertenccedila a uma tradiccedilatildeo que se

encontra sempre presente na liacutengua de um povo histoacuterico Deste modo a

Vorstruktur da compreensatildeo que foi em Ser e Tempo estabelecida como

temporalidade eacute depois constituiacuteda como historicidade O passado estaacute

presente no conjunto das possibilidades preacutevias contidas no ter preacutevio

(Vorhabe) na preacute-visatildeo (Vorsicht) e na preacute-captaccedilatildeo (Vorgriff) com que como

falantes de uma liacutengua histoacuterica vamos sempre jaacute equipados para a

compreensatildeo de algo

A compreensatildeo de algo como um texto um facto histoacuterico ou uma obra de arte

dependem de um campo de sentido basicamente transmitido e nunca de uma

autoposiccedilatildeo do sujeito - o que se por um lado limita e restringe as

possibilidades hermenecircuticas por outro lado se prefigura como condiccedilatildeo

positiva de possibilidade de compreensatildeo

O ciacuterculo hermenecircutico nada tem pois de subjectivo nem a interpretaccedilatildeo

autecircntica tem nada de arbitraacuterio estando pelo contraacuterio subordinada a um

projecto de compreensatildeo que se encontra sempre jaacute previamente lanccedilado Se

ningueacutem escapa agrave heranccedila de si mesmo natildeo somos nunca livres em relaccedilatildeo a

esta circularidade hermenecircutica que sobredetermina toda a compreensatildeo no

182

bdquoDie Erfuumlllung der Grundbedingungen moumlglichen Auslegens liegt vielmehr darin dieses nicht zuvor

hinsichtlich seiner wesenhaften Vollzugsbedingungen zu verkennen Das Entscheidende ist nicht aus

dem Zirkel heraus- sondern in hin nach der rechten Weise hineinzukommen Dieser Zirkel des

Verstehens ist nicht ein Kreis in dem sich eine beliebige Erkenntnisart bewegt sondern er ist der

Ausdruck der existenzialen Vor-struktur des Daseins selbstrdquo SuZ GA 2 sect32 153

134

entanto temos sempre a possibilidade de assumir conscientemente a nossa

proacutepria historicidade ou de estar na histoacuteria sem assumi-la

A distinccedilatildeo entre este modo proacuteprio e improacuteprio de estar na histoacuteria183 eacute o que

permite estabelecer a diferenccedila entre uma consciecircncia hermeneuticamente

desenvolvida que se sabe herdeira de uma tradiccedilatildeo e aquela que cai na

tradiccedilatildeo tomando-a como qualquer coisa de oacutebvio e deixando assim que essa

tradiccedilatildeo morta se lhe imponha como ldquoevidenterdquo encobrindo o acesso agraves fontes

donde se extraiacuteram os conceitos transmitidos Um exemplo que ilustra estas

duas maneiras de estar na histoacuteria podemos encontraacute-lo na oposiccedilatildeo que

Heidegger estabelece entre o modo como se cai na evidente traduccedilatildeo de

aletheia por adequaccedilatildeo ou correspondecircncia por efeito da traduccedilatildeo latina de

adaequatio ou a intenccedilatildeo de uma traduccedilatildeo originaacuteria de que a traduccedilatildeo de

aletheia por Unverborgenheit eacute exemplar O proacuteprio trabalho hermenecircutico de

Heidegger com os textos gregos ilustra esta intenccedilatildeo de aceder a uma

traduccedilatildeo originaacuteria capaz de nos introduzir no domiacutenio a partir do qual os

primeiros pensadores gregos pensaram

Se uma consciecircncia hermeneuticamente desenvolvida estaacute consciente da

distacircncia histoacuterica das fontes a que se reporta ela estaacute pois igualmente

consciente da forccedila e do peso da tradiccedilatildeo que elas constituiacuteram e de que eacute

preciso apropriar-se delas positivamente para poder vir a desenvolver as suas

proacuteprias possibilidades de questionar ldquoA elaboraccedilatildeo da questatildeo do ser tem

pois que extrair do mais peculiar sentido do proacuteprio perguntar que eacute um

perguntar histoacuterico a sugestatildeo de perguntar pela sua proacutepria histoacuteria quer

dizer de tornar-se historiograacutefico para pocircr-se como a apropriaccedilatildeo positiva do

passado na plena posse das suas mais proacuteprias possibilidades de

questionarrdquo184

183

Esta distinccedilatildeo eacute retomada por Joatildeo Paisana como distinccedilatildeo entre ser determinado imediatamente pela

tradiccedilatildeo e submetecirc-la agrave exegese compreendendo-a como resposta expressa a uma questatildeo que estaacute ela

mesma oculta Esta exegese da tradiccedilatildeo implica um momento da sua destruiccedilatildeo isto eacute o colocaacute-la

radicalmente em questatildeo quanto agrave sua verdade momento esse que natildeo deve ser no entanto considerado

como rejeiccedilatildeo absoluta mas como sua discussatildeo e relativizaccedilatildeo que a compreende como uma

possibilidade de resposta entre outras No momento seguinte agrave sua necessaacuteria discussatildeo ela pode vir a

mostrar-se vaacutelida mas o que valida a tradiccedilatildeo eacute agora o diaacutelogo e o consenso que resultaram do trabalho

hermenecircutico (Idem Histoacuteria da Filosofia e Tradiccedilatildeo Filosoacutefica 30-31) 184

Die Ausarbeitung der Seinsfrage muβ so aus dem eigensten Seinssinn des Fragens selbst als eines

geschichtlichen die Anweisung vernehmen seiner eigenen Geschichte nachzufragen dh historisch zu

werden um sich in der positiven Aneignung der Vergangenheit in den Vollen Besitz der eigensten

Fragemoumlglichkeiten zu bringenldquo SuZ GA 2 sect6 20-21

135

A necessidade de apropriaccedilatildeo de ldquosituaccedilatildeo hermenecircuticardquo que Heidegger

desenvolveu nas ldquoInterpretaccedilotildees Fenomenoloacutegicas de Aristoacutetelesrdquo (19211922)

aponta por outro lado para o presente e para a existecircncia faacutectica do Dasein

como portadores de um sentido e de tendecircncias interpretativas peculiares de

cada geraccedilatildeo e de cada eacutepoca histoacuterica ldquoEm cada geraccedilatildeo ou numa

sequecircncia delas esclarecem-se determinadas possibilidade de entrada na

histoacuteria como tal determinada compreensatildeo fundamental do conjunto da

histoacuteria determinadas avaliaccedilotildees de uma eacutepoca singular e determinadas

ldquopreferecircnciasrdquo por uma uacutenica filosofiardquo185

Na clarificaccedilatildeo desta ldquosituaccedilatildeordquo186 isto eacute do contexto vital onde se desenrolam

as experiecircncias fundamentais do presente histoacuterico reside a possibilidade de

ganhar um horizonte ldquoproacutepriordquo de compreensatildeo e em geral da projecccedilatildeo de

um sistema do desenhar de novas perspectivas de novos e inesperados

desenvolvimentos de um ponto de vista de diferentes modos de

consciecircncia187

Se eacute verdade que para se compreender a ldquosituaccedilatildeo hermenecircuticardquo eacute preciso

estar afinado com a Stimmung epocal natildeo eacute menos verdade que como

Heidegger repetidamente afirma esta soacute pode ser compreendida a partir da

consciecircncia histoacuterico-criacutetica que eacute capaz de compreender o presente agrave luz das

possibilidades hermenecircuticas contidas numa tradiccedilatildeo a que se pertence e de

reconhecer que nele actua de forma inelutaacutevel esse campo de sentido herdado

185

bdquoIn Jener Generation oder in einer Abfolge solcher legen sich bestimmte Zugangsmoumlglichkeiten zur

Geschichte als solcher bestimmte Grundauffassungen der Gesamtgeschichte bestimmte

Wertschaumltzungen einzelner Zeitalter und bestimmte bdquoVorliebenldquo fuumlr einzelne Philosophien festldquo EpF

GA 61 3 186

bdquoDer Sachgehalt jeder Interpretation das ist der thematische Gegenstand im Wie seines

Ausgelegtseins vermag nur dann angemessen fuumlr sich selbst zu sprechen wenn die jeweilige

hermeneutische Situation auf die jede Interpretation relativ ist als genuumlgend deutlich ausgezeichnet

verfuumlgbar gemacht wird

Jede Auslegung hat je nach Sachfeld und Erkenntnisanspruch 1 ihren mehr oder minder ausdruumlcklich

zugeeigneten und verfestigten Blickstand 2 eine hieraus motivierte Blickrichtung in der sich bestimmt

das bdquoals wasldquo in dem der Interpretationsgegenstand vorgrifflich genommen und das bdquoworaufhinldquo auf das

er ausgelegt werden soll 3 eine mit Blickstand und Blickrichtung ausgegrenzte Sichtweite innerhalb

deren der jeweilige Objecktivitaumltsanspruch der Interpretation sich bewegtldquo Heidegger AhS GA 62 346 187

A oposiccedilatildeo entre histoacuteria da filosofia e o presente histoacuterico do filoacutesofo aparece como oposiccedilatildeo entre

histoacuteria da filosofia e sistema filosoacutefico mas trata-se segundo Joatildeo Paisana de uma oposiccedilatildeo natildeo

pertinente O que importa eacute ter em mente que a consciecircncia da proacutepria situaccedilatildeo eacute indispensaacutevel ao que o

autor designa como o segundo momento da exegese da tradiccedilatildeo o da construccedilatildeo na qual ldquose articulam as

possibilidades histoacutericas projectando-as unitariamente no espaccedilo aberto pelo questionar sobre a coisa

mesma da questatildeo em direcccedilatildeo agrave sua verdaderdquo (Idem obcit 31) A verdade filosoacutefica implica

necessariamente ldquoum rasto histoacutericordquo e natildeo pode ser nunca um acto inaugural mas por outro lado ela soacute

eacute possiacutevel no espaccedilo aberto pelo questionar de algum modo enraizado no presente

136

Esta imposiccedilatildeo dum campo de sentido preacutevio faz-se em primeiro lugar pela

linguagem e pelos usos linguiacutesticos como jaacute nas Interpretaccedilotildees

Fenomenoloacutegicas de Aristoacuteteles Heidegger sublinhava ldquoUm uso linguiacutestico vem

de uma histoacuteria ateacute noacutes e nasceu precisamente outrora de uma determinada

experiecircncia A histoacuteria pode perder-se no esquecimento a tradiccedilatildeo expressa

pode retirar-se No fluir de um uso linguiacutestico reside um peculiar confiar na

histoacuteria do espiacuterito um agarrar da ldquotradiccedilatildeordquo e na verdade de todo o consumar

histoacuterico - da mesma maneira tambeacutem a possibilidade de todo o extraviordquo188

Os usos linguiacutesticos impotildeem-nos quer queiramos quer natildeo uma

conceptualizaccedilatildeo preacutevia (Vorgriff) que delimita as possibilidades de

compreensatildeo e fixa uma tendecircncia interpretativa os vocaacutebulos transportam

consigo um sentido orientando o pensamento Mas a forccedila da tradiccedilatildeo estaacute

enraizada na proacutepria vida faacutectica do Dasein e informa ainda o contexto histoacuterico

concreto onde facticamente se desenrola a investigaccedilatildeo a Universidade eacute ela

mesmo simultaneamente um produto da tradiccedilatildeo e o contexto vital onde aqui e

agora uma geraccedilatildeo se relaciona com o passado e a tradiccedilatildeo189

Toda a interpretaccedilatildeo deve comeccedilar pela reflexatildeo do inteacuterprete sobre as ideias

preconcebidas que resultam da ldquosituaccedilatildeo hermenecircuticardquo em que ele se

encontra o grau de apropriaccedilatildeo da situaccedilatildeo hermenecircutica das suas ideias e

dos seus problemas eacute decisivo para o destino de toda a interpretaccedilatildeo porque

satildeo essas antecipaccedilotildees de sentido que vatildeo confrontar-se com o texto que haacute

que interpretar

Assim esse texto que haacute que interpretar e cujo sentido pleno soacute pode

esclarecer-se a partir da ldquoabertura de mundordquo ou do horizonte histoacuterico-

linguiacutestico em que se insere como eacute exemplarmente o caso da filosofia grega

estaacute sujeito a uma interpretaccedilatildeo que padece necessariamente da restriccedilatildeo dum

horizonte imposto pela situaccedilatildeo hermenecircutica do inteacuterprete Heidegger mostrou

que a recepccedilatildeo de Aristoacuteteles ilustra de que modo e ateacute que ponto a

188

bdquoEin Sprachgebrauch kommt aus einer Geschichte uns zu und ist je einmal aus einer bestimmten

Erfahrung erwachsen Die Geschichte kann in Vergessenheit geraten die ausdrucksmaumlβige Tradition

kann abreiβen Im Eingleiten in einen Sprachgebrauch liegt ein eigentuumlmliches Vertrauen zur

Geistesgeschichte ein Ergreifen der bdquo Traditionldquo und zwar der ganz besonderen vollzugsgeschichtlichen

zugleich aber auch die Moumlglichkeit der Entgleisungldquo EpF GA 61 42 189

A importacircncia da Universidade como lugar institucional da transmissatildeo da tradiccedilatildeo encontra-se ainda

sublinhada por T S Kuhn em A Estrutura das Revoluccedilotildees Cientiacuteficas em termos similares Neste caso

mostra-se como o funcionamento e as relaccedilotildees de poder no interior da instituiccedilatildeo condicionam a

investigaccedilatildeo particularmente nos perigraveodos de ldquociecircncia extraordinaacuteriardquo quando estatildeo em causa conflitos

entre teorias paradigmaacuteticas

137

interpretaccedilatildeo foi efectivamente condicionada pelo ponto de vista imposto pela

situaccedilatildeo quer na eacutepoca do cristianismo medieval que levou a cabo uma certa

interpretaccedilatildeo metafiacutesica de Aristoacuteteles e impocircs a sua valorizaccedilatildeo positiva no

acircmbito da escolaacutestica quer na eacutepoca contemporacircnea em que por influecircncia da

ciecircncia e da filosofia poacutes-kantiana se institui uma interpretaccedilatildeo gnosioloacutegica de

Aristoacuteteles e se combateu essa valorizaccedilatildeo positiva da eacutepoca medieval

E em Was heiszligt denken Heidegger reafirmaraacute esta mesma relatividade de

toda a interpretaccedilatildeo ldquoChocamos frontalmente contra o sentido de toda a

interpretaccedilatildeo quando nos persuadimos que haveria uma interpretaccedilatildeo que natildeo

fosse a dum ponto de vista isto eacute que pudesse ser absolutamente vaacutelida

Absolutamente vaacutelida natildeo eacute senatildeo no melhor dos casos a esfera de

representaccedilotildees no interior da qual se situa antecipadamente o texto a

interpretar A validade desta esfera de representaccedilotildees que colocamos de iniacutecio

natildeo pode ser um absoluto a natildeo ser que o seu absoluto repouse sobre uma

incondicionalidade e esta seja a de uma feacute A incondicionalidade da feacute e a

problematicidade do pensamento satildeo dois domiacutenios separados por um

abismordquo 190

Uma obra filosoacutefica situa-se no interior de uma certa esfera de representaccedilotildees

inerentes agrave figura do ser imperante no contexto histoacuterico-linguiacutestico E uma

apropriaccedilatildeo originaacuteria teraacute sempre que tentar apreendecirc-la a partir dessa

ldquoabertura de mundordquo em que ela se integra como seu horizonte de sentido

ldquopreacuteviordquo Contudo este contexto histoacuterico-linguiacutestico de certo modo absoluto e

inquestionaacutevel eacute objecto de diferentes interpretaccedilotildees que dependem

largamente da situaccedilatildeo hermenecircutica em que se encontra o tradutor e o

inteacuterprete e do ponto de vista que eacute imposto por essa situaccedilatildeo

A interpretaccedilatildeo autecircntica isto eacute aquela que eacute levada a cabo por uma

consciecircncia hermeneuticamente desenvolvida natildeo tem pois como finalidade a

produccedilatildeo de uma verdade objectiva nem definitiva sobre os textos mas eacute pelo

contraacuterio aquela que tem consciecircncia de mover-se entre dois horizontes

190

bdquoMan verstoumlβt aber gegen den Sinn jeder Interpretation wenn man der Meinung huldigt es gaumlbe eine

Auslegung die beziehungslos d h absolut guumlltig sein koumlnnte Absolut guumlltig ist im aumluβersten Falle nur

die Vorstellungsbezirk innerhalb dessen man den auszulegenden Text zum Voraus ansetzt Die

Guumlltigkeit dieses vorausgesetzten Vorstellungsbezirkes kann nur dann eine absolute sein wenn ihre

Absolutheit auf einer Unbedingtheit und zwar der eines Glaubens beruht

Die Unbedingtheit des Glaubens und die Fragwuumlrdigkeit des Denkens sind zwei abgruumlndig verschiedene

Bereicheldquo WhD GA 8 181

138

distintos e que eacute capaz de deixar-se conduzir ao acircmbito originaacuterio de onde

partiu a elaboraccedilatildeo de uma obra e de retornar a si mesmo e ao seu proacuteprio

horizonte histoacuterico aiacute produzindo um ldquoduplordquo que natildeo eacute uma coacutepia nem

substitui o original mas abre uma via de acesso para ele

Agrave luz desta consciecircncia hermenecircutica que eacute simultaneamente uma

consciecircncia histoacuterica sensiacutevel agraves diferenccedilas entre o proacuteprio horizonte histoacuterico-

linguiacutestico e aquele a que pertence a obra a traduzir ou interpretar que eacute capaz

de se movimentar entre eles aquele imperativo de fidelidade ao dito tem de ser

inteiramente modificado

2 Tradiccedilatildeo e traduccedilatildeo

Esses dois horizontes que a uma consciecircncia histoacuterica devem sempre

aparecer como distintos satildeo contudo essencialmente moacuteveis interpenetram-se

e articulam-se pois o passado e o distante caminham sobre noacutes condicionando

a apropriaccedilatildeo do presente e por outro lado essa apropriaccedilatildeo do passado de

modo algum pode ser ldquoobjectivardquo mas eacute condicionada pela figura histoacuterico-

epocal do ser dominante na eacutepoca presente

Eacute essa articulaccedilatildeo que permite criar uma abordagem da histoacuteria da filosofia que

natildeo se limita a prolongar e dar continuidade a um passado mas retoma-o

actualiza-o e renova-o transportando-o para o presente fazendo assim dessa

histoacuteria uma tradiccedilatildeo viva (Uumlberlieferung) capaz de se projectar no futuro

ldquoAssim o ter sido e o futuro natildeo satildeo dois espaccedilos de tempo de tal modo que

possamos deslizar de um para o outro mas o futuro e o ter sido satildeo em si

aqueles poderes do tempo o poder do proacuteprio tempo no qual estamos Noacutes soacute

somos vindouros na medida em que assumirmos o ter sido como tradiccedilatildeordquo191

A relaccedilatildeo da filosofia com a sua proacutepria histoacuteria caso seja uma relaccedilatildeo

apropriada eacute sempre simultaneamente apropriaccedilatildeo da tradiccedilatildeo e criaccedilatildeo

(Zucht) o que transforma a tradiccedilatildeo filosoacutefica em qualquer coisa de vivo capaz

de perdurar e persistir no tempo tomando novas configuraccedilotildees ldquoDeste modo

noacutes alcanccedilaacutemos uma compreensatildeo completamente diferente do tempo na sua

191

bdquoSo sind Gewesenheit und Zukunft nicht zwei Zeitraumlume nicht derart daβ wir von einem in den

anderen rutschen koumlnnen sondern Zukunft und Gewesenheit sind in sich einige Zeitmaumlchte die Macht

der Zeit selbst in der wir stehen Wir sind nur zukuumlnftig indem wir die Gewesenheit als Uumlberlieferung

uumlbernehmenldquo LWS GA 38 124

139

temporalidadetemporalizaccedilatildeo ndash e com isso o solo a partir do qual noacutes

podemos antes de tudo determinar a histoacuteria no seu caraacutecter de acontecer O

acontecer natildeo eacute um processo mas tradiccedilatildeordquo192

Natildeo eacute apenas o conceito de tradiccedilatildeo filosoacutefica que assim se encontra

modificado por Heidegger mas ainda a relaccedilatildeo iacutentima que este conceito de

tradiccedilatildeo manteacutem com o de traduccedilatildeo De facto para Heidegger a tradiccedilatildeo

implica sempre uma traduccedilatildeo no sentido essencial que estaacute contido na palavra

alematilde de Uumlbersetzen isto eacute de trans-posiccedilatildeo histoacuterico-temporal de um sentido

que nos eacute dado sempre como alheio Essa transposiccedilatildeo eacute um movimento entre

esse campo de sentido alheio a que pertence um texto que nos eacute dado pela

histoacuteria e o proacuteprio isto eacute o contexto histoacuterico-linguiacutestico a que pertence aquele

que pensa

Assim a traduccedilatildeo natildeo implica necessariamente a transposiccedilatildeo de uma liacutengua

nacional para outra como Heidegger claramente indicaraacute em Was heiszligt

denken mas indica sempre a necessidade de uma dupla apropriaccedilatildeo a

apropriaccedilatildeo ldquooriginaacuteriardquo do alheio por um movimento de desconstruccedilatildeo de

releituras impostas por uma tradiccedilatildeo esclerosada e uma apropriaccedilatildeo do

ldquoproacutepriordquo que enquanto o mais proacuteximo eacute sempre o mais distante e exige ser

compreendido e apropriado como tal

A unidade destes dois momentos trazidos agrave intimidade [Innigkeit] constitui o

coraccedilatildeo da traduccedilatildeo e eacute essa intimidade que faz de algumas das traduccedilotildees

feitas nas muacuteltiplas liacutenguas traduccedilotildees essenciais isto eacute ldquopontos nodais de

junccedilatildeo e de articulaccedilatildeordquo193 que pertencem ao proacuteprio movimento de destinaccedilatildeo

do ser

A possibilidade da filosofia tomar posse das suas possibilidades de questionar

resulta para Heidegger destas traduccedilotildees essenciais que articulam a

transmissatildeo de uma tradiccedilatildeo Cada questatildeo filosoacutefica e cada resposta a essa

questatildeo estatildeo sustentadas por uma decisatildeo de assumir a tradiccedilatildeo que assim

192

bdquoDamit haben wir ein voumlllig anderes Verstaumlndnis der Zeit in ihrer ZeitigkeitZeitigung gewonnen ndash und

damit den Boden von dem aus wir die Geschichte in ihrem Geschehenscharakter allererst bestimmen

koumlnnen Geschehen ist kein Vorgang sondern Uumlberlieferungldquo Ibidem 125 193

Cf John Sallis em ldquoSobre a Traduccedilatildeo de Platatildeo a Heideggerrdquo (in Heidegger Linguagem e Traduccedilatildeo

Lisboa 2002 179) rdquoUma traduccedilatildeo essencial corresponde hellip ao modo pelo qual uma ligravengua fala ao envio

do ser [wie im Geschick des Seins eine Sprache spricht] Eacute porque tais traduccedilotildees inscrevem

responsivamente o dizer no interior do envio do ser (enquanto ηδέα enquanto έλέργεηα enquanto

actualitas etc) que elas pertencem ao movimento mais interior da histoacuteria constituindo pontos nodais

pontos de junccedilatildeo onde tem lugar a tradiccedilatildeo (transmissatildeo a partir do envio do ser)rdquo

140

cada filoacutesofo decide actualizar e fazer presente como Widerholung de um

perguntar essencial

O perguntar (fragen) e o responder (antworten) que constituem a essecircncia do

pensar isto eacute da filosofia como consciecircncia criacutetica e problemaacutetica enraiacutezam-

se na responsabilidade (Verantwortung) de assumir o sido e trazecirc-lo para o

presente como determinaccedilatildeo isto eacute na responsabilidade pela actualizaccedilatildeo de

uma tradiccedilatildeo que natildeo pode ser transmitida sem ser incessantemente traduzida

Assim a consciecircncia filosoacutefica deve assumir a historicidade inerente ao gestar-

se da existecircncia humana colocando-se a si mesma sob o poder do tempo ldquoO

encargo como nossa missatildeo eacute a nossa determinaccedilatildeo em sentido originaacuterio eacute o

poder do proacuteprio tempo no qual noacutes nos encontramos que nos autoriza ao

nosso futuro ao mesmo tempo que nos lega o legado da nossa origemrdquo194

A filosofia como consciecircncia hermeneuticamente desenvolvida implica assim

um pensar que se assume como responsaacutevel pela apropriaccedilatildeo dum perguntar

e responder originaacuterios e pela sua transposiccedilatildeo para um outro contexto

histoacuterico-linguiacutestico ou seja implica uma traduccedilatildeo consciente dos seus

proacuteprios pressupostos histoacutericos e enraizada na temporalidade Esta tomada de

consciecircncia dos seus proacuteprios pressupostos histoacutericos eacute contudo limitada

porque a consciecircncia filosoacutefica estaacute ela tambeacutem sob o mesmo poder do tempo

ao qual estamos expostos e que experimentamos como disposiccedilatildeo de acircnimo

(Stimmung) isto eacute como esse fundo obscuro de emoccedilotildees que arrebatam

misteriosamente os povos e os lanccedilam no meio do acontecer histoacuterico ldquoDos

primoacuterdios ateacute ao presente actua na filosofia a interdependecircncia interna e

misteriosa entre o poder do tempo e a respectiva compreensatildeo do ser o

respectivo domiacutenio de um conceito de ser Porque esta interdependecircncia

existe fala-se de rdquoSer e Tempo Este natildeo eacute nenhum vulgar tiacutetulo para um

qualquer livro mas a mais intriacutenseca e encoberta questatildeo da nossa filosofia

[]rdquo195

194

bdquoDer Auftrag als unsere Sendung ist unsere Bestimmung im urspruumlnglichen Sinne ist die Macht der

Zeit selbst in der wir stehen die uns zu unserem Kuumlnftigen ermaumlchtigt indem sie uns das Vermaumlchtnis

unseres Ursprungs vermachtldquo LWS GA 38 127 195

bdquoVon Anfang an bis zur Gegenwart wirkt in der Philosophie der geheimnisvolle innere

Zusammenhang zwischen der Macht der Zeit und dem jeweiligen Verstaumlndnis des Seins der jeweiligen

Herrschaft eines Seinsbegriffs Weil dieser Zusammenhag besteht deshalb ist die Rede von bdquo Sein und

Zeitldquo Dies ist kein beliebiger Titel fuumlr irgendein Buch sondern die innerste und verborgenste Frage

unserer Philosophie []ldquo Ibidem 132

141

Eacute esta exposiccedilatildeo ao poder do tempo e agraves muacuteltiplas stimmungen epocais que

faz com que a tradiccedilatildeo filosoacutefica tenha um caraacutecter plural desdobrando-se em

muacuteltiplas tradiccedilotildees de modo que a transmissatildeo da tradiccedilatildeo teraacute que ser um

diaacutelogo entre diferentes linhagens de pensadores que satildeo capazes de divergir

e de polemizar a partir do mesmo o que se encontra claramente afirmado em

Was Heiszligt Denken

Assim a existecircncia de diferentes traduccedilotildees e interpretaccedilotildees de uma obra

filosoacutefica eacute inevitaacutevel e decorrente da proacutepria histoacuteria e a discussatildeo sobre essas

diferenccedilas soacute pode consistir numa reflexatildeo sobre os pressupostos que preacute-

determinam ldquoa direcccedilatildeordquo de cada uma delas Esta reflexatildeo e este

questionamento satildeo aliaacutes necessaacuterios para desobstruir o acesso agraves fontes

isto eacute ao texto originaacuterio e entrar ldquono lugar de proveniecircnciardquo do seu dizer

A traduccedilatildeo apropriada de um texto coloca natildeo soacute a necessidade desta

ldquodesobstruccedilatildeordquo como ainda a de uma explicitaccedilatildeo dos pressupostos da nova

proposta que assim satildeo assumidos e expostos agrave contestaccedilatildeo e ao confronto

como o texto que se trata de traduzir

Deste modo a interpretaccedilatildeo e a traduccedilatildeo poderatildeo desenrolar-se como um

diaacutelogo (parcialmente) consciente dos seus proacuteprios pressupostos histoacutericos

capaz de ir para aleacutem do texto em direcccedilatildeo agravequilo que estaacute para aleacutem dele ao

apelo muitas vezes inexpresso que motiva o proacuteprio texto196

Esse apelo eacute o da questatildeo do Ser questatildeo que interpela os diferentes

pensadores ao longo do tempo e que faz com que pensadores como Kant e

Parmeacutenides apesar de todas as diferenccedilas do seu dizer se movam num

domiacutenio que eacute ldquoo mesmordquo e que eacute aliaacutes instituiacutedo por Parmeacutenides como o

domiacutenio comum de todo o pensar ocidental ldquo[hellip] a frase ldquoηὸ γὰρ αὐηὸ νοεῖν

ἐζηίν ηε καὶ εἶναιldquo torna-se o tema fundamental do conjunto do pensamento

europeu-ocidental A sua histoacuteria eacute no fundo uma sequecircncia de variaccedilotildees

196

Cf Ivo de Gennaro Logos ndash Heidegger liest Heraklit bdquoDas Uumlbersetzen uumlbersetzt wie Houmllderlin

schreibt bdquogegen die exzentrische Begeisterungldquo d h gegen das Orientalische und den Griechen

Angeborene und Natuumlrliche bdquogegenldquo aber nicht als das feindliche contra sondern entgegen in Richtung

auf dieses Natuumlrliche es setzt zu ihm uumlber um es bdquokuumlhner [zu] exponierenldquo d h die Griechen in ihrem

Eigenen zu bdquouumlbertreffenldquo somit griechisch und d h schon griechischer [zu denken] als die Griechen

selbstldquo(Ob cit 80)

142

sobre este uacutenico tema mesmo aiacute onde a palavra de Parmeacutenides natildeo eacute

expressamente evocadardquo197

A histoacuteria da filosofia desenrola-se assim como um conjunto de variaccedilotildees sobre

um mesmo tema e as diferenccedilas entre discursos filosoacuteficos situados em

contexto histoacuterico-linguiacutesticos distintos devem ser correlacionadas natildeo apenas

com as diferentes aberturas de mundo em que necessariamente se inserem

mas ainda com este acircmbito comum ao questionamento filosoacutefico que torna

possiacutevel o diaacutelogo e a confrontaccedilatildeo entre diferentes ldquolinhagensrdquo de pensadores

3 A reabilitaccedilatildeo do preconceito em Gadamer

Se Heidegger se interessou pelo problema hermenecircutico tendo sempre em

vista a questatildeo ontoloacutegica Gadamer toma de certo modo o caminho inverso

Partindo da criacutetica levada a cabo por Heidegger agrave ontologia da presenccedila que

estaacute subjacente ao ideal de objectividade das ciecircncias ele vai pensar as

consequecircncias para a hermenecircutica das ciecircncias humanas da temporalidade

do Dasein e da estrutura circular da compreensatildeo198

Tendo iniciado os estudos de filologia claacutessica em 1925 com a preocupaccedilatildeo

expliacutecita da articulaccedilatildeo das questotildees filosoacuteficas com os problemas filoloacutegicos e

tendo-se ocupado em complemento do seu trabalho acadeacutemico da traduccedilatildeo

dos pensadores gregos para o alematildeo Gadamer estava em condiccedilotildees

privilegiadas pela frequentaccedilatildeo sapiente dos claacutessicos e pelo seu esforccedilo de

os trazer para o presente histoacuterico para reflectir sobre o problema

hermenecircutico da traduccedilatildeo e enriquecer os contributos de Heidegger199

197

bdquo[] der Spruch ηὸ γὰρ αὐηὸ λοεῖλ ἐζηίλ ηε θαὶ εἶλαη wird das Grundthema des gesamten

abendlaumlndisch-europaumlischen Denkens Dessen Geschichte ist im Grunde eine Folge von Variationen zu

diesem einem Thema auch dort wo der Spruch des Parmenides nicht eigens genannt wirdldquo WhD GA 8

246 198

Visto que a hermenecircutica da compreensatildeo natildeo poderia ter por objectivo descobrir um fundamento

universalmente vaacutelido para o conhecimento as interrogaccedilotildees epistemoloacutegicas relativas agrave metodologia das

ciecircncias humanas natildeo tinham para Heidegger qualquer relevacircncia testemunhando antes a recusa em

reconhecer a finitude do Dasein Gadamer natildeo retoma no entanto o diaacutelogo com as ciecircncias humanas

com a intenccedilatildeo de estabelecer um projecto metodoloacutegico para essa aacuterea do saber mas sim com a intenccedilatildeo

expressa de mostrar a ausecircncia de sentido dum tal projecto A tese de Gadamer seraacute de que as ciecircncias

humanas deveriam afastar-se do paradigma metodoloacutegico das ciecircncias exactas e fundar-se num retomar

do conceito de Bildung desenvolvido pela tradiccedilatildeo humanista (Cf Jean Grondin L‟Universaliteacute

hermeacuteneutique Paris 1993 157-164) 199

Cf Jean Grondin em HansndashGeorg Gadamer Eine Biographie Tuumlbingen 1999 144-146 O autor

sublinha que Gadamer conhecia melhor os claacutessicos que Heidegger e que ele encontrou no periacuteodo da

Segunda Guerra Mundial no regresso aos claacutessicos uma resposta agrave incerteza e ao desvario do tempo em

particular nas leituras de Piacutendaro no Evangelho de S Joatildeo na tradiccedilatildeo retoacuterica latina na Eacutetica de

Aristoacuteteles e sobretudo nos Diaacutelogos de Platatildeo

143

Retomando o conceito de ciacuterculo hermenecircutico de Ser e Tempo Gadamer

sublinha que essa estrutura circular da compreensatildeo conteacutem a possibilidade

positiva de uma compreensatildeo originaacuteria na medida em que aponta a exigecircncia

de o inteacuterprete natildeo permitir que as suas intuiccedilotildees e antecipaccedilotildees de sentido se

lhe imponham espontaneamente ldquopor meio de intuiccedilotildees e noccedilotildees popularesrdquo

exigindo que este as elabore no confronto com ldquoas coisas mesmasrdquo (isto eacute os

textos a interpretar que se referem eles mesmos agraves coisas) ldquoele soacute fez no

fundamental o que uma consciecircncia histoacuterico-hermenecircutica em cada caso

exige Um compreender dirigido por uma consciecircncia hermenecircutica tem de

esforccedilar-se por natildeo consumar simplesmente as suas antecipaccedilotildees mas tornaacute-

las conscientes para as controlar e assim poder ganhar um correcto

entendimento Isto eacute o que Heidegger quer dizer quando ele exige que na

elaboraccedilatildeo do Vorhabe Vorsicht e Vorgriff a partir das proacuteprias coisas se

assegure o tema cientiacuteficordquo200

O inteacuterprete aborda sempre o texto a partir do esboccedilo da totalidade de sentido

e confronta sucessivamente essa antecipaccedilatildeo da totalidade com o proacuteprio

texto corrigindo esse esboccedilo inicial de acordo com as confirmaccedilotildees obtidas no

decurso do trabalho hermenecircutico O inteacuterprete natildeo eacute algueacutem com uma razatildeo

vazia de preconceitos mas estaacute sempre munido de uma preacute-compreensatildeo que

potildee expressamente agrave prova interrogando-se sobre a sua validade e a sua

legitimidade

Natildeo se trata assim nem de uma razatildeo despida de preconceitos nem de

manter a todo o custo uma opiniatildeo preacutevia mas de uma abertura agrave opiniatildeo do

outro ou de escuta do texto O reconhecimento da alteridade do texto natildeo

exige um abandono da opiniatildeo do inteacuterprete mas a abertura dum diaacutelogo que

as coloque numa relaccedilatildeo reciacuteproca

Haacute assim um preconceito ou um juiacutezo preacutevio (Vorurteil) que dirige e orienta o

trabalho hermenecircutico em flagrante oposiccedilatildeo ao ideal duma razatildeo

inteiramente liberta de preconceitos preconizado pela Aufklaumlrung A

Aufklaumlrung ao interpretar o preconceito (Vorurteil) como um juiacutezo sem

fundamento ldquona coisa mesmardquo postulou que ele eacute sempre infundado e

200

ldquoEr hat damit im Grund nur getan was das historisch-hermeneutische Bewuβtsein in jedem Fall

verlangt Ein mit methodischem Bewuβtsein gefuumlhrtes Verstehen wird bestrebt sein muumlssen seine

Antizipationen nicht einfach zu vollziehen sondern sie selber bewuβt zu machen um sie zu kontrollieren

und dadurch von den Sachen her das rechte Verstaumlndnis zu gewinnen Das ist es was Heidegger meint

wenn er fordert in der Ausarbeitung von Vorhabe Vorsicht und Vorgriff aus den Sachen selbst her das

wissenschaftliche Thema zu bdquosichernldquoldquo WuM GW I274)

144

totalmente ilegiacutetimo tendo lanccedilado o descreacutedito sobre os preconceitos no seu

conjunto e exigido que o trabalho cientiacutefico os excluiacutesse totalmente o que eacute

impossiacutevel De facto o rdquopreconceitordquo (Vorurteil) natildeo quer dizer

necessariamente um falso juiacutezo (Urteil) No seu conceito ele implica que ele

pode ser valorizado positiva ou negativamenterdquo201

Esta criacutetica da Aufklaumlrung ao preconceito liga-se em particular agrave criacutetica agrave

tradiccedilatildeo religiosa e agrave hermenecircutica biacuteblica pretendendo submeter a tradiccedilatildeo

religiosa escrita a um julgamento da razatildeo A hermenecircutica racionalista da

biacuteblia faz da tradiccedilatildeo um objecto de criacutetica exactamente como o faz a ciecircncia

da natureza relativamente aos testemunhos dos sentidos a razatildeo e natildeo a

tradiccedilatildeo eacute o fundamento uacuteltimo da autoridade

Ora esta autonomia absoluta da razatildeo expressa na exigecircncia kantiana ldquoserve-

te do teu proacuteprio entendimentordquo ou ainda na duacutevida metoacutedica cartesiana eacute para

Gadamer um ideal impossiacutevel que ignora a historicidade da razatildeo A

destruiccedilatildeo desta exigecircncia global do iluminismo e a assunccedilatildeo da finitude da

razatildeo assim como de uma consciecircncia histoacuterica satildeo condiccedilotildees imprescindiacuteveis

para a construccedilatildeo de uma hermenecircutica filosoacutefica202

A razatildeo enquanto real e histoacuterica estaacute sempre submetida aos dados sobre os

quais ela exerce a sua acccedilatildeo as grandes realidades histoacutericas a sociedade o

Estado as criaccedilotildees linguiacutesticas dominam as vivecircncias e a experiecircncia fazendo

com que noacutes pertenccedilamos agrave histoacuteria Esta noccedilatildeo de pertenccedila histoacuterica eacute em

Gadamer uma noccedilatildeo chave para compreender aquilo que aqui se entende por

preconceito ldquoMuito antes que noacutes possamos aceder agrave compreensatildeo de noacutes

mesmos pela reflexatildeo sobre o passado noacutes compreendemo-nos

espontaneamente na famiacutelia na sociedade e no Estado em que vivemos O

domiacutenio da subjectividade eacute um espelho deformador A tomada de consciecircncia

do indiviacuteduo por si mesmo natildeo eacute senatildeo a luz treacutemula no ciacuterculo fechado da vida

201

bdquoldquoVorurteileldquo heiβt also dadurch nicht notwendig falsches Urteil In seinem Begriff liegt daβ er

positiv und negativ gewertet werden kannldquo (Ibidem 275) 202

A construccedilatildeo da hermenecircutica gadameriana estaacute fundada natildeo apenas no enfrentamento com o

racionalismo da Aufklaumlrung mas com o Platonismo Gadamer faz remontar a Platatildeo o ldquoesquecimento da

linguagemrdquo (Sprachevergessenheit) que marcou a filosofia no ocidente Cf Jean Grondin ldquoNach

Gadamer wolle Platon naumlmlich zeigen daβ man nicht durch Worte zur Erkenntnis der Dinge gelange Er

wolle sich damit von den Sophisten absetzen die lehren daβ eine Beherrschung der Worte eine

Meisterung der Sachen verbuumlrge Dem gegenuumlber muumlsse sich nach Platon die echte Erkenntnis so weit

wie moumlglich von der Herrschaft der Worte befreien um zu den Dingen selbst dh zu den Ideen zu

streben und zu gelangenldquo (Idem Einfuumlhrung zu Gadamer Tuumlbingen 2000 207208)

145

histoacuterica Eacute por isso que os preconceitos do indiviacuteduo bem mais que os seus

juiacutezos constituem a realidade histoacuterica do seu serrdquo203

O problema hermenecircutico tem pois a sua raiz neste reconhecimento do papel

imprescindiacutevel dos preconceitos historicamente fundados em toda a

interpretaccedilatildeo ldquoeacute necessaacuterio uma reabilitaccedilatildeo fundamental do conceito de

preconceito e um reconhecimento de que existem preconceitos legiacutetimos se

quisermos que seja tomado em conta o modo de ser histoacuterico e finito do

homem Assim para uma verdadeira hermenecircutica histoacuterica torna-se

formulaacutevel uma questatildeo a sua questatildeo gnosioloacutegica central Onde deve

fundamentar-se a legitimaccedilatildeo dos preconceitos O que distingue os

preconceitos legiacutetimos dos incontaacuteveis preconceitos cuja superaccedilatildeo eacute o

indiscutiacutevel objectivo de razatildeo criacuteticardquo204

Gadamer encontra a fundamentaccedilatildeo do preconceito na antecipaccedilatildeo de sentido

imposta pela Vorstruktur da compreensatildeo Contudo essa antecipaccedilatildeo de

sentido que guia a nossa compreensatildeo de um texto natildeo tem como acima

vimos qualquer fundamento na subjectividade individual mas na comunidade

(Gemeinsamkeit) que nos liga agrave tradiccedilatildeo Ora esta comunidade que constitui

aquilo a que chamamos uma tradiccedilatildeo natildeo eacute como vimos aliaacutes em Heidegger

algo de dado mas algo que estaacute em contiacutenua formaccedilatildeo na medida em que

noacutes participamos no acontecimento da sua transmissatildeo205

203

ldquoLange bevor wir uns in der Ruumlckbesinnung selber verstehen verstehen wir uns auf

selbstverstaumlndliche Weise in Familie Gesellschaft und Staat in denen wir leben Der Fokus der

Subjektivitaumlt ist ein Zerrspiegel Die Selbstbesinnung des Individuums ist nur ein Flackern im

geschlossenen Stromkreis des geschichtlichen Lebens Darum sind die Vorurteile des einzelnen weit mehr

als seine Urteile die geschichtliche Wirklichkeit seines Seinsrdquo WuM GW I 281 204

bdquoEs bedarf einer grundsaumltzlichen Rehabilitierung des Begriffs des Vorurteils und einer Anerkennung

dessen daβ es legitime Vorurteile gibt wenn man der endlich-geschichtlichen Seinsweise des Menschen

gerecht werden will Damit wird die fuumlr eine wahrhaft geschichtliche Hermeneutik zentrale Frage ihre

erkenntnistheoretische Grundfrage formulierbar Worin soll die Legitimation von Vorurteilen ihren

Grund finden Was unterscheidet legitime Vorurteile von all den unzaumlhligen Vorurteilen deren

Uumlberwindung das unbestreitbare Anliegen der kritischen Vernunft istldquo (Ibidem 281282) 205

Esta valorizaccedilatildeo da tradiccedilatildeo daacute lugar em Verdade e Meacutetodo agrave reavaliaccedilatildeo da tradiccedilatildeo humanista

pensada como um legado grego sujeito a muacuteltiplas leituras ao longo do tempo e responsaacutevel pela

elaboraccedilatildeo de conceitos como sensus comunis gosto e juiacutezo que permitiriam dar conta da pretensatildeo de

autonomia das ciecircncias humanas Esta tradiccedilatildeo teria entrado em decadecircncia como resultado de uma

estetizaccedilatildeo dos conceitos fundamentais de sensus comunis e gosto levada a cabo por Kant em a Criacutetica da

Faculdade de Julgar Desacreditando todo o conhecimento teoacuterico que natildeo o das ciecircncias da natureza

Kant teria obrigado as ciecircncias humanas a definir-se a si mesmas em torno do paradigma metodoloacutegico

(Cf Jean Grondin Lbdquo universaliteacute de lbdquohermeneutique 163)

146

4 A tradiccedilatildeo

A valorizaccedilatildeo da tradiccedilatildeo eacute uma questatildeo central da hermenecircutica de Gadamer

e assume aiacute um papel distinto daquele que lhe conferia Heidegger para quem

o papel obstrutivo da tradiccedilatildeo metafiacutesica assumia uma importacircncia decisiva

impondo como tarefa o seu enfrentamento desconstrutivo para se poder

aceder agrave riqueza do grande iniacutecio grego

De facto poderiacuteamos dizer que o fasciacutenio dos dois autores pela Greacutecia se

refere a dois legados diferentes num caso procura recuar-se ateacute agraves

possibilidades originaacuterias contidas na indistinccedilatildeo da filosofia religiatildeo e poesia

dos preacute-socraacuteticos no outro estima-se precisamente o momento da afirmaccedilatildeo

da filosofia como atitude teoreacutetica ldquoQue Platatildeo fora mais do que o precursor da

ldquoontoteologia aristoteacutelicardquo nele divisada por Heidegger foi sempre uma certeza

para mim e ainda que a ldquosimples presenccedilardquo (Vorhandenheit) natildeo podia

descrever do mesmo modo a ciecircncia moderna e o seu ideal de objectividade e

por outro lado o pensamento antigo na sua dedicaccedilatildeo agrave theoria Acompanhei

bem pois o Heidegger tardio perguntando pela verdade da arte mas fiz uma

espeacutecie de opccedilatildeo pelos ldquoAntigosrdquo no seu todordquo206

De facto Gadamer interpreta esse passo atraacutes (Schritt zuruumlck) preconizado por

Heidegger em direcccedilatildeo ao iniacutecio desse envio do ser contido no legado grego

como regresso ao modelo dialoacutegico da filosofia platoacutenica e agrave noccedilatildeo aristoteacutelica

de praxis e pensa a Filosofia como rememoraccedilatildeo dessa antiga sabedoria que

lhes estaacute associada207

Em Gadamer o legado grego eacute pensado como uma heranccedila viva que foi

retomada e acrescentada em diversos momentos histoacutericos e que possui por

isso mesmo a continuidade e a autoridade de uma autecircntica tradiccedilatildeo Esse

legado eacute ouvido por noacutes atraveacutes das muacuteltiplas vozes que repetiram e

actualizaram a sabedoria dos primeiros filoacutesofos gregos e para chegar ateacute ele

206

bdquoDaβ Plato mehr war als der Vorbereiter der aristotelischen ldquo Ontoteologierdquo den Heidegger in ihm

sah blieb mir bestaumlndig gewiβ und ebenso daβ bdquoVorhandenheitldquo nicht in der gleichen Weise die

moderne Wissenschaft und ihr Ideal der Objektivitaumlt und auf der anderen Seite das antike Denken in seine

Hingabe an die bdquoTheorialdquo beschreiben konnte So ging ich wohl mit dem spaumlten Heidegger mit indem ich

nach der Wahrheit in der Kunst fragte vollzog aber zugleich eine Art Option fuumlr die bdquoAltenldquo insgesamtldquo

(Gadamer Das Erbe Europas Frankfurt am Main 1989 170) 207

bdquoHier sind wir bei dem was wir Praxis nennen Praxis ist dabei nicht in jenem theoretischen Sinne zu

verstehen in dem sie nichts als Anwendung von Theorie ist Es geht um Praxis in einem urspruumlnglichen

Sinne in jenem griechischen Sinne in dem Praxis einen ndash ich haumltte fast gesagt ndash inaktiven Sinn hatte Ein

griechischer Brief schloβ mit der Wendung εὖ πράηηεηλ was man uumlbersetzt bdquoLaβ es dir gutgehenldquo Wie es

einem geht das ist mit Praxis gemeint Ob es nun gut - ob es auch schlechtgeht jedenfalls daβ es einem

irgendwie geht daβ wir also nicht Meister und Herren unserer Lebenslage sind []ldquo (Ibidem 24)

147

eacute imprescindiacutevel ouvir a tradiccedilatildeo humanista da qual ele fazia uma interpretaccedilatildeo

muito diversa da de Heidegger A posiccedilatildeo de Gadamer face agrave tradiccedilatildeo

humanista afasta-se radicalmente da posiccedilatildeo de Heidegger que se encontra

fundamentada na Carta sobre o Humanismo de 1946

A tradiccedilatildeo humanista assume pelo contraacuterio em Gadamer uma importacircncia

fundamental natildeo apenas porque ela retoma aspectos essenciais do legado

grego mas porque os retoma em conexatildeo com o acircmbito daquilo que entre noacutes

eacute designado de ldquohumanidadesrdquo e que no pensamento de liacutengua alematilde se

designa de ldquociecircncias do espiacuteritordquo

Gadamer pretende fundamentar a possibilidade de autonomia do acircmbito do

saber relativo ao homem e agrave sua acccedilatildeo restringindo ndash como Kant - as

pretensotildees do entendimento legislador da natureza e demonstrando que este

se fundamenta numa visatildeo unilateral e meramente teacutecnica da compreensatildeo

Embora partindo de Dilthey Gadamer considera-o ainda prisioneiro das

concepccedilotildees metodoloacutegicas das ciecircncias da natureza e procura mostrar que o

problema do conhecimento das ciecircncias humanas natildeo eacute um problema de

meacutetodo mas sim de redescobrir uma ideia de sabedoria inerente agraves antigas

tradiccedilotildees como a arte a filosofia praacutetica a retoacuterica que se fundamentam numa

concepccedilatildeo natildeo instrumental da compreensatildeo (Verstehen)

Assim Gadamer afirma que o que constitui a cientificidade das ciecircncias

humanas natildeo se encontra na ideia de meacutetodo da ciecircncia moderna mas na

tradiccedilatildeo humanista ldquoO que constitui a cientificidade das ciecircncias do espiacuterito

deixa-se compreender melhor a partir da tradiccedilatildeo do conceito de cultura

[Bildung] do que a partir da ideia de meacutetodo da ciecircncia moderna Eacute a tradiccedilatildeo

humanista agrave qual noacutes somos reconduzidos Ela ganha na discussatildeo contra as

exigecircncias da ciecircncia moderna um novo significadordquo208

A tradiccedilatildeo humanista nascida do renascimento italiano e a sua concepccedilatildeo de

cultura (Bildung) como meio de afirmaccedilatildeo da humanidade do homem

representa para Gadamer uma recuperaccedilatildeo desta ideia de sabedoria tatildeo

importante no pensamento grego Um aspecto caracteriacutestico deste conceito de

cultura como Bildung eacute que ele prescreve a tarefa (Bildungsaufgabe) da

formaccedilatildeo humana como o elevar do homem acima do particularismo e fazecirc-lo

208

ldquoWas die Geisteswissenschaften zu Wissenschaften macht laumlβt sich eher aus der Tradition des

Bildungsbegriffes verstehen als aus der Methodenidee der modernen Wissenschaft Es ist die

humanistische Tradition auf die wir zuruumlckverwiesen werden Sie gewinnt im Widerstand gegen die

Anspruumlche der modernen Wissenschaft eine neue Bedeutungldquo WuM GW I 23

148

aceder agrave generalidade Na Fenomenologia do Espiacuterito em torno da dialeacutectica

do senhor e do escravo Hegel aponta como determinaccedilatildeo fundamental do

espiacuterito reconhecer-se a si mesmo no seu ser-outro ldquoJaacute nesta descriccedilatildeo da

cultura praacutetica em Hegel reconhecemos a determinaccedilatildeo fundamental do

espiacuterito histoacuterico reconciliar-se consigo mesmo reconhecer-se no seu ser-

outrordquo209

Gadamer encontra aqui a essecircncia da cultura - a construccedilatildeo de um sentido

geral e comum pelo encontro com a alteridade tarefa que estava subjacente

ao ideal grego de sabedoria mas que necessariamente escapa ao conceito

moderno de ciecircncia e aos conceitos metodoloacutegicos com ela ligados Eacute nesta

tarefa que Gadamer vecirc o verdadeiro fundamento das Geisteswissenschaften

ldquoQue nas ciecircncias do espiacuterito apesar de toda a metodologia da sua

investigaccedilatildeo actua a influecircncia da tradiccedilatildeo que eacute a sua proacutepria essecircncia e o

seu caraacutecter distintivo tornar-se-aacute claro quando noacutes nos ocuparmos da histoacuteria

da investigaccedilatildeo e prestarmos atenccedilatildeo agrave diferenccedila que existe entre a histoacuteria da

ciecircncia no acircmbito das ciecircncias do espiacuterito e das ciecircncias humanasrdquo210

O que Gadamer demonstra eacute que assumir positivamente o ciacuterculo

hermenecircutico eacute apropriar-se duma possibilidade de compreensatildeo

desenvolvendo e actualizando as possibilidades que se encontram inscritas na

tradiccedilatildeo A tradiccedilatildeo significa um horizonte normativo em que podemos fundar a

seguranccedila de um projecto de investigaccedilatildeo relativo agrave acccedilatildeo humana e agraves suas

criaccedilotildees

A preacute-compreensatildeo que guia o trabalho do inteacuterprete eacute em primeiro lugar a

sua proacutepria expectativa de sentido relativamente ao assunto de que trata o

texto expectativa transcendente em relaccedilatildeo a este e a partir da qual pode ser

compreendido o seu sentido imanente Esta constataccedilatildeo de que entre o

inteacuterprete e o texto se visa ldquoa mesma coisardquo remete para a tradiccedilatildeo em que

ambos se inscrevem Quem quer compreender tem uma ligaccedilatildeo ao assunto

que se exprime no texto devido agrave tradiccedilatildeo e articula-se consciente ou

209

bdquoSchon an dieser Beschreibung der praktischen Bildung durch Hegel erkennt man die

Grundbestimmung des geschichtlichen Geistes sich mit sich selbst zu versoumlhnen sich selbst zu erkennen

im Andersseinldquo (Ibidem 19) 210

ldquoDaβ in den Geisteswissenschaften trotz aller Methodik ihres Verfahrens ein Einschlag von Tradition

wirksam ist der ihr eigentliches Wesen ist und ihre Auszeichnung ausmacht wird sofort deutlich wenn

wir die Geschichte der Forschung ins Auge fassen und auf den Unterschied achten der zwischen der

Wissenschaftsgeschichte auf dem Gebiete der Geisteswissenschaften und dem der Naturwissenschaften

bestehtldquo (Ibidem 287-288)

149

inconscientemente a essa tradiccedilatildeo e aos muacuteltiplos actos de fala que constituem

a sua transmissatildeo

Esta vinculaccedilatildeo deve ser entendida em termos natildeo psicoloacutegicos mas

hermenecircuticos como uma vinculaccedilatildeo ao dito ou seja agrave linguagem em que a

tradiccedilatildeo se nos dirige agrave saga (Die Sage) que ela nos conta211 Este facto

aparentemente ldquoevidenterdquo de que a tradiccedilatildeo se dirige a noacutes atraveacutes do dito e

que esse dito seja sempre em cada caso o de uma liacutengua determinada tem

para o assunto que investigamos uma importacircncia relevante

De facto se esta vinculaccedilatildeo agrave tradiccedilatildeo segundo Gadamer implica sempre

uma tensatildeo entre a familiaridade e a estranheza entre a objectividade distante

do saber histoacuterico e a pertenccedila esse jogo entre familiaridade e estranheza eacute

fortemente condicionado pela liacutengua em que eacute contada a ldquosagardquo da tradiccedilatildeo

uma tradiccedilatildeo que nos fala em latim fala-nos a noacutes falantes das liacutenguas latinas

a partir do lugar da origem das nossas proacuteprias liacutenguas com as palavras que

forjaram o nosso mundo impondo-se-nos com uma autoridade que natildeo poderaacute

em nenhum caso ser ignorada

Eacute segundo Gadamer entre a familiaridade e a estranheza que a hermenecircutica

tem o seu lugar ldquoEla joga entre estranheza e familiaridade que a tradiccedilatildeo tem

para noacutes entre a dita objectividade histoacuterica distante e a pertenccedila a uma

tradiccedilatildeo212 Neste entre eacute o verdadeiro lugar da hermenecircuticardquo213

5 A produtividade da distacircncia temporal

A hermenecircutica deve limitar-se a esclarecer as condiccedilotildees nas quais ocorre a

interpretaccedilatildeo condiccedilotildees estas que satildeo dadas ao inteacuterprete e natildeo objecto de

escolha ou de decisatildeo os preconceitos e os pressupostos do inteacuterprete natildeo

211

Gadamer renovou a compreensatildeo da linguagem como Ereignis a partir a ideia cristatilde de Encarnaccedilatildeo

tematizada em De Trinitate por S Agostinho O dogma da Encarnaccedilatildeo forneceu-lhe o modelo teoacuterico

para a compreensatildeo da pertenccedila recigraveproca e entre ldquosentido inteligigravevelrdquo e ldquopalavrardquo sensigravevel assim como

para a compreensatildeo do caraacutecter de um ldquoacontecer ldquo que tem o ldquotornar-se carnal ldquo do sentido Para

Gadamer o acontecer do sentido soacute eacute possiacutevel graccedilas agrave materialidade das suas muacuteltiplas apariccedilotildees e natildeo

pode ser delas isolado no entanto entre o ser material da palavra e o sentido que a anima haacute uma tensatildeo e

natildeo uma perfeita identidade (Cf Jean Grondin ob cit 213-216) 212

Joatildeo Paisana critica Gadamer por abolir a distinccedilatildeo entre tradiccedilatildeo e consciecircncia histoacuterica por efeito do

seu tradicionalismo Com efeito para o filoacutesofo portuguecircs a tradiccedilatildeo desempenha um papel determinante

na situaccedilatildeo hermenecircutica mas a consciecircncia histoacuterica soacute pode ser ganha na tarefa hermenecircutica de

exegese dos textos que implica sempre o questionamento ou seja o momento negativo e destrutivo da

proacutepria tradiccedilatildeo Idem Histoacuteria da Filosofia e Tradiccedilatildeo Filosoacutefica 24-25 213

bdquoSie spielt zwischen Fremdheit und Vertrautheit die die Uumlberlieferung fuumlr uns hat zwischen der

historisch gemeinten abstaumlndigen Gegenstaumlndlichkeit und der Zugehoumlrigkeit zu einer Tradition In diesen

Zwischen ist der wahre Ort der Hermeneutikldquo (WuM GW I 300)

150

estatildeo agrave sua livre disposiccedilatildeo nem ele estaacute agrave partida em condiccedilotildees de fazer uma

distinccedilatildeo entre preconceitos positivos e fecundos e negativos e obstrutivos

Natildeo podendo o acto de interpretar ser livre de preconceitos deve apenas

interessar a uma teoria hermenecircutica mostrar o modo como na consciecircncia do

inteacuterprete acontece esta separaccedilatildeo entre os pressupostos negativos que

determinam uma incompreensatildeo e os positivos que podem desempenhar um

papel fecundo esta separaccedilatildeo (Scheidung) pode acontecer precisamente

porque esse ldquoentreldquo no qual se move o trabalho do tradutor ou do inteacuterprete eacute a

distacircncia temporal entre o seu presente histoacuterico e o do texto a interpretar

Entre o inteacuterprete e o texto haacute sempre uma diferenccedila insuperaacutevel e ela resulta

da distacircncia histoacuterica que os separa Ora essa distacircncia histoacuterica natildeo eacute para

Gadamer um obstaacuteculo mas uma distacircncia produtiva que permite o

desdobramento e a amplificaccedilatildeo do sentido de um texto ldquoO sentido de um

texto ultrapassa o autor natildeo ocasionalmente mas sempre Eacute por isso que a

compreensatildeo eacute uma atitude natildeo unicamente reprodutiva mas produtivardquo214

Esta produtividade hermenecircutica da distacircncia temporal natildeo consiste no entanto

em que futuro inteacuterprete ldquocompreenda melhorrdquo isto eacute de modo mais claro ou

mais consciente face a um acto de criaccedilatildeo inconsciente mas sim no facto que

compreender necessariamente ldquode modo diferenterdquo o que faz com que a

autecircntica interpretaccedilatildeo nunca possa simplesmente mover-se no jaacute interpretado

mas pelo contraacuterio surja apenas quando jaacute natildeo podemos interpretar do

mesmo modo ou quando haacute uma expectativa defraudada de sentido

A interpretaccedilatildeo resulta das decisotildees (Entscheidungen) hermenecircuticas do

inteacuterprete que longe de serem casuais ou arbitraacuterias consistem antes de mais

nessa separaccedilatildeo (Scheidung) entre os preconceitos positivos e negativos que

se encontram inscritos na sua situaccedilatildeo hermenecircutica e que limitam e

restringem as suas possibilidades Eacute a proacutepria distacircncia temporal que permite

que se processe essa separaccedilatildeo ao confrontar o inteacuterprete com um texto do

passado ela confronta-o com a origem histoacuterica dos seus proacuteprios

pressupostos e permite a separaccedilatildeo entre preconceitos puramente subjectivos

ligados agraves modas ou agraves ideologias dominantes no seu presente histoacuterico e

214

ldquoNicht nur gelegentlich sondern immer uumlbertrifft der Sinn eines Textes seinen Autor Daher ist

Verstehen kein nur reproduktives sondern stets auch ein produktives Verhaltenrdquo (Ibidem 301)

151

aqueles que falam com a autoridade da voz da tradiccedilatildeo e que assim podem

ser escutados na sua alteridade

Esta suspensatildeo do proacuteprio preconceito natildeo eacute possiacutevel para Gadamer sem

esse encontro com a tradiccedilatildeo ldquoPois enquanto um preconceito nos determina

noacutes natildeo sabemos que eacute um juiacutezo e natildeo eacute como tal que o tomamos em

consideraccedilatildeo Como pode ele ser posto em evidecircncia como tal Enquanto um

preconceito estiver em jogo constante e imperceptivelmente noacutes natildeo

conseguimos por assim dizer trazecirc-lo diante de noacutes Para isso eacute preciso

provocaacute-lo de algum modo Ora o que o pode provocar eacute o encontro com a

tradiccedilatildeordquo215

Embora natildeo seja claro o modo como o encontro com a tradiccedilatildeo permite

superar os preconceitos negativos podemos tentar compreender este processo

agrave luz do que acima referimos o encontro com a tradiccedilatildeo humanista permitiria

na perspectiva de Gadamer eliminar os preconceitos metodoloacutegicos que

pesavam sobre as ciecircncias humanas

A suspensatildeo dos proacuteprios preconceitos natildeo significa no entanto o seu

abandono significa que satildeo postos em questatildeo e confrontados com um outro

ou com o que o texto nos diz Soacute entatildeo os preconceitos podem estar

verdadeiramente em jogo e assim permitir que a pretensatildeo do outro agrave

verdade216 seja reconhecida como tal e entre tambeacutem em jogo

Esta confrontaccedilatildeo com os textos que constituem a nossa tradiccedilatildeo tem assim

para Gadamer um efeito propedecircutico o duplo efeito de filtrar os preconceitos

prejudiciais e negativos de natureza puramente subjectiva e de evidenciar o

peso da tradiccedilatildeo Do mesmo modo a distacircncia temporal esse ldquoentrerdquo onde se

desenrola o trabalho hermenecircutico do tradutor e do inteacuterprete que se ocupa do

passado longiacutenquo longe de ser um inconveniente ou um abismo insuperaacutevel

215

ldquoDenn solange ein Vorurteil uns bestimmt wissen und bedenken wir es nicht als Urteil Wie soll es als

solches zur Abhebung kommen Ein Vorurteil gleichsam vor sich zu bringen kann nicht gelingen

solange dies Vorurteil bestaumlndig und unbemerkt im Spiele ist sondern nur dann wenn es so zusagen

gereizt wird Was so zu reizen vermag ist eben die Begegnung mit der Uumlberlieferungrdquo (Ibidem 304) 216

Jean Grondin sublinha que Gadamer vecirc a verdade como adequaccedilatildeo mas interpreta essa a adequaccedilatildeo

como o movimentar-se do inteacuterprete na justa direcccedilatildeo do texto devendo essa direcccedilatildeo ser aferida de

acordo com o proacuteprio texto a interpretar O tipo de adequaccedilatildeo que aqui estaacute em causa eacute uma concordacircncia

idecircntica agrave que se verifica entre uma interpretaccedilatildeo musical e a pauta a interpretar ldquoDie recht verstandene

adaequatio vergiβt also nie diese konstitutive Bewegung des Verstehenden auf die Sache zu Die hier

einschlaumlgigen Ideen von Uumlbereinstimmung Einklang Konkordanz Konsonanz verdeutlichen es mit

allem Nachdruck die Wahrheit ist eine Sache von Uumlbereinstimmung im nahezu musikalischen Sinne

insofern der Verstehende mit der Interpretandum zusammenstimmtbdquo (Idem Einfuumlhrung zu Gadamer

136137)

152

eacute uma distacircncia produtiva capaz de produzir novas conexotildees de sentido

fazendo nascer novas fontes de compreensatildeo que guiam uma compreensatildeo

verdadeira

A tradiccedilatildeo apresenta-se deste modo como um processo essencialmente plural

e aberto capaz de desvendar novas conexotildees de sentido e natildeo como

anquilosamento e obstaacuteculo no acesso agrave origem como Heidegger sublinhara

ldquoA distacircncia temporal tem evidentemente ainda um outro sentido que natildeo o da

extinccedilatildeo do apropriado interesse no objecto Ela deixa o verdadeiro sentido

que um assunto conteacutem pocircr-se pela primeira vez a descoberto O transbordar

do verdadeiro sentido que estaacute contido num texto ou numa criaccedilatildeo artiacutestica

nunca chega a uma conclusatildeo mas eacute na verdade um processo interminaacutevel

Natildeo apenas satildeo excluiacutedas novas fontes de erro de modo a que o verdadeiro

sentido seja filtrado dos muacuteltiplos encobrimentos mas surgem constantemente

novas fontes de compreensatildeo que abrem insupostas relaccedilotildees de sentidoldquo217

6 A fusatildeo de horizontes e a alteridade

Para Gadamer esta produtividade da distacircncia temporal soacute se verifica no

entanto na condiccedilatildeo de que a consciecircncia hermenecircutica esteja consciente da

sua proacutepria historicidade - esta consciecircncia histoacuterica eacute aquilo a que ele chama

consciecircncia da histoacuteria efectual218

A histoacuteria efectual consiste no facto de que quando procuramos compreender

um fenoacutemeno histoacuterico noacutes estamos sempre sujeitos aos efeitos desse

217

bdquoDer zeitliche Abstand hat offenbar noch einen anderen Sinn als den der Abtoumltung des eigenen

Interesses am Gegenstand Er laumlβt den wahren Sinn der in einer Sache liegt erst voll herauskommen Die

Ausschoumlpfung des wahren Sinnes aber der in einem Text oder in einer kuumlnstlerischen Schoumlpfung gelegen

ist kommt nicht irgendwo zum Abschluβ sondern ist in Wahrheit ein unendlicher Prozeβ Es werden

nicht nur immer neue Fehlerquellen ausgeschaltet so daβ der wahre Sinn aus allerlei Truumlbungen

herausgefiltert wird sondern es entspringen stets neue Quellen des Verstaumlndnisses die ungeahnte

Sinnbezuumlge offenbarenldquo WuM GW I 303 218

A expressatildeo bdquoWirkungsgeschichteldquo existia desde o seacuteculo XIX onde comeccedilou a ser usada por aquelas

disciplinas que se interessavam pela investigaccedilatildeo histoacuterica dos efeitos da recepccedilatildeo de uma obra ou de um

acontecimento histoacuterico A investigaccedilatildeo visava a separaccedilatildeo entre a obra e a histoacuteria dos seus efeitos para

poder investigaacute-los de modo ldquoobjectivordquo pressupondo que a consciecircncia histoacuterica poderia emancipar-se

dos efeitos dessa histoacuteria efectual O conceito de Gadamer de ldquoWirkungsgeschichterdquo foi construigravedo contra

este pressuposto duma consciecircncia histoacuterica ldquoobjectivardquo e livre de pressupostos implicando pelo

contraacuterio uma consciecircncia histoacuterica que se sabe sob os efeitos daquilo que interpreta ldquoDas Wort

ldquoWirkungrdquo unterstreicht hier daβ diese Geschichte auch da am Werke ist wo sie nicht vermutet oder

wahrgenommen wird Es ist in diesem Zusammenhang ein schoumlnes Wort weil es im Deutschen sowohl

den Wirkungsprozeβ (also die wirkende Geschichte) als auch sein Produkt (die Geschichte aber auch

unser Bewuβtsein) bezeichnet Die Vorurteile des einzelnen die bdquoweit mehr als seine Urteile die

geschichtliche Wirklichkeit seines Seinsldquo (WuM 281) ausmachen sind das Werk der

Wirkungsgeschichteldquo (Jean Grondin Einfuumlhrung zu Gadamer 145)

153

fenoacutemeno que queremos entender ldquoQuando noacutes procuramos compreender um

fenoacutemeno histoacuterico a partir da distacircncia histoacuterica determinante no conjunto para

a nossa situaccedilatildeo hermenecircutica noacutes estamos jaacute sob os efeitos da histoacuteria

efectualrdquo219

Esta histoacuteria efectual determina antecipadamente o que pode apresentar-se

como problema e ser constituiacutedo como objecto de investigaccedilatildeo e a sua acccedilatildeo

natildeo depende de modo algum do grau de consciecircncia que temos dela impondo-

se mesmo que o investigador tenha a ilusatildeo da autonomia da sua razatildeo e da

objectividade da sua investigaccedilatildeo220

A consciecircncia proacutepria da histoacuteria efectual eacute por isso mesmo imprescindiacutevel e

identifica-se com a consciecircncia da ldquosituaccedilatildeo hermenecircuticardquo em que se encontra

imerso o inteacuterprete a situaccedilatildeo hermenecircutica eacute determinada pelos preconceitos

que levamos connosco e constitui o horizonte do presente histoacuterico Ela eacute o ldquoaiacuterdquo

em que se situa o inteacuterprete e que delimita uma perspectiva ou um ponto de

vista isto eacute um horizonte ldquoO que define o conceito de situaccedilatildeo eacute precisamente

o facto de que ela representa um lugar onde se estaacute e que limita as

possibilidades de visatildeo Eacute por isso que o conceito de horizonte estaacute

essencialmente ligado ao de situaccedilatildeo O horizonte eacute o campo de visatildeo que

compreende e inclui tudo o que se pode ver de um ponto precisordquo221

A situaccedilatildeo hermenecircutica delimita um horizonte que por um lado abre uma

possibilidade de visatildeo por outro lado tem um efeito restritivo limitando esse

campo de visatildeo assim o horizonte determina antecipadamente os problemas

219

bdquoWenn wir aus der fuumlr unsere hermeneutische Situation im ganzen bestimmenden historischen Distanz

eine historische Erscheinung zu verstehen suchen unterliegen wir immer bereits den Wirkungen der

Wirkungsgeschichteldquo (WuM GW I 305) 220

Cf Richard T Gray em ldquoUumlbersetzung als Wirkungsgeschichterdquo O autor defende a existecircncia de vaacuterias

Wirkungsgeschichte actuando em simultacircneo sob a forma de diferentes tradiccedilotildees hermenecircuticas

propondo distintas interpretaccedilotildees para um mesmo texto e reflecte sobre os problemas que tal facto coloca

agrave tarefa do tradutor designadamente na fixaccedilatildeo de um simples glossaacuterio bdquoDie Erfahrung fuumlhrte uns zu

der Einsicht daβ der wirkungsgeschichtliche Zusammenhang in dem Uumlbersetzer arbeiten deshalb

wesentlich komplexer ist als der in dem Herausgeber primaumlrer Texte arbeiten weil beim Uumlbersetzen eine

vielschichtige Uumlbersetzungsgeschichte mitgedacht werden muβ Die Uumlbersetzungspraxis befindet sich

also im Schnittpunkt mehrerer Wirkungsgeschichten sie ist nicht nur von der Rezeptionstradition des

Originaltextes bedingt sondern auch von bestimmten Uumlbersetzungstraditionen die ihrerseits wiederum

verschiedene Wirkungsgeschichten konkretisieren und bestimmenrdquo (Idem art cit in Goumlttinger Beitraumlge

zur Internationalen Uumlbersetzungsforschung Berlin Erich Schmidt Verlag 1993 686) 221

bdquoWir bestimmen den Begriff der Situation eben dadurch daβ sie einen Standort darstellt der die

Moumlglichkeiten des Sehens beschraumlnkt Zum Begriff der Situation gehoumlrt daher wesenhaft der Begriff des

Horizontes Horizont ist der Gesichtskreis der all das umfaβt und umschlieβt was von einem Punkt aus

sichtbar istldquo WuM GW I 307

154

e o objecto de investigaccedilatildeo e por isso mesmo encobre e dissimula uma parte

da realidade

Eacute a partir desta tomada de posse do proacuteprio horizonte hermenecircutico que

podemos compreender adequadamente um texto da tradiccedilatildeo na sua verdade

isto eacute enquanto ele eacute mais do que algo ldquohistoacutericordquo mas pelo contraacuterio eacute

portador de um sentido ou de uma verdade capaz de impor-se a si mesma

Heidegger afirma repetidamente que o inteacuterprete deve admitir a alteridade do

texto procurando compreendecirc-lo a partir do seu proacuteprio horizonte histoacuterico-

linguiacutestico e colocando-se no lugar do outro

Na realidade a reconstruccedilatildeo do horizonte histoacuterico natildeo eacute nunca o objectivo

uacuteltimo do trabalho hermenecircutico mas um momento do processo da

compreensatildeo222

Toda a interpretaccedilatildeo se desenrola entre dois horizontes Se o inteacuterprete estaacute

mergulhado numa situaccedilatildeo hermenecircutica determinada pelos preconceitos que

ela transporta consigo impondo um horizonte que circunscreve o que podemos

ver esse horizonte eacute contudo moacutevel e aberto alargando-se no confronto com o

passado De facto soacute tomamos posse do proacuteprio horizonte no confronto com o

passado e com a tradiccedilatildeo agrave qual pertencemos ldquoNa verdade o horizonte ao

qual pertencemos estaacute em constante formaccedilatildeo na medida em que temos que

pocircr agrave prova constantemente todos os nossos preconceitos A um tal pocircr agrave

prova pertence natildeo em uacuteltimo lugar o encontro com o passado e o

compreender da tradiccedilatildeo da qual viemos O horizonte do presente natildeo se

constroacutei sem o passadordquo223

222

Cf Richard T Gray sublinha que a hermenecircutica de Gadamer mostra que eacute impossiacutevel toda a traduccedilatildeo

ldquoobjectivardquo de um texto pois reconhece a existecircncia de um abismo entre o contexto histoacuterico e cultural a

que pertence um texto do passado e o presente histoacuterico do seu inteacuterprete e que em vez da tentativa de

transpor esse abismo ele apela para uma apropriaccedilatildeo e actualizaccedilatildeo do sentido texto ldquoDamit setzt

Gadamer seine ldquophilosophischerdquo Hermeneutik die sich als allgemeine Theorie des

geisteswissenschaftlichen Verstehens begreift von einer auf ldquoobjektiverdquo Wiedergabe zielenden

Einfuumlhlungshermeneutik ab Dieser Unterschied laumlβt sich vielleicht am einfachsten so erklaumlren Der

Einfuumlhlungshermeneutiker ist bemuumlht den in von seinem Originaltext trennenden kulturellen und

geschichtlichen Abgrund auf die Weise zu uumlberbruumlcken daβ er die Bedingungen aus denen der Text

entstanden ist zu rekonstruieren und sich quasi in den Geist des Autors zuruumlckzuversetzen versucht der

philosophische Hermeneutiker erkannt diesen Abgrund unuumlberbruumlckbar bzw vergangene

kulturhistorische Umstaumlnde als unwiederbringbar an und versucht den Originaltext sozusagen ein neuen

Geist einzuhauchen indem er ihn bewuβt auf seine eigene aktuelle geschichtlich-kulturelle Situation

beziehtrdquo (Ob cit 687) 223

bdquoIn Wahrheit ist der Horizont der Gegenwart in steter Bildung begriffen sofern wir alle unsere

Vorurteile staumlndig erproben muumlssen Zu solcher Erprobung gehoumlrt nicht zuletzt die Begegnung mit der

Vergangenheit und das Verstehen der Uumlberlieferung aus der wir kommenldquo WuM GW I 311

155

Do mesmo modo tambeacutem natildeo haacute um horizonte histoacuterico em si a que pertenccedila

o texto a interpretar na sua alteridade e de que possamos apoderar-nos Trata-

se antes de nos transportarmos para esse horizonte natildeo para coincidir com a

alteridade do texto mas para conscientes dessa alteridade nos elevarmos a

uma generalidade mais alta

Assim o trabalho hermenecircutico cumpre-se como uma fusatildeo de horizontes

(Horizontsverschmeltzung) ―Haacute tatildeo pouco um horizonte presente para si como

haacute um horizonte histoacuterico que o homem teria que ganhar O Compreender eacute

muito mais o acontecer de uma fusatildeo de tais horizontes supostamente

existentes para si mesmosrdquo224

Essa fusatildeo de horizontes processa-se constantemente de forma espontacircnea e

natildeo controlada fazendo-nos cair na tradiccedilatildeo e deixando que ela nos imponha

ideias e teorias que obscurecem e distorcem aquilo que se trata de interpretar

por influecircncia dos preconceitos negativos e subjectivos

A realizaccedilatildeo controlada deste processo eacute para Gadamer o problema central

de toda a hermenecircutica e eacute ela que permite uma apropriada interpretaccedilatildeo A

realizaccedilatildeo dessa tarefa hermenecircutica implica a confrontaccedilatildeo de horizontes por

um lado como processo de distinccedilatildeo (Abhebung) que os destaca um do outro

e os confronta na sua alteridade por outro lado como a sua fusatildeo e a

superaccedilatildeo dessa alteridade (Aufhebung) Trata-se de um processo dialeacutectico

cujo resultado uacuteltimo eacute uma crescente mobilidade e alargamento do nosso

horizonte de compreensatildeo

A interpretaccedilatildeo eacute uma tarefa onde a subjectividade do inteacuterprete natildeo tem

relevacircncia pois o seu papel eacute servir de instrumento e mediador do proacuteprio

processo de transmissatildeo da tradiccedilatildeo225 ldquoO proacuteprio compreender deve ser

pensado menos como uma acccedilatildeo da subjectividade que como inserccedilatildeo no

224

bdquoEs gibt so wenig einen Gegenwartshorizont fuumlr sich wie es historische Horizonte gibt die man zu

gewinnen haumltte Vielmehr ist Verstehen immer der Vorgang der Verschmelzung solcher vermeintlich fuumlr

sich seiender Horizonteldquo (Ibidem 311) 225

Cf Jean Grondin em LacuteUniversaliteacute de lbdquohermeacuteneutique Paris 1993 169 ldquoOccupant une position

intermeacutediaire entre l‟auto-effacement de l‟interpregravete postuleacute par le positivisme et le perspectivisme

geacuteneacuteraliseacute de Nietzsche Gadamer se fait dans la ligneacutee de Heidegger le deacutefenseur d‟une compreacutehension

critique et historiquement reacutefleacutechiebdquo

156

processo de transmissatildeo onde se mediatizam constantemente o passado e o

presenterdquo226

Este processo de mediaccedilatildeo entre o passado e o presente que ocorre quando

interpretamos textos do passado tem para Gadamer uma natureza dialeacutectica

inteiramente extensiacutevel ao processo que ocorre na interpretaccedilatildeo e na traduccedilatildeo

inter-linguiacutestica Assim as diversas aberturas de mundo inerentes agraves vaacuterias

liacutenguas histoacutericas impotildeem uma tradiccedilatildeo hermenecircutica e um horizonte de

compreensatildeo restritivo que no entanto se caracteriza pela sua mobilidade e

abertura ldquoTal como o indiviacuteduo natildeo eacute nunca um indiviacuteduo isolado porque se

entende sempre jaacute com os outros do mesmo modo o horizonte fechado que

circunscreve uma civilizaccedilatildeo eacute uma abstracccedilatildeo A mobilidade histoacuterica do

Dasein humano eacute precisamente constituiacuteda pelo facto que ele natildeo estaacute

absolutamente preso a um lugar que ele nunca tem um horizonte

verdadeiramente fechado O horizonte eacute pelo contraacuterio qualquer coisa na qual

noacutes penetramos progressivamente e que se desloca connosco Para aquele

que se move os horizontes mudamrdquo 227

Esta acentuaccedilatildeo da mobilidade histoacuterica do Dasein tem em Gadamer a sua

perfeita correspondecircncia na acentuaccedilatildeo da natureza dialoacutegica da linguagem

em que ele vecirc o caminho para a superaccedilatildeo da metafiacutesica Assim Gadamer

afirma ldquoA minha ideia eacute que nenhuma linguagem conceptual nem sequer o

que Heidegger chama ldquolinguagem da metafiacutesicardquo significa uma fascinaccedilatildeo

irremediaacutevel para o pensamento supondo que o pensador se confie agrave

linguagem isto eacute entre em diaacutelogo com outros pensadores e com pessoas que

pensam de modo diferente Por isso aceitando totalmente a criacutetica ao conceito

de subjectividade feita por Heidegger conceito no qual mostrou a

sobrevivecircncia da ideia de substacircncia busquei detectar no diaacutelogo o fenoacutemeno

originaacuterio da linguagemrdquo228

226

ldquoDas Verstehen ist selber nicht so sehr als eine Handlung der Subjektivitaumlt zu denken sondern als

Einruumlcken in ein Uumlberlieferungsgeschehen in dem sich Vergangenheit und Gegenwart bestaumlndig

vermittelnrdquo (WuM GW I 295) 227

ldquoWie der Einzelne nie ein Einzelner ist weil er sich immer schon mit anderen versteht so ist auch der

geschlossene Horizont der eine Kultur einschlieβen soll eine Abstraktion Es macht die geschichtliche

Bewegtheit des menschlichen Daseins aus das es keine schlechthinnige Standortgebundenheit besitzt und

daher auch niemals einen wahrhaft geschlossenen Horizont Der Horizont ist vielmehr etwas in das wir

hineinwandern und das mit uns mitwandert Dem Beweglichen verschieben sich die Horizonteldquo (Ibidem

309) 228

ldquoMeine eigene Einsicht scheint nur daβ keine Begriffssprache auch nicht die von Heidegger

sogenannte ldquoSprache der Metaphysikrdquo einen unbrechbaren Bann fuumlr das Denken bedeutet wen sich nur

157

Assim Gadamer leva a cabo uma reinterpretaccedilatildeo hermenecircutica da dialeacutectica

que valoriza o confronto com a alteridade como meio de revelar e desfazer a

clausura e o estreitamento do proacuteprio horizonte Aceitando a alteridade do texto

e arriscando-se ao diaacutelogo com ele podemos construir uma mediaccedilatildeo para a

opacidade do outro recriando ao mesmo tempo um sentido comum229

7 O conceito hermenecircutico de texto

Eacute agrave luz do paradigma hermenecircutico aqui esboccedilado que Gadamer pensa a

natureza do texto O conceito hermenecircutico de texto implica que ele tem que

ser pensado em conexatildeo com o de interpretaccedilatildeo o que caracteriza o conceito

de texto eacute que ele somente aparece agrave compreensatildeo no contexto da

interpretaccedilatildeo Sempre que uma presunccedilatildeo primaacuteria de sentido eacute defraudada

pela resistecircncia de algo surge a referecircncia hermenecircutica ao ldquotextordquo e este

aparece como uma realidade face agrave necessidade da tarefa de interpretaccedilatildeo

O texto eacute visto por Gadamer como um conceito hermenecircutico e natildeo a partir da

perspectiva da gramaacutetica e da linguiacutestica que visam aclarar os mecanismos de

funcionamento da linguagem deixando de lado o sentido Considerado do

ponto de vista hermenecircutico o texto eacute uma fase do acontecer da compreensatildeo

que encerra o isolamento inerente agrave fixaccedilatildeo pela escrita mas que porque tem

em vista a comunicaccedilatildeo do sentido tem que ser legiacutevel e visa necessariamente

o outro

Assim a compreensatildeo dum texto depende de condiccedilotildees de comunicaccedilatildeo que

ultrapassam o que nele estaacute dito implicando em cada caso uma peculiar

situaccedilatildeo de consenso O conceito de texto implica para Gadamer a referecircncia

a um consenso problemaacutetico natildeo haacute propriamente texto quando ele notifica

der Denkende der Sprache anvertraut und das heiβt wen er in den Dialog mit anderen Denkenden und

mit anders Denkenden sich einlaumlβt In voller Anerkennung der durch Heidegger geleisteten Kritik am

Subjektsbegriff dem er seinen Hintergrund von Substanz nachwies suchte ich daher im Dialog das

urspruumlngliche Phaumlnomen der Sprache zu fassenrdquo WuM GW II 332 229

Os diaacutelogos platoacutenicos influenciaram fortemente a compreensatildeo da linguagem em Gadamer agrave loacutegica

do enunciado ele contrapotildee a concepccedilatildeo da linguagem como exerciacutecio vivo do diaacutelogo Eacute tambeacutem o

modelo platoacutenico do diaacutelogo da pergunta e da resposta que orienta a sua concepccedilatildeo da interpretaccedilatildeo de

um texto quem interpreta um texto compreende-o como resposta a uma questatildeo colocada pelo inteacuterprete

Eacute este mesmo modelo dialoacutegico que estaacute presente quando Gadamer sublinha que uma adequada

interpretaccedilatildeo exige deixar falar o texto acentuando-o e sublinhando o seu sentido procurando restitui-lo

linguisticamente Na perspectiva de Gadamer esta sobre-exposiccedilatildeo do texto eacute um momento fundamental

da compreensatildeo e pode ser encontrado na boa traduccedilatildeo (Cf Jean Grondin Einfuumlhrung zu Gadamer 198-

199)

158

algo que soacute me eacute destinado a mim ou quando o destinataacuterio eacute um grupo restrito

de especialistas pressupondo condiccedilotildees preacutevias de assentimento

Recorrendo ao conceito heideggeriano de notificaccedilatildeo Gadamer mostra a

temporalidade do texto onde o notificado originariamente eacute projectado para o

futuro de uma apropriaccedilatildeo Essa notificaccedilatildeo deve ser fixada pela escrita de tal

modo que a sua posterior apropriaccedilatildeo seja uniacutevoca ldquoO texto fixado deve fixar a

notificaccedilatildeo de tal modo que o seu sentido seja claramente compreensiacutevel Aqui

agrave tarefa do escritor corresponde a tarefa do que lecirc daquele a quem o texto se

dirige do inteacuterprete de alcanccedilar uma tal compreensatildeo de deixar falar outra vez

o texto fixadordquo230

A tarefa do leitor ou do inteacuterprete eacute alcanccedilar a compreensatildeo do texto fazendo-

o falar novamente restituindo agrave informaccedilatildeo a autenticidade original

compreender um texto eacute apropriar-se dele ldquoconforme o sentidordquo e natildeo ldquoao peacute da

letrardquo O texto natildeo eacute algo de acabado mas uma fase de realizaccedilatildeo dum

processo ininterrupto de compreensatildeo e o seu sentido pode amplificar-se e

desdobrar-se em cada uma das suas interpretaccedilotildees

Contudo se a interpretaccedilatildeo se coloca como tarefa quando o conteuacutedo do texto

eacute controverso esta nada tem de arbitraacuterio ou de subjectivo pois o texto tem um

caraacutecter prescritivo O que aqui se trata de clarificar eacute a natureza peculiar

desse caraacutecter prescritivo que haacute que entender a partir do modelo dialoacutegico

acima referido compreender um texto eacute compreender o que ele diz para um

diaacutelogo cujo interlocutor se encontra numa situaccedilatildeo determinada

Assim a distacircncia temporal entre ao momento da fixaccedilatildeo da escrita e o da sua

interpretaccedilatildeo natildeo pode ser suprimida sendo pelo contraacuterio constitutivas do

conceito hermenecircutico de ldquotextordquo A compreensatildeo dum texto implica sempre

de algum modo a referecircncia do texto a compreender agrave situaccedilatildeo presente do

inteacuterprete e por isso mesmo toda a fixaccedilatildeo escrita do texto prevecirc um espaccedilo

de ldquojogo da interpretaccedilatildeordquo231

230

ldquoDer fixierte Text soll die urspruumlngliche Kundgabe so fixieren daβ hier Sinn eindeutig verstaumlndlich

wird Hier entspricht der Aufgabe des Schreibenden die Aufgabe des Lesenden Adressaten Interpreten

zu solchem Verstaumlndnis zu gelangen dh den fixierten Text wieder sprechen zu lassenldquo WuM GW II

345 231

A caracterizaccedilatildeo de Gadamer da interpretaccedilatildeo como ldquojogordquo (Spiel) relaciona-se estreitamente com a

importacircncia que a interpretaccedilatildeo da obra de arte assumiu no seu pensamento designadamente como

paradigma do ldquotextordquo Holger Schmid analisa este aspecto mostrando a influecircncia que a experiecircncia

hermenecircutica da arte desempenhou na reformulaccedilatildeo levada a cabo por aquele pensador da consideraccedilatildeo

hermenecircutica do ldquotextordquo como ldquoobrardquo linguigravestica (Sprach-Werk) ldquoe da noccedilatildeo de aplicaccedilatildeo (Application)

159

A traduccedilatildeo de textos literaacuterios mostra para Gadamer de forma particularmente

niacutetida o aparecimento do texto ele estaacute aiacute na sua presenccedila face a uma

infinidade de possibilidades de ser traduzido para a liacutengua de chegada A

traduccedilatildeo implica uma tensatildeo entre o sentido do texto original e as exigecircncias

do contexto histoacuterico-linguiacutestico a que pertence o tradutor que aparece assim

como um inteacuterprete ldquono sentido literal da palavra interpres mediador da falardquo

O tradutor-inteacuterprete deve superar o elemento estranho que impede a

inteligibilidade de um texto ele faz-se mediador quando um texto natildeo pode ser

escutado e compreendido pelos seus potenciais leitores Essa mediaccedilatildeo

realizada pelo tradutor e pelo inteacuterprete eacute caracterizada por Gadamer nestes

termos que remetem para um processo de negociaccedilatildeo entre o texto e contexto

histoacuterico-linguiacutestico dos seus leitores ldquoEssa linguagem mediadora possui ela

proacutepria uma estrutura dialogal O inteacuterprete que faz a intermediaccedilatildeo entre as

duas partes do diaacutelogo nada pode fazer a natildeo ser considerar a sua distacircncia

frente ao emaranhado de ambas as posiccedilotildees como uma espeacutecie de

superioridade Por isso a sua ajuda no entendimento natildeo se limita ao plano da

linguagem mas passa sempre por uma intermediaccedilatildeo real que busca equilibrar

o direito e os limites de ambas as partes O ldquointermediaacuterio do discursordquo

converte-se em ldquonegociadorrdquo Creio que se daacute uma relaccedilatildeo muito parecida

entre o texto e o leitor Apoacutes superar o elemento estranho no texto ajudando

assim o leitor a compreendecirc-lo a retirada do inteacuterprete natildeo significa o

desaparecimento em sentido negativo Significa antes a sua entrada na

comunicaccedilatildeo resolvendo assim a tensatildeo entre o horizonte do texto e o

horizonte do leitor Eacute o que chamo de fusatildeo de horizontesrdquo232

como ldquoreproduccedilatildeordquo (Reproduction) no sentido da reproduccedilatildeo de um peccedila musical ldquoFuumlr das Verhaumlltnis

Sprache-Kunst ist der wichtigste Befund Houmlren bleibt metaphorisch verstanden und ist eigentlich Lesen

Gerade in spaumlteren uumlber lyrische Sprache sinnenden Uumlberlegungen hellip wird der Nexus von Sinngehalt

und innerem Ohr mit der unvordenklichen Schriftlichkeit besiegelt dhes wird erneut oder erst recht der

Literatur ndash als ein Schriftliches das aller moumlglichen Verlautlichung voraus ist- das sprachliche Kunstwerk

ldquoal solchesrdquo ganz ausdruumlcklich gleichgesetzt

Gespraumlch-Charakter Gebilde des inneren Ohrs Schriftlichkeit sind die Momente des hermeneutischen

Werk-Konzepts als Literaturrdquo (Holger Schmid Kunst des Houmlrens Orte und Grenzen philosophischer

Spracherfahrung Koumlln 1999 38) 232

ldquoDieses Dazwischenreden hat selber Dialogstruktur Der Dolmetscher der zwischen zwei Parteien

vermittelt wird gar nichts anders koumlnnen als seine Distanz gegenuumlber den beiden Positionen wie eine Art

Uumlberlegenheit uumlber die beiderseitige Befangenheit zu erfahren Seine Mithilfe bei der Verstaumlndigung

beschraumlnkt sich daher nicht auf die rein linguistische Ebene sondern geht immer in eine sachliche

Vermittlung uumlber die Recht und Grenzen der beiden Parteien miteinander zum Ausgleich zu bringen

versucht Der ldquoDazwischenredenderdquo wird zum ldquoUnterhaumlndlerrdquo Nun scheint mir ein analoges Verhaumlltnis

auch zwischen dem Text und dem Leser zu bestehen Wenn der Interpret das Befremdliche in einem Text

uumlberwindet und damit dem Leser zum Verstaumlndnis des Textes verhilft bedeutet sein eigenes Zuruumlcktreten

160

O papel de mediaccedilatildeo do tradutorinteacuterprete dos textos literaacuterios natildeo eacute pois o

de fazer uma restituiccedilatildeo do sentido segundo um ideal de fidelidade ao texto

mas o de algueacutem que eacute capaz de negociar o sentido e de reconhecendo o

direito de ambas as partes promover essa dialeacutectica da fusatildeo de horizontes

em que consiste o processo de interpretaccedilatildeo

Se eacute verdade que o tradutor e o inteacuterprete tecircm como funccedilatildeo a de ldquoservirrdquo o

texto tornando-o inteligiacutevel eacute tambeacutem certo que tal soacute pode fazer-se mediante

esse processo de compromisso e negociaccedilatildeo que eacute a sua proacutepria contribuiccedilatildeo

resultando na produccedilatildeo de uma inevitaacutevel alteraccedilatildeo de sentido incorporada

nesse duplo do texto originaacuterio que eacute a traduccedilatildeo

A categoria da ldquoaplicaccedilatildeordquo recuperada por Gadamer a partir da hermenecircutica

juriacutedica e biacuteblica permite tambeacutem esclarecer melhor esta mediaccedilatildeo do

inteacuterprete Na interpretaccedilatildeo dos textos juriacutedicos ou dos textos biacuteblicos podemos

perceber a tensatildeo entre ldquoa identidade da coisa comumrdquo e a situaccedilatildeo mutaacutevel na

qual ela eacute em cada caso compreendida Toda a interpretaccedilatildeo tem neste caso

de fazer o compromisso e a mediaccedilatildeo entre as exigecircncias do sentido original

do texto e as exigecircncias por vezes normativas do presente histoacuterico ldquoNoacutes

adquirimos a convicccedilatildeo de que a aplicaccedilatildeo natildeo eacute uma parte acessoacuteria e

ocasional do fenoacutemeno na compreensatildeo mas que ela contribui a determinaacute-la

desde o iniacutecio e no seu conjunto O inteacuterprete natildeo visa absolutamente mais

nada senatildeo a compreensatildeo desse universal o texto isto eacute compreender o que

diz a tradiccedilatildeo o que constitui o sentido e a significaccedilatildeo do texto Mas para o

compreender ele natildeo pode fazer abstracccedilatildeo de si mesmo e da situaccedilatildeo

hermenecircutica na qual se encontra Eacute necessaacuterio referir o texto a esta situaccedilatildeo

se ele na verdade quer aceder agrave compreensatildeordquo233

nicht Verschwinden im negativen Sinn sondern sein Eingehen in die Kommunikation so daβ die

Spannung zwischen dem Horizont des Textes und dem Horizont des Lesers aufgeloumlst wird ndash was ich

Horizontverschmelzung genannt habeldquo WuM GW II 351 233

bdquoAuch wir hatten uns davon uumlberzeugt daβ die Anwendung nicht ein nachtraumlglicher und

gelegentlicher Teil des Verstehensphaumlnomens ist sondern es von vornherein und im ganzen mitbestimmt

Auch hier war Anwendung nicht die Beziehung von etwas Allgemeinem das vorgegeben waumlre auf die

besondere Situation Der Interpret der es mit einer Uumlberlieferung zu tun hat sucht sich die Selbe zu

applizieren Aber auch hier heiβt das nicht daβ der uumlberlieferte Text fuumlr ihn als ein Allgemeines gegeben

und verstanden und dadurch erst fuumlr besondere Anwendungen in Gebrauch genommen wuumlrde Der

Interpret will vielmehr gar nichts anderes als dies Allgemeine -den Text ndash verstehen dh verstehen was

die Uumlberlieferung sagt was Sinn und Bedeutung des Textes ausmacht Um das zu verstehen darf er aber

nicht von sich selbst und der konkreten hermeneutischen Situation in der er sich befindet absehen

wollen Er muβ den Text auf diese Situation beziehen wenn er uumlberhaupt verstehen willldquo WuM GW I

329

161

Esta categoria eacute central na hermenecircutica de Gadamer para a qual todo o

compreender conteacutem simultaneamente uma referecircncia ao universal do texto e

uma aplicaccedilatildeo agrave situaccedilatildeo concreta daquele que compreende no interior da

qual ele fala O sentido de um texto do passado soacute pode ser compreendido no

presente e na liacutengua na qual falamos e exige por isso mesmo uma traduccedilatildeo

que eacute tanto mais conseguida quanto mais consciente de tal processo estiver

Gadamer pensa pois o processo da traduccedilatildeo como um acontecer no qual um

sentido estranho que eacute vinculativo para o inteacuterprete se deixa traduzir na sua

liacutengua e para a sua eacutepoca Um texto soacute pode entrar no diaacutelogo se nos falar

mas fala-nos apenas na liacutengua que em cada caso falamos

8 A negatividade da experiecircncia hermenecircutica

O conceito de texto refere-se como acima vimos a um momento de natildeo

compreensatildeo de natildeo sentido essencial para definir a ldquoexperiecircncia

hermenecircuticardquo uma experiecircncia hermenecircutica autecircntica eacute aquela que nega as

antecipaccedilotildees de sentido ou as ilusotildees do inteacuterprete e por isso eacute capaz de

gerar uma ldquoaberturardquo ldquoOra esta ldquoa experiecircncia verdadeirardquo eacute sempre uma

experiecircncia negativa Fazer a experiecircncia dum objecto significa natildeo ter ateacute ao

presente visto as coisas correctamente e saber melhor daqui em diante do

que se trata A negatividade da experiecircncia tem pois um sentido

particularmente criadorrdquo234

Esta negatividade da experiecircncia hermenecircutica eacute para Gadamer a experiecircncia

da finitude eacute a experiecircncia do ser-para-a-morte ou do caraacutecter histoacuterico do

homem e natildeo a experiecircncia capaz de fazer aceder ao universal ou agrave ciecircncia

como em Hegel Esta negatividade inscrita na experiecircncia hermenecircutica eacute o

que estaacute no fundamento da sua abertura rdquoComo o sabia jaacute Bacon natildeo eacute senatildeo

graccedilas a instacircncias negativas que se chega a uma experiecircncia nova Toda a

experiecircncia digna desse nome defrauda uma expectativa Assim o ser histoacuterico

234

ldquoDiese die eigentliche Erfahrung ist immer eine negative Wenn wir in einem Gegenstand eine

Erfahrung machen so heiβt daβ wir die Dinge bisher nicht richtig gesehen haben und nun besser wissen

wie es damit steht Die Negativitaumlt der Erfahrung hat also einen eigentuumlmlich produktiven Sinnrdquo WuM

GW I 359

162

do homem conteacutem como elemento essencial uma negaccedilatildeo fundamental Que

se revela na relaccedilatildeo essencial entre experiecircncia e discernimento235

A negatividade da experiecircncia hermenecircutica eacute a consciecircncia vivida de uma

contradiccedilatildeo nela emergem simultaneamente a consciecircncia de si mesmo e da

sua proacutepria situaccedilatildeo hermenecircutica dos seus limites constitutivos assim como

da forccedila e dos efeitos da tradiccedilatildeo Eacute a tradiccedilatildeo que acede agrave experiecircncia

enquanto linguagem isto eacute enquanto conteuacutedo de sentido fixado no texto

capaz de entrar em contradiccedilatildeo com as expectativas de sentido do inteacuterprete

A primeira condiccedilatildeo de uma experiecircncia negativa isto eacute de um autecircntico

diaacutelogo com a tradiccedilatildeo eacute que lhe seja reconhecido o estatuto de interlocutor

vaacutelido escutando as suas razotildees dando todo o peso agrave palavra com que se nos

dirige A abertura agrave tradiccedilatildeo significa natildeo apenas o reconhecimento da sua

alteridade mas o reconhecimento de que ela tem qualquer coisa a dizer-nos a

partilha duma experiecircncia Eacute este ouvir a voz da tradiccedilatildeo reconhecendo a

alteridade dos textos dela emanados e a sua pretensatildeo agrave verdade que

constitui o aspecto singular da hermenecircutica de Gadamer e a sua contribuiccedilatildeo

fundamental para esclarecer ldquoo negoacutecio da interpretaccedilatildeordquo236

A estrutura loacutegica da experiecircncia hermenecircutica eacute a da negatividade da questatildeo

que na sua forma mais radical eacute o saber do natildeo-saber da docta ignorantia

socraacutetica que Gadamer sublinha como constitutiva de uma verdadeira

interpretaccedilatildeo Segundo o modelo dos primeiros diaacutelogos platoacutenicos a autecircntica

questatildeo distingue-se das questotildees meramente pedagoacutegicas ou das questotildees

meramente retoacutericas pela sua abertura perguntar significa que aquele que

pergunta deixa a questatildeo em suspenso mantendo equiliacutebrio entre as

alternativas A primazia da questatildeo sobre a reposta implica que o saber deve

estar sempre virado ao mesmo tempo para os opostos pensando o possiacutevel

enquanto possiacutevel

235

ldquoNur durch negative Instanzen gelangt man wie schon Bacon gewuβt hat zu neuer Erfahrung Jede

Erfahrung die diesen Namen Verdient durchkreuzt eine Erwartung So enthaumllt das geschichtliche Sein

des Menschen als eins Wesensmoment eine grundsaumltzliche Negation die in dem wesenhaften Bezug von

Erfahrung und Einsicht zutage trittrdquo WuM GW I 362 236

Cf Maria Luisa Portocarrero Ferreira da Silva em O Preconceito em Gadamer Sentido de uma

Reabilitaccedilatildeo Coimbra 1989 214 ldquoNatildeo eacute pois como pura estrutura coacutedigo ou intenccedilatildeo que o texto nos

atinge mas como sentido direccional Ele soacute se converte para noacutes em objecto de compreensatildeo lembra-

nos Gadamer quando questiona a nossa auto-compreensatildeo fazendo por sua vez nascer a nossa proacutepria

questatildeo quanto ao assunto tratadordquo

163

O acesso ao questionar isto eacute ao saber do natildeo saber eacute barrado pela opiniatildeo

que tem como caracteriacutestica a tendecircncia a expandir-se a ser a opiniatildeo de toda

a gente (doxa era explicita Gadamer a decisatildeo final agrave qual se esforccedilava por

chegar a Assembleia) A questatildeo soacute pode vir ao espiacuterito rompendo ldquoa

imensidatildeo sem relevordquo da opiniatildeo corrente pela forccedila da negatividade da

experiecircncia hermenecircutica eacute sob o impulso daquilo que natildeo se verga agrave opiniatildeo

preacute-concebida que fazemos a autecircntica experiecircncia da questatildeo

Para Gadamer nenhum meacutetodo pode ensinar a questionar e a distinguir o que

realmente eacute um problema e isso limita radicalmente o interesse pelo meacutetodo

que a filosofia e as ciecircncias poacutes-cartesianas adoptaram sem reservas Eacute a

experiecircncia hermenecircutica do texto que pela sua intriacutenseca negatividade pode

fazer emergir a questatildeo enquanto tal O facto de que um texto transmitido se

torne objecto de interpretaccedilatildeo implica jaacute o facto de que ele potildee uma questatildeo ao

inteacuterprete compreender um texto eacute compreender esta questatildeo ganhando um

horizonte de interrogaccedilatildeo a partir daquilo que estaacute para caacute do texto isto eacute a

partir da situaccedilatildeo hermenecircutica do inteacuterprete237

De acordo com esta indicaccedilatildeo de Gadamer ganham particular importacircncia

aqueles textos cuja interpretaccedilatildeo se revela particularmente poleacutemica e

controversa como eacute o caso dos textos de Heidegger em particular os textos do

ldquosegundo Heideggerrdquo cuja linguagem hermeacutetica teria o propoacutesito de radicalizar

esta negatividade da experiecircncia hermenecircutica fazendo assim com que os

seus leitores pudessem ter acesso agrave questatildeo do Ser acesso que segundo

este seria sistematicamente obstruiacutedo pela linguagem decaiacuteda da tradiccedilatildeo

metafiacutesica

No entanto ao opor uma questatildeo ao texto noacutes vamos necessariamente para laacute

do texto agrave interrogaccedilatildeo agrave qual ele se apresenta como resposta e que admite

necessariamente outras respostas Para compreender um texto num sentido

que eacute o seu eacute preciso ganhar um horizonte de interrogaccedilatildeo que como tal

comporta necessariamente outras respostas e remete para outros textos Esse

horizonte de interrogaccedilatildeo que estaacute para aleacutem do texto soacute pode ser ganho num

237

ldquoA fusatildeo de horizontes eacute assim uma fusatildeo de questotildees e direcccedilotildees o proacuteprio texto deve ser entendido

como uma resposta a um verdadeiro perguntar uma fase do acontecer dialoacutegico da compreensatildeoldquo

(Ibidem 215)

164

movimento de retorno agrave tradiccedilatildeo238 em que ele se inscreve exigecircncia a que

naturalmente estaacute tambeacutem sujeita a interpretaccedilatildeo dos textos heideggerianos

A tradiccedilatildeo tem assim um caraacutecter prescritivo pois ela determina o sentido da

abertura hermenecircutica deixando contudo espaccedilo para o jogo das

interpretaccedilotildees isto eacute para a liberdade e para a criatividade do inteacuterprete (que

natildeo podem ser confundidas com arbiacutetrio e subjectividade)

A metaacutefora do jogo com a qual Gadamer pensa a liberdade do tradutor e o

inteacuterprete eacute ela mesma sugestiva dum sistema de regras que contudo natildeo

anula a criatividade e a imprevisibilidade das decisotildees de cada jogador e que eacute

mesmo a condiccedilatildeo da sua possibilidade239 Este retorno agrave tradiccedilatildeo em que se

inscreve o texto afigura-se para Gadamer essencial pois ela apresenta-se

como a experiecircncia necessaacuteria dum limite e simultaneamente como

possibilitante desse jogo em que cada um pode tomar a sua proacutepria decisatildeo

visando a liberdade de uma apropriaccedilatildeo

O rigor na interpretaccedilatildeo e a fidelidade ao sentido do texto natildeo eacute pois aceder agrave

sua verdade intemporal - empresa impossiacutevel e condenada ao fracasso devido

agrave distacircncia temporal - mas aceder ao horizonte de interrogaccedilatildeo no interior do

qual se pode determinar a orientaccedilatildeo semacircntica do texto e jogar o jogo das

interpretaccedilotildees

238

Gadamer natildeo subscreve a perspectiva extremamente criacutetica de Heidegger relativamente agrave histoacuteria da

metafiacutesica na qual ele natildeo vecirc o desenrolar do acontecer fundamental do esquecimento do ser que

destinou o rumo da civilizaccedilatildeo ocidental mas antes uma comunidade de pensadores que convergem e

divergem atraveacutes do diaacutelogo Cf Rui Sampaio da SilvardquoGadamer e a Heranccedila Heideggerianardquo in Revista

Portuguesa de Filosofia LVI Braga 2000530 239

A conciliaccedilatildeo da tradiccedilatildeo como prescritiva de um horizonte hermenecircutico com a categoria ldquojogordquo que

remete para a liberdade criadora do inteacuterprete eacute explicada por Marciej Potepa a partir da experiecircncia

praacutetica da traduccedilatildeo como uma totalidade sistemaacutetica de regras e convenccedilotildees cuja aplicaccedilatildeo eacute deixada agrave

criatividade do tradutor na forma sugestiva que a seguir se refere ldquoDie Spiel-Dimension die kein

subjektives Verhalten des Interpreten bezeichnet ist eine umfassende Groumlszlige die nicht nur fuumlr die Position

des literarischen Uumlbersetzens gilt sondern das sprachliche und textuelle Verhalten des Lesers und

Uumlbersetzers uumlberhaupt transparent macht Diese Reflexion wurde schon von Hans Georg Gadamer in

Wahrheit und Methode fruchtbar gemacht in Frankreich wird sie u a von Roland Barthes Jacques

Derrida und Pierre Bourdieu wieder aufgegriffen unter den Sprach ndash und Uumlbersetzungswissenschaftlern

hat in den letzten Jahren vor allem Mario Wandruszka auf die Relevanz der Spiegel-Metapher

hingewiesen

Die Fundamentale am Spielbegriff scheint mir zu sein daβ an ihm deutlich zum Vorschein kommt wer

spielt geht in einer Totalitaumlt auf die die eigene Subjektivitaumlt uumlbersteigt wer aus dem Spiel heraustritt

wird zum ldquo Spielverderberrdquo Man kann Spiel nicht fraglos mit Freiheit identifizieren wie Wills das tut

weil der Spielender immer schon an Regeln gebunden ist die er sich nicht ausgewaumlhlt hat die er aber

akzeptieren muβ um uumlberhaupt spielen zu koumlnnen Da gibt es (wie in der Sprache) ein Regelsystem mit

Regelanweisungen jedoch ohne kausallogische Begruumlndungsmoumlglichkeiten der Regelanwendung So

beruht das Spiel wie das Schreiben Sprechen Verstehen und Uumlbersetzen auf Konventionen die aber das

Kreative weder zerstoumlren noch ausklammern sondern man kann geradezu sagen daβ sich die Kreativitaumlt

erst im Umgang mit dem Regelsystem ins Spiel bringtrdquo (Marciej Potepa Hermeneutische Dimension des

Textuumlbersetzens Goumlttinger Beitraumlge zur Internationalen Uumlbersetzungsforschug Berlin 1993 210)

165

Trazendo o sentido do texto para o presente vivo do diaacutelogo introduzimo-lo no

movimento dialeacutectico da questatildeo e da resposta que eacute a essecircncia do trabalho

hermenecircutico movimento em que pode dar-se a fusatildeo de horizontes capaz de

produzir uma amplificaccedilatildeo e uma recriaccedilatildeo do sentido do texto A autecircntica

interpretaccedilatildeo eacute assim Ereignis o acontecimento propiacutecio e histoacuterico em sentido

eminente240

A interpretaccedilatildeo tendo ela mesma o caraacutecter de um acontecer eacute uma tarefa

interminaacutevel e inconclusa e aberta agrave maneira do diaacutelogo socraacutetico e natildeo da

dialeacutectica hegeliana que pretende na marcha da razatildeo aceder a uma verdade

total no interior da qual todos os momentos da histoacuteria ganham um sentido

definitivo

O texto natildeo eacute um objecto que podemos decompor em enunciados que

poderiam por sua vez ser transpostos para uma outra linguagem

reconstituindo integralmente o sentido segundo paradigma de objectividade

vigente nas ciecircncias Trata-se antes de tomaacute-lo como interlocutor de um

diaacutelogo que se desenrola no tempo e se desenrola segundo certas

possibilidade hermenecircuticas circunscritas pela linguagem e pela eacutepoca em que

esse diaacutelogo acontece241

Assim nas diversas interpretaccedilotildees de um texto por um lado assegura-se uma

continuidade de sentido em cada caso mas por ouro lado essa continuidade

240

Pensar a traduccedilatildeo sob a categoria do Ereignis ou do acontecimento propiacutecio implica pensaacute-la como

um acontecer singular e irrepetiacutevel agrave semelhanccedila da arte Note-se que essa singularidade eacute sublinhada

tambeacutem por Von Herrmann como caracteriacutestica da traduccedilatildeo autecircntica em Uumlbersetzung als

philosophisches Problem ldquoDie mannigfaltigen dichterischen und denkerischen Erfahrungen mit dem

Wesen der Sprache haben ihr Gemeinsames darin daβ in ihnen etwas zur Sprache des Kunstwerkes und

des Gedankenwerkes gebracht wird ldquowas bislang noch nie gesprochen wurderdquo und das so wie es jeweils

dichterisch und denkerisch gesprochen worden ist nie wieder in der gleichen Weise gesprochen wird Zur

dichterischen und zur denkerischen Erfharung mit der Wesen der Sprache gehoumlrt somit die jeweilige

Einmaligkeit und Unwiederholbarkeit Das gilt fuumlr jedes sprachliche Kunstwerk der eresten wie der

zweiten Erfahrungsmoumlglichkeit das gilt ebenso fuumlr jedes sprachliche gedankenwerk Im Unterschied dazu

ist das alltaumlglich Gesprochene vielmalig wiederholbar [hellip] Eine Uumlbersetzung ist - so koumlnnen wir jetzt

sagen ndash dann eine wesentliche Uumlbersetzung wenn sie eine werkgewordene dichterische oder denkerische

Erfahrung mit dem Wesen der Sprache uumlbersetzt Insofern aber jede werkgewordene dischterische und

denkerische Erfahrung mit der Sprache einzigartig und unwiederholbar ist ist sie im recht verstandenen

Sinne auch nicht uumlbersetzbar Dagegen ist die vielmalige Wiederholbarkeit des gewoumlhnlich Gesprochenen

der Grund dafuumlr daβ es restlos uumlbersetzbar istrdquo von Herrmann art cit in Im Spiegel der Welt Sprache

Uumlbersetzung Auseinandersetzung 117118) 241

Maria Luiacutesa Portocarrero aponta duas diferenccedilas fundamentais entre a abordagem hermenecircutica e a

abordagem metoacutedico-cientiacutefica do real a primeira consiste no facto de o mundo hermeneuticamente

experienciado ter um caraacutecter co-referencial ou linguiacutestico e o texto natildeo dever ser entendido como

expressatildeo duma subjectividade mas como tendo-se destacado da contingecircncia da sua origem e libertado

para novas relaccedilotildees O segundo consiste no facto de a co-referecircncia implicar para a hermenecircutica natildeo o

enunciado do logos apofacircntico mas uma loacutegica dialoacutegica da questatildeo do limite e da alteridade Cf Idem

O Preconceito em Gadamer Sentido de uma Reabilitaccedilatildeo 215-216

166

de sentido natildeo suprime a alteridade e a diferenccedila que satildeo pelo contraacuterio as

condiccedilotildees imprescindiacuteveis de um verdadeiro diaacutelogo A transmissatildeo dos textos

que constituem a tradiccedilatildeo filosoacutefica a que neste caso nos reportamos eacute

assim para Gadamer como para Heidegger um processo de sucessivas

interpretaccedilotildees e variaccedilotildees que tecircm uma semelhanccedila assinalaacutevel com a

interpretaccedilatildeo duma composiccedilatildeo musical

A fixaccedilatildeo escrita do sentido do texto salvaguarda como acontece na escrita

musical uma margem para esse infinito jogo de interpretaccedilotildees em que

consistem as suas muacuteltiplas traduccedilotildees inter-linguiacutesticas ou intra-linguiacutesticas e

o diaacutelogo do presente do inteacuterprete com a tradiccedilatildeo prescreve a direcccedilatildeo dessas

diversas recriaccedilotildees vivas

Esta natureza dialoacutegica da experiecircncia hermenecircutica que Gadamer reclama

como heranccedila dos diaacutelogos de Platatildeo e da disputatio da escolaacutestica medieval

vem acrescentar-se ao que Heidegger jaacute afirmara sobre o caraacutecter finito de

toda a interpretaccedilatildeo irremediavelmente submetida agraves possibilidades de um

horizonte hitoacuterico-linguiacutestico e permite esclarecer o problema deixado em

aberto por Heidegger da compreensatildeo do outro

De facto a incomensurabilidade das aberturas de mundo transportadas pelas

vaacuterias liacutenguas histoacutericas arrasta em Heidegger a ideia de um certo

fechamento em si mesmo entendendo este si mesmo como ldquoa determinaccedilatildeordquo

que singulariza um povo histoacuterico

Gadamer sublinha poreacutem que longe de estarmos condenados agrave clausura no

nosso proacuteprio horizonte o diaacutelogo com textos oriundos de vaacuterias tradiccedilotildees

representa uma possibilidade de aprofundar a negatividade da experiecircncia

hermenecircutica e de assim ir acontecendo o alargamento do nosso proacuteprio

horizonte de compreensatildeo

Tal como acontece nos diaacutelogos socraacuteticos o encontro com a alteridade do

texto implica esse momento de suspensatildeo e de encontro com outros possiacuteveis

que satildeo mantidos enquanto tal gerando uma abertura na qual podemos

persistir numa questatildeo

Eacute certo que o primado hermenecircutico da questatildeo implica tambeacutem uma

delimitaccedilatildeo dessa abertura feita pela explicitaccedilatildeo dos seus pressupostos a

partir dos quais eacute feita a sua formulaccedilatildeo Uma questatildeo bem colocada eacute para

167

Gadamer uma questatildeo que conteacutem um sentido isto eacute uma orientaccedilatildeo na

direcccedilatildeo da qual a resposta deve ser procurada colocando os membros das

alternativas de tal modo que entre eles pode haver uma decisatildeo pela

preponderacircncia das razotildees dadas por uma das alternativas

Compreender um texto eacute pois necessariamente iluminar o texto a partir de

uma questatildeo que tem ela mesma um sentido e uma orientaccedilatildeo determinados

duplamente pela situaccedilatildeo hermenecircutica do inteacuterprete e pelo seu encontro com

a tradiccedilatildeo242 Interpretar um texto eacute ser orientado por um ponto de vista ou de

uma perspectiva abertos por esse horizonte de interrogaccedilatildeo que eacute sempre

historicamente situado

Em cada nova interpretaccedilatildeo trata-se sempre de ver o texto a partir de uma

iluminaccedilatildeo parcial que deixa necessariamente na sombra outras possibilidades

hermenecircuticas Contudo se cada uma das interpretaccedilotildees estiver consciente da

sua proacutepria finitude e unilateralidade o processo hermenecircutico ele mesmo

nunca se encontra definitivamente cerrado

Natildeo haacute por isso nenhuma traduccedilatildeo nem interpretaccedilatildeo em si que pudessem

servir de modelo ou estabelecer um criteacuterio de verdade mas todas satildeo apenas

etapas de um diaacutelogo inacabado O importante contudo natildeo eacute estar de posse

de um criteacuterio absoluto para estabelecer a ldquoboardquo interpretaccedilatildeo mas sim saber

distinguir entre a simples opiniatildeo e a verdade ou seja entre aquilo que eacute

autenticamente ldquoseurdquo e aquilo que deriva da generalidade abstracta ou do

preconceito dominante243

242

Franccedilois Renaud problematiza o conceito gadameriano de tradiccedilatildeo entendida como uma corrente

uacutenica marcada pela continuidade segundo o autor a consideraccedilatildeo da tradiccedilatildeo numa perspectiva dialoacutegica

e criacutetica exigiria antes que fossem sublinhadas a pluralidade e a descontinuidade ldquoGadamer‟s

hermenecircuticas rests on the assumption that there is only one stream of tradition This assumption implies

however an all too unitary and harmonious concept of tradition whereby the phenomenon of plurality

selection and conflicts are insufficiently taken into account This approach is exemplified in the privileged

metaphors of hearing (Houmlren) and belongingness (Gehoumlren) both paradigmatic of traditionrdquo Idem

Classical als Otherness Revista Portuguesa de Filosofia LVI Braga 2000 243

Cf Marciej Potepa rdquoAnstatt von unfehlbaren Uumlbersetzungen zu sprechen sollte eine beinahe

unbegrenzte Offenheit des Uumlbersetzens postuliert werden Das heiβt aber nicht daβ er die Freiheit haumltte

mit der Sprache des Textes zu machen was er will Ziel des Uumlbersetzens ist vielmehr die

Nichtbeliebigkeit der Entscheidung um richtige und angemessene Formulierung zu finden Die

Bedingung fuumlr diese Nichtbeliebigkeit ist die Beteiligung Das Textuumlbersetzen nimmt seinen Ausgang in

der Lebenswelt des Textautors und wird mit der Lebens ndash und Sprachwelt des Uumlbersetzers durch die

Uumlbersetzung verbundenldquo (Ob cit 212)

168

169

Parte II ndash A recepccedilatildeo de Heidegger em Liacutengua portuguesa traduccedilatildeo e questionamento da tradiccedilatildeo

170

171

Capiacutetulo I - Traduccedilatildeo e tradiccedilatildeo no pensamento portuguecircs e

brasileiro

172

173

1 A orientaccedilatildeo humanista da escolaacutestica peninsular

Como atraacutes referimos Heidegger considerava que a traduccedilatildeo latina da filosofia

grega totalmente extriacutenseca ao contexto da liacutengua e da cultura heleacutenicas tinha

deturpado os textos atraveacutes de uma leitura ldquohumanistardquo destes tendo assim

contribuiacutedo para o esquecimento do problema do ser

Para avaliar esta afirmaccedilatildeo eacute necessaacuterio lembrar que foi uma caracteriacutestica

fundamental do Humanismo a grande importacircncia dada agraves liacutenguas no plano

social da comunicaccedilatildeo viva em recuperaccedilatildeo duma tradiccedilatildeo retoacuterica grega e

latina (os Sofistas Ciacutecero e Quintiliano) e que o Renascimento se caracterizou

pelo cultivo da uma racionalidade praacutetica e aberta ligada agrave vida social e agraves

virtudes eacuteticas Eacute um toacutepico fundamental do Humanismo a estreita alianccedila entre

razatildeo e linguagem defendida por Ciacutecero244 e os humanistas nos seacuteculos XV e

XVI consideram a linguagem e as liacutenguas de importacircncia vital natildeo soacute para a

vida praacutetica mas tambeacutem para a filosofia a teologia e as ciecircncias245

Esta preponderacircncia da linguagem inspirou natildeo apenas o incentivo do estudo

das liacutenguas claacutessicas mas tambeacutem o culto da retoacuterica e ainda o trabalho de

traduccedilatildeo dos autores gregos numa primeira fase para o latim erudito e numa

segunda fase tambeacutem para as liacutenguas vulgares246

244 ldquoPrincipio generi animantium omni est a natura tributum ut se vitam corpusque tueatur declinet ea

quae nocitura videantur omniaque quae sint ad vivendum necessaria anquirat et paret ut pastum ut

latibula ut alia generis eiusdem Commune item animantium omnium est coniunctionis appetitus

procreandi causa et cura quaedam eorum quae procreata sint Sed inter hominem et beluam hoc maxime

interest quod haec tantum quantum sensu movetur ad id solum quod adest quodque praesens est se

accommodat paulum admodum sentiens praeteritum aut futurum Homo autem quod rationis est

particeps per quam consequentia cernit causas rerum videt earumque praegressus et quasi antecessiones

non ignorat similitudines comparat rebusque praesentibus adiungit atque adnectit futuras facile totius

vitae cursum videt ad eamque degendam praeparat res necessarias Eademque natura vi rationis hominem

conciliat homini et ad orationis et ad vitae societatem ingenerat [hellip]rdquo (Cigravecero De Oficiis I 11-12) 245

Cf Leonel Ribeiro in Linguagem Retoacuterica e Filosofia no Renascimento Lisboa 2004 14-22 O autor

afirma que podemos encontrar em todos os humanistas um axioma cuja matriz se encontra em Ciacutecero

segundo o qual consumar a unidade entre sabedoria e eloquecircncia significava restaurar o sentido mais

antigo da sabedoria humana antes desta ter sido ocupada pelos filoacutesofos designadamente por Soacutecrates e

pela Academia

Esta consciecircncia da condiccedilatildeo linguiacutestica do homem espelhava-se claramente no plano curricular dos

studia humanitatis que conferia um lugar muito importante agraves disciplinas da linguagem designadamente

agrave Gramaacutetica e agrave Retoacuterica como o nuacutecleo do seu projecto pedagoacutegico-cultural 246

Segundo Leonel Ribeiro dos Santos nos pensadores dos seacuteculos XV e XVI encontra-se uma

vastiacutessima praacutetica da traduccedilatildeo filosoacutefica e uma diversificada reflexatildeo sobre essa praacutetica que oscila entre

dois extremos a afirmaccedilatildeo da impossibilidade de traduzir completamente que confere autoridade apenas

ao original e aos que a ele tecircm acesso e a afirmaccedilatildeo da igual dignidade de todas as liacutenguas e consequente

possibilidade de multiplicar o sentido da obra e as suas virtualidades pela traduccedilatildeo (Ob cit 170)

174

A traduccedilatildeo visava recuperar o sentido originaacuterio dos textos contra as distorccedilotildees

introduzidas por um desconhecimento das liacutenguas claacutessicas e por uso dum

latim baacuterbaro por deficiente domiacutenio da gramaacutetica e da retoacuterica Assim a

traduccedilatildeo encarada como restituiccedilatildeo do sentido verdadeiro dos textos era

considerada uma tarefa preliminar a qualquer investigaccedilatildeo filosoacutefica e condiccedilatildeo

de possibilidade do ensino da filosofia

Esta mesma tradiccedilatildeo humanista foi retomada e desenvolvida pela restauraccedilatildeo

escolaacutestica movimento filosoacutefico caracteriacutestico da Peniacutensula Ibeacuterica que teve o

seu iniacutecio em Espanha nos finais do seacutec XV e em Portugal no iniacutecio do seacutec

XVI tendo perdurado entre noacutes ateacute ao seacutec XVIII Esse movimento

desenvolveu-se sob o impulso da Contra-Reforma catoacutelica antes e depois do

Conciacutelio de Trento e significou um projecto pedagoacutegico inspirado no

humanismo mas tambeacutem num regresso a Aristoacuteteles que foi interpretado

fundamentalmente na linha de S Tomaacutes e de Duns Escoto

Os principais centros onde a Segunda Escolaacutestica teve implantaccedilatildeo foram as

Universidades espanholas de Salamanca e Alcalaacute e as portuguesas de

Coimbra e Eacutevora Dominicanos e Jesuiacutetas sustentavam o movimento

destacando-se entre os primeiros Francisco de Vitoacuteria e Domingo Bantildeez e

entre os segundos Luiacutes de Molina Francisco Suarez e Pedro da Fonseca

assim como os conimbricenses247

A criaccedilatildeo do Coleacutegio das Artes em Coimbra248 significou uma transformaccedilatildeo da

nossa cultura segundo os moldes do humanismo que se implantou tambeacutem na

Universidade de Eacutevora e noutras escolas dos jesuiacutetas designadamente nos

coleacutegios de Satildeo Paulo de Braga e de Santo Antatildeo em Lisboa

O quadro curricular incluiacutea o estudo da Gramaacutetica Retoacuterica e Poesia (latinas)

Grego Hebraico Matemaacutetica e Artes (estudos filosoacuteficos num ciclo de 3 anos e

meio cujo nuacutecleo central era a explicaccedilatildeo das obras de Aristoacuteteles) e

Teologia249 Embora a filosofia aristoteacutelica e a teologia tenham no referido

247

Cf Comunicaccedilatildeo de Luacutecio Craveiro da Silva nas Jornadas ldquo Luigraves de Molina Regressa a Eacutevorardquo Eacutevora

1987 85 248

D Joatildeo III criou o Coleacutegio das Artes cujo primeiro regimento data de 16 de Novembro de 1547

atribuindo-lhe os prepatoacuterios para as faculdades maiores cf Pinharanda Gomes em Os Conimbricenses

Lisboa 1992 22-37 249

O plano curricular dos coleacutegios da Companhia de Jesus sofreu vaacuterias modificaccedilotildees sendo a Ratio

atque Institutio Studiorum de 1599 considerada a definitiva Demorou treze anos a ser melhorada com

contribuiccedilotildees dos programas dos coleacutegios de diferentes nacionalidades e o contributo da experiecircncia

conimbricense teria sido grande (cf Pinharanda Gomes ob cit 43) A concepccedilatildeo humanista de cultura

175

quadro curricular um papel muito importante e de algum modo central eacute

importante atender ao grande peso que no curriculum tecircm as disciplinas

ligadas agrave linguagem assim como agrave finalidade praacutetica do curso (entendido no

sentido da preparaccedilatildeo eacutetica e no sentido abrangente da palavra tambeacutem

poliacutetico) o que fica patente com o peso dado agrave oratoacuteria fundada no estudo da

Retoacuterica e da Poeacutetica de Aristoacuteteles e da Oratoacuteria de Ciacutecero250

1 1 Os Conimbricences e a traduccedilatildeo de Aristoacuteteles

Em conformidade com a prioridade dada agrave traduccedilatildeo pelos humanistas logo

nos primeiros anos de fundaccedilatildeo do Coleacutegio das Artes de Coimbra a

restauraccedilatildeo do aristotelismo foi sentida como exigecircncia da traduccedilatildeo latina dos

textos fundamentais de Aristoacuteteles Assim se publicou uma selecta de textos

que constituem O Organon aristoteacutelico numa versatildeo latina intitulada Loacutegica

Aristotelis ab eruditissimis hominibus conversa da autoria de Nicolau de

Grouchy (professor bordalecircs que leccionou em Coimbra de 1548 a 1550)

visando tornar Aristoacuteteles acessiacutevel aos alunos atraveacutes duma versatildeo latina

inspirada no latim erudito de Ciacutecero mas sem romper inteiramente com a

terminologia consagrada na tradiccedilatildeo escolaacutestica

Esta traduccedilatildeo de Grouchy foi no entanto substituiacuteda a partir de 1556 pela de

Joatildeo Argiropulo considerada mais consentacircnea com a tradiccedilatildeo escolaacutestica251

A Ratio Studiorum acima referida promulgada em 1559 para toda a

Companhia de Jesus regulamentava o ensino da Filosofia252 impondo o

estaria presente nos princiacutepios pedagoacutegicos orientadores [assim referidos por Pinharanda Gomes ldquoA ratio

eacute um sistema metoacutedico assente em premissas pedagoacutegicas a primeira das quais eacute a alianccedila da virtude com

a ciecircncia ou as letras natildeo bastando que os estudantes se transformem em saacutebios sendo preciso educaacute-los

para pessoas de acccedilatildeo numa perspectiva da eacutetica e da vivecircncia evangeacutelicasrdquo (Pinharanda Gomes ob cit

44)] assim como no predomiacutenio das disciplinas ligadas agrave linguagem Na realidade se os humanistas

italianos dos seacuteculos XV e XVI foram os primeiros autores de um curriculum de estudos humanista

foram os Jesuiacutetas que o divulgaram e implementaram agrave escala europeia (e global) criando um sistema de

ensino supra-nacional e mesmo supra-continental desde o Brasil agrave China A ratio studiorum

institucionalizou pois um curriculum humanista de alcance europeu com irradiaccedilatildeo universal (sobre as

linhas gerais do meacutetodo de estudos preconizados pela ratio studiorum cf Coacutedigo Pedagoacutegico dos

Jesuitas Ratio Studiorum da Companhia de Jesus Lisboa 2009 43-46) 250

XVI Regulae Professoris Retoricae in Coacutedigo Pedagoacutegico dos Jesuitas Ratio Studiorum da

Companhia de Jesus 198 251

Cf Pinharanda Gomes em Os Conimbricenses 136 252

Cf XIX Coacutedigo Pedagoacutegico dos Jesuitas Ratio Studiorum da Companhia de Jesus dos Jesuiacutetas 132

Esta regra prescrevia como fins do ensino de trecircs anos da filosofia preparar os alunos para a teologia

impondo ainda a obrigaccedilatildeo dos professores natildeo se afastarem de Aristoacuteteles a natildeo ser nas mateacuterias em que

entrasse em contradiccedilatildeo com a doutrina do Conciacutelio de Latratildeo e ainda que seguissem ldquosempre que for

precisordquo S Tomaacutes de Aquino Sobre as mateacuterias a leccionar impunha-se no primeiro ano o ensino da

176

meacutetodo da disputatio253 que tatildeo criticado haveria de ser pelos iluministas

portugueses e que visava o desenvolvimento de competecircncias argumentativas

pela apresentaccedilatildeo de uma tese argumentaccedilatildeo e conclusatildeo seguidos de um

exerciacutecio de refutaccedilatildeo

Esta praacutetica da disputatio devia obrigatoriamente orientar-se para a defesa da

filosofia aristoteacutelica dos dogmas impostos pela Contra-Reforma e ainda para a

doutrina oficial da Companhia de Jesus o que pode deduzir-se das ldquoregras

para a escolha de opiniotildees dos filoacutesofosrdquo elaboradas em 1593 pela

Congregaccedilatildeo Geral dos Jesuiacutetas ldquoOs mestres da filosofia natildeo se apartem de

Aristoacuteteles em coisa alguma de importacircncia a natildeo ser que se ofereccedila algum

ponto contraacuterio agrave doutrina que defendem geralmente as universidades e muito

mais se repugna agrave feacute ortodoxa Natildeo introduzam qualquer questatildeo ou opiniatildeo

nova que natildeo esteja defendida por algum bom autor Entendem tambeacutem que

se houver alguns mestres inclinados a novidades ou de engenho demasiado

livre devem ser removidos do ofiacutecio de ensinarrdquo254

A compendarizaccedilatildeo das liccedilotildees do Coleacutegio das Artes de Coimbra foi feita ao

longo de 14 anos (de 1592 a 1606) sendo esse labor continuado devido a

vaacuterios professores do Coleacutegio entre os quais se salienta Manuel de Goacuteis

Basicamente constituiacutedas por um comentaacuterio agrave filosofia aristoteacutelica foram

publicadas sob a designaccedilatildeo de Commentarii Collegii Conimbricensis e

Societate Jesu255 tendo sido estes usados no ensino dos coleacutegios de jesuiacutetas

quer em Portugal quer no Brasil 256Os Commentarii257 gozaram ainda de

loacutegica com o comentaacuterio de Peri Hermeneias dos Primeiros Analiacuteticos assim como o comentaacuterio dos

prolegoacutemenos de A Fiacutesica sobre a classificaccedilatildeo das ciecircncias e a distinccedilatildeo entre ciecircncias praacuteticas e

teoreacuteticas no segundo ano seriam comentados os oito livros da Fiacutesica no terceiro ano seriam ensinados o

De anima e a Metafiacutesica 253

A mesma regra IX relativa ao ensino da Filosofia impunha no seu ponto 17 a realizaccedilatildeo de disputas

mensais obrigatoacuterias 254

Manuel Maria Carrilho Razatildeo e Transmissatildeo da Filosofia Lisboa Imprensa Nacional ndash Casa da

Moeda 1987 191 Estas regras satildeo jaacute antecipadas na Ratio Studiorum Efectivamente em I Regras para o

Provincial adverte-se que se algum professor de Filosofia ldquose revelar mais inclinado agraves novidades ou de

espigraverito mais livrerdquo seja desde logo afastado do ensinordquo (Ratio Studiorum ob cit 62) 255

Os Commentarii eram a compendiarizaccedilatildeo de liccedilotildees ditadas por vaacuterios professores do Coleacutegio das

Artes de Coimbra Sobre as disputas geradas pelo caraacutecter colegial da obra Cf Pinharanda Gomes em

Os Conimbricenses 76 77 256

Os Commentarii eram seguidos como liccedilatildeo magistral nos coleacutegios de Braga Eacutevora e Porto no coleacutegio

de Olinda da Baiacutea no Coleacutegio de Satildeo Paulo em Luanda no Colegio de Satildeo Paulo em Goa e nas escolas

de Jesuitas na China (Pinharanda Gomes Idem 171- 172) 257

Tomando como eixo a organizaccedilatildeo dos comentaacuterios nos volumes da Biblioteca Nacional Pinharanda

Gomes apresenta a organizaccedilatildeo dos Commentarii em V Tomos I- In Octo Libros Physicorum III De

Coelo In Libros Meteorum In Parva Naturalia II II Ethicorum ad Nicomachum III De Generatione et

Corruptione IV De Anima De Anima SeparataQuinque sensus V In Universam Dialecticam Segundo

o mesmo autor as lacunas relacionam-se com o facto de o curso natildeo comeccedilar pela loacutegica e ainda com a

177

grande prestiacutegio nos meios acadeacutemicos da Europa no seu tempo tendo sido

vaacuterias vezes editados na Alemanha em Franccedila e em Itaacutelia258

Relativamente agrave leitura humanista de Aristoacuteteles eacute de salientar o contributo de

Pedro da Fonseca (1528-1599) cujos comentaacuterios agrave Metafiacutesica de Aristoacuteteles

satildeo considerados notaacuteveis do ponto de vista filoloacutegico quer pelo conhecimento

do texto grego quer pela traduccedilatildeo latina e ainda por um conhecimento

vastiacutessimo dos comentadores de Aristoacuteteles Aiacute a Metafiacutesica de Aristoacuteteles eacute

interpretada na perspectiva da conciliaccedilatildeo com as verdades da feacute proposta por

de S Tomaacutes de Aquino sendo ainda discutidas teses dos principais filoacutesofos

da Antiguidade e da Idade Meacutedia

O que torna notaacutevel este trabalho de comentaacuterio eacute o facto de ele tomar em

consideraccedilatildeo os comentadores e a tradiccedilatildeo estabelecida sem no entanto

deixar de apoiar-se sempre directamente no texto grego de Aristoacuteteles

As Instituiccedilotildees Dialeacutecticas de Pedro da Fonseca publicadas numa primeira

ediccedilatildeo em 1590 e numa segunda em 1608 inserem-se na tradiccedilatildeo dos

dialeacutecticos humanistas que cultivaram o que ficou conhecido como ldquoloacutegica

toacutepicardquo

Os fundadores da orientaccedilatildeo humanista no campo da loacutegica foram Lourenccedilo

Valla e Rudolfo Agriacutecola que contrapuseram agrave interpretaccedilatildeo escolaacutestica

medieval a interpretaccedilatildeo que Ciacutecero fazia de Aristoacuteteles Este pensador latino

valorizava a dialeacutectica como arte de argumentar e como fundamento da

eloquentia ao serviccedilo dos problemas da vida praacutetica propondo ainda uma

interpretaccedilatildeo proacutepria da dialeacutectica segundo a qual ela seria o poder de concluir

dos contraacuterios uma arte que a partir duma tese tanto permite sustentar os

proacutes como os contra

Descrendo da capacidade dos sistemas filosoacuteficos atingirem a verdade Ciacutecero

sustenta que o homem apenas pode decidir-se por niacuteveis diferentes de

probabilidade ndash essa decisatildeo pode conseguir-se por uma ratio argumentandi

ausecircncia dos comentaacuterios da Metafiacutesica As dificuldades na compendiarizaccedilatildeo das liccedilotildees de Metafiacutesica

identificadas por Pinharanda Gomes satildeo sugestivas da existecircncia de diversos acircngulos interpretativos da

Metafiacutesica aristoteacutelica Os Commentariorum Metaphysicorum de Pedro da Fonseca cuja impressatildeo total

ficou pronta em 1612 foram lidos no Coleacutegio a tiacutetulo precaacuterio enquanto se aguardava pela realizaccedilatildeo dos

respectivos Commentarii que natildeo chegaram a ser redigidos O curso de Loacutegica acabou por ser no

entanto mais tarde redigido por Sebastiatildeo do Couto com o tiacutetulo de Universam Dialecticam Cf

Pinharanda Gomes Idem 79-88 258

O total de ediccedilotildees europeias foi de 112 Cf Pinharanda Gomes Idem 174

178

adequada Eacute essa ratio argumentandi que conveacutem ao poliacutetico e eacute ela que eacute

cultivada na oratoacuteria259

Os humanistas herdeiros deste cepticismo de Ciacutecero defenderam uma

concepccedilatildeo de filosofia segundo o qual o filoacutesofo natildeo eacute um saacutebio mas um

amante da sabedoria para o qual natildeo existem quaisquer certezas O meacutetodo

universal eacute a dialeacutectica entendida como arte de discorrer com probabilidade

acerca de qualquer assunto

Ao contraacuterio dos humanistas Pedro da Fonseca regressa agrave distinccedilatildeo

aristoteacutelica entre demonstraccedilatildeo cientiacutefica e silogismo dialeacutectico afirmando que

a primeira visa produzir ciecircncia e o segundo gerar opiniatildeo - no entanto admite

que na maior parte das ciecircncias se trata tambeacutem de discutir mateacuterias

controversas e de defender opiniotildees provaacuteveis pelo que estas tambeacutem natildeo

podem prescindir da dialeacutectica Recolhe ainda da tradiccedilatildeo humanista a

chamada ldquoloacutegica toacutepicardquo meacutetodo que recorre a uma repertoacuterio de ideias gerais

que podiam ser citadas a propoacutesito de todos os discursos (lugares-comuns ou

toacutepicos) e ser usadas em qualquer momento para argumentar

As obras de Pedro da Fonseca Commentariorum Metaphysicorum

Institutionum Dialecticarum e Isagoge Philosophica foram tambeacutem

repetidamente editadas em Itaacutelia Alemanha e Franccedila sendo nestes paiacuteses em

geral identificadas com a obra dos conimbricenses e aiacute lidas por filoacutesofos como

Leibniz Wolff Malebranche e Descartes 260

259

[hellip] multi erant praeterea clari in philosophia et nobiles a quibus omnibus una paene voce repelli

oratorem a gubernaculis civitatum excludi ab omni doctrina rerumque maiorum scientia ac tantum in

iudicia et contiunculas tamquam in aliquod pistrinum detrudi et compingi videbam sed ego neque illis

adsentiebar neque harum disputationum inventori et principi longe omnium in dicendo gravissimo et

eloquentissimo Platoni cuius tum Athenis cum Charmada diligentius legi Gorgiam quo in libro in hoc

maxime admirabar Platonem quod mihi [in] oratoribus inridendis ipse esse orator summus videbatur

Verbi enim controversia iam diu torquet Graeculos homines contentionis cupidiores quam veritatis Nam

si quis hunc statuit esse oratorem qui tantummodo in iure aut in iudiciis possit aut apud populum aut in

senatu copiose loqui tamen huic ipsi multa tribuat et concedat necesse est neque enim sine multa

pertractatione omnium rerum publicarum neque sine legum morum iuris scientia neque natura hominum

incognita ac moribus in his ipsis rebus satis callide versari et perite potest qui autem haec cognoverit

sine quibus ne illa quidem minima in causis quisquam recte tueri potest quid huic abesse poterit de

maximarum rerum scientia Sin oratoris nihil vis esse nisi composite ornate copiose loqui quaero id

ipsum qui possit adsequi sine ea scientia quam ei non conceditis Dicendi enim virtus nisi ei qui dicet

ea quae dicet percepta sunt exstare non potest (Ciacutecero De Oratore 1 46-48) 260

O Institutionum Dialecticarum de Pedro da Fonseca teve 36 ediccedilotildees ateacute ao primeiro quartel do seacuteculo

XVIII em Itaacutelia Alemanha e Franccedila os Commentariorum Metaphysicorum tiveram trinta e uma ediccedilotildees

em Itaacutelia Franccedila e Alemanha (Pinharanda Gomes ob cit 175)

179

Embora se tenha institucionalizado uma visatildeo essencialmente negativa destes

pensadores e da acccedilatildeo pedagoacutegica dos jesuiacutetas a quem se atribui o

afastamento de Portugal e do Brasil da Filosofia e da Ciecircncia moderna esta

visatildeo simplificadora tem vindo a ser posta em causa por um conhecimento

histoacuterico mais preciso

Assim sabemos hoje que a contribuiccedilatildeo da Companhia de Jesus para a

revoluccedilatildeo cientiacutefica do seacuteculo XVI foi notaacutevel e que os jesuiacutetas desenvolveram

em toda a Europa (e tambeacutem em Portugal) um importante trabalho pedagoacutegico

em torno do ensino da matemaacutetica261 O vasto espoacutelio dos professores do

Coleacutegio de Santo Antatildeo que funcionou em Lisboa entre 1590 e 1759 veio

mostrar que sob a designaccedilatildeo de Aula da Esfera se ensinava nesse coleacutegio

um curso de Matemaacutetica assim como Astronomia e Geografia tendo esses

estudos estado a cargo a partir no seacuteculo XVII predominantemente de

estrangeiros perfeitamente a par da Filosofia e da Ciecircncia moderna Entre eles

cumpre mencionar J Paulo Lembo lente da Aula da Esfera entre 1615 e 1617

que conhecera pessoalmente Galileu e subscrevera juntamente com outros

jesuiacutetas do Coleacutegio Romano um parecer favoraacutevel agraves suas descobertas262 O

estudo da documentaccedilatildeo da Universidade de Eacutevora referente ao mesmo

periacuteodo veio a revelar tambeacutem a existecircncia de livros teses e debates

evidenciando um normal contacto com as ideias da Europa e um conhecimento

de autores modernos como Descartes Gassendi Galileu Kepler e Newton263

Alguns estudos como o de Serafim Leite dedicado ao jesuiacuteta Diogo Soares e

o de Jaime Cortesatildeo sobre os ldquoPadres matemaacuteticos no Brasilrdquo mostram ainda

que esta actividade cientiacutefica dos jesuiacutetas se estendeu ao novo mundo264

No entanto as dificuldades de conciliaccedilatildeo dos princiacutepios da Metafiacutesica e da

Fiacutesica de Aristoacuteteles com os avanccedilos da ciecircncia moderna assim como o

contexto histoacuterico-cultural criado apoacutes o Conciacutelio de Trento levaram a que a

produccedilatildeo filosoacutefica dos jesuiacutetas ficasse largamente alheia aos modernos

problemas epistemoloacutegicos e se ativesse agrave problemaacutetica eacutetico-religiosa

261

Domingos Mauriacutecio Gomes dos Santos ldquoOs jesuigravetas e o ensino das Matemaacuteticas em Portugalrdquo

Broteacuteria 20 1935 262

J Pereira Gomes ldquoA Aula da Esferardquo in Enciclopeacutedia Luso-Brasileira de Cultura vol VII 102 263

Joatildeo Pereira Gomes Os Professores de Filosofia da Universidade de Eacutevora Eacutevora Cacircmara

Municipal 1960 264

Serafim Leite ldquoDiogo Soares Matemaacutetico Astroacutenomo e Geoacutegrafo de sua Majestade no estado do

Brasilrdquo in Broteacuteria 45 1947 e Jaime Cortesatildeo ldquoA Missatildeo dos Padres Matemaacuteticos no Brasilrdquo in Studia

1 1958

180

Apesar da referida ordem para que os professores de filosofia natildeo se

afastassem em caso algum da doutrina aristoteacutelica ter sido seguida natildeo

apenas no coleacutegio das Artes de Coimbra mas tambeacutem no Coleacutegio do Espiacuterito

Santo e noutras escolas dos jesuiacutetas como os coleacutegios de Satildeo Paulo de

Braga e Santo Antatildeo em Lisboa haacute que ter em conta que na realidade os

pensadores da Segunda Escolaacutestica fizeram uma releitura de Aristoacuteteles

visando adaptaacute-lo ao espiacuterito humanista em vigor como tambeacutem aos novos

problemas eacuteticos e poliacutetico-juriacutedicos emergentes do novo mundo criados pelos

descobrimentos pela expansatildeo ibeacuterica e pela colonizaccedilatildeo assim como pela

difusatildeo do cristianismo numa grande diversidade de contextos culturais

1 2 A Escola de Eacutevora e a interpretaccedilatildeo de Aristoacuteteles agrave luz do novo

contexto histoacuterico e dos seus problemas

Entre noacutes o segundo centro de irradiaccedilatildeo deste movimento de restauraccedilatildeo da

filosofia escolaacutestica foi o Coleacutegio do Espiacuterito Santo em Eacutevora Fundado pelo

Cardeal D Henrique que o confiou aos Jesuiacutetas veio a ser elevada a

Universidade em 15 de Abril de 1559 sendo a segunda Universidade do Paiacutes e

uma das mais reputadas da Peniacutensula Ibeacuterica

Tratando-se duma Universidade eclesiaacutestica contava entatildeo com duas caacutetedras

de Teologia uma de Sagrada Escritura e sete de Latim vindo mais tarde a

juntar-se-lhe quatro de Filosofia e uma de Matemaacutetica Foi uma das mais

reputadas Universidades europeias pelo prestiacutegio de mestres estrangeiros

notaacuteveis como Luiacutes de Molina e Francisco Suarez tendo nela ensinado

tambeacutem durante algum tempo Pedro da Fonseca considerado o mais

importante filoacutesofo portuguecircs quinhentista

Dos seus mestres destacamos a importacircncia de Molina pela influecircncia que as

suas teses vieram a ter na obra retoacuterica de Vieira265 Molina em Concordia

liberi arbitrii cum gratiae donis divina paraescientia providentia

predestinatione et reprobatione ad nonnulos primae partis S Thomae

articulus Lisboa 1588 e Apendix ad Concordiam Liberi arbitrii Lisboa 1588

265

Sobre a influecircncia de Suarez e Molina em Vieira Cf artigo de Pedro Calafate ldquo A Escolaacutestica

Peninsular no Pensamento Antropoloacutegico de Vieirardquo in Razatildeo e Liberdade - homenagem a Manuel Joseacute

Carmo Ferreira Lisboa2010 1011-1024

181

debate a questatildeo da possibilidade de harmonizar os auxiacutelios da graccedila de Deus

com a liberdade humana

Esta temaacutetica presumivelmente jaacute tratada por Pedro da Fonseca nas suas

aulas na Universidade de Coimbra onde Molina tinha estudado266 surgira na

sequecircncia do Conciacutelio de Trento e do combate aiacute iniciado contra as teses

protestantes sobre a predestinaccedilatildeo Lutero introduzindo a ideia de

predestinaccedilatildeo e de salvaccedilatildeo pela feacute rebaixava o papel da acccedilatildeo humana e

desvalorizava a liberdade o que contrariava directamente a visatildeo antropoloacutegica

de S Tomaacutes de Aquino segundo a qual a vontade humana se moveria de

acordo com um princiacutepio intriacutenseco267

Na sequecircncia daquele conciacutelio abrira-se uma poleacutemica a propoacutesito do problema

de saber qual o modo pela qual a liberdade humana se poderia exercer sem

frustrar a omnipotecircncia divina assim como sobre a questatildeo de saber se os

auxiacutelios concedidos pela graccedila divina predeterminam intrinsecamente a nossa

vontade

A soluccedilatildeo desta questatildeo estaacute segundo Molina na ldquociecircncia meacutediardquo de Deus A

ldquociecircncia meacutediardquo situa-se entre a ciecircncia natural ou necessaacuteria pela qual Deus

conhece todos os seres possiacuteveis como meramente possiacuteveis e a ciecircncia livre

ou de visatildeo pela qual Deus conhece que alguns contingentes existiratildeo Deus

tem uma ciecircncia natural ou intelectiva em virtude da qual conhece todos os

seres e acontecimentos possiacuteveis no seu estado de possibilidade e uma

ciecircncia livre ou de visatildeo pela qual conhece todos os seres e acontecimentos

presentes passados e futuros

Entre as duas Molina pressupotildee uma terceira espeacutecie de ciecircncia que se

relaciona com os conhecimentos dos actos e acontecimentos que dependem

da vontade humana268 Com efeito estes actos pertencem por um lado ao

266

Esta doutrina designada por Pedro da Fonseca como ldquociecircncia dos futuros condicionadosrdquo estaacute

disseminada por toda a obra de Fonseca designadamente pelos Comentaacuterios agrave metafiacutesica de Aristoacuteteles

na Isagoge Filosofica e nas Instituiccedilotildees Dialeacutecticas Cf Manuel Patrigravecio em ldquoA doutrina da Ciecircncia

Meacutedia de Pedro Fonseca a Luis de Molinardquo Luiacutes de Molina Regressa a Eacutevora Eacutevora 166 267

Comentando o texto de Molina Manuel Patriacutecio afirma ldquo O que parece fundamental assinalar no

presente texto de Molina eacute que tanto no que toca ao homem ndash como se sabe e poderaacute confirmar-se com

textos do proacuteprio filoacutesofo e teoacutelogo - como no que respeita a Deus na ldquodoutrina da ciecircncia meacutediardquo o lugar

fulcral eacute ocupado pelo conceito de liberdade de vontade livre de Deus e do homem Eacute a liberdade destas

duas vontades que eacute preciso harmonizar compatibilizar fazer concordarrdquo (Ob cit 168) 268

ldquo Distingue Molina trecircs classes de ciecircncia em Deus a meramente natural a livre a meacutedia A ciecircncia

meramente natural eacute a que natildeo pocircde ser absolutamente de outra maneira por ela conheceu Deus todas as

coisas agraves quais se estende a potecircncia divina quer imediatamente quer pela intervenccedilatildeo das causas

segundas sejam elas ligadas necessariamente entre si sejam contingentes podendo portanto

182

domiacutenio dos possiacuteveis por outro lado pela sua decisatildeo o homem realiza actos

que pertencem ao domiacutenio dos acontecimentos reais A ciecircncia meacutedia eacute aquela

pela qual Deus viu em sua essecircncia o que faria o homem no uso do seu livre

arbiacutetrio se fosse posto nesta ou naquela circunstacircncia podendo se quisesse

fazer o oposto Uma vez que Deus conhece tais acccedilotildees ele prevecirc ab eterno

que atitude o homem tomaria em certas circunstacircncias e soacute entatildeo decide

conceder a sua graccedila por uma acto de vontade inteiramente livre

Assim Molina consegue pensar a conciliaccedilatildeo entre a omnipotecircncia divina e a

liberdade humana na medida em que esta continua livre sob a acccedilatildeo da graccedila

O homem feito agrave imagem e semelhanccedila de Deus eacute o gestor da sua liberdade

e responsaacutevel pelo seu destino quer para o bem quer para o mal o que o

investe de responsabilidade face ao curso da histoacuteria eacute a proclamaccedilatildeo do

humanismo cristatildeo

Apesar das muacuteltiplas controveacutersias e do risco de a obra de Molina ser

colocada por pressatildeo dos Dominicanos no Iacutendice dos livros proibidos vaacuterias

Universidades europeias exprimiram o seu apoio agraves teses de Molina que

abriam a possibilidade de pensar a histoacuteria sob o concurso causal simultacircneo

de Deus e do Homem A Universidade de Sevilha escreveu ao papa em 1602

em defesa de Molina e em 5 de Setembro de 1607 o Papa Paulo V admitiu a

possibilidade de os molinistas poderem continuar a defender as respectivas

posiccedilotildees A importacircncia destas controveacutersias mostra que Molina (como

Fonseca) retomou categorias fundamentais do pensamento aristoteacutelico

(contingecircncia necessidade para repensar o problema antropoloacutegico do livre-

arbiacutetrio num contexto moderno marcado pela consciecircncia da liberdade do

indiviacuteduo na construccedilatildeo do seu proacuteprio destino)

Molina publicou ainda entre 1593 e 1609 De justitiae et jure em 6 volumes

contendo as liccedilotildees ditadas na Universidade de Eacutevora nos anos 157677 e

158182 Esta obra ocupava-se de problemas juriacutedicos relacionados com a

posiccedilatildeo de Portugal no mundo e continha reflexotildees sobre a legislaccedilatildeo

portuguesa Trata de temas como as relaccedilotildees entre a Igreja e o Estado a

indiferentemente existir ou natildeo existir A ciecircncia meramente livre eacute aquela ldquopela qual Deus depois do

acto livre da sua vontade sem nenhuma hipoacutetese nem condiccedilatildeo conheceu absoluta e determinantemente

por todas as complexotildees contingentes quais existiriam e quais realmente natildeo A ciecircncia meacutedia

finalmente eacute aquela ldquopela qual desde a altigravessima imprescrutaacutevel compreensatildeo de todo o livre arbigravetrio viu

em sua essecircncia que faria no uso da sua inata liberdade se fosse posto nesta ou naquela ordem ou

tambeacutem em infinitas ordens de coisas podendo se quisesse fazer na realidade o opostordquo (Ob Cit 174-

175)

183

origem da sociedade a escravatura a colonizaccedilatildeo a guerra justa e o direito de

resistecircncia

De justitiae et jure aborda o problema da justiccedila a partir de textos biacuteblicos

cruzados com textos de Aristoacuteteles269 e de S Tomaacutes de Aquino A mesma

concepccedilatildeo da autonomia que inspirava a doutrina da ciecircncia meacutedia ressurge

nas concepccedilotildees eacutetico-juriacutedicas de Molina relativas agraves relaccedilotildees do homem com

a sociedade baseadas no direito natural

O direito natural aparece como uma forma particular do direito divino que se

distingue do direito humano que eacute sempre para ele o direito positivo A

sociedade civil e o poder poliacutetico tecircm o seu fundamento no direito natural o

que implica a rejeiccedilatildeo da tese segundo a qual o regime jurisdicional se baseia

no estado de graccedila (deste modo a situaccedilatildeo de pecado entre os infieacuteis natildeo

suprime o direito de propriedade nem a legitimidade do poder poliacutetico)

Ao abrigo da noccedilatildeo de direito natural ele reconhece que todos os homens fieacuteis

ou infieacuteis europeus iacutendios ou negros estatildeo em peacute de igualdade Sendo o

direito de propriedade comum a todo o geacutenero humano ele discute a

legitimidade do domiacutenio portuguecircs distinguindo claramente o caso de

territoacuterios inabitados como Cabo Verde ou S Tomeacute da situaccedilatildeo de Angola e

Moccedilambique onde havia habitantes e um poder organizado

Molina apenas reconhece (na sequecircncia da doutrina tradicional desde Vitoacuteria)

como fundamento dos tiacutetulos de servidatildeo a guerra justa a condenaccedilatildeo agrave

servidatildeo por delito e o deixar-se vender a si mesmo como escravo Por outro

lado o tiacutetulo de guerra justa ou de justa posse natildeo pode basear-se num

suposto direito das gentes agrave navegaccedilatildeo ao comeacutercio agrave residecircncia agrave extracccedilatildeo

de riquezas agrave fundaccedilatildeo de cidades e outras formas de sociabilidade e de

comunicaccedilatildeo natural com os indiacutegenas pois esses tecircm o direito de impedir tais

praacuteticas nos territoacuterios de que satildeo legiacutetimos possuidores A noccedilatildeo de guerra

justa aplica-se apenas quando forem negados aos descobridores as faculdades

concedidas a todo o geacutenero humano pelo direito das gentes (nomeadamente

269

ldquoA par dos contemporacircneos e dos juristas Aristoacuteteles e S Tomaacutes de Aquino satildeo de facto os dois

autores mais citados na primeira abordagem do sentido da justiccedila A posiccedilatildeo platoacutenica por exemplo natildeo

soacute natildeo eacute discutida como nem sequer eacute mencionada Este silenciamento da posiccedilatildeo platoacutenica mais do que

um desconhecimento puro e simples de A Repuacuteblica e de As Leis indica uma opccedilatildeo de fundo que se iraacute

reflectir de modo mais claro nas questotildees em torno da problemaacutetica do direito naturalrdquo Antoacutenio Manuel

Martins ldquoA Teoria da Justiccedila em Molinardquo Luiacutes de Molina Regressa a Eacutevora 156-157

184

quando lhes for recusado o direito de passagem para comerciar ou

evangelizar)270

A doutrina de Molina foi-se impondo na colonizaccedilatildeo e missionaccedilatildeo da costa da

Aacutefrica oriental e ocidental e chegou mesmo ao Brasil onde apesar do duro

trabalho nos engenhos os negros eram acompanhados pelos missionaacuterios

jesuiacutetas que procuravam melhorar a sua situaccedilatildeo

Da vasta bibliografia de Suarez destacam-se Metaphisycorum Disputationum

obra em que reflecte de forma original sobre diversos problemas no acircmbito da

metafiacutesica escolaacutestica Ele discute a relaccedilatildeo entre a metafiacutesica como ciecircncia

dos primeiros princiacutepios e as ciecircncias particulares que ela funda e legiacutetima

sem contudo interferir no seu funcionamento A metafiacutesica eacute para ele a ciecircncia

do ser que estuda o ens in quantum reale sob o ponto de vista da substacircncia

e tambeacutem dos acidentes e Suarez discute em particular a tendecircncia para o

pensamento humano apreender a realidade por via da abstracccedilatildeo

generalizante apesar do estatuto ontoloacutegico privilegiado do indiviacuteduo e da

importacircncia da sua cognoscibilidade A metafiacutesica de Suarez exerceu uma

enorme influecircncia na Europa estando no entanto o levantamento dessa

influecircncia por fazer

1 3 Apogeu e decadecircncia da tradiccedilatildeo escolaacutestica

Relembrando a criacutetica de Heidegger agrave ldquoromanidade filosoacuteficardquo cuja traduccedilatildeo da

filosofia grega teria implicado um obscurecimento dos seus conceitos

fundamentais e imprimido ao pensamento filosoacutefico uma orientaccedilatildeo humanista

caracterizada pela valorizaccedilatildeo do studium humanitatis em contraposiccedilatildeo ao

barbarismo dos medievais podemos concluir que no essencial ela eacute correcta e

pode aplicar-se cabalmente agrave Segunda Escolaacutestica

De facto a Segunda Escolaacutestica levou a cabo natildeo apenas uma traduccedilatildeo da

filosofia aristoteacutelica associada agrave busca do rigor filoloacutegico como realizou uma

releitura de Aristoacuteteles isto eacute uma operaccedilatildeo de transposiccedilatildeo de sentido para a

soluccedilatildeo de problemas teoloacutegicos no acircmbito da Contra-Reforma assim como de

problemas juriacutedicos e poliacuteticos no contexto dos descobrimentos sendo

270

Sobre a modernidade do jusnaturalismo da escolaacutestica peninsular cf Joseacute Adelino Maltes em ldquoO

Jusnaturalismo catoacutelico dos seacuteculos XVI e XVII e as raigravezes da democraciardquo (Luis de Molina Regressa a

Eacutevora 53-73)

185

largamente dominada por uma leitura humanista Esta apropriaccedilatildeo da filosofia

Aristoteacutelica eacute feita a partir duma ldquosituaccedilatildeo hermenecircuticardquo determinada

dominada por problemas emergentes do contexto histoacuterico-linguiacutestico do

inteacuterprete abrindo certas possibilidades de interpretaccedilatildeo e fechando outras um

certo predomiacutenio da filosofia praacutetica e o desenvolvimento de uma racionalidade

argumentativa orientada para a soluccedilatildeo de problemas eacutetico-poliacuteticos

caracterizam este humanismo dos jesuiacutetas Tambeacutem a abordagem dos

problemas da metafiacutesica tende a enfatizar a autonomia do homem e a sua

liberdade colocando-o no centro da histoacuteria e responsabilizando-o pelo seu

futuro investindo-o duma nova dignidade ontoloacutegica que natildeo eacute obscurecida

nem diminuiacuteda pelo concurso da causa primeira

No entanto que esta leitura humanista de Aristoacuteteles signifique uma

decadecircncia ou empobrecimento do vocabulaacuterio filosoacutefico como pretende

Heidegger eacute altamente discutiacutevel e a riqueza do vocabulaacuterio filosoacutefico latino no

domiacutenio juriacutedico e religioso foi jaacute sublinhada pelo estudo do professor Franco

Volpi sobre esta temaacutetica ldquo [hellip] em geral no domiacutenio do sagrado o latim dos

romanos revela uma riqueza de conceitos de significados e de matizes que

natildeo derivam do grego mas que satildeo originaacuterios e que foram determinantes para

a cultura europeiardquo271

Em segundo lugar podemos afirmar que a reinterpretaccedilatildeo da dialeacutectica e da

retoacuterica aristoteacutelicas agrave luz da tradiccedilatildeo retoacuterica latina contribui largamente para a

renovaccedilatildeo dos estudos sobre argumentaccedilatildeo como do exerciacutecio da retoacuterica

como instrumento para dirigir o espaccedilo puacuteblico (lembremos que o termo

ldquoargumentordquo tem uma origem latina e que Ciacutecero foi o primeiro a defini-lo)

Nesta mesma perspectiva de valorizaccedilatildeo da ldquoromanidade filosoacuteficardquo eacute preciso

acentuar que a escolaacutestica peninsular significou um incremento dos estudos

filosoacuteficos desde logo porque os comentadores conimbricenses e Pedro da

Fonseca fundaram os seus comentaacuterios de Aristoacuteteles num conhecimento

directo dos textos gregos

271

ldquo [hellip] en general en el dominio de lo sagrado el latigraven de los romanos desvela una riqueza de

conceptos de significados y de matices que no derivan del griego sino que son originarios y que han sido

determinantes para la formacioacuten de la cultura europeardquo Franco Volpi ldquoHeidegger El Problema de la

intraducibilidad y la romanidad filosoacuteficardquo in Heidegger Linguagem e Traduccedilatildeo - coloacutequio

internacional Lisboa Centro de Filosofia da Universidade de Lisboa 2002 543

186

No entanto a natildeo traduccedilatildeo para as liacutenguas modernas dos principais autores da

Segunda Escolaacutestica juntamente com os imperativos de ordem ideoloacutegica e

religiosa associados agrave Contra-Reforma foram arrastando o progressivo

anquilosamento da tradiccedilatildeo escolaacutestica

Eacute aqui indispensaacutevel a referecircncia agrave Inquisiccedilatildeo cuja acccedilatildeo conheceu um

recrudescimento no seacuteculo XVII policiando o progresso das nossas letras para

impedir qualquer desvio em relaccedilatildeo agrave ortodoxia A Inquisiccedilatildeo ressalvava da

necessidade de passar pelo crivo da censura as teorias que se mantivessem

nos limites do curso conimbricense e os proacuteprios Jesuiacutetas elaboraram uma

lista de proposiccedilotildees proibidas que deviam ser banidas do ensino272

O Iacutendice Expurgatoacuterio Lusitano elaborado pela Inquisiccedilatildeo portuguesa

continha para aleacutem do cataacutelogo extenso de obras proibidas a seguinte regra

citada por Lopes Praccedila ldquoPorquanto neste reino e particularmente em Lisboa

haacute muito comeacutercio de estrangeiros setentrionais das partes entradas ou

infestadas de heresia proiacutebem-se quaisquer livros em liacutengua Inglesa

Flamenga e Tudesca (ainda que natildeo sejam nomeadas no cataacutelogo) para efeito

que nenhuma se possa ter nem ler sem primeiro apresentar ao Santo Ofiacutecio e

se examinar a sua qualidade E tambeacutem nos Franceses se encomenda que se

tenha muita advertecircncia como natildeo forem notoriamente sem suspeita e

proibidosrdquo273

Mercecirc da rigidez dos mecanismos associados agrave sua transmissatildeo da

dificuldade de contacto com as obras da filosofia moderna e desta suspeiccedilatildeo

relativamente a toda a produccedilatildeo filosoacutefica cientiacutefica e literaacuteria redigida nas

principais liacutenguas europeias a Escolaacutestica Peninsular dificilmente poderia

actualizar-se e vivificar-se no confronto e com os problemas cientiacuteficos eacuteticos e

poliacuteticos da modernidade

No que toca agrave liacutengua portuguesa parece provaacutevel que a longa permanecircncia da

escolaacutestica entre noacutes tenha contribuiacutedo fortemente para que o latim persistisse

ateacute bastante tarde como liacutengua exclusiva da filosofia ao contraacuterio doutros

paiacuteses onde a partir do Renascimento as liacutenguas nacionais eram

ocasionalmente usadas como liacutenguas de traduccedilatildeo

272

Cf Lopes Praccedila Histoacuteria da Filosofia em Portugal Lisboa Guimaratildees amp Cordf Editores 1974 187-196 273

Lopes Praccedila Histoacuteria da Filosofia em Portugal Lisboa Guimaratildees amp Cordf Editores 1974 200

187

A uacutenica traduccedilatildeo de filosofia para liacutengua portuguesa foi no periacuteodo

considerado a traduccedilatildeo de Ciacutecero feita durante o seacuteculo XVI (Ciacutecero

Tratados de Amizade Paradoxos e Sonhos de Scipiatildeo traduzidos do latim em

liacutengua portuguesa por Duarte de Resende no ano de 1531274) que no entanto

pelo seu caraacutecter excepcional e por se tratar dum autor valorizado

principalmente como retoacuterico indicia mais do que uma mudanccedila de

mentalidade relativamente agrave adopccedilatildeo do latim como liacutengua exclusiva do

pensamento filosoacutefico e cientiacutefico a grande difusatildeo e influecircncia ldquoexemplarrdquo da

retoacuterica ciceroniana

Este exemplo frutificou entre noacutes na brilhante oratoacuteria barroca de Antoacutenio Vieira

(Lisboa - 1608 - Baiacutea 1697) cujos sermotildees veiculam uma mundividecircncia

humanista e cristatilde fortemente influenciada pela restauraccedilatildeo escolaacutestica (em

particular pela filosofia da histoacuteria e pelo jusnaturalismo de Molina) e de fundas

repercussotildees na cultura portuguesa e brasileira

Antoacutenio Vieira surge como combinaccedilatildeo do ideal ciceroniano do orador (capaz

de influenciar um vasto auditoacuterio pelo perfil de cidadatildeo exemplar275) e do ideal

heroacuteico e voluntarista do missionaacuterio da Companhia de Jesus capaz de

desafiar os perigos e a hostilidade para difundir a mensagem cristatilde Os seus

sermotildees pregados em liacutengua portuguesa e cuidadosamente revistos pelo seu

autor para futura publicaccedilatildeo testemunham uma apropriaccedilatildeo original da

tradiccedilatildeo retoacuterica

Misturando temas da cultura erudita e da cultura popular enfatizando o pathos

do discurso retoacuterico dominando com mestria inigualaacutevel a arte da eloquecircncia e

natildeo receando aprender e usar as liacutenguas dos gentios a sua oratoacuteria visava

persuadir um auditoacuterio tatildeo vasto e tatildeo heterogeacuteneo que se estendia dos iacutendios

da Amazoacutenia agraves cortes da Europa e agrave cuacuteria romana

Vieira nas suas muacuteltiplas facetas de educador poliacutetico e missionaacuterio

representa um momento de grande consciecircncia da importacircncia da linguagem e

da diversidade das liacutenguas na interacccedilatildeo viva dos homens e no

274

Cf Apecircndice sobre Traduccedilotildees Portuguesas de Filosofia 275

Cf O ldquoSermatildeo da Sexageacutesimardquo foi pregado na Capela Real em Lisboa em Marccedilo de 1655 O Sermatildeo

encerra uma teoria da arte de pregar onde o ideal ciceroniano do orador se alia agrave missatildeo evangelizadora

do pregador Estaacute organizado em dez partes que se constroem agrave volta de uma metaacutefora central pregar eacute

semear Cf Pe Antoacutenio Vieira Sermotildees Porto 1959 Tomo I 3-66

188

estabelecimento dum entendimento comum do justo e do injusto condiccedilatildeo

imprescindiacutevel para manter a coesatildeo de uma comunidade

Os seus sermotildees pregados em Portugal e no Brasil abordam uma variedade de

temas quase inesgotaacutevel de que salientamos a reflexatildeo criacutetica sobre a retoacuterica

e as suas funccedilotildees na sociedade de seiscentos (Sermatildeo de Santo Antoacutenio aos

Peixes276 e Sermatildeo da Sexageacutesima) um enfoque original de problemas de

eacutetica e filosofia poliacutetica a partir da contraposiccedilatildeo entre os dois mundos

platoacutenicos ldquoo mundo dos olhosrdquo e ldquoo mundo dos filoacutesofosrdquo e do necessaacuterio

compromisso entre ambos (Sermatildeo de S Pedro 1644277 Sermatildeo da Dominga

Vigeacutesima Segunda Depois de Pentecostes278) a igualdade dos homens

perante o direito natural279 jaacute defendida por Molina e problemas relacionados

com este princiacutepio como o estatuto dos iacutendios o sofrimento dos escravos

negros nos engenhos o comportamento dos colonos portugueses (Sermatildeo da

Epifania280 Sermatildeo XIV do Rosaacuterio281)

Haacute ainda que salientar a sua obra escrita com maior sobriedade argumentativa

e sem o pathos retoacuterico dos sermotildees onde retoma muitos destes temas

poliacuteticos e desenvolve a temaacutetica escatoloacutegica do V Impeacuterio282 Esta parte mais

especulativa da sua obra eacute constituiacuteda por uma extensa epistolografia (mais de

setecentas cartas) pela Histoacuteria do Futuro - escrita em liacutengua portuguesa

porque destinada a persuadir os portugueses das suas responsabilidades pela

276

Cf O ldquoSermatildeo de Santo Antoacutenio aos Peixesrdquo foi proferido na cidade de S Luiacutes do Maranhatildeo em 1654

constituindo um documento da notaacutevel habilidade oratoacuteria capacidade argumentativa e poder satiacuterico do

Pe Antoacutenio Vieira que aigrave confronta o papel dos pregadores como ldquosal da terrardquo com a indiferenccedila dos

auditoacuterios tomando vaacuterios peixes como siacutembolos dos viacutecios dos colonos portugueses naquele Estado do

Brasil Cf ob cit tomo VII 246-280 277

O ldquoSermatildeo de S Pedrordquo foi pregado em Lisboa em S Juliatildeo em 1644 agrave Veneraacutevel Congregaccedilatildeo dos

Sacerdotes dispondo-se num conjunto de trecircs homilias relativas agrave figura de S Pedro Cf ob cit Tomo

VII 351-384 278

O ldquoSermatildeo da Dominga Vigeacutesima Segundardquo foi pregado no Estado do Maranhatildeo em 1664 e

desenrola-se como comentaacuterio agrave pergunta dos Hebreus se era liacutecito pagar tributo a Ceacutesar Cf ob cit

Tomo VI 226-287 279

Cf Sobre o jusnaturalismo do Pe Antoacutenio Vieira cf Antoacutenio Braz Teixeira em Caminhos e Figuras

da Filosofia do Direito Luso-Brasileira Lisboa 2002 41-51 280

O ldquoSermatildeo da Epifaniardquo foi pregado na Capela Real em 1662 agrave rainha D Luiacutesa regente do reino na

menoridade de D Afonso VI Sobre este sermatildeo escreveu Camilo Castelo Branco ldquoVieira comoveu ateacute

agraves laacutegrimas e fez que a santa liberdade volvesse agrave Ameacuterica a estalar as gargalheiras do iacutendio e a cicatrizar-

lhe as vergastadas do tagenterdquo cf Continuaccedilatildeo e Complemento do Curso de Literatura Portuguesa de

Andrade Ferreira 102 Cf ob cit tomoII 5-61 281

O ldquoSermatildeo Deacutecimo Quarto do Rosaacuteriordquo foi pregado em 1633 agrave irmandade de negros de um engenho

no dia de S Evangelista e descreve o sofrimento dos escravos negros nos engenhos de accediluacutecar do Brasil

Cf ob cit 1959 tomoXI 281-317 282

Sobre a metafiacutesica da Histoacuteria de Vieira cf Paulo Alexandre Borges em A Plenificaccedilatildeo da Histoacuteria

em Padre Antoacutenio Vieira - estudos sobre a ideia de Quinto Impeacuterio na Defesa Perante o Tribunal do

Santo Ofiacutecio Lisboa 1995

189

conduccedilatildeo da histoacuteria em direcccedilatildeo ao Impeacuterio de Cristo - assim como a Clavis

Prophetarum escrita em latim e destinada a persuadir um virtual auditoacuterio

universal dessa segunda epifania anunciada nas profecias biacuteblicas

Esta temaacutetica milenarista do V Impeacuterio eacute suportada em Vieira numa

hermenecircutica dos textos biacuteblicos que tem como pressuposto a ideia de

ldquoaplicaccedilatildeordquo dos textos sagrados a novos contextos e a problemas do acircmbito da

filosofia da Histoacuteria Vieira faz a leitura destes textos tomando-os como textos

metafoacutericos e simboacutelicos cujo sentido oculto pode ser desvendado pela acccedilatildeo

do tempo e da histoacuteria

Esta esperanccedila escatoloacutegica jaacute corrente em contextos de crise desde a Idade

Meacutedia eacute contudo em Vieira fundado natildeo apenas nas profecias biacuteblicas como

tem sido sublinhado mas na doutrina da ciecircncia meacutedia de Molina Convicto do

papel decisivo da vontade livre dos homens e na possibilidade de obter o

auxiacutelio da graccedila como preconizavam os molinistas (ldquoCom efeito sendo

racionais as ovelhas que devem ser trazidas ao redil e hatildeo-de ouvir a voz do

pastor o efeito destinado natildeo depende apenas da vontade de Deus mas

tambeacutem da liberdade e alvedrio do homemrdquo283) Vieira desenvolve um intenso

esforccedilo de persuasatildeo dos seus contemporacircneos visando mobilizar as

vontades atraveacutes do discurso

A obra de Vieira interessa-nos por constituir um momento particular de

consciecircncia da importacircncia da linguagem na negociaccedilatildeo das soluccedilotildees dos

problemas poliacuteticos e na criaccedilatildeo dum sensus comunis capaz de dar coesatildeo a

uma comunidade em contexto de crise e de dispersatildeo como era entatildeo o caso

de Portugal

O interesse da sua obra eacute para noacutes histoacuterico natildeo apenas porque significou

um momento de afirmaccedilatildeo da liacutengua portuguesa mas porque na sua obra a

liacutengua se constitui ela mesma em acontecer histoacuterico em sentido eminente ou

Ereignis nela acontece a apropriaccedilatildeo viva da tradiccedilatildeo escolaacutestica e a

projecccedilatildeo do humanismo cristatildeo que se difundiraacute na cultura luso-brasileira e

animaraacute muitas criaccedilotildees culturais posteriores Neste sentido tatildeo lapidarmente

sublinhado por Fernando Pessoa284 ao designaacute-lo como Imperador da Liacutengua

283

Antoacutenio Vieira Chave dos Profetas Lisboa 2000 689 284

Sobre a influecircncia do profetismo de Vieira em Fernando Pessoa cf Alfredo Antunes em Saudade e

Profetismo em Fernando Pessoa Braga 1983 450-455

190

Portuguesa a sua obra ditou e instituiu um mundo que ateacute hoje ainda eacute o

nosso

2 A modernidade pombalina e a decadecircncia da tradiccedilatildeo escolaacutestica

Para caracterizar e delimitar o conceito de modernidade partimos da posiccedilatildeo

heideggeriana de que cada era da histoacuteria da cultura eacute fundada numa

meditaccedilatildeo metafiacutesica sobre o ente e numa decisatildeo sobre a essecircncia da

verdade ldquoNa metafiacutesica cumpre-se a meditaccedilatildeo sobre a essecircncia do ente e

uma decisatildeo sobre a essecircncia da verdade A metafiacutesica funda uma era na

medida em que atraveacutes de uma determinada interpretaccedilatildeo do ente e atraveacutes

de uma determinada concepccedilatildeo da verdade lhe daacute o fundamento da sua figura

essencialrdquo285

Um dos fenoacutemenos da era a que chamamos ldquomodernardquo foi um novo conceito

de ciecircncia cujo paradigma reside nas ciecircncias experimentais este novo

conceito de ciecircncia deixa-se descrever como investigaccedilatildeo experimental ou

seja como indagaccedilatildeo do ente a partir de um projecto de matematizaccedilatildeo

integral da natureza

Constataacutemos jaacute que a restauraccedilatildeo escolaacutestica pela difusatildeo das matemaacuteticas e

pela actualizaccedilatildeo cientiacutefica de alguns dos seus professores e bibliotecas

contribuiu - apesar das restriccedilotildees apertadas impostas pelo contexto poliacutetico-

religioso - como eacute hoje geralmente reconhecido para a difusatildeo de uma novo

interesse pelas mateacuterias cientiacuteficas natildeo se reduzindo o seu ensino apenas agraves

humanidades

No entanto a relaccedilatildeo da Segunda Escolaacutestica com a ciecircncia moderna tem que

ser compreendida a partir da decisatildeo metafiacutesica que suporta o projecto de

investigaccedilatildeo experimental da natureza que doravante seraacute determinante e

que Heidegger caracteriza nos seguintes termos ldquoSoacute se chega agrave ciecircncia como

investigaccedilatildeo se e apenas se a verdade se transformou em certeza do

representar Eacute na metafiacutesica de Descartes que o ente eacute pela primeira vez

285

ldquoIn der Metaphysik vollzieht sich die Besinnung auf das Wesen des Seienden und eine Entscheidung

uumlber das Wesen der Wahrheit Die Metaphysik begruumlndet ein Zeitalter indem sie ihm durch eine

bestimmte Auslegung des Seienden und durch eine bestimmte Auffassung der Wahrheit den Grund seiner

Wesensgestalt gibtldquo Heidegger ldquoDie Zeit des Weltbildesrdquo in H GA 5 75

191

determinado como objectividade do representar e a verdade como certeza do

representarrdquo286

De acordo com a perspectiva de Heidegger que explicitamente adoptamos

natildeo haveria na Idade Moderna nenhum enfraquecimento da metafiacutesica mas

apenas uma transformaccedilatildeo desta que agora jaacute natildeo parte da pergunta sobre o

ente na totalidade como ocorria na metafiacutesica aristoteacutelico-escolaacutestica mas sim

da pergunta pelo homem considerado como sujeito

A metafiacutesica moderna natildeo parte pois da ideia de Deus mas da ideia do eu da

consciecircncia tomado como o fundamento indiscutiacutevel de toda as certezas face

agrave qual o mundo tende a ser transformado em representaccedilatildeo do sujeito e a ele

oposto como ldquoobjectordquo ldquoDescartes impele o duvidar de todo o conhecimento

ateacute ao ponto em que depara com algo indubitaacutevel que deve fornecer o

fundamento para a nova construccedilatildeo um fundamentum inconcussum uma base

inabalaacutevel um substrato para todo o saber algo estaacutevel e firme um

subjectum287

Esta nova eacutepoca caracteriza-se pois pela tentativa de o homem se libertar da

feacute na revelaccedilatildeo e pela sua auto-posiccedilatildeo como fonte de toda a certeza como

centro e medida de todas as coisas como tentativa de estabelecer de modo

autoacutenomo as normas a que devem subordinar-se o conhecimento e a acccedilatildeo

Natildeo se trata de uma novidade absoluta - haacute que sublinhar que na metafiacutesica

escolaacutestica pressupotildee-se um Deus criador que tudo criou racionalmente

sendo por isso o universo uma totalidade ordenada susceptiacutevel de ser

apropriado pelo intelecto humano e ainda que no interior da Segunda

Escolaacutestica se vinha desenhando um importante movimento de ideias que

sublinhavam a autonomia e a responsabilidade do homem na conduccedilatildeo dos

assuntos humanos

Francisco Gama Caeiro sublinha relativamente ao curso conimbricense que ldquoeacute

bem reconhecida a sua invulgar repercussatildeo na Europa documentada pelo

286

ldquoZur Wissenschaft als Forschung kommt es erst dann und nur dann wenn die Wahrheit zur

Gewissheit des Vorstellens sich gewandelt hat Erstmals wird das Seiende als Gegenstӓndlichkeit des

Vorstellens und die Wahrheit als Gewiβheit des Vorstellens in der Metaphysik des Descartes bestimmtldquo

Heidegger ldquoDie Zeit des Weltbildesrdquo in H GA 5 87 287

ldquoDescartes treibt die Bezweiflung aller Kenntnis bis dorthin wo er auf etwas Unzweifelhaftes stoumlβt

das die Grundlage fuumlr den kommenden Neubau abgeben soll ein fundamentum inconcussum eine

unerschuumltterliche Grundlage eine Unterlage fuumlr alles Wissen ein Bestaumlndiges Beharrendes ein

subiectumrdquo LWS GA 38 146

192

avultado nuacutemero de reimpressotildees que dele se fizeram em Franccedila Alemanha e

Itaacuteliardquo e ainda que ldquoo curso reflectiu-se nomeadamente nos rumos da filosofia

moderna pois ele impregnou de modo profundo o pensamento de Descartes

Leibniz Malebranche e Wolffrdquo288

Assim a afirmaccedilatildeo do homem e da autonomia da sua razatildeo defendida pela

modernidade que teraacute como seu correlato natural a de que todo o ente poderaacute

ser pensado no puro pensar das matemaacuteticas significa uma viragem que se

efectua no interior da tradiccedilatildeo metafiacutesica (e contra ela) mas que de certo

modo jaacute estava preparada por alguns pensadores da Segunda Escolaacutestica

Tal natildeo pode no entanto obscurecer a importacircncia e a significaccedilatildeo da viragem

moderna no sentido duma metafiacutesica da subjectividade que se afirma com o

cogito cartesiano nem a radical ruptura com a autoridade da tradiccedilatildeo religiosa

que se anuncia com a duacutevida cartesiana

Esta ruptura nunca pocircde consumar-se em Portugal graccedilas agraves severas

restriccedilotildees impostas pela Inquisiccedilatildeo ao acesso agrave literatura cientiacutefica e filosoacutefica

europeia A estas restriccedilotildees veio a somar-se ainda a proibiccedilatildeo estabelecida a 7

de Maio de 1746 pelo Reitor do Coleacutegio das Artes de Coimbra em edital de

que ldquonos exames ou liccedilotildees conclusotildees puacuteblicas ou particulares se natildeo ensine

ou defenda opiniotildees novas pouco recebidas e inuacuteteis para o estudo das

ciecircncias maiores como satildeo as de Renato Descartes Gassendi Newton e

outros e nomeadamente qualquer ciecircncia que defenda os aacutetomos de Epicuro

ou negue a realidade dos acidentes eucariacutesticos ou quaisquer conclusotildees

opostas ao sistema de Aristoacuteteles o qual nestas escolas se deve seguir como

repetidas vezes se recomenda nos Estatutos deste Coleacutegio das Artesrdquo289

O que vai caracterizar a entrada de Portugal na modernidade vai ser a tentativa

de acolher a ciecircncia moderna e reformar o ensino sem contudo operar esta

ruptura nem compreender claramente o projecto metafiacutesico que estaacute

subjacente agrave nova ciecircncia experimental290

288

Gama Caeiro ldquoO Pensamento Filosoacutefico em Portugal e no Brasil do seacutec XVI ao seacutec XVIIIrdquo in Actas

do I Congresso Luso-Brasileiro de Filosofia Revista Portuguesa de Filosofia Braga 1982 64 289

Adolpho CrippardquoConceito de Filosofia na Eacutepoca Pombalinardquo in Actas do I Congresso Luso-

Brasileiro de Filosofia Revista Portuguesa de Filosofia Braga 1982 436 290

Sobre o caraacutecter fragmentaacuterio e descontiacutenuo como as correntes da filosofia moderna se repercutiram

na Peniacutensula Ibeacuterica cf Adolpho Crippa ldquoConceito de Filosofia na Eacutepoca Pombalinardquo in Actas do

Congresso Luso - Brasileiro de Filosofia Braga 1982 Referindo-se ao quadro geral da filosofia em

Portugal no seacutec XVIII o autor afirma ldquoO grupo maior era constituigravedo pelos escolaacutesticos ou aristoteacutelicos

os quais identificando-se em alguns pontos essenciais tinham tambeacutem suas divergecircncias Tomistas

193

2 1 O Projecto pedagoacutegico do iluminismo portuguecircs

A entrada na modernidade vai ser dominada por uma discussatildeo sobre

educaccedilatildeo e sobre as necessaacuterias reformas que se querem inspiradas no

ideaacuterio iluminista do progresso e numa abertura agraves ciecircncias experimentais

A ciecircncia moderna em Portugal deu os seus primeiros passos no seacuteculo XVIII

com a criaccedilatildeo por D Joatildeo V na deacutecada de 20 da Aula de Fiacutesica Experimental

no Palaacutecio das Necessidades a cargo da Congregaccedilatildeo do Oratoacuterio assim

como com as liccedilotildees de Filosofia proferidas pelo Pe Joatildeo Baptista no interior da

referida Congregaccedilatildeo que pretendiam recuperar o sentido originaacuterio da

filosofia aristoteacutelica contra as distorccedilotildees escolaacutesticas conciliando-o com a

filosofia dos rdquomodernosrdquo publicadas sob o tiacutetulo Philosophia Aristoteacutelica

Restituta

D Joatildeo V leva ainda a cabo diversas iniciativas visando integrar na cultura

portuguesa o ensino das ciecircncias e da filosofia moderna tendo chamado a

atenccedilatildeo para a necessidade de envio dos nossos estudantes para as grandes

universidades e academias europeias Foi iniciada por Jacob de Castro

Sarmento a traduccedilatildeo das obras de Bacon para portuguecircs o que nunca veio a

ser concluiacutedo (tratando-se segundo Orlando Vitorino da primeira tentativa de

traduzir uma obra por motivos especificamente filosoacuteficos) mas este autor

publicou em 1737 a obra Teoacuterica Verdadeira das Mareacutes Conforme Philosophia

do Incomparaacutevel Cavalheiro Isaac Newton

A deacutecada de 40 ainda sob o reinado de D Joatildeo V ficaraacute marcada pela

publicaccedilatildeo dos dois principais textos do iluminismo portuguecircs A Loacutegica

Racional Geomeacutetrica e Analiacutetica do engenheiro Manuel de Azevedo Fontes

(1744) e o Verdadeiro Meacutetodo de Estudar de Luiacutes Antoacutenio Verney (1746) Esta

uacuteltima obra centrada nos defeitos do ensino e na decadecircncia da cultura

portuguesa dirigia uma criacutetica contundente agrave escolaacutestica e fazia apologia dum

ensino moderno livre dos artifiacutecios da loacutegica silogiacutestica dos problemas

escotistas nominalistas e outros grupos seguiam o caminho tradicional da filosofiaOposto era o grupo

dos modernos (recentiores) que buscava um novo caminho para a filosofofia Por fim apresentaram-se os

ecleacutecticos que procuraram uma independecircncia pessoal frente agraves escolas laquoNovadores e ecleacuteticos foram os

pioneiros do pensamento moderno em Portugal Aparentava-os a concepccedilatildeo mecanicista da natureza e

tinham por si em vez da autoridade e da tradiccedilatildeo da escola os notaacuteveis progressos cientiacuteficos no domiacutenio

da Matemaacutetica e da Fiacutesica e a galeria vasta de grandes nomes do seacuteculo Uns e outros foram os agentes

mais ou menos activos e propulsores da criacutetica e do desapreccedilo da siacutentese escolaacutesticahellipraquordquo (Ob cit 439)

194

nebulosos da metafiacutesica orientado para a ldquofilosofia naturalrdquo291 e a

aprendizagem das liacutenguas modernas preconizando uma aproximaccedilatildeo agraves

modernas ideias pedagoacutegicas em vigor na Europa

Para a nossa temaacutetica eacute particularmente importante a posiccedilatildeo de Verney

relativamente agrave afirmaccedilatildeo das liacutenguas modernas ou ldquovulgaresrdquo como liacutenguas

de difusatildeo do pensamento filosoacutefico e do conhecimento cientiacutefico Esta

preocupaccedilatildeo leva Verney a exigir o ensino da Gramaacutetica e da Ortografia

portuguesas como meio de elevar a liacutengua portuguesa a uma liacutengua culta

retirando-a do estatuto de menoridade relativamente ao latim ldquo A Gramaacutetica eacute

a arte de escrever e falar correctamente Todos aprendem a sua liacutengua no

berccedilo mas se acaso se contentam com essa notiacutecia nunca falaratildeo como

homens doutos Os primeiros mestres das liacutenguas vivas comummente satildeo

mulheres ou gente de pouca literatura de que vem que se aprende a proacutepria

liacutengua com muito erro e palavra improacutepria e pela maior parte palavras

plebeias Eacute necessaacuterio emendar com estudo os erros daquela primeira

doutrinardquo292

Que esta preocupaccedilatildeo de normalizar e disciplinar a aprendizagem da liacutengua

portuguesa marcha a par da preocupaccedilatildeo da aprendizagem das ciecircncias eacute

explicitamente afirmado pelo proacuteprio autor que no apecircndice dedicado agrave

aprendizagem das liacutenguas modernas reafirma a convicccedilatildeo de todos os

espiacuteritos modernos de que as ciecircncias se podem estudar em todas as liacutenguas e

de que ldquoa maior dificuldade das Ciecircncias consiste em elas serem escritas em

Latim liacutengua que os rapazes natildeo entendem bem ldquo293 As criacuteticas de Verney agraves

tentativas de aprender a liacutengua portuguesa atraveacutes da poesia assim como as

severas criacuteticas agrave retoacuterica do Pe Antoacutenio Vieira e agrave poesia de Camotildees no

volume dedicado aos estudos literaacuterios satildeo tambeacutem indicadores do sentido em

que se pretende fazer evoluir a liacutengua294

Outra das frentes deste combate de Verney em prole da actualizaccedilatildeo cientiacutefica

dos portugueses foi a apologia da aprendizagem das liacutenguas estrangeiras

ldquoForam os romanos os primeiros que aprenderam voluntariamente liacutengua

291

O repuacutedio da escolaacutestica no seacuteculo XVIII portuguecircs assentava no repuacutedio da Loacutegica formal da Fiacutesica

qualitativa e da concepccedilatildeo das formas substanciais Cf ob cit 440 292

Luiacutes Antoacutenio Verney O Verdadeiro Meacutetodo de Estudar vol I Lisboa Livraria Saacute da Costa 1949

2627 293

Ibidem vol I 273 294

Cf Ibidem vol II 177-197 e 302-323

195

estrangeira o que natildeo consta que povo algum antes deles tivesse feito E

nisto me parecem mais racionaacuteveis porque conhecendo a necessidade dela

para o estudo da Filosofia Matemaacutetica e Belas-Letras natildeo se envergonharam

de receber liccedilotildees daqueles mesmos a quem tinham vencido e davam leis Este

eacute um grande elogio para uma naccedilatildeo tatildeo considerada como a romana conhecer

que eacute vencida em merecimento e confessar publicamente esse vencimento e

pocircr remeacutedio a essa faltardquo295

Natildeo deixa no entanto de ser sintomaacutetico do sentido desta abertura agrave

modernidade que as liacutenguas que ele reputava como mais importantes para a

difusatildeo das ideias modernas fossem o italiano e o francecircs liacutenguas latinas

coabitando o mesmo espaccedilo da Contra-Reforma O proacuteprio Verney cuja

influecircncia determinante parece ter sido o da filosofia de John Locke leu este

autor traduzido para francecircs liacutengua que dominava desde o berccedilo por ser de

ascendecircncia francesa

A reforma pombalina parcialmente inspirada na obra de Verney culminou com

a reforma da Universidade de Coimbra em 1772296 Como parte desta reforma

foi criado o primeiro Gabinete de Fiacutesica Experimental ldquopara Depoacutesito De

Maacutequinas Aparelhos e Instrumentos os quais satildeo necessaacuterios para que as

liccedilotildees de Fiacutesica se faccedilam com aproveitamento dos estudantesrdquo Tais aparelhos

tornaram possiacuteveis aulas de fiacutesica experimental em que conforme acontecia na

Europa se recriavam o rei as cortes e mesmo o publico em geral mas nunca

foram capazes de fundar um ensino experimental nem de estimular praacuteticas de

investigaccedilatildeo na Universidade

A par de uma inspiraccedilatildeo empirista havia no entanto tambeacutem na referida

reforma uma influecircncia cartesiana bem patente nos novos estatutos da

Universidade Uma das justificaccedilotildees fundamentais da reforma pombalina foi a

tese de que os jesuiacutetas teriam produzido grandes danos relativamente ao

295

Ibidem vol I 2829 296

Segundo Adolpho Crippa a reforma pombalina da Universidade de 1972 teve uma inspiraccedilatildeo

empirista bem patente na adopccedilatildeo das Instituiccedilotildees de Loacutegica de Genovesi como manual de estudo Sob a

influecircncia das teorias empiristas de John Locke e Bacon que chegavam a Portugal de modo indirecto

atraveacutes de comentadores endureceu-se a criacutetica agrave escolaacutestica e adoptou-se uma afirmaccedilatildeo mais radical da

capacidade da razatildeo natural para coordenar os dados da experiecircncia do mesmo modo a reflexatildeo

filosoacutefica deveria acompanhar o trabalho das ciecircncias dependendo directamente da observaccedilatildeo A

reivindicaccedilatildeo da autonomia da Fiacutesica em relaccedilatildeo agrave metafiacutesica e a convicccedilatildeo na sua possibilidade de tudo

conhecer era tambeacutem um aspecto fundamental das teses destes ldquo modernosrdquo em que se inspirou a reforma

pombalina Nesta linha situavam-se Jacob de Castro Sarmento e Luiacutes Antoacutenio de Verney Cf rdquoConceito

de Filosofia na Eacutepoca Pombalinardquo in Actas do I Congresso Luso-Brasileiro de Filosofia 445

196

desenvolvimento cientiacutefico e agraves praacuteticas pedagoacutegicas Os jesuiacutetas eram

acusados de escamotear os problemas relativos agrave importacircncia do meacutetodo

mediante o qual fosse assegurada a ordem nos estudos e a progressatildeo dos

alunos e de adoptar procedimentos pedagoacutegicos que se afastavam da ordem

natural da razatildeo Neste discurso iluminista o meacutetodo dos jesuiacutetas era

designado como analiacutetico e criticado por fundar um tipo de ensino baseado no

comentaacuterio dos textos e numa interpretaccedilatildeo casuiacutestica que favorecia a

arbitrariedade e instalava a duacutevida tornando todas as mateacuterias disputaacuteveis e

arrastando como consequecircncia a falta de conexatildeo entre os conhecimentos e a

incerteza das conclusotildees

A reforma fazia nos estatutos da Universidade de Coimbra a apologia do novo

meacutetodo ldquonaturalrdquo aiacute apelidado de demonstrativo determinando que fosse

utilizado em todas as disciplinas desde a teologia a todas as ciecircncias e agraves

partes que as compotildeem O meacutetodo demonstrativo ou geomeacutetrico preconizava a

ordem da siacutentese como a ordem natural de aprendizagem das diversas

mateacuterias segundo o ideal da evidecircncia preconizado pela filosofia cartesiana

ldquopara mais se facilitar o estudo das ciecircncias e nelas se poderem fazer mais

vantajosos progressos natildeo haacute coisa que mais possa concorrer do que a

disposiccedilatildeo e distribuiccedilatildeo das mesmas ciecircncias e de todas as suas partes por

uma ordem e meacutetodo que primeiro se ensinem e aprendam as que preparem e

datildeo agrave luz para a inteligecircncia das outras e nelas se natildeo passe jamais de umas

proposiccedilotildees para as outras sem que as precedentes se tenham provado e

demonstrado com a maior evidecircncia de que elas foram susceptiacuteveis conforme

a sua natureza e princiacutepiosrdquo297

Este meacutetodo considerado ldquonaturalrdquo tem em vista a boa ordem de exposiccedilatildeo do

conhecimento a fim de se conseguir a rapidez e eficaacutecia do ensino contra a

apregoada morosidade e ineficaacutecia da disputatio em consonacircncia com o ideal

de ldquocertezardquo caracteriacutestico da ciecircncia moderna

Apesar da aparente radicalidade deste combate ao meacutetodo de ensino

escolaacutestico que teve a sua face mais visiacutevel na reforma da Universidade de

Coimbra e na extinccedilatildeo de todas as escolas do Reino cuja direcccedilatildeo estava

entregue agrave Companhia de Jesus esta abertura agrave modernidade natildeo significou

uma ruptura radical com os paradigmas escolaacutesticos

297

Estatutos da Universidade Coimbra (1772) Livro III parte II 142

197

Permanecendo a desconfianccedila face agrave filosofia que se desenvolvia nos paiacuteses

onde as controveacutersias de natureza religiosas e o protestantismo imperavam

como era o caso da Franccedila da Inglaterra e da Alemanha natildeo houve acesso ao

debate filosoacutefico sobre os princiacutepios da metafiacutesica aristoteacutelica nem aos

problemas mais complexos do seu confronto com a ciecircncia moderna

O Santo Ofiacutecio manteve-se e este continuou a sua acccedilatildeo em Portugal tendo-

se o Marquecircs de Pombal limitado a transferir os procedimentos contra os que

possuiacutessem ou vendessem livros proibidos para a Real Mesa Censoacuteria onde

estavam igualmente presentes os inquisidores298 Estando a obra de Galileu e

tambeacutem a de Descartes no Iacutendex os fundadores da ciecircncia e da metafiacutesica

modernas eram praticamente desconhecidos natildeo resultando clara a profunda

ruptura que o meacutetodo experimental implica com a experiecircncia natural e duma

forma geral com o saber empiacuterico

2 2 A Criacutetica agrave tradiccedilatildeo escolaacutestica e o ecletismo filosoacutefico

O pensamento portuguecircs deste periacuteodo teve (como em toda a Europa) como

caracteriacutestica marcante a afirmaccedilatildeo de um ideal de progresso alicerccedilado na

razatildeo e considerado incompatiacutevel com a tradiccedilatildeo escolaacutestica fazendo por isso

a condenaccedilatildeo absoluta do aristotelismo e de toda a tendecircncia metafiacutesica e

especulativa em filosofia

No entanto o tom apologeacutetico insultuoso e persecutoacuterio da criacutetica agrave

escolaacutestica bem expressos nos proacuteprios estatutos da Universidade de

Coimbra oculta um facto que teraacute para o futuro da nossa cultura uma influecircncia

capital em vez de participar do confronto teoacuterico da ciecircncia moderna com a

metafiacutesica aristoteacutelica e os paradigmas do saber escolaacutestico em que toda a

filosofia europeia moderna participou os intelectuais e a cultura portugueses

ficaram arredados desse debate

Assim em vez participar no caminho da criacutetica aberta por Galileu e Descartes

a maior parte da inteligecircncia portuguesa foi levada a optar pela simples

amputaccedilatildeo natildeo soacute da filosofia escolaacutestica como de toda a metafiacutesica

doravante substituiacuteda pela ldquofilosofia naturalrdquo ou pela ldquofiacutesicardquo o que se

anunciava jaacute em Verney

298

Cf Lopes Praccedila Histoacuteria da Filosofia em Portugal Lisboa Guimaratildees Editores 1974 276

198

Efectivamente a criacutetica mordaz e contundente agrave escolaacutestica do volume do

Verdadeiro Meacutetodo de Estudar dedicado aos estudos filosoacuteficos centra-se na

criacutetica aos argumentos de autoridade fundados em Aristoacuteteles na Biacuteblia e nos

decretos papais299 e exige o livre exame da razatildeo de todos os autores da

filosofia moderna exigecircncia muito mais ambiciosa do que o que foi

efectivamente realizado pela reforma pombalina Contudo para Verney esta

abertura agrave modernidade significa no plano concreto dos estudos cuja reforma

se pretende implantar a simples supressatildeo da metafiacutesica e a substituiccedilatildeo da

filosofia pela ciecircncia ldquoEu suponho que a Filosofia eacute conhecer as coisas pelas

suas causas ou conhecer a verdadeira causa das coisas Esta definiccedilatildeo

recebem os mesmos Peripateacuteticos ainda que eles a explicam com palavras

mais obscuras Mas chamem-lhe como quiserem vem a significar o mesmo

vg saber qual eacute a verdadeira causa que faz subir a aacutegua na seringa eacute

Filosofia conhecer a verdadeira causa por que a poacutelvora acesa em uma mina

despedaccedila um grande penhasco eacute Filosofia outras coisas a estas

semelhantes em que pode entrar a verdadeira notiacutecia das causas das coisas

satildeo Filosofiardquo300

Esta amputaccedilatildeo da metafiacutesica impossibilitava a compreensatildeo do essencial da

viragem para a modernidade - sem uma clara consciecircncia dos fundamentos

ontoloacutegicos da revoluccedilatildeo cientiacutefica do seacuteculo XVII nem se ter uma verdadeira

compreensatildeo do meacutetodo cientiacutefico instaurou-se uma compreensatildeo vaga

superficial e empirista da ciecircncia moderna e toda a poleacutemica propriamente

filosoacutefica se centrou na condenaccedilatildeo da metafiacutesica e numa exaltaccedilatildeo da ciecircncia

experimental inspirada em Newton e num debate dos problemas

gnosioloacutegicos dominado pelas posiccedilotildees empiristas relativas agrave origem do

conhecimento sem preocupaccedilotildees de rigor ou de precisatildeo conceptual

Segundo Adolpho Crippa301 a criacutetica de Gassendi a Aristoacuteteles influenciou

fortemente os pensadores portugueses deste periacuteodo induzindo numa criacutetica agrave

filosofia Aristoteacutelica como um vazio jogo de palavras e propondo a experiecircncia

como uacutenica via para a explicaccedilatildeo dos fenoacutemenos fiacutesicos A obra de Gassendi

teria chegado a Portugal atraveacutes do Abregeacute de Philosophie de Gassendi de

299

Luis Antoacutenio Verney O Verdadeiro Meacutetodo de Estudar vol III 89 300

Ibidem vol III 39 301

Cf Adolpho Crippa ldquoConceito de filosofia na eacutepoca pombalinardquo in Actas do I Congresso Luso-

Brasileiro de Filosofia 436-459

199

Bernier (1678) isto eacute atraveacutes de divulgadores e teria sido ldquodada a confusatildeo

generalizadardquo frequentemente confundida com a filosofia cartesiana

Relativamente a Descartes a primeira alusatildeo que lhe eacute feita em Portugal

remonta a 1649 no ldquoCursos Philosophicusrdquo de Francisco Soares Lusitano a

propoacutesito da circulaccedilatildeo do sangue embora se suponha que jaacute existisse um

conhecimento indirecto da obra de Descartes atraveacutes da presenccedila em Portugal

do matemaacutetico P Ciermans e do engenheiro Joatildeo Gillot disciacutepulo do filoacutesofo

francecircs

O Cursos Philosophicus de Antoacutenio Cordeiro (1676-1680) revela tambeacutem um

conhecimento das teorias de Gassendi e Descartes (apesar de omitir qualquer

citaccedilatildeo expliacutecita) assim como a tentativa ecleacutectica de conciliaccedilatildeo com a filosofia

escolaacutestica

Apesar das controveacutersias geradas em toda a Europa pela filosofia cartesiana

ela parece duma forma geral ser mal conhecida em Portugal e o proacuteprio

Verney no Verdadeiro Meacutetodo de Estudar distancia-se de Descartes

considerando o seu sistema ldquomais engenhoso do que verdadeirordquo

Ainda segundo Adolpho Crippa a situaccedilatildeo filosoacutefica durante a segunda metade

do seacuteculo XVIII em Portugal eacute atravessada por controveacutersias pouco claras entre

os defensores da tradiccedilatildeo escolaacutestica e os defensores das novidades

cientiacuteficas entre os quais se contavam frequentemente confundidos uns com

os outros gassendistas e cartesianos As dificuldades de conciliar as

exigecircncias da tradiccedilatildeo metafiacutesica com as exigecircncias da fiacutesica moderna

dominavam estas controveacutersias que dado o contexto poliacutetico-religioso e as

dificuldades no contacto com os centros onde conhecia maior desenvolvimento

a filosofia moderna tambeacutem natildeo poderiam facilmente alcanccedilar uma

clarificaccedilatildeo

Deste modo a tese heideggeriana de que natildeo deixamos de estar sob o efeito

de uma tradiccedilatildeo apenas por a querermos suprimir mas que ela subsiste soacute

que de forma inconsciente e confusa tem aqui uma brilhante confirmaccedilatildeo De

facto os dois paradigmas fundamentais da tradiccedilatildeo escolaacutestica continuaram a

persistir entre noacutes incoacutelumes por um lado continuou a vigorar a aceitaccedilatildeo da

autoridade religiosa baseada na revelaccedilatildeo como indiscutiacutevel (materialmente

apoiada pela actividade da Real Mesa Censoacuteria) por outro lado a maioria dos

iluministas portugueses natildeo rompeu com o paradigma geocecircntrico adoptando

200

a soluccedilatildeo de compromisso de Ticho Brahe que salvaguardava a autoridade da

igreja e o geocentrismo

A tiacutetulo de exemplo podemos referir Frei Manuel do Cenaacuteculo302 um dos

nossos iluministas mais prestigiados que natildeo hesitava em recomendar a

substituiccedilatildeo da loacutegica aristoteacutelica pelo meacutetodo geomeacutetrico dos modernos

reafirmando simultaneamente de uma forma geral a subordinaccedilatildeo do uso da

razatildeo individual agrave autoridade da tradiccedilatildeo religiosa Tal indicaccedilatildeo do dever de

subordinaccedilatildeo da razatildeo agrave autoridade dos textos sagrados pode inferir-se

claramente desta afirmaccedilatildeo de uma das suas Instruccedilotildees Pastorais ldquo Este

pensamento nos leva a dizer do Homem posto em Sociedade Contrahe neste

estado Grandes Obrigaccedilotildees determinadas por direitos merecedores de mais

exacta observacircncia A igualdade e a independecircncia muacutetua que a Natureza deo

a todos os homens natildeo lhes devem servir para abusar pois tem sujeiccedilatildeo a um

Senhor e a Leis Sacrossantas que os obriga a governarem-se que confira

dignidade e Justiccedila agraves suas Acccedilotildeesrdquo303 Que tal subordinaccedilatildeo natildeo visava

simplesmente a ordem praacutetica da acccedilatildeo mas envolvia igualmente o domiacutenio

teoacuterico da especulaccedilatildeo sobre questotildees metafiacutesicas eacute sublinhado por Frei

Manuel do Cenaacuteculo em Cuidados Literaacuterios com a indicaccedilatildeo de que tais

questotildees devem ser resolvidas ldquopelos textos da Sagrada Escritura tradiccedilatildeo

Conciacutelios e Santos Padresrdquo304

Quanto agrave vigecircncia do paradigma geocecircntrico haacute que recordar que ele

continuou a manter-se entre noacutes e a ser ensinado nas caacutetedras universitaacuterias

com as correcccedilotildees introduzidas por Ticho Brahe coexistindo aiacute de forma

paradoxal com a fiacutesica de Newton e a mecacircnica de Galileu ateacute aos fins do

seacuteculo XVIII Esta posiccedilatildeo ecleacutectica no domiacutenio da ciecircncia encontra-se bem

documentada aliaacutes na obra de Verney o qual reporta sem qualquer

apreciaccedilatildeo criacutetica a coexistecircncia dos modelos cosmoloacutegicos de Copeacuternico e

302

Sobre o papel da Congregaccedilatildeo do Oratoacuterio ordem religiosa criada em Franccedila criacutetica do aristotelismo

e rival dos Jesuiacutetas que entrou em Portugal no reinado de D Joatildeo V cf Maria Cacircndida Monteiro

Pacheco em ldquoFilosofia e Ciecircncia no Pensamento Portuguecircs dos sec XVII e XVIIIrdquo Actas do Congresso

Luso-Brasileiro de Filosofia 482 303

Frei Manuel do Cenaacuteculo Da Instruccedilatildeo Pastoral do Excelentiacutessimo e Reverendiacutessimo Senhor Bispo de

Beja sobre as virtudes da ordem natural Lisboa Na Regia Officina Typografica 1785 38-39 304

Cf Frei Manuel do Cenaacuteculo Dos Cuidados Literaacuterios do prelado de Beja em graccedila do seu bispado

Lisboa Na Officina de Simatildeo Thadeo Ferreira 1791 117-118

201

Ticho Brahe admitindo-os igualmente como ficccedilotildees hipoteacuteticas sendo o

empirismo de Bacon a verdadeira pedra basilar da Ciecircncia moderna305

Este ecletismo vecirc-se em Verney elevado a uma ldquofilosofiardquo caracterizada pela

prudente aceitaccedilatildeo de verdades fundadas na experiecircncia e na recusa de

qualquer sistema ldquoEste eacute o sistema moderno natildeo ter sistema e soacute assim eacute que

se tem descoberto alguma verdade Livre de paixatildeo cada Filoacutesofo propotildee as

suas razotildees sobre as coisas que observa as que satildeo claras e certas abraccedilam-

se as que satildeo duvidosas ou se rejeitam ou se recebem no grau de

conjecturasrdquo306

Esta reivindicaccedilatildeo do livre exame da verdade e da autonomia da razatildeo que

parece em Verney estar associada agrave rejeiccedilatildeo dos sistemas natildeo foi no entanto

o espiacuterito que animou a reforma pombalina nem a sua criacutetica agrave tradiccedilatildeo

escolaacutestica

Uma pequena anedota referida por Antoacutenio Paim307 serve para ilustrar a

relaccedilatildeo das instituiccedilotildees de ensino do iluminismo de Pombal com a tradiccedilatildeo

filosoacutefica Tendo mandado na ediccedilatildeo Portuguesa das Instituiccedilotildees de Loacutegica

retirar a referecircncia de Genovesi a Aristoacuteteles como criador da loacutegica Pombal

explica nestes termos a sua determinaccedilatildeo numa carta ao reitor-reformador D

Francisco de Lemos ldquosempre o nome de um filoacutesofo tatildeo abominaacutevel se deve

procurar antes esqueccedila nas liccedilotildees de Coimbra do que se apresente aos olhos

dos acadeacutemicos como um atendiacutevel corifeu da filosofiardquo

O ensino ldquoreformadordquo da filosofia passou a ser feito pelos referidos compecircndios

de Genovesi autor ecleacutectico italiano308 de que em Portugal se adoptou uma

obra de divulgaccedilatildeo simplificada309

305

Cf Luiacutes Antoacutenio Verney O Verdadeiro Meacutetodo de Estudar vol III 30-31 306

Ibidem vol III 1950 202 307

Antoacutenio Paim ldquoAs Luzes no Brasilrdquo in Histoacuteria do Pensamento Filosoacutefico Portuguecircs Lisboa 1999

Vol III 475 308

ldquoAntoacutenio Genovesi professor em Naacutepoles conhecedor e tradutor de Locke ecleacutectico e empirista

adversaacuterio incansaacutevel de qualquer tipo de inatismo causou profunda impressatildeo em Verney Segundo ele

mesmo temos ambos as mesmas opiniotildees e o mesmo sistema de filosofiardquo As instituiccedilotildees de Loacutegica de

Genovesi que deveriam oferecer o suporte epistemoloacutegico para a arrancada em busca da ciecircncia

moderna natildeo iam aleacutem de um modesto texto de loacutegica escrito para rdquogiovanettirdquo Apesar disso

incorporada ao pensamento oficial portuguecircs e tornadas obrigatoacuterias no ensino impressionavam sobretudo

pelo facto de que reuniam aspectos da loacutegica tradicional e enunciados da moderna teoria do

conhecimento sem a preocupaccedilatildeo de aprofundaacute-lasrdquo Adolpho Crippa ldquoConceito de filosofia na eacutepoca

pombalinardquo in Actas do I Congresso Luso-Brasileiro de Filosofia 447 Segundo Adolpho Crippa o

problema fundamental de que se ocupava o pensador italiano era o das origens das ideias na linha do

empirismo de John Locke procurando conciliaacute-la com o aristotelismordquo (Ob cit 447)

202

2 3 Linguagem e traduccedilatildeo

Um outro aspecto da feiccedilatildeo ecleacutectica do iluminismo portuguecircs diz respeito agrave

temaacutetica das liacutenguas e tem uma importacircncia central para o problema da

traduccedilatildeo filosoacutefica Sob o impeacuterio da influecircncia da escola de Port Royal Verney

tem tambeacutem como preocupaccedilatildeo a procura da liacutengua perfeita (que para os

teoacutericos de Port Royal era o francecircs) dando por conseguinte grande

importacircncia ao estudo da Gramaacutetica Contudo em Verney esta preocupaccedilatildeo

toma corpo numa Gramaacutetica Latina capaz de disciplinar o ensino do latim e de

simplificar o uso da liacutengua libertando-o dos formalismos da retoacuterica Verney

compocircs uma parte da sua proacutepria obra em latim na continuaccedilatildeo da tradiccedilatildeo

escolaacutestica

Verney apercebeu-se claramente como acima vimos da queda do latim como

liacutengua universal das comunicaccedilotildees cientiacuteficas e filosoacuteficas e da sua

substituiccedilatildeo pela pluralidade das liacutenguas nacionais O renascimento cultural

portuguecircs eacute visto como consequecircncia da abertura agrave produccedilatildeo cientiacutefica e

filosoacutefica europeiardquo[] soacute acho vestiacutegios de maior erudiccedilatildeo quando a este

reino vinham ensinar os estrangeiros ou quando os portugueses iam aprender

e ensinar fora dele Pelo contraacuterio depois que se deixou este comeacutercio literaacuterio

vejo as coisas muito mudadasrdquo310 Na sequecircncia desta tese apela Verney

como acima vimos para a necessidade de aprender francecircs e italiano ldquoseria

tambeacutem justo que o estudante com o tempo aprendesse Francecircs e Italiano

para poder ler as maravilhosas obras que nestas liacutenguas se tem composto em

todas as ciecircncias de que natildeo temos traduccedilotildees latinasrdquo311

Natildeo haacute contudo na sua obra O Verdadeiro Meacutetodo de Estudar nenhuma

referecircncia agrave necessidade de traduccedilatildeo destas obras para a liacutengua portuguesa

sendo a traduccedilatildeo aiacute ainda pensada (como pode deduzir-se do trecho citado)

como uma operaccedilatildeo de traduccedilatildeo das vaacuterias liacutenguas nacionais para o latim o

que pressupotildee que se continua a aceitar apesar de tudo o latim como liacutengua

universal de comunicaccedilatildeo cientiacutefica

309

Antoacutenio Paim analisa as implicaccedilotildees da versatildeo da obra de Genovesi que circulava em Portugal e no

Brasil nos capiacutetulos sobre Loacutegica Fiacutesica e Teoria do Conhecimento concluindo que elas iam no sentido

de obscurecer o sentido da ciecircncia moderna e romper o contacto com a filosofia assim como de um

afunilar a discussatildeo dos problemas do conhecimento centrando-a nas dificuldades internas da corrente

empirista (Cf ldquoAs Luzes no Brasilrdquo in Histoacuteria do Pensamento Filosoacutefico Portuguecircs vol III 446-447) 310

Luiacutes Antoacutenio Verney O Verdadeiro Meacutetodo de Estudar vol I 268 311

Ibidem vol I 272273

203

As Instituiccedilotildees de Loacutegicas e Metafiacutesica de Antoacutenio Genovesi - apesar de ser

um texto escolar usado para o ensino da filosofia escrito pelo autor como uma

exposiccedilatildeo simplificada da filosofia para jovens sob a designaccedilatildeo de La logica

per i giovanetti - circulavam em ediccedilotildees latinas e soacute em 1786 foram traduzidas

para Portuguecircs as Instituiccedilotildees Metafiacutesicas do mesmo Genovesi foram

traduzidas em 1790 As Instituitiones de Philosophiae Praticae de Eduardo Job

usadas como compecircndio para o ensino da filosofia moral foram editadas

sucessivamente em latim a partir de 1784 soacute sendo traduzidas em 1846 por

Joatildeo Baptista Correia Magalhatildees312

Para aleacutem das traduccedilotildees referidas feitas com fins pedagoacutegicos as restantes

traduccedilotildees efectuadas neste periacuteodo contemplam autores claacutessicos

testemunhando sobretudo o peso que a retoacuterica claacutessica e a filosofia

aristoteacutelica (apesar da sua condenaccedilatildeo expliacutecita) continuavam ainda a ter (ver

anexo I)

Este periacuteodo do pensamento portuguecircs eacute pois largamente dominado pelo

peso de preconceitos instituiacutedos e impostos de modo coercitivo ditados agora

pelo ideaacuterio de um ldquoiluminismo catoacutelicordquo protagonizado por Pombal que rejeita

a tradiccedilatildeo metafiacutesica e pretende abrir-se agrave filosofia e agrave ciecircncia modernas sem

contudo estar disposto a sujeitar-se ao confronto com os textos que pretende

criticar ou exaltar (e que tambeacutem natildeo haacute a preocupaccedilatildeo de traduzir) A

destituiccedilatildeo das caacutetedras de filosofia no ensino superior substituiacutedas pelo

ensino das ciecircncias naturais contribuiu para fragilizar ainda mais a apropriaccedilatildeo

e transmissatildeo da tradiccedilatildeo filosoacutefica sem que por outro lado a esta amputaccedilatildeo

correspondesse um progresso notaacutevel no campo da investigaccedilatildeo cientiacutefica ou

da criaccedilatildeo de uma mentalidade cientiacutefica313

312

Analisando esta obra cuja ediccedilatildeo latina estava truncada sendo omisso o uacuteltimo capiacutetulo sobre a

Poliacutetica Antoacutenio Paim conclui que a obra difundia a ideia da dependecircncia da poliacutetica em relaccedilatildeo agrave

teologia moral e fazia a apologia directa da monarquia absoluta distanciando-se da moralidade moderna

O autor sublinha ainda o efeito pedagoacutegico perverso da combinaccedilatildeo da versatildeo simplificada da obra de

Genovesi com as Instituiccedilotildees de Filosofia Praacutetica de Eduardo Job no sentido de facilitar a criaccedilatildeo nos

jovens de um espiacuterito dogmaacutetico (Cf ldquoAs Luzes no Brasilrdquo in Histoacuteria do Pensamento Filosoacutefico

Portuguecircs vol III 447-453) 313

Antoacutenio Paim ressalva o campo da mineralogia onde pelo seu impacto econoacutemico directo houve um

surto de investigadores No geral poreacutem confirma a apreciaccedilatildeo de que a reforma Pombalina natildeo

conseguiu estimular a investigaccedilatildeo cientigravefica ldquoAntecedendo de meio seacuteculo a providecircncia adoptada por

Napoleatildeo o Marquecircs de Pombal destroacutei a universidade medieval erguendo em seu lugar uma nova

universidade constituiacuteda agrave volta da ciecircncia

Salvo no que respeita agrave mineralogia a incorporaccedilatildeo da ciecircncia moderna em Portugal com a reforma de

1772 natildeo logrou consolidar a pesquisa cientigraveficardquo (Cf Ibidem vol III 481) Segundo o mesmo autor no

que eacute seguido por Adolpho Crippa (cf ldquoConceito de filosofia na eacutepoca pombalinardquo in Actas do I

204

Este desaparecimento da filosofia das instituiccedilotildees de ensino superior significou

ainda a impossibilidade do desenvolvimento da investigaccedilatildeo de problemas

filosoacuteficos e o desaparecimento de haacutebitos de rigor e de fundamentaccedilatildeo das

opccedilotildees filosoacuteficas nos textos que tinham caracterizado o periacuteodo anterior

Neste contexto natildeo se podia fazer sentir a necessidade de progressos no

campo da traduccedilatildeo filosoacutefica

Para o problema que aqui nos ocupa eacute tambeacutem relevante chamar a atenccedilatildeo

para o modo rdquoinautecircnticordquo como se mantecircm e se transmitem de agora em

diante aspectos essenciais da tradiccedilatildeo escolaacutestica Natildeo sendo os seus textos

traduzidos nem ensinados ela teraacute doravante o mesmo destino de toda a

tradiccedilatildeo morta seraacute transmitida sob a forma de um modo de pensar banal e

tornado evidente donde estaacute inteiramente ausente a consciecircncia expliacutecita de

uma tradiccedilatildeo que se trata de legitimar ou de refutar e que se concilia de modo

inconsciente e confuso com a filosofia moderna

3 A mediaccedilatildeo francoacutefona e o ldquoeclipse da filosofiardquo

3 1 O ecletismo de Victor Cousin

Antero de Quental retrata desta forma a submissatildeo cultural a Franccedila em vigor

em Portugal durante o seacuteculo XIX ldquo[] Portugal literariamente eacute quase uma

proviacutencia da Franccedila [] os proacuteprios compecircndios em muitas das caacutetedras de

instruccedilatildeo secundaacuteria e superior satildeo francesas As causas deste singular e

quanto a mim deploraacutevel fenoacutemeno satildeo muitas sendo talvez a principal o facto

de que o regime constitucional em Portugal foi estabelecido por homens que

todos tinham passado largos anos emigrados em Franccedila ndash Trouxeram de laacute as

leis as ideias e tudo que caacute implantaram em oacutedio agraves coisas nacionais

tornando deste modo a inteligecircncia portuguesa feudataacuteria da Franccedilardquo314

A ausecircncia de haacutebitos de traduccedilatildeo das obras filosoacuteficas e cientiacuteficas levava a

que no seacuteculo XIX conforme Antero sublinha os proacuteprios manuais de ensino

fossem importados de Franccedila e lidos em liacutengua francesa Acresce ainda a isto

Congresso Luso-Brasileiro de Filosofia 449) no ciclo Pombalino a ciecircncia eacute incorporada agrave cultura Luso-

Brasileira num sentido muito preciso isto eacute como ciecircncia aplicada 314

Antero de Quental ldquoCarta a Tomazzo Canizzarro a 29 de Maio de 1888ldquo in Ana Maria Almeida

Martins (org) Cartas II 884

205

que a transmissatildeo da tradiccedilatildeo filosoacutefica seriamente fragilizada pela reforma

pombalina veio a sofrer mais um revecircs com a extinccedilatildeo da uacutenica cadeira de

Filosofia propriamente dita que ainda subsistia na Faculdade de Filosofia

eliminada por carta reacutegia de 24 de Janeiro de 1791 e substituiacuteda por uma

cadeira de botacircnica e agricultura315

O regresso da filosofia agrave Universidade haveria de fazer-se de forma tiacutemida com

a criaccedilatildeo do Curso Superior de Letras em Lisboa destinado ao ensino da

Histoacuteria da Literatura e da Filosofia Este abriu portas em 1861 ministrando

um curso de Filosofia de 2 anos que incluiacutea no curriculum apenas trecircs cadeiras

(Filosofia Filosofia e Histoacuteria da Filosofia e Histoacuteria Universal da Filosofia)

sendo frequentado por um nuacutemero irrisoacuterio de alunos (meacutedia anual de 2 alunos

ordinaacuterios e 36 voluntaacuterios) ateacute 1902

O ensino da Filosofia remetido para o secundaacuterio continuou a ser feito pelos

compecircndios de Genovesi apesar das criacuteticas que entretanto surgiam por parte

dos poucos pensadores dignos de nota deste periacuteodo como Silvestre Pinheiro

Ferreira e Cunha Rivara que exigiram sem resultado uma reforma do ensino

da filosofia e a aboliccedilatildeo dos manuais do Genovesi Foi apenas em 1884 que

por decreto de 20 de Setembro esse ensino foi reformado e substituiacutedo por

nova orientaccedilatildeo ecleacutectica influenciada pelo eclectismo francecircs de Victor

Cousin 316

Victor Cousin viu-se em Franccedila elevado agrave condiccedilatildeo de responsaacutevel pela

orientaccedilatildeo geral adoptada no ensino da filosofia preconizando uma completa

separaccedilatildeo entre a filosofia (isto eacute a investigaccedilatildeo sobre os problemas

filosoacuteficos) e a sua transmissatildeo que se confunde como a transmissatildeo de um

certo nuacutemero de ideias de reconhecida utilidade social317 resultantes da

conciliaccedilatildeo ecleacutectica dos vaacuterios sistemas filosoacuteficos

E foi este uacuteltimo aspecto que marcou a influecircncia de Victor Cousin em Portugal

onde foi progressivamente substituindo a influecircncia de Genovesi ateacute ser

315

Cf Manuel Maria Carrilho Razatildeo e Transmissatildeo da Filosofia Lisboa 1987 199-200 316

Ibidem 202 317

ldquoO essencial das teses sobre o ensino da filosofia encontra-se na obra de Cousin Deacutefense de

l‟Uacuteniversiteacute et de la Philosophie Cousin considera que eacute na instruccedilatildeo secundaacuteria que se produz a elite das

sociedades modernas pelo que este ensino deve visar acima de tudo a formaccedilatildeo geral dos homens como

cidadatildeos No plano de estudos do secundaacuterio a filosofia ocupa um papel muito importante visando dispor

os alunos agrave aceitaccedilatildeo da autoridade do Estado pelo desenvolvimento do espiacuterito onde devem ser

inculcadas ldquoas verdades naturais que estatildeo acima dos sistemas e natildeo pertencem a nenhuma escola mas ao

senso comumrdquo pois sem elas natildeo pode haver moral puacuteblica nem privadardquo Cf Ibidem 224

206

oficializada pela reforma de 1844 Este ecletismo constitui-se como rejeiccedilatildeo de

todos os sistemas que segundo Victor Cousin se reduzem a dois o

sensualismo anglo-francecircs e o idealismo alematildeo sistemas jaacute esgotados e

envelhecidos que se trata de salvar pela conciliaccedilatildeo ecleacutectica das suas

contradiccedilotildees 318

Este novo ecletismo que agora se impotildee na filosofia tem pois uma

caracteriacutestica diferente do anterior trata-se dum ecletismo filosoacutefico que natildeo

surge como resposta ao contexto cultural portuguecircs mas que eacute importado de

Franccedila 319A adopccedilatildeo oficial em Portugal do ecletismo de Victor Cousin

significou apenas a escolarizaccedilatildeo da filosofia para fins de utilidade social

pensados agrave luz do contexto histoacuterico-culrural francecircs

A importaccedilatildeo da filosofia em liacutengua francesa320 marcou todo o seacuteculo XIX e

explica a ausecircncia de traduccedilotildees de filosofia neste periacuteodo como pode

facilmente constatar-se pela leitura do apecircndice na sua rubrica relativa agraves

traduccedilotildees portuguesas de filosofia no seacuteculo XIX

A primeira consequecircncia deste facto eacute que neste periacuteodo se selecciona agrave

partida o que se importa e o que se lecirc a partir de revistas e outras publicaccedilotildees

francesas sujeitando-nos portanto a uma decisatildeo alheia sobre o que eacute

importante ler Mas a segunda e mais importante observaccedilatildeo podemos fazecirc-la

a partir do proacuteprio Heidegger e do que na sua obra eacute indicado sobre a estreita

ligaccedilatildeo entre a linguagem enquanto liacutengua dum povo histoacuterico e o exerciacutecio

318

Manuel Maria Carrilho defende que o eclectismo de Victor Cousin eacute um ecletismo do senso comum

porquanto pretende eliminar as diferenccedilas entre sistemas recorrendo a criteacuterios fundados no senso

comum O senso comum ver-se-ia assim elevado ao estatuto de autoridade filosoacutefica Ao senso comum

de Cousin falta por conseguinte uma perspectiva filosoacutefica do conflito das filosofias ou seja falta uma

abordagem filosoacutefica da histoacuteria da filosofia Ibidem 204-215 319

A defesa da funccedilatildeo social da filosofia feita por Cousin deve-se ao facto de que em Franccedila natildeo era jaacute

possiacutevel contar com a autoridade de nenhuma religiatildeo estabelecida para assegurar a coesatildeo social e

portanto era necessaacuterio que os cidadatildeos partilhassem certos princiacutepios sem recorrer a nenhuma

autoridade religiosa mas unicamente fundados na razatildeo Cousin procura assim uma filosofia para o

ensino que estimule uma posiccedilatildeo equidistante de todas as crenccedilas e de todos os sistemas filosoacuteficos

centrada nos princiacutepios estabelecidos a partir da razatildeo comum Esta estrateacutegia tem como pano de fundo a

total separaccedilatildeo entre filosofia e investigaccedilatildeo de problemas filosoacuteficos e a sua transmissatildeo considerada

como mateacuteria a ser decidida em funccedilatildeo da utilidade do ensino puacuteblico e dos interesses do Estado Cf

Ibidem 224 320

Testemunhos desta importaccedilatildeo do ecletismo francecircs foram a Memoacuteria de Cunha Rivara dirigida em

1839 ao Conselho Geral Director do Ensino Primaacuterio e Secundaacuterio onde se propotildee como orientaccedilatildeo para

o ensino da Filosofia o ecletismo de Cousin e o Discurso de Abertura de 1842 assim como no Novo

Discurso de 1843 de Manuel Pinheiro de Almeida de Azevedo em que o ecletismo de Cousin eacute

igualmente defendido como orientaccedilatildeo para o ensino Nos compecircndios esta nova orientaccedilatildeo ecleacutectica

impocircs-se a partir dos anos quarenta e cinquenta Contudo os novos manuais que substituiacuteram os de

Genovesi sem nunca os criticar nem alterar radicalmente a sua orientaccedilatildeo apresentavam-se antes como

um aprofundamento e correcccedilatildeo destes Tais factos levam Manuel Maria Carrilho a afirmar que a nova

orientaccedilatildeo ecleacutectica se apresenta como uma ldquopraacutetica de envelhecimentordquo Ibidem 236-238

207

do pensar Ler um autor em francecircs eacute necessariamente pensaacute-lo vertido para

formas linguiacutesticas que transportam e veiculam um sentido e essa

transposiccedilatildeo semacircntica implica a passagem a um outro horizonte cultural

Procedem-se assim na ausecircncia de traduccedilatildeo a transferecircncias culturais

mecacircnicas e natildeo a um diaacutelogo com os textos a partir de questotildees colocadas

pelo proacuteprio contexto cultural Foi esta importaccedilatildeo superficial e dogmaacutetica que

veio a caracterizar a recepccedilatildeo do positivismo francecircs que entre noacutes marcou as

instituiccedilotildees e a sociedade portuguesa ateacute tornar-se numa ldquoevidecircnciardquo ideoloacutegica

dominante nas classes cultas

3 2 O Positivismo

Criticando o dogmatismo positivista imperante nos meios poliacuteticos e nas

classes cultas e apontando com lucidez a sua raiz na ldquofalta de preparaccedilatildeo

filosoacuteficardquo dos portugueses Antero afirma ainda numa outra carta ldquoO

Positivismo como quasi todas as coisas banais e particularmente as

banalidades francesas parece claro simples e capaz de explicar tudo natildeo

pede aleacutem disso esforccedilo algum de inteligecircncia para ser compreendido eacute

finalmente coacutemodo como todos os dogmatismos estes defeitos satildeo as causas

do momentacircneo favor que encontra em espiacuteritos por um lado frouxos e sem a

menor preparaccedilatildeo filosoacutefica por outro lado impacientes de quebrarem o jugo

de doutrinas puramente convencionadasldquo321

O Positivismo de Augusto Comte retoma a temaacutetica do progresso introduzida

pelo iluminismo fundamentando-a contudo numa visatildeo linear e dogmaacutetica do

desenvolvimento da humanidade ao longo de trecircs estaacutedios teoloacutegico metafiacutesico

e positivo Toda a educaccedilatildeo teoloacutegica metafiacutesica e literaacuteria deveria segundo

este autor ser substituiacuteda por uma formaccedilatildeo positiva e da aplicaccedilatildeo dos

conhecimentos das ciecircncias naturais agrave rdquofiacutesica social ldquo esperava-se a soluccedilatildeo da

crise poliacutetica e moral que atravessava as naccedilotildees civilizadas Ela deveria permitir

a conciliaccedilatildeo do progresso e da ordem condiccedilotildees simultacircneas da civilizaccedilatildeo

moderna e de todo o sistema poliacutetico autecircntico

321

Antero de Quental ldquoCarta a Domingos Tarrosordquo 3 de Junho de 1881 em Ana Maria Almeida Martins

(org) Cartas I Lisboa 1989 561

208

A grande figura do positivismo francecircs natildeo foi poreacutem em Portugal Augusto

Comte mas Littreacute que em Franccedila publicara em 1876 a ldquorevista de Filosofia

Positivardquo e numerosos escritos de divulgaccedilatildeo da filosofia de Comte rejeitando

contudo a uacuteltima fase do seu pensamento de feiccedilatildeo acentuadamente miacutestica

expressa na sua doutrina da ldquoreligiatildeo da Humanidaderdquo

Esta versatildeo do positivismo comteano que valorizava sobretudo a ideia dum

conhecimento positivo e proibia a reflexatildeo sobre toda a temaacutetica metafiacutesica

adquiriu grande prestiacutegio em Portugal e no Brasil em certos meios cientiacuteficos

como foi entre noacutes o caso da medicina Seria poreacutem o positivismo poliacutetico que

haveria de granjear mais tarde grande popularidade322 estando directamente

ligado agrave acccedilatildeo dos liberais e numa segunda fase agrave acccedilatildeo poliacutetica do partido

republicano e a figuras poliacuteticas como Teoacutefilo de Braga Note-se contudo que

nenhuma traduccedilatildeo dos autores positivistas foi realizada neste periacuteodo para

liacutengua portuguesa

A influecircncia do positivismo foi em Portugal tambeacutem marcada pela influecircncia das

teorias de Darwin e Spencer assim como do monismo evolucionista de

Haeckel o grande defensor do evolucionismo na Alemanha que elevou esta

teoria a uma concepccedilatildeo geral do universo fundada na ideia da unidade da

natureza do orgacircnico e do inorgacircnico Na sua obra Natuumlrliche

Schoumlpfungsgeschichte (1868) Haeckel defende que a teoria de Darwin autoriza

uma teoria monista da evoluccedilatildeo que se contrapotildee agrave teoria dualiacutestica

implicitamente contida na explicaccedilatildeo teleoloacutegica do mundo

De Haeckel foram traduzidos 10 tiacutetulos o que testemunha claramente a

importacircncia que lhe atribuiacutea o positivismo portuguecircs De Spencer foi traduzido

Da Liberdade agrave Escravidatildeo por Juacutelio de Matos em 1904 e Do Progresso - sua

Lei e suas Causas por Eduardo Salgueiro em 1939 Apesar de algumas teses

defendidas na universidade de Coimbra sobre as teorias evolucionistas323 as

obras de Darwin tiveram entre noacutes uma traduccedilatildeo tardia tendo sido a sua obra

capital A Origem das Espeacutecies de 1859 traduzida apenas em 1913 por Joaquim

Daacute Mesquita Pauacutel

322

Segundo Zilach Cercal Didonet a experiecircncia da aplicaccedilatildeo das ideias de Comte sobre a organizaccedilatildeo da

sociedade foi feita pela primeira vez no mundo no Rio Grande do Sul onde a Constituiccedilatildeo de 14 de Julho

de 1891 estabeleceu a Ditatura Republicana Cf ldquo O Positivismo e a Constituiccedilatildeo Rio_Grandense de 14

de Julho de 1891rdquo Actas do I Congresso Luso-Brasileiro de Filosofia 598-518 323

Ana Leonor Pereira Darwin em Portugal [1865-1914] Coimbra Livraria Almedina 2001 7475

209

Devido ao generalizado haacutebito de recorrer a traduccedilotildees francesas disponiacuteveis

desde 1862 eacute presumiacutevel que muitos intelectuais portugueses jaacute tivessem tido

acesso agrave teoria de Darwin nessa liacutengua Com efeito por volta de 1910

numerosos artigos de divulgaccedilatildeo das teorias de Darwin surgiram no

ldquoAlmanache Ilustradordquo d‟O Seacuteculo coordenado pelo professor Agostinho Fortes

e noutras publicaccedilotildees

Teoacutefilo de Braga Juacutelio de Matos e Miguel Bombarda personalidades

marcantes na vida da Primeira Repuacuteblica assim como outros intelectuais

associados agrave revista ldquoO Positivismordquo contribuiacuteram tambeacutem para a difusatildeo dum

positivismo social e poliacutetico que procurava fazer a siacutentese entre o positivismo

comteano e o evolucionismo de Darwin Esta siacutentese alcanccedilou uma expressatildeo

original na sociologia de Teoacutefilo de Braga cujo projecto aparece formulado na

sua obra Traccedilos gerais de philosophia positiva comprovada pelas descobertas

cientiacuteficas modernas (Lisboa Nova Livraria Internacional 1877) como um

projecto de reorganizaccedilatildeo da sociologia fundando-a numa base natural mais

precisamente no facto bioloacutegico da populaccedilatildeo

Teoacutefilo de Braga vai tentar conciliar a sociologia positiva de Comte com as leis

da evoluccedilatildeo dos organismos e designadamente com a lei da selecccedilatildeo natural

procurando mostrar que a luta pela vida e a selecccedilatildeo natural contribuem para o

aperfeiccediloamento da espeacutecie e para uma melhor ordenaccedilatildeo social

Em princiacutepio esta tentativa de siacutentese parece afastar Teoacutefilo de Braga da

esfera de influecircncia tradicional da filosofia francesa pois em Franccedila o

positivismo foi sobretudo um obstaacuteculo agrave difusatildeo do Darwinismo que era

criticado agrave luz da ideia positivista de progresso Littreacute cuja influecircncia foi

muitiacutessimo importante em toda a Europa e decisiva no positivismo portuguecircs

aceitava o Darwinismo como uma hipoacutetese cientiacutefica natildeo verificada mas

rebatia todas as suas implicaccedilotildees sociais O princiacutepio da selecccedilatildeo natural

parecia ser estranha agrave lei dos 3 estados e a luta pela vida propor uma

conflitualidade social inconciliaacutevel com o postulado comteano do progresso

como desenvolvimento da ordem

A siacutentese original de Teoacutefilo de Braga entre Darwinismo e Positivismo

assentava na ideia de que a selecccedilatildeo natural e a luta pela vida teriam permitido

uma selecccedilatildeo positiva de sentimentos de solidariedade favoraacuteveis agrave

democracia e agrave coesatildeo social Esta siacutentese teria sido segundo a hipoacutetese de

210

Ana Leonor Ferreira sugerida a Teoacutefilo de Braga pela leitura duma traduccedilatildeo

francesa de Darwin que traduzia Darwin agrave luz de Lamark O princiacutepio de

Lamark da transmissatildeo hereditaacuteria dos caracteres adquiridos permite pensar o

progresso histoacuterico a partir da evoluccedilatildeo bioloacutegica

A respeito da possiacutevel influecircncia da traduccedilatildeo francesa da Origem das Espeacutecies

afirma Ana Leonor Pereira ldquoNatildeo eacute improvaacutevel que Teoacutefilo (tambeacutem)

conhecesse Darwin em Francecircs na traduccedilatildeo de Cleacutement Royer 324 Por essa

via Teoacutefilo ficava plenamente familiarizado com o princiacutepio de Lamark visto

que a tradutora tomava a liberdade de corrigir o texto de Darwin com notas e

comentaacuterios de sentido lamarkiano O seu objectivo era expliacutecita e

assumidamente o seguinte na conclusatildeo da tradutora ldquoc‟est donc comme

disciple de Lamark que j‟ai traduit Ch Darwinrdquo325

Juacutelio de Matos inspirando-se no sistema das ciecircncias de Augusto Comte e na

sua tentativa de fundar o estudo dos fenoacutemenos sociais no estudo das ciecircncias

da vida procedia contudo a uma total reformulaccedilatildeo da sociologia positiva de

Augusto Comte O meacutedico portuense queria fundar uma sociologia e uma

poliacutetica cientiacuteficas nos princiacutepios da luta pela vida e da selecccedilatildeo natural

darwinistas apesar de conhecer perfeitamente a resistecircncia da comunidade

cientiacutefica francesa ao paradigma evolucionista

Na sua Histoacuteria natural ilustrada326 ele dedica um capiacutetulo agrave evoluccedilatildeo do

homem segundo o paradigma evolucionista reproduzindo a posiccedilatildeo de Darwin

em The descent of man segundo a qual o homem natildeo teria nenhum atributo

especiacutefico que o distinguisse do reino animal Nos escritos sociopoliacuteticos

posteriores Juacutelio de Matos explora as implicaccedilotildees sociais dos princiacutepios da luta

pela vida e da selecccedilatildeo natural procurando neles fundar a poleacutemica contra as

teorias socialistas e anarquistas assim como uma criacutetica a todo o

proteccionismo social do Estado responsaacuteveis pela falsificaccedilatildeo da

concorrecircncia vital entre os indiviacuteduos e pela consequente decadecircncia das

sociedades

324

Charles Darwin De l‟Origine des espegraveces par seacutelection naturelle ou des lois de transformation des

ecirctres organiseacutes Traduction de Madame Cleacutemence Royer avec preacuteface et notes du traducteur Nouvelle

eacutedition revue d‟ apregraves l‟eacutedition steacutereacuteotype anglaise avec les additions de lacuteauteur Paris Librairie Marpon

et Flammarion sd -4ordf ediccedilatildeo [1882] 325

Ana Leonor Pereira Darwin em Portugal [1865-1914] 346 326

Juacutelio de Matos Histoacuteria natural illustrada Compilaccedilatildeo feita sobre os mais auctorizados trabalhos

zooloacutegicos Porto Livraria Universal [1880-1882]

211

Foram estas tentativas ecleacutecticas de conciliaccedilatildeo do positivismo de Comte com

o Darwinismo que vieram a marcar o positivismo da Primeira Repuacuteblica este

positivismo darwinista viria a constituir-se como uma espeacutecie de ldquoevidecircnciardquo

ideoloacutegica difusa na cultura portuguesa marcado pela exaltaccedilatildeo da ciecircncia e

pelo combate agrave tradiccedilatildeo religiosa e metafiacutesica patente na literatura de ficccedilatildeo

no ensaiacutesmo poliacutetico e nas instituiccedilotildees republicanas

Eacute necessaacuterio sublinhar o facto de os autores positivistas natildeo terem neste

periacuteodo sido traduzidos pois trata-se de um forte indiacutecio do modo superficial e

inautecircntico de ldquoadesatildeo ldquo a esta corrente filosoacutefica

Outra consequecircncia desta dominaccedilatildeo da francofonia foi o afastamento de

Portugal dos grandes centros de irradiaccedilatildeo do pensamento filosoacutefico europeu

que se situavam no seacuteculo XIX na Alemanha cujas ideias penetram em

Portugal e no Brasil tardiamente e numa primeira fase pela mediaccedilatildeo de

traduccedilotildees e comentadores franceses327

O contacto inicial com as ideias de Kant deu-se segundo Gama Caeiro atraveacutes

da Obra de Victor Cousin segundo outros autores atraveacutes da obra Filosofia de

Kant ou princiacutepios fundamentais da filosofia transcendental em francecircs de

Charles Villiers aparecida em 1801 Em Portugal segundo Cabral Moncada foi

Rodrigues de Brito o primeiro a fazer referecircncias a Kant (1803-1805) revelando

conhecer-lhe mal a doutrina Em Silvestre Pinheiro Ferreira figura importante

no contexto da cultura portuguesa da primeira metade do seacuteculo XIX notamos

uma rejeiccedilatildeo do idealismo kantiano como um ldquotenebroso barbarismordquo ao

mesmo tempo que manifesta um conhecimento superficial e incompleto do

filoacutesofo alematildeo328

Soacute em meados do seacuteculo XIX eacute que o kantismo conseguiria maior penetraccedilatildeo

nos meios universitaacuterios atraveacutes dos cursos de Direito onde o ensino da

Filosofia Juriacutedica se fazia desde a reforma pombalina sob a influecircncia de

pensadores alematildees como Wolff e Leibniz

327

Gama Caeiro refere a escassa presenccedila de Kant em Portugal em contraste com a situaccedilatildeo do Brasil

onde embora tardia a influecircncia de Kant natildeo deixou de ser assinalaacutevel - afirmaccedilatildeo corroborada tambeacutem

por Miguel Reale e Antoacutenio Paim Cf ldquoNotas acerca da recepccedilatildeo de Kant no pensamento filosoacutefico

Portuguecircsrdquo in Dinacircmica do pensar- Homenagem a Oswaldo Market Lisboa 1991 62 328

Silvestre Pinheiro Ferreira eacute uma das principais figuras do pensamento filosoacutefico portuguecircs do tempo

(1769-1846) fundando-se a sua obra num aristotelismo renovado no estudo das fontes gregas que

procura conciliar com a filosofia moderna (Bacon Locke Leibniz e Condillac) Mercecirc dos cargos

diplomaacuteticos que desempenhou teraacute estado na Alemanha onde teria tomado alguma notiacutecia da filosofia

de Kant que constantemente critica na sua obra sem contudo mostrar tecirc-lo compreendido Cf Gama

Caeiro obcit-64-65

212

Para renovar o ensino da Filosofia Juriacutedica no sentido do liberalismo reinante

na Europa e tambeacutem em Portugal desde 1834 Vicente Ferrer Neto Paiva foi de

novo buscar a sua inspiraccedilatildeo agrave Alemanha sem contudo conhecer em

profundidade nem a filosofia de Kant nem os autores poacutes kantianos como

Fichte Schelling ou Hegel

O autor Alematildeo a que Ferrer foi buscar a sua inspiraccedilatildeo para o curso de Direito

foi a um filoacutesofo ldquokantianordquo de importacircncia menor no seu proacuteprio paiacutes Karl

Friederich Krause cuja obra tinha sido divulgada em liacutengua francesa pelo seu

disciacutepulo Ahrens A obra de Ahrens de que surgiu uma traduccedilatildeo portuguesa

em 1844 teria contribuiacutedo decisivamente segundo Cabral Moncada para a

publicaccedilatildeo dos Elementos de direito natural obra na qual Ferrer proclama a

sua emancipaccedilatildeo em relaccedilatildeo agrave filosofia de Wolff e dos escolaacutesticos329 A

corrente de pensamento de inspiraccedilatildeo krausista ter-se-ia expandido tambeacutem agrave

Faculdade de Letras onde inspiraria o ensino filosoacutefico no Curso Superior de

Letras ateacute agrave deacutecada de 70 do seacuteculo XIX assim como agraves Faculdades de Direito

de Satildeo Paulo e de Olinda330

Das traduccedilotildees efectuadas durante o seacuteculo XIX destacam-se apenas como

importantes as de autores claacutessicos designadamente de Platatildeo e Aristoacuteteles

(esta feita por Silvestre Pinheiro Ferreira) tornando a escassez de traduccedilotildees

de autores modernos imediatamente evidente que a importaccedilatildeo da filosofia

atraveacutes da liacutengua francesa era regra praticamente universal

4 A reacccedilatildeo anti-positivista e a consciecircncia de si mesmo na cultura

portuguesa

4 1 A viragem de Antero

A filosofia alematilde surge em Portugal como um contraponto agrave influecircncia

positivista sendo percepcionada por autores como Antero de Quental e

Oliveira Martins como sendo de grande importacircncia pela problemaacutetica

metafiacutesica que introduz no horizonte da cultura portuguesa e da qual se espera

329

Cf Cabral Moncada Subsiacutedios para a Histoacuteria da Filosofia do Direito em Portugal Lisboa Imprensa

Nacional-Casa da Moeda 2003 62-63 330

Cf Antoacutenio Braz Teixeira ldquoCaminhos da Filosofia do Direito Luso-brasileirardquo 2002 103-104

213

natildeo soacute a renovaccedilatildeo dos estudos filosoacuteficos mas ainda a ruptura com o

dogmatismo positivista

Em carta a Carolina Michaeumllis (7 de Agosto de 1885) Antero daacute conta da sua

reacccedilatildeo diante da Filosofia de Hegel ldquo[hellip] a linguagem abstrusa o formalismo

a extraordinaacuteria abstracccedilatildeo de Hegel natildeo me assustavam nem me repeliam

pelo contraacuterio internava-me com audaacutecia aventureira pelos meandros e

sombras daquela floresta admiraacutevel de ideias Afinal aquilo de que o mundo

mais precisava nesta fase de extraordinaacuterio obscurecimento da alma humana

eacute de ideias de filosofia ndash e a poesia voltando a adormecer nos recessos mais

misteriosos do coraccedilatildeo do homem tem de ficar agrave espera ateacute que o novo

siacutembolo se desvende e novas ideias lhe forneccedilam um novo alimento lhe

insuflem nova vidardquo331

Em carta a Wilhelm Stork (1887) o tradutor da sua obra poeacutetica para alematildeo

Antero deu a conhecer a importacircncia de Hegel na sua formaccedilatildeo filosoacutefica ldquoO

hegelianismo foi o ponto de partida das minhas especulaccedilotildees filosoacuteficas e

posso dizer que foi dentro dele que se deu a minha evoluccedilatildeo intelectualrdquo332

Supotildee-se que as primeiras leituras de Hegel datem de 1863 atraveacutes de

traduccedilotildees francesas e eacute sobretudo nos sonetos escritos entre 1863-1870 que a

influecircncia do filoacutesofo alematildeo se faz sentir estando nesta fase associada agrave

influecircncia de Proudhon e agrave crenccedila optimista no progresso da humanidade na

qual Antero fundou a primeira parte da sua actividade intelectual e poliacutetica

Foi poreacutem na fase de abandono das ideias de reforma social que inspiraram a

geraccedilatildeo de 70 e de renuacutencia no plano da acccedilatildeo poliacutetica social e mesmo cultural

que se alargou a recepccedilatildeo da filosofia alematilde com a difusatildeo entre noacutes das obras

de Schopenhauer e de Hartmann333 que souberam elevar o sentimento de

pessimismo e desencanto dominantes na Europa do seu tempo a um sistema

filosoacutefico consistente e elaboraacute-lo ao niacutevel especulativo na continuidade da

tradiccedilatildeo metafiacutesica do Idealismo Alematildeo

331

Antero de Quental ldquoCarta a Carolina Michaeumllis de Vasconcelosrdquo de 7 de Agosto de 1885 em Ana

Maria Almeida Martins (org) Cartas II 748 332

Antero de Quental rdquoCarta a Wilhelm Storkldquo de 14 de Maio de 1887 em Ana Maria Almeida Martins

(org) Cartas II 834 333

Sobre a influecircncia de Schopenhauer e Eduardo von Hartmann em Portugal cf a minha dissertaccedilatildeo de

mestrado A Vida e o Traacutegico em Raul Brandatildeo 5-41

214

Fortemente influenciado pela filosofia hegeliana e pelo socialismo de Proudhon

foi apoacutes 1874334 que Antero se orientou para um pessimismo existencial que se

converteu rapidamente num pessimismo de sistema ligado natildeo a uma reflexatildeo

sobre a sua vida pessoal ou as vicissitudes da vida nacional mas agrave condiccedilatildeo

humana em geral Antero leu a monografia de Ribot La Philosophie de

Schopenhauer publicada em 1874 e a traduccedilatildeo de Burdeau de O Fundamento

da Moral de Schopenhauer assim como Os Aforismos sobre a Sabedoria de

Vida em traduccedilatildeo de Cantacuzegravene

Da influecircncia de Hartmann daacute-nos conta Oliveira Martins num artigo da Revista

Ocidental em que o historiador referindo-se agrave Religiatildeo do Futuro de Eduardo

von Hartmann afirma ldquoas ideias essenciais que esse livro conteacutem sendo

expostas por bocas de franceses embora muitas vezes percam em

profundidade o que ganham em perceptibilidade ou em colorido facilmente

encontram eco nos moccedilos entusiastas que povoam as nossas escolasrdquo335 O

proacuteprio Oliveira Martins recebeu esta influecircncia de Hartmann provavelmente a

partir da leitura da Religiatildeo do Futuro introduzindo alguns aspectos da sua

filosofia quer no Helenismo e a Civilizaccedilatildeo Cristatilde quer no Sistema dos Mitos

Religiosos

Esta influecircncia de Hartmann eacute claramente visiacutevel nos sonetos de Antero escritos

apoacutes 1874 assim como naquilo que eacute geralmente considerado o seu testamento

filosoacutefico Tendecircncias gerais da Filosofia na Segunda Metade do seacutec XIX

publicado na revista de Portugal em 1890

De facto sabemos que Antero tomou um primeiro contacto com a filosofia de

Hartmann atraveacutes da Revue Scientifique de la France et de llsquoEtranger e da

traduccedilatildeo francesa da Religion der Zukunft

Tendo comeccedilado a estudar alematildeo a partir de 1870 possuiu as seguintes obras

de Eduardo von Hartmann Gesammelte Studien und Aufsaumltze 3ordm ed Leipzig

Phaumlnomenologie des sittlichen Bewusstseins Prologomena zu jeder Kuumlntfigen

Ethik Berlim 1879 Religionsphilosophie Ester historischkritische Theil Das

religioumlse Bewuumlsstsein der Menschheit Leipzig Philosophie de llsquoInconscient

traduit de lallemand par D Nolen Paris 1877 La Religion de llsquo Avenir Traduit

334

Joaquim de Carvalho ldquoAntero de Quental e a Filosofia de Eduardo Hartmannrdquo in Obra Completa I

Lisboa 1978 409 335

Oliveira Martins ldquoOs Poetas da Escola Novardquo in Revista Ocidental 2ordf fasc 31 de Maio de 1875 tip

De Cristoacutevatildeo Augusto Rodrigues 159

215

de l‟allemand Paris 1876 Segundo Joaquim de Carvalho nenhum outro

filoacutesofo seu contemporacircneo ocupou tatildeo amplo lugar na sua biblioteca particular

Antero teria lido e meditado atentamente as obras de Hartmann sobretudo a

partir de 1877 data da traduccedilatildeo francesa da Filosofia do Inconsciente

encontrando no filoacutesofo alematildeo a fundamentaccedilatildeo metafiacutesica para as conclusotildees

a que ele proacuteprio chegara no decurso da sua evoluccedilatildeo intelectual336

Consciente da necessidade de cortar com a dependecircncia da liacutengua francesa

Antero comeccedilou em 1870 a estudar alematildeo de motu proacuteprio e sem qualquer

programa escolar e em 1873 o proacuteprio Antero dizia em carta a Oliveira

Martins ldquoTenho estudado o alematildeo e jaacute entendo menos mal o que leioldquo337

afirmaccedilatildeo que deve ser complementada com o que sabemos atraveacutes de

Carolina Michaeumllis segundo a qual ele nunca chegou a possuir mais que um

domiacutenio passivo da liacutengua alematilde ou seja especificamente virado para a leitura

Da necessidade e da importacircncia da praacutetica da traduccedilatildeo Antero estava bem

consciente como o provam as suas criacuteticas agrave traduccedilatildeo do Fausto a partir do

francecircs por Castilho (prosas II 102-5) e ainda pelo facto de ele proacuteprio ter

tentado levar a cabo a traduccedilatildeo do poema de Goethe directamente a partir do

texto alematildeo (desta traduccedilatildeo haacute alguns fragmentos publicados no volume

poacutestumo de Raios de Extinta Luz (Lisboa 1892) e nas Publicaccedilotildees do Instituto

Alematildeo (Centenaacuterio de Goethe Coimbra 1932)338

Em Antero esta proximidade com a cultura alematilde eacute pois marcada por dois

traccedilos essenciais a necessidade de leitura dos textos na liacutengua original e da

sua traduccedilatildeo para o portuguecircs Esta consciecircncia da importacircncia da operaccedilatildeo

de traduccedilatildeo caminha juntamente com uma consciecircncia criacutetica relativamente agrave

apropriaccedilatildeo dos autores mais relevantes do pensamento cientiacutefico e filosoacutefico

europeu Eacute esta consciecircncia criacutetica e vigilante que marca claramente a sua

relaccedilatildeo com o Darwinismo em primeiro lugar pela distinccedilatildeo entre as leis da

evoluccedilatildeo postuladas pelo paradigma darwinista que ele aceita como

verdadeiras dentro dos limites do conhecimento dos fenoacutemenos que eacute proacuteprio

da ciecircncia e a tentativa de erigi-las em sistema filosoacutefico e em visatildeo do mundo

por Haeckel que Antero rejeita ldquoEacute pois um erro uma ilusatildeo monstruosa esta

336

Joaquim de Carvalho ldquoAntero de Quental e a Filosofia de Eduardo Hartmannrdquo in Obra Completa I

418 337

Antero de Quental ldquoCarta a Oliveira Martinsrdquo de 26 de Agosto de 1874 em Ana Maria Almeida

Martins (org) Cartas I 255 338

Cf Albin Eacuteduard Beau Antero de Quental perante a Alemanha e a Franccedila Coimbra 1942

216

concepccedilatildeo mecacircnica do universo que resulta da grande siacutentese cientiacutefica dos

uacuteltimos 40 anos De modo algum Eacute uma verdade fundamental mas

circunscrita positiva dentro dos seus limites mas incompleta na medida da

estreiteza desses limites Jaacute vimos que satildeo os da mesma inteligecircncia cientiacuteficardquo

339 Com efeito o monismo de Haeckel propunha uma visatildeo ldquocientiacuteficardquo do

mundo e da evoluccedilatildeo baseada na causalidade mecacircnica que nada

acrescentava agrave ciecircncia agrave qual Antero contrapunha uma concepccedilatildeo da

evoluccedilatildeo dinacircmica e espiritualista que recuperava a causalidade teleoloacutegica da

tradiccedilatildeo metafiacutesica rdquoMas haacute duas maneiras de compreender a evoluccedilatildeo A dos

metafiacutesicos alematildees caminhava sim do simples para o complexo mas

ajuntando em cada momento da evoluccedilatildeo ao tipo inferior para o fazer passar

ao superior um elemento de novo um aumento de ser que lhe provinha da

virtualidade infinita da ideia (da substacircncia) no seu processo de

desenvolvimento A evoluccedilatildeo tinha pois segundo eles um conteuacutedo

verdadeiro era essencialmente substancial Para a filosofia cientiacutefica da

natureza poreacutem natildeo haacute tal virtualidade visto natildeo haver tal ideiardquo340

Para Antero a filosofia devia pensar nos seus proacuteprios termos e no acircmbito que

lhe eacute proacuteprio a ideia cientiacutefica de evoluccedilatildeo dando-lhe um conteuacutedo

substancial como acontecia na dialeacutectica de Hegel para quem a consciecircncia

de si mesmo do espiacuterito como razatildeo e Liberdade consubstanciavam o fim da

evoluccedilatildeo Universo

4 2 A heranccedila de Antero e o diaacutelogo com a filosofia europeia

A heranccedila filosoacutefica das Tendecircnciashellip de Antero haveria de frutificar agrave margem

das instituiccedilotildees republicanas dominadas pelo positivismo De facto as

reformas das instituiccedilotildees de ensino no periacuteodo republicano orientaram-se no

sentido da modernizaccedilatildeo e do reforccedilo do ensino das ciecircncias natildeo alterando

substancialmente a situaccedilatildeo jaacute de si tatildeo precaacuteria do ensino da Filosofia apesar

da criaccedilatildeo em 1911 de duas novas Faculdades de Letras onde o curso de

339

Antero de Quental Tendecircncia Gerais da Filosofia na segunda metade do seacuteculo XIX [1ordf ed in

Revista de Portugal 1890] Lisboa 1991 87 340

Ibidem 8384

217

Filosofia continuou a ter existecircncia precaacuteria acabando por se fundir com o de

Histoacuteria341

Foi portanto agrave margem da universidade no seio dos movimentos sociais das

correntes de opiniatildeo e das controveacutersias que se desenrolaram entre os

intelectuais agrupados em torno de revistas como A Seara Nova O Orpheu A

Aacuteguia em torno de problemas poliacuteticos sociais e esteacuteticos que se desenvolveu

a consciecircncia da necessidade de um diaacutelogo em portuguecircs com a filosofia

europeia

Como resultado mais significativo deste diaacutelogo (embora de modo nenhum

como uacutenica vertente) sublinhamos o facto de se ter criado entre noacutes um

pensamento poliacutetico que procura uma fundamentaccedilatildeo filosoacutefica e que teve a

nosso ver em Raul Proenccedila um dos seus representantes mais brilhantes tendo

dado continuidade ao diaacutelogo iniciado por Antero com a filosofia alematilde

Raul Proenccedila retoma a criacutetica ao positivismo iniciada por Antero dirigindo-a

agora ao positivismo social e poliacutetico dos republicanos e procurando fundar a

ideia de socialismo democraacutetico numa siacutentese original da eacutetica de Kant e da

filosofia de Nietzsche

Raul Proenccedila que natildeo hesitava em considerar que a falta de elites era a causa

fundamental da crise da Primeira Repuacuteblica apontava como viacutecios

fundamentais da nossa educaccedilatildeo a par da ausecircncia de formaccedilatildeo cientiacutefica

dos preconceitos e do fanatismo em mateacuteria religiosa a ausecircncia de espiacuterito

filosoacutefico ldquoPodem filiar-se nessa ausecircncia de espiacuterito filosoacutefico o preconceito

da autoridade e o preconceito das maiorias a preocupaccedilatildeo da pessoa que

defende essa doutrina ou do nuacutemero que a apoia

Mas jaacute Lamark dizia em 1809 ldquoa experiecircncia mostra que os indiviacuteduos que tecircm

a inteligecircncia mais desenvolvida e que reuacutenem mais luz compotildeem em todos os

tempos uma minoria extremamente pequenardquo

O nosso futuro depende da formaccedilatildeo desta elite levantada generosa Cheia de

coragem e abnegaccedilatildeo cheia de ideias que faccedila esquecer esse falso escol que

para aiacute estaacute supondo-se glorioso e imortalrdquo342

341

Cf Joel Serratildeo e Oliveira Marques Nova Histoacuteria de Portugal - Portugal da Monarquia para a

Repuacuteblica Lisboa 1991 563-564 342

Raul Proenccedila ldquoAlguns vigravecios na educaccedilatildeo do nosso paigravesrdquo [Alma Nacional Maio de 1910] Antoacutenio

Reis Raul Proenccedila - Estudo e Antologia Lisboa 1989 110

218

Equacionando a possibilidade de renascimento da cultura portuguesa a partir

da formaccedilatildeo de elites e ainda da sua ligaccedilatildeo ao conjunto da sociedade

colocou a sua energia ao serviccedilo da divulgaccedilatildeo do livro procedendo a uma

importante reorganizaccedilatildeo da Biblioteca Nacional na qualidade de director dos

Serviccedilos Teacutecnicos (cargo para que tinha sido nomeado por Leonardo Coimbra)

participou na fundaccedilatildeo da Universidade Popular que visava levar o

conhecimento de diversas mateacuterias agraves pessoas privadas de uma educaccedilatildeo

formal e foi ainda um dos fundadores e director da revista Seara Nova em

cujas paacuteginas pugnava pela mudanccedila de mentalidades que ele reputava ser a

chave da soluccedilatildeo dos problemas nacionais

No campo da filosofia a sua uacutenica obra foi um estudo sobre o eterno retorno

iniciado entre 1916 - 1917 e interrompido pela dificuldade de acesso agraves obras

que costumava mandar vir da Alemanha (devido agrave ausecircncia das ligaccedilotildees

postais em consequecircncia da guerra) A redacccedilatildeo da obra foi retomada apoacutes a

sua doenccedila em 1938

Nietzsche tinha comeccedilado a ser divulgado numa traduccedilatildeo francesa da Mercure

de France desde o iniacutecio do seacuteculo mas entre 1913 e 1916 foram traduzidas

para portuguecircs trecircs das suas obras entre as quais Assim Falava Zaratustra

por de Antoacutenio Arauacutejo Pereira A sua influecircncia foi particularmente importante

na primeira geraccedilatildeo da Aacuteguia (de que Raul Proenccedila tambeacutem fizera inicialmente

parte) que aceitava geralmente o vitalismo do filoacutesofo alematildeo embora

repudiasse a sua criacutetica da moral343

Desde 1910 que Raul Proenccedila aludia em diversos artigos a Nietzsche

deixando transparecer quer o seu fasciacutenio pelo lado dionisiacuteaco do filoacutesofo

alematildeo quer a criacutetica ao seu individualismo No Eterno Retorno ele vai no

entanto analisar de forma criacutetica e sistemaacutetica este tema de Nietzsche

refutando a ideia de eterno retorno em nome da ideia de progresso e de

liberdade que constituiacuteam o cerne das suas convicccedilotildees poliacuteticas

O que eacute no entanto notaacutevel neste trabalho de Raul Proenccedila eacute a preocupaccedilatildeo

de fundar o seu comentaacuterio nos excertos de Nietzsche referenciados sempre

no original alematildeo (Werke Leipzig 1895-1912) assim como a discussatildeo de

problemas de traduccedilatildeo para portuguecircs de termos como Werden ou da

343

Cf Ameacuterico Enes Monteiro A Recepccedilatildeo da Obra de Friedrich Nietzsche na vida intelectual

portuguesa Porto 2000 124-183

219

expressatildeo Wiederkunft des Gleichen que evidenciam a consciecircncia da

complexidade da problemaacutetica da traduccedilatildeo e da sua importacircncia344

Paralelamente Raul Proenccedila leva a cabo um levantamento histoacuterico da ideia de

eterno retorno sempre alicerccedilado numa correcta utilizaccedilatildeo das fontes

designadamente da filosofia grega preacute-socraacutetica de Aristoacuteteles e dos seus

comentadores evidenciando um conhecimento da tradiccedilatildeo filosoacutefica e uma

preocupaccedilatildeo de rigor invulgares

A primeira metade do seacuteculo XX deu continuidade agrave figura do poeta-filoacutesofo jaacute

protagonizada por Antero que a par da sua criaccedilatildeo poeacutetica manteacutem escritos

reflexivos sobre a sua criaccedilatildeo poeacutetica e alimenta um diaacutelogo com textos

filosoacuteficos

Preocupados em legitimar a poesia e o mito como lugar de manifestaccedilatildeo da

verdade estes autores colhem nas filosofias vitalistas a argumentaccedilatildeo que lhes

permite contestar o positivismo dominante e compreender a dinacircmica da

criaccedilatildeo poeacutetica Esta outra face da heranccedila de Antero conduziu ao

desenvolvimento entre noacutes dum pensamento poeacutetico original que inspirou tanto

a obra de Pascoaes como a de Junqueiro sendo designado por Fernando

Pessoa como ldquoPanteiacutesmo Transcendentalrdquo de que este esperava um poderoso

impulso de renovaccedilatildeo da poesia nacional e europeia345

O nacionalismo literaacuterio romacircntico difundido pelo movimento a Renascenccedila

Portuguesa e protagonizado por Pascoaes assim como o cosmopolitismo de

Fernando Pessoa confluem na mesma consciecircncia da importacircncia de fundar as

suas opccedilotildees esteacuteticas num diaacutelogo com a filosofia europeia

Nestes dois poetas-filoacutesofos emerge a afirmaccedilatildeo progressiva da consciecircncia da

liacutengua e da tradiccedilatildeo poeacutetica em que se insere o seu proacuteprio trabalho como um

horizonte de sentido a partir do qual eacute possiacutevel encetar um diaacutelogo genuiacuteno

com a cultura europeia cortando com os haacutebitos de imitaccedilatildeo servil tatildeo

criticados por Antero O Homem Universal de Pascoaes o manifesto O

Ultimatum ou o ensaio A Nova Poesia Portuguesa de Fernando Pessoa

documentam a consciecircncia reflexiva (e filosoficamente informada) dessa opccedilatildeo

que levava os poetas ldquoa preferir Orfeu agrave musa mais severa de Parmeacutenidesrdquo na

expressatildeo feliz de Eduardo Lourenccedilo

344

Cf Raul Proenccedila O Eterno Retorno 1ordf ed Lisboa 1987 5859 345

Fernando Pessoa A Nova Poesia Portuguesa Lisboa 1944

220

A tentativa de pensar filosoficamente em portuguecircs subtraindo-se agraves modas

ideoloacutegicas e ao mimetismo provinciano tatildeo bem caracterizado por Antero e

Pessoa foi levada a cabo por pensadores como Sampaio Bruno Leonardo

Coimbra e Joseacute Marinho fundadores daquilo a que se veio a chamar ldquoa

filosofia portuguesardquo Criacuteticos do positivismo essencialmente preocupados com

o problema de Deus eles satildeo pensadores assistemaacuteticos dificilmente

escolarizaacuteveis para quem a verdade se apresenta como parusia e eacute

dificilmente objecto de exposiccedilatildeo discursiva a sua influecircncia apesar de

assinalaacutevel foi exterior agraves universidades

Este renovado interesse pela filosofia que acompanhou todos os movimentos

de ideias da Primeira Repuacuteblica reflectiu-se na Universidade Popular346 cujo

nuacutecleo mais importante se situava no Porto Esta era animada pela ambiccedilatildeo de

formaccedilatildeo das elites de que o paiacutes necessitava assim como de combater a

influecircncia do positivismo dominante Paralelamente aos cursos de liacutenguas

eram realizadas conferecircncias e liccedilotildees de divulgaccedilatildeo cientiacutefica e filosoacutefica por

intelectuais reputados como Jaime Cortesatildeo e Leonardo Coimbra sendo a

actividade docente acompanhada de uma actividade editorial de divulgaccedilatildeo de

autores claacutessicos e modernos

Este notaacutevel esforccedilo de divulgaccedilatildeo expressa-se sobretudo na nova

preocupaccedilatildeo pelas traduccedilotildees de filosofia em liacutengua portuguesa inesperado no

que Raul Proenccedila chamava ldquoo povo mais anti-filosoacutefico da Europardquo

De Descartes satildeo traduzidas as Meditaccedilotildees Metafiacutesicas por Antoacutenio Seacutergio

em 1930 e O Discurso do Meacutetodo e Tratado das Paixotildees por Newton de

Macedo em 1937 De Leibniz satildeo traduzidos os Novos Ensaios sobre o

Entendimento Humano em 1931 por Antoacutenio Seacutergio De Augusto Comte eacute

traduzida a obra A Importacircncia da Filosofia Positiva em 1939 De Nietzsche

satildeo traduzidas Assim Falava Zaratustra por Arauacutejo Pereira em 1913 A

Genealogia da Moral por Carlos Joseacute de Meneses em 1913 e o Anticristo pelo

mesmo tradutor em 1916 Eacute traduzido O Capital de Marx em 1912 As

Confissotildees de Santo Agostinho satildeo traduzidas em 1905 Platatildeo tem traduzidos

346

O movimento das Universidades Populares surgira em Franccedila nos finais do seacutec XIX com o objectivo

de difundir a cultura nas classes populares Apoacutes 1910 o movimento das Universidades Populares

conheceu em Portugal alguma expansatildeo com a criaccedilatildeo das Universidades Populares do Porto de Setuacutebal

e de Lisboa com a finalidade de realizar conferecircncias e cursos sistemaacuteticos publicando ainda uma revista

de cultura intitulada Educaccedilatildeo Popular Cf Joel Serratildeo e Antoacutenio Marques Nova Histoacuteria de Portugal -

Portugal da Monarquia para a Repuacuteblica 612-613

221

neste periacuteodo A Apologia de Soacutecrates por Acircngelo Ribeiro em 1923 O Criacuteton

por Agostinho da Silva em 1938 e o Feacutedon por Acircngelo Ribeiro em 1919 e

ainda O Banquete pelo mesmo tradutor em 1934

Os proacuteprios positivistas foram sensiacuteveis a este movimento de traduccedilatildeo e

levaram a cabo traduccedilotildees muito importantes para a actualizaccedilatildeo do

pensamento cientiacutefico portuguecircs Destacam-se de Darwin A Origem do

Homem por Joatildeo Carlos de Oliveira em 1910 e A Selecccedilatildeo Artificial por Lobo

Vilela em 1939 De Haeckel haacute a traduccedilatildeo de dez tiacutetulos os primeiros dos

quais satildeo Enigmas do Universo Origem do Homem e Religiatildeo e Evoluccedilatildeo em

1908 De Spencer eacute traduzido por Juacutelio de Matos em 1904 Da Liberdade agrave

Escravidatildeo e Do Progresso ndash Sua Lei e Suas Causas por Eduardo Salgueiro

em 1939

Como importantes fragilidades deste movimento de traduccedilatildeo temos o facto

sublinhado justamente por Orlando Vitorino347 de que grande parte das

traduccedilotildees de filosofia do periacuteodo republicano obedecem a intuitos poliacuteticos ou

religiosos estando integradas em colecccedilotildees como ldquoBiblioteca de Educaccedilatildeo

Nacionalrdquo de caraacutecter anarquista dirigida por Agostinho Fortes e a colecccedilatildeo

ldquoCiecircncia e Religiatildeordquo de apologia catoacutelica dirigida por Gomes dos Santos

Seraacute necessaacuterio esperar pelos anos 40 para ver surgir as primeiras colecccedilotildees

exclusivamente dedicadas agrave Filosofia a livraria Atlacircntida de Coimbra lanccedilou a

colecccedilatildeo ldquoBiblioteca filosoacuteficardquo dirigida pelo professor Joaquim de Carvalho e

a Guimaratildees Editores a colecccedilatildeo ldquoFilosofia e Ensaiosrdquo

Relativamente agraves traduccedilotildees de filosofia alematilde antes da deacutecada de 40 apenas

Nietzsche tinha sido traduzido sendo apenas a partir daiacute que vatildeo ser

traduzidos alguns textos dos filoacutesofos alematildees contemporacircneos mais

significativos 348

Eacute de salientar ainda que se daacute continuidade agraves traduccedilotildees de Aristoacuteteles e se

traduz um nuacutemero muito significativo de diaacutelogos de Platatildeo o que indicia uma

redescoberta da cultura e da filosofia gregas para a qual contribuem

especialistas como Eudoro de Sousa e Agostinho da Silva

347

Cf Orlando Vitorino Traduccedilotildees Portuguesas de Filosofia Lisboa 1958 348

Cf Apecircndice 1 deste trabalho ldquoTraduccedilotildees de Filosofia em Ligravengua Portuguesa ateacute 1959rdquo

222

Este interesse pela filosofia e pelas traduccedilotildees portuguesas de Filosofia ao

longo da primeira metade do seacuteculo XX mostra claramente que entre as elites

se difunde o interesse pelas ldquoideias geraisrdquo cuja ausecircncia Pessoa tanto

criticava como tiacutepico do ldquocaso mental portuguecircsrdquo

A estabilizaccedilatildeo do movimento de traduccedilatildeo e a sua orientaccedilatildeo de acordo com

criteacuterios rigorosos marcharaacute a par do fortalecimento da situaccedilatildeo da filosofia nas

Universidades portuguesas assim como da sua ligaccedilatildeo aos centros europeus

de criaccedilatildeo e difusatildeo da filosofia para o qual a Gulbenkian muito contribuiraacute

com o seu sistema de bolsas

Note-se ainda que ao contraacuterio do que aconteceu no Brasil em Portugal natildeo

foi feita a traduccedilatildeo de nenhum dos autores da escolaacutestica designadamente de

S Tomaacutes de Aquino apesar da introduccedilatildeo em Portugal da corrente neo-

escolaacutestica no iniacutecio do seacuteculo XX

5 Traduccedilatildeo e consciecircncia de si na cultura Brasileira

O pensamento brasileiro tem uma matriz comum ao pensamento portuguecircs

que radica natildeo soacute no periacuteodo colonial mas tambeacutem na proximidade cultural

criada pela comunidade linguiacutestica Essa matriz comum estabeleceu-se numa

primeira fase por influecircncia do magisteacuterio dos jesuiacutetas cuja acccedilatildeo no Brasil

levou agrave instituiccedilatildeo dos cursos de Artes a partir de 1572 assim como dos cursos

de Matemaacutetica e Fiacutesica de Teologia Moral Dogmaacutetica e Sagrada Escritura os

Estudos Gerais do Coleacutegio da Baiacutea e as primeiras tentativas para se criar a

Universidade do Brasil

A influecircncia dos jesuiacutetas no Brasil natildeo se resume a uma transposiccedilatildeo mecacircnica

da filosofia escolaacutestica para territoacuterio brasileiro pelo contraacuterio a problemaacutetica

social da colonizaccedilatildeo e do estatuto dos iacutendios teve ela mesma um papel central

na elaboraccedilatildeo da filosofia juriacutedica e poliacutetica da Segunda Escolaacutestica como

acima vimos

A educaccedilatildeo jesuiacutetica modelou a inteligecircncia brasileira ateacute meados do seacuteculo

XVIII tendo contribuiacutedo para a difusatildeo das ideias filosoacuteficas no Brasil e o

legado do humanismo cristatildeo do Pe Antoacutenio Vieira expresso nos sermotildees

cartas e outros escritos constitui um traccedilo de uniatildeo persistente entre a cultura

brasileira e a cultura portuguesa

223

Com a segunda metade do seacuteculo XVIII assistimos a uma nova fase na cultura

brasileira marcada pela influecircncia da reforma pombalina e dum iluminismo de

feiccedilatildeo ecleacutectica ligada ao pensamento de Verney Os homens que

encabeccedilaram os destinos do Brasil eram formados pela nova pedagogia

pombalina e a mesma poleacutemica entre tradicionalistas e os apologistas dos

autores modernos atravessa a cultura brasileira deste periacuteodo Caracterizando

este iluminismo brasileiro Francisco Gama Caeiro afirmava rdquoA Filosofia

vazada em moldes dum iluminismo tropical passa quase a ser um estado de

alma uma vivecircncia apaixonada um manifesto pedagoacutegico que convive de

modo talvez ingeacutenuo com a Ideologia embora com ela se natildeo confunda

Reclama para si a liberdade de expressatildeo e como meio de comunicar dispotildee

do texto literaacuterio da memoacuteria cientiacutefica da prelecccedilatildeo de retoacuterica da oraccedilatildeo

acadeacutemicardquo349

Este periacuteodo pombalino que do lado brasileiro Antoacutenio Paim estende ateacute agrave

criaccedilatildeo da Real Academia Militar em 1810 estaria na origem da corrente

filosoacutefica cientificista e do posterior peso do positivismo no periacuteodo republicano

350

Contudo os traccedilos distintivos no pensamento brasileiro surgiriam associados agrave

reivindicaccedilatildeo da autonomia poliacutetica e agraves tarefas da independecircncia Uma das

singularidades do pensamento brasileiro (relativamente ao pensamento

portuguecircs) foi uma maior influecircncia do pensamento Kantiano que logo desde a

independecircncia se foi impondo sobretudo pelo impacto da sua eacutetica e filosofia

poliacutetica mais consentacircneos com as tarefas poliacuteticas ligadas agrave independecircncia

Efectivamente tem vindo a ser sublinhada 351 a influecircncia de Kant na ideia de

independecircncia tendo sido a cidade de Satildeo Paulo o primeiro centro de difusatildeo

do pensamento alematildeo muito embora natildeo houvesse ainda conhecimento da

liacutengua Aiacute o conhecimento de Kant foi difundido como em Portugal atraveacutes da

liacutengua e dos autores franceses como Mme Stael e Charles Villiers e

posteriormente divulgado activamente por Martim Francisco e Antoacutenio Feijoacute

349

Cf Francisco Gama Caeiro ldquoO Pensamento Filosoacutefico do seacuteculo XVI ao Seacuteculo XVIII em Portugal e

no Brasilrdquo Actas do I Congresso Luso-Brasileiro de Filosofia in Revista Portuguesa de Filosofia Braga

1982 350

Antoacutenio Paim ldquoFilosofia Portuguesa e Brasileira Convergecircncias e peculiaridadesrdquo Actas do I

Congresso Luso-Brasileiro de Filosofia in Revista Portuguesa de Filosofia Braga 1982 351

Cf Glaacuteucio Veiga ldquoKant e o Brasilrdquo Revista Brasileira de Filosofia vol 1 1951 e Miguel Reale ldquoA

Filosofia Alematilde no Brasilrdquo Revista Brasileira de Filosofia vol 24 1974

224

O Pe Antoacutenio Feijoacute (1784-1873) foi um dos difusores do Kantismo em que se

procura inspirar para legitimar a conciliaccedilatildeo ecleacutetica entre a tradiccedilatildeo

escolaacutestica e os novos valores emergentes da revoluccedilatildeo francesa Kant e

Rousseau satildeo duas influecircncias persistentes no seu pensamento moral e

poliacutetico e inspiradores da sua actividade poliacutetica no primeiro reinado

O krausismo considerada a segunda etapa de difusatildeo da influecircncia de Kant

foi como acima referimos tambeacutem uma corrente influente no campo da

Filosofia do Direito e da Filosofia Poliacutetica sobretudo em Satildeo Paulo (1781-

1832) sendo aiacute importado atraveacutes da Faculdade de Direito de Coimbra

A terceira fase de difusatildeo da influecircncia de Kant refere-se agrave influecircncia da escola

neokantiana O neokantismo inicia-se na Alemanha a partir do livro Kant e os

seus epiacutegonos de Otto Liebeman (1865) e torna-se o movimento filosoacutefico

dominante na Alemanha designado de Escola de Marburgo no periacuteodo

compreendido entre 1890 e a Primeira Guerra Mundial protagonizado por

Herman Cohen Paul Natorp e Cassirer

Os textos-base da escola de Marburgo nunca foram traduzidos pelo que o

conhecimento do pensamento destes autores tanto em Portugal como no

Brasil teraacute sido muito prejudicado embora o neokantismo tenha tido uma

influecircncia assinalaacutevel no caso de Portugal na Filosofia do Direito (Cabral

Moncada) e no caso do Brasil na geacutenese da Escola do Recife

A Escola do Recife constitui-se como movimento de cisatildeo a partir do

positivismo dos anos 70 propondo-se a sua superaccedilatildeo Tobias Barreto foi o

seu iniciador tendo difundido o conceito neo-kantiano de filosofia como

epistemologia ocupou-se principalmente da distinccedilatildeo entre os conceitos de

natureza e cultura fundamentando o primeiro na causalidade eficiente e o

segundo na causalidade final

Um dos seus seguidores foi Siacutelvio Romero que sob a influecircncia do

evolucionismo de Spencer defendeu a superaccedilatildeo da oposiccedilatildeo entre natureza

e cultura e deu um cunho socioloacutegico agraves investigaccedilotildees sobre a cultura

encaminhando-se para investigaccedilotildees no terreno sobre a diversidade cultural

brasileira352

352

Cf Antoacutenio Paim A Filosofia Brasileira Contemporacircnea ndash estudos complementares agrave Histoacuteria das

Ideias Filosoacuteficas no Brasil vol 7 Londrina 2000 92

225

Depois da Segunda Guerra Mundial deu-se o pleno desenvolvimento da Escola

Culturalista com a criaccedilatildeo do Instituto Brasileiro de Filosofia que teve como

um dos objectivos defender a pluralidade de correntes do pensamento filosoacutefico

brasileiro designadamente atraveacutes da Revista Brasileira de Filosofia

Esta corrente filosoacutefica designada de ldquoculturalismordquo tem-se destacado pela sua

reflexatildeo sobre problemas da Eacutetica e da Filosofia do Direito (Miguel Reale)

assim como sobre a temaacutetica das filosofias nacionais (Antoacutenio Paim) e veio

ainda a defender o enraizamento da filosofia na diversidade cultural dos vaacuterios

povos em consonacircncia com posiccedilatildeo idecircntica que em Portugal veio a ser

defendida por Joseacute Marinho

O culturalismo sublinha a estreita ligaccedilatildeo entre a filosofia e a cultura

chamando a atenccedilatildeo para os problemas filosoacuteficos que emergem natildeo apenas

da tradiccedilatildeo filosoacutefica mas da evoluccedilatildeo cultural dos povos como sublinha

Antoacutenio Paim um dos seus mais destacados representantes ldquoProcurando ater-

me ao essencial o culturalismo brasileiro atribui grande importacircncia agrave teoria

dos objectos para insistir que corresponde a grande empobrecimento limitaacute-los

a objectos naturais e ideais O reconhecimento da existecircncia de objectos

referidos a valores permite natildeo soacute explicar adequadamente a singularidade do

saber filosoacutefico como igualmente circunscrever de modo preciso o campo de

investigaccedilatildeo das ciecircncias sociaisrdquo353

Segundo Antoacutenio Paim as primeiras traduccedilotildees brasileiras do pensamento

filosoacutefico europeu comeccedilaram apenas nos anos 30 mas o volume de

traduccedilotildees e o nuacutemero de autores traduzidos foi muito maior que em

Portugal354 Destacam-se a seguintes traduccedilotildees de Descartes As Meditaccedilotildees

Metafiacutesicas por AS Costa em 1937 O Discurso do Meacutetodo por Paulo Oliveira

em 1938 As Regras para a Direcccedilatildeo do Espiacuterito por Hermes Vieira em 1938

de Rousseau O Contrato Social em 1934 O Discurso sobre as Ciecircncias e as

Artes a Origem das desigualdades e as Confissotildees em 1936 A Eacutetica de

Spinoza foi traduzida por Luacutecio Xavier em 1937 o Novum Organon de Bacon

foi traduzido por L A Fisher em 1938

353

Ibidem 96 354

Cf Antoacutenio Paim Bibliografia Filosoacutefica Brasileira periacuteodo contemporacircneo 1931-1977 Satildeo Paulo-

Brasiacutelia 1979

226

De Hegel foi traduzida a Enciclopeacutedia Das Ciecircncias Filosoacuteficas trad de Liacutevio

Xavier 1936 de Schopenhauer Dores do Mundo por H Antunes 1931 O

Amor as Mulheres e a Morte trad de Emiacutelio Braizo 1936de Nietzsche O

Crepuacutesculo dos Iacutedolos trad de Persiano da Fonseca de 1943

Segundo Antoacutenio Paim estas traduccedilotildees natildeo obedeciam a criteacuterios de rigor

cientiacutefico que soacute vieram a ser adoptados no poacutes-guerra A traduccedilatildeo adequada

dos textos claacutessicos comeccedilou com a Summa Teologica de S Tomaacutes por

Alexandre Correia publicada em 1944 tendo em seguida o movimento de

traduccedilatildeo prosseguido jaacute dentro dos criteacuterios cientiacuteficos requeridos com as

traduccedilotildees de Aristoacuteteles

Note-se tambeacutem que ao contraacuterio do que aconteceu em Portugal S Tomaacutes de

Aquino foi um autor muito traduzido no Brasil tendo havido vaacuterias ediccedilotildees da

traduccedilatildeo da Summa Teologica355 o que indicia a importacircncia do neotomismo

corrente filosoacutefica importante nos anos trinta e cinquenta e posteriormente

revitalizada por Leonardo Van Acker professor belga da Universidade de

Lovaina radicado no Brasil

De Kant foram traduzidos A Paz perpeacutetua trad De Galvatildeo de Queiroacutes de

1944 A criacutetica da Razatildeo Praacutetica trad De Afonso Bertagnoli 1947 a Criacutetica da

Razatildeo Pura Rodrigues Merege 1959 os Prolegoacutemenos de Antoacutenio Pinto de

Carvalho de 1959 e a Fundamentaccedilatildeo da Metafiacutesica dos Costumes de Kant de

Antoacutenio Pinto de Carvalho de 1964

A anaacutelise das traduccedilotildees realizadas confirma a mais ampla e mais consistente

recepccedilatildeo da filosofia kantiana no Brasil Este diaacutelogo com o pensamento

kantiano teria segundo Antoacutenio Paim contribuiacutedo para encaminhar a reflexatildeo

filosoacutefica num sentido divergente em relaccedilatildeo ao pensamento portuguecircs com

uma marcada centragem nas questotildees de ordem eacuteticas poliacutetica e

antropoloacutegica como pode deduzir-se da influente corrente do culturalismo

Haacute ainda que salientar que desde que a Universidade foi adoptada como forma

de organizaccedilatildeo do ensino superior brasileiro pela Reforma Francisco Campos

de 1931 o ensino da Filosofia foi nela integrado acompanhando a expansatildeo

da Universidade pelos diversos Estados e sendo criadas Faculdades de

Filosofia na maioria das capitais Segundo Antoacutenio Paim em 1974 o nuacutemero de

355

Cf Apecircndice 1 deste trabalho ldquoTraduccedilotildees de Filosofia em Ligravengua Portuguesardquo ateacute 1959

227

cursos de filosofia correspondia a 55 com cerca de 5 mil alunos

matriculados356 o que daacute uma indicaccedilatildeo da vastidatildeo natildeo soacute da

profissionalizaccedilatildeo da filosofia como do puacuteblico leitor a quem se dirigiam as

traduccedilotildees brasileiras de Filosofia ao contraacuterio do que se passava em Portugal

desde logo devido aos evidentes constrangimentos demograacuteficos mas ainda

devido agrave menor presenccedila e capacidade de captaccedilatildeo de alunos dos cursos de

Filosofia no interior da Universidade

6 A liacutengua portuguesa a tradiccedilatildeo e a traduccedilatildeo

A histoacuteria das traduccedilotildees portuguesas de filosofia fornece-nos as indicaccedilotildees

necessaacuterias para a caracterizaccedilatildeo da ldquosituaccedilatildeo hermenecircuticardquo que condicionou

a recepccedilatildeo do pensamento de Heidegger Com efeito vimos atraacutes que toda a

interpretaccedilatildeo eacute condicionada pelo aiacute do inteacuterprete pelo lugar em que ele estaacute e

que delimita as suas possibilidades de visatildeo Toda a interpretaccedilatildeo eacute

condicionada por um horizonte que determina antecipadamente os problemas e

temas que podem constituir-se como objecto de investigaccedilatildeo

De acordo com a posiccedilatildeo de Gadamer segundo a qual a situaccedilatildeo

hermenecircutica eacute em cada caso determinada pelo modo como nela opera a

tradiccedilatildeo e pelos preconceitos que actuam no presente histoacuterico do inteacuterprete

podemos relevar quatro linhas de forccedila determinantes na situaccedilatildeo

hermenecircutica dos inteacuterpretes de Heidegger em liacutengua portuguesa

Em primeiro lugar a ruptura meramente ldquoideoloacutegicardquo com a escolaacutestica

realizada pelas reformas pombalinas e a natildeo traduccedilatildeo dos seus textos

fundamentais para o portuguecircs Estes factos tiveram como consequecircncia natildeo o

desaparecimento dessa tradiccedilatildeo escolaacutestica que eacute uma fortiacutessima matriz da

nossa cultura mas apenas o facto de ela se ter tornado uma tradiccedilatildeo morta

que duma forma inconsciente tem sobrevivido misturando-se de forma confusa

com a recepccedilatildeo da filosofia da moderna e contemporacircnea ndash o que explica o

ecletismo de grande parte do pensamento portuguecircs

Esta influecircncia latente da escolaacutestica pode inferir-se da persistecircncia de

algumas traduccedilotildees de Aristoacuteteles ao longo dos vaacuterios periacuteodos considerados e

constatar-se em autores contemporacircneos que confrontados com a temaacutetica do

356

Cf Antoacutenio Paim A Filosofia Brasileira Contemporacircnea 301

228

niilismo pretendem regressar a um humanismo cristatildeo teocecircntrico como

Leonardo Coimbra357 ou como Joseacute Marinho pretendem recuperar uma antiga

tradiccedilatildeo sapiencial vendo a filosofia como um confronto com o enigma do ser

e propondo o regresso ao estudo das temaacuteticas tradicionais da Metafiacutesica358

Em segundo lugar haacute que sublinhar o facto de o francecircs se ter instalado entre

noacutes durante todo o seacuteculo XIX como liacutengua de acesso ao pensamento

filosoacutefico Isto teve as importantes consequecircncias jaacute referidas de que a decisatildeo

do que se lecirc depende de decisotildees alheias designadamente das editoras e

revistas francesas e que os autores alematildees lidos nesta liacutengua satildeo apropriados

num outro contexto de sentido e a sua compreensatildeo sujeita a distorccedilotildees

Assim a recepccedilatildeo da filosofia contemporacircnea natildeo teve como consequecircncia

uma verdadeira rdquoapropriaccedilatildeordquo mas sim o caraacutecter de uma superficial adesatildeo a

modas filosoacuteficas que rapidamente se convertem em ideologias e penetram a

cultura portuguesa como sendo formas de pensar rdquooacutebviasrdquo assimiladas sem

espiacuterito criacutetico e sem um acesso agraves fontes o que aconteceu largamente com o

positivismo como eacute referido justamente por Antero de Quental

A rejeiccedilatildeo desta importaccedilatildeo das modas filosoacuteficas por via francesa foi muitas

vezes acompanhada de uma preocupaccedilatildeo identitaacuteria que procura a afirmaccedilatildeo

da liacutengua portuguesa agrave margem e contra a tradiccedilatildeo filosoacutefica de que Agostinho

da Silva nalguns passos da sua obra se faz eco ldquoPonha-se pois como um

princiacutepio geral para o paiacutes o gosto do concreto e a obrigaccedilatildeo do concreto

levando tais exigecircncias a todos os domiacutenios natildeo deixando por exemplo que

se disserte sobre filosofia sem a ter lido

[] aqui se potildee tambeacutem como se sabe uma grave questatildeo da nossa histoacuteria

cultural se houve entre noacutes ou natildeo filoacutesofos a natildeo ser a que se importa e se

continua importando com os seus pontos de apoio mais fortes na escolaacutestica

de inspiraccedilatildeo aristoteacutelica aleacutem de tudo fortemente inclinados ao concreto num

positivismo quase sempre ingeacutenuo porquanto parecem esquecer-se os nossos

de que era Comte um matemaacutetico e numas intuiccedilotildees e arroubos bergsoacutenicos e

poacutes-bergsoacutenicos de que haacute pouco a dizer porque informes demaisrdquo359

357

Cf Leonardo Coimbra A Ruacutessia de Hoje e o Homem de Sempre [1ordf ed Porto Livraria Tavares

1935] Obras de Leonardo Coimbra vol I Porto 1983 358

Joseacute Marinho Filosofia - Ensino ou Iniciaccedilatildeo Lisboa 1972 359

Agostinho da Silva Ensaios Sobre Cultura e Literatura Portuguesa e Brasileira II Lisboa 2001 70

229

Tais preconceitos segundo os quais o portuguecircs (e mesmo as liacutenguas ibeacutericas

em geral) pela sua vinculaccedilatildeo ao concreto seria inapto para a filosofia devem

ser correlacionados com o atraso de dois seacuteculos na traduccedilatildeo da tradiccedilatildeo

filosoacutefica para liacutengua portuguesa a escassez e a fraca qualidade das traduccedilotildees

efectuadas ateacute aos anos cinquenta

Eacute de salientar que as criacuteticas de Heidegger agrave traduccedilatildeo dos autores gregos para

o latim e ainda a criacutetica ao humanismo latino na Carta sobre o Humanismo

vieram ampliar o preconceito a que nos estamos a referir estendendo-o agrave

totalidade das liacutenguas latinas

A refutaccedilatildeo deste preconceito da impossibilidade de o latim se assumir como

liacutengua filosoacutefica foi feita entre noacutes de modo eloquente no plano dos factos pela

produccedilatildeo filosoacutefica da Segunda Escolaacutestica360 mas a natildeo traduccedilatildeo dos seus

textos determinou um crescente desconhecimento e impossibilidade de

actualizaccedilatildeo desta tradiccedilatildeo

Assim na nossa liacutengua o repertoacuterio conceptual (Vorgriff) foi empobrecido por

ausecircncia de uma apropriaccedilatildeo da tradiccedilatildeo filosoacutefica e marcado sobretudo por

uma mistura ecleacutectica de conceitos da escolaacutestica e da filosofia aristoteacutelica

com conceitos bebidos nas traduccedilotildees francesas da filosofia moderna e

contemporacircnea constituindo este ecletismo pouco consciente e a rejeiccedilatildeo natildeo

fundamentada da noccedilatildeo de sistema a fonte de um forte preconceito (Vorbegriff)

contra a filosofia

Em terceiro lugar haacute que ter presente que em Portugal foi uma tradiccedilatildeo poeacutetica

e literaacuteria que se veio afirmando no sentido preciso em que devemos entender

o termo tradiccedilatildeo um diaacutelogo entre poetas de vaacuterias geraccedilotildees que

permanentemente se enraiacuteza do passado e actualiza esse passado em novas

obras linguiacutesticas que se projectam de forma criadora na cultura portuguesa

assumindo tambeacutem uma dimensatildeo universal Esta tradiccedilatildeo poeacutetica

desenvolveu-se nos seus maiores momentos (Camotildees Antero Pascoaes

Vergiacutelio Ferreira Raul Brandatildeo Pessoa) na vizinhanccedila da filosofia e da poesia

europeias estabelecendo com esta um diaacutelogo criador mantendo contudo o

seu enraizamento no solo firme da sua proacutepria tradiccedilatildeo

360

Cf ver o 1ordm capiacutetulo da parte II deste trabalho

230

Esta tradiccedilatildeo poeacutetico-literaacuteria reagindo contra o positivismo dominante e

depois agraves temaacuteticas do niilismo e da morte de Deus produziu no seacuteculo XIX e

XX uma meditaccedilatildeo poeacutetica sobre os problemas do sentido da existecircncia361 e

uma reinterpretaccedilatildeo miacutetica e panteiacutesta do cristianismo agrave margem da tradiccedilatildeo

religiosa362 assim como uma consciecircncia da liacutengua e da histoacuteria como

horizontes hermenecircuticos condicionadores do pensar363

Esta tradiccedilatildeo marcou fortemente a liacutengua portuguesa como liacutengua retoacuterica e

poeacutetica que transporta consigo uma forte tradiccedilatildeo impondo os seus proacuteprios

temas e problemas que satildeo muitas vezes problemas filosoacuteficos (Vorsicht)

Natildeo eacute pois de modo algum um acaso que o iniacutecio da consciecircncia da

necessidade traduccedilatildeo filosoacutefica tenha emergido no interior desta tradiccedilatildeo

poeacutetica esta encontrou na filosofia alematilde o repertoacuterio conceptual e a discussatildeo

de temas e problemas que permitiam responder agrave necessidade de reagir

contra o positivismo e de fundamentar opccedilotildees poliacuteticas eacuteticas e esteacuteticas

assim como de relanccedilar o interesse pelas questotildees da ontologia e da

metafiacutesica numa outra via que natildeo a da escolaacutestica

Em quarto lugar haacute que ressaltar a evoluccedilatildeo contemporacircnea do pensamento

brasileiro o seu maior dinamismo e vitalidade permitem confirmar o influxo

positivo da actividade de traduccedilatildeo na capacidade de apropriaccedilatildeo da tradiccedilatildeo e

de actualizaccedilatildeo do pensamento filosoacutefico no contacto com os problemas vivos

da cultura364

No Brasil apesar da existecircncia de uma matriz comum ao pensamento

portuguecircs haacute a destacar uma maior afirmaccedilatildeo da filosofia facilmente

constataacutevel natildeo apenas pelo nuacutemero de obras publicadas ou pelo nuacutemero de

361

Cf A minha dissertaccedilatildeo de mestrado atraacutes citada A Vida e o Traacutegico em Raul Brandatildeo 362

Cf Jorge Peixoto Coutinho ldquoJunqueiro-Pascoaes e a hermenecircutica do cristianismordquo Coloacutequio Guerra

Junqueiro e a Modernidade Porto 1997 80-98 363

Cf Maria Adelaide Pacheco ldquoLigravengua e Histoacuteria em Heidegger e Pascoaesrdquo in Heidegger Linguagem

e Traduccedilatildeo 417-432 364

Veja-se a este respeito a reflexatildeo de Miguel Reale sobre a evoluccedilatildeo da presenccedila da filosofia no

pensamento brasileiro ldquoA histoacuteria da cultura do Brasil foi durante muito tempo a histoacuteria da repercussatildeo

em nossa sociedade de correntes especulativas ou programaacuteticas recebidas de aleacutem-mar Daiacute a

caracteriacutestica ainda recente de uma actividade mental assinalada pelo comportamento proacuteprio de quem se

conforma de antematildeo a viver de transplantes e de improvisados reajustes de estruturas importadas tanto

no plano da tecnologia como no das instituiccedilotildees poliacuteticas

Ora se examinarmos a situaccedilatildeo actual vermos que [hellip] aquela atitude de reproduccedilatildeo passiva torna-se

cada vez mais excepcional de tal modo que vamos adquirindo cada vez mais consciecircncia de que natildeo haacute

arqueacutetipos para serem copiados mas antes diaacutelogos necessaacuterios entre domiacutenios culturais distintos [hellip]rdquo

Miguel Reale Estudos de Filosofia Brasileira Lisboa 1994 34

231

cursos de filosofia existentes mas pela sua organizaccedilatildeo em instituiccedilotildees como

o Instituto Brasileiro de Filosofia ou a Academia Brasileira de Filosofia

Para esta maior vitalidade e consolidaccedilatildeo da filosofia contribuiacuteram fortemente a

preocupaccedilatildeo pela traduccedilatildeo natildeo apenas dos autores fundamentais da filosofia

moderna e contemporacircnea mas tambeacutem os autores da tradiccedilatildeo filosoacutefica365

Um contacto mais precoce com a filosofia alematilde e uma maior influecircncia da

filosofia kantiana ligada agraves tarefas histoacuterico-poliacuteticas da independecircncia foram

encaminhando a reflexatildeo filosoacutefica no sentido duma nova problemaacutetica e da

afirmaccedilatildeo dum pensamento filosoacutefico mais consciente de si mesmo e mais

consistente na sua elaboraccedilatildeo teoacuterico-conceptual o problema da finitude da

razatildeo teoacuterica e da impossibilidade da metafiacutesica assim como o primado das

questotildees eacutetico-poliacuteticas e de uma filosofia da cultura foram-se impondo como

marcas distintivas do pensamento brasileiro

Contudo esta viragem em direcccedilatildeo agrave modernidade eacute acompanhada pela

existecircncia dum contacto natildeo interrompido com a tradiccedilatildeo possibilitado pelas

correntes tomistas e neotomistas e pela traduccedilatildeo das obras de referecircncia desta

corrente filosoacutefica assim como pelas traduccedilotildees dos autores claacutessicos366

365

Cf Antoacutenio Paim destaca como traduccedilotildees do pensamento claacutessico mais significativas a traduccedilatildeo da

obra completa de Platatildeo de iniciativa da editora Globo a iniciativa da Editora Abril de 50 tiacutetulos de

vaacuterios autores claacutessicos na colecccedilatildeo ldquoOs Pensadoresrdquo Acrescenta ainda a traduccedilatildeo da Summa Teoloacutegica

de S Tomaacutes de Aquino e dos Prolegoacutemenos e a Fundamentaccedilatildeo da Metafiacutesica dos Costumes de Kant

Concluindo a partir do levantamento das traduccedilotildees efectuadas entre 1930 e 1977 afirma que este

rdquopermite verificar que se concluiu no perigraveodo a traduccedilatildeo das principais obras claacutessicas da filosofia Resta

por certo efectivar a versatildeo da obra completa de algumas figuras do pensamento ocidental a exemplo do

que se fez em relaccedilatildeo a Platatildeo e S Tomaacutes Tal eacute o caso certamente de Aristoacuteteles e de Kantrdquo

(Bibliografia Filosoacutefica Brasileira periacuteodo contemporacircneo 1931-1977 Introduccedilatildeo) 366

Em contraste com esta situaccedilatildeo da traduccedilatildeo dos autores da tradiccedilatildeo filosoacutefica que constataacutemos para o

Brasil veja-se a nota introdutoacuteria da Bibliografia Filosoacutefica Portuguesa - que faz o levantamento de

cerca de 7000 tiacutetulos publicados entre 1931 e 1987 - de Maria de Lurdes Ganho e Mendo Castro

Henriques ldquoMuito embora o valor cientiacutefico das obras aqui reportoriadas seja necessariamente desigual e

se registem graviacutessimas carecircncias sobretudo na traduccedilatildeo de textos claacutessicos certamente que o estudioso

natildeo deixaraacute de encontrar muacuteltiplas pistas e sugestotildeesrdquo (Sociedade Cientiacutefica da Universidade Catoacutelica

Portuguesa Bibliografia Filosoacutefica Portuguesa (1931-1987) LisboaSatildeo Paulo 1988 XII

232

233

Capiacutetulo II - Traduccedilatildeo portuguesa de Heidegger

234

235

1 Recepccedilatildeo de Heidegger em Portugal

11 Os primeiros divulgadores

Como acima referimos a influecircncia de Heidegger iniciou-se com a publicaccedilatildeo

de Sein und Zeit em 1927 cuja difusatildeo lhe granjeou uma notoriedade quase

imediata captando a atenccedilatildeo do puacuteblico atento agraves questotildees filosoacuteficas de

quase toda a Europa A irradiaccedilatildeo da influecircncia de Heidegger num primeiro

periacuteodo foi caracterizada por um conhecimento fragmentaacuterio das suas obras

uma vez que a primeira traduccedilatildeo integral de Sein und Zeit realizada por Gaos

para o espanhol foi feita apenas em 1951 e que soacute nos anos setenta Vittorio

Klostermann iniciou a publicaccedilatildeo das obras completas

Ao longo destes primeiros anos a leitura de Heidegger centrada

dominantemente na anaacutelise da existecircncia em Sein und Zeit impocircs uma

primeira interpretaccedilatildeo da filosofia heideggeriana como um existencialismo 367e

uma reflexatildeo antropoloacutegica interpretaccedilatildeo que foi sendo corrigida desde logo

pelo proacuteprio Heidegger depois por um conhecimento progressivo da

globalidade dos seus textos filosoacuteficos

Eacute esta mesma interpretaccedilatildeo existencialista que marca a primeira recepccedilatildeo de

Heidegger em liacutengua portuguesa que eacute aliaacutes anterior ao desenvolvimento dos

primeiros estudos portugueses de fenomenologia que apareceram na Revista

Portuguesa de Filosofia soacute no ano de 1946 (Diamantino Martins

Fenomenologia e Imortalidade e Severino Tavares Os Arquivos de Husserl

Revista Portuguesa de Filosofia 21946)

Tem-se apontado como primeiro autor a comentar o pensamento de Heidegger

em liacutengua portuguesa Leonardo Coimbra368 De facto em O Homem agraves matildeos

367

Sobre a recepccedilatildeo do existencialismo em Portugal cf comunicaccedilatildeo de Miguel Reale ldquoDelfim Santos e

a geacutenese do existencialismo em Portugalrdquo nas Actas do Congresso Internacional de 2008rdquoDelfim Santos

e a Escola do Portordquo(199-234) O autor mostra que a recepccedilatildeo do existencialismo em Portugal foi desde

logo uma aclimataccedilatildeo agraves tendecircncias intelectuais mais marcantes do paiacutes desde o seacuteculo XIX sem uma

avaliaccedilatildeo rigorosa do valor intriacutenseco dos autores nem da argumentaccedilatildeo produzida Miguel Reale

distingue trecircs fases na recepccedilatildeo do existencialismo a primeira protagonizada por Leonardo Coimbra

Garcia Domingos Delfim Santos Joseacute Brandatildeo e Luiacutes Cabral Moncada os primeiros difusores a

segunda fase marcada pelo debate entre o pensamento catoacutelico e o existencialismo levado a cabo por

Alexandre Fradique Morujatildeo Diamantino Martins Joseacute Enes e Manuel Antunes a terceira pela

nacionalizaccedilatildeo do existencialismo por Antoacutenio Quadros que faz uma ligaccedilatildeo entre a temaacutetica do

saudosismo e as filosofias existencialistas 368

Cristiana Abranches de Soveral em A Filosofia Pedagoacutegica de Delfim Santos refere como primeiro

comentaacuterio em liacutengua portuguesa ao pensamento de Heidegger o ensaio de 1935 A Ruacutessia de Hoje e o

Homem de Sempre de Leonardo Coimbra Embora neste ensaio natildeo haja uma referecircncia expliacutecita a

Heidegger mas sim agrave fenomenologia alematilde na generalidade eacute presumiacutevel que tivesse sido influenciado

por um conhecimento de algumas obras de Heidegger Sobre este ensaio de Leonardo Coimbra cf Maria

236

do Destino escrito no ano de 1935 mas editado postumamente em 1950

Leonardo Coimbra a propoacutesito da luta do homem com o Destino - temaacutetica

muito explorada pelo do pensamento poeacutetico e existencial de Raul Brandatildeo e

Teixeira de Pascoes369 - insere um curto comentaacuterio que chama a atenccedilatildeo para

a temaacutetica da existecircncia que Heidegger teria desenvolvido a partir de uma

renovaccedilatildeo do argumento ontoloacutegico de Santo Anselmo370

111Delfim Santos

No entanto em ldquoDialeacutectica totalistardquo371 artigo publicado em 1933 na revista

Presenccedila Delfim Santos jaacute citara Heidegger tendo sido ele o primeiro

divulgador do seu pensamento Delfim Santos tinha uma formaccedilatildeo filosoacutefica

extensa e actualizada tornada possiacutevel pela sua condiccedilatildeo de bolseiro na

deacutecada de 30 na Aacuteustria e na Alemanha Foi bolseiro da Junta de Educaccedilatildeo

Nacional entre 35 e 37 em Viena de Aacuteustria onde tomou parte das

conferecircncias do Ciacuterculo de Viena e assistiu a conferecircncias de Husserl Em

Berlim assistiu agraves liccedilotildees de Metafiacutesica do Conhecimento de Nicolai Hartmann

tendo-se depois transferido para Londres onde continuou os seus estudos

sobre Filosofia das Ciecircncias publicando em seguida A Situaccedilatildeo Valorativa do

Positivismo em que discute os pressupostos teoacutericos desta corrente filosoacutefica

Regressando a Portugal em 37372 seraacute convidado a voltar ao estrangeiro na

qualidade de leitor na Universidade de Berlim remontando a esta segunda

Adelaide Pacheco em ldquoA Presenccedila de Heidegger em Portugal o pensar como Re-memoraccedilatildeordquo (Revista

Portuguesa de Filosofia tomo LIX 1210-1216) Trata-se de um erro que segue uma afirmaccedilatildeo de

Antoacutenio Quadros em ldquoExistencialismo e filosofia existencialista em Portugalrdquo in Logos Enciclopeacutedia

Luso-Brasileira de Filosofia Lisboa Satildeo Paulo Ed Verbo 1990 De facto o ensaio onde Leonardo

Coimbra refere explicitamente Heidegger eacute O Homem agraves matildeos do Destino escrito no mesmo ano 369

Sobre o existencialismo ldquoavant la letttrerdquo destes autores cf a minha dissertaccedilatildeo de mestrado A Vida e o

Traacutegico em Raul Brandatildeo 370

ldquoHeidegger encontra com efeito na existecircncia humana perdida no mundo e na existecircncia humana

reencontrando-se os caracteres fenomenoloacutegicos da existecircncia A fenomenologia da existecircncia eacute para

ele a ontologia da realidade Existecircncia que se encontra existecircncia humana pois que nenhuma existecircncia

haacute que natildeo esteja nesta envolvida ndash ele conclui por um renovo do argumento ontoloacutegico de Santo

Anselmo O primeiro caraacutecter daacute a inquietaccedilatildeo o mal-estar e o medo que o homem banal adormece na

uniformidade do mal de todo o mundo O segundo caraacutecter daacute a anguacutestia perante o desamparo da sua

existecircncia finita e humilhada Esta anguacutestia eacute sobretudo a anguacutestia perante a Morte temporalizaccedilatildeo

primordial em que o passado e o presente se englobam num verdadeiro futurordquo Leonardo Coimbra ldquoO

Homem agraves matildeos com o Destinordquo Obras de Leonardo Coimbra II Porto 1983 1012 371

Delfim Santos ldquoDialeacutectica Totalistardquo in Presenccedila 39 1933 (Obras Completas I - Da Filosofia

Lisboa 1982 31-38) 372

Miguel Reale chama a atenccedilatildeo para o facto de que o manuscrito do artigo Da Filosofia em que Delfim

Santos volta a citar Heidegger eacute de 1937 (embora fosse publicado apenas em 1939) Neste artigo cruzam-

237

estadia no estrangeiro o seu contacto com o pensamento de Martin

Heidegger373 Eacute geralmente reconhecido que o seu contacto com o

pensamento de Nicolai Hartmann e de Martin Heidegger desempenhou um

importante papel na sua trajectoacuteria intelectual que na deacutecada de 40 sofre uma

importante inflexatildeo desviando-se dos problemas da ciecircncia para temaacuteticas

ligadas agrave metafiacutesica e agrave ontologia374

Delfim Santos tornou-se um activo divulgador do pensamento de Heidegger

entre noacutes atraveacutes de numerosos artigos e conferecircncias sem no entanto

chegar a tomar a iniciativa da sua traduccedilatildeo Esta falta de iniciativa foi no seu

caso uma deliberaccedilatildeo que ele justifica logo no artigo escrito em 1938 e

intitulado Heidegger e Houmllderlin ou a essecircncia da poesia com o postulado da

impossibilidade de transferecircncias rigorosas de sentido entre liacutenguas tatildeo

diferentes como as liacutenguas latinas e germacircnicas e ainda com a especificidade

do ldquoestilordquo heideggeriano ldquoHeidegger eacute por esse motivo intraduziacutevel porque a

sua ldquoforma de pensamentordquo desloca a base de referecircncia da liacutengua alematilde e

portanto todo o sistema de correspondecircncia estabelecido entre esta e qualquer

outra liacutenguardquo375

Optando assim por ao inveacutes duma traduccedilatildeo fazer um resumo dos aspectos

essenciais do ensaio Houmllderlin e a essecircncia da poesia natildeo deixa no entanto

de enfrentar problemas hermenecircuticos e de ter que tomar decisotildees de

traduccedilatildeo que hoje nos aparecem como duvidosas senatildeo como totalmente

erradas Eacute o caso da traduccedilatildeo de ldquosein des Seienden como ldquoser do sendordquo

traduccedilatildeo que parece contaminada pela problemaacutetica metafiacutesica da distinccedilatildeo

entre essecircncia e existecircncia como mais agrave frente mostraremos revelando uma

se as influecircncias de Leonardo Coimbra e de Nicolai Hartmann e a referecircncia a Heidegger eacute ainda lateral

Miguel Reale lembra igualmente o facto de que na correspondecircncia a primeira referecircncia a Heidegger

ocorre numa carta dirigida a Joseacute Marinho no mesmo ano A passagem transcrita da referida carta eacute a

seguinte ldquoHeidegger parte da meditaccedilatildeo sobre o conceito de existecircncia e encontra que esta natildeo pode ter a

predicaccedilatildeo universal que lhe deu a filosofia tradicional Existecircncia tem sentido humano e natildeo pode ser

atribuiacuteda nem ao domiacutenio das coisas nem a cada uma das regiotildees que concorrem na formaccedilatildeo do homem

A filosofia existencial eacute antropologia filosoacutefica e neste sentido interessa-lhe a descriccedilatildeo fenomenoloacutegica

da anguacutestia como essencial no comportamento humanordquo Miguel Reale ldquoDelfim Santos e a Geacutenese do

Existencialismo em Portugalrdquo in Delfim Santos e a Escola do Porto 205 373

Cf Manuel Guedes da Silva Miranda Delfim Santos - A Metafiacutesica como Filosofia Fundamental

Lisboa 2003 21-23 374

Cf Constanccedila Marcondes Ceacutesar em ldquoDelfim Santos e Eudoro de Sousardquo Actas do Congresso

Internacional Delfim Santos e a Escola do Porto 156 375

Delfim Santos ldquoHeidegger e Houmllderlin ou a essecircncia da poesiardquo Revista de Portugal Lisboa nordm 4

1938 in Obras Completas vol II Lisboa 1987 333

238

incompreensatildeo do modo especiacutefico de enfrentamento da questatildeo ontoloacutegica agrave

margem dessa tradiccedilatildeo e contra ela feita em Ser e Tempo

Os artigos sobre Heidegger posteriores ocasionalmente publicados por Delfim

Santos ao longo das deacutecadas de 40 e 50376 revelam no entanto uma leitura

atenta de Ser e Tempo obra para que remetem as suas diversas referecircncias e

comentaacuterios valorizando nela sobretudo a temaacutetica existencial Como

podemos constatar pelo prefaacutecio agrave obra de Reacutegis Jolivet As Doutrinas

Existencialistas de Kierkegaard a Sartre Delfim Santos integrou Heidegger na

corrente mais vasta do existencialismo europeu ao lado de Sartre Kierkegaard

e Jaspers

Eacute preciso ainda constatar que Delfim Santos introduziu entre noacutes uma criacutetica agraves

correntes neo-positivistas e defendeu uma interpretaccedilatildeo humanista da cultura

agrave luz da qual ele leu Ser e Tempo leitura que distorce por vezes

flagrantemente o sentido do texto de Heidegger estas distorccedilotildees por um lado

reflectem as incompreensotildees iniciais que rodearam a recepccedilatildeo dos textos do

ldquoprimeiro Heideggerrdquo em toda a Europa por outro natildeo deixam de reflectir ainda

a imposiccedilatildeo de preconceitos inerentes agrave ldquosituaccedilatildeo hermenecircuticardquo do proacuteprio

Delfim Santos como inteacuterprete e revelam-se de grande interesse para a nossa

investigaccedilatildeo

Se podemos considerar que Delfim Santos contribuiu para divulgar uma

interpretaccedilatildeo existencialista e humanista de Heidegger que hoje nos surge

como distorccedilatildeo dos textos e alteraccedilatildeo de sentido no entanto haacute que

reconhecer que Delfim Santos apresenta um notaacutevel esforccedilo de reflexatildeo das

implicaccedilotildees do pensamento existencial de Heidegger em diversos campos da

cultura Este explora sobretudo as implicaccedilotildees da analiacutetica da existecircncia

desenvolvida por Heidegger em Sein und Zeit encontrando na condiccedilatildeo do

Dasein como ser no mundo a fundamentaccedilatildeo para uma pedagogia existencial

uma nova filosofia juriacutedica e abrindo pistas para uma nova abordagem da

psicopatologia

Na mesma linha de uma hermenecircutica existencialista de Heidegger temos o

caso de Garcia Pereira377 que na sua tese de Doutoramento apresentada em

376

Cf Anexo II da bibliografia 377

Em 1933 Garcia Domingos num pequeno ensaio intitulado Da Cultura lido na sessatildeo inaugural do

Liceu Infante de Sagres em Portimatildeo fazia jaacute referecircncias a vaacuterios autores existencialistas entre os quais

239

1939 agrave Faculdade de Letras de Lisboa intitulada Da essecircncia da existecircncia e

da valecircncia Investigaccedilotildees sobre as raiacutezes metafiacutesicas do pensamento e as

perspectivas transcendentais do ser jaacute incluiacutea diversas obras de Heidegger

assim como de Jaspers Kierkegaard e e Gabriel Marcel378

112 Vergiacutelio Ferreira

Vergiacutelio Ferreira foi dos autores mais marcantes nesta interpretaccedilatildeo

existencialista de Heidegger Reconhecendo-se na conferecircncia subordinada

ao tema Existencialismo e Literatura de 1964 simultaneamente como um

herdeiro do existencialismo avant la lettre de Raul Brandatildeo ele reivindica para

si a influecircncia das filosofias existencialistas que pontuavam ao tempo na

Europa

Heidegger aparece-nos ao lado de Sartre Jaspers Kierkgaard Malraux

Camus e Gabriel Marcel como autores de que Vergiacutelio Ferreira destaca a

problemaacutetica existencial e as novas perspectivas que essa problemaacutetica da

existecircncia abre agrave literatura ldquoPara todos estes pensadores poreacutem [] o centro

de interesses eacute ainda e sempre o proacuteprio homem o indiviacuteduo concreto comeccedilo

e fim dos seus problemas ainda que admitamos como temos que admitir que

por ele passam os problemas do mundo dos outros homensrdquo379 Heidegger

como Sartre e Jaspers satildeo referidos por Vergiacutelio Ferreira como referecircncias

filosoacuteficas que permitiram abrir novos horizontes agrave literatura por um retorno do

homem a si mesmo e por uma centraccedilatildeo subjectiva de todo o questionar

metafiacutesico ldquoComo vedes de certo modo foi como se o homem reparasse a

certa altura que se perdera a si de vista e a si regressasse para re-entender o

seu caminho e refazecirc-lo se pudesse Ora bem a fundamental descoberta de

todo este questionar foi a descoberta de que eacute no proacuteprio homem que

ultimamente residem todas as decisotildees ou formulaccedilotildees daquilo que

Gabriel Marcel Cf Miguel Reale ldquoDelfim Santos e a Geacutenese do Existencialismo em Portugalrdquo in Delfim

Santos e a Escola do Porto 202 378

Cf Ibidem 203 379

Vergigravelio Ferreira ldquoExistencialismo e Literaturardquo [1964] in Espaccedilo do Invisiacutevel 2 Venda Nova 1991

36

240

posteriormente se concebeu como determinaccedilotildees objectivas todos os valores

transcendentesrdquo380

A analiacutetica existencial de Ser e Tempo evidencia a condiccedilatildeo humana como

atravessada por uma tensatildeo dramaacutetica entre a autenticidade e a

inautenticidade e a busca de sentido do homem que se projecta solitariamente

em direcccedilatildeo agrave morte ignorando a sua origem e o seu destino faz da proacutepria

existecircncia uma aventura de desfecho incerto de que a literatura existencialista

francesa explorou as possibilidades

Vergiacutelio Ferreira explora a partir da sua novela A Mudanccedila de 1949 o

confronto com o absurdo e a anguacutestia do homem que enfrenta solitariamente a

sua existecircncia inserindo-se nesta literatura existencialista desenvolvida em

Franccedila Ele proacuteprio se fez um divulgador da filosofia de Sartre com a obra Da

Fenomenologia de Sartre de 1962 e com a sua traduccedilatildeo de O Existencialismo

eacute um Humanismo

Note-se no entanto que nenhum destes autores entre noacutes introdutores do

pensamento existencial traduziu qualquer texto de Heidegger pelo que o

acesso aos seus textos foi mediado para a maioria dos intelectuais

portugueses pelas traduccedilotildees francesas Acresce ainda a isto que tanto Delfim

Santos como Vergiacutelio Ferreira centraram os esforccedilos de traduccedilatildeo em obras

francesas de divulgaccedilatildeo do existencialismo (Jolitet Regis As Doutrinas

Existencialistas trad de Antoacutenio Vasconcelos e Lencastre prefaacutecio de Delfim

Santos Colecccedilatildeo Filosofia e Religiatildeo 8 1953 Porto e Sartre O

existencialismo eacute um humanismo trad de Vergiacutelio Ferreira Lisboa Presenccedila

1978)381

380

Ibidem 3738 381

Sobre a confusatildeo entre a fenomenologia alematilde e o existencialismo francecircs reinante no tempo datildeo-nos

um excelente testemunho os textos da autobiografia intelectual de Joseacute Marinho escritos nos anos 50 para

serem inseridos na ediccedilatildeo de Aforismos sobre o que mais importa Ao referir a necessidade de os

intelectuais portugueses reverem a sua posiccedilatildeo face a estas duas correntes do pensamento contemporacircneo

Marinho afirma rdquoCertamente que uma boa parte das pessoas que de filosofia se ocupam teratildeo

forccedilosamente de rever as suas criacuteticas ou faacuteceis desdeacutens perante a fenomenologia ou o existencialismo ndash

duas atitudes muito diferentes mas que por vezes aparecem fundidasrdquo (rdquoAutobiografia Espiritual e outros

textos autobiograacuteficosrdquo in Obras de Joseacute Marinho vol I Lisboa 374) E noutro passo da mesma auto-

biografia esclarecendo a sua relaccedilatildeo com estas correntes que ele diferenciava ldquoEsta dialeacutectica da

plenitude e da carecircncia natildeo a recebi eu do existencialismo que era entatildeo para mim uma filosofia suspeita

Hoje compreendo-a como crise e iniciaccedilatildeo na ontologia fundamental apesar dos desvios antropoloacutegicos

que sofre em Franccedilardquo (Ob cit 364)

241

As obras de Heidegger chegaram pois ao conhecimento da grande maioria dos

intelectuais portugueses382 atraveacutes de publicaccedilotildees ou traduccedilotildees francesas ou

seja chegaram vertidas para uma liacutengua latina com a qual temos grande

familiaridade e a cuja influecircncia noacutes nos encontramos historicamente expostos

E natildeo eacute certamente indiferente que a sua leitura nos tenha chegado primeiro

natildeo na liacutengua de Kant e Hegel nem na nossa proacutepria liacutengua mas na liacutengua de

Sartre e Camus tendo este facto contribuiacutedo largamente para que uma

interpretaccedilatildeo existencialista se impusesse entre noacutes

113 Antoacutenio Joseacute Brandatildeo

Neste primeiro periacuteodo de recepccedilatildeo de Heidegger temos no entanto algumas

excepccedilotildees a esta mediaccedilatildeo francoacutefona383 Destaca-se a traduccedilatildeo portuguesa de

Von Wesen der Wahrheit publicada na revista Rumo em 1946384 atribuiacuteda a

Antoacutenio Joseacute Brandatildeo Esta traduccedilatildeo vem acompanhada por um artigo intitulado

Martin Heidegger que refere a notoriedade do pensamento de Heidegger assim

como o caraacutecter restrito e mediado pelas traduccedilotildees francesas da difusatildeo do seu

pensamento em Portugal ldquoEacute recente conta poucos anos a fama de Martin

Heidegger em Portugal O reduzido puacuteblico que entre noacutes dedica algum

interesse aos assuntos filosoacuteficos ou procura informar-se do que se passa laacute

fora teve conhecimento da raacutepida celeridade deste filoacutesofo e da contagiosa

repercussatildeo da sua obra Como sempre poreacutem esse conhecimento natildeo foi

directo resultou de artigos e relatos aparecidos em revistas francesas ou

espanholasrdquo385 Esse artigo da Rumo denuncia lucidamente a controveacutersia de

caraacutecter ideoloacutegico e natildeo fundada no conhecimento directo dos textos jaacute

instalada em Portugal a propoacutesito de Heidegger e propotildee a traduccedilatildeo portuguesa

382

Comprovaccedilatildeo desta mediaccedilatildeo francoacutefona eacute a obra de Orlando Vitorino Refutaccedilatildeo da Filosofia

Triunfante de 1976 que no uacuteltimo capiacutetulo inclui uma extensa referecircncia ao conceito heideggeriano de

verdade pretendendo demonstrar que este se insere nas tendecircncias dominantes da filosofia moderna Aiacute

satildeo referidas em notas de rodapeacute sempre as traduccedilotildees francesas das obras de Heidegger nomeadamente

De L‟Essence de la veacuteriteacute Essais et Confeacuterences e Questions II Eacute aiacute manifesta uma incompreensatildeo do

conceito heideggeriano de Verdade definido pelo pensador portuguecircs como ldquoconformidade ocircnticardquo Cf

Refutaccedilatildeo da Filosofia Triunfante Lisboa 1976 253-257 383

Como excepccedilatildeo a esta recepccedilatildeo da filosofia alematilde pela mediaccedilatildeo francoacutefona eacute de salientar as

conferecircncias de Gadamer (em francecircs e alematildeo) no Instituto Alematildeo em Lisboa Porto e Coimbra em

1944 Os temas das conferecircncias foram ldquoGoethe und die Philosophierdquo ldquoDas Problem der Geschichte in

der neueren deutschen Philosophieldquo e bdquoPrometheus und die Tragoumldie der Kulturldquo Cf Jen Grondin

Hans-Georg Gadamer Eine Biographie Tuumlbingen1999 258-260) 384

ldquoDa Essecircncia da Verdaderdquo in Rumo nordm2 Lisboa Julho 1946 385

ldquoMartin Heideggerrdquo in Rumo nordm2 Julho 1946 275

242

de Von Wesen der Wahrheit como incitaccedilatildeo a uma verdadeira aprendizagem da

dialeacutectica fundada na compreensatildeo ldquodas coisas mesmasrdquo que se quer refutar386

A propoacutesito da decisatildeo da traduccedilatildeo deste texto num dos nuacutemeros seguintes da

revista Rumo em editorial intitulado Martinho Heidegger e Rumo afirma-se387 o

seguinte ldquoPropositadamente se escolheu o ensaio sobre a essecircncia da

Verdade ndash a primeira vez traduzido em liacutengua portuguesa no nordm 2 desta revista

ndash natildeo soacute porque eacute da praxe a partir de Kant comeccedilar pelos problemas do

conhecimento mas porque neste trabalho Heidegger especula sobre

problemas em que jaacute se debruccedilaram pensadores portugueses de seiscentos o

que permite estabelecer pontos de contacto e linhas de divergecircncias entre a

moderna corrente heideggeriana e a nossa tradiccedilatildeo filosoacuteficardquo388

Mais agrave frente no mesmo artigo se afirma que Heidegger como os escolaacutesticos

visava ldquoo problema do ser enquanto serrdquo mas onde os escolaacutesticos distinguem

e hierarquizam os diversos graus de ser Heidegger ldquoaperta-o no anel estreito

da existecircncia temporalrdquo389

A revista segue ainda o ponto de vista dominante da compreensatildeo de

Heidegger como um autor existencialista identificando Heidegger como ldquoo mais

alto representante do existencialismo ateurdquo De acordo com este ponto de vista

que se toma como adquirido mais agrave frente o citado artigo critica-o por construir

a sua filosofia de costas voltadas para a teologia e para a sua heranccedila catoacutelica

reafirmando os princiacutepios editorias da revista compatiacuteveis com uma filosofia

cristatilde que natildeo pode ldquoconceber o ser que somos independentemente do ser que

nos criourdquo390

Antoacutenio Joseacute Brandatildeo (1906-1984) introduziu ainda o diaacutelogo com o

pensamento de Heidegger na teoria do Direito na sua Dissertaccedilatildeo de

Doutoramento intitulada O Direito Ensaio de Ontologia Juriacutedica apresentada

na Universidade de Lisboa em 1942 Aiacute no cap I artigo 2 no seu sect 4 dedicado

386

Miguel Reale refere que este artigo de Joseacute Brandatildeo introduzia uma crigravetica aos ldquoneotomistas zelososrdquo

que criticavam apressadamente Heidegger numa perspectiva apologeacutetica o que teria provocado uma

ruptura na revista Rumo com a saiacuteda de Joseacute Brandatildeo Delfim Santos e Cabral Moncada os

colaboradores vinculados ao pensamento alematildeo Cf Miguel Reale ldquoDelfim Santos e a Geacutenese do

Existencialismo em Portugalrdquo in Delfim Santos e a Escola do Porto 213 387

A propoacutesito do editorial deste segundo nuacutemero afirma Miguel Reale que ele teria sido escrito pelo seu

director Maacuterio de Albuquerque como resposta agrave saiacuteda da revista de Delfim Santos Cabral Moncada e

Antoacutenio Brandatildeo (Ibidem 213) 388

ldquoMartinho Heidegger e Rumordquo in Rumo nordm3 e 4 Agosto-Setembro de 1946 475 389

Ibidem 476 390

Ibidem 476

243

agrave ldquoontologia existencialrdquo faz numerosas referecircncias a Heidegger salientando

que este cumprira a tarefa natildeo realizada por Husserl da ldquodescriccedilatildeo analiacutetica

da existecircncia temporal do homem da vida natural e do seu saber natildeo teoreacutetico

dirigido para o existente - para o mundo das coisas que se apresenta na

mesma imediatidade como eacute apreendido mundo dos valoresrdquo391

Confrontando a ontologia existencial de Heidegger com a ontologia tradicional

(escolaacutestica) e com a ontologia de Nicolai Hartmann decide-se pela maior

relevacircncia das duas uacuteltimas para a teoria do Direito392 No entanto na sua

filosofia do direito ele dialoga com a concepccedilatildeo da histoacuteria de Heidegger

repensando a nova luz a exegese do Direito jaacute natildeo tomada como uma mera

interpretaccedilatildeo loacutegica das normas mas como uma interpretaccedilatildeo capaz de

determinar o que na norma haacute de juriacutedico isto eacute de aplicaacutevel a cada caso

concreto de acordo com a sensibilidade juriacutedica vigente A interpretaccedilatildeo da lei

eacute assim uma permanente actualizaccedilatildeo do passado de acordo com o espiacuterito

objectivo vigente numa certa comunidade e numa certa eacutepoca histoacuterica (O

Direito Ensaio de Ontologia juriacutedica Lisboa 1948)

Antoacutenio Joseacute Brandatildeo prefaciou tambeacutem mais tarde a traduccedilatildeo portuguesa da

Carta sobre o Humanismo editada pela Guimaratildees em 1973 mostrando as

conexotildees desse texto com Ser e Tempo e com Sobre a Essecircncia da Verdade e

evidenciando aiacute uma correcta compreensatildeo da criacutetica de Heidegger ao

humanismo393

Podemos pois concluir que estes primeiros divulgadores tendem a fazer uma

leitura de Heidegger que eacute centradas na temaacutetica da existecircncia e aparece

contaminada por um lado pelas filosofias existencialistas por outro pela

metafiacutesica escolaacutestica Por outro lado a consciecircncia da necessidade de traduzir

391

Antoacutenio Joseacute Brandatildeo Vigecircncia e temporalidade do direito e outros ensaios de filosofia juriacutedica

Lisboa 2001 164 392

Antoacutenio Joseacute Brandatildeo dirige a Heidegger a criacutetica de Hartmann ldquoCom efeito a Heidegger pode

dirigir-se a criacutetica de Hartmann ldquoconfundiu dois problemas diversos ndash o ser e o sentido do ser Soacute o

primeiro eacute ontoloacutegico O outro natildeo Todo o sentido eacute sempre sentido para algueacutem Mas o ser existe por

definiccedilatildeo quer tenha quer natildeo tenha sentido para algueacutem Para ser natildeo carece de ldquoser pensadordquo A sua

existecircncia eacute em si indiferente aos possiacuteveis sentidos que lhe possam atribuirrdquo Ibidem 170 393

No referido prefaacutecio Antoacutenio Joseacute Brandatildeo sublinha a conexatildeo estabelecida por Heidegger entre

humanismo e metafiacutesica e destaca A Carta Sobre o Humanismo como a abertura de uma nova via para

pensar o homem agrave margem da problemaacutetica antropoloacutegica estabelecida pela tradiccedilatildeo na proximidade do

Ser No sect9 deste prefaacutecio explicita a distacircncia entre a perspectiva de Heidegger e todos os

existencialismos designadamente na versatildeo sartriana Cf Idem Prefaacutecio in Martin Heidegger Carta

Sobre o Humanismo trad de Arnaldo Stein Lisboa 1973

244

as obras de Heidegger para a liacutengua portuguesa eacute ainda excepcional Esta

situaccedilatildeo a partir dos anos 50 vai ser progressivamente corrigida

12 A compreensatildeo da obra de Heidegger e a sua traduccedilatildeo apoacutes os

anos 50

A deacutecada de 50 foi marcada pela traduccedilatildeo em liacutengua espanhola de Ser e

Tempo394 que tornou esta obra acessiacutevel aos falantes das liacutenguas latinas que

como era o caso da maioria dos intelectuais portugueses natildeo falavam o

alematildeo A partir de 1954 Alexandre Fradique Morujatildeo395 Gustavo de Fraga e

Juacutelio Fragata396 desenvolveram os estudos fenomenoloacutegicos de que

salientamos de Gustavo Fraga397 De Husserl a Heidegger elementos para uma

problemaacutetica da Fenomenologia Coimbra Universidade de Coimbra 1965 A

estes vieram juntar-se os trabalhos de Eduardo Soveral (Fenomenologia e

Metafiacutesica) e de Manuela Saraiva (Imaginaccedilatildeo e Metafiacutesica)398

Estes estudos visaram simultaneamente a compreensatildeo rigorosa do

pensamento de Husserl e a chamada de atenccedilatildeo para os limites da sua

concepccedilatildeo da filosofia como ciecircncia do rigor e para toacutepicos do pensamento

europeu que constituem desafios a esses limites como os problemas

relacionados com a religiatildeo399 e a filosofia da arte

Heidegger cujas obras comeccedilaram a ser traduzidas apenas nos fins dos anos

60 no Brasil teve a primeira traduccedilatildeo com uma vasta difusatildeo puacuteblica em

394

El Ser y El tiempo trad Joseacute Gaos Meacutexico-Madrid-Buenos Aires Fondo de Cultura Econoacutemica

1951 395

Sobre o contacto de Alexandre Fradique Morujatildeo com diversos vultos da fenomenologia europeia cf

Clara Morando ldquoAlexandre Fradique de Morujatildeo consideraccedilotildees sobre os seus ldquoestudos

fenomenoloacutegicosrdquo in org de Celeste Nataacuterio Antoacutenio Braz Teixeira e Renato Epifacircnio O Movimento

Fenomenoloacutegico em Portugal e no Brasil Sintra 2010 25-40 396

ldquoComo as outras figuras maiores da Escola Bracarense de que faz parte Juacutelio Fragata reconhecia-se

expressamente inserido na tradiccedilatildeo escolaacutestica o que natildeo o impediu de dialogar demoradamente com o

pensamento husserliano e de considerar que o verdadeiro fundamento da filosofia deveria buscar-se numa

fenomenologia entendida como observaccedilatildeo directa do que se manifesta agrave consciecircncia [hellip]rdquo Antoacutenio Braz

Teixeira rdquoO realismo Fenomenoloacutegico de Juacutelio Fragatardquo in O Movimento Fenomenoloacutegico em Portugal

e no Brasil 41 397

Cf art De Manuel Cacircndido Pimentel Gustavo de Fraga entre Fenomenologia e Metafiacutesica in O

Pensamento Fenomenoloacutegico em Portugal e no Brasil81-90 398

Sobre a relaccedilatildeo de Eduardo Abranches de Soveral e Maria Manuela Saraiva com o pensamento de

Husserl e de Heidegger cf O Pensamento Fenomenoloacutegico em Portugal e no Brasil 71-80 e 91-107 399

Sobre o papel destacado de Alexandre Fradique Morujatildeo na formaccedilatildeo da corrente do existencialismo

cristatildeo em Portugal cf Miguel Reale ldquoDelfim Santos e a Geacutenese do Existencialismo em Portugalrdquo in

Delfim Santos e a Escola do Porto 221222 Aqui o autor destaca os artigos principais que assinalam a

formaccedilatildeo de um pensamento existencialista cristatildeo na segunda metade dos anos quarenta e cinquenta em

torno da Revista Portuguesa de Filosofia centrado no diaacutelogo com Gabriel Marcel (Diamantino Martins

Fradique Morujatildeo) e Heidegger (Carlos Branco)

245

Portugal em 1973 (Carta sobre o Humanismo trad de A Stein Lisboa

Guimaratildees 1973) e este iniacutecio do movimento de traduccedilatildeo selecciona uma obra

cuja publicaccedilatildeo tinha tido nos ciacuterculos filosoacuteficos de toda a Europa grande

efeito causando a impressatildeo de uma ruptura total de Heidegger com o projecto

de Ser e Tempo e de uma segunda etapa da sua obra centrada nas temaacuteticas

do ser e da linguagem

121 Pe Manuel Antunes

Na lista de pensadores que primeiro valorizaram a problemaacutetica da linguagem e

do ser em Heidegger haacute que colocar em lugar de destaque o Pe Manuel

Antunes prestigiado professor da Faculdade de Letras de Lisboa onde durante

muitos anos regeu a cadeira de Histoacuteria da Cultura Claacutessica integrando-se

ainda numa linhagem de pensadores portugueses que sucederam a Leonardo

Coimbra e foram por ele influenciados

O Pe Manuel Antunes tinha-se jaacute ocupado de Heidegger na sua dissertaccedilatildeo de

licenciatura de 1943 ldquoPanorama da filosofia existencial de Kierkegaard e

Heideggerrdquo o segundo trabalho acadeacutemico a ocupar-se de Heidegger em liacutengua

portuguesa como podemos constatar pela leitura da bibliografia referida no

apecircndice 2400do presente trabalho

Nos artigos publicados na revista Broteacuteria em 1951 e 1952 ldquoPrometeiacutesmordquo e

ldquoPrometeiacutesmo existencialistardquo o Pe Manuel Antunes revela-se fortemente criacutetico

das filosofias existencialistas de Andreacute Malraux Sartre e Albert Camus vendo

nesta corrente uma afirmaccedilatildeo prometeica do homem contra Deus e uma

afirmaccedilatildeo do niilismo401

Foi nos anos sessenta que o Pe Manuel Antunes comeccedilou a destacar

Heidegger das filosofias existencialistas e dedicar-se ao estudo aprofundado da

sua obra Em ldquoHeidegger renovador da Filosofiardquo publicado em Occasionalia por

ocasiatildeo da morte do filoacutesofo alematildeo reconhece-se devedor de Heidegger e

assume-se como tendo sido marcado pelo seu conviacutevio espiritual Nos seus

cursos de Ontologia da Faculdade de Letras de Lisboa na deacutecada de 70

conduziu com o grande brilho e rigor que lhe eram caracteriacutesticos o comentaacuterio

400

Cf Trabalhos acadeacutemicos publicados sobre Heidegger apecircndice 2 438 401

Miguel Reale salienta a singularidade desta posiccedilatildeo do Pe Manuel Antunes relativamente ao diaacutelogo

com o existencialismo que vinha a ser levado a cabo na Revista Portuguesa de Filosofia Ibidem 224

246

a diversos textos de Heidegger referentes agrave filosofia preacute-socraacutetica e agrave filosofia

moderna e incentivou agrave leitura de textos relevantes como Introduccedilatildeo agrave

Metafiacutesica ou a Carta Sobre o Humanismo

Em 1969 publicou uma recensatildeo da obra Karl Jaspers (1883-1969) de Artur

Gomes de Leda onde faz uma aproximaccedilatildeo entre Jaspers e Heidegger

tomando-os como discursos do existencialismo germacircnico e apontando como

semelhanccedilas a tendecircncia para filosofar em diaacutelogo com a tradiccedilatildeo filosoacutefica e

para tomar como eixo da reflexatildeo certos temas da existecircncia humana No

entanto salienta que essas semelhanccedilas satildeo mais marcadas no iniacutecio dos

seus itineraacuterios uma vez que na obra de Heidegger se reconheceriam mais

duas outras fases dominadas por outras temaacuteticas402

Tambeacutem em 1969 publicou ldquoHeidegger e a sua influecircnciardquo na revista Broteacuteria

onde analisa a extensatildeo da irradiaccedilatildeo do pensamento de Heidegger e a

diversidade das suas influecircncias centrando essa anaacutelise particularmente no

campo da teologia e da criacutetica literaacuteria ao mesmo tempo que refere o esforccedilo

de Heidegger para clarificar o seu pensamento e combater as interpretaccedilotildees

marcadas pelo ldquoequiacutevoco existencialistardquo403

Em ldquoHeidegger renovador da Filosofiardquo de 1976 analisa o contributo de

Heidegger para a renovaccedilatildeo da filosofia referindo a novidade da analiacutetica do

Dasein de Ser e Tempo Aiacute o Pe Manuel Antunes retoma o problema da

interpretaccedilatildeo existencialista de Heidegger acentuando o caraacutecter limitado e

parcial dessa interpretaccedilatildeo mas de certo modo justificando-o ldquo[hellip] visatildeo

errada sem duacutevida se atendermos ao conjunto da obra e agrave intenccedilatildeo nela

claramente expressa pelo seu autor mas onde havia uma certa parcela de

verdade Residia ela na importacircncia dada aos existenciais do ser humano

(Dasein ser aiacute) como ldquolugaresrdquo privilegiados para a revelaccedilatildeo ou desvelamento

do serrdquo404 Mais agrave frente no entanto o Pe Manuel Antunes refere com grande

clarividecircncia que a analiacutetica existencial funciona na filosofia heideggeriana

402

Cf Pe Manuel Antunes Obras Completas tomo I 402 403

Cf Pe Manuel Antunes ldquoHeidegger e a sua Influecircnciardquo (1969) in Padre Manuel Antunes - Obras

Completas tomo I Lisboa 2005 404

Manuel Antunes ldquoHeidegger Renovador da Filosofiardquo (Occasionalia 1976) in Obras Completas

tomo I Lisboa 2005 391

247

como o plano transcendental das categorias em Kant sendo no seu caso no

entanto este plano uma condiccedilatildeo preacutevia para a renovaccedilatildeo da ontologiardquo405

Ainda no mesmo artigo refere a novidade da abordagem heideggeriana da

linguagem implicada na afirmaccedilatildeo da Carta sobre o Humanismo de que ldquoa

linguagem eacute a casa do serrdquo mostrando que se trata para Heidegger de

investigar a iacutentima e misteriosa conexatildeo entre ser pensar e dizer Referindo o

recurso agrave etimologia em Heidegger afirma ldquopensador da linguagem Heidegger

eacute-o de forma predominantemente diacroacutenica Sem esquecer a estrutura ele

atende de forma preferencial agrave geacutenese Eacute a geacutenese que nos revela o ser Eacute a

geacutenese que eacute a verdade Eacute a geacutenese que eacute a liberdade Eacute a geacutenese que abre

ilumina Distancia e reuacutenerdquo406

Destaca ainda a novidade contida na aproximaccedilatildeo de Heidegger aos Poetas e

na consideraccedilatildeo de que eacute na poesia essencial que a unidade entre o Ser o

Pensamento e a Linguagem se estabelece e que o mito se faz logos

Mostra tambeacutem que Heidegger propotildee uma renovaccedilatildeo da filosofia em duas

direcccedilotildees distintas pelo seu famoso Schritt zuruumlck apela ao regresso agrave filosofia

grega anterior agrave Metafiacutesica propondo uma nova leitura da Physis e do logos

dos pensadores preacute-socraacuteticos apelando por outro lado simultaneamente ao

confronto com os pensadores contemporacircneos

No mesmo artigo apresenta ainda Heidegger como um pensador da ecologia

na medida em que se propotildee pensar o homem natildeo como um dominador (Herr)

mas como um pastor do Ser ldquoHeidegger foi o pensador da ecologia como

Marx o tinha sido da economia A qual dos dois pertenceraacute o futuro Sabemos

de quem eacute realmente o presenterdquo407

Neste artigo de 1976 o Pe Manuel Antunes revela um conhecimento de vaacuterias

das obras de Heidegger que ainda natildeo estavam traduzidas em Portuguecircs (Sein

und Zeit Tratado das categorias e da Significaccedilatildeo em Duns Escoto Was ist

das - die Philosophie Unterwegs zur Sprache Aus der Erfahrung des

Denkens Gelassenheit) assim como uma visatildeo de conjunto da evoluccedilatildeo do

seu pensamento em torno da questatildeo do Ser desde a analiacutetica existencial de

405

Cf Ibidem 391 406

Ibidem 395 407

Ibidem 401

248

Ser e Tempo agrave temaacutetica do Ereignis do segundo Heidegger Refere ainda a

publicaccedilatildeo por Vittorio Klostermann das Obras Completas de Heidegger em 57

volumes assim como enuncia as dificuldades de interpretaccedilatildeo dos textos

heideggerianos experimentadas na frequentaccedilatildeo dos mesmos

122 Joseacute Enes

Joseacute Enes licenciado em Teologia e Filosofia pela Universidade Gregoriana de

Roma foi professor na Universidade dos Accedilores na Universidade Catoacutelica de

Lisboa e na Universidade Aberta tendo sido ainda o pensador portuguecircs que

mais persistentemente foi influenciado por Heidegger

Fervoroso seguidor de S Tomaacutes de Aquino denota num artigo sobre

Diamantino Martins escrito em 1957 a preocupaccedilatildeo pela necessidade da

filosofia se pensar existencialmente natildeo respondendo apenas agraves necessidades

especulativas da razatildeo mas tambeacutem agraves solicitaccedilotildees afectivas408

A partir dessa data ele procura uma via de conciliaccedilatildeo entre S Tomaacutes e o

segundo Heidegger no acesso agrave experiecircncia do ser atraveacutes do que ele chama

a experiecircncia do Intuito irredutiacutevel ao pensamento conceptual e ao discurso

demonstrativo da loacutegica Realizando uma aproximaccedilatildeo entre teologia e poesia

preconiza para aquela um meacutetodo metafoacuterico e vecirc na anaacutelise etimoloacutegica a via

para o acesso ao instante da constituiccedilatildeo do sentido Publicou em 1969 Agrave

Porta do Ser409a sua dissertaccedilatildeo acadeacutemica apresentada na Universidade

Pontifiacutecia Gregoriana de Roma em 1982 e publicou posteriormente outras

obras nas quais dialoga com Heidegger como Linguagem e Ser em 1983 e

Noeticidade e Ontologia em 1999

Joseacute Enes privilegiou a temaacutetica do ser e da linguagem na direcccedilatildeo de um

retomar a tradiccedilatildeo tomista que concilia com o pensamento do chamado

ldquosegundo Heideggerrdquo via original e de modo algum consensual entre os

408

Joseacute Enes ldquoDiamantino Martins - O problema de Deusrdquo Atlacircntida oacutergatildeo do Instituto Accediloriano de

Cultura Accedilores 1957 369-370 409

Cf Trabalhos acadeacutemicos publicados sobre Heidegger apecircndice 2 438

249

tomistas portugueses410 que seraacute analisada mais agrave frente no sub-capiacutetulo

intitulado ldquoO desvendamento do ser como hermenecircuticardquo

123 Eudoro de Sousa

Haacute que referir tambeacutem a obra de Eudoro de Sousa autor que desenvolve um

diaacutelogo original com os escritos do ldquosegundo Heideggerrdquo centrado numa reflexatildeo

sobre a relaccedilatildeo entre histoacuteria e mito Eudoro de Sousa estudou Filologia

Claacutessica e Histoacuteria Antiga na Universidade de Heidelberg frequentou o Instituto

Catoacutelico de Paris e o Coleacutegio de Franccedila tendo ido em 1953 viver para o Brasil

onde se ligou ao grupo de Satildeo Paulo reunido em torno da revista Diaacutelogo e do

Instituto Brasileiro de Filosofia Exerceu a docecircncia na Universidade de Satildeo

Paulo na Pontifiacutecia Universidade Catoacutelica no Instituto Brasileiro de Filosofia e

na Faculdade de Filosofia de Campinas

As obras Mitologia I (1980) e Mitologia II Histoacuteria e Mito (1988) expotildeem o

essencial da sua interpretaccedilatildeo do mito e da histoacuteria a partir duma leitura

original da cultura grega Esta leitura insere-se poreacutem numa visatildeo do tempo e

da histoacuteria que radicam em Heidegger aceitando o autor portuguecircs a

interpretaccedilatildeo de Heidegger da natureza essencialmente historial do Dasein e

da eacutepoca histoacuterica como configurada por um desvendamento peculiar do ser

ldquoUma eacutepoca define-se por um regime de fascinaccedilatildeo por uma fulguraccedilatildeo

ofuscante pela luz de um raio desferido por aquele que ldquoquer e natildeo quer

chamar-se pelo nome de Zeusrdquordquo411 Eudoro de Sousa tomou tambeacutem a

iniciativa da traduccedilatildeo de Das Ding incluiacuteda na obra Mitologia I e publicada em

1980 em Brasiacutelia e em 1987 em Lisboa A sua obra abre uma via original e de

grande interessa de abordagem da cultura grega e da mitilogia que seraacute

analisada mais agrave frente no ponto 5 deste capiacutetulo

Foi tambeacutem na deacutecada de 80 que prosseguiu a traduccedilatildeo portuguesa de

Heidegger com O Caminho do Campo trad de Mafalda Faria Blanc (tambeacutem

autora de uma dissertaccedilatildeo acadeacutemica sobre Heidegger em 1984412) in Revista

Portuguesa de Filosofia Braga 1987 Houmllderlin e a Essecircncia da Poesia trad

410

Sobre as criacuteticas a Heidegger no contexto geral da poleacutemica contra o existencialismo conduzida a

partir de uma perspectiva tomista centrada no episcopado de Braga cf Miguel Reale ldquoDelfim Santos e a

Geacutenese do Existencialismo em Portugalrdquo in Delfim Santos e a Escola do Porto 230 411

Eudoro de Sousa Mitologia Histoacuteria e Mito Lisboa 2004 230 412

Cf Trabalhos acadeacutemicos publicados sobre Heidegger apecircndice 2

250

orientada por H Hook Quadrado in Filosofia Publicaccedilatildeo da Sociedade

Portuguesa de Filosofia 1989 e no mesmo ano Sobre a Madona Sixtina de

Irene Borges-Duarte (autora de uma dissertaccedilatildeo acadeacutemica sobre Heidegger

apresentada agrave Universidade Complutense de Madrid em 1994413) in Filosofia

Publicaccedilotildees da Sociedade Portuguesa de Filosofia Lisboa 1989

Nesta deacutecada parece estar consolidada uma interpretaccedilatildeo de Heidegger

atinente agraves temaacuteticas do ser e da linguagem e consciente da necessidade de

se ater aos textos originais assim como da sua indispensaacutevel traduccedilatildeo para a

liacutengua portuguesa que frutificaraacute no projecto ldquoHeidegger em Portuguecircsrdquo

(Programa PRAXIS XXI CFIL130341998) Este projecto coordenado por Irene

Borges-Duarte tem a partir de 98 levado a cabo a divulgaccedilatildeo do pensamento

de Heidegger no espaccedilo lusoacutefono atraveacutes do comentaacuterio e traduccedilatildeo das suas

obras assegura o site Heidegger em Portuguecircs 414 e tem-se inserido no

movimento internacional de traduccedilatildeo atraveacutes da participaccedilatildeo e dinamizaccedilatildeo de

conferecircncias e coloacutequios internacionais

2 A recepccedilatildeo de Heidegger no Brasil

O conhecimento de Husserl no Brasil data dos anos trinta tratando-se no

entanto de um conhecimento restrito a um pequeno nuacutemero de estudiosos415

sendo apenas a partir dos anos 50 que se difunde de forma assinalaacutevel a

fenomenologia atraveacutes de cursos sobre Husserl ministrados por Evaldo Pauli

na Universidade Federal de Santa Catarina e ainda atraveacutes do intercacircmbio com

a Universidade de Lovaina (onde foram organizados os Arquivos de Husserl)

pela PUC de Satildeo Paulo e pela Faculdade de Filosofia do Rio de Janeiro416

Moacir Teixeira de Aguiar elaborou em 1958 uma tese intitulada

Fenomenologia e culturalismo juriacutedico mencionando como fontes As

413

Irene Borges-Duarte La Presencia de Kant en Heidegger Dasein ndash Transcendencia - Verdad Madrid

Universidad Complutense Facultad de Filosofiacutea 1994 414

Cf URL=httpwwwmartin-heideggernet 415

Aquiles Cocircrtes Guimaratildees afirma que desde os anos 40 que a fenomenologia foi conhecida no Brasil

O primeiro autor a comentar Heidegger foi Euryalo Cannabrava numa obra intitulada Seis temas do

mundo moderno (Satildeo Paulo Panorama 1941) e o segundo Vicente Ferreira da Silva que em Ensaios

Filosoacuteficos (Instituto Progresso Editorial Satildeo Paulo 1948) testemunha natildeo apenas um conhecimento de

Sartre como de Heidegger O percurso do primeiro teria sido inverso do de Ferreira da Silva pois teria

posteriormente aderido ao neo-positivismo Cf Aquiles Cocircrtes Guimaratildees ldquoO Pensamento

Fenomenoloacutegico no Brasilrdquo in Cultura - Revista de Histoacuteria das Ideias vol XII Seacuterie II Lisboa

20002001183 416

Cf Antoacutenio Paim A Filosofia Brasileira Contemporacircnea 99-100

251

Investigaccedilotildees Loacutegicas traduccedilatildeo espanhola de Joseacute Gaos e Manuel Garcia

Morente Revista do Ocidente 1929 Ideacutees directrices pour une

pheacutenomeacutenologie traduccedilatildeo de Ricœur da Gallimard de 1950 La philosophie

comme science rigoureuse traduccedilatildeo de Quentin Lauer Paris Puf 1955417

Esta difusatildeo da fenomenologia de Husserl418 abriu o caminho ao interesse

pelas filosofias existencialistas em particular pelo existencialismo de Sartre

que teria ampla difusatildeo no Brasil a partir dos anos 60 e mais tarde tambeacutem

pela filosofia heideggeriana

Foi tambeacutem dos anos 50 que apareceu no nuacutemero 1 da Revista Brasileira de

Filosofia o primeiro estudo de Vicente Ferreira da Silva sobre Heidegger

intitulado A uacuteltima fase do pensamento de Heidegger considerado em geral o

texto que assinala o primeiro contacto do puacuteblico brasileiro com o pensamento

heideggeriano

21 Vicente Ferreira da Silva

Vicente Ferreira da Silva foi um pensador que trabalhou agrave margem da

Universidade brasileira sendo poreacutem um dos elementos mais importantes do

Grupo de Satildeo Paulo assim como director da revista Diaacutelogo membro do

Instituto Brasileiro de Filosofia e do conselho de redacccedilatildeo da Revista Brasileira

de Filosofia419

No mesmo ano em que publica o referido artigo sobre Heidegger no fasc 4 da

Revista Brasileira de Filosofia Vicente Ferreira da Silva publica um artigo sobre

O Novo Conceito de Homem onde analisa a emergecircncia duma nova forma de

pensar o homem como resultante de toda uma linha de pensadores em que

417

Ibidem 100-101 418

Segundo Aquiles Cocircrtes Guimaratildees contemporacircneo dos estudos de Vicente Ferreira da Silva e de

Cannabrava foi o de Nilton Campo O Meacutetodo Fenomenoloacutegico na Psicologia (Faculdade Nacional de

Filosofia Rio de Janeiro 1945) que assinala o iniacutecio da influecircncia da fenomenologia de Husserl no

campo da psicologia e da psiquiatria no Brasil ldquoA fenomenologia no Brasil eacute recebida e assimilada

nessas duas vertentes a vertente da reflexatildeo filosoacutefica representada por Cannabrava e Ferreira da Silva e

a vertente psicoloacutegica representada por Nilton Campos ambas enquanto leituras seminaisrdquo Cf Aquiles

Cocircrtes Guimaratildees ldquoO Pensamento Fenomenoloacutegico no Brasilrdquo in Cultura - Revista de Histoacuteria das

Ideias vol XII Seacuterie II Lisboa 20002001185 419

Sobre o grupo de Satildeo Paulo cf Constanccedila Marcondes Ceacutesar em O Grupo de Satildeo Paulo 9 Seguindo

Braz Teixeira a autora distingue o ldquoGrupo de Satildeo Paulordquo (Vicente Ferreira da Silva Eudoro de Sousa

Agostinho da Silva e Miguel Reale que mantiveram entre si um fecundo diaacutelogo espiritual) o ldquocigraverculo de

Vicenterdquo que compreendia um grupo muito mais amplo que frequentava a casa de Vicente e a ldquo Escola

de Satildeo Paulordquo cujos centros irradiadores satildeo o IBF a Revista Brasileira de Filosofia a Editorial

Convivium e a Faculdade de Direito cujos dinamizadores foram Vicente e Miguel Reale e donde

partiram o existencialismo e o culturalismo

252

se inserem Jacob Boehme Schelling Houmllderlin Hegel Nietzsche e finalmente

Martin Heidegger

Em Introduccedilatildeo agrave Filosofia da Mitologia Ferreira da Silva mostra o contributo do

pensamento do segundo Heidegger para a elaboraccedilatildeo duma compreensatildeo

filosoacutefica dos mitos e esclarece onde o seu pensamento comeccedila a divergir de

Heidegger se este vecirc na Poesia o pocircr-se em obra da verdade do ser para ele

esse pocircr-se em obra da verdade deve ser buscado essencialmente na poesia

transhumana que satildeo os grandes mitos pois neles se manifesta a vida

transcendente das potecircncias divinas

Defendendo que o Ser eacute o Fascinador Vicente afirma que ldquoOs deuses

incarnam de maneira insuperaacutevel a fulguraccedilatildeo imediata do Fascinator os

Deuses satildeo essa fulguraccedilatildeo mesma enquanto vida produtiva em si e por sirdquo420

Vicente conduz um interessante diaacutelogo com o pensamento do ldquosegundo

Heideggerrdquo defendendo como Eudoro de Sousa a prioridade do mito sobre o

logos e considera que a reabilitaccedilatildeo do mito abre uma possibilidade de superar

a crise das sociedades contemporacircneas e de redescobrir o sentido da

existecircncia

22 Gerd Alberto Bornheim

Depois dos anos 60 os estudos sobre Heidegger sofrem um novo impulso a

partir da Universidade Federal do Rio Grande do Sul onde Gerd Alberto

Bornheim apresentou a tese de livre docecircncia sob o tiacutetulo Motivaccedilatildeo baacutesica e

atitude originante do filosofar seguida de outros ensaios sobre a

fenomenologia e o existencialismo em Sartre e Heidegger421

Gerd Bornheim tinha sido na deacutecada de 50 bolseiro da Alliance Franccedilaise em

Paris onde frequentou a Sorbonne tendo estudado posteriormente nas

Universidades de Oxford e Freiburgo Em Aspectos Filosoacuteficos do Romantismo

Alematildeo apresentado em 1956 num curso do Instituto Cultural Brasileiro-

Alematildeo este autor leva a cabo uma reflexatildeo sobre as complexas relaccedilotildees

420

Vicente Ferreira da Silva Introduccedilatildeo agrave Filosofia e agrave Mitologia Satildeo Paulo Instituto Brasileiro de

Filosofia Separata da Revista Brasileira de Filosofia vol 5 fasc 4 Outubro-Dezembro 1955 358 421

Cf Aquiles Cocircrtes Guimaratildees ldquoO Pensamento Fenomenoloacutegico no Brasilrdquo in Cultura - Revista de

Histoacuteria das Ideias vol XII Seacuterie II Lisboa 20002001188

253

entre as culturas francesa e alematilde considerando o Iluminismo o momento da

integraccedilatildeo da Alemanha na cultura europeia sob a influecircncia do racionalismo

francecircs e o periacuteodo do Romantismo como o periacuteodo da afirmaccedilatildeo cultural da

Alemanha e do seu predomiacutenio na Europa

O caracteriacutestico do Romantismo eacute para Bornheim a atracccedilatildeo pela ideia de

unidade e a busca da explicaccedilatildeo de toda a realidade em torno de um princiacutepio

uacutenico tendente a superar o dualismo kantiano Para Bornheim esta exigecircncia

de unidade total soacute pode encontrar-se dentro de uma perspectiva religiosa e

por isso todo o movimento romacircntico acaba por identificar filosofia e religiatildeo e

reconhecer a religiatildeo como o uacutenico e grande problema da filosofia

Contrariamente a esta nostalgia do infinito que leva o romacircntico a confundir e

misturar os vaacuterios planos da realidade Bornheim valoriza uma ontologia da

finitude capaz de distinguir os vaacuterios tipos de entes ldquoEsta embriaguez de

unidade leva a estabelecer um tipo de cultura tendente a negar toda a

diferenciaccedilatildeo a entrosar de tal modo os diversos aspectos da cultura que

cada um termina por perder a sua autonomia [] A nostalgia romacircntica ndash a flor

azul de Novalis ndash leva a um gradativo afastamento de tudo o que eacute finito a uma

busca sempre mais exclusiva do Infinito E se perguntaacutessemos o que eacute este

Infinito deveriacuteamos responder que natildeo tem nomerdquo422

Bornheim em Dialeacutectica Teoria e Praxis interessa-se precisamente pela

fenomenologia e o existencialismo como tentativas de estabelecer uma

ontologia da finitude e vecirc no pensar a praxis a via para aprofundar esta

ontologia da finitude conduzindo a este respeito uma criacutetica ao pensamento de

Martin Heidegger

23 Emmanuel Carneiro Leatildeo

Emmanuel Carneiro Leatildeo apoacutes ter estudado na Alemanha com Heidegger fez

o seu doutoramento em Roma com a tese De Problemate Hermeneuticae

Philosoficae apud Martin Heidegger desenvolveu no Rio de Janeiro intensa

actividade de traduccedilatildeo dos textos de Heidegger dentre os que se destacam a

Introduccedilatildeo agrave Metafiacutesica (Rio de Janeiro Tempo brasileiro 1966) e Carta sobre

422

Gerd Bornheim Aspectos Filosoacuteficos do Romantismo Porto Alegre 1959 110

254

o Humanismo (Rio de Janeiro Tempo Brasileiro 1967) assim como de

divulgaccedilatildeo de Ser e Tempo em seminaacuterios permanentes Tem organizado

ciacuterculos de estudo para psicanalistas tendo publicado o livro ldquoExistecircncia e

Psicanaacuteliserdquo(1975)423

Em Aprendendo a Pensar Carneiro Leatildeo expotildee o conceito de diferenccedila

ontoloacutegica de Martin Heidegger mostrando que ele implica que o Ser nunca eacute

directamente acessiacutevel mas se daacute obliquamente retraindo-se e ocultando-se

enquanto ilumina o ente segundo certa figura da sua verdade Este jogo entre

desvelamento e velamento constitui a essecircncia da verdade (a-letheia) e

fundamenta os vaacuterios periacuteodos da sua fulguraccedilatildeo

Segundo Carneiro Leatildeo a hermenecircutica eacute a via de acesso ao desvelamento do

ser e distingue 3 niacuteveis de hermenecircutica hermenecircutica fenomenoloacutegica

hermenecircutica psicanaliacutetica e hermenecircutica existencial privilegiando esta

uacuteltima como meio de aceder agrave compreensatildeo da dinacircmica do destino que

estrutura a histoacuteria

24 Maria do Carmo Tavares Miranda

Ainda agrave mesma geraccedilatildeo de pensadores brasileiros pertence Maria do Carmo

Tavares Miranda tambeacutem aluna de Heidegger que publicou na editora Globo

a traduccedilatildeo de Da Experiecircncia do Pensar precedido de duas introduccedilotildees suas

ldquoO pensamento de Heidegger e a sua importacircncia na filosofia actual e

ldquoCaminho de Experiecircnciardquo produzindo tambeacutem diversos textos originais que

tentam aproximar o pensamento cristatildeo da filosofia heideggeriana

Esta autora situando-se explicitamente na tradiccedilatildeo que com Aristoacuteteles e S

Tomaacutes de Aquino vecirc a filosofia como um desejo de conhecer direccionado

para a verdade do todo ou seja para o ser chama a atenccedilatildeo para a

experiecircncia da impossibilidade desse desiacutegnio radical e para a necessidade de

nos conformarmos com o que ela pode ser - um permanente buscar da

verdade ldquono sentido de buscar para possuir e fruir da presenccedila de outro como

423

Cf Aquiles Cocircrtes Guimaratildees ldquoO Pensamento Fenomenoloacutegico no Brasilrdquo in Cultura - Revista de

Histoacuteria das Ideias vol XII Seacuterie II Lisboa 20002001 189 ldquoPode-se afirmar que a recepccedilatildeo do

ideaacuterio fenomenoloacutegico existencial no Brasil deve a Carneiro Leatildeo a acccedilatildeo mais decisiva tanto no plano

da traduccedilatildeo de textos como no plano da acccedilatildeo magesterial efectivardquo

255

forma cognoscitiva em acto um per-ficere uma presenccedila presente poreacutem

inesgotaacutevel que reclama novas manifestaccedilotildees da sua presenccedilardquo424

A filosofia longe de implicar apenas o plano cognoscitivo ou a instacircncia do

entendimento implica tambeacutem uma disposiccedilatildeo afectiva que ela tipifica como

ldquoalegriardquo ldquo[hellip] eacute a alegria da recepccedilatildeo que nasce da presenccedila do seu bem que

eacute a verdade Ela eacute consequente no amor e o que motiva esta alegria eacute o

proacuteprio objecto do amor eacute a epi-phania do ser enquanto que a inteligecircncia em

acto eacute a posiccedilatildeo de recepccedilatildeo ou disposiccedilatildeordquo425

Na sua meditaccedilatildeo toma ainda um lugar de destaque a reflexatildeo sobre o sentido

da obra de arte pensada como desvelamento do ser do ente em diaacutelogo com

Heidegger e S Tomaacutes de Aquino ( Caminhos do Filosofar Recife 1991)426

25 Benedito Nunes

No campo da esteacutetica ainda foram levados a cabo estudos de inspiraccedilatildeo

heideggeriana por Benedito Nunes Foi assistente de cursos de Maurice

Merleau-Ponty (Collegravege de France) e de Paul Ricœur (Sorbonne) em 1960 Foi

membro fundador da Faculdade de Filosofia da Universidade Federal do Paraacute

publicou a obra Passagem para o poeacutetico - filosofia e poesia em Heidegger

(Satildeo Paulo Aacutetica 1968) O dorso do Tigre (Satildeo Paulo Editora Perspectiva

1969) e No tempo do niilismo e outros ensaios (Satildeo Paulo Aacutetica 1993)

Benedito Nunes salienta o papel de A Origem da Obra de Arte na

transformaccedilatildeo da esteacutetica fazendo um paralelo com a funccedilatildeo destruidora de

Ser e Tempo relativamente agrave metafiacutesica A esteacutetica tradicional assentando

numa concepccedilatildeo platoacutenica do Belo como ideia intemporal eacute sujeita por

Heidegger a um confronto destruidor desvendando as condiccedilotildees histoacuterico-

temporais subjacentes agrave criaccedilatildeo das grandes obras de arte ldquoEste

desvendamento dos pressupostos histoacutericos da esteacutetica por analogia com a

criacutetica existencial reveladora dos pressupostos histoacutericos da metafiacutesica e da

ontologia tradicionais equivale para aproveitarmos a terminologia de

424

Maria do Carmo Tavares Miranda Meditaccedilotildees sobre a Filosofia Braga 1959 8 425

Ibidem 9 426

Cf Constanccedila Marcondes Ceacutesar ldquoArte e Tempo em Maria do Carmo Tavares Mirandardquo in O

Movimento Fenomenoloacutegico em Portugal e no Brasil 141-148

256

Heidegger a uma destruiccedilatildeo filosoacutefica Eacute o proacuteprio Heidegger quem apoacutes ter

realizado em Ser e Tempo a destruiccedilatildeo da metafiacutesica mostrando que atraveacutes

dela herdamos uma interpretaccedilatildeo histoacuterica do ser ensaia em A Origem da

Obra de Arte (conferecircncia pronunciada em 1936) uma destruiccedilatildeo da esteacutetica-

ciecircncia igualmente comprometida com determinada interpretaccedilatildeo do Belo e da

obra de arterdquo427

A consideraccedilatildeo do caraacutecter ontoloacutegico da arte apontada por Heidegger

parece-lhe abrir caminho para encontrar elos de ligaccedilatildeo entre as diversas

formas de criaccedilatildeo artiacutestica contemporacircneas e de nela acolher novas formas de

manifestaccedilatildeo do ser assim como para uma revalorizaccedilatildeo da arte no campo da

cultura face ao crescente prestiacutegio da ciecircncia e da teacutecnica

26 Ernildo Stein

Encontramos depois uma terceira geraccedilatildeo de tradutores e inteacuterpretes do

pensamento de Heidegger428 Sob a influecircncia do magisteacuterio de Bornheim

Ernildo Stein igualmente aluno de Heidegger desenvolve uma intensa reflexatildeo

em torno da filosofia de Heidegger do qual faz a traduccedilatildeo de diversos textos

que seratildeo um ponto de partida para a divulgaccedilatildeo de Heidegger no Brasil

(Sobre o Problema do Ser O Caminho do Campo Que eacute a Metafiacutesica Sobre a

Essecircncia da Verdade A tese de Kant sobre o Ser Sobre a Essecircncia do

Fundamento etc) publicando ainda A questatildeo do meacutetodo em Filosofia ndash um

estudo do modelo heideggeriano (Satildeo Paulo Ediccedilatildeo duas Cidades 1973) Seis

estudos sobre Ser e Tempo (Petroacutepolis Ediccedilatildeo Vozes 1988) Compreensatildeo e

Finitude ndash estrutura e movimento da interrogaccedilatildeo heideggeriana (Porto Alegre

Ediccedilatildeo Eacutetica impressora 1967)

Stein em Em busca duma Ontologia da Finitude sublinha o novo

posicionamento teoacuterico da questatildeo da finitude introduzida pelo idealismo

transcendental de Kant e depois analisa a transformaccedilatildeo sofrida pela

427

Benedito Nunes Introduccedilatildeo agrave Filosofia da Arte Satildeo Paulo 1966 p162163 428

Constanccedila Marcondes Ceacutesar distingue trecircs geraccedilotildees de pensadores brasileiros responsaacuteveis pela

difusatildeo do pensamento de Heidegger a primeira seria a de Vicente Ferreira da Silva e Eudoro de Sousa a

segunda corresponde aos pensadores Emmanuel Carneiro Leatildeo Gerd Bornheim Maria do Carmo

Tavares Miranda e Benedito Nunes a terceira inclui Ernildo Stein e Zeljko Loparic Segundo a autora a

temaacutetica central que ocupou estes autores foi-se deslocando desde a ontologia fundamental ateacute agrave

hermenecircutica e agraves consequecircncias poliacuteticas do pensamento heideggeriano Cf O Grupo de Satildeo Paulo 231-

238

257

problemaacutetica da finitude em consequecircncia da fenomenologia de Husserl e do

pensamento existencial de Heidegger 429

A filosofia existencial teria retomado a problemaacutetica da transcendecircncia

vinculando-a agrave existecircncia e a uma ontologia da finitude cortando assim

simultaneamente com a transcendecircncia objectivista da tradiccedilatildeo metafiacutesica e

com o idealismo transcendental A transcendecircncia implica para as filosofias da

existecircncia natildeo uma fuga agrave condiccedilatildeo finita do homem mas a assumpccedilatildeo

positiva dessa finitude e a tentativa de projectaacute-la num outro fundamento

Este novo conceito de transcendecircncia que Stein designa de rescendecircncia

implica um ldquovoltar sobre si mesmordquo ou seja uma intra-transcendecircncia segundo

a interiorizaccedilatildeo agostiniana e tambeacutem a filosofia moderna desde Descartes a

Kant e Husserl Este conceito de ldquorescendecircnciardquo teria alcanccedilando a sua

estabilizaccedilatildeo uacuteltima e a sua realizaccedilatildeo mais concreta na interpretaccedilatildeo da

existecircncia de Martin Heidegger

Stein analisa tambeacutem as transformaccedilotildees do conceito de ldquomeacutetodordquo e de

ldquolinguagemrdquo que acompanharam esta histoacuteria da constituiccedilatildeo de uma ontologia

da finitude mostrando que esta exige uma modificaccedilatildeo do sentido linguiacutestico

de acordo com a qual a linguagem se assume na ausecircncia de modelos como

construccedilatildeo experimental transportada pela proacutepria forccedila do tempo

Ainda fazendo parte da mesma geraccedilatildeo temos Zeljko Loparic croata radicado

no Brasil desde 1969 que tendo feito anteriormente estaacutegios com Heidegger e

Gadamer na Alemanha publicou em 1990 um livro sobre Heidegger e o

nazismo sob o tiacutetulo de Heidegger Reacuteu e Thais Curi Beani que produziu

diversos textos sobre a linguagem em Heidegger (Agrave Escuta do Silecircncio (1981)

Questotildees fundamentais sobre a linguagem no pensamento de Heidegger

(1980))

Uma nova geraccedilatildeo de pensadores brasileiros estaacute a dar continuidade agrave

traduccedilatildeo e comentaacuterio das obras de Heidegger salientando-se os nomes de

Roacutebson Ramos Marco Casanova Andreacute de Macedo Duarte e Maacutercia de Saacute

Cavalcante exitindo ainda a Rede Heidegger430 que divulga as obras do

pensador alematildeo na Internet

429

Cf Beneval de Oliveira A Fenomenologia no Brasil Rio de Janeiro 1983 25-38 430

Cf URL =httpwwwcleunicampbr

258

3 Determinaccedilatildeo da perspectiva hermenecircutica

Uma perspectiva cronoloacutegica que nos permitiria comparar a interpretaccedilatildeo de

vaacuterias geraccedilotildees de pensadores e diferenciaacute-las teraacute sempre que ter em conta

os condicionalismos que limitaram o diaacutelogo de todo os pensadores da eacutepoca

com Heidegger De facto a publicaccedilatildeo da totalidade da Gesamtausgabe (a

partir de 1975) soacute progressivamente foi dando aos leitores de Heidegger a

possibilidade de ter acesso ao fio condutor do desenvolvimento do seu

pensamento

A esmagadora maioria dos leitores e comentadores de Heidegger antes do final

dos anos 70 natildeo tinha acesso a uma compreensatildeo unificada do pensamento

de Heidegger nem podia interpretaacute-lo como o desenvolvimento de um mesmo

projecto jaacute esboccedilado nos primeiros textos anteriores a Sein und Zeit relativos agrave

hermenecircutica da facticidade Estes condicionalismos gerais teratildeo porventura

sido mais marcantes para os autores portugueses e brasileiros referidos que o

atraso no movimento de traduccedilatildeo uma vez que estes autores dominavam na

maioria dos casos a liacutengua alematilde e tiveram acesso agraves suas obras na liacutengua

original

De qualquer modo que eles proacuteprios tenham soacute relativamente tarde tomado a

iniciativa de traduzir Heidegger para portuguecircs bem assim como a escolha das

obras traduzidas satildeo indicaccedilotildees importantes para a caracterizaccedilatildeo da situaccedilatildeo

hermenecircutica431 que condicionou a recepccedilatildeo de Heidegger e marcou os

estudos que se fizeram em liacutengua portuguesa

Entre estas peripeacutecias do movimento de traduccedilatildeo deve ser tido em conta que

apesar dos primeiros estudos sobre Heidegger remontarem aos anos 30 em

Portugal e 50 no Brasil foi apenas na deacutecada de 50 que a traduccedilatildeo espanhola

de Sein und Zeit pocircs agrave disposiccedilatildeo dos leitores de liacutengua latina o texto

fundamental para entender a hermenecircutica existencial de Heidegger

As traduccedilotildees de Heidegger para liacutengua portuguesa comeccedilaram a ser feitas no

Brasil apenas entre os anos 60 e 70 e em Portugal onde a revista Rumo

traduzira em 1946 Von Wesen der Wahrheit a traduccedilatildeo soacute foi retomada a partir

431

Cf O conceito de situaccedilatildeo hermenecircutica explanado no capiacutetulo II deste trabalho a partir de Martin

Heidegger AhS GA 62 346-347

259

dos anos 70 com a Carta Sobre o Humanismo publicada na Alemanha em

1946 (e traduzida para portuguecircs em 1967)432 obra cuja leitura criou na eacutepoca

a impressatildeo de que Heidegger se afastava do caminho traccedilado pela analiacutetica

existencial de Sein und Zeit orientando-se num sentido de um pensamento

poeacutetico sobre a histoacuteria do ser cortando com a primeira parte da sua obra

Desta universal situaccedilatildeo da interpretaccedilatildeo e leitura de Heidegger daacute-nos conta

Jean Grodin em Einfuumlhrung zu Gadamer ldquoO primeiro Heidegger era outrora

apenas o Heidegger de Sein und Zeit Desde a sua Carta Sobre o Humanismo

de 1946 Heidegger parece ter renunciado agrave sua primeira filosofia Ele parecia

ter trocado o pensamento hermenecircutico-transcendental por um pensar poeacutetico

da histoacuteria do ser As interpretaccedilotildees outrora dominantes de Karl Loumlwith Max

Muumlller Walter Schulz e mais tarde de Otto Poumlggeler e William Richardson

confirmavam esta leiturardquo433

A opccedilatildeo da traduccedilatildeo desta obra tatildeo marcante na criaccedilatildeo dum outro ldquoponto de

vistardquo sobre a obra de Heidegger e o novo curso do seu pensamento natildeo pode

deixar de ser decisiva e de assinalar o interesse de um puacuteblico portuguecircs mais

vasto por esta ldquoperspectivardquo de um segundo Heidegger jaacute na realidade

divulgada entre noacutes pelo grupo de Satildeo Paulo

Comparativamente com outros autores alematildees podemos considerar que a

traduccedilatildeo das obras de Heidegger em Portugal e no Brasil foi muito mais raacutepida

havendo ainda a considerar que os seus principais comentadores tiveram

acesso aos seus textos na liacutengua original No entanto como acima referimos

ateacute aos anos setenta nenhum destes comentadores (exceptuando Antoacutenio

Brandatildeo) sentiu a necessidade de traduzir esses textos e para o grande

puacuteblico a uacutenica via de acesso ao pensamento de Heidegger foi a liacutengua

francesa e a espanhola

Interessa pois detectar ateacute que ponto em liacutengua portuguesa se conseguiu

superar as distorccedilotildees devidas agrave mediaccedilatildeo francoacutefona e a uma vigecircncia

inautecircntica da tradiccedilatildeo escolaacutestica e se alcanccedilou uma verdadeira apropriaccedilatildeo

432

Cf Apecircndice 2 sobre as traduccedilotildees portuguesas e brasileiras de Heidegger 433

bdquoDer bdquofruumlheldquo Heidegger war damals nur der Heidegger von Sein und Zeit Seit seinem

Humanismusbrief von 1946 schien Heidegger seiner bdquoersten Philosophieldquo abgeschwoumlrt zu haben Er

schien das transzendental-hermeneutische Denken zugunsten eines anscheinend dichterischen Denkens

der Seinsgeschichte zu verabschieden Die damals herrschenden Interpretationen von Karl Loumlwith Max

Muumlller Walter Schulz und spaumlter von Otto Poumlggeler und William Richardson bestaumltigten diese Lesartldquo

Jean Grondin Einfuumlhrung zu Gadamer Tuumlbingen 2000 112

260

do pensamento de Heidegger isto eacute uma interpretaccedilatildeo fundada por um lado

num conhecimento rigoroso dos textos do pensador alematildeo por outro lado

numa apropriaccedilatildeo consciente das forccedilas e condicionantes operando na proacutepria

situaccedilatildeo hermenecircutica condiccedilotildees indispensaacuteveis a uma verdadeira traduccedilatildeo

Se aceitarmos que ldquoa originalidade de uma interpretaccedilatildeo filosoacutefica se determina

em funccedilatildeo da seguranccedila especiacutefica que a investigaccedilatildeo filosoacutefica deposita em si

mesma e nas suas tarefasrdquo (Heidegger Investigaccedilotildees fenomenoloacutegicas de

Aristoacuteteles) vemos que a seguranccedila de uma ldquoperspectivardquo (Blickrichtung)

esteve quase sempre ausente no modo como os pensadores portugueses se

relacionaram com a histoacuteria da filosofia ou com a filosofia do seu proacuteprio tempo

A fim de detectar a superaccedilatildeo das distorccedilotildees acima referidas e a emergecircncia

de uma interpretaccedilatildeo ldquooriginaacuteriardquo organizaacutemos os autores que em liacutengua

portuguesa dos dois lados do Atlacircntico pensaram em diaacutelogo com Heidegger

em torno de quatro nuacutecleos temaacuteticos fundamentais que natildeo esgotam esse

diaacutelogo mas traduzem as suas linhas de forccedila principais Pretendemos assim

determinar as coordenadas de ldquoum ponto de vista ldquoBlickstandrdquo e ldquoa direcccedilatildeo do

olharrdquo ou a perspectiva (Blickrichtung) que definem um horizonte de

compreensatildeo

1- Existecircncia e Sentido (Delfim Santos e Vergiacutelio Ferreira)

2- Mito e Logos (Eudoro de Sousa e Vicente Ferreira da Silva)

3- Linguagem e Hermenecircutica (Joseacute Enes e Emmanuel Carneiro Leatildeo)

4- Ontologia e Finitude (Gerd Bornheim e Ernildo Stein)

Estas temaacuteticas jaacute se encontravam lanccediladas no contexto histoacuterico-linguiacutestico

quer pela reacccedilatildeo ao positivismo (o sentido da existecircncia redescoberta da

importacircncia do mito a importacircncia da histoacuteria e da linguagem)434 quer pelos

debates em torno da tradiccedilatildeo metafiacutesica (a oposiccedilatildeo agrave tradiccedilatildeo metafiacutesica jaacute

pudera encontrar o problema ontoloacutegico da finitude em Kant autor cuja

presenccedila foi do outro lado do Atlacircntico assinalaacutevel)435

Estas quatro questotildees fundamentais orientaram o diaacutelogo com Heidegger que

dum lado e doutro do Atlacircntico se foi desenvolvendo por vias diferentes mas

434

Cf Maria Adelaide Pacheco ldquoA recepccedilatildeo de Heidegger em Portugal ou o pensar como rememoraccedilatildeordquo

Revista Portuguesa de Filosofia tomo LIX fasc 41203-1228 435

Cf Beneval de Oliveira A Fenomenologia no Brasil 13-38

261

que mantecircm muacuteltiplas conexotildees entre si como muacuteltiplas foram tambeacutem as

interacccedilotildees entre estes distintos pensadores reunidos pela comunhatildeo da

liacutengua

4 O Diaacutelogo com ldquoo primeiro Heideggerrdquo Existecircncia e sentido

A interpretaccedilatildeo existencialista de Heidegger cronologicamente a primeira a

que em Portugal tivemos acesso configura um interessante problema

hermenecircutico de facto esta interpretaccedilatildeo eacute condicionada natildeo apenas por um

conhecimento fragmentaacuterio dos textos de Heidegger mas eacute ainda fortemente

condicionada e dirigida pela situaccedilatildeo hermenecircutica do inteacuterprete pelos

problemas impostos por essa situaccedilatildeo assim como por preconceitos nem

sempre conscientes associados agrave tradiccedilatildeo (Delfim Santos) ou agrave exposiccedilatildeo agrave

influecircncia cultural francesa (Vergiacutelio Ferreira)

4 1 Delfim Santos

411 Positivismo e Metafiacutesica

Delfim Santos retoma o combate de Antero de Quental contra o positivismo

dominante na nossa cultura desde os finais do seacuteculo XIX denunciando em

particular o peso que entatildeo ainda tinha nas instituiccedilotildees de ensino com o

consequente predomiacutenio das ciecircncias da natureza e a desvalorizaccedilatildeo e

distorccedilatildeo do ensino das ciecircncias do espiacuterito ldquoNo segundo quartel do nosso

seacuteculo e ainda na actualidade a forte ressaca agraves posiccedilotildees enunciadas em

primeiro lugar ainda se afirma com vigor na instituiccedilatildeo que tem agrave sua conta a

divulgaccedilatildeo filosoacutefica para a preparaccedilatildeo de docentes do ensino meacutedio [] As

tentativas para contrariar este demasiado longo predomiacutenio da naturalizaccedilatildeo

das ciecircncias do espiacuterito por via do sistematismo positivista ainda natildeo

conseguiram vencer a incompreensatildeo radicada em posiccedilotildees ideoloacutegicas

incompatiacuteveis com o que pretendem essas ciecircncias na sua tentativa de

262

autonomizaccedilatildeo das ciecircncias da natureza Ainda natildeo foi possiacutevel fazer acordar

os seus representantes do sono dogmaacutetico em que haacute muito tempo caiacuteramrdquo436

O combate a este sono dogmaacutetico positivista estaacute presente em grande nuacutemero

das suas comunicaccedilotildees e artigos constituindo um importante fio condutor da

sua intervenccedilatildeo poleacutemica e pedagoacutegica no seio da cultura portuguesa437 A

este dogmatismo em que ele vecirc lucidamente mais que a adesatildeo reflectida a

uma posiccedilatildeo filosoacutefica uma atitude de espiacuterito que prefere a catalogaccedilatildeo e o

inventaacuterio de teorias e renuncia ao questionamento autecircntico em que consiste

a essecircncia da filosofia ele contrapotildee a viragem que veio a ser operada na

filosofia europeia pelas filosofias da existecircncia

Nesta viragem Delfim Santos sublinha uma nova relaccedilatildeo com a filosofia e a sua

histoacuteria buscando nela ldquoo sentido permanente do acto de filosofarrdquo a sua

vinculaccedilatildeo agrave existecircncia e o consequente esforccedilo hermenecircutico em relaccedilatildeo agrave

tradiccedilatildeo filosoacutefica que mediante estes novos pensadores se vecirc assim

reactualizada A importacircncia deste movimento regressivo que pretende voltar

agraves condiccedilotildees fundamentais do pensamento parece-lhe condiccedilatildeo de novos

progressos e novas conquistas do pensamento438

Eacute no contexto deste caminho regressivo entendido como um retomar as

condiccedilotildees de um autecircntico exerciacutecio do pensamento filosoacutefico que Delfim

Santos vai afirmar a importacircncia da traduccedilatildeo divulgaccedilatildeo e estudo dos autores

mais marcantes da nossa tradiccedilatildeo filosoacutefica como S Tomaacutes de Aquino e

sobretudo Suarez e os autores da Segunda Escolaacutestica439 de modo a retomar

um diaacutelogo artificialmente interrompido ldquoSuarez tem ainda muito para nos

dizer e esta hora eacute propiacutecia para afirmar que natildeo menos ilustres filoacutesofos

portugueses seus contemporacircneos em Coimbra com ele altearam a filosofia a

um ponto ateacute hoje natildeo ultrapassado e surpreendente Urge saber o que eles

disseram e urge estudaacute-los para reatarmos um diaacutelogo tristemente

interrompidordquo440

436

Delfim Santos rdquoMetafigravesica e Positivismordquo [ineacutedito natildeo datado] in Obras Completas tomo II Lisboa

1982 348 437

Cf Cristiana Abranches de Soveral A Filosofia Pedagoacutegica de Delfim Santos Lisboa 2000 123 438

Cf Ibidem 84 439

Sobre a relaccedilatildeo de Delfim Santos com a Escolaacutestica e a Neo-Escolaacutestica cf Manuel Guedes da Silva

Miranda Delfim Santos - A Metafiacutesica como Filosofia Fundamental Lisboa 2003 77-78 440

Delfim Santos rdquoObjecto da Metafigravesica em Suarezrdquo Actas del IV Centenaacuterio del Nacimiento de

Francisco Suarez 1949 in Obras Completas tomo II Lisboa 1982 31

263

O diaacutelogo de Delfim Santos com S Tomaacutes de Aquino e Suarez estando

limitado a algumas comunicaccedilotildees em efemeacuterides comemorativas indicia

contudo conhecimento e familiaridade com o seu pensamento e repercute-se

em numerosos outros artigos posteriores em que eacute discutida a problemaacutetica da

metafiacutesica e o seu objecto

Para situar este diaacutelogo com a tradiccedilatildeo escolaacutestica eacute preciso ter em conta que

na poleacutemica contra o positivismo ainda dominante em Portugal Delfim Santos

tem como preocupaccedilatildeo central estabelecer uma demarcaccedilatildeo clara entre o

domiacutenio das ciecircncias e o domiacutenio da filosofia resgatando esta da condiccedilatildeo de

subalternidade a que tinha vindo a ser sido remetida designadamente pela sua

reduccedilatildeo a uma supeacuterflua tarefa de reflexatildeo e siacutentese dos resultados das

ciecircncias

Rejeitando esta reduccedilatildeo da filosofia a uma reflexatildeo de 2ordm grau sobre o

conhecimento cientiacutefico e reivindicando para a filosofia simultaneamente um

domiacutenio especiacutefico e um papel insubstituiacutevel na cultura Delfim Santos iraacute

preconizar um regresso agrave metafiacutesica por vezes tambeacutem designada de

ldquoontologia fundamentalrdquo441 fundamentando esse regresso num diaacutelogo aberto

mas tambeacutem disperso e sem preocupaccedilotildees de sistematicidade com

pensadores do romantismo alematildeo como Schelling ou Hegel com Nicolai

Hartmann442 mas tambeacutem com S Tomaacutes de Aquino e Suarez

Filiando-se naquele estilo de diaacutelogo com a tradiccedilatildeo filosoacutefica jaacute preconizado

entre noacutes por Antoacutenio Seacutergio que consistia em bem entender os filoacutesofos sem

preocupaccedilotildees de aderir a escolas ou de emitir juiacutezos definitivos Delfim Santos

441

Este conceito de ldquoontologia fundamentalrdquo de Delfim Santos deve ser correlacionado com o de

metafiacutesica generalis estabelecido pelos comentadores de Aristoacuteteles como o estudo do ente enquanto

ente Na reformulaccedilatildeo de Delfim Santos seria o estudo do ente enquanto existente e natildeo enquanto

composto por essecircncia e acidentes Cf Delfim Santos rdquoA Filosofia Como Ontologia Fundamentalrdquo

Actas do I Congresso Nacional de Filosofia - Revista Portuguesa de Filosofia Braga 1955 tomo XI-II

in Obras Completas tomo II Lisboa 1982 215 e ainda Manuel Guedes da Silva Miranda Delfim Santos

- A Metafiacutesica como Filosofia Fundamental Lisboa 2003 199 Este conceito de ldquoontologia fundamentalrdquo

natildeo tem qualquer relaccedilatildeo com o de Heidegger (Cf SuZ GA 2 sect4 14 bdquoJetzt hat sich aber gezeigt daβ die

ontologische Analytik des Daseins uumlberhaupt die Fundamentalontologie ausmacht daβ mithin das Dasein

als grundsaumltzlich vorgaumlngig auf sein Sein zu befragende Seiende fungiertldquo) e contradiz em absoluto o

propoacutesito do filoacutesofo alematildeo de destruiccedilatildeo da metafiacutesica 442

Sobre a importacircncia da influecircncia de Hartmann no pensamento de Delfim Santos cf Cristiana

Abranches de Soveral ldquoPensamos ainda que o entendimento que Delfim Santos faz da fenomenologia se

aproxima mais de Hartmann do que da sua forma original husserliana Com efeito para Delfim Santos

natildeo eacute a busca da essecircncia o objectivo da reduccedilatildeo fenomenoloacutegica mas sim a constataccedilatildeo aporeacutetica da

realidade tal como eacute dada ao sujeito entendendo assim que o que mais importa no problema do

conhecimento eacute a aproximaccedilatildeo ao Ser e tal aproximaccedilatildeo eacute tatildeo mais possiacutevel quanto melhor se

determinam as diversas esferas regionais da realidadeldquo A Filosofia Pedagoacutegica de Delfim Santos 56

264

reconhece contudo aos autores da escolaacutestica um papel preponderante natildeo

soacute pelo papel de destaque na nossa tradiccedilatildeo peninsular mas tambeacutem pela sua

relaccedilatildeo com a temaacutetica contemporacircnea das filosofias da existecircncia

Na comunicaccedilatildeo ldquoSatildeo Tomaacutes e o nosso tempordquo texto ineacutedito de 1951 Delfim

Santos iraacute referir a importacircncia da tradiccedilatildeo escolaacutestica e dos movimentos

contemporacircneos da neo-escolaacutestica para a fixaccedilatildeo de um conceito actual de

metafiacutesica ldquoOra as preocupaccedilotildees de S Tomaacutes na ordem filosoacutefica satildeo

idecircnticas agraves preocupaccedilotildees da filosofia contemporacircnea mas o que daacute hoje

relevo especial agrave sua filosofia para aleacutem da mesma preocupaccedilatildeo temaacutetica eacute o

tratamento idecircntico o reencontro do seu meacutetodo a preocupaccedilatildeo realista e a

formaccedilatildeo de uma nova ontologia que retoma a sua problemaacutetica e ocupa

actualmente grande nuacutemero de pensadores dentro e fora do tomismo dentro e

fora do catolicismordquo443

O nuacutecleo fundamental do pensamento de S Tomaacutes eacute para Delfim Santos a

distinccedilatildeo clara entre o plano da essecircncia e o plano da existecircncia e a

consideraccedilatildeo da existecircncia como acto ou exerciacutecio do ser estabelecidos em

De Ente et Essentia ldquo [] a essecircncia e a existecircncia em S Tomaacutes natildeo satildeo

noccedilotildees que possam colocar-se no mesmo plano como acontece quando se

considera a existecircncia como a essecircncia do existir se assim fosse teriacuteamos

apenas duas noccedilotildees do mesmo niacutevel essencial referenciadas a um acto e ao

que resulta desse acto Eacute diferente do que nos diz S Tomaacutes um acto natildeo tem

essecircncia A essecircncia natildeo implica a existecircncia nem sequer a distinccedilatildeo dos

planos de realidade a que as essecircncias dizem respeito a essecircncia do homem

cavalo ou pedra eacute para o pensamento precisamente o mesmo E a existecircncia

natildeo eacute um atributivo a juntar agrave essecircncia como seria se a metafiacutesica partisse do

estudo das essecircncias e natildeo do acto de existirrdquo444

Esta tese dum primado da existecircncia sobre a essecircncia claramente afirmado

ainda na Summa Teoloacutegica onde S Tomaacutes afirma que o existir eacute o mais iacutentimo

em cada coisa e o que haacute de mais profundo traz consigo segundo Delfim

Santos a possibilidade da abertura de um acircmbito especiacutefico da metafiacutesica

como estudo dos entes na sua existecircncia De facto trata-se duma diferenccedila

443

Delfim Santos ldquoS Tomaacutes e o Nosso Tempordquo [Ineacutedito de 7-3-51] in Obras Completas tomo II

Lisboa 1982 107 444

Ibidem 113

265

radical em relaccedilatildeo agrave metafiacutesica aristoteacutelica uma metafiacutesica do ldquoser entitativo ou

substancialrdquo

Para S Tomaacutes a ontologia suspensa em Deus como acto puro puro existir

desenrola-se num universo potencial de seres de que o uacuteltimo grau pertence ao

reino animal Entre o maacuteximo em acto e o miacutenimo em potecircncia encontra-se o

homem como criatura medial participante desse maacuteximo e desse miacutenimo e

assim dotada de sensibilidade e de intelecto

Delfim Santos faz ainda uma breve exposiccedilatildeo da doutrina da verdade de S

Tomaacutes segundo a qual ela nos sugere uma nova interpretaccedilatildeo da verdade

como adaequatio De acordo com esta interpretaccedilatildeo a adaequatio sendo a

adequaccedilatildeo do intelecto agrave res tem um sentido existencial e depende sempre de

um juiacutezo de existecircncia

Assim em S Tomaacutes estaacute na raiz do conhecimento metafiacutesico ldquoa intuiccedilatildeo

intelectual dessa misteriosa realidade que se dissimula sob o nome mais

comum e banal da nossa linguagem a palavra ser (existecircncia)rdquo445

Deste diaacutelogo com S Tomaacutes de Aquino Delfim Santos conclui a necessidade

de encontrar um soacutelido fundamento para a autonomia da filosofia fazendo-a

regressar agrave metafiacutesica entendida como o estudo da existecircncia em

contraposiccedilatildeo agrave ciecircncia conhecimento do universal e por conseguinte da

essecircncia ldquoJulgo ter dado ou pelo menos sugerido um criteacuterio de distinccedilatildeo

entre ciecircncia e metafiacutesica e ainda ter apontado que a ciecircncia natildeo pode invalidar

a metafiacutesica porque eacute esta que condiciona a ciecircncia e porque os seus

domiacutenios satildeo radicalmente diferentes A ciecircncia exerce-se em plano natildeo

interferente com a metafiacutesica uma no plano do existir e outra no plano do ser

em sentido essencial como soacute o indiviacuteduo eacute real e natildeo poderaacute nunca constituir-

se um indiviacuteduo a partir de uma combinaccedilatildeo de universais como diz S Tomaacutes

segue-se que a ciecircncia retida no universal natildeo poderaacute nunca atingir o individual

existente na metafiacutesicardquo446

O nexo entre este primado da existecircncia sobre a essecircncia estabelecido em S

Tomaacutes de Aquino e as modernas filosofias da existecircncia eacute apontado por Delfim

Santos no prefaacutecio agrave traduccedilatildeo da obra de Reacutegis Jolivet (filoacutesofo tomista e

445

Ibidem 116 446

Delfim Santos ldquoS Tomaacutes e o Nosso Tempordquo [Ineacutedito de 7-3-51] in Obras Completas tomo II

Lisboa 1982 118

266

Decano da Faculdade de Filosofia da Universidade Catoacutelica de Lyon) As

Doutrinas Existencialistas de 1953 nos seguintes termos [hellip] tema

problematizado em novos termos na filosofia actual embora os novos termos

recordem certas posiccedilotildees na histoacuteria da filosofia e mormente da filosofia de S

Tomaacutes que relativamente a este problema tem posiccedilatildeo original e distinta A

existecircncia natildeo eacute acidente a atribuir agrave essecircncia mas a essecircncia acidente a

atribuir ao existente ldquo447

Numa comunicaccedilatildeo realizada nas comemoraccedilotildees do IV centenaacuterio do

nascimento de Suarez Delfim Santos retoma a problemaacutetica metafiacutesica

salientando que a metafiacutesica para este autor tem como objecto natildeo o irreal

transfiacutesico mas o ser entendido como aquilo que estaacute para aleacutem das

abstracccedilotildees da fiacutesica por lhe ser anterior e seu fundamento Para Suarez a

funccedilatildeo da metafiacutesica eacute manifestar a diversidade das coisas ela natildeo busca a

unidade mas salvaguardar a sua pluralidade Ao contraacuterio a ciecircncia inicia-se

com a abstracccedilatildeo que opta por um dos muitos aspectos constituintes dos

entes sendo assim o seu objecto ontoloacutegico enquanto o objecto da metafiacutesica

eacute de natureza ldquoocircnticardquo ldquoSe quisermos usar uma terminologia moderna mas

que pode bem interpretar o pensamento de Suarez diremos que a realidade

que constitui o objecto da metafiacutesica eacute de natureza ocircntica enquanto o objecto

da ciecircncia eacute de natureza ontoloacutegicardquo448 Aqui o domiacutenio do ocircntico tem para

Delfim Santos o sentido de aquilo que eacute objecto de uma compreensatildeo preacute-

ontoloacutegica ou que ainda natildeo foi categorialmente determinado

A metafiacutesica segundo Suarez sublinha Delfim Santos tem como objecto os

entes reais isto eacute o existente o que quer dizer que lhe compete uma tarefa

preacutevia a qualquer das ciecircncias sem a qual elas natildeo poderiam constituir-se

pois eacute o ocircntico a garantia do ontoloacutegico o ser real que garante o ser ideal

A metafiacutesica natildeo tem como objecto a existecircncia que eacute um conceito formal cum

fundamento in ratione mas sim os entes enquanto existentes pelo que natildeo se

trata de uma metafiacutesica existencialista mas ldquoexistencistardquo de acordo com o

neologismo de Delfim Santos

447

Delfim Santos Prefaacutecio agrave Traduccedilatildeo de Regis Jolivet As Doutrinas Existencialistas de Kierkegaard a

Sartre Porto 1953 VIII 448

Delfim Santos rdquoObjecto da Metafigravesica em Suarezrdquo Actas del IV Centenario del Nacimiento de

Francisco Suarez 1949 in Obras Completas tomo II Lisboa 1982 32

267

Esta metafiacutesica de Suarez natildeo admite a distinccedilatildeo entre essecircncia e existecircncia

pois o ente eacute sempre actual se eacute um ser em acto e assim existente este

possui uma essecircncia real que consiste nisto mesmo ser existente ldquoExistecircncia

e essecircncia no real natildeo podem distinguir-se porque entre ambos natildeo haacute nada

que justifique tal distinccedilatildeo Uma essecircncia natildeo existente seria apenas possiacutevel

e portanto natildeo existiria Existecircncia possiacutevel natildeo eacute existecircncia Eacute nadardquo449

Assim sublinha Delfim Santos esta metafiacutesica existentiva de Suarez

estabelece contra as filosofias idealistas a dignidade ontoloacutegica dos entes na

sua diversidade contingecircncia e temporalidade ldquoA metafiacutesica hoje voltando agrave

temaacutetica de Suarez ou encontrando-a sem querer reconhece nele o precursor

de uma atitude que natildeo pretende reduzir a existecircncia ao que ela natildeo eacute nem

reduzir o tempo ao que ele natildeo eacute nem reduzir a contingecircncia ao que ela natildeo eacute

a favor de um dessorado essencialismo que tudo reduz ao idecircntico pondo em

perigo a metafiacutesica como fundamento de toda e qualquer ciecircncia que queira

valer como ciecircncia E nisto consiste o original fundo e actual pensamento

existentivo de Suarezrdquo450

Um outro artigo ainda intitulado A Filosofia como Ontologia Fundamental

retoma esta aproximaccedilatildeo entre a filosofia escolaacutestica e as filosofias da

existecircncia agora em torno do conceito de ldquoontologia fundamentalrdquo Esta

ontologia fundamental eacute aiacute identificada com a metafiacutesica enquanto ldquoestudo do

ser enquanto serrdquo ou enquanto genus generalissimum devendo genus ser

entendido no sentido de geratriz rdquosem pretender neste momento tentar a

demonstraccedilatildeo do que a etimologia facilmente confirma diremos que ldquoserrdquo como

genus generalissimum alcanccedilava exprimir a funccedilatildeo de suprema geratriz de

todo o conhecimento de que todas as outras noccedilotildees menos gerais ou especiais

satildeo provenientesrdquo451

Segundo Delfim Santos satildeo a fenomenologia e as novas filosofias da

existecircncia que exigem um novo fundamento para o homem e

consequentemente uma releitura da tradiccedilatildeo metafiacutesica capaz de recuperar a

noccedilatildeo de ser entretanto deturpada pela filosofia moderna de matriz cartesiana

449

Ibidem 36 450

Ibidem 37 451

Delfim Santos rdquoA Filosofia Como Ontologia Fundamentalrdquo Actas do I Congresso Nacional de

Filosofia - Revista Portuguesa de Filosofia Braga 1955 tomo XI-II in Obras Completas tomo II

Lisboa 1982 215

268

Esta ideia da filosofia como ontologia fundamental aponta em Delfim Santos

para uma tarefa a cumprir isto eacute para a necessidade de se estabelecer um

acircmbito proacuteprio da filosofia que natildeo o do conhecimento das essecircncias

identificado com o domiacutenio das ciecircncias e em particular o das ciecircncias da

natureza para Delfim Santos enraizar a filosofia num acircmbito preacutevio e

fundacional que jaacute estava indicado na ideia da filosofia primeira ou do estudo

do ser enquanto ser significa asseguraacute-la enquanto actividade do espiacuterito

criadora e constituinte das vaacuterias regiotildees do saber452

Esta articulaccedilatildeo entre a tradiccedilatildeo metafiacutesica e as modernas filosofias da

existecircncia que Delfim Santos procura levar a cabo nalguns artigos e

comunicaccedilotildees eacute feita em torno de certos vocaacutebulos-chave que ocorrem

tambeacutem no discurso heideggeriano como o ocircntico e ontoloacutegico ontologia

fundamental existecircncia implicando no entanto aqui uma manifesta

deslocaccedilatildeo de sentido453 nelas ecoando antes a influecircncia de Nicolai

Hartmann

De facto a reflexatildeo de Delfim Santos estaacute focalizada no problema da distinccedilatildeo

entre essecircncia e existecircncia comum agrave tradiccedilatildeo escolaacutestica e a algumas das

filosofias existencialistas e que eacute interpretada por Delfim Santos de acordo

com a distinccedilatildeo estabelecida por Hartmann entre o Dasein (o facto de uma

coisa ser) e o So-sein (o que uma coisa eacute)454 Contudo tanto aquela temaacutetica

como esta distinccedilatildeo satildeo inteiramente alheias a Heidegger

A natildeo explicitaccedilatildeo desta diferenccedila por parte de Delfim Santos no confronto

com os textos do filoacutesofo alematildeo vai ter como inevitaacutevel efeito a projecccedilatildeo

desta problemaacutetica sobre a proacutepria filosofia heideggeriana como se depreende

deste extenso paraacutegrafo de Temaacutetica Existencial de 1950 ldquoA filosofia de

determinada eacutepoca tem como antecedente o esforccedilo total do filosofar de todas

as eacutepocas anteriores embora por vezes entre um e outro momento surja uma

irredutibilidade de atitudes que soacute outro momento posterior poderaacute

452

Segundo Carlos Morujatildeo o papel atribuiacutedo por Delfim Santos agrave filosofia na determinaccedilatildeo das

categorias que regem o conhecimento deve ser correlacionado com a influecircncia determinante de Nicolai

Hartmann no pensador portuguecircs cf Carlos Morujatildeo ldquoDelfim Santos Hartmann e Heideggerrdquo in Delfim

Santos e a Escola do Porto 174-181 453

ldquoA leitura de Martin Heidegger por Delfim Santos estaacute mediada pelo contacto com o pensamento de

Hartmann Assim acontece por exemplo com a interpretaccedilatildeo do significado da famosa distinccedilatildeo entre ser

e sendo que eacute apresentada em De Filosofia (OC I 232-233) Embora pareccedila remeter para a distinccedilatildeo

heideggeriana entre ser e ente entre o ontoloacutegico e o ocircntico [hellip] ela reenvia de facto para as zonas de

valor que Hartmann distinguira com as designaccedilotildees Dasein e Soseinrdquo Ibidem 181 454

Ibidem 174

269

desvalorizar Eacute o caso do essencialismo e do existencialismo ndash do conteuacutedo e

do acto pelo qual ele se atinge Haacute irredutibilidade entre estas duas atitudes

Decerto quando desprendidas do fundamento ocircntico que lhes daacute validez

teoacuterica Todavia a oposiccedilatildeo natildeo tem razatildeo de ser como a proacutepria obra de

Heidegger deixa concluir Se definirmos a filosofia existencial como a busca do

ldquoser do sendordquo (Sein des seienden) eacute isso claro na proacutepria terminologiardquo455

A projecccedilatildeo desta temaacutetica da oposiccedilatildeo entre essecircncia e existecircncia da tradiccedilatildeo

metafiacutesica sobre Ser e Tempo resulta num encobrimento de aquilo que jaacute nesta

obra eacute anunciado como uma questatildeo central do pensamento heideggeriano a

necessidade do confronto com a tradiccedilatildeo da metafiacutesica e da sua destruiccedilatildeo

para que possa ser levada a cabo a proposta duma reelaboraccedilatildeo do problema

ontoloacutegico numa perspectiva radicalmente diferente dessa tradiccedilatildeo a ontologia

fundamental eacute em Heidegger o projecto de reconstruccedilatildeo duma ontologia

fenomenoloacutegica que tem como condiccedilatildeo preacutevia a analiacutetica do Dasein

Do mesmo modo a restriccedilatildeo do conceito de existecircncia ao ser do Homem

levada a cabo por Heidegger implica a sua releitura como modo de ser

especiacutefico do Dasein enquanto ser temporal exposta extaticamente ao

desvelamento do ser afastando-se assim do conceito de existecircncia da filosofia

escolaacutestica como da de Dasein em Nicolai Hartmann

412 Humanismo e existencialismo

No prefaacutecio a Reacutegis Jolivet As Doutrinas Existencialistas de 1953 Delfim

Santos tem a preocupaccedilatildeo de demonstrar que se as filosofias da existecircncia

retomam um tema jaacute antecipado na escolaacutestica medieval o fazem no entanto

de uma forma original sendo uma das suas grandes contribuiccedilotildees o ter

demonstrado que a existecircncia na sua singularidade e concreccedilatildeo escapa agrave

rede conceptual dos sistemas filosoacuteficos como tambeacutem ao formalismo da

loacutegica

Delfim Santos chama a atenccedilatildeo para o facto de que recusando ao homem o

estatuto de coisa as filosofias da existecircncia retiram a problemaacutetica

antropoloacutegica quer do acircmbito das ciecircncias quer do acircmbito de todas as

455

Delfim Santos ldquoTemaacutetica Existencialrdquo Separata do nordf2 da revista Atlacircntico 3ordf seacuterie 1950 in Obras

Completas tomo II Lisboa 1982 80

270

posiccedilotildees metafiacutesicas que visam defini-lo a partir de uma essecircncia ldquoA recusa agrave

reduccedilatildeo do homem ao plano conceptual das coisas e agrave assumpccedilatildeo idealista ou

realista que neste caso se equivalem como agentes de deturpaccedilatildeo da

existecircncia humana eacute caracteriacutestica da filosofia existencial desde Kierkegaard e

das perspectivas diversas que a partir do pensador dinamarquecircs se

estruturam em Heidegger e Sartre Jaspers e Marcelrdquo456

Para o pensador portuguecircs a contraposiccedilatildeo das noccedilotildees de existecircncia e

sistema em Kierkegaard teria resultado natildeo apenas no pendor anti-sistemaacutetico

das actuais filosofias da existecircncia como ainda no enfoque antropoloacutegico da

filosofia que coloca o homem no centro da especulaccedilatildeo filosoacutefica Delfim

Santos vai natildeo apenas integrar Heidegger nestas filosofias da existecircncia como

fazer uma leitura do primeiro Heidegger segundo a qual este traria como

significado essencial a afirmaccedilatildeo da necessidade de uma antropologia

filosoacutefica ldquoEacute bem conhecida a afirmaccedilatildeo de Heidegger nenhuma eacutepoca da

histoacuteria soube tanto acerca do homem como a nossa Nenhuma eacutepoca da

histoacuteria expocircs o seu saber a respeito do homem de maneira tatildeo fascinante e

penetrante como a nossa Nenhuma eacutepoca conseguiu tatildeo raacutepida e facilmente

transmitir este saber como a nossa Mas tambeacutem nenhuma eacutepoca soube

menos o que eacute o homem do que a nossa Nunca o homem se tornou tatildeo

problemaacutetico como no nosso tempordquo Esta atitude recordando a de Max

Scheler na exigecircncia de indispensaacutevel e preacutevia formulaccedilatildeo de uma

antropologia filosoacutefica manteacutem hoje o significado que lhe fora atribuiacutedo haacute mais

de 20 anosrdquo 457

No artigo intitulado Heidegger Delfim Santos leva a cabo uma leitura de Ser e

Tempo segundo a qual aiacute o pensador alematildeo colocaria a metafiacutesica sob o

signo da antropologia ldquoE se tudo e noacutes proacuteprios se nos oferece como sendo

qual de todos os aspectos do sendo devemos preferir para nos lanccedilarmos na

descoberta do ser A maior parte dos filoacutesofos quando se puseram este

problema procuraram o ser das coisas que os rodeavam Mas o sendo que

noacutes somos tem aleacutem de outras a possibilidade de interrogar sobre o ser que

456

Delfim Santos Prefaacutecio agrave traduccedilatildeo dum livro de Reacutegis Jolivet (Reacutegis Jolivet As Doutrinas

Existencialistas de Kierkegaard a Sartre Porto Livraria Tavares Martins) in Obras Completas vol I

Lisboa 1973 169 457

Delfim Santos ldquoSentido Existencial da Anguacutestiardquo Separata dos Anais Portugueses de Psiquiatria vol

IV nordm4 Dezembro de 1952 in Obras Completas tomo II Lisboa 1982 154

271

ele mesmo eacute O ser que noacutes somos eacute pois o exemplar que nos vai servir na

busca da resposta agrave questatildeo o que eacute o ser

E assim temos a metafiacutesica colocada sob o signo da antropologiardquo458

No entanto Delfim Santos vai mais longe definindo as filosofias da existecircncia

em geral459 e em particular a de Heidegger como um humanismo No artigo

Temaacutetica Existencial de 1950 Delfim Santos afirma ldquoO existencialismo actual

eacute mais um momento digno de registo na compreensatildeo do homem tentada pelo

proacuteprio homem e o que nele vale natildeo eacute soacute o que se afirma mas sobretudo a

forma de pensamento que potildee em jogo e permite situar o homem em nova

posiccedilatildeo perante si e o mundo De maneira sucinta e talvez sugestiva pode

dizer-se que o existencialismo (sobretudo em Heidegger) admite como

programa na compreensatildeo do Homem ldquoO homem como medida do proacuteprio

homemrdquordquo460

Contudo tendo esta interpretaccedilatildeo humanista sido refutada pelo proacuteprio

Heidegger na Carta sobre o Humanismo de 1946 obra que teve grande eco

em toda a Europa natildeo pode deixar de suscitar alguma perplexidade a

ausecircncia de referecircncia a esta rectificaccedilatildeo e advertecircncia do proacuteprio Heidegger

dirigida aos seus inteacuterpretes e que tatildeo claramente estabelece uma linha de

demarcaccedilatildeo com o existencialismo humanista de Sartre

Esta interpretaccedilatildeo de Heidegger segundo a qual a sua filosofia seria um

existencialismo que teria como programa ldquoo homem como fim do proacuteprio

homemrdquo eacute no entanto mitigada pela ressalva de que ela natildeo postula um

desinteresse pelo que transcende o proacuteprio homem Delfim Santos chama a

atenccedilatildeo para o facto de que a filosofia existencial de Heidegger eacute uma filosofia

transcendental e que a aproximaccedilatildeo agrave filosofia de Kant foi estabelecida pelo

proacuteprio Heidegger em ldquoKant e o problema da Metafiacutesicardquo esforccedilando-se por

estabelecer uma linha de demarcaccedilatildeo em relaccedilatildeo agrave filosofia transcendental

kantiana Esta residiria no facto de que a filosofia existencial de Heidegger

458

Delfim Santosrdquo Heideggerrdquo [ineacutedito natildeo datado] in Obras Completas tomo II Lisboa 1982 358 459

Sobre a relaccedilatildeo de Delfim Santos com as diversas filosofias da existecircncia cf Cristiana Abranches de

Soveral A Filosofia Pedagoacutegica de Delfim Santos 65-66 460

Delfim Santos rdquoTemaacutetica Existencialrdquo Separata do nordf2 da revista Atlacircntico 3ordf seacuterie 1950 in Obras

Completas tomo II Lisboa 1982 8081

272

ldquopretende antes de tudo estudar as formas pelas quais o transcendente

determina a existecircncia do homem enquanto estaacute no mundordquo461

Em torno desta noccedilatildeo de ldquotranscendecircnciardquo contudo o que parece visar-se natildeo

eacute tanto uma linha de demarcaccedilatildeo com a filosofia transcendental kantiana - que

Delfim Santos considera de modo algo obscuro pensar ainda o homem como

instrumento de apreensatildeo da transcendecircncia - mas sim a relaccedilatildeo com a

tradiccedilatildeo metafiacutesica Determinando a relaccedilatildeo do homem com a transcendecircncia

em Heidegger Delfim Santos afirma ldquoTrata-se portanto de um tipo de filosofia

cuja especulaccedilatildeo se dirige em sentido oposto ao tradicionalmente admitido

Natildeo eacute o homem fugindo da Terra em busca do que ele determina como

transcendente mas sim o homem determinado na sua vida terrena pela

transcendecircncia que constitui o tema central do existencialismordquo462

Delfim Santos explica correctamente que a transcendecircncia em Heidegger se

identifica com o Dasein como ser-no-mundo Ora o Dasein como ser no

mundo confrontado na anguacutestia com o nada oscilando entre a autenticidade e

a inautenticidade poderia induzir numa leitura niilista que no entanto natildeo eacute de

modo algum feita por Delfim Santos De facto afirma Delfim Santos sendo ser

e o nada o mesmo a sua revelaccedilatildeo no instante eacute a revelaccedilatildeo de algo supra-

temporal e transcendente ldquoO homem eacute finito e o seu horizonte como tal eacute

igualmente limitado O temor claramente ou natildeo eacute permanente na sua

existecircncia e ldquoo nadardquo que o rodeia mostra-se no ldquoinstanterdquo O ldquo instanterdquo poreacutem

natildeo eacute uma partiacutecula miacutenima do tempo ndash seria entatildeo momento - mas algo supra-

temporal e que em linguagem metafoacuterica se poderia expressar da seguinte

maneira sempre que o homem se encontra a si proacuteprio sempre que na sua

vida algo se lhe revela e permite encontrar-se e melhor conhecer-se sempre

que pela emoccedilatildeo ou pelo pensamento o homem se aprofunda intimamente e

atinge seguro indiacutecio de contacto consigo mesmo sempre que tal sucede tal

acto eacute o que desde Kierkegaard se chama ldquoinstanterdquo Ou em resumo instante

eacute algo se supra-temporal no tempordquo463

Tanto o humanismo cristatildeo de Vieira para o qual a histoacuteria humana eacute o palco

de revelaccedilatildeo do divino no tempo como o cristianismo agoacutenico de Unamuno

Raul Brandatildeo e Pascoaes que entre noacutes difundiram um existencialismo cristatildeo

461

Ibidem 81 462

Ibidem 81 463

Ibidem 84

273

ldquoavant la lettrerdquo impregnam esta interpretaccedilatildeo que Delfim Santos leva a cabo

do pensamento de Heidegger Segundo esta interpretaccedilatildeo de Delfim Santos a

existecircncia humana sendo finita e temporal estaacute contudo momentaneamente

aberta agrave revelaccedilatildeo da transcendecircncia ou seja agrave revelaccedilatildeo daquilo que no

proacuteprio homem eacute intemporal

Em consonacircncia com este posto de vista Delfim Santos recusa qualquer

divisatildeo das filosofias da existecircncia entre existencialismo cristatildeo e natildeo cristatildeo

pois em todas vecirc simultaneamente a afirmaccedilatildeo dum humanismo aberto agrave

transcendecircncia

Este curioso exemplo de projecccedilatildeo do proacuteprio horizonte hermenecircutico sobre a

coisa a interpretar ficaraacute mais claro se atendermos aos pressupostos

humanistas464 do proacuteprio Delfim Santos claramente explicitado no texto sobre

a cultura portuguesa designado de Humanismo e Cultura ldquoSe definirmos o

humanismo como processo de revelaccedilatildeo do humano no homem temos de

concluir que natildeo haacute cultura sem uma base humanista que lhe sirva de suporte

Uma cultura que natildeo tenha um conceito de humanismo a defender eacute uma

cultura sem fundamento e uma cultura sem fundamento natildeo merece ser

chamada de culturardquo465

Em O Homem e o seu Destino Delfim Santos reclama um novo humanismo

capaz de responder aos desafios da teacutecnica ldquo Chegou o momento

contemporacircneo em todas as suas formas de implicaccedilatildeo empiacuterica praacutetica e

teoacuterica agrave convicccedilatildeo muitas vezes afirmada de que patente desarmonia se

verifica entre o homem e os seus valores de intenccedilatildeo moral e o imenso mundo

instrumental ao seu serviccedilo [] Ao conhecimento vasto do ldquocomordquo isto eacute da

teacutecnica que em todos os planos tem ao seu serviccedilo nem sempre corresponde

um luacutecido e firme conhecimento do ldquopara quecircrdquo que deveria orientaacute-lo na

utilizaccedilatildeo e na acccedilatildeo convergente com os outros em benefiacutecio de todosrdquo466

464

Cf Cristiana Abranches de Soveral A Filosofia Pedagoacutegica de Delfim Santos 96-100 A autora

analisa os pressupostos humanistas da concepccedilatildeo de cultura de Delfim Santos natildeo os filiando no entanto

numa tradiccedilatildeo latina Efectivamente o proacuteprio Delfim Santos de acordo com a sua noccedilatildeo de o homem

como um ser situado reivindica a especificidade da cultura ibeacuterica anterior agrave romanizaccedilatildeo para cujo

pleno florescimento a mania da imitaccedilatildeo dos arqueacutetipos latinos teriam sido um obstaacuteculo Contra a

racionalidade teacutecnica e anti-humanista Delfim Santos preconiza um regresso agraves raiacutezes humanistas da

nossa cultura patentes na literatura na poesia e no modo de vida 465

Delfim Santos ldquoHumanismo e Culturardquo Diaacuterio Popular 13 de Maio de 1943 in Obras Completas

tomo III Lisboa 1982 341 466

Delfim Santos rdquoO Homem e o seu Destinordquo Diaacuterio do Norte 22-3-1951 in Obras Completas tomo

II Lisboa 1982 125

274

A urgecircncia de uma eacutetica humanista repetidamente afirmada por Delfim Santos

encontra ressonacircncia na sua anaacutelise do Dasein como ser no mundo que ele

conclui com a seguinte afirmaccedilatildeo ldquo [hellip] estar no mundo prepara para a

constante tentaccedilatildeo de cair no mundo das coisas no mundo dos outros e

raramente no mundo proacuteprio [] a queda no mundo das coisas leva o homem a

pretender compreender-se em funccedilatildeo das coisas a queda no mundo dos

outros leva o homem por comparaccedilatildeo a aniquilar o que nele eacute autecircntico para

ser como os outros a queda no seu proacuteprio mundo eacute o mais raro e o mais

difiacutecilrdquo 467

Os valores positivos de uma eacutetica humanista capaz de conduzir o homem a

ldquocair no seu proacuteprio mundordquo satildeo entrevistos por Delfim Santos na

caracterizaccedilatildeo heideggeriana do homem como cuidado (preocupaccedilatildeo) a partir

da ceacutelebre faacutebula de Higino que Delfim Santos comenta afirmando que sendo

Deus imortal realiza a sua perfeiccedilatildeo pelo bem e sendo dada a natureza mortal

do homem este deve realizar a sua perfeiccedilatildeo pela preocupaccedilatildeo

413 As ciecircncias do espiacuterito

Como referimos acima Delfim Santos estaacute essencialmente preocupado com a

salvaguarda da autonomia das ciecircncias do espiacuterito face agraves ciecircncias da

natureza preocupaccedilatildeo que sendo recorrente na obra do pensador portuguecircs

eacute objecto expliacutecito do artigo ldquoNatureza e Espiacuteritordquo de 1952 Criticando a

inconsequecircncia no modo de encarar a filosofia e as ciecircncias do espiacuterito no seu

conjunto ele afirma que essa inconsequecircncia deriva da crenccedila da

exemplaridade do saber das ciecircncias da natureza e de que por conseguinte

as ciecircncias do espiacuterito para atingirem a validade devem imitar os meacutetodos de

investigaccedilatildeo das ciecircncias da natureza sobretudo da fiacutesica

Ora em Heidegger como em Sartre ele vecirc a inversatildeo deste paradigma uma

vez que eacute o homem que ao compreender o ser determina os vaacuterios modos de

ser do ente ldquoO saber destas uacuteltimas [das ciecircncias da natureza] eacute de ordem

convencional e sempre resultante de uma estruturaccedilatildeo optativa quanto agrave

objectivaccedilatildeo conceitual Mas o que permite essa objectivaccedilatildeo a delimitaccedilatildeo

objectiva dos seus conceitos eacute o inobjectivaacutevel o nuacutecleo de liberdade e de

decisatildeo que eacute actividade espiritual no seu propoacutesito de conhecimento

467

Delfim Santos ldquoHeideggerrdquo [ineacutedito natildeo datado] in Obras Completas tomo II Lisboa 1982 368

275

Ou ainda em foacutermula sartriana o ldquoem sirdquo da natureza eacute consequecircncia do ldquopor

sirdquo da actividade espiritualrdquo468

Como acima referimos Delfim Santos rejeita a extensatildeo de categorias proacuteprias

das ciecircncias da natureza agraves ciecircncias do espiacuterito e procura fundar estas numa

antropologia filosoacutefica469 Em coerecircncia com esta tese Delfim Santos iraacute

procurar a partir de analiacutetica existencial de Ser e Tempo pensar os

fundamentos do direito da pedagogia e da psiquiatria

Relativamente ao direito ele critica as tendecircncias positivistas que

predominavam no direito portuguecircs convertendo-o num sistema rigidamente

formalizado de leis abstractas agrave semelhanccedila das leis fiacutesico-matemaacuteticas com

menosprezo do homem como ser concreto e individual470 Delfim Santos vai

reflectir e problematizar a contradiccedilatildeo entre a universalidade da norma juriacutedica

e a diversidade dos indiviacuteduos concretos a que ela deve aplicar-se e que a sua

antropologia de cunho existencialista considera irredutiacuteveis a uma essecircncia

geral

Natildeo sendo a existecircncia redutiacutevel a um conceito universal mas sendo sempre

singular ela soacute pode ser compreendida a partir da sua situaccedilatildeo Assim o

direito tem como finalidade ldquoo proacuteprio homem em situaccedilatildeo interferente com

outro ou outros homensrdquo

A definiccedilatildeo do acircmbito e da finalidade do direito parece-lhe indispensaacutevel para

que o conceito do direito e a sua metodologia possam ganhar coerecircncia e

libertar-se das sistematizaccedilotildees e exigecircncias loacutegicas e metodoloacutegicas que

apenas tecircm vigecircncia noutros acircmbitos471

A proximidade do direito em relaccedilatildeo ao homem em situaccedilatildeo exige na

perspectiva de Delfim Santos um modo diferente de encarar a codificaccedilatildeo

468

Delfim Santos rdquoNatureza e Espigraveritordquo Ler Lisboa ano I nordm4 Julho de 1952 in Obras Completas tomo

II Lisboa 1982 151 469

Antoacutenio Braz Teixeira em Caminhos e Figuras da Filosofia do Direito Luso-Brasileira Lisboa 2002

defende que o pensamento filosoacutefico de Delfim Santos rdquoa sua dupla e complementar solicitaccedilatildeo

ontoloacutegica e antropoloacutegicaldquo se caracteriza por uma grande coerecircncia interna ldquosendo muito menos

tributaacuteria da filosofia alematilde do que costuma pensar-serdquo (obcit 220) Natildeo podemos seguir esta posiccedilatildeo

porquanto como atraacutes sublinhaacutemos na nossa perspectiva a originalidade de um pensador natildeo pode

construir-se fora do diaacutelogo com os grandes pensadores da tradiccedilatildeo e do seu proacuteprio tempo 470

Cf Antoacutenio Braz Teixeira ob cit 228-229 O autor refere a recusa de Delfim Santos da distinccedilatildeo

entre direito natural e direito positivo fundada no pensamento kelseniano afirmando no entanto que

Delfim Santos nunca se deixa enredar nas malhas do positivismo juriacutedico Embora recuse para o direito

qualquer fundamento transcendente Delfim Santos chama a atenccedilatildeo para o facto de que o direito carece

de busca fora de si na ideia de Justiccedila (como valor) o seu fundamento 471

Ibidem 230

276

juriacutedica natildeo como um sistema de leis organizado no modelo das leis da fiacutesica

ou dos teoremas matemaacuteticos mas como algo de subsidiaacuterio da compreensatildeo

dos valores e normas vigentes numa eacutepoca histoacuterica

Postulada a finalidade do direito como o homem em situaccedilatildeo Delfim Santos

interroga-se sobre o modo como a construccedilatildeo abstracta do direito aparece a

esse homem concreto e afirma que ignorando o seu caso a lei lhe apareceraacute

sempre como injusta ldquoOra na medida em que o homem como ser vivente em

situaccedilotildees intransferiacuteveis natildeo encontra no direito o respeito por ele proacuteprio e

pelo seu caso e se sente quando para ele apela transfigurado em esquema

abstracto sem parentesco consigo parece-lhe que o direito natildeo foi feito para o

homem o homem que ele conhece e eacute mas sim o homem para o direitordquo472

Este abstraccionismo juriacutedico resulta da aplicaccedilatildeo ao direito de processos de

induccedilatildeo que partem dos casos supostos como tiacutepicos para a formulaccedilatildeo de leis

gerais ou dum processo de deduccedilatildeo geomeacutetrica que parte dos princiacutepios

gerais para descer ateacute ao indiviacuteduo

Ora para Delfim Santos o direito natildeo pode ser resultado de processos de

induccedilatildeo ou de deduccedilatildeo mas sim de uma ldquocasuiacutesticardquo Explicitando a noccedilatildeo de

caso473 afirma Delfim Santos ldquoA noccedilatildeo de caso que aqui se pretende pocircr em

relevo corresponde ao sentido filosoacutefico da actual noccedilatildeo de ldquosituaccedilatildeordquo Eacute

certamente em extremo complexo e por esse motivo tendeu sempre a ser

subsumido pelos teoacutericos que para o direito carrearam as noccedilotildees metoacutedicas

de outras ciecircncias [hellip] ou se quisermos o jurista tem de adaptar-se a uma

outra loacutegica que nada tem que ver ndash a natildeo ser na expressatildeo judicativa ndash com a

loacutegica intelectual e riacutegida e necessaacuteria do soacutelido improacutepria evidentemente para

o esclarecimento do vital e do emocionalrdquo474

Para Delfim Santos o homem natildeo pode ser subsumido num conceito mas tem

que ser compreendido a partir da sua situaccedilatildeo ele eacute o que a situaccedilatildeo permite

que seja e o que nele eacute fundamental natildeo eacute o homem por si mesmo mas o que

a situaccedilatildeo o leva a ser sem que contudo ela possa ser considerada a causa do

472

Delfim Santos ldquoPsicologia e Direitordquo Boletim do Ministeacuterio da Justiccedila 1948 nordm6 Maio 15-16 in

Obras Completas tomo III Lisboa 1982 14 473

ldquoA noccedilatildeo de caso que Delfim Santos propotildee passe a constituir o cerne do direito corresponde agrave noccedilatildeo

filosoacutefica de situaccedilatildeo em que se baseia a sua antropologia de recorte existencialrdquo Antoacutenio Braz

Teixeira Caminhos e Figuras da Filosofia do Direito Luso-Brasileira 230 474

Delfim Santos rdquoPsicologia e Direitordquo Boletim do Ministeacuterio da Justiccedila in Obras Completas tomo II

Lisboa 1982 17

277

seu comportamento A noccedilatildeo de situaccedilatildeo embora natildeo inteiramente explicitada

por Delfim Santos rompe explicitamente com os modelos behavioristas

remetendo antes para a ideia de homem como ser situado implicitamente

contida no Da-sein de Sein und Zeit

O direito exige assim um abandono da explicaccedilatildeo determinista do

comportamento humano pressuposto pela antiga psicologia mecanicista

apelando a uma nova compreensatildeo do homem como indiviacuteduo concreto em

situaccedilatildeo devendo os juristas buscar esta compreensatildeo nas novas correntes da

psicologia

Numa liccedilatildeo sobre o sentido existencial da anguacutestia a convite do professor

Barahona Fernandes Delfim Santos preocupa-se em demonstrar a importacircncia

da analiacutetica existencial de Ser e Tempo para uma nova abordagem das psico-

patologias Aos meacutetodos de investigaccedilatildeo fundados em modelos atomistas e

deterministas proacuteprios da psiquiatria tradicional Delfim Santos contrapotildee uma

compreensatildeo totalizante do homem numa perspectiva existencial ldquoA

enumeraccedilatildeo de ldquoo querdquo constitui o homem reduz o problema ao niacutevel do

conhecimento fragmentaacuterio aniquilante do homem como um todo a um

parcelamento cuja soma o diminui A nova antropologia exigida pela metafiacutesica

e pela psico-patologia natildeo eacute resposta ao ldquoquerdquo eacute o homem mas ao ldquoquemrdquo eacute o

homem Natildeo se trata de uma subtileza vocabular e gramatical mas de dois

niacuteveis de interrogaccedilatildeo distintivos de zonas fundamentais da compreensatildeo a

naturalista e a antropoloacutegicardquo475

Esta mudanccedila do modo de colocar a questatildeo do homem para a qual

Heidegger repetidamente chamou a atenccedilatildeo implica segundo Delfim Santos

um novo respeito pela dignidade do homem e uma atitude face ao indiviacuteduo

satildeo ou doente natildeo apenas descritiva e explicativa mas interpretativa e

compreensiva

A questatildeo da anguacutestia exige portanto para o seu esclarecimento apropriado

uma hermenecircutica da existecircncia que permite saber quem eacute o homem que se

angustia e porque se angustia Nesta perspectiva de uma hermenecircutica

existencial a anguacutestia surge-nos como inerente agrave proacutepria existecircncia o homem

475

Delfim Santos ldquoSentido Existencial da Anguacutestiardquo Separata dos Anais Portugueses de Psiquiatria vol

IV nordm 4 Dezembro de 1952 in Obras Completas tomo II Lisboa 1982 155

278

angustia-se por ser homem isto eacute por estar permanentemente ameaccedilado de

aniquilamento

Assim sublinha Delfim Santos natildeo haacute uma neurose de anguacutestia mas toda a

neurose eacute consequecircncia desta anguacutestia normal inerente agrave existecircncia sempre

que esta eacute insuficientemente sentida ou vivida ou ainda ldquosob o aspecto

existencial a reacccedilatildeo neuroacutetica eacute sintoma de insuficiecircncia de anguacutestiardquo476 A

anguacutestia seria assim o sentimento normal que acompanha a ameaccedila de

dissoluccedilatildeo do eu no anonimato e a queda numa forma inapropriada de exercer

o ser no mundo

O pensador portuguecircs sublinha o reconhecimento jaacute obtido nos meios da

psiquiatria de que a analiacutetica da existecircncia de Heidegger emprestou agrave

psicopatologia uma nova base metoacutedica e um novo fundamento cientiacutefico para

a compreensatildeo das patologias do foro psiquiaacutetrico Nesta perspectiva

existencial todas as patologias devem ser entendidas como ldquoperturbaccedilotildees da

existecircnciardquo e em especial da comunicaccedilatildeo com o mundo e com os outros

Assim um fenoacutemeno como a anguacutestia a cuja compreensatildeo Freud477 acabou

por renunciar pode ser compreendida a partir do in-der-Welt-sein como

pertenccedila do homem a um mundo que ele mesmo tem de criar ldquoO homem natildeo

pode separar-se do mundo que tem de criar estaacute em situaccedilatildeo prospectiva de

transcendecircncia de si proacuteprio na constituiccedilatildeo do seu mundordquo478 Quando esta

ldquotranscensatildeo projectivardquo constituinte de mundo natildeo se realiza correctamente

verificam-se desvios ou perturbaccedilotildees psico-patoloacutegicas

A existecircncia eacute temporal mas essa temporalidade eacute vivida subjectivamente em

funccedilatildeo dum tempo iacutentimo do jaacute vivido e do porvir Esta temporalidade no

horizonte de toda a existecircncia manifesta-se nos 3 ecircxtases temporais do

passado presente e futuro com prevalecircncia deste uacuteltimo O tempo que o

homem vive eacute projecccedilatildeo de um futuro sempre ameaccedilado na sua possibilidade

de concretizaccedilatildeo

Toda a preocupaccedilatildeo autecircntica se relaciona com esta projecccedilatildeo de um futuro

desdobrando-se na tripla preocupaccedilatildeo com as coisas como meros utensiacutelios

476

Delfim Santos rdquoSentido Existencial da Anguacutestiardquo Separata dos Anais Portugueses de Psiquiatria vol

IV nordm 4 Dezembro de 1952 in Obras Completas tomo II Lisboa 1982 155 477

Sobre a criacutetica de Delfim Santos a Freud cf Cristiana Abranches de Soveral A Filosofia Pedagoacutegica

de Delfim Santos 109 478

Delfim Santos rdquoSentido existencial da Anguacutestiardquo Separata dos Anais Portugueses de Psiquiatria vol

IV nordm 4 Dezembro de 1952 in Obras Completas tomo II Lisboa 1982 158

279

com os outros na busca da colaboraccedilatildeo e consigo mesmo na busca do sentido

da existecircncia

Contudo a existecircncia caracteriza-se pela ambiguidade sempre oscilando entre

a preocupaccedilatildeo em autenticidade e a inautenticidade caracterizada por uma

forma cataboacutelica de comportamento pela subordinaccedilatildeo do eu ao ele ao ser

como todos agrave opiniatildeo comum

Devido a esta ambiguidade da existecircncia mesmo aquele que existe com

autenticidade e natildeo teme a solidatildeo resultante da plena consciecircncia da

personalidade sente a anguacutestia da morte do eu na vulgaridade da multidatildeo A

anguacutestia eacute pois normal e natildeo um processo patoloacutegico ela possui um valor

positivo salva o homem da queda e possibilita o tracircnsito entre a

inautenticidade e a autenticidade

As perturbaccedilotildees nesta estrutura da preocupaccedilatildeo - ou o exerciacutecio inapropriado

da preocupaccedilatildeo que consiste na adesatildeo agraves coisas e aos factos ao imediato -

determinam 3 tipos de neuroses a neurose de abandono a neurose de

antecipaccedilatildeo e neurose de queda ou culpabilidade

Na neurose o medo da anguacutestia daacute um conteuacutedo inibitoacuterio agrave sua funccedilatildeo e

conduz agrave sua inadequada objectivaccedilatildeo ou fixaccedilatildeo num objecto (a anguacutestia natildeo

tem objecto quem se angustia angustia-se diante do nada) O medo da

anguacutestia constitutiva da existecircncia seria assim um obstaacuteculo agrave sua vivecircncia e a

neurose a impossibilidade patoloacutegica dessa vivecircncia

A anguacutestia eacute pois uma experiecircncia inerente agrave existecircncia embora uma

experiecircncia que coloca em perigo mortal aquele que a experimenta ela mata

sempre algo em noacutes mas simultaneamente garante uma vida num niacutevel mais

alto Ela eacute conclui Delfim Santos o processo adequado para a conquista da

personalidade pelo que a terapia das neuroses deve consistir em voltar agrave

anguacutestia que a originou em natildeo em suprimi-la o que eacute jaacute posto em praacutetica

pelas tentativas terapecircuticas da psicanaacutelise existencial

A anguacutestia tem tambeacutem um significado histoacuterico e social pois ela provoca a

tentativa do desvendamento do misteacuterio proacuteprio da existecircncia da existecircncia

dos outros e da existecircncia de Deus estando assim na origem da filosofia da

arte e da religiatildeo Assim afirma Delfim Santos ldquo[hellip]a este sentido anaboacutelico da

evoluccedilatildeo da humanidade se contrapotildee digamos um sentido cataboacutelico de

280

organizaccedilatildeo mecanizada previdente e social que impede a anguacutestia e origina

a neuroserdquo479

Foi contudo o campo da pedagogia que ocupou o maior nuacutemero de escritos

de Delfim Santos e uma das suas obras de maior focirclego O Fundamento

Existencial da Pedagogia obra inexplicavelmente caiacuteda no esquecimento dos

profissionais de educaccedilatildeo conteacutem uma reflexatildeo consistente e filosoficamente

fundamentada da problemaacutetica da educaccedilatildeo Retomando a mesma criacutetica feita

ao positivismo juriacutedico Delfim Santos critica as tentativas de erigir a pedagogia

em discurso cientiacutefico com metodologias importadas de outras ciecircncias

esquecendo a preacutevia delimitaccedilatildeo do seu acircmbito e finalidade480 Ora esta

finalidade eacute ldquoo homem vivo e em tracircnsitordquo que o pedagogo encontra diante de

si e natildeo o cadaacutever com determinada estrutura nervosa estaacutetica que nunca se

lhe oferece na sua convivecircncia com o educandordquo481

A pedagogia nunca poderaacute ser uma ciecircncia exacta porque a exactidatildeo soacute eacute

possiacutevel no domiacutenio em que domina a generalidade e a intemporalidade

Poderaacute contudo ser rigorosa pois o rigor implica particularizaccedilatildeo

especializaccedilatildeo adequaccedilatildeo plena agrave situaccedilatildeo em que cada homem se encontra

isto eacute a cada caso

A fundamentaccedilatildeo existencial da pedagogia radica pois afirma Delfim Santos

na compreensatildeo temporal da existecircncia humana assim como na estrutura da

preocupaccedilatildeo jaacute referida a propoacutesito da psicopatologia482

Partindo da existecircncia como ser-no-mundo podemos repensar o sentido do

acto pedagoacutegico em moldes radicalmente diferentes ldquoRealmente o fundo

sentido do acto pedagoacutegico pode caracterizar-se desta maneira clarificaccedilatildeo

479

Delfim Santos ldquoSentido existencial da Anguacutestiardquo Separata dos Anais Portugueses de Psiquiatria vol

IV nordm 4 Dezembro de 1952 in Obras Completas tomo II Lisboa 1982 165 480

Para Delfim Santos uma das primeiras questotildees que se colocavam agrave Pedagogia era a busca do seu

estatuto epistemoloacutegico que salvaguardasse a sua autonomia e impedisse a importaccedilatildeo de meacutetodos

oriundos de outras aacutereas do saber Ele rejeitava que a pedagogia pudesse caber no acircmbito das ciecircncias da

natureza ou no acircmbito das ciecircncias do espiacuterito A pedagogia era para ele um domiacutenio preacutevio e

possibilitante dos outros uma vez que ela diz respeito aos actos de aprendizagem pelos quais as outras

ciecircncias podem ser aprendidas Ela eacute a raiz das outras ciecircncias uma vez que tem como objecto a

aprendizagem traccedilo radical da estrutura do humano Cf Cristiana Abranches de Soveral A Filosofia

Pedagoacutegica de Delfim Santos 122-124 481

Delfim Santos ldquoFundamentaccedilatildeo Existencial da Pedagogiardquo Lisboa Graacutef Lisbonense 1946 in Obras

Completas tomo II Lisboa 1982 437 482

Deve ser correlacionada com este ponto a criacutetica que Delfim Santos dirigia agrave universidade portuguesa

como portadora dum ldquouniversalismo abstractordquo desligado da cultura portuguesa Cf Cristiana Abranches

de Soveral A Filosofia Pedagoacutegica de Delfim Santos 100

281

progressiva do tracircnsito do estar-no-mundo como situaccedilatildeo original para o

estar-no-mundo-para-alguma-coisardquo483

A pedagogia centrada no homem concreto e singular natildeo tem como objectivo a

conformaccedilatildeo do indiviacuteduo a um modelo social preacute-estabelecido mas sim levar

cada um a realizar as suas proacuteprias possibilidades ldquoO homem natildeo pode ser

tudo quanto dele os homens querem fazer Algumas vezes pode ser mais

algumas vezes pode ser menos O problema da educaccedilatildeo no seu aspecto

ideal interessado e seacuterio pretende menos o que eacute ao mesmo tempo

muitiacutessimo mais que o homem seja o homem que pode serrdquo484

Educar eacute para Delfim Santos levar o homem ao seu auto-conhecimento e ao

uacutenico absoluto da vida humana para aleacutem de toda a diversidade e

particularidade agrave autenticidade485

Propondo uma pedagogia centrada no aluno que natildeo seja apenas um

adestramento de competecircncias socialmente uacuteteis ele preconiza uma

preparaccedilatildeo do educando para aprender na existecircncia e com a existecircncia486 A

educaccedilatildeo deve ser entendida como um factor de transformaccedilatildeo em

consonacircncia com a proacutepria dinacircmica da existecircncia e natildeo a imposiccedilatildeo

estereotipada de modelos de experiecircncia

Delfim Santos parte do princiacutepio da desigualdade entre os homens levando em

conta que o mundo eacute diverso para cada tipo de homem e que muacuteltiplas formas

de vida e de pensamento determinam capacidades para diferentes tipos de

aprendizagem Este mesmo princiacutepio da desigualdade fundamentado na ideia

do homem como um ser situado levou Delfim Santos a inuacutemeras e

contundentes criacuteticas agraves reformas de ensino que em Portugal se tecircm feito por

decalque e imitaccedilatildeo de modelos estrangeiros sem atender agrave especificidade do

contexto histoacuterico e cultural portuguecircs

483

Delfim Santos rdquoFundamentaccedilatildeo Existencial da Pedagogiardquo Lisboa Graacutef Lisbonense 1946 in Obras

Completas tomo II Lisboa 1982 441 484

Ibidem 444 485

ldquoPara Delfim Santos portanto educar eacute um processo global que inclui todas as manifestaccedilotildees do

comportamento do homem e que tem como objectivo uacuteltimo a formaccedilatildeo da personalidade O homem natildeo

eacute um ser feito mas um ser que se constroacutei um ser em movimento que busca referecircncias para uma

existecircncia que lhe foi gratuitamente dada e para um mundo no qual se percebe existirrdquo Cristiana

Abranches de Soveral A Filosofia Pedagoacutegica de Delfim Santos 131 486

Sobre o sentido existencial do acto de aprendizagem cf Cristiana Soveral Ibidem 127 ldquoO acto de

aprender tem para o filoacutesofo o sentido da compreensatildeo do mundo de clarificaccedilatildeo do sentido da

existecircnciardquo A autora mostra a relaccedilatildeo estabelecida por Delfim Santos entre aprendizagem e

ldquopreocupaccedilatildeordquo na tripla dimensatildeo de preocupaccedilatildeo consigo mesmo preocupaccedilatildeo com os outros e

preocupaccedilatildeo com as coisas

282

Relativamente agrave filosofia Delfim Santos exige como acima vimos a sua

autonomia relativamente agraves diversas ciecircncias definindo-as como um saber de

caracteriacutesticas especiacuteficas que mais do que procurar soluccedilotildees descreve

problemas O pensamento filosoacutefico deve ter simultaneamente um caraacutecter

aporeacutetico e totalizante aberto para a diversidade do real e a heterogeneidade

das vaacuterias regiotildees ontoloacutegicas pensar que ele vecirc exemplarmente concretizado

na Metafiacutesica de Aristoacuteteles

Delfim Santos propotildee a filosofia como ontologia fundamental que no entanto

se diferencia inteiramente do que por tal designaccedilatildeo eacute pensado em Ser e

Tempo e nestes inequiacutevocos termos expresso por Heidegger no fim do sect4

rdquoMas agora mostrou-se que eacute a analiacutetica ontoloacutegica do Dasein que constitui a

ontologia fundamental por conseguinte que o Dasein desempenha a funccedilatildeo de

ente a que haacute que perguntar sobre o seu ser com fundamental

anterioridaderdquo487

Em Delfim Santos a ontologia fundamental natildeo designa esta primazia

ontoloacutegica da pergunta sobre o ser do Dasein mas o estudo do ser em geral

como estudo preacutevio a qualquer ciecircncia A ontologia fundamental proposta por

Delfim Santos e inspirada por Nicolai Hartmann desdobra-se por um lado no

estudo das essecircncias e na criacutetica dos princiacutepios adequados ao seu

conhecimento admitindo a heterogeneidade das vaacuterias regiotildees ontoloacutegicas

por outro lado no estudo da existecircncia categoria que remetendo sempre para

o que eacute singular e irredutiacutevel agrave essecircncia tem em Delfim Santos uma aplicaccedilatildeo

algo hesitante entre S Tomaacutes de Aquino e Heidegger ldquoCada uma das esferas

a que nos referimos exige necessariamente a adaptaccedilatildeo de conceitos

explicativos que permitam o conhecimento adequado da sua ratio essendi A

filosofia contemporacircnea tem denunciado o viacutecio que consiste em empregar

para cada uma dessas esferas princiacutepios e conceitos demasiado vastos [] E

a problemaacutetica filosoacutefica contemporacircnea pocircs em relevo a dificuldade na

predicaccedilatildeo do conceito de existecircncia Diz-se que uma pedra existe Diz-se que

um animal existe Diz-se que eu existo Diz-se que Deus existerdquo 488A esta

pergunta formulada no texto Da Filosofia de 1937 ele daacute a resposta de que

487

bdquoJetzt hat sich aber gezeigt daβ die ontologische Analytik des Daseins uumlberhaupt die

Fundamentalontologie ausmacht daβ mithin das Dasein als grundsaumltzlich vorgaumlngig auf sein Sein zu

befragende Seiende fungiertldquo SuZ GA 2 sect4 14 488

Delfim Santos rdquoDa Filosofiardquo [sn] Porto Imprensa Portuguesa 1939] in Obras Completas tomo I

Lisboa 1982 264

283

seria entatildeo de admitir diferentes conceitos de existecircncia consoante o acircmbito

da sua aplicaccedilatildeo que natildeo podem ser transpostos para fora dele ldquoO conceito

de existecircncia natildeo pode ser aplicado universalmente se de facto ele tem

sentido para qualquer uma das esferas da realidade jaacute citadasrdquo489

4 2 Vergiacutelio Ferreira

Vergiacutelio Ferreira representa entre noacutes juntamente com Delfim Santos aquele

ponto de vista que centrando-se no chamado primeiro Heidegger o incluiacutea na

corrente existencialista tendo divulgado esta interpretaccedilatildeo nalguns ensaios e

sobretudo repercutido a sua influecircncia na sua criaccedilatildeo literaacuteria 490

Vergiacutelio Ferreira apercebe nas filosofias existencialistas uma viragem em

direcccedilatildeo agrave subjectividade capaz de inspirar uma literatura centrada no sujeito

nas suas vivecircncias e nas suas iacutentimas interrogaccedilotildees e de operar uma ruptura

com as correntes do realismo e neo-realismo literaacuterios dominadas por um

paradigma de objectividade de raiz cientiacutefica assim como por preocupaccedilotildees de

intervenccedilatildeo social Esta influecircncia do existencialismo estaacute na sua obra

associada agrave viragem no curso da sua criaccedilatildeo literaacuteria e agrave ruptura com uma fase

inicial de romances inspirados pelo neo-realismo que eacute assinalada pela novela

Mudanccedila de 1949491

O facto de se tratar de um escritor que acompanha as ideias filosoacuteficas do seu

tempo e com elas dialoga com lucidez a partir do seu proacuteprio campo isto eacute da

criaccedilatildeo literaacuteria torna a sua obra literaacuteria um caso singular no acircmbito da

recepccedilatildeo do pensamento de Heidegger Contudo o interesse deste autor

reside ainda no facto de que ele manifesta enquanto ensaiacutesta e pensador uma

consciecircncia luacutecida quer das diferenccedilas entre os vaacuterios autores englobados

vulgarmente no ldquoexistencialismordquo e da dificuldade de estabelecer pontes entre

essa diversidade quer de quatildeo problemaacutetica eacute a transposiccedilatildeo de teses

filosoacuteficas para o campo da literatura492 Daiacute que reconhecendo embora o seu

489

Ibidem 264 490

Vergiacutelio Ferreira esbate as diferenccedilas entre os vaacuterios geacuteneros literaacuterios embora na sua obra possamos

distinguir os ensaios e os romances Ensaio e romance encontram-se misturados na sua ficccedilatildeo literaacuteria

uma vez que introduziu entre noacutes uma nova modalidade de romance o romance-problema onde

convergem filosofia e literatura Cf Cacircndido Martins em ldquoA Voz ensaigravestica da ficccedilatildeo de Vergiacutelio

Ferreirardquo (O Pensamento Luso-Galaico-Brasileiro Actas do Congresso III 645- 659) 491

Vergiacutelio Ferreira Mudanccedila Lisboa 1949 492

Apesar disso Vergiacutelio Ferreira natildeo deixa de repercutir na sua obra de ficccedilatildeo a partir da novela

Mudanccedila as suas recorrentes inquietaccedilotildees existencialistas temas que tambeacutem estatildeo presentes na sua obra

284

grande interesse pelo existencialismo enquanto corrente filosoacutefica natildeo se

considerasse a si mesmo um escritor existencialista e admitisse com muitas

reticecircncias a possibilidade de delimitar uma corrente literaacuteria de inspiraccedilatildeo

existencialista

Embora a proximidade de Vergiacutelio Ferreira agrave filosofia existencialista seja

normalmente considerada como de ldquoinfluecircncia francesardquo e ateacute certo ponto isso

seja verdade esta afirmaccedilatildeo deve ser mitigada pela atenccedilatildeo agrave apreciaccedilatildeo

criacutetica de Vergiacutelio Ferreira em relaccedilatildeo ao representante maior do

existencialismo francecircs no texto ldquoPara uma auto-anaacutelise literaacuteriardquo que serviu de

base a uma palestra nos Cursos de Veratildeo para estrangeiros na Universidade

de Salamanca em 1972 ldquoEm todo o caso e desde jaacute o cartesianismo de

Sartre a sua fixaccedilatildeo num estrito domiacutenio racional nunca me entusiasmaram

muito Mais do que uma discussatildeo teoacuterica da liberdade importava-me o

problema de lhe dar um destino o interrogar-me sobre o para quecirc do proacuteprio

homem Assim me interessou mais um Camus ou um Jaspers ou um

Heidegger da primeira fase e acessoriamente um Kierkegaard Mas sobretudo

[hellip] atingiu-me a expressatildeo de toda esta problemaacutetica na obra de Malrauxrdquo493

Natildeo esqueccedilamos no entanto que Vergiacutelio Ferreira conhecia em profundidade

a obra filosoacutefica e literaacuteria de Sartre como o atestam claramente o extenso

prefaacutecio (169 paacuteginas) agrave traduccedilatildeo de 1962 de O Existencialismo eacute um

Humanismo (63 paacuteginas) e que natildeo demonstra em nenhum lugar ter um

conhecimento comparaacutevel em extensatildeo das obras de Kierkegaard Jaspers ou

Heidegger provavelmente por razotildees que se prendem com os obstaacuteculos

linguiacutesticos e a escassez de traduccedilotildees portuguesas

Apesar desse conhecimento em extensatildeo e profundidade da obra de Sartre

Vergiacutelio Ferreira distancia-se criticamente do filoacutesofo francecircs em vaacuterios

aspectos essenciais manifestando a sua preferecircncia por escritores franceses

que exploraram a temaacutetica existencial e no campo estritamente filosoacutefico - que

de ensaiacutesta Cacircndido Martins sumaria essas temaacuteticas do seguinte modo ldquoA revelaccedilatildeo do ser humano a si

mesmo na condiccedilatildeo da sua finitude com todas as implicaccedilotildees que isso acarreta para a sua liberdade

terrena o milagre da vida e o absurdo da morte de Deus no destino do homem a interrogaccedilatildeo do lugar da

palavra da arte e do sagrado (que natildeo se confunde com o religioso) na existecircncia humana a relevacircncia do

tempo e da memoacuteria na vivecircncia quotidiana e na compreensatildeo da realidade circundante o confronto entre

a finitude do corpo (nossa uacuteltima companhia) e da morte e o apelo do absoluto e do transcendenterdquo Cf

Cacircndido Martins em ldquoA Voz ensaigravestica da ficccedilatildeo de Vergiacutelio Ferreirardquo O Pensamento Luso-Galaico-

Brasileiro Actas do Congresso III 658 493

Vergigravelio Ferreira ldquoExistencialismo e Literaturardquo in Espaccedilo do Invisiacutevel 2 [1ordf ed Lisboa Arcaacutedia

1976] 2ordf ed Lisboa 1991 1415

285

ele distingue sempre do literaacuterio - por Jaspers Kierkegaard e Heidegger

fazendo nos seus ensaios e no referido prefaacutecio referecircncias vaacuterias a Ser e

Tempo agrave Introduccedilatildeo agrave Metafiacutesica e agrave Carta Sobre o Humanismo que indiciam

um conhecimento dessas obras e uma compreensatildeo do seu significado no

contexto do chamado ldquopensamento existencialrdquo

421 O existencialismo e a morte de Deus

A temaacutetica da morte de Deus fortemente presente na cultura portuguesa desde

as primeiras traduccedilotildees de Nietzsche marcou a literatura portuguesa em

autores como Aquilino Ribeiro Teixeira de Pascoaes e Raul Brandatildeo autor

que Vergiacutelio Ferreira reconhece como um dos precursores do existencialismo

A temaacutetica da morte de Deus eacute igualmente um tema central nas obras de ficccedilatildeo

de Vergiacutelio Ferreira e eacute esta temaacutetica que lhe serviraacute de criteacuterio de distinccedilatildeo

entre as vaacuterias correntes do existencialismo

Assim em ldquoExistencialismo e literaturardquo texto de uma conferecircncia proferida em

1964 no Instituto Superior Teacutecnico Vergiacutelio Ferreira distingue os vaacuterios

pensadores existencialistas sobretudo pela sua posiccedilatildeo ante a morteou a natildeo

morte de Deus ldquoSe Deus estaacute vivo haacute que determinar o tipo de relaccedilotildees com

esse outro-Absoluto e ver se elas se caracterizam pela tensatildeo e a anguacutestia

tingidas de luteranismo como em Kierkegaardrdquo494

ldquoSe Deus estaacute morto haacute que determinar se tal facto foi reabsorvido num

questionar praacutetico imediato friacutegido e racional como num Sartre se tal facto

pelo contraacuterio se tonaliza por uma inquietaccedilatildeo sombria como em Heideggerrdquo495

ldquoJaacute o caso de Jaspers eacute mais ambiacuteguo De modo geral ele absteacutem-se de se

dizer crente positivamente crente mas muitas vezes aflora nos seus escritos

um verdadeiro Deus pessoalrdquo496

A superaccedilatildeo do niilismo eacute igualmente um tema central da obra de Vergiacutelio

Ferreira como o fora nos escritores portugueses acima referidos estreitamente

associada agrave necessidade de invenccedilatildeo dum novo humanismo cuja proclamaccedilatildeo

ele encontra no existencialismo em geral Contudo o humanismo de Vergiacutelio

494

Ibidem 39 495

Ibidem 39 496

Ibidem 39

286

Ferreira natildeo se satisfaz com a afirmaccedilatildeo da liberdade como um absoluto vazio

de Sartre nem com um existencialismo cristatildeo de Gabriel Marcel

De facto a exigecircncia de reconhecimento da dignidade do homem em Vergiacutelio

Ferreira aparece sobre um outro fundamento que natildeo o da crenccedila ou da

descrenccedila revelando uma proximidade agrave caracterizaccedilatildeo de Heidegger do

Dasein como o ser que leva consigo a compreensatildeo do ser ldquoE

subsequentemente se veraacute que as foacutermulas vulgares de humanismo implicam

um desconhecimento ou um pocircr de parte de facto quase sempre uma

incapacidade de divisar essa luz intermitente e erradia (e no entanto viviacutessima)

de sermos de nos sabermos sendo de reconhecermos a realidade do mundo

implantada no ser atraveacutes dessa luz que eacute nossa e que todavia como tal se

ignorardquo497

Se neste estatuto ontoloacutegico do homem Vergiacutelio Ferreira pretende fundar um

humanismo trata-se no entanto de um humanismo peculiar fundado no

reconhecimento da existecircncia humana como injustificaacutevel e gratuita mas

tambeacutem e por isso mesmo fundamento de todo o sentido498 ldquoA

injustificabilidade da vida humana (agora que nenhum poder transcendente a

inclui e redime a pode reconhecer fora dos seus humanos limites) torna

particularmente e agudamente problemaacutetica a justificabilidade da sua

destruiccedilatildeo um homem natildeo eacute uma casualidade sem importacircncia ndash eacute um

universo eacute de certo modo o universordquo499

No ensaio Quatro escritores franceses Malraux Saint-Exupeacutery Sartre e

Camus prefaacutecio agrave traduccedilatildeo portuguesa de LlsquoHomme en procegraves de Pierre

Henri Simon (1967) Vergiacutelio Ferreira retoma a temaacutetica do humanismo Aqui

ele considera a literatura existencialista francesa como podendo ser reunida em

torno da descoberta comum do homem como fonte de todo o questionar e de

toda a posiccedilatildeo de valores e portanto como abrindo a possibilidade de uma

497

Vergiacutelio Ferreira ldquoO Homem agrave sua facerdquo in O Espaccedilo do Invisiacutevel 1 [1ordf ed Lisboa Portugaacutelia 1954]

Portugaacutelia Editora sd 211 498

Ana Maria Bijoacuteias Mendonccedila em ldquoVisatildeo Antropoloacutegica em Vergigravelio Ferreira um Humanismo

impossigravevelldquo relaciona o peculiar humanismo de Vergiacutelio Ferreira com a Apariccedilatildeo do homem a si

mesmo entendida como um regresso do serndashhumano agrave sua condiccedilatildeo da qual anda a maior parte das vezes

perdido ldquoSubjaz agrave escrita vergiliana a consciecircncia de que existem uma verdade e uma autenticidade que

natildeo se revelam num plano de superficialidade nem de ldquoruigravedordquo e que tambeacutem natildeo se podem aprisionar

pela forccedila potente mas redutora da linguagem [hellip] O romance Apariccedilatildeo representa a expressatildeo maacutexima

da apresentaccedilatildeo (evidecircncia) de noacutes a noacutes mesmosrdquo (in O Pensamento Luso-Galaico-Brasileiro Actas do

Congresso II 451-152) 499

Vergiacutelio Ferreira ldquoO Homem agrave sua facerdquo in O Espaccedilo do Invisiacutevel 1 212

287

eacutetica humanista ldquo[hellip] se o Existencialismo confinou com o niilismo foi apenas

e soacute em alguns casos metodologicamente A dificuldade tantas vezes

assinalada da fundamentaccedilatildeo de uma eacutetica eacute uma dificuldade provisoacuteria e de

argumentaccedilatildeo duvidosardquo500

Vergiacutelio Ferreira neste diaacutelogo com o existencialismo francecircs daacute o seu

assentimento a este humanismo como filosofia que centra tudo no homem e

reconhece o homem como fundamento dos valores No reconhecimento da

liberdade como fonte de valores reside para Vergiacutelio Ferreira a possibilidade

de fundar uma eacutetica ainda que o conteuacutedo concreto dessa eacutetica humanista natildeo

possa ser fixado de uma forma definitiva mas se reconheccedila dependente da

histoacuteria ldquoO que flagrantemente a hora de hoje nos revela eacute o saldo de todo um

ciclo que se extingue para que o homem novo apareccedila E que natildeo se nos diga

irritantemente e absurdamente que esse novo homem seraacute o que noacutes

quisermos que ele seja e se nos impotildee assim portanto que o realizemos e nos

natildeo remetamos a uma passividade de expectativa Porque se isso eacute verdade

para o que eacute elementar eacute falso para o que eacute essencial [hellip] noacutes natildeo temos nada

a ensinar ao homem de amanhatilde excepto a perseveranccedila na sua

dignificaccedilatildeordquo501

Assim o humanismo de Vergiacutelio Ferreira coloca-se de certo modo entre o

primeiro Heidegger e Sartre na medida em que valoriza o homem

simultaneamente como lugar de todo o questionamento ontoloacutegico e como

liberdade criadora de valores

Esta posiccedilatildeo entre a ontologia do Dasein de Ser e Tempo e a eacutetica existencial

de llsquoEcirctre et le Neacuteant natildeo suscita da parte do escritor portuguecircs qualquer

tentativa de encobrimento daquilo que separa os dois filoacutesofos de facto

Vergiacutelio Ferreira tem plena consciecircncia do que separa Heidegger do

existencialismo de Sartre e sabe que o proacuteprio Heidegger rejeita a

interpretaccedilatildeo do seu pensamento como uma antropologia e como um

humanismo como o demonstra a extensa referecircncia agrave Carta sobre o

Humanismo no prefaacutecio a O Existencialismo eacute um humanismo de 1962

Referindo a definiccedilatildeo de existencialismo de Sartre segundo a qual ldquonatildeo

existindo Deus haacute pelo menos um ser no qual a existecircncia precede a

500

Vergiacutelio Ferreira rdquoExistencialismo e Literaturardquo in Espaccedilo do Invisiacutevel 2 295 501

Ibidem 289

288

essecircnciardquo Vergiacutelio Ferreira comenta logo em seguida que Heidegger recusa

qualquer aproximaccedilatildeo do seu pensamento a esta temaacutetica e distancia-se

inequivocamente da interpretaccedilatildeo de existecircncia dada por Sartre atribuindo-lhe

o sentido de ek-sistecircncia - ldquoo estar fora derdquo o ser-aiacute Para Heidegger afirma

Vergiacutelio Ferreira o Dasein natildeo poderia ser traduzido por ldquorealidade humanardquo

como o faz Sartre natildeo se trataria para o filoacutesofo alematildeo de uma definiccedilatildeo

antropoloacutegica mas apenas de uma estrutura em que radicaria a

intencionalidade da fenomenologia

Contudo Vergiacutelio Ferreira relativiza esta criacutetica de Heidegger agrave leitura

antropoloacutegica de Ser e Tempo vendo nela um modo do filoacutesofo alematildeo

salvaguardar a unidade da sua proacutepria obra ldquoAssim Heidegger evitaria a

acusaccedilatildeo de uma descontinuidade entre Ser e Tempo e a restante obra Ser e

Tempo esclarece apenas esse ser privilegiado que eacute o homem e demarcando-

lhe a sua qualidade de ek-stase de proacute-jecccedilatildeo de fuga de si estabeleceria o

ponto de partida para o que realmente a Heidegger interessaria o

conhecimento do serrdquo502

Vergiacutelio Ferreira natildeo aceitando esta auto-interpretaccedilatildeo e este distanciamento

de Heidegger em relaccedilatildeo agrave temaacutetica antropoloacutegica da Ser e Tempo afirma

ldquo[hellip] mas soacute muito problematicamente podemos entendecirc-lo a temaacutetica de Ser

e Tempo fixa iniludivelmente o que se refere agrave condiccedilatildeo humana

problematizando isso com uma tonalidade afectiva tatildeo marcada como em

muitos pensadores existencialistas que roccedilam a iacutentima confissatildeordquo503

No mesmo prefaacutecio mais agrave frente referindo-se jaacute natildeo a Ser e Tempo mas agrave

nova perspectiva do segundo Heidegger explicitada na Carta Sobre o

Humanismo Vergiacutelio Ferreira a quem esta obra ressoa ldquoestranhamenterdquo como

transpanteismo em que Deus ou os deuses satildeo identificados com o Ser

afirma ldquoAssim o homem natildeo devendo perder-se no ser subordinar-se-aacute ao

Ser seraacute o seu ldquopastorrdquo [] Do pastor ele ganha a pobreza cuja dignidade

consiste em ser chamado pelo proacuteprio Ser agrave salvaguarda da sua verdade nisso

consistiria o humanismo ldquono sentido mais forte do termordquordquo504

502

Vergiacutelio Ferreira prefaacutecio agrave traduccedilatildeo portuguesa de O Existencialismo eacute um Humanismo Lisboa

1962 39 503

Ibidem 3940 504

Ibidem 3940

289

Vendo nesta posiccedilatildeo de uma subordinaccedilatildeo do Dasein ao Ser do segundo

Heidegger um ponto de vista contraditoacuterio com o que este teria afirmado em

Ser e Tempo quando postulou que todo o sentido depende do ser-aiacute Vergiacutelio

Ferreira conclui que se trata no segundo Heidegger de um recuo

relativamente ao seu ponto de vista inicial e mais radicalmente relativamente

agrave temaacutetica da morte de Deus

Assim o pensamento de Heidegger com o qual Vergiacutelio Ferreira reconhece

afinidades eacute o ponto de vista ldquoantropoloacutegicordquo de Ser e Tempo com a primazia

reconhecida ao homem como fonte de sentido e no qual eacute possiacutevel segundo

Vergiacutelio Ferreira fundar um neo-humanismo

Este neo-humanismo de Vergiacutelio Ferreira que assume como consequecircncia

positiva da morte de Deus a redescoberta do homem procura fundar-se no que

tecircm de comum os vaacuterios existencialismos a posiccedilatildeo do homem como

fundamento

No entanto ele reconhece nuances importantes nesta posiccedilatildeo do homem

como fundamento ldquo[hellip]separam-se mais ou menos radicalmente por uma certa

questatildeo inicial e suas naturais consequecircncias Tal questatildeo poderia determinar-

se do seguinte modo se sim ou natildeo o homem estaacute irredutivelmente fechado

nos seus limites humanos Sim ou natildeo pode integrar-se numa dimensatildeo

transcendenterdquo505

Colocando ldquoo primeiro Heideggerrdquo juntamente com Sartre do lado da primeira

alternativa natildeo deixa no entanto de reconhecer entre os dois autores uma

diferenccedila no estilo do pensar que em Heidegger se desenvolve ldquonuma

inquietaccedilatildeo dolorosa e traacutegicardquo e na uacuteltima fase da sua obra ldquoaponta com

grande insistecircncia a noccedilatildeo de Ser de Ser em geral omnipresente que tem

muito a ver com a transcendecircncia de Jaspersrdquo506 Sentindo-se proacuteximo dessa

inquietaccedilatildeo inicial presente em Ser e Tempo Vergiacutelio Ferreira jaacute natildeo o segue

na sua posiccedilatildeo final que parece tender a interpretar como um regresso a um

poder transcendente e sobrenatural como uacuteltimo fundamento

505

Vergigravelio Ferreira rdquoExistencialismo e Literaturardquo in Espaccedilo do Invisiacutevel 2 38 506

Ibidem 39

290

422 A Verdade como Apariccedilatildeo e o ser-para-a-morte

Vergiacutelio Ferreira problematiza a obra de arte a partir da relaccedilatildeo entre o eu e o

mundo Esta relaccedilatildeo entre eu e o mundo natildeo eacute para Vergiacutelio Ferreira a relaccedilatildeo

entre um sujeito e um objecto - imersos no ambiente que os rodeia e de certo

modo dominados por ele eacute a obra de arte que reagindo a este ambiente pela

afirmativa ou pela negativa o constitui como ldquoum mundordquo ldquoPara que o real

sugira um mundo eacute necessaacuterio que se torne esteacuteticordquo507

A arte inscreve-se numa relaccedilatildeo profunda de noacutes mesmos com o mundo na

medida em que ldquoapontandordquo cria o objecto para que aponta e instaura um

modo de ver que rompe com a indiferenccedila da mera objectividade Uma obra de

arte instaura uma nova visatildeo que reagindo em choque sobre a nossa

sensibilidade se nos impotildee como nossa A arte revela determinados aspectos

da realidade que permaneciam ignorados ou destituiacutedos de significado

fazendo-os aparecer na sua essencialidade ldquoQuem natildeo sentiu a surpresa de

um lugar qualquer ldquoreveladordquo pela arte como os bosques e as fontes cheios de

mitos claacutessicos Tal lugar natildeo existe porque o que existe eacute algo em bruto A

arte abre-o agrave apariccedilatildeo da sua essencialidade da presenccedila de um homem nele

Quem reconhecia o mundo no mundo de Kafka antes de Kafka o revelar

Quem via os Acaacutecios antes de o Eccedila os descobrirrdquo508

A arte resgata os objectos do seu desgaste imposto pelo uso quotidiano

restituindo-lhes ldquoa sua virulecircncia humana esquecidardquo pela sua integraccedilatildeo num

ambiente insoacutelito confrontado com objectos diferentes a que natildeo estaacute

normalmente associado um objecto aiacute colocado pelo geacutenio criador do artista

faz explodir o significado usual e corrente e deixa ver o que nele jaacute tiacutenhamos

esquecido de ver

A arte eacute criaccedilatildeo natildeo por ser ldquooriginalrdquo mas porque no seu acto criador

recupera uma significaccedilatildeo originaacuteria e arquetiacutepica das coisas mostrando-as na

sua oculta verdade O mundo criado pela arte eacute assim algo que se sobrepotildee agrave

realidade na medida em que eacute um mundo humanizado legiacutevel dotado de uma

significaccedilatildeo um mundo que se impotildee como uma evidecircncia - daiacute que Picasso e

Velaacutezquez afirmassem que um dia os seus modelos acabariam por parecer-se

com os retratos por eles realizados 507

Vergigravelio Ferreira ldquoVida Arterdquo in Espaccedilo do Invisiacutevel 1 33 508

Ibidem 37

291

Questionando a natureza desta evidecircncia instaurada pela arte Vergiacutelio Ferreira

mostra que a obra de arte a impotildee como um suacutebita revelaccedilatildeo rdquoEsta evidecircncia

a que aspiramos no fundo da nossa cegueira e que um suacutebito alarme

obscuramente agraves vezes nos revela eacute a obra de arte que a abre definitivamente

ao nosso apelordquo509

Esta evidecircncia natildeo eacute a da clareza dedutiva dum sistema de ideias mas sim um

reconhecimento da verdade pelo ldquosanguerdquo expressatildeo que designa o domiacutenio

obscuro das emoccedilotildees que nos ligam agrave vida Ela eacute a suacutebita presenccedila de ldquoum

modo de ser inteirordquo em face de um mundo confuso que assim se revela na

sua verdade Contudo esta verdade eacute para Vergiacutelio Ferreira como para

Heidegger mais do que uma verdade original uma verdade originaacuteria

obscurecida pelo nosso trato quotidiano com as coisas ldquoA sua verdade eacute uma

verdade de presenccedila de comunicaccedilatildeo de origens de um modo de ser inteiro

em face de um mundo confuso A revelaccedilatildeo desse mundo agrave verdade emotiva

(que eacute uma verdade plena) que a ele nos ligava o tempo a obscurece e a

neutraliza ou o nosso descuido a nossa desatenccedilatildeo a voz de pedra que eacute o

nosso quotidianismordquo510

Vergiacutelio Ferreira parafraseando Heidegger na Carta sobre o Humanismo

sublinha esta dimensatildeo ontoloacutegica da arte e esta missatildeo do artista de

salvaguarda duma verdade originaacuteria ldquoAdaptando uma imagem de Heidegger

direi que o artista eacute o pastor do mundordquo511

Assim a verdade para Vergiacutelio Ferreira natildeo pode ser alcanccedilada na ciecircncia

nem em sistemas de ideias que pretendam um estatuto de objectividade mas

manifesta-se na obra de arte com o caraacutecter imediato de uma ldquoapariccedilatildeordquo que

nos potildee em causa a noacutes mesmos ldquoMas toda a verdade que nos potildee em causa

a noacutes mesmos eacute uma apariccedilatildeo512

A apariccedilatildeo tiacutetulo de um dos seus mais emblemaacuteticos romances [1959] eacute a

presenccedila da pessoa que nos habita e que estaacute oculta pela personalidade que

eacute investigada pela psicologia como tambeacutem pelo fazer pela vida do quotidiano

Essa suacutebita apariccedilatildeo natildeo se manifesta apenas na obra de arte mas na

existecircncia mesma irrompendo nela de modo suacutebito e irrecusaacutevel como a sua

509

Ibidem 40 510

Ibidem 40 511

Ibidem 40 512

Vergiacutelio Ferreira ldquoO Homem agrave sua facerdquo in Espaccedilo do Invisiacutevel 1 209

292

indiscutiacutevel verdade ldquoToda a verdade eacute uma apariccedilatildeo um flagrante sentirmo-

nos possuiacutedos por uma evidecircncia que como tal ignora as razotildees ainda que

atraveacutes dela noacutes julguemos ou saibamos ter chegado a ela [] A evidecircncia eacute

do sangue ndash temo-lo dito - eacute a indiscutibilidade da existecircnciardquo513

O romance a Apariccedilatildeo manteacutem como fio condutor da narrativa as ldquoapariccedilotildeesrdquo

fugazes dum eu que na maior parte do tempo se oculta sob a rotina e a

inautenticidade das convenccedilotildees e dos papeacuteis sociais e que nessa suacutebita

apariccedilatildeo ganha consciecircncia do absurdo da sua condiccedilatildeo

Entre esta apariccedilatildeo da verdade do ser- homem a si mesmo e a temaacutetica da

anguacutestia em Heidegger haacute para Vergiacutelio Ferreira uma estreita relaccedilatildeo

Diferenciando a anguacutestia da naacuteusea tematizada por Sartre o escritor portuguecircs

afirma ldquoPorque a anguacutestia eacute do homem que a si mesmo regressa que a si

proacuteprio se assume Heidegger em Que eacute a Metafiacutesica distingue bem estas

duas reacccedilotildees o enfado o aborrecimento profundo aproxima o homem das

coisas no seu conjunto ndash mas furta-nos o Nada Ora a tonalidade afectiva que

nos revela este Nada tem jaacute outro nome eacute a anguacutestia ndash anguacutestia que

invencivelmente nos faz reverter a noacutes proacutepriosrdquo514

Igualmente importante eacute para Vergiacutelio Ferreira o tema do serndashpara-a-morte em

Heidegger o homem eacute um-ser-para-a-morte e a morte eacute constitutiva da

existecircncia humana constituindo-a como radicalmente finita Existindo na maior

parte do tempo como ser perdido do mundo e absorvido pelos afazeres desse

mesmo mundo (Besorg) o indiviacuteduo decai numa existecircncia improacutepria e a

consciecircncia instantacircnea da possibilidade eminente da sua morte eacute a condiccedilatildeo

positiva duma apropriaccedilatildeo de si mesmo e duma existecircncia em autenticidade

A consciecircncia da morte assumida como a mais autecircntica de todas as

possibilidades atira a existecircncia para traacutes em direcccedilatildeo agraves possibilidades jaacute

inscritas na sua condiccedilatildeo de um projecto que jaacute estaacute sempre previamente

lanccedilado no mundo - a existecircncia preocupada consigo mesma e com as suas

possibilidades (Sorge) eacute a existecircncia que se assume apropriadamente a partir

das suas genuiacutenas possibilidades e mais radicalmente da possibilidade da

morte

513

Ibidem 209 514

Ibidem 205206

293

Assim a morte eacute o sinal por assim dizer puramente negativo do nada em

direcccedilatildeo ao qual a existecircncia humana estaacute lanccedilada mas tambeacutem o sinal

positivo da possibilidade se ser um si-mesmo autecircntico e de se existir em

propriedade Heidegger ao definir o homem como um ser para a morte viu aiacute

uma possibilidade de o homem se recuperar em autenticidade

Esta condiccedilatildeo ambiacutegua da morte eacute tambeacutem explorada por Vergiacutelio Ferreira

para o qual se por um lado ela eacute uma possibilidade de recuperaccedilatildeo da

autenticidade por outro confronta o homem com o absurdo da sua existecircncia

que depois da morte de Deus estaacute impossibilitada de recorrer a um qualquer

Absoluto que lhe sirva de justificaccedilatildeo

Esta temaacutetica heideggeriana do ser-para-a-morte eacute articulada por Vergiacutelio

Ferreira com a temaacutetica da morte de Deus que Sartre tratou a partir da ceacutelebre

afirmaccedilatildeo de Dostoiewsky rdquoSe Deus morreu tudo eacute permitidordquo Esta afirmaccedilatildeo

que em Dostoiewsky surgia precisamente no contexto de uma criacutetica ao

niilismo contemporacircneo eacute apropriada por Sartre no contexto radicalmente

distinto da sua proacutepria filosofia da existecircncia Efectivamente o ateiacutesmo eacute para

o filoacutesofo francecircs a condiccedilatildeo indispensaacutevel para a assunccedilatildeo da liberdade do

homem que diante dum ceacuteu sem Deus e sem as essecircncias imutaacuteveis do

mundo inteligiacutevel se pode finalmente tornar consciente da sua condiccedilatildeo

lanccedilado na existecircncia abandonado agrave facticidade ele estaacute condenado a ter que

se escolher a si mesmo sem auxiacutelio e sem desculpas

A temaacutetica da responsabilidade e da culpa assumem assim para este autor

uma grande relevacircncia eacutetica sendo ainda o fundamento possiacutevel para um

engagement social e poliacutetico Desta temaacutetica encontramos diversas

ressonacircncias em Vergiacutelio Ferreira ldquoPerante quem se eacute responsaacutevel pelo

cumprimento do dever Quem se nos instalou no sangue para nos condenar o

incesto ou a tortura de uma crianccedila ou matar ou Havia outrora a

ldquoconsciecircnciardquo que foi herdada de Deus Mas a consciecircncia somos noacutes e noacutes

natildeo temos autoridade para sermos em vez de noacutesrdquo515

Esta condiccedilatildeo de radical desamparo da existecircncia humana eacute salientada na

Apariccedilatildeo onde o confronto com a morte lanccedila o personagem numa tomada de

consciecircncia do absurdo da sua existecircncia diante da morte e simultaneamente

na experiecircncia do fasciacutenio do Ser ldquoA minha vida eacute eterna porque eacute soacute presenccedila

515

Vergiacutelio Ferreira Pensar Lisboa 1992 125

294

dela a si proacutepria eacute a sua evidente necessidade eacute ser eu EU esta brutal

iluminaccedilatildeo de mim e do mundo puro acto de me ver em mim este SER que

irradia desde o mais longiacutenquo jacto de apariccedilatildeo este ser-ser que me fascina e

agraves vezes me angustia de terror E todavia eu sei que ldquoistordquo nasceu para o

silecircncio sem fimrdquo516

Em Vergiacutelio Ferreira temos pois natildeo tanto a apropriaccedilatildeo sistemaacutetica de uma

das tendecircncias do existencialismo contemporacircneo como a apropriaccedilatildeo duma

estrutura comum aos diversos filoacutesofos da existecircncia assim como a exploraccedilatildeo

de certas temaacuteticas com particular ressonacircncia literaacuteria como o proacuteprio autor

tem o cuidado de sublinhar ldquoMas se eu privilegiei os temas da morte e da

liberdade (e com eles o da ldquoanguacutestiardquo ou da ldquonaacuteuseardquo e do absurdo) foi soacute

porque eacute aiacute talvez pela sua particular ressonacircncia humana que a literatura

particularmente se fixourdquo517

Para Vergiacutelio Ferreira o existencialismo possibilitou a salvaccedilatildeo do romance

pondo em acccedilatildeo personagens que jaacute natildeo tecircm propriamente o estatuto de

indiviacuteduos mas que representam a proacutepria condiccedilatildeo humana a existecircncia

humana na sua condiccedilatildeo absurda de um ser para a morte ldquoMas se o

existencialismo natildeo eacute uma pura recusa e sim um enfrentar do problema no que

lhe eacute fundamental compreendemos bem que a dissoluccedilatildeo do romance o natildeo

tenha atingido com particular gravidade Assim a personagem que noacutes vimos

dissolver-se ateacute ao ldquonovo romancerdquo natildeo se ausentou do romance existencial

Simplesmente o indiviacuteduo que a hora presente natildeo entende que no momento

presente natildeo se justifica acede a uma dimensatildeo que simultaneamente o anula

e o exalta precisamente a dimensatildeo do homem Porque o homem naquilo que

o define profundamente unifica os indiviacuteduos na sua comum condiccedilatildeo mas

assim mesmo destroacutei-os no que faz deles seres uacutenicos A unicidade de cada

um revela-se no que eacute uacutenico para todos o absoluto da sua presenccedila a sua

irredutibilidade mas aiacute mesmo estabelece uma comunidade disso que eacute

uacutenico agrave totalizaccedilatildeo do nada da pura ausecircncia que ldquoo novo romancerdquo nos

propotildee o existencialismo opotildee a comunidade de uma condiccedilatildeordquo518

Vergiacutelio Ferreira protagoniza pois entre noacutes este movimento de renovaccedilatildeo da

literatura que o existencialismo estimulou de facto estes autores dum

516

Vergiacutelio Ferreira Apariccedilatildeo [Lisboa Portugaacutelia ed 1959] Lisboa Bertrand Editora 2005 50 517

Vergigravelio Ferreira rdquoExistencialismo e Literaturardquo in Espaccedilo do Invisiacutevel 2 46 518

Vergiacutelio Ferreira ldquoDa Anguacutestia etcrdquo Espaccedilo do Invisiacutevel 1 258

295

existencialismo que um pouco simplisticamente podemos chamar ldquoateu rdquo

(Sartre e Heidegger) revelam a perspectiva comum dum mesmo olhar que se

desviou da metafiacutesica e das verdades religiosas instituiacutedas sobre a origem e o

fim do homem e que recusando qualquer horizonte de transcendecircncia foca a

sua atenccedilatildeo no horizonte dramaticamente vazio da finitude humana

Adoptando esta perspectiva pela primeira vez na sua novela de 1949

Mudanccedila Vergiacutelio Ferreira corta com os cacircnones do neo-realismo e explora daiacute

em diante nos seus romances uma subjectividade humana enfrentado a sua

radical finitude Muitos dos temas explorados na sua obra literaacuteria posterior a

1949 jaacute tinham sido aflorados na literatura portuguesa por Raul Brandatildeo que

ele reconhece como precursor mas a preparaccedilatildeo filosoacutefica de Vergiacutelio Ferreira

e o conhecimento do tratamento destes temas em Sartre (a liberdade a culpa

a responsabilidade) e Heidegger (o homem como ser-para-a-morte) permite-

lhe uma outra abordagem introduzindo na nossa literatura o ldquoromance

filosoacuteficordquo que natildeo existira jamais entre noacutes519 Assumindo a condiccedilatildeo humana

no seu absurdo confrontando-se com ele e fazendo desse enfrentamento o

tema de muitos dos seus romances estes assumem uma feiccedilatildeo

essencialmente problemaacutetica e metafiacutesica revelando a procura de uma

transcendecircncia que apenas pensa ser possiacutevel como uma apariccedilatildeo

5 O diaacutelogo com ldquoo segundo Heideggerrdquo e o problema do mito

O diaacutelogo com o chamado ldquosegundo Heideggerrdquo foi conduzido de forma original

por alguns dos pensadores que integraram o ldquogrupo de Satildeo Paulordquo com

particular destaque para Eudoro de Sousa e Vicente Ferreira da Silva

O que torna este diaacutelogo particularmente interessante eacute o facto de nesse grupo

terem estado presentes especialistas em Filologia Claacutessica como Agostinho da

Silva e Eudoro de Sousa responsaacuteveis por algumas traduccedilotildees de autores

gregos e latinos (Aristoacuteteles Platatildeo Plauto e Terecircncio)520 Agostinho da Silva

519

Sobre o significado essencialmente inovador da criaccedilatildeo literaacuteria de Vergiacutelio Ferreira cf Cacircndido

Martins ldquoA Voz Ensaigravestica da Ficccedilatildeo de Vergigravelio Ferreirardquo in O Pensamento Luso-Galaico-Brasileiro

659 ldquoNeste sentido a escrita de Vergiacutelio Ferreira contaminada por uma omnipresente voz ensaiacutestica

aproxima-se exemplarmente daquela tendecircncia diagnosticada por George Steiner Com o desequiliacutebrio

dos geacuteneros tradicionais e em particular com a crise do romance claacutessico afirma-se uma ldquoforma totalrdquo

de escrita que ndash numa inovadora tradiccedilatildeo literaacuteria e ensaiacutestica de iacutendole experimental ndash resulta da

confluecircncia de vaacuterios geacuteneros numa espeacutecie de geacutenero pitagoacutericoldquo 520

Cf Apecircndice I deste trabalho

296

levou a cabo um intenso trabalho de divulgaccedilatildeo dos autores claacutessicos nos

Cadernos de Informaccedilatildeo Cultural onde foi responsaacutevel por tiacutetulos como ldquoA

Religiatildeo Gregardquo ldquoO Pensamento de Epicurordquo ldquoO Estoicismordquo ldquoA Escultura

Gregardquo ldquoA Filosofia preacute-socraacuteticardquo ldquoSoacutecratesrdquo ldquoO Platonismordquo ldquoO Sistema de

Aristoacutetelesrdquo tendo sido ainda autor de diaacutelogos como Conversaccedilatildeo com

Diotima (VN de Famalicatildeo 1944) e do ensaio Comeacutedia Latina (prefaacutecio do

volume da sua traduccedilatildeo de peccedilas de Plauto e Terecircncio editado pelas Ediccedilotildees

de Ouro Brasil 1947)521 Agostinho da Silva escreveu tambeacutem diversos ensaios

de criacutetica literaacuteria ocupando-se de temas da poesia em liacutengua portuguesa

designadamente Camotildees e Fernando Pessoa (O Espiacuterito Santo das Ilhas

Atlacircnticas e Um Fernando Pessoa antologia de releitura)

Eudoro de Sousa especializou-se em Filologia Claacutessica e Histoacuteria Antiga em

Heidelberg Traduziu directamente do grego a Poeacutetica de Aristoacuteteles que foi

inicialmente publicada em Portugal e reeditada no Brasil em 1966 Traduziu

ainda a partir do grego As Bacantes de Euriacutepedes com introduccedilatildeo e

comentaacuterios (1974) Exerceu actividade docente na Universidade de Satildeo

Paulo na Pontifiacutecia Universidade Catoacutelica no Instituto Brasileiro de Filosofia e

na Faculdade de Filosofia de Campinas Foi ainda um dos fundadores da

Universidade de Brasiacutelia leccionando aiacute Liacutengua e Literatura Claacutessicas Histoacuteria

Antiga Filosofia Antiga e Arqueologia Claacutessica em cursos de graduaccedilatildeo e poacutes-

graduaccedilatildeo Eudoro de Sousa foi um estudioso da mitologia grega tendo

publicado entre 45 e 46 os artigos As Nuacutepcias do Ceacuteu e da Terra e A Origem

da Poesia e da Mitologia no Drama Ritual (I e II) onde laccedilou as bases da sua

filosofia da Mitologia inspirada nos trabalhos de Jung e Kereacutenyi522

Por outro lado o grupo de Satildeo Paulo contou ainda com a participaccedilatildeo de

Vicente Ferreira da Silva possuidor duma informaccedilatildeo filosoacutefica extensa e

rigorosa natildeo apenas da tradiccedilatildeo filosoacutefica como da filosofia do seu tempo

sendo uma personalidade invulgar no quadro cultural luso-brasileiro Foi ainda

fundador do Instituto Brasileiro de Filosofia que promoveu os primeiros cursos

conferecircncias congressos nacionais e internacionais de Filosofia no Brasil e da

Revista Brasileira de Filosofia a mais antiga revista de Filosofia brasileira523

521

Sobre o papel de Agostinho da Silva como divulgador da Cultura Claacutessica cf Constanccedila Marcondes

Ceacutesar em O Grupo de Satildeo Paulo 12-16 522

Cf Ibidem 17-20 523

Ibidem 20-22

297

Fazia ainda parte do grupo a poetisa Dora Ferreira da Silva tradutora de

poesia (Rilke Houmllderlin Novalis Saint John Perse San Juan de la Cruz) e

criadora de importante obra poeacutetica merecedora de diversos preacutemios literaacuterios

(Poesia Reunida Rio de Janeiro Topbooks 1999)524

O diaacutelogo entre estes autores centrou-se nos problemas relacionados com a

poesia e a mitologia e foi a partir desse horizonte temaacutetico que colheram a

influecircncia de Heidegger em particular das obras do ldquosegundo Heideggerrdquo525

5 1 Eudoro de Sousa e a Trans-objectividade

Como referimos no capiacutetulo anterior Heidegger concebe a histoacuteria como um

gestar-se temporal do Dasein e agrave luz desta concepccedilatildeo da histoacuteria conduz uma

criacutetica contundente agraves pretensotildees de uma historiografia cientiacutefica e objectiva

que traduz um modo improacuteprio ou inautecircntico de estar na histoacuteria assente

numa falsa identidade entre o modo humano e o modo dos objectos e seres da

natureza estarem no tempo

Em Eudoro de Sousa encontramos um eco deste repensar da histoacuteria a partir

da temporalidade do Dasein a historiografia cientiacutefica eacute objecto dum

questionamento que parte do princiacutepio de que nela a interpretaccedilatildeo do passado

eacute sempre e necessariamente uma projecccedilatildeo da presenccedila do presente pelo

que a antiguidade claacutessica seria objecto de inuacutemeras reconfiguraccedilotildees ao longo

da histoacuteria todas elas contendo a verdade relativa de serem meras sombras ou

projecccedilotildees do presente526

Eudoro de Sousa joga na possibilidade de ruptura com esta polaridade

passadondashpresente que remetem um para um outro como forma de

inconsciente confirmaccedilatildeo e legitimaccedilatildeo Contudo esta superaccedilatildeo da

historiografia natildeo conduz a uma compreensatildeo mais radical da histoacuteria e da

524

Ibidem 22-30 525

Como fontes comuns aos pensadores do Grupo de Satildeo Paulo destacam-se Schelling Nietzsche e

Heidegger Cf Constanccedila Marcondes Ceacutesar ldquoA Compreensatildeo heterodoxa do sagrado Agostinho da

Silva Eudoro de Sousa Vicente Ferreira da Sivardquo in Actas do Congresso O Pensamento Luso-Galaico-

Brasileiro II 18 526

Cf ldquoMais natildeo posso conceder agrave histoacuteria Uma sucessatildeo de eacutepocas natildeo assinala uma linha de progresso

(nem de regresso) mas tatildeo-soacute de singularidades caleidoscoacutepicas de antigos-distantes polarmente

associados e actuais proacuteximos actuais e antigos que definem por sua vez as singularidades das eacutepocasrdquo

Eudoro de Sousa Histoacuteria e Mito [1ordf ed Brasiacutelia 1981] in Mitologia Histoacuteria e Mito Lisboa 2004

235

298

temporalidade como estrutura da existecircncia humana como em Heidegger mas

a um movimento de saiacuteda do acircmbito da histoacuteria e da temporalidade 527

Para Eudoro de Sousa eacute possiacutevel e mesmo imprescindiacutevel ultrapassar o

horizonte da histoacuteria encontrarmo-nos no limiar dum outro tempo que jaacute natildeo a

presenccedila do presente mas a presenccedila do passado o tempo do natildeo tempo do

mito528 pois soacute do lado de fora da histoacuteria ela se desvenda na sua verdadeira

natureza

A criacutetica da historiografia cientiacutefica conduz assim Eudoro a uma compreensatildeo

da Mitologia529 que visa aceder ao mundo dos arqueacutetipos que sendo

anteriores agrave histoacuteria satildeo mais fundamental e radicalmente constitutivos do

ser-homem

Essa desocultaccedilatildeo do mito permite aceder ao sentido da histoacuteria ou seja a um

horizonte mais englobante agrave luz do qual a histoacuteria se revela como a histoacuteria

dum progressivo afastamento do sagrado A histoacuteria eacute assim - vista do lado de

laacute do mito - o acircmbito das sucessivas cisotildees que tiveram poreacutem o seu iniacutecio na

Greacutecia quando o mito deixa de ser vivido como drama ritual e passa a ser

siacutembolo e alegoria ditos pela poesia e interpretados pela filosofia

A Greacutecia arquetiacutepica eacute assim para Eudoro de Sousa a Greacutecia-preacute-heleacutenica

cujos vestiacutegios na eacutepoca claacutessica existem ainda sob a forma enigmaacutetica dos

rituais das religiotildees dos misteacuterios Assim eacute a partir desta interpretaccedilatildeo original

da cultura grega que postula o drama ritual como seu nuacutecleo fundamental que

Eudoro de Sousa vai dialogar com Heidegger diaacutelogo que eacute marcado por uma

consciecircncia expliacutecita das diferenccedilas de perspectivas

A importacircncia que ele reconhecia ao pensamento de Heidegger estaacute patente

na sua traduccedilatildeo de Das Ding530 que ele levou a cabo com a finalidade de

527

ldquoA distacircncia do antigo contrapolar deste ou daquele actual ainda natildeo eacute a lonjurandashoutrora ou outrora-

lonjura O passado-outrora o passado-lonjura estaacute sempre aleacutem do horizonte do antigo que muito ou

pouco dista do actual de todo ou qualquer presenterdquo Ibidem 234-235 528

ldquoA histoacuteria com o seu antigo-distante natildeo passa para do lado de caacute para o lado de laacute do horizonte mas

o mito passa de laacute para caacute Afinal temos um nome corrente para designar aquele passado que eacute mais do

que distante que eacute passado longiacutenquo e de outra hora Sem sabecirc-lo sem querer sabecirc-lo por julgar saber

que assim natildeo eacute a histoacuteria anda agrave mercecirc do mitordquo Ibidem 241 529

ldquoA lonjurandashoutrora pode passar de aleacutem para aqueacutem-horizonte da histoacuteria e quando passa a histoacuteria

reassume a sua feiccedilatildeo preacute-originaacuteria afeiccediloando-se antigo e actual agrave presenccedila do outrora lonjura

pseudodimensatildeo cronotroacutepica de tudo quanto eacute simboacutelico e complementar Por sua vez o simboacutelico ou

complementar soacute tem uma linguagem que adequadamente o exprime o miacutetico e o ritual o mito que eacute rito

recitado ou cantado o rito que eacute mito gesticulado ou danccediladordquo Ibidem 245 530

ldquoA Coisa de Martin Heideggerrdquo in Mitologia [1ordf ed Brasiacutelia 1980] agora em Mitologia Histoacuteria e

Mito Lisboa 2004 201-215

299

dispor de um texto em liacutengua portuguesa para os seus seminaacuterios No

prefaacutecio esta traduccedilatildeo Eudoro de Sousa natildeo daacute apenas conta da influecircncia

desse ensaio de Heidegger no seu proacuteprio pensamento (designadamente na

terminologia adoptada na revisatildeo final de Mitologia) mas manifesta ainda a

consciecircncia de que a sua proacutepria demanda visa a religiatildeo e o sagrado natildeo

podendo coincidir com a disciplina da demanda estritamente filosoacutefica que

impocircs a Heidegger a questatildeo do ser ldquoMas tatildeo claro eacute que Heidegger como

filoacutesofo tal como acima dissemos que foi e mais (ou menos) natildeo quis ser soacute

estava preocupado com o ser dos entes ndash aqui o ser da coisa Natildeo me

envergonho de confessar uma vez mais que perante ele assumo a atitude de

natildeo entendecirc-lo Troco intencionalmente Ser por Deus sem pejo de muito bem

saber que em toda a sua obra natildeo haacute passagem que permita pocircr Deus no lugar

do Serrdquo531

Explicitando melhor o que o separa de Heidegger como sendo um outro

percurso de investigaccedilatildeo Eudoro de Sousa afirma em Mitologia ldquoO seu

pensamento [hellip] move-se todo num aqueacutem - horizonte da objectividade Mas

noacutes que outra coisa natildeo fizemos nem fazemos senatildeo mitologia podemos

ousar a inversatildeo e propormos que na trans-objectividade se veja o ponto de

partida de uma anaacutebase meta-histoacuterica correndo ao inveacutes da cataacutebase

histoacuterica do pensamento objectivanterdquo532

O pensamento objectivante eacute para Eudoro de Sousa caracteriacutestico da filosofia

e da ciecircncia na medida em que elas representam a actividade ldquodia-boacutelicardquo533

(em sentido etimoloacutegico que indica divisatildeo e separaccedilatildeo) da razatildeo que

imobiliza e ldquocoisificardquo tanto o real como o pensamento ao levar a cabo a

constituiccedilatildeo de entidades abstractas ou ideias que lhe servem de suporte

Ao contraacuterio Eudoro de Sousa busca a superaccedilatildeo do pensamento categorial

para ele o horizonte da objectividade natildeo eacute um limite mas um ldquolimiarrdquo ou seja

confina de algum modo com uma passagem para a transcendecircncia e para um

passado intemporal que antecede e envolve o presente

531

Eudoro de Sousa Mitologia Histoacuteria e Mito Lisboa 2004 193 532

Ibidem 198 533

ldquo ldquoDiaboacutelicordquo tem por eacutetimo o verbo diabaacutellein que entre outros tem o significado de ldquosepararrdquo de

modo que ldquodiaboacutelicordquo quereria dizer rdquoqualidade inerente ao separadordquo que em latim pode dizer-se ad-

solutun e secretum e voltando ao grego tambeacutem se expressa pelo particiacutepio perfeito do verbo khoriacutezein

na voz meacutedio-passiva kekhorismeacutenon Um substantivo derivado do mesmo verbo khorismoacutes caracteriza

a ontologia e a gnosiologia platoacutenicas a separaccedilatildeo do mundo sensiacutevel e do mundo inteligiacutevel [hellip]rdquo

Ibidem 92

300

A trans-objectividade designa assim um pensamento totalizante e ldquosim-boacutelicordquo

534(em sentido etimoloacutegico de actividade de reuniatildeo) que poderaacute ser o

pensamento proacuteprio desse limiar onde a distinccedilatildeo categorial entre os vaacuterios

planos da realidade natildeo tenha mais lugar

Esta trans-objectividadeatildeo permite-lhe repensar a histoacuteria e a filosofia a partir

duma meta-histoacuteria que natildeo eacute como em Heidegger a histoacuteria do ser mas o

mito Trata-se com efeito de uma inversatildeo de perspectiva pois natildeo se trata de

fazer uma hermenecircutica filosoacutefica do mito mas duma hermenecircutica da histoacuteria

da cultura e ateacute certo ponto tambeacutem da histoacuteria da filosofia a partir dos mitos

ou mais rigorosamente do miacutetico de que o mito eacute apenas uma das

manifestaccedilotildees

5 2 O sagrado e o significado do drama ritual

Para compreender papel heuriacutestico do mito (ou do miacutetico) em Eudoro de Sousa

eacute preciso entender o que sob esse termo se designa - de facto natildeo se trata

dos mitos homeacutericos nem dos poemas de Hesiacuteodo mas de algo que os

antecedeu como sua esquecida origem ldquoPreacute-heleacutenica a mitologia grega eacute

mitologia de uma natureza anterior agrave natureza e por conseguinte a mitologia

de um homem anterior ao Homem Estudaacute-la consistiria em descobrir que

seres ancestrais a partir dela nos falamrdquo535

Uma das vias mais fecundas de aproximaccedilatildeo agrave religiosidade preacute-heleacutenica

tomada por Eudoro de Sousa foi a meditaccedilatildeo sobre o culto dos misteacuterios - a

memoacuteria de uma religiosidade ancestral que permaneceu oculta e guardada na

Greacutecia claacutessica como um saber esoteacuterico reservado aos iniciados

E eacute exactamente esse caraacutecter iniciaacutetico que Eudoro de Sousa interroga como

chave de acesso a uma religiosidade que na Greacutecia claacutessica permanece como

um corpo estranho ao luminoso universo dos deuses oliacutempicos Agrave pergunta

ldquoporque seria proibido divulgar o que se passava nas cerimoacutenias rituais de

celebraccedilatildeo do misteacuterio de Elecircusisrdquo Eudoro de Sousa daacute a surpreendente

resposta de que a razatildeo de tal proibiccedilatildeo residia simplesmente no facto de que

534

ldquoDo ldquosimboacutelicordquo que de acordo com o eacutetimo symballein ou symballesthai significa o ldquocojadorrdquo o

ldquounido a partir de um soacute arremessordquo [hellip]rdquo Ibidem 107 535

Eudoro de Sousa Dioniacutesio em Creta [1ordf ed Satildeo Paulo 1973] agora em Dioniacutesio em Creta e Outros

Ensaios Lisboa 2004 113

301

nada haveria para contar Natildeo se trataria de transmissatildeo de ensinamentos

mas da vivecircncia duma experiecircncia cujo nuacutecleo de significado se trata de

aproximar pela danccedila536 os iniciados fariam a experiecircncia corporal da unidade

entre o divino o humano e a natureza - essa experiecircncia seria a de uma

excessividade caoacutetica em que os trecircs planos eram anulados atraveacutes da acccedilatildeo

Esta vivecircncia do sagrado era a vivecircncia de um tempo originaacuterio e originante em

que os deuses ainda natildeo tinham nome nem se distinguiam das forccedilas da

natureza e em que os homens entravam em comunhatildeo com essas forccedilas

atraveacutes do corpo do ritmo e da danccedila A vivecircncia originaacuteria do sagrado era

pois a vivecircncia integrada do mito e do rito quando estes se manifestam

solidariamente no canto e na danccedila e entre a palavra e o gesto natildeo havia

fissura nem distacircncia

Todavia o gesto primitivo que celebrava o sagrado natildeo era o gesto humano

mas a manifestaccedilatildeo das forccedilas trans-humanas coacutesmicas e divinas que no

drama ritual se apossavam do homem e instauravam um teatro sagrado em

que o divino o humano e a natureza eram indiscerniacuteveis

Esta vivecircncia originaacuteria do sagrado tem para Eudoro de Sousa um significado

trans-histoacuterico pela dupla razatildeo de que ela se refere a uma experiecircncia

universal numa era anterior agrave histoacuteria e porque que natildeo eacute simplesmente uma

experiecircncia confinada ao passado mas ela ainda envolve e alimenta a histoacuteria

como seu fundamento impensado537

Na perspectiva de Eudoro de Sousa esta experiecircncia de plena integraccedilatildeo

ontoloacutegica pode funcionar no interior da histoacuteria positivamente como

possibilidade esquecida permanentemente (embora natildeo facilmente)

actualizaacutevel na arte na sexualidade e na religiatildeo538 ou pelo contraacuterio pode

funcionar negativamente como objecto de uma incessante rejeiccedilatildeo

Foi contudo nesta possibilidade negativa que se estabeleceu o ser histoacuterico

do homem se essa experiecircncia tornava presente o poder genesiacuteaco dos

536

Ibidem 112 537

ldquoO paradoxal eacute aqui isto mesmo a presenccedila do agora faz-se presente pela presenccedila do outrora mas

presente que se faz presente pela ausecircncia do que no outrora eacute mais presente Esta hora soacute eacute esta quando

de vista se natildeo perdeu a outra Presente faz-se presenccedila ao soar nesta hora dos homens a outra hora que

eacute a dos deuses sem que o presente possa ouvi-laldquo Mitologia Histoacuteria e Mito 243 538

A criacutetica agraves religiotildees instituiacutedas e uma compreensatildeo heterodoxa do sagrado satildeo traccedilos comuns do

chamado ldquoGrupo de Satildeo Paulordquo Cf Constanccedila Marcondes Ceacutesar em rdquoA compreensatildeo heterodoxa do

sagradordquo Actas do Congresso O Pensamento Luso-Galaico-Brasileiro 18

302

deuses foi a negaccedilatildeo e a recusa desse poder que instituiu o homem histoacuterico -

e assim eacute a partir dessa recusa que podemos compreender o homem e o seu

destino tal como se manifestam na histoacuteria O homem histoacuterico eacute um ser que

diz natildeo que opotildee uma firme recusa a esse poder arrebatador dos deuses e se

quer pocircr a si mesmo como auto-criaccedilatildeo ldquoHistoacuteria eacute do homem que se recusa a

viver em mundo que natildeo seja seu ou porque o faccedila ou porque o penserdquo539

Assim Eudoro de Sousa produz um discurso antropoloacutegico fundado numa

dialeacutectica da negaccedilatildeo o homem eacute um ser que diz natildeo que rejeita o em-si do

espiacuterito que se manifesta na excessividade caoacutetica e genesiacuteaca do sagrado

para ambicionar o ser-para-si como subjectividade criadora O ser-para-si do

espiacuterito como subjectividade soacute pode afirmar-se por negaccedilotildees sucessivas pela

permanente rejeiccedilatildeo do outro na figura da natureza na figura dos deuses na

figura das suas proacuteprias criaccedilotildees histoacuterico-culturais

Esta negatividade dialeacutectica que incessantemente alimenta o progresso

histoacuterico fonte de permanente dor e inquietaccedilatildeo natildeo eacute poreacutem explicitada por

Eudoro com as categorias da dialeacutectica hegeliana mas elucidada a partir do

mito biacuteblico da queda e da expulsatildeo do homem do paraiacuteso Com efeito esta

dialeacutectica da negaccedilatildeo pela qual o homem histoacuterico ambiciona fazer-se a si

mesmo e criar o seu proacuteprio destino natildeo eacute a marcha do espiacuterito em direcccedilatildeo

ao Absoluto e agrave Liberdade mas a queda e a degradaccedilatildeo que alcanccedilaram a

sua culminacircncia na era da teacutecnica em que a ambiccedilatildeo do homo faber natildeo tem

limites e visa subjugar todas as coisas naturais reconstruindo a terra de acordo

com o seu projecto tecnoloacutegico triunfante

Transformando a natureza em ldquocoisasrdquo manufacturaacuteveis e utilizaacuteveis o homem

potildee-se a si mesmo como objecto desse poder manufacturante e destruidor

opondo uma firme recusa agrave sensibilidade e ao proacuteprio ser corpoacutereo - a

degradaccedilatildeo ontoloacutegica do homem da teacutecnica eacute o produto final desta dialeacutectica

da negaccedilatildeo

Retomando temas fundamentais da filosofia heideggeriana como a metafiacutesica

da subjectividade e a teacutecnica como Gestell Eudoro de Sousa sujeita-os a uma

reinterpretaccedilatildeo de acordo com a sua perspectiva da ldquotrans-objectividaderdquo540

539

Eudoro de Sousa Mitologia Histoacuteria e Mito 255 540

O tema da objectividade e da trans-objectividade com os respectivos horizontes devem ser

correlacionados com o diaboacutelico e o simboacutelico o primeiro remetendo para o mundo petrificado das

ldquocoisasrdquo e do pensamento categorial o segundo remetendo para um portal para o passado intemporal que

303

para a qual natildeo eacute o esquecimento do ser mas a recusa da experiecircncia

primordial do sagrado como unidade ontoloacutegica originaacuteria que se apresenta

como fonte de inesgotaacutevel inteligibilidade

A rejeiccedilatildeo da unidade ontoloacutegica primordial que anima a histoacuteria eacute designada

metaforicamente por Eudoro de Sousa como ldquotentaccedilatildeo dia-boacutelicardquo que sendo

uma tentaccedilatildeo humana eacute todavia tambeacutem uma ocultaccedilatildeo e uma retirada dos

Deuses Metaforicamente designada de ldquoexplosatildeordquo esse estilhaccedilar da unidade

primordial lanccedilou o mundo das coisas na sua objectividade dia-boacutelica

Natildeo eacute assim na filosofia nem na poesia que se pode vislumbrar uma

esperanccedila de salvaccedilatildeo mas numa iniciativa dos proacuteprios deuses na qual

Eudoro de Sousa parece depositar mais confianccedila do que a que animaria

Heidegger na ceacutelebre entrevista ao Der Spiegel ldquoPosto no trans-objectivo

tenho mesmo que admitir a eventualidade de ser jogado pelo Real o Absoluto

o Ser o Deus em cuja apariccedilatildeo Heidegger via a uacutenica possibilidade de

salvaccedilatildeo Mas a expectativa angustiada do filoacutesofo natildeo me desinquieta nem

me angustia Jaacute desci aos infernos da objectividade Deste saiacute pelo

reconhecimento de laacute ter descido Natildeo os temo mais Em Heidegger a acircnsia de

salvaccedilatildeo eacute soacute a salvaccedilatildeo dos homens que em multidatildeo se mantecircm nos

infernos do objectivismo sem dele poderem desgarrar-se Que se lhes haacute-de

fazer se natildeo resistirem ao Tentador Quanto a noacutes nada podemos fazer Deus

pode Creio que o faraacute se por eles mesmos atravessando a crise dela se

aperceberem como criserdquo541

Se Eudoro de Sousa reconhece explicitamente a sua diacutevida em relaccedilatildeo a

Heidegger referindo que os capiacutetulos finais de Mitologia se inspiraram na

interpretaccedilatildeo do ensaio heideggeriano sobre ldquoa coisardquo ele natildeo deixa de

tambeacutem afirmar no prefaacutecio agrave traduccedilatildeo de Das Ding que partem de pontos de

vista totalmente distintos o filoacutesofo alematildeo procurando o ser da coisa na

proximidade ele mesmo procurando o ser que se revela na Lonjura e no

outrora542 Onde Heidegger diz ldquocoisardquo porque ainda estaria preso ao plano da

objectividade em que se move o pensar categorial da filosofia Eudoro de

envolve e abarca o presente Cf Eduardo Abranches de Soveral em Pensamento Luso-Brasileiro - estudos

e ensaios Lisboa 1996 216 541

Eudoro de Sousa Mitologia Histoacuteria e Mito 198 542

ldquoA Atmosfera de A Coisa eacute a de um interrogar insistente sobre o ser da ldquoproximidaderdquo enquanto da

minha parte o ser do que quer que seja natildeo se revela senatildeo na Lonjura e no Outrora Soacute por isso dir-se-

ia que partimos de pontos de vista diametralmente opostos mas de certo modo chegamos a conclusotildees

que atentamente examinadas natildeo satildeo das que natildeo se possam conciliarrdquo Ibidem 191

304

Sousa pensa siacutembolo porque o cacircntaro eacute a presenccedila da libaccedilatildeo ritual ora o

ritual desenrola-se precisamente nesse plano onde jaacute natildeo haacute objectos nem

coisas - eacute o plano da trans-objectividade ou do simboacutelico543

A possibilidade de o homem recuperar a unidade ontoloacutegica originaacuteria reside na

religiatildeo poreacutem na religiatildeo entendida como ritual isto eacute como representaccedilatildeo

dramaacutetica que celebra a unidade do divino do humano e da natureza ldquoReligiatildeo

eacute representaccedilatildeo dramaacutetica E a representaccedilatildeo consiste toda ela na

construccedilatildeo de um daqueles triacircngulos do simboacutelico e do complementar

contanto que se ponha no veacutertice superior um deus algum deus ou o proacuteprio

Deusrdquo544

O triacircngulo do simboacutelico subjacente ao drama ritual evoca explicitamente a

Terra o Ceacuteu os Divinos e os Mortais da quadratura (Geviert) de Heidegger

Eudoro de Sousa pensa o drama ritual como desvelamento da unidade e da

co-pertenccedila das vaacuterias regiotildees ontoloacutegicas e como jogo de espelhos pelo qual

elas remetem umas para outras ldquoMas natildeo se julgue ignorarmos noacutes que tais

consequecircncias nos levam fatalmente a um ponto em que Heidegger insistiu

em seu ensaio sobre ldquoA Coisardquo Natildeo importa que aiacute estivesse um quadrado e

aqui um triacircngulo Podemos imaginar o nosso triacircngulo inscrito num ciacuterculo e

que ele gire em torno dum eixo perpendicular ao centro Natildeo teremos a

circulatura do quadrado mas a do triacircngulo O resultado eacute o mesmo a

divindade espelha-se na natureza e na sensibilidade a natureza na

sensibilidade e na divindade a sensibilidade na divindade e na naturezardquo545

Este triacircngulo - inspirado em das Geviert (a quadratura) de Heidegger - que

deveremos imaginar como girando em torno dum eixo perpendicular ao centro

funciona como arqueacutetipo destruidor da metafiacutesica permitindo pensar (para

aleacutem e para aqueacutem dela) o desvelamento do ser como experiecircncia duma

unidade ontoloacutegica originaacuteria

Assim o ritual institui o triacircngulo do simboacutelico que mistura e unifica os vaacuterios

planos ontoloacutegicos ldquoA divindade estaacute na natureza e na sensibilidade a

natureza na sensibilidade e na divindade a sensibilidade na divindade e na

naturezardquo546 e as trecircs regiotildees ontoloacutegicas remetendo umas para as outras

543

Ibidem 197 544

Ibidem 322 545

Ibidem 324325 546

Ibidem 325

305

criam essa experiecircncia do sagrado em que ldquoas coisasrdquo perdem o seu valor

instrumental para converterem em hierofanias - presenccedilas do sagrado

Contudo Eudoro de Sousa natildeo deixa de sublinhar no seu prefaacutecio agrave traduccedilatildeo

de Das Ding que a sua leitura do texto heideggeriano eacute percorrida por uma

intencionalidade distinta (embora compatiacutevel) com aquele que presidiu agrave

elaboraccedilatildeo do ensaio pelo filoacutesofo alematildeo Com efeito Heidegger cujo

pensamento de move numa dimensatildeo ldquoaqueacutem da objectividaderdquo visaria

encontrar a linguagem capaz de desvendar as coisas no seu ser retirando-as

do domiacutenio da objectividade sem contudo poder romper como o limite desse

horizonte da objectividade

Eudoro de Sousa num complexo jogo de linguagem onde proximidade e

distacircncia assumem um sentido metafoacuterico e equiacutevoco sublinha esta contenccedilatildeo

de Heidegger (a da proacutepria filosofia) que o impede de se colocar nesse limiar

da trans-objectividade a partir da qual eacute possiacutevel a ldquoproximidade sem distacircnciardquo

da Lonjura e do Distante ldquoAliaacutes relendo A Coisa depois de ter escrito (um

primeiro esboccedilo) e pensado o que pensei e escrevi julgo aperceber-me de que

precisamente na trans-objectividade eacute que se desenrola aquele drama da

busca da ldquocoisidade da coisardquo busca tambeacutem ou principalmente da

ldquoproximidaderdquo perdida no ldquosem distacircnciardquo E por isso porque Heidegger

procura descobrir o ser da ldquoproximidaderdquo indirectamente isto eacute por meio do ser

do que estaacute na ldquoproximidaderdquo no ser da ldquocoisa enquanto coisardquo lhe era vedado

o falar em trans-objectividaderdquo547

O grande vulto que no seu proacuteprio ensaio Mitologia assume a ldquometaforese do

teatrordquo natildeo existia pois em Das Ding Contudo no pensamento de Heidegger

os preacute-socraacuteticos teriam um papel de algum modo simetricamente relevante

Este facto confirmaria - na perspectiva de Eudoro de Sousa - que Heidegger se

move num horizonte aqueacutem da objectividade ldquoO seu pensamento como se

verifica pela atracccedilatildeo que sobre ele exerceram os preacute-socraacuteticos move-se todo

num aqueacutem horizonte da objectividaderdquo548 ou seja no interior do horizonte da

histoacuteria da filosofia

Na mira de Eudoro de Sousa estaacute a linguagem buscando o ldquoretorno circular agrave

sua originalidade originaacuteriardquo ao drama ritual onde se representam e

547

Ibidem 197 548

Ibidem 198

306

apresentam os dramas da trans-objectividade Poreacutem falar ldquoa partir da

intimidade do triacircngulordquo eacute reinstaurar a linguagem do simboacutelico para

ultrapassar um limiar para aceder ao terceiro e uacuteltimo horizonte ao Grande

Silecircncio da Noite Cosmogoacutenica549 ao ldquoUltra-ser que Aacutelvaro de Campos numa

das suas Ficccedilotildees de Interluacutedio ousa mencionar mas como que terrificado

diante do ldquo Mysterium Tremendum550

Nesta apologia do regresso a uma religiosidade miacutetica e ritual Eudoro de

Sousa protagoniza e fundamente teoricamente uma tendecircncia de alguns dos

pensadores portugueses do princiacutepio do seacuteculo como Teixeira de Pascoaes

Raul Brandatildeo ou Fernando Pessoa para reagirem agrave experiecircncia do niilismo por

afirmaccedilatildeo do sagrado e duma experiecircncia religiosa ldquoem regime nocturno de

consciecircnciardquo Agrave margem do cristianismo instituiacutedo como religiatildeo histoacuterica e

fundamentado numa longa tradiccedilatildeo literaacuteria e metafiacutesica estes autores

preconizam o regresso a um cristianismo miacutetico e potildeem a nu o nuacutecleo

irracional da crenccedila religiosa De facto estes autores reagem ao racionalismo

moderno na vertente positivistas que entatildeo dominava as instituiccedilotildees e a

filosofia em Portugal afirmando contra este primado da racionalidade teacutecnica e

cientiacutefica a irracionalidade do mito e da poesia

Se para a fundamentaccedilatildeo deste ponto de vista Eudoro de Sousa recorre a

Heidegger eacute no entanto preciso ter presente que o desvelamento do ser em

Heidegger se daacute sempre na linguagem e acima de tudo na linguagem poeacutetica

entendida como uma poiesis do sentido natildeo havendo aiacute lugar para a cisatildeo

entre mito e logos ou entre a razatildeo e o irracional

Eudoro apela ao regresso a uma experiecircncia de unidade ontoloacutegica vivenciada

atraveacutes do corpo pela acccedilatildeo ritual pela experiecircncia eroacutetica e pela experiecircncia

esteacutetica experiecircncias da excessividade caoacutetica excedentaacuterias da razatildeo que

por isso mesmo configuram uma transgressatildeo551 Efectivamente para Eudoro

de Sousa apenas essas experiecircncias da ordem do excesso e da transgressatildeo

nos podem aproximar do sagrado isto eacute da origem o mito ainda eacute apenas

esse ldquoacenar da Divindaderdquo que envia uma mensagem cifrada onde a

Excessividade caoacutetica mal contida permanece oculta

549

Ibidem 195 550

Ibidem 136 551

Ibidem 165

307

O comentaacuterio de Eudoro de Sousa a Houmllderlin e a Essecircncia da Poesia

intitulado os ldquoacenantes mensageiros da divindaderdquo ilustra de forma notaacutevel

como a partir do texto heideggeriano Eudoro de Sousa envereda numa

direcccedilatildeo que jaacute natildeo eacute a do pensar mas a dos rituais iniciaacuteticos como via de

passagem de um limite-limiar552

Embora esta separaccedilatildeo entre mito e razatildeo tematizada por Eudoro de Sousa

natildeo tenha qualquer lugar no pensamento de Heidegger eacute um facto que o

diaacutelogo com o filoacutesofo alematildeo desempenhou um importante papel na geacutenese

do pensamento de Eudoro de Sousa quer nos momentos em que se lhe

contrapocircs quer nos outros em que de perto o seguiu

A luacutecida consciecircncia hermenecircutica de Eudoro de Sousa fica patente nos

comentaacuterios que ele faz agrave sua proacutepria traduccedilatildeo de Das Ding onde deixa claro

de que modo a sua proacutepria perspectiva determinou algumas opccedilotildees de

traduccedilatildeo como a de Vorstellung ldquo[hellip] este substantivo derivado de vors-

stellen e que literalmente se traduziria por ldquopocircr ou colocar diante ou defronte ardquo

sugere conceitos de ldquoobjectordquo e de ldquoobjectividaderdquo Mas noacutes vertemos

ldquoVorstellungrdquo em ldquorepresentaccedilatildeordquo ldquoRepresentaccedilatildeordquo natildeo eacute ldquore-apresentaccedilatildeordquo

mas a mais concreta a mais viva ldquopresentaccedilatildeordquo pela que se ldquoapresentardquo se

faz ldquopresenterdquo o que o natildeo era Eis porque pensando em portuguecircs ou em

qualquer das liacutenguas romacircnicas mais difundidas quase diria que a palavra

evoca e provoca a imagem do dramaacutetico e com ela a de uma gnosiologia que

pouco ou nada tem a ver com a objectividade Daiacute que possamos falar dos

dramas que ocorrem na trans-objectividade de que natildeo somos noacutes sujeitos de

objectivaccedilatildeo nenhuma ou soacute o somos por delegaccedilatildeo de sujeitos (deuses) que

de modo nenhum o satildeo de objectos [hellip]rdquo553

552

ldquoOs deuses-acenantes soacute acenam porque Deus os criou mudos acenam mudos aspectos de Deus mas

no aceno natildeo estaacute nem sequer cifrado o Ser de Deus A fulguraccedilatildeo do aceno tem de ser Ofuscante

sempre e de cada vez que fulgure ilumina um mundo ilumina como se a proacutepria iluminaccedilatildeo fosse

mundo Mas a luz emanada da Origem soacute nos deixa ver o originado a Origem natildeo se deixa ver por nossos

olhos ofuscados O homem que vive e pensa na trans-objectividade tem de aprender a morte tem de

esperar a uacuteltima fulguraccedilatildeo - e essa jaacute natildeo seraacute Ofuscanterdquo Ibidem 157 553

Eudoro de Sousa Mitologia Histoacuteria e Mito 196197

308

5 3 Vicente Ferreira da Silva e o ser como Fascinador

Vicente Ferreira da Silva manteve intenso diaacutelogo com os pensadores

portugueses Agostinho da Silva Eudoro de Sousa e Delfim Santos partilhando

com os dois primeiros a mesma compreensatildeo heterodoxa do sagrado

Apesar de natildeo ser como os dois portugueses filoacutelogo interessou-se a fundo

pela mitologia grega tendo dialogado com Eudoro de Sousa sobre Otto e

Kereacuteny partilhando ainda com este as mesmas referecircncias da filosofia alematilde

como Heidegger Hegel Schelling e Nietzsche554

Na perspectiva de Vicente Ferreira da Silva a Heidegger teria cabido a tarefa

de tornar inteligiacutevel o contributo da filosofia alematilde anterior fixando um novo

conceito da humanitas do homem Efectivamente Heidegger teria vindo alterar

radicalmente toda a reflexatildeo antropoloacutegica demonstrando na sequecircncia da

linhagem de pensadores atraacutes referida que o homem eacute ele mesmo um produto

da linguagem e da mitologia A obra fundamental de Heidegger para repensar

esta questatildeo seria a Carta Sobre o Humanismo onde a dignidade do homem eacute

afirmada claramente como residindo natildeo na sua racionalidade mas na sua

vizinhanccedila ao ser

Nos seus comentaacuterios agrave Carta sobre o Humanismo Vicente expressa o mesmo

ponto de vista dominante na Europa do seu tempo de que esta obra marcaria a

viragem de Heidegger relativamente agrave perspectiva de Ser e Tempo e mais

radicalmente um corte decisivo com a tradiccedilatildeo metafiacutesica racionalista e

humanista

Referindo-se a esta obra de Heidegger Vicente Ferreira da Silva salienta que

nela o homem eacute pura realizaccedilatildeo das suas possibilidades que natildeo dependem

poreacutem dele mas dum princiacutepio fundante original e anterior - ldquoo poder

projectante do proacuteprio serrdquo ldquoO homem como princiacutepio derivado e subordinado

supotildee como seu fundamento um princiacutepio original e anterior Este princiacutepio se

compotildee das ldquodecisotildeesrdquo que transcendem e envolvem o princiacutepio humano

Como sabemos o homem eacute traccedilado em seu proacuteprio poder-ser por um poder

que natildeo se confunde com a iniciativa da substacircncia finita A abertura de um

554

Cf Constanccedila Marcondes Ceacutesar Constanccedila Marconder Ceacutesar ldquoA compreensatildeo heterodoxa do

sagradordquo in O Pensamento Luso-Galaico-Brasileiro II 18

309

mundo eacute obra do poder projectante do proacuteprio Ser em sua liberdade

arrebatadora e transcendenterdquo555

Igualmente influenciado pela presenccedila da poesia e dos mitos na cultura luso-

brasileira e em particular pelo interesse que estas temaacuteticas despertavam no

grupo de Satildeo Paulo Vicente procura fundar no segundo Heidegger uma nova

compreensatildeo dos mitos e reciprocamente a partir dos mitos relecirc Heidegger

reinterpretando de forma original o seu pensamento

Em Introduccedilatildeo agrave Filosofia da Mitologia Vicente Ferreira Silva pretende mostrar

de que modo a destruiccedilatildeo da subjectividade levada a cabo por Heidegger pode

contribuir para uma reformulaccedilatildeo de uma doutrina da mitologia O homem eacute

agora o receptor da realidade em que tanto o receptor como o receptado satildeo

consignados por um poder transcendente a ldquoLichtung des Seinsrdquo Os vaacuterios

ldquojogos histoacuterico-culturaisrdquo satildeo o jogar de um jogo que sugestiona e fascina e a

aproximaccedilatildeo ao ser eacute uma ex-posiccedilatildeo acompanhada por uma sintonizaccedilatildeo

emocional e natildeo apenas um desenhar de essecircncias ou visualizar de

representaccedilotildees ldquoA fascinaccedilatildeo eacute a essecircncia uacuteltima do ente compreendido

como realidade des-coberta pela fascinaccedilatildeo A experiecircncia do Ser dar-se-ia no

adentrar-se no intimizar-se com a forccedila troacutepica da Fascinatiordquo556

Assim Vicente Ferreira da Silva empresta ao tema heideggeriano da

compreensatildeo do ser uma dimensatildeo emocional e pulsional compreendendo-a

como fascinaccedilatildeo O Ser eacute para Vicente Ferreira da Silva o Fascinador e as

diversas eacutepocas histoacutericas satildeo diversos regimes de fascinaccedilatildeo que seduzem e

arrebatam o homem na construccedilatildeo de novos mundos e tipos de civilizaccedilatildeo

Nas suas leituras do Romantismo alematildeo (Novalis) Vicente descobre a

possibilidade de uma fundaccedilatildeo poeacutetica da existecircncia e em Houmllderlin e a

essecircncia da poesia de Heidegger recolhe a ideia da identidade entre mito e

poesia a poesia originaacuteria eacute para Vicente a mitologia linguagem dos deuses

decifrada pelos poetas que desvenda as diferentes manifestaccedilotildees do Ser em

cada um dos grandes ciclos histoacuterico-civilizacionais

O ser eacute um Fascinador e a consciecircncia miacutetica eacute a consciecircncia fascinada pelas

diferentes manifestaccedilotildees do ser e da verdade tendo esta consciecircncia

555

Vicente Ferreira da Silva Ideias para Um Novo Conceito de Homem Satildeo Paulo Instituto Brasileiro

de Filosofia Separata da Revista Brasileira de Filosofia vol 1 fasc 4 Outubro-Dezembro 1951 36 556

Vicente Ferreira da Silva ldquoIntroduccedilatildeo agrave Filosofia da Mitologiardquo Revista Brasileira de Filosofia nordm 20

1955 in Dialeacutectica das Consciecircncias e outros ensaios Lisboa 2002

310

conhecido vaacuterias formas desde a consciecircncia auroral dos povos primitivos em

que a acccedilatildeo humana soacute tem sentido no interior do rito e da teofania ateacute agrave

antropofania cristatilde que suporta a eacutepoca actual do humanismo e da teacutecnica557

A crise actual do humanismo eacute interpretada por Vicente como o fim de um ciclo

histoacuterico centrado no predomiacutenio do logos e como possibilidade de regresso a

uma experiecircncia vital mais proacutexima da consciecircncia miacutetica originaacuteria dos povos

aurorais de que Rilke Lawrence e Guimaratildees Rosa se teriam jaacute feito

anunciadores no campo da literatura e da poesia

Sendo Vicente Ferreira da Silva um pensador profundamente original cujo

diaacutelogo com Heidegger teve um papel fundamental na elaboraccedilatildeo teoacuterica das

temaacuteticas aqui indicadas este autor seraacute analisado em capiacutetulo proacuteprio como

caso singular e particularmente significativo duma ldquotraduccedilatildeo apropriadardquo

6 Ontologia e finitude

A temaacutetica da finitude a partir da qual Gerd Bornheim e Ernildo Stein fazem a

leitura de Heidegger desenha-se para estes autores como um problema

filosoacutefico da contemporaneidade imposto pelas transformaccedilotildees da cultura

europeia apoacutes a Primeira Guerra Mundial mas que teve a sua geacutenese na

filosofia do idealismo alematildeo e eacute nas relaccedilotildees de Heidegger com a

fenomenologia e o idealismo alematildeo que se esforccedilam por esclarececirc-lo

A influecircncia de Kant no pensamento filosoacutefico brasileiro analisada no capiacutetulo

anterior natildeo eacute certamente alheia ao facto de esta problemaacutetica da finitude e de

a possibilidade da ontologia terem sido colocadas no centro da investigaccedilatildeo

destes prestigiados comentadores do pensamento de Heidegger

6 1 Gerd Bornheim e a diferenccedila ontoloacutegica

611 Os fundamentos existenciais do filosofar

Em 1961 Gerd Bornheim redigiu a tese para o concurso de livre-docecircncia

Motivaccedilatildeo Baacutesica e Atitude Originante do Filosofar558 onde discute a origem da

557

ldquoO sagrado eacute para Vicente a irrupccedilatildeo de um regime de fascinaccedilatildeo que nos leva aleacutem de noacutes mesmos

abrindo-nos a aspectos insuspeitados e espantosos do nosso existirrdquo Constanccedila Marcondes Ceacutesar A

compreensatildeo heterodoxa do sagrado in O Pensamento Luso-Galaico-Brasileiro II 30

311

atitude filosoacutefica radicando-a na existecircncia concreta do homem como ser-no-

mundo em diaacutelogo com Husserl Jaspers e Heidegger

Neste ensaio posteriormente editado sob o tiacutetulo Introduccedilatildeo ao Filosofar - O

Pensamento Filosoacutefico em Bases Existenciais Bornheim aborda a evoluccedilatildeo

dialeacutectica duma atitude filosoacutefica espontacircnea para uma atitude filosoacutefica

consciente de si mesma e decidida a um compromisso com a filosofia

procurando surpreender o sentido desta ldquodecisatildeordquo pela filosofia que podemos

encontrar subjacente a cada uma das filosofias historicamente constituiacutedas

Encontrando a geacutenese do filosofar na ldquoadmiraccedilatildeordquo interroga-se sobre o modo

como ela se manifesta dentro dum horizonte de ingenuidade e espontaneidade

procurando assinalar os seus limites Nesta ldquoadmiraccedilatildeordquo espontacircnea Bornheim

vecirc um sentido de abertura ao real o deixar-se estar exposto ao ente como tal

em que o acto de expor-se e o deixar ser o real se entrelaccedilam de modo a

ldquodeixar a realidade falarrdquo Citando Heidegger em Vom Wesen der Wahrheit o

pensador brasileiro elucida o sentido desta abertura como um reconhecimento

respeitoso da alteridade dos entes - que se manifestam agravequele que se admira

como dotados de uma plenitude de sentido - e simultaneamente como

consciecircncia de si mesmo daquele que admirando-se se sabe separado de

tudo o que o cerca559

A esta admiraccedilatildeo espontacircnea e ingeacutenua eacute pois inerente simultaneamente a

afirmaccedilatildeo do real na sua positividade e a consciecircncia de si na sua

interioridade testemunhando assim ldquoo surto original de uma atitude humana

espiritualrdquo Esta atitude implica assim uma ruptura com a pragmaticidade isto

eacute com a relaccedilatildeo utilitaacuteria e instrumental do mero fazer pela vida que

558

Aquiles Cocircrtes Guimaratildees considera esta obra de Gerd Bornheim de 61 um marco na filosofia

brasileira pois assinala o iniacutecio da viragem do pensamento filosoacutefico que comeccedila a libertar-se do peso

do cientificismo e analiticismo para retomar as questotildees da ontologia e da metafiacutesica sob a influecircncia da

fenomenologia ldquoEacute essa perspectiva que seraacute dominante no Brasil a partir dos anos 60 tendo como marco

inicial a tese de livre-docecircncia de Gerd Bornheim intitulada Motivaccedilatildeo Baacutesica e Atitude Originante do

Filosofar defendida na Universidade Federal do Rio Grande do Sul em 1961 Esse notaacutevel pensador

produziu uma obra de extensatildeo consideraacutevel que abrange das questotildees metafiacutesicas e ontoloacutegicas ao

universo das artes nomeadamente o teatro toda ela influenciada pela perspectiva fenomenoloacutegica de

origem heideggeriana e sartrianardquo Aquiles Cocircrtes Guimaratildees ldquoMetafigravesica e Ontologia na Filosofia

Brasileirardquo in Actas do Congresso Pensamento Luso-Galaico-Brasileiro I 211 559

ldquoNa admiraccedilatildeo verifica-se um simpatizar no sentido etimoloacutegico da palavra um sentir unido ao real

e esta disponibilidade apreende o real como uma presenccedila insofismaacutevel porque longe de impor-lhe o que

quer que seja o deixa ser em toda a sua dimensatildeo como plenitude de presenccedila Jaacute neste sentido podemos

compreender as palavras de Heidegger ldquosemelhante deixar-se significa que noacutes nos expomos ao ente

como tal e que noacutes transportamos ao aberto todo o nosso comportamentordquordquo Gerd A Bornheim

Introduccedilatildeo ao Filosofar ndash O Pensamento Filosoacutefico em Bases Existenciais [1ordf ed Porto Alegre Globo

1970] Satildeo Paulo 2006 39

312

Heidegger caracterizara em Sein und Zeit como besorgen e estaacute por isso na

geacutenese da filosofia

Se esta atitude admirativa estaacute na geacutenese da filosofia ela natildeo pode no

entanto afirma Bornheim por si mesma suscitar a actividade filosoacutefica a

consciecircncia espontacircnea eacute dominada por uma compreensatildeo ldquomeacutediardquo isto eacute

pelo horizonte ldquogeralrdquo dum mundo jaacute interpretado que impossibilita qualquer

problematizaccedilatildeo radical ldquo[hellip] tudo o que de excepcional aconteccedila seraacute como

destaque sobre o fundo inabalaacutevel do mundo desde sempre dado a

excepcionalidade do excepcional supotildee precisamente aquele mundo familiar

aceite como moldura constituiacutedardquo560

Referindo a tematizaccedilatildeo desta compreensatildeo impliacutecita do mundo por Husserl

como Generalthesis (a tese geral) Bornheim especifica a tripla dimensatildeo - de

ordem gnosioloacutegica ontoloacutegica e axioloacutegica - desta ldquotese geralrdquo concluindo que

ela condiciona toda a qualquer actividade humana seja o fazer teacutecnico a

acccedilatildeo ou o conhecimento

Assim por via praacutetica atraveacutes da acccedilatildeo natildeo eacute nunca possiacutevel agrave consciecircncia

ingeacutenua aceder a uma problematizaccedilatildeo radical da realidade pois o homem

praacutetico volta costas ao fundamento da sua acccedilatildeo e orienta-se sempre para

diante para o futuro Eacute o filoacutesofo que natildeo dando costas ao fundamento da

acccedilatildeo agrave ldquotese geralrdquo a interroga entrando por isso muitas vezes em choque

com o homem de acccedilatildeo ao qual a filosofia aparece como inuacutetil obstaacuteculo agrave

actividade praacutetica

Comentando a conhecida afirmaccedilatildeo de Heidegger em Einfuumlhrung in die

Metaphysik de que ldquocom a filosofia nada se pode fazerrdquo mas que se noacutes nada

podemos fazer com a filosofia ela talvez possa fazer algo connosco Bornheim

sublinha que de facto eacute o primado da teoria que faz com que a filosofia

apareccedila como algo de supeacuterfluo e de inuacutetil agrave consciecircncia ingeacutenua e que eacute este

mesmo primado da teoria que eacute inerente agrave consciecircncia criacutetica e

problematizadora da filosofia

Contudo tal natildeo significa para Bornheim como adiante veremos um

menosprezo pela acccedilatildeo Bornheim reconhece antes na praxis um dos acircmbitos

fundamentais do questionamento filosoacutefico como neste mesmo ensaio jaacute

560

Gerd Bornheim Introduccedilatildeo Filosofar - o Pensamento Filosoacutefico em Bases Existenciais 57

313

sugere ldquoO filoacutesofo ao contraacuterio quando afirma que a filosofia natildeo serve para

nada ele quer dizer que o homem pode aleacutem de agir perguntar pelos

fundamentos da acccedilatildeo problematizando a validez da tese geral com o fito

inclusive de legitimar todo o mundo da acccedilatildeo praacuteticardquo561 Na mesma linha de

raciociacutenio tem o cuidado de sublinhar ldquoIsto natildeo quer dizer poreacutem que uma

vez abandonada a postura dogmaacutetica a acccedilatildeo perca a sua razatildeo de ser Bem

ao contraacuterio a postura criacutetica daraacute agrave acccedilatildeo humana um outro fundamento

aceite explicitamente e destituiacutedo de dogmatismo e ingenuidaderdquo562

O que segundo Bornheim caracteriza o dogmatismo da consciecircncia ingeacutenua

natildeo eacute aliaacutes o primado da praacutetica mas a indiferenccedila ontoloacutegica ldquoNatildeo se

verificam problematizaccedilotildees mais radicais e em uacuteltima anaacutelise natildeo haacute

consciecircncia do problema do ser natildeo se pergunta por que eacute que existe a

realidade qual eacute a sua razatildeo de ser o seu fundamento ou pela legitimidade de

tais problemas [] o homem desdobra a aventura de sua vida dentro de um

plano ocircntico em contacto com os mais diversos entes [] move-se no plano

ocircntico sem passar ao plano ontoloacutegico Permanece na diferenccedila ocircntica e na

indiferenccedila ontoloacutegicardquo563

A ruptura com esta indiferenccedila ontoloacutegica exige segundo Bornheim a

experiecircncia da negaccedilatildeo cuja presenccedila ele referencia jaacute na filosofia grega

designadamente na ignoracircncia socraacutetica mas que foi trazida para primeiro

plano da reflexatildeo filosoacutefica pela filosofia hegeliana Na Fenomenologia do

Espiacuterito a negatividade estaacute inscrita na dinacircmica da consciecircncia e constitui o

motor da progressiva superaccedilatildeo do saber imediato em direcccedilatildeo agrave plena

identidade da consciecircncia consigo mesma e agrave sua realizaccedilatildeo como Espiacuterito

Essa valorizaccedilatildeo da experiecircncia da negatividade que invadiu o pensamento

contemporacircneo eacute analisada por Bornheim em particular em torno da

experiecircncia da naacuteusea em Sartre e da anguacutestia em Heidegger como

experiecircncias necessaacuterias que assinalam a ldquoperda de mundordquo e a queda

(Verfall) do homem no interior de si mesmo

Esta experiecircncia da negatividade que absolutizada constitui o cerne do

niilismo eacute no entanto quando integrada no processo do devir da consciecircncia

561

Ibidem 63 562

Ibidem 61 563

Ibidem 68

314

filosoacutefica um momento necessaacuterio de negaccedilatildeo do dogmatismo ingeacutenuo uma

vez que ldquoatraveacutes deste natildeo se processa uma espeacutecie de retirada estrateacutegica

do mundo um cair de si e ficar em sirdquo564

Contudo esta experiecircncia da negatividade soacute revela o seu sentido quando ela

mesma for negada e transcendida por uma nova afirmaccedilatildeo do mundo a que

Bornheim chama ldquoa conversatildeo filosoacuteficardquo565 Esta ldquoconversatildeordquo eacute uma resoluccedilatildeo

livre do homem que decide vincular o sentido da sua existecircncia agrave filosofia natildeo

por razotildees exteriores nem por nenhum talento particular mas por uma

necessidade interna de transcender a experiecircncia da negatividade e de se

tornar disponiacutevel para a verdade

A consciecircncia filosoacutefica estaacute para Bornheim disposta ao real esperando que

ele se mostre tal como eacute sabendo-o no entanto tambeacutem encoberto e

respeitando-o como tal Atraveacutes desta conversatildeo o homem recupera a sua

relaccedilatildeo com o real mas com um real que se trata de acolher no seu

velamentodesvelamento e que dando-se se reserva simultaneamente como

misteacuterio A consciecircncia filosoacutefica eacute assim marcada por uma passagem da

indiferenccedila ontoloacutegica para a diferenccedila ontoloacutegica ldquoAssim com toda a razatildeo

diz Heidegger que a filosofia natildeo eacute faacutecil mas difiacutecil E mais que eacute a maneira de

tornar as coisas mais difiacuteceis porque eacute o caminho de acesso agrave densidade do

real Por limitada que seja a contribuiccedilatildeo filosoacutefica encontramos nela uma

abertura para a densidade do real para o misteacuterio do ser para uma visatildeo do

real em toda a sua dimensatildeo cuja importacircncia permanece insondaacutevel para a

cultura humanardquo566

Mantendo-se no essencial fiel ao conceito de Heidegger do homem como um

ente que leva consigo uma compreensatildeo do ser e retomando alguns aspectos

da analiacutetica existencial exposta em Ser e Tempo para caracterizar a

consciecircncia filosoacutefica Bornheim procura surpreender a consciecircncia filosoacutefica

na sua geacutenese e desenvolvimento Pensando este desenvolvimento segundo

os trecircs momentos da afirmaccedilatildeo negaccedilatildeo e negaccedilatildeo da negaccedilatildeo

564

Ibidem 79 565

Gerd Bornheim interpreta a ldquoconversatildeo filosoacuteficardquo agrave luz do existenciaacuterio heideggeriano da

ldquoEntschlossenheitrdquo como resoluccedilatildeo que compromete a totalidade da existecircncia exemplificando-a com a

filosofia de Espinosa ldquoRealmente uma resoluccedilatildeo dentro do sentido que nos ocupa eacute da ordem da

eternidade isto eacute decide de uma existecircncia O filoacutesofo natildeo se decide a fazer filosofia como um turista e

naquela resoluccedilatildeo assumida por Espinosa haacute um compromisso pessoal da inteireza de sua existecircncia

podendo-se por isto falar de uma metanoacuteiardquo Ibidem 112 566

Ibidem 128

315

caracteriacutesticos da dialeacutectica hegeliana Bornheim alcanccedila uma exposiccedilatildeo

original da atitude originante do filosofar

612 Destruiccedilatildeo da Metafiacutesica e redescoberta da finitude

Gerd Bornheim em Metafiacutesica e Finitude 567 reuniu um conjunto de textos

escritos a partir dos anos sessenta que marcam momentos fundamentais da

sua reflexatildeo criacutetica sobre a tradiccedilatildeo metafiacutesica assim como a ldquoreivindicaccedilatildeo do

pensamento da finituderdquo568 que ele encontrou em Heidegger e que se tem

proposto desenvolver atraveacutes da sua proacutepria reflexatildeo filosoacutefica

Aiacute o pensador brasileiro considera Heidegger herdeiro de Hegel porquanto soacute

a partir deste foi possiacutevel pensar a ontologia numa perspectiva histoacuterica e

temporal e ambos os pensadores alematildees produzem um discurso ontoloacutegico

que integra ele mesmo a histoacuteria do ser isto eacute os diversos modos da sua

manifestaccedilatildeo histoacuterico-temporal

A diferenccedila da contribuiccedilatildeo de Heidegger residiria contudo em que este levou

a cabo a suspensatildeo ou a destruiccedilatildeo da tradiccedilatildeo metafiacutesica retomando a

questatildeo do ser num outro plano ldquoA diferenccedila entre Hegel e Heidegger eacute

poreacutem essencial Hegel crecirc que a sua metafiacutesica resolve em si o todo da

tradiccedilatildeo por isso entende a dialeacutectica como um processo de superaccedilatildeo Ora

a superaccedilatildeo embora vise agrave consagraccedilatildeo definitiva da verdade tradicional

implica um momento de suspensatildeo Eacute justamente nesse momento de

suspensatildeo ou de ldquodestruiccedilatildeordquo da Metafiacutesica que se concentra o labor de

Heidegger Natildeo para restaurar o passado ndash esforccedilo que seria inuacutetil ndash e sim para

retomar a questatildeo fundamental da Metafiacutesica - o que eacute o serrdquo569

Esta verdadeira superaccedilatildeo da tradiccedilatildeo metafiacutesica que foi realizada por

Heidegger eacute vista por Bornheim como tendo um momento de destruiccedilatildeo e

negaccedilatildeo ndash designadamente de destruiccedilatildeo da metafiacutesica como tal isto eacute como

pensamento que produziu uma ldquoentificaccedilatildeo do serrdquo ndash mas tendo tambeacutem por

outro lado um momento positivo de conservaccedilatildeo uma vez que retoma num 567

Gerd Bornheim Metafiacutesica e Finitude [1ordf ed Porto Alegre 1972] ed revista e ampliada Satildeo Paulo

Editora Perspectivas 2001 568

Beneval de Oliveira em A Fenomenologia no Brasil defende que a problemaacutetica da finitude no

pensamento brasileiro aparece na sequecircncia da filosofia transcendental kantiana da fenomenologia de

Husserl e da fenomenologia existencial de Heidegger (Cf ob cit 26) 569

Gerd Bornheim Metafiacutesica e Finitude Satildeo Paulo 2001 1213

316

outro plano a questatildeo do ser Ora esse outro plano em que agora eacute retomado

a questatildeo do ser ndash o plano de uma radical finitude - eacute que parece ser para

Bornheim o grande meacuterito de Heidegger ldquoO ser se apresenta agora como

radical finitude - ao menos tal parece ser a atitude de Ser e Tempordquo570

A importacircncia desta temaacutetica para o pensamento contemporacircneo fora jaacute

amplamente explanada por Bornheim no ensaio de 1970 ldquoA filosofia alematilde

apoacutes a primeira guerra Mundialrdquo Nesse ensaio o autor analisa o propoacutesito de

repensar o homem em conexatildeo com o problema do ser que foi surgindo nos

pensadores que se seguiram agrave Primeira Guerra Mundial mostrando que esse

pensamento do poacutes-guerra procura pensar de modo inteiramente diferente em

direcccedilatildeo agrave finitude ldquo Transformar para a nova ontologia quer dizer haver-se

com o homem e a realidade naquilo que eles satildeo em sua radical finitude

conquistar o mundo finito sem alienaacute-lo numa transfinituderdquo571

Assim Heidegger teria respondido a uma exigecircncia do seu proacuteprio tempo

abrindo caminho para que o homem pudesse perscrutar finalmente a finitude -

contudo ele teria manifestado no decurso da evoluccedilatildeo do seu pensamento

inconsistecircncias na realizaccedilatildeo deste propoacutesito

No ensaio ldquoHeidegger a questatildeo do ser e a dialeacutecticardquo de 1970 Bornheim

retoma a mesma temaacutetica mostrando que o pensar heideggeriano do ser

ldquodecorre sobre o fundo da finituderdquo A tradiccedilatildeo metafiacutesica ao identificar o ser

com Deus ao reduzi-lo assim a um ente infinito natildeo apenas esquece o ser a

favor do ente mas desvaloriza a totalidade dos entes finitos que soacute tecircm um ser

na medida em que participam do ser do ente infinito Assim para Bornheim

satildeo dois os traccedilos fundamentais que configuram esta tradiccedilatildeo desde Platatildeo ateacute

Hegel entificaccedilatildeo do ser e desvalorizaccedilatildeo do plano concreto dos entes finitos

Heidegger ao colocar a pergunta pelo ser jaacute em Ser e Tempo faacute-lo a partir de

pressupostos anti-metafiacutesicos recusando explicitar essa pergunta a partir do

ldquoente infinitordquo mas explicitando-a a partir do ser do aiacute que eacute o homem Poreacutem

o homem natildeo eacute entendido como um ente fechado sobre si mas como abertura

em direcccedilatildeo aos possiacuteveis ou como um poder-ser ldquo[hellip] desse modo o ldquoaiacuterdquo natildeo

denota um fechar-se do homem sobre si mesmo mas o contraacuterio um abrir-se

570

Ibidem13 571

Gerd Bornheim rdquoA filosofia Alematilde apoacutes a Primeira Guerra Mundialrdquo [Revista Brasileira de

Filosofia vol XX fasc79 1970] in Metafiacutesica e Finitude Satildeo Paulo 2001 101

317

e o Dasein passa a ser compreendido como um poder ser Assim a finitude

natildeo quer dizer que o homem permaneccedila espacialmente reduzido a si mas que

o Dasein eacute finito que ele eacute a sua proacutepria finituderdquo572

A finitude do homem implica tambeacutem que haacute algo mais originaacuterio em que ele se

fundamenta e este fundamento mais originaacuterio que corresponde ao aiacute do Da-

sein eacute a com-preensatildeo do ser ldquoPoderiacuteamos traduzir o aiacute do ser-aiacute com a

palavra presenccedila que tem dois rostos eacute a presenccedila do homem no ser e eacute a

presenccedila do ser no homem dito de outro modo o homem eacute em seu ser

mesmo compreensatildeo do ser ou ele eacute com-preendido pelo serrdquo573

A compreensatildeo do ser potildee em jogo o proacuteprio fundamento do Dasein - o que

estaacute no seu fundamento ou na sua origem ou o aiacute da presenccedila do ser Para

Bornheim toda a vida humana se desenrola como um caminhar no finito e eacute

nessa caminhada que estaacute o sentido do ldquoconstruirrdquo do ldquomorarrdquo e do ldquopensarrdquo574

O construir e o morar que apontam para a actividade econoacutemica e poliacutetica

devem ser compreendidos a partir do finito isto eacute a partir do que com-preende

esses actividades finitas - a partir do ser e do fundamento

Contudo para a filosofia precisa Bornheim natildeo se trata de atingir o

fundamento e consideraacute-lo como algo subsistente em si mas sim de pensar

desde o fundamento Para Bornheim natildeo haacute possibilidade de um discurso

sobre o ser porque todo o discurso se faz a partir do ser encontrando nele o

seu pressuposto ou o seu fundamento No entanto podemos pensar o ente

como com-preendido pelo ser que deveraacute ser tomado como ldquoo sentido ou a

buacutessola do pensamentordquo

Bornheim assinala que segundo Heidegger relativamente ao plano dos entes

o ser eacute sempre um transcendente um fundamento que os com-preende Eacute a

partir da diferenccedila ontoloacutegica575 explicita Bornheim que podemos

572

Gerd Bornheim ldquoHeidegger A questatildeo do Ser e a dialeacutecticardquo [1970] in Metafiacutesica e Finitude 196 573

Ibidem 197 574

ldquoNo caminhar no finito estaacute o sentido do construir do morar e do pensar O homem estaacute instalado no

finito e eacute a partir daiacute que podemos entender as ldquocapacidades criadorasrdquo do homem O construir pode ser

por exemplo a poliacutetica e o morar a economia ndash actividades estas inscritas no finito Quando o homem faz

poliacutetica ou economia entrega-se criativamente a um certo tipo de actividade e para pensar a acccedilatildeo

humana faz-se mister pensar o finito ou seja aquilo que com-preende essas actividades finitas o ser o

fundamento o mais finito do finito Natildeo se pretende atingir o fundamento e consideraacute-lo entatildeo como

algo em si mas pensar desde o fundamentordquo Ibidem 198 575

ldquoSoacute faz sentido falar em ser em relaccedilatildeo ao ente o ser eacute sempre e necessariamente ser do ente

Afirmamos que a perspectiva em que se situa Heidegger eacute a do finito mas se se quer dar conta do finito

impotildee-se a necessidade de radicalizaacute-lo de avanccedilar ateacute agrave proacutepria raiz do finito ateacute agrave finitude do finito ndash o

318

compreender porque Heidegger natildeo daacute resposta agrave pergunta pelo ser

ldquoHeidegger natildeo daacute resposta agrave pergunta pelo ser visto que toda a resposta

terminaria sendo uma determinaccedilatildeo que traria consigo a entificaccedilatildeo do serrdquo576

Se Heidegger nos daacute como a caracteriacutestica fundamental do ser o desvelar-se

isso natildeo significa no entanto que ele seja uma substacircncia a que pertence a

possibilidade do desvelamento Citando Der Satz von Grund Bornheim lembra

que ldquoPensando com rigor devemos dizer o ser eacute propriedade do desvelar-se A

partir do desvelar-se como tal revela-se o que ldquoserrdquoquer dizerrdquo

O ser desvela-se permanecendo na Verborgenheit no velamento na

obscuridade o que implica que esse desvelamento eacute inesgotaacutevel e irredutiacutevel agrave

conceptualizaccedilatildeo Porque natildeo eacute um ente devemos poder dizer que ele eacute um

nada se bem que soacute possa ser o nada em sentido negativo isto eacute no sentido

em que o ser natildeo eacute o ente

Assim sublinha Bornheim natildeo eacute possiacutevel falar do ser em si mesmo porque

falar dele seria delimitaacute-lo e atribuir-lhe uma qualificaccedilatildeo ocircntica Soacute faz sentido

falar em ser em relaccedilatildeo ao ente ldquoo ser eacute sempre e necessariamente o ser do

enterdquo577

O pensador brasileiro pensa a diferenccedila ontoloacutegica relacionando-a

explicitamente com a temaacutetica da finitude e mostrando como ela implica a

finitude do ser ldquo[hellip] pois se dissesse que o ser eacute infinito a diferenccedila seria

clara tratar-se-ia de afirmar que o fundamento eacute infinito fundamento este

diferente daquilo que eacute fundamentado o fundamento seria o diferente do finito

Mas eacute exactamente isso o que Heidegger quer evitar ndash toda a validade do seu

pensamento parece-nos decorrer dessa decisatildeo de se debruccedilar sobre a

finitude do finitordquo578

Para Bornheim admitir a infinitude do ser equivaleria a pensaacute-lo como uma

entidade auto-subsistente e assim recair na entificaccedilatildeo do ser da tradiccedilatildeo

metafiacutesica identificando-o com o Absoluto ou Deus ou mais tardiamente no

tempo presente da crise da Metafiacutesica identificando-o com um ente relativo

que natildeo pode em hipoacutetese alguma significar que se caia fora do finito tal eacute justamente o cometimento

metafiacutesico alienante da finitude O pensamento do ser se daacute sobre o fundo da finituderdquo Ibidem 199 576

Ibidem 198 577

Ibidem 198 578

Ibidem 200

319

que eacute erigido na condiccedilatildeo de fundamento absoluto da realidade como ldquoa

Histoacuteriardquo ou ldquoa Economiardquo579

Estes procedimentos aparentemente anti-metafiacutesicos e cientiacuteficos que

pretendem postular uma ldquocausardquo absoluta que explicaria tudo recaem na

metafiacutesica e ilustram a vigecircncia dos postulados metafiacutesicos no nosso tempo

Para Bornheim pelo contraacuterio o que importa eacute resguardar o ente naquilo que

ele eacute respeitando a diferenccedila ontoloacutegica ou seja evitando a entificaccedilatildeo do

ser580 Admitir que cada ente deve ser respeitado no seu ser implica que cada

ente concentra em si mesmo a transcendecircncia ontoloacutegica que constitui a sua

razatildeo de ser e que toda a explicaccedilatildeo fundada em causas isto eacute toda a

explicaccedilatildeo ldquoocircnticardquo permanece relativa e nunca alcanccedila as ldquoultimidades do ser

do enterdquo

A recusa da metafiacutesica implica assim a irredutibilidade do ente no seu ser e

que natildeo podemos admitir que o ente se resolva hegelianamente em outro ente

ldquoA destruiccedilatildeo da metafiacutesica assume um rosto preciso na volta agrave Ontologia mas

no sentido preciso da palavra o perguntar e conceber o ser do enterdquo581

613 A reformulaccedilatildeo heideggeriana da dialeacutectica

O confronto entre Hegel o representante da uacuteltima elaboraccedilatildeo e consumaccedilatildeo

da Metafiacutesica e Heidegger eacute para Bornheim a chave para compreender o

sentido essencial dessa destruiccedilatildeo da metafiacutesica que visa recuperar o que

nela foi esquecido isto eacute a pergunta pelo ser Bornheim citando Identitaumlt und

Differenz deteacutem-se na afirmaccedilatildeo de Heidegger segundo a qual a ocupaccedilatildeo do

pensar eacute para Hegel o pensamento como conceito absoluto enquanto para si

mesmo eacute ldquoa ocupaccedilatildeo com a diferenccedila como diferenccedilardquo

579

ldquoO processo entificador do ser natildeo se verifica apenas em termos de ente absoluto A cacterigravestica mais

significativa da eacutepoca que vive sob o signo da crise da metafiacutesica estaacute no fato de que a entificaccedilatildeo se faz

em nome de um ente relativo que eacute erigido agrave condiccedilatildeo de fundamento absoluto da realidade Assim

procede o historicismo que mede o todo do real a partir de um ente determinado a histoacuteria ou o

marxismo vulgar que tudo quer explicar pelo econoacutemicordquo Ibidem 201 580

ldquoO que importa poreacutem eacute pensar o ente naquilo que ele eacute pensar o ser do ente ou seja respeitar a

diferenccedila ontoloacutegica Assim soacute cabe pensar a diferenccedila como necessidade de evitar a entificaccedilatildeo do ser

O que quer dizer haacute um irredutiacutevel em cada ente mas natildeo no sentido de que o ente permanece como que

fechado em si mesmo e sim porque a reduccedilatildeo de um tipo de ente a outro ente desrespeita aquilo que cada

ente eacuterdquo Ibidem 202 581

Ibidem 200

320

A discussatildeo do modo como deve ser entendido esse ldquopensar da diferenccedila

como diferenccedilardquo assume em Bornheim um papel decisivo o que lhe permite

por um lado referir as ambiguidades do proacuteprio Heidegger por outro lado

interrogar a razatildeo profunda dessas ambiguidades e descortinar sob elas uma

linha de rumo essencial Assim Bornheim potildee a claro as imprecisotildees

decorrentes do uso diferente da palavra ldquoserrdquo ao longo da obra do pensador

alematildeo ldquoAo longo da sua obra Heidegger toma a palavra ser em acepccedilotildees

nem sempre idecircnticas emprestando ao vocaacutebulo uma amplidatildeo maior ou

menor Assim o ser parece vinculado ao ente particular como ser do ente

mas Heidegger fala tambeacutem em ente como tal e na totalidade (das Seiende als

solches und in Ganzen) refere-se ainda ao ser pura e simplesmente caso este

em que o ser incide num indefiniacutevel total levando o autor a escrever ser com y

(Seyn) ou ainda a cortar a palavra ser com um Xrdquo582

Sob essas imprecisotildees de linguagem Bornheim vecirc uma dificuldade inerente agrave

proacutepria temaacutetica e como tal insoluacutevel - esta temaacutetica natildeo pode ter um

tratamento conceptual ldquoa amplidatildeo do ser natildeo eacute devassaacutevelrdquo porque potildee em

jogo a finitude radical

Para evitar que essa finitude recaia apenas sobre a compreensatildeo do Dasein

Bornheim lembra que essa com-preensatildeo implica que o homem eacute com-

preendido pelo ser tratando-se no entanto de esclarecer ateacute onde vai esse ser

compreendido e qual o seu sentido A finitude deve ser buscada (tambeacutem e

em primeiro lugar) do lado do ser no facto de ele nunca se oferecer em

transparecircncia absoluta mas no claro-escuro dum desvelamento que acontece

sempre no tempo e na histoacuteria Assim para Bornheim haacute pelo menos um

ponto em que Heidegger eacute absolutamente inovador e sempre consistente no

esclarecimento da finitude do ser a compreensatildeo do ser no horizonte do

tempo583

Bornheim destaca que a compreensatildeo do ser no horizonte do tempo jaacute

claramente indicada em Ser e Tempo mas aiacute insuficientemente pensada foi

precisamente o que levou Heidegger a ampliar o acircmbito da pergunta

fundamental Especialmente importante para o esclarecimento desta temaacutetica

582

Ibidem 205 583

ldquoA crise da Metafigravesica representa justamente o abandono do inconcussum e o meacuterito fundamental de

Heidegger estaacute em ter colocado toda a problemaacutetica do ser no plano da historicidade finita no afatilde de

estabelecer as bases para que o discurso se torne propriamente humano impregnado de temporalidade

como discurso que acontece que se daacute historicamenterdquo Ibidem 216

321

seria o ensaio A Origem da Obra de Arte precisamente porque este ensaio

permite contrastar o pensamento de Heidegger com a metafiacutesica hegeliana e

assim distinguir duas concepccedilotildees distintas de temporalidade e historicidade

Este contraste levado a cabo de modo rigoroso por Bornheim eacute perspectivado

sob a oacuteptica da dialeacutectica tendo como objectivo aferir se em Heidegger existe

tambeacutem uma dialeacutectica e se ele retoma de modo natildeo expliacutecito a dialeacutectica

hegeliana sujeitando-a a algumas alteraccedilotildees fundamentais e qual o sentido

preciso dessas alteraccedilotildees

Em A Origem da Obra de Arte Heidegger visando esclarecer o ser da obra

mobiliza o conceito de ldquomundordquo jaacute presente em Ser e Tempo e articula-o com o

Gegenbegriff de ldquoterra Bornheim destaca que na obra de arte apresenta-se

um mundo e essa apresentaccedilatildeo tem o caraacutecter singular de uma consagraccedilatildeo e

celebraccedilatildeo Interrogando-se sobre a natureza desse ldquomundordquo que a obra de

arte torna vigente Bornheim salienta que natildeo se trata de um objecto mas

daquilo que confere uma atmosfera e um sentido a todas as manifestaccedilotildees de

uma cultura Na obra de arte condensa-se ldquoum mundordquo e nessa condensaccedilatildeo

ele eacute como que libertado e aberto Mas eacute preciso ter em conta que a obra

produz a terra leva-a para diante fazendo com que ela brilhe e se manifeste

na obra Para esclarecer o conceito de ldquoterrardquo Bornheim salienta que Heidegger

recorre ao conceito grego de physis o permanecer escondido que permite toda

a manifestaccedilatildeo e todo o desvelamento a terra sendo por essecircncia o que se

fecha em si permanece indefiniacutevel natildeo pode ser objecto de ciecircncia Assim a

obra eacute terra e eacute mundo esposa a amplidatildeo e a constacircncia do mundo e da terra

Bornheim considera que com as noccedilotildees de ldquomundordquo e ldquoterrardquo Heidegger se

move nas fronteiras do diziacutevel ldquonas fronteiras extremas da finitude do finitordquo

ldquoTerra e mundo satildeo tentativas de elaboraccedilatildeo do discurso sobre o fundamento

sobre o ser do enterdquo584

Contudo qual a unidade entre ldquomundordquo e ldquoterrardquo Essa unidade eacute para

Heidegger conflito (Streit) O mundo configura o aspecto claro da verdade e a

terra o seu lado obscuro mundo e terra unem-se no claro-escuro da verdade

Nesse sentido mundo e terra confrontam-se como tese e antiacutetese num conflito

que os manteacutem unidos permanecendo no entanto cada um dos elementos na

sua diferenccedila donde Bornheim conclui ldquoEstamos pois em presenccedila de um

584

Ibidem 213

322

conflito essencial que jamais poderaacute ser ldquoresolvidordquo no sentido hegeliano da

palavrardquo585

Assim ele associa estas teses de Heidegger agrave dialeacutectica hegeliana mostrando

que se distinguem desta na medida em que lhe falta o terceiro momento da

Aufhebung isto eacute natildeo haacute o resolver da contradiccedilatildeo numa siacutentese Ora a

Aufhebung eacute o que possibilita o movimento de superaccedilatildeo pelo qual todas as

formas finitas se superam e assim se ldquotransfinitizamrdquo ldquoEm vez de transfinitizar

Heidegger quer elucidar a finitude do finito e essa penetraccedilatildeo no finito se faz

atraveacutes da ideia de que o conflito se manteacutem ou se sustenta como conflitordquo586

Heidegger retomaria assim a tese e a antiacutetese da dialeacutectica hegeliana ainda

que num propoacutesito totalmente distinto de embrenhar-se na finitude do finito

Para esclarecer o sentido deste embrenhar-se na finitude do finito Bornheim

esclarece o conceito heideggeriano da verdade como desvelamento nele

destacando esta mesma dialeacutectica verificada na tematizaccedilatildeo da obra de arte

ldquoO que eacute e o que torna possiacutevel este desvelamento O ente estaacute situado na

luz do ser e eacute graccedilas agrave iluminaccedilatildeo que ele se pode desvelar a noacutes Devido a

esse claro em certa medida o ente se mostra ndash mas apenas em certa medida

porque o desvelamento nunca eacute total o ente permanece por outro lado oculto

encoberto velado O desvelamento soacute eacute possiacutevel porque haacute um velamento

fundamental e o ente se manifesta a partir de algo que impede a

manifestaccedilatildeordquo587

Ora a questatildeo estaacute em saber acentua Bornheim donde vem esse velamento -

se como Kant demonstra na Criacutetica da Razatildeo Pura ele tem uma origem

antropoloacutegica radicando na finitude das nossas faculdades humanas de

conhecer ou se ele tem antes uma origem ontoloacutegica se radica no proacuteprio

ser Eacute esta segunda dimensatildeo da finitude que eacute preciso considerar segundo

Bornheim pois ldquo[hellip] eacute a finitude do ente que impede que ele se decirc plenamente

a noacutes Todo o processo do conhecimento se desenrola no plano da finitude do

realrdquo588

Para clarificar o modo como Heidegger pensa este velamento a partir da

finitude do real Bornheim retoma a metaacutefora da ldquoluz do serrdquo esclarecendo que

585

Ibidem 216 586

Ibidem 217 587

Ibidem 222 588

Ibidem 223

323

esse claro natildeo eacute a luz absoluta da Ideia Platoacutenica mas o velamento pertence

ele mesmo agravequela luz A luz do ser eacute um jogo de luz e sombra o desvelamento

acontece atraveacutes do velamento do permanecer escondido

Esclarecendo no conceito de verdade como a-letheia o sentido privativo do a

afirma que se trata de pensar o impulso para o desvelamento que se instaura a

partir do que estaacute velado assim o que estaacute em jogo na essecircncia da verdade eacute

o conflito originaacuterio (Urstreit) entre desvelamento e ocultamento e eacute a partir

desse conflito que se daacute o acontecer da verdade

Para compreender a verdade como jogo entre luz e ocultamento haacute que

retomar as noccedilotildees de mundo e terra e pensar a natureza do conflito que os

opotildee entre si mantendo-os poreacutem unidos Nesse conflito o mundo nunca eacute

simplesmente o aberto que corresponde agrave luz nunca se apresenta numa total

transparecircncia e a terra natildeo eacute simplesmente o que se manteacutem cerrado em si O

mundo invade a terra e a terra ergue-se e brilha atraveacutes do mundo os

contraacuterios interpenetram-se de diversos modos num movimento contiacutenuo e

num conflito sempre renovado Citando Heidegger em A Origem da Obra de

Arte Bornheim lembra que ldquomundo e terra satildeo cada um em sua essecircncia

conflituados e conflituaacuteveisrdquo o que aponta para a necessidade de pensar este

conflito como algo de essencialmente moacutevel complexo e dialeacutectico

Bornheim mostra assim que Heidegger retoma a dialeacutectica libertando-a das

distorccedilotildees a que um pensamento metafiacutesico a submeteu De facto segundo o

pensador brasileiro em Hegel como jaacute em Platatildeo a contradiccedilatildeo eacute subordinada

agrave Identidade com a qual eacute sempre identificada a Ideia o Absoluto ou Deus

Pelo contraacuterio Heidegger pensando dialecticamente a diferenccedila ontoloacutegica

segundo o modelo acima exposto da contradiccedilatildeo e do conflito irresoluacuteveis

salvaguarda simultaneamente a distinccedilatildeo entre ser e ente e a sua reciacuteproca

mas contraditoacuteria e conflitual pertenccedila ldquo O pensamento da diferenccedila ontoloacutegica

pode ser considerado o lugar no qual se daacute o resguardo da contradiccedilatildeordquo589

614 A diferenccedila ontoloacutegica e a centralidade da praxis

Se a essecircncia da verdade natildeo acontece na adequatio isso significa que a

verdade essencial acontece fora do campo do conhecimento cientiacutefico e do seu

589

Ibidem 229

324

ideal de objectividade Segundo Bornheim a verdade essencial isto eacute o

desvelamento do ser que nesse desvelamento se oculta e resguarda

acontece na acccedilatildeo poliacutetica isto eacute na acccedilatildeo que visa a edificaccedilatildeo da polis e de

modo privilegiado na criaccedilatildeo das grandes obras de arte Eacute pela acccedilatildeo humana

criadora que acontece a verdade do ser e surge algo de novo irrepetiacutevel e

uacutenico590

Desta centralidade da acccedilatildeo humana Bornheim tira vaacuterias consequecircncias

fundamentais uma das quais eacute a necessidade de pensar a acccedilatildeo poliacutetica

toacutepico que Heidegger teria apenas aflorado mas que deve solicitar maiores

desenvolvimentos na perspectiva desta ontologia da finitude A segunda

consequecircncia eacute a da reabilitaccedilatildeo do sensiacutevel e do corpo eacute o elemento sensiacutevel

(o som ou a cor) que na obra de arte unificam o artista e o destinataacuterio da obra

de arte estabelecendo-se um Stimmung que os faz entrar em concordacircncia

com o mundo e a terra ldquoPodemos afirmar portanto que a obra eacute o esplendor

do sensiacutevel da verdade do sensiacutevel como misteacuterio de uma encarnaccedilatildeo que se

processa desde um silecircncio primevo acto fundante desde a ausecircncia do

fundamentordquo591

Esta encarnaccedilatildeo do sentido pela qual a verdade se daacute na obra mostra que a

criaccedilatildeo artiacutestica tem um caraacutecter profundamente anti-metafiacutesico e nunca pocircde

ser compreendida pela tradiccedilatildeo metafiacutesica e pelas categorias da esteacutetica

tradicional ldquoA arte eacute a concentraccedilatildeo no ldquofiacutesicordquo reconhecimento de uma

densidade ontoloacutegica que reside no proacuteprio sensiacutevel sem ser imposta de fora

nem de cima o sensiacutevel em si mesmo vem provido de uma carga ontoloacutegica

particularrdquo592

Se a arte natildeo diz conceptualmente o sentido e natildeo eacute uma ontologia ela

expressa-o e convida o pensamento finito e interpretaacute-la e interrogaacute-la como

horizonte a partir do qual pode ser elaborada uma ontologia da finitude

Contudo natildeo eacute apenas a criaccedilatildeo excepcional das grandes obras ou dos

Estados que se reveste de uma significaccedilatildeo ontoloacutegica mas todo o

590

ldquoNormalmente a acccedilatildeo humana se processa dentro do acircmbito de uma dogmaticidade fundamental no

sentido de que a tese geral permanece sem ser questionada [hellip] Isto natildeo quer dizer poreacutem que uma vez

abandonada a postura dogmaacutetica a acccedilatildeo perca a razatildeo de ser Bem ao contraacuterio a postura criacutetica daraacute agrave

acccedilatildeo um outro fundamento aceite explicitamente e destituigravedo de dogmatismo e ingenuidaderdquo Gerd

Bornheim Introduccedilatildeo ao Filosofar 61 591

Gerd Bornheim ldquoSobre a linguagem musicalrdquo [1967] in Metafiacutesica e Finitude Satildeo Paulo 2001 145 592

Ibidem 146

325

comportamento humano revela esta mesma dimensatildeo593 Toda a acccedilatildeo

humana tem uma dimensatildeo ontoloacutegica porque como demonstrou Heidegger

todo o homem transporta consigo uma compreensatildeo preacute-ontoloacutegica do ser ldquono

interior dela daacute-se o comportamento usual do homem como se embebido num

fundo de sentido que se irradia de todo o realrdquo

Contudo esta dimensatildeo ontoloacutegica da acccedilatildeo humana envolve um paradoxo

como Bornheim reconhece ldquoO paradoxo estaacute no seguinte o homem natildeo eacute

simplesmente o construtor se o fosse a construccedilatildeo seria apenas a eterna

repeticcedilatildeo do mesmo que natildeo se sabe Mas o homem inventa a construccedilatildeo o

que quer dizer que de certo modo ele inventa o sentido ndash de certo modo

apenas porque o sentido natildeo se explica meramente pelo homem o homem eacute

que estaacute no sentidordquo594

Isto significa que para que a acccedilatildeo humana assuma uma dimensatildeo criadora

isto eacute produtora de sentido eacute preciso que esta se abra a algo que a

transcende e arrebata595 Poreacutem essa transcendecircncia de sentido natildeo deve ser

pensada agrave maneira das ideias platoacutenicas ou do Deus da Metafiacutesica Natildeo

devemos pensar a transcendecircncia absoluta do sentido mas pelo contraacuterio eacute

necessaacuterio pensar simultaneamente a sua imanecircncia o impulso criador

originaacuterio daacute-se na praxis e concomitantemente com ela mas ao mesmo tempo

transcende-a enraizando-se num horizonte histoacuterico e mundano

Assim o homem participa da criaccedilatildeo e renovaccedilatildeo do sentido atraveacutes do tempo

e da histoacuteria e sem a sua acccedilatildeo a histoacuteria natildeo poderia existir - a praxis eacute a

encarnaccedilatildeo dum sentido que se renova ldquoPor aiacute se vecirc que a descoberta do

sentido e a sua renovaccedilatildeo constante revelam-se essenciais agrave condiccedilatildeo

humana A renovaccedilatildeo pela descoberta do sentido se faz pela criaccedilatildeo praacutetica ndash

seja a praxis simplesmente manual a artiacutestica a poliacutetica a teoreacutetica a luacutedica

ou a de qualquer outra feiccedilatildeo que possa assumirrdquo596

593

O comportamento humano enquantordquofuncionalizador do realrdquo eacute no entanto para Bornheim - como

para Heidegger - anti-filosoacutefico por excelecircncia porque substitui a ldquonecessidade de permanecer dispostordquo

isto eacute de permanecer aberto ao ser pelas exigecircncias utilitaacuterias Cf Gerd Bornheim Introduccedilatildeo ao

Filosofar 212 594

Gerd Bornheim Metafiacutesica e Finitude 11 595

ldquoO elemento novo que nasce da acccedilatildeo produtora eacute o fautor originaacuterio dessa mesma acccedilatildeo ainda que

esse elemento novo para ser natildeo possa dispensar a acccedilatildeo Ou por outra o novo se torna inexplicaacutevel sem

o recurso agrave transcendecircncia do sentidoldquo Gerd Bornheim ldquoFilosofia e Poesiardquo in Metafiacutesica e Finitude

169 596

Gerd Bornheim ldquoSentido e Criatividaderdquo rdquo[1970] in Metafiacutesica e Finitude Satildeo Paulo 2001 171

326

Se acccedilatildeo humana o fazer das obras se revela o nuacutecleo essencial da histoacuteria

eacute necessaacuterio no entanto ter presente que ela cria e renova um sentido que ao

mesmo tempo a transcende O claro-escuro do desvendamento do ser

transcende os entes e configura o sentido que se vai encarnando nas acccedilotildees

humanas e no seu fazer histoacuterico-mundano

Por essa razatildeo afirma Bornheim ldquoNatildeo eacute suficiente elucidar a criatividade num

niacutevel meramente ocircntico por mais que o fazer permaneccedila imbricado com os

entes ele sempre apresenta uma dimensatildeo ontoloacutegica [] Portanto pelo fazer

o sentido ontoloacutegico se realiza no plano ocircntico e deve-se falar duma certa

anterioridade do sentidordquo597

Assim Bornheim aceita claramente a conclusatildeo heideggeriana de que histoacuteria

do ser esconde o desiacutegnio uacuteltimo do destino humano perguntar pelo ser eacute

sublinha Bornheim perguntar pelo sentido da evoluccedilatildeo do ser uma evoluccedilatildeo

na qual o homem estaacute como que inserido e da qual participa

Se Heidegger eacute para Bornheim o filoacutesofo a quem cabe o enorme meacuterito de ter

aberto o caminho para esta ontologia da finitude no entanto ele pensa dever

ser-lhe feita uma reserva essencial que diz respeito ao modo de pensar a

diferenccedila ontoloacutegica

A tradiccedilatildeo metafiacutesica procedeu agrave ldquoentificaccedilatildeo do serrdquo e essa entificaccedilatildeo fez-se

de forma privilegiada atraveacutes do Deus metafiacutesico relegando assim o domiacutenio

da finitude para o segundo plano de uma forma inferior e degradada de ser

Uma ontologia da finitude como aquela visada por Heidegger deveria reabilitar

esse plano da finitude No entanto diz Bornheim as ambiguidades e

oscilaccedilotildees no modo de designar o ser levou a que muitos considerem que

Heidegger acentuou de tal modo a transcendecircncia do ser que ele se converteu

num ldquoDeus que natildeo ousa dizer o seu nomerdquo

Segundo Bornheim Heidegger tem razatildeo ao falar de ldquodiferenccedila ontoloacutegicardquo

mas o modo de acentuar a transcendecircncia do ser conduz a um certo abandono

do ente ldquoSoacute haacute diferenccedila porque haacute relaccedilatildeo entre ser e ente e esta relaccedilatildeo

deve ser reciacuteproca Ora o ser de Heidegger comporta-se um pouco como o

Deus aristoteacutelico o ente depende do ser mas o ser apenas eacute ele mesmo

597

Ibidem 172

327

Heidegger acentua a dependecircncia do ente em relaccedilatildeo ao ser mas a

dependecircncia inversa deveria ser igualmente acentuadardquo598

Acentuando excessivamente a transcendecircncia do ser Heidegger permitiu que

muitos identificassem o ser como Deus da tradiccedilatildeo metafiacutesica Este acentuar

da transcendecircncia do ser desvinculou o ser dos entes e instaurou uma

concepccedilatildeo incorrecta (isto eacute ainda contaminada pela tradiccedilatildeo metafiacutesica) da

diferenccedila ontoloacutegica

Segundo Bornheim natildeo obstante o facto de nas primeiras conferecircncias

relativas agrave temaacutetica da diferenccedila ontoloacutegica Heidegger ter procurado vincular o

ser ao ente no decurso da sua evoluccedilatildeo intelectual este teria vindo a esquecer

essa vinculaccedilatildeo o que teria tido como consequecircncias a impossibilidade de se

compreender a finitude do ser assim como a desvalorizaccedilatildeo do plano do

ente599

Esta vinculaccedilatildeo entre ser e ente acontece na perspectiva de Bornheim pela

mediaccedilatildeo da praxis como sublinha o ensaio ldquoSentido e Criatividaderdquo (1970)

ldquo[] pelo fazer o sentido ontoloacutegico se realiza no plano ocircnticordquo600 Admitindo

uma certa anterioridade do sentido que eacute depois recolhido pela actividade

humana criadora Bornheim sublinha no entanto que esta transcendecircncia do

sentido - isto eacute o seu enraizamento num horizonte histoacuterico que eacute ele mesmo

o possibilitador da acccedilatildeo - natildeo dispensa a sua imanecircncia - isto eacute o facto de

que ele se torna concreto e se mostra no fazer humano

A dialeacutectica entre transcendecircncia e imanecircncia enraiacuteza-se na proacutepria condiccedilatildeo

do Dasein como ser-no-mundo porque o homem eacute ser-no-mundo ele natildeo eacute

um sujeito fechado em si que por si mesmo cria o sentido mas inscreve-se

num horizonte histoacuterico e temporal ldquoO sentido eacute histoacuterico eacute historicamente que

ele chega a configurar-se deste ou daquele modordquo601 Se o sentido eacute histoacuterico

isto implica que ele natildeo subsiste por si mesmo como uma realidade metafiacutesica

auto-subsistente mas deve condensar-se atraveacutes da praxis numa obra ou

numa acccedilatildeo

598

Gerd Bornheim Metafiacutesica e Finitude 13 599

ldquoEm verdade nas primeiras conferecircncias publicadas por nosso autor haacute algumas escassas observaccedilotildees

que procuram vincular o ser ao ente mas agrave medida que a sua obra evolui essa vinculaccedilatildeo se torna a

grande ausecircncia do seu pensamento Nesse caso de que finitude se trata Da finitude do ser Mas que

sentido tem falar da finitude do ser se com ela natildeo se autoriza o pensamento da finitude concreta do

enterdquo Ibidem 13-14 600

Gerd Bornheim ldquoSentido e Criatividaderdquo [1970] in Metafiacutesica e Finitude 172 601

Ibidem 173

328

Em Dialeacutectica teoria e praxis602 Bornheim critica Heidegger pois este

conduzido pela sua preocupaccedilatildeo central pela questatildeo do esquecimento do ser

ter-se-ia centrado no esforccedilo para pensar o ente na perspectiva do ser dando

assim a primazia ao pensar em detrimento da acccedilatildeo

Segundo a perspectiva de Bornheim a praxis eacute um conceito ambiacuteguo

situando-se entre o incomensuraacutevel (o mandato do ser) e a particularidades

dos desiacutegnios humanos (dependendo tambeacutem da subjectividade)603 Reabilitar

a praxis604 eacute para Bornheim inverter os termos da relaccedilatildeo entre ser e ente e

pensar o ser na perspectiva do ente trazendo-o para o plano da finitude e da

diferenccedila do modo de ser dos diversos entes

6 2 Ernildo Stein ndash finitude e circularidade ontoloacutegica

621 Ser e Verdade em Heidegger

Ernildo Stein na sua tese de livre-docecircncia de 1968 Compreensatildeo e Finitude

leva a cabo uma reflexatildeo sobre a filosofia heideggeriana sublinhando como

Bornheim a temaacutetica da finitude605

No entanto ele natildeo vai pensar esta ontologia heideggeriana da finitude a partir

da dialeacutectica mas a partir da instauraccedilatildeo de um novo paradigma hermenecircutico

o da circularidade606 mostrando a vigecircncia desse paradigma ao longo de todo

o percurso filosoacutefico do pensador alematildeo cuja unidade ele suporta

602

Gerd Bornheim Dialeacutectica teoria praxis Ensaio para uma criacutetica da fundamentaccedilatildeo ontoloacutegica da

dialeacutetica Porto Alegre 1977 603

ldquoBornheim [hellip] observa o mensuraacutevel encontra a sua uacuteltima medida no incomensuraacutevel no sentido de

que a acccedilatildeo particular termina como que se perdendo no imponderaacutevel da evoluccedilatildeo histoacuterica Mas de

outro lado o incomensuraacutevel se for destituiacutedo da funccedilatildeo reconstrutora do mensuraacutevel perde a sua

proacutepria razatildeo de possibilidade se a histoacuteria se explicasse somente pelo incomensuraacutevel deixaria de ser

humana o que significa que o ser mesmo do incomensuraacutevel depende essencialmente do mensuraacutevel A

praxis vive nessa ambiguidaderdquo Beneval de Oliveira A Fenomenologia no Brasil 35 604

ldquo [hellip] embora a praxis natildeo encontre a sua medida na dicotomia ndash jaacute que ela se insere na totalizaccedilatildeo ndash

nada impede que ela se verifique dentro da dicotomia pois na medida em que ela natildeo pode prescindir da

dicotomia a praxis se daacute atraveacutes do homem e natildeo apenas para o homem E se tal eacute o caso o processo

totalizador se faz com o concurso humano ou seja o desvelamento do ser passa a depender do ente

particular que eacute o homem o homem participa do desvelamentordquo Ibidem 35 605

Ernildo Stein foi um dos primeiros disciacutepulos de Gerd Bornheim no Rio Grande do Sul Cf Aquiles

Cocircrtes Guimaratildees ldquoMetafigravesica e Ontologia na Filosofia Brasileirardquo in Actas do Congresso O Pensamento

Luso-Galaico-Brasileiro 211 606

Para Ernildo Stein para compreendermos a mudanccedila de paradigma instaurada pela obra de Heidegger

eacute necessaacuterio estudar a questatildeo do meacutetodo o que o autor brasileiro faraacute em A Questatildeo do Meacutetodo na

Filosofia um estudo do modelo heideggeriano Porto Alegre 1983

329

Ernildo Stein explicita esta problemaacutetica da finitude em Kant mostrando que

Heidegger em Ser e Tempo retoma esta problemaacutetica a partir de idecircntico

fundamento ldquoKant temporaliza o elo que junge conhecimento sensiacutevel e

intelectual e reduz as possibilidades do conhecimento agraves condiccedilotildees apriori da

sensibilidade e do entendimento Por isso toda a sua filosofia se concentra

numa uacutenica pergunta que eacute o homem Heidegger centrando sua interrogaccedilatildeo

na analiacutetica do ser-aiacute responde a essa pergunta e procura estabelecer assim

todo o conhecimento ontoloacutegico nas estruturas do ser-aiacuteldquo607

Steiner sublinha que em Kant e o problema da Metafiacutesica Heidegger

confrontou-se com as 4 questotildees kantianas mostrando que as 3 primeiras jaacute

revelam a finitude do homem e apontam para a questatildeo ldquoo que eacute o homemrdquo

defendendo que eacute na pergunta pela finitude do homem que reside a fundaccedilatildeo

da metafiacutesica Eacute a partir da finitude do ser-aiacute que se estabelece a ontologia e

por isso mesmo a ontologia eacute o signo da finitude da compreensatildeo do ser

Ora sublinha Stein a analiacutetica do Dasein levada a cabo em Ser e Tempo

mostrara a estrutura do Dasein enquanto preocupaccedilatildeo e temporalidade A

temporalidade como constituindo o horizonte de compreensatildeo do ser vai ser

retomada por Heidegger no diaacutelogo com Kant em Kant e o problema da

Metafiacutesica Aiacute Heidegger mostra que toda a tradiccedilatildeo metafiacutesica ao interpretar

o ser como ousia implicitamente explica o ser a partir do tempo Se nos

interrogarmos sublinha Stein sobre o laccedilo que une ser e tempo temos que

concluir que ldquoo laccedilo que une ser e tempo eacute a proacutepria finitude da compreensatildeo

do ser-aiacuterdquo608

Assim sublinha Stein o que vai caracterizar a interrogaccedilatildeo heideggeriana pelo

ser eacute que ela vai desenrolar-se no interior da finitude isto eacute no interior dum

horizonte intrinsecamente temporal que eacute constitutivo do Dasein

Partindo da problemaacutetica da verdade desenvolvida no uacuteltimo sect da primeira

secccedilatildeo de Ser e Tempo Ernildo Stein demonstra que o pensar o ser no

horizonte da temporalidade liga-se estreitamente ao papel central que tem em

toda a obra de Heidegger a aletheia ao defender que soacute haacute Ser e Verdade

enquanto haacute compreensatildeo do ser este enraiacuteza toda ontologia no ser-aiacute

607

Ernildo Stein Compreensatildeo e Finitude - Estrutura e movimento da interrogaccedilatildeo heideggeriana

[1968] Rio Grande do Sul 2001 244 608

Ibidem 37

330

fundamentando uma ontologia da finitude em ruptura com a tradiccedilatildeo filosoacutefica

ocidental

Em Ser e Tempo Heidegger mostra que toda a verdade no plano ocircntico estaacute

subordinada agrave verdade no plano ontoloacutegico e que esta emerge da estrutura

existenciaacuteria do Dasein cuja unidade eacute ldquoa preocupaccedilatildeordquo (Sorge) Pela sua

constituiccedilatildeo existenciaacuteria - ldquopreocupaccedilatildeordquo (Sorge) ldquoprojectordquo (Entwurf) e

ldquodecaiacutedardquo (Verfall) - ao Dasein pertencem originariamente tanto a autenticidade

como a inautenticidade e assim pertencem-lhe tambeacutem de uma forma

igualmente originaacuteria tanto a revelaccedilatildeo e o descoberto quanto a oclusatildeo e o

fechamento

Assim eacute a abertura constitutiva do Dasein que abre o espaccedilo para toda a

verdade mas essa verdade que emerge da sua estrutura existenciaacuteria aponta

igualmente para a natildeondashverdade A Verdade na sua relaccedilatildeo com a natildeo

verdade aponta para a finitude do Dasein609

Rompendo com a ontologia da substacircncia da tradiccedilatildeo metafiacutesica a ontologia

fundamental exposta em Ser e Tempo recupera a dimensatildeo dinacircmica da

temporalidade a partir da triacuteplice estrutura da temporalidade do Dasein em que

o presente se articula com os dois ecircxtases temporais do passado e do futuro

A temporalidade extaacutetica do Dasein implica uma compreensatildeo do ser que

integra o movimento natildeo como movimento fiacutesico isto eacute como movimento que

se verifica no ente que foi e jaacute natildeo eacute mas como movimento ontoloacutegico que se

daacute como velamento e desvelamento eacute o movimento do ser que se desvela sem

sair do seu velamento sem se esgotar na presenccedila do ente que surge

Este jogo de velamento e desvelamento compreendido na noccedilatildeo de aletheia eacute

caracterizado por Ernildo Stein como um ldquomovimento pendular de

ambivalecircnciardquo que constitui a dinacircmica da existecircncia ldquoO homem estaacute envolto

na ambivalecircncia de velamento e desvelamento O homem estaacute condenado ao

movimento desta ambivalecircncia Natildeo eacute apenas aquele a quem ela se daacute como

velamento e desvelamento Ele mesmo eacute velamento e desvelamento Sua

609

Ernildo Stein defende que o constructo do Dasein tem como efeito necessaacuterio o encurtamento

hermenecircutico e que resta portanto como espaccedilo da filosofia a ldquorevelaccedilatildeordquo (Erschlossenheit) e o que nela

se descobre a estrutura do ldquocomordquo hermenecircutico inaugurando assim um novo universo especulativo o

universo do sentido (Cf Ernildo Stein Seis Estudos sobre Ser e Tempo Petroacutepolis 1988 49)

331

proacutepria constituiccedilatildeo eacute ambivalente Essa ambivalecircncia do ser-aiacute no homem eacute a

sua constituiccedilatildeo circularrdquo610

Este circularidade ontoloacutegica611 que suporta a dinacircmica do Dasein enquanto

projecto lanccedilado oscilando entre a autenticidade e a inautenticidade ldquoatrai o

ser na sua relaccedilatildeo com o homem para dentro desta circularidaderdquo fazendo

com que este soacute possa ser alcanccedilado como velamento desvelamento Mas

por outro lado acentua Ernildo Stein ldquoesta circularidade eacute jaacute um resultado do

proacuteprio ser na sua ambivalecircnciardquo

Para traduzir este movimento ontoloacutegico de velamentodesvelamento612

compreendido na noccedilatildeo de aletheia Heidegger usa segundo Ernildo Stein o

vocaacutebulo Wesen que Stein traduziu como ldquomanifestaccedilatildeo ou acontecer

fenomenoloacutegico do serrdquo Explicando a razatildeo dessa traduccedilatildeo Stein afirma

ldquoQuando falamos em acontecer fenomenoloacutegico do ser apoiamo-nos aqui no

meacutetodo fenomenoloacutegico de Heidegger desenvolvido no sect 7 de Ser e Tempo

Laacute o filoacutesofo fiel ao princiacutepio fenomenoloacutegico procura o acesso ao ser assim

como a partir de si se mostra isto eacute velando-se no ente ldquofenoacutemeno em

sentido fenomenoloacutegico sempre eacute apenas aquilo que constitui o serrdquo Acontecer

fenomenoloacutegico do ser eacute assim um acontecer exclusivo do ser enquanto

velamento e desvelamento em sua ambivalecircncia fundamental Eacute o que

Heidegger pensa pela aletheiardquo613

Segundo Stein Wesen como acontecer fenomenoloacutegico do ser aponta para a

temporalidade patente no vocaacutebulo anwesen ldquopresentear-serdquo na dupla

dimensatildeo de uma presenccedila que aponta para um velamento de onde surgiu

Poreacutem noacutes situamo-nos fora dessa ambivalecircncia e desconhecemo-la e esse

situar-se de fora eacute precisamente segundo Heidegger a caracteriacutestica da

Metafiacutesica614

610

Ernildo Stein Compreensatildeo e Finitude - Estrutura e movimento da interrogaccedilatildeo heideggeriana 111 611

ldquoO constructo Dasein que comanda o encurtamento hermenecircutico [hellip] significa uma reduccedilatildeo para

toda e qualquer pretensatildeo de sistema [hellip] onde se introduziu o universo do sentido [hellip] eacute preciso pensar

meacutetodo e objecto meacutetodo e sistema numa relaccedilatildeo circular sem poder propriamente privilegiar um

momento como ponto de partida fundamentordquo (Cf Ernildo Stein Seis Estudos sobre Ser e Tempo 53) 612

ldquoA hermenecircutica do estar-aiacute opera num domiacutenio em que imperam trecircs elementos novos na tradiccedilatildeo

filosoacutefica a circularidade a totalidade (como antecipaccedilatildeo) e a tendecircncia para o encobrimentordquo Ibidem

63 613

Ernildo Stein Compreensatildeo e Finitude - Estrutura e movimento da interrogaccedilatildeo heideggeriana 115 614

Ernildo Stein em Seis Estudos Sobre Ser e Tempo sublinha que Heidegger leva a cabo o

ldquoencurtamentordquo do domigravenio ontoloacutegico 1- elimina a questatildeo teoloacutegica assim como o problema das

verdades eternas do eu transcendental da filosofia 2 ndash opera a forclusatildeo do mundo natural da filosofia

pois as leis da fiacutesica soacute satildeo quando um estar-aiacute as formula (Ernildo Stein ob cit 22-23)

332

A palavra aletheia eacute descoberta que resultou da meditaccedilatildeo heideggeriana da

histoacuteria da filosofia e marcaraacute todo o discurso heideggeriano sobre o ser Mas

por outro lado Heidegger natildeo se limita a retomar esse vocaacutebulo grego mas

explora a totalidade das suas ressonacircncias ldquoAssim radicam na aletheia todos

os aspectos e gradaccedilotildees do esquecimento e da lembranccedila Estas duas

categorias perpassam todas as obras numa constacircncia ascendente Agrave medida

que essas duas palavras tomam corpo no pensamento elas se desdobram em

todos os seus acircngulos e satildeo de tal modo aproveitadas que a partir delas

poder-se-ia descobrir uma unidade da obra do filoacutesofordquo615

A primeira questatildeo a que Ernildo Stein procura responder eacute - qual a

consequecircncia de Heidegger ter conferido a aletheia uma dimensatildeo ontoloacutegica

como palavra-chave para o pensar do ser A aletheia conduz o pensar do ser

segundo uma estrutura ontoloacutegica bipolar da lembranccedila e esquecimento o ser

eacute esquecimento pois se retrai e se esconde sob os entes que o velam para o

homem que se movimenta na quotidiana familiaridade com os entes Mas o ser

tambeacutem eacute esquecimento porque noacutes estamos inseridos na sua histoacuteria e ele

suporta essa histoacuteria como um impensado que eacute preciso deixar vir ao nosso

encontro como lembranccedila Assim afirma Stein ldquoEsquecimento e lembranccedila

satildeo uma atitude proacutepria daquele que quer manter fidelidade ao pensamento do

ser Natildeo eacute uma atitude escolhida pelo homem mas um dom do ser O

esquecimento e a lembranccedila tecircm um sentido ontoloacutegicordquo616

Assim sublinha Ernildo Stein o pensamento da diferenccedila ontoloacutegica soacute pode

ser pensado dentro desta ambivalecircncia do ser enquanto velamento e

desvelamento e foi o esquecimento desse movimento pendular do ser que

instituiu a metafiacutesica Deste modo a ambivalecircncia do velamento e

desvelamento contido na noccedilatildeo de aletheia suporta a proacutepria histoacuteria do ser

622 Negatividade e finitude

Segundo Stein ao pensar o ser como a-letheia Heidegger introduz no ser a

negatividade e a finitude que assumem no entanto um significado muito

diferente daquele que tecircm em Hegel sendo uma das preocupaccedilotildees de Stein

615

Ernildo Stein Compreensatildeo e Finitude - Estrutura e movimento da interrogaccedilatildeo heideggeriana 115 616

Ibidem 95

333

ldquoevitar a contaminaccedilatildeo dialeacutecticardquo na compreensatildeo da fenomenologia

heideggeriana617

Desde Ser e Tempo Heidegger afirma que o ser eacute o nada dos entes e esta

afirmaccedilatildeo da negatividade estende-se a toda a sua obra acompanhando as

referecircncias ao ser ser como recusa retracccedilatildeo ausecircncia subtracccedilatildeo

ocultamento e velamento Para Heidegger o ser soacute se manifesta na exposiccedilatildeo

do ser-aiacute ao nada e eacute finito porque se manifesta sempre na ambivalecircncia do

velamento e desvelamento

Ser e nada co-pertencem-se mas natildeo porque ambos se apresentam como

algo de imediato e indeterminado como o momento inicial do devir da Ideia em

Hegel O nada e a finitude em Heidegger satildeo pensados positivamente porque

somente assim o ser pode ser experimentado na sua manifestaccedilatildeo Por

conseguinte natildeo se trata para Heidegger de inserir um movimento dialeacutectico

que progredisse pelas negaccedilotildees sucessivas ateacute um horizonte de total

manifestaccedilatildeo da Verdade mas de conservar a ambivalecircncia das duas faces de

manifestaccedilatildeo do ser o desvelamento e o velamento compreendidos na noccedilatildeo

de aletheia618 Citando Heidegger em Nietzsche Ernildo Stein sublinha que

Heidegger chama explicitamente a atenccedilatildeo para a necessidade de conservar a

dupla face do ser na sua oposiccedilatildeo sem apelar agrave dialeacutectica que

ldquoconstantemente se insinua onde se fala de coisas opostasrdquo

Esta insistecircncia na oposiccedilatildeo explica que Heidegger se mantenha sempre na

problemaacutetica da diferenccedila ontoloacutegica e reafirme que o ser nunca se manifesta

fenomenologicamente sem o ente somente se podendo dar no interior desta

diferenccedila como o nada do ente ldquoA diferenccedila ontoloacutegica nada pode dizer de

positivo do ser a natildeo ser que o natildeo-velamento a negatividade eacute a afirmaccedilatildeo

do ser A negaccedilatildeo do ser que se revela nos entes pelo desvelamento eacute a

afirmaccedilatildeo positiva do serrdquo619

617

Ernildo Stein afirma que Heidegger aceita o lugar que tem a questatildeo do meacutetodo no pensamento

hegeliano pois aiacute o meacutetodo conjuga-se com o proacuteprio movimento do pensamento possuindo um caraacutecter

totalizador e especulativo Contudo Heidegger acentua que a filosofia hegeliana da subjectividade

esquece o ser e dissimula a questatildeo fundamental da filosofia Em Hegel onde a filosofia atingiu a sua

plenitude pelo meacutetodo especulativo-dialeacutectico realiza-se tambeacutem a plenitude do velamento da questatildeo do

ser (Cf Ernildo Stein A Questatildeo do Meacutetodo na Filosofia ndash um estudo do modelo heideggeriano 21) 618

Ernildo Stein afirma que para superar o velamento da questatildeo do ser Heidegger propotildee a sua

concepccedilatildeo do meacutetodo fundado num modelo binaacuterio velamento-desvelamento A aplicaccedilatildeo do meacutetodo

fenomenoloacutegico visa pensar o ser que na medida em que estaacute velado deve ser conduzido ao

desvelamento (Cf Ibidem 21) 619

Ernildo Stein Compreensatildeo e Finitude - Estrutura e movimento da interrogaccedilatildeo heideggeriana 116

334

Stein defende que para Heidegger o ser na plenitude da sua presenccedila seria

necessariamente pensado na figura do ente absoluto da tradiccedilatildeo metafiacutesica

Pela negatividade e a finitude Heidegger conserva-se fiel ao ser como

manifestaccedilatildeo fenomenoloacutegica ou aletheia ele nunca pode ser experimentado

na sua plenitude mas daacute-se na ambivalecircncia das suas manifestaccedilotildees histoacuterico-

temporais como jogo entre velamento e desvelamento na descontinuidade e

na ruptura620

Este acontecer fenomenoloacutegico do ser que eacute o negar-se pelo desvelamento

no ente abre no entanto o espaccedilo para muacuteltiplas tentativas de o pensar se pocircr

agrave escuta do ser em instacircncias privilegiadas como a linguagem a obra de arte

a coisa etc Stein chama a atenccedilatildeo para o facto de que este pensar que acolhe

o desvendamento do ser se caracteriza pela atenccedilatildeo prioritaacuteria a uma esfera

ante-predicativa de desvelamento originaacuterio ldquoEste respeito fenomenoloacutegico

pela palavra pela obra de arte e pela coisa que procura surpreendecirc-las em

seu acontecer originaacuterio sem violentaacute-las com a violecircncia do juiacutezo que as

elevaria para a generalidade do ser somente eacute possiacutevel onde se desenvolveu

uma fidelidade agrave diferenccedila imanente O juiacutezo jaacute transcende sempre a

concreccedilatildeo e atinge o ser e os entes em sua generalidaderdquo621

Assim esta ontologia da finitude heideggeriana natildeo ambiciona agrave racionalidade

discursiva e auto-legitimadora do sistema hegeliano nem aspira situar-se num

horizonte transcendental onde possam ser captadas as essecircncias Heidegger

com o seu pensar do ser aspira sim a penetrar na concretude desse

acontecer ante-predicativo e aiacute mostrar o ser na ambivalecircncia do velamento e

do desvelamento A tarefa da filosofia eacute portanto para Heidegger captar o ser

no seu desvelamento e velamento por meio de um meacutetodo adequado que seraacute

a fenomenologia esboccedilada em Ser e Tempo

Stein analisa detalhadamente a reformulaccedilatildeo heideggeriana do conceito de

fenomenologia enfatizando o caminho de ruptura com a fenomenologia de

Husserl pela tomada em consideraccedilatildeo da realidade do ser-no-mundo do

mundo da vida A ideia de fenomenologia como um mostrar das coisas em si

mesmas como a partir de si se mostram estaacute segundo Stein ligada agrave

620

ldquoEm ambos os meacutetodos tanto no especulativo-dialeacutectico como no especulativo-hermenecircutico revela-

se uma pretensatildeo de totalidade Com uma diferenccedila enquanto no primeiro esta totalidade eacute dada como

real no segundo eacute apenas um movimento que jamais se plenifica um movimento de antecipaccedilatildeo de

sentidordquo Ernildo Stein A Questatildeo do Meacutetodo na Filosofiahellip 25 621

Ernildo Stein Compreensatildeo e Finitude - Estrutura e movimento da interrogaccedilatildeo heideggeriana 128

335

compreensatildeo do ser como aletheia ldquoSomente agrave medida que a aletheia

perpassa toda a obra de Heidegger estaacute nela presente tambeacutem a

fenomenologia A aletheia inspira a fenomenologia mas a fenomenologia eacute a

via de acesso ao ser que acontece como aletheia como velamento e

desvelamentordquo622

Assim Stein exclui aquela interpretaccedilatildeo de Heidegger segundo a qual

poderiacuteamos distinguir na sua obra uma primeira fase ldquofenomenoloacutegicardquo e uma

segunda fase dominada pela tentativa de dizer o ser atraveacutes de uma

reformulaccedilatildeo poeacutetica da linguagem Segundo Stein a fenomenologia estaacute

omnipresente na obra de Heidegger coincidindo com o proacuteprio binoacutemio

velamentodesvelamento do ser pensar o ser que se apresenta enquanto se

retira eacute coincidir com o ser enquanto fenoacutemeno623 Deste modo mesmo quando

jaacute natildeo eacute a analiacutetica existencial que ocupa o centro do pensamento

heideggeriano mas sim a meditaccedilatildeo sobre o proacuteprio sentido do ser a

fenomenologia continua ldquosilenciosamenterdquo presente orientando a discussatildeo do

sentido do ser E a histoacuteria do ser enquanto Heidegger procura penetrar no

impensado dos textos da tradiccedilatildeo filosoacutefica abre caminho para um conjunto de

reflexotildees fenomenoloacutegicas sobre a histoacuteria da filosofia

A negatividade e a finitude que caracterizam o pensamento heideggeriano do

ser devem como acima vimos evitar qualquer contaminaccedilatildeo ldquodialeacutecticardquo

Trata-se de manter a negatividade e a finitude assumindo-as positivamente

como o uacutenico caminho de acesso ao ser e esse caminho eacute o da

fenomenologia

623 A circularidade da questatildeo ontoloacutegica

Analisando o existenciaacuterio da compreensatildeo Stein sublinha que o Dasein na

medida em que se projecta em direcccedilatildeo ao poder-ser antecipa jaacute uma

compreensatildeo do ser Heidegger demonstra assim sublinha Stein a existecircncia

duma compreensatildeo pre-ontoloacutegica do ser ldquo[hellip] enquanto existecircncia o ser-aiacute eacute

622

Ibidem 182 623

Stein sublinha que a tarefa fundamental da filosofia eacute para Heidegger captar o ser no seu

velamentodesvelamento atraveacutes de um meacutetodo e horizonte adequados o meacutetodo seraacute o da

fenomenologia o horizonte seraacute o tempo Cf A questatildeo do Meacutetodo na Filosofiahellip 42

336

compreensatildeo e essa compreensatildeo eacute impliacutecita compreensatildeo de serrdquo624 O que

aqui importa poreacutem sublinhar eacute que pela compreensatildeo preacutevia que eacute a

abertura do ser-aiacute noacutes jaacute levamos sempre connosco o sentido que buscamos

e que este horizonte antecipador preacutevio apenas pode ser explicitado e

desenvolvido por uma tematizaccedilatildeo ontoloacutegica A interrogaccedilatildeo pelo ser tem

assim uma estrutura circular tomando como ponto de partida a preacute-

compreensatildeo e desenvolvendo-a explicitamente no contacto com as coisas

mesmas

Ora a primeira consequecircncia desta estrutura circular da interrogaccedilatildeo

ontoloacutegica eacute que ao perguntar pelo ser a filosofia pergunta simultaneamente

pelas condiccedilotildees de possibilidade da proacutepria filosofia e abre caminho para a sua

proacutepria supressatildeo No entanto simultaneamente sublinha Stein a

circularidade da interrogaccedilatildeo ontoloacutegica mostra a impossibilidade de uma

resposta definitiva agrave questatildeo do ser e por conseguinte a possibilidade da

filosofia625

A necessidade de repetidamente repor a questatildeo ontoloacutegica radica antes da

mais na proacutepria estrutura temporal da existecircncia pois a explicitaccedilatildeo das

estruturas do ser-aiacute mediante a fenomenologia hermenecircutica veio

precisamente a demonstrar que o horizonte a partir do qual se compreende e

explicita algo como o ser eacute o tempo

Ora sublinha Stein se o Dasein oscila entre um exerciacutecio apropriado e

inapropriado da temporalidade extaacutetica entatildeo ele corre sempre o risco de

falhar as antecipaccedilotildees de sentido e a abertura e o ocultamento pertencem-lhe

de forma igualmente originaacuteria626 Assim qualquer caminho trilhado para a

624

Ernildo Stein Compreensatildeo e Finitude - Estrutura e movimento da interrogaccedilatildeo heideggeriana 246 625

Stein sublinha que Heidegger ao questionar o ser no tempo e a partir da temporalidade do ser-aiacute

movimenta-se na finitude e compreende a questatildeo do ser fora da tradiccedilatildeo metafiacutesica Ele coloca a questatildeo

do ser atraveacutes do ciacuterculo hermenecircutico que repousa sobre a constituiccedilatildeo circular do ser-aiacute este

movimenta-se no ser na medida em que o ser nele se manifesta e o sustenta Cf A Questatildeo do Meacutetodo na

Filosofiahellip 42 626

ldquoPara Heidegger a fenomenologia de modo algum pode corresponder agraves exigecircncias de radicalidade

husserliana de autofundar a proacutepria facticidade na total transparecircncia O facto de o ser-aiacute ser facticidade

faz com que ele seja irredutiacutevel a uma total transparecircncia reflexiva Sua facticidade eacute existecircncia A

ldquoessecircnciardquo do ser-aiacute o eacute sua existecircncia (34) eacute uma afirmaccedilatildeo que Heidegger insere no iniacutecio de Ser e

Tempo e que aponta para a irredutibidade de o ser-aiacute porque este eacute existecircncia e como tal deveria ser

posto entre parecircntesis para se proceder agrave sua reduccedilatildeo eideacutetica Natildeo sendo poreacutem essecircncia a reduccedilatildeo eacute

impossiacutevel e uma vez posto entre parecircntesis natildeo mais se recuperaria para a reflexatildeo pois sem existecircncia

o ser-aigrave natildeo eacute maisrdquo Ernildo Stein A Questatildeo do Meacutetodo na Filosofiahellip 48

337

elucidaccedilatildeo da pergunta ontoloacutegica fundamental estaacute sujeito a uma revisatildeo

imposta pelo proacuteprio movimento do caminhar627

Para Ernildo Stein o que caracteriza a interrogaccedilatildeo heideggeriana pelo ser e a

verdade eacute precisamente a sua fidelidade a esta circularidade que ele vai

radicalizando e aprofundando ldquoA temporalidade ek-staacutetica que se revelaraacute

como sentido do ser do ser-aiacute isto eacute da preocupaccedilatildeo seraacute por sua vez o

horizonte a estrutura antecipadora para a compreensatildeo do sentido do ser em

geral Nessa perspectiva se estabeleceraacute novamente apenas em outro plano

uma estrutura circular enquanto a temporalidade do ser-aiacute brota da

temporalidade do ser ainda que esta somente seja atingida previamente na

temporalidade do ser-aiacute Esta eacute a dimensatildeo em que se estabelece a

viravoltardquo628

Assim a Kehre ou a ldquoreviravoltardquo629 como traduz Stein seria uma explicitaccedilatildeo

da circularidade da interrogaccedilatildeo ontoloacutegica nela se estabelece uma

compreensatildeo ontoloacutegica circular pois se afirma que se por um lado o homem

projecta o sentido como horizonte para compreender o ser essa projecccedilatildeo

resulta do proacuteprio ser que utiliza o homem para projectar o proacuteprio horizonte em

que se manifesta

Assim ldquona relaccedilatildeo muacutetua o ser e a verdade e o ser-aiacute condicionam-se

mutuamente ainda que num momento se revele a hegemonia de um dos

poacutelosrdquo630 O impasse experimentado por Heidegger em Ser e Tempo residiria

na impossibilidade de pensar a finitude simplesmente a partir do ser-aiacute e a

Kehre eacute para Ernildo Stein o destino necessaacuterio de todo o pensamento que

queira pensar positivamente a finitude da interrogaccedilatildeo pelo ser e pela verdade

na ldquoviravoltardquo passa-se a pensar a finitude a partir do ser e da sua manifestaccedilatildeo

como velamento e desvelamento

Stein mostra que desde Ser e Tempo a preocupaccedilatildeo que se impotildee a

Heidegger eacute o sentido do ser e que o aiacute do Dasein eacute a abertura em que se

627

ldquoA fenomenologia heideggeriana vigiaraacute o acircmbito do velamento e desvelamento em que residem todas

as essecircncias Este acircmbito eacute o lugar em que se daacute a abertura do ser no ser-aigraverdquo Ibidem 4849 628

Ernildo Stein Compreensatildeo e Finitude- Estrutura e Movimento da interrogaccedilatildeo heideggeriana 255 629

Ernildo Stein sublinha que enquanto a fenomenologia eacute utilizada para a analiacutetica da facticidade e da

existecircncia ela eacute hermenecircutica e passa a movimentar-se num ciacuterculo hermenecircutico Mas na Kehre a

estrutura circular do ser-aiacute converte-se no movimento da histoacuteria do pensamento pelo qual ele se volta

para o ser O caraacutecter hermenecircutico da fenomenologia toma entatildeo um sentido mais radical determinando-

se jaacute natildeo a partir do homem mas do ser Cf A Questatildeo do Meacutetodo na Filosofiahellip 111 630

Ernildo Stein Compreensatildeo e Finitude - Estrutura e movimento da interrogaccedilatildeo heideggeriana 37

338

coloca o sentido do ser Para designar este ldquosentido do ser em geralrdquo

distinguindo-o do ldquoser do enterdquo Heidegger recorre jaacute nesta obra agrave palavra

ldquomundordquo eacute o ser-no-mundo que sustenta a abertura o sentido a verdade e o

desvelamento enquanto ligados ao ser Depois de 1930 na viravolta eacute o

mundo no seu acontecer concreto que sustenta a abertura o sentido e o

desvelamento enquanto ligados ao ser o mundo em seu sentido originaacuterio

seraacute o acircmbito em que acontecem todos os sentidos e em que se daacute toda a

transcendecircncia

Ernildo Stein procura pois mostrar em Heidegger uma ontologia da finitude

que eacute simultaneamente uma fenomenologia hermenecircutica do Dasein e uma

ontologia que pensa o ser numa fidelidade fenomenoloacutegica agrave sua manifestaccedilatildeo

como velamentodesvelamento Uma tal ontologia explica Ernildo Stein

ldquoprocura compreender o ser a partir da finitude do ser-aiacute e procura

compreender a finitude do ser-aiacute a partir do ser Nisto reside o ciacuterculo

hermenecircutico ontoloacutegicordquo631

Em segundo lugar Ernildo Stein pergunta qual a caracteriacutestica mais importante

deste novo paradigma hermenecircutico e a essa questatildeo daacute uma inequiacutevoca

reposta a que volta repetidamente ao logo da sua obra a sua circularidade A

aletheia segundo Ernildo Stein eacute caracterizada pela circularidade que jaacute estaacute

implicitamente contida na tarefa do pensar que eacute precisamente pensar o

esquecimento como esquecimento trazendo-o assim agrave lembranccedila Assim o

pensar natildeo visa produzir o novo mas sim recuperar o originaacuterio e Heidegger

poderaacute afirmar que a penetraccedilatildeo na essecircncia da metafiacutesica eacute a penetraccedilatildeo na

essecircncia do esquecimento do ser

A circularidade deste paradigma estaacute patente segundo Stein de forma mais

saliente na noccedilatildeo de Ereignis que como eacute sabido desempenha um papel

central no pensar do ser do ldquosegundo Heideggerrdquo ldquoSe pensarmos enfim a

palavra-chave do pensamento de Heidegger onde domina a forccedila da aletheia -

a palavra Ereignis ou ldquoacontecimento-apropriaccedilatildeordquo - descobriremos nela a

mesma ambivalecircncia do dar-se reciacuteproco do velamento e desvelamento num

movimento de apropriaccedilatildeo e transpropriaccedilatildeo entre ser e homem Eacute no

631

Ibidem 47

339

ldquoacontecimento-apropriaccedilatildeordquo que Heidegger resume o encontro da constituiccedilatildeo

circular do ser-aiacute com o ser da viravoltardquo632

O Ereignis ou acontecimento - apropriaccedilatildeo designa precisamente o instante

do desvelamento do ser que nesse desvelamento se reserva e oculta e uma

reciacuteproca apropriaccedilatildeo do ser e do ser-aiacute ou o instante em que a ek-sistecircncia

se expotildee ao desvelamento do ser eacute por ele expropriada O Ereignis instaura

um movimento de compreensatildeo ontoloacutegica circular em que o ser-aiacute

compreende o ser sendo ele mesmo com-preendido pelo ser A consumaccedilatildeo

desta circularidade ontoloacutegica eacute o acontecer da verdade que se daacute ao homem

natildeo na figura duma verdade intemporal a que ambicionava a metafiacutesica mas

sob o modo de um desvelar-se histoacuterico-temporal que se legitima a si mesmo

na figura da circularidade

Assim podemos entender a viragem heideggeriana natildeo como um facto

histoacuterico que diz respeito agrave evoluccedilatildeo peculiar do seu pensamento mas como o

destino de todo o pensar do ser que quer pensaacute-lo radicalmente e que por isso

mesmo tem que entrar dentro do ciacuterculo de forma adequada para utilizar uma

expressatildeo de Heidegger ldquoNatildeo basta pensar o ser a partir do seu horizonte

(transcendental) privilegiado o ser-aiacute Superando-o eacute preciso partir do proacuteprio

ser para compreender a possibilidade ldquotranscendentalrdquo do ser-aiacute Esta eacute a

viravolta o segundo Heidegger Ainda aiacute o filoacutesofo se movimenta na

ambivalecircncia que perpassa o seu pensamento desde a intuiccedilatildeo originaacuteria e

originante da aletheiardquo633

624 Linguagem e finitude

No ensaio Em busca de uma Ontologia da Finitude de 1969 Stein retoma esta

temaacutetica da finitude integrando a ontologia heideggeriana da finitude numa

problemaacutetica geral aberta com a filosofia transcendental kantiana

Segundo Stein depois de Kant a busca da transcendecircncia refluiu para a

subjectividade tendo perdido a sua vinculaccedilatildeo com o ser e o eu eacute ele mesmo

absolutizado na figura do Eu transcendental

632

Ibidem 116 633

Ibidem 116

340

As filosofias da existecircncia precisamente porque retomaram a questatildeo do ser a

partir homem teriam pela primeira vez possibilitado pensar a transcendecircncia a

partir da existecircncia Com estas filosofias da existecircncia e a sua ontologia da

finitude a busca da transcendecircncia eacute retomada numa nova direcccedilatildeo ela eacute a

experimentaccedilatildeo positiva da condiccedilatildeo finita do homem - o transcender eacute um

esforccedilo para penetrar nas raiacutezes da finitude do homem eacute o experienciar da

ldquofeliz resistecircncia do ar que eacute condiccedilatildeo de o homem poder conhecer-se em sua

profundidaderdquo634

Segundo Ernildo Stein Kant abriu caminho para esta perspectiva de

Heidegger mostrando-lhe que a transcendecircncia natildeo pode ser buscada nos

objectos mas numa viragem do sujeito para si mesmo Para designar este

movimento de busca da transcendecircncia nessa volta a si mesmo levada a cabo

pela ontologia heideggeriana Stein usa o termo ldquorescendecircnciardquo Pela

rescendecircncia o homem desliga-se de qualquer absoluto e procura o ser na

compreensatildeo de si mesmo e da sua finitude

A rescendecircncia significa assim o abandono da transcendecircncia no movimento

vertical em direcccedilatildeo ao Absoluto ou agraves essecircncias da Metafiacutesica como tambeacutem

e simultaneamente a ldquodesabsolutizaccedilatildeordquo do homem em que ainda insistia a

filosofia transcendental quer na modalidade do criticismo neo-kantiano quer

na modalidade fenomenologia husserliana que hipostasiava o sujeito no

ldquofixismo do Eu Purordquo

A rescendecircncia apela para uma filosofia da subjectividade concreta que

consegue resguardar simultaneamente o ser e a finitude ndash ela aponta para um

regresso a si mesmo para experimentar a finitude do homem concreto como

lugar de todas as filosofias

Ainda no mesmo artigo Stein retoma o problema da linguagem jaacute abordado

em Compreensatildeo e finitude Aiacute Stein mostrara que embora Heidegger tenha

deixado de lado durante certo tempo os nomes ldquohermenecircuticardquo e

ldquohermenecircuticordquo ele retoma apoacutes a reviravolta num outro sentido a

hermenecircutica - a vinculaccedilatildeo hermenecircutica do homem com o acontecer do ser

como fenoacutemeno eacute pensada depois da ldquoreviravoltardquo como um ser solicitado pelo

proacuteprio ser para ldquotrazer uma comunicaccedilatildeordquo e ldquoguardar uma mensagemrdquo O

634

Ernildo Stein ldquoEm busca de uma Ontologia da Finituderdquo Revista Brasileira de Filosofia vol XIX

fasc 76 OutNov 1969 405

341

desvelamento do ser acontece na linguagem que eacute agora jaacute natildeo apenas um

existenciaacuterio do Dasein como era dito em Ser e Tempo mas a ldquoa casa do serrdquo

Assim afirma Stein ldquoA manifestaccedilatildeo hermenecircutica que o homem realiza do ser

enquanto fenoacutemeno eacute a proacutepria mensagem que recebe do ser Se o homem

realiza um papel hermenecircutico eacute porque o ser faz com que ele comunique e

assim possibilite a comunicaccedilatildeo de sua mensagem [hellip] Heidegger afirma que

o que determina a vinculaccedilatildeo hermenecircutica do homem com o acontecer do ser

enquanto fenoacutemeno eacute a linguagemrdquo635

Comentando a afirmaccedilatildeo da Carta sobre o Humanismo segundo a qual ldquoa

linguagem eacute a casa do serrdquo Stein afirma que para Heidegger a linguagem

estaacute ligada agrave compreensatildeo do ser pelo aiacute do ser-aiacute ela eacute o aiacute ou a clareira em

que o ser se manifesta Depois da viravolta sublinha Stein eacute o ser mesmo que

instaura no homem a sua casa produzindo a linguagem e esta eacute a proacutepria

essecircncia do homem enquanto ek-sistecircncia

A linguagem eacute pois o lugar onde se manifesta o ser natildeo como um habitaacuteculo

onde seria abrigado o ser como um objecto transportaacutevel mas sim como o

acontecer fenomenoloacutegico do ser A linguagem tal como o ser afirma Stein

natildeo eacute considerada por Heidegger como algo estaacutetico mas como um acontecer

Enquanto a linguagem fala acontece nela o ser Falar da linguagem exige

portanto simultaneamente ouvir a linguagem e ser solicitado por ela no seu

acontecer ou seja o falar da linguagem deve romper com todos os paradigmas

anteriores da filosofia da linguagem ou da loacutegica para se movimentar no

interior do movimento circular de um dizer que apenas pode dizer enquanto

escuta a linguagem no seu dizer do ser

A palavra-chave para dizer a linguagem enquanto linguagem essencial eacute

sublinha Stein no segundo Heidegger ldquo Ereignis Na palavra pensada como

Ereignis (acontecimento-apropriaccedilatildeo) mostra-se a actividade manifestadora

doadora presentificadora do ser (Seyn) A linguagem enquanto Ereignis eacute

contudo palavra precaacuteria e ambivalente por conter em si simultaneamente o

velamento e o desvelamento ldquo[] a circunstacircncia mais problemaacutetica eacute o

proacuteprio facto de a linguagem como o dizer essencial ter ao lado de sua forccedila

desveladora uma forccedila veladora O facto de a proacutepria palavra essencial ser

simultaneamente velamento e desvelamento marca a palavra com uma

635

Ernildo Stein Compreensatildeo e Finitude - Estrutura e Movimento da interrogaccedilatildeo heideggeriana 197

342

ambivalecircncia a que eacute preciso ser fiel fidelidade que exige um ficar suspenso

sobre a proacutepria precariedade do dizerrdquo636

Esta fidelidade agrave precariedade do dizer implica segundo Stein a humildade de

assumir a palavra como um ldquoacenordquo que pode acenar de muacuteltiplos modos sem

nunca se confundir com o de onde e para onde se acena637 Esta fidelidade agrave

precariedade do dizer eacute simultaneamente o sinal distintivo do pensar e do

poetar

Eacute a esta fidelidade agrave precariedade da linguagem que Stein refere um conjunto

de recursos de estilo do discurso heideggeriano designadamente a utilizaccedilatildeo

da forma verbal arcaica de ldquoWesen ou outros recursos estiliacutesticos como forma

ldquoSeyn que eacute um modo de distinguir o Ser do ser dos entes (sein) a

substituiccedilatildeo do ldquoeacuterdquo por dois pontos () ou entatildeo por ldquodesignardquo ldquosignificardquo ldquodaacute-

serdquo como modo de evitar a operaccedilatildeo de total desvelamento implicada na forma

predicativa do discurso

Por outro lado Heidegger veio realizando uma aproximaccedilatildeo ao dizer da poesia

ldquoAs preocupaccedilotildees com a linguagem se desenvolvem intensamente no

segundo Heidegger numa intensidade paralela agrave da preocupaccedilatildeo com o ser e

vice-versa Eacute por isso que os diversos modos com que Heidegger diz o ser na

vira-volta satildeo jaacute ao mesmo tempo ensaios da linguagem para dizer o ser

Nesse sentido deve ser interpretada tambeacutem sua dedicaccedilatildeo aos poetas Natildeo eacute

uma tentativa de diluir a interrogaccedilatildeo pelo ser na poesia Eacute uma descoberta de

que na linguagem dos poetas reside mais proacutexima a possibilidade de dizer o

serrdquo638

Assim a tarefa do pensador que para Heidegger seria vigiar a ambivalecircncia e

sustentar a interrogaccedilatildeo ontoloacutegica no ciacuterculo da finitude exige uma profunda

ruptura com a linguagem da tradiccedilatildeo metafiacutesica assim como a exploraccedilatildeo de

potencialidades esquecidas das liacutenguas naturais Stein reitera em Em busca

de uma Ontologia da Finitude que esta tarefa exige o abandono da linguagem

da metafiacutesica e a busca inventiva duma linguagem experimental capaz de

636

Ibidem 376 637

A ambiguidade da terminologia heideggeriana deve segundo Stein ser correlacionada com o binoacutemio

velamentodesvelamento que comanda tanto a analiacutetica da existecircncia como a histoacuteria do ser Na

perspectiva do pensador brasileiro a linguagem eacute manipulada por Heidegger de modo a que se aproxime

cada vez mais da estrutura ambiacutegua e circular dum processo de compreensatildeo que se move na relaccedilatildeo

circular do ser-aiacute com o ser Cf A Questatildeo do Meacutetodo na Filosofiahellip 114 638

Ernildo Stein Compreensatildeo e Finitude - Estrutura e movimento da interrogaccedilatildeo heideggeriana 364

343

assumir a temporalidade da palavra ldquoNuma filosofia do absoluto a linguagem

humana eacute feita agrave imagem e semelhanccedila de uma linguagem plena e absoluta

Enquanto que na filosofia da finitude a linguagem humana eacute desprovida de

modelo eacute construiacuteda experimentalmente Ele sabe que uma linguagem

absoluta somente eacute possiacutevel onde existe e eacute acessiacutevel o objecto absoluto e o

sujeito absoluto O que dissemos antes do conceito pode ser dito aqui a

respeito da palavra Natildeo a palavra eacute a forccedila do tempo mas o tempo eacute a forccedila

da palavra O poder da palavra nasce precisamente da temporalidade que

carrega em si e natildeo como na tradiccedilatildeo metafiacutesica em que o poder do tempo

nascia da palavra absoluta que em si ocultavardquo639

7 O desvendamento do ser como hermenecircutica

7 1 Emmanuel Carneiro Leatildeo

711 A novidade da hermenecircutica heideggeriana

No ensaio Heidegger e Wittgenstein - insensatez ou esquecimento da

Metafiacutesica Emmanuel Carneiro Leatildeo traccedila um mapa da filosofia

contemporacircnea destacando as ldquodiferenccedilas existenciais na geografia cultural do

ocidenterdquo

Assim segundo o pensador brasileiro poderiacuteamos pensar nesta geografia do

Ocidente duas regiotildees uma de cunho mais anglo-saxatildeo com irradiaccedilotildees para

a Escandinaacutevia e para a Ruacutessia outra com cunho mais franco-germacircnico com

irradiaccedilotildees para o Sul da Europa e Ameacuterica Latina Se na primeira destas

regiotildees encontra eco a tentativa de Wittgenstein de demonstrar que toda a

metafiacutesica sendo destituiacuteda de sentido eacute uma insensatez oriunda de uma

incompreensatildeo loacutegica da liacutengua nos nossos discursos na segunda encontrou

eco a repeticcedilatildeo da tradiccedilatildeo metafiacutesica por Heidegger visando natildeo competir

com ela mas ldquodespedi-lardquo

Contudo sublinha Carneiro Leatildeo pensados agrave luz dum Pensamento Radical

que pensa o pensar referindo-o agraves raiacutezes da sua proveniecircncia no jogo das

suas diferenccedilas essas duas obras abrem-se para a Identidade uma vez que

639

Ernildo Stein ldquoEm busca de uma Ontologia da Finituderdquo Revista Brasileira de Filosofia vol XIX

fasc 76 OutNov 1969 402

344

natildeo apenas Wittgenstein mas tambeacutem Heidegger suspeitam a Metafiacutesica de

insensatez Nesta suspeita Heidegger e Wittgenstein encontram-se aliaacutes com

as criacuteticas de Marx Nietzsche e Freud agrave Metafiacutesica que tambeacutem a colocam sob

a mesma suspeita

Segundo Carneiro Leatildeo estes autores no seu conjunto constituem o horizonte

actual do ldquopensamento criacuteticordquo em que nos movemos e com esse horizonte teraacute

de confrontar-se um Pensamento Radical A questatildeo que deve colocar a si

mesmo este ldquoPensamento Radicalrdquo dirige-se tanto agrave tradiccedilatildeo metafiacutesica

vigente quanto a este horizonte criacutetico aberto pela filosofia contemporacircnea

para perguntar ateacute que ponto este se insere na tradiccedilatildeo que critica e dela

depende ldquoA questatildeo que um Pensamento Radical impotildee aqui refere-se agrave

metafiacutesica vigente na sua proacutepria suspeita de insensatez Como se relaciona o

pensamento criacutetico da suspeita com a insensatez da metafiacutesica criticada Ateacute

que ponto e em que niacutevel o modelo de pensamento de um se insere ainda no

acircmbito da insensatez criticada pelo outrordquo640

Em A Morte do Pensador641 Carneiro Leatildeo retoma esta questatildeo no contexto

de uma reflexatildeo sobre o significado da obra de Heidegger no seu conjunto e da

clarificaccedilatildeo da relaccedilatildeo do pensador alematildeo com a tradiccedilatildeo filosoacutefica Carneiro

Leatildeo sublinha aiacute que a originalidade de um pensamento natildeo eacute a sua novidade

mas a ldquooriginariedade com que acolhe recolhe o apelo de futuro de uma

tradiccedilatildeo histoacutericardquo considerando que essa fidelidade agraves origens eacute a marca

caracteriacutestica do pensamento de Heidegger

Essa fidelidade encontra-a Carneiro Leatildeo na afinidade de Heidegger com o

natildeo-saber socraacutetico tal como o pensador do Oraacuteculo de Delfos natildeo negou

nem afirmou coisa alguma mas apenas assinalou o retraimento do misteacuterio

em toda a negaccedilatildeo e afirmaccedilatildeo assim tambeacutem Heidegger procurou sempre

reconduzir o pensamento ldquoao misteacuterio da sua fecunda identidaderdquo

Heidegger ter-se-ia confrontado com a histoacuteria da filosofia e as suas diferenccedilas

pensando-as como peripeacutecias que atestam a impossibilidade radical da

omnipotecircncia do pensar e a impossibilidade de este se apossar e possuir a

identidade de sua essecircncia

640

Emmanuel Carneiro Leatildeo ldquoHeidegger e Wittgenstein - insensatez ou esquecimento da Metafiacutesicaldquo in

Aprendendo a Pensar vol 1 Petroacutepolis 1976 136 641

Emmanuel Carneiro Leatildeo ldquoA Morte do Pensadorrdquo in Aprendendo a Pensar 1 142

345

Heidegger seria assim ao lado de Nietzsche o mais socraacutetico e traacutegico dos

pensadores modernos - esse socratismo de Heidegger faria dele um pensador

intempestivo que atenta contra os haacutebitos de pensar e os limites do dizer

impostos tanto pela tradiccedilatildeo filosoacutefica como tambeacutem pela linguagem actual da

teacutecnica e da ciecircncia Esta discursividade da metafiacutesica e da ciecircncia

estruturando-se de acordo com uma mesma sintaxe e uma mesma semacircntica

eacute directamente visada e posta em causa pelo pensamento de Heidegger que

face a estas assume uma feiccedilatildeo desconstrutiva e libertadora

O caraacutecter negativo e desconstrutivo da hermenecircutica heideggeriana eacute posto

poreacutem em correlaccedilatildeo estreita com a sua dimensatildeo positiva ela aponta

positivamente para o domiacutenio impensado que sustenta os discursos

metafiacutesicos como sua origem esquecida

Esse retorno agraves origens da Metafiacutesica natildeo eacute - sublinha Carneiro Leatildeo em O

Itineraacuterio do Pensamento de Heidegger - a tentativa de fazer renascer os

pensadores preacute-socraacuteticos como por vezes se pensa mas ldquoa imposiccedilatildeo de um

pensamento de essencializaccedilatildeo (das Wesentliche Denken diz Heidegger) um

pensamento que a partir da proacutepria essencializaccedilatildeo da metafiacutesica procura

superar-lhe o esquecimento da verdade do serldquo642

Neste ensaio o pensador brasileiro mostra que para Heidegger o

esquecimento da verdade do ser que na era da teacutecnica da ciecircncia atinge o seu

paroxismo e o seu maacuteximo vigor histoacuterico eacute o fundamento impensado de toda

a tradiccedilatildeo metafiacutesica O ser operando segundo a dialeacutectica da ldquore-velaccedilatildeo da

diferenccedila ontoloacutegicardquo retraindo-se e velando-se revela o ente lanccedilando o

pensar no jogo da dialeacutectica do fundado e do fundamento ldquoA verdade do ser

retraindo-se e velando-se em si extrai e revela o ente na divergecircncia e

convergecircncia entre fundamento e fundado Jogado por tal dialeacutectica o

pensamento metafiacutesico se edifica em duas dimensotildees Enquanto estruturado

na diferenccedila loacutegica de ente e ser reconduz o ente ao fundamento de

possibilidade proacuteximo em seu ser e remoto no ser supremordquo643

Ora diz Carneiro Leatildeo o horizonte dentro do qual pensam os pensadores da

tradiccedilatildeo ocidental exclui directamente e ao mesmo tempo inclui obliquamente a

642

Emmanuel Carneiro Leatildeo ldquoO Itineraacuterio do Pensamento de Heideggerrdquo in Aprendendo a Pensar 1

124 643

Emmanuel Carneiro Leatildeo ldquoO Itineraacuterio do Pensamento de Heideggerrdquo in Aprendendo a Pensar 1

124

346

dimensatildeo do natildeo pensado isto eacute a dimensatildeo da Verdade do ser sendo por

isso a dimensatildeo do natildeo pensado o mais importante legado que segundo

Heidegger nos pode oferecer um pensamento

Assim o que distingue a hermenecircutica heideggeriana de qualquer

hermenecircutica cientiacutefica eacute que esta uacuteltima se limita ao pensado pelos filoacutesofos

da tradiccedilatildeo - para ela legado e pensado coincidem enquanto a hermenecircutica

heideggeriana visa o natildeo pensado como o legado essencial do pensamento da

tradiccedilatildeo644

712 Hermenecircutica e Teologia

Em Hermenecircutica Revelaccedilatildeo Teologia Emmanuel Carneiro Leatildeo explicita o

sentido heideggeriano de ldquohermenecircuticardquo distinguindo o seu sentido originaacuterio

de um sentido secundaacuterio e derivado No sentido originaacuterio a hermenecircutica eacute

jaacute sempre o homem enquanto articula a compreensatildeo do mundo na fala e a

exerce enquanto linguagem faacutectica ou liacutengua Neste primeiro niacutevel a

hermenecircutica natildeo resulta de nenhuma decisatildeo mas da necessidade em que o

homem sempre estaacute de interpretar o mundo agrave volta

A hermenecircutica neste primeiro e originaacuterio sentido natildeo eacute teoria nem processo

de interpretaccedilatildeo mas sim a vida da linguagem enquanto ela eacute efectivamente

exercida como pluralidade das liacutenguas ldquoO homem eacute a vida da Linguagem

tanto no sentido de que sua humanidade chega a si mesma na passagem

reciacuteproca da liacutengua para a Linguagem como no sentido de que na sua

humanidade a Linguagem se daacute enquanto se retrai como liacutenguardquo645

Ainda a este primeiro niacutevel a hermenecircutica guarda sublinha Carneiro Leatildeo a

sua relaccedilatildeo com o misteacuterio pois ela eacute ldquoo acontecer da Linguagem do Misteacuterio

na estrutura da liacutenguardquo

A um segundo niacutevel a hermenecircutica eacute jaacute interpretaccedilatildeo consciente de si mesma

sem que contudo toda a interpretaccedilatildeo se possa considerar hermenecircutica com

efeito esclarece Carneiro Leatildeo em Hermenecircutica do Mito ldquonem toda a

644

ldquoEmmanuel Carneiro Leatildeo distingue trecircs nigraveveis de hermenecircutica denominando-os respectivamente

hermenecircutica fenomenoloacutegica hermenecircutica psicanaliacutetica e hermenecircutica existecircncial Privilegia esta

uacuteltima na suposiccedilatildeo de que permite descer ateacute agrave dinacircmica que estrutura a histoacuteriardquo Antoacutenio Paim A

Filosofia Brasileira Contemporacircnea 120 645

Emmanuel Carneiro Leatildeo ldquoHermenecircutica Revelaccedilatildeo Teologia ldquo in Aprendendo a Pensar 1 220

347

interpretaccedilatildeo eacute uma hermenecircutica Somente aquela que descer ateacute agrave dinacircmica

que estrutura a histoacuteriardquo646 Destacando o que marca uma determinada

interpretaccedilatildeo como ldquohermenecircuticardquo Carneiro Leatildeo parafraseando Heidegger

lembra que o verbo hermeneuein significa transmitir trazer mensagens sendo

Hermes o mensageiro dos deuses ldquoHo herneneuacutes pode ser posto em

referecircncia com Hermes o mensageiro dos deuses Ele traz e transmite a

mensagem do destino que trama as vicissitudes da histoacuteria dos homensrdquo647

No ensaio Hermenecircutica Revelaccedilatildeo e Teologia Carneiro Leatildeo esforccedila-se por

delimitar o acircmbito da hermenecircutica em relaccedilatildeo ao sentido corrente da

hermenecircutica considerada como o conjunto de leis meacutetodos teacutecnicas e

teorias de interpretaccedilatildeo ldquoaplicaacuteveis indiferentemente aos diversos tipos de

textos Neste sentido corrente a hermenecircutica eacute definida como a ciecircncia que

faz ldquoa leitura do sentido de uma estrutura significante em sua intenccedilatildeo

significativa dentro de uma comunidade linguiacutesticardquo648

Em flagrante ruptura com este pensamento objectivo da ciecircncia hermenecircutica

a hermenecircutica heideggeriana ou hermenecircutica existencial parte do princiacutepio

que qualquer interpretaccedilatildeo se vincula a uma preacute-compreensatildeo do ser daquilo

que se visa interpretar procurando enraizar-se num acircmbito de sentido mais

originaacuterio e nele fundar as suas decisotildees hermenecircuticas649 Estas decisotildees

hermenecircuticas natildeo satildeo poreacutem nunca arbitraacuterias mas satildeo-lhe impostas pela

ldquosituaccedilatildeo da existecircnciardquo Esta situaccedilatildeo da existecircncia poreacutem natildeo eacute sublinha

Carneiro Leatildeo um facto mas uma imposiccedilatildeo da ldquoeacutepoca de misteacuteriordquo em que se

situa o inteacuterprete ldquoA situaccedilatildeo da existecircncia poreacutem nunca eacute um simples fato

Inclui sempre o projecto de transcendecircncia do Nada em cuja forccedila o

pensamento emerge das circunstacircncias e fatos de uma dada imersatildeo histoacuterica

Uma interpretaccedilatildeo essencial nasce sempre de uma reflexatildeo sobre e a partir da

eacutepoca de misteacuterio em que interpreta o inteacuterpreterdquo650

646

Emmanuel Carneiro Leatildeo ldquoHermenecircutica do Mitordquo in Aprendendo a Pensar 1 196 647

Ibidem 196 648

Emmanuel Carneiro Leatildeo Aprendendo a Pensar 1 218 649

Para a elaboraccedilatildeo desta temaacutetica teve um papel relevante a confrontaccedilatildeo com a hermenecircutica

psicanaliacutetica levada a cabo nos ciacuterculos de estudos integrados por psicanalistas e orientados por

Emmanuel Carneiro Leatildeo Escreveu em colaboraccedilatildeo com Faacutebio Lacombe um livro intitulado Existecircncia

e Psicanaacutelise (Tempo Brasileiro 1975) Cf Antoacutenio Paim A Filosofia Brasileira Contemporacircnea 120 650

Emmanuel Carneiro Leatildeo ldquoHermenecircutica Revelaccedilatildeo Teologiardquo in Aprendendo a Pensar Petroacutepolis

1 213

348

Esta hermenecircutica natildeo eacute pois cientiacutefica nem enuncia propriamente um saber

seguro de si mesmo que possa possuir-se como certeza mas conteacutem em si

uma referecircncia agrave ldquoeacutepoca de misteacuteriordquo em que se situa

Eacute a partir desta referecircncia que podemos pensar a sua relaccedilatildeo negativa com a

Teologia Uma reflexatildeo radical sobre a actual eacutepoca da existecircncia mostra-nos

que ela eacute dominada pela transiecircncia isto eacute pelo projecto fundamental de uma

existecircncia trabalhada pela provisoriedade de tudo e de todos jogada pelo ritmo

acelerado que tudo condena ao efeacutemero Num tal mundo Deus estaacute tatildeo

distante que jaacute natildeo haacute lugar para o sagrado pelo que o homem actual natildeo

pode aceitar os dogmas as sentenccedilas e decisotildees de uma teologia como a

linguagem salviacutefica de Deus

Para Carneiro Leatildeo eacute precisamente desta recusa que a nossa eacutepoca opotildee agrave

racionalidade e agrave discursividade da Teologia que vem o apelo hermenecircutico

como apelo do proacuteprio misteacuterio a manter-se na sua vigecircncia misteriosa ldquoNa

raiz mais iacutentima do seu ser o homem nunca eacute ele mesmo mas eacute sempre o

movimento de reconduzir-se ao misteacuterio ou seja o homem eacute sempre ele

mesmo porque constantemente estaacute reconduzido ao misteacuteriordquo651

Para esta hermenecircutica existencial o homem eacute como para Nietzsche uma

ponte para aleacutem de si mesmo que por isso deve ter o vigor de deixar ser o

misteacuterio - e o misteacuterio natildeo eacute nunca o passageiro e o transiente mas o mais

permanente e originaacuterio A hermenecircutica eacute assim uma ldquonesciecircnciardquo ou uma

ldquoindocta ignoracircnciardquo que pertence de forma essencial agrave ciecircncia ldquoEsta

nesciecircncia nesciente do misteacuterio que se daacute enquanto se retrai em nossa eacutepoca

de misteacuterio eacute o princiacutepio fundamental de toda a hermenecircutica digna desse

nomerdquo652

Esta hermenecircutica existencial assume a forccedila nadificante do natildeo que age por

toda a parte como negaccedilatildeo do sagrado e assume que o dia dos deuses

(Goumlttertag) chegou ao ocaso no ocidente fazendo com que os homens e as

coisas jaacute natildeo estejam ldquoreunidos de modo visiacutevel e natural no seio de Cristordquo

Assumindo a morte de Deus como destino epocal do ser a hermenecircutica

existencial sabe que uma nova parusia natildeo depende do homem podendo

651

Ibidem 217 652

Ibidem 218

349

apenas caber-lhe e ele o papel de recuperar a sensibilidade para o misteacuterio da

existecircncia

Esta hermenecircutica existencial a que Emmanuel Carneiro Leatildeo chama tambeacutem

Pensamento Essencial aponta assim para uma ldquoconversatildeordquo que natildeo eacute no

entanto uma conversatildeo religiosa ldquoO que resta ao homem eacute apenas

preambular a feacute convertendo-se para a sua Essecircncia Nesta conversatildeo

recupera a sensibilidade para o misteacuterio da existecircncia o destino do Ser que

em irrupccedilotildees suacutebitas de sua verdade abre o caminho da Histoacuteria dos entes

Converter-se eacute mudar de pensar Cumpre abandonar o pensamento esquecido

na objectividade dos entes e absorto na eficiecircncia do real para se poder

recuperar a serenidade do Pensamento Essencial que pensa a Verdade do

Ser prorrompendo em adventos repentinos sobre a essecircncia dos entesrdquo653

Ora o pensamento essencial eacute o pensamento da mudanccedila do pensar da

metanoacuteia que eacute precursor do sagrado mas que natildeo conduz a nenhuma feacute

particular Ele eacute re-volucionaacuterio no sentido em que re-voluciona os haacutebitos de

pensamento concentrando-se naquelas negaccedilotildees que lhe permitem rasgar um

novo horizonte a sua negatividade deve atingir as formas metafiacutesicas

teoloacutegicas e religiosas com que a Divindade foi sepultada na histoacuteria do

Ocidente A metanoacuteia do pensamento essencial renuncia a todas as

representaccedilotildees tradicionais de Deus contaminadas pela metafiacutesica ldquoA

metafiacutesica se apoderou de todas as palavras de toda a gramaacutetica e de todas

as linguagens transformando-as em outras tantas funccedilotildees da sua estrutura

onto-teo-loacutegicardquo654

Esta estrutura onto-teo-loacutegica estaacute subjacente segundo Carneiro Leatildeo tanto

ao humanismo como ao monoteiacutesmo contaminando toda a linguagem usada

para falar de Deus e pervertendo toda a relaccedilatildeo do homem com o ser

Explicitando esta estrutura onto-teo-loacutegica Carneiro Leatildeo afirma que esta eacute

uma estrutura que integra o ocircntico o theos e o loacutegico sendo este o dominante

e a forccedila estruturante ldquoA metafiacutesica eacute onto-teoloacutegica porque eacute loacutegica E por ser

loacutegica abandona a diferenccedila como diferenccedila dinamiza uma ontologia sem Ser

653

Emmanuel Carneiro Leatildeo ldquoCristo e a Re-voluccedilatildeo do Pensamentordquo in Aprendendo a Pensar 1 226 654

Ibidem 229

350

e uma teologia sem Deus instala um sistema de controlo e promove uma

Histoacuteria sem misteacuteriordquo655

A loacutegica eacute uma estrutura ldquohipotaacuteticardquo das ideias que funda as ideias umas nas

outras incitando agrave procura dum uacuteltimo fundamento como principium essendi et

cognoscendi de toda a realidade Sendo loacutegico o itineraacuterio ateacute Deus

desenvolve-se no elemento do puro pensar e acaba em Hegel por identificar o

ser e pensar Em Hegel podemos compreender claramente a afirmaccedilatildeo de

Heidegger de que a metafiacutesica eacute loacutegica como onto-loacutegica na medida em que

pensa o ente no seu todo na dinacircmica do fundamento e fundado e eacute teologia

porque essa dinacircmica do fundamento eacute a do Absoluto que se pensa a si

mesmo

Assim a metafiacutesica eacute teoloacutegica por que eacute Loacutegica isto quer dizer que ldquoa

Verdade do ser se destinou na figura do Logos isto eacute na dinacircmica de

fundamentaccedilatildeo reivindicando todas as forccedilas da criaccedilatildeo histoacuterica para o

Absoluto da razatildeo e da racionalidaderdquo

Negando Deus como este Absoluto da razatildeo o pensamento essencial

renuncia pois a pensaacute-lo e a falar dele Contudo se a hermenecircutica actual natildeo

dispotildee de linguagem para falar de Deus nem mesmo para pensar Deus isso

natildeo significa que ela aponte em direcccedilatildeo ao ateiacutesmo ldquoMas este pensamento

sem Deus natildeo eacute um pensamento ateu Ao contraacuterio Por abandonar o Deus

dessacralizado da metafiacutesica estaacute mais proacutexima talvez do Deus divino O

silecircncio de Deus talvez seja a uacutenica maneira de vencer de forma decisiva a

dessacralizaccedilatildeo do mundo Talvez seja o cairos de um novo des-velar-se do

horizonte do Sagrado Um horizonte do Sagrado mais originaacuterio do que as

experiecircncias que nos proporcionam as religiotildees modernas cativas todas de

uma metafiacutesica mais teoloacutegica e mais dessacralizada do que nuncardquo656

Em coerecircncia com este pensamento essencial Emanuel Carneiro num artigo

intitulado ldquoPoder e Autoridade do Cristianismordquo questiona o cristianismo

instituiacutedo pela autoridade de uma longa tradiccedilatildeo literaacuteria e teoloacutegica

contrapondo-lhe a hermenecircutica pela primazia por esta concedida ao inefaacutevel e

ao misterioso Contra essa tradiccedilatildeo decaiacuteda o pensador brasileiro volta a

lembrar o sentido etimoloacutegica de hermenecircutica concluindo que ldquoHermeneuein

655

Emmanuel Carneiro Leatildeo ldquoHegel Heidegger e o Absolutordquo in Aprendendo a Pensar 1 257 656

Emmanuel Carneiro Leatildeo ldquoCristo e a Re-voluccedilatildeo do Pensamentordquo in Aprendendo a Pensar 1 230

351

interpretar natildeo diz conduzir alguma coisa para a claridade da razatildeo e o

discurso da liacutengua mas reconduzi-la a seu lugar de origem no misteacuterio da

Linguagemrdquo657 e reclama para a hermenecircutica a tarefa de uma autecircntica

interpretaccedilatildeo dos textos sagrados

Agrave autoridade do dogma que repete os mesmos enunciados em que pretende

tornar patente e fazer presente o misteacuterio Emmanuel Carneiro Leatildeo contrapotildee

uma outra forma de a hermenecircutica tornar vigente uma tradiccedilatildeo ldquoo ente eacute o

vigente seja o preacute-sente ta t‟eonta ndash o que eacute ndash seja o au-sente ta t‟essomena

ndash o que seraacute ndash e proacute t‟eonta- o que foi antes [hellip] Ora passado e futuro tambeacutem

satildeo vigentes Soacute que o modo da sua vigecircncia natildeo eacute a patecircncia do preacute-sente

mas a latecircncia do au-sente O au de au-secircnte natildeo diz dentro mas fora do

espaccedilo aberto pela patecircncia Sua vigecircncia eacute latente mas como tal referida

sempre pela identidade com o vigor agrave patecircncia do presente Eacute tatildeo profunda

esta re-ferecircncia que constitui a o sentido e a fonte da di-ferenccedila de presente e

ausenterdquo658

Para Carneiro Leatildeo toda a interpretaccedilatildeo autecircntica tem que ter em conta que

visando tornar presente o misteacuterio ela se move apenas no inevitaacutevel jogo da

identidade e das diferenccedilas do traduzir e interpretar uma mensagem que estaacute

ela mesma sempre para aleacutem de todas as suas formulaccedilotildees e se resguarda no

misteacuterio da ausecircncia

Esta linguagem do Misteacuterio do Cristianismo eacute para Emmanuel Carneiro Leatildeo

mais do que toda essa tradiccedilatildeo literaacuteria que a submeteu a muacuteltiplas

interpretaccedilotildees obscurecendo e encobrindo aquilo que devia interpretar Contra

essa tradiccedilatildeo decaiacuteda a hermenecircutica pode contribuir para recuperar a forccedila

instituinte do cristianismo ldquocairoloacutegicordquo e popular da Igreja Primitiva659

657

Emmanuel Carneiro Leatildeo ldquoPoder e Autoridade no Cristianismordquo in Aprendendo a Pensar Petroacutepolis

1 248 658

Ibidem 249 659

Esta valorizaccedilatildeo dum cristianismo primitivo deve ser correlacionada com a redescoberta da

importacircncia do mito Emmanuel Carneiro Leatildeo interroga-se sobre o sentido profundo da redescoberta

contemporacircnea da importacircncia do mito mostrando a significaccedilatildeo que ela assume para as filosofias

existenciais como afirmaccedilatildeo de uma verdade inquestionaacutevel relativa ao homem Cf Beneval de Oliveira

A Fenomenologia no Brasil 13

352

713 Hermenecircutica da eacutepoca contemporacircnea e pensar originaacuterio de Heidegger

Carneiro Leatildeo leva a cabo em diversos artigos uma hermenecircutica da eacutepoca

contemporacircnea que ele define como a era da ciecircncia porque eacute a ciecircncia que

na nossa era determina o ser e a verdade porque ela eacute o meio em que se faz

a experiecircncia e se determina o sentido de tudo o que eacute e eacute ela que decide da

histoacuteria humana

A ciecircncia que foi uma possibilidade historicamente concretizada pelo homem

ocidental cobre actualmente o mundo inteiro enformando os diversos povos e

impondo-se-lhes como um destino histoacuterico a que jaacute ningueacutem pode subtrair-se

por uma decisatildeo Contudo a questatildeo eacute para o autor saber qual a origem

desse destino histoacuterico que se bem que inescapaacutevel eacute contudo apenas

epocal e natildeo algo de intrinsecamente necessaacuterio para a existecircncia do

homem660

Para traccedilarmos a geacutenese histoacuterico-ontoloacutegica da ciecircncia haacute a considerar que

hoje jaacute natildeo podemos fazer uma separaccedilatildeo entre o ldquomundo da vida preacute-

cientiacuteficardquo e o mundo da ciecircncia pois jaacute a vida dos homens e da proacutepria

natureza se encontra transformada pelas invenccedilotildees industriais e pelos recursos

da teacutecnica - assim a nossa vida preacute-cientiacutefica jaacute se encontra sempre

determinada pela ciecircncia e jaacute nos achamos em seu poder ainda antes de

entrarmos nela

Esta dominaccedilatildeo da ciecircncia eacute contudo paradoxal pois a ciecircncia natildeo eacute um

fenoacutemeno existencial constitutivo do ser homem como o trabalho o amor ou o

domiacutenio natildeo sendo uma estrutura da existecircncia como eacute o desejo de saber ela

eacute poreacutem uma condiccedilatildeo histoacuterica um facto inescapaacutevel imposto por uma certa

configuraccedilatildeo das forccedilas histoacutericas que por assim dizer se apossaram daquele

desejo de saber e lhe deram essa configuraccedilatildeo particular de ldquociecircnciardquo a ciecircncia

eacute pois uma articulaccedilatildeo histoacuterica do desejo de saber originaacuterio ao contraacuterio da

filosofia que eacute um saber intrinsecamente vinculado agrave existecircncia e agrave sua

estrutura projectiva

660

Antoacutenio Paim sublinha que para Carneiro Leatildeo o homem estaacute naturalmente condicionado pelo desejo

de saber fenoacutemeno central da existecircncia mas que natildeo devemos identificar esse desejo originaacuterio de saber

com a ciecircncia ocidental que eacute uma configuraccedilatildeo histoacuterica e limitada daquele Cf A Filosofia Brasileira

Contemporacircnea 121

353

Porque ao homem pertence a compreensatildeo do ser natildeo estaacute na sua matildeo

subtrair-se agrave filosofia que lhe pertence sempre essencialmente O facto de na

era da ciecircncia caiacuterem as sombras do esquecimento sobre a filosofia eacute jaacute em si

mesmo um facto da maior importacircncia para caracterizar a eacutepoca actual Afirma

a este propoacutesito Carneiro Leatildeo ldquoNenhuma outra eacutepoca julgou tantas verdades

mas tambeacutem se incomodou tatildeo pouco com a essecircncia da verdade Nenhum

outro tempo fez tamanho progresso na conquista dos mundos sem no entanto

preocupar-se com a questatildeo da mundaneidade do mundo O alarido da ciecircncia

o roncar da teacutecnica enchendo-nos os ouvidos do esquecimento do ser

entorpece-nos as forccedilas do espiacuterito deixando a filosofia adormecida numa

paisagem de cogumelos atoacutemicosrdquo661

A explicitaccedilatildeo deste projecto metafiacutesico subjacente agrave ciecircncia moderna eacute

retomada num artigo sobre a Carta sobre o Humanismo onde o pensador

brasileiro retoma a caracterizaccedilatildeo da eacutepoca contemporacircnea a partir da sua

relaccedilatildeo com o humanismo e com a teacutecnica Aiacute Carneiro Leatildeo defende que

Heidegger procura redimensionar o humanismo pensando a proveniecircncia da

sua essecircncia a partir da experiecircncia fundamental do esquecimento do ser e

estabelece um nexo entre a temaacutetica do humanismo e a temaacutetica da teacutecnica

Para uma interpretaccedilatildeo humanista do homem ele eacute um ldquosujeitordquo e afirma-se

como uma subjectividade ldquosujeitando agraves forccedilas das suas proacute-spectivas teacutecnicas

o ser dos entesrdquo transformando-o na objectividade de simples objectos Assim

o ser eacute nada por se destinar tanto na objectividade-subjectividade do ente

como na subjectividade-objectividade do homem O homem afirma-se como

homem enquanto subjectividade que controla e estabelece os entes na

objectividade

Estabelecida a objectividade como valor supremo para o homem soacute tem valor

o ente capaz de ser objecto e a arte a religiatildeo a poesia e a filosofia soacute

possuem valor se puderem tornar-se objectos para a subjectividade

controladora A vigecircncia desta correlaccedilatildeo sujeito-objecto que na era da ciecircncia

e da teacutecnica atinge o paroxismo eacute pensada por Heidegger sublinha Carneiro

Leatildeo como ldquoeacutepocardquo do destinar-se do ser no esquecimento

Esta eacutepoca arrancando o homem agrave relaccedilatildeo com o ser em que reside a sua

essecircncia convoca o homem para a ldquonoite histoacutericardquo em que o homem erra

661

Emmanuel Carneiro Leatildeo ldquoA Filosofia na Idade da Cecircnciardquo Aprendendo a Pensar 1 28

354

perdido da sua essecircncia e da sua humanidade sendo essa a-patridade

essencial que vigora na planetarizaccedilatildeo do mundo moderno da teacutecnica Esta

noite histoacuterica do humanismo contemporacircneo natildeo depende de uma decisatildeo do

homem mas impotildee-se como um destino cujo sentido Carneiro Leatildeo clarifica a

partir do significado da palavra alematilde Geschick derivada do verbo schicken

estruturar dispor enviar Geschick reuacutene esses trecircs significados e articula o

sentido originaacuterio de geschehen vorstehen gehen lassen fazer ter lugar dar-

se acontecer - assim a eacutepoca actual eacute como toda a histoacuteria Ge-schick

destinaccedilatildeo do Ser enquanto envio do ser que se faz no homem

Pensar natildeo eacute exercitar uma faculdade da consciecircncia mas articular o destino

do ser que contudo ao destinar-se se reteacutem e esconde como destino Afirma

Carneiro Leatildeo ldquoHeidegger pensa tal dialeacutectica de dar-se e retrair-se no termo

epocheacute oriundo da nomenclatura de Stoaacute De epoche ele forma o adjectivo

epochal = epocal que significa o vigor dialeacutectico do destinar-se do serrdquo662

Por isso mesmo natildeo eacute possiacutevel pensar agrave margem do destino epocal do ser

mas eacute necessaacuterio precisamente assumir essa ldquonoite histoacutericardquo que enquanto

destino epocal do ser nos convoca a pensar ldquo[hellip] o que hoje nos eacute dado como

proacute-vocaccedilatildeo para pensar eacute a filosofia ocidental na forma da ciecircncia

modernardquo663 Por isso natildeo podemos pensar agrave margem da ciecircncia mas somos

obrigados a pensar no meio do proacuteprio desespero da ciecircncia que ldquose atropela

na impotecircncia do seu poder em alcanccedilar o misteacuterio do pensamentordquo

O propoacutesito da hermenecircutica esclarece Carneiro Leatildeo natildeo eacute substituir-se agrave

ciecircncia nem negar a ciecircncia mas remontar ao originaacuterio ldquooriginaacuterio natildeo diz

portanto uma determinaccedilatildeo cronoloacutegica nem indica uma explicaccedilatildeo diacroacutenica

do modo de ser Ocidental originaacuteria eacute a aurora em que a proacutepria escuridatildeo do

Ser se daacute sempre em novas vicissitudes de sua verdade ora como

pensamento ora como filosofia ora como cristianismo ora como modernidade

ora como ciecircncia ora como mito ora como teacutecnica ora como arte ora como

planetariedade ora como marginalidade mas sempre em qualquer hora tanto

outrora como agora soacute se daacute enquanto se retrai como misteacuteriordquo664

662

Emmanuel Carneiro Leatildeo ldquoSobre o Humanismordquo in Aprendendo a Pensar 1 131 663

Emmanuel Carneiro Leatildeo ldquoO Pensamento Originaacuteriordquo in Aprendendo a Pensar 1 87 664

Ibidem 90

355

Numa extensa apresentaccedilatildeo da traduccedilatildeo portuguesa da Introduccedilatildeo agrave

Metafiacutesica Carneiro Leatildeo esclarece esse pensar originaacuterio mostrando o

Itineraacuterio do Pensamento de Martin Heidegger como um remontar agrave origem da

ciecircncia e da teacutecnica que encontra essa origem na metafiacutesica grega ldquoA reflexatildeo

sobre a situaccedilatildeo da nossa existecircncia revela a consciecircncia de uma unidade e de

uma interrupccedilatildeo histoacuterica Sentimo-nos viandantes de um uacutenico Dia Histoacuterico

que se tende do sol nascente na aurora grega de Homero ao sol poente na era

atoacutemicardquo665

Procurando explicitar o sentido fundamental que a tradiccedilatildeo metafiacutesica assume

para Heidegger Carneiro Leatildeo mostra que nos diversos periacuteodos da Metafiacutesica

o ser do ente foi sucessivamente determinado como ideia ousia essentia

objectividade e estas diversas designaccedilotildees natildeo satildeo arbitraacuterias mas resultam

das ldquovicissitudes de um apelordquo e satildeo ldquofulguraccedilotildees de um destinordquo Esse apelo e

esse destino satildeo ldquoo fundamento em que se essencializa a diferenccedila irredutiacutevel

e a referecircncia necessaacuteria entre o ente e o seu serrdquo666

Carneiro Leatildeo sublinha que para Heidegger remontar agrave origem eacute encontrar a

questatildeo da diferenccedila ontoloacutegica como o fundamento impensado de toda a

tradiccedilatildeo metafiacutesica e dos vaacuterios periacuteodos da sua histoacuteria e que ldquoo famoso

esquecimento do ser (Seinsvergessenheit) natildeo eacute outra coisa do que o

esquecimento da diferenccedila ontoloacutegica Para Heidegger ela constitui o que eacute

mais digno de ser posto em questatildeo (das Frag-wuumlrdigste) e investigaacute-la eacute a

preocupaccedilatildeo central e uacutenica de toda a sua filosofiardquo667

O pensador brasileiro sublinha que a metafiacutesica eacute o fundamento em que se

edificou toda a civilizaccedilatildeo ocidental inclusive a sua eacutepoca actual caracterizada

pela ciecircncia e a teacutecnica ldquoA tecnocracia desenfreada o impeacuterio da ciecircncia a

estetificaccedilatildeo da arte a fuga dos deuses a massificaccedilatildeo do homem a

morganizaccedilatildeo planetaacuteria a disposiccedilatildeo da natureza os estados totalitaacuterios a

despotencializaccedilatildeo do espiacuterito todas essas manifestaccedilotildees do mundo ocidental

satildeo criaccedilotildees e obras do predomiacutenio da metafiacutesicardquo668

665

Emmanuel Carneiro Leatildeo ldquoO itineraacuterio do Pensamento de Heideggerrdquo in Aprendendo a Pensar 1

109 666

Ibidem 111 667

Ibidem 112 668

Ibidem 120

356

Contudo esta eacutepoca sem memoacuteria para o ser que se impocircs como o destino

histoacuterico do ocidente na figura da ciecircncia e da teacutecnica conteacutem em si o apelo e

a provocaccedilatildeo a ldquorecobrar dessa memoacuteriardquo que lhe permitiraacute instaurar um ldquoNovo

Dia Histoacutericordquo E eacute respondendo a esse apelo que a hermenecircutica

heideggeriana da Introduccedilatildeo agrave Metafiacutesica leva a cabo um retorno agrave fonte

originaacuteria da sua essencializaccedilatildeo O esforccedilo aiacute levado a cabo de interpretaccedilatildeo

e traduccedilatildeo dos preacute-socraacuteticos natildeo tem em vista um renascimento destes

pensadores mas o destruir as falsas interpretaccedilotildees que a tradiccedilatildeo metafiacutesica

foi deles instituindo ldquoHoje jaacute natildeo lemos o que os primeiros pensadores

pensaram mas o que outro modo de pensar nos faz perceber E natildeo o lemos

porque o alarido da metafiacutesica enchendo-nos os ouvidos de esquecimento do

Ser os torna surdos para a voz da origemrdquo669

Retornar agraves origens da metafiacutesica natildeo eacute um esforccedilo de fazer renascer os preacute-

socraacuteticos mas a ldquoimposiccedilatildeo de um pensamento de essencializaccedilatildeo (das

wesentliche Denken diz Heidegger) que a partir da proacutepria essencializaccedilatildeo da

metafiacutesica procura superar-lhe o esquecimento do serrdquo670

7 2 Joseacute Enes e o reencontro com a tradiccedilatildeo

Joseacute Enes eacute o pensador portuguecircs cujo pensamento mais deve ao diaacutelogo com

a obra de Heidegger de que revela um conhecimento global e uma

compreensatildeo rigorosa fundada no acesso directo aos textos embora esse

diaacutelogo se tenha centrado fundamentalmente na obra do ldquosegundo Heideggerrdquo

Reconhecendo a impossibilidade de regressar agrave tradiccedilatildeo metafiacutesica depois do

empreendimento criacutetico de Kant Joseacute Enes mostra que o grande contributo de

Heidegger foi ter mostrado na noeticidade671 hermenecircutica - proacutepria da

669

Ibidem 123 670

Ibidem 124 671

ldquoO verbo λοεηλ (noein) formado sobre o nome λοος ndash λοσς cuja mais fiel traduccedilatildeo latina eacute intellectus

[hellip] na linguagem filosoacutefica significa a forma mais perfeita de conhecimento intelectual Dele se

formaram os adjectivos λοεηός (noetoacutes) e λοεηηθός (noeacuteticos) O primeiro significa a qualidade intriacutenseca

que faz com que algo possa ser objecto do conhecer proacuteprio do noein e o latim traduziu-o por

intelligibilis e substantivado no geacutenero neutro λοεηόλ intelligibile denomina o objecto do noein o

segundo λοεηηθός (noeacutetico) designa a estrutura proacutepria do acto de cognoscitivo de noein e traduz-se por

intellectivus o neutro λοεηηθόλ tomado como substantivo serve como nome da faculdade ou energia

operativa que produz o acto cognoscitivo de noein [hellip] Noeacutetico portanto qualifica a proacutepria estrutura

energeacutetica da faculdade intelectiva como aquela que possui o mais alto grau de perfeiccedilatildeo cognoscitiva

Noeticidade na sua significaccedilatildeo abstracta designa esta mesma perfeiccedilatildeo noeacutetica Ora a perfeiccedilatildeo de uma

faculdade soacute se concretiza quando ela se encontra em acto no exerciacutecio da sua operaccedilatildeo proacutepria

Noeticidade expressa a excelecircncia eficaz do exerciacutecio a resultante completude do acabamento e o mais

357

experiecircncia da fala e presente em todo o acto locutoacuterio embora com diferentes

niacuteveis de consciencializaccedilatildeo - a uacutenica via segura para retomar a questatildeo do

ser

A dignificaccedilatildeo da linguagem como chave para a ldquouacutenica ontologia possiacutevelrdquo eacute

para Joseacute Enes o contributo essencial de Heidegger e eacute este caminho aberto

por Heidegger que o proacuteprio Joseacute Enes tomou em Agrave Porta do Ser

Para a escolha de um tal caminho Joseacute Enes aduz razotildees por um lado

fundadas na natureza da linguagem tal como ela foi posta a descoberto por

Humboldt e Heidegger por outro na actual eacutepoca histoacuterica agrave qual reconhece

serem vedadas as formas de acesso ao ser constituiacutedas pela Metafiacutesica

escolaacutestica eivada de paralogismos e por isso mesmo dotada duma validade

exclusivamente epocal

Joseacute Enes filia-se assim explicitamente na filosofia hermenecircutica inaugurada

por Heidegger cuja originalidade teria sido assumir essa noeticidade

hermenecircutica da fala enquanto tal como noeticidade do discurso filosoacutefico

Esta noeticidade hermenecircutica encontra-se como sublinha Joseacute Enes jaacute em

Sein und Zeit na medida em que aiacute Heidegger considera a linguagem como

um existenciaacuterio do Dasein (Rede) e mostra que nela se daacute a articulaccedilatildeo ante-

predicativa do sentido

Assumindo esta funccedilatildeo ontoloacutegica da linguagem mas natildeo aceitando o plano

transcendental dos existenciaacuterios que constitui o nuacutecleo de uma heranccedila

kantiana do ldquoprimeiro Heideggerrdquo Joseacute Enes insiste sobretudo no exerciacutecio

faacutectico da fala nas diversas liacutenguas histoacutericas analisado por Heidegger nas

obras posteriores a Ser e Tempo mostrando que na pluralidade das liacutenguas se

realizam diferentes aberturas de mundo

Em total fidelidade agrave funccedilatildeo de abertura de mundo consignada por Heidegger

agraves diversas liacutenguas histoacutericas Joseacute Enes destaca a ldquovalecircncia mundanizante da

linguagemrdquo como impondo sempre o horizonte de uma tradiccedilatildeo uma atmosfera

na qual como indiviacuteduos estamos destinados a respirar Em cada liacutengua

inscreve-se uma experiecircncia ontoloacutegica originaacuteria que pode ser posta a

descoberto atraveacutes do ldquoesquema semacircnticordquo de certos vocaacutebulos do patrimoacutenio

lexical como acontece com certas ldquometaacuteforas noeacuteticasrdquo e ldquoidiomatismosrdquo

alto grau de plenitude cognoscitiva do intelectordquo Joseacute Enes Noeticidade e Ontologia Lisboa 1999 10-

11

358

hermenecircuticos expressotildees de que uma liacutengua se apropria com tanta

exclusividade que nas outras liacutenguas natildeo haacute significados plenamente iguais672

Eacute pois tomando esta via heideggeriana da noeticidade hermenecircutica que Joseacute

Enes vai pocircr em causa a posiccedilatildeo de Heidegger face ao latim e agrave tradiccedilatildeo

filosoacutefica que se expressou nesta liacutengua recuperando a importacircncia da

tradiccedilatildeo escolaacutestica e reinterpretando a filosofia de S Tomaacutes Aquino como

referecircncia maior dessa tradiccedilatildeo

721 A noeticidade hermenecircutica em S Tomaacutes de Aquino

Joseacute Enes levou a cabo uma investigaccedilatildeo hermenecircutica sobre a obra de S

Tomaacutes de Aquino na sua tese de Doutoramento de 1969 intitulada Agrave Porta do

Ser - ensaio sobre a justificaccedilatildeo noeacutetica do juiacutezo de percepccedilatildeo externa em S

Tomaacutes de Aquino Esta investigaccedilatildeo inspirada na afirmaccedilatildeo de Heidegger em

Der Satz von Grund de que ―quanto maior eacute a obra de um pensador mais rico

eacute nessa obra o impensado tem como objectivo alcanccedilar o que na obra de S

Tomaacutes pensador de primeira grandeza na filosofia europeia permanece

impensado Explicitando o acircmbito da sua investigaccedilatildeo Joseacute Enes afirma

pretender mostrar como em S Tomaacutes ldquose revela o mais originaacuterio momento do

pensar aquele em que o pensamento entra pela primeira vez em contacto

com o serrdquo673 Essa pela primeira vez natildeo tem poreacutem um sentido cronoloacutegico

mas o sentido de momento originaacuterio do aperceber-se que o ser eacute isto eacute

ldquoperceber o ser na sua actualidade de ser e aperceber-se da certeza de tal

apercepccedilatildeordquo674

Natildeo pretende esse estudo fazer uma exposiccedilatildeo sistemaacutetica da filosofia de S

Tomaacutes de Aquino mas tatildeo-somente procurar em S Tomaacutes algo que estaacute em

todo o homem saacutebio ou inculto os juiacutezos de percepccedilatildeo675 que ldquojazem na zona

672

Luiacutes Manuel Bernardo salienta que o meacutetodo hermenecircutico de Joseacute Enes inclui trecircs fases uma

primeira que consiste na anaacutelise etimoloacutegica das metaacuteforas que as palavras carregam consigo e que

permite pocircr a claro as diferenccedilas entre as vaacuterias famiacutelias linguiacutesticas a segunda consiste na reelaboraccedilatildeo

linguiacutestica visando a reconstruccedilatildeo da palavra fiel ao sentido a terceira consistiria na aplicaccedilatildeo das duas

fases anteriores aos textos analisados Cf Luiacutes Manuel Bernardo ldquoA noccedilatildeo de Universo Ontoloacutegico na

Obra de Joseacute Enesrdquo in O Pensamento Luso-Galaico-Brasileiro 650 673

Joseacute Enes Agrave Porta do Ser Lisboa sd 15 674

Ibidem 16 675

ldquoA novidade aristoteacutelico-tomista consiste na noeticidade do estado de vigiacutelia O nuacutecleo desta

noeticidade viacutegil eacute o juiacutezo de percepccedilatildeo externa e interna com a respectiva justificaccedilatildeo noeacutetica Tal juiacutezo

359

antepredicativa como um impensado que de nascenccedila jamais poderaacute ser

pensado predicativamenterdquo676

Sobre os pressupostos metodoloacutegicos desta investigaccedilatildeo hermenecircutica afirma

no proacutelogo Joseacute Enes ldquo[] tanto o conhecer como o ser satildeo por natureza

manifestantes de si mesmos Quer isto dizer que o conhecer e o ser por

essecircncia satildeo fenoacutemenos entendendo portanto este vocaacutebulo no significado

genuiacuteno a que Heidegger o reduziu partindo da raiz de θαηλω como aquilo que

se manifesta a si mesmo ou por si mesmo vem agrave luz que o torna visiacutevelrdquo677

Esta investigaccedilatildeo fenomenoloacutegica natildeo tem poreacutem como Sein und Zeit afirma

Joseacute Enes uma finalidade ontoloacutegica nem antropoloacutegica mas apenas

gnoseoloacutegica isto eacute pretende apenas que o conhecimento do ser se revele

atendendo ao seu manifestar-se como conhecimento No entanto esta

fenomenologia do conhecimento aqui designada de noeacutetica implica ressalva

Joseacute Enes uma ontologia uma vez que o conhecimento e o ser se datildeo

reciprocamente

Como o conhecimento se manifesta essencialmente pela fala esta eacute para

Joseacute Enes o objecto privilegiado de investigaccedilatildeo fenomenoloacutegica devendo ser

entendida como ldquoprocesso expressivo metafoacutericordquo A metaacutefora eacute uma

comparaccedilatildeo que potildee duas coisas a par destacando ldquouma igualdade de

estrutura e comunhatildeo de destinosrdquo que natildeo chega contudo a atingir a

igualdade e a coincidecircncia a metaacutefora deriva de um procedimento analoacutegico e

natildeo a tem univocidade dos conceitos

Segundo Enes na comparaccedilatildeo metafoacuterica manifesta-se um impensado que

permaneceria impensaacutevel na formulaccedilatildeo predicativa esta valecircncia

manifestativa da metaacutefora eacute particularmente evidente na literatura no entanto

ela estaacute presente tambeacutem na linguagem vulgar assim como nas linguagens

abstractas das ciecircncias e da filosofia onde no entanto a habituaccedilatildeo do uso

dos vocaacutebulos para diferentes campos objectuais pode fazer com que se perca

toda a referecircncia agraves origens metafoacutericas dos conceitos

Joseacute Enes visa com a sua investigaccedilatildeo deixar que se mostre o conhecimento

do ser na sua manifestaccedilatildeo linguiacutestica e iraacute pesquisar essas manifestaccedilotildees

eacute a ldquoportardquo em que o homem intui o ser do mundo e dele mesmo os vigia e guardardquo Joseacute Enes

Noeticidade e Ontologia 9 676

Joseacute Enes Agrave Porta do Ser 17 677

Ibidem 17

360

linguiacutesticas que se apresentam como metaacuteforas noeacuteticas isto eacute como

metaacuteforas que o pensamento figura para se pensar a si proacuteprio Para Joseacute

Enes todas as expressotildees dos modos e actos do conhecimento satildeo

metafoacutericas soacute que o seu uso as tornou opacas encobrindo-se o seu sentido

originaacuterio que assim permanece impensado Eacute precisamente esse impensado

associado agrave ldquometaacutefora originalrdquo que se trata de pocircr a descoberto678

Explicitando esta orientaccedilatildeo metodoloacutegica afirma Joseacute Enes ldquoSe aquilo que

pretendemos atingir na presente investigaccedilatildeo eacute como dissemos a revelaccedilatildeo

do modo como o homem justifica os juiacutezos de percepccedilatildeo externa atraveacutes da

obra de S Tomaacutes e se tal justificaccedilatildeo se processa na zona antepredicativa e

se apercebe na zona transpredicativa o meacutetodo a seguir deve-nos encaminhar

para a descoberta das metaacuteforas noeacuteticas onde o impensado do pensar

quotidiano se torne pensado pelo modo uacutenico que tais metaacuteforas tornam

possiacutevelrdquo679

O primeiro procedimento metodoloacutegico eacute para o pensador portuguecircs a

etimologia que contudo ele distingue da pesquisa filoloacutegica De facto ele

pretende recuperar o sentido essencial (e etimoloacutegico) de etimologia que vem

de έηλοκ o autecircntico e o veraz e ιογος que se refere a este autecircntico e veraz

como recolha e manifestaccedilatildeo Etimologia significa para o autor ldquoa procura e a

manifestaccedilatildeo do autecircntico na veracidade da falardquo natildeo estando propriamente

em causa a busca filoloacutegica da raiz primitiva mas a revelaccedilatildeo do autecircntico

numa metaacutefora que se diz original pela expressividade do autecircntico e natildeo pela

anterioridade cronoloacutegica

O segundo procedimento metodoloacutegico fundamental eacute a elaboraccedilatildeo linguiacutestica

definida por Joseacute Enes como uma recriaccedilatildeo poeacutetica da linguagem a fim de

ldquotrazer agrave revelaccedilatildeo a latecircncia do impensadordquo pelo recurso agrave sugerecircncia

metafoacuterica Esta recriaccedilatildeo poeacutetica da linguagem encontra-a o autor nos textos

de S Tomaacutes de Aquino que se propotildeem dar a ver as verdades divinas ao

conhecimento humano ldquoO fundamento da potecircncia expressiva que a metaacutefora

possui reside na mesma natureza humana Por ser um espiacuterito incarnado uma

inteligecircncia unida funcionalmente agrave sensibilidade a revelaccedilatildeo da verdade abre-

678

Esta arqueologia das metaacuteforas visa um momento da constituiccedilatildeo do sentido preacute-loacutegico e preacute-

gramatical coincidente com o ldquointuitordquo Cf Luiacutes Manuel Bernardo ldquoA noccedilatildeo de Universo Ontoloacutegico na

Obra de Joseacute Enesrdquo in O Pensamento Luso-Galaico-Brasileiro 651 679

Joseacute Enes Agrave Porta do Ser 33

361

nos complexos sensiacuteveis [] daiacute o poder dizer-se que a sensibilidade eacute por

essecircncia metafoacuterica e a metaacutefora por essecircncia sensiacutevel [] Neste facto se

encontra a razatildeo principal para que na exposiccedilatildeo das verdades divinas se

proceda metaforicamente eacute por esse procedimento que elas se tornam

acessiacuteveis a todos os espiacuteritos predispostos pela feacute mesmo agravequeles que satildeo

rudes ou por falta de instruccedilatildeo ou por carecircncia de perspicaacutecia intelectivardquo680

Segundo Joseacute Enes encontra-se em S Tomaacutes uma reflexatildeo teoacuterica

embrionaacuteria sobre a necessidade de partir dos sinais e siacutembolos sensiacuteveis

como meio de manifestaccedilatildeo do que sem eles permaneceria oculto ou

impensado assim como o recurso a etimologias populares baseadas em

semelhanccedilas morfoloacutegicas e sonoras e a utilizaccedilatildeo de transferecircncias

metafoacutericas para a partir duma experiecircncia originaacuteria sugerir a essecircncia do

assunto em discussatildeo

Esta investigaccedilatildeo que toma como fio condutor a existecircncia duma

hermenecircutica natildeo totalmente consciente nem sistematizada nos textos de

STomaacutes de Aquino conduziu Joseacute Enes a encontrar na obra deste Doutor da

Igreja trecircs ldquometaacuteforas noeacuteticasrdquo fundamentais ldquoo intuitordquo ldquoo juiacutezordquo e ldquoa

demonstraccedilatildeordquo cuja anaacutelise levaraacute a cabo para por a claro esse nuacutecleo

ldquoimpensadordquo que acima referimos

722 O intuito e os juiacutezos de percepccedilatildeo externa

Esclarecendo na obra de 99 Noeticidade e Ontologia a presenccedila do termo

ldquointuitordquo em S Tomaacutes de Aquino afirma Joseacute Enes ldquoS Tomaacutes de Aquino

regista dois momentos no conhecimento intelectual O primeiro eacute o simplex

intuitos do intelecto dirigido para o inteligiacutevel E este primeiro movimento do

olhar intelectual eacute a focalizaccedilatildeo imediata do inteligiacutevel presente O intuito

simplesmente olha Mas este primeiro gesto ocular logo se inclina levado pela

apetecircncia da sua mesma intencionalidade para a dicccedilatildeo manifestativa do

inteligiacutevel quer em ordem ao aperfeiccediloamento da sua compreensatildeo do

inteligiacutevel atraveacutes do discurso quer para a comunicar a outrosrdquo681

680

Ibidem 45 681

Joseacute Enes Noeticidade e Ontologia 2627

362

O intuito designa o instante originaacuterio da constituiccedilatildeo do sentido irredutiacutevel ao

pensamento conceptual e ao discurso demonstrativo que contudo estaacute jaacute

dinamicamente orientado para um segundo momento discursivo

Para o esclarecimento da estrutura intencional do intuito Joseacute Enes recorre agrave

etimologia latina de Intuitos a partir de tueor donde derivam tutor tutela e

tutelar mostrando que na raiz etimoloacutegica estaacute a imagem da sentinela ou vigia

cujo olhar perscrutante se dirige para a casa do ser

Heidegger ter-se-ia aproximado desta intencionalidade do intuito quando na

Carta Sobre o Humanismo afirmou que o Dasein ldquopertence ao ser porque

lanccedilado pelo ser em vista agrave guarda da sua verdade e reivindicado pelo ser

para esta guarda ele pensa o serrdquo

O intuito como simplex inteligire eacute uma apreensatildeo preacute-conceptual que visa o

ser do ente682 Embora se trate dum conhecimento natildeo categorial que natildeo eacute

directamente transponiacutevel para o discurso proposicional ele eacute a condiccedilatildeo de

todas as operaccedilotildees intelectuais posteriores assim como de todo o discurso

verbal

Destacando a importacircncia desta captaccedilatildeo preacute-ontoloacutegica do ser afirma Joseacute

Enes ldquoAssim como o ouvido nada percebe senatildeo enquanto nele capta o som

assim tambeacutem a inteligecircncia nada intui senatildeo enquanto nele apreende o ser O

ser eacute a medida da realidade e a medida da cognoscibilidaderdquo683

O ldquojuiacutezordquo eacute tomado por Joseacute Enes como a segunda metaacutefora noeacutetica que ele

vai esclarecer a partir da sua origem no campo juriacutedico onde o juiacutezo tem um

sentido normativo associado ao dizer o que eacute justo daquele que julga A sua

aplicaccedilatildeo a outros contextos em S Tomaacutes manteacutem segundo Joseacute Enes o seu

sentido originaacuterio assim S Tomaacutes atribui os juiacutezos natildeo soacute agrave inteligecircncia e agrave

razatildeo mas tambeacutem agrave vontade (judicium electionis) e aos sentidos (judicium

sensus) O juiacutezo eacute assim uma segunda operaccedilatildeo intelectual que envolve

muacuteltiplas dimensotildees e que visa determinar rigorosamente o ente

determinando-se tambeacutem a si mesmo atraveacutes do dizer e do definir

682

A descoberta de um conhecimento ontoloacutegico antepredicativo dado pelo proacuteprio sentir eacute a novidade

do pensamento de Joseacute Enes Cf Luiacutes Manuel Bernardo ldquoA noccedilatildeo de Universo Ontoloacutegico na Obra de

Joseacute Enesrdquo in O Pensamento Luso-Galaico-Brasileiro 651 683

Joseacute Enes Agrave Porta do Ser 102

363

Joseacute Enes distingue poreacutem dois tipos de juiacutezos proacuteprios do conhecer o juiacutezo

do intelecto que pronuncia o assentimento ou natildeo assentimento a uma verdade

e os juiacutezos da razatildeo que implicam o componere e dividere desdobrando

conceptualmente o que judicium intelectus entende e aprova

Satildeo estes juiacutezos da razatildeo que satildeo articulados discursivamente na

ldquodemonstraccedilatildeordquo (a terceira metaacutefora noeacutetica) visando a sua certificaccedilatildeo atraveacutes

dum remontar aos primeiros princiacutepios atraveacutes das operaccedilotildees da resolutio e da

reductio Sendo poreacutem a razatildeo um exame regressivo agraves origens ela depende

de uma origem intuitiva latente nos processos predicativos que afinal ela

apenas justifica circularmente e certifica ldquoA verdade antepredicativa

fundamenta e estimula a verdade predicativa por sua vez esta conteacutem e

conserva aquela e estimula a consciencializaccedilatildeo expliacutecita da verdade

transpredicativa e esta justifica certificando-a sem apelo ulterior a verdade

predicativardquo684 Todo o conhecimento demonstrativo e cientiacutefico parte do intuito

e reencontra o intuito no fim da sua circularidade demonstrativa

Contudo a questatildeo que focaliza a intenccedilatildeo hermenecircutica de Joseacute Enes natildeo eacute

esta actividade judicativa proacutepria da razatildeo mas os ldquojuiacutezos de percepccedilatildeo

externardquo que afirmam a existecircncia de um ser numa circunstacircncia espacio-

temporal A questatildeo sobre a qual Joseacute Enes vai reflectir eacute como resolve S

Tomaacutes o problema da origem dos juiacutezos de percepccedilatildeo externa ou dos juiacutezos

de existecircncia que sendo juiacutezos sobre indiviacuteduos caem na metafiacutesica

aristoteacutelica fora do acircmbito da ciecircncia

O primeiro contacto original e originante com o ser actual surge quando este

cai sob a alccedilada dos sentidos e esse eacute o uacutenico meio para conhecer uma

realidade mundana sendo nessa fronteira que surgem os juiacutezos de percepccedilatildeo

externa Contudo se existecircncia das coisas natildeo eacute para S Tomaacutes objecto de

demonstraccedilatildeo racional ela tambeacutem natildeo eacute uma feacute sencista Ela eacute uma certeza

metafiacutesica que tem a sua origem na experiecircncia vigilante do intuito que vigia

quanto ao seu redor lhe desperta os sentidos O intuito eacute confeiccediloado pela

sensibilidade evidenciando a diferenccedila da inteligecircncia humana em relaccedilatildeo agrave

divina e simultaneamente a diferenccedila da sensibilidade humana em relaccedilatildeo agrave

animal

684

Ibidem 134

364

Segundo S Tomaacutes os sentidos anunciam a coisa ao intuito eles satildeo arauto

das coisas o seu sentir ergue-se como a voz da mensagem dirigida pelo outro

ao intuito que deve decifrar essa mensagem Esta decifraccedilatildeo compele o intuito

agrave acccedilatildeo que soacute ela permite experimentar a resistecircncia e a solidez da coisa na

sua alteridade pela tentativa da sua negaccedilatildeo

A experiecircncia ontoloacutegica fundamental eacute um pocircr agrave prova os entes atraveacutes de

uma experiecircncia atravessada pela hipoacuteteses do nada e que deve triunfar sobre

essa hipoacutetese para alcanccedilar o ser ldquoNa verdade feita a prova se a coisa resiste

e se mostra soacutelida na sua unidade consistente de identidade consigo mesma

entatildeo o intuito a percebe como um outro e ao homem como o outro que em tal

experiecircncia se consolida na sua proacutepria consistecircncia conatural agrave da coisa A

esperanccedila conforta-se entatildeo na solidariedade da companhia do mundo onde

se insere como rota dos caminhos do serrdquo685

Esta experiecircncia ontoloacutegica fundamental eacute encontrada por Joseacute Enes natildeo na

discussatildeo tomista sobre a metafiacutesica aristoteacutelica mas nos textos em que S

Tomaacutes mostra como Cristo provou aos apoacutestolos a verdade da sua

ressurreiccedilatildeo Por um processo de transposiccedilatildeo metafoacuterica Joseacute Enes transfere

a certificaccedilatildeo da ressurreiccedilatildeo para a formulaccedilatildeo dos juiacutezos de existecircncia em

geral e aclara a experiecircncia ontoloacutegica fundamental pela qual qualquer homem

ganha a consciecircncia da realidade do mundo e de si mesmo como ser-no

mundo

Ora a acccedilatildeo de apalpar com a qual os apoacutestolos se certificaram da realidade

do corpo de Cristo eacute tomada por Joseacute Enes como uma metaacutefora noeacutetica da

pergunta ou da quaestio cujo sentido etimoloacutegico proacuteximo do termo alematildeo

frage expressa ldquoo sentido de carecircncia o desejo de satisfaccedilatildeo conhecitiva e a

peticcedilatildeo inquisitivardquo proacuteprios do intuito

O que cumpre aqui sublinhar eacute o acircmbito religioso de que procede a metaacutefora

inspeccionada por Joseacute Enes referente a uma experiecircncia do numinoso e do

sagrado assim como a origem etimoloacutegica encontrada para o termo alematildeo

fragen (do sacircnscrito praumlt correspondente ao latim preces) que aponta para o

mesmo campo semacircntico Esta experiecircncia religiosa originaacuteria segundo o

pensador portuguecircs repercute no uso filosoacutefico da quaestio (figura central do

ensino da filosofia da esoclaacutestica medieval) e do fragen (figura central do

685

Ibidem 324

365

percurso filosoacutefico heideggeriano) que assim se vecircm aproximadas ldquoA

pergunta significada em quaestio e frage queda-se na interioridade individual

do intuito e se tende para o outro eacute para o assumir numa verticalidade

transcendenterdquo686

Se esta atitude interrogativa do questionar filosoacutefico implica uma abertura para

a transcendecircncia ela implica que o homem que se questiona sobre o ser

assuma para consigo uma atitude de visionamento profeacutetico em ordem a

possibilitar ldquoa revelaccedilatildeordquo daquilo sobre que potildee a questatildeo este seria o sentido

da afirmaccedilatildeo heideggeriana de que o questionar eacute a devoccedilatildeo do pensar (das

Fragen ist die Froumlmigkeit des Denkens)

Esta abertura para a transcendecircncia do intuito permite ainda a Joseacute Enes uma

certa aproximaccedilatildeo com a noccedilatildeo de abertura ex-taacutetica do Dasein em Heidegger

ldquoHeidegger caracterizou o ex-sistir humano tambeacutem como um destacamento

num onde em que o intuito se abre para o ser Contrapondo o sentido que no

seu pensamento assume a existecircncia ao que tradicionalmente significava

como actualidade e realidade por oposiccedilatildeo agrave possibilidade define a existecircncia

humana como um ek-sistere enquanto por esta palavra nova quer dizer que o

homem se caracteriza essencialmente por estar na abertura de si mesmo como

o onde em que a verdade do ser se manifestardquo687

No entanto esta aproximaccedilatildeo natildeo pode segundo Joseacute Enes apagar as

diferenccedilas entre o modo de abertura ao ser em S Tomaacutes e em Heidegger

autor que tende para a ldquointelecccedilatildeo do Ser obtida extaticamente num estado de

independecircncia da colaboraccedilatildeo noeacutetica dos sentidosrdquo688 De facto na

interpretaccedilatildeo de Joseacute Enes a verticalidade da ek-sistecircncia heideggeriana

partindo da base sensiacutevel dirige-se por uma excedecircncia do estado natural

para uma intelecccedilatildeo pura ldquonatildeo isenta de misticismo quietistardquo

Ao contraacuterio em S Tomaacutes encontra-se salientada uma ldquoexperiecircncia noeacuteticardquo

indesmembraacutevel em que os sentidos satildeo indissociaacuteveis da inteligecircncia Na

experiecircncia do intuito encontra-se implicada toda a ldquotrama da complexidade

vivencial em que o homem age e reage como um todo espiritual e corpoacutereo

686

Ibidem 326 687

Ibidem 334 688

Ibidem 334

366

sob solicitaccedilatildeo circundantes e sob o impulso das tendecircncias vitais da sua

naturezardquo689

Ao intuito o ser das coisas desvenda-se como re-sisitr porque embora elas

existam natildeo existem como o homem pois o seu existir revela-se como uma re-

acccedilatildeo e como re-sposta Pelo contraacuterio embora enquanto corpoacutereo o homem

tambeacutem seja um ser que re-siste como esse resistir do corpo humano eacute

utilizado pelo intuito como instrumento para descobrir o ser das coisas o re

transforma-se no ex de ex-sistecircncia que aqui indica e assinala o homem como

ser donde parte a revelaccedilatildeo do ser das coisas

Traduzindo a caracterizaccedilatildeo do homem como Da-sein para o contexto de

sentido descoberto em S Tomaacutes de Aquino Joseacute Enes afirma ldquo[hellip] em

portuguecircs melhor diriacuteamos que o homem vecirc e toca e percebe e investiga e

julga de caacute e as coisas respondem reagem e resistem de laacute O caacute eacute

intransferiacutevel pela razatildeo uacuteltima de nele se abrir o intuito agrave guarda do Serrdquo690

A traduccedilatildeo da caracterizaccedilatildeo heideggeriana do ser das coisas que natildeo satildeo agrave

maneira do Dasein jaacute parece a Joseacute Enes mais problemaacutetica - segundo Enes

haveria uma impossibilidade de Sein und Zeit determinar o ser dos entes que

vecircm ao encontro do Dasein

Esta impossibilidade seria inerente agrave heranccedila kantiana que pesa sobre o

projecto de investigaccedilatildeo de Ser e Tempo e que postula como obrigaccedilatildeo preacutevia

a indagaccedilatildeo das condiccedilotildees de toda a investigaccedilatildeo ontoloacutegica Tais condiccedilotildees

segundo a investigaccedilatildeo de Sein und Zeit satildeo precisamente as estruturas do

homem como Dasein o ente que eacute ele mesmo a possibilidade de qualquer

investigaccedilatildeo ontoloacutegica sobre qualquer outro ente

Cumprindo esta exigecircncia kantiana a investigaccedilatildeo fenomenoloacutegica de Sein

und Zeit tomou assim a feiccedilatildeo de uma analiacutetica existencial visando determinar

as categorias a priori ou existenciaacuterios por reduccedilatildeo aos quais seraacute justificada a

manifestaccedilatildeo daquilo que se manifesta

Joseacute Enes salienta que se bem que Heidegger reconheccedila a re-sistecircncia dos

entes intra-mundanos natildeo daacute a essa resistecircncia um caraacutecter ontoloacutegico

afirmando antes que este encontro do homem com as coisas soacute pode

689

Ibidem 340 690

Ibidem 337

367

manifestar-se na medida em que o homem se encontra sempre jaacute num mundo

O mundo poreacutem natildeo eacute independente do homem mas abre-se

transcendentalmente ao homem como triacuteplice horizonte da temporalidade na

sua unidade extaacutetica O mundo que se abre ao homem no horizonte da

temporalidade natildeo eacute algo que se distingue do homem como realidade mas uma

ldquoatmosfera envolventerdquo onde o existir do homem se situa

Segundo Joseacute Enes ldquoo primado da afectividade e o pendor metodoloacutegico para

a reduccedilatildeo categorial natildeo podiam deixar de afastar a anaacutelise fenomenoloacutegica de

Ser e Tempo deste intuito aberto ao ser de tudo o que lhe vem ao encontrordquo691

Movido por tais consideraccedilotildees metodoloacutegicas Heidegger teria dissolvido a

consistecircncia ontoloacutegica das coisas na simples presenccedila e utilizabilidade dos

entes intra-mundanos determinados pelas categorias de zuhandenheit e

vorhandenheit

Contudo Joseacute Enes reconhece que apoacutes Sein und Zeit Heidegger prossegue

a sua investigaccedilatildeo sobre o ser proacuteprio das coisas procurando o modo pelo

qual se deu o seu ocultamento na linguagem predicativa do quotidiano assim

como na linguagem da ciecircncia e da metafiacutesica e chamando a atenccedilatildeo para a

necessidade de conceder campo livre para que a coisa se mostre na sua

condiccedilatildeo proacutepria

Joseacute Enes vai por isso analisar detalhadamente dois momentos dessa

temaacutetica do ldquosegundo Heideggerrdquo designadamente em A Origem da Obra de

arte e no ensaio sobre A Coisa Identificando em A Origem da Obra de Arte

ldquoalgo de indefinidordquo que liberta a coisa da sujeiccedilatildeo instrumental a que tinha sido

submetida em Sein und Zeit Joseacute Enes assinala contudo que aiacute a primazia da

mundaneidade da obra de arte sobrepotildee-se agrave simples caracterizaccedilatildeo da coisa

como tal Eacute assim no ensaio A Coisa que Joseacute Enes vecirc o momento

fundamental de reelaboraccedilatildeo desta temaacutetica pois aiacute eacute a coisa enquanto tal e

natildeo enquanto obra de arte que estaacute em questatildeo

Nesse ensaio a coisa instaura um mundo que natildeo eacute senatildeo o jogo de espelhos

que traz agrave presenccedila simultacircnea os deuses os mortais o ceacuteu e a terra Na sua

simplicidade a coisa reuacutene em si esse jogo especular e torna-o presente

ldquoDeixar a coisa ser como eacute como coisa consiste portanto em restituir-lhe a

liberdade de iniciativa para a convocaccedilatildeo mundanal A partir deste mundo

691

Ibidem 363

368

concitado pela coisa o qual joga o jogo dos espelhos na simplicidade dos

quatro convocados pensamos a coisa como coisa Pensando deste modo

deixamo-nos aproximar pelo ser da coisa pelo ser que joga o jogo do

mundordquo692

Contudo Joseacute Enes nota que Heidegger se bem que mostre esse domiacutenio

ontoloacutegico fundamental a partir da qual podemos abrir-nos ao ser da coisa

como tal desvia-se neste mesmo ensaio do sentido etimoloacutegico de Ding

proacuteximo do latim res ambos apontando para assunto em discussatildeo e aquilo

que eacute objecto de disputa colectiva

Este campo semacircntico aponta precisamente segundo Joseacute Enes para o juiacutezo

como lugar de manifestaccedilatildeo do ser da coisa (tratando-se aqui de um juiacutezo da

inteligecircncia e natildeo da razatildeo) Para melhor determinaccedilatildeo do conceito de res em

S Tomaacutes de Aquino Joseacute Enes afirma que aquele natildeo confundiu res com ens

lembrando que ens deriva de esse enquanto res aponta para a essecircncia e

pode assim ser traduzido por coisa enquanto tudo o que eacute alguma coisa O

intuito no primeiro contacto vigilante com a coisa desvenda-a enquanto tem

um ser proacuteprio diferente de todas as outras como a unidade daquilo que eacute

soacutelido e consistente em si mesmo A coisa manifesta-se ao intuito como fuacutesis

isto eacute como dotada dum dinamismo interno e uma forccedila imanente ou como res

naturalis

723 A Verdade e o Ser

O intuito visa no entanto natildeo apenas o ser de cada coisa mas a totalidade do

universo que se lhe dirige como um rogar ldquoAs coisas satildeo interrogantes na

medida em que se dirigem no conjunto do universo ao intuito como ponto de

mira para o qual todas elas constituem um universo ou seja um todo virado

para um soacute alvo e enquanto aquele dirigir-se eacute um rogarrdquo693

Os que as coisas rogam eacute ser compreendidas na sua razatildeo de ser isto eacute na

sua estrutura e destinaccedilatildeo que o intuito visa decifrar enquanto pressentimento

e decifraccedilatildeo simboacutelica manifestas nas artes divinatoacuterias e na astrologia de que

692

Ibidem 363 693

Ibidem 397

369

a filosofia a ciecircncia e a teologia satildeo aperfeiccediloamentos694 Estas uacuteltimas

manifestam a consideraccedilatildeo racional da totalidade das coisas despida das

imagens oniacutericas e dos devaneios da imaginaccedilatildeo sendo contudo essa

consideraccedilatildeo orientada pelas coordenadas do intuito e pelo seu cuidado

vigilante

Se o intuito coloca o homem agrave porta do ser eacute em resposta a um apelo do ser

apelo que contudo solicita um acabamento e aperfeiccediloamento da

compreensatildeo que soacute podem ser levados a cabo pela actividade judicativa da

razatildeo

Ora o ser assoma ao intuito num quecirc expressaacutevel pela fala que imita e exprime

o sentir e assim toda a investigaccedilatildeo deve comeccedilar pela decifraccedilatildeo do nome

ldquoOra se o nome eacute a medida do que nasce como sugerimos na exposiccedilatildeo do

nosso meacutetodo aiacute mesmo encontramos a razatildeo de antes de proceder agrave procura

do quecirc do ser termos que entender a significaccedilatildeo do nome no fazer-se do

sinal se persegue o caminho seguido pelo intuito na apercepccedilatildeo do serrdquo695

Contudo a compreensatildeo do ser das coisas natildeo pode ficar pelo nome o proacuteprio

intuito possui o impulso tendencial para a penetraccedilatildeo completa do que o ser eacute

e exige a actividade da judicativa e ratificante da razatildeo A pergunta pelo

porquecirc ou pelas causas estaacute associada a esta actividade da razatildeo mas duma

razatildeo que tanto em S Tomaacutes como em Aristoacuteteles estaacute sempre associada agrave

experiecircncia (e portanto ao intuito) partindo dela e tomando-a sempre em

consideraccedilatildeo na sua actividade judicativa

Assim Joseacute Enes afirma que em S Tomaacutes a ldquoidentidade necessidade ordem

e simplicidade satildeo os modos por que a natureza se manifesta ao ser do agir

Apercebidos pelo intuito estes modos assumem a funccedilatildeo de princiacutepios

iluminadores da busca racional dos porquecircs ou razotildees das coisasrdquo696Sempre

comandadas pelo intuito as ciecircncias vatildeo evoluindo para o progressivo

discernimento racional das causas de modo a permitir que o ser se revele de

forma crescente O conhecimento cientiacutefico ou racional tem a forma de

694

A evidecircncia do ser ao intuito eacute o ponto de partida mas natildeo o ponto de chegada pois existecircncia

humana natildeo pode viver na simplicidade de um tal aparecer mas supotildee a interrogaccedilatildeo sobre o sentido

dessa primeira experiecircncia Cf Luigraves Manuel Bernardo ldquoA noccedilatildeo de Universo Ontoloacutegico na Obra de Joseacute

Enesrdquo in O Pensamento Luso-Galaico-Brasileiro 656 695

Joseacute Enes Agrave Porta do Ser 423424 696

Ibidem 429

370

enunciados e eacute um conhecimento proposicional incessantemente rectificaacutevel e

aperfeiccediloaacutevel pela experiecircncia

A discussatildeo sobre o problema da verdade levada a cabo por S Tomaacutes eacute

acompanhada por Joseacute Enes a partir dos textos de De Veritate e aparece em Agrave

Porta do Ser minuciosamente exposta evidenciando as diversas fontes (Santo

Agostinho Aristoacuteteles Santo Anselmo) e a instabilidade interpretativa do autor

Joseacute Enes procura mostrar como esta instabilidade hermenecircutica em S

Tomaacutes atesta a coexistecircncia na sua obra da concepccedilatildeo gnoseoloacutegica da

verdade como concordacircncia entre o enunciado e a coisa com uma concepccedilatildeo

de verdade ontoloacutegica que identifica a verdade com o ser O caminho para uma

possiacutevel conciliaccedilatildeo entre estas duas concepccedilotildees de verdade encontra-a Joseacute

Enes na afirmaccedilatildeo feita por S Tomaacutes de que a verdade natildeo reside no

enunciado ou na proposiccedilatildeo (uma vez que haacute proposiccedilotildees verdadeiras e

proposiccedilotildees falsas) mas sim numa reflexatildeo sobre o enunciado visando a

verificaccedilatildeo da sua verdade

Segundo S Tomaacutes essa reflexividade acompanha o juiacutezo e a actividade

judicativa da razatildeo que na sua actividade judicativa atribui ou nega o ser agraves

coisas sem coincidir totalmente com esse juiacutezo Esta actividade reflexiva

supra-racional seria ela mesma o intuito ldquoDaqui poderemos concluir que a

verdade formal supotildee um conhecimento superior ao juiacutezo racional embora se

natildeo exerccedila senatildeo quando este se pronuncia Aquele conhecimento superior ao

racional e predicativo eacute a percepccedilatildeo e o juiacutezo da inteligecircncia pura os dois

actos do intuitordquo697

Esta identificaccedilatildeo do intuito como uacuteltimo momento de ldquoapercebimento da

verdaderdquo ou do conformari cum rebus que se encontra pressuposta ou

sugerida em S Tomaacutes supotildee um juiacutezo de percepccedilatildeo formalmente impliacutecito

isto eacute uma percepccedilatildeo de que haacute coisas e do que satildeo as coisas

Assim podemos dizer que o primeiro revelar-se do ser das coisas ao intuito

sendo preacute-racional conteacutem virtualmente e implicitamente este uacuteltimo juiacutezo da

conformidade com o ser das coisas que surge no termo da demonstraccedilatildeo

racional como sua verificaccedilatildeo

697

Ibidem 482

371

Esta leitura de Joseacute Enes permite detectar em S Tomaacutes uma primazia

gnoseoloacutegia do intuito sobre a discursividade da razatildeo e como seu correlato a

primazia da verdade ontoloacutegica pensada no sentido heideggeriano de

manifestaccedilatildeo do ser ldquoSe atendermos poreacutem agrave verdade como manifestaccedilatildeo do

ser devemos insistir na primeira foacutermula e dizer que o lugar onde a verdade se

abre como abrigo do ser eacute o intuitordquo698

Assim a proacutepria ideia da verdade como conformidade que se encontra

tambeacutem presente em S Tomaacutes encontra-se modificada por esta interpretaccedilatildeo

de Joseacute Enes pois natildeo se trata aqui tanto da conformidade do juiacutezo com as

coisas mas duma consonacircncia entre o ser do homem e o ser das coisas

ldquoAgora conformari estaacute na consonacircncia que ressoa no intuito como voz vinda

do ser do homem e das coisas e pela qual cada um natildeo pode ser senatildeo pelo

que o outro eacute na relaccedilatildeo com eleldquo699

Aleacutem disso nesta ideia de conformidade natildeo estaacute apenas em causa o ser de

cada coisa individualmente considerada mas o ser da natureza no seu

conjunto pois eacute ela que o intuito visa em uacuteltima anaacutelise como acima vimos ldquoS

Tomaacutes natildeo diz conformari cum res mas conformari cum rebus O ser que

assim se manifesta natildeo eacute o de cada coisa delimitada na unidade singular e

atoacutemica de substacircncias individuais mas o ser da natureza de que afirma ser

manifestordquo700

Na experiecircncia antepredicativa do intuito o ser de cada coisa encomenda-se ao

ver do intuito e essa visatildeo eacute ela mesma a luz do ser luz englobante que resulta

do encontro de ambos ldquoNeste ver o intuito salva a si mesmo e agraves coisas na luz

que de dentro de ambos se aclara e se manifesta soacute quando ambos se

encontram E essa luz eacute o mesmo serrdquo701

Assim afirma Joseacute Enes o ser eacute a causa da verdade tendo causa aqui um

sentido judicial eacute por causa do ser que o intuito se preocupa e ocupa em

discernir as coisas eacute por causa do intuito que as coisas satildeo postas em causa

em tal discernimento como manifestaccedilotildees do ser

698

Ibidem 482 699

Ibidem 484 700

Ibidem 486 701

Ibidem 486

372

Assim a relaccedilatildeo entre o intuito e o ser eacute o encontro e a referecircncia do ser do

homem e do ser das coisas a uma estrutura comum a uma razatildeo fundamento

ou causa de tudo o que eles satildeo

724 A linguagem como via de acesso ao ser e o meacutetodo analiacutetico- expectante

Vimos jaacute que Joseacute Enes refere explicitamente ter encontrado no segundo

Heidegger a sugestatildeo de um meacutetodo de anaacutelise da linguagem que permite o

acesso ao ser Destacando em Linguagem e Ser de 1983 a propoacutesito da

foacutermula heideggeriana Die Sprache als die Sprache zur Sprache bringen a

especificidade da sua proacutepria anaacutelise da linguagem em relaccedilatildeo agrave linguiacutestica ou

agrave filosofia da linguagem o pensador portuguecircs afirma ldquoMesmo quando o que

se pretende conhecer analisando a linguagem natildeo eacute a linguagem somente se

alcanccedila quando se traz agrave fala o que a linguagem tem a falar sobre ele A

foacutermula heideggeriana parece aplicar-se literalmente agraves ciecircncias estritamente

linguiacutesticas No entanto ela possui um sentido determinado pelo procedimento

filosoacutefico de tal forma que natildeo soacute natildeo se pode entender a sua anaacutelise

linguiacutestica como filosofia da linguagem mas ainda ultrapassa a linguagem

passando por ela mesma ateacute chegar ao que mais interessa agrave filosofia como tal

e natildeo como anaacutelise linguiacutestica ldquo702

Este programa de deixar falar a fala escutando o que nela diz o ser703 jaacute

ensaiado em Agrave Porta do Ser eacute agora sistematizado e caracterizado por Joseacute

Enes como ldquoanaliacutetico-expectanterdquo Tomando a linguagem como ponto de

partida Joseacute Enes propotildee-se analisaacute-la com o propoacutesito de a descobrir na sua

iacutentima estrutura ldquodesenvencilhando-a de todo os elementos acessoacuterios e de

todas as teorias explicativas e sistematizadorasrdquo ao mesmo tempo que define

como termo de chegada e alvo de expectativa o ser

Esse meacutetodo que tem a intenccedilatildeo negativa e desconstrutiva de libertar a

linguagem da imposiccedilatildeo de teorias e de modelos de inteligibilidade por parte da

702

Joseacute Enes Linguagem e Ser Lisboa 1983 64 703

ldquoEntenda-se bem que Linguagem e Ser natildeo desenvolve uma simples hermenecircutica linguiacutestica antes

reforccedila a dimensatildeo ontoloacutegica da linguagem mas o que eacute alterado eacute [hellip] o acesso doravante indirecto

inevitavelmente mediado pela sedimentaccedilatildeo de sentidos na liacutengua determinado por conseguinte pelo

processo de metaforizaccedilatildeo que gera o conceitordquo Luiacutes Manuel Bernardo ldquoA noccedilatildeo de Universo

Ontoloacutegico na Obra de Joseacute Enesrdquo in O Pensamento Luso-Galaico-Brasileiro 660

373

linguiacutestica ou das filosofias da linguagem tem como tarefa positiva o deixar que

a proacutepria fala fale por si mesma

Esta intenccedilatildeo positiva eacute expressa por Joseacute Enes no vocaacutebulo ldquoexpectanterdquo que

ele faz derivar de ex-picere (ldquoolhar a partir do lugar donde se estaacute com

particular referecircncia agrave posiccedilatildeo exterior de quem olha em relaccedilatildeo agravequilo para

que olhardquo704) esse lugar a partir donde se olha eacute a linguagem e aquilo para

que se olha como natildeo estando ainda ao alcance ou diante do olhar eacute o ser

Natildeo se vendo ainda aquilo para que se olha o olhar dirigido a partir da

linguagem toma a feiccedilatildeo de um ldquoinspeccionar os arredoresrdquo com um olhar

ldquocircunspectivordquo para vislumbrar os sinais dessa experiecircncia do ser

Considerando que a linguagem eacute essencialmente a comunicaccedilatildeo de sentido

atraveacutes da produccedilatildeo metafoacuterica esse olhar circunspectivo eacute em primeiro lugar

uma inspecccedilatildeo de metaacuteforas isto eacute de palavras-chave atraveacutes das quais se

vieram operando transferecircncias de sentido 705

Em Noeticidade e Ontologia Joseacute Enes torna expliacutecita a influecircncia de La

meacutetaphore vive de Ricœur afirmando aiacute a consonacircncia fundamental com o que

nessa obra se afirma sobre a presenccedila da metaacutefora no discurso filosoacutefico Com

efeito aiacute Ricœur analisa o funcionamento da metaacutefora no discurso poeacutetico

mostrando que o enunciado metafoacuterico faz com que a linguagem poeacutetica

suprima a funccedilatildeo referencial da linguagem ordinaacuteria instituindo uma outra

funccedilatildeo referencial pela ldquotorccedilatildeordquo do sentido literal das palavras Suscitando uma

nova pertinecircncia semacircntica das palavras os enunciados metafoacutericos criam

sentido e instauram uma nova visatildeo da realidade

Ricœur mostra aiacute tambeacutem a sobrevivecircncia das metaacuteforas nos modelos teoacutericos

usados no discurso cientiacutefico e no interior do discurso filosoacutefico

designadamente em autores como S Tomaacutes de Aquino e Heidegger

apresentando-se nesses autores como um princiacutepio dinacircmico de constituiccedilatildeo e

704

Joseacute Enes Linguagem e Ser 67 705

Joseacute Enes propotildee uma abordagem da linguagem que exclui toda a filosofia da linguagem e

especialmente a metodologia da anaacutelise loacutegica da linguagem do Ciacuterculo de Viena A anaacutelise expectante

natildeo se centra no sentido constituiacutedo mas na proacutepria constituiccedilatildeo do sentido Enraizando-se no sentido

metafoacuterico vai reconduzir ao silecircncio criador da origem - trata-se de deixar falar a fala observando o

aparecer originaacuterio do sentido Cf Joatildeo Paisana ldquoAproximaccedilatildeo ao pensamento de Joseacute Enesrdquo in Histoacuteria

do Pensamento Filosoacutefico Portuguecircs vol V Lisboa 2000 458

374

evoluccedilatildeo do pensamento e possibilitando a ruptura com um comportamento

categorial jaacute estabelecido706

Joseacute Enes encontra uma aproximaccedilatildeo entre esta funccedilatildeo produtora de sentido

da metaacutefora e o intuito na metaacutefora o intuito estabelece uma relaccedilatildeo entre a

primeira referecircncia abolida pelo enunciado metafoacuterico e a nova referecircncia por

ele criada Estas duas referecircncias estatildeo presentes em tensatildeo ao intuito como

semelhanccedila de coisas diferentes que nunca pode reduzir-se agrave identidade do

conceito

Centrando-se nesse movimento de transferecircncia de sentido operado pela

metaacutefora Joseacute Enes pretende analisaacute-lo para mostrar que aiacute se sugere um

sentir que se subtrai a toda a conceptualizaccedilatildeo707 ldquoA anaacutelise da metaacutefora

jamais a decompotildee consiste na conferecircncia dos termos da transferecircncia

Conferindo traz agrave luz do mostrar-se as sugerecircncias Quando este confronto se

desfaz no espiacuterito humano a metaacutefora morre Todo o seu poder sugestivo se

esvai e a sua significaccedilatildeo deixa de ser metafoacuterica ora isso daacute-se quando o

espiacuterito humano tenta representar conceitualmente o que soacute pode ser sugerido

metaforicamente pela tensatildeo entre duas representaccedilotildees conceituais [] Ao

fazecirc-lo a razatildeo oculta o que soacute pode de ser visto no iacutentimo do dizer

conceptual mata a metaacutefora e com ela o que soacute pode ser entendido pela

sugerecircncia metafoacutericardquo708

Cruzando a anaacutelise metafoacuterica proposta por Ricœur com o peculiar recurso agrave

etimologia de Heidegger Joseacute Enes vai procurar encontrar a geacutenese

metafoacuterica de palavras-chave do discurso filosoacutefico recorrendo aos eacutetimos

latinos gregos ou germacircnicos Contudo trata-se natildeo tanto de recuperar uma

significaccedilatildeo originaacuteria dos termos encoberta pelo uso quotidiano ou pela

tradiccedilatildeo metafiacutesica como acontece em Heidegger mas de libertar a metaacutefora

706

Possuidor de extensa erudiccedilatildeo filoloacutegica Joseacute Enes vai pela anaacutelise etimoloacutegica buscar o sentido de

vaacuterios termos em vaacuterias liacutenguas indo-europeias que mais tarde iratildeo converter-se em termos teacutecnicos do

discurso filosoacutefico que ele proacuteprio iraacute identificar natildeo apenas em Heidegger e S Tomaacutes mas no discurso

kantiano ou na metafiacutesica cartesiana Cf Ibidem 459 707

ldquoParadoxalmente a anaacutelise expectante da linguagem vai conduzir-nos agrave experiecircncia muda agrave

experiecircncia do sentir onde brota o sentido originaacuterio do discursohellip A anaacutelise expectante permite assim

abordar os limites da linguagem conceptual limites mais marcantes quando se trata da experiecircncia

fundamental que daacute acesso ao serrdquo Ibidem 460 708

Joseacute Enes Linguagem e Ser 86

375

deixando que a metaacutefora produza uma nova significaccedilatildeo desdobre o seu

dinamismo criador de sentido709

Esta pesquisa e anaacutelise das metaacuteforas originaacuterias levadas a cabo por Joseacute

Enes parecendo por vezes um procedimento algo arbitraacuterio e artificioso

fundado numa extensa erudiccedilatildeo filoloacutegica permite no entanto romper com

haacutebitos mentais instituiacutedos pela tradiccedilatildeo e fazer irromper novos sentidos

Eacute o que acontece por exemplo no traccedilado genealoacutegico do termo ldquoperguntarrdquo

que Joseacute Enes faz derivar do termo naacuteutico percontari formado a partir de

contus que significa vara relacionada com a acccedilatildeo de sondagem dos fundos

Perguntar guarda assim o sentido do sondar tacteante proacuteximo agravequela

experiecircncia originaacuteria do ser feita pelo intuito

Este procedimento permite-lhe tambeacutem descobrir convergecircncias e divergecircncias

de sentido entre diferentes tradiccedilotildees e modos de pensar como eacute o caso da

anaacutelise comparativa da evoluccedilatildeo semacircntica de ldquodenken e de ldquopensarrdquo

Retomando a anaacutelise do termo denken elaborada por Heidegger Joseacute Enes

sublinha em Gedanke (ideia conceito pensamento) a proximidade com Gemuumlt

(acircnimo coraccedilatildeo) com Gedaumlchtnis (memoacuteria) e Dank (agradecimento) para

concluir que Denken designa a alma inteira no sentido do recolhimento

admirativo interior que permanece fiel agravequilo que a solicita

Por outro lado pensar deriva de pensare denominativo formado sobre o

particiacutepio pensum de pendere Pendere foi transferido para a linguagem

comercial onde veio a dar a origem a pesar tornando-se depois metaacutefora para

a significaccedilatildeo de actividades mentais de caacutelculo avaliaccedilatildeo e juiacutezo

Chamando a atenccedilatildeo para o facto de que o pensamento romacircnico ao libertar-

se linguisticamente do latim renunciou ao termos cogitare (presente na

tradiccedilatildeo escolaacutestica como em Descartes) para recuperar a carga metafoacuterica do

pendere e pensare Joseacute Enes conclui que o pensar romacircnico traz desde a

origem esta intenccedilatildeo do medir e julgar que lhe conferem um caraacutecter eacutetico

709

ldquoAo nigravevel da fala como uso primeiro da ligravengua quer na conversaccedilatildeo comum quer nas vaacuterias

linguagens especializadas ndash as cientiacuteficas as artiacutesticas e as filosoacuteficas - a produccedilatildeo de uma nova

significaccedilatildeo eacute sempre a transformaccedilatildeo de uma significaccedilatildeo preexistente Greimas explicitou esta

constante sob o estiacutemulo dos processos metalinguiacutesticos da literatura mas possui validade universal a sua

foacutermula feliz ldquoLa production du sens n‟a de sens que si elle est la transformation du sens donneacute (Du Sens

essais seacutemiotiques Ed du Seuil Paris 15) A proacutepria essecircncia do processo linguiacutestico portanto eacute

metafoacutericardquo Joseacute Enes Noeticidade e Ontologia 52

376

juriacutedico ligado agrave causa da reacutes juriacutedica possuindo simultaneamente caraacutecter

econoacutemico-praacutetico ligado agrave res como mercadoria de negoacutecio

Uma outra via desta da transferecircncia metafoacuterica ensaiada por Joseacute Enes eacute o

recurso agraves metaacuteforas do discurso poeacutetico710 de que satildeo exemplos o termo

ldquocoitardquo muito frequente na poesia galaico-portuguesa onde ocorre com o

sentido de tratar cuidar de assumindo em ldquocoitadordquo o sentido de compaixatildeo

como paixatildeo reciacuteproca ou do virar-se um para o outro na intimidade do

coraccedilatildeo Daqui conclui que o pensar em cuja tradiccedilatildeo nos inserimos natildeo

traduz a inclinaccedilatildeo para um organizar e fazer calculativo que faccedila funcionar a

existecircncia como uma faacutebrica produtora de coisas mas para um encontrar o

peso e a medida para remediar e medicar e vem assim associado ao cuidar

O cuidado aqui referido eacute assim um traccedilo caracteriacutestico do pensar preacute-

conceptual (romacircnico) ou do intuito contudo natildeo agrave maneira da Sorge

heideggeriana como estrutura existenciaacuteria do Dasein mas como modo

dinacircmico ser daquele ser que pensa cuidando olhando por guardando e

tutelando Eacute a partir do pensar preacute-conceptual do intuito que Joseacute Enes iraacute

tentar pocircr a claro o ser - como acontecer do encontro entre o ser do intuito e os

ser dos seres ldquono reciacuteproco tanger-se em direcccedilatildeo ao abrigo da coabitaccedilatildeo

consistente no uacutenico mundo comum a todosrdquo711 Ora ldquoeste reciacuteproco tangerrdquo eacute

como acima vimos uma acccedilatildeo e uma re-acccedilatildeo percorridos por um dinamismo

intriacutenseco que encontra a sua correspondecircncia na estrutura contraditoacuteria e

tensional da metaacutefora

Segundo Joseacute Enes a elaboraccedilatildeo do pensamento ontoloacutegico realiza-se

atraveacutes de um processo substancialmente idecircntico ao das obras cientiacuteficas e

literaacuterias por transferecircncia de metaacuteforas oriundas de aacutereas experiencialmente

conhecidas do pensador que podem encontrar-se ao niacutevel do conhecimento

vulgar do conhecimento cientiacutefico ou tecnoloacutegico

Os diversos tipos de discursos ontoloacutegicos distinguem-se assim pela estrutura

matricial constituiacuteda pelo acircmbito a partir da qual se encetou a transferecircncia de

sentido isto eacute a produccedilatildeo metafoacuterica de um novo sentido Esta estrutura

matricial eacute em Joseacute Enes como em Heidegger a linguagem como liacutengua isto eacute

710

ldquoA linguagem poeacutetica tem como caracterigravestica estrutural a expressatildeo metafoacuterica enquanto a linguagem

cientiacutefica persegue meticulosa e mensurativamente a definida univocidade da terminologia convencional

e o rigor matemaacutetico do discurso teoacutericordquo Joseacute Enes Noeticidade e Ontologia 47 711

Joseacute Enes Linguagem e Ser 187

377

como uma totalidade orgacircnica na qual se exprime a experiecircncia de uma

comunidade histoacuterica Esta estrutura matricial comum natildeo conduz poreacutem (e

por isso mesmo porque se tratam de liacutenguas diferentes elas mesmas

dinamizadas por metaacuteforas distintas) a uma mesma ontologia

Joseacute Enes rejeitando o procedimento ecleacutetico tatildeo comum nos nossos autores

tem o cuidado de sublinhar repetidamente e rigorosamente a linha de

demarcaccedilatildeo entre os dois discursos ontoloacutegicos ldquoo ser que se revela a

Heidegger como termo do denken natildeo eacute o ser dinacircmico do homem e das

coisas naturais mas sim o ser separado de todo os seres que no sair do

homem para fora de si mesmo em direcccedilatildeo agrave fala manifestativa daquele ser se

mostra como iluminaccedilatildeo que torna visiacutevel a compreensatildeo moradora dos seres

na quadratura extaacutetica do mundo Neste destacamento do ser em relaccedilatildeo aos

seres intra-mundanos se abre a cisura da diferenccedila ontoloacutegica O ser destaca-

se dos seres embora soacute venha agrave fala de si mesmo na abertura temporal do ek-

sistir humanordquo712

Para Joseacute Enes que assume uma ontologia na tradiccedilatildeo latina713 o ser

manifestado no encontro do ser do homem e do ser das coisas na contingecircncia

do reciacuteproco tanger eacute o ser do homem e das coisas da natureza natildeo havendo

lugar para a distinccedilatildeo entre ser e ente Afastando assim a noccedilatildeo de diferenccedila

ontoloacutegica central em Heidegger ele pretende recuperar o ser como actividade

e dinamismo para que aponta a metafiacutesica escolaacutestica714

O discurso ontoloacutegico de Joseacute Enes eacute no entanto tambeacutem irredutiacutevel agrave

tradiccedilatildeo metafiacutesica que pensou o ser como conceito vazio e suprema

712

Joseacute Enes Linguagem e Ser 186 713

Joseacute Enes refuta explicitamente a subalternizaccedilatildeo do latim e das liacutenguas latinas como liacutenguas

filosoacuteficas fundando essa refutaccedilatildeo na sua pesquisa etimoloacutegica ldquoOutras expressotildees haacute tanto no

portuguecircs como nas liacutenguas neo-latinas a que me referirei na parte final as quais apresentam tambeacutem

uma riqueza hermenecircutica de grande interesse filosoacutefico A este respeito natildeo haacute diferenccedilas entre liacutenguas

originaacuterias se eacute que haacute algumas e as derivadas

Basta por ora a comparaccedilatildeo de pergunta e de Frage para se ver que o latim e as liacutenguas dele derivadas

natildeo satildeo nem mais ricas nem mais pobres do que o alematildeo sob o ponto de vista da originalidade e da

criatividaderdquo Joseacute Enes Noeticidade e Ontologia 17 714

Joseacute Enes defende tambeacutem que esta tradiccedilatildeo deve ser levada em conta na traduccedilatildeo designadamente na

traduccedilatildeo de Heidegger porque na metafiacutesica aristoteacutelico-escolaacutestica jaacute estaacute presente embora natildeo

assumida sistematicamente a noeticidade hermenecircutica Assim eacute deste ponto de vista que ele critica a

traduccedilatildeo de Verstehen por ldquocompreensatildeordquo efectuada por Gaos ldquoO verbo portuguecircs que mais se aproxima

do sentido de verstehen eacute entender naquelas acepccedilotildees em que o fio da intentionalitas escolaacutestica

sobrevive em comportamentos situacionais como entender-se com ser entendido em entender bem ou

natildeo entender o que ouve ou observa

Os tradutores romacircnicos de Heidegger ao traduzirem verstehen por compreender interrompem o

discurso hermenecircutico porque destroem a noeticidade hermenecircuticardquo Cf Joseacute Enes Noeticidade e

Ontologia 23

378

abstracccedilatildeo da razatildeo ldquoMais afastado ainda do que este ser heideggeriano estaacute

o ser revelado na pergunta como processo de uma inserccedilatildeo coabitacional

com respeito ao ser com o conteuacutedo de um conceito O ser conceituado e

representado numa ideia eacute sempre o resultado de uma abstracccedilatildeo feita sobre a

significaccedilatildeo da coacutepula enunciativa eacuterdquo715

Joseacute Enes afirma repetidamente que a experiecircncia antepredicativa do ser dada

pelo intuiacutedo eacute anterior agrave coacutepula enunciativa e eacute o seu oculto fundamento Ao

intuito o ser mostra-se como ldquocorresponsaacutevel da mundaneidade coabitacionalrdquo

isto eacute como co-pertenccedila de todos os entes a uma mesmo mundo de que o

intuito assume a guarda e o cuidado

Contudo essa experiecircncia da harmonia dum mundo dada no sentimento da

plenitude do ser eacute tambeacutem como acima vimos a experiecircncia da finitude da

morte e do natildeo ser A experiecircncia antepredicativa do ser dada ao intuito eacute em

si mesma contraditoacuteria e irredutiacutevel a qualquer conceito esclarece Joseacute Enes

em Linguagem e Ontologia porque eacute a experiecircncia do ser feita contra a

antecipaccedilatildeo angustiada do natildeo ser

Esta estrutura ontoloacutegica determina no entanto obscuramente as efabulaccedilotildees

da razatildeo contidas na metafiacutesica e na ciecircncia De facto a contenccedilatildeo muda do

intuito tem o caraacutecter peculiar de por um lado se cerrar sobre o indiziacutevel dum

misteacuterio e por outro lado ser um impulso que mobiliza a fala e impulsiona o

dizer da razatildeo O intuito eacute como que o motor invisiacutevel de toda a linguagem

enunciativa e demonstrativa da razatildeo que edifica o edifiacutecio dum saber

susceptiacutevel de verificaccedilatildeo encobrindo-se e ocultando no entanto sob esse

edifiacutecio

A ldquoanaacutelise expectanterdquo da linguagem visa reencontrar o intuito originaacuterio

assumindo tambeacutem uma funccedilatildeo criacutetica e vigilante face ao saber da razatildeo uma

vez que vai submeter esse discurso da razatildeo a uma verificaccedilatildeo e a uma

manobra de seduccedilatildeo ldquoO intuito verifica o comportamento da expressatildeo

linguiacutestica construiacuteda pela razatildeo com respeito ao ser Faacute-lo verdadeiro ou

afaacutevel na medida em que natildeo lhe deixa dizer o inefaacutevel e o reduz agrave sugerecircncia

que vai no bojo da representaccedilatildeo conceptual dando-lhe o sentido da

expressividade ou seja se-duz a razatildeo conduzindo-a para fora do acircmbito dela

715

Joseacute Enes Linguagem e Ser 186

379

e induzindo-a a ter a atitude de serva do olhar tutelador que observa reserva e

conserva o ser na salvaguardardquo716

A experiecircncia ontoloacutegica originaacuteria do intuito encontra a sua correspondecircncia

natildeo apenas na linguagem poeacutetica mas tambeacutem nas metaacuteforas da linguagem

religiosa na linguagem dos mitos e na linguagem da teologia em especial nas

metaacuteforas da salvaccedilatildeo que constituem o nuacutecleo do cristianismo ldquoEacute de facto

curioso notar como toda a efabulaccedilatildeo da experiecircncia religiosa se encontra

seminalmente contida nas estruturas comportamentais que descobrimos

atraveacutes da anaacutelise da expressatildeo linguiacutestica da coabitaccedilatildeo mundanal e da

coabitaccedilatildeo com o ser no ser do intuito e no ser dos seresrdquo717

Assim a linguagem religiosa dos mitos e da teologia parece configurar-se como

o acircmbito preferencial embora natildeo exclusivo de aplicaccedilatildeo da sua metodologia

de ldquoanaacutelise expectante da linguagemrdquo718

716

Ibidem 195 717

Ibidem 204 718

bdquoNotemos no entanto que esta experiecircncia que permite o acesso ao ser tal como eacute compreendido por

Joseacute Enes ultrapassa claramente a dimensatildeo filosoacutefica inserindo-se na esfera da experiecircncia religiosa

ldquopor este jeito o intuito reconhece o tocante como Ser A reacccedilatildeo subsequente a tal reconhecimento

assume os modos da pavidez aterradora da experiecircncia religiosardquo e ainda ldquoa uacutenica ratificaccedilatildeo possigravevel ao

intuito da validade eticizante desta experiecircncia soacute pode obter-se atraveacutes da anaacutelise linguiacutestica da

experiecircncia religiosardquo Joatildeo Paisana ldquoAproximaccedilatildeo ao pensamento de Joseacute Enesrdquo in Histoacuteria do

Pensamento Filosoacutefico Portuguecircs vol V Lisboa 2000 460

380

381

Capiacutetulo III - O Diaacutelogo de Vicente Ferreira da Silva com

Heidegger

382

383

1 A determinaccedilatildeo da situaccedilatildeo hermenecircutica

Com este capiacutetulo propomo-nos esclarecer o diaacutelogo de Vicente Ferreira da

Silva com o ldquosegundo Heideggerrdquo pondo a claro as linhas fundamentais da

interpretaccedilatildeo de alguns dos textos posteriores a Ser e Tempo que marcam

uma viragem no caminho do pensar do filoacutesofo alematildeo com destaque

particular para a Carta sobre o Humanismo

Embora o diaacutelogo de Vicente Ferreira da Silva com Heidegger remonte a um

periacuteodo anterior719 no qual ele se interessou pelas vaacuterias filosofias da

existecircncia (Sartre Heidegger e Kierkegaard) foi apoacutes 1951720 que o filoacutesofo

alematildeo se tornou interlocutor privilegiado de Vicente Ferreira da Silva e foi no

diaacutelogo com os textos posteriores a Ser e Tempo que o pensador brasileiro

estabeleceu um horizonte interpretativo original

Vicente Ferreira da Silva foi o primeiro pensador brasileiro a comentar a obra

de Heidegger nas paacuteginas da Revista Brasileira de Filosofia de que foi um dos

fundadores natildeo tendo no entanto tal como ocorrera com Delfim Santos em

Portugal tomado a iniciativa da traduccedilatildeo de nenhuma das obras do filoacutesofo

alematildeo De facto a Carta Sobre o Humanismo obra cuja publicaccedilatildeo em 1946

teve grande eco em toda a Europa dando a impressatildeo que Heidegger operara

uma ruptura radical com a via aberta pela ontologia fenomenoloacutegica de Ser e

Tempo soacute seria traduzida para liacutengua portuguesa em 1967 por E Carneiro

Leatildeo no Brasil e em 1973 por Arnaldo Stein em Portugal

No esclarecimento deste diaacutelogo estabelecido entre 1951 e a morte prematura

de Vicente no ano de 1963 partimos de certos pressupostos metodoloacutegicos que

eacute agrave partida necessaacuterio clarificar para que eles mesmos possam ser expostos

ao risco do confronto com as fontes

O primeiro e o fundamental eacute a consideraccedilatildeo estabelecida claramente por

Heidegger e Gadamer de que a linguagem que existe facticamente com

pluralidade de liacutenguas histoacutericas eacute o In-der-Welt-Sein eacute a proacutepria presenccedila do

719

Vicente Ferreira da Silva seguiu uma trajectoacuteria intelectual semelhante agrave de Delfim Santos comeccedilando

por aderir ao neopositivismo dedicou os primeiros anos do seu trabalho intelectual agrave loacutegica matemaacutetica

tendo depois entrado em contacto com a fenomenologia europeia sob cuja influecircncia publicou em 1948

os Ensaios Filosoacuteficos onde analisa diversos aspectos do pensamento de Sartre e Heidegger No entanto

foi soacute na deacutecada de 50 que Heidegger se tornou o seu interlocutor privilegiado Cf Aquiles Cocircrtes

Guimaratildees ldquoO pensamento fenomenoloacutegico no Brasilrdquo in Cultura revista de Histoacuteria e Teoria das

Ideias 184 720

Cf Vicente Ferreira da Silva ldquoA uacuteltima fase do pensamento de Heideggerrdquo in Revista Brasileira de

Filosofia vol 1 fasc 3 Satildeo Paulo 1951

384

mundo no qual estamos sempre jaacute lanccedilados como no nosso aiacute As diversas

liacutenguas histoacutericas natildeo se distinguem apenas pela diversidade de formas

sintaacutecticas ou morfoloacutegicas mas a essa diversidade de formas correspondem

conteuacutedos de pensamento e formas de sentir-se afectado distintos

Assim a explicitaccedilatildeo do sentido de termos do leacutexico heideggeriano - como

Dasein Seinsvergessenheit Unverborgenheit Lichtung des Seins - levada a

cabo por Vicente Ferreira da Silva em liacutengua portuguesa natildeo eacute uma operaccedilatildeo

inoacutecua que possa conservar o sentido intacto mas implica uma apropriaccedilatildeo

que eacute tambeacutem necessariamente uma expropriaccedilatildeo transfiguradora

A segunda consideraccedilatildeo metodoloacutegica eacute a de que uma determinada liacutengua

histoacuterica transporta consigo uma tradiccedilatildeo e impotildee agrave partida um horizonte

hermenecircutico que abre certas possibilidades de interpretaccedilatildeo excluindo outras

e impondo necessariamente uma perspectiva unilateral e restritiva na

interpretaccedilatildeo de qualquer obra filosoacutefica como Heidegger demonstrou em Was

ist Denkenrdquo721

Uma obra filosoacutefica situa-se no interior de uma certa esfera de representaccedilotildees

inerentes agrave figura de ser imperante no contexto histoacuterico-linguiacutestico E uma

apropriaccedilatildeo originaacuteria teraacute sempre que apreendecirc-la a partir dessa ldquoabertura de

mundordquo em que ela se integra como seu horizonte de sentido ldquopreacuteviordquo

apreensatildeo essa que Vicente tem como preocupaccedilatildeo integrando Heidegger no

contexto da filosofia e da poesia de liacutengua alematilde como a leitura dos seus

textos amplamente confirma

Contudo este contexto histoacuterico-linguiacutestico em que um texto filosoacutefico se

insere sendo de um certo modo absoluto e inquestionaacutevel eacute objecto de

diferentes interpretaccedilotildees que dependem largamente da situaccedilatildeo

hermenecircutica722 em que se encontram o tradutor e o inteacuterprete e do ponto de

vista que eacute imposto por essa situaccedilatildeo

721

bdquoMan verstoumlszligt aber gegen den Sinn jeder Interpretation wenn man der Meinung huldigt es gaumlbe eine

Auslegung die beziehungslos d h Absolut guumlltig sein Koumlnnte Absolut guumlltig ist im aumluszligersten Falle nur

die Vorstellungsbezirk innerhalb dessen man zu auszulegenden Text zum voraus ansetzt Die Guumlltigkeit

dieses vorausgesetzten Vorstellungsbezirkes kann nur dann eine absolute sein wenn ihre Absolutheit auf

einer Unbedingtheit und zwar der eines Glaubens beruht

Die Unbedingtheit des Glaubens und die Fragwuumlrdigkeit des Denkens sind zwei abgruumlndig verschiedene

Bereiche WhD GA 8 181 722

Cf AhS GA Band 62 346-347

385

Como atraacutes procuraacutemos demonstrar a filosofia em liacutengua portuguesa movia-se

quase sempre de modo improacuteprio no plano dos conceitos transmitidos atraveacutes

duma importaccedilatildeo fragmentaacuteria das correntes da filosofia moderna

designadamente do racionalismo e do positivismo por via de comentaacuterios e

traduccedilotildees em liacutengua francesa que se misturavam de forma ecleacutectica com

conceitos oriundos da escolaacutestica transmitidos de forma confusa acriacutetica e

natildeo fundamentada no conhecimento dos textos (natildeo traduzidos)

Contudo desde os finais do seacuteculo XIX a consciecircncia da necessidade de uma

apropriaccedilatildeo mais originaacuteria da filosofia europeia daacute origem a um esforccedilo de

traduccedilatildeo em Portugal e no Brasil que se orienta quer para os autores claacutessicos

(Platatildeo e Aristoacuteteles) quer para a filosofia do idealismo alematildeo (Kant Hegel e

Schopenhauer) Surge tambeacutem um diaacutelogo com a tradiccedilatildeo filosoacutefica orientado

no sentido de encontrar uma fundamentaccedilatildeo teoacuterica para as opccedilotildees religiosas

poliacuteticas e esteacuteticas duma geraccedilatildeo de intelectuais que procura afirmar-se

contra o positivismo dominante

Este movimento anti-positivista tem a sua mais importante expressatildeo num

pensamento poeacutetico iniciado por Antero de Quental e que se afirmou no seacuteculo

XX com poetas de dimensatildeo universal como Pascoaes ou Fernando Pessoa

Estes levaram a cabo uma contestaccedilatildeo do racionalismo e do positivismo

filosoacutefico723 assim como uma reflexatildeo sobre a sua proacutepria criaccedilatildeo poeacutetica

afirmando a poesia e os mitos como chave interpretativa do real em alternativa

ao discurso da ciecircncia

Outros pensadores latinos como Julius Evola e Reneacute Gueacutenon no iniacutecio do

seacuteculo XX levaram a cabo idecircntica contestaccedilatildeo do racionalismo e do

positivismo filosoacutefico e duma maneira geral da modernidade teacutecnica e

cientiacutefica a partir da mesma tradiccedilatildeo miacutetico-religiosa

Segundo Constanccedila Marcondes Ceacutesar724 Vicente Ferreira da Silva leu na

deacutecada de 40 a Revolta contra o Mundo Moderno de Julius Evola obra em que

se expotildee uma teoria da evoluccedilatildeo da civilizaccedilatildeo humana segundo a qual a

723

Maria Helena Varela Silva chama a atenccedilatildeo para o facto de no contexto cultural portuguecircs e

brasileiro o interesse pela metafiacutesica surgir no interior do proacuteprio movimento positivista tal verificou-se

com Sampaio Bruno e mais tarde ainda com Delfim Santos e Vicente Ferreira da Silva cujo percurso

intelectual se fez inicialmente no acircmbito do positivismo e das questotildees loacutegico-linguiacutesticas Cf Maria

Helena Varela Silva Conjunccedilotildees Filosoacuteficas Luso-Brasileiras Lisboa 2002 117-118 724

Cf Constanccedila Marcondes Ceacutesar Vicente Ferreira da Silva trajectoacuteria intelectual e contribuiccedilatildeo

filosoacutefica tese de Livre-Docecircncia em Filosofia apresentada agrave Pontifiacutecia Universidade Catoacutelica de

Campinas 37-38

386

actual civilizaccedilatildeo ocidental representaria um periacuteodo de decadecircncia

relativamente ao mundo da tradiccedilatildeo dos grandes mitos Esta obra teria tido

uma influecircncia determinante na orientaccedilatildeo do pensamento de Vicente e os

autores citados por Julius Evola como Jacob Bachoffen Jacob Boehme Leacuteon

Frobenius Walter Otto e Schelling tornar-se-iam posteriormente referecircncias

permanentes de Vicente Ferreira da Silva

Foi tambeacutem em 1947 que chegam ao Brasil Agostinho da Silva Eudoro de

Sousa Delfim Santos e Jorge de Sena O diaacutelogo com os dois primeiros

pensadores portugueses desempenhou um importante papel na geacutenese do

pensamento de Vicente reflectindo o seu encontro com a Greacutecia e os mitos

Os diaacutelogos com Agostinho da Silva especialista em filologia claacutessica e

conhecedor da nova poesia portuguesa que reivindicava a poesia como lugar

privilegiado de acesso ao ser estatildeo documentados pelo proacuteprio Vicente em

Diaacutelogo do Mar Diaacutelogo da Montanha e Diaacutelogo do Espanto mas segundo

Constanccedila Marcondes Ceacutesar teria sido mais determinante o diaacutelogo com

Eudoro de Sousa helenista e exegeta da mitologia grega cuja filosofia da

mitologia jaacute atraacutes referimos e com o qual Vicente teria debatido autores como

Bachofen Walter Otto e Kereacuteny

Vicente aborda Heidegger a partir das questotildees emergentes nesta situaccedilatildeo

histoacuterico-linguiacutestica e comuns a toda uma geraccedilatildeo de pensadores

designadamente o enfrentamento com a modernidade teacutecnico-cientiacutefica e a

recuperaccedilatildeo da poesia e dos mitos como inesgotaacuteveis fontes de sentido e de

renovaccedilatildeo da cultura

Apesar de repudiar a existecircncia de filosofias nacionais e de as suas

referecircncias expliacutecitas serem quase sempre a filosofia alematilde no seu Diaacuterio

publicado postumamente Vicente indica claramente a sua comunhatildeo com

ldquoStimmung epocalrdquo que une todos esses pensadores latinos e que claramente

determinou o seu pensamento a partir dos anos 50 Escreve Vicente em 1958

no ldquoDiaacuterio Filosoacuteficordquo ldquoEscrevi haacute tempos um artigo sobre o que chamei o ldquonovo

cepticismordquo Mas o que realmente queria realccedilar era a coexistecircncia de diversos

estilos de vida no acircmbito ocidental Aleacutem da dominante democraacutetico-cristatilde com

as suas consequecircncias eacutetico-juriacutedicas outras estrelas obscurecidas iluminam

fracamente o ceacuteu Refiro-me ao sentimento ctoacutenico-maternal da natureza e da

vida O sentido romacircntico ou orgacircnico-vital das coisas A primeira alternativa

387

separa o homem como sujeito do mecanismo universal A segunda instala o

homem no acircmago da vida A transcendecircncia da vida eacute a proacutepria vidardquo725

Embora Vicente natildeo reivindicasse nenhuma orientaccedilatildeo nova no pensamento

sul-americano salientando de preferecircncia a isocronia entre a Filosofia sul-

americana e a Europeia726 natildeo podemos deixar de ter em conta a importacircncia

do proacuteprio contexto cultural onde o mito e o rito ainda satildeo vigentes lado a lado

com o modo de vida europeu e cuja presenccedila eacute explicitamente referida no seu

ldquoDiaacuterio Filosoacuteficordquo ldquoNa festa no canto cosmogoacutenico condensa-se uma

contracccedilatildeo jubilosa do mundo uma Weltbild Haacute dias ouvi muacutesica africana -

rituais de iniciaccedilatildeo e de propiciaccedilatildeo ndash apenas se distingue dos grandes ruiacutedos

da natureza O aboio e o som dos chifres prolongando a expressatildeo da Terra

Entrega do homem agrave vida omnicompreensiva A muacutesica da Ergriffenheitrdquo727

O despertar da consciecircncia de si do pensamento sul-americano emergira jaacute no

Manifesto Antropoacutefago de Oswaldo de Andrade de 1928 traduzindo-se aiacute na

busca de uma identidade cultural brasileira na contestaccedilatildeo da heranccedila catoacutelica

e humanista colonizadora e na reivindicaccedilatildeo de um pensamento preacute-loacutegico

associado agrave presenccedila duma heranccedila iacutendia e africana Por volta dos anos

cinquenta estava lanccedilada a discussatildeo sobre o despertar de um pensamento

filosoacutefico sul-americano original participando nessa discussatildeo autores como

Sciacca728 Julian Marias729 e Enzo Paci730 autores que defendiam a

emergecircncia dum pensamento filosoacutefico original em virtude da utilizaccedilatildeo do

pensamento europeu para pensar de modo criador os problemas da Ameacuterica

Natildeo partilhando Vicente como atraacutes referimos destas preocupaccedilotildees da

725

Vicente Ferreira da Silva rdquoDiaacuterio Filosoacuteficordquo Cavalo Azul nordm3 1958 in Dialeacutectica das Consciecircncias

e outros ensaios Lisboa 2002 490 726

Cf Vicente Ferreira da Silva ldquoEnzo Paci e o Pensamento Sul-Americanordquo SP Revista Brasileira de

Filosofia vol 5 fasc 18 Abril-Junho 287-289 727

Vicente Ferreira da Silva ldquoDiaacuterio Filosoacuteficordquo in Dialeacutectica das Consciecircncias e outros ensaios 493 728

Segundo Sciaca o pensamento Ibero-Americano distanciar-se-ia da tradiccedilatildeo pragmaacutetica da Ameacuterica

do Norte tendo herdado a ldquoalmardquo da Europa metafigravesica assim como o sentido metafiacutesico inerente aos

mitos arcaicos americanos e a uma religiosidade de tipo mediterracircneo e latino Cf Constanccedila Marcondes

Ceacutesar Vicente Ferreira da Silva Trajectoacuteria intelectual e contribuiccedilatildeo filosoacutefica 83 729

Para Juliacutean Mariacuteas a filosofia latino-americana orienta-se disjuntivamente ou para a recusa da sua

circunstacircncia na tentativa de alcanccedilar uma universalidade intemporal ou reduz-se a uma reflexatildeo sobre a

circunstacircncia brasileira perdendo a dimensatildeo da universalidade Cf Constanccedila Marcondes Ceacutesar Idem

88 730

Enzo Paci num artigo elaborado por ocasiatildeo do Congresso Internacional de Filosofia realizado em Satildeo

Paulo (1954) na sequecircncia de Sciaca e Mariacuteas afirma a especificidade do pensamento luso-brasileiro e a

sua vinculaccedilatildeo ao mundo miacutetico primitivo indiacutegena e negro Cf Constanccedila Marcondes Ceacutesar Idem 89

388

construccedilatildeo duma identidade cultural sul-americana731 natildeo deixa no entanto

de reivindicar para si mesmo um ponto de vista interpretativo original da obra

de Heidegger ponto de vista que procuraremos esclarecer mostrando que

estava jaacute ldquolanccediladordquo no seu contexto histoacuterico-cultural

2 O estabelecimento progressivo de um ponto de vista interpretativo

21 A reformulaccedilatildeo da questatildeo antropoloacutegica e a descoberta

do segundo Heidegger

Vicente tinha publicado em 1940 a sua obra Loacutegica Simboacutelica sendo

considerado o introdutor da disciplina no Brasil Com a vinda de Willard van

Orman Quine ao Brasil ele foi tradutor das suas conferecircncias auxiliou-o no

curso que ministrou em Satildeo Paulo estudou as obras de Wittgenstein e Carnap

e considerava a loacutegica matemaacutetica como uma ampliaccedilatildeo da loacutegica claacutessica

capaz de ser um instrumento de criacutetica da linguagem filosoacutefica e cientiacutefica732

O afastamento de Vicente em relaccedilatildeo aos problemas da loacutegica e da

epistemologia esteve ligado ao seu contacto com as filosofias da existecircncia e

ao primado da reflexatildeo sobre a questatildeo antropoloacutegica o seu interesse pela

obra de Heidegger comeccedilou ainda na deacutecada de 40 e segundo testemunhos

recolhidos por Constanccedila Marcondes Ceacutesar ele dinamizou em sua casa um

ciacuterculo de estudos dedicado a Das Ding e a Ser e Tempo aiacute lendo e traduzindo

estas obras733 A publicaccedilatildeo de Ensaios Filosoacuteficos em 1948 Exegese da

Acccedilatildeo de 1949 e Dialeacutectica das Consciecircncias de 1950 marca um novo ciclo do

pensamento filosoacutefico do autor caracterizado pela centragem na problemaacutetica

antropoloacutegica e pelo diaacutelogo com os pensadores da existecircncia (Sartre

Heidegger Kierkegaard e Jaspers)

Os dois textos que comentam Heidegger mais detidamente satildeo ldquoO Conceito de

Arte na Filosofia Actualrdquo incluiacutedo na Exegese da Acccedilatildeo e ldquoO Outro Como

Problema Teoacuterico e Problema Praacuteticordquo incluiacutedo na Dialeacutectica das Consciecircncias

731

Vicente recusava-se a admitir que a preocupaccedilatildeo com o mito fosse uma caracteriacutestica do pensamento

latino-americano e defendia a ideia de que no Continente Sul-Americano haveria que retomar e

desenvolver a tradiccedilatildeo filosoacutefica europeia Cf Vicente Ferreira da Silva ldquoEnzo Paci e o Pensamento sul-

americanordquo in Revista Brasileira de Filosofia vol V fasc II 1955 287-289 732

Cf Constanccedila Marcondes Ceacutesar Vicente Ferreira da Silva trajectoacuteria intelectual e contribuiccedilatildeo

filosoacutefica 13 733

Cf Ibidem 22

389

No primeiro destes textos Vicente contesta a interpretaccedilatildeo positivista da arte

que a considera como sublimaccedilatildeo ou transferecircncia de impulsos bioloacutegicos

mostrando que tal interpretaccedilatildeo da arte se fundamenta numa compreensatildeo

naturalista do homem ldquoSegundo essa visatildeo o homem natildeo eacute pois uma criaccedilatildeo

de si mesmo natildeo se constitui em seu agir natildeo se dota de forma mas a sua

forma seu ser sua natureza estatildeo agrave base de seus comportamentos

posterioresrdquo734

Vicente critica esta concepccedilatildeo naturalista de homem segundo a qual ele tem

uma essecircncia preacute-determinada sendo assim uma forma que se repete

indefinidamente e que nada pode acrescentar ao seu ser determinado Uma tal

concepccedilatildeo antropoloacutegica torna-se incapaz de ver na arte a realizaccedilatildeo da

liberdade do homem e eacute nas filosofias da existecircncia que Vicente encontra uma

outra concepccedilatildeo do homem a partir da qual se torna possiacutevel pensar a

natureza da arte ldquoO axioma capital da meditaccedilatildeo filosoacutefica dos nossos dias

repousa na afirmaccedilatildeo paradoxal de que o homem natildeo tem ser eacute ldquoune manque

d‟ecirctrerdquo nas palavras de Sartre uma carecircncia de serrdquo735

Eacute partindo desta concepccedilatildeo do homem como carecircncia de ser que podemos

compreender o homem como um ser que se cria a si mesmo atraveacutes das suas

obras E para Vicente Ferreira da Silva a obra humana por excelecircncia que

condiciona todos os outros momentos morfogeneacuteticos eacute a linguagem

Houmllderlin e a Essecircncia da Linguagem e a Carta Sobre o Humanismo satildeo

comentadas por Vicente para evidenciar o papel demiuacutergico da linguagem

sublinhando que para Heidegger ldquoa palavra eacute a morada do ser e aiacute morando

o homem existe na verdade do serrdquo

Vicente sublinha que a palavra a que Heidegger se refere natildeo eacute a palavra de

todos os dias mas a palavra poeacutetica o mito a Linguagem original (Ursprache)

pois aiacute se constitui o sentido e ldquose cerne um paradigma de ser sobre a nossa

consciecircnciardquo

Numa siacutentese entre Sartre e Heidegger exemplificativa deste periacuteodo do

pensamento de Vicente este afirma ldquoLembremo-nos de que para o

existencialismo a existecircncia precede a essecircncia a forma o ser e eacute em seu

734

Vicente Ferreira da Silva A Exegese da Acccedilatildeo Satildeo Paulo 1949 in Dialeacutectica das Consciecircncias e

outros ensaios 135 735

Ibidem 136

390

movimento profundo um dar-se forma essecircncia ser Pois bem esta doaccedilatildeo de

ser eacute para Heidegger um efeito da palavra e particularmente da palavra mito-

poeacuteticardquo736

No segundo texto Vicente propotildee-se pensar a relaccedilatildeo com o outro como um

problema praacutetico na sequecircncia da ceacutelebre ldquodialeacutectica do senhor e do escravordquo

atraveacutes da qual Hegel pensa a emergecircncia da consciecircncia de si mesmo e a

consciecircncia do outro a partir da acccedilatildeo Abordando esta temaacutetica numa

perspectiva eacutetica Vicente propotildee-se demonstrar que o problema do outro eacute

primariamente um problema praacutetico que soacute pode solucionar-se a partir do

encontro efectivo com o outro na solicitude e no cuidado soluccedilatildeo para a qual

Heidegger Sartre e Jaspers teriam contribuiacutedo

Se neste primeiro periacuteodo Vicente integra Heidegger no quadro das filosofias

da existecircncia e estaacute essencialmente preocupado com o problema antropoloacutegico

e com as temaacuteticas da acccedilatildeo esta orientaccedilatildeo sofreraacute uma importante viragem

a partir de 1951

Eacute nesta data que ele publica Ideias para um Novo Conceito de Homem onde o

problema antropoloacutegico eacute encarado segundo uma perspectiva radicalmente

diferente a superaccedilatildeo do ldquohumanismo antropocecircntricordquo ocuparaacute o centro da

sua reflexatildeo filosoacutefica tornando-se claramente Heidegger (e principalmente o

chamado segundo Heidegger) o seu interlocutor privilegiado

No entanto natildeo podemos deixar de constatar que foi depois do encontro com a

obra de Julius Evola com Ernest Grassi no Congresso de Filosofia de

Mendonza em 1949 com Agostinho da Silva e Eudoro de Sousa que Vicente

levou a cabo esta inflexatildeo do seu pensamento Foi tambeacutem em 51 que Vicente

publicou na Revista Brasileira de Filosofia dois artigos sobre o segundo

Heidegger intitulados ldquoHolzwegerdquo e ldquoA uacuteltima fase do pensamento de

Heideggerrdquo

ldquoA uacuteltima fase do pensamento de Heideggerrdquo centra-se na anaacutelise das liccedilotildees

ldquoDa Essecircncia da Verdaderdquo do semestre de Inverno de 193334 da Carta Sobre

o Humanismo de 1946 e do Caminho da Floresta - este artigo daacute conta da

percepccedilatildeo de Vicente relativamente agrave ldquoviragem heideggerianardquo relativamente a

Ser e Tempo Segundo Vicente Heidegger daacute em Da Essecircncia da verdade

736

Ibidem 137

391

um significativo passo em frente face agrave elaboraccedilatildeo do problema do ser

encaminhando-se para aleacutem da determinaccedilatildeo do horizonte transcendental da

ontologia (tarefa levada a cabo em Ser e Tempo) para a meditaccedilatildeo sobre o

sentido do ser atraveacutes dum regresso aos fundamentos da histoacuteria da

Metafiacutesica737

Vicente sublinha que Heidegger recoloca o problema do Ser mostrando a sua

identidade com a Verdade e questiona-se sobre o fundamento mais profundo

da mudanccedila da essecircncia de Verdade de desocultamento (Unverborgenheit)

para exactidatildeo (Richtigkeit) do enunciado mudanccedila que determinou a histoacuteria

da Metafiacutesica ocidental

Apoacutes breve referecircncia ao desenvolvimento do conceito heideggeriano de

Verdade como desocultaccedilatildeo do ente jaacute anunciado em Ser e Tempo e agora

retomado em a Essecircncia da Verdade Vicente mostra que nesta uacuteltima obra

Heidegger defende que a essecircncia da Verdade eacute a liberdade entendida como

ldquoex-posiccedilatildeo agraves coisasrdquo e ldquoek-sistecircnciardquo isto eacute como acto desvelador do ente

que estaacute ele mesmo historicamente destinado

Vicente refere ainda que essa desocultaccedilatildeo implica sempre para o pensador

alematildeo a ocultaccedilatildeo e o encobrimento estabelecendo uma comparaccedilatildeo com o

pensamento de Heraclito ldquoEsta visatildeo sombria da vida lembra a sabedoria

infusa de um Heraclito que via o mundo como um destacar-se luminoso em

abismos insondaacuteveis e como eterna alternacircncia dos princiacutepios diurno e

nocturnordquo738 ilustrando ainda esta ldquovisatildeo sombria da vidardquo com um poema de

Rilke alusivo agrave Obscuridade

Mais importante poreacutem eacute o seu comentaacuterio agrave Carta sobre o Humanismo

(classificada por Vicente como ldquouma das obras mais importantes deste seacuteculordquo)

porque se liga directamente agrave problemaacutetica que ocuparaacute doravante a reflexatildeo

do pensador brasileiro ldquoA elaboraccedilatildeo do problema do fundamento metafiacutesico

do humanismo segue uma linha criacutetica procurando Heidegger mostrar que a

737

ldquoA mais forte impressatildeo que nos fica da leitura do uacuteltimo Heidegger eacute a de um esforccedilo sobre-humano

para colocar em outras bases a tarefa fundamental da filosofia O seu pensamento se apresenta sempre

como uma inversatildeo (Umkehrung) no sentido de remontar agraves origens transcendentais da realidade A

dificuldade tradicional do pensamento heideggeriano se adensou ainda mais em suas uacuteltimas obras Da

Essecircncia da Verdade Carta sobre o Humanismo e Caminhos do Bosque ndash pois ao ericcedilado habitual de sua

terminologia acrescentou-se a condensaccedilatildeo quase aforiacutestica do texto A afinidade do seu pensamento

com a palavra oracular dos presocraacuteticos estaacute certamente agrave base deste novo estilo de apresentaccedilatildeo da sua

obrardquo Vicente Ferreira da Silva ldquoA ugraveltima fase do pensamento de Heideggerrdquo Revista Brasileira de

Filosofia vol I fasc 3 1951 280 738

Ibidem 283

392

essecircncia do homem concebida a partir da metafiacutesica tradicional nada mais

expressa que o esquecimento do ser (Seinsvergessenheit)rdquo739

Vicente mostra ainda que a tentativa heideggeriana de pensar a essecircncia do

homem a partir do ser o conduz a abandonar o plano do Ente e da

determinaccedilatildeo da especificidade do homem em relaccedilatildeo aos diferentes tipos de

ente Para o pensador alematildeo o homem eacute o ldquovizinho do serrdquo e ldquoeacute em funccedilatildeo

desta verdade do ser que podemos entender a existencialidade da existecircncia

Ek-sistecircncia significa estar exposto agrave verdade do ser A essecircncia ek-staacutetica do

homem proveacutem deste acesso essencial agrave abertura (Offenheit) do serrdquo740

Afirma ainda Vicente que esta relaccedilatildeo do homem com ldquoas potecircncias

envolventes do serrdquo daacute-se na linguagem mas natildeo na linguagem ndash instrumento

(a palavra do Ente) a linguagem que salvaguarda a essecircncia do homem eacute em

essecircncia a palavra poeacutetica

Recorrendo ao ensaio Houmllderlin e a Essecircncia da Poesia Vicente lembra que

para Heidegger a poesia natildeo eacute um mero divertimento nem uma manifestaccedilatildeo

da cultura mas sim o fundamento que suporta a histoacuteria Vicente esclarece

ainda que a poesia tem para Heidegger o sentido mais amplo da linguagem

instituinte e inaugural do mundo e que ela compreende a totalidade das obras

de arte

Nestes breves comentaacuterios Vicente indica a sua percepccedilatildeo do itineraacuterio de

Heidegger apoacutes Ser e Tempo e testemunha a mesma impressatildeo de ldquoviragemrdquo

que todos os pensadores europeus experimentaram na leitura da Carta Sobre

o Humanismo

Contudo esta viragem heideggeriana eacute relacionada com a questatildeo

antropoloacutegica e na sua leitura o pensador brasileiro destaca a direcccedilatildeo que

vai orientar o seu pensamento a necessidade de reelaborar a questatildeo

antropoloacutegica em conexatildeo com o conceito de verdade como desocultamento e

em conexatildeo com o primado da linguagem poeacutetica

739

Ibidem 285 740

Ibidem 286

393

22 O homem e o ditado do ser

Efectivamente em 1951 Vicente publica Ideias para um Novo Conceito de

Homem obra que marca uma viragem decisiva no pensamento do autor

claramente influenciada pela Carta sobre o Humanismo de Heidegger Nesta

obra a questatildeo da relaccedilatildeo entre linguagem poesia e mitologia eacute central e

pensada a partir de Schelling Jacob Boehme e Heidegger iniciando aiacute Vicente

uma meditaccedilatildeo sobre a natureza da linguagem em ruptura com a sua primeira

fase de ligaccedilatildeo agrave loacutegica e agrave filosofia neo-positivista

Vicente procura mostrar que a tradiccedilatildeo metafiacutesica marcada pelo esquecimento

da peculiaridade ontoloacutegica do homem falseou tambeacutem a natureza da

linguagem a Metafiacutesica pressupocircs sempre um homem jaacute constituiacutedo (anterior agrave

linguagem) que sob o impeacuterio de contingecircncias externas criava o mundo

simboacutelico da palavra Vico741 e Fichte teriam ambos incorrido neste erro de

atribuir ao homem a criaccedilatildeo da linguagem como sistema arbitraacuterio de signos

Na oacuteptica de Vicente devemos considerar pelo contraacuterio que a linguagem eacute

que cria o homem e esta tese de uma antropogeacutenese pela linguagem teria sido

jaacute antecipada por Jacob Boehme e Schelling e finalmente encontrar-se-ia

cabalmente fundamentada nas obras de Heidegger posteriores a Ser e Tempo

ldquoNeste sentido podemos dizer que natildeo eacute o homem que daacute origem agrave palavra

mas eacute a palavra que daacute origem ao homem As suas possibilidades histoacuterico-

existenciais a sua representaccedilatildeo do mundo e das coisas soacute lhe satildeo reveladas

atraveacutes do verbo mito-poieacutetico Eacute o que afirma Heidegger em seu ensaio

Houmllderlin e a Essecircncia da Poesia ldquoEacute em virtude da linguagem que o homem se

acha exposto em geral a um Revelado o ser do homem tem o seu

fundamento na linguagemrdquordquo742

741

A posiccedilatildeo de Ferreira da Silva relativamente agrave tradiccedilatildeo metafiacutesica designadamente agrave metafiacutesica

escolaacutestica eacute bastante distinta de Delfim Santos Criacutetico em relaccedilatildeo a esta tradiccedilatildeo Ferreira da Silva lecirc

Heidegger agrave luz da Filosofia Alematilde estabelecendo muacuteltiplas conexotildees com o idealismo alematildeo sobre

tudo com Schelling e mais tarde com Nietzsche Cf Maria Helena Varela Silva Conjunccedilotildees Filosoacuteficas

Luso-Brasileiras 120 Eacute tambeacutem no diaacutelogo com a miacutestica (Jacob Boehme) e com a poesia alematildes

(Houmllderlin) que Vicente lecirc Heidegger o que traduz a sua profunda ligaccedilatildeo agrave cultura alematilde desde logo

explicaacutevel pela sua educaccedilatildeo Embora educado num meio onde o italiano era a liacutengua materna cedo

aprendeu alematildeo e comeccedilou a ler a Revista de Ocidente (1922) que introduziu no Brasil a filosofia alematilde

a partir de traduccedilotildees de Ortega Cf Constanccedila Marcondes Ceacutesar Vicente Ferreira da Silva trajectoacuteria

intelectual 9 742

Vicente Ferreira da Silva rdquoIdeias Para um Novo Conceito de Homemrdquo Revista Brasileira de

Filosofia vol I fasc 4 1951 in Dialeacutectica das Consciecircncias e outros ensaios 250

394

Esta tese de uma antropogeacutenese pela linguagem encontra-se segundo

Vicente preacute-anunciada por Jacob Boehme em Mysterium Magnum Aiacute a

propoacutesito do episoacutedio biacuteblico da Torre de Babel Jacob Boehme leva a cabo um

conjunto de interpretaccedilotildees teosoacuteficas visando mostrar a constituiccedilatildeo dos

diversos povos e liacutengua histoacutericas a partir de um povo e de uma liacutengua original

Aiacute sublinha Vicente agrave mistura com divagaccedilotildees cabaliacutesticas e arbitraacuterias

poderemos encontrar uma explicaccedilatildeo convincente das diferenccedilas constitutivas

das diferentes liacutenguas ldquoBoehme encontra a causa da confusatildeo das liacutenguas e

da dissoluccedilatildeo dos povos na multiplicidade das imagens e opiniotildees que cada

povo formou sobre o ser e a vontade de Deus em seu personalismo

particularrdquo743

Relativamente ao papel das liacutenguas na constituiccedilatildeo das peculiaridades

histoacutericas e geograacuteficas de cada povo Vicente afirma que segundo Jacob

Boehme ldquoOs povos natildeo se dividiram entretanto porque sendo diversos

comeccedilassem a falar na confusatildeo das liacutenguas mas pelo contraacuterio pelo facto de

a liacutengua geral se contrair na particularidade das propriedades e dos sentidos

foi que os povos se disseminaram sobre a terra A confusatildeo das liacutenguas

precedeu a confusatildeo dos povos e a condicionourdquo744

Se abandonarmos a hipoacutetese de uma unidade meta-histoacuterica de todos os

povos podemos afirma Vicente aceitar o essencial das teses de Jacob

Boehme relativamente ao papel determinante das diversas liacutenguas na

constituiccedilatildeo dos povos assumindo no entanto positivamente a nossa

condiccedilatildeo linguiacutestica como ldquoum mundo de oportunidades e desempenhos

histoacutericosrdquo

Estas teses teriam sido depois retomadas por Schelling na sua Filosofia da

Mitologia Vicente afirma que Schelling investiga nesta obra a origem e

constituiccedilatildeo dos povos defendendo que um povo se constitui como tal quando

ldquose decide por uma mitologia dela fazendo a sua mitologiardquo pois esta

determina o caraacutecter e a histoacuteria de um povo ditando-lhe de certo modo o seu

destino Essa decisatildeo por uma mitologia natildeo eacute poreacutem entendida por Schelling

senatildeo como sinal de que os deuses se apossaram do acircnimo de um povo

743

Ibidem 252 744

Ibidem 253

395

sendo esta irrupccedilatildeo do sagrado que determina a sua concepccedilatildeo do mundo e

de si mesmo745

As diferentes teodiceias correspondem aos diversos povos histoacutericos que se

acham eles mesmos comprometidos com um drama teogoacutenico que tem uma

dimensatildeo subjectiva e transsubjectiva pois embora se desenrole no interior da

consciecircncia humana tem a sua causa ldquonas potecircncias teogoacutenicas

transcendentesrdquo

Assim sublinha Vicente uma vez que segundo Schelling o homem recebe as

suas possibilidades histoacutericas da ldquoforccedila instituidora do processo teogoacutenico

originalrdquo a sua condiccedilatildeo ontoloacutegica aparece-nos radicalmente modificada

ldquoAparece-nos como ente na medida em que o encaramos na sua condiccedilatildeo

derrelicta e abandonada em sua geworfene Realitaumlt e como natildeo ente na

medida em que ocupa a posiccedilatildeo de emissaacuterio das potecircncias demiuacutergicas

originaisrdquo746

Em Schelling Vicente encontra tambeacutem a ideia de que a mitologia eacute poesia

originaacuteria isto eacute a fonte de todas as posteriores criaccedilotildees poeacuteticas No entanto

Vicente pretende ir mais longe que Schelling defendendo uma identificaccedilatildeo

completa entre poesia e mitologia a poesia eacute ela mesma ldquoo modo de

actuaccedilatildeo das potecircncias mito-poieacuteticasrdquo ldquoTivesse ele sentido o que existe de

imperioso e de necessaacuterio na criaccedilatildeo poeacutetica tivesse ele entrevisto na palavra

poeacutetica a formulaccedilatildeo de um destino de um povo quando o poeta em sua

singularidade se perde e se transcende arrebatado pelo que deve ser dito e

natildeo haveria recuado ante a identificaccedilatildeo da poesia com o modo de actuaccedilatildeo

das potecircncias mito-poieacuteticasrdquo747

Na condiccedilatildeo do poeta como arrojado para o ldquoentrerdquo a voz do povo e os deuses

referida em Houmllderlin e a Essecircncia da Poesia Vicente encontra a confirmaccedilatildeo

desta identificaccedilatildeo do poeta como ldquoemissaacuteriordquo das potecircncias teogoacutenicas e

portanto como criador de mitos Efectivamente a caracterizaccedilatildeo feita por

Heidegger da poesia como Saga na obra acima referida autoriza esta leitura

745

Vicente critica a abordagem que a moderna sociologia faz da mitologia vendo nesta o resultado de

uma produccedilatildeo colectiva e anoacutenima que emana da estrutura social Para Vicente eacute o contraacuterio que se

passa pois a ldquoconsciecircncia de um povo eacute formada pelos deuses que se apossaram do seu acircnimo de tal

forma que a concepccedilatildeo que alimenta sobre o mundo e sobre si mesmo eacute inteiramente determinada pela

irrupccedilatildeo do sagrado Cf Ibidem 258-259 746

Ibidem 261 747

Ibidem 262

396

ldquoA fundaccedilatildeo do ser estaacute vinculada aos acenos dos deuses E ao mesmo tempo

a palavra poeacutetica natildeo eacute senatildeo a interpretaccedilatildeo da ldquoVoz do Povordquo Assim designa

Houmllderlin as sagas nas quais um povo se rememora na pertenccedila do ente no

seu todordquo748

A funccedilatildeo de ldquoabertura de mundordquo que Heidegger atribui agrave linguagem em geral e

que em Houmllderlin e a Essecircncia da Poesia a linguagem poeacutetica realiza de forma

eminente (ldquoa linguagem natildeo eacute soacute um instrumento que o homem tambeacutem

possui aleacutem de muitos outros mas esta daacute acima de tudo a possibilidade de

estar no meio da abertura do ente Apenas onde haacute linguagem haacute mundordquo749) eacute

reconhecida por Vicente e identificada com a ideia igualmente defendida por

Eudoro de Sousa em Mitologia de uma diacosmese ldquoAo aceno de qualquer

dos deuses se atribui uma diacosmese Uma diacosmese esta ou aquela

conforme se trata deste ou daquele deus eacute o acenado pelo aceno de um deus-

acenante O aceno diacosmiza a mensagem do deus Natildeo podemos de outro

modo entender aqueles ldquoacenantes mensageiros da divindaderdquordquo750

Na Carta sobre o Humanismo Vicente lecirc sobretudo a reafirmaccedilatildeo deste

primado da linguagem mitopoieacutetica como linguagem em que se daacute o

desvelamento do ser assim como as importantes consequecircncias desta tese na

reformulaccedilatildeo do problema antropoloacutegico

Sublinhando que Heidegger critica todos os humanismos por procederem a

uma determinaccedilatildeo da essecircncia do homem a partir de ldquouma determinada

interpretaccedilatildeo da natureza da cultura do ente em geralrdquo esquecendo a verdade

do ser Vicente conclui que ldquoo destino da metafiacutesica eacute o de natildeo conseguir

pensar o homem em sua verdadeira proveniecircncia e em conexatildeo fundamental

com o serrdquo751

748

bdquoDie Stiftung des Seins ist gebunden an die Winke der Goumltter Und zugleich ist das dichterische Wort

nur die Auslegung der bdquo Stimme des Volkesldquo So nennt Houmllderlin die Sagen in denen ein Volk eingedenk

ist seiner Zugehoumlrigkeit zum Seienden im Ganzenldquo HWD GA 4 46 749

bdquoDie Sprache ist nicht nur ein Werkzeug das der Mensch neben vielen anderen auch besitzt sondern

die Sprache gewaumlhrt uumlberhaupt erst die Moumlglichkeit in mitten der Offenheit von Seiendem zu stehen Nur

wo Sprache da ist Welt []ldquo HWD GA 4 3738 750

Eudoro de Sousa Mitologia Histoacuteria e Mito 184 751

ldquoDe acordo com Heidegger a totalidade das formulaccedilotildees e doutrinas sobre a natureza uacuteltima do

homem sobre a humanitas do homem se desenvolveu a partir da precaacuteria base de um profundo

esquecimento do ser [hellip] A primeira observaccedilatildeo de Heidegger se colige na acentuaccedilatildeo de que o

pensamento filosoacutefico ocidental ao pretender determinar a essecircncia do homem o fez sempre a partir de

uma determinada interpretaccedilatildeo da natureza da histoacuteria e do ente em geralrdquo Vicente Ferreira da Silva

ldquoIdeias para um novo conceito de homemrdquo in Dialeacutectica das Consciecircncias e outros ensaios 272

397

Para escapar a esta determinaccedilatildeo metafiacutesica da essecircncia do homem natildeo

podemos pensaacute-lo coleccionando as suas qualidades ocircnticas nem apelando

para a subjectividade mas o modo de aproximaccedilatildeo da humanitas do homem

consiste na visualizaccedilatildeo da sua ldquodimensatildeo ek-sistencial e transcendenterdquo

Vicente esclarece o sentido desta dimensatildeo ek-sistencial do homem em termos

natildeo compatiacuteveis com a sua anterior posiccedilatildeo existencialista mostrando

claramente que segundo Heidegger a ek-sistecircncia deve ser pensada ldquoa partir

da relaccedilatildeo ek-staacutetica com a abertura desveladora do serrdquo ldquoO pensamento de

Heidegger no que respeita explicitamente ao problema da ldquoessecircncia do

homem vem exposto em sua plaquette Carta Sobre o Humanismo Para

Heidegger o homem eacute o vizinho do ser Contudo o pensamento filosoacutefico e

humaniacutestico natildeo atendia a esta relaccedilatildeo e intimidade do homem com as

potecircncias instituidoras do Ser O pensamento metafiacutesico pensou o homem a

partir da forma do Ente isto eacute a partir de imagens que natildeo eram

suficientemente originais e preacutevias Uma verdade derivada foi tida como

constituindo e esgotando o significado da humanitas Uma nova inteligecircncia do

fenoacutemeno humano supotildee um novo remontar em direcccedilatildeo agrave conexatildeo uacuteltima do

homem com o fundamento de todo o enterdquo752

O ser eacute sublinha Vicente abertura desvelamento descobertura e iluminaccedilatildeo

e este desvelamento significa o esboccedilo de um mundo Weltentwurf o ser daacute-se

como esboccedilo de um mundo e como poder instituidor das possibilidades

histoacutericas do homem no interior das quais se pode manifestar a sua liberdade

Vicente sublinha que tanto em Heidegger como em Schelling o homem eacute

arrebatado por um poder que o ultrapassa e estaacute sujeito a um Destino que

determina a sua realidade histoacuterica Este destino eacute identificado por Vicente

como as ldquodecisotildees histoacuterico-teogoacutenicasrdquo que decidem o apogeu e o decliacutenio

dos ciclos histoacutericos o aparecimento e decliacutenio dos mundos753

Assim sublinha Vicente Heidegger procura pensar o homem agrave margem de

todo o antropocentrismo da tradiccedilatildeo metafiacutesica e humanista754 retirando-o do

752

Vicente Ferreira da Silva Ibidem 272 753

Cf Ibidem 275 754

ldquoAo contraacuterio do que se mostra no acircmbito da filosofia ldquointramundanardquo que se subdivide em muacuteltiplas

perspectivas distintas ou contrapostas como as do idealismo realismo materialismo etc poder-se-ia

dizer que do ponto de vista radical aceite por Vicente soacute haacute duas direcccedilotildees filosoacuteficas fundamentais

uma que se propotildee o problema do homem e das coisas a partir do homem mesmo outra que pensa o

398

centro da histoacuteria ldquoO poder ser proacuteprio do homem eacute pois um poder ser

arrojado uma actividade que se exercita dentro de uma direcccedilatildeo e de

directivas jaacute prescritas O homem portanto natildeo eacute o Senhor do Ente (der Herr

des Seienden) mas o pastor do ser (der Hirt des Seins)rdquo755

Ora este instituir do projecto transcendente do ser que arrebata o homem e o

lanccedila na histoacuteria daacute-se precisamente sublinha Vicente no dizer poeacutetico ldquono

dizer poeacutetico potildee-se em obra a verdade projectante do serrdquo O primado da

linguagem poeacutetica resulta precisamente da sua funccedilatildeo desocultante da sua

capacidade de abertura de mundos que a distinguem inteiramente da funccedilatildeo

meramente teacutecnico-instrumental e comunicativa da linguagem quotidiana ou da

linguagem cientiacutefica que retivera o interesse de Vicente na primeira fase da

sua obra

Esta fixaccedilatildeo da tradiccedilatildeo metafiacutesica sobre a funccedilatildeo teacutecnico-intrumental da

linguagem constituiacutera-se na perspectiva de Vicente como o maior obstaacuteculo

para uma compreensatildeo radical da relaccedilatildeo da palavra com a essecircncia do

homem ldquoSatildeo justamente as ideias prevalentes sobre a essecircncia da linguagem

e de sua funccedilatildeo cultural que nos impedem o caminho para uma compreensatildeo

radical da relaccedilatildeo da palavra com a essecircncia do homem Estas teorias

inspiraram-se na linguagem decaiacuteda e intramundana e a transcrevem em

termos da verdade do Enterdquo756

Heidegger teria poreacutem repensado a essecircncia da linguagem de uma forma

radicalmente nova constituindo-a como a ldquomorada do serrdquo morada que o

homem ek-sistindo estaacute destinado a habitar ldquo Nesta concepccedilatildeo o Homem

passa a ser interior agrave palavra instituiacutedo em sua configuraccedilatildeo histoacuterica particular

pela abertura projectante do dizer poeacuteticordquo757

A linguagem ndash enquanto verbo mitopoieacutetico - eacute afirma Vicente algo que

acontece a partir do proacuteprio ser o pensamento do ser eacute um dictare e eacute na

poesia enquanto ditado do ser que vecircm instituiacutedas as directiva e as normas

que determinam em cada eacutepoca o comportamento humano ldquoO ditar da poesia

edifica a morada do homemrdquo

homem e as coisas a partir de Deus pondo-se o pensador ousadamente na perspectiva original do divinordquo

Miguel Reale Estudos de Filosofia Brasileira Lisboa 1994 202 755

Vicente Ferreira da Silva ldquoIdeias para um novo conceito de homemrdquo in Dialeacutectica das Consciecircncias e

outros ensaios 276 756

Ibidem 277 757

Ibidem 277

399

Neste importante texto Vicente revecirc em diaacutelogo com o segundo Heidegger as

teses que marcaram a primeira e segunda etapas do seu proacuteprio percurso

intelectual sendo a funccedilatildeo desocultante da linguagem poeacutetica o ponto de

partida para uma nova compreensatildeo da natureza do homem que agora eacute

pensado como algo de secundaacuterio e desvelado758

23 O caminho de transiccedilatildeo para uma filosofia da Mitologia

Mas eacute nas uacuteltimas paacuteginas de Ideias Para um Novo Conceito de Homem - que

sistematizam as conclusotildees do jaacute alcanccedilado relativamente agrave reformulaccedilatildeo da

questatildeo antropoloacutegica e agrave superaccedilatildeo do antropocentrismo da tradiccedilatildeo

metafiacutesica - que Vicente lanccedila um ponto de vista interpretativo original

Vicente afirma que de acordo com a perspectiva aberta por Heidegger a

ldquohistoacuteriardquo de que o homem faz parte natildeo seria apenas a histoacuteria humana mas

abrangeria um acircmbito muito maior pois a histoacuteria do ser arrebata o homem e

determina cada situaccedilatildeo histoacuterica particular ldquoA histoacuteria da qual o homem faz

parte natildeo seria unicamente a histoacuteria humana mas abrangeria um acircmbito e

alcanccedilaria um sentido muito maiores Como Heidegger muito bem assinalou a

histoacuteria do ser arrasta e determina cada condiccedilatildeo ou situaccedilatildeo humanardquo759

De facto o pensamento tardio de Heidegger empenhado no abandono das

categorias da subjectividade e na descoberta de um acircmbito mais originaacuterio em

que o proacuteprio Dasein se encontre radicado aponta para um fundamento mais

radical do desvelamento da verdade e coloca a tese da histoacuteria do Ser

A ideia da ldquohistoacuteria do serrdquo eacute um incitamento a pensar a histoacuteria a partir do

enviar-se (Sichzuschiken) e subtrair-se do ser (Sichentzihen) que nesse

mesmo enviar-se se oculta Daiacute que uma eacutepoca histoacuterica tenha de ser pensada

como o aparecer de uma figura de mundo a partir do retraimento e da

ocultaccedilatildeo do ser

758

ldquolaquoO lanccedilador (das Werfende) no projecto natildeo eacute o homem mas sim o proacuteprio ser que envia o homem agrave

ek-sistecircncia do existirraquo vemos portanto como a linguagem eacute algo que acontece a partir do proacuteprio Ser e

como a essecircncia da linguagem deve ser captada nessa correspondecircncia do dizer com o pensamento do

Ser O pensamento do Ser eacute como nos diz Heidegger nos Holzwege a maneira original do dizer poeacutetico

do dictare Atraveacutes do ditado do Ser vecircm suscitadas as directivas e normas que determinam as formas

histoacutericas do comportamento humanordquo Ibidem 279 759

Ibidem 281

400

Na perspectiva de Vicente esta tese do primado da histoacuteria do ser

relativamente agrave histoacuteria humana implica que ldquoa solidariedade preferencial do

Ser pelo princiacutepio humanordquo na presente eacutepoca do ser eacute histoacuterica e

temporalmente circunscrita760 De acordo com a hipoacutetese de Vicente noacutes

podemos pensar antes e depois da eacutepoca humaniacutestica outras eacutepocas em que o

ser se desvendaria noutras modalidades ldquoEste pode constituir um dos eons da

histoacuteria do ser entretanto o homem como Ser ek-sistente insistente tem a

tendecircncia de estender o presente regime de coisas identificando sem mais o

tempo humano com o tempo tout court O que eacute proacuteximo e costumeiro passa a

vigorar como norma para todas as possibilidades eventuais das coisas O

princiacutepio costumeiro e humano pode constituir muito bem um mero transe na

gigantomaquia do Ser Em outras palavras podemos vislumbrar a hipoacutetese de

ser o homem como diria Platatildeo um evento na progeacutenie dos deuses Antes e

depois do homem outros protagonistas poderiam ocupar o cenaacuterio do tempo

Devemos ingressar numa seacuterie temporal mais vasta e compreensivardquo761

Contudo em Heidegger o tema da histoacuteria do ser ou seja este envio e

retracccedilatildeo designados como ldquoa histoacuteria do Serrdquo limitam a inteligibilidade da

histoacuteria fazendo com que a sucessatildeo das eacutepocas histoacutericas permaneccedila

assente num fundo de obscuridade e o curso da histoacuteria natildeo tenha um sentido

determinaacutevel como ocorria em Hegel 762

Para Vicente pelo contraacuterio a consigna da ldquohistoacuteria do serrdquo abre a hipoacutetese de

pensar para aleacutem da histoacuteria e da temporalidade humanas colocando a

possibilidade de fazer derivar a sucessatildeo das diversas eacutepocas histoacutericas dos

vaacuterios princiacutepios mitoloacutegicos imperantes em cada caso ou seja de uma

filosofia da mitologia Assim Vicente pergunta ldquoSe devemos pensar a acccedilatildeo

humana como um princiacutepio derivado como uma histoacuteria dentro da histoacuteria

como deveremos entender esse espaccedilo maior onde se engasta o espaccedilo

760

Ibidem 283 761

Ibidem 284 762

Na perspectiva de Vicente em Hegel haacute uma visatildeo antropocecircntrica do tempo que seria necessaacuterio

ultrapassar pela tentativa de pensar um tempo natildeo-humano em que se movem as potecircncias que

determinam o sentido da histoacuteria Isto conseguir-se-ia por uma autecircntica inversatildeo da dialeacutectica hegeliana

que Marx nunca chegou a fazer - em vez do tempo progressivo da tomada de consciecircncia de si do

Espiacuterito devemos percorrer as seacuteries temporais em sentido inverso ateacute agrave dimensatildeo originaacuteria do Sagrado

Cf Ibidem 286

401

humano Podemos pensar uma histoacuteria que natildeo seja histoacuteria natildeo humana O

homem pode pensar o natildeo humanordquo763

Eacute precisamente esta tentativa de sair da temporalidade humana e ingressar

directamente numa outra seacuterie temporal que vai afastar Vicente do domiacutenio de

uma ontologia fenomenoloacutegica para o aproximar das tentativas de pensar a

histoacuteria como um desvendamento do Divino isto eacute como cenaacuterio onde opera

uma forccedila transcendente supra-humana como ocorria em Julius Evola

Em Teogonia a Anti-humanismo publicada em 53 Vicente esclarece em que

consiste esta possibilidade de ingressar noutras seacuteries temporais jaacute natildeo

vinculadas agrave historicidade humana nem pensadas ldquosub specie hominisrdquo ldquoEsta

eventualidade de outros processos temporais constitui em uacuteltima anaacutelise a

doutrina claacutessica das Idades ou Eacutepocas do mundo Essa ideia eacute encontrada

mais recentemente natildeo soacute em Vico e Schelling como tambeacutem em Bachofen e

Evola natildeo eacute outra a posiccedilatildeo com que nos defrontamos nos recentes escritos

de Heideggerrdquo764

Julius Evola em A Revolta contra o Mundo Moderno defende precisamente a

possibilidade de fazer assentar a histoacuteria numa meta-histoacuteria fundamentada na

experiecircncia da supra-temporalidade em que assentava o mundo tradicional

Julius Evola natildeo soacute expotildee as categorias do ldquoespiacuterito tradicionalrdquo como repensa

a histoacuteria e a geacutenese da modernidade a partir dessas categorias consideradas

como categorias ldquosimboacutelica supra-histoacutericas e normativasrdquo

Assim Evola contrapotildee agrave doutrina evolucionista e agrave doutrina dos 3 estados de

Augusto Conte uma metafiacutesica da histoacuteria segundo a qual esta se encaminha

num sentido progressivamente descendente como acontecia na doutrina das 4

Idades de Hesiacuteodo ldquoDefender como tradicionalmente se deve defender que

nas origens tenha existido natildeo o homem animalesco das cavernas mas sim

um ldquomais que homemrdquo e que jaacute a mais alta preacute-histoacuteria tenha visto natildeo uma

ldquocivilizaccedilatildeordquo mas pelo contraacuterio uma ldquoera dos deusesrdquo - para muitos que de

uma ou outra maneira acreditam na boa nova do darwinismo significa fazer

pura ldquomitologiardquo Todavia como esta mitologia natildeo somos noacutes a inventaacute-la

agora ficaria assim por explicar o facto da sua existecircncia ou seja o facto de

763

Ibidem 282 764

Vicente Ferreira da Silva Teologia e Anti-humanismo Satildeo Paulo 1953 in Dialeacutectica das

Consciecircncias e outros ensaios 293

402

nos testemunhos mais remotos dos mitos e dos escritos da Antiguidade natildeo se

encontrar nenhuma recordaccedilatildeo que conforte o darwinismo e que se encontre ndash

pelo contraacuterio e precisamente - o seu oposto a ideia de um passado melhor

mais luminoso supra-humano (ldquodivinordquo)765

A meta-histoacuteria de Evola assente nos testemunhos acima referidos defende a

sucessatildeo de 4 ciclos ou idades o ciclo noacuterdico-atlacircntico fundado na revelaccedilatildeo

celeste e luminosa do divino e na afirmaccedilatildeo do princiacutepio masculino (a Idade do

Ouro) o ciclo atlacircntico-meridional correspondente agrave revelaccedilatildeo teluacuterica feminina

e nocturna do divino (a Idade da Prata) e finalmente os ciclos de decadecircncia

caracterizados pela degenerescecircncia da espiritualidade e pela afirmaccedilatildeo do

poder temporal ciclo titacircnico e dionisiacuteaco (Idades do Bronze e do Ferro)

Esta tentativa de pensar a histoacuteria a partir do desvendamento do divino e de

princiacutepios miacuteticos alternativos assente nas categorias do pensamento

tradicional eacute encontrada por Vicente tambeacutem no ensaio de Schelling A

Essecircncia da Liberdade Humana como sucessatildeo da idade do ouro eacutepoca dos

deuses e dos heroacuteis e eacutepoca dos oraacuteculos teluacutericos

Segundo o pensador brasileiro esta tentativa de romper com o mundo histoacuterico

e pensar o tempo a partir de categorias miacuteticas encontra tambeacutem confirmaccedilatildeo

na poesia de Houmllderlin Neste poeta do romantismo alematildeo ele encontra

tambeacutem a criacutetica ao ldquomundo histoacutericordquo do ocidente (das Abendland)

caracterizado como a noite dos deuses ldquoO mundo histoacuterico realizado durante

esta noite eacute constituiacutedo pelos perfis e imagens oriundos da subjectividade

humana desligada do ditado divino Agraves forccedilas promotoras da magia divina se

substitui o puro ldquofazer sem imagemrdquo da produtividade humana e agraves vezes infra-

humana se a conexatildeo histoacuterica era anteriormente sustentada por uma

Imaginatio instituidora dos grandes siacutembolos e formas de actuaccedilatildeo temporal

se a cidade humana era a morada dos deuses agora na etapa humana e

infra-humana o destino histoacuterico cumpre-se como construccedilatildeo-destrutivardquo 766

Contudo esta ruptura com a historicidade e a tentativa de pensar a histoacuteria

humana atraveacutes de categorias supra-histoacutericas esquecidas e destruiacutedas pelo

pensamento histoacuterico escapa inteiramente como acima referimos ao domiacutenio

765

Julius Evola A Revolta Contra o Mundo Moderno Lisboa 1989 241 766

Vicente Ferreira da Silva ldquoIdeias Para um Novo Conceito de Homemrdquo Revista Brasileira de Filosofia

vol Ifasc 41951 in Dialeacutectica das Consciecircncias e outros ensaios 287

403

da ontofenomenologia heideggeriana Como Heidegger adverte em Identidade

e Diferenccedila o ser daacute-se sempre sob a forma histoacuterica do pensamento humano

na seacuterie das representaccedilotildees epocais da Metafiacutesica ldquoO Ser somente se daacute de

cada vez com este ou aquele cunho historial Φύζις Λόγος Εν Ιδέα Ενέργεια

Substancialidade Objectividade Subjectividade Vontade Vontade de Poder

Vontade de Vontaderdquo767 A solidariedade entre o destinar-se do ser e a histoacuteria

humana eacute neste sentido total - pois o homem eacute histoacuterico precisamente onde

comeccedila a imperar o destino do ser que estabelece para o homem uma forma

total de configuraccedilatildeo da realidade e soacute a partir destas configuraccedilotildees histoacutericas

o homem pode indirectamente aceder agrave histoacuteria do ser

Contudo para Vicente eacute possiacutevel aceder directamente agrave histoacuteria do ser

tomando como ponto de partida as categorias intemporais e supra-histoacutericas

que encontramos no pensamento tradicional Vicente visa assim a superaccedilatildeo

da temporalidade da histoacuteria humana e ingressar em outras eacutepocas e idades do

mundo ldquode que natildeo guardamos qualquer informaccedilatildeo ou documento

ldquofilosoficamente determinanterdquo numa referecircncia ao Outrora ou para-laacute do

horizonte da histoacuteria que era visado tambeacutem por Eudoro de Sousa como atraacutes

vimos

Mas para Vicente este outrora anterior agrave histoacuteria apresenta-se como chave

para ingressar no domiacutenio de uma temporalidade e duma histoacuteria natildeo

humanas ldquoA dignidade superior do tempo eacute totalmente menoscabada nesta

concepccedilatildeo que reduz o tempo agrave escala humana esquecendo a relaccedilatildeo do

tempo com o domiacutenio fundamental do Ser Devemos pensar em possibilidades

temporais que ultrapassam a intuiccedilatildeo temporal onde se datildeo os gestos

humanos e os movimentos proacuteprios do homo humanusrdquo768

Trata-se como Vicente claramente adverte de considerar a histoacuteria humana

como subordinada agrave histoacuteria divina e de interpretaacute-la a partir dum princiacutepio

mais alto que natildeo eacute contudo a histoacuteria do ser como em Heidegger se

propunha mas sim a luta entre os deuses ou os vaacuterios princiacutepios miacuteticos

numa ldquovisatildeo teogoacutenica da histoacuteriardquo cujo modelo primeiro se encontra em

Hesiacuteodo

767

bdquoEs gibt Sein nur je und je in dieser und jener geschicklichen Praumlgung Φύζης Λόγος Ελ Ιδέα

Ελέργεηα Substantialitaumlt Objektivitaumlt Subjektivitaumlt Wille Wille zur Macht Wille zum Willenldquo IuD

GA 11 7273 768

Vicente Ferreira da Silva ldquoIdeias Para um Novo Conceito de Homemrdquo in Dialeacutectica das Consciecircncias

e outros ensaios 285286

404

Esta superaccedilatildeo do pensamento histoacuterico que Vicente tenta compatibilizar com

Heidegger eacute contudo como acima demonstraacutemos natildeo compatiacutevel com o

campo de uma fenomenologia hermenecircutica encontrando a sua

fundamentaccedilatildeo filosoacutefica em pensadores latinos como Eudoro de Sousa e

Julius Evola 769

Mais rigorosamente esta marcha atraacutes em relaccedilatildeo ao pensamento histoacuterico eacute

pensada por Vicente como a inversatildeo da marcha dialeacutectica do Espiacuterito em

direcccedilatildeo agrave Liberdade e agrave consciecircncia de si atraveacutes da histoacuteria da Filosofia que

se encontrava pensada em Hegel ldquoA inversatildeo do pensamento de Hegel levar-

nos-ia outra vez em direcccedilatildeo agrave dimensatildeo do sagrado em relaccedilatildeo agrave qual a

histoacuteria humana como antropofania eacute um contiacutenuo afastamentordquo770

24 A destruiccedilatildeo da metafiacutesica da subjectividade como

condiccedilatildeo preacutevia para uma filosofia da Mitologia

Em Introduccedilatildeo agrave filosofia da Mitologia Vicente defende que a conexatildeo dos

problemas filosoacuteficos com o fenoacutemeno religioso soacute eacute possiacutevel a partir duma

total conversatildeo de perspectiva que rompa com a metafiacutesica da subjectividade

ldquoA conexatildeo destes problemas de natureza filosoacutefica com a abertura de uma

nova compreensatildeo da religiatildeo e da Mitologia consiste precipuamente na

impossibilidade de formulaccedilatildeo de uma doutrina da mitologia dentro do

horizonte do cogito subjectivista Unicamente sobre as cinzas de um

pensamento ancorado na condition humaine eacute que poderaacute florescer a

vegetaccedilatildeo das formas miacuteticasrdquo771

769

Permanece no entanto vaacutelida a apreciaccedilatildeo que Miguel Reale faz do significado e da importacircncia do

encontro com o segundo Heidegger para o estabelecimento do ponto de vista novo de O Novo Conceito

de Homem e Teologia e Anti-Humanismo rdquoCom estes dois estudos Vicente supera sem eliminaacute-la como

jaacute observei a ldquodialeacutectica das consciecircnciasrdquo (a cujo estudo dedicara em 1950 a sua obra mais sistemaacutetica

aquela que assinala o apogeu de seu pensamento na fase intermeacutedia ainda inspirada por motivos da

metafiacutesica da subjectividade) para elevar-se agraves fontes projectantes e condicionadoras da

intersubjectividade concluindo que na base da liberdade individual do eu e do tu em seu jogo dialeacutectico

condicionado estaacute o Ser como liberdade que funda e institui o espaccedilo de manifestaccedilatildeo do homem e de

suas possibilidades histoacutericas contingentes O segundo Heidegger cujas obras ningueacutem soube interpretar

melhor do que ele no Brasil propicia-lhe o encontro de suas perspectivas originais [hellip]rdquo Miguel Reale

Estudos de Filosofia Brasileira 203 770

Vicente Ferreira da Silva ldquoIdeias Para um Novo Conceito de Homemrdquo in Dialeacutectica das Consciecircncias

e outros ensaios 286 771

Vicente Ferreira da Silva ldquoIntroduccedilatildeo agrave Filosofia da Mitologiardquo Revista Brasileira de Filosofia nordm 20

1955 in Dialeacutectica das Consciecircncias e outros ensaios 371

405

Essa conversatildeo eacute enunciada por Vicente como uma alteraccedilatildeo do proacuteprio centro

de pensamento uma viragem em direcccedilatildeo a um novo objectivismo -

poderiacuteamos talvez noacutes dizer a um super-objectivismo - para o qual todo o

realismo filosoacutefico do passado ainda eacute sentido como subjectivismo e

antropomorfismo

Para Vicente este super-objectivismo natildeo se satisfaz em reconhecer a

exterioridade das coisas em relaccedilatildeo ao sujeito na qualidade de objectos

porque essa exterioridade jaacute era reconhecida pela filosofia transcendental sem

que ela nos permitisse romper o ciacuterculo da imanecircncia Ele exige a ruptura com

a subjectividade e a imanecircncia da experiecircncia que natildeo pode ser buscada na

transcendecircncia das coisas pois esta transcendecircncia nunca pode ser

transcendecircncia em relaccedilatildeo ao Mundo como mostrou a analiacutetica existencial de

Ser e Tempo ldquoo mundo eacute o prius de todo o ente e de todas a realidade intra-

mundanardquo

Trata-se antes de reconhecer que a subjectividade e as categorias da

racionalidade nela fundadas satildeo algo de secundaacuterio e derivado posto por um

poder transcendente Seraacute necessaacuterio que noacutes reconheccedilamos que todo o

conhecido pelo conhecimento estaacute condicionado por um ldquooferecer

transcendentalrdquo por um acto do ldquoDispensadorrdquo que potildee agrave nossa disposiccedilatildeo o

que pode ser conhecido e desperta o desejo de conhecer772

Soacute reconhecendo em todo o cognosciacutevel algo de oferecido que se manifesta

ocultando a sua fonte transcendente noacutes poderemos reconhecer a

precariedade das nossas figuras do espiacuterito e aceitar a realidade do

desempenho transracional do mito

Sem conquistarmos previamente a liberdade em relaccedilatildeo ao presente discurso

da racionalidade cientiacutefica noacutes natildeo poderemos aceder agrave verdade que se

enuncia do mito nem aceitar outros sistemas culturais que se nos apresentam

como uma radical alteridade esta incapacidade de aceitaccedilatildeo do ser-outro

afectaria na perspectiva de Vicente ainda o conhecimento histoacuterico e

etnograacutefico das culturas que continuam a viver segundo os modelos miacuteticos

772

ldquoO conhecido pelo conhecimento estaacute condicionado por um oferecer transcendental por um acto do

Dispensador que potildee agrave disposiccedilatildeo o cognosciacutevel e desperta em noacutes a apetecircncia do conhecimento O

cognosciacutevel entretanto eacute o jaacute-oferecido que ao se manifestar e imobilizar esconde e oculta a fonte do

oferecerrdquo Ibidem 371

406

Reconhecendo em Heidegger ldquoa enunciaccedilatildeo das palavras iniciaisrdquo de dum

novo tipo de pensar e dessa conversatildeo do espiacuterito Vicente interroga-se em O

Homem E A Sua Proveniecircncia sobre a radicalidade desta conversatildeo

perguntando se esta ruptura com a subjectividade indispensaacutevel para levar a

cabo uma filosofia da mitologia teria sido inteiramente realizada pelo filoacutesofo

alematildeo

Vicente sublinha que pela primeira vez Heidegger na sua analiacutetica existencial

procurou revelar o sentido e a natureza essenciais da categoria de ldquomundordquo

afirmando que este natildeo eacute um ente ou um conjunto de entes mas a condiccedilatildeo de

possibilidade de toda a manifestaccedilatildeo entitativa ldquoO mundo eacute aquela abertura

(Offenheit) onde se daacute a emergecircncia e a patentizaccedilatildeo do ente descobertordquo773

Contudo reportando-se a Ser e Tempo Vicente afirma que encontramos na

obra do filoacutesofo alematildeo certos momentos em que ldquoo traccedilo instituidor do mundo

ainda parece incluiacutedo na ipseidade humanardquo e que a transcendecircncia fundadora

do mundo ainda seria confundida com um acto da existecircncia774 No entanto

Vicente adianta que devemos conciliar estas passagens com o sentido total do

pensamento de Heidegger que ultrapassa esta posiccedilatildeo ainda eivada de

subjectivismo

Nesse mesmo ensaio Vicente procura mostrar como em Von Wesen des

Grundes a transcendecircncia fundadora natildeo eacute a existecircncia nem a subjectividade

de um eu mas uma transcendecircncia exterior que se potildee como ldquoprinciacutepio

instituinte de todo o eu tu ou elerdquo

Procurando conciliar a perspectiva transcendental de Ser e Tempo com a

perspectiva do segundo Heidegger Vicente mostra que se na perspectiva de

Ser e Tempo o ente intra-mundano soacute se revela a partir de certas

possibilidades da existecircncia como resultado da compreensatildeo projectiva do

Dasein essas possibilidades podem nas obras posteriores como Vom Wesen

des Grundes e Vom Wesen der Wahrheit ser compreendidas a partir dum

773

Vicente Ferreira da Silva ldquoO Homem e a sua Proveniecircnciardquo Revista Brasileira de Filosofia nordm7

1952 in Dialeacutectica das Consciecircncias e outros ensaios 335 774

ldquo[hellip] sabemos entretanto que Heidegger abandonou essa perspectiva subjectivista e monaacutedica

instalando-se num foco excecircntrico donde surgiu o descerramento projectante do Serrdquo Ibidem 339

407

projecto instituidor meta-histoacuterico que condiciona as possibilidades

humanas775

Apontando para uma compreensatildeo unificada do pensamento de Heidegger e

natildeo cedendo agraves hipoacutetese dominante da leitura de ldquoum segundo Heideggerrdquo em

ruptura com a analiacutetica existencial de Ser e Tempo Vicente centra-se no

entanto na ruptura com o domiacutenio da subjectividade levado a cabo nas obras

posteriores salientando o seu importante significado ldquoNeste sentido devemos

compreender a afirmaccedilatildeo de Heidegger de que ao traccedilar o mundo o homem

se vecirc traccedilado no interior do mundo e aiacute abandonado O desvelamento do

horizonte mundanal eacute simultacircneo ao desvelamento do proacuteprio homem As

consequecircncias filosoacuteficas deste ponto de vista e sua elaboraccedilatildeo especulativa

oferecem perspectivas ainda inexploradasrdquo776

Eacute na Carta sobre o Humanismo - obra que Vicente considerara desde o

primeiro momento da sua recepccedilatildeo como atraacutes referimos a obra capital da

Filosofia Contemporacircnea - que segundo o pensador brasileiro se consuma e

completa a ruptura de Heidegger com a metafiacutesica da subjectividade ldquoEacute o que

afirma Heidegger em diversas passagens da Carta Sobre o Humanismo ldquoA

Histoacuteria do ser suporta e determina toda a situaccedilatildeo e condiccedilatildeo humanardquo E

ainda ldquoO jectante do projecto natildeo eacute o homem mas o proacuteprio Ser que endereccedila

o homem ao ek-sisitir como agrave essecircncia que lhe eacute proacutepriardquordquo777

De facto na Carta Sobre o Humanismo o conceito de projecccedilatildeo (Entwurf) que

em Ser e Tempo era um existenciaacuterio do Dasein agora eacute pensado por

Heidegger como um lanccedilamento a partir do Ser O projecto jaacute natildeo eacute uma

determinaccedilatildeo do Dasein que se lanccedila em direcccedilatildeo agraves suas possibilidades

projectando assim um horizonte de compreensatildeo no qual pode aparecer o

mundo O projecto eacute o lanccedilamento do proacuteprio ser que lanccedila o homem na ek-

sistecircncia como sua essecircncia eacute pois o ser que tem a iniciativa do destino do

homem e o configura historicamente

775

ldquoA ipseidade compreensiva natildeo estaacute em noacutes natildeo parte de noacutes mesmos mas somos noacutes que nela

estamos Ora a esta ipseidade que traccedila e abre a revelaccedilatildeo do Ente eacute que Heidegger daacute o nome de

ldquoiluminaccedilatildeo do Serrdquo (Lichtung des Seins) Esta luz este foco originaacuterio natildeo eacute o lumen naturale da mente

humana mas pelo contraacuterio eacute o desvelar ek-staacutetico desse foco que permite a entrada no mundo

(Welteingang) do nosso ser e da nossa menterdquo Ibidem 340 776

Ibidem 336 777

Ibidem 336

408

rdquo[] o projecto eacute essencialmente um projecto jogado Aquele que joga no

projectar natildeo eacute o homem mas o proacuteprio ser que destina o homem para a ek-

sistecircncia do ser-aiacute como sua essecircnciardquo 778

Nesta reformulaccedilatildeo heideggeriana do conceito de projecccedilatildeo podemos ver

segundo Vicente a proposta de uma revoluccedilatildeo no campo da filosofia

permitindo-nos compreender tanto os entes intra-mundanos como o homem

como sendo condicionados por uma abertura superior por um poder

transcendente que traccedila o mundo das oportunidades histoacutericas

Nesta viragem heideggeriana Vicente vecirc essencialmente a ldquoconversatildeo (Kehre)

de perspectiva que permite ver todo o ente inclusivamente o proacuteprio homem

como um sich zeigen cujo mostrar-se estaacute determinando por um mostrar

projectante mais originaacuterio779 Da mesma maneira se encontra assim

reformulado o conceito de liberdade que jaacute natildeo depende do arbiacutetrio humano

mas deve ser entendida como um libertar do homem para a escolha dum

possiacutevel que lhe estaacute previamente consignado780

A ideia de projecccedilatildeo a partir do ser responsaacutevel por uma abertura mundanal

na qual natildeo apenas os entes como o proacuteprio homem podem aparecer eacute a

ideia-chave e trave-mestra de toda a filosofia da mitologia de Vicente Ferreira

da Silva a partir e na base da qual ele iraacute reelaborar e sintetizar as

contribuiccedilotildees das mais recentes investigaccedilotildees filosoacuteficas filoloacutegicas e

etnoloacutegicas sobre as religiotildees e os mitos

A sua filosofia da mitologia natildeo foi exposta numa obra uacutenica mas desdobrou-

se por diferentes textos que muitas vezes de acordo com as fontes

comentadas traduzem perspectivas distintas mas essa multiplicidade ganha

ela mesma um sentido e um fundamento que lhe eacute dado precisamente pelo

travejamento conceptual da filosofia heideggeriana

778

bdquo[Uumlberdies aber] ist der Entwurf wesenhaft ein geworfener Das Werfendende im Entwerfen ist nicht

der Mensch sondern das Sein selbst das den Menschen in die Ek-sistenz des Da-seins als sein Wesen

schicktldquo Buh GA 9 337 779

ldquoEsta perspectiva arranca a reflexatildeo filosoacutefica de um sentido antropoloacutegico e a lanccedila num terreno

excecircntrico onde o Ente vem pensado fora da perspectiva exclusivamente humana O homem eacute um Ente

no conjunto dos Entes O desvelamento instituidor do Ser outorgaria ao homem o nexo de suas

oportunidades e desempenhos humanizantes e o nuacutecleo da sua verdade propriamente humanardquo Ibidem

337 780

ldquoA ipseidade ldquoo por causa querdquo (Wille um sich selbst) natildeo estaacute ancorado no sujeito humano natildeo eacute

uma peculiaridade finita mas um transcender projectante que em sua anatomia irrestrita em seu desvelar

ek-staacutetico abre campo para a eclosatildeo de um mundo e portanto para um nexo de subjectividade A

ipseidade compreensiva natildeo estaacute em noacutes natildeo parte de noacutes mesmos mas somos noacutes que nela estamosrdquo

Ibidem 340

409

O pressuposto fundamental da filosofia da mitologia de Vicente eacute que os mitos

natildeo satildeo criaccedilotildees imaginativas ex-homo nem projecccedilotildees psicoloacutegicas do

inconsciente colectivo mas envios do ser Eacute para Vicente uma questatildeo crucial

compreender os mitos natildeo como criaccedilotildees da subjectividade humana mas

como dotados de uma ldquosuper-objectividaderdquo781 sendo essa compreensatildeo

inteiramente nova fundada no conceito heideggeriano do ldquolanccedilado projectante

do serrdquo Colocados sobre este fundamento ontoloacutegico os mitos deixam de ser

pensados como criaccedilotildees do homem mas pelo contraacuterio satildeo eles que ditam o

destino ao qual se submete o homem

Vicente explora as consequecircncias da viragem heideggeriana mostrando as

suas implicaccedilotildees relativamente agrave questatildeo da religiosidade e do sagrado

encontrando aiacute um campo conceptual que torna possiacutevel articular as

conclusotildees dos estudos levados a cabo pela etnologia e a filologia e repensar

o estatuto ontoloacutegico do deuses e dos relatos miacuteticos tomando-os na sua

verdade782

Em Introduccedilatildeo agrave Filosofia da Mitologia os mitos satildeo ldquosugestotildeesrdquo e os deuses

entes que vecircm ateacute noacutes a partir da essecircncia ekstaacutetica da sugestatildeo - eles satildeo

sugeridos pela magia sugestiva do Ser o ser eacute o ldquoSugestorrdquo isto eacute aquele que

sugere ou potildee as imagem prototiacutepicas das coisas ou que projecta conjunto de

desempenhos possiacuteveis em relaccedilatildeo aos quais o homem eacute um simples

receptor ldquoO sugerido eacute o que eacute proposto isto eacute posto como imagem a cumprir

ou como imagem antecipadamente esboccedilada Essas imagens natildeo seriam as

nossas imagens das coisas imagens de imagens mas sim as proacuteprias coisas

781

Assim Vicente afirma logo nas primeiras palavras da Introduccedilatildeo agrave Filosofia da Mitologia ldquoOs

esclarecimentos que aqui seratildeo apresentados acerca do vasto domiacutenio do fenoacutemeno religioso satildeo a

consequecircncia de uma conversatildeo de perspectivas filosoacuteficas de uma alteraccedilatildeo do proacuteprio centro do

pensamento e soacute poderatildeo ser compreendidas a partir dessa alteraccedilatildeo Se a palavra objectividade natildeo

estivesse comprometida com o seu uso epistemoloacutegico na relaccedilatildeo sujeito-objecto poderiacuteamos dizer que

essa mudanccedila de referecircncias redundou no estabelecimento de um novo objectivismo num objectivismo de

tal tipo que todo o realismo filosoacutefico do passado toda a afirmaccedilatildeo da exterioridade das coisas em

relaccedilatildeo ao homem ainda satildeo sentidos como subjectivismo e antropomorfismoldquo Ob cit in Dialeacutectica das

Consciecircncias e outros ensaios 370 782

Constanccedila Marcondes Ceacutesar em ldquoA Compreensatildeo Heterodoxa do Sagrado Agostinho da Silva

Eudoro de Sousa Vicente Ferreira da Silvardquo considera os trecircs pensadores como defensores duma mesma

concepccedilatildeo heterodoxa do sagrado caracterizada pelos segunintes aspectos apresentaccedilatildeo de fontes

comuns na tradiccedilatildeo grega e na fenomenologia heideggeriana e a sinalizaccedilatildeo da emergecircncia de um novo

tempo e uma nova concepccedilatildeo de Deus cuja preparaccedilatildeo se relaciona com a hermenecircutica dos mitos Cf

art cit in O Pensamento Luso-Galaico-Brasileiro II Lisboa 2009 18

410

como imagens prototiacutepicas O sugerido originaacuterio das imagens seria as coisas

fluindo da imaginaccedilatildeo prototiacutepica do Sugestorrdquo783

Referindo o poder arrebatador dessas sugestotildees relativamente agraves quais o

homem se comporta como simples receptor sendo por eles arrebatado

(Ergriffensein) Vicente qualifica ainda os mitos como Fascinaccedilotildees784 ou

manifestaccedilotildees fulgurantes da Lichtung des Seins

Os mitos satildeo ldquoo documento originaacuterio do serrdquo que conteacutem em si um traccedilado do

mundo uma oferta de possibilidades oferecidas ao homem assim como dos

modelos exemplares a cumprir Eles satildeo ldquosugeridos pela magia projectante do

serrdquo ou ldquofascinaccedilotildeesrdquo que arrebatam o homem lanccedilando-o nos seus

desempenhos histoacutericos

Este novo estatuto ontoloacutegico que agora podemos atribuir aos mitos permite-

nos tambeacutem na perspectiva de Vicente reconhecer ldquoo ser em sirdquo das potecircncias

miacutetico- fascinantes ou caraacutecter ldquoaoacutergicordquo dos deuses A superior objectividade

do poder dos deuses como forccedilas que arrebatam e dispotildeem do ser do homem

eacute indicada por Vicente atraveacutes do adjectivo ldquoaoacutergicordquo - termo que Vicente

importou de Houmllderlin - e que significa ldquonatildeo feito pelo homemrdquo ldquooriginaacuteriordquo rdquoo

aoacutergico eacute o natildeo posto pelo homem eacute o que natildeo se apresenta como um

resultado da produtividade artiacutestico-criadora do sujeito A valorizaccedilatildeo do

aoacutergico foi defendida em forma preparatoacuteria por Houmllderlin e depois por

Nietzsche em sua sabedoria do corpo e das forccedilas dionisiacuteacasrdquo785

25 Os Mitos como origem

Para Vicente o mito eacute notificaccedilatildeo ou documento que natildeo tem apenas um valor

histoacuterico isto eacute transitoacuterio e passageiro mas sim um valor paradigmaacutetico e

exemplar experienciado como intemporal ele eacute o documento da vida ldquoem si e

por sirdquo ou da vida prototiacutepica dos deuses proclamando por isso uma verdade

absoluta786

783

Vicente Ferreira da Silvardquo Introduccedilatildeo agrave Filosofia da Mitologiardquo in Dialeacutectica das Consciecircncias e

outros ensaios 373 784

ldquoO ente determinado como sugerido em possibilidades manifesta-se outrossim como Fascinaccedilatildeo isto

eacute como ser tomado (Ergriffensein) pelo revelado enquanto revelado A Fascinaccedilatildeo eacute o proacuteprio rigor de

uma projecccedilatildeo do mundordquo Ibidem 374 785

Ibidem 382 786

Constanccedila Marcondes Ceacutesar indica como fontes filosoacuteficas principais da temaacutetica do mito em Vicente

Ferreira da Silva Schelling e Heidegger seguidas de perto em importacircncia por Nietzsche Scheler Hegel

411

A liberdade em relaccedilatildeo ao subjectivismo da Metafiacutesica e agrave sua ldquomatriz

hominiacutedeardquo abre segundo Vicente a via para repensar o estatuto dos mitos e a

vida dos deuses permitindo-nos ver na mitologia ldquoa abertura de um regime de

fascinaccedilatildeordquo ldquoA mitologia eacute a abertura de um regime de fascinaccedilatildeo Ela natildeo

pode ser compreendida como querem muitos a modo de qualquer criaccedilatildeo

imaginativa ex-homo ou como qualquer projecccedilatildeo psicoloacutegica inconsciente da

menterdquo 787

Cada mitologia e cada um dos deuses dentro dessa mitologia desenham um

aspecto do mundo ou configuram uma forccedila projectante difusa que se

propaga indefinidamente ldquoCada figura numinosa corresponde a um ciclo

atractivo - projectivo que se propaga indefinidamenterdquo788 O estatuto ontoloacutegico

dos deuses eacute o de entidades superiores que instauram em torno de si um

campo passional e podem apresentar-se como personalidades idecircnticas a si

mesmas ou como vida fluida como uma seacuterie de hierofanias vegetais ou

animais

Segundo Vicente a religiosidade proacutepria do mito natildeo eacute nunca um sistema

estaacutetico e harmonioso mas a presenccedila de cada um dos deuses desencadeia

um constante e contraditoacuterio formigar de paixotildees entrando muitas vezes esses

poderes sobre-humanos em relaccedilotildees conflituais789

Os mitos apresentam-se tambeacutem como chaves interpretativas do devir da

histoacuteria universal pois um determinado mundo miacutetico constitui uma matriz de

possibilidades que regem um determinado periacuteodo da histoacuteria ele eacute um foco

estaacutevel e imutaacutevel uma matriz a partir da qual proliferam vaacuterias formas e se

abrem vaacuterias possibilidades de desempenhos histoacutericos para o homem ldquoUm

determinado mundo miacutetico constitui uma matriz de possibilidades que

governam um periacuteodo do acontecer mundial A essecircncia de uma matriz eacute a de

Bergson Grassi Jaspers Bagolini e Ortega Apesar de Vicente Ferreira da Silva articular as filosofias de

Heidegger e Schelling para pensar o estatuto ontoloacutegico do mito o seu pensamento revela originalidade

em relaccedilatildeo a ambos destacando-se neste aspecto a tese de que a desocultaccedilatildeo do ser natildeo se daacute como

poesia mas como protopoesia (mitologia) e a ideia do ser como tonalidade passional (Fascinador e

Sugestor) Cf Constanccedila Marcondes Ceacutesar O Grupo de Satildeo Paulo Lisboa 2000 67-69 787

Vicente Ferreira da SilvardquoIntroduccedilatildeo agrave Filosofia da Mitologiardquo in Dialeacutectica das Consciecircncias e

outros ensaios 382 788

Ibidem 378 789

Ibidem 378

412

ser transcendente ao gerado por ela isto eacute o foco estaacutevel e imutaacutevel do

mutaacutevel o foco estaacutevel da proliferaccedilatildeo das formas suscitadasrdquo790

De acordo com a sua filosofia da mitologia eacute apenas porque continuamos

presos agrave configuraccedilatildeo das coisas fixada pela racionalidade cientiacutefica que o dar-

forma da poesia transhumana da religiatildeo e do mito se apresenta como

supeacuterfluo e meramente ldquosubjectivordquo e natildeo como algo de essencial

Contudo - afirma Vicente - se nos libertarmos desse mundo das formas

inteligiacuteveis e do ente revelado na actual configuraccedilatildeo imposta pela metafiacutesica

da subjectividade podemos deixar-nos arrebatar por essa magia encantatoacuteria

dos mitos aceitando a revelaccedilatildeo miacutetico-religiosa na sua verdade e alargando

assim o nosso horizonte de compreensatildeo791

Precisamente porque a ldquoconversatildeordquo do pensamento contemporacircneo implica a

ldquomorte do homemrdquo ela dispotildee-nos a dar vida aos deuses ou seja agrave aceitaccedilatildeo

das muacuteltiplas revelaccedilotildees miacutetico-religiosas

Esta religiosidade plural e contraditoacuteria associada aos deuses do paganismo

permite-nos na perspectiva de Vicente entrever a liberdade superior do Ser

como fonte originaacuteria de todas as possibilidades e liberdade humanas ldquoO mito

eacute a proclamaccedilatildeo insuperaacutevel da natildeo convivecircncia da liberdade do Sugestor com

o desempenhaacutevel hominiacutedeo Natildeo existe qualquer pacto metafiacutesico entre o

fundo uacuteltimo das coisas e a criatura humana isto eacute o homem natildeo eacute a chave da

compreensatildeo do ser do Sugestor A superabundacircncia da verdade do ser eacute

atestada justamente pela tradiccedilatildeo miacutetica que representa um encontro com

outras eacutepocas ou domiacutenios da Fascinaccedilatildeordquo792

O mito como poesia originaacuteria ou Ur-poesie eacute para Vicente uma possibilidade

alternativa permanente agrave disposiccedilatildeo do homem graccedilas agrave qual noacutes podemos

romper com o cenaacuterio subjectivista da modernidade acedendo a um outro niacutevel

de consciecircncia e de liberdade

Uma filosofia da mitologia que tenha em conta a diversidade dos mitos e a

multiplicidade das revelaccedilotildees miacutetico-religiosas das diversas civilizaccedilotildees teraacute

790

Ibidem 379 791

ldquoA liberdade em relaccedilatildeo agrave matriz hominigravedea eacute a uacutenica via de acesso especulativo agrave vida exoacutegena dos

deuses pois essa liberdade cumpre e realiza o princiacutepio de independecircncia do divino Soacute um pensamento

que dance aleacutem do humano poderaacute danccedilar em consonacircncia com o movimento teogoacutenico universal Um tal

pensamento daacute cumprimento aos postulados exigidos por Heidegger em sua determinaccedilatildeo de um

pensamento que pensa a verdade do Serrdquo Ibidem 381 792

Ibidem 380

413

que aceder a uma nova compreensatildeo do ser aceitando pensar o ser como o

princiacutepio ldquoselvagem e abissalrdquo793 que continuamente cria e destroacutei mundo sem

nenhuma complacecircncia por cada uma das suas manifestaccedilotildees epocais

Para Vicente o ldquopoder maacutegico-encantatoacuterio do serrdquo eacute um poder que eacute

essencialmente ldquotendenciosordquo e ldquodecisoacuteriordquo como um contiacutenuo ldquoescolherrdquo

instaurador que incessantemente cria e destroacutei sem fundamento agrave

semelhanccedila do Deus esteacutetico e luacutedico anterior ao Deus eacutetico de Pascoaes794

Este poder criador polimoacuterfico do Ser manifesta-se na criaccedilatildeo sucessiva das

vaacuterias manifestaccedilotildees epocais do divino sendo cada uma na sua

individualidade proacutepria uma forccedila transcendente parcial e tendenciosa que

institui um certo tipo de revelaccedilatildeo miacutetico-religiosa capaz de arrebatar o homem

e de o lanccedilar numa certa esfera de desempenhos

Vicente natildeo aponta para uma compreensatildeo teoacuterica e dogmaacutetica das religiotildees

mas para muacuteltiplas fenomenologias miacutetico-religiosas proacuteprias de cada um dos

deuses e para uma religiosidade plural e contraditoacuteria795 que Walter Otto

apontava precisamente como caraacutecter essencial da religiatildeo heleacutenica em

qualquer dos seus momentos 796

Esta pluralidade do fenoacutemeno religioso eacute para Vicente Ferreira da Silva

qualquer coisa de essencial que nos aproxima do ser como fonte originaacuteria

ldquoAcreditamos que em todas essas mensagens de feacute nas origens se expressa

uma variaccedilatildeo dos conceitos religiosos fundamentais e uma nova capacidade

de perceber extensivamente certas forccedilas coacutesmico-espirituais certos aspectos

do mundo que multiplicavam politeisticamente os centros de referecircncia de

condutardquo797

793

Constanccedila Marcondes Ceacutesar em O Grupo de Satildeo Paulo sublinha a importacircncia desta concepccedilatildeo do Ser

como princiacutepio selvagem em Vicente Ferreira da Silva pondo-a em correlaccedilatildeo com a sua circunstacircncia

brasileira como tambeacutem com a sua ligaccedilatildeo com a Europa arcaica e primordial caracterizada pelos cultos

femininos e teluacutericos Cf ob cit 136 794

Cf Maria Adelaide Pacheco ldquoLinguagem e Histoacuteria em Heidegger e Pascoaesrdquo in Heidegger

Linguagem e Traduccedilatildeo Centro de Filosofia da Universidade de Lisboa 2002 795

ldquoA totalidade do migravetico-aoacutergico tem em si mais rumos que os consignados no protofenoacutemeno do

hominiacutedeo sendo o infinito de vida autoacutectone e transcendente documentado historicamente nos

protocolos do relato miacutetico e na praxis sagrada do cultordquo Vicente Ferreira da Silva rdquoIntroduccedilatildeo agrave

Filosofia da Mitologiardquo in Dialeacutectica das Consciecircncias e outros ensaios 383 796

Cf Walter Otto Die Goumltter Griechenlands ndash das Bild des Goumlttlichen im Spiegel des griechischen

Geistes Frankfurt AM 1987 797

Vicente Ferreira da Silva ldquoA Feacute nas Origensrdquo Diaacutelogo nordm2 1955 in Dialeacutectica das Consciecircncias e

outros ensaios 386

414

Assim a ruptura com a metafiacutesica da subjectividade abre para Vicente natildeo

apenas a possibilidade de um novo interesse teoacuterico e erudito pela mitologia

mas a possibilidade mais radical de uma alteraccedilatildeo da consciecircncia religiosa

que seria um retorno ldquoaos deuses pacircnicos da florestardquo798 de Juumlnger ldquoJuumlnger

em uma das suas obras sobre a civilizaccedilatildeo grega e falando precisamente

sobre os deuses pacircnicos da floresta declara o selvaacutetico eacute a origem Dele

proviemos e a ele podemos retornarrdquo799

A Filosofia da Mitologia de Vicente natildeo se propotildee assim apenas uma

fenomenologia da consciecircncia religiosa ndash isto eacute a compreensatildeo do significado

do mito para os povos que neles acreditam - mas propotildee o regresso aos mitos

como um reencontro espiritual com o mundo primitivo como uma redescoberta

da sacralidade do cosmos e das forccedilas sobrenaturais que o habitam ldquoSe

adoptarmos o conceito Nietzschiano do eterno retorno ou do tempo ciacuteclico a

origem se proporaacute como o nosso proacuteprio futuro A volta agraves origens seria um

pensar intempestivo ou extemporacircneo uma superaccedilatildeo do passado em vista de

um passado mais actual do que qualquer presenterdquo800

No entanto Vicente estaacute plenamente consciente que se este pensar

intempestivo da sua filosofia da mitologia tomou como ponto de partida a

viragem heideggeriana e a sua ruptura com a metafiacutesica da subjectividade

sem as quais natildeo teria sido possiacutevel ele natildeo diz exactamente o mesmo ldquoPara

noacutes o documento originaacuterio do Ser manifesta-se na vida prototiacutepica-divina isto

eacute na mitologia Se para Heidegger o ldquopocircr-se em obrardquo da verdade do ser daacute-

se na Poesia para noacutes esta deve ser antes de tudo compreendida como

Poesia transhumana como Poesia em si como vida transcendente das

potecircncias divinas Os deuses encarnam de maneira insuperaacutevel a fulguraccedilatildeo

imediata do Fascinator os deuses satildeo essa fulguraccedilatildeo imediata em si e por

sirdquo801

798

Cf Ernst Juumlnger Der Waldgang (1951) Stutgart 1980 799

Vicente Ferreira da Silva ldquoA Feacute nas Origensrdquo in Dialeacutectica das Consciecircncias e outros ensaios 386 800

Ibidem 386 801

Vicente Ferreira da Silva rdquoIntroduccedilatildeo agrave Filosofia da Mitologiardquo in Dialeacutectica das Consciecircncias e

outros ensaios 375

415

26 Panteiacutesmo poeacutetico e Mitologia

A interpretaccedilatildeo do significado dos Mitos proposta por Vicente em Filosofia da

Mitologia implica como ele proacuteprio sublinha uma nova compreensatildeo do Ser aiacute

designado como o Sugestor ldquoO Ser eacute o sugestor da sugestatildeo do sugeridordquo 802

Os mitos e em geral as nossas imagens das coisas seriam sugestotildees

oriundas da imaginaccedilatildeo prototiacutepica do Sugestor imagens antecipadamente

projectadas pelo domiacutenio projectante do ser

Vicente contrapotildee assim o estatuto ontoloacutegico do homem como ldquoreceptorrdquo

passivo de imagens agrave imaginaccedilatildeo demiuacutergica do ser cujo domiacutenio eacute ldquoo Aberto

da liberdade instauradorardquo Esta liberdade instauradora do ser eacute caracterizada

como ldquojogordquo metaacutefora totalizante que recobre o homem e o mundo como

totalidade de imagens sugeridas pela imaginaccedilatildeo do Sugestor ldquoNatildeo existiria

portanto em primeiro lugar o homem receptor e depois as diversas incitaccedilotildees

aos jogos histoacuterico-culturais Pelo contraacuterio os desempenhos sugeridos o ente

revelado constituem o proacuteprio ser do protagonista de forma que o jogar do

jogo seria o proacuteprio jogadorrdquo803

O homem seria assim atraiacutedo e jogado para dentro do jogo804 fascinante que o

ser joga consigo mesmo e o mundo uma criaccedilatildeo variaacutevel de imagens

produzidas por uma imaginaccedilatildeo luacutedica por num jogo meta-histoacuterico e

transcendente

A proximidade desta concepccedilatildeo do ser como Sugestor com o panteiacutesmo

poeacutetico de Pascoaes para quem o mundo eacute o sonho dum Deus adormecido

torna-se aqui muito evidente reforccedilado pelas metaacuteforas do jogo que

imediatamente invocam o Deus luacutedico e esteacutetico preacute-cristatildeo do poeta

portuguecircs805

A possibilidade deste discurso sobre o Ser que suporta a sua filosofia da

mitologia ser interpretado como um panteiacutesmo natildeo deve ter escapado a

Vicente Ferreira da Silva o panteiacutesmo era um aspecto importante da Nova

802

Ibidem 373 803

Ibidem 374 804

Vicente considera a dimensatildeo luacutedica do homem como expressatildeo da sua fantasia produtora Estendendo

o conceito de jogo ateacute ao campo mito-poieacutetico fundamenta nele a sua concepccedilatildeo do mito como elemento

instaurador de diferentes ciclos histoacuterico-culturais ndash o jogo miacutetico estaria na base de todo o edifiacutecio

cultural Cf Constanccedila Marcondes Ceacutesar O Grupo de Satildeo Paulo 50 805

As fontes desta aproximaccedilatildeo entre jogo mito e poesia em Vicente satildeo no entanto segundo Constanccedila

Marcondes Ceacutesar as seguintes Ortega y Gasset Huizinga Sartre Novalis Schiller Cf Ibidem 50

416

Poesia Portuguesa que Fernando Pessoa fazia remontar Antero de Quental e

em que podemos incluir poetas como Pascoaes e Guerra Junqueiro e

escritores como Raul Brandatildeo Pessoa caracterizava este panteiacutesmo da Nova

Poesia portuguesa como ldquopanteiacutesmo transcendentalrdquo definindo-o nos

seguintes termos ldquoSendo ao mesmo tempo e com igual intensidade poesia

objectiva e subjectiva poesia da alma e da natureza cada um destes

elementos penetra o outro de modo que produz esta estranha e niacutetida

originalidade da nossa actual poesia ndash a espiritualidade da Natureza e ao

mesmo tempo a materializaccedilatildeo do Espiacuterito a sua comunhatildeo humilde no Todo

comunhatildeo que eacute jaacute natildeo puramente panteiacutesta mas por essa citada

espiritualizaccedilatildeo da Natureza super-panteiacutesta dispersatildeo do ser num exterior

que natildeo eacute Natureza mas Almardquo806

Vicente Ferreira da Silva confronta-se com o Panteiacutesmo no artigo a Feacute nas

Origens de 1955 e ainda no Diaacutelogo do Mar de 1962 No primeiro destes

artigos ele afirma que o panteiacutesmo naturalista eacute uma criaccedilatildeo artificial do

homem moderno que nada tem a ver com a feacute nas origens que ele proacuteprio

propotildee e identifica essa ldquoreligiatildeo da naturezardquo com ldquoum deliacuterio burguecircs num

cenaacuterio de ldquodeacutejeuner sur llsquoherberdquordquo807

Em o Diaacutelogo do Mar o Diaacutelogo da Montanha e Diaacutelogo do Espanto Vicente iraacute

dar conta do seu confronto com ldquoos modelosrdquo susceptiacuteveis duma repeticcedilatildeo

kierkegaardiana da poesia de liacutengua portuguesa aiacute protagonizados por Diana e

George pseudoacutenimos de Dora Ferreira da Silva e Agostinho da Silva

Casada com Vicente Ferreira da Silva durante 23 anos Dora Ferreira da Silva

acompanhou e apoiou a sua obra tendo no entanto produzido paralelamente

uma importante obra poeacutetica segundo um itineraacuterio poeacutetico proacuteprio Autora de

livros como Andanccedilas Talhamar Retratos de Origem Poemas da Estrangeira

e Hiacutedria foi trecircs vezes ganhadora do Preacutemio Jabuti e recebeu tambeacutem o

preacutemio Machado de Assis da Academia Brasileira de Letras em 2000 Tendo

desenvolvido grande actividade como tradutora destacam-se as traduccedilotildees de

autores como Rilke Saint-John Perse San Juan de la Cruz Houmllderlin e

Jung808

806

Fernando Pessoa A Nova Poesia Portuguesa [1912] 2ordf ed Lisboa 1944 65 807

Cf Vicente Ferreira da Silva ldquoFeacute nas Origensrdquo in Dialeacutectica da Consciecircncia e Outros Ensaios 385 808

Cf Constanccedila Marcondes Ceacutesar O Grupo de Satildeo Paulo 221

417

Segundo afirma Gerardo Mello Mouratildeo no prefaacutecio de Poesia Reunida editada

pela Topbooks a obra da poetiza brasileira caracteriza-se por uma

insofismaacutevel unidade podendo ser entendida como a construccedilatildeo duma

complexa partitura musical a partir de um mesmo tema Este tema central pode

ser encontrado na sua forma niacutetida no ciclo de poemas Jardins (1979) dedicado

a Agostinho da Silva e anunciado por uma epiacutegrafe alusiva a Fernando Pessoa

(ldquoo mito - esse nada que eacute tudordquo)809

Aiacute Dora responde a um apelo da Origem dando voz aos mitos e recriando a

uma sacralidade arcaica810 segundo a qual ldquotudo estaacute cheio de deusesrdquo Uma

consciecircncia religiosa arcaica de matriz teluacuterica associada agrave terra e agrave floresta

agrave morte e ao culto dos mortos bem assim como agrave fertilidade estaacute presente em

muitos dos poemas desse ciclo designadamente em ldquoA Noiterdquo ldquoItatiaiardquo

ldquoOrcordquo ldquoFinisterrardquo e em particular no poema ldquoGritosrdquo do mesmo ciclo onde a

terra eacute explicitamente deificada sob o nome de ldquoA Grande Matildeerdquo

O mesmo tema do regresso a uma sacralidade arcaica eacute desenvolvido por

Agostinho da Silva em torno do mito da idade do Ouro de Hesiacuteodo no Prefaacutecio

da antologia A Comeacutedia Latina escrito jaacute no ldquoperiacuteodo brasileiro811 Para

Agostinho o princiacutepio dionisiacuteaco eacute o elemento propriamente religioso

associado agraves vindimas e agraves festas rituais onde se celebrava a comunhatildeo do

homem com a natureza a fusatildeo com o uno primordial Estes rituais dionisiacuteacos

eram segundo Agostinho da Silva a reactualizaccedilatildeo de uma experiecircncia

ancestral do sagrado que na poesia de Hesiacuteodo eacute designada como a Idade do

Ouro

Esta Idade do Ouro por muito tempo considerada puramente imaginaacuteria teria

segundo Agostinho vindo a ser confirmada pelos trabalhos etnograacuteficos e

relatos de viagens feitos a partir do seacuteculo XIX que foram unacircnimes em

testemunhar em povos que na Ameacuterica na Oceacircnia e em Aacutefrica viviam sem

contacto com a civilizaccedilatildeo a existecircncia de colectividades recolectoras vivendo

em igualdade e harmonia sem hierarquia poliacutetica propriedade ou religiatildeo

organizada Agostinho atribui a estes povos uma experiecircncia do sagrado

809

ldquoDespojamento completo da vontade obediecircncia ao vento e agrave fome sombra porque se tem fronde

mordida porque se tem dente e a vagarosa ascensatildeo e fusatildeo com o mito caleidoscoacutepio do nada que eacute

tudordquo ldquoAgostinho da Silva - A ele eacute dedicado este livrordquo Dora Ferreira da Silva Jardins (esconderijos)

[1979] Poesia Reunida Rio de Janeiro 1999 135 810

Cf Constanccedila Marcondes Ceacutesar O Grupo de Satildeo Paulo 221 811

Agostinho da Silva Prefaacutecio in Comeacutedia Latina Brasil 19461947

418

caracterizado pela espontaneidade e a ausecircncia de mediaccedilatildeo sacerdotal e

ritual

O retorno agrave Idade do Ouro (a redenccedilatildeo da histoacuteria) eacute jaacute aqui encarado por

Agostinho como uma possibilidade de um regresso a essa vivecircncia primitiva do

sagrado e seraacute mais tarde identificado por Agostinho precisamente com o

momento mais brilhante da epopeia camoniana o ceacutelebre episoacutedio da ldquoIlha dos

Amoresrdquo812 no qual ele vecirc a antevisatildeo profeacutetica duma reintegraccedilatildeo ontoloacutegica

atraveacutes do amor que para Luiacutes de Camotildees seria a finalidade uacuteltima dos

descobrimentos

O Diaacutelogo do Mar escrito por Vicente Ferreira da Silva na Praia Grande em

1962 comeccedila pela alusatildeo ao que separa Diana e George protagonistas da

tradiccedilatildeo miacutetica e poeacutetica de Maacuterio e Paulo heteroacutenimos do proacuteprio Vicente e

protagonistas do pensamento filosoacutefico Vicente testemunha aiacute uma luacutecida

consciecircncia de que ele mesmo se enraiacuteza numa outra tradiccedilatildeo caracterizada

pela racionalidade e a sistematicidade do pensamento assume-se atraveacutes dos

seus dois heteroacutenimos como defensor do pensamento de Heidegger sem

deixar de sublinhar o aspecto em que Diana e George e o seu ponto de vista

filosoacutefico se encontram ldquoVocecircs sabem perfeitamente que embora diferentes

somos tripulantes do mesmo barco e no fundo concordamos num ponto

fundamental eacute preciso superar o velho mundo do humanismo

antropocecircntricordquo813

A possibilidade de superaccedilatildeo do humanismo antropocecircntrico e da dominaccedilatildeo

teacutecnica da natureza eacute apreciada pelos protagonistas do diaacutelogo a partir da

experiecircncia de comunhatildeo imediata com os elementos sendo o mar aiacute investido

duma aacuteurea miacutestica e religiosa sugerindo a aproximaccedilatildeo de um novo

sentimento do divino

No Diaacutelogo do Mar acima referido Vicente examina e potildee agrave prova a via aberta

por esse pensamento poeacutetico de matriz panteiacutesta que em Diana se assume

como regresso a uma certa exaltaccedilatildeo da experiecircncia imediata da comunhatildeo

812

Cf Isaque Pereira de Carvalho ldquoTeologia e Mito-poieacutetica da Histoacuteria em Agostinho da Silvardquo in

Agostinho da Silva Pensador do Mundo a Haver Actas do Congresso Internacional do Centenaacuterio de

Agostinho da Silva Lisboa 2007 334 813

Vicente Ferreira da Silva ldquoDiaacutelogo do Marrdquo1962 in Dialeacutectica das Consciecircncias e outros ensaios

502

419

com a Natureza testemunhada pelos poetas814 e em Agostinho da Silva como

a defesa do Deus sive Natura de Espinosa815

Descartando estas duas vias como diletantismo poeacutetico ou como regresso a

modos de pensar preteacuteritos incapazes de romper com o humanismo

antropocecircntrico e o primado da teacutecnica816 Vicente procura um ponto de vista

mais amplo simultaneamente capaz de compreender o discurso poeacutetico e o

discurso cientiacutefico o panteiacutesmo e o monoteiacutesmo e passa a apreciar a via

aberta por Martin Heidegger em Ser e Tempo817

Em consonacircncia com a historicidade intriacutenseca do Dasein defendida por

Heidegger em Ser e Tempo e ainda de acordo com o por este estipulado sobre

a natureza das eacutepocas histoacutericas e a sua determinaccedilatildeo por um ldquoapriorirdquo infra-

histoacutericordquo Vicente no Diaacutelogo do Mar limita o alcance destas experiecircncias

poeacuteticas marginais e pontuais Embora reconhecendo que elas abrem agrave

consciecircncia novas possibilidades o pensador brasileiro defende que ldquoo novordquo

soacute poderaacute surgir sob o impeacuterio de uma nova mitologia ou de um novo ldquoregime

de fascinaccedilatildeordquo ele mesmo capaz de criar uma nova Stimmung epocal e

assim uma nova forma de sentir de amar e de conhecer818

27 Poesia filosofia e pensamento maacutegico da Origem

No Diaacutelogo da Montanha a superaccedilatildeo da eacutepoca da teacutecnica atraveacutes da praxis

estaacute no centro da reflexatildeo mas a praxis eacute a acccedilatildeo ritual vinculada ao

simboacutelico como logo se infere da invocaccedilatildeo por Diana do primado do rito em

Eudoro de Sousa819 Com efeito como acima vimos para Eudoro de Sousa o

rito eacute a via para reinstaurar o triacircngulo do simboacutelico e da complementaridade

isto eacute para experienciar a unidade de Deus do Homem e da natureza

O diaacutelogo encaminha-se no sentido da reflexatildeo criacutetica sobre o primado do bios

theoreticos em Platatildeo e Aristoacuteteles como uma possibilidade de o homem

participar na eternidade do divino que natildeo exclui outras possibilidades820

814

Cf Ibidem 501 815

Ibidem 507 816

Ibidem 502 817

Ibidem 503 818

Ibidem 513 819

Cf Vicente Ferreira da Silva ldquoDiaacutelogo da Montanhardquo in Dialeacutectica das Consciecircncias e outros

ensaios 518 820

Cf Ibidem 523-524

420

O simboacutelico vigente nos mitos gregos eacute uma via alternativa ou antes abre

uma pluralidade de vias alternativas cada uma associada a um dos Deuses

ocupando um lugar central nas preocupaccedilotildees de Maacuterio ldquoCada Deus cada

Weltaspekt eacute uma cena de desempenhos de fruiccedilotildees de bem-aventuranccedilas

totalmente isentas de tempo Eacute um ceacuteu uma ordem de realidades imortais eacute a

proacutepria presenccedila da eternidade Na medida em que nos imortalizamos em

direcccedilatildeo ao sugerido por um campo fascinante-divino nos imortalizamos nos

valores realizados por essa diacosmeserdquo821

Relativamente agrave importacircncia do simboacutelico embora Maacuterio natildeo rejeite a

afirmaccedilatildeo de Diana de que a arte e a poesia utilizam uma linguagem simboacutelica

e tecircm elas mesmas uma funccedilatildeo desocultante ldquoem direcccedilatildeo aos desempenhos

e campo optativo do homemrdquo ele refere tal como Eudoro o simboacutelico a um

plano anterior e mais fundamental - o dos ritos e dos mitos

Para Vicente o simboacutelico natildeo eacute apanaacutegio da linguagem humana senatildeo de

uma forma secundaacuteria e derivada mas dos deuses e das suas hierofanias

trata-se da ldquocoalescecircncia de um Weltaspekt divino em muacuteltiplas

representaccedilotildees cada representaccedilatildeo traduzindo in totum a essecircncia do deus

Se Dioniacutesio eacute parreira a planta embriagadora esse princiacutepio embriagante

tambeacutem se traduz no sangue delirante do macho cabrio do fauno sexual

Atraveacutes do fio condutor de cada uma dessas imagens dramaacutetico-sagradas

captamos o espaccedilo dessa hierofania do divinordquo822

Este diaacutelogo entre o panteiacutesmo do pensamento poeacutetico e a ontofenomenologia

heideggeriana que acima rapidamente resumimos mostra claramente que

Vicente confrontou o pensamento heideggeriano com temas e problemas

desse pensamento poeacutetico de liacutengua portuguesa concluindo poreacutem pelo

primado da linguagem simboacutelica dos mitos relativamente quer agrave poesia quer agrave

filosofia agrave semelhanccedila de Eudoro de Sousa

Vicente aponta para aleacutem do panteiacutesmo poeacutetico como para aleacutem de qualquer

saber filosoacutefico na direcccedilatildeo de um saber originaacuterio o que eacute reafirmado no

artigo ldquoA fonte e a origemrdquo ldquomais forte e profundo que o dizer filosoacutefico estaacute

821

Ibidem 524-525 822

Ibidem 520-521

421

sempre o mitologema inicial de uma cultura Nesse iniacutecio estatildeo os deuses ou o

deus e os deuses satildeo Origensrdquo823

Contudo este regresso a uma religiosidade primitiva identificada com os

ldquodeuses pacircnicos da florestardquo de Juumlnger natildeo estaacute de modo algum em

contradiccedilatildeo com os temas da nova poesia portuguesa As vaacuterias variantes

duma concepccedilatildeo poeacutetica e escatoloacutegica da histoacuteria expressa pelos poetas e

pensadores acima referidos vieram a confrontar-se polemicamente com o

positivismo dominante em Portugal na primeira metade do seacuteculo XX dando

origem a uma contestaccedilatildeo da doutrina positivista dos 3 estaacutedios e a uma

valorizaccedilatildeo da consciecircncia miacutetico-religiosa cuja actualidade se reivindica e na

qual se demonstra poder legitimamente fundar-se uma visatildeo do mundo e uma

esperanccedila do futuro

Teixeira de Pascoaes824 Fernando Pessoa825 Sampaio Bruno826 Aacutelvaro

Ribeiro827 Antoacutenio Quadros828 e Agostinho da Silva829 centraram uma boa

parte na sua produccedilatildeo literaacuteria na tentativa de desocultaccedilatildeo de mitos ocultos

por uma interpretaccedilatildeo positivista e racionalista da Histoacuteria na convicccedilatildeo de que

na reactivaccedilatildeo da consciecircncia miacutetica residia a possibilidade de um

relanccedilamento da histoacuteria de Portugal e do Mundo

Dalila Pereira da Costa em Da Serpente agrave Imaculada demonstra que a nossa

religiatildeo eacute marcada desde a preacute-histoacuteria pela sua matriz teluacuterica o culto da

natureza e em particular da terra associada ao culto dos mortos e da

fertilidade persistiu por muito tempo em Portugal em razatildeo do isolamento

geograacutefico e foi preservado por uma longa tradiccedilatildeo poeacutetica Foi assim possiacutevel

a estes autores reactivar uma religiosidade panteiacutesta e teluacuterica associada a

uma grande sensibilidade agraves forccedilas do caos e do abismo evocadas nas

823

Vicente Ferreira da Silva ldquoA Fonte e o Pensamentordquo Diaacutelogo nordm8 1957 in Dialeacutectica das

Consciecircncias e outros ensaios 408 824

Cf Maria Adelaide Pacheco ldquoLigravengua e Histoacuteria em Heidegger e Pascoaesrdquo in Heidegger Linguagem

e Traduccedilatildeo 825

Cf Joatildeo Amadeu Carvalho da Silva ldquoO Desejado e o Encoberto Nobre e Pessoardquo in O Pensamento

Luso-Galaico-Brasileiro III 620 826

Cf Maria Helena Varela Silva Conjunccedilotildees Filosoacuteficas Luso-Brasileiras 34 827

Jorge Coutinho ldquoTeologia e Metafigravesica em Agravelvaro Ribeirordquo in O Pensamento Luso-Galaico-

Brasileiro I 491-493 828

Cf Antoacutenio Quadros Portugal-Razatildeo e Misteacuterio Lisboa1986 829

Cf Isaque Pereira de Carvalho ldquoTeologia e Mito-poieacutetica da Histoacuteria em Agostinho da Silvardquo in

Agostinho da Silva Pensador do Mundo a Haver Actas do Congresso Internacional do Centenaacuterio de

Agostinho da Silva Lisboa 2007 337

422

grandes teogonias e recuperar ao niacutevel do discurso poeacutetico antigos arqueacutetipos

da consciecircncia religiosa

Contudo para Vicente Ferreira da Silva o discurso poeacutetico e literaacuterio enferma

de limites inultrapassaacuteveis que lhe satildeo consignados pela matriz humanista

originaacuteria subjacente agrave totalidade das formas culturais e quando muito podem

reflectir o processo de desintegraccedilatildeo dessa matriz almejando um ilusoacuterio

regresso ao passado ldquoOs mesmos impasses a mesma sorte acuam agora o

pensamento e a arte humaniacutesticos os mesmos oacutebices ao seu modo de

prossecuccedilatildeo se afirmam de modo insofismaacutevel O quadro religioso que

condicionou a criaccedilatildeo o pensamento e a acccedilatildeo no Ocidente entrou segundo

julgamos em franca distrofia assistimos a uma desintegraccedilatildeo das instituiccedilotildees

e formas que determinavam a nossa existecircnciardquo830

Vicente defende pois que o panteiacutesmo poeacutetico resulta desta desintegraccedilatildeo e a

acompanha sendo interior a uma configuraccedilatildeo histoacuteria destinada a ser

ultrapassada Assimilando panteiacutesmo poeacutetico e decadentismo Vicente

assume-se natildeo como um pensador do que decai mas como um pensador do

futuro que anuncia uma radical alteraccedilatildeo do projecto mundial Reclamando-se

duma visatildeo mais radical e mais originaacuteria coloca-se num outro plano procura

captar ldquoa sucessatildeo das regecircncias ou dominaccedilotildees maacutegico-aoacutergicasrdquo para os

quais ldquoo drama da antropogeacuteneserdquo ou ldquomonograma cristatildeordquo eacute apenas uma

etapa transitoacuteria

Vicente natildeo exalta a nostalgia do passado mas afirma o pensador do futuro

que natildeo seraacute jaacute filoacutesofo nem poeta mas algueacutem que ultrapassando essas

categorias se vecirc investido da missatildeo de seduzir para um futuro que se

avizinha ldquoNietzsche afirmou que o pensador do futuro deveria ser um sedutor

verdadeiramente a seduccedilatildeo deste novo pensamento consiste em ser uma

forma de contaacutegio de uma nova representaccedilatildeo das coisas que comeccedila a

gravitar sobre a terrardquo831

Natildeo aderindo jaacute agrave esfera humana Vicente assume-se como o que procura uma

sabedoria mais que humana o que procura seduzir para o pensamento

830

Vicente Ferreira da Silva ldquoA Fonte e o Pensamentordquo in Dialeacutectica das Consciecircncias e outros ensaios

412 831

Ibidem 412

423

simboacutelico e maacutegico da Origem832 ldquoO pensamento que reingressa na Fonte eacute

transido da seduccedilatildeo maacutegico-instauradora da presenccedila numinosa Eacute portanto

um pensamento teuacutergico um apelo dos deuses agrave espreita Se esse saber eacute um

saber de salvaccedilatildeo o que deve ser salvo eacute um bem que pode expressar-se no

homem mas natildeo eacute feito pelo homemrdquo833

3 A apropriaccedilatildeo expropriadora de conceitos centrais da filosofia

heideggeriana

Se a ruptura de Heidegger com a metafiacutesica da subjectividade foi a condiccedilatildeo

de possibilidade da elaboraccedilatildeo de uma filosofia da Mitologia esta tarefa

implicou uma reelaboraccedilatildeo de conceitos fundamentais da ontofenomenologia

heideggeriana que em Vicente aparecem consciente e explicitamente

contaminados pela problemaacutetica da religiatildeo e do mito - o que em seguida

iremos detalhadamente mostrar

3 1 O Ser como Fascinador

Afirma Vicente em Ideias para um Novo Conceito de Homem como

explicitaccedilatildeo do pensamento heideggeriano exposto na Carta Sobre o

Humanismo ldquo A metafiacutesica propende sempre a reduzir e a representar o Ser

pelo Ente a substituir a abertura do Ser pelo revelado em tal abertura A

metafiacutesica vecirc o Ente e o pensa mas em pleno esquecimento das potecircncias

instituidoras da manifestaccedilatildeo do manifestaacutevelrdquo834

A temaacutetica da diferenccedila ontoloacutegica jaacute exposta por Heidegger em Ser e Tempo

e retomada nos textos posteriores aponta para a distinccedilatildeo do plano ocircntico (em

que se move o conhecimento cientiacutefico e a tradiccedilatildeo metafiacutesica) e o plano

ontoloacutegico e fundante do ser

832

Constanccedila Marcondes Ceacutesar distingue em Vicente o mito originaacuterio dos povos aurorais caracterizado

por uma experiecircncia primordial de natildeo separaccedilatildeo entre o divino o humano e a natureza o mito do

presente identificado com o cristianismo e o humanismo e o mito vindouro pressentido na filosofia da

religiatildeo e na poesia Cf O Grupo de Satildeo Paulo 85 833

Vicente Ferreira da Silva ldquoA Fonte e o Pensamentordquo in Dialeacutectica das Consciecircncias e outros ensaios

413 834

Vicente Ferreira da Silva rdquoIdeias Para um Novo Conceito de Homemrdquo in Dialeacutectica das Consciecircncias

e outros ensaios 272

424

Identificando a metafiacutesica com o esquecimento do ser seraacute segundo a

perspectiva do filoacutesofo alematildeo no enfrentamento desconstrutivo com a sua

histoacuteria assim como no diaacutelogo com a poesia que o pensamento poderaacute

reencontrar a via para habitar na vizinhanccedila do ser

Para Vicente no entanto o esquecimento do ser natildeo remete imediatamente

para a constituiccedilatildeo histoacuterica da metafiacutesica mas para a temaacutetica de Houmllderlin da

Gottesnacht835 referente ao nosso mundo desprovido de deuses em

consequecircncia repensar o ser o significaraacute para o filoacutesofo brasileiro retomar a

essecircncia da experiecircncia religiosa como experiecircncia da exposiccedilatildeo da finitude

do homem ao absoluto e ao numinoso

Vicente Ferreira da Silva propotildee-se completar e corrigir a concepccedilatildeo

heideggeriana do ser que seria pensado atraveacutes dum conjunto de metaacuteforas da

luz apontando por isso essencialmente para o domiacutenio cognitivo ldquoA

linguagem do pensamento essencial de Heidegger apoia-se preferencialmente

em metaacuteforas da luz e do conhecimento que natildeo possibilitam um mergulho na

zona transcendental pulsional da consciecircncia Compreendendo pelo contraacuterio

o fenoacutemeno religioso da abertura projectiva como ldquofascinaccedilatildeordquo como irrupccedilatildeo

de um espaccedilo de apetecibilidade como o ser arrebatado por um campo de

forccedilas atractivas estaremos em condiccedilotildees de elucidar natildeo soacute a estrutura

ontoloacutegica do nosso ser como tambeacutem de penetrar nos arcanos do processo

mitoloacutegicordquo836

Segundo Vieira da Silva ldquoLichtung des Seinsrdquo ldquoUnverborgenheitrdquo satildeo

metaacuteforas que pensam o ser segundo o princiacutepio apoliacutenio que remetem para a

ideia duma desocultaccedilatildeo do ser perante o pensar e estatildeo centradas no

conhecimento Poreacutem na experiecircncia religiosa natildeo estaacute primordialmente em

jogo o pensar nem o conhecer mas um conjunto de forccedilas atractivas que

Vicente designa como ldquoFascinaccedilatildeordquo

A noccedilatildeo de fascinaccedilatildeo foi introduzida por Rudolf Otto em Das Heilige como

atributo da categoria do numinoso que ele considera presente em todas as

religiotildees e que designa o nuacutecleo irracional da experiecircncia religiosa salientando

como sua caracteriacutestica determinante a experiecircncia de nulidade do eu perante

835

Cf Vicente Ferreira da Silva ldquoHermemenecircutica da Eacutepoca Humanardquo Revista Brasileira de Filosofia

nordm 18 1955 in Dialeacutectica das Consciecircncias e Outros Enssaios 358 836

Vicente Ferreira da Silva ldquoPara uma Etnogonia Filosoacuteficardquo Revista Brasileira de Filosofia nordm 16

1954 in Dialeacutectica das Consciecircncias e outros ensaios 352

425

a majestade dos deuses e os sentimentos de terror e fascinaccedilatildeo que sempre

acompanham essa experiecircncia ldquoO conteuacutedo qualitativo do numinoso cuja

forma eacute o misterioso eacute por um lado o elemento repulsivo que jaacute analisaacutemos o

tremendum a que se refere a magestas Por outro lado e ao mesmo tempo eacute

algo que exerce uma atracccedilatildeo particular que cativa fascina e forma com o

elemento repulsivo do tremendum uma estranha harmonia de contrasterdquo837

Segundo Otto a criatura que se humilha e treme perante o numinoso

experimenta ao mesmo tempo que o terror a seduccedilatildeo e o crescente

arrebatamento que cresce em intensidade ateacute produzir o inebriamento A este

elemento dionisiacuteaco da acccedilatildeo do numen chama Otto o ldquofascinanterdquo

Designando o Ser como o fascinador Vicente pensa o ser atraveacutes das

categorias do sagrado acentuando este elemento dionisiacuteaco da experiecircncia

religiosa agrave luz do qual interpreta tambeacutem a natureza do homem como

geworfene Realitaumlt De facto esta posiccedilatildeo do humano como fascinado implica

igualmente uma revisatildeo das nossas concepccedilotildees antropoloacutegicas sublinhada jaacute

por Rodolfo Otto e Jung pois a experiecircncia fascinante do numinoso mostra

que ldquo[hellip] para aleacutem do nosso ser racional existe escondido no fundo da nossa

natureza um elemento uacuteltimo e supremo que natildeo encontra satisfaccedilatildeo na

saciedade e aquietaccedilatildeo das necessidades correspondentes agraves tendecircncias e agraves

exigecircncias da nossa vida sensorial psiacutequica e espiritual Os miacutesticos chamam-

lhe ldquoo fundo da almardquordquo838

Este ldquofundo da almardquo de que falam os miacutesticos aludindo a esse obscuro estrato

irracional e pulsional que estaacute em jogo na experiecircncia religiosa eacute interpretado

por Vicente no mesmo registo dionisiacuteaco a que acima aludimos como

Vontade

Afirma Vicente ldquoPara o prosseguimento de nossas reflexotildees seria interessante

referirmo-nos agraves ideias concernentes agrave metafiacutesica dos organismos vivos que

encontramos no pensamento de Schopenhauer Apesar de natildeo aceitarmos a

837

ldquoDer qualitative Gehalt des Numinosen (an den das Mysteriosum die Form gibt) ist einerseits das

schoumln ausgefuumlhrte abdrӓngende Moment des tremendum mit der bdquomajestasldquo Anderseits aber ist er

offenbar zugleich etwas eigentuumlmlich Anziehendes Bestrickendes Faszinierendes das nun mit dem

abdrӓngenden Momente des tremendum in eine seltsame Krontrast-harmonie trittldquo Rudolf Otto Das

Heilige Uumlber das Irrationale in der Idee des Goumlttlichen und sein Verhaumlltnis zum Rationalen(1917)

Muumlnchen 199142 838

bdquo[Dieser Umstand weist aber zugleich darauf hin daβ] uumlber und hinter unserem rationalem Wesen ein

Letztes und Houmlchstes unseres Wesen verborgen liegt das nicht sein Genuumlge findet in Saumlttigung und

Stillung der Beduumlrfnisse unserer sinnlichen seelischen und geistigen Triebe und Begehrungen Die

Mystiker nannten es den bdquoSeelengrundldquordquo Ibidem 49

426

totalidade da sua visatildeo filosoacutefica consideramos sugestivas certas passagens

referentes agrave objectivaccedilatildeo da vontaderdquo839

Para Schopenhauer eacute efectivamente possiacutevel romper com o domiacutenio das

nossas representaccedilotildees e aceder a um conhecimento metafiacutesico da essecircncia

oculta do mundo como ainda corroborar esse conhecimento pela evidecircncia

empiacuterica da nossa experiecircncia A chave para penetrar na essecircncia oculta do

mundo estaacute na experiecircncia do corpo enquanto sujeito da vontade ldquoAgora noacutes

temos pois da essecircncia e da actividade do nosso corpo um duplo

conhecimento bem significativo e que nos eacute dado de duas maneiras muito

diferentes vamos servir-nos dele como de uma chave para penetrar na

essecircncia de todos os fenoacutemenos e de todos os objectos da natureza que natildeo

nos satildeo dados na consciecircncia como sendo o nosso proacuteprio corpo e que por

conseguinte noacutes natildeo conhecemos de duas maneiras mas simplesmente como

sendo nossas representaccedilotildees julgaacute-los-emos por analogia com o nosso corpo

e suporemos que se por um lado eles se lhe assemelham enquanto

representaccedilotildees e se por outro lado lhes juntarmos a existecircncia enquanto

representaccedilatildeo do sujeito o resto necessariamente deve ser o mesmo que

aquilo que chamamos em noacutes mesmos vontade Que outra espeacutecie de

existecircncia ou de realidade poderiacuteamos com efeito atribuir ao mundo dos

corpos A que outro lugar ir buscar os elementos de que noacutes a comporiacuteamos

Fora da vontade e da representaccedilatildeo noacutes nada podemos pensarrdquo840

Admitindo que esta eacute a chave para penetrar na essecircncia oculta da realidade

Schopenhauer vai corroborar esta tese demonstrando como a estrutura dos

seres vivos e mesmo das forccedilas fiacutesicas podem ser interpretadas como

839

Vicente Ferreira da Silva ldquoPara uma Etnogonia Filosoacuteficardquo in Dialeacutectica das Consciecircncias e outros

ensaios 351352 840

rdquo Wir werden demzufolge die nunmehr zur Deutlichkeit erhobene doppelte auf zwei voumlllig heterogene

Weisen gegebene Erkenntnis welche wir von Wesen und Wirken unseres eigenen Leibes haben

weiterhin als einen Schluumlssel zum Wesen jeder Erscheinung in der Natur gebrauchen und alle Objekte

die nicht unsere eigener Leib daher nicht auf doppelte Weise sondern allein als Vorstellungen unserm

Bewuszligtsein gegeben sind eben nach Analogie jenes Leibes beurteilen und daher annehmen daszlig wie sie

einerseits ganz so wie er Vorstellung und darin mit ihm gleichartig sind auch andererseits wenn man

ihr Dasein als Vorstellung des Subjekts bei Seite setzt das dann noch Uumlbrigbleibende seinem innen

Wesen nach das selbe sein muszlig als was wir uns Wille nennen Denn welche andere Art von Dasein oder

Realitaumlt sollten wir der uumlbrigen Koumlrperwelt beilegen woher die Elemente nehmen aus der wir eine

solche zusammensetzten Auszliger dem Willen und der Vorstellung ist uns gar nichts bekannt noch

denkbar ldquo Schopenhauer Die Welt als Wille und Vorstellung Zweites Buch Stuttgart Frankfurt am

Main 1960 163164

427

expressatildeo da Vontade Como comprovaccedilatildeo indirecta desta tese resultam

particularmente impressionantes a referecircncia agrave luta pela vida no mundo animal

e humano e o instinto de reproduccedilatildeo da espeacutecie que nos colocam perante a

presenccedila duma obscura e inconsciente vontade de viver

A metafiacutesica da Vontade de Schopenhauer reteacutem a atenccedilatildeo de Vicente Ferreira

da Silva tal como ocorrera aliaacutes a uma boa parte do pensamento portuguecircs a

partir dos finais do Seacuteculo XIX O panteiacutesmo metafiacutesico de liacutengua portuguesa

(com particular destaque para Antero de Quental e Sampaio Bruno)

incessantemente dialogou com o autor de O Mundo como Vontade e

Representaccedilatildeo assim como com Eduardo Von Hartmann na tentativa de

encontrar um fundamento metafiacutesico para a sua visatildeo do mundo841

Eacute tambeacutem em Schopenhauer e na sua a metafiacutesica da Vontade que Vicente vai

encontrar o fundamento para corrigir a ontologia heideggeriana e esclarecer o

poder fascinante do ser como centro de atracccedilotildees pulsionais dirigidas agrave

dimensatildeo corpoacuterea do homem e responsaacutevel pelas suas diferentes

configuraccedilotildees morfogeneacuteticas

Procurando clarificar a relaccedilatildeo entre este poder desocultante do ser e a

Vontade Vicente refere-se a uma ldquoexperiecircncia troacutepicardquo do ser e a este como

ldquopoder essencialmente troacutepicordquo Tendo em conta que a noccedilatildeo de tropismo

importada do campo da biologia remete para uma mudanccedila de orientaccedilatildeo dos

organismos em conexatildeo com a estimulaccedilatildeo externa podemos concluir que

esta experiecircncia do ser remete directamente para a dimensatildeo corporal dos

seres vivos e para a orientaccedilatildeo dos seus impulsos vitais de acordo com o

modo particular de irrupccedilatildeo do sagrado ldquoA desocultaccedilatildeo do ser como

fascinaccedilatildeo traduz-se nesse caso na instituiccedilatildeo polimoacuterfica de centros

pulsionais em correspondecircncia com a epifania da presenccedila fascinante

numinosa dos deusesrdquo842

Eacute esta mesma concepccedilatildeo que Vicente retoma no artigo ldquoReligiatildeo e

Sexualidaderdquo no qual a sexualidade humana geralmente comandada pela

hierogamia de Uranos e Gaia sofre mudanccedilas de acordo com variaccedilotildees

pulsionais impostas pelas mitologias imperantes e os centros pulsionais

841

Cf A minha dissertaccedilatildeo de mestrado ldquoA Vida e o traacutegico em Rauacutel Brandatildeordquo Aigrave se esclarece a

amplitude da recepccedilatildeo e influecircncia de Schopenhauer e Hartmann na literatura portuguesa 842

Vicente Ferreira da Silva ldquoPara uma Etnogonia Filosoacuteficardquo in Dialeacutectica das Consciecircncias e outros

ensaios 353

428

instituiacutedos pelas divindades que prescrevem regimes matriarcais ou

patriarcais em cada caso ldquoNatildeo soacute em corte espacial vemos a realidade

polarizar-se nos gacircmetas insondaacuteveis da geraccedilatildeo como tambeacutem a proacutepria

cavalgada do tempo seria regida pelo fluxo e refluxo de divindades femininas

ou masculinas ginecocraacuteticas ou androcraacuteticasrdquo843

Na mesma linha de pensamento Vicente caracteriza os deuses como

ldquoocorrecircncias troacutepicasrdquo ldquosuscitaccedilatildeo de mareacutes passionaisrdquo que teriam o seu

reverso no homem caracterizado por Frobenius como ldquoreceptor de ciclos

passionaisrdquo ou como aquele que se limita a responder ao apelo fascinante dos

deuses

Vicente procura pois conciliar o caraacutecter uno e intemporal da Vontade em

Schopenhauer com a concepccedilatildeo heideggeriana do desvelamento histoacuterico-

temporal do ser ldquoO que eacute o vivo e o que eacute o morto na concepccedilatildeo

schopenhaueriana da objectivaccedilatildeo da vontade A parte caduca deste

pensamento consiste na hispostasiaccedilatildeo do ente Vontade com o correlativo

esquecimento do poder desocultante do Ser Escapou a Schopenhauer que a

Vontade eacute algo de fundado algo de instituiacutedo por um poder pateacutetico-

transcendentalrdquo844

O Ser como vontade fascinante manifesta-se segundo Vicente numa

multiplicidade de formas e de manifestaccedilotildees histoacuterico-temporais cada uma

correspondendo a uma ldquoabertura pulsionalrdquo845 sem que contudo esta

diversidade de manifestaccedilotildees afecte a sua unidade ldquoO impeacuterio desfechante do

ser eacute um poder deflagrador um puro abrir que eacute em si mesmo isento de

multiplicidade A transcendecircncia do seu reino torna-o indemne a qualquer das

suas epocalidadesrdquo 846

Recaindo nas categorias da metafiacutesica Vicente pensa o ser tal como a

Vontade em Schopenhauer sob as categorias da unidade e da

intemporalidade O tempo eacute algo de interno ao poder do ser e eacute o princiacutepio de

diferenciaccedilatildeo e da pluralidade inerente agraves diferentes aberturas pulsionais

843

Vicente Ferreira da Silva ldquoA Religiatildeo e A Sexualidaderdquo Diaacutelogo nordm 2 1955 in Dialeacutectica das

Consciecircncias e outros ensaios 389 844

Vicente Ferreira da Silva ldquoPara uma Etnogonia Filosoacuteficardquo in Dialeacutectica das Consciecircncias e outros

ensaios 352 845

ldquo Maria Helena Varela afirma que a filosofia de Vicente Ferreira da Silva parece evoluir para uma

singular erostontologia influenciada tambeacutem por Lawrence para quem o Ser se manifesta como o dark

power do sangue o plasma da vida Cf Idem Conjunccedilotildees Filosoacutefico Luso-Brasileiras 92 846

Vicente Ferreira da Silva ldquoDiaacutelogo do Riordquo in Dialeacutectica das Consciecircncias e outros ensaios 543

429

propositoras de um certo tipo de experiecircncia religiosa da dominacircncia de uma

cultura e de uma raccedila

Assim Vicente pensa poder estabelecer uma explicaccedilatildeo das diversas raccedilas

culturas histoacutericas e tipos de civilizaccedilatildeo fundando-as em cada caso num

determinado ldquoregime de fascinaccedilatildeordquo ou numa certa ldquoabertura pulsionalrdquo ldquoO

processo religioso eacute em sua essecircncia um propositor de raccedilas a eclosatildeo de

um novo sabor da vida condicionado por uma nova modalidade do sangue e

da expressividade corpoacuterea Sobre o fundo preacute-humano das unidades

bioloacutegicas erige-se o edifiacutecio das culturas histoacutericas atraveacutes de uma nova

ldquoabertura pulsionalrdquordquo847

Esta siacutentese entre o Ser como desvelamento histoacuterico-temporal da verdade e a

metafiacutesica da Vontade de Schopenhauer conduz Vicente como acabaacutemos de

ver a pensar o ser como poder fascinante e ldquodesfechanterdquo das vaacuterias aberturas

pulsionais Este discurso ontoloacutegico pretende fundar-se numa fenomenologia

original da experiecircncia religiosa mas natildeo deixa de recair nas categorias da

Metafiacutesica ao pensar o ser como unidade e intemporalidade O ser como

vontade una e intemporal subjacente agrave diversidade das suas manifestaccedilotildees

fenomeacutenicas pode ser lido como um Deus interior ao mundo em consonacircncia

com o panteiacutesmo presente no pensamento poeacutetico a que vimos aludindo

Tambeacutem podemos questionar-nos se Vicente ao repensar o homem como o

reverso ldquoGegenwurf deste poder atractivo e pulsional do ser se move no

acircmbito da concepccedilatildeo heideggeriana de projecto lanccedilado [geworfene Entwurf]

Efectivamente a concepccedilatildeo heideggeriana de geworfene Entwurf remete para

a dimensatildeo histoacuterica do Dasein e para o facto deste se limitar a projectar-se de

acordo com algo que estaacute jaacute previamente lanccedilado mas deixa igualmente

entrever que ele tem sempre a responsabilidade de se apropriar positivamente

dessas possibilidades que lhe estatildeo historicamente destinadas Em Vicente

poreacutem o homem pensado na sua dimensatildeo corporal e pulsional que teria

escapado parcialmente a Heidegger eacute reduzido a um mero receptor dos ciclos

passionais instaurados pelas vaacuterias mitologias

ldquoHeidegger tinha razatildeo ao considerar a animalitas do homem fundada na

forccedila desocultante do ser ou na ek-sistecircncia O peculiar da nossa posiccedilatildeo

847

Vicente Ferreira da Silva ldquoPara uma Etnogonia Filosoacuteficardquo in Dialeacutectica das Consciecircncias e outros

ensaios 353

430

entretanto em relaccedilatildeo agrave doutrina da Carta sobre o Humanismo eacute a

determinaccedilatildeo do domiacutenio entitativo da animalitas como Vontade como nexo

passional variaacutevel segundo o oferecido pela tradiccedilatildeo mitoloacutegicardquo 848

3 2 O pocircr-se em obra da verdade do ser

Vicente como Eudoro de Sousa natildeo pretende fazer uma interpretaccedilatildeo

histoacuterica dos mitos mas pelo contraacuterio inverter a relaccedilatildeo entre mito e histoacuteria

buscando nos mitos a fonte da inteligibilidade da histoacuteria

Para Eudoro a histoacuteria enquanto historiografia cientiacutefica limita-se a projectar o

presente sobre o passado redesenhado esse passado agrave luz do estado

presente da cultura e buscando nele a sua legitimaccedilatildeo Romper com essa

polaridade do passado e do presente implica saltar por cima desse horizonte

ldquohistoacutericordquo e penetrar na Lonjura e no Outrora que satildeo a sua oculta e remota

origem Esse lado de fora da histoacuteria ou o Outrora eacute a outra hora a hora dos

deuses e natildeo dos homens soacute pensaacutevel na linguagem do mito e do rito

Para Eudoro este colocar-nos de fora da histoacuteria identificando-nos com o

impulso miacutetico permite-nos na realidade apreender o mito enquanto

ocultamente actuante na histoacuteriardquo849 De modo semelhante Vicente pensa o

mito como oculta forccedila actuando no interior da histoacuteria fundando esta posiccedilatildeo

em Bachofen ldquoCom Bachofen afirmamos que natildeo eacute a histoacuteria que explica o

mito mas sim o mito que explica a histoacuteria desde que soacute no domiacutenio

transcendente do mito nos satildeo consignados os cacircnones permanentes de

qualquer desempenho valiosordquo850

Eacute tambeacutem no estatuto da linguagem poeacutetica em Heidegger que Vicente vai

fundar esta primazia do mito face agrave histoacuteria tomando como referecircncias

fundamentais Houmllderlin e a Essecircncia da Poesia e A Origem na Obra de Arte

ldquoO mito eacute justamente aquela permanecircncia de que fala Heidegger em seu

ensaio Houmllderlin e a Essecircncia da Poesia Nesse mesmo ensaio encontramos a

848

Ibidem 353 849

ldquoA lonjura-outrora pode passar de aleacutem para aqueacutem ndash horizonte da histoacuteria queira-o ou natildeo o queira

ela e se passa e quando passa a histoacuteria reassume a sua feiccedilatildeo preacute-originaacuteria afeiccediloando-se antigo e

actual agrave presenccedila do outrora-lonjura pseudo-dimensatildeo cronotoacutepica de tudo quanto eacute simboacutelico e

complementarrdquo Eudoro de Sousa Mitologia Histoacuteria e Mito 245 850

Vicente Ferreira da Silva Teologia e Anti-Humanismo in Dialeacutectica das Consciecircncias e outros

ensaios 298

431

afirmaccedilatildeo de que a poesia conceitualizada como ldquonominaccedilatildeo fundadora dos

deuses e da essecircncia das coisasrdquo eacute o fundamento que suporta a histoacuteriardquo851

Este papel fundador da poesia encontra-se ainda explicitado por Heidegger em

A origem da Obra de Arte onde este afirma que a obra de arte funda e

inaugura um mundo histoacuterico ldquoA arte acontece como ditado poeacutetico Este eacute

instituiccedilatildeo no triplo sentido de doaccedilatildeo da fundaccedilatildeo e do iniacuteciordquo852

Vicente Ferreira da Silva pensa a relaccedilatildeo entre mito e histoacuteria a partir do que

em A origem da Obra de Arte se encontra afirmado sobre o resguardar da obra

como um ldquopermanecer ldquono sugerido pela obra que seria essencialmente

idecircntico ao permanecer junto duma tradiccedilatildeo miacutetica ldquoEm outra obra de

Heidegger intitulada A Origem da obra de Arte essa permanecircncia

resguardante vem incluiacuteda no proacuteprio conceito de poesia e como seu caraacutecter

definitoacuteriordquo853

Contudo Vicente passa inteiramente ao lado da interpretaccedilatildeo da obra de arte

como Ereignis para Heidegger a obra de arte eacute acontecimento originaacuterio

Ereignis e como tal nela se apropriam reciprocamente o ser e o homem - e eacute

essa reciacuteproca apropriaccedilatildeo que instaura as vaacuterias direcccedilotildees de um mundo

histoacuterico com os seus deuses os seus modos de saber e as suas instituiccedilotildees

ldquoO acontecimento de apropriaccedilatildeo [Ereignis] do seu ser-criada natildeo reverbera

simplesmente na obra antes se daacute que o caraacutecter de acontecimento de

apropriaccedilatildeo [Ereignishafte] (que a obra seja o que a obra eacute) lanccedila a obra para

aleacutem de si e lanccedilou-a constantemente agrave sua volta Quanto mais a obra se abre

de forma essencial tanto mais se torna luminoso o caraacutecter luminoso disto que

ela eacute e pelo contraacuterio natildeo natildeo eacuterdquo854

O Ereignis noccedilatildeo capital do segundo Heidegger designa o acontecimento

propiacutecio no qual acontece a apropriaccedilatildeo reciacuteproca entre o ser e o homem

acontecimento que acontece na obra de arte e instaura um mundo histoacuterico

851

Vicente Ferreira da Silva ldquoHistoacuteria e Meta-Histoacuteriardquo Congresso Internacional de Filosofia Satildeo Paulo

1959 in Dialeacutectica das Consciecircncias e outros ensaios 437 852

bdquoDie Kunst geschieht als Dichtung Diese ist Stiftung in dem dreifachen Sinne der Schenkung

Gruumlndung und des Anfangesldquo UKw GA 5 65 853

Vicente Ferreira da Silva ldquoHistoacuteria e Meta-Histoacuteriardquo in Dialeacutectica das Consciecircncias e outros ensaios

438 854

bdquoDas Ereignis seines Geschaffenseins zittert im Werk nicht einfach nach sondern das Ereignishafte

daβ das Werk als dieses Werk ist wirft das Werk vor sich her und hat es staumlndig um sich geworfen Je

wesentlicher das Werk sich oumlffnet um so leuchtender wird die Einzigkeit dessen daβ es ist und nicht

vielmehr nicht istldquo UKw GA 5 53

432

Outro eacute o entendimento de Vicente a quem a obra de arte natildeo interessa em si

mesma mas fornece o modelo de compreensatildeo do binoacutemio mito-rito tema

essencial para aceder a uma compreensatildeo da vigecircncia e da permanecircncia dos

modelos miacuteticos (que natildeo se confundem com as narrativas poeacuteticas ou

literaacuterias) subjacentes ao devir da histoacuteria 855

Afirma Heidegger nos Holzwege relativamente ao resguardar na obra de arte

ldquoO resguardar da obra natildeo separa os homens singularizando-os com base nas

suas vivecircncias antes os integra na pertenccedila agrave verdade que acontece na obra

e deste modo funda o ser-para-os-outros [Fuumlreinandersein] e o ser-com-os-

outros [Miteinadersein] como estar em vigecircncia histoacuterico do ser-o-aiacute a partir da

conexatildeo com o natildeo-estar-encobertordquo856

Comentando esta passagem de Heidegger Vicente esclarece este resguardar

como um ldquohabitar na abertura do ente propiciado pela obrardquo que seria

essencialmente idecircntico agravequele que acontece na rememoraccedilatildeo ritual O ritual

preserva o legado de uma tradiccedilatildeo miacutetico-religiosa mantendo-o vivo no seio da

vivecircncia social de um ciclo histoacuterico determinado O binoacutemio mito-rito assegura

a manutenccedilatildeo de um mesmo ldquoteatro mundanalrdquo onde deuses homens e

elementos naturais se interligam de forma coerente e estruturada

Para Vicente o binoacutemio mito-rito assegura a manutenccedilatildeo do homem no seio

dum cenaacuterio simboacutelico assegurando a vigecircncia duma certa Ur-poesie como

eixo de um ciclo histoacuterico Sob a vigecircncia dessa Ur-Poesie todo um ciclo

histoacuterico pode ser lido como um teatro sagrado onde os homens as coisas e

os seres da natureza actualizam um drama ritual que incessantemente instaura

a vigecircncia das potecircncias teogoacutenicas

Para o pensador brasileiro a fundaccedilatildeo de um mundo histoacuterico eacute a instauraccedilatildeo

de uma ordem simboacutelica atribuiacuteda aos mitos e agrave sua linguagem - os siacutembolos

enraiacutezam-se no Bildwelt ou mundo das imagens e constituem a Ur-poesie dos

mitologemas cantos e rituais que estatildeo na origem duma civilizaccedilatildeo ldquoAtraveacutes

siacutembolos noacutes conformamos e dominamos a riqueza desordenada dos

855

Cf Vicente Ferreira da Silva ldquoHistoacuteria e Meta-Histoacuteriardquo Dialeacutectica das Consciecircncias e outros

ensaios 438 856

bdquoDie Bewahrung des Werkes vereinzelt die Menschen nicht auf ihre Erlebnisse sondern ruumlckt sie ein

in die Zugehoumlrigkeit zu der im Werk geschehenden Wahrheit und gruumlndet so das Fuumlr- und

Miteinandersein als das geschichtliche Ausstehen des Da-seins aus dem Bezug zur Unverborgenheitldquo

UKw GA 5 55

433

estiacutemulos sensoriais o diluacutevio das impressotildees num sistema plenamente

controlaacutevel de formas significativas ou inteligiacuteveisrdquo857

Para Vicente a linguagem simboacutelica desta Ur-poesie natildeo se restringe agraves

narrativas miacuteticas mas ela engloba igualmente o gesto ritual a acccedilatildeo e culto

que constantemente renovam o projecto cosmoloacutegico contido no relato miacutetico

e constituem a totalidade do mundo num ldquoemblemardquo da presenccedila de um deus

Dioniacutesio eacute parreira planta embriagadora o vinho mas tambeacutem estaacute presente

no seacutequito das bacantes no coro traacutegico e em geral no sentimento exuberante

da existecircncia O siacutembolo natildeo eacute apenas uma forma espaacutecio-temporalmente

confinada mas ele desvenda-nos a face inteira do mundo como uma totalidade

pregnante

Partindo da temaacutetica heideggeriana da natureza da obra de arte como ldquopocircr-se

em obra da verdade do serrdquo Vicente visa algo de fundamentalmente diferente

daquilo que Heidegger tinha em vista ao pensar a obra de arte como Ereignis

Trata-se para o pensador brasileiro de mostrar que os siacutembolos da linguagem

miacutetica suscitam uma visatildeo total do mundo pondo-a em conexatildeo com uma

figura do divino ldquoO processo mitoloacutegico que nada mais eacute do que o pocircr-se em

obra da verdade do ser eacute em sua essecircncia iacutentima uma abertura de tempos

transbordando portanto o ritmo histoacuterico-hominiacutediordquo858

O fundamento dessa Ur-poesie eacute pensado por Vicente como a Imaginatio Dei

cuja natureza ele esclarece recorrendo agrave vontade nietzschiana de poder como

vontade de plasmaccedilatildeo artiacutestica que natildeo estaacute centrada no homem ldquoNa

concatenaccedilatildeo profunda do pensamento de Nietzsche a potecircncia da

imaginaccedilatildeo criadora representa um papel filosoacutefico primordial A vontade de

poder realidade uacuteltima das coisas ldquofacto uacuteltimo ao qual podemos acederrdquo eacute

para ele uma vontade de plasmaccedilatildeo artiacutestica eacute um aperfeiccediloamento total das

coisas pela vis poeacutetica pela subjectividade artiacutestico-metafiacutesicardquo859

A tese de uma Imaginatio Dei ou duma vontade criadora luacutedica e esteacutetica

criadora dos mitos subjacentes agrave histoacuteria que Vicente aqui defende como jaacute

referimos anteriormente aproxima-se na realidade muitiacutessimo de Pascoaes

857

Vicente Ferreira da Silva ldquoLiberdade e Imaginaccedilatildeordquo Convivium nordm 2 1962 in Dialeacutectica das

Consciecircncias e outros ensaios 478 858

Vicente Ferreira da Silvardquo Histoacuteria e Meta-Histoacuteriardquo in Dialeacutectica das Consciecircncias e outros ensaios

442 859

Vicente Ferreira da Silva ldquoLiberdade e Imaginaccedilatildeordquo in Dialeacutectica das Consciecircncias e outros ensaios

476

434

afastando-se no entanto de Heidegger e atraiccediloando o sentido fundamental de

A origem da Obra de Arte em que pretende igualmente fundar-se

Com efeito para Heidegger como Ereignis a obra de arte eacute ela mesma a

origem natildeo tendo sentido procurar para ela outro fundamento Ela eacute a luta

entre o mundo (o desvelamento que abre o espaccedilo para os deuses e para os

desempenhos humanos) e a terra o que se manteacutem no oculto (que aponta

para o misteacuterio insondaacutevel em que assenta a origem da obra) ldquoO levantar de

um mundo e o elaborar da terra satildeo dois traccedilos essenciais do ser-obra da

obrardquo860

A identidade entre arte e mito repousa assim em Vicente numa

fundamentaccedilatildeo teoacuterica ecleacutectica que contudo consegue elucidar o ponto para

ele fundamental da independecircncia de ambas as criaccedilotildees em relaccedilatildeo agrave

subjectividade humana ldquoA arte ou melhor a poesia como eacute aqui

conceitualmente transcrita se confunde com o poder mitoloacutegico que comanda

as eacutepocas do mundo Natildeo estaacute subordinada portanto agrave fantasia subjectiva e

individual mas parece emergir de uma imaginaccedilatildeo macroscoacutepica e ek-staacutetica

que evolui aleacutem do indiviacuteduo Neste sentido a arte eacute uma instituiccedilatildeo histoacuterico-

divina uma emanaccedilatildeo da imaginatio divina861

Vicente procede assim a uma subtil inversatildeo do pensamento heideggeriano

colocando a imaginatio divina na origem de toda a arte embora para Heidegger

a esfera do sagrado seja ela mesma fundada nesse acontecimento propiacutecio

(Ereignis) que eacute erigir da obra de arte ldquoA poesia eacute aqui entendida - como jaacute

afirmaacutemos - natildeo como exerciacutecio fantaacutestico individual e caprichoso como jogo

verbal mas como mitologia Podiacuteamos adiantar ainda que a mitologia eacute uma

traduccedilatildeo histoacuterico-humana de um processo que a transcende e determina isto

eacute de um processo existente objectivamente e aleacutem da formulaccedilatildeo menor que

encontra na histoacuteria dos povos [] o mito condiciona a histoacuteria abrindo e

inaugurando o mundo em que ela se pode desenvolverrdquo862

Para Vicente este desvelamento miacutetico-religioso que suporta a histoacuteria remete

assim para um plano anterior e mais fundamental duma poesis cosmo-

860

bdquoDas Aufstellen einer Welt und das Herstellen der Erde sind zwei Wesenszuumlge im Werksein des

Werkes ldquo UKw GA 5 34 861

Vicente Ferreira da Silva Teologia e Anti-Humanismo in Dialeacutectica das Consciecircncias e outros

ensaios Lisboa 298 862

Ibidem 301302

435

teogoacutenica uma poiesis originaacuteria e morfogeneacutetica que como Pascoaes

poderiacuteamos designar de Verbo escuro ou como Nietzsche de vontade de

plasmaccedilatildeo artiacutestica divina ―Os deuses ou Deus manifestam-se como Origens

Origens de todo o originado de todas as possibilidades e valores encarnados

ou encarnaacuteveis na histoacuteria A experiecircncia morfogeneacutetica do divino se esclarece

no aspecto puramente desfechante do Ser na abertura ou manifestaccedilatildeo

original de mundordquo863

Cada mitologia corresponde assim agrave instauraccedilatildeo de uma ldquoperspectivardquo ou a um

ldquoregime de fascinaccedilatildeordquo imposto pelo foco fascinante do Ser que instaura um

ldquoteatro mundanalrdquo ou um drama cosmogoacutenico de que os homens satildeo

protagonistas - entre outros - desempenhando um papel que lhes foi

previamente consignado

Assim para Vicente o mito eacute a poesia originaacuteria na qual estaacute em jogo

simultaneamente o tempo humano da histoacuteria e da cultura e o tempo

transcendente e meta-histoacuterico dos deuses

Devemos ainda ter presente que em estrita coerecircncia com a ontologia contida

em toda a experiecircncia religiosa Vicente afirma o primado do tempo sagrado da

vida dos deuses e dos heroacuteis sobre o tempo histoacuterico profano Esse primado do

tempo sagrado eacute expresso por Vicente com a expressatildeo importada do leacutexico

heideggeriano ldquoditado do serrdquo ldquoO processo miacutetico-teogonico enquanto

universo prototiacutepico divino natildeo soacute provoca e sugere as formas e actuaccedilotildees

histoacutericas como realiza uma vida em si e por si O ditado do ser eacute

essencialmente vida das figuras e potecircncias divinas mundo em si e por si e

que em sua eminecircncia eacute mais real do que o nosso assim chamado mundo

realrdquo864

Cada mitologia constitui uma matriz simboacutelica que rege todo o acontecer

mundial uma espeacutecie de arqueacutetipo imoacutevel subjacente agrave totalidade das suas

manifestaccedilotildees Nesta matriz originante estatildeo dadas todas as filosofias

possiacuteveis de um determinado tempo histoacuterico que para aleacutem da sua

diversidade contecircm a unidade subjacente do mito originante que dita

863

Vicente Ferreira da Silva ldquoA Origem Religiosa da Culturardquo Convivium nordm 1 1962 in Dialeacutectica das

Consciecircncias e outros ensaios 468469 864

Vicente Ferreira da Silva Teologia e Anti-Humanismo in Dialeacutectica das Consciecircncias e outros

ensaios 298

436

previamente aquilo que eacute pensaacutevel ldquoO pensamento pensa o pensaacutevel Mas o

pensaacutevel eacute um jaacute franqueado por um ditado desocultanterdquo865

A filosofia eacute assim um domiacutenio ldquofundadordquo e por isso apenas responde agraves

oportunidades de pensamento que estatildeo disponiacuteveis no seu sistema cultural

desconhecendo o seu fundamento ldquoabissalrdquo Todas as filosofias satildeo apenas um

epifenoacutemeno do mito dominante e o filoacutesofo eacute apenas um emissaacuterio um porta-

voz dum saber consignado pelos deuses

3 3 Continuidade da tradiccedilatildeo e ruptura da crise

Em Loacutegica A pergunta pela essecircncia da linguagem Heidegger apresenta uma

reformulaccedilatildeo do conceito de histoacuteria pensada como historicidade

(Geschichtlichkeit) segundo a qual a histoacuteria no seu sentido apropriado seria

o movimento de auto-gestaccedilatildeo de um povo que nesse movimento se

compreende a si e compreende o mundo

De acordo com esta concepccedilatildeo de histoacuteria apenas o homem tem histoacuteria

porque soacute ele eacute temporal (zeitlich) isto eacute soacute ele pode projectar-se em direcccedilatildeo

ao futuro a partir dum passado que ele retoma e actualiza como tradiccedilatildeo

Assim a historicidade deve ser pensada a partir de um exerciacutecio apropriado da

temporalidade ek-staacutetica como unidade dos trecircs ecircxtases temporais ldquoNoacutes jaacute

natildeo devemos compreender-nos como aqueles que se sucedem no tempo mas

como aqueles que se determinam a partir do futuro estando a ser e

projectando-se a si mesmo desde tempos anteriores isto eacute como aqueles que

satildeo eles proacuteprios o tempo Noacutes somos a temporalizaccedilatildeo do proacuteprio tempordquo866

Esta concepccedilatildeo da histoacuteria implica uma decisatildeo pela qual um povo se decide

a assumir o seu passado como tradiccedilatildeo presentificando-o e projectando-o no

futuro na criaccedilatildeo das obras pelo trabalho e no levantamento do Estado Ficam

assim excluiacutedos da histoacuteria e remetidos para a natildeo-histoacuteria todos povos que se

limitam a estar no meio da histoacuteria ou cuja existecircncia se perde na mera

repeticcedilatildeo de uma tradiccedilatildeo imobilizada o que Heidegger exemplificava com os

865

Vicente Ferreira da Silvardquo A Fonte e o Pensamentordquo in Dialeacutectica das Consciecircncias e outros ensaios

408 866

ldquoWir duumlrfen uns selbst nicht mehr als in der Zeit vorkommende verstehen wir muumlssen uns erfahren als

die die von fruumlher her wesend uumlber sich selbst hinausgreifend aus der Zukunft sich bestimmen dh aber

als die die selbst die Zeit sind Wir sind die Zeitigung der Zeit selbstldquo LWS GA 38 120

437

Cafres exemplo que podemos estender aos ldquoprimitivosrdquo a cuja existecircncia estatildeo

associadas as primeiras manifestaccedilotildees duma consciecircncia miacutetica

Eudoro de Sousa contrapunha tambeacutem o mito e a histoacuteria vendo na histoacuteria a

recusa e o afastamento do Outrora como o natildeo-tempo do mito e investigando

o modo como ainda seria possiacutevel suscitar uma relaccedilatildeo entre ambos

Igualmente Julius Evola e Reneacute Gueacutenon contrapotildeem o mundo da Tradiccedilatildeo e o

mundo histoacuterico investigando no entanto o modo como esse mundo da

tradiccedilatildeo pode ser usado como arqueacutetipo para compreender a histoacuteria867

Vicente pensa de modo original esta problemaacutetica da relaccedilatildeo entre mito e

histoacuteria pela mediaccedilatildeo do conceito heideggeriano de Instaumlndigkeit868 essencial

no pensamento heideggeriano da histoacuteria

Para Vicente todo o processar-se da histoacuteria de um ciclo cultural se desenrola

dentro das possibilidades contidas no mito originaacuterio que conteacutem o permanente

e o resguardaacutevel e o devir histoacuterico-temporal daacute-se como uma reafirmaccedilatildeo da

mesma matriz miacutetica originaacuteria Contudo Vicente natildeo compreende essa

reafirmaccedilatildeo do mesmo como o arqueacutetipo do eterno retorno869 sob o signo do

qual Mircea Eliade vecirc a experiecircncia da temporalidade nas sociedades arcaicas

mas sim a partir da estrutura ontoloacutegica do acontecer e do exerciacutecio

apropriado da temporalidade do Dasein como projecto lanccedilado ldquoA estrutura

ontoloacutegica do acontecer encontra a sua formulaccedilatildeo numa particular

caracteriacutestica da ek-sistecircncia que a condena natildeo soacute ao transcender des-

velador como tambeacutem ao subordinar-se insistente agraves formas desveladas O

Homem natildeo somente ek-siste mas ao mesmo tempo in-sisterdquo870

Esta caracterizaccedilatildeo do homem como ek-sistecircncia in-sistente permite-lhe

pensar a histoacuteria natildeo sob o signo da repeticcedilatildeo mas da permanente

actualizaccedilatildeo de um mesmo fundo miacutetico originaacuterio em sintonia com o conceito

heideggeriano de tradiccedilatildeo [Uumlberlieferung] como algo de vivo e

permanentemente actualizaacutevel (aqui entendida como tradiccedilatildeo miacutetica)

867

Cf Julius Evola Revolta Contra o Mundo Moderno Lisboa 1969 407-435 e ainda Reneacute Gueacutenon O

Reino da Quantidade e os Sinais dos Tempos Lisboa 1989 9-16 868

ldquoDie Instaumlndigkeit ist die Art und Weise wie wir jeweils unsere Bestimmung bestehen Die

Instaumlndigkeit ist ein Charakter der Sorge deckt sich aber nicht mit ihrem vollen Wesenldquo LWS GA 38

163 869

Cf Mircea Eliade O Sagrado e o Profano Lisboa 1999 81-126 870

Vicente Ferreira da Silva ldquoHistoacuteria e Meta-Histoacuteriardquo in Dialeacutectica das Consciecircncias e outros ensaios

437

438

Vicente pode assim fundar a posiccedilatildeo original de que entre o mundo da

Tradiccedilatildeo estudado pela etnologia e mundo das civilizaccedilotildees histoacutericas natildeo haacute

nenhum abismo num e noutro se manteacutem conserva e actualiza um legado

miacutetico originaacuterio

Contudo para Vicente esta actualizaccedilatildeo duma tradiccedilatildeo miacutetica estaacute condenada

ao esgotamento como foi demonstrado por Julius Evola em A Revolta do

Mundo Moderno ao mostrar a decadecircncia dos princiacutepios miacuteticos dominantes

em cada tipo de civilizaccedilatildeo Para Vicente esta decadecircncia das civilizaccedilotildees

demonstra que a Histoacuteria se encontra fechada para a frente pela fascinaccedilatildeo

originaacuteria e ela nunca pode ir aleacutem do que estaacute consignado na matriz miacutetico-

religiosa

Ficam assim por explicar as grandes mutaccedilotildees histoacutericas e civilizacionais

assim como a polimorfia de mundos de culturas e de raccedilas com as suas

respectivas possibilidades histoacutericas O princiacutepio explicativo desta

multiplicidade irredutiacutevel encontra-se para Vicente na pluralidade de

mitologias cada uma das quais desenhando diferentes mundos com as suas

distintas instituiccedilotildees e cosmologias dedutiacuteveis da dominaccedilatildeo miacutetica em cada

caso imperante871 As grandes cosmogonias miacuteticas correspondem agrave

instauraccedilatildeo de um teatro coacutesmico e agrave alvorada de um ciclo histoacuterico como de o

predomiacutenio de uma raccedila

As forccedilas pulsionais divinas ou como Vicente as designa tambeacutem coacutesmico-

espirituais tecircm como acima vimos um papel fundante determinando em cada

caso uma eacutepoca mundial um ldquoregime de fascinaccedilatildeordquo ou ainda um ldquotempo

passionalrdquo a consciecircncia humana eacute invadida ou arrebatada pelas forccedilas

coacutesmico-espirituais ou por um Weltaspekt e para designar este arrebatamento

e estado de sujeiccedilatildeo o pensador brasileiro usa o conceito de Frobenius de

Ergriffenheit

Agrave consciecircncia arrebatada desvela-se uma configuraccedilatildeo total de mundo que se

lhe impotildee como uma necessidade absoluta ldquoOs conteuacutedos do relato miacutetico e a

871

ldquoHoumllderlin designou essas inflexotildees colossais e catastroacuteficas do vir a ser mundial com os termos de

ldquoconversatildeo categoacutericardquo (Kategorische Umkehr) e de ldquoconversatildeo paacutetricardquo (Vaterlaumlndische Umkehr) ldquoA

conversatildeo paacutetrica eacute a conversatildeo de todas as representaccedilotildees e formasrdquo Atraveacutes do conceito de uma

Vaterlaumlndische Umkehr eacute pensada uma transformaccedilatildeo da paacutetria de todas as formas uma modificaccedilatildeo da

imagem do mundo um movimento do mundo sem qualquer limite ou suspensatildeo Eis porque esta

conversatildeo paacutetrica eacute determinada como uma conversatildeo infinita e posta acima das faculdades do homemrdquo

Ibidem 439

439

cosmografia revelada nesse saber remetem-nos agraves coisas mesmas instalando-

nos num mundo de presenccedilas reais e imperiosas A configuraccedilatildeo das coisas

presentes nesse cosmos eacute esboccedilada e estilizada pelo projecto fascinante que

faz que ela se alteie em sua identidade intramundana proacutepriardquo872

Do mesmo modo as raccedilas e as diferenccedilas eacutetnicas devem ser compreendidas

natildeo a partir da biologia mas a partir dessa fascinaccedilatildeo meta-histoacuterica ldquoO

projecto instituidor de Mundo eacute simultaneamente o projecto des-fechante de

uma animalitas O corpo humano como os outros entes eacute algo oferecido e

dispensado pelo lampejar projectivo do ser algo que soacute se delineia e emerge

na abertura de uma Weltentwurf873

O decliacutenio das grandes civilizaccedilotildees por efeito da nova dominaccedilatildeo de princiacutepios

miacuteticos opostos eacute detalhadamente analisado por Julius Evola como a

passagem de uma mitologia solar associada agrave realeza ao patriarcado e agraves

raccedilas noacuterdicas para uma mitologia lunar associada ao culto da terra eacute agraves

divindades femininas ao matriarcado e aos povos do sul

Eacute esta sucessatildeo de princiacutepios miacuteticos contraditoacuterios que Vicente quer explicar a

partir da luta entre entidades sobre-humanas que se desenrola no universo

nocturno inconsciente e arquetiacutepico onde se decide do traccedilado do mundo da

nossa existecircncia vigilante O mito representa assim um Poder Modelador um

Vorbildlich Macht que descerra em cada caso um novo aspecto do mundo

sendo a alteraccedilatildeo dos princiacutepios divinos a responsaacutevel pelas radicais mutaccedilotildees

e crises catastroacuteficas na configuraccedilatildeo das coisas

Essas crises satildeo esclarecidas por Vicente recorrendo aos conceitos de

Houmllderlin de Kategorische Umkehr e de Vaterlaumlndische Umkehr comentados

por Heidegger em Aproximaccedilotildees agrave Poesia de Houmllderlin que apontariam para

uma total transfiguraccedilatildeo do mundo e do homem ldquoSatildeo portanto as lutas e as

alteraccedilotildees dos princiacutepios divinos as modificaccedilotildees das regecircncias teoloacutegicas do

Universo que marcam as crises radicais da configuraccedilatildeo das coisas Houmllderlin

designou essas inflexotildees colossais e catastroacuteficas do vir a ser mundial com os

termos de ldquoconversatildeo categoacutericardquo (Kategorische Umkehr) e de ldquoconversatildeo

872

Vicente Ferreira da Silva ldquoIntroduccedilatildeo agrave Filosofia da Mitologiardquo in Dialeacutectica das Consciecircncias e

outros ensaios 374 873

Vicente Ferreira da Silva ldquoRaccedila e Mitordquo Congresso Internacional de Filosofia Satildeo Paulo 1959 in

Dialeacutectica das Consciecircncias e outros ensaios 433

440

paacutetricardquo (Vaterlaumlndische Umkehr) ldquoA conversatildeo paacutetrica eacute a conversatildeo de todas

as representaccedilotildees e formasrdquo874

Segundo Vicente esta ldquoconversatildeo paacutetricardquo tambeacutem designada de ldquoconversatildeo

infinitardquo seria a transformaccedilatildeo de todas as formas uma mudanccedila no mundo da

qual o homem natildeo seria consciente mas que arrastaria na sua metamorfose a

transformaccedilatildeo de ideias imagens e instituiccedilotildees humanas

Esta conversatildeo infinita que natildeo eacute iniciativa humana teria segundo Vicente

uma origem meta-histoacuterica e transhumana significando uma nova desvelaccedilatildeo

miacutetico-religiosa ou o predomiacutenio dum novo poder divino que se afirmaria na

luta contra uma dominaccedilatildeo miacutetica anterior ldquoO mundo natildeo soacute nasce sob o signo

da luta como eacute em sua essecircncia polemos imperium afirmaccedilatildeo despoacutetica Eacute

impossiacutevel conceber a essecircncia epocal do tempo sem a representaccedilatildeo

conjunta de uma dominaccedilatildeo isto eacute de um mundo de oportunidades e de

formas que acontecem no acontecerrdquo875

O fundamento uacuteltimo da histoacuteria estaacute para Vicente nesse acircmbito obscuro e

oculto onde as lutas entre as diversas geraccedilotildees divinas decidem o traccedilado do

mundo Vicente toma como fio condutor para explicar as mutaccedilotildees

catastroacuteficas da histoacuteria a teogonia de Hesiacuteodo que Walter Otto usara tambeacutem

como chave explicativa para as mutaccedilotildees da religiatildeo e da cultura gregas ldquoO

mundo eacute a vitoacuteria de um princiacutepio com a exclusatildeo de todos os demais eacute o

domiacutenio de uma interioridade como na sequecircncia das geraccedilotildees divinas da

teogonia de Hesiacuteodordquo876

Podemos pois concluir que a siacutentese entre histoacuteria e mito feita por Vicente

inspira-se nessa reformulaccedilatildeo heideggeriana do conceito de tradiccedilatildeo como

uma actualizaccedilatildeo permanente e criadora do passado que a projecta no futuro

Efectivamente para Heidegger o passado natildeo eacute nunca o que jaacute passou mas o

que desde o antes permanece e eacute trazido para o presente inscrevendo-se no

futuro A Histoacuteria eacute um movimento de actualizaccedilatildeo permanente do passado um

retomaacute-lo de modo criativo e projectivo eacute tradiccedilatildeo viva (Uumlberlieferung) ldquoO

Futuro e o ter sido satildeo em si aqueles poderes do tempo o poder do proacuteprio

874

Vicente Ferreira da Silva ldquoHistoacuteria e Meta-histoacuteriardquo in Dialeacutectica das Consciecircncias e outros ensaios

439 875

Vicente Ferreira da Silva Teologia e Anti-humanismo in Dialeacutectica das Consciecircncias e outros

ensaios 299 876

Vicente Ferreira da Silva ldquoO Ser In-fusivordquo Diaacutelogo nordm 3 1956 in Dialeacutectica das Consciecircncias e

outros ensaios 394

441

tempo no qual estamos Noacutes somos vindouros na medida em que assumimos

o ter sido como tradiccedilatildeordquo877

Se o conceito de Instaumlndigkeit permite fundamentar a transmissatildeo de uma

tradiccedilatildeo miacutetica ele natildeo explica contudo as grandes mutaccedilotildees histoacutericas que

Vicente explica recorrendo ao conceito de Houmllderlin de ldquoconversatildeo infinitardquo e

relacionando-o com as lutas dos deuses da teogonia de Hesiacuteodo

Contudo em Heidegger as diferentes eacutepocas Histoacutericas satildeo abertas pelo

desvelamento do ser no qual simultaneamente ele se subtrai e oculta

fundando-se por isso no fundo obscuro das vaacuterias Stimmungen epocais Para

Heidegger haacute limites agrave inteligibilidade da histoacuteria que natildeo pode ser nunca

totalmente transparente agrave consciecircncia humana o pensador situa-se sempre

nos limites histoacuterico-temporais do desvelamento do ser e natildeo pode pretender

sair destes limites nem situar-se no domiacutenio do ldquotempo dos deusesrdquo em que se

movimentam as teodiceias nem ter acesso ao sentido absoluto da histoacuteria

Ao franquear este limite e avanccedilar no sentido de uma metafiacutesica da histoacuteria ou

talvez mais precisamente de uma teodiceia Vicente abandona precisamente

aquilo que eacute para Heidegger o fundamento da historicidade o exerciacutecio da

temporalidade estaacutetica pelo Dasein e assumpccedilatildeo da sua finitude

Vicente coloca-se no acircmbito daquele pensamento poeacutetico que entre noacutes vinha

procedente a uma mitificaccedilatildeo da histoacuteria para o qual todo o acontecimento

histoacuterico se torna significativo na medida em que participa duma histoacuteria

transhumana e a revela que podemos encontrar em Sampaio Bruno Pascoaes

ou Fernando Pessoa

Situa-se igualmente proacuteximo da perspectiva de Julius Evola para quem o ponto

de referecircncia para compreender a histoacuteria eacute o mundo tradicional na sua

qualidade de realidade simboacutelica supra-histoacuterica e normativa

3 4 A quadratura do mundo

No ensaio Das Ding de 1950 Heidegger leva a cabo uma tentativa de pensar o

ser da coisa fora do quadro do Zuhandensein e do Vorhandensein do mero

ser-utensiacutelio e do ser-objecto para o conhecimento teoreacutetico que tinham sido

877

ldquoZukunft und Gewesenheit sind in sich einige Zeitmӓchte die Macht der Zeit selbst in der wir stehen

Wir sind nur zukuumlnftig indem wir die Gewesenheit als Uumlberlieferung uumlbernehmenldquo LWS GA 38 124

442

tematizados em Ser e Tempo Esta mesma questatildeo foi tambeacutem objecto de

meditaccedilatildeo em outras obras de Heidegger designadamente em A Origem da

Obra de Arte (1935) e em Construir Habitar e Pensar (1951)

Se em A Origem da Obra de Arte o ser da obra de arte eacute pensado como

acontecer propriamente histoacuterico no qual se decide a fundaccedilatildeo de um mundo

em Das Ding como em Construir Habitar e Pensar o que Heidegger procura eacute

o ser da coisa simplesmente enquanto coisa e natildeo enquanto obra

Em Das Ding Heidegger pensa o ser da coisa a partir da experiecircncia miacutetica do

mundo isto eacute daquela experiecircncia que o homem grego fez do mundo como

hierogamia primordial entre o ceacuteu e a terra e de si mesmo como mortal sujeito

agrave vontade dos Deuses - assumindo por isso este texto quer para Eudoro quer

para Vicente um especial interesse Esta experiecircncia miacutetica do mundo

encontrou-a Heidegger na poesia de Houmllderlin que como sabemos estaacute

impregnada duma sacralidade grega e este desvelamento miacutetico-religoso

poeticamente recriado por Houmllderlin teria sido a inspiraccedilatildeo decisiva para

pensar o mundo como quadratura do divino e dos mortais do ceacuteu e da terra

Em Teologia e Anti-humanismo Vicente refere-se a Das Ding como um

ensaio muto importante de Heidegger pois procura fixar o sentido dessa

Entbergung [desencobrimento] miacuteticondashreligiosa que estaria na origem do

mundo apresentando contudo a sua discordacircncia quanto agrave formulaccedilatildeo

apresentada pelo pensador alematildeo

Em Das Ding Heidegger procura o ser da coisa natildeo enquanto Vorstellen

[representaccedilatildeo] nem enquanto Herstellen [produccedilatildeo] mas simplesmente

enquanto Ding enquanto simples coisa procurando-o atraveacutes do eacutetimo do alto

alematildeo Thing ldquoreuniatildeo ou assembleia para deliberaccedilatildeo de um litiacutegiordquo878 Este

campo semacircntico de Thing aponta para o desvelamento do ser da coisa na

reuniatildeo que para Heidegger seraacute a festa ou celebraccedilatildeo ritual - quando o

cacircntaro oferece a libaccedilatildeo ritual satildeo convocados e reunidos o Divino os

Mortais o Ceacuteu e a Terra e o cacircntaro deixa de ser um ente fechado em si

mesmo mas desvela-se no seu ser879

Conduzido por esta experiecircncia miacutetica e ritual Heidegger vai esclarecer o

desvelamento do ser como o acontecer no qual acontece a reuniatildeo destas

878

Cf D GA 7914 879

Cf D GA 79 17

443

quatro direcccedilotildees ontoloacutegicas No instante da libaccedilatildeo ritual daacute-se a reuniatildeo dos

quatro reuniatildeo que no entanto salvaguarda as suas distacircncias e os manteacutem

na sua oposiccedilatildeo a terra apresenta-se como o suporte e o nutriente mas ela eacute

ainda o fechamento que se opotildee ao aberto do Ceacuteu com a sucessatildeo das

estaccedilotildees e o movimento dos astros os homens apresentam-se como os que

devem converter-se em mortais para que sobre eles possa dar-se o oculto

reinar dos deuses880

Ao reunirem-se em anel daacute-se o reciacuteproco espelhamento das quatro direcccedilotildees

ontoloacutegicas e a co-pertinecircncia dos quatro respeitando e mantendo a sua

distacircncia torna possiacutevel abrir o espaccedilo de revelaccedilatildeo do mundo O mundo

acontece como espelhamento reciacuteproco das quatro - ele eacute estrutura

quadripartida que rege o desvelamento temporal da verdade natildeo apenas num

miacutetico passado distante mas como instante singular que pode retirar-se e

regressar de diferentes formas sendo esta referecircncia ao rdquoinstanterdquo central para

compreender a orientaccedilatildeo semacircntica do texto

Em O Das Ding de Heidegger e outras Consideraccedilotildees Vicente destaca que as

coisas como coisas satildeo desveladas segundo Heidegger por uma

Unverborgenheit [natildeo estar encoberto] por uma des-ocultaccedilatildeo mas contesta

vivamente a estrutura quadripartida que suporta esse desvelamento

Das Ding fala dessa co-pertinecircncia dos quatro como de um ldquotranspropriar

exproprianterdquo atraveacutes do qual cada um eacute reconduzido ao que lhe eacute ldquoproacutepriordquo e

se levanta um mundo ldquoA terra e o ceacuteu os divinos e os mortais unidos uns aos

outros a partir de si mesmos a partir da ldquounificidaderdquo unida do Quadrado uns

aos outros se pertencem Cada um dos quatro reflecte agrave sua maneira o ser

dos demais com isso cada um se reflecte agrave sua maneira no seu proacuteprio ser

no seio da ldquounificidaderdquo dos Quatrordquo881

Para Heidegger esta estrutura quadripartida eacute essencial o mundo como

quadratura natildeo pode ser explicado a partir de um fundamento colocado no seu

exterior como tambeacutem natildeo pode ser explicado a partir de uma das quatro

direcccedilotildees O mundo eacute jogo de espelhos em que cada um reflecte a essecircncia

880

Cf D GA 79 20 881

ldquoErde und Himmel die Goumlttlichen und die Sterblichen gehoumlren von sich her zueinander einig in die

Einfalt des einigen Gevierts zusammen Jedes der Vier spiegelt in seiner Weise das Wesen der uumlbrigen

wieder Jedes spiegelt sich dabei nach seiner Weise in sein Eigenes innerhalb der Einfalt des Vier

zuruumlckrdquo D GA 79 18

444

dos outros num jogo de reflexos que ilumina ocultando ldquoAo manifestante jogo

de espelhos da ldquounificidaderdquo de terra e de ceacuteu divinos e mortais noacutes

chamamos mundo O mundo eacute enquanto ele ldquomundardquo Isto quer dizer o

ldquomundarrdquo do mundo natildeo eacute explicaacutevel por qualquer outra coisa nem

perscrutaacutevel a partir de qualquer outra coisa Este impossiacutevel natildeo estaacute em que

o nosso pensamento humano seja incapaz de um tal explicar e fundamentar

Antes se diria o inexplicaacutevel e infundamentaacutevel do ldquomundarrdquo do mundo reside

em que coisas tais como causas e fundamentos permanecem inadequadas ao

ldquomundarrdquo do mundordquo882

Vicente interpreta rigorosamente a importacircncia desta unificidade das quatro

direcccedilotildees ontoloacutegicas no texto heideggeriano salientando que eacute o seu

movimento circular a sua ronda que faz com que Heidegger os designe como

die einigen vier

Contudo logo a seguir sugere que Heidegger procura esclarecer o fenoacutemeno

religioso numa perspectiva histoacuterica mostrando a relaccedilatildeo do homem com a

sucessatildeo das diversas hierofanias cada uma das quais representaria um modo

particular e alternativo de desvendamento do ser ou do divino o que eacute

manifestamente deslocar o sentido do texto ldquoem outras palavras a Terra o

Ceacuteu e os Mortais se prefiguram em suas possibilidades proacuteprias em seu dar-

se variaacutevel atraveacutes de um acesso ao mundo (Welteingang) suscitado pela

magia do Serrdquo883

Vicente projecta aqui a sua preocupaccedilatildeo por uma histoacuteria do desvendamento

miacutetico religioso pretendendo mostrar que nessa histoacuteria devemos ldquodiluir a

instacircncia humanardquo e que o homem eacute apenas uma das hierofanias entre outrasldquo

Eacute em vista destas ideias que natildeo podemos coincidir com a actual concepccedilatildeo

heideggeriana enunciada no Das Ding onde satildeo desdobrados em quatro os

factores morfogeneacuteticos instituidores do vir-a-ser mundialhellipComo sabemos a

Terra as aacuteguas e os ceacuteus nem sempre foram tidos como expressotildees fiacutesicas

do natildeo divino mas frequentemente foram considerados como deuses

882

ldquoWir nennen das ereignende Spiegel-Spiel der Einfalt von Erde und Himmel Goumlttlichen und

Sterblichen die Welt Welt west in dem sie weltet Dies sagt Das Welten von Welt ist weder durch

Anderes erklaumlrbar noch aus Anderem ergruumlndbar Dies Unmoumlgliche liegt nicht daran daβ unser

menschliches Denken zu solchem Erklaumlren und Begruumlnden unfaumlhig ist Vielmehr beruht das Unerklaumlrbare

und Unbegruumlndbare des Weltens von Welt darin daβ so etwas wie Ursachen und Gruumlnde dem Welten von

Welt ungemӓβ bleibenldquo D GA 79 19 883

Vicente Ferreira da Silva ldquoO Das Ding de Heidegger e outras Consideraccedilotildeesrdquo (Teologia e Anti-

humanismo) in Dialeacutectica das Consciecircncias e outros ensaios 297

445

plenamente recortados e poderosos e portanto como inclusos na seacuterie dos

divinosrdquo884

Assim para Vicente este esclarecimento da Entbergung miacutetico-religiosa em

das Ding apresenta apenas os poacutelos de uma realidade desvelada por ldquoum

princiacutepio desvelador fundanterdquo ldquoPerguntamo-nos se estas realidades natildeo

representam algo de fundado e desvelado por um princiacutepio desvelante [hellip]rdquo885

sugerindo assim que os mortais as terra e o ceacuteu como sucessatildeo de

hierofanias natildeo poderiam estar no mesmo plano que o Divino que ele

identifica com o ser colocando-o como oculto princiacutepio desvelante que suporta

o proacuteprio processo histoacuterico-temporal do desvelamento

Contudo esta criacutetica de Vicente agrave estrutura quadripartida que suporta a

Entbergung miacutetico-religiosa infringe explicitamente a indicaccedilatildeo dada por

Heidegger para a interpretaccedilatildeo do seu proacuteprio texto recaindo numa leitura

metafiacutesica do mesmo que Heidegger pretende evitar e para cujo risco adverte

explicitamente proibindo que na sua interpretaccedilatildeo se introduza noccedilatildeo de

ldquocausardquo ou de ldquofundamentordquo ldquoOs quatro unidos satildeo logo sufocados no seu ser

quando os representamos como realidades desmembradas que devem ser

fundadas umas sobre as outras e explicadas umas sobre as outrasrdquo886

Natildeo aceitando a estrutura quadripartida do mundo Vicente tambeacutem natildeo pode

aceitar ideia do ldquojogo de reflexos das quatro direcccedilotildees ontoloacutegicasrdquo que suporta

a unidade do mundo propondo em alternativa como modelo essencial para

interpretar a Entbergung miacutetico-religiosa o antagonismo e a litigiosidade

interna inerentes agrave sua tese de uma teomaquia ldquoAfastemos pois a ideia de

um jogo de reflexos de um Spiege-spiel porquanto o processo teogoacutenico natildeo

se reporta senatildeo a si mesmo e agrave sua litigiosidade interna Este antagonismo

interno agrave sequecircncia meta-histoacuterica recebeu tradicionalmente o nome de

ldquoteomaquiardquo luta dos deuses e das dinastias divinas implicando

884

Ibidem 299 885

Ibidem 297 886

ldquoDie einigen Vier sind in ihrem Wesen schon erstickt wenn man sie nur als vereinzeltes Wirkliches

vorstellt das durcheinander begruumlndet und auseinander erklӓrt werden sollrdquo D GA 7919

446

subsequentemente a ideia de um seccionamento dos tempos em

correspondecircncia com o predomiacutenio alternativo das diferentes teofaniasrdquo887

Deste modo Vicente pensa poder interpretar a Entbergung miacutetico-religiosa a

partir da sua essecircncia isto eacute a partir do jogo maacutegico-instituidor das potecircncias

teogoacutenicas e ldquodiluir a instacircncia humana na dramaturgia das forccedilas miacutetico-

cosmogoacutenicasrdquo cortando o passo ao subjectivismo e humanismo que se

insinuam nas interpretaccedilotildees correntes do fenoacutemeno religioso

No entanto em Heidegger e de acordo com a categoria do Ereignis a

instacircncia humana natildeo pode ser diluiacuteda pois nesse acontecimento propiacutecio se

daacute a dupla apropriaccedilatildeo entre o ser e o homem

Relativamente ao lugar do homem Heidegger afirma em Das Ding ldquoSatildeo os

homens como mortais que agrave partida obtecircm o mundo como mundo habitando

nelerdquo888 e em Construir Habitar e Pensar este habitar eacute pensado por

Heidegger como um resguardar da quadratura atraveacutes do cultivar e do edificar

das coisas que eacute capaz da demora junto delas na simplicidade do seu ser

Apontando o construir e o habitar como dignos de ser pensados Heidegger

aponta a cultura como lugar essencial onde se pode abrigar e resguardar o

jogo do mundo e destaca a responsabilidade do homem no ldquosalvar a terrardquo

ldquoaguardar os deusesrdquo e ldquoacolher os ceacuteusrdquo

Assim Heidegger confirma o que jaacute estava dito na Carta sobre o Humanismo

O homem natildeo eacute somente um ente entre os outros entes mas o lugar em que

acontece o ser a verdade e o mundo Heidegger pensa desde o princiacutepio do

seu caminho de meditaccedilatildeo o homem como o aiacute de o ser e faz depender tudo

de reconduzir o homem a esta sua essecircncia eacute isso mesmo que eacute reafirmado

em Das Ding e em Construir Habitar e Pensar

Esta exigecircncia de reconduzir o homem agrave sua essecircncia eacute aqui a necessidade de

o homem se tornar mortal questatildeo fundamental desde Ser e Tempo e que

aqui se vecirc reafirmada - nestes textos agora em anaacutelise a morte torna o homem

no ldquosantuaacuterio do nadardquo no qual pode aparecer o ser ldquoA morte eacute o santuaacuterio do

Nada isto eacute daquilo que em todas as maneiras de ver natildeo eacute jamais um

887

Vicente Ferreira da Silva Teologia e Anti-humanismo in Dialeacutectica das Consciecircncias e outros

ensaios 299 888

ldquoErst die Menschen als die Sterblichen erwohnen Welt als Weltrdquo D GA 79 21

447

simples ente mas que natildeo obstante eacute nomeadamente como o proacuteprio ser A

morte enquanto Santuaacuterio do Nada abriga em si o estar a ser do serrdquo889

Efectivamente afirma Heidegger eacute apenas quando o homem se encontra

como mortal diante do divino que o mundo eacute a distacircncia entre ele e os deuses

distacircncia onde o ser da coisas pode aparecer como um aproximar impondo-

nos a obrigaccedilatildeo de as preservar O Pensar de retorno proposto por Heidegger

eacute assim em primeiro lugar um reassumir da finitude do homem que reconhece

destinado agrave morte ldquoQuando e como as coisas vecircm a noacutes como coisas Elas

natildeo vecircm pelas maquinaccedilotildees dos mortais Mas tambeacutem natildeo vecircm elas sem a

vigilacircncia dos mortais O primeiro passo para tal vigilacircncia eacute o passo de

retorno do pensar que apenas representa isto eacute explica no soacute pensar que

lembrardquo890

Para Vicente poreacutem que como atraacutes indicamos passou inteiramente ao lado

da categoria de Ereignis o desvendamento religioso implica o apagamento do

homem diante da fascinaccedilatildeo do numinoso ldquoa vida humana eacute um minus em

relaccedilatildeo ao plus da prodigiosa vida dos deusesrdquo e em uacuteltima anaacutelise a

centralidade do Homem na totalidade do cosmos eacute histoacuterica e derivada pois

tambeacutem o ceacuteu e a terra jaacute foram hierofanias centrais ligadas agrave genealogia dos

deuses

Comentando noutro texto a afirmaccedilatildeo de Heidegger de que o homem eacute o

ldquopastor do serrdquo Vicente afirma mostrando correctamente que na Carta sobre o

Humanismo a iniciativa pertence ao ser e natildeo ao homem ldquoAfirmando que noacutes

homens somos pastores do ser e natildeo seus senhores Heidegger aponta para o

facto de que somos e realizamos na vida um papel consignado e outorgado a

noacutes por uma Potecircncia superior As possibilidades que vamos realizando

atraveacutes da vida e do tempo atraveacutes da histoacuteria nos satildeo conferidas por um

poder trans-humano que eacute uma autecircntica Officina Libertatis891

889

ldquoDer Tod ist der Schrein des Nichts dessen naumlmlich was in aller Hinsicht niemals etwas bloszlig

Seiendes ist was aber gleichwohl west naumlmlich als das Sein selbst Der Tod als der Schrein des Nichts

birgt in sich das Wesende des Seinsrdquo D GA 79 18 890

ldquoWann und wie kommen Dinge als Dinge Sie kommen nicht durch die Machenschaften des

Menschen Sie kommen aber auch nicht ohne die Wachsamkeit der Sterblichen Der erste Schritt zu

solcher Wachsamkeit ist der Schritt zuruumlck aus dem nur vorstellenden d h erklaumlrenden Denken in das

andenkende Denkenrdquo D GA 79 20 891

Vicente Ferreira da Silva rdquoOs Pastores do Serrdquo Diaacutelogo nordm 2 1955 in Dialeacutectica das Consciecircncias e

outros ensaios 387

448

No entanto logo a seguir acrescenta indo mais longe e num outro sentido ldquoO

homem entretanto natildeo condensa em si o tesouro do Ser o eu humano natildeo

representa a figura definitiva da histoacuteria e o seu remate final como queria

Hegel [] Aqui o ser eacute excecircntrico e superabundante em relaccedilatildeo ao homem a

sua potecircncia morfogeneacutetica excedendo de muito o protagonista temporal

hominiacutedeo Antes do homem e depois do homem outros sonhos e imagens

vitais ocuparam e ocuparatildeo o foco histoacuterico e outros mitos aleacutem do

humaniacutestico poderatildeo desfilar pela fresta iluminada da presenccedila do tempordquo892

A dependecircncia do Homem em relaccedilatildeo ao processo transcendente epocal e agrave

potecircncia instituidora do ser eacute a sua inanidade diante da litigiosidade interna aos

vaacuterios princiacutepios divinos Eacute nesta meta-histoacuteria entendida como a histoacuteria da

sucessatildeo das teogonias que a histoacuteria humana se insere como epifenoacutemeno

ou como forma particular e temporalmente circunscrita de hierofania De facto

para Vicente antes desse advento da histoacuteria humana como manifestaccedilatildeo do

divino as potecircncias divinas manifestavam-se nos elementos como a aacutegua ou a

terra engendrando uma talassocracia ou uma geocracia e conferindo agrave

totalidade do cosmos vida e espiritualidade

Assim ele iraacute interpretar o passo atraacutes (der Schritt zuruumlck) preconizado por

Heidegger como um caminhar em direcccedilatildeo a um pensar rememorante como

uma viragem relativamente agrave histoacuteria das religiotildees e o regresso a uma outra

Entbergung miacutetico-religiosa em que o divino natildeo se revelava na interioridade

do homem mas vinha ao homem a partir do mundo

O sentido dessa Entbrergung miacuteticondashreligiosa que Vicente pretende recuperar

pode ser melhor compreendido se tivermos em conta que Walter Otto autor

que muito influenciou Vicente caracterizava a religiatildeo grega como estando em

total contradiccedilatildeo com as representaccedilotildees que nos satildeo familiares centradas

numa revelaccedilatildeo interior do divino Para o homem grego ldquoA divindade [hellip] eacute una

com o mundo e vem confrontar-se com o homem a partir das coisas do mundo

quando ele estaacute no caminho e toma parte na sua vida movimentada Atraveacutes

dum caminhar em direcccedilatildeo agrave interioridade natildeo pode conhececirc-la mas apenas

num ir em direcccedilatildeo ao exterior tomar partido e agirrdquo893

892

Ibidem 387388 893

ldquoDie Gottheit [hellip] ist eins mit der Welt und kommt dem Menschen aus den Dingen der Welt

entgegnen wenn er auf dem Weg ist und an ihrem bewegten Leben teilnimmt Nicht durch Insichgehen

erfӓhrt er von ihr sondern durch Hinausgehen Ergreifen und Handelnrdquo Walter Otto Die Goumltter

449

3 5 O projecto lanccedilado e a recusa projectante

O enfrentamento desconstrutivo com o cristianismo vai aparecer pois a

Vicente como uma tarefa central a partir da qual podemos aceder a esse

sentimento do divino proacuteprio do paganismo preacute-cristatildeo Na perspectiva de

Vicente o cristianismo ao mesmo tempo que declara meros iacutedolos os deuses

antigos instaura uma nova abertura de mundo outorgando ao homem a

liberdade em relaccedilatildeo a toda a conexatildeo exterior e declarando-o vencedor em

relaccedilatildeo ao mundo

Esta exaltaccedilatildeo do homem decorre da humanizaccedilatildeo do divino processo que

segundo Vicente jaacute teria sido iniciado nas religiotildees anteriores ao cristianismo

com divindades como Dioniacutesio Aacutetis e Mitra mas de que Cristo seria o

momento culminante tese que Vicente encontra confirmada na interpretaccedilatildeo

hegeliana do significado histoacuterico do cristianismo ldquoEm Cristo como afirma

Hegel laquoa natureza divina se identifica com a natureza humana e esta unidade

vem dada na intuiccedilatildeoraquo Antes o divino estava disperso nas potecircncias natildeo

humanas nos mares nas montanhas nos bosques nos ceacuteus era excecircntrico

ao modo de ser representado pela consciecircncia de nossa espeacutecie Agora o

divino se concentra na figura humana soacute o homem eacute herdeiro do reino dos

ceacuteusrdquo894

O Cristianismo opera pois uma dessacralizaccedilatildeo da natureza em proveito do

homem cuja soberania legitima e proclama ao suprimir a ldquoconexatildeo coacutesmico-

maacutegico-divinardquo o cristianismo traccedilou o projecto da natureza como espaccedilo

neutro e cenaacuterio da aventura histoacuterica do homem e abriu a possibilidade de ela

ser pensada como mateacuteria disponiacutevel para o empreendimento da teacutecnica ldquoO

mundo passou a ser vivido como um cenaacuterio neutro onde deveria se

desenrolar o drama subjectivo espiritual da criatura finita laquoLe grand Patilde est

mortraquo Aqui estaacute a origem da ideia de natureza tal qual a vivemos e

percebemos isto eacute como um conjunto de manifestaccedilotildees destituiacutedas de

qualquer interioridade ou animaccedilatildeordquo895

Griechenlands - das Bild des Goumlttlichen im Spiegel des griechischen Geistes [1929] Frankfurt am Main

2002 224 894

Vicente Ferreira da Silva Teologia e Anti-Humanismo in Dialeacutectica das Consciecircncias e outros

ensaios 306 895

Ibidem 308

450

Assim a matriz fundamental do humanismo eacute o distanciamento dos deuses

em que acreditavam as religiotildees politeiacutestas da antiguidade e ainda e

simultaneamente negaccedilatildeo e superaccedilatildeo da natureza enquanto manifestaccedilatildeo do

divino a antropofania eacute uma teocriptia e esta morte dos deuses inscrita na

matriz fundamental do cristianismo comandaraacute todo o devir histoacuterico e o

desenrolar das possibilidades nela contidas contaminando todas as

realizaccedilotildees da civilizaccedilatildeo ocidental com um sabor de morte e aniquilamento896

Esta negatividade inscrita na matriz do cristianismo eacute para Vicente uma

questatildeo central pois permite caracterizaacute-lo natildeo como um momento positivo da

marcha do Espiacuterito em direcccedilatildeo agrave consciecircncia de si como fizera Hegel mas

pelo contraacuterio como assinalando a viragem histoacuterica que anuncia a decadecircncia

do Ocidente e a marcha do niilismo ldquoO cristianismo e a histoacuteria ocidental cristatilde

que eacute sua decorrecircncia satildeo um grande Natildeo anteposto ao antigo enunciado

pletoacuterico da vida e um Nada crescente a essa aacutervore da alegria e da inocecircncia

[] todas as formas de comportamento finalidades virtudes e ideias

conhecimentos instituiccedilotildees do ciclo humaniacutestico e antropocecircntrico interpretam

como queria Nietzsche o preamar do niilismordquo897

Para Vicente Ferreira da Silva ldquoa operaccedilatildeo fundamental do homem eacute a

negaccedilatildeo de um fundamento Eacute a anulaccedilatildeo e a morte de Panrdquo898 Contudo esta

negaccedilatildeo eacute uma negaccedilatildeo projectante isto eacute uma negaccedilatildeo que projecta um

mundo histoacuterico como o desenrolar de todas as possibilidades contidas na

afirmaccedilatildeo do homem - este ldquonatildeordquo que o cristianismo opocircs ao paganismo

conteacutem simultaneamente o descerrar de um novo mundo histoacuterico com as

realizaccedilotildees proacuteprias da parusia humana e do seu ideal de crescente exaltaccedilatildeo

e dominaccedilatildeo do homem que encontramos pensados nas filosofias iluministas

e positivistas da histoacuteria

A possibilidade de pensar uma negatividade dinacircmica operando como suporte

da afirmaccedilatildeo dum mundo histoacuterico e do desenrolar das suas possibilidades

proacuteprias vai ser encontrada por Vicente Ferreira da Silva numa reformulaccedilatildeo do

conceito heideggeriano de projecto lanccedilado (geworfene Entwurf)

896

Vicente Ferreira da Silva ldquoIntroduccedilatildeo agrave filosofia da Mitologiardquo in Dialeacutectica das Consciecircncias e

outros ensaios 383 897

Vicente Ferreira da Silva ldquoHermenecircutica da Eacutepoca Humanardquo Revista Brasileira de Filosofia nordm 18

1955 in Dialeacutectica das Consciecircncias e outros ensaios 360 898

Ibidem 358

451

Este conceito fora apresentado na analiacutetica existencial de Ser e Tempo em

conexatildeo com a unidade da temporalidade extaacutetica (estando o Dasein jaacute sempre

lanccedilado no mundo eacute a partir desse jaacute ter sido lanccedilado que ele pode apropriar-

se das suas proacuteprias possibilidades e projectar-se em direcccedilatildeo ao futuro) e

depois foi retomado e repensado pelo segundo Heidegger enquanto

lanccedilamento a partir do Ser

A referecircncia de Vicente eacute a noccedilatildeo de projecccedilatildeo desenvolvida por Heidegger

em Vom Wesen des Grundes Aiacute afirma Heidegger ldquoNo fundar instituidor como

projecto das possibilidades de si mesmo eacute que radica poreacutem o facto de o

Dasein sempre se ultrapassar O projecto de possibilidades eacute segundo a sua

essecircncia sempre mais rico que a posse jaacute depositada em quem projecta Mas

semelhante posse eacute proacutepria do Dasein porque ele como aquele que projecta

se encontra no meio do ente Deste modo se encontram jaacute subtraiacutedas ao

Dasein outras possibilidades determinadas ndash e decerto simplesmente em

virtude da sua proacutepria facticidaderdquo899

Vicente sublinha que implicada nessa noccedilatildeo heideggeriana de projecccedilatildeo estaacute

sempre simultaneamente a ideia de supressatildeo e negaccedilatildeo inerentes ao

oferecimento de novas possibilidades ou seja a ideia de que desvendamento

e ocultaccedilatildeo se implicam reciprocamente

Por conseguinte afirma Vicente podemos inverter a ordem dos termos e falar

do projecto lanccedilado como uma ldquorecusa projectanterdquo ldquoTodo o projecto eacute

portanto um projecto-recusante desde que a abertura do ente eacute concomitante

ao fechamento e agrave ocultaccedilatildeo de outras aacutereas revelaacuteveis Trata-se agora

entretanto de aventurar a ideia inversa isto eacute de saber se ao lado de um

projecto-recusante natildeo se poderia dar uma recusa projectante ou ainda uma

abstenccedilatildeo que pusesse a descoberto uma esfera do manifestaacutevelrdquo900

Em conformidade com este conceito de ldquorecusa projectanterdquo Vicente defende

que com a recusa dos deuses e a dessacralizaccedilatildeo da natureza se lanccedila

simultaneamente o projecto do primado da histoacuteria e da dominaccedilatildeo teacutecnica das

899

bdquoIm stiftenden Gruumlnden als dem Entwurf von Moumlglichkeit seiner selbst liegt nun aber daβ sich das

Dasein darin jeweils uumlberschwingt Der Entwurf von Moumlglichkeiten ist seinem Wesen nach jeweils

reicher als der im Entwerfenden schon ruhende Besitz Ein solcher eignet aber dem Dasein weil es als

entwerfendes sich inmitten von Seienden befindet Damit sind dem Dasein bereits bestimmte andere

Moumlglichkeiten ndash und zwar lediglich durch seine eigene Faktizitӓt - entzogenrdquo VWG GA 9 167 900

Vicente Ferreira da Silva ldquoHermenecircutica da Eacutepoca Humanardquo in Dialeacutectica das Consciecircncias e outros

ensaios 358

452

coisas pondo-se a descoberto o mundo como mateacuteria disponiacutevel ou objecto da

maquinaccedilatildeo humana Eacute esta recusa projectante (isto eacute a recusa do deuses do

paganismo) subjacente ao processo histoacuterico que impulsiona a dinacircmica niilista

expansiva inscrita na matriz do cristianismo conduzindo agrave inevitaacutevel conversatildeo

de toda a realidade em objecto de manipulaccedilatildeo e caacutelculo onde nem mesmo o

Deus cristatildeo tem qualquer lugar ldquoO homem cristatildeo encontra as coisas no

processo de sua realizaccedilatildeo histoacuterico-activa e quando essa realizaccedilatildeo assume

como assumiu em nossos dias a opulecircncia de um empreendimento universal e

sobrecolhedor entatildeo a totalidade do real eacute representada como simples material

utilizaacutevelrdquo901

Em Teologia e Anti-humanismo Vicente refere ainda a este conceito de ldquorecusa

projectanterdquo o tema houmllderliniano da Gottesnacht como um refluxo progressivo

da experiecircncia do sagrado que vai pondo a descoberto a histoacuteria como

antropofania ldquoSe o testemunho histoacuterico nos informa que a seacuterie cristotroacutepica

se debruccedilou sobre o mundo precisamente no instante em que nas palavras de

Houmllderlin ldquoDer Vater gewand seine Augen von den Menschenrdquo natildeo seria

temeraacuterio mas sim especultativamente legiacutetimo considerar estas figuras como

o proacuteprio acto do refluxo divino A forccedila declinante dos antigos princiacutepios

hierocraacuteticos suscitou a corrente ldquoinduzidardquo das formas soterioloacutegicas O vazio

produzido por aquele afastamento revestiu no processo da Imaginatio Divina o

aspecto da dramaacutetica cristatilderdquo902

Como eacute sabido a temaacutetica do afastamento dos deuses eacute central na poesia de

Houmllderlin e esse afastamento eacute conotado com o afastamento do mundo grego

dos deuses e duma vivecircncia panteiacutesta da natureza temaacutetica que constitui o

nuacutecleo central de muitos poemas assim como do romance Hyperion Este

afastamento teria sido uma misteriosa iniciativa dos proacuteprios deuses que

deixou a modernidade mergulhada nesse vazio que ele classifica como ldquonoite

dos deusesrdquo

No entanto este afastamento dos deuses claacutessicos natildeo aparece nunca em

Houmllderlin ou em Heidegger como instituidor do cristianismo Mesmo em

Germanian e Der Rhein onde alguns criacuteticos vecircm o regresso agrave temaacutetica do

monoteiacutesmo cristatildeo natildeo eacute estabelecida por Houmllderlin ou pelo comentaacuterio a

901

Vicente Ferreira da Silva Teologia e Anti-Humanismo in Dialeacutectica das Consciecircncias e outros

ensaios 310 902

Ibidem 312313

453

estes poemas feitos por Heidegger em Houmllderlins Hymnen nenhuma conexatildeo

de natureza causal entre o refluxo do sagrado inerente agrave religiatildeo dos gregos e

a emergecircncia do cristianismo

O anuacutencio da viragem para um novo sentimento do sagrado ou para um novo

destino histoacuterico eacute mostrado por Heidegger em Houmllderlins Hymnen a partir da

metaacutefora da viragem na direcccedilatildeo do curso do proacuteprio rio Reno metaacutefora que

elucida a afirmaccedilatildeo de Heidegger de que as mutaccedilotildees histoacutericas do sentido do

ser e da verdade repousam na obscuridade insondaacutevel da histoacuteria do ser

Contudo para Vicente foi a recusa daquela divinizaccedilatildeo da natureza inerente

aos mitos preacute-cristatildeos que projectou o mundo da parusia humana e a sua

poesia fundante da dramaturgia cristatilde903 Esta recusa e negatividade que

Vicente interpreta como o conteuacutedo essencial da matriz cristatilde do humanismo

moderno fazem do desenrolar histoacuterico das possibilidades contidas nesta

matriz um movimento de destruiccedilatildeo do mundo das imagens continuamente

negado pela subjectividade consciente de si que se afirma como Espiacuterito um

movimento niilista de contiacutenua negaccedilatildeo do mundo fantaacutestico das potecircncias

divinas que culmina na reduccedilatildeo da natureza a um mero objecto de

conhecimento e manipulaccedilatildeo904

Para Vicente este esquecimento do ser ou do Divino que constitui o nuacutecleo da

fascinaccedilatildeo meta-histoacuterica do cristianismo eacute-nos oferecido como primado do

logos humano isto eacute como primado do Cogito como algo de irredutiacutevel e uacuteltimo

fundamento de todas as coisas Esse Ego Cogito seraacute pensado pelo idealismo

como acto puro instaurador de mundos para o qual qualquer estar aiacute natural eacute

mero ponto de partida para uma acccedilatildeo transformadora

Hegel representa a maacutexima consecuccedilatildeo do pensamento filosoacutefico de matriz

cristatilde e antropocecircntrica com a sua afirmaccedilatildeo de que o Absoluto eacute Sujeito e de

que essa subjectividade absoluta se realiza na histoacuteria da humanidade ldquoO

Idealismo encontra nestas asserccedilotildees a sua definiccedilatildeo e o seu limite Afirmando

que o Absoluto e o Ser se confundem com a subjectividade do Sujeito o

903

ldquoO que o Cristianismo ofereceu ao homem e como homem foi o oco de uma ausecircncia foi o natildeo-ser-

mais militante e agressivo do mundo das imagens das teofanias anterioreshellip esta ausecircncia ou criptus natildeo

foi posta agrave disposiccedilatildeo de um homem jaacute constituiacutedo mas constituiu o homem dando-lhe o seu espaccedilo de

movimento proacutepriordquo Vicente Ferreira da Silva ldquoHermenecircutica da Eacutepoca Humanardquo in Dialeacutectica das

Consciecircncias e outros ensaios 357 904

ldquoA Matriz do homem eacute o distanciamento dos deuses enquanto operaccedilatildeo histoacuterica negatividade e

superaccedilatildeo da natureza Dessa matriz recebemos as nossas oportunidades todas elas com um sabor de

morte e de aniquilamentoldquo Ibidem 357-358

454

Idealismo identificou o Ser com o Ente ou melhor pensou o ser a partir do

monograma do ente Este esquecimento da diferenccedila entre o ser e ente que

se daacute na substituiccedilatildeo de um pelo outro constitui um mal-entendido

fundamental que condicionou todo o destino da metafiacutesica ocidentalrdquo905

Assim este conceito de ldquorecusa projectanterdquo permitiraacute a Vicente defender natildeo

soacute que a metafiacutesica da subjectividade se encontra jaacute lanccedilada no mitologema

cristatildeo como ainda que foi o mitologema cristatildeo o responsaacutevel pelo

esquecimento do ser

Foram os deuses ausentes no seu retirar-se que abriram caminho para a

contra-afirmaccedilatildeo do homem foi este silecircncio dos deuses ou a

Gottesentfernung que Vicente traduz metaforicamente com a expressatildeo do

ldquorefluxo das aacuteguas de Poseidonrdquo que abriu caminho ao desenrolar do

irresistiacutevel do poder fascinante da linguagem humana entendida como

linguagem da metafiacutesica da ciecircncia e da teacutecnica

Eacute a forccedila maacutegica instituinte da noite dos deuses que funda a luz do homem e

alimenta a dinacircmica expansiva desta nova luz e a metafiacutesica da subjectividade

ou primado da ciecircncia e da teacutecnica modernas satildeo apenas o desenrolar das

possibilidades jaacute consignadas por esse foco projectante inicial

Em coerecircncia com esta interpretaccedilatildeo Vicente identifica todo tempo histoacuterico da

vigecircncia do cristianismo na civilizaccedilatildeo ocidental como a expressatildeo Duumlrftiger

Zeit o tempo da indigecircncia e do desamparo um lapso de tempo marcada pela

elisatildeo do sagrado que Heidegger reservava no entanto para a eacutepoca

contemporacircnea ldquoHoumllderlin cunhou uma expressatildeo excelente para designar o

eon que se inicia com o plastosteos - Duumlrftiger Zeit ndash tempo de carecircncia

Heidegger define nestes termos o sentido desses lapsos temporais ldquoes ist die

Zeit der entflohenen Goumltter und des kommenden Goumlttes Das ist die duumlrftiger

Zeit weil sie in einem gedoppelten Mangel und Nicht steht im Nichtmehr der

entflohenen Goumltter und im Nochnicht des Kommendenrdquo (Eacute o tempo dos deuses

em fuga e dos deuses por vir Este eacute o tempo de carecircncia porquanto padece e

905

Vicente Ferreira da Silva ldquoO Homem e a sua Proveniecircnciardquo in Dialeacutectica das Consciecircncias e outros

ensaios 344

455

uma dupla privaccedilatildeo o natildeo-mais dos deuses em fuga e o natildeo-ainda dos deuses

por vir)rdquo906

Vicente tem consciecircncia da ambiguidade e do paradoxo inerente a esta

identificaccedilatildeo do vigorar histoacuterico-mundial duma religiatildeo como eacutepoca de elisatildeo

do sagrado considerando no entanto este paradoxo inerente ao proacuteprio

cristianismo e agrave recusa projectante que o instituiu ldquoO sentido epocal do

cristianismo reflecte essa ambiguidade essencial em que o deserto exacircnime da

vida vem celebrado como a sua mais exuberante floraccedilatildeordquo907

Poreacutem com esta tese de uma recusa projectante Vicente afasta-se da

concepccedilatildeo heideggeriana da histoacuteria e aproxima-se de Eudoro de Sousa para

quem a recusa do mito projectou a histoacuteria humana e incessantemente a

alimenta como seu oculto motor

Para Eudoro esta recusa que historicamente se instaurou com o chamado

ldquomilagre gregordquo inscreve-se na essecircncia do homem como uma permanente

possibilidade ou ldquotentaccedilatildeo dia-boacutelica ldquoO homem eacute o animal que se recusa a

aceitar o que gratuitamente lhe deram e gratuitamente lhe datildeordquo908 Eacute esta

pulsatildeo para a recusa e a negaccedilatildeo que explica a incessante

construccedilatildeodestruiccedilatildeo em que consiste toda a histoacuteria humana ldquoNatildeo sei de

coisa que se faccedila sem que outras coisas se desfaccedilam natildeo sei de construccedilatildeo

que natildeo suceda agrave destruiccedilatildeo Eacute certo que o presente se vinga do passado

como o futuro se vingaraacute do presente o presente destruindo o que no passado

se fez e o futuro destruindo o que no presente se fazrdquo909

Este tese de uma recusa imanente agrave histoacuteria contraria na realidade a noccedilatildeo

heideggeriana de ldquoprojecto lanccediladordquo este fundamenta-se na estrutura

horizontal extaacutetica da temporalidade e mostra-nos a dinacircmica da autogestaccedilatildeo

da existecircncia a partir de si mesma Para Heidegger todo o mundo

propriamente histoacuterico se fundamenta no movimento projectivo pelo qual o

Dasein se apropria positivamente das suas proacuteprias possibilidades mantendo-

se vinculado ao passado a partir do qual ele estaacute essencialmente destinado

906

Vicente Ferreira da Silva Teologia e Anti-Humanismo in Dialeacutectica das Consciecircncias e outros

ensaios 313 907

Ibidem 314 908

Eudoro de Sousa Mitologia Histoacuteria e Mito 27 909

Ibidem 28

456

O conceito de projecto lanccedilado permite pensar a histoacuteria agrave margem das

concepccedilotildees iluministas e positivistas que a pensam como um movimento de

sucessivas rupturas com o passado interpretando-a pelo contraacuterio como o

movimento de auto-transmissatildeo da tradiccedilatildeo o que aliaacutes Vicente compreendia

correctamente com a sua leitura do homem como ldquoexistecircncia insistenterdquo jaacute

referida

No entanto ao colocar a ldquorecusa projectanterdquo como modelo de inteligibilidade

da histoacuteria do Ocidente cristatildeo ele mostra a civilizaccedilatildeo ocidental como

internamente animada pela recusa e pela negaccedilatildeo do jaacute instituiacutedo isto eacute pela

recusa de todo o dado sob a forma de objecto natural ou cultural e portanto

como essencialmente contraacuteria ao ldquomundo tradicionalrdquo de outras civilizaccedilotildees

A negatividade pensada em Eudoro de Sousa como impulso ldquodiaboacutelicordquo

constitutivo do ser-homem e triunfante desde ldquoo milagre gregordquo e em

Vicente como constitutiva da antropofania cristatilde alimenta segundo estes

autores uma dinacircmica destrutiva de toda a vinculaccedilatildeo agrave natureza permitindo

pensar a histoacuteria do Ocidente como o desenrolar do niilismo

Contudo ao definir ldquoa recusardquo como conceito estruturante da sua visatildeo da

histoacuteria ocidental estes autores mantecircm-se no mesmo acircmbito dum pensar da

histoacuteria como um processo de contiacutenuas rupturas e negaccedilotildees proacuteprio das

filosofias do progresso limitando-se a fazer a inversatildeo da avaliaccedilatildeo do sentido

dessas rupturas

Eles invertem a avaliaccedilatildeo do sentido dessas rupturas e negaccedilotildees vendo nelas

um contiacutenuo afastamento de uma plenitude originaacuteria e um processo de

decadecircncia jaacute anunciado no mito das 3 idades de Hesiacuteodo910 e tambeacutem no

mito biacuteblico da expulsatildeo do paraiacuteso911 A partir destes modelos912 miacuteticos que

expressamente invocam e reivindicam como modelos capazes de conferir

sentido e inteligibilidade agrave nossa histoacuteria eles contrariam a leitura iluminista e

positivista da histoacuteria como um progresso e um contiacutenuo aperfeiccediloamento -

transformada entre noacutes em ldquoevidecircnciardquo ideoloacutegica largamente dominante

910

Vicente Ferreira da Silva ldquoSobre a Origem e o Fim do Mundordquo Jornal das Letras Abril de 1951 in

Dialeacutectica das Consciecircncias e outros ensaios 328 911

Eudoro de Sousa Mitologia Histoacuteria e Mito 27 912

ldquoToda a sociedade depende ontologicamente de certas representaccedilotildees e esquemas de comportamento

valioso que determinam todo o dinamismo de sua evoluccedilatildeo O valor e o proacuteprio sentido superior de sua

histoacuteria dependem dos ldquomodelosrdquo e princigravepios exemplares nela vigorantesrdquo Vicente Ferreira da Silva

ldquoSobre a Teoria dos Modelosrdquo Revista Brasileira de Filosofia vol III Fasc1 Satildeo Paulo 1953 39

457

Ao mesmo tempo Eudoro e Vicente minam o etnocentrismo e eurocentrismo

largamente instalados e condicionadores da interpretaccedilatildeo das outras religiotildees

e do mundo miacutetico em geral denunciados repetidas vezes por Vicente Ferreira

da Silva como caracteriacutestica fundamental da maior parte dos estudos

etnoloacutegicos913

4 O questionamento da tradiccedilatildeo humanista

4 1 Humanismo e Cristianismo

As dificuldades na enunciaccedilatildeo do tema do humanismo resultam por um lado

da imprecisatildeo das referecircncias histoacutericas914 por outro no caraacutecter vago e

flutuante que o conceito assume nos vaacuterios autores915

A temaacutetica do humanismo eacute analisada por Reneacute Gueacutenon e Julius Evola como

chave hermenecircutica da modernidade cujo traccedilo fundamental seria a

emancipaccedilatildeo do indiviacuteduo relativamente agrave tradiccedilatildeo miacutetico-religiosa e aos

princiacutepios coacutesmico-divinos Assim afirma Gueacutenon em A Crise do Mundo

Moderno ldquoHaacute uma palavra que recebeu honrarias no Renascimento e que

resumia jaacute nessa altura todo o programa da civilizaccedilatildeo moderna eacute a palavra

ldquohumanismordquo Tratava-se com efeito de reduzir tudo a proporccedilotildees puramente

humanas de fazer abstracccedilatildeo de todo o princiacutepio de ordem superior e

poderiacuteamos dizer simbolicamente de se afastar do ceacuteu sob pretexto de

conquistar a terra Os gregos de quem se pretendia seguir o exemplo nunca

913

Cf Vicente Ferreira da Silva ldquoEnzo Paci e o Pensamento Sul-Americanordquo Revista Brasileira de

Filosofia vol V Fasc 2 Satildeo Paulo 1955 288-289 914

Eacute no entanto importante tomar em conta a questatildeo filoloacutegica porque ela remete imediatamente para a

questatildeo central do presente trabalho a origem latina do conceito de humanismo Sobre este ponto cf

Mafalda Blanc em Estudos sobre o Ser Lisboa 1998 ldquoA palavra ldquohumanismordquo deriva dos vocaacutebulos

latinos ldquohumanusrdquo e ldquohumanitasrdquo Este uacuteltimo eacute utilizado sobretudo por Cigravecero em trecircs acepccedilotildees

distintas

1 o viacutenculo que liga o homem aos outros homens (traduz o grego θηιαλζρωπία)

2 as letras e as artes quer dizer a cultura elevada a ideal de vida e de civilizaccedilatildeo e pela qual o

ldquohomo humanusrdquo se distingue do ldquohomo barbarusrdquo

3 a propriedade que define o homem enquanto homem

Hoje a palavra conserva apenas os dois uacuteltimos sentidos Na acepccedilatildeo histoacuterico-cultural ela significa a

tendecircncia proacutepria de algumas eacutepocas do Ocidente para alcanccedilar o padratildeo de humanidade proposto pela

cultura claacutessica atraveacutes da imitaccedilatildeo fiel dos seus modelos Finalmente ela significa tambeacutem a doutrina

filosoacutefica constituigraveda a partir da explicitaccedilatildeo da essecircncia do homemrdquo (Idem ob cit 6162) 915

A originalidade da abordagem de Vicente da temaacutetica do humanismo reside precisamente no facto de

ter ultrapassado este plano conceptual e filosoacutefico e ter procurado para o humanismo uma outra origem

como Miguel Reale sublinha em Estudos de Filosofia Brasileira ldquoO humanismo deixa de ter como base a

subjectividade para ser visto como derivaccedilatildeo da Fonte primeira da realidade oculta agrave filosofia

tradicional pois ldquoo saber da Fonte natildeo eacute um saber feito pelo homem natildeo eacute um querer-saber da criatura

finita natildeo eacute a filosofiardquordquo (Ob cit 202)

458

tinham ido tatildeo longe nesse sentido mesmo na eacutepoca da sua maior decadecircncia

intelectual e pelo menos as preocupaccedilotildees utilitaacuterias nunca tinham entre eles

passado para primeiro plano como isso iria em breve produzir-se entre os

modernos O humanismo era jaacute uma primeira forma do que se tornou o

ldquolaicismo contemporacircneordquo e querendo reconduzir tudo agrave medida do homem

tomado como um fim em si mesmo acabou por se descer degrau em degrau

ao niacutevel do que haacute neste de mais inferior [hellip]rdquo916

Contudo Heidegger na Carta Sobre o Humanismo tem uma interpretaccedilatildeo

muito mais lata do termo humanismo englobando neste conceito vaacuterias

correntes de pensamento e vaacuterias eacutepocas histoacutericas mas fazendo contudo

remontar a Roma o primeiro humanismo ldquoSomente na eacutepoca da repuacuteblica

romana humanitas eacute pela primeira vez expressamente pensada e visada sob

este nome Contrapotildee-se o hommo humanus ao homo barbarus O homo

humanus eacute aqui o romano que eleva e enobrece a virtus romana atraveacutes da

ldquoincorporaccedilatildeordquo da paideia herdada dos gregosrdquo917

Na Carta Sobre o Humanismo aceitando Heidegger que o cristianismo eacute

tambeacutem uma forma de humanismo enquanto visa a salvaccedilatildeo da alma e encara

a histoacuteria como o cenaacuterio dessa salvaccedilatildeo ele afirma que o humanismo cristatildeo

eacute apenas uma variante histoacuterica de uma configuraccedilatildeo mais vasta O

cristianismo eacute humanismo enquanto juntamente com os outros humanismos

determina a humanitas do homo humanos a partir de uma determinada

interpretaccedilatildeo da histoacuteria e do mundo isto eacute do ente na sua totalidade isto eacute na

medida em que assenta numa Metafiacutesica ldquo Toda a determinaccedilatildeo da essecircncia

916

laquoIl y a un mot qui fut mis en honneur agrave la Renaissance et qui reacutesumait par avance tout le programme

de la civilisation moderne ce mot est celui d‟ laquohumanisme raquoIl s‟agissait en effet de tout reacuteduire agrave des

proportions purement humaines de faire abstraction de tout principe d‟ordre supeacuterieur et pourrait-on

dire symboliquement de se deacutetourner du ciel sous preacutetexte de conqueacuterir la terre les Grecs dont on

preacutetendait suivre l‟exemple n‟avaient jamais eacuteteacute aussi loin en ce sens mecircme au temps de leur plus grande

deacutecadence intellectuelle et du moins les preacuteoccupations utilitaires n‟ eacutetaient- elles jamais passeacutees chez

eux au premier plan ainsi que cela devait bientocirct se produire chez les modernes L‟ laquo humanisme raquo c‟eacutetait

deacutejagrave une premiegravere forme de ce qui est devenu le laquolaiumlcismeraquo contemporain et en voulant tout ramener agrave la

mesure de l‟homme pris pour une fin en lui mecircme on a fini par descendre d‟eacutetape en eacutetape au niveau de

ce qu‟il y a en celui-ci de plus infeacuterieur[hellip] laquoReneacute Gueacutenon La Crise du Monde Moderne Paris 1946 26 917

bdquoAusdruumlcklich unter ihrem Namen wird die Humanitas zum ersten Mal bedacht und erstrebt in der Zeit

der roumlmischen Republik Der Homo humanus setzt sich dem Homo barbarus entgegen Der Homo

humanus ist hier der Roumlmer der die roumlmische virtus erhoumlht und sie veredelt durch die bdquoEinverleibungldquo der

von den Griechen uumlbernommenen παηδεία Die Griechen sind die Griechen des Spӓtgriechentums deren

Bildung in den Philosophenschulen gelehrt wurde Sie betrifft die eruditio et institutio in bonas artes Die

so verstandene παηδεία wird durch bdquohumanitasldquo uumlbersetzt Die eigentliche romanitas des homo romanus

besteht in solcher humanitas In Rom begegnen wir dem ersten Humanismus Er bleibt daher im Wesen

eine spezifisch roumlmische Erscheinung die aus der Begegnung des Roumlmertums mit der Bildung des spaumlten

Griechentums entspringtldquo Buh GA 9 320

459

do homem que jaacute pressupotildee a interpretaccedilatildeo do ente sem a questatildeo da

verdade do ser e o faz sabendo ou natildeo sabendo eacute Metafiacutesicardquo918

Assim Heidegger defende inequivocamente a tese de que humanismo e

Metafiacutesica satildeo o mesmo sendo sua caracteriacutestica a incapacidade de

questionar a relaccedilatildeo do ser com o ser humano por natildeo conhececirc-la nem poder

compreendecirc-la natildeo estando o humanismo essencialmente vinculado a

nenhuma hierofania ou religiatildeo particular mas sim a uma posiccedilatildeo do homem

no meio do ente imposta pela mutaccedilatildeo histoacuterica do sentido do ser e da

verdade do que aliaacutes Vicente estava completamente ciente como podemos

concluir logo das primeiras paacuteginas de Ideias para um Novo Conceito do

Homem

Vicente mostra que Heidegger sublinha que a tradiccedilatildeo metafiacutesica

compreendeu o homem como um ente a partir de um conjunto de

representaccedilotildees que natildeo eram suficientemente radicais e preacutevias mas

pressupunham uma representaccedilatildeo metafiacutesica da natureza da histoacuteria e do

ente em geral fundada no esquecimento do ser Assim para Heidegger o que

caracteriza toda a tradiccedilatildeo humaniacutestica eacute o facto de ela determinar a essecircncia

do homem no acircmbito da Metafiacutesica sem pocircr a questatildeo da verdade do ser

Em Teologia e Anti-humanismo Vicente reafirma que com Heidegger haveria

assim simultaneamente a possibilidade de relativizarmos a tradiccedilatildeo

humanista pensando-a como uma etapa dum ldquoprocesso trascendente-epocalrdquo

e de repensarmos a essecircncia do homem agrave margem dessa tradiccedilatildeo como

ldquohabitar ek-staacuteticordquo na proximidade do ser

ldquo Quando este uacuteltimo afirma que a essecircncia do homem consiste na ek-sistecircncia

e que esta por sua vez consiste no habitar ek-staacutetico na proximidade do Ser

assinala uma dependecircncia do homem em relaccedilatildeo a um processo

transcedentendashepocal Eis porque Heidegger defende um novo humanismo em

que natildeo eacute mais o homem que estaria em jogo mas a figura histoacuterica do homem

- as modalidades temporais do seu ser ndash em sua proveniecircncia a partir da

potecircncia instituidora do Serrdquo919

918

bdquoJede Bestimmung des Wesens des Menschen die schon die Auslegung des Seienden ohne die Frage

nach der Wahrheit des Seins voraussetzt sei es mit Wissen sei es ohne Wissen ist metaphysischldquo Buh

GA 9 321 919

Vicente Ferreira da Silva Teologia e Anti-humanismo in Dialeacutectica das Consciecircncias e outros

ensaios 294

460

Para Vicente como para Gueacutenon e Evola o humanismo eacute a chave

hermenecircutica da modernidade mas eacute ainda uma figura histoacuterica destinada pela

potecircncia instituidora do ser que como acima vimos ele considera a origem dos

diversos regimes de fascinaccedilatildeo inerentes agraves vaacuterias mitologias

Eacute por conseguinte no ldquomitologema cristatildeordquo que ele vecirc a origem do

humanismo Para Vicente o cristianismo projectou ldquoa luz do homemrdquo na

medida em que Cristo eacute o Deus que se fez homem e o homem eacute assim

instituiacutedo como a uacutenica hierofania Em Teologia e Anti-humanismo Vicente

afirma ldquoA religiatildeo cristatilde representa a culminacircncia de um processo de

humanizaccedilatildeo do divino com a consequecircncia que o extra-humano foi

gradativamente banido do cenaacuterio mundial agrave medida que as instituiccedilotildees e

paixotildees despertadas pela revelaccedilatildeo evangeacutelica se apropriavam do curso das

coisas Como resultado dos impulsos inerentes agrave mensagem cristatilde o homem

se constitui como valiosidade em si e por sirdquo920

Esta desdivinizaccedilatildeo [Entgoumltterung] do mundo inerente agrave afirmaccedilatildeo da parusia

do Homem eacute para Vicente a questatildeo central que permite compreender a

essecircncia do humanismo Este termo (desdivinizaccedilatildeo do mundo) eacute usado por

Heidegger nos Holzwege para pensar a mudanccedila radical no modo de conceber

o mundo dada com o cristianismo ldquoA desdivinizaccedilatildeo eacute o duacuteplice processo de

por um lado a imagem do mundo se cristianizar na medida em que o

fundamento do mundo eacute estabelecido como o infinito o incondicionado o

absoluto e por outro lado o cristianismo transformar a sua cristianidade numa

mundividecircncia (a mundividecircncia cristatilde) e deste modo se modernizarrdquo921

Esta Entgoumltterung922 termo repetidamente usado por Vicente eacute contudo

pensada num sentido natildeo inteiramente coincidente com o que aqui lhe eacute dado

por Heidegger com este termo Heidegger designa em O Tempo da Imagem do

Mundo a mutaccedilatildeo da significaccedilatildeo de ldquoMundordquo pelo qual ele perde a

sacralidade e a significaccedilatildeo ontoloacutegica de fundamento convertendo-se em algo

fundado podendo vir a ser pensado como algo posto pela subjectividade

humana e assim convertido em representaccedilatildeo Heidegger tem assim em vista

920

Ibidem 303 921

ldquoEntgoumltterung ist der doppelseitige Vorgang dass einmal das Weltbild sich verchristlicht insofern der

Weltgrund als das Unendliche das Unbedingte das Absolute angesetzt wird und dass zum anderen das

Christentum seine Christlichkeit zur einer Weltanschauung (der christlichen Weltanschauung) umdeutet

und so sich neuzeitgemaumlszlig machtldquo ZW GA 5 76 922

Cf Vicente Ferreira da Silva ldquoHermenecircutica da Eacutepoca Humanardquo in Dialeacutectica das Consciecircncias e

outros ensaios 359

461

natildeo o cristianismo miacutetico mas a metafiacutesica cristatilde na medida em que preparou

uma viragem para uma metafiacutesica da subjectividade que caracteriza a

modernidade

Em Vicente esta Entgoumltterung designa um acontecimento interior agrave histoacuteria das

religiotildees Trata-se do abandono desse ldquoteatro mundanalrdquo no qual o homem natildeo

tinha uma importacircncia primordial mas em que os deuses ocupavam todo o

cenaacuterio do mundo caracteriacutestico do paganismo ldquoOs deuses ocupando todo o

cenaacuterio do mundo o poacutelo humano tornava-se mera virtualidade continuamente

sopitada pelo pleroma teomoacuterficordquo923 Para Vicente esta Entgoumltterung designa

esse acontecimento histoacuterico no qual negando e excluindo as divindades

pagatildes o cristianismo afirma a parusia do homem contra todo o grande corpo

mitoloacutegico universal condenando-o como erro e supersticcedilatildeo

Trata-se assim para Vicente de pensar essa mudanccedila histoacuterica radical do

sentimento religioso que implicou que o mundo natildeo eacute jaacute uma teofania nem

aparece ao homem como sagrado O ldquomitologemardquo cristatildeo afirma que de agora

em diante Deus soacute se revelaraacute no Homem e na sua histoacuteria e exclui assim a

possibilidade da multiplicidade das hierofanias ou seja que os diversos

elementos coacutesmicos apareccedilam ao homem como revelaccedilotildees do divino ldquoA nossa

civilizaccedilatildeo cristatilde ocidental nascida do ressentimento contra a vida pletoacuterica e

afirmativa contra a afirmaccedilatildeo afrodisiacuteaca da existecircncia eacute a explicitaccedilatildeo

discursiva da Gottesferne eacute o nada crescente dos deuses e nada maisrdquo924

Assim para Vicente como para Evola e Gueacutenon a perda desses princiacutepios

coacutesmicos divinos leva o homem a cair nas ldquomedidas meramente humanasrdquo

queda que caracteriza o humanismo e que dita a inevitaacutevel decadecircncia da

civilizaccedilatildeo ocidental Em A Revolta Contra o Mundo Moderno Julius Evola

caracteriza deste modo os valores heroacuteicos associados aos deuses solares e

oliacutempicos vigentes na cultura greco-romana ldquoNo mundo pagatildeo entretanto o

homem era continuamente conclamado para a reproduccedilatildeo de modelos de

virtude heroacuteico-divinos sendo a aristeia uma forccedila que emanava de cima para

baixo A vida dos deuses confiscava continuamente o estar em si mesmo da

923

Ibidem 355 924

Vicente Ferreira da Silva ldquoCrigravetica do Cristianismordquo Cavalo Azul nordm 8 in Dialeacutectica das Consciecircncias

e outros ensaios 559

462

vida em seu sentido trivial e demasiado humano O mito antigo era a

proposiccedilatildeo de virtudes mais que humanasrdquo925

Para Vicente como para Evola sendo na antiguidade greco-romana o homem

arrebatado pelos modelos heroacuteico-divinos a cultura e a vida eram uma

fenomenizaccedilatildeo do processo mitoloacutegico e o homem um permanente esforccedilo

para se superar a si mesmo Pelo contraacuterio a revelaccedilatildeo evangeacutelica cortou com

esse cacircnones divinos para impor como medida as virtudes horizontais e

ldquomeramente humanasrdquo da mansidatildeo e da caridade que aparecem a estes

autores como antecipadores das democracias e da cultura de massas926

Claramente influenciado ainda por Nietzsche Vicente vecirc no cristianismo uma

inversatildeo da taacutebua de valores das religiotildees pagatildes sobretudo da religiatildeo

homeacuterica que incitava o homem agrave reproduccedilatildeo de modelos heroacuteico-divinos e a

alcanccedilar uma virtude mais que humana pelo contraacuterio o cristianismo proclama

a humildade como norma espiritualmente relevante e proclama a caridade

como amor pelo fraco apresentando-se como uma forccedila descendente

O cristianismo implica tambeacutem para Vicente uma mutaccedilatildeo na concepccedilatildeo do

divino que jaacute natildeo se relaciona mais com o corpo vivo da comunidade nacional e

poliacutetica como os antigos deuses do paganismo greco-romano mas com o

indiviacuteduo e a interioridade apelando agrave descoberta de si mesmo como um puro

eu desconectado da sociedade e da natureza

Para Vicente a hierarquia estabelecida pelas virtudes heroacuteicas e sancionada

pelos deuses da cidade desaparece e o cristianismo instaura a igualdade

horizontal de ldquoum rebanho universal de irmatildeosrdquo ou de uma fraternidade

potencialmente infinita

Em Cristo a verdade tomou forma humana e a substacircncia tornou-se sujeito

como afirmara Hegel mas esta mutaccedilatildeo da verdade eacute para Vicente natildeo um

degrau da marcha do Espiacuterito em direcccedilatildeo agrave absoluta consciecircncia de si e agrave

Liberdade mas sim uma marcha atraacutes e um retrocesso em direcccedilatildeo ao homem

meramente humano927

925

Vicente Ferreira da Silva Teologia e Anti-Humanismo in Dialeacutectica das Consciecircncias e outros

ensaios 303 926

Ibidem 307 927

Ibidem 306

463

O sentido deste retrocesso eacute claramente expresso por Vicente nestes termos

ldquoEste refluxo da substacircncia divina in interiore homine significou evidentemente

a completa desdivinizaccedilatildeo [Entgoumltterung] das outras possibilidades de serrdquo928

Esta imposiccedilatildeo exclusivista da antropofania cristatilde como uacutenica perspectiva e

modo de ser contra o anterior sentimento da polimorfia e da metamorfose do

divino caracteriacutestico do politeiacutesmo significa claramente para Vicente natildeo

apenas a desdivinizaccedilatildeo do mundo como ainda um estreitamento do horizonte

das possibilidades do homem e uma restriccedilatildeo agrave sua liberdade que iraacute culminar

com a imposiccedilatildeo do homem unidimensional da racionalidade teacutecnica929

Para Vicente o humanismo antropocecircntrico que estaacute jaacute lanccedilado no

ldquomitologemardquo fundamental da nossa cultura isto eacute no cristianismo projectou a

actual dominaccedilatildeo teacutecnica do mundo ldquoA religiatildeo cristatilde representa a culminacircncia

de um processo de humanizaccedilatildeo do divino A palavra do Deus-Homem eacute uma

constante promessa de que todas as coisas se submeteratildeo agrave potestade

espiritual do homem e ao seu ceptro inviolaacutevelrdquo930

Assim o pensador brasileiro leva a cabo uma criacutetica contundente agrave tradiccedilatildeo

humaniacutestica partindo do pressuposto de que ela se funda no cristianismo e

negando por conseguinte qualquer possibilidade de superar o ldquohumanismo

antropocecircntricordquo ou a actual eacutepoca da teacutecnica por um apelo ao renascimento de

um cristianismo miacutetico que teria pelo contraacuterio lanccedilado o seu projecto

Parecendo que esta vinculaccedilatildeo entre humanismo e cristianismo se fundamenta

em Heidegger tal aparecircncia natildeo encontra confirmaccedilatildeo nos textos Heidegger

no mesmo ensaio O Tempo da Imagem do Mundo precisando e restringindo o

significado que atribui ao termo ldquohumanismordquo afirma que o humanismo natildeo se

vincula ao cristianismo - mas que pelo contraacuterio aquele soacute foi possiacutevel com a

desvinculaccedilatildeo dos laccedilos que prendiam o homem agrave autoridade da revelaccedilatildeo

sem a qual natildeo seria possiacutevel o estabelecimento do cogito como fundamento

ldquoNatildeo eacute de admirar que soacute onde o mundo se torna imagem surja o humanismo

Mas se natildeo era possiacutevel no grande tempo do mundo do grego qualquer coisa

como uma imagem do mundo entatildeo tambeacutem natildeo podia vigorar um

humanismo Daiacute que este nome no sentido historiograacutefico mais estreito natildeo

seja outra coisa que uma antropologia moral-esteacutetica Este nome natildeo designa

928

Ibidem 308 929

Ibidem 308 930

Ibidem 303

464

aqui uma qualquer investigaccedilatildeo cientiacutefico-natural do homem Tambeacutem natildeo

designa a doutrina estabelecida dentro da teologia cristatilde do homem criado

caiacutedo e salvo O que assinala eacute aquela interpretaccedilatildeo filosoacutefica do homem que

explica e avalia a partir do homem e para o homem o ente na totalidaderdquo931

O Humanismo eacute entendido por Julius Evola e Reneacute Gueacutenon como uma ruptura

com esse mundo da Tradiccedilatildeo e com os seus princiacutepios coacutesmico-divinos Mais

atentos agrave feiccedilatildeo totalmente laica que o humanismo tomara nos paiacuteses fora do

mundo catoacutelico e da contra-reforma Julius Evola e Reneacute Gueacutenon vinculam o

humanismo sobretudo agrave ruptura do homem com a vinculaccedilatildeo agrave autoridade de

toda a tradiccedilatildeo religiosa e natildeo ao cristianismo

Relativamente ao cristianismo Julius Evola eacute cauteloso procurando

demonstrar a complexidade de elementos que estatildeo presente no ldquomitologema

cristatildeordquo ldquoSe no siacutembolo cristatildeo surgem os vestiacutegios dum esquema inspirado

nos antigos misteacuterios com referecircncias ao orfismo e a correntes anaacutelogas eacute

caracteriacutestico da nova religiatildeo que ela utilize este esquema num plano jaacute natildeo

iniciaacutetico mas sim num plano afectivo e no maacuteximo confusamente miacutestico Eacute

por isso de um certo ponto de vista exacto dizer que com o cristianismo Deus

se faz homemrdquo932

Embora reconhecendo na perda deste plano iniciaacutetico por parte do cristianismo

a queda no humano Julius Evola vecirc no cristianismo a presenccedila complexa de

vaacuterios elementos oriundos de vaacuterias tradiccedilotildees religiosas e seraacute sobretudo ao

luteranismo e ao seu incitamento agrave ruptura com a tradiccedilatildeo representada pelo

catolicismo romano (no qual ele ainda vecirc a conservaccedilatildeo dos valores divino-

heroacuteicos do impeacuterio) que atribui a responsabilidade do triunfo total do

humanismo moderno

Mas eacute importante ter em conta que em Portugal e no Brasil o humanismo

nunca adquiriu a feiccedilatildeo laica que teve nos paiacuteses onde o iluminismo se

931

bdquoKein Wunder ist daβ erst dort wo die Welt zum Bild wird der Humanismus heraufkommt Aber

sowenig in der groszligen Zeit des Griechentums dergleichen wie ein Weltbild moumlglich war sowenig konnte

sich damals ein Humanismus zum Geltung bringen Der Humanismus im engeren historischen Sinne ist

daher nichts anderes als eine moralisch-aumlsthetische Anthropologie Dieser Name meint hier nicht

irgendeine naturwissenschaftliche Erforschung des Menschen Er meint auch nicht die innerhalb der

christlichen Theologie festgelegte Lehre vom geschaffenen gefallenen und erloumlsten Menschen Er

bezeichnet jene philosophische Deutung des Menschen die von Menschen aus und auf den Menschen zu

das Seiende im Ganzen erklaumlrt und abschaumltztldquo ZW GA 5 93 (Cf traduccedilatildeo portuguesa Martin

Heidegger ldquoO tempo da imagem do Mundordquo in Caminhos de Floresta coord cientiacutefica de Irene Borges-

Duarte trad Alexandre de Saacute Gulbenkian 2002) 932

Julius Evola A Revolta Contra o Mundo Moderno 370

465

implantou e onde o racionalismo cartesiano ou Kantiano vieram a impor uma

metafiacutesica da subjectividade livre dos viacutenculos agrave autoridade e agrave tradiccedilatildeo

religiosa Esta circunstacircncia histoacuterica marcou decisivamente o questionamento

da tradiccedilatildeo humanista por parte de Vicente Ferreira da Silva

4 2 Apogeu e ocaso da tradiccedilatildeo humaniacutestica

Os ensaios O Ocaso do Pensamento Humaniacutestico e O Homem e a Liberdade

na Tradiccedilatildeo Humanista permitem-nos pensar a relaccedilatildeo de Vicente com o

humanismo enquanto tradiccedilatildeo tema tambeacutem reflectido por Gadamer e Ernesto

Grassi autores que analisaram essa tradiccedilatildeo e dela fizeram uma avaliaccedilatildeo natildeo

coincidente com a de Heidegger

Ernesto Grassi sublinha que Heidegger ao apontar a emergecircncia do termo

ldquohumanismordquo durante a Repuacuteblica Romana onde designava a versatildeo latina da

paideia grega move-se no interior da concepccedilatildeo comum do Humanismo como

um renascimento da cultura grega e um movimento intelectual com importacircncia

filoloacutegica e histoacuterica mas sem significaccedilatildeo filosoacutefica a natildeo ser no plano de

uma antropologia

Grassi salienta ainda que o termo ldquoHumanismordquo na perspectiva de Heidegger

potildee o acento toacutenico no homem como ponto de partida para o filosofar e nessa

medida constitui um entrave a um pensar originaacuterio capaz de responder ao

apelo do ser933

Eacute este mesmo entendimento da tradiccedilatildeo humanista como um antropocentrismo

que Vicente partilha com Heidegger como atraacutes vimos apesar de ter da sua

origem uma outra concepccedilatildeo Contudo Vicente procura conciliar a criacutetica

desse humanismo antropocecircntrico feita por Heidegger com a valorizaccedilatildeo

positiva de Ernesto Grassi ao humanismo italiano934 distinguindo no vigorar

histoacuterico da tradiccedilatildeo humaniacutestica duas eacutepocas inteiramente distintas uma de

apogeu correspondente ao periacuteodo do Renascimento outra de decadecircncia

correspondente agrave eacutepoca contemporacircnea ou eacutepoca do niilismo e da teacutecnica

933

Ernesto Grassi analisa a posiccedilatildeo de Heidegger face ao humanismo num conjunto de ensaios resultantes

de liccedilotildees dadas pelo autor num curso sobre o Humanismo Renascentista no Medieval and Renaissance

Center of Barnard College que aqui satildeo tomadas como referecircncia Cf Ernesto Grassi Heidegger and The

Question of Renaissance Humanism - Four studies New York 1983 934

A obra de Ernesto Grassi referida por Vicente Ferreira da Silva eacute Verteidigung des Individuellen

Lebens (Bern 1946) Cf Vicente Ferreira da Silva ldquoO Homem e a Liberdade na Tradiccedilatildeo Humanigravesticardquo

in Dialeacutectica das Consciecircncias e outros ensaios 453

466

Nesta periodizaccedilatildeo da tradiccedilatildeo humanista natildeo estamos poreacutem apenas

perante duas eacutepocas uma de apogeu outra de decadecircncia mas ainda perante

dois tipos de humanismo radicalmente diferentes fundados em distintas

concepccedilotildees antropoloacutegicas Sob a primeira epiacutegrafe Vicente visa a eacutepoca

actual correspondente agrave eacutepoca da teacutecnica caracterizada pela reduccedilatildeo do

homem a uma consciecircncia trabalhadora e a uma vontade de transformaccedilatildeo do

mundo que jaacute natildeo encontra fora de si qualquer limite expandindo-se agrave escala

planetaacuteria em consonacircncia com a noccedilatildeo heideggeriana de Gestell A este

projecto de dominaccedilatildeo teacutecnica do mundo eacute inerente segundo Vicente uma

nova eacutetica caracterizada pelo predomiacutenio da acccedilatildeo sobre qualquer atitude

contemplativa ldquoCom isto a consciecircncia trabalhadora afirma a sua supremacia

sobre qualquer detenccedilatildeo esteacutetico-passiva no estar-aiacute natural ou sobre

qualquer eacutetica hedonista das nourritures terrestres935

Nesta nova eacutetica Vicente natildeo vecirc nada mais senatildeo a afirmaccedilatildeo duma

antropogeacutenese pelo trabalho econoacutemico que desvaloriza todas as outras

formas de vida como a criaccedilatildeo esteacutetica a vida espiritual e contemplativa ou a

simples capacidade de usufruir da felicidade junto da natureza Esta nova eacutetica

de que o actual ldquopaneconomismordquo se apresentaria como o culminar constitui

para Vicente a negaccedilatildeo dos anseios mais profundos de Liberdade936

Pelo contraacuterio no seu apogeu o humanismo apresentava-se como exaltaccedilatildeo

da Liberdade do Homem Na caracterizaccedilatildeo desse momento positivo da

tradiccedilatildeo humaniacutestica que identifica com o Renascimento Vicente fundamenta-

se na obra de Grassi Verteidigung des individuellen Lebens obra em que este

faz a apologia da concepccedilatildeo renascentista do homem como individualidade

criadora e heroacuteica capaz de se abrir agrave multiplicidade de formas revelaccedilotildees do

real e entregar-se apaixonadamente ao ldquopocircr-se-em-obra da verdaderdquo atraveacutes

de diferentes tipos de actividade humana desde a poliacutetica agrave poesia e agrave arte

Sublinhando a contradiccedilatildeo entre as concepccedilotildees antropoloacutegicas subjacentes a

esses dois periacuteodos da tradiccedilatildeo humanista Vicente identifica como

935

Vicente Ferreira da Silva ldquoO Ocaso do Pensamento Humanigravesticordquo Diaacutelogo nordm 131960 in Dialeacutectica

das Consciecircncias e outros ensaios Lisboa Imprensa Nacional-Casa da Moeda 2002 449 936

Cf Vicente Ferreira da Silva ldquoO Homem e a Liberdade na Tradiccedilatildeo Humanigravesticardquo Revista Brasileira

de Filosofia nordm 41 1961 in Dialeacutectica das Consciecircncias e outros ensaios 456

467

caracteriacutestica do humanismo renascentista a concepccedilatildeo do homem como

microcosmos ou como Proteu937

Em O Ocaso do Pensamento Humanista Vicente medita nas consequecircncias da

metafiacutesica da subjectividade isto eacute da afirmaccedilatildeo do cogito como fonte de

certeza que aconteceu na histoacuteria da filosofia com a posiccedilatildeo cartesiana do Eu

penso como fundamento de toda a realidade Vicente mostra aiacute as

consequecircncias desse primado da consciecircncia relativamente a uma nova

concepccedilatildeo do homem a consciecircncia como consciecircncia de si ou

subjectividade converte-se na essecircncia do homem e o homem empiacuterico e

sensorial ou o homem natura eacute algo posto pela consciecircncia e assim algo de

natildeo essencial ldquoO verdadeiro ego humano natildeo seria o ego psico-somaacutetico o

ego percebido mas sim o ego absolutamente percepiente e subjectivo o ego

cogito que acompanha e cria toda a realidaderdquo938

A metafiacutesica da subjectividade teria atingido com Husserl uma das suas

realizaccedilotildees mais perfeita Com Husserl a actividade do Cogito eacute doaccedilatildeo de

sentido a todas as coisas e a consciecircncia jaacute natildeo eacute a percepccedilatildeo de significados

dados ou transcendentes mas uma revelaccedilatildeo de significados que atraveacutes de

um processo projectivo abre um espaccedilo de possibilidades significantes

Assim este pensar humaniacutestico da subjectividade para quem o cogito natildeo

pode ser passiacutevel de uma reduccedilatildeo natildeo pode ser derivado de outra realidade

constitui a consciecircncia como a fonte uacuteltima da verdade e do ser ldquoPara esta

formulaccedilatildeo uacuteltima e terminal da metafiacutesica da subjectividade a ldquoessecircncia

humana natildeo eacute um ente desocultado ou oferecido por uma forccedila propositora

mais original mas eacute em si mesma a forccedila reveladora dos demais entes Um

ente um ente humano passa a fundar os demais entes atraveacutes da sua

operaccedilatildeo fundamental - a dotaccedilatildeo de sentido - comeccedila a desmembrar em

torno de si a esfera do cognosciacutevelrdquo939

A cultura ocidental de matiz antropocecircntrica tendo chegado a colocar o

homem soacute homem como centro metafiacutesico de toda a realidade insiste na

consideraccedilatildeo da absoluta autonomia do homem e resiste a considerar o modus

essendi humano como algo de secundaacuterio e derivado De facto todas as

937

Ibidem 453 938

Vicente Ferreira da Silva ldquoO Ocaso do Pensamento Humanigravesticordquo in Dialeacutectica das Consciecircncias e

outros ensaios 445446 939

Ibidem 446

468

possibilidades oferecidas na actual eacutepoca da histoacuteria e todas as suas triunfais

realizaccedilotildees tecircm o seu fundamento na subjectividade humana e em particular

na consciecircncia humana pensada como ldquoforma do trabalhadorrdquo

Na reduccedilatildeo do eu penso a actividade instauradora do mundo vecirc Vicente a

origem da concepccedilatildeo do homem como acto de transformaccedilatildeo trabalhadora

que vai ao encontro dos entes intra-mundanos reduzindo-os a objectos da sua

operaccedilatildeo manipuladora e assim possibilita o triunfo planetaacuterio da teacutecnica ldquoEacute

nesse sentido que Heidegger alude a uma organizaccedilatildeo planetaacuteria da nossa

civilizaccedilatildeo desde que a Terra como um mero estar aiacute natural jaacute perdeu

qualquer hegemonia no jogo operativo dos campos opcionaisrdquo940

O reverso desta afirmaccedilatildeo da consciecircncia trabalhadora eacute a negaccedilatildeo da

realidade sensorial do corpo do mundo das imagens do estar aiacute natural da

Terra pela espiritualidade triunfante que eacute como jaacute afirmara Hegel pura

negatividade Contudo esta negatividade fundamental do espiacuterito que Hegel

coloca no centro da dialeacutectica do senhor e do escravo como ser-para-si da

consciecircncia trabalhadora que assim se liberta das coisas e dissolve a sua

substancialidade941 soacute foi possiacutevel porque ela estava jaacute consignada no

mitologema fundamental da nossa cultura ou no Cristianismo ldquoA ldquofluidificaccedilatildeo

absoluta de toda a subsistecircnciardquo jaacute havia sido proposta em forma prototiacutepica no

mitologema inicial da nossa civilizaccedilatildeo no drama da paixatildeo e da cruz O

espiacuterito do Deus crucificado eacute o da consciecircncia absolutamente superior ao

mundo como forma de uma liberdade sobranceira em relaccedilatildeo a todo o finitordquo942

Portanto natildeo haacute qualquer duacutevida para Vicente (e aqui reside a originalidade da

sua posiccedilatildeo face ao humanismo) de que se podemos falar de um humanismo

antropocecircntrico que tem como categoria fundamental a consciecircncia

subjectivista e trabalhadora eacute porque essa categoria antes de ser pensada

pela filosofia tinha sido suscitada pela fascinaccedilatildeo meta-histoacuterica da parusia

cristatilde

O ocaso do pensamento humaniacutestico designa assim a presente era da

teacutecnica em que esta vontade manipuladora se organizou planetariamente e a

terra se manifesta como pura disponibilidade para essa acccedilatildeo transformadora

940

Ibidem 448 941

Ibidem 449 942

Ibidem 449

469

mas que na realidade apenas consuma segundo a perspectiva de Vicente o

desenvolvimento uacuteltimo e mais extremo das possibilidades jaacute lanccediladas no

mitologema cristatildeo

Na caracterizaccedilatildeo do apogeu da tradiccedilatildeo humaniacutestica Vicente apoia-se em

Grassi filoacutesofo que dedicou uma importante parte da sua obra agrave defesa do

humanismo renascentista italiano mostrando que ele tem importante

significado para o pensamento contemporacircneo A posiccedilatildeo de Grassi face agrave

tradiccedilatildeo humanista afasta-se da posiccedilatildeo de Heidegger expressa na Carta

sobre o Humanismo onde este rejeita todas as formas de humanismo como

subjectivismo isto eacute auto-proclamaccedilatildeo da supremacia do homem

Pelo contraacuterio Grassi sublinha em Verteidigung des individuellen Lebens que

o humanismo renascentista e a sua apologia do homem como indiviacuteduo natildeo

implicam de modo algum o subjectivismo e o individualismo da filosofia

moderna Grassi ilustra este ponto com o conceito de heroacutei em Giordano

Bruno como o de o indiviacuteduo superior agrave multidatildeo que eacute capaz de destacar-se

dela para se abrir agraves diversas formas de revelaccedilatildeo do real ou ao apelo das

muacuteltiplas divindades ldquo[hellip] nada permanece mais distante do esclarecimento de

Bruno do que a concepccedilatildeo de que o homem individual seria criador por si

mesmo O indiviacuteduo o sujeito natildeo cria por si mesmo mas ele eacute - como a

expressatildeo ldquosujeitordquo indica ndash aquele que eacute subjugado por um poder mais altordquo943

Grassi vecirc nesta exaltaccedilatildeo do heroacutei como indiviacuteduo superior justamente o

contraacuterio do individualismo e do subjectivismo modernos na medida em que o

destino do heroacutei eacute ser arrastado pela forccedila objectiva da transcendecircncia e se vecirc

coagido a responder ao seu apelo na obra enquanto artista poeta ou homem

de Estado A obra criada natildeo eacute assim nunca para os humanistas do

Renascimento produto da subjectividade mas da necessidade objectiva

imposta por uma forccedila transcendente e funda assim uma verdade comum na

qual a comunidade se reconhece

Contestando tambeacutem que o humanismo italiano tenha um enfoque especial na

antropologia Grassi defende que para os humanistas o homem natildeo eacute nunca

objecto de estudo nem eacute definido por um conceito mas eles apenas propotildeem

943

bdquo[hellip] nichts liegt Brunos Deutung des Heros ferner als die Auffassung der einzelne Mensch sei aus

sich heraus schoumlpferisch Denn der einzelne das Subjekt schaft nichts von sich aus sondern er ist ndash wie

der Ausdruck ldquo Subjektrdquo bekundet ndash derjenige der einer houmlheren Macht unterworfen istrdquo Ernesto Grassi

Verteidigung des individuellen Lebens Bern 1946 3233

470

um ideal de homem como realizaacutevel atraveacutes da cultura [Bildung] sendo este

conceito de Bildung essencial tambeacutem ao humanismo poacutes-renascentista

designadamente em Vico ldquoNesta tradiccedilatildeo obtecircm prioridade a relaccedilatildeo com a

Antiguidade a questatildeo da cultura [Bildung] em vez do saber e o ideal do

desenvolvimento de ldquotodordquo o homem A ldquoculturardquo [Bildung] como vida individual

natildeo eacute procurada justamente apenas no acircmbito do saberrdquo944

Eacute este ideal de homem integral realizando-se em muacuteltiplas dimensotildees que

Vicente visa com a sua foacutermula de ldquoProteurdquo contrapondo-o ao ideal de homem

como consciecircncia trabalhadora que considera caracteriacutestico do humanismo

decadente dos nossos dias ldquoO Pensamento humaniacutestico renascentista em sua

vontade cultural genuiacutena descobriu este conceito e o transmitiu agrave posteridade

como categoria liminar do verdadeiro humanismo Como vem determinado o

homem no pensamento renascentista Numa recorrecircncia singular os

propugnadores do humanismo defendem a tese do homem entendido como um

Microcosmos ou como um Proteu Sendo uma sinopse do Todo de um Todo

que exorbita qualquer finitude ou limitaccedilatildeo o homem natildeo pode ser comprimido

em qualquer geacutenero ou classe o homem eacute um ser sem forma que pode

receber todas as formas como um verdadeiro Proteu Eacute justamente este

homem proteico que subjaz de maneira consciente ou inconsciente aos

anseios mais radicais da consciecircncia euro-americana principalmente depois do

Renascimento sendo precisamente esta formulaccedilatildeo antropoloacutegico-filosoacutefica

que sofre hoje em dia as maiores ameaccedilas por parte do marxismordquo945

Em consonacircncia com a apologia do Homem total referida por Grassi como

matriz do humanismo italiano e ainda com este modelo do heroacutei como o

indiviacuteduo superiormente criador que na obra responde ao apelo duma

transcendecircncia Vicente apresenta-nos a consideraccedilatildeo do Renascimento como

eacutepoca que nos oferece um tipo de homem que estaacute mais perto do poder

fascinante do ser e que se entrega livremente agraves suas muacuteltiplas formas de

fascinaccedilotildees ou agraves muacuteltiplas sugestotildees do Sugestor

944

bdquoIn dieser Uumlberlieferung erhalten die Beziehung zur Antike die Frage der Bildung statt des Wissens

und das Ideal der Entfaltung des ldquoganzenrdquo Menschen den VorrangrdquoBildungrdquo als individuelles Leben wird

gerade nicht nur auf dem Gebiet des Wissens erstrebtldquo Ibidem 134 945

Vicente Ferreira da Silva ldquoO Homem e a Liberdade na tradiccedilatildeo Humanistardquo in Dialeacutectica das

Consciecircncias e outros ensaios 454

471

4 3 O Homem como lugar de desvendamento do real

A posiccedilatildeo criacutetica de Vicente relativamente agrave tradiccedilatildeo humanista e a

discriminaccedilatildeo de duas tendecircncias diferentes nessa tradiccedilatildeo tecircm que ser

correlacionadas como o encontro de Vicente com Ernesto Grassi no Congresso

Internacional de Filosofia de 1954 em Satildeo Paulo aiacute se iniciou uma

correspondecircncia regular entre os dois pensadores tendo Grassi entatildeo director

da Rewolts Deutsche Enzyklopaumldie convidado Vicente a participar como

representante do Brasil naquela enciclopeacutedia

Dada a proximidade de Grassi a Heidegger e ainda dado o facto de que uma

parte significativa da sua obra se ocupa da importacircncia histoacuterica e do

significado filosoacutefico do humanismo italiano este diaacutelogo entre Grassi e Vicente

Ferreira da Silva tem um importante significado Podemos neste caso falar de

uma influecircncia reciacuteproca que podemos inferir a partir do facto de Vicente ter

dedicado Teologia e Anti-humanismo (1953) a Ernesto Grassi e ainda do facto

relatado por Constanccedila Marcondes Ceacutesar946 de que Grassi teria numa

comunicaccedilatildeo pessoal afirmado que a sua obra Arte e Mito reflecte muitas das

conversas travadas em casa de Vicente

Ernesto Grassi eacute um filoacutesofo heideggeriano que revecirc e rectifica a posiccedilatildeo de

Heidegger relativamente ao humanismo vendo no humanismo italiano a

origem de uma tradiccedilatildeo inteiramente diferente do racionalismo e do

subjectivismo da filosofia moderna Em Verteidigung des individuellen Lebens

obra comentada por Vicente o filoacutesofo italiano contrapotildee claramente estas

duas tradiccedilotildees ldquoAs teorias que noacutes desenvolvemos surgem nos tempos

modernos com o Humanismo e o Renascimento eacute por isso finalmente

necessaacuterio mostrar que aqui reside uma tradiccedilatildeo filosoacutefica mais originaacuteria que

frente agrave tradiccedilatildeo exclusivamente conhecida do pensamento moderno iniciada

com Descartes e apesar de por ela soterrada persiste vigorosa e autoacutenoma

Durante demasiado tempo foi ignorado que duas tradiccedilotildees completamente

diferentes se confrontam nos tempos modernos Uma proveacutem de Descartes e

defende a primazia do problema do saber e da verdade cientiacutefica a outra

ligando-se ao humanismo e agrave filologia tal como foi entendida inicialmente

946

Cf Constanccedila Marcondes Ceacutesar Vicente Ferreira da Silva trajectoacuteria intelectual e contribuiccedilatildeo

filosoacutefica tese de Livre-Docecircncia em Filosofia apresentada agrave Pontifiacutecia Universidade Catoacutelica de

Campinas 44

472

proveacutem do problema da mediaccedilatildeo da palavra antiga e aspira natildeo tanto ao ideal

do saber e do verdadeiro mas antes agrave ldquosapientiardquordquo947

Um aspecto fundamental da tradiccedilatildeo humanista eacute para Grassi uma concepccedilatildeo

natildeo racionalista da cultura que se encontraria teoricamente fundamentada na

obra de Vico e na sua defesa do ratio studiorum dos jesuiacutetas como alternativa

agrave cultura moderna de matriz racionalista e cartesiana ldquoNa interpretaccedilatildeo do

escrito de Vico surpreende-nos isto ele diz que o fim da ratio studiorum deve

ser acima de tudo actual Em que consiste entatildeo esse fim Consiste na

descoberta do prejuiacutezo do racionalismo que cria o ponto de partida da filosofia

moderna Mas existe juntamente com este fim negativo e poleacutemico tambeacutem

um positivo O escrito prescreve a realizaccedilatildeo dum novo ideal de cultura

[Bildung] que ndash como jaacute acontecia no humanismo de Bruni ndash tem em vista o

desenvolvimento do homem integralrdquo948

O problema da vida individual que eacute discutido por Grassi em Verteidigung des

individuellen Lebens adquire para o filoacutesofo italiano o estatuto de uma questatildeo

central que diz respeito natildeo a um uacutenico domiacutenio mas agrave totalidade do Dasein e

a uma concepccedilatildeo geral da cultura ldquoAgrave capacidade de se elevar acima da

subjectividade noacutes chamamos cultura [Bildung] Noacutes cultivamo-nos na medida

em que nos transformamos em que nos formamos a noacutes mesmos a vida

individual e a cultura estatildeo por isso entrelaccedilados o mais intimamente

possiacutevelrdquo 949

Grassi mostra que a cultura eacute para os humanistas este transcender-se do

indiviacuteduo como superaccedilatildeo de si mesmo em direcccedilatildeo ao novo que eacute

947

bdquoDie Lehren die wir entwickelt haben entstehen in der modernen Zeit mit dem Humanismus und der

Renaissance es ist daher notwendig abschlieszligend zu zeigen daβ hier eine urspruumlnglichere

philosophische Uumlberlieferung vorliegt die gegenuumlber der ausschlieszliglich bekannten mit Descartes

beginnenden Tradition des modernen Denkens obzwar durch sie unterdruumlckt ungebrochen und

selbstaumlndig besteht Viel zu lange wuumlrde uumlbersehen daβ zwei extreme verschiedene Traditionen in der

neuen Zeit sich gegenuumlberstehen die eine geht von Descartes aus und vertritt den Vorrang des Problems

des Wissens und der wissenschaftlichen Wahrheit die andere mit dem Humanismus und der Philologie

so wie sie in ihren Anfangen verstanden wurden einsetzend geht vom Problem der Vermittlung des

antiken Wortes aus und erstrebt nicht so sehr das Ideal des Wissens und des Wahren vielmehr das der

ldquosapientiardquoldquo Ernesto Grassi Verteidigung des individuellen Lebens Bern 1946 131 948

bdquoBei der Interpretation der Schrift Vicos uumlberrascht uns eines er sagt daβ das Ziel der ratio studiorum

uumlberall gegenwaumlrtig sein muumlsse Worin besteht nun dieses Ziel Es besteht in der Aufdeckung der

Nachteile des Rationalismus der den Ausgangspunkt der modernen Philosophie bildet Gibt es aber

neben diesem negative ndashpolemischen Ziel auch ein positives Die Schrift erstrebt die Verwirklichung des

neuen Bildungsideals welches ndash wie schon das humanistische von Bruni ndash die Entwicklung des ldquoganzenrdquo

Menschen beabsichtigtrdquo Ibidem 154 949

ldquoDie Faumlhigkeit uumlber das Subjektive hinauszugehen nennen wir ldquo Bildungrdquo Wir ldquobildenrdquo uns indem

wir ldquowerdenrdquo uns selbst gestalten individuelles Leben und Bildung sind daher innigst verknuumlpftrdquo

Ibidem 117

473

simultaneamente um estar na transcendecircncia como necessidade objectiva que

nos supera e conduz Este conceito humanista de cultura tem um fundamento

completamente diferente da questatildeo da ciecircncia que orienta o ideal cartesiano

de saber Ela fundamenta-se na poesia na retoacuterica e na filologia e esta

fundamentaccedilatildeo na linguagem daacute ao problema da cultura uma abertura

completamente diferente

Para Descartes a reconduccedilatildeo da pluralidade das ciecircncias agrave unidade do Eu

penso eacute uma questatildeo central enquanto para os humanistas a palavra na sua

originariedade e na sua multiplicidade eacute o fenoacutemeno a partir do qual se pode

abrir a questatildeo do ser e tambeacutem um novo ideal natildeo racionalista de cultura

Segundo Grassi a contraposiccedilatildeo entre este modelo de cultura Renascentista e

a concepccedilatildeo racionalista de cultura que se tornou dominante com Descartes

encontra-se teoricamente pensado nos escritos de Vico De ratione studiorum e

De antiquiacutessima italorum sapientia onde este pensador italiano compara o

meacutetodo de estudo dos modernos com o dos antigos tomando posiccedilatildeo contra o

cartesianismo

Aiacute Vico mostra que o ponto de partida dos estudos modernos eacute do problema

cartesiano da ciecircncia e a sua posiccedilatildeo criacutetica que partindo da duacutevida visa

alcanccedilar a certeza fundamentando-se numa primazia da verdade loacutegica e no

afastamento de tudo aquilo que eacute apenas verosiacutemil

De facto esta primazia do problema criacutetico isto eacute da problemaacutetica da fundaccedilatildeo

da ciecircncia implica na perspectiva de Descartes o afastamento de todas as

proposiccedilotildees verosiacutemeis como se se tratassem de proposiccedilotildees falsas e exige o

desenvolvimento exclusivo da razatildeo Contudo para Vico o verosiacutemil eacute a fonte

de um segundo tipo de experiecircncias e de revelaccedilatildeo do real a saber as da

acccedilatildeo praacutetica e da Retoacuterica que implicam e exigem o desenvolvimento da

totalidade das faculdades do homem como os sentidos a imaginaccedilatildeo e a

memoacuteria

O humanismo pedagoacutegico dos Jesuiacutetas natildeo soacute retoma o ideal renascentista de

cultura como escuta uma tradiccedilatildeo mais antiga que remonta a Ciacutecero O ideal

ciceroniano de cultura foi por eles recuperado e sistematizado por Vico como

perspectiva criacutetica relativamente ao cartesianismo ldquoEntatildeo esta concepccedilatildeo da

palavra e do discurso renasce no Humanismo italiano desde Petrarca

passando por Salutati ateacute Bruno e esta concepccedilatildeo fundamental mais tarde

474

manteacutem-se viva na apologia de Vico da arte do discurso Corresponde-lhe

tambeacutem o ideal que eacute decisivo para o Humanismo italiano da sabedoria em

vez do ideal da ciecircncia O que possui a sabedoria natildeo eacute considerado como

simples erudito ou como simples artista ou simples poliacutetico mas como homem

que procura trazer o sublime integralmente e em todas as formas agrave

apresentaccedilatildeo e efectivaccedilatildeo atraveacutes da obra De acordo com isto podemos

tambeacutem compreender tal como Ciacutecero em De Oratore chamava a atenccedilatildeo

que haacute muitos grandes poliacuteticos muitos poetas muitos cientistas mesmo

muitos filoacutesofos mas muito poucos oradores isto eacute aqueles que natildeo soacute falam

bem mas realizam a totalidade do homem na palavrardquo950

Como acima referimos esta concepccedilatildeo natildeo racionalista de cultura [Bildung] e a

sua ligaccedilatildeo ao ideal de realizaccedilatildeo integral do indiviacuteduo desempenham para

Grassi um papel chave para compreender a essecircncia da tradiccedilatildeo humanista

Eacute precisamente esta questatildeo chave da tradiccedilatildeo humanista que Vicente retoma

reclamando a concepccedilatildeo de cultura e de liberdade do Renascimento como

uma matriz do Ocidente que seria prioritaacuterio preservar Segundo Vicente o

ideal de homem divisado pelos pensadores do Renascimento eacute o de um ser

aberto a muacuteltiplas solicitaccedilotildees e objectividades um ser pluridimensional tendo

este ideal configurado o Ocidente como um Open World um mundo aberto

centrado numa noccedilatildeo autecircntica de liberdade951

Vicente vecirc no panteiacutesmo de Nicolau de Cusa com a sua concepccedilatildeo de um

Deus infinito que se desvela em imagens muacuteltiplas e historicamente

condicionadas o fundamento desta concepccedilatildeo renascentista de uma cultura

aberta agrave pluralidade de cultos divinos e de formas de vida e actividade do

homem numa evidente alusatildeo a uma matriz natildeo cristatilde deste humanismo ldquoA

doutrina panteiacutesta do Todo Uno eacute explicitamente aludida por Nicolau de Cusa

tendo a mais decisiva influecircncia na obra filosoacutefica de Giordano Bruno O

950

bdquoDiese philosophische Anschauung des Wortes und der Rede lebt dann in den italienischen

Humanismus wieder auf von Petrarca uumlber Salutati bis zu Bruni und spaumlter erhaumllt sich diese

Grundanschauung in Vicos Verteidigung der Redenkunst lebendig Ihr entspricht auch das Ideal des

Weisen statt des Wissenden das fuumlr den italienischen Humanismus entscheidend ist Der Weise wird

nicht als reiner Gelehrter oder als reiner Kuumlnstler oder als reiner Politiker betrachtet sondern als Mensch

der das Erhabene vollstaumlndig und in allen Formen durch das Werk zur Darstellung und Wirkung zu

bringen sucht Hieraus koumlnnen wir auch verstehen wieso Cicero im De Oratore darauf hinweisen konnte

daβ es viele groszlige Politiker viele Dichter viele Wissenschaftler selbst viele Philosophen gibt aber nur

ganz wenige Oratores dh solche die nicht nur gut reden sondern im Wort die Ganzheit des Menschen

verwirklichenldquo Ibidem 168 951

Cf Vicente Ferreira da Silva ldquoO Homem e a Liberdade na tradiccedilatildeo Humanistardquo in Dialeacutectica das

Consciecircncias e outros ensaios 454

475

pluriverso das contracccedilotildees divinas seria como voacutertices a conclamar os

desenvolvimentos divergentes da acccedilatildeo humana formas plurais do culto

divino tendo o homem sido artista teoacutelogo amante mago ou aventureiro

testemunhando sempre em seu discurso vital a forma tutelar que empolgara a

sua almardquo952

Na perspectiva de Vicente este humanismo renascentista considera que a

humanitas do homem seria precisamente a sua capacidade para revelar e

expor no discurso diversos aspectos do real traduzindo cada um a fascinaccedilatildeo

por um Weltaspekt num constante convite agrave liberdade de criaccedilatildeo e agrave

independecircncia das diversas artes e formas de actividade do homem

Este humanismo renascentista que Vicente coloca sob o signo de Proteu

aparece-lhe como tendo inspirado a ideia euro-americana de liberdade

entendida como possibilidade de instauraccedilatildeo de diversas ordens de realidade

ou vaacuterias ordens ocircnticas que natildeo podem ser derivadas umas das outras desde

o ente fiacutesico constituiacutedo pela ciecircncia ateacute agrave mitologia e agrave religiatildeo ldquoAs

possibilidades oferecidas ao espiacuterito em sua conversio infinita para o mundo

satildeo entretanto de diversas ordens ocircnticas de diversos estratos inconfundiacuteveis

desde o ente fiacutesico-real o ente biofiacutesico ateacute agraves maacuteximas manifestaccedilotildees da

fantasia da mitologia e da religiatildeo Todas essas variedades ocircnticas possuem e

guardam sua consistecircncia proacutepria sua configuraccedilatildeo eideacutetica e natildeo permitem

ser derivas ou construiacutedas a partir do estar-se material Este o erro

fundamental do positivismo em geral e do marxismo em especial que

desconhecendo intempestivamente o so-sein e o perfil proacuteprio das ordens

ocircnticas imaginou e imagina poder derivar as formas juriacutedicas ou o mundo do

pensamento da base material-econoacutemica da sociedaderdquo953

Salvaguardar esta disposiccedilatildeo para a Liberdade entendida no sentido de um

experimentar modos diferentes de ser e que legitima igualmente a mitologia a

religiatildeo e a ciecircncia como modos alternativos de desvelamento do ser eacute um

imperativo para a civilizaccedilatildeo euro-americana que aparece a Vicente ameaccedilada

nos seus fundamentos tanto pelo marxismo com o seu primado do econoacutemico

e a sua reduccedilatildeo do homem a uma consciecircncia trabalhadora como pela

doutrina positivista dos trecircs estados

952

Ibidem 454 953

Ibidem 455

476

Este exerciacutecio da liberdade como capacidade de movimentaccedilatildeo entre diversos

tipos de discursos coloca o homem perto do ser como potecircncia morfogeneacutetica

originaacuteria como poder instaurador das diversas regiotildees ocircnticas ldquoA liberdade

continua a constituir a raiz derradeira do homem mas essa liberdade eacute

primordialmente a liberdade transcendental isto eacute o poder de remontar ao

Entwurfbereich de intimizar-se e unificar-se com a liberdade instauradora ou

constitutiva do ente Antes de significar o poder de opccedilatildeo desembaraccedilada entre

isto eacute aquilo entre o campo das alternativas oferecidas eacute a liberdade em seu

sentido originaacuterio o reportar-se agrave opccedilatildeo de todas as opccedilotildees agrave abertura de um

campo opcionalrdquo954

Esta concepccedilatildeo de Liberdade que seria matriz do Ocidente e que foi

posta a claro pelo Renascimento italiano seria assim semelhante agrave concepccedilatildeo

heideggeriana de Liberdade como exposiccedilatildeo e entrega ao ser ldquoPodemos

definir neste sentido o conceito maacuteximo de liberdade ocidental usando a

consigna do meacutetodo fenomenoloacutegico ldquorumo agraves coisas mesmasrdquo para as

proacuteprias coisas Expor-se livremente agrave livre manifestaccedilatildeo do ente eacute o criteacuterio

superior de liberdade segundo a ceacutelebre definiccedilatildeo de Heidegger ldquoA liberdade

eacute primordialmente a entrega ao desvelamento do ente como tal A possibilidade

de um abandono agrave potecircncia do ente manifestado a possibilidade de reportar-

se desembaraccediladamente ao manifestado eacute o criteacuterio fundamental do ser-

livrerdquo955

Assim para Vicente o apogeu da tradiccedilatildeo humaniacutestica coincide com este

homem muacuteltiplo e proteico do Renascimento de que podemos observar uma

notaacutevel aproximaccedilatildeo no modernismo literaacuterio portuguecircs e brasileiro com a sua

apologia simultacircnea da teacutecnica da arte e da mitologia ou com o ldquoser tudo de

todas as maneirasrdquo que inspira a heteroniacutemia de Pessoa Esta concepccedilatildeo que

pensa aproximar-se de Heidegger eacute formulada por Vicente a partir de Grassi

neste termos ldquoO Homem eacute o Topos do Sich-offenbaren des Wirklichen ldquoEacute

nesse sentido que Ernesto Grassi em sua obra Verteitigung des individuellen

Lebens define a essecircncia humana enquanto liberdade como o topos do Sich-

954

Ibidem 453 955

Ibidem 455

477

offenbaren des Wirklichen O transcender da liberdade eacute um desembaraccedilar-se

um permitir que o ente seja ein Seinlassen des Seiendenrdquo956

O ocaso do Ocidente aparece assim vinculado agrave perda desta concepccedilatildeo do

homem proteico disposto para a liberdade criadora e para acolher agraves muacuteltiplas

revelaccedilotildees do ser pela imposiccedilatildeo duma concepccedilatildeo em tudo contraacuteria a esta

dum homem uacutenico e unidimensional de que o primado da teacutecnica e o ditado da

consciecircncia trabalhadora aparecem como sintomas

Vicente adverte numa espeacutecie de antecipaccedilatildeo profeacutetica da actual sociedade

de consumo e da ditadura do econoacutemico que qualquer pan-economismo se

converte em ameaccedila aos interesses da liberdade criadora do homem e que

toda a tentativa para impor a negatividade da consciecircncia e o ditado da

consciecircncia trabalhadora como um impeacuterio sobre todas as formas de actividade

humana ameaccedila o caraacutecter polivalente do homem como ser-histoacuterico e natildeo

permite responder aos actuais desafios da histoacuteria

Vendo na essecircncia do homem proposta pelo Renascimento o momento

decisivo em que o homem foi captado pela ldquoplenoxia coacutesmicardquo e na

recuperaccedilatildeo desse momento a via para que o Ocidente possa enfrentar os

desafios da histoacuteria Vicente reconhece com Grassi a importacircncia fundamental

que o humanismo renascentista tem para o pensamento actual

4 4 A nova religiatildeo coacutesmica e o ciclo natildeo humaniacutestico da

cultura

Vicente tal como Eudoro de Sousa interroga-se quanto ao significado dos

indiacutecios de decadecircncia e de exaustatildeo do actual ciclo civilizacional

perguntando-se ateacute quando continuaremos na Gottesferne Para Eudoro de

Sousa a possibilidade do niilismo estaacute inscrita no acircmago da histoacuteria como

tempo da recusa do homem e eacute o restabelecimento da unidade entre as trecircs

regiotildees ontoloacutegicas no triacircngulo do simboacutelico e da complementaridade que

pode levar agrave superaccedilatildeo da recusa primordial

Foi o evento catastroacutefico da morte de Deus que retirando Deus do Veacutertice fez

rebater os lados do triacircngulo sobre a base fazendo com que o tempo da

existecircncia humana se desenrole sobre uma recta em que Homem e Mundo se

956

Ibidem 453

478

enfrentam no combate e na oposiccedilatildeo de uma irredutiacutevel estranheza Apoacutes esse

acontecimento catastroacutefico a humanidade entrou numa fase de esquecimento

da origem e instalou-se na cisatildeo e na oposiccedilatildeo contrapotildeem-se natureza sem

espiacuterito espiacuterito sem natureza corpo sem alma alma sem corpo Deus sem

Homem e Homem sem Deus Eacute o tempo do Humanismo ou seja do

predomiacutenio da Metafiacutesica e das muacuteltiplas ciecircncias do triunfo do pensar

calculatoacuterio e manipulador da teacutecnica

As religiotildees satildeo para Eudoro de Sousa uma forma de reinstaurar o triacircngulo

simboacutelico e manter abertas as possibilidades de uma experiecircncia ontoloacutegica

alternativa957 Eacute na religiatildeo como um religare e em particular na celebraccedilatildeo

ritual que reside a possibilidade de reinstaurar a relaccedilatildeo entre o homem Deus

e o mundo como um triacircngulo em que os trecircs veacutertices se espelham

reciprocamente No ritual Deus colocado no veacutertice superior une o mundo e o

homem como duas polaridades que se atraem e se contrapotildeem num segmento

de recta e que se mantecircm unidas enquanto a Divindade estiver no veacutertice

ldquoEnquanto viva se mantenha no veacutertice a presenccedila de uma divindade ndash da que

triangulou um cosmos ndash nela se unem homem e mundo que um ou outro

pertencem na co-pertinecircncia dos trecircsrdquo958

Contudo na perspectiva de Vicente Ferreira da Silva esse recurso ao

simboacutelico natildeo estaacute imediatamente disponiacutevel para o homem actual dominado

pelo impulso da afirmaccedilatildeo da subjectividade que constantemente paralisa o

mundo e o confina ao puro ser-objecto A reinstauraccedilatildeo do simbolismo do ritual

nunca pode ser iniciativa do proacuteprio homem nem uma criaccedilatildeo da sua fantasia

Na perspectiva do pensador brasileiro quando o espiacuterito humano cria um

universo simboacutelico eacute porque jaacute se abriu previamente agrave revelaccedilatildeo de uma

presenccedila transcendente e se instaurou uma nova epifania Porque ldquoas

metamorfoses do siacutembolo constituem a forccedila imanente agrave imaginatio Divina a

forccedila de uma operaccedilatildeo proteiforme e erraacutetica que natildeo obedece a outra lei

senatildeo agrave da proacutepria metamorfoserdquo959 eacute impossiacutevel saber quando a reinstauraccedilatildeo

de uma qualquer ordem simboacutelica teraacute lugar ou como adviraacute esse ldquopocircr-se em

957

Eudoro de Sousa Mitologia Histoacuteria e Mito 322 958

Eudoro de Sousa Mitologia Histoacuteria e Mito 251 959

Vicente Ferreira da Silva ldquoA Natureza do simbolismordquo Revista Brasileira de Filosofia nordm 48 1962 in

Dialeacutectica das Consciecircncias e outros ensaios 458

479

imagemrdquo do simbolismo mas este seraacute sempre o encontro com uma realidade-

natildeo-feita-pelo homem

Vicente especula no entanto sobre o que aconteceria se pudeacutessemos libertar-

nos da escravidatildeo do pensamento cientiacutefico e da manipulaccedilatildeo teacutecnica das

coisas afirmando que elas sofreriam uma metamorfose passando a existir

numa forma excecircntrica e difusa como manifestaccedilotildees de forccedilas supra-naturais

ldquoAcontece que na visatildeo simboacutelica do mundo as antigas coisas da visatildeo

cientiacutefico-manipuladora transformar-se-iam em princiacutepios erraacutetico-vitais em sua

produtividade inabalaacutevelrdquo960

Vicente admite que essa metamorfose daria origem a um novo mundo no qual

poderiacuteamos voltar a captar o divino reafirmando como Tales que ldquotudo estaacute

cheio de Deusesrdquo Natildeo se trata da possibilidade de um puro e simples regresso

agraves antigas cosmogonias mas certamente de um regresso ao politeiacutesmo ligado

agrave percepccedilatildeo do universo como uma pluralidade de formas vivas ldquoPorque

devemos admitir que um soacute aspecto da realidade eacute divino O monoteiacutesmo eacute

uma reduccedilatildeo das possibilidades da existecircncia Deveriacuteamos dizer com Tales

ldquotudo estaacute cheio de deusesrdquo Estamos convocados para uma poliatria nesta

clareira do existirrdquo961

Este politeiacutesmo anunciado por Vicente fundamenta-se na concepccedilatildeo de Walter

Otto dos vaacuterios deuses como diferentes Weltaspekten cada um instaurando

uma ordem desvelando um aspecto do mundo e convocando o homem para

um certo tipo de desempenhos e eacute totalmente consentacircneo com a ideia de

cultura e de Liberdade do humanismo renascentistas de que Vicente fazia a

apologia

Vicente referia-se a esse mundo a vir como ldquoum ciclo natildeo humaniacutestico da

culturardquo o que deve ser entendido como um ciclo da cultura natildeo dominado pelo

antropocentrismo uma eacutepoca da histoacuteria do mundo em que outras epifanias

teratildeo lugar e em que o homem deixaraacute de ser a uacutenica forma de manifestaccedilatildeo

do divino

Segundo o pensador brasileiro esta possibilidade de um ciclo natildeo humaniacutestico

da cultura pode ser pressentida na filosofia de Heidegger devido ao facto do

pensador alematildeo ter contestado a metafiacutesica da subjectividade e retirado a

960

Ibidem 461 961

Vicente Ferreira da Silva ldquoDiaacuterio filosoacuteficordquo in Dialeacutectica das Consciecircncias e outros ensaios 498

480

consciecircncia da sua situaccedilatildeo axial mostrando que ela eacute algo jaacute posto por um

desvelamento preacutevio ldquoO pensamento que ora desponta afirma entretanto que

todo o oferecido inclusive o oferecido dos poderes consciencioloacutegicos flui de

uma dimensatildeo instauradora primordial ou ainda de um processo desvelante

omnicompreensivo O deslocamento da consciecircncia de sua situaccedilatildeo axial e

sua transcriccedilatildeo em termos de um jaacute oferecido de um oferecer primordial eacute o

sinal indeleacutevel de um novo ciclo natildeo humaniacutestico da culturardquo 962

A acentuaccedilatildeo da finitude humana na filosofia heideggeriana constitui para

Vicente um marco decisivo na histoacuteria do pensamento ocidental porque agora

o homem pode pensar-se como um ser atirado e abandonado como uma ldquores

derelictardquo que usufrui apenas de certos poderes porque estes lhe foram

confiados por um desvendamento preacutevio ou por um certo envio do ser

Esta viragem que Heidegger operou no campo da filosofia retirando o homem

da sua posiccedilatildeo hegemoacutenica face agrave totalidade dos entes e estabelecendo-o no

lugar de um modesto ldquopastor do serrdquo eacute para Vicente natildeo apenas a abertura

de novas possibilidades para o pensar humano - ela eacute antes de mais um

sintoma de uma viragem que estaacute presumivelmente a ser operada a um niacutevel

meta-histoacuterico pelo poder desocultante e pela transcendecircncia projectante do

ser que traccedilaratildeo os contornos de uma nova epocalidade do divino e nela

lanccedilaratildeo o homem consignando-lhe novos desempenhos e poderes ldquoEm todo

o caso o deslocamento da consciecircncia do seu papel de fenoacutemeno axial e a

sua transcriccedilatildeo em termos de um oferecido jaacute eacute o sinal de uma comoccedilatildeo a

partir da histoacuteria do Ser Estamos na fase do pensamento submersivo ou

resolutivo do ente humano - na Wendung meta-histoacuterica a reconduccedilatildeo das

possibilidades expressas ou ainda exprimiacuteveis ndash a histoacuteria planetaacuteria ndash agrave Fonte

miacutetica do manifestadordquo963

Para Vicente o humanismo antropocecircntrico esquecendo a finitude do homem

convocou-o para a freneacutetica acccedilatildeo transformadora da histoacuteria que o distanciou

cada vez mais da fonte miacutetica originaacuteria Podemos por isso adivinhar - pensa

Vicente - que esta ldquoWendung meta-histoacutericardquo ou este novo envio do ser teraacute

que ser uma reconduccedilatildeo do homem agrave ldquoFonte miacuteticardquo genericamente pensada

962

Vicente Ferreira da Silva ldquoO Ocaso do Pensamento Humaniacutesticordquo in Dialeacutectica das Consciecircncias e

outros ensaios 447448 963

Vicente Ferreira da Silva rdquoTeologia e Mitologiardquo in Dialeacutectica da Consciecircncia e Outros Ensaios549

481

como uma reintegraccedilatildeo ontoloacutegica do homem uma articulaccedilatildeo da histoacuteria

planetaacuteria com as conexotildees coacutesmico-divinas

Extinguindo-se a radicaccedilatildeo metafiacutesica do homem em si mesmo ele poderaacute

aceder a outra interpretaccedilatildeo emocionalmente consignante de si mesmo

assumindo a sua finitude ou o seu ser ex-alio Esse reconhecimento que hoje

abre caminho jaacute na filosofia eacute que anuncia para Vicente uma futura religiatildeo

coacutesmica ldquoTodo o nosso ser eacute de empreacutestimo eacute uma delegaccedilatildeo de poderes

um usufruto ontoloacutegico que descansa no seu legataacuterio Entretanto esse

confisco metafiacutesico eacute o primeiro sinal da religiatildeo coacutesmica por virrdquo964

Esta religiatildeo coacutesmica natildeo poderaacute caber nas categorias da actual teologia que

se desenvolveu na eacutepoca residual de natildeo presenccedila do divino e que foi

marcada pela reduccedilatildeo de todos os entes inclusivamente do ente divino agrave

objectividade Em todo o caso Vicente arrisca os traccedilos do que seria essa

nova religiatildeo coacutesmica natildeo concebiacutevel no acircmbito da teologia o novo sentimento

divino seraacute um sentimento de pertinecircncia do homem agravequilo que eacute o seu

fundamento um volver-se para proveniecircncia transcendente do seu ser uma

intimizaccedilatildeo do homem com o sagrado ldquoNatildeo existiria uma sociedade humana

em relaccedilatildeo a um sagrado uma separaccedilatildeo que se unificaria mas uma unidade

como descanso do Deus ou dos deuses em sua forma totalizadorardquo965

Vicente antevecirc assim a recuperaccedilatildeo duma vivecircncia espontacircnea e imediata do

sagrado agrave semelhanccedila do retorno a uma sociedade sem mediaccedilatildeo sacerdotal

preconizada por Agostinho da Silva como regresso agrave Idade do Ouro E adianta

como Eudoro de Sousa que a diluiccedilatildeo da acccedilatildeo humana na ordem miacutetica

levada a cabo pelo rito manteria o mundo aberto agrave presenccedila dos deuses e

convocaria os desempenhos humanos envolvendo-os nessa presenccedila e

integrando-os na vida da natureza

Esta religiatildeo coacutesmica situar-se-ia num outro acircmbito que natildeo o da negatividade

da histoacuteria humana pois afirmar-se-ia como pura tautologia ou como uma

permanente reafirmaccedilatildeo do mesmo ldquoEssa verdade como aspecto aberto do

mundo como Poder eacute o nunc stans onde tudo o que ocorre eacute o seu occorrer

[hellip] o confisco do particular ou histoacuterico pelo fundamento supotildee uma reversatildeo

em que as possibilidades desaparecem no esse Como as estaacutetuas das ilhas

964

Ibidem 550 965

Ibidem 551

482

de Pascoa formas parmeniacutedicas do esse que mantecircm descerrada uma

concepccedilatildeo de vidardquo

Renunciando a explicitar discursivamente essa nova vivecircncia do sagrado cujos

contornos ainda natildeo foram desvelados Vicente propotildee que procuremos aceder

a ela a partir da nossa experiecircncia da Muacutesica como celebraccedilatildeo ldquoPodemos

entretanto vislumbrar no universo da Muacutesica a vida ainda pletora das suas

possibilidades O homem que vivia no interior do rito (a festa religiosa) estava

radicado no espaccedilo jubiloso da Muacutesica no entusiasmo revelador da expressatildeo

musical O mundo natildeo se manifestaria entatildeo seco e deserto como agora natildeo

mostraria unicamente o recorte de uma acccedilatildeo manipuladora [] mas

resplandeceria em sua gloacuteria Natildeo um mundo de factos mas de celebraccedilatildeo e

como celebraccedilatildeo fenoacutemeno puramente musical A pleonexia musical traria a

Umgang mit der Gotter no universo fecundo e livre da musicalidade no Aberto

(Rilke) da vida preacute-cristatilde Natildeo seriacuteamos sujeitos nem objectos mas uma vida

celebrante um corpo-dramardquo966

Para Vicente a Muacutesica eacute a meta-linguagem onde os deuses os homens e a

natureza podem co-celebrar a sua unidade como o mesmo corpo dramaacutetico

posto em acccedilatildeo pelo drama ritual experiecircncia dionisiacuteaca de unidade ontoloacutegica

que eacute para Vicente Ferreira da Silva como para Eudoro de Sousa a

experiecircncia do Outrora como a Outra hora dos Deuses que permanece por

agora aqueacutem e aleacutem da histoacuteria

Vicente natildeo propotildee no entanto o regresso a nenhuma foacutermula religiosa do

passado limitando-se a destacar o novo sentimento e a nova compreensatildeo do

divino que se abrem na filosofia contemporacircnea ele pensa que podemos agora

pensar o divino livre das antigas categorias da metafiacutesica ou ainda do quadro

das antigas experiecircncias miacutesticas tendo o caminho aberto para uma

compreensatildeo mais ampla do fenoacutemeno religioso jaacute natildeo limitado ao

particularismo das relaccedilotildees teacircndricas

Para esta possibilidade a contribuiccedilatildeo de Heidegger teria sido decisiva de

facto Vicente vecirc a ldquohistoacuteria do serrdquo - pensada por Heidegger como a sucessatildeo

dos develamentos histoacuterico-temporais da verdade que arrebatam o homem e

instituem uma eacutepoca histoacuterica - como a seacuterie das teodicieas singulares de que

o mito teacircndrico eacute uma etapa transitoacuteria

966

Ibidem 552

483

No entanto precisar as formas dessa nova religiatildeo coacutesmica parece-lhe

impossiacutevel porque as formas e siacutembolos religiosos satildeo instaurados por essa

dimensatildeo meta-histoacuterica da histoacuteria do ser a que natildeo temos acesso ldquoO terreno

proacuteprio do pensamento teoloacutegico e o seu processo interno eacute a dimensatildeo da

verdade do ser Desta dimensatildeo promanam as formas em que se diversifica o

princiacutepio religioso Eacute a dimensatildeo da Imaginatio Divinardquo967

Contudo na Carta Sobre o Humanismo a que Vicente muacuteltiplas vezes se

refere nenhuma religiatildeo coacutesmica eacute proposta e a questatildeo da religiatildeo e do

sagrado natildeo estaacute em discussatildeo ldquoCom a determinaccedilatildeo existencial da essecircncia

do homem por isso ainda nada estaacute decidido sobre ldquoa existecircncia de Deusrdquo ou

o seu ldquonatildeo-serrdquo como tatildeo pouco sobre a possibilidade ou impossibilidade de

deusesrdquo968

Heidegger indica claramente que a questatildeo de reconduzir o pensar homem agrave

proximidade do ser eacute uma questatildeo preacutevia e fundante relativamente agrave

possibilidade de se vir pensar a essecircncia do sagrado ldquoSomente a partir da

verdade do ser se deixa pensar a essecircncia do sagrado E somente a partir da

essecircncia do sagrado deve ser pensada a essecircncia da divindade E finalmente

somente agrave luz da essecircncia da divindade pode ser pensado e dito o que deve

nomear a palavra ldquoDeusrdquordquo969

Pelo contraacuterio esta religiatildeo coacutesmica eacute antecipada pela temaacutetica houmllderliniana

dos deuses vindouros e mais incisivamente pela nova poesia portuguesa que

Fernando Pessoa designava como Panteiacutesmo transcendental

Assim e embora visando com a sua criacutetica ao ldquomitologema cristatildeordquo um aspecto

importante da religiosidade de alguns dos autores da Nova Poesia Portuguesa

Vicente acaba por encontrar-se com um outro aspecto importante e mais geral

da nova sensibilidade poeacutetico-religiosa desta corrente literaacuteria Nas Tendecircncias

de Antero na Ideia de Deus de Sampaio Bruno no Caminho do Ceacuteu de

Junqueiro no poema Maranus de Teixeira de Pascoaes no poema Gritos de

967

Ibidem 547 968

ldquoMit der existenzialen Bestimmung des Wesens des Menschen ist deshalb noch nichts uumlber das

bdquoDasein Gottesldquo oder sein bdquoNicht-Seinldquo ebensowenig uumlber die Moumlglichkeit oder Unmoumlglichkeit von

Goumlttern entschiedenldquo Buh GA 9 350 969

Erst aus der Wahrheit des Seins laumlβt sich das Wesen des Heiligen denken Erst aus dem Wesen des

Heiligen ist das Wesen von Gottheit zu denken Erst im Lichte des Wesens von Gottheit kann gedacht

und gesagt werden was das Wort bdquoGottldquo nennen sollrdquo Buh GA 9 351

484

Dora encontra-se anunciada uma nova religiosidade para o qual todo o cosmos

surge como uma teofania e eacute esboccedilada uma moral que assinala ao homem

como primeiro dever o de ldquouma fraternidade coacutesmicardquo

Vicente Ferreira da Silva com este anuacutencio profeacutetico de uma nova eacutepoca

histoacuterica e de uma religiatildeo coacutesmica pensa a histoacuteria de acordo com o arqueacutetipo

da reintegraccedilatildeo que referimos como uma das caracteriacutesticas da nossa tradiccedilatildeo

poeacutetica e pode portanto ser nela integrado como um dos pensadores mais

originais

4 5 Vicente Ferreira da Silva eacute um pensador anti-

humanista

Num conjunto de conferecircncias proferidas no Centro de Cultura Medieval e

Renascentista do Barnard College publicados em 1982 com o tiacutetulo Heidegger

and the question of Renaissance Humanism Grassi apresenta-nos uma visatildeo

sinteacutetica dos seus estudos sobre o humanismo italiano mostrando o

fundamento a partir do qual ele legitima a tradiccedilatildeo humanista como tradiccedilatildeo

filosoacutefica

Grassi pretende recuperar o sentido histoacuterico preciso do termo ldquoHumanismordquo

reservando-o para designar o movimento filosoacutefico que caracterizou o

pensamento italiano entre a segunda metade do seacuteculo XIV e os finais do

seacuteculo XV A traduccedilatildeo de Ficino de Platatildeo no fim do seacuteculo XV e a metafiacutesica

especulativa de matriz platoacutenica que se lhe seguiu marcariam uma ruptura com

o humanismo italiano que continuou a ser cultivado esporadicamente ateacute ao

seacuteculo XVIII sendo entatildeo retomado e aprofundado por Vico em cuja obra se

encontra pensado nas suas implicaccedilotildees filosoacuteficas970

Para aleacutem desta delimitaccedilatildeo histoacuterica Grassi apresenta uma nova abordagem

do humanismo retirando a sua discussatildeo do acircmbito literaacuterio apesar de muitas

das suas obras se situarem no acircmbito da poesia da filologia e da retoacuterica e

abordando-o de um ponto de vista estritamente filosoacutefico971

Esta nova abordagem eacute hoje possiacutevel afirma Grassi porque temos ldquoa

consciecircncia de que a filosofia chegou ao fim enquanto Metafiacutesicardquo Em O Fim

970

Cf Ernesto Grassi Heidegger and the Question of Renaissance Humanism Four Studies 9 971

Cf Ibidem 9

485

da Filosofia e a Tarefa do Pensar (Zeit und Sein 1962) Heidegger defende que

a filosofia teria atingido no presente as suas mais extremas possibilidades

como tentativa de responder agrave questatildeo do ser dos entes atraveacutes de um

processo de inferecircncia racional mas nesse mesmo ensaio sublinha Grassi o

pensador alematildeo defende que passou para primeiro plano o problema mais

originaacuterio do desvendamento do ser ou da verdade como aletheia ldquoPara

resumir esta tese uma vez mais a metafiacutesica tradicional deve hoje chegar ao

fim porque ela comeccedilou com a questatildeo da fundamentaccedilatildeo racional daquilo que

eacute No lugar da questatildeo da verdade loacutegica explica Heidegger deve tomar lugar

o problema mais originaacuterio do natildeo estar encoberto a questatildeo da clareira

(αιήζεηα) na qual ldquoo que eacuterdquo primeiramente aparece Aqui surge uma nova tarefa

para a filosofia defender a primazia e o caraacutecter originaacuterio da linguagem

poeacutetica relativamente agrave linguagem racionalrdquo972

Neste contexto jaacute natildeo eacute necessaacuterio perguntar pelo que eacute na forma tradicional

da metafiacutesica racional mas antes impotildee-se o perguntar pelo processo

originaacuterio pelo qual o ser do que eacute se torna ldquoabertordquo se revela e aparece A

tese decisiva de Heidegger eacute que em relaccedilatildeo a esta questatildeo natildeo eacute a palavra

loacutegica que tem primazia como na metafiacutesica tradicional mas eacute a palavra

poeacutetica e metafoacuterica que possui o poder originaacuterio de abrir uma clareira

Na perspectiva de Grassi o humanismo italiano assume uma particular

significaccedilatildeo e importacircncia histoacuterica para o presente em conexatildeo com esta tese

heideggeriana relativa ao fim da filosofia com a sua tese da dimensatildeo filosoacutefica

da palavra poeacutetica ele rompe com a tradiccedilatildeo metafiacutesica inaugurada por

Aristoacuteteles e retomada pelos medievais para a qual as linguagens retoacuterica e

poeacutetica satildeo excluiacutedas do campo das ciecircncias teoreacuteticas Esta tradiccedilatildeo fundada

na primazia da deduccedilatildeo racional dos entes persiste ao longo de toda a histoacuteria

do pensamento ocidental sendo reafirmada por Descartes e pelo idealismo

alematildeo em todos estes momentos da histoacuteria da filosofia se reafirmou o

mesmo modelo loacutegico de inteligibilidade do real e se excluiu da filosofia natildeo

972

ldquoTo summarize this thesis once again traditional metaphysics must today come to an end because it

began with the question of the rational foundation of what is In place of the question of the logical truth

Heidegger explains the much more original problem of unhidenness must take its place the question of

ldquoclearingrdquo (αιήζεηα) in which ldquowhat isrdquo first appears Here a new task for philosophy arises to uphold the

primacy and originality of poetic language over rational languageldquo Ibidem 26

486

apenas a retoacuterica mas toda a forma de pensamento metafoacuterico e imageacutetico

incluindo o pensamento poeacutetico como uma mera arte de persuasatildeo973

A tradiccedilatildeo humanista rompe com esta tradiccedilatildeo metafiacutesica e antecipa as teses

da primazia da linguagem poeacutetica e metafoacuterica relativamente agrave linguagem

loacutegica que encontramos em Heidegger 974

Grassi mostra que o ponto de vista de Heidegger contra o humanismo na sua

ceacutelebre Carta sobre o Humanismo se explica pela situaccedilatildeo hermenecircutica

dominante ou seja pela interpretaccedilatildeo jaacute estabelecida do humanismo italiano

esforccedilando-se por mostrar os fundamentos filosoacuteficos desse ponto de vista

universalmente aceite relativamente ao seu significado ldquoDesde o iniacutecio dos

estudos sobre o Humanismo haacute um seacuteculo com Burckhardt e Voigt ateacute

Cassirer Gentile e Garin os teoacutericos viram a essecircncia do Humanismo na

redescoberta do homem e dos seus valores imanentes Esta interpretaccedilatildeo

largamente disseminada eacute por exemplo a razatildeo pelo qual Heidegger - como

veremos - repetidamente entrou em poleacutemicas contra o humanismo como um

ingeacutenuo antropomorfismordquo975

Grassi contesta essa criacutetica de Heidegger defendendo que ela tem como

suporte quer as ambiguidades relativas agrave vigecircncia histoacuterica do humanismo

(geralmente identificado com o neoplatonismo e o renascimento do

aristotelismo do seacuteculo seguinte) quer a deslocaccedilatildeo da sua problemaacutetica

central que natildeo eacute o homem mas sim a questatildeo da linguagem como contexto

originaacuterio ou o horizonte de abertura no qual ele aparece

Este problema inteiramente novo e extriacutenseco agrave tradiccedilatildeo filosoacutefica natildeo foi

resolvido pelo humanismo atraveacutes de uma confrontaccedilatildeo loacutegica com a tradiccedilatildeo

metafiacutesica mas por meio de uma anaacutelise e interpretaccedilatildeo da linguagem em

especial da linguagem poeacutetica iniciada por poetas e natildeo por filoacutesofos Dante

d‟Alighieri em De vulgare Eloquentia et Convivio formulou pela primeira vez a

tese segundo a qual o poeta eacute o fundador da comunidade e por isso eacute ele o

que abre o caminho da historicidade tese retomada por outros humanistas

973

Ibidem17 974

Ibidem 17-18 975

ldquoFrom de beginning of the study of Humanism a century ago with Burckhart and Voigt to Cassirer

Gentile and Garin scholars have seen the essence of Humanism in the rediscovery of man and his

immanent values This widespread interpretation is for example the reason why Heidegger ndash as we will

see ndash repeatedly engaged in polemics against Humanism as a naiumlve anthropomorphismldquo Ibidem 17

487

como Boccacio e Salutati para os quais na linguagem poeacutetica aparecem na

sua significaccedilatildeo original os deuses as coisas e as criaturas significaccedilatildeo esta

que assume diferentes configuraccedilotildees histoacutericas

O humanismo italiano jaacute natildeo discute a questatildeo da relaccedilatildeo entre o pensamento

e a realidade no acircmbito duma concepccedilatildeo loacutegica de verdade mas sim o

aparecimento histoacuterico e a revelaccedilatildeo na linguagem de um novo mundo Foi a

incapacidade de entender e valorizar esta nova abordagem que induziu numa

avaliaccedilatildeo errada do significado histoacuterico e filosoacutefico da tradiccedilatildeo humanista ldquoSoacute

porque a pesquisa teoacuterica natildeo reconheceu suficientemente nem valorizou esta

nova abordagem e olhou sobretudo para os problemas teoacutericos e metafiacutesicos

no acircmbito da relaccedilatildeo entre o mundo e o pensamento foi possiacutevel teoacutericos como

Cassirer Curtius and Kristeller negarem que o Humanismo tivesse tido uma

significaccedilatildeo filosoacutefica decisiva e admitirem apenas o pensamento platoacutenico de

Ficino e o Aristotelismo da Renascenccedila como representativos da filosofia do

tempordquo976

Partindo destas consideraccedilotildees histoacutericas e teoacutericas Grassi conclui que a

definiccedilatildeo heideggeriana do pensamento ocidental como deduccedilatildeo metafiacutesica

exclusivamente fundada no problema da relaccedilatildeo entre o pensamento e a

realidade no quadro de uma concepccedilatildeo loacutegica da verdade natildeo eacute totalmente

correcta Na tradiccedilatildeo humanista existiu sempre uma preocupaccedilatildeo central pelo

problema do desvendamento e da abertura na qual o ser-aiacute pode

historicamente aparecer

Por esta razatildeo eacute necessaacuterio rever as nossas categorias histoacutericas e acima de

tudo questionar as noccedilotildees de humanismo e a sua identificaccedilatildeo com a

descoberta do homem e das suas capacidades antropomoacuterficas que

Heidegger recebeu da interpretaccedilatildeo instituiacuteda e que depois criticou

repetidamente

Grassi mostra que a tradiccedilatildeo humanista fundada na relaccedilatildeo com os autores da

Antiguidade no culto da poesia e da retoacuterica que dominou o pensamento

italiano no Renascimento e se prologou na eacutepoca do Barroco e do Maneirismo

976

ldquoOnly because scholarly research has not sufficiently recognized and appraised this new approach and

has looked must of all for metaphysical ant theoretical problems concerning the relationship between the

world and thought could such scholars as Cassirer Curtius and Kristeller deny that Humanism had a

decisive philosophical significance and admit only Ficino‟s Platonic thought and Renaissance

Aristotelianism as representative of the philosophy of the timerdquo Ibidem 1718

488

ateacute Vico e com a qual Descartes rompe explicitamente no Discurso do Meacutetodo

tem um significado filosoacutefico absolutamente decisivo e abre um campo

especulativo de grande interesse para o pensamento contemporacircneo pois

essa tradiccedilatildeo traz para primeiro plano a questatildeo da linguagem e permite

manter aberto o problema metafiacutesico da relaccedilatildeo entre o homem e o ser ldquoA

linguagem filosoacutefica jaacute natildeo eacute entendida como racional mas como aquela

linguagem atraveacutes da qual e na qual haacute uma clareira (Lichtung) na qual uma

idade uma autoridade um costume ou uma instituiccedilatildeo pode aparecer e

assumir o poder e na qual a sua natureza perigosa pode aparecer Em vez do

problema da verdade loacutegica como correspondecircncia (adaequatio) haacute a

necessidade de considerar o problema da ldquoemergecircnciardquo do ldquoaparecimentordquo ou

fainestai Em lugar da questatildeo da ratio e do seu meacutetodo de inferecircncia racional

noacutes enfrentamos a questatildeo da estrutura do ingenium no tratamento de Vives ou

de Gracian questatildeo que entatildeo se torna o toacutepico central do Maneirismo de

Tesauro e Pellegrini e finalmente em Vico Este eacute o problema da

ldquodesocultaccedilatildeordquo ou ldquodesvelamentordquo do realrdquo977

Se nos mantivermos no acircmbito desta concepccedilatildeo de humanismo proposta por

Ernesto Grassi teremos que reconhecer que este humanismo fundado na

primazia da linguagem poeacutetica e metafoacuterica teve uma importante presenccedila na

cultura portuguesa natildeo apenas no Renascimento onde a influecircncia italiana foi

notoacuteria mas ainda na retoacuterica do barroco

Estas teses da primazia da linguagem poeacutetica e metafoacuterica assim como o ideal

de cultura do homem integral salientados por Grassi como caracteriacutesticos do

humanismo italiano tiveram uma importante presenccedila entre noacutes atraveacutes da

pedagogia dos jesuiacutetas e da retoacuterica barroca como atraacutes demonstraacutemos Ora

estas teses foram recuperadas no princiacutepio do seacuteculo XX pelo movimento da

Nova Renascenccedila organizado em torno da revista Aacuteguia e estatildeo presentes no

977

Philosophical language is no longer understood as rational but as that language through which and in

which there is a ldquoclearingrdquo (Lichtung) in which an age an authority a custom or an institution can appear

and assume power and in which its dangerous nature can appear Instead of the logical problem of truth as

correspondence (adaequatio) there is a need to consider the problem of ldquoemergencerdquo or φαηνζζαη In

place of the question of ratio and its inferential method we face the question of the structure of the

ingenium in the treatment of Vives or Gracian a question that then becomes the main topic of thought in

the Mannerism of Tesauro and Pellegrini and finally in Vico This is the problem of the ldquouncoveringrdquo or

ldquounveilingrdquo of the realrdquo Ibidem 30

489

pensamento poeacutetico de Pascoaes978 tendo influenciado diversos pensadores e

poetas do seacutec XX com particular destaque para Fernando Pessoa979Vicente

Ferreira da Silva pela sua apologia dos mitos com Ur-poesie e ainda pela

defesa do ideal renascentista de cultura aproxima-se notavelmente desta

corrente e duma forma geral daquilo que Ernesto Grassi tipifica como

ldquohumanismordquo

Natildeo podemos deixar de reconhecer contudo que o pensador brasileiro se

confronta polemicamente com uma das temaacuteticas centrais da Renascenccedila

Portuguesa a reconciliaccedilatildeo entre o cristianismo miacutetico e o paganismo Sob o

signo da unidade entre Jesus e Patilde980 Pascoaes anuncia um novo tipo de

Homem fundado na siacutentese harmoniosa de duas grandes tradiccedilotildees que estatildeo

na raiz da cultura europeia o naturalismo da antiguidade claacutessica e a

espiritualidade cristatilde Jesus e Patilde configuram o enraizamento do homem na

natureza e a redescoberta da sacralidade da vida de que o discurso da

modernidade racionalista e poacutes cartesiana nos desviou

Eacute a possibilidade desta reconciliaccedilatildeo que estaacute presente tambeacutem no

pensamento escatoloacutegico de Agostinho da Silva981 do regresso agrave Idade do

Ouro e ecoa tambeacutem na poesia de Dora Ferreira da Silva De facto na sua

colectacircnea de poemas Uma Via de Ver as Coisas de 1973 encontramos a

mesma singular sobreposiccedilatildeo de paganismo grego e cristianismo evocando-se

as divindades gregas de Apolo Afrodite Mnemosineacute sendo no poema

ldquoSemprerdquo evocados momentos da paixatildeo de Cristo sob os tiacutetulos ldquoJesus leva a

Cruzrdquo ldquoFlagelaccedilatildeordquo ldquoCrucificaccedilatildeordquo

Em Talhamar de 1982 domina a omnipresenccedila do mar e da luz assim como da

mitologia grega e egiacutepcia (Poseidon Aacutertemis Afrodite Nakt Apolo Osiacuteris) na

estranha vizinhanccedila do Brasil cristatildeo da noite de Natal na missa no uacuteltimo dia

do ano

978

Pascoaes natildeo soacute defende a funccedilatildeo de abertura de mundo da linguagem poeacutetica reivindicada pelos

poetas italianos renascentistas como esse ideal de homem total que Grassi considera tiacutepico do

Renascimento italiano Cf Teixeira de Pascoaes O Homem Universal Lisboa 1937 979

Sobre este ideal de homem total na obra de Pessoa e a sua relaccedilatildeo com a heteroniacutemia cf Eduardo

Lourenccedilo Fernando Pessoa Rei da Nossa Baviera Lisboa 2008 196-201 980

Cf Teixeira de Pascoaes As sombras Agrave ventura Jesus e Patilde Lisboa 1996159-199 981

Comentando a oposiccedilatildeo de Agostinho da Silva tanto agrave noccedilatildeo de ortodoxo como de heterodoxo Braz

Teixeira mostra o pensamento de Agostinho da Silva como paradoxo que visa pensar os contraacuterios sendo

esse pensamento paradoxal que procura pensar o divino originaacuterio que se mostra tanto nos deuses do

paganismo como no deus uno e trino do cristianismo Cf Braz Teixeira ldquoAgostinho da Silva e o

pensamento russo algumas convergecircncias e afinidadesrdquo in Agostinho da Silva Pensador do Mundo a

Haver 91-98

490

Em ldquoCiclo da Montanhardquo englobado em Poemas da Estrangeira de 1995 a

mesma religiosidade de matriz teluacuterica associada agraves rochas aos rios agrave

ldquofloresta em chamasrdquo aparece estranhamente acompanhada pela evocaccedilatildeo

cristatilde da natividade em ldquoNoite de Natalrdquo

Em Eudoro de Sousa a criacutetica agraves religiotildees instituiacutedas e ao cristianismo como

tradiccedilatildeo acompanha a sua criacutetica ao mito teacircndrico982 mito que instala o

homem no pensamento categorial isto eacute na cisatildeo entre o humano o

sobrenatural e o natural Como superaccedilatildeo do mito teacircndrico Eudoro propotildee a

desumanizaccedilatildeo do homem983 entendida como disponibilidade para vir a ser

mais do que eacute para o regresso a uma religiosidade miacutetica e ritual capaz da

reinstauraccedilatildeo do ldquotriacircngulo do simboacutelico e da complementaridaderdquo a que acima

jaacute aludimos

Esta reinstauraccedilatildeo do simboacutelico eacute para Eudoro de Sousa o renascimento de

todas as religiotildees entendidas na sua dimensatildeo ritual isto eacute entendidas como

representaccedilatildeo dramaacutetica que celebra a unidade do divino do humano e da

natureza - cabendo aqui naturalmente o cristianismo (tomado numa dimensatildeo

miacutetica e ritual) ldquoReligiatildeo eacute representaccedilatildeo dramaacutetica E a representaccedilatildeo

consiste toda ela na construccedilatildeo de um daqueles triacircngulos do simboacutelico e do

complementar contanto que se ponha no veacutertice superior um deus algum

deus ou o proacuteprio Deusrdquo984

Eacute relevante ter em conta que Dora e Vicente visitaram frequentemente o grupo

Itatiaia comunidade de intelectuais brasileiros formada por Agostinho da Silva

nos anos 40 que tinha a sua sede num antigo mosteiro beneditino obedecia a

uma regra de vida comum tentando uma siacutentese entre paganismo e

cristianismo Embora natildeo participando da utopia de Itatiaia Dora e Vicente

deslocavam-se aiacute frequentemente a fim de conversar e filosofar com os

intelectuais presentes985

Eacute imperioso reconhecer a centralidade da criacutetica de Vicente ao Cristianismo

como a sua tese sobre a oposiccedilatildeo irreconciliaacutevel entre a parusia do homem e o

982

Este pseudo-mito segundo Eudoro de Sousa eacute o impulso de inteligibilidade que anima a ciecircncia e a

filosofia e igualmente o cristianismo enquanto doutrina ou seja enquanto teologia Cf Eduardo

Abranches de Soveral Pensamento Luso-Brasileiro estudos e ensaios 216-226 983

Eudoro de Sousa Mitologia Histoacuteria e Mito 283 984

Ibidem 322 985

Cf Constanccedila Marcondes Ceacutesar Vicente Ferreira da Silva Trajectoacuteria intelectual e contribuiccedilatildeo

filosoacutefica 26

491

paganismo e mostrar que ela eacute um corpo estranho ao pensar de todos estes

autores de liacutengua portuguesa Contudo como afirmava Heidegger o facto de

criticarmos uma tradiccedilatildeo natildeo implica que natildeo faccedilamos parte dela a criacutetica de

Vicente a esta temaacutetica central do nosso pensamento poeacutetico do seacuteculo XX natildeo

impede que o pensador brasileiro partilhe com estes pensadores um pensar

que busca um ideal de sabedoria em diaacutelogo com antiguidade afirme o papel

da linguagem mito-poeacutetica como lugar de desvelamento da verdade proponha

um mesmo ideal de cultura e pense o homem na direcccedilatildeo do divino

Afirma Braz Teixeira em O Sagrado no Pensamento de Vicente Ferreira da

Silva ldquoEacute oportuno sublinhar aqui o que haacute de convergente entre o pensamento

da uacuteltima fase da evoluccedilatildeo espiritual do filoacutesofo de Teologia e Anti-humanismo

e a visatildeo que sobre o paganismo e a presenccedila ou o regresso dos deuses

anteriores ao ciclo cristatildeo entre noacutes apresentaram os poetas-filoacutesofos Teixeira

de Pascoaes e Fernando Pessoardquo986

Em apoio desta tese Braz Teixeira sublinha oportunamente que para

Pascoaes paganismo e cristianismo constituem duas fases do mesmo

processo de manifestaccedilatildeo do divino e que Fernando Pessoa987 pela voz de

Ricardo Reis sustenta que os deuses do paganismo natildeo se foram mas

subsistem e vivem sendo apenas necessaacuterio que noacutes recuperemos a

capacidade de os ver atraveacutes do reatar da tradiccedilatildeo grega

Igualmente Paulo Borges referindo-se agrave manifestaccedilatildeo proteica e polimoacuterfica do

divino em Vicente Ferreira da Silva aproxima esta concepccedilatildeo do divino do

pensador brasileiro duma ldquosubstancial vertente do pensamento portuguecircs

contemporacircneo [assumida] com especial ecircnfase em Antero Pascoaes

Pessoa Eudoro e Agostinho da Silvardquo988

Vicente singulariza-se neste movimento pela radicalidade da sua apologia dum

regresso ao politeiacutesmo e do paganismo apenas possiacutevel sobre as cinzas do

986

Cf Antoacutenio Braz Teixeira em ldquoO Sagrado no Pensamento de Vicente Ferreira da Silvardquo in Mito e

Cultura Actas do V coloacutequio Tobias Barreto Lisboa 2001 91 987

Sobre o paganismo transcendental de Fernando Pessoa cf Maria Helena Varela Silva Conjunccedilotildees

Filosoacuteficas Luso-Brasileiras 53-65 Segundo a autora os vaacuterios heteroacutenimos seriam muacuteltiplas

perspectivas ou muacuteltiplos pontos de vista de uma Weltanschauung muacuteltiplos rostos de um paganismo

metafiacutesico que sobretudo na figura do V impeacuterio assume a forma duma aspiraccedilatildeo universalizante agrave

reintegraccedilatildeo da totalidade das religiotildees 988

Paulo Alexandre Esteves Borges ldquoDo perene regresso da filosofia agrave caverna da danccedila e do drama

iniciaacutetico Rito e Mito em Vicente Ferreira da Silva e Eudoro de Sousardquo in Mito e Cultura Actas do V

coloacutequio Tobias Barreto Lisboa 2001 101

492

cristianismo posiccedilatildeo que natildeo eacute partilhada pelos pensadores portugueses

Contudo se tivermos em conta como Grassi que o essencial para delimitar o

conceito de Humanismo eacute reconhecimento da primazia da linguagem poeacutetica

assim como da questatildeo do desvendamento do ser Vicente tal como Pascoaes

e Pessoa pertencem cada um a seu modo a essa tradiccedilatildeo humanista

De facto podemos ainda sublinhar que a questatildeo antropoloacutegica eacute abordada por

todos estes autores de liacutengua portuguesa numa mesma direcccedilatildeo que Miguel

Real sublinha para destacar o peculiar humanismo de Ferreira da Silva ldquo Ao

contraacuterio do que se mostra na filosofia ldquointra-mundanardquo que se subdivide em

muacuteltiplas perspectivas distintas ou contrapostas como as do idealismo

realismo materialismo etc poder-se-ia dizer que do ponto de vista radical

aceito por Vicente soacute haacute duas direcccedilotildees filosoacuteficas fundamentais uma que se

propotildee o problema do homem e das coisas a partir do homem mesmo outra

que pensa o homem e as coisas a partir de Deus pondo-se o pensador

ousadamente na perspectiva original do Divino Eacute nesta segunda posiccedilatildeo que

se situa o mestre paulista sobretudo a comeccedilar de dois trabalhos

intencionalmente incisivos como a Carta Sobre o Humanismo de Heidegger

refiro-me a ldquoideias para um novo conceito de Homem de 1951 e a Teologia e

Anti-humanismo de 1953rdquo989

5 A traduccedilatildeo como Ereignis em Vicente Ferreira da Silva

Um conhecimento directo dos textos de Heidegger lidos em alematildeo e

compreendido na sua referecircncia ao contexto da filosofia e da poesia alematilde

(Schelling Hegel Nietzsche e Houmllderlin) e um conjunto de motivaccedilotildees

enraizadas no seu proacuteprio contexto cultural possibilitaram a Vicente uma

autecircntica interpretaccedilatildeo no sentido que a filosofia hermenecircutica deu a este

termo

Assim o diaacutelogo de Vicente com Heidegger apresenta-se como paradigmaacutetico

do que eacute definido por Heidegger como uma autecircntica compreensatildeo

compreender uma filosofia natildeo significa aceitar sem mais o que nela se

encontra estabelecido mas repetir originariamente o que foi compreendido a

989

Miguel Reale Estudos de Filosofia Brasileira 202

493

partir da proacutepria situaccedilatildeo do inteacuterprete e do ponto de vista imposto pela

situaccedilatildeo

Vicente Ferreira da Silva enunciava da seguinte forma como sua principal

originalidade relativamente a Heidegger ldquoHeidegger reportava agrave desocultaccedilatildeo

do ente isto eacute agraves possibilidades historiaacuteveis a forccedila iluminadora do ser

Interpretar esta desocultaccedilatildeo natildeo como Poesia mas sim como Protopoesia

isto eacute como Mitologia eis o que constitui o coeficiente de originalidade da

minha tese Em outras palavras essa originalidade consiste na tentativa de

uma aproximaccedilatildeo entre o uacuteltimo Heidegger e a Filosofia da Mitologia de

Schellinghellip Mas haacute mais procurei dar agrave experiecircncia do Ser uma tonalidade

emocional e pulsional compreendendo esta experiecircncia como Fascinaccedilatildeo A

presenccedila dos Deuses eacute o traccedilado originaacuterio do Fascinator eacute aquela proto-

poesia que condiciona e envolve todas aquelas consecutivas ldquoaberturas da

palavrardquordquo990

Para elaboraccedilatildeo deste ponto de vista original Vicente faz uma siacutentese do

pensamento de Heidegger com Schelling Nietzsche e Houmllderlin tendo sido

igualmente importantes os trabalhos no acircmbito da religiatildeo e dos mitos de

Bachofen e Walter Otto A importacircncia determinante destas fontes germacircnicas

de Vicente era aliaacutes acentuada por ele proacuteprio que afirmava que a

problemaacutetica dos mitos natildeo nascera duma investigaccedilatildeo do passado miacutetico da

cultura brasileira mas sim dos estudos de Schelling Otto e Kereacuteny991

Em resposta a Enzo Paci que na Revista Brasileira de Filosofia tecia

consideraccedilotildees acerca da originalidade do pensamento latino-americano face

ao pensamento europeu apontando Vicente Ferreira da Silva como um

exemplo desta mesma originalidade o pensador brasileiro negava qualquer

fundamento a essas consideraccedilotildees negando qualquer autonomia ou

originalidade ao pensamento sul-americano que considerava ldquoum mero

prolongamento post-renascentista da civilizaccedilatildeo europeiardquo992

Contudo Juliaacuten Mariacuteas que conheceu Vicente Ferreira da Silva em 1954 por

ocasiatildeo do Congresso Internacional de Filosofia e criou com ele uma duraacutevel

990

Vicente Ferreira da Silva ldquoEnzo Paci e o Pensamento Sul-Americanordquo in Revista Brasileira de

Filosofia vol V Fasc II Satildeo Paulo 1955 289 991

Cf ldquoO Pensamento de Vicente Ferreira da Silvardquo in Convivium Maio-Junho de 1972 p178 992

Cf Vicente Ferreira da Silva ldquoEnzo Pazi e o Pensamento Sul-Americanordquo in Revista Brasileira de

Filosofia volV fasc II Satildeo Paulo 1955 287

494

amizade analisando a vocaccedilatildeo filosoacutefica de Vicente afirmava rdquoVicente Ferreira

da Silva tinha uma profunda vocaccedilatildeo filosoacutefica ndash razatildeo pela qual natildeo ensaiava

especulaccedilotildees sobre ldquoo americanordquo mas procurava fazer filosofia ndash mas a sua

vocaccedilatildeo era circunstancial tinha que filosofar a partir do Brasil Sua

circunstacircncia primeira era a de Satildeo Paulo a cidade e o Estado e o Brasil

inteiro com a sua diversidade seus conflitos e seu misteacuterio e o continente sul-

americano Estava nas vizinhanccedilas de uma selva e como sentiu a significaccedilatildeo

de Holzwege ainda com a distacircncia da Floresta Negra agrave Amazoacutenia Estava

rodeado de mitos vivos ativos entrelaccedilados com a religiatildeo cristatilde com a

poliacutetica com toda a possiacutevel interpretaccedilatildeo racional da realidade que fosse

concreta e portanto verdadeirardquo993

Alargando a noccedilatildeo de circunstacircncia agrave tripla condiccedilatildeo de habitante do

continente sul-americano de falante da liacutengua portuguesa e de pertenccedila a um

espaccedilo cultural latino partimos da hipoacutetese de que esta circunstacircncia

determinou a situaccedilatildeo hermenecircutica de Vicente possibilitando a elaboraccedilatildeo

deste ponto de vista interpretativo original da filosofia heideggeriana e

orientando a siacutentese das diversas fontes

Efectivamente a experiecircncia viva do mito no Brasil encontra-se com a memoacuteria

da Europa preacute-heleacutenica ainda viva na poesia de liacutengua portuguesa e

estudadas por Eudoro de Sousa Bachofen e Kereacuteny assim como com o

mundo da religiatildeo homeacuterica estudada por Walter Otto

Pocircr a descoberto a significaccedilatildeo dos mitos como desvendamento originaacuterio do

ser e demonstrar a primazia dessa Ur-Poesie sobre toda a linguagem humana

foram as motivaccedilotildees que Vicente pocircde encontrar na sua ldquovida faacutecticardquo e

desenvolver pelas leituras de autores latinos como Julius Evola Reneacute Gueacutenon

e mais tarde Eudoro de Sousa de cujo pensamento ele se aproxima de modo

notaacutevel Estas motivaccedilotildees possibilitaram-lhe interrogar os textos

heideggerianos com especial destaque a Carta Sobre o Humanismo Houmllderlin

e a Essecircncia da Poesia Sobre A Essecircncia da Verdade Sobre a Essecircncia do

Fundamento Os Caminhos de Floresta A Coisa Sobre a Essecircncia da teacutecnica

e Introduccedilatildeo agrave Metafiacutesica a partir desta problemaacutetica especiacutefica

993

Juliaacuten Mariacuteas ldquoUma Vocaccedilatildeo Filosoacuteficardquo in Convivium Maio-Junho de 1972 187

495

Podemos concluir que este ponto de vista interpretativo possibilitou a Vicente

uma compreensatildeo global e unificada do pensamento heideggeriano rara para

eacutepoca Natildeo haacute duacutevida que Vicente viu na viragem do segundo Heidegger natildeo

uma ruptura com a analiacutetica existencial de Ser e Tempo mas sim um seu

complemento Mas o que importa salientar eacute que Vicente viu na radical ruptura

com a metafiacutesica da subjectividade e com o humanismo nele fundado levada a

cabo por Heidegger na Carta Sobre o Humanismo a abertura de uma

possibilidade de compreender a linguagem dos mitos como linguagem que natildeo

depende do homem mas sim de um ditado projectante do ser e de assim

fundar uma Filosofia da Mitologia

Nesta elaboraccedilatildeo de uma Filosofia da Mitologia Vicente faz de muitos

conceitos de Heidegger uma apropriaccedilatildeo expropriadora que natildeo deixa o

sentido intacto mas essa transmutaccedilatildeo de sentido eacute quase sempre expliacutecita e

conscientemente assumida por Vicente o que podemos exemplificar com a sua

retomaccedilatildeo da temaacutetica heideggeriana da diferenccedila ontoloacutegica e do seu

discurso sobre o ser

A diferenccedila ontoloacutegica eacute para Vicente a diferenccedila entre o que pode ser

oferecido como ente agrave consciecircncia vigilante do homem e o oferecer

transcendente e transhumano que se daacute ocultando-se simultaneamente Se as

vaacuterias mitologias satildeo documentos originaacuterios do ser algumas delas estatildeo mais

perto da Fonte originaacuteria ou seja desse domiacutenio transcendente obscuro e

pulsional do Ser e podem ser tomadas como aproximaccedilotildees legiacutetimas ao seu

oculto domiacutenio Eacute a experiecircncia religiosa primordial da presenccedila fascinante dos

deuses como forccedila atractiva irresistiacutevel que pode proporcionar-nos na oacuteptica

de Vicente uma experiecircncia idoacutenea do ser como fundo oculto da realidade e

inexauriacutevel fonte de atracccedilotildees

Assim Vicente pretende corrigir Heidegger e criticar as ldquometaacuteforas da luzrdquo do

discurso heideggeriano sobre o ser como traduzindo a contaminaccedilatildeo da

compreensatildeo heideggeriana do ser pelo racionalismo e a problemaacutetica do

conhecimento994 Vicente pretende salientar pelo contraacuterio a dimensatildeo

pulsional do ser pensando-o como poder de sugestatildeo e fascinaccedilatildeo eroacuteticas

Sugestor e Fascinador o Ser eacute simultaneamente o que projecta essecircncias e

994

Vicente Ferreira da Silva ldquoIntroduccedilatildeo agrave Filosofia da Mitologiardquo in Dialeacutectica das Consciecircncias e

outros ensaios 374

496

suscita paixotildees uma potecircncia desocultante e propositora de mundos Porque o

ser natildeo eacute unicamente prodigalizador de essecircncias mas suscitador de paixotildees

o traccedilar do ente correspondente a cada abertura de mundo manifesta-se

primariamente como um campo emocional e apenas secundariamente como

desenhar de essecircncias ou de representaccedilotildees

Para Vicente a existecircncia humana eacute irresistivelmente ldquoarrebatadardquo por um foco

excecircntrico pelo descerramento projectante do proacuteprio ser que descerra em

cada caso um modo de sentir-se ou uma configuraccedilatildeo afectiva ldquoExistiria

mesmo uma primazia do encontrar-se afectivo no interior do ente em relaccedilatildeo

ao prospeccionar-se projectivo do ente O desvelamento iluminante do ente se

daria portanto como um stimmend Seinlassen von Seienden como franquia

emocional do ente descobertordquo995

Os deuses da mitologia satildeo arqueacutetipos que manifestam forccedilas atractivas sobre-

humanas e o mundo eacute para Vicente pensado em termos ceacutenicos como teatro

ritual de muacuteltiplos desempenhos ou ldquoabertura de fascinaccedilatildeordquo que constitui o

ldquoonderdquo e ldquono qualrdquo o Homem como um ente fascinado se vecirc lanccedilado pelo

poder desocultante do Fascinator ldquoO ser eacute o poder desocultante ou revelador

O Ser eacute o fascinator que faz irromper um espaccedilo de desempenhosrdquo996

Inversamente o Homem natildeo eacute para Vicente um ente que possui as luzes da

razatildeo e que eacute capaz de alguma margem de distanciaccedilatildeo mas eacute um ser

arrebatado e fascinado por um foco transcende e exterior que o arrebata

irresistivelmente ldquoA ipseidade compreensiva natildeo estaacute em noacutes esta ipseidade

que traccedila e abre a revelaccedilatildeo do ente eacute o que Heidegger daacute o nome de

iluminaccedilatildeo do ser (Lichtung des Seins) Esta luz este foco originaacuterio natildeo eacute o

lumen naturale da mente humana mas pelo contraacuterio eacute o desvelar ek-staacutetico

desse foco que permite a entrada no mundo (Welt eingang) do nosso ser e da

nossa menterdquo997

O ser eacute o foco fascinante que recorta o mundo sob um fundo de obscuridade e

de misteacuterio e que por isso se furta ele mesmo a toda a compreensatildeo humana

Mas o ser natildeo eacute apenas negativamente pensado por Vicente como natildeo-ente -

995

Ibidem 374 996

Vicente Ferreira da Silva rdquoA Experiecircncia do Divino Nos Povos Auroraisrdquo Diaacutelogo nordm 1 1955 in

Dialeacutectica das Consciecircncias e outros ensaios 368 997

Vicente Ferreira da Silva ldquoO Homem e Sua proveniecircnciardquo in Dialeacutectica das Consciecircncias e outros

ensaios 335336

497

ele eacute pensado positivamente como o poder de Eros da Noite e do Caos das

Antigas Mitologias universo nocturno e prototiacutepico em que forccedilas sobre-

humanas decidem o traccedilado do Mundo

No entanto afirma Vicente esta dimensatildeo abissal e arrebatadora do ser

estaria tambeacutem presente em Heidegger ldquoEis porque Heidegger relaciona a

proximidade do Ser com a experiecircncia do estranho do espantoso (Ungeheure)

desde que essa experiecircncia nos remete ao Poder selvagem e incalculaacutevel que

comanda a instruccedilatildeo dos mundosrdquo998

Podemos segundo Vicente pressupor o Ser como ldquoum puro foco fascinanterdquo

ldquopoder maacutegico-encantatoacuteriordquo e simultaneamente ldquodomiacutenio tendencioso e

ameaccediladorrdquo que dita tendenciosa e arbitrariamente a posiccedilatildeo e destruiccedilatildeo dos

mundos Eacute esta dupla faceta do tremendum e fascinante inerente a toda a

experiecircncia originaacuteria do sagrado que nos revela o Ser como o

incompreensiacutevel e infundado fundamento ou Ab-grund

Vicente pensa a temaacutetica do humanismo a partir da contradiccedilatildeo entre

cristianismo e paganismo o enfrentamento com esta temaacutetica tatildeo importante

na poesia de liacutengua portuguesa mostra que a criacutetica histoacuterica de Vicente fixou a

sua atenccedilatildeo numa questatildeo crucial da nossa tradiccedilatildeo poeacutetica e reconheceu a

sua originariedade

Efectivamente esta temaacutetica ocorre jaacute em Camotildees na Liacuterica Camoniana

emerge uma nova imagem de mundo que Eduardo Lourenccedilo em Poesia e

Metafiacutesica999 torna patente como um mundo contraditoacuterio dilacerado pela

ldquocega e clarividente pulsatildeo da vida que outrora o paganismo encarnava no

Deus Patilderdquo e o ldquoMediador por excelecircncia o Deus-homem e o homem-Deus

estendido na cruz da vidardquo

Em Camotildees o recurso agrave mitologia natildeo eacute como em muitos humanistas um

mero recurso estiliacutestico mas o trazer agrave presenccedila um sentimento coacutesmico e

religioso da vida que se reconhece como forccedila sagrada e eroacutetica de que Veacutenus

eacute um dos nomes possiacuteveis e as muacuteltiplas aparecircncias belas a seduccedilatildeo

sensiacutevel Contudo esta sensualidade pagatilde corre ao lado de uma religiosidade

cristatilde que torna patente a miseacuteria da condiccedilatildeo humana e o desejo de redenccedilatildeo

998

Vicente Ferreira da Silva ldquoIntroduccedilatildeo agrave Filosofia da Mitologiardquo in Dialeacutectica das Consciecircncias e

outros ensaios 375 999

Eduardo Lourenccedilo Poesia e Metafiacutesica Lisboa 2002 10

498

num outro mundo do espiacuterito O sentimento da impossibilidade de conciliar

estes dois mundos anima todo o poema Babel e Siatildeo e aiacute aparece como

recusa em misturar dois cantos liacutericos tatildeo distintos1000

Na poesia portuguesa do seacuteculo XX esta temaacutetica eacute retomada de modo

original Alguns destes autores familiarizados com o tema nietzschiano da

morte de Deus que interpretam como o anuacutencio do eclipse do catolicismo

instituiacutedo apelam a um renascimento dum sentimento religioso que se traduz

na sua obra pela exploraccedilatildeo de temaacuteticas por vezes ligadas ao culto pagatildeo da

natureza por vezes a temas cristatildeos como a Natividade o Paraiacuteso e o Inferno

a Crucificaccedilatildeo

Guiados por uma filosofia panteiacutesta estes poetas levam a cabo uma

interpretaccedilatildeo heterodoxa do cristianismo agora tomado natildeo como religiatildeo

revelada mas como mais uma religiatildeo natural ou cultural (embora de caraacutecter

superior) que expressa uma aspiraccedilatildeo da proacutepria natureza O Cristo histoacuterico

eacute para estes autores uma figura miacutetica e simboacutelica associada a um desejo de

reintegraccedilatildeo e de redenccedilatildeo jaacute natildeo apenas humana mas universal isto eacute

coacutesmica

Eacute esta dupla matriz religiosa cuja reconciliaccedilatildeo Teixeira de Pascoaes o

fundador da Nova Renascenccedila anuncia no poema Jesus e Patilde que igualmente

anima de modos diversos algumas das obras de Guerra Junqueiro Raul

Brandatildeo Fernando Pessoa Agostinho da Silva e da poesia de Dora Ferreira

da Silva Relativamente agrave singularidade desta Renascenccedila Portuguesa que

pretende defender Teixeira de Pascoaes afirma ldquoO nosso povo [hellip] concebeu

a ideia-sentimento fonte da nova e verdadeira Renascenccedila pois a

Renascenccedila Italiana de que Goethe Wagner e Nietzsche satildeo descendentes eacute

obra individual de alguns artistas de geacutenio e natildeo realizou a fundo a fusatildeo

perfeita e viva do Paganismo com o Cristianismo dado o caraacutecter

exclusivamente pagatildeo dos italianosrdquo1001

A criacutetica de Vicente a este tema da reconciliaccedilatildeo entre paganismo e

cristianismo relanccedilado na cultura portuguesa e brasileira contemporacircneas

mostra que ele reconheceu o caraacutecter oringinaacuterio desta temaacutetica mas que

pretende pensar mais radicalmente esse novo sentimento do divino Em

1000

Ibidem 17-35 1001

Teixeira de Pascoaes ldquoAinda o Saudosismo e a Renascenccedilardquo in A Aacuteguia II seacuterie nordm 12 1912 187

499

Vicente o desvelamento do ser eacute manifestaccedilatildeo do divino natildeo como presenccedila

constante mas como experiecircncia do abismo do tempo trata-se do

esquecimento dos deuses em fuga que se retiraram do mundo e do

pressentimento dum novo iniacutecio de contornos indefinidos

Por outro lado vimos que o anuacutencio deste novo iniacutecio deve ser correlacionado

com a sua apologia do humanismo renascentista Vicente reconhece

implicitamente a sua pertenccedila a essa tradiccedilatildeo humanista que em Portugal (e

em seguida no Brasil) teve uma importantiacutessima expressatildeo na poesia

renascentista e na retoacuterica do periacuteodo barroco e foi no seacuteculo XX recuperada

pela Nova Renascenccedila de Pascoaes projectando-se no pensamento poeacutetico

contemporacircneo de liacutengua portuguesa

A posiccedilatildeo de Vicente relativa ao humanismo aproxima-se na realidade mais da

de Grassi e da de Teixeira de Pascoaes do que da de Heidegger uma vez que

com a sua distinccedilatildeo entre um periacuteodo de apogeu e de decadecircncia da tradiccedilatildeo

humanista ele visa na realidade dois tipos de humanismo diferentes um de

matriz francesa racionalista e cartesiana que estaria na geacutenese do homem

unidimensional da teacutecnica outro de matriz poeacutetica e retoacuterica e de origem

italiana que estaria na geacutenese do ideal do homem proteico que Vicente tal

como Grassi e Teixeira de Pascoaes aceitava como heranccedila a preservar

Este ponto de vista eacute directamente confirmado por Ernesto Grassi que em

Recordaccedilatildeo e Metaacutefora recordando Vicente Ferreira da Silva por ocasiatildeo da

sua morte afirma ldquoVicente era solidaacuterio com o seu povo de raccedilas diversas que

se fundem entretanto num soacute foco e cujos estratos profundos tecircm uma

expressatildeo teluacuterica constataacutevel em seus usos e costumes Sentia-se por outro

lado um representante daquela linha de pensamento que no Ocidente foi

defendida por GB Vico Schelling e finalmente pelo existencialismordquo1002 Se

tivermos em mente que para Grassi Vico fora o expoente maacuteximo do

humanismo italiano e aquele que lhe deu um soacutelido fundamento filosoacutefico

podemos concluir que o filoacutesofo italiano natildeo tinha qualquer duacutevida em filiar

Vicente nesta corrente humanista e em testemunhar a consciecircncia de Vicente

de pertenccedila a essa mesma tradiccedilatildeo

Efectivamente se estivermos dispostos a rever as nossas categorias histoacutericas

e acima de tudo questionar as noccedilotildees de humanismo e a sua identificaccedilatildeo

1002

Ernesto Grassi ldquoRecordaccedilatildeo e Metaacuteforardquo in Convivium Maio-Junho de 1972 203

500

com a descoberta do homem e das suas capacidades antropomoacuterficas mas

aceitarmos com Grassi que a tradiccedilatildeo humanista fundada na relaccedilatildeo com os

autores da Antiguidade no culto da poesia e da retoacuterica traz para primeiro

plano a questatildeo da linguagem vendo na linguagem poeacutetica e metafoacuterica o

lugar de desvendamento do ser natildeo teremos problemas em integrar Vicente

Ferreira da Silva nessa tradiccedilatildeo

De facto Vicente retoma a tese de Grassi de que o humanismo que dominou o

pensamento italiano no Renascimento e se prologou na eacutepoca do barroco e do

maneirismo ateacute Vico irradiando tambeacutem para Portugal e com a qual Descartes

rompe explicitamente no Discurso do Meacutetodo tem um significado filosoacutefico

absolutamente decisivo e abre um campo especulativo de grande interesse

para o pensamento contemporacircneo Eacute preciso ainda sublinhar que Vicente

identifica mesmo essa tradiccedilatildeo humanista como uma matriz fundamental do

Ocidente

A obra escrita por Vicente apoacutes o encontro com ldquo o segundo Heideggerrdquo eacute pois

uma traduccedilatildeo autecircntica nela ecoam muacuteltiplas vozes e se estabelece um

verdadeiro diaacutelogo1003 no qual a tradiccedilatildeo humanista tem um importante papel

Se este diaacutelogo nem sempre atingiu o equiliacutebrio de uma perfeita harmonia ele

abriu uma nova via de acesso ao pensamento de Heidegger e tem pela sua

singularidade e pelo seu caraacutecter originaacuterio o caraacutecter de um Ereignis de um

ldquoacontecimento propiacuteciordquo onde acontece um novo desvelamento do ser

1003

Sobre a traduccedilatildeo como diaacutelogo onde ecoam muacuteltiplas vozes cf comunicaccedilatildeo de Irene Borges-Duarte

ao Congresso de Lausanne (Idem rdquoEl idioma de la interpretatioacuten Kant en los Beitraumlgerdquo in Heideggers

Beitraumlge zur Philosophie Frankfurt am Main 2009 153-170) El taller-atelier de traduccioacuten es

seguramente el mas sensible acircmbito de la experiencia dialoacutegica del pensar En eacutel no solo se trata de leer y

entender lo que un original dice sino ademaacutes de hallar su logos-articulacioacuten e encaje ndash explicitando en

outro idioma lo a menudo solo impliacutecito e impeliendo lo percebido haci esse espaccedilo intermeacutedio ndash

inbterpres ndash en el que lo dicho resuena auacuten sin fijar-se en una formulacioacuten definitiva como en un hueco

de muacuteltiplos acordes que vagando al fin se despejam Esse despejar-se ldquoahigraverdquo significa un singular

encuentro de vozes[hellip]

501

Conclusatildeo - A traduccedilatildeo como viagem entre diferentes margens

502

503

1 A histoacuteria das traduccedilotildees portuguesas de filosofia e a decisatildeo pelo

futuro da liacutengua

O significativo atraso da traduccedilatildeo filosoacutefica em liacutengua portuguesa significou que

o nosso paiacutes acompanhou com um importante desfasamento de cerca de dois

seacuteculos um dos aspectos fundamentais da modernidade europeia a utilizaccedilatildeo

das liacutenguas nacionais para a comunicaccedilatildeo cientiacutefica e filosoacutefica1004

Este atraso de dois seacuteculos na adopccedilatildeo dum movimento regular de traduccedilatildeo

teve como consequecircncia o nosso desfasamento em relaccedilatildeo agrave filosofia

moderna que se produzia nas diversas liacutenguas europeias constituindo-se

como um importante factor de impedimento agrave investigaccedilatildeo de novos problemas

filosoacuteficos

Todavia se tivermos em conta que a ausecircncia de traduccedilatildeo da filosofia

europeia coincidiu com a extinccedilatildeo ou com a existecircncia precaacuteria do ensino da

filosofia nas universidades teremos que interrogar-nos sobre o significado

desta coincidecircncia e seremos conduzidos a ver nestes dois factos da nossa

histoacuteria um mesmo e uacutenico fenoacutemeno mais abrangente trata-se da ruptura com

a tradiccedilatildeo filosoacutefica que natildeo mais pocircde transmitir-se a partir do conhecimento

directo dos textos e da discussatildeo dos problemas levantados pela sua

interpretaccedilatildeo Tratou-se da perda crescente de conexatildeo com a proacutepria histoacuteria

da filosofia e os grandes textos que constituem referecircncias indispensaacuteveis para

a constituiccedilatildeo de uma tradiccedilatildeo designadamente os grandes textos da filosofia

grega

Como acima vimos apesar da ordem para que os professores dos Coleacutegios

natildeo se afastassem em caso algum da doutrina de Aristoacuteteles na realidade os

pensadores da Segunda Escolaacutestica fizeram uma releitura de Aristoacuteteles

visando adaptaacute-lo ao espiacuterito humanista em vigor como tambeacutem aos novos

problema eacuteticos poliacutetico-juriacutedicos emergentes do novo mundo criados pelos

descobrimentos pela expansatildeo ibeacuterica e pela colonizaccedilatildeo assim como pela

difusatildeo do cristianismo num grande diversidade de contextos culturais Daqui

emergiu uma reflexatildeo sobre a retoacuterica (loacutegica toacutepica de Pedro da Fonseca)

uma filosofia poliacutetica uma filosofia do direito e uma filosofia da histoacuteria (Luiacutes de

Molina) originais

1004

Cf Apecircndice 1 do presente trabalho bdquoTraduccedilotildees de Filosofia em ligravengua portuguesa ateacute 1959rdquo

504

A extinccedilatildeo administrativa desta tradiccedilatildeo assim como a inexistecircncia de

traduccedilotildees portuguesas dos textos latinos dos autores da Segunda Escolaacutestica

foram um seacuterio obstaacuteculo agrave transmissatildeo e agrave actualizaccedilatildeo de uma tradiccedilatildeo

humanista que teve grande importacircncia na Europa e que em Portugal

representou um momento de genuiacuteno questionamento filosoacutefico

Esta tradiccedilatildeo entendida no sentido que Grassi lhe daacute de uma tradiccedilatildeo filosoacutefica

que se distingue do racionalismo da filosofia moderna pela primazia dada natildeo

aos problemas do conhecimento mas agrave linguagem poeacutetica e retoacuterica e agrave

reflexatildeo sobre as criaccedilotildees linguiacutesticas do homem como a poliacutetica o direito e a

moral esteve efectivamente presente em Portugal tendo marcado

decisivamente a liacutengua e a cultura portuguesas atraveacutes da obra retoacuterica do Pe

Antoacutenio Vieira considerada ateacute hoje uma obra modelar de utilizaccedilatildeo da liacutengua

Sobre a influecircncia desta tradiccedilatildeo retoacuterica pode alguma coisa inferir-se do facto

de o primeiro autor traduzido para liacutengua portuguesa ter sido Ciacutecero1005

No entanto a ausecircncia de traduccedilatildeo dos textos latinos da Segunda Escolaacutestica

implicou quer a interrupccedilatildeo deste diaacutelogo com a filosofia grega (Aristoacuteteles)

quer a impossibilidade de actualizaccedilatildeo desta tradiccedilatildeo por confronto com os

autores da filosofia moderna ou de discussatildeo e contestaccedilatildeo dos seus

pressupostos filosoacuteficos Toda a poleacutemica que marcou a entrada da filosofia

moderna em Portugal se centrou em questotildees relacionadas com o meacutetodo de

ensino

Esta tradiccedilatildeo que entra em fase agonizante apoacutes a Reforma Pombalina natildeo

deixa no entanto de se misturar de forma ecleacutectica com a apropriaccedilatildeo da

filosofia moderna e contemporacircnea importadas quase sempre atraveacutes de

traduccedilotildees francesas - o que ilustra de forma notaacutevel a tese heideggeriana de

que uma tradiccedilatildeo morta natildeo deixa de actuar na cultura e determinar o

pensamento soacute que tal ocorre de forma inconsciente

Sobre esta importaccedilatildeo exclusiva da filosofia atraveacutes das traduccedilotildees francesas

que perdurou ateacute ao iniacutecio do seacuteculo XX tivemos ocasiatildeo de demonstrar na

sequecircncia das luacutecidas observaccedilotildees de Antero de Quental que ela nos colocou

sob a alccedilada de decisotildees alheias relativamente ao que eacute importante ler e

induziu agrave importaccedilatildeo superficial de modas filosoacuteficas como foi o caso do

1005

Cf As traduccedilotildees de Ciacutecero no periacuteodo pombalino no cap A do Apecircndice 1

505

positivismo e a um mimetismo cultural sintomaacutetico da renuacutencia ao pensar por

si mesmo que eacute essencialmente a filosofia

A oposiccedilatildeo ao monopoacutelio cultural francecircs e ao domiacutenio exclusivo das suas

fontes emergiu com Antero de Quental que representou um seacuterio esforccedilo no

sentido de uma abertura mais global agrave cultura europeia e sobretudo de

recuperaccedilatildeo da conexatildeo com os centros do pensamento filosoacutefico que

entretanto se tinham haacute muito deslocado para a Alemanha Mais importante eacute

sublinhar que o diaacutelogo de Antero com a filosofia alematilde contribuiu largamente

para difundir a discussatildeo de temas e problemas metafiacutesicos com repercussotildees

na poesia na literatura e na cultura portuguesa em geral

A consciecircncia de Antero da importacircncia da traduccedilatildeo filosoacutefica foi um caso

isolado no seacuteculo XIX mas haveria de frutificar no iniacutecio do movimento de

traduccedilatildeo filosoacutefica regular no periacuteodo da Primeira Repuacuteblica1006 podemos aiacute

destacar quer o nuacutemero elevado de traduccedilotildees de filosofia grega quer a

traduccedilatildeo de autores alematildees que tiveram uma importante influecircncia na

literatura portuguesa do tempo como Schopenhauer e Nietzsche

A recepccedilatildeo de Heidegger em liacutengua portuguesa1007 foi feita em condiccedilotildees

muito mais favoraacuteveis do que ocorrera com a restante filosofia do idealismo

alematildeo porque realizada jaacute num periacuteodo em que quer em Portugal quer no

Brasil se encontrava jaacute abalado o monopoacutelio cultural francecircs com o iniacutecio das

traduccedilotildees portuguesas de filosofia e com a ligaccedilatildeo a outros centros

universitaacuterios europeus sublinhemos que em Portugal um sistema de bolsas

possibilitava o contacto com importantes centros universitaacuterios

designadamente na Alemanha e que no Brasil a Revista Ocidente difundia a

influecircncia da cultura alematilde

Com efeito uma autecircntica apropriaccedilatildeo da obra de um autor que se situa noutro

horizonte histoacuterico-linguiacutestico exige como condiccedilatildeo preacutevia um movimento em

direcccedilatildeo a essa ldquoaberturardquo no qual essa obra se inscreve e a partir do qual

deve ser compreendida

Esta breve sinopse da histoacuteria das traduccedilotildees portuguesas de filosofia natildeo pode

deixar de salientar alguns aspectos significativos a inexistente traduccedilatildeo

portuguesa dos textos latinos da escolaacutestica peninsular o facto do monopoacutelio

1006

Cf Cap C do Apecircndice 1 1007

Cf Apecircndice 2 ldquoCronologia da recepccedilatildeo de Heidegger em ligravengua portuguesardquo

506

cultural francecircs estar associado agrave ausecircncia de traduccedilatildeo portuguesa de filosofia

e em terceiro lugar o facto de o deslocamento da atenccedilatildeo em relaccedilatildeo a outras

fontes do pensamento europeu designadamente alematildes ter estimulado o

iniacutecio do movimento de traduccedilatildeo

Para apreendermos verdadeiramente o significado desse atraso de quase dois

seacuteculos na adopccedilatildeo dum ritmo mais ou menos regular de traduccedilatildeo filosoacutefica

em liacutengua portuguesa assim como das opccedilotildees de traduccedilatildeo que foram

tomadas podemos tomar como ponto de partida a afirmaccedilatildeo de Heidegger em

Der Ister de que na decisatildeo de traduzir os grandes poetas e os grandes

pensadores assim como na escolha de qual a liacutengua estrangeira que vamos

aprender joga-se na realidade uma decisatildeo fundamental sobre o destino da

nossa proacutepria liacutengua ldquoA decisatildeo que assim acontece na escolha da liacutengua

estrangeira eacute na verdade uma decisatildeo sobre a nossa proacutepria liacutengua

nomeadamente a decisatildeo sobre se noacutes tambeacutem soacute usamos a proacutepria liacutengua

como instrumento teacutecnico ou se a valorizamos como oculto altar que

pertencendo ao ser conserva em si a essecircncia do homemrdquo 1008

Assim a efectiva decisatildeo da traduccedilatildeo dos grandes autores natildeo eacute na realidade

uma decisatildeo que nos coloca no acircmbito dum pensamento estrangeiro mas

muito pelo contraacuterio uma decisatildeo que diz respeito ao futuro da nossa proacutepria

liacutengua e agrave sua efectiva vigecircncia histoacuterica como liacutengua em que se joga e se

decide o destino do ser e do pensar do homem

2 A interpretaccedilatildeo como traduccedilatildeo apropriada

Relativamente agrave recepccedilatildeo de Heidegger estes pensadores portugueses e

brasileiros natildeo procuraram a coincidecircncia com um suposto sentido absoluto da

obra mas fizeram dela uma apropriaccedilatildeo a partir de diferentes nuacutecleos

temaacuteticos e questotildees filosoacuteficas diversas que permitiram distintas direcccedilotildees

interpretativas

Esta diversidade de interpretaccedilotildees confirma antes de mais aquela indicaccedilatildeo

de Gadamer relativamente aos textos de Heidegger como exemplificativos do

1008

ldquoDie Entscheidung die so bei der Wahl der fremden Sprachen fӓllt ist in Wahrheit eine Entscheidung

uumlber unsere eigene Sprache die Entscheidung nӓmlich ob wir auch die eigene Sprache nur als ein

technisches Instrument gebrauchen oder sie als den verborgenen Schrein wuumlrdigen der zum Sein

gehoumlrig das Wesen des Menschen in sich verwahrtrdquo HHIGA 53 81

507

conceito hermenecircutico de ldquotextordquo como comunicaccedilatildeo escrita capaz de

radicalizar a negatividade da experiecircncia hermenecircutica Como tivemos ocasiatildeo

de referir Gadamer salientava que a linguagem hermeacutetica dos textos

heideggerianos cuja interpretaccedilatildeo se revela particularmente poleacutemica tem

como funccedilatildeo fazer com que essa negatividade inscrita na experiecircncia

hermenecircutica do texto abra aos seus leitores uma via de acesso agrave questatildeo do

Ser acesso que segundo Heidegger seria sistematicamente obstruiacutedo pela

linguagem decaiacuteda da tradiccedilatildeo metafiacutesica

O rigor na interpretaccedilatildeo e a fidelidade ao sentido de um tal discurso a que

cabe de forma eminente o conceito hermenecircutico de ldquotextordquo natildeo eacute aceder agrave

sua verdade intemporal - empresa impossiacutevel e condenada ao fracasso - mas

aceder ao horizonte de interrogaccedilatildeo no interior do qual se pode determinar a

sua orientaccedilatildeo semacircntica

Ora noacutes pudemos constatar que as interpretaccedilotildees portuguesas e brasileiras de

Heidegger no periacuteodo considerado superaram as distorccedilotildees iniciais

advenientes da mediaccedilatildeo francoacutefona encaminhando-se no sentido da sua

adequada compreensatildeo efectivamente uma interpretaccedilatildeo inicial

existencialista e humanista de Heidegger que o aproximava do existencialismo

de Sartre foi sendo corrigida com o progressivo acesso agraves publicaccedilotildees das

suas obras posteriores alcanccedilando-se uma compreensatildeo da sua obra como

um percurso com diversas etapas unificado pela questatildeo do ser e da

linguagem

Desde logo da anaacutelise das traduccedilotildees feitas no periacuteodo em apreccedilo ressalta que

uma das primeiras traduccedilotildees realizadas quer no Brasil quer em Portugal foi a

da Carta Sobre o Humanismo1009 obra que natildeo podia deixar de corrigir num

puacuteblico mais vasto de natildeo especialistas a interpretaccedilatildeo humanista e

existencialista de Heidegger assim como suscitar grande interesse dado o

facto de a linguagem poeacutetica aiacute se ver elevada a linguagem originaacuteria o que vai

de encontro agrave nossa proacutepria tradiccedilatildeo

Mas se eacute a experiecircncia hermenecircutica do texto que pela sua intriacutenseca

negatividade pode fazer emergir a questatildeo enquanto tal natildeo basta no entanto

que um texto se torne objecto de interpretaccedilatildeo pondo uma questatildeo ao

1009

Carta Sobre o Humanismo trad de Emmanuel Carneiro Leatildeo Rio de Janeiro 1966 trad de Arnaldo

Stein Lisboa 1973

508

inteacuterprete Eacute ainda necessaacuterio para compreender adequadamente um texto

compreender esta questatildeo ganhando um horizonte de interrogaccedilatildeo a partir

daquilo que estaacute para caacute do texto isto eacute a partir da situaccedilatildeo hermenecircutica do

inteacuterprete

Eacute este horizonte de interrogaccedilatildeo enraizado na situaccedilatildeo hermenecircutica do

inteacuterprete que noacutes podemos constatar nestes pensadores portugueses e

brasileiros a questatildeo do ser e da linguagem foi por eles articulada com a

preocupaccedilatildeo pelo proacuteprio contexto cultural e desenvolvida em conexatildeo com

temas emergentes no contexto do seu presente histoacuterico

Como Heidegger explicou nas Interpretaccedilotildees Fenomenoloacutegicas de Aristoacuteteles

toda a investigaccedilatildeo relativamente agrave histoacuteria da filosofia deve estar conectada

com a preocupaccedilatildeo com o presente histoacuterico traduzindo no plano da

actividade teoreacutetica o cuidado do homem pelo seu mundo Eacute este cuidado pelo

seu mundo que podemos surpreender em quase todos estes comentadores de

Heidegger em liacutengua portuguesa a preocupaccedilatildeo com os problemas do direito

da educaccedilatildeo e da criaccedilatildeo literaacuteria marcaram a primeira recepccedilatildeo de

Heidegger mostrando de que modo a analiacutetica existencial de Ser e Tempo

podia contribuir para resolver problemas em aberto na cultura portuguesa

numa segunda fase a ruptura do segundo Heidegger com a metafiacutesica da

subjectividade e a concepccedilatildeo heideggeriana da primazia da linguagem poeacutetica

como pocircr-se-em- obra da verdade do ser permitiram uma nova reflexatildeo sobre a

religiatildeo e os mitos problemas que marcavam jaacute uma presenccedila viva na cultura

brasileira e na tradiccedilatildeo poeacutetica portuguesa1010 a reflexatildeo sobre a importacircncia

da acccedilatildeo nas suas vaacuterias dimensotildees eacutetica poliacutetica e esteacutetica jaacute lanccedilada na

filosofia brasileira alcanccedilou nova elaboraccedilatildeo na sua relaccedilatildeo com a temaacutetica

heideggeriana da finitude ontoloacutegica e constituiu-se como ponto de vista

hermenecircutico e criacutetico sobre a ontologia de Heidegger

No entanto como tambeacutem demonstrou Gadamer esse horizonte de

interrogaccedilatildeo enraizado no presente histoacuterico tem de ser alargado num

movimento de retorno agrave tradiccedilatildeo em que o texto necessariamente se inscreve

ao opor uma questatildeo ao texto noacutes vamos necessariamente para laacute do texto

1010

Cf Teixeira de Pascoaes Os Poetas Lusiacuteadas Porto 1919 e ainda Eduardo Lourenccedilo Poesia e

Metafiacutesica Lisboa 2002

509

em direcccedilatildeo agrave interrogaccedilatildeo agrave qual ele se apresenta como resposta e que

admite necessariamente outras respostas remetendo para outros textos

Esse horizonte de interrogaccedilatildeo que estaacute para aleacutem do texto soacute pode ser ganho

num movimento de retorno agrave tradiccedilatildeo em que ele se inscreve e este retorno agrave

tradiccedilatildeo afigura-se para Gadamer essencial pois eacute como vimos esse encontro

com a tradiccedilatildeo que pode rectificar os preconceitos negativos e puramente

subjectivos que o inteacuterprete necessariamente leva consigo e que se introduzem

sub-repticiamente no trabalho hermenecircutico desfigurando o texto que haacute que

interpretar e atraiccediloando o seu sentido

Delfim Santos apresentou-se-nos a certo momento do seu comentaacuterio ao

pensamento de Heidegger como um exemplo particularmente significativo

destes preconceitos subjectivos que se introduzem no trabalho hermenecircutico

Expressando a sua preocupaccedilatildeo por um programa humanista de compreensatildeo

do homem afirma em Fundamentaccedilatildeo Existencial da Pedagogia ldquoA tendecircncia

desantropomorfizante do pensamento ocidental a partir do Renascimento eacute soacute

parcialmente vaacutelida Ela pretendeu impedir a transposiccedilatildeo do humano na

natureza Natildeo pode contestar-se a fecundidade e a importacircncia de tal

programa o que eacute radicalmente contestaacutevel eacute a situaccedilatildeo inversa que realizou

a transposiccedilatildeo da natureza no humanordquo1011

Este preocupaccedilatildeo de Delfim Santos pela ldquoantropomorfizaccedilatildeordquo do homem

projectou-se sobre a sua compreensatildeo de Heidegger produzindo uma

compreensatildeo distorcida de Ser e Tempo o que pode ser constatado pela

leitura dos seus artigos atraacutes referidos1012ldquoHeideggerrdquo e ldquoTemaacutetica Existencialrdquo

de 1950 Se tivermos em conta que este uacuteltimo artigo foi publicado jaacute depois da

Carta Sobre o Humanismo de 1946 assim como a ressonacircncia que um tal

texto teve em toda a Europa teremos de considerar que a sua interpretaccedilatildeo da

filosofia heideggeriana como uma antropologia e um humanismo natildeo eacute uma

distracccedilatildeo mas uma ldquoquedardquo no ecletismo e na apreensatildeo inapropriada que

caracterizou a recepccedilatildeo portuguesa da filosofia moderna e contemporacircnea

Este curioso exemplo de projecccedilatildeo do proacuteprio horizonte hermenecircutico sobre a

coisa a interpretar ficaraacute mais claro se atendermos agrave criacutetica agraves tendecircncias

1011

Delfim Santos Fundamentaccedilatildeo Existencial da Pedagogia Lisboa Graacutefica Lisbonense 1946 in

Obras Completas II Lisboa 1982 439 1012

Cf as referecircncias a estes artigos no capiacutetulo II da segunda parte deste trabalho 270271

510

positivistas presentes na cultura portuguesa a que Delfim Santos contrapotildee

uma compreensatildeo humanista da cultura claramente expressa no artigo

ldquoHumanismo e Culturardquo ldquoSe definirmos o humanismo como processo de

revelaccedilatildeo do humano no homem temos de concluir que natildeo haacute cultura sem

uma base humanista que lhe sirva de suporte Uma cultura que natildeo tenha um

conceito de humanismo a defender eacute uma cultura sem fundamento e uma

cultura sem fundamento natildeo merece ser chamada de culturardquo1013

Este ldquopreconceitordquo humanista de Delfim Santos assume um significado

relevante porque se relaciona com essa difiacutecil e natildeo apropriada relaccedilatildeo com a

tradiccedilatildeo filosoacutefica mais antiga e enraizada na cultura portuguesa

A mistura apressada e inconsciente dos dois horizontes hermenecircuticos (o do

texto e do seu inteacuterprete) eacute expressamente proibida por Heidegger - tanto

quanto a pura e simples negaccedilatildeo e exclusatildeo - como inadequadas a uma

autecircntica apropriaccedilatildeo ldquoPois agrave partida onde o estrangeiro eacute conhecido e

reconhecido na sua essencial oposiccedilatildeo subsiste a possibilidade da autecircntica

relaccedilatildeo e por isso da apropriaccedilatildeo que natildeo eacute uma simples mistura mas

diferenciaccedilatildeo articuladora onde pelo contraacuterio soacute subsiste o repelir o

estrangeiro ou ateacute o destruiacute-lo perdem-se simultaneamente a possibilidade de ir

atraveacutes do estrangeiro e a de regressar ao proacuteprio sendo assim o ldquosi mesmordquo

tambeacutem perdidordquo1014

O reconhecimento da contradiccedilatildeo entre o humanismo entendido como

antropocentrismo e a filosofia heideggeriana foi protagonizado por Vicente

Ferreira da Silva que fundamentando-se numa leitura atenta da Carta sobre o

Humanismo e reconhecendo a importacircncia central desta obra estava em

condiccedilotildees de rectificar aquela maacute interpretaccedilatildeo de Delfim Santos

Podemos concluir que a interpretaccedilatildeo dos textos de Heidegger teve ela mesma

o caraacutecter de um acontecer apresentando-se como uma tarefa inconclusa e

aberta Trazendo o sentido da obra de Heidegger para o presente vivo do

diaacutelogo em liacutengua portuguesa os seus comentadores portugueses e brasileiros

1013

Delfim Santos ldquoHumanismo e Culturardquo Diaacuterio Popular 13 de Maio de 1943 in Obras Completas

tomo III Lisboa 1982 341 1014

bdquoDenn erst dort wo das Fremde in seiner wesenhaften Gegensӓztlichkeit erkannt und anerkannt ist

besteht die Moumlglichkeit der echten Beziehung und dh der Einigung die nicht wirre Vernichtung

sondern fuumlgende Unterscheidung ist Wo es dagegen nur dabei bleibt das Fremde zuruumlckzuweisen oder

gar zu vernichten geht notwendig die Moumlglichkeit des Durchgangs durch das Fremde und damit die

Moumlglichkeit der Heimkehr ins Eigene und damit dieses selbst verlorenrdquo HHI GA 53 6768

511

introduziram-na no movimento dialeacutectico da questatildeo e da resposta que eacute a

essecircncia do trabalho hermenecircutico movimento que se revela ele mesmo capaz

de produzir uma amplificaccedilatildeo e uma recriaccedilatildeo do sentido do texto

O que aqui parece no entanto indispensaacutevel sublinhar eacute que estas

interpretaccedilotildees portuguesas e brasileiras de Heidegger permitem confirmar que

toda a grande obra precisa de ser traduzida e essa necessidade de traduccedilatildeo eacute

intriacutenseca agrave obra mesmo como explicitaccedilatildeo de possibilidades de sentido que

ela conteacutem mas que ainda natildeo foram expressas

Uma verdadeira apropriaccedilatildeo apropria-se dessas possibilidades

desenvolvendo-as na interpretaccedilatildeo ndash natildeo o faz poreacutem arbitrariamente mas de

acordo com o que de certo modo lhe estaacute jaacute prescrito pelo seu proacuteprio

horizonte histoacuterico-linguiacutestico

Podemos pois concluir que se a traduccedilatildeo da obra de Heidegger para as vaacuterias

liacutenguas abriu as muacuteltiplas perspectivas e desdobrou as suas possibilidades de

sentido tal ocorreu tambeacutem em Portugal e no Brasil embora talvez sem

alcanccedilar a ressonacircncia doutras interpretaccedilotildees em liacutenguas em que a traduccedilatildeo

de filosofia estaacute haacute muito solidamente implantada

Natildeo podemos poreacutem deixar de concluir que os passos dados na traduccedilatildeo e

no comentaacuterio da obra de Heidegger significaram uma possibilidade de

clarificar e desenvolver a proacutepria liacutengua portuguesa pois eacute sempre ldquoatraveacutes da

discussatildeo com aquilo que eacute estrangeirordquo1015 que noacutes alargamos as

possibilidades da proacutepria liacutengua

De facto pensamos poder afirmar que os comentaacuterios agrave obra de Heidegger

escaparam agrave queda no desterro (Bodenlosigkeit) da repeticcedilatildeo mecacircnica de

teorias e conceitos desterro que entre noacutes assumiu no passado demasiadas

vezes a forma da importaccedilatildeo dogmaacutetica das ldquomodas filosoacuteficasrdquo e da mais

avulsa e superficial publicitaccedilatildeo quando natildeo a da simples e administrativa

imposiccedilatildeo A leitura directa da obra de Heidegger em alematildeo levada a cabo por

estes inteacuterpretes e a elaboraccedilatildeo e fundamentaccedilatildeo de diversos pontos de vista

compreensiacuteveis em liacutengua portuguesa enriqueceram o nosso repertoacuterio

linguiacutestico e abriram novas possibilidades de questionamento a maneiras haacute

muito instaladas e habituais de pensar

1015

ldquoDas Uumlbersetzen ist vielmehr eine Erweckung Klaumlrung Entfaltung der eigenen Sprache durch die

Hilfe der Auseinandersetzung mit der fremdenrdquo HHI GA 53 80

512

Pudemos ainda ver que estes diversos pontos de vista interpretativos da

filosofia de Heidegger constituiacuteram diversas modalidades de traduccedilatildeo do seu

pensamento para o contexto histoacuterico-linguiacutestico portuguecircs e brasileiro Assim

a habitual separaccedilatildeo entre traduccedilatildeo e interpretaccedilatildeo deve ser de acordo com

os pressupostos hermenecircuticos de que partimos e que pudemos confirmar

recorrendo aos textos secundarizada face ao reconhecimento de que uma

interpretaccedilatildeo eacute necessariamente uma traduccedilatildeo para um outro contexto natildeo

essencialmente porque se trate duma transposiccedilatildeo para outra liacutengua (o que eacute

aqui o caso) mas porque entre o presente da obra e o presente da sua leitura e

interpretaccedilatildeo existe um inevitaacutevel desfasamento ldquoNatildeo haacute em geral nenhuma

traduccedilatildeo no sentido de que a palavra de uma liacutengua poderia ou deveria ser

trazida agrave concordacircncia com a palavra da outra Esta impossibilidade natildeo deve

contudo conduzir agrave desvalorizaccedilatildeo da traduccedilatildeo como um simples fracassar

Pelo contraacuterio a traduccedilatildeo pode ateacute mesmo por isso trazer agrave luz conexotildees que

na verdade existem na liacutengua traduzida mas natildeo foram expressas A partir

daqui reconhecemos que cada traduccedilatildeo tem que ser uma interpretaccedilatildeo Mas

ao mesmo tempo eacute vaacutelido o contraacuterio cada interpretaccedilatildeo e tudo o que se

encontra ao seu serviccedilo satildeo um traduzir1016

3 A tradiccedilatildeo humanista e a traduccedilatildeo filosoacutefica

No curso sobre Parmeacutenides do semestre de Inverno de 194243 Heidegger

aborda a questatildeo do humanismo em conexatildeo com a temaacutetica da traduccedilatildeo

Na perspectiva de Heidegger os romanos traduziram a filosofia grega a partir

da experiecircncia histoacuterica do Imperium isto eacute do comandare e imperare sobre

povos distintos impondo-lhes o estado de sujeiccedilatildeo da pax romana atraveacutes da

lei e da justiccedila romanas Eacute esta experiecircncia do comandare e regere que

determina a traduccedilatildeo de aletheia como veritas entendida como justeza e

rectidatildeo do enunciado que deriva dum correcto uso da razatildeo

1016

Es gibt uumlberhaupt keine Uumlbersetzung in dem Sinne daβ das Wort der einen Sprache mit dem Wort der

anderen zur Deckung gebracht werden koumlnnte oder auch duumlrfte Diese Unmoumlglichkeit soll jedoch

wiederum nicht dazu verleiten die Uumlbersetzung im Sinne eines bloβen Versagens abzuwerten Im

Gegenteil Die Uumlbersetzung kann sogar Zusammenhӓnge ans Licht bringen die in der uumlbersetzten

Sprache zwar liegen aber nicht herausgelegt sind Hieraus erkennen wir daβ jedes Uumlbersetzen ein

Auslegen sein muβ Zugleich gilt aber auch das Umgekehrte Jede Auslegung und alles was in ihrem

Dienst steht ist ein Uumlbersetzenldquo HHI GA 53 75

513

O Humanismo identificado com a Renascenccedila Italiana seria essencialmente o

retomar desta interpretaccedilatildeo latina do pensamento grego originaacuterio traduccedilatildeo

responsaacutevel pela mutaccedilatildeo histoacuterica da essecircncia da verdade e pelo desterro do

pensamento ocidental A Renascenccedila Italiana e o humanismo estariam pois

essencialmente ligados ao relanccedilar deste acontecimento histoacuterico fundamental

e nessa medida teriam projectado a moderna metafiacutesica da subjectividade

que veio a interpretar a verdade como atributo da razatildeo calculadora e da

vontade de poder

Eacute neste mesmo sentido que Heidegger critica Nietzsche atribuindo-lhe uma

interpretaccedilatildeo romana dos gregos fundada em Burckhardt cujo pensamento

histoacuterico estaria sob a influecircncia do renascimento italiano e por isso pensaria

a histoacuteria sob o fundamento de trecircs potecircncias o Estado a religiatildeo e a

cultura1017

No entanto eacute na Carta sobre o Humanismo que o humanismo eacute trazido para o

lugar de questatildeo central e posto em correlaccedilatildeo com a apropriaccedilatildeo natildeo

originaacuteria isto eacute deformadora e descontextualizada dos conceitos gregos

designadamente do conceito grego de ldquopaideiardquo que veio a ser traduzida por

Humanitas e assim identificada com os studia humanitatis ldquoSomente na

eacutepoca da repuacuteblica romana humanitas eacute pela primeira vez expressamente

pensada e visada sob este nome Contrapotildee-se o hommo humanus ao homo

barbarus O homo humanus eacute aqui o romano que eleva e enobrece a virtus

romana atraveacutes da ldquoincorporaccedilatildeordquo da paideia herdada dos gregos [] Em

Roma encontramos o primeiro humanismo Ele permanece por isso em sua

essecircncia um fenoacutemeno especificamente romano que emana do encontro da

romanidade com a cultura do helenismo A assim chamada Renascenccedila dos

seacuteculos XIV e XV em Itaacutelia eacute uma renascentia humanitatis [hellip] tambeacutem o homo

romanus do Renascimento estaacute numa oposiccedilatildeo com o homo barbarus

Todavia o in-humano eacute agora o assim chamado barbarismo da Escolaacutestica

Goacutetica da Idade Meacutedia Agrave compreensatildeo histoacuterica do humanismo pertence por

isso um studia humanitatis que de uma certa maneira retoma a Antiguidade e

1017

ldquoBurckhardt betrachtet das Griechentum in Hinblick auf die bdquogriechische Kulturgeschichteldquo Damit

meint er bdquodie Geschichte des griechischen Geistesldquo Die Begriffe des bdquoGeistesldquo und der bdquoKulturldquo sind wie

immer man sie immer auch umgrenzen mag Vorstellungen des neuzeitlichen Denkens Jakob Burckhardt

hat diesen Vorstellungen aus dem Blick auf die von ihm entdeckte bdquoitalienische Renaissanceldquo ein

besonderes Gepraumlge gegeben Auf diesem Weg flieβen wesentlich roumlmische und romanische und

neuzeitliche Begriffe in das Geschichtsdenken J Burckhardts ein Burckhardt denkt das Ganze der

Geschichte nach den drei ldquoPotenzenrdquo bdquoStaatldquo bdquoReligionldquo und bdquoKulturldquo P GA 54 134135

514

assim respectivamente tambeacutem se transforma num renascimento da grecidade

Isto mostra-se no neo-humanismo do seacuteculo XVIII que foi entre noacutes sustentado

por Winckelmann Goethe e Schiller Houmllderlin pelo contraacuterio natildeo pertence ao

humanismo e isto porque ele pensa o destino da essecircncia do homem de uma

maneira mais originaacuteria do que esse humanismo o permiterdquo 1018

Da mesma maneira na perspectiva de Heidegger na traduccedilatildeo latina de δῷολ

ιoacuteγολ ἔχολ por animal rationale natildeo haacute uma inofensiva traduccedilatildeo mas uma

traduccedilatildeo que implica uma interpretaccedilatildeo metafiacutesica da essecircncia do homem

esta traduccedilatildeo visa determinar a especificidade do ente humano relativamente

aos outros entes e assim lanccedilou o Ocidente numa arrogante afirmaccedilatildeo da

humanidade do homem apostada no esquecimento do ser

Pelo contraacuterio Houmllderlin que como referimos eacute para Heidegger o modelo de

traduccedilatildeo autecircntica representa a possibilidade de um acesso ao sentido

originaacuterio dos termos gregos pelo facto de evitar a mediaccedilatildeo das traduccedilotildees

latinas pondo os textos gregos em correlaccedilatildeo imediata com a liacutengua alematilde

Franco Volpi em O Problema da intraduzibilidade e a romanidade filosoacutefica natildeo

contesta esta intenccedilatildeo de ir directamente aos gregos evitando a mediaccedilatildeo das

traduccedilotildees latinas que eacute em si mesma legiacutetima mas sim a tentativa de

subalternizar o latim e as liacutenguas latinas como liacutenguas filosoacuteficas interrogando-

se sobre o sentido da contiguidade desta posiccedilatildeo do filoacutesofo alematildeo com a

desvalorizaccedilatildeo da romanidade tiacutepica do pangermanismo1019

Efectivamente esta criacutetica de Heidegger agraves traduccedilotildees latinas da filosofia grega

apesar de focar alguns aspectos pertinentes ignora a preocupaccedilatildeo de rigor

1018

Ausdruumlcklich unter ihrem Namen wird die Humanitas zum ersten Mal bedacht und erstrebt in der Zeit

der roumlmischen Republik Der homo humanus setzt sich dem homo barbarus entgegen Der homo humanus

ist hier der Roumlmer der die roumlmische virtus erhoumlht und veredelt durch die bdquo Einverleibungldquo der von den

Griechen uumlbernommenen παηδεία[] In Rom begegnen wir dem ersten Humanismus Er bleibt daher im

Wesen eine spezifisch roumlmische Erscheinung die aus der Begegnung des Roumlmertums mit der Bildung des

spaumlten Griechentums entspringt Die sogenannte Renaissance des 14 und 15Jahrhunderts in Italien ist

eine renascentia romanitatis [] Auch der homo romanus der Renaissance steht in einem Gegensatz zum

homo barbarus Aber das In-humane ist jetzt die vermeintliche Barbarei der gotischen Scholastik des

Mittelalters Zum historisch verstandenen Humanismus gehoumlrt deshalb stets ein studium humanitatis das

in einer bestimmten Weise auf das Altertums zuruumlckgreift und so jeweils auch zu einer Wiederbelebung

des Griechentums wird Das zeigt sich im Neuhumanismus des 18 Jahrhunderts bei uns der durch

Winckelmann Goethe und Schiller getragen ist Houmllderlin dagegen gehoumlrt nicht in den bdquoHumanismusldquo

und zwar deshalb weil er das Geschick des Wesens des Menschen anfӓnglicher denkt als dieser

bdquoHumanismusldquo es vermagldquo Buh GA 9 320 1019

Franco Volpi sublinha que esta posiccedilatildeo de Heidegger relativamente ao latim contradiz uma

multiplicidade de referecircncias latinas de Ser e Tempo (Seacuteneca e Santo Agostinho) e aparece pela primeira

vez nas obras dos anos 30 em sincronia com o pangermanismo Cf Franco Volpi ldquoEl Problema de la

Intraducibilidad y la romanidad filosoacuteficardquo in Heidegger Linguagem e Traduccedilatildeo 540-541

515

filoloacutegico dos renascentistas e o significado que os humanistas atribuiacuteam agrave

filologia Como demonstrou Grassi em Verteidigung des Individuellen Lebens a

primazia do problema da linguagem atravessa todo o humanismo italiano em

ligaccedilatildeo com a tarefa de traduccedilatildeo para o Latim dos textos gregos e conduz ao

papel central da filologia Segundo Grassi no domiacutenio da filologia os

renascentistas levam a cabo uma revoluccedilatildeo relativamente ao saber medieval

tatildeo radical como aquela que foi levada a cabo no domiacutenio das modernas

ciecircncias da natureza Efectivamente contrariamente aos medievais que

abordavam os textos da antiguidade na expectativa de aiacute encontrar uma

confirmaccedilatildeo do cristianismo os renascentistas partem do princiacutepio de que eacute

necessaacuterio deixar-nos instruir pelas liacutenguas da antiguidade escutando o dizer

das palavras e interpretando-as no contexto da obra

Os renascentistas efectuaram uma pesquisa relativamente aos princiacutepios que

devem orientar o trabalho filoloacutegico pesquisa essa que assume uma

importacircncia filosoacutefica fundamental uma vez que potildee em jogo uma concepccedilatildeo

do homem e da natureza da linguagem ldquoEm que consiste por conseguinte o

problema filosoacutefico que desde o princiacutepio dos Studia Huamanitatis a autecircntica

Filologia traz consigo Compreender ldquoabrirrdquo a palavra significam na tradiccedilatildeo

humanista ldquodesenvolver a essecircncia do homem mesmordquo pelo que a Filologia o

amor pela palavra natildeo eacute uma ciecircncia singular entre as outras mas toma o

lugar da Filosofia e tem como objecto a essecircncia do homem por isso ela eacute

studia humanitatis pois a palavra eacute aqui entendida como momento da

determinaccedilatildeo do homem como δῷολ ιoacuteγολ ἔχολ e ganha assim um papel

condutorrdquo1020

Assim para Grassi natildeo eacute hegemonia do latim que caracteriza essencialmente

o humanismo mas antes a primazia e o papel determinante da linguagem e

das liacutenguas De facto apesar de os humanistas terem feito da restauraccedilatildeo e

cultivo das liacutenguas claacutessicas um aspecto essencial da sua estrateacutegia cultural

puseram tambeacutem pela primeira vez em causa a hegemonia do latim como

liacutengua filosoacutefica Como Leonel Ribeiro demonstra em Linguagem Retoacuterica e

1020

ldquoWorin liegt also das philosophische Problem das von Anfang an die studia humanitatis die

unverfaumllschte Philologie in sich traumlgt Das Wort zu verstehen zu entfalten bedeutet in der

humanistischen Tradition das ldquoWesen des Menschen selbst zu entwickelnrdquo wobei die Philologie die

Liebe zum Wort nicht mehr eine einzelne Wissenschaft unter anderen bleibt sondern den Rang der

Philosophie erhaumllt und zum Gegenstand das Wesen des Menschen hat deswegen studia humanitatis den

das Wort ist hier als Bestimmungsmoment des Menschen als δῷον λoacuteγον ἔχον verstanden und gewinnt

daher eine Fuumlhrende Rollerdquo Ernesto Grassi Verteidigung des individuellen Lebens 159

516

Filosofia no Renascimento alguns humanistas como Luiacutes Vives Speroni e

Giordano Bruno fizeram a apologia da traduccedilatildeo nas liacutenguas vulgares e do

pensar na proacutepria liacutengua 1021

Anaacuteloga eacute a posiccedilatildeo de Gadamer cuja avaliaccedilatildeo positiva da tradiccedilatildeo

humanista como heranccedila europeia crucial natildeo deixa qualquer duacutevida quer em

Das Erbe Europas1022 quer em Wahrheit und Methode O sentido essencial

desta tradiccedilatildeo estaacute para Gadamer associado agrave retomaccedilatildeo do conceito

aristoteacutelico de phronesis traduzido por Vico como sensus comunis ldquoA apologia

do humanismo que Vico leva a cabo estaacute [hellip] mediada pela pedagogia dos

jesuiacutetas e orientada tanto contra Descartes como contra o jansenismo Este

manifesto pedagoacutegico de Vico estaacute como o seu projecto de uma ldquociecircncia

novardquo fundado em verdades antigas Ele ocupa-se aiacute do sensus comunis do

sentido comum e do ideal humanista da eloquentia Momentos que jaacute estavam

presentes no antigo conceito de sabedoriardquo1023

Explicitando a sua tese de que o sensus comunis actualiza o sentido essencial

da phronesis aristoteacutelica como um saber comum e geral Gadamer afirma ldquoO

sensus comunis significa aqui evidentemente natildeo apenas aquela capacidade

geral que existe em todo o homem mas eacute ao mesmo tempo o sentido que

institui a comunidade O que daacute agrave vontade humana a sua direcccedilatildeo pensa Vico

natildeo eacute a abstracta generalidade da razatildeo mas a generalidade concreta que

representa a comunidade de um grupo de um povo de uma naccedilatildeo ou do

conjunto do geacutenero humanordquo1024

Gadamer encontra aqui a essecircncia da cultura - a construccedilatildeo de um sentido

geral e comum pelo encontro com a alteridade no exerciacutecio do diaacutelogo isto eacute

na experiecircncia viva da linguagem numa comunidade tarefa que estava

1021

Cf Leonel Ribeiro dos Santos Linguagem Retoacuterica e Filosofia no Renascimento Lisboa 2004

158167 1022

Cf Maria Adelaide Pacheco bdquoA Europa como legado em Gadamerldquo in Razatildeo e Liberdade

Homenagem a Manuel Joseacute Carmo Ferreira Lisboa 2010 vol II 14231443 1023

bdquoDie Verteidigung des Humanismus die Vico vornimmt ist [] durch die jesuitische Paumldagogik

vermittelt und ebensosehr wie gegen Descartes auch gegen den Jansenismus gerichtet Dieses

paumldagogische Manifest Vicos ist wie sein Entwurf einer bdquoneuen Wissenschaftldquo auf alte Wahrheiten

gegruumlndet Es beruft sich auf den sensus comunis den gemeinschaftlichen Sinn und auf das

humanistische Ideal der eloquentia Momente die schon in dem antiken Begriff des Weisen gelegen

warenldquo WuM GW I 25 1024

bdquoSensus comunis meint hier offenkundig nicht nur jene allgemeine Faumlhigkeit die in allen Menschen

ist sondern er ist zugleich der Sinn der Gemeinsamkeit stiftet Was dem menschlichen Willen seine

Richtung gebe meint Vico sei nicht die abstrakte Allgemeinheit der Vernunft sondern die Konkrete

Allgemeinheit die die Gemeinsamkeit einer Gruppe eines Volkes einer Nation oder des gesamten

Menschengeschlechtes darstelleldquo WuM GW I 26

517

subjacente ao ideal grego de sabedoria e que foi retomado pelo ideal

humanista de eloquentia 1025 entre noacutes presente na obra de Vieira e defendido

pela Segunda Escolaacutestica e pelo projecto pedagoacutegico dos jesuiacutetas

Embora reivindicando-se do anti-humanismo de Heidegger Vicente Ferreira da

Silva levou a cabo como vimos um diaacutelogo com a tradiccedilatildeo humanista

protagonizada por Eduardo Grassi e natildeo podemos deixar de ver nesse diaacutelogo

um meio de controlar preconceitos subjectivos e infundados e moderar o

iacutempeto anti-humanista do pensador brasileiro

No entanto o caraacutecter fragmentaacuterio e a forma ensaiacutestica do seu pensamento

assim como a abrupta interrupccedilatildeo da sua obra filosoacutefica pela traacutegica morte nos

anos sessenta natildeo lhe permitiram articular de forma consistente este diaacutelogo

com a tradiccedilatildeo e com a temaacutetica do humanismo em Heidegger Vicente

adoptou uma soluccedilatildeo de compromisso entre Heidegger e Grassi ao introduzir

a distinccedilatildeo histoacuterica entre um humanismo decadente e a alvorada do

humanismo renascentista

Natildeo obstante o proacuteprio Vicente ao falar da importacircncia de preservar o ideal

renascentista de homem pocircs em evidecircncia na forma intempestiva que eacute

proacutepria do ldquoestilordquo do seu pensar a sua impossibilidade de se desligar de uma

tradiccedilatildeo humanista que tanto peso teve nas culturas e liacutenguas latinas De uma

outra forma o uso recorrente de termos latinos pelo pensador brasileiro a par

de termos alematildees importados de Heidegger eacute a marca linguiacutestica viva dessa

heranccedila

Podemos ainda sublinhar que interpretando o passo atraacutes (Schritt zuruumlck)

proposto por Heidegger em direcccedilatildeo a um pensamento rememorante como um

regresso a uma religiosidade originaacuteria Vicente anuncia uma nova religiatildeo

coacutesmica pensada como celebraccedilatildeo ritual da unidade da vida e da pluralidade

das manifestaccedilotildees do divino

Esta repeticcedilatildeo da filosofia heideggeriana por Vicente rompe (neste aspecto

como noutros jaacute assinalados) claramente com a contenccedilatildeo que a ontologia da

finitude impunha a Heidegger e aponta para o sentido profeacutetico e escatoloacutegico

1025

O humanismo de Gadamer tem um sentido geral de abertura ao humano atraveacutes do diaacutelogo que natildeo

inclui nem exclui necessariamente as religiotildees com efeito o estatuto indeterminado da alteridade permite

que nele caiba a transcedecircncia divina ou que o homem possa ser encarado como uma emanaccedilatildeo da

divindade Cf Rui Sampaio da Silva ldquoGadamer e a Heranccedila Heideggerianardquo Revista Portuguesa de

Filosofia LVI 541

518

do novo sentimento religioso presente na poesia portuguesa contemporacircnea

que Fernando Pessoa viria a traduzir na sua proacutepria obra poeacutetica e que

anunciava nos seguintes termos ldquoIgualmente inuacutetil deve ser notar quanto essa

futura foacutermula deve distar do cristianismo e especialmente do catolicismo em

mateacuteria religiosa da democracia moderna em todas as suas formas em

mateacuteria poliacutetica do comercialismo e materialismo radicais na vida moderna

[]rdquo1026

De facto tanto Vicente Ferreira da Silva como Fernando Pessoa com a sua

criacutetica ao humanismo natildeo se colocam fora da tradiccedilatildeo humanista mas apenas

mostram o modo peculiar como nela se situam - o que pensamos ter

cabalmente demonstrado no capiacutetulo anterior dedicado ao pensador brasileiro

Por conseguinte pensamos poder legitimamente concluir que nesta

interpretaccedilatildeo que Vicente faz de Heidegger satildeo correlacionados o horizonte de

sentido dos textos heideggerianos com um outro horizonte imposto pela

situaccedilatildeo histoacuterico-linguiacutestica do inteacuterprete em que a tradiccedilatildeo humanista tem

um peso consideraacutevel

Contudo nesta aproximaccedilatildeo de dois horizontes de compreensatildeo Vicente

Ferreira da Silva foi quase sempre capaz de manter aberto o espaccedilo da

contradiccedilatildeo eacute nesse espaccedilo que pode desenvolver-se a confrontaccedilatildeo atraveacutes

da qual nos podemos tornar ldquonoacutes mesmosrdquo e estarmos em casa na nossa

proacutepria tradiccedilatildeo

Este regresso agrave tradiccedilatildeo humanista eacute um dos aspectos mais interessantes que

acompanha esta recepccedilatildeo de Heidegger em liacutengua portuguesa e que de modo

algum se limita aos casos de Vicente e de Delfim Santos em que essa tradiccedilatildeo

eacute explicitamente invocada e discutida De facto o efeito refractaacuterio da obra de

Heidegger sobre o pensamento dos diversos autores que com ele dialogaram

quando analisado no seu conjunto permite-nos ver distintamente o retomar de

alguns aspectos fundamentais do paradigma filosoacutefico humanista

Podemos efectivamente concluir que a primazia dos problemas da linguagem

sobre os problemas do conhecimento e o reconhecimento da importacircncia da

linguagem metafoacuterica e simboacutelica da poesia da religiatildeo e dos mitos que

Eduardo Grassi apontava como a essecircncia da tradiccedilatildeo humanista marcam

1026

Fernando Pessoa A Nova Poesia Portuguesa [1912] Lisboa 1944 8586

519

todo o discurso filosoacutefico de Vicente Ferreira da Silva Eudoro de Sousa Joseacute

Enes e Emmanuel Carneiro Leatildeo natildeo apenas enquanto comentam Heidegger

mas tambeacutem quando pensando por conta proacutepria produzem um discurso

original

Por outro lado se tomarmos como referecircncia uma outra caracterizaccedilatildeo do

paradigma filosoacutefico do humanismo renascentista feita por Leonel Ribeiro dos

Santos em Linguagem Retoacuterica e Filosofia no Renascimento a partir de

pressupostos diferentes dos de Grassi como o primado da vida activa sobre a

vida contemplativa1027 teremos que reconhecer que esse paradigma estaacute

presente na maior parte destes inteacuterpretes de Heidegger Com efeito a

preocupaccedilatildeo por uma ontologia da praxis que encontramos em Gerd Bornheim

assim como a preocupaccedilatildeo pela reflexatildeo sobre a problemaacutetica da cultura do

direito da educaccedilatildeo e da arte que inspirou o discurso filosoacutefico de Delfim

Santos Antoacutenio Joseacute Brandatildeo ou Benedito Nunes mostram que estes autores

foram conduzidos pelo reconhecimento da centralidade da acccedilatildeo Enquanto

pensaram por conta proacutepria e produziram uma obra original estes uacuteltimos

pensadores de liacutengua portuguesa privilegiaram efectivamente as questotildees da

cultura e reflectiram sobre a centralidade da praxis esforccedilando-se no entanto

por fundar a sua reflexatildeo na problemaacutetica heideggeriana do Ser e da Verdade

Podemos ainda lembrar que o interesse pela investigaccedilatildeo histoacuterica dos

autores da Segunda Escolaacutestica e a redescoberta da importacircncia dessa

tradiccedilatildeo do humanismo cristatildeo e da problemaacutetica ontoloacutegica por ela introduzida

- que tatildeo marcantes foram para Delfim Santos e para Joseacute Enes - deve ser

posta como vimos em conexatildeo com a recepccedilatildeo de Heidegger

Podemos pois afirmar como uacuteltima conclusatildeo desta investigaccedilatildeo sobre a

recepccedilatildeo de Heidegger em portuguecircs que esta pocircs explicita ou implicitamente

a obra do filoacutesofo alematildeo em diaacutelogo com uma tradiccedilatildeo hermenecircutica

transportada pela liacutengua portuguesa suscitou um questionamento e uma

reflexatildeo sobre essa tradiccedilatildeo

1027

ldquoTodos estes pontos ndash o primado da Jurisprudecircncia [hellip] sobre a ciecircncia natural o primado da vida

activa sobre a vida contemplativa o primado da vontade sobre o entendimento o primado do bem sobre a

verdade e o ser ndash satildeo obviamente solidaacuterios entre si indicando uma clara mudanccedila do paradigma

filosoacutefico Leonel Ribeiro dos Santos Linguagem Retoacuterica e Filosofia no Renascimento Lisboa 2004

176

520

De facto a traduccedilatildeo no sentido hermenecircutico de apropriada interpretaccedilatildeo eacute

uma incerta viagem entre duas margens exposta a todos os perigos do

extravio e do naufraacutegio mas sem a qual nunca poderemos estar em casa nem

virmos a ser ldquonoacutes mesmosrdquo como Heidegger sublinhava em Der Ister ldquoA

unidade entre a construccedilatildeo da morada e o exiacutelio que natildeo eacute nenhuma unidade

de entrelaccedilamento mas uma unidade do originaacuterio aprendecirc-la-emos quando

experimentarmos reflectir sobre a essecircncia da historicidade Isso oculta-se para

Houmllderlin num repatriar [Heimischwerden] do homem um repatriar

[Heimischwerden] que eacute um ir atraveacutes do estrangeiro e um enfrentamento com

o que eacute alheiordquo1028

1028

bdquoDie Einheit von Ortschaft und Wanderschaft die keine Einheit der Verknuumlpfung sondern eine

Einheit des Ursprungs ist werden wir eher fassen lernen wenn wir das Wesen der Geschichte

nachzudenken versuchen Das verbirgt sich fuumlr Houmllderlin im Heimischwerden des Menschen welches

Heimischwerden ein Durchgang durch die Fremde und eine Auseinandersetzung mit der Fremde istrdquo

HHI GA 53 67

521

APEcircNDICE

522

523

I - Traduccedilotildees de Filosofia em liacutengua portuguesa

ateacute 1959

1- Traduccedilotildees Portuguesas de Filosofia (ateacute 1959)

A primeira traduccedilatildeo portuguesa de filosofia

Ciacutecero Tratados de Amizade Paradoxos e Sonhos de Scipiatildeo traduzidos do latim em liacutengua portuguesa por Duarte de Resende no ano de 1531

A O seacuteculo XVIII

Ciacutecero Leacutelio ou o Diaacutelogo sobre a amizade traduccedilatildeo de Antoacutenio Lourenccedilo

Caminha 1755

Velho Catatildeo ou Diaacutelogo sobre a Velhice traduccedilatildeo de Marccedilal Joseph de

Resende Lisboa 1765

Trecircs livros de Ciacutecero sobre as Obrigaccedilotildees Civis traduccedilatildeo de Miguel

Antoacutenio Ciera 1766

Aristoacuteteles Poeacutetica trad de Antoacutenio Ribeiro dos Santos Lisboa 1779

Poeacutetica trad de Ricardo Raimundo Nogueira Lisboa 1779

Santo Agostinho As Confissotildees traduzidas por um devoto 1783

Epicteto Manual de Epicteto filoacutesofo traduzido do grego por D Frei Antoacutenio de

Sousa Lisboa 1785

Genovesi Liccedilotildees de Loacutegica feitas para uso dos principiantes trad de Bento

Joseacute de Sousa Farinha Lisboa 1785 (reeditada em 1816 1822 1840

18451859)

Instituiccedilotildees de Loacutegica escritas para uso de principiantes traduccedilatildeo de

Miguel Cardoso Coimbra 1786 (reeditado em 1803 e 1842)

Instituiccedilotildees Loacutegicas para uso da Mocidade trad de Guilherme Coelho

Ferreira 1ordf ed Lisboa 1787

Liccedilotildees de Metafiacutesica feitas para Uso dos Principiantes trad de Bento

Joseacute de Sousa Farinha Lisboa 1790

Pitaacutegoras Versos de Ouro trad de Luiacutes Antoacutenio de Azevedo Lisboa 1795

524

B O seacuteculo XIX Condillac A Arte de Pensar trasladado em liacutengua portuguesa com um prefaacutecio

ldquoAos Portuguesesrdquo trad de Joseacute Liberato Freire de Carvalho 1ordf ed Coimbra imp da Universidade 1794 2ordf ed Lisboa tip Lacerdina 1818

Aristoacuteteles As Categorias traduzidas do grego e ordenadas por Silvestre

Pinheiro Ferreira Rio de Janeiro Imprensa Reacutegia 1814

Platatildeo Diaacutelogos Socraacuteticos Manuel Aleixo Duarte Machado Lisboa Typ

Simatildeo Thaddeo Ferreira 1823

Genovesi Instituiccedilotildees de Metafiacutesica trad de Miguel Cardoso 3ordf ediccedilatildeo

Lisboa 1835

Elementos de Loacutegica trad De Joseacute Correia da Silva e Melo e Manuel

Joaquim Afonso Cirne Coimbra 1845

Apuleio O Burro de Ouro trad portuguesa Lisboa 1847

Apologia traduccedilatildeo do Baratildeo de Vila Nova de Foz Cocirca Lisboa 1895

Platatildeo Constituiccedilatildeo do Filoacutesofo trad de J J Antunes da Silva Porto

Typographia da Revista 1849

Lucreacutecio Da Natureza das Coisas Trad de Joseacute Duarte Machado Ferraz

Lisboa 1850

Da Natureza das Coisas trad de Antoacutenio Joseacute de Lima Leitatildeo Lisboa

1851-1853

Da Natureza das Coisas trad de Agostinho Mendonccedila Falcatildeo Coimbra

1890

Ciacutecero Cartas trad de ECAB Lisboa 1869

C A primeira metade do seacuteculo XX

1 Filosofia alematilde

Haeckel Ernest Os enygmas do Universo trad Jayme Filinto Porto Livraria

Chardron 1908

O monismo laccedilo entre a religiatildeo e a ciecircncia trad Fonseca Cardoso

Porto Lello amp Irmatildeo 1908

Religiatildeo e Evoluccedilatildeo trad Domingos Ramos Porto Livraria Chardron

1908

Histoacuteria da criaccedilatildeo de seres organisados segundo as leis naturaes trad

Eduardo Pimenta Livraria Chardron 1911

525

Maravilhas da Vida estudos de Philosophia Bioloacutegica para servirem de

complemento aos enigmas do universo trad Joatildeo de Meyra Porto Lello

amp Irmatildeo 1922

O problema do homem e os primatas de Lineu trad Joatildeo Maria Bravo

Lisboa imp Beleza 1928

Marx Karl O Capital resumido por Gabrielle Deuille Trad de Albano Morais

Biblioteca da Educaccedilatildeo Nacional Lisboa 1912

Nietzsche F W Assim Falava Zaratustra trad de Antoacutenio Arauacutejo Pereira

ldquoColecccedilatildeo Socioloacutegicardquo Lisboa Guimaratildees Editores 1913

A Genealogia da Moral trad de Carlos Joseacute de Meneses Lisboa

Guimaratildees Editores 1913 2ordf ed 1946

O Anticristo Estudo Criacutetico Sobre a Crenccedila Cristatilde trad de Carlos Joseacute de

Meneses Lisboa Guimaratildees Editores 1916

Despojos de uma trageacutedia correspondecircncia ineacutedita trad e notas de

Ferreira da Costa Porto Editora Educaccedilatildeo Nacional 1944

Vontade de Potecircncia trad e notas de Maacuterio Ferreira Santos Rio de

Janeiro Livraria do Globo 1945

Da Utilidade e Inconvenientes da Histoacuteria para A Vida Introduccedilatildeo e

traduccedilatildeo de Armando de Morais Lisboa Tip Graacutefica Santelmo 1946

Assim Falava Zaratustra trad de Antoacutenio Arauacutejo Pereira Lisboa

Guimaratildees Editores 1952

Ecce Homo - Como se Chega a Ser o Que Eacute trad de Joseacute Meirinho

Lisboa Guimaratildees Editores 1952

A Origem da Trageacutedia trad de Aacutelvaro Ribeiro Lisboa Guimaratildees

Editores 1953

Leibniz Gottfried Wilhelm Novos Ensaios Sobre o Entendimento Humano trad

de Antoacutenio Seacutergio Coimbra Imprensa da Universidade de Coimbra 1931

Monadologia discurso de metafiacutesica Antoacutenio Novais Machado Coimbra

Casa do Castelo Editora 1947

Schopenhauer Arthur Necessidade da Metafiacutesica - Excertos trad de Lobo

Vilela ldquoCadernos Inqueacuteritordquo Seacuterie C Filosofia e religiatildeo Lisboa Editorial

Inqueacuterito 1939

Metafiacutesica do Amor - Excertos trad de Lobo Vilela ldquoCadernos Inqueacuteritordquo

Lisboa Editorial Inqueacuterito 1940

526

Esboccedilo de Histoacuteria da Teoria do Ideal e do Real - dos Parerga e

Paralipomena trad prefaacutecio e notas de Vieira de Almeida Coimbra

Atlacircntida 1948

Kant Immanuel A Paz Perpeacutetua (Ensaio Filosoacutefico) trad de Alberto Machado

Cruz Porto Livraria Educaccedilatildeo Nacional 1941

O Belo e o Sublime (Ensaio de Esteacutetica e Moral) trad de Alberto

Machado Cruz Porto Livraria Educaccedilatildeo Nacional 1943

Da Forma e dos Princiacutepios do Mundo Sensiacutevel e do Mundo Inteligiacutevel

trad e prefaacutecio de Francisco Paulo Mendes da Luz Coimbra Editorial

Saber 1943

Ensaios de Kant a propoacutesito do Terramoto de 1755 trad de Luiacutes Silveira

Lisboa Publicaccedilotildees Culturais da Cacircmara Municipal de Lisboa1955

Da Forma e dos Princiacutepios do Mundo Sensiacutevel e do Mundo Inteligiacutevel

trad de Francisco Mendes da Luz sd Coimbra

Hessen Johannes Filosofia dos Valores traduccedilatildeo e prefaacutecio de L Cabral

Moncada Colecccedilatildeo Studium Coimbra Armeacutenio Amado 1944

Lutero Visto Pelos Catoacutelicos trad de L Cabral Moncada Coimbra

Armeacutenio Amado 2ordf ediccedilatildeo 1951

Husserl Edmundo A Filosofia como Ciecircncia de Rigor trad de Albin Beau

prefaacutecio de Joaquim de Carvalho Coimbra Livraria Atlacircntida 1952

Hegel G W F Esteacutetica vol II O Belo Artiacutestico ou o Ideal trad de Orlando

Vitorino Lisboa Guimaratildees amp Ca Editores 1953

Esteacutetica vol I A Ideia e o Ideal traduccedilatildeo de Orlando Vitorino Lisboa

Guimaratildees Editores 1956

Esteacutetica vol III A Arte Simboacutelica traduccedilatildeo de Orlando Vitorino Lisboa

Guimaratildees Editores 1956

2 Filosofia Grega

Platatildeo Feacutedon trad de Acircngelo Ribeiro prefaacutecio de Leonardo Coimbra Lisboa

Renascenccedila Portuguesa 1919

Apologia de Soacutecrates trad Acircngelo Ribeiro Porto 1923

O Banquete trad de Acircngelo Ribeiro Porto 1924

Criacuteton trad de Agostinho da Silva Lisboa 1934

527

Defesa de Soacutecrates trad de Agostinho da Silva Lisboa 1937

Criacuteton trad de Agostinho da Silva Lisboa 2ordf ed 1938

Diaacutelogo Sobre a Justiccedila trad de Lobo Vilela ldquoCadernos de Inqueacuterito

Filosofia e Religiatildeordquo Lisboa 1939

Alcibiacuteades trad de Alberto Machado Cruz Porto 1941

Cartas I a VI trad de Alberto Machado da Cruz Porto 1941

Carta VII trad de Alberto Machado da Cruz Porto 1941

Cartas VIII a XIII trad de Alberto Machado da Cruz Porto Livraria

Educaccedilatildeo Nacional 1941

Feacutedon trad de Acircngelo Ribeiro Lisboa 3ordf ed 1941

Hiacutepias menor trad de Alberto Machado Cruz Porto 1941

Hiacutepias maior trad de Santana Dioniacutesio Lisboa 1945

Hiacutepias Menor trad de Santana Dioniacutesio Porto 1945

Meacutenon trad de Lobo Vilela Lisboa 1945

Parmeacutenides trad de Lobo Vilela Lisboa 1945

Protaacutegoras trad de Lobo Vilela Lisboa 1945

Teoria do Amor - excerto de O Banquete trad de Agostinho da Silva in

ldquoCadernos de Antologiardquo Lisboa sd

Teoria do Amor Antologia Introduccedilatildeo aos grandes autores Vila Nova de

Famalicatildeo 1944

Feacutedon trad de Dias Palmeira Coimbra Livraria Atlacircntida 1947

Timeu trad de M Maia Pinto Porto 1952

Apologia de Soacutecrates trad de Santana Dioniacutesio Lisboa Seara Nova

1953

Aristoacuteteles Constituiccedilatildeo de Atenas (de A Poliacutetica) trad De Nuno M Cruz

Porto 1941

Metafiacutesica (I e II) trad de Vicenzo Cocco Coimbra Livraria

Atlacircntida1951

Poeacutetica trad de Eudoro de Sousa Lisboa 1951

528

3 Traduccedilotildees cientiacuteficas

Darwin Charles A origem do Homem trad Joatildeo Correcirca dOliveira 1ordf ed

Porto Magalhatildees amp Moniz 1910 2ordf ed Porto Companhia Portuguesa

1917

A Selecccedilatildeo Artificial trad Lobo Vilela Lisboa Ed Inqueacuterito 1939

Spencer Herbert Da educaccedilatildeo Intellectual moral e physica Lisboa Nova

Livraria Internacional 1887

A justiccedila trad Augusto Gil Lisboa Aillaud amp Bertrand 1891

Do Progresso sua lei e sua causa trad Eduardo Salgueiro Lisboa Ed

Inqueacuterito 1939

2 - Traduccedilotildees brasileiras de Filosofia (1931-1959)

A Filosofia Alematilde

Schopenhauer Arthur Dores do Mundo Rio de Janeiro H Antunes

1931

O Amor as Mulheres e a Morte trad de Emiacutelio Braizo Satildeo Paulo Cultura

Moderna 1936

Metafiacutesica do Amor trad de M C da Rocha Satildeo Paulo Cultura

Moderna 1938

A Sabedoria da Vida trad de Roacutemulo Argentiegravere Satildeo Paulo Cultura

Moderna 1938

O Mundo como Vontade e Representaccedilatildeo trad e prefaacutecio de Heraldo

Barbuy Satildeo Paulo Ed e Publ Brasil 1941

Regras de Conduta Para Bem Viver trad de Eloi Pontes Rio de Janeiro

Ed Vecchi 1950

Aforismos para a Sabedoria na Vida trad e prefaacutecio por Geneacutesio de

Almeida Moura Satildeo Paulo Melhoramentos 1953

Hegel G W F Enciclopeacutedia das Ciecircncias Filosoacuteficas ndash Em compecircndio trad e

prefaacutecio de Liacutevio Xavier Satildeo Paulo Volume I ndash Loacutegica Volume II ndash

Filosofia da Natureza Volume III ndash Filosofia do Espiacuterito 1936

529

Kant Immanuel A Paz Perpeacutetua trad de Rafael Benaion Rio de Janeiro

Coeditora Brasiacutelica Cooperativa 1939

Da Razatildeo Praacutetica trad e prefaacutecio de Afonso Bertagnoli Satildeo Paulo Ed e

Publ Brasil 1947

Prolegoacutemenos a toda Metafiacutesica Futura que Possa Apresentar-se como

Ciecircncia trad introduccedilatildeo e notas de Antoacutenio Pinto de Carvalho Satildeo

Paulo Cia Editora Nacional 1959

Criacutetica da Razatildeo Pura trad de J Rodrigues Merege 2ordf ed Satildeo Paulo

Ed e Publ Brasil 1959

Nietzsche F W Assim Falava Zaratustra trad rev por Joseacute Mendes de

Sousa Satildeo Paulo Ed e Publ Brasil 1942

O Crepuacutesculo dos Iacutedolos trad de Persiano da Fonseca Rio de Janeiro

Ed Vecchi 1943

Ecce-homo Como cheguei a ser o que sou trad de Lourival de Queiroacutes

Henkel Pref de Afonso Bertagnoli 1ordf ed Satildeo Paulo Ed e Publ Brasil

Editora ca 1936 2ordf ed Satildeo Paulo Ed e Publ Brasil Editora 1944

Vontade de Potecircncia Prefaacutecio agrave ediccedilatildeo alematilde por Elisabeth Foerster-

Nietzsche trad proacutelogo e notas de Maacuterio D Ferreira Santos Porto

Alegre Globo 1945

Aleacutem do Bem e do Mal trad de Maacuterio D Ferreira Santos Satildeo Paulo Ed

Sagitaacuterio 1948

A Origem da Trageacutedia Proveniente do Espiacuterito da Muacutesica Pref e trad de

Erwin Theodor Satildeo Paulo Cupolo 1950

A Genealogia da Moral trad de A A Rocha Rio de Janeiro Org

Simotildees 1953

O Anticristo Estudo Criacutetico Sobre a Crenccedila Cristatilde trad de Carlos Joseacute de

Meneses Rio de Janeiro Org Simotildees 1953

Jaspers Karl Razatildeo e Anti-razatildeo em Nosso Tempo Rio de Janeiro ISEB

1958

B Filosofia grega

Platatildeo Apologia de Soacutecrates trad de Maria Lacerda Moura1ordf ed

Satildeo Paulo Atena Ed 1939 3a ed Satildeo Paulo Atena Ed 1946

Feacutedon trad de Miguel Ruas Rio de Janeiro H Antunes 1941

A Repuacuteblica trad de Albertino Pinheiro Satildeo Paulo Atena Ed 1943

530

O Banquete (Em apecircndice Do Amor de Plotino) trad de Albertino

Pinheiro Satildeo Paulo Atena Ed 1943

Diaacutelogo sobre a Justiccedila trad de Lobo Vilela Rio de Janeiro Ed Inqueacuterito

1943

Diaacutelogos Menon Banquete Fedro Platatildeo - vida obra doutrina por

Paulo Tannery trad de Jorge Paiacuteeikat Porto Alegre Globo 1945

O Banquete trad de Albertino Pinheiro Satildeo Paulo Atena Ed 1948

Feacutedon trad de Miguel Ruas Satildeo PauIo Atena Ed 1949

A Repuacuteblica trad de Albertino Pinheiro 6a ed Satildeo Paulo Atena Ed

1956

Aristoacuteteles A Eacutetica de Nicoacutemaco trad de Caacutessio M Fonseca Satildeo Paulo

Atena Ed 1940

A Eacutetica de Nicoacutemaco trad de Caacutessio M Fonseca 2a ed Satildeo Paulo

Atena Ed 1944

A Poliacutetica trad de Nestor Silveira Chaves Satildeo Paulo Atena Ed 1944

A Poliacutetica trad de Nestor Silveira Chaves 3a ed Satildeo Paulo Atena Ed

1950

C Escolaacutestica

Tomaacutes de Aquino santo Suma Teoloacutegica 1ordf parte Questotildees 1-13 Da

Essecircncia de Deus Vol I trad de Alexandre Correia (acompanhada de

texto latino) Satildeo Paulo Sedes Sapientiae 1944

Suma Teoloacutegica 1ordf parte Questotildees 27-43 Da Trindade Vol III trad de

Alexandre Correia (acompanhada do texto latino) Satildeo Paulo Sedes

Sapientiae 1946

Suma Teoloacutegica 1ordf parte Questotildees 44-49 Da processatildeo e da distinccedilatildeo

das criaturas Vol IV trad de Alexandre Correia (acompanhada do texto

latino) Satildeo Paulo Sedes Sapientiae 1946

Do Governo dos Priacutencipes e Do Governo dos Judeus trad de Arlindo

Veiga dos Santos Satildeo Paulo Ed Anchieta 1946

Suma Teoloacutegica 2a parte I Questotildees 1-17 Do Fim Uacuteltimo em Geral e

da Beatilidade Da cogniccedilatildeo dos actos humanos vol XI trad de

Alexandre Correia (acompanhada do texto latino) Satildeo Paulo Sedes

Sapientiae 1949

531

Sobre o Ente e a Essecircncia trad de Joseacute Correia Juacutenior Satildeo Paulo

1952

Suma Teoloacutegica 3ordf parte Questotildees 1-26 Da incarnaccedilatildeo Consequecircncias

da incarnaccedilatildeo Vol XXII trad de Alexandre Correia (acompanhada do

texto latino) Satildeo Paulo Sedes Sapientiae 1959

Suma Teoloacutegica 3ordf parte Questotildees 27-45 Da Virgem Maria e da sua

Concepccedilatildeo Vida paixatildeo morte ressurreiccedilatildeo e ascenccedilatildeo de Cristo Vol

XXIII trad de Aexandre Correia (acompanhada do texto latino) Satildeo

Paulo Sedes Sapientiae 1959

Suma Teoloacutegica 3ordf parte Questotildees 46-59 Da paixatildeo morte sepultura e

descida de Cristo aos infernos Da exaltaccedilatildeo de Cristo vol XXIV trad de

Alexandre Correia (acompanhada do texto latino) Satildeo Paulo

Sedes Sapientiae 1959

Suma Teoloacutegica 3ordf parte Questotildees 60-72 Dos sacramentos em geral

Do batismo e da confirmaccedilatildeo Vol XXV trad de Alexandre Correia

(acompanhada do texto latino) Satildeo Paulo Sedes Sapientiae 1959

Suma Teoloacutegica 3ordf parte Questotildees 73-90 Da eucaristia Da penitecircncia

Vol XVII trad de Alexandre Correia (acompanhada do texto latino) Satildeo

Paulo Sedes Sapientiae 1959

532

533

II - Cronologia da recepccedilatildeo de Heidegger em

liacutengua portuguesa

1 ndash Traduccedilotildees Portuguesas e Brasileiras de Heidegger

1946 Sobre a Essecircncia da Verdade trad Antoacutenio Joseacute Brandatildeo Rumo nordm 2 Lisboa

1966 Introduccedilatildeo agrave Metafiacutesica trad e apres de Emmanuel Carneiro Leatildeo Rio

de Janeiro Tempo Brasileiro

1967 Carta Sobre o Humanismo trad de Emmanuel Carneiro Leatildeo Rio de

Janeiro Tempo Brasileiro

1969 O Caminho do Campo trad e intr de Ernildo Stein Satildeo Paulo Duas

Cidades

1969 O que eacute a Metafiacutesica trad e intr de Ernildo Stein Satildeo Paulo Duas

Cidades

1969 Sobre o Problema do Ser trad e intr de Ernildo Stein Satildeo Paulo Duas

Cidades

1969 Da Experiecircncia do Pensar trad de Maria do Carmo Tavares de Miranda

Porto Alegre Editora Globo

1970 Sobre a Essecircncia da Verdade trad e intr de Ernildo Stein Satildeo Paulo

Duas Cidades

1970 A Tese de Kant Sobre o Ser trad e intr de Ernildo Stein Satildeo Paulo

Duas Cidades

1971 Sobre a Essecircncia do Fundamento trad e intr de Ernildo Stein Satildeo

Paulo Duas Cidades

1971 Identidade e Diferenccedila trad e int de Ernildo Stein Satildeo Paulo Duas

Cidades

1971 A Determinaccedilatildeo do Ser do Ente Segundo Leibniz trad e int de Ernildo

Stein Satildeo Paulo Duas Cidades

1971 Hegel e os Gregos trad e intr de Ernildo Stein Satildeo Paulo Duas

Cidades

1971 O que eacute isto ndash a filosofia trad de Ernildo Stein Satildeo Paulo Duas

Cidades

1972 O Fim da Filosofia ou a Questatildeo do Pensar trad e intr de Ernildo Stein

Satildeo Paulo Duas Cidades

534

1973 O fim da filosofia e a tarefa do pensamento [1966] in Conferecircncias e

escritos filosoacuteficos trad Ernildo Stein Satildeo Paulo Abril Cultural (Os

Pensadores) 2ordf ed 1979

1973 Identidade e diferenccedila in Conferecircncias e escritos filosoacuteficos trad Ernildo

Stein Satildeo Paulo Abril Cultural (Os Pensadores) 2ordf ed 1979

1973 ldquoTempo e serrdquo in Conferecircncias e escritos filosoacuteficos trad Ernildo Stein

Satildeo Paulo Abril Cultural (Os Pensadores) 2ordf ed 1979

1973 Meu caminho para a fenomenologia [1963] in Conferecircncias e escritos

filosoacuteficos trad Ernildo Stein Satildeo Paulo Abril Cultural (Os Pensadores)

2ordf ed 1979

1973 Carta sobre o Humanismo trad Ernildo Stein pref Antoacutenio Joseacute

Brandatildeo Lisboa Guimaratildees 2ordf ed revista por Pinharanda Gomes 1980

1973 ldquoA sentenccedila de Anaximandrordquo in Criacutetica moderna ndash Preacute-Socraacuteticos trad

Ernildo Stein Satildeo Paulo Abril Cultural (Os Pensadores) 2ordf ed 1979

1973 Conferecircncias e escritos filosoacuteficos traduccedilatildeo e notas de Ernildo Stein in

Sartre Jean-Paul O Existencialismo eacute um humanismo Satildeo Paulo Abril

Cultural

1979 Carta sobre o Humanismo in Conferecircncias e escritos filosoacuteficos trad

Ernildo Stein Satildeo Paulo Abril Cultural

1984 A coisa trad Eudoro de Sousa in Mitologia Lisboa Guimaratildees Editores

1987 O Caminho do Campo trad e intr de Mafalda Faria Blanc in Revista

Portuguesa de Filosofia Braga XLIII

1988 A essecircncia do Fundamento trad de Artur Mouratildeo Lisboa Ediccedilotildees 70

1988 Ser e Tempo 2 vol trad Maacutercia de Saacute Cavalcante Petroacutepolis Vozes

1989 Jaacute soacute um Deus nos pode ainda salvar entrevista com Martin Heidegger

trad e notas de Irene Borges-Duarte in Filosofia Publicaccedilotildees da

Sociedade Portuguesa de Filosofia Lisboa

1989 Houmllderlin e a Essecircncia da Poesia trad do grupo de traduccedilatildeo de alematildeo

filosoacutefico orientado por Helga Hook Quadrado intr de Mafalda Blanc in

Filosofia Publicaccedilatildeo da Sociedade Portuguesa de Filosofia Lisboa

1989 Sobre a Madona Sixtina trad e notas de Irene Borges-Duarte in Filosofia

Publicaccedilotildees da Sociedade Portuguesa de Filosofia Lisboa

1991 A Origem da Obra de Arte trad Maria da Conceiccedilatildeo Costa Lisboa

Ediccedilotildees 70

535

1992 O que eacute uma coisa A doutrina de Kant dos princiacutepios transcendentais

trad de Carlos Morujatildeo Lisboa Ediccedilotildees 70

1995 Sobre a essecircncia da verdade trad Carlos Morujatildeo Porto Porto Editora

1995 Liacutengua da tradiccedilatildeo e liacutengua teacutecnica trad do francecircs de Maacuterio Botas

Lisboa Vega

1997 ldquoDiscurso do reitorado A universidade alematilde frente a tudo e contra tudo

ela mesmardquo trad do francecircs de Joseacute Pedro Cabrera in HEIDEGGER

Martin Escritos poliacuteticos Lisboa Piaget

1997 A auto-afirmaccedilatildeo da universidade alematilde trad Fausto Castilho Curitiba

Secretaria de Estado da Cultura (Ediccedilatildeo Bilingue)

1997 Introduccedilatildeo agrave Metafiacutesica trad Maacuterio Matos e Bernhard Sylla Lisboa

Piaget

1997 Trad parcial (sect76) in Martin Heidegger profeta da poacutes-modernidade as

24 proposiccedilotildees sobre a ciecircncia trad Ernildo Stein in Stein Ernildo

Epistemologia e criacutetica da modernidade Ijuiacute-RS Editora Unijuiacute

1997 ldquoO reitorado de 1933-1934 factos e reflexotildeesrdquo trad do francecircs de Joseacute

Pedro Cabrera in HEIDEGGER Martin Escritos poliacuteticos Lisboa Piaget

1997 ldquoMartin Heidegger entrevistado pelo Der Spiegelrdquo trad do francecircs de

Joseacute Pedro Cabrera in HEIDEGGER Martin Escritos poliacuteticos Lisboa

Piaget

1997 ldquoPorque eacute que continuamos na proviacutenciardquo trad do francecircs de Joseacute Pedro

Cabrera in HEIDEGGER Martin Escritos poliacuteticos Lisboa Piaget

1999 O princiacutepio do fundamento trad Jorge Telles Menezes Lisboa Piaget

2000 Nietzsche ndash metafiacutesica e niilismo trad Marco Antoacutenio Casanova Rio de

Janeiro Relume Dumaraacute

2000 Ensaios e conferecircncias [1954] trad Emmanuel Carneiro Leatildeo Gilvan

Fogel Marcia de Saacute Cavalcante Schuback Rio de Janeiro Ed Vozes 2ordf

ed 2002 3ordf ed 2006

2000 Serenidade trad Maria Madalena Andrade Olga Santos Lisboa Piaget

2001 Seminaacuterios de Zollikon (Ed de Medard Boss 1987) trad da 2ordf ed

Alematilde (1994) por G Arnhold M F de Almeida Prado Satildeo Paulo EDUC

Rio de Janeiro Vozes

2002 Caminhos de Floresta coordenaccedilatildeo cientiacutefica da ediccedilatildeo e traduccedilatildeo Irene

Borges-Duarte trad de Irene Borges-Duarte Filipa Pedroso Alexandre

Franco de Saacute Heacutelder Lourenccedilo Bernhard Sylla Viacutetor Moura Joatildeo

Constacircncio Lisboa Gulbenkian XXXIII

536

2002 ldquoA palavra de Nietzsche bdquoDeus morreu‟rdquo trad de Alexandre Franco de Saacute

in Caminhos de Floresta [vide] Lisboa Gulbenkian

2002 ldquoO Conceito de Experiecircncia em Hegelrdquo trad Helder Lourenccedilo in

Caminhos de Floresta [vide] Lisboa Gulbenkian

2002 ldquoO Dito de Anaximandrordquo trad Joatildeo Constacircncio in Caminhos de Floresta

[vide] Lisboa Gulbenkian

2006 Que eacute isto ndash A filosofia Identidade e Diferenccedila trad int e notas de

Ernildo Stein Rio de Janeiro Ed Vozes

2008 Loacutegica A Pergunta pela essecircncia da linguagem coord cientiacutefica Irene

Borges-Duarte trad de Maria Adelaide Neto de Mascarenhas Pacheco e

Helga Hook Quadrado Lisboa Fundaccedilatildeo Calouste Gulbenkian

2 - Bibliografia criacutetica traduzida para portuguecircs

1969 Axelos Kostas Introduccedilatildeo ao pensamento futuro Sobre Marx e

Heidegger trad de Emmanuel Carneiro Leatildeo Rio de Janeiro Tempo

Brasileiro

1975 Giles Thomas R Histoacuteria do Existencialismo e da fenomenologia Satildeo

Paulo Editoras EPUUSP 2 volumes

1976 Beaufret Jean Introduccedilatildeo agraves Filosofias da Existecircncia trad de Salma

Tannus Satildeo Paulo Duas Cidades

1979 Resweber J P O pensamento de Heidegger trad Joatildeo Agostinho dos

Santos Coimbra Almedina

1982 Steiner George As ideacuteias de Heidegger trad Aacutelvaro Cabral Satildeo Paulo

Cultrix

1982 Trotignon Pierre Heidegger trad A J Rodrigues Lisboa Ediccedilotildees 70

1986 Palmer Richard Hermenecircutica trad L Ribeiro Ferreira Lisboa Ediccedilotildees

70

1988 Vatimo Gianni As aventuras da diferenccedila e o que significa pensar

depois de Heidegger e Nietzsche trad Joseacute Eduardo Rodil

1989 Apel Karl-Otto ldquoConstituiccedilatildeo do sentido e justificaccedilatildeo da validade

Heidegger e o problema da filosofia transcendentalrdquo trad Jorge Ceacutesar

das Neves RFP Braga 4513

1989 Berlich Alfred ldquoA filosofia alematilde ocidental depois de 1960rdquo trad

Fernanda Portela e Leopoldina Almeida Filosofia Lisboa Publicaccedilatildeo da

Sociedade Portuguesa de Filosofia 11-12III

537

1989 Feacutedier Franccedilois Heidegger anatomia de um escacircndalo trad de Orlando

dos Reis Petroacutepolis Vozes

1989 Ferry Luc Renaut Alain Heidegger e os modernos trad Alexandre

Costa e Sousa Lisboa Teorema

1989 Vattimo Gianni Introduccedilatildeo a Heidegger trad Joatildeo Gama Lisboa

Ediccedilotildees 70

1990 Fariacuteas Victor Heidegger e o nazismo trad Maria do Carmo Euseacutebio

Janeiro Lisboa Caminho

1990 Steiner George Heidegger trad de Joatildeo Paz Lisboa Publicaccedilotildees Dom

Quixote Biblioteca de Filosofia

1991 Perniola Mario Esteacutetica e Poliacutetica Nietzsche e Heidegger trad e

prefaacutecio de Antoacutenio Guerreiro Lisboa Sagres-Promontoacuterio

1993 Boutot Alain Introduccedilatildeo agrave filosofia de Heidegger trad Francisco

Gonccedilalves Lisboa Europa-Ameacuterica

1997 Barash Jeffrey Andrew Heidegger e o seu seacuteculo trad Andreacute do

Nascimento Lisboa Piaget

1997 Dastur Franccediloise Heidegger e a questatildeo do tempo Lisboa Piaget sd

1997 Franck Didier Heidegger e o problema do espaccedilo trad Joatildeo Paz

Lisboa Piaget

1997 Haar Michel Heidegger e a essecircncia do homem trad Ana C Alves

Lisboa Piaget

1997 Levinas Emmanuel Descobrindo a existecircncia com Husserl e Heidegger

trad Fernanda Oliveira Lisboa Piaget

1997 Pasqua Herveacute Introduccedilatildeo agrave leitura de Ser e Tempo de Martin Heidegger

trad Joana Chaves Lisboa Piaget

1997 Vattimo Gianni Introduccedilatildeo a Heidegger trad Joatildeo Gama Lisboa

Piaget

1997 Zarader Marlegravene Heidegger e as palavras da origem trad Joatildeo Duarte

Lisboa Piaget

1998 Caputo John Desmitificando Heidegger trad Leonor Aguiar Lisboa

Piaget

1998 Guignon Charles (dir) Poliedro Heidegger trad Joatildeo C Silva Lisboa

Piaget

1998 Hodge Joanna Heidegger e a Eacutetica trad Gonccedilalo Couceiro Feio

Lisboa Piaget

538

1998 Janicaud Dominique A sombra deste pensamento trad Joana Chaves

Lisboa Piaget

1998 Thiele Leslie Paul Martin Heidegger e a poliacutetica poacutes-moderna Lisboa

Piaget

1998 Wolin Richard A Poliacutetica do Ser O pensamento poliacutetico de Martin

Heidegger trad de Leonardo Mateus Lisboa Piaget

1998 Wolin Richard Labirintos em torno a Benjamin Habermas Schmitt

Arendt Derrida Marx Heidegger e outros trad de Maria Joseacute Figueiredo

Lisboa Piaget

1998 Franck Didier Heidegger e o problema do espaccedilo trad Joatildeo Paz

Lisboa Instituto Piaget

1999 Rorty Richard Ensaios sobre Heidegger e outros trad de Eugeacutenia

Antunes Lisboa Instituto Piaget

1999 Zarader Marlegravene A diacutevida impensada Heidegger e a heranccedila hebraica

trad Siacutelvia Meneses Lisboa Piaget

2000 Faye Jean-Pierre A Cilada a Filosofia heideggeriana e o nacional-

socialismo trad de Maria Ludovina Figueiredo Lisboa Piaget

2000 Foltz Bruce V Habitar a Terra Heidegger Eacutetica Ambiental e a

Metafiacutesica da Natureza trad de J Seixas e Sousa Lisboa Piaget

2000 Ott Hugo Martin Heidegger a caminho da sua biografia trad de Sandra

L Vieira Lisboa Piaget

2000 Taminiaux Jacques Leituras da Ontologia Fundamental Ensaios sobre

Heidegger trad de Joatildeo Paz Lisboa Piaget Colecccedilatildeo Pensamento e

Filosofia

2001 Poumlggeler Otto A via do pensamento em Martin Heidegger trad de Jorge

Telles Menezes Lisboa Piaget

2001 Zimmerman Michael Confronto de Heidegger com a Modernidade

Tecnologia Poliacutetica Arte trad de Joatildeo Sousa Ramos Lisboa Piaget

2002 Lotz Johannes Baptist Martin Heidegger e S Tomaacutes de Aquino trad de

Lumir Nahodil Lisboa Piaget

2002 Safransky Ruumldiger Um Mestre na Alemanha Heidegger e o seu Tempo

trad de Jorge Telles de Menezes Lisboa Piaget

2003 Derrida Jacques Poliacuteticas da amizade seguido de O ouvido de

Heidegger trad Fernanda Bernardo Porto Campo das Letras

539

2003 Herrmann Friedrich-Wilhelm von A ideia de Fenomenologia em

Heidegger e Husserl Fenomenologia Hermenecircutica do aiacute-ser e

Fenomenologia Reflexiva da Consciecircncia Separata de Phainomenon 7

trad P Sobral Pignatelli revisatildeo e anotaccedilatildeo de Irene Borges-Duarte

2007 Gadamer Hans-Georg Hermenecircutica em Retrospectiva Vol I

Heidegger em Retrospectiva trad de MA Casanova Petroacutepolis Vozes

3 - O diaacutelogo com Heidegger em liacutengua portuguesa

A Trabalhos acadeacutemicos sobre Heidegger [Dissertaccedilotildees de Licenciatura (L) Mestrado (MA) Doutoramento (PhD)]

1 Em Portugal

1938 Correia Joatildeo Frade A personalidade humana Da concepccedilatildeo joacutenica agrave

metafiacutesica existencial de Heidegger Esboccedilo L Coimbra FLUC

1943 Antunes Pe Manuel Panorama da Filosofia Existencial de Kierkegaard a

Heidegger L Braga FFB

1965 Soveral Eduardo Abranches de O meacutetodo fenomenoloacutegico PhD Porto

FLUP

1966 Fraga Gustavo de De Husserl a Heidegger elementos para uma

problemaacutetica da fenomenologia PhD Coimbra FLUC

1969 Enes Joseacute Agrave Porta do Ser ensaio sobre a justificaccedilatildeo noeacutetica do Juiacutezo

de percepccedilatildeo externa em S Tomaacutes de Aquino PhD

1970 Silva Carlos H Carmo Do Ser e das Aparecircncias ou da diferenccedila

ontoloacutegica fundamental L Lisboa FLUL 2 vol

1972 Branco Maria Eugeacutenia A verdade e a liberdade no pensamento

heideggeriano L Lisboa FLUL VII

1984 Blanc Mafalda de Faria O fundamento em Heidegger Vom Wesen des

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Lisboa FLUL

1987 Paisana Joatildeo Fenomenologia explicitativa e fenomenologia

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Lisboa FLUL

1987 Carvalho Maacuterio Jorge de Almeida A fenomenologia do primeiro

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540

1990 Miranda Joseacute A Braganccedila de Fundamentos de uma analiacutetica da

actualidade contributos para uma teoria criacutetica da experiecircncia PhD

Lisboa FCSH UNL

1990 Morujatildeo Carlos Martin Heidegger verdade e liberdade Vom Wesen der

Wahrheit MA Lisboa FLUL

1996 Carvalho Maacuterio Jorge de Almeida Problemas fundamentais de

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1997 Saacute Alexandre Franco de A criacutetica do Ocidente na filosofia de Martin

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FLUL

1997 Silva Liliana Monteiro Loureiro Martins da Pensamento e queda em

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1997 Silva Rui Sampaio da Heidegger Gadamer e o problema do

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1999 Tavares Maria Isabel Peixoto A Crise do Homem contemporacircneo na

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2004 Hespanhol Joatildeo Canha Pinto Terra Mundo e Poesia MA Porto

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2009 Soares Stela Maria dos Santos O espaccedilo pictural em Heidegger MA

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1955 Machado Geraldo Pinheiro A noccedilatildeo de ser em Maritain e Heidegger

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Faculdade de Filosofia Ciecircncias e Letras da USP

1963 Leatildeo Emmanuel Carneiro De Problematicae Hermeneuticae

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1968 Stein Ernildo Jacob Compreensatildeo e Finitude - Estrutura e movimento da

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1975 Brito Orsely Ferreira de Arte e verdade em Heidegger tese de livre

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1977 Tribuzy Terezinha Prado Negreiros Arte e Ontologia em Heidegger

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1979 Mezzari Libera O Ser e a palavra em Heidegger e Drummond MA

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1979 Simon Maria Celia A questatildeo da verdade a partir do pensamento de

Martin Heidegger MA UF do Rio de Janeiro

1985 Beaini Thais Curi Arte como fruto das concepccedilotildees epocais do ser

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1986 Cavalcante Marcia de Saacute O espaccedilo ndash entre poesia e pensamento PhD

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1990 Fleig Mario Os esquemas horizontais em Ser e tempolsquo PhD PUC do

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1991 Yukizaki Suemy A questatildeo da autodidaxia em educaccedilatildeo e seus

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Estudos Avanccedilados em Educaccedilatildeo da Fundaccedilatildeo Getuacutelio Vargas Rio de

Janeiro

1992 Gmeiner Conceiccedilatildeo Neves Linguagem originaria um estudo sobre a

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1993 DAgord Marta Regina Hermenecircutica do Dasein e superaccedilatildeo da ideia de

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Martin Heidegger MA UF do Rio Grande do Sul Instituto de Filosofia e

Ciecircncias Humanas Porto Alegre

1994 Reis Roacutebson Ramos dos Verdade e interpretaccedilatildeo fenomenoloacutegica PhD

UF do Rio Grande do Sul Instituto de Filosofia e Ciecircncias Humanas

Porto Alegre

1995 Almeida Fernando Milton de Cuidar de ser mdash uma aproximaccedilatildeo do

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1995 Werle Marco Aureacutelio Noccedilatildeo da poesia em Houmllderlin segundo Heidegger

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1996 Moura Joseacute de Castro Discurso de jovens graacutevidas uma abordagem

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1998 Costa Cristina Dias O conceito de mundo em Ser e Tempo de Martin

Heidegger MA Universidade Federal de Santa Maria

1999 Delavy Fernando Americo Cuidado e Temporalidade em Ser e Tempo

de Martin Heidegger MA Universidade Federal de Santa Maria

1999 Tolfo Rogeacuterio Linguagem e Mundo a fenomenologia do sinal em Ser e

Tempo MA Universidade Federal de Santa Maria

542

1999 Ferreira Noeli Andrade A tradiccedilatildeo no modo-de-ser-com-o-outro-no-

mundo da enfermagem uma abordagem agrave luz de Heidegger PhD

EEERP Programa de Interunidades em Enfermagem Ribeiratildeo Preto

1999 Schneider Jacoacute Fernando Ser-famiacutelia de esquizofreacutenico hermenecircutica

de discursos fundamentada em Martin Heidegger PhD Escola de

Enfermagem de Ribeiratildeo Preto da USP Ribeiratildeo Preto

2000 Ferreira Juacutenior Wanderley Joseacute Heidegger a questatildeo da teacutecnica e a

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2001 Quadros Siacutelvia Regina Capaverde de A compreensatildeo e sua estrutura

preacutevia em Ser e Tempo de Martin Heidegger MA Universidade Federal

de Santa Maria

2001 Cavalcanti Patrick Estellita Pessoa Heidegger e o Teacutedio Sobre a

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Janeiro

2001 Luz Maria Helena Arauacutejo A dimensatildeo cotidiana da pessoa ostomizada

um estudo de enfermagem no referencial de Martin Heidegger PhD

Escola de Enfermagem Anna Nery da UF do Rio de Janeiro

2001 Silveira Marli Anguacutestia e alteridade em Ser e Tempo MA

Universidade Federal de Santa Maria

2002 Bilibio Evandro A temporalidade do Dasein em Ser e Tempo de Martin

Heidegger MA Universidade Federal de Santa Maria

2002 Colpo Marcos Oreste Fundamentos para uma filosofia da educaccedilatildeo a

partir da ontologia de Martin Heidegger MA USP

2002 Piccini Josefina Daniel Criacuteticas de Martin Heidegger agrave Daseinsanalyse

psiquiaacutetrica de Ludwig Binswanger MA PUC de Satildeo Paulo

2003 Freitas Heacutelia Maria Soares de A noccedilatildeo de indicaccedilatildeo formal em

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2003 Almeida Rogeacuterio O conceito de cuidado em Ser e Tempo de Martin

Heidegger MA Universidade Federal de Santa Maria

2003 Trindade Ellika Hermenecircutica do existir do homem de meia-idade ndash

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Heidegger PhD USP Ribeiratildeo Preto

2004 Betanin Tatiana O conceito de jogo na ontologia fundamental de Martin

Heidegger MA Universidade Federal de Santa Maria

2004 Betanin Tatiana Transcendecircncia e jogo na ontologia fundamental de

Martin Heidegger MAUniversidade Federal de Santa Maria

543

2004 Felin Rodrigo O cuidado como fundamento das pulsotildees em Ser e

Tempo de Martin Heidegger MA Universidade Federal de Santa Maria

2004 Froumlhlich Andreacute Spies O conceito de anguacutestia em Ser e Tempo MA

Pontifiacutecia Universidade Catoacutelica do Rio Grande do Sul

2004 Machado Jorge Torres Culpa e existecircncia uma retomada dos indiacutecios

formais como ferramenta metodoloacutegica de M Heidegger PhD Pontifiacutecia

Universidade Catoacutelica do Rio Grande do Sul

2005 Brasil Luciano de Faria A espacialidade do Dasein Um estudo sobre o

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Rio Grande do Sul

2005 Seibt Cezar Luiz Passagem para o Mundo - A cotidianidade e o poder-

ser proacuteprio em Ser e Tempo MAPontifiacutecia Universidade Catoacutelica do Rio

Grande do Sul

2006 Sayatildeo Sandro Cozza Sobre a leveza do humano um diaacutelogo com

Heidegger Sartre e Levinas PhD Pontifiacutecia Universidade Catoacutelica do Rio

Grande do Sul

2006 Souza Juacutenior Neacutelson Da transcedentalidade do Dasein agrave verdade da

essecircncia caracterizaccedilatildeo dos momentos estruturantes da filosofia de

Heidegger entre o final da deacutecada de 20 e o iniacutecio da de 30 PhD

Pontifiacutecia Universidade Catoacutelica do Rio Grande do Sul

2007 Goulart Junior Ademar Pires A gecircnese ontoloacutegica do comportamento

cientiacutefico no pensamento de Martin Heidegger MA Universidade

Federal de Santa Maria

2007 Dias Luciana da Costa A fuga dos deuses arte niilismo e a construccedilatildeo

do ser em Martin Heidegger PhD Universidade do Estado do Rio de

Janeiro

2007 Fanton Marcos Filosofia Hermenecircutica e Hermenecircutica Juriacutedica um

estudo a partir de Ser e Tempo L Pontifiacutecia Universidade Catoacutelica do Rio

Grande do Sul

2007 Pantaleoni Caacutessio Eduardo Duarte Insuficiecircncia necessidade e

possibilidade do sentido do ser Heidegger e a superaccedilatildeo da metafiacutesica

MA Pontifiacutecia Universidade Catoacutelica do Rio Grande do Sul

2007 Rocco Ricardo A questatildeo da teacutecnica em Heidegger MA Universidade

do Vale do Rio dos Sinos

2007 Sassi Vagner A questatildeo acerca da origem e a apropriaccedilatildeo natildeo-

objetivante da tradiccedilatildeo no jovem Heidegger PhD Pontifiacutecia Universidade

Catoacutelica do Rio Grande do Sul

544

2008 Freitas Heacutelia Maria Soares de A questatildeo da linguagem em Ser e tempo

PhD Universidade do Estado do Rio de Janeiro

2009 Moura Paulo Rogeacuterio Garcez de O pensamento sobre a teacutecnica

moderna em Heidegger MA Universidade Federal de Santa Maria

2009 Flores Juliana Mezzomo Natureza e funccedilatildeo do conceito de totalidade na

obra de Martin Heidegger MA Universidade Federal de Santa Maria

2009 Nascimento Thiago Carreira Alves Sentido e compreensatildeo em Ser e

Tempo de Martin Heidegger MA Universidade Federal de Santa Maria

2009 Vanny Adel Fernando de Almeida O conceito de significatividade em Ser

e Tempo de Martin Heidegger MA Universidade Federal de Santa

Maria

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Editores

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1953 Macedo Siacutelvio de A interpretaccedilatildeo e a estrutura linguiacutestica na filosofia de

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1953 Silva Vicente Ferreira da Teologia e Anti-humanismo Satildeo Paulo ediccedilatildeo

de autor

1954 Ferreira Vergiacutelio Espaccedilo do Invisiacutevel 1 1ordf ed Lisboa Portugaacutelia

1954 Mattos Carlos Lopes de Heidegger e o problema da filosofia Limeira

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1956 Abranches Cassiano Santos Metafiacutesica Braga Livraria Cruz

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1959 Miranda Maria do Carmo Tavares Meditaccedilotildees sobre a Filosofia Braga

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1965 Fraga Gustavo de Sobre Heidegger Coimbra Almedina

1966 Macedo Siacutelvio de Intuiccedilatildeo e linguagem em Bergson e Heidegger

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1966 Nunes Benedito Introduccedilatildeo agrave Filosofia da Arte Satildeo Paulo Editora

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1966 Stein Ernildo Jacob Introduccedilatildeo ao pensamento de Martin Heidegger

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1967 Stein Ernildo Jacob Compreensatildeo e finitude estrutura e movimento da

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1970 Bornheim Gerd Introduccedilatildeo ao Filosofar - o pensamento filosoacutefico em

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1970 Macdowell Joatildeo Augusto Amazonas A gecircnese da ontologia fundamental

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1972 Bornheim Gerd Metafiacutesica e Finitude 1ordf ed Porto Alegre Movimento

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1973 Sousa Eudoro de Dioniacutesio em Creta Satildeo Paulo Livraria Duas Cidades

1973 Stein Ernildo Jacob A questatildeo do meacutetodo na filosofia um estudo do

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1976 Ferreira Vergiacutelio Espaccedilo do Invisiacutevel 2 Lisboa Arcaacutedia

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1977 Bornheim Gerd Dialeacutectica teoria praxis Ensaio para uma criacutetica da

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1977 Stein Ernildo Jacob Anamnese a filosofia e o retorno do reprimido Porto

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Brasiacutelia

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1986 Barata-Moura Joseacute Da representaccedilatildeo agrave praxis Itineraacuterios do idealismo

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1986 Barata-Moura Joseacute Ontologias da Praxis e Idealismo Lisboa Caminho

1986 Beaini Thais Curi Heidegger arte como cultivo do inaparente Satildeo

Paulo Nova Stella

1986 Nunes Benedito Passagem para o poeacutetico filosofia e poesia em Martin

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1986 Stein Ernildo Jacob Criacutetica da ideologia e racionalidade Porto Alegre

Movimento

1988 Stein Ernildo Jacob Racionalidade e existecircncia uma introduccedilatildeo agrave

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1989 AAVV Martin Heidegger RPF Braga 453

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1990 Pereira Miguel Baptista Modernidade e Tempo para uma leitura do

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1990 Stein Ernildo Jacob Seis estudos sobre ser e tempo Petroacutepolis Vozes

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1992 Belo Fernando Heidegger pensador da Terra Coimbra APF

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1993 Paisana Joatildeo Histoacuteria da filosofia e tradiccedilatildeo filosoacutefica Lisboa Colibri

1993 Belo Fernando Filosofia e Ciecircncias da Linguagem Lisboa Colibri

1993 Nunes Benedito No Tempo do Niilismo e Outros Ensaios Satildeo Paulo

Editora Aacutetica

1993 Soveral Eduardo Abranches Meditaccedilatildeo Heideggeriana Porto Ed

Conselho Directivo da FLUP

1993 Stein Ernildo Jacob Seminaacuterio sobre a verdade liccedilotildees preliminares

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1994 Figueiredo Luiacutes Claacuteudio Escutar recordar dizer encontros

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1995 Soveral Eduardo Abranches de Ensaios Filosoacuteficos Porto Elcla

1995 Loparic Zeljko Eacutetica e Finitude Satildeo Paulo Educ

1996 Stein Ernildo Jacob Aproximaccedilotildees sobre hermenecircutica Porto Alegre

EDIPUCRS

1997 Blanc Mafalda de Faria Introduccedilatildeo agrave Ontologia Lisboa Piaget

1997 Motta Maria da Graccedila O ser doente no triacuteplice mundo da crianccedila famiacutelia

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Florianoacutepolis UFSCCurso de Poacutes-Graduaccedilatildeo em Enfermagem

548

1997 Stein Ernildo Jacob A caminho de uma fundamentaccedilatildeo poacutes-metafiacutesica

Porto Alegre EDIPUCRS

1997 Stein Ernildo Jacob Epistemologia e criacutetica da modernidade Ijuiacute

UNIJUIacute

1998 Blanc Mafalda de Faria O fundamento em Heidegger Lisboa Piaget

1998 Dias Sousa Esteacutetica do conceito A Filosofia na era da comunicaccedilatildeo

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2000 Morujatildeo Carlos Verdade e Liberdade em Martin Heidegger Lisboa

Piaget

2000 Nunes Benedito O Nietzsche de Heidegger Rio de Janeiro Pazulin

2000 Reis Roacutebson Ramos dos amp Rocha Ronai (coord) Filosofia

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2000 Stein Ernildo Jacob Diferenccedila e metafiacutesica ensaios sobre a

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2001 Seixas Elisabete (Org) Dossier Heidegger Porto Porto Editora

2001 Stein Ernildo Jacob Compreensatildeo e Finitude - Estrutura e movimento da

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2002 Stein Ernildo Jacob Pensar eacute pensar a diferenccedila filosofia e

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2002 Stein Ernildo Jacob Uma breve introduccedilatildeo agrave filosofia Ijuiacute Unijuiacute

2003 AAVV A Heranccedila de Heidegger RPF Braga 594

2003 Loparic Zeljko Winnicott e o pensamento poacutes-metafiacutesico Satildeo Paulo

Editora Escuta

2003 Stein Ernildo Jacob Nas proximidades da antropologia Ijuiacute Editora

Unijuiacute

2004 Borges-Duarte Irene Henriques F Matos Dias I (Coord) Heidegger

Linguagem e Traduccedilatildeo Actas do Coloacutequio Internacional Marccedilo de 2002

Lisboa CFUL

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2004 Loparic Zeljko A linguagem objetificante e natildeo-objetificante em

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Fenomenologia (CLAFEN) Lima

2004 Loparic Zeljko Heidegger Rio de Janeiro Jorge Zahar

2006 Casanova Marco A Nada a Caminho Impessoalidade niilismo e teacutecnica

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2009 Casanova Marco Compreender Heidegger Petroacutepolis Vozes

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1949 Santos Delfim ldquoDireito Justiccedila e Liberdade A propoacutesito do Congresso

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Brasileiro de Filosofia

1951 Silva Vicente Ferreira da ldquoIdeias para Um Novo Conceito de Homemrdquo in

sep da Revista Brasileira de Filosofia vol I fasc 4 Satildeo Paulo Instituto

Brasileiro de Filosofia

1951 Beau Albin Eduard ldquoMartin Heidegger Was ist Metaphysikldquo Biblos 27

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1952 Santos Delfim ldquoO Sentido Existencial da Anguacutestia sep dos Anais

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1952 Martins Diamantino ldquoUma Conferecircncia de Heideggerrdquo in Revista

Portuguesa de Filosofia vol 8 Braga Faculdade de Filosofia de Braga

1953 Santos Delfim Prefaacutecio agrave trad port de Regis Jolivet As Doutrinas

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1953 Martins Diamantino ldquoS Tomaacutes e Heideggerrdquo in Revista Portuguesa de

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1955 Silva Vicente Ferreira da ldquoEnzo Paci e o pensamento Sul-Americanordquo in

Revista Brasileira de Filosofia vol 5 fasc 18 Satildeo Paulo Instituto

Brasileiro de Filosofia

1955 Silva Vicente Ferreira da ldquoIntroduccedilatildeo agrave Filosofia da Mitologia in sep da

Revista Brasileira de Filosofia vol 5 fasc 4 Satildeo Paulo Instituto Brasileiro

de Filosofia

1956 Silva Vicente Ferreira da ldquoO Ser in-funsivoldquo in Diaacutelogo nordm 3 Satildeo Paulo

Sociedade Cultural Nova Criacutetica

1956 Silva Vicente Ferreira da ldquoA transparecircncia da Histoacuteriardquo in Diaacutelogo nordm 4

Satildeo Paulo Sociedade Cultural Nova Criacutetica

1957 Silva Vicente Ferreira da ldquoA Fonte e o Pensamentordquo in Diaacutelogo nordm 7

Satildeo Paulo Sociedade Cultural Nova Criacutetica

1957 Silva Vicente Ferreira da ldquoSanto Tomaacutes e Heideggerrdquo in Diaacutelogo nordm 6

Satildeo Paulo Sociedade Cultural Nova Criacutetica

1958 Silva Vicente Ferreira da ldquoDiaacuterio Filosoacuteficordquo in Cavalo Azul nordm 3 Satildeo

Paulo

1958 Silva Vicente Ferreira da rdquoInstrumentos Coisas e Culturardquo Revista

Brasileira de Filosofia vol 8 fasc 30 Satildeo Paulo Instituto Brasileiro de

Filosofia

1959 Silva Vicente Ferreira da ldquoHistoacuteria e Meta-histoacuteriardquo Congresso

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1960 Silva Vicente Ferreira da ldquoO Ocaso do Pensamento Humaniacutesticordquo in

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1960 Miranda Maria do Carmo Tavares ldquoCaminho e experiecircncia (Notas a

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1961 Miranda Maria do Carmo Tavares ldquoO pensar e o ser enterdquo in Revista

filosoacutefica do Nordeste 2 Fortaleza

1961 Silva Vicente Ferreira da ldquoO homem e a Liberdade na tradiccedilatildeo

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Paulo Instituto Brasileiro de Filosofia

1962 Silva Vicente Ferreira da ldquoDiaacutelogo do Marrdquo in Diaacutelogo nordm 14 Satildeo Paulo

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Filosofia vol 20 Braga Faculdade de Filosofia de Braga

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1966 Pires Celestino ldquoDa fenomenologia agrave verdade Um caminho de Martin

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de Filosofia de Braga

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Faculdade de Filosofia de Braga

1968 Fraga Gustavo de ldquoDe Husserl a Heidegger ndash Elementos para uma

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Braga Faculdade de Filosofia de Braga

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Filosofia vol 24 Braga Faculdade de Filosofia de Braga

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1968 Stein Ernildo Jacob rdquoPossibilidade de uma nova ontologiardquo in Organon

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Braga

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1970 Bornheim Gerd rdquoA filosofia Alematilde apoacutes a primeira Guerra Mundialrdquo in

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1970 Filipe Almor ldquoHeidegger e a sua influecircnciardquo Broteacuteria 90 Lisboa

1970 Fragata Juacutelio ldquoO problema de Deus na fenomenologiardquo in Revista

Portuguesa de Filosofia 26 Braga Faculdade de filosofia de Braga

1971 Penedos A dos ldquoA interpretaccedilatildeo heideggeriana da Alegoria da Caverna

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1971 Stein Ernildo Jacob ldquoAlgumas consideraccedilotildees sobre o meacutetodo

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1976 Miranda Maria do Carmo Tavares ldquoM Heidegger filoacutesofo do serrdquo Revista

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Braga

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1978 Costa Maria L Andreozzi ldquoHeidegger Metafiacutesica e educaccedilatildeordquo in

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Satildeo Paulo

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Lisboa

1990 Fariacuteas Victor ldquoHeidegger e o Nazismordquo Veacutertice II seacuterie Fev Lisboa

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da Associaccedilatildeo Portuguesa de Filosofia Fenomenoloacutegica Phainomenon

Lisboa Centro de Filosofia da Universidade de Lisboa

2002 Stein Ernildo Jacob ldquoDa fenomenologia hermenecircutica agrave hermenecircutica

filosoacuteficardquo in Veritas v47 n185 Porto Alegre Faculdade de Filosofia e

Ciecircncias Humanas da PUCRS

2002 Cardinalli Ida Elizabeth ldquoA Psiquiatria Fenomenoloacutegica ndash um breve

histoacutericordquo in Revista da Associaccedilatildeo Brasileira de Daseinsanalyse 11 Satildeo

Paulo Associaccedilatildeo Brasileira de Daseinsanalyse

2002 Duarte Andreacute de M ldquoFoucault agrave luz de Heidegger notas sobre o sujeito

autocircnomo e o sujeito constituiacutedordquo in Margareth Rago Luiz B Lacerda

Orlandi Alfredo Veiga-Neto (Org) Imagens de Foucault e Deleuze

ressonacircncias nietzschianas Rio de Janeiro DPampA

2002 Duarte Andreacute de M ldquoHeidegger e o outro a questatildeo da alteridade em

Ser e Tempordquo in Natureza Humana 4 1 Satildeo Paulo Grupo de Pesquisa

em Filosofia e Praacuteticas Psicoteraacutepicas da UNICAMP

2002 Heleno Joseacute Manuel ldquoHistoacuteria e Tempo Ricœur e a interpretaccedilatildeo de

Sein und Zeit in Phainomenon 56 Lisboa Centro de Filosofia da

Universidade de Lisboa

2002 Loparic Zeljko Aleacutem do inconsciente ndash sobre a desconstruccedilatildeo

heideggeriana da psicanaacutelise in Oliveira N amp Souza R Ronai (coord)

Fenomenologia Hoje II Significado e Linguagem Porto Alegre Edipucrs

564

2002 Loparic Zeljko Binswanger leitor de Heidegger um equiacutevoco

produtivo in Natureza Humana 4 2 Satildeo Paulo Grupo de Pesquisa em

Filosofia e Praacuteticas Psicoteraacutepicas da UNICAMP

2002 Nova M A S C ldquoO salto de volta a meditaccedilatildeo heideggeriana do

princiacutepio da filosofia a partir do acontecimento do fimrdquo in Oliveira N amp

Souza R Ronai (coord) Fenomenologia Hoje II Significado e

Linguagem Porto Alegre Edipucrs

2002 Reis Roacutebson Ramos dos Matemaacutetica e ontologia no primeiro

Heidegger in Oliveira N amp Souza R Ronai (coord) Fenomenologia

Hoje II Significado e Linguagem Porto Alegre Edipucrs

2002 Reis Roacutebson Ramos dos Sentido e Interpretaccedilatildeo na Fenomenologia-

hermenecircutica de Martin Heidegger in Anais da III Semana de Filosofia

Contemporacircnea Ilheacuteus UESC

2002 Saacute Alexandre Franco de ldquoDa destruiccedilatildeo fenomenoloacutegica agrave confrontaccedilatildeo

Heidegger e a incompletude da Ontologia Fundamentalrdquo in Actas do

Primeiro Congresso da Associaccedilatildeo Portuguesa de Filosofia

Fenomenoloacutegica in Phainomenon Lisboa Centro de Filosofia da

Universidade de Lisboa

2002 Saacute Alexandre Franco de ldquoHeidegger e a questatildeo da Eacutetica Entre as duas

vias da questatildeo do Serrdquo in Phainomenon 56 Lisboa Centro de Filosofia

da Universidade de Lisboa

2002 Reis Roacutebson Ramos dos ldquoHeidegger e a doutrina da validaderdquo in X

Encontro Nacional de Filosofia da ANPOF Atas do X Encontro Nacional

de Filosofia da ANPOF Campinas ndash Satildeo Paulo Associaccedilatildeo Nacional de

Poacutes-Graduaccedilatildeo em Filosofia

20022003 Borges-Duarte Irene ldquoO espelho equiacutevoco O nuacutecleo filosoacutefico da

Spiegel - Interview a Martin Heideggerrdquo in Phainomenon Homenagem a

Joatildeo Paisana 56 Lisboa Centro de Filosofia da Universidade de Lisboa

2003 Belo Fernando ldquoO legado de Heidegger agraves ciecircnciasrdquo in Revista

Portuguesa de Filosofia 59-4 Braga Faculdade de Filosofia de Braga

2003 Borges-Duarte Irene ldquoA experiecircncia patoloacutegica do tempo Para uma

fenomenologia da forma temporalrdquo in JM Santos P Alves A Barata

(Org) A Fenomenologia Hoje Actas do Primeiro Congresso Internacional

da Associaccedilatildeo Portuguesa de Filosofia Fenomenoloacutegica Lisboa Centro

de Filosofia da Universidade de Lisboa

2003 Borges-Duarte Irene ldquoHusserl e a fenomenologia heideggeriana da

Fenomenologiardquo in Phainomenon 7 Lisboa Centro de Filosofia da

Universidade de Lisboa

565

2003 Borges-Duarte Irene ldquoO templo e o portal Heidegger entre Paestum e

Kleerdquo in Matos Dias I (Org) Esteacuteticas e Artes Controveacutersias para o

seacuteculo XXI Coloacutequio Internacional Lisboa Centro de Filosofia da

Universidade de Lisboa

2003 Cardinalli Ida Elizabeth ldquoDaseinsanalyse corpo e corporeidaderdquo in

Daseinsanalyse 12 Satildeo Paulo Associaccedilatildeo Brasileira de Daseinsanalyse

2003 Hebeche Luiz ldquoA proclamaccedilatildeo do Anticristo Ensaio sobre Heidegger e

Satildeo Paulordquo in Revista Portuguesa de Filosofia 594 Braga Faculdade de

Filosofia de Braga

2003 Loparic Zeljko Breve nota sobre Heidegger como leitor de Juumlnger in

Natureza Humana 4 1 Satildeo Paulo Grupo de Pesquisa em Filosofia e

Praacuteticas Psicoteraacutepicas da UNICAMP

2003 Oliveira Nythamar de ldquoDesmitologizando Heidegger a Hermenecircutica

radical de John D Caputordquo in Revista Portuguesa de Filosofia 59-4

Braga Faculdade de Filosofia de Braga

2003 Pacheco Maria Adelaide ldquoA Presenccedila de Heidegger em Portugalrdquo in

Revista Portuguesa de Filosofia 59-4 Braga Faculdade de Filosofia de

Braga

2003 Reis Roacutebson Ramos dos Validade e intencionalidade observaccedilotildees

sobre Lotze Lask e Heidegger in Helfe R I Rohden L Scheid S

Ronai (coord) O que eacute Filosofia Satildeo Leopoldo Editora Unisinos

2003 Reis Roacutebson Ramos dos ldquoElementos de uma interpretaccedilatildeo

fenomenoloacutegica da negaccedilatildeordquo in O Que Nos Faz Pensar 17 Rio de

Janeiro Pontifiacutecia Universidade Catoacutelica do Rio de Janeiro -

Departamento de Filosofia

2003 Ribeiro Caroline V Um breve olhar heideggeriano de algumas bases

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Filosofia e Psicologia da Educaccedilatildeo 01 Vitoacuteria da Conquista

Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia (Uesb)

2003 Saacute Alexandre Franco de ldquoA poliacutetica sobre a linha Martin Heidegger

Ernst Juumlnger e a confrontaccedilatildeo sobre a era do niilismordquo in Revista

Portuguesa de Filosofia 59 - 4 Braga Faculdade de Filosofia de Braga

2003 Stein Ernildo Jacob rdquoSemacircntica formal e diferenccedila ontoloacutegicardquo in Jayme

Paviani Heloiacutesa Feltes (Org) Produccedilatildeo de sentido - estudos

transdicliplinares Caxias do Sul EDUCS

2003 Stein Ernildo Jacob ldquoO que eacute filosofiardquo Ihu On Line Satildeo Leopoldo

566

2004 Barrento Joatildeo ldquoDar ouvidos agrave distacircncia ndash a pergunta sobre a

traduzibilidade de Heideggerrdquo in Heidegger Linguagem e Traduccedilatildeo

Lisboa Centro de Filosofia da Universidade de Lisboa

2004 Belo Fernando ldquoTraduzir do grego para heideggerianordquo in Heidegger

Linguagem e Traduccedilatildeo Lisboa Centro de Filosofia da Universidade de

Lisboa

2004 Bernardo Fernanda ldquoTraduccedilotildees-Perversotildees da justiccedila de Heidegger a

Derridardquo in Heidegger Linguagem e Traduccedilatildeo Lisboa Centro de

Filosofia da Universidade de Lisboa

2004 Blanc Mafalda de Faria ldquoArte de Habitarrdquo in Communio Revista

Internacional Catoacutelica XXI4 Lisboa

2004 Blanc Mafalda de Faria ldquoIntersubjectividade e Pessoa uma reflexatildeo

sobre a estrutura comunitaacuteria do serrdquo in Phainomenon 9 Lisboa Centro

de Filosofia da Universidade de Lisboa

2004 Borges-Duarte Irene ldquoA traduccedilatildeo como fenomenologia o caso

Heideggerrdquo in Heidegger Linguagem e Traduccedilatildeo Lisboa Centro de

Filosofia da Universidade de Lisboa

2004 Cardinalli Ida Elizabeth ldquoDaseinsanalyse e esquizofrenia um estudo na

obra de Medard Bossrdquo 1ordf Ed Satildeo Paulo EDUC Fapesp

2004 Cardinalli Ida Elizabet Branco C B Oliveira P M ldquoPsicoterapia

fenomenoloacutegica-existencial de algumas maneiras patoloacutegicas do existirrdquo

in Boletim Cliacutenico da Cliacutenica Ana Maria Poppovic da PUC-SP XVIII Satildeo

Paulo Pontifiacutecia Universidade Catoacutelica de Satildeo Paulo

2004 Castro Paulo Alexandre e ldquoA Ontopotencialidade da linguagem em

Heideggerrdquo in Heidegger Linguagem e Traduccedilatildeo Lisboa Centro de

Filosofia da Universidade de Lisboa

2004 Duarte Andreacute de M ldquoHeidegger e a possibilidade de uma antropologia

existencialrdquo in Natureza Humana volume 61 Satildeo Paulo Grupo de

Pesquisa em Filosofia e Praacuteticas Psicoteraacutepicas da UNICAMP

2004 Morujatildeo Carlos ldquoA linguagem da metafiacutesica e a questatildeo do sentido do

ser A propoacutesito de uma referecircncia a Schelling em Brief uumlber den

laquoHumanismusraquordquo in Heidegger Linguagem e Traduccedilatildeo Lisboa Centro de

Filosofia da Universidade de Lisboa

2004 Pacheco Maria Adelaide ldquoLiacutengua e Histoacuteria em Heidegger e Pascoaesrdquo

in Heidegger Linguagem e Traduccedilatildeo Lisboa Centro de Filosofia da

Universidade de Lisboa

567

2004 Quadrado Helga Hoock ldquoTraduzir Heidegger princiacutepio (s) sem fim agrave

vistardquo in Heidegger Linguagem e Traduccedilatildeo Lisboa Centro de Filosofia

da Universidade de Lisboa

2004 Reis Roacutebson Ramos dos ldquoO conceito fenomenoloacutegico-hermenecircutico de

naturezardquo in XI Encontro Nacional de Filosofia da ANPOF (Patrocionado

pela Associaccedilatildeo Nacional de Poacutes-graduaccedilatildeo em Filosofia) Livro de Atas

Salvador Editora da UESC EDUFBA

2004 Reis Roacutebson Ramos dos ldquoO outro fim para o Dasein o conceito de

nascimento na ontologia existencialrdquo in Natureza Humana volume 61

Satildeo Paulo Grupo de Pesquisa em Filosofia e Praacuteticas Psicoteraacutepicas da

UNICAMP

2004 Reis Roacutebson Ramos dos ldquoA constituiccedilatildeo ontoloacutegica dos fatos cientiacuteficos

na fenomenologia hermenecircutica de Martin Heideggerrdquo in Gutierrez

Carlos Ronai (coord) Ho hay hechos soacutelo interpretaciones Bogotaacute

Ediciones Uniandes

2004 Reis Roacutebson Ramos dos ldquoA dissoluccedilatildeo da ideacuteia da Loacutegicardquo in Natureza

Humana volume 5 2 Satildeo Paulo Grupo de Pesquisa em Filosofia e

Praacuteticas Psicoteraacutepicas da UNICAMP

2004 Reis Roacutebson Ramos dos ldquoHeidegger origem e finitude do tempordquo in

revista Doispontos 11 Curitiba-PR Departamento de Filosofia -

Universidades Federais do Paranaacute e de Satildeo Carlos

2004 Reis Roacutebson Ramos dos ldquoIlusatildeo e indicaccedilatildeo formal nos conceitos

filosoacuteficosrdquo in revista Integraccedilatildeo Ensino Pesquisa Extensatildeo 37Abril-

Maio-Junho Satildeo Paulo Universidade Satildeo Judas Tadeu

2004 Reis Roacutebson Ramos dos ldquoO conceito de natureza na fenomenologia

hermenecircuticardquo in Revista Ciecircncia e Ambiente 28 Janeiro-Junho Santa

Maria Universidade Federal de Santa Maria

2004 Ribeiro Caroline V Para dar voz ao que rasura contribuiccedilotildees

heideggerianas e psicanaliacuteticas para o entendimento do fracasso escolar

in Agere - Revista de Educaccedilatildeo e Cultura 07 Salvador FACED -

Universidade Federal da Bahia

2004 Saacute Alexandre Franco de ldquoLinguagem e poliacutetica sobre uma Kehre

impliacutecita na filosofia de Martin Heideggerrdquo in Heidegger Linguagem e

Traduccedilatildeo Lisboa Centro de Filosofia da Universidade de Lisboa

2004 Sallis John ldquoSobre a traduccedilatildeo de Platatildeo a Heideggerrdquo in Heidegger

Linguagem e Traduccedilatildeo Lisboa Centro de Filosofia da Universidade de

Lisboa

568

2004 Silva Rui Sampaio ldquoA linguagem em Ser e Tempo uma perspectiva

criacuteticardquo in Heidegger Linguagem e Traduccedilatildeo Lisboa Centro de Filosofia

da Universidade de Lisboa

2004 Stein Ernildo Jacob rdquoEm busca da linguagem para um dizer natildeo-

metafiacutesicordquo in Natureza Humana v 6 n 1 PUC-Satildeo Paulo Grupo de

Pesquisa em Filosofia e Praacuteticas Psicoteraacutepicas da UNICAMP

2004 Nova M A S C ldquoNiilismo e teacutedio Friedrich Nietzsche e Martin

Heidegger na encruzilhada do tempo modernordquo in XI Encontro da

Associaccedilatildeo Nacional de Poacutes-graduaccedilatildeo em Filosofia Salvador Atas do XI

Encontro da ANPOF Salvador Editora da UESC

2005 Boeder Heribert ldquoA fronteira da Modernidade e o ldquoLegadordquo de

Heideggerrdquo trad de Alexandre Franco de Saacute in Phainomenon 10

Lisboa Centro de Filosofia da Universidade de Lisboa

2005 Borges-Duarte Irene ldquoO homem como fim em si De Kant a Heidegger e

Jonasrdquo in Revista Portuguesa de Filosofia 61 3-4 (Nuacutemero monograacutefico

Heranccedila de Kant II) Braga Faculdade de Filosofia de Braga

2005 Cardinalli Ida Elizabeth Paiva J A Frazatto J C Salviati N R S

ldquoAgressividade uma reflexatildeo fenomenoloacutegica-existencialrdquo in Boletim

Cliacutenico da Faculdade de Psicologia XX Satildeo Paulo PUC-Satildeo Paulo

2005 Duarte Andreacute de M ldquoHeidegger e a linguagem do acolhimento do ser ao

acolhimento do outrordquo in Natureza Humana 07 1 PUC-Satildeo Paulo

Grupo de Pesquisa em Filosofia e Praacuteticas Psicoteraacutepicas da UNICAMP

2005 Duarte Andreacute de M ldquoHeidegger e a Modernidade notas sobre a crise do

presenterdquo in Ricardo Marcelo Fonseca (Org) Criacutetica da Modernidade

diaacutelogos com o direito Florianoacutepolis Fundaccedilatildeo Boiteux

2005 Reis Roacutebson Ramos dos ldquoHeidegger verdade desocultamento e

normatividaderdquo in O Que nos Faz Pensar 20 Rio de Janeiro Pontifiacutecia

Universidade Catoacutelica do Rio de Janeiro - Departamento de Filosofia

2005 Saacute Alexandre Franco de ldquoIniacutecio e Comeccedilo em Heidegger e Boeder do

pensar da Histoacuteria do Ser ao pensar logoteacutecnicordquo in Phainomenon 10

Lisboa Centro de Filosofia da Universidade de Lisboa

2006 Borges-Duarte Irene ldquoA Imaginaccedilatildeo na Montanha maacutegica Kant em

Davos 1929rdquo in L Ribeiro dos Santos (Coord) Kant Actualidade e

Posteridade Lisboa Centro de Filosofia da Universidade de Lisboa

2006 Borges-Duarte Irene ldquoKant nos Beitraumlge zur Philosophie de Heideggerrdquo

in M C Pimentel C Morujatildeo M S Gil (Org) Congresso Internacional

Immanuel Kant nos 200 anos da sua morte Lisboa Universidade Catoacutelica

Portuguesa

569

2006 Borges-Duarte Irene ldquoO teacutedio como experiecircncia ontoloacutegica Aspectos da

Daseinsanalyse heideggerianardquo in M J Cantista (Org) Subjectividade e

Racionalidade Uma abordagem fenomenoloacutegico-hermenecircutica Porto

Campo das Letras

2006 Borges-Duarte Irene ldquoPode adiar-se a Ontologia Uma homenagem

criacutetica a Paul Ricœurrdquo in F Henriques (Org) A Filosofia de Paul Ricœur

Temas e percursos Coimbra Ariadne

2006 Duarte Andreacute de M ldquoGianni Vattimo inteacuterprete de Heidegger e da poacutes-

modernidaderdquo in Alceu Revista de Comunicaccedilatildeo Cultura e Poliacutetica 1

Rio de Janeiro Pontifiacutecia Universidade Catoacutelica do Rio de Janeiro -

Departamento de Comunicaccedilatildeo Social

2006 Duarte Andreacute de M ldquoHeidegger e Foucault criacuteticos da modernidade

humanismo teacutecnica e biopoliacuteticardquo in TransFormAccedilatildeo vol 29 (n 2) Satildeo

Paulo Universidade Estadual Paulista - Departamento de Filosofia

2006 Feron Olivier ldquoDe Marburg a Davos ou o outro Coloacutequio da Uacuteltima Ceiardquo

in L Ribeiro dos Santos (Coord) Kant Actualidade e Posteridade

Lisboa Centro de Filosofia da Universidade de Lisboa

2006 Reis Roacutebson Ramos dos ldquoA sublimidade da natureza em Os Conceitos

Fundamentais da Metafiacutesicardquo in XI Coloacutequio Heidegger Heidegger e a

Arte Coloacutequios Heidegger Programa e Caderno de Resumos Satildeo Paulo

Pontifiacutecia Universidade Catoacutelica de Satildeo Paulo

2006 Reis Roacutebson Ramos dos ldquoHeidegger e Heisenbeg o impacto da Fiacutesica

atocircmica no projeto da ontologia fundamentalrdquo in XII Encontro Nacional de

Filosofia da Associaccedilatildeo Nacional de Poacutes-graduaccedilatildeo em Filosofia Livro de

Atas Salvador Quarteto Editora

2006 Reis Roacutebson Ramos dos ldquoObservaccedilotildees sobre a relaccedilatildeo entre loacutegica e

ontologia na fenomenologia hermenecircutica de Martin Heideggerrdquo in

Oliveira N Ronai (coord) Hermenecircutica e Filosofia primeira Festschrift

para Ernildo Stein Ijuiacute Editora Unijuiacute

2006 Santos Gustavo A Oliveira ldquoO Falar da Linguagem em pesquisa

fenomenoloacutegica sobre a poeacutetica do pesquisarrdquo III Seminaacuterio Internacional

de Pesquisa e Estudos Qualitativos amp V Encontro de Fenomenologia e

Anaacutelise do Existir Satildeo Bernardo do Campo ndash Satildeo Paulo

2006 Nova M A S C ldquoFundamento e transcendecircnciardquo in Nythamar de

Oliveira Draiton Gonzaga de Sousa (Org) Hermenecircutica e filosofia

primeira Festschrift para Ernildo Stein Ijuiacute Editora Unijuiacute

2006 Beaini Thais Curi Sartre e Heidegger de Ser e Tempo a O Ser e o

Nada Revista Humanitas Instituto de Filosofia e Ciecircncias Humanas da

Universidade Federal do Paraacute

570

2007 Saacute Alexandre Franco de Heidegger e o fim do mundo in sep de

Phainomenon Revista de Fenomenologia Lisboa Centro de Filosofia da

Universidade de Lisboa

2007 Martins Maria Manuela Brito ldquoA morte enquanto bdquoexcedente‟ (Ausstand)

leitura de alguns paraacutegrafos de Sein und Zeitrdquo in Cantista MJ (coord)

Desenvolvimentos da Fenomenologia na Contemporaneidade Porto

Campo das Letras

2007 Martins Maria Manuela Brito ldquoA destruktion da ideia de humanismo na

encruzilhada do pensamento antigo e cristatildeo segundo Heidegger na Carta

sobre o Humanismo in Didaskalia vol 37 fasc 1 Lisboa Universidade

Catoacutelica Editora

2007 Santos Gustavo A Oliveira ldquoO modo de ser em pacircnico da deserccedilatildeo do

espaccedilo puacuteblico ao habitar cotidianordquo in XI Coloacutequio Internacional de

Psicossociologia e Sociologia Cliacutenica sociedade contemporacircnea ruptura

e viacutenculos sociais Belo Horizonte UFMG

2007 Stein Ernildo Jacob rdquoA era do dis-positivo um modo heideggeriano de

pensar a questatildeo da teacutecnicardquo in Arnildo Pommer Paulo Denisar Fraga

(Org) Filosofia e Criacutetica - Festschrift dos 50 anos do Curso de Filosofia

da Unijuiacute v 1 1 ed Ijuiacute Editora UNIJUIacute

2007 Stein Ernildo Jacob ldquoUma enigmaacutetica preocupaccedilatildeo de Heidegger numa

correspondecircncia de 1945rdquo in Humanidades em Revista v 04 Ijuiacute

Departamento de Filosofia e Psicologia da UNIJUIacute

2008 Reis Roacutebson Ramos dos ldquoIdentidade finitude e reconhecimento na

ontologia da possibilidade finita de Martin Heideggerrdquo in Natureza

Humana volume 10 nuacutemero especial 1 Satildeo Paulo Grupo de Pesquisa

em Filosofia e Praacuteticas Psicoteraacutepicas da UNICAMP

2008 Borges-Duarte Irene (coordenaccedilatildeo de) A morte e a origem

Homenagem a Heidegger e a Freud Lisboa Centro de Filosofia da

Universidade de Lisboa

2009 Stein Ernildo Jacob ldquoUma inovaccedilatildeo para aleacutem dos mestres da suspeita

Um caminho histoacuterico para Ser e Tempordquo in Cultura e Feacute v 124 Porto

Alegre Instituto de Desenvolvimento Cultural (IDC)

571

Bibliografia

572

573

A elaboraccedilatildeo desta bibliografia pretende ser reveladora dos caminhos da recepccedilatildeo de Heidegger em liacutengua portuguesa isso obrigou a organizaacute-la segundo os seguintes criteacuterios

1 Ediccedilotildees de referecircncia dos autores centrais do trabalho

2 Bibliografia usada para a elaboraccedilatildeo da dissertaccedilatildeo e organizada em

duas partes

3 As obras fundamentais que assinalam a evoluccedilatildeo da traduccedilatildeo

portuguesa de filosofia (apecircndice I)

4 Obras que assinalam a recepccedilatildeo de Heidegger no pensamento

portuguecircs e brasileiro (apecircndice II)

1 Ediccedilotildees de referecircncia dos autores centrais do trabalho

a Martin Heidegger Gesamtausgabe Publica-se desde 1975 em Frankfurt editora Klostermann a ediccedilatildeo da obra completa em versatildeo ldquode uacuteltima matildeo sob a direcccedilatildeo geral de Friedrich-Wilhelm von Herrmann e o tiacutetulo de Gesamtausgabe (abrev GA) Estaacute organizada em quatro secccedilotildees

I Obra publicada (1910-1976) Inclui os vols 1-16

II Liccedilotildees universitaacuterias (Freiburg 1919-1944 Marburg 1923-

1928) Inclui os vols 17-63

III Ineacuteditos (Estudos Conferecircncias Pensamentos) Inclui os

vols 64-81 natildeo estando ainda publicados os vols 72 73 e

74

IV Notas e Indicaccedilotildees Inclui os vols 82-102 tendo sido

apenas publicados os vols 85 86 87 88 e 90

b Hans-Georg Gadamer Gesammelte Werke Foi publicada a ediccedilatildeo das obras de Gadamer entre 1985 e 1995 por JCB Mohr (Paul Siebeck) sob o tiacutetulo de Gesammelte Werke (abrev GW) em Tuumlbingen Estaacute organizada em 10 tomos com os seguintes tiacutetulos

Band 1 e 2 Hermeneutik Band 3 e 4 Neuere Philosophie Band 567 Griechische Philosophie Band 89 Aestetik und Poetik Band 10 Hermeneutik im Ruumlckblick

574

c Vicente Ferreira da Silva Obras Completas As Obras Completas de Ferreira da Silva foram publicadas em Satildeo Paulo pelo Instituto Brasileiro de Filosofia entre 1964 e 1967 Estatildeo organizadas em dois volumes cuja ediccedilatildeo se encontra esgotada

Volume I ndash conteacutem os livros publicados por Vicente Ferreira da

Silva entre 1948 e 1955 e ainda outros trabalhos publicados entre 1948 e 1962

Volume II ndash conteacutem artigos comentaacuterios e resenhas publicados entre 1941 e 1963

2 Bibliografia usada para a elaboraccedilatildeo da dissertaccedilatildeo

Parte I sobre o problema filosoacutefico da traduccedilatildeo e sua conexatildeo com a tradiccedilatildeo

Textos de Heidegger e Gadamer Incluem-se aqui as obras de Heidegger e Gadamer que foram consultadas para o esclarecimento do conceito fenomenoloacutegico de traduccedilatildeo assim como para a elaboraccedilatildeo da problemaacutetica da tradiccedilatildeo

De Heidegger Martin

19211922

Phaumlnomenologische Interpretation zu Aristoteles Einfuumlhrung in die

Phaumlnomenologische Forschung GA 61 1985

1922

bdquoPhaumlnomenologische Interpretation zu Aristoteles Anzeige der hermeneutische

Situationldquo GA 62 2005

1927

Sein und Zeit GA 2 1977

1927

Die Grundprobleme der Phӓnomenologie GA 24 1997

575

1929

bdquoVom Wesen des Grundesldquo GA 9 1965

1929

bdquoWas ist Metaphysikldquo GA 9 1965

19331934

bdquoVom Wesen der Wahrheit (Wintersemester 193334)ldquo GA 3637 2001

1934

Logik als die Frage nach dem Wesen der Sprache GA 38 1988

19341935

Houmllderlins Hymne bdquoGermanien― und bdquoDer Rhein― GA 39 1999

1935

Einfuumlhrung in die Metaphysik GA 401983 19351936

bdquoDer Ursprung des Kunstwerkesldquo in Holzwege GA 5 1952

1936

bdquoHoumllderlin und das Wesen der Dichtungldquo in Erlaumluterungen zu Houmllderlins

Dichtung GA 4 1981

1938

bdquoDie Zeit des Weltbildesldquo in Holzwege GA 5 1977

1940

bdquoDer europaumlische Nihilismusldquo GA 62 1997

1941

bdquoWie wenn an Feiertageldquoin Erlaumluterungen zu Houmllderlins Dichtung GA 4

1981

1942

Houmllderlins Hymne ―Der Ister― GA 531984

19421943

Parmenides GA 54 1982

1943

576

bdquoAndenken― in Erlaumluterungen zu Houmllderlins Dichtung GA 4 1981

1944

bdquoHeimkunft An die Verwandten― in Erlaumluterungen zu Houmllderlins Dichtung GA

4 1981

1946

bdquoBrief uumlber den Humanismusldquo in Wegmarken GA 9 1976

1949

bdquoDas Dingldquo in Bremer und Freiburger Vortraumlge GA 79 2000

1949

bdquoEinleitung zu Was ist Metaphysik― in Wegmarken GA 9 1965

1950

bdquoDie Spracheldquo in Unterwegs zur Sprache GA 12 1985

1951

bdquoBauen Wohnen Denkenldquo in Vortraumlge und Aufsaumltze GA 7 2000

1952

Was heiβt Denken GA 8 2002

1953

bdquoDie Frage nach der Technikldquo in Vortraumlge und Aufsaumltze GA 7 2000

195354

bdquoAus einem Gespraumlch von der Sprache Zwischen einem Japaner und einem

Fragendenldquo in Unterwegs zur Sprache GA 12 1985

1955

Identitaumlt und Differenz GA 11 2006

1955

bdquoZur Seinsfrageldquo in Wegmarken GA 9 1965

1857

bdquoGrundsaumltze des Denkensldquo in Bremer und Freiburger Vortraumlge GA 79 1994

1957

bdquoHebel der Hausfreundldquo in GA 13 1983

577

1958

bdquoDas Wortldquo in Unterwegs zur Sprache GA 12 1985

1959

Der Weg zur Sprache in Unterwegs zur Sprache GA 12 1985

1960

bdquoHoumllderlins Erde und Himmelldquo in Erlaumluterungen zu Houmllderlins Dichtung GA 4

1981

1964

bdquoDas Ende der Philosophie und die Aufgabe des Denkensldquo in Zur Sache des

Denkens GA 14 2007

De Gadamer Hans-Georg

1960

Wahrheit und Methode Grundzuumlge einer philosophischen Hermeneutik GW 1

1986

1966

bdquoMensch und Spracheldquo GW 2 1986

1970

bdquoWie weit schreibt Sprache das Denken vorldquo GW 2 1986

1972

bdquoDie Unfaumlhigkeit zum Gespraumlchldquo GW 2 1986

1978

bdquoHermeneutik als theoretische und praktische Aufgabeldquo GW 2 1986

1983

bdquoText und Interpretationldquo in GW 2 1986

1989

Das Erbe Europas Suhrkamp Verlag Frankfurt am Main 1989

Estudos Incluem-se nesta rubrica estudos que se dedicam parcial ou totalmente a

questotildees da linguagem e da traduccedilatildeo no pensamento de Heidegger e

578

Gadamer Estes estudos estatildeo organizados segundo a ordem alfabeacutetica dos

respectivos autores e no caso de artigos em obras colectivas o que segue o

nome da obra indica que a referecircncia completa deve ser procurada na entrada

correspondente aos nomes dos respectivos organizadores

Aguilar-Aacutelvarez Bay Tatiana El lenguaje en el Primer Heidegger Meacutexico Fondo de Cultura Econoacutemica 1998 Benedito Maria Fernanda Heidegger en su lenguaje Madrid Editorial Tecnos

SA 1992

Berciano Villalibre Modesto La critica de Heidegger al pensar Occidental

Salamanca Universidade Pontifiacutecia 1990

Berciano Villalibre Modesto La revolucioacuten filosoacutefica de Martin Heidegger

Madrid editorial Biblioteca Nueva SL 2001

Bohem Rudolf ldquoL‟ecirctre et le temps d‟une traductionldquo in Translating Heideggerlsquos ndash Sein und Zeit Bucarest 2005 Borges-Duarte Irene ldquoA traduccedilatildeo como fenomenologia O caso Heideggerrdquo in Heidegger Linguagem e Traduccedilatildeo Lisboa 2002 447-460 Borges-Duarte Irene ldquoEl idioma de la interpretacioacuten Kant en los Beitrӓgerdquo in Heideggers Beitrӓge zur Philosophie Internationales Kolloquium vom 20-22 Mai 2004 an der Universitӓt Lausanne Frankfurt am Main 2009 153-170 Borges-Duarte Irene (org) A Morte e a Origem ndash Em torno de Heidegger e de Freud Lisboa Centro de Filosofia da Universidade de Lisboa 2008 Borges-Duarte Irene (org) Heidegger Linguagem e Traduccedilatildeo Lisboa Centro

de Filosofia da Universidade de Lisboa 2002

Ciocan Cristian (org) Translating Heideggerlsquos ndash Sein und Zeit Studia Phaenomenologica vol V2005 Bucarest Humanitas 2005 Feacutedier Franccedilois rdquoComment je traduit bdquoEreignisldquoldquo in Heideggers Beitrӓge zur

Philosophie Internationales Kolloquium vom 20-22 Mai 2004 an der

Universitӓt Lausanne Frankfurt am Main 2009 103-122

Frank Armin Paul Maaszlig Kurt-Juumlrgen Paul Fritz Turk Horst (org)

Goumlttinger Beitraumlge zur Internationalen Uumlbersetzungsforschung Berlin Erich

Schmidt Verlag 1993

Gennaro Ivo de Logos ndash Heidegger liest Heraklit Berlin Duncker amp Humboldt 2001 Gray Richard T ldquoUumlbersetzungsgeschichte als Wirkungsgeschichterdquo in

Goumlttinger Beitraumlge zur Internationalen Uumlbersetzungsforschung Band 8 Teil 2

Berlin 1993 685-695

579

Grondin Jean HansndashGeorg Gadamer Eine Biographie Tuumlbingen Moher Siebeck 1999 Grondin Jean Einfuumlhrung zu Gadamer Tuumlbingen Mohr Siebeck 2000

Herrmann Friedrich-Wilhelm von rdquoA ideia de Fenomenologia em Heidegger e

Husserlrdquo in Separata de Phainomenon nordm 7 157-194 Centro de Filosofia da

Universidade de Lisboa 2003

Herrmann Friedrich-Wilhelm von ldquoUumlbersetzung als philosophisches Problem in Zur Philosophischen Aktualitaumlt Heideggers III Im Spiegel der Welt Sprache Uumlbersetzung Auseinandersetzung Frankfurt am Main 1992 108-124 Jaeger Hans Heidegger und Die Sprache Bern Francke Verlag 1971 Lafont Cristina Sprache und Welterschlieβung Zur linguistischen Wende der Hermeneutik Heideggers Frankfurt Suhrkamp 1994 tr Cristina Lafont Lenguaje y apertura del mundo Madrid Alianza Editorial SA 1997 Maliandi Ricardo ldquoHeidegger in Lateinamerikardquo in Zur philosophischen Aktualitaumlt Heideggers III Im Spiegel der Welt Sprache Uumlbersetzung Auseinandersetzung Frankfurt am Main 1992 199-209

Mejiacutea Emmanuel Schuumlssler Ingeborg (org) Heideggers Beitrӓge zur

Philosophie Internationales Kolloquium vom 20-22 Mai 2004 an der

Universitӓt Lausanne Frankfurt am Main Vittorio Klostermann 2009

Pacheco Maria Adelaide bdquoA Europa como legado em Gadamerldquo in Razatildeo e Liberdade Homenagem a Manuel Joseacute do Carmo Ferreira volII Lisboa Centro de Filosofia da Universidade de Lisboa 2010 1423-1442 Papenfuss Dietrich Poumlggeler Otto (org) Zur Philosophischen Aktualitaumlt

Heideggers III Im Spiegel der Welt Sprache Uumlbersetzung

Auseinandersetzung Frankfurt am Main Vittorio Klostermann 1992

Poumlggeler Otto Der Denkweg Martin Heideggers Pfullingen Neske 1963

agora em Stuttgart Neske 1994

Potepa Marciej bdquoDie Hermeneutische Dimension des Textuumlbersetzensldquo in

Goumlttinger Beitraumlge zur Internationalen Uumlbersetzungsforschung Band 8 Teil 1

Berlin 1993 204-213

Reimatildeo Cassiano (org) H G Gadamer Experiecircncia Linguagem e

Interpretaccedilatildeo Lisboa Universidade Catoacutelica Editora 2003

Rodriacuteguez Ramoacuten Hermeneacuteutica y subjetividad Madrid Editorial Trotta 1993

Saacute Alexandre Franco de ldquoDa Morte agrave Origem Heidegger e os vindourosrdquo in A Morte e a Origem ndash Em torno de Heidegger e de Freud Lisboa 2008 49-62 Schmid Holger Kunst des Houmlrens Orte und Grenzen philosophischer Spracherfahrung Koumlln Boumlhlau Verlag 1999

580

Schuumlssler Ingeborg ldquoLe langage comme fonds laquodisponibleraquo (Bestand) et comme laquoeacutevegravenement-appropriementraquo (Ereignis) selon Martin Heideggerldquo in Heidegger Linguagem e Traduccedilatildeo Lisboa 2002 333-356 Silva Maria Luisa Portocarrero Ferreira da O Preconceito em H-G Gadamer

Sentido de uma Reabilitaccedilatildeo Coimbra Junta Nacional de Investigaccedilatildeo

CientiacuteficaFundaccedilatildeo Calouste Gulbenkian 1995

Silva Rui Sampaio da ldquoGadamer e a Heranccedila Heideggerianardquo in Revista Portuguesa de Filosofia LVI fac3-4 Braga Faculdade de Filosofia de Braga 2000 521-541

Sommer Christian ldquoTraduire la lingua heideggerianardquo in Translating Heideggerlsquos ndash Sein und Zeit Bucarest 2005 305-316 Sylla Bernhard ldquoA Origem e a Fala da Langue em Heideggerrdquo in A Morte e a Origem ndash Em torno de Heidegger e de Freud Lisboa 2008 169-178 Sylla Bernhard Hermeneutik der langue Weisgerber Heidegger und die Sprachphilosophie nach Humboldt Wuumlrzburg Koumlnigshausen amp Neumann 2009 Vattimo Gianni Introduzione a Heidegger Latenza Roma-Bari 1971

Volpi Franco ldquoTraduzione e Traducibilitagrave di Martin Heidegger in Chora Universitagrave degli Studi di Milano Facultagrave di Lettere e Filosofia 20012002 24-27 Volpi Franco ldquoHeidegger el problema de la intraducibilidad y la romanidad filosoacutefica in Heidegger Linguagem e Traduccedilatildeo Lisboa 2002 525-543

Referecircncias

Incluem-se nesta rubrica algumas obras que foram consultadas como referecircncias obrigatoacuterias no acircmbito dos problemas da filosofia da linguagem e dos estudos de traduccedilatildeo Estas obras estatildeo ordenadas cronologicamente a fim de permitir o seu enquadramento na histoacuteria destes problemas

44 AC Cicero Marco Tulio De Officiis Antuerpiae ex officina Christiphori Plantini 1579

55 AC Cicero Marco Tulio De Oratore agora em London Harvard University

Press 1960 400-428 Santo Agostinho De Trinitate agora em Lisboa Paulinas 2007

1759-1760 Hamann Johann Georg Sokratische Denkwuumlrdigkeiten Koenigsberg agora em Stuttgart Reclam Verlag 1968 tr port As Memoraacuteveis Socraacuteticas Lisboa Centro de Filosofia da Universidade de Lisboa 1999

581

1772 Herder Johann Gottfried von Abhandlung uumlber den Ursprung der Sprache welche den von der Koumlniglichen Academie der Wissenschaften fuumlr das Jahr 1770 gesetzten Preis erhalten hat 1ordf ed Berlin Koumlniglichen Akademie der Wissenschaften agora em Werke Band 1 Fankfurt am Main Ulrich Gaier 1985

1812 Schleiermacher Friedrich Uumlber die verschiedenen Methoden des Uumlbersetzens agora em Das Problem des Uumlbersetzens Stuttgart Hg von Hans Joachim Stoumlrig 1963

1836 Humboldt W v Uumlber die Verschiedenheit des menschlichen Sprachbaues und ihren Einfluszlig auf die geistige Entwicklung des Menschengeschlechts Berlin Druckerei der Koumlniglichen Akademie der

Wissenschaften agora em Muumlnchen Schoumlningh1998

1921 Benjamin Walter Die Aufgabe des Uumlbersetzers in Gesammelte Schriften Band IV 1 Frankfurt am Main Suhrkamp Verlag1980

1957 Chomsky Noam Syntactic Structures Berlin Walter Gruyte Gmbh 1971 Paz Octaacutevio Traduccioacuten Literatura y Literalidad Barcelona Tusquets

Editores 1975 Steiner George After Babel aspects of Language and Translation

Oxford-New York Oxford University Press agora em Oxford-New York Oxford University Press 1998

1976 Ricœur Paul Interpretation Theory discourse and the surplus of

meanings Fort Worth Texas Christian University Press tr port Teoria da Interpretaccedilatildeo Lisboa Ediccedilotildees 70 1987

1980 Bassnett Susan Translation Studies London Methuen amp Co Ltdagora

em London Routledge 1994

1984 Steiner George Antigones Oxford Oxford University Press

1987 Belo Fernando Linguagem e Filosofia algumas questotildees para hoje Lisboa Imprensa Nacional-Casa da Moeda

1989 Rener Frederik M Interpretatio Language and Translation from Cicero to Tytler Amsterdam ndash Atlanta GA Rodopi

1993 Grondin Jean Llsquouniversaliteacute de llsquohermeacuteneutique Paris P U F

1999 Justo Joseacute Miranda ldquoUm Argos a Norte - JG Hamann experiecircncia da singularidade e periferia da Filosofiardquo pref agrave tr port de Hamann As Memoraacuteveis Socraacuteticas Lisboa Centro de Filosofia da Universidade de Lisboa

2002 Sallis John On Translation Bloomington Indiana University Press

2002 Justo Joseacute Miranda ldquoFriedrich Schleiermacher ndash A Traduccedilatildeo como Tarefa da dialeacutecticardquo in Borges-Duarte Irene (org) Heidegger Linguagem e Traduccedilatildeo Lisboa Centro de Filosofia da Universidade de Lisboa 253-276

582

2002 Barrento Joatildeo O Poccedilo de Babel - Para uma Poeacutetica da Traduccedilatildeo Literaacuteria Lisboa Reloacutegio d‟Aacutegua

2004 Ricœur Paul Sur la traduction Paris Bayard

2005 Ricœur Paul Llsquohermeacuteneutique Biblique Paris Les Editions du Cerf

Parte II Traduccedilatildeo e tradiccedilatildeo em Portugal e no Brasil A recepccedilatildeo de Heidegger em portuguecircs

A Sobre traduccedilatildeo e transmissatildeo da tradiccedilatildeo filosoacutefica em portuguecircs

Nesta rubrica incluem-se obras sobre aspectos relevantes para a histoacuteria da

traduccedilatildeo e transmissatildeo da tradiccedilatildeo filosoacutefica em Portugal organizadas por

ordem cronoloacutegica e dividas em duas secccedilotildees a primeira das quais inclui obras

gerais sobre histoacuteria da traduccedilatildeo e do pensamento luso-brasileiro e a segunda

obras e artigos que documentam os periacuteodos histoacutericos analisados

Estudos de caraacutecter geral

1958 Vitorino Orlando Traduccedilotildees Portuguesas de Filosofia Lisboa Inspecccedilatildeo

Superior das Bibliotecas e Arquivos

1969 Gomes Pinharanda rdquoA Cultura Portuguesa e as Traduccedilotildees Portuguesas de Filosofiardquo in Pensamento Portuguecircs Vol I Braga Editora Pax

1974 Praccedila Lopes Histoacuteria da Filosofia em Portugal Lisboa Guimaratildees amp Cordf

Editores

1988 Ganho Maria de Lurdes e Henriques Mendo Castro Bibliografia Filosoacutefica Portuguesa (1931-1987) Sociedade Cientiacutefica da Universidade Catoacutelica Portuguesa LisboaSatildeo Paulo

1991 Serratildeo Joel e Oliveira Marques Nova Histoacuteria de Portugal-Portugal da Monarquia para a Repuacuteblica Lisboa Presenccedila

1993 Calafate Pedro ldquoRevistas Filosoacuteficas em Portugalrdquo in Philosophica nordm2

Departamento de Filosofia da Faculdade de Letras de Lisboa 99-114

1998 Calafate Pedro Metamorfoses da Palavra estudos sobre o Pensamento

Portuguecircs e Brasileiro Lisboa Imprensa Nacional-Casa da Moeda

1999-2000 Calafate Pedro direcccedilatildeo de Histoacuteria do Pensamento Filosoacutefico

Portuguecircs 5 tomos Lisboa Editorial Caminho

2001 Seruya Teresa (org) Estudos de Traduccedilatildeo em Portugal Lisboa Centro de Literatura e Cultura Portuguesa e Brasileira Universidade Catoacutelica

583

2004 Gomes Pinharanda Dicionaacuterio de Filosofia Portuguesa Lisboa D

Quixote

Obras representativas dos periacuteodos histoacutericos

1599 O Coacutedigo Pedagoacutegico dos Jesuiacutetas Ratio studiorum da Companhia de

Jesus ediccedilatildeo bilingue latim-portuguecircs trad portuguesa de Margarida

Miranda Lisboa Esfera do Caos 2009

1746 Verney Luiacutes Antoacutenio Verdadeiro Meacutetodo de Estudar para ser uacutetil agrave

Repuacuteblica e agrave Igreja Proporcionado ao Estilo e Necessidade de

Portugal Valensa [Naacutepoles] Oficina de Antoacutenio Balle agora em Lisboa

Livraria Saacute da Costa 1949

1772 Estatutos da Universidade de Coimbra Lisboa Reacutegia Officina Typograacutefica

1785 Cenaacuteculo Frei Manuel do Instruccedilatildeo Pastoral do Excelentiacutessimo e

Reverendiacutessimo Senhor Bispo de Beja sobre as virtudes de ordem

natural Lisboa Reacutegia Oficina Tipograacutefica

1791 Cenaacuteculo Frei Manuel do Cuidados Literaacuterios do Prelado de Beja em

graccedila do seu Bispado Lisboa Na Oficina de Simatildeo Thadeu Ferreira

1890 Quental Antero de Tendecircncias Gerais da Filosofia na Segunda Metade

do Seacuteculo XIX in Revista de Portugal ed usada Lisboa Fundaccedilatildeo

Calouste Gulbenkian 1989

1910 Proenccedila Rauacutel ldquoAlguns viacutecios da educaccedilatildeo do nosso paiacutes [Alma

Nacional Maio de 1910] agora em Antoacutenio Reis Rauacutel Proenccedila ndash Estudo

e Antologia Publicaccedilotildees Alfa SA Lisboa 1989

1932 Marinho Joseacute rdquoAutobiografia Espiritual e outros textos autobiograacuteficosrdquo agora em Aforismos sobre o que mais importa Obras de Joseacute Marinho vol I ed de Jorge Croce Rivera Lisboa INCM 1994

1935 Santos Domingos Mauriacutecio Gomes dos ldquoOs jesuiacutetas e o ensino das

Matemaacuteticas em Portugalrdquo Broteacuteria 20

1935 Coimbra Leonardo A Ruacutessia de Hoje e Homem de Sempre 1ordf ed

Porto Livraria Tavares agora em Obras de Leonardo Coimbra vol I

Porto Lello amp Irmatildeo Editores 1983

1938 Moncada Luiacutes Cabral Subsiacutedios para Histoacuteria da Filosofia do Direito em

Portugal 1ordf ed Coimbra [sn] agora em Lisboa Imprensa Nacional -

Casa da Moeda 2003

1939 Proenccedila Rauacutel O Eterno Retorno agora em Lisboa Biblioteca Nacional

1987

584

1942 Beau Albin Eduard Antero de Quental perante a Alemanha e a Franccedila

reflexotildees e reacccedilotildees Coimbra Coimbra Editora

1947 Leite Serafim ldquoDiogo Soares Matemaacutetico Astroacutenomo e Geoacutegrafo de sua

Majestade no Estado do Brasilrdquo in Broteacuteria 45 596-604

1950 Coimbra Leonardo ldquoO Homem agraves matildeos com o Destino in Sep da Revista Portuguesa de Filosofia Braga Faculdade de Filosofia de Braga vol VI agora em Obras de Leonardo Coimbra II Porto Lello amp Irmatildeo ndash Editores 1983

1951 Veiga Glaacuteucio Kant e o Brasil Revista Brasileira de Filosofia vol I fasc

1-2 Satildeo Paulo Instituto Brasileiro de Filosofia 86-97

1958 Cortesatildeo Jaime ldquoA missatildeo dos Padres Matemaacuteticos no Brasilrdquo sep

Studia1 Ag Geral Ultramar Lisboa

1960 Gomes Joatildeo Pereira Os Professores de Filosofia da Universidade de

Eacutevora Eacutevora Cacircmara Municipal

1968 Gomes Joatildeo Pereira ldquoA Aula da Esferardquo in Enciclopeacutedia Luso-Brasileira de Cultura vol 7 Lisboa Verbo 112-114

1972 Marinho Joseacute Filosofia ndash Ensino ou Iniciaccedilatildeo Lisboa Instituto

Gulbenkian de Ciecircncia

1974 Reale Miguel ldquoFilosofia Alematilde no Brasilrdquo Revista Brasileira de Filosofia

fasc 93 vol 24 Satildeo Paulo Instituto Brasileiro de Filosofia

FevereiroMarccedilo 1974 3-18

1976 Vitorino Orlando Refutaccedilatildeo da Filosofia Triunfante Teoremas Lisboa

1978 Carvalho Joaquim de ldquoAntero de Quental e a Filosofia de Eduardo Hartmannrdquo in Joaquim de Carvalho Obra Completa I Lisboa Gulbenkian

1982 Caeiro Francisco Gama ldquoO pensamento Filosoacutefico em Portugal e no

Brasil do seacutec XVI ao seacutec XVIIIrdquo in Actas do I Congresso Luso-Brasileiro

de Filosofia Braga 51-90

1982 Pacheco Maria Cacircndida Monteiro ldquoFilosofia e Ciecircncia no Pensamento Portuguecircs dos seacutec XVII e XVIIIrdquo in Actas do I Congresso Luso-Brasileiro de Filosofia Braga 474-486

1982 Crippa Adolpho rdquoConceito de Filosofia na Eacutepoca Pombalinardquo in Actas do

I Congresso Luso-Brasileiro de Filosofia Braga 435-449

1982 Paim Antoacutenio ldquoFilosofia Portuguesa e Brasileira Convergecircncias e

peculiaridadesrdquo in Actas do I Congresso Luso-Brasileiro de Filosofia

Braga 91-95

585

1982 Didonet Zilach Cercal ldquoO Positivismo e a Constituiccedilatildeo Rio-Grandense de 14 de Julho de 1891rdquo in Actas do I Congresso Luso-Brasileiro de Filosofia Braga 508-518

1982 Gonccedilalves Joaquim Cerqueira (org) Actas do I Congresso Luso-

Brasileiro de Filosofia in Revista Portuguesa de Filosofia tomo XXXVIII

fasc 4 Braga Faculdade de Filosofia de Braga

1983 Patriacutecio Manuel ldquoO anti-aristotelismo expliacutecito de Leonardo Coimbra

contribuiccedilatildeo para o estudo do problemardquo in Sep Revista Portuguesa de

Filosofia nordm 39 Braga Faculdade de Filosofia de Braga

1987 Carrilho Manuel Maria Razatildeo e Transmissatildeo da Filosofia Lisboa

Imprensa Nacional - Casa da Moeda

1989 Almeida Ana Maria org intr e notas de Cartas I 1852-1881 Obras

Completas de Antero de Quental Universidade dos Accedilores Editorial

Comunicaccedilatildeo

1989 Almeida Ana Maria org intr e notas de Cartas II 1881-1891 Obras

Completas de Antero de Quental Universidade dos Accedilores Editorial

Comunicaccedilatildeo

1989 Reis Antoacutenio Rauacutel Proenccedila ndash Estudo e Antologia Lisboa Publicaccedilotildees

Alfa SA

1991 Caeiro Francisco Gama ldquoNota acerca da recepccedilatildeo de Kant no

pensamento filosoacutefico portuguecircsrdquo in Dinacircmica do Pensar - Homenagem

a Oswaldo Market Lisboa Faculdade de Letras 59-90

1991 Teixeira Antoacutenio Braz Caminhos e Figuras da Filosofia do Direito Luso-Brasileiro 1ordf ed Lisboa Imprensa Nacional ndash Casa da Moeda 2ordf ed ampliada Lisboa Novo Imbondeiro 2002

1992 Gomes Pinharanda Os Conimbricenses Lisboa Guimaratildees Editores

1992 Matos Seacutergio Campos ldquoHistoacuteria Positivismo e Funccedilatildeo dos Grandes Homens no Uacuteltimo Quartel do Seacuteculo XIXrdquo in Separata de Peneacutelope nordm 8 Lisboa

1992 Lourenccedilo Eduardo ldquoPortugal e os Jesuiacutetasrdquo in Oceano agora em Eduardo Lourenccedilo A Morte de Colombo - Metamorfose e Fim do Ocidente como Mito Lisboa Gradiva 2005

1996 Soveral Eduardo Abranches de Pensamento Luso-Brasileiro - estudos e

ensaios Lisboa Instituto Superior de Novas Profissotildees

1997 Silva Luacutecio Craveiro da ldquoMolina e a Companhia de Jesusrdquo in Luiacutes de Molina regressa a Eacutevora Eacutevora 83-95

1997 Patriacutecio Manuel ldquoA doutrina da Ciecircncia Meacutedia de Pedro Fonseca a Luis de Molinardquo in Luiacutes de Molina regressa a Eacutevora Eacutevora 163-181

586

1997 Martins Antoacutenio Manuel ldquoA teoria da Justiccedila em Molinardquo in Luiacutes de Molina regressa a Eacutevora Eacutevora 153-161

1997 Maltez Joseacute Adelino ldquoO jusnaturalismo catoacutelico dos seacuteculos XVI e XVII e as raiacutezes da democraciardquo in Luiacutes de Molina regressa a Eacutevora Eacutevora 51-73

1997 Borges-Duarte Irene (org) Luiacutes de Molina regressa a Eacutevora Eacutevora Fundaccedilatildeo Luiacutes de Molina

1999 Paim Antoacutenio ldquoAs Luzes no Brasilrdquo in Histoacuteria do Pensamento Filosoacutefico Portuguecircs Vol III Lisboa Editora Caminho 437-501

2000 Henriques Fernanda ldquoFilosofia Cultura e linguagem a pertinecircncia do

ensino da filosofia em liacutengua portuguesardquo in Luiz Alberto Cerqueira

(org) Aristotelismo Anti-aristotelismo Ensino de Filosofia Rio de

Janeiro Editora Aacutegora da Ilha

2000 Monteiro Ameacuterico Enes A Recepccedilatildeo da Obra de Friedrich Nietzsche na

Vida Intelectual Portuguesa (1892 - 1939) Porto Lello Editores

Universidade Catoacutelica Portuguesa

2001 Pereira Ana Leonor Darwin em Portugal [1865-1914] Coimbra Livraria

Almedina

2003 Franco Joseacute Eduardo ldquoHistoacuteria da Revista Broteacuteria - 1902-2002rdquo in Feacute

Ciecircncia Cultura Broteacuteria - 100 anos Lisboa Gradiva 89-139

2003 Pereira Joseacute Esteves ldquoA Broteacuteria e o pensamento filosoacutefico portuguecircs

(1925-1964)rdquo in Feacute Ciecircncia Cultura Broteacuteria - 100 anos Lisboa

Gradiva 233-253

B Retoacuterica poesia e religiatildeo

Incluem-se aqui obras da tradiccedilatildeo poeacutetica e retoacuterica de liacutengua portuguesa

assim como estudos sobre as mesmas cuja consulta foi relevante para o

presente trabalho As obras aqui referidas estatildeo ordenadas cronologicamente

com a finalidade de evidenciar os momentos fundamentais desta tradiccedilatildeo

1595 Camotildees Luiacutes de Socircbolos Rios Que Vatildeo ldquoBabel e Siatildeordquo agora em

Liacutericas Porto Lello e Irmatildeo Editores 1980

1633 Vieira Pe Antoacutenio O Sermatildeo Deacutecimo Quarto do Rosaacuterio (pregado em 1633 na Baiacutea aos pretos de um engenho) agora em Sermotildees Tomo XI Porto Lello amp Irmatildeo 1959

1644 Vieira Pe Antoacutenio O Sermatildeo de S Pedro (pregado em Lisboa em S Juliatildeo em 1644) agora em Sermotildees Tomo VII Porto Lello amp Irmatildeo 1959

587

1655 Vieira Pe Antoacutenio Sermatildeo da Sexageacutesima (pregado na Capela Real em Lisboa em Marccedilo de 1655) agora em Sermotildees Tomo I Porto Lello amp Irmatildeo 1959

1654 Vieira Pe Antoacutenio Sermatildeo de Santo Antoacutenio aos Peixes (proferido na cidade de S Luiacutes do Maranhatildeo em 1654) agora em Sermotildees tomoVII Porto Lello amp Irmatildeo 1959

1662 Vieira Pe Antoacutenio Sermatildeo da Epifania (pregado na Capela Real em 1662) agora em Sermotildees Tomo II Porto Lello amp Irmatildeo 1959

1664 Vieira Pe Antoacutenio Sermatildeo da Dominga Vigeacutesima Segunda (pregado no Estado do Maranhatildeo em 1664) agora em Sermotildees tomo VI Porto Lello amp Irmatildeo 1959

1697 Vieira Pe Antoacutenio Clavis Prophetarum agora em Chave dos Profetas

ed criacutetica fixaccedilatildeo do texto trad notas e glossaacuterio de Arnaldo do

Espiacuterito Santo trad rev Joatildeo Pereira Gomes Lisboa Biblioteca

Nacional 2000

1872 Quental Antero de Primaveras Romacircnticas 1a ed Porto Imprensa

Portugueza agora em Porto Lelloamp Irmatildeo 1984

1875 Martins Oliveira ldquoOs Poetas da Escola Novardquo in Revista Ocidental 2ordf

fasc 31 de Maio de 1875 tip de Cristoacutevatildeo Augusto Rodrigues

1903 Pascoaes Teixeira de Jesus e Patilde 1ordf ed Porto Livraria Joseacute

Figueirinhas Juacutenior agora em As Sombras agrave Ventura Jesus e Patilde

Lisboa Assiacuterio amp Alvim 1996

1907 Pascoaes Teixeira de As Sombras 1ordf ed Lisboa Liv Ferreira agora

em As Sombras agrave Ventura Jesus e Patilde Lisboa Assiacuterio amp Alvim 1996

1911 Pascoaes Teixeira de Maracircnus 1ordf ed Porto Magalhatildees e Moniz Lda

Editores agora em Lisboa Assiacuterio amp Alvim 1990

1912 Pascoaes Teixeira de ldquoAinda o Saudosismo e a Renascenccedilardquo in A

Aacuteguia IIordf seacuterie nordm 12

1912 Pessoa Fernando ldquoA Nova Poesia Portuguesa sociologicamente

consideradardquo in A Aacuteguia Abril de 1912 agora em A Nova Poesia

Portuguesa 2ordmed Lisboa Inqueacuterito 1944

1919 Pascoaes Teixeira de Os Poetas Lusiacuteadas 1ordf ed Porto tip Costa

Carregal agora em Lisboa Assiacuterio ampAlvim 1987

1906-1930 Pessoa Fernando Textos Filosoacuteficos Lisboa Aacutetica 1994

1937 Pascoaes Teixeira de O Homem Universal 1ordf ed Lisboa Ediccedilotildees

Europa agora em Lisboa Assiacuterio ampAlvim 1993

588

1944 Silva Agostinho da Conversaccedilatildeo com Diotima V N de Famalicatildeo

Ediccedilatildeo de Autor

1944 Pessoa Fernando Poesias de Aacutelvaro de Campos 1ordf ed Lisboa Aacutetica

1946 Pessoa Fernando Odes de Ricardo Reis 1ordf ed Lisboa Aacutetica

1946-1947 Silva Agostinho da ldquoComeacutedia Latina 1ordf ed Claacutessicos de Ouro Ediccedilotildees de Ouro Brasil agora in Dispersos Lisboa Instituto de Cultura e Liacutengua Portuguesa 1988

1959 Silva Agostinho da Um Fernando Pessoa 1ordf ed Porto Alegre Instituto

Estadual do Livro

1970 Silva Dora Ferreira da ldquoAndanccedilasrdquo ed de autor agora em Poesia

Reunida Rio de Janeiro Topbooks Editora 1999

1971 Silva Agostinho da ldquoHaacute quem proponha chamar-se-lhe docimologiardquo

Notiacutecia nordm 603 26 de Junho de 1971 agora em Ensaios sobre Cultura e

Literatura Portuguesa e Brasileira II Lisboa Acircncora Editora 2001

1972 Silva Agostinho da ldquoComposiccedilatildeo do Brasilrdquo Vida Mundial nordm 1711 agora

em Ensaios sobre Cultura e Literatura Portuguesa e Brasileira II Lisboa

Acircncora Editora 2001

1972 Silva Agostinho da ldquoO Espiacuterito Santo das Ilhas Atlacircnticasrdquo Vida Mundial

2141972 agora em Ensaios sobre Cultura e Literatura Portuguesa e

Brasileira II Lisboa Acircncora Editora 2001

1973 Silva Dora Ferreira da ldquoUma Via de Ver as Coisasrdquo 1ordf ed Satildeo Paulo

Editora Duas Cidades agora em Poesia Reunida Rio de Janeiro

Topbooks Editora 1999

1976 Silva Dora Ferreira da ldquoMenina Seu Mundordquo 1ordf ed Satildeo Paulo Massao

Ohno Editor agora em Poesia Reunida Rio de Janeiro Topbooks

Editora 1999

1979 Silva Dora Ferreira da ldquoJardins (esconderijos)rdquo ed de autor agora em

Poesia Reunida Rio de Janeiro Topbooks Editora 1999

1981 Marinho Joseacute Estudos Sobre o pensamento Portuguecircs Contemporacircneo

Lisboa Biblioteca Nacional

1983 Antunes Alfredo Saudade e Profetismo em Fernando Pessoa Braga Faculdade de Filosofia

1984 Costa Dalila Pereira da Da Serpente agrave Imaculada Porto Lello amp Irmatildeo

19861987 Quadros Antoacutenio Portugal - Razatildeo e Misteacuterio 1ordm Vol ldquoUma

Arqueologia da Tradiccedilatildeo Portuguesardquo 2ordm Vol ldquoO Projecto Aacuteureo ou o

Impeacuterio do Espiacuterito Santordquo Lisboa Guimaratildees Editora

589

1990 Silva Agostinho da Do Agostinho em Torno de Pessoa 1ordf ed Lisboa

Ulmeiro

1991 Costa Dalila Pereira da Espirituais Portugueses ndash Antologia Lisboa

Guimaratildees Editores

1994 Coutinho Jorge O Pensamento de Teixeira de Pascoaes Braga

Universidade Catoacutelica

1995 Borges Paulo Alexandre Esteves A Plenificaccedilatildeo da Histoacuteria em Padre

Antoacutenio Vieira estudo sobre a ideia do Quinto Impeacuterio na defesa

perante o Tribuna do Santo Ofiacutecio Lisboa Imprensa Nacional-Casa da

Moeda

1996 Silva Dora Ferreira da ldquoPoemas da Estrangeirardquo 1ordf ed Satildeo Paulo

Massao Ohno Editor agora em Poesia Reunida Rio de Janeiro

Topbooks Editora 1999

1997 Coutinho Jorge Peixoto ldquoJunqueiro-Pascoaes e a hermenecircutica do cristianismordquo in Samuel Paulo (coord) Coloacutequio Guerra Junqueiro e a Modernidade Porto Lello Editores 79-90

2001 Silva Agostinho da Ensaios sobre Cultura e Literatura Portuguesa e

Brasileira II Porto Acircncora Editora

2003 Pacheco Maria Adelaide A Vida e o Traacutegico em Raul Brandatildeo

Dissertaccedilatildeo de Mestrado Faculdade de Letras da Universidade de

Lisboa

2007 Carvalho Isaque Pereira de ldquoTeologia e Mito-poieacutetica da Histoacuteria em Agostinho da Silvardquo in Agostinho da Silva Pensador do Mundo a Haver Lisboa 331-338

2007 Teixeira Braz ldquoAgostinho da Silva e o pensamento russo algumas

convergecircncias e afinidadesrdquo in Agostinho da Silva Pensador do Mundo a Haver Lisboa 91-98

2007 Epifacircnio Renato (org) Agostinho da Silva Pensador do Mundo a Haver

Actas do Congresso Internacional do Centenaacuterio de Agostinho da Silva Lisboa Associaccedilatildeo Agostinho da Silva e Zeacutefiro

2008 Borges Paulo Princiacutepio e Manifestaccedilatildeo Metafiacutesica e Teologia da Origem

em Teixeira de Pascoaes Lisboa INCM 2008 Lourenccedilo Eduardo Fernando Pessoa Rei da Nossa Baviera Lisboa

Gradiva

2009 Coutinho Jorge ldquoTeologia e Metafiacutesica em Aacutelvaro Ribeirordquo in O

Pensamento Luso-Galaico-Brasileiro vol I Lisboa 485-504

590

2009 Silva Joatildeo Amadeu Carvalho da ldquoO Desejado e o Encoberto Nobre e

Pessoardquo in O Pensamento Luso-Galaico-Brasileiro vol III Lisboa

615-626

2009 AAVV O Pensamento Luso-Galaico-Brasileiro 3 vols Lisboa Imprensa

Nacional - Casa da Moeda

2010 Calafate Pedro ldquoA Escolaacutestica Peninsular no Pensamento Antropoloacutegico

de Antoacutenio Vieirardquo in Razatildeo e Liberdade Homenagem a Manuel Joseacute

do Carmo Ferreira vol 2 Centro de Filosofia da UL 1011-1024

C O diaacutelogo com Heidegger em liacutengua portuguesa (1938-1989)

Estudos sobre a recepccedilatildeo de Heidegger em Liacutengua Portuguesa

Aqui satildeo referidos repertoacuterios bibliograacuteficos obras e artigos cuja consulta foi imprescindiacutevel para determinar a extensatildeo e direcccedilatildeo da recepccedilatildeo de Heidegger em Portugal e no Brasil

1979 Paim Antoacutenio Bibliografia Filosoacutefica Brasileira (periacuteodo contemporacircneo 1931-1977) Rio de Janeiro Ediccedilotildees GRD

1983 Oliveira Beneval de A Fenomenologia no Brasil Rio de Janeiro Pallas

1989 Borges-Duarte Irene ldquoHeidegger em Portuguecircs (contribuiccedilatildeo para um repertoacuterio bibliograacutefico)rdquo in Filosofia vol III nordm 12 Outono de 1989 Lisboa Sociedade Portuguesa de Filosofia 173-184

1990 Quadros Antoacutenio ldquoExistencialismo e filosofia existencialista em Portugalrdquo in Logos Enciclopeacutedia Luso-Brasileira de Filosofia LisboaSatildeo Paulo Ed Verbo

1994 Reale Miguel Estudos de Filosofia Brasileira Lisboa Instituto de

Filosofia Luso-Brasileira

1996 Soveral Eduardo Abranches de Pensamento Luso-Brasileiro estudos e ensaios Lisboa Instituto Superior de Novas Profissotildees

1999 Borges-Duarte Irene e Saacute Alexandre de A Recepccedilatildeo de Heidegger em

Portugal Estudo bibliograacutefico preliminar in Philosophica 13

Departamento de Filosofia da Faculdade de Letras da Universidade de

Lisboa 151-167

2000 Paim Antoacutenio A Filosofia Brasileira Contemporacircnea Londrina Ediccedilotildees

Cefil

20002001 Guimaratildees Aquiles Cortes ldquoO Pensamento Fenomenoloacutegico no

Brasilrdquo Cultura ndash Revista de Histoacuteria e Teoria das Ideias vol XII IIordf

591

seacuterie Lisboa Centro de Histoacuteria da Cultura da Universidade Nova de

Lisboa 183-189

2003 Pacheco Maria Adelaide ldquoA Presenccedila de Heidegger em Portugalrdquo in

Revista Portuguesa de Filosofia Outubro-Dezembro vol 59 fasc 4

Braga Faculdade de Filosofia de Braga 1203-1228

2007 Epifacircnio Renato Repertoacuterio da bibliografia filosoacutefica portuguesa 1988-

2005 Lisboa Centro de Filosofia da Universidade de Lisboa

2008 Heidegger em Portuguecircs [em linha] Lisboa Centro de Filosofia da

Universidade de Lisboa [2008] [Consult 20 de Setembro 2009]

Disponiacutevel na WWW ltURL=httpwwwmartin-heideggernetgt

2010 Nataacuterio Maria Celeste Teixeira Antoacutenio Braz Epifacircnio Renato (org) O

Movimento Fenomenoloacutegico em Portugal e no Brasil Sintra Zeacutefiro

Textos dos inteacuterpretes de Heidegger

Nesta rubrica referem-se as obras e artigos que comentaram Heidegger em

liacutengua portuguesa A bibliografia apresentada natildeo eacute exaustiva referindo

apenas as obras e artigos que foram analisados e estaacute ordenada

cronologicamente de modo a evidenciar as trecircs geraccedilotildees de comentadores de

Heidegger

Brandatildeo Antoacutenio Joseacute (1906-1984)

Vigecircncia e Temporalidade do Direito e outros ensaios Sep do Boletim da Faculdade de Direito de Coimbra vol 19 Coimbra 1943 agora em Vigecircncia e Temporalidade do Direito e outros ensaios Lisboa INCM 2001

Santos Delfim (1907-1966)

Livros

Fundamentaccedilatildeo Existencial da Pedagogia Lisboa Graacutef Lisbonense 1946

Artigos e prefaacutecios

ldquoHeidegger e Houmllderlin ou a essecircncia da poesiardquo Revista de Portugal Lisboa

nordm4 1938 agora em Obras Completas vol I Lisboa Gulbenkian 1973

ldquoDa Filosofiardquo [sn] Pocircrto Imprensa Portuguesa 1939 agora em Obras

Completas tomo I Lisboa Gulbenkian 1982

ldquoHumanismo e Culturardquo Diaacuterio Popular 13 de Maio de 1943 in Obras

Completas vol III Lisboa Gulbenkian 1987

592

ldquoPsicologia e Direitordquo Boletim do Ministeacuterio da Justiccedila nordm6 Maio 1948 agora

em Obras Completas tomo III Lisboa Gulbenkian 1987

rdquoObjecto da Metafiacutesica em Suarezrdquo Actas del IV Centenaacuterio del Nacimiento de

Franciso Suarez Madrid Direcccedilatildeo-Geral de Propaganda 1949 agora em

Obras Completas tomo II Lisboa Gulbenkian 1973

ldquoTemaacutetica Existencialrdquo Separata do nordf2 da revista Atlacircntico 3ordf seacuterie 1950

agora em Obras Completas tomo II Lisboa Gulbenkian 1973

ldquoS Tomaacutes e o Nosso Tempordquo [Ineacutedito de 7-3-51] agora em Obras Completas

tomo II Lisboa Gulbenkian 1973

ldquoO Homem e o seu Destino Diaacuterio do Norte 22-3-1951 agora em Obras

Completas tomo II Lisboa Gulbenkian 1973

ldquoSentido Existencial da Anguacutestiardquo Separata dos Anais Portugueses de

Psiquiatria vol IV nordm4 Dezembro de 1952 agora em Obras Completas tomo

II Lisboa Gulbenkian 1973

rdquoNatureza e Espiacuteritordquo Ler Lisboa ano I nordm4 Julho de 1952 agora em Obras

Completas tomo II Lisboa Gulbenkian 1973

Prefaacutecio agrave Traduccedilatildeo de Regis Jolivet As Doutrinas Existencialistas de

Kierkegaard a Sartre Porto Livraria Tavares Martins 1953 agora em Obras

Completas tomo II Lisboa Gulbenkian 1973

rdquoA Filosofia Como Ontologia Fundamentalrdquo Actas do I Congresso Nacional de

Filosofia - Revista Portuguesa de Filosofia Braga 1955 tomo XI-II fasc3-4

agora em Obras Completas tomo II Lisboa Gulbenkian 1973

ldquoFilosofia Existencialrdquo [ineacutedito natildeo datado] em Obras Completas tomo I

Lisboa Gulbenkian 1982

rdquoMetafiacutesica e Positivismordquo [ineacutedito natildeo datado] em Obras Completas tomo II

Lisboa Gulbenkian 1973

rdquoHeideggerrdquo [ineacutedito natildeo datado] em Obras Completas tomo II Lisboa

Gulbenkian 1973

Publicaccedilotildees poacutestumas

Obras Completas Lisboa Gulbenkian 1973

Sousa Eudoro de (1911-1987)

As nuacutepcias do Ceacuteu e da Terra Lisboa sn 1944

593

Mitologia y Ritual Mendoza Universidad Nacional de Cuyo 1950 agora em Dioniacutesio em Creta e Outros Ensaios Lisboa Imprensa Nacional-Casa da Moeda 2004 Orfeu e os comentadores de Platatildeo Lisboa Associaccedilatildeo Portuguesa para o Progresso das Ciecircncias 1950 O Mito em Elecircusis Coimbra [sn] 1951 Dioniacutesio em Creta 1ordf ed Livraria Duas Cidades Satildeo Paulo 1973 agora in Dioniacutesio em Creta e Outros Ensaios Lisboa Imprensa Nacional-Casa da Moeda 2004 As Bacantes de Euriacutepides Satildeo Paulo Livraria Duas Cidades 1974 Horizonte e complementariedade ensaio sobre a relaccedilatildeo entre mito e metafiacutesica nos primeiros filoacutesofos gregos BrasiacuteliaSatildeo Paulo Universidade de BrasiacuteliaDuas Cidades 1975 Mitologia 1ordf ed Brasiacutelia Universidade de Brasiacutelia 1980 agora in Mitologia Histoacuteria e Mito Lisboa Imprensa Nacional-Casa da Moeda 2004 Histoacuteria e Mito 1ordf ed Brasiacutelia Universidade de Brasiacutelia 1981 agora in Mitologia Histoacuteria e Mito Lisboa Imprensa Nacional-Casa da Moeda 2004

Ferreira Vergiacutelio (1916-1996)

Mudanccedila Lisboa Tip Garcia ampCarvalho 1949

Espaccedilo do Invisiacutevel 1 1ordf ed Lisboa Portugaacutelia 1954

Apariccedilatildeo 1ordf ed Lisboa Portugaacutelia ed 1959

Espaccedilo do Invisiacutevel 2 Venda Nova Bertrand Editora 1991

Prefaacutecio agrave traduccedilatildeo portuguesa de O Existencialismo eacute um Humanismo

Lisboa ed Presenccedila 1962

Silva Vicente Ferreia da (1916-1963)

Livros

Exegese da Acccedilatildeo Satildeo Paulo Livraria Martins Editores 1949

Dialeacutectica das Consciecircncias Satildeo Paulo ediccedilatildeo de autor 1950

Teologia e Anti-humanismo Satildeo Paulo ediccedilatildeo de autor 1953

594

Artigos em revistas e comentaacuterios

ldquoMartin Heidegger Holzwegerdquo in Revista Brasileira de Filosofia vol I fasc 1-2

Satildeo Paulo Instituto Brasileiro de Filosofia 1951

ldquoA uacuteltima fase do pensamento de Heideggerrdquo in Revista Brasileira de Filosofia

vol I fasc 3 Satildeo Paulo Instituto Brasileiro de Filosofia 1951

ldquoIdeias para Um Novo Conceito de Homemrdquo Separata da Revista Brasileira de

Filosofia vol I fasc 4 Outubro-Dezembro Satildeo Paulo Instituto Brasileiro de

Filosofia 1951

ldquoSobre a Origem e o Fim do Mundordquo Jornal de Letras Abril 1951

ldquoO Homem e Sua proveniecircnciardquo Revista Brasileira de Filosofia nordm7 Satildeo Paulo

Instituto Brasileiro de Filosofia 1952

ldquoSobre a Teoria dos Modelosrdquo Revista Brasileira de Filosofia vol3 fasc 9

Satildeo Paulo Instituto Brasileiro de Filosofia 1953

ldquoPara uma Etnogonia Filosoacuteficardquo Revista Brasileira de Filosofia nordm 16 Satildeo

Paulo Instituto Brasileiro de Filosofia 1954

rdquoA Experiecircncia do Divino Nos Povos Auroraisrdquo Diaacutelogo nordm1 Satildeo Paulo 1955

―A Feacute nas Origensrdquo Diaacutelogo nordm2 Satildeo Paulo 1955

ldquoA Religiatildeo e a Sexualidaderdquo Diaacutelogo nordm 2 Satildeo Paulo 1955

rdquoOs Pastores do Serrdquo Diaacutelogo nordm 2 Satildeo Paulo 1955

ldquoHermenecircutica da Eacutepoca Humana Revista Brasileira de Filosofia vol 5 fasc

18 Satildeo Paulo Instituto Brasileiro de Filosofia 1955

ldquoEnzo Paci e o pensamento Sul-Americanordquo Revista Brasileira de Filosofia

vol5 fasc 18 Satildeo Paulo Instituto Brasileiro de Filosofia 1955

rdquoIntroduccedilatildeo agrave Filosofia da Mitologiardquo Revista Brasileira de Filosofia vol5

fasc4 Satildeo Paulo Instituto Brasileiro de Filosofia 1955

ldquoO Ser in-funsivoldquo Diaacutelogo nordm 3 Satildeo Paulo 1956

ldquoA transparecircncia da Histoacuteriardquo Diaacutelogo nordm 4 Satildeo Paulo 1956

ldquoNatureza e Cristianismordquo in Revista Brasileira de Filosofia vol 7 fasc 27

Satildeo Paulo Instituto Brasileiro de Filosofia 1957

ldquoA Fonte e o Pensamentordquo Diaacutelogo nordm 7 Satildeo Paulo 1957

ldquoDiaacuterio Filosoacuteficordquo Cavalo Azul nordm 3 1958

rdquoInstrumentos Coisas e Culturardquo Revista Brasileira de Filosofia vol 8 fasc

30 Satildeo Paulo Instituto Brasileiro de Filosofia 1958

595

ldquoParadoxos de uma Eacutepocardquo Jornal do Comeacutercio 2 de Fevereiro Rio de

Janeiro 1958

ldquoHistoacuteria e Meta-histoacuteriardquo Congresso Internacional de Filosofia Satildeo Paulo

1959

ldquoRaccedila e Mitordquo comunicaccedilatildeo apresentada ao 3ordm Congresso Nacional de

Filosofia Satildeo Paulo 1959

ldquoO Ocaso do Pensamento Humaniacutesticordquo Diaacutelogo nordm 13 Satildeo Paulo 1960

ldquoO homem e a Liberdade na tradiccedilatildeo Humaniacutesticardquo Revista Brasileira de

Filosofia vol 11 fasc 41 Satildeo Paulo Instituto Brasileiro de Filosofia 1961

ldquoA Natureza do Simbolismordquo Revista Brasileira de Filosofia vol 12 fasc 48

Satildeo Paulo Instituto Brasileiro de Filosofia 1962

ldquoA Origem Religiosa da Culturardquo Convivium vol 1 nordm 1 Satildeo Paulo 1962

ldquoLiberdade e Imaginaccedilatildeordquo Convivium vol 2 fasc 4 Satildeo Paulo 1962

ldquoDiaacutelogo do Marrdquo Diaacutelogo nordm 14 Satildeo Paulo 1962

Publicaccedilotildees Poacutestumas

ldquoRetrato do intelectual de direitardquo (1963) in Convivium Maio-junho de 1972

ldquoDiagnose do Intelectual de esquerdardquo (1963) Convivium Maio-junho de 1972

ldquoUm novo sentido da vidardquo (1963) Convivium Maio-junho de 1972

Obras Completas Satildeo Paulo Instituto Brasileiro de Filosofia 2 vol 1966

Dialeacutectica das Consciecircncias e outros ensaios Lisboa Imprensa Nacional-Casa

da Moeda 2002

Ineacuteditos Sd

ldquoDiaacutelogo da Montanhardquo in Dialeacutectica das Consciecircncias e outros ensaios

Lisboa Imprensa Nacional-Casa da Moeda 2002

ldquoDiaacutelogo do Espantordquo in Dialeacutectica das Consciecircncias e outros ensaios Lisboa

Imprensa Nacional-Casa da Moeda 2002

ldquoDiaacutelogo do Riordquo in Dialeacutectica das Consciecircncias e outros ensaios Lisboa

Imprensa Nacional-Casa da Moeda 2002

ldquoCriacutetica do Cristianismordquo in Dialeacutectica das Consciecircncias e outros ensaios

Lisboa Imprensa Nacional-Casa da Moeda 2002

ldquoTeologia e Mitologiardquo in Dialeacutectica da Consciecircncia e outros ensaiosrdquo Lisboa

Imprensa Nacional-Casa da Moeda 2002

596

Antunes Pe Manuel (1918-1985)

ldquoHeidegger e a sua Influecircnciardquo in Broteacuteria 89 Lisboa 1969 reeditado em

Grandes Contemporacircneos Lisboa Verbo 1973

ldquoHeidegger Renovador da Filosofiardquoin Broteacuteria 103 Lisboa 1976 reeditado em Occasionalia ndash Homens e Ideias de Ontem e de Hoje Multinova 1980

Obras Completas tomo I Lisboa Fundaccedilatildeo Calouste Gulbenkian 2005

Enes Joseacute (1924)

Livros

Agrave Porta do Ser Ensaio sobre a justificaccedilatildeo noeacutetica do juiacutezo da percepccedilatildeo

externa em Satildeo Tomaacutes de Aquino Lisboa Difusatildeo Dilsar 1969

Linguagem e Ser Lisboa Imprensa Nacional-Casa da Moeda 1983

Noeticidade e Ontologia Lisboa Imprensa Nacional-Casa da Moeda 1999

Artigos

ldquoDiamantino Martins - O problema de Deusrdquo Atlacircntida oacutergatildeo do Instituto

Accediloriano de Cultura Accedilores 1957

Miranda Maria do Carmo Tavares (1926)

Meditaccedilotildees sobre a Filosofia Braga Faculdade de Filosofia 1959

Leatildeo Emmanuel Carneiro (1927)

Aprendendo a Pensar I Rio de Janeiro Editora Vozes 1974 agora em

Aprendendo a Pensar Petroacutepolis Editora Vozes 2002

Bornheim Gerd (1929)

Livros

Aspectos Filosoacuteficos do Romantismo Porto Alegre Instituto Estadual do Livro

1959

Introduccedilatildeo ao Filosofar - o pensamento filosoacutefico em bases existenciais 1ordf ed

Porto Alegre Globo 1970 agora in Satildeo Paulo Editora Globo 11ordf ediccedilatildeo

2006

597

Metafiacutesica e Finitude 1ordf ed Porto Alegre Movimento 1972 ed revista e

ampliada Satildeo Paulo Editora Perspectivas 2001

Dialeacutectica teoria praxis Ensaio para uma criacutetica da fundamentaccedilatildeo ontoloacutegica da dialeacutectica Porto Alegre GloboUSP 1977

Artigos

rdquoA filosofia Alematilde apoacutes a primeira Guerra Mundialrdquo[Revista Brasileira de Filosofia volXX fasc79 Satildeo Paulo Instituto Brasileiro de Filosofia 1970 ] in Metafiacutesica e Finitude Satildeo Paulo Editora Perspectivas 2001

ldquoSobre a linguagem musicalrdquo [1967] in Metafiacutesica e Finitude Satildeo Paulo

Editora Perspectivas 2001

ldquoHeidegger A questatildeo do Ser e a dialeacutecticardquo [1970] in Metafiacutesica e Finitude

Satildeo Paulo Editora Perspectivas 2001

ldquoSentido e Criatividaderdquo [1970] in Metafiacutesica e Finitude Satildeo Paulo Editora

Perspectivas 2001

ldquoFilosofia e Poesiardquo sd in Metafiacutesica e Finitude Satildeo Paulo Editora Perspectivas 2001

Nunes Benedito (1929)

Introduccedilatildeo agrave Filosofia da Arte Satildeo Paulo Editora Universidade de Satildeo Paulo

1966

Stein Ernildo Jacob (1934)

Compreensatildeo e Finitude - Estrutura e movimento da interrogaccedilatildeo

heideggeriana [1968] Rio Grande do Sul Editora Unijuiacute 2001

ldquoEm busca de uma Ontologia da Finituderdquo Revista Brasileira de Filosofia vol

XIX fasc76 outNov 1969 Satildeo Paulo Instituto Brasileiro de Filosofia

A Questatildeo do Meacutetodo na Filosofia um estudo do modelo heideggeriano Porto Alegre Editora Movimento 1983

Seis Estudos sobre Ser e Tempo Petroacutepolis Editora Vozes 1988

Estudos criacuteticos

Aqui satildeo referidos obras e artigos sobre alguns dos inteacuterpretes de Heidegger em liacutengua portuguesa que foram objecto de estudo no presente trabalho organizados por ordem alfabeacutetica dos respectivos autores

598

AAVV bdquoO Pensamento de Vicente Ferreira da Silvardquo in Convivium Maio-Junho Satildeo Paulo 1972

Bernardo Luis Manuel ldquoA noccedilatildeo de Universo Ontoloacutegico na Obra de Joseacute Enesrdquo in O Pensamento Luso-Galaico-Brasileiro Actas do Congresso vol I Lisboa INCM 2009 649-686

Borges Paulo Alexandre Esteves ldquoDo perene regresso da filosofia agrave caverna da danccedila e do drama iniciaacutetico Rito e Mito em Vicente Ferreira da Silva e Eudoro de Sousardquo in Mito e Cultura Vicente Ferreira da Silva e Eudoro de Sousa - Actas do V Coloacutequio Tobias Barreto Lisboa 2001 97-111

Ceacutesar Constanccedila Marcondes Vicente Ferreira da Silva trajectoacuteria intelectual e contribuiccedilatildeo filosoacutefica tese de Livre-Docecircncia em Filosofia apresentada agrave

Pontifiacutecia Universidade Catoacutelica de Campinas 1980 155-170

Ceacutesar Constanccedila Marcondes O Grupo de Satildeo Paulo Lisboa Imprensa Nacional-Casa da Moeda 2000

Ceacutesar Constanccedila Marcondes ldquoDelfim Santos e Eudoro de Sousardquo in Delfim Santos e a Escola do Porto Lisboa 2008

Ceacutesar Constanccedila Marcondes ldquoA Compreensatildeo Heterodoxa do Sagrado Agostinho da Silva Eudoro de Sousa Vicente Ferreira da Silvardquo in O Pensamento Luso-Galaico-Brasileiro Actas do Congresso vol II Lisboa INCM 2009 17-30

Grassi Ernesto ldquoRecordaccedilatildeo e Metaacuteforardquo in Convivium Maio-Junho Satildeo Paulo 1972 202-204

Guimaratildees Aquiles Cocircrtes ldquoMetafiacutesica e Ontologia na Filosofia Brasileirardquo in O Pensamento Luso-Galaico-Brasileiro Actas do Congresso vol I Lisboa INCM 2009 199-212

Instituto de Filosofia Luso-Brasileira (org) Mito e Cultura Vicente Ferreira da Silva e Eudoro de Sousa - Actas do V Coloacutequio Tobias Barreto Lisboa Instituto de Filosofia Luso-Brasileira 2001

Mariacuteas Juliaacuten ldquoUma Vocaccedilatildeo Filosoacuteficardquo in Convivium Maio-Junho Satildeo Paulo 1972 183-188

Martins Cacircndido ldquoA Voz ensaiacutestica da ficccedilatildeo de Vergiacutelio Ferreirardquo in O Pensamento Luso-Galaico-Brasileiro Actas do Congresso vol III Lisboa INCM 2009 645-660

Mendonccedila Ana Maria Bijoacuteias ldquoVisatildeo Antropoloacutegica em Vergiacutelio Ferreira um humanismo impossiacutevelldquo in O Pensamento Luso-Galaico-Brasileiro Actas do Congresso vol II Lisboa INCM 2009 443-454

Miranda Manuel Guedes da Silva Delfim Santos - A Metafiacutesica como Filosofia Fundamental Lisboa Fundaccedilatildeo C Gulbenkian e Fundaccedilatildeo para a Ciecircncia e Tecnologia 2003

Morujatildeo Carlos ldquoDelfim Santos Hartmann e Heideggerrdquo in Delfim Santos e a Escola do Porto Lisboa 2008 171-182

599

Pacheco Maria Adelaide ldquoO pensar como traduccedilatildeo em Vicente Ferreira da Silvardquo in O Pensamento Luso-Galaico-Brasileiro Actas do Congresso vol I Lisboa INCM 2009 701-724 Reale Miguel A posiccedilatildeo de Vicente Ferreira da Silva Filho no Instituto Brasileiro de Filosofia in Mito e Cultura Vicente Ferreira da Silva e Eudoro de Sousa - Actas do V Coloacutequio Tobias Barreto Lisboa 2001 39-42 Reale Miguel ldquoDelfim Santos e a geacutenese do existencialismo em Portugalrdquo in Delfim Santos e a Escola do Porto Lisboa 2008 199-234 Silva Dora Ferreira da Diaacutelogos sobre poesia e filosofia recordando Vicente Ferreira da Silvardquo [em linha] in Agulha [2003] nordm36 Fortaleza Satildeo Paulo Outubro de 2003 [Consult16 de Marccedilo 2007] Disponiacutevel na WWW URLhttpwwwrevistaagulhanombrag56capahtm 2003

Silva Maria Helena Varela Conjunccedilotildees Filosoacuteficas Luso-Brasileiras Lisboa Fundaccedilatildeo Lusiacuteada 2002

Soveral Cristiana Abranches de A Filosofia Pedagoacutegica de Delfim Santos Lisboa INCM 2000

Soveral Cristiana Abranches de (org) Delfim Santos e a Escola do Porto Actas do Congresso Internacional Lisboa INCM 2008

Teixeira Antoacutenio Braz ldquoO Sagrado no Pensamento de Vicente Ferreira da Silvardquo in Mito e Cultura Vicente Ferreira da Silva e Eudoro de Sousa - Actas do V Coloacutequio Tobias Barreto Lisboa 2001 85-96

Teixeira Antoacutenio Braz ldquoA Aventura Filosoacutefica de Vicente Ferreira da Silvardquo prefaacutecio de Dialeacutectica das Consciecircncia e Outros Ensaios Lisboa Imprensa Nacional-Casa da Moeda 2002

Contextualizaccedilatildeo

Aqui satildeo referidas obras cuja consulta foi imprescindiacutevel para contextualizar a recepccedilatildeo de Heidegger em liacutengua portuguesa Optou-se por organizaacute-las segundo a ordem cronoloacutegica da respectiva publicaccedilatildeo a fim de evidenciar a dimensatildeo histoacuterico-temporal desta contextualizaccedilatildeo

1819 Schopenhauer Arthur Die Welt als Wille und Vorstellung 1ordf ed Leipzig Brockhaus Verlag agora em Die Welt als Wille und Vorstellung Stuttgart Frankfurt am Main Cotta Insel ndash Verlag 1960

1872 Nietzsche Friedrich Die Geburt der Tragoumldie aus dem Geist der Musik 1ordf ed Leipzig E W Fritzsch agora em Saumlmtliche Werke Band I Stuttgart Alfred Kroumlner Verlag 1964

1887 Nietzsche Friedrich Zur Genealogie der Moral 1ordf ed Leipzig CG Nauman agora em Saumlmtliche Werke Band VII Stuttgart Alfred Kroumlner Verlag 1964

600

1917 OTTO Rudolf Das Heilige Uumlber das Irrationale in der Idee des Goumlttlichen und sein Verhaumlltnis zum Rationalen Breslau Trewendt amp Granier agora em Muumlnchen Verlag CHBeck 1991

1927 Gueacutenon Reneacute La Crise du Monde Moderne 1ordf ed Paris Bossard agora em La Crise du Monde Moderne Paris Gallimard 1946

1929 Otto Walter Die Goumltter Griechlands - das Bild des Goumlttlichen im Spiegel des griechischen Geistes Bonn Verlag Friedrich Cohen agora em Fankfurt am Main Vittorio Klostermann 2002

1934 Evola Julius Rivolta contro il mondo moderno Milano Hoepli trad port A Revolta Contra o Mundo Moderno Lisboa Publicaccedilotildees D Quixote 1969

1945 Gueacutenon Reneacute Le Regravegne de la Quantiteacute et les Signes des Temps Paris Gallimard trad port O Reino da Quantidade e os Sinais dos Tempos Lisboa D Quixote 1989

1946 Grassi Ernesto Verteidigung des individuellen Lebens Bern Verlag A Francke AG

1947 Quintela Paulo Houmllderlin Porto Editorial Inova Limitada

1951 Juumlnger Ernst Der Waldgang 1ordf ed Frankfurt am Main Vittorio Klostermann agora em Saumlmtliche Werke Band 7 Klett-Cotta Stuttgart 1980

1953 Gusdorf Georges Mythe et Meacutetaphysique Introduction agrave la Philosophie Paris Flammarion

1957 Eliade Mircea Das Heilige und das Profane Hamburgo Rowohlt trad port O Sagrado e o Profano Lisboa Livros do Brasil 1999

1971 Instituto de Literaturas Anglo-Americanas (org) Friedrich Houmllderlin 1770-1970 homenaje a su centenario La Plata Universidad Nacional de La Plata

1983 Grassi Ernesto Heidegger and the question of Renaissance Humanism - Four Studies New York Center for Medieval and Early Renaissance

Studies

1983 Loumlwith Karl Weltgeschichte und Heilsgeschehen Stutgart JB Metzler Verlag

1996 Volpi Franco Il nichilismo Roma-Bari Laterza amp Figli Spa

19982001 Blanc Mafalda Estudos sobre o Ser Lisboa Gulbenkian

2002 Lourenccedilo Eduardo Poesia e Metafiacutesica Lisboa Gradiva

2002 Pacheco Maria Adelaide ldquoLiacutengua e Histoacuteria em Heidegger e Pascoaesrdquo in Heidegger Linguagem e Traduccedilatildeo Centro de Filosofia da Universidade de Lisboa 417-432

2004 Santos Leonel Ribeiro dos Linguagem Filosofia e Retoacuterica no Renascimento Lisboa Ediccedilotildees Colibri

Page 2: Linguagem, Tradução e Tradição - uevora.pt · 2014. 10. 24. · 1 Resumo Linguagem, Tradução e Tradição. A recepção de Heidegger em língua portuguesa. Devido à persistência

ii

iii

UNIVERSIDADE DE EacuteVORA

Instituto de Investigaccedilatildeo e Formaccedilatildeo Avanccedilada

Linguagem Traduccedilatildeo e Tradiccedilatildeo

_________________________________________________________________________________________

A recepccedilatildeo de Heidegger em portuguecircs

Dissertaccedilatildeo de Doutoramento em Filosofia

Orientadores Professora Dutora Irene Borges-Duarte (Universidade de

Eacutevora)

Professora Doutora Constanccedila Marcondes Ceacutesar (Pontifiacutecia Universidade Catoacutelica de Campinas)

Maria Adelaide Neto de Mascarenhas Pacheco

Eacutevora - 2011

iv

1

Resumo

Linguagem Traduccedilatildeo e Tradiccedilatildeo A recepccedilatildeo de Heidegger em liacutengua portuguesa Devido agrave persistecircncia do latim como liacutengua das comunicaccedilotildees cientiacuteficas e filosoacuteficas e em seguida da hegemonia cultural francesa foi apenas no seacuteculo XX que comeccedilaram a ser traduzidos para portuguecircs os autores mais importantes da tradiccedilatildeo filosoacutefica A primeira consequecircncia desta longa ausecircncia de traduccedilotildees portuguesas de filosofia foi a interrupccedilatildeo da transmissatildeo da tradiccedilatildeo filosoacutefica designadamente dos textos latinos dos pensadores da escolaacutestica peninsular No entanto tal natildeo impediu que esta tradiccedilatildeo humanista esquecida se misturasse de forma ecleacutectica com a filosofia moderna importada em liacutengua francesa e que sua influecircncia se mantivesse presente na cultura e na liacutengua portuguesas Investigou-se o modo como esta situaccedilatildeo hermenecircutica determinou a recepccedilatildeo de Heidegger analisando os escritos de vaacuterias geraccedilotildees de pensadores que comentaram e traduziram em liacutengua portuguesa o filoacutesofo alematildeo entre 1938 e 1989 tendo podido reconhecer a influecircncia daquela tradiccedilatildeo humanista na elaboraccedilatildeo dos principais pontos de vista interpretativos

Abstract Language Translation and Tradition Heideggerrsquos reception in Portuguese Due to Latin‟s persistence as the language used in scientific and philosophical communications and also to the cultural French hegemony it was only in the twentieth century that the works of the main authors of philosophical tradition were translated into Portuguese The first consequence of this long absence of Portuguese translations of philosophical texts was a disruption in the transmission of philosophical tradition namely in the transmission of the Latin texts of the second scholasticism However this has not prevented the blending of this humanist tradition with the modern philosophy translated into French and that this influence has remained in Portuguese culture and language We have studied some writings of several generations of thinkers who have commented and translated the texts of the German philosopher between 1938 and 1989 into the Portuguese language to find out how this ldquohermeneutic situationrdquo had conducted Heideggerbdquos reception We have been able to find the influence of that humanist tradition in giving rise to the main hermeneutic points of view

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3

Esta dissertaccedilatildeo de Doutoramento foi elaborada no acircmbito do projecto de investigaccedilatildeo ldquoHeidegger em Portuguecircs Da Loacutegica de 1934 aos Contributos para a Filosofiardquo (1936-1938) [POCIFIl (606002004)] do Centro de Filosofia da Universidade de Lisboa e Universidade de Eacutevora e parcialmente financiada pela Bolsa de Investigaccedilatildeo SFRBD289962006 da Fundaccedilatildeo Para a Ciecircncia e Tecnologia Dirijo por isso os meus agradecimentos agraves trecircs instituiccedilotildees acima referidas e especialmente agrave Fundaccedilatildeo Para a Ciecircncia e Tecnologia cujo apoio financeiro tornou possiacutevel a concretizaccedilatildeo da investigaccedilatildeo assim como agrave Professora Doutora Irene Borges-Duarte da Universidade de Eacutevora e agrave Professora Doutora Constanccedila Marcondes Ceacutesar da Pontifiacutecia Universidade Catoacutelica de Campinas cuja orientaccedilatildeo competente e encorajamento tornaram possiacutevel superar as dificuldades inerentes agraves diversas fases da elaboraccedilatildeo do presente trabalho acadeacutemico

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5

IacuteNDICE

Introduccedilatildeo 9

1 A constituiccedilatildeo da recepccedilatildeo de Heidegger em liacutengua portuguesa como tema a investigar 11

2 O problema filosoacutefico da traduccedilatildeo 16

3 As mudanccedilas de paradigma na teoria da traduccedilatildeo 19

4 A traduccedilatildeo e a sua conexatildeo com a temporalidade 26

5 A recepccedilatildeo de Heidegger como um problema de traduccedilatildeo 34

6 Metodologia usada 39

7 A estrutura da dissertaccedilatildeo 43

Siglas e abreviaturas mais usadas 47

Parte I O conceito fenomenoloacutegico de traduccedilatildeo e o problema da tradiccedilatildeo 49

Capiacutetulo I - A viragem hermenecircutica e o estatuto das liacutenguas 51

1 Linguagem e ldquoabertura ontoloacutegicardquo 55

2 O logos hermenecircutico e o logos apofacircntico 62

3 Linguagem facticidade e existecircncia 66

4 O estado de aberto do Dasein e o projecto lanccedilado 70

5 A Auslegung e a estrutura preacutevia da compreensatildeo 74

6 Rede e Sprache 77

7 A temporalidade como fundamento do ldquoestado de abertordquo do Dasein 83

8 Linguagem e verdade 88

9 Natildeo-ser e finitude 94

10 A libertaccedilatildeo da gramaacutetica em relaccedilatildeo agrave loacutegica 100

11 Liacutengua povo e histoacuteria 106

12 A liacutengua como Ereignis 111

13 Linguagem e poesia 114

14 Poesia e Filosofia ou diaacutelogo entre cumes 118

Capiacutetulo II ndash A pluralidade das aberturas de mundo e o problema hermenecircutico 125

1 Hermenecircutica e historicidade 131

2 Tradiccedilatildeo e traduccedilatildeo 138

3 A reabilitaccedilatildeo do preconceito em Gadamer 142

4 A tradiccedilatildeo 146

5 A produtividade da distacircncia temporal 149

6 A fusatildeo de horizontes e a alteridade 152

7 O conceito hermenecircutico de texto 157

8 A negatividade da experiecircncia hermenecircutica 161

6

Parte II ndash A recepccedilatildeo de Heidegger em Liacutengua portuguesa traduccedilatildeo e questionamento da tradiccedilatildeo 169

Capiacutetulo I - Traduccedilatildeo e tradiccedilatildeo no pensamento portuguecircs e brasileiro 171

1 A orientaccedilatildeo humanista da escolaacutestica peninsular 173 1 1 Os Conimbricences e a traduccedilatildeo de Aristoacuteteles 175 1 2 A Escola de Eacutevora e a interpretaccedilatildeo de Aristoacuteteles agrave luz do novo contexto histoacuterico e dos seus problemas 180 1 3 Apogeu e decadecircncia da tradiccedilatildeo escolaacutestica 184

2 A modernidade pombalina e a decadecircncia da tradiccedilatildeo escolaacutestica 190 2 1 O Projecto pedagoacutegico do iluminismo portuguecircs 193 2 2 A Criacutetica agrave tradiccedilatildeo escolaacutestica e o ecletismo filosoacutefico 197 2 3 Linguagem e traduccedilatildeo 202

3 A mediaccedilatildeo francoacutefona e o ldquoeclipse da filosofiardquo 204 3 1 O ecletismo de Victor Cousin 204 3 2 O Positivismo 207

4 A reacccedilatildeo anti-positivista e a consciecircncia de si mesmo na cultura portuguesa 212 4 1 A viragem de Antero 212 4 2 A heranccedila de Antero e o diaacutelogo com a filosofia europeia 216

5 Traduccedilatildeo e consciecircncia de si na cultura Brasileira 222

6 A liacutengua portuguesa a tradiccedilatildeo e a traduccedilatildeo 227

Capiacutetulo II - Traduccedilatildeo portuguesa de Heidegger 233

1 Recepccedilatildeo de Heidegger em Portugal 235 11 Os primeiros divulgadores 235

111 Delfim Santos 236 112 Vergiacutelio Ferreira 239 113 Antoacutenio Joseacute Brandatildeo 241

12 A compreensatildeo da obra de Heidegger e a sua traduccedilatildeo apoacutes os anos 50 244 121 Pe Manuel Antunes 245 122 Joseacute Enes 248 123 Eudoro de Sousa 249

2 A recepccedilatildeo de Heidegger no Brasil 250 21 Vicente Ferreira da Silva 251 22 Gerd Alberto Bornheim 252 23 Emmanuel Carneiro Leatildeo 253 24 Maria do Carmo Tavares Miranda 254 25 Benedito Nunes 255 26 Ernildo Stein 256

3 Determinaccedilatildeo da perspectiva hermenecircutica 258

4 O Diaacutelogo com ldquoo primeiro Heideggerrdquo Existecircncia e sentido 261 4 1 Delfim Santos 261

411 Positivismo e Metafiacutesica 261 412 Humanismo e existencialismo 269 413 As ciecircncias do espiacuterito 274

4 2 Vergiacutelio Ferreira 283 421 O existencialismo e a morte de Deus 285 422 A Verdade como Apariccedilatildeo e o ser-para-a-morte 290

5 O diaacutelogo com ldquoo segundo Heideggerrdquo e o problema do mito 295 5 1 Eudoro de Sousa e a Trans-objectividade 297 5 2 O sagrado e o significado do drama ritual 300 5 3 Vicente Ferreira da Silva e o ser como Fascinador 308

6 Ontologia e finitude 310 6 1 Gerd Bornheim e a diferenccedila ontoloacutegica 310

611 Os fundamentos existenciais do filosofar 310 612 Destruiccedilatildeo da Metafiacutesica e redescoberta da finitude 315

7

613 A reformulaccedilatildeo heideggeriana da dialeacutectica 319 614 A diferenccedila ontoloacutegica e a centralidade da praxis 323

6 2 Ernildo Stein ndash finitude e circularidade ontoloacutegica 328 621 Ser e Verdade em Heidegger 328 622 Negatividade e finitude 332 623 A circularidade da questatildeo ontoloacutegica 335 624 Linguagem e finitude 339

7 O desvendamento do ser como hermenecircutica 343 7 1 Emmanuel Carneiro Leatildeo 343

711 A novidade da hermenecircutica heideggeriana 343 712 Hermenecircutica e Teologia 346 713 Hermenecircutica da eacutepoca contemporacircnea e pensar originaacuterio de Heidegger 352

7 2 Joseacute Enes e o reencontro com a tradiccedilatildeo 356 721 A noeticidade hermenecircutica em S Tomaacutes de Aquino 358 722 O intuito e os juiacutezos de percepccedilatildeo externa 361 723 A Verdade e o Ser 368 724 A linguagem como via de acesso ao ser e o meacutetodo analiacutetico-expectante 372

Capiacutetulo III - O Diaacutelogo de Vicente Ferreira da Silva com Heidegger 381

1 A determinaccedilatildeo da situaccedilatildeo hermenecircutica 383

2 O estabelecimento progressivo de um ponto de vista interpretativo 388 21 A reformulaccedilatildeo da questatildeo antropoloacutegica e a descoberta do segundo Heidegger 388 22 O homem e o ditado do ser 393 23 O caminho de transiccedilatildeo para uma filosofia da Mitologia 399 24 A destruiccedilatildeo da metafiacutesica da subjectividade como condiccedilatildeo preacutevia para uma filosofia da Mitologia 404 25 Os Mitos como origem 410 26 Panteiacutesmo poeacutetico e Mitologia 415 27 Poesia filosofia e pensamento maacutegico da Origem 419

3 A apropriaccedilatildeo expropriadora de conceitos centrais da filosofia heideggeriana 423 3 1 O Ser como Fascinador 423 3 2 O pocircr-se em obra da verdade do ser 430 3 3 Continuidade da tradiccedilatildeo e ruptura da crise 436 3 4 A quadratura do mundo 441 3 5 O projecto lanccedilado e a recusa projectante 449

4 O questionamento da tradiccedilatildeo humanista 457 4 1 Humanismo e Cristianismo 457 4 2 Apogeu e ocaso da tradiccedilatildeo humaniacutestica 465 4 3 O Homem como lugar de desvendamento do real 471 4 4 A nova religiatildeo coacutesmica e o ciclo natildeo humaniacutestico da cultura 477 4 5 Vicente Ferreira da Silva eacute um pensador anti-humanista 484

5 A traduccedilatildeo como Ereignis em Vicente Ferreira da Silva 492

Conclusatildeo - A traduccedilatildeo como viagem entre diferentes margens 501

1 A histoacuteria das traduccedilotildees portuguesas de filosofia e a decisatildeo pelo futuro da liacutengua 503

2 A interpretaccedilatildeo como traduccedilatildeo apropriada 506

3 A tradiccedilatildeo humanista e a traduccedilatildeo filosoacutefica 512

APEcircNDICE 521

I - Traduccedilotildees de Filosofia em liacutengua portuguesa ateacute 1959 523

1- Traduccedilotildees Portuguesas de Filosofia (ateacute 1959) 523 A primeira traduccedilatildeo portuguesa de filosofia 523 A O seacuteculo XVIII 523

8

B O seacuteculo XIX 524 C A primeira metade do seacuteculo XX 524

1 Filosofia alematilde 524 2 Filosofia Grega 526 3 Traduccedilotildees cientiacuteficas 528

2 - Traduccedilotildees brasileiras de Filosofia (1931-1959) 528 A Filosofia Alematilde 528 B Filosofia grega 529 C Escolaacutestica 530

II - Cronologia da recepccedilatildeo de Heidegger em liacutengua portuguesa 533

1 ndash Traduccedilotildees Portuguesas e Brasileiras de Heidegger 533

2 - Bibliografia criacutetica traduzida para portuguecircs 536

3 - O diaacutelogo com Heidegger em liacutengua portuguesa 539 A Trabalhos acadeacutemicos sobre Heidegger 539

1 Em Portugal 539 2 No Brasil 540

B Estudos monograacuteficos que dialogam com Heidegger 544 C Artigos em revistas e obras colectivas 549

Bibliografia 571

1 Ediccedilotildees de referecircncia dos autores centrais do trabalho 573

a Martin Heidegger Gesamtausgabe 573

b Hans-Georg Gadamer Gesammelte Werke 573

c Vicente Ferreira da Silva Obras Completas 574

2 Bibliografia usada para a elaboraccedilatildeo da dissertaccedilatildeo 574

Parte I sobre o problema filosoacutefico da traduccedilatildeo e sua conexatildeo com a tradiccedilatildeo 574 Textos de Heidegger e Gadamer 574

De Heidegger Martin 574 De Gadamer Hans-Georg 577

Estudos 577 Referecircncias 580

Parte II Traduccedilatildeo e tradiccedilatildeo em Portugal e no Brasil A recepccedilatildeo de Heidegger em portuguecircs 582

A Sobre traduccedilatildeo e transmissatildeo da tradiccedilatildeo filosoacutefica em portuguecircs 582 Estudos de caraacutecter geral 582 Obras representativas dos periacuteodos histoacutericos 583

B Retoacuterica poesia e religiatildeo 586 C O diaacutelogo com Heidegger em liacutengua portuguesa (1938-1989) 590

Estudos sobre a recepccedilatildeo de Heidegger em Liacutengua Portuguesa 590 Textos dos inteacuterpretes de Heidegger 591 Estudos criacuteticos 597 Contextualizaccedilatildeo 599

9

INTRODUCcedilAtildeO

10

11

1 A constituiccedilatildeo da recepccedilatildeo de Heidegger em liacutengua portuguesa

como tema a investigar

Com o desaparecimento do latim como liacutengua universal da comunicaccedilatildeo

cientiacutefica a consciecircncia moderna afirmou-se como uma consciecircncia cindida

entre o fasciacutenio por uma linguagem universal rigorosa e capaz de ler os

segredos do livro do universo e de os partilhar sem ambiguidade realizada

pela matemaacutetica e o pecado original das muacuteltiplas liacutenguas nacionais

colocando entraves agrave comunicaccedilatildeo cientiacutefica agrave partilha das obras-primas da

literatura europeia ao entendimento entre os povos europeus

A siacutendrome de Babel assola desde entatildeo a consciecircncia europeia que se

lanccedilou na traduccedilatildeo como quem lanccedila matildeo de um expediente pragmaacutetico

capaz de minorar o caos e a desordem e assegurar o comeacutercio das

mercadorias das artes e das ideias Os problemas colocados pela praacutetica

desta actividade de traduccedilatildeo haacute muito tematizados por aqueles que se

dedicaram agrave traduccedilatildeo literaacuteria e filosoacutefica vieram tomando relevacircncia

crescente tornando-se objecto de reflexatildeo filosoacutefica e finalmente

convertendo-se em tema de uma ldquodisciplinardquo universitaacuteria com as suas

exigecircncias cientiacuteficas

Se algumas liacutenguas como o alematildeo parecem naturalmente vocacionadas para

a traduccedilatildeo sendo a fixaccedilatildeo do cacircnone linguiacutestico inseparaacutevel da traduccedilatildeo dos

grandes textos sagrados noutras como foi o caso das liacutenguas latinas este

movimento de traduccedilatildeo foi mais tardio e de certo modo entravado e

condicionado pelas circunstacircncias histoacutericas ligadas agrave Contra-Reforma Sendo

as comunicaccedilotildees culturais filtradas pelo poder poliacutetico e religioso e geralmente

confinadas ao espaccedilo delimitado pela Contra-Reforma as afinidades

linguiacutesticas e culturais entre os povos latinos facilitaram as comunicaccedilotildees e

muitas vezes dispensaram as traduccedilotildees

Assim acompanhando a longa vigecircncia da Escolaacutestica Peninsular entre noacutes o

latim manteve-se ateacute muito tarde como liacutengua de ensino da filosofia natildeo tendo

a reforma pombalina modificado esta situaccedilatildeo Posteriormente o lugar do latim

veio a ser ocupado pela liacutengua francesa liacutengua que mediava o acesso agraves

revistas cientiacuteficas e filosoacuteficas e agraves obras escritas pelos filoacutesofos que eram

traduzidas para o puacuteblico francecircs

12

Esta entrada tardia no movimento da traduccedilatildeo filosoacutefica significou um

crescente desfasamento das filosofias moderna e contemporacircnea que se

acentuou rapidamente quando o centro do pensamento filosoacutefico se deslocou

para a Alemanha e a filosofia comeccedilou a ser produzida numa liacutengua a que

fomos ficando quase inteiramente alheios

Foi apenas no periacuteodo da Primeira Repuacuteblica que os intelectuais portugueses

comeccedilaram a sentir a necessidade de fundar filosoficamente as suas opccedilotildees

esteacuteticas religiosas ou poliacuteticas e por conseguinte comeccedilou a ser necessaacuterio

o acesso agraves obras dos grandes pensadores europeus tendo sido realizado um

importante esforccedilo no sentido da traduccedilatildeo e actualizaccedilatildeo do pensamento

cientiacutefico e filosoacutefico1

Puderam assim ser traduzidos autores fundamentais do pensamento

contemporacircneo como Nietzsche Darwin Spencer assim como alguns autores

da tradiccedilatildeo filosoacutefica como Platatildeo ou Santo Agostinho De qualquer modo este

esforccedilo foi natildeo soacute tardio como insuficiente e continuou a ser praacutetica corrente o

recurso agraves traduccedilotildees francesas inglesas ou espanholas quando se tratava de

autores cujos idiomas natildeo eram dominados pelos intelectuais portugueses

como era o caso dos pensadores alematildees Assim as primeiras traduccedilotildees dos

filoacutesofos do idealismo alematildeo foram feitas apenas a partir da deacutecada de 40 de

Kant foi traduzido A Paz Perpeacutetua por Alberto Machado da Cruz em 1941 e Da

Forma e dos Princiacutepios do Mundo Sensiacutevel e Inteligiacutevel por Francisco Mendes

da Luz em 1943 de Hegel a Introduccedilatildeo agrave Histoacuteria da Filosofia por Antoacutenio

Pinto de Carvalho em 1949

Este atraso no movimento de traduccedilatildeo filosoacutefica do qual comeccedilaacutemos

timidamente a recuperar a partir da Primeira Repuacuteblica estaacute longe de ser uma

coisa do passado de facto o movimento de traduccedilatildeo parece ameaccedilado por

vaacuterias debilidades extriacutensecas ligadas agrave exiguidade do puacuteblico a que essas

traduccedilotildees se destinam agrave precariedade do estatuto do tradutor assim como agrave

fragilidade das instituiccedilotildees

1 Cf A minha dissertaccedilatildeo de mestrado A Vida e o Traacutegico em Raul Brandatildeo (FLUL 2003) 9-12

Analisa-se aiacute a extensatildeo e limites da traduccedilatildeo filosoacutefica em Portugal na primeira metade do seacuteculo XX

com particular destaque para o periacuteodo da Primeira Repuacuteblica

13

Esta entrada tardia na tarefa da traduccedilatildeo filosoacutefica testemunha aleacutem disso

uma recusa agrave ldquomediaccedilatildeordquo linguiacutestica que derivou historicamente da hegemonia

cultural do latim ateacute uma eacutepoca tardia e num segundo tempo da hegemonia

cultural francesa2 e teve o efeito de nos expor a decisotildees hermenecircuticas

alheias lendo filosofia em francecircs ficamos inconscientemente expostos a um

ponto de vista interpretativo exterior e portanto impedidos de fazer uma

apropriaccedilatildeo autecircntica da tradiccedilatildeo filosoacutefica

Por outro lado esta recusa da mediaccedilatildeo linguiacutestica cristalizou-se muitas vezes

numa afirmaccedilatildeo dum pensamento proacuteprio associado ao florescimento da

poesia onde encontrou lugar a expressatildeo de uma preocupaccedilatildeo identitaacuteria e de

uma afirmaccedilatildeo e sacralizaccedilatildeo da liacutengua materna

A liacutengua portuguesa ganhou assim o seu proacuteprio rosto fortemente marcado por

uma tradiccedilatildeo poeacutetica e literaacuteria criada no diaacutelogo com a literatura europeia e

com a sua proacutepria histoacuteria tradiccedilatildeo esta que ganhou consciecircncia de si mesma

na obra de pensadores-poetas como Teixeira de Pascoaes e Fernando

Pessoa3

Na sequecircncia da minha contribuiccedilatildeo para a investigaccedilatildeo bibliograacutefica4 jaacute

realizada no acircmbito do projecto ldquoHeidegger em Portuguecircs Da Loacutegica de 1934

aos Contributos para a Filosofia (1936-1938) [POCIFIl (606002004)] propus-

me analisar alguns dos comentaacuterios da obra do filoacutesofo alematildeo em liacutengua

portuguesa para compreender o modo como esta experiecircncia da liacutengua5 teria

2 Cf Ricœur ldquoDeacutefi et bonheur de la traductionrdquo in Sur la traduction Paris 2000 Neste ensaio Ricœur

introduz o conceito de matriz psicanaliacutetica de resistecircncia agrave traduccedilatildeo e associa essa recusa agrave mediaccedilatildeo

linguiacutestica aos efeitos de uma estrateacutegia de dominaccedilatildeo cultural ldquoLa preacutetention agrave l‟autosuffisance le refus

de la meacutediation de l‟eacutetranger ont nourri en secret maints ethnocentrismes linguistiques et plus

gravement maintes preacutetentions agrave l‟heacutegeacutemonie culturelle telle qu‟on a pu l‟observer de la part du latin de

l‟Antiquiteacute tardive agrave la fin du Moyen Acircge et mecircme au-delagrave de la Renaissance de la part aussi du franccedilais

agrave l‟acircge classique de la part de l‟anglo-ameacutericain de nos joursrdquo (Ob cit 10-19) 3 Cf O meu artigo ldquoLigravengua e Histoacuteria em Heidegger e Pascoaesrdquo em Heidegger Linguagem e Traduccedilatildeo

Lisboa 2002 (417-432) Interroga-se aiacute a proximidade entre o pensamento poeacutetico de Pascoaes e alguns

aspectos da ontofenomenologia da linguagem de Heidegger sublinhando-se o papel fundador da histoacuteria

que ambos os autores conferem agrave linguagem enquanto liacutengua dum povo histoacuterico recriada pelos seus

grandes poetas 4 Cf Heidegger em Portuguecircs [em linha] Lisboa Centro de Filosofia da Universidade de Lisboa [2008]

[Consult 20 de Setembro 2009] Disponiacutevel na WWW ltURL=httpwwwmartin-heideggernetgt

5 Ingeborg Schuumlssler pensando a linguagem como Ereignis esclarece a diferenccedila entre a experiecircncia da

linguagem inerente agrave poesia e a experiecircncia da linguagem como ldquofundo disponigravevelrdquo que podemos fazer

nas modernas sociedades de informaccedilatildeo esta eacute a experiecircncia de desocultaccedilatildeo total ldquoparle trop de son

eacuteclaircierdquo e abre o ser como pura presenccedila enquanto a primeira eacute a palavra que abre o ser a partir da

ausecircncia a fim de lhe permitir desenvolver-se na sua essecircncia (ldquoLe langage comme fonds disponible

14

marcado a recepccedilatildeo de Heidegger em portuguecircs Se este rosto retoacuterico e

poeacutetico da nossa liacutengua foi por alguns autores evidenciado como obstaacuteculo natildeo

soacute agrave traduccedilatildeo mas agrave produccedilatildeo filosoacutefica parti do princiacutepio de que ele natildeo

pode poreacutem estar dissociado de uma visatildeo do mundo e de uma tradiccedilatildeo

hermenecircutica6 Pretendi pois surpreender essa presenccedila da tradiccedilatildeo e ver o

modo como ela dispocircs os pensadores que leram e comentaram Heidegger em

liacutengua portuguesa a ouvir o que nos seus textos eacute dito e a entrar em diaacutelogo

com eles7

Tratando-se de um autor que recusa a linguagem da tradiccedilatildeo filosoacutefica e cujas

experiecircncias linguiacutesticas satildeo elas mesmas um incentivo agrave invenccedilatildeo e agrave

criatividade agrave redescoberta de si mesma e das potencialidades de sentido da

liacutengua de chegada dos seus tradutores e inteacuterpretes tinha a convicccedilatildeo de que

a sua traduccedilatildeo e interpretaccedilatildeo natildeo poderia deixar de ser um desafio e um

incentivo a uma maior consciecircncia da nossa liacutengua e da cultura

A minha proacutepria experiecircncia de traduccedilatildeo das Liccedilotildees de Loacutegica de 348- apesar

de se tratar duma obra em que Heidegger usa em boa parte a linguagem da

tradiccedilatildeo filosoacutefica natildeo colocando por isso as mesmas dificuldades de obras

posteriores - veio a reforccedilar esta convicccedilatildeo da importacircncia decisiva da

ldquoexperiecircncia da liacutenguardquo na compreensatildeo e consequentes opccedilotildees de traduccedilatildeo

Pude constatar que alguns pensadores portugueses e brasileiros desde os

anos 30 e 40 natildeo apenas se interessaram a fundo por Heidegger como

(Bestand) et comme eacutevegravenement-appropriement (Ereignis)ldquo in Heidegger Linguagem e Traduccedilatildeo

Lisboa 2002 334-355) 6 Note-se que a tradiccedilatildeo hermenecircutica transportada pela ligravengua se fundamenta na ldquofalardquo preacute-teoacuterica ligada

agrave expressatildeo do sentido captado antes de todo o enunciado teoreacutetico natildeo implicando necessariamente uma

consciecircncia expliacutecita de si mesma nem uma fundamentaccedilatildeo teoacuterica Sobre este ponto cf Ramoacuten

Rodriacuteguez (Hermeneacuteutica y Subjetividad Madrid1993 29) ldquo[] el momento de la comprensioacuten en

sentido estricto el momento en que algo llega a ser entendido en lo que es y como tal enunciado ndash en la

terminologiacutea de Heidegger Auslegung y Aussage ndash son desarrollos de lo ya abierto por el comprender

originalrdquo 7 A importacircncia que a tradiccedilatildeo poeacutetica pode ter na recepccedilatildeo de Heidegger em qualquer liacutengua eacute bem

documentada pela comunicaccedilatildeo de Franccedilois Feacutedier ao Congresso Internacional de Lausanne de 2004 a

propoacutesito da resoluccedilatildeo das dificuldades da traduccedilatildeo francesa do termo Ereignis A utilizaccedilatildeo de

referecircncias da poesia francesa (Verlaine) para chegar a estabelecer a traduccedilatildeo de ldquoAvenancerdquo assim como

a apreciaccedilatildeo da traduccedilatildeo assim conseguida satildeo particularmente elucidativas ldquoAvenance n‟est pas le

miraculeux eacutequivalent franccedilais de Ereignis Cest dans notre langue ce qui nous met en eacutetat de pouvoir agrave

notre tour faire l‟expeacuterience de ce dont Heidegger a fait l‟expeacuterience avec l‟Ereignis Mais l‟ideacutee mecircme

que les deux expeacuteriences puissent ecirctre identiques et donc qu‟elles puissent s‟identifier l‟une agrave l‟autre est

sans doute le dernier avatar d‟un mode de repreacutesentation qui deacutecideacutement ne doit plus avoir cours parce

qu‟il a eacutepuiseacute sa charge de veacuteriteacuterdquo (Heideggers Beitraumlge zur Philosophie Frankfurt am Main 2009 121) 8 Cf Martin Heidegger Loacutegica A pergunta pela essecircncia da linguagem Coord Ciecircntifica de Irene

Borges-Duarte trad de Maria Adelaide Pacheco e Helga Hook Quadrado Lisboa Gulbenkian 2008

15

tiveram a possibilidade de aceder agrave sua obra em alematildeo comentando-a em

ensaios escritos em liacutengua portuguesa Ora eacute preciso sublinhar que sendo

Heidegger um pensador que pensa no confronto com a tradiccedilatildeo e com a

linguagem da tradiccedilatildeo filosoacutefica procedendo a uma recriaccedilatildeo linguiacutestica a partir

de referecircncias literaacuterias poeacuteticas e muitas vezes dialectais a possibilidade de

aceder linguisticamente em alematildeo deu a estes autores portugueses e

brasileiros a uacutenica via para aceder ao sentido originaacuterio dos textos

heideggerianos e poder subtrair-se agrave mediaccedilatildeo francoacutefona

Contudo natildeo haacute duacutevida de que natildeo sentiram a obrigaccedilatildeo de levar a cabo a sua

traduccedilatildeo em sentido estrito Se exceptuarmos o caso isolado da traduccedilatildeo de

Antoacutenio Joseacute Brandatildeo de A Essecircncia da Verdade em 1946 na revista Rumo

apenas nos anos sessenta comeccedilaram a aparecer com alguma regularidade as

traduccedilotildees portuguesas de Heidegger9 e o esforccedilo de aceder linguisticamente

ao pensamento do filoacutesofo alematildeo passou inicialmente entre noacutes para o

grande puacuteblico pela mediaccedilatildeo das traduccedilotildees francesas como vinha

acontecendo desde o seacuteculo XIX a toda a filosofia alematilde

Partindo do pressuposto hermenecircutico de que a interpretaccedilatildeo de um autor

nunca pode ser objectiva nem livre de preconceitos mas que ela eacute dirigida por

uma estrutura preacutevia que determina em cada caso a compreensatildeo10

questionaacutemos de que modo esta ldquosituaccedilatildeordquo pode ter condicionado o ldquocomordquo da

interpretaccedilatildeo

Procuraacutemos identificar este horizonte hermenecircutico ldquopreacuteviordquo que se projectou

sobre os textos de Heidegger interpretados em liacutengua portuguesa procurando

aiacute escutar o eco da tradiccedilatildeo e o efeito do preconceito tendo poreacutem em conta

que essa projecccedilatildeo pode ser a sombra que oculta e distorce ou o horizonte

que se experimenta a si mesmo no confronto com o texto a interpretar e que

neste confronto pode ser ldquoabertordquo de modo originaacuterio encontrar exemplos

9 Cf Borges-Duarte Irene e Saacute Alexandre de A Recepccedilatildeo de Heidegger em Portugal Estudo

bibliograacutefico preliminar in Philosophica 13 Lisboa 1999

10 Cf Friedrich-Wilhelm von Herrmann in ldquoUumlbersetzung als philosophisches Problemrdquo in Zur

philosophischen Aktualitaumlt Heideggers Im Spiegel der Welt Sprache Uumlbersetzung Auseinandersetzung

Frankfurt am Main 1992 110 ldquoJede Uumlbersetzung ist schon Auslegung jede Auslegung aber ist in einer

dreifachen Vor-struktur verfaβt Daher ist es eine Taumluschung und eine Verfehlen der Wesensverfassung

der Auslegung zu meinen Auslegung koumlnne und muumlsse voraussetzungslos und in diesem Sinne objektiv

seinrdquo

16

deste efeito negativo e positivo da tradiccedilatildeo e do preconceito foi o propoacutesito que

presidiu agrave selecccedilatildeo de autores estudados

Com o conhecimento progressivo da totalidade da obra do pensador alematildeo

possibilitado pela publicaccedilatildeo da ediccedilatildeo integral por Vittorio Klostermann a partir

de 75 e com a realizaccedilatildeo das primeiras traduccedilotildees e de muacuteltiplos comentaacuterios

em portuguecircs foi levada a cabo uma apropriaccedilatildeo da obra do pensador alematildeo

em liacutengua portuguesa que tomou corpo num conjunto de textos suficientemente

significativos Pude assim interrogar esses textos a fim de aiacute encontrar essa

complexa operaccedilatildeo hermenecircutica de apropriaccedilatildeo-expropriaccedilatildeo que eacute a

essecircncia de toda a traduccedilatildeo

2 O problema filosoacutefico da traduccedilatildeo

A traduccedilatildeo tornou-se a partir do ensaio de Schleiermacher Uumlber die

verschiedenen Methoden des Uumlbersetzen de 181311 um problema filosoacutefico

tendo sido aiacute abordada a questatildeo da traduccedilatildeo no interior do quadro mais geral

das teorias da linguagem e da natureza do espiacuterito Goethe Schlegel

Humboldt Paul Valeacutery Walter Benjamin Ortega e Gasset reflectiram sobre o

problema da traduccedilatildeo contribuindo para o enriquecimento e definiccedilatildeo dessa

problemaacutetica na sua dupla vertente poeacutetica e filosoacutefica

A partir de 1940 as reflexotildees sobre traduccedilatildeo adquirem um caraacutecter

sistemaacutetico com a organizaccedilatildeo profissional dos tradutores a criaccedilatildeo de

revistas e simpoacutesios internacionais Assistimos por um lado a tentativas de

pensar as relaccedilotildees entre loacutegica formal e os modelos de transposiccedilatildeo linguiacutestica

11

bdquoDer Paraphrast verfaumlhrt mit den Elementen beider Sprachen als ob sie mathematische Zeichen waumlren

die sich durch Vermehrung und Verminderung auf gleichen Werth zuruumlkfuumlhren lieszligen und weder der

verwandelten Sprache noch der Ursprache Geist kann in diesem Verfahren erscheinen [] Die

Nachbildung dagegen beugt sich unter der Irrationalitaumlt der Sprachen sie gesteht man koumlnne von einem

Kunstwerk der Rede kein Abbild in einer andern Sprache hervorbringen das in seinen einzelnen Teilen

den einzelnen Teilen des Urbildes genau entspraumlche sondern es bleibe bei der Verschiedenheit der

Sprachen mit welcher so viele andere Verschiedenheiten wesentlich zusammenhaumlngen nichts anders

uumlbrig als ein Nachbild auszuarbeiten ein Ganzes aus merklich von den Teilen des Urbildes

verschiedenen Teilen zusammengesezt welches dennoch in seiner Wirkung jenem Ganzen so nahe

komme als die Verschiedenheit des Materials nur immer gestatte

Aber nun der eigentliche Uumlbersetzer der diese beiden ganz getrennten Personen seinen Schriftsteller und

seinen Leser wirklich einander zufuumlhren und dem letzten ohne ihn jedoch aus dem Kreise seiner

Muttersprache heraus zu noumltigen zu einem moumlglichst richtigen und vollstaumlndigen Verstaumlndnis und Genuszlig

des ersten verhelfen will was fuumlr Wege kann er hierzu einschlagenldquo Friedrich Schleiermacher Das

Problem des Uumlbersetzens Stuttgart 1963 46-47

17

(Quine Word and Object (1960)) por outro lado e numa perspectiva contraacuteria

a uma indagaccedilatildeo hermenecircutica que se apoia na redescoberta do artigo Die

Aufgabe des Uumlbersetzers de Walter Benjamin publicado pela primeira vez em

1923 assim como nas contribuiccedilotildees de Heidegger e de Gadamer

O problema da traduccedilatildeo tem sido formulado como o da proacutepria possibilidade ou

impossibilidade de autecircnticas transferecircncias de sentido entre diferentes

liacutenguas O postulado da intraduzibilidade apoiou-se originariamente em tabus

de ordem religiosa relativamente agrave possibilidade de traduccedilatildeo para as liacutenguas

humanas do Logos divino e a partir do seacuteculo XV na convicccedilatildeo secular de

uma perda de sentido na traduccedilatildeo da poesia onde a uniatildeo do conteuacutedo e da

forma eacute tatildeo estreita que a sua dissociaccedilatildeo parece ser inadmissiacutevel (Diderot

Lettre sur les sourds et muets (1751)) Os mesmos argumentos satildeo por vezes

aduzidos relativamente agrave prosa sobretudo no domiacutenio da filosofia onde as

dificuldades de traduccedilatildeo do vocabulaacuterio filosoacutefico grego latino ou alematildeo para

outras liacutenguas criam a mesma sensaccedilatildeo de perda de sentido e de um processo

de entropia inerente ao acto de traduzir

Os problemas de traduccedilatildeo no acircmbito da filosofia adquirem contudo um

caraacutecter distinto e uma outra relevacircncia relacionando-se com a proacutepria

natureza do pensamento filosoacutefico e com a sua permanente tensatildeo entre uma

aspiraccedilatildeo agrave universalidade e o seu enraizamento numa situaccedilatildeo histoacuterico-

cultural

O paradigma matemaacutetico e cartesiano assim como o a priori kantiano visaram

dotar o pensamento de um estatuto de universalidade capaz de romper com o

particularismo cultural e o confinamento linguiacutestico Poreacutem os

desenvolvimentos da filosofia da linguagem na Alemanha12 vieram pocircr em

causa esta universalidade da razatildeo Hamann com a sua criacutetica agrave

universalidade do a priori kantiano e Herder com a sua sensibilidade agrave

12

ldquoIt is one of the achievements of Romanticism to have sharpened the sense of locale to have given

specific density to our grasp of geographical and historical particularity Herder was possessed of a sense

of place His ldquoSprachphilosophierdquo marks a translation from the inspired fantastications of Hamann to the

development of genuine comparative linguistics in the early nineteenth century [hellip] Like Leibniz Herder

had a vivid realisation of the atomic quality of human experience each culture each idiom being a

particular crystal reflecting the world in a particular way The new nationalism and vocabulary of race

provided Herder with a ready focus He called for ldquoa general physiognomy of the nations from their

languagesrdquo He was convinced of the irreductible spiritual individuality of each language and particulary

of German whose antique expressive strengths had lain dormant but were now armed for the light of a

new age and for the creation of a literature of world rankrdquo (George Steiner After Babel aspects of

Language and Translation Oxford-New York 1998 81-82)

18

diversidade de liacutenguas e de culturas abriram caminho para a monumental obra

de Humboldt Para Humboldt a linguagem eacute o verdadeiro a priori do

conhecimento e cada liacutengua transporta consigo uma particular ldquoabertura de

mundordquo13 Aplicando este princiacutepio ao grego e ao latim ele iraacute demonstrar

como cada uma destas liacutenguas determina formas proacuteprias e contrastantes de

civilizaccedilatildeo

Por outro lado as filosofias universalistas da linguagem apoiam-se na

convicccedilatildeo de que a traduccedilatildeo interlinguiacutestica que constantemente ocorre e

proporciona contiacutenuas transferecircncias de sentido contraria esta multiplicidade de

aberturas de mundo e exige que se admita a existecircncia de universais

linguiacutesticos Esta tese universalista aparece pela primeira vez formulada por

Roger Bacon rdquoGrammatica una et aedem est secundum substantiam in

omnibus linguis licet accidentaliter varieturrdquo [a gramaacutetica eacute una e a mesma em

substacircncia em todas as liacutenguas consentindo variaccedilotildees acidentais] tendo

posteriormente dado lugar a numerosos estudos estatiacutesticos e etnolinguiacutesticos

visando encontrar estes invariantes linguiacutesticos14

Actualmente estas teses universalistas foram retomadas pela gramaacutetica de

Chomsky15 que parte do princiacutepio de que as diferenccedilas existentes entre as

liacutenguas representam apenas diferenccedilas de estruturas de superfiacutecie que pouco

nos dizem da estrutura profunda subjacente postulada como universal Estas

13

bdquoDie Geisteseigentuumlmlichkeit und die Sprachgestaltung eines Volkes stehen in solcher Innigkeit der

Verschmelzung in einander daszlig wenn die eine gegeben waumlre die andre muumlszligte vollstaumlndig aus ihr

abgeleitet werden koumlnnen Denn die Intellektualitaumlt und die Sprache gestatten und befoumlrdern nur einander

gegenseitig zusagende Formen Die Sprache ist gleichsam die aumluszligerliche Erscheinung des Geistes der

Voumllker ihre Sprache ist ihr Geist und ihr Geist ihre Sprache man kann sich beide nie identisch genug

denken Wie sie in Wahrheit miteinander in einer und ebenderselben unserem Begreifen unzugaumlnglichen

Quelle zusammenkommen bleibt uns unerklaumlrlich verborgen Ohne aber uumlber die Prioritaumlt der einen oder

andren entscheiden zu wollen muumlssen wir als das reale Erklaumlrungsprinzip und als den wahren

Bestimmungsgrund der Sprachverschiedenheit die geistige Kraft der Nationen ansehen weil sie allein

lebendig selbstaumlndig vor uns steht die Sprache dagegen nur an ihr haftet bdquoW v Humboldt Uumlber die

Verschiedenheit des menschlichen Sprachbaues und ihren Einfluszlig auf die geistige Entwicklung des

Menschensgeschlechts Berlin 1936 sect7 37 14

ldquoThe empirical conviction that the human mind actually does communicate across linguistic barriers is

the pivot of universalism To the twelfth-century relativism of Pierre Heacutelie with his belief that the

disaster at Babel had generated as many kinds of irreconcilable grammar as there are languages Roger

Bacon opposed his famous axiom of unityhellipWithout a grammatica universalis there could be no hope of

genuine discourse among men nor any rational science of language The accidental historically moulded

differences between tongues are no doubt formidable But underlying these there are principles of unity

of invariance of organized form which determine the specific genius of human speech Amid immense

diversities of exterior shape all languages are ldquocut from the same patternrdquordquo (George Steiner ob Cit 98) 15

ldquoChomskian grammar is emphatically universalist (but what other theory of grammar ndash structural

stratificational tagmemic comparative ndash has not been so) No theory of mental life since that of

Descartes and the seventeenthndashcentury grammarians of Port Royal has drawn more explicitly on a

generalized and unified picture of innate human capacities[hellip]rdquo (Ibidem 103)

19

ldquoestruturas profundasrdquo seriam elementos inatos do espiacuterito humano que o

tornam capaz de executar certas sequecircncias de operaccedilotildees formais e

engendram as frases que efectivamente vemos e ouvimos Partindo destes

enunciados por meio da aacutervore de derivaccedilatildeo adequada podemos inferir a

estrutura profunda e chegar a um certo grau de elucidaccedilatildeo da sua natureza16

As provas da existecircncia desta estrutura profunda satildeo contudo provisoacuterias e

conjecturais apoiando-se no conhecimento de uma parte diminuta da

totalidade das liacutenguas actualmente activas

A traduccedilatildeo estaacute assim no centro desta controveacutersia sobre a natureza da

linguagem e deveria fornecer com a sua praacutetica de traduccedilatildeo adequada ou os

exemplos efectivos de intraduzibilidade uma demonstraccedilatildeo a favor de uma ou

de outra destas posiccedilotildees Contudo uma coisa eacute reconhecer a importacircncia do

movimento de traduccedilatildeo que constantemente ocorreu nos mais diversos

domiacutenios possibilitando o enriquecimento das liacutenguas e culturas europeias e

outra coisa diferente demonstrar teoricamente a possibilidade de autecircnticas

transferecircncias de sentido entre liacutenguas

Com efeito se as traduccedilotildees que constantemente ocorrem entre liacutenguas

diferentes tecircm como resultado um conjunto de textos dotados dum sentido

partilhaacutevel a questatildeo do estatuto e da dimensatildeo do sentido que eacute comunicado

e traduzido permanece em aberto

3 As mudanccedilas de paradigma na teoria da traduccedilatildeo

A transferecircncia de sentido entre diferentes liacutenguas era tradicionalmente

avaliada a partir dum ideal de fidelidade pensado como correspondecircncia entre

o texto de partida e o texto de chegada Essa correspondecircncia era conseguida

umas vezes seguindo um modelo literal procurando a equivalecircncia entre

unidades linguiacutesticas outras vezes procurando natildeo tanto a fidelidade agrave letra

como ao sentido

Durante seacuteculos os tradutores fundaram este paradigma em Ciacutecero e Horaacutecio e

consideravam-no definitivamente estabelecido pelos claacutessicos inspirando-se

nele para as suas traduccedilotildees filosoacuteficas e literaacuterias A traduccedilatildeo era uma questatildeo

16

Cf Noam Chomsky Syntactic Structures Berlin 195718-34

20

de restituiccedilatildeo do sentido do texto original que no caso da traduccedilatildeo literaacuteria ou

da traduccedilatildeo poeacutetica poderia ainda ser acompanhada de uma exigecircncia de

restituiccedilatildeo da forma17

Contudo esta tarefa de reconstituiccedilatildeo do sentido afigurou-se muitas vezes aos

tradutores uma tarefa que soacute imperfeitamente poderia ser realizada sendo esta

experiecircncia dos limites corrente na traduccedilatildeo das obras poeacuteticas onde o

sentido a forma esteacutetica e a liacutengua se encontram intrinsecamente ligados

Apesar deste ideal de fidelidade nem sempre poder ser alcanccedilado ele orientou

o trabalho do tradutor e estabeleceu-se como cacircnone das traduccedilotildees realizadas

fundamentando-se na ideia da autonomia do pensamento em relaccedilatildeo agrave

linguagem do inteligiacutevel em relaccedilatildeo ao signo sensiacutevel que o comunica

Susan Bassnett em Estudos de Traduccedilatildeo sublinha que as novas perspectivas

desenvolvidas pela Teoria da Traduccedilatildeo se encaminham para o abandono da

via tradicional de avaliaccedilatildeo das perdas e infidelidades ocorridas no processo

centrando-se primordialmente no como da traduccedilatildeo isto eacute na compreensatildeo do

que ocorre na mudanccedila de um sistema de signos linguiacutesticos para outro18

17

Frederik M Rener sublinha como Steiner o caraacutecter tardio da reflexatildeo teoacuterica sobre traduccedilatildeo dando

ainda grande destaque agrave inspiraccedilatildeo dos estudos de traduccedilatildeo em Ciacutecero e S Jeroacutenimo ldquoTranslation began

as a practical skill and remained such for a long period of time It was rather late in its history more

precisely in the 15th and 16th centuries that the first attempts were made to devote a treatise to abstract

questions such as the nature of translation or its subdivisions Yet when these works appeared on the

scene they did not present original ideas apt to revolutionize the field These works were rather efforts

tending to reduce to a system the ideas and customs both current at the time and developed over the

centuries In turn these ideas were taken from the statement and the practice of important translators of

the past In Western Europe Cicero and Jerome held the position of auctores pricipes in matters of

translation and they were consulted on questions of theory as well as practicerdquo (Frederik M Rener

Interpretatio Language and Translation from Cicero to Tytler Amsterdam - Atlanta GA 1989 306)

Frederick Rener chama a atenccedilatildeo para o facto de que a pluralidade de termos latinos usados para designar

a traduccedilatildeo (transferre transvertere transcribere Latine exprimere Latino sermone tradere mutare e

ainda interpretare) sugere que a traduccedilatildeo latina natildeo se restringia ao ideal de fidelidade ao sentido mas

conhecia vaacuterias modalidades de acordo com as caracterigravesticas do texto a traduzir Cigravecero traduzia ldquout

oratordquo que apontava para uma restituiccedilatildeo retoacuterica do sentido e tambeacutem ldquototidem verbisrdquo isto eacute

literalmente Mais agrave frente daremos conta de idecircntico ponto de vista de Susan Bassnett

Esta mesma tese de que por vezes a traduccedilatildeo latina eacute recriaccedilatildeo original do texto grego eacute fundamentada

por F Renner em De Officiis onde Ciacutecero admite abertamente que as ideias defendidas no tratado foram

recolhidas do estoicismo grego natildeo agrave maneira do tradutor mas do ldquoconhecedorrdquo retirando das fontes

estoacuteicas soacute a parte que lhe conveacutem e usando-a de acordo com o seu propoacutesito Ciacutecero faria assim uma

distinccedilatildeo entre a traduccedilatildeo literal e a imitaccedilatildeo criativa (imitatio) ldquoCicero is drawing a dividing line

between the normal approach used when translation (ut interpres) and this technique of creative imitation

while at the same time defining the main features of the latter In using imitatio the translator is said to

have complete freedom with the quantity (quantum) of the original material and the manner in which it is

used (quoque modo) implying a modification of context and of wording The only criterion guiding his

decision is the judgment of the artist himself (iudicio arbitrioque nostro)rdquo (Ob cit 307) 18

Susan Bassnett em Translation Studies chama a atenccedilatildeo para as dificuldades de fazer uma periodizaccedilatildeo

cronoloacutegica da histoacuteria da traduccedilatildeo Embora reconheccedila que houve diferentes concepccedilotildees sobre traduccedilatildeo

que dominaram em certos periacuteodos da histoacuteria a autora chama tambeacutem a atenccedilatildeo para a existecircncia de

21

Tambeacutem George Steiner em Depois de Babel19 mostra que a traduccedilatildeo envolve

uma interpretaccedilatildeo e uma transposiccedilatildeo que natildeo deixa o sentido intacto mas

uma transformaccedilatildeo e mesmo uma recriaccedilatildeo fortemente marcada pela liacutengua de

chegada do tradutor e sistematiza este movimento hermenecircutico em 4 tempos

de que o primeiro seria um investimento de crenccedila na consistecircncia e seriedade

do texto com que se confronta o tradutor na convicccedilatildeo de que ldquoalguma coisa

estaacute alirdquo que merece ser traduzido o segundo tempo seria um movimento de

agressatildeo invasatildeo e apropriaccedilatildeo do sentido do texto que passa pelo seu

desmembramento e dissecaccedilatildeo o terceiro tempo seria o da incorporaccedilatildeo no

campo semacircntico natal e preexistente que admite vaacuterios graus de assimilaccedilatildeo

e de recolocaccedilatildeo da aclimataccedilatildeo completa ou pelo contraacuterio de estranheza e

distanciaccedilatildeo sendo o uacuteltimo tempo o da procura do equiliacutebrio entre o texto de

partida e o de chegada

Este movimento de transposiccedilatildeo natildeo conduz a uma coacutepia que manteacutem o

sentido intacto mas a um duplo que sofre uma inevitaacutevel transfiguraccedilatildeo de

sentido imposta pelos constrangimentos gramaticais e pela mudanccedila de

contexto cultural Esta alteraccedilatildeo de sentido pode ser objecto de avaliaccedilatildeo o

que ele faz detalhadamente a propoacutesito das diferentes traduccedilotildees da poesia de

Shakespeare e de Homero mas tambeacutem de traduccedilotildees de alguns textos de

prosa no domiacutenio da ficccedilatildeo literaacuteria e da filosofia

O novo ponto de vista estabelecido segundo Susan Bassnett a partir dos

novos estudos de traduccedilatildeo dos anos noventa rejeita pois o antigo ideal de

ldquofidelidaderdquo para se centrar na investigaccedilatildeo do que acontece quando um texto

eacute transferido da cultura de partida para a cultura de chegada e estaacute associado

diferentes linhas de abordagem da traduccedilatildeo que natildeo coincidem com um contexto temporal determinado eacute

o caso da opccedilatildeo pela ldquotraduccedilatildeo literalrdquo ou pela ldquotraduccedilatildeo segundo o sentidordquo distinccedilatildeo jaacute estabelecida por

Ciacutecero (Susan Bassnett Translation Studies London 1980 42)

No entanto a constituiccedilatildeo de uma aacuterea disciplinar dos Estudos de Traduccedilatildeo implica segundo a autora

uma mudanccedila de perspectiva retirando a poleacutemica do campo normativo e colocando a ecircnfase na

compreensatildeo do que realmente ocorre em diferentes tipos de traduccedilatildeo ldquoThe translator who makes no

attempt to understand the how behind the translation process is like the driver of a Rolls who has no idea

what makes the car move Likewise the mechanic who spends a lifetime taking engines apart but never

goes out for a drive in the country is a fitting image for the dry academician who examines the how at the

expense of what isrdquo (Ob cit 76) 19

George Steiner leva a cabo uma periodizaccedilatildeo cronoloacutegica da histoacuteria da traduccedilatildeo em 4 periacuteodos o

primeiro estende-se desde Ciacutecero agrave publicaccedilatildeo em 1791 da obra de Alexander Tytler Essay on the

principles of translation o segundo periacuteodo estende-se ateacute agrave publicaccedilatildeo em 1946 de Sous l‟invocation

de Saint Jerocircme de Larbaud o terceiro comeccedila com a publicaccedilatildeo dos primeiros escritos sobre traduccedilatildeo

automaacutetica nos anos quarenta do seacuteculo XX e o uacuteltimo tem origem nos anos sessenta e caracteriza-se por

ldquoum regresso agrave indagaccedilatildeo hermenecircutica quase metafigravesica sobre a traduccedilatildeo e a interpretaccedilatildeordquo largamente

influenciado pela descoberta do manuscrito de Walter Benjamin ldquoDie Aufgabe des Uumlbersetzersrdquo assim

como por Heidegger e Gadamer (Idem After Babel 248-252)

22

a uma nova importacircncia conferida agrave traduccedilatildeo e ao tradutor este jaacute natildeo estaacute

confinado a um papel subserviente mas eacute-lhe conferido um papel criador e

potencialmente subversivo Os novos estudos de traduccedilatildeo comeccedilaram a

explorar as implicaccedilotildees da traduccedilatildeo num quadro cultural e histoacuterico mais

alargado e a ver no tradutor um mediador entre liacutenguas e culturas diferentes e

no acto de traduccedilatildeo uma tarefa arriscada implicando a manipulaccedilatildeo do sentido

e a criatividade20

Este novo ponto de vista sobre a traduccedilatildeo e o papel do tradutor tem-se

traduzido numa crescente aproximaccedilatildeo entre literatura traduzida e literatura

original reconhecendo-se no interior da Literatura Comparada o papel da

primeira na configuraccedilatildeo da histoacuteria das literaturas nacionais O novo estatuto

hermenecircutico reconhecido ao processo de reescrita da traduccedilatildeo levou

progressivamente ao reconhecimento da traduccedilatildeo como o lugar privilegiado

para a reflexatildeo sobre as vaacuterias vertentes do processo literaacuterio

Na literatura traduzida reconhece-se a produccedilatildeo de efeitos nas liacutenguas e nas

literaturas da liacutengua de chegada e por conseguinte a histoacuteria da traduccedilatildeo

tende a incorporar-se na histoacuteria da literatura como uma das suas vertentes

essenciais Joatildeo Barrento em O Poccedilo de Babel sublinha que as traduccedilotildees em

sentido estrito podem ser pensadas como o efeito da proacutepria obra a ser

traduzida enquanto seu efeito especular mas elas arrastam esse efeito

especular para o domiacutenio da liacutengua de chegada e para o corpo vivo da

literatura produzida nessa liacutengua ldquoO espelho gera assim necessariamente um

duplo do texto-primeiro O duplo ndash sabemo-lo por ETA Hoffmann

Maupassant Dostoiewsky Oscar Wilde ou Freud ndash eacute uma estrateacutegia de

sobrevivecircncia do Eu (aqui do texto original como tambeacutem entende Walter

Benjamin) um alter- ego que desmente (embora contraditoriamente porque a

traduccedilatildeo eacute sempre renascimento e morte ndash apagamento do original ndash do Eu

20

Susan Bassnett salienta que este novo interesse pela traduccedilatildeo modificaraacute a nossa compreensatildeo das

ligravenguas e das culturas e levaraacute a uma revisatildeo da histoacuteria das literaturas ldquoResearch in Translation Studies

has barely begun There are dozens of books to be written doctoral theses to be pursued theoretical texts

to be discovered and translated literary history is waiting to be rewritten as the new knowledge filters

through Who would have believed back in the late 1960s that feminism would have transformed the

literary canon forced a revaluation of the process of canonization changed our knowledge about the past

and radically altered our perceptions of language and culture today Yet such changes have happened

and an alternative gender-based perspective has now decisively entered literary study I suggest that we

are witnessing a similar major shift in our perception of cultural history with the work that is taking place

in Translation Studies and the fact that so much work is developing outside the Euro-American tradition

is an indication of the speed and extent of that shiftrdquo (Idem Translation Studies Preface to the revised

edition XVIII-XIX)

23

pelo Outro do Eu no Outro) a impossibilidade de traduccedilatildeo e traz para (tra-duz)

ou introduz na liacutengua de chegada (a liacutengua portuguesa) algo da outra liacutengua e

literaturacultura ndash melhor dizendo transporta idiossincrasias literaacuterias e

culturais alheias in medio linguae atraveacutes da proacutepria liacutengua marcas que de

acordo com factores e vicissitudes histoacuterico-literaacuterios e socioloacutegicos diversos

podem passar em maior ou menor grau para o corpo vivo da liacutengua e da

literatura de chegadardquo21

O reconhecimento das alteraccedilotildees e reconfiguraccedilotildees inerentes agrave traduccedilatildeo e

portanto agrave sua incorporaccedilatildeo nas liacutenguas de chegada levou muitos autores a

substituir a metaacutefora do espelho pela do efeito refractaacuterio Este efeito natildeo pode

ser considerado como uma recepccedilatildeo passiva de um texto traduzido mas um

processo activo de assimilaccedilatildeo que implica o ldquodevorarrdquo e o refazer o texto

original sem eliminar ou negar a sua alteridade assimilaccedilatildeo de que resultaria

uma multiplicidade de traduccedilotildees que satildeo elas mesmas variaccedilotildees assimeacutetricas

implicando flutuaccedilotildees mais ou menos importantes de sentido

O reconhecimento deste efeito de refracccedilatildeo provocado pelas muacuteltiplas

traduccedilotildees de um texto em diferentes liacutenguas torna obsoletas as categorias de

recepccedilatildeo passiva e recepccedilatildeo activa em que tradicionalmente se categoriza a

recepccedilatildeo de um autor estrangeiro Efectivamente a simples leitura que a

traduccedilatildeo possibilita ampliar e multiplicar eacute sempre a leitura dum texto recriado

e duma variaccedilatildeo que iraacute repercutir-se na criaccedilatildeo de obras originais A traduccedilatildeo

e a criaccedilatildeo de obra original natildeo estatildeo separadas por um abismo intransponiacutevel

mas haacute entre elas uma soluccedilatildeo de continuidade assinalada por diversos graus

de assimilaccedilatildeo e incorporaccedilatildeo o que pode legitimar uma extensatildeo do conceito

de traduccedilatildeo ao conjunto das formas diferentes de recepccedilatildeo

Gera-se assim uma tendecircncia para a ldquodessacralizaccedilatildeordquo da obra original que

tende a ser vista ela mesma como resultado de um complexo processo de

traduccedilatildeo George Steiner em Depois de Babel defende a tese de que toda a

histoacuteria da arte como tambeacutem da filosofia consiste mesmo nos seus

momentos criadores mais originais numa retomaccedilatildeo de um nuacutemero limitado de

arqueacutetipos ldquoOs temas de uma boa parte da nossa filosofia arte e literatura satildeo

uma sequecircncia de variaccedilotildees e os gestos por meio dos quais articulamos o

sentido e os valores fundamentais revelam-se quando os examinamos de

21

Joatildeo Barrento O Poccedilo de Babel - para uma poeacutetica da traduccedilatildeo literaacuteria Lisboa 2002 80

24

perto em nuacutemero limitado O ldquoconjunto organizadordquo inicial engendrou uma seacuterie

incomensuraacutevel de variantes e figuras locais (as nossas ldquotopologiasrdquo) mas

parece conter em si proacuteprio natildeo mais que um nuacutemero restrito de unidadesrdquo 22

Esta consideraccedilatildeo da obra original como ldquotraduccedilatildeordquo ou retomaccedilatildeo e

actualizaccedilatildeo de arqueacutetipos remonta na realidade segundo Steiner a antigas

formulaccedilotildees da teoria da traduccedilatildeo a teoria da traduccedilatildeo desde o seacuteculo XVII

define quase sempre trecircs categorias a primeira corresponde agrave traduccedilatildeo

estritamente literal termo a termo a segunda corresponde agrave translaccedilatildeo por

meio de um enunciado fiel ao sentido mas autoacutenomo a terceira categoria eacute a

da imitatio que implica a recriaccedilatildeo variaccedilatildeo e interpretaccedilatildeo paralela podendo

esta categoria incluir por exemplo a relaccedilatildeo de James Joyce com Homero Este

esquema triaacutedico cujas linhas de demarcaccedilatildeo satildeo fluidas autoriza a leitura e

interpretaccedilatildeo de muitas das grandes obras originais como ldquotraduccedilatildeordquo

Assim podemos verificar que antigas categorizaccedilotildees instituiacutedas haacute muito

pelos teoacutericos da traduccedilatildeo hoje recuperadas e revalorizadas pelas modernas

contribuiccedilotildees no domiacutenio da Literatura Comparada e da Filosofia da

Linguagem vieram mostrar que natildeo haacute um fosso intransponiacutevel entre a criaccedilatildeo

de obras originais e a influecircncia de autores estrangeiros e mais radicalmente

mostra que a originalidade absoluta eacute um mito que tem ser substituiacutedo pela

ideia de intertextualidade

Assim entre traduccedilatildeo e tradiccedilatildeo haacute um nexo que os modernos estudos de

traduccedilatildeo vieram pocircr a claro a totalidade dos textos que constituem a tradiccedilatildeo

filosoacutefica e literaacuteria europeia satildeo simultaneamente originais e traduccedilotildees de

outros textos como sublinha Octaacutevio Paz em Traduccioacuten Literatura y

Literalidad ldquoQualquer texto eacute uacutenico e eacute ao mesmo tempo a traduccedilatildeo de outro

texto Nenhum texto eacute original porque a proacutepria linguagem na sua essecircncia jaacute

eacute uma traduccedilatildeo primeiramente do mundo natildeo-verbal e em segundo lugar

porque cada signo e cada frase eacute a traduccedilatildeo de outro signo e de outra frase

22

ldquoThe themes of which so much of our philosophy art literature are a sequence of variations the

gestures through which we articulate fundamental meanings and values are if we consider them closely

quite restricted The initial ldquosetrdquo has generated an incommensurable series of local variants and figures

(our ldquotopologiesrdquo) but in itself it seems to have contained only a limited number of unitsrdquo (George

Steiner After Babel 486)

25

Este argumento pode poreacutem ser revertido sem perder nenhuma da sua

validade todos os textos satildeo originais porque todas as traduccedilotildees satildeo

diferentes Ateacute certo ponto todas as traduccedilotildees satildeo uma invenccedilatildeo e enquanto

tal uacutenicasrdquo23

A relaccedilatildeo com a tradiccedilatildeo filosoacutefica e literaacuteria tornou-se um problema teoacuterico

discutido nas teorias de traduccedilatildeo chamadas poacutes-coloniais para as quais se

tornou pertinente a reflexatildeo sobre a relaccedilatildeo das culturas dominadas com as

culturas dominantes Essa assimetria cultural levava a ver a traduccedilatildeo como

coacutepia inferior ao texto original e na praacutetica da traduccedilatildeo um processo de

moldagem das culturas dominadas por uma tradiccedilatildeo literaacuteria que lhe era alheia

Particularmente na Ameacuterica Latina cujos povos levam a cabo uma busca da

sua identidade cultural desenvolveu-se uma nova visatildeo chamada poacutes-colonial

desta relaccedilatildeo entre traduccedilatildeo e texto original que os coloca em peacute de igualdade

e tende a enfatizar a traduccedilatildeo como apropriaccedilatildeo original e recriaccedilatildeo de uma

tradiccedilatildeo

A mudanccedila de paradigma dos estudos de traduccedilatildeo teve vaacuterias fontes uma das

quais eacute sem duacutevida a praacutetica viva da traduccedilatildeo e o novo contexto da

globalizaccedilatildeo e da multiplicidade dos contactos inter-culturais em que ela eacute

levada a cabo Sob o impacto de tais mudanccedilas veio-se a compreender a

complexidade desse lugar rdquointerrdquo em que ela eacute levada a cabo e que tende a ser

visto mais como um espaccedilo de mediaccedilatildeo e negociaccedilatildeo entre liacutenguas e culturas

diferentes do que como um lugar neutro atraveacutes do qual se processam

transferecircncias de sentido passiacuteveis de serem avaliadas por um ideal de

fidelidade agora julgado ilusoacuterio e mistificador do que realmente ocorre nessas

transferecircncias

23

ldquoCada texto es uacutenico y simultaacuteneamente es la traduccioacuten de otro texto Ninguacuten texto es enteramente

original porque el lenguaje mismo en su esencia es ya una traduccioacuten primero del mundo no-verbal y

despueacutes porque cada signo y cada frase es la traduccioacuten de otro signo e de otra frase Pero ese

razonamiento puede invertirse sin perder validez todos los textos son originales porque cada traduccioacuten

es distinta Cada traduccioacuten es hasta cierto punto una invencioacuten y asigrave constituye un texto uacutenicordquo Octaacutevio

Paz Traduccioacuten Literatura y Literalidad Barcelona 199013

26

4 A traduccedilatildeo e a sua conexatildeo com a temporalidade

No entanto do ponto de vista histoacuterico eacute necessaacuterio ter em conta que esta

mudanccedila de paradigma que ocorre nos estudos de traduccedilatildeo a partir dos anos

noventa foi na realidade antecipada pela filosofia Jaacute em Phaumlnomenologische

Interpretationen zu Aristoacuteteles do semestre de Inverno de 1921192224

Heidegger se confronta com o problema da traduccedilatildeo filosoacutefica e do modo como

ela se interliga com a interpretaccedilatildeo e esta temaacutetica eacute retomada em todos os

ensaios sobre filosofia grega em estreita articulaccedilatildeo com as suas proacuteprias

traduccedilotildees de muacuteltiplos textos gregos

Significativamente foi tambeacutem a relevante e enigmaacutetica experiecircncia de

traduccedilatildeo dos claacutessicos levada a cabo por Houmllderlin25 expressa na sua proacutepria

poesia nas cartas e nas traduccedilotildees ldquoem sentido estritordquo que suscitou a reflexatildeo

de Heidegger sobre a temaacutetica da traduccedilatildeo e constituiu uma das fontes da sua

ontofenomenologia da linguagem

As distorccedilotildees de sentido provocadas pelas operaccedilotildees hermenecircuticas de

traduccedilatildeo e interpretaccedilatildeo marcaram segundo Heidegger as traduccedilotildees latinas

dos filoacutesofos gregos26 com importantes consequecircncias negativas para o

desenrolar da histoacuteria do ocidente enquanto o modelo de traduccedilatildeo autecircntica se

encontra prefigurado em Houmllderlin

24

Cf Martin Heidegger EpF (GA 61) Nesta obra Heidegger analisa e explora as implicaccedilotildees do

enraizamento da interpretaccedilatildeo filosoacutefica na vida faacutectica do Dasein relendo agrave luz desta tese a leitura

medieval e moderna da obra de Aristoacuteteles O conceito de ldquosituaccedilatildeo hermenecircuticardquo que aigrave eacute antecipado

seraacute exposto em AhS (GA 62) 25

Cf George Steiner em After Babel O autor afirma a grande importacircncia das traduccedilotildees (fragmentaacuterias e

muitas vezes feitas para uso privado) de Houmllderlin dos autores claacutessicos como Homero Piacutendaro

Soacutefocles Euriacutepedes Virgiacutelio e Horaacutecio e defende que elas representam um acto hermenecircutico de

violecircncia extrema forccedilando as barreiras linguiacutesticas Steiner sublinha que usando ldquouma literalidade

paradoxalrdquo Houmllderlin construigravea as suas traduccedilotildees numa zona intermediaacuteria entre o antigo e o moderno o

grego e o alematildeo Do mesmo modo a sua primeira poesia representa uma tentativa de renovar o alematildeo

atraveacutes do regresso agrave forccedila da sua fonte originaacuteria reinterpretando o significado dos termos de acordo

com a sua suposta etimologia ldquoHis etymologizing is part of an anti-Enlightenment tactic of linguistic

nationalism and numinous historicism Herder and Klopstock were direct influential forerunners But

Houmllderlin pressed further He was trying to move upstream not only to the historical springs of German

but to the primal energies of human discourserdquo (Ob cit 341) 26

Cf Susan Bassnett em Translation Studies Sobre o estatuto da traduccedilatildeo entre os romanos e a

importacircncia e qualidade das traduccedilotildees latinas a autora demonstra que as posiccedilotildees de Horaacutecio e Ciacutecero

sobre traduccedilatildeo tiveram grande importacircncia para geraccedilotildees de futuros tradutores e ainda que as suas

traduccedilotildees satildeo recriaccedilatildeo e natildeo uma imitaccedilatildeo servil dos textos gregos Segundo Susan Bassnett estes

tradutores latinos tinham como objectivo o enriquecimento da liacutengua romana colocando a ecircnfase nos

criteacuterios esteacuteticos da liacutengua de chegada e natildeo nas noccedilotildees mais riacutegidas de fidelidade ldquoThe art of the

translator for Horace and Cicero then consisted in judicious interpretation of the SL text so as to

produce a TL version based on the principle non verbum de verbo sed sensum exprimere de sensu (of

expressing not word for word but sense for sense) and his responsibility was to the TL readersrdquo (Obcit

44)

27

No entanto a contribuiccedilatildeo mais relevante de Heidegger natildeo seraacute tanto esta

reavaliaccedilatildeo das traduccedilotildees que constituem o cerne da tradiccedilatildeo filosoacutefica mas

sim o ter desconstruiacutedo o acircmbito teoacuterico e metafiacutesico do cacircnone ldquofidelidaderdquo

que vigorava nas teorias dominantes de traduccedilatildeo

Em Heidegger a traduccedilatildeo torna-se ela mesma um problema metafiacutesico que

deve ser pensado em estreita articulaccedilatildeo com a questatildeo do ser e da

linguagem A ligaccedilatildeo indissociaacutevel entre pensamento e linguagem

estabelecida em Sein und Zeit choca frontalmente com a tese da separaccedilatildeo

entre sentido inteligiacutevel e signo sensiacutevel que suportava o paradigma claacutessico de

traduccedilatildeo

Heidegger estabeleceu em Sein und Zeit a historicidade como uma dimensatildeo

intriacutenseca da existecircncia humana o ser do homem tem a sua especificidade

enquanto eacute existecircncia ex-staacutetica podendo em cada instante assumir o

passado projectando-o no porvir em direcccedilatildeo ao futuro Assim a

especificidade ontoloacutegica do ser humano reside no facto de ele natildeo ser isto ou

aquilo mas sim fazer-se a si mesmo assumindo-se como possibilidade ou

projecto A temporalidade eacute o proacuteprio modo de ser do homem enquanto

gestaccedilatildeo de si mesmo ou existecircncia

A linguagem enquanto fala (Rede)27 eacute exerciacutecio de presentificaccedilatildeo em que a

articulaccedilatildeo dos trecircs ecircxtases temporais (passado presente e futuro)

fundamenta a constituiccedilatildeo dum horizonte preacutevio de sentido no qual o mundo

pode aparecer como tal

Heidegger iraacute mais tarde em as Liccedilotildees de Loacutegica do semestre de Veratildeo de

1934 retomar a questatildeo da linguagem enriquecendo a perspectiva

transcendental de Ser e Tempo com a perspectiva histoacuterica e temporal Nessa

obra a linguagem natildeo eacute a fala (Rede) mas ela apresenta-se facticamente

enquanto liacutengua (Sprache)28 isto eacute enquanto fala histoacuterica em que um povo

concreto exprime a imediata compreensatildeo do mundo

27

ldquoDie Rede ist die bedeutungsmaumlβige Gliederung der befindlichen Verstaumlndlichkeit des In-der-Welt-

seins Als konstitutive Momente gehoumlren ihr zu das Woruumlber der Rede (das Beredete) das Geredete als

solches die Mitteilung und die Bekundung Das sind keine Eigenschaften die sich nur empirisch an der

Sprache aufraffen lassen sondern in der Seinsverfassung des Daseins verwurzelte existenziale

Charaktere die so etwas wie Sprache ontologisch erst ermoumlglichenrdquo SuZ GA 2 sect34 162 28

ldquoDie Sprache ist das Walten der weltbildenden und bewahrenden Mitte des geschichtlichen Daseins des

Volkesrdquo LWS GA 38 169 (Cf traduccedilatildeo portuguesa Martin Heidegger Loacutegica A pergunta pela

28

Aiacute Heidegger expotildee uma concepccedilatildeo da histoacuteria fundando-a na temporalidade

intriacutenseca da existecircncia humana a histoacuteria eacute o ir fazendo-se a si mesma da

existecircncia na unidade dos trecircs ecircxtases temporais passado presente e futuro

sendo esta auto-gestaccedilatildeo temporal o modo do acontecer humano

(Geschehen) Nem todo o acontecer eacute poreacutem histoacuterico - histoacuterico eacute apenas

aquele acontecer em que acontece a renovada decisatildeo (Entscheidung29) de um

povo por si mesmo ou por conservar a sua determinaccedilatildeo

Nesta concepccedilatildeo da histoacuteria como temporalidade imanente ao movimento de

auto-gestaccedilatildeo dum povo a partir de si mesmo a importacircncia do passado eacute

totalmente reavaliada O passado natildeo eacute nunca o que estaacute a passar nem a

presenccedila morta do que jaacute passou mas o que desde o antes permanece e eacute

trazido para o presente O acontecer propriamente histoacuterico eacute soacute e apenas

aquele acontecer que o homem toma a cargo como seu e pelo qual se decide

como sendo a sua heranccedila o que faz da histoacuteria um movimento de

actualizaccedilatildeo permanente do passado o retomaacute-lo de forma criativa e

projectiva convertendo-o em tradiccedilatildeo (Uumlberlieferung 30) viva

Ora esta retomaccedilatildeo criadora do passado que o converte em tradiccedilatildeo viva eacute

sempre loacutegico-linguiacutestica daacute-se na linguagem que eacute sempre a liacutengua dum

povo histoacuterico determinado A linguagem eacute assim notificaccedilatildeo (Kunde31) ou

notiacutecia da histoacuteria ela eacute o centro da proacutepria existecircncia histoacuterica de um povo que

cria e conserva mundo e testemunha o modo como numa determinada eacutepoca

histoacuterica um povo assume a abertura ao ser (Offenbarkeit)

Deste modo a hermenecircutica heideggeriana que toma como ponto de partida o

ser do homem como temporalidade e a verdade como desvelamento histoacuterico-

temporal permite ver esse espaccedilo ldquointer-cultural e inter-linguiacutesticordquo em que

trabalham os tradutores como inter-temporalidade As diversas liacutenguas

histoacutericas transportam consigo horizontes de sentido natildeo apenas distintos mas

essecircncia da linguagem coord cientiacutefica de Irene Borges-Duarte trad de Maria Adelaide Pacheco e

Helga Hook Quadrado Gulbenkian 2008) 29

bdquoDas Wesen der Entscheidung haben wir in der Entschlossenheit gesehen Die Entschlossenheit aber ist

kein einmaliger Akt sondern ein Geschehen kraft dessen wir in das Geschehen in dem wir stehen

eingefuumlgt werdenrdquo Ibidem 97 30

bdquoGewesenheit darf aber nicht als Vergangenheit begriffen werden Das von fruumlher her Wesende hat

seine Eigentuumlmliches darin daβ es uumlber jedes Heutige und Jetzige immer schon hinweggegriffen hat Es

west als Uumlberlieferungldquo Ibidem 117 31

bdquoUnter Geschichtskunde verstehen wir die jeweilige Art und Weise der Offenbarkeit in der ein Zeitalter

in der Geschichte steht so zwar daβ diese Offenbarkeit das geschichtliche Sein des Zeitalters mit traumlgt

und mit leitetldquo Ibidem 93

29

incomensuraacuteveis fazendo com que toda a traduccedilatildeo seja uma complexa

operaccedilatildeo hermenecircutica de confrontaccedilatildeo de distintos horizontes histoacuterico-

linguiacutesticos onde se jogam importantes mutaccedilotildees de sentido

De acordo com este novo paradigma o tradutor eacute tambeacutem um viajante algueacutem

que viaja de uma fonte para outra sendo relativamente secundaacuterio saber se

essa viagem decorre entre diferentes liacutenguas ou no interior da mesma liacutengua

pois a apropriaccedilatildeo dum texto do passado e a sua transposiccedilatildeo para o presente

eacute essencialmente uma operaccedilatildeo de traduccedilatildeo ou seja de transposiccedilatildeo para um

novo horizonte histoacuterico-temporal implicando tambeacutem idecircntica apropriaccedilatildeo

expropriadora

Gadamer iraacute retomar esta temaacutetica heideggeriana sublinhando ainda mais

fortemente que toda a traduccedilatildeo atraiccediloa o texto original Retomando a noccedilatildeo

de ciacuterculo hermenecircutico32 estabelecida por Heidegger em Sein und Zeit e

explorando as suas implicaccedilotildees teoacutericas Gadamer mostra que qualquer texto

soacute pode ser compreendido a partir duma antecipaccedilatildeo ou duma expectativa de

sentido que vai em seguida ser corrigida e revista no confronto com ldquoa coisa

mesmardquo

Gadamer leva a cabo a reabilitaccedilatildeo da tradiccedilatildeo e preconceitos33 como

condiccedilotildees preacutevias de toda a interpretaccedilatildeo reconduzindo a pretensatildeo da

Aufklaumlrung de uma razatildeo destituiacuteda de preconceitos a uma utopia

absolutamente inviaacutevel A autonomia absoluta da razatildeo eacute impossiacutevel pois a

razatildeo necessita sempre da garantia externa duma ldquoautoridaderdquo seja ela a do

especialista a de algueacutem que se situa no topo de uma hierarquia ou a de uma

tradiccedilatildeo

O acto de interpretar natildeo pode pois ser livre de preconceitos podendo apenas

interessar a uma teoria hermenecircutica destrinccedilar entre os preconceitos positivos

e fecundos e os prejuiacutezos negativos que encobrem e dificultam o acesso ldquoagraves

coisas mesmasrdquo destrinccedila essa que o proacuteprio processo de compreensatildeo vai

produzindo espontaneamente O inteacuterprete natildeo eacute o que aborda directamente o

32

bdquoDer ldquoZirkelrdquo im Verstehen gehoumlrt zur Struktur des Sinnes welches Phaumlnomen in der existenzialen

Verfassung des Daseins im auslegenden Verstehen verwurzelt ist Seiendes dem es als In-der-Welt-sein

um sein Sein selbst geht hat eine ontologische Zirkelstrukturldquo SuZ GA 2 sect32 153 33

Para Gadamer a autonomia das ciecircncias humanas deve ser fundada na tradiccedilatildeo humanista e no conceito

de Bildung que ela elaborou e natildeo no paradigma metodoloacutegico a que Diltey as subordina cf Jean

Grondin L‟Universaliteacute de l‟ hermeacuteneutique Paris 1993 162-163

30

texto livre de opiniotildees preacutevias mas o que toma consciecircncia dessa opiniatildeo

preacutevia e a potildee expressamente agrave prova procurando a sua legitimaccedilatildeo no texto

que interpreta

A situaccedilatildeo hermenecircutica eacute esse aiacute que natildeo engloba apenas os preconceitos

individuais mas o conjunto de juiacutezos que testemunham o presente histoacuterico e

dele emanam e que delimitam os temas susceptiacuteveis de serem investigados e

as questotildees que podem ocupar o centro da reflexatildeo

No entanto o inteacuterprete se tem uma consciecircncia hermenecircutica eacute tambeacutem

aquele que compreende a alteridade do texto isto eacute entende e aceita que o

texto que interpreta se situa num outro contexto histoacuterico-linguiacutestico que o seu

autor e o acto da sua criaccedilatildeo se inserem num outro horizonte

Esta consciecircncia da alteridade eacute um momento imprescindiacutevel da consciecircncia

hermenecircutica que tem assim que ser tambeacutem uma consciecircncia histoacuterica

sensiacutevel agrave importacircncia da temporalidade e ao facto do sentido de um texto se

poder diversificar e amplificar no decurso de diferentes eacutepocas histoacutericas e de

diferentes geraccedilotildees de leitores A distacircncia histoacuterica eacute assim uma vantagem

hermenecircutica porque representa a possibilidade de o inteacuterprete se confrontar

com uma multiplicidade de leituras dum mesmo texto e as deixar ressoar em si

como uma multiplicidade de vozes A tradiccedilatildeo eacute para Gadamer precisamente

essa multiplicidade que como afirmava Heidegger em Houmllderlin e a Essecircncia

da Poesia ldquoeacute capaz de divergir a partir do mesmordquo

A interpretaccedilatildeo implica assim este ouvir da tradiccedilatildeo como uma multiplicidade

que transporta em si o eco do passado e simultaneamente o escutar essa

multiplicidade de acordo com um horizonte de sentido que eacute sempre imposto

pela situaccedilatildeo presente ldquoNas ciecircncias do espiacuterito eacute ao contraacuterio o presente e

os seus interesses proacuteprios que em cada eacutepoca datildeo uma motivaccedilatildeo particular

ao interesse da investigaccedilatildeo votada agrave tradiccedilatildeordquo34

A reabilitaccedilatildeo da tradiccedilatildeo e do preconceito em Gadamer tem que ser

compreendida em conexatildeo com a noccedilatildeo de histoacuteria efectual

(Wirkungsgeschichte) isto eacute com a noccedilatildeo de uma tradiccedilatildeo que se transmite

efectivamente queiramos noacutes ou natildeo e sob cujo impeacuterio nos situamos sempre

34

bdquoBei den Geisteswissenschaften ist vielmehr das Forschungsinteresse das sich der Uumlberlieferung

zuwedet durch die jeweilige Gegenwart und ihre Interessen in besonderer Weise motiviertldquo WuM GW

1 289

31

qualquer que seja o niacutevel de reflexatildeo em que nos situemos A tradiccedilatildeo opera

em noacutes como uma estrutura preacutevia fazendo de qualquer acto hermenecircutico

uma projecccedilatildeo desse preacutevio isto eacute a actualizaccedilatildeo e desenvolvimento de um

projecto que estaacute sempre jaacute previamente lanccedilado O ciacuterculo hermenecircutico natildeo

eacute assim nada de subjectivo mas um jogo necessaacuterio onde o texto e o inteacuterprete

se movem um agrave volta do outro ldquoO ciacuterculo natildeo eacute de natureza formal ele natildeo eacute

nem subjectivo nem objectivo pelo contraacuterio ele natildeo faz senatildeo apresentar o

compreender como o jogo onde passam um no outro o movimento da tradiccedilatildeo

e o do inteacuterprete A antecipaccedilatildeo de sentido que guia a nossa compreensatildeo de

um texto natildeo eacute um acto da subjectividade mas determina-se a partir da

comunidade (Gemeinsamkeit) que nos liga agrave tradiccedilatildeordquo35

Podemos no entanto perguntar se este conceito de ldquocircularidade

hermenecircuticardquo natildeo poderaacute legitimar a deturpaccedilatildeo da descodificaccedilatildeo de

mensagens principalmente quando elas satildeo emanadas de contextos

culturalmente ou cronologicamente muito distantes Com efeito a

ldquoconsistecircnciardquo da fixaccedilatildeo do sentido do texto que eacute o proacuteprio moacutebil da escrita

poderia dissolver-se no jogo das interpretaccedilotildees dando lugar a uma flutuaccedilatildeo

irrestrita do sentido

O conceito de ldquoidealidade do textordquo proposto por Ricœur vem chamar a

atenccedilatildeo para o facto de o texto impor um modo de ser ou um projecto de

mundo que desvela diante de si mesmo A apropriaccedilatildeo pelo inteacuterprete nada

teria a ver com a relaccedilatildeo entre duas subjectividades devendo antes ser

compreendida como aquilo a que Hans-Georg Gadamer chama a fusatildeo de

horizontes (Horizonntsverschmeltzung) o horizonte do mundo do leitor funde-

se com o horizonte do mundo do escritor A idealidade do texto seria assim o

viacutenculo mediador neste processo de fusatildeo de horizontes

Esta ldquoidealidade do textordquo que exige do leitor-inteacuterprete que pense levado pela

flecha do sentido do texto eacute no entanto um momento dum processo mais

vasto do alargamento das suas proacuteprias possibilidades de projecccedilatildeo Soacute a

interpretaccedilatildeo que segue a flecha do sentido do texto e que tenta pensar em

35

bdquoDer Zirkel ist also nicht formaler Natur Er ist weder subjektiv noch objektiv sondern beschreibt das

Verstehen als das Ineinanderspiel der Bewegung der Uumlberlieferung und der Bewegung des Interpreten

Die Antizipation von Sinn die unser Verstaumlndnis eines Textes leitet ist nicht eine Handlung der

Subjektivitaumlt sondern bestimmt sich aus der Gemeinsamkeit die uns mit der Uumlberlieferung verbindetldquo

Ibidem 298

32

conformidade com ela daacute origem a uma verdadeira auto-compreensatildeo Ricœur

opotildee o ldquosi mesmordquo36 que resulta da compreensatildeo do texto ao ego que

pretende precedecirc-lo e afirma que eacute o texto que com o seu poder universal de

desvelamento de um mundo fornece um ldquosi mesmordquo ao ego Em jogo natildeo estaacute

pois a restituiccedilatildeo do sentido do texto como algo de intemporal e imoacutevel mas

um processo de apropriaccedilatildeo vivo que o integra na compreensatildeo de ldquosi

mesmordquo que finalmente eacute toda a interpretaccedilatildeo e por conseguinte toda a

traduccedilatildeo

Outra importante fonte de mudanccedila nos paradigmas que orientavam a

compreensatildeo da traduccedilatildeo foi o texto de Walter Benjamin Die Aufgabe des

Uumlbersetzers escrito em 1921 como introduccedilatildeo agrave sua traduccedilatildeo dos Tableaux

Parisiens de Baudelaire Aiacute Walter Benjamin repensa a tarefa do tradutor a

partir da multiplicidade das liacutenguas considerando que cada liacutengua actual de per

si impotildee uma restriccedilatildeo e um estreitamento do sentido de que as grandes obras

aspiram a libertar-se A traduzibilidade (Uumlbersetzbarkeit) eacute uma caracteriacutestica

que pertence a certas obras que contecircm em si mesmas a matriz a partir da

qual se desenvolvem as suas muacuteltiplas traduccedilotildees como figuras particulares de

um desenvolvimento orgacircnico

Assim existe uma relaccedilatildeo estreita entre traduccedilatildeo e original a traduccedilatildeo na

verdade sai do original e dela depende mas por outro lado tambeacutem o original

depende da traduccedilatildeo para a sua proacutepria sobrevivecircncia como obra vigente nas

geraccedilotildees futuras Esta sobrevivecircncia natildeo significa apenas que a traduccedilatildeo

comunica a obra a novos puacuteblicos leitores mas sim que na traduccedilatildeo a vida do

original alcanccedila um desenvolvimento renovado mais tardio e mais amplo

A relaccedilatildeo entre original e traduccedilatildeo eacute pensada pois em termos que potildeem em

causa a ideia ldquocorrespondecircnciardquo recorrente nos estudos de traduccedilatildeo entre

ambos natildeo haacute necessariamente uma relaccedilatildeo de semelhanccedila mas uma relaccedilatildeo

36

Ricœur defende que a interpretaccedilatildeo implica a relaccedilatildeo entre desvelamento e a apropriaccedilatildeo aquilo de que

importa apropriarmo-nos eacute o sentido do texto concebido de modo dinacircmico isto eacute o poder de desvelar

um mundo que constitui a referecircncia do texto O sujeito natildeo projecta um a priori sobre o texto pensando

descobri-lo no que lecirc mas ao apropriar-se do sentido do texto o leitor eacute alargado na sua capacidade de

autoprojecccedilatildeo e acede a uma nova autocompreensatildeo ou seja a um ldquosi mesmordquo ldquoSoacute a interpretaccedilatildeo que

obedece agrave injunccedilatildeo do texto que segue a flecha do sentido e que tenta pensar em conformidade com ela

inicia uma nova autocompreensatildeo Nesta autocompreensatildeo eu oporia o Si mesmo que parte da

compreensatildeo do texto ao ego que pretende precedecirc-lo Eacute o texto com o seu poder universal de

desvelamento de um mundo que fornece um Si mesmo ao egordquo Idem Teoria da Interpretaccedilatildeo Lisboa

1987 106

33

de parentesco susceptiacutevel de ser compreendida como um parentesco das

duas liacutenguas em que trabalha o tradutor

Haacute para Walter Benjamin um parentesco entre todas as liacutenguas que natildeo se

explica pela filologia mas sim pelo facto de todas elas serem habitadas por

uma pulsatildeo intriacutenseca ou por um desejo obscuro da ldquoliacutengua purardquo liacutengua que

seraacute a unidade de todas as liacutenguas e dos vaacuterios modos de pensar que

unilateralmente cada uma delas transporta consigo Esta liacutengua universal37

capaz de enunciar a verdade eacute projectada para o fim da histoacuteria numa visatildeo

escatoloacutegica dominada pelo mito de Babel

A tarefa do tradutor eacute assim dar passos no sentido da aproximaccedilatildeo dessa

liacutengua pura ou dessa reversatildeo da multiplicidade e da diferenciaccedilatildeo linguiacutestica

instauradas com Babel Cada traduccedilatildeo digna desse nome constitui-se como

um testemunho desse parentesco entre as liacutenguas natildeo porque ela seja

semelhante ao original mas porque ela se apresenta como prova do

crescimento da linguagem cada traduccedilatildeo representa um determinado estaacutedio

temporal da histoacuteria da linguagem e do seu crescimento em direcccedilatildeo agrave liacutengua

pura

Cada traduccedilatildeo faz-se eco da voz oculta que habita a obra e que aspira a

ldquoressoarrdquo nas outras liacutenguas Ao fazer-se eco dessa voz transpondo a obra

para outra liacutengua natildeo pode no entanto manter intacto o seu conteuacutedo porque

conteuacutedo e forma estatildeo intrinsecamente ligados na obra como jaacute em cada uma

das liacutenguas o estatildeo o campo lexical e o campo semacircntico O encontro da

alteridade e da diferenccedila das liacutenguas impulsiona um livre desenvolvimento da

liacutengua do tradutor cujos limites se alargam para a constituiccedilatildeo dum novo texto

que intersecta o texto original sem se deter nele ldquoDe acordo com isto o que

resta do sentido na relaccedilatildeo da significaccedilatildeo da traduccedilatildeo e do original pode ser

compreendido por meio de uma comparaccedilatildeo Tal como a tangente intersecta o

ciacuterculo apenas de fugida e num uacutenico ponto e tal como esta intersecccedilatildeo e natildeo

o ponto lhe prescreve a lei de acordo com a qual ela prolonga o seu curso ateacute

ao infinito assim a traduccedilatildeo intersecta de fugida e apenas no ponto

37

Cf Steiner em After Babel O autor salienta a importacircncia duma tradiccedilatildeo cabaliacutestica e gnoacutestica na qual

filia o conceito de Walter Benjamin de ldquoligravengua universalrdquo rdquoThis ldquopure languagerdquo [hellip] is like a hidden

spring seeking to force its way through the silted channels of our differing tongues At the ldquomessianic end

of their historyrdquo (again a Kabbalistic or Hasidic formulation) all separate languages will return to their

source of common life In the interim translation has a task of profound philosophic ethical and magical

importrdquo (Ob cit 67)

34

infinitamente pequeno do sentido do original para seguir o seu caminho mais

proacuteprio de acordo com a lei da fidelidade agrave liberdade do movimento da

linguagem38

Embora partindo de outros pressupostos Walter Benjamin vem tambeacutem pocircr em

causa o paradigma da traduccedilatildeo fiel ao texto original e do tradutor como

estando ao serviccedilo do texto Na medida em que exalta a traduccedilatildeo como

recriaccedilatildeo e amplificaccedilatildeo do sentido do texto original e vecirc na liacutengua do tradutor

um passo em frente em direcccedilatildeo agrave ldquoliacutengua purardquo o texto do tradutor sob certo

ponto de vista representa um estaacutedio mais alto da vida da proacutepria obra

possuindo um valor intriacutenseco

A releitura de Derrida de Walter Benjamin em Les Tours de Babel veio

sublinhar a importacircncia da traduccedilatildeo natildeo apenas como forma de comunicaccedilatildeo

inter-linguiacutestica e inter-cultural mas tambeacutem como comunicaccedilatildeo inter-temporal

O tradutor assegura a continuidade e a sobrevivecircncia dum texto atraveacutes do

tempo e deste modo a traduccedilatildeo exprime e realiza a vida da proacutepria obra

desdobrando as suas possibilidades intriacutensecas ao longo de vaacuterias eacutepocas

histoacutericas e cada traduccedilatildeo eacute de certo modo um novo ldquooriginalrdquo numa outra

liacutengua

5 A recepccedilatildeo de Heidegger como um problema de traduccedilatildeo

Um dos aspectos mais significativos das mudanccedilas ocorridas na teoria da

traduccedilatildeo foi a proacutepria extensatildeo do conceito de traduccedilatildeo que jaacute natildeo designa

apenas a transposiccedilatildeo do sentido de uma mensagem para outro coacutedigo

linguiacutestico (traduccedilatildeo inter-linguiacutestica) mas ainda a transposiccedilatildeo de um texto no

interior de uma mesma liacutengua para a proacutepria linguagem do leitor-inteacuterprete e

para o seu contexto histoacuterico-cultural (traduccedilatildeo intra-linguiacutestica)39

38

ldquoWas hiernach fuumlr das Verhaumlltnis von Uumlbersetzung und Original an Bedeutung dem Sinn verbleibt laumlβt

sich in einem Vergleich fassen Wie die Tangente den Kreis fluumlchtig und nur in einem Punkte beruumlhrt und

wie ihr wohl diese Beruumlhrung nicht aber der Punkt der Gesetz vorschreibt nach dem sie weiter ins

Unendliche ihre gerade Bahn zieht so beruumlhrt die Uumlbersetzung fluumlchtig und nur in dem unendlich kleinen

Punkte des Sinnes des Original um nach dem Gesetzte der treue in der Freiheit der Sprach Bewegung

ihre eigenste Bahn zu verfolgenldquo Walter Benjamin Die Aufgabe des Uumlbersetzers GS IV1 19-20 39

ldquoMan meint das laquo Uumlbersetzen raquo sei die Uumlbertragung einer Sprache in eine andere der Fremdsprache in

die Muttersprache oder auch umgekehrt Wir verkennen jedoch daβ wir staumlndig auch schon unsere eigene

Sprache die Muttersprache in ihr eigenes Wort uumlbersetzen Sprechen und Sagen ist in sich ein

Uumlbersetzen dessen Wesen keineswegs darin aufgehen kann daβ das uumlbersetzende und das uumlbersetzte

Wort verschiedenen Sprachen angehoumlren In jedem Gespraumlch und Selbstgespraumlch waltet ein

35

Toda a autecircntica interpretaccedilatildeo eacute traduccedilatildeo uma vez que eacute uma apropriaccedilatildeo

realizada a partir da situaccedilatildeo do inteacuterprete e visando a reconstruccedilatildeo duma

mensagem alheia numa linguagem proacutepria O inteacuterprete ainda quando se

ocupa de um texto escrito na sua proacutepria liacutengua pretende ldquodizer a mesma coisa

de outra maneirardquo procurando equivalentes lexicais ou reconstruindo

argumentos Esta traduccedilatildeo que constantemente ocorre na simples explicaccedilatildeo

de um texto visando aproximar o leitor da obra que em cada caso se

interpreta eacute um processo de mediaccedilatildeo tambeacutem ele implicando a experiecircncia

do malogro da perfeita identidade do sentido que encontramos na traduccedilatildeo em

sentido estrito40

Traduccedilatildeo e interpretaccedilatildeo satildeo pois operaccedilotildees idecircnticas e co-extensivas satildeo

operaccedilotildees hermenecircuticas similares implicando idecircntica operaccedilatildeo de

apropriaccedilatildeo-expropriaccedilatildeo que potildee em jogo diferentes horizontes histoacuterico-

temporais aquele a que pertence o texto de partida e o do proacuteprio tradutor

Mas a centralidade da traduccedilatildeo ficaraacute mais patente se tivermos em mente que

para Heidegger pensar eacute traduzir isto eacute eacute a apropriaccedilatildeo originaacuteria daquilo que

eacute dado como exterior e alheio e a sua traduccedilatildeo numa linguagem proacutepria Com

Heidegger a traduccedilatildeo natildeo eacute um problema filosoacutefico menor porque a traduccedilatildeo eacute

inerente ao pensar que se exerce no acircmbito da linguagem e da histoacuteria e quem

o leva a cabo eacute o homem concreto com uma relaccedilatildeo determinada com a

histoacuteria e o tempo41

urspruumlngliches Uumlbersetzen Wir meinen dabei nicht erst den Vorgang daβ wir eine Redewendung durch

eine andere derselben Sprache ersetzen und uns der laquoUmschreibungraquo bedienen Der Wechsel in der

Wortwahl ist bereits die Folge davon daβ sich uns das was zu sagen ist uumlbergesetzt hat in eine andere

Wahrheit und Klarheit oder auch Fragwuumlrdigkeitrdquo P GA 54 17-18 40

Cf Paul Ricœur em ldquoLe paradigme de la traductionrdquo ldquoDeux voies d‟accegraves s‟offrent au problegraveme poseacute

par lbdquoacte de traduire soit prendre le terme ldquotraductionldquo au sens strict de transfert d‟un message verbal

d‟une langue dans une autre soit le prendre au sens large comme synonyme de l‟interpreacutetation de tout

ensemble signifiant a lbdquo inteacuterieur de la mecircme communauteacute linguistique

Les deux approches ont leur droit la premiegravere choisie par Antoine Berman dans Lbdquoeacutepreuve de lbdquo

eacutetranger tient compte du fait massif de la pluraliteacute et de la diversiteacute des langues la seconde suivie par

George Steiner dans Apregraves Babel s‟adresse directement au pheacutenomegravene englobant que l‟auteur reacutesume

ainsi bdquoComprendre c‟est traduireldquoldquoIdem ldquoLe paradigme de la traductionrdquo in Sur la traduction Paris

2004 21- 22 41

Cf Friedrich-Wilhelm von Herrmann Im Spiegel der Welt Sprache Uumlbersetzung

Auseinandersetzung 108 ldquoDie Uumlbersetzung aus einer Sprache in eine andere Sprache scheint nur ein

begrenztes und uumlberdies untergeordnetes philosophisches Problem zu sein Kaum aber hat sich die

Besinnung auf dieses Phaumlnomenon eingelassen macht sie auch schon die Erfahrung daβ sie aus dem

vermeintlich begrenzten Fragebereich hinaus in eine Weiter philosophischer Grundfragen gefuumlhrt wird

Das Uumlbersetzen vollzieht sich in den Bereichen von Sprache und Geschichte sein Vollzieher aber ist der

Mensch in seinem Verhaumlltnis zu Sprache und Geschichterdquo

36

Para reconhecer a centralidade que a questatildeo filosoacutefica da traduccedilatildeo assume

para Heidegger eacute ainda necessaacuterio ter em conta que ela se liga estreitamente agrave

histoacuteria do ser Com efeito para Heidegger a traduccedilatildeo latina dos termos

fundamentais do pensamento grego natildeo foi uma operaccedilatildeo inofensiva mas

produziu um efeito sob o qual ainda hoje estamos pois nela se jogou a

retracccedilatildeo e o esquecimento do ser e inversamente a superaccedilatildeo do

esquecimento do ser consiste no esforccedilo de superaccedilatildeo dessa mediaccedilatildeo latina

e no regresso agrave experiecircncia originaacuteria do pensamento grego convicccedilatildeo

inseparaacutevel do seu proacuteprio esforccedilo de traduccedilatildeo directa dos termos filosoacuteficos

gregos para o alematildeo42

Eacute este conceito amplo e central de ldquotraduccedilatildeordquo como arriscada transposiccedilatildeo do

pensar para um outro contexto histoacuterico-linguiacutestico que aqui visaremos como

categoria que sendo co-extensiva com a de interpretaccedilatildeo permite pensar a

totalidade dos momentos que constituem a recepccedilatildeo de um autor numa outra

comunidade linguiacutestica Essa recepccedilatildeo de uma obra escrita numa outra liacutengua

envolve diferentes niacuteveis de assimilaccedilatildeo e incorporaccedilatildeo na liacutengua e na cultura

de chegada desde a sua simples leitura e compreensatildeo agrave transposiccedilatildeo

linguiacutestica das obras realizadas pela actividade de tradutores e editores ateacute

aos comentaacuterios em revistas de especialidade aos ensaios e dissertaccedilotildees

acadeacutemicas e finalmente agrave incorporaccedilatildeo na criaccedilatildeo de obras originais

A categorizaccedilatildeo de todos estes modos de assimilaccedilatildeo e incorporaccedilatildeo do autor

estrangeiro num outro contexto histoacuterico-linguiacutestico como ldquotraduccedilatildeordquo permite-

nos centrar a investigaccedilatildeo na experiecircncia inter-linguiacutestica remetendo para a

intermediaccedilatildeo de distintos contextos culturais com a sua complexidade

intriacutenseca tornando a tarefa daquele que interpreta e comenta um difiacutecil

compromisso entre a fidelidade ao texto e a aproximaccedilatildeo ao contexto e aos

problemas do presente histoacuterico do seu leitor43

42

ldquoDas Verhaumlltnis von Uumlbersetzung und Geschichte wird von Heidegger vor allem in zwei

Hinblicknahmen bedacht Zum einen ist es die uumlbersetzende Uumlbernahme des griechischen Denkens

insbesondere der griechischen Grundworte des Denkens durch das Roumlmisch-Lateinische sowie die

uumlbersetzende Aneignung der roumlmisch vermittelten griechischen Grundworte durch das neuzeitliche

Denken Diese erste Hinblicknahme betrifft die Geschichte der Metaphysik als Geschichte des Seins und

der Seinsvergessenheit Die zweite Hinblicknahme auf das genannte Verhaumlltnis ist geleitet von der

denkenden Uumlberwindung der Seinsvergessenheit und besteht in dem denkerischen Bemuumlhen in

unmittelbarem Ruumlckgang auf das griechische Denken dessen verschuumlttete Erfahrungen so freizulegen daβ

diese den Weg in eine urspruumlnglichere Erfahrung des Wesens des Seins weisenrdquo Ibidem 120 43

Cf Ricœur in ldquoUn ldquopassagerdquo traduire l‟intraduisiblerdquo Neste artigo Ricœur refere um intraduzigravevel

inicial encontrado pelo tradutor a diversidade das liacutenguas como conjuntos culturais diferentes atraveacutes

37

Pensar a recepccedilatildeo dum autor de acordo com a categoria da traduccedilatildeo permite

assim anular as distinccedilotildees correntes entre uma recepccedilatildeo passiva e activa que

soacute cabiam no quadro de referecircncia teoacuterico que considerava a leitura dum texto

e a sua interpretaccedilatildeo criacutetica como operaccedilotildees essencialmente distintas

sublinhando antes a constacircncia de certas operaccedilotildees hermenecircuticas baacutesicas

transversais a todas estas formas e geacuteneros literaacuterios

A traduccedilatildeo de Heidegger para as diversas liacutenguas europeias foi desde o

primeiro momento acompanhada de controveacutersias e dificuldades suscitando de

imediato o problema do risco inerente agrave experiecircncia inter-linguiacutestica e dos

limites do traduziacutevel

A influecircncia de Heidegger iniciou-se com a publicaccedilatildeo de Sein und Zeit em

1927 primeira obra onde expocircs o seu pensamento cuja difusatildeo quase

imediata captou a atenccedilatildeo do puacuteblico filosoacutefico de quase toda a Europa A

irradiaccedilatildeo da influecircncia de Heidegger natildeo deixou de crescer a partir desta

data sendo balizada em trecircs grandes periacuteodos44

1ordm Periacuteodo ndash entre 1927 data da publicaccedilatildeo de Sein und Zeit e 1951

data da sua primeira traduccedilatildeo integral realizada por Gaos para o

espanhol

2ordm Periacuteodo ndash entre 1952 e 1975 ano em que foi iniciada a publicaccedilatildeo

das obras completas de Heidegger por Vittorio Klostermann

3ordm Periacuteodo ndash de 1975 ateacute aos nossos dias

Ao longo destes anos uma interpretaccedilatildeo centrada dominantemente na anaacutelise

da existecircncia em Sein und Zeit 45 foi sendo corrigida desde logo pelo proacuteprio

dos quais se exprimem distintas visotildees do mundo que podem enfrentar-se entre si no interior dum mesmo

sistema fonoloacutegico lexical e sintaacutectico fazendo duma cultura nacional uma rede de visotildees do mundo em

competiccedilatildeo oculta Ricœur indica ainda um intraduzigravevel final engendrado pela proacutepria praacutetica da

traduccedilatildeo relacionado com a impossibilidade de estabelecer um criteacuterio absoluto da boa traduccedilatildeo ndash este

criteacuterio absoluto seria o mesmo sentido escrito algures acima e entre o texto de origem e o texto de

chegada bdquoCe troisiegraveme texte serait porteur du sens identique supposeacute circuler du premier au second D‟ou

le paradoxe dissimuleacute sous le dilemme pratique entre fideacuteliteacute et trahison une bonne traduction ne peut

viser qu‟agrave une eacutequivalence preacutesumeacutee non fondeacutee dans une identiteacute de sens deacutemontrablerdquo Idem art cit

in Sur la traduction 60 44

Cf Irene Borges-Duarte em ldquoHeidegger em Portuguecircs Contribuiccedilatildeo para um reportoacuterio bibliograacuteficordquo

in Filosofia volIII nordm12 Lisboa 1989 173-184 45

Cf artigo de Rudolf Bohem L‟ecirctre et le temps d‟une traduction Neste artigo o tradutor (co-autor da

traduccedilatildeo francesa de SuZ editada em 1964 pela Gallimard) reafirma a centralidade de uma filosofia da

existecircncia nesta obra capital de Heidegger ldquoMais je ne peux terminer ces remarques sans donner

expression agrave mon eacutetonnement du fait que cet ouvrage Sein und Zeit de Heidegger bien qu‟il ait eacuteteacute

traduit depuis en plus de vingt langues agrave travers du monde entier et qu‟il soit peut-ecirctre le livre

38

Heidegger que a partir dos primeiros comentaacuterios da sua obra rejeitou que a

sua leitura de o homem como ser-no-mundo pudesse ser interpretada como um

existencialismo e uma reflexatildeo antropoloacutegica - depois por um conhecimento

progressivo da globalidade dos seus textos filosoacuteficos

De facto a divulgaccedilatildeo progressiva da obra de Heidegger veio a possibilitar a

sua compreensatildeo como um pensamento em movimento de constituiccedilatildeo cuja

progressiva elaboraccedilatildeo apesar das descontinuidades natildeo deixa de revelar a

unidade de quem persegue uma questatildeo central questatildeo que desde Sein und

Zeit e ateacute ao fim ocupou Heidegger ininterruptamente o problema do ser

A difusatildeo do pensamento de Heidegger nas vaacuterias liacutenguas europeias foi assim

acompanhada desde o iniacutecio por controveacutersias dificuldades de interpretaccedilatildeo e

mal-entendidos eles mesmos interessantes enquanto sintomas segundo

Heidegger da nossa situaccedilatildeo presente de esquecimento e abandono da

questatildeo do ser Estas transformaccedilotildees de sentido que acompanharam as vaacuterias

traduccedilotildees suscitam a experiecircncia viva da finitude e da imperfeiccedilatildeo de toda a

traduccedilatildeo entendida como restituiccedilatildeo fiel do sentido mas tambeacutem a

consciecircncia do caraacutecter necessariamente histoacuterico e linguisticamente

condicionado da tarefa do tradutor testemunhado directamente pelos

tradutores de Sein und Zeit46

Se a divulgaccedilatildeo progressiva da obra de Heidegger permitiu corrigir as iniciais

distorccedilotildees eacute preciso ter em conta que nenhuma interpretaccedilatildeo eacute poreacutem

independente dum ponto de vista preacutevio problema hermenecircutico colocado por

Heidegger em Sein und Zeit ao mostrar que uma Vor-struktur predetermina

toda a compreensatildeo e por Gadamer ao postular que nenhuma interpretaccedilatildeo

philosophique le plus connu du vingtiegraveme siegravecle a produit si peu d‟effet Ce fut peut-ecirctre a moins

partiellement la faute de Heidegger lui-mecircme il s‟est toujours refuseacute agrave ecirctre consideacutereacute comme un

philosophe de l‟existence voire ldquoexistentialisterdquo et n‟a souligneacute que lintroduction dans Sein und Zeit de

la question de l‟Ecirctre alors que cette derniegravere question nest guegravere eacutelaboreacutee dans le livre tel qu‟il a paru et

qu‟il preacutesente par contre bel et bien une philosophie de l‟existence tout comme lacute Ecirctre et le Neacuteant de

Sartre et la Pheacutenomeacutenologie de la Perception de Merleau-Pontyrdquo (Idem art cit in Translating

Heidegger‟s ndash Sein und Zeit 103) 46

Destes testemunhos eacute particularmente significativo para o presente trabalho o de Christian Sommer

tradutor francecircs em ldquoTraduire La Lingua Heideggerianardquo que a propoacutesito da experiecircncia de traduccedilatildeo de

Heidegger para as liacutenguas latinas afirma rdquoHeidegger tributaire et continuateur d‟une tradition allemande

qui remonte au moins agrave Leibniz entend construire une langue philosophique allemande deacutelatiniseacutee en

renouant par ldquodestructionrdquo avec la terminologie grecque La philosophie a parleacute grec elle parle et

parlera allemand l‟allemand d‟Heidegger Deacutes lors l‟acte de traduire (et d‟interpreacuteter) Heidegger dans

une langue latine meacuteriterait d‟ecirctre plus largement probleacutematiseacute car agrave la ldquodeacutelatinisationrdquo heideggeacuterienne

de la philosophie correspond de fait une ldquorelatinisationrdquo de la philosophie heideggeacuteriennerdquo (Christian

Sommer artcit in Translating Heidegger‟s ndash Sein und Zeit 306-307)

39

se faz independentemente da tradiccedilatildeo e do preconceito estas satildeo as

condiccedilotildees nas quais ouvimos e com as quais podemos entrar numa discussatildeo

interpretativa

Focalizaremos o nosso estudo natildeo na traduccedilatildeo em sentido estrito mas nos

comentaacuterios com que progressivamente os pensadores portugueses e

brasileiros foram levando aos seus leitores a divulgaccedilatildeo do pensamento

heideggeriano por ser aiacute que podemos surpreender mais claramente essa Vor-

struktur que determina a compreensatildeo por vezes obscurecendo-a mas

noutras abrindo uma via de acesso ao sentido dos textos

6 Metodologia usada

Eacute pois partindo deste conceito de traduccedilatildeo estabelecido pela fenomenologia

hermenecircutica 47 que abordaremos a recepccedilatildeo de Heidegger em liacutengua

portuguesa visando natildeo apenas mostrar as deslocaccedilotildees de sentido e as

distorccedilotildees que acompanham a recepccedilatildeo de Heidegger em liacutengua portuguesa

mas ainda avaliaacute-los e interpretaacute-los de acordo com o quadro de referecircncia

teoacuterico e metodoloacutegico que esse conceito determina

Uma investigaccedilatildeo deste geacutenero confronta-se desde logo com a abundacircncia e a

disparidade de fontes a analisar e o risco de dispersatildeo pelo que se impocircs a

definiccedilatildeo de um criteacuterio de selecccedilatildeo do tipo de textos a incluir na anaacutelise As

traduccedilotildees em sentido estrito foram analisadas no seu conjunto e integradas

no contexto geral da histoacuteria da traduccedilatildeo filosoacutefica portuguesa renunciaacutemos a

uma anaacutelise criacutetica das ldquotraduccedilotildeesrdquo em sentido estrito e a produzir quaisquer

juiacutezos de valor sobre a qualidade dos textos produzidos decidindo se se situam

ao niacutevel trivial da amaacutelgama informe de transposiccedilotildees gramaticais irreflectidas

de hiacutebridos gramaticais que natildeo pertencem a nenhuma liacutengua ou se pelo

contraacuterio traduzem uma estrateacutegia coerente de recriaccedilatildeo do texto em liacutengua

portuguesa atenta aos problemas de transposiccedilatildeo do vocabulaacuterio filosoacutefico e

47

Cf Von Herrmann (Im Spiegel der Welt Sprache Uumlbersetzung Auseinandersetzung 111) ldquo[hellip]

Phaumlnomenologie ist nach dem Methodenparagraph von Sein und Zeit das was sich zeigt so wie es sich

von ihm selbst her zeigt von ihm selbst her sehen lassen (SuZ 34) Nicht nur versteht sich die

Phaumlnomenologie Heideggers als hermeneutische als auslegende Phaumlnomenologie sondern auch

umgekehrt bestimmt Heidegger die Auslegung als phaumlnomenologische houmlrend-sehenlassende Auslegung

Und wenn die Auslegung eine wesenhafte Vollzugsbedingung der Uumlbersetzung ist vollzieht sich auch

das Uumlbersetzen nur dann wesensgerecht wenn seine Vorgehensweise phaumlnomenologisch bestimmt istrdquo

40

agraves fontes filoloacutegicas dos textos heideggerianos Esta anaacutelise do maior

interesse e complementar do agora investigado natildeo poderia ser aqui levada a

cabo e esse trabalho dos tradutores interessou-nos apenas enquanto indiacutecio da

difusatildeo do pensamento de Heidegger e da sua introduccedilatildeo no seio do

pensamento portuguecircs

Na traduccedilatildeo que noacutes proacuteprios fizemos da terminologia heideggeriana optaacutemos

por seguir o leacutexico estabelecido pelo projecto Heidegger em Portuguecircs que

acompanhou as traduccedilotildees jaacute publicadas e relativamente a Ser e Tempo

adoptaacutemos o procedimento habitual de seguir a traduccedilatildeo estabelecida por

Gaos

Fomos ainda obrigados a determinar o periacuteodo a investigar tendo como

preocupaccedilotildees os limites impostos pela exequibilidade da investigaccedilatildeo e

tambeacutem a necessidade de nele incluir um nuacutemero suficientemente significativo

de fontes Delimitaacutemos o periacuteodo entre 1938 e 1989 este periacuteodo aparece-nos

naturalmente limitado pela publicaccedilatildeo do primeiro texto de Delfim Santos sobre

Heidegger (ldquoHeidegger e Houmllderlin ou a essecircncia da poesia Revista de

Portugal Lisboa nordm4 193848) no entanto a maior parte dos trabalhos

analisados satildeo posteriores agrave data de 1952 ano seguinte agrave traduccedilatildeo espanhola

de Gaos de Sein und Zeit importante marco no domiacutenio da traduccedilatildeo e da

difusatildeo do pensamento de Heidegger ateacute aiacute conhecido atraveacutes de traduccedilotildees

francesas fragmentaacuterias e parciais49

Embora a partir dos anos 30 jaacute houvesse em Portugal algum conhecimento de

Heidegger atraveacutes de traduccedilotildees francesas soacute a partir dos anos 50 e 60

encontramos um nuacutemero significativo de fontes que permitem fixar uma

tentativa de superar uma leitura centrada na problemaacutetica existencial e os

primeiros esforccedilos para traduzir linguisticamente em portuguecircs uma

compreensatildeo mais globalizante do filoacutesofo alematildeo

Depois do caso isolado que foi a traduccedilatildeo de Vom Wesen der Wahrheit em 46

soacute nos anos sessenta se iniciou a traduccedilatildeo regular das obras de Heidegger 50

com a traduccedilatildeo de Ernildo Stein de Einfuumlhrung in die Metaphysik em 1966 e a

traduccedilatildeo de Uumlber den Humanismus Brief an Jean Beaufret onde a linguagem

48

Cf ldquoO diaacutelogo com Heidegger em ligravengua portuguesa ldquo in Apecircndice do presente trabalho p 539 49

Cf Ricardo Maliandi bdquoHeidegger in Lateinamerikaldquo in Zur philosophischen Aktualitaumlt Heideggers III

Im Spiegel der Welt Frankfurt am Main 1989 199-209 50

CfrdquoTraduccedilotildees Portuguesas e Brasileiras de Heideggerrdquo in Apecircndice da Dissertaccedilatildeo p 533

41

aparece pela primeira vez como a questatildeo fundamental por Carneiro Leatildeo no

Brasil em 1967 e por A Stein em Portugal em 1973

Neste periacuteodo eacute ainda publicado um nuacutemero significativo de obras sobre

Heidegger assim como muacuteltiplos artigos em revistas de liacutengua portuguesa por

autores como Ernildo Stein Zeljko Loparic Eduardo Abranches de Soveral

Manuel Antunes e outros51

Neste segmento temporal encontramos tambeacutem a publicaccedilatildeo de obras de

pensadores que em liacutengua portuguesa procuram encetar um diaacutelogo com

Heidegger tendo esse diaacutelogo um papel estruturante na sua produccedilatildeo

filosoacutefica

Em Portugal Delfim Santos que tinha uma formaccedilatildeo filosoacutefica extensa e

actualizada tornada possiacutevel pela sua condiccedilatildeo de bolseiro na deacutecada de 30

na Aacuteustria e na Alemanha conhecia as obras de Husserl e Heidegger que

divulgou atraveacutes de numerosos artigos e comunicaccedilotildees entre os anos de 1938

e 1966 explorando as implicaccedilotildees duma leitura existencial de Heidegger em

diversos campos da cultura como a educaccedilatildeo o direito e a psicoterapia

O Grupo de Satildeo Paulo centrado nas figuras de Eudoro de Sousa e Vicente

Ferreira da Silva produziu uma reflexatildeo sobre as relaccedilotildees entre histoacuteria

poesia e mito que muito devem agrave leitura de Heidegger como podemos

constatar pela leitura de Ideias Para um Novo Conceito de Homem (1951) de

Vicente Ferreira da Silva e Mitologias I (1981) e Mitologias II (1982) de Eudoro

de Sousa

Joseacute Enes a partir de 1969 tem reflectido sobre o problema do ser e da

linguagem fortemente influenciado pela leitura daquilo a que eacute costume

chamar-se o ldquosegundo Heideggerrdquo inspirando-se nessa leitura para fazer uma

reapropriaccedilatildeo do pensamento de Satildeo Tomaacutes de Aquino e da tradiccedilatildeo

escolaacutestica

Pensamos assim ter seleccionado um periacuteodo suficientemente significativo

pela abundacircncia e relevacircncia dos textos que assinalam a recepccedilatildeo de

Heidegger traduccedilotildees artigos de revistas dissertaccedilotildees acadeacutemicas e obras

originais Dentre esse conjunto diacutespar de fontes procedemos a uma selecccedilatildeo

51

Cf Constanccedila Marcondes Ceacutesar O Grupo de Satildeo Paulo Lisboa 2000 231-243

42

dos autores e dos textos a partir do pressuposto de que uma interpretaccedilatildeo tem

ecircxito apenas quando ela presta atenccedilatildeo e escuta o texto que traduz e o que

nele eacute dito de tal modo que num tal escutar potildee a caminho uma discussatildeo

interpretativa52

Pudemos assim seleccionar como autores mais significativos Delfim Santos

Vergiacutelio Ferreira Eudoro de Sousa Vicente Ferreira da Silva Gerd Bornheim e

Ernildo Stein assim como Joseacute Enes e Emmanuel Carneiro Leatildeo

Um segundo problema metodoloacutegico foi a necessidade de optar entre um

criteacuterio histoacuterico-descritivo que apresentasse a evoluccedilatildeo da interpretaccedilatildeo de

Heidegger de uma geraccedilatildeo de pensadores para outra dando conta da sua

progressiva incorporaccedilatildeo na liacutengua e cultura lusoacutefonas e um ponto de vista

sistemaacutetico capaz de classificar e sistematizar os contributos dos vaacuterios

autores de acordo com a sua direcccedilatildeo interpretativa

Optaacutemos por tentar conciliar os dois criteacuterios procurando num primeiro

momento articular uma perspectiva histoacuterica que integra a traduccedilatildeo de

Heidegger na histoacuteria da traduccedilatildeo portuguesa de filosofia e num segundo

momento articular e agrupar os autores de acordo com a perspectiva

(Blickrichtung) a partir da qual abordam o pensador alematildeo

Na organizaccedilatildeo dos seus textos usaacutemos como criteacuterio as diferentes vias de

acesso ao pensamento heideggeriano independentemente dos autores se

situarem de um ou do outro lado Atlacircntico questatildeo de somenos importacircncia

porquanto autores portugueses e brasileiros dialogam entre si e influenciam-se

reciprocamente no acircmbito da liacutengua comum

Assim pudemos ordenar os textos e os autores de acordo com as 4 direcccedilotildees

interpretativas

Sentido e existecircncia

Ontologia e finitude

Mito e logos

Hermenecircutica e desvelamento do ser

52

ldquoEine Auslegung die eine Uumlbersetzen vorbereitet gluumlckt nur dann wenn sie zu dem auszulegendem

Text und dem in ihm Gesagten uumlbersetzt so daβ sie auf das Gesagte houmlrt und in solchem Houmlren ein

auslegendes Zwiegespraumlch in Gang setztrdquo Friedrich-Wilhelm von Herrmann Im Spiegel der Welt

Sprache Uumlbersetzung Auseinandersetzung 109

43

A compreensatildeo da traduccedilatildeo como Ereignis orientou a selecccedilatildeo do caso

especial de Vicente Ferreira da Silva como objecto de estudo Escolhemos a

anaacutelise do caso deste pensador brasileiro pois ele desenvolveu um

pensamento original em torno da relaccedilatildeo entre mito poesia e filosofia a partir

dum intenso diaacutelogo com o pensamento de Heidegger

7 A estrutura da dissertaccedilatildeo

A presente dissertaccedilatildeo articula-se em duas partes desenvolvendo-se segundo

a disposiccedilatildeo a seguir indicada

A primeira parte apresenta o problema filosoacutefico da traduccedilatildeo e a

fundamentaccedilatildeo dos conceitos fundamentais que suportam a investigaccedilatildeo

articulados em dois capiacutetulos No primeiro capiacutetulo satildeo exploradas as

implicaccedilotildees da viragem hermenecircutica heideggeriana centrando-se a nossa

anaacutelise na articulaccedilatildeo entre linguagem facticidade e existecircncia Aiacute satildeo ainda

analisados os conceitos de ldquosituaccedilatildeo hermenecircuticardquo e ldquociacuterculo hermenecircuticordquo

que atravessam e suportam a nossa investigaccedilatildeo No segundo capiacutetulo seratildeo

analisados os contributos de Gadamer para a elucidaccedilatildeo do problema

hermenecircutico com especial relevacircncia para a reabilitaccedilatildeo dos conceitos de

tradiccedilatildeo e de preconceito assim como para a determinaccedilatildeo da interpretaccedilatildeo

como uma controlada ldquofusatildeo de horizontesrdquo (Horizontverschmelzung)

Na segunda parte abordaremos a problemaacutetica da traduccedilatildeo em Portugal em

trecircs capiacutetulos No primeiro abordaremos a histoacuteria da traduccedilatildeo de filosofia em

Portugal procurando aiacute encontrar as razotildees da recusa agrave mediaccedilatildeo linguiacutestica e

os efeitos dessa recusa no modo como entre noacutes se transmitiu a tradiccedilatildeo

filosoacutefica No capiacutetulo segundo analisaremos a recepccedilatildeo de Heidegger em

Portugal e no Brasil partindo do conceito de ldquosituaccedilatildeo hermenecircuticardquo exposta

por Heidegger em Phaumlnomenologische Interpretationen zu Aristoteles de

192253 Este conceito transversal a toda a investigaccedilatildeo seraacute aqui aplicado agrave

anaacutelise das fontes que assinalam a recepccedilatildeo de Heidegger em Portugal e no

53

ldquoDie folgenden Untersuchungen dienen einer Geschichte der Ontologie und Logik Als Interpretationen

stehen sie unter bestimmten Bedigungen des Auslegens und Verstehens Der Sachgehalt jeder

Interpretation das ist der thematische Gegenstand im Wie seines Ausgelegtseins vermag nur dann

angemessen fuumlr sich selbst zu sprechen wenn die jeweilige hermeneutische Situation auf die Jede

Interpretation relativ ist als genuumlgend deutlich ausgezeichnet verfuumlgbar gemacht wirdldquo AhS GA 62

346-347

44

Brasil permitindo-nos ir mais longe do que uma simples exposiccedilatildeo histoacuterica e

descritiva e fornecendo-nos um princiacutepio teoacuterico e metodoloacutegico capaz de

organizar os dados e mostrar a direcccedilatildeo de um ponto de vista interpretativo No

capiacutetulo terceiro levaremos a cabo a anaacutelise do caso de Vicente Ferreira da

Silva autor no qual essa fusatildeo de horizontes tematizada por Gadamer eacute

particularmente produtiva Escutando o apelo do segundo Heidegger em

direcccedilatildeo agrave questatildeo do ser e da linguagem o pensador brasileiro fez-se tambeacutem

o eco da influecircncia de pensadores portugueses como Eudoro de Sousa e

Agostinho da Silva bem como de outros pensadores latinos e ainda da poetiza

Dora Ferreira da Silva abrindo uma via de acesso original agrave questatildeo da poesia

e da mitologia Na conclusatildeo retomamos o jaacute analisado a fim de determinar se

foram dados passos significativos para a constituiccedilatildeo de qualquer coisa como

um ldquoponto de vistardquo (Blickstand) e ldquouma perspectivardquo (Blickrichtung) capazes

de virem a delimitar um horizonte de compreensatildeo e uma interpretaccedilatildeo

originaacuteria do pensador alematildeo em liacutengua portuguesa

Ao discutirmos se na recepccedilatildeo de Heidegger em liacutengua portuguesa se

verificam as distorccedilotildees provenientes duma relaccedilatildeo inautecircntica com a tradiccedilatildeo

filosoacutefica ou se os autores que puderam ter acesso aos textos originais na

liacutengua alematilde e com ele dialogaram em portuguecircs deram passos significativos

para superar essas distorccedilotildees e alcanccedilar o estatuto de uma verdadeira

interpretaccedilatildeo iremos confrontar-nos com a temaacutetica da tradiccedilatildeo

Seraacute aiacute questionada a presenccedila nos inteacuterpretes de Heidegger em liacutengua

portuguesa da tradiccedilatildeo humanista em confronto com a condenaccedilatildeo

heideggeriana do humanismo e com a sua desvalorizaccedilatildeo do latim e das

liacutenguas latinas Retomaremos pois a discussatildeo jaacute iniciada por Ernesto Grassi e

Franco Volpi em torno desta temaacutetica e da importacircncia dum legado que

constitui o patrimoacutenio comum daquilo a que este segundo pensador chama a

Romanidade Filosoacutefica54

54

Cf Franco Volpi em comunicaccedilatildeo ao Congresso Heidegger Linguagem e Traduccedilatildeo (Lisboa Marccedilo de

2003) intitulada Heidegger el problema de la intraducibilidad y la romanidad filosoacutefica Nesta

comunicaccedilatildeo Franco Volpi defende que Heidegger teria retomado e radicalizado a ideia do idealismo

alematildeo de que a filosofia deveria falar alematildeo como noutro tempo falara grego e procurar um acesso

directo e original ao pensamento heleacutenico evitando a mediaccedilatildeo do latim com a consequente depreciaccedilatildeo

da romanidade e latinidade filosoacuteficas Franco Volpi potildee ainda a hipoacutetese de que Heidegger na sua criacutetica

ao humanismo romano teria acompanhado de perto a afirmaccedilatildeo ideoloacutegica do pangermanismo ldquoTras la

toma de poder por el nacionalismo la cuestioacuten del humanismo romano habiacutea dejado de ser una cuestioacuten

uacutenicamente filosoacutefica neutra habiacutea adquirido importantes connotaciones poliacuteticas El programa

45

A bibliografia apresentada no fim da dissertaccedilatildeo constitui a recompilaccedilatildeo dos

tiacutetulos mais importantes para a elaboraccedilatildeo do trabalho e estaacute organizada em

duas partes

A primeira parte eacute constituiacuteda por um apecircndice contendo um primeiro capiacutetulo

relativo agrave histoacuteria das traduccedilotildees portuguesas de filosofia que pretende dar

conta dos tiacutetulos mais significativos traduzidos em Portugal e no Brasil ateacute

1959 e que foi relevante para a geacutenese da problemaacutetica investigada e um

segundo relativo agrave cronologia da recepccedilatildeo de Heidegger que pretende dar a

conhecer a amplitude desta recepccedilatildeo em Portugal e no Brasil Esta bibliografia

da recepccedilatildeo de Heidegger em portuguecircs estende-se ateacute agrave actualidade

extravasando os limites cronoloacutegicos da investigaccedilatildeo que levaacutemos a cabo mas

possibilita por isso mesmo ldquosituarrdquo o segmento temporal de que nos

ocupaacutemos e melhor compreender o seu significado

Na segunda parte da bibliografia incluem-se as obras de Heidegger e de

Gadamer nas quais fundamos a investigaccedilatildeo assim como a literatura

secundaacuteria sobre os problemas filosoacuteficos da traduccedilatildeo e tradiccedilatildeo Nesta

segunda parte incluiacutemos ainda as obras dos inteacuterpretes de Heidegger em

liacutengua portuguesa que foram analisadas assim como a bibliografia secundaacuteria

relativa aos diversos autores e a bibliografia de contextualizaccedilatildeo temaacutetica

relativa ao pensamento portuguecircs e brasileiro

ideoloacutegico pangermaacutenico reactivoacute y radicalizoacute la cuestioacuten del primado del pueblo alemaacuten frente al cual la

romanidad y la latinidad aparecigravean como derivadas e ldquosecundariasrdquordquo (Op cit 534)

Ainda nesta comunicaccedilatildeo Volpi demonstra a riqueza do vocabulaacuterio latino no acircmbito poliacutetico juriacutedico e

religioso mostrando a sua essencial originalidade em relaccedilatildeo ao contexto da cultura e liacutengua gregas assim

como o seu papel determinante na construccedilatildeo da civilizaccedilatildeo europeia

46

47

SIGLAS E ABREVIATURAS MAIS USADAS

A maior parte das siglas corresponde a obras de Heidegger Quando natildeo se

trate de uma obra sua o nome do autor eacute assinalado entre parecircntesis

SuZ Sein und Zeit

AhS bdquoPhaumlnomenologische Interpretation zu Aristoteles (Anzeige der hermeneutische

Situation)ldquo

EpF Phaumlnomenologische Interpretationen zu Aristoteles Einfuumlhrung in die

phaumlnomenologische Forschung

LWS Logik als die Frage nach dem Wesen der Sprache

WuM Wahrheit und Methode (Gadamer)

GS Gesammelte Schriften (Walter Benjamin)

GA Gesamtausgabe (Martin Heidegger)

HWD bdquoHoumllderlin und das Wesen der Dichtungldquo

UKw bdquoDer Ursprung des Kunstwerkesldquo

WwF bdquoWie wenn am Feiertaghellipldquo

WhD Was heiβt Denken

HH Houmllderlins Hymnen ―Germanien und ―Der Rhein―

GW Gesammelte Werke (Gadamer)

P Parmeacutenides

Buh bdquoBrief uumlber den Humanismusldquo

VWG bdquoVon Wesen des Grundesldquo

GP Die Grundprobleme der Phaumlnomenologie

D bdquoDas Dingldquo

GD bdquoGrundsaumltze des Denkens―

H Holzwege

IuD Identitaumlt und Differenz

HHI Houmllderlins Hymnen bdquo Der Isterldquo

ZW ―Die Zeit des Weltbildesrdquo

48

49

Parte I O conceito fenomenoloacutegico de traduccedilatildeo e o

problema da tradiccedilatildeo

50

51

Capiacutetulo I - A viragem hermenecircutica e o estatuto das liacutenguas

52

53

Heidegger afirmou em Ser e Tempo na continuidade da tradiccedilatildeo de Hamann

Herder e Humboldt que a loacutegica se constitui historicamente como aquele

aspecto da tradiccedilatildeo filosoacutefica que deturpou e vedou o acesso ao ser da

linguagem55

De facto a questatildeo do impeacuterio da loacutegica sobre a gramaacutetica tinha jaacute sido

anteriormente discutida por Hamann e Humboldt e podemos sintetizar a

questatildeo dizendo que Hamann56 abre uma poleacutemica contra o iluminismo

chamando a atenccedilatildeo para o facto de que as categorias loacutegicas a que Kant viria

a chamar as categorias do entendimento determinam as categorias

gramaticais e as regras sintaacutecticas Sob o impeacuterio destas categorias

desenvolve-se um dizer que respeita mais o princiacutepio de identidade do que a

singularidade e a diversidade da experiecircncia mais a abstracccedilatildeo do conceito do

que a materialidade das sensaccedilotildees e os afectos e que privilegia as oraccedilotildees

subordinadas57 Contra este dizer e pensar disciplinado pela norma e pela

razatildeo Hamann viraacute propor a libertaccedilatildeo da linguagem que para ele seraacute a

liberdade poeacutetica da metaacutefora e da transgressatildeo da norma linguiacutestica e para

Humboldt a reivindicaccedilatildeo da libertaccedilatildeo das gramaacuteticas em relaccedilatildeo agrave loacutegica e o

reconhecimento da pluralidade de aberturas do mundo instauradas pelas

diferentes liacutenguas

Esta mudanccedila de paradigma na filosofia da linguagem implica uma posiccedilatildeo

relativista face agrave possibilidade da traduccedilatildeo duma liacutengua para outra assim como

agrave possibilidade de falantes de diversas liacutenguas se entenderem sobre o mesmo

De facto Hamann ao considerar a linguagem como a raiz comum do

ldquoentendimentordquo e da ldquosensibilidaderdquo constitui-a como uma instacircncia alternativa

ao eu transcendental uma vez que para ela podem reclamar-se funccedilotildees

idecircnticas na constituiccedilatildeo da experiecircncia Contudo esta superaccedilatildeo do eu

55

Cristina Lafont defende que a tese heideggeriana da funccedilatildeo de abertura de mundo da linguagem se

insere numa tradiccedilatildeo da filosofia alematilde que designa como ldquoa tradiccedilatildeo de Hamann-Herder-Humboldtrdquo

Esta tradiccedilatildeo critica a filosofia da consciecircncia - cuja concepccedilatildeo da linguagem eacute a de um ldquoinstrumentordquo

para a designaccedilatildeo de entidades extra-linguiacutesticas ou para a expressatildeo de pensamentos preacute-linguiacutesticos ndash e

atribui agrave linguagem um papel constitutivo na nossa relaccedilatildeo com o mundo Cf Idem Lenguaje y apertura

del mundo Madrid (1997) 22 56

Cf Cristina Lafont considera que a criacutetica de Hamann a Kant pode considerar-se como o nuacutecleo desta

mudanccedila de paradigma na filosofia da linguagem ldquoHamann localizoacute en el lenguaje la raiacutez comuacuten del

ldquoentendimientordquo y la ldquosensibilidadrdquo buscada por Kant y con ello confirioacute al lenguaje una dimensioacuten a la

vez empiacuterica e transcendental Es precisamente este paso el que convierte al lenguaje en una instancia que

entra en competencia con el Yo transcendentalrdquo Ibidem 22 57

Cf Johan Georg Hamann As Memoraacuteveis Socraacuteticas Lisboa (1999) 55 ldquoA ignoracircncia socraacutetica era

um sentir Ora entre um sentir e uma proposiccedilatildeo teoacuterica vai uma diferenccedila maior do que aquela que existe

entre um animal vivo e o respectivo esqueleto na sala de Anatomiardquo

54

transcendental significa que agrave universalidade da consciecircncia se contrapotildee a

diversidade das vaacuterias liacutenguas naturais

Assim a unidade transcendental da apercepccedilatildeo seraacute fraccionada em muacuteltiplas

aberturas de mundo ou imagens do mundo correspondentes agraves diversas

liacutenguas naturais Sendo estas aberturas de mundo articuladas nas diferentes

liacutenguas naturais incomensuraacuteveis natildeo soacute resulta impossiacutevel falar de uma

consciecircncia em geral como natildeo tem tambeacutem qualquer sentido falar de um

mundo objectivo constituiacutedo por entidades independentes da linguagem58

Esta tradiccedilatildeo levou tambeacutem a cabo uma criacutetica agrave concepccedilatildeo instrumental da

linguagem dominante desde Aristoacuteteles que centrando-se sobre os nomes

lhes reconhece a funccedilatildeo de designar ou mostrar o ente Humboldt criticando

esta concepccedilatildeo pobre e restritiva das funccedilotildees da linguagem mostra que a

palavra nunca designa directamente o ente mas uma representaccedilatildeo que se

por um lado se refere ao ente por outro lado tem tambeacutem uma dimensatildeo

subjectiva que consiste num modo de apreensatildeo deste (o significado)59

Humboldt ao introduzir esta distinccedilatildeo entre a referecircncia e o significado vai

mostrar que a palavra nunca designa directamente um objecto mas que entre

ambos se interpotildee o universo dos significados e dos conceitos Se palavras

distintas em diferentes liacutenguas se referem ao mesmo objecto isto significaraacute

para Humboldt que cada liacutengua oferece uma perspectiva do mundo proacutepria60

Heidegger insere-se claramente nesta tradiccedilatildeo (embora natildeo a assuma

explicitamente) que reivindica para a linguagem um papel central na

constituiccedilatildeo da experiecircncia atribuindo-lhe como funccedilatildeo central a abertura de

58

A tese de Humboldt de que ldquoa cada ligravengua subjaz uma perspectiva particular de mundordquo eacute uma das

consequecircncias desta viragem na filosofia da linguagem Cf Cristina Lafont (ob cit 24) sublinha que

Humboldt procurou uma saiacuteda para as consequecircncias relativistas desta tese procurando garantir a

objectividade da experiecircncia pela investigaccedilatildeo das condiccedilotildees formais da comunicaccedilatildeo intersubjectiva 59

Cf Bernhard Sylla Hermeneutik der langue Weisgerber Heidegger und die Sprachphilosophie nach

Humboldt Wuumlrzburg (2009) Comentando a contribuiccedilatildeo de Humboldt o autor sublinha a novidade e o

caraacutecter antecipador da sua perspectiva sobre a natureza da linguagem humana agrave qual atribui a funccedilatildeo

primaacuteria de significaccedilatildeo ldquoIn den vorgehenden Paragraphen hatte Humboldt schon die wesentliche

Bedeutung des Lautcharakters von Sprache eroumlrtert wobei der Sprachlaut sich vom tierischen Laut

dadurch unterscheidet dass ersterem die ldquoAbsicht und die Faumlhigkeit zur Bedeutsamkeitrdquo zukomme dh

jeder sprachliche Laut ist artikuliertes Laut Quasi im Vorgriff auf spaumltere Erkenntnisse der

strukturalistischen Phonologie hebt Humboldt in der Folge hervor dass die bedeutungsdifferenzierende

Funktion der Laute und ihre Einbettung in ein Lautsystem ein wesentliches Merkmal der Sprachlaute seildquo

(Idem ob cit 132) 60

bdquo[hellip] si se asume que los signos linguumligravesticos en general solo pueden referirse a algo ldquoindirectamenterdquo

es decir mediante ldquosignificadosrdquo o ldquoconceptosrdquo entonces resulta praacutecticamente inevitable la

consecuencia idealista que Humboldt mismo extrae de esta suposicioacuten a saber que ldquoel hombre vive con

los objetos () exclusivamente tal y como el lenguaje se los presentardquordquo (Cristina Lafont ob cit 27)

55

mundo em detrimento da funccedilatildeo designativa61 Heidegger natildeo apenas assume

e leva agraves uacuteltimas consequecircncias esta tese como pretende fundaacute-la numa

preacutevia confrontaccedilatildeo com a loacutegica capaz de a abalar a partir dos seus

fundamentos confrontaccedilatildeo esta que nenhum dos autores referidos teria sido

capaz de fazer

1 Linguagem e ldquoabertura ontoloacutegicardquo

A histoacuterica confrontaccedilatildeo com Aristoacuteteles desempenha um papel central na

investigaccedilatildeo sobre a essecircncia da linguagem pois na perspectiva de

Heidegger o filoacutesofo grego assume uma particular importacircncia na histoacuteria da

filosofia como autor que se por um lado ainda reproduz o eco longiacutenquo do

pensamento originaacuterio por outro lado abre tambeacutem o caminho para impor o

logos como razatildeo e a loacutegica como ciecircncia normativa do pensamento e da

linguagem

Esse confronto com Aristoacuteteles a propoacutesito da questatildeo da linguagem eacute levado

a cabo em dois momentos essenciais em Ser e Tempo de 1927 e em Logik als

die Frage nach dem Wesen der Sprache tiacutetulo sob o qual foram publicadas as

liccedilotildees de loacutegica do semestre de Veratildeo de 193462 sendo esse confronto levado

a cabo em ambos os momentos na mesma disposiccedilatildeo fenomenoloacutegica

A Fenomenologia eacute para Heidegger63 um meacutetodo de acesso a qualquer

campo de investigaccedilatildeo temaacutetico e por conseguinte tambeacutem agrave investigaccedilatildeo da

61

Cf Bernhard Sylla refere a criacutetica de Heidegger a Humboldt e Herder situando-os ainda no acircmbito

duma metafiacutesica da linguagem mas sintetiza deste modo o aspecto que Heidegger valorizava nestes dois

pensadores bdquoWas Heidegger an Herder und Humboldt schaumltz sind also nicht deren theoretische

Konzeptionen als solche sondern vielmehr die ldquotiefdunklen Ahnungenldquo eines eigentlicheren Geschehens

die im Rahmen der von ihnen befolgten metaphysischen Paradigmen allerdings keine

Entwicklungsmoumlglichkeiten hatten Waumlhrend bezuumlglich Herder hier insbesondere die ungewoumlhnliche

Rolle des Horchens auf Sprache herausgestrichen wird ist es bei Humboldt ein weit grundlegenderer Zug

von Sprache naumlmlich die Eroumlffnung des Horizontes fuumlr dasjenige Verfahren das Heidegger selbst als

einzig wesentliches und ldquoeigentlichesrdquo verfolgte die Umwandlung der gewoumlhnlichen Sprache in eine

andere ldquourspruumlnglichererdquo und ldquoeigentlicherdquoldquo (Idem ob cit 367) 62

Martin Heidegger Loacutegica A pergunta pela essecircncia da linguagem Coord Ciecircntifica de Irene Borges-

Duarte trad de Maria Adelaide Pacheco e Helga Hook Quadrado Lisboa Gulbenkian 2008 63

Cf Otto Poumlggeler in Der Denkweg Martin Heideggers Tuumlbingen 1963 O autor sublinha que

Heidegger nas suas liccedilotildees apoacutes a Primeira Guerra Mundial jaacute colocava objecccedilotildees ao modo como Husserl

desenvolvia a fenomenologia a fenomenologia natildeo partia da intuiccedilatildeo entendida como intuiccedilatildeo de

objectos mas do compreender enraizado na vida como facticidade e historicidade A reduccedilatildeo

fenomenoloacutegica natildeo pode ser vista como o regresso a uma consciecircncia constituinte mas nessa reduccedilatildeo

deve ser conservada a vida faacutectica ldquoHeidegger gruumlndet die Phaumlnomenologie im Verstehen des faktischen

Leben in der Hermeneutik der Faktizitaumlt Die Phaumlnomenologie wird so zur bdquohermeneutische

Phaumlnomenologierdquoldquo (Idem ob cit 70)

56

linguagem O meacutetodo de proceder fenomenoloacutegico visa abrir uma via de

acesso ao ser lutando contra a dissimulaccedilatildeo e o encobrimento em que ele

permanece a maior parte do tempo e Heidegger sintetiza-o nas trecircs indicaccedilotildees

metodoloacutegicas da reduccedilatildeo fenomenoloacutegica da construccedilatildeo fenomenoloacutegica e

da destruiccedilatildeo fenomenoloacutegica64

A destruiccedilatildeo fenomenoloacutegica eacute o exerciacutecio da criacutetica aos fenoacutemenos

dissimuladores que encobrem o ser e deve acompanhar os outros dois

procedimentos metoacutedicos como condiccedilatildeo da possibilidade de

encaminhamento da investigaccedilatildeo no sentido dum progressivo desvelamento do

ser da linguagem

Ora a loacutegica constitui-se historicamente ndash o que Heidegger afirmara em Ser e

Tempo na continuidade da tradiccedilatildeo de Hamann Herder e Humboldt ndash como

aquele aspecto da tradiccedilatildeo filosoacutefica que deturpou e nos vedou o acesso ao ser

da linguagem Desse modo a destruiccedilatildeo da loacutegica impotildee-se como

procedimento metodoloacutegico essencial para que a investigaccedilatildeo possa tomar o

caminho pretendido e chegue a mostrar o ser da linguagem tal como ele

aparece ao olhar compreensivo da reconstruccedilatildeo fenomenoloacutegica ou tal como

ele se mostra a respeito de si mesmo

Nas Liccedilotildees de Loacutegica Heidegger esclarece o sentido em que deve ser tomada

esta ldquodestruiccedilatildeo da loacutegicardquo precisando que destruiacute-la natildeo significa

menosprezaacute-la como supeacuterflua mas apenas compreendecirc-la e abalaacute-la a partir

dos seus fundamentos tarefa que Heidegger afirma estar ainda a dar os seus

primeiros passos ldquoNatildeo se supera o intelectualismo com o mero resmungar

mas atraveacutes da austeridade e do rigor dum pensar completamente novo e

seguro Isso natildeo acontece da noite para o dia nem por encomenda Isso natildeo

acontece enquanto o domiacutenio e o poder da loacutegica tradicional natildeo se tiverem

quebrado Isso exige uma luta na qual o nosso destino espiritual e histoacuterico se

decide uma luta para a qual neste momento nem sequer temos as armas e

em que natildeo conhecemos ainda o adversaacuterio de modo que corremos o risco de

inadvertidamente fazer causa comum com o adversaacuterio em vez de o atacar

64

No curso de Marburgo de 19191920 (GP GA 58) Heidegger discute os trecircs momentos fundamentais

do meacutetodo fenomenoloacutegico a reduccedilatildeo fenomenoloacutegica a construccedilatildeo fenomenoloacutegica e a destruiccedilatildeo

fenomenoloacutegica destinados a facultar o acesso a qualquer campo de investigaccedilatildeo da fenomenologia

Sobre este ponto Cf Friedrich-Wilhelm Von Herrmann A Ideia de Fenomenologia em Heidegger e

Husserl Phainomenon (2003) 180-183

57

Noacutes temos que saber que a nossa histoacuteria espiritual remete para haacute 2000 anos

Esta histoacuteria na sua forccedila instituinte estaacute hoje ainda presente mesmo que a

maioria natildeo suspeite nada dissordquo65

A magnitude desta tarefa de abalar a loacutegica a partir dos seus fundamentos

reside no facto de ela natildeo ser um qualquer domiacutenio do pensar mas aquele

domiacutenio fundante da histoacuteria da nossa cultura sob o impeacuterio do qual se

desenvolveu a nossa histoacuteria espiritual enquanto histoacuteria da racionalidade

teacutecnica e cientiacutefica que mais tarde Heidegger designaraacute por Gestell Abalar a

loacutegica a partir dos seus fundamentos significa abalar os proacuteprios fundamentos

da nossa histoacuteria e assim poder libertar a essecircncia da linguagem ldquoSoacute uma

longa e dolorosa libertaccedilatildeo nos traz para o ar livre e nos prepara para criar a

nova forma da linguagem (Rede)rdquo

A loacutegica constituiu-se com Aristoacuteteles como ciecircncia normativa do pensar e

simultaneamente condicionou a articulaccedilatildeo da linguagem e a sua

normalizaccedilatildeo atraveacutes das categorias da gramaacutetica Atraveacutes do seu impeacuterio

sobre as diversas gramaacuteticas a loacutegica aristoteacutelica constitui-se como ldquosiacutetio de

origem da linguagem faacutecticardquo isto eacute das diversas liacutenguas tal como satildeo

efectivamente usadas para produzir os enunciados cientiacuteficos e as proposiccedilotildees

metafiacutesicas

Assim a loacutegica aristoteacutelica que se manteve praticamente inalterada ao longo

da nossa histoacuteria vigorou e regeu todo o pensar ocidental como instrumento e

propedecircutica do pensar e do conhecer

Natildeo poderemos no entanto compreender a confrontaccedilatildeo de Heidegger com

Aristoacuteteles se natildeo tivermos em conta que esse confronto se estabelece a partir

da partilha de um solo comum claramente estabelecido em Ser e Tempo de

facto em Aristoacuteteles Heidegger encontra ainda a conservaccedilatildeo da noccedilatildeo grega

originaacuteria da linguagem como logos assim como o eco do pensar inaugural

que lhe conferia um papel central na constituiccedilatildeo ontoloacutegica do homem rdquoSeraacute

65

bdquoMit bloszligem Schimpfen wird der Intellektualismus nicht uumlberwunden sondern durch die Haumlrte und

Strenge eines ganz neuen und gesicherten Denkens Es kommt nicht uumlber Nacht und nicht auf Bestellung

Es kommt so lange nicht als Herrschaft und Macht der uumlberlieferten Logik nicht von Grund auf

gebrochen sind Das fordert einen Kampf in dem sich unser geistiges und geschichtliches Schicksal

entscheidet einen Kampf zu dem wir heute noch nicht einmal die Waffen haben und in dem wir heute

noch nicht einmal den Gegner kennen so daβ wir Gefahr laufen unversehens mit dem Gegner

gemeinsame Sache zu machen anstatt ihn anzugreifen Wir muumlssen wissen daβ unsere geistige

Geschichte 2000 Jahre zuruumlck gebunden ist Diese Geschichte ist in ihrer gestaltenden Kraft heute noch

Gegenwart auch wenn die meisten nichts davon ahnenldquo LWS GA 38 89

58

um acaso que os gregos cujo existir quotidiano se tinha colocado

preponderantemente no falar um com o outro e que ao mesmo tempo rdquotinham

olhosrdquo para ver definissem a essecircncia do homem tanto na interpretaccedilatildeo preacute-

filosoacutefica do Dasein como na filosoacutefica como δῷολ ιoacuteγολ ἔχολrdquo66

Se o conceito aristoteacutelico de logos eacute submetido por Heidegger a uma

destruiccedilatildeo fenomenoloacutegica com tal procedimento metodoloacutegico Heidegger

pretende levar a cabo uma desmontagem conceptual que permita reconstruir a

situaccedilatildeo originaacuteria desse conceito Logos no pensamento grego inaugural natildeo

designava a razatildeo mas a identidade essencial entre falar e pensar o homem

eacute para os gregos um ente que fala isto eacute um ente no qual se articula a

compreensatildeo do mundo

Logos neste sentido originaacuterio seraacute traduzido por Heidegger em Ser e Tempo

atraveacutes da palavra alematilde Rede (faladiscurso) e explicitado em Ser e Tempo

como ldquoarticulaccedilatildeo da compreensibilidaderdquo ldquoA fala eacute a articulaccedilatildeo da

compreensibilidade Serve por isso jaacute de base agrave interpretaccedilatildeo e agrave proposiccedilatildeo

O articulaacutevel na interpretaccedilatildeo ou mais originariamente jaacute na fala chamamo-lo

o sentido O articulado na articulaccedilatildeo da fala chamamo-lo enquanto tal o todo

do significadordquo67

A linguagem enquanto logos articula-se originariamente com a questatildeo do ser

e da verdade mas de um outro modo que natildeo aquele que se encontra em

Aristoacuteteles o logos (nesse sentido originaacuterio que agora Heidegger visa

recuperar) natildeo designa a proposiccedilatildeo mas o falar um com o outro no qual se

partilha um sentido comum ou se descobre um mundo na totalidade da sua

significaccedilatildeo

Os quatro momentos estruturais da fala (Rede) que a investigaccedilatildeo

fenomenoloacutegica de Ser e Tempo permitiu aclarar mostram precisamente esta

dimensatildeo simultaneamente totalizante e dialoacutegica da linguagem

66

bdquoIst es Zufall daszlig die Griechen deren alltaumlgliches Existieren sich vorwiegend in das Miteinanderreden

verlegt hatte und die zugleich bdquoAugen hattenldquo zu sehen in der vor philosophischen sowohl wie in der

philosophischen Daseinsauslegung das Wesen des Menschen bestimmten als δῷολ ιoacuteγολ ἔτολldquo SuZ

GA 2 sect34 165 67

bdquoRede ist die Artikulation der Verstaumlndlichkeit Sie liegt daher der Auslegung und Aussage schon

zugrunde Das in der Auslegung urspruumlnglicher mithin schon in der Rede Artikulierbare nannten wir den

Sinn Das in der redenden Artikulation Gegliederte als solches nennen wir das Bedeutungsganzeldquo SuZ

GA 2 sect34 161

59

1 O ldquosobre que se falardquo aponta para a funccedilatildeo de designaccedilatildeo

salientada por Aristoacuteteles a propoacutesito da proposiccedilatildeo cujo sujeito

indica o ente de que se fala Para Heidegger esta funccedilatildeo de

designaccedilatildeo pode contudo ser desempenhada por enunciados

linguiacutesticos natildeo proposicionais como uma ordem ou um desejo

ou uma pergunta

2 O segundo momento estrutural eacute ldquoo que se falardquo isto eacute o que eacute

dito no desejar ordenar perguntar etc e que eacute objecto de

comunicaccedilatildeo

3 O terceiro momento eacute a comunicaccedilatildeo na qual se constitui a

articulaccedilatildeo de ldquoser um com outrordquo

4 O quarto momento eacute a manifestaccedilatildeo ou o expressar-se do estado

de acircnimo pelo tom e a maneira de dizer

Estes 4 momentos apontam inequivocamente para uma concepccedilatildeo de

linguagem que extravasa os limites da proposiccedilatildeo - a fala tem uma estrutura

essencialmente dialoacutegica mesmo quando confinada ao exerciacutecio do

pensamento solitaacuterio pensar eacute falar com o outro como se encontra jaacute

evidenciado na dialeacutectica platoacutenica

Agrave fala (Rede) eacute inerente o ser-com e ela aponta sempre pois para uma

partilha ou um instituir do sentido plano do social de modo que aquele que fala

(e que pensa) eacute sempre jaacute algueacutem que participa dum jogo comunicativo cujas

normas o precedem e condicionam

Cada acto singular de fala exerce-se a partir duma comunhatildeo preacutevia de sentido

que tem uma dimensatildeo simultaneamente compreensiva e afectiva reinstaura e

actualiza essa comunhatildeo ou esse ser-um-com-o-outro ldquoA comunicaccedilatildeo nunca

eacute como um transporte de vivecircncias por exemplo de opiniotildees e desejos do

interior de um sujeito ao interior de outro O ser-aiacute-com eacute essencialmente jaacute

patente na afectividade e compreensatildeo em comum O ser-com eacute partilhado

ldquoexplicitamenterdquo na fala quer dizer jaacute o eacute soacute natildeo eacute partilhado enquanto natildeo

assumido nem apropriadordquo 68

68

bdquoMitteilung ist nie so etwas wie ein Transport von Erlebnissen zum Beispiel Meinungen und

Wuumlnschen aus dem Inneren des einen Subjekts in das Innere des anderen Mitdasein ist wesenhaft schon

60

Se Heidegger tem consciecircncia de seguir o caminho jaacute aberto por Humboldt ao

recuperar este sentido totalizante do logos como discurso instituinte duma

significaccedilatildeo comum ele pretende contudo ir mais longe ldquoA teoria da

significaccedilatildeo natildeo se produz por si comparando as mais e mais diversas liacutenguas

possiacuteveis Tatildeo-pouco basta regressar ao horizonte filosoacutefico dentro do qual W

V Humboldt colocou o problema da linguagem A teoria da significaccedilatildeo tem as

suas raiacutezes na ontologia do Dasein A sua prosperidade e decadecircncia seguem

os destinos destardquo69

A viragem hermenecircutica estaacute aqui claramente indicada como afirmaccedilatildeo radical

da centralidade da linguagem na constituiccedilatildeo da experiecircncia e

simultaneamente como uma viragem que ambiciona tornar-se autenticamente

vigente ultrapassando o plano da simples anaacutelise linguiacutestica em que se movia

Humboldt para cumprir-se no plano da ontologia fundamental Esta viragem

seraacute efectivamente concretizada nos vaacuterios paraacutegrafos de Ser e Tempo

dedicados agrave tarefa de encontrar um lugar ontoloacutegico para a linguagem na

constituiccedilatildeo do ser do homem aiacute conduzindo agrave consideraccedilatildeo de que a

linguagem eacute inerente ao ldquoestado de abertordquo [Erschlossenheit] do Dasein

Assim a elucidaccedilatildeo do estado de aberto do Dasein eacute um aspecto crucial para

compreender a problemaacutetica da linguagem em Ser e Tempo o Dasein move-se

sempre em cada caso num mundo jaacute aberto isto eacute num mundo jaacute

simbolicamente estruturado e por isso mesmo susceptiacutevel de ser

compreendido Mundo natildeo tem por isso o significado ocircntico da totalidade dos

entes ldquodiante dos olhosrdquo que se opotildeem ao Dasein nem tatildeo-pouco o significado

ontoloacutegico do ser desses entes Mundo tem o significado englobante do ldquoem

querdquo o Dasein faacutectico vive e exerce a sua existecircncia e do qual tem sempre uma

compreensatildeo preacute-ontoloacutegica ldquoMundo pode por outro lado ser compreendido

num sentido ocircntico agora poreacutem natildeo como o ente que o Dasein

essencialmente natildeo eacute e que pode encontrar intra-mundanamente mas como o

offenbar in der Mitbefindlichkeit und im Mitverstehen Das Mitsein wird in der Rede bdquoausdruumlcklichrdquo

geteilt das heiszligt es ist schon nur ungeteilt als nicht ergriffenes und zugeeignetesldquo SuZ GA2 sect34 162 69

bdquoDie Bedeutungslehre ergibt sich nicht von selbst durch umfassendes Vergleichen moumlglichst vieler und

entlegener Sprachen Ebensowenig genuumlgt die Uumlbernahme etwa des philosophischen Horizonts innerhalb

dessen W v Humboldt die Sprache zum Problem machte Die Bedeutungslehre ist in der Ontologie des

Daseins verwurzelt Ihr Gedeihen und Verderben haumlngt am Schicksal dieserldquo SuZ GA2 sect34 166

61

ldquoonderdquo um Dasein faacutectico como tal ldquoviverdquo Mundo tem aqui um significado

existencial preacute-ontoloacutegicordquo70

Haacute assim uma conexatildeo estreita entre a linguagem e a estrutura do Dasein

enquanto ser-no-mundo ser-no-mundo significa mover-se no interior duma

abertura ontoloacutegica jaacute aberta na linguagem efectivamente falada e estruturante

dessa totalidade que eacute o mundo A linguagem eacute uma instacircncia uacuteltima inerente

ao estado de aberto do Dasein e que possibilita todo o conhecimento intra-

mundano Nesta funccedilatildeo de abertura de mundo haacute que destacar o seu caraacutecter

globalizante ou holiacutestico integrando toda a articulaccedilatildeo de sentido que eacute

inerente natildeo apenas aos discursos teoacutericos mas muito antes disso e mais

originariamente agrave acccedilatildeo praacutetica do quotidiano ao simples ldquoocupar-se com as

coisas agrave matildeordquo o que mais tarde iraacute tornar possiacutevel a Heidegger a interpretaccedilatildeo

da teacutecnica e da arte como linguagem

A linguagem natildeo estaacute assim prioritariamente ligada ao conhecimento

proposicional e ao comportamento teoreacutetico - como em Aristoacuteteles - sendo este

apenas um caso particular do Besorgen ou do ocupar-se que caracteriza o In-

der-Welt-Sein Tomar este comportamento teoreacutetico como ponto de partida

para a compreensatildeo da linguagem induz uma compreensatildeo restritiva e

empobrecedora da linguagem que assim fica submetida agraves exigecircncias

normativas desse campo de visatildeo ldquoO comportamento praacutetico natildeo eacute ldquoateoreacuteticordquo

no sentido de privado de visatildeo e a sua diferenccedila em relaccedilatildeo ao

comportamento teoreacutetico natildeo reside apenas em que este eacute reflectido e aquele

agido e que a acccedilatildeo para natildeo permanecer cega usa o conhecimento

teoreacutetico mas reflectir eacute originariamente um ocupar-se como o agir tem a sua

visatildeo O comportamento teoreacutetico eacute soacute ver numa direcccedilatildeo precisa privado de

visatildeo englobante O ver numa direcccedilatildeo natildeo eacute porque privado de visatildeo agrave volta

sem regras constroacutei para si o seu cacircnone no Meacutetodordquo71

70

bdquoWelt kann wiederum in einem ontischen Sinn verstanden werden jetzt aber nicht als das Seiende das

das Dasein wesenhaft nicht ist und das innerweltlich begegnen kann sondern als das ldquoworinrdquo ein

faktisches Dasein als dieses ldquolebtrdquo Welt hat hier eine vorontologisch existentielle Bedeutungrdquo SuZ GA

2 sect14 65 71

bdquoDas ldquopraktischerdquo Verhalten ist nicht ldquoatheoretischrdquo im Sinne der Sichtlosigkeit und sein Unterschied

gegen das theoretische Verhalten liegt nicht nur darin daβ hier betrachtet und dort gehandelt wird und

daβ das Handeln um nicht blind zu bleiben theoretisches Erkennen anwendet sondern das Betrachten ist

so urspruumlnglich ein Besorgen wie das Handeln seine Sicht hat Das theoretische Verhalten ist

unumsichtiges Nur-hinsehen Das Hinsehen ist weil unumsichtig nicht regellos seinen Kanon bildet es

sich in der Methoderdquo SuZ GA 2 sect 15 69

62

Rompendo com uma concepccedilatildeo excessivamente restritiva da linguagem que

se encontra instituiacuteda em Aristoacuteteles Heidegger recupera a compreensatildeo mais

originaacuteria da linguagem como esse logos comum de que jaacute falava Heraclito

permitindo-lhe afirmar que ldquotodas as coisas satildeo umrdquo A temaacutetica ontoloacutegica estaacute

assim para Heidegger intrinsecamente ligada com esta funccedilatildeo de ldquoabrir

mundordquo que ele afirma como a funccedilatildeo primeira da linguagem eacute a linguagem

que fixa e institui o sentido do ser em geral

Sendo a linguagem o fio condutor para o esclarecimento da problemaacutetica

ontoloacutegica eacute na confrontaccedilatildeo com Aristoacuteteles e na destruiccedilatildeo de uma

concepccedilatildeo simultaneamente normativa e restritiva do logos que esta temaacutetica

poderaacute ser cabalmente compreendida72

2 O logos hermenecircutico e o logos apofacircntico

Trata-se em primeiro lugar para Heidegger de enfrentar a tradiccedilatildeo filosoacutefica

que traduziu e interpretou logos como rdquo[] razatildeo juiacutezo conceito definiccedilatildeo

fundamento proporccedilatildeordquo O questionamento de Heidegger centra-se na questatildeo

de saber porque se interpretou logos no sentido de proposiccedilatildeo e de juiacutezo ou

seja como siacutentese de conceitos que na sua perspectiva tem a funccedilatildeo de

permitir ver algo em seu estar junto com algo permitir ver algo como algo

A siacutentese implicada nos enunciados verbais que classificamos como

proposiccedilotildees funda-se na funccedilatildeo primordial atribuiacuteda por Aristoacuteteles agrave

linguagem e por ele designada de ἀποθαίλεζζαη (dar a ver algo como algo) A

confrontaccedilatildeo com Aristoacuteteles vai centrar-se nesta primazia atribuiacuteda pelo

filoacutesofo grego agrave funccedilatildeo apofacircntica da linguagem ldquoιoacuteγος no sentido da fala quer

dizer antes o mesmo que δειοῦλ fazer patente ldquoaquilo de que se falardquo na fala

Aristoacuteteles explicou com mais rigor esta funccedilatildeo da fala chamando-lhe

ἀποθαίλεζζαηrdquo73

72

Cf Tatiana Aguilar-Aacutelvarez Bay em El Lenguaje en el Primer Heidegger (Meacutexico 1998) A autora

defende a tese de que Ser e Tempo se desenrola agrave volta do problema central da loacutegica como ciecircncia da

verdade e que eacute nesse contexto que a linguagem assume especial relevacircncia Heidegger reformula o

conceito de logos deslocando o conceito de verdade para a linguagem tema transversal a toda a obra e de

modo algum circunscrita ao apartado que se lhe dedica (Idem ob cit 283) 73

bdquoλoacuteγος als Rede besagt vielmehr soviel wie δελοῦν offenbar machen das wovon in der Rede rdquodie

Rederdquo ist Aristoteles hat diese Funktion der Rede schaumlrfer expliziert als ἀποφαίνεζζαηldquo SuZ GA 2 sect7

32

63

A funccedilatildeo apofacircntica atribui ao logos a possibilidade de dar a ver aquilo de que

se fala aos que falam uns com os outros recobrindo assim simultaneamente a

funccedilatildeo de designaccedilatildeo proacutepria do sujeito da proposiccedilatildeo (que torna patente

aquilo que designa) e a funccedilatildeo de atribuiccedilatildeo inerente agrave predicaccedilatildeo ou

ςύλζεζης que natildeo satildeo aliaacutes distinguidas por Heidegger Na criacutetica ao ldquodar a

ver algo como algordquo caracteriacutestico do logos apofacircntico Heidegger visa

sobretudo o facto de Aristoacuteteles considerar os enunciados verbais como

designando directamente as coisas ldquodiante dos olhosrdquo

E porque a funccedilatildeo da linguagem para Aristoacuteteles consiste no simples permitir

ver algo o mostrado enquanto tal o uumlποθείκελολ o que ldquoestaacute diante dos

olhosrdquo o logos poderaacute tambeacutem ser interpretado como significando razatildeo de

ser ou ratio

Esta funccedilatildeo de designaccedilatildeo dos entes tomada como funccedilatildeo primaacuteria da

linguagem deixa poreacutem de lado a questatildeo do sentido - daiacute que Heidegger

pressuponha natildeo a falsidade da funccedilatildeo apofacircntica da linguagem afirmada por

Aristoacuteteles mas o seu caraacutecter secundaacuterio e derivado Uma funccedilatildeo anterior e

mais fundamental da linguagem eacute por ele pressuposta sob a designaccedilatildeo de

ldquologos hermenecircuticordquo O logos hermenecircutico pode mostrar-se no acto

antepredicativo do simples compreender as coisas agrave matildeo

Heidegger vai em seguida questionar-se sobre o conceito de verdade

dominante na tradiccedilatildeo metafiacutesica a verdade como concordacircncia salientado o

seu caraacutecter superficial e derivado ldquoEsta ideia natildeo eacute em nenhum caso a

primaacuteria no conceito de ἀιήζεηα O ser verdade do ιόγος como ἀιεζεύεηλ quer

dizer no ιέγεηλ como ἀποθαίλεζζαη extrair do seu ocultamento o ente de que

se fala e permitir vecirc-lo descobri-lo como natildeo oculto (ἀιεζές)rdquo74

Aprofundando o seu questionamento sobre a possibilidade ontoloacutegica deste

extrair do ocultamente Heidegger conclui que esta radica no proacuteprio Dasein e

na sua constituiccedilatildeo ontoloacutegica que tem em si mesma a possibilidade de uma

atitude de desocultaccedilatildeo e de abertura relativamente aos entes

74

bdquoDiese Idee ist keinesfalls die primaumlre im Begriff der ἀλήζεηα Das bdquoWahrseinrdquo des λόγος als ἀλεζεύεην

besagt das Seiende wovon die Rede ist im λέγεην als ἀποφαίνεζζαη aus seiner Verborgenheit heraus

nehmen und es als Unverborgenes (ἀλεζές) sehen lassen entdeckenldquo SuZ GA sect7 33

64

Esta atitude natildeo se restringe de modo algum ao logos apofacircntico ou aos

enunciados proposicionais mas eacute antes de mais inerente agrave proacutepria aisthesis e

ao noein este confronto com Aristoacuteteles tem como resultado salientar o

caraacutecter secundaacuterio e derivado dos enunciados proposicionais e a

necessidade de alargar e radicalizar o conceito de logos de modo a dar conta

e a recobrir esta atitude de desocultaccedilatildeo e abertura inerentes ao Dasein

O logos hermenecircutico eacute a expressatildeo encontrada por Heidegger para indicar

esta perspectiva globalizante em que agora se encara a fala de facto

Heidegger aponta para uma linguagem antepredicativa inerente ao Dasein

como ser-no-mundo isto eacute a uma atitude compreensiva e interpretativa do

mundo englobante que fundamenta a possibilidade da linguagem expressa

dos enunciados verbais numa qualquer liacutengua e ainda dos enunciados

proposicionais inerentes a uma atitude teoreacutetica75

Haacute para Heidegger uma linguagem (logos) inerente aos modos preacute-teoreacuteticos

de relacionamento do Dasein com o mundo agrave volta e com os entes intra-

mundanos uma vez que este modo de relacionamento mesmo enquanto

praxis se mostra enquanto um rdquotratar comrdquo orientado para um rdquopara querdquo que

estrutura uma situaccedilatildeo significativa que em cada caso existe Em conformidade

com isto Heidegger diraacute no sect 32 de Ser e Tempo ldquoA indicaccedilatildeo do rdquopara quecircrdquo

natildeo eacute simplesmente o nomear algo mas o nomeado eacute compreendido como

aquilo pelo que haacute que tomar aquilo pelo que se pergunta O aberto no

compreender o compreendido eacute sempre jaacute acessiacutevel de tal maneira que nele

pode destacar-se expressamente o seu rdquocomo quecircrdquo O rdquocomordquo constitui a

estrutura do estado de expresso de algo compreendido constitui a

interpretaccedilatildeo O rdquoandar em tornordquo interpretando no rdquover em tornordquo com o rdquoagrave-

matildeordquo no mundo circundante que o ldquovecircrdquo como mesa porta carro ponte natildeo

necessita forccedilosamente de explicitar o interpretado no rdquover em tornordquo tambeacutem

75

A afirmaccedilatildeo do primado do logos hermenecircutico eacute uma questatildeo central relativamente agrave investigaccedilatildeo

levada a cabo em Ser e Tempo pois conecta-se com a dimensatildeo ontoloacutegica da linguagem ldquoNos

encontramos ante un punto decisivo en la interpretacioacuten heideggeriana del habla La distincioacuten que lleva a

cabo a continuacioacuten explica el alcance que atribuye al lenguaje maacutes adelante La estructura-como que

estaacute en la base del significar se distingue de la siacutentesis y la diaacuteiresis como lo ontoloacutegico de lo loacutegico En

la comprensioacuten que se deriva de la estructura-como nos hacemos con lo que las cosas son no soacutelo con

alguna de sus notas El significado el sentido de algo se da en este aacutembitordquo Tatiana Aguilar-Aacutelvarez

Bay El Lenguaje en el Primer Heidegger 76-77

65

numa proposiccedilatildeo determinante Todo o simples ver antepredicativamente o rdquoagrave-

matildeordquo eacute jaacute em si mesmo interpretativo-compreensorrdquo 76

O simples ver das coisas eacute sempre jaacute uma articulaccedilatildeo da inteligibilidade eacute-lhe

subjacente a compreensatildeo de algo como algo (Als-Struktur)77 que configura

uma funccedilatildeo de abertura ou de interpretaccedilatildeo que eacute inerente ao Dasein

enquanto ser-no-mundo Eacute essa possibilidade que possui o Dasein de olhar agrave

volta compreendendo que faz com que ldquoo mundordquo esteja sempre jaacute

compreendido e interpretado ldquoO olhar agrave volta descobre significa ldquoo mundordquo jaacute

compreendido eacute interpretado O ldquoagrave-matildeordquo entra expressamente no campo do ver

compreensorrdquo78

Heidegger sublinha vaacuterias vezes em Ser e Tempo que esta articulaccedilatildeo da

inteligibilidade eacute preacutevia a qualquer enunciado temaacutetico sobre as coisas que

qualquer enunciado se limita a expressar o rdquocomordquo previamente apropriado

pela interpretaccedilatildeo compreensiva do mundo agrave volta e ainda que esta

apropriaccedilatildeo preacutevia deve jaacute estar presente para que possa ser expressaacutevel num

qualquer enunciado A fala (Rede) eacute precisamente essa articulaccedilatildeo da

inteligibilidade preacutevia a qualquer enunciado e fundante de qualquer discurso

linguiacutestico para os quais Heidegger reserva o termo alematildeo de Sprache

A destruiccedilatildeo fenomenoloacutegica como desmontagem do conceito aristoteacutelico do

logos apofantikos teve pois como resultado possibilitar uma aproximaccedilatildeo da

experiecircncia faacutectica de vida e uma tentativa de reconstruccedilatildeo do conceito de

logos fiel a essa experiecircncia originaacuteria da fala como articulaccedilatildeo totalizante de

sentido em que afinal consiste ldquoum mundordquo ldquoOs entes intra-mundanos satildeo

projectados sem excepccedilatildeo sobre o fundo de mundo isto eacute sobre um todo de

76

bdquoDie Angabe des Wozu ist nicht einfach die Nennung von etwas sondern das Genannte ist verstanden

als das als welches das in Frage stehende zu nehmen ist Das im Verstehen Erschlossene das

Verstandene ist immer schon so zugaumlnglich daβ an ihm sein bdquoals wasrdquo ausdruumlcklich abgehoben werden

kann Das bdquoAlsrdquo macht die Struktur der Ausdruumlcklichkeit eines Verstandenen aus es konstituiert die

Auslegung Der umsichtig-auslegende Umgang mit dem umweltlich Zuhandenen der dieses als Tisch

Tuumlr Wagen Bruumlcke bdquosiehtldquo braucht das umsichtig Ausgelegte nicht notwendig auch schon in einer

bestimmenden Aussage auseinander zu legen Alles vorpraumldikative schlichte Sehen des Zuhandenen ist an

ihm selbst schon verstehend-auslegendldquo SuZ GA 2 sect32 149 77

Joatildeo Paisana chama a atenccedilatildeo para a distinccedilatildeo entre a estrutura ldquoenquanto querdquo (Als-Strucktur)

hermenecircutica (isto eacute ante-predicativa) e a estrutura ldquoenquanto querdquo apofacircntica (predicativa) Cf idem

Histoacuteria da Filosofia e Tradiccedilatildeo Filosoacutefica Lisboa 1993 37 78

ldquoDie Umsicht entdeckt das bedeutet die schon verstandene ldquoWeltrdquo wird ausgelegt Das Zuhandene

kommt ausdruumlcklich in die verstehende Sichtrdquo SuZ GA 2 sect32 148

66

significaccedilatildeo a cujas relaccedilotildees de referecircncia se fixou antecipadamente o ldquoocupar-

se comrdquo enquanto ldquoser no mundordquordquo79

3 Linguagem facticidade e existecircncia

A fenomenologia hermenecircutica limita-se a dar a conhecer e a tornar expliacutecita

essa articulaccedilatildeo da inteligibilidade que o Dasein realiza inexplicitamente e a

levaacute-la progressivamente a uma compreensatildeo expressa Mediante a

interpretaccedilatildeo hermenecircutica realizada em Ser e Tempo Heidegger poderaacute

mostrar que a linguagem deve ser apreendida como a experiecircncia viva da

unidade entre pensar e falar integrando-a no contexto concreto da existecircncia

Assim procede-se a uma deslocaccedilatildeo total do acircngulo de abordagem do

fenoacutemeno linguiacutestico Compreender a linguagem eacute caminhar na via da auto-

interpretaccedilatildeo do Dasein natildeo como um Dasein ideal mas como um Dasein

faacutectico tal como ele vive ou existe em cada dia

Trata-se duma rdquoviragem copernicanardquo no modo de aceder agrave linguagem que

natildeo pode ser tomada como objecto dum discurso cientiacutefico nem de qualquer

intenccedilatildeo normativa escapando inteiramente quer agrave loacutegica tradicional quer agrave

gramaacutetica que lhe foi historicamente subordinada Aceder agrave linguagem implica

compreendecirc-la teoricamente sem deixar de ser fiel agrave nossa experiecircncia viva da

fala

Fiel a esta intenccedilatildeo de tomar como ponto de partida para investigar a

linguagem o Dasein faacutectico enquanto ser jaacute sempre lanccedilado no mundo

Heidegger vai mostrar que o Dasein experiencia-se no seu caraacutecter

fundamental de aberto na modalidade fundamental da Erschlossenheit

enquanto se ocupa dos entes agrave-matildeo e eacute com-os-outros Tomando como ponto

de partida a praxis vital quotidiana - o homem enquanto eacute junto dos entes intra-

mundanos em e pelo cuidado (Sorge) - Heidegger vai mostrar e identificar

fenomenologicamente os modos de relacionamento (Verhaltungen) implicados

no estar ocupado com os entes junto dos quais estamos

79

bdquoDas innerweltlich Seiende uumlberhaupt ist auf Welt hin entworfen das heiβt auf ein Ganzes von

Bedeutsamkeit in deren Verweisungsbezuumlgen das Besorgen als In-der-Welt-sein sich im vorhinein

festgemacht hatldquo SuZ GA 2 sect32 151

67

Neste mostrar e identificar fenomenologicamente as vaacuterias modalidades de

relacionamento Heidegger vai indicar dois modos essencialmente praacuteticos o

Besorgen ou estar ocupado com os entes-agrave-matildeo ldquocuidando derdquo e o Fuumlrsorgen

ou o ldquopreocupar-se comrdquo os entes que tecircm a forma do Dasein (solicitude) Eacute

partindo destas relaccedilotildees praacuteticas do Dasein com os entes que a fenomenologia

hermenecircutica de Heidegger vai pocircr agrave mostra e identificar aquilo que desde o

princiacutepio Heidegger se propotildee investigar o ser do ente

Todavia eacute sabido que Heidegger iraacute encontrar uma diversidade de modos de

ser de que destacamos pela sua pertinecircncia para a temaacutetica da linguagem a

existecircncia (Existenz) o estar-agrave-matildeo (Zuhandensein) e o estar diante dos olhos

(Vorhandensein)

Existecircncia80 eacute o modo de ser proacuteprio do homem que tem como particularidade

ontoloacutegica levar em si mesmo o seu proacuteprio ser ou referir-se a uma

possibilidade de ser ldquoO Dasein determina-se como ente em cada caso

partindo de uma possibilidade que ele eacute e que no seu ser compreende de

alguma maneira Este eacute o sentido formal de o Dasein ter por constituiccedilatildeo a

existecircnciardquo81

O estar-agrave-matildeo eacute o ente de que na praacutetica me sirvo e que assim constituo como

utensiacutelio ou como ldquomeio parardquo e que quando objecto de uma consideraccedilatildeo

80

Cf Tatiana Aguilar-Aacutelvarez Bay em El Lenguaje en el Primer Heidegger rebatendo a leitura de Ser e

Tempo centrada na temaacutetica da existecircncia defende que a necessidade de um desvio para a analiacutetica da

existecircncia em Ser e Tempo deriva da tendecircncia do Dasein a interpretar o seu ser reflexivamente sem se

aperceber que as categorias vaacutelidas para os restantes entes satildeo inadequadas para a existecircncia (sendo esta

temaacutetica secundaacuteria e subordinada agrave questatildeo central explanaccedilatildeo original do tempo como horizonte da

compreensatildeo do ser) ldquoEn la ldquoIntroduccioacutenrdquo Heidegger adelanta lo que va a ser el resultado final de Ser y

Tiempo que tambieacuten se refleja en el tiacutetulo de la obra el sentido del ser del Dasein es la temporalidad

Puesto que en el Dasein se da la comprensioacuten del ser El cometido de la analiacutetica existencial consiste en

mostrar que el tiempo posibilita la comprensioacuten del ser rdquohellipaquello desde lo cual el Dasein en general se

comprende e interpreta aunque no expresamente lo que se dice ldquoserrdquo es el tiempo [hellip] Para hacerlo

evidente asiacute se ha menester de una explanacioacuten original del tiempo como horizonte de la comprensioacuten

del ser partiendo de la temporalidad como ser del Dasein que comprende el Serrdquo

Queda asiacute establecido el criterio seguacuten el cual se efectuacutea la destruccioacuten de la ontologiacutea Levarla a cabo

significa decidir acerca de si se reconoce la funcioacuten ontoloacutegica primordial del tiempo

Independientemente de que se advierta o no el tiempo es el horizonte desde el cual se patentiza el ente

Sin embargo el no hacerlo expliacutecito da lugar al modelo ontoloacutegico que Heidegger pretende superar la

sustancializacioacuten de la temporalidad o el predominio de la presencia Este esquema impide que se

advierta la pertenencia del tiempo a la comprensioacuten del ser y por consiguiente la necesidad de hacer del

anaacutelisis del Dasein el hilo conductor de la ontologiacutea La raiacutez de esta desviacioacuten estaacute en la tendencia del

Dasein a interpretar su ser reflejamente sin darse cuenta de que las categoriacuteas vaacutelidas para el resto de los

entes son inadecuadas para la existencia Superar esta confusioacuten compete a la analiacutetica existenciaacuterias en

tanto que ontologigravea fundamentalrdquo (Idem ob cit 126-127) 81

bdquoDas Dasein bestimmt sich als Seiendes je aus einer Moumlglichkeit die es ist und in seinem Sein

irgendwie versteht Das ist der formale Sinn der Existenzverfassung des Daseinsldquo SuZ GA 2 sect9 43

68

teoreacutetica se pode converter num estar-perante assumindo a condiccedilatildeo de ente

rdquodiante dos olhosrdquo de um observador desinteressado

Tal natildeo eacute o caso da existecircncia como modo de ser que me eacute proacuteprio e que me

diferencia de todo o ente junto de qual habito a existecircncia eacute enquanto modo

de ser uma relaccedilatildeo ao ser (Seinsverhaltnis) o modo de ser do ente que se

relaciona consigo mesmo na medida em que se compreende no seu ser

Esta relaccedilatildeo ao ser que eacute inerente agrave existecircncia constitui o fundamento

ontoloacutegico do caraacutecter aberto do Dasein e configura esta abertura como tendo

simultaneamente um caraacutecter praacutetico expresso no Besorgen e Fuumlrsorgen e

loacutegico-linguiacutestico enquanto compreensivo-interpretativo do sentido englobante

e inerente aos vaacuterios modos de ser Estes dois aspectos praacutetico e loacutegico-

linguiacutestico natildeo podem aliaacutes em rigor ser distinguidos

Em Heidegger tenta-se remontar a qualquer coisa anterior agraves distinccedilotildees

categoriais aristoteacutelicas de teoria poiesis e praxis que a tradiccedilatildeo metafiacutesica

nos legou como domiacutenios da ciecircncia da teacutecnica e da acccedilatildeo eacutetica indicando

uma instacircncia fundadora mais originaacuteria que lhes subjaz e as fundamenta e

que eacute precisamente a linguagem enquanto fala (Rede)

O caraacutecter aberto do Dasein reside precisamente na linguagem enquanto fala

(Rede) ou articulaccedilatildeo da inteligibilidade A fala eacute inerente ao homem que pode

bem ser definido como Heidegger bem salienta comentando Aristoacuteteles como

o ser que fala E a abertura (Welterschlieszligung) instaurada pela linguagem

enquanto fala eacute uma abertura ontoloacutegica ou seja tem a funccedilatildeo de deixar ver

de iluminar e eacute a proacutepria iluminaccedilatildeo onde o ser se desvela e pode sair da

ocultaccedilatildeo82

Heidegger retoma pois a funccedilatildeo de abertura de mundo que Humboldt jaacute

assinalara agrave linguagem dando-lhe no entanto uma importacircncia central e

decisiva porque directamente relacionada com o problema ontoloacutegico A

linguagem eacute originariamente natildeo um meio de comunicaccedilatildeo ou instrumento

como os outros mas uma estrutura existenciaacuteria do Dasein na qual se

82

Cf Tatiana Aguilar-Aacutelvarez Bay rdquoEl habla compete al hombre no en funcioacuten de su particularidad sino

porque ser al modo del Dasein significa ser en el Da estar de antemano en la apertura En este sentido

aunque el habla determina formalmente al Dasein-hombre es una instancia que lo transciende Es decir

el habla es impronta del ser que hay en la existencia el punto de contacto entre lo irrestricto ordene en el

que se basa su universalidad y el Dasein en el que se ejercerdquo (Idem El Lenguaje en el Primer Heidegger

283)

69

configura a sua abertura ontoloacutegica ou a sua possibilidade de uma

compreensatildeo do ser

Assim a distinccedilatildeo entre Rede e Sprache acompanha e ajuda a esclarecer a

distinccedilatildeo entre o plano ocircntico dos entes e o plano ontoloacutegico do ser ldquoOs entes

satildeo independentemente da experiecircncia do saber e dos conceitos com que se

abrem descobrem e definem Mas o ser soacute ldquoeacuterdquo na compreensatildeo do ente a cujo

ser eacute inerente o que se chama compreensatildeo do ser Daiacute que o ser possa natildeo

ser aprisionado em conceitos mas que nunca seja de todo incompreendidordquo83

Contudo natildeo eacute suficiente mostrar que uma compreensatildeo preacute-ontoloacutegica eacute

inerente ao Dasein enquanto ser que fala mas Heidegger tem em vista

esclarecer as condiccedilotildees de possibilidade de tal compreensatildeo radicando-as na

estrutura da existecircncia Ora afirmar que ldquoa essecircncia do Dasein estaacute na sua

existecircnciardquo significa dizer que este se determina como ente em cada caso

partindo duma possibilidade que ele eacute e que compreende no seu ser

Apropriando-se duma possibilidade de ser o Dasein projecta uma

compreensatildeo do ser abrindo em cada caso ldquoum mundordquo Esta abertura

(Erschlossenheit) corresponde ao estar descerrado (Aufgeschlossenheit) do ser

dos entes ao estar descoberto do ser que se encobre e que proporciona sob o

modo do desvelamento (Unverborgenheit) a experiecircncia do acontecer da

verdade

A verdade jaacute natildeo eacute primariamente um atributo da proposiccedilatildeo nem remete para

uma primazia do discurso cientiacutefico como tem sido afirmado pela tradiccedilatildeo

filosoacutefica dominante no ocidente84 mas a verdade pertence em primeiro lugar

ao proacuteprio Dasein pois eacute ele que enquanto responsaacutevel pelo desvelamento

que eacute o acontecer da verdade eacute em primeiro lugar verdadeiro85

83

bdquoSeiendes ist unabhaumlngig von Erfahrung Kenntnis und Erfassen wodurch es erschlossen entdeckt und

bestimmt wird Sein aber ldquoistrdquo nur in Verstehen des Seienden zu dessen Sein so etwas wie

Seinsverstaumlndnis gehoumlrt Sein kann daher unbegriffen sein aber es ist nie voumlllig unverstandenrdquo SuZ GA

2 sect39 183 84

No sect44 de Ser e Tempo Heidegger resume em trecircs teses fundamentais a concepccedilatildeo tradicional da

essecircncia da verdade 1 o lugar da verdade eacute o juiacutezo 2 a essecircncia da verdade reside na correspondecircncia

do juiacutezo com o seu objecto 3 Aristoacuteteles remeteu o lugar da verdade ao juiacutezo e inaugurou a definiccedilatildeo da

verdade como correspondecircncia

A estrateacutegia de Heidegger para criticar este conceito de verdade eacute uma estrateacutegia de confrontaccedilatildeo natildeo

apenas com a verdade como correspondecircncia de Aristoacuteteles mas tambeacutem com o criteacuterio de evidecircncia

avanccedilado pelas filosofias da consciecircncia Cf Cristina Lafont (Lenguaje y apertura del mundo 158-159) 85

Em Ser e Tempo a verdade do enunciado soacute eacute possiacutevel sobre a base do estado de descoberto

(Entdeckheit) entendido como estado de aberto dos entes intramundanos isto eacute o enunciado soacute pode

70

Assim perguntar pela verdade dum discurso teoreacutetico como o discurso

filosoacutefico implica retornar agraves condiccedilotildees faacutecticas da produccedilatildeo desse discurso e

ao modo proacuteprio ou improacuteprio como aquele que fala exerce a sua existecircncia

De facto o Dasein por ser em cada caso a sua possibilidade pode ldquoescolher-

serdquo a si mesmo apropriando-se por si mesmo para si mesmo ou pelo

contraacuterio estar perdido de si mesmo e natildeo chegar a ganhar-se nunca86

A impropriedade que acompanha o exerciacutecio concreto da existecircncia do Dasein

enquanto trabalha e se atarefa com as coisas agrave-matildeo natildeo tem um sentido

negativo mas ela eacute uma determinaccedilatildeo positiva do Dasein que se revela

extremamente importante para compreender a sua possibilidade de retornar a

si mesmo e de exercer de modo apropriado a fala87

4 O estado de aberto do Dasein e o projecto lanccedilado

Este enraizamento existencial da verdade de todo o discurso teoreacutetico pode ser

mais claramente compreendido a partir da ideia de ldquoprojecto lanccediladordquo

(geworfene Entwurf) que desempenha um papel central na tematizaccedilatildeo

heideggeriana da funccedilatildeo hermenecircutica da linguagem

A noccedilatildeo de projecccedilatildeo fundamenta-se na constituiccedilatildeo ontoloacutegica do homem

enquanto ex-sistecircncia isto eacute como ser que se determina em cada caso a partir

de uma possibilidade que ele compreende no seu ser A categoria da

possibilidade eacute ldquoa mais originaacuteria determinaccedilatildeo do ser do homemrdquo pois tudo o

que faz faacute-lo em referecircncia a possibilidades que fazem parte do que ele eacute ldquoO

Dasein natildeo eacute rdquoalgo diante dos olhosrdquo que possua como qualidade adicional a

produzir-se sobre um fundo de mundo jaacute aberto e essa abertura haacute-de jaacute ter acontecido sempre

previamente delimitando as possibilidades dos enunciados dotados de sentido Cf Ibidem 166 86

O estado de aberto dos entes intramundanos constitui-se atraveacutes do estado de aberto do Dasein e eacute

neste que se encontra o fenoacutemeno mais originaacuterio da verdade ldquoEl ldquoestado de abiertordquo se constituye a

traveacutes del ldquoencontrarserdquo el comprender y el habla y concierne cooriginariamente al mundo al ldquoser enrdquo y

al ldquosigrave mismordquordquo Ibidem 181 87

Cf Tatiana Aguilar-Aacutelvarez Bay bdquoExistencia formalmente significa bdquoser relativamente aldquo Esto es un

modo de ser al que le es propio hacerse o proyectarse mediante el ejercicio de las propias posibilidades

En cuanto que existir eacute no tener maacutes remedio que hacerse cargo del propio ser Heidegger lo caracteriza

como ser en cada caso miacuteo como aquello de lo que no puedo desentenderme De aquiacute se sigue que el

Dasein pueda ser impropia o propiamente En el modo de ser de la impropiedad la existencia no sufre

menoscabe no es menos es en una de sus posibles modalidadesldquo (Idem El Lenguaje en el Primer

Heidegger 130-131)

71

de poder algo mas eacute primariamente rdquoser possiacutevelrdquo O Dasein eacute em cada caso

aquilo que ele pode ser e tal como eacute a sua possibilidaderdquo 88

A estrutura deste poder ser eacute o ldquoprojectordquo (Entwurf) que natildeo deve ser

entendido como planificaccedilatildeo deliberada mas como a proacutepria forma de ser do

homem na medida em que ele estaacute sempre orientado em direcccedilatildeo aos seus

possiacuteveis89

Contudo este projecto natildeo deve ser entendido como um projectar-se em

direcccedilatildeo a infinitas possibilidades mas estaacute ele mesmo circunscrito e limitado

pela estrutura formal constituiacuteda pelos trecircs existenciaacuterios da Befindlichkeit do

Verstehen e da Rede

A Befindlichkeit ou seja o sentir-se afectado do Dasein no meio da totalidade

dos entes testemunha a sua condiccedilatildeo faacutectica a sua natureza de projecto

lanccedilado enquanto de-jecccedilatildeo a partir de um onde que se desconhece e numa

direcccedilatildeo que tambeacutem eacute desconhecida A afectividade (Befindlichkeit) eacute o modo

como em cada caso o Dasein eacute afectado pela sua facticidade ou pela sua

condiccedilatildeo de estar sempre jaacute previamente lanccedilado que marca a sua

irremediaacutevel finitude ldquoO ser tornou-se patente como uma carga Porquecirc natildeo se

sabe E o Dasein natildeo pode saber coisa semelhante porque as possibilidades

de rdquoabrirrdquo de que dispotildee o conhecimento permanecem demasiado curtas frente

ao rdquoabrirrdquo originaacuterio dos estados de acircnimo nos quais o Dasein eacute trazido diante

do seu ser como rdquoaiacuterdquordquo 90

A Befindlichkeit eacute o fundamento existenciaacuterio dos diversos estados de acircnimo

ou Stimmungen ocircnticos como o medo a anguacutestia ou o espanto ldquoO que

designamos ontologicamente com o termo afectividade eacute onticamente o mais

conhecido e trivial a tonalidade afectiva o estar afinadordquo 91

88

bdquoDasein ist nicht ein Vorhandenes das als Zugabe noch besitzt etwas zu koumlnnen sondern es ist primaumlr

Moumlglichsein Dasein ist je das was es sein Kann und wie es seine Moumlglichkeit istldquo SuZ GA 2 sect31 143 89

O projecto eacute um projecto hermenecircutico ou um projecto de constituiccedilatildeo de sentido que desvela e abre

um mundo Equiparando este projecto de sentido com a verdade Heidegger pode negar ao conceito de

verdade as propriedades de validade universal necessidade e intemporalidade (CfCristina Lafont

Lenguaje y apertura del mundo 188-189) 90

bdquoDas Sein ist als Last offenbar geworden Warum weiszlig man nicht Und das Dasein kann dergleichen

nicht wissen weil die Erschlieszligungsmoumlglichkeiten des Erkennens viel zu kurz tragen gegenuumlber dem

urspruumlnglichen Erschlieszligen der Stimmungen in denen das Dasein vor sein Sein als Da gebracht istldquo SuZ

GA 2 sect29 134 91

bdquoWas wir ontologisch mit dem Titel Befindlichkeit anzeigen ist ontisch das Bekannteste und

Alltaumlglichste die Stimmung das Gestimmtseinldquo SuZ GA 2 sect29 134

72

A importacircncia da afectividade ou do pathos para a instacircncia da linguagem

enquanto discurso persuasivo era jaacute tema analisado por Aristoacuteteles na

Retoacuterica mas vecirc-se aqui retomada por Heidegger de um modo muito mais

originaacuterio ela eacute a instacircncia que em primeiro lugar abre o Dasein de um modo

inteiramente involuntaacuterio e de um modo igualmente decisivo para a totalidade

daquilo que eacute revelando-o na sua problematicidade Este estado de aberto em

que o Dasein se encontra nos estados de acircnimo abre o mundo como um todo e

torna possiacutevel referir-se a essa totalidade ou o exerciacutecio apropriado de o ldquoIn-

der-Welt-Seinrdquo

Este reconhecimento da importacircncia da afectividade como momento estrutural

do estado de aberto do Dasein natildeo remete no entanto para um irracionalismo

ou para a negaccedilatildeo do papel da razatildeo na compreensatildeo do mundo apelando

apenas para a existecircncia de um modo de rdquoevidecircnciardquo mais originaacuterio que a

evidecircncia racional Na Befindlichkeit o Dasein encontra-se sempre jaacute num

determinado estado de acircnimo que o coloca diante do seu aiacute como enigma

Contudo a Befindlichkeit remete a maior para das vezes o Dasein para uma

fuga a si mesmo cuja constituiccedilatildeo existenciaacuteria eacute designada por Heidegger

como rdquoquedardquo ldquoA afectividade natildeo se limita a abrir o Dasein no seu estado de

lanccedilado e no seu estado de referido ao mundo aberto em cada caso jaacute com o

seu ser eacute inclusivamente a forma de ser existenciaacuteria em que o Dasein se estaacute

entregando constantemente ao rdquomundordquo se deixa rdquoferirrdquo por este de tal forma

que de certo modo se esquiva a si mesmo A constituiccedilatildeo existenciaacuteria de

este esquivar-se ficaraacute clara no fenoacutemeno da quedardquo92

A afectividade lanccedila o Dasein para o mundo fazendo como ele se lhe refira no

modo da abertura ou do fechamento Esta oscilaccedilatildeo entre o existir em

propriedade e o existir inautecircntico que faz do homem um ser instaacutevel e

ambiacuteguo radica neste fundo obscuro de emoccedilotildees que dominam a sua

experiecircncia do mundo Longe de ser um constructo humano a experiecircncia vem

ao encontro do homem e arrasta-o por razotildees desconhecidas e de modo

inesperado toda a experiecircncia decisiva arrasta o ser do homem domina-o

92

bdquoDie Befindlichkeit erschlieszligt nicht nur das Dasein in seiner Geworfenheit und Angewiesenheit auf die

mit seinem Sein je schon erschlossene Welt sie ist selbst die existenziale Seinsart in der es sich staumlndig

an die bdquoWeltrdquo ausliefert sich von ihr angehen laumlszligt derart daszlig es ihm selbst in gewisser Weise ausweicht

Die existenziale Verfassung dieses Ausweichens wird am Phaumlnomen des Verfallens deutlich werdenldquo

SuZ GA 2 sect29 139

73

transforma-o e eacute por ele sofrida rdquode ponta a pontardquo como se indica no termo

grego pathos Eacute essa condiccedilatildeo patoloacutegica da experiecircncia que se indica no

existenciaacuterio da Befindlichkeit e que mais tarde iraacute ser referida por Heidegger

agraves diversas Stimmungen epocais e relacionadas com o devir da histoacuteria

universal e o obscuro domiacutenio da temporalidade (Zeitlichkeit)

O Verstehen (compreensatildeo) natildeo tem uma dimensatildeo cognoscitiva mas

relaciona-se inteiramente com o conceito existenciaacuterio de possibilidade

Compreender como ldquopoder-serrdquo eacute o existenciaacuterio que corresponde agrave

peculiaridade ontoloacutegica do Dasein como ser que natildeo estaacute completo cuja

entidade estaacute sempre por fazer Ser para a existecircncia humana eacute sempre poder-

ser e este poder-ser tem a estrutura dum projectar (Entwerfen) ou dum estar

orientado em direcccedilatildeo a possibilidades Compreender eacute assim antes de mais

compreender-se tomando a seu cargo aquilo que se pode ser

O existenciaacuterio da compreensatildeo (Verstehen) corresponde de algum modo agrave

espontaneidade do entendimento em Kant embora em Heidegger este

existenciaacuterio natildeo remeta para uma faculdade dos conceitos mas antes para

uma compreensatildeo preacute-conceptual orientada para a significaccedilatildeo do mundo

como totalidade ldquoO estado de aberto do compreender abarca enquanto estado

de aberto do por mor de e da significatividade de maneira igualmente originaacuteria

o iacutentegro ser-no-mundo A significatividade eacute aquilo sobre cujo fundo eacute aberto o

mundo enquanto talrdquo 93

Ora este ldquofundo de mundordquo eacute projectado por um compreender que eacute sempre

afectivo donde resulta que ele se projecta natildeo a partir de uma livre decisatildeo

mas a partir de possibilidades limitadas previamente circunscritas pelo modo

como o Dasein se encontra lanccedilado no mundo O poder ser da compreensatildeo

estaacute entrelaccedilado com o ldquojaacute serrdquo que o limita negativamente mas que o orienta

tambeacutem positivamente para determinadas possibilidades de abrir o mundo na

sua significatividade94

93

bdquoDie Erschlossenheit des Verstehens betrifft als die von Worumwillen und Bedeutsamkeit

gleichurspruumlnglich das volle In-der-Welt-sein Bedeutsamkeit ist das woraufhin Welt als solche

erschlossen istldquo SuZ GA2 sect31 143 94

Cristina Lafont (Lenguaje y apertura del mundo 190) chama a atenccedilatildeo para o facto de este conceito

heideggeriano de ldquoprojecto de sentidordquo inerente ao projecto lanccedilado implicar que a verdade ontoloacutegica

tenha um caraacutecter normativo e prescritivo o que foi teoricamente elaborado em Vom Wesen des Grundes

74

O conceito de ldquoprojecto lanccediladordquo implica que o projecto que somos nos escapa

sempre pois nos escapa o iniacutecio do movimento que no entanto noacutes mesmos

somos e de que apenas podemos tomar consciecircncia como abrindo

possibilidades de ser O ter sido jaacute lanccedilado constitui o nuacutecleo da facticidade da

existecircncia as possibilidades do meu poder ser satildeo precisamente enquanto

faacutecticas constituem-se como tal no seio de um estar em situaccedilatildeo para que

remete o proacuteprio conceito de Da-sein ou de ser-aiacute95

O conceito de ldquoprojecto lanccediladordquo (geworfene Entwurf) tem um papel central em

Ser e Tempo e nele reside a finitude constitutiva do Dasein e da sua

possibilidade de intelecccedilatildeo A ideia de lanccedilamento eacute a ideia de que o projecto

que somos estaacute sempre previamente circunscrito ou orientado por um

movimento inicial cuja geacutenese natildeo conhecemos mas que por natildeo ser erraacutetico

mas direccionado nos deixa apenas a liberdade para assumir como nossa a

possibilidade que nos cabe cabendo-nos igualmente a responsabilidade de

encontrar-nos a noacutes mesmos nas nossas possibilidades sempre que de noacutes

mesmos nos extraviamos96

Eacute este compreender originaacuterio que antecipa o conhecimento expliacutecito abrindo

rdquoonderdquo ou ldquoaiacuterdquo do ser implicando a totalidade do In-der-Weltndashsein Projectando-

se em direcccedilatildeo agraves suas possibilidades o Dasein abre o mundo como

significatividade e os entes agrave-matildeo adquirem a qualidade de uacuteteis nocivos

manejaacuteveis dispondo-se segundo um conjunto de categorias e ordenando-se

de acordo com uma finalidade uacuteltima

5 A Auslegung e a estrutura preacutevia da compreensatildeo

A interpretaccedilatildeo que se expressa num conjunto de enunciados teoreacuteticos eacute na

realidade na perspectiva heideggeriana um desenrolar das possibilidades que

95

Tatiana Aguilar-Aacutelvarez Bay sublinha a relaccedilatildeo entre a noccedilatildeo de projecccedilatildeo e de destino (Geschick) em

Ser e Tempo ldquoEsta proyeccioacuten no es absoluta sino que estaacute mediatizada precisamente por el mundo al

que el Dasein estaacute referido de antemano El ser en relacioacuten con los entes que se hacen patentes dentro del

mundo es indisociable del ser faacutectico del hombre es decir de su modo peculiar de existir Heidegger

afirma que esta relacioacuten es el destino de Daseinrdquo (Idem El Lenguaje en el Primer Heidegger 135) 96

ldquoSi toda verdad de enunciados sobre entes intramundanos es relativa al horizonte histoacuterico de nuestro

comprender todo el problema de la verdad se concentra pues en este horizonte y la cuestioacuten decisiva

deberiacutea ser entonces iquestde que forma es posible interrogar tambieacuten por la verdad de este horizonte(hellip)

Esta pregunta resulta superflua para Heidegger en la medida en que eacutel denomina el correspondiente

comprender en tanto que ldquoestado de abiertordquo una verdad ya en sigrave e para sigraverdquo (Cristina Lafont Lenguaje y

apertura del mundo 190-191)

75

jaacute se encontram circunscritas na compreensatildeo e o caraacutecter limitado e

direccionado dessas possibilidades eacute esclarecido por Heidegger a partir daquilo

que ele designa como Vor-struktur da compreensatildeo

Efectivamente a compreensatildeo implica um segundo momento em que algo eacute

compreendido como aquilo que eacute desenvolvendo e apropriando essas

possibilidades compreendendo-as e assim realizando-se como interpretaccedilatildeo

(Auslegung) A interpretaccedilatildeo natildeo remete imediatamente para um conhecimento

teoacuterico mas todo o simples ver antepredicativo o mundo agrave volta eacute jaacute

interpretativo-compreensor o simples agir do quotidiano jaacute implica o interpretar

rdquoalgo como algordquo e esse rdquocomordquo constitui a interpretaccedilatildeo o logos hermenecircutico

que como jaacute referimos eacute anterior a toda proposiccedilatildeo e todo o enunciado

expresso linguisticamente

Este compreender-interpretando abre duplamente a existecircncia e o mundo

designando-se essa dupla abertura como ldquoabertura horizontal ex-staacuteticardquo Esta

abertura horizontal ex-staacutetica eacute aberta pelas possibilidades inscritas no

compreender o que implica que eacute uma abertura limitada circunscrita e

direccionada pela facticidade irrecusaacutevel da existecircncia

Eacute a partir desta abertura aberta pelo compreender originaacuterio que se desenvolve

a compreensatildeo expliacutecita pela qual nos apropriamos expressamente de um

sentido que estava jaacute aberto Aussage (enunciaccedilatildeo) e Auslegung (enquanto

interpretaccedilatildeo expliacutecita traduzida em enunciados) fundam-se num ter jaacute

compreendido aquilo que se vai interpretar

A abertura horizontal extaacutetica projecta sobre a totalidade dos entes um

horizonte de sentido que torna possiacutevel que algo seja compreensiacutevel como

algo abre a possibilidade de compreensatildeo dos entes intra-mundanos tenham

estes ou natildeo a forma do Dasein Esta estrutura projectante ou a preacute-estrutura

(Vorstruktur) da compreensatildeo projecta um campo preacutevio de sentido

estruturado em trecircs momentos ldquoA interpretaccedilatildeo de algo como algo eacute

essencialmente fundada no ter preacutevio no ver e captar preacuteviosrdquo97

O ter preacutevio (Vorhabe) ou o ter antecipadamente eacute o acircmbito intencional que

permite a compreensatildeo O ver preacutevio (Vorsicht) ou a visatildeo projectante no

97

bdquoDie Auslegung von Etwas als Etwas wird wesenhaft durch Vorhabe Vorsicht und Vorgriff fundiertldquo

SuZ GA 2 sect32 150

76

futuro estando expectante em relaccedilatildeo agravequilo que vai aparecer O captar preacutevio

(Vorgriff) eacute a articulaccedilatildeo preacute-conceptual do Vorhabe e do Vorsicht isto eacute a preacute-

captaccedilatildeo natildeo expliacutecita de algo

Para Heidegger toda a interpretaccedilatildeo do mundo se move dentro dos limites e

das possibilidades contidas em cada caso nesta estrutura preacutevia que

seriacuteamos tentados a aproximar do a priori kantiano No entanto a esta

estrutura formal preacutevia a que Heidegger chama a preacute-estrutura da

compreensatildeo distingue-se do plano transcendental da filosofia kantiana do

conhecimento pois natildeo tem um caraacutecter exclusivamente formal Agrave Vor-struktur

eacute inerente um certo conteuacutedo derivado da natureza do Dasein como projecto

lanccedilado em direcccedilatildeo a certas possibilidades concretas e portanto esta

armadura formal projecta em cada caso um sentido determinado sobre a

totalidade dos entes fazendo aiacute surgir uma figura de mundo98

O compreender originaacuterio que eacute projecto lanccedilado (geworfene Entwurf) antecipa

constantemente o conhecimento explicitamente ou discursivamente formulado

a Auslegung e Aussage satildeo desenvolvimentos do que estaacute previamente aberto

pelo compreender originaacuterio Toda a interpretaccedilatildeo se funda num ter

compreendido ou num campo preacutevio de sentido contido na Vorstruktur e

implicada nos seus 3 momentos estruturais 99

Deste modo o conhecimento teoreacutetico eacute apenas um caso particular e derivado

da interpretaccedilatildeo que eacute na sua origem atemaacutetica e holiacutestica e soacute num segundo

tempo pode tornar-se discursiva e conceptual Daqui resulta como importante

consequecircncia que toda a interpretaccedilatildeo inclusivamente a interpretaccedilatildeo que se

expressa em enunciados cientiacuteficos ou proposiccedilotildees metafiacutesicas eacute na realidade

levada a cabo a partir de uma experiecircncia antepredicativa de sentido

98

Sobre a relaccedilatildeo entre a Vor-struktur e o sentido cf SuZ sect32 151 bdquoDer Begriff des Sinnes umfaszligt das

formale Geruumlst dessen was notwendig zu dem gehoumlrt was verstehende Auslegung artikuliert Sinn ist das

durch Vorhabe Vorsicht und Vorgriff strukturierte Woraufhin des Entwurfs aus dem her etwas als etwas

verstaumlndlich wird Sofern Verstehen und Auslegung die existenziale Verfassung des Seins des Da

ausmachen muszlig Sinn als das formal-existenziale Geruumlst der dem Verstehen zugehoumlrigen Erschlossenheit

begriffen werdenldquo 99

Cf Bernhard Sylla sublinha a relaccedilatildeo entre a Vor-struktur e o ciacuterculo hermenecircutico bdquoDas Geschehen

des hermeneutischen Zirkels des Auslegens wird von Heidegger mit Hilfe der Termini Vorhabe Vorsicht

und Vorgriff dargestellt Mit der Terminus Vorhabe soll gesagt werden dass jede Auslegung aus einer

bestimmten Situativitaumlt des Daseins in seinem jeweiligen Bewandtniszusammenhang ihren Ausgang

nimmt Der Begriff Vorsicht zeigt an dass mit der Vorhabe auch ein Um-zu-Verhaumlltnis verbunden ist

dass die Auslegung also mit einer umweltlich-besorgenden Zweckhaftigkeit verbunden ist Der Terminus

Vorgriff soll besagen dass die Auslegung sich zumeist aber nicht notwendigerweise an eine durch

fruumlhere Auslegungen schon ausgebildete Begrifflichkeit bzw Weltausgelegtheit haumlltldquo(Idem Hermeneutik

der langue 252)

77

Esta preacute-estrutura da compreensatildeo natildeo pode ter aquele caraacutecter meramente

vazio e formal que tem o a priori Kantiano que pretende esclarecer as

possibilidades universais da constituiccedilatildeo da experiecircncia A Vor-struktur refere-

se a essa experiecircncia antepredicativa de sentido que se enraiacuteza na facticidade

da existecircncia condicionando o Dasein e fazendo dele precisamente aquilo que

ele eacute um ser aiacute

Condicionando necessariamente todo o enunciado expresso linguisticamente a

preacute-estrutura da compreensatildeo natildeo aponta para a validade universal das

proposiccedilotildees teoreacuteticas do conhecimento cientiacutefico mas para a relativizaccedilatildeo

destas tambeacutem elas assentes no Vorhabe no Vorsicht e num Vorgriiff isto eacute

numa intencionalidade e numa conceptualidade preacutevia que precisa de ser

esclarecida

Ser e Tempo vem esclarecer as condiccedilotildees de todo e qualquer projecto de

interpretaccedilatildeo mostrando por um lado que o sentido radica no Dasein que soacute

ele pode ter sentido ou carecer dele mas que por outro lado natildeo podemos

dizer que o sentido deriva de uma escolha ou eacute a criaccedilatildeo duma subjectividade

auto-referente O Dasein eacute um ser-no-mundo e portanto projecta-se a si

mesmo a partir do aiacute que eacute em cada caso a sua situaccedilatildeo

6 Rede e Sprache

A tese central de Heidegger da primazia do logos hermenecircutico relativamente

ao logos apofacircntico consiste precisamente nesta tese de que a linguagem

proposicional se enraiacuteza numa experiecircncia antepredicativa de sentido O

mostrar algo junto com algo da proposiccedilatildeo natildeo eacute o que nos descobre o ente

pela primeira vez ele foi sempre jaacute descoberto de modo muito mais originaacuterio

na interpretaccedilatildeo antepredicativa

Daqui resulta que a linguagem enquanto conjunto de enunciados verbais se

fundamenta na fala (Rede) entendida como articulaccedilatildeo de sentido Na fala

(Rede) articulam-se a Befindlichkeit isto eacute uma afectividade receptiva que

surge como a heranccedila de algo e a compreensatildeo dinacircmica e projectiva do

Verstehen

78

Esta articulaccedilatildeo a Rede (fala ou discurso) eacute estabelecida em Ser e Tempo

como fundamento ontoloacutegico-existenciaacuteria da linguagem Esta instacircncia da fala

como existenciaacuterio do Dasein eacute a articulaccedilatildeo significativa da

compreensibilidade do ser no mundo que subjaz a todo o enunciado linguiacutestico

e a toda a linguagem faacutectica100

A funccedilatildeo fundamental da fala (Rede) eacute segundo Heidegger estabelece em

Sein und Zeit realizar a abertura ontoloacutegica isto eacute abrir aquele fundo de

mundo ou horizonte de sentido no qual os entes podem aparecer Esta funccedilatildeo

de ldquoabertura de mundordquo eacute nesta obra fixada por Heidegger como a funccedilatildeo

primaacuteria da linguagem o que seraacute reafirmado mais tarde em Houmllderlin e a

Essecircncia da Poesia ldquoA linguagem natildeo eacute soacute um instrumento que o homem

tambeacutem possui aleacutem de muitos outros mas esta daacute acima de tudo a

possibilidade de estar no meio da abertura do ente Apenas onde haacute linguagem

haacute mundordquo101

A linguagem (Sprache) eacute o estado de expresso da fala e ela soacute existe na

pluralidade das liacutenguas facticamente faladas pelos diversos povos

fragmentando-se aiacute numa infinidade de actos de elocutoacuterios A fala enquanto

Rede eacute no entanto um existenciaacuterio do Dasein e portanto eacute uma estrutura

universal do Dasein co-extensiva com o campo de sentido A linguagem

enquanto Rede acolhe toda a experiecircncia antepredicativa de sentido nela se

fundamentando a tese heideggeriana posterior da linguagem como ldquocasa do

serrdquo

O que para noacutes oculta esta vocaccedilatildeo ontoloacutegica inerente a toda a linguagem eacute

o facto de na linguagem faacutectica (Sprache) esta unidade de sentido se

fragmentar numa multiplicidade de palavras que podem converter-se em

instrumentos de comunicaccedilatildeo e de circulaccedilatildeo de informaccedilatildeo e assim virem a

ser tomadas como qualquer outro ente intra-mundano

100

Cf Tatiana Aguilar-Aacutelvarez Bay sublinha que sob a designaccedilatildeo de Rede Heidegger leva a cabo uma

ampliaccedilatildeo da noccedilatildeo de linguagem que toma a forma de ser do Dasein de tal forma que se identifica a sua

funccedilatildeo com o exerciacutecio da existecircncia recobrindo tanto o falar como o ouvir ldquoPara Heidegger el hablar

no es una actividad sectorial o localizada involucra iacutentegramente al existir y le otorga unidad Por esto es

vaacutelido afirmar que el Dasein habla sin interrupcioacuten aun cuando no emita palabrasrdquo (Idem El Lenguaje

en el Primer Heidegger 215) 101

bdquo Die Sprache ist nicht nur ein Werkzeug das der Mensch neben vielen anderen auch besitzt sondern

die Sprache gewaumlhrt uumlberhaupt erst die Moumlglichkeit inmitten der Offenheit von Seiendem zu stehenNur

wo Sprache da ist Welt[hellip]ldquo HWD GA 4 3738

79

Considerando a Rede como o fundamento de toda a linguagem faacutectica ndash rdquoO

fundamento ontoloacutegico-existenciaacuterio da linguagem eacute a falardquo102 - Heidegger

obriga-nos a repensar a nossa relaccedilatildeo com a linguagem e as liacutenguas A

afirmaccedilatildeo da funccedilatildeo essencial da linguagem como a de abrir mundo torna

impossiacutevel tomaacute-la como qualquer outro ente intra-mundano e convertecirc-la em

objecto de uma qualquer ciecircncia Tomar a linguagem como objecto

desmembraacute-la pelos procedimentos analiacuteticos da ciecircncia eacute analisar um

cadaacutever mas a linguagem enquanto liacutengua viva manteacutem pelo contraacuterio a

unidade de um organismo e eacute percorrida pelo sopro do espiacuterito precisamente

enquanto ela abre um mundo103

O fundamentar a linguagem faacutectica (Sprache) no existenciaacuterio da fala abre

caminho para a consideraccedilatildeo da unidade entre pensar e dizer e para admitir a

natureza intrinsecamente linguiacutestica do pensar Como Gadamer natildeo deixaraacute de

sublinhar Heidegger retoma a tese de autores cristatildeos como Santo Agostinho

em De Trinitate da unidade entre o signo sensiacutevel e o sentido inteligiacutevel ldquoPor

conseguinte a palavra que ressoa fora eacute o signo da palavra que brilha dentro

agrave qual corresponde melhor o nome de ldquopalavrardquo Pois aquela que se pronuncia

com a boca da carne eacute a voz da palavra e tambeacutem ela se chama palavra em

virtude de aquilo pelo qual foi assumida para que aparecesse fora Com efeito

102

bdquoDas existenzial-ontologische Fundament der Sprache ist die Rederdquo SuZ GA 2 sect34 160 103

Cf Bernhard Sylla sustenta que a noccedilatildeo de liacutengua (Sprache) em Sein und Zeit ainda eacute indeterminada

sendo correlacionada com a Rede que na forma decaiacuteda da fala quotidiana ou Gerede eacute o seu

fundamento existenciaacuterio ldquoKonzentriert man sich auf eine Interpretation von Sein und Zeit so erscheint

der Begriff Sprache unbestimmt [hellip] Das Verhaumlltnis von Rede und Sprache wird erst deutlicher wenn

man das was Heidegger mit dem Terminus Gerede bezeichnet naumlhert analysiertrdquo (Idem Hermeneutik

der langue 260) Esta vinculaccedilatildeo da linguagem enquanto liacutengua ao existenciaacuterio da Gerede estaria

subjacente agrave conviccccedilatildeo posterior de Heidegger de que toda a articulaccedilatildeo linguiacutestica decaiacutea

necessariamente no ldquojaacute interpretadordquo e conectar-se-ia com a estrateacutegia linguiacutestica do proacuteprio Heidegger

explicaacutevel como fuga a um dizer abertamente articulado ldquoHeidegger wird in Gefolge von Sein und Zeit

mehr und mehr dahin tendieren Eigentliches nicht (offen) artikuliert zu sagen um es so der oumlffentlichen

Ausgelegtheit zu entziehen Dieses Tendenz setzt sich erst allmaumlhlich durch und korreliert immer mit

einem Dennoch-Sagen auf das sich die oumlffentliche Auslegung Heideggers verstaumlndlicherweise stuumltz

Heideggers Strategie des nicht offen artikulierten Sagens wir dagegen nur ansatzweise bemerkt und in der

philosophischen Auslegung Heideggers nicht zureichend beruumlcksichtigtrdquo (Ibidem 265)

Diferente eacute a perspectiva de Tatiana Aacutelvarez para quem a linguagem (Sprache) eacute o modo de expresso da

fala (Rede) isto eacute um dos modos em que ela pode dar-se (el lenguaje es un estado del habla uno de los

modos en que esta pude darse) natildeo estando essenciamente vinculada agrave sua forma decaiacuteda ou Gereda

ldquoUna muestra de la anterioridad del habla respecto al lenguaje ndash anterioridad en el orden de

fundamentacioacuten ndash es que eacuteste se desmiembra si no estaacute respaldado por el hablardquo (Idem El Lenguaje en el

Primer Heidegger 200) No entanto a autora chama a atenccedilatildeo para que a Rede tanto pode expressar-se

pela linguagem como manifestar-se pelo silecircncio defendendo a primazia do silecircncio como fala interior

em Ser e Tempo ldquo No se trata de una afirmacioacuten metafoacuterica El silencio es habla porque al igual que el

lenguaje hace expliacutecita la trama significativa relativa al habla La idea se pone especialmente de

manifiesto en el anaacutelisis heideggeriano de la voz o llamado de concienciardquo (Idem El Lenguaje en el

Primer Heidegger 201)

80

a nossa palavra faz-se de algum modo fora do corpo enquanto assume aquela

em que se manifesta aos sentidos dos homens do mesmo modo que o Verbo

de Deus se fez carne enquanto assumiu aquela em que tambeacutem ele se

manifestou aos sentidos do homemrdquo104

Eacute esta unidade entre pensar e dizer aqui enunciado por Santo Agostinho como

unidade do Verbo com a carne que se encontra reafirmada em Heidegger

apontando inequivocamente para o facto irremediaacutevel de que pensamos numa

linguagem lanccedilados pela flecha do sentido que as palavras jaacute instituiacuteram e

traziam consigo muito antes de cada acto singular de pensamento

A universalidade do discurso metafiacutesico agrave qual aspirava Aristoacuteteles eacute uma

empresa impossiacutevel natildeo porque aos seus conceitos natildeo corresponda qualquer

conteuacutedo positivo de uma experiecircncia como queria Kant mas precisamente

devido a esta natureza linguiacutestica do pensar Toda a experiecircncia eacute sempre e

necessariamente interpretada e poderiacuteamos acrescentar linguisticamente

confeiccediloada sendo esta limitaccedilatildeo intriacutenseca tatildeo efectiva para a metafiacutesica

como para as muacuteltiplas ciecircncias Todo o discurso teoreacutetico se insere numa

figura de mundo aberto pela linguagem e manteacutem a sua vigecircncia apenas no

interior desta

Assim a questatildeo jaacute colocada por Humboldt de que as diversas liacutenguas faladas

pelos povos histoacutericos instauram diferentes aberturas de mundo vecirc-se

retomada por Heidegger e filosoficamente fundamentada na linguagem

enquanto existenciaacuterio do Dasein Este relativismo linguiacutestico implica

naturalmente uma nova posiccedilatildeo perante a traduccedilatildeo filosoacutefica que sempre

ambicionou como correlato do estatuto cientiacutefico da metafiacutesica o rigor

filoloacutegico suficiente para manter intacto o sentido das grandes obras

transpondo-o sem o alterar para outro sistema de signos linguiacutesticos

Subvertendo inteiramente os dados do problema da traduccedilatildeo filosoacutefica

Heidegger iraacute afirmar que a traduccedilatildeo aparentemente literal que pretende

104

laquoProinde uerbum quod foris sonat signum est uerbi quod intus lucet cui magis uerbi competit nomen

Nam illud quod profertur carnis ore uox uerbi est uerbumque et ipsum dicitur propter illud a quo ut foris

appareret assumptum est Ita enim uerbum nostrum uox quodam modo corporis fit assumendo eam in qua

manifestetur sensibus hominum sicut uerbum dei caro factum est assumendo eam in qua et ipsum

manifestaretur sensibus hominum Et sicut uerbum nostrum fit uox nec mutatur in uocem ita uerbum dei

caro quidem factum est sed absit ut mutaretur in carnem Assumendo quippe illam non in eam se

consumendo et hoc nostrum uox fit et illud caro factum estraquo Santo Agostinho De Trinitate Livro XV

XI sect20

81

apresentar-se como uma simples operaccedilatildeo que assegura a passagem do

sentido de uma liacutengua para outra apenas encobre as inevitaacuteveis mutaccedilotildees de

sentido inerentes a uma transposiccedilatildeo linguiacutestica ocultaccedilatildeo que segundo

Heidegger teria sido responsaacutevel pela decadecircncia e pelo desterro do

pensamento ocidental ldquoA traduccedilatildeo dos nomes gregos para a liacutengua latina natildeo

eacute de modo nenhum um acontecimento sem consequecircncias como ainda nos

nossos dias se julga ser Pelo contraacuterio atraacutes da traduccedilatildeo [Uumlbersetzung]

aparentemente literal e portanto aparentemente preservadora [do sentido]

encobre-se um transpor [uumlbersetzen] da experiecircncia grega para um outro modo

de pensar O pensamento romano toma posse das palavras gregas sem uma

experiecircncia igualmente originaacuteria que corresponda agravequilo que elas dizem sem

a palavra grega O desterro [Bodenlosigkeit - falta de solo] do pensamento

ocidental comeccedila com esta traduccedilatildeordquo105

Arrancando os termos da filosofia grega ao contexto histoacutericondashlinguiacutestico a que

pertenciam as obras dos pensadores gregos as traduccedilotildees latinas pretenderam

conferir-lhes uma validade universal e intemporal transformando-os assim em

qualquer coisa de ldquooacutebviordquo e lanccedilando a filosofia no caminho da

Bodenlosigkeit106

Ora o chatildeo (Boden) no qual haacute que voltar a enraizar o pensar eacute antes de

mais para Heidegger a linguagem entendida como linguagem viva de uma

comunidade linguiacutestica A liacutengua grega transporta consigo uma experiecircncia

grega isto eacute uma experiecircncia que nos eacute necessariamente em grande parte

alheia e distante como Heidegger natildeo deixaraacute de constantemente sublinhar A

propoacutesito da traduccedilatildeo de fuacutesis palavra-chave dos primeiros pensadores

gregos comenta Heidegger na sua leitura do poema de Houmllderlin Wie Wenn

105

bdquoFreilich ist diese Uumlbersetzung der griechischen Namen in die lateinische Sprache keineswegs der

harmlose Vorgang fuumlr den er noch heutigentags gehalten wird Vielmehr verbirgt sich hinter der

anscheinend woumlrtlichen und somit bewahrenden Uumlbersetzung ein Uumlbersetzen griechischer Erfahrung in

eine andere Denkungsart Das roumlmisches Denken uumlbernimmt die griechischen Woumlrter ohne die

entsprechende gleichurspruumlngliche Erfahrung dessen was sie sagen ohne das griechische Wort Die

Bodenlosigkeit des abendlaumlndischen Denkens beginnt mit diesem Uumlbersetzenldquo UKw GA 5 13 (Cf

traduccedilatildeo portuguesa Martin Heidegger ldquo A Origem da Obra de Arterdquo in Caminhos de Floresta coord

Cientiacutefica de Irene Borges-Duarte trad Filipa Pedroso e Irene Borges-Duarte Gulbenkian 2002) 106

Esclarecendo a distinccedilatildeo entre estes dois tipos de traduccedilatildeo von Herrmann contrapotildee a traduccedilatildeo literal

(woumlrtliche) agrave traduccedilatildeo restituidora do sentido (wortgetreue) ldquoNur dann wenn eine Uumlbersetzung als

Auslegung sich phaumlnomenologisch vollzieht ist sie keine bloszlig ldquowoumlrtlicherdquo sondern eine ldquowortgetreuerdquo

Uumlbersetzung [] In der Unterscheidung zwischen einer bloszlig woumlrtlichen und eine wortgetreuen

Uumlbersetzung bringt sich der Unterschied zwischen der Wesensbestimmung des Menschen als vernuumlnftiges

Lebewesen und als Dasein zur Geltungldquo (Idem Im Spiegel der Welt Sprache Uumlbersetzung

Auseinandersetzung 112)

82

am Feiertag o seguinte ldquoNatureza natura diz-se em grego θuacuteζις Esta palavra

eacute a palavra fundamental do pensador no iniacutecio do pensar ocidental Mas jaacute a

traduccedilatildeo de θuacuteζις por natura (natureza) transporta o mais tardio para o inicial e

coloca o longiacutenquo no lugar daquilo que soacute eacute proacuteprio do iniacuteciordquo 107

A experiecircncia da traduccedilatildeo autecircntica que se encontra modelarmente

representada em Houmllderlin eacute pois para Heidegger a experiecircncia da

impossibilidade de encontrar a equivalecircncia linguiacutestica e da problematicidade

inerente ao acto de traduzir

A impossibilidade de transpor a experiecircncia grega da fuacutesis108 para a palavra

alematilde de raiz latina ldquoNaturrdquo teria sido para Heidegger essencial na geacutenese do

proacuteprio poema que a partir de certa altura renuncia agravequela palavra alematilde

substituindo-a por ldquodas Heilligerdquo Em total consonacircncia com o que aqui afirma

muito mais tarde em Was Heiszligt Denken Heidegger afirmaraacute ldquoFalar a liacutengua eacute

totalmente diferente de utilizar uma liacutengua O falar habitual natildeo faz senatildeo

utilizar a liacutengua O seu caraacutecter habitual consiste precisamente numa tal

relaccedilatildeo com a liacutengua Ora sendo dado que o pensamento ou de uma forma

diferente a poesia natildeo utiliza os termos mas diz as palavras noacutes estamos

desde que tomamos o caminho do pensar obrigados a prestar especial

atenccedilatildeo ao dizer das palavrasrdquo109

As palavras natildeo satildeo termos que a loacutegica define como expressatildeo uniacutevoca de

conceitos e cujo significado habitual se encontra alinhado nos dicionaacuterios As

107

bdquoNatur natura heiβt griechisch θύζης Dieses Wort ist das Grundwort der Denker im Anfang des

abendlaumlndischen Denkens Aber schon die Uumlbersetzung von θύζης mit natura (Natur) uumlbertraumlgt sogleich

Spaumlteres in das Anfaumlngliche und setzt Entfremdetes an die Stelle dessen was nur dem Anfang eigen istldquo

WwF GA 4 56 108

Cf Hans Jaeger mostra os quatro aspectos essenciais que Heidegger vecirc no conceito grego de fuacutesis

aquilo que permanece recolhendo-se em si mesmo pertence-lhe o brilhar no seu aparecer (phainesthai)

o passar do velamento ao desvelamento (aletheia) o vigorar que em tudo vigora como crescer e abrir-se

ldquoDie Physis wurde von den Griechen im wesentlichen unter vier Aspekten gesehen a) Sie war

grundlegend das Staumlndige das waumlhrende Verweilen die in sich gesammelte Gesammeltheit b) zu ihr

gehoumlrt das Scheinen (phainesthai) sie west in scheinenden- Erscheinenrdquo c) dies scheinende Erscheinen

ist ein Aufgehen aus der Verborgenheit in die Unverborgenheit (phyein verwandt mit ldquoWahrheitrdquo im

Sinne von ldquoaleacutetheiardquo ldquoUnverborgenheitrdquo d) phainesthai heiβt ldquowachsen aufgehenrdquo) als solche ist sie

schlieszliglich ist die Physis in ihrem Verweilen und staumlndigen Waumlhren ein Walten das alles durchwaltet So

ist die Physis auch ldquodas Unheimlicherdquo und das ldquoUumlberwaumlltigenderdquo (to deinon) eine Bedeutung die

Heidegger im ersten Chorlied ldquoVielfaumlltig das Unheimlichehelliprdquo von Sophokles ldquoAntigravegonardquo findetrdquo (Idem

Heidegger und die Sprache Bern Francke Verlag 1971 34) 109

bdquoDie Sprache sprechen ist etwas voumlllig anderes als eine Sprache benuumltzen Das gewoumlhnliche Sprechen

benuumltzt nur die Sprache Seine Gewoumlhnlichkeit besteht gerade in diesem Verhaumlltnis zur Sprache Weil

aber das Denken und auf andere Weise das Dichten nicht Woumlrter benuumltzen sondern die Worte sagen

darum sind wir sobald wir uns auf einen Weg des Denkens begeben auch schon daran gehalten eigens

auf das Sagen des Wortes zu achtenldquo WhD GA 8 133

83

palavras satildeo fontes de sentido enquanto elementos de um contexto global e

desenham uma certa figura de mundo num certo modo dominante do mostrar-

se retraindo-se do ser

Enquanto criaccedilotildees da linguagem os ldquotextosrdquo em sentido eminente satildeo aqueles

que realizam em si a articulaccedilatildeo e o abrir compreensor do sentido que se

projecta a partir da existecircncia e inversamente exigem daquele que os

interpreta a escuta110 como atenccedilatildeo ao acircmbito a partir do qual eles falam

Romper com o sentido ldquooacutebviordquo dos termos filosoacuteficos significa romper com o

seu sentido ldquohabitualrdquo e tomaacute-los como um signo isto eacute como um sinal que soacute

podemos entender a partir duma preacute-compreensatildeo do domiacutenio donde esse

signo surgiu isto eacute do evento do desvelamento do ser que ele assinala111

Heidegger arruiacutena deste modo a tese da separaccedilatildeo entre sentido inteligiacutevel e

signo sensiacutevel que suportava o paradigma claacutessico de traduccedilatildeo e propotildee um

modelo alternativo de traduccedilatildeo

7 A temporalidade como fundamento do ldquoestado de abertordquo do

Dasein

A compreensatildeo das criaccedilotildees linguiacutesticas eacute um problema hermenecircutico no

sentido etimoloacutegico de decifraccedilatildeo de uma mensagem e no sentido teacutecnico e

fenomenoloacutegico que Heidegger daacute a este conceito em Ser e Tempo ldquo[] o

sentido metoacutedico de descriccedilatildeo fenomenoloacutegica eacute interpretaccedilatildeo O λογος da

fenomenologia do Dasein tem o caraacutecter do έρμενεύειν mediante o qual se datildeo

110

Cf Esta capacidade da traduccedilatildeo autecircntica escutar na direcccedilatildeo para que aponta o texto para aleacutem do

proacuteprio texto sublinhada por von Herrmann no citado artigo Uumlbersetzung als philosophisches Problem

deve ser correlacionada com a reinterpretaccedilatildeo heideggeriana da linguagem como Rede Tatiana Aguilar-

Aacutelvarez Bay sublinha a consideraccedilatildeo da fala (Rede) como possibilidade de ouvir ou de escutar (Houmlren)

que imediatamente habilita o Dasein a obedecer ao ser (Horchen) bdquoEn la caracterizacioacuten del habla como

poder oiacuter estaacute impliacutecito el rasgo que a nuestro juicio constituye el elemento esencial de la interpretacioacuten

heideggeriana del lenguaje [] Por tanto como el comprender se resuelve en el oiacuter propio de habla

originaria (Rede) - distinta del lenguaje (Sprache) ndash el hombre es mas un oyente que un hablante Oiacuter

implica por decirlo de modo graacutefico estar metido en el Da-sein esto es en la apertura Aun cuando el

hombre es necesario para que el sentido del ser se revele no se identifica con la apertura que lo hace

posible El caraacutecter de mediacioacuten de ser instrumento para que el ser se manifieste es precisamente el

hablaldquo (Idem El Lenguaje en el Primer Heidegger 216-217) 111

Ivo de Genaro destaca como essenciais ao conceito fenomenoloacutegico de traduccedilatildeo a escuta atenta do

texto a demora na sua linguagem e o deixar-se conduzir pelo seu sentido como meios de aceder ao

desvelamento do ser em que ele se inscreve bdquoUumlbersetzung ins Wesen ndash nichts anderes ist das Sehen der

Phaumlnomenologie ndash ist Sache eines gewandelten Aufenthalts in der Sprache houmlrende Fuumlgsamkeit

Gefuumlgigkeit ins Fuumlhrige Durchholende als welches das Gefuumlge von Welt sich bekundetldquo Ivo de

Gennaro Logos ndash Heidegger liest Heraklit Berlin (2001) 65

84

a conhecer a compreensatildeo do ser inerente ao proacuteprio Dasein o sentido proacuteprio

do ser e as estruturas fundamentais do seu ser peculiar A Fenomenologia do

Dasein eacute hermenecircutica na significaccedilatildeo originaacuteria da palavra a qual designa o

negoacutecio da interpretaccedilatildeordquo112

A Fenomenologia hermenecircutica pensa pois as criaccedilotildees linguiacutesticas a partir do

seu fundamento ontoloacutegico isto eacute a partir das estruturas fundamentais do

Dasein que suportam todo e qualquer projecto de interpretaccedilatildeo que acima

referimos e cuja unidade se fundamenta na temporalidade

A contribuiccedilatildeo fundamental de Heidegger para abalar os fundamentos em que

assentava a filosofia da linguagem reside no facto de ele ter dado um sentido

preciso agrave relaccedilatildeo entre linguagem e temporalidade o logos tomado como

razatildeo ou como linguagem enunciativa reduz o ser a um ldquoeacuterdquo - coacutepula de uma

proposiccedilatildeo - e remete como vimos para uma concepccedilatildeo do ser como

presenccedila ou substacircncia Pelo contraacuterio o logos tomado no seu sentido

originaacuterio de fala (Rede) remete para uma relaccedilatildeo originaacuteria entre ser e

temporalidade Nela se articulam o sido ou a reiteraccedilatildeo do passado e a

projecccedilatildeo do futuro que constituem o estado de aberto do Dasein

O tempo enquanto temporalidade fundamenta a totalidade do estado de aberto

do Dasein atravessando os seus trecircs momentos estruturais e possibilitando a

sua unidade Cada um dos existenciaacuterios se relaciona com um dos trecircs ecircxtases

temporais o compreender tem um caraacutecter dinacircmico e projectivo eacute um

antecipar-se a si mesmo em direcccedilatildeo ao futuro a afectividade pelo contraacuterio

temporaliza-se predominantemente no passado a fala como articulaccedilatildeo da

afectividade e do compreender funda-se na unidade extaacutetica da temporalidade

e natildeo se temporaliza num ecircxtase determinado

No entanto aquilo que aqui importa compreender claramente eacute o que aqui eacute

pensado sob a designaccedilatildeo de ldquoecircxtases temporaisrdquo ou de temporalidade

extaacutetica passado presente e futuro natildeo satildeo segmentos recortados no tempo

linear e objectivo mas relacionam-se com dinacircmica intrinsecamente temporal

112

bdquo [] der methodische Sinn der phaumlnomenologischen Deskription ist Auslegung Der ιόγος der

Phaumlnomenologie des Daseins hat den Charakter des έρκελεύεηλ durch das dem zum Dasein selbst

gehoumlrigen Seinsverstaumlndnis der eigentliche Sinn von Sein und die Grundstrukturen seines eigenen Seins

kundgegeben werden Phaumlnomenologie des Daseins ist Hermeneutik in der urspruumlnglichen Bedeutung des

Wortes wonach es das Geschaumlft der Auslegung bezeichnetldquo SuZ GA 2 sect7 37

85

da existecircncia enquanto projecto lanccedilado A analiacutetica existencial de Ser e

Tempo pensa o tempo como o sentido de ser do Dasein que eacute em si mesmo

temporal (Zeitlich) e o tempo atravessa a estrutura tripartida da existecircncia sem

lhe acrescentar nada mas tornando possiacutevel a sua unidade

De facto o Dasein exerce a sua existecircncia oscilando de forma ambiacutegua e

imprevisiacutevel entre o exerciacutecio apropriado da temporalidade extaacutetica que lhe

permite ser um si mesmo e a queda na presenccedila do presente na dispersatildeo e

na perda de si mesmo em que permanece na maior parte do tempo113 Esta

ambiguidade inerente agrave existecircncia afecta o compreender a afectividade e a

fala modificando esses existenciaacuterios e distorcendo-os em modalidades de

temporalizaccedilatildeo inapropriadas mas igualmente fundamentais e

ontologicamente constitutivas

O compreender eacute o projectar-se em direcccedilatildeo a um possiacutevel e o manter-se

numa possibilidade existencial antecipando-se a si mesmo e lanccedilando-se em

direcccedilatildeo ao futuro ndash este movimento de futuraccedilatildeo eacute inerente agrave existecircncia que eacute

assim porvir (kunftig) Contudo o compreender improacuteprio eacute essencialmente

diferente implica um movimento de projecccedilatildeo que se desvia de si mesmo em

direcccedilatildeo agraves possibilidades abertas pelas coisas e assim o Dasein rdquopreocupa-

serdquo com a urgecircncia dos afazeres esquece-se de si mesmo dispersa-se nas

possibilidades apresentadas pelos sucessos ou fracassos no lidar com as

coisas-agrave-matildeo caindo na presenccedila do presente

Ao contraacuterio o compreender proacuteprio implica o rdquoestado de resoluccedilatildeordquo ou a

apropriaccedilatildeo de si mesmo pelo movimento projectivo em direcccedilatildeo a uma

possibilidade existencial Retornando sobre si mesmo a partir da dispersatildeo do

quotidiano e da preocupaccedilatildeo com o imediato o Dasein apropria-se de si

mesmo O compreender implica pois o projectar-se em direcccedilatildeo ao futuro ou o

advir e a partir dele retroceder sobre si mesmo tomado na sua singularidade

essencial e neste voltar para si mesmo (auf sich zu kommen) o Dasein realiza-

se assim como porvir (Kunftig)

113

Cf Bernhard Sylla bdquoDie Zweideutigkeit bewirkt eine kategorische da existentiale Unsicherheit

hinsichtlich der Unterscheidung von Sein und Seienden und auf tiefere Ebene von Eigentlichkeit und

Uneigentlichkeit Deswegen bezeichnet Heidegger sie als bdquoSteigerung des Verfallensldquo Man muumlsste sogar

sagen dass die Zweideutigkeit nicht nur eine Steigerung des Verfallens ist sondern dessen sbquotiefstes

Wesenbdquo Heidegger vergleichet ihre Wirkung mit derjenigen eines sbquoWirbelsbdquo sozusagen eines

schicksalhaften Maalstromsldquo (Idem Hermeneutik der langue 264)

86

No entanto o conceito de projecto lanccedilado implica como vimos que a

projecccedilatildeo se daacute sempre num ser que jaacute eacute e portanto o poder-ser eacute sempre o

poder ser de um jaacute sido Ao voltar a si mesmo compreendendo o Dasein toma

a seu cargo o ente que ele jaacute eacute e reitera simultaneamente o que ele foi ou o

sido114

O movimento projectivo inerente ao compreender natildeo abre uma possibilidade

arbitraacuteria mas eacute na realidade a reiteraccedilatildeo do sido ou do passado que se

limita a desenvolver as possibilidades nele contidas e a actualizaacute-las Esta

reiteraccedilatildeo do passado implica um movimento de retorno sobre si mesmo

essencialmente projectado no futuro rdquoSe bem que o compreender rdquoocupando-

se derdquo improacuteprio se defina pelo tornar presente aquilo de que se ocupa a

temporalizaccedilatildeo do compreender leva-se a cabo primariamente no futurordquo115

A afectividade tem o caraacutecter passivo e receptivo do rdquoser afectadordquo e potildee o

Dasein diante de si mesmo como projecto sempre jaacute previamente lanccedilado Eacute

na anguacutestia que experimentamos a afectividade proacutepria sentindo-nos

afectados pelo estar lanccedilado no meio dum mundo natildeo-familiar e inoacutespito A

anguacutestia subtrai o Dasein agraves possibilidades mundanas contidas nas coisas de

que se ocupa e coloca-o diante de si mesmo libertando-o para a sua

possibilidade mais proacutepria ou seja para a morte Pelo contraacuterio no estado de

acircnimo improacuteprio do temor o Dasein eacute atraiacutedo pelos entes circundantes de que

se ocupa o temor abre o mundo agrave volta como algo de ameaccedilador

No discurso (Rede) articulam-se o compreender e a afectividade e ela funda-se

por isso mesmo na unidade extaacutetica da temporalidade e natildeo se temporaliza

primariamente num ecircxtase determinado A fala enquanto Rede eacute em si mesma

temporal natildeo porque se refira enquanto linguagem expressa ou Sprache a

acontecimentos que se desenrolam no tempo ou porque use os diversos

tempos verbais Ela eacute temporal originariamente enquanto estrutura

existenciaacuteria isto eacute enquanto fala preacute-gramatical ela deriva em si mesma da

unidade da temporalidade extaacutetica nela se articulando os trecircs ecircxtases da

114

Cf Ramoacuten Rodriacuteguez (Hemeneutica y Subjectividad 30) O autor sublinha que a contribuiccedilatildeo

fundamental de Heidegger no contexto da filosofia da histoacuteria foi ter mostrado a temporalidade como o

sentido do ser do Dasein isto eacute como aquilo que atravessa a estrutura da existecircncia e torna inteligiacutevel a

sua unidade 115

bdquoObzwar sich das uneigentliche besorgende Verstehen aus dem Gegenwaumlrtigen des Besorgten

bestimmt vollzieht sich doch die Zeitigung des Verstehens primaumlr in der Zukunftldquo SuZ GA 2 sect68 339

87

temporalidade o passado o futuro e o presente e por isso ela natildeo se

temporaliza num ecircxtase determinado

A fala enquanto Rede remete para a constante fusatildeo entre o passado e o

futuro como dois horizontes que incessantemente se misturam ao movimento

de futuraccedilatildeo da compreensatildeo pertence necessariamente um passado como

um momento intriacutenseco de si mesmo compreendido no futuro por outro lado o

passado soacute eacute compreendido como passado por esse movimento do projectar

que retorna sobre si a partir do futuro Esta fusatildeo entre os horizontes do futuro

e do passado que constitui o gestar-se apropriado da existecircncia projecta um

horizonte de sentido no qual os entes aparecem como presenccedila

No entanto este horizonte de presenccedila natildeo remete imediatamente para uma

instacircncia discursiva mas para uma desvelaccedilatildeo instantacircnea e intuitiva de

sentido que Heidegger denomina como rdquoolhar instantacircneordquo (Augenblick) o que

tem sido posto em correlaccedilatildeo com o Kairos de Santo Agostinho Este instante

kairoloacutegico do desvendamento do sentido suporta a constituiccedilatildeo ontoloacutegica das

grandes criaccedilotildees linguiacutesticas e como a seguir vemos dos acontecimentos

propriamente histoacutericos

A vocaccedilatildeo ontoloacutegica da linguagem a sua funccedilatildeo de abertura de mundo

(Welterschlieszligung) funda-se pois na unidade dos esquemas horizontais do

futuro do sido e do presente - a fala (Rede) eacute responsaacutevel pela projecccedilatildeo

instantacircnea de um horizonte de inteligibilidade ou pela abertura aberta que

torna possiacutevel o surgimento dos entes Essa diferenccedila entre o horizonte e o

que aparece nesse horizonte esclarece a noccedilatildeo de diferenccedila ontoloacutegica ou a

noccedilatildeo da diferenccedila entre ser e ente

Enquanto linguagem expressa ou Sprache tem o presente um papel

preferencial na sua constituiccedilatildeo No entanto esta articulaccedilatildeo da temporalidade

sob o modo do presentear ou do tornar presente pode fazer-se no modo

inautecircntico da linguagem decaiacuteda do falatoacuterio e da dispersatildeo ou sob o modo

da presenccedila genuiacutena ou instantacircnea iluminaccedilatildeo rdquoO presente mantido na

temporalidade proacutepria ou presente proacuteprio chamamos-lhe o rdquoolhar

instantacircneordquordquo 116 O tempo instantacircneo eacute a temporalidade inerente ao olhar

instantacircneo daquele que a partir do sido se projecta em direcccedilatildeo ao futuro e

116

bdquoDie in der eigentlichen Zeitlichkeit gehaltene mithin eigentliche Gegenwart nennen wir den

Augenblickrdquo SuZ GA 2 sect68 338

88

assim abre de forma originaacuteria um horizonte de presenccedila em que as coisas e

os homens podem fazer frente a uma nova luz fazendo surgir a unidade de

significaccedilatildeo de um mundo117

Mais tarde Heidegger identificaraacute esta dimensatildeo poieacutetica da linguagem isto eacute

este instantacircneo levantar de um mundo originariamente inscrito na linguagem

humana com a obra de arte Esta temporalidade proacutepria das criaccedilotildees

humanas118 enquanto criaccedilotildees linguiacutesticas essencialmente diferente da

temporalidade das coisas ou dos entes da natureza faz da sua compreensatildeo

um problema que de modo algum pode ser resolvido pelas metodologias

usadas nas ciecircncias nem submetido ao seu ideal de objectividade

Eacute a partir deste fundamente ontoloacutegico isto eacute a partir desta oscilaccedilatildeo do

Dasein entre o exerciacutecio apropriado e natildeo apropriado da temporalidade extaacutetica

que podem ser compreendidas todas as criaccedilotildees linguiacutesticas e por

conseguinte eacute tambeacutem nesse plano que pode ser relanccedilada a discussatildeo do

problema da traduccedilatildeo

8 Linguagem e verdade

A confrontaccedilatildeo com Aristoacuteteles levada a cabo em Ser e Tempo a propoacutesito da

natureza da linguagem tem um dos seus mais importantes e emblemaacuteticos

momentos no sect 44 que tem como tiacutetulo O Dasein o Estado de Aberto e a

Verdade (Dasein Erschlossenheit und Wahrheit) Aiacute Heidegger confronta-se

natildeo apenas com Aristoacuteteles mas com a interpretaccedilatildeo que a tradiccedilatildeo metafiacutesica

dele impocircs e que hoje encobre e dificulta o acesso ao que no pensador grego

ainda estava resguardado como pensar originaacuterio a propoacutesito do problema da

verdade A tradiccedilatildeo metafiacutesica impocircs e transmitiu uma mesma significaccedilatildeo do

conceito de verdade como ldquoconcordacircnciardquo do juiacutezo com o seu objecto que

esteve em vigor ateacute Kant e foi por ele mantida num primeiro momento

117

Sobre a pertinecircncia desta ambiguidade estrutural da fala para uma teoria da interpretaccedilatildeo eacute preciso ter

em conta que a tendecircncia para a decadecircncia da Rede em Gerede eacute constitutiva do Dasein levando-o a

constantemente mover-se no jaacute interpretado e no habitual pelo que uma interpretaccedilatildeo autecircntica soacute pode

constituir-se contra esta tendecircncia para cair na confusa e abstracta generalidade das ldquoverdades comunsrdquo

Isto mesmo sublinha Bernhard Sylla na obra acima citada mostrando aleacutem disso como tal consideraccedilatildeo

determinou o exerciacutecio da linguagem pelo proacuteprio Heidegger nas obras posteriores a Ser e Tempo (Cf

Hermeneutik der langue 265) 118

bdquoEin Werk ist nur Werk in dem es der Zumutung der Zu-kunft entspricht und dadurch das Gewesene

in sein verborgenes Wesen befreit uumlberliefertldquo GD GA 79 83

89

enunciou-se a tese de que o lugar da verdade eacute a proposiccedilatildeo e num segundo

momento acompanhando o nascimento da ciecircncia moderna avanccedilou-se a

tese de que essa adequaccedilatildeo das proposiccedilotildees agraves coisas deveria ser objecto de

verificaccedilatildeo pela mostraccedilatildeo empiacuterica do ente por ela designado

Como acima vimos esta decisatildeo de fazer da proposiccedilatildeo o lugar da verdade

repousa no reconhecimento aristoteacutelico da funccedilatildeo apofacircntica da linguagem

ldquoUma proposiccedilatildeo verdadeira significa descobre o ente em si mesmo Depotildee

mostra ldquopermite verrdquo (ἀπόθαλζης) o ente no seu estado de descoberto O ser

verdadeiro (verdade) da proposiccedilatildeo tem que ser entendido como ser

descobridor 119

No entanto a tradiccedilatildeo instituiu uma interpretaccedilatildeo decaiacuteda e deturpada deste

ldquopermitir verldquo pensado por Aristoacuteteles como atributo da proposiccedilatildeo verdadeira

O que Aristoacuteteles teria querido dizer eacute que o logos pode ser encobridor ou

descobridor e esta dupla possibilidade eacute o que eacute relevante para apurar a

natureza da verdade Aristoacuteteles pensaria ainda de acordo com o conceito da

verdade como aletheia dos primeiros pensadores gregos embora dele guarde

apenas um eco distante e natildeo leve a cabo uma formulaccedilatildeo expliacutecita desse

conceito de verdade

Se a tradiccedilatildeo120 deturpou este conceito de verdade impondo a traduccedilatildeo de

aletheia como adequaccedilatildeo como oacutebvia e consensual tal deveu-se a uma

interpretaccedilatildeo restritiva da funccedilatildeo apofacircntica do logos exclusivamente

confinada agrave linguagem proposicional da ciecircncia e da metafiacutesica a proposiccedilatildeo eacute

um tipo especiacutefico de enunciado verbal que designa um ente mostrando-a na

sua presenccedila

A tradiccedilatildeo impocircs uma interpretaccedilatildeo unilateral de Aristoacuteteles valorizando neste

autor natildeo apenas a loacutegica mas a ontologia da presenccedila a que esta se encontra

intrinsecamente ligada Nesta mesma tradiccedilatildeo se inscrevem as filosofias da

consciecircncia e em particular o criticismo kantiano De facto se Kant julga no

119

bdquoDie Aussage ist wahr bedeutet sie entdeckt das Seiende an ihm selbst Sie sagt aus sie zeigt auf sie

bdquolaumlβt sehenrdquo (ἀπόφανζης) das Seiende in seiner Entdecktheit Wahrsein (Wahrheit) der Aussage muszlig

verstanden werden als bdquoentdeckend-seinldquo SuZ GA 2 sect44 218 120

Joatildeo Paisana sublinha em Histoacuteria da Filosofia e Tradiccedilatildeo Filosoacutefica (Lisboa 1993) que a tradiccedilatildeo

nunca veicula o passado na sua totalidade mas implica necessariamente uma funccedilatildeo de selecccedilatildeo nem

todas as obras e acontecimentos do passado satildeo conservadas de igual modo e apenas satildeo conservados e

transmitidos os acontecimentos que podem aparecer como resposta a questotildees presentes A tradiccedilatildeo

porque eacute uma resposta embora natildeo temaacutetica possui necessariamente um caraacutecter selectivo Cf Idem

obcit 18-19

90

tribunal da razatildeo a Metafiacutesica condenando irrevogavelmente a sua pretensatildeo

ao estatuto de ciecircncia isto eacute a sua pretensatildeo a instituir verdades universais e

imutaacuteveis natildeo deixou no entanto de nesse mesmo tribunal exaltar e fundar o

estatuto da ciecircncia como lugar duma verdade universal e intemporal ainda

que duma verdade relativa agrave espeacutecie humana e ao mundo fenomeacutenico

Heidegger confronta-se com esta concepccedilatildeo da verdade imposta pela tradiccedilatildeo

metafiacutesica121 e pela ciecircncia moderna mostrando que subjacente a esta

concepccedilatildeo da verdade como concordacircncia se postula a semelhanccedila entre um

ente (sujeito) com outro (objecto) entendidos como Vorhanden ou como

presenccedila A destruiccedilatildeo fenomenoloacutegica desta concepccedilatildeo de verdade

possibilitou a Heidegger aceder ao sentido originaacuterio da verdade como

desvendamento dos primoacuterdios da filosofia grega Heidegger mostra que a

tradiccedilatildeo metafiacutesica traduzindo aletheia por adaequatio se constitui como

encobrimento e distorccedilatildeo do sentido originaacuterio da palavra grega que apontava

num sentido radicalmente diferente para os primeiros gregos isto eacute para o

prestigioso iniacutecio da nossa civilizaccedilatildeo a verdade era uma experiecircncia preacute-

ontoloacutegica do ser como acontecer remetendo assim para a temporalidade e a

histoacuteria

Heidegger vai retomar esta concepccedilatildeo originaacuteria de verdade e reconstruiacute-la de

acordo com o novo fundamento ontoloacutegico proposto pela analiacutetica do Dasein

ldquoA verdade natildeo tem a estrutura de uma concordacircncia entre o conhecer e o

objecto no sentido de uma semelhanccedila de um ente (sujeito) com outro

(objecto)

O ser verdadeiro como ser descobridor soacute eacute ontologicamente possiacutevel por sua

vez sobre o fundamento do ser-no-mundo Este fenoacutemeno no qual noacutes

reconhecemos uma estrutura fundamental do Dasein eacute o fundamento do

fenoacutemeno originaacuterio da verdade122

121

Esclarecendo a distinccedilatildeo entre conhecimento histoacuterico e tradiccedilatildeo Joatildeo Paisana afirma que o

conhecimento histoacuterico implica sempre a tradiccedilatildeo mas o inverso natildeo eacute verdadeiro O conhecimento

histoacuterico eacute um conhecimento expresso e temaacutetico da tradiccedilatildeo que implica a exegese dos textos em que

essa tradiccedilatildeo se fundamenta e o seu necessaacuterio questionamento ldquoA histoacuteria da filosofia nem eacute redutigravevel agrave

tradiccedilatildeo filosoacutefica nem a uma mera investigaccedilatildeo empiacuterica ela eacute uma disciplina filosoacutefica soacute formulaacutevel a

partir da questatildeo expressa que interroga pela filosofiardquo (Ibidem 31) 122

bdquoWahrheit hat also gar nicht die Struktur einer Uumlbereinstimmung zwischen Erkennen und Gegenstand

im Sinne einer Angleichung eines Seienden (Subjekt) an ein anderes (Objekt)

91

Afirmando que o fundamento da verdade eacute o proacuteprio Dasein enquanto ser no

mundo Heidegger identifica a verdade com a funccedilatildeo de abertura de mundo

que eacute inerente agrave linguagem Esta deslocaccedilatildeo da verdade para o Dasein como

ser-no-mundo vai ter importantes consequecircncias pois ela deixa de ser

primordialmente um problema gnosioloacutegico para passar a ser entendida de um

modo mais radical na sua significaccedilatildeo ontoloacutegica

Com efeito O Dasein natildeo eacute uma consciecircncia abstracta que se confronta com o

mundo constituindo-o como objecto por meio das categorias trata-se duma

consciecircncia situada no mundo sempre jaacute interpretado pela linguagem estaacute jaacute

sempre lanccedilado nesse mundo pela Gworfenheit A verdade que se articula na

linguagem natildeo eacute a posiccedilatildeo dum sujeito mas encontra-se sempre jaacute lanccedilada

como projecccedilatildeo cujo iniacutecio nos escapa

Por outro lado o lugar da verdade natildeo eacute a proposiccedilatildeo mas o logos

hermenecircutico como interpretaccedilatildeo antepredicativa A compreensatildeo do ser dos

entes daacute-se precisamente no Dasein que antes duma compreensatildeo expliacutecita e

temaacutetica tem uma compreensatildeo totalizante e vaga uma preacute-compreensatildeo que

lhe permite colocar a pergunta pelo ser Como poder-ser o Dasein tem a

estrutura do projecto (Entwurf) e compreende projectando Este compreender

projectando eacute o estado de aberto do ser em geral rdquoNo estado de projectado do

seu ser sobre o por mor de em uniacutessono com o estado de projectado sobre a

significatividade (mundo) reside o estado de aberto do ser em geralrdquo123

Neste projectar de possibilidades estaacute antecipada uma compreensatildeo preacute-

ontoloacutegica do ser A interpretaccedilatildeo funda-se neste compreender desenvolvendo

as possibilidades nele projectadas elaborando-as e explicitando-as Mas estas

possibilidades assim apropriadas e desenvolvidas num projecto de

compreensatildeo jaacute estavam previamente lanccediladas no contexto em que o Dasein

vive e fala A condiccedilatildeo de projecto lanccedilado do Dasein implica que ele se

encontra radicalmente limitado na escolha das suas possibilidades de

interpretaccedilatildeo ao movimento de futuraccedilatildeo do projecto pertence de forma

Das Wahrsein als Entdeckend-sein ist wiederum ontologisch nur moumlglich auf dem Grunde des In-der-

Welt-seins Dieses Phaumlnomen in dem wir eine Grundverfassung des Daseins erkannten ist das

Fundament des urspruumlnglichen Phaumlnomens der Wahrheitldquo SuZ GA 2 sect44 218219 123

bdquoIn der Entworfenheit seines Seins auf das Worumwillen ist eins mit der auf die Bedeutsamkeit (Welt)

liegt Erschlossenheit von Sein uumlberhauptldquo SuZ GA 2 sect31 147

92

igualmente originaacuteria um passado que haacute-de ser compreendido como um

momento do ldquosi mesmordquo integrado no futuro

A verdade eacute assim um atributo do discurso que tem em si mesmo a

possibilidade de ser descobridor e de abrir mundo como tambeacutem de encobrir

e cerrar aquilo que poderia abrir duplicidade que traduz a ambiguidade

constitutiva da existecircncia Assim a interpretaccedilatildeo das criaccedilotildees humanas que

pretenda aceder agrave sua verdade originaacuteria tem de apreendecirc-la a partir do seu

enraizamento existencial Os textos apresentados pela tradiccedilatildeo satildeo

notificaccedilotildees do ser na linguagem do homem representam uma possibilidade

de interpretaccedilatildeo que foi positivamente apropriada pelo poeta e o pensador

enquanto possibilidade jaacute lanccedilada na sua existecircncia faacutectica124

Contudo esta exigecircncia de apreender a verdade de um enunciado a partir do

seu horizonte existencial que eacute a condiccedilatildeo da apreensatildeo do seu serndash

verdadeiro eacute uma exigecircncia paradoxal porque por causa do nosso proacuteprio

enraizamento num horizonte temporal natildeo podemos jamais coincidir com a

facticidade da existecircncia que motivou um enunciado verdadeiro O interpretar

esses textos da tradiccedilatildeo eacute sempre uma tentativa de desobstruir de cavar uma

passagem para algo que se oculta e encobre na desocultaccedilatildeo mesma que

assim se instituiu e fixou na escrita

Assim em vez de tentar coincidir com essa impossiacutevel alteridade do texto noacutes

devemos compreendermo-nos nele apropriando-nos positivamente da nossa

proacutepria existecircncia e desenrolando as possibilidades de compreensatildeo nela

contidas isto eacute compreendendo-nos a noacutes mesmos no nosso ser ldquoO Dasein eacute

aberto em relaccedilatildeo agrave sua existecircncia proacutepria ou impropriamente para si mesmo

Existindo compreende-se a si mesmo mas de tal modo que este compreender

natildeo representa um puro apreender mas constitui o ser existencial do faacutectico

poder-ser O ser aberto eacute o de um ente para o qual estaacute em causa este ser O

sentido deste ser isto eacute o cuidado que o torna possiacutevel na sua constituiccedilatildeo

constitui originariamente o ser do poder-ser O sentido do ser do Dasein natildeo eacute

124

Cf Otto Poumlggeler (Der Denkweg Martin Heideggers 90) bdquoDie Wahrheit ist als Erschlossenheit des

Daseins in ihr Eigentlichkeit bdquoWahrheit der Existenzldquo Sie ist durch Geworfenheit und Entwurf

charakterisiert so aber wie Heidegger in Sein und Zeit nur Kurtz andeute durch vorlaufende

Entschlossenheit und damit durch Geschichtlichkeitldquo

93

uma outra coisa que flutue no vazio e ldquoforardquo dele mesmo mas o proacuteprio Dasein

que se compreende a si mesmordquo125

Compreendendo-se a si mesma a existecircncia adquire sentido e projecta aquele

fundo de mundo como significatividade na qual os entes podem aparecer no

seu ser O ser-no-mundo aberto para si mesmo compreende simultaneamente

o ente que ele proacuteprio eacute e o ser dos entes descobertos nesse mundo isto eacute os

entes da natureza as coisas e as criaccedilotildees humanas

O conhecimento ocircntico dos entes no domiacutenio das vaacuterias ciecircncias funda-se ele

mesmo num projectar mais originaacuterio dentro qual se projectou o ideal moderno

de conhecimento metoacutedico e de objectividade e que eacute assim ele mesmo

secundaacuterio e derivado

Contudo o interpretar e traduzir os textos do passado implica o elevar-se a

uma consciecircncia hermenecircutica expliacutecita e coloca uma exigecircncia mais alta a

interpretaccedilatildeo e traduccedilatildeo situam-se na realidade entre o ouvir no texto o que

se situa para aleacutem dele como fundamento da sua verdade e no asssumir e

desenvolver positivamente as possibilidades de compreensatildeo que se

encontram inscritas na proacutepria situaccedilatildeo do inteacuterprete

Aceder agrave verdade de uma interpretaccedilatildeo eacute assim desenrolar um projecto

hermenecircutico que se sabe a si mesmo como possiacutevel na sua possibilidade

compreendendo-se na sua radical incompletude e inacabamento Soacute tem

acesso agrave verdade da interpretaccedilatildeo aquele que se compreende a si mesmo

naquilo que interpreta apropriando-se positivamente das suas proacuteprias

possibilidades hermenecircuticas e mantendo-as enquanto tal

O problema da traduccedilatildeo e da interpretaccedilatildeo deve ser articulado com a

tematizaccedilatildeo heideggeriana do problema da verdade Heidegger desloca-a do

plano da universalidade e da intemporalidade inerente a uma atitude teoreacutetica e

contemplativa em que a colocou a tradiccedilatildeo metafiacutesica desde Platatildeo a Kant

125

bdquoDas Dasein ist ihm selbst hinsichtlich seiner Existenz eigentlich oder uneigentlich erschlossen

Existierend versteht es sich so zwar dass dieses Verstehen kein pures Erfassen darstellt sondern das

existenzielle Sein des faktischen Seinkoumlnnens ausmacht Das erschlossene Sein ist das eines Seienden

dem es um dieses Sein geht Der Sinn dieses Seins das heiβt der Sorge der diese in ihrer Konstitution

ermoumlglicht macht urspruumlnglich das Sein des Seinkoumlnnens aus Der Seinssinn des Daseins ist nicht ein

freischwebendes Anderes und bdquoAuβerhalbldquo seiner selbst sondern das sich verstehende Dasein selbstldquo

SuZ GA 2 sect65 325

94

para o plano da radical singularidade e temporalidade que eacute o da existecircncia

concreta do homem enquanto ser-no-mundo

A verdade natildeo eacute para Heidegger a universalidade abstracta de um enunciado

mas tem a forma da singularidade irrepetiacutevel dum desvendamento do sentido

fundando-se nessa irredutiacutevel singularidade dum Da-sein que se compreende a

si mesmo no exerciacutecio da sua existecircncia faacutectica126

9 Natildeo-ser e finitude

Eacute sabido que em Heidegger haacute um nexo expliacutecito entre a experiecircncia da morte

como possibilidade iminente inexplicaacutevel e infundada e uma viragem no uso da

linguagem o salto da linguagem decaiacuteda da publicidade da certeza cientiacutefica e

da tradiccedilatildeo metafiacutesica genericamente classificada como falatoacuterio [Gerede] para

o exerciacutecio apropriado da linguagem enquanto linguagem originaacuteria (Rede)

esse salto eacute tambeacutem a experiecircncia do fracasso de todo o discurso loacutegico-

demonstrativo com pretensotildees agrave universalidade face agrave anguacutestia do Dasein

diante da possibilidade iminente da sua proacutepria morte

No sect 46 de Ser e Tempo Heidegger confronta os resultados da analiacutetica

existencial com a categoria de totalidade sob a rubrica ldquoDas moumlgliche

Ganzsein des Daseins und das Sein zum Toderdquo demonstrando que se com a

categoria de totalidade pretendermos designar a seacuterie de todos os possiacuteveis

em direcccedilatildeo aos quais se projecta a existecircncia esta soacute pode poreacutem estar

completa no fim isto eacute na morte natildeo podendo por isso ser compreendida pelo

Dasein que jaacute natildeo eacute

Contudo a morte natildeo tem apenas uma funccedilatildeo negativa e desconstrutiva em

relaccedilatildeo agrave possibilidade de uma compreensatildeo metafiacutesica do ser homem Ela

tem uma funccedilatildeo positiva porque esclarece a natureza do Dasein como um ser-

aiacute mostrando a temporalidade intriacutenseca do projecto que ele eacute enquanto

projecto lanccedilado ele estaacute sempre jaacute lanccedilado em direcccedilatildeo agrave sua uacuteltima e mais

caracteriacutestica possibilidade isto eacute estaacute sempre lanccedilado em direcccedilatildeo agrave morte

126

O Seminaacuterio Sobre a Essecircncia da Verdade retoma esta temaacutetica jaacute aberta em Ser e Tempo

desenvolvendo-a numa direcccedilatildeo que Otto Poumlggeler sintetiza deste modo ldquoAuf diese Frage nach der

Wahrheit des Seins fuumlhrt der Vorrang Vom Wesen der Wahrheit hin Er soll durch seinen Gang zeigen

daβ diese Frage eine geschichtlich ist bdquo daβ das Wesen der Wahrheit nicht das leere bdquo Generelleldquo einer

bdquoabstraktenldquo Allgemeinheit ist sondern das sich verbergende Einzige der einmaligen Geschichte der

Entbergung des bdquoSinnesldquo dessen was wir das Sein nennen und seit langem nur als das Seiende im Ganzen

zu bedenken gewohnt sindldquo (Idem Der Denkweg Martin Heideggers 99)

95

Na sua natureza de possibilidade uacuteltima universal ela esclarece a essecircncia dos

possiacuteveis que eacute precisamente a de ainda natildeo serem e mostra que a existecircncia

estaacute afectada por uma radical incompletude

Assim o Dasein natildeo pode ser objecto de um conhecimento totalizante natildeo por

qualquer limitaccedilatildeo da faculdade de conhecer mas pela natureza da existecircncia

que ele eacute ldquoEste ente natildeo tem de modo nenhum o modo de ser de um ente

intra-mundano disponiacutevel O em conjunto do ente tal como o Dasein eacute

enquanto ldquocorrerdquo ateacute que cumpriu o seu ldquopercursordquo natildeo se constitui atraveacutes da

junccedilatildeo ldquosucessivardquo de fragmentos de um ente que jaacute estaacute disponiacutevel em

qualquer modo ou lugar O Dasein natildeo eacute apenas em conjunto quando o seu

ainda natildeo se preencheu tanto mais que entatildeo ele jaacute natildeo eacute O Dasein existe em

cada caso jaacute precisamente de tal modo que sempre lhe pertence o seu ainda

natildeordquo127

Assim se a morte natildeo nos permite pensar o que estaacute para laacute do fim permite-

nos contudo pensar a existecircncia enquanto se situa do lado de caacute dessa uacuteltima

possibilidade mostrando que todas as formas que a existecircncia jaacute alcanccedilou satildeo

apenas a realizaccedilatildeo de possiacuteveis destinados a ser ultrapassados e superados

isto eacute mostra a existecircncia enquanto processo aberto e em transformaccedilatildeo

Eacute o ser-para-morte que nos permite tambeacutem repensar a natureza das criaccedilotildees

linguiacutesticas os textos em sentido geneacuterico como o caso particular dos grandes

textos da tradiccedilatildeo filosoacutefica como possibilidades hermenecircuticas destinadas a

ser superadas e ultrapassadas pelo proacuteprio movimento projectivo da

existecircncia

Contudo o ser-para-a-morte natildeo induz num relativismo niilista pois eacute tambeacutem

o confronto com o abismo da morte que cria a disposiccedilatildeo para a escuta da voz

ldquointeriorrdquo que chama apelando a uma ruptura com a existecircncia improacutepria o

estar ocupado [Besorgen] com as tarefas do quotidiano e a dispersatildeo por

muacuteltiplas possibilidades mundanas

127

ldquoDieses Seiende hat uumlberhaupt nicht die Seinsart eines innerweltlich Zuhandenen Das Zusammen des

Seienden als welches das Dasein bdquoin seinem Verlaufldquo ist bis es bdquoseinen Lauf bdquo vollendet hat konstituiert

sich nicht durch eine bdquofortlaufendeldquo Anstuumlckung von Seiendem das von ihm selbst her schon irgendwie

und ndashwo zuhanden ist Das Dasein ist nicht erst zusammen wenn sein Noch-nicht sich aufgefuumlllt hat so

wenig daβ es dann gerade nicht mehr ist Das Dasein existiert je schon immer gerade so daβ zu ihm sein

Noch-nicht gehoumlrtldquo SuZ GA 2 sect 48 243

96

A natureza desta voz interior ou deste chamamento eacute esclarecida em Ser e

Tempo como um aspecto ou uma manifestaccedilatildeo do uso apropriado da

linguagem enquanto Rede [fala] que esclarece a proacutepria essecircncia da

linguagem enquanto existenciaacuterio ldquoCompreendemos o chamamento [Ruf]

como um modo da fala [Rede] Ele articula a compreensibilidade A

caracteriacutestica da consciecircncia como chamamento natildeo eacute de modo algum apenas

uma ldquoimagemrdquo como a do tribunal da consciecircncia de Kant [] Na tendecircncia do

chamamento a abrir haacute o momento do choque da sacudidela intermitente

Somos chamados da distacircncia para o distante Pelo chamamento eacute alcanccedilado

quem quer ser reconduzido a si mesmo ldquo128

O chamamento [Ruf] eacute o exemplo paradigmaacutetico da Rede [fala] enquanto

linguagem que abala o falatoacuterio o simples falar por falar em que caiacutemos a

maior parte do tempo ou Gerede Na sua linguagem interior e silenciosa

articula-se a Befindlichkeit o ser disposto pelo qual somos lanccedilados a partir do

passado com o Verstehen a compreensatildeo projectante Pela articulaccedilatildeo de

ambos o Dasein apropria-se de si mesmo e das suas possibilidades genuiacutenas e

pode ser um ldquosi mesmordquo [selbst]

A voz interior e silenciosa da consciecircncia natildeo deve ser compreendida na

interpretaccedilatildeo de Heidegger como uma faculdade da alma nem como a voz de

um Deus transcendente nem como uma lei moral mas a partir da estrutura

existenciaacuteria do Dasein como ldquolinguagemrdquo em sentido eminente129

Se o falatoacuterio [Gerede] coloca o Dasein no plano ldquoocircnticordquo em que as coisas

aparecem como simples presenccedila a voz da consciecircncia abre o Dasein para a

sua natureza intrinsecamente temporal projectando-o em direcccedilatildeo agraves suas

possibilidades genuiacutenas e mais radicalmente em direcccedilatildeo agrave possibilidade

universal da morte

128

ldquoDas Rufen fassen Wir als Modus der Rede Sie gliedert die Verstaumlndlichkeit Die Charakteristik des

Gewissens als Ruf ist keineswegs nur ein bdquoBildldquo etwa wie die kantische Gerichtshofvorstellung von

Gewissen [] In der Erschlieβungstendenz des Rufes liegt das Moment des Stoβes des abgesetzten

Aufruumlttelns Gerufen wird aus der Ferne in die Ferne Vom Ruf getroffen wird wer zuruumlckgeholt sein

willldquo SuZ GA 2 sect55 271 129

Tatiana Aacutelvarez sublinha que na anaacutelise da morte levada a cabo em Ser e Tempo Heidegger faz uma

constante contraposiccedilatildeo entre falatoacuterio e silecircncio ambos os fenoacutemenos satildeo derivados da fala mas o

falatoacuterio eacute a linguagem da inautenticidade enquanto o silecircncio eacute um iacutendice de autenticidade e daacute a

entender mais que muitas palavras traduzindo a iacutendole taciturna daquele que compreende a verdade da

sua condiccedilatildeo de ser-para-a-morte (Idem El Lenguaje en el Primer Heidegger 234-235)

97

Natildeo se trata no entanto de retirar o Dasein para fora do mundo e o remeter

ao isolamento da sua consciecircncia mas pelo contraacuterio de desvendar de forma

apropriada a estrutura do homem como ser-no-mundo reafirmando aquilo que

a noccedilatildeo de ciacuterculo hermenecircutico jaacute esclarecia que o homem eacute no mundo

estando jaacute sempre lanccedilado num contexto histoacuterico-linguiacutestico que constitui um

horizonte de compreensatildeo inultrapassaacutevel

O lanccedilamento contra o nada da morte eacute o movimento em ricochete que atira o

que se lanccedila mais para traacutes em direcccedilatildeo agrave sua condiccedilatildeo de projecto jaacute lanccedilado

[Geworfenheit] e assim funda natildeo soacute uma compreensatildeo apropriada da

existecircncia como tambeacutem uma compreensatildeo autecircntica da historicidade

intriacutenseca do Dasein

Eacute neste movimento retroprojectivo que o homem se descobre herdeiro duma

liacutengua e duma histoacuteria que lhe preacute-existem transportando consigo uma figura

de mundo que lhe impotildee necessariamente um horizonte preacutevio e assim

condicionam a sua compreensatildeo projectiva e por conseguinte o ponto de vista

interpretativo em que se funda toda e qualquer filosofia Projectando-se

resolutamente contra o nada o Dasein resolve-se a ser aquilo que jaacute era

apropriando-se de si mesmo e dos seus possiacuteveis

A decisatildeo por uma possibilidade faz-se no entanto pela rejeiccedilatildeo e a anulaccedilatildeo

de outras possibilidades que se encontram unilateralmente excluiacutedas pelo que

o movimento da compreensatildeo projectiva [Entwurf] implica sempre a imposiccedilatildeo

dum campo de visatildeo restritivo e uma negaccedilatildeo

Lanccedilado no mundo pela Geworfenheit relanccedilando-se pela projecccedilatildeo [Entwurf]

em direcccedilatildeo ao futuro o Dasein experimenta-se como a unidade de um ldquosi

mesmordquo a que eacute inerente um projecto de compreensatildeo do ser em geral e

portanto um mundo Assim e soacute assim haacute para o Dasein um mundo ou um aiacute

em que o Dasein se pode inserir de um modo originaacuterio e total que eacute anterior a

toda a distinccedilatildeo entre a conduta teoreacutetica e praacutetica

Contudo ser um ldquosi mesmordquo significa sempre ldquoser culpadordquo [ldquoschuldigseinrdquo] de

excluir e remeter ao nada outras possibilidades existenciais eacute o proacuteprio

movimento de projecccedilatildeo daquele que se projecta em direcccedilatildeo ao que pode ser

que estaacute afectado de natildeo ser ldquoA projecccedilatildeo natildeo eacute apenas determinada como

98

projectada pela negaccedilatildeo do fundamento mas eacute ela mesma que enquanto

projecccedilatildeo eacute essencialmente negaccedilatildeordquo130

A negatividade eacute assim para Heidegger um aspecto constitutivo da estrutura

existenciaacuteria da projecccedilatildeo dando a ver a ausecircncia de um fundamento absoluto

para as escolhas que resultam apenas da necessidade de ldquose ser aquilo que se

pode serrdquo O ser-verdadeiro daquele que se lanccedila corajosamente contra a

morte consiste apenas na firmeza de uma resoluccedilatildeo [Entschlossenheit] de

situar-se no interior de uma abertura ontoloacutegica jaacute aberta na liacutengua e na

histoacuteria permitindo o acesso a uma verdade que natildeo tem outra medida que o

grau de apropriaccedilatildeo das condiccedilotildees previamente inscritas na situaccedilatildeo

A Verdade como desvendamento tem sempre como contrapartida um

encobrimento natildeo eacute a luz do sol do mundo inteligiacutevel que dissipa as sombras e

recorta as formas num fundo de absoluta visibilidade mas luz que iluminando

projecta sombra e oculta mantendo a reserva e o misteacuterio

Esta negatividade constitutiva da estrutura de projecccedilatildeo faz tambeacutem com que

para Heidegger como para Hegel o espiacuterito natildeo possa deter-se em nenhuma

figura da verdade tomando-a como definitiva Eacute certo que ldquoa quedardquo na

presenccedila do presente manteacutem sobre todas as criaccedilotildees humanas ameaccedila da

esclerose do pensamento mas o Dasein que se lanccedila resolutamente contra a

morte manteacutem-se livre para poder decidir-se por um novo comeccedilo ou um novo

lanccedilamento ldquoCom o fenoacutemeno da resoluccedilatildeo [Entschlossenheit] fomos

colocados diante da verdade originaacuteria da existecircncia A resoluccedilatildeo eacute o Dasein

posto a descoberto para si mesmo no seu poder ser faacutectico em cada caso de

tal modo que ele mesmo eacute este pocircr a descoberto e ser posto a descoberto Agrave

verdade pertence o seu correspondente ter-por-verdadeiro A apropriaccedilatildeo

expressa do aberto ou descoberto eacute o estar certo [] O que significa entatildeo a

certeza pertencente a uma tal resoluccedilatildeo Ela deve manter-se no aberto atraveacutes

da decisatildeo Mas isto significa ela natildeo pode justamente obstinar-se na situaccedilatildeo

mas deve compreender que a decisatildeo de acordo como o seu proacuteprio sentido

de abertura tem que manter-se livre para a sua possibilidade faacutectica em cada

130

rdquoDer Entwurf ist nicht nur als je geworfener durch die Nichtigkeit des Grundseins bestimmt sondern

als Entwurf selbst wesenhaft nichtigrdquo SuZ GA 2 sect 58 285

99

caso A certeza da decisatildeo significa manter-se livre para a sua possiacutevel e em

cada caso facticamente necessaacuteria retiradardquo131

Assim ldquoa resoluccedilatildeordquo eacute justamente o inverso de buscar uma fuga diante da

morte eacute estar decidido a ldquomanter a morte como potecircncia dominante da

existecircnciardquo aceitando que em cada caso a verdade eacute limitada por um horizonte

histoacuterico-linguiacutestico finito inultrapassaacutevel e pereciacutevel132

Contudo e por isso mesmo ldquomanter a morte como potecircncia dominante da

existecircnciardquo obriga tambeacutem a reconhecer que esse horizonte soacute pode manter-se

vivo enquanto for moacutevel e se dilatar embora natildeo arbitraria nem

indefinidamente a cada novo lanccedilamento

Eacute assim tambeacutem agrave luz do que ficou dito que podemos compreender que a

problemaacutetica da relaccedilatildeo com os textos que a tradiccedilatildeo nos apresenta tenha que

ser repensada e que a verdade que em cada um deles se anuncia seja a

verdade limitada de um horizonte pereciacutevel que caso se queira manter viva

teraacute de sofrer ser relanccedilada e retomada a partir das possibilidades inscritas na

situaccedilatildeo do leitor actual

Compreensatildeo dum texto traduccedilatildeo e interpretaccedilatildeo satildeo operaccedilotildees

hermenecircuticas similares que testemunham a negatividade e a finitude do

Dasein enquanto projecto lanccedilado ldquoA projecccedilatildeo natildeo eacute soacute determinada como

131

ldquoMit dem Phaumlnomen der Entschlossenheit wurden wir vor die urspruumlngliche Wahrheit der Existenz

gefuumlhrt Entschlossen ist das Dasein ihm selbst in seinem jeweiligen faktischen Seinkoumlnnen enthuumlllt so

zwar daβ es selbst dieses Enthuumlllen und Enthuumllltsein ist Zur Wahrheit gehoumlrt ein ihr je entsprechendes

Fuumlr-wahr-halten Die ausdruumlckliche Zueignung des Erschlossenen bzw Entdeckten ist das Gewiβsein []

Was bedeutet dann die solcher Entschlossenheit zugehoumlrige Gewiβheit Sie soll sich in dem durch den

Entschluβ Erschlossen halten Dies besagt aber sie kann sich gerade nicht auf die Situation versteifen

sondern muβ verstehen daβ der Entschluβ seinem eigenen Erschlieβungssinn nach frei und offen gehalten

werden muβ fuumlr die jeweilige faktische Moumlglichkeit Die Gewiβheit des Entschlusses bedeutet

Sichfreihalten fuumlr seine moumlgliche und je faktisch notwendige Zuruumlcknahmeldquo SuZ GA 2 sect62 307308 132

Cf Alexandre Franco de Saacute em ldquoDa Morte agrave Origem Heidegger e os vindourosrdquo (in A Morte e a

Origem ndash Em torno de Heidegger e de Freud Lisboa 2008) assinala que com a inscriccedilatildeo da

negatividade no proacuteprio ser do Dasein em Ser e Tempo Heidegger inicia a radicalizaccedilatildeo filosoacutefica do

tema da finitude que adquire nos textos posteriores um estatuto cada vez mais originaacuterio podendo-se ler

em Kant e o Problema da Metafiacutesica que ldquomais original que o homem eacute a finitude do Dasein nelerdquo ldquoUma

tal radicalizaccedilatildeo da finitude na estrutura ontoloacutegica do Dasein a afirmaccedilatildeo heideggeriana de um caraacutecter

originaacuterio da negatividade na essecircncia do proacuteprio Dasein natildeo pode deixar de ter o sentido de uma

progressiva deslocaccedilatildeo da sua morte do fim para a origem num processo em que a vida do Dasein e a

vida do animal vivente se comeccedilam radicalmente a separarrdquo (Idem Obcit 57) Esta radicalizaccedilatildeo da

finitude deslocando a morte do fim para a origem articular-se-ia com a mutaccedilatildeo do conceito de Dasein

que apoacutes Ser e Tempo jaacute natildeo designaraacute um ente individual mas o modo de ser do humano que pode ser

compreendido quer individual quer colectivamente ldquoEacute nesse sentido que a partir dos anos 30 Heidegger

poderaacute aludir nas suas liccedilotildees ao ldquonosso Dasein histoacutericordquo (unser geschichtliches Dasein) ou seja a uma

existecircncia histoacuterica colectiva e ao povo como protagonista dessa mesma existecircnciardquo (Idem Obcit

5859)

100

lanccedilada em cada caso pelo natildeo ser do ser fundamento mas enquanto

projecccedilatildeo eacute ela mesma essencialmente natildeo ser Esta determinaccedilatildeo natildeo

significa por sua vez de maneira alguma a propriedade ocircntica do ldquofracassadordquo

ou ldquosem valorrdquo mas um aspecto constitutivo existenciaacuterio da estrutura do ser

do projectarrdquo133

Aquele que compreende compreende apropriando-se livremente de uma

possibilidade hermenecircutica que por ser a sua estaacute jaacute lanccedilada como

possibilidade que nega e anula outras essa unilateralidade em que consiste

toda a interpretaccedilatildeo natildeo eacute contudo nada de arbitraacuterio ou sem valor mas uma

escolha necessaacuteria e por isso mesmo eacute a uacutenica verdade possiacutevel para a

situaccedilatildeo - que em cada caso eacute o aiacute do ser

Liberdade e necessidade satildeo o verso e o reverso do Dasein e da sua

constitutiva finitude ldquoO suposto natildeo-ser eacute inerente ao ser livre do Dasein para

as suas possibilidades existenciais Mas a liberdade soacute eacute na escolha de uma

possibilidade isto eacute em natildeo ter escolhido e natildeo poder escolher tambeacutem

outrasrdquo134

Aceder agrave verdade de uma interpretaccedilatildeo eacute assim justamente o contraacuterio de

uma atitude de imparcialidade mas o assumir e sustentar uma decisatildeo

hermenecircutica que descobre encobrindo que ilumina o real numa certa

direcccedilatildeo e por isso mesmo oculta e mergulha na obscuridade aquilo mesmo

que potildee a descoberto

10 A libertaccedilatildeo da gramaacutetica em relaccedilatildeo agrave loacutegica

Podemos pois compreender que o problema da linguagem em Heidegger natildeo

seja apenas o de apreendecirc-la e descrevecirc-la como fala que se exerce no

exerciacutecio faacutectico da existecircncia

Heidegger vai-se encaminhar no sentido de romper com a linguagem da

metafiacutesica (pensada sob a categoria da Gerede) e de dilatar as possibilidades

133

bdquoDer Entwurf ist nicht nur als je geworfener durch die Nichtigkeit des Grundseins bestimmt sondern

als Entwurf selbst wesenhaft nichtig Diese Bestimmung meint wiederum keineswegs die ontische

Eigenschaft der bdquoerfolglosldquo oder bdquounwertigldquo sondern ein existentiales Konstitutivum der Seinsstruktur

des Entwerfensldquo SuZ GA 2 sect58 285 134

bdquoDie gemeinte Nichtigkeit gehoumlrt zum Freisein des Daseins fuumlr seine existentiellen Moumlglichkeiten Die

Freiheit aber ist nur in der Wahl der einen das heiβt im Tragen des Nichtgewaumlhlthabens und

Nichtauchwaumlhlenkoumlnnens der anderenldquo SuZ GA 2 sect58 285

101

ontoloacutegicas da linguagem exercendo a sua funccedilatildeo desocultante e

desencobridora esforccedilo que seraacute constantemente renovado ao longo de toda a

sua obra e eacute particularmente visiacutevel nos textos do segundo Heidegger135

Este esforccedilo que jaacute estaacute claramente anunciado em Ser e Tempo e

direccionado no sentido apontado pela Geworfenheit da procura de uma

linguagem originaacuteria exige no entanto a confrontaccedilatildeo preacutevia com uma

decaiacuteda tradiccedilatildeo filosoacutefica que impocircs a normalizaccedilatildeo da linguagem atraveacutes da

gramaacutetica e da loacutegica

ldquoOs gregos natildeo tecircm nenhuma palavra para linguagem [Sprache] eles

compreenderam ldquoagrave partidardquo este fenoacutemeno como fala [Rede] Contudo a

reflexatildeo filosoacutefica fixou preferencialmente a atenccedilatildeo no logos como proposiccedilatildeo

e por isso o estudo das estruturas fundamentais das formas e partes

integrantes do discurso seguiu o fio condutor desse logos A gramaacutetica

procurou o seu fundamento na ldquoloacutegicardquo deste logos136

Heidegger retoma a questatildeo do impeacuterio da loacutegica sobre a gramaacutetica jaacute

discutida por Hamann e Humboldt Como acima jaacute referimos Hamann abre

uma poleacutemica contra o iluminismo chamando a atenccedilatildeo para o facto que as

categorias loacutegicas a que Kant viria a chamar as categorias do entendimento

determinam as categorias gramaticais e as regras sintaacutecticas A loacutegica

determinou a constituiccedilatildeo das gramaacuteticas como ciecircncias normalizadoras das

diversas liacutenguas que submetidas a essa universal intenccedilatildeo normalizadora e

disciplinadora se encontram entre si estabelecendo aquela concordacircncia de

categorias gramaticais e de regras sintaacutecticas

Assim a unidade das gramaacuteticas que referia Bacon natildeo testemunha para

Heidegger como para Hamann e Humboldt a existecircncia de universais

linguiacutesticos mas sim algo de muito diferente o impeacuterio universal da loacutegica

135

Mariacutea Fernanda Benedito sustenta que esta busca heideggeriana de renovaccedilatildeo das possibilidades

ontoloacutegicas da linguagem tem que ser correlacionada com a desarticulaccedilatildeo da linguagem e a destruiccedilatildeo da

sua funccedilatildeo comunicativa Heidegger teria como modelo o silecircncio da fala entendida como apelo (Ruf)

diante da morte (Cf Heidegger en su lenguaje Madrid (1992) 56-62) Natildeo eacute este o nosso ponto de

vista como acima esclarecemos pois esse apelo (Ruf) entendemo-lo como apelo agrave ruptura com a Gerede

ou seja agrave linguagem das vagas generalidades e a um exercigravecio ldquoproacutepriordquo da linguagem entendido como

um falar ldquopor si mesmordquo enraizado na existecircncia que natildeo anula mas pressupotildee o destinataacuterio ainda que

o pressuponha de um outro modo Este ponto como em geral o problema da alteridade natildeo se encontra

no entanto suficientemente esclarecido em Ser e Tempo nem talvez nas obras posteriores 136

bdquoDie Griechen haben kein Wort fuumlr Sprache sie verstanden dieses Phaumlnomen ldquo zunaumlchstrdquo als Rede

Weil jedoch fuumlr die philosophische Besinnung des ιόγος vorwiegend als Aussage in den Blick kam

vollzog sich die Ausarbeitung der Grundstrukturen der Formen und Bestandstuumlcke der Rede am Leitfaden

dieses Logos Die Grammatik suchte ihr Fundament in der bdquoLogikldquo dieses Logosrdquo SuZ GA 2 sect34 165

102

impeacuterio esse cujo efeito eacute apagar as marcas linguiacutesticas da diversidade e

singularidade das experiecircncias histoacutericas dos vaacuterios povos

Desse modo a destruiccedilatildeo da loacutegica impotildee-se como procedimento

metodoloacutegico essencial para a libertaccedilatildeo das gramaacuteticas e para que a

linguagem possa mostrar-se como ela aparece ao olhar compreensivo da

reconstruccedilatildeo fenomenoloacutegica ou tal como ela se mostra a respeito de si

mesma

A procura da linguagem ldquoapropriadardquo torna-se a partir daqui um problema

central da filosofia heideggeriana da soluccedilatildeo do qual depende a possibilidade

de um pensar-do-ser No entanto a intensa experimentaccedilatildeo do falar nas zonas

de fronteira da gramaacutetica e a violaccedilatildeo da norma linguiacutestica137 que traduzem o

esforccedilo heideggeriano posterior de ensaiar um outro exerciacutecio da linguagem

devem ser entendidas de maneira adequada e natildeo apenas no sentido negativo

de uma desarticulaccedilatildeo e destruiccedilatildeo da dimensatildeo comunicativa da linguagem

Esta tarefa eacute preparada no seminaacuterio do semestre de Veratildeo de 1934 integrado

na Gesamtausgabe sob o tiacutetulo Die Logik als die Frage nach dem Wesen der

Sprache

ldquoA tarefa duma libertaccedilatildeo da Gramaacutetica em relaccedilatildeo agrave loacutegica necessita

previamente de uma compreensatildeo positiva da estrutura fundamental a priori da

fala [Rede] em geral como existenciaacuterio e natildeo pode ser levada a cabo

simplesmente pelo melhoramento e acabamento do que eacute tradicionalrdquo138

A confrontaccedilatildeo com a loacutegica levada a cabo nas Liccedilotildees de Loacutegica aponta

claramente no sentido de uma ruptura cujo sentido se trata aqui de precisar a

loacutegica aristoteacutelica que se manteve praticamente inalterada ao longo da nossa

histoacuteria vigorou e regeu todo o pensar ocidental como instrumento e

propedecircutica do pensar e do conhecer Atraveacutes do seu impeacuterio sobre as

diversas gramaacuteticas a loacutegica aristoteacutelica constitui-se como ldquosiacutetio de origem da

137

O levantamento sistemaacutetico das decisotildees hermenecircuticas tomadas por Heidegger no campo da

morfologia da sintaxe do leacutexico para a constituiccedilatildeo de uma linguagem apropriada encontra-se em

Bernhard Sylla Hermeneutik der langue 307-362 138

bdquoDie Aufgabe einer Befreiung der Grammatik von der Logik bedarf vorgaumlngig eines positiven

Verstaumlndnisses der apriorischen Grundstruktur von Rede uumlberhaupt als Existenzial und kann nicht

nachtraumlglich durch Verbesserungen und Ergaumlnzungen des Uumlberlieferten durchgefuumlhrt werdenldquo SuZ GA

2 sect34 165166

103

linguagem faacutecticardquo isto eacute das diversas liacutenguas tal como satildeo efectivamente

usadas para produzir os enunciados cientiacuteficos e as proposiccedilotildees metafiacutesicas

Embora Heidegger aceite a definiccedilatildeo tradicional da loacutegica como a ciecircncia das

estruturas formais e regras do pensar haacute que ter em conta que a loacutegica como

ciecircncia do logos eacute consoante o sentido originaacuterio da palavra logos

simultaneamente a ciecircncia do pensar do falar (Reden) e do dizer (Sprechen)

rdquoA loacutegica eacute a ciecircncia do λόγος da fala (Rede) rigorosamente da linguagem

(Sprache)rdquo 139

Portanto questionar a loacutegica seraacute questionaacute-la nesse sentido abrangente de

ciecircncia que visa a normalizaccedilatildeo tanto do pensar como da linguagem sempre

entendidos como unidade essencial como articulaccedilatildeo loacutegico-linguiacutestica

Destruir ou abalar a loacutegica significaraacute pois destruir uma concepccedilatildeo falsa e

dissimuladora que ocultou a verdadeira essecircncia quer do pensamento quer

da linguagem

Poreacutem natildeo basta afirmar que a loacutegica impocircs uma certa concepccedilatildeo sobre a

linguagem mas eacute ainda preciso saber como a impocircs as categorias gramaticais

nasceram da loacutegica mas esta por seu lado foi forjada por uma liacutengua (a

grega) a partir de uma certa maneira de pensar que pela primeira vez se

afirmou no homem grego De modo que a relaccedilatildeo entre loacutegica e linguagem eacute

de certo modo uma relaccedilatildeo circular a loacutegica preacute-formou a nossa compreensatildeo

da linguagem mas por seu lado foi criada pela linguagem isto eacute pela liacutengua

grega

Para Heidegger os fundamentos da Loacutegica devem ser buscados na ontologia

grega e derivados duma certa relaccedilatildeo do Homem com a questatildeo do ser que

historicamente se impocircs na Greacutecia ldquoA loacutegica natildeo eacute pois para noacutes um

adestramento para um melhor ou pior meacutetodo do pensar mas o medir

questionante dos abismos do ser natildeo eacute a ressequida colecccedilatildeo das perpeacutetuas

leis do pensar mas o lugar da questionabilidade do homem da sua medidardquo140

139

bdquoDie Logik ist die Wissenschaft vom ιόγος von der Rede strenggenommen von der Spracheldquo LWS

GA 38 14 140

bdquoDie Logik ist daher fuumlr uns nicht eine Abrichtung zu einem besseren oder schlechteren

Denkverfahren sondern das fragende Abschreiten der Abgruumlnde des Seins nicht die vertrocknete

Sammlung ewiger Denkgesetze sondern Staumltte der Fragwuumlrdigkeit des Menschen seiner Groumlszligeldquo Ibidem

910

104

Abalar a loacutegica eacute pois questionar uma certa compreensatildeo do homem de si

mesmo e uma certa compreensatildeo do ser que emergiram pela primeira vez

entre os gregos e que dominaram e satildeo o fundamento oculto duma tradiccedilatildeo em

que ainda permanecemos

Ora o que caracteriza a nossa compreensatildeo ldquodo que eacuterdquo eacute o modo como ela se

daacute no interior daquilo a que chamamos ldquociecircnciardquo Aquilo que eacute ergue-se diante

do homem como objecto isto eacute como algo que estaacute perante o sujeito como

subsistente Indo mais fundo pergunta-se poreacutem donde emergiu esta

compreensatildeo do homem de si mesmo como sujeito e do ente como objecto A

noccedilatildeo de sujeito teve origem no termo grego hypokeimenon o que subjaz A

ele se refere todo o dizer relativo agravequilo que eacute isto eacute a ele se referem todos os

predicados

A loacutegica institui pois no enunciado um modo de dizer cuja estrutura eacute predicar

o sujeito aquilo que subjaz ou aquilo que eacute a substacircncia Assim a

compreensatildeo do ser que corresponde agrave loacutegica do enunciado proposicional eacute a

compreensatildeo do ser como substacircncia como aquilo que permanece para aleacutem

de toda a mudanccedila

Heidegger afirma que para libertar a linguagem desta ldquoloacutegicardquo temos que

romper com esta ontologia da presenccedila e aceder agrave experiecircncia originaacuteria da

articulaccedilatildeo do sentido ou da compreensatildeo do ser que acompanha o homem

enquanto ele vive trabalha e se gesta a si mesmo enquanto tempo e histoacuteria

Libertar as gramaacuteticas eacute assim uma tarefa que pode ser compreendida

negativamente como destruiccedilatildeo da loacutegica mas que positivamente indica o

retomar as possibilidades que jaacute se encontram nas vaacuterias liacutenguas naturais que

acompanham a existecircncia faacutectica do homem141

Libertar a linguagem da loacutegica significaraacute para Heidegger em primeiro lugar

reconhecer como Humboldt a dignidade e a importacircncia das vaacuterias liacutenguas

141

Sobre a relaccedilatildeo de Heidegger com a gramaacutetica e a linguiacutestica ver Bernhard Sylla (Hermeneutik der

langue 311) ldquoAn bdquometaphysischrdquo gegruumlndeter Sprachwissenschaft kritisiert Heidegger zahlreiche

Einzelaspekte Die zentrale Kritik richtet sich gegen die bdquofataleldquo grammatischen Kategorien Subjekt und

Objekt und den undifferenzierten nur aufs Seiende verweisenden Gebrauch der Kopula [] Neben die

Gebundenheit an grammatische Kategorien ist es vor allem noch die Tendenz zur Desambiguierung zur

Eindeutigkeit die kritisiert wird Diese mache sich einerseits im Lexikalischen bemerkbar insofern die

Tendenz bestehe Homonyme und Polyseme zu identifizieren uns als varianten im Woumlrterbuch

aufzulisten so daβ sie als Einheiten handhabbar werden Vieldeutigkeit darf nach Heidegger aber nie zu

gleichrangiger Nebenordnung fuumlhren sondern sei einerseits Zeichen fuumlr Reichhaltigkeit von Woumlrtern

andererseits Herausforderung zur Detektion der wesentlichen sbquoSemantikbdquoldquo

105

histoacutericas enquanto instauradores de diferentes aberturas de mundo142 Em

vez da ldquomesmidaderdquo assegurada pela loacutegica temos a valorizaccedilatildeo da

multiplicidade e da diversidade de horizontes de sentido transportados pelas

diferentes liacutenguas faladas pelos homens

Eacute esta funccedilatildeo de abertura de mundo ou de instaurar uma compreensatildeo preacute-

ontoloacutegica que jaacute tinha sido assinalada agrave linguagem enquanto Rede que aqui

se recupera para a linguagem faacutectica isto eacute para as diversas liacutenguas

histoacutericas que aqui satildeo analisadas na sua conexatildeo com a vida dos povos

enquanto trabalham e edificam o seu mundo A linguagem enquanto liacutengua

fundamenta-se no povo cujo ser-histoacuterico se trata aqui de compreender de

uma forma que escapara a Humboldt ldquoo povordquo deve ser repensado sobre o

fundamento ontoloacutegico do ser do homem enquanto temporalidade

Como acima referimos Hamann jaacute tinha demonstrado que sob o domiacutenio da

loacutegica se impocircs um dizer que se subordina ao princiacutepio de identidade

ignorando a irredutiacutevel heterogeneidade das experiecircncias que eacute apropriado

para enunciar a abstracccedilatildeo dos conceitos mas recusa a dimensatildeo corporal

das sensaccedilotildees e os afectos Contra este dizer e pensar disciplinado pela

norma e pela razatildeo Hamann viraacute incitar agrave transgressatildeo da norma linguiacutestica e

Humboldt agrave reivindicaccedilatildeo da libertaccedilatildeo das gramaacuteticas em relaccedilatildeo agrave loacutegica e

ao reconhecimento da pluralidade de aberturas do mundo instauradas pelas

diferentes liacutenguas

Heidegger insere-se claramente nesta tradiccedilatildeo (embora natildeo a assuma

explicitamente) radicalizando-a uma vez que ele pretende realizar uma

confrontaccedilatildeo com a loacutegica que pretende abalar a ontologia da presenccedila em

que esta se fundamenta E pretende ao mesmo tempo fundar positivamente

essa libertaccedilatildeo das liacutenguas naturais numa relaccedilatildeo autecircntica do homem com a

temporalidade a multiplicidade das aberturas de mundo das diferentes liacutenguas

adquire assim um soacutelido fundamento ontoloacutegico

Embora esta conexatildeo entre liacutengua (Sprache) e povo (Volk) natildeo tenha a partir

de 36 ocupado um lugar central na filosofia heideggeriana da linguagem em

outras ocasiotildees Heidegger natildeo deixaraacute de afirmar que a multiplicidade de

142

Note-se que Heidegger excluiacutea no entanto a possibilidade de reactivar qualquer liacutengua antiga ou de

pelo contraacuterio construir uma nova liacutengua que acompanhasse o novo iniacutecio do pensar Trata-se antes de

modificar o uso da liacutengua atraveacutes duma reinterpretaccedilatildeo da gramaacutetica e exploraccedilatildeo da etimologia Cf

Bernhard Sylla ob cit 312

106

liacutenguas e dialectos que constituem o falar dos povos143 constitui um legado da

experiecircncia histoacuterica que interessa preservar como o solo em que se deve

enraizar toda a possibilidade do dizer do pensar como se encontra afirmado no

ensaio sobre Hebel

Babel natildeo eacute uma maldiccedilatildeo que se trataria de corrigir mas a condiccedilatildeo

ontoloacutegica do homem como ser histoacuterico e temporal que haacute que positivamente

assumir para desenvolver plenamente as potencialidades ocultas da

linguagem

11 Liacutengua povo e histoacuteria

Para a compreensatildeo desta fundamentaccedilatildeo ontoloacutegica da diversidade de

horizontes de sentido inerentes agraves diferentes liacutenguas eacute essencial tomarmos em

consideraccedilatildeo a distinccedilatildeo estabelecida em Logik als die Frage nach dem Wesen

der Sprache entre a temporalidade inerente agraves coisas e agrave natureza em geral ou

intra-temporalidade (Innerzeitgkeit) e a temporalidade inerente ao ser do

homem (Zeitlichkeit)

Se a primeira se refere a um horizonte temporal dado como um quadro onde

os diversos factos se alinham em relaccedilatildeo de sucessatildeo ou de simultaneidade a

segunda coincide com o movimento de auto-gestaccedilatildeo da existecircncia tal como

foi posto a claro pela analiacutetica do Dasein levada a cabo em Ser e Tempo

Heidegger procede a uma reinterpretaccedilatildeo da histoacuteria fundando-a nesta

temporalidade inerente agrave existecircncia e tendo em conta as aquisiccedilotildees

fundamentais de Ser e Tempo segundo as quais esta pode ser exercida de

forma apropriada pelo Dasein que se lanccedila em direcccedilatildeo agrave morte assumindo a

sua finitude ontoloacutegica e apropriando-se de si como um ldquosi mesmordquo ou pelo

contraacuterio e como acontece na maior parte do tempo perdendo-se na dispersatildeo

das possibilidades e no atarefar-se inerente ao mero fazer pela vida No

primeiro caso temos o exerciacutecio da temporalidade na sua unidade extaacutetica no

segundo a queda na presenccedila do presente

143

A conexatildeo entre liacutengua (Sprache) e povo (Volk) eacute desenvolvida por Heidegger entre 1934 e 1936 em

Logik als die Frage nach dem Wesen der Sprache Einfuumlhrung in die Metaphysik Houmllderlin und das

Wesen der Dichtung e Der Ursprung des Kunstwerkes

107

Em estrita correspondecircncia com esta dupla maneira de exercer a

temporalidade temos duas maneiras de entender a histoacuteria para as quais

Heidegger reserva os conceitos de historiografia (Historie144) e histoacuteria

(Geschichte)145 sendo a primeira entendida segundo o paradigma da ciecircncia e

o seu ideal de objectividade segundo os quais o acontecer da natureza e o

acontecer humano natildeo seriam essencialmente diferentes e a segunda como

auto-gestaccedilatildeo de um povo a partir de si mesmo ou como um acontecer

voluntaacuterio e sapiente do qual pode ser conservada uma notificaccedilatildeo

Este acontecer da histoacuteria (Geschehen) natildeo eacute o simples transcorrer (Vorgaumlnge)

instintivo da vida proacuteprio das plantas e dos animais mas eacute um acontecer

voluntaacuterio e consciente fundado num saber que pode conservar-se como

notificaccedilatildeo (Kunde) ldquoA vida das plantas e dos animais eacute a unidade instintiva

caracteriacutestica de uma totalidade viva O acontecer humano pelo contraacuterio eacute

voluntaacuterio e por isso sapiente e na verdade natildeo apenas em cada caso em si

mesmo de tal modo que o saber e o querer sejam co-determinantes para o

acontecer humano no seu cumprimento mas tambeacutem enquanto este acontecer

enquanto acontecer permanece no saber e tambeacutem de certo modo no querer -

por conseguinte pode ser dele conservada uma notificaccedilatildeo [Kunde] e por isso

esse acontecer eacute susceptiacutevel de ser investigado [erkundbar]rdquo146

Histoacuteria e historiografia satildeo conceitos diferentes da histoacuteria noacutes podemos dizer

que ela eacute aquele acontecer de que pode ser dada e conservada uma

notificaccedilatildeo mas esta notificaccedilatildeo eacute apenas uma preacute-condiccedilatildeo ou uma forma

preacutevia da historiografia A historiografia ou a ciecircncia da histoacuteria visa dar a

inteligibilidade ou a verdade acerca da histoacuteria sendo determinada pela atitude

em relaccedilatildeo agrave essecircncia da verdade Ora noacutes movemo-nos no interior do

conceito de verdade como adequaccedilatildeo do juiacutezo ao seu objecto ou como

objectividade A questatildeo que podemos pocircr eacute no entanto se este ideal de

144

bdquoFuumlr das Erkunden haben die griechen das Wort ἱςηορία gebraucht Dieses Wort bekam erst in Vorlauf

ihrer eigenen Geschichte die Bedeutung von bdquoGeschichtskundeldquo Das Wort bedeutet heute als bdquoHistorieldquo

das Wissen um die Geschichteldquo LWS GA 38 87 145

bdquoWir bestimmen mit dieser Einschraumlnkung Geschichte als Sein des Menschen [hellip] ldquo Ibidem 86 146

bdquoPflanzliches und tierisches Leben ist eigentuumlmlich triebmaumlβige Einheit eines Lebensganzen Das

menschliche Geschehen dagegen ist willentlich und deshalb wissend und zwar nicht nur jeweils in sich

selbst so daβ Wissen und Wille mitbestimmend waumlre fuumlr das menschliche Geschehen in seinem Vollzug

sondern auch insofern als dieses Geschehen als Geschehen im Wissen und gewissermaβen auch im

Wollen bleibt ndash daβ somit eine Kunde davon bewahrt bleiben kann und daβ deshalb dieses Geschehen

erkundbar istldquo Ibidem 86

108

objectividade que a historiografia cientiacutefica persegue permite dar conta daquilo

que eacute essecircncia da histoacuteria e do que constitui o ser-histoacuterico de um determinado

evento

De facto para Heidegger Geschichte e Historie natildeo satildeo apensas coisas

diferentes mas ateacute certo ponto contraacuterias se encararmos Historie no sentido

moderno de ciecircncia da histoacuteria Para esta ciecircncia da histoacuteria os acontecimentos

histoacutericos satildeo sempre acontecimentos passados que porque satildeo passados

podem ser encarados como entes que estatildeo perante como simples ldquoobjectosrdquo

e por isso ser concatenados segundo relaccedilotildees de causa e efeito como os

entes da natureza Ora a histoacuteria no sentido apropriado (Geschichte) eacute o

gestar-se de si mesmo de um povo que se apropria do seu passado e a partir

dele se determina no presente e projecta no futuro Nenhum acontecimento

histoacuterico (Geschehen) pode ser encarado como qualquer coisa de

simplesmente passado pois histoacutericos satildeo apenas os acontecimentos que uma

colectividade toma como seus trazendo-os para o presente e determinando-se

a actualizaacute-los como cumprimento de uma missatildeo e entrega a um destino147

Para compreender a novidade da consciecircncia histoacuterica proposta por Heidegger

podemos confrontaacute-la natildeo apenas com a historiografia cientiacutefica o que o

proacuteprio Heidegger repetidamente fez mas ainda com a filosofia da histoacuteria

hegeliana em cuja vizinhanccedila Heidegger indiscutivelmente se situa na medida

em que para ambos os autores na histoacuteria humana se joga simultaneamente a

histoacuteria do ser

Na filosofia hegeliana da histoacuteria todas as aquisiccedilotildees do espiacuterito humano se

vecircem convertidas em etapas do espiacuterito finito na sua marcha dialeacutectica em

direcccedilatildeo agrave Verdade ou ao momento final de totalizaccedilatildeo em que cada um dos

momentos passados se vecirc simultaneamente integrado e ultrapassado

segundo categoria da Aufhebung

Em Hegel estamos perante uma consciecircncia histoacuterica como consciecircncia do

devir temporal do Espiacuterito que dissolve todas as suas formas e as condena agrave

147

ldquoDas Vergangene ist nicht einfach das Vergehende sondern das noch Bleibende das Weiterwirkende

von fruumlher her noch irgendwie Seiende das von fruumlher noch west sein Wesen treibt das noch Wesende

oder das Gewesene Das Gewesene ist zwar immer ein Vergangenes aber nicht jedes Vergangene ist ein

Gewesenes im Sinne des von fruumlher her Wesenden einerseits also das Vergangene und andererseits das

Gewesene und noch Wesende So unterliegt die Zeitbestimmung der Charakteristik des Vergehens aber

auch des Wesensldquo Ibidem 103

109

finitude e ao transitoacuterio mas que se encontra rigidamente e optimisticamente

dirigido para um telos no qual se anuncia a reconciliaccedilatildeo do espiacuterito consigo

mesmo e a sua realizaccedilatildeo como Ideia

Em Heidegger o tempo arrasta e domina igualmente o ser do homem natildeo

contudo segundo a lei duma inexoraacutevel dialeacutectica mas como poder obscuro

das vaacuterias Stimmungen epocais que impotildeem a cada povo um certo modo de

ldquoestar afinadordquo com uma tonalidade afectiva As Stimmungen epocais lanccedilam e

destinam o ser futuro dos povos de modo essencialmente obscuro mas esse

ser lanccedilado solo comum dum povo histoacuterico eacute o passado ou ldquoo sidordquo ao qual

cada povo deve voltar caso queira ser histoacuterico e poder projectar-se no futuro

O impulso para o futuro ou o movimento de futuraccedilatildeo ao qual corresponde o

existenciaacuterio da compreensatildeo que lanccedila um povo para a frente em direcccedilatildeo

aos seus possiacuteveis eacute lanccedilado em ricochete para traacutes em direcccedilatildeo ao passado

tomando-o natildeo como algo que passou ou que estaacute a passar mas como o sido

(das Gewesene) ou o que desde o antes ainda estaacute a ser como tradiccedilatildeo

Assim a fusatildeo de horizontes temporais com o seu caraacutecter fluido e

imprevisiacutevel embora nunca casual (como Heidegger diraacute mais tarde

obscuramente destinado pelo movimento de destinaccedilatildeo do ser) eacute o nuacutecleo da

consciecircncia histoacuterica heideggeriana148 como em Hegel era a categoria

dialeacutectica da Aufhebung

Esta fusatildeo de horizontes daacute-se em certos momentos privilegiados e

imprevisiacuteveis da histoacuteria (Ereignis)149 e suporta as grandes tarefas dum povo

148

Cf Ramoacuten Rodriacuteguez assinala que agrave historicidade como condiccedilatildeo ontoloacutegica natildeo escapa nenhum

comportamento humano nem mesmo o trabalho cientiacutefico-criacutetico da filosofia Deste modo a tradiccedilatildeo natildeo

pode constituir um obstaacuteculo para a filosofia mas eacute pelo contraacuterio uma condiccedilatildeo de possibilidade para o

questionamento filosoacutefico ldquoLa reflexioacuten filosoacutefica que como acto de inteleccioacuten sabe de su ineludible

historicidad ha de incorporar un discernimiento histoacuterico que se haga cargo del horizonte preciso en que

se encuentra Soacutelo asiacute ldquocon la apropiacioacuten positiva del pasadordquo se pone un interrogar cientigravefico ldquoen la

plena posesioacuten de sus maacutes propias posibilidades de preguntarrdquordquo (Idem Hermeneutica y Subjectividad

40) 149

Alexandre de Saacute contrapotildee a categoria de ldquoEreignisrdquo como exposiccedilatildeo e entrega ao ser ao conceito de

ldquomobilizaccedilatildeo totalldquo desenvolvidos pela ideologia nacional-socialista que impregnava o contexto

histoacuterico-linguiacutestico da Alemanha nos anos 30 em que se inscrevem as Liccedilotildees de Loacutegica ldquoMas na

pertenccedila do Dasein ao ser a apropriaccedilatildeo do Dasein pelo serndashapropriaccedilatildeo que o caraacutecter originaacuterio da

morte assinala ndash tem aqui um caraacutecter diametralmente oposto agrave apropriaccedilatildeo da vida pelo poder Esta

oposiccedilatildeo eacute a chave para a compreensatildeo do conceito heideggeriano de acontecimento-dendashapropriaccedilatildeo

(Ereignis) [hellip] A pertenccedila do Dasein ao ser abre neste natildeo uma subordinaccedilatildeo a uma instacircncia de poder

que o submete mas a sua vinculaccedilatildeo a um acontecimento que precisa dele para que ele mesmo seja

enquanto essecircncia enquanto Wesen entendido no sentido verbal de uma essenciaccedilatildeo (wesung) (Idem

ldquoDa Morte agrave Origem Heidegger e os vindourosrdquo in A Morte e a Origem ndash Em torno de Heidegger e de

Freud 61)

110

histoacuterico enquanto trabalho e criaccedilatildeo das grandes obras que como se

encontra dito em A Origem da Obra de Arte satildeo sempre criaccedilotildees linguiacutesticas

A obra articula e traz ao presente esta fusatildeo de horizonte fazendo brilhar na

sua aparecircncia ldquoum mundordquo

Se ateacute certo ponto Heidegger manteacutem esse conservar do passado e a criaccedilatildeo

do novo caracteriacutesticos da dialeacutectica hegeliana lembremo-nos no entanto que

a dialeacutectica eacute o movimento inerente ao autodesenvolvimento do Espiacuterito

Universal ou da Ideia de que o Espiacuterito de cada povo (Volksgeist) eacute um

momento ou uma forma transitoacuteria Outra coisa muito diferente se passa em

Heidegger para quem a dinacircmica da existecircncia de cada povo eacute por si mesma

criadora de mundo e de histoacuteria graccedilas agrave suacutebita e imediata fusatildeo de horizontes

temporais que acontece no acontecer propriamente histoacuterico ou Ereignis O

mundo de cada povo histoacuterico repousa na sua proacutepria temporalidade como

uma totalidade viva e em crescimento e natildeo eacute um degrau da marcha

progressiva do Espiacuterito do Mundo (Weltgeist) em direcccedilatildeo agrave Liberdade como

em Hegel

Para Heidegger a histoacuteria natildeo tem assim um sentido preciso ou pelo menos

natildeo podemos aceder a ele nem tornaacute-lo inteligiacutevel sendo antes uma irredutiacutevel

multiplicidade que se encontra e entrechoca num movimento essencialmente

e obscuramente destinado pelo tempo - ou como mais tarde Heidegger diraacute

tambeacutem pela histoacuteria do ser150 que se revela subtraindo-se e ocultando-se

envolvendo assim a marcha da histoacuteria humana num fundo de opacidade e de

misteacuterio 151

Esta opacidade fundamental do poder do tempo que suporta e destina a

histoacuteria tem como consequecircncia que as diversas aberturas de mundo satildeo

150

Cf Ramoacuten Rodrigraveguez (ob cit 42) ldquoLa idea de una historia del ser es la invitacioacuten a pensar lo

histoacuterico no a partir de un proceso que transcurre sino de este enviarse (Sichzuschicken) y sustraerse

(Sichentziehen) del ser De ahiacute que el concepto histoacuterico de eacutepoca miente desde este punto de vista no un

determinado corte en la sucesioacuten de los hechos histoacutericos sino el aparecer de una figura del mundo a

partir de la epojeacute de la abstencioacuten o retraimiento del serrdquo 151

Esta obscuridade essencial do poder do tempo faz com que a tradiccedilatildeo tenha um aspecto negativo e se

converta em fonte de encobrimento como sublinha Ramoacuten Rodriacuteguez (ob cit 40) ldquoPero si bien la

historicidad ontoloacutegica hace necesaria una reflexioacuten histoacuterica que asuma conscientemente lo que somos

tal necesidad se ve reforzada por la conviccioacuten [hellip] de que la estructura de transmisioacuten no garantiza la

inteligibilidad de lo transmitido sino que maacutes bien nos lo entrega como un contenido opaco que actuacutea sin

mostrar su propio poder De esta forma encubre maacutes que descubre Es el aspecto negativo de la tradicioacuten

que se encuentra en la base da las cautelas metodoloacutegicas Toda la consideracioacuten heideggeriana del

pasado se encuentra en Ser y tiempo transida de esa doble conciencia que posibilita nuestra

comprensioacuten del mundo siendo a la vez la fuente de su encubrimientordquo

111

incomensuraacuteveis isto eacute cada povo vive no seu mundo e interpreta-se a si

mesmo a partir da sua proacutepria histoacuteria sem que para tal possa ser procurado

outra justificaccedilatildeo ou fundamento

Esta incomensurabilidade das aberturas de mundo instituiacutedas pelas diversas

liacutenguas histoacutericas choca com a tese heideggeriana da supremacia da cultura

europeia em conexatildeo com a ideia da transmissatildeo do legado da origem grega

no entanto haacute que sublinhar que esta ubris europeiacutesta de Heidegger se foi

esbatendo a partir de 1959 data da conferecircncia Houmllderlins Erde und Himmel

em conexatildeo com a tese da igual dignidade ontoloacutegica das vaacuterias civilizaccedilotildees

resultantes dos vaacuterios envios do ser 152

12 A liacutengua como Ereignis

Poreacutem se a histoacuteria (Geschichte) eacute um acontecer nem todo o acontecer

pode ter por si mesmo a dignidade de ser histoacuterico pois histoacuterico eacute soacute aquele

acontecimento ldquoinauguralrdquo que assinala a determinaccedilatildeo dum povo e que pode

ser repetido e actualizado como forccedila imanente e projectiva que manteacutem esse

povo como tal e o faz existir no acircmbito da histoacuteria ldquoA Histoacuteria [Geschichte] eacute

um acontecimento propiacutecio [Ereignis] na medida em que ele acontece

[Geschieht]rdquo153

Para determinar verdadeiramente a essecircncia da histoacuteria eacute preciso clarificar a

noccedilatildeo de Ereignis154 que aparece em Logik e que teraacute uma importacircncia

152

Embora Heidegger defendesse a tese da supremacia da cultura europeia em conexatildeo com a ideia da

transmissatildeo do legado da origem grega esta tese foi-se esbatendo a partir de 1959 data da conferecircncia

Houmllderlins Erde und Himmel pressupondo a partir daiacute a igual dignidade ontoloacutegica das vaacuterias

civilizaccedilotildees resultantes dos vaacuterios envios do ser Cf Maria Adelaide Pacheco ldquoA Europa como Legado

em Gadamerrdquo in Razatildeo e Liberdade II 1425 153

bdquoGeschichte ist ein Ereignis sofern es geschiehtldquo LWS GA 38 87 154

Cf Eacute indispensaacutevel ter em conta a centralidade do termo alematildeo Ereignis assim como o campo

semacircntico que lhe foi associado pela estrateacutegia linguigravestica do segundo Heidegger rdquoNo alematildeo o er- tem

3 significados-base conseguiralcanccedilar algo por completo ou antecipar este alcance (erhalten ersteigen

etc) o deixar aparecerdesabrocharbrotar algo (erwarten erhoffen) o iniacutecio originaacuterio de algo e o seu

crescimento num acontecimento ou processo de caraacutecter transformador (erschauen erroumlten erbluumlhen)

Para aleacutem disso eacute tambeacutem uacutetil saber que o er- proveacutem do alto-alematildeo ar- ir- ou ur- estando portanto

numa relaccedilatildeo de proximidade com o prefixo ur- que exprime a origem a originariedade Vecirc-se

nitidamente que o er- alematildeo reuacutene em si uma espeacutecie de matriz essencial dos traccedilos fundamentais do

Ereignis originariedade transformaccedilatildeo caraacutecter da physis originaacuteria gelassenheit antecipaccedilatildeo utoacutepica

da integraccedilatildeo completa do inteiro da uniatildeo do uno O er- natildeo apenas ganha uma funccedilatildeo lexical eacute antes

elevado embora encobertamente ao estatuto de palavra-chave da filosofia heideggeriana apoacutes a kehrerdquo

(Bernhard Sylla ldquoA Origem e a Fala da Langue em Heideggerrdquo in A Morte e a Origem - Em torno de

Heidegger e de Freud 174) Sobre a problemaacutetica da traduccedilatildeo de ldquoEreignisrdquo para portuguecircs Cf Bernhard

112

fulcral na obra posterior de Heidegger O termo Ereignis natildeo designa todo o

acontecer (Geschehen) mas permite demarcar em todo o acontecer aquele

que eacute histoacuterico daquele que pertencendo agrave histoacuteria eacute no entanto natildeo-

histoacuteria no mesmo sentido em que dizemos que o vale pertence agrave montanha

Ereignis designa aquele acontecer significativo pelo qual um povo se gesta a si

mesmo projectando-se no futuro a partir do seu passado Ereignis eacute o

acontecer instantacircneo da verdade ou o acontecer instantacircneo da resoluccedilatildeo

(Entschlossenheit) em que um povo se decide colectivamente a tomar a cargo

o seu proacuteprio destino ou a sua proacutepria determinaccedilatildeo (Bestimmung) fazendo

assim histoacuteria

Histoacuterico em sentido apropriado natildeo eacute assim nunca um acontecimento

passado nem um acontecimento simplesmente presente nem uma utopia

projectada num longiacutenquo e vago futuro Histoacuterico eacute o Ereignis o

acontecimento propiacutecio em que um povo se experimenta a si mesmo na

unidade nos trecircs ecircxtases temporais em que passado presente e futuro se

articulam de modo simultaneamente luminoso e misterioso

O Ereignis natildeo designa apenas o acontecer humano mas um acontecer no

qual o que estaacute em jogo eacute a compreensatildeo do ser Assim o Ereignis assinala

um acontecer em que natildeo acontece apenas a histoacuteria dum povo nem a histoacuteria

do homem mas onde acontece um modo particular de entrega do ser No

Ereignis o ser apropria-se do homem e o homem apropria-se do ser e essa

reciacuteproca apropriaccedilatildeo daacute-se na linguagem e pela linguagem

A linguagem eacute pois na sua essecircncia um acontecer o que significa que ela

natildeo tem apenas a funccedilatildeo de comunicar informaccedilotildees acerca da histoacuteria nem de

ldquoevocarrdquo eventos mas que ela eacute um acontecer ontoloacutegico que funda a histoacuteria

Assim podemos compreender a afirmaccedilatildeo de Heidegger em Houmllderlin e a

Essecircncia da Poesia de que a linguagem eacute ldquoo supremo acontecimento da

existecircncia humanardquo ldquoo acontecimento que dispotildee da mais elevada

possibilidade de ser do homemrdquo

A linguagem natildeo eacute assim apenas um instrumento de que o homem dispotildee

isto eacute natildeo pode ser tomada como um ente intra-mundano mas tem a funccedilatildeo

Sylla em ldquoHeideggers Er-eignis auf Portugiesischrdquo in Heideggers Beitraumlge zur Philosophie Frankfurt

am Main 2009 463-472

113

de instaurar uma abertura ontoloacutegica na qual os entes podem aparecer com a

configuraccedilatildeo total de um mundo E o abrir loacutegico-linguiacutestico dessa abertura eacute

propriamente aquele acontecer a que se chama na terminologia heideggeriana

o Ereignis

Nesta consideraccedilatildeo da linguagem como Ereignis estatildeo em jogo as diferentes

liacutenguas histoacutericas como tendo a funccedilatildeo essencial da criaccedilatildeo do mundo de um

povo histoacuterico entendendo por ldquomundordquo natildeo apenas as obras de arte as

criaccedilotildees da teacutecnica as religiotildees mas a totalidade dum modo de interpretar-se

a si mesmo e a tudo o que eacute

ldquo Apenas onde haacute linguagem haacute mundo quer dizer esta esfera em permanente

transiccedilatildeo de decisatildeo e de obra de acccedilatildeo e de responsabilidade mas tambeacutem

de arbiacutetrio e de ruiacutedo de decadecircncia e de confusatildeo Somente onde reina

mundo haacute histoacuteria[hellip] a linguagem natildeo eacute um instrumento disponiacutevel mas

aquele acontecimento propiacutecio que dispotildee da mais alta possibilidade de ser do

homemrdquo155

O uso desta categoria de mundo esclarece esta dimensatildeo poieacutetica da

linguagem pelo seu contraste com o mundo tomado como ideia da razatildeo

teoacuterica O mundo como ideia da razatildeo teoacuterica representa o impulso da razatildeo

teoacuterica para a totalizaccedilatildeo do edifiacutecio do saber isto eacute para nada deixar de fora

das siacutenteses dum entendimento legislador da natureza Ora a categoria de

mundo em Heidegger eacute uma categoria que natildeo aponta para uma subjectividade

que legisla sobre os objectos isto eacute sobre a natureza mas para um Dasein

que enquanto falante de uma liacutengua histoacuterica assume a responsabilidade pelo

desvelamento do ser

Na medida em que acolhe o desvelamento do ser o Dasein reuacutene a dispersatildeo e

do caos faz um mundo e este acontece nesse acontecer preacutevio que eacute a

linguagem falada por um povo histoacuterico ldquoMundo natildeo eacute uma ideia da razatildeo

teoacuterica mas mundo notifica-se na notificaccedilatildeo do ser histoacuterico e esta notificaccedilatildeo

eacute o ser revelado do ser do ente no misteacuterio Na notificaccedilatildeo e atraveacutes dela

vigora o mundo

155

bdquo Nur wo Sprache da ist Welt das heiβt der stets sich wandelnde Umkreis von Entscheidung und

Werk von Tat und Verantwortung aber auch von Willkuumlr und Laumlrm Verfall und Verwirrung Nur wo

Welt waltet da ist Geschichte[] Die Sprache ist nich ein verfugbaumlres Werkzeug sondern dasjenige

Ereignis das uumlber die houmlchste Moumlglichkeit des Menschseins verfuumlgtldquo HWD GA 4 3738

114

Poreacutem esta notificaccedilatildeo acontece no acontecer originaacuterio da linguagem Nela

acontece o estar exposto ao ente acontece a entrega ao ser156

A essecircncia do logos enquanto linguagem natildeo aponta assim para a

univocidade da loacutegica nem para o ser como presenccedila mas para o ser como

evento histoacuterico-temporal que acontece na liacutengua de um povo e o constitui

assim como histoacuterico

13 Linguagem e poesia

Com a comunicaccedilatildeo realizada na conferecircncia de 1936 em Roma sob o tiacutetulo

Houmllderlin und das Wesen der Dichtung Heidegger tornou puacuteblico o seu novo

caminho da meditaccedilatildeo sobre a linguagem que inaugurara jaacute em 1934 com as

liccedilotildees dos dois semestres de 1934 respectivamente sobre a Loacutegica e os Hinos

de Houmllderlin

Embora essa meditaccedilatildeo tenha exaltado em Houmllderlin o poeta da poesia e o

grande tradutor da poesia grega ela ocupar-se-aacute em seguida tambeacutem de

outros poetas de liacutengua alematilde como Rilke (ldquoWozu Dichterrdquo in Holzwege)

Stephan George (ldquoDas Wesen der Spracherdquo e ldquoDas Wortrdquo in Unterwegs zur

Sprache) e Georg Trakl (bdquoDie Spracheldquo e bdquoDie Sprache im Gedichtldquo in

Unterwegs zur Sprache)

Esta viragem de Heidegger em direcccedilatildeo agrave poesia natildeo representa nenhum

desvio relativamente aos problemas filosoacuteficos que constituiacuteam o eixo central

de Ser e Tempo significando antes uma continuaccedilatildeo e um aprofundamento da

sua investigaccedilatildeo sobre o ser da linguagem tornada necessaacuteria pela sua

proacutepria experiecircncia das dificuldades em romper com a linguagem da tradiccedilatildeo

metafiacutesica157

Como acima referimos jaacute nas Liccedilotildees de Loacutegica Heidegger afirmara que as

vaacuterias liacutenguas satildeo a poesia originaacuteria comum a um determinado povo Poesia e

156

bdquoWelt ist nicht eine Idee der theoretischen Vernunft sondern Welt kuumlndet sich in der Kunde des

geschichtlichen Seins und diese Kunde ist die Offenbarkeit des Seins des Seienden im Geheimnis In der

Kunde und durch sie waltet die Welt

Diese Kunde aber geschieht im Urgeschehnis der Sprache In ihr geschieht die Ausgesetzheit-in das

Seiende geschieht die Uumlberantwortung an das Seinldquo LWS GA 38 168 157

Cf a obra hoje claacutessica de Hans Jaeger Heidegger und die Sprache (Bern 1971) bdquoHeidegger war an

dem Punkt angelangt wo er spuumlrte daβ die Sprache von Sein und Zeit nicht mehr ausreichte Er hat ja

selbst erklaumlrt warum er den Schluβ des ersten Teils von Sein und Zeit nicht beendet konnte Ihm fehlt die

dazu angemessene Sprache Dazu brauchte der Denker den Dichterldquo (Ob cit 50)

115

linguagem mantecircm ente si uma ligaccedilatildeo tatildeo essencial precisamente porque

cada liacutengua histoacuterica eacute o acontecer fundamental (Ereignis) no qual um povo se

expotildee ao desvelamento histoacuterico-temporal do ser e assim lhe adveacutem o poder

de instituir e criar o seu mundo histoacuterico ldquoA essecircncia da linguagem estaacute aiacute

onde ela acontece como poder criador de mundo isto eacute onde ela comeccedila a

modelar e estruturar o ser do ente A linguagem originaacuteria eacute a linguagem da

poesiardquo 158

Os poetas datildeo voz agrave vontade de soberania de um povo que impotildee a si mesmo

uma certa interpretaccedilatildeo daquilo que eacute e lhe daacute a forma de um mundo Na

linguagem poeacutetica conserva-se e transmite-se a decisatildeo (Entschlossenheit)

pela qual um povo se projectou e se conservou na histoacuteria ela representa ldquoo

domiacutenio do centro de existecircncia histoacuterica do povo que cria e conserva

mundordquo159 A poesia realiza assim a essecircncia da linguagem como ditado

poeacutetico precisamente porque acolhe e interpreta o apelo do ser de acordo com

a memoacuteria de um povo histoacuterico

Se a linguagem tem no seu exerciacutecio apropriado esta funccedilatildeo de levantar um

mundo eacute porque a palavra tem o poder natildeo apenas de nomear mas de ao

nomear fundar doar e instituir um sentido permanente capaz de ordenar o

caos e a desordem criados pela voracidade do tempo A linguagem institui um

sentido permanente capaz de reunir a dispersatildeo e alicerccedilar as grandes

criaccedilotildees colectivas da religiatildeo do Estado e ainda a totalidade das obras

criadas pela arte e pelo trabalho

O Estado eacute o ser histoacuterico do povo e representa o poder de um povo impor a

sua vontade de gestar-se a si mesmo a partir do seu passado e da sua

tradiccedilatildeo e por isso o seu fundamento originaacuterio eacute a linguagem enquanto ditado

poeacutetico ldquoO Estado eacute apenas na medida em que e enquanto acontecer a

158

bdquoDas Wesen der Sprache west dort wo sie als weltbildende Macht geschieht dh wo sie das Sein des

Seienden im voraus erst vorbildet und ins Gefuumlge bringt Die urspruumlngliche Sprache ist die Sprache der

Dichtungldquo LWS GA 38 170 159

Bernhard Sylla sublinha o contexto histoacuterico do seminaacuterio do semestre de Veratildeo de 1934 vendo aiacute os

indiacutecios de um primeiro distanciamento de Heidegger em relaccedilatildeo ao nazismo Este distanciamento seria

particularmente evidente na determinaccedilatildeo do conceito de ldquopovordquo (Volk) a propoacutesito do qual Heidegger

rejeita a compreensatildeo habitual e tambeacutem partilhada pelo nacional-socialismo do povo como corpo alma

ou espiacuterito contrapondo-lhe a tese de que um povo se fundamenta na decisatildeo relativa ao ser que se

expressa no pensar e no poetar ldquoIn der anschlieszligenden breiten Diskussion des Volksbegriffs werden die

uumlblichen und implizit auch nationalsozialistischen Auffassungen von Volk als Koumlrper Seele oder Geist

abgelehnt Diese Ablehnungen muumlnden dann in die These dass nur reine wahrhaft seinsbezogene

Entschlossenheit also ein Einsprung ins seinseroumlffnende Denken und Dichten Dasein als Volk gruumlnden

koumlnneldquo Idem Hermeneutik der langue 300

116

imposiccedilatildeo da vontade de dominaccedilatildeo que nasce da missatildeo e do encargo e

inversamente se torna trabalho e obra O homem o povo o tempo a histoacuteria

o ser o Estado ndash isto natildeo satildeo conceitos abstractos colocados como objectos

para exerciacutecios de definiccedilatildeo mas a relaccedilatildeo da essecircncia eacute sempre uma relaccedilatildeo

histoacuterica Isto quer contudo dizer decidir-se desde o sido para o futurordquo160

Contudo em Houmllderlin e a Essecircncia da Poesia Heidegger viraacute pensar esse

papel fundante da poesia de um modo mais radical Pensando a essecircncia da

poesia a partir da essecircncia da linguagem Heidegger mostra - a partir do

caraacutecter exemplar da poesia de Houmllderlin - que ela natildeo se limita a usar a

linguagem como mateacuteria-prima disponiacutevel mas realiza a autecircntica essecircncia da

linguagem como ldquofundaccedilatildeo do serrdquo a poesia eacute a fundaccedilatildeo do ser pela palavra

e o poeta nomeia os deuses e todas as coisas instituindo e ditando a sua

significaccedilatildeo

Do mesmo modo em Der Ursprung des Kunstwerkes de 3536 toda a

linguagem enquanto liacutengua falada por um povo histoacuterico natildeo eacute poesia pelo

facto de que eacute poetizar originaacuterio mas o poetizar acontece na linguagem

porque esta encerra em si a essecircncia originaacuteria da poesia A liacutengua dum povo

que se assume a si mesmo como histoacuterico eacute tambeacutem a instauraccedilatildeo da abertura

ontoloacutegica originaacuteria que desvela os entes e permite que eles apareccedilam na

Lichtung do ser E eacute no interior desta abertura originaacuteria que podem ter lugar as

criaccedilotildees poeacuteticas em sentido estrito como a criaccedilatildeo das obras de arte em

geral ldquoA arquitectura e as artes figurativas pelo contraacuterio acontecem sempre e

jaacute sempre soacute no espaccedilo aberto do dizer e do nomear Estatildeo imbuiacutedas e

guiadas por este Eacute por isso que permanecem como caminhos e modos

singulares como a verdade se rectifica na obra Satildeo um poetizar ndash em cada

caso e na sua respectiva forma ndash dentro da clareira [Lichtung] do ente a qual jaacute

aconteceu inadvertidamente na linguagemrdquo161

160

bdquoDer Staat ist nur sofern und solange die Durchsetzung des Herrschaftswillens geschieht der aus

Sendung und Auftrag entspringt und umgekehrt zu Arbeit und Werk wird Der Mensch das Volk die

Zeit die Geschichte das Sein der Staat ndashdas sind keine abgezogenen Begriffe als Gegenstaumlnde fuumlr

Definitionsuumlbungen sondern das Wesensverhaumlltnis ist jederzeit ein geschichtliches dh aber

zukuumlnftiggewesenes Sichentscheidenldquo LWS GA 38 165 161

bdquoBauen und Bilden dagegen geschehen immer schon und immer nur im Oumlffenen der Sage und des

Nennens Von diesem werden sie durchwaltet und geleitet Aber gerade deshalb bleiben sie eigene Wege

und Weisen wie die Wahrheit sich ins Werk richtet Sie sind ein je eigenes Dichten innerhalb der

Lichtung des Seienden die schon und ganz unbeachtet in der Sprache geschehen istldquo UKw GA 5 61

117

A linguagem enquanto liacutengua falada por um povo vive no risco da queda e da

degradaccedilatildeo na iminecircncia da perda do seu poder de abrir mundo e de fazer

histoacuteria Na realidade ela vive entre os momentos altos do Ereignis em que se

eleva agrave altura dos grandes combates entre o mundo e a terra e levanta as

grandes obras de arte e a degradaccedilatildeo e a queda na transmissatildeo falsificada

que eacute apenas o esclerosamento da tradiccedilatildeo que transmite

Ateacute mesmo as chamadas liacutenguas histoacutericas estatildeo sempre e inevitavelmente em

risco de decadecircncia e de perda da sua vocaccedilatildeo ontoloacutegica na medida em que

estatildeo sujeitas ao uso e agrave usura quotidianos ao desgaste inerente ao servir

como simples instrumento de comunicaccedilatildeo Por isso eacute na grande poesia que

se encontra salvaguardada contra a tendecircncia para a decadecircncia a vocaccedilatildeo

ontoloacutegica das liacutenguas histoacutericas e pela mesma razatildeo Heidegger valorizaraacute a

poesia como caminho para a libertaccedilatildeo da linguagem originaacuteria o que deve ser

compreendido em estreita ligaccedilatildeo com a dimensatildeo projectiva do Entwurf em

particular do existentieller Entwurf zum Tode Efectivamente o lanccedilamento

contra a morte implica como vimos a consciecircncia de que todo o projecto de

compreensatildeo estaacute constantemente ameaccedilado pela esclerose do pensamento

Ora como Heidegger diraacute em A Origem da Obra de Arte a poesia no seu

prolongado combate entre o mundo e a terra natildeo se limita a expor um mundo

preacute-existente mas cria e institui uma nova verdade que contudo estaacute sempre

ameaccedilada de ruiacutena e perda de fundamento162

Esta dimensatildeo projectiva e instituinte do novo que pertence intrinsecamente agrave

linguagem poeacutetica - na qual reside a sua dimensatildeo propriamente poieacutetica -

confere a esta o estatuto privilegiado de paradigma da linguagem apropriada e

da sua originaacuteria possibilidade ontoloacutegica e assim apela agrave vizinhanccedila e agrave

162

Cf Hans Jaeger sublinha a novidade da tematizaccedilatildeo da questatildeo do ser e da verdade que estaacute implicada

na afirmaccedilatildeo heideggeriana do pocircr-se-em obra da verdade como a essecircncia da obra de arte ldquoWas im

Kunstwerk am Werk ist ist ein ldquoGeschehen der Wahrheitrdquo und die Kunst ist ldquodas Sich-ins-Werk-Setzen

der Wahrheitrdquo des Seienden Diese Wahrheit im Kunstwerk bedeutet natuumlrlich nicht moumlglichst treue

Wiedergabe des Dargestellten auch nicht Uumlbereinstimmung mit dem Wesen der dargestellten Dingerdquo

(Ob cit 44)

Segundo Hans Jaeger este pocircr-se em obra da verdade como prolongado combate entre o mundo e a terra

que acontece na arte eacute uma reformulaccedilatildeo do conceito de verdade de Ser e Tempo na direcccedilatildeo de uma

ruptura mais radical com a metafiacutesica Pensando a verdade como combate entre o mundo e a terra

Heidegger pensa-a como velamentodesvelamento rdquoDas Ins-Werk-Setzen der Wahrheit als das Wesen

des Kunstwerkes ist der ldquoliebende Streitrdquo von Unverborgenheit und Verborgenheit Bisher hatten wir die

Wahrheit bei Heidegger immer als ldquoUnverborgenheitrdquo (griechisch bdquoalegravetheialdquo) kennengelernt Aber das

Wort mit seiner Vorsilbe Un-sagt ja schon daβ die Wahrheit immer aus dem Verborgenheit entborgen

werden muβ also die Verborgenheit zu Wahrheit als Unverborgenheit gehoumlrt mithin Wahrheit nicht ohne

ldquoUn-wahrheitrdquo ist was natuumlrlich nicht Falschheit bedeutetldquo (Ob cit 46-47)

118

proximidade da filosofia A poesia realiza e desenvolve a dimensatildeo poieacutetica da

linguagem porque pode instaurar uma abertura de mundo e vigiar essa

abertura contra a tendecircncia para o cerramento imposta pela decadecircncia e o

extravio (Verfall)

Assim a linguagem pensada como Ereignis eacute para Heidegger a linguagem

criadora aquela que se conecta com temporalidade da criaccedilatildeo isto eacute com o

tempo dos poetas dos pensadores e dos criadores do Estado que

fundamentam o ser-aiacute histoacuterico de um povo o que seraacute designado por

Heidegger em Houmllderlins Hymnen como ldquoo tempo do cumesrdquo163

14 Poesia e Filosofia ou diaacutelogo entre cumes

No entanto porque privilegiou Heidegger a poesia de Houmllderlin e a partir de

trinta e trecircs natildeo deixou de voltar agrave sua poesia e de com ela estabelecer uma

relaccedilatildeo de parentesco Esse parentesco muacuteltiplas vezes reafirmado tem como

fundo a proximidade de Houmllderlin aos gregos com os seus deuses a sua

experiecircncia da natureza e do sagrado

Houmllderlin era para Heidegger como acima referimos o paradigma do tradutor

autecircntico pela sua transposiccedilatildeo da palavra grega para o alematildeo tendo o

diaacutelogo com o poeta atravessado a sua proacutepria obra e inspirado parcialmente a

sua proacutepria linguagem164 No entanto Heidegger natildeo deixa tambeacutem de

sublinhar a distacircncia entre o pensar e o poetar afirmando que o pensador diz o

Ser e o poeta diz o Sagrado e que ambas se situam numa vizinhanccedila como a

de duas montanhas cuja proximidade eacute tambeacutem a separaccedilatildeo Estes cumes

estatildeo muito perto um do outro e os que os habitam compreendem-se por isso

uns aos outros mas eacute tambeacutem nesta proximidade que se encontram separados

pelos abismos que os dividem165

163

bdquoDie Zeit der Schaffenden ndash hochaufwogendes Gebirge die Gipfel der Berge die einsam hineinstehen

in den Aumlther und das heiβt in den Bereich des Goumlttlichen Diese Zeiten des Schaffenden ragen heraus

uumlber das bloβe Nacheinander der eiligen Tage in der Flachheit des Alltӓglichen und sind doch kein

starres zeitloses Daruumlberhinaus sondern Zeiten aufwogend uumlber die Erde hin eigenes Fluten und eigenes

Gesetzldquo HH GA 3952 164

Cf Sobre a influecircncia dos poemas de Houmllderlin na terminologia heideggeriana ver Hans Jaeger ob

Cit 51-59 165

bdquoDiese Gipfel sind sich ganz nahe und so auch die Schaffenden die auf ihnen wohnen muumlssen wo

jeder je seine Bestimmung zum Austrag bringt und von daher die Anderen auf den anderen Gipfeln von

Grund aus versteht Und doch - in dieser Nahe sind sie gerade am getrenntesten durch die Abgruumlnde

zwischen den Bergen an denen jeder stehtldquo HH GA 39 52

119

Eacute a consciecircncia expliacutecita desta distacircncia abissal do pensar ao poeta que nos

permite abordar os textos heideggerianos sobre a poesia como cumprimento e

execuccedilatildeo daquilo que Heidegger pensa ser a traduccedilatildeo autecircntica Em Houmllderlin

e a Essecircncia da Poesia o filoacutesofo escuta o texto do poeta alematildeo dispondo-se

a ouvir nesses textos o eco do mundo grego e da sua experiecircncia originaacuteria do

ser e da linguagem e a traduzi-la para a sua linguagem de pensador

Eacute esta direcccedilatildeo interpretativa que permite a Heidegger em Houmllderlin e a

Essecircncia da Poesia trazer agrave luz a experiecircncia originaacuteria dos gregos da

linguagem como ldquosagardquo ldquoA fundaccedilatildeo do ser estaacute vinculada aos acenos dos

deuses E ao mesmo tempo a palavra poeacutetica natildeo eacute senatildeo a interpretaccedilatildeo da

ldquovoz do povordquo Assim designa Houmllderlin as sagas nas quais um povo se

rememora na sua pertenccedila ao ente no seu todordquo166

A experiecircncia grega do poetar que ressoa em Houmllderlin indica que a poesia

estaacute tambeacutem vinculada ao aceno dos Deuses ela recebe os primeiros sinais do

aceno dos deuses mas interpreta-os na linguagem do povo Os poetas estatildeo

entre os deuses e o povo foram banidos para esse lugar ldquoentrerdquo ambos lugar

solitaacuterio e aparentemente insignificante no qual se decide no entanto o

significado de todas as coisas quem eacute o homem e qual a sua morada

O tiacutetulo do poema ldquoAndenkenrdquo tornou-se para Heidegger a Grundwort do seu

ldquopensar rememoranterdquo que pensando a partir do passado histoacuterico (grego)

consegue tornaacute-lo vivo para o presente e frutuoso para o futuro

Este resguardar vigilante que salvaguarda a experiecircncia originariamente grega

como heranccedila para os vindouros natildeo pode ser dissociada da funccedilatildeo

hermenecircutica do inteacuterprete como aquele que transpotildee (uumlbersetzt) a verdade

da obra para um outro tempo

Ora a essecircncia dessa missatildeo cometida igualmente ao pensador e ao poeta natildeo

eacute pensada por Heidegger como repeticcedilatildeo mimeacutetica mas como a luta do

desvelamento contra o encobrimento e a esclerose luta cuja sucesso depende

da capacidade de vinculaccedilatildeo ao presente histoacuterico do proacuteprio povo

166

bdquoDie Stiftung des Seins ist gebunden an die Winke der Goumltter Und zugleich ist das dichterische Wort

nur die Auslegung der bdquoStimme des Volkesldquo So nennt Houmllderlin die Sagen in denen ein Volk eingedenk

ist seiner Zugehoumlrigkeit zum Seienden in Ganzenldquo HWD GA 4 46

120

O apelo dos deuses deve chegar ao solo da paacutetria e estabelecer uma

vinculaccedilatildeo ao proacuteprio povo do poeta na liacutengua onde ressoa a particularidade

da ldquoHeimatrdquo Eacute na liacutenguandashmatildee que se faz a aprendizagem do que eacute familiar e

proacuteximo mas que permanece muitas vezes distante e alheio aos que estatildeo

nela ocupados (besorgt) Estes ainda natildeo estatildeo preparados para ter como sua

pertenccedila o mais proacuteprio da ldquoHeimatrdquo afirma Heidegger em HeimkunftAn die

Verwandten em nota raacutepida mas de essencial significado

Movendo-se entre dois horizontes histoacuterico-linguiacutesticos a poesia e o

pensamento movem-se entre o distante apelo dos deuses e o ser proacuteximo dum

povo lutando para arrancar ambos ao encobrimento Esta movimentaccedilatildeo entre

horizontes natildeo eacute como um movimento contiacutenuo o deslizar na estrada ldquona qual

todos podem passar ao lado uns dos outroshellip para se encontrarem no meio da

multidatildeordquo mas o percurso arriscado numa ldquovereda pejada de pedras ldquo na qual

se movimenta o solitaacuterio pastor

Trazer o originaacuterio apelo dos deuses a esse centro da existecircncia histoacuterica do

povo eacute reunir o disperso para edificar um mundo tarefa criadora para a qual

Heidegger reserva no ensaio sobre Hebel o termo Aufheben aiacute entendido no

sentido dum recolher o que estaacute disperso e ainda no sentido duma elevaccedilatildeo

transfiguraccedilatildeo e metamorfose Este Aufheben que a poesia e o pensamento

realizam eacute assim sempre simultaneamente um reunir e salvar da dispersatildeo

um conservar aquilo que singulariza um povo dando a isso que se conserva

uma nova forma

A decisatildeo (Entschlossenheit) pela qual um povo se projectou e se conservou

na histoacuteria eacute assim conservada e transfigurada na obra do poeta e do

pensador Aiacute pela mediaccedilatildeo linguiacutestica de ambos o apelo dos deuses fala a

partir do centro de existecircncia histoacuterica dum povo e incita-o a criar e conservar

mundo

Eacute esta experiecircncia essencial da linguagem que Heidegger ldquoarrancaldquo agrave poesia

de Houmllderlin como experiecircncia que nela se encontra simultaneamente revelada

e oculta toda a ldquotraduccedilatildeordquo da poesia de Houmllderlin na linguagem do pensador eacute

121

enfrentamento poleacutemico em direcccedilatildeo ao natildeo-dito ao fundamento impensado

da palavra poeacutetica167

Em A Origem da Obra de Arte Heidegger fundamenta esta experiecircncia da

ldquoverdaderdquo feita no confronto dos textos do poeta ampliando esta compreensatildeo

da linguagem como Dichtung estendendo-a agrave obra de arte em geral ele

especifica esse conceito de ldquoditado poeacuteticordquo como poder instituinte168 A

linguagem natildeo se limita a nomear mas enquanto fala ela institui uma

interpretaccedilatildeo daquilo que eacute isto eacute institui uma abertura de mundo no triplo

sentido da doaccedilatildeo de sentido da fundaccedilatildeo de um mundo e do iniacutecio de uma

eacutepoca histoacuterica ldquo[] A essecircncia do ditado poeacutetico eacute instituiccedilatildeo da verdade

Compreendemos aqui o instituir num triplo sentido instituir como doar

[Schenken] instituir como fundar [Gruumlnden] e instituir como iniciar

[Anfangen]rdquo169

Se este poder de instituir uma nova eacutepoca histoacuterica (Zeitalter) pertence

essencialmente agrave grande poesia aquele mundo que ela patenteia natildeo eacute nunca

uma criaccedilatildeo arbitraacuteria mas aquilo que jaacute estava lanccedilado no aiacute ser de um povo

histoacuterico A obra de arte patenteia e resguarda esse mundo para os vindouros

e eacute assim origem e iniacutecio - eacute o modo fundamental como a verdade vem a ser

Este ldquopocircr-se em obra da verdaderdquo que acontece na arte eacute poreacutem o conflito

entre o mundo e a terra entre o estar encoberto (Verborgenheit) e o natildeo estar

encoberto (Unverborgenheit) que acontecem na obra de arte e satildeo a sua

essecircncia ldquoA verdade rectifica-se [richtet sich in] na obra A verdade estaacute a ser

apenas enquanto combate entre clareira e encobrimento no estar-em-

167

Cf O caraacutecter poleacutemico deste diaacutelogo de Heidegger com a poesia eacute interpretado por Hans Jaeger no

sentido heraclitiano de polemos e segundo este autor pode ser detectado em todos os textos onde o

filoacutesofo interpreta a poesia ldquoHeideggers Uumlbersetzung und Interpretation des Chorlieds aus der

ldquoAntigonardquo ist das erste ldquoZwiegespraumlchrdquo zwischen dem Denker und einem Dichter Wir werden solchen

Dialogen in Form von Erlaumluterungen von jetzt ab immer wieder begegnen Die Erlaumluterung des Chorlieds

ist eine ldquoAuseinandersetzungrdquo im Sinne von Heraklits polemos ein bdquoliebender Streitldquo bei dem Heidegger

in gewisser Weise ebenfalls ldquogewalttaumltigrdquo vorgehtrdquo (Ob cit 36) 168

Cristina Lafont salienta a importacircncia da ampliaccedilatildeo do conceito de verdade em UKw com a dupla

finalidade de atribuir um lugar subordinado ao saber ocircntico isto eacute agrave ciecircncia e de mostrar o seu caraacutecter

derivado em relaccedilatildeo agravequeles aspectos da cultura como a arte a poliacutetica a filosofia que possuem uma

forccedila de ldquoabertura de mundordquo e que graccedilas a ela tecircm capacidade de ldquopocircr em vigor a verdaderdquo entendida

como saber ontoloacutegico de fundo A abertura de mundo como fundaccedilatildeo da verdade seria caracterizada

pelos seguintes traccedilos ldquodoaccedilatildeordquo como acontecer do desocultamento que natildeo depende do ente intra-

mundano ldquofundamentordquo como instauraccedilatildeo de uma ordem normativa e ldquoinigraveciordquo como caraacutecter epocal e

radical novidade e descontinuidade (Ob cit 195-196) 169

bdquoDas Wesen der Dichtung aber ist die Stiftung der Wahrheit Das Stiften verstehen wir hier in einem

dreifachen Sinne Stiften als Schenken Stiften als Gruumlnden und Stiften als Anfangenldquo UKw GA 5 62

122

antagonismo do mundo e da terra A verdade quer ser rectificada na obra

enquanto combate do mundo e da terrardquo170

Visto agrave luz deste novo conceito de verdade o texto poeacutetico como todo o texto

que diz algo essencial apela por si mesmo e a partir da sua natureza veraz agrave

interpretaccedilatildeo e agrave traduccedilatildeo a obra de arte projecta uma verdade para aqueles

que hatildeo-de vir e reclama ser por eles interpretada e salvaguardada

salvaguardaacute-la significa poreacutem acolhecirc-la natildeo como substacircncia imoacutevel que

repousa em si mesma mas deixaacute-la brilhar a partir do seu ser proacuteprio da sua

natureza essencial de conflito entre o mundo e a terra pois ldquoa obra levantando

um mundo e elaborando a terra eacute a contenda deste combate no qual se

conquista o natildeo estar encoberto do ente no seu todo - a verdaderdquo

Ora interpretar a obra eacute entatildeo se este interpretar quer ser conforme com o ser

da obra um resguardar que eacute essencialmente ldquoo instar [innestehen] da

abertura do enterdquo que acontece na obra como insistecircncia no combate que a

obra conformou Este interpretar eacute pois exactamente o contraacuterio da

concordacircncia mas combate polemos que exige uma decisatildeo ldquoResguardar a

obra quer dizer o instar [innestehen] da abertura do ente que acontece na

obra Mas a insistecircncia [Instaumlndigkeit] do resguardar eacute um saber Poreacutem o

saber natildeo consiste num mero conhecer e representar de algo Quem sabe

verdadeiramente do ente sabe aquilo que quer no meio do enterdquo171

Da frequecircncia dos textos poeacuteticos Heidegger ainda recolhe a experiecircncia da

transmissatildeo autecircntica da tradiccedilatildeo ponto que para a presente investigaccedilatildeo tem

uma importacircncia capital a poesia eacute tambeacutem o lugar da conservaccedilatildeo da

tradiccedilatildeo - a tradiccedilatildeo poeacutetica europeia de Soacutefocles a Houmllderlin eacute para

Heidegger um diaacutelogo que atraveacutes do tempo permite que vaacuterias geraccedilotildees

divirjam a partir do mesmo ldquoDesde que o homem se coloca no permanente de

um permanecer soacute entatildeo ele pode expor-se ao mutaacutevel ao vindouro e ao

fugaz porque apenas aquilo que eacute perseverante eacute mutaacutevel Soacute desde que o

tempo rdquovorazrdquo foi dilacerado em presente passado e futuro existe a

170

bdquoDie Wahrheit richtet sich ins Werk Wahrheit west nur als der Streit zwischen Lichtung und

Verbergung in der Gegenwendigkeit von Welt und Erde Die Wahrheit will als dieser Streit von Welt und

Erde gerichtet werdenldquo Ibidem 50 171

Bewahrung des Werkes heiβt Innestehen in der Werk geschehenden Offenheit des Seienden Die

Instaumlndigkeit der Bewahrung aber ist ein Wissen Wissen besteht darin jedoch nicht im bloβen kennen

und Vorstellen von etwas Wer Wahrhaft das Seienden weiβ weiβ was er inmitten des Seienden willldquo

Ibidem 55

123

possibilidade de entrarmos em acordo sobre um permanente Somos um

diaacutelogo desde que o tempo existerdquo172

O diaacutelogo entre as vaacuterias geraccedilotildees de poetas tem ele mesmo a forma poleacutemica

que resulta da exposiccedilatildeo ao poder do tempo e eacute para Heidegger em Houmllderlin

e a Essecircncia da Poesia assim como nas Liccedilotildees de Loacutegica o paradigma de

uma autecircntica transmissatildeo ldquoPor isso a linguagem do poeta natildeo eacute nunca

actual mas sempre sido e futuro O poeta nunca eacute contemporacircneo Os poetas

contemporacircneos deixam-se na verdade classificar como tal mas

permanecem apesar disso um contra-senso A poesia e com ela a linguagem

em sentido proacuteprio acontecem soacute laacute onde o vigorar do ser eacute trazido agrave

intangibilidade superior da palavra originaacuteriardquo173

A palavra originaacuteria eacute assim para Heidegger aquela que se vincula agrave origem

no modo do enfrentamento poleacutemico e natildeo aquela que diz o mesmo pois soacute

podemos entrar em acordo sobre o permanente quando no expomos ao poder

do tempo e agraves suas diversas Stimmungen epocais A obra poeacutetica de Houmllderlin

aparece-lhe precisamente como paradigma e modelo desta linguagem

originaacuteria que conteacutem em si a capacidade de ouvir o distante eco do mundo

grego e de o confrontar com o mutaacutevel o vindouro e o fugaz Ela eacute por isso o

modelo da autecircntica traduccedilatildeo ela eacute diaacutelogo que eacute capaz de divergir a partir do

mesmo porque se expotildee ao tempo e agrave histoacuteria

Esta traduccedilatildeo do grego realizada pela poesia de Houmllderlin deve ser

compreendida como o reverso do ocultamento instituiacuteda pela tradiccedilatildeo

metafiacutesica Trazendo o apelo dos deuses e expondo-o ao poder do tempo com

as suas obscuras Stimmungen epocais o poeta da poesia faz o reverso da

tradiccedilatildeo metafiacutesica com a sua pretensatildeo de universalidade e de

intemporalidade

172

bdquoSeitdem der Mensch sich in die Gegenwart eines Bleibenden stellt seitdem kann er sich erst dem

Wandelbaren dem Kommenden und Gehenden aussetzen denn nur das Beharrliche ist wandelbar Erst

seitdem die bdquoreiβende Zeitldquo aufgerissen ist in Gegenwart Vergangenheit und Zukunft besteht die

Moumlglichkeit sich auf ein Bleibendes zu einigen Ein Gespraumlch sind wir seit der Zeit da es bdquodie Zeit istldquoldquo

HWD GA 4 3940 173

bdquoDeshalb ist die Sprache des Dichters nie heutig sondern immer gewesen und zukuumlnftig Der Dichter

ist nie zeitgenoumlssisch Zeitgenoumlssische Dichter lassen sich zwar organisieren aber sie bleiben trotzdem

ein Widersinn Dichtung und damit eigentliche Sprache geschieht nur dort wo das Walten des Seins in

die uumlberlegene Unberuumlhrbarkeit des urspruumlnglichen Wortes gebracht istldquo LWS GA 38 170

124

Traduccedilatildeo eacute assim tarefa inseparaacutevel do pensar e do poetar e mais

radicalmente tarefa imposta ao homem pelo desvelamento histoacuterico-temporal

da verdade A traduccedilatildeo apropriada teraacute que ser poreacutem pensada ao arrepio da

traduccedilatildeo levada a cabo no interior da histoacuteria da metafiacutesica vinculando-se

antes a este caminhar entre cumes na estreita vereda do pastor metaacutefora na

qual Heidegger pensava a relaccedilatildeo entre poesia e filosofia ou a este polemos

ou diaacutelogo capaz de divergir a partir do mesmo que eacute a tradiccedilatildeo poeacutetica

125

Capiacutetulo II ndash A pluralidade das aberturas de mundo e o

problema hermenecircutico

126

127

Perguntar pela linguagem eacute perguntar pelo ser do homem e o homem eacute um si-

mesmo (der Mensch ist ein Selbst) afirma Heidegger nas Liccedilotildees de Loacutegica

Esta mesmidade natildeo eacute um geacutenero supremo no qual possam desaparecer as

diferenccedilas entre os diversos povos A ela pode aceder-se apenas na decisatildeo

de tomar sobre si a heranccedila de uma tradiccedilatildeo o nosso ldquoser si-mesmordquo eacute o povo

Soacute esta inserccedilatildeo na temporalidade proacutepria da histoacuteria colectiva de um povo nos

pode tornar simultaneamente solidaacuterios sendo um com o outro e responsaacuteveis

por noacutes mesmos e pela nossa determinaccedilatildeo (Bestimmung) ldquoEste triplo sentido

unitaacuterio daquilo a que noacutes chamamos determinaccedilatildeo deixa-nos antes de mais

experimentar encargo e missatildeo trabalho e tonalidade afectiva na sua unidade

soacutebria conforme ao acontecer e com isso tambeacutem o tempo como poder

originaacuterio que harmoniza o nosso ser e em si o determina como acontecer

Deste modo o tempo experimentado como a nossa determinaccedilatildeo natildeo eacute

senatildeo a estrutura do poder [Machtgefuumlge] a grande e uacutenica articulaccedilatildeo [Fuge]

do nosso ser como um ser histoacuterico Ele torna-se a unicidade histoacuterica do

nosso si mesmo Assim o tempo eacute o manancial do povo histoacuterico e do

indiviacuteduo no seio do povo A unidade desta tripla determinaccedilatildeo eacute o caraacutecter

fundamental do acontecerrdquo174

As vaacuterias liacutenguas histoacutericas instituem diferentes ldquoaberturas de mundordquo ou uma

multiplicidade incomensuraacutevel de figuras da verdade cada uma delas sendo

um horizonte intransponiacutevel onde se enraiacutezam as respectivas criaccedilotildees culturais

e tambeacutem as obras filosoacuteficas e cientiacuteficas175

Essa multiplicidade poreacutem origina-se numa mesma fonte originaacuteria o poder

do tempo que dispotildee e destina a histoacuteria atraveacutes do homem e da sua

linguagem a partir da Stimmung epocal e natildeo pode por isso ser objecto de

174

bdquoDieser dreifach-einige Sinn dessen was wir Bestimmung nennen laumlβt uns allererst Auftrag und

Sendung Arbeit und Stimmung in ihrer geschehensmaumlβigen Einheit erfahren damit auch die Zeit als

urspruumlngliche Macht die unser Sein fuumlgt und in sich als Geschehen bestimmt Die Zeit ist so als unsere

Bestimmung erfahren nichts anderes als das Machtgefuumlge die groszlige und einzige Fuge unseres Seins als

eines geschichtlichen Sie wird zur geschichtlichen Einzigkeit unseres Selbst So ist Zeit der Quelltrunk

des geschichtlichen Volkes und des einzelnen im Volk Die Einheit dieser dreifachen Bestimmung ist der

Grundcharakter des Geschehensldquo LWS GA 38 130 175

Cristina Lafont sublinha que em UKw o acontecer da verdade corre por duas vias diferentes por um

lado a histoacuteria intra-mundana do ente e por outro lado a historia do ser que eacute um acontecer faacutectico mas

natildeo intra-mundano que precede a histoacuteria e a torna possiacutevel ldquoDebido a este estatus la ldquohistoria del serrdquo

(como lugar ldquodonde se toman las decisiones esenciales de nuestra historiardquo) representa pues ldquola historia

por excelenciardquo que es siempre la del desvelamiento del serldquo (Ob cit 199)

128

uma total explicitaccedilatildeo discursiva176 Contudo se essas diferenccedilas natildeo podem

ser totalmente inteligiacuteveis natildeo deixam de aparecer e tornar-se patentes nas

grandes criaccedilotildees colectivas e de enraizar o indiviacuteduo isolado numa

comunidade fazendo do Dasein natildeo uma subjectividade encerrada em si mas

um ser um com o outro pertencente a uma comunidade

O exerciacutecio apropriado da existecircncia pelo Dasein como projecto sempre jaacute

previamente lanccedilado (geworfene Entwurf) integra-se assim neste preacutevio

horizonte histoacuterico-linguiacutestico de uma comunidade Esta abertura do indiviacuteduo

aos outros e esta dissoluccedilatildeo de uma certa subjectividade ainda presente na

caracterizaccedilatildeo do Dasein em Ser e Tempo tem contudo o seu contraponto

num certo fechamento dessa comunidade a que Heidegger chama ldquoum povordquo e

que eacute sempre ldquouacutenicordquo enquanto colectividade que salvaguarda a sua

determinaccedilatildeo (Bestimmung) na e pela liacutengua

Assim contra a univocidade da linguagem a que aspira a loacutegica Heidegger

proclama a incontornaacutevel alteridade dos horizontes de sentido transportados

pelas diversas liacutenguas histoacutericas impondo o cuidado por essa alteridade como

tarefa necessaacuteria caso o homem queira ser um si mesmo ou um Da-sein O

ser do homem eacute cuidado pela determinaccedilatildeo (Sorge der Bestimmung) isto eacute

cuidado simultaneamente por aquilo que nega as minhas pretensotildees a um ser

absoluto e que doa todo o sentido

Ora este cuidado tem uma dimensatildeo eacutetica apontando para o dever de colocar

o pensamento ao serviccedilo da linguagem ao inveacutes do que acontece na

representaccedilatildeo comum da linguagem que a considera um simples instrumento

de expressatildeo do pensamento Poesia e filosofia deveratildeo estar ambas cada

uma a seu modo ao serviccedilo da linguagem177

176

Ramoacuten Rodriacuteguez sublinha que embora Ser e Tempo submeta a ideia de sujeito a uma criacutetica constante

e a ideia de abertura ou de estado de aberto natildeo possam entender-se como propriedades de um sujeito o

significado global da obra ainda estaacute imbuiacutedo de um certo subjectivismo a constituiccedilatildeo da realidade eacute

atribuiacuteda ao Dasein que natildeo eacute um sujeito epistemoloacutegico mas a existecircncia humana na sua facticidade O

pensamento tardio de Heidegger eacute a tentativa de consumar o abandono das categorias da subjectividade

abandono que teria surgido quando Heidegger se ocupa da questatildeo da verdade do ser como

desvelamento ldquoLa historia del ser es el modo de pensar el acontecer histoacuterico cuando el pensamiento

trata de hacerse cargo del hecho del desvelamiento [hellip] ldquoHistoria del ser significa envigraveo (destino) del ser

en cuyos enviacuteos tanto el enviar como lo que enviacutea se retraen en la notificacioacuten de si mismosrdquordquo (Ob cit

42) 177

Cristina Lafont sublinha que eacute o caraacutecter totalizante da ldquoabertura de mundordquo produzida pela linguagem

que confere a Heidegger a justificaccedilatildeo para outorgar agrave linguagem a sua primazia em relaccedilatildeo a todos os

fenoacutemenos culturais ldquo [hellip] Heidegger conceptualiza el lenguaje como instancia del elemento del

ldquoarrojamientordquo de tal modo que lardquoapertura del mundordquo ndash que tiene lugar mediante eacutel ndash contiene ya todo

129

No entanto satildeo as implicaccedilotildees metafiacutesicas desta viragem que aqui nos

interessam compreender em toda a sua extensatildeo Se a loacutegica assenta numa

concepccedilatildeo do ser como presenccedila a compreensatildeo heideggeriana da linguagem

estaacute intrinsecamente ligada agrave compreensatildeo do ser como acontecer histoacuterico-

temporal o ser desvenda-se ocultando-se simultaneamente nas liacutenguas dos

diversos povos histoacutericos E essa patecircncia do ser eacute sempre acompanhada de

ocultaccedilatildeo e encobrimento como Heidegger demonstra em A Origem da Obra

de Arte em torno da natureza da obra de arte como luta entre o mundo e a

terra

Como acima jaacute dissemos os diversos horizontes de sentido transportados

pelas vaacuterias liacutenguas histoacutericas e pelas suas criaccedilotildees linguiacutesticas constituem

etapas ou momentos da histoacuteria do ser que contudo se nelas se patenteia e

revela se manteacutem em reserva e se oculta conferindo assim agrave vida histoacuterica um

fundamento impenetraacutevel Estas diversas figuras histoacuterico-linguiacutesticas do ser e

da verdade natildeo mantecircm entre si nenhum nexo loacutegico nem se encaminham

para uma totalizaccedilatildeo como acontecia em Hegel apresentando-se como

totalidades cerradas em si mesmas e carentes de fundamento

O relativismo heideggeriano consiste nesta afirmaccedilatildeo de que nunca podemos

aceder a um ponto de vista exterior ao tempo agrave histoacuteria e agrave liacutengua mas toda a

compreensatildeo eacute ela mesma historicamente situada e por isso mesmo satildeo-lhe

inacessiacuteveis a totalidade dos seus pressupostos178

No entanto este relativismo natildeo eacute nunca um subjectivismo como poderia ateacute

certo ponto ser inferido de Sein und Zeit onde o Dasein ainda podia aparecer

como uma consciecircncia que projecta um horizonte de sentido Apoacutes Sein und

Zeit este horizonte de sentido eacute inerente agraves liacutenguas faladas pelos povos e

depende do movimento de destinaccedilatildeo da histoacuteria

aquello que ldquopuede ser abierto como verdadrdquo Es decir la rdquoapertura de mundordquo que se ha producido en

cada caso merced al lenguaje incluye en siacute ya todas las posibilidades (de significado) las cuales hacen

posible sin duda todo ldquoproyectordquo pero al mismo tiempo tambieacuten lo limitanhelliprdquo (Ob cit 202) 178

O relativismo heideggeriano deriva do facto de conferir agrave linguagem pela sua funccedilatildeo de abertura de

mundo o papel dum uacuteltimo fundamento ldquoEl lenguaje es el uacutenico correlato que satisface completamente

los tres mencionados requisitos exigidos a la ldquoapertura del mundordquo en tanto que ldquofundacioacutenrdquo y por ello

que pude tomarse como modelo para la figura del ldquoproyecto arrojadordquo Este es el caso especialmente en

relacioacuten con la segunda de las propiedades ndash el ldquofundamentarrdquo entendido como lo que establece criterios

ndash y por tanto es el caso tambieacuten para las cuestiones de validez es decir para justificar el calificar la

ldquoapertura del mundordquo de ldquofundacioacuten de la verdad (maacutes originaria)rdquo o criterio uacuteltimordquo (Cristina Lafont

ob cit 203)

130

A consciecircncia histoacuterica como consciecircncia da historicidade do presente e da

relatividade de toda a verdade eacute apoacutes Ser e Tempo o uacutenico modo apropriado

da consciecircncia de si mesmo e a assunccedilatildeo da condiccedilatildeo ontoloacutegica de ser-para-

a-morte Do mesmo modo tambeacutem necessariamente se afigura como

problemaacutetica a compreensatildeo daquelas criaccedilotildees linguiacutesticas alheias ao nosso

horizonte histoacuterico-linguiacutestico pela sua radical alteridade e a estranheza com

que sempre nos aparecem

A incomensurabilidade das aberturas de mundo obriga agrave recolocaccedilatildeo do

problema hermenecircutico sobre um fundamento radicalmente diferente Sempre

que estaacute em causa a interpretaccedilatildeo da acccedilatildeo humana e das suas criaccedilotildees o

ideal de objectividade em que se move a ciecircncia moderna revela-se uma

impossibilidade nos seus proacuteprios termos Movendo-nos no interior do conceito

de verdade como adequaccedilatildeo do juiacutezo ao seu objecto ou como objectividade

exigimos que aquele que conhece possa abstrair-se de si mesmo e dos seus

pressupostos para produzir um juiacutezo capaz de coincidir com o que a coisa eacute

ou pelo menos capaz de instituir universalmente o que a coisa eacute para noacutes

A questatildeo que temos que colocar eacute no entanto se este ideal de objectividade

que a ciecircncia moderna persegue permite dar conta daquilo que eacute essecircncia do

acto hermenecircutico sempre que se trata de interpretar uma obra de arte um

acontecimento histoacuterico ou um texto

Neste caso toda a compreensatildeo eacute necessariamente uma transposiccedilatildeo ela

mesma patente na expressatildeo alematilde Uumlbersetzen179 (traduccedilatildeo) de um

horizonte histoacuterico-linguiacutestico para outro ou de uma abertura de mundo para

outra transposiccedilatildeo que implica simultaneamente uma apropriaccedilatildeo e uma

expropriaccedilatildeo

No traduzir estaacute o homem dirigindo-se agrave fronteira natildeo como a um lugar neutral

onde pode reinar a imparcialidade mas como ao lugar onde deveratildeo ser

tomadas as decisotildees hermenecircuticas fundamentais onde tem que ser levada a

cabo essa ldquoliebende streitrdquo que pode extrair a verdade da sua ocultaccedilatildeo

179

bdquoDie Rede vom Uumlbersetzen als Uumlbersetzen hat es inzwischen zum gefluumlgelten Wort gebracht das in

den Betrachtungen uumlber die bdquo Kunst der Uumlbertragungldquo immer wieder gern zitiert wird Und doch bleibt

der hier genannte Grundzug das Geschehen der Uumlber- als Versetzung bdquoin den Bereich einer gewandelten

Wahrheitldquo in seiner Trageweite zumeist unbedacht Der mitunter mangelnden bdquoAchtung vor der Sprachldquo

entstammen dann auch unzulaumlngliche Bestimmungen zum einen der Notwendigkeit und Moumlglichkeit

sowie zum anderen der wesentlichen Grenzen und Unmoumlglichkeiten des Uumlbersetzensldquo Ivo de Genaro

Logos - Heidegger liest Heraklit 62-63

131

As questotildees filoloacutegicas e a preocupaccedilatildeo de rigor associada agrave filologia tendem

assim a ser desvalorizadas por Heidegger em detrimento do mostrar a ldquoluta

com a palavrardquo que se encontra na geacutenese mesma da obra linguiacutestica e

determina a sua compreensatildeo genuiacutena

Toda a traduccedilatildeo implica uma movimentaccedilatildeo entre o tempo criador da obra que

pugna agrave sua maneira pela conservaccedilatildeo e plenitude da verdade e o tempo da

proacutepria liacutengua que eacute preciso em cada caso arrancar agrave dispersatildeo e agrave

decadecircncia porque natildeo sabemos quem somos se natildeo estivermos afinados

com o nosso tempo histoacuterico

Estas duas tarefas misturam-se e possibilitam-se reciprocamente porque natildeo

podemos saber quem somos se natildeo entrarmos no diaacutelogo com as grandes

criaccedilotildees linguiacutesticas que criam a possibilidade de virmos a saber quem somos

nem podemos compreender essas obras se natildeo comeccedilarmos pode deixar

emergir a questatildeo da liacutengua do tempo que em cada caso somos

Traduzir eacute um transpor de uma margem para outra que eacute tambeacutem ligaccedilatildeo uma

aquisiccedilatildeo e uma incorporaccedilatildeo mas o que afinal estaacute em causa nessa operaccedilatildeo

hermenecircutica eacute a linguagem e o pensamento na sua essencial e paradoxal

(in)traduzibilidade180 Por isso a linguagem eacute ldquoo mais perigoso de todos os

bensrdquo - se por um lado daacute ao homem a possibilidade das supremas

realizaccedilotildees por outro arrasta a possibilidade das supremas derrocadas

Em toda a traduccedilatildeo e interpretaccedilatildeo das grandes obras procedem-se a

mutaccedilotildees de sentido nas quais se decide e se joga a compreensatildeo do ser e eacute

por isso mesmo e natildeo por serem eventos dataacuteveis que decorrem num

momento determinado do tempo que elas satildeo intrinsecamente temporais isto

eacute histoacutericas

1 Hermenecircutica e historicidade

Eacute relativamente aos textos que constituem o legado da tradiccedilatildeo filosoacutefica que o

conceito fenomenoloacutegico de traduccedilatildeo como apropriaccedilatildeo expropriadora coloca

180

bdquoEs ist sogleich einsichtig daβ das Uumlbersetzen als Wesen des Sprechens und Sagens nichts anderes

expliziert als den Grundcharakter des daseinsmaumlszligigen Sprechens Der Mensch spricht uumlbersetzend (ins

Offene) weil er ek-sistierend westldquo Ibidem 64

132

mais interrogaccedilotildees chocando com o imperativo eacutetico de ldquofidelidaderdquo e com a

ideia de ldquotraduccedilatildeo fidedignardquo a que essa tradiccedilatildeo nos acostumou181

Vejamos entatildeo se este imperativo de fidelidade da traduccedilatildeo pode de algum

modo ser compatiacutevel com a temporalidade intriacutenseca do acto hermenecircutico

(Zeitlichkeit) e com as condiccedilotildees de toda a interpretaccedilatildeo

Ao determinar a estrutura da compreensatildeo subjacente a toda a interpretaccedilatildeo

Heidegger tinha mostrado jaacute no sect 32 de Ser e Tempo que todo o conhecimento

humano estaacute fundado numa experiecircncia antepredicativa de sentido ou num

pressuposto que condiciona a proacutepria busca do fundamento que seria suposto

a ciecircncia fazer

Se a compreensatildeo eacute uma projecccedilatildeo em direcccedilatildeo aos seus proacuteprios possiacuteveis

esses possiacuteveis soacute podem ser apropriados a partir de um ter jaacute sido ou seja

de um retorno em direcccedilatildeo a um passado que assim se constitui em algo que

continua a ser projectando-se no futuro

Esta circularidade da compreensatildeo eacute assumida pois natildeo como limite negativo

que restringe o alcance da interpretaccedilatildeo mas positivamente como caminho e

via para aquilo a que poderiacuteamos chamar uma autecircntica interpretaccedilatildeo

dignidade a que nem todo o enunciado teoreacutetico pode legitimamente aspirar

A articulaccedilatildeo dos trecircs ecircxtases temporais que constitui a forma de gestaccedilatildeo da

existecircncia e da sua auto-transmissatildeo histoacuterica mostra como eacute possiacutevel a

sobrevivecircncia do passado no presente e no futuro como parte essencial deles

a presenccedila do passado natildeo eacute a presenccedila de algo de morto e riacutegido mas a

presenccedila de algo que se manteacutem vivo na proacutepria possibilidade de projecccedilatildeo

futura isto eacute como um reservatoacuterio limitado de possibilidades que satildeo

contudo susceptiacuteveis de sucessivas reactualizaccedilotildees Esta fusatildeo entre o

passado e o futuro determina o presente proacuteprio ou instante (Augenblick) da

decisatildeo em que o Dasein se apropria de si mesmo cria a obra ou a

interpretaccedilatildeo originaacuteria

181

Sobre os problemas especiacuteficos da aplicaccedilatildeo deste conceito fenomenoloacutegico de traduccedilatildeo aos textos de

filosofia cf Irene Borges-Duarte em ldquoA traduccedilatildeo como fenomenologia O caso Heideggerrdquo (Heidegger

Linguagem e Traduccedilatildeo Lisboa 2002 452) ldquoMas ldquoaquilo que desse modo na traduccedilatildeo e como traduccedilatildeo

vem a aparecer natildeo eacute algo inteiramente novo mas algo marcado pela gravidade do jaacute de antematildeo dito de

uma determinada forma e numa configuraccedilatildeo determinada o texto de um autor Se a arte da traduccedilatildeo se

joga entre duas liacutenguas e entre dois mundos que nelas moram a arte do tradutor enquanto veiacuteculo

ontoloacutegico desse jogo move-se aleacutem disso entre duas diacutevidas aquela que tem para com o dito e a que

tem para com a sua figura faacutectica concreta para com o texto e o seu autorrdquo

133

Pelo facto de toda a interpretaccedilatildeo implicar esta projecccedilatildeo eacute que Heidegger

indica que toda a interpretaccedilatildeo deve apropriar-se previamente das suas

possibilidades reconhecendo identificando e assumindo como tais os

pressupostos desse acto interpretativo residindo neste regresso a si mesma a

noccedilatildeo de ciacuterculo hermenecircutico ldquoO cumprimento das condiccedilotildees fundamentais

de um possiacutevel interpretar radica antes em natildeo comeccedilar por desconhecer as

condiccedilotildees essenciais para levaacute-lo a cabo O decisivo natildeo eacute sair do ciacuterculo mas

entrar nele de modo justo Este ciacuterculo do compreender natildeo eacute um ciacuterculo em

que se move uma qualquer forma de conhecimento mas eacute a expressatildeo da

estrutura existenciaacuteria do preacutevio [Vor-Struktur] peculiar ao proacuteprio Daseinrdquo 182

Ora as Liccedilotildees de Loacutegica vieram esclarecer que essa antecipaccedilatildeo de sentido

ou essa estrutura existenciaacuteria do preacutevio eacute a pertenccedila a uma tradiccedilatildeo que se

encontra sempre presente na liacutengua de um povo histoacuterico Deste modo a

Vorstruktur da compreensatildeo que foi em Ser e Tempo estabelecida como

temporalidade eacute depois constituiacuteda como historicidade O passado estaacute

presente no conjunto das possibilidades preacutevias contidas no ter preacutevio

(Vorhabe) na preacute-visatildeo (Vorsicht) e na preacute-captaccedilatildeo (Vorgriff) com que como

falantes de uma liacutengua histoacuterica vamos sempre jaacute equipados para a

compreensatildeo de algo

A compreensatildeo de algo como um texto um facto histoacuterico ou uma obra de arte

dependem de um campo de sentido basicamente transmitido e nunca de uma

autoposiccedilatildeo do sujeito - o que se por um lado limita e restringe as

possibilidades hermenecircuticas por outro lado se prefigura como condiccedilatildeo

positiva de possibilidade de compreensatildeo

O ciacuterculo hermenecircutico nada tem pois de subjectivo nem a interpretaccedilatildeo

autecircntica tem nada de arbitraacuterio estando pelo contraacuterio subordinada a um

projecto de compreensatildeo que se encontra sempre jaacute previamente lanccedilado Se

ningueacutem escapa agrave heranccedila de si mesmo natildeo somos nunca livres em relaccedilatildeo a

esta circularidade hermenecircutica que sobredetermina toda a compreensatildeo no

182

bdquoDie Erfuumlllung der Grundbedingungen moumlglichen Auslegens liegt vielmehr darin dieses nicht zuvor

hinsichtlich seiner wesenhaften Vollzugsbedingungen zu verkennen Das Entscheidende ist nicht aus

dem Zirkel heraus- sondern in hin nach der rechten Weise hineinzukommen Dieser Zirkel des

Verstehens ist nicht ein Kreis in dem sich eine beliebige Erkenntnisart bewegt sondern er ist der

Ausdruck der existenzialen Vor-struktur des Daseins selbstrdquo SuZ GA 2 sect32 153

134

entanto temos sempre a possibilidade de assumir conscientemente a nossa

proacutepria historicidade ou de estar na histoacuteria sem assumi-la

A distinccedilatildeo entre este modo proacuteprio e improacuteprio de estar na histoacuteria183 eacute o que

permite estabelecer a diferenccedila entre uma consciecircncia hermeneuticamente

desenvolvida que se sabe herdeira de uma tradiccedilatildeo e aquela que cai na

tradiccedilatildeo tomando-a como qualquer coisa de oacutebvio e deixando assim que essa

tradiccedilatildeo morta se lhe imponha como ldquoevidenterdquo encobrindo o acesso agraves fontes

donde se extraiacuteram os conceitos transmitidos Um exemplo que ilustra estas

duas maneiras de estar na histoacuteria podemos encontraacute-lo na oposiccedilatildeo que

Heidegger estabelece entre o modo como se cai na evidente traduccedilatildeo de

aletheia por adequaccedilatildeo ou correspondecircncia por efeito da traduccedilatildeo latina de

adaequatio ou a intenccedilatildeo de uma traduccedilatildeo originaacuteria de que a traduccedilatildeo de

aletheia por Unverborgenheit eacute exemplar O proacuteprio trabalho hermenecircutico de

Heidegger com os textos gregos ilustra esta intenccedilatildeo de aceder a uma

traduccedilatildeo originaacuteria capaz de nos introduzir no domiacutenio a partir do qual os

primeiros pensadores gregos pensaram

Se uma consciecircncia hermeneuticamente desenvolvida estaacute consciente da

distacircncia histoacuterica das fontes a que se reporta ela estaacute pois igualmente

consciente da forccedila e do peso da tradiccedilatildeo que elas constituiacuteram e de que eacute

preciso apropriar-se delas positivamente para poder vir a desenvolver as suas

proacuteprias possibilidades de questionar ldquoA elaboraccedilatildeo da questatildeo do ser tem

pois que extrair do mais peculiar sentido do proacuteprio perguntar que eacute um

perguntar histoacuterico a sugestatildeo de perguntar pela sua proacutepria histoacuteria quer

dizer de tornar-se historiograacutefico para pocircr-se como a apropriaccedilatildeo positiva do

passado na plena posse das suas mais proacuteprias possibilidades de

questionarrdquo184

183

Esta distinccedilatildeo eacute retomada por Joatildeo Paisana como distinccedilatildeo entre ser determinado imediatamente pela

tradiccedilatildeo e submetecirc-la agrave exegese compreendendo-a como resposta expressa a uma questatildeo que estaacute ela

mesma oculta Esta exegese da tradiccedilatildeo implica um momento da sua destruiccedilatildeo isto eacute o colocaacute-la

radicalmente em questatildeo quanto agrave sua verdade momento esse que natildeo deve ser no entanto considerado

como rejeiccedilatildeo absoluta mas como sua discussatildeo e relativizaccedilatildeo que a compreende como uma

possibilidade de resposta entre outras No momento seguinte agrave sua necessaacuteria discussatildeo ela pode vir a

mostrar-se vaacutelida mas o que valida a tradiccedilatildeo eacute agora o diaacutelogo e o consenso que resultaram do trabalho

hermenecircutico (Idem Histoacuteria da Filosofia e Tradiccedilatildeo Filosoacutefica 30-31) 184

Die Ausarbeitung der Seinsfrage muβ so aus dem eigensten Seinssinn des Fragens selbst als eines

geschichtlichen die Anweisung vernehmen seiner eigenen Geschichte nachzufragen dh historisch zu

werden um sich in der positiven Aneignung der Vergangenheit in den Vollen Besitz der eigensten

Fragemoumlglichkeiten zu bringenldquo SuZ GA 2 sect6 20-21

135

A necessidade de apropriaccedilatildeo de ldquosituaccedilatildeo hermenecircuticardquo que Heidegger

desenvolveu nas ldquoInterpretaccedilotildees Fenomenoloacutegicas de Aristoacutetelesrdquo (19211922)

aponta por outro lado para o presente e para a existecircncia faacutectica do Dasein

como portadores de um sentido e de tendecircncias interpretativas peculiares de

cada geraccedilatildeo e de cada eacutepoca histoacuterica ldquoEm cada geraccedilatildeo ou numa

sequecircncia delas esclarecem-se determinadas possibilidade de entrada na

histoacuteria como tal determinada compreensatildeo fundamental do conjunto da

histoacuteria determinadas avaliaccedilotildees de uma eacutepoca singular e determinadas

ldquopreferecircnciasrdquo por uma uacutenica filosofiardquo185

Na clarificaccedilatildeo desta ldquosituaccedilatildeordquo186 isto eacute do contexto vital onde se desenrolam

as experiecircncias fundamentais do presente histoacuterico reside a possibilidade de

ganhar um horizonte ldquoproacutepriordquo de compreensatildeo e em geral da projecccedilatildeo de

um sistema do desenhar de novas perspectivas de novos e inesperados

desenvolvimentos de um ponto de vista de diferentes modos de

consciecircncia187

Se eacute verdade que para se compreender a ldquosituaccedilatildeo hermenecircuticardquo eacute preciso

estar afinado com a Stimmung epocal natildeo eacute menos verdade que como

Heidegger repetidamente afirma esta soacute pode ser compreendida a partir da

consciecircncia histoacuterico-criacutetica que eacute capaz de compreender o presente agrave luz das

possibilidades hermenecircuticas contidas numa tradiccedilatildeo a que se pertence e de

reconhecer que nele actua de forma inelutaacutevel esse campo de sentido herdado

185

bdquoIn Jener Generation oder in einer Abfolge solcher legen sich bestimmte Zugangsmoumlglichkeiten zur

Geschichte als solcher bestimmte Grundauffassungen der Gesamtgeschichte bestimmte

Wertschaumltzungen einzelner Zeitalter und bestimmte bdquoVorliebenldquo fuumlr einzelne Philosophien festldquo EpF

GA 61 3 186

bdquoDer Sachgehalt jeder Interpretation das ist der thematische Gegenstand im Wie seines

Ausgelegtseins vermag nur dann angemessen fuumlr sich selbst zu sprechen wenn die jeweilige

hermeneutische Situation auf die jede Interpretation relativ ist als genuumlgend deutlich ausgezeichnet

verfuumlgbar gemacht wird

Jede Auslegung hat je nach Sachfeld und Erkenntnisanspruch 1 ihren mehr oder minder ausdruumlcklich

zugeeigneten und verfestigten Blickstand 2 eine hieraus motivierte Blickrichtung in der sich bestimmt

das bdquoals wasldquo in dem der Interpretationsgegenstand vorgrifflich genommen und das bdquoworaufhinldquo auf das

er ausgelegt werden soll 3 eine mit Blickstand und Blickrichtung ausgegrenzte Sichtweite innerhalb

deren der jeweilige Objecktivitaumltsanspruch der Interpretation sich bewegtldquo Heidegger AhS GA 62 346 187

A oposiccedilatildeo entre histoacuteria da filosofia e o presente histoacuterico do filoacutesofo aparece como oposiccedilatildeo entre

histoacuteria da filosofia e sistema filosoacutefico mas trata-se segundo Joatildeo Paisana de uma oposiccedilatildeo natildeo

pertinente O que importa eacute ter em mente que a consciecircncia da proacutepria situaccedilatildeo eacute indispensaacutevel ao que o

autor designa como o segundo momento da exegese da tradiccedilatildeo o da construccedilatildeo na qual ldquose articulam as

possibilidades histoacutericas projectando-as unitariamente no espaccedilo aberto pelo questionar sobre a coisa

mesma da questatildeo em direcccedilatildeo agrave sua verdaderdquo (Idem obcit 31) A verdade filosoacutefica implica

necessariamente ldquoum rasto histoacutericordquo e natildeo pode ser nunca um acto inaugural mas por outro lado ela soacute

eacute possiacutevel no espaccedilo aberto pelo questionar de algum modo enraizado no presente

136

Esta imposiccedilatildeo dum campo de sentido preacutevio faz-se em primeiro lugar pela

linguagem e pelos usos linguiacutesticos como jaacute nas Interpretaccedilotildees

Fenomenoloacutegicas de Aristoacuteteles Heidegger sublinhava ldquoUm uso linguiacutestico vem

de uma histoacuteria ateacute noacutes e nasceu precisamente outrora de uma determinada

experiecircncia A histoacuteria pode perder-se no esquecimento a tradiccedilatildeo expressa

pode retirar-se No fluir de um uso linguiacutestico reside um peculiar confiar na

histoacuteria do espiacuterito um agarrar da ldquotradiccedilatildeordquo e na verdade de todo o consumar

histoacuterico - da mesma maneira tambeacutem a possibilidade de todo o extraviordquo188

Os usos linguiacutesticos impotildeem-nos quer queiramos quer natildeo uma

conceptualizaccedilatildeo preacutevia (Vorgriff) que delimita as possibilidades de

compreensatildeo e fixa uma tendecircncia interpretativa os vocaacutebulos transportam

consigo um sentido orientando o pensamento Mas a forccedila da tradiccedilatildeo estaacute

enraizada na proacutepria vida faacutectica do Dasein e informa ainda o contexto histoacuterico

concreto onde facticamente se desenrola a investigaccedilatildeo a Universidade eacute ela

mesmo simultaneamente um produto da tradiccedilatildeo e o contexto vital onde aqui e

agora uma geraccedilatildeo se relaciona com o passado e a tradiccedilatildeo189

Toda a interpretaccedilatildeo deve comeccedilar pela reflexatildeo do inteacuterprete sobre as ideias

preconcebidas que resultam da ldquosituaccedilatildeo hermenecircuticardquo em que ele se

encontra o grau de apropriaccedilatildeo da situaccedilatildeo hermenecircutica das suas ideias e

dos seus problemas eacute decisivo para o destino de toda a interpretaccedilatildeo porque

satildeo essas antecipaccedilotildees de sentido que vatildeo confrontar-se com o texto que haacute

que interpretar

Assim esse texto que haacute que interpretar e cujo sentido pleno soacute pode

esclarecer-se a partir da ldquoabertura de mundordquo ou do horizonte histoacuterico-

linguiacutestico em que se insere como eacute exemplarmente o caso da filosofia grega

estaacute sujeito a uma interpretaccedilatildeo que padece necessariamente da restriccedilatildeo dum

horizonte imposto pela situaccedilatildeo hermenecircutica do inteacuterprete Heidegger mostrou

que a recepccedilatildeo de Aristoacuteteles ilustra de que modo e ateacute que ponto a

188

bdquoEin Sprachgebrauch kommt aus einer Geschichte uns zu und ist je einmal aus einer bestimmten

Erfahrung erwachsen Die Geschichte kann in Vergessenheit geraten die ausdrucksmaumlβige Tradition

kann abreiβen Im Eingleiten in einen Sprachgebrauch liegt ein eigentuumlmliches Vertrauen zur

Geistesgeschichte ein Ergreifen der bdquo Traditionldquo und zwar der ganz besonderen vollzugsgeschichtlichen

zugleich aber auch die Moumlglichkeit der Entgleisungldquo EpF GA 61 42 189

A importacircncia da Universidade como lugar institucional da transmissatildeo da tradiccedilatildeo encontra-se ainda

sublinhada por T S Kuhn em A Estrutura das Revoluccedilotildees Cientiacuteficas em termos similares Neste caso

mostra-se como o funcionamento e as relaccedilotildees de poder no interior da instituiccedilatildeo condicionam a

investigaccedilatildeo particularmente nos perigraveodos de ldquociecircncia extraordinaacuteriardquo quando estatildeo em causa conflitos

entre teorias paradigmaacuteticas

137

interpretaccedilatildeo foi efectivamente condicionada pelo ponto de vista imposto pela

situaccedilatildeo quer na eacutepoca do cristianismo medieval que levou a cabo uma certa

interpretaccedilatildeo metafiacutesica de Aristoacuteteles e impocircs a sua valorizaccedilatildeo positiva no

acircmbito da escolaacutestica quer na eacutepoca contemporacircnea em que por influecircncia da

ciecircncia e da filosofia poacutes-kantiana se institui uma interpretaccedilatildeo gnosioloacutegica de

Aristoacuteteles e se combateu essa valorizaccedilatildeo positiva da eacutepoca medieval

E em Was heiszligt denken Heidegger reafirmaraacute esta mesma relatividade de

toda a interpretaccedilatildeo ldquoChocamos frontalmente contra o sentido de toda a

interpretaccedilatildeo quando nos persuadimos que haveria uma interpretaccedilatildeo que natildeo

fosse a dum ponto de vista isto eacute que pudesse ser absolutamente vaacutelida

Absolutamente vaacutelida natildeo eacute senatildeo no melhor dos casos a esfera de

representaccedilotildees no interior da qual se situa antecipadamente o texto a

interpretar A validade desta esfera de representaccedilotildees que colocamos de iniacutecio

natildeo pode ser um absoluto a natildeo ser que o seu absoluto repouse sobre uma

incondicionalidade e esta seja a de uma feacute A incondicionalidade da feacute e a

problematicidade do pensamento satildeo dois domiacutenios separados por um

abismordquo 190

Uma obra filosoacutefica situa-se no interior de uma certa esfera de representaccedilotildees

inerentes agrave figura do ser imperante no contexto histoacuterico-linguiacutestico E uma

apropriaccedilatildeo originaacuteria teraacute sempre que tentar apreendecirc-la a partir dessa

ldquoabertura de mundordquo em que ela se integra como seu horizonte de sentido

ldquopreacuteviordquo Contudo este contexto histoacuterico-linguiacutestico de certo modo absoluto e

inquestionaacutevel eacute objecto de diferentes interpretaccedilotildees que dependem

largamente da situaccedilatildeo hermenecircutica em que se encontra o tradutor e o

inteacuterprete e do ponto de vista que eacute imposto por essa situaccedilatildeo

A interpretaccedilatildeo autecircntica isto eacute aquela que eacute levada a cabo por uma

consciecircncia hermeneuticamente desenvolvida natildeo tem pois como finalidade a

produccedilatildeo de uma verdade objectiva nem definitiva sobre os textos mas eacute pelo

contraacuterio aquela que tem consciecircncia de mover-se entre dois horizontes

190

bdquoMan verstoumlβt aber gegen den Sinn jeder Interpretation wenn man der Meinung huldigt es gaumlbe eine

Auslegung die beziehungslos d h absolut guumlltig sein koumlnnte Absolut guumlltig ist im aumluβersten Falle nur

die Vorstellungsbezirk innerhalb dessen man den auszulegenden Text zum Voraus ansetzt Die

Guumlltigkeit dieses vorausgesetzten Vorstellungsbezirkes kann nur dann eine absolute sein wenn ihre

Absolutheit auf einer Unbedingtheit und zwar der eines Glaubens beruht

Die Unbedingtheit des Glaubens und die Fragwuumlrdigkeit des Denkens sind zwei abgruumlndig verschiedene

Bereicheldquo WhD GA 8 181

138

distintos e que eacute capaz de deixar-se conduzir ao acircmbito originaacuterio de onde

partiu a elaboraccedilatildeo de uma obra e de retornar a si mesmo e ao seu proacuteprio

horizonte histoacuterico aiacute produzindo um ldquoduplordquo que natildeo eacute uma coacutepia nem

substitui o original mas abre uma via de acesso para ele

Agrave luz desta consciecircncia hermenecircutica que eacute simultaneamente uma

consciecircncia histoacuterica sensiacutevel agraves diferenccedilas entre o proacuteprio horizonte histoacuterico-

linguiacutestico e aquele a que pertence a obra a traduzir ou interpretar que eacute capaz

de se movimentar entre eles aquele imperativo de fidelidade ao dito tem de ser

inteiramente modificado

2 Tradiccedilatildeo e traduccedilatildeo

Esses dois horizontes que a uma consciecircncia histoacuterica devem sempre

aparecer como distintos satildeo contudo essencialmente moacuteveis interpenetram-se

e articulam-se pois o passado e o distante caminham sobre noacutes condicionando

a apropriaccedilatildeo do presente e por outro lado essa apropriaccedilatildeo do passado de

modo algum pode ser ldquoobjectivardquo mas eacute condicionada pela figura histoacuterico-

epocal do ser dominante na eacutepoca presente

Eacute essa articulaccedilatildeo que permite criar uma abordagem da histoacuteria da filosofia que

natildeo se limita a prolongar e dar continuidade a um passado mas retoma-o

actualiza-o e renova-o transportando-o para o presente fazendo assim dessa

histoacuteria uma tradiccedilatildeo viva (Uumlberlieferung) capaz de se projectar no futuro

ldquoAssim o ter sido e o futuro natildeo satildeo dois espaccedilos de tempo de tal modo que

possamos deslizar de um para o outro mas o futuro e o ter sido satildeo em si

aqueles poderes do tempo o poder do proacuteprio tempo no qual estamos Noacutes soacute

somos vindouros na medida em que assumirmos o ter sido como tradiccedilatildeordquo191

A relaccedilatildeo da filosofia com a sua proacutepria histoacuteria caso seja uma relaccedilatildeo

apropriada eacute sempre simultaneamente apropriaccedilatildeo da tradiccedilatildeo e criaccedilatildeo

(Zucht) o que transforma a tradiccedilatildeo filosoacutefica em qualquer coisa de vivo capaz

de perdurar e persistir no tempo tomando novas configuraccedilotildees ldquoDeste modo

noacutes alcanccedilaacutemos uma compreensatildeo completamente diferente do tempo na sua

191

bdquoSo sind Gewesenheit und Zukunft nicht zwei Zeitraumlume nicht derart daβ wir von einem in den

anderen rutschen koumlnnen sondern Zukunft und Gewesenheit sind in sich einige Zeitmaumlchte die Macht

der Zeit selbst in der wir stehen Wir sind nur zukuumlnftig indem wir die Gewesenheit als Uumlberlieferung

uumlbernehmenldquo LWS GA 38 124

139

temporalidadetemporalizaccedilatildeo ndash e com isso o solo a partir do qual noacutes

podemos antes de tudo determinar a histoacuteria no seu caraacutecter de acontecer O

acontecer natildeo eacute um processo mas tradiccedilatildeordquo192

Natildeo eacute apenas o conceito de tradiccedilatildeo filosoacutefica que assim se encontra

modificado por Heidegger mas ainda a relaccedilatildeo iacutentima que este conceito de

tradiccedilatildeo manteacutem com o de traduccedilatildeo De facto para Heidegger a tradiccedilatildeo

implica sempre uma traduccedilatildeo no sentido essencial que estaacute contido na palavra

alematilde de Uumlbersetzen isto eacute de trans-posiccedilatildeo histoacuterico-temporal de um sentido

que nos eacute dado sempre como alheio Essa transposiccedilatildeo eacute um movimento entre

esse campo de sentido alheio a que pertence um texto que nos eacute dado pela

histoacuteria e o proacuteprio isto eacute o contexto histoacuterico-linguiacutestico a que pertence aquele

que pensa

Assim a traduccedilatildeo natildeo implica necessariamente a transposiccedilatildeo de uma liacutengua

nacional para outra como Heidegger claramente indicaraacute em Was heiszligt

denken mas indica sempre a necessidade de uma dupla apropriaccedilatildeo a

apropriaccedilatildeo ldquooriginaacuteriardquo do alheio por um movimento de desconstruccedilatildeo de

releituras impostas por uma tradiccedilatildeo esclerosada e uma apropriaccedilatildeo do

ldquoproacutepriordquo que enquanto o mais proacuteximo eacute sempre o mais distante e exige ser

compreendido e apropriado como tal

A unidade destes dois momentos trazidos agrave intimidade [Innigkeit] constitui o

coraccedilatildeo da traduccedilatildeo e eacute essa intimidade que faz de algumas das traduccedilotildees

feitas nas muacuteltiplas liacutenguas traduccedilotildees essenciais isto eacute ldquopontos nodais de

junccedilatildeo e de articulaccedilatildeordquo193 que pertencem ao proacuteprio movimento de destinaccedilatildeo

do ser

A possibilidade da filosofia tomar posse das suas possibilidades de questionar

resulta para Heidegger destas traduccedilotildees essenciais que articulam a

transmissatildeo de uma tradiccedilatildeo Cada questatildeo filosoacutefica e cada resposta a essa

questatildeo estatildeo sustentadas por uma decisatildeo de assumir a tradiccedilatildeo que assim

192

bdquoDamit haben wir ein voumlllig anderes Verstaumlndnis der Zeit in ihrer ZeitigkeitZeitigung gewonnen ndash und

damit den Boden von dem aus wir die Geschichte in ihrem Geschehenscharakter allererst bestimmen

koumlnnen Geschehen ist kein Vorgang sondern Uumlberlieferungldquo Ibidem 125 193

Cf John Sallis em ldquoSobre a Traduccedilatildeo de Platatildeo a Heideggerrdquo (in Heidegger Linguagem e Traduccedilatildeo

Lisboa 2002 179) rdquoUma traduccedilatildeo essencial corresponde hellip ao modo pelo qual uma ligravengua fala ao envio

do ser [wie im Geschick des Seins eine Sprache spricht] Eacute porque tais traduccedilotildees inscrevem

responsivamente o dizer no interior do envio do ser (enquanto ηδέα enquanto έλέργεηα enquanto

actualitas etc) que elas pertencem ao movimento mais interior da histoacuteria constituindo pontos nodais

pontos de junccedilatildeo onde tem lugar a tradiccedilatildeo (transmissatildeo a partir do envio do ser)rdquo

140

cada filoacutesofo decide actualizar e fazer presente como Widerholung de um

perguntar essencial

O perguntar (fragen) e o responder (antworten) que constituem a essecircncia do

pensar isto eacute da filosofia como consciecircncia criacutetica e problemaacutetica enraiacutezam-

se na responsabilidade (Verantwortung) de assumir o sido e trazecirc-lo para o

presente como determinaccedilatildeo isto eacute na responsabilidade pela actualizaccedilatildeo de

uma tradiccedilatildeo que natildeo pode ser transmitida sem ser incessantemente traduzida

Assim a consciecircncia filosoacutefica deve assumir a historicidade inerente ao gestar-

se da existecircncia humana colocando-se a si mesma sob o poder do tempo ldquoO

encargo como nossa missatildeo eacute a nossa determinaccedilatildeo em sentido originaacuterio eacute o

poder do proacuteprio tempo no qual noacutes nos encontramos que nos autoriza ao

nosso futuro ao mesmo tempo que nos lega o legado da nossa origemrdquo194

A filosofia como consciecircncia hermeneuticamente desenvolvida implica assim

um pensar que se assume como responsaacutevel pela apropriaccedilatildeo dum perguntar

e responder originaacuterios e pela sua transposiccedilatildeo para um outro contexto

histoacuterico-linguiacutestico ou seja implica uma traduccedilatildeo consciente dos seus

proacuteprios pressupostos histoacutericos e enraizada na temporalidade Esta tomada de

consciecircncia dos seus proacuteprios pressupostos histoacutericos eacute contudo limitada

porque a consciecircncia filosoacutefica estaacute ela tambeacutem sob o mesmo poder do tempo

ao qual estamos expostos e que experimentamos como disposiccedilatildeo de acircnimo

(Stimmung) isto eacute como esse fundo obscuro de emoccedilotildees que arrebatam

misteriosamente os povos e os lanccedilam no meio do acontecer histoacuterico ldquoDos

primoacuterdios ateacute ao presente actua na filosofia a interdependecircncia interna e

misteriosa entre o poder do tempo e a respectiva compreensatildeo do ser o

respectivo domiacutenio de um conceito de ser Porque esta interdependecircncia

existe fala-se de rdquoSer e Tempo Este natildeo eacute nenhum vulgar tiacutetulo para um

qualquer livro mas a mais intriacutenseca e encoberta questatildeo da nossa filosofia

[]rdquo195

194

bdquoDer Auftrag als unsere Sendung ist unsere Bestimmung im urspruumlnglichen Sinne ist die Macht der

Zeit selbst in der wir stehen die uns zu unserem Kuumlnftigen ermaumlchtigt indem sie uns das Vermaumlchtnis

unseres Ursprungs vermachtldquo LWS GA 38 127 195

bdquoVon Anfang an bis zur Gegenwart wirkt in der Philosophie der geheimnisvolle innere

Zusammenhang zwischen der Macht der Zeit und dem jeweiligen Verstaumlndnis des Seins der jeweiligen

Herrschaft eines Seinsbegriffs Weil dieser Zusammenhag besteht deshalb ist die Rede von bdquo Sein und

Zeitldquo Dies ist kein beliebiger Titel fuumlr irgendein Buch sondern die innerste und verborgenste Frage

unserer Philosophie []ldquo Ibidem 132

141

Eacute esta exposiccedilatildeo ao poder do tempo e agraves muacuteltiplas stimmungen epocais que

faz com que a tradiccedilatildeo filosoacutefica tenha um caraacutecter plural desdobrando-se em

muacuteltiplas tradiccedilotildees de modo que a transmissatildeo da tradiccedilatildeo teraacute que ser um

diaacutelogo entre diferentes linhagens de pensadores que satildeo capazes de divergir

e de polemizar a partir do mesmo o que se encontra claramente afirmado em

Was Heiszligt Denken

Assim a existecircncia de diferentes traduccedilotildees e interpretaccedilotildees de uma obra

filosoacutefica eacute inevitaacutevel e decorrente da proacutepria histoacuteria e a discussatildeo sobre essas

diferenccedilas soacute pode consistir numa reflexatildeo sobre os pressupostos que preacute-

determinam ldquoa direcccedilatildeordquo de cada uma delas Esta reflexatildeo e este

questionamento satildeo aliaacutes necessaacuterios para desobstruir o acesso agraves fontes

isto eacute ao texto originaacuterio e entrar ldquono lugar de proveniecircnciardquo do seu dizer

A traduccedilatildeo apropriada de um texto coloca natildeo soacute a necessidade desta

ldquodesobstruccedilatildeordquo como ainda a de uma explicitaccedilatildeo dos pressupostos da nova

proposta que assim satildeo assumidos e expostos agrave contestaccedilatildeo e ao confronto

como o texto que se trata de traduzir

Deste modo a interpretaccedilatildeo e a traduccedilatildeo poderatildeo desenrolar-se como um

diaacutelogo (parcialmente) consciente dos seus proacuteprios pressupostos histoacutericos

capaz de ir para aleacutem do texto em direcccedilatildeo agravequilo que estaacute para aleacutem dele ao

apelo muitas vezes inexpresso que motiva o proacuteprio texto196

Esse apelo eacute o da questatildeo do Ser questatildeo que interpela os diferentes

pensadores ao longo do tempo e que faz com que pensadores como Kant e

Parmeacutenides apesar de todas as diferenccedilas do seu dizer se movam num

domiacutenio que eacute ldquoo mesmordquo e que eacute aliaacutes instituiacutedo por Parmeacutenides como o

domiacutenio comum de todo o pensar ocidental ldquo[hellip] a frase ldquoηὸ γὰρ αὐηὸ νοεῖν

ἐζηίν ηε καὶ εἶναιldquo torna-se o tema fundamental do conjunto do pensamento

europeu-ocidental A sua histoacuteria eacute no fundo uma sequecircncia de variaccedilotildees

196

Cf Ivo de Gennaro Logos ndash Heidegger liest Heraklit bdquoDas Uumlbersetzen uumlbersetzt wie Houmllderlin

schreibt bdquogegen die exzentrische Begeisterungldquo d h gegen das Orientalische und den Griechen

Angeborene und Natuumlrliche bdquogegenldquo aber nicht als das feindliche contra sondern entgegen in Richtung

auf dieses Natuumlrliche es setzt zu ihm uumlber um es bdquokuumlhner [zu] exponierenldquo d h die Griechen in ihrem

Eigenen zu bdquouumlbertreffenldquo somit griechisch und d h schon griechischer [zu denken] als die Griechen

selbstldquo(Ob cit 80)

142

sobre este uacutenico tema mesmo aiacute onde a palavra de Parmeacutenides natildeo eacute

expressamente evocadardquo197

A histoacuteria da filosofia desenrola-se assim como um conjunto de variaccedilotildees sobre

um mesmo tema e as diferenccedilas entre discursos filosoacuteficos situados em

contexto histoacuterico-linguiacutesticos distintos devem ser correlacionadas natildeo apenas

com as diferentes aberturas de mundo em que necessariamente se inserem

mas ainda com este acircmbito comum ao questionamento filosoacutefico que torna

possiacutevel o diaacutelogo e a confrontaccedilatildeo entre diferentes ldquolinhagensrdquo de pensadores

3 A reabilitaccedilatildeo do preconceito em Gadamer

Se Heidegger se interessou pelo problema hermenecircutico tendo sempre em

vista a questatildeo ontoloacutegica Gadamer toma de certo modo o caminho inverso

Partindo da criacutetica levada a cabo por Heidegger agrave ontologia da presenccedila que

estaacute subjacente ao ideal de objectividade das ciecircncias ele vai pensar as

consequecircncias para a hermenecircutica das ciecircncias humanas da temporalidade

do Dasein e da estrutura circular da compreensatildeo198

Tendo iniciado os estudos de filologia claacutessica em 1925 com a preocupaccedilatildeo

expliacutecita da articulaccedilatildeo das questotildees filosoacuteficas com os problemas filoloacutegicos e

tendo-se ocupado em complemento do seu trabalho acadeacutemico da traduccedilatildeo

dos pensadores gregos para o alematildeo Gadamer estava em condiccedilotildees

privilegiadas pela frequentaccedilatildeo sapiente dos claacutessicos e pelo seu esforccedilo de

os trazer para o presente histoacuterico para reflectir sobre o problema

hermenecircutico da traduccedilatildeo e enriquecer os contributos de Heidegger199

197

bdquo[] der Spruch ηὸ γὰρ αὐηὸ λοεῖλ ἐζηίλ ηε θαὶ εἶλαη wird das Grundthema des gesamten

abendlaumlndisch-europaumlischen Denkens Dessen Geschichte ist im Grunde eine Folge von Variationen zu

diesem einem Thema auch dort wo der Spruch des Parmenides nicht eigens genannt wirdldquo WhD GA 8

246 198

Visto que a hermenecircutica da compreensatildeo natildeo poderia ter por objectivo descobrir um fundamento

universalmente vaacutelido para o conhecimento as interrogaccedilotildees epistemoloacutegicas relativas agrave metodologia das

ciecircncias humanas natildeo tinham para Heidegger qualquer relevacircncia testemunhando antes a recusa em

reconhecer a finitude do Dasein Gadamer natildeo retoma no entanto o diaacutelogo com as ciecircncias humanas

com a intenccedilatildeo de estabelecer um projecto metodoloacutegico para essa aacuterea do saber mas sim com a intenccedilatildeo

expressa de mostrar a ausecircncia de sentido dum tal projecto A tese de Gadamer seraacute de que as ciecircncias

humanas deveriam afastar-se do paradigma metodoloacutegico das ciecircncias exactas e fundar-se num retomar

do conceito de Bildung desenvolvido pela tradiccedilatildeo humanista (Cf Jean Grondin L‟Universaliteacute

hermeacuteneutique Paris 1993 157-164) 199

Cf Jean Grondin em HansndashGeorg Gadamer Eine Biographie Tuumlbingen 1999 144-146 O autor

sublinha que Gadamer conhecia melhor os claacutessicos que Heidegger e que ele encontrou no periacuteodo da

Segunda Guerra Mundial no regresso aos claacutessicos uma resposta agrave incerteza e ao desvario do tempo em

particular nas leituras de Piacutendaro no Evangelho de S Joatildeo na tradiccedilatildeo retoacuterica latina na Eacutetica de

Aristoacuteteles e sobretudo nos Diaacutelogos de Platatildeo

143

Retomando o conceito de ciacuterculo hermenecircutico de Ser e Tempo Gadamer

sublinha que essa estrutura circular da compreensatildeo conteacutem a possibilidade

positiva de uma compreensatildeo originaacuteria na medida em que aponta a exigecircncia

de o inteacuterprete natildeo permitir que as suas intuiccedilotildees e antecipaccedilotildees de sentido se

lhe imponham espontaneamente ldquopor meio de intuiccedilotildees e noccedilotildees popularesrdquo

exigindo que este as elabore no confronto com ldquoas coisas mesmasrdquo (isto eacute os

textos a interpretar que se referem eles mesmos agraves coisas) ldquoele soacute fez no

fundamental o que uma consciecircncia histoacuterico-hermenecircutica em cada caso

exige Um compreender dirigido por uma consciecircncia hermenecircutica tem de

esforccedilar-se por natildeo consumar simplesmente as suas antecipaccedilotildees mas tornaacute-

las conscientes para as controlar e assim poder ganhar um correcto

entendimento Isto eacute o que Heidegger quer dizer quando ele exige que na

elaboraccedilatildeo do Vorhabe Vorsicht e Vorgriff a partir das proacuteprias coisas se

assegure o tema cientiacuteficordquo200

O inteacuterprete aborda sempre o texto a partir do esboccedilo da totalidade de sentido

e confronta sucessivamente essa antecipaccedilatildeo da totalidade com o proacuteprio

texto corrigindo esse esboccedilo inicial de acordo com as confirmaccedilotildees obtidas no

decurso do trabalho hermenecircutico O inteacuterprete natildeo eacute algueacutem com uma razatildeo

vazia de preconceitos mas estaacute sempre munido de uma preacute-compreensatildeo que

potildee expressamente agrave prova interrogando-se sobre a sua validade e a sua

legitimidade

Natildeo se trata assim nem de uma razatildeo despida de preconceitos nem de

manter a todo o custo uma opiniatildeo preacutevia mas de uma abertura agrave opiniatildeo do

outro ou de escuta do texto O reconhecimento da alteridade do texto natildeo

exige um abandono da opiniatildeo do inteacuterprete mas a abertura dum diaacutelogo que

as coloque numa relaccedilatildeo reciacuteproca

Haacute assim um preconceito ou um juiacutezo preacutevio (Vorurteil) que dirige e orienta o

trabalho hermenecircutico em flagrante oposiccedilatildeo ao ideal duma razatildeo

inteiramente liberta de preconceitos preconizado pela Aufklaumlrung A

Aufklaumlrung ao interpretar o preconceito (Vorurteil) como um juiacutezo sem

fundamento ldquona coisa mesmardquo postulou que ele eacute sempre infundado e

200

ldquoEr hat damit im Grund nur getan was das historisch-hermeneutische Bewuβtsein in jedem Fall

verlangt Ein mit methodischem Bewuβtsein gefuumlhrtes Verstehen wird bestrebt sein muumlssen seine

Antizipationen nicht einfach zu vollziehen sondern sie selber bewuβt zu machen um sie zu kontrollieren

und dadurch von den Sachen her das rechte Verstaumlndnis zu gewinnen Das ist es was Heidegger meint

wenn er fordert in der Ausarbeitung von Vorhabe Vorsicht und Vorgriff aus den Sachen selbst her das

wissenschaftliche Thema zu bdquosichernldquoldquo WuM GW I274)

144

totalmente ilegiacutetimo tendo lanccedilado o descreacutedito sobre os preconceitos no seu

conjunto e exigido que o trabalho cientiacutefico os excluiacutesse totalmente o que eacute

impossiacutevel De facto o rdquopreconceitordquo (Vorurteil) natildeo quer dizer

necessariamente um falso juiacutezo (Urteil) No seu conceito ele implica que ele

pode ser valorizado positiva ou negativamenterdquo201

Esta criacutetica da Aufklaumlrung ao preconceito liga-se em particular agrave criacutetica agrave

tradiccedilatildeo religiosa e agrave hermenecircutica biacuteblica pretendendo submeter a tradiccedilatildeo

religiosa escrita a um julgamento da razatildeo A hermenecircutica racionalista da

biacuteblia faz da tradiccedilatildeo um objecto de criacutetica exactamente como o faz a ciecircncia

da natureza relativamente aos testemunhos dos sentidos a razatildeo e natildeo a

tradiccedilatildeo eacute o fundamento uacuteltimo da autoridade

Ora esta autonomia absoluta da razatildeo expressa na exigecircncia kantiana ldquoserve-

te do teu proacuteprio entendimentordquo ou ainda na duacutevida metoacutedica cartesiana eacute para

Gadamer um ideal impossiacutevel que ignora a historicidade da razatildeo A

destruiccedilatildeo desta exigecircncia global do iluminismo e a assunccedilatildeo da finitude da

razatildeo assim como de uma consciecircncia histoacuterica satildeo condiccedilotildees imprescindiacuteveis

para a construccedilatildeo de uma hermenecircutica filosoacutefica202

A razatildeo enquanto real e histoacuterica estaacute sempre submetida aos dados sobre os

quais ela exerce a sua acccedilatildeo as grandes realidades histoacutericas a sociedade o

Estado as criaccedilotildees linguiacutesticas dominam as vivecircncias e a experiecircncia fazendo

com que noacutes pertenccedilamos agrave histoacuteria Esta noccedilatildeo de pertenccedila histoacuterica eacute em

Gadamer uma noccedilatildeo chave para compreender aquilo que aqui se entende por

preconceito ldquoMuito antes que noacutes possamos aceder agrave compreensatildeo de noacutes

mesmos pela reflexatildeo sobre o passado noacutes compreendemo-nos

espontaneamente na famiacutelia na sociedade e no Estado em que vivemos O

domiacutenio da subjectividade eacute um espelho deformador A tomada de consciecircncia

do indiviacuteduo por si mesmo natildeo eacute senatildeo a luz treacutemula no ciacuterculo fechado da vida

201

bdquoldquoVorurteileldquo heiβt also dadurch nicht notwendig falsches Urteil In seinem Begriff liegt daβ er

positiv und negativ gewertet werden kannldquo (Ibidem 275) 202

A construccedilatildeo da hermenecircutica gadameriana estaacute fundada natildeo apenas no enfrentamento com o

racionalismo da Aufklaumlrung mas com o Platonismo Gadamer faz remontar a Platatildeo o ldquoesquecimento da

linguagemrdquo (Sprachevergessenheit) que marcou a filosofia no ocidente Cf Jean Grondin ldquoNach

Gadamer wolle Platon naumlmlich zeigen daβ man nicht durch Worte zur Erkenntnis der Dinge gelange Er

wolle sich damit von den Sophisten absetzen die lehren daβ eine Beherrschung der Worte eine

Meisterung der Sachen verbuumlrge Dem gegenuumlber muumlsse sich nach Platon die echte Erkenntnis so weit

wie moumlglich von der Herrschaft der Worte befreien um zu den Dingen selbst dh zu den Ideen zu

streben und zu gelangenldquo (Idem Einfuumlhrung zu Gadamer Tuumlbingen 2000 207208)

145

histoacuterica Eacute por isso que os preconceitos do indiviacuteduo bem mais que os seus

juiacutezos constituem a realidade histoacuterica do seu serrdquo203

O problema hermenecircutico tem pois a sua raiz neste reconhecimento do papel

imprescindiacutevel dos preconceitos historicamente fundados em toda a

interpretaccedilatildeo ldquoeacute necessaacuterio uma reabilitaccedilatildeo fundamental do conceito de

preconceito e um reconhecimento de que existem preconceitos legiacutetimos se

quisermos que seja tomado em conta o modo de ser histoacuterico e finito do

homem Assim para uma verdadeira hermenecircutica histoacuterica torna-se

formulaacutevel uma questatildeo a sua questatildeo gnosioloacutegica central Onde deve

fundamentar-se a legitimaccedilatildeo dos preconceitos O que distingue os

preconceitos legiacutetimos dos incontaacuteveis preconceitos cuja superaccedilatildeo eacute o

indiscutiacutevel objectivo de razatildeo criacuteticardquo204

Gadamer encontra a fundamentaccedilatildeo do preconceito na antecipaccedilatildeo de sentido

imposta pela Vorstruktur da compreensatildeo Contudo essa antecipaccedilatildeo de

sentido que guia a nossa compreensatildeo de um texto natildeo tem como acima

vimos qualquer fundamento na subjectividade individual mas na comunidade

(Gemeinsamkeit) que nos liga agrave tradiccedilatildeo Ora esta comunidade que constitui

aquilo a que chamamos uma tradiccedilatildeo natildeo eacute como vimos aliaacutes em Heidegger

algo de dado mas algo que estaacute em contiacutenua formaccedilatildeo na medida em que

noacutes participamos no acontecimento da sua transmissatildeo205

203

ldquoLange bevor wir uns in der Ruumlckbesinnung selber verstehen verstehen wir uns auf

selbstverstaumlndliche Weise in Familie Gesellschaft und Staat in denen wir leben Der Fokus der

Subjektivitaumlt ist ein Zerrspiegel Die Selbstbesinnung des Individuums ist nur ein Flackern im

geschlossenen Stromkreis des geschichtlichen Lebens Darum sind die Vorurteile des einzelnen weit mehr

als seine Urteile die geschichtliche Wirklichkeit seines Seinsrdquo WuM GW I 281 204

bdquoEs bedarf einer grundsaumltzlichen Rehabilitierung des Begriffs des Vorurteils und einer Anerkennung

dessen daβ es legitime Vorurteile gibt wenn man der endlich-geschichtlichen Seinsweise des Menschen

gerecht werden will Damit wird die fuumlr eine wahrhaft geschichtliche Hermeneutik zentrale Frage ihre

erkenntnistheoretische Grundfrage formulierbar Worin soll die Legitimation von Vorurteilen ihren

Grund finden Was unterscheidet legitime Vorurteile von all den unzaumlhligen Vorurteilen deren

Uumlberwindung das unbestreitbare Anliegen der kritischen Vernunft istldquo (Ibidem 281282) 205

Esta valorizaccedilatildeo da tradiccedilatildeo daacute lugar em Verdade e Meacutetodo agrave reavaliaccedilatildeo da tradiccedilatildeo humanista

pensada como um legado grego sujeito a muacuteltiplas leituras ao longo do tempo e responsaacutevel pela

elaboraccedilatildeo de conceitos como sensus comunis gosto e juiacutezo que permitiriam dar conta da pretensatildeo de

autonomia das ciecircncias humanas Esta tradiccedilatildeo teria entrado em decadecircncia como resultado de uma

estetizaccedilatildeo dos conceitos fundamentais de sensus comunis e gosto levada a cabo por Kant em a Criacutetica da

Faculdade de Julgar Desacreditando todo o conhecimento teoacuterico que natildeo o das ciecircncias da natureza

Kant teria obrigado as ciecircncias humanas a definir-se a si mesmas em torno do paradigma metodoloacutegico

(Cf Jean Grondin Lbdquo universaliteacute de lbdquohermeneutique 163)

146

4 A tradiccedilatildeo

A valorizaccedilatildeo da tradiccedilatildeo eacute uma questatildeo central da hermenecircutica de Gadamer

e assume aiacute um papel distinto daquele que lhe conferia Heidegger para quem

o papel obstrutivo da tradiccedilatildeo metafiacutesica assumia uma importacircncia decisiva

impondo como tarefa o seu enfrentamento desconstrutivo para se poder

aceder agrave riqueza do grande iniacutecio grego

De facto poderiacuteamos dizer que o fasciacutenio dos dois autores pela Greacutecia se

refere a dois legados diferentes num caso procura recuar-se ateacute agraves

possibilidades originaacuterias contidas na indistinccedilatildeo da filosofia religiatildeo e poesia

dos preacute-socraacuteticos no outro estima-se precisamente o momento da afirmaccedilatildeo

da filosofia como atitude teoreacutetica ldquoQue Platatildeo fora mais do que o precursor da

ldquoontoteologia aristoteacutelicardquo nele divisada por Heidegger foi sempre uma certeza

para mim e ainda que a ldquosimples presenccedilardquo (Vorhandenheit) natildeo podia

descrever do mesmo modo a ciecircncia moderna e o seu ideal de objectividade e

por outro lado o pensamento antigo na sua dedicaccedilatildeo agrave theoria Acompanhei

bem pois o Heidegger tardio perguntando pela verdade da arte mas fiz uma

espeacutecie de opccedilatildeo pelos ldquoAntigosrdquo no seu todordquo206

De facto Gadamer interpreta esse passo atraacutes (Schritt zuruumlck) preconizado por

Heidegger em direcccedilatildeo ao iniacutecio desse envio do ser contido no legado grego

como regresso ao modelo dialoacutegico da filosofia platoacutenica e agrave noccedilatildeo aristoteacutelica

de praxis e pensa a Filosofia como rememoraccedilatildeo dessa antiga sabedoria que

lhes estaacute associada207

Em Gadamer o legado grego eacute pensado como uma heranccedila viva que foi

retomada e acrescentada em diversos momentos histoacutericos e que possui por

isso mesmo a continuidade e a autoridade de uma autecircntica tradiccedilatildeo Esse

legado eacute ouvido por noacutes atraveacutes das muacuteltiplas vozes que repetiram e

actualizaram a sabedoria dos primeiros filoacutesofos gregos e para chegar ateacute ele

206

bdquoDaβ Plato mehr war als der Vorbereiter der aristotelischen ldquo Ontoteologierdquo den Heidegger in ihm

sah blieb mir bestaumlndig gewiβ und ebenso daβ bdquoVorhandenheitldquo nicht in der gleichen Weise die

moderne Wissenschaft und ihr Ideal der Objektivitaumlt und auf der anderen Seite das antike Denken in seine

Hingabe an die bdquoTheorialdquo beschreiben konnte So ging ich wohl mit dem spaumlten Heidegger mit indem ich

nach der Wahrheit in der Kunst fragte vollzog aber zugleich eine Art Option fuumlr die bdquoAltenldquo insgesamtldquo

(Gadamer Das Erbe Europas Frankfurt am Main 1989 170) 207

bdquoHier sind wir bei dem was wir Praxis nennen Praxis ist dabei nicht in jenem theoretischen Sinne zu

verstehen in dem sie nichts als Anwendung von Theorie ist Es geht um Praxis in einem urspruumlnglichen

Sinne in jenem griechischen Sinne in dem Praxis einen ndash ich haumltte fast gesagt ndash inaktiven Sinn hatte Ein

griechischer Brief schloβ mit der Wendung εὖ πράηηεηλ was man uumlbersetzt bdquoLaβ es dir gutgehenldquo Wie es

einem geht das ist mit Praxis gemeint Ob es nun gut - ob es auch schlechtgeht jedenfalls daβ es einem

irgendwie geht daβ wir also nicht Meister und Herren unserer Lebenslage sind []ldquo (Ibidem 24)

147

eacute imprescindiacutevel ouvir a tradiccedilatildeo humanista da qual ele fazia uma interpretaccedilatildeo

muito diversa da de Heidegger A posiccedilatildeo de Gadamer face agrave tradiccedilatildeo

humanista afasta-se radicalmente da posiccedilatildeo de Heidegger que se encontra

fundamentada na Carta sobre o Humanismo de 1946

A tradiccedilatildeo humanista assume pelo contraacuterio em Gadamer uma importacircncia

fundamental natildeo apenas porque ela retoma aspectos essenciais do legado

grego mas porque os retoma em conexatildeo com o acircmbito daquilo que entre noacutes

eacute designado de ldquohumanidadesrdquo e que no pensamento de liacutengua alematilde se

designa de ldquociecircncias do espiacuteritordquo

Gadamer pretende fundamentar a possibilidade de autonomia do acircmbito do

saber relativo ao homem e agrave sua acccedilatildeo restringindo ndash como Kant - as

pretensotildees do entendimento legislador da natureza e demonstrando que este

se fundamenta numa visatildeo unilateral e meramente teacutecnica da compreensatildeo

Embora partindo de Dilthey Gadamer considera-o ainda prisioneiro das

concepccedilotildees metodoloacutegicas das ciecircncias da natureza e procura mostrar que o

problema do conhecimento das ciecircncias humanas natildeo eacute um problema de

meacutetodo mas sim de redescobrir uma ideia de sabedoria inerente agraves antigas

tradiccedilotildees como a arte a filosofia praacutetica a retoacuterica que se fundamentam numa

concepccedilatildeo natildeo instrumental da compreensatildeo (Verstehen)

Assim Gadamer afirma que o que constitui a cientificidade das ciecircncias

humanas natildeo se encontra na ideia de meacutetodo da ciecircncia moderna mas na

tradiccedilatildeo humanista ldquoO que constitui a cientificidade das ciecircncias do espiacuterito

deixa-se compreender melhor a partir da tradiccedilatildeo do conceito de cultura

[Bildung] do que a partir da ideia de meacutetodo da ciecircncia moderna Eacute a tradiccedilatildeo

humanista agrave qual noacutes somos reconduzidos Ela ganha na discussatildeo contra as

exigecircncias da ciecircncia moderna um novo significadordquo208

A tradiccedilatildeo humanista nascida do renascimento italiano e a sua concepccedilatildeo de

cultura (Bildung) como meio de afirmaccedilatildeo da humanidade do homem

representa para Gadamer uma recuperaccedilatildeo desta ideia de sabedoria tatildeo

importante no pensamento grego Um aspecto caracteriacutestico deste conceito de

cultura como Bildung eacute que ele prescreve a tarefa (Bildungsaufgabe) da

formaccedilatildeo humana como o elevar do homem acima do particularismo e fazecirc-lo

208

ldquoWas die Geisteswissenschaften zu Wissenschaften macht laumlβt sich eher aus der Tradition des

Bildungsbegriffes verstehen als aus der Methodenidee der modernen Wissenschaft Es ist die

humanistische Tradition auf die wir zuruumlckverwiesen werden Sie gewinnt im Widerstand gegen die

Anspruumlche der modernen Wissenschaft eine neue Bedeutungldquo WuM GW I 23

148

aceder agrave generalidade Na Fenomenologia do Espiacuterito em torno da dialeacutectica

do senhor e do escravo Hegel aponta como determinaccedilatildeo fundamental do

espiacuterito reconhecer-se a si mesmo no seu ser-outro ldquoJaacute nesta descriccedilatildeo da

cultura praacutetica em Hegel reconhecemos a determinaccedilatildeo fundamental do

espiacuterito histoacuterico reconciliar-se consigo mesmo reconhecer-se no seu ser-

outrordquo209

Gadamer encontra aqui a essecircncia da cultura - a construccedilatildeo de um sentido

geral e comum pelo encontro com a alteridade tarefa que estava subjacente

ao ideal grego de sabedoria mas que necessariamente escapa ao conceito

moderno de ciecircncia e aos conceitos metodoloacutegicos com ela ligados Eacute nesta

tarefa que Gadamer vecirc o verdadeiro fundamento das Geisteswissenschaften

ldquoQue nas ciecircncias do espiacuterito apesar de toda a metodologia da sua

investigaccedilatildeo actua a influecircncia da tradiccedilatildeo que eacute a sua proacutepria essecircncia e o

seu caraacutecter distintivo tornar-se-aacute claro quando noacutes nos ocuparmos da histoacuteria

da investigaccedilatildeo e prestarmos atenccedilatildeo agrave diferenccedila que existe entre a histoacuteria da

ciecircncia no acircmbito das ciecircncias do espiacuterito e das ciecircncias humanasrdquo210

O que Gadamer demonstra eacute que assumir positivamente o ciacuterculo

hermenecircutico eacute apropriar-se duma possibilidade de compreensatildeo

desenvolvendo e actualizando as possibilidades que se encontram inscritas na

tradiccedilatildeo A tradiccedilatildeo significa um horizonte normativo em que podemos fundar a

seguranccedila de um projecto de investigaccedilatildeo relativo agrave acccedilatildeo humana e agraves suas

criaccedilotildees

A preacute-compreensatildeo que guia o trabalho do inteacuterprete eacute em primeiro lugar a

sua proacutepria expectativa de sentido relativamente ao assunto de que trata o

texto expectativa transcendente em relaccedilatildeo a este e a partir da qual pode ser

compreendido o seu sentido imanente Esta constataccedilatildeo de que entre o

inteacuterprete e o texto se visa ldquoa mesma coisardquo remete para a tradiccedilatildeo em que

ambos se inscrevem Quem quer compreender tem uma ligaccedilatildeo ao assunto

que se exprime no texto devido agrave tradiccedilatildeo e articula-se consciente ou

209

bdquoSchon an dieser Beschreibung der praktischen Bildung durch Hegel erkennt man die

Grundbestimmung des geschichtlichen Geistes sich mit sich selbst zu versoumlhnen sich selbst zu erkennen

im Andersseinldquo (Ibidem 19) 210

ldquoDaβ in den Geisteswissenschaften trotz aller Methodik ihres Verfahrens ein Einschlag von Tradition

wirksam ist der ihr eigentliches Wesen ist und ihre Auszeichnung ausmacht wird sofort deutlich wenn

wir die Geschichte der Forschung ins Auge fassen und auf den Unterschied achten der zwischen der

Wissenschaftsgeschichte auf dem Gebiete der Geisteswissenschaften und dem der Naturwissenschaften

bestehtldquo (Ibidem 287-288)

149

inconscientemente a essa tradiccedilatildeo e aos muacuteltiplos actos de fala que constituem

a sua transmissatildeo

Esta vinculaccedilatildeo deve ser entendida em termos natildeo psicoloacutegicos mas

hermenecircuticos como uma vinculaccedilatildeo ao dito ou seja agrave linguagem em que a

tradiccedilatildeo se nos dirige agrave saga (Die Sage) que ela nos conta211 Este facto

aparentemente ldquoevidenterdquo de que a tradiccedilatildeo se dirige a noacutes atraveacutes do dito e

que esse dito seja sempre em cada caso o de uma liacutengua determinada tem

para o assunto que investigamos uma importacircncia relevante

De facto se esta vinculaccedilatildeo agrave tradiccedilatildeo segundo Gadamer implica sempre

uma tensatildeo entre a familiaridade e a estranheza entre a objectividade distante

do saber histoacuterico e a pertenccedila esse jogo entre familiaridade e estranheza eacute

fortemente condicionado pela liacutengua em que eacute contada a ldquosagardquo da tradiccedilatildeo

uma tradiccedilatildeo que nos fala em latim fala-nos a noacutes falantes das liacutenguas latinas

a partir do lugar da origem das nossas proacuteprias liacutenguas com as palavras que

forjaram o nosso mundo impondo-se-nos com uma autoridade que natildeo poderaacute

em nenhum caso ser ignorada

Eacute segundo Gadamer entre a familiaridade e a estranheza que a hermenecircutica

tem o seu lugar ldquoEla joga entre estranheza e familiaridade que a tradiccedilatildeo tem

para noacutes entre a dita objectividade histoacuterica distante e a pertenccedila a uma

tradiccedilatildeo212 Neste entre eacute o verdadeiro lugar da hermenecircuticardquo213

5 A produtividade da distacircncia temporal

A hermenecircutica deve limitar-se a esclarecer as condiccedilotildees nas quais ocorre a

interpretaccedilatildeo condiccedilotildees estas que satildeo dadas ao inteacuterprete e natildeo objecto de

escolha ou de decisatildeo os preconceitos e os pressupostos do inteacuterprete natildeo

211

Gadamer renovou a compreensatildeo da linguagem como Ereignis a partir a ideia cristatilde de Encarnaccedilatildeo

tematizada em De Trinitate por S Agostinho O dogma da Encarnaccedilatildeo forneceu-lhe o modelo teoacuterico

para a compreensatildeo da pertenccedila recigraveproca e entre ldquosentido inteligigravevelrdquo e ldquopalavrardquo sensigravevel assim como

para a compreensatildeo do caraacutecter de um ldquoacontecer ldquo que tem o ldquotornar-se carnal ldquo do sentido Para

Gadamer o acontecer do sentido soacute eacute possiacutevel graccedilas agrave materialidade das suas muacuteltiplas apariccedilotildees e natildeo

pode ser delas isolado no entanto entre o ser material da palavra e o sentido que a anima haacute uma tensatildeo e

natildeo uma perfeita identidade (Cf Jean Grondin ob cit 213-216) 212

Joatildeo Paisana critica Gadamer por abolir a distinccedilatildeo entre tradiccedilatildeo e consciecircncia histoacuterica por efeito do

seu tradicionalismo Com efeito para o filoacutesofo portuguecircs a tradiccedilatildeo desempenha um papel determinante

na situaccedilatildeo hermenecircutica mas a consciecircncia histoacuterica soacute pode ser ganha na tarefa hermenecircutica de

exegese dos textos que implica sempre o questionamento ou seja o momento negativo e destrutivo da

proacutepria tradiccedilatildeo Idem Histoacuteria da Filosofia e Tradiccedilatildeo Filosoacutefica 24-25 213

bdquoSie spielt zwischen Fremdheit und Vertrautheit die die Uumlberlieferung fuumlr uns hat zwischen der

historisch gemeinten abstaumlndigen Gegenstaumlndlichkeit und der Zugehoumlrigkeit zu einer Tradition In diesen

Zwischen ist der wahre Ort der Hermeneutikldquo (WuM GW I 300)

150

estatildeo agrave sua livre disposiccedilatildeo nem ele estaacute agrave partida em condiccedilotildees de fazer uma

distinccedilatildeo entre preconceitos positivos e fecundos e negativos e obstrutivos

Natildeo podendo o acto de interpretar ser livre de preconceitos deve apenas

interessar a uma teoria hermenecircutica mostrar o modo como na consciecircncia do

inteacuterprete acontece esta separaccedilatildeo entre os pressupostos negativos que

determinam uma incompreensatildeo e os positivos que podem desempenhar um

papel fecundo esta separaccedilatildeo (Scheidung) pode acontecer precisamente

porque esse ldquoentreldquo no qual se move o trabalho do tradutor ou do inteacuterprete eacute a

distacircncia temporal entre o seu presente histoacuterico e o do texto a interpretar

Entre o inteacuterprete e o texto haacute sempre uma diferenccedila insuperaacutevel e ela resulta

da distacircncia histoacuterica que os separa Ora essa distacircncia histoacuterica natildeo eacute para

Gadamer um obstaacuteculo mas uma distacircncia produtiva que permite o

desdobramento e a amplificaccedilatildeo do sentido de um texto ldquoO sentido de um

texto ultrapassa o autor natildeo ocasionalmente mas sempre Eacute por isso que a

compreensatildeo eacute uma atitude natildeo unicamente reprodutiva mas produtivardquo214

Esta produtividade hermenecircutica da distacircncia temporal natildeo consiste no entanto

em que futuro inteacuterprete ldquocompreenda melhorrdquo isto eacute de modo mais claro ou

mais consciente face a um acto de criaccedilatildeo inconsciente mas sim no facto que

compreender necessariamente ldquode modo diferenterdquo o que faz com que a

autecircntica interpretaccedilatildeo nunca possa simplesmente mover-se no jaacute interpretado

mas pelo contraacuterio surja apenas quando jaacute natildeo podemos interpretar do

mesmo modo ou quando haacute uma expectativa defraudada de sentido

A interpretaccedilatildeo resulta das decisotildees (Entscheidungen) hermenecircuticas do

inteacuterprete que longe de serem casuais ou arbitraacuterias consistem antes de mais

nessa separaccedilatildeo (Scheidung) entre os preconceitos positivos e negativos que

se encontram inscritos na sua situaccedilatildeo hermenecircutica e que limitam e

restringem as suas possibilidades Eacute a proacutepria distacircncia temporal que permite

que se processe essa separaccedilatildeo ao confrontar o inteacuterprete com um texto do

passado ela confronta-o com a origem histoacuterica dos seus proacuteprios

pressupostos e permite a separaccedilatildeo entre preconceitos puramente subjectivos

ligados agraves modas ou agraves ideologias dominantes no seu presente histoacuterico e

214

ldquoNicht nur gelegentlich sondern immer uumlbertrifft der Sinn eines Textes seinen Autor Daher ist

Verstehen kein nur reproduktives sondern stets auch ein produktives Verhaltenrdquo (Ibidem 301)

151

aqueles que falam com a autoridade da voz da tradiccedilatildeo e que assim podem

ser escutados na sua alteridade

Esta suspensatildeo do proacuteprio preconceito natildeo eacute possiacutevel para Gadamer sem

esse encontro com a tradiccedilatildeo ldquoPois enquanto um preconceito nos determina

noacutes natildeo sabemos que eacute um juiacutezo e natildeo eacute como tal que o tomamos em

consideraccedilatildeo Como pode ele ser posto em evidecircncia como tal Enquanto um

preconceito estiver em jogo constante e imperceptivelmente noacutes natildeo

conseguimos por assim dizer trazecirc-lo diante de noacutes Para isso eacute preciso

provocaacute-lo de algum modo Ora o que o pode provocar eacute o encontro com a

tradiccedilatildeordquo215

Embora natildeo seja claro o modo como o encontro com a tradiccedilatildeo permite

superar os preconceitos negativos podemos tentar compreender este processo

agrave luz do que acima referimos o encontro com a tradiccedilatildeo humanista permitiria

na perspectiva de Gadamer eliminar os preconceitos metodoloacutegicos que

pesavam sobre as ciecircncias humanas

A suspensatildeo dos proacuteprios preconceitos natildeo significa no entanto o seu

abandono significa que satildeo postos em questatildeo e confrontados com um outro

ou com o que o texto nos diz Soacute entatildeo os preconceitos podem estar

verdadeiramente em jogo e assim permitir que a pretensatildeo do outro agrave

verdade216 seja reconhecida como tal e entre tambeacutem em jogo

Esta confrontaccedilatildeo com os textos que constituem a nossa tradiccedilatildeo tem assim

para Gadamer um efeito propedecircutico o duplo efeito de filtrar os preconceitos

prejudiciais e negativos de natureza puramente subjectiva e de evidenciar o

peso da tradiccedilatildeo Do mesmo modo a distacircncia temporal esse ldquoentrerdquo onde se

desenrola o trabalho hermenecircutico do tradutor e do inteacuterprete que se ocupa do

passado longiacutenquo longe de ser um inconveniente ou um abismo insuperaacutevel

215

ldquoDenn solange ein Vorurteil uns bestimmt wissen und bedenken wir es nicht als Urteil Wie soll es als

solches zur Abhebung kommen Ein Vorurteil gleichsam vor sich zu bringen kann nicht gelingen

solange dies Vorurteil bestaumlndig und unbemerkt im Spiele ist sondern nur dann wenn es so zusagen

gereizt wird Was so zu reizen vermag ist eben die Begegnung mit der Uumlberlieferungrdquo (Ibidem 304) 216

Jean Grondin sublinha que Gadamer vecirc a verdade como adequaccedilatildeo mas interpreta essa a adequaccedilatildeo

como o movimentar-se do inteacuterprete na justa direcccedilatildeo do texto devendo essa direcccedilatildeo ser aferida de

acordo com o proacuteprio texto a interpretar O tipo de adequaccedilatildeo que aqui estaacute em causa eacute uma concordacircncia

idecircntica agrave que se verifica entre uma interpretaccedilatildeo musical e a pauta a interpretar ldquoDie recht verstandene

adaequatio vergiβt also nie diese konstitutive Bewegung des Verstehenden auf die Sache zu Die hier

einschlaumlgigen Ideen von Uumlbereinstimmung Einklang Konkordanz Konsonanz verdeutlichen es mit

allem Nachdruck die Wahrheit ist eine Sache von Uumlbereinstimmung im nahezu musikalischen Sinne

insofern der Verstehende mit der Interpretandum zusammenstimmtbdquo (Idem Einfuumlhrung zu Gadamer

136137)

152

eacute uma distacircncia produtiva capaz de produzir novas conexotildees de sentido

fazendo nascer novas fontes de compreensatildeo que guiam uma compreensatildeo

verdadeira

A tradiccedilatildeo apresenta-se deste modo como um processo essencialmente plural

e aberto capaz de desvendar novas conexotildees de sentido e natildeo como

anquilosamento e obstaacuteculo no acesso agrave origem como Heidegger sublinhara

ldquoA distacircncia temporal tem evidentemente ainda um outro sentido que natildeo o da

extinccedilatildeo do apropriado interesse no objecto Ela deixa o verdadeiro sentido

que um assunto conteacutem pocircr-se pela primeira vez a descoberto O transbordar

do verdadeiro sentido que estaacute contido num texto ou numa criaccedilatildeo artiacutestica

nunca chega a uma conclusatildeo mas eacute na verdade um processo interminaacutevel

Natildeo apenas satildeo excluiacutedas novas fontes de erro de modo a que o verdadeiro

sentido seja filtrado dos muacuteltiplos encobrimentos mas surgem constantemente

novas fontes de compreensatildeo que abrem insupostas relaccedilotildees de sentidoldquo217

6 A fusatildeo de horizontes e a alteridade

Para Gadamer esta produtividade da distacircncia temporal soacute se verifica no

entanto na condiccedilatildeo de que a consciecircncia hermenecircutica esteja consciente da

sua proacutepria historicidade - esta consciecircncia histoacuterica eacute aquilo a que ele chama

consciecircncia da histoacuteria efectual218

A histoacuteria efectual consiste no facto de que quando procuramos compreender

um fenoacutemeno histoacuterico noacutes estamos sempre sujeitos aos efeitos desse

217

bdquoDer zeitliche Abstand hat offenbar noch einen anderen Sinn als den der Abtoumltung des eigenen

Interesses am Gegenstand Er laumlβt den wahren Sinn der in einer Sache liegt erst voll herauskommen Die

Ausschoumlpfung des wahren Sinnes aber der in einem Text oder in einer kuumlnstlerischen Schoumlpfung gelegen

ist kommt nicht irgendwo zum Abschluβ sondern ist in Wahrheit ein unendlicher Prozeβ Es werden

nicht nur immer neue Fehlerquellen ausgeschaltet so daβ der wahre Sinn aus allerlei Truumlbungen

herausgefiltert wird sondern es entspringen stets neue Quellen des Verstaumlndnisses die ungeahnte

Sinnbezuumlge offenbarenldquo WuM GW I 303 218

A expressatildeo bdquoWirkungsgeschichteldquo existia desde o seacuteculo XIX onde comeccedilou a ser usada por aquelas

disciplinas que se interessavam pela investigaccedilatildeo histoacuterica dos efeitos da recepccedilatildeo de uma obra ou de um

acontecimento histoacuterico A investigaccedilatildeo visava a separaccedilatildeo entre a obra e a histoacuteria dos seus efeitos para

poder investigaacute-los de modo ldquoobjectivordquo pressupondo que a consciecircncia histoacuterica poderia emancipar-se

dos efeitos dessa histoacuteria efectual O conceito de Gadamer de ldquoWirkungsgeschichterdquo foi construigravedo contra

este pressuposto duma consciecircncia histoacuterica ldquoobjectivardquo e livre de pressupostos implicando pelo

contraacuterio uma consciecircncia histoacuterica que se sabe sob os efeitos daquilo que interpreta ldquoDas Wort

ldquoWirkungrdquo unterstreicht hier daβ diese Geschichte auch da am Werke ist wo sie nicht vermutet oder

wahrgenommen wird Es ist in diesem Zusammenhang ein schoumlnes Wort weil es im Deutschen sowohl

den Wirkungsprozeβ (also die wirkende Geschichte) als auch sein Produkt (die Geschichte aber auch

unser Bewuβtsein) bezeichnet Die Vorurteile des einzelnen die bdquoweit mehr als seine Urteile die

geschichtliche Wirklichkeit seines Seinsldquo (WuM 281) ausmachen sind das Werk der

Wirkungsgeschichteldquo (Jean Grondin Einfuumlhrung zu Gadamer 145)

153

fenoacutemeno que queremos entender ldquoQuando noacutes procuramos compreender um

fenoacutemeno histoacuterico a partir da distacircncia histoacuterica determinante no conjunto para

a nossa situaccedilatildeo hermenecircutica noacutes estamos jaacute sob os efeitos da histoacuteria

efectualrdquo219

Esta histoacuteria efectual determina antecipadamente o que pode apresentar-se

como problema e ser constituiacutedo como objecto de investigaccedilatildeo e a sua acccedilatildeo

natildeo depende de modo algum do grau de consciecircncia que temos dela impondo-

se mesmo que o investigador tenha a ilusatildeo da autonomia da sua razatildeo e da

objectividade da sua investigaccedilatildeo220

A consciecircncia proacutepria da histoacuteria efectual eacute por isso mesmo imprescindiacutevel e

identifica-se com a consciecircncia da ldquosituaccedilatildeo hermenecircuticardquo em que se encontra

imerso o inteacuterprete a situaccedilatildeo hermenecircutica eacute determinada pelos preconceitos

que levamos connosco e constitui o horizonte do presente histoacuterico Ela eacute o ldquoaiacuterdquo

em que se situa o inteacuterprete e que delimita uma perspectiva ou um ponto de

vista isto eacute um horizonte ldquoO que define o conceito de situaccedilatildeo eacute precisamente

o facto de que ela representa um lugar onde se estaacute e que limita as

possibilidades de visatildeo Eacute por isso que o conceito de horizonte estaacute

essencialmente ligado ao de situaccedilatildeo O horizonte eacute o campo de visatildeo que

compreende e inclui tudo o que se pode ver de um ponto precisordquo221

A situaccedilatildeo hermenecircutica delimita um horizonte que por um lado abre uma

possibilidade de visatildeo por outro lado tem um efeito restritivo limitando esse

campo de visatildeo assim o horizonte determina antecipadamente os problemas

219

bdquoWenn wir aus der fuumlr unsere hermeneutische Situation im ganzen bestimmenden historischen Distanz

eine historische Erscheinung zu verstehen suchen unterliegen wir immer bereits den Wirkungen der

Wirkungsgeschichteldquo (WuM GW I 305) 220

Cf Richard T Gray em ldquoUumlbersetzung als Wirkungsgeschichterdquo O autor defende a existecircncia de vaacuterias

Wirkungsgeschichte actuando em simultacircneo sob a forma de diferentes tradiccedilotildees hermenecircuticas

propondo distintas interpretaccedilotildees para um mesmo texto e reflecte sobre os problemas que tal facto coloca

agrave tarefa do tradutor designadamente na fixaccedilatildeo de um simples glossaacuterio bdquoDie Erfahrung fuumlhrte uns zu

der Einsicht daβ der wirkungsgeschichtliche Zusammenhang in dem Uumlbersetzer arbeiten deshalb

wesentlich komplexer ist als der in dem Herausgeber primaumlrer Texte arbeiten weil beim Uumlbersetzen eine

vielschichtige Uumlbersetzungsgeschichte mitgedacht werden muβ Die Uumlbersetzungspraxis befindet sich

also im Schnittpunkt mehrerer Wirkungsgeschichten sie ist nicht nur von der Rezeptionstradition des

Originaltextes bedingt sondern auch von bestimmten Uumlbersetzungstraditionen die ihrerseits wiederum

verschiedene Wirkungsgeschichten konkretisieren und bestimmenrdquo (Idem art cit in Goumlttinger Beitraumlge

zur Internationalen Uumlbersetzungsforschung Berlin Erich Schmidt Verlag 1993 686) 221

bdquoWir bestimmen den Begriff der Situation eben dadurch daβ sie einen Standort darstellt der die

Moumlglichkeiten des Sehens beschraumlnkt Zum Begriff der Situation gehoumlrt daher wesenhaft der Begriff des

Horizontes Horizont ist der Gesichtskreis der all das umfaβt und umschlieβt was von einem Punkt aus

sichtbar istldquo WuM GW I 307

154

e o objecto de investigaccedilatildeo e por isso mesmo encobre e dissimula uma parte

da realidade

Eacute a partir desta tomada de posse do proacuteprio horizonte hermenecircutico que

podemos compreender adequadamente um texto da tradiccedilatildeo na sua verdade

isto eacute enquanto ele eacute mais do que algo ldquohistoacutericordquo mas pelo contraacuterio eacute

portador de um sentido ou de uma verdade capaz de impor-se a si mesma

Heidegger afirma repetidamente que o inteacuterprete deve admitir a alteridade do

texto procurando compreendecirc-lo a partir do seu proacuteprio horizonte histoacuterico-

linguiacutestico e colocando-se no lugar do outro

Na realidade a reconstruccedilatildeo do horizonte histoacuterico natildeo eacute nunca o objectivo

uacuteltimo do trabalho hermenecircutico mas um momento do processo da

compreensatildeo222

Toda a interpretaccedilatildeo se desenrola entre dois horizontes Se o inteacuterprete estaacute

mergulhado numa situaccedilatildeo hermenecircutica determinada pelos preconceitos que

ela transporta consigo impondo um horizonte que circunscreve o que podemos

ver esse horizonte eacute contudo moacutevel e aberto alargando-se no confronto com o

passado De facto soacute tomamos posse do proacuteprio horizonte no confronto com o

passado e com a tradiccedilatildeo agrave qual pertencemos ldquoNa verdade o horizonte ao

qual pertencemos estaacute em constante formaccedilatildeo na medida em que temos que

pocircr agrave prova constantemente todos os nossos preconceitos A um tal pocircr agrave

prova pertence natildeo em uacuteltimo lugar o encontro com o passado e o

compreender da tradiccedilatildeo da qual viemos O horizonte do presente natildeo se

constroacutei sem o passadordquo223

222

Cf Richard T Gray sublinha que a hermenecircutica de Gadamer mostra que eacute impossiacutevel toda a traduccedilatildeo

ldquoobjectivardquo de um texto pois reconhece a existecircncia de um abismo entre o contexto histoacuterico e cultural a

que pertence um texto do passado e o presente histoacuterico do seu inteacuterprete e que em vez da tentativa de

transpor esse abismo ele apela para uma apropriaccedilatildeo e actualizaccedilatildeo do sentido texto ldquoDamit setzt

Gadamer seine ldquophilosophischerdquo Hermeneutik die sich als allgemeine Theorie des

geisteswissenschaftlichen Verstehens begreift von einer auf ldquoobjektiverdquo Wiedergabe zielenden

Einfuumlhlungshermeneutik ab Dieser Unterschied laumlβt sich vielleicht am einfachsten so erklaumlren Der

Einfuumlhlungshermeneutiker ist bemuumlht den in von seinem Originaltext trennenden kulturellen und

geschichtlichen Abgrund auf die Weise zu uumlberbruumlcken daβ er die Bedingungen aus denen der Text

entstanden ist zu rekonstruieren und sich quasi in den Geist des Autors zuruumlckzuversetzen versucht der

philosophische Hermeneutiker erkannt diesen Abgrund unuumlberbruumlckbar bzw vergangene

kulturhistorische Umstaumlnde als unwiederbringbar an und versucht den Originaltext sozusagen ein neuen

Geist einzuhauchen indem er ihn bewuβt auf seine eigene aktuelle geschichtlich-kulturelle Situation

beziehtrdquo (Ob cit 687) 223

bdquoIn Wahrheit ist der Horizont der Gegenwart in steter Bildung begriffen sofern wir alle unsere

Vorurteile staumlndig erproben muumlssen Zu solcher Erprobung gehoumlrt nicht zuletzt die Begegnung mit der

Vergangenheit und das Verstehen der Uumlberlieferung aus der wir kommenldquo WuM GW I 311

155

Do mesmo modo tambeacutem natildeo haacute um horizonte histoacuterico em si a que pertenccedila

o texto a interpretar na sua alteridade e de que possamos apoderar-nos Trata-

se antes de nos transportarmos para esse horizonte natildeo para coincidir com a

alteridade do texto mas para conscientes dessa alteridade nos elevarmos a

uma generalidade mais alta

Assim o trabalho hermenecircutico cumpre-se como uma fusatildeo de horizontes

(Horizontsverschmeltzung) ―Haacute tatildeo pouco um horizonte presente para si como

haacute um horizonte histoacuterico que o homem teria que ganhar O Compreender eacute

muito mais o acontecer de uma fusatildeo de tais horizontes supostamente

existentes para si mesmosrdquo224

Essa fusatildeo de horizontes processa-se constantemente de forma espontacircnea e

natildeo controlada fazendo-nos cair na tradiccedilatildeo e deixando que ela nos imponha

ideias e teorias que obscurecem e distorcem aquilo que se trata de interpretar

por influecircncia dos preconceitos negativos e subjectivos

A realizaccedilatildeo controlada deste processo eacute para Gadamer o problema central

de toda a hermenecircutica e eacute ela que permite uma apropriada interpretaccedilatildeo A

realizaccedilatildeo dessa tarefa hermenecircutica implica a confrontaccedilatildeo de horizontes por

um lado como processo de distinccedilatildeo (Abhebung) que os destaca um do outro

e os confronta na sua alteridade por outro lado como a sua fusatildeo e a

superaccedilatildeo dessa alteridade (Aufhebung) Trata-se de um processo dialeacutectico

cujo resultado uacuteltimo eacute uma crescente mobilidade e alargamento do nosso

horizonte de compreensatildeo

A interpretaccedilatildeo eacute uma tarefa onde a subjectividade do inteacuterprete natildeo tem

relevacircncia pois o seu papel eacute servir de instrumento e mediador do proacuteprio

processo de transmissatildeo da tradiccedilatildeo225 ldquoO proacuteprio compreender deve ser

pensado menos como uma acccedilatildeo da subjectividade que como inserccedilatildeo no

224

bdquoEs gibt so wenig einen Gegenwartshorizont fuumlr sich wie es historische Horizonte gibt die man zu

gewinnen haumltte Vielmehr ist Verstehen immer der Vorgang der Verschmelzung solcher vermeintlich fuumlr

sich seiender Horizonteldquo (Ibidem 311) 225

Cf Jean Grondin em LacuteUniversaliteacute de lbdquohermeacuteneutique Paris 1993 169 ldquoOccupant une position

intermeacutediaire entre l‟auto-effacement de l‟interpregravete postuleacute par le positivisme et le perspectivisme

geacuteneacuteraliseacute de Nietzsche Gadamer se fait dans la ligneacutee de Heidegger le deacutefenseur d‟une compreacutehension

critique et historiquement reacutefleacutechiebdquo

156

processo de transmissatildeo onde se mediatizam constantemente o passado e o

presenterdquo226

Este processo de mediaccedilatildeo entre o passado e o presente que ocorre quando

interpretamos textos do passado tem para Gadamer uma natureza dialeacutectica

inteiramente extensiacutevel ao processo que ocorre na interpretaccedilatildeo e na traduccedilatildeo

inter-linguiacutestica Assim as diversas aberturas de mundo inerentes agraves vaacuterias

liacutenguas histoacutericas impotildeem uma tradiccedilatildeo hermenecircutica e um horizonte de

compreensatildeo restritivo que no entanto se caracteriza pela sua mobilidade e

abertura ldquoTal como o indiviacuteduo natildeo eacute nunca um indiviacuteduo isolado porque se

entende sempre jaacute com os outros do mesmo modo o horizonte fechado que

circunscreve uma civilizaccedilatildeo eacute uma abstracccedilatildeo A mobilidade histoacuterica do

Dasein humano eacute precisamente constituiacuteda pelo facto que ele natildeo estaacute

absolutamente preso a um lugar que ele nunca tem um horizonte

verdadeiramente fechado O horizonte eacute pelo contraacuterio qualquer coisa na qual

noacutes penetramos progressivamente e que se desloca connosco Para aquele

que se move os horizontes mudamrdquo 227

Esta acentuaccedilatildeo da mobilidade histoacuterica do Dasein tem em Gadamer a sua

perfeita correspondecircncia na acentuaccedilatildeo da natureza dialoacutegica da linguagem

em que ele vecirc o caminho para a superaccedilatildeo da metafiacutesica Assim Gadamer

afirma ldquoA minha ideia eacute que nenhuma linguagem conceptual nem sequer o

que Heidegger chama ldquolinguagem da metafiacutesicardquo significa uma fascinaccedilatildeo

irremediaacutevel para o pensamento supondo que o pensador se confie agrave

linguagem isto eacute entre em diaacutelogo com outros pensadores e com pessoas que

pensam de modo diferente Por isso aceitando totalmente a criacutetica ao conceito

de subjectividade feita por Heidegger conceito no qual mostrou a

sobrevivecircncia da ideia de substacircncia busquei detectar no diaacutelogo o fenoacutemeno

originaacuterio da linguagemrdquo228

226

ldquoDas Verstehen ist selber nicht so sehr als eine Handlung der Subjektivitaumlt zu denken sondern als

Einruumlcken in ein Uumlberlieferungsgeschehen in dem sich Vergangenheit und Gegenwart bestaumlndig

vermittelnrdquo (WuM GW I 295) 227

ldquoWie der Einzelne nie ein Einzelner ist weil er sich immer schon mit anderen versteht so ist auch der

geschlossene Horizont der eine Kultur einschlieβen soll eine Abstraktion Es macht die geschichtliche

Bewegtheit des menschlichen Daseins aus das es keine schlechthinnige Standortgebundenheit besitzt und

daher auch niemals einen wahrhaft geschlossenen Horizont Der Horizont ist vielmehr etwas in das wir

hineinwandern und das mit uns mitwandert Dem Beweglichen verschieben sich die Horizonteldquo (Ibidem

309) 228

ldquoMeine eigene Einsicht scheint nur daβ keine Begriffssprache auch nicht die von Heidegger

sogenannte ldquoSprache der Metaphysikrdquo einen unbrechbaren Bann fuumlr das Denken bedeutet wen sich nur

157

Assim Gadamer leva a cabo uma reinterpretaccedilatildeo hermenecircutica da dialeacutectica

que valoriza o confronto com a alteridade como meio de revelar e desfazer a

clausura e o estreitamento do proacuteprio horizonte Aceitando a alteridade do texto

e arriscando-se ao diaacutelogo com ele podemos construir uma mediaccedilatildeo para a

opacidade do outro recriando ao mesmo tempo um sentido comum229

7 O conceito hermenecircutico de texto

Eacute agrave luz do paradigma hermenecircutico aqui esboccedilado que Gadamer pensa a

natureza do texto O conceito hermenecircutico de texto implica que ele tem que

ser pensado em conexatildeo com o de interpretaccedilatildeo o que caracteriza o conceito

de texto eacute que ele somente aparece agrave compreensatildeo no contexto da

interpretaccedilatildeo Sempre que uma presunccedilatildeo primaacuteria de sentido eacute defraudada

pela resistecircncia de algo surge a referecircncia hermenecircutica ao ldquotextordquo e este

aparece como uma realidade face agrave necessidade da tarefa de interpretaccedilatildeo

O texto eacute visto por Gadamer como um conceito hermenecircutico e natildeo a partir da

perspectiva da gramaacutetica e da linguiacutestica que visam aclarar os mecanismos de

funcionamento da linguagem deixando de lado o sentido Considerado do

ponto de vista hermenecircutico o texto eacute uma fase do acontecer da compreensatildeo

que encerra o isolamento inerente agrave fixaccedilatildeo pela escrita mas que porque tem

em vista a comunicaccedilatildeo do sentido tem que ser legiacutevel e visa necessariamente

o outro

Assim a compreensatildeo dum texto depende de condiccedilotildees de comunicaccedilatildeo que

ultrapassam o que nele estaacute dito implicando em cada caso uma peculiar

situaccedilatildeo de consenso O conceito de texto implica para Gadamer a referecircncia

a um consenso problemaacutetico natildeo haacute propriamente texto quando ele notifica

der Denkende der Sprache anvertraut und das heiβt wen er in den Dialog mit anderen Denkenden und

mit anders Denkenden sich einlaumlβt In voller Anerkennung der durch Heidegger geleisteten Kritik am

Subjektsbegriff dem er seinen Hintergrund von Substanz nachwies suchte ich daher im Dialog das

urspruumlngliche Phaumlnomen der Sprache zu fassenrdquo WuM GW II 332 229

Os diaacutelogos platoacutenicos influenciaram fortemente a compreensatildeo da linguagem em Gadamer agrave loacutegica

do enunciado ele contrapotildee a concepccedilatildeo da linguagem como exerciacutecio vivo do diaacutelogo Eacute tambeacutem o

modelo platoacutenico do diaacutelogo da pergunta e da resposta que orienta a sua concepccedilatildeo da interpretaccedilatildeo de

um texto quem interpreta um texto compreende-o como resposta a uma questatildeo colocada pelo inteacuterprete

Eacute este mesmo modelo dialoacutegico que estaacute presente quando Gadamer sublinha que uma adequada

interpretaccedilatildeo exige deixar falar o texto acentuando-o e sublinhando o seu sentido procurando restitui-lo

linguisticamente Na perspectiva de Gadamer esta sobre-exposiccedilatildeo do texto eacute um momento fundamental

da compreensatildeo e pode ser encontrado na boa traduccedilatildeo (Cf Jean Grondin Einfuumlhrung zu Gadamer 198-

199)

158

algo que soacute me eacute destinado a mim ou quando o destinataacuterio eacute um grupo restrito

de especialistas pressupondo condiccedilotildees preacutevias de assentimento

Recorrendo ao conceito heideggeriano de notificaccedilatildeo Gadamer mostra a

temporalidade do texto onde o notificado originariamente eacute projectado para o

futuro de uma apropriaccedilatildeo Essa notificaccedilatildeo deve ser fixada pela escrita de tal

modo que a sua posterior apropriaccedilatildeo seja uniacutevoca ldquoO texto fixado deve fixar a

notificaccedilatildeo de tal modo que o seu sentido seja claramente compreensiacutevel Aqui

agrave tarefa do escritor corresponde a tarefa do que lecirc daquele a quem o texto se

dirige do inteacuterprete de alcanccedilar uma tal compreensatildeo de deixar falar outra vez

o texto fixadordquo230

A tarefa do leitor ou do inteacuterprete eacute alcanccedilar a compreensatildeo do texto fazendo-

o falar novamente restituindo agrave informaccedilatildeo a autenticidade original

compreender um texto eacute apropriar-se dele ldquoconforme o sentidordquo e natildeo ldquoao peacute da

letrardquo O texto natildeo eacute algo de acabado mas uma fase de realizaccedilatildeo dum

processo ininterrupto de compreensatildeo e o seu sentido pode amplificar-se e

desdobrar-se em cada uma das suas interpretaccedilotildees

Contudo se a interpretaccedilatildeo se coloca como tarefa quando o conteuacutedo do texto

eacute controverso esta nada tem de arbitraacuterio ou de subjectivo pois o texto tem um

caraacutecter prescritivo O que aqui se trata de clarificar eacute a natureza peculiar

desse caraacutecter prescritivo que haacute que entender a partir do modelo dialoacutegico

acima referido compreender um texto eacute compreender o que ele diz para um

diaacutelogo cujo interlocutor se encontra numa situaccedilatildeo determinada

Assim a distacircncia temporal entre ao momento da fixaccedilatildeo da escrita e o da sua

interpretaccedilatildeo natildeo pode ser suprimida sendo pelo contraacuterio constitutivas do

conceito hermenecircutico de ldquotextordquo A compreensatildeo dum texto implica sempre

de algum modo a referecircncia do texto a compreender agrave situaccedilatildeo presente do

inteacuterprete e por isso mesmo toda a fixaccedilatildeo escrita do texto prevecirc um espaccedilo

de ldquojogo da interpretaccedilatildeordquo231

230

ldquoDer fixierte Text soll die urspruumlngliche Kundgabe so fixieren daβ hier Sinn eindeutig verstaumlndlich

wird Hier entspricht der Aufgabe des Schreibenden die Aufgabe des Lesenden Adressaten Interpreten

zu solchem Verstaumlndnis zu gelangen dh den fixierten Text wieder sprechen zu lassenldquo WuM GW II

345 231

A caracterizaccedilatildeo de Gadamer da interpretaccedilatildeo como ldquojogordquo (Spiel) relaciona-se estreitamente com a

importacircncia que a interpretaccedilatildeo da obra de arte assumiu no seu pensamento designadamente como

paradigma do ldquotextordquo Holger Schmid analisa este aspecto mostrando a influecircncia que a experiecircncia

hermenecircutica da arte desempenhou na reformulaccedilatildeo levada a cabo por aquele pensador da consideraccedilatildeo

hermenecircutica do ldquotextordquo como ldquoobrardquo linguigravestica (Sprach-Werk) ldquoe da noccedilatildeo de aplicaccedilatildeo (Application)

159

A traduccedilatildeo de textos literaacuterios mostra para Gadamer de forma particularmente

niacutetida o aparecimento do texto ele estaacute aiacute na sua presenccedila face a uma

infinidade de possibilidades de ser traduzido para a liacutengua de chegada A

traduccedilatildeo implica uma tensatildeo entre o sentido do texto original e as exigecircncias

do contexto histoacuterico-linguiacutestico a que pertence o tradutor que aparece assim

como um inteacuterprete ldquono sentido literal da palavra interpres mediador da falardquo

O tradutor-inteacuterprete deve superar o elemento estranho que impede a

inteligibilidade de um texto ele faz-se mediador quando um texto natildeo pode ser

escutado e compreendido pelos seus potenciais leitores Essa mediaccedilatildeo

realizada pelo tradutor e pelo inteacuterprete eacute caracterizada por Gadamer nestes

termos que remetem para um processo de negociaccedilatildeo entre o texto e contexto

histoacuterico-linguiacutestico dos seus leitores ldquoEssa linguagem mediadora possui ela

proacutepria uma estrutura dialogal O inteacuterprete que faz a intermediaccedilatildeo entre as

duas partes do diaacutelogo nada pode fazer a natildeo ser considerar a sua distacircncia

frente ao emaranhado de ambas as posiccedilotildees como uma espeacutecie de

superioridade Por isso a sua ajuda no entendimento natildeo se limita ao plano da

linguagem mas passa sempre por uma intermediaccedilatildeo real que busca equilibrar

o direito e os limites de ambas as partes O ldquointermediaacuterio do discursordquo

converte-se em ldquonegociadorrdquo Creio que se daacute uma relaccedilatildeo muito parecida

entre o texto e o leitor Apoacutes superar o elemento estranho no texto ajudando

assim o leitor a compreendecirc-lo a retirada do inteacuterprete natildeo significa o

desaparecimento em sentido negativo Significa antes a sua entrada na

comunicaccedilatildeo resolvendo assim a tensatildeo entre o horizonte do texto e o

horizonte do leitor Eacute o que chamo de fusatildeo de horizontesrdquo232

como ldquoreproduccedilatildeordquo (Reproduction) no sentido da reproduccedilatildeo de um peccedila musical ldquoFuumlr das Verhaumlltnis

Sprache-Kunst ist der wichtigste Befund Houmlren bleibt metaphorisch verstanden und ist eigentlich Lesen

Gerade in spaumlteren uumlber lyrische Sprache sinnenden Uumlberlegungen hellip wird der Nexus von Sinngehalt

und innerem Ohr mit der unvordenklichen Schriftlichkeit besiegelt dhes wird erneut oder erst recht der

Literatur ndash als ein Schriftliches das aller moumlglichen Verlautlichung voraus ist- das sprachliche Kunstwerk

ldquoal solchesrdquo ganz ausdruumlcklich gleichgesetzt

Gespraumlch-Charakter Gebilde des inneren Ohrs Schriftlichkeit sind die Momente des hermeneutischen

Werk-Konzepts als Literaturrdquo (Holger Schmid Kunst des Houmlrens Orte und Grenzen philosophischer

Spracherfahrung Koumlln 1999 38) 232

ldquoDieses Dazwischenreden hat selber Dialogstruktur Der Dolmetscher der zwischen zwei Parteien

vermittelt wird gar nichts anders koumlnnen als seine Distanz gegenuumlber den beiden Positionen wie eine Art

Uumlberlegenheit uumlber die beiderseitige Befangenheit zu erfahren Seine Mithilfe bei der Verstaumlndigung

beschraumlnkt sich daher nicht auf die rein linguistische Ebene sondern geht immer in eine sachliche

Vermittlung uumlber die Recht und Grenzen der beiden Parteien miteinander zum Ausgleich zu bringen

versucht Der ldquoDazwischenredenderdquo wird zum ldquoUnterhaumlndlerrdquo Nun scheint mir ein analoges Verhaumlltnis

auch zwischen dem Text und dem Leser zu bestehen Wenn der Interpret das Befremdliche in einem Text

uumlberwindet und damit dem Leser zum Verstaumlndnis des Textes verhilft bedeutet sein eigenes Zuruumlcktreten

160

O papel de mediaccedilatildeo do tradutorinteacuterprete dos textos literaacuterios natildeo eacute pois o

de fazer uma restituiccedilatildeo do sentido segundo um ideal de fidelidade ao texto

mas o de algueacutem que eacute capaz de negociar o sentido e de reconhecendo o

direito de ambas as partes promover essa dialeacutectica da fusatildeo de horizontes

em que consiste o processo de interpretaccedilatildeo

Se eacute verdade que o tradutor e o inteacuterprete tecircm como funccedilatildeo a de ldquoservirrdquo o

texto tornando-o inteligiacutevel eacute tambeacutem certo que tal soacute pode fazer-se mediante

esse processo de compromisso e negociaccedilatildeo que eacute a sua proacutepria contribuiccedilatildeo

resultando na produccedilatildeo de uma inevitaacutevel alteraccedilatildeo de sentido incorporada

nesse duplo do texto originaacuterio que eacute a traduccedilatildeo

A categoria da ldquoaplicaccedilatildeordquo recuperada por Gadamer a partir da hermenecircutica

juriacutedica e biacuteblica permite tambeacutem esclarecer melhor esta mediaccedilatildeo do

inteacuterprete Na interpretaccedilatildeo dos textos juriacutedicos ou dos textos biacuteblicos podemos

perceber a tensatildeo entre ldquoa identidade da coisa comumrdquo e a situaccedilatildeo mutaacutevel na

qual ela eacute em cada caso compreendida Toda a interpretaccedilatildeo tem neste caso

de fazer o compromisso e a mediaccedilatildeo entre as exigecircncias do sentido original

do texto e as exigecircncias por vezes normativas do presente histoacuterico ldquoNoacutes

adquirimos a convicccedilatildeo de que a aplicaccedilatildeo natildeo eacute uma parte acessoacuteria e

ocasional do fenoacutemeno na compreensatildeo mas que ela contribui a determinaacute-la

desde o iniacutecio e no seu conjunto O inteacuterprete natildeo visa absolutamente mais

nada senatildeo a compreensatildeo desse universal o texto isto eacute compreender o que

diz a tradiccedilatildeo o que constitui o sentido e a significaccedilatildeo do texto Mas para o

compreender ele natildeo pode fazer abstracccedilatildeo de si mesmo e da situaccedilatildeo

hermenecircutica na qual se encontra Eacute necessaacuterio referir o texto a esta situaccedilatildeo

se ele na verdade quer aceder agrave compreensatildeordquo233

nicht Verschwinden im negativen Sinn sondern sein Eingehen in die Kommunikation so daβ die

Spannung zwischen dem Horizont des Textes und dem Horizont des Lesers aufgeloumlst wird ndash was ich

Horizontverschmelzung genannt habeldquo WuM GW II 351 233

bdquoAuch wir hatten uns davon uumlberzeugt daβ die Anwendung nicht ein nachtraumlglicher und

gelegentlicher Teil des Verstehensphaumlnomens ist sondern es von vornherein und im ganzen mitbestimmt

Auch hier war Anwendung nicht die Beziehung von etwas Allgemeinem das vorgegeben waumlre auf die

besondere Situation Der Interpret der es mit einer Uumlberlieferung zu tun hat sucht sich die Selbe zu

applizieren Aber auch hier heiβt das nicht daβ der uumlberlieferte Text fuumlr ihn als ein Allgemeines gegeben

und verstanden und dadurch erst fuumlr besondere Anwendungen in Gebrauch genommen wuumlrde Der

Interpret will vielmehr gar nichts anderes als dies Allgemeine -den Text ndash verstehen dh verstehen was

die Uumlberlieferung sagt was Sinn und Bedeutung des Textes ausmacht Um das zu verstehen darf er aber

nicht von sich selbst und der konkreten hermeneutischen Situation in der er sich befindet absehen

wollen Er muβ den Text auf diese Situation beziehen wenn er uumlberhaupt verstehen willldquo WuM GW I

329

161

Esta categoria eacute central na hermenecircutica de Gadamer para a qual todo o

compreender conteacutem simultaneamente uma referecircncia ao universal do texto e

uma aplicaccedilatildeo agrave situaccedilatildeo concreta daquele que compreende no interior da

qual ele fala O sentido de um texto do passado soacute pode ser compreendido no

presente e na liacutengua na qual falamos e exige por isso mesmo uma traduccedilatildeo

que eacute tanto mais conseguida quanto mais consciente de tal processo estiver

Gadamer pensa pois o processo da traduccedilatildeo como um acontecer no qual um

sentido estranho que eacute vinculativo para o inteacuterprete se deixa traduzir na sua

liacutengua e para a sua eacutepoca Um texto soacute pode entrar no diaacutelogo se nos falar

mas fala-nos apenas na liacutengua que em cada caso falamos

8 A negatividade da experiecircncia hermenecircutica

O conceito de texto refere-se como acima vimos a um momento de natildeo

compreensatildeo de natildeo sentido essencial para definir a ldquoexperiecircncia

hermenecircuticardquo uma experiecircncia hermenecircutica autecircntica eacute aquela que nega as

antecipaccedilotildees de sentido ou as ilusotildees do inteacuterprete e por isso eacute capaz de

gerar uma ldquoaberturardquo ldquoOra esta ldquoa experiecircncia verdadeirardquo eacute sempre uma

experiecircncia negativa Fazer a experiecircncia dum objecto significa natildeo ter ateacute ao

presente visto as coisas correctamente e saber melhor daqui em diante do

que se trata A negatividade da experiecircncia tem pois um sentido

particularmente criadorrdquo234

Esta negatividade da experiecircncia hermenecircutica eacute para Gadamer a experiecircncia

da finitude eacute a experiecircncia do ser-para-a-morte ou do caraacutecter histoacuterico do

homem e natildeo a experiecircncia capaz de fazer aceder ao universal ou agrave ciecircncia

como em Hegel Esta negatividade inscrita na experiecircncia hermenecircutica eacute o

que estaacute no fundamento da sua abertura rdquoComo o sabia jaacute Bacon natildeo eacute senatildeo

graccedilas a instacircncias negativas que se chega a uma experiecircncia nova Toda a

experiecircncia digna desse nome defrauda uma expectativa Assim o ser histoacuterico

234

ldquoDiese die eigentliche Erfahrung ist immer eine negative Wenn wir in einem Gegenstand eine

Erfahrung machen so heiβt daβ wir die Dinge bisher nicht richtig gesehen haben und nun besser wissen

wie es damit steht Die Negativitaumlt der Erfahrung hat also einen eigentuumlmlich produktiven Sinnrdquo WuM

GW I 359

162

do homem conteacutem como elemento essencial uma negaccedilatildeo fundamental Que

se revela na relaccedilatildeo essencial entre experiecircncia e discernimento235

A negatividade da experiecircncia hermenecircutica eacute a consciecircncia vivida de uma

contradiccedilatildeo nela emergem simultaneamente a consciecircncia de si mesmo e da

sua proacutepria situaccedilatildeo hermenecircutica dos seus limites constitutivos assim como

da forccedila e dos efeitos da tradiccedilatildeo Eacute a tradiccedilatildeo que acede agrave experiecircncia

enquanto linguagem isto eacute enquanto conteuacutedo de sentido fixado no texto

capaz de entrar em contradiccedilatildeo com as expectativas de sentido do inteacuterprete

A primeira condiccedilatildeo de uma experiecircncia negativa isto eacute de um autecircntico

diaacutelogo com a tradiccedilatildeo eacute que lhe seja reconhecido o estatuto de interlocutor

vaacutelido escutando as suas razotildees dando todo o peso agrave palavra com que se nos

dirige A abertura agrave tradiccedilatildeo significa natildeo apenas o reconhecimento da sua

alteridade mas o reconhecimento de que ela tem qualquer coisa a dizer-nos a

partilha duma experiecircncia Eacute este ouvir a voz da tradiccedilatildeo reconhecendo a

alteridade dos textos dela emanados e a sua pretensatildeo agrave verdade que

constitui o aspecto singular da hermenecircutica de Gadamer e a sua contribuiccedilatildeo

fundamental para esclarecer ldquoo negoacutecio da interpretaccedilatildeordquo236

A estrutura loacutegica da experiecircncia hermenecircutica eacute a da negatividade da questatildeo

que na sua forma mais radical eacute o saber do natildeo-saber da docta ignorantia

socraacutetica que Gadamer sublinha como constitutiva de uma verdadeira

interpretaccedilatildeo Segundo o modelo dos primeiros diaacutelogos platoacutenicos a autecircntica

questatildeo distingue-se das questotildees meramente pedagoacutegicas ou das questotildees

meramente retoacutericas pela sua abertura perguntar significa que aquele que

pergunta deixa a questatildeo em suspenso mantendo equiliacutebrio entre as

alternativas A primazia da questatildeo sobre a reposta implica que o saber deve

estar sempre virado ao mesmo tempo para os opostos pensando o possiacutevel

enquanto possiacutevel

235

ldquoNur durch negative Instanzen gelangt man wie schon Bacon gewuβt hat zu neuer Erfahrung Jede

Erfahrung die diesen Namen Verdient durchkreuzt eine Erwartung So enthaumllt das geschichtliche Sein

des Menschen als eins Wesensmoment eine grundsaumltzliche Negation die in dem wesenhaften Bezug von

Erfahrung und Einsicht zutage trittrdquo WuM GW I 362 236

Cf Maria Luisa Portocarrero Ferreira da Silva em O Preconceito em Gadamer Sentido de uma

Reabilitaccedilatildeo Coimbra 1989 214 ldquoNatildeo eacute pois como pura estrutura coacutedigo ou intenccedilatildeo que o texto nos

atinge mas como sentido direccional Ele soacute se converte para noacutes em objecto de compreensatildeo lembra-

nos Gadamer quando questiona a nossa auto-compreensatildeo fazendo por sua vez nascer a nossa proacutepria

questatildeo quanto ao assunto tratadordquo

163

O acesso ao questionar isto eacute ao saber do natildeo saber eacute barrado pela opiniatildeo

que tem como caracteriacutestica a tendecircncia a expandir-se a ser a opiniatildeo de toda

a gente (doxa era explicita Gadamer a decisatildeo final agrave qual se esforccedilava por

chegar a Assembleia) A questatildeo soacute pode vir ao espiacuterito rompendo ldquoa

imensidatildeo sem relevordquo da opiniatildeo corrente pela forccedila da negatividade da

experiecircncia hermenecircutica eacute sob o impulso daquilo que natildeo se verga agrave opiniatildeo

preacute-concebida que fazemos a autecircntica experiecircncia da questatildeo

Para Gadamer nenhum meacutetodo pode ensinar a questionar e a distinguir o que

realmente eacute um problema e isso limita radicalmente o interesse pelo meacutetodo

que a filosofia e as ciecircncias poacutes-cartesianas adoptaram sem reservas Eacute a

experiecircncia hermenecircutica do texto que pela sua intriacutenseca negatividade pode

fazer emergir a questatildeo enquanto tal O facto de que um texto transmitido se

torne objecto de interpretaccedilatildeo implica jaacute o facto de que ele potildee uma questatildeo ao

inteacuterprete compreender um texto eacute compreender esta questatildeo ganhando um

horizonte de interrogaccedilatildeo a partir daquilo que estaacute para caacute do texto isto eacute a

partir da situaccedilatildeo hermenecircutica do inteacuterprete237

De acordo com esta indicaccedilatildeo de Gadamer ganham particular importacircncia

aqueles textos cuja interpretaccedilatildeo se revela particularmente poleacutemica e

controversa como eacute o caso dos textos de Heidegger em particular os textos do

ldquosegundo Heideggerrdquo cuja linguagem hermeacutetica teria o propoacutesito de radicalizar

esta negatividade da experiecircncia hermenecircutica fazendo assim com que os

seus leitores pudessem ter acesso agrave questatildeo do Ser acesso que segundo

este seria sistematicamente obstruiacutedo pela linguagem decaiacuteda da tradiccedilatildeo

metafiacutesica

No entanto ao opor uma questatildeo ao texto noacutes vamos necessariamente para laacute

do texto agrave interrogaccedilatildeo agrave qual ele se apresenta como resposta e que admite

necessariamente outras respostas Para compreender um texto num sentido

que eacute o seu eacute preciso ganhar um horizonte de interrogaccedilatildeo que como tal

comporta necessariamente outras respostas e remete para outros textos Esse

horizonte de interrogaccedilatildeo que estaacute para aleacutem do texto soacute pode ser ganho num

237

ldquoA fusatildeo de horizontes eacute assim uma fusatildeo de questotildees e direcccedilotildees o proacuteprio texto deve ser entendido

como uma resposta a um verdadeiro perguntar uma fase do acontecer dialoacutegico da compreensatildeoldquo

(Ibidem 215)

164

movimento de retorno agrave tradiccedilatildeo238 em que ele se inscreve exigecircncia a que

naturalmente estaacute tambeacutem sujeita a interpretaccedilatildeo dos textos heideggerianos

A tradiccedilatildeo tem assim um caraacutecter prescritivo pois ela determina o sentido da

abertura hermenecircutica deixando contudo espaccedilo para o jogo das

interpretaccedilotildees isto eacute para a liberdade e para a criatividade do inteacuterprete (que

natildeo podem ser confundidas com arbiacutetrio e subjectividade)

A metaacutefora do jogo com a qual Gadamer pensa a liberdade do tradutor e o

inteacuterprete eacute ela mesma sugestiva dum sistema de regras que contudo natildeo

anula a criatividade e a imprevisibilidade das decisotildees de cada jogador e que eacute

mesmo a condiccedilatildeo da sua possibilidade239 Este retorno agrave tradiccedilatildeo em que se

inscreve o texto afigura-se para Gadamer essencial pois ela apresenta-se

como a experiecircncia necessaacuteria dum limite e simultaneamente como

possibilitante desse jogo em que cada um pode tomar a sua proacutepria decisatildeo

visando a liberdade de uma apropriaccedilatildeo

O rigor na interpretaccedilatildeo e a fidelidade ao sentido do texto natildeo eacute pois aceder agrave

sua verdade intemporal - empresa impossiacutevel e condenada ao fracasso devido

agrave distacircncia temporal - mas aceder ao horizonte de interrogaccedilatildeo no interior do

qual se pode determinar a orientaccedilatildeo semacircntica do texto e jogar o jogo das

interpretaccedilotildees

238

Gadamer natildeo subscreve a perspectiva extremamente criacutetica de Heidegger relativamente agrave histoacuteria da

metafiacutesica na qual ele natildeo vecirc o desenrolar do acontecer fundamental do esquecimento do ser que

destinou o rumo da civilizaccedilatildeo ocidental mas antes uma comunidade de pensadores que convergem e

divergem atraveacutes do diaacutelogo Cf Rui Sampaio da SilvardquoGadamer e a Heranccedila Heideggerianardquo in Revista

Portuguesa de Filosofia LVI Braga 2000530 239

A conciliaccedilatildeo da tradiccedilatildeo como prescritiva de um horizonte hermenecircutico com a categoria ldquojogordquo que

remete para a liberdade criadora do inteacuterprete eacute explicada por Marciej Potepa a partir da experiecircncia

praacutetica da traduccedilatildeo como uma totalidade sistemaacutetica de regras e convenccedilotildees cuja aplicaccedilatildeo eacute deixada agrave

criatividade do tradutor na forma sugestiva que a seguir se refere ldquoDie Spiel-Dimension die kein

subjektives Verhalten des Interpreten bezeichnet ist eine umfassende Groumlszlige die nicht nur fuumlr die Position

des literarischen Uumlbersetzens gilt sondern das sprachliche und textuelle Verhalten des Lesers und

Uumlbersetzers uumlberhaupt transparent macht Diese Reflexion wurde schon von Hans Georg Gadamer in

Wahrheit und Methode fruchtbar gemacht in Frankreich wird sie u a von Roland Barthes Jacques

Derrida und Pierre Bourdieu wieder aufgegriffen unter den Sprach ndash und Uumlbersetzungswissenschaftlern

hat in den letzten Jahren vor allem Mario Wandruszka auf die Relevanz der Spiegel-Metapher

hingewiesen

Die Fundamentale am Spielbegriff scheint mir zu sein daβ an ihm deutlich zum Vorschein kommt wer

spielt geht in einer Totalitaumlt auf die die eigene Subjektivitaumlt uumlbersteigt wer aus dem Spiel heraustritt

wird zum ldquo Spielverderberrdquo Man kann Spiel nicht fraglos mit Freiheit identifizieren wie Wills das tut

weil der Spielender immer schon an Regeln gebunden ist die er sich nicht ausgewaumlhlt hat die er aber

akzeptieren muβ um uumlberhaupt spielen zu koumlnnen Da gibt es (wie in der Sprache) ein Regelsystem mit

Regelanweisungen jedoch ohne kausallogische Begruumlndungsmoumlglichkeiten der Regelanwendung So

beruht das Spiel wie das Schreiben Sprechen Verstehen und Uumlbersetzen auf Konventionen die aber das

Kreative weder zerstoumlren noch ausklammern sondern man kann geradezu sagen daβ sich die Kreativitaumlt

erst im Umgang mit dem Regelsystem ins Spiel bringtrdquo (Marciej Potepa Hermeneutische Dimension des

Textuumlbersetzens Goumlttinger Beitraumlge zur Internationalen Uumlbersetzungsforschug Berlin 1993 210)

165

Trazendo o sentido do texto para o presente vivo do diaacutelogo introduzimo-lo no

movimento dialeacutectico da questatildeo e da resposta que eacute a essecircncia do trabalho

hermenecircutico movimento em que pode dar-se a fusatildeo de horizontes capaz de

produzir uma amplificaccedilatildeo e uma recriaccedilatildeo do sentido do texto A autecircntica

interpretaccedilatildeo eacute assim Ereignis o acontecimento propiacutecio e histoacuterico em sentido

eminente240

A interpretaccedilatildeo tendo ela mesma o caraacutecter de um acontecer eacute uma tarefa

interminaacutevel e inconclusa e aberta agrave maneira do diaacutelogo socraacutetico e natildeo da

dialeacutectica hegeliana que pretende na marcha da razatildeo aceder a uma verdade

total no interior da qual todos os momentos da histoacuteria ganham um sentido

definitivo

O texto natildeo eacute um objecto que podemos decompor em enunciados que

poderiam por sua vez ser transpostos para uma outra linguagem

reconstituindo integralmente o sentido segundo paradigma de objectividade

vigente nas ciecircncias Trata-se antes de tomaacute-lo como interlocutor de um

diaacutelogo que se desenrola no tempo e se desenrola segundo certas

possibilidade hermenecircuticas circunscritas pela linguagem e pela eacutepoca em que

esse diaacutelogo acontece241

Assim nas diversas interpretaccedilotildees de um texto por um lado assegura-se uma

continuidade de sentido em cada caso mas por ouro lado essa continuidade

240

Pensar a traduccedilatildeo sob a categoria do Ereignis ou do acontecimento propiacutecio implica pensaacute-la como

um acontecer singular e irrepetiacutevel agrave semelhanccedila da arte Note-se que essa singularidade eacute sublinhada

tambeacutem por Von Herrmann como caracteriacutestica da traduccedilatildeo autecircntica em Uumlbersetzung als

philosophisches Problem ldquoDie mannigfaltigen dichterischen und denkerischen Erfahrungen mit dem

Wesen der Sprache haben ihr Gemeinsames darin daβ in ihnen etwas zur Sprache des Kunstwerkes und

des Gedankenwerkes gebracht wird ldquowas bislang noch nie gesprochen wurderdquo und das so wie es jeweils

dichterisch und denkerisch gesprochen worden ist nie wieder in der gleichen Weise gesprochen wird Zur

dichterischen und zur denkerischen Erfharung mit der Wesen der Sprache gehoumlrt somit die jeweilige

Einmaligkeit und Unwiederholbarkeit Das gilt fuumlr jedes sprachliche Kunstwerk der eresten wie der

zweiten Erfahrungsmoumlglichkeit das gilt ebenso fuumlr jedes sprachliche gedankenwerk Im Unterschied dazu

ist das alltaumlglich Gesprochene vielmalig wiederholbar [hellip] Eine Uumlbersetzung ist - so koumlnnen wir jetzt

sagen ndash dann eine wesentliche Uumlbersetzung wenn sie eine werkgewordene dichterische oder denkerische

Erfahrung mit dem Wesen der Sprache uumlbersetzt Insofern aber jede werkgewordene dischterische und

denkerische Erfahrung mit der Sprache einzigartig und unwiederholbar ist ist sie im recht verstandenen

Sinne auch nicht uumlbersetzbar Dagegen ist die vielmalige Wiederholbarkeit des gewoumlhnlich Gesprochenen

der Grund dafuumlr daβ es restlos uumlbersetzbar istrdquo von Herrmann art cit in Im Spiegel der Welt Sprache

Uumlbersetzung Auseinandersetzung 117118) 241

Maria Luiacutesa Portocarrero aponta duas diferenccedilas fundamentais entre a abordagem hermenecircutica e a

abordagem metoacutedico-cientiacutefica do real a primeira consiste no facto de o mundo hermeneuticamente

experienciado ter um caraacutecter co-referencial ou linguiacutestico e o texto natildeo dever ser entendido como

expressatildeo duma subjectividade mas como tendo-se destacado da contingecircncia da sua origem e libertado

para novas relaccedilotildees O segundo consiste no facto de a co-referecircncia implicar para a hermenecircutica natildeo o

enunciado do logos apofacircntico mas uma loacutegica dialoacutegica da questatildeo do limite e da alteridade Cf Idem

O Preconceito em Gadamer Sentido de uma Reabilitaccedilatildeo 215-216

166

de sentido natildeo suprime a alteridade e a diferenccedila que satildeo pelo contraacuterio as

condiccedilotildees imprescindiacuteveis de um verdadeiro diaacutelogo A transmissatildeo dos textos

que constituem a tradiccedilatildeo filosoacutefica a que neste caso nos reportamos eacute

assim para Gadamer como para Heidegger um processo de sucessivas

interpretaccedilotildees e variaccedilotildees que tecircm uma semelhanccedila assinalaacutevel com a

interpretaccedilatildeo duma composiccedilatildeo musical

A fixaccedilatildeo escrita do sentido do texto salvaguarda como acontece na escrita

musical uma margem para esse infinito jogo de interpretaccedilotildees em que

consistem as suas muacuteltiplas traduccedilotildees inter-linguiacutesticas ou intra-linguiacutesticas e

o diaacutelogo do presente do inteacuterprete com a tradiccedilatildeo prescreve a direcccedilatildeo dessas

diversas recriaccedilotildees vivas

Esta natureza dialoacutegica da experiecircncia hermenecircutica que Gadamer reclama

como heranccedila dos diaacutelogos de Platatildeo e da disputatio da escolaacutestica medieval

vem acrescentar-se ao que Heidegger jaacute afirmara sobre o caraacutecter finito de

toda a interpretaccedilatildeo irremediavelmente submetida agraves possibilidades de um

horizonte hitoacuterico-linguiacutestico e permite esclarecer o problema deixado em

aberto por Heidegger da compreensatildeo do outro

De facto a incomensurabilidade das aberturas de mundo transportadas pelas

vaacuterias liacutenguas histoacutericas arrasta em Heidegger a ideia de um certo

fechamento em si mesmo entendendo este si mesmo como ldquoa determinaccedilatildeordquo

que singulariza um povo histoacuterico

Gadamer sublinha poreacutem que longe de estarmos condenados agrave clausura no

nosso proacuteprio horizonte o diaacutelogo com textos oriundos de vaacuterias tradiccedilotildees

representa uma possibilidade de aprofundar a negatividade da experiecircncia

hermenecircutica e de assim ir acontecendo o alargamento do nosso proacuteprio

horizonte de compreensatildeo

Tal como acontece nos diaacutelogos socraacuteticos o encontro com a alteridade do

texto implica esse momento de suspensatildeo e de encontro com outros possiacuteveis

que satildeo mantidos enquanto tal gerando uma abertura na qual podemos

persistir numa questatildeo

Eacute certo que o primado hermenecircutico da questatildeo implica tambeacutem uma

delimitaccedilatildeo dessa abertura feita pela explicitaccedilatildeo dos seus pressupostos a

partir dos quais eacute feita a sua formulaccedilatildeo Uma questatildeo bem colocada eacute para

167

Gadamer uma questatildeo que conteacutem um sentido isto eacute uma orientaccedilatildeo na

direcccedilatildeo da qual a resposta deve ser procurada colocando os membros das

alternativas de tal modo que entre eles pode haver uma decisatildeo pela

preponderacircncia das razotildees dadas por uma das alternativas

Compreender um texto eacute pois necessariamente iluminar o texto a partir de

uma questatildeo que tem ela mesma um sentido e uma orientaccedilatildeo determinados

duplamente pela situaccedilatildeo hermenecircutica do inteacuterprete e pelo seu encontro com

a tradiccedilatildeo242 Interpretar um texto eacute ser orientado por um ponto de vista ou de

uma perspectiva abertos por esse horizonte de interrogaccedilatildeo que eacute sempre

historicamente situado

Em cada nova interpretaccedilatildeo trata-se sempre de ver o texto a partir de uma

iluminaccedilatildeo parcial que deixa necessariamente na sombra outras possibilidades

hermenecircuticas Contudo se cada uma das interpretaccedilotildees estiver consciente da

sua proacutepria finitude e unilateralidade o processo hermenecircutico ele mesmo

nunca se encontra definitivamente cerrado

Natildeo haacute por isso nenhuma traduccedilatildeo nem interpretaccedilatildeo em si que pudessem

servir de modelo ou estabelecer um criteacuterio de verdade mas todas satildeo apenas

etapas de um diaacutelogo inacabado O importante contudo natildeo eacute estar de posse

de um criteacuterio absoluto para estabelecer a ldquoboardquo interpretaccedilatildeo mas sim saber

distinguir entre a simples opiniatildeo e a verdade ou seja entre aquilo que eacute

autenticamente ldquoseurdquo e aquilo que deriva da generalidade abstracta ou do

preconceito dominante243

242

Franccedilois Renaud problematiza o conceito gadameriano de tradiccedilatildeo entendida como uma corrente

uacutenica marcada pela continuidade segundo o autor a consideraccedilatildeo da tradiccedilatildeo numa perspectiva dialoacutegica

e criacutetica exigiria antes que fossem sublinhadas a pluralidade e a descontinuidade ldquoGadamer‟s

hermenecircuticas rests on the assumption that there is only one stream of tradition This assumption implies

however an all too unitary and harmonious concept of tradition whereby the phenomenon of plurality

selection and conflicts are insufficiently taken into account This approach is exemplified in the privileged

metaphors of hearing (Houmlren) and belongingness (Gehoumlren) both paradigmatic of traditionrdquo Idem

Classical als Otherness Revista Portuguesa de Filosofia LVI Braga 2000 243

Cf Marciej Potepa rdquoAnstatt von unfehlbaren Uumlbersetzungen zu sprechen sollte eine beinahe

unbegrenzte Offenheit des Uumlbersetzens postuliert werden Das heiβt aber nicht daβ er die Freiheit haumltte

mit der Sprache des Textes zu machen was er will Ziel des Uumlbersetzens ist vielmehr die

Nichtbeliebigkeit der Entscheidung um richtige und angemessene Formulierung zu finden Die

Bedingung fuumlr diese Nichtbeliebigkeit ist die Beteiligung Das Textuumlbersetzen nimmt seinen Ausgang in

der Lebenswelt des Textautors und wird mit der Lebens ndash und Sprachwelt des Uumlbersetzers durch die

Uumlbersetzung verbundenldquo (Ob cit 212)

168

169

Parte II ndash A recepccedilatildeo de Heidegger em Liacutengua portuguesa traduccedilatildeo e questionamento da tradiccedilatildeo

170

171

Capiacutetulo I - Traduccedilatildeo e tradiccedilatildeo no pensamento portuguecircs e

brasileiro

172

173

1 A orientaccedilatildeo humanista da escolaacutestica peninsular

Como atraacutes referimos Heidegger considerava que a traduccedilatildeo latina da filosofia

grega totalmente extriacutenseca ao contexto da liacutengua e da cultura heleacutenicas tinha

deturpado os textos atraveacutes de uma leitura ldquohumanistardquo destes tendo assim

contribuiacutedo para o esquecimento do problema do ser

Para avaliar esta afirmaccedilatildeo eacute necessaacuterio lembrar que foi uma caracteriacutestica

fundamental do Humanismo a grande importacircncia dada agraves liacutenguas no plano

social da comunicaccedilatildeo viva em recuperaccedilatildeo duma tradiccedilatildeo retoacuterica grega e

latina (os Sofistas Ciacutecero e Quintiliano) e que o Renascimento se caracterizou

pelo cultivo da uma racionalidade praacutetica e aberta ligada agrave vida social e agraves

virtudes eacuteticas Eacute um toacutepico fundamental do Humanismo a estreita alianccedila entre

razatildeo e linguagem defendida por Ciacutecero244 e os humanistas nos seacuteculos XV e

XVI consideram a linguagem e as liacutenguas de importacircncia vital natildeo soacute para a

vida praacutetica mas tambeacutem para a filosofia a teologia e as ciecircncias245

Esta preponderacircncia da linguagem inspirou natildeo apenas o incentivo do estudo

das liacutenguas claacutessicas mas tambeacutem o culto da retoacuterica e ainda o trabalho de

traduccedilatildeo dos autores gregos numa primeira fase para o latim erudito e numa

segunda fase tambeacutem para as liacutenguas vulgares246

244 ldquoPrincipio generi animantium omni est a natura tributum ut se vitam corpusque tueatur declinet ea

quae nocitura videantur omniaque quae sint ad vivendum necessaria anquirat et paret ut pastum ut

latibula ut alia generis eiusdem Commune item animantium omnium est coniunctionis appetitus

procreandi causa et cura quaedam eorum quae procreata sint Sed inter hominem et beluam hoc maxime

interest quod haec tantum quantum sensu movetur ad id solum quod adest quodque praesens est se

accommodat paulum admodum sentiens praeteritum aut futurum Homo autem quod rationis est

particeps per quam consequentia cernit causas rerum videt earumque praegressus et quasi antecessiones

non ignorat similitudines comparat rebusque praesentibus adiungit atque adnectit futuras facile totius

vitae cursum videt ad eamque degendam praeparat res necessarias Eademque natura vi rationis hominem

conciliat homini et ad orationis et ad vitae societatem ingenerat [hellip]rdquo (Cigravecero De Oficiis I 11-12) 245

Cf Leonel Ribeiro in Linguagem Retoacuterica e Filosofia no Renascimento Lisboa 2004 14-22 O autor

afirma que podemos encontrar em todos os humanistas um axioma cuja matriz se encontra em Ciacutecero

segundo o qual consumar a unidade entre sabedoria e eloquecircncia significava restaurar o sentido mais

antigo da sabedoria humana antes desta ter sido ocupada pelos filoacutesofos designadamente por Soacutecrates e

pela Academia

Esta consciecircncia da condiccedilatildeo linguiacutestica do homem espelhava-se claramente no plano curricular dos

studia humanitatis que conferia um lugar muito importante agraves disciplinas da linguagem designadamente

agrave Gramaacutetica e agrave Retoacuterica como o nuacutecleo do seu projecto pedagoacutegico-cultural 246

Segundo Leonel Ribeiro dos Santos nos pensadores dos seacuteculos XV e XVI encontra-se uma

vastiacutessima praacutetica da traduccedilatildeo filosoacutefica e uma diversificada reflexatildeo sobre essa praacutetica que oscila entre

dois extremos a afirmaccedilatildeo da impossibilidade de traduzir completamente que confere autoridade apenas

ao original e aos que a ele tecircm acesso e a afirmaccedilatildeo da igual dignidade de todas as liacutenguas e consequente

possibilidade de multiplicar o sentido da obra e as suas virtualidades pela traduccedilatildeo (Ob cit 170)

174

A traduccedilatildeo visava recuperar o sentido originaacuterio dos textos contra as distorccedilotildees

introduzidas por um desconhecimento das liacutenguas claacutessicas e por uso dum

latim baacuterbaro por deficiente domiacutenio da gramaacutetica e da retoacuterica Assim a

traduccedilatildeo encarada como restituiccedilatildeo do sentido verdadeiro dos textos era

considerada uma tarefa preliminar a qualquer investigaccedilatildeo filosoacutefica e condiccedilatildeo

de possibilidade do ensino da filosofia

Esta mesma tradiccedilatildeo humanista foi retomada e desenvolvida pela restauraccedilatildeo

escolaacutestica movimento filosoacutefico caracteriacutestico da Peniacutensula Ibeacuterica que teve o

seu iniacutecio em Espanha nos finais do seacutec XV e em Portugal no iniacutecio do seacutec

XVI tendo perdurado entre noacutes ateacute ao seacutec XVIII Esse movimento

desenvolveu-se sob o impulso da Contra-Reforma catoacutelica antes e depois do

Conciacutelio de Trento e significou um projecto pedagoacutegico inspirado no

humanismo mas tambeacutem num regresso a Aristoacuteteles que foi interpretado

fundamentalmente na linha de S Tomaacutes e de Duns Escoto

Os principais centros onde a Segunda Escolaacutestica teve implantaccedilatildeo foram as

Universidades espanholas de Salamanca e Alcalaacute e as portuguesas de

Coimbra e Eacutevora Dominicanos e Jesuiacutetas sustentavam o movimento

destacando-se entre os primeiros Francisco de Vitoacuteria e Domingo Bantildeez e

entre os segundos Luiacutes de Molina Francisco Suarez e Pedro da Fonseca

assim como os conimbricenses247

A criaccedilatildeo do Coleacutegio das Artes em Coimbra248 significou uma transformaccedilatildeo da

nossa cultura segundo os moldes do humanismo que se implantou tambeacutem na

Universidade de Eacutevora e noutras escolas dos jesuiacutetas designadamente nos

coleacutegios de Satildeo Paulo de Braga e de Santo Antatildeo em Lisboa

O quadro curricular incluiacutea o estudo da Gramaacutetica Retoacuterica e Poesia (latinas)

Grego Hebraico Matemaacutetica e Artes (estudos filosoacuteficos num ciclo de 3 anos e

meio cujo nuacutecleo central era a explicaccedilatildeo das obras de Aristoacuteteles) e

Teologia249 Embora a filosofia aristoteacutelica e a teologia tenham no referido

247

Cf Comunicaccedilatildeo de Luacutecio Craveiro da Silva nas Jornadas ldquo Luigraves de Molina Regressa a Eacutevorardquo Eacutevora

1987 85 248

D Joatildeo III criou o Coleacutegio das Artes cujo primeiro regimento data de 16 de Novembro de 1547

atribuindo-lhe os prepatoacuterios para as faculdades maiores cf Pinharanda Gomes em Os Conimbricenses

Lisboa 1992 22-37 249

O plano curricular dos coleacutegios da Companhia de Jesus sofreu vaacuterias modificaccedilotildees sendo a Ratio

atque Institutio Studiorum de 1599 considerada a definitiva Demorou treze anos a ser melhorada com

contribuiccedilotildees dos programas dos coleacutegios de diferentes nacionalidades e o contributo da experiecircncia

conimbricense teria sido grande (cf Pinharanda Gomes ob cit 43) A concepccedilatildeo humanista de cultura

175

quadro curricular um papel muito importante e de algum modo central eacute

importante atender ao grande peso que no curriculum tecircm as disciplinas

ligadas agrave linguagem assim como agrave finalidade praacutetica do curso (entendido no

sentido da preparaccedilatildeo eacutetica e no sentido abrangente da palavra tambeacutem

poliacutetico) o que fica patente com o peso dado agrave oratoacuteria fundada no estudo da

Retoacuterica e da Poeacutetica de Aristoacuteteles e da Oratoacuteria de Ciacutecero250

1 1 Os Conimbricences e a traduccedilatildeo de Aristoacuteteles

Em conformidade com a prioridade dada agrave traduccedilatildeo pelos humanistas logo

nos primeiros anos de fundaccedilatildeo do Coleacutegio das Artes de Coimbra a

restauraccedilatildeo do aristotelismo foi sentida como exigecircncia da traduccedilatildeo latina dos

textos fundamentais de Aristoacuteteles Assim se publicou uma selecta de textos

que constituem O Organon aristoteacutelico numa versatildeo latina intitulada Loacutegica

Aristotelis ab eruditissimis hominibus conversa da autoria de Nicolau de

Grouchy (professor bordalecircs que leccionou em Coimbra de 1548 a 1550)

visando tornar Aristoacuteteles acessiacutevel aos alunos atraveacutes duma versatildeo latina

inspirada no latim erudito de Ciacutecero mas sem romper inteiramente com a

terminologia consagrada na tradiccedilatildeo escolaacutestica

Esta traduccedilatildeo de Grouchy foi no entanto substituiacuteda a partir de 1556 pela de

Joatildeo Argiropulo considerada mais consentacircnea com a tradiccedilatildeo escolaacutestica251

A Ratio Studiorum acima referida promulgada em 1559 para toda a

Companhia de Jesus regulamentava o ensino da Filosofia252 impondo o

estaria presente nos princiacutepios pedagoacutegicos orientadores [assim referidos por Pinharanda Gomes ldquoA ratio

eacute um sistema metoacutedico assente em premissas pedagoacutegicas a primeira das quais eacute a alianccedila da virtude com

a ciecircncia ou as letras natildeo bastando que os estudantes se transformem em saacutebios sendo preciso educaacute-los

para pessoas de acccedilatildeo numa perspectiva da eacutetica e da vivecircncia evangeacutelicasrdquo (Pinharanda Gomes ob cit

44)] assim como no predomiacutenio das disciplinas ligadas agrave linguagem Na realidade se os humanistas

italianos dos seacuteculos XV e XVI foram os primeiros autores de um curriculum de estudos humanista

foram os Jesuiacutetas que o divulgaram e implementaram agrave escala europeia (e global) criando um sistema de

ensino supra-nacional e mesmo supra-continental desde o Brasil agrave China A ratio studiorum

institucionalizou pois um curriculum humanista de alcance europeu com irradiaccedilatildeo universal (sobre as

linhas gerais do meacutetodo de estudos preconizados pela ratio studiorum cf Coacutedigo Pedagoacutegico dos

Jesuitas Ratio Studiorum da Companhia de Jesus Lisboa 2009 43-46) 250

XVI Regulae Professoris Retoricae in Coacutedigo Pedagoacutegico dos Jesuitas Ratio Studiorum da

Companhia de Jesus 198 251

Cf Pinharanda Gomes em Os Conimbricenses 136 252

Cf XIX Coacutedigo Pedagoacutegico dos Jesuitas Ratio Studiorum da Companhia de Jesus dos Jesuiacutetas 132

Esta regra prescrevia como fins do ensino de trecircs anos da filosofia preparar os alunos para a teologia

impondo ainda a obrigaccedilatildeo dos professores natildeo se afastarem de Aristoacuteteles a natildeo ser nas mateacuterias em que

entrasse em contradiccedilatildeo com a doutrina do Conciacutelio de Latratildeo e ainda que seguissem ldquosempre que for

precisordquo S Tomaacutes de Aquino Sobre as mateacuterias a leccionar impunha-se no primeiro ano o ensino da

176

meacutetodo da disputatio253 que tatildeo criticado haveria de ser pelos iluministas

portugueses e que visava o desenvolvimento de competecircncias argumentativas

pela apresentaccedilatildeo de uma tese argumentaccedilatildeo e conclusatildeo seguidos de um

exerciacutecio de refutaccedilatildeo

Esta praacutetica da disputatio devia obrigatoriamente orientar-se para a defesa da

filosofia aristoteacutelica dos dogmas impostos pela Contra-Reforma e ainda para a

doutrina oficial da Companhia de Jesus o que pode deduzir-se das ldquoregras

para a escolha de opiniotildees dos filoacutesofosrdquo elaboradas em 1593 pela

Congregaccedilatildeo Geral dos Jesuiacutetas ldquoOs mestres da filosofia natildeo se apartem de

Aristoacuteteles em coisa alguma de importacircncia a natildeo ser que se ofereccedila algum

ponto contraacuterio agrave doutrina que defendem geralmente as universidades e muito

mais se repugna agrave feacute ortodoxa Natildeo introduzam qualquer questatildeo ou opiniatildeo

nova que natildeo esteja defendida por algum bom autor Entendem tambeacutem que

se houver alguns mestres inclinados a novidades ou de engenho demasiado

livre devem ser removidos do ofiacutecio de ensinarrdquo254

A compendarizaccedilatildeo das liccedilotildees do Coleacutegio das Artes de Coimbra foi feita ao

longo de 14 anos (de 1592 a 1606) sendo esse labor continuado devido a

vaacuterios professores do Coleacutegio entre os quais se salienta Manuel de Goacuteis

Basicamente constituiacutedas por um comentaacuterio agrave filosofia aristoteacutelica foram

publicadas sob a designaccedilatildeo de Commentarii Collegii Conimbricensis e

Societate Jesu255 tendo sido estes usados no ensino dos coleacutegios de jesuiacutetas

quer em Portugal quer no Brasil 256Os Commentarii257 gozaram ainda de

loacutegica com o comentaacuterio de Peri Hermeneias dos Primeiros Analiacuteticos assim como o comentaacuterio dos

prolegoacutemenos de A Fiacutesica sobre a classificaccedilatildeo das ciecircncias e a distinccedilatildeo entre ciecircncias praacuteticas e

teoreacuteticas no segundo ano seriam comentados os oito livros da Fiacutesica no terceiro ano seriam ensinados o

De anima e a Metafiacutesica 253

A mesma regra IX relativa ao ensino da Filosofia impunha no seu ponto 17 a realizaccedilatildeo de disputas

mensais obrigatoacuterias 254

Manuel Maria Carrilho Razatildeo e Transmissatildeo da Filosofia Lisboa Imprensa Nacional ndash Casa da

Moeda 1987 191 Estas regras satildeo jaacute antecipadas na Ratio Studiorum Efectivamente em I Regras para o

Provincial adverte-se que se algum professor de Filosofia ldquose revelar mais inclinado agraves novidades ou de

espigraverito mais livrerdquo seja desde logo afastado do ensinordquo (Ratio Studiorum ob cit 62) 255

Os Commentarii eram a compendiarizaccedilatildeo de liccedilotildees ditadas por vaacuterios professores do Coleacutegio das

Artes de Coimbra Sobre as disputas geradas pelo caraacutecter colegial da obra Cf Pinharanda Gomes em

Os Conimbricenses 76 77 256

Os Commentarii eram seguidos como liccedilatildeo magistral nos coleacutegios de Braga Eacutevora e Porto no coleacutegio

de Olinda da Baiacutea no Coleacutegio de Satildeo Paulo em Luanda no Colegio de Satildeo Paulo em Goa e nas escolas

de Jesuitas na China (Pinharanda Gomes Idem 171- 172) 257

Tomando como eixo a organizaccedilatildeo dos comentaacuterios nos volumes da Biblioteca Nacional Pinharanda

Gomes apresenta a organizaccedilatildeo dos Commentarii em V Tomos I- In Octo Libros Physicorum III De

Coelo In Libros Meteorum In Parva Naturalia II II Ethicorum ad Nicomachum III De Generatione et

Corruptione IV De Anima De Anima SeparataQuinque sensus V In Universam Dialecticam Segundo

o mesmo autor as lacunas relacionam-se com o facto de o curso natildeo comeccedilar pela loacutegica e ainda com a

177

grande prestiacutegio nos meios acadeacutemicos da Europa no seu tempo tendo sido

vaacuterias vezes editados na Alemanha em Franccedila e em Itaacutelia258

Relativamente agrave leitura humanista de Aristoacuteteles eacute de salientar o contributo de

Pedro da Fonseca (1528-1599) cujos comentaacuterios agrave Metafiacutesica de Aristoacuteteles

satildeo considerados notaacuteveis do ponto de vista filoloacutegico quer pelo conhecimento

do texto grego quer pela traduccedilatildeo latina e ainda por um conhecimento

vastiacutessimo dos comentadores de Aristoacuteteles Aiacute a Metafiacutesica de Aristoacuteteles eacute

interpretada na perspectiva da conciliaccedilatildeo com as verdades da feacute proposta por

de S Tomaacutes de Aquino sendo ainda discutidas teses dos principais filoacutesofos

da Antiguidade e da Idade Meacutedia

O que torna notaacutevel este trabalho de comentaacuterio eacute o facto de ele tomar em

consideraccedilatildeo os comentadores e a tradiccedilatildeo estabelecida sem no entanto

deixar de apoiar-se sempre directamente no texto grego de Aristoacuteteles

As Instituiccedilotildees Dialeacutecticas de Pedro da Fonseca publicadas numa primeira

ediccedilatildeo em 1590 e numa segunda em 1608 inserem-se na tradiccedilatildeo dos

dialeacutecticos humanistas que cultivaram o que ficou conhecido como ldquoloacutegica

toacutepicardquo

Os fundadores da orientaccedilatildeo humanista no campo da loacutegica foram Lourenccedilo

Valla e Rudolfo Agriacutecola que contrapuseram agrave interpretaccedilatildeo escolaacutestica

medieval a interpretaccedilatildeo que Ciacutecero fazia de Aristoacuteteles Este pensador latino

valorizava a dialeacutectica como arte de argumentar e como fundamento da

eloquentia ao serviccedilo dos problemas da vida praacutetica propondo ainda uma

interpretaccedilatildeo proacutepria da dialeacutectica segundo a qual ela seria o poder de concluir

dos contraacuterios uma arte que a partir duma tese tanto permite sustentar os

proacutes como os contra

Descrendo da capacidade dos sistemas filosoacuteficos atingirem a verdade Ciacutecero

sustenta que o homem apenas pode decidir-se por niacuteveis diferentes de

probabilidade ndash essa decisatildeo pode conseguir-se por uma ratio argumentandi

ausecircncia dos comentaacuterios da Metafiacutesica As dificuldades na compendiarizaccedilatildeo das liccedilotildees de Metafiacutesica

identificadas por Pinharanda Gomes satildeo sugestivas da existecircncia de diversos acircngulos interpretativos da

Metafiacutesica aristoteacutelica Os Commentariorum Metaphysicorum de Pedro da Fonseca cuja impressatildeo total

ficou pronta em 1612 foram lidos no Coleacutegio a tiacutetulo precaacuterio enquanto se aguardava pela realizaccedilatildeo dos

respectivos Commentarii que natildeo chegaram a ser redigidos O curso de Loacutegica acabou por ser no

entanto mais tarde redigido por Sebastiatildeo do Couto com o tiacutetulo de Universam Dialecticam Cf

Pinharanda Gomes Idem 79-88 258

O total de ediccedilotildees europeias foi de 112 Cf Pinharanda Gomes Idem 174

178

adequada Eacute essa ratio argumentandi que conveacutem ao poliacutetico e eacute ela que eacute

cultivada na oratoacuteria259

Os humanistas herdeiros deste cepticismo de Ciacutecero defenderam uma

concepccedilatildeo de filosofia segundo o qual o filoacutesofo natildeo eacute um saacutebio mas um

amante da sabedoria para o qual natildeo existem quaisquer certezas O meacutetodo

universal eacute a dialeacutectica entendida como arte de discorrer com probabilidade

acerca de qualquer assunto

Ao contraacuterio dos humanistas Pedro da Fonseca regressa agrave distinccedilatildeo

aristoteacutelica entre demonstraccedilatildeo cientiacutefica e silogismo dialeacutectico afirmando que

a primeira visa produzir ciecircncia e o segundo gerar opiniatildeo - no entanto admite

que na maior parte das ciecircncias se trata tambeacutem de discutir mateacuterias

controversas e de defender opiniotildees provaacuteveis pelo que estas tambeacutem natildeo

podem prescindir da dialeacutectica Recolhe ainda da tradiccedilatildeo humanista a

chamada ldquoloacutegica toacutepicardquo meacutetodo que recorre a uma repertoacuterio de ideias gerais

que podiam ser citadas a propoacutesito de todos os discursos (lugares-comuns ou

toacutepicos) e ser usadas em qualquer momento para argumentar

As obras de Pedro da Fonseca Commentariorum Metaphysicorum

Institutionum Dialecticarum e Isagoge Philosophica foram tambeacutem

repetidamente editadas em Itaacutelia Alemanha e Franccedila sendo nestes paiacuteses em

geral identificadas com a obra dos conimbricenses e aiacute lidas por filoacutesofos como

Leibniz Wolff Malebranche e Descartes 260

259

[hellip] multi erant praeterea clari in philosophia et nobiles a quibus omnibus una paene voce repelli

oratorem a gubernaculis civitatum excludi ab omni doctrina rerumque maiorum scientia ac tantum in

iudicia et contiunculas tamquam in aliquod pistrinum detrudi et compingi videbam sed ego neque illis

adsentiebar neque harum disputationum inventori et principi longe omnium in dicendo gravissimo et

eloquentissimo Platoni cuius tum Athenis cum Charmada diligentius legi Gorgiam quo in libro in hoc

maxime admirabar Platonem quod mihi [in] oratoribus inridendis ipse esse orator summus videbatur

Verbi enim controversia iam diu torquet Graeculos homines contentionis cupidiores quam veritatis Nam

si quis hunc statuit esse oratorem qui tantummodo in iure aut in iudiciis possit aut apud populum aut in

senatu copiose loqui tamen huic ipsi multa tribuat et concedat necesse est neque enim sine multa

pertractatione omnium rerum publicarum neque sine legum morum iuris scientia neque natura hominum

incognita ac moribus in his ipsis rebus satis callide versari et perite potest qui autem haec cognoverit

sine quibus ne illa quidem minima in causis quisquam recte tueri potest quid huic abesse poterit de

maximarum rerum scientia Sin oratoris nihil vis esse nisi composite ornate copiose loqui quaero id

ipsum qui possit adsequi sine ea scientia quam ei non conceditis Dicendi enim virtus nisi ei qui dicet

ea quae dicet percepta sunt exstare non potest (Ciacutecero De Oratore 1 46-48) 260

O Institutionum Dialecticarum de Pedro da Fonseca teve 36 ediccedilotildees ateacute ao primeiro quartel do seacuteculo

XVIII em Itaacutelia Alemanha e Franccedila os Commentariorum Metaphysicorum tiveram trinta e uma ediccedilotildees

em Itaacutelia Franccedila e Alemanha (Pinharanda Gomes ob cit 175)

179

Embora se tenha institucionalizado uma visatildeo essencialmente negativa destes

pensadores e da acccedilatildeo pedagoacutegica dos jesuiacutetas a quem se atribui o

afastamento de Portugal e do Brasil da Filosofia e da Ciecircncia moderna esta

visatildeo simplificadora tem vindo a ser posta em causa por um conhecimento

histoacuterico mais preciso

Assim sabemos hoje que a contribuiccedilatildeo da Companhia de Jesus para a

revoluccedilatildeo cientiacutefica do seacuteculo XVI foi notaacutevel e que os jesuiacutetas desenvolveram

em toda a Europa (e tambeacutem em Portugal) um importante trabalho pedagoacutegico

em torno do ensino da matemaacutetica261 O vasto espoacutelio dos professores do

Coleacutegio de Santo Antatildeo que funcionou em Lisboa entre 1590 e 1759 veio

mostrar que sob a designaccedilatildeo de Aula da Esfera se ensinava nesse coleacutegio

um curso de Matemaacutetica assim como Astronomia e Geografia tendo esses

estudos estado a cargo a partir no seacuteculo XVII predominantemente de

estrangeiros perfeitamente a par da Filosofia e da Ciecircncia moderna Entre eles

cumpre mencionar J Paulo Lembo lente da Aula da Esfera entre 1615 e 1617

que conhecera pessoalmente Galileu e subscrevera juntamente com outros

jesuiacutetas do Coleacutegio Romano um parecer favoraacutevel agraves suas descobertas262 O

estudo da documentaccedilatildeo da Universidade de Eacutevora referente ao mesmo

periacuteodo veio a revelar tambeacutem a existecircncia de livros teses e debates

evidenciando um normal contacto com as ideias da Europa e um conhecimento

de autores modernos como Descartes Gassendi Galileu Kepler e Newton263

Alguns estudos como o de Serafim Leite dedicado ao jesuiacuteta Diogo Soares e

o de Jaime Cortesatildeo sobre os ldquoPadres matemaacuteticos no Brasilrdquo mostram ainda

que esta actividade cientiacutefica dos jesuiacutetas se estendeu ao novo mundo264

No entanto as dificuldades de conciliaccedilatildeo dos princiacutepios da Metafiacutesica e da

Fiacutesica de Aristoacuteteles com os avanccedilos da ciecircncia moderna assim como o

contexto histoacuterico-cultural criado apoacutes o Conciacutelio de Trento levaram a que a

produccedilatildeo filosoacutefica dos jesuiacutetas ficasse largamente alheia aos modernos

problemas epistemoloacutegicos e se ativesse agrave problemaacutetica eacutetico-religiosa

261

Domingos Mauriacutecio Gomes dos Santos ldquoOs jesuigravetas e o ensino das Matemaacuteticas em Portugalrdquo

Broteacuteria 20 1935 262

J Pereira Gomes ldquoA Aula da Esferardquo in Enciclopeacutedia Luso-Brasileira de Cultura vol VII 102 263

Joatildeo Pereira Gomes Os Professores de Filosofia da Universidade de Eacutevora Eacutevora Cacircmara

Municipal 1960 264

Serafim Leite ldquoDiogo Soares Matemaacutetico Astroacutenomo e Geoacutegrafo de sua Majestade no estado do

Brasilrdquo in Broteacuteria 45 1947 e Jaime Cortesatildeo ldquoA Missatildeo dos Padres Matemaacuteticos no Brasilrdquo in Studia

1 1958

180

Apesar da referida ordem para que os professores de filosofia natildeo se

afastassem em caso algum da doutrina aristoteacutelica ter sido seguida natildeo

apenas no coleacutegio das Artes de Coimbra mas tambeacutem no Coleacutegio do Espiacuterito

Santo e noutras escolas dos jesuiacutetas como os coleacutegios de Satildeo Paulo de

Braga e Santo Antatildeo em Lisboa haacute que ter em conta que na realidade os

pensadores da Segunda Escolaacutestica fizeram uma releitura de Aristoacuteteles

visando adaptaacute-lo ao espiacuterito humanista em vigor como tambeacutem aos novos

problemas eacuteticos e poliacutetico-juriacutedicos emergentes do novo mundo criados pelos

descobrimentos pela expansatildeo ibeacuterica e pela colonizaccedilatildeo assim como pela

difusatildeo do cristianismo numa grande diversidade de contextos culturais

1 2 A Escola de Eacutevora e a interpretaccedilatildeo de Aristoacuteteles agrave luz do novo

contexto histoacuterico e dos seus problemas

Entre noacutes o segundo centro de irradiaccedilatildeo deste movimento de restauraccedilatildeo da

filosofia escolaacutestica foi o Coleacutegio do Espiacuterito Santo em Eacutevora Fundado pelo

Cardeal D Henrique que o confiou aos Jesuiacutetas veio a ser elevada a

Universidade em 15 de Abril de 1559 sendo a segunda Universidade do Paiacutes e

uma das mais reputadas da Peniacutensula Ibeacuterica

Tratando-se duma Universidade eclesiaacutestica contava entatildeo com duas caacutetedras

de Teologia uma de Sagrada Escritura e sete de Latim vindo mais tarde a

juntar-se-lhe quatro de Filosofia e uma de Matemaacutetica Foi uma das mais

reputadas Universidades europeias pelo prestiacutegio de mestres estrangeiros

notaacuteveis como Luiacutes de Molina e Francisco Suarez tendo nela ensinado

tambeacutem durante algum tempo Pedro da Fonseca considerado o mais

importante filoacutesofo portuguecircs quinhentista

Dos seus mestres destacamos a importacircncia de Molina pela influecircncia que as

suas teses vieram a ter na obra retoacuterica de Vieira265 Molina em Concordia

liberi arbitrii cum gratiae donis divina paraescientia providentia

predestinatione et reprobatione ad nonnulos primae partis S Thomae

articulus Lisboa 1588 e Apendix ad Concordiam Liberi arbitrii Lisboa 1588

265

Sobre a influecircncia de Suarez e Molina em Vieira Cf artigo de Pedro Calafate ldquo A Escolaacutestica

Peninsular no Pensamento Antropoloacutegico de Vieirardquo in Razatildeo e Liberdade - homenagem a Manuel Joseacute

Carmo Ferreira Lisboa2010 1011-1024

181

debate a questatildeo da possibilidade de harmonizar os auxiacutelios da graccedila de Deus

com a liberdade humana

Esta temaacutetica presumivelmente jaacute tratada por Pedro da Fonseca nas suas

aulas na Universidade de Coimbra onde Molina tinha estudado266 surgira na

sequecircncia do Conciacutelio de Trento e do combate aiacute iniciado contra as teses

protestantes sobre a predestinaccedilatildeo Lutero introduzindo a ideia de

predestinaccedilatildeo e de salvaccedilatildeo pela feacute rebaixava o papel da acccedilatildeo humana e

desvalorizava a liberdade o que contrariava directamente a visatildeo antropoloacutegica

de S Tomaacutes de Aquino segundo a qual a vontade humana se moveria de

acordo com um princiacutepio intriacutenseco267

Na sequecircncia daquele conciacutelio abrira-se uma poleacutemica a propoacutesito do problema

de saber qual o modo pela qual a liberdade humana se poderia exercer sem

frustrar a omnipotecircncia divina assim como sobre a questatildeo de saber se os

auxiacutelios concedidos pela graccedila divina predeterminam intrinsecamente a nossa

vontade

A soluccedilatildeo desta questatildeo estaacute segundo Molina na ldquociecircncia meacutediardquo de Deus A

ldquociecircncia meacutediardquo situa-se entre a ciecircncia natural ou necessaacuteria pela qual Deus

conhece todos os seres possiacuteveis como meramente possiacuteveis e a ciecircncia livre

ou de visatildeo pela qual Deus conhece que alguns contingentes existiratildeo Deus

tem uma ciecircncia natural ou intelectiva em virtude da qual conhece todos os

seres e acontecimentos possiacuteveis no seu estado de possibilidade e uma

ciecircncia livre ou de visatildeo pela qual conhece todos os seres e acontecimentos

presentes passados e futuros

Entre as duas Molina pressupotildee uma terceira espeacutecie de ciecircncia que se

relaciona com os conhecimentos dos actos e acontecimentos que dependem

da vontade humana268 Com efeito estes actos pertencem por um lado ao

266

Esta doutrina designada por Pedro da Fonseca como ldquociecircncia dos futuros condicionadosrdquo estaacute

disseminada por toda a obra de Fonseca designadamente pelos Comentaacuterios agrave metafiacutesica de Aristoacuteteles

na Isagoge Filosofica e nas Instituiccedilotildees Dialeacutecticas Cf Manuel Patrigravecio em ldquoA doutrina da Ciecircncia

Meacutedia de Pedro Fonseca a Luis de Molinardquo Luiacutes de Molina Regressa a Eacutevora Eacutevora 166 267

Comentando o texto de Molina Manuel Patriacutecio afirma ldquo O que parece fundamental assinalar no

presente texto de Molina eacute que tanto no que toca ao homem ndash como se sabe e poderaacute confirmar-se com

textos do proacuteprio filoacutesofo e teoacutelogo - como no que respeita a Deus na ldquodoutrina da ciecircncia meacutediardquo o lugar

fulcral eacute ocupado pelo conceito de liberdade de vontade livre de Deus e do homem Eacute a liberdade destas

duas vontades que eacute preciso harmonizar compatibilizar fazer concordarrdquo (Ob cit 168) 268

ldquo Distingue Molina trecircs classes de ciecircncia em Deus a meramente natural a livre a meacutedia A ciecircncia

meramente natural eacute a que natildeo pocircde ser absolutamente de outra maneira por ela conheceu Deus todas as

coisas agraves quais se estende a potecircncia divina quer imediatamente quer pela intervenccedilatildeo das causas

segundas sejam elas ligadas necessariamente entre si sejam contingentes podendo portanto

182

domiacutenio dos possiacuteveis por outro lado pela sua decisatildeo o homem realiza actos

que pertencem ao domiacutenio dos acontecimentos reais A ciecircncia meacutedia eacute aquela

pela qual Deus viu em sua essecircncia o que faria o homem no uso do seu livre

arbiacutetrio se fosse posto nesta ou naquela circunstacircncia podendo se quisesse

fazer o oposto Uma vez que Deus conhece tais acccedilotildees ele prevecirc ab eterno

que atitude o homem tomaria em certas circunstacircncias e soacute entatildeo decide

conceder a sua graccedila por uma acto de vontade inteiramente livre

Assim Molina consegue pensar a conciliaccedilatildeo entre a omnipotecircncia divina e a

liberdade humana na medida em que esta continua livre sob a acccedilatildeo da graccedila

O homem feito agrave imagem e semelhanccedila de Deus eacute o gestor da sua liberdade

e responsaacutevel pelo seu destino quer para o bem quer para o mal o que o

investe de responsabilidade face ao curso da histoacuteria eacute a proclamaccedilatildeo do

humanismo cristatildeo

Apesar das muacuteltiplas controveacutersias e do risco de a obra de Molina ser

colocada por pressatildeo dos Dominicanos no Iacutendice dos livros proibidos vaacuterias

Universidades europeias exprimiram o seu apoio agraves teses de Molina que

abriam a possibilidade de pensar a histoacuteria sob o concurso causal simultacircneo

de Deus e do Homem A Universidade de Sevilha escreveu ao papa em 1602

em defesa de Molina e em 5 de Setembro de 1607 o Papa Paulo V admitiu a

possibilidade de os molinistas poderem continuar a defender as respectivas

posiccedilotildees A importacircncia destas controveacutersias mostra que Molina (como

Fonseca) retomou categorias fundamentais do pensamento aristoteacutelico

(contingecircncia necessidade para repensar o problema antropoloacutegico do livre-

arbiacutetrio num contexto moderno marcado pela consciecircncia da liberdade do

indiviacuteduo na construccedilatildeo do seu proacuteprio destino)

Molina publicou ainda entre 1593 e 1609 De justitiae et jure em 6 volumes

contendo as liccedilotildees ditadas na Universidade de Eacutevora nos anos 157677 e

158182 Esta obra ocupava-se de problemas juriacutedicos relacionados com a

posiccedilatildeo de Portugal no mundo e continha reflexotildees sobre a legislaccedilatildeo

portuguesa Trata de temas como as relaccedilotildees entre a Igreja e o Estado a

indiferentemente existir ou natildeo existir A ciecircncia meramente livre eacute aquela ldquopela qual Deus depois do

acto livre da sua vontade sem nenhuma hipoacutetese nem condiccedilatildeo conheceu absoluta e determinantemente

por todas as complexotildees contingentes quais existiriam e quais realmente natildeo A ciecircncia meacutedia

finalmente eacute aquela ldquopela qual desde a altigravessima imprescrutaacutevel compreensatildeo de todo o livre arbigravetrio viu

em sua essecircncia que faria no uso da sua inata liberdade se fosse posto nesta ou naquela ordem ou

tambeacutem em infinitas ordens de coisas podendo se quisesse fazer na realidade o opostordquo (Ob Cit 174-

175)

183

origem da sociedade a escravatura a colonizaccedilatildeo a guerra justa e o direito de

resistecircncia

De justitiae et jure aborda o problema da justiccedila a partir de textos biacuteblicos

cruzados com textos de Aristoacuteteles269 e de S Tomaacutes de Aquino A mesma

concepccedilatildeo da autonomia que inspirava a doutrina da ciecircncia meacutedia ressurge

nas concepccedilotildees eacutetico-juriacutedicas de Molina relativas agraves relaccedilotildees do homem com

a sociedade baseadas no direito natural

O direito natural aparece como uma forma particular do direito divino que se

distingue do direito humano que eacute sempre para ele o direito positivo A

sociedade civil e o poder poliacutetico tecircm o seu fundamento no direito natural o

que implica a rejeiccedilatildeo da tese segundo a qual o regime jurisdicional se baseia

no estado de graccedila (deste modo a situaccedilatildeo de pecado entre os infieacuteis natildeo

suprime o direito de propriedade nem a legitimidade do poder poliacutetico)

Ao abrigo da noccedilatildeo de direito natural ele reconhece que todos os homens fieacuteis

ou infieacuteis europeus iacutendios ou negros estatildeo em peacute de igualdade Sendo o

direito de propriedade comum a todo o geacutenero humano ele discute a

legitimidade do domiacutenio portuguecircs distinguindo claramente o caso de

territoacuterios inabitados como Cabo Verde ou S Tomeacute da situaccedilatildeo de Angola e

Moccedilambique onde havia habitantes e um poder organizado

Molina apenas reconhece (na sequecircncia da doutrina tradicional desde Vitoacuteria)

como fundamento dos tiacutetulos de servidatildeo a guerra justa a condenaccedilatildeo agrave

servidatildeo por delito e o deixar-se vender a si mesmo como escravo Por outro

lado o tiacutetulo de guerra justa ou de justa posse natildeo pode basear-se num

suposto direito das gentes agrave navegaccedilatildeo ao comeacutercio agrave residecircncia agrave extracccedilatildeo

de riquezas agrave fundaccedilatildeo de cidades e outras formas de sociabilidade e de

comunicaccedilatildeo natural com os indiacutegenas pois esses tecircm o direito de impedir tais

praacuteticas nos territoacuterios de que satildeo legiacutetimos possuidores A noccedilatildeo de guerra

justa aplica-se apenas quando forem negados aos descobridores as faculdades

concedidas a todo o geacutenero humano pelo direito das gentes (nomeadamente

269

ldquoA par dos contemporacircneos e dos juristas Aristoacuteteles e S Tomaacutes de Aquino satildeo de facto os dois

autores mais citados na primeira abordagem do sentido da justiccedila A posiccedilatildeo platoacutenica por exemplo natildeo

soacute natildeo eacute discutida como nem sequer eacute mencionada Este silenciamento da posiccedilatildeo platoacutenica mais do que

um desconhecimento puro e simples de A Repuacuteblica e de As Leis indica uma opccedilatildeo de fundo que se iraacute

reflectir de modo mais claro nas questotildees em torno da problemaacutetica do direito naturalrdquo Antoacutenio Manuel

Martins ldquoA Teoria da Justiccedila em Molinardquo Luiacutes de Molina Regressa a Eacutevora 156-157

184

quando lhes for recusado o direito de passagem para comerciar ou

evangelizar)270

A doutrina de Molina foi-se impondo na colonizaccedilatildeo e missionaccedilatildeo da costa da

Aacutefrica oriental e ocidental e chegou mesmo ao Brasil onde apesar do duro

trabalho nos engenhos os negros eram acompanhados pelos missionaacuterios

jesuiacutetas que procuravam melhorar a sua situaccedilatildeo

Da vasta bibliografia de Suarez destacam-se Metaphisycorum Disputationum

obra em que reflecte de forma original sobre diversos problemas no acircmbito da

metafiacutesica escolaacutestica Ele discute a relaccedilatildeo entre a metafiacutesica como ciecircncia

dos primeiros princiacutepios e as ciecircncias particulares que ela funda e legiacutetima

sem contudo interferir no seu funcionamento A metafiacutesica eacute para ele a ciecircncia

do ser que estuda o ens in quantum reale sob o ponto de vista da substacircncia

e tambeacutem dos acidentes e Suarez discute em particular a tendecircncia para o

pensamento humano apreender a realidade por via da abstracccedilatildeo

generalizante apesar do estatuto ontoloacutegico privilegiado do indiviacuteduo e da

importacircncia da sua cognoscibilidade A metafiacutesica de Suarez exerceu uma

enorme influecircncia na Europa estando no entanto o levantamento dessa

influecircncia por fazer

1 3 Apogeu e decadecircncia da tradiccedilatildeo escolaacutestica

Relembrando a criacutetica de Heidegger agrave ldquoromanidade filosoacuteficardquo cuja traduccedilatildeo da

filosofia grega teria implicado um obscurecimento dos seus conceitos

fundamentais e imprimido ao pensamento filosoacutefico uma orientaccedilatildeo humanista

caracterizada pela valorizaccedilatildeo do studium humanitatis em contraposiccedilatildeo ao

barbarismo dos medievais podemos concluir que no essencial ela eacute correcta e

pode aplicar-se cabalmente agrave Segunda Escolaacutestica

De facto a Segunda Escolaacutestica levou a cabo natildeo apenas uma traduccedilatildeo da

filosofia aristoteacutelica associada agrave busca do rigor filoloacutegico como realizou uma

releitura de Aristoacuteteles isto eacute uma operaccedilatildeo de transposiccedilatildeo de sentido para a

soluccedilatildeo de problemas teoloacutegicos no acircmbito da Contra-Reforma assim como de

problemas juriacutedicos e poliacuteticos no contexto dos descobrimentos sendo

270

Sobre a modernidade do jusnaturalismo da escolaacutestica peninsular cf Joseacute Adelino Maltes em ldquoO

Jusnaturalismo catoacutelico dos seacuteculos XVI e XVII e as raigravezes da democraciardquo (Luis de Molina Regressa a

Eacutevora 53-73)

185

largamente dominada por uma leitura humanista Esta apropriaccedilatildeo da filosofia

Aristoteacutelica eacute feita a partir duma ldquosituaccedilatildeo hermenecircuticardquo determinada

dominada por problemas emergentes do contexto histoacuterico-linguiacutestico do

inteacuterprete abrindo certas possibilidades de interpretaccedilatildeo e fechando outras um

certo predomiacutenio da filosofia praacutetica e o desenvolvimento de uma racionalidade

argumentativa orientada para a soluccedilatildeo de problemas eacutetico-poliacuteticos

caracterizam este humanismo dos jesuiacutetas Tambeacutem a abordagem dos

problemas da metafiacutesica tende a enfatizar a autonomia do homem e a sua

liberdade colocando-o no centro da histoacuteria e responsabilizando-o pelo seu

futuro investindo-o duma nova dignidade ontoloacutegica que natildeo eacute obscurecida

nem diminuiacuteda pelo concurso da causa primeira

No entanto que esta leitura humanista de Aristoacuteteles signifique uma

decadecircncia ou empobrecimento do vocabulaacuterio filosoacutefico como pretende

Heidegger eacute altamente discutiacutevel e a riqueza do vocabulaacuterio filosoacutefico latino no

domiacutenio juriacutedico e religioso foi jaacute sublinhada pelo estudo do professor Franco

Volpi sobre esta temaacutetica ldquo [hellip] em geral no domiacutenio do sagrado o latim dos

romanos revela uma riqueza de conceitos de significados e de matizes que

natildeo derivam do grego mas que satildeo originaacuterios e que foram determinantes para

a cultura europeiardquo271

Em segundo lugar podemos afirmar que a reinterpretaccedilatildeo da dialeacutectica e da

retoacuterica aristoteacutelicas agrave luz da tradiccedilatildeo retoacuterica latina contribui largamente para a

renovaccedilatildeo dos estudos sobre argumentaccedilatildeo como do exerciacutecio da retoacuterica

como instrumento para dirigir o espaccedilo puacuteblico (lembremos que o termo

ldquoargumentordquo tem uma origem latina e que Ciacutecero foi o primeiro a defini-lo)

Nesta mesma perspectiva de valorizaccedilatildeo da ldquoromanidade filosoacuteficardquo eacute preciso

acentuar que a escolaacutestica peninsular significou um incremento dos estudos

filosoacuteficos desde logo porque os comentadores conimbricenses e Pedro da

Fonseca fundaram os seus comentaacuterios de Aristoacuteteles num conhecimento

directo dos textos gregos

271

ldquo [hellip] en general en el dominio de lo sagrado el latigraven de los romanos desvela una riqueza de

conceptos de significados y de matices que no derivan del griego sino que son originarios y que han sido

determinantes para la formacioacuten de la cultura europeardquo Franco Volpi ldquoHeidegger El Problema de la

intraducibilidad y la romanidad filosoacuteficardquo in Heidegger Linguagem e Traduccedilatildeo - coloacutequio

internacional Lisboa Centro de Filosofia da Universidade de Lisboa 2002 543

186

No entanto a natildeo traduccedilatildeo para as liacutenguas modernas dos principais autores da

Segunda Escolaacutestica juntamente com os imperativos de ordem ideoloacutegica e

religiosa associados agrave Contra-Reforma foram arrastando o progressivo

anquilosamento da tradiccedilatildeo escolaacutestica

Eacute aqui indispensaacutevel a referecircncia agrave Inquisiccedilatildeo cuja acccedilatildeo conheceu um

recrudescimento no seacuteculo XVII policiando o progresso das nossas letras para

impedir qualquer desvio em relaccedilatildeo agrave ortodoxia A Inquisiccedilatildeo ressalvava da

necessidade de passar pelo crivo da censura as teorias que se mantivessem

nos limites do curso conimbricense e os proacuteprios Jesuiacutetas elaboraram uma

lista de proposiccedilotildees proibidas que deviam ser banidas do ensino272

O Iacutendice Expurgatoacuterio Lusitano elaborado pela Inquisiccedilatildeo portuguesa

continha para aleacutem do cataacutelogo extenso de obras proibidas a seguinte regra

citada por Lopes Praccedila ldquoPorquanto neste reino e particularmente em Lisboa

haacute muito comeacutercio de estrangeiros setentrionais das partes entradas ou

infestadas de heresia proiacutebem-se quaisquer livros em liacutengua Inglesa

Flamenga e Tudesca (ainda que natildeo sejam nomeadas no cataacutelogo) para efeito

que nenhuma se possa ter nem ler sem primeiro apresentar ao Santo Ofiacutecio e

se examinar a sua qualidade E tambeacutem nos Franceses se encomenda que se

tenha muita advertecircncia como natildeo forem notoriamente sem suspeita e

proibidosrdquo273

Mercecirc da rigidez dos mecanismos associados agrave sua transmissatildeo da

dificuldade de contacto com as obras da filosofia moderna e desta suspeiccedilatildeo

relativamente a toda a produccedilatildeo filosoacutefica cientiacutefica e literaacuteria redigida nas

principais liacutenguas europeias a Escolaacutestica Peninsular dificilmente poderia

actualizar-se e vivificar-se no confronto e com os problemas cientiacuteficos eacuteticos e

poliacuteticos da modernidade

No que toca agrave liacutengua portuguesa parece provaacutevel que a longa permanecircncia da

escolaacutestica entre noacutes tenha contribuiacutedo fortemente para que o latim persistisse

ateacute bastante tarde como liacutengua exclusiva da filosofia ao contraacuterio doutros

paiacuteses onde a partir do Renascimento as liacutenguas nacionais eram

ocasionalmente usadas como liacutenguas de traduccedilatildeo

272

Cf Lopes Praccedila Histoacuteria da Filosofia em Portugal Lisboa Guimaratildees amp Cordf Editores 1974 187-196 273

Lopes Praccedila Histoacuteria da Filosofia em Portugal Lisboa Guimaratildees amp Cordf Editores 1974 200

187

A uacutenica traduccedilatildeo de filosofia para liacutengua portuguesa foi no periacuteodo

considerado a traduccedilatildeo de Ciacutecero feita durante o seacuteculo XVI (Ciacutecero

Tratados de Amizade Paradoxos e Sonhos de Scipiatildeo traduzidos do latim em

liacutengua portuguesa por Duarte de Resende no ano de 1531274) que no entanto

pelo seu caraacutecter excepcional e por se tratar dum autor valorizado

principalmente como retoacuterico indicia mais do que uma mudanccedila de

mentalidade relativamente agrave adopccedilatildeo do latim como liacutengua exclusiva do

pensamento filosoacutefico e cientiacutefico a grande difusatildeo e influecircncia ldquoexemplarrdquo da

retoacuterica ciceroniana

Este exemplo frutificou entre noacutes na brilhante oratoacuteria barroca de Antoacutenio Vieira

(Lisboa - 1608 - Baiacutea 1697) cujos sermotildees veiculam uma mundividecircncia

humanista e cristatilde fortemente influenciada pela restauraccedilatildeo escolaacutestica (em

particular pela filosofia da histoacuteria e pelo jusnaturalismo de Molina) e de fundas

repercussotildees na cultura portuguesa e brasileira

Antoacutenio Vieira surge como combinaccedilatildeo do ideal ciceroniano do orador (capaz

de influenciar um vasto auditoacuterio pelo perfil de cidadatildeo exemplar275) e do ideal

heroacuteico e voluntarista do missionaacuterio da Companhia de Jesus capaz de

desafiar os perigos e a hostilidade para difundir a mensagem cristatilde Os seus

sermotildees pregados em liacutengua portuguesa e cuidadosamente revistos pelo seu

autor para futura publicaccedilatildeo testemunham uma apropriaccedilatildeo original da

tradiccedilatildeo retoacuterica

Misturando temas da cultura erudita e da cultura popular enfatizando o pathos

do discurso retoacuterico dominando com mestria inigualaacutevel a arte da eloquecircncia e

natildeo receando aprender e usar as liacutenguas dos gentios a sua oratoacuteria visava

persuadir um auditoacuterio tatildeo vasto e tatildeo heterogeacuteneo que se estendia dos iacutendios

da Amazoacutenia agraves cortes da Europa e agrave cuacuteria romana

Vieira nas suas muacuteltiplas facetas de educador poliacutetico e missionaacuterio

representa um momento de grande consciecircncia da importacircncia da linguagem e

da diversidade das liacutenguas na interacccedilatildeo viva dos homens e no

274

Cf Apecircndice sobre Traduccedilotildees Portuguesas de Filosofia 275

Cf O ldquoSermatildeo da Sexageacutesimardquo foi pregado na Capela Real em Lisboa em Marccedilo de 1655 O Sermatildeo

encerra uma teoria da arte de pregar onde o ideal ciceroniano do orador se alia agrave missatildeo evangelizadora

do pregador Estaacute organizado em dez partes que se constroem agrave volta de uma metaacutefora central pregar eacute

semear Cf Pe Antoacutenio Vieira Sermotildees Porto 1959 Tomo I 3-66

188

estabelecimento dum entendimento comum do justo e do injusto condiccedilatildeo

imprescindiacutevel para manter a coesatildeo de uma comunidade

Os seus sermotildees pregados em Portugal e no Brasil abordam uma variedade de

temas quase inesgotaacutevel de que salientamos a reflexatildeo criacutetica sobre a retoacuterica

e as suas funccedilotildees na sociedade de seiscentos (Sermatildeo de Santo Antoacutenio aos

Peixes276 e Sermatildeo da Sexageacutesima) um enfoque original de problemas de

eacutetica e filosofia poliacutetica a partir da contraposiccedilatildeo entre os dois mundos

platoacutenicos ldquoo mundo dos olhosrdquo e ldquoo mundo dos filoacutesofosrdquo e do necessaacuterio

compromisso entre ambos (Sermatildeo de S Pedro 1644277 Sermatildeo da Dominga

Vigeacutesima Segunda Depois de Pentecostes278) a igualdade dos homens

perante o direito natural279 jaacute defendida por Molina e problemas relacionados

com este princiacutepio como o estatuto dos iacutendios o sofrimento dos escravos

negros nos engenhos o comportamento dos colonos portugueses (Sermatildeo da

Epifania280 Sermatildeo XIV do Rosaacuterio281)

Haacute ainda que salientar a sua obra escrita com maior sobriedade argumentativa

e sem o pathos retoacuterico dos sermotildees onde retoma muitos destes temas

poliacuteticos e desenvolve a temaacutetica escatoloacutegica do V Impeacuterio282 Esta parte mais

especulativa da sua obra eacute constituiacuteda por uma extensa epistolografia (mais de

setecentas cartas) pela Histoacuteria do Futuro - escrita em liacutengua portuguesa

porque destinada a persuadir os portugueses das suas responsabilidades pela

276

Cf O ldquoSermatildeo de Santo Antoacutenio aos Peixesrdquo foi proferido na cidade de S Luiacutes do Maranhatildeo em 1654

constituindo um documento da notaacutevel habilidade oratoacuteria capacidade argumentativa e poder satiacuterico do

Pe Antoacutenio Vieira que aigrave confronta o papel dos pregadores como ldquosal da terrardquo com a indiferenccedila dos

auditoacuterios tomando vaacuterios peixes como siacutembolos dos viacutecios dos colonos portugueses naquele Estado do

Brasil Cf ob cit tomo VII 246-280 277

O ldquoSermatildeo de S Pedrordquo foi pregado em Lisboa em S Juliatildeo em 1644 agrave Veneraacutevel Congregaccedilatildeo dos

Sacerdotes dispondo-se num conjunto de trecircs homilias relativas agrave figura de S Pedro Cf ob cit Tomo

VII 351-384 278

O ldquoSermatildeo da Dominga Vigeacutesima Segundardquo foi pregado no Estado do Maranhatildeo em 1664 e

desenrola-se como comentaacuterio agrave pergunta dos Hebreus se era liacutecito pagar tributo a Ceacutesar Cf ob cit

Tomo VI 226-287 279

Cf Sobre o jusnaturalismo do Pe Antoacutenio Vieira cf Antoacutenio Braz Teixeira em Caminhos e Figuras

da Filosofia do Direito Luso-Brasileira Lisboa 2002 41-51 280

O ldquoSermatildeo da Epifaniardquo foi pregado na Capela Real em 1662 agrave rainha D Luiacutesa regente do reino na

menoridade de D Afonso VI Sobre este sermatildeo escreveu Camilo Castelo Branco ldquoVieira comoveu ateacute

agraves laacutegrimas e fez que a santa liberdade volvesse agrave Ameacuterica a estalar as gargalheiras do iacutendio e a cicatrizar-

lhe as vergastadas do tagenterdquo cf Continuaccedilatildeo e Complemento do Curso de Literatura Portuguesa de

Andrade Ferreira 102 Cf ob cit tomoII 5-61 281

O ldquoSermatildeo Deacutecimo Quarto do Rosaacuteriordquo foi pregado em 1633 agrave irmandade de negros de um engenho

no dia de S Evangelista e descreve o sofrimento dos escravos negros nos engenhos de accediluacutecar do Brasil

Cf ob cit 1959 tomoXI 281-317 282

Sobre a metafiacutesica da Histoacuteria de Vieira cf Paulo Alexandre Borges em A Plenificaccedilatildeo da Histoacuteria

em Padre Antoacutenio Vieira - estudos sobre a ideia de Quinto Impeacuterio na Defesa Perante o Tribunal do

Santo Ofiacutecio Lisboa 1995

189

conduccedilatildeo da histoacuteria em direcccedilatildeo ao Impeacuterio de Cristo - assim como a Clavis

Prophetarum escrita em latim e destinada a persuadir um virtual auditoacuterio

universal dessa segunda epifania anunciada nas profecias biacuteblicas

Esta temaacutetica milenarista do V Impeacuterio eacute suportada em Vieira numa

hermenecircutica dos textos biacuteblicos que tem como pressuposto a ideia de

ldquoaplicaccedilatildeordquo dos textos sagrados a novos contextos e a problemas do acircmbito da

filosofia da Histoacuteria Vieira faz a leitura destes textos tomando-os como textos

metafoacutericos e simboacutelicos cujo sentido oculto pode ser desvendado pela acccedilatildeo

do tempo e da histoacuteria

Esta esperanccedila escatoloacutegica jaacute corrente em contextos de crise desde a Idade

Meacutedia eacute contudo em Vieira fundado natildeo apenas nas profecias biacuteblicas como

tem sido sublinhado mas na doutrina da ciecircncia meacutedia de Molina Convicto do

papel decisivo da vontade livre dos homens e na possibilidade de obter o

auxiacutelio da graccedila como preconizavam os molinistas (ldquoCom efeito sendo

racionais as ovelhas que devem ser trazidas ao redil e hatildeo-de ouvir a voz do

pastor o efeito destinado natildeo depende apenas da vontade de Deus mas

tambeacutem da liberdade e alvedrio do homemrdquo283) Vieira desenvolve um intenso

esforccedilo de persuasatildeo dos seus contemporacircneos visando mobilizar as

vontades atraveacutes do discurso

A obra de Vieira interessa-nos por constituir um momento particular de

consciecircncia da importacircncia da linguagem na negociaccedilatildeo das soluccedilotildees dos

problemas poliacuteticos e na criaccedilatildeo dum sensus comunis capaz de dar coesatildeo a

uma comunidade em contexto de crise e de dispersatildeo como era entatildeo o caso

de Portugal

O interesse da sua obra eacute para noacutes histoacuterico natildeo apenas porque significou

um momento de afirmaccedilatildeo da liacutengua portuguesa mas porque na sua obra a

liacutengua se constitui ela mesma em acontecer histoacuterico em sentido eminente ou

Ereignis nela acontece a apropriaccedilatildeo viva da tradiccedilatildeo escolaacutestica e a

projecccedilatildeo do humanismo cristatildeo que se difundiraacute na cultura luso-brasileira e

animaraacute muitas criaccedilotildees culturais posteriores Neste sentido tatildeo lapidarmente

sublinhado por Fernando Pessoa284 ao designaacute-lo como Imperador da Liacutengua

283

Antoacutenio Vieira Chave dos Profetas Lisboa 2000 689 284

Sobre a influecircncia do profetismo de Vieira em Fernando Pessoa cf Alfredo Antunes em Saudade e

Profetismo em Fernando Pessoa Braga 1983 450-455

190

Portuguesa a sua obra ditou e instituiu um mundo que ateacute hoje ainda eacute o

nosso

2 A modernidade pombalina e a decadecircncia da tradiccedilatildeo escolaacutestica

Para caracterizar e delimitar o conceito de modernidade partimos da posiccedilatildeo

heideggeriana de que cada era da histoacuteria da cultura eacute fundada numa

meditaccedilatildeo metafiacutesica sobre o ente e numa decisatildeo sobre a essecircncia da

verdade ldquoNa metafiacutesica cumpre-se a meditaccedilatildeo sobre a essecircncia do ente e

uma decisatildeo sobre a essecircncia da verdade A metafiacutesica funda uma era na

medida em que atraveacutes de uma determinada interpretaccedilatildeo do ente e atraveacutes

de uma determinada concepccedilatildeo da verdade lhe daacute o fundamento da sua figura

essencialrdquo285

Um dos fenoacutemenos da era a que chamamos ldquomodernardquo foi um novo conceito

de ciecircncia cujo paradigma reside nas ciecircncias experimentais este novo

conceito de ciecircncia deixa-se descrever como investigaccedilatildeo experimental ou

seja como indagaccedilatildeo do ente a partir de um projecto de matematizaccedilatildeo

integral da natureza

Constataacutemos jaacute que a restauraccedilatildeo escolaacutestica pela difusatildeo das matemaacuteticas e

pela actualizaccedilatildeo cientiacutefica de alguns dos seus professores e bibliotecas

contribuiu - apesar das restriccedilotildees apertadas impostas pelo contexto poliacutetico-

religioso - como eacute hoje geralmente reconhecido para a difusatildeo de uma novo

interesse pelas mateacuterias cientiacuteficas natildeo se reduzindo o seu ensino apenas agraves

humanidades

No entanto a relaccedilatildeo da Segunda Escolaacutestica com a ciecircncia moderna tem que

ser compreendida a partir da decisatildeo metafiacutesica que suporta o projecto de

investigaccedilatildeo experimental da natureza que doravante seraacute determinante e

que Heidegger caracteriza nos seguintes termos ldquoSoacute se chega agrave ciecircncia como

investigaccedilatildeo se e apenas se a verdade se transformou em certeza do

representar Eacute na metafiacutesica de Descartes que o ente eacute pela primeira vez

285

ldquoIn der Metaphysik vollzieht sich die Besinnung auf das Wesen des Seienden und eine Entscheidung

uumlber das Wesen der Wahrheit Die Metaphysik begruumlndet ein Zeitalter indem sie ihm durch eine

bestimmte Auslegung des Seienden und durch eine bestimmte Auffassung der Wahrheit den Grund seiner

Wesensgestalt gibtldquo Heidegger ldquoDie Zeit des Weltbildesrdquo in H GA 5 75

191

determinado como objectividade do representar e a verdade como certeza do

representarrdquo286

De acordo com a perspectiva de Heidegger que explicitamente adoptamos

natildeo haveria na Idade Moderna nenhum enfraquecimento da metafiacutesica mas

apenas uma transformaccedilatildeo desta que agora jaacute natildeo parte da pergunta sobre o

ente na totalidade como ocorria na metafiacutesica aristoteacutelico-escolaacutestica mas sim

da pergunta pelo homem considerado como sujeito

A metafiacutesica moderna natildeo parte pois da ideia de Deus mas da ideia do eu da

consciecircncia tomado como o fundamento indiscutiacutevel de toda as certezas face

agrave qual o mundo tende a ser transformado em representaccedilatildeo do sujeito e a ele

oposto como ldquoobjectordquo ldquoDescartes impele o duvidar de todo o conhecimento

ateacute ao ponto em que depara com algo indubitaacutevel que deve fornecer o

fundamento para a nova construccedilatildeo um fundamentum inconcussum uma base

inabalaacutevel um substrato para todo o saber algo estaacutevel e firme um

subjectum287

Esta nova eacutepoca caracteriza-se pois pela tentativa de o homem se libertar da

feacute na revelaccedilatildeo e pela sua auto-posiccedilatildeo como fonte de toda a certeza como

centro e medida de todas as coisas como tentativa de estabelecer de modo

autoacutenomo as normas a que devem subordinar-se o conhecimento e a acccedilatildeo

Natildeo se trata de uma novidade absoluta - haacute que sublinhar que na metafiacutesica

escolaacutestica pressupotildee-se um Deus criador que tudo criou racionalmente

sendo por isso o universo uma totalidade ordenada susceptiacutevel de ser

apropriado pelo intelecto humano e ainda que no interior da Segunda

Escolaacutestica se vinha desenhando um importante movimento de ideias que

sublinhavam a autonomia e a responsabilidade do homem na conduccedilatildeo dos

assuntos humanos

Francisco Gama Caeiro sublinha relativamente ao curso conimbricense que ldquoeacute

bem reconhecida a sua invulgar repercussatildeo na Europa documentada pelo

286

ldquoZur Wissenschaft als Forschung kommt es erst dann und nur dann wenn die Wahrheit zur

Gewissheit des Vorstellens sich gewandelt hat Erstmals wird das Seiende als Gegenstӓndlichkeit des

Vorstellens und die Wahrheit als Gewiβheit des Vorstellens in der Metaphysik des Descartes bestimmtldquo

Heidegger ldquoDie Zeit des Weltbildesrdquo in H GA 5 87 287

ldquoDescartes treibt die Bezweiflung aller Kenntnis bis dorthin wo er auf etwas Unzweifelhaftes stoumlβt

das die Grundlage fuumlr den kommenden Neubau abgeben soll ein fundamentum inconcussum eine

unerschuumltterliche Grundlage eine Unterlage fuumlr alles Wissen ein Bestaumlndiges Beharrendes ein

subiectumrdquo LWS GA 38 146

192

avultado nuacutemero de reimpressotildees que dele se fizeram em Franccedila Alemanha e

Itaacuteliardquo e ainda que ldquoo curso reflectiu-se nomeadamente nos rumos da filosofia

moderna pois ele impregnou de modo profundo o pensamento de Descartes

Leibniz Malebranche e Wolffrdquo288

Assim a afirmaccedilatildeo do homem e da autonomia da sua razatildeo defendida pela

modernidade que teraacute como seu correlato natural a de que todo o ente poderaacute

ser pensado no puro pensar das matemaacuteticas significa uma viragem que se

efectua no interior da tradiccedilatildeo metafiacutesica (e contra ela) mas que de certo

modo jaacute estava preparada por alguns pensadores da Segunda Escolaacutestica

Tal natildeo pode no entanto obscurecer a importacircncia e a significaccedilatildeo da viragem

moderna no sentido duma metafiacutesica da subjectividade que se afirma com o

cogito cartesiano nem a radical ruptura com a autoridade da tradiccedilatildeo religiosa

que se anuncia com a duacutevida cartesiana

Esta ruptura nunca pocircde consumar-se em Portugal graccedilas agraves severas

restriccedilotildees impostas pela Inquisiccedilatildeo ao acesso agrave literatura cientiacutefica e filosoacutefica

europeia A estas restriccedilotildees veio a somar-se ainda a proibiccedilatildeo estabelecida a 7

de Maio de 1746 pelo Reitor do Coleacutegio das Artes de Coimbra em edital de

que ldquonos exames ou liccedilotildees conclusotildees puacuteblicas ou particulares se natildeo ensine

ou defenda opiniotildees novas pouco recebidas e inuacuteteis para o estudo das

ciecircncias maiores como satildeo as de Renato Descartes Gassendi Newton e

outros e nomeadamente qualquer ciecircncia que defenda os aacutetomos de Epicuro

ou negue a realidade dos acidentes eucariacutesticos ou quaisquer conclusotildees

opostas ao sistema de Aristoacuteteles o qual nestas escolas se deve seguir como

repetidas vezes se recomenda nos Estatutos deste Coleacutegio das Artesrdquo289

O que vai caracterizar a entrada de Portugal na modernidade vai ser a tentativa

de acolher a ciecircncia moderna e reformar o ensino sem contudo operar esta

ruptura nem compreender claramente o projecto metafiacutesico que estaacute

subjacente agrave nova ciecircncia experimental290

288

Gama Caeiro ldquoO Pensamento Filosoacutefico em Portugal e no Brasil do seacutec XVI ao seacutec XVIIIrdquo in Actas

do I Congresso Luso-Brasileiro de Filosofia Revista Portuguesa de Filosofia Braga 1982 64 289

Adolpho CrippardquoConceito de Filosofia na Eacutepoca Pombalinardquo in Actas do I Congresso Luso-

Brasileiro de Filosofia Revista Portuguesa de Filosofia Braga 1982 436 290

Sobre o caraacutecter fragmentaacuterio e descontiacutenuo como as correntes da filosofia moderna se repercutiram

na Peniacutensula Ibeacuterica cf Adolpho Crippa ldquoConceito de Filosofia na Eacutepoca Pombalinardquo in Actas do

Congresso Luso - Brasileiro de Filosofia Braga 1982 Referindo-se ao quadro geral da filosofia em

Portugal no seacutec XVIII o autor afirma ldquoO grupo maior era constituigravedo pelos escolaacutesticos ou aristoteacutelicos

os quais identificando-se em alguns pontos essenciais tinham tambeacutem suas divergecircncias Tomistas

193

2 1 O Projecto pedagoacutegico do iluminismo portuguecircs

A entrada na modernidade vai ser dominada por uma discussatildeo sobre

educaccedilatildeo e sobre as necessaacuterias reformas que se querem inspiradas no

ideaacuterio iluminista do progresso e numa abertura agraves ciecircncias experimentais

A ciecircncia moderna em Portugal deu os seus primeiros passos no seacuteculo XVIII

com a criaccedilatildeo por D Joatildeo V na deacutecada de 20 da Aula de Fiacutesica Experimental

no Palaacutecio das Necessidades a cargo da Congregaccedilatildeo do Oratoacuterio assim

como com as liccedilotildees de Filosofia proferidas pelo Pe Joatildeo Baptista no interior da

referida Congregaccedilatildeo que pretendiam recuperar o sentido originaacuterio da

filosofia aristoteacutelica contra as distorccedilotildees escolaacutesticas conciliando-o com a

filosofia dos rdquomodernosrdquo publicadas sob o tiacutetulo Philosophia Aristoteacutelica

Restituta

D Joatildeo V leva ainda a cabo diversas iniciativas visando integrar na cultura

portuguesa o ensino das ciecircncias e da filosofia moderna tendo chamado a

atenccedilatildeo para a necessidade de envio dos nossos estudantes para as grandes

universidades e academias europeias Foi iniciada por Jacob de Castro

Sarmento a traduccedilatildeo das obras de Bacon para portuguecircs o que nunca veio a

ser concluiacutedo (tratando-se segundo Orlando Vitorino da primeira tentativa de

traduzir uma obra por motivos especificamente filosoacuteficos) mas este autor

publicou em 1737 a obra Teoacuterica Verdadeira das Mareacutes Conforme Philosophia

do Incomparaacutevel Cavalheiro Isaac Newton

A deacutecada de 40 ainda sob o reinado de D Joatildeo V ficaraacute marcada pela

publicaccedilatildeo dos dois principais textos do iluminismo portuguecircs A Loacutegica

Racional Geomeacutetrica e Analiacutetica do engenheiro Manuel de Azevedo Fontes

(1744) e o Verdadeiro Meacutetodo de Estudar de Luiacutes Antoacutenio Verney (1746) Esta

uacuteltima obra centrada nos defeitos do ensino e na decadecircncia da cultura

portuguesa dirigia uma criacutetica contundente agrave escolaacutestica e fazia apologia dum

ensino moderno livre dos artifiacutecios da loacutegica silogiacutestica dos problemas

escotistas nominalistas e outros grupos seguiam o caminho tradicional da filosofiaOposto era o grupo

dos modernos (recentiores) que buscava um novo caminho para a filosofofia Por fim apresentaram-se os

ecleacutecticos que procuraram uma independecircncia pessoal frente agraves escolas laquoNovadores e ecleacuteticos foram os

pioneiros do pensamento moderno em Portugal Aparentava-os a concepccedilatildeo mecanicista da natureza e

tinham por si em vez da autoridade e da tradiccedilatildeo da escola os notaacuteveis progressos cientiacuteficos no domiacutenio

da Matemaacutetica e da Fiacutesica e a galeria vasta de grandes nomes do seacuteculo Uns e outros foram os agentes

mais ou menos activos e propulsores da criacutetica e do desapreccedilo da siacutentese escolaacutesticahellipraquordquo (Ob cit 439)

194

nebulosos da metafiacutesica orientado para a ldquofilosofia naturalrdquo291 e a

aprendizagem das liacutenguas modernas preconizando uma aproximaccedilatildeo agraves

modernas ideias pedagoacutegicas em vigor na Europa

Para a nossa temaacutetica eacute particularmente importante a posiccedilatildeo de Verney

relativamente agrave afirmaccedilatildeo das liacutenguas modernas ou ldquovulgaresrdquo como liacutenguas

de difusatildeo do pensamento filosoacutefico e do conhecimento cientiacutefico Esta

preocupaccedilatildeo leva Verney a exigir o ensino da Gramaacutetica e da Ortografia

portuguesas como meio de elevar a liacutengua portuguesa a uma liacutengua culta

retirando-a do estatuto de menoridade relativamente ao latim ldquo A Gramaacutetica eacute

a arte de escrever e falar correctamente Todos aprendem a sua liacutengua no

berccedilo mas se acaso se contentam com essa notiacutecia nunca falaratildeo como

homens doutos Os primeiros mestres das liacutenguas vivas comummente satildeo

mulheres ou gente de pouca literatura de que vem que se aprende a proacutepria

liacutengua com muito erro e palavra improacutepria e pela maior parte palavras

plebeias Eacute necessaacuterio emendar com estudo os erros daquela primeira

doutrinardquo292

Que esta preocupaccedilatildeo de normalizar e disciplinar a aprendizagem da liacutengua

portuguesa marcha a par da preocupaccedilatildeo da aprendizagem das ciecircncias eacute

explicitamente afirmado pelo proacuteprio autor que no apecircndice dedicado agrave

aprendizagem das liacutenguas modernas reafirma a convicccedilatildeo de todos os

espiacuteritos modernos de que as ciecircncias se podem estudar em todas as liacutenguas e

de que ldquoa maior dificuldade das Ciecircncias consiste em elas serem escritas em

Latim liacutengua que os rapazes natildeo entendem bem ldquo293 As criacuteticas de Verney agraves

tentativas de aprender a liacutengua portuguesa atraveacutes da poesia assim como as

severas criacuteticas agrave retoacuterica do Pe Antoacutenio Vieira e agrave poesia de Camotildees no

volume dedicado aos estudos literaacuterios satildeo tambeacutem indicadores do sentido em

que se pretende fazer evoluir a liacutengua294

Outra das frentes deste combate de Verney em prole da actualizaccedilatildeo cientiacutefica

dos portugueses foi a apologia da aprendizagem das liacutenguas estrangeiras

ldquoForam os romanos os primeiros que aprenderam voluntariamente liacutengua

291

O repuacutedio da escolaacutestica no seacuteculo XVIII portuguecircs assentava no repuacutedio da Loacutegica formal da Fiacutesica

qualitativa e da concepccedilatildeo das formas substanciais Cf ob cit 440 292

Luiacutes Antoacutenio Verney O Verdadeiro Meacutetodo de Estudar vol I Lisboa Livraria Saacute da Costa 1949

2627 293

Ibidem vol I 273 294

Cf Ibidem vol II 177-197 e 302-323

195

estrangeira o que natildeo consta que povo algum antes deles tivesse feito E

nisto me parecem mais racionaacuteveis porque conhecendo a necessidade dela

para o estudo da Filosofia Matemaacutetica e Belas-Letras natildeo se envergonharam

de receber liccedilotildees daqueles mesmos a quem tinham vencido e davam leis Este

eacute um grande elogio para uma naccedilatildeo tatildeo considerada como a romana conhecer

que eacute vencida em merecimento e confessar publicamente esse vencimento e

pocircr remeacutedio a essa faltardquo295

Natildeo deixa no entanto de ser sintomaacutetico do sentido desta abertura agrave

modernidade que as liacutenguas que ele reputava como mais importantes para a

difusatildeo das ideias modernas fossem o italiano e o francecircs liacutenguas latinas

coabitando o mesmo espaccedilo da Contra-Reforma O proacuteprio Verney cuja

influecircncia determinante parece ter sido o da filosofia de John Locke leu este

autor traduzido para francecircs liacutengua que dominava desde o berccedilo por ser de

ascendecircncia francesa

A reforma pombalina parcialmente inspirada na obra de Verney culminou com

a reforma da Universidade de Coimbra em 1772296 Como parte desta reforma

foi criado o primeiro Gabinete de Fiacutesica Experimental ldquopara Depoacutesito De

Maacutequinas Aparelhos e Instrumentos os quais satildeo necessaacuterios para que as

liccedilotildees de Fiacutesica se faccedilam com aproveitamento dos estudantesrdquo Tais aparelhos

tornaram possiacuteveis aulas de fiacutesica experimental em que conforme acontecia na

Europa se recriavam o rei as cortes e mesmo o publico em geral mas nunca

foram capazes de fundar um ensino experimental nem de estimular praacuteticas de

investigaccedilatildeo na Universidade

A par de uma inspiraccedilatildeo empirista havia no entanto tambeacutem na referida

reforma uma influecircncia cartesiana bem patente nos novos estatutos da

Universidade Uma das justificaccedilotildees fundamentais da reforma pombalina foi a

tese de que os jesuiacutetas teriam produzido grandes danos relativamente ao

295

Ibidem vol I 2829 296

Segundo Adolpho Crippa a reforma pombalina da Universidade de 1972 teve uma inspiraccedilatildeo

empirista bem patente na adopccedilatildeo das Instituiccedilotildees de Loacutegica de Genovesi como manual de estudo Sob a

influecircncia das teorias empiristas de John Locke e Bacon que chegavam a Portugal de modo indirecto

atraveacutes de comentadores endureceu-se a criacutetica agrave escolaacutestica e adoptou-se uma afirmaccedilatildeo mais radical da

capacidade da razatildeo natural para coordenar os dados da experiecircncia do mesmo modo a reflexatildeo

filosoacutefica deveria acompanhar o trabalho das ciecircncias dependendo directamente da observaccedilatildeo A

reivindicaccedilatildeo da autonomia da Fiacutesica em relaccedilatildeo agrave metafiacutesica e a convicccedilatildeo na sua possibilidade de tudo

conhecer era tambeacutem um aspecto fundamental das teses destes ldquo modernosrdquo em que se inspirou a reforma

pombalina Nesta linha situavam-se Jacob de Castro Sarmento e Luiacutes Antoacutenio de Verney Cf rdquoConceito

de Filosofia na Eacutepoca Pombalinardquo in Actas do I Congresso Luso-Brasileiro de Filosofia 445

196

desenvolvimento cientiacutefico e agraves praacuteticas pedagoacutegicas Os jesuiacutetas eram

acusados de escamotear os problemas relativos agrave importacircncia do meacutetodo

mediante o qual fosse assegurada a ordem nos estudos e a progressatildeo dos

alunos e de adoptar procedimentos pedagoacutegicos que se afastavam da ordem

natural da razatildeo Neste discurso iluminista o meacutetodo dos jesuiacutetas era

designado como analiacutetico e criticado por fundar um tipo de ensino baseado no

comentaacuterio dos textos e numa interpretaccedilatildeo casuiacutestica que favorecia a

arbitrariedade e instalava a duacutevida tornando todas as mateacuterias disputaacuteveis e

arrastando como consequecircncia a falta de conexatildeo entre os conhecimentos e a

incerteza das conclusotildees

A reforma fazia nos estatutos da Universidade de Coimbra a apologia do novo

meacutetodo ldquonaturalrdquo aiacute apelidado de demonstrativo determinando que fosse

utilizado em todas as disciplinas desde a teologia a todas as ciecircncias e agraves

partes que as compotildeem O meacutetodo demonstrativo ou geomeacutetrico preconizava a

ordem da siacutentese como a ordem natural de aprendizagem das diversas

mateacuterias segundo o ideal da evidecircncia preconizado pela filosofia cartesiana

ldquopara mais se facilitar o estudo das ciecircncias e nelas se poderem fazer mais

vantajosos progressos natildeo haacute coisa que mais possa concorrer do que a

disposiccedilatildeo e distribuiccedilatildeo das mesmas ciecircncias e de todas as suas partes por

uma ordem e meacutetodo que primeiro se ensinem e aprendam as que preparem e

datildeo agrave luz para a inteligecircncia das outras e nelas se natildeo passe jamais de umas

proposiccedilotildees para as outras sem que as precedentes se tenham provado e

demonstrado com a maior evidecircncia de que elas foram susceptiacuteveis conforme

a sua natureza e princiacutepiosrdquo297

Este meacutetodo considerado ldquonaturalrdquo tem em vista a boa ordem de exposiccedilatildeo do

conhecimento a fim de se conseguir a rapidez e eficaacutecia do ensino contra a

apregoada morosidade e ineficaacutecia da disputatio em consonacircncia com o ideal

de ldquocertezardquo caracteriacutestico da ciecircncia moderna

Apesar da aparente radicalidade deste combate ao meacutetodo de ensino

escolaacutestico que teve a sua face mais visiacutevel na reforma da Universidade de

Coimbra e na extinccedilatildeo de todas as escolas do Reino cuja direcccedilatildeo estava

entregue agrave Companhia de Jesus esta abertura agrave modernidade natildeo significou

uma ruptura radical com os paradigmas escolaacutesticos

297

Estatutos da Universidade Coimbra (1772) Livro III parte II 142

197

Permanecendo a desconfianccedila face agrave filosofia que se desenvolvia nos paiacuteses

onde as controveacutersias de natureza religiosas e o protestantismo imperavam

como era o caso da Franccedila da Inglaterra e da Alemanha natildeo houve acesso ao

debate filosoacutefico sobre os princiacutepios da metafiacutesica aristoteacutelica nem aos

problemas mais complexos do seu confronto com a ciecircncia moderna

O Santo Ofiacutecio manteve-se e este continuou a sua acccedilatildeo em Portugal tendo-

se o Marquecircs de Pombal limitado a transferir os procedimentos contra os que

possuiacutessem ou vendessem livros proibidos para a Real Mesa Censoacuteria onde

estavam igualmente presentes os inquisidores298 Estando a obra de Galileu e

tambeacutem a de Descartes no Iacutendex os fundadores da ciecircncia e da metafiacutesica

modernas eram praticamente desconhecidos natildeo resultando clara a profunda

ruptura que o meacutetodo experimental implica com a experiecircncia natural e duma

forma geral com o saber empiacuterico

2 2 A Criacutetica agrave tradiccedilatildeo escolaacutestica e o ecletismo filosoacutefico

O pensamento portuguecircs deste periacuteodo teve (como em toda a Europa) como

caracteriacutestica marcante a afirmaccedilatildeo de um ideal de progresso alicerccedilado na

razatildeo e considerado incompatiacutevel com a tradiccedilatildeo escolaacutestica fazendo por isso

a condenaccedilatildeo absoluta do aristotelismo e de toda a tendecircncia metafiacutesica e

especulativa em filosofia

No entanto o tom apologeacutetico insultuoso e persecutoacuterio da criacutetica agrave

escolaacutestica bem expressos nos proacuteprios estatutos da Universidade de

Coimbra oculta um facto que teraacute para o futuro da nossa cultura uma influecircncia

capital em vez de participar do confronto teoacuterico da ciecircncia moderna com a

metafiacutesica aristoteacutelica e os paradigmas do saber escolaacutestico em que toda a

filosofia europeia moderna participou os intelectuais e a cultura portugueses

ficaram arredados desse debate

Assim em vez participar no caminho da criacutetica aberta por Galileu e Descartes

a maior parte da inteligecircncia portuguesa foi levada a optar pela simples

amputaccedilatildeo natildeo soacute da filosofia escolaacutestica como de toda a metafiacutesica

doravante substituiacuteda pela ldquofilosofia naturalrdquo ou pela ldquofiacutesicardquo o que se

anunciava jaacute em Verney

298

Cf Lopes Praccedila Histoacuteria da Filosofia em Portugal Lisboa Guimaratildees Editores 1974 276

198

Efectivamente a criacutetica mordaz e contundente agrave escolaacutestica do volume do

Verdadeiro Meacutetodo de Estudar dedicado aos estudos filosoacuteficos centra-se na

criacutetica aos argumentos de autoridade fundados em Aristoacuteteles na Biacuteblia e nos

decretos papais299 e exige o livre exame da razatildeo de todos os autores da

filosofia moderna exigecircncia muito mais ambiciosa do que o que foi

efectivamente realizado pela reforma pombalina Contudo para Verney esta

abertura agrave modernidade significa no plano concreto dos estudos cuja reforma

se pretende implantar a simples supressatildeo da metafiacutesica e a substituiccedilatildeo da

filosofia pela ciecircncia ldquoEu suponho que a Filosofia eacute conhecer as coisas pelas

suas causas ou conhecer a verdadeira causa das coisas Esta definiccedilatildeo

recebem os mesmos Peripateacuteticos ainda que eles a explicam com palavras

mais obscuras Mas chamem-lhe como quiserem vem a significar o mesmo

vg saber qual eacute a verdadeira causa que faz subir a aacutegua na seringa eacute

Filosofia conhecer a verdadeira causa por que a poacutelvora acesa em uma mina

despedaccedila um grande penhasco eacute Filosofia outras coisas a estas

semelhantes em que pode entrar a verdadeira notiacutecia das causas das coisas

satildeo Filosofiardquo300

Esta amputaccedilatildeo da metafiacutesica impossibilitava a compreensatildeo do essencial da

viragem para a modernidade - sem uma clara consciecircncia dos fundamentos

ontoloacutegicos da revoluccedilatildeo cientiacutefica do seacuteculo XVII nem se ter uma verdadeira

compreensatildeo do meacutetodo cientiacutefico instaurou-se uma compreensatildeo vaga

superficial e empirista da ciecircncia moderna e toda a poleacutemica propriamente

filosoacutefica se centrou na condenaccedilatildeo da metafiacutesica e numa exaltaccedilatildeo da ciecircncia

experimental inspirada em Newton e num debate dos problemas

gnosioloacutegicos dominado pelas posiccedilotildees empiristas relativas agrave origem do

conhecimento sem preocupaccedilotildees de rigor ou de precisatildeo conceptual

Segundo Adolpho Crippa301 a criacutetica de Gassendi a Aristoacuteteles influenciou

fortemente os pensadores portugueses deste periacuteodo induzindo numa criacutetica agrave

filosofia Aristoteacutelica como um vazio jogo de palavras e propondo a experiecircncia

como uacutenica via para a explicaccedilatildeo dos fenoacutemenos fiacutesicos A obra de Gassendi

teria chegado a Portugal atraveacutes do Abregeacute de Philosophie de Gassendi de

299

Luis Antoacutenio Verney O Verdadeiro Meacutetodo de Estudar vol III 89 300

Ibidem vol III 39 301

Cf Adolpho Crippa ldquoConceito de filosofia na eacutepoca pombalinardquo in Actas do I Congresso Luso-

Brasileiro de Filosofia 436-459

199

Bernier (1678) isto eacute atraveacutes de divulgadores e teria sido ldquodada a confusatildeo

generalizadardquo frequentemente confundida com a filosofia cartesiana

Relativamente a Descartes a primeira alusatildeo que lhe eacute feita em Portugal

remonta a 1649 no ldquoCursos Philosophicusrdquo de Francisco Soares Lusitano a

propoacutesito da circulaccedilatildeo do sangue embora se suponha que jaacute existisse um

conhecimento indirecto da obra de Descartes atraveacutes da presenccedila em Portugal

do matemaacutetico P Ciermans e do engenheiro Joatildeo Gillot disciacutepulo do filoacutesofo

francecircs

O Cursos Philosophicus de Antoacutenio Cordeiro (1676-1680) revela tambeacutem um

conhecimento das teorias de Gassendi e Descartes (apesar de omitir qualquer

citaccedilatildeo expliacutecita) assim como a tentativa ecleacutectica de conciliaccedilatildeo com a filosofia

escolaacutestica

Apesar das controveacutersias geradas em toda a Europa pela filosofia cartesiana

ela parece duma forma geral ser mal conhecida em Portugal e o proacuteprio

Verney no Verdadeiro Meacutetodo de Estudar distancia-se de Descartes

considerando o seu sistema ldquomais engenhoso do que verdadeirordquo

Ainda segundo Adolpho Crippa a situaccedilatildeo filosoacutefica durante a segunda metade

do seacuteculo XVIII em Portugal eacute atravessada por controveacutersias pouco claras entre

os defensores da tradiccedilatildeo escolaacutestica e os defensores das novidades

cientiacuteficas entre os quais se contavam frequentemente confundidos uns com

os outros gassendistas e cartesianos As dificuldades de conciliar as

exigecircncias da tradiccedilatildeo metafiacutesica com as exigecircncias da fiacutesica moderna

dominavam estas controveacutersias que dado o contexto poliacutetico-religioso e as

dificuldades no contacto com os centros onde conhecia maior desenvolvimento

a filosofia moderna tambeacutem natildeo poderiam facilmente alcanccedilar uma

clarificaccedilatildeo

Deste modo a tese heideggeriana de que natildeo deixamos de estar sob o efeito

de uma tradiccedilatildeo apenas por a querermos suprimir mas que ela subsiste soacute

que de forma inconsciente e confusa tem aqui uma brilhante confirmaccedilatildeo De

facto os dois paradigmas fundamentais da tradiccedilatildeo escolaacutestica continuaram a

persistir entre noacutes incoacutelumes por um lado continuou a vigorar a aceitaccedilatildeo da

autoridade religiosa baseada na revelaccedilatildeo como indiscutiacutevel (materialmente

apoiada pela actividade da Real Mesa Censoacuteria) por outro lado a maioria dos

iluministas portugueses natildeo rompeu com o paradigma geocecircntrico adoptando

200

a soluccedilatildeo de compromisso de Ticho Brahe que salvaguardava a autoridade da

igreja e o geocentrismo

A tiacutetulo de exemplo podemos referir Frei Manuel do Cenaacuteculo302 um dos

nossos iluministas mais prestigiados que natildeo hesitava em recomendar a

substituiccedilatildeo da loacutegica aristoteacutelica pelo meacutetodo geomeacutetrico dos modernos

reafirmando simultaneamente de uma forma geral a subordinaccedilatildeo do uso da

razatildeo individual agrave autoridade da tradiccedilatildeo religiosa Tal indicaccedilatildeo do dever de

subordinaccedilatildeo da razatildeo agrave autoridade dos textos sagrados pode inferir-se

claramente desta afirmaccedilatildeo de uma das suas Instruccedilotildees Pastorais ldquo Este

pensamento nos leva a dizer do Homem posto em Sociedade Contrahe neste

estado Grandes Obrigaccedilotildees determinadas por direitos merecedores de mais

exacta observacircncia A igualdade e a independecircncia muacutetua que a Natureza deo

a todos os homens natildeo lhes devem servir para abusar pois tem sujeiccedilatildeo a um

Senhor e a Leis Sacrossantas que os obriga a governarem-se que confira

dignidade e Justiccedila agraves suas Acccedilotildeesrdquo303 Que tal subordinaccedilatildeo natildeo visava

simplesmente a ordem praacutetica da acccedilatildeo mas envolvia igualmente o domiacutenio

teoacuterico da especulaccedilatildeo sobre questotildees metafiacutesicas eacute sublinhado por Frei

Manuel do Cenaacuteculo em Cuidados Literaacuterios com a indicaccedilatildeo de que tais

questotildees devem ser resolvidas ldquopelos textos da Sagrada Escritura tradiccedilatildeo

Conciacutelios e Santos Padresrdquo304

Quanto agrave vigecircncia do paradigma geocecircntrico haacute que recordar que ele

continuou a manter-se entre noacutes e a ser ensinado nas caacutetedras universitaacuterias

com as correcccedilotildees introduzidas por Ticho Brahe coexistindo aiacute de forma

paradoxal com a fiacutesica de Newton e a mecacircnica de Galileu ateacute aos fins do

seacuteculo XVIII Esta posiccedilatildeo ecleacutectica no domiacutenio da ciecircncia encontra-se bem

documentada aliaacutes na obra de Verney o qual reporta sem qualquer

apreciaccedilatildeo criacutetica a coexistecircncia dos modelos cosmoloacutegicos de Copeacuternico e

302

Sobre o papel da Congregaccedilatildeo do Oratoacuterio ordem religiosa criada em Franccedila criacutetica do aristotelismo

e rival dos Jesuiacutetas que entrou em Portugal no reinado de D Joatildeo V cf Maria Cacircndida Monteiro

Pacheco em ldquoFilosofia e Ciecircncia no Pensamento Portuguecircs dos sec XVII e XVIIIrdquo Actas do Congresso

Luso-Brasileiro de Filosofia 482 303

Frei Manuel do Cenaacuteculo Da Instruccedilatildeo Pastoral do Excelentiacutessimo e Reverendiacutessimo Senhor Bispo de

Beja sobre as virtudes da ordem natural Lisboa Na Regia Officina Typografica 1785 38-39 304

Cf Frei Manuel do Cenaacuteculo Dos Cuidados Literaacuterios do prelado de Beja em graccedila do seu bispado

Lisboa Na Officina de Simatildeo Thadeo Ferreira 1791 117-118

201

Ticho Brahe admitindo-os igualmente como ficccedilotildees hipoteacuteticas sendo o

empirismo de Bacon a verdadeira pedra basilar da Ciecircncia moderna305

Este ecletismo vecirc-se em Verney elevado a uma ldquofilosofiardquo caracterizada pela

prudente aceitaccedilatildeo de verdades fundadas na experiecircncia e na recusa de

qualquer sistema ldquoEste eacute o sistema moderno natildeo ter sistema e soacute assim eacute que

se tem descoberto alguma verdade Livre de paixatildeo cada Filoacutesofo propotildee as

suas razotildees sobre as coisas que observa as que satildeo claras e certas abraccedilam-

se as que satildeo duvidosas ou se rejeitam ou se recebem no grau de

conjecturasrdquo306

Esta reivindicaccedilatildeo do livre exame da verdade e da autonomia da razatildeo que

parece em Verney estar associada agrave rejeiccedilatildeo dos sistemas natildeo foi no entanto

o espiacuterito que animou a reforma pombalina nem a sua criacutetica agrave tradiccedilatildeo

escolaacutestica

Uma pequena anedota referida por Antoacutenio Paim307 serve para ilustrar a

relaccedilatildeo das instituiccedilotildees de ensino do iluminismo de Pombal com a tradiccedilatildeo

filosoacutefica Tendo mandado na ediccedilatildeo Portuguesa das Instituiccedilotildees de Loacutegica

retirar a referecircncia de Genovesi a Aristoacuteteles como criador da loacutegica Pombal

explica nestes termos a sua determinaccedilatildeo numa carta ao reitor-reformador D

Francisco de Lemos ldquosempre o nome de um filoacutesofo tatildeo abominaacutevel se deve

procurar antes esqueccedila nas liccedilotildees de Coimbra do que se apresente aos olhos

dos acadeacutemicos como um atendiacutevel corifeu da filosofiardquo

O ensino ldquoreformadordquo da filosofia passou a ser feito pelos referidos compecircndios

de Genovesi autor ecleacutectico italiano308 de que em Portugal se adoptou uma

obra de divulgaccedilatildeo simplificada309

305

Cf Luiacutes Antoacutenio Verney O Verdadeiro Meacutetodo de Estudar vol III 30-31 306

Ibidem vol III 1950 202 307

Antoacutenio Paim ldquoAs Luzes no Brasilrdquo in Histoacuteria do Pensamento Filosoacutefico Portuguecircs Lisboa 1999

Vol III 475 308

ldquoAntoacutenio Genovesi professor em Naacutepoles conhecedor e tradutor de Locke ecleacutectico e empirista

adversaacuterio incansaacutevel de qualquer tipo de inatismo causou profunda impressatildeo em Verney Segundo ele

mesmo temos ambos as mesmas opiniotildees e o mesmo sistema de filosofiardquo As instituiccedilotildees de Loacutegica de

Genovesi que deveriam oferecer o suporte epistemoloacutegico para a arrancada em busca da ciecircncia

moderna natildeo iam aleacutem de um modesto texto de loacutegica escrito para rdquogiovanettirdquo Apesar disso

incorporada ao pensamento oficial portuguecircs e tornadas obrigatoacuterias no ensino impressionavam sobretudo

pelo facto de que reuniam aspectos da loacutegica tradicional e enunciados da moderna teoria do

conhecimento sem a preocupaccedilatildeo de aprofundaacute-lasrdquo Adolpho Crippa ldquoConceito de filosofia na eacutepoca

pombalinardquo in Actas do I Congresso Luso-Brasileiro de Filosofia 447 Segundo Adolpho Crippa o

problema fundamental de que se ocupava o pensador italiano era o das origens das ideias na linha do

empirismo de John Locke procurando conciliaacute-la com o aristotelismordquo (Ob cit 447)

202

2 3 Linguagem e traduccedilatildeo

Um outro aspecto da feiccedilatildeo ecleacutectica do iluminismo portuguecircs diz respeito agrave

temaacutetica das liacutenguas e tem uma importacircncia central para o problema da

traduccedilatildeo filosoacutefica Sob o impeacuterio da influecircncia da escola de Port Royal Verney

tem tambeacutem como preocupaccedilatildeo a procura da liacutengua perfeita (que para os

teoacutericos de Port Royal era o francecircs) dando por conseguinte grande

importacircncia ao estudo da Gramaacutetica Contudo em Verney esta preocupaccedilatildeo

toma corpo numa Gramaacutetica Latina capaz de disciplinar o ensino do latim e de

simplificar o uso da liacutengua libertando-o dos formalismos da retoacuterica Verney

compocircs uma parte da sua proacutepria obra em latim na continuaccedilatildeo da tradiccedilatildeo

escolaacutestica

Verney apercebeu-se claramente como acima vimos da queda do latim como

liacutengua universal das comunicaccedilotildees cientiacuteficas e filosoacuteficas e da sua

substituiccedilatildeo pela pluralidade das liacutenguas nacionais O renascimento cultural

portuguecircs eacute visto como consequecircncia da abertura agrave produccedilatildeo cientiacutefica e

filosoacutefica europeiardquo[] soacute acho vestiacutegios de maior erudiccedilatildeo quando a este

reino vinham ensinar os estrangeiros ou quando os portugueses iam aprender

e ensinar fora dele Pelo contraacuterio depois que se deixou este comeacutercio literaacuterio

vejo as coisas muito mudadasrdquo310 Na sequecircncia desta tese apela Verney

como acima vimos para a necessidade de aprender francecircs e italiano ldquoseria

tambeacutem justo que o estudante com o tempo aprendesse Francecircs e Italiano

para poder ler as maravilhosas obras que nestas liacutenguas se tem composto em

todas as ciecircncias de que natildeo temos traduccedilotildees latinasrdquo311

Natildeo haacute contudo na sua obra O Verdadeiro Meacutetodo de Estudar nenhuma

referecircncia agrave necessidade de traduccedilatildeo destas obras para a liacutengua portuguesa

sendo a traduccedilatildeo aiacute ainda pensada (como pode deduzir-se do trecho citado)

como uma operaccedilatildeo de traduccedilatildeo das vaacuterias liacutenguas nacionais para o latim o

que pressupotildee que se continua a aceitar apesar de tudo o latim como liacutengua

universal de comunicaccedilatildeo cientiacutefica

309

Antoacutenio Paim analisa as implicaccedilotildees da versatildeo da obra de Genovesi que circulava em Portugal e no

Brasil nos capiacutetulos sobre Loacutegica Fiacutesica e Teoria do Conhecimento concluindo que elas iam no sentido

de obscurecer o sentido da ciecircncia moderna e romper o contacto com a filosofia assim como de um

afunilar a discussatildeo dos problemas do conhecimento centrando-a nas dificuldades internas da corrente

empirista (Cf ldquoAs Luzes no Brasilrdquo in Histoacuteria do Pensamento Filosoacutefico Portuguecircs vol III 446-447) 310

Luiacutes Antoacutenio Verney O Verdadeiro Meacutetodo de Estudar vol I 268 311

Ibidem vol I 272273

203

As Instituiccedilotildees de Loacutegicas e Metafiacutesica de Antoacutenio Genovesi - apesar de ser

um texto escolar usado para o ensino da filosofia escrito pelo autor como uma

exposiccedilatildeo simplificada da filosofia para jovens sob a designaccedilatildeo de La logica

per i giovanetti - circulavam em ediccedilotildees latinas e soacute em 1786 foram traduzidas

para Portuguecircs as Instituiccedilotildees Metafiacutesicas do mesmo Genovesi foram

traduzidas em 1790 As Instituitiones de Philosophiae Praticae de Eduardo Job

usadas como compecircndio para o ensino da filosofia moral foram editadas

sucessivamente em latim a partir de 1784 soacute sendo traduzidas em 1846 por

Joatildeo Baptista Correia Magalhatildees312

Para aleacutem das traduccedilotildees referidas feitas com fins pedagoacutegicos as restantes

traduccedilotildees efectuadas neste periacuteodo contemplam autores claacutessicos

testemunhando sobretudo o peso que a retoacuterica claacutessica e a filosofia

aristoteacutelica (apesar da sua condenaccedilatildeo expliacutecita) continuavam ainda a ter (ver

anexo I)

Este periacuteodo do pensamento portuguecircs eacute pois largamente dominado pelo

peso de preconceitos instituiacutedos e impostos de modo coercitivo ditados agora

pelo ideaacuterio de um ldquoiluminismo catoacutelicordquo protagonizado por Pombal que rejeita

a tradiccedilatildeo metafiacutesica e pretende abrir-se agrave filosofia e agrave ciecircncia modernas sem

contudo estar disposto a sujeitar-se ao confronto com os textos que pretende

criticar ou exaltar (e que tambeacutem natildeo haacute a preocupaccedilatildeo de traduzir) A

destituiccedilatildeo das caacutetedras de filosofia no ensino superior substituiacutedas pelo

ensino das ciecircncias naturais contribuiu para fragilizar ainda mais a apropriaccedilatildeo

e transmissatildeo da tradiccedilatildeo filosoacutefica sem que por outro lado a esta amputaccedilatildeo

correspondesse um progresso notaacutevel no campo da investigaccedilatildeo cientiacutefica ou

da criaccedilatildeo de uma mentalidade cientiacutefica313

312

Analisando esta obra cuja ediccedilatildeo latina estava truncada sendo omisso o uacuteltimo capiacutetulo sobre a

Poliacutetica Antoacutenio Paim conclui que a obra difundia a ideia da dependecircncia da poliacutetica em relaccedilatildeo agrave

teologia moral e fazia a apologia directa da monarquia absoluta distanciando-se da moralidade moderna

O autor sublinha ainda o efeito pedagoacutegico perverso da combinaccedilatildeo da versatildeo simplificada da obra de

Genovesi com as Instituiccedilotildees de Filosofia Praacutetica de Eduardo Job no sentido de facilitar a criaccedilatildeo nos

jovens de um espiacuterito dogmaacutetico (Cf ldquoAs Luzes no Brasilrdquo in Histoacuteria do Pensamento Filosoacutefico

Portuguecircs vol III 447-453) 313

Antoacutenio Paim ressalva o campo da mineralogia onde pelo seu impacto econoacutemico directo houve um

surto de investigadores No geral poreacutem confirma a apreciaccedilatildeo de que a reforma Pombalina natildeo

conseguiu estimular a investigaccedilatildeo cientigravefica ldquoAntecedendo de meio seacuteculo a providecircncia adoptada por

Napoleatildeo o Marquecircs de Pombal destroacutei a universidade medieval erguendo em seu lugar uma nova

universidade constituiacuteda agrave volta da ciecircncia

Salvo no que respeita agrave mineralogia a incorporaccedilatildeo da ciecircncia moderna em Portugal com a reforma de

1772 natildeo logrou consolidar a pesquisa cientigraveficardquo (Cf Ibidem vol III 481) Segundo o mesmo autor no

que eacute seguido por Adolpho Crippa (cf ldquoConceito de filosofia na eacutepoca pombalinardquo in Actas do I

204

Este desaparecimento da filosofia das instituiccedilotildees de ensino superior significou

ainda a impossibilidade do desenvolvimento da investigaccedilatildeo de problemas

filosoacuteficos e o desaparecimento de haacutebitos de rigor e de fundamentaccedilatildeo das

opccedilotildees filosoacuteficas nos textos que tinham caracterizado o periacuteodo anterior

Neste contexto natildeo se podia fazer sentir a necessidade de progressos no

campo da traduccedilatildeo filosoacutefica

Para o problema que aqui nos ocupa eacute tambeacutem relevante chamar a atenccedilatildeo

para o modo rdquoinautecircnticordquo como se mantecircm e se transmitem de agora em

diante aspectos essenciais da tradiccedilatildeo escolaacutestica Natildeo sendo os seus textos

traduzidos nem ensinados ela teraacute doravante o mesmo destino de toda a

tradiccedilatildeo morta seraacute transmitida sob a forma de um modo de pensar banal e

tornado evidente donde estaacute inteiramente ausente a consciecircncia expliacutecita de

uma tradiccedilatildeo que se trata de legitimar ou de refutar e que se concilia de modo

inconsciente e confuso com a filosofia moderna

3 A mediaccedilatildeo francoacutefona e o ldquoeclipse da filosofiardquo

3 1 O ecletismo de Victor Cousin

Antero de Quental retrata desta forma a submissatildeo cultural a Franccedila em vigor

em Portugal durante o seacuteculo XIX ldquo[] Portugal literariamente eacute quase uma

proviacutencia da Franccedila [] os proacuteprios compecircndios em muitas das caacutetedras de

instruccedilatildeo secundaacuteria e superior satildeo francesas As causas deste singular e

quanto a mim deploraacutevel fenoacutemeno satildeo muitas sendo talvez a principal o facto

de que o regime constitucional em Portugal foi estabelecido por homens que

todos tinham passado largos anos emigrados em Franccedila ndash Trouxeram de laacute as

leis as ideias e tudo que caacute implantaram em oacutedio agraves coisas nacionais

tornando deste modo a inteligecircncia portuguesa feudataacuteria da Franccedilardquo314

A ausecircncia de haacutebitos de traduccedilatildeo das obras filosoacuteficas e cientiacuteficas levava a

que no seacuteculo XIX conforme Antero sublinha os proacuteprios manuais de ensino

fossem importados de Franccedila e lidos em liacutengua francesa Acresce ainda a isto

Congresso Luso-Brasileiro de Filosofia 449) no ciclo Pombalino a ciecircncia eacute incorporada agrave cultura Luso-

Brasileira num sentido muito preciso isto eacute como ciecircncia aplicada 314

Antero de Quental ldquoCarta a Tomazzo Canizzarro a 29 de Maio de 1888ldquo in Ana Maria Almeida

Martins (org) Cartas II 884

205

que a transmissatildeo da tradiccedilatildeo filosoacutefica seriamente fragilizada pela reforma

pombalina veio a sofrer mais um revecircs com a extinccedilatildeo da uacutenica cadeira de

Filosofia propriamente dita que ainda subsistia na Faculdade de Filosofia

eliminada por carta reacutegia de 24 de Janeiro de 1791 e substituiacuteda por uma

cadeira de botacircnica e agricultura315

O regresso da filosofia agrave Universidade haveria de fazer-se de forma tiacutemida com

a criaccedilatildeo do Curso Superior de Letras em Lisboa destinado ao ensino da

Histoacuteria da Literatura e da Filosofia Este abriu portas em 1861 ministrando

um curso de Filosofia de 2 anos que incluiacutea no curriculum apenas trecircs cadeiras

(Filosofia Filosofia e Histoacuteria da Filosofia e Histoacuteria Universal da Filosofia)

sendo frequentado por um nuacutemero irrisoacuterio de alunos (meacutedia anual de 2 alunos

ordinaacuterios e 36 voluntaacuterios) ateacute 1902

O ensino da Filosofia remetido para o secundaacuterio continuou a ser feito pelos

compecircndios de Genovesi apesar das criacuteticas que entretanto surgiam por parte

dos poucos pensadores dignos de nota deste periacuteodo como Silvestre Pinheiro

Ferreira e Cunha Rivara que exigiram sem resultado uma reforma do ensino

da filosofia e a aboliccedilatildeo dos manuais do Genovesi Foi apenas em 1884 que

por decreto de 20 de Setembro esse ensino foi reformado e substituiacutedo por

nova orientaccedilatildeo ecleacutectica influenciada pelo eclectismo francecircs de Victor

Cousin 316

Victor Cousin viu-se em Franccedila elevado agrave condiccedilatildeo de responsaacutevel pela

orientaccedilatildeo geral adoptada no ensino da filosofia preconizando uma completa

separaccedilatildeo entre a filosofia (isto eacute a investigaccedilatildeo sobre os problemas

filosoacuteficos) e a sua transmissatildeo que se confunde como a transmissatildeo de um

certo nuacutemero de ideias de reconhecida utilidade social317 resultantes da

conciliaccedilatildeo ecleacutectica dos vaacuterios sistemas filosoacuteficos

E foi este uacuteltimo aspecto que marcou a influecircncia de Victor Cousin em Portugal

onde foi progressivamente substituindo a influecircncia de Genovesi ateacute ser

315

Cf Manuel Maria Carrilho Razatildeo e Transmissatildeo da Filosofia Lisboa 1987 199-200 316

Ibidem 202 317

ldquoO essencial das teses sobre o ensino da filosofia encontra-se na obra de Cousin Deacutefense de

l‟Uacuteniversiteacute et de la Philosophie Cousin considera que eacute na instruccedilatildeo secundaacuteria que se produz a elite das

sociedades modernas pelo que este ensino deve visar acima de tudo a formaccedilatildeo geral dos homens como

cidadatildeos No plano de estudos do secundaacuterio a filosofia ocupa um papel muito importante visando dispor

os alunos agrave aceitaccedilatildeo da autoridade do Estado pelo desenvolvimento do espiacuterito onde devem ser

inculcadas ldquoas verdades naturais que estatildeo acima dos sistemas e natildeo pertencem a nenhuma escola mas ao

senso comumrdquo pois sem elas natildeo pode haver moral puacuteblica nem privadardquo Cf Ibidem 224

206

oficializada pela reforma de 1844 Este ecletismo constitui-se como rejeiccedilatildeo de

todos os sistemas que segundo Victor Cousin se reduzem a dois o

sensualismo anglo-francecircs e o idealismo alematildeo sistemas jaacute esgotados e

envelhecidos que se trata de salvar pela conciliaccedilatildeo ecleacutectica das suas

contradiccedilotildees 318

Este novo ecletismo que agora se impotildee na filosofia tem pois uma

caracteriacutestica diferente do anterior trata-se dum ecletismo filosoacutefico que natildeo

surge como resposta ao contexto cultural portuguecircs mas que eacute importado de

Franccedila 319A adopccedilatildeo oficial em Portugal do ecletismo de Victor Cousin

significou apenas a escolarizaccedilatildeo da filosofia para fins de utilidade social

pensados agrave luz do contexto histoacuterico-culrural francecircs

A importaccedilatildeo da filosofia em liacutengua francesa320 marcou todo o seacuteculo XIX e

explica a ausecircncia de traduccedilotildees de filosofia neste periacuteodo como pode

facilmente constatar-se pela leitura do apecircndice na sua rubrica relativa agraves

traduccedilotildees portuguesas de filosofia no seacuteculo XIX

A primeira consequecircncia deste facto eacute que neste periacuteodo se selecciona agrave

partida o que se importa e o que se lecirc a partir de revistas e outras publicaccedilotildees

francesas sujeitando-nos portanto a uma decisatildeo alheia sobre o que eacute

importante ler Mas a segunda e mais importante observaccedilatildeo podemos fazecirc-la

a partir do proacuteprio Heidegger e do que na sua obra eacute indicado sobre a estreita

ligaccedilatildeo entre a linguagem enquanto liacutengua dum povo histoacuterico e o exerciacutecio

318

Manuel Maria Carrilho defende que o eclectismo de Victor Cousin eacute um ecletismo do senso comum

porquanto pretende eliminar as diferenccedilas entre sistemas recorrendo a criteacuterios fundados no senso

comum O senso comum ver-se-ia assim elevado ao estatuto de autoridade filosoacutefica Ao senso comum

de Cousin falta por conseguinte uma perspectiva filosoacutefica do conflito das filosofias ou seja falta uma

abordagem filosoacutefica da histoacuteria da filosofia Ibidem 204-215 319

A defesa da funccedilatildeo social da filosofia feita por Cousin deve-se ao facto de que em Franccedila natildeo era jaacute

possiacutevel contar com a autoridade de nenhuma religiatildeo estabelecida para assegurar a coesatildeo social e

portanto era necessaacuterio que os cidadatildeos partilhassem certos princiacutepios sem recorrer a nenhuma

autoridade religiosa mas unicamente fundados na razatildeo Cousin procura assim uma filosofia para o

ensino que estimule uma posiccedilatildeo equidistante de todas as crenccedilas e de todos os sistemas filosoacuteficos

centrada nos princiacutepios estabelecidos a partir da razatildeo comum Esta estrateacutegia tem como pano de fundo a

total separaccedilatildeo entre filosofia e investigaccedilatildeo de problemas filosoacuteficos e a sua transmissatildeo considerada

como mateacuteria a ser decidida em funccedilatildeo da utilidade do ensino puacuteblico e dos interesses do Estado Cf

Ibidem 224 320

Testemunhos desta importaccedilatildeo do ecletismo francecircs foram a Memoacuteria de Cunha Rivara dirigida em

1839 ao Conselho Geral Director do Ensino Primaacuterio e Secundaacuterio onde se propotildee como orientaccedilatildeo para

o ensino da Filosofia o ecletismo de Cousin e o Discurso de Abertura de 1842 assim como no Novo

Discurso de 1843 de Manuel Pinheiro de Almeida de Azevedo em que o ecletismo de Cousin eacute

igualmente defendido como orientaccedilatildeo para o ensino Nos compecircndios esta nova orientaccedilatildeo ecleacutectica

impocircs-se a partir dos anos quarenta e cinquenta Contudo os novos manuais que substituiacuteram os de

Genovesi sem nunca os criticar nem alterar radicalmente a sua orientaccedilatildeo apresentavam-se antes como

um aprofundamento e correcccedilatildeo destes Tais factos levam Manuel Maria Carrilho a afirmar que a nova

orientaccedilatildeo ecleacutectica se apresenta como uma ldquopraacutetica de envelhecimentordquo Ibidem 236-238

207

do pensar Ler um autor em francecircs eacute necessariamente pensaacute-lo vertido para

formas linguiacutesticas que transportam e veiculam um sentido e essa

transposiccedilatildeo semacircntica implica a passagem a um outro horizonte cultural

Procedem-se assim na ausecircncia de traduccedilatildeo a transferecircncias culturais

mecacircnicas e natildeo a um diaacutelogo com os textos a partir de questotildees colocadas

pelo proacuteprio contexto cultural Foi esta importaccedilatildeo superficial e dogmaacutetica que

veio a caracterizar a recepccedilatildeo do positivismo francecircs que entre noacutes marcou as

instituiccedilotildees e a sociedade portuguesa ateacute tornar-se numa ldquoevidecircnciardquo ideoloacutegica

dominante nas classes cultas

3 2 O Positivismo

Criticando o dogmatismo positivista imperante nos meios poliacuteticos e nas

classes cultas e apontando com lucidez a sua raiz na ldquofalta de preparaccedilatildeo

filosoacuteficardquo dos portugueses Antero afirma ainda numa outra carta ldquoO

Positivismo como quasi todas as coisas banais e particularmente as

banalidades francesas parece claro simples e capaz de explicar tudo natildeo

pede aleacutem disso esforccedilo algum de inteligecircncia para ser compreendido eacute

finalmente coacutemodo como todos os dogmatismos estes defeitos satildeo as causas

do momentacircneo favor que encontra em espiacuteritos por um lado frouxos e sem a

menor preparaccedilatildeo filosoacutefica por outro lado impacientes de quebrarem o jugo

de doutrinas puramente convencionadasldquo321

O Positivismo de Augusto Comte retoma a temaacutetica do progresso introduzida

pelo iluminismo fundamentando-a contudo numa visatildeo linear e dogmaacutetica do

desenvolvimento da humanidade ao longo de trecircs estaacutedios teoloacutegico metafiacutesico

e positivo Toda a educaccedilatildeo teoloacutegica metafiacutesica e literaacuteria deveria segundo

este autor ser substituiacuteda por uma formaccedilatildeo positiva e da aplicaccedilatildeo dos

conhecimentos das ciecircncias naturais agrave rdquofiacutesica social ldquo esperava-se a soluccedilatildeo da

crise poliacutetica e moral que atravessava as naccedilotildees civilizadas Ela deveria permitir

a conciliaccedilatildeo do progresso e da ordem condiccedilotildees simultacircneas da civilizaccedilatildeo

moderna e de todo o sistema poliacutetico autecircntico

321

Antero de Quental ldquoCarta a Domingos Tarrosordquo 3 de Junho de 1881 em Ana Maria Almeida Martins

(org) Cartas I Lisboa 1989 561

208

A grande figura do positivismo francecircs natildeo foi poreacutem em Portugal Augusto

Comte mas Littreacute que em Franccedila publicara em 1876 a ldquorevista de Filosofia

Positivardquo e numerosos escritos de divulgaccedilatildeo da filosofia de Comte rejeitando

contudo a uacuteltima fase do seu pensamento de feiccedilatildeo acentuadamente miacutestica

expressa na sua doutrina da ldquoreligiatildeo da Humanidaderdquo

Esta versatildeo do positivismo comteano que valorizava sobretudo a ideia dum

conhecimento positivo e proibia a reflexatildeo sobre toda a temaacutetica metafiacutesica

adquiriu grande prestiacutegio em Portugal e no Brasil em certos meios cientiacuteficos

como foi entre noacutes o caso da medicina Seria poreacutem o positivismo poliacutetico que

haveria de granjear mais tarde grande popularidade322 estando directamente

ligado agrave acccedilatildeo dos liberais e numa segunda fase agrave acccedilatildeo poliacutetica do partido

republicano e a figuras poliacuteticas como Teoacutefilo de Braga Note-se contudo que

nenhuma traduccedilatildeo dos autores positivistas foi realizada neste periacuteodo para

liacutengua portuguesa

A influecircncia do positivismo foi em Portugal tambeacutem marcada pela influecircncia das

teorias de Darwin e Spencer assim como do monismo evolucionista de

Haeckel o grande defensor do evolucionismo na Alemanha que elevou esta

teoria a uma concepccedilatildeo geral do universo fundada na ideia da unidade da

natureza do orgacircnico e do inorgacircnico Na sua obra Natuumlrliche

Schoumlpfungsgeschichte (1868) Haeckel defende que a teoria de Darwin autoriza

uma teoria monista da evoluccedilatildeo que se contrapotildee agrave teoria dualiacutestica

implicitamente contida na explicaccedilatildeo teleoloacutegica do mundo

De Haeckel foram traduzidos 10 tiacutetulos o que testemunha claramente a

importacircncia que lhe atribuiacutea o positivismo portuguecircs De Spencer foi traduzido

Da Liberdade agrave Escravidatildeo por Juacutelio de Matos em 1904 e Do Progresso - sua

Lei e suas Causas por Eduardo Salgueiro em 1939 Apesar de algumas teses

defendidas na universidade de Coimbra sobre as teorias evolucionistas323 as

obras de Darwin tiveram entre noacutes uma traduccedilatildeo tardia tendo sido a sua obra

capital A Origem das Espeacutecies de 1859 traduzida apenas em 1913 por Joaquim

Daacute Mesquita Pauacutel

322

Segundo Zilach Cercal Didonet a experiecircncia da aplicaccedilatildeo das ideias de Comte sobre a organizaccedilatildeo da

sociedade foi feita pela primeira vez no mundo no Rio Grande do Sul onde a Constituiccedilatildeo de 14 de Julho

de 1891 estabeleceu a Ditatura Republicana Cf ldquo O Positivismo e a Constituiccedilatildeo Rio_Grandense de 14

de Julho de 1891rdquo Actas do I Congresso Luso-Brasileiro de Filosofia 598-518 323

Ana Leonor Pereira Darwin em Portugal [1865-1914] Coimbra Livraria Almedina 2001 7475

209

Devido ao generalizado haacutebito de recorrer a traduccedilotildees francesas disponiacuteveis

desde 1862 eacute presumiacutevel que muitos intelectuais portugueses jaacute tivessem tido

acesso agrave teoria de Darwin nessa liacutengua Com efeito por volta de 1910

numerosos artigos de divulgaccedilatildeo das teorias de Darwin surgiram no

ldquoAlmanache Ilustradordquo d‟O Seacuteculo coordenado pelo professor Agostinho Fortes

e noutras publicaccedilotildees

Teoacutefilo de Braga Juacutelio de Matos e Miguel Bombarda personalidades

marcantes na vida da Primeira Repuacuteblica assim como outros intelectuais

associados agrave revista ldquoO Positivismordquo contribuiacuteram tambeacutem para a difusatildeo dum

positivismo social e poliacutetico que procurava fazer a siacutentese entre o positivismo

comteano e o evolucionismo de Darwin Esta siacutentese alcanccedilou uma expressatildeo

original na sociologia de Teoacutefilo de Braga cujo projecto aparece formulado na

sua obra Traccedilos gerais de philosophia positiva comprovada pelas descobertas

cientiacuteficas modernas (Lisboa Nova Livraria Internacional 1877) como um

projecto de reorganizaccedilatildeo da sociologia fundando-a numa base natural mais

precisamente no facto bioloacutegico da populaccedilatildeo

Teoacutefilo de Braga vai tentar conciliar a sociologia positiva de Comte com as leis

da evoluccedilatildeo dos organismos e designadamente com a lei da selecccedilatildeo natural

procurando mostrar que a luta pela vida e a selecccedilatildeo natural contribuem para o

aperfeiccediloamento da espeacutecie e para uma melhor ordenaccedilatildeo social

Em princiacutepio esta tentativa de siacutentese parece afastar Teoacutefilo de Braga da

esfera de influecircncia tradicional da filosofia francesa pois em Franccedila o

positivismo foi sobretudo um obstaacuteculo agrave difusatildeo do Darwinismo que era

criticado agrave luz da ideia positivista de progresso Littreacute cuja influecircncia foi

muitiacutessimo importante em toda a Europa e decisiva no positivismo portuguecircs

aceitava o Darwinismo como uma hipoacutetese cientiacutefica natildeo verificada mas

rebatia todas as suas implicaccedilotildees sociais O princiacutepio da selecccedilatildeo natural

parecia ser estranha agrave lei dos 3 estados e a luta pela vida propor uma

conflitualidade social inconciliaacutevel com o postulado comteano do progresso

como desenvolvimento da ordem

A siacutentese original de Teoacutefilo de Braga entre Darwinismo e Positivismo

assentava na ideia de que a selecccedilatildeo natural e a luta pela vida teriam permitido

uma selecccedilatildeo positiva de sentimentos de solidariedade favoraacuteveis agrave

democracia e agrave coesatildeo social Esta siacutentese teria sido segundo a hipoacutetese de

210

Ana Leonor Ferreira sugerida a Teoacutefilo de Braga pela leitura duma traduccedilatildeo

francesa de Darwin que traduzia Darwin agrave luz de Lamark O princiacutepio de

Lamark da transmissatildeo hereditaacuteria dos caracteres adquiridos permite pensar o

progresso histoacuterico a partir da evoluccedilatildeo bioloacutegica

A respeito da possiacutevel influecircncia da traduccedilatildeo francesa da Origem das Espeacutecies

afirma Ana Leonor Pereira ldquoNatildeo eacute improvaacutevel que Teoacutefilo (tambeacutem)

conhecesse Darwin em Francecircs na traduccedilatildeo de Cleacutement Royer 324 Por essa

via Teoacutefilo ficava plenamente familiarizado com o princiacutepio de Lamark visto

que a tradutora tomava a liberdade de corrigir o texto de Darwin com notas e

comentaacuterios de sentido lamarkiano O seu objectivo era expliacutecita e

assumidamente o seguinte na conclusatildeo da tradutora ldquoc‟est donc comme

disciple de Lamark que j‟ai traduit Ch Darwinrdquo325

Juacutelio de Matos inspirando-se no sistema das ciecircncias de Augusto Comte e na

sua tentativa de fundar o estudo dos fenoacutemenos sociais no estudo das ciecircncias

da vida procedia contudo a uma total reformulaccedilatildeo da sociologia positiva de

Augusto Comte O meacutedico portuense queria fundar uma sociologia e uma

poliacutetica cientiacuteficas nos princiacutepios da luta pela vida e da selecccedilatildeo natural

darwinistas apesar de conhecer perfeitamente a resistecircncia da comunidade

cientiacutefica francesa ao paradigma evolucionista

Na sua Histoacuteria natural ilustrada326 ele dedica um capiacutetulo agrave evoluccedilatildeo do

homem segundo o paradigma evolucionista reproduzindo a posiccedilatildeo de Darwin

em The descent of man segundo a qual o homem natildeo teria nenhum atributo

especiacutefico que o distinguisse do reino animal Nos escritos sociopoliacuteticos

posteriores Juacutelio de Matos explora as implicaccedilotildees sociais dos princiacutepios da luta

pela vida e da selecccedilatildeo natural procurando neles fundar a poleacutemica contra as

teorias socialistas e anarquistas assim como uma criacutetica a todo o

proteccionismo social do Estado responsaacuteveis pela falsificaccedilatildeo da

concorrecircncia vital entre os indiviacuteduos e pela consequente decadecircncia das

sociedades

324

Charles Darwin De l‟Origine des espegraveces par seacutelection naturelle ou des lois de transformation des

ecirctres organiseacutes Traduction de Madame Cleacutemence Royer avec preacuteface et notes du traducteur Nouvelle

eacutedition revue d‟ apregraves l‟eacutedition steacutereacuteotype anglaise avec les additions de lacuteauteur Paris Librairie Marpon

et Flammarion sd -4ordf ediccedilatildeo [1882] 325

Ana Leonor Pereira Darwin em Portugal [1865-1914] 346 326

Juacutelio de Matos Histoacuteria natural illustrada Compilaccedilatildeo feita sobre os mais auctorizados trabalhos

zooloacutegicos Porto Livraria Universal [1880-1882]

211

Foram estas tentativas ecleacutecticas de conciliaccedilatildeo do positivismo de Comte com

o Darwinismo que vieram a marcar o positivismo da Primeira Repuacuteblica este

positivismo darwinista viria a constituir-se como uma espeacutecie de ldquoevidecircnciardquo

ideoloacutegica difusa na cultura portuguesa marcado pela exaltaccedilatildeo da ciecircncia e

pelo combate agrave tradiccedilatildeo religiosa e metafiacutesica patente na literatura de ficccedilatildeo

no ensaiacutesmo poliacutetico e nas instituiccedilotildees republicanas

Eacute necessaacuterio sublinhar o facto de os autores positivistas natildeo terem neste

periacuteodo sido traduzidos pois trata-se de um forte indiacutecio do modo superficial e

inautecircntico de ldquoadesatildeo ldquo a esta corrente filosoacutefica

Outra consequecircncia desta dominaccedilatildeo da francofonia foi o afastamento de

Portugal dos grandes centros de irradiaccedilatildeo do pensamento filosoacutefico europeu

que se situavam no seacuteculo XIX na Alemanha cujas ideias penetram em

Portugal e no Brasil tardiamente e numa primeira fase pela mediaccedilatildeo de

traduccedilotildees e comentadores franceses327

O contacto inicial com as ideias de Kant deu-se segundo Gama Caeiro atraveacutes

da Obra de Victor Cousin segundo outros autores atraveacutes da obra Filosofia de

Kant ou princiacutepios fundamentais da filosofia transcendental em francecircs de

Charles Villiers aparecida em 1801 Em Portugal segundo Cabral Moncada foi

Rodrigues de Brito o primeiro a fazer referecircncias a Kant (1803-1805) revelando

conhecer-lhe mal a doutrina Em Silvestre Pinheiro Ferreira figura importante

no contexto da cultura portuguesa da primeira metade do seacuteculo XIX notamos

uma rejeiccedilatildeo do idealismo kantiano como um ldquotenebroso barbarismordquo ao

mesmo tempo que manifesta um conhecimento superficial e incompleto do

filoacutesofo alematildeo328

Soacute em meados do seacuteculo XIX eacute que o kantismo conseguiria maior penetraccedilatildeo

nos meios universitaacuterios atraveacutes dos cursos de Direito onde o ensino da

Filosofia Juriacutedica se fazia desde a reforma pombalina sob a influecircncia de

pensadores alematildees como Wolff e Leibniz

327

Gama Caeiro refere a escassa presenccedila de Kant em Portugal em contraste com a situaccedilatildeo do Brasil

onde embora tardia a influecircncia de Kant natildeo deixou de ser assinalaacutevel - afirmaccedilatildeo corroborada tambeacutem

por Miguel Reale e Antoacutenio Paim Cf ldquoNotas acerca da recepccedilatildeo de Kant no pensamento filosoacutefico

Portuguecircsrdquo in Dinacircmica do pensar- Homenagem a Oswaldo Market Lisboa 1991 62 328

Silvestre Pinheiro Ferreira eacute uma das principais figuras do pensamento filosoacutefico portuguecircs do tempo

(1769-1846) fundando-se a sua obra num aristotelismo renovado no estudo das fontes gregas que

procura conciliar com a filosofia moderna (Bacon Locke Leibniz e Condillac) Mercecirc dos cargos

diplomaacuteticos que desempenhou teraacute estado na Alemanha onde teria tomado alguma notiacutecia da filosofia

de Kant que constantemente critica na sua obra sem contudo mostrar tecirc-lo compreendido Cf Gama

Caeiro obcit-64-65

212

Para renovar o ensino da Filosofia Juriacutedica no sentido do liberalismo reinante

na Europa e tambeacutem em Portugal desde 1834 Vicente Ferrer Neto Paiva foi de

novo buscar a sua inspiraccedilatildeo agrave Alemanha sem contudo conhecer em

profundidade nem a filosofia de Kant nem os autores poacutes kantianos como

Fichte Schelling ou Hegel

O autor Alematildeo a que Ferrer foi buscar a sua inspiraccedilatildeo para o curso de Direito

foi a um filoacutesofo ldquokantianordquo de importacircncia menor no seu proacuteprio paiacutes Karl

Friederich Krause cuja obra tinha sido divulgada em liacutengua francesa pelo seu

disciacutepulo Ahrens A obra de Ahrens de que surgiu uma traduccedilatildeo portuguesa

em 1844 teria contribuiacutedo decisivamente segundo Cabral Moncada para a

publicaccedilatildeo dos Elementos de direito natural obra na qual Ferrer proclama a

sua emancipaccedilatildeo em relaccedilatildeo agrave filosofia de Wolff e dos escolaacutesticos329 A

corrente de pensamento de inspiraccedilatildeo krausista ter-se-ia expandido tambeacutem agrave

Faculdade de Letras onde inspiraria o ensino filosoacutefico no Curso Superior de

Letras ateacute agrave deacutecada de 70 do seacuteculo XIX assim como agraves Faculdades de Direito

de Satildeo Paulo e de Olinda330

Das traduccedilotildees efectuadas durante o seacuteculo XIX destacam-se apenas como

importantes as de autores claacutessicos designadamente de Platatildeo e Aristoacuteteles

(esta feita por Silvestre Pinheiro Ferreira) tornando a escassez de traduccedilotildees

de autores modernos imediatamente evidente que a importaccedilatildeo da filosofia

atraveacutes da liacutengua francesa era regra praticamente universal

4 A reacccedilatildeo anti-positivista e a consciecircncia de si mesmo na cultura

portuguesa

4 1 A viragem de Antero

A filosofia alematilde surge em Portugal como um contraponto agrave influecircncia

positivista sendo percepcionada por autores como Antero de Quental e

Oliveira Martins como sendo de grande importacircncia pela problemaacutetica

metafiacutesica que introduz no horizonte da cultura portuguesa e da qual se espera

329

Cf Cabral Moncada Subsiacutedios para a Histoacuteria da Filosofia do Direito em Portugal Lisboa Imprensa

Nacional-Casa da Moeda 2003 62-63 330

Cf Antoacutenio Braz Teixeira ldquoCaminhos da Filosofia do Direito Luso-brasileirardquo 2002 103-104

213

natildeo soacute a renovaccedilatildeo dos estudos filosoacuteficos mas ainda a ruptura com o

dogmatismo positivista

Em carta a Carolina Michaeumllis (7 de Agosto de 1885) Antero daacute conta da sua

reacccedilatildeo diante da Filosofia de Hegel ldquo[hellip] a linguagem abstrusa o formalismo

a extraordinaacuteria abstracccedilatildeo de Hegel natildeo me assustavam nem me repeliam

pelo contraacuterio internava-me com audaacutecia aventureira pelos meandros e

sombras daquela floresta admiraacutevel de ideias Afinal aquilo de que o mundo

mais precisava nesta fase de extraordinaacuterio obscurecimento da alma humana

eacute de ideias de filosofia ndash e a poesia voltando a adormecer nos recessos mais

misteriosos do coraccedilatildeo do homem tem de ficar agrave espera ateacute que o novo

siacutembolo se desvende e novas ideias lhe forneccedilam um novo alimento lhe

insuflem nova vidardquo331

Em carta a Wilhelm Stork (1887) o tradutor da sua obra poeacutetica para alematildeo

Antero deu a conhecer a importacircncia de Hegel na sua formaccedilatildeo filosoacutefica ldquoO

hegelianismo foi o ponto de partida das minhas especulaccedilotildees filosoacuteficas e

posso dizer que foi dentro dele que se deu a minha evoluccedilatildeo intelectualrdquo332

Supotildee-se que as primeiras leituras de Hegel datem de 1863 atraveacutes de

traduccedilotildees francesas e eacute sobretudo nos sonetos escritos entre 1863-1870 que a

influecircncia do filoacutesofo alematildeo se faz sentir estando nesta fase associada agrave

influecircncia de Proudhon e agrave crenccedila optimista no progresso da humanidade na

qual Antero fundou a primeira parte da sua actividade intelectual e poliacutetica

Foi poreacutem na fase de abandono das ideias de reforma social que inspiraram a

geraccedilatildeo de 70 e de renuacutencia no plano da acccedilatildeo poliacutetica social e mesmo cultural

que se alargou a recepccedilatildeo da filosofia alematilde com a difusatildeo entre noacutes das obras

de Schopenhauer e de Hartmann333 que souberam elevar o sentimento de

pessimismo e desencanto dominantes na Europa do seu tempo a um sistema

filosoacutefico consistente e elaboraacute-lo ao niacutevel especulativo na continuidade da

tradiccedilatildeo metafiacutesica do Idealismo Alematildeo

331

Antero de Quental ldquoCarta a Carolina Michaeumllis de Vasconcelosrdquo de 7 de Agosto de 1885 em Ana

Maria Almeida Martins (org) Cartas II 748 332

Antero de Quental rdquoCarta a Wilhelm Storkldquo de 14 de Maio de 1887 em Ana Maria Almeida Martins

(org) Cartas II 834 333

Sobre a influecircncia de Schopenhauer e Eduardo von Hartmann em Portugal cf a minha dissertaccedilatildeo de

mestrado A Vida e o Traacutegico em Raul Brandatildeo 5-41

214

Fortemente influenciado pela filosofia hegeliana e pelo socialismo de Proudhon

foi apoacutes 1874334 que Antero se orientou para um pessimismo existencial que se

converteu rapidamente num pessimismo de sistema ligado natildeo a uma reflexatildeo

sobre a sua vida pessoal ou as vicissitudes da vida nacional mas agrave condiccedilatildeo

humana em geral Antero leu a monografia de Ribot La Philosophie de

Schopenhauer publicada em 1874 e a traduccedilatildeo de Burdeau de O Fundamento

da Moral de Schopenhauer assim como Os Aforismos sobre a Sabedoria de

Vida em traduccedilatildeo de Cantacuzegravene

Da influecircncia de Hartmann daacute-nos conta Oliveira Martins num artigo da Revista

Ocidental em que o historiador referindo-se agrave Religiatildeo do Futuro de Eduardo

von Hartmann afirma ldquoas ideias essenciais que esse livro conteacutem sendo

expostas por bocas de franceses embora muitas vezes percam em

profundidade o que ganham em perceptibilidade ou em colorido facilmente

encontram eco nos moccedilos entusiastas que povoam as nossas escolasrdquo335 O

proacuteprio Oliveira Martins recebeu esta influecircncia de Hartmann provavelmente a

partir da leitura da Religiatildeo do Futuro introduzindo alguns aspectos da sua

filosofia quer no Helenismo e a Civilizaccedilatildeo Cristatilde quer no Sistema dos Mitos

Religiosos

Esta influecircncia de Hartmann eacute claramente visiacutevel nos sonetos de Antero escritos

apoacutes 1874 assim como naquilo que eacute geralmente considerado o seu testamento

filosoacutefico Tendecircncias gerais da Filosofia na Segunda Metade do seacutec XIX

publicado na revista de Portugal em 1890

De facto sabemos que Antero tomou um primeiro contacto com a filosofia de

Hartmann atraveacutes da Revue Scientifique de la France et de llsquoEtranger e da

traduccedilatildeo francesa da Religion der Zukunft

Tendo comeccedilado a estudar alematildeo a partir de 1870 possuiu as seguintes obras

de Eduardo von Hartmann Gesammelte Studien und Aufsaumltze 3ordm ed Leipzig

Phaumlnomenologie des sittlichen Bewusstseins Prologomena zu jeder Kuumlntfigen

Ethik Berlim 1879 Religionsphilosophie Ester historischkritische Theil Das

religioumlse Bewuumlsstsein der Menschheit Leipzig Philosophie de llsquoInconscient

traduit de lallemand par D Nolen Paris 1877 La Religion de llsquo Avenir Traduit

334

Joaquim de Carvalho ldquoAntero de Quental e a Filosofia de Eduardo Hartmannrdquo in Obra Completa I

Lisboa 1978 409 335

Oliveira Martins ldquoOs Poetas da Escola Novardquo in Revista Ocidental 2ordf fasc 31 de Maio de 1875 tip

De Cristoacutevatildeo Augusto Rodrigues 159

215

de l‟allemand Paris 1876 Segundo Joaquim de Carvalho nenhum outro

filoacutesofo seu contemporacircneo ocupou tatildeo amplo lugar na sua biblioteca particular

Antero teria lido e meditado atentamente as obras de Hartmann sobretudo a

partir de 1877 data da traduccedilatildeo francesa da Filosofia do Inconsciente

encontrando no filoacutesofo alematildeo a fundamentaccedilatildeo metafiacutesica para as conclusotildees

a que ele proacuteprio chegara no decurso da sua evoluccedilatildeo intelectual336

Consciente da necessidade de cortar com a dependecircncia da liacutengua francesa

Antero comeccedilou em 1870 a estudar alematildeo de motu proacuteprio e sem qualquer

programa escolar e em 1873 o proacuteprio Antero dizia em carta a Oliveira

Martins ldquoTenho estudado o alematildeo e jaacute entendo menos mal o que leioldquo337

afirmaccedilatildeo que deve ser complementada com o que sabemos atraveacutes de

Carolina Michaeumllis segundo a qual ele nunca chegou a possuir mais que um

domiacutenio passivo da liacutengua alematilde ou seja especificamente virado para a leitura

Da necessidade e da importacircncia da praacutetica da traduccedilatildeo Antero estava bem

consciente como o provam as suas criacuteticas agrave traduccedilatildeo do Fausto a partir do

francecircs por Castilho (prosas II 102-5) e ainda pelo facto de ele proacuteprio ter

tentado levar a cabo a traduccedilatildeo do poema de Goethe directamente a partir do

texto alematildeo (desta traduccedilatildeo haacute alguns fragmentos publicados no volume

poacutestumo de Raios de Extinta Luz (Lisboa 1892) e nas Publicaccedilotildees do Instituto

Alematildeo (Centenaacuterio de Goethe Coimbra 1932)338

Em Antero esta proximidade com a cultura alematilde eacute pois marcada por dois

traccedilos essenciais a necessidade de leitura dos textos na liacutengua original e da

sua traduccedilatildeo para o portuguecircs Esta consciecircncia da importacircncia da operaccedilatildeo

de traduccedilatildeo caminha juntamente com uma consciecircncia criacutetica relativamente agrave

apropriaccedilatildeo dos autores mais relevantes do pensamento cientiacutefico e filosoacutefico

europeu Eacute esta consciecircncia criacutetica e vigilante que marca claramente a sua

relaccedilatildeo com o Darwinismo em primeiro lugar pela distinccedilatildeo entre as leis da

evoluccedilatildeo postuladas pelo paradigma darwinista que ele aceita como

verdadeiras dentro dos limites do conhecimento dos fenoacutemenos que eacute proacuteprio

da ciecircncia e a tentativa de erigi-las em sistema filosoacutefico e em visatildeo do mundo

por Haeckel que Antero rejeita ldquoEacute pois um erro uma ilusatildeo monstruosa esta

336

Joaquim de Carvalho ldquoAntero de Quental e a Filosofia de Eduardo Hartmannrdquo in Obra Completa I

418 337

Antero de Quental ldquoCarta a Oliveira Martinsrdquo de 26 de Agosto de 1874 em Ana Maria Almeida

Martins (org) Cartas I 255 338

Cf Albin Eacuteduard Beau Antero de Quental perante a Alemanha e a Franccedila Coimbra 1942

216

concepccedilatildeo mecacircnica do universo que resulta da grande siacutentese cientiacutefica dos

uacuteltimos 40 anos De modo algum Eacute uma verdade fundamental mas

circunscrita positiva dentro dos seus limites mas incompleta na medida da

estreiteza desses limites Jaacute vimos que satildeo os da mesma inteligecircncia cientiacuteficardquo

339 Com efeito o monismo de Haeckel propunha uma visatildeo ldquocientiacuteficardquo do

mundo e da evoluccedilatildeo baseada na causalidade mecacircnica que nada

acrescentava agrave ciecircncia agrave qual Antero contrapunha uma concepccedilatildeo da

evoluccedilatildeo dinacircmica e espiritualista que recuperava a causalidade teleoloacutegica da

tradiccedilatildeo metafiacutesica rdquoMas haacute duas maneiras de compreender a evoluccedilatildeo A dos

metafiacutesicos alematildees caminhava sim do simples para o complexo mas

ajuntando em cada momento da evoluccedilatildeo ao tipo inferior para o fazer passar

ao superior um elemento de novo um aumento de ser que lhe provinha da

virtualidade infinita da ideia (da substacircncia) no seu processo de

desenvolvimento A evoluccedilatildeo tinha pois segundo eles um conteuacutedo

verdadeiro era essencialmente substancial Para a filosofia cientiacutefica da

natureza poreacutem natildeo haacute tal virtualidade visto natildeo haver tal ideiardquo340

Para Antero a filosofia devia pensar nos seus proacuteprios termos e no acircmbito que

lhe eacute proacuteprio a ideia cientiacutefica de evoluccedilatildeo dando-lhe um conteuacutedo

substancial como acontecia na dialeacutectica de Hegel para quem a consciecircncia

de si mesmo do espiacuterito como razatildeo e Liberdade consubstanciavam o fim da

evoluccedilatildeo Universo

4 2 A heranccedila de Antero e o diaacutelogo com a filosofia europeia

A heranccedila filosoacutefica das Tendecircnciashellip de Antero haveria de frutificar agrave margem

das instituiccedilotildees republicanas dominadas pelo positivismo De facto as

reformas das instituiccedilotildees de ensino no periacuteodo republicano orientaram-se no

sentido da modernizaccedilatildeo e do reforccedilo do ensino das ciecircncias natildeo alterando

substancialmente a situaccedilatildeo jaacute de si tatildeo precaacuteria do ensino da Filosofia apesar

da criaccedilatildeo em 1911 de duas novas Faculdades de Letras onde o curso de

339

Antero de Quental Tendecircncia Gerais da Filosofia na segunda metade do seacuteculo XIX [1ordf ed in

Revista de Portugal 1890] Lisboa 1991 87 340

Ibidem 8384

217

Filosofia continuou a ter existecircncia precaacuteria acabando por se fundir com o de

Histoacuteria341

Foi portanto agrave margem da universidade no seio dos movimentos sociais das

correntes de opiniatildeo e das controveacutersias que se desenrolaram entre os

intelectuais agrupados em torno de revistas como A Seara Nova O Orpheu A

Aacuteguia em torno de problemas poliacuteticos sociais e esteacuteticos que se desenvolveu

a consciecircncia da necessidade de um diaacutelogo em portuguecircs com a filosofia

europeia

Como resultado mais significativo deste diaacutelogo (embora de modo nenhum

como uacutenica vertente) sublinhamos o facto de se ter criado entre noacutes um

pensamento poliacutetico que procura uma fundamentaccedilatildeo filosoacutefica e que teve a

nosso ver em Raul Proenccedila um dos seus representantes mais brilhantes tendo

dado continuidade ao diaacutelogo iniciado por Antero com a filosofia alematilde

Raul Proenccedila retoma a criacutetica ao positivismo iniciada por Antero dirigindo-a

agora ao positivismo social e poliacutetico dos republicanos e procurando fundar a

ideia de socialismo democraacutetico numa siacutentese original da eacutetica de Kant e da

filosofia de Nietzsche

Raul Proenccedila que natildeo hesitava em considerar que a falta de elites era a causa

fundamental da crise da Primeira Repuacuteblica apontava como viacutecios

fundamentais da nossa educaccedilatildeo a par da ausecircncia de formaccedilatildeo cientiacutefica

dos preconceitos e do fanatismo em mateacuteria religiosa a ausecircncia de espiacuterito

filosoacutefico ldquoPodem filiar-se nessa ausecircncia de espiacuterito filosoacutefico o preconceito

da autoridade e o preconceito das maiorias a preocupaccedilatildeo da pessoa que

defende essa doutrina ou do nuacutemero que a apoia

Mas jaacute Lamark dizia em 1809 ldquoa experiecircncia mostra que os indiviacuteduos que tecircm

a inteligecircncia mais desenvolvida e que reuacutenem mais luz compotildeem em todos os

tempos uma minoria extremamente pequenardquo

O nosso futuro depende da formaccedilatildeo desta elite levantada generosa Cheia de

coragem e abnegaccedilatildeo cheia de ideias que faccedila esquecer esse falso escol que

para aiacute estaacute supondo-se glorioso e imortalrdquo342

341

Cf Joel Serratildeo e Oliveira Marques Nova Histoacuteria de Portugal - Portugal da Monarquia para a

Repuacuteblica Lisboa 1991 563-564 342

Raul Proenccedila ldquoAlguns vigravecios na educaccedilatildeo do nosso paigravesrdquo [Alma Nacional Maio de 1910] Antoacutenio

Reis Raul Proenccedila - Estudo e Antologia Lisboa 1989 110

218

Equacionando a possibilidade de renascimento da cultura portuguesa a partir

da formaccedilatildeo de elites e ainda da sua ligaccedilatildeo ao conjunto da sociedade

colocou a sua energia ao serviccedilo da divulgaccedilatildeo do livro procedendo a uma

importante reorganizaccedilatildeo da Biblioteca Nacional na qualidade de director dos

Serviccedilos Teacutecnicos (cargo para que tinha sido nomeado por Leonardo Coimbra)

participou na fundaccedilatildeo da Universidade Popular que visava levar o

conhecimento de diversas mateacuterias agraves pessoas privadas de uma educaccedilatildeo

formal e foi ainda um dos fundadores e director da revista Seara Nova em

cujas paacuteginas pugnava pela mudanccedila de mentalidades que ele reputava ser a

chave da soluccedilatildeo dos problemas nacionais

No campo da filosofia a sua uacutenica obra foi um estudo sobre o eterno retorno

iniciado entre 1916 - 1917 e interrompido pela dificuldade de acesso agraves obras

que costumava mandar vir da Alemanha (devido agrave ausecircncia das ligaccedilotildees

postais em consequecircncia da guerra) A redacccedilatildeo da obra foi retomada apoacutes a

sua doenccedila em 1938

Nietzsche tinha comeccedilado a ser divulgado numa traduccedilatildeo francesa da Mercure

de France desde o iniacutecio do seacuteculo mas entre 1913 e 1916 foram traduzidas

para portuguecircs trecircs das suas obras entre as quais Assim Falava Zaratustra

por de Antoacutenio Arauacutejo Pereira A sua influecircncia foi particularmente importante

na primeira geraccedilatildeo da Aacuteguia (de que Raul Proenccedila tambeacutem fizera inicialmente

parte) que aceitava geralmente o vitalismo do filoacutesofo alematildeo embora

repudiasse a sua criacutetica da moral343

Desde 1910 que Raul Proenccedila aludia em diversos artigos a Nietzsche

deixando transparecer quer o seu fasciacutenio pelo lado dionisiacuteaco do filoacutesofo

alematildeo quer a criacutetica ao seu individualismo No Eterno Retorno ele vai no

entanto analisar de forma criacutetica e sistemaacutetica este tema de Nietzsche

refutando a ideia de eterno retorno em nome da ideia de progresso e de

liberdade que constituiacuteam o cerne das suas convicccedilotildees poliacuteticas

O que eacute no entanto notaacutevel neste trabalho de Raul Proenccedila eacute a preocupaccedilatildeo

de fundar o seu comentaacuterio nos excertos de Nietzsche referenciados sempre

no original alematildeo (Werke Leipzig 1895-1912) assim como a discussatildeo de

problemas de traduccedilatildeo para portuguecircs de termos como Werden ou da

343

Cf Ameacuterico Enes Monteiro A Recepccedilatildeo da Obra de Friedrich Nietzsche na vida intelectual

portuguesa Porto 2000 124-183

219

expressatildeo Wiederkunft des Gleichen que evidenciam a consciecircncia da

complexidade da problemaacutetica da traduccedilatildeo e da sua importacircncia344

Paralelamente Raul Proenccedila leva a cabo um levantamento histoacuterico da ideia de

eterno retorno sempre alicerccedilado numa correcta utilizaccedilatildeo das fontes

designadamente da filosofia grega preacute-socraacutetica de Aristoacuteteles e dos seus

comentadores evidenciando um conhecimento da tradiccedilatildeo filosoacutefica e uma

preocupaccedilatildeo de rigor invulgares

A primeira metade do seacuteculo XX deu continuidade agrave figura do poeta-filoacutesofo jaacute

protagonizada por Antero que a par da sua criaccedilatildeo poeacutetica manteacutem escritos

reflexivos sobre a sua criaccedilatildeo poeacutetica e alimenta um diaacutelogo com textos

filosoacuteficos

Preocupados em legitimar a poesia e o mito como lugar de manifestaccedilatildeo da

verdade estes autores colhem nas filosofias vitalistas a argumentaccedilatildeo que lhes

permite contestar o positivismo dominante e compreender a dinacircmica da

criaccedilatildeo poeacutetica Esta outra face da heranccedila de Antero conduziu ao

desenvolvimento entre noacutes dum pensamento poeacutetico original que inspirou tanto

a obra de Pascoaes como a de Junqueiro sendo designado por Fernando

Pessoa como ldquoPanteiacutesmo Transcendentalrdquo de que este esperava um poderoso

impulso de renovaccedilatildeo da poesia nacional e europeia345

O nacionalismo literaacuterio romacircntico difundido pelo movimento a Renascenccedila

Portuguesa e protagonizado por Pascoaes assim como o cosmopolitismo de

Fernando Pessoa confluem na mesma consciecircncia da importacircncia de fundar as

suas opccedilotildees esteacuteticas num diaacutelogo com a filosofia europeia

Nestes dois poetas-filoacutesofos emerge a afirmaccedilatildeo progressiva da consciecircncia da

liacutengua e da tradiccedilatildeo poeacutetica em que se insere o seu proacuteprio trabalho como um

horizonte de sentido a partir do qual eacute possiacutevel encetar um diaacutelogo genuiacuteno

com a cultura europeia cortando com os haacutebitos de imitaccedilatildeo servil tatildeo

criticados por Antero O Homem Universal de Pascoaes o manifesto O

Ultimatum ou o ensaio A Nova Poesia Portuguesa de Fernando Pessoa

documentam a consciecircncia reflexiva (e filosoficamente informada) dessa opccedilatildeo

que levava os poetas ldquoa preferir Orfeu agrave musa mais severa de Parmeacutenidesrdquo na

expressatildeo feliz de Eduardo Lourenccedilo

344

Cf Raul Proenccedila O Eterno Retorno 1ordf ed Lisboa 1987 5859 345

Fernando Pessoa A Nova Poesia Portuguesa Lisboa 1944

220

A tentativa de pensar filosoficamente em portuguecircs subtraindo-se agraves modas

ideoloacutegicas e ao mimetismo provinciano tatildeo bem caracterizado por Antero e

Pessoa foi levada a cabo por pensadores como Sampaio Bruno Leonardo

Coimbra e Joseacute Marinho fundadores daquilo a que se veio a chamar ldquoa

filosofia portuguesardquo Criacuteticos do positivismo essencialmente preocupados com

o problema de Deus eles satildeo pensadores assistemaacuteticos dificilmente

escolarizaacuteveis para quem a verdade se apresenta como parusia e eacute

dificilmente objecto de exposiccedilatildeo discursiva a sua influecircncia apesar de

assinalaacutevel foi exterior agraves universidades

Este renovado interesse pela filosofia que acompanhou todos os movimentos

de ideias da Primeira Repuacuteblica reflectiu-se na Universidade Popular346 cujo

nuacutecleo mais importante se situava no Porto Esta era animada pela ambiccedilatildeo de

formaccedilatildeo das elites de que o paiacutes necessitava assim como de combater a

influecircncia do positivismo dominante Paralelamente aos cursos de liacutenguas

eram realizadas conferecircncias e liccedilotildees de divulgaccedilatildeo cientiacutefica e filosoacutefica por

intelectuais reputados como Jaime Cortesatildeo e Leonardo Coimbra sendo a

actividade docente acompanhada de uma actividade editorial de divulgaccedilatildeo de

autores claacutessicos e modernos

Este notaacutevel esforccedilo de divulgaccedilatildeo expressa-se sobretudo na nova

preocupaccedilatildeo pelas traduccedilotildees de filosofia em liacutengua portuguesa inesperado no

que Raul Proenccedila chamava ldquoo povo mais anti-filosoacutefico da Europardquo

De Descartes satildeo traduzidas as Meditaccedilotildees Metafiacutesicas por Antoacutenio Seacutergio

em 1930 e O Discurso do Meacutetodo e Tratado das Paixotildees por Newton de

Macedo em 1937 De Leibniz satildeo traduzidos os Novos Ensaios sobre o

Entendimento Humano em 1931 por Antoacutenio Seacutergio De Augusto Comte eacute

traduzida a obra A Importacircncia da Filosofia Positiva em 1939 De Nietzsche

satildeo traduzidas Assim Falava Zaratustra por Arauacutejo Pereira em 1913 A

Genealogia da Moral por Carlos Joseacute de Meneses em 1913 e o Anticristo pelo

mesmo tradutor em 1916 Eacute traduzido O Capital de Marx em 1912 As

Confissotildees de Santo Agostinho satildeo traduzidas em 1905 Platatildeo tem traduzidos

346

O movimento das Universidades Populares surgira em Franccedila nos finais do seacutec XIX com o objectivo

de difundir a cultura nas classes populares Apoacutes 1910 o movimento das Universidades Populares

conheceu em Portugal alguma expansatildeo com a criaccedilatildeo das Universidades Populares do Porto de Setuacutebal

e de Lisboa com a finalidade de realizar conferecircncias e cursos sistemaacuteticos publicando ainda uma revista

de cultura intitulada Educaccedilatildeo Popular Cf Joel Serratildeo e Antoacutenio Marques Nova Histoacuteria de Portugal -

Portugal da Monarquia para a Repuacuteblica 612-613

221

neste periacuteodo A Apologia de Soacutecrates por Acircngelo Ribeiro em 1923 O Criacuteton

por Agostinho da Silva em 1938 e o Feacutedon por Acircngelo Ribeiro em 1919 e

ainda O Banquete pelo mesmo tradutor em 1934

Os proacuteprios positivistas foram sensiacuteveis a este movimento de traduccedilatildeo e

levaram a cabo traduccedilotildees muito importantes para a actualizaccedilatildeo do

pensamento cientiacutefico portuguecircs Destacam-se de Darwin A Origem do

Homem por Joatildeo Carlos de Oliveira em 1910 e A Selecccedilatildeo Artificial por Lobo

Vilela em 1939 De Haeckel haacute a traduccedilatildeo de dez tiacutetulos os primeiros dos

quais satildeo Enigmas do Universo Origem do Homem e Religiatildeo e Evoluccedilatildeo em

1908 De Spencer eacute traduzido por Juacutelio de Matos em 1904 Da Liberdade agrave

Escravidatildeo e Do Progresso ndash Sua Lei e Suas Causas por Eduardo Salgueiro

em 1939

Como importantes fragilidades deste movimento de traduccedilatildeo temos o facto

sublinhado justamente por Orlando Vitorino347 de que grande parte das

traduccedilotildees de filosofia do periacuteodo republicano obedecem a intuitos poliacuteticos ou

religiosos estando integradas em colecccedilotildees como ldquoBiblioteca de Educaccedilatildeo

Nacionalrdquo de caraacutecter anarquista dirigida por Agostinho Fortes e a colecccedilatildeo

ldquoCiecircncia e Religiatildeordquo de apologia catoacutelica dirigida por Gomes dos Santos

Seraacute necessaacuterio esperar pelos anos 40 para ver surgir as primeiras colecccedilotildees

exclusivamente dedicadas agrave Filosofia a livraria Atlacircntida de Coimbra lanccedilou a

colecccedilatildeo ldquoBiblioteca filosoacuteficardquo dirigida pelo professor Joaquim de Carvalho e

a Guimaratildees Editores a colecccedilatildeo ldquoFilosofia e Ensaiosrdquo

Relativamente agraves traduccedilotildees de filosofia alematilde antes da deacutecada de 40 apenas

Nietzsche tinha sido traduzido sendo apenas a partir daiacute que vatildeo ser

traduzidos alguns textos dos filoacutesofos alematildees contemporacircneos mais

significativos 348

Eacute de salientar ainda que se daacute continuidade agraves traduccedilotildees de Aristoacuteteles e se

traduz um nuacutemero muito significativo de diaacutelogos de Platatildeo o que indicia uma

redescoberta da cultura e da filosofia gregas para a qual contribuem

especialistas como Eudoro de Sousa e Agostinho da Silva

347

Cf Orlando Vitorino Traduccedilotildees Portuguesas de Filosofia Lisboa 1958 348

Cf Apecircndice 1 deste trabalho ldquoTraduccedilotildees de Filosofia em Ligravengua Portuguesa ateacute 1959rdquo

222

Este interesse pela filosofia e pelas traduccedilotildees portuguesas de Filosofia ao

longo da primeira metade do seacuteculo XX mostra claramente que entre as elites

se difunde o interesse pelas ldquoideias geraisrdquo cuja ausecircncia Pessoa tanto

criticava como tiacutepico do ldquocaso mental portuguecircsrdquo

A estabilizaccedilatildeo do movimento de traduccedilatildeo e a sua orientaccedilatildeo de acordo com

criteacuterios rigorosos marcharaacute a par do fortalecimento da situaccedilatildeo da filosofia nas

Universidades portuguesas assim como da sua ligaccedilatildeo aos centros europeus

de criaccedilatildeo e difusatildeo da filosofia para o qual a Gulbenkian muito contribuiraacute

com o seu sistema de bolsas

Note-se ainda que ao contraacuterio do que aconteceu no Brasil em Portugal natildeo

foi feita a traduccedilatildeo de nenhum dos autores da escolaacutestica designadamente de

S Tomaacutes de Aquino apesar da introduccedilatildeo em Portugal da corrente neo-

escolaacutestica no iniacutecio do seacuteculo XX

5 Traduccedilatildeo e consciecircncia de si na cultura Brasileira

O pensamento brasileiro tem uma matriz comum ao pensamento portuguecircs

que radica natildeo soacute no periacuteodo colonial mas tambeacutem na proximidade cultural

criada pela comunidade linguiacutestica Essa matriz comum estabeleceu-se numa

primeira fase por influecircncia do magisteacuterio dos jesuiacutetas cuja acccedilatildeo no Brasil

levou agrave instituiccedilatildeo dos cursos de Artes a partir de 1572 assim como dos cursos

de Matemaacutetica e Fiacutesica de Teologia Moral Dogmaacutetica e Sagrada Escritura os

Estudos Gerais do Coleacutegio da Baiacutea e as primeiras tentativas para se criar a

Universidade do Brasil

A influecircncia dos jesuiacutetas no Brasil natildeo se resume a uma transposiccedilatildeo mecacircnica

da filosofia escolaacutestica para territoacuterio brasileiro pelo contraacuterio a problemaacutetica

social da colonizaccedilatildeo e do estatuto dos iacutendios teve ela mesma um papel central

na elaboraccedilatildeo da filosofia juriacutedica e poliacutetica da Segunda Escolaacutestica como

acima vimos

A educaccedilatildeo jesuiacutetica modelou a inteligecircncia brasileira ateacute meados do seacuteculo

XVIII tendo contribuiacutedo para a difusatildeo das ideias filosoacuteficas no Brasil e o

legado do humanismo cristatildeo do Pe Antoacutenio Vieira expresso nos sermotildees

cartas e outros escritos constitui um traccedilo de uniatildeo persistente entre a cultura

brasileira e a cultura portuguesa

223

Com a segunda metade do seacuteculo XVIII assistimos a uma nova fase na cultura

brasileira marcada pela influecircncia da reforma pombalina e dum iluminismo de

feiccedilatildeo ecleacutectica ligada ao pensamento de Verney Os homens que

encabeccedilaram os destinos do Brasil eram formados pela nova pedagogia

pombalina e a mesma poleacutemica entre tradicionalistas e os apologistas dos

autores modernos atravessa a cultura brasileira deste periacuteodo Caracterizando

este iluminismo brasileiro Francisco Gama Caeiro afirmava rdquoA Filosofia

vazada em moldes dum iluminismo tropical passa quase a ser um estado de

alma uma vivecircncia apaixonada um manifesto pedagoacutegico que convive de

modo talvez ingeacutenuo com a Ideologia embora com ela se natildeo confunda

Reclama para si a liberdade de expressatildeo e como meio de comunicar dispotildee

do texto literaacuterio da memoacuteria cientiacutefica da prelecccedilatildeo de retoacuterica da oraccedilatildeo

acadeacutemicardquo349

Este periacuteodo pombalino que do lado brasileiro Antoacutenio Paim estende ateacute agrave

criaccedilatildeo da Real Academia Militar em 1810 estaria na origem da corrente

filosoacutefica cientificista e do posterior peso do positivismo no periacuteodo republicano

350

Contudo os traccedilos distintivos no pensamento brasileiro surgiriam associados agrave

reivindicaccedilatildeo da autonomia poliacutetica e agraves tarefas da independecircncia Uma das

singularidades do pensamento brasileiro (relativamente ao pensamento

portuguecircs) foi uma maior influecircncia do pensamento Kantiano que logo desde a

independecircncia se foi impondo sobretudo pelo impacto da sua eacutetica e filosofia

poliacutetica mais consentacircneos com as tarefas poliacuteticas ligadas agrave independecircncia

Efectivamente tem vindo a ser sublinhada 351 a influecircncia de Kant na ideia de

independecircncia tendo sido a cidade de Satildeo Paulo o primeiro centro de difusatildeo

do pensamento alematildeo muito embora natildeo houvesse ainda conhecimento da

liacutengua Aiacute o conhecimento de Kant foi difundido como em Portugal atraveacutes da

liacutengua e dos autores franceses como Mme Stael e Charles Villiers e

posteriormente divulgado activamente por Martim Francisco e Antoacutenio Feijoacute

349

Cf Francisco Gama Caeiro ldquoO Pensamento Filosoacutefico do seacuteculo XVI ao Seacuteculo XVIII em Portugal e

no Brasilrdquo Actas do I Congresso Luso-Brasileiro de Filosofia in Revista Portuguesa de Filosofia Braga

1982 350

Antoacutenio Paim ldquoFilosofia Portuguesa e Brasileira Convergecircncias e peculiaridadesrdquo Actas do I

Congresso Luso-Brasileiro de Filosofia in Revista Portuguesa de Filosofia Braga 1982 351

Cf Glaacuteucio Veiga ldquoKant e o Brasilrdquo Revista Brasileira de Filosofia vol 1 1951 e Miguel Reale ldquoA

Filosofia Alematilde no Brasilrdquo Revista Brasileira de Filosofia vol 24 1974

224

O Pe Antoacutenio Feijoacute (1784-1873) foi um dos difusores do Kantismo em que se

procura inspirar para legitimar a conciliaccedilatildeo ecleacutetica entre a tradiccedilatildeo

escolaacutestica e os novos valores emergentes da revoluccedilatildeo francesa Kant e

Rousseau satildeo duas influecircncias persistentes no seu pensamento moral e

poliacutetico e inspiradores da sua actividade poliacutetica no primeiro reinado

O krausismo considerada a segunda etapa de difusatildeo da influecircncia de Kant

foi como acima referimos tambeacutem uma corrente influente no campo da

Filosofia do Direito e da Filosofia Poliacutetica sobretudo em Satildeo Paulo (1781-

1832) sendo aiacute importado atraveacutes da Faculdade de Direito de Coimbra

A terceira fase de difusatildeo da influecircncia de Kant refere-se agrave influecircncia da escola

neokantiana O neokantismo inicia-se na Alemanha a partir do livro Kant e os

seus epiacutegonos de Otto Liebeman (1865) e torna-se o movimento filosoacutefico

dominante na Alemanha designado de Escola de Marburgo no periacuteodo

compreendido entre 1890 e a Primeira Guerra Mundial protagonizado por

Herman Cohen Paul Natorp e Cassirer

Os textos-base da escola de Marburgo nunca foram traduzidos pelo que o

conhecimento do pensamento destes autores tanto em Portugal como no

Brasil teraacute sido muito prejudicado embora o neokantismo tenha tido uma

influecircncia assinalaacutevel no caso de Portugal na Filosofia do Direito (Cabral

Moncada) e no caso do Brasil na geacutenese da Escola do Recife

A Escola do Recife constitui-se como movimento de cisatildeo a partir do

positivismo dos anos 70 propondo-se a sua superaccedilatildeo Tobias Barreto foi o

seu iniciador tendo difundido o conceito neo-kantiano de filosofia como

epistemologia ocupou-se principalmente da distinccedilatildeo entre os conceitos de

natureza e cultura fundamentando o primeiro na causalidade eficiente e o

segundo na causalidade final

Um dos seus seguidores foi Siacutelvio Romero que sob a influecircncia do

evolucionismo de Spencer defendeu a superaccedilatildeo da oposiccedilatildeo entre natureza

e cultura e deu um cunho socioloacutegico agraves investigaccedilotildees sobre a cultura

encaminhando-se para investigaccedilotildees no terreno sobre a diversidade cultural

brasileira352

352

Cf Antoacutenio Paim A Filosofia Brasileira Contemporacircnea ndash estudos complementares agrave Histoacuteria das

Ideias Filosoacuteficas no Brasil vol 7 Londrina 2000 92

225

Depois da Segunda Guerra Mundial deu-se o pleno desenvolvimento da Escola

Culturalista com a criaccedilatildeo do Instituto Brasileiro de Filosofia que teve como

um dos objectivos defender a pluralidade de correntes do pensamento filosoacutefico

brasileiro designadamente atraveacutes da Revista Brasileira de Filosofia

Esta corrente filosoacutefica designada de ldquoculturalismordquo tem-se destacado pela sua

reflexatildeo sobre problemas da Eacutetica e da Filosofia do Direito (Miguel Reale)

assim como sobre a temaacutetica das filosofias nacionais (Antoacutenio Paim) e veio

ainda a defender o enraizamento da filosofia na diversidade cultural dos vaacuterios

povos em consonacircncia com posiccedilatildeo idecircntica que em Portugal veio a ser

defendida por Joseacute Marinho

O culturalismo sublinha a estreita ligaccedilatildeo entre a filosofia e a cultura

chamando a atenccedilatildeo para os problemas filosoacuteficos que emergem natildeo apenas

da tradiccedilatildeo filosoacutefica mas da evoluccedilatildeo cultural dos povos como sublinha

Antoacutenio Paim um dos seus mais destacados representantes ldquoProcurando ater-

me ao essencial o culturalismo brasileiro atribui grande importacircncia agrave teoria

dos objectos para insistir que corresponde a grande empobrecimento limitaacute-los

a objectos naturais e ideais O reconhecimento da existecircncia de objectos

referidos a valores permite natildeo soacute explicar adequadamente a singularidade do

saber filosoacutefico como igualmente circunscrever de modo preciso o campo de

investigaccedilatildeo das ciecircncias sociaisrdquo353

Segundo Antoacutenio Paim as primeiras traduccedilotildees brasileiras do pensamento

filosoacutefico europeu comeccedilaram apenas nos anos 30 mas o volume de

traduccedilotildees e o nuacutemero de autores traduzidos foi muito maior que em

Portugal354 Destacam-se a seguintes traduccedilotildees de Descartes As Meditaccedilotildees

Metafiacutesicas por AS Costa em 1937 O Discurso do Meacutetodo por Paulo Oliveira

em 1938 As Regras para a Direcccedilatildeo do Espiacuterito por Hermes Vieira em 1938

de Rousseau O Contrato Social em 1934 O Discurso sobre as Ciecircncias e as

Artes a Origem das desigualdades e as Confissotildees em 1936 A Eacutetica de

Spinoza foi traduzida por Luacutecio Xavier em 1937 o Novum Organon de Bacon

foi traduzido por L A Fisher em 1938

353

Ibidem 96 354

Cf Antoacutenio Paim Bibliografia Filosoacutefica Brasileira periacuteodo contemporacircneo 1931-1977 Satildeo Paulo-

Brasiacutelia 1979

226

De Hegel foi traduzida a Enciclopeacutedia Das Ciecircncias Filosoacuteficas trad de Liacutevio

Xavier 1936 de Schopenhauer Dores do Mundo por H Antunes 1931 O

Amor as Mulheres e a Morte trad de Emiacutelio Braizo 1936de Nietzsche O

Crepuacutesculo dos Iacutedolos trad de Persiano da Fonseca de 1943

Segundo Antoacutenio Paim estas traduccedilotildees natildeo obedeciam a criteacuterios de rigor

cientiacutefico que soacute vieram a ser adoptados no poacutes-guerra A traduccedilatildeo adequada

dos textos claacutessicos comeccedilou com a Summa Teologica de S Tomaacutes por

Alexandre Correia publicada em 1944 tendo em seguida o movimento de

traduccedilatildeo prosseguido jaacute dentro dos criteacuterios cientiacuteficos requeridos com as

traduccedilotildees de Aristoacuteteles

Note-se tambeacutem que ao contraacuterio do que aconteceu em Portugal S Tomaacutes de

Aquino foi um autor muito traduzido no Brasil tendo havido vaacuterias ediccedilotildees da

traduccedilatildeo da Summa Teologica355 o que indicia a importacircncia do neotomismo

corrente filosoacutefica importante nos anos trinta e cinquenta e posteriormente

revitalizada por Leonardo Van Acker professor belga da Universidade de

Lovaina radicado no Brasil

De Kant foram traduzidos A Paz perpeacutetua trad De Galvatildeo de Queiroacutes de

1944 A criacutetica da Razatildeo Praacutetica trad De Afonso Bertagnoli 1947 a Criacutetica da

Razatildeo Pura Rodrigues Merege 1959 os Prolegoacutemenos de Antoacutenio Pinto de

Carvalho de 1959 e a Fundamentaccedilatildeo da Metafiacutesica dos Costumes de Kant de

Antoacutenio Pinto de Carvalho de 1964

A anaacutelise das traduccedilotildees realizadas confirma a mais ampla e mais consistente

recepccedilatildeo da filosofia kantiana no Brasil Este diaacutelogo com o pensamento

kantiano teria segundo Antoacutenio Paim contribuiacutedo para encaminhar a reflexatildeo

filosoacutefica num sentido divergente em relaccedilatildeo ao pensamento portuguecircs com

uma marcada centragem nas questotildees de ordem eacuteticas poliacutetica e

antropoloacutegica como pode deduzir-se da influente corrente do culturalismo

Haacute ainda que salientar que desde que a Universidade foi adoptada como forma

de organizaccedilatildeo do ensino superior brasileiro pela Reforma Francisco Campos

de 1931 o ensino da Filosofia foi nela integrado acompanhando a expansatildeo

da Universidade pelos diversos Estados e sendo criadas Faculdades de

Filosofia na maioria das capitais Segundo Antoacutenio Paim em 1974 o nuacutemero de

355

Cf Apecircndice 1 deste trabalho ldquoTraduccedilotildees de Filosofia em Ligravengua Portuguesardquo ateacute 1959

227

cursos de filosofia correspondia a 55 com cerca de 5 mil alunos

matriculados356 o que daacute uma indicaccedilatildeo da vastidatildeo natildeo soacute da

profissionalizaccedilatildeo da filosofia como do puacuteblico leitor a quem se dirigiam as

traduccedilotildees brasileiras de Filosofia ao contraacuterio do que se passava em Portugal

desde logo devido aos evidentes constrangimentos demograacuteficos mas ainda

devido agrave menor presenccedila e capacidade de captaccedilatildeo de alunos dos cursos de

Filosofia no interior da Universidade

6 A liacutengua portuguesa a tradiccedilatildeo e a traduccedilatildeo

A histoacuteria das traduccedilotildees portuguesas de filosofia fornece-nos as indicaccedilotildees

necessaacuterias para a caracterizaccedilatildeo da ldquosituaccedilatildeo hermenecircuticardquo que condicionou

a recepccedilatildeo do pensamento de Heidegger Com efeito vimos atraacutes que toda a

interpretaccedilatildeo eacute condicionada pelo aiacute do inteacuterprete pelo lugar em que ele estaacute e

que delimita as suas possibilidades de visatildeo Toda a interpretaccedilatildeo eacute

condicionada por um horizonte que determina antecipadamente os problemas e

temas que podem constituir-se como objecto de investigaccedilatildeo

De acordo com a posiccedilatildeo de Gadamer segundo a qual a situaccedilatildeo

hermenecircutica eacute em cada caso determinada pelo modo como nela opera a

tradiccedilatildeo e pelos preconceitos que actuam no presente histoacuterico do inteacuterprete

podemos relevar quatro linhas de forccedila determinantes na situaccedilatildeo

hermenecircutica dos inteacuterpretes de Heidegger em liacutengua portuguesa

Em primeiro lugar a ruptura meramente ldquoideoloacutegicardquo com a escolaacutestica

realizada pelas reformas pombalinas e a natildeo traduccedilatildeo dos seus textos

fundamentais para o portuguecircs Estes factos tiveram como consequecircncia natildeo o

desaparecimento dessa tradiccedilatildeo escolaacutestica que eacute uma fortiacutessima matriz da

nossa cultura mas apenas o facto de ela se ter tornado uma tradiccedilatildeo morta

que duma forma inconsciente tem sobrevivido misturando-se de forma confusa

com a recepccedilatildeo da filosofia da moderna e contemporacircnea ndash o que explica o

ecletismo de grande parte do pensamento portuguecircs

Esta influecircncia latente da escolaacutestica pode inferir-se da persistecircncia de

algumas traduccedilotildees de Aristoacuteteles ao longo dos vaacuterios periacuteodos considerados e

constatar-se em autores contemporacircneos que confrontados com a temaacutetica do

356

Cf Antoacutenio Paim A Filosofia Brasileira Contemporacircnea 301

228

niilismo pretendem regressar a um humanismo cristatildeo teocecircntrico como

Leonardo Coimbra357 ou como Joseacute Marinho pretendem recuperar uma antiga

tradiccedilatildeo sapiencial vendo a filosofia como um confronto com o enigma do ser

e propondo o regresso ao estudo das temaacuteticas tradicionais da Metafiacutesica358

Em segundo lugar haacute que sublinhar o facto de o francecircs se ter instalado entre

noacutes durante todo o seacuteculo XIX como liacutengua de acesso ao pensamento

filosoacutefico Isto teve as importantes consequecircncias jaacute referidas de que a decisatildeo

do que se lecirc depende de decisotildees alheias designadamente das editoras e

revistas francesas e que os autores alematildees lidos nesta liacutengua satildeo apropriados

num outro contexto de sentido e a sua compreensatildeo sujeita a distorccedilotildees

Assim a recepccedilatildeo da filosofia contemporacircnea natildeo teve como consequecircncia

uma verdadeira rdquoapropriaccedilatildeordquo mas sim o caraacutecter de uma superficial adesatildeo a

modas filosoacuteficas que rapidamente se convertem em ideologias e penetram a

cultura portuguesa como sendo formas de pensar rdquooacutebviasrdquo assimiladas sem

espiacuterito criacutetico e sem um acesso agraves fontes o que aconteceu largamente com o

positivismo como eacute referido justamente por Antero de Quental

A rejeiccedilatildeo desta importaccedilatildeo das modas filosoacuteficas por via francesa foi muitas

vezes acompanhada de uma preocupaccedilatildeo identitaacuteria que procura a afirmaccedilatildeo

da liacutengua portuguesa agrave margem e contra a tradiccedilatildeo filosoacutefica de que Agostinho

da Silva nalguns passos da sua obra se faz eco ldquoPonha-se pois como um

princiacutepio geral para o paiacutes o gosto do concreto e a obrigaccedilatildeo do concreto

levando tais exigecircncias a todos os domiacutenios natildeo deixando por exemplo que

se disserte sobre filosofia sem a ter lido

[] aqui se potildee tambeacutem como se sabe uma grave questatildeo da nossa histoacuteria

cultural se houve entre noacutes ou natildeo filoacutesofos a natildeo ser a que se importa e se

continua importando com os seus pontos de apoio mais fortes na escolaacutestica

de inspiraccedilatildeo aristoteacutelica aleacutem de tudo fortemente inclinados ao concreto num

positivismo quase sempre ingeacutenuo porquanto parecem esquecer-se os nossos

de que era Comte um matemaacutetico e numas intuiccedilotildees e arroubos bergsoacutenicos e

poacutes-bergsoacutenicos de que haacute pouco a dizer porque informes demaisrdquo359

357

Cf Leonardo Coimbra A Ruacutessia de Hoje e o Homem de Sempre [1ordf ed Porto Livraria Tavares

1935] Obras de Leonardo Coimbra vol I Porto 1983 358

Joseacute Marinho Filosofia - Ensino ou Iniciaccedilatildeo Lisboa 1972 359

Agostinho da Silva Ensaios Sobre Cultura e Literatura Portuguesa e Brasileira II Lisboa 2001 70

229

Tais preconceitos segundo os quais o portuguecircs (e mesmo as liacutenguas ibeacutericas

em geral) pela sua vinculaccedilatildeo ao concreto seria inapto para a filosofia devem

ser correlacionados com o atraso de dois seacuteculos na traduccedilatildeo da tradiccedilatildeo

filosoacutefica para liacutengua portuguesa a escassez e a fraca qualidade das traduccedilotildees

efectuadas ateacute aos anos cinquenta

Eacute de salientar que as criacuteticas de Heidegger agrave traduccedilatildeo dos autores gregos para

o latim e ainda a criacutetica ao humanismo latino na Carta sobre o Humanismo

vieram ampliar o preconceito a que nos estamos a referir estendendo-o agrave

totalidade das liacutenguas latinas

A refutaccedilatildeo deste preconceito da impossibilidade de o latim se assumir como

liacutengua filosoacutefica foi feita entre noacutes de modo eloquente no plano dos factos pela

produccedilatildeo filosoacutefica da Segunda Escolaacutestica360 mas a natildeo traduccedilatildeo dos seus

textos determinou um crescente desconhecimento e impossibilidade de

actualizaccedilatildeo desta tradiccedilatildeo

Assim na nossa liacutengua o repertoacuterio conceptual (Vorgriff) foi empobrecido por

ausecircncia de uma apropriaccedilatildeo da tradiccedilatildeo filosoacutefica e marcado sobretudo por

uma mistura ecleacutectica de conceitos da escolaacutestica e da filosofia aristoteacutelica

com conceitos bebidos nas traduccedilotildees francesas da filosofia moderna e

contemporacircnea constituindo este ecletismo pouco consciente e a rejeiccedilatildeo natildeo

fundamentada da noccedilatildeo de sistema a fonte de um forte preconceito (Vorbegriff)

contra a filosofia

Em terceiro lugar haacute que ter presente que em Portugal foi uma tradiccedilatildeo poeacutetica

e literaacuteria que se veio afirmando no sentido preciso em que devemos entender

o termo tradiccedilatildeo um diaacutelogo entre poetas de vaacuterias geraccedilotildees que

permanentemente se enraiacuteza do passado e actualiza esse passado em novas

obras linguiacutesticas que se projectam de forma criadora na cultura portuguesa

assumindo tambeacutem uma dimensatildeo universal Esta tradiccedilatildeo poeacutetica

desenvolveu-se nos seus maiores momentos (Camotildees Antero Pascoaes

Vergiacutelio Ferreira Raul Brandatildeo Pessoa) na vizinhanccedila da filosofia e da poesia

europeias estabelecendo com esta um diaacutelogo criador mantendo contudo o

seu enraizamento no solo firme da sua proacutepria tradiccedilatildeo

360

Cf ver o 1ordm capiacutetulo da parte II deste trabalho

230

Esta tradiccedilatildeo poeacutetico-literaacuteria reagindo contra o positivismo dominante e

depois agraves temaacuteticas do niilismo e da morte de Deus produziu no seacuteculo XIX e

XX uma meditaccedilatildeo poeacutetica sobre os problemas do sentido da existecircncia361 e

uma reinterpretaccedilatildeo miacutetica e panteiacutesta do cristianismo agrave margem da tradiccedilatildeo

religiosa362 assim como uma consciecircncia da liacutengua e da histoacuteria como

horizontes hermenecircuticos condicionadores do pensar363

Esta tradiccedilatildeo marcou fortemente a liacutengua portuguesa como liacutengua retoacuterica e

poeacutetica que transporta consigo uma forte tradiccedilatildeo impondo os seus proacuteprios

temas e problemas que satildeo muitas vezes problemas filosoacuteficos (Vorsicht)

Natildeo eacute pois de modo algum um acaso que o iniacutecio da consciecircncia da

necessidade traduccedilatildeo filosoacutefica tenha emergido no interior desta tradiccedilatildeo

poeacutetica esta encontrou na filosofia alematilde o repertoacuterio conceptual e a discussatildeo

de temas e problemas que permitiam responder agrave necessidade de reagir

contra o positivismo e de fundamentar opccedilotildees poliacuteticas eacuteticas e esteacuteticas

assim como de relanccedilar o interesse pelas questotildees da ontologia e da

metafiacutesica numa outra via que natildeo a da escolaacutestica

Em quarto lugar haacute que ressaltar a evoluccedilatildeo contemporacircnea do pensamento

brasileiro o seu maior dinamismo e vitalidade permitem confirmar o influxo

positivo da actividade de traduccedilatildeo na capacidade de apropriaccedilatildeo da tradiccedilatildeo e

de actualizaccedilatildeo do pensamento filosoacutefico no contacto com os problemas vivos

da cultura364

No Brasil apesar da existecircncia de uma matriz comum ao pensamento

portuguecircs haacute a destacar uma maior afirmaccedilatildeo da filosofia facilmente

constataacutevel natildeo apenas pelo nuacutemero de obras publicadas ou pelo nuacutemero de

361

Cf A minha dissertaccedilatildeo de mestrado atraacutes citada A Vida e o Traacutegico em Raul Brandatildeo 362

Cf Jorge Peixoto Coutinho ldquoJunqueiro-Pascoaes e a hermenecircutica do cristianismordquo Coloacutequio Guerra

Junqueiro e a Modernidade Porto 1997 80-98 363

Cf Maria Adelaide Pacheco ldquoLigravengua e Histoacuteria em Heidegger e Pascoaesrdquo in Heidegger Linguagem

e Traduccedilatildeo 417-432 364

Veja-se a este respeito a reflexatildeo de Miguel Reale sobre a evoluccedilatildeo da presenccedila da filosofia no

pensamento brasileiro ldquoA histoacuteria da cultura do Brasil foi durante muito tempo a histoacuteria da repercussatildeo

em nossa sociedade de correntes especulativas ou programaacuteticas recebidas de aleacutem-mar Daiacute a

caracteriacutestica ainda recente de uma actividade mental assinalada pelo comportamento proacuteprio de quem se

conforma de antematildeo a viver de transplantes e de improvisados reajustes de estruturas importadas tanto

no plano da tecnologia como no das instituiccedilotildees poliacuteticas

Ora se examinarmos a situaccedilatildeo actual vermos que [hellip] aquela atitude de reproduccedilatildeo passiva torna-se

cada vez mais excepcional de tal modo que vamos adquirindo cada vez mais consciecircncia de que natildeo haacute

arqueacutetipos para serem copiados mas antes diaacutelogos necessaacuterios entre domiacutenios culturais distintos [hellip]rdquo

Miguel Reale Estudos de Filosofia Brasileira Lisboa 1994 34

231

cursos de filosofia existentes mas pela sua organizaccedilatildeo em instituiccedilotildees como

o Instituto Brasileiro de Filosofia ou a Academia Brasileira de Filosofia

Para esta maior vitalidade e consolidaccedilatildeo da filosofia contribuiacuteram fortemente a

preocupaccedilatildeo pela traduccedilatildeo natildeo apenas dos autores fundamentais da filosofia

moderna e contemporacircnea mas tambeacutem os autores da tradiccedilatildeo filosoacutefica365

Um contacto mais precoce com a filosofia alematilde e uma maior influecircncia da

filosofia kantiana ligada agraves tarefas histoacuterico-poliacuteticas da independecircncia foram

encaminhando a reflexatildeo filosoacutefica no sentido duma nova problemaacutetica e da

afirmaccedilatildeo dum pensamento filosoacutefico mais consciente de si mesmo e mais

consistente na sua elaboraccedilatildeo teoacuterico-conceptual o problema da finitude da

razatildeo teoacuterica e da impossibilidade da metafiacutesica assim como o primado das

questotildees eacutetico-poliacuteticas e de uma filosofia da cultura foram-se impondo como

marcas distintivas do pensamento brasileiro

Contudo esta viragem em direcccedilatildeo agrave modernidade eacute acompanhada pela

existecircncia dum contacto natildeo interrompido com a tradiccedilatildeo possibilitado pelas

correntes tomistas e neotomistas e pela traduccedilatildeo das obras de referecircncia desta

corrente filosoacutefica assim como pelas traduccedilotildees dos autores claacutessicos366

365

Cf Antoacutenio Paim destaca como traduccedilotildees do pensamento claacutessico mais significativas a traduccedilatildeo da

obra completa de Platatildeo de iniciativa da editora Globo a iniciativa da Editora Abril de 50 tiacutetulos de

vaacuterios autores claacutessicos na colecccedilatildeo ldquoOs Pensadoresrdquo Acrescenta ainda a traduccedilatildeo da Summa Teoloacutegica

de S Tomaacutes de Aquino e dos Prolegoacutemenos e a Fundamentaccedilatildeo da Metafiacutesica dos Costumes de Kant

Concluindo a partir do levantamento das traduccedilotildees efectuadas entre 1930 e 1977 afirma que este

rdquopermite verificar que se concluiu no perigraveodo a traduccedilatildeo das principais obras claacutessicas da filosofia Resta

por certo efectivar a versatildeo da obra completa de algumas figuras do pensamento ocidental a exemplo do

que se fez em relaccedilatildeo a Platatildeo e S Tomaacutes Tal eacute o caso certamente de Aristoacuteteles e de Kantrdquo

(Bibliografia Filosoacutefica Brasileira periacuteodo contemporacircneo 1931-1977 Introduccedilatildeo) 366

Em contraste com esta situaccedilatildeo da traduccedilatildeo dos autores da tradiccedilatildeo filosoacutefica que constataacutemos para o

Brasil veja-se a nota introdutoacuteria da Bibliografia Filosoacutefica Portuguesa - que faz o levantamento de

cerca de 7000 tiacutetulos publicados entre 1931 e 1987 - de Maria de Lurdes Ganho e Mendo Castro

Henriques ldquoMuito embora o valor cientiacutefico das obras aqui reportoriadas seja necessariamente desigual e

se registem graviacutessimas carecircncias sobretudo na traduccedilatildeo de textos claacutessicos certamente que o estudioso

natildeo deixaraacute de encontrar muacuteltiplas pistas e sugestotildeesrdquo (Sociedade Cientiacutefica da Universidade Catoacutelica

Portuguesa Bibliografia Filosoacutefica Portuguesa (1931-1987) LisboaSatildeo Paulo 1988 XII

232

233

Capiacutetulo II - Traduccedilatildeo portuguesa de Heidegger

234

235

1 Recepccedilatildeo de Heidegger em Portugal

11 Os primeiros divulgadores

Como acima referimos a influecircncia de Heidegger iniciou-se com a publicaccedilatildeo

de Sein und Zeit em 1927 cuja difusatildeo lhe granjeou uma notoriedade quase

imediata captando a atenccedilatildeo do puacuteblico atento agraves questotildees filosoacuteficas de

quase toda a Europa A irradiaccedilatildeo da influecircncia de Heidegger num primeiro

periacuteodo foi caracterizada por um conhecimento fragmentaacuterio das suas obras

uma vez que a primeira traduccedilatildeo integral de Sein und Zeit realizada por Gaos

para o espanhol foi feita apenas em 1951 e que soacute nos anos setenta Vittorio

Klostermann iniciou a publicaccedilatildeo das obras completas

Ao longo destes primeiros anos a leitura de Heidegger centrada

dominantemente na anaacutelise da existecircncia em Sein und Zeit impocircs uma

primeira interpretaccedilatildeo da filosofia heideggeriana como um existencialismo 367e

uma reflexatildeo antropoloacutegica interpretaccedilatildeo que foi sendo corrigida desde logo

pelo proacuteprio Heidegger depois por um conhecimento progressivo da

globalidade dos seus textos filosoacuteficos

Eacute esta mesma interpretaccedilatildeo existencialista que marca a primeira recepccedilatildeo de

Heidegger em liacutengua portuguesa que eacute aliaacutes anterior ao desenvolvimento dos

primeiros estudos portugueses de fenomenologia que apareceram na Revista

Portuguesa de Filosofia soacute no ano de 1946 (Diamantino Martins

Fenomenologia e Imortalidade e Severino Tavares Os Arquivos de Husserl

Revista Portuguesa de Filosofia 21946)

Tem-se apontado como primeiro autor a comentar o pensamento de Heidegger

em liacutengua portuguesa Leonardo Coimbra368 De facto em O Homem agraves matildeos

367

Sobre a recepccedilatildeo do existencialismo em Portugal cf comunicaccedilatildeo de Miguel Reale ldquoDelfim Santos e

a geacutenese do existencialismo em Portugalrdquo nas Actas do Congresso Internacional de 2008rdquoDelfim Santos

e a Escola do Portordquo(199-234) O autor mostra que a recepccedilatildeo do existencialismo em Portugal foi desde

logo uma aclimataccedilatildeo agraves tendecircncias intelectuais mais marcantes do paiacutes desde o seacuteculo XIX sem uma

avaliaccedilatildeo rigorosa do valor intriacutenseco dos autores nem da argumentaccedilatildeo produzida Miguel Reale

distingue trecircs fases na recepccedilatildeo do existencialismo a primeira protagonizada por Leonardo Coimbra

Garcia Domingos Delfim Santos Joseacute Brandatildeo e Luiacutes Cabral Moncada os primeiros difusores a

segunda fase marcada pelo debate entre o pensamento catoacutelico e o existencialismo levado a cabo por

Alexandre Fradique Morujatildeo Diamantino Martins Joseacute Enes e Manuel Antunes a terceira pela

nacionalizaccedilatildeo do existencialismo por Antoacutenio Quadros que faz uma ligaccedilatildeo entre a temaacutetica do

saudosismo e as filosofias existencialistas 368

Cristiana Abranches de Soveral em A Filosofia Pedagoacutegica de Delfim Santos refere como primeiro

comentaacuterio em liacutengua portuguesa ao pensamento de Heidegger o ensaio de 1935 A Ruacutessia de Hoje e o

Homem de Sempre de Leonardo Coimbra Embora neste ensaio natildeo haja uma referecircncia expliacutecita a

Heidegger mas sim agrave fenomenologia alematilde na generalidade eacute presumiacutevel que tivesse sido influenciado

por um conhecimento de algumas obras de Heidegger Sobre este ensaio de Leonardo Coimbra cf Maria

236

do Destino escrito no ano de 1935 mas editado postumamente em 1950

Leonardo Coimbra a propoacutesito da luta do homem com o Destino - temaacutetica

muito explorada pelo do pensamento poeacutetico e existencial de Raul Brandatildeo e

Teixeira de Pascoes369 - insere um curto comentaacuterio que chama a atenccedilatildeo para

a temaacutetica da existecircncia que Heidegger teria desenvolvido a partir de uma

renovaccedilatildeo do argumento ontoloacutegico de Santo Anselmo370

111Delfim Santos

No entanto em ldquoDialeacutectica totalistardquo371 artigo publicado em 1933 na revista

Presenccedila Delfim Santos jaacute citara Heidegger tendo sido ele o primeiro

divulgador do seu pensamento Delfim Santos tinha uma formaccedilatildeo filosoacutefica

extensa e actualizada tornada possiacutevel pela sua condiccedilatildeo de bolseiro na

deacutecada de 30 na Aacuteustria e na Alemanha Foi bolseiro da Junta de Educaccedilatildeo

Nacional entre 35 e 37 em Viena de Aacuteustria onde tomou parte das

conferecircncias do Ciacuterculo de Viena e assistiu a conferecircncias de Husserl Em

Berlim assistiu agraves liccedilotildees de Metafiacutesica do Conhecimento de Nicolai Hartmann

tendo-se depois transferido para Londres onde continuou os seus estudos

sobre Filosofia das Ciecircncias publicando em seguida A Situaccedilatildeo Valorativa do

Positivismo em que discute os pressupostos teoacutericos desta corrente filosoacutefica

Regressando a Portugal em 37372 seraacute convidado a voltar ao estrangeiro na

qualidade de leitor na Universidade de Berlim remontando a esta segunda

Adelaide Pacheco em ldquoA Presenccedila de Heidegger em Portugal o pensar como Re-memoraccedilatildeordquo (Revista

Portuguesa de Filosofia tomo LIX 1210-1216) Trata-se de um erro que segue uma afirmaccedilatildeo de

Antoacutenio Quadros em ldquoExistencialismo e filosofia existencialista em Portugalrdquo in Logos Enciclopeacutedia

Luso-Brasileira de Filosofia Lisboa Satildeo Paulo Ed Verbo 1990 De facto o ensaio onde Leonardo

Coimbra refere explicitamente Heidegger eacute O Homem agraves matildeos do Destino escrito no mesmo ano 369

Sobre o existencialismo ldquoavant la letttrerdquo destes autores cf a minha dissertaccedilatildeo de mestrado A Vida e o

Traacutegico em Raul Brandatildeo 370

ldquoHeidegger encontra com efeito na existecircncia humana perdida no mundo e na existecircncia humana

reencontrando-se os caracteres fenomenoloacutegicos da existecircncia A fenomenologia da existecircncia eacute para

ele a ontologia da realidade Existecircncia que se encontra existecircncia humana pois que nenhuma existecircncia

haacute que natildeo esteja nesta envolvida ndash ele conclui por um renovo do argumento ontoloacutegico de Santo

Anselmo O primeiro caraacutecter daacute a inquietaccedilatildeo o mal-estar e o medo que o homem banal adormece na

uniformidade do mal de todo o mundo O segundo caraacutecter daacute a anguacutestia perante o desamparo da sua

existecircncia finita e humilhada Esta anguacutestia eacute sobretudo a anguacutestia perante a Morte temporalizaccedilatildeo

primordial em que o passado e o presente se englobam num verdadeiro futurordquo Leonardo Coimbra ldquoO

Homem agraves matildeos com o Destinordquo Obras de Leonardo Coimbra II Porto 1983 1012 371

Delfim Santos ldquoDialeacutectica Totalistardquo in Presenccedila 39 1933 (Obras Completas I - Da Filosofia

Lisboa 1982 31-38) 372

Miguel Reale chama a atenccedilatildeo para o facto de que o manuscrito do artigo Da Filosofia em que Delfim

Santos volta a citar Heidegger eacute de 1937 (embora fosse publicado apenas em 1939) Neste artigo cruzam-

237

estadia no estrangeiro o seu contacto com o pensamento de Martin

Heidegger373 Eacute geralmente reconhecido que o seu contacto com o

pensamento de Nicolai Hartmann e de Martin Heidegger desempenhou um

importante papel na sua trajectoacuteria intelectual que na deacutecada de 40 sofre uma

importante inflexatildeo desviando-se dos problemas da ciecircncia para temaacuteticas

ligadas agrave metafiacutesica e agrave ontologia374

Delfim Santos tornou-se um activo divulgador do pensamento de Heidegger

entre noacutes atraveacutes de numerosos artigos e conferecircncias sem no entanto

chegar a tomar a iniciativa da sua traduccedilatildeo Esta falta de iniciativa foi no seu

caso uma deliberaccedilatildeo que ele justifica logo no artigo escrito em 1938 e

intitulado Heidegger e Houmllderlin ou a essecircncia da poesia com o postulado da

impossibilidade de transferecircncias rigorosas de sentido entre liacutenguas tatildeo

diferentes como as liacutenguas latinas e germacircnicas e ainda com a especificidade

do ldquoestilordquo heideggeriano ldquoHeidegger eacute por esse motivo intraduziacutevel porque a

sua ldquoforma de pensamentordquo desloca a base de referecircncia da liacutengua alematilde e

portanto todo o sistema de correspondecircncia estabelecido entre esta e qualquer

outra liacutenguardquo375

Optando assim por ao inveacutes duma traduccedilatildeo fazer um resumo dos aspectos

essenciais do ensaio Houmllderlin e a essecircncia da poesia natildeo deixa no entanto

de enfrentar problemas hermenecircuticos e de ter que tomar decisotildees de

traduccedilatildeo que hoje nos aparecem como duvidosas senatildeo como totalmente

erradas Eacute o caso da traduccedilatildeo de ldquosein des Seienden como ldquoser do sendordquo

traduccedilatildeo que parece contaminada pela problemaacutetica metafiacutesica da distinccedilatildeo

entre essecircncia e existecircncia como mais agrave frente mostraremos revelando uma

se as influecircncias de Leonardo Coimbra e de Nicolai Hartmann e a referecircncia a Heidegger eacute ainda lateral

Miguel Reale lembra igualmente o facto de que na correspondecircncia a primeira referecircncia a Heidegger

ocorre numa carta dirigida a Joseacute Marinho no mesmo ano A passagem transcrita da referida carta eacute a

seguinte ldquoHeidegger parte da meditaccedilatildeo sobre o conceito de existecircncia e encontra que esta natildeo pode ter a

predicaccedilatildeo universal que lhe deu a filosofia tradicional Existecircncia tem sentido humano e natildeo pode ser

atribuiacuteda nem ao domiacutenio das coisas nem a cada uma das regiotildees que concorrem na formaccedilatildeo do homem

A filosofia existencial eacute antropologia filosoacutefica e neste sentido interessa-lhe a descriccedilatildeo fenomenoloacutegica

da anguacutestia como essencial no comportamento humanordquo Miguel Reale ldquoDelfim Santos e a Geacutenese do

Existencialismo em Portugalrdquo in Delfim Santos e a Escola do Porto 205 373

Cf Manuel Guedes da Silva Miranda Delfim Santos - A Metafiacutesica como Filosofia Fundamental

Lisboa 2003 21-23 374

Cf Constanccedila Marcondes Ceacutesar em ldquoDelfim Santos e Eudoro de Sousardquo Actas do Congresso

Internacional Delfim Santos e a Escola do Porto 156 375

Delfim Santos ldquoHeidegger e Houmllderlin ou a essecircncia da poesiardquo Revista de Portugal Lisboa nordm 4

1938 in Obras Completas vol II Lisboa 1987 333

238

incompreensatildeo do modo especiacutefico de enfrentamento da questatildeo ontoloacutegica agrave

margem dessa tradiccedilatildeo e contra ela feita em Ser e Tempo

Os artigos sobre Heidegger posteriores ocasionalmente publicados por Delfim

Santos ao longo das deacutecadas de 40 e 50376 revelam no entanto uma leitura

atenta de Ser e Tempo obra para que remetem as suas diversas referecircncias e

comentaacuterios valorizando nela sobretudo a temaacutetica existencial Como

podemos constatar pelo prefaacutecio agrave obra de Reacutegis Jolivet As Doutrinas

Existencialistas de Kierkegaard a Sartre Delfim Santos integrou Heidegger na

corrente mais vasta do existencialismo europeu ao lado de Sartre Kierkegaard

e Jaspers

Eacute preciso ainda constatar que Delfim Santos introduziu entre noacutes uma criacutetica agraves

correntes neo-positivistas e defendeu uma interpretaccedilatildeo humanista da cultura

agrave luz da qual ele leu Ser e Tempo leitura que distorce por vezes

flagrantemente o sentido do texto de Heidegger estas distorccedilotildees por um lado

reflectem as incompreensotildees iniciais que rodearam a recepccedilatildeo dos textos do

ldquoprimeiro Heideggerrdquo em toda a Europa por outro natildeo deixam de reflectir ainda

a imposiccedilatildeo de preconceitos inerentes agrave ldquosituaccedilatildeo hermenecircuticardquo do proacuteprio

Delfim Santos como inteacuterprete e revelam-se de grande interesse para a nossa

investigaccedilatildeo

Se podemos considerar que Delfim Santos contribuiu para divulgar uma

interpretaccedilatildeo existencialista e humanista de Heidegger que hoje nos surge

como distorccedilatildeo dos textos e alteraccedilatildeo de sentido no entanto haacute que

reconhecer que Delfim Santos apresenta um notaacutevel esforccedilo de reflexatildeo das

implicaccedilotildees do pensamento existencial de Heidegger em diversos campos da

cultura Este explora sobretudo as implicaccedilotildees da analiacutetica da existecircncia

desenvolvida por Heidegger em Sein und Zeit encontrando na condiccedilatildeo do

Dasein como ser no mundo a fundamentaccedilatildeo para uma pedagogia existencial

uma nova filosofia juriacutedica e abrindo pistas para uma nova abordagem da

psicopatologia

Na mesma linha de uma hermenecircutica existencialista de Heidegger temos o

caso de Garcia Pereira377 que na sua tese de Doutoramento apresentada em

376

Cf Anexo II da bibliografia 377

Em 1933 Garcia Domingos num pequeno ensaio intitulado Da Cultura lido na sessatildeo inaugural do

Liceu Infante de Sagres em Portimatildeo fazia jaacute referecircncias a vaacuterios autores existencialistas entre os quais

239

1939 agrave Faculdade de Letras de Lisboa intitulada Da essecircncia da existecircncia e

da valecircncia Investigaccedilotildees sobre as raiacutezes metafiacutesicas do pensamento e as

perspectivas transcendentais do ser jaacute incluiacutea diversas obras de Heidegger

assim como de Jaspers Kierkegaard e e Gabriel Marcel378

112 Vergiacutelio Ferreira

Vergiacutelio Ferreira foi dos autores mais marcantes nesta interpretaccedilatildeo

existencialista de Heidegger Reconhecendo-se na conferecircncia subordinada

ao tema Existencialismo e Literatura de 1964 simultaneamente como um

herdeiro do existencialismo avant la lettre de Raul Brandatildeo ele reivindica para

si a influecircncia das filosofias existencialistas que pontuavam ao tempo na

Europa

Heidegger aparece-nos ao lado de Sartre Jaspers Kierkgaard Malraux

Camus e Gabriel Marcel como autores de que Vergiacutelio Ferreira destaca a

problemaacutetica existencial e as novas perspectivas que essa problemaacutetica da

existecircncia abre agrave literatura ldquoPara todos estes pensadores poreacutem [] o centro

de interesses eacute ainda e sempre o proacuteprio homem o indiviacuteduo concreto comeccedilo

e fim dos seus problemas ainda que admitamos como temos que admitir que

por ele passam os problemas do mundo dos outros homensrdquo379 Heidegger

como Sartre e Jaspers satildeo referidos por Vergiacutelio Ferreira como referecircncias

filosoacuteficas que permitiram abrir novos horizontes agrave literatura por um retorno do

homem a si mesmo e por uma centraccedilatildeo subjectiva de todo o questionar

metafiacutesico ldquoComo vedes de certo modo foi como se o homem reparasse a

certa altura que se perdera a si de vista e a si regressasse para re-entender o

seu caminho e refazecirc-lo se pudesse Ora bem a fundamental descoberta de

todo este questionar foi a descoberta de que eacute no proacuteprio homem que

ultimamente residem todas as decisotildees ou formulaccedilotildees daquilo que

Gabriel Marcel Cf Miguel Reale ldquoDelfim Santos e a Geacutenese do Existencialismo em Portugalrdquo in Delfim

Santos e a Escola do Porto 202 378

Cf Ibidem 203 379

Vergigravelio Ferreira ldquoExistencialismo e Literaturardquo [1964] in Espaccedilo do Invisiacutevel 2 Venda Nova 1991

36

240

posteriormente se concebeu como determinaccedilotildees objectivas todos os valores

transcendentesrdquo380

A analiacutetica existencial de Ser e Tempo evidencia a condiccedilatildeo humana como

atravessada por uma tensatildeo dramaacutetica entre a autenticidade e a

inautenticidade e a busca de sentido do homem que se projecta solitariamente

em direcccedilatildeo agrave morte ignorando a sua origem e o seu destino faz da proacutepria

existecircncia uma aventura de desfecho incerto de que a literatura existencialista

francesa explorou as possibilidades

Vergiacutelio Ferreira explora a partir da sua novela A Mudanccedila de 1949 o

confronto com o absurdo e a anguacutestia do homem que enfrenta solitariamente a

sua existecircncia inserindo-se nesta literatura existencialista desenvolvida em

Franccedila Ele proacuteprio se fez um divulgador da filosofia de Sartre com a obra Da

Fenomenologia de Sartre de 1962 e com a sua traduccedilatildeo de O Existencialismo

eacute um Humanismo

Note-se no entanto que nenhum destes autores entre noacutes introdutores do

pensamento existencial traduziu qualquer texto de Heidegger pelo que o

acesso aos seus textos foi mediado para a maioria dos intelectuais

portugueses pelas traduccedilotildees francesas Acresce ainda a isto que tanto Delfim

Santos como Vergiacutelio Ferreira centraram os esforccedilos de traduccedilatildeo em obras

francesas de divulgaccedilatildeo do existencialismo (Jolitet Regis As Doutrinas

Existencialistas trad de Antoacutenio Vasconcelos e Lencastre prefaacutecio de Delfim

Santos Colecccedilatildeo Filosofia e Religiatildeo 8 1953 Porto e Sartre O

existencialismo eacute um humanismo trad de Vergiacutelio Ferreira Lisboa Presenccedila

1978)381

380

Ibidem 3738 381

Sobre a confusatildeo entre a fenomenologia alematilde e o existencialismo francecircs reinante no tempo datildeo-nos

um excelente testemunho os textos da autobiografia intelectual de Joseacute Marinho escritos nos anos 50 para

serem inseridos na ediccedilatildeo de Aforismos sobre o que mais importa Ao referir a necessidade de os

intelectuais portugueses reverem a sua posiccedilatildeo face a estas duas correntes do pensamento contemporacircneo

Marinho afirma rdquoCertamente que uma boa parte das pessoas que de filosofia se ocupam teratildeo

forccedilosamente de rever as suas criacuteticas ou faacuteceis desdeacutens perante a fenomenologia ou o existencialismo ndash

duas atitudes muito diferentes mas que por vezes aparecem fundidasrdquo (rdquoAutobiografia Espiritual e outros

textos autobiograacuteficosrdquo in Obras de Joseacute Marinho vol I Lisboa 374) E noutro passo da mesma auto-

biografia esclarecendo a sua relaccedilatildeo com estas correntes que ele diferenciava ldquoEsta dialeacutectica da

plenitude e da carecircncia natildeo a recebi eu do existencialismo que era entatildeo para mim uma filosofia suspeita

Hoje compreendo-a como crise e iniciaccedilatildeo na ontologia fundamental apesar dos desvios antropoloacutegicos

que sofre em Franccedilardquo (Ob cit 364)

241

As obras de Heidegger chegaram pois ao conhecimento da grande maioria dos

intelectuais portugueses382 atraveacutes de publicaccedilotildees ou traduccedilotildees francesas ou

seja chegaram vertidas para uma liacutengua latina com a qual temos grande

familiaridade e a cuja influecircncia noacutes nos encontramos historicamente expostos

E natildeo eacute certamente indiferente que a sua leitura nos tenha chegado primeiro

natildeo na liacutengua de Kant e Hegel nem na nossa proacutepria liacutengua mas na liacutengua de

Sartre e Camus tendo este facto contribuiacutedo largamente para que uma

interpretaccedilatildeo existencialista se impusesse entre noacutes

113 Antoacutenio Joseacute Brandatildeo

Neste primeiro periacuteodo de recepccedilatildeo de Heidegger temos no entanto algumas

excepccedilotildees a esta mediaccedilatildeo francoacutefona383 Destaca-se a traduccedilatildeo portuguesa de

Von Wesen der Wahrheit publicada na revista Rumo em 1946384 atribuiacuteda a

Antoacutenio Joseacute Brandatildeo Esta traduccedilatildeo vem acompanhada por um artigo intitulado

Martin Heidegger que refere a notoriedade do pensamento de Heidegger assim

como o caraacutecter restrito e mediado pelas traduccedilotildees francesas da difusatildeo do seu

pensamento em Portugal ldquoEacute recente conta poucos anos a fama de Martin

Heidegger em Portugal O reduzido puacuteblico que entre noacutes dedica algum

interesse aos assuntos filosoacuteficos ou procura informar-se do que se passa laacute

fora teve conhecimento da raacutepida celeridade deste filoacutesofo e da contagiosa

repercussatildeo da sua obra Como sempre poreacutem esse conhecimento natildeo foi

directo resultou de artigos e relatos aparecidos em revistas francesas ou

espanholasrdquo385 Esse artigo da Rumo denuncia lucidamente a controveacutersia de

caraacutecter ideoloacutegico e natildeo fundada no conhecimento directo dos textos jaacute

instalada em Portugal a propoacutesito de Heidegger e propotildee a traduccedilatildeo portuguesa

382

Comprovaccedilatildeo desta mediaccedilatildeo francoacutefona eacute a obra de Orlando Vitorino Refutaccedilatildeo da Filosofia

Triunfante de 1976 que no uacuteltimo capiacutetulo inclui uma extensa referecircncia ao conceito heideggeriano de

verdade pretendendo demonstrar que este se insere nas tendecircncias dominantes da filosofia moderna Aiacute

satildeo referidas em notas de rodapeacute sempre as traduccedilotildees francesas das obras de Heidegger nomeadamente

De L‟Essence de la veacuteriteacute Essais et Confeacuterences e Questions II Eacute aiacute manifesta uma incompreensatildeo do

conceito heideggeriano de Verdade definido pelo pensador portuguecircs como ldquoconformidade ocircnticardquo Cf

Refutaccedilatildeo da Filosofia Triunfante Lisboa 1976 253-257 383

Como excepccedilatildeo a esta recepccedilatildeo da filosofia alematilde pela mediaccedilatildeo francoacutefona eacute de salientar as

conferecircncias de Gadamer (em francecircs e alematildeo) no Instituto Alematildeo em Lisboa Porto e Coimbra em

1944 Os temas das conferecircncias foram ldquoGoethe und die Philosophierdquo ldquoDas Problem der Geschichte in

der neueren deutschen Philosophieldquo e bdquoPrometheus und die Tragoumldie der Kulturldquo Cf Jen Grondin

Hans-Georg Gadamer Eine Biographie Tuumlbingen1999 258-260) 384

ldquoDa Essecircncia da Verdaderdquo in Rumo nordm2 Lisboa Julho 1946 385

ldquoMartin Heideggerrdquo in Rumo nordm2 Julho 1946 275

242

de Von Wesen der Wahrheit como incitaccedilatildeo a uma verdadeira aprendizagem da

dialeacutectica fundada na compreensatildeo ldquodas coisas mesmasrdquo que se quer refutar386

A propoacutesito da decisatildeo da traduccedilatildeo deste texto num dos nuacutemeros seguintes da

revista Rumo em editorial intitulado Martinho Heidegger e Rumo afirma-se387 o

seguinte ldquoPropositadamente se escolheu o ensaio sobre a essecircncia da

Verdade ndash a primeira vez traduzido em liacutengua portuguesa no nordm 2 desta revista

ndash natildeo soacute porque eacute da praxe a partir de Kant comeccedilar pelos problemas do

conhecimento mas porque neste trabalho Heidegger especula sobre

problemas em que jaacute se debruccedilaram pensadores portugueses de seiscentos o

que permite estabelecer pontos de contacto e linhas de divergecircncias entre a

moderna corrente heideggeriana e a nossa tradiccedilatildeo filosoacuteficardquo388

Mais agrave frente no mesmo artigo se afirma que Heidegger como os escolaacutesticos

visava ldquoo problema do ser enquanto serrdquo mas onde os escolaacutesticos distinguem

e hierarquizam os diversos graus de ser Heidegger ldquoaperta-o no anel estreito

da existecircncia temporalrdquo389

A revista segue ainda o ponto de vista dominante da compreensatildeo de

Heidegger como um autor existencialista identificando Heidegger como ldquoo mais

alto representante do existencialismo ateurdquo De acordo com este ponto de vista

que se toma como adquirido mais agrave frente o citado artigo critica-o por construir

a sua filosofia de costas voltadas para a teologia e para a sua heranccedila catoacutelica

reafirmando os princiacutepios editorias da revista compatiacuteveis com uma filosofia

cristatilde que natildeo pode ldquoconceber o ser que somos independentemente do ser que

nos criourdquo390

Antoacutenio Joseacute Brandatildeo (1906-1984) introduziu ainda o diaacutelogo com o

pensamento de Heidegger na teoria do Direito na sua Dissertaccedilatildeo de

Doutoramento intitulada O Direito Ensaio de Ontologia Juriacutedica apresentada

na Universidade de Lisboa em 1942 Aiacute no cap I artigo 2 no seu sect 4 dedicado

386

Miguel Reale refere que este artigo de Joseacute Brandatildeo introduzia uma crigravetica aos ldquoneotomistas zelososrdquo

que criticavam apressadamente Heidegger numa perspectiva apologeacutetica o que teria provocado uma

ruptura na revista Rumo com a saiacuteda de Joseacute Brandatildeo Delfim Santos e Cabral Moncada os

colaboradores vinculados ao pensamento alematildeo Cf Miguel Reale ldquoDelfim Santos e a Geacutenese do

Existencialismo em Portugalrdquo in Delfim Santos e a Escola do Porto 213 387

A propoacutesito do editorial deste segundo nuacutemero afirma Miguel Reale que ele teria sido escrito pelo seu

director Maacuterio de Albuquerque como resposta agrave saiacuteda da revista de Delfim Santos Cabral Moncada e

Antoacutenio Brandatildeo (Ibidem 213) 388

ldquoMartinho Heidegger e Rumordquo in Rumo nordm3 e 4 Agosto-Setembro de 1946 475 389

Ibidem 476 390

Ibidem 476

243

agrave ldquoontologia existencialrdquo faz numerosas referecircncias a Heidegger salientando

que este cumprira a tarefa natildeo realizada por Husserl da ldquodescriccedilatildeo analiacutetica

da existecircncia temporal do homem da vida natural e do seu saber natildeo teoreacutetico

dirigido para o existente - para o mundo das coisas que se apresenta na

mesma imediatidade como eacute apreendido mundo dos valoresrdquo391

Confrontando a ontologia existencial de Heidegger com a ontologia tradicional

(escolaacutestica) e com a ontologia de Nicolai Hartmann decide-se pela maior

relevacircncia das duas uacuteltimas para a teoria do Direito392 No entanto na sua

filosofia do direito ele dialoga com a concepccedilatildeo da histoacuteria de Heidegger

repensando a nova luz a exegese do Direito jaacute natildeo tomada como uma mera

interpretaccedilatildeo loacutegica das normas mas como uma interpretaccedilatildeo capaz de

determinar o que na norma haacute de juriacutedico isto eacute de aplicaacutevel a cada caso

concreto de acordo com a sensibilidade juriacutedica vigente A interpretaccedilatildeo da lei

eacute assim uma permanente actualizaccedilatildeo do passado de acordo com o espiacuterito

objectivo vigente numa certa comunidade e numa certa eacutepoca histoacuterica (O

Direito Ensaio de Ontologia juriacutedica Lisboa 1948)

Antoacutenio Joseacute Brandatildeo prefaciou tambeacutem mais tarde a traduccedilatildeo portuguesa da

Carta sobre o Humanismo editada pela Guimaratildees em 1973 mostrando as

conexotildees desse texto com Ser e Tempo e com Sobre a Essecircncia da Verdade e

evidenciando aiacute uma correcta compreensatildeo da criacutetica de Heidegger ao

humanismo393

Podemos pois concluir que estes primeiros divulgadores tendem a fazer uma

leitura de Heidegger que eacute centradas na temaacutetica da existecircncia e aparece

contaminada por um lado pelas filosofias existencialistas por outro pela

metafiacutesica escolaacutestica Por outro lado a consciecircncia da necessidade de traduzir

391

Antoacutenio Joseacute Brandatildeo Vigecircncia e temporalidade do direito e outros ensaios de filosofia juriacutedica

Lisboa 2001 164 392

Antoacutenio Joseacute Brandatildeo dirige a Heidegger a criacutetica de Hartmann ldquoCom efeito a Heidegger pode

dirigir-se a criacutetica de Hartmann ldquoconfundiu dois problemas diversos ndash o ser e o sentido do ser Soacute o

primeiro eacute ontoloacutegico O outro natildeo Todo o sentido eacute sempre sentido para algueacutem Mas o ser existe por

definiccedilatildeo quer tenha quer natildeo tenha sentido para algueacutem Para ser natildeo carece de ldquoser pensadordquo A sua

existecircncia eacute em si indiferente aos possiacuteveis sentidos que lhe possam atribuirrdquo Ibidem 170 393

No referido prefaacutecio Antoacutenio Joseacute Brandatildeo sublinha a conexatildeo estabelecida por Heidegger entre

humanismo e metafiacutesica e destaca A Carta Sobre o Humanismo como a abertura de uma nova via para

pensar o homem agrave margem da problemaacutetica antropoloacutegica estabelecida pela tradiccedilatildeo na proximidade do

Ser No sect9 deste prefaacutecio explicita a distacircncia entre a perspectiva de Heidegger e todos os

existencialismos designadamente na versatildeo sartriana Cf Idem Prefaacutecio in Martin Heidegger Carta

Sobre o Humanismo trad de Arnaldo Stein Lisboa 1973

244

as obras de Heidegger para a liacutengua portuguesa eacute ainda excepcional Esta

situaccedilatildeo a partir dos anos 50 vai ser progressivamente corrigida

12 A compreensatildeo da obra de Heidegger e a sua traduccedilatildeo apoacutes os

anos 50

A deacutecada de 50 foi marcada pela traduccedilatildeo em liacutengua espanhola de Ser e

Tempo394 que tornou esta obra acessiacutevel aos falantes das liacutenguas latinas que

como era o caso da maioria dos intelectuais portugueses natildeo falavam o

alematildeo A partir de 1954 Alexandre Fradique Morujatildeo395 Gustavo de Fraga e

Juacutelio Fragata396 desenvolveram os estudos fenomenoloacutegicos de que

salientamos de Gustavo Fraga397 De Husserl a Heidegger elementos para uma

problemaacutetica da Fenomenologia Coimbra Universidade de Coimbra 1965 A

estes vieram juntar-se os trabalhos de Eduardo Soveral (Fenomenologia e

Metafiacutesica) e de Manuela Saraiva (Imaginaccedilatildeo e Metafiacutesica)398

Estes estudos visaram simultaneamente a compreensatildeo rigorosa do

pensamento de Husserl e a chamada de atenccedilatildeo para os limites da sua

concepccedilatildeo da filosofia como ciecircncia do rigor e para toacutepicos do pensamento

europeu que constituem desafios a esses limites como os problemas

relacionados com a religiatildeo399 e a filosofia da arte

Heidegger cujas obras comeccedilaram a ser traduzidas apenas nos fins dos anos

60 no Brasil teve a primeira traduccedilatildeo com uma vasta difusatildeo puacuteblica em

394

El Ser y El tiempo trad Joseacute Gaos Meacutexico-Madrid-Buenos Aires Fondo de Cultura Econoacutemica

1951 395

Sobre o contacto de Alexandre Fradique Morujatildeo com diversos vultos da fenomenologia europeia cf

Clara Morando ldquoAlexandre Fradique de Morujatildeo consideraccedilotildees sobre os seus ldquoestudos

fenomenoloacutegicosrdquo in org de Celeste Nataacuterio Antoacutenio Braz Teixeira e Renato Epifacircnio O Movimento

Fenomenoloacutegico em Portugal e no Brasil Sintra 2010 25-40 396

ldquoComo as outras figuras maiores da Escola Bracarense de que faz parte Juacutelio Fragata reconhecia-se

expressamente inserido na tradiccedilatildeo escolaacutestica o que natildeo o impediu de dialogar demoradamente com o

pensamento husserliano e de considerar que o verdadeiro fundamento da filosofia deveria buscar-se numa

fenomenologia entendida como observaccedilatildeo directa do que se manifesta agrave consciecircncia [hellip]rdquo Antoacutenio Braz

Teixeira rdquoO realismo Fenomenoloacutegico de Juacutelio Fragatardquo in O Movimento Fenomenoloacutegico em Portugal

e no Brasil 41 397

Cf art De Manuel Cacircndido Pimentel Gustavo de Fraga entre Fenomenologia e Metafiacutesica in O

Pensamento Fenomenoloacutegico em Portugal e no Brasil81-90 398

Sobre a relaccedilatildeo de Eduardo Abranches de Soveral e Maria Manuela Saraiva com o pensamento de

Husserl e de Heidegger cf O Pensamento Fenomenoloacutegico em Portugal e no Brasil 71-80 e 91-107 399

Sobre o papel destacado de Alexandre Fradique Morujatildeo na formaccedilatildeo da corrente do existencialismo

cristatildeo em Portugal cf Miguel Reale ldquoDelfim Santos e a Geacutenese do Existencialismo em Portugalrdquo in

Delfim Santos e a Escola do Porto 221222 Aqui o autor destaca os artigos principais que assinalam a

formaccedilatildeo de um pensamento existencialista cristatildeo na segunda metade dos anos quarenta e cinquenta em

torno da Revista Portuguesa de Filosofia centrado no diaacutelogo com Gabriel Marcel (Diamantino Martins

Fradique Morujatildeo) e Heidegger (Carlos Branco)

245

Portugal em 1973 (Carta sobre o Humanismo trad de A Stein Lisboa

Guimaratildees 1973) e este iniacutecio do movimento de traduccedilatildeo selecciona uma obra

cuja publicaccedilatildeo tinha tido nos ciacuterculos filosoacuteficos de toda a Europa grande

efeito causando a impressatildeo de uma ruptura total de Heidegger com o projecto

de Ser e Tempo e de uma segunda etapa da sua obra centrada nas temaacuteticas

do ser e da linguagem

121 Pe Manuel Antunes

Na lista de pensadores que primeiro valorizaram a problemaacutetica da linguagem e

do ser em Heidegger haacute que colocar em lugar de destaque o Pe Manuel

Antunes prestigiado professor da Faculdade de Letras de Lisboa onde durante

muitos anos regeu a cadeira de Histoacuteria da Cultura Claacutessica integrando-se

ainda numa linhagem de pensadores portugueses que sucederam a Leonardo

Coimbra e foram por ele influenciados

O Pe Manuel Antunes tinha-se jaacute ocupado de Heidegger na sua dissertaccedilatildeo de

licenciatura de 1943 ldquoPanorama da filosofia existencial de Kierkegaard e

Heideggerrdquo o segundo trabalho acadeacutemico a ocupar-se de Heidegger em liacutengua

portuguesa como podemos constatar pela leitura da bibliografia referida no

apecircndice 2400do presente trabalho

Nos artigos publicados na revista Broteacuteria em 1951 e 1952 ldquoPrometeiacutesmordquo e

ldquoPrometeiacutesmo existencialistardquo o Pe Manuel Antunes revela-se fortemente criacutetico

das filosofias existencialistas de Andreacute Malraux Sartre e Albert Camus vendo

nesta corrente uma afirmaccedilatildeo prometeica do homem contra Deus e uma

afirmaccedilatildeo do niilismo401

Foi nos anos sessenta que o Pe Manuel Antunes comeccedilou a destacar

Heidegger das filosofias existencialistas e dedicar-se ao estudo aprofundado da

sua obra Em ldquoHeidegger renovador da Filosofiardquo publicado em Occasionalia por

ocasiatildeo da morte do filoacutesofo alematildeo reconhece-se devedor de Heidegger e

assume-se como tendo sido marcado pelo seu conviacutevio espiritual Nos seus

cursos de Ontologia da Faculdade de Letras de Lisboa na deacutecada de 70

conduziu com o grande brilho e rigor que lhe eram caracteriacutesticos o comentaacuterio

400

Cf Trabalhos acadeacutemicos publicados sobre Heidegger apecircndice 2 438 401

Miguel Reale salienta a singularidade desta posiccedilatildeo do Pe Manuel Antunes relativamente ao diaacutelogo

com o existencialismo que vinha a ser levado a cabo na Revista Portuguesa de Filosofia Ibidem 224

246

a diversos textos de Heidegger referentes agrave filosofia preacute-socraacutetica e agrave filosofia

moderna e incentivou agrave leitura de textos relevantes como Introduccedilatildeo agrave

Metafiacutesica ou a Carta Sobre o Humanismo

Em 1969 publicou uma recensatildeo da obra Karl Jaspers (1883-1969) de Artur

Gomes de Leda onde faz uma aproximaccedilatildeo entre Jaspers e Heidegger

tomando-os como discursos do existencialismo germacircnico e apontando como

semelhanccedilas a tendecircncia para filosofar em diaacutelogo com a tradiccedilatildeo filosoacutefica e

para tomar como eixo da reflexatildeo certos temas da existecircncia humana No

entanto salienta que essas semelhanccedilas satildeo mais marcadas no iniacutecio dos

seus itineraacuterios uma vez que na obra de Heidegger se reconheceriam mais

duas outras fases dominadas por outras temaacuteticas402

Tambeacutem em 1969 publicou ldquoHeidegger e a sua influecircnciardquo na revista Broteacuteria

onde analisa a extensatildeo da irradiaccedilatildeo do pensamento de Heidegger e a

diversidade das suas influecircncias centrando essa anaacutelise particularmente no

campo da teologia e da criacutetica literaacuteria ao mesmo tempo que refere o esforccedilo

de Heidegger para clarificar o seu pensamento e combater as interpretaccedilotildees

marcadas pelo ldquoequiacutevoco existencialistardquo403

Em ldquoHeidegger renovador da Filosofiardquo de 1976 analisa o contributo de

Heidegger para a renovaccedilatildeo da filosofia referindo a novidade da analiacutetica do

Dasein de Ser e Tempo Aiacute o Pe Manuel Antunes retoma o problema da

interpretaccedilatildeo existencialista de Heidegger acentuando o caraacutecter limitado e

parcial dessa interpretaccedilatildeo mas de certo modo justificando-o ldquo[hellip] visatildeo

errada sem duacutevida se atendermos ao conjunto da obra e agrave intenccedilatildeo nela

claramente expressa pelo seu autor mas onde havia uma certa parcela de

verdade Residia ela na importacircncia dada aos existenciais do ser humano

(Dasein ser aiacute) como ldquolugaresrdquo privilegiados para a revelaccedilatildeo ou desvelamento

do serrdquo404 Mais agrave frente no entanto o Pe Manuel Antunes refere com grande

clarividecircncia que a analiacutetica existencial funciona na filosofia heideggeriana

402

Cf Pe Manuel Antunes Obras Completas tomo I 402 403

Cf Pe Manuel Antunes ldquoHeidegger e a sua Influecircnciardquo (1969) in Padre Manuel Antunes - Obras

Completas tomo I Lisboa 2005 404

Manuel Antunes ldquoHeidegger Renovador da Filosofiardquo (Occasionalia 1976) in Obras Completas

tomo I Lisboa 2005 391

247

como o plano transcendental das categorias em Kant sendo no seu caso no

entanto este plano uma condiccedilatildeo preacutevia para a renovaccedilatildeo da ontologiardquo405

Ainda no mesmo artigo refere a novidade da abordagem heideggeriana da

linguagem implicada na afirmaccedilatildeo da Carta sobre o Humanismo de que ldquoa

linguagem eacute a casa do serrdquo mostrando que se trata para Heidegger de

investigar a iacutentima e misteriosa conexatildeo entre ser pensar e dizer Referindo o

recurso agrave etimologia em Heidegger afirma ldquopensador da linguagem Heidegger

eacute-o de forma predominantemente diacroacutenica Sem esquecer a estrutura ele

atende de forma preferencial agrave geacutenese Eacute a geacutenese que nos revela o ser Eacute a

geacutenese que eacute a verdade Eacute a geacutenese que eacute a liberdade Eacute a geacutenese que abre

ilumina Distancia e reuacutenerdquo406

Destaca ainda a novidade contida na aproximaccedilatildeo de Heidegger aos Poetas e

na consideraccedilatildeo de que eacute na poesia essencial que a unidade entre o Ser o

Pensamento e a Linguagem se estabelece e que o mito se faz logos

Mostra tambeacutem que Heidegger propotildee uma renovaccedilatildeo da filosofia em duas

direcccedilotildees distintas pelo seu famoso Schritt zuruumlck apela ao regresso agrave filosofia

grega anterior agrave Metafiacutesica propondo uma nova leitura da Physis e do logos

dos pensadores preacute-socraacuteticos apelando por outro lado simultaneamente ao

confronto com os pensadores contemporacircneos

No mesmo artigo apresenta ainda Heidegger como um pensador da ecologia

na medida em que se propotildee pensar o homem natildeo como um dominador (Herr)

mas como um pastor do Ser ldquoHeidegger foi o pensador da ecologia como

Marx o tinha sido da economia A qual dos dois pertenceraacute o futuro Sabemos

de quem eacute realmente o presenterdquo407

Neste artigo de 1976 o Pe Manuel Antunes revela um conhecimento de vaacuterias

das obras de Heidegger que ainda natildeo estavam traduzidas em Portuguecircs (Sein

und Zeit Tratado das categorias e da Significaccedilatildeo em Duns Escoto Was ist

das - die Philosophie Unterwegs zur Sprache Aus der Erfahrung des

Denkens Gelassenheit) assim como uma visatildeo de conjunto da evoluccedilatildeo do

seu pensamento em torno da questatildeo do Ser desde a analiacutetica existencial de

405

Cf Ibidem 391 406

Ibidem 395 407

Ibidem 401

248

Ser e Tempo agrave temaacutetica do Ereignis do segundo Heidegger Refere ainda a

publicaccedilatildeo por Vittorio Klostermann das Obras Completas de Heidegger em 57

volumes assim como enuncia as dificuldades de interpretaccedilatildeo dos textos

heideggerianos experimentadas na frequentaccedilatildeo dos mesmos

122 Joseacute Enes

Joseacute Enes licenciado em Teologia e Filosofia pela Universidade Gregoriana de

Roma foi professor na Universidade dos Accedilores na Universidade Catoacutelica de

Lisboa e na Universidade Aberta tendo sido ainda o pensador portuguecircs que

mais persistentemente foi influenciado por Heidegger

Fervoroso seguidor de S Tomaacutes de Aquino denota num artigo sobre

Diamantino Martins escrito em 1957 a preocupaccedilatildeo pela necessidade da

filosofia se pensar existencialmente natildeo respondendo apenas agraves necessidades

especulativas da razatildeo mas tambeacutem agraves solicitaccedilotildees afectivas408

A partir dessa data ele procura uma via de conciliaccedilatildeo entre S Tomaacutes e o

segundo Heidegger no acesso agrave experiecircncia do ser atraveacutes do que ele chama

a experiecircncia do Intuito irredutiacutevel ao pensamento conceptual e ao discurso

demonstrativo da loacutegica Realizando uma aproximaccedilatildeo entre teologia e poesia

preconiza para aquela um meacutetodo metafoacuterico e vecirc na anaacutelise etimoloacutegica a via

para o acesso ao instante da constituiccedilatildeo do sentido Publicou em 1969 Agrave

Porta do Ser409a sua dissertaccedilatildeo acadeacutemica apresentada na Universidade

Pontifiacutecia Gregoriana de Roma em 1982 e publicou posteriormente outras

obras nas quais dialoga com Heidegger como Linguagem e Ser em 1983 e

Noeticidade e Ontologia em 1999

Joseacute Enes privilegiou a temaacutetica do ser e da linguagem na direcccedilatildeo de um

retomar a tradiccedilatildeo tomista que concilia com o pensamento do chamado

ldquosegundo Heideggerrdquo via original e de modo algum consensual entre os

408

Joseacute Enes ldquoDiamantino Martins - O problema de Deusrdquo Atlacircntida oacutergatildeo do Instituto Accediloriano de

Cultura Accedilores 1957 369-370 409

Cf Trabalhos acadeacutemicos publicados sobre Heidegger apecircndice 2 438

249

tomistas portugueses410 que seraacute analisada mais agrave frente no sub-capiacutetulo

intitulado ldquoO desvendamento do ser como hermenecircuticardquo

123 Eudoro de Sousa

Haacute que referir tambeacutem a obra de Eudoro de Sousa autor que desenvolve um

diaacutelogo original com os escritos do ldquosegundo Heideggerrdquo centrado numa reflexatildeo

sobre a relaccedilatildeo entre histoacuteria e mito Eudoro de Sousa estudou Filologia

Claacutessica e Histoacuteria Antiga na Universidade de Heidelberg frequentou o Instituto

Catoacutelico de Paris e o Coleacutegio de Franccedila tendo ido em 1953 viver para o Brasil

onde se ligou ao grupo de Satildeo Paulo reunido em torno da revista Diaacutelogo e do

Instituto Brasileiro de Filosofia Exerceu a docecircncia na Universidade de Satildeo

Paulo na Pontifiacutecia Universidade Catoacutelica no Instituto Brasileiro de Filosofia e

na Faculdade de Filosofia de Campinas

As obras Mitologia I (1980) e Mitologia II Histoacuteria e Mito (1988) expotildeem o

essencial da sua interpretaccedilatildeo do mito e da histoacuteria a partir duma leitura

original da cultura grega Esta leitura insere-se poreacutem numa visatildeo do tempo e

da histoacuteria que radicam em Heidegger aceitando o autor portuguecircs a

interpretaccedilatildeo de Heidegger da natureza essencialmente historial do Dasein e

da eacutepoca histoacuterica como configurada por um desvendamento peculiar do ser

ldquoUma eacutepoca define-se por um regime de fascinaccedilatildeo por uma fulguraccedilatildeo

ofuscante pela luz de um raio desferido por aquele que ldquoquer e natildeo quer

chamar-se pelo nome de Zeusrdquordquo411 Eudoro de Sousa tomou tambeacutem a

iniciativa da traduccedilatildeo de Das Ding incluiacuteda na obra Mitologia I e publicada em

1980 em Brasiacutelia e em 1987 em Lisboa A sua obra abre uma via original e de

grande interessa de abordagem da cultura grega e da mitilogia que seraacute

analisada mais agrave frente no ponto 5 deste capiacutetulo

Foi tambeacutem na deacutecada de 80 que prosseguiu a traduccedilatildeo portuguesa de

Heidegger com O Caminho do Campo trad de Mafalda Faria Blanc (tambeacutem

autora de uma dissertaccedilatildeo acadeacutemica sobre Heidegger em 1984412) in Revista

Portuguesa de Filosofia Braga 1987 Houmllderlin e a Essecircncia da Poesia trad

410

Sobre as criacuteticas a Heidegger no contexto geral da poleacutemica contra o existencialismo conduzida a

partir de uma perspectiva tomista centrada no episcopado de Braga cf Miguel Reale ldquoDelfim Santos e a

Geacutenese do Existencialismo em Portugalrdquo in Delfim Santos e a Escola do Porto 230 411

Eudoro de Sousa Mitologia Histoacuteria e Mito Lisboa 2004 230 412

Cf Trabalhos acadeacutemicos publicados sobre Heidegger apecircndice 2

250

orientada por H Hook Quadrado in Filosofia Publicaccedilatildeo da Sociedade

Portuguesa de Filosofia 1989 e no mesmo ano Sobre a Madona Sixtina de

Irene Borges-Duarte (autora de uma dissertaccedilatildeo acadeacutemica sobre Heidegger

apresentada agrave Universidade Complutense de Madrid em 1994413) in Filosofia

Publicaccedilotildees da Sociedade Portuguesa de Filosofia Lisboa 1989

Nesta deacutecada parece estar consolidada uma interpretaccedilatildeo de Heidegger

atinente agraves temaacuteticas do ser e da linguagem e consciente da necessidade de

se ater aos textos originais assim como da sua indispensaacutevel traduccedilatildeo para a

liacutengua portuguesa que frutificaraacute no projecto ldquoHeidegger em Portuguecircsrdquo

(Programa PRAXIS XXI CFIL130341998) Este projecto coordenado por Irene

Borges-Duarte tem a partir de 98 levado a cabo a divulgaccedilatildeo do pensamento

de Heidegger no espaccedilo lusoacutefono atraveacutes do comentaacuterio e traduccedilatildeo das suas

obras assegura o site Heidegger em Portuguecircs 414 e tem-se inserido no

movimento internacional de traduccedilatildeo atraveacutes da participaccedilatildeo e dinamizaccedilatildeo de

conferecircncias e coloacutequios internacionais

2 A recepccedilatildeo de Heidegger no Brasil

O conhecimento de Husserl no Brasil data dos anos trinta tratando-se no

entanto de um conhecimento restrito a um pequeno nuacutemero de estudiosos415

sendo apenas a partir dos anos 50 que se difunde de forma assinalaacutevel a

fenomenologia atraveacutes de cursos sobre Husserl ministrados por Evaldo Pauli

na Universidade Federal de Santa Catarina e ainda atraveacutes do intercacircmbio com

a Universidade de Lovaina (onde foram organizados os Arquivos de Husserl)

pela PUC de Satildeo Paulo e pela Faculdade de Filosofia do Rio de Janeiro416

Moacir Teixeira de Aguiar elaborou em 1958 uma tese intitulada

Fenomenologia e culturalismo juriacutedico mencionando como fontes As

413

Irene Borges-Duarte La Presencia de Kant en Heidegger Dasein ndash Transcendencia - Verdad Madrid

Universidad Complutense Facultad de Filosofiacutea 1994 414

Cf URL=httpwwwmartin-heideggernet 415

Aquiles Cocircrtes Guimaratildees afirma que desde os anos 40 que a fenomenologia foi conhecida no Brasil

O primeiro autor a comentar Heidegger foi Euryalo Cannabrava numa obra intitulada Seis temas do

mundo moderno (Satildeo Paulo Panorama 1941) e o segundo Vicente Ferreira da Silva que em Ensaios

Filosoacuteficos (Instituto Progresso Editorial Satildeo Paulo 1948) testemunha natildeo apenas um conhecimento de

Sartre como de Heidegger O percurso do primeiro teria sido inverso do de Ferreira da Silva pois teria

posteriormente aderido ao neo-positivismo Cf Aquiles Cocircrtes Guimaratildees ldquoO Pensamento

Fenomenoloacutegico no Brasilrdquo in Cultura - Revista de Histoacuteria das Ideias vol XII Seacuterie II Lisboa

20002001183 416

Cf Antoacutenio Paim A Filosofia Brasileira Contemporacircnea 99-100

251

Investigaccedilotildees Loacutegicas traduccedilatildeo espanhola de Joseacute Gaos e Manuel Garcia

Morente Revista do Ocidente 1929 Ideacutees directrices pour une

pheacutenomeacutenologie traduccedilatildeo de Ricœur da Gallimard de 1950 La philosophie

comme science rigoureuse traduccedilatildeo de Quentin Lauer Paris Puf 1955417

Esta difusatildeo da fenomenologia de Husserl418 abriu o caminho ao interesse

pelas filosofias existencialistas em particular pelo existencialismo de Sartre

que teria ampla difusatildeo no Brasil a partir dos anos 60 e mais tarde tambeacutem

pela filosofia heideggeriana

Foi tambeacutem dos anos 50 que apareceu no nuacutemero 1 da Revista Brasileira de

Filosofia o primeiro estudo de Vicente Ferreira da Silva sobre Heidegger

intitulado A uacuteltima fase do pensamento de Heidegger considerado em geral o

texto que assinala o primeiro contacto do puacuteblico brasileiro com o pensamento

heideggeriano

21 Vicente Ferreira da Silva

Vicente Ferreira da Silva foi um pensador que trabalhou agrave margem da

Universidade brasileira sendo poreacutem um dos elementos mais importantes do

Grupo de Satildeo Paulo assim como director da revista Diaacutelogo membro do

Instituto Brasileiro de Filosofia e do conselho de redacccedilatildeo da Revista Brasileira

de Filosofia419

No mesmo ano em que publica o referido artigo sobre Heidegger no fasc 4 da

Revista Brasileira de Filosofia Vicente Ferreira da Silva publica um artigo sobre

O Novo Conceito de Homem onde analisa a emergecircncia duma nova forma de

pensar o homem como resultante de toda uma linha de pensadores em que

417

Ibidem 100-101 418

Segundo Aquiles Cocircrtes Guimaratildees contemporacircneo dos estudos de Vicente Ferreira da Silva e de

Cannabrava foi o de Nilton Campo O Meacutetodo Fenomenoloacutegico na Psicologia (Faculdade Nacional de

Filosofia Rio de Janeiro 1945) que assinala o iniacutecio da influecircncia da fenomenologia de Husserl no

campo da psicologia e da psiquiatria no Brasil ldquoA fenomenologia no Brasil eacute recebida e assimilada

nessas duas vertentes a vertente da reflexatildeo filosoacutefica representada por Cannabrava e Ferreira da Silva e

a vertente psicoloacutegica representada por Nilton Campos ambas enquanto leituras seminaisrdquo Cf Aquiles

Cocircrtes Guimaratildees ldquoO Pensamento Fenomenoloacutegico no Brasilrdquo in Cultura - Revista de Histoacuteria das

Ideias vol XII Seacuterie II Lisboa 20002001185 419

Sobre o grupo de Satildeo Paulo cf Constanccedila Marcondes Ceacutesar em O Grupo de Satildeo Paulo 9 Seguindo

Braz Teixeira a autora distingue o ldquoGrupo de Satildeo Paulordquo (Vicente Ferreira da Silva Eudoro de Sousa

Agostinho da Silva e Miguel Reale que mantiveram entre si um fecundo diaacutelogo espiritual) o ldquocigraverculo de

Vicenterdquo que compreendia um grupo muito mais amplo que frequentava a casa de Vicente e a ldquo Escola

de Satildeo Paulordquo cujos centros irradiadores satildeo o IBF a Revista Brasileira de Filosofia a Editorial

Convivium e a Faculdade de Direito cujos dinamizadores foram Vicente e Miguel Reale e donde

partiram o existencialismo e o culturalismo

252

se inserem Jacob Boehme Schelling Houmllderlin Hegel Nietzsche e finalmente

Martin Heidegger

Em Introduccedilatildeo agrave Filosofia da Mitologia Ferreira da Silva mostra o contributo do

pensamento do segundo Heidegger para a elaboraccedilatildeo duma compreensatildeo

filosoacutefica dos mitos e esclarece onde o seu pensamento comeccedila a divergir de

Heidegger se este vecirc na Poesia o pocircr-se em obra da verdade do ser para ele

esse pocircr-se em obra da verdade deve ser buscado essencialmente na poesia

transhumana que satildeo os grandes mitos pois neles se manifesta a vida

transcendente das potecircncias divinas

Defendendo que o Ser eacute o Fascinador Vicente afirma que ldquoOs deuses

incarnam de maneira insuperaacutevel a fulguraccedilatildeo imediata do Fascinator os

Deuses satildeo essa fulguraccedilatildeo mesma enquanto vida produtiva em si e por sirdquo420

Vicente conduz um interessante diaacutelogo com o pensamento do ldquosegundo

Heideggerrdquo defendendo como Eudoro de Sousa a prioridade do mito sobre o

logos e considera que a reabilitaccedilatildeo do mito abre uma possibilidade de superar

a crise das sociedades contemporacircneas e de redescobrir o sentido da

existecircncia

22 Gerd Alberto Bornheim

Depois dos anos 60 os estudos sobre Heidegger sofrem um novo impulso a

partir da Universidade Federal do Rio Grande do Sul onde Gerd Alberto

Bornheim apresentou a tese de livre docecircncia sob o tiacutetulo Motivaccedilatildeo baacutesica e

atitude originante do filosofar seguida de outros ensaios sobre a

fenomenologia e o existencialismo em Sartre e Heidegger421

Gerd Bornheim tinha sido na deacutecada de 50 bolseiro da Alliance Franccedilaise em

Paris onde frequentou a Sorbonne tendo estudado posteriormente nas

Universidades de Oxford e Freiburgo Em Aspectos Filosoacuteficos do Romantismo

Alematildeo apresentado em 1956 num curso do Instituto Cultural Brasileiro-

Alematildeo este autor leva a cabo uma reflexatildeo sobre as complexas relaccedilotildees

420

Vicente Ferreira da Silva Introduccedilatildeo agrave Filosofia e agrave Mitologia Satildeo Paulo Instituto Brasileiro de

Filosofia Separata da Revista Brasileira de Filosofia vol 5 fasc 4 Outubro-Dezembro 1955 358 421

Cf Aquiles Cocircrtes Guimaratildees ldquoO Pensamento Fenomenoloacutegico no Brasilrdquo in Cultura - Revista de

Histoacuteria das Ideias vol XII Seacuterie II Lisboa 20002001188

253

entre as culturas francesa e alematilde considerando o Iluminismo o momento da

integraccedilatildeo da Alemanha na cultura europeia sob a influecircncia do racionalismo

francecircs e o periacuteodo do Romantismo como o periacuteodo da afirmaccedilatildeo cultural da

Alemanha e do seu predomiacutenio na Europa

O caracteriacutestico do Romantismo eacute para Bornheim a atracccedilatildeo pela ideia de

unidade e a busca da explicaccedilatildeo de toda a realidade em torno de um princiacutepio

uacutenico tendente a superar o dualismo kantiano Para Bornheim esta exigecircncia

de unidade total soacute pode encontrar-se dentro de uma perspectiva religiosa e

por isso todo o movimento romacircntico acaba por identificar filosofia e religiatildeo e

reconhecer a religiatildeo como o uacutenico e grande problema da filosofia

Contrariamente a esta nostalgia do infinito que leva o romacircntico a confundir e

misturar os vaacuterios planos da realidade Bornheim valoriza uma ontologia da

finitude capaz de distinguir os vaacuterios tipos de entes ldquoEsta embriaguez de

unidade leva a estabelecer um tipo de cultura tendente a negar toda a

diferenciaccedilatildeo a entrosar de tal modo os diversos aspectos da cultura que

cada um termina por perder a sua autonomia [] A nostalgia romacircntica ndash a flor

azul de Novalis ndash leva a um gradativo afastamento de tudo o que eacute finito a uma

busca sempre mais exclusiva do Infinito E se perguntaacutessemos o que eacute este

Infinito deveriacuteamos responder que natildeo tem nomerdquo422

Bornheim em Dialeacutectica Teoria e Praxis interessa-se precisamente pela

fenomenologia e o existencialismo como tentativas de estabelecer uma

ontologia da finitude e vecirc no pensar a praxis a via para aprofundar esta

ontologia da finitude conduzindo a este respeito uma criacutetica ao pensamento de

Martin Heidegger

23 Emmanuel Carneiro Leatildeo

Emmanuel Carneiro Leatildeo apoacutes ter estudado na Alemanha com Heidegger fez

o seu doutoramento em Roma com a tese De Problemate Hermeneuticae

Philosoficae apud Martin Heidegger desenvolveu no Rio de Janeiro intensa

actividade de traduccedilatildeo dos textos de Heidegger dentre os que se destacam a

Introduccedilatildeo agrave Metafiacutesica (Rio de Janeiro Tempo brasileiro 1966) e Carta sobre

422

Gerd Bornheim Aspectos Filosoacuteficos do Romantismo Porto Alegre 1959 110

254

o Humanismo (Rio de Janeiro Tempo Brasileiro 1967) assim como de

divulgaccedilatildeo de Ser e Tempo em seminaacuterios permanentes Tem organizado

ciacuterculos de estudo para psicanalistas tendo publicado o livro ldquoExistecircncia e

Psicanaacuteliserdquo(1975)423

Em Aprendendo a Pensar Carneiro Leatildeo expotildee o conceito de diferenccedila

ontoloacutegica de Martin Heidegger mostrando que ele implica que o Ser nunca eacute

directamente acessiacutevel mas se daacute obliquamente retraindo-se e ocultando-se

enquanto ilumina o ente segundo certa figura da sua verdade Este jogo entre

desvelamento e velamento constitui a essecircncia da verdade (a-letheia) e

fundamenta os vaacuterios periacuteodos da sua fulguraccedilatildeo

Segundo Carneiro Leatildeo a hermenecircutica eacute a via de acesso ao desvelamento do

ser e distingue 3 niacuteveis de hermenecircutica hermenecircutica fenomenoloacutegica

hermenecircutica psicanaliacutetica e hermenecircutica existencial privilegiando esta

uacuteltima como meio de aceder agrave compreensatildeo da dinacircmica do destino que

estrutura a histoacuteria

24 Maria do Carmo Tavares Miranda

Ainda agrave mesma geraccedilatildeo de pensadores brasileiros pertence Maria do Carmo

Tavares Miranda tambeacutem aluna de Heidegger que publicou na editora Globo

a traduccedilatildeo de Da Experiecircncia do Pensar precedido de duas introduccedilotildees suas

ldquoO pensamento de Heidegger e a sua importacircncia na filosofia actual e

ldquoCaminho de Experiecircnciardquo produzindo tambeacutem diversos textos originais que

tentam aproximar o pensamento cristatildeo da filosofia heideggeriana

Esta autora situando-se explicitamente na tradiccedilatildeo que com Aristoacuteteles e S

Tomaacutes de Aquino vecirc a filosofia como um desejo de conhecer direccionado

para a verdade do todo ou seja para o ser chama a atenccedilatildeo para a

experiecircncia da impossibilidade desse desiacutegnio radical e para a necessidade de

nos conformarmos com o que ela pode ser - um permanente buscar da

verdade ldquono sentido de buscar para possuir e fruir da presenccedila de outro como

423

Cf Aquiles Cocircrtes Guimaratildees ldquoO Pensamento Fenomenoloacutegico no Brasilrdquo in Cultura - Revista de

Histoacuteria das Ideias vol XII Seacuterie II Lisboa 20002001 189 ldquoPode-se afirmar que a recepccedilatildeo do

ideaacuterio fenomenoloacutegico existencial no Brasil deve a Carneiro Leatildeo a acccedilatildeo mais decisiva tanto no plano

da traduccedilatildeo de textos como no plano da acccedilatildeo magesterial efectivardquo

255

forma cognoscitiva em acto um per-ficere uma presenccedila presente poreacutem

inesgotaacutevel que reclama novas manifestaccedilotildees da sua presenccedilardquo424

A filosofia longe de implicar apenas o plano cognoscitivo ou a instacircncia do

entendimento implica tambeacutem uma disposiccedilatildeo afectiva que ela tipifica como

ldquoalegriardquo ldquo[hellip] eacute a alegria da recepccedilatildeo que nasce da presenccedila do seu bem que

eacute a verdade Ela eacute consequente no amor e o que motiva esta alegria eacute o

proacuteprio objecto do amor eacute a epi-phania do ser enquanto que a inteligecircncia em

acto eacute a posiccedilatildeo de recepccedilatildeo ou disposiccedilatildeordquo425

Na sua meditaccedilatildeo toma ainda um lugar de destaque a reflexatildeo sobre o sentido

da obra de arte pensada como desvelamento do ser do ente em diaacutelogo com

Heidegger e S Tomaacutes de Aquino ( Caminhos do Filosofar Recife 1991)426

25 Benedito Nunes

No campo da esteacutetica ainda foram levados a cabo estudos de inspiraccedilatildeo

heideggeriana por Benedito Nunes Foi assistente de cursos de Maurice

Merleau-Ponty (Collegravege de France) e de Paul Ricœur (Sorbonne) em 1960 Foi

membro fundador da Faculdade de Filosofia da Universidade Federal do Paraacute

publicou a obra Passagem para o poeacutetico - filosofia e poesia em Heidegger

(Satildeo Paulo Aacutetica 1968) O dorso do Tigre (Satildeo Paulo Editora Perspectiva

1969) e No tempo do niilismo e outros ensaios (Satildeo Paulo Aacutetica 1993)

Benedito Nunes salienta o papel de A Origem da Obra de Arte na

transformaccedilatildeo da esteacutetica fazendo um paralelo com a funccedilatildeo destruidora de

Ser e Tempo relativamente agrave metafiacutesica A esteacutetica tradicional assentando

numa concepccedilatildeo platoacutenica do Belo como ideia intemporal eacute sujeita por

Heidegger a um confronto destruidor desvendando as condiccedilotildees histoacuterico-

temporais subjacentes agrave criaccedilatildeo das grandes obras de arte ldquoEste

desvendamento dos pressupostos histoacutericos da esteacutetica por analogia com a

criacutetica existencial reveladora dos pressupostos histoacutericos da metafiacutesica e da

ontologia tradicionais equivale para aproveitarmos a terminologia de

424

Maria do Carmo Tavares Miranda Meditaccedilotildees sobre a Filosofia Braga 1959 8 425

Ibidem 9 426

Cf Constanccedila Marcondes Ceacutesar ldquoArte e Tempo em Maria do Carmo Tavares Mirandardquo in O

Movimento Fenomenoloacutegico em Portugal e no Brasil 141-148

256

Heidegger a uma destruiccedilatildeo filosoacutefica Eacute o proacuteprio Heidegger quem apoacutes ter

realizado em Ser e Tempo a destruiccedilatildeo da metafiacutesica mostrando que atraveacutes

dela herdamos uma interpretaccedilatildeo histoacuterica do ser ensaia em A Origem da

Obra de Arte (conferecircncia pronunciada em 1936) uma destruiccedilatildeo da esteacutetica-

ciecircncia igualmente comprometida com determinada interpretaccedilatildeo do Belo e da

obra de arterdquo427

A consideraccedilatildeo do caraacutecter ontoloacutegico da arte apontada por Heidegger

parece-lhe abrir caminho para encontrar elos de ligaccedilatildeo entre as diversas

formas de criaccedilatildeo artiacutestica contemporacircneas e de nela acolher novas formas de

manifestaccedilatildeo do ser assim como para uma revalorizaccedilatildeo da arte no campo da

cultura face ao crescente prestiacutegio da ciecircncia e da teacutecnica

26 Ernildo Stein

Encontramos depois uma terceira geraccedilatildeo de tradutores e inteacuterpretes do

pensamento de Heidegger428 Sob a influecircncia do magisteacuterio de Bornheim

Ernildo Stein igualmente aluno de Heidegger desenvolve uma intensa reflexatildeo

em torno da filosofia de Heidegger do qual faz a traduccedilatildeo de diversos textos

que seratildeo um ponto de partida para a divulgaccedilatildeo de Heidegger no Brasil

(Sobre o Problema do Ser O Caminho do Campo Que eacute a Metafiacutesica Sobre a

Essecircncia da Verdade A tese de Kant sobre o Ser Sobre a Essecircncia do

Fundamento etc) publicando ainda A questatildeo do meacutetodo em Filosofia ndash um

estudo do modelo heideggeriano (Satildeo Paulo Ediccedilatildeo duas Cidades 1973) Seis

estudos sobre Ser e Tempo (Petroacutepolis Ediccedilatildeo Vozes 1988) Compreensatildeo e

Finitude ndash estrutura e movimento da interrogaccedilatildeo heideggeriana (Porto Alegre

Ediccedilatildeo Eacutetica impressora 1967)

Stein em Em busca duma Ontologia da Finitude sublinha o novo

posicionamento teoacuterico da questatildeo da finitude introduzida pelo idealismo

transcendental de Kant e depois analisa a transformaccedilatildeo sofrida pela

427

Benedito Nunes Introduccedilatildeo agrave Filosofia da Arte Satildeo Paulo 1966 p162163 428

Constanccedila Marcondes Ceacutesar distingue trecircs geraccedilotildees de pensadores brasileiros responsaacuteveis pela

difusatildeo do pensamento de Heidegger a primeira seria a de Vicente Ferreira da Silva e Eudoro de Sousa a

segunda corresponde aos pensadores Emmanuel Carneiro Leatildeo Gerd Bornheim Maria do Carmo

Tavares Miranda e Benedito Nunes a terceira inclui Ernildo Stein e Zeljko Loparic Segundo a autora a

temaacutetica central que ocupou estes autores foi-se deslocando desde a ontologia fundamental ateacute agrave

hermenecircutica e agraves consequecircncias poliacuteticas do pensamento heideggeriano Cf O Grupo de Satildeo Paulo 231-

238

257

problemaacutetica da finitude em consequecircncia da fenomenologia de Husserl e do

pensamento existencial de Heidegger 429

A filosofia existencial teria retomado a problemaacutetica da transcendecircncia

vinculando-a agrave existecircncia e a uma ontologia da finitude cortando assim

simultaneamente com a transcendecircncia objectivista da tradiccedilatildeo metafiacutesica e

com o idealismo transcendental A transcendecircncia implica para as filosofias da

existecircncia natildeo uma fuga agrave condiccedilatildeo finita do homem mas a assumpccedilatildeo

positiva dessa finitude e a tentativa de projectaacute-la num outro fundamento

Este novo conceito de transcendecircncia que Stein designa de rescendecircncia

implica um ldquovoltar sobre si mesmordquo ou seja uma intra-transcendecircncia segundo

a interiorizaccedilatildeo agostiniana e tambeacutem a filosofia moderna desde Descartes a

Kant e Husserl Este conceito de ldquorescendecircnciardquo teria alcanccedilando a sua

estabilizaccedilatildeo uacuteltima e a sua realizaccedilatildeo mais concreta na interpretaccedilatildeo da

existecircncia de Martin Heidegger

Stein analisa tambeacutem as transformaccedilotildees do conceito de ldquomeacutetodordquo e de

ldquolinguagemrdquo que acompanharam esta histoacuteria da constituiccedilatildeo de uma ontologia

da finitude mostrando que esta exige uma modificaccedilatildeo do sentido linguiacutestico

de acordo com a qual a linguagem se assume na ausecircncia de modelos como

construccedilatildeo experimental transportada pela proacutepria forccedila do tempo

Ainda fazendo parte da mesma geraccedilatildeo temos Zeljko Loparic croata radicado

no Brasil desde 1969 que tendo feito anteriormente estaacutegios com Heidegger e

Gadamer na Alemanha publicou em 1990 um livro sobre Heidegger e o

nazismo sob o tiacutetulo de Heidegger Reacuteu e Thais Curi Beani que produziu

diversos textos sobre a linguagem em Heidegger (Agrave Escuta do Silecircncio (1981)

Questotildees fundamentais sobre a linguagem no pensamento de Heidegger

(1980))

Uma nova geraccedilatildeo de pensadores brasileiros estaacute a dar continuidade agrave

traduccedilatildeo e comentaacuterio das obras de Heidegger salientando-se os nomes de

Roacutebson Ramos Marco Casanova Andreacute de Macedo Duarte e Maacutercia de Saacute

Cavalcante exitindo ainda a Rede Heidegger430 que divulga as obras do

pensador alematildeo na Internet

429

Cf Beneval de Oliveira A Fenomenologia no Brasil Rio de Janeiro 1983 25-38 430

Cf URL =httpwwwcleunicampbr

258

3 Determinaccedilatildeo da perspectiva hermenecircutica

Uma perspectiva cronoloacutegica que nos permitiria comparar a interpretaccedilatildeo de

vaacuterias geraccedilotildees de pensadores e diferenciaacute-las teraacute sempre que ter em conta

os condicionalismos que limitaram o diaacutelogo de todo os pensadores da eacutepoca

com Heidegger De facto a publicaccedilatildeo da totalidade da Gesamtausgabe (a

partir de 1975) soacute progressivamente foi dando aos leitores de Heidegger a

possibilidade de ter acesso ao fio condutor do desenvolvimento do seu

pensamento

A esmagadora maioria dos leitores e comentadores de Heidegger antes do final

dos anos 70 natildeo tinha acesso a uma compreensatildeo unificada do pensamento

de Heidegger nem podia interpretaacute-lo como o desenvolvimento de um mesmo

projecto jaacute esboccedilado nos primeiros textos anteriores a Sein und Zeit relativos agrave

hermenecircutica da facticidade Estes condicionalismos gerais teratildeo porventura

sido mais marcantes para os autores portugueses e brasileiros referidos que o

atraso no movimento de traduccedilatildeo uma vez que estes autores dominavam na

maioria dos casos a liacutengua alematilde e tiveram acesso agraves suas obras na liacutengua

original

De qualquer modo que eles proacuteprios tenham soacute relativamente tarde tomado a

iniciativa de traduzir Heidegger para portuguecircs bem assim como a escolha das

obras traduzidas satildeo indicaccedilotildees importantes para a caracterizaccedilatildeo da situaccedilatildeo

hermenecircutica431 que condicionou a recepccedilatildeo de Heidegger e marcou os

estudos que se fizeram em liacutengua portuguesa

Entre estas peripeacutecias do movimento de traduccedilatildeo deve ser tido em conta que

apesar dos primeiros estudos sobre Heidegger remontarem aos anos 30 em

Portugal e 50 no Brasil foi apenas na deacutecada de 50 que a traduccedilatildeo espanhola

de Sein und Zeit pocircs agrave disposiccedilatildeo dos leitores de liacutengua latina o texto

fundamental para entender a hermenecircutica existencial de Heidegger

As traduccedilotildees de Heidegger para liacutengua portuguesa comeccedilaram a ser feitas no

Brasil apenas entre os anos 60 e 70 e em Portugal onde a revista Rumo

traduzira em 1946 Von Wesen der Wahrheit a traduccedilatildeo soacute foi retomada a partir

431

Cf O conceito de situaccedilatildeo hermenecircutica explanado no capiacutetulo II deste trabalho a partir de Martin

Heidegger AhS GA 62 346-347

259

dos anos 70 com a Carta Sobre o Humanismo publicada na Alemanha em

1946 (e traduzida para portuguecircs em 1967)432 obra cuja leitura criou na eacutepoca

a impressatildeo de que Heidegger se afastava do caminho traccedilado pela analiacutetica

existencial de Sein und Zeit orientando-se num sentido de um pensamento

poeacutetico sobre a histoacuteria do ser cortando com a primeira parte da sua obra

Desta universal situaccedilatildeo da interpretaccedilatildeo e leitura de Heidegger daacute-nos conta

Jean Grodin em Einfuumlhrung zu Gadamer ldquoO primeiro Heidegger era outrora

apenas o Heidegger de Sein und Zeit Desde a sua Carta Sobre o Humanismo

de 1946 Heidegger parece ter renunciado agrave sua primeira filosofia Ele parecia

ter trocado o pensamento hermenecircutico-transcendental por um pensar poeacutetico

da histoacuteria do ser As interpretaccedilotildees outrora dominantes de Karl Loumlwith Max

Muumlller Walter Schulz e mais tarde de Otto Poumlggeler e William Richardson

confirmavam esta leiturardquo433

A opccedilatildeo da traduccedilatildeo desta obra tatildeo marcante na criaccedilatildeo dum outro ldquoponto de

vistardquo sobre a obra de Heidegger e o novo curso do seu pensamento natildeo pode

deixar de ser decisiva e de assinalar o interesse de um puacuteblico portuguecircs mais

vasto por esta ldquoperspectivardquo de um segundo Heidegger jaacute na realidade

divulgada entre noacutes pelo grupo de Satildeo Paulo

Comparativamente com outros autores alematildees podemos considerar que a

traduccedilatildeo das obras de Heidegger em Portugal e no Brasil foi muito mais raacutepida

havendo ainda a considerar que os seus principais comentadores tiveram

acesso aos seus textos na liacutengua original No entanto como acima referimos

ateacute aos anos setenta nenhum destes comentadores (exceptuando Antoacutenio

Brandatildeo) sentiu a necessidade de traduzir esses textos e para o grande

puacuteblico a uacutenica via de acesso ao pensamento de Heidegger foi a liacutengua

francesa e a espanhola

Interessa pois detectar ateacute que ponto em liacutengua portuguesa se conseguiu

superar as distorccedilotildees devidas agrave mediaccedilatildeo francoacutefona e a uma vigecircncia

inautecircntica da tradiccedilatildeo escolaacutestica e se alcanccedilou uma verdadeira apropriaccedilatildeo

432

Cf Apecircndice 2 sobre as traduccedilotildees portuguesas e brasileiras de Heidegger 433

bdquoDer bdquofruumlheldquo Heidegger war damals nur der Heidegger von Sein und Zeit Seit seinem

Humanismusbrief von 1946 schien Heidegger seiner bdquoersten Philosophieldquo abgeschwoumlrt zu haben Er

schien das transzendental-hermeneutische Denken zugunsten eines anscheinend dichterischen Denkens

der Seinsgeschichte zu verabschieden Die damals herrschenden Interpretationen von Karl Loumlwith Max

Muumlller Walter Schulz und spaumlter von Otto Poumlggeler und William Richardson bestaumltigten diese Lesartldquo

Jean Grondin Einfuumlhrung zu Gadamer Tuumlbingen 2000 112

260

do pensamento de Heidegger isto eacute uma interpretaccedilatildeo fundada por um lado

num conhecimento rigoroso dos textos do pensador alematildeo por outro lado

numa apropriaccedilatildeo consciente das forccedilas e condicionantes operando na proacutepria

situaccedilatildeo hermenecircutica condiccedilotildees indispensaacuteveis a uma verdadeira traduccedilatildeo

Se aceitarmos que ldquoa originalidade de uma interpretaccedilatildeo filosoacutefica se determina

em funccedilatildeo da seguranccedila especiacutefica que a investigaccedilatildeo filosoacutefica deposita em si

mesma e nas suas tarefasrdquo (Heidegger Investigaccedilotildees fenomenoloacutegicas de

Aristoacuteteles) vemos que a seguranccedila de uma ldquoperspectivardquo (Blickrichtung)

esteve quase sempre ausente no modo como os pensadores portugueses se

relacionaram com a histoacuteria da filosofia ou com a filosofia do seu proacuteprio tempo

A fim de detectar a superaccedilatildeo das distorccedilotildees acima referidas e a emergecircncia

de uma interpretaccedilatildeo ldquooriginaacuteriardquo organizaacutemos os autores que em liacutengua

portuguesa dos dois lados do Atlacircntico pensaram em diaacutelogo com Heidegger

em torno de quatro nuacutecleos temaacuteticos fundamentais que natildeo esgotam esse

diaacutelogo mas traduzem as suas linhas de forccedila principais Pretendemos assim

determinar as coordenadas de ldquoum ponto de vista ldquoBlickstandrdquo e ldquoa direcccedilatildeo do

olharrdquo ou a perspectiva (Blickrichtung) que definem um horizonte de

compreensatildeo

1- Existecircncia e Sentido (Delfim Santos e Vergiacutelio Ferreira)

2- Mito e Logos (Eudoro de Sousa e Vicente Ferreira da Silva)

3- Linguagem e Hermenecircutica (Joseacute Enes e Emmanuel Carneiro Leatildeo)

4- Ontologia e Finitude (Gerd Bornheim e Ernildo Stein)

Estas temaacuteticas jaacute se encontravam lanccediladas no contexto histoacuterico-linguiacutestico

quer pela reacccedilatildeo ao positivismo (o sentido da existecircncia redescoberta da

importacircncia do mito a importacircncia da histoacuteria e da linguagem)434 quer pelos

debates em torno da tradiccedilatildeo metafiacutesica (a oposiccedilatildeo agrave tradiccedilatildeo metafiacutesica jaacute

pudera encontrar o problema ontoloacutegico da finitude em Kant autor cuja

presenccedila foi do outro lado do Atlacircntico assinalaacutevel)435

Estas quatro questotildees fundamentais orientaram o diaacutelogo com Heidegger que

dum lado e doutro do Atlacircntico se foi desenvolvendo por vias diferentes mas

434

Cf Maria Adelaide Pacheco ldquoA recepccedilatildeo de Heidegger em Portugal ou o pensar como rememoraccedilatildeordquo

Revista Portuguesa de Filosofia tomo LIX fasc 41203-1228 435

Cf Beneval de Oliveira A Fenomenologia no Brasil 13-38

261

que mantecircm muacuteltiplas conexotildees entre si como muacuteltiplas foram tambeacutem as

interacccedilotildees entre estes distintos pensadores reunidos pela comunhatildeo da

liacutengua

4 O Diaacutelogo com ldquoo primeiro Heideggerrdquo Existecircncia e sentido

A interpretaccedilatildeo existencialista de Heidegger cronologicamente a primeira a

que em Portugal tivemos acesso configura um interessante problema

hermenecircutico de facto esta interpretaccedilatildeo eacute condicionada natildeo apenas por um

conhecimento fragmentaacuterio dos textos de Heidegger mas eacute ainda fortemente

condicionada e dirigida pela situaccedilatildeo hermenecircutica do inteacuterprete pelos

problemas impostos por essa situaccedilatildeo assim como por preconceitos nem

sempre conscientes associados agrave tradiccedilatildeo (Delfim Santos) ou agrave exposiccedilatildeo agrave

influecircncia cultural francesa (Vergiacutelio Ferreira)

4 1 Delfim Santos

411 Positivismo e Metafiacutesica

Delfim Santos retoma o combate de Antero de Quental contra o positivismo

dominante na nossa cultura desde os finais do seacuteculo XIX denunciando em

particular o peso que entatildeo ainda tinha nas instituiccedilotildees de ensino com o

consequente predomiacutenio das ciecircncias da natureza e a desvalorizaccedilatildeo e

distorccedilatildeo do ensino das ciecircncias do espiacuterito ldquoNo segundo quartel do nosso

seacuteculo e ainda na actualidade a forte ressaca agraves posiccedilotildees enunciadas em

primeiro lugar ainda se afirma com vigor na instituiccedilatildeo que tem agrave sua conta a

divulgaccedilatildeo filosoacutefica para a preparaccedilatildeo de docentes do ensino meacutedio [] As

tentativas para contrariar este demasiado longo predomiacutenio da naturalizaccedilatildeo

das ciecircncias do espiacuterito por via do sistematismo positivista ainda natildeo

conseguiram vencer a incompreensatildeo radicada em posiccedilotildees ideoloacutegicas

incompatiacuteveis com o que pretendem essas ciecircncias na sua tentativa de

262

autonomizaccedilatildeo das ciecircncias da natureza Ainda natildeo foi possiacutevel fazer acordar

os seus representantes do sono dogmaacutetico em que haacute muito tempo caiacuteramrdquo436

O combate a este sono dogmaacutetico positivista estaacute presente em grande nuacutemero

das suas comunicaccedilotildees e artigos constituindo um importante fio condutor da

sua intervenccedilatildeo poleacutemica e pedagoacutegica no seio da cultura portuguesa437 A

este dogmatismo em que ele vecirc lucidamente mais que a adesatildeo reflectida a

uma posiccedilatildeo filosoacutefica uma atitude de espiacuterito que prefere a catalogaccedilatildeo e o

inventaacuterio de teorias e renuncia ao questionamento autecircntico em que consiste

a essecircncia da filosofia ele contrapotildee a viragem que veio a ser operada na

filosofia europeia pelas filosofias da existecircncia

Nesta viragem Delfim Santos sublinha uma nova relaccedilatildeo com a filosofia e a sua

histoacuteria buscando nela ldquoo sentido permanente do acto de filosofarrdquo a sua

vinculaccedilatildeo agrave existecircncia e o consequente esforccedilo hermenecircutico em relaccedilatildeo agrave

tradiccedilatildeo filosoacutefica que mediante estes novos pensadores se vecirc assim

reactualizada A importacircncia deste movimento regressivo que pretende voltar

agraves condiccedilotildees fundamentais do pensamento parece-lhe condiccedilatildeo de novos

progressos e novas conquistas do pensamento438

Eacute no contexto deste caminho regressivo entendido como um retomar as

condiccedilotildees de um autecircntico exerciacutecio do pensamento filosoacutefico que Delfim

Santos vai afirmar a importacircncia da traduccedilatildeo divulgaccedilatildeo e estudo dos autores

mais marcantes da nossa tradiccedilatildeo filosoacutefica como S Tomaacutes de Aquino e

sobretudo Suarez e os autores da Segunda Escolaacutestica439 de modo a retomar

um diaacutelogo artificialmente interrompido ldquoSuarez tem ainda muito para nos

dizer e esta hora eacute propiacutecia para afirmar que natildeo menos ilustres filoacutesofos

portugueses seus contemporacircneos em Coimbra com ele altearam a filosofia a

um ponto ateacute hoje natildeo ultrapassado e surpreendente Urge saber o que eles

disseram e urge estudaacute-los para reatarmos um diaacutelogo tristemente

interrompidordquo440

436

Delfim Santos rdquoMetafigravesica e Positivismordquo [ineacutedito natildeo datado] in Obras Completas tomo II Lisboa

1982 348 437

Cf Cristiana Abranches de Soveral A Filosofia Pedagoacutegica de Delfim Santos Lisboa 2000 123 438

Cf Ibidem 84 439

Sobre a relaccedilatildeo de Delfim Santos com a Escolaacutestica e a Neo-Escolaacutestica cf Manuel Guedes da Silva

Miranda Delfim Santos - A Metafiacutesica como Filosofia Fundamental Lisboa 2003 77-78 440

Delfim Santos rdquoObjecto da Metafigravesica em Suarezrdquo Actas del IV Centenaacuterio del Nacimiento de

Francisco Suarez 1949 in Obras Completas tomo II Lisboa 1982 31

263

O diaacutelogo de Delfim Santos com S Tomaacutes de Aquino e Suarez estando

limitado a algumas comunicaccedilotildees em efemeacuterides comemorativas indicia

contudo conhecimento e familiaridade com o seu pensamento e repercute-se

em numerosos outros artigos posteriores em que eacute discutida a problemaacutetica da

metafiacutesica e o seu objecto

Para situar este diaacutelogo com a tradiccedilatildeo escolaacutestica eacute preciso ter em conta que

na poleacutemica contra o positivismo ainda dominante em Portugal Delfim Santos

tem como preocupaccedilatildeo central estabelecer uma demarcaccedilatildeo clara entre o

domiacutenio das ciecircncias e o domiacutenio da filosofia resgatando esta da condiccedilatildeo de

subalternidade a que tinha vindo a ser sido remetida designadamente pela sua

reduccedilatildeo a uma supeacuterflua tarefa de reflexatildeo e siacutentese dos resultados das

ciecircncias

Rejeitando esta reduccedilatildeo da filosofia a uma reflexatildeo de 2ordm grau sobre o

conhecimento cientiacutefico e reivindicando para a filosofia simultaneamente um

domiacutenio especiacutefico e um papel insubstituiacutevel na cultura Delfim Santos iraacute

preconizar um regresso agrave metafiacutesica por vezes tambeacutem designada de

ldquoontologia fundamentalrdquo441 fundamentando esse regresso num diaacutelogo aberto

mas tambeacutem disperso e sem preocupaccedilotildees de sistematicidade com

pensadores do romantismo alematildeo como Schelling ou Hegel com Nicolai

Hartmann442 mas tambeacutem com S Tomaacutes de Aquino e Suarez

Filiando-se naquele estilo de diaacutelogo com a tradiccedilatildeo filosoacutefica jaacute preconizado

entre noacutes por Antoacutenio Seacutergio que consistia em bem entender os filoacutesofos sem

preocupaccedilotildees de aderir a escolas ou de emitir juiacutezos definitivos Delfim Santos

441

Este conceito de ldquoontologia fundamentalrdquo de Delfim Santos deve ser correlacionado com o de

metafiacutesica generalis estabelecido pelos comentadores de Aristoacuteteles como o estudo do ente enquanto

ente Na reformulaccedilatildeo de Delfim Santos seria o estudo do ente enquanto existente e natildeo enquanto

composto por essecircncia e acidentes Cf Delfim Santos rdquoA Filosofia Como Ontologia Fundamentalrdquo

Actas do I Congresso Nacional de Filosofia - Revista Portuguesa de Filosofia Braga 1955 tomo XI-II

in Obras Completas tomo II Lisboa 1982 215 e ainda Manuel Guedes da Silva Miranda Delfim Santos

- A Metafiacutesica como Filosofia Fundamental Lisboa 2003 199 Este conceito de ldquoontologia fundamentalrdquo

natildeo tem qualquer relaccedilatildeo com o de Heidegger (Cf SuZ GA 2 sect4 14 bdquoJetzt hat sich aber gezeigt daβ die

ontologische Analytik des Daseins uumlberhaupt die Fundamentalontologie ausmacht daβ mithin das Dasein

als grundsaumltzlich vorgaumlngig auf sein Sein zu befragende Seiende fungiertldquo) e contradiz em absoluto o

propoacutesito do filoacutesofo alematildeo de destruiccedilatildeo da metafiacutesica 442

Sobre a importacircncia da influecircncia de Hartmann no pensamento de Delfim Santos cf Cristiana

Abranches de Soveral ldquoPensamos ainda que o entendimento que Delfim Santos faz da fenomenologia se

aproxima mais de Hartmann do que da sua forma original husserliana Com efeito para Delfim Santos

natildeo eacute a busca da essecircncia o objectivo da reduccedilatildeo fenomenoloacutegica mas sim a constataccedilatildeo aporeacutetica da

realidade tal como eacute dada ao sujeito entendendo assim que o que mais importa no problema do

conhecimento eacute a aproximaccedilatildeo ao Ser e tal aproximaccedilatildeo eacute tatildeo mais possiacutevel quanto melhor se

determinam as diversas esferas regionais da realidadeldquo A Filosofia Pedagoacutegica de Delfim Santos 56

264

reconhece contudo aos autores da escolaacutestica um papel preponderante natildeo

soacute pelo papel de destaque na nossa tradiccedilatildeo peninsular mas tambeacutem pela sua

relaccedilatildeo com a temaacutetica contemporacircnea das filosofias da existecircncia

Na comunicaccedilatildeo ldquoSatildeo Tomaacutes e o nosso tempordquo texto ineacutedito de 1951 Delfim

Santos iraacute referir a importacircncia da tradiccedilatildeo escolaacutestica e dos movimentos

contemporacircneos da neo-escolaacutestica para a fixaccedilatildeo de um conceito actual de

metafiacutesica ldquoOra as preocupaccedilotildees de S Tomaacutes na ordem filosoacutefica satildeo

idecircnticas agraves preocupaccedilotildees da filosofia contemporacircnea mas o que daacute hoje

relevo especial agrave sua filosofia para aleacutem da mesma preocupaccedilatildeo temaacutetica eacute o

tratamento idecircntico o reencontro do seu meacutetodo a preocupaccedilatildeo realista e a

formaccedilatildeo de uma nova ontologia que retoma a sua problemaacutetica e ocupa

actualmente grande nuacutemero de pensadores dentro e fora do tomismo dentro e

fora do catolicismordquo443

O nuacutecleo fundamental do pensamento de S Tomaacutes eacute para Delfim Santos a

distinccedilatildeo clara entre o plano da essecircncia e o plano da existecircncia e a

consideraccedilatildeo da existecircncia como acto ou exerciacutecio do ser estabelecidos em

De Ente et Essentia ldquo [] a essecircncia e a existecircncia em S Tomaacutes natildeo satildeo

noccedilotildees que possam colocar-se no mesmo plano como acontece quando se

considera a existecircncia como a essecircncia do existir se assim fosse teriacuteamos

apenas duas noccedilotildees do mesmo niacutevel essencial referenciadas a um acto e ao

que resulta desse acto Eacute diferente do que nos diz S Tomaacutes um acto natildeo tem

essecircncia A essecircncia natildeo implica a existecircncia nem sequer a distinccedilatildeo dos

planos de realidade a que as essecircncias dizem respeito a essecircncia do homem

cavalo ou pedra eacute para o pensamento precisamente o mesmo E a existecircncia

natildeo eacute um atributivo a juntar agrave essecircncia como seria se a metafiacutesica partisse do

estudo das essecircncias e natildeo do acto de existirrdquo444

Esta tese dum primado da existecircncia sobre a essecircncia claramente afirmado

ainda na Summa Teoloacutegica onde S Tomaacutes afirma que o existir eacute o mais iacutentimo

em cada coisa e o que haacute de mais profundo traz consigo segundo Delfim

Santos a possibilidade da abertura de um acircmbito especiacutefico da metafiacutesica

como estudo dos entes na sua existecircncia De facto trata-se duma diferenccedila

443

Delfim Santos ldquoS Tomaacutes e o Nosso Tempordquo [Ineacutedito de 7-3-51] in Obras Completas tomo II

Lisboa 1982 107 444

Ibidem 113

265

radical em relaccedilatildeo agrave metafiacutesica aristoteacutelica uma metafiacutesica do ldquoser entitativo ou

substancialrdquo

Para S Tomaacutes a ontologia suspensa em Deus como acto puro puro existir

desenrola-se num universo potencial de seres de que o uacuteltimo grau pertence ao

reino animal Entre o maacuteximo em acto e o miacutenimo em potecircncia encontra-se o

homem como criatura medial participante desse maacuteximo e desse miacutenimo e

assim dotada de sensibilidade e de intelecto

Delfim Santos faz ainda uma breve exposiccedilatildeo da doutrina da verdade de S

Tomaacutes segundo a qual ela nos sugere uma nova interpretaccedilatildeo da verdade

como adaequatio De acordo com esta interpretaccedilatildeo a adaequatio sendo a

adequaccedilatildeo do intelecto agrave res tem um sentido existencial e depende sempre de

um juiacutezo de existecircncia

Assim em S Tomaacutes estaacute na raiz do conhecimento metafiacutesico ldquoa intuiccedilatildeo

intelectual dessa misteriosa realidade que se dissimula sob o nome mais

comum e banal da nossa linguagem a palavra ser (existecircncia)rdquo445

Deste diaacutelogo com S Tomaacutes de Aquino Delfim Santos conclui a necessidade

de encontrar um soacutelido fundamento para a autonomia da filosofia fazendo-a

regressar agrave metafiacutesica entendida como o estudo da existecircncia em

contraposiccedilatildeo agrave ciecircncia conhecimento do universal e por conseguinte da

essecircncia ldquoJulgo ter dado ou pelo menos sugerido um criteacuterio de distinccedilatildeo

entre ciecircncia e metafiacutesica e ainda ter apontado que a ciecircncia natildeo pode invalidar

a metafiacutesica porque eacute esta que condiciona a ciecircncia e porque os seus

domiacutenios satildeo radicalmente diferentes A ciecircncia exerce-se em plano natildeo

interferente com a metafiacutesica uma no plano do existir e outra no plano do ser

em sentido essencial como soacute o indiviacuteduo eacute real e natildeo poderaacute nunca constituir-

se um indiviacuteduo a partir de uma combinaccedilatildeo de universais como diz S Tomaacutes

segue-se que a ciecircncia retida no universal natildeo poderaacute nunca atingir o individual

existente na metafiacutesicardquo446

O nexo entre este primado da existecircncia sobre a essecircncia estabelecido em S

Tomaacutes de Aquino e as modernas filosofias da existecircncia eacute apontado por Delfim

Santos no prefaacutecio agrave traduccedilatildeo da obra de Reacutegis Jolivet (filoacutesofo tomista e

445

Ibidem 116 446

Delfim Santos ldquoS Tomaacutes e o Nosso Tempordquo [Ineacutedito de 7-3-51] in Obras Completas tomo II

Lisboa 1982 118

266

Decano da Faculdade de Filosofia da Universidade Catoacutelica de Lyon) As

Doutrinas Existencialistas de 1953 nos seguintes termos [hellip] tema

problematizado em novos termos na filosofia actual embora os novos termos

recordem certas posiccedilotildees na histoacuteria da filosofia e mormente da filosofia de S

Tomaacutes que relativamente a este problema tem posiccedilatildeo original e distinta A

existecircncia natildeo eacute acidente a atribuir agrave essecircncia mas a essecircncia acidente a

atribuir ao existente ldquo447

Numa comunicaccedilatildeo realizada nas comemoraccedilotildees do IV centenaacuterio do

nascimento de Suarez Delfim Santos retoma a problemaacutetica metafiacutesica

salientando que a metafiacutesica para este autor tem como objecto natildeo o irreal

transfiacutesico mas o ser entendido como aquilo que estaacute para aleacutem das

abstracccedilotildees da fiacutesica por lhe ser anterior e seu fundamento Para Suarez a

funccedilatildeo da metafiacutesica eacute manifestar a diversidade das coisas ela natildeo busca a

unidade mas salvaguardar a sua pluralidade Ao contraacuterio a ciecircncia inicia-se

com a abstracccedilatildeo que opta por um dos muitos aspectos constituintes dos

entes sendo assim o seu objecto ontoloacutegico enquanto o objecto da metafiacutesica

eacute de natureza ldquoocircnticardquo ldquoSe quisermos usar uma terminologia moderna mas

que pode bem interpretar o pensamento de Suarez diremos que a realidade

que constitui o objecto da metafiacutesica eacute de natureza ocircntica enquanto o objecto

da ciecircncia eacute de natureza ontoloacutegicardquo448 Aqui o domiacutenio do ocircntico tem para

Delfim Santos o sentido de aquilo que eacute objecto de uma compreensatildeo preacute-

ontoloacutegica ou que ainda natildeo foi categorialmente determinado

A metafiacutesica segundo Suarez sublinha Delfim Santos tem como objecto os

entes reais isto eacute o existente o que quer dizer que lhe compete uma tarefa

preacutevia a qualquer das ciecircncias sem a qual elas natildeo poderiam constituir-se

pois eacute o ocircntico a garantia do ontoloacutegico o ser real que garante o ser ideal

A metafiacutesica natildeo tem como objecto a existecircncia que eacute um conceito formal cum

fundamento in ratione mas sim os entes enquanto existentes pelo que natildeo se

trata de uma metafiacutesica existencialista mas ldquoexistencistardquo de acordo com o

neologismo de Delfim Santos

447

Delfim Santos Prefaacutecio agrave Traduccedilatildeo de Regis Jolivet As Doutrinas Existencialistas de Kierkegaard a

Sartre Porto 1953 VIII 448

Delfim Santos rdquoObjecto da Metafigravesica em Suarezrdquo Actas del IV Centenario del Nacimiento de

Francisco Suarez 1949 in Obras Completas tomo II Lisboa 1982 32

267

Esta metafiacutesica de Suarez natildeo admite a distinccedilatildeo entre essecircncia e existecircncia

pois o ente eacute sempre actual se eacute um ser em acto e assim existente este

possui uma essecircncia real que consiste nisto mesmo ser existente ldquoExistecircncia

e essecircncia no real natildeo podem distinguir-se porque entre ambos natildeo haacute nada

que justifique tal distinccedilatildeo Uma essecircncia natildeo existente seria apenas possiacutevel

e portanto natildeo existiria Existecircncia possiacutevel natildeo eacute existecircncia Eacute nadardquo449

Assim sublinha Delfim Santos esta metafiacutesica existentiva de Suarez

estabelece contra as filosofias idealistas a dignidade ontoloacutegica dos entes na

sua diversidade contingecircncia e temporalidade ldquoA metafiacutesica hoje voltando agrave

temaacutetica de Suarez ou encontrando-a sem querer reconhece nele o precursor

de uma atitude que natildeo pretende reduzir a existecircncia ao que ela natildeo eacute nem

reduzir o tempo ao que ele natildeo eacute nem reduzir a contingecircncia ao que ela natildeo eacute

a favor de um dessorado essencialismo que tudo reduz ao idecircntico pondo em

perigo a metafiacutesica como fundamento de toda e qualquer ciecircncia que queira

valer como ciecircncia E nisto consiste o original fundo e actual pensamento

existentivo de Suarezrdquo450

Um outro artigo ainda intitulado A Filosofia como Ontologia Fundamental

retoma esta aproximaccedilatildeo entre a filosofia escolaacutestica e as filosofias da

existecircncia agora em torno do conceito de ldquoontologia fundamentalrdquo Esta

ontologia fundamental eacute aiacute identificada com a metafiacutesica enquanto ldquoestudo do

ser enquanto serrdquo ou enquanto genus generalissimum devendo genus ser

entendido no sentido de geratriz rdquosem pretender neste momento tentar a

demonstraccedilatildeo do que a etimologia facilmente confirma diremos que ldquoserrdquo como

genus generalissimum alcanccedilava exprimir a funccedilatildeo de suprema geratriz de

todo o conhecimento de que todas as outras noccedilotildees menos gerais ou especiais

satildeo provenientesrdquo451

Segundo Delfim Santos satildeo a fenomenologia e as novas filosofias da

existecircncia que exigem um novo fundamento para o homem e

consequentemente uma releitura da tradiccedilatildeo metafiacutesica capaz de recuperar a

noccedilatildeo de ser entretanto deturpada pela filosofia moderna de matriz cartesiana

449

Ibidem 36 450

Ibidem 37 451

Delfim Santos rdquoA Filosofia Como Ontologia Fundamentalrdquo Actas do I Congresso Nacional de

Filosofia - Revista Portuguesa de Filosofia Braga 1955 tomo XI-II in Obras Completas tomo II

Lisboa 1982 215

268

Esta ideia da filosofia como ontologia fundamental aponta em Delfim Santos

para uma tarefa a cumprir isto eacute para a necessidade de se estabelecer um

acircmbito proacuteprio da filosofia que natildeo o do conhecimento das essecircncias

identificado com o domiacutenio das ciecircncias e em particular o das ciecircncias da

natureza para Delfim Santos enraizar a filosofia num acircmbito preacutevio e

fundacional que jaacute estava indicado na ideia da filosofia primeira ou do estudo

do ser enquanto ser significa asseguraacute-la enquanto actividade do espiacuterito

criadora e constituinte das vaacuterias regiotildees do saber452

Esta articulaccedilatildeo entre a tradiccedilatildeo metafiacutesica e as modernas filosofias da

existecircncia que Delfim Santos procura levar a cabo nalguns artigos e

comunicaccedilotildees eacute feita em torno de certos vocaacutebulos-chave que ocorrem

tambeacutem no discurso heideggeriano como o ocircntico e ontoloacutegico ontologia

fundamental existecircncia implicando no entanto aqui uma manifesta

deslocaccedilatildeo de sentido453 nelas ecoando antes a influecircncia de Nicolai

Hartmann

De facto a reflexatildeo de Delfim Santos estaacute focalizada no problema da distinccedilatildeo

entre essecircncia e existecircncia comum agrave tradiccedilatildeo escolaacutestica e a algumas das

filosofias existencialistas e que eacute interpretada por Delfim Santos de acordo

com a distinccedilatildeo estabelecida por Hartmann entre o Dasein (o facto de uma

coisa ser) e o So-sein (o que uma coisa eacute)454 Contudo tanto aquela temaacutetica

como esta distinccedilatildeo satildeo inteiramente alheias a Heidegger

A natildeo explicitaccedilatildeo desta diferenccedila por parte de Delfim Santos no confronto

com os textos do filoacutesofo alematildeo vai ter como inevitaacutevel efeito a projecccedilatildeo

desta problemaacutetica sobre a proacutepria filosofia heideggeriana como se depreende

deste extenso paraacutegrafo de Temaacutetica Existencial de 1950 ldquoA filosofia de

determinada eacutepoca tem como antecedente o esforccedilo total do filosofar de todas

as eacutepocas anteriores embora por vezes entre um e outro momento surja uma

irredutibilidade de atitudes que soacute outro momento posterior poderaacute

452

Segundo Carlos Morujatildeo o papel atribuiacutedo por Delfim Santos agrave filosofia na determinaccedilatildeo das

categorias que regem o conhecimento deve ser correlacionado com a influecircncia determinante de Nicolai

Hartmann no pensador portuguecircs cf Carlos Morujatildeo ldquoDelfim Santos Hartmann e Heideggerrdquo in Delfim

Santos e a Escola do Porto 174-181 453

ldquoA leitura de Martin Heidegger por Delfim Santos estaacute mediada pelo contacto com o pensamento de

Hartmann Assim acontece por exemplo com a interpretaccedilatildeo do significado da famosa distinccedilatildeo entre ser

e sendo que eacute apresentada em De Filosofia (OC I 232-233) Embora pareccedila remeter para a distinccedilatildeo

heideggeriana entre ser e ente entre o ontoloacutegico e o ocircntico [hellip] ela reenvia de facto para as zonas de

valor que Hartmann distinguira com as designaccedilotildees Dasein e Soseinrdquo Ibidem 181 454

Ibidem 174

269

desvalorizar Eacute o caso do essencialismo e do existencialismo ndash do conteuacutedo e

do acto pelo qual ele se atinge Haacute irredutibilidade entre estas duas atitudes

Decerto quando desprendidas do fundamento ocircntico que lhes daacute validez

teoacuterica Todavia a oposiccedilatildeo natildeo tem razatildeo de ser como a proacutepria obra de

Heidegger deixa concluir Se definirmos a filosofia existencial como a busca do

ldquoser do sendordquo (Sein des seienden) eacute isso claro na proacutepria terminologiardquo455

A projecccedilatildeo desta temaacutetica da oposiccedilatildeo entre essecircncia e existecircncia da tradiccedilatildeo

metafiacutesica sobre Ser e Tempo resulta num encobrimento de aquilo que jaacute nesta

obra eacute anunciado como uma questatildeo central do pensamento heideggeriano a

necessidade do confronto com a tradiccedilatildeo da metafiacutesica e da sua destruiccedilatildeo

para que possa ser levada a cabo a proposta duma reelaboraccedilatildeo do problema

ontoloacutegico numa perspectiva radicalmente diferente dessa tradiccedilatildeo a ontologia

fundamental eacute em Heidegger o projecto de reconstruccedilatildeo duma ontologia

fenomenoloacutegica que tem como condiccedilatildeo preacutevia a analiacutetica do Dasein

Do mesmo modo a restriccedilatildeo do conceito de existecircncia ao ser do Homem

levada a cabo por Heidegger implica a sua releitura como modo de ser

especiacutefico do Dasein enquanto ser temporal exposta extaticamente ao

desvelamento do ser afastando-se assim do conceito de existecircncia da filosofia

escolaacutestica como da de Dasein em Nicolai Hartmann

412 Humanismo e existencialismo

No prefaacutecio a Reacutegis Jolivet As Doutrinas Existencialistas de 1953 Delfim

Santos tem a preocupaccedilatildeo de demonstrar que se as filosofias da existecircncia

retomam um tema jaacute antecipado na escolaacutestica medieval o fazem no entanto

de uma forma original sendo uma das suas grandes contribuiccedilotildees o ter

demonstrado que a existecircncia na sua singularidade e concreccedilatildeo escapa agrave

rede conceptual dos sistemas filosoacuteficos como tambeacutem ao formalismo da

loacutegica

Delfim Santos chama a atenccedilatildeo para o facto de que recusando ao homem o

estatuto de coisa as filosofias da existecircncia retiram a problemaacutetica

antropoloacutegica quer do acircmbito das ciecircncias quer do acircmbito de todas as

455

Delfim Santos ldquoTemaacutetica Existencialrdquo Separata do nordf2 da revista Atlacircntico 3ordf seacuterie 1950 in Obras

Completas tomo II Lisboa 1982 80

270

posiccedilotildees metafiacutesicas que visam defini-lo a partir de uma essecircncia ldquoA recusa agrave

reduccedilatildeo do homem ao plano conceptual das coisas e agrave assumpccedilatildeo idealista ou

realista que neste caso se equivalem como agentes de deturpaccedilatildeo da

existecircncia humana eacute caracteriacutestica da filosofia existencial desde Kierkegaard e

das perspectivas diversas que a partir do pensador dinamarquecircs se

estruturam em Heidegger e Sartre Jaspers e Marcelrdquo456

Para o pensador portuguecircs a contraposiccedilatildeo das noccedilotildees de existecircncia e

sistema em Kierkegaard teria resultado natildeo apenas no pendor anti-sistemaacutetico

das actuais filosofias da existecircncia como ainda no enfoque antropoloacutegico da

filosofia que coloca o homem no centro da especulaccedilatildeo filosoacutefica Delfim

Santos vai natildeo apenas integrar Heidegger nestas filosofias da existecircncia como

fazer uma leitura do primeiro Heidegger segundo a qual este traria como

significado essencial a afirmaccedilatildeo da necessidade de uma antropologia

filosoacutefica ldquoEacute bem conhecida a afirmaccedilatildeo de Heidegger nenhuma eacutepoca da

histoacuteria soube tanto acerca do homem como a nossa Nenhuma eacutepoca da

histoacuteria expocircs o seu saber a respeito do homem de maneira tatildeo fascinante e

penetrante como a nossa Nenhuma eacutepoca conseguiu tatildeo raacutepida e facilmente

transmitir este saber como a nossa Mas tambeacutem nenhuma eacutepoca soube

menos o que eacute o homem do que a nossa Nunca o homem se tornou tatildeo

problemaacutetico como no nosso tempordquo Esta atitude recordando a de Max

Scheler na exigecircncia de indispensaacutevel e preacutevia formulaccedilatildeo de uma

antropologia filosoacutefica manteacutem hoje o significado que lhe fora atribuiacutedo haacute mais

de 20 anosrdquo 457

No artigo intitulado Heidegger Delfim Santos leva a cabo uma leitura de Ser e

Tempo segundo a qual aiacute o pensador alematildeo colocaria a metafiacutesica sob o

signo da antropologia ldquoE se tudo e noacutes proacuteprios se nos oferece como sendo

qual de todos os aspectos do sendo devemos preferir para nos lanccedilarmos na

descoberta do ser A maior parte dos filoacutesofos quando se puseram este

problema procuraram o ser das coisas que os rodeavam Mas o sendo que

noacutes somos tem aleacutem de outras a possibilidade de interrogar sobre o ser que

456

Delfim Santos Prefaacutecio agrave traduccedilatildeo dum livro de Reacutegis Jolivet (Reacutegis Jolivet As Doutrinas

Existencialistas de Kierkegaard a Sartre Porto Livraria Tavares Martins) in Obras Completas vol I

Lisboa 1973 169 457

Delfim Santos ldquoSentido Existencial da Anguacutestiardquo Separata dos Anais Portugueses de Psiquiatria vol

IV nordm4 Dezembro de 1952 in Obras Completas tomo II Lisboa 1982 154

271

ele mesmo eacute O ser que noacutes somos eacute pois o exemplar que nos vai servir na

busca da resposta agrave questatildeo o que eacute o ser

E assim temos a metafiacutesica colocada sob o signo da antropologiardquo458

No entanto Delfim Santos vai mais longe definindo as filosofias da existecircncia

em geral459 e em particular a de Heidegger como um humanismo No artigo

Temaacutetica Existencial de 1950 Delfim Santos afirma ldquoO existencialismo actual

eacute mais um momento digno de registo na compreensatildeo do homem tentada pelo

proacuteprio homem e o que nele vale natildeo eacute soacute o que se afirma mas sobretudo a

forma de pensamento que potildee em jogo e permite situar o homem em nova

posiccedilatildeo perante si e o mundo De maneira sucinta e talvez sugestiva pode

dizer-se que o existencialismo (sobretudo em Heidegger) admite como

programa na compreensatildeo do Homem ldquoO homem como medida do proacuteprio

homemrdquordquo460

Contudo tendo esta interpretaccedilatildeo humanista sido refutada pelo proacuteprio

Heidegger na Carta sobre o Humanismo de 1946 obra que teve grande eco

em toda a Europa natildeo pode deixar de suscitar alguma perplexidade a

ausecircncia de referecircncia a esta rectificaccedilatildeo e advertecircncia do proacuteprio Heidegger

dirigida aos seus inteacuterpretes e que tatildeo claramente estabelece uma linha de

demarcaccedilatildeo com o existencialismo humanista de Sartre

Esta interpretaccedilatildeo de Heidegger segundo a qual a sua filosofia seria um

existencialismo que teria como programa ldquoo homem como fim do proacuteprio

homemrdquo eacute no entanto mitigada pela ressalva de que ela natildeo postula um

desinteresse pelo que transcende o proacuteprio homem Delfim Santos chama a

atenccedilatildeo para o facto de que a filosofia existencial de Heidegger eacute uma filosofia

transcendental e que a aproximaccedilatildeo agrave filosofia de Kant foi estabelecida pelo

proacuteprio Heidegger em ldquoKant e o problema da Metafiacutesicardquo esforccedilando-se por

estabelecer uma linha de demarcaccedilatildeo em relaccedilatildeo agrave filosofia transcendental

kantiana Esta residiria no facto de que a filosofia existencial de Heidegger

458

Delfim Santosrdquo Heideggerrdquo [ineacutedito natildeo datado] in Obras Completas tomo II Lisboa 1982 358 459

Sobre a relaccedilatildeo de Delfim Santos com as diversas filosofias da existecircncia cf Cristiana Abranches de

Soveral A Filosofia Pedagoacutegica de Delfim Santos 65-66 460

Delfim Santos rdquoTemaacutetica Existencialrdquo Separata do nordf2 da revista Atlacircntico 3ordf seacuterie 1950 in Obras

Completas tomo II Lisboa 1982 8081

272

ldquopretende antes de tudo estudar as formas pelas quais o transcendente

determina a existecircncia do homem enquanto estaacute no mundordquo461

Em torno desta noccedilatildeo de ldquotranscendecircnciardquo contudo o que parece visar-se natildeo

eacute tanto uma linha de demarcaccedilatildeo com a filosofia transcendental kantiana - que

Delfim Santos considera de modo algo obscuro pensar ainda o homem como

instrumento de apreensatildeo da transcendecircncia - mas sim a relaccedilatildeo com a

tradiccedilatildeo metafiacutesica Determinando a relaccedilatildeo do homem com a transcendecircncia

em Heidegger Delfim Santos afirma ldquoTrata-se portanto de um tipo de filosofia

cuja especulaccedilatildeo se dirige em sentido oposto ao tradicionalmente admitido

Natildeo eacute o homem fugindo da Terra em busca do que ele determina como

transcendente mas sim o homem determinado na sua vida terrena pela

transcendecircncia que constitui o tema central do existencialismordquo462

Delfim Santos explica correctamente que a transcendecircncia em Heidegger se

identifica com o Dasein como ser-no-mundo Ora o Dasein como ser no

mundo confrontado na anguacutestia com o nada oscilando entre a autenticidade e

a inautenticidade poderia induzir numa leitura niilista que no entanto natildeo eacute de

modo algum feita por Delfim Santos De facto afirma Delfim Santos sendo ser

e o nada o mesmo a sua revelaccedilatildeo no instante eacute a revelaccedilatildeo de algo supra-

temporal e transcendente ldquoO homem eacute finito e o seu horizonte como tal eacute

igualmente limitado O temor claramente ou natildeo eacute permanente na sua

existecircncia e ldquoo nadardquo que o rodeia mostra-se no ldquoinstanterdquo O ldquo instanterdquo poreacutem

natildeo eacute uma partiacutecula miacutenima do tempo ndash seria entatildeo momento - mas algo supra-

temporal e que em linguagem metafoacuterica se poderia expressar da seguinte

maneira sempre que o homem se encontra a si proacuteprio sempre que na sua

vida algo se lhe revela e permite encontrar-se e melhor conhecer-se sempre

que pela emoccedilatildeo ou pelo pensamento o homem se aprofunda intimamente e

atinge seguro indiacutecio de contacto consigo mesmo sempre que tal sucede tal

acto eacute o que desde Kierkegaard se chama ldquoinstanterdquo Ou em resumo instante

eacute algo se supra-temporal no tempordquo463

Tanto o humanismo cristatildeo de Vieira para o qual a histoacuteria humana eacute o palco

de revelaccedilatildeo do divino no tempo como o cristianismo agoacutenico de Unamuno

Raul Brandatildeo e Pascoaes que entre noacutes difundiram um existencialismo cristatildeo

461

Ibidem 81 462

Ibidem 81 463

Ibidem 84

273

ldquoavant la lettrerdquo impregnam esta interpretaccedilatildeo que Delfim Santos leva a cabo

do pensamento de Heidegger Segundo esta interpretaccedilatildeo de Delfim Santos a

existecircncia humana sendo finita e temporal estaacute contudo momentaneamente

aberta agrave revelaccedilatildeo da transcendecircncia ou seja agrave revelaccedilatildeo daquilo que no

proacuteprio homem eacute intemporal

Em consonacircncia com este posto de vista Delfim Santos recusa qualquer

divisatildeo das filosofias da existecircncia entre existencialismo cristatildeo e natildeo cristatildeo

pois em todas vecirc simultaneamente a afirmaccedilatildeo dum humanismo aberto agrave

transcendecircncia

Este curioso exemplo de projecccedilatildeo do proacuteprio horizonte hermenecircutico sobre a

coisa a interpretar ficaraacute mais claro se atendermos aos pressupostos

humanistas464 do proacuteprio Delfim Santos claramente explicitado no texto sobre

a cultura portuguesa designado de Humanismo e Cultura ldquoSe definirmos o

humanismo como processo de revelaccedilatildeo do humano no homem temos de

concluir que natildeo haacute cultura sem uma base humanista que lhe sirva de suporte

Uma cultura que natildeo tenha um conceito de humanismo a defender eacute uma

cultura sem fundamento e uma cultura sem fundamento natildeo merece ser

chamada de culturardquo465

Em O Homem e o seu Destino Delfim Santos reclama um novo humanismo

capaz de responder aos desafios da teacutecnica ldquo Chegou o momento

contemporacircneo em todas as suas formas de implicaccedilatildeo empiacuterica praacutetica e

teoacuterica agrave convicccedilatildeo muitas vezes afirmada de que patente desarmonia se

verifica entre o homem e os seus valores de intenccedilatildeo moral e o imenso mundo

instrumental ao seu serviccedilo [] Ao conhecimento vasto do ldquocomordquo isto eacute da

teacutecnica que em todos os planos tem ao seu serviccedilo nem sempre corresponde

um luacutecido e firme conhecimento do ldquopara quecircrdquo que deveria orientaacute-lo na

utilizaccedilatildeo e na acccedilatildeo convergente com os outros em benefiacutecio de todosrdquo466

464

Cf Cristiana Abranches de Soveral A Filosofia Pedagoacutegica de Delfim Santos 96-100 A autora

analisa os pressupostos humanistas da concepccedilatildeo de cultura de Delfim Santos natildeo os filiando no entanto

numa tradiccedilatildeo latina Efectivamente o proacuteprio Delfim Santos de acordo com a sua noccedilatildeo de o homem

como um ser situado reivindica a especificidade da cultura ibeacuterica anterior agrave romanizaccedilatildeo para cujo

pleno florescimento a mania da imitaccedilatildeo dos arqueacutetipos latinos teriam sido um obstaacuteculo Contra a

racionalidade teacutecnica e anti-humanista Delfim Santos preconiza um regresso agraves raiacutezes humanistas da

nossa cultura patentes na literatura na poesia e no modo de vida 465

Delfim Santos ldquoHumanismo e Culturardquo Diaacuterio Popular 13 de Maio de 1943 in Obras Completas

tomo III Lisboa 1982 341 466

Delfim Santos rdquoO Homem e o seu Destinordquo Diaacuterio do Norte 22-3-1951 in Obras Completas tomo

II Lisboa 1982 125

274

A urgecircncia de uma eacutetica humanista repetidamente afirmada por Delfim Santos

encontra ressonacircncia na sua anaacutelise do Dasein como ser no mundo que ele

conclui com a seguinte afirmaccedilatildeo ldquo [hellip] estar no mundo prepara para a

constante tentaccedilatildeo de cair no mundo das coisas no mundo dos outros e

raramente no mundo proacuteprio [] a queda no mundo das coisas leva o homem a

pretender compreender-se em funccedilatildeo das coisas a queda no mundo dos

outros leva o homem por comparaccedilatildeo a aniquilar o que nele eacute autecircntico para

ser como os outros a queda no seu proacuteprio mundo eacute o mais raro e o mais

difiacutecilrdquo 467

Os valores positivos de uma eacutetica humanista capaz de conduzir o homem a

ldquocair no seu proacuteprio mundordquo satildeo entrevistos por Delfim Santos na

caracterizaccedilatildeo heideggeriana do homem como cuidado (preocupaccedilatildeo) a partir

da ceacutelebre faacutebula de Higino que Delfim Santos comenta afirmando que sendo

Deus imortal realiza a sua perfeiccedilatildeo pelo bem e sendo dada a natureza mortal

do homem este deve realizar a sua perfeiccedilatildeo pela preocupaccedilatildeo

413 As ciecircncias do espiacuterito

Como referimos acima Delfim Santos estaacute essencialmente preocupado com a

salvaguarda da autonomia das ciecircncias do espiacuterito face agraves ciecircncias da

natureza preocupaccedilatildeo que sendo recorrente na obra do pensador portuguecircs

eacute objecto expliacutecito do artigo ldquoNatureza e Espiacuteritordquo de 1952 Criticando a

inconsequecircncia no modo de encarar a filosofia e as ciecircncias do espiacuterito no seu

conjunto ele afirma que essa inconsequecircncia deriva da crenccedila da

exemplaridade do saber das ciecircncias da natureza e de que por conseguinte

as ciecircncias do espiacuterito para atingirem a validade devem imitar os meacutetodos de

investigaccedilatildeo das ciecircncias da natureza sobretudo da fiacutesica

Ora em Heidegger como em Sartre ele vecirc a inversatildeo deste paradigma uma

vez que eacute o homem que ao compreender o ser determina os vaacuterios modos de

ser do ente ldquoO saber destas uacuteltimas [das ciecircncias da natureza] eacute de ordem

convencional e sempre resultante de uma estruturaccedilatildeo optativa quanto agrave

objectivaccedilatildeo conceitual Mas o que permite essa objectivaccedilatildeo a delimitaccedilatildeo

objectiva dos seus conceitos eacute o inobjectivaacutevel o nuacutecleo de liberdade e de

decisatildeo que eacute actividade espiritual no seu propoacutesito de conhecimento

467

Delfim Santos ldquoHeideggerrdquo [ineacutedito natildeo datado] in Obras Completas tomo II Lisboa 1982 368

275

Ou ainda em foacutermula sartriana o ldquoem sirdquo da natureza eacute consequecircncia do ldquopor

sirdquo da actividade espiritualrdquo468

Como acima referimos Delfim Santos rejeita a extensatildeo de categorias proacuteprias

das ciecircncias da natureza agraves ciecircncias do espiacuterito e procura fundar estas numa

antropologia filosoacutefica469 Em coerecircncia com esta tese Delfim Santos iraacute

procurar a partir de analiacutetica existencial de Ser e Tempo pensar os

fundamentos do direito da pedagogia e da psiquiatria

Relativamente ao direito ele critica as tendecircncias positivistas que

predominavam no direito portuguecircs convertendo-o num sistema rigidamente

formalizado de leis abstractas agrave semelhanccedila das leis fiacutesico-matemaacuteticas com

menosprezo do homem como ser concreto e individual470 Delfim Santos vai

reflectir e problematizar a contradiccedilatildeo entre a universalidade da norma juriacutedica

e a diversidade dos indiviacuteduos concretos a que ela deve aplicar-se e que a sua

antropologia de cunho existencialista considera irredutiacuteveis a uma essecircncia

geral

Natildeo sendo a existecircncia redutiacutevel a um conceito universal mas sendo sempre

singular ela soacute pode ser compreendida a partir da sua situaccedilatildeo Assim o

direito tem como finalidade ldquoo proacuteprio homem em situaccedilatildeo interferente com

outro ou outros homensrdquo

A definiccedilatildeo do acircmbito e da finalidade do direito parece-lhe indispensaacutevel para

que o conceito do direito e a sua metodologia possam ganhar coerecircncia e

libertar-se das sistematizaccedilotildees e exigecircncias loacutegicas e metodoloacutegicas que

apenas tecircm vigecircncia noutros acircmbitos471

A proximidade do direito em relaccedilatildeo ao homem em situaccedilatildeo exige na

perspectiva de Delfim Santos um modo diferente de encarar a codificaccedilatildeo

468

Delfim Santos rdquoNatureza e Espigraveritordquo Ler Lisboa ano I nordm4 Julho de 1952 in Obras Completas tomo

II Lisboa 1982 151 469

Antoacutenio Braz Teixeira em Caminhos e Figuras da Filosofia do Direito Luso-Brasileira Lisboa 2002

defende que o pensamento filosoacutefico de Delfim Santos rdquoa sua dupla e complementar solicitaccedilatildeo

ontoloacutegica e antropoloacutegicaldquo se caracteriza por uma grande coerecircncia interna ldquosendo muito menos

tributaacuteria da filosofia alematilde do que costuma pensar-serdquo (obcit 220) Natildeo podemos seguir esta posiccedilatildeo

porquanto como atraacutes sublinhaacutemos na nossa perspectiva a originalidade de um pensador natildeo pode

construir-se fora do diaacutelogo com os grandes pensadores da tradiccedilatildeo e do seu proacuteprio tempo 470

Cf Antoacutenio Braz Teixeira ob cit 228-229 O autor refere a recusa de Delfim Santos da distinccedilatildeo

entre direito natural e direito positivo fundada no pensamento kelseniano afirmando no entanto que

Delfim Santos nunca se deixa enredar nas malhas do positivismo juriacutedico Embora recuse para o direito

qualquer fundamento transcendente Delfim Santos chama a atenccedilatildeo para o facto de que o direito carece

de busca fora de si na ideia de Justiccedila (como valor) o seu fundamento 471

Ibidem 230

276

juriacutedica natildeo como um sistema de leis organizado no modelo das leis da fiacutesica

ou dos teoremas matemaacuteticos mas como algo de subsidiaacuterio da compreensatildeo

dos valores e normas vigentes numa eacutepoca histoacuterica

Postulada a finalidade do direito como o homem em situaccedilatildeo Delfim Santos

interroga-se sobre o modo como a construccedilatildeo abstracta do direito aparece a

esse homem concreto e afirma que ignorando o seu caso a lei lhe apareceraacute

sempre como injusta ldquoOra na medida em que o homem como ser vivente em

situaccedilotildees intransferiacuteveis natildeo encontra no direito o respeito por ele proacuteprio e

pelo seu caso e se sente quando para ele apela transfigurado em esquema

abstracto sem parentesco consigo parece-lhe que o direito natildeo foi feito para o

homem o homem que ele conhece e eacute mas sim o homem para o direitordquo472

Este abstraccionismo juriacutedico resulta da aplicaccedilatildeo ao direito de processos de

induccedilatildeo que partem dos casos supostos como tiacutepicos para a formulaccedilatildeo de leis

gerais ou dum processo de deduccedilatildeo geomeacutetrica que parte dos princiacutepios

gerais para descer ateacute ao indiviacuteduo

Ora para Delfim Santos o direito natildeo pode ser resultado de processos de

induccedilatildeo ou de deduccedilatildeo mas sim de uma ldquocasuiacutesticardquo Explicitando a noccedilatildeo de

caso473 afirma Delfim Santos ldquoA noccedilatildeo de caso que aqui se pretende pocircr em

relevo corresponde ao sentido filosoacutefico da actual noccedilatildeo de ldquosituaccedilatildeordquo Eacute

certamente em extremo complexo e por esse motivo tendeu sempre a ser

subsumido pelos teoacutericos que para o direito carrearam as noccedilotildees metoacutedicas

de outras ciecircncias [hellip] ou se quisermos o jurista tem de adaptar-se a uma

outra loacutegica que nada tem que ver ndash a natildeo ser na expressatildeo judicativa ndash com a

loacutegica intelectual e riacutegida e necessaacuteria do soacutelido improacutepria evidentemente para

o esclarecimento do vital e do emocionalrdquo474

Para Delfim Santos o homem natildeo pode ser subsumido num conceito mas tem

que ser compreendido a partir da sua situaccedilatildeo ele eacute o que a situaccedilatildeo permite

que seja e o que nele eacute fundamental natildeo eacute o homem por si mesmo mas o que

a situaccedilatildeo o leva a ser sem que contudo ela possa ser considerada a causa do

472

Delfim Santos ldquoPsicologia e Direitordquo Boletim do Ministeacuterio da Justiccedila 1948 nordm6 Maio 15-16 in

Obras Completas tomo III Lisboa 1982 14 473

ldquoA noccedilatildeo de caso que Delfim Santos propotildee passe a constituir o cerne do direito corresponde agrave noccedilatildeo

filosoacutefica de situaccedilatildeo em que se baseia a sua antropologia de recorte existencialrdquo Antoacutenio Braz

Teixeira Caminhos e Figuras da Filosofia do Direito Luso-Brasileira 230 474

Delfim Santos rdquoPsicologia e Direitordquo Boletim do Ministeacuterio da Justiccedila in Obras Completas tomo II

Lisboa 1982 17

277

seu comportamento A noccedilatildeo de situaccedilatildeo embora natildeo inteiramente explicitada

por Delfim Santos rompe explicitamente com os modelos behavioristas

remetendo antes para a ideia de homem como ser situado implicitamente

contida no Da-sein de Sein und Zeit

O direito exige assim um abandono da explicaccedilatildeo determinista do

comportamento humano pressuposto pela antiga psicologia mecanicista

apelando a uma nova compreensatildeo do homem como indiviacuteduo concreto em

situaccedilatildeo devendo os juristas buscar esta compreensatildeo nas novas correntes da

psicologia

Numa liccedilatildeo sobre o sentido existencial da anguacutestia a convite do professor

Barahona Fernandes Delfim Santos preocupa-se em demonstrar a importacircncia

da analiacutetica existencial de Ser e Tempo para uma nova abordagem das psico-

patologias Aos meacutetodos de investigaccedilatildeo fundados em modelos atomistas e

deterministas proacuteprios da psiquiatria tradicional Delfim Santos contrapotildee uma

compreensatildeo totalizante do homem numa perspectiva existencial ldquoA

enumeraccedilatildeo de ldquoo querdquo constitui o homem reduz o problema ao niacutevel do

conhecimento fragmentaacuterio aniquilante do homem como um todo a um

parcelamento cuja soma o diminui A nova antropologia exigida pela metafiacutesica

e pela psico-patologia natildeo eacute resposta ao ldquoquerdquo eacute o homem mas ao ldquoquemrdquo eacute o

homem Natildeo se trata de uma subtileza vocabular e gramatical mas de dois

niacuteveis de interrogaccedilatildeo distintivos de zonas fundamentais da compreensatildeo a

naturalista e a antropoloacutegicardquo475

Esta mudanccedila do modo de colocar a questatildeo do homem para a qual

Heidegger repetidamente chamou a atenccedilatildeo implica segundo Delfim Santos

um novo respeito pela dignidade do homem e uma atitude face ao indiviacuteduo

satildeo ou doente natildeo apenas descritiva e explicativa mas interpretativa e

compreensiva

A questatildeo da anguacutestia exige portanto para o seu esclarecimento apropriado

uma hermenecircutica da existecircncia que permite saber quem eacute o homem que se

angustia e porque se angustia Nesta perspectiva de uma hermenecircutica

existencial a anguacutestia surge-nos como inerente agrave proacutepria existecircncia o homem

475

Delfim Santos ldquoSentido Existencial da Anguacutestiardquo Separata dos Anais Portugueses de Psiquiatria vol

IV nordm 4 Dezembro de 1952 in Obras Completas tomo II Lisboa 1982 155

278

angustia-se por ser homem isto eacute por estar permanentemente ameaccedilado de

aniquilamento

Assim sublinha Delfim Santos natildeo haacute uma neurose de anguacutestia mas toda a

neurose eacute consequecircncia desta anguacutestia normal inerente agrave existecircncia sempre

que esta eacute insuficientemente sentida ou vivida ou ainda ldquosob o aspecto

existencial a reacccedilatildeo neuroacutetica eacute sintoma de insuficiecircncia de anguacutestiardquo476 A

anguacutestia seria assim o sentimento normal que acompanha a ameaccedila de

dissoluccedilatildeo do eu no anonimato e a queda numa forma inapropriada de exercer

o ser no mundo

O pensador portuguecircs sublinha o reconhecimento jaacute obtido nos meios da

psiquiatria de que a analiacutetica da existecircncia de Heidegger emprestou agrave

psicopatologia uma nova base metoacutedica e um novo fundamento cientiacutefico para

a compreensatildeo das patologias do foro psiquiaacutetrico Nesta perspectiva

existencial todas as patologias devem ser entendidas como ldquoperturbaccedilotildees da

existecircnciardquo e em especial da comunicaccedilatildeo com o mundo e com os outros

Assim um fenoacutemeno como a anguacutestia a cuja compreensatildeo Freud477 acabou

por renunciar pode ser compreendida a partir do in-der-Welt-sein como

pertenccedila do homem a um mundo que ele mesmo tem de criar ldquoO homem natildeo

pode separar-se do mundo que tem de criar estaacute em situaccedilatildeo prospectiva de

transcendecircncia de si proacuteprio na constituiccedilatildeo do seu mundordquo478 Quando esta

ldquotranscensatildeo projectivardquo constituinte de mundo natildeo se realiza correctamente

verificam-se desvios ou perturbaccedilotildees psico-patoloacutegicas

A existecircncia eacute temporal mas essa temporalidade eacute vivida subjectivamente em

funccedilatildeo dum tempo iacutentimo do jaacute vivido e do porvir Esta temporalidade no

horizonte de toda a existecircncia manifesta-se nos 3 ecircxtases temporais do

passado presente e futuro com prevalecircncia deste uacuteltimo O tempo que o

homem vive eacute projecccedilatildeo de um futuro sempre ameaccedilado na sua possibilidade

de concretizaccedilatildeo

Toda a preocupaccedilatildeo autecircntica se relaciona com esta projecccedilatildeo de um futuro

desdobrando-se na tripla preocupaccedilatildeo com as coisas como meros utensiacutelios

476

Delfim Santos rdquoSentido Existencial da Anguacutestiardquo Separata dos Anais Portugueses de Psiquiatria vol

IV nordm 4 Dezembro de 1952 in Obras Completas tomo II Lisboa 1982 155 477

Sobre a criacutetica de Delfim Santos a Freud cf Cristiana Abranches de Soveral A Filosofia Pedagoacutegica

de Delfim Santos 109 478

Delfim Santos rdquoSentido existencial da Anguacutestiardquo Separata dos Anais Portugueses de Psiquiatria vol

IV nordm 4 Dezembro de 1952 in Obras Completas tomo II Lisboa 1982 158

279

com os outros na busca da colaboraccedilatildeo e consigo mesmo na busca do sentido

da existecircncia

Contudo a existecircncia caracteriza-se pela ambiguidade sempre oscilando entre

a preocupaccedilatildeo em autenticidade e a inautenticidade caracterizada por uma

forma cataboacutelica de comportamento pela subordinaccedilatildeo do eu ao ele ao ser

como todos agrave opiniatildeo comum

Devido a esta ambiguidade da existecircncia mesmo aquele que existe com

autenticidade e natildeo teme a solidatildeo resultante da plena consciecircncia da

personalidade sente a anguacutestia da morte do eu na vulgaridade da multidatildeo A

anguacutestia eacute pois normal e natildeo um processo patoloacutegico ela possui um valor

positivo salva o homem da queda e possibilita o tracircnsito entre a

inautenticidade e a autenticidade

As perturbaccedilotildees nesta estrutura da preocupaccedilatildeo - ou o exerciacutecio inapropriado

da preocupaccedilatildeo que consiste na adesatildeo agraves coisas e aos factos ao imediato -

determinam 3 tipos de neuroses a neurose de abandono a neurose de

antecipaccedilatildeo e neurose de queda ou culpabilidade

Na neurose o medo da anguacutestia daacute um conteuacutedo inibitoacuterio agrave sua funccedilatildeo e

conduz agrave sua inadequada objectivaccedilatildeo ou fixaccedilatildeo num objecto (a anguacutestia natildeo

tem objecto quem se angustia angustia-se diante do nada) O medo da

anguacutestia constitutiva da existecircncia seria assim um obstaacuteculo agrave sua vivecircncia e a

neurose a impossibilidade patoloacutegica dessa vivecircncia

A anguacutestia eacute pois uma experiecircncia inerente agrave existecircncia embora uma

experiecircncia que coloca em perigo mortal aquele que a experimenta ela mata

sempre algo em noacutes mas simultaneamente garante uma vida num niacutevel mais

alto Ela eacute conclui Delfim Santos o processo adequado para a conquista da

personalidade pelo que a terapia das neuroses deve consistir em voltar agrave

anguacutestia que a originou em natildeo em suprimi-la o que eacute jaacute posto em praacutetica

pelas tentativas terapecircuticas da psicanaacutelise existencial

A anguacutestia tem tambeacutem um significado histoacuterico e social pois ela provoca a

tentativa do desvendamento do misteacuterio proacuteprio da existecircncia da existecircncia

dos outros e da existecircncia de Deus estando assim na origem da filosofia da

arte e da religiatildeo Assim afirma Delfim Santos ldquo[hellip]a este sentido anaboacutelico da

evoluccedilatildeo da humanidade se contrapotildee digamos um sentido cataboacutelico de

280

organizaccedilatildeo mecanizada previdente e social que impede a anguacutestia e origina

a neuroserdquo479

Foi contudo o campo da pedagogia que ocupou o maior nuacutemero de escritos

de Delfim Santos e uma das suas obras de maior focirclego O Fundamento

Existencial da Pedagogia obra inexplicavelmente caiacuteda no esquecimento dos

profissionais de educaccedilatildeo conteacutem uma reflexatildeo consistente e filosoficamente

fundamentada da problemaacutetica da educaccedilatildeo Retomando a mesma criacutetica feita

ao positivismo juriacutedico Delfim Santos critica as tentativas de erigir a pedagogia

em discurso cientiacutefico com metodologias importadas de outras ciecircncias

esquecendo a preacutevia delimitaccedilatildeo do seu acircmbito e finalidade480 Ora esta

finalidade eacute ldquoo homem vivo e em tracircnsitordquo que o pedagogo encontra diante de

si e natildeo o cadaacutever com determinada estrutura nervosa estaacutetica que nunca se

lhe oferece na sua convivecircncia com o educandordquo481

A pedagogia nunca poderaacute ser uma ciecircncia exacta porque a exactidatildeo soacute eacute

possiacutevel no domiacutenio em que domina a generalidade e a intemporalidade

Poderaacute contudo ser rigorosa pois o rigor implica particularizaccedilatildeo

especializaccedilatildeo adequaccedilatildeo plena agrave situaccedilatildeo em que cada homem se encontra

isto eacute a cada caso

A fundamentaccedilatildeo existencial da pedagogia radica pois afirma Delfim Santos

na compreensatildeo temporal da existecircncia humana assim como na estrutura da

preocupaccedilatildeo jaacute referida a propoacutesito da psicopatologia482

Partindo da existecircncia como ser-no-mundo podemos repensar o sentido do

acto pedagoacutegico em moldes radicalmente diferentes ldquoRealmente o fundo

sentido do acto pedagoacutegico pode caracterizar-se desta maneira clarificaccedilatildeo

479

Delfim Santos ldquoSentido existencial da Anguacutestiardquo Separata dos Anais Portugueses de Psiquiatria vol

IV nordm 4 Dezembro de 1952 in Obras Completas tomo II Lisboa 1982 165 480

Para Delfim Santos uma das primeiras questotildees que se colocavam agrave Pedagogia era a busca do seu

estatuto epistemoloacutegico que salvaguardasse a sua autonomia e impedisse a importaccedilatildeo de meacutetodos

oriundos de outras aacutereas do saber Ele rejeitava que a pedagogia pudesse caber no acircmbito das ciecircncias da

natureza ou no acircmbito das ciecircncias do espiacuterito A pedagogia era para ele um domiacutenio preacutevio e

possibilitante dos outros uma vez que ela diz respeito aos actos de aprendizagem pelos quais as outras

ciecircncias podem ser aprendidas Ela eacute a raiz das outras ciecircncias uma vez que tem como objecto a

aprendizagem traccedilo radical da estrutura do humano Cf Cristiana Abranches de Soveral A Filosofia

Pedagoacutegica de Delfim Santos 122-124 481

Delfim Santos ldquoFundamentaccedilatildeo Existencial da Pedagogiardquo Lisboa Graacutef Lisbonense 1946 in Obras

Completas tomo II Lisboa 1982 437 482

Deve ser correlacionada com este ponto a criacutetica que Delfim Santos dirigia agrave universidade portuguesa

como portadora dum ldquouniversalismo abstractordquo desligado da cultura portuguesa Cf Cristiana Abranches

de Soveral A Filosofia Pedagoacutegica de Delfim Santos 100

281

progressiva do tracircnsito do estar-no-mundo como situaccedilatildeo original para o

estar-no-mundo-para-alguma-coisardquo483

A pedagogia centrada no homem concreto e singular natildeo tem como objectivo a

conformaccedilatildeo do indiviacuteduo a um modelo social preacute-estabelecido mas sim levar

cada um a realizar as suas proacuteprias possibilidades ldquoO homem natildeo pode ser

tudo quanto dele os homens querem fazer Algumas vezes pode ser mais

algumas vezes pode ser menos O problema da educaccedilatildeo no seu aspecto

ideal interessado e seacuterio pretende menos o que eacute ao mesmo tempo

muitiacutessimo mais que o homem seja o homem que pode serrdquo484

Educar eacute para Delfim Santos levar o homem ao seu auto-conhecimento e ao

uacutenico absoluto da vida humana para aleacutem de toda a diversidade e

particularidade agrave autenticidade485

Propondo uma pedagogia centrada no aluno que natildeo seja apenas um

adestramento de competecircncias socialmente uacuteteis ele preconiza uma

preparaccedilatildeo do educando para aprender na existecircncia e com a existecircncia486 A

educaccedilatildeo deve ser entendida como um factor de transformaccedilatildeo em

consonacircncia com a proacutepria dinacircmica da existecircncia e natildeo a imposiccedilatildeo

estereotipada de modelos de experiecircncia

Delfim Santos parte do princiacutepio da desigualdade entre os homens levando em

conta que o mundo eacute diverso para cada tipo de homem e que muacuteltiplas formas

de vida e de pensamento determinam capacidades para diferentes tipos de

aprendizagem Este mesmo princiacutepio da desigualdade fundamentado na ideia

do homem como um ser situado levou Delfim Santos a inuacutemeras e

contundentes criacuteticas agraves reformas de ensino que em Portugal se tecircm feito por

decalque e imitaccedilatildeo de modelos estrangeiros sem atender agrave especificidade do

contexto histoacuterico e cultural portuguecircs

483

Delfim Santos rdquoFundamentaccedilatildeo Existencial da Pedagogiardquo Lisboa Graacutef Lisbonense 1946 in Obras

Completas tomo II Lisboa 1982 441 484

Ibidem 444 485

ldquoPara Delfim Santos portanto educar eacute um processo global que inclui todas as manifestaccedilotildees do

comportamento do homem e que tem como objectivo uacuteltimo a formaccedilatildeo da personalidade O homem natildeo

eacute um ser feito mas um ser que se constroacutei um ser em movimento que busca referecircncias para uma

existecircncia que lhe foi gratuitamente dada e para um mundo no qual se percebe existirrdquo Cristiana

Abranches de Soveral A Filosofia Pedagoacutegica de Delfim Santos 131 486

Sobre o sentido existencial do acto de aprendizagem cf Cristiana Soveral Ibidem 127 ldquoO acto de

aprender tem para o filoacutesofo o sentido da compreensatildeo do mundo de clarificaccedilatildeo do sentido da

existecircnciardquo A autora mostra a relaccedilatildeo estabelecida por Delfim Santos entre aprendizagem e

ldquopreocupaccedilatildeordquo na tripla dimensatildeo de preocupaccedilatildeo consigo mesmo preocupaccedilatildeo com os outros e

preocupaccedilatildeo com as coisas

282

Relativamente agrave filosofia Delfim Santos exige como acima vimos a sua

autonomia relativamente agraves diversas ciecircncias definindo-as como um saber de

caracteriacutesticas especiacuteficas que mais do que procurar soluccedilotildees descreve

problemas O pensamento filosoacutefico deve ter simultaneamente um caraacutecter

aporeacutetico e totalizante aberto para a diversidade do real e a heterogeneidade

das vaacuterias regiotildees ontoloacutegicas pensar que ele vecirc exemplarmente concretizado

na Metafiacutesica de Aristoacuteteles

Delfim Santos propotildee a filosofia como ontologia fundamental que no entanto

se diferencia inteiramente do que por tal designaccedilatildeo eacute pensado em Ser e

Tempo e nestes inequiacutevocos termos expresso por Heidegger no fim do sect4

rdquoMas agora mostrou-se que eacute a analiacutetica ontoloacutegica do Dasein que constitui a

ontologia fundamental por conseguinte que o Dasein desempenha a funccedilatildeo de

ente a que haacute que perguntar sobre o seu ser com fundamental

anterioridaderdquo487

Em Delfim Santos a ontologia fundamental natildeo designa esta primazia

ontoloacutegica da pergunta sobre o ser do Dasein mas o estudo do ser em geral

como estudo preacutevio a qualquer ciecircncia A ontologia fundamental proposta por

Delfim Santos e inspirada por Nicolai Hartmann desdobra-se por um lado no

estudo das essecircncias e na criacutetica dos princiacutepios adequados ao seu

conhecimento admitindo a heterogeneidade das vaacuterias regiotildees ontoloacutegicas

por outro lado no estudo da existecircncia categoria que remetendo sempre para

o que eacute singular e irredutiacutevel agrave essecircncia tem em Delfim Santos uma aplicaccedilatildeo

algo hesitante entre S Tomaacutes de Aquino e Heidegger ldquoCada uma das esferas

a que nos referimos exige necessariamente a adaptaccedilatildeo de conceitos

explicativos que permitam o conhecimento adequado da sua ratio essendi A

filosofia contemporacircnea tem denunciado o viacutecio que consiste em empregar

para cada uma dessas esferas princiacutepios e conceitos demasiado vastos [] E

a problemaacutetica filosoacutefica contemporacircnea pocircs em relevo a dificuldade na

predicaccedilatildeo do conceito de existecircncia Diz-se que uma pedra existe Diz-se que

um animal existe Diz-se que eu existo Diz-se que Deus existerdquo 488A esta

pergunta formulada no texto Da Filosofia de 1937 ele daacute a resposta de que

487

bdquoJetzt hat sich aber gezeigt daβ die ontologische Analytik des Daseins uumlberhaupt die

Fundamentalontologie ausmacht daβ mithin das Dasein als grundsaumltzlich vorgaumlngig auf sein Sein zu

befragende Seiende fungiertldquo SuZ GA 2 sect4 14 488

Delfim Santos rdquoDa Filosofiardquo [sn] Porto Imprensa Portuguesa 1939] in Obras Completas tomo I

Lisboa 1982 264

283

seria entatildeo de admitir diferentes conceitos de existecircncia consoante o acircmbito

da sua aplicaccedilatildeo que natildeo podem ser transpostos para fora dele ldquoO conceito

de existecircncia natildeo pode ser aplicado universalmente se de facto ele tem

sentido para qualquer uma das esferas da realidade jaacute citadasrdquo489

4 2 Vergiacutelio Ferreira

Vergiacutelio Ferreira representa entre noacutes juntamente com Delfim Santos aquele

ponto de vista que centrando-se no chamado primeiro Heidegger o incluiacutea na

corrente existencialista tendo divulgado esta interpretaccedilatildeo nalguns ensaios e

sobretudo repercutido a sua influecircncia na sua criaccedilatildeo literaacuteria 490

Vergiacutelio Ferreira apercebe nas filosofias existencialistas uma viragem em

direcccedilatildeo agrave subjectividade capaz de inspirar uma literatura centrada no sujeito

nas suas vivecircncias e nas suas iacutentimas interrogaccedilotildees e de operar uma ruptura

com as correntes do realismo e neo-realismo literaacuterios dominadas por um

paradigma de objectividade de raiz cientiacutefica assim como por preocupaccedilotildees de

intervenccedilatildeo social Esta influecircncia do existencialismo estaacute na sua obra

associada agrave viragem no curso da sua criaccedilatildeo literaacuteria e agrave ruptura com uma fase

inicial de romances inspirados pelo neo-realismo que eacute assinalada pela novela

Mudanccedila de 1949491

O facto de se tratar de um escritor que acompanha as ideias filosoacuteficas do seu

tempo e com elas dialoga com lucidez a partir do seu proacuteprio campo isto eacute da

criaccedilatildeo literaacuteria torna a sua obra literaacuteria um caso singular no acircmbito da

recepccedilatildeo do pensamento de Heidegger Contudo o interesse deste autor

reside ainda no facto de que ele manifesta enquanto ensaiacutesta e pensador uma

consciecircncia luacutecida quer das diferenccedilas entre os vaacuterios autores englobados

vulgarmente no ldquoexistencialismordquo e da dificuldade de estabelecer pontes entre

essa diversidade quer de quatildeo problemaacutetica eacute a transposiccedilatildeo de teses

filosoacuteficas para o campo da literatura492 Daiacute que reconhecendo embora o seu

489

Ibidem 264 490

Vergiacutelio Ferreira esbate as diferenccedilas entre os vaacuterios geacuteneros literaacuterios embora na sua obra possamos

distinguir os ensaios e os romances Ensaio e romance encontram-se misturados na sua ficccedilatildeo literaacuteria

uma vez que introduziu entre noacutes uma nova modalidade de romance o romance-problema onde

convergem filosofia e literatura Cf Cacircndido Martins em ldquoA Voz ensaigravestica da ficccedilatildeo de Vergiacutelio

Ferreirardquo (O Pensamento Luso-Galaico-Brasileiro Actas do Congresso III 645- 659) 491

Vergiacutelio Ferreira Mudanccedila Lisboa 1949 492

Apesar disso Vergiacutelio Ferreira natildeo deixa de repercutir na sua obra de ficccedilatildeo a partir da novela

Mudanccedila as suas recorrentes inquietaccedilotildees existencialistas temas que tambeacutem estatildeo presentes na sua obra

284

grande interesse pelo existencialismo enquanto corrente filosoacutefica natildeo se

considerasse a si mesmo um escritor existencialista e admitisse com muitas

reticecircncias a possibilidade de delimitar uma corrente literaacuteria de inspiraccedilatildeo

existencialista

Embora a proximidade de Vergiacutelio Ferreira agrave filosofia existencialista seja

normalmente considerada como de ldquoinfluecircncia francesardquo e ateacute certo ponto isso

seja verdade esta afirmaccedilatildeo deve ser mitigada pela atenccedilatildeo agrave apreciaccedilatildeo

criacutetica de Vergiacutelio Ferreira em relaccedilatildeo ao representante maior do

existencialismo francecircs no texto ldquoPara uma auto-anaacutelise literaacuteriardquo que serviu de

base a uma palestra nos Cursos de Veratildeo para estrangeiros na Universidade

de Salamanca em 1972 ldquoEm todo o caso e desde jaacute o cartesianismo de

Sartre a sua fixaccedilatildeo num estrito domiacutenio racional nunca me entusiasmaram

muito Mais do que uma discussatildeo teoacuterica da liberdade importava-me o

problema de lhe dar um destino o interrogar-me sobre o para quecirc do proacuteprio

homem Assim me interessou mais um Camus ou um Jaspers ou um

Heidegger da primeira fase e acessoriamente um Kierkegaard Mas sobretudo

[hellip] atingiu-me a expressatildeo de toda esta problemaacutetica na obra de Malrauxrdquo493

Natildeo esqueccedilamos no entanto que Vergiacutelio Ferreira conhecia em profundidade

a obra filosoacutefica e literaacuteria de Sartre como o atestam claramente o extenso

prefaacutecio (169 paacuteginas) agrave traduccedilatildeo de 1962 de O Existencialismo eacute um

Humanismo (63 paacuteginas) e que natildeo demonstra em nenhum lugar ter um

conhecimento comparaacutevel em extensatildeo das obras de Kierkegaard Jaspers ou

Heidegger provavelmente por razotildees que se prendem com os obstaacuteculos

linguiacutesticos e a escassez de traduccedilotildees portuguesas

Apesar desse conhecimento em extensatildeo e profundidade da obra de Sartre

Vergiacutelio Ferreira distancia-se criticamente do filoacutesofo francecircs em vaacuterios

aspectos essenciais manifestando a sua preferecircncia por escritores franceses

que exploraram a temaacutetica existencial e no campo estritamente filosoacutefico - que

de ensaiacutesta Cacircndido Martins sumaria essas temaacuteticas do seguinte modo ldquoA revelaccedilatildeo do ser humano a si

mesmo na condiccedilatildeo da sua finitude com todas as implicaccedilotildees que isso acarreta para a sua liberdade

terrena o milagre da vida e o absurdo da morte de Deus no destino do homem a interrogaccedilatildeo do lugar da

palavra da arte e do sagrado (que natildeo se confunde com o religioso) na existecircncia humana a relevacircncia do

tempo e da memoacuteria na vivecircncia quotidiana e na compreensatildeo da realidade circundante o confronto entre

a finitude do corpo (nossa uacuteltima companhia) e da morte e o apelo do absoluto e do transcendenterdquo Cf

Cacircndido Martins em ldquoA Voz ensaigravestica da ficccedilatildeo de Vergiacutelio Ferreirardquo O Pensamento Luso-Galaico-

Brasileiro Actas do Congresso III 658 493

Vergigravelio Ferreira ldquoExistencialismo e Literaturardquo in Espaccedilo do Invisiacutevel 2 [1ordf ed Lisboa Arcaacutedia

1976] 2ordf ed Lisboa 1991 1415

285

ele distingue sempre do literaacuterio - por Jaspers Kierkegaard e Heidegger

fazendo nos seus ensaios e no referido prefaacutecio referecircncias vaacuterias a Ser e

Tempo agrave Introduccedilatildeo agrave Metafiacutesica e agrave Carta Sobre o Humanismo que indiciam

um conhecimento dessas obras e uma compreensatildeo do seu significado no

contexto do chamado ldquopensamento existencialrdquo

421 O existencialismo e a morte de Deus

A temaacutetica da morte de Deus fortemente presente na cultura portuguesa desde

as primeiras traduccedilotildees de Nietzsche marcou a literatura portuguesa em

autores como Aquilino Ribeiro Teixeira de Pascoaes e Raul Brandatildeo autor

que Vergiacutelio Ferreira reconhece como um dos precursores do existencialismo

A temaacutetica da morte de Deus eacute igualmente um tema central nas obras de ficccedilatildeo

de Vergiacutelio Ferreira e eacute esta temaacutetica que lhe serviraacute de criteacuterio de distinccedilatildeo

entre as vaacuterias correntes do existencialismo

Assim em ldquoExistencialismo e literaturardquo texto de uma conferecircncia proferida em

1964 no Instituto Superior Teacutecnico Vergiacutelio Ferreira distingue os vaacuterios

pensadores existencialistas sobretudo pela sua posiccedilatildeo ante a morteou a natildeo

morte de Deus ldquoSe Deus estaacute vivo haacute que determinar o tipo de relaccedilotildees com

esse outro-Absoluto e ver se elas se caracterizam pela tensatildeo e a anguacutestia

tingidas de luteranismo como em Kierkegaardrdquo494

ldquoSe Deus estaacute morto haacute que determinar se tal facto foi reabsorvido num

questionar praacutetico imediato friacutegido e racional como num Sartre se tal facto

pelo contraacuterio se tonaliza por uma inquietaccedilatildeo sombria como em Heideggerrdquo495

ldquoJaacute o caso de Jaspers eacute mais ambiacuteguo De modo geral ele absteacutem-se de se

dizer crente positivamente crente mas muitas vezes aflora nos seus escritos

um verdadeiro Deus pessoalrdquo496

A superaccedilatildeo do niilismo eacute igualmente um tema central da obra de Vergiacutelio

Ferreira como o fora nos escritores portugueses acima referidos estreitamente

associada agrave necessidade de invenccedilatildeo dum novo humanismo cuja proclamaccedilatildeo

ele encontra no existencialismo em geral Contudo o humanismo de Vergiacutelio

494

Ibidem 39 495

Ibidem 39 496

Ibidem 39

286

Ferreira natildeo se satisfaz com a afirmaccedilatildeo da liberdade como um absoluto vazio

de Sartre nem com um existencialismo cristatildeo de Gabriel Marcel

De facto a exigecircncia de reconhecimento da dignidade do homem em Vergiacutelio

Ferreira aparece sobre um outro fundamento que natildeo o da crenccedila ou da

descrenccedila revelando uma proximidade agrave caracterizaccedilatildeo de Heidegger do

Dasein como o ser que leva consigo a compreensatildeo do ser ldquoE

subsequentemente se veraacute que as foacutermulas vulgares de humanismo implicam

um desconhecimento ou um pocircr de parte de facto quase sempre uma

incapacidade de divisar essa luz intermitente e erradia (e no entanto viviacutessima)

de sermos de nos sabermos sendo de reconhecermos a realidade do mundo

implantada no ser atraveacutes dessa luz que eacute nossa e que todavia como tal se

ignorardquo497

Se neste estatuto ontoloacutegico do homem Vergiacutelio Ferreira pretende fundar um

humanismo trata-se no entanto de um humanismo peculiar fundado no

reconhecimento da existecircncia humana como injustificaacutevel e gratuita mas

tambeacutem e por isso mesmo fundamento de todo o sentido498 ldquoA

injustificabilidade da vida humana (agora que nenhum poder transcendente a

inclui e redime a pode reconhecer fora dos seus humanos limites) torna

particularmente e agudamente problemaacutetica a justificabilidade da sua

destruiccedilatildeo um homem natildeo eacute uma casualidade sem importacircncia ndash eacute um

universo eacute de certo modo o universordquo499

No ensaio Quatro escritores franceses Malraux Saint-Exupeacutery Sartre e

Camus prefaacutecio agrave traduccedilatildeo portuguesa de LlsquoHomme en procegraves de Pierre

Henri Simon (1967) Vergiacutelio Ferreira retoma a temaacutetica do humanismo Aqui

ele considera a literatura existencialista francesa como podendo ser reunida em

torno da descoberta comum do homem como fonte de todo o questionar e de

toda a posiccedilatildeo de valores e portanto como abrindo a possibilidade de uma

497

Vergiacutelio Ferreira ldquoO Homem agrave sua facerdquo in O Espaccedilo do Invisiacutevel 1 [1ordf ed Lisboa Portugaacutelia 1954]

Portugaacutelia Editora sd 211 498

Ana Maria Bijoacuteias Mendonccedila em ldquoVisatildeo Antropoloacutegica em Vergigravelio Ferreira um Humanismo

impossigravevelldquo relaciona o peculiar humanismo de Vergiacutelio Ferreira com a Apariccedilatildeo do homem a si

mesmo entendida como um regresso do serndashhumano agrave sua condiccedilatildeo da qual anda a maior parte das vezes

perdido ldquoSubjaz agrave escrita vergiliana a consciecircncia de que existem uma verdade e uma autenticidade que

natildeo se revelam num plano de superficialidade nem de ldquoruigravedordquo e que tambeacutem natildeo se podem aprisionar

pela forccedila potente mas redutora da linguagem [hellip] O romance Apariccedilatildeo representa a expressatildeo maacutexima

da apresentaccedilatildeo (evidecircncia) de noacutes a noacutes mesmosrdquo (in O Pensamento Luso-Galaico-Brasileiro Actas do

Congresso II 451-152) 499

Vergiacutelio Ferreira ldquoO Homem agrave sua facerdquo in O Espaccedilo do Invisiacutevel 1 212

287

eacutetica humanista ldquo[hellip] se o Existencialismo confinou com o niilismo foi apenas

e soacute em alguns casos metodologicamente A dificuldade tantas vezes

assinalada da fundamentaccedilatildeo de uma eacutetica eacute uma dificuldade provisoacuteria e de

argumentaccedilatildeo duvidosardquo500

Vergiacutelio Ferreira neste diaacutelogo com o existencialismo francecircs daacute o seu

assentimento a este humanismo como filosofia que centra tudo no homem e

reconhece o homem como fundamento dos valores No reconhecimento da

liberdade como fonte de valores reside para Vergiacutelio Ferreira a possibilidade

de fundar uma eacutetica ainda que o conteuacutedo concreto dessa eacutetica humanista natildeo

possa ser fixado de uma forma definitiva mas se reconheccedila dependente da

histoacuteria ldquoO que flagrantemente a hora de hoje nos revela eacute o saldo de todo um

ciclo que se extingue para que o homem novo apareccedila E que natildeo se nos diga

irritantemente e absurdamente que esse novo homem seraacute o que noacutes

quisermos que ele seja e se nos impotildee assim portanto que o realizemos e nos

natildeo remetamos a uma passividade de expectativa Porque se isso eacute verdade

para o que eacute elementar eacute falso para o que eacute essencial [hellip] noacutes natildeo temos nada

a ensinar ao homem de amanhatilde excepto a perseveranccedila na sua

dignificaccedilatildeordquo501

Assim o humanismo de Vergiacutelio Ferreira coloca-se de certo modo entre o

primeiro Heidegger e Sartre na medida em que valoriza o homem

simultaneamente como lugar de todo o questionamento ontoloacutegico e como

liberdade criadora de valores

Esta posiccedilatildeo entre a ontologia do Dasein de Ser e Tempo e a eacutetica existencial

de llsquoEcirctre et le Neacuteant natildeo suscita da parte do escritor portuguecircs qualquer

tentativa de encobrimento daquilo que separa os dois filoacutesofos de facto

Vergiacutelio Ferreira tem plena consciecircncia do que separa Heidegger do

existencialismo de Sartre e sabe que o proacuteprio Heidegger rejeita a

interpretaccedilatildeo do seu pensamento como uma antropologia e como um

humanismo como o demonstra a extensa referecircncia agrave Carta sobre o

Humanismo no prefaacutecio a O Existencialismo eacute um humanismo de 1962

Referindo a definiccedilatildeo de existencialismo de Sartre segundo a qual ldquonatildeo

existindo Deus haacute pelo menos um ser no qual a existecircncia precede a

500

Vergiacutelio Ferreira rdquoExistencialismo e Literaturardquo in Espaccedilo do Invisiacutevel 2 295 501

Ibidem 289

288

essecircnciardquo Vergiacutelio Ferreira comenta logo em seguida que Heidegger recusa

qualquer aproximaccedilatildeo do seu pensamento a esta temaacutetica e distancia-se

inequivocamente da interpretaccedilatildeo de existecircncia dada por Sartre atribuindo-lhe

o sentido de ek-sistecircncia - ldquoo estar fora derdquo o ser-aiacute Para Heidegger afirma

Vergiacutelio Ferreira o Dasein natildeo poderia ser traduzido por ldquorealidade humanardquo

como o faz Sartre natildeo se trataria para o filoacutesofo alematildeo de uma definiccedilatildeo

antropoloacutegica mas apenas de uma estrutura em que radicaria a

intencionalidade da fenomenologia

Contudo Vergiacutelio Ferreira relativiza esta criacutetica de Heidegger agrave leitura

antropoloacutegica de Ser e Tempo vendo nela um modo do filoacutesofo alematildeo

salvaguardar a unidade da sua proacutepria obra ldquoAssim Heidegger evitaria a

acusaccedilatildeo de uma descontinuidade entre Ser e Tempo e a restante obra Ser e

Tempo esclarece apenas esse ser privilegiado que eacute o homem e demarcando-

lhe a sua qualidade de ek-stase de proacute-jecccedilatildeo de fuga de si estabeleceria o

ponto de partida para o que realmente a Heidegger interessaria o

conhecimento do serrdquo502

Vergiacutelio Ferreira natildeo aceitando esta auto-interpretaccedilatildeo e este distanciamento

de Heidegger em relaccedilatildeo agrave temaacutetica antropoloacutegica da Ser e Tempo afirma

ldquo[hellip] mas soacute muito problematicamente podemos entendecirc-lo a temaacutetica de Ser

e Tempo fixa iniludivelmente o que se refere agrave condiccedilatildeo humana

problematizando isso com uma tonalidade afectiva tatildeo marcada como em

muitos pensadores existencialistas que roccedilam a iacutentima confissatildeordquo503

No mesmo prefaacutecio mais agrave frente referindo-se jaacute natildeo a Ser e Tempo mas agrave

nova perspectiva do segundo Heidegger explicitada na Carta Sobre o

Humanismo Vergiacutelio Ferreira a quem esta obra ressoa ldquoestranhamenterdquo como

transpanteismo em que Deus ou os deuses satildeo identificados com o Ser

afirma ldquoAssim o homem natildeo devendo perder-se no ser subordinar-se-aacute ao

Ser seraacute o seu ldquopastorrdquo [] Do pastor ele ganha a pobreza cuja dignidade

consiste em ser chamado pelo proacuteprio Ser agrave salvaguarda da sua verdade nisso

consistiria o humanismo ldquono sentido mais forte do termordquordquo504

502

Vergiacutelio Ferreira prefaacutecio agrave traduccedilatildeo portuguesa de O Existencialismo eacute um Humanismo Lisboa

1962 39 503

Ibidem 3940 504

Ibidem 3940

289

Vendo nesta posiccedilatildeo de uma subordinaccedilatildeo do Dasein ao Ser do segundo

Heidegger um ponto de vista contraditoacuterio com o que este teria afirmado em

Ser e Tempo quando postulou que todo o sentido depende do ser-aiacute Vergiacutelio

Ferreira conclui que se trata no segundo Heidegger de um recuo

relativamente ao seu ponto de vista inicial e mais radicalmente relativamente

agrave temaacutetica da morte de Deus

Assim o pensamento de Heidegger com o qual Vergiacutelio Ferreira reconhece

afinidades eacute o ponto de vista ldquoantropoloacutegicordquo de Ser e Tempo com a primazia

reconhecida ao homem como fonte de sentido e no qual eacute possiacutevel segundo

Vergiacutelio Ferreira fundar um neo-humanismo

Este neo-humanismo de Vergiacutelio Ferreira que assume como consequecircncia

positiva da morte de Deus a redescoberta do homem procura fundar-se no que

tecircm de comum os vaacuterios existencialismos a posiccedilatildeo do homem como

fundamento

No entanto ele reconhece nuances importantes nesta posiccedilatildeo do homem

como fundamento ldquo[hellip]separam-se mais ou menos radicalmente por uma certa

questatildeo inicial e suas naturais consequecircncias Tal questatildeo poderia determinar-

se do seguinte modo se sim ou natildeo o homem estaacute irredutivelmente fechado

nos seus limites humanos Sim ou natildeo pode integrar-se numa dimensatildeo

transcendenterdquo505

Colocando ldquoo primeiro Heideggerrdquo juntamente com Sartre do lado da primeira

alternativa natildeo deixa no entanto de reconhecer entre os dois autores uma

diferenccedila no estilo do pensar que em Heidegger se desenvolve ldquonuma

inquietaccedilatildeo dolorosa e traacutegicardquo e na uacuteltima fase da sua obra ldquoaponta com

grande insistecircncia a noccedilatildeo de Ser de Ser em geral omnipresente que tem

muito a ver com a transcendecircncia de Jaspersrdquo506 Sentindo-se proacuteximo dessa

inquietaccedilatildeo inicial presente em Ser e Tempo Vergiacutelio Ferreira jaacute natildeo o segue

na sua posiccedilatildeo final que parece tender a interpretar como um regresso a um

poder transcendente e sobrenatural como uacuteltimo fundamento

505

Vergigravelio Ferreira rdquoExistencialismo e Literaturardquo in Espaccedilo do Invisiacutevel 2 38 506

Ibidem 39

290

422 A Verdade como Apariccedilatildeo e o ser-para-a-morte

Vergiacutelio Ferreira problematiza a obra de arte a partir da relaccedilatildeo entre o eu e o

mundo Esta relaccedilatildeo entre eu e o mundo natildeo eacute para Vergiacutelio Ferreira a relaccedilatildeo

entre um sujeito e um objecto - imersos no ambiente que os rodeia e de certo

modo dominados por ele eacute a obra de arte que reagindo a este ambiente pela

afirmativa ou pela negativa o constitui como ldquoum mundordquo ldquoPara que o real

sugira um mundo eacute necessaacuterio que se torne esteacuteticordquo507

A arte inscreve-se numa relaccedilatildeo profunda de noacutes mesmos com o mundo na

medida em que ldquoapontandordquo cria o objecto para que aponta e instaura um

modo de ver que rompe com a indiferenccedila da mera objectividade Uma obra de

arte instaura uma nova visatildeo que reagindo em choque sobre a nossa

sensibilidade se nos impotildee como nossa A arte revela determinados aspectos

da realidade que permaneciam ignorados ou destituiacutedos de significado

fazendo-os aparecer na sua essencialidade ldquoQuem natildeo sentiu a surpresa de

um lugar qualquer ldquoreveladordquo pela arte como os bosques e as fontes cheios de

mitos claacutessicos Tal lugar natildeo existe porque o que existe eacute algo em bruto A

arte abre-o agrave apariccedilatildeo da sua essencialidade da presenccedila de um homem nele

Quem reconhecia o mundo no mundo de Kafka antes de Kafka o revelar

Quem via os Acaacutecios antes de o Eccedila os descobrirrdquo508

A arte resgata os objectos do seu desgaste imposto pelo uso quotidiano

restituindo-lhes ldquoa sua virulecircncia humana esquecidardquo pela sua integraccedilatildeo num

ambiente insoacutelito confrontado com objectos diferentes a que natildeo estaacute

normalmente associado um objecto aiacute colocado pelo geacutenio criador do artista

faz explodir o significado usual e corrente e deixa ver o que nele jaacute tiacutenhamos

esquecido de ver

A arte eacute criaccedilatildeo natildeo por ser ldquooriginalrdquo mas porque no seu acto criador

recupera uma significaccedilatildeo originaacuteria e arquetiacutepica das coisas mostrando-as na

sua oculta verdade O mundo criado pela arte eacute assim algo que se sobrepotildee agrave

realidade na medida em que eacute um mundo humanizado legiacutevel dotado de uma

significaccedilatildeo um mundo que se impotildee como uma evidecircncia - daiacute que Picasso e

Velaacutezquez afirmassem que um dia os seus modelos acabariam por parecer-se

com os retratos por eles realizados 507

Vergigravelio Ferreira ldquoVida Arterdquo in Espaccedilo do Invisiacutevel 1 33 508

Ibidem 37

291

Questionando a natureza desta evidecircncia instaurada pela arte Vergiacutelio Ferreira

mostra que a obra de arte a impotildee como um suacutebita revelaccedilatildeo rdquoEsta evidecircncia

a que aspiramos no fundo da nossa cegueira e que um suacutebito alarme

obscuramente agraves vezes nos revela eacute a obra de arte que a abre definitivamente

ao nosso apelordquo509

Esta evidecircncia natildeo eacute a da clareza dedutiva dum sistema de ideias mas sim um

reconhecimento da verdade pelo ldquosanguerdquo expressatildeo que designa o domiacutenio

obscuro das emoccedilotildees que nos ligam agrave vida Ela eacute a suacutebita presenccedila de ldquoum

modo de ser inteirordquo em face de um mundo confuso que assim se revela na

sua verdade Contudo esta verdade eacute para Vergiacutelio Ferreira como para

Heidegger mais do que uma verdade original uma verdade originaacuteria

obscurecida pelo nosso trato quotidiano com as coisas ldquoA sua verdade eacute uma

verdade de presenccedila de comunicaccedilatildeo de origens de um modo de ser inteiro

em face de um mundo confuso A revelaccedilatildeo desse mundo agrave verdade emotiva

(que eacute uma verdade plena) que a ele nos ligava o tempo a obscurece e a

neutraliza ou o nosso descuido a nossa desatenccedilatildeo a voz de pedra que eacute o

nosso quotidianismordquo510

Vergiacutelio Ferreira parafraseando Heidegger na Carta sobre o Humanismo

sublinha esta dimensatildeo ontoloacutegica da arte e esta missatildeo do artista de

salvaguarda duma verdade originaacuteria ldquoAdaptando uma imagem de Heidegger

direi que o artista eacute o pastor do mundordquo511

Assim a verdade para Vergiacutelio Ferreira natildeo pode ser alcanccedilada na ciecircncia

nem em sistemas de ideias que pretendam um estatuto de objectividade mas

manifesta-se na obra de arte com o caraacutecter imediato de uma ldquoapariccedilatildeordquo que

nos potildee em causa a noacutes mesmos ldquoMas toda a verdade que nos potildee em causa

a noacutes mesmos eacute uma apariccedilatildeo512

A apariccedilatildeo tiacutetulo de um dos seus mais emblemaacuteticos romances [1959] eacute a

presenccedila da pessoa que nos habita e que estaacute oculta pela personalidade que

eacute investigada pela psicologia como tambeacutem pelo fazer pela vida do quotidiano

Essa suacutebita apariccedilatildeo natildeo se manifesta apenas na obra de arte mas na

existecircncia mesma irrompendo nela de modo suacutebito e irrecusaacutevel como a sua

509

Ibidem 40 510

Ibidem 40 511

Ibidem 40 512

Vergiacutelio Ferreira ldquoO Homem agrave sua facerdquo in Espaccedilo do Invisiacutevel 1 209

292

indiscutiacutevel verdade ldquoToda a verdade eacute uma apariccedilatildeo um flagrante sentirmo-

nos possuiacutedos por uma evidecircncia que como tal ignora as razotildees ainda que

atraveacutes dela noacutes julguemos ou saibamos ter chegado a ela [] A evidecircncia eacute

do sangue ndash temo-lo dito - eacute a indiscutibilidade da existecircnciardquo513

O romance a Apariccedilatildeo manteacutem como fio condutor da narrativa as ldquoapariccedilotildeesrdquo

fugazes dum eu que na maior parte do tempo se oculta sob a rotina e a

inautenticidade das convenccedilotildees e dos papeacuteis sociais e que nessa suacutebita

apariccedilatildeo ganha consciecircncia do absurdo da sua condiccedilatildeo

Entre esta apariccedilatildeo da verdade do ser- homem a si mesmo e a temaacutetica da

anguacutestia em Heidegger haacute para Vergiacutelio Ferreira uma estreita relaccedilatildeo

Diferenciando a anguacutestia da naacuteusea tematizada por Sartre o escritor portuguecircs

afirma ldquoPorque a anguacutestia eacute do homem que a si mesmo regressa que a si

proacuteprio se assume Heidegger em Que eacute a Metafiacutesica distingue bem estas

duas reacccedilotildees o enfado o aborrecimento profundo aproxima o homem das

coisas no seu conjunto ndash mas furta-nos o Nada Ora a tonalidade afectiva que

nos revela este Nada tem jaacute outro nome eacute a anguacutestia ndash anguacutestia que

invencivelmente nos faz reverter a noacutes proacutepriosrdquo514

Igualmente importante eacute para Vergiacutelio Ferreira o tema do serndashpara-a-morte em

Heidegger o homem eacute um-ser-para-a-morte e a morte eacute constitutiva da

existecircncia humana constituindo-a como radicalmente finita Existindo na maior

parte do tempo como ser perdido do mundo e absorvido pelos afazeres desse

mesmo mundo (Besorg) o indiviacuteduo decai numa existecircncia improacutepria e a

consciecircncia instantacircnea da possibilidade eminente da sua morte eacute a condiccedilatildeo

positiva duma apropriaccedilatildeo de si mesmo e duma existecircncia em autenticidade

A consciecircncia da morte assumida como a mais autecircntica de todas as

possibilidades atira a existecircncia para traacutes em direcccedilatildeo agraves possibilidades jaacute

inscritas na sua condiccedilatildeo de um projecto que jaacute estaacute sempre previamente

lanccedilado no mundo - a existecircncia preocupada consigo mesma e com as suas

possibilidades (Sorge) eacute a existecircncia que se assume apropriadamente a partir

das suas genuiacutenas possibilidades e mais radicalmente da possibilidade da

morte

513

Ibidem 209 514

Ibidem 205206

293

Assim a morte eacute o sinal por assim dizer puramente negativo do nada em

direcccedilatildeo ao qual a existecircncia humana estaacute lanccedilada mas tambeacutem o sinal

positivo da possibilidade se ser um si-mesmo autecircntico e de se existir em

propriedade Heidegger ao definir o homem como um ser para a morte viu aiacute

uma possibilidade de o homem se recuperar em autenticidade

Esta condiccedilatildeo ambiacutegua da morte eacute tambeacutem explorada por Vergiacutelio Ferreira

para o qual se por um lado ela eacute uma possibilidade de recuperaccedilatildeo da

autenticidade por outro confronta o homem com o absurdo da sua existecircncia

que depois da morte de Deus estaacute impossibilitada de recorrer a um qualquer

Absoluto que lhe sirva de justificaccedilatildeo

Esta temaacutetica heideggeriana do ser-para-a-morte eacute articulada por Vergiacutelio

Ferreira com a temaacutetica da morte de Deus que Sartre tratou a partir da ceacutelebre

afirmaccedilatildeo de Dostoiewsky rdquoSe Deus morreu tudo eacute permitidordquo Esta afirmaccedilatildeo

que em Dostoiewsky surgia precisamente no contexto de uma criacutetica ao

niilismo contemporacircneo eacute apropriada por Sartre no contexto radicalmente

distinto da sua proacutepria filosofia da existecircncia Efectivamente o ateiacutesmo eacute para

o filoacutesofo francecircs a condiccedilatildeo indispensaacutevel para a assunccedilatildeo da liberdade do

homem que diante dum ceacuteu sem Deus e sem as essecircncias imutaacuteveis do

mundo inteligiacutevel se pode finalmente tornar consciente da sua condiccedilatildeo

lanccedilado na existecircncia abandonado agrave facticidade ele estaacute condenado a ter que

se escolher a si mesmo sem auxiacutelio e sem desculpas

A temaacutetica da responsabilidade e da culpa assumem assim para este autor

uma grande relevacircncia eacutetica sendo ainda o fundamento possiacutevel para um

engagement social e poliacutetico Desta temaacutetica encontramos diversas

ressonacircncias em Vergiacutelio Ferreira ldquoPerante quem se eacute responsaacutevel pelo

cumprimento do dever Quem se nos instalou no sangue para nos condenar o

incesto ou a tortura de uma crianccedila ou matar ou Havia outrora a

ldquoconsciecircnciardquo que foi herdada de Deus Mas a consciecircncia somos noacutes e noacutes

natildeo temos autoridade para sermos em vez de noacutesrdquo515

Esta condiccedilatildeo de radical desamparo da existecircncia humana eacute salientada na

Apariccedilatildeo onde o confronto com a morte lanccedila o personagem numa tomada de

consciecircncia do absurdo da sua existecircncia diante da morte e simultaneamente

na experiecircncia do fasciacutenio do Ser ldquoA minha vida eacute eterna porque eacute soacute presenccedila

515

Vergiacutelio Ferreira Pensar Lisboa 1992 125

294

dela a si proacutepria eacute a sua evidente necessidade eacute ser eu EU esta brutal

iluminaccedilatildeo de mim e do mundo puro acto de me ver em mim este SER que

irradia desde o mais longiacutenquo jacto de apariccedilatildeo este ser-ser que me fascina e

agraves vezes me angustia de terror E todavia eu sei que ldquoistordquo nasceu para o

silecircncio sem fimrdquo516

Em Vergiacutelio Ferreira temos pois natildeo tanto a apropriaccedilatildeo sistemaacutetica de uma

das tendecircncias do existencialismo contemporacircneo como a apropriaccedilatildeo duma

estrutura comum aos diversos filoacutesofos da existecircncia assim como a exploraccedilatildeo

de certas temaacuteticas com particular ressonacircncia literaacuteria como o proacuteprio autor

tem o cuidado de sublinhar ldquoMas se eu privilegiei os temas da morte e da

liberdade (e com eles o da ldquoanguacutestiardquo ou da ldquonaacuteuseardquo e do absurdo) foi soacute

porque eacute aiacute talvez pela sua particular ressonacircncia humana que a literatura

particularmente se fixourdquo517

Para Vergiacutelio Ferreira o existencialismo possibilitou a salvaccedilatildeo do romance

pondo em acccedilatildeo personagens que jaacute natildeo tecircm propriamente o estatuto de

indiviacuteduos mas que representam a proacutepria condiccedilatildeo humana a existecircncia

humana na sua condiccedilatildeo absurda de um ser para a morte ldquoMas se o

existencialismo natildeo eacute uma pura recusa e sim um enfrentar do problema no que

lhe eacute fundamental compreendemos bem que a dissoluccedilatildeo do romance o natildeo

tenha atingido com particular gravidade Assim a personagem que noacutes vimos

dissolver-se ateacute ao ldquonovo romancerdquo natildeo se ausentou do romance existencial

Simplesmente o indiviacuteduo que a hora presente natildeo entende que no momento

presente natildeo se justifica acede a uma dimensatildeo que simultaneamente o anula

e o exalta precisamente a dimensatildeo do homem Porque o homem naquilo que

o define profundamente unifica os indiviacuteduos na sua comum condiccedilatildeo mas

assim mesmo destroacutei-os no que faz deles seres uacutenicos A unicidade de cada

um revela-se no que eacute uacutenico para todos o absoluto da sua presenccedila a sua

irredutibilidade mas aiacute mesmo estabelece uma comunidade disso que eacute

uacutenico agrave totalizaccedilatildeo do nada da pura ausecircncia que ldquoo novo romancerdquo nos

propotildee o existencialismo opotildee a comunidade de uma condiccedilatildeordquo518

Vergiacutelio Ferreira protagoniza pois entre noacutes este movimento de renovaccedilatildeo da

literatura que o existencialismo estimulou de facto estes autores dum

516

Vergiacutelio Ferreira Apariccedilatildeo [Lisboa Portugaacutelia ed 1959] Lisboa Bertrand Editora 2005 50 517

Vergigravelio Ferreira rdquoExistencialismo e Literaturardquo in Espaccedilo do Invisiacutevel 2 46 518

Vergiacutelio Ferreira ldquoDa Anguacutestia etcrdquo Espaccedilo do Invisiacutevel 1 258

295

existencialismo que um pouco simplisticamente podemos chamar ldquoateu rdquo

(Sartre e Heidegger) revelam a perspectiva comum dum mesmo olhar que se

desviou da metafiacutesica e das verdades religiosas instituiacutedas sobre a origem e o

fim do homem e que recusando qualquer horizonte de transcendecircncia foca a

sua atenccedilatildeo no horizonte dramaticamente vazio da finitude humana

Adoptando esta perspectiva pela primeira vez na sua novela de 1949

Mudanccedila Vergiacutelio Ferreira corta com os cacircnones do neo-realismo e explora daiacute

em diante nos seus romances uma subjectividade humana enfrentado a sua

radical finitude Muitos dos temas explorados na sua obra literaacuteria posterior a

1949 jaacute tinham sido aflorados na literatura portuguesa por Raul Brandatildeo que

ele reconhece como precursor mas a preparaccedilatildeo filosoacutefica de Vergiacutelio Ferreira

e o conhecimento do tratamento destes temas em Sartre (a liberdade a culpa

a responsabilidade) e Heidegger (o homem como ser-para-a-morte) permite-

lhe uma outra abordagem introduzindo na nossa literatura o ldquoromance

filosoacuteficordquo que natildeo existira jamais entre noacutes519 Assumindo a condiccedilatildeo humana

no seu absurdo confrontando-se com ele e fazendo desse enfrentamento o

tema de muitos dos seus romances estes assumem uma feiccedilatildeo

essencialmente problemaacutetica e metafiacutesica revelando a procura de uma

transcendecircncia que apenas pensa ser possiacutevel como uma apariccedilatildeo

5 O diaacutelogo com ldquoo segundo Heideggerrdquo e o problema do mito

O diaacutelogo com o chamado ldquosegundo Heideggerrdquo foi conduzido de forma original

por alguns dos pensadores que integraram o ldquogrupo de Satildeo Paulordquo com

particular destaque para Eudoro de Sousa e Vicente Ferreira da Silva

O que torna este diaacutelogo particularmente interessante eacute o facto de nesse grupo

terem estado presentes especialistas em Filologia Claacutessica como Agostinho da

Silva e Eudoro de Sousa responsaacuteveis por algumas traduccedilotildees de autores

gregos e latinos (Aristoacuteteles Platatildeo Plauto e Terecircncio)520 Agostinho da Silva

519

Sobre o significado essencialmente inovador da criaccedilatildeo literaacuteria de Vergiacutelio Ferreira cf Cacircndido

Martins ldquoA Voz Ensaigravestica da Ficccedilatildeo de Vergigravelio Ferreirardquo in O Pensamento Luso-Galaico-Brasileiro

659 ldquoNeste sentido a escrita de Vergiacutelio Ferreira contaminada por uma omnipresente voz ensaiacutestica

aproxima-se exemplarmente daquela tendecircncia diagnosticada por George Steiner Com o desequiliacutebrio

dos geacuteneros tradicionais e em particular com a crise do romance claacutessico afirma-se uma ldquoforma totalrdquo

de escrita que ndash numa inovadora tradiccedilatildeo literaacuteria e ensaiacutestica de iacutendole experimental ndash resulta da

confluecircncia de vaacuterios geacuteneros numa espeacutecie de geacutenero pitagoacutericoldquo 520

Cf Apecircndice I deste trabalho

296

levou a cabo um intenso trabalho de divulgaccedilatildeo dos autores claacutessicos nos

Cadernos de Informaccedilatildeo Cultural onde foi responsaacutevel por tiacutetulos como ldquoA

Religiatildeo Gregardquo ldquoO Pensamento de Epicurordquo ldquoO Estoicismordquo ldquoA Escultura

Gregardquo ldquoA Filosofia preacute-socraacuteticardquo ldquoSoacutecratesrdquo ldquoO Platonismordquo ldquoO Sistema de

Aristoacutetelesrdquo tendo sido ainda autor de diaacutelogos como Conversaccedilatildeo com

Diotima (VN de Famalicatildeo 1944) e do ensaio Comeacutedia Latina (prefaacutecio do

volume da sua traduccedilatildeo de peccedilas de Plauto e Terecircncio editado pelas Ediccedilotildees

de Ouro Brasil 1947)521 Agostinho da Silva escreveu tambeacutem diversos ensaios

de criacutetica literaacuteria ocupando-se de temas da poesia em liacutengua portuguesa

designadamente Camotildees e Fernando Pessoa (O Espiacuterito Santo das Ilhas

Atlacircnticas e Um Fernando Pessoa antologia de releitura)

Eudoro de Sousa especializou-se em Filologia Claacutessica e Histoacuteria Antiga em

Heidelberg Traduziu directamente do grego a Poeacutetica de Aristoacuteteles que foi

inicialmente publicada em Portugal e reeditada no Brasil em 1966 Traduziu

ainda a partir do grego As Bacantes de Euriacutepedes com introduccedilatildeo e

comentaacuterios (1974) Exerceu actividade docente na Universidade de Satildeo

Paulo na Pontifiacutecia Universidade Catoacutelica no Instituto Brasileiro de Filosofia e

na Faculdade de Filosofia de Campinas Foi ainda um dos fundadores da

Universidade de Brasiacutelia leccionando aiacute Liacutengua e Literatura Claacutessicas Histoacuteria

Antiga Filosofia Antiga e Arqueologia Claacutessica em cursos de graduaccedilatildeo e poacutes-

graduaccedilatildeo Eudoro de Sousa foi um estudioso da mitologia grega tendo

publicado entre 45 e 46 os artigos As Nuacutepcias do Ceacuteu e da Terra e A Origem

da Poesia e da Mitologia no Drama Ritual (I e II) onde laccedilou as bases da sua

filosofia da Mitologia inspirada nos trabalhos de Jung e Kereacutenyi522

Por outro lado o grupo de Satildeo Paulo contou ainda com a participaccedilatildeo de

Vicente Ferreira da Silva possuidor duma informaccedilatildeo filosoacutefica extensa e

rigorosa natildeo apenas da tradiccedilatildeo filosoacutefica como da filosofia do seu tempo

sendo uma personalidade invulgar no quadro cultural luso-brasileiro Foi ainda

fundador do Instituto Brasileiro de Filosofia que promoveu os primeiros cursos

conferecircncias congressos nacionais e internacionais de Filosofia no Brasil e da

Revista Brasileira de Filosofia a mais antiga revista de Filosofia brasileira523

521

Sobre o papel de Agostinho da Silva como divulgador da Cultura Claacutessica cf Constanccedila Marcondes

Ceacutesar em O Grupo de Satildeo Paulo 12-16 522

Cf Ibidem 17-20 523

Ibidem 20-22

297

Fazia ainda parte do grupo a poetisa Dora Ferreira da Silva tradutora de

poesia (Rilke Houmllderlin Novalis Saint John Perse San Juan de la Cruz) e

criadora de importante obra poeacutetica merecedora de diversos preacutemios literaacuterios

(Poesia Reunida Rio de Janeiro Topbooks 1999)524

O diaacutelogo entre estes autores centrou-se nos problemas relacionados com a

poesia e a mitologia e foi a partir desse horizonte temaacutetico que colheram a

influecircncia de Heidegger em particular das obras do ldquosegundo Heideggerrdquo525

5 1 Eudoro de Sousa e a Trans-objectividade

Como referimos no capiacutetulo anterior Heidegger concebe a histoacuteria como um

gestar-se temporal do Dasein e agrave luz desta concepccedilatildeo da histoacuteria conduz uma

criacutetica contundente agraves pretensotildees de uma historiografia cientiacutefica e objectiva

que traduz um modo improacuteprio ou inautecircntico de estar na histoacuteria assente

numa falsa identidade entre o modo humano e o modo dos objectos e seres da

natureza estarem no tempo

Em Eudoro de Sousa encontramos um eco deste repensar da histoacuteria a partir

da temporalidade do Dasein a historiografia cientiacutefica eacute objecto dum

questionamento que parte do princiacutepio de que nela a interpretaccedilatildeo do passado

eacute sempre e necessariamente uma projecccedilatildeo da presenccedila do presente pelo

que a antiguidade claacutessica seria objecto de inuacutemeras reconfiguraccedilotildees ao longo

da histoacuteria todas elas contendo a verdade relativa de serem meras sombras ou

projecccedilotildees do presente526

Eudoro de Sousa joga na possibilidade de ruptura com esta polaridade

passadondashpresente que remetem um para um outro como forma de

inconsciente confirmaccedilatildeo e legitimaccedilatildeo Contudo esta superaccedilatildeo da

historiografia natildeo conduz a uma compreensatildeo mais radical da histoacuteria e da

524

Ibidem 22-30 525

Como fontes comuns aos pensadores do Grupo de Satildeo Paulo destacam-se Schelling Nietzsche e

Heidegger Cf Constanccedila Marcondes Ceacutesar ldquoA Compreensatildeo heterodoxa do sagrado Agostinho da

Silva Eudoro de Sousa Vicente Ferreira da Sivardquo in Actas do Congresso O Pensamento Luso-Galaico-

Brasileiro II 18 526

Cf ldquoMais natildeo posso conceder agrave histoacuteria Uma sucessatildeo de eacutepocas natildeo assinala uma linha de progresso

(nem de regresso) mas tatildeo-soacute de singularidades caleidoscoacutepicas de antigos-distantes polarmente

associados e actuais proacuteximos actuais e antigos que definem por sua vez as singularidades das eacutepocasrdquo

Eudoro de Sousa Histoacuteria e Mito [1ordf ed Brasiacutelia 1981] in Mitologia Histoacuteria e Mito Lisboa 2004

235

298

temporalidade como estrutura da existecircncia humana como em Heidegger mas

a um movimento de saiacuteda do acircmbito da histoacuteria e da temporalidade 527

Para Eudoro de Sousa eacute possiacutevel e mesmo imprescindiacutevel ultrapassar o

horizonte da histoacuteria encontrarmo-nos no limiar dum outro tempo que jaacute natildeo a

presenccedila do presente mas a presenccedila do passado o tempo do natildeo tempo do

mito528 pois soacute do lado de fora da histoacuteria ela se desvenda na sua verdadeira

natureza

A criacutetica da historiografia cientiacutefica conduz assim Eudoro a uma compreensatildeo

da Mitologia529 que visa aceder ao mundo dos arqueacutetipos que sendo

anteriores agrave histoacuteria satildeo mais fundamental e radicalmente constitutivos do

ser-homem

Essa desocultaccedilatildeo do mito permite aceder ao sentido da histoacuteria ou seja a um

horizonte mais englobante agrave luz do qual a histoacuteria se revela como a histoacuteria

dum progressivo afastamento do sagrado A histoacuteria eacute assim - vista do lado de

laacute do mito - o acircmbito das sucessivas cisotildees que tiveram poreacutem o seu iniacutecio na

Greacutecia quando o mito deixa de ser vivido como drama ritual e passa a ser

siacutembolo e alegoria ditos pela poesia e interpretados pela filosofia

A Greacutecia arquetiacutepica eacute assim para Eudoro de Sousa a Greacutecia-preacute-heleacutenica

cujos vestiacutegios na eacutepoca claacutessica existem ainda sob a forma enigmaacutetica dos

rituais das religiotildees dos misteacuterios Assim eacute a partir desta interpretaccedilatildeo original

da cultura grega que postula o drama ritual como seu nuacutecleo fundamental que

Eudoro de Sousa vai dialogar com Heidegger diaacutelogo que eacute marcado por uma

consciecircncia expliacutecita das diferenccedilas de perspectivas

A importacircncia que ele reconhecia ao pensamento de Heidegger estaacute patente

na sua traduccedilatildeo de Das Ding530 que ele levou a cabo com a finalidade de

527

ldquoA distacircncia do antigo contrapolar deste ou daquele actual ainda natildeo eacute a lonjurandashoutrora ou outrora-

lonjura O passado-outrora o passado-lonjura estaacute sempre aleacutem do horizonte do antigo que muito ou

pouco dista do actual de todo ou qualquer presenterdquo Ibidem 234-235 528

ldquoA histoacuteria com o seu antigo-distante natildeo passa para do lado de caacute para o lado de laacute do horizonte mas

o mito passa de laacute para caacute Afinal temos um nome corrente para designar aquele passado que eacute mais do

que distante que eacute passado longiacutenquo e de outra hora Sem sabecirc-lo sem querer sabecirc-lo por julgar saber

que assim natildeo eacute a histoacuteria anda agrave mercecirc do mitordquo Ibidem 241 529

ldquoA lonjurandashoutrora pode passar de aleacutem para aqueacutem-horizonte da histoacuteria e quando passa a histoacuteria

reassume a sua feiccedilatildeo preacute-originaacuteria afeiccediloando-se antigo e actual agrave presenccedila do outrora lonjura

pseudodimensatildeo cronotroacutepica de tudo quanto eacute simboacutelico e complementar Por sua vez o simboacutelico ou

complementar soacute tem uma linguagem que adequadamente o exprime o miacutetico e o ritual o mito que eacute rito

recitado ou cantado o rito que eacute mito gesticulado ou danccediladordquo Ibidem 245 530

ldquoA Coisa de Martin Heideggerrdquo in Mitologia [1ordf ed Brasiacutelia 1980] agora em Mitologia Histoacuteria e

Mito Lisboa 2004 201-215

299

dispor de um texto em liacutengua portuguesa para os seus seminaacuterios No

prefaacutecio esta traduccedilatildeo Eudoro de Sousa natildeo daacute apenas conta da influecircncia

desse ensaio de Heidegger no seu proacuteprio pensamento (designadamente na

terminologia adoptada na revisatildeo final de Mitologia) mas manifesta ainda a

consciecircncia de que a sua proacutepria demanda visa a religiatildeo e o sagrado natildeo

podendo coincidir com a disciplina da demanda estritamente filosoacutefica que

impocircs a Heidegger a questatildeo do ser ldquoMas tatildeo claro eacute que Heidegger como

filoacutesofo tal como acima dissemos que foi e mais (ou menos) natildeo quis ser soacute

estava preocupado com o ser dos entes ndash aqui o ser da coisa Natildeo me

envergonho de confessar uma vez mais que perante ele assumo a atitude de

natildeo entendecirc-lo Troco intencionalmente Ser por Deus sem pejo de muito bem

saber que em toda a sua obra natildeo haacute passagem que permita pocircr Deus no lugar

do Serrdquo531

Explicitando melhor o que o separa de Heidegger como sendo um outro

percurso de investigaccedilatildeo Eudoro de Sousa afirma em Mitologia ldquoO seu

pensamento [hellip] move-se todo num aqueacutem - horizonte da objectividade Mas

noacutes que outra coisa natildeo fizemos nem fazemos senatildeo mitologia podemos

ousar a inversatildeo e propormos que na trans-objectividade se veja o ponto de

partida de uma anaacutebase meta-histoacuterica correndo ao inveacutes da cataacutebase

histoacuterica do pensamento objectivanterdquo532

O pensamento objectivante eacute para Eudoro de Sousa caracteriacutestico da filosofia

e da ciecircncia na medida em que elas representam a actividade ldquodia-boacutelicardquo533

(em sentido etimoloacutegico que indica divisatildeo e separaccedilatildeo) da razatildeo que

imobiliza e ldquocoisificardquo tanto o real como o pensamento ao levar a cabo a

constituiccedilatildeo de entidades abstractas ou ideias que lhe servem de suporte

Ao contraacuterio Eudoro de Sousa busca a superaccedilatildeo do pensamento categorial

para ele o horizonte da objectividade natildeo eacute um limite mas um ldquolimiarrdquo ou seja

confina de algum modo com uma passagem para a transcendecircncia e para um

passado intemporal que antecede e envolve o presente

531

Eudoro de Sousa Mitologia Histoacuteria e Mito Lisboa 2004 193 532

Ibidem 198 533

ldquo ldquoDiaboacutelicordquo tem por eacutetimo o verbo diabaacutellein que entre outros tem o significado de ldquosepararrdquo de

modo que ldquodiaboacutelicordquo quereria dizer rdquoqualidade inerente ao separadordquo que em latim pode dizer-se ad-

solutun e secretum e voltando ao grego tambeacutem se expressa pelo particiacutepio perfeito do verbo khoriacutezein

na voz meacutedio-passiva kekhorismeacutenon Um substantivo derivado do mesmo verbo khorismoacutes caracteriza

a ontologia e a gnosiologia platoacutenicas a separaccedilatildeo do mundo sensiacutevel e do mundo inteligiacutevel [hellip]rdquo

Ibidem 92

300

A trans-objectividade designa assim um pensamento totalizante e ldquosim-boacutelicordquo

534(em sentido etimoloacutegico de actividade de reuniatildeo) que poderaacute ser o

pensamento proacuteprio desse limiar onde a distinccedilatildeo categorial entre os vaacuterios

planos da realidade natildeo tenha mais lugar

Esta trans-objectividadeatildeo permite-lhe repensar a histoacuteria e a filosofia a partir

duma meta-histoacuteria que natildeo eacute como em Heidegger a histoacuteria do ser mas o

mito Trata-se com efeito de uma inversatildeo de perspectiva pois natildeo se trata de

fazer uma hermenecircutica filosoacutefica do mito mas duma hermenecircutica da histoacuteria

da cultura e ateacute certo ponto tambeacutem da histoacuteria da filosofia a partir dos mitos

ou mais rigorosamente do miacutetico de que o mito eacute apenas uma das

manifestaccedilotildees

5 2 O sagrado e o significado do drama ritual

Para compreender papel heuriacutestico do mito (ou do miacutetico) em Eudoro de Sousa

eacute preciso entender o que sob esse termo se designa - de facto natildeo se trata

dos mitos homeacutericos nem dos poemas de Hesiacuteodo mas de algo que os

antecedeu como sua esquecida origem ldquoPreacute-heleacutenica a mitologia grega eacute

mitologia de uma natureza anterior agrave natureza e por conseguinte a mitologia

de um homem anterior ao Homem Estudaacute-la consistiria em descobrir que

seres ancestrais a partir dela nos falamrdquo535

Uma das vias mais fecundas de aproximaccedilatildeo agrave religiosidade preacute-heleacutenica

tomada por Eudoro de Sousa foi a meditaccedilatildeo sobre o culto dos misteacuterios - a

memoacuteria de uma religiosidade ancestral que permaneceu oculta e guardada na

Greacutecia claacutessica como um saber esoteacuterico reservado aos iniciados

E eacute exactamente esse caraacutecter iniciaacutetico que Eudoro de Sousa interroga como

chave de acesso a uma religiosidade que na Greacutecia claacutessica permanece como

um corpo estranho ao luminoso universo dos deuses oliacutempicos Agrave pergunta

ldquoporque seria proibido divulgar o que se passava nas cerimoacutenias rituais de

celebraccedilatildeo do misteacuterio de Elecircusisrdquo Eudoro de Sousa daacute a surpreendente

resposta de que a razatildeo de tal proibiccedilatildeo residia simplesmente no facto de que

534

ldquoDo ldquosimboacutelicordquo que de acordo com o eacutetimo symballein ou symballesthai significa o ldquocojadorrdquo o

ldquounido a partir de um soacute arremessordquo [hellip]rdquo Ibidem 107 535

Eudoro de Sousa Dioniacutesio em Creta [1ordf ed Satildeo Paulo 1973] agora em Dioniacutesio em Creta e Outros

Ensaios Lisboa 2004 113

301

nada haveria para contar Natildeo se trataria de transmissatildeo de ensinamentos

mas da vivecircncia duma experiecircncia cujo nuacutecleo de significado se trata de

aproximar pela danccedila536 os iniciados fariam a experiecircncia corporal da unidade

entre o divino o humano e a natureza - essa experiecircncia seria a de uma

excessividade caoacutetica em que os trecircs planos eram anulados atraveacutes da acccedilatildeo

Esta vivecircncia do sagrado era a vivecircncia de um tempo originaacuterio e originante em

que os deuses ainda natildeo tinham nome nem se distinguiam das forccedilas da

natureza e em que os homens entravam em comunhatildeo com essas forccedilas

atraveacutes do corpo do ritmo e da danccedila A vivecircncia originaacuteria do sagrado era

pois a vivecircncia integrada do mito e do rito quando estes se manifestam

solidariamente no canto e na danccedila e entre a palavra e o gesto natildeo havia

fissura nem distacircncia

Todavia o gesto primitivo que celebrava o sagrado natildeo era o gesto humano

mas a manifestaccedilatildeo das forccedilas trans-humanas coacutesmicas e divinas que no

drama ritual se apossavam do homem e instauravam um teatro sagrado em

que o divino o humano e a natureza eram indiscerniacuteveis

Esta vivecircncia originaacuteria do sagrado tem para Eudoro de Sousa um significado

trans-histoacuterico pela dupla razatildeo de que ela se refere a uma experiecircncia

universal numa era anterior agrave histoacuteria e porque que natildeo eacute simplesmente uma

experiecircncia confinada ao passado mas ela ainda envolve e alimenta a histoacuteria

como seu fundamento impensado537

Na perspectiva de Eudoro de Sousa esta experiecircncia de plena integraccedilatildeo

ontoloacutegica pode funcionar no interior da histoacuteria positivamente como

possibilidade esquecida permanentemente (embora natildeo facilmente)

actualizaacutevel na arte na sexualidade e na religiatildeo538 ou pelo contraacuterio pode

funcionar negativamente como objecto de uma incessante rejeiccedilatildeo

Foi contudo nesta possibilidade negativa que se estabeleceu o ser histoacuterico

do homem se essa experiecircncia tornava presente o poder genesiacuteaco dos

536

Ibidem 112 537

ldquoO paradoxal eacute aqui isto mesmo a presenccedila do agora faz-se presente pela presenccedila do outrora mas

presente que se faz presente pela ausecircncia do que no outrora eacute mais presente Esta hora soacute eacute esta quando

de vista se natildeo perdeu a outra Presente faz-se presenccedila ao soar nesta hora dos homens a outra hora que

eacute a dos deuses sem que o presente possa ouvi-laldquo Mitologia Histoacuteria e Mito 243 538

A criacutetica agraves religiotildees instituiacutedas e uma compreensatildeo heterodoxa do sagrado satildeo traccedilos comuns do

chamado ldquoGrupo de Satildeo Paulordquo Cf Constanccedila Marcondes Ceacutesar em rdquoA compreensatildeo heterodoxa do

sagradordquo Actas do Congresso O Pensamento Luso-Galaico-Brasileiro 18

302

deuses foi a negaccedilatildeo e a recusa desse poder que instituiu o homem histoacuterico -

e assim eacute a partir dessa recusa que podemos compreender o homem e o seu

destino tal como se manifestam na histoacuteria O homem histoacuterico eacute um ser que

diz natildeo que opotildee uma firme recusa a esse poder arrebatador dos deuses e se

quer pocircr a si mesmo como auto-criaccedilatildeo ldquoHistoacuteria eacute do homem que se recusa a

viver em mundo que natildeo seja seu ou porque o faccedila ou porque o penserdquo539

Assim Eudoro de Sousa produz um discurso antropoloacutegico fundado numa

dialeacutectica da negaccedilatildeo o homem eacute um ser que diz natildeo que rejeita o em-si do

espiacuterito que se manifesta na excessividade caoacutetica e genesiacuteaca do sagrado

para ambicionar o ser-para-si como subjectividade criadora O ser-para-si do

espiacuterito como subjectividade soacute pode afirmar-se por negaccedilotildees sucessivas pela

permanente rejeiccedilatildeo do outro na figura da natureza na figura dos deuses na

figura das suas proacuteprias criaccedilotildees histoacuterico-culturais

Esta negatividade dialeacutectica que incessantemente alimenta o progresso

histoacuterico fonte de permanente dor e inquietaccedilatildeo natildeo eacute poreacutem explicitada por

Eudoro com as categorias da dialeacutectica hegeliana mas elucidada a partir do

mito biacuteblico da queda e da expulsatildeo do homem do paraiacuteso Com efeito esta

dialeacutectica da negaccedilatildeo pela qual o homem histoacuterico ambiciona fazer-se a si

mesmo e criar o seu proacuteprio destino natildeo eacute a marcha do espiacuterito em direcccedilatildeo

ao Absoluto e agrave Liberdade mas a queda e a degradaccedilatildeo que alcanccedilaram a

sua culminacircncia na era da teacutecnica em que a ambiccedilatildeo do homo faber natildeo tem

limites e visa subjugar todas as coisas naturais reconstruindo a terra de acordo

com o seu projecto tecnoloacutegico triunfante

Transformando a natureza em ldquocoisasrdquo manufacturaacuteveis e utilizaacuteveis o homem

potildee-se a si mesmo como objecto desse poder manufacturante e destruidor

opondo uma firme recusa agrave sensibilidade e ao proacuteprio ser corpoacutereo - a

degradaccedilatildeo ontoloacutegica do homem da teacutecnica eacute o produto final desta dialeacutectica

da negaccedilatildeo

Retomando temas fundamentais da filosofia heideggeriana como a metafiacutesica

da subjectividade e a teacutecnica como Gestell Eudoro de Sousa sujeita-os a uma

reinterpretaccedilatildeo de acordo com a sua perspectiva da ldquotrans-objectividaderdquo540

539

Eudoro de Sousa Mitologia Histoacuteria e Mito 255 540

O tema da objectividade e da trans-objectividade com os respectivos horizontes devem ser

correlacionados com o diaboacutelico e o simboacutelico o primeiro remetendo para o mundo petrificado das

ldquocoisasrdquo e do pensamento categorial o segundo remetendo para um portal para o passado intemporal que

303

para a qual natildeo eacute o esquecimento do ser mas a recusa da experiecircncia

primordial do sagrado como unidade ontoloacutegica originaacuteria que se apresenta

como fonte de inesgotaacutevel inteligibilidade

A rejeiccedilatildeo da unidade ontoloacutegica primordial que anima a histoacuteria eacute designada

metaforicamente por Eudoro de Sousa como ldquotentaccedilatildeo dia-boacutelicardquo que sendo

uma tentaccedilatildeo humana eacute todavia tambeacutem uma ocultaccedilatildeo e uma retirada dos

Deuses Metaforicamente designada de ldquoexplosatildeordquo esse estilhaccedilar da unidade

primordial lanccedilou o mundo das coisas na sua objectividade dia-boacutelica

Natildeo eacute assim na filosofia nem na poesia que se pode vislumbrar uma

esperanccedila de salvaccedilatildeo mas numa iniciativa dos proacuteprios deuses na qual

Eudoro de Sousa parece depositar mais confianccedila do que a que animaria

Heidegger na ceacutelebre entrevista ao Der Spiegel ldquoPosto no trans-objectivo

tenho mesmo que admitir a eventualidade de ser jogado pelo Real o Absoluto

o Ser o Deus em cuja apariccedilatildeo Heidegger via a uacutenica possibilidade de

salvaccedilatildeo Mas a expectativa angustiada do filoacutesofo natildeo me desinquieta nem

me angustia Jaacute desci aos infernos da objectividade Deste saiacute pelo

reconhecimento de laacute ter descido Natildeo os temo mais Em Heidegger a acircnsia de

salvaccedilatildeo eacute soacute a salvaccedilatildeo dos homens que em multidatildeo se mantecircm nos

infernos do objectivismo sem dele poderem desgarrar-se Que se lhes haacute-de

fazer se natildeo resistirem ao Tentador Quanto a noacutes nada podemos fazer Deus

pode Creio que o faraacute se por eles mesmos atravessando a crise dela se

aperceberem como criserdquo541

Se Eudoro de Sousa reconhece explicitamente a sua diacutevida em relaccedilatildeo a

Heidegger referindo que os capiacutetulos finais de Mitologia se inspiraram na

interpretaccedilatildeo do ensaio heideggeriano sobre ldquoa coisardquo ele natildeo deixa de

tambeacutem afirmar no prefaacutecio agrave traduccedilatildeo de Das Ding que partem de pontos de

vista totalmente distintos o filoacutesofo alematildeo procurando o ser da coisa na

proximidade ele mesmo procurando o ser que se revela na Lonjura e no

outrora542 Onde Heidegger diz ldquocoisardquo porque ainda estaria preso ao plano da

objectividade em que se move o pensar categorial da filosofia Eudoro de

envolve e abarca o presente Cf Eduardo Abranches de Soveral em Pensamento Luso-Brasileiro - estudos

e ensaios Lisboa 1996 216 541

Eudoro de Sousa Mitologia Histoacuteria e Mito 198 542

ldquoA Atmosfera de A Coisa eacute a de um interrogar insistente sobre o ser da ldquoproximidaderdquo enquanto da

minha parte o ser do que quer que seja natildeo se revela senatildeo na Lonjura e no Outrora Soacute por isso dir-se-

ia que partimos de pontos de vista diametralmente opostos mas de certo modo chegamos a conclusotildees

que atentamente examinadas natildeo satildeo das que natildeo se possam conciliarrdquo Ibidem 191

304

Sousa pensa siacutembolo porque o cacircntaro eacute a presenccedila da libaccedilatildeo ritual ora o

ritual desenrola-se precisamente nesse plano onde jaacute natildeo haacute objectos nem

coisas - eacute o plano da trans-objectividade ou do simboacutelico543

A possibilidade de o homem recuperar a unidade ontoloacutegica originaacuteria reside na

religiatildeo poreacutem na religiatildeo entendida como ritual isto eacute como representaccedilatildeo

dramaacutetica que celebra a unidade do divino do humano e da natureza ldquoReligiatildeo

eacute representaccedilatildeo dramaacutetica E a representaccedilatildeo consiste toda ela na

construccedilatildeo de um daqueles triacircngulos do simboacutelico e do complementar

contanto que se ponha no veacutertice superior um deus algum deus ou o proacuteprio

Deusrdquo544

O triacircngulo do simboacutelico subjacente ao drama ritual evoca explicitamente a

Terra o Ceacuteu os Divinos e os Mortais da quadratura (Geviert) de Heidegger

Eudoro de Sousa pensa o drama ritual como desvelamento da unidade e da

co-pertenccedila das vaacuterias regiotildees ontoloacutegicas e como jogo de espelhos pelo qual

elas remetem umas para outras ldquoMas natildeo se julgue ignorarmos noacutes que tais

consequecircncias nos levam fatalmente a um ponto em que Heidegger insistiu

em seu ensaio sobre ldquoA Coisardquo Natildeo importa que aiacute estivesse um quadrado e

aqui um triacircngulo Podemos imaginar o nosso triacircngulo inscrito num ciacuterculo e

que ele gire em torno dum eixo perpendicular ao centro Natildeo teremos a

circulatura do quadrado mas a do triacircngulo O resultado eacute o mesmo a

divindade espelha-se na natureza e na sensibilidade a natureza na

sensibilidade e na divindade a sensibilidade na divindade e na naturezardquo545

Este triacircngulo - inspirado em das Geviert (a quadratura) de Heidegger - que

deveremos imaginar como girando em torno dum eixo perpendicular ao centro

funciona como arqueacutetipo destruidor da metafiacutesica permitindo pensar (para

aleacutem e para aqueacutem dela) o desvelamento do ser como experiecircncia duma

unidade ontoloacutegica originaacuteria

Assim o ritual institui o triacircngulo do simboacutelico que mistura e unifica os vaacuterios

planos ontoloacutegicos ldquoA divindade estaacute na natureza e na sensibilidade a

natureza na sensibilidade e na divindade a sensibilidade na divindade e na

naturezardquo546 e as trecircs regiotildees ontoloacutegicas remetendo umas para as outras

543

Ibidem 197 544

Ibidem 322 545

Ibidem 324325 546

Ibidem 325

305

criam essa experiecircncia do sagrado em que ldquoas coisasrdquo perdem o seu valor

instrumental para converterem em hierofanias - presenccedilas do sagrado

Contudo Eudoro de Sousa natildeo deixa de sublinhar no seu prefaacutecio agrave traduccedilatildeo

de Das Ding que a sua leitura do texto heideggeriano eacute percorrida por uma

intencionalidade distinta (embora compatiacutevel) com aquele que presidiu agrave

elaboraccedilatildeo do ensaio pelo filoacutesofo alematildeo Com efeito Heidegger cujo

pensamento de move numa dimensatildeo ldquoaqueacutem da objectividaderdquo visaria

encontrar a linguagem capaz de desvendar as coisas no seu ser retirando-as

do domiacutenio da objectividade sem contudo poder romper como o limite desse

horizonte da objectividade

Eudoro de Sousa num complexo jogo de linguagem onde proximidade e

distacircncia assumem um sentido metafoacuterico e equiacutevoco sublinha esta contenccedilatildeo

de Heidegger (a da proacutepria filosofia) que o impede de se colocar nesse limiar

da trans-objectividade a partir da qual eacute possiacutevel a ldquoproximidade sem distacircnciardquo

da Lonjura e do Distante ldquoAliaacutes relendo A Coisa depois de ter escrito (um

primeiro esboccedilo) e pensado o que pensei e escrevi julgo aperceber-me de que

precisamente na trans-objectividade eacute que se desenrola aquele drama da

busca da ldquocoisidade da coisardquo busca tambeacutem ou principalmente da

ldquoproximidaderdquo perdida no ldquosem distacircnciardquo E por isso porque Heidegger

procura descobrir o ser da ldquoproximidaderdquo indirectamente isto eacute por meio do ser

do que estaacute na ldquoproximidaderdquo no ser da ldquocoisa enquanto coisardquo lhe era vedado

o falar em trans-objectividaderdquo547

O grande vulto que no seu proacuteprio ensaio Mitologia assume a ldquometaforese do

teatrordquo natildeo existia pois em Das Ding Contudo no pensamento de Heidegger

os preacute-socraacuteticos teriam um papel de algum modo simetricamente relevante

Este facto confirmaria - na perspectiva de Eudoro de Sousa - que Heidegger se

move num horizonte aqueacutem da objectividade ldquoO seu pensamento como se

verifica pela atracccedilatildeo que sobre ele exerceram os preacute-socraacuteticos move-se todo

num aqueacutem horizonte da objectividaderdquo548 ou seja no interior do horizonte da

histoacuteria da filosofia

Na mira de Eudoro de Sousa estaacute a linguagem buscando o ldquoretorno circular agrave

sua originalidade originaacuteriardquo ao drama ritual onde se representam e

547

Ibidem 197 548

Ibidem 198

306

apresentam os dramas da trans-objectividade Poreacutem falar ldquoa partir da

intimidade do triacircngulordquo eacute reinstaurar a linguagem do simboacutelico para

ultrapassar um limiar para aceder ao terceiro e uacuteltimo horizonte ao Grande

Silecircncio da Noite Cosmogoacutenica549 ao ldquoUltra-ser que Aacutelvaro de Campos numa

das suas Ficccedilotildees de Interluacutedio ousa mencionar mas como que terrificado

diante do ldquo Mysterium Tremendum550

Nesta apologia do regresso a uma religiosidade miacutetica e ritual Eudoro de

Sousa protagoniza e fundamente teoricamente uma tendecircncia de alguns dos

pensadores portugueses do princiacutepio do seacuteculo como Teixeira de Pascoaes

Raul Brandatildeo ou Fernando Pessoa para reagirem agrave experiecircncia do niilismo por

afirmaccedilatildeo do sagrado e duma experiecircncia religiosa ldquoem regime nocturno de

consciecircnciardquo Agrave margem do cristianismo instituiacutedo como religiatildeo histoacuterica e

fundamentado numa longa tradiccedilatildeo literaacuteria e metafiacutesica estes autores

preconizam o regresso a um cristianismo miacutetico e potildeem a nu o nuacutecleo

irracional da crenccedila religiosa De facto estes autores reagem ao racionalismo

moderno na vertente positivistas que entatildeo dominava as instituiccedilotildees e a

filosofia em Portugal afirmando contra este primado da racionalidade teacutecnica e

cientiacutefica a irracionalidade do mito e da poesia

Se para a fundamentaccedilatildeo deste ponto de vista Eudoro de Sousa recorre a

Heidegger eacute no entanto preciso ter presente que o desvelamento do ser em

Heidegger se daacute sempre na linguagem e acima de tudo na linguagem poeacutetica

entendida como uma poiesis do sentido natildeo havendo aiacute lugar para a cisatildeo

entre mito e logos ou entre a razatildeo e o irracional

Eudoro apela ao regresso a uma experiecircncia de unidade ontoloacutegica vivenciada

atraveacutes do corpo pela acccedilatildeo ritual pela experiecircncia eroacutetica e pela experiecircncia

esteacutetica experiecircncias da excessividade caoacutetica excedentaacuterias da razatildeo que

por isso mesmo configuram uma transgressatildeo551 Efectivamente para Eudoro

de Sousa apenas essas experiecircncias da ordem do excesso e da transgressatildeo

nos podem aproximar do sagrado isto eacute da origem o mito ainda eacute apenas

esse ldquoacenar da Divindaderdquo que envia uma mensagem cifrada onde a

Excessividade caoacutetica mal contida permanece oculta

549

Ibidem 195 550

Ibidem 136 551

Ibidem 165

307

O comentaacuterio de Eudoro de Sousa a Houmllderlin e a Essecircncia da Poesia

intitulado os ldquoacenantes mensageiros da divindaderdquo ilustra de forma notaacutevel

como a partir do texto heideggeriano Eudoro de Sousa envereda numa

direcccedilatildeo que jaacute natildeo eacute a do pensar mas a dos rituais iniciaacuteticos como via de

passagem de um limite-limiar552

Embora esta separaccedilatildeo entre mito e razatildeo tematizada por Eudoro de Sousa

natildeo tenha qualquer lugar no pensamento de Heidegger eacute um facto que o

diaacutelogo com o filoacutesofo alematildeo desempenhou um importante papel na geacutenese

do pensamento de Eudoro de Sousa quer nos momentos em que se lhe

contrapocircs quer nos outros em que de perto o seguiu

A luacutecida consciecircncia hermenecircutica de Eudoro de Sousa fica patente nos

comentaacuterios que ele faz agrave sua proacutepria traduccedilatildeo de Das Ding onde deixa claro

de que modo a sua proacutepria perspectiva determinou algumas opccedilotildees de

traduccedilatildeo como a de Vorstellung ldquo[hellip] este substantivo derivado de vors-

stellen e que literalmente se traduziria por ldquopocircr ou colocar diante ou defronte ardquo

sugere conceitos de ldquoobjectordquo e de ldquoobjectividaderdquo Mas noacutes vertemos

ldquoVorstellungrdquo em ldquorepresentaccedilatildeordquo ldquoRepresentaccedilatildeordquo natildeo eacute ldquore-apresentaccedilatildeordquo

mas a mais concreta a mais viva ldquopresentaccedilatildeordquo pela que se ldquoapresentardquo se

faz ldquopresenterdquo o que o natildeo era Eis porque pensando em portuguecircs ou em

qualquer das liacutenguas romacircnicas mais difundidas quase diria que a palavra

evoca e provoca a imagem do dramaacutetico e com ela a de uma gnosiologia que

pouco ou nada tem a ver com a objectividade Daiacute que possamos falar dos

dramas que ocorrem na trans-objectividade de que natildeo somos noacutes sujeitos de

objectivaccedilatildeo nenhuma ou soacute o somos por delegaccedilatildeo de sujeitos (deuses) que

de modo nenhum o satildeo de objectos [hellip]rdquo553

552

ldquoOs deuses-acenantes soacute acenam porque Deus os criou mudos acenam mudos aspectos de Deus mas

no aceno natildeo estaacute nem sequer cifrado o Ser de Deus A fulguraccedilatildeo do aceno tem de ser Ofuscante

sempre e de cada vez que fulgure ilumina um mundo ilumina como se a proacutepria iluminaccedilatildeo fosse

mundo Mas a luz emanada da Origem soacute nos deixa ver o originado a Origem natildeo se deixa ver por nossos

olhos ofuscados O homem que vive e pensa na trans-objectividade tem de aprender a morte tem de

esperar a uacuteltima fulguraccedilatildeo - e essa jaacute natildeo seraacute Ofuscanterdquo Ibidem 157 553

Eudoro de Sousa Mitologia Histoacuteria e Mito 196197

308

5 3 Vicente Ferreira da Silva e o ser como Fascinador

Vicente Ferreira da Silva manteve intenso diaacutelogo com os pensadores

portugueses Agostinho da Silva Eudoro de Sousa e Delfim Santos partilhando

com os dois primeiros a mesma compreensatildeo heterodoxa do sagrado

Apesar de natildeo ser como os dois portugueses filoacutelogo interessou-se a fundo

pela mitologia grega tendo dialogado com Eudoro de Sousa sobre Otto e

Kereacuteny partilhando ainda com este as mesmas referecircncias da filosofia alematilde

como Heidegger Hegel Schelling e Nietzsche554

Na perspectiva de Vicente Ferreira da Silva a Heidegger teria cabido a tarefa

de tornar inteligiacutevel o contributo da filosofia alematilde anterior fixando um novo

conceito da humanitas do homem Efectivamente Heidegger teria vindo alterar

radicalmente toda a reflexatildeo antropoloacutegica demonstrando na sequecircncia da

linhagem de pensadores atraacutes referida que o homem eacute ele mesmo um produto

da linguagem e da mitologia A obra fundamental de Heidegger para repensar

esta questatildeo seria a Carta Sobre o Humanismo onde a dignidade do homem eacute

afirmada claramente como residindo natildeo na sua racionalidade mas na sua

vizinhanccedila ao ser

Nos seus comentaacuterios agrave Carta sobre o Humanismo Vicente expressa o mesmo

ponto de vista dominante na Europa do seu tempo de que esta obra marcaria a

viragem de Heidegger relativamente agrave perspectiva de Ser e Tempo e mais

radicalmente um corte decisivo com a tradiccedilatildeo metafiacutesica racionalista e

humanista

Referindo-se a esta obra de Heidegger Vicente Ferreira da Silva salienta que

nela o homem eacute pura realizaccedilatildeo das suas possibilidades que natildeo dependem

poreacutem dele mas dum princiacutepio fundante original e anterior - ldquoo poder

projectante do proacuteprio serrdquo ldquoO homem como princiacutepio derivado e subordinado

supotildee como seu fundamento um princiacutepio original e anterior Este princiacutepio se

compotildee das ldquodecisotildeesrdquo que transcendem e envolvem o princiacutepio humano

Como sabemos o homem eacute traccedilado em seu proacuteprio poder-ser por um poder

que natildeo se confunde com a iniciativa da substacircncia finita A abertura de um

554

Cf Constanccedila Marcondes Ceacutesar Constanccedila Marconder Ceacutesar ldquoA compreensatildeo heterodoxa do

sagradordquo in O Pensamento Luso-Galaico-Brasileiro II 18

309

mundo eacute obra do poder projectante do proacuteprio Ser em sua liberdade

arrebatadora e transcendenterdquo555

Igualmente influenciado pela presenccedila da poesia e dos mitos na cultura luso-

brasileira e em particular pelo interesse que estas temaacuteticas despertavam no

grupo de Satildeo Paulo Vicente procura fundar no segundo Heidegger uma nova

compreensatildeo dos mitos e reciprocamente a partir dos mitos relecirc Heidegger

reinterpretando de forma original o seu pensamento

Em Introduccedilatildeo agrave Filosofia da Mitologia Vicente Ferreira Silva pretende mostrar

de que modo a destruiccedilatildeo da subjectividade levada a cabo por Heidegger pode

contribuir para uma reformulaccedilatildeo de uma doutrina da mitologia O homem eacute

agora o receptor da realidade em que tanto o receptor como o receptado satildeo

consignados por um poder transcendente a ldquoLichtung des Seinsrdquo Os vaacuterios

ldquojogos histoacuterico-culturaisrdquo satildeo o jogar de um jogo que sugestiona e fascina e a

aproximaccedilatildeo ao ser eacute uma ex-posiccedilatildeo acompanhada por uma sintonizaccedilatildeo

emocional e natildeo apenas um desenhar de essecircncias ou visualizar de

representaccedilotildees ldquoA fascinaccedilatildeo eacute a essecircncia uacuteltima do ente compreendido

como realidade des-coberta pela fascinaccedilatildeo A experiecircncia do Ser dar-se-ia no

adentrar-se no intimizar-se com a forccedila troacutepica da Fascinatiordquo556

Assim Vicente Ferreira da Silva empresta ao tema heideggeriano da

compreensatildeo do ser uma dimensatildeo emocional e pulsional compreendendo-a

como fascinaccedilatildeo O Ser eacute para Vicente Ferreira da Silva o Fascinador e as

diversas eacutepocas histoacutericas satildeo diversos regimes de fascinaccedilatildeo que seduzem e

arrebatam o homem na construccedilatildeo de novos mundos e tipos de civilizaccedilatildeo

Nas suas leituras do Romantismo alematildeo (Novalis) Vicente descobre a

possibilidade de uma fundaccedilatildeo poeacutetica da existecircncia e em Houmllderlin e a

essecircncia da poesia de Heidegger recolhe a ideia da identidade entre mito e

poesia a poesia originaacuteria eacute para Vicente a mitologia linguagem dos deuses

decifrada pelos poetas que desvenda as diferentes manifestaccedilotildees do Ser em

cada um dos grandes ciclos histoacuterico-civilizacionais

O ser eacute um Fascinador e a consciecircncia miacutetica eacute a consciecircncia fascinada pelas

diferentes manifestaccedilotildees do ser e da verdade tendo esta consciecircncia

555

Vicente Ferreira da Silva Ideias para Um Novo Conceito de Homem Satildeo Paulo Instituto Brasileiro

de Filosofia Separata da Revista Brasileira de Filosofia vol 1 fasc 4 Outubro-Dezembro 1951 36 556

Vicente Ferreira da Silva ldquoIntroduccedilatildeo agrave Filosofia da Mitologiardquo Revista Brasileira de Filosofia nordm 20

1955 in Dialeacutectica das Consciecircncias e outros ensaios Lisboa 2002

310

conhecido vaacuterias formas desde a consciecircncia auroral dos povos primitivos em

que a acccedilatildeo humana soacute tem sentido no interior do rito e da teofania ateacute agrave

antropofania cristatilde que suporta a eacutepoca actual do humanismo e da teacutecnica557

A crise actual do humanismo eacute interpretada por Vicente como o fim de um ciclo

histoacuterico centrado no predomiacutenio do logos e como possibilidade de regresso a

uma experiecircncia vital mais proacutexima da consciecircncia miacutetica originaacuteria dos povos

aurorais de que Rilke Lawrence e Guimaratildees Rosa se teriam jaacute feito

anunciadores no campo da literatura e da poesia

Sendo Vicente Ferreira da Silva um pensador profundamente original cujo

diaacutelogo com Heidegger teve um papel fundamental na elaboraccedilatildeo teoacuterica das

temaacuteticas aqui indicadas este autor seraacute analisado em capiacutetulo proacuteprio como

caso singular e particularmente significativo duma ldquotraduccedilatildeo apropriadardquo

6 Ontologia e finitude

A temaacutetica da finitude a partir da qual Gerd Bornheim e Ernildo Stein fazem a

leitura de Heidegger desenha-se para estes autores como um problema

filosoacutefico da contemporaneidade imposto pelas transformaccedilotildees da cultura

europeia apoacutes a Primeira Guerra Mundial mas que teve a sua geacutenese na

filosofia do idealismo alematildeo e eacute nas relaccedilotildees de Heidegger com a

fenomenologia e o idealismo alematildeo que se esforccedilam por esclarececirc-lo

A influecircncia de Kant no pensamento filosoacutefico brasileiro analisada no capiacutetulo

anterior natildeo eacute certamente alheia ao facto de esta problemaacutetica da finitude e de

a possibilidade da ontologia terem sido colocadas no centro da investigaccedilatildeo

destes prestigiados comentadores do pensamento de Heidegger

6 1 Gerd Bornheim e a diferenccedila ontoloacutegica

611 Os fundamentos existenciais do filosofar

Em 1961 Gerd Bornheim redigiu a tese para o concurso de livre-docecircncia

Motivaccedilatildeo Baacutesica e Atitude Originante do Filosofar558 onde discute a origem da

557

ldquoO sagrado eacute para Vicente a irrupccedilatildeo de um regime de fascinaccedilatildeo que nos leva aleacutem de noacutes mesmos

abrindo-nos a aspectos insuspeitados e espantosos do nosso existirrdquo Constanccedila Marcondes Ceacutesar A

compreensatildeo heterodoxa do sagrado in O Pensamento Luso-Galaico-Brasileiro II 30

311

atitude filosoacutefica radicando-a na existecircncia concreta do homem como ser-no-

mundo em diaacutelogo com Husserl Jaspers e Heidegger

Neste ensaio posteriormente editado sob o tiacutetulo Introduccedilatildeo ao Filosofar - O

Pensamento Filosoacutefico em Bases Existenciais Bornheim aborda a evoluccedilatildeo

dialeacutectica duma atitude filosoacutefica espontacircnea para uma atitude filosoacutefica

consciente de si mesma e decidida a um compromisso com a filosofia

procurando surpreender o sentido desta ldquodecisatildeordquo pela filosofia que podemos

encontrar subjacente a cada uma das filosofias historicamente constituiacutedas

Encontrando a geacutenese do filosofar na ldquoadmiraccedilatildeordquo interroga-se sobre o modo

como ela se manifesta dentro dum horizonte de ingenuidade e espontaneidade

procurando assinalar os seus limites Nesta ldquoadmiraccedilatildeordquo espontacircnea Bornheim

vecirc um sentido de abertura ao real o deixar-se estar exposto ao ente como tal

em que o acto de expor-se e o deixar ser o real se entrelaccedilam de modo a

ldquodeixar a realidade falarrdquo Citando Heidegger em Vom Wesen der Wahrheit o

pensador brasileiro elucida o sentido desta abertura como um reconhecimento

respeitoso da alteridade dos entes - que se manifestam agravequele que se admira

como dotados de uma plenitude de sentido - e simultaneamente como

consciecircncia de si mesmo daquele que admirando-se se sabe separado de

tudo o que o cerca559

A esta admiraccedilatildeo espontacircnea e ingeacutenua eacute pois inerente simultaneamente a

afirmaccedilatildeo do real na sua positividade e a consciecircncia de si na sua

interioridade testemunhando assim ldquoo surto original de uma atitude humana

espiritualrdquo Esta atitude implica assim uma ruptura com a pragmaticidade isto

eacute com a relaccedilatildeo utilitaacuteria e instrumental do mero fazer pela vida que

558

Aquiles Cocircrtes Guimaratildees considera esta obra de Gerd Bornheim de 61 um marco na filosofia

brasileira pois assinala o iniacutecio da viragem do pensamento filosoacutefico que comeccedila a libertar-se do peso

do cientificismo e analiticismo para retomar as questotildees da ontologia e da metafiacutesica sob a influecircncia da

fenomenologia ldquoEacute essa perspectiva que seraacute dominante no Brasil a partir dos anos 60 tendo como marco

inicial a tese de livre-docecircncia de Gerd Bornheim intitulada Motivaccedilatildeo Baacutesica e Atitude Originante do

Filosofar defendida na Universidade Federal do Rio Grande do Sul em 1961 Esse notaacutevel pensador

produziu uma obra de extensatildeo consideraacutevel que abrange das questotildees metafiacutesicas e ontoloacutegicas ao

universo das artes nomeadamente o teatro toda ela influenciada pela perspectiva fenomenoloacutegica de

origem heideggeriana e sartrianardquo Aquiles Cocircrtes Guimaratildees ldquoMetafigravesica e Ontologia na Filosofia

Brasileirardquo in Actas do Congresso Pensamento Luso-Galaico-Brasileiro I 211 559

ldquoNa admiraccedilatildeo verifica-se um simpatizar no sentido etimoloacutegico da palavra um sentir unido ao real

e esta disponibilidade apreende o real como uma presenccedila insofismaacutevel porque longe de impor-lhe o que

quer que seja o deixa ser em toda a sua dimensatildeo como plenitude de presenccedila Jaacute neste sentido podemos

compreender as palavras de Heidegger ldquosemelhante deixar-se significa que noacutes nos expomos ao ente

como tal e que noacutes transportamos ao aberto todo o nosso comportamentordquordquo Gerd A Bornheim

Introduccedilatildeo ao Filosofar ndash O Pensamento Filosoacutefico em Bases Existenciais [1ordf ed Porto Alegre Globo

1970] Satildeo Paulo 2006 39

312

Heidegger caracterizara em Sein und Zeit como besorgen e estaacute por isso na

geacutenese da filosofia

Se esta atitude admirativa estaacute na geacutenese da filosofia ela natildeo pode no

entanto afirma Bornheim por si mesma suscitar a actividade filosoacutefica a

consciecircncia espontacircnea eacute dominada por uma compreensatildeo ldquomeacutediardquo isto eacute

pelo horizonte ldquogeralrdquo dum mundo jaacute interpretado que impossibilita qualquer

problematizaccedilatildeo radical ldquo[hellip] tudo o que de excepcional aconteccedila seraacute como

destaque sobre o fundo inabalaacutevel do mundo desde sempre dado a

excepcionalidade do excepcional supotildee precisamente aquele mundo familiar

aceite como moldura constituiacutedardquo560

Referindo a tematizaccedilatildeo desta compreensatildeo impliacutecita do mundo por Husserl

como Generalthesis (a tese geral) Bornheim especifica a tripla dimensatildeo - de

ordem gnosioloacutegica ontoloacutegica e axioloacutegica - desta ldquotese geralrdquo concluindo que

ela condiciona toda a qualquer actividade humana seja o fazer teacutecnico a

acccedilatildeo ou o conhecimento

Assim por via praacutetica atraveacutes da acccedilatildeo natildeo eacute nunca possiacutevel agrave consciecircncia

ingeacutenua aceder a uma problematizaccedilatildeo radical da realidade pois o homem

praacutetico volta costas ao fundamento da sua acccedilatildeo e orienta-se sempre para

diante para o futuro Eacute o filoacutesofo que natildeo dando costas ao fundamento da

acccedilatildeo agrave ldquotese geralrdquo a interroga entrando por isso muitas vezes em choque

com o homem de acccedilatildeo ao qual a filosofia aparece como inuacutetil obstaacuteculo agrave

actividade praacutetica

Comentando a conhecida afirmaccedilatildeo de Heidegger em Einfuumlhrung in die

Metaphysik de que ldquocom a filosofia nada se pode fazerrdquo mas que se noacutes nada

podemos fazer com a filosofia ela talvez possa fazer algo connosco Bornheim

sublinha que de facto eacute o primado da teoria que faz com que a filosofia

apareccedila como algo de supeacuterfluo e de inuacutetil agrave consciecircncia ingeacutenua e que eacute este

mesmo primado da teoria que eacute inerente agrave consciecircncia criacutetica e

problematizadora da filosofia

Contudo tal natildeo significa para Bornheim como adiante veremos um

menosprezo pela acccedilatildeo Bornheim reconhece antes na praxis um dos acircmbitos

fundamentais do questionamento filosoacutefico como neste mesmo ensaio jaacute

560

Gerd Bornheim Introduccedilatildeo Filosofar - o Pensamento Filosoacutefico em Bases Existenciais 57

313

sugere ldquoO filoacutesofo ao contraacuterio quando afirma que a filosofia natildeo serve para

nada ele quer dizer que o homem pode aleacutem de agir perguntar pelos

fundamentos da acccedilatildeo problematizando a validez da tese geral com o fito

inclusive de legitimar todo o mundo da acccedilatildeo praacuteticardquo561 Na mesma linha de

raciociacutenio tem o cuidado de sublinhar ldquoIsto natildeo quer dizer poreacutem que uma

vez abandonada a postura dogmaacutetica a acccedilatildeo perca a sua razatildeo de ser Bem

ao contraacuterio a postura criacutetica daraacute agrave acccedilatildeo humana um outro fundamento

aceite explicitamente e destituiacutedo de dogmatismo e ingenuidaderdquo562

O que segundo Bornheim caracteriza o dogmatismo da consciecircncia ingeacutenua

natildeo eacute aliaacutes o primado da praacutetica mas a indiferenccedila ontoloacutegica ldquoNatildeo se

verificam problematizaccedilotildees mais radicais e em uacuteltima anaacutelise natildeo haacute

consciecircncia do problema do ser natildeo se pergunta por que eacute que existe a

realidade qual eacute a sua razatildeo de ser o seu fundamento ou pela legitimidade de

tais problemas [] o homem desdobra a aventura de sua vida dentro de um

plano ocircntico em contacto com os mais diversos entes [] move-se no plano

ocircntico sem passar ao plano ontoloacutegico Permanece na diferenccedila ocircntica e na

indiferenccedila ontoloacutegicardquo563

A ruptura com esta indiferenccedila ontoloacutegica exige segundo Bornheim a

experiecircncia da negaccedilatildeo cuja presenccedila ele referencia jaacute na filosofia grega

designadamente na ignoracircncia socraacutetica mas que foi trazida para primeiro

plano da reflexatildeo filosoacutefica pela filosofia hegeliana Na Fenomenologia do

Espiacuterito a negatividade estaacute inscrita na dinacircmica da consciecircncia e constitui o

motor da progressiva superaccedilatildeo do saber imediato em direcccedilatildeo agrave plena

identidade da consciecircncia consigo mesma e agrave sua realizaccedilatildeo como Espiacuterito

Essa valorizaccedilatildeo da experiecircncia da negatividade que invadiu o pensamento

contemporacircneo eacute analisada por Bornheim em particular em torno da

experiecircncia da naacuteusea em Sartre e da anguacutestia em Heidegger como

experiecircncias necessaacuterias que assinalam a ldquoperda de mundordquo e a queda

(Verfall) do homem no interior de si mesmo

Esta experiecircncia da negatividade que absolutizada constitui o cerne do

niilismo eacute no entanto quando integrada no processo do devir da consciecircncia

561

Ibidem 63 562

Ibidem 61 563

Ibidem 68

314

filosoacutefica um momento necessaacuterio de negaccedilatildeo do dogmatismo ingeacutenuo uma

vez que ldquoatraveacutes deste natildeo se processa uma espeacutecie de retirada estrateacutegica

do mundo um cair de si e ficar em sirdquo564

Contudo esta experiecircncia da negatividade soacute revela o seu sentido quando ela

mesma for negada e transcendida por uma nova afirmaccedilatildeo do mundo a que

Bornheim chama ldquoa conversatildeo filosoacuteficardquo565 Esta ldquoconversatildeordquo eacute uma resoluccedilatildeo

livre do homem que decide vincular o sentido da sua existecircncia agrave filosofia natildeo

por razotildees exteriores nem por nenhum talento particular mas por uma

necessidade interna de transcender a experiecircncia da negatividade e de se

tornar disponiacutevel para a verdade

A consciecircncia filosoacutefica estaacute para Bornheim disposta ao real esperando que

ele se mostre tal como eacute sabendo-o no entanto tambeacutem encoberto e

respeitando-o como tal Atraveacutes desta conversatildeo o homem recupera a sua

relaccedilatildeo com o real mas com um real que se trata de acolher no seu

velamentodesvelamento e que dando-se se reserva simultaneamente como

misteacuterio A consciecircncia filosoacutefica eacute assim marcada por uma passagem da

indiferenccedila ontoloacutegica para a diferenccedila ontoloacutegica ldquoAssim com toda a razatildeo

diz Heidegger que a filosofia natildeo eacute faacutecil mas difiacutecil E mais que eacute a maneira de

tornar as coisas mais difiacuteceis porque eacute o caminho de acesso agrave densidade do

real Por limitada que seja a contribuiccedilatildeo filosoacutefica encontramos nela uma

abertura para a densidade do real para o misteacuterio do ser para uma visatildeo do

real em toda a sua dimensatildeo cuja importacircncia permanece insondaacutevel para a

cultura humanardquo566

Mantendo-se no essencial fiel ao conceito de Heidegger do homem como um

ente que leva consigo uma compreensatildeo do ser e retomando alguns aspectos

da analiacutetica existencial exposta em Ser e Tempo para caracterizar a

consciecircncia filosoacutefica Bornheim procura surpreender a consciecircncia filosoacutefica

na sua geacutenese e desenvolvimento Pensando este desenvolvimento segundo

os trecircs momentos da afirmaccedilatildeo negaccedilatildeo e negaccedilatildeo da negaccedilatildeo

564

Ibidem 79 565

Gerd Bornheim interpreta a ldquoconversatildeo filosoacuteficardquo agrave luz do existenciaacuterio heideggeriano da

ldquoEntschlossenheitrdquo como resoluccedilatildeo que compromete a totalidade da existecircncia exemplificando-a com a

filosofia de Espinosa ldquoRealmente uma resoluccedilatildeo dentro do sentido que nos ocupa eacute da ordem da

eternidade isto eacute decide de uma existecircncia O filoacutesofo natildeo se decide a fazer filosofia como um turista e

naquela resoluccedilatildeo assumida por Espinosa haacute um compromisso pessoal da inteireza de sua existecircncia

podendo-se por isto falar de uma metanoacuteiardquo Ibidem 112 566

Ibidem 128

315

caracteriacutesticos da dialeacutectica hegeliana Bornheim alcanccedila uma exposiccedilatildeo

original da atitude originante do filosofar

612 Destruiccedilatildeo da Metafiacutesica e redescoberta da finitude

Gerd Bornheim em Metafiacutesica e Finitude 567 reuniu um conjunto de textos

escritos a partir dos anos sessenta que marcam momentos fundamentais da

sua reflexatildeo criacutetica sobre a tradiccedilatildeo metafiacutesica assim como a ldquoreivindicaccedilatildeo do

pensamento da finituderdquo568 que ele encontrou em Heidegger e que se tem

proposto desenvolver atraveacutes da sua proacutepria reflexatildeo filosoacutefica

Aiacute o pensador brasileiro considera Heidegger herdeiro de Hegel porquanto soacute

a partir deste foi possiacutevel pensar a ontologia numa perspectiva histoacuterica e

temporal e ambos os pensadores alematildees produzem um discurso ontoloacutegico

que integra ele mesmo a histoacuteria do ser isto eacute os diversos modos da sua

manifestaccedilatildeo histoacuterico-temporal

A diferenccedila da contribuiccedilatildeo de Heidegger residiria contudo em que este levou

a cabo a suspensatildeo ou a destruiccedilatildeo da tradiccedilatildeo metafiacutesica retomando a

questatildeo do ser num outro plano ldquoA diferenccedila entre Hegel e Heidegger eacute

poreacutem essencial Hegel crecirc que a sua metafiacutesica resolve em si o todo da

tradiccedilatildeo por isso entende a dialeacutectica como um processo de superaccedilatildeo Ora

a superaccedilatildeo embora vise agrave consagraccedilatildeo definitiva da verdade tradicional

implica um momento de suspensatildeo Eacute justamente nesse momento de

suspensatildeo ou de ldquodestruiccedilatildeordquo da Metafiacutesica que se concentra o labor de

Heidegger Natildeo para restaurar o passado ndash esforccedilo que seria inuacutetil ndash e sim para

retomar a questatildeo fundamental da Metafiacutesica - o que eacute o serrdquo569

Esta verdadeira superaccedilatildeo da tradiccedilatildeo metafiacutesica que foi realizada por

Heidegger eacute vista por Bornheim como tendo um momento de destruiccedilatildeo e

negaccedilatildeo ndash designadamente de destruiccedilatildeo da metafiacutesica como tal isto eacute como

pensamento que produziu uma ldquoentificaccedilatildeo do serrdquo ndash mas tendo tambeacutem por

outro lado um momento positivo de conservaccedilatildeo uma vez que retoma num 567

Gerd Bornheim Metafiacutesica e Finitude [1ordf ed Porto Alegre 1972] ed revista e ampliada Satildeo Paulo

Editora Perspectivas 2001 568

Beneval de Oliveira em A Fenomenologia no Brasil defende que a problemaacutetica da finitude no

pensamento brasileiro aparece na sequecircncia da filosofia transcendental kantiana da fenomenologia de

Husserl e da fenomenologia existencial de Heidegger (Cf ob cit 26) 569

Gerd Bornheim Metafiacutesica e Finitude Satildeo Paulo 2001 1213

316

outro plano a questatildeo do ser Ora esse outro plano em que agora eacute retomado

a questatildeo do ser ndash o plano de uma radical finitude - eacute que parece ser para

Bornheim o grande meacuterito de Heidegger ldquoO ser se apresenta agora como

radical finitude - ao menos tal parece ser a atitude de Ser e Tempordquo570

A importacircncia desta temaacutetica para o pensamento contemporacircneo fora jaacute

amplamente explanada por Bornheim no ensaio de 1970 ldquoA filosofia alematilde

apoacutes a primeira guerra Mundialrdquo Nesse ensaio o autor analisa o propoacutesito de

repensar o homem em conexatildeo com o problema do ser que foi surgindo nos

pensadores que se seguiram agrave Primeira Guerra Mundial mostrando que esse

pensamento do poacutes-guerra procura pensar de modo inteiramente diferente em

direcccedilatildeo agrave finitude ldquo Transformar para a nova ontologia quer dizer haver-se

com o homem e a realidade naquilo que eles satildeo em sua radical finitude

conquistar o mundo finito sem alienaacute-lo numa transfinituderdquo571

Assim Heidegger teria respondido a uma exigecircncia do seu proacuteprio tempo

abrindo caminho para que o homem pudesse perscrutar finalmente a finitude -

contudo ele teria manifestado no decurso da evoluccedilatildeo do seu pensamento

inconsistecircncias na realizaccedilatildeo deste propoacutesito

No ensaio ldquoHeidegger a questatildeo do ser e a dialeacutecticardquo de 1970 Bornheim

retoma a mesma temaacutetica mostrando que o pensar heideggeriano do ser

ldquodecorre sobre o fundo da finituderdquo A tradiccedilatildeo metafiacutesica ao identificar o ser

com Deus ao reduzi-lo assim a um ente infinito natildeo apenas esquece o ser a

favor do ente mas desvaloriza a totalidade dos entes finitos que soacute tecircm um ser

na medida em que participam do ser do ente infinito Assim para Bornheim

satildeo dois os traccedilos fundamentais que configuram esta tradiccedilatildeo desde Platatildeo ateacute

Hegel entificaccedilatildeo do ser e desvalorizaccedilatildeo do plano concreto dos entes finitos

Heidegger ao colocar a pergunta pelo ser jaacute em Ser e Tempo faacute-lo a partir de

pressupostos anti-metafiacutesicos recusando explicitar essa pergunta a partir do

ldquoente infinitordquo mas explicitando-a a partir do ser do aiacute que eacute o homem Poreacutem

o homem natildeo eacute entendido como um ente fechado sobre si mas como abertura

em direcccedilatildeo aos possiacuteveis ou como um poder-ser ldquo[hellip] desse modo o ldquoaiacuterdquo natildeo

denota um fechar-se do homem sobre si mesmo mas o contraacuterio um abrir-se

570

Ibidem13 571

Gerd Bornheim rdquoA filosofia Alematilde apoacutes a Primeira Guerra Mundialrdquo [Revista Brasileira de

Filosofia vol XX fasc79 1970] in Metafiacutesica e Finitude Satildeo Paulo 2001 101

317

e o Dasein passa a ser compreendido como um poder ser Assim a finitude

natildeo quer dizer que o homem permaneccedila espacialmente reduzido a si mas que

o Dasein eacute finito que ele eacute a sua proacutepria finituderdquo572

A finitude do homem implica tambeacutem que haacute algo mais originaacuterio em que ele se

fundamenta e este fundamento mais originaacuterio que corresponde ao aiacute do Da-

sein eacute a com-preensatildeo do ser ldquoPoderiacuteamos traduzir o aiacute do ser-aiacute com a

palavra presenccedila que tem dois rostos eacute a presenccedila do homem no ser e eacute a

presenccedila do ser no homem dito de outro modo o homem eacute em seu ser

mesmo compreensatildeo do ser ou ele eacute com-preendido pelo serrdquo573

A compreensatildeo do ser potildee em jogo o proacuteprio fundamento do Dasein - o que

estaacute no seu fundamento ou na sua origem ou o aiacute da presenccedila do ser Para

Bornheim toda a vida humana se desenrola como um caminhar no finito e eacute

nessa caminhada que estaacute o sentido do ldquoconstruirrdquo do ldquomorarrdquo e do ldquopensarrdquo574

O construir e o morar que apontam para a actividade econoacutemica e poliacutetica

devem ser compreendidos a partir do finito isto eacute a partir do que com-preende

esses actividades finitas - a partir do ser e do fundamento

Contudo para a filosofia precisa Bornheim natildeo se trata de atingir o

fundamento e consideraacute-lo como algo subsistente em si mas sim de pensar

desde o fundamento Para Bornheim natildeo haacute possibilidade de um discurso

sobre o ser porque todo o discurso se faz a partir do ser encontrando nele o

seu pressuposto ou o seu fundamento No entanto podemos pensar o ente

como com-preendido pelo ser que deveraacute ser tomado como ldquoo sentido ou a

buacutessola do pensamentordquo

Bornheim assinala que segundo Heidegger relativamente ao plano dos entes

o ser eacute sempre um transcendente um fundamento que os com-preende Eacute a

partir da diferenccedila ontoloacutegica575 explicita Bornheim que podemos

572

Gerd Bornheim ldquoHeidegger A questatildeo do Ser e a dialeacutecticardquo [1970] in Metafiacutesica e Finitude 196 573

Ibidem 197 574

ldquoNo caminhar no finito estaacute o sentido do construir do morar e do pensar O homem estaacute instalado no

finito e eacute a partir daiacute que podemos entender as ldquocapacidades criadorasrdquo do homem O construir pode ser

por exemplo a poliacutetica e o morar a economia ndash actividades estas inscritas no finito Quando o homem faz

poliacutetica ou economia entrega-se criativamente a um certo tipo de actividade e para pensar a acccedilatildeo

humana faz-se mister pensar o finito ou seja aquilo que com-preende essas actividades finitas o ser o

fundamento o mais finito do finito Natildeo se pretende atingir o fundamento e consideraacute-lo entatildeo como

algo em si mas pensar desde o fundamentordquo Ibidem 198 575

ldquoSoacute faz sentido falar em ser em relaccedilatildeo ao ente o ser eacute sempre e necessariamente ser do ente

Afirmamos que a perspectiva em que se situa Heidegger eacute a do finito mas se se quer dar conta do finito

impotildee-se a necessidade de radicalizaacute-lo de avanccedilar ateacute agrave proacutepria raiz do finito ateacute agrave finitude do finito ndash o

318

compreender porque Heidegger natildeo daacute resposta agrave pergunta pelo ser

ldquoHeidegger natildeo daacute resposta agrave pergunta pelo ser visto que toda a resposta

terminaria sendo uma determinaccedilatildeo que traria consigo a entificaccedilatildeo do serrdquo576

Se Heidegger nos daacute como a caracteriacutestica fundamental do ser o desvelar-se

isso natildeo significa no entanto que ele seja uma substacircncia a que pertence a

possibilidade do desvelamento Citando Der Satz von Grund Bornheim lembra

que ldquoPensando com rigor devemos dizer o ser eacute propriedade do desvelar-se A

partir do desvelar-se como tal revela-se o que ldquoserrdquoquer dizerrdquo

O ser desvela-se permanecendo na Verborgenheit no velamento na

obscuridade o que implica que esse desvelamento eacute inesgotaacutevel e irredutiacutevel agrave

conceptualizaccedilatildeo Porque natildeo eacute um ente devemos poder dizer que ele eacute um

nada se bem que soacute possa ser o nada em sentido negativo isto eacute no sentido

em que o ser natildeo eacute o ente

Assim sublinha Bornheim natildeo eacute possiacutevel falar do ser em si mesmo porque

falar dele seria delimitaacute-lo e atribuir-lhe uma qualificaccedilatildeo ocircntica Soacute faz sentido

falar em ser em relaccedilatildeo ao ente ldquoo ser eacute sempre e necessariamente o ser do

enterdquo577

O pensador brasileiro pensa a diferenccedila ontoloacutegica relacionando-a

explicitamente com a temaacutetica da finitude e mostrando como ela implica a

finitude do ser ldquo[hellip] pois se dissesse que o ser eacute infinito a diferenccedila seria

clara tratar-se-ia de afirmar que o fundamento eacute infinito fundamento este

diferente daquilo que eacute fundamentado o fundamento seria o diferente do finito

Mas eacute exactamente isso o que Heidegger quer evitar ndash toda a validade do seu

pensamento parece-nos decorrer dessa decisatildeo de se debruccedilar sobre a

finitude do finitordquo578

Para Bornheim admitir a infinitude do ser equivaleria a pensaacute-lo como uma

entidade auto-subsistente e assim recair na entificaccedilatildeo do ser da tradiccedilatildeo

metafiacutesica identificando-o com o Absoluto ou Deus ou mais tardiamente no

tempo presente da crise da Metafiacutesica identificando-o com um ente relativo

que natildeo pode em hipoacutetese alguma significar que se caia fora do finito tal eacute justamente o cometimento

metafiacutesico alienante da finitude O pensamento do ser se daacute sobre o fundo da finituderdquo Ibidem 199 576

Ibidem 198 577

Ibidem 198 578

Ibidem 200

319

que eacute erigido na condiccedilatildeo de fundamento absoluto da realidade como ldquoa

Histoacuteriardquo ou ldquoa Economiardquo579

Estes procedimentos aparentemente anti-metafiacutesicos e cientiacuteficos que

pretendem postular uma ldquocausardquo absoluta que explicaria tudo recaem na

metafiacutesica e ilustram a vigecircncia dos postulados metafiacutesicos no nosso tempo

Para Bornheim pelo contraacuterio o que importa eacute resguardar o ente naquilo que

ele eacute respeitando a diferenccedila ontoloacutegica ou seja evitando a entificaccedilatildeo do

ser580 Admitir que cada ente deve ser respeitado no seu ser implica que cada

ente concentra em si mesmo a transcendecircncia ontoloacutegica que constitui a sua

razatildeo de ser e que toda a explicaccedilatildeo fundada em causas isto eacute toda a

explicaccedilatildeo ldquoocircnticardquo permanece relativa e nunca alcanccedila as ldquoultimidades do ser

do enterdquo

A recusa da metafiacutesica implica assim a irredutibilidade do ente no seu ser e

que natildeo podemos admitir que o ente se resolva hegelianamente em outro ente

ldquoA destruiccedilatildeo da metafiacutesica assume um rosto preciso na volta agrave Ontologia mas

no sentido preciso da palavra o perguntar e conceber o ser do enterdquo581

613 A reformulaccedilatildeo heideggeriana da dialeacutectica

O confronto entre Hegel o representante da uacuteltima elaboraccedilatildeo e consumaccedilatildeo

da Metafiacutesica e Heidegger eacute para Bornheim a chave para compreender o

sentido essencial dessa destruiccedilatildeo da metafiacutesica que visa recuperar o que

nela foi esquecido isto eacute a pergunta pelo ser Bornheim citando Identitaumlt und

Differenz deteacutem-se na afirmaccedilatildeo de Heidegger segundo a qual a ocupaccedilatildeo do

pensar eacute para Hegel o pensamento como conceito absoluto enquanto para si

mesmo eacute ldquoa ocupaccedilatildeo com a diferenccedila como diferenccedilardquo

579

ldquoO processo entificador do ser natildeo se verifica apenas em termos de ente absoluto A cacterigravestica mais

significativa da eacutepoca que vive sob o signo da crise da metafiacutesica estaacute no fato de que a entificaccedilatildeo se faz

em nome de um ente relativo que eacute erigido agrave condiccedilatildeo de fundamento absoluto da realidade Assim

procede o historicismo que mede o todo do real a partir de um ente determinado a histoacuteria ou o

marxismo vulgar que tudo quer explicar pelo econoacutemicordquo Ibidem 201 580

ldquoO que importa poreacutem eacute pensar o ente naquilo que ele eacute pensar o ser do ente ou seja respeitar a

diferenccedila ontoloacutegica Assim soacute cabe pensar a diferenccedila como necessidade de evitar a entificaccedilatildeo do ser

O que quer dizer haacute um irredutiacutevel em cada ente mas natildeo no sentido de que o ente permanece como que

fechado em si mesmo e sim porque a reduccedilatildeo de um tipo de ente a outro ente desrespeita aquilo que cada

ente eacuterdquo Ibidem 202 581

Ibidem 200

320

A discussatildeo do modo como deve ser entendido esse ldquopensar da diferenccedila

como diferenccedilardquo assume em Bornheim um papel decisivo o que lhe permite

por um lado referir as ambiguidades do proacuteprio Heidegger por outro lado

interrogar a razatildeo profunda dessas ambiguidades e descortinar sob elas uma

linha de rumo essencial Assim Bornheim potildee a claro as imprecisotildees

decorrentes do uso diferente da palavra ldquoserrdquo ao longo da obra do pensador

alematildeo ldquoAo longo da sua obra Heidegger toma a palavra ser em acepccedilotildees

nem sempre idecircnticas emprestando ao vocaacutebulo uma amplidatildeo maior ou

menor Assim o ser parece vinculado ao ente particular como ser do ente

mas Heidegger fala tambeacutem em ente como tal e na totalidade (das Seiende als

solches und in Ganzen) refere-se ainda ao ser pura e simplesmente caso este

em que o ser incide num indefiniacutevel total levando o autor a escrever ser com y

(Seyn) ou ainda a cortar a palavra ser com um Xrdquo582

Sob essas imprecisotildees de linguagem Bornheim vecirc uma dificuldade inerente agrave

proacutepria temaacutetica e como tal insoluacutevel - esta temaacutetica natildeo pode ter um

tratamento conceptual ldquoa amplidatildeo do ser natildeo eacute devassaacutevelrdquo porque potildee em

jogo a finitude radical

Para evitar que essa finitude recaia apenas sobre a compreensatildeo do Dasein

Bornheim lembra que essa com-preensatildeo implica que o homem eacute com-

preendido pelo ser tratando-se no entanto de esclarecer ateacute onde vai esse ser

compreendido e qual o seu sentido A finitude deve ser buscada (tambeacutem e

em primeiro lugar) do lado do ser no facto de ele nunca se oferecer em

transparecircncia absoluta mas no claro-escuro dum desvelamento que acontece

sempre no tempo e na histoacuteria Assim para Bornheim haacute pelo menos um

ponto em que Heidegger eacute absolutamente inovador e sempre consistente no

esclarecimento da finitude do ser a compreensatildeo do ser no horizonte do

tempo583

Bornheim destaca que a compreensatildeo do ser no horizonte do tempo jaacute

claramente indicada em Ser e Tempo mas aiacute insuficientemente pensada foi

precisamente o que levou Heidegger a ampliar o acircmbito da pergunta

fundamental Especialmente importante para o esclarecimento desta temaacutetica

582

Ibidem 205 583

ldquoA crise da Metafigravesica representa justamente o abandono do inconcussum e o meacuterito fundamental de

Heidegger estaacute em ter colocado toda a problemaacutetica do ser no plano da historicidade finita no afatilde de

estabelecer as bases para que o discurso se torne propriamente humano impregnado de temporalidade

como discurso que acontece que se daacute historicamenterdquo Ibidem 216

321

seria o ensaio A Origem da Obra de Arte precisamente porque este ensaio

permite contrastar o pensamento de Heidegger com a metafiacutesica hegeliana e

assim distinguir duas concepccedilotildees distintas de temporalidade e historicidade

Este contraste levado a cabo de modo rigoroso por Bornheim eacute perspectivado

sob a oacuteptica da dialeacutectica tendo como objectivo aferir se em Heidegger existe

tambeacutem uma dialeacutectica e se ele retoma de modo natildeo expliacutecito a dialeacutectica

hegeliana sujeitando-a a algumas alteraccedilotildees fundamentais e qual o sentido

preciso dessas alteraccedilotildees

Em A Origem da Obra de Arte Heidegger visando esclarecer o ser da obra

mobiliza o conceito de ldquomundordquo jaacute presente em Ser e Tempo e articula-o com o

Gegenbegriff de ldquoterra Bornheim destaca que na obra de arte apresenta-se

um mundo e essa apresentaccedilatildeo tem o caraacutecter singular de uma consagraccedilatildeo e

celebraccedilatildeo Interrogando-se sobre a natureza desse ldquomundordquo que a obra de

arte torna vigente Bornheim salienta que natildeo se trata de um objecto mas

daquilo que confere uma atmosfera e um sentido a todas as manifestaccedilotildees de

uma cultura Na obra de arte condensa-se ldquoum mundordquo e nessa condensaccedilatildeo

ele eacute como que libertado e aberto Mas eacute preciso ter em conta que a obra

produz a terra leva-a para diante fazendo com que ela brilhe e se manifeste

na obra Para esclarecer o conceito de ldquoterrardquo Bornheim salienta que Heidegger

recorre ao conceito grego de physis o permanecer escondido que permite toda

a manifestaccedilatildeo e todo o desvelamento a terra sendo por essecircncia o que se

fecha em si permanece indefiniacutevel natildeo pode ser objecto de ciecircncia Assim a

obra eacute terra e eacute mundo esposa a amplidatildeo e a constacircncia do mundo e da terra

Bornheim considera que com as noccedilotildees de ldquomundordquo e ldquoterrardquo Heidegger se

move nas fronteiras do diziacutevel ldquonas fronteiras extremas da finitude do finitordquo

ldquoTerra e mundo satildeo tentativas de elaboraccedilatildeo do discurso sobre o fundamento

sobre o ser do enterdquo584

Contudo qual a unidade entre ldquomundordquo e ldquoterrardquo Essa unidade eacute para

Heidegger conflito (Streit) O mundo configura o aspecto claro da verdade e a

terra o seu lado obscuro mundo e terra unem-se no claro-escuro da verdade

Nesse sentido mundo e terra confrontam-se como tese e antiacutetese num conflito

que os manteacutem unidos permanecendo no entanto cada um dos elementos na

sua diferenccedila donde Bornheim conclui ldquoEstamos pois em presenccedila de um

584

Ibidem 213

322

conflito essencial que jamais poderaacute ser ldquoresolvidordquo no sentido hegeliano da

palavrardquo585

Assim ele associa estas teses de Heidegger agrave dialeacutectica hegeliana mostrando

que se distinguem desta na medida em que lhe falta o terceiro momento da

Aufhebung isto eacute natildeo haacute o resolver da contradiccedilatildeo numa siacutentese Ora a

Aufhebung eacute o que possibilita o movimento de superaccedilatildeo pelo qual todas as

formas finitas se superam e assim se ldquotransfinitizamrdquo ldquoEm vez de transfinitizar

Heidegger quer elucidar a finitude do finito e essa penetraccedilatildeo no finito se faz

atraveacutes da ideia de que o conflito se manteacutem ou se sustenta como conflitordquo586

Heidegger retomaria assim a tese e a antiacutetese da dialeacutectica hegeliana ainda

que num propoacutesito totalmente distinto de embrenhar-se na finitude do finito

Para esclarecer o sentido deste embrenhar-se na finitude do finito Bornheim

esclarece o conceito heideggeriano da verdade como desvelamento nele

destacando esta mesma dialeacutectica verificada na tematizaccedilatildeo da obra de arte

ldquoO que eacute e o que torna possiacutevel este desvelamento O ente estaacute situado na

luz do ser e eacute graccedilas agrave iluminaccedilatildeo que ele se pode desvelar a noacutes Devido a

esse claro em certa medida o ente se mostra ndash mas apenas em certa medida

porque o desvelamento nunca eacute total o ente permanece por outro lado oculto

encoberto velado O desvelamento soacute eacute possiacutevel porque haacute um velamento

fundamental e o ente se manifesta a partir de algo que impede a

manifestaccedilatildeordquo587

Ora a questatildeo estaacute em saber acentua Bornheim donde vem esse velamento -

se como Kant demonstra na Criacutetica da Razatildeo Pura ele tem uma origem

antropoloacutegica radicando na finitude das nossas faculdades humanas de

conhecer ou se ele tem antes uma origem ontoloacutegica se radica no proacuteprio

ser Eacute esta segunda dimensatildeo da finitude que eacute preciso considerar segundo

Bornheim pois ldquo[hellip] eacute a finitude do ente que impede que ele se decirc plenamente

a noacutes Todo o processo do conhecimento se desenrola no plano da finitude do

realrdquo588

Para clarificar o modo como Heidegger pensa este velamento a partir da

finitude do real Bornheim retoma a metaacutefora da ldquoluz do serrdquo esclarecendo que

585

Ibidem 216 586

Ibidem 217 587

Ibidem 222 588

Ibidem 223

323

esse claro natildeo eacute a luz absoluta da Ideia Platoacutenica mas o velamento pertence

ele mesmo agravequela luz A luz do ser eacute um jogo de luz e sombra o desvelamento

acontece atraveacutes do velamento do permanecer escondido

Esclarecendo no conceito de verdade como a-letheia o sentido privativo do a

afirma que se trata de pensar o impulso para o desvelamento que se instaura a

partir do que estaacute velado assim o que estaacute em jogo na essecircncia da verdade eacute

o conflito originaacuterio (Urstreit) entre desvelamento e ocultamento e eacute a partir

desse conflito que se daacute o acontecer da verdade

Para compreender a verdade como jogo entre luz e ocultamento haacute que

retomar as noccedilotildees de mundo e terra e pensar a natureza do conflito que os

opotildee entre si mantendo-os poreacutem unidos Nesse conflito o mundo nunca eacute

simplesmente o aberto que corresponde agrave luz nunca se apresenta numa total

transparecircncia e a terra natildeo eacute simplesmente o que se manteacutem cerrado em si O

mundo invade a terra e a terra ergue-se e brilha atraveacutes do mundo os

contraacuterios interpenetram-se de diversos modos num movimento contiacutenuo e

num conflito sempre renovado Citando Heidegger em A Origem da Obra de

Arte Bornheim lembra que ldquomundo e terra satildeo cada um em sua essecircncia

conflituados e conflituaacuteveisrdquo o que aponta para a necessidade de pensar este

conflito como algo de essencialmente moacutevel complexo e dialeacutectico

Bornheim mostra assim que Heidegger retoma a dialeacutectica libertando-a das

distorccedilotildees a que um pensamento metafiacutesico a submeteu De facto segundo o

pensador brasileiro em Hegel como jaacute em Platatildeo a contradiccedilatildeo eacute subordinada

agrave Identidade com a qual eacute sempre identificada a Ideia o Absoluto ou Deus

Pelo contraacuterio Heidegger pensando dialecticamente a diferenccedila ontoloacutegica

segundo o modelo acima exposto da contradiccedilatildeo e do conflito irresoluacuteveis

salvaguarda simultaneamente a distinccedilatildeo entre ser e ente e a sua reciacuteproca

mas contraditoacuteria e conflitual pertenccedila ldquo O pensamento da diferenccedila ontoloacutegica

pode ser considerado o lugar no qual se daacute o resguardo da contradiccedilatildeordquo589

614 A diferenccedila ontoloacutegica e a centralidade da praxis

Se a essecircncia da verdade natildeo acontece na adequatio isso significa que a

verdade essencial acontece fora do campo do conhecimento cientiacutefico e do seu

589

Ibidem 229

324

ideal de objectividade Segundo Bornheim a verdade essencial isto eacute o

desvelamento do ser que nesse desvelamento se oculta e resguarda

acontece na acccedilatildeo poliacutetica isto eacute na acccedilatildeo que visa a edificaccedilatildeo da polis e de

modo privilegiado na criaccedilatildeo das grandes obras de arte Eacute pela acccedilatildeo humana

criadora que acontece a verdade do ser e surge algo de novo irrepetiacutevel e

uacutenico590

Desta centralidade da acccedilatildeo humana Bornheim tira vaacuterias consequecircncias

fundamentais uma das quais eacute a necessidade de pensar a acccedilatildeo poliacutetica

toacutepico que Heidegger teria apenas aflorado mas que deve solicitar maiores

desenvolvimentos na perspectiva desta ontologia da finitude A segunda

consequecircncia eacute a da reabilitaccedilatildeo do sensiacutevel e do corpo eacute o elemento sensiacutevel

(o som ou a cor) que na obra de arte unificam o artista e o destinataacuterio da obra

de arte estabelecendo-se um Stimmung que os faz entrar em concordacircncia

com o mundo e a terra ldquoPodemos afirmar portanto que a obra eacute o esplendor

do sensiacutevel da verdade do sensiacutevel como misteacuterio de uma encarnaccedilatildeo que se

processa desde um silecircncio primevo acto fundante desde a ausecircncia do

fundamentordquo591

Esta encarnaccedilatildeo do sentido pela qual a verdade se daacute na obra mostra que a

criaccedilatildeo artiacutestica tem um caraacutecter profundamente anti-metafiacutesico e nunca pocircde

ser compreendida pela tradiccedilatildeo metafiacutesica e pelas categorias da esteacutetica

tradicional ldquoA arte eacute a concentraccedilatildeo no ldquofiacutesicordquo reconhecimento de uma

densidade ontoloacutegica que reside no proacuteprio sensiacutevel sem ser imposta de fora

nem de cima o sensiacutevel em si mesmo vem provido de uma carga ontoloacutegica

particularrdquo592

Se a arte natildeo diz conceptualmente o sentido e natildeo eacute uma ontologia ela

expressa-o e convida o pensamento finito e interpretaacute-la e interrogaacute-la como

horizonte a partir do qual pode ser elaborada uma ontologia da finitude

Contudo natildeo eacute apenas a criaccedilatildeo excepcional das grandes obras ou dos

Estados que se reveste de uma significaccedilatildeo ontoloacutegica mas todo o

590

ldquoNormalmente a acccedilatildeo humana se processa dentro do acircmbito de uma dogmaticidade fundamental no

sentido de que a tese geral permanece sem ser questionada [hellip] Isto natildeo quer dizer poreacutem que uma vez

abandonada a postura dogmaacutetica a acccedilatildeo perca a razatildeo de ser Bem ao contraacuterio a postura criacutetica daraacute agrave

acccedilatildeo um outro fundamento aceite explicitamente e destituigravedo de dogmatismo e ingenuidaderdquo Gerd

Bornheim Introduccedilatildeo ao Filosofar 61 591

Gerd Bornheim ldquoSobre a linguagem musicalrdquo [1967] in Metafiacutesica e Finitude Satildeo Paulo 2001 145 592

Ibidem 146

325

comportamento humano revela esta mesma dimensatildeo593 Toda a acccedilatildeo

humana tem uma dimensatildeo ontoloacutegica porque como demonstrou Heidegger

todo o homem transporta consigo uma compreensatildeo preacute-ontoloacutegica do ser ldquono

interior dela daacute-se o comportamento usual do homem como se embebido num

fundo de sentido que se irradia de todo o realrdquo

Contudo esta dimensatildeo ontoloacutegica da acccedilatildeo humana envolve um paradoxo

como Bornheim reconhece ldquoO paradoxo estaacute no seguinte o homem natildeo eacute

simplesmente o construtor se o fosse a construccedilatildeo seria apenas a eterna

repeticcedilatildeo do mesmo que natildeo se sabe Mas o homem inventa a construccedilatildeo o

que quer dizer que de certo modo ele inventa o sentido ndash de certo modo

apenas porque o sentido natildeo se explica meramente pelo homem o homem eacute

que estaacute no sentidordquo594

Isto significa que para que a acccedilatildeo humana assuma uma dimensatildeo criadora

isto eacute produtora de sentido eacute preciso que esta se abra a algo que a

transcende e arrebata595 Poreacutem essa transcendecircncia de sentido natildeo deve ser

pensada agrave maneira das ideias platoacutenicas ou do Deus da Metafiacutesica Natildeo

devemos pensar a transcendecircncia absoluta do sentido mas pelo contraacuterio eacute

necessaacuterio pensar simultaneamente a sua imanecircncia o impulso criador

originaacuterio daacute-se na praxis e concomitantemente com ela mas ao mesmo tempo

transcende-a enraizando-se num horizonte histoacuterico e mundano

Assim o homem participa da criaccedilatildeo e renovaccedilatildeo do sentido atraveacutes do tempo

e da histoacuteria e sem a sua acccedilatildeo a histoacuteria natildeo poderia existir - a praxis eacute a

encarnaccedilatildeo dum sentido que se renova ldquoPor aiacute se vecirc que a descoberta do

sentido e a sua renovaccedilatildeo constante revelam-se essenciais agrave condiccedilatildeo

humana A renovaccedilatildeo pela descoberta do sentido se faz pela criaccedilatildeo praacutetica ndash

seja a praxis simplesmente manual a artiacutestica a poliacutetica a teoreacutetica a luacutedica

ou a de qualquer outra feiccedilatildeo que possa assumirrdquo596

593

O comportamento humano enquantordquofuncionalizador do realrdquo eacute no entanto para Bornheim - como

para Heidegger - anti-filosoacutefico por excelecircncia porque substitui a ldquonecessidade de permanecer dispostordquo

isto eacute de permanecer aberto ao ser pelas exigecircncias utilitaacuterias Cf Gerd Bornheim Introduccedilatildeo ao

Filosofar 212 594

Gerd Bornheim Metafiacutesica e Finitude 11 595

ldquoO elemento novo que nasce da acccedilatildeo produtora eacute o fautor originaacuterio dessa mesma acccedilatildeo ainda que

esse elemento novo para ser natildeo possa dispensar a acccedilatildeo Ou por outra o novo se torna inexplicaacutevel sem

o recurso agrave transcendecircncia do sentidoldquo Gerd Bornheim ldquoFilosofia e Poesiardquo in Metafiacutesica e Finitude

169 596

Gerd Bornheim ldquoSentido e Criatividaderdquo rdquo[1970] in Metafiacutesica e Finitude Satildeo Paulo 2001 171

326

Se acccedilatildeo humana o fazer das obras se revela o nuacutecleo essencial da histoacuteria

eacute necessaacuterio no entanto ter presente que ela cria e renova um sentido que ao

mesmo tempo a transcende O claro-escuro do desvendamento do ser

transcende os entes e configura o sentido que se vai encarnando nas acccedilotildees

humanas e no seu fazer histoacuterico-mundano

Por essa razatildeo afirma Bornheim ldquoNatildeo eacute suficiente elucidar a criatividade num

niacutevel meramente ocircntico por mais que o fazer permaneccedila imbricado com os

entes ele sempre apresenta uma dimensatildeo ontoloacutegica [] Portanto pelo fazer

o sentido ontoloacutegico se realiza no plano ocircntico e deve-se falar duma certa

anterioridade do sentidordquo597

Assim Bornheim aceita claramente a conclusatildeo heideggeriana de que histoacuteria

do ser esconde o desiacutegnio uacuteltimo do destino humano perguntar pelo ser eacute

sublinha Bornheim perguntar pelo sentido da evoluccedilatildeo do ser uma evoluccedilatildeo

na qual o homem estaacute como que inserido e da qual participa

Se Heidegger eacute para Bornheim o filoacutesofo a quem cabe o enorme meacuterito de ter

aberto o caminho para esta ontologia da finitude no entanto ele pensa dever

ser-lhe feita uma reserva essencial que diz respeito ao modo de pensar a

diferenccedila ontoloacutegica

A tradiccedilatildeo metafiacutesica procedeu agrave ldquoentificaccedilatildeo do serrdquo e essa entificaccedilatildeo fez-se

de forma privilegiada atraveacutes do Deus metafiacutesico relegando assim o domiacutenio

da finitude para o segundo plano de uma forma inferior e degradada de ser

Uma ontologia da finitude como aquela visada por Heidegger deveria reabilitar

esse plano da finitude No entanto diz Bornheim as ambiguidades e

oscilaccedilotildees no modo de designar o ser levou a que muitos considerem que

Heidegger acentuou de tal modo a transcendecircncia do ser que ele se converteu

num ldquoDeus que natildeo ousa dizer o seu nomerdquo

Segundo Bornheim Heidegger tem razatildeo ao falar de ldquodiferenccedila ontoloacutegicardquo

mas o modo de acentuar a transcendecircncia do ser conduz a um certo abandono

do ente ldquoSoacute haacute diferenccedila porque haacute relaccedilatildeo entre ser e ente e esta relaccedilatildeo

deve ser reciacuteproca Ora o ser de Heidegger comporta-se um pouco como o

Deus aristoteacutelico o ente depende do ser mas o ser apenas eacute ele mesmo

597

Ibidem 172

327

Heidegger acentua a dependecircncia do ente em relaccedilatildeo ao ser mas a

dependecircncia inversa deveria ser igualmente acentuadardquo598

Acentuando excessivamente a transcendecircncia do ser Heidegger permitiu que

muitos identificassem o ser como Deus da tradiccedilatildeo metafiacutesica Este acentuar

da transcendecircncia do ser desvinculou o ser dos entes e instaurou uma

concepccedilatildeo incorrecta (isto eacute ainda contaminada pela tradiccedilatildeo metafiacutesica) da

diferenccedila ontoloacutegica

Segundo Bornheim natildeo obstante o facto de nas primeiras conferecircncias

relativas agrave temaacutetica da diferenccedila ontoloacutegica Heidegger ter procurado vincular o

ser ao ente no decurso da sua evoluccedilatildeo intelectual este teria vindo a esquecer

essa vinculaccedilatildeo o que teria tido como consequecircncias a impossibilidade de se

compreender a finitude do ser assim como a desvalorizaccedilatildeo do plano do

ente599

Esta vinculaccedilatildeo entre ser e ente acontece na perspectiva de Bornheim pela

mediaccedilatildeo da praxis como sublinha o ensaio ldquoSentido e Criatividaderdquo (1970)

ldquo[] pelo fazer o sentido ontoloacutegico se realiza no plano ocircnticordquo600 Admitindo

uma certa anterioridade do sentido que eacute depois recolhido pela actividade

humana criadora Bornheim sublinha no entanto que esta transcendecircncia do

sentido - isto eacute o seu enraizamento num horizonte histoacuterico que eacute ele mesmo

o possibilitador da acccedilatildeo - natildeo dispensa a sua imanecircncia - isto eacute o facto de

que ele se torna concreto e se mostra no fazer humano

A dialeacutectica entre transcendecircncia e imanecircncia enraiacuteza-se na proacutepria condiccedilatildeo

do Dasein como ser-no-mundo porque o homem eacute ser-no-mundo ele natildeo eacute

um sujeito fechado em si que por si mesmo cria o sentido mas inscreve-se

num horizonte histoacuterico e temporal ldquoO sentido eacute histoacuterico eacute historicamente que

ele chega a configurar-se deste ou daquele modordquo601 Se o sentido eacute histoacuterico

isto implica que ele natildeo subsiste por si mesmo como uma realidade metafiacutesica

auto-subsistente mas deve condensar-se atraveacutes da praxis numa obra ou

numa acccedilatildeo

598

Gerd Bornheim Metafiacutesica e Finitude 13 599

ldquoEm verdade nas primeiras conferecircncias publicadas por nosso autor haacute algumas escassas observaccedilotildees

que procuram vincular o ser ao ente mas agrave medida que a sua obra evolui essa vinculaccedilatildeo se torna a

grande ausecircncia do seu pensamento Nesse caso de que finitude se trata Da finitude do ser Mas que

sentido tem falar da finitude do ser se com ela natildeo se autoriza o pensamento da finitude concreta do

enterdquo Ibidem 13-14 600

Gerd Bornheim ldquoSentido e Criatividaderdquo [1970] in Metafiacutesica e Finitude 172 601

Ibidem 173

328

Em Dialeacutectica teoria e praxis602 Bornheim critica Heidegger pois este

conduzido pela sua preocupaccedilatildeo central pela questatildeo do esquecimento do ser

ter-se-ia centrado no esforccedilo para pensar o ente na perspectiva do ser dando

assim a primazia ao pensar em detrimento da acccedilatildeo

Segundo a perspectiva de Bornheim a praxis eacute um conceito ambiacuteguo

situando-se entre o incomensuraacutevel (o mandato do ser) e a particularidades

dos desiacutegnios humanos (dependendo tambeacutem da subjectividade)603 Reabilitar

a praxis604 eacute para Bornheim inverter os termos da relaccedilatildeo entre ser e ente e

pensar o ser na perspectiva do ente trazendo-o para o plano da finitude e da

diferenccedila do modo de ser dos diversos entes

6 2 Ernildo Stein ndash finitude e circularidade ontoloacutegica

621 Ser e Verdade em Heidegger

Ernildo Stein na sua tese de livre-docecircncia de 1968 Compreensatildeo e Finitude

leva a cabo uma reflexatildeo sobre a filosofia heideggeriana sublinhando como

Bornheim a temaacutetica da finitude605

No entanto ele natildeo vai pensar esta ontologia heideggeriana da finitude a partir

da dialeacutectica mas a partir da instauraccedilatildeo de um novo paradigma hermenecircutico

o da circularidade606 mostrando a vigecircncia desse paradigma ao longo de todo

o percurso filosoacutefico do pensador alematildeo cuja unidade ele suporta

602

Gerd Bornheim Dialeacutectica teoria praxis Ensaio para uma criacutetica da fundamentaccedilatildeo ontoloacutegica da

dialeacutetica Porto Alegre 1977 603

ldquoBornheim [hellip] observa o mensuraacutevel encontra a sua uacuteltima medida no incomensuraacutevel no sentido de

que a acccedilatildeo particular termina como que se perdendo no imponderaacutevel da evoluccedilatildeo histoacuterica Mas de

outro lado o incomensuraacutevel se for destituiacutedo da funccedilatildeo reconstrutora do mensuraacutevel perde a sua

proacutepria razatildeo de possibilidade se a histoacuteria se explicasse somente pelo incomensuraacutevel deixaria de ser

humana o que significa que o ser mesmo do incomensuraacutevel depende essencialmente do mensuraacutevel A

praxis vive nessa ambiguidaderdquo Beneval de Oliveira A Fenomenologia no Brasil 35 604

ldquo [hellip] embora a praxis natildeo encontre a sua medida na dicotomia ndash jaacute que ela se insere na totalizaccedilatildeo ndash

nada impede que ela se verifique dentro da dicotomia pois na medida em que ela natildeo pode prescindir da

dicotomia a praxis se daacute atraveacutes do homem e natildeo apenas para o homem E se tal eacute o caso o processo

totalizador se faz com o concurso humano ou seja o desvelamento do ser passa a depender do ente

particular que eacute o homem o homem participa do desvelamentordquo Ibidem 35 605

Ernildo Stein foi um dos primeiros disciacutepulos de Gerd Bornheim no Rio Grande do Sul Cf Aquiles

Cocircrtes Guimaratildees ldquoMetafigravesica e Ontologia na Filosofia Brasileirardquo in Actas do Congresso O Pensamento

Luso-Galaico-Brasileiro 211 606

Para Ernildo Stein para compreendermos a mudanccedila de paradigma instaurada pela obra de Heidegger

eacute necessaacuterio estudar a questatildeo do meacutetodo o que o autor brasileiro faraacute em A Questatildeo do Meacutetodo na

Filosofia um estudo do modelo heideggeriano Porto Alegre 1983

329

Ernildo Stein explicita esta problemaacutetica da finitude em Kant mostrando que

Heidegger em Ser e Tempo retoma esta problemaacutetica a partir de idecircntico

fundamento ldquoKant temporaliza o elo que junge conhecimento sensiacutevel e

intelectual e reduz as possibilidades do conhecimento agraves condiccedilotildees apriori da

sensibilidade e do entendimento Por isso toda a sua filosofia se concentra

numa uacutenica pergunta que eacute o homem Heidegger centrando sua interrogaccedilatildeo

na analiacutetica do ser-aiacute responde a essa pergunta e procura estabelecer assim

todo o conhecimento ontoloacutegico nas estruturas do ser-aiacuteldquo607

Steiner sublinha que em Kant e o problema da Metafiacutesica Heidegger

confrontou-se com as 4 questotildees kantianas mostrando que as 3 primeiras jaacute

revelam a finitude do homem e apontam para a questatildeo ldquoo que eacute o homemrdquo

defendendo que eacute na pergunta pela finitude do homem que reside a fundaccedilatildeo

da metafiacutesica Eacute a partir da finitude do ser-aiacute que se estabelece a ontologia e

por isso mesmo a ontologia eacute o signo da finitude da compreensatildeo do ser

Ora sublinha Stein a analiacutetica do Dasein levada a cabo em Ser e Tempo

mostrara a estrutura do Dasein enquanto preocupaccedilatildeo e temporalidade A

temporalidade como constituindo o horizonte de compreensatildeo do ser vai ser

retomada por Heidegger no diaacutelogo com Kant em Kant e o problema da

Metafiacutesica Aiacute Heidegger mostra que toda a tradiccedilatildeo metafiacutesica ao interpretar

o ser como ousia implicitamente explica o ser a partir do tempo Se nos

interrogarmos sublinha Stein sobre o laccedilo que une ser e tempo temos que

concluir que ldquoo laccedilo que une ser e tempo eacute a proacutepria finitude da compreensatildeo

do ser-aiacuterdquo608

Assim sublinha Stein o que vai caracterizar a interrogaccedilatildeo heideggeriana pelo

ser eacute que ela vai desenrolar-se no interior da finitude isto eacute no interior dum

horizonte intrinsecamente temporal que eacute constitutivo do Dasein

Partindo da problemaacutetica da verdade desenvolvida no uacuteltimo sect da primeira

secccedilatildeo de Ser e Tempo Ernildo Stein demonstra que o pensar o ser no

horizonte da temporalidade liga-se estreitamente ao papel central que tem em

toda a obra de Heidegger a aletheia ao defender que soacute haacute Ser e Verdade

enquanto haacute compreensatildeo do ser este enraiacuteza toda ontologia no ser-aiacute

607

Ernildo Stein Compreensatildeo e Finitude - Estrutura e movimento da interrogaccedilatildeo heideggeriana

[1968] Rio Grande do Sul 2001 244 608

Ibidem 37

330

fundamentando uma ontologia da finitude em ruptura com a tradiccedilatildeo filosoacutefica

ocidental

Em Ser e Tempo Heidegger mostra que toda a verdade no plano ocircntico estaacute

subordinada agrave verdade no plano ontoloacutegico e que esta emerge da estrutura

existenciaacuteria do Dasein cuja unidade eacute ldquoa preocupaccedilatildeordquo (Sorge) Pela sua

constituiccedilatildeo existenciaacuteria - ldquopreocupaccedilatildeordquo (Sorge) ldquoprojectordquo (Entwurf) e

ldquodecaiacutedardquo (Verfall) - ao Dasein pertencem originariamente tanto a autenticidade

como a inautenticidade e assim pertencem-lhe tambeacutem de uma forma

igualmente originaacuteria tanto a revelaccedilatildeo e o descoberto quanto a oclusatildeo e o

fechamento

Assim eacute a abertura constitutiva do Dasein que abre o espaccedilo para toda a

verdade mas essa verdade que emerge da sua estrutura existenciaacuteria aponta

igualmente para a natildeondashverdade A Verdade na sua relaccedilatildeo com a natildeo

verdade aponta para a finitude do Dasein609

Rompendo com a ontologia da substacircncia da tradiccedilatildeo metafiacutesica a ontologia

fundamental exposta em Ser e Tempo recupera a dimensatildeo dinacircmica da

temporalidade a partir da triacuteplice estrutura da temporalidade do Dasein em que

o presente se articula com os dois ecircxtases temporais do passado e do futuro

A temporalidade extaacutetica do Dasein implica uma compreensatildeo do ser que

integra o movimento natildeo como movimento fiacutesico isto eacute como movimento que

se verifica no ente que foi e jaacute natildeo eacute mas como movimento ontoloacutegico que se

daacute como velamento e desvelamento eacute o movimento do ser que se desvela sem

sair do seu velamento sem se esgotar na presenccedila do ente que surge

Este jogo de velamento e desvelamento compreendido na noccedilatildeo de aletheia eacute

caracterizado por Ernildo Stein como um ldquomovimento pendular de

ambivalecircnciardquo que constitui a dinacircmica da existecircncia ldquoO homem estaacute envolto

na ambivalecircncia de velamento e desvelamento O homem estaacute condenado ao

movimento desta ambivalecircncia Natildeo eacute apenas aquele a quem ela se daacute como

velamento e desvelamento Ele mesmo eacute velamento e desvelamento Sua

609

Ernildo Stein defende que o constructo do Dasein tem como efeito necessaacuterio o encurtamento

hermenecircutico e que resta portanto como espaccedilo da filosofia a ldquorevelaccedilatildeordquo (Erschlossenheit) e o que nela

se descobre a estrutura do ldquocomordquo hermenecircutico inaugurando assim um novo universo especulativo o

universo do sentido (Cf Ernildo Stein Seis Estudos sobre Ser e Tempo Petroacutepolis 1988 49)

331

proacutepria constituiccedilatildeo eacute ambivalente Essa ambivalecircncia do ser-aiacute no homem eacute a

sua constituiccedilatildeo circularrdquo610

Este circularidade ontoloacutegica611 que suporta a dinacircmica do Dasein enquanto

projecto lanccedilado oscilando entre a autenticidade e a inautenticidade ldquoatrai o

ser na sua relaccedilatildeo com o homem para dentro desta circularidaderdquo fazendo

com que este soacute possa ser alcanccedilado como velamento desvelamento Mas

por outro lado acentua Ernildo Stein ldquoesta circularidade eacute jaacute um resultado do

proacuteprio ser na sua ambivalecircnciardquo

Para traduzir este movimento ontoloacutegico de velamentodesvelamento612

compreendido na noccedilatildeo de aletheia Heidegger usa segundo Ernildo Stein o

vocaacutebulo Wesen que Stein traduziu como ldquomanifestaccedilatildeo ou acontecer

fenomenoloacutegico do serrdquo Explicando a razatildeo dessa traduccedilatildeo Stein afirma

ldquoQuando falamos em acontecer fenomenoloacutegico do ser apoiamo-nos aqui no

meacutetodo fenomenoloacutegico de Heidegger desenvolvido no sect 7 de Ser e Tempo

Laacute o filoacutesofo fiel ao princiacutepio fenomenoloacutegico procura o acesso ao ser assim

como a partir de si se mostra isto eacute velando-se no ente ldquofenoacutemeno em

sentido fenomenoloacutegico sempre eacute apenas aquilo que constitui o serrdquo Acontecer

fenomenoloacutegico do ser eacute assim um acontecer exclusivo do ser enquanto

velamento e desvelamento em sua ambivalecircncia fundamental Eacute o que

Heidegger pensa pela aletheiardquo613

Segundo Stein Wesen como acontecer fenomenoloacutegico do ser aponta para a

temporalidade patente no vocaacutebulo anwesen ldquopresentear-serdquo na dupla

dimensatildeo de uma presenccedila que aponta para um velamento de onde surgiu

Poreacutem noacutes situamo-nos fora dessa ambivalecircncia e desconhecemo-la e esse

situar-se de fora eacute precisamente segundo Heidegger a caracteriacutestica da

Metafiacutesica614

610

Ernildo Stein Compreensatildeo e Finitude - Estrutura e movimento da interrogaccedilatildeo heideggeriana 111 611

ldquoO constructo Dasein que comanda o encurtamento hermenecircutico [hellip] significa uma reduccedilatildeo para

toda e qualquer pretensatildeo de sistema [hellip] onde se introduziu o universo do sentido [hellip] eacute preciso pensar

meacutetodo e objecto meacutetodo e sistema numa relaccedilatildeo circular sem poder propriamente privilegiar um

momento como ponto de partida fundamentordquo (Cf Ernildo Stein Seis Estudos sobre Ser e Tempo 53) 612

ldquoA hermenecircutica do estar-aiacute opera num domiacutenio em que imperam trecircs elementos novos na tradiccedilatildeo

filosoacutefica a circularidade a totalidade (como antecipaccedilatildeo) e a tendecircncia para o encobrimentordquo Ibidem

63 613

Ernildo Stein Compreensatildeo e Finitude - Estrutura e movimento da interrogaccedilatildeo heideggeriana 115 614

Ernildo Stein em Seis Estudos Sobre Ser e Tempo sublinha que Heidegger leva a cabo o

ldquoencurtamentordquo do domigravenio ontoloacutegico 1- elimina a questatildeo teoloacutegica assim como o problema das

verdades eternas do eu transcendental da filosofia 2 ndash opera a forclusatildeo do mundo natural da filosofia

pois as leis da fiacutesica soacute satildeo quando um estar-aiacute as formula (Ernildo Stein ob cit 22-23)

332

A palavra aletheia eacute descoberta que resultou da meditaccedilatildeo heideggeriana da

histoacuteria da filosofia e marcaraacute todo o discurso heideggeriano sobre o ser Mas

por outro lado Heidegger natildeo se limita a retomar esse vocaacutebulo grego mas

explora a totalidade das suas ressonacircncias ldquoAssim radicam na aletheia todos

os aspectos e gradaccedilotildees do esquecimento e da lembranccedila Estas duas

categorias perpassam todas as obras numa constacircncia ascendente Agrave medida

que essas duas palavras tomam corpo no pensamento elas se desdobram em

todos os seus acircngulos e satildeo de tal modo aproveitadas que a partir delas

poder-se-ia descobrir uma unidade da obra do filoacutesofordquo615

A primeira questatildeo a que Ernildo Stein procura responder eacute - qual a

consequecircncia de Heidegger ter conferido a aletheia uma dimensatildeo ontoloacutegica

como palavra-chave para o pensar do ser A aletheia conduz o pensar do ser

segundo uma estrutura ontoloacutegica bipolar da lembranccedila e esquecimento o ser

eacute esquecimento pois se retrai e se esconde sob os entes que o velam para o

homem que se movimenta na quotidiana familiaridade com os entes Mas o ser

tambeacutem eacute esquecimento porque noacutes estamos inseridos na sua histoacuteria e ele

suporta essa histoacuteria como um impensado que eacute preciso deixar vir ao nosso

encontro como lembranccedila Assim afirma Stein ldquoEsquecimento e lembranccedila

satildeo uma atitude proacutepria daquele que quer manter fidelidade ao pensamento do

ser Natildeo eacute uma atitude escolhida pelo homem mas um dom do ser O

esquecimento e a lembranccedila tecircm um sentido ontoloacutegicordquo616

Assim sublinha Ernildo Stein o pensamento da diferenccedila ontoloacutegica soacute pode

ser pensado dentro desta ambivalecircncia do ser enquanto velamento e

desvelamento e foi o esquecimento desse movimento pendular do ser que

instituiu a metafiacutesica Deste modo a ambivalecircncia do velamento e

desvelamento contido na noccedilatildeo de aletheia suporta a proacutepria histoacuteria do ser

622 Negatividade e finitude

Segundo Stein ao pensar o ser como a-letheia Heidegger introduz no ser a

negatividade e a finitude que assumem no entanto um significado muito

diferente daquele que tecircm em Hegel sendo uma das preocupaccedilotildees de Stein

615

Ernildo Stein Compreensatildeo e Finitude - Estrutura e movimento da interrogaccedilatildeo heideggeriana 115 616

Ibidem 95

333

ldquoevitar a contaminaccedilatildeo dialeacutecticardquo na compreensatildeo da fenomenologia

heideggeriana617

Desde Ser e Tempo Heidegger afirma que o ser eacute o nada dos entes e esta

afirmaccedilatildeo da negatividade estende-se a toda a sua obra acompanhando as

referecircncias ao ser ser como recusa retracccedilatildeo ausecircncia subtracccedilatildeo

ocultamento e velamento Para Heidegger o ser soacute se manifesta na exposiccedilatildeo

do ser-aiacute ao nada e eacute finito porque se manifesta sempre na ambivalecircncia do

velamento e desvelamento

Ser e nada co-pertencem-se mas natildeo porque ambos se apresentam como

algo de imediato e indeterminado como o momento inicial do devir da Ideia em

Hegel O nada e a finitude em Heidegger satildeo pensados positivamente porque

somente assim o ser pode ser experimentado na sua manifestaccedilatildeo Por

conseguinte natildeo se trata para Heidegger de inserir um movimento dialeacutectico

que progredisse pelas negaccedilotildees sucessivas ateacute um horizonte de total

manifestaccedilatildeo da Verdade mas de conservar a ambivalecircncia das duas faces de

manifestaccedilatildeo do ser o desvelamento e o velamento compreendidos na noccedilatildeo

de aletheia618 Citando Heidegger em Nietzsche Ernildo Stein sublinha que

Heidegger chama explicitamente a atenccedilatildeo para a necessidade de conservar a

dupla face do ser na sua oposiccedilatildeo sem apelar agrave dialeacutectica que

ldquoconstantemente se insinua onde se fala de coisas opostasrdquo

Esta insistecircncia na oposiccedilatildeo explica que Heidegger se mantenha sempre na

problemaacutetica da diferenccedila ontoloacutegica e reafirme que o ser nunca se manifesta

fenomenologicamente sem o ente somente se podendo dar no interior desta

diferenccedila como o nada do ente ldquoA diferenccedila ontoloacutegica nada pode dizer de

positivo do ser a natildeo ser que o natildeo-velamento a negatividade eacute a afirmaccedilatildeo

do ser A negaccedilatildeo do ser que se revela nos entes pelo desvelamento eacute a

afirmaccedilatildeo positiva do serrdquo619

617

Ernildo Stein afirma que Heidegger aceita o lugar que tem a questatildeo do meacutetodo no pensamento

hegeliano pois aiacute o meacutetodo conjuga-se com o proacuteprio movimento do pensamento possuindo um caraacutecter

totalizador e especulativo Contudo Heidegger acentua que a filosofia hegeliana da subjectividade

esquece o ser e dissimula a questatildeo fundamental da filosofia Em Hegel onde a filosofia atingiu a sua

plenitude pelo meacutetodo especulativo-dialeacutectico realiza-se tambeacutem a plenitude do velamento da questatildeo do

ser (Cf Ernildo Stein A Questatildeo do Meacutetodo na Filosofia ndash um estudo do modelo heideggeriano 21) 618

Ernildo Stein afirma que para superar o velamento da questatildeo do ser Heidegger propotildee a sua

concepccedilatildeo do meacutetodo fundado num modelo binaacuterio velamento-desvelamento A aplicaccedilatildeo do meacutetodo

fenomenoloacutegico visa pensar o ser que na medida em que estaacute velado deve ser conduzido ao

desvelamento (Cf Ibidem 21) 619

Ernildo Stein Compreensatildeo e Finitude - Estrutura e movimento da interrogaccedilatildeo heideggeriana 116

334

Stein defende que para Heidegger o ser na plenitude da sua presenccedila seria

necessariamente pensado na figura do ente absoluto da tradiccedilatildeo metafiacutesica

Pela negatividade e a finitude Heidegger conserva-se fiel ao ser como

manifestaccedilatildeo fenomenoloacutegica ou aletheia ele nunca pode ser experimentado

na sua plenitude mas daacute-se na ambivalecircncia das suas manifestaccedilotildees histoacuterico-

temporais como jogo entre velamento e desvelamento na descontinuidade e

na ruptura620

Este acontecer fenomenoloacutegico do ser que eacute o negar-se pelo desvelamento

no ente abre no entanto o espaccedilo para muacuteltiplas tentativas de o pensar se pocircr

agrave escuta do ser em instacircncias privilegiadas como a linguagem a obra de arte

a coisa etc Stein chama a atenccedilatildeo para o facto de que este pensar que acolhe

o desvendamento do ser se caracteriza pela atenccedilatildeo prioritaacuteria a uma esfera

ante-predicativa de desvelamento originaacuterio ldquoEste respeito fenomenoloacutegico

pela palavra pela obra de arte e pela coisa que procura surpreendecirc-las em

seu acontecer originaacuterio sem violentaacute-las com a violecircncia do juiacutezo que as

elevaria para a generalidade do ser somente eacute possiacutevel onde se desenvolveu

uma fidelidade agrave diferenccedila imanente O juiacutezo jaacute transcende sempre a

concreccedilatildeo e atinge o ser e os entes em sua generalidaderdquo621

Assim esta ontologia da finitude heideggeriana natildeo ambiciona agrave racionalidade

discursiva e auto-legitimadora do sistema hegeliano nem aspira situar-se num

horizonte transcendental onde possam ser captadas as essecircncias Heidegger

com o seu pensar do ser aspira sim a penetrar na concretude desse

acontecer ante-predicativo e aiacute mostrar o ser na ambivalecircncia do velamento e

do desvelamento A tarefa da filosofia eacute portanto para Heidegger captar o ser

no seu desvelamento e velamento por meio de um meacutetodo adequado que seraacute

a fenomenologia esboccedilada em Ser e Tempo

Stein analisa detalhadamente a reformulaccedilatildeo heideggeriana do conceito de

fenomenologia enfatizando o caminho de ruptura com a fenomenologia de

Husserl pela tomada em consideraccedilatildeo da realidade do ser-no-mundo do

mundo da vida A ideia de fenomenologia como um mostrar das coisas em si

mesmas como a partir de si se mostram estaacute segundo Stein ligada agrave

620

ldquoEm ambos os meacutetodos tanto no especulativo-dialeacutectico como no especulativo-hermenecircutico revela-

se uma pretensatildeo de totalidade Com uma diferenccedila enquanto no primeiro esta totalidade eacute dada como

real no segundo eacute apenas um movimento que jamais se plenifica um movimento de antecipaccedilatildeo de

sentidordquo Ernildo Stein A Questatildeo do Meacutetodo na Filosofiahellip 25 621

Ernildo Stein Compreensatildeo e Finitude - Estrutura e movimento da interrogaccedilatildeo heideggeriana 128

335

compreensatildeo do ser como aletheia ldquoSomente agrave medida que a aletheia

perpassa toda a obra de Heidegger estaacute nela presente tambeacutem a

fenomenologia A aletheia inspira a fenomenologia mas a fenomenologia eacute a

via de acesso ao ser que acontece como aletheia como velamento e

desvelamentordquo622

Assim Stein exclui aquela interpretaccedilatildeo de Heidegger segundo a qual

poderiacuteamos distinguir na sua obra uma primeira fase ldquofenomenoloacutegicardquo e uma

segunda fase dominada pela tentativa de dizer o ser atraveacutes de uma

reformulaccedilatildeo poeacutetica da linguagem Segundo Stein a fenomenologia estaacute

omnipresente na obra de Heidegger coincidindo com o proacuteprio binoacutemio

velamentodesvelamento do ser pensar o ser que se apresenta enquanto se

retira eacute coincidir com o ser enquanto fenoacutemeno623 Deste modo mesmo quando

jaacute natildeo eacute a analiacutetica existencial que ocupa o centro do pensamento

heideggeriano mas sim a meditaccedilatildeo sobre o proacuteprio sentido do ser a

fenomenologia continua ldquosilenciosamenterdquo presente orientando a discussatildeo do

sentido do ser E a histoacuteria do ser enquanto Heidegger procura penetrar no

impensado dos textos da tradiccedilatildeo filosoacutefica abre caminho para um conjunto de

reflexotildees fenomenoloacutegicas sobre a histoacuteria da filosofia

A negatividade e a finitude que caracterizam o pensamento heideggeriano do

ser devem como acima vimos evitar qualquer contaminaccedilatildeo ldquodialeacutecticardquo

Trata-se de manter a negatividade e a finitude assumindo-as positivamente

como o uacutenico caminho de acesso ao ser e esse caminho eacute o da

fenomenologia

623 A circularidade da questatildeo ontoloacutegica

Analisando o existenciaacuterio da compreensatildeo Stein sublinha que o Dasein na

medida em que se projecta em direcccedilatildeo ao poder-ser antecipa jaacute uma

compreensatildeo do ser Heidegger demonstra assim sublinha Stein a existecircncia

duma compreensatildeo pre-ontoloacutegica do ser ldquo[hellip] enquanto existecircncia o ser-aiacute eacute

622

Ibidem 182 623

Stein sublinha que a tarefa fundamental da filosofia eacute para Heidegger captar o ser no seu

velamentodesvelamento atraveacutes de um meacutetodo e horizonte adequados o meacutetodo seraacute o da

fenomenologia o horizonte seraacute o tempo Cf A questatildeo do Meacutetodo na Filosofiahellip 42

336

compreensatildeo e essa compreensatildeo eacute impliacutecita compreensatildeo de serrdquo624 O que

aqui importa poreacutem sublinhar eacute que pela compreensatildeo preacutevia que eacute a

abertura do ser-aiacute noacutes jaacute levamos sempre connosco o sentido que buscamos

e que este horizonte antecipador preacutevio apenas pode ser explicitado e

desenvolvido por uma tematizaccedilatildeo ontoloacutegica A interrogaccedilatildeo pelo ser tem

assim uma estrutura circular tomando como ponto de partida a preacute-

compreensatildeo e desenvolvendo-a explicitamente no contacto com as coisas

mesmas

Ora a primeira consequecircncia desta estrutura circular da interrogaccedilatildeo

ontoloacutegica eacute que ao perguntar pelo ser a filosofia pergunta simultaneamente

pelas condiccedilotildees de possibilidade da proacutepria filosofia e abre caminho para a sua

proacutepria supressatildeo No entanto simultaneamente sublinha Stein a

circularidade da interrogaccedilatildeo ontoloacutegica mostra a impossibilidade de uma

resposta definitiva agrave questatildeo do ser e por conseguinte a possibilidade da

filosofia625

A necessidade de repetidamente repor a questatildeo ontoloacutegica radica antes da

mais na proacutepria estrutura temporal da existecircncia pois a explicitaccedilatildeo das

estruturas do ser-aiacute mediante a fenomenologia hermenecircutica veio

precisamente a demonstrar que o horizonte a partir do qual se compreende e

explicita algo como o ser eacute o tempo

Ora sublinha Stein se o Dasein oscila entre um exerciacutecio apropriado e

inapropriado da temporalidade extaacutetica entatildeo ele corre sempre o risco de

falhar as antecipaccedilotildees de sentido e a abertura e o ocultamento pertencem-lhe

de forma igualmente originaacuteria626 Assim qualquer caminho trilhado para a

624

Ernildo Stein Compreensatildeo e Finitude - Estrutura e movimento da interrogaccedilatildeo heideggeriana 246 625

Stein sublinha que Heidegger ao questionar o ser no tempo e a partir da temporalidade do ser-aiacute

movimenta-se na finitude e compreende a questatildeo do ser fora da tradiccedilatildeo metafiacutesica Ele coloca a questatildeo

do ser atraveacutes do ciacuterculo hermenecircutico que repousa sobre a constituiccedilatildeo circular do ser-aiacute este

movimenta-se no ser na medida em que o ser nele se manifesta e o sustenta Cf A Questatildeo do Meacutetodo na

Filosofiahellip 42 626

ldquoPara Heidegger a fenomenologia de modo algum pode corresponder agraves exigecircncias de radicalidade

husserliana de autofundar a proacutepria facticidade na total transparecircncia O facto de o ser-aiacute ser facticidade

faz com que ele seja irredutiacutevel a uma total transparecircncia reflexiva Sua facticidade eacute existecircncia A

ldquoessecircnciardquo do ser-aiacute o eacute sua existecircncia (34) eacute uma afirmaccedilatildeo que Heidegger insere no iniacutecio de Ser e

Tempo e que aponta para a irredutibidade de o ser-aiacute porque este eacute existecircncia e como tal deveria ser

posto entre parecircntesis para se proceder agrave sua reduccedilatildeo eideacutetica Natildeo sendo poreacutem essecircncia a reduccedilatildeo eacute

impossiacutevel e uma vez posto entre parecircntesis natildeo mais se recuperaria para a reflexatildeo pois sem existecircncia

o ser-aigrave natildeo eacute maisrdquo Ernildo Stein A Questatildeo do Meacutetodo na Filosofiahellip 48

337

elucidaccedilatildeo da pergunta ontoloacutegica fundamental estaacute sujeito a uma revisatildeo

imposta pelo proacuteprio movimento do caminhar627

Para Ernildo Stein o que caracteriza a interrogaccedilatildeo heideggeriana pelo ser e a

verdade eacute precisamente a sua fidelidade a esta circularidade que ele vai

radicalizando e aprofundando ldquoA temporalidade ek-staacutetica que se revelaraacute

como sentido do ser do ser-aiacute isto eacute da preocupaccedilatildeo seraacute por sua vez o

horizonte a estrutura antecipadora para a compreensatildeo do sentido do ser em

geral Nessa perspectiva se estabeleceraacute novamente apenas em outro plano

uma estrutura circular enquanto a temporalidade do ser-aiacute brota da

temporalidade do ser ainda que esta somente seja atingida previamente na

temporalidade do ser-aiacute Esta eacute a dimensatildeo em que se estabelece a

viravoltardquo628

Assim a Kehre ou a ldquoreviravoltardquo629 como traduz Stein seria uma explicitaccedilatildeo

da circularidade da interrogaccedilatildeo ontoloacutegica nela se estabelece uma

compreensatildeo ontoloacutegica circular pois se afirma que se por um lado o homem

projecta o sentido como horizonte para compreender o ser essa projecccedilatildeo

resulta do proacuteprio ser que utiliza o homem para projectar o proacuteprio horizonte em

que se manifesta

Assim ldquona relaccedilatildeo muacutetua o ser e a verdade e o ser-aiacute condicionam-se

mutuamente ainda que num momento se revele a hegemonia de um dos

poacutelosrdquo630 O impasse experimentado por Heidegger em Ser e Tempo residiria

na impossibilidade de pensar a finitude simplesmente a partir do ser-aiacute e a

Kehre eacute para Ernildo Stein o destino necessaacuterio de todo o pensamento que

queira pensar positivamente a finitude da interrogaccedilatildeo pelo ser e pela verdade

na ldquoviravoltardquo passa-se a pensar a finitude a partir do ser e da sua manifestaccedilatildeo

como velamento e desvelamento

Stein mostra que desde Ser e Tempo a preocupaccedilatildeo que se impotildee a

Heidegger eacute o sentido do ser e que o aiacute do Dasein eacute a abertura em que se

627

ldquoA fenomenologia heideggeriana vigiaraacute o acircmbito do velamento e desvelamento em que residem todas

as essecircncias Este acircmbito eacute o lugar em que se daacute a abertura do ser no ser-aigraverdquo Ibidem 4849 628

Ernildo Stein Compreensatildeo e Finitude- Estrutura e Movimento da interrogaccedilatildeo heideggeriana 255 629

Ernildo Stein sublinha que enquanto a fenomenologia eacute utilizada para a analiacutetica da facticidade e da

existecircncia ela eacute hermenecircutica e passa a movimentar-se num ciacuterculo hermenecircutico Mas na Kehre a

estrutura circular do ser-aiacute converte-se no movimento da histoacuteria do pensamento pelo qual ele se volta

para o ser O caraacutecter hermenecircutico da fenomenologia toma entatildeo um sentido mais radical determinando-

se jaacute natildeo a partir do homem mas do ser Cf A Questatildeo do Meacutetodo na Filosofiahellip 111 630

Ernildo Stein Compreensatildeo e Finitude - Estrutura e movimento da interrogaccedilatildeo heideggeriana 37

338

coloca o sentido do ser Para designar este ldquosentido do ser em geralrdquo

distinguindo-o do ldquoser do enterdquo Heidegger recorre jaacute nesta obra agrave palavra

ldquomundordquo eacute o ser-no-mundo que sustenta a abertura o sentido a verdade e o

desvelamento enquanto ligados ao ser Depois de 1930 na viravolta eacute o

mundo no seu acontecer concreto que sustenta a abertura o sentido e o

desvelamento enquanto ligados ao ser o mundo em seu sentido originaacuterio

seraacute o acircmbito em que acontecem todos os sentidos e em que se daacute toda a

transcendecircncia

Ernildo Stein procura pois mostrar em Heidegger uma ontologia da finitude

que eacute simultaneamente uma fenomenologia hermenecircutica do Dasein e uma

ontologia que pensa o ser numa fidelidade fenomenoloacutegica agrave sua manifestaccedilatildeo

como velamentodesvelamento Uma tal ontologia explica Ernildo Stein

ldquoprocura compreender o ser a partir da finitude do ser-aiacute e procura

compreender a finitude do ser-aiacute a partir do ser Nisto reside o ciacuterculo

hermenecircutico ontoloacutegicordquo631

Em segundo lugar Ernildo Stein pergunta qual a caracteriacutestica mais importante

deste novo paradigma hermenecircutico e a essa questatildeo daacute uma inequiacutevoca

reposta a que volta repetidamente ao logo da sua obra a sua circularidade A

aletheia segundo Ernildo Stein eacute caracterizada pela circularidade que jaacute estaacute

implicitamente contida na tarefa do pensar que eacute precisamente pensar o

esquecimento como esquecimento trazendo-o assim agrave lembranccedila Assim o

pensar natildeo visa produzir o novo mas sim recuperar o originaacuterio e Heidegger

poderaacute afirmar que a penetraccedilatildeo na essecircncia da metafiacutesica eacute a penetraccedilatildeo na

essecircncia do esquecimento do ser

A circularidade deste paradigma estaacute patente segundo Stein de forma mais

saliente na noccedilatildeo de Ereignis que como eacute sabido desempenha um papel

central no pensar do ser do ldquosegundo Heideggerrdquo ldquoSe pensarmos enfim a

palavra-chave do pensamento de Heidegger onde domina a forccedila da aletheia -

a palavra Ereignis ou ldquoacontecimento-apropriaccedilatildeordquo - descobriremos nela a

mesma ambivalecircncia do dar-se reciacuteproco do velamento e desvelamento num

movimento de apropriaccedilatildeo e transpropriaccedilatildeo entre ser e homem Eacute no

631

Ibidem 47

339

ldquoacontecimento-apropriaccedilatildeordquo que Heidegger resume o encontro da constituiccedilatildeo

circular do ser-aiacute com o ser da viravoltardquo632

O Ereignis ou acontecimento - apropriaccedilatildeo designa precisamente o instante

do desvelamento do ser que nesse desvelamento se reserva e oculta e uma

reciacuteproca apropriaccedilatildeo do ser e do ser-aiacute ou o instante em que a ek-sistecircncia

se expotildee ao desvelamento do ser eacute por ele expropriada O Ereignis instaura

um movimento de compreensatildeo ontoloacutegica circular em que o ser-aiacute

compreende o ser sendo ele mesmo com-preendido pelo ser A consumaccedilatildeo

desta circularidade ontoloacutegica eacute o acontecer da verdade que se daacute ao homem

natildeo na figura duma verdade intemporal a que ambicionava a metafiacutesica mas

sob o modo de um desvelar-se histoacuterico-temporal que se legitima a si mesmo

na figura da circularidade

Assim podemos entender a viragem heideggeriana natildeo como um facto

histoacuterico que diz respeito agrave evoluccedilatildeo peculiar do seu pensamento mas como o

destino de todo o pensar do ser que quer pensaacute-lo radicalmente e que por isso

mesmo tem que entrar dentro do ciacuterculo de forma adequada para utilizar uma

expressatildeo de Heidegger ldquoNatildeo basta pensar o ser a partir do seu horizonte

(transcendental) privilegiado o ser-aiacute Superando-o eacute preciso partir do proacuteprio

ser para compreender a possibilidade ldquotranscendentalrdquo do ser-aiacute Esta eacute a

viravolta o segundo Heidegger Ainda aiacute o filoacutesofo se movimenta na

ambivalecircncia que perpassa o seu pensamento desde a intuiccedilatildeo originaacuteria e

originante da aletheiardquo633

624 Linguagem e finitude

No ensaio Em busca de uma Ontologia da Finitude de 1969 Stein retoma esta

temaacutetica da finitude integrando a ontologia heideggeriana da finitude numa

problemaacutetica geral aberta com a filosofia transcendental kantiana

Segundo Stein depois de Kant a busca da transcendecircncia refluiu para a

subjectividade tendo perdido a sua vinculaccedilatildeo com o ser e o eu eacute ele mesmo

absolutizado na figura do Eu transcendental

632

Ibidem 116 633

Ibidem 116

340

As filosofias da existecircncia precisamente porque retomaram a questatildeo do ser a

partir homem teriam pela primeira vez possibilitado pensar a transcendecircncia a

partir da existecircncia Com estas filosofias da existecircncia e a sua ontologia da

finitude a busca da transcendecircncia eacute retomada numa nova direcccedilatildeo ela eacute a

experimentaccedilatildeo positiva da condiccedilatildeo finita do homem - o transcender eacute um

esforccedilo para penetrar nas raiacutezes da finitude do homem eacute o experienciar da

ldquofeliz resistecircncia do ar que eacute condiccedilatildeo de o homem poder conhecer-se em sua

profundidaderdquo634

Segundo Ernildo Stein Kant abriu caminho para esta perspectiva de

Heidegger mostrando-lhe que a transcendecircncia natildeo pode ser buscada nos

objectos mas numa viragem do sujeito para si mesmo Para designar este

movimento de busca da transcendecircncia nessa volta a si mesmo levada a cabo

pela ontologia heideggeriana Stein usa o termo ldquorescendecircnciardquo Pela

rescendecircncia o homem desliga-se de qualquer absoluto e procura o ser na

compreensatildeo de si mesmo e da sua finitude

A rescendecircncia significa assim o abandono da transcendecircncia no movimento

vertical em direcccedilatildeo ao Absoluto ou agraves essecircncias da Metafiacutesica como tambeacutem

e simultaneamente a ldquodesabsolutizaccedilatildeordquo do homem em que ainda insistia a

filosofia transcendental quer na modalidade do criticismo neo-kantiano quer

na modalidade fenomenologia husserliana que hipostasiava o sujeito no

ldquofixismo do Eu Purordquo

A rescendecircncia apela para uma filosofia da subjectividade concreta que

consegue resguardar simultaneamente o ser e a finitude ndash ela aponta para um

regresso a si mesmo para experimentar a finitude do homem concreto como

lugar de todas as filosofias

Ainda no mesmo artigo Stein retoma o problema da linguagem jaacute abordado

em Compreensatildeo e finitude Aiacute Stein mostrara que embora Heidegger tenha

deixado de lado durante certo tempo os nomes ldquohermenecircuticardquo e

ldquohermenecircuticordquo ele retoma apoacutes a reviravolta num outro sentido a

hermenecircutica - a vinculaccedilatildeo hermenecircutica do homem com o acontecer do ser

como fenoacutemeno eacute pensada depois da ldquoreviravoltardquo como um ser solicitado pelo

proacuteprio ser para ldquotrazer uma comunicaccedilatildeordquo e ldquoguardar uma mensagemrdquo O

634

Ernildo Stein ldquoEm busca de uma Ontologia da Finituderdquo Revista Brasileira de Filosofia vol XIX

fasc 76 OutNov 1969 405

341

desvelamento do ser acontece na linguagem que eacute agora jaacute natildeo apenas um

existenciaacuterio do Dasein como era dito em Ser e Tempo mas a ldquoa casa do serrdquo

Assim afirma Stein ldquoA manifestaccedilatildeo hermenecircutica que o homem realiza do ser

enquanto fenoacutemeno eacute a proacutepria mensagem que recebe do ser Se o homem

realiza um papel hermenecircutico eacute porque o ser faz com que ele comunique e

assim possibilite a comunicaccedilatildeo de sua mensagem [hellip] Heidegger afirma que

o que determina a vinculaccedilatildeo hermenecircutica do homem com o acontecer do ser

enquanto fenoacutemeno eacute a linguagemrdquo635

Comentando a afirmaccedilatildeo da Carta sobre o Humanismo segundo a qual ldquoa

linguagem eacute a casa do serrdquo Stein afirma que para Heidegger a linguagem

estaacute ligada agrave compreensatildeo do ser pelo aiacute do ser-aiacute ela eacute o aiacute ou a clareira em

que o ser se manifesta Depois da viravolta sublinha Stein eacute o ser mesmo que

instaura no homem a sua casa produzindo a linguagem e esta eacute a proacutepria

essecircncia do homem enquanto ek-sistecircncia

A linguagem eacute pois o lugar onde se manifesta o ser natildeo como um habitaacuteculo

onde seria abrigado o ser como um objecto transportaacutevel mas sim como o

acontecer fenomenoloacutegico do ser A linguagem tal como o ser afirma Stein

natildeo eacute considerada por Heidegger como algo estaacutetico mas como um acontecer

Enquanto a linguagem fala acontece nela o ser Falar da linguagem exige

portanto simultaneamente ouvir a linguagem e ser solicitado por ela no seu

acontecer ou seja o falar da linguagem deve romper com todos os paradigmas

anteriores da filosofia da linguagem ou da loacutegica para se movimentar no

interior do movimento circular de um dizer que apenas pode dizer enquanto

escuta a linguagem no seu dizer do ser

A palavra-chave para dizer a linguagem enquanto linguagem essencial eacute

sublinha Stein no segundo Heidegger ldquo Ereignis Na palavra pensada como

Ereignis (acontecimento-apropriaccedilatildeo) mostra-se a actividade manifestadora

doadora presentificadora do ser (Seyn) A linguagem enquanto Ereignis eacute

contudo palavra precaacuteria e ambivalente por conter em si simultaneamente o

velamento e o desvelamento ldquo[] a circunstacircncia mais problemaacutetica eacute o

proacuteprio facto de a linguagem como o dizer essencial ter ao lado de sua forccedila

desveladora uma forccedila veladora O facto de a proacutepria palavra essencial ser

simultaneamente velamento e desvelamento marca a palavra com uma

635

Ernildo Stein Compreensatildeo e Finitude - Estrutura e Movimento da interrogaccedilatildeo heideggeriana 197

342

ambivalecircncia a que eacute preciso ser fiel fidelidade que exige um ficar suspenso

sobre a proacutepria precariedade do dizerrdquo636

Esta fidelidade agrave precariedade do dizer implica segundo Stein a humildade de

assumir a palavra como um ldquoacenordquo que pode acenar de muacuteltiplos modos sem

nunca se confundir com o de onde e para onde se acena637 Esta fidelidade agrave

precariedade do dizer eacute simultaneamente o sinal distintivo do pensar e do

poetar

Eacute a esta fidelidade agrave precariedade da linguagem que Stein refere um conjunto

de recursos de estilo do discurso heideggeriano designadamente a utilizaccedilatildeo

da forma verbal arcaica de ldquoWesen ou outros recursos estiliacutesticos como forma

ldquoSeyn que eacute um modo de distinguir o Ser do ser dos entes (sein) a

substituiccedilatildeo do ldquoeacuterdquo por dois pontos () ou entatildeo por ldquodesignardquo ldquosignificardquo ldquodaacute-

serdquo como modo de evitar a operaccedilatildeo de total desvelamento implicada na forma

predicativa do discurso

Por outro lado Heidegger veio realizando uma aproximaccedilatildeo ao dizer da poesia

ldquoAs preocupaccedilotildees com a linguagem se desenvolvem intensamente no

segundo Heidegger numa intensidade paralela agrave da preocupaccedilatildeo com o ser e

vice-versa Eacute por isso que os diversos modos com que Heidegger diz o ser na

vira-volta satildeo jaacute ao mesmo tempo ensaios da linguagem para dizer o ser

Nesse sentido deve ser interpretada tambeacutem sua dedicaccedilatildeo aos poetas Natildeo eacute

uma tentativa de diluir a interrogaccedilatildeo pelo ser na poesia Eacute uma descoberta de

que na linguagem dos poetas reside mais proacutexima a possibilidade de dizer o

serrdquo638

Assim a tarefa do pensador que para Heidegger seria vigiar a ambivalecircncia e

sustentar a interrogaccedilatildeo ontoloacutegica no ciacuterculo da finitude exige uma profunda

ruptura com a linguagem da tradiccedilatildeo metafiacutesica assim como a exploraccedilatildeo de

potencialidades esquecidas das liacutenguas naturais Stein reitera em Em busca

de uma Ontologia da Finitude que esta tarefa exige o abandono da linguagem

da metafiacutesica e a busca inventiva duma linguagem experimental capaz de

636

Ibidem 376 637

A ambiguidade da terminologia heideggeriana deve segundo Stein ser correlacionada com o binoacutemio

velamentodesvelamento que comanda tanto a analiacutetica da existecircncia como a histoacuteria do ser Na

perspectiva do pensador brasileiro a linguagem eacute manipulada por Heidegger de modo a que se aproxime

cada vez mais da estrutura ambiacutegua e circular dum processo de compreensatildeo que se move na relaccedilatildeo

circular do ser-aiacute com o ser Cf A Questatildeo do Meacutetodo na Filosofiahellip 114 638

Ernildo Stein Compreensatildeo e Finitude - Estrutura e movimento da interrogaccedilatildeo heideggeriana 364

343

assumir a temporalidade da palavra ldquoNuma filosofia do absoluto a linguagem

humana eacute feita agrave imagem e semelhanccedila de uma linguagem plena e absoluta

Enquanto que na filosofia da finitude a linguagem humana eacute desprovida de

modelo eacute construiacuteda experimentalmente Ele sabe que uma linguagem

absoluta somente eacute possiacutevel onde existe e eacute acessiacutevel o objecto absoluto e o

sujeito absoluto O que dissemos antes do conceito pode ser dito aqui a

respeito da palavra Natildeo a palavra eacute a forccedila do tempo mas o tempo eacute a forccedila

da palavra O poder da palavra nasce precisamente da temporalidade que

carrega em si e natildeo como na tradiccedilatildeo metafiacutesica em que o poder do tempo

nascia da palavra absoluta que em si ocultavardquo639

7 O desvendamento do ser como hermenecircutica

7 1 Emmanuel Carneiro Leatildeo

711 A novidade da hermenecircutica heideggeriana

No ensaio Heidegger e Wittgenstein - insensatez ou esquecimento da

Metafiacutesica Emmanuel Carneiro Leatildeo traccedila um mapa da filosofia

contemporacircnea destacando as ldquodiferenccedilas existenciais na geografia cultural do

ocidenterdquo

Assim segundo o pensador brasileiro poderiacuteamos pensar nesta geografia do

Ocidente duas regiotildees uma de cunho mais anglo-saxatildeo com irradiaccedilotildees para

a Escandinaacutevia e para a Ruacutessia outra com cunho mais franco-germacircnico com

irradiaccedilotildees para o Sul da Europa e Ameacuterica Latina Se na primeira destas

regiotildees encontra eco a tentativa de Wittgenstein de demonstrar que toda a

metafiacutesica sendo destituiacuteda de sentido eacute uma insensatez oriunda de uma

incompreensatildeo loacutegica da liacutengua nos nossos discursos na segunda encontrou

eco a repeticcedilatildeo da tradiccedilatildeo metafiacutesica por Heidegger visando natildeo competir

com ela mas ldquodespedi-lardquo

Contudo sublinha Carneiro Leatildeo pensados agrave luz dum Pensamento Radical

que pensa o pensar referindo-o agraves raiacutezes da sua proveniecircncia no jogo das

suas diferenccedilas essas duas obras abrem-se para a Identidade uma vez que

639

Ernildo Stein ldquoEm busca de uma Ontologia da Finituderdquo Revista Brasileira de Filosofia vol XIX

fasc 76 OutNov 1969 402

344

natildeo apenas Wittgenstein mas tambeacutem Heidegger suspeitam a Metafiacutesica de

insensatez Nesta suspeita Heidegger e Wittgenstein encontram-se aliaacutes com

as criacuteticas de Marx Nietzsche e Freud agrave Metafiacutesica que tambeacutem a colocam sob

a mesma suspeita

Segundo Carneiro Leatildeo estes autores no seu conjunto constituem o horizonte

actual do ldquopensamento criacuteticordquo em que nos movemos e com esse horizonte teraacute

de confrontar-se um Pensamento Radical A questatildeo que deve colocar a si

mesmo este ldquoPensamento Radicalrdquo dirige-se tanto agrave tradiccedilatildeo metafiacutesica

vigente quanto a este horizonte criacutetico aberto pela filosofia contemporacircnea

para perguntar ateacute que ponto este se insere na tradiccedilatildeo que critica e dela

depende ldquoA questatildeo que um Pensamento Radical impotildee aqui refere-se agrave

metafiacutesica vigente na sua proacutepria suspeita de insensatez Como se relaciona o

pensamento criacutetico da suspeita com a insensatez da metafiacutesica criticada Ateacute

que ponto e em que niacutevel o modelo de pensamento de um se insere ainda no

acircmbito da insensatez criticada pelo outrordquo640

Em A Morte do Pensador641 Carneiro Leatildeo retoma esta questatildeo no contexto

de uma reflexatildeo sobre o significado da obra de Heidegger no seu conjunto e da

clarificaccedilatildeo da relaccedilatildeo do pensador alematildeo com a tradiccedilatildeo filosoacutefica Carneiro

Leatildeo sublinha aiacute que a originalidade de um pensamento natildeo eacute a sua novidade

mas a ldquooriginariedade com que acolhe recolhe o apelo de futuro de uma

tradiccedilatildeo histoacutericardquo considerando que essa fidelidade agraves origens eacute a marca

caracteriacutestica do pensamento de Heidegger

Essa fidelidade encontra-a Carneiro Leatildeo na afinidade de Heidegger com o

natildeo-saber socraacutetico tal como o pensador do Oraacuteculo de Delfos natildeo negou

nem afirmou coisa alguma mas apenas assinalou o retraimento do misteacuterio

em toda a negaccedilatildeo e afirmaccedilatildeo assim tambeacutem Heidegger procurou sempre

reconduzir o pensamento ldquoao misteacuterio da sua fecunda identidaderdquo

Heidegger ter-se-ia confrontado com a histoacuteria da filosofia e as suas diferenccedilas

pensando-as como peripeacutecias que atestam a impossibilidade radical da

omnipotecircncia do pensar e a impossibilidade de este se apossar e possuir a

identidade de sua essecircncia

640

Emmanuel Carneiro Leatildeo ldquoHeidegger e Wittgenstein - insensatez ou esquecimento da Metafiacutesicaldquo in

Aprendendo a Pensar vol 1 Petroacutepolis 1976 136 641

Emmanuel Carneiro Leatildeo ldquoA Morte do Pensadorrdquo in Aprendendo a Pensar 1 142

345

Heidegger seria assim ao lado de Nietzsche o mais socraacutetico e traacutegico dos

pensadores modernos - esse socratismo de Heidegger faria dele um pensador

intempestivo que atenta contra os haacutebitos de pensar e os limites do dizer

impostos tanto pela tradiccedilatildeo filosoacutefica como tambeacutem pela linguagem actual da

teacutecnica e da ciecircncia Esta discursividade da metafiacutesica e da ciecircncia

estruturando-se de acordo com uma mesma sintaxe e uma mesma semacircntica

eacute directamente visada e posta em causa pelo pensamento de Heidegger que

face a estas assume uma feiccedilatildeo desconstrutiva e libertadora

O caraacutecter negativo e desconstrutivo da hermenecircutica heideggeriana eacute posto

poreacutem em correlaccedilatildeo estreita com a sua dimensatildeo positiva ela aponta

positivamente para o domiacutenio impensado que sustenta os discursos

metafiacutesicos como sua origem esquecida

Esse retorno agraves origens da Metafiacutesica natildeo eacute - sublinha Carneiro Leatildeo em O

Itineraacuterio do Pensamento de Heidegger - a tentativa de fazer renascer os

pensadores preacute-socraacuteticos como por vezes se pensa mas ldquoa imposiccedilatildeo de um

pensamento de essencializaccedilatildeo (das Wesentliche Denken diz Heidegger) um

pensamento que a partir da proacutepria essencializaccedilatildeo da metafiacutesica procura

superar-lhe o esquecimento da verdade do serldquo642

Neste ensaio o pensador brasileiro mostra que para Heidegger o

esquecimento da verdade do ser que na era da teacutecnica da ciecircncia atinge o seu

paroxismo e o seu maacuteximo vigor histoacuterico eacute o fundamento impensado de toda

a tradiccedilatildeo metafiacutesica O ser operando segundo a dialeacutectica da ldquore-velaccedilatildeo da

diferenccedila ontoloacutegicardquo retraindo-se e velando-se revela o ente lanccedilando o

pensar no jogo da dialeacutectica do fundado e do fundamento ldquoA verdade do ser

retraindo-se e velando-se em si extrai e revela o ente na divergecircncia e

convergecircncia entre fundamento e fundado Jogado por tal dialeacutectica o

pensamento metafiacutesico se edifica em duas dimensotildees Enquanto estruturado

na diferenccedila loacutegica de ente e ser reconduz o ente ao fundamento de

possibilidade proacuteximo em seu ser e remoto no ser supremordquo643

Ora diz Carneiro Leatildeo o horizonte dentro do qual pensam os pensadores da

tradiccedilatildeo ocidental exclui directamente e ao mesmo tempo inclui obliquamente a

642

Emmanuel Carneiro Leatildeo ldquoO Itineraacuterio do Pensamento de Heideggerrdquo in Aprendendo a Pensar 1

124 643

Emmanuel Carneiro Leatildeo ldquoO Itineraacuterio do Pensamento de Heideggerrdquo in Aprendendo a Pensar 1

124

346

dimensatildeo do natildeo pensado isto eacute a dimensatildeo da Verdade do ser sendo por

isso a dimensatildeo do natildeo pensado o mais importante legado que segundo

Heidegger nos pode oferecer um pensamento

Assim o que distingue a hermenecircutica heideggeriana de qualquer

hermenecircutica cientiacutefica eacute que esta uacuteltima se limita ao pensado pelos filoacutesofos

da tradiccedilatildeo - para ela legado e pensado coincidem enquanto a hermenecircutica

heideggeriana visa o natildeo pensado como o legado essencial do pensamento da

tradiccedilatildeo644

712 Hermenecircutica e Teologia

Em Hermenecircutica Revelaccedilatildeo Teologia Emmanuel Carneiro Leatildeo explicita o

sentido heideggeriano de ldquohermenecircuticardquo distinguindo o seu sentido originaacuterio

de um sentido secundaacuterio e derivado No sentido originaacuterio a hermenecircutica eacute

jaacute sempre o homem enquanto articula a compreensatildeo do mundo na fala e a

exerce enquanto linguagem faacutectica ou liacutengua Neste primeiro niacutevel a

hermenecircutica natildeo resulta de nenhuma decisatildeo mas da necessidade em que o

homem sempre estaacute de interpretar o mundo agrave volta

A hermenecircutica neste primeiro e originaacuterio sentido natildeo eacute teoria nem processo

de interpretaccedilatildeo mas sim a vida da linguagem enquanto ela eacute efectivamente

exercida como pluralidade das liacutenguas ldquoO homem eacute a vida da Linguagem

tanto no sentido de que sua humanidade chega a si mesma na passagem

reciacuteproca da liacutengua para a Linguagem como no sentido de que na sua

humanidade a Linguagem se daacute enquanto se retrai como liacutenguardquo645

Ainda a este primeiro niacutevel a hermenecircutica guarda sublinha Carneiro Leatildeo a

sua relaccedilatildeo com o misteacuterio pois ela eacute ldquoo acontecer da Linguagem do Misteacuterio

na estrutura da liacutenguardquo

A um segundo niacutevel a hermenecircutica eacute jaacute interpretaccedilatildeo consciente de si mesma

sem que contudo toda a interpretaccedilatildeo se possa considerar hermenecircutica com

efeito esclarece Carneiro Leatildeo em Hermenecircutica do Mito ldquonem toda a

644

ldquoEmmanuel Carneiro Leatildeo distingue trecircs nigraveveis de hermenecircutica denominando-os respectivamente

hermenecircutica fenomenoloacutegica hermenecircutica psicanaliacutetica e hermenecircutica existecircncial Privilegia esta

uacuteltima na suposiccedilatildeo de que permite descer ateacute agrave dinacircmica que estrutura a histoacuteriardquo Antoacutenio Paim A

Filosofia Brasileira Contemporacircnea 120 645

Emmanuel Carneiro Leatildeo ldquoHermenecircutica Revelaccedilatildeo Teologia ldquo in Aprendendo a Pensar 1 220

347

interpretaccedilatildeo eacute uma hermenecircutica Somente aquela que descer ateacute agrave dinacircmica

que estrutura a histoacuteriardquo646 Destacando o que marca uma determinada

interpretaccedilatildeo como ldquohermenecircuticardquo Carneiro Leatildeo parafraseando Heidegger

lembra que o verbo hermeneuein significa transmitir trazer mensagens sendo

Hermes o mensageiro dos deuses ldquoHo herneneuacutes pode ser posto em

referecircncia com Hermes o mensageiro dos deuses Ele traz e transmite a

mensagem do destino que trama as vicissitudes da histoacuteria dos homensrdquo647

No ensaio Hermenecircutica Revelaccedilatildeo e Teologia Carneiro Leatildeo esforccedila-se por

delimitar o acircmbito da hermenecircutica em relaccedilatildeo ao sentido corrente da

hermenecircutica considerada como o conjunto de leis meacutetodos teacutecnicas e

teorias de interpretaccedilatildeo ldquoaplicaacuteveis indiferentemente aos diversos tipos de

textos Neste sentido corrente a hermenecircutica eacute definida como a ciecircncia que

faz ldquoa leitura do sentido de uma estrutura significante em sua intenccedilatildeo

significativa dentro de uma comunidade linguiacutesticardquo648

Em flagrante ruptura com este pensamento objectivo da ciecircncia hermenecircutica

a hermenecircutica heideggeriana ou hermenecircutica existencial parte do princiacutepio

que qualquer interpretaccedilatildeo se vincula a uma preacute-compreensatildeo do ser daquilo

que se visa interpretar procurando enraizar-se num acircmbito de sentido mais

originaacuterio e nele fundar as suas decisotildees hermenecircuticas649 Estas decisotildees

hermenecircuticas natildeo satildeo poreacutem nunca arbitraacuterias mas satildeo-lhe impostas pela

ldquosituaccedilatildeo da existecircnciardquo Esta situaccedilatildeo da existecircncia poreacutem natildeo eacute sublinha

Carneiro Leatildeo um facto mas uma imposiccedilatildeo da ldquoeacutepoca de misteacuteriordquo em que se

situa o inteacuterprete ldquoA situaccedilatildeo da existecircncia poreacutem nunca eacute um simples fato

Inclui sempre o projecto de transcendecircncia do Nada em cuja forccedila o

pensamento emerge das circunstacircncias e fatos de uma dada imersatildeo histoacuterica

Uma interpretaccedilatildeo essencial nasce sempre de uma reflexatildeo sobre e a partir da

eacutepoca de misteacuterio em que interpreta o inteacuterpreterdquo650

646

Emmanuel Carneiro Leatildeo ldquoHermenecircutica do Mitordquo in Aprendendo a Pensar 1 196 647

Ibidem 196 648

Emmanuel Carneiro Leatildeo Aprendendo a Pensar 1 218 649

Para a elaboraccedilatildeo desta temaacutetica teve um papel relevante a confrontaccedilatildeo com a hermenecircutica

psicanaliacutetica levada a cabo nos ciacuterculos de estudos integrados por psicanalistas e orientados por

Emmanuel Carneiro Leatildeo Escreveu em colaboraccedilatildeo com Faacutebio Lacombe um livro intitulado Existecircncia

e Psicanaacutelise (Tempo Brasileiro 1975) Cf Antoacutenio Paim A Filosofia Brasileira Contemporacircnea 120 650

Emmanuel Carneiro Leatildeo ldquoHermenecircutica Revelaccedilatildeo Teologiardquo in Aprendendo a Pensar Petroacutepolis

1 213

348

Esta hermenecircutica natildeo eacute pois cientiacutefica nem enuncia propriamente um saber

seguro de si mesmo que possa possuir-se como certeza mas conteacutem em si

uma referecircncia agrave ldquoeacutepoca de misteacuteriordquo em que se situa

Eacute a partir desta referecircncia que podemos pensar a sua relaccedilatildeo negativa com a

Teologia Uma reflexatildeo radical sobre a actual eacutepoca da existecircncia mostra-nos

que ela eacute dominada pela transiecircncia isto eacute pelo projecto fundamental de uma

existecircncia trabalhada pela provisoriedade de tudo e de todos jogada pelo ritmo

acelerado que tudo condena ao efeacutemero Num tal mundo Deus estaacute tatildeo

distante que jaacute natildeo haacute lugar para o sagrado pelo que o homem actual natildeo

pode aceitar os dogmas as sentenccedilas e decisotildees de uma teologia como a

linguagem salviacutefica de Deus

Para Carneiro Leatildeo eacute precisamente desta recusa que a nossa eacutepoca opotildee agrave

racionalidade e agrave discursividade da Teologia que vem o apelo hermenecircutico

como apelo do proacuteprio misteacuterio a manter-se na sua vigecircncia misteriosa ldquoNa

raiz mais iacutentima do seu ser o homem nunca eacute ele mesmo mas eacute sempre o

movimento de reconduzir-se ao misteacuterio ou seja o homem eacute sempre ele

mesmo porque constantemente estaacute reconduzido ao misteacuteriordquo651

Para esta hermenecircutica existencial o homem eacute como para Nietzsche uma

ponte para aleacutem de si mesmo que por isso deve ter o vigor de deixar ser o

misteacuterio - e o misteacuterio natildeo eacute nunca o passageiro e o transiente mas o mais

permanente e originaacuterio A hermenecircutica eacute assim uma ldquonesciecircnciardquo ou uma

ldquoindocta ignoracircnciardquo que pertence de forma essencial agrave ciecircncia ldquoEsta

nesciecircncia nesciente do misteacuterio que se daacute enquanto se retrai em nossa eacutepoca

de misteacuterio eacute o princiacutepio fundamental de toda a hermenecircutica digna desse

nomerdquo652

Esta hermenecircutica existencial assume a forccedila nadificante do natildeo que age por

toda a parte como negaccedilatildeo do sagrado e assume que o dia dos deuses

(Goumlttertag) chegou ao ocaso no ocidente fazendo com que os homens e as

coisas jaacute natildeo estejam ldquoreunidos de modo visiacutevel e natural no seio de Cristordquo

Assumindo a morte de Deus como destino epocal do ser a hermenecircutica

existencial sabe que uma nova parusia natildeo depende do homem podendo

651

Ibidem 217 652

Ibidem 218

349

apenas caber-lhe e ele o papel de recuperar a sensibilidade para o misteacuterio da

existecircncia

Esta hermenecircutica existencial a que Emmanuel Carneiro Leatildeo chama tambeacutem

Pensamento Essencial aponta assim para uma ldquoconversatildeordquo que natildeo eacute no

entanto uma conversatildeo religiosa ldquoO que resta ao homem eacute apenas

preambular a feacute convertendo-se para a sua Essecircncia Nesta conversatildeo

recupera a sensibilidade para o misteacuterio da existecircncia o destino do Ser que

em irrupccedilotildees suacutebitas de sua verdade abre o caminho da Histoacuteria dos entes

Converter-se eacute mudar de pensar Cumpre abandonar o pensamento esquecido

na objectividade dos entes e absorto na eficiecircncia do real para se poder

recuperar a serenidade do Pensamento Essencial que pensa a Verdade do

Ser prorrompendo em adventos repentinos sobre a essecircncia dos entesrdquo653

Ora o pensamento essencial eacute o pensamento da mudanccedila do pensar da

metanoacuteia que eacute precursor do sagrado mas que natildeo conduz a nenhuma feacute

particular Ele eacute re-volucionaacuterio no sentido em que re-voluciona os haacutebitos de

pensamento concentrando-se naquelas negaccedilotildees que lhe permitem rasgar um

novo horizonte a sua negatividade deve atingir as formas metafiacutesicas

teoloacutegicas e religiosas com que a Divindade foi sepultada na histoacuteria do

Ocidente A metanoacuteia do pensamento essencial renuncia a todas as

representaccedilotildees tradicionais de Deus contaminadas pela metafiacutesica ldquoA

metafiacutesica se apoderou de todas as palavras de toda a gramaacutetica e de todas

as linguagens transformando-as em outras tantas funccedilotildees da sua estrutura

onto-teo-loacutegicardquo654

Esta estrutura onto-teo-loacutegica estaacute subjacente segundo Carneiro Leatildeo tanto

ao humanismo como ao monoteiacutesmo contaminando toda a linguagem usada

para falar de Deus e pervertendo toda a relaccedilatildeo do homem com o ser

Explicitando esta estrutura onto-teo-loacutegica Carneiro Leatildeo afirma que esta eacute

uma estrutura que integra o ocircntico o theos e o loacutegico sendo este o dominante

e a forccedila estruturante ldquoA metafiacutesica eacute onto-teoloacutegica porque eacute loacutegica E por ser

loacutegica abandona a diferenccedila como diferenccedila dinamiza uma ontologia sem Ser

653

Emmanuel Carneiro Leatildeo ldquoCristo e a Re-voluccedilatildeo do Pensamentordquo in Aprendendo a Pensar 1 226 654

Ibidem 229

350

e uma teologia sem Deus instala um sistema de controlo e promove uma

Histoacuteria sem misteacuteriordquo655

A loacutegica eacute uma estrutura ldquohipotaacuteticardquo das ideias que funda as ideias umas nas

outras incitando agrave procura dum uacuteltimo fundamento como principium essendi et

cognoscendi de toda a realidade Sendo loacutegico o itineraacuterio ateacute Deus

desenvolve-se no elemento do puro pensar e acaba em Hegel por identificar o

ser e pensar Em Hegel podemos compreender claramente a afirmaccedilatildeo de

Heidegger de que a metafiacutesica eacute loacutegica como onto-loacutegica na medida em que

pensa o ente no seu todo na dinacircmica do fundamento e fundado e eacute teologia

porque essa dinacircmica do fundamento eacute a do Absoluto que se pensa a si

mesmo

Assim a metafiacutesica eacute teoloacutegica por que eacute Loacutegica isto quer dizer que ldquoa

Verdade do ser se destinou na figura do Logos isto eacute na dinacircmica de

fundamentaccedilatildeo reivindicando todas as forccedilas da criaccedilatildeo histoacuterica para o

Absoluto da razatildeo e da racionalidaderdquo

Negando Deus como este Absoluto da razatildeo o pensamento essencial

renuncia pois a pensaacute-lo e a falar dele Contudo se a hermenecircutica actual natildeo

dispotildee de linguagem para falar de Deus nem mesmo para pensar Deus isso

natildeo significa que ela aponte em direcccedilatildeo ao ateiacutesmo ldquoMas este pensamento

sem Deus natildeo eacute um pensamento ateu Ao contraacuterio Por abandonar o Deus

dessacralizado da metafiacutesica estaacute mais proacutexima talvez do Deus divino O

silecircncio de Deus talvez seja a uacutenica maneira de vencer de forma decisiva a

dessacralizaccedilatildeo do mundo Talvez seja o cairos de um novo des-velar-se do

horizonte do Sagrado Um horizonte do Sagrado mais originaacuterio do que as

experiecircncias que nos proporcionam as religiotildees modernas cativas todas de

uma metafiacutesica mais teoloacutegica e mais dessacralizada do que nuncardquo656

Em coerecircncia com este pensamento essencial Emanuel Carneiro num artigo

intitulado ldquoPoder e Autoridade do Cristianismordquo questiona o cristianismo

instituiacutedo pela autoridade de uma longa tradiccedilatildeo literaacuteria e teoloacutegica

contrapondo-lhe a hermenecircutica pela primazia por esta concedida ao inefaacutevel e

ao misterioso Contra essa tradiccedilatildeo decaiacuteda o pensador brasileiro volta a

lembrar o sentido etimoloacutegica de hermenecircutica concluindo que ldquoHermeneuein

655

Emmanuel Carneiro Leatildeo ldquoHegel Heidegger e o Absolutordquo in Aprendendo a Pensar 1 257 656

Emmanuel Carneiro Leatildeo ldquoCristo e a Re-voluccedilatildeo do Pensamentordquo in Aprendendo a Pensar 1 230

351

interpretar natildeo diz conduzir alguma coisa para a claridade da razatildeo e o

discurso da liacutengua mas reconduzi-la a seu lugar de origem no misteacuterio da

Linguagemrdquo657 e reclama para a hermenecircutica a tarefa de uma autecircntica

interpretaccedilatildeo dos textos sagrados

Agrave autoridade do dogma que repete os mesmos enunciados em que pretende

tornar patente e fazer presente o misteacuterio Emmanuel Carneiro Leatildeo contrapotildee

uma outra forma de a hermenecircutica tornar vigente uma tradiccedilatildeo ldquoo ente eacute o

vigente seja o preacute-sente ta t‟eonta ndash o que eacute ndash seja o au-sente ta t‟essomena

ndash o que seraacute ndash e proacute t‟eonta- o que foi antes [hellip] Ora passado e futuro tambeacutem

satildeo vigentes Soacute que o modo da sua vigecircncia natildeo eacute a patecircncia do preacute-sente

mas a latecircncia do au-sente O au de au-secircnte natildeo diz dentro mas fora do

espaccedilo aberto pela patecircncia Sua vigecircncia eacute latente mas como tal referida

sempre pela identidade com o vigor agrave patecircncia do presente Eacute tatildeo profunda

esta re-ferecircncia que constitui a o sentido e a fonte da di-ferenccedila de presente e

ausenterdquo658

Para Carneiro Leatildeo toda a interpretaccedilatildeo autecircntica tem que ter em conta que

visando tornar presente o misteacuterio ela se move apenas no inevitaacutevel jogo da

identidade e das diferenccedilas do traduzir e interpretar uma mensagem que estaacute

ela mesma sempre para aleacutem de todas as suas formulaccedilotildees e se resguarda no

misteacuterio da ausecircncia

Esta linguagem do Misteacuterio do Cristianismo eacute para Emmanuel Carneiro Leatildeo

mais do que toda essa tradiccedilatildeo literaacuteria que a submeteu a muacuteltiplas

interpretaccedilotildees obscurecendo e encobrindo aquilo que devia interpretar Contra

essa tradiccedilatildeo decaiacuteda a hermenecircutica pode contribuir para recuperar a forccedila

instituinte do cristianismo ldquocairoloacutegicordquo e popular da Igreja Primitiva659

657

Emmanuel Carneiro Leatildeo ldquoPoder e Autoridade no Cristianismordquo in Aprendendo a Pensar Petroacutepolis

1 248 658

Ibidem 249 659

Esta valorizaccedilatildeo dum cristianismo primitivo deve ser correlacionada com a redescoberta da

importacircncia do mito Emmanuel Carneiro Leatildeo interroga-se sobre o sentido profundo da redescoberta

contemporacircnea da importacircncia do mito mostrando a significaccedilatildeo que ela assume para as filosofias

existenciais como afirmaccedilatildeo de uma verdade inquestionaacutevel relativa ao homem Cf Beneval de Oliveira

A Fenomenologia no Brasil 13

352

713 Hermenecircutica da eacutepoca contemporacircnea e pensar originaacuterio de Heidegger

Carneiro Leatildeo leva a cabo em diversos artigos uma hermenecircutica da eacutepoca

contemporacircnea que ele define como a era da ciecircncia porque eacute a ciecircncia que

na nossa era determina o ser e a verdade porque ela eacute o meio em que se faz

a experiecircncia e se determina o sentido de tudo o que eacute e eacute ela que decide da

histoacuteria humana

A ciecircncia que foi uma possibilidade historicamente concretizada pelo homem

ocidental cobre actualmente o mundo inteiro enformando os diversos povos e

impondo-se-lhes como um destino histoacuterico a que jaacute ningueacutem pode subtrair-se

por uma decisatildeo Contudo a questatildeo eacute para o autor saber qual a origem

desse destino histoacuterico que se bem que inescapaacutevel eacute contudo apenas

epocal e natildeo algo de intrinsecamente necessaacuterio para a existecircncia do

homem660

Para traccedilarmos a geacutenese histoacuterico-ontoloacutegica da ciecircncia haacute a considerar que

hoje jaacute natildeo podemos fazer uma separaccedilatildeo entre o ldquomundo da vida preacute-

cientiacuteficardquo e o mundo da ciecircncia pois jaacute a vida dos homens e da proacutepria

natureza se encontra transformada pelas invenccedilotildees industriais e pelos recursos

da teacutecnica - assim a nossa vida preacute-cientiacutefica jaacute se encontra sempre

determinada pela ciecircncia e jaacute nos achamos em seu poder ainda antes de

entrarmos nela

Esta dominaccedilatildeo da ciecircncia eacute contudo paradoxal pois a ciecircncia natildeo eacute um

fenoacutemeno existencial constitutivo do ser homem como o trabalho o amor ou o

domiacutenio natildeo sendo uma estrutura da existecircncia como eacute o desejo de saber ela

eacute poreacutem uma condiccedilatildeo histoacuterica um facto inescapaacutevel imposto por uma certa

configuraccedilatildeo das forccedilas histoacutericas que por assim dizer se apossaram daquele

desejo de saber e lhe deram essa configuraccedilatildeo particular de ldquociecircnciardquo a ciecircncia

eacute pois uma articulaccedilatildeo histoacuterica do desejo de saber originaacuterio ao contraacuterio da

filosofia que eacute um saber intrinsecamente vinculado agrave existecircncia e agrave sua

estrutura projectiva

660

Antoacutenio Paim sublinha que para Carneiro Leatildeo o homem estaacute naturalmente condicionado pelo desejo

de saber fenoacutemeno central da existecircncia mas que natildeo devemos identificar esse desejo originaacuterio de saber

com a ciecircncia ocidental que eacute uma configuraccedilatildeo histoacuterica e limitada daquele Cf A Filosofia Brasileira

Contemporacircnea 121

353

Porque ao homem pertence a compreensatildeo do ser natildeo estaacute na sua matildeo

subtrair-se agrave filosofia que lhe pertence sempre essencialmente O facto de na

era da ciecircncia caiacuterem as sombras do esquecimento sobre a filosofia eacute jaacute em si

mesmo um facto da maior importacircncia para caracterizar a eacutepoca actual Afirma

a este propoacutesito Carneiro Leatildeo ldquoNenhuma outra eacutepoca julgou tantas verdades

mas tambeacutem se incomodou tatildeo pouco com a essecircncia da verdade Nenhum

outro tempo fez tamanho progresso na conquista dos mundos sem no entanto

preocupar-se com a questatildeo da mundaneidade do mundo O alarido da ciecircncia

o roncar da teacutecnica enchendo-nos os ouvidos do esquecimento do ser

entorpece-nos as forccedilas do espiacuterito deixando a filosofia adormecida numa

paisagem de cogumelos atoacutemicosrdquo661

A explicitaccedilatildeo deste projecto metafiacutesico subjacente agrave ciecircncia moderna eacute

retomada num artigo sobre a Carta sobre o Humanismo onde o pensador

brasileiro retoma a caracterizaccedilatildeo da eacutepoca contemporacircnea a partir da sua

relaccedilatildeo com o humanismo e com a teacutecnica Aiacute Carneiro Leatildeo defende que

Heidegger procura redimensionar o humanismo pensando a proveniecircncia da

sua essecircncia a partir da experiecircncia fundamental do esquecimento do ser e

estabelece um nexo entre a temaacutetica do humanismo e a temaacutetica da teacutecnica

Para uma interpretaccedilatildeo humanista do homem ele eacute um ldquosujeitordquo e afirma-se

como uma subjectividade ldquosujeitando agraves forccedilas das suas proacute-spectivas teacutecnicas

o ser dos entesrdquo transformando-o na objectividade de simples objectos Assim

o ser eacute nada por se destinar tanto na objectividade-subjectividade do ente

como na subjectividade-objectividade do homem O homem afirma-se como

homem enquanto subjectividade que controla e estabelece os entes na

objectividade

Estabelecida a objectividade como valor supremo para o homem soacute tem valor

o ente capaz de ser objecto e a arte a religiatildeo a poesia e a filosofia soacute

possuem valor se puderem tornar-se objectos para a subjectividade

controladora A vigecircncia desta correlaccedilatildeo sujeito-objecto que na era da ciecircncia

e da teacutecnica atinge o paroxismo eacute pensada por Heidegger sublinha Carneiro

Leatildeo como ldquoeacutepocardquo do destinar-se do ser no esquecimento

Esta eacutepoca arrancando o homem agrave relaccedilatildeo com o ser em que reside a sua

essecircncia convoca o homem para a ldquonoite histoacutericardquo em que o homem erra

661

Emmanuel Carneiro Leatildeo ldquoA Filosofia na Idade da Cecircnciardquo Aprendendo a Pensar 1 28

354

perdido da sua essecircncia e da sua humanidade sendo essa a-patridade

essencial que vigora na planetarizaccedilatildeo do mundo moderno da teacutecnica Esta

noite histoacuterica do humanismo contemporacircneo natildeo depende de uma decisatildeo do

homem mas impotildee-se como um destino cujo sentido Carneiro Leatildeo clarifica a

partir do significado da palavra alematilde Geschick derivada do verbo schicken

estruturar dispor enviar Geschick reuacutene esses trecircs significados e articula o

sentido originaacuterio de geschehen vorstehen gehen lassen fazer ter lugar dar-

se acontecer - assim a eacutepoca actual eacute como toda a histoacuteria Ge-schick

destinaccedilatildeo do Ser enquanto envio do ser que se faz no homem

Pensar natildeo eacute exercitar uma faculdade da consciecircncia mas articular o destino

do ser que contudo ao destinar-se se reteacutem e esconde como destino Afirma

Carneiro Leatildeo ldquoHeidegger pensa tal dialeacutectica de dar-se e retrair-se no termo

epocheacute oriundo da nomenclatura de Stoaacute De epoche ele forma o adjectivo

epochal = epocal que significa o vigor dialeacutectico do destinar-se do serrdquo662

Por isso mesmo natildeo eacute possiacutevel pensar agrave margem do destino epocal do ser

mas eacute necessaacuterio precisamente assumir essa ldquonoite histoacutericardquo que enquanto

destino epocal do ser nos convoca a pensar ldquo[hellip] o que hoje nos eacute dado como

proacute-vocaccedilatildeo para pensar eacute a filosofia ocidental na forma da ciecircncia

modernardquo663 Por isso natildeo podemos pensar agrave margem da ciecircncia mas somos

obrigados a pensar no meio do proacuteprio desespero da ciecircncia que ldquose atropela

na impotecircncia do seu poder em alcanccedilar o misteacuterio do pensamentordquo

O propoacutesito da hermenecircutica esclarece Carneiro Leatildeo natildeo eacute substituir-se agrave

ciecircncia nem negar a ciecircncia mas remontar ao originaacuterio ldquooriginaacuterio natildeo diz

portanto uma determinaccedilatildeo cronoloacutegica nem indica uma explicaccedilatildeo diacroacutenica

do modo de ser Ocidental originaacuteria eacute a aurora em que a proacutepria escuridatildeo do

Ser se daacute sempre em novas vicissitudes de sua verdade ora como

pensamento ora como filosofia ora como cristianismo ora como modernidade

ora como ciecircncia ora como mito ora como teacutecnica ora como arte ora como

planetariedade ora como marginalidade mas sempre em qualquer hora tanto

outrora como agora soacute se daacute enquanto se retrai como misteacuteriordquo664

662

Emmanuel Carneiro Leatildeo ldquoSobre o Humanismordquo in Aprendendo a Pensar 1 131 663

Emmanuel Carneiro Leatildeo ldquoO Pensamento Originaacuteriordquo in Aprendendo a Pensar 1 87 664

Ibidem 90

355

Numa extensa apresentaccedilatildeo da traduccedilatildeo portuguesa da Introduccedilatildeo agrave

Metafiacutesica Carneiro Leatildeo esclarece esse pensar originaacuterio mostrando o

Itineraacuterio do Pensamento de Martin Heidegger como um remontar agrave origem da

ciecircncia e da teacutecnica que encontra essa origem na metafiacutesica grega ldquoA reflexatildeo

sobre a situaccedilatildeo da nossa existecircncia revela a consciecircncia de uma unidade e de

uma interrupccedilatildeo histoacuterica Sentimo-nos viandantes de um uacutenico Dia Histoacuterico

que se tende do sol nascente na aurora grega de Homero ao sol poente na era

atoacutemicardquo665

Procurando explicitar o sentido fundamental que a tradiccedilatildeo metafiacutesica assume

para Heidegger Carneiro Leatildeo mostra que nos diversos periacuteodos da Metafiacutesica

o ser do ente foi sucessivamente determinado como ideia ousia essentia

objectividade e estas diversas designaccedilotildees natildeo satildeo arbitraacuterias mas resultam

das ldquovicissitudes de um apelordquo e satildeo ldquofulguraccedilotildees de um destinordquo Esse apelo e

esse destino satildeo ldquoo fundamento em que se essencializa a diferenccedila irredutiacutevel

e a referecircncia necessaacuteria entre o ente e o seu serrdquo666

Carneiro Leatildeo sublinha que para Heidegger remontar agrave origem eacute encontrar a

questatildeo da diferenccedila ontoloacutegica como o fundamento impensado de toda a

tradiccedilatildeo metafiacutesica e dos vaacuterios periacuteodos da sua histoacuteria e que ldquoo famoso

esquecimento do ser (Seinsvergessenheit) natildeo eacute outra coisa do que o

esquecimento da diferenccedila ontoloacutegica Para Heidegger ela constitui o que eacute

mais digno de ser posto em questatildeo (das Frag-wuumlrdigste) e investigaacute-la eacute a

preocupaccedilatildeo central e uacutenica de toda a sua filosofiardquo667

O pensador brasileiro sublinha que a metafiacutesica eacute o fundamento em que se

edificou toda a civilizaccedilatildeo ocidental inclusive a sua eacutepoca actual caracterizada

pela ciecircncia e a teacutecnica ldquoA tecnocracia desenfreada o impeacuterio da ciecircncia a

estetificaccedilatildeo da arte a fuga dos deuses a massificaccedilatildeo do homem a

morganizaccedilatildeo planetaacuteria a disposiccedilatildeo da natureza os estados totalitaacuterios a

despotencializaccedilatildeo do espiacuterito todas essas manifestaccedilotildees do mundo ocidental

satildeo criaccedilotildees e obras do predomiacutenio da metafiacutesicardquo668

665

Emmanuel Carneiro Leatildeo ldquoO itineraacuterio do Pensamento de Heideggerrdquo in Aprendendo a Pensar 1

109 666

Ibidem 111 667

Ibidem 112 668

Ibidem 120

356

Contudo esta eacutepoca sem memoacuteria para o ser que se impocircs como o destino

histoacuterico do ocidente na figura da ciecircncia e da teacutecnica conteacutem em si o apelo e

a provocaccedilatildeo a ldquorecobrar dessa memoacuteriardquo que lhe permitiraacute instaurar um ldquoNovo

Dia Histoacutericordquo E eacute respondendo a esse apelo que a hermenecircutica

heideggeriana da Introduccedilatildeo agrave Metafiacutesica leva a cabo um retorno agrave fonte

originaacuteria da sua essencializaccedilatildeo O esforccedilo aiacute levado a cabo de interpretaccedilatildeo

e traduccedilatildeo dos preacute-socraacuteticos natildeo tem em vista um renascimento destes

pensadores mas o destruir as falsas interpretaccedilotildees que a tradiccedilatildeo metafiacutesica

foi deles instituindo ldquoHoje jaacute natildeo lemos o que os primeiros pensadores

pensaram mas o que outro modo de pensar nos faz perceber E natildeo o lemos

porque o alarido da metafiacutesica enchendo-nos os ouvidos de esquecimento do

Ser os torna surdos para a voz da origemrdquo669

Retornar agraves origens da metafiacutesica natildeo eacute um esforccedilo de fazer renascer os preacute-

socraacuteticos mas a ldquoimposiccedilatildeo de um pensamento de essencializaccedilatildeo (das

wesentliche Denken diz Heidegger) que a partir da proacutepria essencializaccedilatildeo da

metafiacutesica procura superar-lhe o esquecimento do serrdquo670

7 2 Joseacute Enes e o reencontro com a tradiccedilatildeo

Joseacute Enes eacute o pensador portuguecircs cujo pensamento mais deve ao diaacutelogo com

a obra de Heidegger de que revela um conhecimento global e uma

compreensatildeo rigorosa fundada no acesso directo aos textos embora esse

diaacutelogo se tenha centrado fundamentalmente na obra do ldquosegundo Heideggerrdquo

Reconhecendo a impossibilidade de regressar agrave tradiccedilatildeo metafiacutesica depois do

empreendimento criacutetico de Kant Joseacute Enes mostra que o grande contributo de

Heidegger foi ter mostrado na noeticidade671 hermenecircutica - proacutepria da

669

Ibidem 123 670

Ibidem 124 671

ldquoO verbo λοεηλ (noein) formado sobre o nome λοος ndash λοσς cuja mais fiel traduccedilatildeo latina eacute intellectus

[hellip] na linguagem filosoacutefica significa a forma mais perfeita de conhecimento intelectual Dele se

formaram os adjectivos λοεηός (noetoacutes) e λοεηηθός (noeacuteticos) O primeiro significa a qualidade intriacutenseca

que faz com que algo possa ser objecto do conhecer proacuteprio do noein e o latim traduziu-o por

intelligibilis e substantivado no geacutenero neutro λοεηόλ intelligibile denomina o objecto do noein o

segundo λοεηηθός (noeacutetico) designa a estrutura proacutepria do acto de cognoscitivo de noein e traduz-se por

intellectivus o neutro λοεηηθόλ tomado como substantivo serve como nome da faculdade ou energia

operativa que produz o acto cognoscitivo de noein [hellip] Noeacutetico portanto qualifica a proacutepria estrutura

energeacutetica da faculdade intelectiva como aquela que possui o mais alto grau de perfeiccedilatildeo cognoscitiva

Noeticidade na sua significaccedilatildeo abstracta designa esta mesma perfeiccedilatildeo noeacutetica Ora a perfeiccedilatildeo de uma

faculdade soacute se concretiza quando ela se encontra em acto no exerciacutecio da sua operaccedilatildeo proacutepria

Noeticidade expressa a excelecircncia eficaz do exerciacutecio a resultante completude do acabamento e o mais

357

experiecircncia da fala e presente em todo o acto locutoacuterio embora com diferentes

niacuteveis de consciencializaccedilatildeo - a uacutenica via segura para retomar a questatildeo do

ser

A dignificaccedilatildeo da linguagem como chave para a ldquouacutenica ontologia possiacutevelrdquo eacute

para Joseacute Enes o contributo essencial de Heidegger e eacute este caminho aberto

por Heidegger que o proacuteprio Joseacute Enes tomou em Agrave Porta do Ser

Para a escolha de um tal caminho Joseacute Enes aduz razotildees por um lado

fundadas na natureza da linguagem tal como ela foi posta a descoberto por

Humboldt e Heidegger por outro na actual eacutepoca histoacuterica agrave qual reconhece

serem vedadas as formas de acesso ao ser constituiacutedas pela Metafiacutesica

escolaacutestica eivada de paralogismos e por isso mesmo dotada duma validade

exclusivamente epocal

Joseacute Enes filia-se assim explicitamente na filosofia hermenecircutica inaugurada

por Heidegger cuja originalidade teria sido assumir essa noeticidade

hermenecircutica da fala enquanto tal como noeticidade do discurso filosoacutefico

Esta noeticidade hermenecircutica encontra-se como sublinha Joseacute Enes jaacute em

Sein und Zeit na medida em que aiacute Heidegger considera a linguagem como

um existenciaacuterio do Dasein (Rede) e mostra que nela se daacute a articulaccedilatildeo ante-

predicativa do sentido

Assumindo esta funccedilatildeo ontoloacutegica da linguagem mas natildeo aceitando o plano

transcendental dos existenciaacuterios que constitui o nuacutecleo de uma heranccedila

kantiana do ldquoprimeiro Heideggerrdquo Joseacute Enes insiste sobretudo no exerciacutecio

faacutectico da fala nas diversas liacutenguas histoacutericas analisado por Heidegger nas

obras posteriores a Ser e Tempo mostrando que na pluralidade das liacutenguas se

realizam diferentes aberturas de mundo

Em total fidelidade agrave funccedilatildeo de abertura de mundo consignada por Heidegger

agraves diversas liacutenguas histoacutericas Joseacute Enes destaca a ldquovalecircncia mundanizante da

linguagemrdquo como impondo sempre o horizonte de uma tradiccedilatildeo uma atmosfera

na qual como indiviacuteduos estamos destinados a respirar Em cada liacutengua

inscreve-se uma experiecircncia ontoloacutegica originaacuteria que pode ser posta a

descoberto atraveacutes do ldquoesquema semacircnticordquo de certos vocaacutebulos do patrimoacutenio

lexical como acontece com certas ldquometaacuteforas noeacuteticasrdquo e ldquoidiomatismosrdquo

alto grau de plenitude cognoscitiva do intelectordquo Joseacute Enes Noeticidade e Ontologia Lisboa 1999 10-

11

358

hermenecircuticos expressotildees de que uma liacutengua se apropria com tanta

exclusividade que nas outras liacutenguas natildeo haacute significados plenamente iguais672

Eacute pois tomando esta via heideggeriana da noeticidade hermenecircutica que Joseacute

Enes vai pocircr em causa a posiccedilatildeo de Heidegger face ao latim e agrave tradiccedilatildeo

filosoacutefica que se expressou nesta liacutengua recuperando a importacircncia da

tradiccedilatildeo escolaacutestica e reinterpretando a filosofia de S Tomaacutes Aquino como

referecircncia maior dessa tradiccedilatildeo

721 A noeticidade hermenecircutica em S Tomaacutes de Aquino

Joseacute Enes levou a cabo uma investigaccedilatildeo hermenecircutica sobre a obra de S

Tomaacutes de Aquino na sua tese de Doutoramento de 1969 intitulada Agrave Porta do

Ser - ensaio sobre a justificaccedilatildeo noeacutetica do juiacutezo de percepccedilatildeo externa em S

Tomaacutes de Aquino Esta investigaccedilatildeo inspirada na afirmaccedilatildeo de Heidegger em

Der Satz von Grund de que ―quanto maior eacute a obra de um pensador mais rico

eacute nessa obra o impensado tem como objectivo alcanccedilar o que na obra de S

Tomaacutes pensador de primeira grandeza na filosofia europeia permanece

impensado Explicitando o acircmbito da sua investigaccedilatildeo Joseacute Enes afirma

pretender mostrar como em S Tomaacutes ldquose revela o mais originaacuterio momento do

pensar aquele em que o pensamento entra pela primeira vez em contacto

com o serrdquo673 Essa pela primeira vez natildeo tem poreacutem um sentido cronoloacutegico

mas o sentido de momento originaacuterio do aperceber-se que o ser eacute isto eacute

ldquoperceber o ser na sua actualidade de ser e aperceber-se da certeza de tal

apercepccedilatildeordquo674

Natildeo pretende esse estudo fazer uma exposiccedilatildeo sistemaacutetica da filosofia de S

Tomaacutes de Aquino mas tatildeo-somente procurar em S Tomaacutes algo que estaacute em

todo o homem saacutebio ou inculto os juiacutezos de percepccedilatildeo675 que ldquojazem na zona

672

Luiacutes Manuel Bernardo salienta que o meacutetodo hermenecircutico de Joseacute Enes inclui trecircs fases uma

primeira que consiste na anaacutelise etimoloacutegica das metaacuteforas que as palavras carregam consigo e que

permite pocircr a claro as diferenccedilas entre as vaacuterias famiacutelias linguiacutesticas a segunda consiste na reelaboraccedilatildeo

linguiacutestica visando a reconstruccedilatildeo da palavra fiel ao sentido a terceira consistiria na aplicaccedilatildeo das duas

fases anteriores aos textos analisados Cf Luiacutes Manuel Bernardo ldquoA noccedilatildeo de Universo Ontoloacutegico na

Obra de Joseacute Enesrdquo in O Pensamento Luso-Galaico-Brasileiro 650 673

Joseacute Enes Agrave Porta do Ser Lisboa sd 15 674

Ibidem 16 675

ldquoA novidade aristoteacutelico-tomista consiste na noeticidade do estado de vigiacutelia O nuacutecleo desta

noeticidade viacutegil eacute o juiacutezo de percepccedilatildeo externa e interna com a respectiva justificaccedilatildeo noeacutetica Tal juiacutezo

359

antepredicativa como um impensado que de nascenccedila jamais poderaacute ser

pensado predicativamenterdquo676

Sobre os pressupostos metodoloacutegicos desta investigaccedilatildeo hermenecircutica afirma

no proacutelogo Joseacute Enes ldquo[] tanto o conhecer como o ser satildeo por natureza

manifestantes de si mesmos Quer isto dizer que o conhecer e o ser por

essecircncia satildeo fenoacutemenos entendendo portanto este vocaacutebulo no significado

genuiacuteno a que Heidegger o reduziu partindo da raiz de θαηλω como aquilo que

se manifesta a si mesmo ou por si mesmo vem agrave luz que o torna visiacutevelrdquo677

Esta investigaccedilatildeo fenomenoloacutegica natildeo tem poreacutem como Sein und Zeit afirma

Joseacute Enes uma finalidade ontoloacutegica nem antropoloacutegica mas apenas

gnoseoloacutegica isto eacute pretende apenas que o conhecimento do ser se revele

atendendo ao seu manifestar-se como conhecimento No entanto esta

fenomenologia do conhecimento aqui designada de noeacutetica implica ressalva

Joseacute Enes uma ontologia uma vez que o conhecimento e o ser se datildeo

reciprocamente

Como o conhecimento se manifesta essencialmente pela fala esta eacute para

Joseacute Enes o objecto privilegiado de investigaccedilatildeo fenomenoloacutegica devendo ser

entendida como ldquoprocesso expressivo metafoacutericordquo A metaacutefora eacute uma

comparaccedilatildeo que potildee duas coisas a par destacando ldquouma igualdade de

estrutura e comunhatildeo de destinosrdquo que natildeo chega contudo a atingir a

igualdade e a coincidecircncia a metaacutefora deriva de um procedimento analoacutegico e

natildeo a tem univocidade dos conceitos

Segundo Enes na comparaccedilatildeo metafoacuterica manifesta-se um impensado que

permaneceria impensaacutevel na formulaccedilatildeo predicativa esta valecircncia

manifestativa da metaacutefora eacute particularmente evidente na literatura no entanto

ela estaacute presente tambeacutem na linguagem vulgar assim como nas linguagens

abstractas das ciecircncias e da filosofia onde no entanto a habituaccedilatildeo do uso

dos vocaacutebulos para diferentes campos objectuais pode fazer com que se perca

toda a referecircncia agraves origens metafoacutericas dos conceitos

Joseacute Enes visa com a sua investigaccedilatildeo deixar que se mostre o conhecimento

do ser na sua manifestaccedilatildeo linguiacutestica e iraacute pesquisar essas manifestaccedilotildees

eacute a ldquoportardquo em que o homem intui o ser do mundo e dele mesmo os vigia e guardardquo Joseacute Enes

Noeticidade e Ontologia 9 676

Joseacute Enes Agrave Porta do Ser 17 677

Ibidem 17

360

linguiacutesticas que se apresentam como metaacuteforas noeacuteticas isto eacute como

metaacuteforas que o pensamento figura para se pensar a si proacuteprio Para Joseacute

Enes todas as expressotildees dos modos e actos do conhecimento satildeo

metafoacutericas soacute que o seu uso as tornou opacas encobrindo-se o seu sentido

originaacuterio que assim permanece impensado Eacute precisamente esse impensado

associado agrave ldquometaacutefora originalrdquo que se trata de pocircr a descoberto678

Explicitando esta orientaccedilatildeo metodoloacutegica afirma Joseacute Enes ldquoSe aquilo que

pretendemos atingir na presente investigaccedilatildeo eacute como dissemos a revelaccedilatildeo

do modo como o homem justifica os juiacutezos de percepccedilatildeo externa atraveacutes da

obra de S Tomaacutes e se tal justificaccedilatildeo se processa na zona antepredicativa e

se apercebe na zona transpredicativa o meacutetodo a seguir deve-nos encaminhar

para a descoberta das metaacuteforas noeacuteticas onde o impensado do pensar

quotidiano se torne pensado pelo modo uacutenico que tais metaacuteforas tornam

possiacutevelrdquo679

O primeiro procedimento metodoloacutegico eacute para o pensador portuguecircs a

etimologia que contudo ele distingue da pesquisa filoloacutegica De facto ele

pretende recuperar o sentido essencial (e etimoloacutegico) de etimologia que vem

de έηλοκ o autecircntico e o veraz e ιογος que se refere a este autecircntico e veraz

como recolha e manifestaccedilatildeo Etimologia significa para o autor ldquoa procura e a

manifestaccedilatildeo do autecircntico na veracidade da falardquo natildeo estando propriamente

em causa a busca filoloacutegica da raiz primitiva mas a revelaccedilatildeo do autecircntico

numa metaacutefora que se diz original pela expressividade do autecircntico e natildeo pela

anterioridade cronoloacutegica

O segundo procedimento metodoloacutegico fundamental eacute a elaboraccedilatildeo linguiacutestica

definida por Joseacute Enes como uma recriaccedilatildeo poeacutetica da linguagem a fim de

ldquotrazer agrave revelaccedilatildeo a latecircncia do impensadordquo pelo recurso agrave sugerecircncia

metafoacuterica Esta recriaccedilatildeo poeacutetica da linguagem encontra-a o autor nos textos

de S Tomaacutes de Aquino que se propotildeem dar a ver as verdades divinas ao

conhecimento humano ldquoO fundamento da potecircncia expressiva que a metaacutefora

possui reside na mesma natureza humana Por ser um espiacuterito incarnado uma

inteligecircncia unida funcionalmente agrave sensibilidade a revelaccedilatildeo da verdade abre-

678

Esta arqueologia das metaacuteforas visa um momento da constituiccedilatildeo do sentido preacute-loacutegico e preacute-

gramatical coincidente com o ldquointuitordquo Cf Luiacutes Manuel Bernardo ldquoA noccedilatildeo de Universo Ontoloacutegico na

Obra de Joseacute Enesrdquo in O Pensamento Luso-Galaico-Brasileiro 651 679

Joseacute Enes Agrave Porta do Ser 33

361

nos complexos sensiacuteveis [] daiacute o poder dizer-se que a sensibilidade eacute por

essecircncia metafoacuterica e a metaacutefora por essecircncia sensiacutevel [] Neste facto se

encontra a razatildeo principal para que na exposiccedilatildeo das verdades divinas se

proceda metaforicamente eacute por esse procedimento que elas se tornam

acessiacuteveis a todos os espiacuteritos predispostos pela feacute mesmo agravequeles que satildeo

rudes ou por falta de instruccedilatildeo ou por carecircncia de perspicaacutecia intelectivardquo680

Segundo Joseacute Enes encontra-se em S Tomaacutes uma reflexatildeo teoacuterica

embrionaacuteria sobre a necessidade de partir dos sinais e siacutembolos sensiacuteveis

como meio de manifestaccedilatildeo do que sem eles permaneceria oculto ou

impensado assim como o recurso a etimologias populares baseadas em

semelhanccedilas morfoloacutegicas e sonoras e a utilizaccedilatildeo de transferecircncias

metafoacutericas para a partir duma experiecircncia originaacuteria sugerir a essecircncia do

assunto em discussatildeo

Esta investigaccedilatildeo que toma como fio condutor a existecircncia duma

hermenecircutica natildeo totalmente consciente nem sistematizada nos textos de

STomaacutes de Aquino conduziu Joseacute Enes a encontrar na obra deste Doutor da

Igreja trecircs ldquometaacuteforas noeacuteticasrdquo fundamentais ldquoo intuitordquo ldquoo juiacutezordquo e ldquoa

demonstraccedilatildeordquo cuja anaacutelise levaraacute a cabo para por a claro esse nuacutecleo

ldquoimpensadordquo que acima referimos

722 O intuito e os juiacutezos de percepccedilatildeo externa

Esclarecendo na obra de 99 Noeticidade e Ontologia a presenccedila do termo

ldquointuitordquo em S Tomaacutes de Aquino afirma Joseacute Enes ldquoS Tomaacutes de Aquino

regista dois momentos no conhecimento intelectual O primeiro eacute o simplex

intuitos do intelecto dirigido para o inteligiacutevel E este primeiro movimento do

olhar intelectual eacute a focalizaccedilatildeo imediata do inteligiacutevel presente O intuito

simplesmente olha Mas este primeiro gesto ocular logo se inclina levado pela

apetecircncia da sua mesma intencionalidade para a dicccedilatildeo manifestativa do

inteligiacutevel quer em ordem ao aperfeiccediloamento da sua compreensatildeo do

inteligiacutevel atraveacutes do discurso quer para a comunicar a outrosrdquo681

680

Ibidem 45 681

Joseacute Enes Noeticidade e Ontologia 2627

362

O intuito designa o instante originaacuterio da constituiccedilatildeo do sentido irredutiacutevel ao

pensamento conceptual e ao discurso demonstrativo que contudo estaacute jaacute

dinamicamente orientado para um segundo momento discursivo

Para o esclarecimento da estrutura intencional do intuito Joseacute Enes recorre agrave

etimologia latina de Intuitos a partir de tueor donde derivam tutor tutela e

tutelar mostrando que na raiz etimoloacutegica estaacute a imagem da sentinela ou vigia

cujo olhar perscrutante se dirige para a casa do ser

Heidegger ter-se-ia aproximado desta intencionalidade do intuito quando na

Carta Sobre o Humanismo afirmou que o Dasein ldquopertence ao ser porque

lanccedilado pelo ser em vista agrave guarda da sua verdade e reivindicado pelo ser

para esta guarda ele pensa o serrdquo

O intuito como simplex inteligire eacute uma apreensatildeo preacute-conceptual que visa o

ser do ente682 Embora se trate dum conhecimento natildeo categorial que natildeo eacute

directamente transponiacutevel para o discurso proposicional ele eacute a condiccedilatildeo de

todas as operaccedilotildees intelectuais posteriores assim como de todo o discurso

verbal

Destacando a importacircncia desta captaccedilatildeo preacute-ontoloacutegica do ser afirma Joseacute

Enes ldquoAssim como o ouvido nada percebe senatildeo enquanto nele capta o som

assim tambeacutem a inteligecircncia nada intui senatildeo enquanto nele apreende o ser O

ser eacute a medida da realidade e a medida da cognoscibilidaderdquo683

O ldquojuiacutezordquo eacute tomado por Joseacute Enes como a segunda metaacutefora noeacutetica que ele

vai esclarecer a partir da sua origem no campo juriacutedico onde o juiacutezo tem um

sentido normativo associado ao dizer o que eacute justo daquele que julga A sua

aplicaccedilatildeo a outros contextos em S Tomaacutes manteacutem segundo Joseacute Enes o seu

sentido originaacuterio assim S Tomaacutes atribui os juiacutezos natildeo soacute agrave inteligecircncia e agrave

razatildeo mas tambeacutem agrave vontade (judicium electionis) e aos sentidos (judicium

sensus) O juiacutezo eacute assim uma segunda operaccedilatildeo intelectual que envolve

muacuteltiplas dimensotildees e que visa determinar rigorosamente o ente

determinando-se tambeacutem a si mesmo atraveacutes do dizer e do definir

682

A descoberta de um conhecimento ontoloacutegico antepredicativo dado pelo proacuteprio sentir eacute a novidade

do pensamento de Joseacute Enes Cf Luiacutes Manuel Bernardo ldquoA noccedilatildeo de Universo Ontoloacutegico na Obra de

Joseacute Enesrdquo in O Pensamento Luso-Galaico-Brasileiro 651 683

Joseacute Enes Agrave Porta do Ser 102

363

Joseacute Enes distingue poreacutem dois tipos de juiacutezos proacuteprios do conhecer o juiacutezo

do intelecto que pronuncia o assentimento ou natildeo assentimento a uma verdade

e os juiacutezos da razatildeo que implicam o componere e dividere desdobrando

conceptualmente o que judicium intelectus entende e aprova

Satildeo estes juiacutezos da razatildeo que satildeo articulados discursivamente na

ldquodemonstraccedilatildeordquo (a terceira metaacutefora noeacutetica) visando a sua certificaccedilatildeo atraveacutes

dum remontar aos primeiros princiacutepios atraveacutes das operaccedilotildees da resolutio e da

reductio Sendo poreacutem a razatildeo um exame regressivo agraves origens ela depende

de uma origem intuitiva latente nos processos predicativos que afinal ela

apenas justifica circularmente e certifica ldquoA verdade antepredicativa

fundamenta e estimula a verdade predicativa por sua vez esta conteacutem e

conserva aquela e estimula a consciencializaccedilatildeo expliacutecita da verdade

transpredicativa e esta justifica certificando-a sem apelo ulterior a verdade

predicativardquo684 Todo o conhecimento demonstrativo e cientiacutefico parte do intuito

e reencontra o intuito no fim da sua circularidade demonstrativa

Contudo a questatildeo que focaliza a intenccedilatildeo hermenecircutica de Joseacute Enes natildeo eacute

esta actividade judicativa proacutepria da razatildeo mas os ldquojuiacutezos de percepccedilatildeo

externardquo que afirmam a existecircncia de um ser numa circunstacircncia espacio-

temporal A questatildeo sobre a qual Joseacute Enes vai reflectir eacute como resolve S

Tomaacutes o problema da origem dos juiacutezos de percepccedilatildeo externa ou dos juiacutezos

de existecircncia que sendo juiacutezos sobre indiviacuteduos caem na metafiacutesica

aristoteacutelica fora do acircmbito da ciecircncia

O primeiro contacto original e originante com o ser actual surge quando este

cai sob a alccedilada dos sentidos e esse eacute o uacutenico meio para conhecer uma

realidade mundana sendo nessa fronteira que surgem os juiacutezos de percepccedilatildeo

externa Contudo se existecircncia das coisas natildeo eacute para S Tomaacutes objecto de

demonstraccedilatildeo racional ela tambeacutem natildeo eacute uma feacute sencista Ela eacute uma certeza

metafiacutesica que tem a sua origem na experiecircncia vigilante do intuito que vigia

quanto ao seu redor lhe desperta os sentidos O intuito eacute confeiccediloado pela

sensibilidade evidenciando a diferenccedila da inteligecircncia humana em relaccedilatildeo agrave

divina e simultaneamente a diferenccedila da sensibilidade humana em relaccedilatildeo agrave

animal

684

Ibidem 134

364

Segundo S Tomaacutes os sentidos anunciam a coisa ao intuito eles satildeo arauto

das coisas o seu sentir ergue-se como a voz da mensagem dirigida pelo outro

ao intuito que deve decifrar essa mensagem Esta decifraccedilatildeo compele o intuito

agrave acccedilatildeo que soacute ela permite experimentar a resistecircncia e a solidez da coisa na

sua alteridade pela tentativa da sua negaccedilatildeo

A experiecircncia ontoloacutegica fundamental eacute um pocircr agrave prova os entes atraveacutes de

uma experiecircncia atravessada pela hipoacuteteses do nada e que deve triunfar sobre

essa hipoacutetese para alcanccedilar o ser ldquoNa verdade feita a prova se a coisa resiste

e se mostra soacutelida na sua unidade consistente de identidade consigo mesma

entatildeo o intuito a percebe como um outro e ao homem como o outro que em tal

experiecircncia se consolida na sua proacutepria consistecircncia conatural agrave da coisa A

esperanccedila conforta-se entatildeo na solidariedade da companhia do mundo onde

se insere como rota dos caminhos do serrdquo685

Esta experiecircncia ontoloacutegica fundamental eacute encontrada por Joseacute Enes natildeo na

discussatildeo tomista sobre a metafiacutesica aristoteacutelica mas nos textos em que S

Tomaacutes mostra como Cristo provou aos apoacutestolos a verdade da sua

ressurreiccedilatildeo Por um processo de transposiccedilatildeo metafoacuterica Joseacute Enes transfere

a certificaccedilatildeo da ressurreiccedilatildeo para a formulaccedilatildeo dos juiacutezos de existecircncia em

geral e aclara a experiecircncia ontoloacutegica fundamental pela qual qualquer homem

ganha a consciecircncia da realidade do mundo e de si mesmo como ser-no

mundo

Ora a acccedilatildeo de apalpar com a qual os apoacutestolos se certificaram da realidade

do corpo de Cristo eacute tomada por Joseacute Enes como uma metaacutefora noeacutetica da

pergunta ou da quaestio cujo sentido etimoloacutegico proacuteximo do termo alematildeo

frage expressa ldquoo sentido de carecircncia o desejo de satisfaccedilatildeo conhecitiva e a

peticcedilatildeo inquisitivardquo proacuteprios do intuito

O que cumpre aqui sublinhar eacute o acircmbito religioso de que procede a metaacutefora

inspeccionada por Joseacute Enes referente a uma experiecircncia do numinoso e do

sagrado assim como a origem etimoloacutegica encontrada para o termo alematildeo

fragen (do sacircnscrito praumlt correspondente ao latim preces) que aponta para o

mesmo campo semacircntico Esta experiecircncia religiosa originaacuteria segundo o

pensador portuguecircs repercute no uso filosoacutefico da quaestio (figura central do

ensino da filosofia da esoclaacutestica medieval) e do fragen (figura central do

685

Ibidem 324

365

percurso filosoacutefico heideggeriano) que assim se vecircm aproximadas ldquoA

pergunta significada em quaestio e frage queda-se na interioridade individual

do intuito e se tende para o outro eacute para o assumir numa verticalidade

transcendenterdquo686

Se esta atitude interrogativa do questionar filosoacutefico implica uma abertura para

a transcendecircncia ela implica que o homem que se questiona sobre o ser

assuma para consigo uma atitude de visionamento profeacutetico em ordem a

possibilitar ldquoa revelaccedilatildeordquo daquilo sobre que potildee a questatildeo este seria o sentido

da afirmaccedilatildeo heideggeriana de que o questionar eacute a devoccedilatildeo do pensar (das

Fragen ist die Froumlmigkeit des Denkens)

Esta abertura para a transcendecircncia do intuito permite ainda a Joseacute Enes uma

certa aproximaccedilatildeo com a noccedilatildeo de abertura ex-taacutetica do Dasein em Heidegger

ldquoHeidegger caracterizou o ex-sistir humano tambeacutem como um destacamento

num onde em que o intuito se abre para o ser Contrapondo o sentido que no

seu pensamento assume a existecircncia ao que tradicionalmente significava

como actualidade e realidade por oposiccedilatildeo agrave possibilidade define a existecircncia

humana como um ek-sistere enquanto por esta palavra nova quer dizer que o

homem se caracteriza essencialmente por estar na abertura de si mesmo como

o onde em que a verdade do ser se manifestardquo687

No entanto esta aproximaccedilatildeo natildeo pode segundo Joseacute Enes apagar as

diferenccedilas entre o modo de abertura ao ser em S Tomaacutes e em Heidegger

autor que tende para a ldquointelecccedilatildeo do Ser obtida extaticamente num estado de

independecircncia da colaboraccedilatildeo noeacutetica dos sentidosrdquo688 De facto na

interpretaccedilatildeo de Joseacute Enes a verticalidade da ek-sistecircncia heideggeriana

partindo da base sensiacutevel dirige-se por uma excedecircncia do estado natural

para uma intelecccedilatildeo pura ldquonatildeo isenta de misticismo quietistardquo

Ao contraacuterio em S Tomaacutes encontra-se salientada uma ldquoexperiecircncia noeacuteticardquo

indesmembraacutevel em que os sentidos satildeo indissociaacuteveis da inteligecircncia Na

experiecircncia do intuito encontra-se implicada toda a ldquotrama da complexidade

vivencial em que o homem age e reage como um todo espiritual e corpoacutereo

686

Ibidem 326 687

Ibidem 334 688

Ibidem 334

366

sob solicitaccedilatildeo circundantes e sob o impulso das tendecircncias vitais da sua

naturezardquo689

Ao intuito o ser das coisas desvenda-se como re-sisitr porque embora elas

existam natildeo existem como o homem pois o seu existir revela-se como uma re-

acccedilatildeo e como re-sposta Pelo contraacuterio embora enquanto corpoacutereo o homem

tambeacutem seja um ser que re-siste como esse resistir do corpo humano eacute

utilizado pelo intuito como instrumento para descobrir o ser das coisas o re

transforma-se no ex de ex-sistecircncia que aqui indica e assinala o homem como

ser donde parte a revelaccedilatildeo do ser das coisas

Traduzindo a caracterizaccedilatildeo do homem como Da-sein para o contexto de

sentido descoberto em S Tomaacutes de Aquino Joseacute Enes afirma ldquo[hellip] em

portuguecircs melhor diriacuteamos que o homem vecirc e toca e percebe e investiga e

julga de caacute e as coisas respondem reagem e resistem de laacute O caacute eacute

intransferiacutevel pela razatildeo uacuteltima de nele se abrir o intuito agrave guarda do Serrdquo690

A traduccedilatildeo da caracterizaccedilatildeo heideggeriana do ser das coisas que natildeo satildeo agrave

maneira do Dasein jaacute parece a Joseacute Enes mais problemaacutetica - segundo Enes

haveria uma impossibilidade de Sein und Zeit determinar o ser dos entes que

vecircm ao encontro do Dasein

Esta impossibilidade seria inerente agrave heranccedila kantiana que pesa sobre o

projecto de investigaccedilatildeo de Ser e Tempo e que postula como obrigaccedilatildeo preacutevia

a indagaccedilatildeo das condiccedilotildees de toda a investigaccedilatildeo ontoloacutegica Tais condiccedilotildees

segundo a investigaccedilatildeo de Sein und Zeit satildeo precisamente as estruturas do

homem como Dasein o ente que eacute ele mesmo a possibilidade de qualquer

investigaccedilatildeo ontoloacutegica sobre qualquer outro ente

Cumprindo esta exigecircncia kantiana a investigaccedilatildeo fenomenoloacutegica de Sein

und Zeit tomou assim a feiccedilatildeo de uma analiacutetica existencial visando determinar

as categorias a priori ou existenciaacuterios por reduccedilatildeo aos quais seraacute justificada a

manifestaccedilatildeo daquilo que se manifesta

Joseacute Enes salienta que se bem que Heidegger reconheccedila a re-sistecircncia dos

entes intra-mundanos natildeo daacute a essa resistecircncia um caraacutecter ontoloacutegico

afirmando antes que este encontro do homem com as coisas soacute pode

689

Ibidem 340 690

Ibidem 337

367

manifestar-se na medida em que o homem se encontra sempre jaacute num mundo

O mundo poreacutem natildeo eacute independente do homem mas abre-se

transcendentalmente ao homem como triacuteplice horizonte da temporalidade na

sua unidade extaacutetica O mundo que se abre ao homem no horizonte da

temporalidade natildeo eacute algo que se distingue do homem como realidade mas uma

ldquoatmosfera envolventerdquo onde o existir do homem se situa

Segundo Joseacute Enes ldquoo primado da afectividade e o pendor metodoloacutegico para

a reduccedilatildeo categorial natildeo podiam deixar de afastar a anaacutelise fenomenoloacutegica de

Ser e Tempo deste intuito aberto ao ser de tudo o que lhe vem ao encontrordquo691

Movido por tais consideraccedilotildees metodoloacutegicas Heidegger teria dissolvido a

consistecircncia ontoloacutegica das coisas na simples presenccedila e utilizabilidade dos

entes intra-mundanos determinados pelas categorias de zuhandenheit e

vorhandenheit

Contudo Joseacute Enes reconhece que apoacutes Sein und Zeit Heidegger prossegue

a sua investigaccedilatildeo sobre o ser proacuteprio das coisas procurando o modo pelo

qual se deu o seu ocultamento na linguagem predicativa do quotidiano assim

como na linguagem da ciecircncia e da metafiacutesica e chamando a atenccedilatildeo para a

necessidade de conceder campo livre para que a coisa se mostre na sua

condiccedilatildeo proacutepria

Joseacute Enes vai por isso analisar detalhadamente dois momentos dessa

temaacutetica do ldquosegundo Heideggerrdquo designadamente em A Origem da Obra de

arte e no ensaio sobre A Coisa Identificando em A Origem da Obra de Arte

ldquoalgo de indefinidordquo que liberta a coisa da sujeiccedilatildeo instrumental a que tinha sido

submetida em Sein und Zeit Joseacute Enes assinala contudo que aiacute a primazia da

mundaneidade da obra de arte sobrepotildee-se agrave simples caracterizaccedilatildeo da coisa

como tal Eacute assim no ensaio A Coisa que Joseacute Enes vecirc o momento

fundamental de reelaboraccedilatildeo desta temaacutetica pois aiacute eacute a coisa enquanto tal e

natildeo enquanto obra de arte que estaacute em questatildeo

Nesse ensaio a coisa instaura um mundo que natildeo eacute senatildeo o jogo de espelhos

que traz agrave presenccedila simultacircnea os deuses os mortais o ceacuteu e a terra Na sua

simplicidade a coisa reuacutene em si esse jogo especular e torna-o presente

ldquoDeixar a coisa ser como eacute como coisa consiste portanto em restituir-lhe a

liberdade de iniciativa para a convocaccedilatildeo mundanal A partir deste mundo

691

Ibidem 363

368

concitado pela coisa o qual joga o jogo dos espelhos na simplicidade dos

quatro convocados pensamos a coisa como coisa Pensando deste modo

deixamo-nos aproximar pelo ser da coisa pelo ser que joga o jogo do

mundordquo692

Contudo Joseacute Enes nota que Heidegger se bem que mostre esse domiacutenio

ontoloacutegico fundamental a partir da qual podemos abrir-nos ao ser da coisa

como tal desvia-se neste mesmo ensaio do sentido etimoloacutegico de Ding

proacuteximo do latim res ambos apontando para assunto em discussatildeo e aquilo

que eacute objecto de disputa colectiva

Este campo semacircntico aponta precisamente segundo Joseacute Enes para o juiacutezo

como lugar de manifestaccedilatildeo do ser da coisa (tratando-se aqui de um juiacutezo da

inteligecircncia e natildeo da razatildeo) Para melhor determinaccedilatildeo do conceito de res em

S Tomaacutes de Aquino Joseacute Enes afirma que aquele natildeo confundiu res com ens

lembrando que ens deriva de esse enquanto res aponta para a essecircncia e

pode assim ser traduzido por coisa enquanto tudo o que eacute alguma coisa O

intuito no primeiro contacto vigilante com a coisa desvenda-a enquanto tem

um ser proacuteprio diferente de todas as outras como a unidade daquilo que eacute

soacutelido e consistente em si mesmo A coisa manifesta-se ao intuito como fuacutesis

isto eacute como dotada dum dinamismo interno e uma forccedila imanente ou como res

naturalis

723 A Verdade e o Ser

O intuito visa no entanto natildeo apenas o ser de cada coisa mas a totalidade do

universo que se lhe dirige como um rogar ldquoAs coisas satildeo interrogantes na

medida em que se dirigem no conjunto do universo ao intuito como ponto de

mira para o qual todas elas constituem um universo ou seja um todo virado

para um soacute alvo e enquanto aquele dirigir-se eacute um rogarrdquo693

Os que as coisas rogam eacute ser compreendidas na sua razatildeo de ser isto eacute na

sua estrutura e destinaccedilatildeo que o intuito visa decifrar enquanto pressentimento

e decifraccedilatildeo simboacutelica manifestas nas artes divinatoacuterias e na astrologia de que

692

Ibidem 363 693

Ibidem 397

369

a filosofia a ciecircncia e a teologia satildeo aperfeiccediloamentos694 Estas uacuteltimas

manifestam a consideraccedilatildeo racional da totalidade das coisas despida das

imagens oniacutericas e dos devaneios da imaginaccedilatildeo sendo contudo essa

consideraccedilatildeo orientada pelas coordenadas do intuito e pelo seu cuidado

vigilante

Se o intuito coloca o homem agrave porta do ser eacute em resposta a um apelo do ser

apelo que contudo solicita um acabamento e aperfeiccediloamento da

compreensatildeo que soacute podem ser levados a cabo pela actividade judicativa da

razatildeo

Ora o ser assoma ao intuito num quecirc expressaacutevel pela fala que imita e exprime

o sentir e assim toda a investigaccedilatildeo deve comeccedilar pela decifraccedilatildeo do nome

ldquoOra se o nome eacute a medida do que nasce como sugerimos na exposiccedilatildeo do

nosso meacutetodo aiacute mesmo encontramos a razatildeo de antes de proceder agrave procura

do quecirc do ser termos que entender a significaccedilatildeo do nome no fazer-se do

sinal se persegue o caminho seguido pelo intuito na apercepccedilatildeo do serrdquo695

Contudo a compreensatildeo do ser das coisas natildeo pode ficar pelo nome o proacuteprio

intuito possui o impulso tendencial para a penetraccedilatildeo completa do que o ser eacute

e exige a actividade da judicativa e ratificante da razatildeo A pergunta pelo

porquecirc ou pelas causas estaacute associada a esta actividade da razatildeo mas duma

razatildeo que tanto em S Tomaacutes como em Aristoacuteteles estaacute sempre associada agrave

experiecircncia (e portanto ao intuito) partindo dela e tomando-a sempre em

consideraccedilatildeo na sua actividade judicativa

Assim Joseacute Enes afirma que em S Tomaacutes a ldquoidentidade necessidade ordem

e simplicidade satildeo os modos por que a natureza se manifesta ao ser do agir

Apercebidos pelo intuito estes modos assumem a funccedilatildeo de princiacutepios

iluminadores da busca racional dos porquecircs ou razotildees das coisasrdquo696Sempre

comandadas pelo intuito as ciecircncias vatildeo evoluindo para o progressivo

discernimento racional das causas de modo a permitir que o ser se revele de

forma crescente O conhecimento cientiacutefico ou racional tem a forma de

694

A evidecircncia do ser ao intuito eacute o ponto de partida mas natildeo o ponto de chegada pois existecircncia

humana natildeo pode viver na simplicidade de um tal aparecer mas supotildee a interrogaccedilatildeo sobre o sentido

dessa primeira experiecircncia Cf Luigraves Manuel Bernardo ldquoA noccedilatildeo de Universo Ontoloacutegico na Obra de Joseacute

Enesrdquo in O Pensamento Luso-Galaico-Brasileiro 656 695

Joseacute Enes Agrave Porta do Ser 423424 696

Ibidem 429

370

enunciados e eacute um conhecimento proposicional incessantemente rectificaacutevel e

aperfeiccediloaacutevel pela experiecircncia

A discussatildeo sobre o problema da verdade levada a cabo por S Tomaacutes eacute

acompanhada por Joseacute Enes a partir dos textos de De Veritate e aparece em Agrave

Porta do Ser minuciosamente exposta evidenciando as diversas fontes (Santo

Agostinho Aristoacuteteles Santo Anselmo) e a instabilidade interpretativa do autor

Joseacute Enes procura mostrar como esta instabilidade hermenecircutica em S

Tomaacutes atesta a coexistecircncia na sua obra da concepccedilatildeo gnoseoloacutegica da

verdade como concordacircncia entre o enunciado e a coisa com uma concepccedilatildeo

de verdade ontoloacutegica que identifica a verdade com o ser O caminho para uma

possiacutevel conciliaccedilatildeo entre estas duas concepccedilotildees de verdade encontra-a Joseacute

Enes na afirmaccedilatildeo feita por S Tomaacutes de que a verdade natildeo reside no

enunciado ou na proposiccedilatildeo (uma vez que haacute proposiccedilotildees verdadeiras e

proposiccedilotildees falsas) mas sim numa reflexatildeo sobre o enunciado visando a

verificaccedilatildeo da sua verdade

Segundo S Tomaacutes essa reflexividade acompanha o juiacutezo e a actividade

judicativa da razatildeo que na sua actividade judicativa atribui ou nega o ser agraves

coisas sem coincidir totalmente com esse juiacutezo Esta actividade reflexiva

supra-racional seria ela mesma o intuito ldquoDaqui poderemos concluir que a

verdade formal supotildee um conhecimento superior ao juiacutezo racional embora se

natildeo exerccedila senatildeo quando este se pronuncia Aquele conhecimento superior ao

racional e predicativo eacute a percepccedilatildeo e o juiacutezo da inteligecircncia pura os dois

actos do intuitordquo697

Esta identificaccedilatildeo do intuito como uacuteltimo momento de ldquoapercebimento da

verdaderdquo ou do conformari cum rebus que se encontra pressuposta ou

sugerida em S Tomaacutes supotildee um juiacutezo de percepccedilatildeo formalmente impliacutecito

isto eacute uma percepccedilatildeo de que haacute coisas e do que satildeo as coisas

Assim podemos dizer que o primeiro revelar-se do ser das coisas ao intuito

sendo preacute-racional conteacutem virtualmente e implicitamente este uacuteltimo juiacutezo da

conformidade com o ser das coisas que surge no termo da demonstraccedilatildeo

racional como sua verificaccedilatildeo

697

Ibidem 482

371

Esta leitura de Joseacute Enes permite detectar em S Tomaacutes uma primazia

gnoseoloacutegia do intuito sobre a discursividade da razatildeo e como seu correlato a

primazia da verdade ontoloacutegica pensada no sentido heideggeriano de

manifestaccedilatildeo do ser ldquoSe atendermos poreacutem agrave verdade como manifestaccedilatildeo do

ser devemos insistir na primeira foacutermula e dizer que o lugar onde a verdade se

abre como abrigo do ser eacute o intuitordquo698

Assim a proacutepria ideia da verdade como conformidade que se encontra

tambeacutem presente em S Tomaacutes encontra-se modificada por esta interpretaccedilatildeo

de Joseacute Enes pois natildeo se trata aqui tanto da conformidade do juiacutezo com as

coisas mas duma consonacircncia entre o ser do homem e o ser das coisas

ldquoAgora conformari estaacute na consonacircncia que ressoa no intuito como voz vinda

do ser do homem e das coisas e pela qual cada um natildeo pode ser senatildeo pelo

que o outro eacute na relaccedilatildeo com eleldquo699

Aleacutem disso nesta ideia de conformidade natildeo estaacute apenas em causa o ser de

cada coisa individualmente considerada mas o ser da natureza no seu

conjunto pois eacute ela que o intuito visa em uacuteltima anaacutelise como acima vimos ldquoS

Tomaacutes natildeo diz conformari cum res mas conformari cum rebus O ser que

assim se manifesta natildeo eacute o de cada coisa delimitada na unidade singular e

atoacutemica de substacircncias individuais mas o ser da natureza de que afirma ser

manifestordquo700

Na experiecircncia antepredicativa do intuito o ser de cada coisa encomenda-se ao

ver do intuito e essa visatildeo eacute ela mesma a luz do ser luz englobante que resulta

do encontro de ambos ldquoNeste ver o intuito salva a si mesmo e agraves coisas na luz

que de dentro de ambos se aclara e se manifesta soacute quando ambos se

encontram E essa luz eacute o mesmo serrdquo701

Assim afirma Joseacute Enes o ser eacute a causa da verdade tendo causa aqui um

sentido judicial eacute por causa do ser que o intuito se preocupa e ocupa em

discernir as coisas eacute por causa do intuito que as coisas satildeo postas em causa

em tal discernimento como manifestaccedilotildees do ser

698

Ibidem 482 699

Ibidem 484 700

Ibidem 486 701

Ibidem 486

372

Assim a relaccedilatildeo entre o intuito e o ser eacute o encontro e a referecircncia do ser do

homem e do ser das coisas a uma estrutura comum a uma razatildeo fundamento

ou causa de tudo o que eles satildeo

724 A linguagem como via de acesso ao ser e o meacutetodo analiacutetico- expectante

Vimos jaacute que Joseacute Enes refere explicitamente ter encontrado no segundo

Heidegger a sugestatildeo de um meacutetodo de anaacutelise da linguagem que permite o

acesso ao ser Destacando em Linguagem e Ser de 1983 a propoacutesito da

foacutermula heideggeriana Die Sprache als die Sprache zur Sprache bringen a

especificidade da sua proacutepria anaacutelise da linguagem em relaccedilatildeo agrave linguiacutestica ou

agrave filosofia da linguagem o pensador portuguecircs afirma ldquoMesmo quando o que

se pretende conhecer analisando a linguagem natildeo eacute a linguagem somente se

alcanccedila quando se traz agrave fala o que a linguagem tem a falar sobre ele A

foacutermula heideggeriana parece aplicar-se literalmente agraves ciecircncias estritamente

linguiacutesticas No entanto ela possui um sentido determinado pelo procedimento

filosoacutefico de tal forma que natildeo soacute natildeo se pode entender a sua anaacutelise

linguiacutestica como filosofia da linguagem mas ainda ultrapassa a linguagem

passando por ela mesma ateacute chegar ao que mais interessa agrave filosofia como tal

e natildeo como anaacutelise linguiacutestica ldquo702

Este programa de deixar falar a fala escutando o que nela diz o ser703 jaacute

ensaiado em Agrave Porta do Ser eacute agora sistematizado e caracterizado por Joseacute

Enes como ldquoanaliacutetico-expectanterdquo Tomando a linguagem como ponto de

partida Joseacute Enes propotildee-se analisaacute-la com o propoacutesito de a descobrir na sua

iacutentima estrutura ldquodesenvencilhando-a de todo os elementos acessoacuterios e de

todas as teorias explicativas e sistematizadorasrdquo ao mesmo tempo que define

como termo de chegada e alvo de expectativa o ser

Esse meacutetodo que tem a intenccedilatildeo negativa e desconstrutiva de libertar a

linguagem da imposiccedilatildeo de teorias e de modelos de inteligibilidade por parte da

702

Joseacute Enes Linguagem e Ser Lisboa 1983 64 703

ldquoEntenda-se bem que Linguagem e Ser natildeo desenvolve uma simples hermenecircutica linguiacutestica antes

reforccedila a dimensatildeo ontoloacutegica da linguagem mas o que eacute alterado eacute [hellip] o acesso doravante indirecto

inevitavelmente mediado pela sedimentaccedilatildeo de sentidos na liacutengua determinado por conseguinte pelo

processo de metaforizaccedilatildeo que gera o conceitordquo Luiacutes Manuel Bernardo ldquoA noccedilatildeo de Universo

Ontoloacutegico na Obra de Joseacute Enesrdquo in O Pensamento Luso-Galaico-Brasileiro 660

373

linguiacutestica ou das filosofias da linguagem tem como tarefa positiva o deixar que

a proacutepria fala fale por si mesma

Esta intenccedilatildeo positiva eacute expressa por Joseacute Enes no vocaacutebulo ldquoexpectanterdquo que

ele faz derivar de ex-picere (ldquoolhar a partir do lugar donde se estaacute com

particular referecircncia agrave posiccedilatildeo exterior de quem olha em relaccedilatildeo agravequilo para

que olhardquo704) esse lugar a partir donde se olha eacute a linguagem e aquilo para

que se olha como natildeo estando ainda ao alcance ou diante do olhar eacute o ser

Natildeo se vendo ainda aquilo para que se olha o olhar dirigido a partir da

linguagem toma a feiccedilatildeo de um ldquoinspeccionar os arredoresrdquo com um olhar

ldquocircunspectivordquo para vislumbrar os sinais dessa experiecircncia do ser

Considerando que a linguagem eacute essencialmente a comunicaccedilatildeo de sentido

atraveacutes da produccedilatildeo metafoacuterica esse olhar circunspectivo eacute em primeiro lugar

uma inspecccedilatildeo de metaacuteforas isto eacute de palavras-chave atraveacutes das quais se

vieram operando transferecircncias de sentido 705

Em Noeticidade e Ontologia Joseacute Enes torna expliacutecita a influecircncia de La

meacutetaphore vive de Ricœur afirmando aiacute a consonacircncia fundamental com o que

nessa obra se afirma sobre a presenccedila da metaacutefora no discurso filosoacutefico Com

efeito aiacute Ricœur analisa o funcionamento da metaacutefora no discurso poeacutetico

mostrando que o enunciado metafoacuterico faz com que a linguagem poeacutetica

suprima a funccedilatildeo referencial da linguagem ordinaacuteria instituindo uma outra

funccedilatildeo referencial pela ldquotorccedilatildeordquo do sentido literal das palavras Suscitando uma

nova pertinecircncia semacircntica das palavras os enunciados metafoacutericos criam

sentido e instauram uma nova visatildeo da realidade

Ricœur mostra aiacute tambeacutem a sobrevivecircncia das metaacuteforas nos modelos teoacutericos

usados no discurso cientiacutefico e no interior do discurso filosoacutefico

designadamente em autores como S Tomaacutes de Aquino e Heidegger

apresentando-se nesses autores como um princiacutepio dinacircmico de constituiccedilatildeo e

704

Joseacute Enes Linguagem e Ser 67 705

Joseacute Enes propotildee uma abordagem da linguagem que exclui toda a filosofia da linguagem e

especialmente a metodologia da anaacutelise loacutegica da linguagem do Ciacuterculo de Viena A anaacutelise expectante

natildeo se centra no sentido constituiacutedo mas na proacutepria constituiccedilatildeo do sentido Enraizando-se no sentido

metafoacuterico vai reconduzir ao silecircncio criador da origem - trata-se de deixar falar a fala observando o

aparecer originaacuterio do sentido Cf Joatildeo Paisana ldquoAproximaccedilatildeo ao pensamento de Joseacute Enesrdquo in Histoacuteria

do Pensamento Filosoacutefico Portuguecircs vol V Lisboa 2000 458

374

evoluccedilatildeo do pensamento e possibilitando a ruptura com um comportamento

categorial jaacute estabelecido706

Joseacute Enes encontra uma aproximaccedilatildeo entre esta funccedilatildeo produtora de sentido

da metaacutefora e o intuito na metaacutefora o intuito estabelece uma relaccedilatildeo entre a

primeira referecircncia abolida pelo enunciado metafoacuterico e a nova referecircncia por

ele criada Estas duas referecircncias estatildeo presentes em tensatildeo ao intuito como

semelhanccedila de coisas diferentes que nunca pode reduzir-se agrave identidade do

conceito

Centrando-se nesse movimento de transferecircncia de sentido operado pela

metaacutefora Joseacute Enes pretende analisaacute-lo para mostrar que aiacute se sugere um

sentir que se subtrai a toda a conceptualizaccedilatildeo707 ldquoA anaacutelise da metaacutefora

jamais a decompotildee consiste na conferecircncia dos termos da transferecircncia

Conferindo traz agrave luz do mostrar-se as sugerecircncias Quando este confronto se

desfaz no espiacuterito humano a metaacutefora morre Todo o seu poder sugestivo se

esvai e a sua significaccedilatildeo deixa de ser metafoacuterica ora isso daacute-se quando o

espiacuterito humano tenta representar conceitualmente o que soacute pode ser sugerido

metaforicamente pela tensatildeo entre duas representaccedilotildees conceituais [] Ao

fazecirc-lo a razatildeo oculta o que soacute pode de ser visto no iacutentimo do dizer

conceptual mata a metaacutefora e com ela o que soacute pode ser entendido pela

sugerecircncia metafoacutericardquo708

Cruzando a anaacutelise metafoacuterica proposta por Ricœur com o peculiar recurso agrave

etimologia de Heidegger Joseacute Enes vai procurar encontrar a geacutenese

metafoacuterica de palavras-chave do discurso filosoacutefico recorrendo aos eacutetimos

latinos gregos ou germacircnicos Contudo trata-se natildeo tanto de recuperar uma

significaccedilatildeo originaacuteria dos termos encoberta pelo uso quotidiano ou pela

tradiccedilatildeo metafiacutesica como acontece em Heidegger mas de libertar a metaacutefora

706

Possuidor de extensa erudiccedilatildeo filoloacutegica Joseacute Enes vai pela anaacutelise etimoloacutegica buscar o sentido de

vaacuterios termos em vaacuterias liacutenguas indo-europeias que mais tarde iratildeo converter-se em termos teacutecnicos do

discurso filosoacutefico que ele proacuteprio iraacute identificar natildeo apenas em Heidegger e S Tomaacutes mas no discurso

kantiano ou na metafiacutesica cartesiana Cf Ibidem 459 707

ldquoParadoxalmente a anaacutelise expectante da linguagem vai conduzir-nos agrave experiecircncia muda agrave

experiecircncia do sentir onde brota o sentido originaacuterio do discursohellip A anaacutelise expectante permite assim

abordar os limites da linguagem conceptual limites mais marcantes quando se trata da experiecircncia

fundamental que daacute acesso ao serrdquo Ibidem 460 708

Joseacute Enes Linguagem e Ser 86

375

deixando que a metaacutefora produza uma nova significaccedilatildeo desdobre o seu

dinamismo criador de sentido709

Esta pesquisa e anaacutelise das metaacuteforas originaacuterias levadas a cabo por Joseacute

Enes parecendo por vezes um procedimento algo arbitraacuterio e artificioso

fundado numa extensa erudiccedilatildeo filoloacutegica permite no entanto romper com

haacutebitos mentais instituiacutedos pela tradiccedilatildeo e fazer irromper novos sentidos

Eacute o que acontece por exemplo no traccedilado genealoacutegico do termo ldquoperguntarrdquo

que Joseacute Enes faz derivar do termo naacuteutico percontari formado a partir de

contus que significa vara relacionada com a acccedilatildeo de sondagem dos fundos

Perguntar guarda assim o sentido do sondar tacteante proacuteximo agravequela

experiecircncia originaacuteria do ser feita pelo intuito

Este procedimento permite-lhe tambeacutem descobrir convergecircncias e divergecircncias

de sentido entre diferentes tradiccedilotildees e modos de pensar como eacute o caso da

anaacutelise comparativa da evoluccedilatildeo semacircntica de ldquodenken e de ldquopensarrdquo

Retomando a anaacutelise do termo denken elaborada por Heidegger Joseacute Enes

sublinha em Gedanke (ideia conceito pensamento) a proximidade com Gemuumlt

(acircnimo coraccedilatildeo) com Gedaumlchtnis (memoacuteria) e Dank (agradecimento) para

concluir que Denken designa a alma inteira no sentido do recolhimento

admirativo interior que permanece fiel agravequilo que a solicita

Por outro lado pensar deriva de pensare denominativo formado sobre o

particiacutepio pensum de pendere Pendere foi transferido para a linguagem

comercial onde veio a dar a origem a pesar tornando-se depois metaacutefora para

a significaccedilatildeo de actividades mentais de caacutelculo avaliaccedilatildeo e juiacutezo

Chamando a atenccedilatildeo para o facto de que o pensamento romacircnico ao libertar-

se linguisticamente do latim renunciou ao termos cogitare (presente na

tradiccedilatildeo escolaacutestica como em Descartes) para recuperar a carga metafoacuterica do

pendere e pensare Joseacute Enes conclui que o pensar romacircnico traz desde a

origem esta intenccedilatildeo do medir e julgar que lhe conferem um caraacutecter eacutetico

709

ldquoAo nigravevel da fala como uso primeiro da ligravengua quer na conversaccedilatildeo comum quer nas vaacuterias

linguagens especializadas ndash as cientiacuteficas as artiacutesticas e as filosoacuteficas - a produccedilatildeo de uma nova

significaccedilatildeo eacute sempre a transformaccedilatildeo de uma significaccedilatildeo preexistente Greimas explicitou esta

constante sob o estiacutemulo dos processos metalinguiacutesticos da literatura mas possui validade universal a sua

foacutermula feliz ldquoLa production du sens n‟a de sens que si elle est la transformation du sens donneacute (Du Sens

essais seacutemiotiques Ed du Seuil Paris 15) A proacutepria essecircncia do processo linguiacutestico portanto eacute

metafoacutericardquo Joseacute Enes Noeticidade e Ontologia 52

376

juriacutedico ligado agrave causa da reacutes juriacutedica possuindo simultaneamente caraacutecter

econoacutemico-praacutetico ligado agrave res como mercadoria de negoacutecio

Uma outra via desta da transferecircncia metafoacuterica ensaiada por Joseacute Enes eacute o

recurso agraves metaacuteforas do discurso poeacutetico710 de que satildeo exemplos o termo

ldquocoitardquo muito frequente na poesia galaico-portuguesa onde ocorre com o

sentido de tratar cuidar de assumindo em ldquocoitadordquo o sentido de compaixatildeo

como paixatildeo reciacuteproca ou do virar-se um para o outro na intimidade do

coraccedilatildeo Daqui conclui que o pensar em cuja tradiccedilatildeo nos inserimos natildeo

traduz a inclinaccedilatildeo para um organizar e fazer calculativo que faccedila funcionar a

existecircncia como uma faacutebrica produtora de coisas mas para um encontrar o

peso e a medida para remediar e medicar e vem assim associado ao cuidar

O cuidado aqui referido eacute assim um traccedilo caracteriacutestico do pensar preacute-

conceptual (romacircnico) ou do intuito contudo natildeo agrave maneira da Sorge

heideggeriana como estrutura existenciaacuteria do Dasein mas como modo

dinacircmico ser daquele ser que pensa cuidando olhando por guardando e

tutelando Eacute a partir do pensar preacute-conceptual do intuito que Joseacute Enes iraacute

tentar pocircr a claro o ser - como acontecer do encontro entre o ser do intuito e os

ser dos seres ldquono reciacuteproco tanger-se em direcccedilatildeo ao abrigo da coabitaccedilatildeo

consistente no uacutenico mundo comum a todosrdquo711 Ora ldquoeste reciacuteproco tangerrdquo eacute

como acima vimos uma acccedilatildeo e uma re-acccedilatildeo percorridos por um dinamismo

intriacutenseco que encontra a sua correspondecircncia na estrutura contraditoacuteria e

tensional da metaacutefora

Segundo Joseacute Enes a elaboraccedilatildeo do pensamento ontoloacutegico realiza-se

atraveacutes de um processo substancialmente idecircntico ao das obras cientiacuteficas e

literaacuterias por transferecircncia de metaacuteforas oriundas de aacutereas experiencialmente

conhecidas do pensador que podem encontrar-se ao niacutevel do conhecimento

vulgar do conhecimento cientiacutefico ou tecnoloacutegico

Os diversos tipos de discursos ontoloacutegicos distinguem-se assim pela estrutura

matricial constituiacuteda pelo acircmbito a partir da qual se encetou a transferecircncia de

sentido isto eacute a produccedilatildeo metafoacuterica de um novo sentido Esta estrutura

matricial eacute em Joseacute Enes como em Heidegger a linguagem como liacutengua isto eacute

710

ldquoA linguagem poeacutetica tem como caracterigravestica estrutural a expressatildeo metafoacuterica enquanto a linguagem

cientiacutefica persegue meticulosa e mensurativamente a definida univocidade da terminologia convencional

e o rigor matemaacutetico do discurso teoacutericordquo Joseacute Enes Noeticidade e Ontologia 47 711

Joseacute Enes Linguagem e Ser 187

377

como uma totalidade orgacircnica na qual se exprime a experiecircncia de uma

comunidade histoacuterica Esta estrutura matricial comum natildeo conduz poreacutem (e

por isso mesmo porque se tratam de liacutenguas diferentes elas mesmas

dinamizadas por metaacuteforas distintas) a uma mesma ontologia

Joseacute Enes rejeitando o procedimento ecleacutetico tatildeo comum nos nossos autores

tem o cuidado de sublinhar repetidamente e rigorosamente a linha de

demarcaccedilatildeo entre os dois discursos ontoloacutegicos ldquoo ser que se revela a

Heidegger como termo do denken natildeo eacute o ser dinacircmico do homem e das

coisas naturais mas sim o ser separado de todo os seres que no sair do

homem para fora de si mesmo em direcccedilatildeo agrave fala manifestativa daquele ser se

mostra como iluminaccedilatildeo que torna visiacutevel a compreensatildeo moradora dos seres

na quadratura extaacutetica do mundo Neste destacamento do ser em relaccedilatildeo aos

seres intra-mundanos se abre a cisura da diferenccedila ontoloacutegica O ser destaca-

se dos seres embora soacute venha agrave fala de si mesmo na abertura temporal do ek-

sistir humanordquo712

Para Joseacute Enes que assume uma ontologia na tradiccedilatildeo latina713 o ser

manifestado no encontro do ser do homem e do ser das coisas na contingecircncia

do reciacuteproco tanger eacute o ser do homem e das coisas da natureza natildeo havendo

lugar para a distinccedilatildeo entre ser e ente Afastando assim a noccedilatildeo de diferenccedila

ontoloacutegica central em Heidegger ele pretende recuperar o ser como actividade

e dinamismo para que aponta a metafiacutesica escolaacutestica714

O discurso ontoloacutegico de Joseacute Enes eacute no entanto tambeacutem irredutiacutevel agrave

tradiccedilatildeo metafiacutesica que pensou o ser como conceito vazio e suprema

712

Joseacute Enes Linguagem e Ser 186 713

Joseacute Enes refuta explicitamente a subalternizaccedilatildeo do latim e das liacutenguas latinas como liacutenguas

filosoacuteficas fundando essa refutaccedilatildeo na sua pesquisa etimoloacutegica ldquoOutras expressotildees haacute tanto no

portuguecircs como nas liacutenguas neo-latinas a que me referirei na parte final as quais apresentam tambeacutem

uma riqueza hermenecircutica de grande interesse filosoacutefico A este respeito natildeo haacute diferenccedilas entre liacutenguas

originaacuterias se eacute que haacute algumas e as derivadas

Basta por ora a comparaccedilatildeo de pergunta e de Frage para se ver que o latim e as liacutenguas dele derivadas

natildeo satildeo nem mais ricas nem mais pobres do que o alematildeo sob o ponto de vista da originalidade e da

criatividaderdquo Joseacute Enes Noeticidade e Ontologia 17 714

Joseacute Enes defende tambeacutem que esta tradiccedilatildeo deve ser levada em conta na traduccedilatildeo designadamente na

traduccedilatildeo de Heidegger porque na metafiacutesica aristoteacutelico-escolaacutestica jaacute estaacute presente embora natildeo

assumida sistematicamente a noeticidade hermenecircutica Assim eacute deste ponto de vista que ele critica a

traduccedilatildeo de Verstehen por ldquocompreensatildeordquo efectuada por Gaos ldquoO verbo portuguecircs que mais se aproxima

do sentido de verstehen eacute entender naquelas acepccedilotildees em que o fio da intentionalitas escolaacutestica

sobrevive em comportamentos situacionais como entender-se com ser entendido em entender bem ou

natildeo entender o que ouve ou observa

Os tradutores romacircnicos de Heidegger ao traduzirem verstehen por compreender interrompem o

discurso hermenecircutico porque destroem a noeticidade hermenecircuticardquo Cf Joseacute Enes Noeticidade e

Ontologia 23

378

abstracccedilatildeo da razatildeo ldquoMais afastado ainda do que este ser heideggeriano estaacute

o ser revelado na pergunta como processo de uma inserccedilatildeo coabitacional

com respeito ao ser com o conteuacutedo de um conceito O ser conceituado e

representado numa ideia eacute sempre o resultado de uma abstracccedilatildeo feita sobre a

significaccedilatildeo da coacutepula enunciativa eacuterdquo715

Joseacute Enes afirma repetidamente que a experiecircncia antepredicativa do ser dada

pelo intuiacutedo eacute anterior agrave coacutepula enunciativa e eacute o seu oculto fundamento Ao

intuito o ser mostra-se como ldquocorresponsaacutevel da mundaneidade coabitacionalrdquo

isto eacute como co-pertenccedila de todos os entes a uma mesmo mundo de que o

intuito assume a guarda e o cuidado

Contudo essa experiecircncia da harmonia dum mundo dada no sentimento da

plenitude do ser eacute tambeacutem como acima vimos a experiecircncia da finitude da

morte e do natildeo ser A experiecircncia antepredicativa do ser dada ao intuito eacute em

si mesma contraditoacuteria e irredutiacutevel a qualquer conceito esclarece Joseacute Enes

em Linguagem e Ontologia porque eacute a experiecircncia do ser feita contra a

antecipaccedilatildeo angustiada do natildeo ser

Esta estrutura ontoloacutegica determina no entanto obscuramente as efabulaccedilotildees

da razatildeo contidas na metafiacutesica e na ciecircncia De facto a contenccedilatildeo muda do

intuito tem o caraacutecter peculiar de por um lado se cerrar sobre o indiziacutevel dum

misteacuterio e por outro lado ser um impulso que mobiliza a fala e impulsiona o

dizer da razatildeo O intuito eacute como que o motor invisiacutevel de toda a linguagem

enunciativa e demonstrativa da razatildeo que edifica o edifiacutecio dum saber

susceptiacutevel de verificaccedilatildeo encobrindo-se e ocultando no entanto sob esse

edifiacutecio

A ldquoanaacutelise expectanterdquo da linguagem visa reencontrar o intuito originaacuterio

assumindo tambeacutem uma funccedilatildeo criacutetica e vigilante face ao saber da razatildeo uma

vez que vai submeter esse discurso da razatildeo a uma verificaccedilatildeo e a uma

manobra de seduccedilatildeo ldquoO intuito verifica o comportamento da expressatildeo

linguiacutestica construiacuteda pela razatildeo com respeito ao ser Faacute-lo verdadeiro ou

afaacutevel na medida em que natildeo lhe deixa dizer o inefaacutevel e o reduz agrave sugerecircncia

que vai no bojo da representaccedilatildeo conceptual dando-lhe o sentido da

expressividade ou seja se-duz a razatildeo conduzindo-a para fora do acircmbito dela

715

Joseacute Enes Linguagem e Ser 186

379

e induzindo-a a ter a atitude de serva do olhar tutelador que observa reserva e

conserva o ser na salvaguardardquo716

A experiecircncia ontoloacutegica originaacuteria do intuito encontra a sua correspondecircncia

natildeo apenas na linguagem poeacutetica mas tambeacutem nas metaacuteforas da linguagem

religiosa na linguagem dos mitos e na linguagem da teologia em especial nas

metaacuteforas da salvaccedilatildeo que constituem o nuacutecleo do cristianismo ldquoEacute de facto

curioso notar como toda a efabulaccedilatildeo da experiecircncia religiosa se encontra

seminalmente contida nas estruturas comportamentais que descobrimos

atraveacutes da anaacutelise da expressatildeo linguiacutestica da coabitaccedilatildeo mundanal e da

coabitaccedilatildeo com o ser no ser do intuito e no ser dos seresrdquo717

Assim a linguagem religiosa dos mitos e da teologia parece configurar-se como

o acircmbito preferencial embora natildeo exclusivo de aplicaccedilatildeo da sua metodologia

de ldquoanaacutelise expectante da linguagemrdquo718

716

Ibidem 195 717

Ibidem 204 718

bdquoNotemos no entanto que esta experiecircncia que permite o acesso ao ser tal como eacute compreendido por

Joseacute Enes ultrapassa claramente a dimensatildeo filosoacutefica inserindo-se na esfera da experiecircncia religiosa

ldquopor este jeito o intuito reconhece o tocante como Ser A reacccedilatildeo subsequente a tal reconhecimento

assume os modos da pavidez aterradora da experiecircncia religiosardquo e ainda ldquoa uacutenica ratificaccedilatildeo possigravevel ao

intuito da validade eticizante desta experiecircncia soacute pode obter-se atraveacutes da anaacutelise linguiacutestica da

experiecircncia religiosardquo Joatildeo Paisana ldquoAproximaccedilatildeo ao pensamento de Joseacute Enesrdquo in Histoacuteria do

Pensamento Filosoacutefico Portuguecircs vol V Lisboa 2000 460

380

381

Capiacutetulo III - O Diaacutelogo de Vicente Ferreira da Silva com

Heidegger

382

383

1 A determinaccedilatildeo da situaccedilatildeo hermenecircutica

Com este capiacutetulo propomo-nos esclarecer o diaacutelogo de Vicente Ferreira da

Silva com o ldquosegundo Heideggerrdquo pondo a claro as linhas fundamentais da

interpretaccedilatildeo de alguns dos textos posteriores a Ser e Tempo que marcam

uma viragem no caminho do pensar do filoacutesofo alematildeo com destaque

particular para a Carta sobre o Humanismo

Embora o diaacutelogo de Vicente Ferreira da Silva com Heidegger remonte a um

periacuteodo anterior719 no qual ele se interessou pelas vaacuterias filosofias da

existecircncia (Sartre Heidegger e Kierkegaard) foi apoacutes 1951720 que o filoacutesofo

alematildeo se tornou interlocutor privilegiado de Vicente Ferreira da Silva e foi no

diaacutelogo com os textos posteriores a Ser e Tempo que o pensador brasileiro

estabeleceu um horizonte interpretativo original

Vicente Ferreira da Silva foi o primeiro pensador brasileiro a comentar a obra

de Heidegger nas paacuteginas da Revista Brasileira de Filosofia de que foi um dos

fundadores natildeo tendo no entanto tal como ocorrera com Delfim Santos em

Portugal tomado a iniciativa da traduccedilatildeo de nenhuma das obras do filoacutesofo

alematildeo De facto a Carta Sobre o Humanismo obra cuja publicaccedilatildeo em 1946

teve grande eco em toda a Europa dando a impressatildeo que Heidegger operara

uma ruptura radical com a via aberta pela ontologia fenomenoloacutegica de Ser e

Tempo soacute seria traduzida para liacutengua portuguesa em 1967 por E Carneiro

Leatildeo no Brasil e em 1973 por Arnaldo Stein em Portugal

No esclarecimento deste diaacutelogo estabelecido entre 1951 e a morte prematura

de Vicente no ano de 1963 partimos de certos pressupostos metodoloacutegicos que

eacute agrave partida necessaacuterio clarificar para que eles mesmos possam ser expostos

ao risco do confronto com as fontes

O primeiro e o fundamental eacute a consideraccedilatildeo estabelecida claramente por

Heidegger e Gadamer de que a linguagem que existe facticamente com

pluralidade de liacutenguas histoacutericas eacute o In-der-Welt-Sein eacute a proacutepria presenccedila do

719

Vicente Ferreira da Silva seguiu uma trajectoacuteria intelectual semelhante agrave de Delfim Santos comeccedilando

por aderir ao neopositivismo dedicou os primeiros anos do seu trabalho intelectual agrave loacutegica matemaacutetica

tendo depois entrado em contacto com a fenomenologia europeia sob cuja influecircncia publicou em 1948

os Ensaios Filosoacuteficos onde analisa diversos aspectos do pensamento de Sartre e Heidegger No entanto

foi soacute na deacutecada de 50 que Heidegger se tornou o seu interlocutor privilegiado Cf Aquiles Cocircrtes

Guimaratildees ldquoO pensamento fenomenoloacutegico no Brasilrdquo in Cultura revista de Histoacuteria e Teoria das

Ideias 184 720

Cf Vicente Ferreira da Silva ldquoA uacuteltima fase do pensamento de Heideggerrdquo in Revista Brasileira de

Filosofia vol 1 fasc 3 Satildeo Paulo 1951

384

mundo no qual estamos sempre jaacute lanccedilados como no nosso aiacute As diversas

liacutenguas histoacutericas natildeo se distinguem apenas pela diversidade de formas

sintaacutecticas ou morfoloacutegicas mas a essa diversidade de formas correspondem

conteuacutedos de pensamento e formas de sentir-se afectado distintos

Assim a explicitaccedilatildeo do sentido de termos do leacutexico heideggeriano - como

Dasein Seinsvergessenheit Unverborgenheit Lichtung des Seins - levada a

cabo por Vicente Ferreira da Silva em liacutengua portuguesa natildeo eacute uma operaccedilatildeo

inoacutecua que possa conservar o sentido intacto mas implica uma apropriaccedilatildeo

que eacute tambeacutem necessariamente uma expropriaccedilatildeo transfiguradora

A segunda consideraccedilatildeo metodoloacutegica eacute a de que uma determinada liacutengua

histoacuterica transporta consigo uma tradiccedilatildeo e impotildee agrave partida um horizonte

hermenecircutico que abre certas possibilidades de interpretaccedilatildeo excluindo outras

e impondo necessariamente uma perspectiva unilateral e restritiva na

interpretaccedilatildeo de qualquer obra filosoacutefica como Heidegger demonstrou em Was

ist Denkenrdquo721

Uma obra filosoacutefica situa-se no interior de uma certa esfera de representaccedilotildees

inerentes agrave figura de ser imperante no contexto histoacuterico-linguiacutestico E uma

apropriaccedilatildeo originaacuteria teraacute sempre que apreendecirc-la a partir dessa ldquoabertura de

mundordquo em que ela se integra como seu horizonte de sentido ldquopreacuteviordquo

apreensatildeo essa que Vicente tem como preocupaccedilatildeo integrando Heidegger no

contexto da filosofia e da poesia de liacutengua alematilde como a leitura dos seus

textos amplamente confirma

Contudo este contexto histoacuterico-linguiacutestico em que um texto filosoacutefico se

insere sendo de um certo modo absoluto e inquestionaacutevel eacute objecto de

diferentes interpretaccedilotildees que dependem largamente da situaccedilatildeo

hermenecircutica722 em que se encontram o tradutor e o inteacuterprete e do ponto de

vista que eacute imposto por essa situaccedilatildeo

721

bdquoMan verstoumlszligt aber gegen den Sinn jeder Interpretation wenn man der Meinung huldigt es gaumlbe eine

Auslegung die beziehungslos d h Absolut guumlltig sein Koumlnnte Absolut guumlltig ist im aumluszligersten Falle nur

die Vorstellungsbezirk innerhalb dessen man zu auszulegenden Text zum voraus ansetzt Die Guumlltigkeit

dieses vorausgesetzten Vorstellungsbezirkes kann nur dann eine absolute sein wenn ihre Absolutheit auf

einer Unbedingtheit und zwar der eines Glaubens beruht

Die Unbedingtheit des Glaubens und die Fragwuumlrdigkeit des Denkens sind zwei abgruumlndig verschiedene

Bereiche WhD GA 8 181 722

Cf AhS GA Band 62 346-347

385

Como atraacutes procuraacutemos demonstrar a filosofia em liacutengua portuguesa movia-se

quase sempre de modo improacuteprio no plano dos conceitos transmitidos atraveacutes

duma importaccedilatildeo fragmentaacuteria das correntes da filosofia moderna

designadamente do racionalismo e do positivismo por via de comentaacuterios e

traduccedilotildees em liacutengua francesa que se misturavam de forma ecleacutectica com

conceitos oriundos da escolaacutestica transmitidos de forma confusa acriacutetica e

natildeo fundamentada no conhecimento dos textos (natildeo traduzidos)

Contudo desde os finais do seacuteculo XIX a consciecircncia da necessidade de uma

apropriaccedilatildeo mais originaacuteria da filosofia europeia daacute origem a um esforccedilo de

traduccedilatildeo em Portugal e no Brasil que se orienta quer para os autores claacutessicos

(Platatildeo e Aristoacuteteles) quer para a filosofia do idealismo alematildeo (Kant Hegel e

Schopenhauer) Surge tambeacutem um diaacutelogo com a tradiccedilatildeo filosoacutefica orientado

no sentido de encontrar uma fundamentaccedilatildeo teoacuterica para as opccedilotildees religiosas

poliacuteticas e esteacuteticas duma geraccedilatildeo de intelectuais que procura afirmar-se

contra o positivismo dominante

Este movimento anti-positivista tem a sua mais importante expressatildeo num

pensamento poeacutetico iniciado por Antero de Quental e que se afirmou no seacuteculo

XX com poetas de dimensatildeo universal como Pascoaes ou Fernando Pessoa

Estes levaram a cabo uma contestaccedilatildeo do racionalismo e do positivismo

filosoacutefico723 assim como uma reflexatildeo sobre a sua proacutepria criaccedilatildeo poeacutetica

afirmando a poesia e os mitos como chave interpretativa do real em alternativa

ao discurso da ciecircncia

Outros pensadores latinos como Julius Evola e Reneacute Gueacutenon no iniacutecio do

seacuteculo XX levaram a cabo idecircntica contestaccedilatildeo do racionalismo e do

positivismo filosoacutefico e duma maneira geral da modernidade teacutecnica e

cientiacutefica a partir da mesma tradiccedilatildeo miacutetico-religiosa

Segundo Constanccedila Marcondes Ceacutesar724 Vicente Ferreira da Silva leu na

deacutecada de 40 a Revolta contra o Mundo Moderno de Julius Evola obra em que

se expotildee uma teoria da evoluccedilatildeo da civilizaccedilatildeo humana segundo a qual a

723

Maria Helena Varela Silva chama a atenccedilatildeo para o facto de no contexto cultural portuguecircs e

brasileiro o interesse pela metafiacutesica surgir no interior do proacuteprio movimento positivista tal verificou-se

com Sampaio Bruno e mais tarde ainda com Delfim Santos e Vicente Ferreira da Silva cujo percurso

intelectual se fez inicialmente no acircmbito do positivismo e das questotildees loacutegico-linguiacutesticas Cf Maria

Helena Varela Silva Conjunccedilotildees Filosoacuteficas Luso-Brasileiras Lisboa 2002 117-118 724

Cf Constanccedila Marcondes Ceacutesar Vicente Ferreira da Silva trajectoacuteria intelectual e contribuiccedilatildeo

filosoacutefica tese de Livre-Docecircncia em Filosofia apresentada agrave Pontifiacutecia Universidade Catoacutelica de

Campinas 37-38

386

actual civilizaccedilatildeo ocidental representaria um periacuteodo de decadecircncia

relativamente ao mundo da tradiccedilatildeo dos grandes mitos Esta obra teria tido

uma influecircncia determinante na orientaccedilatildeo do pensamento de Vicente e os

autores citados por Julius Evola como Jacob Bachoffen Jacob Boehme Leacuteon

Frobenius Walter Otto e Schelling tornar-se-iam posteriormente referecircncias

permanentes de Vicente Ferreira da Silva

Foi tambeacutem em 1947 que chegam ao Brasil Agostinho da Silva Eudoro de

Sousa Delfim Santos e Jorge de Sena O diaacutelogo com os dois primeiros

pensadores portugueses desempenhou um importante papel na geacutenese do

pensamento de Vicente reflectindo o seu encontro com a Greacutecia e os mitos

Os diaacutelogos com Agostinho da Silva especialista em filologia claacutessica e

conhecedor da nova poesia portuguesa que reivindicava a poesia como lugar

privilegiado de acesso ao ser estatildeo documentados pelo proacuteprio Vicente em

Diaacutelogo do Mar Diaacutelogo da Montanha e Diaacutelogo do Espanto mas segundo

Constanccedila Marcondes Ceacutesar teria sido mais determinante o diaacutelogo com

Eudoro de Sousa helenista e exegeta da mitologia grega cuja filosofia da

mitologia jaacute atraacutes referimos e com o qual Vicente teria debatido autores como

Bachofen Walter Otto e Kereacuteny

Vicente aborda Heidegger a partir das questotildees emergentes nesta situaccedilatildeo

histoacuterico-linguiacutestica e comuns a toda uma geraccedilatildeo de pensadores

designadamente o enfrentamento com a modernidade teacutecnico-cientiacutefica e a

recuperaccedilatildeo da poesia e dos mitos como inesgotaacuteveis fontes de sentido e de

renovaccedilatildeo da cultura

Apesar de repudiar a existecircncia de filosofias nacionais e de as suas

referecircncias expliacutecitas serem quase sempre a filosofia alematilde no seu Diaacuterio

publicado postumamente Vicente indica claramente a sua comunhatildeo com

ldquoStimmung epocalrdquo que une todos esses pensadores latinos e que claramente

determinou o seu pensamento a partir dos anos 50 Escreve Vicente em 1958

no ldquoDiaacuterio Filosoacuteficordquo ldquoEscrevi haacute tempos um artigo sobre o que chamei o ldquonovo

cepticismordquo Mas o que realmente queria realccedilar era a coexistecircncia de diversos

estilos de vida no acircmbito ocidental Aleacutem da dominante democraacutetico-cristatilde com

as suas consequecircncias eacutetico-juriacutedicas outras estrelas obscurecidas iluminam

fracamente o ceacuteu Refiro-me ao sentimento ctoacutenico-maternal da natureza e da

vida O sentido romacircntico ou orgacircnico-vital das coisas A primeira alternativa

387

separa o homem como sujeito do mecanismo universal A segunda instala o

homem no acircmago da vida A transcendecircncia da vida eacute a proacutepria vidardquo725

Embora Vicente natildeo reivindicasse nenhuma orientaccedilatildeo nova no pensamento

sul-americano salientando de preferecircncia a isocronia entre a Filosofia sul-

americana e a Europeia726 natildeo podemos deixar de ter em conta a importacircncia

do proacuteprio contexto cultural onde o mito e o rito ainda satildeo vigentes lado a lado

com o modo de vida europeu e cuja presenccedila eacute explicitamente referida no seu

ldquoDiaacuterio Filosoacuteficordquo ldquoNa festa no canto cosmogoacutenico condensa-se uma

contracccedilatildeo jubilosa do mundo uma Weltbild Haacute dias ouvi muacutesica africana -

rituais de iniciaccedilatildeo e de propiciaccedilatildeo ndash apenas se distingue dos grandes ruiacutedos

da natureza O aboio e o som dos chifres prolongando a expressatildeo da Terra

Entrega do homem agrave vida omnicompreensiva A muacutesica da Ergriffenheitrdquo727

O despertar da consciecircncia de si do pensamento sul-americano emergira jaacute no

Manifesto Antropoacutefago de Oswaldo de Andrade de 1928 traduzindo-se aiacute na

busca de uma identidade cultural brasileira na contestaccedilatildeo da heranccedila catoacutelica

e humanista colonizadora e na reivindicaccedilatildeo de um pensamento preacute-loacutegico

associado agrave presenccedila duma heranccedila iacutendia e africana Por volta dos anos

cinquenta estava lanccedilada a discussatildeo sobre o despertar de um pensamento

filosoacutefico sul-americano original participando nessa discussatildeo autores como

Sciacca728 Julian Marias729 e Enzo Paci730 autores que defendiam a

emergecircncia dum pensamento filosoacutefico original em virtude da utilizaccedilatildeo do

pensamento europeu para pensar de modo criador os problemas da Ameacuterica

Natildeo partilhando Vicente como atraacutes referimos destas preocupaccedilotildees da

725

Vicente Ferreira da Silva rdquoDiaacuterio Filosoacuteficordquo Cavalo Azul nordm3 1958 in Dialeacutectica das Consciecircncias

e outros ensaios Lisboa 2002 490 726

Cf Vicente Ferreira da Silva ldquoEnzo Paci e o Pensamento Sul-Americanordquo SP Revista Brasileira de

Filosofia vol 5 fasc 18 Abril-Junho 287-289 727

Vicente Ferreira da Silva ldquoDiaacuterio Filosoacuteficordquo in Dialeacutectica das Consciecircncias e outros ensaios 493 728

Segundo Sciaca o pensamento Ibero-Americano distanciar-se-ia da tradiccedilatildeo pragmaacutetica da Ameacuterica

do Norte tendo herdado a ldquoalmardquo da Europa metafigravesica assim como o sentido metafiacutesico inerente aos

mitos arcaicos americanos e a uma religiosidade de tipo mediterracircneo e latino Cf Constanccedila Marcondes

Ceacutesar Vicente Ferreira da Silva Trajectoacuteria intelectual e contribuiccedilatildeo filosoacutefica 83 729

Para Juliacutean Mariacuteas a filosofia latino-americana orienta-se disjuntivamente ou para a recusa da sua

circunstacircncia na tentativa de alcanccedilar uma universalidade intemporal ou reduz-se a uma reflexatildeo sobre a

circunstacircncia brasileira perdendo a dimensatildeo da universalidade Cf Constanccedila Marcondes Ceacutesar Idem

88 730

Enzo Paci num artigo elaborado por ocasiatildeo do Congresso Internacional de Filosofia realizado em Satildeo

Paulo (1954) na sequecircncia de Sciaca e Mariacuteas afirma a especificidade do pensamento luso-brasileiro e a

sua vinculaccedilatildeo ao mundo miacutetico primitivo indiacutegena e negro Cf Constanccedila Marcondes Ceacutesar Idem 89

388

construccedilatildeo duma identidade cultural sul-americana731 natildeo deixa no entanto

de reivindicar para si mesmo um ponto de vista interpretativo original da obra

de Heidegger ponto de vista que procuraremos esclarecer mostrando que

estava jaacute ldquolanccediladordquo no seu contexto histoacuterico-cultural

2 O estabelecimento progressivo de um ponto de vista interpretativo

21 A reformulaccedilatildeo da questatildeo antropoloacutegica e a descoberta

do segundo Heidegger

Vicente tinha publicado em 1940 a sua obra Loacutegica Simboacutelica sendo

considerado o introdutor da disciplina no Brasil Com a vinda de Willard van

Orman Quine ao Brasil ele foi tradutor das suas conferecircncias auxiliou-o no

curso que ministrou em Satildeo Paulo estudou as obras de Wittgenstein e Carnap

e considerava a loacutegica matemaacutetica como uma ampliaccedilatildeo da loacutegica claacutessica

capaz de ser um instrumento de criacutetica da linguagem filosoacutefica e cientiacutefica732

O afastamento de Vicente em relaccedilatildeo aos problemas da loacutegica e da

epistemologia esteve ligado ao seu contacto com as filosofias da existecircncia e

ao primado da reflexatildeo sobre a questatildeo antropoloacutegica o seu interesse pela

obra de Heidegger comeccedilou ainda na deacutecada de 40 e segundo testemunhos

recolhidos por Constanccedila Marcondes Ceacutesar ele dinamizou em sua casa um

ciacuterculo de estudos dedicado a Das Ding e a Ser e Tempo aiacute lendo e traduzindo

estas obras733 A publicaccedilatildeo de Ensaios Filosoacuteficos em 1948 Exegese da

Acccedilatildeo de 1949 e Dialeacutectica das Consciecircncias de 1950 marca um novo ciclo do

pensamento filosoacutefico do autor caracterizado pela centragem na problemaacutetica

antropoloacutegica e pelo diaacutelogo com os pensadores da existecircncia (Sartre

Heidegger Kierkegaard e Jaspers)

Os dois textos que comentam Heidegger mais detidamente satildeo ldquoO Conceito de

Arte na Filosofia Actualrdquo incluiacutedo na Exegese da Acccedilatildeo e ldquoO Outro Como

Problema Teoacuterico e Problema Praacuteticordquo incluiacutedo na Dialeacutectica das Consciecircncias

731

Vicente recusava-se a admitir que a preocupaccedilatildeo com o mito fosse uma caracteriacutestica do pensamento

latino-americano e defendia a ideia de que no Continente Sul-Americano haveria que retomar e

desenvolver a tradiccedilatildeo filosoacutefica europeia Cf Vicente Ferreira da Silva ldquoEnzo Paci e o Pensamento sul-

americanordquo in Revista Brasileira de Filosofia vol V fasc II 1955 287-289 732

Cf Constanccedila Marcondes Ceacutesar Vicente Ferreira da Silva trajectoacuteria intelectual e contribuiccedilatildeo

filosoacutefica 13 733

Cf Ibidem 22

389

No primeiro destes textos Vicente contesta a interpretaccedilatildeo positivista da arte

que a considera como sublimaccedilatildeo ou transferecircncia de impulsos bioloacutegicos

mostrando que tal interpretaccedilatildeo da arte se fundamenta numa compreensatildeo

naturalista do homem ldquoSegundo essa visatildeo o homem natildeo eacute pois uma criaccedilatildeo

de si mesmo natildeo se constitui em seu agir natildeo se dota de forma mas a sua

forma seu ser sua natureza estatildeo agrave base de seus comportamentos

posterioresrdquo734

Vicente critica esta concepccedilatildeo naturalista de homem segundo a qual ele tem

uma essecircncia preacute-determinada sendo assim uma forma que se repete

indefinidamente e que nada pode acrescentar ao seu ser determinado Uma tal

concepccedilatildeo antropoloacutegica torna-se incapaz de ver na arte a realizaccedilatildeo da

liberdade do homem e eacute nas filosofias da existecircncia que Vicente encontra uma

outra concepccedilatildeo do homem a partir da qual se torna possiacutevel pensar a

natureza da arte ldquoO axioma capital da meditaccedilatildeo filosoacutefica dos nossos dias

repousa na afirmaccedilatildeo paradoxal de que o homem natildeo tem ser eacute ldquoune manque

d‟ecirctrerdquo nas palavras de Sartre uma carecircncia de serrdquo735

Eacute partindo desta concepccedilatildeo do homem como carecircncia de ser que podemos

compreender o homem como um ser que se cria a si mesmo atraveacutes das suas

obras E para Vicente Ferreira da Silva a obra humana por excelecircncia que

condiciona todos os outros momentos morfogeneacuteticos eacute a linguagem

Houmllderlin e a Essecircncia da Linguagem e a Carta Sobre o Humanismo satildeo

comentadas por Vicente para evidenciar o papel demiuacutergico da linguagem

sublinhando que para Heidegger ldquoa palavra eacute a morada do ser e aiacute morando

o homem existe na verdade do serrdquo

Vicente sublinha que a palavra a que Heidegger se refere natildeo eacute a palavra de

todos os dias mas a palavra poeacutetica o mito a Linguagem original (Ursprache)

pois aiacute se constitui o sentido e ldquose cerne um paradigma de ser sobre a nossa

consciecircnciardquo

Numa siacutentese entre Sartre e Heidegger exemplificativa deste periacuteodo do

pensamento de Vicente este afirma ldquoLembremo-nos de que para o

existencialismo a existecircncia precede a essecircncia a forma o ser e eacute em seu

734

Vicente Ferreira da Silva A Exegese da Acccedilatildeo Satildeo Paulo 1949 in Dialeacutectica das Consciecircncias e

outros ensaios 135 735

Ibidem 136

390

movimento profundo um dar-se forma essecircncia ser Pois bem esta doaccedilatildeo de

ser eacute para Heidegger um efeito da palavra e particularmente da palavra mito-

poeacuteticardquo736

No segundo texto Vicente propotildee-se pensar a relaccedilatildeo com o outro como um

problema praacutetico na sequecircncia da ceacutelebre ldquodialeacutectica do senhor e do escravordquo

atraveacutes da qual Hegel pensa a emergecircncia da consciecircncia de si mesmo e a

consciecircncia do outro a partir da acccedilatildeo Abordando esta temaacutetica numa

perspectiva eacutetica Vicente propotildee-se demonstrar que o problema do outro eacute

primariamente um problema praacutetico que soacute pode solucionar-se a partir do

encontro efectivo com o outro na solicitude e no cuidado soluccedilatildeo para a qual

Heidegger Sartre e Jaspers teriam contribuiacutedo

Se neste primeiro periacuteodo Vicente integra Heidegger no quadro das filosofias

da existecircncia e estaacute essencialmente preocupado com o problema antropoloacutegico

e com as temaacuteticas da acccedilatildeo esta orientaccedilatildeo sofreraacute uma importante viragem

a partir de 1951

Eacute nesta data que ele publica Ideias para um Novo Conceito de Homem onde o

problema antropoloacutegico eacute encarado segundo uma perspectiva radicalmente

diferente a superaccedilatildeo do ldquohumanismo antropocecircntricordquo ocuparaacute o centro da

sua reflexatildeo filosoacutefica tornando-se claramente Heidegger (e principalmente o

chamado segundo Heidegger) o seu interlocutor privilegiado

No entanto natildeo podemos deixar de constatar que foi depois do encontro com a

obra de Julius Evola com Ernest Grassi no Congresso de Filosofia de

Mendonza em 1949 com Agostinho da Silva e Eudoro de Sousa que Vicente

levou a cabo esta inflexatildeo do seu pensamento Foi tambeacutem em 51 que Vicente

publicou na Revista Brasileira de Filosofia dois artigos sobre o segundo

Heidegger intitulados ldquoHolzwegerdquo e ldquoA uacuteltima fase do pensamento de

Heideggerrdquo

ldquoA uacuteltima fase do pensamento de Heideggerrdquo centra-se na anaacutelise das liccedilotildees

ldquoDa Essecircncia da Verdaderdquo do semestre de Inverno de 193334 da Carta Sobre

o Humanismo de 1946 e do Caminho da Floresta - este artigo daacute conta da

percepccedilatildeo de Vicente relativamente agrave ldquoviragem heideggerianardquo relativamente a

Ser e Tempo Segundo Vicente Heidegger daacute em Da Essecircncia da verdade

736

Ibidem 137

391

um significativo passo em frente face agrave elaboraccedilatildeo do problema do ser

encaminhando-se para aleacutem da determinaccedilatildeo do horizonte transcendental da

ontologia (tarefa levada a cabo em Ser e Tempo) para a meditaccedilatildeo sobre o

sentido do ser atraveacutes dum regresso aos fundamentos da histoacuteria da

Metafiacutesica737

Vicente sublinha que Heidegger recoloca o problema do Ser mostrando a sua

identidade com a Verdade e questiona-se sobre o fundamento mais profundo

da mudanccedila da essecircncia de Verdade de desocultamento (Unverborgenheit)

para exactidatildeo (Richtigkeit) do enunciado mudanccedila que determinou a histoacuteria

da Metafiacutesica ocidental

Apoacutes breve referecircncia ao desenvolvimento do conceito heideggeriano de

Verdade como desocultaccedilatildeo do ente jaacute anunciado em Ser e Tempo e agora

retomado em a Essecircncia da Verdade Vicente mostra que nesta uacuteltima obra

Heidegger defende que a essecircncia da Verdade eacute a liberdade entendida como

ldquoex-posiccedilatildeo agraves coisasrdquo e ldquoek-sistecircnciardquo isto eacute como acto desvelador do ente

que estaacute ele mesmo historicamente destinado

Vicente refere ainda que essa desocultaccedilatildeo implica sempre para o pensador

alematildeo a ocultaccedilatildeo e o encobrimento estabelecendo uma comparaccedilatildeo com o

pensamento de Heraclito ldquoEsta visatildeo sombria da vida lembra a sabedoria

infusa de um Heraclito que via o mundo como um destacar-se luminoso em

abismos insondaacuteveis e como eterna alternacircncia dos princiacutepios diurno e

nocturnordquo738 ilustrando ainda esta ldquovisatildeo sombria da vidardquo com um poema de

Rilke alusivo agrave Obscuridade

Mais importante poreacutem eacute o seu comentaacuterio agrave Carta sobre o Humanismo

(classificada por Vicente como ldquouma das obras mais importantes deste seacuteculordquo)

porque se liga directamente agrave problemaacutetica que ocuparaacute doravante a reflexatildeo

do pensador brasileiro ldquoA elaboraccedilatildeo do problema do fundamento metafiacutesico

do humanismo segue uma linha criacutetica procurando Heidegger mostrar que a

737

ldquoA mais forte impressatildeo que nos fica da leitura do uacuteltimo Heidegger eacute a de um esforccedilo sobre-humano

para colocar em outras bases a tarefa fundamental da filosofia O seu pensamento se apresenta sempre

como uma inversatildeo (Umkehrung) no sentido de remontar agraves origens transcendentais da realidade A

dificuldade tradicional do pensamento heideggeriano se adensou ainda mais em suas uacuteltimas obras Da

Essecircncia da Verdade Carta sobre o Humanismo e Caminhos do Bosque ndash pois ao ericcedilado habitual de sua

terminologia acrescentou-se a condensaccedilatildeo quase aforiacutestica do texto A afinidade do seu pensamento

com a palavra oracular dos presocraacuteticos estaacute certamente agrave base deste novo estilo de apresentaccedilatildeo da sua

obrardquo Vicente Ferreira da Silva ldquoA ugraveltima fase do pensamento de Heideggerrdquo Revista Brasileira de

Filosofia vol I fasc 3 1951 280 738

Ibidem 283

392

essecircncia do homem concebida a partir da metafiacutesica tradicional nada mais

expressa que o esquecimento do ser (Seinsvergessenheit)rdquo739

Vicente mostra ainda que a tentativa heideggeriana de pensar a essecircncia do

homem a partir do ser o conduz a abandonar o plano do Ente e da

determinaccedilatildeo da especificidade do homem em relaccedilatildeo aos diferentes tipos de

ente Para o pensador alematildeo o homem eacute o ldquovizinho do serrdquo e ldquoeacute em funccedilatildeo

desta verdade do ser que podemos entender a existencialidade da existecircncia

Ek-sistecircncia significa estar exposto agrave verdade do ser A essecircncia ek-staacutetica do

homem proveacutem deste acesso essencial agrave abertura (Offenheit) do serrdquo740

Afirma ainda Vicente que esta relaccedilatildeo do homem com ldquoas potecircncias

envolventes do serrdquo daacute-se na linguagem mas natildeo na linguagem ndash instrumento

(a palavra do Ente) a linguagem que salvaguarda a essecircncia do homem eacute em

essecircncia a palavra poeacutetica

Recorrendo ao ensaio Houmllderlin e a Essecircncia da Poesia Vicente lembra que

para Heidegger a poesia natildeo eacute um mero divertimento nem uma manifestaccedilatildeo

da cultura mas sim o fundamento que suporta a histoacuteria Vicente esclarece

ainda que a poesia tem para Heidegger o sentido mais amplo da linguagem

instituinte e inaugural do mundo e que ela compreende a totalidade das obras

de arte

Nestes breves comentaacuterios Vicente indica a sua percepccedilatildeo do itineraacuterio de

Heidegger apoacutes Ser e Tempo e testemunha a mesma impressatildeo de ldquoviragemrdquo

que todos os pensadores europeus experimentaram na leitura da Carta Sobre

o Humanismo

Contudo esta viragem heideggeriana eacute relacionada com a questatildeo

antropoloacutegica e na sua leitura o pensador brasileiro destaca a direcccedilatildeo que

vai orientar o seu pensamento a necessidade de reelaborar a questatildeo

antropoloacutegica em conexatildeo com o conceito de verdade como desocultamento e

em conexatildeo com o primado da linguagem poeacutetica

739

Ibidem 285 740

Ibidem 286

393

22 O homem e o ditado do ser

Efectivamente em 1951 Vicente publica Ideias para um Novo Conceito de

Homem obra que marca uma viragem decisiva no pensamento do autor

claramente influenciada pela Carta sobre o Humanismo de Heidegger Nesta

obra a questatildeo da relaccedilatildeo entre linguagem poesia e mitologia eacute central e

pensada a partir de Schelling Jacob Boehme e Heidegger iniciando aiacute Vicente

uma meditaccedilatildeo sobre a natureza da linguagem em ruptura com a sua primeira

fase de ligaccedilatildeo agrave loacutegica e agrave filosofia neo-positivista

Vicente procura mostrar que a tradiccedilatildeo metafiacutesica marcada pelo esquecimento

da peculiaridade ontoloacutegica do homem falseou tambeacutem a natureza da

linguagem a Metafiacutesica pressupocircs sempre um homem jaacute constituiacutedo (anterior agrave

linguagem) que sob o impeacuterio de contingecircncias externas criava o mundo

simboacutelico da palavra Vico741 e Fichte teriam ambos incorrido neste erro de

atribuir ao homem a criaccedilatildeo da linguagem como sistema arbitraacuterio de signos

Na oacuteptica de Vicente devemos considerar pelo contraacuterio que a linguagem eacute

que cria o homem e esta tese de uma antropogeacutenese pela linguagem teria sido

jaacute antecipada por Jacob Boehme e Schelling e finalmente encontrar-se-ia

cabalmente fundamentada nas obras de Heidegger posteriores a Ser e Tempo

ldquoNeste sentido podemos dizer que natildeo eacute o homem que daacute origem agrave palavra

mas eacute a palavra que daacute origem ao homem As suas possibilidades histoacuterico-

existenciais a sua representaccedilatildeo do mundo e das coisas soacute lhe satildeo reveladas

atraveacutes do verbo mito-poieacutetico Eacute o que afirma Heidegger em seu ensaio

Houmllderlin e a Essecircncia da Poesia ldquoEacute em virtude da linguagem que o homem se

acha exposto em geral a um Revelado o ser do homem tem o seu

fundamento na linguagemrdquordquo742

741

A posiccedilatildeo de Ferreira da Silva relativamente agrave tradiccedilatildeo metafiacutesica designadamente agrave metafiacutesica

escolaacutestica eacute bastante distinta de Delfim Santos Criacutetico em relaccedilatildeo a esta tradiccedilatildeo Ferreira da Silva lecirc

Heidegger agrave luz da Filosofia Alematilde estabelecendo muacuteltiplas conexotildees com o idealismo alematildeo sobre

tudo com Schelling e mais tarde com Nietzsche Cf Maria Helena Varela Silva Conjunccedilotildees Filosoacuteficas

Luso-Brasileiras 120 Eacute tambeacutem no diaacutelogo com a miacutestica (Jacob Boehme) e com a poesia alematildes

(Houmllderlin) que Vicente lecirc Heidegger o que traduz a sua profunda ligaccedilatildeo agrave cultura alematilde desde logo

explicaacutevel pela sua educaccedilatildeo Embora educado num meio onde o italiano era a liacutengua materna cedo

aprendeu alematildeo e comeccedilou a ler a Revista de Ocidente (1922) que introduziu no Brasil a filosofia alematilde

a partir de traduccedilotildees de Ortega Cf Constanccedila Marcondes Ceacutesar Vicente Ferreira da Silva trajectoacuteria

intelectual 9 742

Vicente Ferreira da Silva rdquoIdeias Para um Novo Conceito de Homemrdquo Revista Brasileira de

Filosofia vol I fasc 4 1951 in Dialeacutectica das Consciecircncias e outros ensaios 250

394

Esta tese de uma antropogeacutenese pela linguagem encontra-se segundo

Vicente preacute-anunciada por Jacob Boehme em Mysterium Magnum Aiacute a

propoacutesito do episoacutedio biacuteblico da Torre de Babel Jacob Boehme leva a cabo um

conjunto de interpretaccedilotildees teosoacuteficas visando mostrar a constituiccedilatildeo dos

diversos povos e liacutengua histoacutericas a partir de um povo e de uma liacutengua original

Aiacute sublinha Vicente agrave mistura com divagaccedilotildees cabaliacutesticas e arbitraacuterias

poderemos encontrar uma explicaccedilatildeo convincente das diferenccedilas constitutivas

das diferentes liacutenguas ldquoBoehme encontra a causa da confusatildeo das liacutenguas e

da dissoluccedilatildeo dos povos na multiplicidade das imagens e opiniotildees que cada

povo formou sobre o ser e a vontade de Deus em seu personalismo

particularrdquo743

Relativamente ao papel das liacutenguas na constituiccedilatildeo das peculiaridades

histoacutericas e geograacuteficas de cada povo Vicente afirma que segundo Jacob

Boehme ldquoOs povos natildeo se dividiram entretanto porque sendo diversos

comeccedilassem a falar na confusatildeo das liacutenguas mas pelo contraacuterio pelo facto de

a liacutengua geral se contrair na particularidade das propriedades e dos sentidos

foi que os povos se disseminaram sobre a terra A confusatildeo das liacutenguas

precedeu a confusatildeo dos povos e a condicionourdquo744

Se abandonarmos a hipoacutetese de uma unidade meta-histoacuterica de todos os

povos podemos afirma Vicente aceitar o essencial das teses de Jacob

Boehme relativamente ao papel determinante das diversas liacutenguas na

constituiccedilatildeo dos povos assumindo no entanto positivamente a nossa

condiccedilatildeo linguiacutestica como ldquoum mundo de oportunidades e desempenhos

histoacutericosrdquo

Estas teses teriam sido depois retomadas por Schelling na sua Filosofia da

Mitologia Vicente afirma que Schelling investiga nesta obra a origem e

constituiccedilatildeo dos povos defendendo que um povo se constitui como tal quando

ldquose decide por uma mitologia dela fazendo a sua mitologiardquo pois esta

determina o caraacutecter e a histoacuteria de um povo ditando-lhe de certo modo o seu

destino Essa decisatildeo por uma mitologia natildeo eacute poreacutem entendida por Schelling

senatildeo como sinal de que os deuses se apossaram do acircnimo de um povo

743

Ibidem 252 744

Ibidem 253

395

sendo esta irrupccedilatildeo do sagrado que determina a sua concepccedilatildeo do mundo e

de si mesmo745

As diferentes teodiceias correspondem aos diversos povos histoacutericos que se

acham eles mesmos comprometidos com um drama teogoacutenico que tem uma

dimensatildeo subjectiva e transsubjectiva pois embora se desenrole no interior da

consciecircncia humana tem a sua causa ldquonas potecircncias teogoacutenicas

transcendentesrdquo

Assim sublinha Vicente uma vez que segundo Schelling o homem recebe as

suas possibilidades histoacutericas da ldquoforccedila instituidora do processo teogoacutenico

originalrdquo a sua condiccedilatildeo ontoloacutegica aparece-nos radicalmente modificada

ldquoAparece-nos como ente na medida em que o encaramos na sua condiccedilatildeo

derrelicta e abandonada em sua geworfene Realitaumlt e como natildeo ente na

medida em que ocupa a posiccedilatildeo de emissaacuterio das potecircncias demiuacutergicas

originaisrdquo746

Em Schelling Vicente encontra tambeacutem a ideia de que a mitologia eacute poesia

originaacuteria isto eacute a fonte de todas as posteriores criaccedilotildees poeacuteticas No entanto

Vicente pretende ir mais longe que Schelling defendendo uma identificaccedilatildeo

completa entre poesia e mitologia a poesia eacute ela mesma ldquoo modo de

actuaccedilatildeo das potecircncias mito-poieacuteticasrdquo ldquoTivesse ele sentido o que existe de

imperioso e de necessaacuterio na criaccedilatildeo poeacutetica tivesse ele entrevisto na palavra

poeacutetica a formulaccedilatildeo de um destino de um povo quando o poeta em sua

singularidade se perde e se transcende arrebatado pelo que deve ser dito e

natildeo haveria recuado ante a identificaccedilatildeo da poesia com o modo de actuaccedilatildeo

das potecircncias mito-poieacuteticasrdquo747

Na condiccedilatildeo do poeta como arrojado para o ldquoentrerdquo a voz do povo e os deuses

referida em Houmllderlin e a Essecircncia da Poesia Vicente encontra a confirmaccedilatildeo

desta identificaccedilatildeo do poeta como ldquoemissaacuteriordquo das potecircncias teogoacutenicas e

portanto como criador de mitos Efectivamente a caracterizaccedilatildeo feita por

Heidegger da poesia como Saga na obra acima referida autoriza esta leitura

745

Vicente critica a abordagem que a moderna sociologia faz da mitologia vendo nesta o resultado de

uma produccedilatildeo colectiva e anoacutenima que emana da estrutura social Para Vicente eacute o contraacuterio que se

passa pois a ldquoconsciecircncia de um povo eacute formada pelos deuses que se apossaram do seu acircnimo de tal

forma que a concepccedilatildeo que alimenta sobre o mundo e sobre si mesmo eacute inteiramente determinada pela

irrupccedilatildeo do sagrado Cf Ibidem 258-259 746

Ibidem 261 747

Ibidem 262

396

ldquoA fundaccedilatildeo do ser estaacute vinculada aos acenos dos deuses E ao mesmo tempo

a palavra poeacutetica natildeo eacute senatildeo a interpretaccedilatildeo da ldquoVoz do Povordquo Assim designa

Houmllderlin as sagas nas quais um povo se rememora na pertenccedila do ente no

seu todordquo748

A funccedilatildeo de ldquoabertura de mundordquo que Heidegger atribui agrave linguagem em geral e

que em Houmllderlin e a Essecircncia da Poesia a linguagem poeacutetica realiza de forma

eminente (ldquoa linguagem natildeo eacute soacute um instrumento que o homem tambeacutem

possui aleacutem de muitos outros mas esta daacute acima de tudo a possibilidade de

estar no meio da abertura do ente Apenas onde haacute linguagem haacute mundordquo749) eacute

reconhecida por Vicente e identificada com a ideia igualmente defendida por

Eudoro de Sousa em Mitologia de uma diacosmese ldquoAo aceno de qualquer

dos deuses se atribui uma diacosmese Uma diacosmese esta ou aquela

conforme se trata deste ou daquele deus eacute o acenado pelo aceno de um deus-

acenante O aceno diacosmiza a mensagem do deus Natildeo podemos de outro

modo entender aqueles ldquoacenantes mensageiros da divindaderdquordquo750

Na Carta sobre o Humanismo Vicente lecirc sobretudo a reafirmaccedilatildeo deste

primado da linguagem mitopoieacutetica como linguagem em que se daacute o

desvelamento do ser assim como as importantes consequecircncias desta tese na

reformulaccedilatildeo do problema antropoloacutegico

Sublinhando que Heidegger critica todos os humanismos por procederem a

uma determinaccedilatildeo da essecircncia do homem a partir de ldquouma determinada

interpretaccedilatildeo da natureza da cultura do ente em geralrdquo esquecendo a verdade

do ser Vicente conclui que ldquoo destino da metafiacutesica eacute o de natildeo conseguir

pensar o homem em sua verdadeira proveniecircncia e em conexatildeo fundamental

com o serrdquo751

748

bdquoDie Stiftung des Seins ist gebunden an die Winke der Goumltter Und zugleich ist das dichterische Wort

nur die Auslegung der bdquo Stimme des Volkesldquo So nennt Houmllderlin die Sagen in denen ein Volk eingedenk

ist seiner Zugehoumlrigkeit zum Seienden im Ganzenldquo HWD GA 4 46 749

bdquoDie Sprache ist nicht nur ein Werkzeug das der Mensch neben vielen anderen auch besitzt sondern

die Sprache gewaumlhrt uumlberhaupt erst die Moumlglichkeit in mitten der Offenheit von Seiendem zu stehen Nur

wo Sprache da ist Welt []ldquo HWD GA 4 3738 750

Eudoro de Sousa Mitologia Histoacuteria e Mito 184 751

ldquoDe acordo com Heidegger a totalidade das formulaccedilotildees e doutrinas sobre a natureza uacuteltima do

homem sobre a humanitas do homem se desenvolveu a partir da precaacuteria base de um profundo

esquecimento do ser [hellip] A primeira observaccedilatildeo de Heidegger se colige na acentuaccedilatildeo de que o

pensamento filosoacutefico ocidental ao pretender determinar a essecircncia do homem o fez sempre a partir de

uma determinada interpretaccedilatildeo da natureza da histoacuteria e do ente em geralrdquo Vicente Ferreira da Silva

ldquoIdeias para um novo conceito de homemrdquo in Dialeacutectica das Consciecircncias e outros ensaios 272

397

Para escapar a esta determinaccedilatildeo metafiacutesica da essecircncia do homem natildeo

podemos pensaacute-lo coleccionando as suas qualidades ocircnticas nem apelando

para a subjectividade mas o modo de aproximaccedilatildeo da humanitas do homem

consiste na visualizaccedilatildeo da sua ldquodimensatildeo ek-sistencial e transcendenterdquo

Vicente esclarece o sentido desta dimensatildeo ek-sistencial do homem em termos

natildeo compatiacuteveis com a sua anterior posiccedilatildeo existencialista mostrando

claramente que segundo Heidegger a ek-sistecircncia deve ser pensada ldquoa partir

da relaccedilatildeo ek-staacutetica com a abertura desveladora do serrdquo ldquoO pensamento de

Heidegger no que respeita explicitamente ao problema da ldquoessecircncia do

homem vem exposto em sua plaquette Carta Sobre o Humanismo Para

Heidegger o homem eacute o vizinho do ser Contudo o pensamento filosoacutefico e

humaniacutestico natildeo atendia a esta relaccedilatildeo e intimidade do homem com as

potecircncias instituidoras do Ser O pensamento metafiacutesico pensou o homem a

partir da forma do Ente isto eacute a partir de imagens que natildeo eram

suficientemente originais e preacutevias Uma verdade derivada foi tida como

constituindo e esgotando o significado da humanitas Uma nova inteligecircncia do

fenoacutemeno humano supotildee um novo remontar em direcccedilatildeo agrave conexatildeo uacuteltima do

homem com o fundamento de todo o enterdquo752

O ser eacute sublinha Vicente abertura desvelamento descobertura e iluminaccedilatildeo

e este desvelamento significa o esboccedilo de um mundo Weltentwurf o ser daacute-se

como esboccedilo de um mundo e como poder instituidor das possibilidades

histoacutericas do homem no interior das quais se pode manifestar a sua liberdade

Vicente sublinha que tanto em Heidegger como em Schelling o homem eacute

arrebatado por um poder que o ultrapassa e estaacute sujeito a um Destino que

determina a sua realidade histoacuterica Este destino eacute identificado por Vicente

como as ldquodecisotildees histoacuterico-teogoacutenicasrdquo que decidem o apogeu e o decliacutenio

dos ciclos histoacutericos o aparecimento e decliacutenio dos mundos753

Assim sublinha Vicente Heidegger procura pensar o homem agrave margem de

todo o antropocentrismo da tradiccedilatildeo metafiacutesica e humanista754 retirando-o do

752

Vicente Ferreira da Silva Ibidem 272 753

Cf Ibidem 275 754

ldquoAo contraacuterio do que se mostra no acircmbito da filosofia ldquointramundanardquo que se subdivide em muacuteltiplas

perspectivas distintas ou contrapostas como as do idealismo realismo materialismo etc poder-se-ia

dizer que do ponto de vista radical aceite por Vicente soacute haacute duas direcccedilotildees filosoacuteficas fundamentais

uma que se propotildee o problema do homem e das coisas a partir do homem mesmo outra que pensa o

398

centro da histoacuteria ldquoO poder ser proacuteprio do homem eacute pois um poder ser

arrojado uma actividade que se exercita dentro de uma direcccedilatildeo e de

directivas jaacute prescritas O homem portanto natildeo eacute o Senhor do Ente (der Herr

des Seienden) mas o pastor do ser (der Hirt des Seins)rdquo755

Ora este instituir do projecto transcendente do ser que arrebata o homem e o

lanccedila na histoacuteria daacute-se precisamente sublinha Vicente no dizer poeacutetico ldquono

dizer poeacutetico potildee-se em obra a verdade projectante do serrdquo O primado da

linguagem poeacutetica resulta precisamente da sua funccedilatildeo desocultante da sua

capacidade de abertura de mundos que a distinguem inteiramente da funccedilatildeo

meramente teacutecnico-instrumental e comunicativa da linguagem quotidiana ou da

linguagem cientiacutefica que retivera o interesse de Vicente na primeira fase da

sua obra

Esta fixaccedilatildeo da tradiccedilatildeo metafiacutesica sobre a funccedilatildeo teacutecnico-intrumental da

linguagem constituiacutera-se na perspectiva de Vicente como o maior obstaacuteculo

para uma compreensatildeo radical da relaccedilatildeo da palavra com a essecircncia do

homem ldquoSatildeo justamente as ideias prevalentes sobre a essecircncia da linguagem

e de sua funccedilatildeo cultural que nos impedem o caminho para uma compreensatildeo

radical da relaccedilatildeo da palavra com a essecircncia do homem Estas teorias

inspiraram-se na linguagem decaiacuteda e intramundana e a transcrevem em

termos da verdade do Enterdquo756

Heidegger teria poreacutem repensado a essecircncia da linguagem de uma forma

radicalmente nova constituindo-a como a ldquomorada do serrdquo morada que o

homem ek-sistindo estaacute destinado a habitar ldquo Nesta concepccedilatildeo o Homem

passa a ser interior agrave palavra instituiacutedo em sua configuraccedilatildeo histoacuterica particular

pela abertura projectante do dizer poeacuteticordquo757

A linguagem ndash enquanto verbo mitopoieacutetico - eacute afirma Vicente algo que

acontece a partir do proacuteprio ser o pensamento do ser eacute um dictare e eacute na

poesia enquanto ditado do ser que vecircm instituiacutedas as directiva e as normas

que determinam em cada eacutepoca o comportamento humano ldquoO ditar da poesia

edifica a morada do homemrdquo

homem e as coisas a partir de Deus pondo-se o pensador ousadamente na perspectiva original do divinordquo

Miguel Reale Estudos de Filosofia Brasileira Lisboa 1994 202 755

Vicente Ferreira da Silva ldquoIdeias para um novo conceito de homemrdquo in Dialeacutectica das Consciecircncias e

outros ensaios 276 756

Ibidem 277 757

Ibidem 277

399

Neste importante texto Vicente revecirc em diaacutelogo com o segundo Heidegger as

teses que marcaram a primeira e segunda etapas do seu proacuteprio percurso

intelectual sendo a funccedilatildeo desocultante da linguagem poeacutetica o ponto de

partida para uma nova compreensatildeo da natureza do homem que agora eacute

pensado como algo de secundaacuterio e desvelado758

23 O caminho de transiccedilatildeo para uma filosofia da Mitologia

Mas eacute nas uacuteltimas paacuteginas de Ideias Para um Novo Conceito de Homem - que

sistematizam as conclusotildees do jaacute alcanccedilado relativamente agrave reformulaccedilatildeo da

questatildeo antropoloacutegica e agrave superaccedilatildeo do antropocentrismo da tradiccedilatildeo

metafiacutesica - que Vicente lanccedila um ponto de vista interpretativo original

Vicente afirma que de acordo com a perspectiva aberta por Heidegger a

ldquohistoacuteriardquo de que o homem faz parte natildeo seria apenas a histoacuteria humana mas

abrangeria um acircmbito muito maior pois a histoacuteria do ser arrebata o homem e

determina cada situaccedilatildeo histoacuterica particular ldquoA histoacuteria da qual o homem faz

parte natildeo seria unicamente a histoacuteria humana mas abrangeria um acircmbito e

alcanccedilaria um sentido muito maiores Como Heidegger muito bem assinalou a

histoacuteria do ser arrasta e determina cada condiccedilatildeo ou situaccedilatildeo humanardquo759

De facto o pensamento tardio de Heidegger empenhado no abandono das

categorias da subjectividade e na descoberta de um acircmbito mais originaacuterio em

que o proacuteprio Dasein se encontre radicado aponta para um fundamento mais

radical do desvelamento da verdade e coloca a tese da histoacuteria do Ser

A ideia da ldquohistoacuteria do serrdquo eacute um incitamento a pensar a histoacuteria a partir do

enviar-se (Sichzuschiken) e subtrair-se do ser (Sichentzihen) que nesse

mesmo enviar-se se oculta Daiacute que uma eacutepoca histoacuterica tenha de ser pensada

como o aparecer de uma figura de mundo a partir do retraimento e da

ocultaccedilatildeo do ser

758

ldquolaquoO lanccedilador (das Werfende) no projecto natildeo eacute o homem mas sim o proacuteprio ser que envia o homem agrave

ek-sistecircncia do existirraquo vemos portanto como a linguagem eacute algo que acontece a partir do proacuteprio Ser e

como a essecircncia da linguagem deve ser captada nessa correspondecircncia do dizer com o pensamento do

Ser O pensamento do Ser eacute como nos diz Heidegger nos Holzwege a maneira original do dizer poeacutetico

do dictare Atraveacutes do ditado do Ser vecircm suscitadas as directivas e normas que determinam as formas

histoacutericas do comportamento humanordquo Ibidem 279 759

Ibidem 281

400

Na perspectiva de Vicente esta tese do primado da histoacuteria do ser

relativamente agrave histoacuteria humana implica que ldquoa solidariedade preferencial do

Ser pelo princiacutepio humanordquo na presente eacutepoca do ser eacute histoacuterica e

temporalmente circunscrita760 De acordo com a hipoacutetese de Vicente noacutes

podemos pensar antes e depois da eacutepoca humaniacutestica outras eacutepocas em que o

ser se desvendaria noutras modalidades ldquoEste pode constituir um dos eons da

histoacuteria do ser entretanto o homem como Ser ek-sistente insistente tem a

tendecircncia de estender o presente regime de coisas identificando sem mais o

tempo humano com o tempo tout court O que eacute proacuteximo e costumeiro passa a

vigorar como norma para todas as possibilidades eventuais das coisas O

princiacutepio costumeiro e humano pode constituir muito bem um mero transe na

gigantomaquia do Ser Em outras palavras podemos vislumbrar a hipoacutetese de

ser o homem como diria Platatildeo um evento na progeacutenie dos deuses Antes e

depois do homem outros protagonistas poderiam ocupar o cenaacuterio do tempo

Devemos ingressar numa seacuterie temporal mais vasta e compreensivardquo761

Contudo em Heidegger o tema da histoacuteria do ser ou seja este envio e

retracccedilatildeo designados como ldquoa histoacuteria do Serrdquo limitam a inteligibilidade da

histoacuteria fazendo com que a sucessatildeo das eacutepocas histoacutericas permaneccedila

assente num fundo de obscuridade e o curso da histoacuteria natildeo tenha um sentido

determinaacutevel como ocorria em Hegel 762

Para Vicente pelo contraacuterio a consigna da ldquohistoacuteria do serrdquo abre a hipoacutetese de

pensar para aleacutem da histoacuteria e da temporalidade humanas colocando a

possibilidade de fazer derivar a sucessatildeo das diversas eacutepocas histoacutericas dos

vaacuterios princiacutepios mitoloacutegicos imperantes em cada caso ou seja de uma

filosofia da mitologia Assim Vicente pergunta ldquoSe devemos pensar a acccedilatildeo

humana como um princiacutepio derivado como uma histoacuteria dentro da histoacuteria

como deveremos entender esse espaccedilo maior onde se engasta o espaccedilo

760

Ibidem 283 761

Ibidem 284 762

Na perspectiva de Vicente em Hegel haacute uma visatildeo antropocecircntrica do tempo que seria necessaacuterio

ultrapassar pela tentativa de pensar um tempo natildeo-humano em que se movem as potecircncias que

determinam o sentido da histoacuteria Isto conseguir-se-ia por uma autecircntica inversatildeo da dialeacutectica hegeliana

que Marx nunca chegou a fazer - em vez do tempo progressivo da tomada de consciecircncia de si do

Espiacuterito devemos percorrer as seacuteries temporais em sentido inverso ateacute agrave dimensatildeo originaacuteria do Sagrado

Cf Ibidem 286

401

humano Podemos pensar uma histoacuteria que natildeo seja histoacuteria natildeo humana O

homem pode pensar o natildeo humanordquo763

Eacute precisamente esta tentativa de sair da temporalidade humana e ingressar

directamente numa outra seacuterie temporal que vai afastar Vicente do domiacutenio de

uma ontologia fenomenoloacutegica para o aproximar das tentativas de pensar a

histoacuteria como um desvendamento do Divino isto eacute como cenaacuterio onde opera

uma forccedila transcendente supra-humana como ocorria em Julius Evola

Em Teogonia a Anti-humanismo publicada em 53 Vicente esclarece em que

consiste esta possibilidade de ingressar noutras seacuteries temporais jaacute natildeo

vinculadas agrave historicidade humana nem pensadas ldquosub specie hominisrdquo ldquoEsta

eventualidade de outros processos temporais constitui em uacuteltima anaacutelise a

doutrina claacutessica das Idades ou Eacutepocas do mundo Essa ideia eacute encontrada

mais recentemente natildeo soacute em Vico e Schelling como tambeacutem em Bachofen e

Evola natildeo eacute outra a posiccedilatildeo com que nos defrontamos nos recentes escritos

de Heideggerrdquo764

Julius Evola em A Revolta contra o Mundo Moderno defende precisamente a

possibilidade de fazer assentar a histoacuteria numa meta-histoacuteria fundamentada na

experiecircncia da supra-temporalidade em que assentava o mundo tradicional

Julius Evola natildeo soacute expotildee as categorias do ldquoespiacuterito tradicionalrdquo como repensa

a histoacuteria e a geacutenese da modernidade a partir dessas categorias consideradas

como categorias ldquosimboacutelica supra-histoacutericas e normativasrdquo

Assim Evola contrapotildee agrave doutrina evolucionista e agrave doutrina dos 3 estados de

Augusto Conte uma metafiacutesica da histoacuteria segundo a qual esta se encaminha

num sentido progressivamente descendente como acontecia na doutrina das 4

Idades de Hesiacuteodo ldquoDefender como tradicionalmente se deve defender que

nas origens tenha existido natildeo o homem animalesco das cavernas mas sim

um ldquomais que homemrdquo e que jaacute a mais alta preacute-histoacuteria tenha visto natildeo uma

ldquocivilizaccedilatildeordquo mas pelo contraacuterio uma ldquoera dos deusesrdquo - para muitos que de

uma ou outra maneira acreditam na boa nova do darwinismo significa fazer

pura ldquomitologiardquo Todavia como esta mitologia natildeo somos noacutes a inventaacute-la

agora ficaria assim por explicar o facto da sua existecircncia ou seja o facto de

763

Ibidem 282 764

Vicente Ferreira da Silva Teologia e Anti-humanismo Satildeo Paulo 1953 in Dialeacutectica das

Consciecircncias e outros ensaios 293

402

nos testemunhos mais remotos dos mitos e dos escritos da Antiguidade natildeo se

encontrar nenhuma recordaccedilatildeo que conforte o darwinismo e que se encontre ndash

pelo contraacuterio e precisamente - o seu oposto a ideia de um passado melhor

mais luminoso supra-humano (ldquodivinordquo)765

A meta-histoacuteria de Evola assente nos testemunhos acima referidos defende a

sucessatildeo de 4 ciclos ou idades o ciclo noacuterdico-atlacircntico fundado na revelaccedilatildeo

celeste e luminosa do divino e na afirmaccedilatildeo do princiacutepio masculino (a Idade do

Ouro) o ciclo atlacircntico-meridional correspondente agrave revelaccedilatildeo teluacuterica feminina

e nocturna do divino (a Idade da Prata) e finalmente os ciclos de decadecircncia

caracterizados pela degenerescecircncia da espiritualidade e pela afirmaccedilatildeo do

poder temporal ciclo titacircnico e dionisiacuteaco (Idades do Bronze e do Ferro)

Esta tentativa de pensar a histoacuteria a partir do desvendamento do divino e de

princiacutepios miacuteticos alternativos assente nas categorias do pensamento

tradicional eacute encontrada por Vicente tambeacutem no ensaio de Schelling A

Essecircncia da Liberdade Humana como sucessatildeo da idade do ouro eacutepoca dos

deuses e dos heroacuteis e eacutepoca dos oraacuteculos teluacutericos

Segundo o pensador brasileiro esta tentativa de romper com o mundo histoacuterico

e pensar o tempo a partir de categorias miacuteticas encontra tambeacutem confirmaccedilatildeo

na poesia de Houmllderlin Neste poeta do romantismo alematildeo ele encontra

tambeacutem a criacutetica ao ldquomundo histoacutericordquo do ocidente (das Abendland)

caracterizado como a noite dos deuses ldquoO mundo histoacuterico realizado durante

esta noite eacute constituiacutedo pelos perfis e imagens oriundos da subjectividade

humana desligada do ditado divino Agraves forccedilas promotoras da magia divina se

substitui o puro ldquofazer sem imagemrdquo da produtividade humana e agraves vezes infra-

humana se a conexatildeo histoacuterica era anteriormente sustentada por uma

Imaginatio instituidora dos grandes siacutembolos e formas de actuaccedilatildeo temporal

se a cidade humana era a morada dos deuses agora na etapa humana e

infra-humana o destino histoacuterico cumpre-se como construccedilatildeo-destrutivardquo 766

Contudo esta ruptura com a historicidade e a tentativa de pensar a histoacuteria

humana atraveacutes de categorias supra-histoacutericas esquecidas e destruiacutedas pelo

pensamento histoacuterico escapa inteiramente como acima referimos ao domiacutenio

765

Julius Evola A Revolta Contra o Mundo Moderno Lisboa 1989 241 766

Vicente Ferreira da Silva ldquoIdeias Para um Novo Conceito de Homemrdquo Revista Brasileira de Filosofia

vol Ifasc 41951 in Dialeacutectica das Consciecircncias e outros ensaios 287

403

da ontofenomenologia heideggeriana Como Heidegger adverte em Identidade

e Diferenccedila o ser daacute-se sempre sob a forma histoacuterica do pensamento humano

na seacuterie das representaccedilotildees epocais da Metafiacutesica ldquoO Ser somente se daacute de

cada vez com este ou aquele cunho historial Φύζις Λόγος Εν Ιδέα Ενέργεια

Substancialidade Objectividade Subjectividade Vontade Vontade de Poder

Vontade de Vontaderdquo767 A solidariedade entre o destinar-se do ser e a histoacuteria

humana eacute neste sentido total - pois o homem eacute histoacuterico precisamente onde

comeccedila a imperar o destino do ser que estabelece para o homem uma forma

total de configuraccedilatildeo da realidade e soacute a partir destas configuraccedilotildees histoacutericas

o homem pode indirectamente aceder agrave histoacuteria do ser

Contudo para Vicente eacute possiacutevel aceder directamente agrave histoacuteria do ser

tomando como ponto de partida as categorias intemporais e supra-histoacutericas

que encontramos no pensamento tradicional Vicente visa assim a superaccedilatildeo

da temporalidade da histoacuteria humana e ingressar em outras eacutepocas e idades do

mundo ldquode que natildeo guardamos qualquer informaccedilatildeo ou documento

ldquofilosoficamente determinanterdquo numa referecircncia ao Outrora ou para-laacute do

horizonte da histoacuteria que era visado tambeacutem por Eudoro de Sousa como atraacutes

vimos

Mas para Vicente este outrora anterior agrave histoacuteria apresenta-se como chave

para ingressar no domiacutenio de uma temporalidade e duma histoacuteria natildeo

humanas ldquoA dignidade superior do tempo eacute totalmente menoscabada nesta

concepccedilatildeo que reduz o tempo agrave escala humana esquecendo a relaccedilatildeo do

tempo com o domiacutenio fundamental do Ser Devemos pensar em possibilidades

temporais que ultrapassam a intuiccedilatildeo temporal onde se datildeo os gestos

humanos e os movimentos proacuteprios do homo humanusrdquo768

Trata-se como Vicente claramente adverte de considerar a histoacuteria humana

como subordinada agrave histoacuteria divina e de interpretaacute-la a partir dum princiacutepio

mais alto que natildeo eacute contudo a histoacuteria do ser como em Heidegger se

propunha mas sim a luta entre os deuses ou os vaacuterios princiacutepios miacuteticos

numa ldquovisatildeo teogoacutenica da histoacuteriardquo cujo modelo primeiro se encontra em

Hesiacuteodo

767

bdquoEs gibt Sein nur je und je in dieser und jener geschicklichen Praumlgung Φύζης Λόγος Ελ Ιδέα

Ελέργεηα Substantialitaumlt Objektivitaumlt Subjektivitaumlt Wille Wille zur Macht Wille zum Willenldquo IuD

GA 11 7273 768

Vicente Ferreira da Silva ldquoIdeias Para um Novo Conceito de Homemrdquo in Dialeacutectica das Consciecircncias

e outros ensaios 285286

404

Esta superaccedilatildeo do pensamento histoacuterico que Vicente tenta compatibilizar com

Heidegger eacute contudo como acima demonstraacutemos natildeo compatiacutevel com o

campo de uma fenomenologia hermenecircutica encontrando a sua

fundamentaccedilatildeo filosoacutefica em pensadores latinos como Eudoro de Sousa e

Julius Evola 769

Mais rigorosamente esta marcha atraacutes em relaccedilatildeo ao pensamento histoacuterico eacute

pensada por Vicente como a inversatildeo da marcha dialeacutectica do Espiacuterito em

direcccedilatildeo agrave Liberdade e agrave consciecircncia de si atraveacutes da histoacuteria da Filosofia que

se encontrava pensada em Hegel ldquoA inversatildeo do pensamento de Hegel levar-

nos-ia outra vez em direcccedilatildeo agrave dimensatildeo do sagrado em relaccedilatildeo agrave qual a

histoacuteria humana como antropofania eacute um contiacutenuo afastamentordquo770

24 A destruiccedilatildeo da metafiacutesica da subjectividade como

condiccedilatildeo preacutevia para uma filosofia da Mitologia

Em Introduccedilatildeo agrave filosofia da Mitologia Vicente defende que a conexatildeo dos

problemas filosoacuteficos com o fenoacutemeno religioso soacute eacute possiacutevel a partir duma

total conversatildeo de perspectiva que rompa com a metafiacutesica da subjectividade

ldquoA conexatildeo destes problemas de natureza filosoacutefica com a abertura de uma

nova compreensatildeo da religiatildeo e da Mitologia consiste precipuamente na

impossibilidade de formulaccedilatildeo de uma doutrina da mitologia dentro do

horizonte do cogito subjectivista Unicamente sobre as cinzas de um

pensamento ancorado na condition humaine eacute que poderaacute florescer a

vegetaccedilatildeo das formas miacuteticasrdquo771

769

Permanece no entanto vaacutelida a apreciaccedilatildeo que Miguel Reale faz do significado e da importacircncia do

encontro com o segundo Heidegger para o estabelecimento do ponto de vista novo de O Novo Conceito

de Homem e Teologia e Anti-Humanismo rdquoCom estes dois estudos Vicente supera sem eliminaacute-la como

jaacute observei a ldquodialeacutectica das consciecircnciasrdquo (a cujo estudo dedicara em 1950 a sua obra mais sistemaacutetica

aquela que assinala o apogeu de seu pensamento na fase intermeacutedia ainda inspirada por motivos da

metafiacutesica da subjectividade) para elevar-se agraves fontes projectantes e condicionadoras da

intersubjectividade concluindo que na base da liberdade individual do eu e do tu em seu jogo dialeacutectico

condicionado estaacute o Ser como liberdade que funda e institui o espaccedilo de manifestaccedilatildeo do homem e de

suas possibilidades histoacutericas contingentes O segundo Heidegger cujas obras ningueacutem soube interpretar

melhor do que ele no Brasil propicia-lhe o encontro de suas perspectivas originais [hellip]rdquo Miguel Reale

Estudos de Filosofia Brasileira 203 770

Vicente Ferreira da Silva ldquoIdeias Para um Novo Conceito de Homemrdquo in Dialeacutectica das Consciecircncias

e outros ensaios 286 771

Vicente Ferreira da Silva ldquoIntroduccedilatildeo agrave Filosofia da Mitologiardquo Revista Brasileira de Filosofia nordm 20

1955 in Dialeacutectica das Consciecircncias e outros ensaios 371

405

Essa conversatildeo eacute enunciada por Vicente como uma alteraccedilatildeo do proacuteprio centro

de pensamento uma viragem em direcccedilatildeo a um novo objectivismo -

poderiacuteamos talvez noacutes dizer a um super-objectivismo - para o qual todo o

realismo filosoacutefico do passado ainda eacute sentido como subjectivismo e

antropomorfismo

Para Vicente este super-objectivismo natildeo se satisfaz em reconhecer a

exterioridade das coisas em relaccedilatildeo ao sujeito na qualidade de objectos

porque essa exterioridade jaacute era reconhecida pela filosofia transcendental sem

que ela nos permitisse romper o ciacuterculo da imanecircncia Ele exige a ruptura com

a subjectividade e a imanecircncia da experiecircncia que natildeo pode ser buscada na

transcendecircncia das coisas pois esta transcendecircncia nunca pode ser

transcendecircncia em relaccedilatildeo ao Mundo como mostrou a analiacutetica existencial de

Ser e Tempo ldquoo mundo eacute o prius de todo o ente e de todas a realidade intra-

mundanardquo

Trata-se antes de reconhecer que a subjectividade e as categorias da

racionalidade nela fundadas satildeo algo de secundaacuterio e derivado posto por um

poder transcendente Seraacute necessaacuterio que noacutes reconheccedilamos que todo o

conhecido pelo conhecimento estaacute condicionado por um ldquooferecer

transcendentalrdquo por um acto do ldquoDispensadorrdquo que potildee agrave nossa disposiccedilatildeo o

que pode ser conhecido e desperta o desejo de conhecer772

Soacute reconhecendo em todo o cognosciacutevel algo de oferecido que se manifesta

ocultando a sua fonte transcendente noacutes poderemos reconhecer a

precariedade das nossas figuras do espiacuterito e aceitar a realidade do

desempenho transracional do mito

Sem conquistarmos previamente a liberdade em relaccedilatildeo ao presente discurso

da racionalidade cientiacutefica noacutes natildeo poderemos aceder agrave verdade que se

enuncia do mito nem aceitar outros sistemas culturais que se nos apresentam

como uma radical alteridade esta incapacidade de aceitaccedilatildeo do ser-outro

afectaria na perspectiva de Vicente ainda o conhecimento histoacuterico e

etnograacutefico das culturas que continuam a viver segundo os modelos miacuteticos

772

ldquoO conhecido pelo conhecimento estaacute condicionado por um oferecer transcendental por um acto do

Dispensador que potildee agrave disposiccedilatildeo o cognosciacutevel e desperta em noacutes a apetecircncia do conhecimento O

cognosciacutevel entretanto eacute o jaacute-oferecido que ao se manifestar e imobilizar esconde e oculta a fonte do

oferecerrdquo Ibidem 371

406

Reconhecendo em Heidegger ldquoa enunciaccedilatildeo das palavras iniciaisrdquo de dum

novo tipo de pensar e dessa conversatildeo do espiacuterito Vicente interroga-se em O

Homem E A Sua Proveniecircncia sobre a radicalidade desta conversatildeo

perguntando se esta ruptura com a subjectividade indispensaacutevel para levar a

cabo uma filosofia da mitologia teria sido inteiramente realizada pelo filoacutesofo

alematildeo

Vicente sublinha que pela primeira vez Heidegger na sua analiacutetica existencial

procurou revelar o sentido e a natureza essenciais da categoria de ldquomundordquo

afirmando que este natildeo eacute um ente ou um conjunto de entes mas a condiccedilatildeo de

possibilidade de toda a manifestaccedilatildeo entitativa ldquoO mundo eacute aquela abertura

(Offenheit) onde se daacute a emergecircncia e a patentizaccedilatildeo do ente descobertordquo773

Contudo reportando-se a Ser e Tempo Vicente afirma que encontramos na

obra do filoacutesofo alematildeo certos momentos em que ldquoo traccedilo instituidor do mundo

ainda parece incluiacutedo na ipseidade humanardquo e que a transcendecircncia fundadora

do mundo ainda seria confundida com um acto da existecircncia774 No entanto

Vicente adianta que devemos conciliar estas passagens com o sentido total do

pensamento de Heidegger que ultrapassa esta posiccedilatildeo ainda eivada de

subjectivismo

Nesse mesmo ensaio Vicente procura mostrar como em Von Wesen des

Grundes a transcendecircncia fundadora natildeo eacute a existecircncia nem a subjectividade

de um eu mas uma transcendecircncia exterior que se potildee como ldquoprinciacutepio

instituinte de todo o eu tu ou elerdquo

Procurando conciliar a perspectiva transcendental de Ser e Tempo com a

perspectiva do segundo Heidegger Vicente mostra que se na perspectiva de

Ser e Tempo o ente intra-mundano soacute se revela a partir de certas

possibilidades da existecircncia como resultado da compreensatildeo projectiva do

Dasein essas possibilidades podem nas obras posteriores como Vom Wesen

des Grundes e Vom Wesen der Wahrheit ser compreendidas a partir dum

773

Vicente Ferreira da Silva ldquoO Homem e a sua Proveniecircnciardquo Revista Brasileira de Filosofia nordm7

1952 in Dialeacutectica das Consciecircncias e outros ensaios 335 774

ldquo[hellip] sabemos entretanto que Heidegger abandonou essa perspectiva subjectivista e monaacutedica

instalando-se num foco excecircntrico donde surgiu o descerramento projectante do Serrdquo Ibidem 339

407

projecto instituidor meta-histoacuterico que condiciona as possibilidades

humanas775

Apontando para uma compreensatildeo unificada do pensamento de Heidegger e

natildeo cedendo agraves hipoacutetese dominante da leitura de ldquoum segundo Heideggerrdquo em

ruptura com a analiacutetica existencial de Ser e Tempo Vicente centra-se no

entanto na ruptura com o domiacutenio da subjectividade levado a cabo nas obras

posteriores salientando o seu importante significado ldquoNeste sentido devemos

compreender a afirmaccedilatildeo de Heidegger de que ao traccedilar o mundo o homem

se vecirc traccedilado no interior do mundo e aiacute abandonado O desvelamento do

horizonte mundanal eacute simultacircneo ao desvelamento do proacuteprio homem As

consequecircncias filosoacuteficas deste ponto de vista e sua elaboraccedilatildeo especulativa

oferecem perspectivas ainda inexploradasrdquo776

Eacute na Carta sobre o Humanismo - obra que Vicente considerara desde o

primeiro momento da sua recepccedilatildeo como atraacutes referimos a obra capital da

Filosofia Contemporacircnea - que segundo o pensador brasileiro se consuma e

completa a ruptura de Heidegger com a metafiacutesica da subjectividade ldquoEacute o que

afirma Heidegger em diversas passagens da Carta Sobre o Humanismo ldquoA

Histoacuteria do ser suporta e determina toda a situaccedilatildeo e condiccedilatildeo humanardquo E

ainda ldquoO jectante do projecto natildeo eacute o homem mas o proacuteprio Ser que endereccedila

o homem ao ek-sisitir como agrave essecircncia que lhe eacute proacutepriardquordquo777

De facto na Carta Sobre o Humanismo o conceito de projecccedilatildeo (Entwurf) que

em Ser e Tempo era um existenciaacuterio do Dasein agora eacute pensado por

Heidegger como um lanccedilamento a partir do Ser O projecto jaacute natildeo eacute uma

determinaccedilatildeo do Dasein que se lanccedila em direcccedilatildeo agraves suas possibilidades

projectando assim um horizonte de compreensatildeo no qual pode aparecer o

mundo O projecto eacute o lanccedilamento do proacuteprio ser que lanccedila o homem na ek-

sistecircncia como sua essecircncia eacute pois o ser que tem a iniciativa do destino do

homem e o configura historicamente

775

ldquoA ipseidade compreensiva natildeo estaacute em noacutes natildeo parte de noacutes mesmos mas somos noacutes que nela

estamos Ora a esta ipseidade que traccedila e abre a revelaccedilatildeo do Ente eacute que Heidegger daacute o nome de

ldquoiluminaccedilatildeo do Serrdquo (Lichtung des Seins) Esta luz este foco originaacuterio natildeo eacute o lumen naturale da mente

humana mas pelo contraacuterio eacute o desvelar ek-staacutetico desse foco que permite a entrada no mundo

(Welteingang) do nosso ser e da nossa menterdquo Ibidem 340 776

Ibidem 336 777

Ibidem 336

408

rdquo[] o projecto eacute essencialmente um projecto jogado Aquele que joga no

projectar natildeo eacute o homem mas o proacuteprio ser que destina o homem para a ek-

sistecircncia do ser-aiacute como sua essecircnciardquo 778

Nesta reformulaccedilatildeo heideggeriana do conceito de projecccedilatildeo podemos ver

segundo Vicente a proposta de uma revoluccedilatildeo no campo da filosofia

permitindo-nos compreender tanto os entes intra-mundanos como o homem

como sendo condicionados por uma abertura superior por um poder

transcendente que traccedila o mundo das oportunidades histoacutericas

Nesta viragem heideggeriana Vicente vecirc essencialmente a ldquoconversatildeo (Kehre)

de perspectiva que permite ver todo o ente inclusivamente o proacuteprio homem

como um sich zeigen cujo mostrar-se estaacute determinando por um mostrar

projectante mais originaacuterio779 Da mesma maneira se encontra assim

reformulado o conceito de liberdade que jaacute natildeo depende do arbiacutetrio humano

mas deve ser entendida como um libertar do homem para a escolha dum

possiacutevel que lhe estaacute previamente consignado780

A ideia de projecccedilatildeo a partir do ser responsaacutevel por uma abertura mundanal

na qual natildeo apenas os entes como o proacuteprio homem podem aparecer eacute a

ideia-chave e trave-mestra de toda a filosofia da mitologia de Vicente Ferreira

da Silva a partir e na base da qual ele iraacute reelaborar e sintetizar as

contribuiccedilotildees das mais recentes investigaccedilotildees filosoacuteficas filoloacutegicas e

etnoloacutegicas sobre as religiotildees e os mitos

A sua filosofia da mitologia natildeo foi exposta numa obra uacutenica mas desdobrou-

se por diferentes textos que muitas vezes de acordo com as fontes

comentadas traduzem perspectivas distintas mas essa multiplicidade ganha

ela mesma um sentido e um fundamento que lhe eacute dado precisamente pelo

travejamento conceptual da filosofia heideggeriana

778

bdquo[Uumlberdies aber] ist der Entwurf wesenhaft ein geworfener Das Werfendende im Entwerfen ist nicht

der Mensch sondern das Sein selbst das den Menschen in die Ek-sistenz des Da-seins als sein Wesen

schicktldquo Buh GA 9 337 779

ldquoEsta perspectiva arranca a reflexatildeo filosoacutefica de um sentido antropoloacutegico e a lanccedila num terreno

excecircntrico onde o Ente vem pensado fora da perspectiva exclusivamente humana O homem eacute um Ente

no conjunto dos Entes O desvelamento instituidor do Ser outorgaria ao homem o nexo de suas

oportunidades e desempenhos humanizantes e o nuacutecleo da sua verdade propriamente humanardquo Ibidem

337 780

ldquoA ipseidade ldquoo por causa querdquo (Wille um sich selbst) natildeo estaacute ancorado no sujeito humano natildeo eacute

uma peculiaridade finita mas um transcender projectante que em sua anatomia irrestrita em seu desvelar

ek-staacutetico abre campo para a eclosatildeo de um mundo e portanto para um nexo de subjectividade A

ipseidade compreensiva natildeo estaacute em noacutes natildeo parte de noacutes mesmos mas somos noacutes que nela estamosrdquo

Ibidem 340

409

O pressuposto fundamental da filosofia da mitologia de Vicente eacute que os mitos

natildeo satildeo criaccedilotildees imaginativas ex-homo nem projecccedilotildees psicoloacutegicas do

inconsciente colectivo mas envios do ser Eacute para Vicente uma questatildeo crucial

compreender os mitos natildeo como criaccedilotildees da subjectividade humana mas

como dotados de uma ldquosuper-objectividaderdquo781 sendo essa compreensatildeo

inteiramente nova fundada no conceito heideggeriano do ldquolanccedilado projectante

do serrdquo Colocados sobre este fundamento ontoloacutegico os mitos deixam de ser

pensados como criaccedilotildees do homem mas pelo contraacuterio satildeo eles que ditam o

destino ao qual se submete o homem

Vicente explora as consequecircncias da viragem heideggeriana mostrando as

suas implicaccedilotildees relativamente agrave questatildeo da religiosidade e do sagrado

encontrando aiacute um campo conceptual que torna possiacutevel articular as

conclusotildees dos estudos levados a cabo pela etnologia e a filologia e repensar

o estatuto ontoloacutegico do deuses e dos relatos miacuteticos tomando-os na sua

verdade782

Em Introduccedilatildeo agrave Filosofia da Mitologia os mitos satildeo ldquosugestotildeesrdquo e os deuses

entes que vecircm ateacute noacutes a partir da essecircncia ekstaacutetica da sugestatildeo - eles satildeo

sugeridos pela magia sugestiva do Ser o ser eacute o ldquoSugestorrdquo isto eacute aquele que

sugere ou potildee as imagem prototiacutepicas das coisas ou que projecta conjunto de

desempenhos possiacuteveis em relaccedilatildeo aos quais o homem eacute um simples

receptor ldquoO sugerido eacute o que eacute proposto isto eacute posto como imagem a cumprir

ou como imagem antecipadamente esboccedilada Essas imagens natildeo seriam as

nossas imagens das coisas imagens de imagens mas sim as proacuteprias coisas

781

Assim Vicente afirma logo nas primeiras palavras da Introduccedilatildeo agrave Filosofia da Mitologia ldquoOs

esclarecimentos que aqui seratildeo apresentados acerca do vasto domiacutenio do fenoacutemeno religioso satildeo a

consequecircncia de uma conversatildeo de perspectivas filosoacuteficas de uma alteraccedilatildeo do proacuteprio centro do

pensamento e soacute poderatildeo ser compreendidas a partir dessa alteraccedilatildeo Se a palavra objectividade natildeo

estivesse comprometida com o seu uso epistemoloacutegico na relaccedilatildeo sujeito-objecto poderiacuteamos dizer que

essa mudanccedila de referecircncias redundou no estabelecimento de um novo objectivismo num objectivismo de

tal tipo que todo o realismo filosoacutefico do passado toda a afirmaccedilatildeo da exterioridade das coisas em

relaccedilatildeo ao homem ainda satildeo sentidos como subjectivismo e antropomorfismoldquo Ob cit in Dialeacutectica das

Consciecircncias e outros ensaios 370 782

Constanccedila Marcondes Ceacutesar em ldquoA Compreensatildeo Heterodoxa do Sagrado Agostinho da Silva

Eudoro de Sousa Vicente Ferreira da Silvardquo considera os trecircs pensadores como defensores duma mesma

concepccedilatildeo heterodoxa do sagrado caracterizada pelos segunintes aspectos apresentaccedilatildeo de fontes

comuns na tradiccedilatildeo grega e na fenomenologia heideggeriana e a sinalizaccedilatildeo da emergecircncia de um novo

tempo e uma nova concepccedilatildeo de Deus cuja preparaccedilatildeo se relaciona com a hermenecircutica dos mitos Cf

art cit in O Pensamento Luso-Galaico-Brasileiro II Lisboa 2009 18

410

como imagens prototiacutepicas O sugerido originaacuterio das imagens seria as coisas

fluindo da imaginaccedilatildeo prototiacutepica do Sugestorrdquo783

Referindo o poder arrebatador dessas sugestotildees relativamente agraves quais o

homem se comporta como simples receptor sendo por eles arrebatado

(Ergriffensein) Vicente qualifica ainda os mitos como Fascinaccedilotildees784 ou

manifestaccedilotildees fulgurantes da Lichtung des Seins

Os mitos satildeo ldquoo documento originaacuterio do serrdquo que conteacutem em si um traccedilado do

mundo uma oferta de possibilidades oferecidas ao homem assim como dos

modelos exemplares a cumprir Eles satildeo ldquosugeridos pela magia projectante do

serrdquo ou ldquofascinaccedilotildeesrdquo que arrebatam o homem lanccedilando-o nos seus

desempenhos histoacutericos

Este novo estatuto ontoloacutegico que agora podemos atribuir aos mitos permite-

nos tambeacutem na perspectiva de Vicente reconhecer ldquoo ser em sirdquo das potecircncias

miacutetico- fascinantes ou caraacutecter ldquoaoacutergicordquo dos deuses A superior objectividade

do poder dos deuses como forccedilas que arrebatam e dispotildeem do ser do homem

eacute indicada por Vicente atraveacutes do adjectivo ldquoaoacutergicordquo - termo que Vicente

importou de Houmllderlin - e que significa ldquonatildeo feito pelo homemrdquo ldquooriginaacuteriordquo rdquoo

aoacutergico eacute o natildeo posto pelo homem eacute o que natildeo se apresenta como um

resultado da produtividade artiacutestico-criadora do sujeito A valorizaccedilatildeo do

aoacutergico foi defendida em forma preparatoacuteria por Houmllderlin e depois por

Nietzsche em sua sabedoria do corpo e das forccedilas dionisiacuteacasrdquo785

25 Os Mitos como origem

Para Vicente o mito eacute notificaccedilatildeo ou documento que natildeo tem apenas um valor

histoacuterico isto eacute transitoacuterio e passageiro mas sim um valor paradigmaacutetico e

exemplar experienciado como intemporal ele eacute o documento da vida ldquoem si e

por sirdquo ou da vida prototiacutepica dos deuses proclamando por isso uma verdade

absoluta786

783

Vicente Ferreira da Silvardquo Introduccedilatildeo agrave Filosofia da Mitologiardquo in Dialeacutectica das Consciecircncias e

outros ensaios 373 784

ldquoO ente determinado como sugerido em possibilidades manifesta-se outrossim como Fascinaccedilatildeo isto

eacute como ser tomado (Ergriffensein) pelo revelado enquanto revelado A Fascinaccedilatildeo eacute o proacuteprio rigor de

uma projecccedilatildeo do mundordquo Ibidem 374 785

Ibidem 382 786

Constanccedila Marcondes Ceacutesar indica como fontes filosoacuteficas principais da temaacutetica do mito em Vicente

Ferreira da Silva Schelling e Heidegger seguidas de perto em importacircncia por Nietzsche Scheler Hegel

411

A liberdade em relaccedilatildeo ao subjectivismo da Metafiacutesica e agrave sua ldquomatriz

hominiacutedeardquo abre segundo Vicente a via para repensar o estatuto dos mitos e a

vida dos deuses permitindo-nos ver na mitologia ldquoa abertura de um regime de

fascinaccedilatildeordquo ldquoA mitologia eacute a abertura de um regime de fascinaccedilatildeo Ela natildeo

pode ser compreendida como querem muitos a modo de qualquer criaccedilatildeo

imaginativa ex-homo ou como qualquer projecccedilatildeo psicoloacutegica inconsciente da

menterdquo 787

Cada mitologia e cada um dos deuses dentro dessa mitologia desenham um

aspecto do mundo ou configuram uma forccedila projectante difusa que se

propaga indefinidamente ldquoCada figura numinosa corresponde a um ciclo

atractivo - projectivo que se propaga indefinidamenterdquo788 O estatuto ontoloacutegico

dos deuses eacute o de entidades superiores que instauram em torno de si um

campo passional e podem apresentar-se como personalidades idecircnticas a si

mesmas ou como vida fluida como uma seacuterie de hierofanias vegetais ou

animais

Segundo Vicente a religiosidade proacutepria do mito natildeo eacute nunca um sistema

estaacutetico e harmonioso mas a presenccedila de cada um dos deuses desencadeia

um constante e contraditoacuterio formigar de paixotildees entrando muitas vezes esses

poderes sobre-humanos em relaccedilotildees conflituais789

Os mitos apresentam-se tambeacutem como chaves interpretativas do devir da

histoacuteria universal pois um determinado mundo miacutetico constitui uma matriz de

possibilidades que regem um determinado periacuteodo da histoacuteria ele eacute um foco

estaacutevel e imutaacutevel uma matriz a partir da qual proliferam vaacuterias formas e se

abrem vaacuterias possibilidades de desempenhos histoacutericos para o homem ldquoUm

determinado mundo miacutetico constitui uma matriz de possibilidades que

governam um periacuteodo do acontecer mundial A essecircncia de uma matriz eacute a de

Bergson Grassi Jaspers Bagolini e Ortega Apesar de Vicente Ferreira da Silva articular as filosofias de

Heidegger e Schelling para pensar o estatuto ontoloacutegico do mito o seu pensamento revela originalidade

em relaccedilatildeo a ambos destacando-se neste aspecto a tese de que a desocultaccedilatildeo do ser natildeo se daacute como

poesia mas como protopoesia (mitologia) e a ideia do ser como tonalidade passional (Fascinador e

Sugestor) Cf Constanccedila Marcondes Ceacutesar O Grupo de Satildeo Paulo Lisboa 2000 67-69 787

Vicente Ferreira da SilvardquoIntroduccedilatildeo agrave Filosofia da Mitologiardquo in Dialeacutectica das Consciecircncias e

outros ensaios 382 788

Ibidem 378 789

Ibidem 378

412

ser transcendente ao gerado por ela isto eacute o foco estaacutevel e imutaacutevel do

mutaacutevel o foco estaacutevel da proliferaccedilatildeo das formas suscitadasrdquo790

De acordo com a sua filosofia da mitologia eacute apenas porque continuamos

presos agrave configuraccedilatildeo das coisas fixada pela racionalidade cientiacutefica que o dar-

forma da poesia transhumana da religiatildeo e do mito se apresenta como

supeacuterfluo e meramente ldquosubjectivordquo e natildeo como algo de essencial

Contudo - afirma Vicente - se nos libertarmos desse mundo das formas

inteligiacuteveis e do ente revelado na actual configuraccedilatildeo imposta pela metafiacutesica

da subjectividade podemos deixar-nos arrebatar por essa magia encantatoacuteria

dos mitos aceitando a revelaccedilatildeo miacutetico-religiosa na sua verdade e alargando

assim o nosso horizonte de compreensatildeo791

Precisamente porque a ldquoconversatildeordquo do pensamento contemporacircneo implica a

ldquomorte do homemrdquo ela dispotildee-nos a dar vida aos deuses ou seja agrave aceitaccedilatildeo

das muacuteltiplas revelaccedilotildees miacutetico-religiosas

Esta religiosidade plural e contraditoacuteria associada aos deuses do paganismo

permite-nos na perspectiva de Vicente entrever a liberdade superior do Ser

como fonte originaacuteria de todas as possibilidades e liberdade humanas ldquoO mito

eacute a proclamaccedilatildeo insuperaacutevel da natildeo convivecircncia da liberdade do Sugestor com

o desempenhaacutevel hominiacutedeo Natildeo existe qualquer pacto metafiacutesico entre o

fundo uacuteltimo das coisas e a criatura humana isto eacute o homem natildeo eacute a chave da

compreensatildeo do ser do Sugestor A superabundacircncia da verdade do ser eacute

atestada justamente pela tradiccedilatildeo miacutetica que representa um encontro com

outras eacutepocas ou domiacutenios da Fascinaccedilatildeordquo792

O mito como poesia originaacuteria ou Ur-poesie eacute para Vicente uma possibilidade

alternativa permanente agrave disposiccedilatildeo do homem graccedilas agrave qual noacutes podemos

romper com o cenaacuterio subjectivista da modernidade acedendo a um outro niacutevel

de consciecircncia e de liberdade

Uma filosofia da mitologia que tenha em conta a diversidade dos mitos e a

multiplicidade das revelaccedilotildees miacutetico-religiosas das diversas civilizaccedilotildees teraacute

790

Ibidem 379 791

ldquoA liberdade em relaccedilatildeo agrave matriz hominigravedea eacute a uacutenica via de acesso especulativo agrave vida exoacutegena dos

deuses pois essa liberdade cumpre e realiza o princiacutepio de independecircncia do divino Soacute um pensamento

que dance aleacutem do humano poderaacute danccedilar em consonacircncia com o movimento teogoacutenico universal Um tal

pensamento daacute cumprimento aos postulados exigidos por Heidegger em sua determinaccedilatildeo de um

pensamento que pensa a verdade do Serrdquo Ibidem 381 792

Ibidem 380

413

que aceder a uma nova compreensatildeo do ser aceitando pensar o ser como o

princiacutepio ldquoselvagem e abissalrdquo793 que continuamente cria e destroacutei mundo sem

nenhuma complacecircncia por cada uma das suas manifestaccedilotildees epocais

Para Vicente o ldquopoder maacutegico-encantatoacuterio do serrdquo eacute um poder que eacute

essencialmente ldquotendenciosordquo e ldquodecisoacuteriordquo como um contiacutenuo ldquoescolherrdquo

instaurador que incessantemente cria e destroacutei sem fundamento agrave

semelhanccedila do Deus esteacutetico e luacutedico anterior ao Deus eacutetico de Pascoaes794

Este poder criador polimoacuterfico do Ser manifesta-se na criaccedilatildeo sucessiva das

vaacuterias manifestaccedilotildees epocais do divino sendo cada uma na sua

individualidade proacutepria uma forccedila transcendente parcial e tendenciosa que

institui um certo tipo de revelaccedilatildeo miacutetico-religiosa capaz de arrebatar o homem

e de o lanccedilar numa certa esfera de desempenhos

Vicente natildeo aponta para uma compreensatildeo teoacuterica e dogmaacutetica das religiotildees

mas para muacuteltiplas fenomenologias miacutetico-religiosas proacuteprias de cada um dos

deuses e para uma religiosidade plural e contraditoacuteria795 que Walter Otto

apontava precisamente como caraacutecter essencial da religiatildeo heleacutenica em

qualquer dos seus momentos 796

Esta pluralidade do fenoacutemeno religioso eacute para Vicente Ferreira da Silva

qualquer coisa de essencial que nos aproxima do ser como fonte originaacuteria

ldquoAcreditamos que em todas essas mensagens de feacute nas origens se expressa

uma variaccedilatildeo dos conceitos religiosos fundamentais e uma nova capacidade

de perceber extensivamente certas forccedilas coacutesmico-espirituais certos aspectos

do mundo que multiplicavam politeisticamente os centros de referecircncia de

condutardquo797

793

Constanccedila Marcondes Ceacutesar em O Grupo de Satildeo Paulo sublinha a importacircncia desta concepccedilatildeo do Ser

como princiacutepio selvagem em Vicente Ferreira da Silva pondo-a em correlaccedilatildeo com a sua circunstacircncia

brasileira como tambeacutem com a sua ligaccedilatildeo com a Europa arcaica e primordial caracterizada pelos cultos

femininos e teluacutericos Cf ob cit 136 794

Cf Maria Adelaide Pacheco ldquoLinguagem e Histoacuteria em Heidegger e Pascoaesrdquo in Heidegger

Linguagem e Traduccedilatildeo Centro de Filosofia da Universidade de Lisboa 2002 795

ldquoA totalidade do migravetico-aoacutergico tem em si mais rumos que os consignados no protofenoacutemeno do

hominiacutedeo sendo o infinito de vida autoacutectone e transcendente documentado historicamente nos

protocolos do relato miacutetico e na praxis sagrada do cultordquo Vicente Ferreira da Silva rdquoIntroduccedilatildeo agrave

Filosofia da Mitologiardquo in Dialeacutectica das Consciecircncias e outros ensaios 383 796

Cf Walter Otto Die Goumltter Griechenlands ndash das Bild des Goumlttlichen im Spiegel des griechischen

Geistes Frankfurt AM 1987 797

Vicente Ferreira da Silva ldquoA Feacute nas Origensrdquo Diaacutelogo nordm2 1955 in Dialeacutectica das Consciecircncias e

outros ensaios 386

414

Assim a ruptura com a metafiacutesica da subjectividade abre para Vicente natildeo

apenas a possibilidade de um novo interesse teoacuterico e erudito pela mitologia

mas a possibilidade mais radical de uma alteraccedilatildeo da consciecircncia religiosa

que seria um retorno ldquoaos deuses pacircnicos da florestardquo798 de Juumlnger ldquoJuumlnger

em uma das suas obras sobre a civilizaccedilatildeo grega e falando precisamente

sobre os deuses pacircnicos da floresta declara o selvaacutetico eacute a origem Dele

proviemos e a ele podemos retornarrdquo799

A Filosofia da Mitologia de Vicente natildeo se propotildee assim apenas uma

fenomenologia da consciecircncia religiosa ndash isto eacute a compreensatildeo do significado

do mito para os povos que neles acreditam - mas propotildee o regresso aos mitos

como um reencontro espiritual com o mundo primitivo como uma redescoberta

da sacralidade do cosmos e das forccedilas sobrenaturais que o habitam ldquoSe

adoptarmos o conceito Nietzschiano do eterno retorno ou do tempo ciacuteclico a

origem se proporaacute como o nosso proacuteprio futuro A volta agraves origens seria um

pensar intempestivo ou extemporacircneo uma superaccedilatildeo do passado em vista de

um passado mais actual do que qualquer presenterdquo800

No entanto Vicente estaacute plenamente consciente que se este pensar

intempestivo da sua filosofia da mitologia tomou como ponto de partida a

viragem heideggeriana e a sua ruptura com a metafiacutesica da subjectividade

sem as quais natildeo teria sido possiacutevel ele natildeo diz exactamente o mesmo ldquoPara

noacutes o documento originaacuterio do Ser manifesta-se na vida prototiacutepica-divina isto

eacute na mitologia Se para Heidegger o ldquopocircr-se em obrardquo da verdade do ser daacute-

se na Poesia para noacutes esta deve ser antes de tudo compreendida como

Poesia transhumana como Poesia em si como vida transcendente das

potecircncias divinas Os deuses encarnam de maneira insuperaacutevel a fulguraccedilatildeo

imediata do Fascinator os deuses satildeo essa fulguraccedilatildeo imediata em si e por

sirdquo801

798

Cf Ernst Juumlnger Der Waldgang (1951) Stutgart 1980 799

Vicente Ferreira da Silva ldquoA Feacute nas Origensrdquo in Dialeacutectica das Consciecircncias e outros ensaios 386 800

Ibidem 386 801

Vicente Ferreira da Silva rdquoIntroduccedilatildeo agrave Filosofia da Mitologiardquo in Dialeacutectica das Consciecircncias e

outros ensaios 375

415

26 Panteiacutesmo poeacutetico e Mitologia

A interpretaccedilatildeo do significado dos Mitos proposta por Vicente em Filosofia da

Mitologia implica como ele proacuteprio sublinha uma nova compreensatildeo do Ser aiacute

designado como o Sugestor ldquoO Ser eacute o sugestor da sugestatildeo do sugeridordquo 802

Os mitos e em geral as nossas imagens das coisas seriam sugestotildees

oriundas da imaginaccedilatildeo prototiacutepica do Sugestor imagens antecipadamente

projectadas pelo domiacutenio projectante do ser

Vicente contrapotildee assim o estatuto ontoloacutegico do homem como ldquoreceptorrdquo

passivo de imagens agrave imaginaccedilatildeo demiuacutergica do ser cujo domiacutenio eacute ldquoo Aberto

da liberdade instauradorardquo Esta liberdade instauradora do ser eacute caracterizada

como ldquojogordquo metaacutefora totalizante que recobre o homem e o mundo como

totalidade de imagens sugeridas pela imaginaccedilatildeo do Sugestor ldquoNatildeo existiria

portanto em primeiro lugar o homem receptor e depois as diversas incitaccedilotildees

aos jogos histoacuterico-culturais Pelo contraacuterio os desempenhos sugeridos o ente

revelado constituem o proacuteprio ser do protagonista de forma que o jogar do

jogo seria o proacuteprio jogadorrdquo803

O homem seria assim atraiacutedo e jogado para dentro do jogo804 fascinante que o

ser joga consigo mesmo e o mundo uma criaccedilatildeo variaacutevel de imagens

produzidas por uma imaginaccedilatildeo luacutedica por num jogo meta-histoacuterico e

transcendente

A proximidade desta concepccedilatildeo do ser como Sugestor com o panteiacutesmo

poeacutetico de Pascoaes para quem o mundo eacute o sonho dum Deus adormecido

torna-se aqui muito evidente reforccedilado pelas metaacuteforas do jogo que

imediatamente invocam o Deus luacutedico e esteacutetico preacute-cristatildeo do poeta

portuguecircs805

A possibilidade deste discurso sobre o Ser que suporta a sua filosofia da

mitologia ser interpretado como um panteiacutesmo natildeo deve ter escapado a

Vicente Ferreira da Silva o panteiacutesmo era um aspecto importante da Nova

802

Ibidem 373 803

Ibidem 374 804

Vicente considera a dimensatildeo luacutedica do homem como expressatildeo da sua fantasia produtora Estendendo

o conceito de jogo ateacute ao campo mito-poieacutetico fundamenta nele a sua concepccedilatildeo do mito como elemento

instaurador de diferentes ciclos histoacuterico-culturais ndash o jogo miacutetico estaria na base de todo o edifiacutecio

cultural Cf Constanccedila Marcondes Ceacutesar O Grupo de Satildeo Paulo 50 805

As fontes desta aproximaccedilatildeo entre jogo mito e poesia em Vicente satildeo no entanto segundo Constanccedila

Marcondes Ceacutesar as seguintes Ortega y Gasset Huizinga Sartre Novalis Schiller Cf Ibidem 50

416

Poesia Portuguesa que Fernando Pessoa fazia remontar Antero de Quental e

em que podemos incluir poetas como Pascoaes e Guerra Junqueiro e

escritores como Raul Brandatildeo Pessoa caracterizava este panteiacutesmo da Nova

Poesia portuguesa como ldquopanteiacutesmo transcendentalrdquo definindo-o nos

seguintes termos ldquoSendo ao mesmo tempo e com igual intensidade poesia

objectiva e subjectiva poesia da alma e da natureza cada um destes

elementos penetra o outro de modo que produz esta estranha e niacutetida

originalidade da nossa actual poesia ndash a espiritualidade da Natureza e ao

mesmo tempo a materializaccedilatildeo do Espiacuterito a sua comunhatildeo humilde no Todo

comunhatildeo que eacute jaacute natildeo puramente panteiacutesta mas por essa citada

espiritualizaccedilatildeo da Natureza super-panteiacutesta dispersatildeo do ser num exterior

que natildeo eacute Natureza mas Almardquo806

Vicente Ferreira da Silva confronta-se com o Panteiacutesmo no artigo a Feacute nas

Origens de 1955 e ainda no Diaacutelogo do Mar de 1962 No primeiro destes

artigos ele afirma que o panteiacutesmo naturalista eacute uma criaccedilatildeo artificial do

homem moderno que nada tem a ver com a feacute nas origens que ele proacuteprio

propotildee e identifica essa ldquoreligiatildeo da naturezardquo com ldquoum deliacuterio burguecircs num

cenaacuterio de ldquodeacutejeuner sur llsquoherberdquordquo807

Em o Diaacutelogo do Mar o Diaacutelogo da Montanha e Diaacutelogo do Espanto Vicente iraacute

dar conta do seu confronto com ldquoos modelosrdquo susceptiacuteveis duma repeticcedilatildeo

kierkegaardiana da poesia de liacutengua portuguesa aiacute protagonizados por Diana e

George pseudoacutenimos de Dora Ferreira da Silva e Agostinho da Silva

Casada com Vicente Ferreira da Silva durante 23 anos Dora Ferreira da Silva

acompanhou e apoiou a sua obra tendo no entanto produzido paralelamente

uma importante obra poeacutetica segundo um itineraacuterio poeacutetico proacuteprio Autora de

livros como Andanccedilas Talhamar Retratos de Origem Poemas da Estrangeira

e Hiacutedria foi trecircs vezes ganhadora do Preacutemio Jabuti e recebeu tambeacutem o

preacutemio Machado de Assis da Academia Brasileira de Letras em 2000 Tendo

desenvolvido grande actividade como tradutora destacam-se as traduccedilotildees de

autores como Rilke Saint-John Perse San Juan de la Cruz Houmllderlin e

Jung808

806

Fernando Pessoa A Nova Poesia Portuguesa [1912] 2ordf ed Lisboa 1944 65 807

Cf Vicente Ferreira da Silva ldquoFeacute nas Origensrdquo in Dialeacutectica da Consciecircncia e Outros Ensaios 385 808

Cf Constanccedila Marcondes Ceacutesar O Grupo de Satildeo Paulo 221

417

Segundo afirma Gerardo Mello Mouratildeo no prefaacutecio de Poesia Reunida editada

pela Topbooks a obra da poetiza brasileira caracteriza-se por uma

insofismaacutevel unidade podendo ser entendida como a construccedilatildeo duma

complexa partitura musical a partir de um mesmo tema Este tema central pode

ser encontrado na sua forma niacutetida no ciclo de poemas Jardins (1979) dedicado

a Agostinho da Silva e anunciado por uma epiacutegrafe alusiva a Fernando Pessoa

(ldquoo mito - esse nada que eacute tudordquo)809

Aiacute Dora responde a um apelo da Origem dando voz aos mitos e recriando a

uma sacralidade arcaica810 segundo a qual ldquotudo estaacute cheio de deusesrdquo Uma

consciecircncia religiosa arcaica de matriz teluacuterica associada agrave terra e agrave floresta

agrave morte e ao culto dos mortos bem assim como agrave fertilidade estaacute presente em

muitos dos poemas desse ciclo designadamente em ldquoA Noiterdquo ldquoItatiaiardquo

ldquoOrcordquo ldquoFinisterrardquo e em particular no poema ldquoGritosrdquo do mesmo ciclo onde a

terra eacute explicitamente deificada sob o nome de ldquoA Grande Matildeerdquo

O mesmo tema do regresso a uma sacralidade arcaica eacute desenvolvido por

Agostinho da Silva em torno do mito da idade do Ouro de Hesiacuteodo no Prefaacutecio

da antologia A Comeacutedia Latina escrito jaacute no ldquoperiacuteodo brasileiro811 Para

Agostinho o princiacutepio dionisiacuteaco eacute o elemento propriamente religioso

associado agraves vindimas e agraves festas rituais onde se celebrava a comunhatildeo do

homem com a natureza a fusatildeo com o uno primordial Estes rituais dionisiacuteacos

eram segundo Agostinho da Silva a reactualizaccedilatildeo de uma experiecircncia

ancestral do sagrado que na poesia de Hesiacuteodo eacute designada como a Idade do

Ouro

Esta Idade do Ouro por muito tempo considerada puramente imaginaacuteria teria

segundo Agostinho vindo a ser confirmada pelos trabalhos etnograacuteficos e

relatos de viagens feitos a partir do seacuteculo XIX que foram unacircnimes em

testemunhar em povos que na Ameacuterica na Oceacircnia e em Aacutefrica viviam sem

contacto com a civilizaccedilatildeo a existecircncia de colectividades recolectoras vivendo

em igualdade e harmonia sem hierarquia poliacutetica propriedade ou religiatildeo

organizada Agostinho atribui a estes povos uma experiecircncia do sagrado

809

ldquoDespojamento completo da vontade obediecircncia ao vento e agrave fome sombra porque se tem fronde

mordida porque se tem dente e a vagarosa ascensatildeo e fusatildeo com o mito caleidoscoacutepio do nada que eacute

tudordquo ldquoAgostinho da Silva - A ele eacute dedicado este livrordquo Dora Ferreira da Silva Jardins (esconderijos)

[1979] Poesia Reunida Rio de Janeiro 1999 135 810

Cf Constanccedila Marcondes Ceacutesar O Grupo de Satildeo Paulo 221 811

Agostinho da Silva Prefaacutecio in Comeacutedia Latina Brasil 19461947

418

caracterizado pela espontaneidade e a ausecircncia de mediaccedilatildeo sacerdotal e

ritual

O retorno agrave Idade do Ouro (a redenccedilatildeo da histoacuteria) eacute jaacute aqui encarado por

Agostinho como uma possibilidade de um regresso a essa vivecircncia primitiva do

sagrado e seraacute mais tarde identificado por Agostinho precisamente com o

momento mais brilhante da epopeia camoniana o ceacutelebre episoacutedio da ldquoIlha dos

Amoresrdquo812 no qual ele vecirc a antevisatildeo profeacutetica duma reintegraccedilatildeo ontoloacutegica

atraveacutes do amor que para Luiacutes de Camotildees seria a finalidade uacuteltima dos

descobrimentos

O Diaacutelogo do Mar escrito por Vicente Ferreira da Silva na Praia Grande em

1962 comeccedila pela alusatildeo ao que separa Diana e George protagonistas da

tradiccedilatildeo miacutetica e poeacutetica de Maacuterio e Paulo heteroacutenimos do proacuteprio Vicente e

protagonistas do pensamento filosoacutefico Vicente testemunha aiacute uma luacutecida

consciecircncia de que ele mesmo se enraiacuteza numa outra tradiccedilatildeo caracterizada

pela racionalidade e a sistematicidade do pensamento assume-se atraveacutes dos

seus dois heteroacutenimos como defensor do pensamento de Heidegger sem

deixar de sublinhar o aspecto em que Diana e George e o seu ponto de vista

filosoacutefico se encontram ldquoVocecircs sabem perfeitamente que embora diferentes

somos tripulantes do mesmo barco e no fundo concordamos num ponto

fundamental eacute preciso superar o velho mundo do humanismo

antropocecircntricordquo813

A possibilidade de superaccedilatildeo do humanismo antropocecircntrico e da dominaccedilatildeo

teacutecnica da natureza eacute apreciada pelos protagonistas do diaacutelogo a partir da

experiecircncia de comunhatildeo imediata com os elementos sendo o mar aiacute investido

duma aacuteurea miacutestica e religiosa sugerindo a aproximaccedilatildeo de um novo

sentimento do divino

No Diaacutelogo do Mar acima referido Vicente examina e potildee agrave prova a via aberta

por esse pensamento poeacutetico de matriz panteiacutesta que em Diana se assume

como regresso a uma certa exaltaccedilatildeo da experiecircncia imediata da comunhatildeo

812

Cf Isaque Pereira de Carvalho ldquoTeologia e Mito-poieacutetica da Histoacuteria em Agostinho da Silvardquo in

Agostinho da Silva Pensador do Mundo a Haver Actas do Congresso Internacional do Centenaacuterio de

Agostinho da Silva Lisboa 2007 334 813

Vicente Ferreira da Silva ldquoDiaacutelogo do Marrdquo1962 in Dialeacutectica das Consciecircncias e outros ensaios

502

419

com a Natureza testemunhada pelos poetas814 e em Agostinho da Silva como

a defesa do Deus sive Natura de Espinosa815

Descartando estas duas vias como diletantismo poeacutetico ou como regresso a

modos de pensar preteacuteritos incapazes de romper com o humanismo

antropocecircntrico e o primado da teacutecnica816 Vicente procura um ponto de vista

mais amplo simultaneamente capaz de compreender o discurso poeacutetico e o

discurso cientiacutefico o panteiacutesmo e o monoteiacutesmo e passa a apreciar a via

aberta por Martin Heidegger em Ser e Tempo817

Em consonacircncia com a historicidade intriacutenseca do Dasein defendida por

Heidegger em Ser e Tempo e ainda de acordo com o por este estipulado sobre

a natureza das eacutepocas histoacutericas e a sua determinaccedilatildeo por um ldquoapriorirdquo infra-

histoacutericordquo Vicente no Diaacutelogo do Mar limita o alcance destas experiecircncias

poeacuteticas marginais e pontuais Embora reconhecendo que elas abrem agrave

consciecircncia novas possibilidades o pensador brasileiro defende que ldquoo novordquo

soacute poderaacute surgir sob o impeacuterio de uma nova mitologia ou de um novo ldquoregime

de fascinaccedilatildeordquo ele mesmo capaz de criar uma nova Stimmung epocal e

assim uma nova forma de sentir de amar e de conhecer818

27 Poesia filosofia e pensamento maacutegico da Origem

No Diaacutelogo da Montanha a superaccedilatildeo da eacutepoca da teacutecnica atraveacutes da praxis

estaacute no centro da reflexatildeo mas a praxis eacute a acccedilatildeo ritual vinculada ao

simboacutelico como logo se infere da invocaccedilatildeo por Diana do primado do rito em

Eudoro de Sousa819 Com efeito como acima vimos para Eudoro de Sousa o

rito eacute a via para reinstaurar o triacircngulo do simboacutelico e da complementaridade

isto eacute para experienciar a unidade de Deus do Homem e da natureza

O diaacutelogo encaminha-se no sentido da reflexatildeo criacutetica sobre o primado do bios

theoreticos em Platatildeo e Aristoacuteteles como uma possibilidade de o homem

participar na eternidade do divino que natildeo exclui outras possibilidades820

814

Cf Ibidem 501 815

Ibidem 507 816

Ibidem 502 817

Ibidem 503 818

Ibidem 513 819

Cf Vicente Ferreira da Silva ldquoDiaacutelogo da Montanhardquo in Dialeacutectica das Consciecircncias e outros

ensaios 518 820

Cf Ibidem 523-524

420

O simboacutelico vigente nos mitos gregos eacute uma via alternativa ou antes abre

uma pluralidade de vias alternativas cada uma associada a um dos Deuses

ocupando um lugar central nas preocupaccedilotildees de Maacuterio ldquoCada Deus cada

Weltaspekt eacute uma cena de desempenhos de fruiccedilotildees de bem-aventuranccedilas

totalmente isentas de tempo Eacute um ceacuteu uma ordem de realidades imortais eacute a

proacutepria presenccedila da eternidade Na medida em que nos imortalizamos em

direcccedilatildeo ao sugerido por um campo fascinante-divino nos imortalizamos nos

valores realizados por essa diacosmeserdquo821

Relativamente agrave importacircncia do simboacutelico embora Maacuterio natildeo rejeite a

afirmaccedilatildeo de Diana de que a arte e a poesia utilizam uma linguagem simboacutelica

e tecircm elas mesmas uma funccedilatildeo desocultante ldquoem direcccedilatildeo aos desempenhos

e campo optativo do homemrdquo ele refere tal como Eudoro o simboacutelico a um

plano anterior e mais fundamental - o dos ritos e dos mitos

Para Vicente o simboacutelico natildeo eacute apanaacutegio da linguagem humana senatildeo de

uma forma secundaacuteria e derivada mas dos deuses e das suas hierofanias

trata-se da ldquocoalescecircncia de um Weltaspekt divino em muacuteltiplas

representaccedilotildees cada representaccedilatildeo traduzindo in totum a essecircncia do deus

Se Dioniacutesio eacute parreira a planta embriagadora esse princiacutepio embriagante

tambeacutem se traduz no sangue delirante do macho cabrio do fauno sexual

Atraveacutes do fio condutor de cada uma dessas imagens dramaacutetico-sagradas

captamos o espaccedilo dessa hierofania do divinordquo822

Este diaacutelogo entre o panteiacutesmo do pensamento poeacutetico e a ontofenomenologia

heideggeriana que acima rapidamente resumimos mostra claramente que

Vicente confrontou o pensamento heideggeriano com temas e problemas

desse pensamento poeacutetico de liacutengua portuguesa concluindo poreacutem pelo

primado da linguagem simboacutelica dos mitos relativamente quer agrave poesia quer agrave

filosofia agrave semelhanccedila de Eudoro de Sousa

Vicente aponta para aleacutem do panteiacutesmo poeacutetico como para aleacutem de qualquer

saber filosoacutefico na direcccedilatildeo de um saber originaacuterio o que eacute reafirmado no

artigo ldquoA fonte e a origemrdquo ldquomais forte e profundo que o dizer filosoacutefico estaacute

821

Ibidem 524-525 822

Ibidem 520-521

421

sempre o mitologema inicial de uma cultura Nesse iniacutecio estatildeo os deuses ou o

deus e os deuses satildeo Origensrdquo823

Contudo este regresso a uma religiosidade primitiva identificada com os

ldquodeuses pacircnicos da florestardquo de Juumlnger natildeo estaacute de modo algum em

contradiccedilatildeo com os temas da nova poesia portuguesa As vaacuterias variantes

duma concepccedilatildeo poeacutetica e escatoloacutegica da histoacuteria expressa pelos poetas e

pensadores acima referidos vieram a confrontar-se polemicamente com o

positivismo dominante em Portugal na primeira metade do seacuteculo XX dando

origem a uma contestaccedilatildeo da doutrina positivista dos 3 estaacutedios e a uma

valorizaccedilatildeo da consciecircncia miacutetico-religiosa cuja actualidade se reivindica e na

qual se demonstra poder legitimamente fundar-se uma visatildeo do mundo e uma

esperanccedila do futuro

Teixeira de Pascoaes824 Fernando Pessoa825 Sampaio Bruno826 Aacutelvaro

Ribeiro827 Antoacutenio Quadros828 e Agostinho da Silva829 centraram uma boa

parte na sua produccedilatildeo literaacuteria na tentativa de desocultaccedilatildeo de mitos ocultos

por uma interpretaccedilatildeo positivista e racionalista da Histoacuteria na convicccedilatildeo de que

na reactivaccedilatildeo da consciecircncia miacutetica residia a possibilidade de um

relanccedilamento da histoacuteria de Portugal e do Mundo

Dalila Pereira da Costa em Da Serpente agrave Imaculada demonstra que a nossa

religiatildeo eacute marcada desde a preacute-histoacuteria pela sua matriz teluacuterica o culto da

natureza e em particular da terra associada ao culto dos mortos e da

fertilidade persistiu por muito tempo em Portugal em razatildeo do isolamento

geograacutefico e foi preservado por uma longa tradiccedilatildeo poeacutetica Foi assim possiacutevel

a estes autores reactivar uma religiosidade panteiacutesta e teluacuterica associada a

uma grande sensibilidade agraves forccedilas do caos e do abismo evocadas nas

823

Vicente Ferreira da Silva ldquoA Fonte e o Pensamentordquo Diaacutelogo nordm8 1957 in Dialeacutectica das

Consciecircncias e outros ensaios 408 824

Cf Maria Adelaide Pacheco ldquoLigravengua e Histoacuteria em Heidegger e Pascoaesrdquo in Heidegger Linguagem

e Traduccedilatildeo 825

Cf Joatildeo Amadeu Carvalho da Silva ldquoO Desejado e o Encoberto Nobre e Pessoardquo in O Pensamento

Luso-Galaico-Brasileiro III 620 826

Cf Maria Helena Varela Silva Conjunccedilotildees Filosoacuteficas Luso-Brasileiras 34 827

Jorge Coutinho ldquoTeologia e Metafigravesica em Agravelvaro Ribeirordquo in O Pensamento Luso-Galaico-

Brasileiro I 491-493 828

Cf Antoacutenio Quadros Portugal-Razatildeo e Misteacuterio Lisboa1986 829

Cf Isaque Pereira de Carvalho ldquoTeologia e Mito-poieacutetica da Histoacuteria em Agostinho da Silvardquo in

Agostinho da Silva Pensador do Mundo a Haver Actas do Congresso Internacional do Centenaacuterio de

Agostinho da Silva Lisboa 2007 337

422

grandes teogonias e recuperar ao niacutevel do discurso poeacutetico antigos arqueacutetipos

da consciecircncia religiosa

Contudo para Vicente Ferreira da Silva o discurso poeacutetico e literaacuterio enferma

de limites inultrapassaacuteveis que lhe satildeo consignados pela matriz humanista

originaacuteria subjacente agrave totalidade das formas culturais e quando muito podem

reflectir o processo de desintegraccedilatildeo dessa matriz almejando um ilusoacuterio

regresso ao passado ldquoOs mesmos impasses a mesma sorte acuam agora o

pensamento e a arte humaniacutesticos os mesmos oacutebices ao seu modo de

prossecuccedilatildeo se afirmam de modo insofismaacutevel O quadro religioso que

condicionou a criaccedilatildeo o pensamento e a acccedilatildeo no Ocidente entrou segundo

julgamos em franca distrofia assistimos a uma desintegraccedilatildeo das instituiccedilotildees

e formas que determinavam a nossa existecircnciardquo830

Vicente defende pois que o panteiacutesmo poeacutetico resulta desta desintegraccedilatildeo e a

acompanha sendo interior a uma configuraccedilatildeo histoacuteria destinada a ser

ultrapassada Assimilando panteiacutesmo poeacutetico e decadentismo Vicente

assume-se natildeo como um pensador do que decai mas como um pensador do

futuro que anuncia uma radical alteraccedilatildeo do projecto mundial Reclamando-se

duma visatildeo mais radical e mais originaacuteria coloca-se num outro plano procura

captar ldquoa sucessatildeo das regecircncias ou dominaccedilotildees maacutegico-aoacutergicasrdquo para os

quais ldquoo drama da antropogeacuteneserdquo ou ldquomonograma cristatildeordquo eacute apenas uma

etapa transitoacuteria

Vicente natildeo exalta a nostalgia do passado mas afirma o pensador do futuro

que natildeo seraacute jaacute filoacutesofo nem poeta mas algueacutem que ultrapassando essas

categorias se vecirc investido da missatildeo de seduzir para um futuro que se

avizinha ldquoNietzsche afirmou que o pensador do futuro deveria ser um sedutor

verdadeiramente a seduccedilatildeo deste novo pensamento consiste em ser uma

forma de contaacutegio de uma nova representaccedilatildeo das coisas que comeccedila a

gravitar sobre a terrardquo831

Natildeo aderindo jaacute agrave esfera humana Vicente assume-se como o que procura uma

sabedoria mais que humana o que procura seduzir para o pensamento

830

Vicente Ferreira da Silva ldquoA Fonte e o Pensamentordquo in Dialeacutectica das Consciecircncias e outros ensaios

412 831

Ibidem 412

423

simboacutelico e maacutegico da Origem832 ldquoO pensamento que reingressa na Fonte eacute

transido da seduccedilatildeo maacutegico-instauradora da presenccedila numinosa Eacute portanto

um pensamento teuacutergico um apelo dos deuses agrave espreita Se esse saber eacute um

saber de salvaccedilatildeo o que deve ser salvo eacute um bem que pode expressar-se no

homem mas natildeo eacute feito pelo homemrdquo833

3 A apropriaccedilatildeo expropriadora de conceitos centrais da filosofia

heideggeriana

Se a ruptura de Heidegger com a metafiacutesica da subjectividade foi a condiccedilatildeo

de possibilidade da elaboraccedilatildeo de uma filosofia da Mitologia esta tarefa

implicou uma reelaboraccedilatildeo de conceitos fundamentais da ontofenomenologia

heideggeriana que em Vicente aparecem consciente e explicitamente

contaminados pela problemaacutetica da religiatildeo e do mito - o que em seguida

iremos detalhadamente mostrar

3 1 O Ser como Fascinador

Afirma Vicente em Ideias para um Novo Conceito de Homem como

explicitaccedilatildeo do pensamento heideggeriano exposto na Carta Sobre o

Humanismo ldquo A metafiacutesica propende sempre a reduzir e a representar o Ser

pelo Ente a substituir a abertura do Ser pelo revelado em tal abertura A

metafiacutesica vecirc o Ente e o pensa mas em pleno esquecimento das potecircncias

instituidoras da manifestaccedilatildeo do manifestaacutevelrdquo834

A temaacutetica da diferenccedila ontoloacutegica jaacute exposta por Heidegger em Ser e Tempo

e retomada nos textos posteriores aponta para a distinccedilatildeo do plano ocircntico (em

que se move o conhecimento cientiacutefico e a tradiccedilatildeo metafiacutesica) e o plano

ontoloacutegico e fundante do ser

832

Constanccedila Marcondes Ceacutesar distingue em Vicente o mito originaacuterio dos povos aurorais caracterizado

por uma experiecircncia primordial de natildeo separaccedilatildeo entre o divino o humano e a natureza o mito do

presente identificado com o cristianismo e o humanismo e o mito vindouro pressentido na filosofia da

religiatildeo e na poesia Cf O Grupo de Satildeo Paulo 85 833

Vicente Ferreira da Silva ldquoA Fonte e o Pensamentordquo in Dialeacutectica das Consciecircncias e outros ensaios

413 834

Vicente Ferreira da Silva rdquoIdeias Para um Novo Conceito de Homemrdquo in Dialeacutectica das Consciecircncias

e outros ensaios 272

424

Identificando a metafiacutesica com o esquecimento do ser seraacute segundo a

perspectiva do filoacutesofo alematildeo no enfrentamento desconstrutivo com a sua

histoacuteria assim como no diaacutelogo com a poesia que o pensamento poderaacute

reencontrar a via para habitar na vizinhanccedila do ser

Para Vicente no entanto o esquecimento do ser natildeo remete imediatamente

para a constituiccedilatildeo histoacuterica da metafiacutesica mas para a temaacutetica de Houmllderlin da

Gottesnacht835 referente ao nosso mundo desprovido de deuses em

consequecircncia repensar o ser o significaraacute para o filoacutesofo brasileiro retomar a

essecircncia da experiecircncia religiosa como experiecircncia da exposiccedilatildeo da finitude

do homem ao absoluto e ao numinoso

Vicente Ferreira da Silva propotildee-se completar e corrigir a concepccedilatildeo

heideggeriana do ser que seria pensado atraveacutes dum conjunto de metaacuteforas da

luz apontando por isso essencialmente para o domiacutenio cognitivo ldquoA

linguagem do pensamento essencial de Heidegger apoia-se preferencialmente

em metaacuteforas da luz e do conhecimento que natildeo possibilitam um mergulho na

zona transcendental pulsional da consciecircncia Compreendendo pelo contraacuterio

o fenoacutemeno religioso da abertura projectiva como ldquofascinaccedilatildeordquo como irrupccedilatildeo

de um espaccedilo de apetecibilidade como o ser arrebatado por um campo de

forccedilas atractivas estaremos em condiccedilotildees de elucidar natildeo soacute a estrutura

ontoloacutegica do nosso ser como tambeacutem de penetrar nos arcanos do processo

mitoloacutegicordquo836

Segundo Vieira da Silva ldquoLichtung des Seinsrdquo ldquoUnverborgenheitrdquo satildeo

metaacuteforas que pensam o ser segundo o princiacutepio apoliacutenio que remetem para a

ideia duma desocultaccedilatildeo do ser perante o pensar e estatildeo centradas no

conhecimento Poreacutem na experiecircncia religiosa natildeo estaacute primordialmente em

jogo o pensar nem o conhecer mas um conjunto de forccedilas atractivas que

Vicente designa como ldquoFascinaccedilatildeordquo

A noccedilatildeo de fascinaccedilatildeo foi introduzida por Rudolf Otto em Das Heilige como

atributo da categoria do numinoso que ele considera presente em todas as

religiotildees e que designa o nuacutecleo irracional da experiecircncia religiosa salientando

como sua caracteriacutestica determinante a experiecircncia de nulidade do eu perante

835

Cf Vicente Ferreira da Silva ldquoHermemenecircutica da Eacutepoca Humanardquo Revista Brasileira de Filosofia

nordm 18 1955 in Dialeacutectica das Consciecircncias e Outros Enssaios 358 836

Vicente Ferreira da Silva ldquoPara uma Etnogonia Filosoacuteficardquo Revista Brasileira de Filosofia nordm 16

1954 in Dialeacutectica das Consciecircncias e outros ensaios 352

425

a majestade dos deuses e os sentimentos de terror e fascinaccedilatildeo que sempre

acompanham essa experiecircncia ldquoO conteuacutedo qualitativo do numinoso cuja

forma eacute o misterioso eacute por um lado o elemento repulsivo que jaacute analisaacutemos o

tremendum a que se refere a magestas Por outro lado e ao mesmo tempo eacute

algo que exerce uma atracccedilatildeo particular que cativa fascina e forma com o

elemento repulsivo do tremendum uma estranha harmonia de contrasterdquo837

Segundo Otto a criatura que se humilha e treme perante o numinoso

experimenta ao mesmo tempo que o terror a seduccedilatildeo e o crescente

arrebatamento que cresce em intensidade ateacute produzir o inebriamento A este

elemento dionisiacuteaco da acccedilatildeo do numen chama Otto o ldquofascinanterdquo

Designando o Ser como o fascinador Vicente pensa o ser atraveacutes das

categorias do sagrado acentuando este elemento dionisiacuteaco da experiecircncia

religiosa agrave luz do qual interpreta tambeacutem a natureza do homem como

geworfene Realitaumlt De facto esta posiccedilatildeo do humano como fascinado implica

igualmente uma revisatildeo das nossas concepccedilotildees antropoloacutegicas sublinhada jaacute

por Rodolfo Otto e Jung pois a experiecircncia fascinante do numinoso mostra

que ldquo[hellip] para aleacutem do nosso ser racional existe escondido no fundo da nossa

natureza um elemento uacuteltimo e supremo que natildeo encontra satisfaccedilatildeo na

saciedade e aquietaccedilatildeo das necessidades correspondentes agraves tendecircncias e agraves

exigecircncias da nossa vida sensorial psiacutequica e espiritual Os miacutesticos chamam-

lhe ldquoo fundo da almardquordquo838

Este ldquofundo da almardquo de que falam os miacutesticos aludindo a esse obscuro estrato

irracional e pulsional que estaacute em jogo na experiecircncia religiosa eacute interpretado

por Vicente no mesmo registo dionisiacuteaco a que acima aludimos como

Vontade

Afirma Vicente ldquoPara o prosseguimento de nossas reflexotildees seria interessante

referirmo-nos agraves ideias concernentes agrave metafiacutesica dos organismos vivos que

encontramos no pensamento de Schopenhauer Apesar de natildeo aceitarmos a

837

ldquoDer qualitative Gehalt des Numinosen (an den das Mysteriosum die Form gibt) ist einerseits das

schoumln ausgefuumlhrte abdrӓngende Moment des tremendum mit der bdquomajestasldquo Anderseits aber ist er

offenbar zugleich etwas eigentuumlmlich Anziehendes Bestrickendes Faszinierendes das nun mit dem

abdrӓngenden Momente des tremendum in eine seltsame Krontrast-harmonie trittldquo Rudolf Otto Das

Heilige Uumlber das Irrationale in der Idee des Goumlttlichen und sein Verhaumlltnis zum Rationalen(1917)

Muumlnchen 199142 838

bdquo[Dieser Umstand weist aber zugleich darauf hin daβ] uumlber und hinter unserem rationalem Wesen ein

Letztes und Houmlchstes unseres Wesen verborgen liegt das nicht sein Genuumlge findet in Saumlttigung und

Stillung der Beduumlrfnisse unserer sinnlichen seelischen und geistigen Triebe und Begehrungen Die

Mystiker nannten es den bdquoSeelengrundldquordquo Ibidem 49

426

totalidade da sua visatildeo filosoacutefica consideramos sugestivas certas passagens

referentes agrave objectivaccedilatildeo da vontaderdquo839

Para Schopenhauer eacute efectivamente possiacutevel romper com o domiacutenio das

nossas representaccedilotildees e aceder a um conhecimento metafiacutesico da essecircncia

oculta do mundo como ainda corroborar esse conhecimento pela evidecircncia

empiacuterica da nossa experiecircncia A chave para penetrar na essecircncia oculta do

mundo estaacute na experiecircncia do corpo enquanto sujeito da vontade ldquoAgora noacutes

temos pois da essecircncia e da actividade do nosso corpo um duplo

conhecimento bem significativo e que nos eacute dado de duas maneiras muito

diferentes vamos servir-nos dele como de uma chave para penetrar na

essecircncia de todos os fenoacutemenos e de todos os objectos da natureza que natildeo

nos satildeo dados na consciecircncia como sendo o nosso proacuteprio corpo e que por

conseguinte noacutes natildeo conhecemos de duas maneiras mas simplesmente como

sendo nossas representaccedilotildees julgaacute-los-emos por analogia com o nosso corpo

e suporemos que se por um lado eles se lhe assemelham enquanto

representaccedilotildees e se por outro lado lhes juntarmos a existecircncia enquanto

representaccedilatildeo do sujeito o resto necessariamente deve ser o mesmo que

aquilo que chamamos em noacutes mesmos vontade Que outra espeacutecie de

existecircncia ou de realidade poderiacuteamos com efeito atribuir ao mundo dos

corpos A que outro lugar ir buscar os elementos de que noacutes a comporiacuteamos

Fora da vontade e da representaccedilatildeo noacutes nada podemos pensarrdquo840

Admitindo que esta eacute a chave para penetrar na essecircncia oculta da realidade

Schopenhauer vai corroborar esta tese demonstrando como a estrutura dos

seres vivos e mesmo das forccedilas fiacutesicas podem ser interpretadas como

839

Vicente Ferreira da Silva ldquoPara uma Etnogonia Filosoacuteficardquo in Dialeacutectica das Consciecircncias e outros

ensaios 351352 840

rdquo Wir werden demzufolge die nunmehr zur Deutlichkeit erhobene doppelte auf zwei voumlllig heterogene

Weisen gegebene Erkenntnis welche wir von Wesen und Wirken unseres eigenen Leibes haben

weiterhin als einen Schluumlssel zum Wesen jeder Erscheinung in der Natur gebrauchen und alle Objekte

die nicht unsere eigener Leib daher nicht auf doppelte Weise sondern allein als Vorstellungen unserm

Bewuszligtsein gegeben sind eben nach Analogie jenes Leibes beurteilen und daher annehmen daszlig wie sie

einerseits ganz so wie er Vorstellung und darin mit ihm gleichartig sind auch andererseits wenn man

ihr Dasein als Vorstellung des Subjekts bei Seite setzt das dann noch Uumlbrigbleibende seinem innen

Wesen nach das selbe sein muszlig als was wir uns Wille nennen Denn welche andere Art von Dasein oder

Realitaumlt sollten wir der uumlbrigen Koumlrperwelt beilegen woher die Elemente nehmen aus der wir eine

solche zusammensetzten Auszliger dem Willen und der Vorstellung ist uns gar nichts bekannt noch

denkbar ldquo Schopenhauer Die Welt als Wille und Vorstellung Zweites Buch Stuttgart Frankfurt am

Main 1960 163164

427

expressatildeo da Vontade Como comprovaccedilatildeo indirecta desta tese resultam

particularmente impressionantes a referecircncia agrave luta pela vida no mundo animal

e humano e o instinto de reproduccedilatildeo da espeacutecie que nos colocam perante a

presenccedila duma obscura e inconsciente vontade de viver

A metafiacutesica da Vontade de Schopenhauer reteacutem a atenccedilatildeo de Vicente Ferreira

da Silva tal como ocorrera aliaacutes a uma boa parte do pensamento portuguecircs a

partir dos finais do Seacuteculo XIX O panteiacutesmo metafiacutesico de liacutengua portuguesa

(com particular destaque para Antero de Quental e Sampaio Bruno)

incessantemente dialogou com o autor de O Mundo como Vontade e

Representaccedilatildeo assim como com Eduardo Von Hartmann na tentativa de

encontrar um fundamento metafiacutesico para a sua visatildeo do mundo841

Eacute tambeacutem em Schopenhauer e na sua a metafiacutesica da Vontade que Vicente vai

encontrar o fundamento para corrigir a ontologia heideggeriana e esclarecer o

poder fascinante do ser como centro de atracccedilotildees pulsionais dirigidas agrave

dimensatildeo corpoacuterea do homem e responsaacutevel pelas suas diferentes

configuraccedilotildees morfogeneacuteticas

Procurando clarificar a relaccedilatildeo entre este poder desocultante do ser e a

Vontade Vicente refere-se a uma ldquoexperiecircncia troacutepicardquo do ser e a este como

ldquopoder essencialmente troacutepicordquo Tendo em conta que a noccedilatildeo de tropismo

importada do campo da biologia remete para uma mudanccedila de orientaccedilatildeo dos

organismos em conexatildeo com a estimulaccedilatildeo externa podemos concluir que

esta experiecircncia do ser remete directamente para a dimensatildeo corporal dos

seres vivos e para a orientaccedilatildeo dos seus impulsos vitais de acordo com o

modo particular de irrupccedilatildeo do sagrado ldquoA desocultaccedilatildeo do ser como

fascinaccedilatildeo traduz-se nesse caso na instituiccedilatildeo polimoacuterfica de centros

pulsionais em correspondecircncia com a epifania da presenccedila fascinante

numinosa dos deusesrdquo842

Eacute esta mesma concepccedilatildeo que Vicente retoma no artigo ldquoReligiatildeo e

Sexualidaderdquo no qual a sexualidade humana geralmente comandada pela

hierogamia de Uranos e Gaia sofre mudanccedilas de acordo com variaccedilotildees

pulsionais impostas pelas mitologias imperantes e os centros pulsionais

841

Cf A minha dissertaccedilatildeo de mestrado ldquoA Vida e o traacutegico em Rauacutel Brandatildeordquo Aigrave se esclarece a

amplitude da recepccedilatildeo e influecircncia de Schopenhauer e Hartmann na literatura portuguesa 842

Vicente Ferreira da Silva ldquoPara uma Etnogonia Filosoacuteficardquo in Dialeacutectica das Consciecircncias e outros

ensaios 353

428

instituiacutedos pelas divindades que prescrevem regimes matriarcais ou

patriarcais em cada caso ldquoNatildeo soacute em corte espacial vemos a realidade

polarizar-se nos gacircmetas insondaacuteveis da geraccedilatildeo como tambeacutem a proacutepria

cavalgada do tempo seria regida pelo fluxo e refluxo de divindades femininas

ou masculinas ginecocraacuteticas ou androcraacuteticasrdquo843

Na mesma linha de pensamento Vicente caracteriza os deuses como

ldquoocorrecircncias troacutepicasrdquo ldquosuscitaccedilatildeo de mareacutes passionaisrdquo que teriam o seu

reverso no homem caracterizado por Frobenius como ldquoreceptor de ciclos

passionaisrdquo ou como aquele que se limita a responder ao apelo fascinante dos

deuses

Vicente procura pois conciliar o caraacutecter uno e intemporal da Vontade em

Schopenhauer com a concepccedilatildeo heideggeriana do desvelamento histoacuterico-

temporal do ser ldquoO que eacute o vivo e o que eacute o morto na concepccedilatildeo

schopenhaueriana da objectivaccedilatildeo da vontade A parte caduca deste

pensamento consiste na hispostasiaccedilatildeo do ente Vontade com o correlativo

esquecimento do poder desocultante do Ser Escapou a Schopenhauer que a

Vontade eacute algo de fundado algo de instituiacutedo por um poder pateacutetico-

transcendentalrdquo844

O Ser como vontade fascinante manifesta-se segundo Vicente numa

multiplicidade de formas e de manifestaccedilotildees histoacuterico-temporais cada uma

correspondendo a uma ldquoabertura pulsionalrdquo845 sem que contudo esta

diversidade de manifestaccedilotildees afecte a sua unidade ldquoO impeacuterio desfechante do

ser eacute um poder deflagrador um puro abrir que eacute em si mesmo isento de

multiplicidade A transcendecircncia do seu reino torna-o indemne a qualquer das

suas epocalidadesrdquo 846

Recaindo nas categorias da metafiacutesica Vicente pensa o ser tal como a

Vontade em Schopenhauer sob as categorias da unidade e da

intemporalidade O tempo eacute algo de interno ao poder do ser e eacute o princiacutepio de

diferenciaccedilatildeo e da pluralidade inerente agraves diferentes aberturas pulsionais

843

Vicente Ferreira da Silva ldquoA Religiatildeo e A Sexualidaderdquo Diaacutelogo nordm 2 1955 in Dialeacutectica das

Consciecircncias e outros ensaios 389 844

Vicente Ferreira da Silva ldquoPara uma Etnogonia Filosoacuteficardquo in Dialeacutectica das Consciecircncias e outros

ensaios 352 845

ldquo Maria Helena Varela afirma que a filosofia de Vicente Ferreira da Silva parece evoluir para uma

singular erostontologia influenciada tambeacutem por Lawrence para quem o Ser se manifesta como o dark

power do sangue o plasma da vida Cf Idem Conjunccedilotildees Filosoacutefico Luso-Brasileiras 92 846

Vicente Ferreira da Silva ldquoDiaacutelogo do Riordquo in Dialeacutectica das Consciecircncias e outros ensaios 543

429

propositoras de um certo tipo de experiecircncia religiosa da dominacircncia de uma

cultura e de uma raccedila

Assim Vicente pensa poder estabelecer uma explicaccedilatildeo das diversas raccedilas

culturas histoacutericas e tipos de civilizaccedilatildeo fundando-as em cada caso num

determinado ldquoregime de fascinaccedilatildeordquo ou numa certa ldquoabertura pulsionalrdquo ldquoO

processo religioso eacute em sua essecircncia um propositor de raccedilas a eclosatildeo de

um novo sabor da vida condicionado por uma nova modalidade do sangue e

da expressividade corpoacuterea Sobre o fundo preacute-humano das unidades

bioloacutegicas erige-se o edifiacutecio das culturas histoacutericas atraveacutes de uma nova

ldquoabertura pulsionalrdquordquo847

Esta siacutentese entre o Ser como desvelamento histoacuterico-temporal da verdade e a

metafiacutesica da Vontade de Schopenhauer conduz Vicente como acabaacutemos de

ver a pensar o ser como poder fascinante e ldquodesfechanterdquo das vaacuterias aberturas

pulsionais Este discurso ontoloacutegico pretende fundar-se numa fenomenologia

original da experiecircncia religiosa mas natildeo deixa de recair nas categorias da

Metafiacutesica ao pensar o ser como unidade e intemporalidade O ser como

vontade una e intemporal subjacente agrave diversidade das suas manifestaccedilotildees

fenomeacutenicas pode ser lido como um Deus interior ao mundo em consonacircncia

com o panteiacutesmo presente no pensamento poeacutetico a que vimos aludindo

Tambeacutem podemos questionar-nos se Vicente ao repensar o homem como o

reverso ldquoGegenwurf deste poder atractivo e pulsional do ser se move no

acircmbito da concepccedilatildeo heideggeriana de projecto lanccedilado [geworfene Entwurf]

Efectivamente a concepccedilatildeo heideggeriana de geworfene Entwurf remete para

a dimensatildeo histoacuterica do Dasein e para o facto deste se limitar a projectar-se de

acordo com algo que estaacute jaacute previamente lanccedilado mas deixa igualmente

entrever que ele tem sempre a responsabilidade de se apropriar positivamente

dessas possibilidades que lhe estatildeo historicamente destinadas Em Vicente

poreacutem o homem pensado na sua dimensatildeo corporal e pulsional que teria

escapado parcialmente a Heidegger eacute reduzido a um mero receptor dos ciclos

passionais instaurados pelas vaacuterias mitologias

ldquoHeidegger tinha razatildeo ao considerar a animalitas do homem fundada na

forccedila desocultante do ser ou na ek-sistecircncia O peculiar da nossa posiccedilatildeo

847

Vicente Ferreira da Silva ldquoPara uma Etnogonia Filosoacuteficardquo in Dialeacutectica das Consciecircncias e outros

ensaios 353

430

entretanto em relaccedilatildeo agrave doutrina da Carta sobre o Humanismo eacute a

determinaccedilatildeo do domiacutenio entitativo da animalitas como Vontade como nexo

passional variaacutevel segundo o oferecido pela tradiccedilatildeo mitoloacutegicardquo 848

3 2 O pocircr-se em obra da verdade do ser

Vicente como Eudoro de Sousa natildeo pretende fazer uma interpretaccedilatildeo

histoacuterica dos mitos mas pelo contraacuterio inverter a relaccedilatildeo entre mito e histoacuteria

buscando nos mitos a fonte da inteligibilidade da histoacuteria

Para Eudoro a histoacuteria enquanto historiografia cientiacutefica limita-se a projectar o

presente sobre o passado redesenhado esse passado agrave luz do estado

presente da cultura e buscando nele a sua legitimaccedilatildeo Romper com essa

polaridade do passado e do presente implica saltar por cima desse horizonte

ldquohistoacutericordquo e penetrar na Lonjura e no Outrora que satildeo a sua oculta e remota

origem Esse lado de fora da histoacuteria ou o Outrora eacute a outra hora a hora dos

deuses e natildeo dos homens soacute pensaacutevel na linguagem do mito e do rito

Para Eudoro este colocar-nos de fora da histoacuteria identificando-nos com o

impulso miacutetico permite-nos na realidade apreender o mito enquanto

ocultamente actuante na histoacuteriardquo849 De modo semelhante Vicente pensa o

mito como oculta forccedila actuando no interior da histoacuteria fundando esta posiccedilatildeo

em Bachofen ldquoCom Bachofen afirmamos que natildeo eacute a histoacuteria que explica o

mito mas sim o mito que explica a histoacuteria desde que soacute no domiacutenio

transcendente do mito nos satildeo consignados os cacircnones permanentes de

qualquer desempenho valiosordquo850

Eacute tambeacutem no estatuto da linguagem poeacutetica em Heidegger que Vicente vai

fundar esta primazia do mito face agrave histoacuteria tomando como referecircncias

fundamentais Houmllderlin e a Essecircncia da Poesia e A Origem na Obra de Arte

ldquoO mito eacute justamente aquela permanecircncia de que fala Heidegger em seu

ensaio Houmllderlin e a Essecircncia da Poesia Nesse mesmo ensaio encontramos a

848

Ibidem 353 849

ldquoA lonjura-outrora pode passar de aleacutem para aqueacutem ndash horizonte da histoacuteria queira-o ou natildeo o queira

ela e se passa e quando passa a histoacuteria reassume a sua feiccedilatildeo preacute-originaacuteria afeiccediloando-se antigo e

actual agrave presenccedila do outrora-lonjura pseudo-dimensatildeo cronotoacutepica de tudo quanto eacute simboacutelico e

complementarrdquo Eudoro de Sousa Mitologia Histoacuteria e Mito 245 850

Vicente Ferreira da Silva Teologia e Anti-Humanismo in Dialeacutectica das Consciecircncias e outros

ensaios 298

431

afirmaccedilatildeo de que a poesia conceitualizada como ldquonominaccedilatildeo fundadora dos

deuses e da essecircncia das coisasrdquo eacute o fundamento que suporta a histoacuteriardquo851

Este papel fundador da poesia encontra-se ainda explicitado por Heidegger em

A origem da Obra de Arte onde este afirma que a obra de arte funda e

inaugura um mundo histoacuterico ldquoA arte acontece como ditado poeacutetico Este eacute

instituiccedilatildeo no triplo sentido de doaccedilatildeo da fundaccedilatildeo e do iniacuteciordquo852

Vicente Ferreira da Silva pensa a relaccedilatildeo entre mito e histoacuteria a partir do que

em A origem da Obra de Arte se encontra afirmado sobre o resguardar da obra

como um ldquopermanecer ldquono sugerido pela obra que seria essencialmente

idecircntico ao permanecer junto duma tradiccedilatildeo miacutetica ldquoEm outra obra de

Heidegger intitulada A Origem da obra de Arte essa permanecircncia

resguardante vem incluiacuteda no proacuteprio conceito de poesia e como seu caraacutecter

definitoacuteriordquo853

Contudo Vicente passa inteiramente ao lado da interpretaccedilatildeo da obra de arte

como Ereignis para Heidegger a obra de arte eacute acontecimento originaacuterio

Ereignis e como tal nela se apropriam reciprocamente o ser e o homem - e eacute

essa reciacuteproca apropriaccedilatildeo que instaura as vaacuterias direcccedilotildees de um mundo

histoacuterico com os seus deuses os seus modos de saber e as suas instituiccedilotildees

ldquoO acontecimento de apropriaccedilatildeo [Ereignis] do seu ser-criada natildeo reverbera

simplesmente na obra antes se daacute que o caraacutecter de acontecimento de

apropriaccedilatildeo [Ereignishafte] (que a obra seja o que a obra eacute) lanccedila a obra para

aleacutem de si e lanccedilou-a constantemente agrave sua volta Quanto mais a obra se abre

de forma essencial tanto mais se torna luminoso o caraacutecter luminoso disto que

ela eacute e pelo contraacuterio natildeo natildeo eacuterdquo854

O Ereignis noccedilatildeo capital do segundo Heidegger designa o acontecimento

propiacutecio no qual acontece a apropriaccedilatildeo reciacuteproca entre o ser e o homem

acontecimento que acontece na obra de arte e instaura um mundo histoacuterico

851

Vicente Ferreira da Silva ldquoHistoacuteria e Meta-Histoacuteriardquo Congresso Internacional de Filosofia Satildeo Paulo

1959 in Dialeacutectica das Consciecircncias e outros ensaios 437 852

bdquoDie Kunst geschieht als Dichtung Diese ist Stiftung in dem dreifachen Sinne der Schenkung

Gruumlndung und des Anfangesldquo UKw GA 5 65 853

Vicente Ferreira da Silva ldquoHistoacuteria e Meta-Histoacuteriardquo in Dialeacutectica das Consciecircncias e outros ensaios

438 854

bdquoDas Ereignis seines Geschaffenseins zittert im Werk nicht einfach nach sondern das Ereignishafte

daβ das Werk als dieses Werk ist wirft das Werk vor sich her und hat es staumlndig um sich geworfen Je

wesentlicher das Werk sich oumlffnet um so leuchtender wird die Einzigkeit dessen daβ es ist und nicht

vielmehr nicht istldquo UKw GA 5 53

432

Outro eacute o entendimento de Vicente a quem a obra de arte natildeo interessa em si

mesma mas fornece o modelo de compreensatildeo do binoacutemio mito-rito tema

essencial para aceder a uma compreensatildeo da vigecircncia e da permanecircncia dos

modelos miacuteticos (que natildeo se confundem com as narrativas poeacuteticas ou

literaacuterias) subjacentes ao devir da histoacuteria 855

Afirma Heidegger nos Holzwege relativamente ao resguardar na obra de arte

ldquoO resguardar da obra natildeo separa os homens singularizando-os com base nas

suas vivecircncias antes os integra na pertenccedila agrave verdade que acontece na obra

e deste modo funda o ser-para-os-outros [Fuumlreinandersein] e o ser-com-os-

outros [Miteinadersein] como estar em vigecircncia histoacuterico do ser-o-aiacute a partir da

conexatildeo com o natildeo-estar-encobertordquo856

Comentando esta passagem de Heidegger Vicente esclarece este resguardar

como um ldquohabitar na abertura do ente propiciado pela obrardquo que seria

essencialmente idecircntico agravequele que acontece na rememoraccedilatildeo ritual O ritual

preserva o legado de uma tradiccedilatildeo miacutetico-religiosa mantendo-o vivo no seio da

vivecircncia social de um ciclo histoacuterico determinado O binoacutemio mito-rito assegura

a manutenccedilatildeo de um mesmo ldquoteatro mundanalrdquo onde deuses homens e

elementos naturais se interligam de forma coerente e estruturada

Para Vicente o binoacutemio mito-rito assegura a manutenccedilatildeo do homem no seio

dum cenaacuterio simboacutelico assegurando a vigecircncia duma certa Ur-poesie como

eixo de um ciclo histoacuterico Sob a vigecircncia dessa Ur-Poesie todo um ciclo

histoacuterico pode ser lido como um teatro sagrado onde os homens as coisas e

os seres da natureza actualizam um drama ritual que incessantemente instaura

a vigecircncia das potecircncias teogoacutenicas

Para o pensador brasileiro a fundaccedilatildeo de um mundo histoacuterico eacute a instauraccedilatildeo

de uma ordem simboacutelica atribuiacuteda aos mitos e agrave sua linguagem - os siacutembolos

enraiacutezam-se no Bildwelt ou mundo das imagens e constituem a Ur-poesie dos

mitologemas cantos e rituais que estatildeo na origem duma civilizaccedilatildeo ldquoAtraveacutes

siacutembolos noacutes conformamos e dominamos a riqueza desordenada dos

855

Cf Vicente Ferreira da Silva ldquoHistoacuteria e Meta-Histoacuteriardquo Dialeacutectica das Consciecircncias e outros

ensaios 438 856

bdquoDie Bewahrung des Werkes vereinzelt die Menschen nicht auf ihre Erlebnisse sondern ruumlckt sie ein

in die Zugehoumlrigkeit zu der im Werk geschehenden Wahrheit und gruumlndet so das Fuumlr- und

Miteinandersein als das geschichtliche Ausstehen des Da-seins aus dem Bezug zur Unverborgenheitldquo

UKw GA 5 55

433

estiacutemulos sensoriais o diluacutevio das impressotildees num sistema plenamente

controlaacutevel de formas significativas ou inteligiacuteveisrdquo857

Para Vicente a linguagem simboacutelica desta Ur-poesie natildeo se restringe agraves

narrativas miacuteticas mas ela engloba igualmente o gesto ritual a acccedilatildeo e culto

que constantemente renovam o projecto cosmoloacutegico contido no relato miacutetico

e constituem a totalidade do mundo num ldquoemblemardquo da presenccedila de um deus

Dioniacutesio eacute parreira planta embriagadora o vinho mas tambeacutem estaacute presente

no seacutequito das bacantes no coro traacutegico e em geral no sentimento exuberante

da existecircncia O siacutembolo natildeo eacute apenas uma forma espaacutecio-temporalmente

confinada mas ele desvenda-nos a face inteira do mundo como uma totalidade

pregnante

Partindo da temaacutetica heideggeriana da natureza da obra de arte como ldquopocircr-se

em obra da verdade do serrdquo Vicente visa algo de fundamentalmente diferente

daquilo que Heidegger tinha em vista ao pensar a obra de arte como Ereignis

Trata-se para o pensador brasileiro de mostrar que os siacutembolos da linguagem

miacutetica suscitam uma visatildeo total do mundo pondo-a em conexatildeo com uma

figura do divino ldquoO processo mitoloacutegico que nada mais eacute do que o pocircr-se em

obra da verdade do ser eacute em sua essecircncia iacutentima uma abertura de tempos

transbordando portanto o ritmo histoacuterico-hominiacutediordquo858

O fundamento dessa Ur-poesie eacute pensado por Vicente como a Imaginatio Dei

cuja natureza ele esclarece recorrendo agrave vontade nietzschiana de poder como

vontade de plasmaccedilatildeo artiacutestica que natildeo estaacute centrada no homem ldquoNa

concatenaccedilatildeo profunda do pensamento de Nietzsche a potecircncia da

imaginaccedilatildeo criadora representa um papel filosoacutefico primordial A vontade de

poder realidade uacuteltima das coisas ldquofacto uacuteltimo ao qual podemos acederrdquo eacute

para ele uma vontade de plasmaccedilatildeo artiacutestica eacute um aperfeiccediloamento total das

coisas pela vis poeacutetica pela subjectividade artiacutestico-metafiacutesicardquo859

A tese de uma Imaginatio Dei ou duma vontade criadora luacutedica e esteacutetica

criadora dos mitos subjacentes agrave histoacuteria que Vicente aqui defende como jaacute

referimos anteriormente aproxima-se na realidade muitiacutessimo de Pascoaes

857

Vicente Ferreira da Silva ldquoLiberdade e Imaginaccedilatildeordquo Convivium nordm 2 1962 in Dialeacutectica das

Consciecircncias e outros ensaios 478 858

Vicente Ferreira da Silvardquo Histoacuteria e Meta-Histoacuteriardquo in Dialeacutectica das Consciecircncias e outros ensaios

442 859

Vicente Ferreira da Silva ldquoLiberdade e Imaginaccedilatildeordquo in Dialeacutectica das Consciecircncias e outros ensaios

476

434

afastando-se no entanto de Heidegger e atraiccediloando o sentido fundamental de

A origem da Obra de Arte em que pretende igualmente fundar-se

Com efeito para Heidegger como Ereignis a obra de arte eacute ela mesma a

origem natildeo tendo sentido procurar para ela outro fundamento Ela eacute a luta

entre o mundo (o desvelamento que abre o espaccedilo para os deuses e para os

desempenhos humanos) e a terra o que se manteacutem no oculto (que aponta

para o misteacuterio insondaacutevel em que assenta a origem da obra) ldquoO levantar de

um mundo e o elaborar da terra satildeo dois traccedilos essenciais do ser-obra da

obrardquo860

A identidade entre arte e mito repousa assim em Vicente numa

fundamentaccedilatildeo teoacuterica ecleacutectica que contudo consegue elucidar o ponto para

ele fundamental da independecircncia de ambas as criaccedilotildees em relaccedilatildeo agrave

subjectividade humana ldquoA arte ou melhor a poesia como eacute aqui

conceitualmente transcrita se confunde com o poder mitoloacutegico que comanda

as eacutepocas do mundo Natildeo estaacute subordinada portanto agrave fantasia subjectiva e

individual mas parece emergir de uma imaginaccedilatildeo macroscoacutepica e ek-staacutetica

que evolui aleacutem do indiviacuteduo Neste sentido a arte eacute uma instituiccedilatildeo histoacuterico-

divina uma emanaccedilatildeo da imaginatio divina861

Vicente procede assim a uma subtil inversatildeo do pensamento heideggeriano

colocando a imaginatio divina na origem de toda a arte embora para Heidegger

a esfera do sagrado seja ela mesma fundada nesse acontecimento propiacutecio

(Ereignis) que eacute erigir da obra de arte ldquoA poesia eacute aqui entendida - como jaacute

afirmaacutemos - natildeo como exerciacutecio fantaacutestico individual e caprichoso como jogo

verbal mas como mitologia Podiacuteamos adiantar ainda que a mitologia eacute uma

traduccedilatildeo histoacuterico-humana de um processo que a transcende e determina isto

eacute de um processo existente objectivamente e aleacutem da formulaccedilatildeo menor que

encontra na histoacuteria dos povos [] o mito condiciona a histoacuteria abrindo e

inaugurando o mundo em que ela se pode desenvolverrdquo862

Para Vicente este desvelamento miacutetico-religioso que suporta a histoacuteria remete

assim para um plano anterior e mais fundamental duma poesis cosmo-

860

bdquoDas Aufstellen einer Welt und das Herstellen der Erde sind zwei Wesenszuumlge im Werksein des

Werkes ldquo UKw GA 5 34 861

Vicente Ferreira da Silva Teologia e Anti-Humanismo in Dialeacutectica das Consciecircncias e outros

ensaios Lisboa 298 862

Ibidem 301302

435

teogoacutenica uma poiesis originaacuteria e morfogeneacutetica que como Pascoaes

poderiacuteamos designar de Verbo escuro ou como Nietzsche de vontade de

plasmaccedilatildeo artiacutestica divina ―Os deuses ou Deus manifestam-se como Origens

Origens de todo o originado de todas as possibilidades e valores encarnados

ou encarnaacuteveis na histoacuteria A experiecircncia morfogeneacutetica do divino se esclarece

no aspecto puramente desfechante do Ser na abertura ou manifestaccedilatildeo

original de mundordquo863

Cada mitologia corresponde assim agrave instauraccedilatildeo de uma ldquoperspectivardquo ou a um

ldquoregime de fascinaccedilatildeordquo imposto pelo foco fascinante do Ser que instaura um

ldquoteatro mundanalrdquo ou um drama cosmogoacutenico de que os homens satildeo

protagonistas - entre outros - desempenhando um papel que lhes foi

previamente consignado

Assim para Vicente o mito eacute a poesia originaacuteria na qual estaacute em jogo

simultaneamente o tempo humano da histoacuteria e da cultura e o tempo

transcendente e meta-histoacuterico dos deuses

Devemos ainda ter presente que em estrita coerecircncia com a ontologia contida

em toda a experiecircncia religiosa Vicente afirma o primado do tempo sagrado da

vida dos deuses e dos heroacuteis sobre o tempo histoacuterico profano Esse primado do

tempo sagrado eacute expresso por Vicente com a expressatildeo importada do leacutexico

heideggeriano ldquoditado do serrdquo ldquoO processo miacutetico-teogonico enquanto

universo prototiacutepico divino natildeo soacute provoca e sugere as formas e actuaccedilotildees

histoacutericas como realiza uma vida em si e por si O ditado do ser eacute

essencialmente vida das figuras e potecircncias divinas mundo em si e por si e

que em sua eminecircncia eacute mais real do que o nosso assim chamado mundo

realrdquo864

Cada mitologia constitui uma matriz simboacutelica que rege todo o acontecer

mundial uma espeacutecie de arqueacutetipo imoacutevel subjacente agrave totalidade das suas

manifestaccedilotildees Nesta matriz originante estatildeo dadas todas as filosofias

possiacuteveis de um determinado tempo histoacuterico que para aleacutem da sua

diversidade contecircm a unidade subjacente do mito originante que dita

863

Vicente Ferreira da Silva ldquoA Origem Religiosa da Culturardquo Convivium nordm 1 1962 in Dialeacutectica das

Consciecircncias e outros ensaios 468469 864

Vicente Ferreira da Silva Teologia e Anti-Humanismo in Dialeacutectica das Consciecircncias e outros

ensaios 298

436

previamente aquilo que eacute pensaacutevel ldquoO pensamento pensa o pensaacutevel Mas o

pensaacutevel eacute um jaacute franqueado por um ditado desocultanterdquo865

A filosofia eacute assim um domiacutenio ldquofundadordquo e por isso apenas responde agraves

oportunidades de pensamento que estatildeo disponiacuteveis no seu sistema cultural

desconhecendo o seu fundamento ldquoabissalrdquo Todas as filosofias satildeo apenas um

epifenoacutemeno do mito dominante e o filoacutesofo eacute apenas um emissaacuterio um porta-

voz dum saber consignado pelos deuses

3 3 Continuidade da tradiccedilatildeo e ruptura da crise

Em Loacutegica A pergunta pela essecircncia da linguagem Heidegger apresenta uma

reformulaccedilatildeo do conceito de histoacuteria pensada como historicidade

(Geschichtlichkeit) segundo a qual a histoacuteria no seu sentido apropriado seria

o movimento de auto-gestaccedilatildeo de um povo que nesse movimento se

compreende a si e compreende o mundo

De acordo com esta concepccedilatildeo de histoacuteria apenas o homem tem histoacuteria

porque soacute ele eacute temporal (zeitlich) isto eacute soacute ele pode projectar-se em direcccedilatildeo

ao futuro a partir dum passado que ele retoma e actualiza como tradiccedilatildeo

Assim a historicidade deve ser pensada a partir de um exerciacutecio apropriado da

temporalidade ek-staacutetica como unidade dos trecircs ecircxtases temporais ldquoNoacutes jaacute

natildeo devemos compreender-nos como aqueles que se sucedem no tempo mas

como aqueles que se determinam a partir do futuro estando a ser e

projectando-se a si mesmo desde tempos anteriores isto eacute como aqueles que

satildeo eles proacuteprios o tempo Noacutes somos a temporalizaccedilatildeo do proacuteprio tempordquo866

Esta concepccedilatildeo da histoacuteria implica uma decisatildeo pela qual um povo se decide

a assumir o seu passado como tradiccedilatildeo presentificando-o e projectando-o no

futuro na criaccedilatildeo das obras pelo trabalho e no levantamento do Estado Ficam

assim excluiacutedos da histoacuteria e remetidos para a natildeo-histoacuteria todos povos que se

limitam a estar no meio da histoacuteria ou cuja existecircncia se perde na mera

repeticcedilatildeo de uma tradiccedilatildeo imobilizada o que Heidegger exemplificava com os

865

Vicente Ferreira da Silvardquo A Fonte e o Pensamentordquo in Dialeacutectica das Consciecircncias e outros ensaios

408 866

ldquoWir duumlrfen uns selbst nicht mehr als in der Zeit vorkommende verstehen wir muumlssen uns erfahren als

die die von fruumlher her wesend uumlber sich selbst hinausgreifend aus der Zukunft sich bestimmen dh aber

als die die selbst die Zeit sind Wir sind die Zeitigung der Zeit selbstldquo LWS GA 38 120

437

Cafres exemplo que podemos estender aos ldquoprimitivosrdquo a cuja existecircncia estatildeo

associadas as primeiras manifestaccedilotildees duma consciecircncia miacutetica

Eudoro de Sousa contrapunha tambeacutem o mito e a histoacuteria vendo na histoacuteria a

recusa e o afastamento do Outrora como o natildeo-tempo do mito e investigando

o modo como ainda seria possiacutevel suscitar uma relaccedilatildeo entre ambos

Igualmente Julius Evola e Reneacute Gueacutenon contrapotildeem o mundo da Tradiccedilatildeo e o

mundo histoacuterico investigando no entanto o modo como esse mundo da

tradiccedilatildeo pode ser usado como arqueacutetipo para compreender a histoacuteria867

Vicente pensa de modo original esta problemaacutetica da relaccedilatildeo entre mito e

histoacuteria pela mediaccedilatildeo do conceito heideggeriano de Instaumlndigkeit868 essencial

no pensamento heideggeriano da histoacuteria

Para Vicente todo o processar-se da histoacuteria de um ciclo cultural se desenrola

dentro das possibilidades contidas no mito originaacuterio que conteacutem o permanente

e o resguardaacutevel e o devir histoacuterico-temporal daacute-se como uma reafirmaccedilatildeo da

mesma matriz miacutetica originaacuteria Contudo Vicente natildeo compreende essa

reafirmaccedilatildeo do mesmo como o arqueacutetipo do eterno retorno869 sob o signo do

qual Mircea Eliade vecirc a experiecircncia da temporalidade nas sociedades arcaicas

mas sim a partir da estrutura ontoloacutegica do acontecer e do exerciacutecio

apropriado da temporalidade do Dasein como projecto lanccedilado ldquoA estrutura

ontoloacutegica do acontecer encontra a sua formulaccedilatildeo numa particular

caracteriacutestica da ek-sistecircncia que a condena natildeo soacute ao transcender des-

velador como tambeacutem ao subordinar-se insistente agraves formas desveladas O

Homem natildeo somente ek-siste mas ao mesmo tempo in-sisterdquo870

Esta caracterizaccedilatildeo do homem como ek-sistecircncia in-sistente permite-lhe

pensar a histoacuteria natildeo sob o signo da repeticcedilatildeo mas da permanente

actualizaccedilatildeo de um mesmo fundo miacutetico originaacuterio em sintonia com o conceito

heideggeriano de tradiccedilatildeo [Uumlberlieferung] como algo de vivo e

permanentemente actualizaacutevel (aqui entendida como tradiccedilatildeo miacutetica)

867

Cf Julius Evola Revolta Contra o Mundo Moderno Lisboa 1969 407-435 e ainda Reneacute Gueacutenon O

Reino da Quantidade e os Sinais dos Tempos Lisboa 1989 9-16 868

ldquoDie Instaumlndigkeit ist die Art und Weise wie wir jeweils unsere Bestimmung bestehen Die

Instaumlndigkeit ist ein Charakter der Sorge deckt sich aber nicht mit ihrem vollen Wesenldquo LWS GA 38

163 869

Cf Mircea Eliade O Sagrado e o Profano Lisboa 1999 81-126 870

Vicente Ferreira da Silva ldquoHistoacuteria e Meta-Histoacuteriardquo in Dialeacutectica das Consciecircncias e outros ensaios

437

438

Vicente pode assim fundar a posiccedilatildeo original de que entre o mundo da

Tradiccedilatildeo estudado pela etnologia e mundo das civilizaccedilotildees histoacutericas natildeo haacute

nenhum abismo num e noutro se manteacutem conserva e actualiza um legado

miacutetico originaacuterio

Contudo para Vicente esta actualizaccedilatildeo duma tradiccedilatildeo miacutetica estaacute condenada

ao esgotamento como foi demonstrado por Julius Evola em A Revolta do

Mundo Moderno ao mostrar a decadecircncia dos princiacutepios miacuteticos dominantes

em cada tipo de civilizaccedilatildeo Para Vicente esta decadecircncia das civilizaccedilotildees

demonstra que a Histoacuteria se encontra fechada para a frente pela fascinaccedilatildeo

originaacuteria e ela nunca pode ir aleacutem do que estaacute consignado na matriz miacutetico-

religiosa

Ficam assim por explicar as grandes mutaccedilotildees histoacutericas e civilizacionais

assim como a polimorfia de mundos de culturas e de raccedilas com as suas

respectivas possibilidades histoacutericas O princiacutepio explicativo desta

multiplicidade irredutiacutevel encontra-se para Vicente na pluralidade de

mitologias cada uma das quais desenhando diferentes mundos com as suas

distintas instituiccedilotildees e cosmologias dedutiacuteveis da dominaccedilatildeo miacutetica em cada

caso imperante871 As grandes cosmogonias miacuteticas correspondem agrave

instauraccedilatildeo de um teatro coacutesmico e agrave alvorada de um ciclo histoacuterico como de o

predomiacutenio de uma raccedila

As forccedilas pulsionais divinas ou como Vicente as designa tambeacutem coacutesmico-

espirituais tecircm como acima vimos um papel fundante determinando em cada

caso uma eacutepoca mundial um ldquoregime de fascinaccedilatildeordquo ou ainda um ldquotempo

passionalrdquo a consciecircncia humana eacute invadida ou arrebatada pelas forccedilas

coacutesmico-espirituais ou por um Weltaspekt e para designar este arrebatamento

e estado de sujeiccedilatildeo o pensador brasileiro usa o conceito de Frobenius de

Ergriffenheit

Agrave consciecircncia arrebatada desvela-se uma configuraccedilatildeo total de mundo que se

lhe impotildee como uma necessidade absoluta ldquoOs conteuacutedos do relato miacutetico e a

871

ldquoHoumllderlin designou essas inflexotildees colossais e catastroacuteficas do vir a ser mundial com os termos de

ldquoconversatildeo categoacutericardquo (Kategorische Umkehr) e de ldquoconversatildeo paacutetricardquo (Vaterlaumlndische Umkehr) ldquoA

conversatildeo paacutetrica eacute a conversatildeo de todas as representaccedilotildees e formasrdquo Atraveacutes do conceito de uma

Vaterlaumlndische Umkehr eacute pensada uma transformaccedilatildeo da paacutetria de todas as formas uma modificaccedilatildeo da

imagem do mundo um movimento do mundo sem qualquer limite ou suspensatildeo Eis porque esta

conversatildeo paacutetrica eacute determinada como uma conversatildeo infinita e posta acima das faculdades do homemrdquo

Ibidem 439

439

cosmografia revelada nesse saber remetem-nos agraves coisas mesmas instalando-

nos num mundo de presenccedilas reais e imperiosas A configuraccedilatildeo das coisas

presentes nesse cosmos eacute esboccedilada e estilizada pelo projecto fascinante que

faz que ela se alteie em sua identidade intramundana proacutepriardquo872

Do mesmo modo as raccedilas e as diferenccedilas eacutetnicas devem ser compreendidas

natildeo a partir da biologia mas a partir dessa fascinaccedilatildeo meta-histoacuterica ldquoO

projecto instituidor de Mundo eacute simultaneamente o projecto des-fechante de

uma animalitas O corpo humano como os outros entes eacute algo oferecido e

dispensado pelo lampejar projectivo do ser algo que soacute se delineia e emerge

na abertura de uma Weltentwurf873

O decliacutenio das grandes civilizaccedilotildees por efeito da nova dominaccedilatildeo de princiacutepios

miacuteticos opostos eacute detalhadamente analisado por Julius Evola como a

passagem de uma mitologia solar associada agrave realeza ao patriarcado e agraves

raccedilas noacuterdicas para uma mitologia lunar associada ao culto da terra eacute agraves

divindades femininas ao matriarcado e aos povos do sul

Eacute esta sucessatildeo de princiacutepios miacuteticos contraditoacuterios que Vicente quer explicar a

partir da luta entre entidades sobre-humanas que se desenrola no universo

nocturno inconsciente e arquetiacutepico onde se decide do traccedilado do mundo da

nossa existecircncia vigilante O mito representa assim um Poder Modelador um

Vorbildlich Macht que descerra em cada caso um novo aspecto do mundo

sendo a alteraccedilatildeo dos princiacutepios divinos a responsaacutevel pelas radicais mutaccedilotildees

e crises catastroacuteficas na configuraccedilatildeo das coisas

Essas crises satildeo esclarecidas por Vicente recorrendo aos conceitos de

Houmllderlin de Kategorische Umkehr e de Vaterlaumlndische Umkehr comentados

por Heidegger em Aproximaccedilotildees agrave Poesia de Houmllderlin que apontariam para

uma total transfiguraccedilatildeo do mundo e do homem ldquoSatildeo portanto as lutas e as

alteraccedilotildees dos princiacutepios divinos as modificaccedilotildees das regecircncias teoloacutegicas do

Universo que marcam as crises radicais da configuraccedilatildeo das coisas Houmllderlin

designou essas inflexotildees colossais e catastroacuteficas do vir a ser mundial com os

termos de ldquoconversatildeo categoacutericardquo (Kategorische Umkehr) e de ldquoconversatildeo

872

Vicente Ferreira da Silva ldquoIntroduccedilatildeo agrave Filosofia da Mitologiardquo in Dialeacutectica das Consciecircncias e

outros ensaios 374 873

Vicente Ferreira da Silva ldquoRaccedila e Mitordquo Congresso Internacional de Filosofia Satildeo Paulo 1959 in

Dialeacutectica das Consciecircncias e outros ensaios 433

440

paacutetricardquo (Vaterlaumlndische Umkehr) ldquoA conversatildeo paacutetrica eacute a conversatildeo de todas

as representaccedilotildees e formasrdquo874

Segundo Vicente esta ldquoconversatildeo paacutetricardquo tambeacutem designada de ldquoconversatildeo

infinitardquo seria a transformaccedilatildeo de todas as formas uma mudanccedila no mundo da

qual o homem natildeo seria consciente mas que arrastaria na sua metamorfose a

transformaccedilatildeo de ideias imagens e instituiccedilotildees humanas

Esta conversatildeo infinita que natildeo eacute iniciativa humana teria segundo Vicente

uma origem meta-histoacuterica e transhumana significando uma nova desvelaccedilatildeo

miacutetico-religiosa ou o predomiacutenio dum novo poder divino que se afirmaria na

luta contra uma dominaccedilatildeo miacutetica anterior ldquoO mundo natildeo soacute nasce sob o signo

da luta como eacute em sua essecircncia polemos imperium afirmaccedilatildeo despoacutetica Eacute

impossiacutevel conceber a essecircncia epocal do tempo sem a representaccedilatildeo

conjunta de uma dominaccedilatildeo isto eacute de um mundo de oportunidades e de

formas que acontecem no acontecerrdquo875

O fundamento uacuteltimo da histoacuteria estaacute para Vicente nesse acircmbito obscuro e

oculto onde as lutas entre as diversas geraccedilotildees divinas decidem o traccedilado do

mundo Vicente toma como fio condutor para explicar as mutaccedilotildees

catastroacuteficas da histoacuteria a teogonia de Hesiacuteodo que Walter Otto usara tambeacutem

como chave explicativa para as mutaccedilotildees da religiatildeo e da cultura gregas ldquoO

mundo eacute a vitoacuteria de um princiacutepio com a exclusatildeo de todos os demais eacute o

domiacutenio de uma interioridade como na sequecircncia das geraccedilotildees divinas da

teogonia de Hesiacuteodordquo876

Podemos pois concluir que a siacutentese entre histoacuteria e mito feita por Vicente

inspira-se nessa reformulaccedilatildeo heideggeriana do conceito de tradiccedilatildeo como

uma actualizaccedilatildeo permanente e criadora do passado que a projecta no futuro

Efectivamente para Heidegger o passado natildeo eacute nunca o que jaacute passou mas o

que desde o antes permanece e eacute trazido para o presente inscrevendo-se no

futuro A Histoacuteria eacute um movimento de actualizaccedilatildeo permanente do passado um

retomaacute-lo de modo criativo e projectivo eacute tradiccedilatildeo viva (Uumlberlieferung) ldquoO

Futuro e o ter sido satildeo em si aqueles poderes do tempo o poder do proacuteprio

874

Vicente Ferreira da Silva ldquoHistoacuteria e Meta-histoacuteriardquo in Dialeacutectica das Consciecircncias e outros ensaios

439 875

Vicente Ferreira da Silva Teologia e Anti-humanismo in Dialeacutectica das Consciecircncias e outros

ensaios 299 876

Vicente Ferreira da Silva ldquoO Ser In-fusivordquo Diaacutelogo nordm 3 1956 in Dialeacutectica das Consciecircncias e

outros ensaios 394

441

tempo no qual estamos Noacutes somos vindouros na medida em que assumimos

o ter sido como tradiccedilatildeordquo877

Se o conceito de Instaumlndigkeit permite fundamentar a transmissatildeo de uma

tradiccedilatildeo miacutetica ele natildeo explica contudo as grandes mutaccedilotildees histoacutericas que

Vicente explica recorrendo ao conceito de Houmllderlin de ldquoconversatildeo infinitardquo e

relacionando-o com as lutas dos deuses da teogonia de Hesiacuteodo

Contudo em Heidegger as diferentes eacutepocas Histoacutericas satildeo abertas pelo

desvelamento do ser no qual simultaneamente ele se subtrai e oculta

fundando-se por isso no fundo obscuro das vaacuterias Stimmungen epocais Para

Heidegger haacute limites agrave inteligibilidade da histoacuteria que natildeo pode ser nunca

totalmente transparente agrave consciecircncia humana o pensador situa-se sempre

nos limites histoacuterico-temporais do desvelamento do ser e natildeo pode pretender

sair destes limites nem situar-se no domiacutenio do ldquotempo dos deusesrdquo em que se

movimentam as teodiceias nem ter acesso ao sentido absoluto da histoacuteria

Ao franquear este limite e avanccedilar no sentido de uma metafiacutesica da histoacuteria ou

talvez mais precisamente de uma teodiceia Vicente abandona precisamente

aquilo que eacute para Heidegger o fundamento da historicidade o exerciacutecio da

temporalidade estaacutetica pelo Dasein e assumpccedilatildeo da sua finitude

Vicente coloca-se no acircmbito daquele pensamento poeacutetico que entre noacutes vinha

procedente a uma mitificaccedilatildeo da histoacuteria para o qual todo o acontecimento

histoacuterico se torna significativo na medida em que participa duma histoacuteria

transhumana e a revela que podemos encontrar em Sampaio Bruno Pascoaes

ou Fernando Pessoa

Situa-se igualmente proacuteximo da perspectiva de Julius Evola para quem o ponto

de referecircncia para compreender a histoacuteria eacute o mundo tradicional na sua

qualidade de realidade simboacutelica supra-histoacuterica e normativa

3 4 A quadratura do mundo

No ensaio Das Ding de 1950 Heidegger leva a cabo uma tentativa de pensar o

ser da coisa fora do quadro do Zuhandensein e do Vorhandensein do mero

ser-utensiacutelio e do ser-objecto para o conhecimento teoreacutetico que tinham sido

877

ldquoZukunft und Gewesenheit sind in sich einige Zeitmӓchte die Macht der Zeit selbst in der wir stehen

Wir sind nur zukuumlnftig indem wir die Gewesenheit als Uumlberlieferung uumlbernehmenldquo LWS GA 38 124

442

tematizados em Ser e Tempo Esta mesma questatildeo foi tambeacutem objecto de

meditaccedilatildeo em outras obras de Heidegger designadamente em A Origem da

Obra de Arte (1935) e em Construir Habitar e Pensar (1951)

Se em A Origem da Obra de Arte o ser da obra de arte eacute pensado como

acontecer propriamente histoacuterico no qual se decide a fundaccedilatildeo de um mundo

em Das Ding como em Construir Habitar e Pensar o que Heidegger procura eacute

o ser da coisa simplesmente enquanto coisa e natildeo enquanto obra

Em Das Ding Heidegger pensa o ser da coisa a partir da experiecircncia miacutetica do

mundo isto eacute daquela experiecircncia que o homem grego fez do mundo como

hierogamia primordial entre o ceacuteu e a terra e de si mesmo como mortal sujeito

agrave vontade dos Deuses - assumindo por isso este texto quer para Eudoro quer

para Vicente um especial interesse Esta experiecircncia miacutetica do mundo

encontrou-a Heidegger na poesia de Houmllderlin que como sabemos estaacute

impregnada duma sacralidade grega e este desvelamento miacutetico-religoso

poeticamente recriado por Houmllderlin teria sido a inspiraccedilatildeo decisiva para

pensar o mundo como quadratura do divino e dos mortais do ceacuteu e da terra

Em Teologia e Anti-humanismo Vicente refere-se a Das Ding como um

ensaio muto importante de Heidegger pois procura fixar o sentido dessa

Entbergung [desencobrimento] miacuteticondashreligiosa que estaria na origem do

mundo apresentando contudo a sua discordacircncia quanto agrave formulaccedilatildeo

apresentada pelo pensador alematildeo

Em Das Ding Heidegger procura o ser da coisa natildeo enquanto Vorstellen

[representaccedilatildeo] nem enquanto Herstellen [produccedilatildeo] mas simplesmente

enquanto Ding enquanto simples coisa procurando-o atraveacutes do eacutetimo do alto

alematildeo Thing ldquoreuniatildeo ou assembleia para deliberaccedilatildeo de um litiacutegiordquo878 Este

campo semacircntico de Thing aponta para o desvelamento do ser da coisa na

reuniatildeo que para Heidegger seraacute a festa ou celebraccedilatildeo ritual - quando o

cacircntaro oferece a libaccedilatildeo ritual satildeo convocados e reunidos o Divino os

Mortais o Ceacuteu e a Terra e o cacircntaro deixa de ser um ente fechado em si

mesmo mas desvela-se no seu ser879

Conduzido por esta experiecircncia miacutetica e ritual Heidegger vai esclarecer o

desvelamento do ser como o acontecer no qual acontece a reuniatildeo destas

878

Cf D GA 7914 879

Cf D GA 79 17

443

quatro direcccedilotildees ontoloacutegicas No instante da libaccedilatildeo ritual daacute-se a reuniatildeo dos

quatro reuniatildeo que no entanto salvaguarda as suas distacircncias e os manteacutem

na sua oposiccedilatildeo a terra apresenta-se como o suporte e o nutriente mas ela eacute

ainda o fechamento que se opotildee ao aberto do Ceacuteu com a sucessatildeo das

estaccedilotildees e o movimento dos astros os homens apresentam-se como os que

devem converter-se em mortais para que sobre eles possa dar-se o oculto

reinar dos deuses880

Ao reunirem-se em anel daacute-se o reciacuteproco espelhamento das quatro direcccedilotildees

ontoloacutegicas e a co-pertinecircncia dos quatro respeitando e mantendo a sua

distacircncia torna possiacutevel abrir o espaccedilo de revelaccedilatildeo do mundo O mundo

acontece como espelhamento reciacuteproco das quatro - ele eacute estrutura

quadripartida que rege o desvelamento temporal da verdade natildeo apenas num

miacutetico passado distante mas como instante singular que pode retirar-se e

regressar de diferentes formas sendo esta referecircncia ao rdquoinstanterdquo central para

compreender a orientaccedilatildeo semacircntica do texto

Em O Das Ding de Heidegger e outras Consideraccedilotildees Vicente destaca que as

coisas como coisas satildeo desveladas segundo Heidegger por uma

Unverborgenheit [natildeo estar encoberto] por uma des-ocultaccedilatildeo mas contesta

vivamente a estrutura quadripartida que suporta esse desvelamento

Das Ding fala dessa co-pertinecircncia dos quatro como de um ldquotranspropriar

exproprianterdquo atraveacutes do qual cada um eacute reconduzido ao que lhe eacute ldquoproacutepriordquo e

se levanta um mundo ldquoA terra e o ceacuteu os divinos e os mortais unidos uns aos

outros a partir de si mesmos a partir da ldquounificidaderdquo unida do Quadrado uns

aos outros se pertencem Cada um dos quatro reflecte agrave sua maneira o ser

dos demais com isso cada um se reflecte agrave sua maneira no seu proacuteprio ser

no seio da ldquounificidaderdquo dos Quatrordquo881

Para Heidegger esta estrutura quadripartida eacute essencial o mundo como

quadratura natildeo pode ser explicado a partir de um fundamento colocado no seu

exterior como tambeacutem natildeo pode ser explicado a partir de uma das quatro

direcccedilotildees O mundo eacute jogo de espelhos em que cada um reflecte a essecircncia

880

Cf D GA 79 20 881

ldquoErde und Himmel die Goumlttlichen und die Sterblichen gehoumlren von sich her zueinander einig in die

Einfalt des einigen Gevierts zusammen Jedes der Vier spiegelt in seiner Weise das Wesen der uumlbrigen

wieder Jedes spiegelt sich dabei nach seiner Weise in sein Eigenes innerhalb der Einfalt des Vier

zuruumlckrdquo D GA 79 18

444

dos outros num jogo de reflexos que ilumina ocultando ldquoAo manifestante jogo

de espelhos da ldquounificidaderdquo de terra e de ceacuteu divinos e mortais noacutes

chamamos mundo O mundo eacute enquanto ele ldquomundardquo Isto quer dizer o

ldquomundarrdquo do mundo natildeo eacute explicaacutevel por qualquer outra coisa nem

perscrutaacutevel a partir de qualquer outra coisa Este impossiacutevel natildeo estaacute em que

o nosso pensamento humano seja incapaz de um tal explicar e fundamentar

Antes se diria o inexplicaacutevel e infundamentaacutevel do ldquomundarrdquo do mundo reside

em que coisas tais como causas e fundamentos permanecem inadequadas ao

ldquomundarrdquo do mundordquo882

Vicente interpreta rigorosamente a importacircncia desta unificidade das quatro

direcccedilotildees ontoloacutegicas no texto heideggeriano salientando que eacute o seu

movimento circular a sua ronda que faz com que Heidegger os designe como

die einigen vier

Contudo logo a seguir sugere que Heidegger procura esclarecer o fenoacutemeno

religioso numa perspectiva histoacuterica mostrando a relaccedilatildeo do homem com a

sucessatildeo das diversas hierofanias cada uma das quais representaria um modo

particular e alternativo de desvendamento do ser ou do divino o que eacute

manifestamente deslocar o sentido do texto ldquoem outras palavras a Terra o

Ceacuteu e os Mortais se prefiguram em suas possibilidades proacuteprias em seu dar-

se variaacutevel atraveacutes de um acesso ao mundo (Welteingang) suscitado pela

magia do Serrdquo883

Vicente projecta aqui a sua preocupaccedilatildeo por uma histoacuteria do desvendamento

miacutetico religioso pretendendo mostrar que nessa histoacuteria devemos ldquodiluir a

instacircncia humanardquo e que o homem eacute apenas uma das hierofanias entre outrasldquo

Eacute em vista destas ideias que natildeo podemos coincidir com a actual concepccedilatildeo

heideggeriana enunciada no Das Ding onde satildeo desdobrados em quatro os

factores morfogeneacuteticos instituidores do vir-a-ser mundialhellipComo sabemos a

Terra as aacuteguas e os ceacuteus nem sempre foram tidos como expressotildees fiacutesicas

do natildeo divino mas frequentemente foram considerados como deuses

882

ldquoWir nennen das ereignende Spiegel-Spiel der Einfalt von Erde und Himmel Goumlttlichen und

Sterblichen die Welt Welt west in dem sie weltet Dies sagt Das Welten von Welt ist weder durch

Anderes erklaumlrbar noch aus Anderem ergruumlndbar Dies Unmoumlgliche liegt nicht daran daβ unser

menschliches Denken zu solchem Erklaumlren und Begruumlnden unfaumlhig ist Vielmehr beruht das Unerklaumlrbare

und Unbegruumlndbare des Weltens von Welt darin daβ so etwas wie Ursachen und Gruumlnde dem Welten von

Welt ungemӓβ bleibenldquo D GA 79 19 883

Vicente Ferreira da Silva ldquoO Das Ding de Heidegger e outras Consideraccedilotildeesrdquo (Teologia e Anti-

humanismo) in Dialeacutectica das Consciecircncias e outros ensaios 297

445

plenamente recortados e poderosos e portanto como inclusos na seacuterie dos

divinosrdquo884

Assim para Vicente este esclarecimento da Entbergung miacutetico-religiosa em

das Ding apresenta apenas os poacutelos de uma realidade desvelada por ldquoum

princiacutepio desvelador fundanterdquo ldquoPerguntamo-nos se estas realidades natildeo

representam algo de fundado e desvelado por um princiacutepio desvelante [hellip]rdquo885

sugerindo assim que os mortais as terra e o ceacuteu como sucessatildeo de

hierofanias natildeo poderiam estar no mesmo plano que o Divino que ele

identifica com o ser colocando-o como oculto princiacutepio desvelante que suporta

o proacuteprio processo histoacuterico-temporal do desvelamento

Contudo esta criacutetica de Vicente agrave estrutura quadripartida que suporta a

Entbergung miacutetico-religiosa infringe explicitamente a indicaccedilatildeo dada por

Heidegger para a interpretaccedilatildeo do seu proacuteprio texto recaindo numa leitura

metafiacutesica do mesmo que Heidegger pretende evitar e para cujo risco adverte

explicitamente proibindo que na sua interpretaccedilatildeo se introduza noccedilatildeo de

ldquocausardquo ou de ldquofundamentordquo ldquoOs quatro unidos satildeo logo sufocados no seu ser

quando os representamos como realidades desmembradas que devem ser

fundadas umas sobre as outras e explicadas umas sobre as outrasrdquo886

Natildeo aceitando a estrutura quadripartida do mundo Vicente tambeacutem natildeo pode

aceitar ideia do ldquojogo de reflexos das quatro direcccedilotildees ontoloacutegicasrdquo que suporta

a unidade do mundo propondo em alternativa como modelo essencial para

interpretar a Entbergung miacutetico-religiosa o antagonismo e a litigiosidade

interna inerentes agrave sua tese de uma teomaquia ldquoAfastemos pois a ideia de

um jogo de reflexos de um Spiege-spiel porquanto o processo teogoacutenico natildeo

se reporta senatildeo a si mesmo e agrave sua litigiosidade interna Este antagonismo

interno agrave sequecircncia meta-histoacuterica recebeu tradicionalmente o nome de

ldquoteomaquiardquo luta dos deuses e das dinastias divinas implicando

884

Ibidem 299 885

Ibidem 297 886

ldquoDie einigen Vier sind in ihrem Wesen schon erstickt wenn man sie nur als vereinzeltes Wirkliches

vorstellt das durcheinander begruumlndet und auseinander erklӓrt werden sollrdquo D GA 7919

446

subsequentemente a ideia de um seccionamento dos tempos em

correspondecircncia com o predomiacutenio alternativo das diferentes teofaniasrdquo887

Deste modo Vicente pensa poder interpretar a Entbergung miacutetico-religiosa a

partir da sua essecircncia isto eacute a partir do jogo maacutegico-instituidor das potecircncias

teogoacutenicas e ldquodiluir a instacircncia humana na dramaturgia das forccedilas miacutetico-

cosmogoacutenicasrdquo cortando o passo ao subjectivismo e humanismo que se

insinuam nas interpretaccedilotildees correntes do fenoacutemeno religioso

No entanto em Heidegger e de acordo com a categoria do Ereignis a

instacircncia humana natildeo pode ser diluiacuteda pois nesse acontecimento propiacutecio se

daacute a dupla apropriaccedilatildeo entre o ser e o homem

Relativamente ao lugar do homem Heidegger afirma em Das Ding ldquoSatildeo os

homens como mortais que agrave partida obtecircm o mundo como mundo habitando

nelerdquo888 e em Construir Habitar e Pensar este habitar eacute pensado por

Heidegger como um resguardar da quadratura atraveacutes do cultivar e do edificar

das coisas que eacute capaz da demora junto delas na simplicidade do seu ser

Apontando o construir e o habitar como dignos de ser pensados Heidegger

aponta a cultura como lugar essencial onde se pode abrigar e resguardar o

jogo do mundo e destaca a responsabilidade do homem no ldquosalvar a terrardquo

ldquoaguardar os deusesrdquo e ldquoacolher os ceacuteusrdquo

Assim Heidegger confirma o que jaacute estava dito na Carta sobre o Humanismo

O homem natildeo eacute somente um ente entre os outros entes mas o lugar em que

acontece o ser a verdade e o mundo Heidegger pensa desde o princiacutepio do

seu caminho de meditaccedilatildeo o homem como o aiacute de o ser e faz depender tudo

de reconduzir o homem a esta sua essecircncia eacute isso mesmo que eacute reafirmado

em Das Ding e em Construir Habitar e Pensar

Esta exigecircncia de reconduzir o homem agrave sua essecircncia eacute aqui a necessidade de

o homem se tornar mortal questatildeo fundamental desde Ser e Tempo e que

aqui se vecirc reafirmada - nestes textos agora em anaacutelise a morte torna o homem

no ldquosantuaacuterio do nadardquo no qual pode aparecer o ser ldquoA morte eacute o santuaacuterio do

Nada isto eacute daquilo que em todas as maneiras de ver natildeo eacute jamais um

887

Vicente Ferreira da Silva Teologia e Anti-humanismo in Dialeacutectica das Consciecircncias e outros

ensaios 299 888

ldquoErst die Menschen als die Sterblichen erwohnen Welt als Weltrdquo D GA 79 21

447

simples ente mas que natildeo obstante eacute nomeadamente como o proacuteprio ser A

morte enquanto Santuaacuterio do Nada abriga em si o estar a ser do serrdquo889

Efectivamente afirma Heidegger eacute apenas quando o homem se encontra

como mortal diante do divino que o mundo eacute a distacircncia entre ele e os deuses

distacircncia onde o ser da coisas pode aparecer como um aproximar impondo-

nos a obrigaccedilatildeo de as preservar O Pensar de retorno proposto por Heidegger

eacute assim em primeiro lugar um reassumir da finitude do homem que reconhece

destinado agrave morte ldquoQuando e como as coisas vecircm a noacutes como coisas Elas

natildeo vecircm pelas maquinaccedilotildees dos mortais Mas tambeacutem natildeo vecircm elas sem a

vigilacircncia dos mortais O primeiro passo para tal vigilacircncia eacute o passo de

retorno do pensar que apenas representa isto eacute explica no soacute pensar que

lembrardquo890

Para Vicente poreacutem que como atraacutes indicamos passou inteiramente ao lado

da categoria de Ereignis o desvendamento religioso implica o apagamento do

homem diante da fascinaccedilatildeo do numinoso ldquoa vida humana eacute um minus em

relaccedilatildeo ao plus da prodigiosa vida dos deusesrdquo e em uacuteltima anaacutelise a

centralidade do Homem na totalidade do cosmos eacute histoacuterica e derivada pois

tambeacutem o ceacuteu e a terra jaacute foram hierofanias centrais ligadas agrave genealogia dos

deuses

Comentando noutro texto a afirmaccedilatildeo de Heidegger de que o homem eacute o

ldquopastor do serrdquo Vicente afirma mostrando correctamente que na Carta sobre o

Humanismo a iniciativa pertence ao ser e natildeo ao homem ldquoAfirmando que noacutes

homens somos pastores do ser e natildeo seus senhores Heidegger aponta para o

facto de que somos e realizamos na vida um papel consignado e outorgado a

noacutes por uma Potecircncia superior As possibilidades que vamos realizando

atraveacutes da vida e do tempo atraveacutes da histoacuteria nos satildeo conferidas por um

poder trans-humano que eacute uma autecircntica Officina Libertatis891

889

ldquoDer Tod ist der Schrein des Nichts dessen naumlmlich was in aller Hinsicht niemals etwas bloszlig

Seiendes ist was aber gleichwohl west naumlmlich als das Sein selbst Der Tod als der Schrein des Nichts

birgt in sich das Wesende des Seinsrdquo D GA 79 18 890

ldquoWann und wie kommen Dinge als Dinge Sie kommen nicht durch die Machenschaften des

Menschen Sie kommen aber auch nicht ohne die Wachsamkeit der Sterblichen Der erste Schritt zu

solcher Wachsamkeit ist der Schritt zuruumlck aus dem nur vorstellenden d h erklaumlrenden Denken in das

andenkende Denkenrdquo D GA 79 20 891

Vicente Ferreira da Silva rdquoOs Pastores do Serrdquo Diaacutelogo nordm 2 1955 in Dialeacutectica das Consciecircncias e

outros ensaios 387

448

No entanto logo a seguir acrescenta indo mais longe e num outro sentido ldquoO

homem entretanto natildeo condensa em si o tesouro do Ser o eu humano natildeo

representa a figura definitiva da histoacuteria e o seu remate final como queria

Hegel [] Aqui o ser eacute excecircntrico e superabundante em relaccedilatildeo ao homem a

sua potecircncia morfogeneacutetica excedendo de muito o protagonista temporal

hominiacutedeo Antes do homem e depois do homem outros sonhos e imagens

vitais ocuparam e ocuparatildeo o foco histoacuterico e outros mitos aleacutem do

humaniacutestico poderatildeo desfilar pela fresta iluminada da presenccedila do tempordquo892

A dependecircncia do Homem em relaccedilatildeo ao processo transcendente epocal e agrave

potecircncia instituidora do ser eacute a sua inanidade diante da litigiosidade interna aos

vaacuterios princiacutepios divinos Eacute nesta meta-histoacuteria entendida como a histoacuteria da

sucessatildeo das teogonias que a histoacuteria humana se insere como epifenoacutemeno

ou como forma particular e temporalmente circunscrita de hierofania De facto

para Vicente antes desse advento da histoacuteria humana como manifestaccedilatildeo do

divino as potecircncias divinas manifestavam-se nos elementos como a aacutegua ou a

terra engendrando uma talassocracia ou uma geocracia e conferindo agrave

totalidade do cosmos vida e espiritualidade

Assim ele iraacute interpretar o passo atraacutes (der Schritt zuruumlck) preconizado por

Heidegger como um caminhar em direcccedilatildeo a um pensar rememorante como

uma viragem relativamente agrave histoacuteria das religiotildees e o regresso a uma outra

Entbergung miacutetico-religiosa em que o divino natildeo se revelava na interioridade

do homem mas vinha ao homem a partir do mundo

O sentido dessa Entbrergung miacuteticondashreligiosa que Vicente pretende recuperar

pode ser melhor compreendido se tivermos em conta que Walter Otto autor

que muito influenciou Vicente caracterizava a religiatildeo grega como estando em

total contradiccedilatildeo com as representaccedilotildees que nos satildeo familiares centradas

numa revelaccedilatildeo interior do divino Para o homem grego ldquoA divindade [hellip] eacute una

com o mundo e vem confrontar-se com o homem a partir das coisas do mundo

quando ele estaacute no caminho e toma parte na sua vida movimentada Atraveacutes

dum caminhar em direcccedilatildeo agrave interioridade natildeo pode conhececirc-la mas apenas

num ir em direcccedilatildeo ao exterior tomar partido e agirrdquo893

892

Ibidem 387388 893

ldquoDie Gottheit [hellip] ist eins mit der Welt und kommt dem Menschen aus den Dingen der Welt

entgegnen wenn er auf dem Weg ist und an ihrem bewegten Leben teilnimmt Nicht durch Insichgehen

erfӓhrt er von ihr sondern durch Hinausgehen Ergreifen und Handelnrdquo Walter Otto Die Goumltter

449

3 5 O projecto lanccedilado e a recusa projectante

O enfrentamento desconstrutivo com o cristianismo vai aparecer pois a

Vicente como uma tarefa central a partir da qual podemos aceder a esse

sentimento do divino proacuteprio do paganismo preacute-cristatildeo Na perspectiva de

Vicente o cristianismo ao mesmo tempo que declara meros iacutedolos os deuses

antigos instaura uma nova abertura de mundo outorgando ao homem a

liberdade em relaccedilatildeo a toda a conexatildeo exterior e declarando-o vencedor em

relaccedilatildeo ao mundo

Esta exaltaccedilatildeo do homem decorre da humanizaccedilatildeo do divino processo que

segundo Vicente jaacute teria sido iniciado nas religiotildees anteriores ao cristianismo

com divindades como Dioniacutesio Aacutetis e Mitra mas de que Cristo seria o

momento culminante tese que Vicente encontra confirmada na interpretaccedilatildeo

hegeliana do significado histoacuterico do cristianismo ldquoEm Cristo como afirma

Hegel laquoa natureza divina se identifica com a natureza humana e esta unidade

vem dada na intuiccedilatildeoraquo Antes o divino estava disperso nas potecircncias natildeo

humanas nos mares nas montanhas nos bosques nos ceacuteus era excecircntrico

ao modo de ser representado pela consciecircncia de nossa espeacutecie Agora o

divino se concentra na figura humana soacute o homem eacute herdeiro do reino dos

ceacuteusrdquo894

O Cristianismo opera pois uma dessacralizaccedilatildeo da natureza em proveito do

homem cuja soberania legitima e proclama ao suprimir a ldquoconexatildeo coacutesmico-

maacutegico-divinardquo o cristianismo traccedilou o projecto da natureza como espaccedilo

neutro e cenaacuterio da aventura histoacuterica do homem e abriu a possibilidade de ela

ser pensada como mateacuteria disponiacutevel para o empreendimento da teacutecnica ldquoO

mundo passou a ser vivido como um cenaacuterio neutro onde deveria se

desenrolar o drama subjectivo espiritual da criatura finita laquoLe grand Patilde est

mortraquo Aqui estaacute a origem da ideia de natureza tal qual a vivemos e

percebemos isto eacute como um conjunto de manifestaccedilotildees destituiacutedas de

qualquer interioridade ou animaccedilatildeordquo895

Griechenlands - das Bild des Goumlttlichen im Spiegel des griechischen Geistes [1929] Frankfurt am Main

2002 224 894

Vicente Ferreira da Silva Teologia e Anti-Humanismo in Dialeacutectica das Consciecircncias e outros

ensaios 306 895

Ibidem 308

450

Assim a matriz fundamental do humanismo eacute o distanciamento dos deuses

em que acreditavam as religiotildees politeiacutestas da antiguidade e ainda e

simultaneamente negaccedilatildeo e superaccedilatildeo da natureza enquanto manifestaccedilatildeo do

divino a antropofania eacute uma teocriptia e esta morte dos deuses inscrita na

matriz fundamental do cristianismo comandaraacute todo o devir histoacuterico e o

desenrolar das possibilidades nela contidas contaminando todas as

realizaccedilotildees da civilizaccedilatildeo ocidental com um sabor de morte e aniquilamento896

Esta negatividade inscrita na matriz do cristianismo eacute para Vicente uma

questatildeo central pois permite caracterizaacute-lo natildeo como um momento positivo da

marcha do Espiacuterito em direcccedilatildeo agrave consciecircncia de si como fizera Hegel mas

pelo contraacuterio como assinalando a viragem histoacuterica que anuncia a decadecircncia

do Ocidente e a marcha do niilismo ldquoO cristianismo e a histoacuteria ocidental cristatilde

que eacute sua decorrecircncia satildeo um grande Natildeo anteposto ao antigo enunciado

pletoacuterico da vida e um Nada crescente a essa aacutervore da alegria e da inocecircncia

[] todas as formas de comportamento finalidades virtudes e ideias

conhecimentos instituiccedilotildees do ciclo humaniacutestico e antropocecircntrico interpretam

como queria Nietzsche o preamar do niilismordquo897

Para Vicente Ferreira da Silva ldquoa operaccedilatildeo fundamental do homem eacute a

negaccedilatildeo de um fundamento Eacute a anulaccedilatildeo e a morte de Panrdquo898 Contudo esta

negaccedilatildeo eacute uma negaccedilatildeo projectante isto eacute uma negaccedilatildeo que projecta um

mundo histoacuterico como o desenrolar de todas as possibilidades contidas na

afirmaccedilatildeo do homem - este ldquonatildeordquo que o cristianismo opocircs ao paganismo

conteacutem simultaneamente o descerrar de um novo mundo histoacuterico com as

realizaccedilotildees proacuteprias da parusia humana e do seu ideal de crescente exaltaccedilatildeo

e dominaccedilatildeo do homem que encontramos pensados nas filosofias iluministas

e positivistas da histoacuteria

A possibilidade de pensar uma negatividade dinacircmica operando como suporte

da afirmaccedilatildeo dum mundo histoacuterico e do desenrolar das suas possibilidades

proacuteprias vai ser encontrada por Vicente Ferreira da Silva numa reformulaccedilatildeo do

conceito heideggeriano de projecto lanccedilado (geworfene Entwurf)

896

Vicente Ferreira da Silva ldquoIntroduccedilatildeo agrave filosofia da Mitologiardquo in Dialeacutectica das Consciecircncias e

outros ensaios 383 897

Vicente Ferreira da Silva ldquoHermenecircutica da Eacutepoca Humanardquo Revista Brasileira de Filosofia nordm 18

1955 in Dialeacutectica das Consciecircncias e outros ensaios 360 898

Ibidem 358

451

Este conceito fora apresentado na analiacutetica existencial de Ser e Tempo em

conexatildeo com a unidade da temporalidade extaacutetica (estando o Dasein jaacute sempre

lanccedilado no mundo eacute a partir desse jaacute ter sido lanccedilado que ele pode apropriar-

se das suas proacuteprias possibilidades e projectar-se em direcccedilatildeo ao futuro) e

depois foi retomado e repensado pelo segundo Heidegger enquanto

lanccedilamento a partir do Ser

A referecircncia de Vicente eacute a noccedilatildeo de projecccedilatildeo desenvolvida por Heidegger

em Vom Wesen des Grundes Aiacute afirma Heidegger ldquoNo fundar instituidor como

projecto das possibilidades de si mesmo eacute que radica poreacutem o facto de o

Dasein sempre se ultrapassar O projecto de possibilidades eacute segundo a sua

essecircncia sempre mais rico que a posse jaacute depositada em quem projecta Mas

semelhante posse eacute proacutepria do Dasein porque ele como aquele que projecta

se encontra no meio do ente Deste modo se encontram jaacute subtraiacutedas ao

Dasein outras possibilidades determinadas ndash e decerto simplesmente em

virtude da sua proacutepria facticidaderdquo899

Vicente sublinha que implicada nessa noccedilatildeo heideggeriana de projecccedilatildeo estaacute

sempre simultaneamente a ideia de supressatildeo e negaccedilatildeo inerentes ao

oferecimento de novas possibilidades ou seja a ideia de que desvendamento

e ocultaccedilatildeo se implicam reciprocamente

Por conseguinte afirma Vicente podemos inverter a ordem dos termos e falar

do projecto lanccedilado como uma ldquorecusa projectanterdquo ldquoTodo o projecto eacute

portanto um projecto-recusante desde que a abertura do ente eacute concomitante

ao fechamento e agrave ocultaccedilatildeo de outras aacutereas revelaacuteveis Trata-se agora

entretanto de aventurar a ideia inversa isto eacute de saber se ao lado de um

projecto-recusante natildeo se poderia dar uma recusa projectante ou ainda uma

abstenccedilatildeo que pusesse a descoberto uma esfera do manifestaacutevelrdquo900

Em conformidade com este conceito de ldquorecusa projectanterdquo Vicente defende

que com a recusa dos deuses e a dessacralizaccedilatildeo da natureza se lanccedila

simultaneamente o projecto do primado da histoacuteria e da dominaccedilatildeo teacutecnica das

899

bdquoIm stiftenden Gruumlnden als dem Entwurf von Moumlglichkeit seiner selbst liegt nun aber daβ sich das

Dasein darin jeweils uumlberschwingt Der Entwurf von Moumlglichkeiten ist seinem Wesen nach jeweils

reicher als der im Entwerfenden schon ruhende Besitz Ein solcher eignet aber dem Dasein weil es als

entwerfendes sich inmitten von Seienden befindet Damit sind dem Dasein bereits bestimmte andere

Moumlglichkeiten ndash und zwar lediglich durch seine eigene Faktizitӓt - entzogenrdquo VWG GA 9 167 900

Vicente Ferreira da Silva ldquoHermenecircutica da Eacutepoca Humanardquo in Dialeacutectica das Consciecircncias e outros

ensaios 358

452

coisas pondo-se a descoberto o mundo como mateacuteria disponiacutevel ou objecto da

maquinaccedilatildeo humana Eacute esta recusa projectante (isto eacute a recusa do deuses do

paganismo) subjacente ao processo histoacuterico que impulsiona a dinacircmica niilista

expansiva inscrita na matriz do cristianismo conduzindo agrave inevitaacutevel conversatildeo

de toda a realidade em objecto de manipulaccedilatildeo e caacutelculo onde nem mesmo o

Deus cristatildeo tem qualquer lugar ldquoO homem cristatildeo encontra as coisas no

processo de sua realizaccedilatildeo histoacuterico-activa e quando essa realizaccedilatildeo assume

como assumiu em nossos dias a opulecircncia de um empreendimento universal e

sobrecolhedor entatildeo a totalidade do real eacute representada como simples material

utilizaacutevelrdquo901

Em Teologia e Anti-humanismo Vicente refere ainda a este conceito de ldquorecusa

projectanterdquo o tema houmllderliniano da Gottesnacht como um refluxo progressivo

da experiecircncia do sagrado que vai pondo a descoberto a histoacuteria como

antropofania ldquoSe o testemunho histoacuterico nos informa que a seacuterie cristotroacutepica

se debruccedilou sobre o mundo precisamente no instante em que nas palavras de

Houmllderlin ldquoDer Vater gewand seine Augen von den Menschenrdquo natildeo seria

temeraacuterio mas sim especultativamente legiacutetimo considerar estas figuras como

o proacuteprio acto do refluxo divino A forccedila declinante dos antigos princiacutepios

hierocraacuteticos suscitou a corrente ldquoinduzidardquo das formas soterioloacutegicas O vazio

produzido por aquele afastamento revestiu no processo da Imaginatio Divina o

aspecto da dramaacutetica cristatilderdquo902

Como eacute sabido a temaacutetica do afastamento dos deuses eacute central na poesia de

Houmllderlin e esse afastamento eacute conotado com o afastamento do mundo grego

dos deuses e duma vivecircncia panteiacutesta da natureza temaacutetica que constitui o

nuacutecleo central de muitos poemas assim como do romance Hyperion Este

afastamento teria sido uma misteriosa iniciativa dos proacuteprios deuses que

deixou a modernidade mergulhada nesse vazio que ele classifica como ldquonoite

dos deusesrdquo

No entanto este afastamento dos deuses claacutessicos natildeo aparece nunca em

Houmllderlin ou em Heidegger como instituidor do cristianismo Mesmo em

Germanian e Der Rhein onde alguns criacuteticos vecircm o regresso agrave temaacutetica do

monoteiacutesmo cristatildeo natildeo eacute estabelecida por Houmllderlin ou pelo comentaacuterio a

901

Vicente Ferreira da Silva Teologia e Anti-Humanismo in Dialeacutectica das Consciecircncias e outros

ensaios 310 902

Ibidem 312313

453

estes poemas feitos por Heidegger em Houmllderlins Hymnen nenhuma conexatildeo

de natureza causal entre o refluxo do sagrado inerente agrave religiatildeo dos gregos e

a emergecircncia do cristianismo

O anuacutencio da viragem para um novo sentimento do sagrado ou para um novo

destino histoacuterico eacute mostrado por Heidegger em Houmllderlins Hymnen a partir da

metaacutefora da viragem na direcccedilatildeo do curso do proacuteprio rio Reno metaacutefora que

elucida a afirmaccedilatildeo de Heidegger de que as mutaccedilotildees histoacutericas do sentido do

ser e da verdade repousam na obscuridade insondaacutevel da histoacuteria do ser

Contudo para Vicente foi a recusa daquela divinizaccedilatildeo da natureza inerente

aos mitos preacute-cristatildeos que projectou o mundo da parusia humana e a sua

poesia fundante da dramaturgia cristatilde903 Esta recusa e negatividade que

Vicente interpreta como o conteuacutedo essencial da matriz cristatilde do humanismo

moderno fazem do desenrolar histoacuterico das possibilidades contidas nesta

matriz um movimento de destruiccedilatildeo do mundo das imagens continuamente

negado pela subjectividade consciente de si que se afirma como Espiacuterito um

movimento niilista de contiacutenua negaccedilatildeo do mundo fantaacutestico das potecircncias

divinas que culmina na reduccedilatildeo da natureza a um mero objecto de

conhecimento e manipulaccedilatildeo904

Para Vicente este esquecimento do ser ou do Divino que constitui o nuacutecleo da

fascinaccedilatildeo meta-histoacuterica do cristianismo eacute-nos oferecido como primado do

logos humano isto eacute como primado do Cogito como algo de irredutiacutevel e uacuteltimo

fundamento de todas as coisas Esse Ego Cogito seraacute pensado pelo idealismo

como acto puro instaurador de mundos para o qual qualquer estar aiacute natural eacute

mero ponto de partida para uma acccedilatildeo transformadora

Hegel representa a maacutexima consecuccedilatildeo do pensamento filosoacutefico de matriz

cristatilde e antropocecircntrica com a sua afirmaccedilatildeo de que o Absoluto eacute Sujeito e de

que essa subjectividade absoluta se realiza na histoacuteria da humanidade ldquoO

Idealismo encontra nestas asserccedilotildees a sua definiccedilatildeo e o seu limite Afirmando

que o Absoluto e o Ser se confundem com a subjectividade do Sujeito o

903

ldquoO que o Cristianismo ofereceu ao homem e como homem foi o oco de uma ausecircncia foi o natildeo-ser-

mais militante e agressivo do mundo das imagens das teofanias anterioreshellip esta ausecircncia ou criptus natildeo

foi posta agrave disposiccedilatildeo de um homem jaacute constituiacutedo mas constituiu o homem dando-lhe o seu espaccedilo de

movimento proacutepriordquo Vicente Ferreira da Silva ldquoHermenecircutica da Eacutepoca Humanardquo in Dialeacutectica das

Consciecircncias e outros ensaios 357 904

ldquoA Matriz do homem eacute o distanciamento dos deuses enquanto operaccedilatildeo histoacuterica negatividade e

superaccedilatildeo da natureza Dessa matriz recebemos as nossas oportunidades todas elas com um sabor de

morte e de aniquilamentoldquo Ibidem 357-358

454

Idealismo identificou o Ser com o Ente ou melhor pensou o ser a partir do

monograma do ente Este esquecimento da diferenccedila entre o ser e ente que

se daacute na substituiccedilatildeo de um pelo outro constitui um mal-entendido

fundamental que condicionou todo o destino da metafiacutesica ocidentalrdquo905

Assim este conceito de ldquorecusa projectanterdquo permitiraacute a Vicente defender natildeo

soacute que a metafiacutesica da subjectividade se encontra jaacute lanccedilada no mitologema

cristatildeo como ainda que foi o mitologema cristatildeo o responsaacutevel pelo

esquecimento do ser

Foram os deuses ausentes no seu retirar-se que abriram caminho para a

contra-afirmaccedilatildeo do homem foi este silecircncio dos deuses ou a

Gottesentfernung que Vicente traduz metaforicamente com a expressatildeo do

ldquorefluxo das aacuteguas de Poseidonrdquo que abriu caminho ao desenrolar do

irresistiacutevel do poder fascinante da linguagem humana entendida como

linguagem da metafiacutesica da ciecircncia e da teacutecnica

Eacute a forccedila maacutegica instituinte da noite dos deuses que funda a luz do homem e

alimenta a dinacircmica expansiva desta nova luz e a metafiacutesica da subjectividade

ou primado da ciecircncia e da teacutecnica modernas satildeo apenas o desenrolar das

possibilidades jaacute consignadas por esse foco projectante inicial

Em coerecircncia com esta interpretaccedilatildeo Vicente identifica todo tempo histoacuterico da

vigecircncia do cristianismo na civilizaccedilatildeo ocidental como a expressatildeo Duumlrftiger

Zeit o tempo da indigecircncia e do desamparo um lapso de tempo marcada pela

elisatildeo do sagrado que Heidegger reservava no entanto para a eacutepoca

contemporacircnea ldquoHoumllderlin cunhou uma expressatildeo excelente para designar o

eon que se inicia com o plastosteos - Duumlrftiger Zeit ndash tempo de carecircncia

Heidegger define nestes termos o sentido desses lapsos temporais ldquoes ist die

Zeit der entflohenen Goumltter und des kommenden Goumlttes Das ist die duumlrftiger

Zeit weil sie in einem gedoppelten Mangel und Nicht steht im Nichtmehr der

entflohenen Goumltter und im Nochnicht des Kommendenrdquo (Eacute o tempo dos deuses

em fuga e dos deuses por vir Este eacute o tempo de carecircncia porquanto padece e

905

Vicente Ferreira da Silva ldquoO Homem e a sua Proveniecircnciardquo in Dialeacutectica das Consciecircncias e outros

ensaios 344

455

uma dupla privaccedilatildeo o natildeo-mais dos deuses em fuga e o natildeo-ainda dos deuses

por vir)rdquo906

Vicente tem consciecircncia da ambiguidade e do paradoxo inerente a esta

identificaccedilatildeo do vigorar histoacuterico-mundial duma religiatildeo como eacutepoca de elisatildeo

do sagrado considerando no entanto este paradoxo inerente ao proacuteprio

cristianismo e agrave recusa projectante que o instituiu ldquoO sentido epocal do

cristianismo reflecte essa ambiguidade essencial em que o deserto exacircnime da

vida vem celebrado como a sua mais exuberante floraccedilatildeordquo907

Poreacutem com esta tese de uma recusa projectante Vicente afasta-se da

concepccedilatildeo heideggeriana da histoacuteria e aproxima-se de Eudoro de Sousa para

quem a recusa do mito projectou a histoacuteria humana e incessantemente a

alimenta como seu oculto motor

Para Eudoro esta recusa que historicamente se instaurou com o chamado

ldquomilagre gregordquo inscreve-se na essecircncia do homem como uma permanente

possibilidade ou ldquotentaccedilatildeo dia-boacutelica ldquoO homem eacute o animal que se recusa a

aceitar o que gratuitamente lhe deram e gratuitamente lhe datildeordquo908 Eacute esta

pulsatildeo para a recusa e a negaccedilatildeo que explica a incessante

construccedilatildeodestruiccedilatildeo em que consiste toda a histoacuteria humana ldquoNatildeo sei de

coisa que se faccedila sem que outras coisas se desfaccedilam natildeo sei de construccedilatildeo

que natildeo suceda agrave destruiccedilatildeo Eacute certo que o presente se vinga do passado

como o futuro se vingaraacute do presente o presente destruindo o que no passado

se fez e o futuro destruindo o que no presente se fazrdquo909

Este tese de uma recusa imanente agrave histoacuteria contraria na realidade a noccedilatildeo

heideggeriana de ldquoprojecto lanccediladordquo este fundamenta-se na estrutura

horizontal extaacutetica da temporalidade e mostra-nos a dinacircmica da autogestaccedilatildeo

da existecircncia a partir de si mesma Para Heidegger todo o mundo

propriamente histoacuterico se fundamenta no movimento projectivo pelo qual o

Dasein se apropria positivamente das suas proacuteprias possibilidades mantendo-

se vinculado ao passado a partir do qual ele estaacute essencialmente destinado

906

Vicente Ferreira da Silva Teologia e Anti-Humanismo in Dialeacutectica das Consciecircncias e outros

ensaios 313 907

Ibidem 314 908

Eudoro de Sousa Mitologia Histoacuteria e Mito 27 909

Ibidem 28

456

O conceito de projecto lanccedilado permite pensar a histoacuteria agrave margem das

concepccedilotildees iluministas e positivistas que a pensam como um movimento de

sucessivas rupturas com o passado interpretando-a pelo contraacuterio como o

movimento de auto-transmissatildeo da tradiccedilatildeo o que aliaacutes Vicente compreendia

correctamente com a sua leitura do homem como ldquoexistecircncia insistenterdquo jaacute

referida

No entanto ao colocar a ldquorecusa projectanterdquo como modelo de inteligibilidade

da histoacuteria do Ocidente cristatildeo ele mostra a civilizaccedilatildeo ocidental como

internamente animada pela recusa e pela negaccedilatildeo do jaacute instituiacutedo isto eacute pela

recusa de todo o dado sob a forma de objecto natural ou cultural e portanto

como essencialmente contraacuteria ao ldquomundo tradicionalrdquo de outras civilizaccedilotildees

A negatividade pensada em Eudoro de Sousa como impulso ldquodiaboacutelicordquo

constitutivo do ser-homem e triunfante desde ldquoo milagre gregordquo e em

Vicente como constitutiva da antropofania cristatilde alimenta segundo estes

autores uma dinacircmica destrutiva de toda a vinculaccedilatildeo agrave natureza permitindo

pensar a histoacuteria do Ocidente como o desenrolar do niilismo

Contudo ao definir ldquoa recusardquo como conceito estruturante da sua visatildeo da

histoacuteria ocidental estes autores mantecircm-se no mesmo acircmbito dum pensar da

histoacuteria como um processo de contiacutenuas rupturas e negaccedilotildees proacuteprio das

filosofias do progresso limitando-se a fazer a inversatildeo da avaliaccedilatildeo do sentido

dessas rupturas

Eles invertem a avaliaccedilatildeo do sentido dessas rupturas e negaccedilotildees vendo nelas

um contiacutenuo afastamento de uma plenitude originaacuteria e um processo de

decadecircncia jaacute anunciado no mito das 3 idades de Hesiacuteodo910 e tambeacutem no

mito biacuteblico da expulsatildeo do paraiacuteso911 A partir destes modelos912 miacuteticos que

expressamente invocam e reivindicam como modelos capazes de conferir

sentido e inteligibilidade agrave nossa histoacuteria eles contrariam a leitura iluminista e

positivista da histoacuteria como um progresso e um contiacutenuo aperfeiccediloamento -

transformada entre noacutes em ldquoevidecircnciardquo ideoloacutegica largamente dominante

910

Vicente Ferreira da Silva ldquoSobre a Origem e o Fim do Mundordquo Jornal das Letras Abril de 1951 in

Dialeacutectica das Consciecircncias e outros ensaios 328 911

Eudoro de Sousa Mitologia Histoacuteria e Mito 27 912

ldquoToda a sociedade depende ontologicamente de certas representaccedilotildees e esquemas de comportamento

valioso que determinam todo o dinamismo de sua evoluccedilatildeo O valor e o proacuteprio sentido superior de sua

histoacuteria dependem dos ldquomodelosrdquo e princigravepios exemplares nela vigorantesrdquo Vicente Ferreira da Silva

ldquoSobre a Teoria dos Modelosrdquo Revista Brasileira de Filosofia vol III Fasc1 Satildeo Paulo 1953 39

457

Ao mesmo tempo Eudoro e Vicente minam o etnocentrismo e eurocentrismo

largamente instalados e condicionadores da interpretaccedilatildeo das outras religiotildees

e do mundo miacutetico em geral denunciados repetidas vezes por Vicente Ferreira

da Silva como caracteriacutestica fundamental da maior parte dos estudos

etnoloacutegicos913

4 O questionamento da tradiccedilatildeo humanista

4 1 Humanismo e Cristianismo

As dificuldades na enunciaccedilatildeo do tema do humanismo resultam por um lado

da imprecisatildeo das referecircncias histoacutericas914 por outro no caraacutecter vago e

flutuante que o conceito assume nos vaacuterios autores915

A temaacutetica do humanismo eacute analisada por Reneacute Gueacutenon e Julius Evola como

chave hermenecircutica da modernidade cujo traccedilo fundamental seria a

emancipaccedilatildeo do indiviacuteduo relativamente agrave tradiccedilatildeo miacutetico-religiosa e aos

princiacutepios coacutesmico-divinos Assim afirma Gueacutenon em A Crise do Mundo

Moderno ldquoHaacute uma palavra que recebeu honrarias no Renascimento e que

resumia jaacute nessa altura todo o programa da civilizaccedilatildeo moderna eacute a palavra

ldquohumanismordquo Tratava-se com efeito de reduzir tudo a proporccedilotildees puramente

humanas de fazer abstracccedilatildeo de todo o princiacutepio de ordem superior e

poderiacuteamos dizer simbolicamente de se afastar do ceacuteu sob pretexto de

conquistar a terra Os gregos de quem se pretendia seguir o exemplo nunca

913

Cf Vicente Ferreira da Silva ldquoEnzo Paci e o Pensamento Sul-Americanordquo Revista Brasileira de

Filosofia vol V Fasc 2 Satildeo Paulo 1955 288-289 914

Eacute no entanto importante tomar em conta a questatildeo filoloacutegica porque ela remete imediatamente para a

questatildeo central do presente trabalho a origem latina do conceito de humanismo Sobre este ponto cf

Mafalda Blanc em Estudos sobre o Ser Lisboa 1998 ldquoA palavra ldquohumanismordquo deriva dos vocaacutebulos

latinos ldquohumanusrdquo e ldquohumanitasrdquo Este uacuteltimo eacute utilizado sobretudo por Cigravecero em trecircs acepccedilotildees

distintas

1 o viacutenculo que liga o homem aos outros homens (traduz o grego θηιαλζρωπία)

2 as letras e as artes quer dizer a cultura elevada a ideal de vida e de civilizaccedilatildeo e pela qual o

ldquohomo humanusrdquo se distingue do ldquohomo barbarusrdquo

3 a propriedade que define o homem enquanto homem

Hoje a palavra conserva apenas os dois uacuteltimos sentidos Na acepccedilatildeo histoacuterico-cultural ela significa a

tendecircncia proacutepria de algumas eacutepocas do Ocidente para alcanccedilar o padratildeo de humanidade proposto pela

cultura claacutessica atraveacutes da imitaccedilatildeo fiel dos seus modelos Finalmente ela significa tambeacutem a doutrina

filosoacutefica constituigraveda a partir da explicitaccedilatildeo da essecircncia do homemrdquo (Idem ob cit 6162) 915

A originalidade da abordagem de Vicente da temaacutetica do humanismo reside precisamente no facto de

ter ultrapassado este plano conceptual e filosoacutefico e ter procurado para o humanismo uma outra origem

como Miguel Reale sublinha em Estudos de Filosofia Brasileira ldquoO humanismo deixa de ter como base a

subjectividade para ser visto como derivaccedilatildeo da Fonte primeira da realidade oculta agrave filosofia

tradicional pois ldquoo saber da Fonte natildeo eacute um saber feito pelo homem natildeo eacute um querer-saber da criatura

finita natildeo eacute a filosofiardquordquo (Ob cit 202)

458

tinham ido tatildeo longe nesse sentido mesmo na eacutepoca da sua maior decadecircncia

intelectual e pelo menos as preocupaccedilotildees utilitaacuterias nunca tinham entre eles

passado para primeiro plano como isso iria em breve produzir-se entre os

modernos O humanismo era jaacute uma primeira forma do que se tornou o

ldquolaicismo contemporacircneordquo e querendo reconduzir tudo agrave medida do homem

tomado como um fim em si mesmo acabou por se descer degrau em degrau

ao niacutevel do que haacute neste de mais inferior [hellip]rdquo916

Contudo Heidegger na Carta Sobre o Humanismo tem uma interpretaccedilatildeo

muito mais lata do termo humanismo englobando neste conceito vaacuterias

correntes de pensamento e vaacuterias eacutepocas histoacutericas mas fazendo contudo

remontar a Roma o primeiro humanismo ldquoSomente na eacutepoca da repuacuteblica

romana humanitas eacute pela primeira vez expressamente pensada e visada sob

este nome Contrapotildee-se o hommo humanus ao homo barbarus O homo

humanus eacute aqui o romano que eleva e enobrece a virtus romana atraveacutes da

ldquoincorporaccedilatildeordquo da paideia herdada dos gregosrdquo917

Na Carta Sobre o Humanismo aceitando Heidegger que o cristianismo eacute

tambeacutem uma forma de humanismo enquanto visa a salvaccedilatildeo da alma e encara

a histoacuteria como o cenaacuterio dessa salvaccedilatildeo ele afirma que o humanismo cristatildeo

eacute apenas uma variante histoacuterica de uma configuraccedilatildeo mais vasta O

cristianismo eacute humanismo enquanto juntamente com os outros humanismos

determina a humanitas do homo humanos a partir de uma determinada

interpretaccedilatildeo da histoacuteria e do mundo isto eacute do ente na sua totalidade isto eacute na

medida em que assenta numa Metafiacutesica ldquo Toda a determinaccedilatildeo da essecircncia

916

laquoIl y a un mot qui fut mis en honneur agrave la Renaissance et qui reacutesumait par avance tout le programme

de la civilisation moderne ce mot est celui d‟ laquohumanisme raquoIl s‟agissait en effet de tout reacuteduire agrave des

proportions purement humaines de faire abstraction de tout principe d‟ordre supeacuterieur et pourrait-on

dire symboliquement de se deacutetourner du ciel sous preacutetexte de conqueacuterir la terre les Grecs dont on

preacutetendait suivre l‟exemple n‟avaient jamais eacuteteacute aussi loin en ce sens mecircme au temps de leur plus grande

deacutecadence intellectuelle et du moins les preacuteoccupations utilitaires n‟ eacutetaient- elles jamais passeacutees chez

eux au premier plan ainsi que cela devait bientocirct se produire chez les modernes L‟ laquo humanisme raquo c‟eacutetait

deacutejagrave une premiegravere forme de ce qui est devenu le laquolaiumlcismeraquo contemporain et en voulant tout ramener agrave la

mesure de l‟homme pris pour une fin en lui mecircme on a fini par descendre d‟eacutetape en eacutetape au niveau de

ce qu‟il y a en celui-ci de plus infeacuterieur[hellip] laquoReneacute Gueacutenon La Crise du Monde Moderne Paris 1946 26 917

bdquoAusdruumlcklich unter ihrem Namen wird die Humanitas zum ersten Mal bedacht und erstrebt in der Zeit

der roumlmischen Republik Der Homo humanus setzt sich dem Homo barbarus entgegen Der Homo

humanus ist hier der Roumlmer der die roumlmische virtus erhoumlht und sie veredelt durch die bdquoEinverleibungldquo der

von den Griechen uumlbernommenen παηδεία Die Griechen sind die Griechen des Spӓtgriechentums deren

Bildung in den Philosophenschulen gelehrt wurde Sie betrifft die eruditio et institutio in bonas artes Die

so verstandene παηδεία wird durch bdquohumanitasldquo uumlbersetzt Die eigentliche romanitas des homo romanus

besteht in solcher humanitas In Rom begegnen wir dem ersten Humanismus Er bleibt daher im Wesen

eine spezifisch roumlmische Erscheinung die aus der Begegnung des Roumlmertums mit der Bildung des spaumlten

Griechentums entspringtldquo Buh GA 9 320

459

do homem que jaacute pressupotildee a interpretaccedilatildeo do ente sem a questatildeo da

verdade do ser e o faz sabendo ou natildeo sabendo eacute Metafiacutesicardquo918

Assim Heidegger defende inequivocamente a tese de que humanismo e

Metafiacutesica satildeo o mesmo sendo sua caracteriacutestica a incapacidade de

questionar a relaccedilatildeo do ser com o ser humano por natildeo conhececirc-la nem poder

compreendecirc-la natildeo estando o humanismo essencialmente vinculado a

nenhuma hierofania ou religiatildeo particular mas sim a uma posiccedilatildeo do homem

no meio do ente imposta pela mutaccedilatildeo histoacuterica do sentido do ser e da

verdade do que aliaacutes Vicente estava completamente ciente como podemos

concluir logo das primeiras paacuteginas de Ideias para um Novo Conceito do

Homem

Vicente mostra que Heidegger sublinha que a tradiccedilatildeo metafiacutesica

compreendeu o homem como um ente a partir de um conjunto de

representaccedilotildees que natildeo eram suficientemente radicais e preacutevias mas

pressupunham uma representaccedilatildeo metafiacutesica da natureza da histoacuteria e do

ente em geral fundada no esquecimento do ser Assim para Heidegger o que

caracteriza toda a tradiccedilatildeo humaniacutestica eacute o facto de ela determinar a essecircncia

do homem no acircmbito da Metafiacutesica sem pocircr a questatildeo da verdade do ser

Em Teologia e Anti-humanismo Vicente reafirma que com Heidegger haveria

assim simultaneamente a possibilidade de relativizarmos a tradiccedilatildeo

humanista pensando-a como uma etapa dum ldquoprocesso trascendente-epocalrdquo

e de repensarmos a essecircncia do homem agrave margem dessa tradiccedilatildeo como

ldquohabitar ek-staacuteticordquo na proximidade do ser

ldquo Quando este uacuteltimo afirma que a essecircncia do homem consiste na ek-sistecircncia

e que esta por sua vez consiste no habitar ek-staacutetico na proximidade do Ser

assinala uma dependecircncia do homem em relaccedilatildeo a um processo

transcedentendashepocal Eis porque Heidegger defende um novo humanismo em

que natildeo eacute mais o homem que estaria em jogo mas a figura histoacuterica do homem

- as modalidades temporais do seu ser ndash em sua proveniecircncia a partir da

potecircncia instituidora do Serrdquo919

918

bdquoJede Bestimmung des Wesens des Menschen die schon die Auslegung des Seienden ohne die Frage

nach der Wahrheit des Seins voraussetzt sei es mit Wissen sei es ohne Wissen ist metaphysischldquo Buh

GA 9 321 919

Vicente Ferreira da Silva Teologia e Anti-humanismo in Dialeacutectica das Consciecircncias e outros

ensaios 294

460

Para Vicente como para Gueacutenon e Evola o humanismo eacute a chave

hermenecircutica da modernidade mas eacute ainda uma figura histoacuterica destinada pela

potecircncia instituidora do ser que como acima vimos ele considera a origem dos

diversos regimes de fascinaccedilatildeo inerentes agraves vaacuterias mitologias

Eacute por conseguinte no ldquomitologema cristatildeordquo que ele vecirc a origem do

humanismo Para Vicente o cristianismo projectou ldquoa luz do homemrdquo na

medida em que Cristo eacute o Deus que se fez homem e o homem eacute assim

instituiacutedo como a uacutenica hierofania Em Teologia e Anti-humanismo Vicente

afirma ldquoA religiatildeo cristatilde representa a culminacircncia de um processo de

humanizaccedilatildeo do divino com a consequecircncia que o extra-humano foi

gradativamente banido do cenaacuterio mundial agrave medida que as instituiccedilotildees e

paixotildees despertadas pela revelaccedilatildeo evangeacutelica se apropriavam do curso das

coisas Como resultado dos impulsos inerentes agrave mensagem cristatilde o homem

se constitui como valiosidade em si e por sirdquo920

Esta desdivinizaccedilatildeo [Entgoumltterung] do mundo inerente agrave afirmaccedilatildeo da parusia

do Homem eacute para Vicente a questatildeo central que permite compreender a

essecircncia do humanismo Este termo (desdivinizaccedilatildeo do mundo) eacute usado por

Heidegger nos Holzwege para pensar a mudanccedila radical no modo de conceber

o mundo dada com o cristianismo ldquoA desdivinizaccedilatildeo eacute o duacuteplice processo de

por um lado a imagem do mundo se cristianizar na medida em que o

fundamento do mundo eacute estabelecido como o infinito o incondicionado o

absoluto e por outro lado o cristianismo transformar a sua cristianidade numa

mundividecircncia (a mundividecircncia cristatilde) e deste modo se modernizarrdquo921

Esta Entgoumltterung922 termo repetidamente usado por Vicente eacute contudo

pensada num sentido natildeo inteiramente coincidente com o que aqui lhe eacute dado

por Heidegger com este termo Heidegger designa em O Tempo da Imagem do

Mundo a mutaccedilatildeo da significaccedilatildeo de ldquoMundordquo pelo qual ele perde a

sacralidade e a significaccedilatildeo ontoloacutegica de fundamento convertendo-se em algo

fundado podendo vir a ser pensado como algo posto pela subjectividade

humana e assim convertido em representaccedilatildeo Heidegger tem assim em vista

920

Ibidem 303 921

ldquoEntgoumltterung ist der doppelseitige Vorgang dass einmal das Weltbild sich verchristlicht insofern der

Weltgrund als das Unendliche das Unbedingte das Absolute angesetzt wird und dass zum anderen das

Christentum seine Christlichkeit zur einer Weltanschauung (der christlichen Weltanschauung) umdeutet

und so sich neuzeitgemaumlszlig machtldquo ZW GA 5 76 922

Cf Vicente Ferreira da Silva ldquoHermenecircutica da Eacutepoca Humanardquo in Dialeacutectica das Consciecircncias e

outros ensaios 359

461

natildeo o cristianismo miacutetico mas a metafiacutesica cristatilde na medida em que preparou

uma viragem para uma metafiacutesica da subjectividade que caracteriza a

modernidade

Em Vicente esta Entgoumltterung designa um acontecimento interior agrave histoacuteria das

religiotildees Trata-se do abandono desse ldquoteatro mundanalrdquo no qual o homem natildeo

tinha uma importacircncia primordial mas em que os deuses ocupavam todo o

cenaacuterio do mundo caracteriacutestico do paganismo ldquoOs deuses ocupando todo o

cenaacuterio do mundo o poacutelo humano tornava-se mera virtualidade continuamente

sopitada pelo pleroma teomoacuterficordquo923 Para Vicente esta Entgoumltterung designa

esse acontecimento histoacuterico no qual negando e excluindo as divindades

pagatildes o cristianismo afirma a parusia do homem contra todo o grande corpo

mitoloacutegico universal condenando-o como erro e supersticcedilatildeo

Trata-se assim para Vicente de pensar essa mudanccedila histoacuterica radical do

sentimento religioso que implicou que o mundo natildeo eacute jaacute uma teofania nem

aparece ao homem como sagrado O ldquomitologemardquo cristatildeo afirma que de agora

em diante Deus soacute se revelaraacute no Homem e na sua histoacuteria e exclui assim a

possibilidade da multiplicidade das hierofanias ou seja que os diversos

elementos coacutesmicos apareccedilam ao homem como revelaccedilotildees do divino ldquoA nossa

civilizaccedilatildeo cristatilde ocidental nascida do ressentimento contra a vida pletoacuterica e

afirmativa contra a afirmaccedilatildeo afrodisiacuteaca da existecircncia eacute a explicitaccedilatildeo

discursiva da Gottesferne eacute o nada crescente dos deuses e nada maisrdquo924

Assim para Vicente como para Evola e Gueacutenon a perda desses princiacutepios

coacutesmicos divinos leva o homem a cair nas ldquomedidas meramente humanasrdquo

queda que caracteriza o humanismo e que dita a inevitaacutevel decadecircncia da

civilizaccedilatildeo ocidental Em A Revolta Contra o Mundo Moderno Julius Evola

caracteriza deste modo os valores heroacuteicos associados aos deuses solares e

oliacutempicos vigentes na cultura greco-romana ldquoNo mundo pagatildeo entretanto o

homem era continuamente conclamado para a reproduccedilatildeo de modelos de

virtude heroacuteico-divinos sendo a aristeia uma forccedila que emanava de cima para

baixo A vida dos deuses confiscava continuamente o estar em si mesmo da

923

Ibidem 355 924

Vicente Ferreira da Silva ldquoCrigravetica do Cristianismordquo Cavalo Azul nordm 8 in Dialeacutectica das Consciecircncias

e outros ensaios 559

462

vida em seu sentido trivial e demasiado humano O mito antigo era a

proposiccedilatildeo de virtudes mais que humanasrdquo925

Para Vicente como para Evola sendo na antiguidade greco-romana o homem

arrebatado pelos modelos heroacuteico-divinos a cultura e a vida eram uma

fenomenizaccedilatildeo do processo mitoloacutegico e o homem um permanente esforccedilo

para se superar a si mesmo Pelo contraacuterio a revelaccedilatildeo evangeacutelica cortou com

esse cacircnones divinos para impor como medida as virtudes horizontais e

ldquomeramente humanasrdquo da mansidatildeo e da caridade que aparecem a estes

autores como antecipadores das democracias e da cultura de massas926

Claramente influenciado ainda por Nietzsche Vicente vecirc no cristianismo uma

inversatildeo da taacutebua de valores das religiotildees pagatildes sobretudo da religiatildeo

homeacuterica que incitava o homem agrave reproduccedilatildeo de modelos heroacuteico-divinos e a

alcanccedilar uma virtude mais que humana pelo contraacuterio o cristianismo proclama

a humildade como norma espiritualmente relevante e proclama a caridade

como amor pelo fraco apresentando-se como uma forccedila descendente

O cristianismo implica tambeacutem para Vicente uma mutaccedilatildeo na concepccedilatildeo do

divino que jaacute natildeo se relaciona mais com o corpo vivo da comunidade nacional e

poliacutetica como os antigos deuses do paganismo greco-romano mas com o

indiviacuteduo e a interioridade apelando agrave descoberta de si mesmo como um puro

eu desconectado da sociedade e da natureza

Para Vicente a hierarquia estabelecida pelas virtudes heroacuteicas e sancionada

pelos deuses da cidade desaparece e o cristianismo instaura a igualdade

horizontal de ldquoum rebanho universal de irmatildeosrdquo ou de uma fraternidade

potencialmente infinita

Em Cristo a verdade tomou forma humana e a substacircncia tornou-se sujeito

como afirmara Hegel mas esta mutaccedilatildeo da verdade eacute para Vicente natildeo um

degrau da marcha do Espiacuterito em direcccedilatildeo agrave absoluta consciecircncia de si e agrave

Liberdade mas sim uma marcha atraacutes e um retrocesso em direcccedilatildeo ao homem

meramente humano927

925

Vicente Ferreira da Silva Teologia e Anti-Humanismo in Dialeacutectica das Consciecircncias e outros

ensaios 303 926

Ibidem 307 927

Ibidem 306

463

O sentido deste retrocesso eacute claramente expresso por Vicente nestes termos

ldquoEste refluxo da substacircncia divina in interiore homine significou evidentemente

a completa desdivinizaccedilatildeo [Entgoumltterung] das outras possibilidades de serrdquo928

Esta imposiccedilatildeo exclusivista da antropofania cristatilde como uacutenica perspectiva e

modo de ser contra o anterior sentimento da polimorfia e da metamorfose do

divino caracteriacutestico do politeiacutesmo significa claramente para Vicente natildeo

apenas a desdivinizaccedilatildeo do mundo como ainda um estreitamento do horizonte

das possibilidades do homem e uma restriccedilatildeo agrave sua liberdade que iraacute culminar

com a imposiccedilatildeo do homem unidimensional da racionalidade teacutecnica929

Para Vicente o humanismo antropocecircntrico que estaacute jaacute lanccedilado no

ldquomitologemardquo fundamental da nossa cultura isto eacute no cristianismo projectou a

actual dominaccedilatildeo teacutecnica do mundo ldquoA religiatildeo cristatilde representa a culminacircncia

de um processo de humanizaccedilatildeo do divino A palavra do Deus-Homem eacute uma

constante promessa de que todas as coisas se submeteratildeo agrave potestade

espiritual do homem e ao seu ceptro inviolaacutevelrdquo930

Assim o pensador brasileiro leva a cabo uma criacutetica contundente agrave tradiccedilatildeo

humaniacutestica partindo do pressuposto de que ela se funda no cristianismo e

negando por conseguinte qualquer possibilidade de superar o ldquohumanismo

antropocecircntricordquo ou a actual eacutepoca da teacutecnica por um apelo ao renascimento de

um cristianismo miacutetico que teria pelo contraacuterio lanccedilado o seu projecto

Parecendo que esta vinculaccedilatildeo entre humanismo e cristianismo se fundamenta

em Heidegger tal aparecircncia natildeo encontra confirmaccedilatildeo nos textos Heidegger

no mesmo ensaio O Tempo da Imagem do Mundo precisando e restringindo o

significado que atribui ao termo ldquohumanismordquo afirma que o humanismo natildeo se

vincula ao cristianismo - mas que pelo contraacuterio aquele soacute foi possiacutevel com a

desvinculaccedilatildeo dos laccedilos que prendiam o homem agrave autoridade da revelaccedilatildeo

sem a qual natildeo seria possiacutevel o estabelecimento do cogito como fundamento

ldquoNatildeo eacute de admirar que soacute onde o mundo se torna imagem surja o humanismo

Mas se natildeo era possiacutevel no grande tempo do mundo do grego qualquer coisa

como uma imagem do mundo entatildeo tambeacutem natildeo podia vigorar um

humanismo Daiacute que este nome no sentido historiograacutefico mais estreito natildeo

seja outra coisa que uma antropologia moral-esteacutetica Este nome natildeo designa

928

Ibidem 308 929

Ibidem 308 930

Ibidem 303

464

aqui uma qualquer investigaccedilatildeo cientiacutefico-natural do homem Tambeacutem natildeo

designa a doutrina estabelecida dentro da teologia cristatilde do homem criado

caiacutedo e salvo O que assinala eacute aquela interpretaccedilatildeo filosoacutefica do homem que

explica e avalia a partir do homem e para o homem o ente na totalidaderdquo931

O Humanismo eacute entendido por Julius Evola e Reneacute Gueacutenon como uma ruptura

com esse mundo da Tradiccedilatildeo e com os seus princiacutepios coacutesmico-divinos Mais

atentos agrave feiccedilatildeo totalmente laica que o humanismo tomara nos paiacuteses fora do

mundo catoacutelico e da contra-reforma Julius Evola e Reneacute Gueacutenon vinculam o

humanismo sobretudo agrave ruptura do homem com a vinculaccedilatildeo agrave autoridade de

toda a tradiccedilatildeo religiosa e natildeo ao cristianismo

Relativamente ao cristianismo Julius Evola eacute cauteloso procurando

demonstrar a complexidade de elementos que estatildeo presente no ldquomitologema

cristatildeordquo ldquoSe no siacutembolo cristatildeo surgem os vestiacutegios dum esquema inspirado

nos antigos misteacuterios com referecircncias ao orfismo e a correntes anaacutelogas eacute

caracteriacutestico da nova religiatildeo que ela utilize este esquema num plano jaacute natildeo

iniciaacutetico mas sim num plano afectivo e no maacuteximo confusamente miacutestico Eacute

por isso de um certo ponto de vista exacto dizer que com o cristianismo Deus

se faz homemrdquo932

Embora reconhecendo na perda deste plano iniciaacutetico por parte do cristianismo

a queda no humano Julius Evola vecirc no cristianismo a presenccedila complexa de

vaacuterios elementos oriundos de vaacuterias tradiccedilotildees religiosas e seraacute sobretudo ao

luteranismo e ao seu incitamento agrave ruptura com a tradiccedilatildeo representada pelo

catolicismo romano (no qual ele ainda vecirc a conservaccedilatildeo dos valores divino-

heroacuteicos do impeacuterio) que atribui a responsabilidade do triunfo total do

humanismo moderno

Mas eacute importante ter em conta que em Portugal e no Brasil o humanismo

nunca adquiriu a feiccedilatildeo laica que teve nos paiacuteses onde o iluminismo se

931

bdquoKein Wunder ist daβ erst dort wo die Welt zum Bild wird der Humanismus heraufkommt Aber

sowenig in der groszligen Zeit des Griechentums dergleichen wie ein Weltbild moumlglich war sowenig konnte

sich damals ein Humanismus zum Geltung bringen Der Humanismus im engeren historischen Sinne ist

daher nichts anderes als eine moralisch-aumlsthetische Anthropologie Dieser Name meint hier nicht

irgendeine naturwissenschaftliche Erforschung des Menschen Er meint auch nicht die innerhalb der

christlichen Theologie festgelegte Lehre vom geschaffenen gefallenen und erloumlsten Menschen Er

bezeichnet jene philosophische Deutung des Menschen die von Menschen aus und auf den Menschen zu

das Seiende im Ganzen erklaumlrt und abschaumltztldquo ZW GA 5 93 (Cf traduccedilatildeo portuguesa Martin

Heidegger ldquoO tempo da imagem do Mundordquo in Caminhos de Floresta coord cientiacutefica de Irene Borges-

Duarte trad Alexandre de Saacute Gulbenkian 2002) 932

Julius Evola A Revolta Contra o Mundo Moderno 370

465

implantou e onde o racionalismo cartesiano ou Kantiano vieram a impor uma

metafiacutesica da subjectividade livre dos viacutenculos agrave autoridade e agrave tradiccedilatildeo

religiosa Esta circunstacircncia histoacuterica marcou decisivamente o questionamento

da tradiccedilatildeo humanista por parte de Vicente Ferreira da Silva

4 2 Apogeu e ocaso da tradiccedilatildeo humaniacutestica

Os ensaios O Ocaso do Pensamento Humaniacutestico e O Homem e a Liberdade

na Tradiccedilatildeo Humanista permitem-nos pensar a relaccedilatildeo de Vicente com o

humanismo enquanto tradiccedilatildeo tema tambeacutem reflectido por Gadamer e Ernesto

Grassi autores que analisaram essa tradiccedilatildeo e dela fizeram uma avaliaccedilatildeo natildeo

coincidente com a de Heidegger

Ernesto Grassi sublinha que Heidegger ao apontar a emergecircncia do termo

ldquohumanismordquo durante a Repuacuteblica Romana onde designava a versatildeo latina da

paideia grega move-se no interior da concepccedilatildeo comum do Humanismo como

um renascimento da cultura grega e um movimento intelectual com importacircncia

filoloacutegica e histoacuterica mas sem significaccedilatildeo filosoacutefica a natildeo ser no plano de

uma antropologia

Grassi salienta ainda que o termo ldquoHumanismordquo na perspectiva de Heidegger

potildee o acento toacutenico no homem como ponto de partida para o filosofar e nessa

medida constitui um entrave a um pensar originaacuterio capaz de responder ao

apelo do ser933

Eacute este mesmo entendimento da tradiccedilatildeo humanista como um antropocentrismo

que Vicente partilha com Heidegger como atraacutes vimos apesar de ter da sua

origem uma outra concepccedilatildeo Contudo Vicente procura conciliar a criacutetica

desse humanismo antropocecircntrico feita por Heidegger com a valorizaccedilatildeo

positiva de Ernesto Grassi ao humanismo italiano934 distinguindo no vigorar

histoacuterico da tradiccedilatildeo humaniacutestica duas eacutepocas inteiramente distintas uma de

apogeu correspondente ao periacuteodo do Renascimento outra de decadecircncia

correspondente agrave eacutepoca contemporacircnea ou eacutepoca do niilismo e da teacutecnica

933

Ernesto Grassi analisa a posiccedilatildeo de Heidegger face ao humanismo num conjunto de ensaios resultantes

de liccedilotildees dadas pelo autor num curso sobre o Humanismo Renascentista no Medieval and Renaissance

Center of Barnard College que aqui satildeo tomadas como referecircncia Cf Ernesto Grassi Heidegger and The

Question of Renaissance Humanism - Four studies New York 1983 934

A obra de Ernesto Grassi referida por Vicente Ferreira da Silva eacute Verteidigung des Individuellen

Lebens (Bern 1946) Cf Vicente Ferreira da Silva ldquoO Homem e a Liberdade na Tradiccedilatildeo Humanigravesticardquo

in Dialeacutectica das Consciecircncias e outros ensaios 453

466

Nesta periodizaccedilatildeo da tradiccedilatildeo humanista natildeo estamos poreacutem apenas

perante duas eacutepocas uma de apogeu outra de decadecircncia mas ainda perante

dois tipos de humanismo radicalmente diferentes fundados em distintas

concepccedilotildees antropoloacutegicas Sob a primeira epiacutegrafe Vicente visa a eacutepoca

actual correspondente agrave eacutepoca da teacutecnica caracterizada pela reduccedilatildeo do

homem a uma consciecircncia trabalhadora e a uma vontade de transformaccedilatildeo do

mundo que jaacute natildeo encontra fora de si qualquer limite expandindo-se agrave escala

planetaacuteria em consonacircncia com a noccedilatildeo heideggeriana de Gestell A este

projecto de dominaccedilatildeo teacutecnica do mundo eacute inerente segundo Vicente uma

nova eacutetica caracterizada pelo predomiacutenio da acccedilatildeo sobre qualquer atitude

contemplativa ldquoCom isto a consciecircncia trabalhadora afirma a sua supremacia

sobre qualquer detenccedilatildeo esteacutetico-passiva no estar-aiacute natural ou sobre

qualquer eacutetica hedonista das nourritures terrestres935

Nesta nova eacutetica Vicente natildeo vecirc nada mais senatildeo a afirmaccedilatildeo duma

antropogeacutenese pelo trabalho econoacutemico que desvaloriza todas as outras

formas de vida como a criaccedilatildeo esteacutetica a vida espiritual e contemplativa ou a

simples capacidade de usufruir da felicidade junto da natureza Esta nova eacutetica

de que o actual ldquopaneconomismordquo se apresentaria como o culminar constitui

para Vicente a negaccedilatildeo dos anseios mais profundos de Liberdade936

Pelo contraacuterio no seu apogeu o humanismo apresentava-se como exaltaccedilatildeo

da Liberdade do Homem Na caracterizaccedilatildeo desse momento positivo da

tradiccedilatildeo humaniacutestica que identifica com o Renascimento Vicente fundamenta-

se na obra de Grassi Verteidigung des individuellen Lebens obra em que este

faz a apologia da concepccedilatildeo renascentista do homem como individualidade

criadora e heroacuteica capaz de se abrir agrave multiplicidade de formas revelaccedilotildees do

real e entregar-se apaixonadamente ao ldquopocircr-se-em-obra da verdaderdquo atraveacutes

de diferentes tipos de actividade humana desde a poliacutetica agrave poesia e agrave arte

Sublinhando a contradiccedilatildeo entre as concepccedilotildees antropoloacutegicas subjacentes a

esses dois periacuteodos da tradiccedilatildeo humanista Vicente identifica como

935

Vicente Ferreira da Silva ldquoO Ocaso do Pensamento Humanigravesticordquo Diaacutelogo nordm 131960 in Dialeacutectica

das Consciecircncias e outros ensaios Lisboa Imprensa Nacional-Casa da Moeda 2002 449 936

Cf Vicente Ferreira da Silva ldquoO Homem e a Liberdade na Tradiccedilatildeo Humanigravesticardquo Revista Brasileira

de Filosofia nordm 41 1961 in Dialeacutectica das Consciecircncias e outros ensaios 456

467

caracteriacutestica do humanismo renascentista a concepccedilatildeo do homem como

microcosmos ou como Proteu937

Em O Ocaso do Pensamento Humanista Vicente medita nas consequecircncias da

metafiacutesica da subjectividade isto eacute da afirmaccedilatildeo do cogito como fonte de

certeza que aconteceu na histoacuteria da filosofia com a posiccedilatildeo cartesiana do Eu

penso como fundamento de toda a realidade Vicente mostra aiacute as

consequecircncias desse primado da consciecircncia relativamente a uma nova

concepccedilatildeo do homem a consciecircncia como consciecircncia de si ou

subjectividade converte-se na essecircncia do homem e o homem empiacuterico e

sensorial ou o homem natura eacute algo posto pela consciecircncia e assim algo de

natildeo essencial ldquoO verdadeiro ego humano natildeo seria o ego psico-somaacutetico o

ego percebido mas sim o ego absolutamente percepiente e subjectivo o ego

cogito que acompanha e cria toda a realidaderdquo938

A metafiacutesica da subjectividade teria atingido com Husserl uma das suas

realizaccedilotildees mais perfeita Com Husserl a actividade do Cogito eacute doaccedilatildeo de

sentido a todas as coisas e a consciecircncia jaacute natildeo eacute a percepccedilatildeo de significados

dados ou transcendentes mas uma revelaccedilatildeo de significados que atraveacutes de

um processo projectivo abre um espaccedilo de possibilidades significantes

Assim este pensar humaniacutestico da subjectividade para quem o cogito natildeo

pode ser passiacutevel de uma reduccedilatildeo natildeo pode ser derivado de outra realidade

constitui a consciecircncia como a fonte uacuteltima da verdade e do ser ldquoPara esta

formulaccedilatildeo uacuteltima e terminal da metafiacutesica da subjectividade a ldquoessecircncia

humana natildeo eacute um ente desocultado ou oferecido por uma forccedila propositora

mais original mas eacute em si mesma a forccedila reveladora dos demais entes Um

ente um ente humano passa a fundar os demais entes atraveacutes da sua

operaccedilatildeo fundamental - a dotaccedilatildeo de sentido - comeccedila a desmembrar em

torno de si a esfera do cognosciacutevelrdquo939

A cultura ocidental de matiz antropocecircntrica tendo chegado a colocar o

homem soacute homem como centro metafiacutesico de toda a realidade insiste na

consideraccedilatildeo da absoluta autonomia do homem e resiste a considerar o modus

essendi humano como algo de secundaacuterio e derivado De facto todas as

937

Ibidem 453 938

Vicente Ferreira da Silva ldquoO Ocaso do Pensamento Humanigravesticordquo in Dialeacutectica das Consciecircncias e

outros ensaios 445446 939

Ibidem 446

468

possibilidades oferecidas na actual eacutepoca da histoacuteria e todas as suas triunfais

realizaccedilotildees tecircm o seu fundamento na subjectividade humana e em particular

na consciecircncia humana pensada como ldquoforma do trabalhadorrdquo

Na reduccedilatildeo do eu penso a actividade instauradora do mundo vecirc Vicente a

origem da concepccedilatildeo do homem como acto de transformaccedilatildeo trabalhadora

que vai ao encontro dos entes intra-mundanos reduzindo-os a objectos da sua

operaccedilatildeo manipuladora e assim possibilita o triunfo planetaacuterio da teacutecnica ldquoEacute

nesse sentido que Heidegger alude a uma organizaccedilatildeo planetaacuteria da nossa

civilizaccedilatildeo desde que a Terra como um mero estar aiacute natural jaacute perdeu

qualquer hegemonia no jogo operativo dos campos opcionaisrdquo940

O reverso desta afirmaccedilatildeo da consciecircncia trabalhadora eacute a negaccedilatildeo da

realidade sensorial do corpo do mundo das imagens do estar aiacute natural da

Terra pela espiritualidade triunfante que eacute como jaacute afirmara Hegel pura

negatividade Contudo esta negatividade fundamental do espiacuterito que Hegel

coloca no centro da dialeacutectica do senhor e do escravo como ser-para-si da

consciecircncia trabalhadora que assim se liberta das coisas e dissolve a sua

substancialidade941 soacute foi possiacutevel porque ela estava jaacute consignada no

mitologema fundamental da nossa cultura ou no Cristianismo ldquoA ldquofluidificaccedilatildeo

absoluta de toda a subsistecircnciardquo jaacute havia sido proposta em forma prototiacutepica no

mitologema inicial da nossa civilizaccedilatildeo no drama da paixatildeo e da cruz O

espiacuterito do Deus crucificado eacute o da consciecircncia absolutamente superior ao

mundo como forma de uma liberdade sobranceira em relaccedilatildeo a todo o finitordquo942

Portanto natildeo haacute qualquer duacutevida para Vicente (e aqui reside a originalidade da

sua posiccedilatildeo face ao humanismo) de que se podemos falar de um humanismo

antropocecircntrico que tem como categoria fundamental a consciecircncia

subjectivista e trabalhadora eacute porque essa categoria antes de ser pensada

pela filosofia tinha sido suscitada pela fascinaccedilatildeo meta-histoacuterica da parusia

cristatilde

O ocaso do pensamento humaniacutestico designa assim a presente era da

teacutecnica em que esta vontade manipuladora se organizou planetariamente e a

terra se manifesta como pura disponibilidade para essa acccedilatildeo transformadora

940

Ibidem 448 941

Ibidem 449 942

Ibidem 449

469

mas que na realidade apenas consuma segundo a perspectiva de Vicente o

desenvolvimento uacuteltimo e mais extremo das possibilidades jaacute lanccediladas no

mitologema cristatildeo

Na caracterizaccedilatildeo do apogeu da tradiccedilatildeo humaniacutestica Vicente apoia-se em

Grassi filoacutesofo que dedicou uma importante parte da sua obra agrave defesa do

humanismo renascentista italiano mostrando que ele tem importante

significado para o pensamento contemporacircneo A posiccedilatildeo de Grassi face agrave

tradiccedilatildeo humanista afasta-se da posiccedilatildeo de Heidegger expressa na Carta

sobre o Humanismo onde este rejeita todas as formas de humanismo como

subjectivismo isto eacute auto-proclamaccedilatildeo da supremacia do homem

Pelo contraacuterio Grassi sublinha em Verteidigung des individuellen Lebens que

o humanismo renascentista e a sua apologia do homem como indiviacuteduo natildeo

implicam de modo algum o subjectivismo e o individualismo da filosofia

moderna Grassi ilustra este ponto com o conceito de heroacutei em Giordano

Bruno como o de o indiviacuteduo superior agrave multidatildeo que eacute capaz de destacar-se

dela para se abrir agraves diversas formas de revelaccedilatildeo do real ou ao apelo das

muacuteltiplas divindades ldquo[hellip] nada permanece mais distante do esclarecimento de

Bruno do que a concepccedilatildeo de que o homem individual seria criador por si

mesmo O indiviacuteduo o sujeito natildeo cria por si mesmo mas ele eacute - como a

expressatildeo ldquosujeitordquo indica ndash aquele que eacute subjugado por um poder mais altordquo943

Grassi vecirc nesta exaltaccedilatildeo do heroacutei como indiviacuteduo superior justamente o

contraacuterio do individualismo e do subjectivismo modernos na medida em que o

destino do heroacutei eacute ser arrastado pela forccedila objectiva da transcendecircncia e se vecirc

coagido a responder ao seu apelo na obra enquanto artista poeta ou homem

de Estado A obra criada natildeo eacute assim nunca para os humanistas do

Renascimento produto da subjectividade mas da necessidade objectiva

imposta por uma forccedila transcendente e funda assim uma verdade comum na

qual a comunidade se reconhece

Contestando tambeacutem que o humanismo italiano tenha um enfoque especial na

antropologia Grassi defende que para os humanistas o homem natildeo eacute nunca

objecto de estudo nem eacute definido por um conceito mas eles apenas propotildeem

943

bdquo[hellip] nichts liegt Brunos Deutung des Heros ferner als die Auffassung der einzelne Mensch sei aus

sich heraus schoumlpferisch Denn der einzelne das Subjekt schaft nichts von sich aus sondern er ist ndash wie

der Ausdruck ldquo Subjektrdquo bekundet ndash derjenige der einer houmlheren Macht unterworfen istrdquo Ernesto Grassi

Verteidigung des individuellen Lebens Bern 1946 3233

470

um ideal de homem como realizaacutevel atraveacutes da cultura [Bildung] sendo este

conceito de Bildung essencial tambeacutem ao humanismo poacutes-renascentista

designadamente em Vico ldquoNesta tradiccedilatildeo obtecircm prioridade a relaccedilatildeo com a

Antiguidade a questatildeo da cultura [Bildung] em vez do saber e o ideal do

desenvolvimento de ldquotodordquo o homem A ldquoculturardquo [Bildung] como vida individual

natildeo eacute procurada justamente apenas no acircmbito do saberrdquo944

Eacute este ideal de homem integral realizando-se em muacuteltiplas dimensotildees que

Vicente visa com a sua foacutermula de ldquoProteurdquo contrapondo-o ao ideal de homem

como consciecircncia trabalhadora que considera caracteriacutestico do humanismo

decadente dos nossos dias ldquoO Pensamento humaniacutestico renascentista em sua

vontade cultural genuiacutena descobriu este conceito e o transmitiu agrave posteridade

como categoria liminar do verdadeiro humanismo Como vem determinado o

homem no pensamento renascentista Numa recorrecircncia singular os

propugnadores do humanismo defendem a tese do homem entendido como um

Microcosmos ou como um Proteu Sendo uma sinopse do Todo de um Todo

que exorbita qualquer finitude ou limitaccedilatildeo o homem natildeo pode ser comprimido

em qualquer geacutenero ou classe o homem eacute um ser sem forma que pode

receber todas as formas como um verdadeiro Proteu Eacute justamente este

homem proteico que subjaz de maneira consciente ou inconsciente aos

anseios mais radicais da consciecircncia euro-americana principalmente depois do

Renascimento sendo precisamente esta formulaccedilatildeo antropoloacutegico-filosoacutefica

que sofre hoje em dia as maiores ameaccedilas por parte do marxismordquo945

Em consonacircncia com a apologia do Homem total referida por Grassi como

matriz do humanismo italiano e ainda com este modelo do heroacutei como o

indiviacuteduo superiormente criador que na obra responde ao apelo duma

transcendecircncia Vicente apresenta-nos a consideraccedilatildeo do Renascimento como

eacutepoca que nos oferece um tipo de homem que estaacute mais perto do poder

fascinante do ser e que se entrega livremente agraves suas muacuteltiplas formas de

fascinaccedilotildees ou agraves muacuteltiplas sugestotildees do Sugestor

944

bdquoIn dieser Uumlberlieferung erhalten die Beziehung zur Antike die Frage der Bildung statt des Wissens

und das Ideal der Entfaltung des ldquoganzenrdquo Menschen den VorrangrdquoBildungrdquo als individuelles Leben wird

gerade nicht nur auf dem Gebiet des Wissens erstrebtldquo Ibidem 134 945

Vicente Ferreira da Silva ldquoO Homem e a Liberdade na tradiccedilatildeo Humanistardquo in Dialeacutectica das

Consciecircncias e outros ensaios 454

471

4 3 O Homem como lugar de desvendamento do real

A posiccedilatildeo criacutetica de Vicente relativamente agrave tradiccedilatildeo humanista e a

discriminaccedilatildeo de duas tendecircncias diferentes nessa tradiccedilatildeo tecircm que ser

correlacionadas como o encontro de Vicente com Ernesto Grassi no Congresso

Internacional de Filosofia de 1954 em Satildeo Paulo aiacute se iniciou uma

correspondecircncia regular entre os dois pensadores tendo Grassi entatildeo director

da Rewolts Deutsche Enzyklopaumldie convidado Vicente a participar como

representante do Brasil naquela enciclopeacutedia

Dada a proximidade de Grassi a Heidegger e ainda dado o facto de que uma

parte significativa da sua obra se ocupa da importacircncia histoacuterica e do

significado filosoacutefico do humanismo italiano este diaacutelogo entre Grassi e Vicente

Ferreira da Silva tem um importante significado Podemos neste caso falar de

uma influecircncia reciacuteproca que podemos inferir a partir do facto de Vicente ter

dedicado Teologia e Anti-humanismo (1953) a Ernesto Grassi e ainda do facto

relatado por Constanccedila Marcondes Ceacutesar946 de que Grassi teria numa

comunicaccedilatildeo pessoal afirmado que a sua obra Arte e Mito reflecte muitas das

conversas travadas em casa de Vicente

Ernesto Grassi eacute um filoacutesofo heideggeriano que revecirc e rectifica a posiccedilatildeo de

Heidegger relativamente ao humanismo vendo no humanismo italiano a

origem de uma tradiccedilatildeo inteiramente diferente do racionalismo e do

subjectivismo da filosofia moderna Em Verteidigung des individuellen Lebens

obra comentada por Vicente o filoacutesofo italiano contrapotildee claramente estas

duas tradiccedilotildees ldquoAs teorias que noacutes desenvolvemos surgem nos tempos

modernos com o Humanismo e o Renascimento eacute por isso finalmente

necessaacuterio mostrar que aqui reside uma tradiccedilatildeo filosoacutefica mais originaacuteria que

frente agrave tradiccedilatildeo exclusivamente conhecida do pensamento moderno iniciada

com Descartes e apesar de por ela soterrada persiste vigorosa e autoacutenoma

Durante demasiado tempo foi ignorado que duas tradiccedilotildees completamente

diferentes se confrontam nos tempos modernos Uma proveacutem de Descartes e

defende a primazia do problema do saber e da verdade cientiacutefica a outra

ligando-se ao humanismo e agrave filologia tal como foi entendida inicialmente

946

Cf Constanccedila Marcondes Ceacutesar Vicente Ferreira da Silva trajectoacuteria intelectual e contribuiccedilatildeo

filosoacutefica tese de Livre-Docecircncia em Filosofia apresentada agrave Pontifiacutecia Universidade Catoacutelica de

Campinas 44

472

proveacutem do problema da mediaccedilatildeo da palavra antiga e aspira natildeo tanto ao ideal

do saber e do verdadeiro mas antes agrave ldquosapientiardquordquo947

Um aspecto fundamental da tradiccedilatildeo humanista eacute para Grassi uma concepccedilatildeo

natildeo racionalista da cultura que se encontraria teoricamente fundamentada na

obra de Vico e na sua defesa do ratio studiorum dos jesuiacutetas como alternativa

agrave cultura moderna de matriz racionalista e cartesiana ldquoNa interpretaccedilatildeo do

escrito de Vico surpreende-nos isto ele diz que o fim da ratio studiorum deve

ser acima de tudo actual Em que consiste entatildeo esse fim Consiste na

descoberta do prejuiacutezo do racionalismo que cria o ponto de partida da filosofia

moderna Mas existe juntamente com este fim negativo e poleacutemico tambeacutem

um positivo O escrito prescreve a realizaccedilatildeo dum novo ideal de cultura

[Bildung] que ndash como jaacute acontecia no humanismo de Bruni ndash tem em vista o

desenvolvimento do homem integralrdquo948

O problema da vida individual que eacute discutido por Grassi em Verteidigung des

individuellen Lebens adquire para o filoacutesofo italiano o estatuto de uma questatildeo

central que diz respeito natildeo a um uacutenico domiacutenio mas agrave totalidade do Dasein e

a uma concepccedilatildeo geral da cultura ldquoAgrave capacidade de se elevar acima da

subjectividade noacutes chamamos cultura [Bildung] Noacutes cultivamo-nos na medida

em que nos transformamos em que nos formamos a noacutes mesmos a vida

individual e a cultura estatildeo por isso entrelaccedilados o mais intimamente

possiacutevelrdquo 949

Grassi mostra que a cultura eacute para os humanistas este transcender-se do

indiviacuteduo como superaccedilatildeo de si mesmo em direcccedilatildeo ao novo que eacute

947

bdquoDie Lehren die wir entwickelt haben entstehen in der modernen Zeit mit dem Humanismus und der

Renaissance es ist daher notwendig abschlieszligend zu zeigen daβ hier eine urspruumlnglichere

philosophische Uumlberlieferung vorliegt die gegenuumlber der ausschlieszliglich bekannten mit Descartes

beginnenden Tradition des modernen Denkens obzwar durch sie unterdruumlckt ungebrochen und

selbstaumlndig besteht Viel zu lange wuumlrde uumlbersehen daβ zwei extreme verschiedene Traditionen in der

neuen Zeit sich gegenuumlberstehen die eine geht von Descartes aus und vertritt den Vorrang des Problems

des Wissens und der wissenschaftlichen Wahrheit die andere mit dem Humanismus und der Philologie

so wie sie in ihren Anfangen verstanden wurden einsetzend geht vom Problem der Vermittlung des

antiken Wortes aus und erstrebt nicht so sehr das Ideal des Wissens und des Wahren vielmehr das der

ldquosapientiardquoldquo Ernesto Grassi Verteidigung des individuellen Lebens Bern 1946 131 948

bdquoBei der Interpretation der Schrift Vicos uumlberrascht uns eines er sagt daβ das Ziel der ratio studiorum

uumlberall gegenwaumlrtig sein muumlsse Worin besteht nun dieses Ziel Es besteht in der Aufdeckung der

Nachteile des Rationalismus der den Ausgangspunkt der modernen Philosophie bildet Gibt es aber

neben diesem negative ndashpolemischen Ziel auch ein positives Die Schrift erstrebt die Verwirklichung des

neuen Bildungsideals welches ndash wie schon das humanistische von Bruni ndash die Entwicklung des ldquoganzenrdquo

Menschen beabsichtigtrdquo Ibidem 154 949

ldquoDie Faumlhigkeit uumlber das Subjektive hinauszugehen nennen wir ldquo Bildungrdquo Wir ldquobildenrdquo uns indem

wir ldquowerdenrdquo uns selbst gestalten individuelles Leben und Bildung sind daher innigst verknuumlpftrdquo

Ibidem 117

473

simultaneamente um estar na transcendecircncia como necessidade objectiva que

nos supera e conduz Este conceito humanista de cultura tem um fundamento

completamente diferente da questatildeo da ciecircncia que orienta o ideal cartesiano

de saber Ela fundamenta-se na poesia na retoacuterica e na filologia e esta

fundamentaccedilatildeo na linguagem daacute ao problema da cultura uma abertura

completamente diferente

Para Descartes a reconduccedilatildeo da pluralidade das ciecircncias agrave unidade do Eu

penso eacute uma questatildeo central enquanto para os humanistas a palavra na sua

originariedade e na sua multiplicidade eacute o fenoacutemeno a partir do qual se pode

abrir a questatildeo do ser e tambeacutem um novo ideal natildeo racionalista de cultura

Segundo Grassi a contraposiccedilatildeo entre este modelo de cultura Renascentista e

a concepccedilatildeo racionalista de cultura que se tornou dominante com Descartes

encontra-se teoricamente pensado nos escritos de Vico De ratione studiorum e

De antiquiacutessima italorum sapientia onde este pensador italiano compara o

meacutetodo de estudo dos modernos com o dos antigos tomando posiccedilatildeo contra o

cartesianismo

Aiacute Vico mostra que o ponto de partida dos estudos modernos eacute do problema

cartesiano da ciecircncia e a sua posiccedilatildeo criacutetica que partindo da duacutevida visa

alcanccedilar a certeza fundamentando-se numa primazia da verdade loacutegica e no

afastamento de tudo aquilo que eacute apenas verosiacutemil

De facto esta primazia do problema criacutetico isto eacute da problemaacutetica da fundaccedilatildeo

da ciecircncia implica na perspectiva de Descartes o afastamento de todas as

proposiccedilotildees verosiacutemeis como se se tratassem de proposiccedilotildees falsas e exige o

desenvolvimento exclusivo da razatildeo Contudo para Vico o verosiacutemil eacute a fonte

de um segundo tipo de experiecircncias e de revelaccedilatildeo do real a saber as da

acccedilatildeo praacutetica e da Retoacuterica que implicam e exigem o desenvolvimento da

totalidade das faculdades do homem como os sentidos a imaginaccedilatildeo e a

memoacuteria

O humanismo pedagoacutegico dos Jesuiacutetas natildeo soacute retoma o ideal renascentista de

cultura como escuta uma tradiccedilatildeo mais antiga que remonta a Ciacutecero O ideal

ciceroniano de cultura foi por eles recuperado e sistematizado por Vico como

perspectiva criacutetica relativamente ao cartesianismo ldquoEntatildeo esta concepccedilatildeo da

palavra e do discurso renasce no Humanismo italiano desde Petrarca

passando por Salutati ateacute Bruno e esta concepccedilatildeo fundamental mais tarde

474

manteacutem-se viva na apologia de Vico da arte do discurso Corresponde-lhe

tambeacutem o ideal que eacute decisivo para o Humanismo italiano da sabedoria em

vez do ideal da ciecircncia O que possui a sabedoria natildeo eacute considerado como

simples erudito ou como simples artista ou simples poliacutetico mas como homem

que procura trazer o sublime integralmente e em todas as formas agrave

apresentaccedilatildeo e efectivaccedilatildeo atraveacutes da obra De acordo com isto podemos

tambeacutem compreender tal como Ciacutecero em De Oratore chamava a atenccedilatildeo

que haacute muitos grandes poliacuteticos muitos poetas muitos cientistas mesmo

muitos filoacutesofos mas muito poucos oradores isto eacute aqueles que natildeo soacute falam

bem mas realizam a totalidade do homem na palavrardquo950

Como acima referimos esta concepccedilatildeo natildeo racionalista de cultura [Bildung] e a

sua ligaccedilatildeo ao ideal de realizaccedilatildeo integral do indiviacuteduo desempenham para

Grassi um papel chave para compreender a essecircncia da tradiccedilatildeo humanista

Eacute precisamente esta questatildeo chave da tradiccedilatildeo humanista que Vicente retoma

reclamando a concepccedilatildeo de cultura e de liberdade do Renascimento como

uma matriz do Ocidente que seria prioritaacuterio preservar Segundo Vicente o

ideal de homem divisado pelos pensadores do Renascimento eacute o de um ser

aberto a muacuteltiplas solicitaccedilotildees e objectividades um ser pluridimensional tendo

este ideal configurado o Ocidente como um Open World um mundo aberto

centrado numa noccedilatildeo autecircntica de liberdade951

Vicente vecirc no panteiacutesmo de Nicolau de Cusa com a sua concepccedilatildeo de um

Deus infinito que se desvela em imagens muacuteltiplas e historicamente

condicionadas o fundamento desta concepccedilatildeo renascentista de uma cultura

aberta agrave pluralidade de cultos divinos e de formas de vida e actividade do

homem numa evidente alusatildeo a uma matriz natildeo cristatilde deste humanismo ldquoA

doutrina panteiacutesta do Todo Uno eacute explicitamente aludida por Nicolau de Cusa

tendo a mais decisiva influecircncia na obra filosoacutefica de Giordano Bruno O

950

bdquoDiese philosophische Anschauung des Wortes und der Rede lebt dann in den italienischen

Humanismus wieder auf von Petrarca uumlber Salutati bis zu Bruni und spaumlter erhaumllt sich diese

Grundanschauung in Vicos Verteidigung der Redenkunst lebendig Ihr entspricht auch das Ideal des

Weisen statt des Wissenden das fuumlr den italienischen Humanismus entscheidend ist Der Weise wird

nicht als reiner Gelehrter oder als reiner Kuumlnstler oder als reiner Politiker betrachtet sondern als Mensch

der das Erhabene vollstaumlndig und in allen Formen durch das Werk zur Darstellung und Wirkung zu

bringen sucht Hieraus koumlnnen wir auch verstehen wieso Cicero im De Oratore darauf hinweisen konnte

daβ es viele groszlige Politiker viele Dichter viele Wissenschaftler selbst viele Philosophen gibt aber nur

ganz wenige Oratores dh solche die nicht nur gut reden sondern im Wort die Ganzheit des Menschen

verwirklichenldquo Ibidem 168 951

Cf Vicente Ferreira da Silva ldquoO Homem e a Liberdade na tradiccedilatildeo Humanistardquo in Dialeacutectica das

Consciecircncias e outros ensaios 454

475

pluriverso das contracccedilotildees divinas seria como voacutertices a conclamar os

desenvolvimentos divergentes da acccedilatildeo humana formas plurais do culto

divino tendo o homem sido artista teoacutelogo amante mago ou aventureiro

testemunhando sempre em seu discurso vital a forma tutelar que empolgara a

sua almardquo952

Na perspectiva de Vicente este humanismo renascentista considera que a

humanitas do homem seria precisamente a sua capacidade para revelar e

expor no discurso diversos aspectos do real traduzindo cada um a fascinaccedilatildeo

por um Weltaspekt num constante convite agrave liberdade de criaccedilatildeo e agrave

independecircncia das diversas artes e formas de actividade do homem

Este humanismo renascentista que Vicente coloca sob o signo de Proteu

aparece-lhe como tendo inspirado a ideia euro-americana de liberdade

entendida como possibilidade de instauraccedilatildeo de diversas ordens de realidade

ou vaacuterias ordens ocircnticas que natildeo podem ser derivadas umas das outras desde

o ente fiacutesico constituiacutedo pela ciecircncia ateacute agrave mitologia e agrave religiatildeo ldquoAs

possibilidades oferecidas ao espiacuterito em sua conversio infinita para o mundo

satildeo entretanto de diversas ordens ocircnticas de diversos estratos inconfundiacuteveis

desde o ente fiacutesico-real o ente biofiacutesico ateacute agraves maacuteximas manifestaccedilotildees da

fantasia da mitologia e da religiatildeo Todas essas variedades ocircnticas possuem e

guardam sua consistecircncia proacutepria sua configuraccedilatildeo eideacutetica e natildeo permitem

ser derivas ou construiacutedas a partir do estar-se material Este o erro

fundamental do positivismo em geral e do marxismo em especial que

desconhecendo intempestivamente o so-sein e o perfil proacuteprio das ordens

ocircnticas imaginou e imagina poder derivar as formas juriacutedicas ou o mundo do

pensamento da base material-econoacutemica da sociedaderdquo953

Salvaguardar esta disposiccedilatildeo para a Liberdade entendida no sentido de um

experimentar modos diferentes de ser e que legitima igualmente a mitologia a

religiatildeo e a ciecircncia como modos alternativos de desvelamento do ser eacute um

imperativo para a civilizaccedilatildeo euro-americana que aparece a Vicente ameaccedilada

nos seus fundamentos tanto pelo marxismo com o seu primado do econoacutemico

e a sua reduccedilatildeo do homem a uma consciecircncia trabalhadora como pela

doutrina positivista dos trecircs estados

952

Ibidem 454 953

Ibidem 455

476

Este exerciacutecio da liberdade como capacidade de movimentaccedilatildeo entre diversos

tipos de discursos coloca o homem perto do ser como potecircncia morfogeneacutetica

originaacuteria como poder instaurador das diversas regiotildees ocircnticas ldquoA liberdade

continua a constituir a raiz derradeira do homem mas essa liberdade eacute

primordialmente a liberdade transcendental isto eacute o poder de remontar ao

Entwurfbereich de intimizar-se e unificar-se com a liberdade instauradora ou

constitutiva do ente Antes de significar o poder de opccedilatildeo desembaraccedilada entre

isto eacute aquilo entre o campo das alternativas oferecidas eacute a liberdade em seu

sentido originaacuterio o reportar-se agrave opccedilatildeo de todas as opccedilotildees agrave abertura de um

campo opcionalrdquo954

Esta concepccedilatildeo de Liberdade que seria matriz do Ocidente e que foi

posta a claro pelo Renascimento italiano seria assim semelhante agrave concepccedilatildeo

heideggeriana de Liberdade como exposiccedilatildeo e entrega ao ser ldquoPodemos

definir neste sentido o conceito maacuteximo de liberdade ocidental usando a

consigna do meacutetodo fenomenoloacutegico ldquorumo agraves coisas mesmasrdquo para as

proacuteprias coisas Expor-se livremente agrave livre manifestaccedilatildeo do ente eacute o criteacuterio

superior de liberdade segundo a ceacutelebre definiccedilatildeo de Heidegger ldquoA liberdade

eacute primordialmente a entrega ao desvelamento do ente como tal A possibilidade

de um abandono agrave potecircncia do ente manifestado a possibilidade de reportar-

se desembaraccediladamente ao manifestado eacute o criteacuterio fundamental do ser-

livrerdquo955

Assim para Vicente o apogeu da tradiccedilatildeo humaniacutestica coincide com este

homem muacuteltiplo e proteico do Renascimento de que podemos observar uma

notaacutevel aproximaccedilatildeo no modernismo literaacuterio portuguecircs e brasileiro com a sua

apologia simultacircnea da teacutecnica da arte e da mitologia ou com o ldquoser tudo de

todas as maneirasrdquo que inspira a heteroniacutemia de Pessoa Esta concepccedilatildeo que

pensa aproximar-se de Heidegger eacute formulada por Vicente a partir de Grassi

neste termos ldquoO Homem eacute o Topos do Sich-offenbaren des Wirklichen ldquoEacute

nesse sentido que Ernesto Grassi em sua obra Verteitigung des individuellen

Lebens define a essecircncia humana enquanto liberdade como o topos do Sich-

954

Ibidem 453 955

Ibidem 455

477

offenbaren des Wirklichen O transcender da liberdade eacute um desembaraccedilar-se

um permitir que o ente seja ein Seinlassen des Seiendenrdquo956

O ocaso do Ocidente aparece assim vinculado agrave perda desta concepccedilatildeo do

homem proteico disposto para a liberdade criadora e para acolher agraves muacuteltiplas

revelaccedilotildees do ser pela imposiccedilatildeo duma concepccedilatildeo em tudo contraacuteria a esta

dum homem uacutenico e unidimensional de que o primado da teacutecnica e o ditado da

consciecircncia trabalhadora aparecem como sintomas

Vicente adverte numa espeacutecie de antecipaccedilatildeo profeacutetica da actual sociedade

de consumo e da ditadura do econoacutemico que qualquer pan-economismo se

converte em ameaccedila aos interesses da liberdade criadora do homem e que

toda a tentativa para impor a negatividade da consciecircncia e o ditado da

consciecircncia trabalhadora como um impeacuterio sobre todas as formas de actividade

humana ameaccedila o caraacutecter polivalente do homem como ser-histoacuterico e natildeo

permite responder aos actuais desafios da histoacuteria

Vendo na essecircncia do homem proposta pelo Renascimento o momento

decisivo em que o homem foi captado pela ldquoplenoxia coacutesmicardquo e na

recuperaccedilatildeo desse momento a via para que o Ocidente possa enfrentar os

desafios da histoacuteria Vicente reconhece com Grassi a importacircncia fundamental

que o humanismo renascentista tem para o pensamento actual

4 4 A nova religiatildeo coacutesmica e o ciclo natildeo humaniacutestico da

cultura

Vicente tal como Eudoro de Sousa interroga-se quanto ao significado dos

indiacutecios de decadecircncia e de exaustatildeo do actual ciclo civilizacional

perguntando-se ateacute quando continuaremos na Gottesferne Para Eudoro de

Sousa a possibilidade do niilismo estaacute inscrita no acircmago da histoacuteria como

tempo da recusa do homem e eacute o restabelecimento da unidade entre as trecircs

regiotildees ontoloacutegicas no triacircngulo do simboacutelico e da complementaridade que

pode levar agrave superaccedilatildeo da recusa primordial

Foi o evento catastroacutefico da morte de Deus que retirando Deus do Veacutertice fez

rebater os lados do triacircngulo sobre a base fazendo com que o tempo da

existecircncia humana se desenrole sobre uma recta em que Homem e Mundo se

956

Ibidem 453

478

enfrentam no combate e na oposiccedilatildeo de uma irredutiacutevel estranheza Apoacutes esse

acontecimento catastroacutefico a humanidade entrou numa fase de esquecimento

da origem e instalou-se na cisatildeo e na oposiccedilatildeo contrapotildeem-se natureza sem

espiacuterito espiacuterito sem natureza corpo sem alma alma sem corpo Deus sem

Homem e Homem sem Deus Eacute o tempo do Humanismo ou seja do

predomiacutenio da Metafiacutesica e das muacuteltiplas ciecircncias do triunfo do pensar

calculatoacuterio e manipulador da teacutecnica

As religiotildees satildeo para Eudoro de Sousa uma forma de reinstaurar o triacircngulo

simboacutelico e manter abertas as possibilidades de uma experiecircncia ontoloacutegica

alternativa957 Eacute na religiatildeo como um religare e em particular na celebraccedilatildeo

ritual que reside a possibilidade de reinstaurar a relaccedilatildeo entre o homem Deus

e o mundo como um triacircngulo em que os trecircs veacutertices se espelham

reciprocamente No ritual Deus colocado no veacutertice superior une o mundo e o

homem como duas polaridades que se atraem e se contrapotildeem num segmento

de recta e que se mantecircm unidas enquanto a Divindade estiver no veacutertice

ldquoEnquanto viva se mantenha no veacutertice a presenccedila de uma divindade ndash da que

triangulou um cosmos ndash nela se unem homem e mundo que um ou outro

pertencem na co-pertinecircncia dos trecircsrdquo958

Contudo na perspectiva de Vicente Ferreira da Silva esse recurso ao

simboacutelico natildeo estaacute imediatamente disponiacutevel para o homem actual dominado

pelo impulso da afirmaccedilatildeo da subjectividade que constantemente paralisa o

mundo e o confina ao puro ser-objecto A reinstauraccedilatildeo do simbolismo do ritual

nunca pode ser iniciativa do proacuteprio homem nem uma criaccedilatildeo da sua fantasia

Na perspectiva do pensador brasileiro quando o espiacuterito humano cria um

universo simboacutelico eacute porque jaacute se abriu previamente agrave revelaccedilatildeo de uma

presenccedila transcendente e se instaurou uma nova epifania Porque ldquoas

metamorfoses do siacutembolo constituem a forccedila imanente agrave imaginatio Divina a

forccedila de uma operaccedilatildeo proteiforme e erraacutetica que natildeo obedece a outra lei

senatildeo agrave da proacutepria metamorfoserdquo959 eacute impossiacutevel saber quando a reinstauraccedilatildeo

de uma qualquer ordem simboacutelica teraacute lugar ou como adviraacute esse ldquopocircr-se em

957

Eudoro de Sousa Mitologia Histoacuteria e Mito 322 958

Eudoro de Sousa Mitologia Histoacuteria e Mito 251 959

Vicente Ferreira da Silva ldquoA Natureza do simbolismordquo Revista Brasileira de Filosofia nordm 48 1962 in

Dialeacutectica das Consciecircncias e outros ensaios 458

479

imagemrdquo do simbolismo mas este seraacute sempre o encontro com uma realidade-

natildeo-feita-pelo homem

Vicente especula no entanto sobre o que aconteceria se pudeacutessemos libertar-

nos da escravidatildeo do pensamento cientiacutefico e da manipulaccedilatildeo teacutecnica das

coisas afirmando que elas sofreriam uma metamorfose passando a existir

numa forma excecircntrica e difusa como manifestaccedilotildees de forccedilas supra-naturais

ldquoAcontece que na visatildeo simboacutelica do mundo as antigas coisas da visatildeo

cientiacutefico-manipuladora transformar-se-iam em princiacutepios erraacutetico-vitais em sua

produtividade inabalaacutevelrdquo960

Vicente admite que essa metamorfose daria origem a um novo mundo no qual

poderiacuteamos voltar a captar o divino reafirmando como Tales que ldquotudo estaacute

cheio de Deusesrdquo Natildeo se trata da possibilidade de um puro e simples regresso

agraves antigas cosmogonias mas certamente de um regresso ao politeiacutesmo ligado

agrave percepccedilatildeo do universo como uma pluralidade de formas vivas ldquoPorque

devemos admitir que um soacute aspecto da realidade eacute divino O monoteiacutesmo eacute

uma reduccedilatildeo das possibilidades da existecircncia Deveriacuteamos dizer com Tales

ldquotudo estaacute cheio de deusesrdquo Estamos convocados para uma poliatria nesta

clareira do existirrdquo961

Este politeiacutesmo anunciado por Vicente fundamenta-se na concepccedilatildeo de Walter

Otto dos vaacuterios deuses como diferentes Weltaspekten cada um instaurando

uma ordem desvelando um aspecto do mundo e convocando o homem para

um certo tipo de desempenhos e eacute totalmente consentacircneo com a ideia de

cultura e de Liberdade do humanismo renascentistas de que Vicente fazia a

apologia

Vicente referia-se a esse mundo a vir como ldquoum ciclo natildeo humaniacutestico da

culturardquo o que deve ser entendido como um ciclo da cultura natildeo dominado pelo

antropocentrismo uma eacutepoca da histoacuteria do mundo em que outras epifanias

teratildeo lugar e em que o homem deixaraacute de ser a uacutenica forma de manifestaccedilatildeo

do divino

Segundo o pensador brasileiro esta possibilidade de um ciclo natildeo humaniacutestico

da cultura pode ser pressentida na filosofia de Heidegger devido ao facto do

pensador alematildeo ter contestado a metafiacutesica da subjectividade e retirado a

960

Ibidem 461 961

Vicente Ferreira da Silva ldquoDiaacuterio filosoacuteficordquo in Dialeacutectica das Consciecircncias e outros ensaios 498

480

consciecircncia da sua situaccedilatildeo axial mostrando que ela eacute algo jaacute posto por um

desvelamento preacutevio ldquoO pensamento que ora desponta afirma entretanto que

todo o oferecido inclusive o oferecido dos poderes consciencioloacutegicos flui de

uma dimensatildeo instauradora primordial ou ainda de um processo desvelante

omnicompreensivo O deslocamento da consciecircncia de sua situaccedilatildeo axial e

sua transcriccedilatildeo em termos de um jaacute oferecido de um oferecer primordial eacute o

sinal indeleacutevel de um novo ciclo natildeo humaniacutestico da culturardquo 962

A acentuaccedilatildeo da finitude humana na filosofia heideggeriana constitui para

Vicente um marco decisivo na histoacuteria do pensamento ocidental porque agora

o homem pode pensar-se como um ser atirado e abandonado como uma ldquores

derelictardquo que usufrui apenas de certos poderes porque estes lhe foram

confiados por um desvendamento preacutevio ou por um certo envio do ser

Esta viragem que Heidegger operou no campo da filosofia retirando o homem

da sua posiccedilatildeo hegemoacutenica face agrave totalidade dos entes e estabelecendo-o no

lugar de um modesto ldquopastor do serrdquo eacute para Vicente natildeo apenas a abertura

de novas possibilidades para o pensar humano - ela eacute antes de mais um

sintoma de uma viragem que estaacute presumivelmente a ser operada a um niacutevel

meta-histoacuterico pelo poder desocultante e pela transcendecircncia projectante do

ser que traccedilaratildeo os contornos de uma nova epocalidade do divino e nela

lanccedilaratildeo o homem consignando-lhe novos desempenhos e poderes ldquoEm todo

o caso o deslocamento da consciecircncia do seu papel de fenoacutemeno axial e a

sua transcriccedilatildeo em termos de um oferecido jaacute eacute o sinal de uma comoccedilatildeo a

partir da histoacuteria do Ser Estamos na fase do pensamento submersivo ou

resolutivo do ente humano - na Wendung meta-histoacuterica a reconduccedilatildeo das

possibilidades expressas ou ainda exprimiacuteveis ndash a histoacuteria planetaacuteria ndash agrave Fonte

miacutetica do manifestadordquo963

Para Vicente o humanismo antropocecircntrico esquecendo a finitude do homem

convocou-o para a freneacutetica acccedilatildeo transformadora da histoacuteria que o distanciou

cada vez mais da fonte miacutetica originaacuteria Podemos por isso adivinhar - pensa

Vicente - que esta ldquoWendung meta-histoacutericardquo ou este novo envio do ser teraacute

que ser uma reconduccedilatildeo do homem agrave ldquoFonte miacuteticardquo genericamente pensada

962

Vicente Ferreira da Silva ldquoO Ocaso do Pensamento Humaniacutesticordquo in Dialeacutectica das Consciecircncias e

outros ensaios 447448 963

Vicente Ferreira da Silva rdquoTeologia e Mitologiardquo in Dialeacutectica da Consciecircncia e Outros Ensaios549

481

como uma reintegraccedilatildeo ontoloacutegica do homem uma articulaccedilatildeo da histoacuteria

planetaacuteria com as conexotildees coacutesmico-divinas

Extinguindo-se a radicaccedilatildeo metafiacutesica do homem em si mesmo ele poderaacute

aceder a outra interpretaccedilatildeo emocionalmente consignante de si mesmo

assumindo a sua finitude ou o seu ser ex-alio Esse reconhecimento que hoje

abre caminho jaacute na filosofia eacute que anuncia para Vicente uma futura religiatildeo

coacutesmica ldquoTodo o nosso ser eacute de empreacutestimo eacute uma delegaccedilatildeo de poderes

um usufruto ontoloacutegico que descansa no seu legataacuterio Entretanto esse

confisco metafiacutesico eacute o primeiro sinal da religiatildeo coacutesmica por virrdquo964

Esta religiatildeo coacutesmica natildeo poderaacute caber nas categorias da actual teologia que

se desenvolveu na eacutepoca residual de natildeo presenccedila do divino e que foi

marcada pela reduccedilatildeo de todos os entes inclusivamente do ente divino agrave

objectividade Em todo o caso Vicente arrisca os traccedilos do que seria essa

nova religiatildeo coacutesmica natildeo concebiacutevel no acircmbito da teologia o novo sentimento

divino seraacute um sentimento de pertinecircncia do homem agravequilo que eacute o seu

fundamento um volver-se para proveniecircncia transcendente do seu ser uma

intimizaccedilatildeo do homem com o sagrado ldquoNatildeo existiria uma sociedade humana

em relaccedilatildeo a um sagrado uma separaccedilatildeo que se unificaria mas uma unidade

como descanso do Deus ou dos deuses em sua forma totalizadorardquo965

Vicente antevecirc assim a recuperaccedilatildeo duma vivecircncia espontacircnea e imediata do

sagrado agrave semelhanccedila do retorno a uma sociedade sem mediaccedilatildeo sacerdotal

preconizada por Agostinho da Silva como regresso agrave Idade do Ouro E adianta

como Eudoro de Sousa que a diluiccedilatildeo da acccedilatildeo humana na ordem miacutetica

levada a cabo pelo rito manteria o mundo aberto agrave presenccedila dos deuses e

convocaria os desempenhos humanos envolvendo-os nessa presenccedila e

integrando-os na vida da natureza

Esta religiatildeo coacutesmica situar-se-ia num outro acircmbito que natildeo o da negatividade

da histoacuteria humana pois afirmar-se-ia como pura tautologia ou como uma

permanente reafirmaccedilatildeo do mesmo ldquoEssa verdade como aspecto aberto do

mundo como Poder eacute o nunc stans onde tudo o que ocorre eacute o seu occorrer

[hellip] o confisco do particular ou histoacuterico pelo fundamento supotildee uma reversatildeo

em que as possibilidades desaparecem no esse Como as estaacutetuas das ilhas

964

Ibidem 550 965

Ibidem 551

482

de Pascoa formas parmeniacutedicas do esse que mantecircm descerrada uma

concepccedilatildeo de vidardquo

Renunciando a explicitar discursivamente essa nova vivecircncia do sagrado cujos

contornos ainda natildeo foram desvelados Vicente propotildee que procuremos aceder

a ela a partir da nossa experiecircncia da Muacutesica como celebraccedilatildeo ldquoPodemos

entretanto vislumbrar no universo da Muacutesica a vida ainda pletora das suas

possibilidades O homem que vivia no interior do rito (a festa religiosa) estava

radicado no espaccedilo jubiloso da Muacutesica no entusiasmo revelador da expressatildeo

musical O mundo natildeo se manifestaria entatildeo seco e deserto como agora natildeo

mostraria unicamente o recorte de uma acccedilatildeo manipuladora [] mas

resplandeceria em sua gloacuteria Natildeo um mundo de factos mas de celebraccedilatildeo e

como celebraccedilatildeo fenoacutemeno puramente musical A pleonexia musical traria a

Umgang mit der Gotter no universo fecundo e livre da musicalidade no Aberto

(Rilke) da vida preacute-cristatilde Natildeo seriacuteamos sujeitos nem objectos mas uma vida

celebrante um corpo-dramardquo966

Para Vicente a Muacutesica eacute a meta-linguagem onde os deuses os homens e a

natureza podem co-celebrar a sua unidade como o mesmo corpo dramaacutetico

posto em acccedilatildeo pelo drama ritual experiecircncia dionisiacuteaca de unidade ontoloacutegica

que eacute para Vicente Ferreira da Silva como para Eudoro de Sousa a

experiecircncia do Outrora como a Outra hora dos Deuses que permanece por

agora aqueacutem e aleacutem da histoacuteria

Vicente natildeo propotildee no entanto o regresso a nenhuma foacutermula religiosa do

passado limitando-se a destacar o novo sentimento e a nova compreensatildeo do

divino que se abrem na filosofia contemporacircnea ele pensa que podemos agora

pensar o divino livre das antigas categorias da metafiacutesica ou ainda do quadro

das antigas experiecircncias miacutesticas tendo o caminho aberto para uma

compreensatildeo mais ampla do fenoacutemeno religioso jaacute natildeo limitado ao

particularismo das relaccedilotildees teacircndricas

Para esta possibilidade a contribuiccedilatildeo de Heidegger teria sido decisiva de

facto Vicente vecirc a ldquohistoacuteria do serrdquo - pensada por Heidegger como a sucessatildeo

dos develamentos histoacuterico-temporais da verdade que arrebatam o homem e

instituem uma eacutepoca histoacuterica - como a seacuterie das teodicieas singulares de que

o mito teacircndrico eacute uma etapa transitoacuteria

966

Ibidem 552

483

No entanto precisar as formas dessa nova religiatildeo coacutesmica parece-lhe

impossiacutevel porque as formas e siacutembolos religiosos satildeo instaurados por essa

dimensatildeo meta-histoacuterica da histoacuteria do ser a que natildeo temos acesso ldquoO terreno

proacuteprio do pensamento teoloacutegico e o seu processo interno eacute a dimensatildeo da

verdade do ser Desta dimensatildeo promanam as formas em que se diversifica o

princiacutepio religioso Eacute a dimensatildeo da Imaginatio Divinardquo967

Contudo na Carta Sobre o Humanismo a que Vicente muacuteltiplas vezes se

refere nenhuma religiatildeo coacutesmica eacute proposta e a questatildeo da religiatildeo e do

sagrado natildeo estaacute em discussatildeo ldquoCom a determinaccedilatildeo existencial da essecircncia

do homem por isso ainda nada estaacute decidido sobre ldquoa existecircncia de Deusrdquo ou

o seu ldquonatildeo-serrdquo como tatildeo pouco sobre a possibilidade ou impossibilidade de

deusesrdquo968

Heidegger indica claramente que a questatildeo de reconduzir o pensar homem agrave

proximidade do ser eacute uma questatildeo preacutevia e fundante relativamente agrave

possibilidade de se vir pensar a essecircncia do sagrado ldquoSomente a partir da

verdade do ser se deixa pensar a essecircncia do sagrado E somente a partir da

essecircncia do sagrado deve ser pensada a essecircncia da divindade E finalmente

somente agrave luz da essecircncia da divindade pode ser pensado e dito o que deve

nomear a palavra ldquoDeusrdquordquo969

Pelo contraacuterio esta religiatildeo coacutesmica eacute antecipada pela temaacutetica houmllderliniana

dos deuses vindouros e mais incisivamente pela nova poesia portuguesa que

Fernando Pessoa designava como Panteiacutesmo transcendental

Assim e embora visando com a sua criacutetica ao ldquomitologema cristatildeordquo um aspecto

importante da religiosidade de alguns dos autores da Nova Poesia Portuguesa

Vicente acaba por encontrar-se com um outro aspecto importante e mais geral

da nova sensibilidade poeacutetico-religiosa desta corrente literaacuteria Nas Tendecircncias

de Antero na Ideia de Deus de Sampaio Bruno no Caminho do Ceacuteu de

Junqueiro no poema Maranus de Teixeira de Pascoaes no poema Gritos de

967

Ibidem 547 968

ldquoMit der existenzialen Bestimmung des Wesens des Menschen ist deshalb noch nichts uumlber das

bdquoDasein Gottesldquo oder sein bdquoNicht-Seinldquo ebensowenig uumlber die Moumlglichkeit oder Unmoumlglichkeit von

Goumlttern entschiedenldquo Buh GA 9 350 969

Erst aus der Wahrheit des Seins laumlβt sich das Wesen des Heiligen denken Erst aus dem Wesen des

Heiligen ist das Wesen von Gottheit zu denken Erst im Lichte des Wesens von Gottheit kann gedacht

und gesagt werden was das Wort bdquoGottldquo nennen sollrdquo Buh GA 9 351

484

Dora encontra-se anunciada uma nova religiosidade para o qual todo o cosmos

surge como uma teofania e eacute esboccedilada uma moral que assinala ao homem

como primeiro dever o de ldquouma fraternidade coacutesmicardquo

Vicente Ferreira da Silva com este anuacutencio profeacutetico de uma nova eacutepoca

histoacuterica e de uma religiatildeo coacutesmica pensa a histoacuteria de acordo com o arqueacutetipo

da reintegraccedilatildeo que referimos como uma das caracteriacutesticas da nossa tradiccedilatildeo

poeacutetica e pode portanto ser nela integrado como um dos pensadores mais

originais

4 5 Vicente Ferreira da Silva eacute um pensador anti-

humanista

Num conjunto de conferecircncias proferidas no Centro de Cultura Medieval e

Renascentista do Barnard College publicados em 1982 com o tiacutetulo Heidegger

and the question of Renaissance Humanism Grassi apresenta-nos uma visatildeo

sinteacutetica dos seus estudos sobre o humanismo italiano mostrando o

fundamento a partir do qual ele legitima a tradiccedilatildeo humanista como tradiccedilatildeo

filosoacutefica

Grassi pretende recuperar o sentido histoacuterico preciso do termo ldquoHumanismordquo

reservando-o para designar o movimento filosoacutefico que caracterizou o

pensamento italiano entre a segunda metade do seacuteculo XIV e os finais do

seacuteculo XV A traduccedilatildeo de Ficino de Platatildeo no fim do seacuteculo XV e a metafiacutesica

especulativa de matriz platoacutenica que se lhe seguiu marcariam uma ruptura com

o humanismo italiano que continuou a ser cultivado esporadicamente ateacute ao

seacuteculo XVIII sendo entatildeo retomado e aprofundado por Vico em cuja obra se

encontra pensado nas suas implicaccedilotildees filosoacuteficas970

Para aleacutem desta delimitaccedilatildeo histoacuterica Grassi apresenta uma nova abordagem

do humanismo retirando a sua discussatildeo do acircmbito literaacuterio apesar de muitas

das suas obras se situarem no acircmbito da poesia da filologia e da retoacuterica e

abordando-o de um ponto de vista estritamente filosoacutefico971

Esta nova abordagem eacute hoje possiacutevel afirma Grassi porque temos ldquoa

consciecircncia de que a filosofia chegou ao fim enquanto Metafiacutesicardquo Em O Fim

970

Cf Ernesto Grassi Heidegger and the Question of Renaissance Humanism Four Studies 9 971

Cf Ibidem 9

485

da Filosofia e a Tarefa do Pensar (Zeit und Sein 1962) Heidegger defende que

a filosofia teria atingido no presente as suas mais extremas possibilidades

como tentativa de responder agrave questatildeo do ser dos entes atraveacutes de um

processo de inferecircncia racional mas nesse mesmo ensaio sublinha Grassi o

pensador alematildeo defende que passou para primeiro plano o problema mais

originaacuterio do desvendamento do ser ou da verdade como aletheia ldquoPara

resumir esta tese uma vez mais a metafiacutesica tradicional deve hoje chegar ao

fim porque ela comeccedilou com a questatildeo da fundamentaccedilatildeo racional daquilo que

eacute No lugar da questatildeo da verdade loacutegica explica Heidegger deve tomar lugar

o problema mais originaacuterio do natildeo estar encoberto a questatildeo da clareira

(αιήζεηα) na qual ldquoo que eacuterdquo primeiramente aparece Aqui surge uma nova tarefa

para a filosofia defender a primazia e o caraacutecter originaacuterio da linguagem

poeacutetica relativamente agrave linguagem racionalrdquo972

Neste contexto jaacute natildeo eacute necessaacuterio perguntar pelo que eacute na forma tradicional

da metafiacutesica racional mas antes impotildee-se o perguntar pelo processo

originaacuterio pelo qual o ser do que eacute se torna ldquoabertordquo se revela e aparece A

tese decisiva de Heidegger eacute que em relaccedilatildeo a esta questatildeo natildeo eacute a palavra

loacutegica que tem primazia como na metafiacutesica tradicional mas eacute a palavra

poeacutetica e metafoacuterica que possui o poder originaacuterio de abrir uma clareira

Na perspectiva de Grassi o humanismo italiano assume uma particular

significaccedilatildeo e importacircncia histoacuterica para o presente em conexatildeo com esta tese

heideggeriana relativa ao fim da filosofia com a sua tese da dimensatildeo filosoacutefica

da palavra poeacutetica ele rompe com a tradiccedilatildeo metafiacutesica inaugurada por

Aristoacuteteles e retomada pelos medievais para a qual as linguagens retoacuterica e

poeacutetica satildeo excluiacutedas do campo das ciecircncias teoreacuteticas Esta tradiccedilatildeo fundada

na primazia da deduccedilatildeo racional dos entes persiste ao longo de toda a histoacuteria

do pensamento ocidental sendo reafirmada por Descartes e pelo idealismo

alematildeo em todos estes momentos da histoacuteria da filosofia se reafirmou o

mesmo modelo loacutegico de inteligibilidade do real e se excluiu da filosofia natildeo

972

ldquoTo summarize this thesis once again traditional metaphysics must today come to an end because it

began with the question of the rational foundation of what is In place of the question of the logical truth

Heidegger explains the much more original problem of unhidenness must take its place the question of

ldquoclearingrdquo (αιήζεηα) in which ldquowhat isrdquo first appears Here a new task for philosophy arises to uphold the

primacy and originality of poetic language over rational languageldquo Ibidem 26

486

apenas a retoacuterica mas toda a forma de pensamento metafoacuterico e imageacutetico

incluindo o pensamento poeacutetico como uma mera arte de persuasatildeo973

A tradiccedilatildeo humanista rompe com esta tradiccedilatildeo metafiacutesica e antecipa as teses

da primazia da linguagem poeacutetica e metafoacuterica relativamente agrave linguagem

loacutegica que encontramos em Heidegger 974

Grassi mostra que o ponto de vista de Heidegger contra o humanismo na sua

ceacutelebre Carta sobre o Humanismo se explica pela situaccedilatildeo hermenecircutica

dominante ou seja pela interpretaccedilatildeo jaacute estabelecida do humanismo italiano

esforccedilando-se por mostrar os fundamentos filosoacuteficos desse ponto de vista

universalmente aceite relativamente ao seu significado ldquoDesde o iniacutecio dos

estudos sobre o Humanismo haacute um seacuteculo com Burckhardt e Voigt ateacute

Cassirer Gentile e Garin os teoacutericos viram a essecircncia do Humanismo na

redescoberta do homem e dos seus valores imanentes Esta interpretaccedilatildeo

largamente disseminada eacute por exemplo a razatildeo pelo qual Heidegger - como

veremos - repetidamente entrou em poleacutemicas contra o humanismo como um

ingeacutenuo antropomorfismordquo975

Grassi contesta essa criacutetica de Heidegger defendendo que ela tem como

suporte quer as ambiguidades relativas agrave vigecircncia histoacuterica do humanismo

(geralmente identificado com o neoplatonismo e o renascimento do

aristotelismo do seacuteculo seguinte) quer a deslocaccedilatildeo da sua problemaacutetica

central que natildeo eacute o homem mas sim a questatildeo da linguagem como contexto

originaacuterio ou o horizonte de abertura no qual ele aparece

Este problema inteiramente novo e extriacutenseco agrave tradiccedilatildeo filosoacutefica natildeo foi

resolvido pelo humanismo atraveacutes de uma confrontaccedilatildeo loacutegica com a tradiccedilatildeo

metafiacutesica mas por meio de uma anaacutelise e interpretaccedilatildeo da linguagem em

especial da linguagem poeacutetica iniciada por poetas e natildeo por filoacutesofos Dante

d‟Alighieri em De vulgare Eloquentia et Convivio formulou pela primeira vez a

tese segundo a qual o poeta eacute o fundador da comunidade e por isso eacute ele o

que abre o caminho da historicidade tese retomada por outros humanistas

973

Ibidem17 974

Ibidem 17-18 975

ldquoFrom de beginning of the study of Humanism a century ago with Burckhart and Voigt to Cassirer

Gentile and Garin scholars have seen the essence of Humanism in the rediscovery of man and his

immanent values This widespread interpretation is for example the reason why Heidegger ndash as we will

see ndash repeatedly engaged in polemics against Humanism as a naiumlve anthropomorphismldquo Ibidem 17

487

como Boccacio e Salutati para os quais na linguagem poeacutetica aparecem na

sua significaccedilatildeo original os deuses as coisas e as criaturas significaccedilatildeo esta

que assume diferentes configuraccedilotildees histoacutericas

O humanismo italiano jaacute natildeo discute a questatildeo da relaccedilatildeo entre o pensamento

e a realidade no acircmbito duma concepccedilatildeo loacutegica de verdade mas sim o

aparecimento histoacuterico e a revelaccedilatildeo na linguagem de um novo mundo Foi a

incapacidade de entender e valorizar esta nova abordagem que induziu numa

avaliaccedilatildeo errada do significado histoacuterico e filosoacutefico da tradiccedilatildeo humanista ldquoSoacute

porque a pesquisa teoacuterica natildeo reconheceu suficientemente nem valorizou esta

nova abordagem e olhou sobretudo para os problemas teoacutericos e metafiacutesicos

no acircmbito da relaccedilatildeo entre o mundo e o pensamento foi possiacutevel teoacutericos como

Cassirer Curtius and Kristeller negarem que o Humanismo tivesse tido uma

significaccedilatildeo filosoacutefica decisiva e admitirem apenas o pensamento platoacutenico de

Ficino e o Aristotelismo da Renascenccedila como representativos da filosofia do

tempordquo976

Partindo destas consideraccedilotildees histoacutericas e teoacutericas Grassi conclui que a

definiccedilatildeo heideggeriana do pensamento ocidental como deduccedilatildeo metafiacutesica

exclusivamente fundada no problema da relaccedilatildeo entre o pensamento e a

realidade no quadro de uma concepccedilatildeo loacutegica da verdade natildeo eacute totalmente

correcta Na tradiccedilatildeo humanista existiu sempre uma preocupaccedilatildeo central pelo

problema do desvendamento e da abertura na qual o ser-aiacute pode

historicamente aparecer

Por esta razatildeo eacute necessaacuterio rever as nossas categorias histoacutericas e acima de

tudo questionar as noccedilotildees de humanismo e a sua identificaccedilatildeo com a

descoberta do homem e das suas capacidades antropomoacuterficas que

Heidegger recebeu da interpretaccedilatildeo instituiacuteda e que depois criticou

repetidamente

Grassi mostra que a tradiccedilatildeo humanista fundada na relaccedilatildeo com os autores da

Antiguidade no culto da poesia e da retoacuterica que dominou o pensamento

italiano no Renascimento e se prologou na eacutepoca do Barroco e do Maneirismo

976

ldquoOnly because scholarly research has not sufficiently recognized and appraised this new approach and

has looked must of all for metaphysical ant theoretical problems concerning the relationship between the

world and thought could such scholars as Cassirer Curtius and Kristeller deny that Humanism had a

decisive philosophical significance and admit only Ficino‟s Platonic thought and Renaissance

Aristotelianism as representative of the philosophy of the timerdquo Ibidem 1718

488

ateacute Vico e com a qual Descartes rompe explicitamente no Discurso do Meacutetodo

tem um significado filosoacutefico absolutamente decisivo e abre um campo

especulativo de grande interesse para o pensamento contemporacircneo pois

essa tradiccedilatildeo traz para primeiro plano a questatildeo da linguagem e permite

manter aberto o problema metafiacutesico da relaccedilatildeo entre o homem e o ser ldquoA

linguagem filosoacutefica jaacute natildeo eacute entendida como racional mas como aquela

linguagem atraveacutes da qual e na qual haacute uma clareira (Lichtung) na qual uma

idade uma autoridade um costume ou uma instituiccedilatildeo pode aparecer e

assumir o poder e na qual a sua natureza perigosa pode aparecer Em vez do

problema da verdade loacutegica como correspondecircncia (adaequatio) haacute a

necessidade de considerar o problema da ldquoemergecircnciardquo do ldquoaparecimentordquo ou

fainestai Em lugar da questatildeo da ratio e do seu meacutetodo de inferecircncia racional

noacutes enfrentamos a questatildeo da estrutura do ingenium no tratamento de Vives ou

de Gracian questatildeo que entatildeo se torna o toacutepico central do Maneirismo de

Tesauro e Pellegrini e finalmente em Vico Este eacute o problema da

ldquodesocultaccedilatildeordquo ou ldquodesvelamentordquo do realrdquo977

Se nos mantivermos no acircmbito desta concepccedilatildeo de humanismo proposta por

Ernesto Grassi teremos que reconhecer que este humanismo fundado na

primazia da linguagem poeacutetica e metafoacuterica teve uma importante presenccedila na

cultura portuguesa natildeo apenas no Renascimento onde a influecircncia italiana foi

notoacuteria mas ainda na retoacuterica do barroco

Estas teses da primazia da linguagem poeacutetica e metafoacuterica assim como o ideal

de cultura do homem integral salientados por Grassi como caracteriacutesticos do

humanismo italiano tiveram uma importante presenccedila entre noacutes atraveacutes da

pedagogia dos jesuiacutetas e da retoacuterica barroca como atraacutes demonstraacutemos Ora

estas teses foram recuperadas no princiacutepio do seacuteculo XX pelo movimento da

Nova Renascenccedila organizado em torno da revista Aacuteguia e estatildeo presentes no

977

Philosophical language is no longer understood as rational but as that language through which and in

which there is a ldquoclearingrdquo (Lichtung) in which an age an authority a custom or an institution can appear

and assume power and in which its dangerous nature can appear Instead of the logical problem of truth as

correspondence (adaequatio) there is a need to consider the problem of ldquoemergencerdquo or φαηνζζαη In

place of the question of ratio and its inferential method we face the question of the structure of the

ingenium in the treatment of Vives or Gracian a question that then becomes the main topic of thought in

the Mannerism of Tesauro and Pellegrini and finally in Vico This is the problem of the ldquouncoveringrdquo or

ldquounveilingrdquo of the realrdquo Ibidem 30

489

pensamento poeacutetico de Pascoaes978 tendo influenciado diversos pensadores e

poetas do seacutec XX com particular destaque para Fernando Pessoa979Vicente

Ferreira da Silva pela sua apologia dos mitos com Ur-poesie e ainda pela

defesa do ideal renascentista de cultura aproxima-se notavelmente desta

corrente e duma forma geral daquilo que Ernesto Grassi tipifica como

ldquohumanismordquo

Natildeo podemos deixar de reconhecer contudo que o pensador brasileiro se

confronta polemicamente com uma das temaacuteticas centrais da Renascenccedila

Portuguesa a reconciliaccedilatildeo entre o cristianismo miacutetico e o paganismo Sob o

signo da unidade entre Jesus e Patilde980 Pascoaes anuncia um novo tipo de

Homem fundado na siacutentese harmoniosa de duas grandes tradiccedilotildees que estatildeo

na raiz da cultura europeia o naturalismo da antiguidade claacutessica e a

espiritualidade cristatilde Jesus e Patilde configuram o enraizamento do homem na

natureza e a redescoberta da sacralidade da vida de que o discurso da

modernidade racionalista e poacutes cartesiana nos desviou

Eacute a possibilidade desta reconciliaccedilatildeo que estaacute presente tambeacutem no

pensamento escatoloacutegico de Agostinho da Silva981 do regresso agrave Idade do

Ouro e ecoa tambeacutem na poesia de Dora Ferreira da Silva De facto na sua

colectacircnea de poemas Uma Via de Ver as Coisas de 1973 encontramos a

mesma singular sobreposiccedilatildeo de paganismo grego e cristianismo evocando-se

as divindades gregas de Apolo Afrodite Mnemosineacute sendo no poema

ldquoSemprerdquo evocados momentos da paixatildeo de Cristo sob os tiacutetulos ldquoJesus leva a

Cruzrdquo ldquoFlagelaccedilatildeordquo ldquoCrucificaccedilatildeordquo

Em Talhamar de 1982 domina a omnipresenccedila do mar e da luz assim como da

mitologia grega e egiacutepcia (Poseidon Aacutertemis Afrodite Nakt Apolo Osiacuteris) na

estranha vizinhanccedila do Brasil cristatildeo da noite de Natal na missa no uacuteltimo dia

do ano

978

Pascoaes natildeo soacute defende a funccedilatildeo de abertura de mundo da linguagem poeacutetica reivindicada pelos

poetas italianos renascentistas como esse ideal de homem total que Grassi considera tiacutepico do

Renascimento italiano Cf Teixeira de Pascoaes O Homem Universal Lisboa 1937 979

Sobre este ideal de homem total na obra de Pessoa e a sua relaccedilatildeo com a heteroniacutemia cf Eduardo

Lourenccedilo Fernando Pessoa Rei da Nossa Baviera Lisboa 2008 196-201 980

Cf Teixeira de Pascoaes As sombras Agrave ventura Jesus e Patilde Lisboa 1996159-199 981

Comentando a oposiccedilatildeo de Agostinho da Silva tanto agrave noccedilatildeo de ortodoxo como de heterodoxo Braz

Teixeira mostra o pensamento de Agostinho da Silva como paradoxo que visa pensar os contraacuterios sendo

esse pensamento paradoxal que procura pensar o divino originaacuterio que se mostra tanto nos deuses do

paganismo como no deus uno e trino do cristianismo Cf Braz Teixeira ldquoAgostinho da Silva e o

pensamento russo algumas convergecircncias e afinidadesrdquo in Agostinho da Silva Pensador do Mundo a

Haver 91-98

490

Em ldquoCiclo da Montanhardquo englobado em Poemas da Estrangeira de 1995 a

mesma religiosidade de matriz teluacuterica associada agraves rochas aos rios agrave

ldquofloresta em chamasrdquo aparece estranhamente acompanhada pela evocaccedilatildeo

cristatilde da natividade em ldquoNoite de Natalrdquo

Em Eudoro de Sousa a criacutetica agraves religiotildees instituiacutedas e ao cristianismo como

tradiccedilatildeo acompanha a sua criacutetica ao mito teacircndrico982 mito que instala o

homem no pensamento categorial isto eacute na cisatildeo entre o humano o

sobrenatural e o natural Como superaccedilatildeo do mito teacircndrico Eudoro propotildee a

desumanizaccedilatildeo do homem983 entendida como disponibilidade para vir a ser

mais do que eacute para o regresso a uma religiosidade miacutetica e ritual capaz da

reinstauraccedilatildeo do ldquotriacircngulo do simboacutelico e da complementaridaderdquo a que acima

jaacute aludimos

Esta reinstauraccedilatildeo do simboacutelico eacute para Eudoro de Sousa o renascimento de

todas as religiotildees entendidas na sua dimensatildeo ritual isto eacute entendidas como

representaccedilatildeo dramaacutetica que celebra a unidade do divino do humano e da

natureza - cabendo aqui naturalmente o cristianismo (tomado numa dimensatildeo

miacutetica e ritual) ldquoReligiatildeo eacute representaccedilatildeo dramaacutetica E a representaccedilatildeo

consiste toda ela na construccedilatildeo de um daqueles triacircngulos do simboacutelico e do

complementar contanto que se ponha no veacutertice superior um deus algum

deus ou o proacuteprio Deusrdquo984

Eacute relevante ter em conta que Dora e Vicente visitaram frequentemente o grupo

Itatiaia comunidade de intelectuais brasileiros formada por Agostinho da Silva

nos anos 40 que tinha a sua sede num antigo mosteiro beneditino obedecia a

uma regra de vida comum tentando uma siacutentese entre paganismo e

cristianismo Embora natildeo participando da utopia de Itatiaia Dora e Vicente

deslocavam-se aiacute frequentemente a fim de conversar e filosofar com os

intelectuais presentes985

Eacute imperioso reconhecer a centralidade da criacutetica de Vicente ao Cristianismo

como a sua tese sobre a oposiccedilatildeo irreconciliaacutevel entre a parusia do homem e o

982

Este pseudo-mito segundo Eudoro de Sousa eacute o impulso de inteligibilidade que anima a ciecircncia e a

filosofia e igualmente o cristianismo enquanto doutrina ou seja enquanto teologia Cf Eduardo

Abranches de Soveral Pensamento Luso-Brasileiro estudos e ensaios 216-226 983

Eudoro de Sousa Mitologia Histoacuteria e Mito 283 984

Ibidem 322 985

Cf Constanccedila Marcondes Ceacutesar Vicente Ferreira da Silva Trajectoacuteria intelectual e contribuiccedilatildeo

filosoacutefica 26

491

paganismo e mostrar que ela eacute um corpo estranho ao pensar de todos estes

autores de liacutengua portuguesa Contudo como afirmava Heidegger o facto de

criticarmos uma tradiccedilatildeo natildeo implica que natildeo faccedilamos parte dela a criacutetica de

Vicente a esta temaacutetica central do nosso pensamento poeacutetico do seacuteculo XX natildeo

impede que o pensador brasileiro partilhe com estes pensadores um pensar

que busca um ideal de sabedoria em diaacutelogo com antiguidade afirme o papel

da linguagem mito-poeacutetica como lugar de desvelamento da verdade proponha

um mesmo ideal de cultura e pense o homem na direcccedilatildeo do divino

Afirma Braz Teixeira em O Sagrado no Pensamento de Vicente Ferreira da

Silva ldquoEacute oportuno sublinhar aqui o que haacute de convergente entre o pensamento

da uacuteltima fase da evoluccedilatildeo espiritual do filoacutesofo de Teologia e Anti-humanismo

e a visatildeo que sobre o paganismo e a presenccedila ou o regresso dos deuses

anteriores ao ciclo cristatildeo entre noacutes apresentaram os poetas-filoacutesofos Teixeira

de Pascoaes e Fernando Pessoardquo986

Em apoio desta tese Braz Teixeira sublinha oportunamente que para

Pascoaes paganismo e cristianismo constituem duas fases do mesmo

processo de manifestaccedilatildeo do divino e que Fernando Pessoa987 pela voz de

Ricardo Reis sustenta que os deuses do paganismo natildeo se foram mas

subsistem e vivem sendo apenas necessaacuterio que noacutes recuperemos a

capacidade de os ver atraveacutes do reatar da tradiccedilatildeo grega

Igualmente Paulo Borges referindo-se agrave manifestaccedilatildeo proteica e polimoacuterfica do

divino em Vicente Ferreira da Silva aproxima esta concepccedilatildeo do divino do

pensador brasileiro duma ldquosubstancial vertente do pensamento portuguecircs

contemporacircneo [assumida] com especial ecircnfase em Antero Pascoaes

Pessoa Eudoro e Agostinho da Silvardquo988

Vicente singulariza-se neste movimento pela radicalidade da sua apologia dum

regresso ao politeiacutesmo e do paganismo apenas possiacutevel sobre as cinzas do

986

Cf Antoacutenio Braz Teixeira em ldquoO Sagrado no Pensamento de Vicente Ferreira da Silvardquo in Mito e

Cultura Actas do V coloacutequio Tobias Barreto Lisboa 2001 91 987

Sobre o paganismo transcendental de Fernando Pessoa cf Maria Helena Varela Silva Conjunccedilotildees

Filosoacuteficas Luso-Brasileiras 53-65 Segundo a autora os vaacuterios heteroacutenimos seriam muacuteltiplas

perspectivas ou muacuteltiplos pontos de vista de uma Weltanschauung muacuteltiplos rostos de um paganismo

metafiacutesico que sobretudo na figura do V impeacuterio assume a forma duma aspiraccedilatildeo universalizante agrave

reintegraccedilatildeo da totalidade das religiotildees 988

Paulo Alexandre Esteves Borges ldquoDo perene regresso da filosofia agrave caverna da danccedila e do drama

iniciaacutetico Rito e Mito em Vicente Ferreira da Silva e Eudoro de Sousardquo in Mito e Cultura Actas do V

coloacutequio Tobias Barreto Lisboa 2001 101

492

cristianismo posiccedilatildeo que natildeo eacute partilhada pelos pensadores portugueses

Contudo se tivermos em conta como Grassi que o essencial para delimitar o

conceito de Humanismo eacute reconhecimento da primazia da linguagem poeacutetica

assim como da questatildeo do desvendamento do ser Vicente tal como Pascoaes

e Pessoa pertencem cada um a seu modo a essa tradiccedilatildeo humanista

De facto podemos ainda sublinhar que a questatildeo antropoloacutegica eacute abordada por

todos estes autores de liacutengua portuguesa numa mesma direcccedilatildeo que Miguel

Real sublinha para destacar o peculiar humanismo de Ferreira da Silva ldquo Ao

contraacuterio do que se mostra na filosofia ldquointra-mundanardquo que se subdivide em

muacuteltiplas perspectivas distintas ou contrapostas como as do idealismo

realismo materialismo etc poder-se-ia dizer que do ponto de vista radical

aceito por Vicente soacute haacute duas direcccedilotildees filosoacuteficas fundamentais uma que se

propotildee o problema do homem e das coisas a partir do homem mesmo outra

que pensa o homem e as coisas a partir de Deus pondo-se o pensador

ousadamente na perspectiva original do Divino Eacute nesta segunda posiccedilatildeo que

se situa o mestre paulista sobretudo a comeccedilar de dois trabalhos

intencionalmente incisivos como a Carta Sobre o Humanismo de Heidegger

refiro-me a ldquoideias para um novo conceito de Homem de 1951 e a Teologia e

Anti-humanismo de 1953rdquo989

5 A traduccedilatildeo como Ereignis em Vicente Ferreira da Silva

Um conhecimento directo dos textos de Heidegger lidos em alematildeo e

compreendido na sua referecircncia ao contexto da filosofia e da poesia alematilde

(Schelling Hegel Nietzsche e Houmllderlin) e um conjunto de motivaccedilotildees

enraizadas no seu proacuteprio contexto cultural possibilitaram a Vicente uma

autecircntica interpretaccedilatildeo no sentido que a filosofia hermenecircutica deu a este

termo

Assim o diaacutelogo de Vicente com Heidegger apresenta-se como paradigmaacutetico

do que eacute definido por Heidegger como uma autecircntica compreensatildeo

compreender uma filosofia natildeo significa aceitar sem mais o que nela se

encontra estabelecido mas repetir originariamente o que foi compreendido a

989

Miguel Reale Estudos de Filosofia Brasileira 202

493

partir da proacutepria situaccedilatildeo do inteacuterprete e do ponto de vista imposto pela

situaccedilatildeo

Vicente Ferreira da Silva enunciava da seguinte forma como sua principal

originalidade relativamente a Heidegger ldquoHeidegger reportava agrave desocultaccedilatildeo

do ente isto eacute agraves possibilidades historiaacuteveis a forccedila iluminadora do ser

Interpretar esta desocultaccedilatildeo natildeo como Poesia mas sim como Protopoesia

isto eacute como Mitologia eis o que constitui o coeficiente de originalidade da

minha tese Em outras palavras essa originalidade consiste na tentativa de

uma aproximaccedilatildeo entre o uacuteltimo Heidegger e a Filosofia da Mitologia de

Schellinghellip Mas haacute mais procurei dar agrave experiecircncia do Ser uma tonalidade

emocional e pulsional compreendendo esta experiecircncia como Fascinaccedilatildeo A

presenccedila dos Deuses eacute o traccedilado originaacuterio do Fascinator eacute aquela proto-

poesia que condiciona e envolve todas aquelas consecutivas ldquoaberturas da

palavrardquordquo990

Para elaboraccedilatildeo deste ponto de vista original Vicente faz uma siacutentese do

pensamento de Heidegger com Schelling Nietzsche e Houmllderlin tendo sido

igualmente importantes os trabalhos no acircmbito da religiatildeo e dos mitos de

Bachofen e Walter Otto A importacircncia determinante destas fontes germacircnicas

de Vicente era aliaacutes acentuada por ele proacuteprio que afirmava que a

problemaacutetica dos mitos natildeo nascera duma investigaccedilatildeo do passado miacutetico da

cultura brasileira mas sim dos estudos de Schelling Otto e Kereacuteny991

Em resposta a Enzo Paci que na Revista Brasileira de Filosofia tecia

consideraccedilotildees acerca da originalidade do pensamento latino-americano face

ao pensamento europeu apontando Vicente Ferreira da Silva como um

exemplo desta mesma originalidade o pensador brasileiro negava qualquer

fundamento a essas consideraccedilotildees negando qualquer autonomia ou

originalidade ao pensamento sul-americano que considerava ldquoum mero

prolongamento post-renascentista da civilizaccedilatildeo europeiardquo992

Contudo Juliaacuten Mariacuteas que conheceu Vicente Ferreira da Silva em 1954 por

ocasiatildeo do Congresso Internacional de Filosofia e criou com ele uma duraacutevel

990

Vicente Ferreira da Silva ldquoEnzo Paci e o Pensamento Sul-Americanordquo in Revista Brasileira de

Filosofia vol V Fasc II Satildeo Paulo 1955 289 991

Cf ldquoO Pensamento de Vicente Ferreira da Silvardquo in Convivium Maio-Junho de 1972 p178 992

Cf Vicente Ferreira da Silva ldquoEnzo Pazi e o Pensamento Sul-Americanordquo in Revista Brasileira de

Filosofia volV fasc II Satildeo Paulo 1955 287

494

amizade analisando a vocaccedilatildeo filosoacutefica de Vicente afirmava rdquoVicente Ferreira

da Silva tinha uma profunda vocaccedilatildeo filosoacutefica ndash razatildeo pela qual natildeo ensaiava

especulaccedilotildees sobre ldquoo americanordquo mas procurava fazer filosofia ndash mas a sua

vocaccedilatildeo era circunstancial tinha que filosofar a partir do Brasil Sua

circunstacircncia primeira era a de Satildeo Paulo a cidade e o Estado e o Brasil

inteiro com a sua diversidade seus conflitos e seu misteacuterio e o continente sul-

americano Estava nas vizinhanccedilas de uma selva e como sentiu a significaccedilatildeo

de Holzwege ainda com a distacircncia da Floresta Negra agrave Amazoacutenia Estava

rodeado de mitos vivos ativos entrelaccedilados com a religiatildeo cristatilde com a

poliacutetica com toda a possiacutevel interpretaccedilatildeo racional da realidade que fosse

concreta e portanto verdadeirardquo993

Alargando a noccedilatildeo de circunstacircncia agrave tripla condiccedilatildeo de habitante do

continente sul-americano de falante da liacutengua portuguesa e de pertenccedila a um

espaccedilo cultural latino partimos da hipoacutetese de que esta circunstacircncia

determinou a situaccedilatildeo hermenecircutica de Vicente possibilitando a elaboraccedilatildeo

deste ponto de vista interpretativo original da filosofia heideggeriana e

orientando a siacutentese das diversas fontes

Efectivamente a experiecircncia viva do mito no Brasil encontra-se com a memoacuteria

da Europa preacute-heleacutenica ainda viva na poesia de liacutengua portuguesa e

estudadas por Eudoro de Sousa Bachofen e Kereacuteny assim como com o

mundo da religiatildeo homeacuterica estudada por Walter Otto

Pocircr a descoberto a significaccedilatildeo dos mitos como desvendamento originaacuterio do

ser e demonstrar a primazia dessa Ur-Poesie sobre toda a linguagem humana

foram as motivaccedilotildees que Vicente pocircde encontrar na sua ldquovida faacutecticardquo e

desenvolver pelas leituras de autores latinos como Julius Evola Reneacute Gueacutenon

e mais tarde Eudoro de Sousa de cujo pensamento ele se aproxima de modo

notaacutevel Estas motivaccedilotildees possibilitaram-lhe interrogar os textos

heideggerianos com especial destaque a Carta Sobre o Humanismo Houmllderlin

e a Essecircncia da Poesia Sobre A Essecircncia da Verdade Sobre a Essecircncia do

Fundamento Os Caminhos de Floresta A Coisa Sobre a Essecircncia da teacutecnica

e Introduccedilatildeo agrave Metafiacutesica a partir desta problemaacutetica especiacutefica

993

Juliaacuten Mariacuteas ldquoUma Vocaccedilatildeo Filosoacuteficardquo in Convivium Maio-Junho de 1972 187

495

Podemos concluir que este ponto de vista interpretativo possibilitou a Vicente

uma compreensatildeo global e unificada do pensamento heideggeriano rara para

eacutepoca Natildeo haacute duacutevida que Vicente viu na viragem do segundo Heidegger natildeo

uma ruptura com a analiacutetica existencial de Ser e Tempo mas sim um seu

complemento Mas o que importa salientar eacute que Vicente viu na radical ruptura

com a metafiacutesica da subjectividade e com o humanismo nele fundado levada a

cabo por Heidegger na Carta Sobre o Humanismo a abertura de uma

possibilidade de compreender a linguagem dos mitos como linguagem que natildeo

depende do homem mas sim de um ditado projectante do ser e de assim

fundar uma Filosofia da Mitologia

Nesta elaboraccedilatildeo de uma Filosofia da Mitologia Vicente faz de muitos

conceitos de Heidegger uma apropriaccedilatildeo expropriadora que natildeo deixa o

sentido intacto mas essa transmutaccedilatildeo de sentido eacute quase sempre expliacutecita e

conscientemente assumida por Vicente o que podemos exemplificar com a sua

retomaccedilatildeo da temaacutetica heideggeriana da diferenccedila ontoloacutegica e do seu

discurso sobre o ser

A diferenccedila ontoloacutegica eacute para Vicente a diferenccedila entre o que pode ser

oferecido como ente agrave consciecircncia vigilante do homem e o oferecer

transcendente e transhumano que se daacute ocultando-se simultaneamente Se as

vaacuterias mitologias satildeo documentos originaacuterios do ser algumas delas estatildeo mais

perto da Fonte originaacuteria ou seja desse domiacutenio transcendente obscuro e

pulsional do Ser e podem ser tomadas como aproximaccedilotildees legiacutetimas ao seu

oculto domiacutenio Eacute a experiecircncia religiosa primordial da presenccedila fascinante dos

deuses como forccedila atractiva irresistiacutevel que pode proporcionar-nos na oacuteptica

de Vicente uma experiecircncia idoacutenea do ser como fundo oculto da realidade e

inexauriacutevel fonte de atracccedilotildees

Assim Vicente pretende corrigir Heidegger e criticar as ldquometaacuteforas da luzrdquo do

discurso heideggeriano sobre o ser como traduzindo a contaminaccedilatildeo da

compreensatildeo heideggeriana do ser pelo racionalismo e a problemaacutetica do

conhecimento994 Vicente pretende salientar pelo contraacuterio a dimensatildeo

pulsional do ser pensando-o como poder de sugestatildeo e fascinaccedilatildeo eroacuteticas

Sugestor e Fascinador o Ser eacute simultaneamente o que projecta essecircncias e

994

Vicente Ferreira da Silva ldquoIntroduccedilatildeo agrave Filosofia da Mitologiardquo in Dialeacutectica das Consciecircncias e

outros ensaios 374

496

suscita paixotildees uma potecircncia desocultante e propositora de mundos Porque o

ser natildeo eacute unicamente prodigalizador de essecircncias mas suscitador de paixotildees

o traccedilar do ente correspondente a cada abertura de mundo manifesta-se

primariamente como um campo emocional e apenas secundariamente como

desenhar de essecircncias ou de representaccedilotildees

Para Vicente a existecircncia humana eacute irresistivelmente ldquoarrebatadardquo por um foco

excecircntrico pelo descerramento projectante do proacuteprio ser que descerra em

cada caso um modo de sentir-se ou uma configuraccedilatildeo afectiva ldquoExistiria

mesmo uma primazia do encontrar-se afectivo no interior do ente em relaccedilatildeo

ao prospeccionar-se projectivo do ente O desvelamento iluminante do ente se

daria portanto como um stimmend Seinlassen von Seienden como franquia

emocional do ente descobertordquo995

Os deuses da mitologia satildeo arqueacutetipos que manifestam forccedilas atractivas sobre-

humanas e o mundo eacute para Vicente pensado em termos ceacutenicos como teatro

ritual de muacuteltiplos desempenhos ou ldquoabertura de fascinaccedilatildeordquo que constitui o

ldquoonderdquo e ldquono qualrdquo o Homem como um ente fascinado se vecirc lanccedilado pelo

poder desocultante do Fascinator ldquoO ser eacute o poder desocultante ou revelador

O Ser eacute o fascinator que faz irromper um espaccedilo de desempenhosrdquo996

Inversamente o Homem natildeo eacute para Vicente um ente que possui as luzes da

razatildeo e que eacute capaz de alguma margem de distanciaccedilatildeo mas eacute um ser

arrebatado e fascinado por um foco transcende e exterior que o arrebata

irresistivelmente ldquoA ipseidade compreensiva natildeo estaacute em noacutes esta ipseidade

que traccedila e abre a revelaccedilatildeo do ente eacute o que Heidegger daacute o nome de

iluminaccedilatildeo do ser (Lichtung des Seins) Esta luz este foco originaacuterio natildeo eacute o

lumen naturale da mente humana mas pelo contraacuterio eacute o desvelar ek-staacutetico

desse foco que permite a entrada no mundo (Welt eingang) do nosso ser e da

nossa menterdquo997

O ser eacute o foco fascinante que recorta o mundo sob um fundo de obscuridade e

de misteacuterio e que por isso se furta ele mesmo a toda a compreensatildeo humana

Mas o ser natildeo eacute apenas negativamente pensado por Vicente como natildeo-ente -

995

Ibidem 374 996

Vicente Ferreira da Silva rdquoA Experiecircncia do Divino Nos Povos Auroraisrdquo Diaacutelogo nordm 1 1955 in

Dialeacutectica das Consciecircncias e outros ensaios 368 997

Vicente Ferreira da Silva ldquoO Homem e Sua proveniecircnciardquo in Dialeacutectica das Consciecircncias e outros

ensaios 335336

497

ele eacute pensado positivamente como o poder de Eros da Noite e do Caos das

Antigas Mitologias universo nocturno e prototiacutepico em que forccedilas sobre-

humanas decidem o traccedilado do Mundo

No entanto afirma Vicente esta dimensatildeo abissal e arrebatadora do ser

estaria tambeacutem presente em Heidegger ldquoEis porque Heidegger relaciona a

proximidade do Ser com a experiecircncia do estranho do espantoso (Ungeheure)

desde que essa experiecircncia nos remete ao Poder selvagem e incalculaacutevel que

comanda a instruccedilatildeo dos mundosrdquo998

Podemos segundo Vicente pressupor o Ser como ldquoum puro foco fascinanterdquo

ldquopoder maacutegico-encantatoacuteriordquo e simultaneamente ldquodomiacutenio tendencioso e

ameaccediladorrdquo que dita tendenciosa e arbitrariamente a posiccedilatildeo e destruiccedilatildeo dos

mundos Eacute esta dupla faceta do tremendum e fascinante inerente a toda a

experiecircncia originaacuteria do sagrado que nos revela o Ser como o

incompreensiacutevel e infundado fundamento ou Ab-grund

Vicente pensa a temaacutetica do humanismo a partir da contradiccedilatildeo entre

cristianismo e paganismo o enfrentamento com esta temaacutetica tatildeo importante

na poesia de liacutengua portuguesa mostra que a criacutetica histoacuterica de Vicente fixou a

sua atenccedilatildeo numa questatildeo crucial da nossa tradiccedilatildeo poeacutetica e reconheceu a

sua originariedade

Efectivamente esta temaacutetica ocorre jaacute em Camotildees na Liacuterica Camoniana

emerge uma nova imagem de mundo que Eduardo Lourenccedilo em Poesia e

Metafiacutesica999 torna patente como um mundo contraditoacuterio dilacerado pela

ldquocega e clarividente pulsatildeo da vida que outrora o paganismo encarnava no

Deus Patilderdquo e o ldquoMediador por excelecircncia o Deus-homem e o homem-Deus

estendido na cruz da vidardquo

Em Camotildees o recurso agrave mitologia natildeo eacute como em muitos humanistas um

mero recurso estiliacutestico mas o trazer agrave presenccedila um sentimento coacutesmico e

religioso da vida que se reconhece como forccedila sagrada e eroacutetica de que Veacutenus

eacute um dos nomes possiacuteveis e as muacuteltiplas aparecircncias belas a seduccedilatildeo

sensiacutevel Contudo esta sensualidade pagatilde corre ao lado de uma religiosidade

cristatilde que torna patente a miseacuteria da condiccedilatildeo humana e o desejo de redenccedilatildeo

998

Vicente Ferreira da Silva ldquoIntroduccedilatildeo agrave Filosofia da Mitologiardquo in Dialeacutectica das Consciecircncias e

outros ensaios 375 999

Eduardo Lourenccedilo Poesia e Metafiacutesica Lisboa 2002 10

498

num outro mundo do espiacuterito O sentimento da impossibilidade de conciliar

estes dois mundos anima todo o poema Babel e Siatildeo e aiacute aparece como

recusa em misturar dois cantos liacutericos tatildeo distintos1000

Na poesia portuguesa do seacuteculo XX esta temaacutetica eacute retomada de modo

original Alguns destes autores familiarizados com o tema nietzschiano da

morte de Deus que interpretam como o anuacutencio do eclipse do catolicismo

instituiacutedo apelam a um renascimento dum sentimento religioso que se traduz

na sua obra pela exploraccedilatildeo de temaacuteticas por vezes ligadas ao culto pagatildeo da

natureza por vezes a temas cristatildeos como a Natividade o Paraiacuteso e o Inferno

a Crucificaccedilatildeo

Guiados por uma filosofia panteiacutesta estes poetas levam a cabo uma

interpretaccedilatildeo heterodoxa do cristianismo agora tomado natildeo como religiatildeo

revelada mas como mais uma religiatildeo natural ou cultural (embora de caraacutecter

superior) que expressa uma aspiraccedilatildeo da proacutepria natureza O Cristo histoacuterico

eacute para estes autores uma figura miacutetica e simboacutelica associada a um desejo de

reintegraccedilatildeo e de redenccedilatildeo jaacute natildeo apenas humana mas universal isto eacute

coacutesmica

Eacute esta dupla matriz religiosa cuja reconciliaccedilatildeo Teixeira de Pascoaes o

fundador da Nova Renascenccedila anuncia no poema Jesus e Patilde que igualmente

anima de modos diversos algumas das obras de Guerra Junqueiro Raul

Brandatildeo Fernando Pessoa Agostinho da Silva e da poesia de Dora Ferreira

da Silva Relativamente agrave singularidade desta Renascenccedila Portuguesa que

pretende defender Teixeira de Pascoaes afirma ldquoO nosso povo [hellip] concebeu

a ideia-sentimento fonte da nova e verdadeira Renascenccedila pois a

Renascenccedila Italiana de que Goethe Wagner e Nietzsche satildeo descendentes eacute

obra individual de alguns artistas de geacutenio e natildeo realizou a fundo a fusatildeo

perfeita e viva do Paganismo com o Cristianismo dado o caraacutecter

exclusivamente pagatildeo dos italianosrdquo1001

A criacutetica de Vicente a este tema da reconciliaccedilatildeo entre paganismo e

cristianismo relanccedilado na cultura portuguesa e brasileira contemporacircneas

mostra que ele reconheceu o caraacutecter oringinaacuterio desta temaacutetica mas que

pretende pensar mais radicalmente esse novo sentimento do divino Em

1000

Ibidem 17-35 1001

Teixeira de Pascoaes ldquoAinda o Saudosismo e a Renascenccedilardquo in A Aacuteguia II seacuterie nordm 12 1912 187

499

Vicente o desvelamento do ser eacute manifestaccedilatildeo do divino natildeo como presenccedila

constante mas como experiecircncia do abismo do tempo trata-se do

esquecimento dos deuses em fuga que se retiraram do mundo e do

pressentimento dum novo iniacutecio de contornos indefinidos

Por outro lado vimos que o anuacutencio deste novo iniacutecio deve ser correlacionado

com a sua apologia do humanismo renascentista Vicente reconhece

implicitamente a sua pertenccedila a essa tradiccedilatildeo humanista que em Portugal (e

em seguida no Brasil) teve uma importantiacutessima expressatildeo na poesia

renascentista e na retoacuterica do periacuteodo barroco e foi no seacuteculo XX recuperada

pela Nova Renascenccedila de Pascoaes projectando-se no pensamento poeacutetico

contemporacircneo de liacutengua portuguesa

A posiccedilatildeo de Vicente relativa ao humanismo aproxima-se na realidade mais da

de Grassi e da de Teixeira de Pascoaes do que da de Heidegger uma vez que

com a sua distinccedilatildeo entre um periacuteodo de apogeu e de decadecircncia da tradiccedilatildeo

humanista ele visa na realidade dois tipos de humanismo diferentes um de

matriz francesa racionalista e cartesiana que estaria na geacutenese do homem

unidimensional da teacutecnica outro de matriz poeacutetica e retoacuterica e de origem

italiana que estaria na geacutenese do ideal do homem proteico que Vicente tal

como Grassi e Teixeira de Pascoaes aceitava como heranccedila a preservar

Este ponto de vista eacute directamente confirmado por Ernesto Grassi que em

Recordaccedilatildeo e Metaacutefora recordando Vicente Ferreira da Silva por ocasiatildeo da

sua morte afirma ldquoVicente era solidaacuterio com o seu povo de raccedilas diversas que

se fundem entretanto num soacute foco e cujos estratos profundos tecircm uma

expressatildeo teluacuterica constataacutevel em seus usos e costumes Sentia-se por outro

lado um representante daquela linha de pensamento que no Ocidente foi

defendida por GB Vico Schelling e finalmente pelo existencialismordquo1002 Se

tivermos em mente que para Grassi Vico fora o expoente maacuteximo do

humanismo italiano e aquele que lhe deu um soacutelido fundamento filosoacutefico

podemos concluir que o filoacutesofo italiano natildeo tinha qualquer duacutevida em filiar

Vicente nesta corrente humanista e em testemunhar a consciecircncia de Vicente

de pertenccedila a essa mesma tradiccedilatildeo

Efectivamente se estivermos dispostos a rever as nossas categorias histoacutericas

e acima de tudo questionar as noccedilotildees de humanismo e a sua identificaccedilatildeo

1002

Ernesto Grassi ldquoRecordaccedilatildeo e Metaacuteforardquo in Convivium Maio-Junho de 1972 203

500

com a descoberta do homem e das suas capacidades antropomoacuterficas mas

aceitarmos com Grassi que a tradiccedilatildeo humanista fundada na relaccedilatildeo com os

autores da Antiguidade no culto da poesia e da retoacuterica traz para primeiro

plano a questatildeo da linguagem vendo na linguagem poeacutetica e metafoacuterica o

lugar de desvendamento do ser natildeo teremos problemas em integrar Vicente

Ferreira da Silva nessa tradiccedilatildeo

De facto Vicente retoma a tese de Grassi de que o humanismo que dominou o

pensamento italiano no Renascimento e se prologou na eacutepoca do barroco e do

maneirismo ateacute Vico irradiando tambeacutem para Portugal e com a qual Descartes

rompe explicitamente no Discurso do Meacutetodo tem um significado filosoacutefico

absolutamente decisivo e abre um campo especulativo de grande interesse

para o pensamento contemporacircneo Eacute preciso ainda sublinhar que Vicente

identifica mesmo essa tradiccedilatildeo humanista como uma matriz fundamental do

Ocidente

A obra escrita por Vicente apoacutes o encontro com ldquo o segundo Heideggerrdquo eacute pois

uma traduccedilatildeo autecircntica nela ecoam muacuteltiplas vozes e se estabelece um

verdadeiro diaacutelogo1003 no qual a tradiccedilatildeo humanista tem um importante papel

Se este diaacutelogo nem sempre atingiu o equiliacutebrio de uma perfeita harmonia ele

abriu uma nova via de acesso ao pensamento de Heidegger e tem pela sua

singularidade e pelo seu caraacutecter originaacuterio o caraacutecter de um Ereignis de um

ldquoacontecimento propiacuteciordquo onde acontece um novo desvelamento do ser

1003

Sobre a traduccedilatildeo como diaacutelogo onde ecoam muacuteltiplas vozes cf comunicaccedilatildeo de Irene Borges-Duarte

ao Congresso de Lausanne (Idem rdquoEl idioma de la interpretatioacuten Kant en los Beitraumlgerdquo in Heideggers

Beitraumlge zur Philosophie Frankfurt am Main 2009 153-170) El taller-atelier de traduccioacuten es

seguramente el mas sensible acircmbito de la experiencia dialoacutegica del pensar En eacutel no solo se trata de leer y

entender lo que un original dice sino ademaacutes de hallar su logos-articulacioacuten e encaje ndash explicitando en

outro idioma lo a menudo solo impliacutecito e impeliendo lo percebido haci esse espaccedilo intermeacutedio ndash

inbterpres ndash en el que lo dicho resuena auacuten sin fijar-se en una formulacioacuten definitiva como en un hueco

de muacuteltiplos acordes que vagando al fin se despejam Esse despejar-se ldquoahigraverdquo significa un singular

encuentro de vozes[hellip]

501

Conclusatildeo - A traduccedilatildeo como viagem entre diferentes margens

502

503

1 A histoacuteria das traduccedilotildees portuguesas de filosofia e a decisatildeo pelo

futuro da liacutengua

O significativo atraso da traduccedilatildeo filosoacutefica em liacutengua portuguesa significou que

o nosso paiacutes acompanhou com um importante desfasamento de cerca de dois

seacuteculos um dos aspectos fundamentais da modernidade europeia a utilizaccedilatildeo

das liacutenguas nacionais para a comunicaccedilatildeo cientiacutefica e filosoacutefica1004

Este atraso de dois seacuteculos na adopccedilatildeo dum movimento regular de traduccedilatildeo

teve como consequecircncia o nosso desfasamento em relaccedilatildeo agrave filosofia

moderna que se produzia nas diversas liacutenguas europeias constituindo-se

como um importante factor de impedimento agrave investigaccedilatildeo de novos problemas

filosoacuteficos

Todavia se tivermos em conta que a ausecircncia de traduccedilatildeo da filosofia

europeia coincidiu com a extinccedilatildeo ou com a existecircncia precaacuteria do ensino da

filosofia nas universidades teremos que interrogar-nos sobre o significado

desta coincidecircncia e seremos conduzidos a ver nestes dois factos da nossa

histoacuteria um mesmo e uacutenico fenoacutemeno mais abrangente trata-se da ruptura com

a tradiccedilatildeo filosoacutefica que natildeo mais pocircde transmitir-se a partir do conhecimento

directo dos textos e da discussatildeo dos problemas levantados pela sua

interpretaccedilatildeo Tratou-se da perda crescente de conexatildeo com a proacutepria histoacuteria

da filosofia e os grandes textos que constituem referecircncias indispensaacuteveis para

a constituiccedilatildeo de uma tradiccedilatildeo designadamente os grandes textos da filosofia

grega

Como acima vimos apesar da ordem para que os professores dos Coleacutegios

natildeo se afastassem em caso algum da doutrina de Aristoacuteteles na realidade os

pensadores da Segunda Escolaacutestica fizeram uma releitura de Aristoacuteteles

visando adaptaacute-lo ao espiacuterito humanista em vigor como tambeacutem aos novos

problema eacuteticos poliacutetico-juriacutedicos emergentes do novo mundo criados pelos

descobrimentos pela expansatildeo ibeacuterica e pela colonizaccedilatildeo assim como pela

difusatildeo do cristianismo num grande diversidade de contextos culturais Daqui

emergiu uma reflexatildeo sobre a retoacuterica (loacutegica toacutepica de Pedro da Fonseca)

uma filosofia poliacutetica uma filosofia do direito e uma filosofia da histoacuteria (Luiacutes de

Molina) originais

1004

Cf Apecircndice 1 do presente trabalho bdquoTraduccedilotildees de Filosofia em ligravengua portuguesa ateacute 1959rdquo

504

A extinccedilatildeo administrativa desta tradiccedilatildeo assim como a inexistecircncia de

traduccedilotildees portuguesas dos textos latinos dos autores da Segunda Escolaacutestica

foram um seacuterio obstaacuteculo agrave transmissatildeo e agrave actualizaccedilatildeo de uma tradiccedilatildeo

humanista que teve grande importacircncia na Europa e que em Portugal

representou um momento de genuiacuteno questionamento filosoacutefico

Esta tradiccedilatildeo entendida no sentido que Grassi lhe daacute de uma tradiccedilatildeo filosoacutefica

que se distingue do racionalismo da filosofia moderna pela primazia dada natildeo

aos problemas do conhecimento mas agrave linguagem poeacutetica e retoacuterica e agrave

reflexatildeo sobre as criaccedilotildees linguiacutesticas do homem como a poliacutetica o direito e a

moral esteve efectivamente presente em Portugal tendo marcado

decisivamente a liacutengua e a cultura portuguesas atraveacutes da obra retoacuterica do Pe

Antoacutenio Vieira considerada ateacute hoje uma obra modelar de utilizaccedilatildeo da liacutengua

Sobre a influecircncia desta tradiccedilatildeo retoacuterica pode alguma coisa inferir-se do facto

de o primeiro autor traduzido para liacutengua portuguesa ter sido Ciacutecero1005

No entanto a ausecircncia de traduccedilatildeo dos textos latinos da Segunda Escolaacutestica

implicou quer a interrupccedilatildeo deste diaacutelogo com a filosofia grega (Aristoacuteteles)

quer a impossibilidade de actualizaccedilatildeo desta tradiccedilatildeo por confronto com os

autores da filosofia moderna ou de discussatildeo e contestaccedilatildeo dos seus

pressupostos filosoacuteficos Toda a poleacutemica que marcou a entrada da filosofia

moderna em Portugal se centrou em questotildees relacionadas com o meacutetodo de

ensino

Esta tradiccedilatildeo que entra em fase agonizante apoacutes a Reforma Pombalina natildeo

deixa no entanto de se misturar de forma ecleacutectica com a apropriaccedilatildeo da

filosofia moderna e contemporacircnea importadas quase sempre atraveacutes de

traduccedilotildees francesas - o que ilustra de forma notaacutevel a tese heideggeriana de

que uma tradiccedilatildeo morta natildeo deixa de actuar na cultura e determinar o

pensamento soacute que tal ocorre de forma inconsciente

Sobre esta importaccedilatildeo exclusiva da filosofia atraveacutes das traduccedilotildees francesas

que perdurou ateacute ao iniacutecio do seacuteculo XX tivemos ocasiatildeo de demonstrar na

sequecircncia das luacutecidas observaccedilotildees de Antero de Quental que ela nos colocou

sob a alccedilada de decisotildees alheias relativamente ao que eacute importante ler e

induziu agrave importaccedilatildeo superficial de modas filosoacuteficas como foi o caso do

1005

Cf As traduccedilotildees de Ciacutecero no periacuteodo pombalino no cap A do Apecircndice 1

505

positivismo e a um mimetismo cultural sintomaacutetico da renuacutencia ao pensar por

si mesmo que eacute essencialmente a filosofia

A oposiccedilatildeo ao monopoacutelio cultural francecircs e ao domiacutenio exclusivo das suas

fontes emergiu com Antero de Quental que representou um seacuterio esforccedilo no

sentido de uma abertura mais global agrave cultura europeia e sobretudo de

recuperaccedilatildeo da conexatildeo com os centros do pensamento filosoacutefico que

entretanto se tinham haacute muito deslocado para a Alemanha Mais importante eacute

sublinhar que o diaacutelogo de Antero com a filosofia alematilde contribuiu largamente

para difundir a discussatildeo de temas e problemas metafiacutesicos com repercussotildees

na poesia na literatura e na cultura portuguesa em geral

A consciecircncia de Antero da importacircncia da traduccedilatildeo filosoacutefica foi um caso

isolado no seacuteculo XIX mas haveria de frutificar no iniacutecio do movimento de

traduccedilatildeo filosoacutefica regular no periacuteodo da Primeira Repuacuteblica1006 podemos aiacute

destacar quer o nuacutemero elevado de traduccedilotildees de filosofia grega quer a

traduccedilatildeo de autores alematildees que tiveram uma importante influecircncia na

literatura portuguesa do tempo como Schopenhauer e Nietzsche

A recepccedilatildeo de Heidegger em liacutengua portuguesa1007 foi feita em condiccedilotildees

muito mais favoraacuteveis do que ocorrera com a restante filosofia do idealismo

alematildeo porque realizada jaacute num periacuteodo em que quer em Portugal quer no

Brasil se encontrava jaacute abalado o monopoacutelio cultural francecircs com o iniacutecio das

traduccedilotildees portuguesas de filosofia e com a ligaccedilatildeo a outros centros

universitaacuterios europeus sublinhemos que em Portugal um sistema de bolsas

possibilitava o contacto com importantes centros universitaacuterios

designadamente na Alemanha e que no Brasil a Revista Ocidente difundia a

influecircncia da cultura alematilde

Com efeito uma autecircntica apropriaccedilatildeo da obra de um autor que se situa noutro

horizonte histoacuterico-linguiacutestico exige como condiccedilatildeo preacutevia um movimento em

direcccedilatildeo a essa ldquoaberturardquo no qual essa obra se inscreve e a partir do qual

deve ser compreendida

Esta breve sinopse da histoacuteria das traduccedilotildees portuguesas de filosofia natildeo pode

deixar de salientar alguns aspectos significativos a inexistente traduccedilatildeo

portuguesa dos textos latinos da escolaacutestica peninsular o facto do monopoacutelio

1006

Cf Cap C do Apecircndice 1 1007

Cf Apecircndice 2 ldquoCronologia da recepccedilatildeo de Heidegger em ligravengua portuguesardquo

506

cultural francecircs estar associado agrave ausecircncia de traduccedilatildeo portuguesa de filosofia

e em terceiro lugar o facto de o deslocamento da atenccedilatildeo em relaccedilatildeo a outras

fontes do pensamento europeu designadamente alematildes ter estimulado o

iniacutecio do movimento de traduccedilatildeo

Para apreendermos verdadeiramente o significado desse atraso de quase dois

seacuteculos na adopccedilatildeo dum ritmo mais ou menos regular de traduccedilatildeo filosoacutefica

em liacutengua portuguesa assim como das opccedilotildees de traduccedilatildeo que foram

tomadas podemos tomar como ponto de partida a afirmaccedilatildeo de Heidegger em

Der Ister de que na decisatildeo de traduzir os grandes poetas e os grandes

pensadores assim como na escolha de qual a liacutengua estrangeira que vamos

aprender joga-se na realidade uma decisatildeo fundamental sobre o destino da

nossa proacutepria liacutengua ldquoA decisatildeo que assim acontece na escolha da liacutengua

estrangeira eacute na verdade uma decisatildeo sobre a nossa proacutepria liacutengua

nomeadamente a decisatildeo sobre se noacutes tambeacutem soacute usamos a proacutepria liacutengua

como instrumento teacutecnico ou se a valorizamos como oculto altar que

pertencendo ao ser conserva em si a essecircncia do homemrdquo 1008

Assim a efectiva decisatildeo da traduccedilatildeo dos grandes autores natildeo eacute na realidade

uma decisatildeo que nos coloca no acircmbito dum pensamento estrangeiro mas

muito pelo contraacuterio uma decisatildeo que diz respeito ao futuro da nossa proacutepria

liacutengua e agrave sua efectiva vigecircncia histoacuterica como liacutengua em que se joga e se

decide o destino do ser e do pensar do homem

2 A interpretaccedilatildeo como traduccedilatildeo apropriada

Relativamente agrave recepccedilatildeo de Heidegger estes pensadores portugueses e

brasileiros natildeo procuraram a coincidecircncia com um suposto sentido absoluto da

obra mas fizeram dela uma apropriaccedilatildeo a partir de diferentes nuacutecleos

temaacuteticos e questotildees filosoacuteficas diversas que permitiram distintas direcccedilotildees

interpretativas

Esta diversidade de interpretaccedilotildees confirma antes de mais aquela indicaccedilatildeo

de Gadamer relativamente aos textos de Heidegger como exemplificativos do

1008

ldquoDie Entscheidung die so bei der Wahl der fremden Sprachen fӓllt ist in Wahrheit eine Entscheidung

uumlber unsere eigene Sprache die Entscheidung nӓmlich ob wir auch die eigene Sprache nur als ein

technisches Instrument gebrauchen oder sie als den verborgenen Schrein wuumlrdigen der zum Sein

gehoumlrig das Wesen des Menschen in sich verwahrtrdquo HHIGA 53 81

507

conceito hermenecircutico de ldquotextordquo como comunicaccedilatildeo escrita capaz de

radicalizar a negatividade da experiecircncia hermenecircutica Como tivemos ocasiatildeo

de referir Gadamer salientava que a linguagem hermeacutetica dos textos

heideggerianos cuja interpretaccedilatildeo se revela particularmente poleacutemica tem

como funccedilatildeo fazer com que essa negatividade inscrita na experiecircncia

hermenecircutica do texto abra aos seus leitores uma via de acesso agrave questatildeo do

Ser acesso que segundo Heidegger seria sistematicamente obstruiacutedo pela

linguagem decaiacuteda da tradiccedilatildeo metafiacutesica

O rigor na interpretaccedilatildeo e a fidelidade ao sentido de um tal discurso a que

cabe de forma eminente o conceito hermenecircutico de ldquotextordquo natildeo eacute aceder agrave

sua verdade intemporal - empresa impossiacutevel e condenada ao fracasso - mas

aceder ao horizonte de interrogaccedilatildeo no interior do qual se pode determinar a

sua orientaccedilatildeo semacircntica

Ora noacutes pudemos constatar que as interpretaccedilotildees portuguesas e brasileiras de

Heidegger no periacuteodo considerado superaram as distorccedilotildees iniciais

advenientes da mediaccedilatildeo francoacutefona encaminhando-se no sentido da sua

adequada compreensatildeo efectivamente uma interpretaccedilatildeo inicial

existencialista e humanista de Heidegger que o aproximava do existencialismo

de Sartre foi sendo corrigida com o progressivo acesso agraves publicaccedilotildees das

suas obras posteriores alcanccedilando-se uma compreensatildeo da sua obra como

um percurso com diversas etapas unificado pela questatildeo do ser e da

linguagem

Desde logo da anaacutelise das traduccedilotildees feitas no periacuteodo em apreccedilo ressalta que

uma das primeiras traduccedilotildees realizadas quer no Brasil quer em Portugal foi a

da Carta Sobre o Humanismo1009 obra que natildeo podia deixar de corrigir num

puacuteblico mais vasto de natildeo especialistas a interpretaccedilatildeo humanista e

existencialista de Heidegger assim como suscitar grande interesse dado o

facto de a linguagem poeacutetica aiacute se ver elevada a linguagem originaacuteria o que vai

de encontro agrave nossa proacutepria tradiccedilatildeo

Mas se eacute a experiecircncia hermenecircutica do texto que pela sua intriacutenseca

negatividade pode fazer emergir a questatildeo enquanto tal natildeo basta no entanto

que um texto se torne objecto de interpretaccedilatildeo pondo uma questatildeo ao

1009

Carta Sobre o Humanismo trad de Emmanuel Carneiro Leatildeo Rio de Janeiro 1966 trad de Arnaldo

Stein Lisboa 1973

508

inteacuterprete Eacute ainda necessaacuterio para compreender adequadamente um texto

compreender esta questatildeo ganhando um horizonte de interrogaccedilatildeo a partir

daquilo que estaacute para caacute do texto isto eacute a partir da situaccedilatildeo hermenecircutica do

inteacuterprete

Eacute este horizonte de interrogaccedilatildeo enraizado na situaccedilatildeo hermenecircutica do

inteacuterprete que noacutes podemos constatar nestes pensadores portugueses e

brasileiros a questatildeo do ser e da linguagem foi por eles articulada com a

preocupaccedilatildeo pelo proacuteprio contexto cultural e desenvolvida em conexatildeo com

temas emergentes no contexto do seu presente histoacuterico

Como Heidegger explicou nas Interpretaccedilotildees Fenomenoloacutegicas de Aristoacuteteles

toda a investigaccedilatildeo relativamente agrave histoacuteria da filosofia deve estar conectada

com a preocupaccedilatildeo com o presente histoacuterico traduzindo no plano da

actividade teoreacutetica o cuidado do homem pelo seu mundo Eacute este cuidado pelo

seu mundo que podemos surpreender em quase todos estes comentadores de

Heidegger em liacutengua portuguesa a preocupaccedilatildeo com os problemas do direito

da educaccedilatildeo e da criaccedilatildeo literaacuteria marcaram a primeira recepccedilatildeo de

Heidegger mostrando de que modo a analiacutetica existencial de Ser e Tempo

podia contribuir para resolver problemas em aberto na cultura portuguesa

numa segunda fase a ruptura do segundo Heidegger com a metafiacutesica da

subjectividade e a concepccedilatildeo heideggeriana da primazia da linguagem poeacutetica

como pocircr-se-em- obra da verdade do ser permitiram uma nova reflexatildeo sobre a

religiatildeo e os mitos problemas que marcavam jaacute uma presenccedila viva na cultura

brasileira e na tradiccedilatildeo poeacutetica portuguesa1010 a reflexatildeo sobre a importacircncia

da acccedilatildeo nas suas vaacuterias dimensotildees eacutetica poliacutetica e esteacutetica jaacute lanccedilada na

filosofia brasileira alcanccedilou nova elaboraccedilatildeo na sua relaccedilatildeo com a temaacutetica

heideggeriana da finitude ontoloacutegica e constituiu-se como ponto de vista

hermenecircutico e criacutetico sobre a ontologia de Heidegger

No entanto como tambeacutem demonstrou Gadamer esse horizonte de

interrogaccedilatildeo enraizado no presente histoacuterico tem de ser alargado num

movimento de retorno agrave tradiccedilatildeo em que o texto necessariamente se inscreve

ao opor uma questatildeo ao texto noacutes vamos necessariamente para laacute do texto

1010

Cf Teixeira de Pascoaes Os Poetas Lusiacuteadas Porto 1919 e ainda Eduardo Lourenccedilo Poesia e

Metafiacutesica Lisboa 2002

509

em direcccedilatildeo agrave interrogaccedilatildeo agrave qual ele se apresenta como resposta e que

admite necessariamente outras respostas remetendo para outros textos

Esse horizonte de interrogaccedilatildeo que estaacute para aleacutem do texto soacute pode ser ganho

num movimento de retorno agrave tradiccedilatildeo em que ele se inscreve e este retorno agrave

tradiccedilatildeo afigura-se para Gadamer essencial pois eacute como vimos esse encontro

com a tradiccedilatildeo que pode rectificar os preconceitos negativos e puramente

subjectivos que o inteacuterprete necessariamente leva consigo e que se introduzem

sub-repticiamente no trabalho hermenecircutico desfigurando o texto que haacute que

interpretar e atraiccediloando o seu sentido

Delfim Santos apresentou-se-nos a certo momento do seu comentaacuterio ao

pensamento de Heidegger como um exemplo particularmente significativo

destes preconceitos subjectivos que se introduzem no trabalho hermenecircutico

Expressando a sua preocupaccedilatildeo por um programa humanista de compreensatildeo

do homem afirma em Fundamentaccedilatildeo Existencial da Pedagogia ldquoA tendecircncia

desantropomorfizante do pensamento ocidental a partir do Renascimento eacute soacute

parcialmente vaacutelida Ela pretendeu impedir a transposiccedilatildeo do humano na

natureza Natildeo pode contestar-se a fecundidade e a importacircncia de tal

programa o que eacute radicalmente contestaacutevel eacute a situaccedilatildeo inversa que realizou

a transposiccedilatildeo da natureza no humanordquo1011

Este preocupaccedilatildeo de Delfim Santos pela ldquoantropomorfizaccedilatildeordquo do homem

projectou-se sobre a sua compreensatildeo de Heidegger produzindo uma

compreensatildeo distorcida de Ser e Tempo o que pode ser constatado pela

leitura dos seus artigos atraacutes referidos1012ldquoHeideggerrdquo e ldquoTemaacutetica Existencialrdquo

de 1950 Se tivermos em conta que este uacuteltimo artigo foi publicado jaacute depois da

Carta Sobre o Humanismo de 1946 assim como a ressonacircncia que um tal

texto teve em toda a Europa teremos de considerar que a sua interpretaccedilatildeo da

filosofia heideggeriana como uma antropologia e um humanismo natildeo eacute uma

distracccedilatildeo mas uma ldquoquedardquo no ecletismo e na apreensatildeo inapropriada que

caracterizou a recepccedilatildeo portuguesa da filosofia moderna e contemporacircnea

Este curioso exemplo de projecccedilatildeo do proacuteprio horizonte hermenecircutico sobre a

coisa a interpretar ficaraacute mais claro se atendermos agrave criacutetica agraves tendecircncias

1011

Delfim Santos Fundamentaccedilatildeo Existencial da Pedagogia Lisboa Graacutefica Lisbonense 1946 in

Obras Completas II Lisboa 1982 439 1012

Cf as referecircncias a estes artigos no capiacutetulo II da segunda parte deste trabalho 270271

510

positivistas presentes na cultura portuguesa a que Delfim Santos contrapotildee

uma compreensatildeo humanista da cultura claramente expressa no artigo

ldquoHumanismo e Culturardquo ldquoSe definirmos o humanismo como processo de

revelaccedilatildeo do humano no homem temos de concluir que natildeo haacute cultura sem

uma base humanista que lhe sirva de suporte Uma cultura que natildeo tenha um

conceito de humanismo a defender eacute uma cultura sem fundamento e uma

cultura sem fundamento natildeo merece ser chamada de culturardquo1013

Este ldquopreconceitordquo humanista de Delfim Santos assume um significado

relevante porque se relaciona com essa difiacutecil e natildeo apropriada relaccedilatildeo com a

tradiccedilatildeo filosoacutefica mais antiga e enraizada na cultura portuguesa

A mistura apressada e inconsciente dos dois horizontes hermenecircuticos (o do

texto e do seu inteacuterprete) eacute expressamente proibida por Heidegger - tanto

quanto a pura e simples negaccedilatildeo e exclusatildeo - como inadequadas a uma

autecircntica apropriaccedilatildeo ldquoPois agrave partida onde o estrangeiro eacute conhecido e

reconhecido na sua essencial oposiccedilatildeo subsiste a possibilidade da autecircntica

relaccedilatildeo e por isso da apropriaccedilatildeo que natildeo eacute uma simples mistura mas

diferenciaccedilatildeo articuladora onde pelo contraacuterio soacute subsiste o repelir o

estrangeiro ou ateacute o destruiacute-lo perdem-se simultaneamente a possibilidade de ir

atraveacutes do estrangeiro e a de regressar ao proacuteprio sendo assim o ldquosi mesmordquo

tambeacutem perdidordquo1014

O reconhecimento da contradiccedilatildeo entre o humanismo entendido como

antropocentrismo e a filosofia heideggeriana foi protagonizado por Vicente

Ferreira da Silva que fundamentando-se numa leitura atenta da Carta sobre o

Humanismo e reconhecendo a importacircncia central desta obra estava em

condiccedilotildees de rectificar aquela maacute interpretaccedilatildeo de Delfim Santos

Podemos concluir que a interpretaccedilatildeo dos textos de Heidegger teve ela mesma

o caraacutecter de um acontecer apresentando-se como uma tarefa inconclusa e

aberta Trazendo o sentido da obra de Heidegger para o presente vivo do

diaacutelogo em liacutengua portuguesa os seus comentadores portugueses e brasileiros

1013

Delfim Santos ldquoHumanismo e Culturardquo Diaacuterio Popular 13 de Maio de 1943 in Obras Completas

tomo III Lisboa 1982 341 1014

bdquoDenn erst dort wo das Fremde in seiner wesenhaften Gegensӓztlichkeit erkannt und anerkannt ist

besteht die Moumlglichkeit der echten Beziehung und dh der Einigung die nicht wirre Vernichtung

sondern fuumlgende Unterscheidung ist Wo es dagegen nur dabei bleibt das Fremde zuruumlckzuweisen oder

gar zu vernichten geht notwendig die Moumlglichkeit des Durchgangs durch das Fremde und damit die

Moumlglichkeit der Heimkehr ins Eigene und damit dieses selbst verlorenrdquo HHI GA 53 6768

511

introduziram-na no movimento dialeacutectico da questatildeo e da resposta que eacute a

essecircncia do trabalho hermenecircutico movimento que se revela ele mesmo capaz

de produzir uma amplificaccedilatildeo e uma recriaccedilatildeo do sentido do texto

O que aqui parece no entanto indispensaacutevel sublinhar eacute que estas

interpretaccedilotildees portuguesas e brasileiras de Heidegger permitem confirmar que

toda a grande obra precisa de ser traduzida e essa necessidade de traduccedilatildeo eacute

intriacutenseca agrave obra mesmo como explicitaccedilatildeo de possibilidades de sentido que

ela conteacutem mas que ainda natildeo foram expressas

Uma verdadeira apropriaccedilatildeo apropria-se dessas possibilidades

desenvolvendo-as na interpretaccedilatildeo ndash natildeo o faz poreacutem arbitrariamente mas de

acordo com o que de certo modo lhe estaacute jaacute prescrito pelo seu proacuteprio

horizonte histoacuterico-linguiacutestico

Podemos pois concluir que se a traduccedilatildeo da obra de Heidegger para as vaacuterias

liacutenguas abriu as muacuteltiplas perspectivas e desdobrou as suas possibilidades de

sentido tal ocorreu tambeacutem em Portugal e no Brasil embora talvez sem

alcanccedilar a ressonacircncia doutras interpretaccedilotildees em liacutenguas em que a traduccedilatildeo

de filosofia estaacute haacute muito solidamente implantada

Natildeo podemos poreacutem deixar de concluir que os passos dados na traduccedilatildeo e

no comentaacuterio da obra de Heidegger significaram uma possibilidade de

clarificar e desenvolver a proacutepria liacutengua portuguesa pois eacute sempre ldquoatraveacutes da

discussatildeo com aquilo que eacute estrangeirordquo1015 que noacutes alargamos as

possibilidades da proacutepria liacutengua

De facto pensamos poder afirmar que os comentaacuterios agrave obra de Heidegger

escaparam agrave queda no desterro (Bodenlosigkeit) da repeticcedilatildeo mecacircnica de

teorias e conceitos desterro que entre noacutes assumiu no passado demasiadas

vezes a forma da importaccedilatildeo dogmaacutetica das ldquomodas filosoacuteficasrdquo e da mais

avulsa e superficial publicitaccedilatildeo quando natildeo a da simples e administrativa

imposiccedilatildeo A leitura directa da obra de Heidegger em alematildeo levada a cabo por

estes inteacuterpretes e a elaboraccedilatildeo e fundamentaccedilatildeo de diversos pontos de vista

compreensiacuteveis em liacutengua portuguesa enriqueceram o nosso repertoacuterio

linguiacutestico e abriram novas possibilidades de questionamento a maneiras haacute

muito instaladas e habituais de pensar

1015

ldquoDas Uumlbersetzen ist vielmehr eine Erweckung Klaumlrung Entfaltung der eigenen Sprache durch die

Hilfe der Auseinandersetzung mit der fremdenrdquo HHI GA 53 80

512

Pudemos ainda ver que estes diversos pontos de vista interpretativos da

filosofia de Heidegger constituiacuteram diversas modalidades de traduccedilatildeo do seu

pensamento para o contexto histoacuterico-linguiacutestico portuguecircs e brasileiro Assim

a habitual separaccedilatildeo entre traduccedilatildeo e interpretaccedilatildeo deve ser de acordo com

os pressupostos hermenecircuticos de que partimos e que pudemos confirmar

recorrendo aos textos secundarizada face ao reconhecimento de que uma

interpretaccedilatildeo eacute necessariamente uma traduccedilatildeo para um outro contexto natildeo

essencialmente porque se trate duma transposiccedilatildeo para outra liacutengua (o que eacute

aqui o caso) mas porque entre o presente da obra e o presente da sua leitura e

interpretaccedilatildeo existe um inevitaacutevel desfasamento ldquoNatildeo haacute em geral nenhuma

traduccedilatildeo no sentido de que a palavra de uma liacutengua poderia ou deveria ser

trazida agrave concordacircncia com a palavra da outra Esta impossibilidade natildeo deve

contudo conduzir agrave desvalorizaccedilatildeo da traduccedilatildeo como um simples fracassar

Pelo contraacuterio a traduccedilatildeo pode ateacute mesmo por isso trazer agrave luz conexotildees que

na verdade existem na liacutengua traduzida mas natildeo foram expressas A partir

daqui reconhecemos que cada traduccedilatildeo tem que ser uma interpretaccedilatildeo Mas

ao mesmo tempo eacute vaacutelido o contraacuterio cada interpretaccedilatildeo e tudo o que se

encontra ao seu serviccedilo satildeo um traduzir1016

3 A tradiccedilatildeo humanista e a traduccedilatildeo filosoacutefica

No curso sobre Parmeacutenides do semestre de Inverno de 194243 Heidegger

aborda a questatildeo do humanismo em conexatildeo com a temaacutetica da traduccedilatildeo

Na perspectiva de Heidegger os romanos traduziram a filosofia grega a partir

da experiecircncia histoacuterica do Imperium isto eacute do comandare e imperare sobre

povos distintos impondo-lhes o estado de sujeiccedilatildeo da pax romana atraveacutes da

lei e da justiccedila romanas Eacute esta experiecircncia do comandare e regere que

determina a traduccedilatildeo de aletheia como veritas entendida como justeza e

rectidatildeo do enunciado que deriva dum correcto uso da razatildeo

1016

Es gibt uumlberhaupt keine Uumlbersetzung in dem Sinne daβ das Wort der einen Sprache mit dem Wort der

anderen zur Deckung gebracht werden koumlnnte oder auch duumlrfte Diese Unmoumlglichkeit soll jedoch

wiederum nicht dazu verleiten die Uumlbersetzung im Sinne eines bloβen Versagens abzuwerten Im

Gegenteil Die Uumlbersetzung kann sogar Zusammenhӓnge ans Licht bringen die in der uumlbersetzten

Sprache zwar liegen aber nicht herausgelegt sind Hieraus erkennen wir daβ jedes Uumlbersetzen ein

Auslegen sein muβ Zugleich gilt aber auch das Umgekehrte Jede Auslegung und alles was in ihrem

Dienst steht ist ein Uumlbersetzenldquo HHI GA 53 75

513

O Humanismo identificado com a Renascenccedila Italiana seria essencialmente o

retomar desta interpretaccedilatildeo latina do pensamento grego originaacuterio traduccedilatildeo

responsaacutevel pela mutaccedilatildeo histoacuterica da essecircncia da verdade e pelo desterro do

pensamento ocidental A Renascenccedila Italiana e o humanismo estariam pois

essencialmente ligados ao relanccedilar deste acontecimento histoacuterico fundamental

e nessa medida teriam projectado a moderna metafiacutesica da subjectividade

que veio a interpretar a verdade como atributo da razatildeo calculadora e da

vontade de poder

Eacute neste mesmo sentido que Heidegger critica Nietzsche atribuindo-lhe uma

interpretaccedilatildeo romana dos gregos fundada em Burckhardt cujo pensamento

histoacuterico estaria sob a influecircncia do renascimento italiano e por isso pensaria

a histoacuteria sob o fundamento de trecircs potecircncias o Estado a religiatildeo e a

cultura1017

No entanto eacute na Carta sobre o Humanismo que o humanismo eacute trazido para o

lugar de questatildeo central e posto em correlaccedilatildeo com a apropriaccedilatildeo natildeo

originaacuteria isto eacute deformadora e descontextualizada dos conceitos gregos

designadamente do conceito grego de ldquopaideiardquo que veio a ser traduzida por

Humanitas e assim identificada com os studia humanitatis ldquoSomente na

eacutepoca da repuacuteblica romana humanitas eacute pela primeira vez expressamente

pensada e visada sob este nome Contrapotildee-se o hommo humanus ao homo

barbarus O homo humanus eacute aqui o romano que eleva e enobrece a virtus

romana atraveacutes da ldquoincorporaccedilatildeordquo da paideia herdada dos gregos [] Em

Roma encontramos o primeiro humanismo Ele permanece por isso em sua

essecircncia um fenoacutemeno especificamente romano que emana do encontro da

romanidade com a cultura do helenismo A assim chamada Renascenccedila dos

seacuteculos XIV e XV em Itaacutelia eacute uma renascentia humanitatis [hellip] tambeacutem o homo

romanus do Renascimento estaacute numa oposiccedilatildeo com o homo barbarus

Todavia o in-humano eacute agora o assim chamado barbarismo da Escolaacutestica

Goacutetica da Idade Meacutedia Agrave compreensatildeo histoacuterica do humanismo pertence por

isso um studia humanitatis que de uma certa maneira retoma a Antiguidade e

1017

ldquoBurckhardt betrachtet das Griechentum in Hinblick auf die bdquogriechische Kulturgeschichteldquo Damit

meint er bdquodie Geschichte des griechischen Geistesldquo Die Begriffe des bdquoGeistesldquo und der bdquoKulturldquo sind wie

immer man sie immer auch umgrenzen mag Vorstellungen des neuzeitlichen Denkens Jakob Burckhardt

hat diesen Vorstellungen aus dem Blick auf die von ihm entdeckte bdquoitalienische Renaissanceldquo ein

besonderes Gepraumlge gegeben Auf diesem Weg flieβen wesentlich roumlmische und romanische und

neuzeitliche Begriffe in das Geschichtsdenken J Burckhardts ein Burckhardt denkt das Ganze der

Geschichte nach den drei ldquoPotenzenrdquo bdquoStaatldquo bdquoReligionldquo und bdquoKulturldquo P GA 54 134135

514

assim respectivamente tambeacutem se transforma num renascimento da grecidade

Isto mostra-se no neo-humanismo do seacuteculo XVIII que foi entre noacutes sustentado

por Winckelmann Goethe e Schiller Houmllderlin pelo contraacuterio natildeo pertence ao

humanismo e isto porque ele pensa o destino da essecircncia do homem de uma

maneira mais originaacuteria do que esse humanismo o permiterdquo 1018

Da mesma maneira na perspectiva de Heidegger na traduccedilatildeo latina de δῷολ

ιoacuteγολ ἔχολ por animal rationale natildeo haacute uma inofensiva traduccedilatildeo mas uma

traduccedilatildeo que implica uma interpretaccedilatildeo metafiacutesica da essecircncia do homem

esta traduccedilatildeo visa determinar a especificidade do ente humano relativamente

aos outros entes e assim lanccedilou o Ocidente numa arrogante afirmaccedilatildeo da

humanidade do homem apostada no esquecimento do ser

Pelo contraacuterio Houmllderlin que como referimos eacute para Heidegger o modelo de

traduccedilatildeo autecircntica representa a possibilidade de um acesso ao sentido

originaacuterio dos termos gregos pelo facto de evitar a mediaccedilatildeo das traduccedilotildees

latinas pondo os textos gregos em correlaccedilatildeo imediata com a liacutengua alematilde

Franco Volpi em O Problema da intraduzibilidade e a romanidade filosoacutefica natildeo

contesta esta intenccedilatildeo de ir directamente aos gregos evitando a mediaccedilatildeo das

traduccedilotildees latinas que eacute em si mesma legiacutetima mas sim a tentativa de

subalternizar o latim e as liacutenguas latinas como liacutenguas filosoacuteficas interrogando-

se sobre o sentido da contiguidade desta posiccedilatildeo do filoacutesofo alematildeo com a

desvalorizaccedilatildeo da romanidade tiacutepica do pangermanismo1019

Efectivamente esta criacutetica de Heidegger agraves traduccedilotildees latinas da filosofia grega

apesar de focar alguns aspectos pertinentes ignora a preocupaccedilatildeo de rigor

1018

Ausdruumlcklich unter ihrem Namen wird die Humanitas zum ersten Mal bedacht und erstrebt in der Zeit

der roumlmischen Republik Der homo humanus setzt sich dem homo barbarus entgegen Der homo humanus

ist hier der Roumlmer der die roumlmische virtus erhoumlht und veredelt durch die bdquo Einverleibungldquo der von den

Griechen uumlbernommenen παηδεία[] In Rom begegnen wir dem ersten Humanismus Er bleibt daher im

Wesen eine spezifisch roumlmische Erscheinung die aus der Begegnung des Roumlmertums mit der Bildung des

spaumlten Griechentums entspringt Die sogenannte Renaissance des 14 und 15Jahrhunderts in Italien ist

eine renascentia romanitatis [] Auch der homo romanus der Renaissance steht in einem Gegensatz zum

homo barbarus Aber das In-humane ist jetzt die vermeintliche Barbarei der gotischen Scholastik des

Mittelalters Zum historisch verstandenen Humanismus gehoumlrt deshalb stets ein studium humanitatis das

in einer bestimmten Weise auf das Altertums zuruumlckgreift und so jeweils auch zu einer Wiederbelebung

des Griechentums wird Das zeigt sich im Neuhumanismus des 18 Jahrhunderts bei uns der durch

Winckelmann Goethe und Schiller getragen ist Houmllderlin dagegen gehoumlrt nicht in den bdquoHumanismusldquo

und zwar deshalb weil er das Geschick des Wesens des Menschen anfӓnglicher denkt als dieser

bdquoHumanismusldquo es vermagldquo Buh GA 9 320 1019

Franco Volpi sublinha que esta posiccedilatildeo de Heidegger relativamente ao latim contradiz uma

multiplicidade de referecircncias latinas de Ser e Tempo (Seacuteneca e Santo Agostinho) e aparece pela primeira

vez nas obras dos anos 30 em sincronia com o pangermanismo Cf Franco Volpi ldquoEl Problema de la

Intraducibilidad y la romanidad filosoacuteficardquo in Heidegger Linguagem e Traduccedilatildeo 540-541

515

filoloacutegico dos renascentistas e o significado que os humanistas atribuiacuteam agrave

filologia Como demonstrou Grassi em Verteidigung des Individuellen Lebens a

primazia do problema da linguagem atravessa todo o humanismo italiano em

ligaccedilatildeo com a tarefa de traduccedilatildeo para o Latim dos textos gregos e conduz ao

papel central da filologia Segundo Grassi no domiacutenio da filologia os

renascentistas levam a cabo uma revoluccedilatildeo relativamente ao saber medieval

tatildeo radical como aquela que foi levada a cabo no domiacutenio das modernas

ciecircncias da natureza Efectivamente contrariamente aos medievais que

abordavam os textos da antiguidade na expectativa de aiacute encontrar uma

confirmaccedilatildeo do cristianismo os renascentistas partem do princiacutepio de que eacute

necessaacuterio deixar-nos instruir pelas liacutenguas da antiguidade escutando o dizer

das palavras e interpretando-as no contexto da obra

Os renascentistas efectuaram uma pesquisa relativamente aos princiacutepios que

devem orientar o trabalho filoloacutegico pesquisa essa que assume uma

importacircncia filosoacutefica fundamental uma vez que potildee em jogo uma concepccedilatildeo

do homem e da natureza da linguagem ldquoEm que consiste por conseguinte o

problema filosoacutefico que desde o princiacutepio dos Studia Huamanitatis a autecircntica

Filologia traz consigo Compreender ldquoabrirrdquo a palavra significam na tradiccedilatildeo

humanista ldquodesenvolver a essecircncia do homem mesmordquo pelo que a Filologia o

amor pela palavra natildeo eacute uma ciecircncia singular entre as outras mas toma o

lugar da Filosofia e tem como objecto a essecircncia do homem por isso ela eacute

studia humanitatis pois a palavra eacute aqui entendida como momento da

determinaccedilatildeo do homem como δῷολ ιoacuteγολ ἔχολ e ganha assim um papel

condutorrdquo1020

Assim para Grassi natildeo eacute hegemonia do latim que caracteriza essencialmente

o humanismo mas antes a primazia e o papel determinante da linguagem e

das liacutenguas De facto apesar de os humanistas terem feito da restauraccedilatildeo e

cultivo das liacutenguas claacutessicas um aspecto essencial da sua estrateacutegia cultural

puseram tambeacutem pela primeira vez em causa a hegemonia do latim como

liacutengua filosoacutefica Como Leonel Ribeiro demonstra em Linguagem Retoacuterica e

1020

ldquoWorin liegt also das philosophische Problem das von Anfang an die studia humanitatis die

unverfaumllschte Philologie in sich traumlgt Das Wort zu verstehen zu entfalten bedeutet in der

humanistischen Tradition das ldquoWesen des Menschen selbst zu entwickelnrdquo wobei die Philologie die

Liebe zum Wort nicht mehr eine einzelne Wissenschaft unter anderen bleibt sondern den Rang der

Philosophie erhaumllt und zum Gegenstand das Wesen des Menschen hat deswegen studia humanitatis den

das Wort ist hier als Bestimmungsmoment des Menschen als δῷον λoacuteγον ἔχον verstanden und gewinnt

daher eine Fuumlhrende Rollerdquo Ernesto Grassi Verteidigung des individuellen Lebens 159

516

Filosofia no Renascimento alguns humanistas como Luiacutes Vives Speroni e

Giordano Bruno fizeram a apologia da traduccedilatildeo nas liacutenguas vulgares e do

pensar na proacutepria liacutengua 1021

Anaacuteloga eacute a posiccedilatildeo de Gadamer cuja avaliaccedilatildeo positiva da tradiccedilatildeo

humanista como heranccedila europeia crucial natildeo deixa qualquer duacutevida quer em

Das Erbe Europas1022 quer em Wahrheit und Methode O sentido essencial

desta tradiccedilatildeo estaacute para Gadamer associado agrave retomaccedilatildeo do conceito

aristoteacutelico de phronesis traduzido por Vico como sensus comunis ldquoA apologia

do humanismo que Vico leva a cabo estaacute [hellip] mediada pela pedagogia dos

jesuiacutetas e orientada tanto contra Descartes como contra o jansenismo Este

manifesto pedagoacutegico de Vico estaacute como o seu projecto de uma ldquociecircncia

novardquo fundado em verdades antigas Ele ocupa-se aiacute do sensus comunis do

sentido comum e do ideal humanista da eloquentia Momentos que jaacute estavam

presentes no antigo conceito de sabedoriardquo1023

Explicitando a sua tese de que o sensus comunis actualiza o sentido essencial

da phronesis aristoteacutelica como um saber comum e geral Gadamer afirma ldquoO

sensus comunis significa aqui evidentemente natildeo apenas aquela capacidade

geral que existe em todo o homem mas eacute ao mesmo tempo o sentido que

institui a comunidade O que daacute agrave vontade humana a sua direcccedilatildeo pensa Vico

natildeo eacute a abstracta generalidade da razatildeo mas a generalidade concreta que

representa a comunidade de um grupo de um povo de uma naccedilatildeo ou do

conjunto do geacutenero humanordquo1024

Gadamer encontra aqui a essecircncia da cultura - a construccedilatildeo de um sentido

geral e comum pelo encontro com a alteridade no exerciacutecio do diaacutelogo isto eacute

na experiecircncia viva da linguagem numa comunidade tarefa que estava

1021

Cf Leonel Ribeiro dos Santos Linguagem Retoacuterica e Filosofia no Renascimento Lisboa 2004

158167 1022

Cf Maria Adelaide Pacheco bdquoA Europa como legado em Gadamerldquo in Razatildeo e Liberdade

Homenagem a Manuel Joseacute Carmo Ferreira Lisboa 2010 vol II 14231443 1023

bdquoDie Verteidigung des Humanismus die Vico vornimmt ist [] durch die jesuitische Paumldagogik

vermittelt und ebensosehr wie gegen Descartes auch gegen den Jansenismus gerichtet Dieses

paumldagogische Manifest Vicos ist wie sein Entwurf einer bdquoneuen Wissenschaftldquo auf alte Wahrheiten

gegruumlndet Es beruft sich auf den sensus comunis den gemeinschaftlichen Sinn und auf das

humanistische Ideal der eloquentia Momente die schon in dem antiken Begriff des Weisen gelegen

warenldquo WuM GW I 25 1024

bdquoSensus comunis meint hier offenkundig nicht nur jene allgemeine Faumlhigkeit die in allen Menschen

ist sondern er ist zugleich der Sinn der Gemeinsamkeit stiftet Was dem menschlichen Willen seine

Richtung gebe meint Vico sei nicht die abstrakte Allgemeinheit der Vernunft sondern die Konkrete

Allgemeinheit die die Gemeinsamkeit einer Gruppe eines Volkes einer Nation oder des gesamten

Menschengeschlechtes darstelleldquo WuM GW I 26

517

subjacente ao ideal grego de sabedoria e que foi retomado pelo ideal

humanista de eloquentia 1025 entre noacutes presente na obra de Vieira e defendido

pela Segunda Escolaacutestica e pelo projecto pedagoacutegico dos jesuiacutetas

Embora reivindicando-se do anti-humanismo de Heidegger Vicente Ferreira da

Silva levou a cabo como vimos um diaacutelogo com a tradiccedilatildeo humanista

protagonizada por Eduardo Grassi e natildeo podemos deixar de ver nesse diaacutelogo

um meio de controlar preconceitos subjectivos e infundados e moderar o

iacutempeto anti-humanista do pensador brasileiro

No entanto o caraacutecter fragmentaacuterio e a forma ensaiacutestica do seu pensamento

assim como a abrupta interrupccedilatildeo da sua obra filosoacutefica pela traacutegica morte nos

anos sessenta natildeo lhe permitiram articular de forma consistente este diaacutelogo

com a tradiccedilatildeo e com a temaacutetica do humanismo em Heidegger Vicente

adoptou uma soluccedilatildeo de compromisso entre Heidegger e Grassi ao introduzir

a distinccedilatildeo histoacuterica entre um humanismo decadente e a alvorada do

humanismo renascentista

Natildeo obstante o proacuteprio Vicente ao falar da importacircncia de preservar o ideal

renascentista de homem pocircs em evidecircncia na forma intempestiva que eacute

proacutepria do ldquoestilordquo do seu pensar a sua impossibilidade de se desligar de uma

tradiccedilatildeo humanista que tanto peso teve nas culturas e liacutenguas latinas De uma

outra forma o uso recorrente de termos latinos pelo pensador brasileiro a par

de termos alematildees importados de Heidegger eacute a marca linguiacutestica viva dessa

heranccedila

Podemos ainda sublinhar que interpretando o passo atraacutes (Schritt zuruumlck)

proposto por Heidegger em direcccedilatildeo a um pensamento rememorante como um

regresso a uma religiosidade originaacuteria Vicente anuncia uma nova religiatildeo

coacutesmica pensada como celebraccedilatildeo ritual da unidade da vida e da pluralidade

das manifestaccedilotildees do divino

Esta repeticcedilatildeo da filosofia heideggeriana por Vicente rompe (neste aspecto

como noutros jaacute assinalados) claramente com a contenccedilatildeo que a ontologia da

finitude impunha a Heidegger e aponta para o sentido profeacutetico e escatoloacutegico

1025

O humanismo de Gadamer tem um sentido geral de abertura ao humano atraveacutes do diaacutelogo que natildeo

inclui nem exclui necessariamente as religiotildees com efeito o estatuto indeterminado da alteridade permite

que nele caiba a transcedecircncia divina ou que o homem possa ser encarado como uma emanaccedilatildeo da

divindade Cf Rui Sampaio da Silva ldquoGadamer e a Heranccedila Heideggerianardquo Revista Portuguesa de

Filosofia LVI 541

518

do novo sentimento religioso presente na poesia portuguesa contemporacircnea

que Fernando Pessoa viria a traduzir na sua proacutepria obra poeacutetica e que

anunciava nos seguintes termos ldquoIgualmente inuacutetil deve ser notar quanto essa

futura foacutermula deve distar do cristianismo e especialmente do catolicismo em

mateacuteria religiosa da democracia moderna em todas as suas formas em

mateacuteria poliacutetica do comercialismo e materialismo radicais na vida moderna

[]rdquo1026

De facto tanto Vicente Ferreira da Silva como Fernando Pessoa com a sua

criacutetica ao humanismo natildeo se colocam fora da tradiccedilatildeo humanista mas apenas

mostram o modo peculiar como nela se situam - o que pensamos ter

cabalmente demonstrado no capiacutetulo anterior dedicado ao pensador brasileiro

Por conseguinte pensamos poder legitimamente concluir que nesta

interpretaccedilatildeo que Vicente faz de Heidegger satildeo correlacionados o horizonte de

sentido dos textos heideggerianos com um outro horizonte imposto pela

situaccedilatildeo histoacuterico-linguiacutestica do inteacuterprete em que a tradiccedilatildeo humanista tem

um peso consideraacutevel

Contudo nesta aproximaccedilatildeo de dois horizontes de compreensatildeo Vicente

Ferreira da Silva foi quase sempre capaz de manter aberto o espaccedilo da

contradiccedilatildeo eacute nesse espaccedilo que pode desenvolver-se a confrontaccedilatildeo atraveacutes

da qual nos podemos tornar ldquonoacutes mesmosrdquo e estarmos em casa na nossa

proacutepria tradiccedilatildeo

Este regresso agrave tradiccedilatildeo humanista eacute um dos aspectos mais interessantes que

acompanha esta recepccedilatildeo de Heidegger em liacutengua portuguesa e que de modo

algum se limita aos casos de Vicente e de Delfim Santos em que essa tradiccedilatildeo

eacute explicitamente invocada e discutida De facto o efeito refractaacuterio da obra de

Heidegger sobre o pensamento dos diversos autores que com ele dialogaram

quando analisado no seu conjunto permite-nos ver distintamente o retomar de

alguns aspectos fundamentais do paradigma filosoacutefico humanista

Podemos efectivamente concluir que a primazia dos problemas da linguagem

sobre os problemas do conhecimento e o reconhecimento da importacircncia da

linguagem metafoacuterica e simboacutelica da poesia da religiatildeo e dos mitos que

Eduardo Grassi apontava como a essecircncia da tradiccedilatildeo humanista marcam

1026

Fernando Pessoa A Nova Poesia Portuguesa [1912] Lisboa 1944 8586

519

todo o discurso filosoacutefico de Vicente Ferreira da Silva Eudoro de Sousa Joseacute

Enes e Emmanuel Carneiro Leatildeo natildeo apenas enquanto comentam Heidegger

mas tambeacutem quando pensando por conta proacutepria produzem um discurso

original

Por outro lado se tomarmos como referecircncia uma outra caracterizaccedilatildeo do

paradigma filosoacutefico do humanismo renascentista feita por Leonel Ribeiro dos

Santos em Linguagem Retoacuterica e Filosofia no Renascimento a partir de

pressupostos diferentes dos de Grassi como o primado da vida activa sobre a

vida contemplativa1027 teremos que reconhecer que esse paradigma estaacute

presente na maior parte destes inteacuterpretes de Heidegger Com efeito a

preocupaccedilatildeo por uma ontologia da praxis que encontramos em Gerd Bornheim

assim como a preocupaccedilatildeo pela reflexatildeo sobre a problemaacutetica da cultura do

direito da educaccedilatildeo e da arte que inspirou o discurso filosoacutefico de Delfim

Santos Antoacutenio Joseacute Brandatildeo ou Benedito Nunes mostram que estes autores

foram conduzidos pelo reconhecimento da centralidade da acccedilatildeo Enquanto

pensaram por conta proacutepria e produziram uma obra original estes uacuteltimos

pensadores de liacutengua portuguesa privilegiaram efectivamente as questotildees da

cultura e reflectiram sobre a centralidade da praxis esforccedilando-se no entanto

por fundar a sua reflexatildeo na problemaacutetica heideggeriana do Ser e da Verdade

Podemos ainda lembrar que o interesse pela investigaccedilatildeo histoacuterica dos

autores da Segunda Escolaacutestica e a redescoberta da importacircncia dessa

tradiccedilatildeo do humanismo cristatildeo e da problemaacutetica ontoloacutegica por ela introduzida

- que tatildeo marcantes foram para Delfim Santos e para Joseacute Enes - deve ser

posta como vimos em conexatildeo com a recepccedilatildeo de Heidegger

Podemos pois afirmar como uacuteltima conclusatildeo desta investigaccedilatildeo sobre a

recepccedilatildeo de Heidegger em portuguecircs que esta pocircs explicita ou implicitamente

a obra do filoacutesofo alematildeo em diaacutelogo com uma tradiccedilatildeo hermenecircutica

transportada pela liacutengua portuguesa suscitou um questionamento e uma

reflexatildeo sobre essa tradiccedilatildeo

1027

ldquoTodos estes pontos ndash o primado da Jurisprudecircncia [hellip] sobre a ciecircncia natural o primado da vida

activa sobre a vida contemplativa o primado da vontade sobre o entendimento o primado do bem sobre a

verdade e o ser ndash satildeo obviamente solidaacuterios entre si indicando uma clara mudanccedila do paradigma

filosoacutefico Leonel Ribeiro dos Santos Linguagem Retoacuterica e Filosofia no Renascimento Lisboa 2004

176

520

De facto a traduccedilatildeo no sentido hermenecircutico de apropriada interpretaccedilatildeo eacute

uma incerta viagem entre duas margens exposta a todos os perigos do

extravio e do naufraacutegio mas sem a qual nunca poderemos estar em casa nem

virmos a ser ldquonoacutes mesmosrdquo como Heidegger sublinhava em Der Ister ldquoA

unidade entre a construccedilatildeo da morada e o exiacutelio que natildeo eacute nenhuma unidade

de entrelaccedilamento mas uma unidade do originaacuterio aprendecirc-la-emos quando

experimentarmos reflectir sobre a essecircncia da historicidade Isso oculta-se para

Houmllderlin num repatriar [Heimischwerden] do homem um repatriar

[Heimischwerden] que eacute um ir atraveacutes do estrangeiro e um enfrentamento com

o que eacute alheiordquo1028

1028

bdquoDie Einheit von Ortschaft und Wanderschaft die keine Einheit der Verknuumlpfung sondern eine

Einheit des Ursprungs ist werden wir eher fassen lernen wenn wir das Wesen der Geschichte

nachzudenken versuchen Das verbirgt sich fuumlr Houmllderlin im Heimischwerden des Menschen welches

Heimischwerden ein Durchgang durch die Fremde und eine Auseinandersetzung mit der Fremde istrdquo

HHI GA 53 67

521

APEcircNDICE

522

523

I - Traduccedilotildees de Filosofia em liacutengua portuguesa

ateacute 1959

1- Traduccedilotildees Portuguesas de Filosofia (ateacute 1959)

A primeira traduccedilatildeo portuguesa de filosofia

Ciacutecero Tratados de Amizade Paradoxos e Sonhos de Scipiatildeo traduzidos do latim em liacutengua portuguesa por Duarte de Resende no ano de 1531

A O seacuteculo XVIII

Ciacutecero Leacutelio ou o Diaacutelogo sobre a amizade traduccedilatildeo de Antoacutenio Lourenccedilo

Caminha 1755

Velho Catatildeo ou Diaacutelogo sobre a Velhice traduccedilatildeo de Marccedilal Joseph de

Resende Lisboa 1765

Trecircs livros de Ciacutecero sobre as Obrigaccedilotildees Civis traduccedilatildeo de Miguel

Antoacutenio Ciera 1766

Aristoacuteteles Poeacutetica trad de Antoacutenio Ribeiro dos Santos Lisboa 1779

Poeacutetica trad de Ricardo Raimundo Nogueira Lisboa 1779

Santo Agostinho As Confissotildees traduzidas por um devoto 1783

Epicteto Manual de Epicteto filoacutesofo traduzido do grego por D Frei Antoacutenio de

Sousa Lisboa 1785

Genovesi Liccedilotildees de Loacutegica feitas para uso dos principiantes trad de Bento

Joseacute de Sousa Farinha Lisboa 1785 (reeditada em 1816 1822 1840

18451859)

Instituiccedilotildees de Loacutegica escritas para uso de principiantes traduccedilatildeo de

Miguel Cardoso Coimbra 1786 (reeditado em 1803 e 1842)

Instituiccedilotildees Loacutegicas para uso da Mocidade trad de Guilherme Coelho

Ferreira 1ordf ed Lisboa 1787

Liccedilotildees de Metafiacutesica feitas para Uso dos Principiantes trad de Bento

Joseacute de Sousa Farinha Lisboa 1790

Pitaacutegoras Versos de Ouro trad de Luiacutes Antoacutenio de Azevedo Lisboa 1795

524

B O seacuteculo XIX Condillac A Arte de Pensar trasladado em liacutengua portuguesa com um prefaacutecio

ldquoAos Portuguesesrdquo trad de Joseacute Liberato Freire de Carvalho 1ordf ed Coimbra imp da Universidade 1794 2ordf ed Lisboa tip Lacerdina 1818

Aristoacuteteles As Categorias traduzidas do grego e ordenadas por Silvestre

Pinheiro Ferreira Rio de Janeiro Imprensa Reacutegia 1814

Platatildeo Diaacutelogos Socraacuteticos Manuel Aleixo Duarte Machado Lisboa Typ

Simatildeo Thaddeo Ferreira 1823

Genovesi Instituiccedilotildees de Metafiacutesica trad de Miguel Cardoso 3ordf ediccedilatildeo

Lisboa 1835

Elementos de Loacutegica trad De Joseacute Correia da Silva e Melo e Manuel

Joaquim Afonso Cirne Coimbra 1845

Apuleio O Burro de Ouro trad portuguesa Lisboa 1847

Apologia traduccedilatildeo do Baratildeo de Vila Nova de Foz Cocirca Lisboa 1895

Platatildeo Constituiccedilatildeo do Filoacutesofo trad de J J Antunes da Silva Porto

Typographia da Revista 1849

Lucreacutecio Da Natureza das Coisas Trad de Joseacute Duarte Machado Ferraz

Lisboa 1850

Da Natureza das Coisas trad de Antoacutenio Joseacute de Lima Leitatildeo Lisboa

1851-1853

Da Natureza das Coisas trad de Agostinho Mendonccedila Falcatildeo Coimbra

1890

Ciacutecero Cartas trad de ECAB Lisboa 1869

C A primeira metade do seacuteculo XX

1 Filosofia alematilde

Haeckel Ernest Os enygmas do Universo trad Jayme Filinto Porto Livraria

Chardron 1908

O monismo laccedilo entre a religiatildeo e a ciecircncia trad Fonseca Cardoso

Porto Lello amp Irmatildeo 1908

Religiatildeo e Evoluccedilatildeo trad Domingos Ramos Porto Livraria Chardron

1908

Histoacuteria da criaccedilatildeo de seres organisados segundo as leis naturaes trad

Eduardo Pimenta Livraria Chardron 1911

525

Maravilhas da Vida estudos de Philosophia Bioloacutegica para servirem de

complemento aos enigmas do universo trad Joatildeo de Meyra Porto Lello

amp Irmatildeo 1922

O problema do homem e os primatas de Lineu trad Joatildeo Maria Bravo

Lisboa imp Beleza 1928

Marx Karl O Capital resumido por Gabrielle Deuille Trad de Albano Morais

Biblioteca da Educaccedilatildeo Nacional Lisboa 1912

Nietzsche F W Assim Falava Zaratustra trad de Antoacutenio Arauacutejo Pereira

ldquoColecccedilatildeo Socioloacutegicardquo Lisboa Guimaratildees Editores 1913

A Genealogia da Moral trad de Carlos Joseacute de Meneses Lisboa

Guimaratildees Editores 1913 2ordf ed 1946

O Anticristo Estudo Criacutetico Sobre a Crenccedila Cristatilde trad de Carlos Joseacute de

Meneses Lisboa Guimaratildees Editores 1916

Despojos de uma trageacutedia correspondecircncia ineacutedita trad e notas de

Ferreira da Costa Porto Editora Educaccedilatildeo Nacional 1944

Vontade de Potecircncia trad e notas de Maacuterio Ferreira Santos Rio de

Janeiro Livraria do Globo 1945

Da Utilidade e Inconvenientes da Histoacuteria para A Vida Introduccedilatildeo e

traduccedilatildeo de Armando de Morais Lisboa Tip Graacutefica Santelmo 1946

Assim Falava Zaratustra trad de Antoacutenio Arauacutejo Pereira Lisboa

Guimaratildees Editores 1952

Ecce Homo - Como se Chega a Ser o Que Eacute trad de Joseacute Meirinho

Lisboa Guimaratildees Editores 1952

A Origem da Trageacutedia trad de Aacutelvaro Ribeiro Lisboa Guimaratildees

Editores 1953

Leibniz Gottfried Wilhelm Novos Ensaios Sobre o Entendimento Humano trad

de Antoacutenio Seacutergio Coimbra Imprensa da Universidade de Coimbra 1931

Monadologia discurso de metafiacutesica Antoacutenio Novais Machado Coimbra

Casa do Castelo Editora 1947

Schopenhauer Arthur Necessidade da Metafiacutesica - Excertos trad de Lobo

Vilela ldquoCadernos Inqueacuteritordquo Seacuterie C Filosofia e religiatildeo Lisboa Editorial

Inqueacuterito 1939

Metafiacutesica do Amor - Excertos trad de Lobo Vilela ldquoCadernos Inqueacuteritordquo

Lisboa Editorial Inqueacuterito 1940

526

Esboccedilo de Histoacuteria da Teoria do Ideal e do Real - dos Parerga e

Paralipomena trad prefaacutecio e notas de Vieira de Almeida Coimbra

Atlacircntida 1948

Kant Immanuel A Paz Perpeacutetua (Ensaio Filosoacutefico) trad de Alberto Machado

Cruz Porto Livraria Educaccedilatildeo Nacional 1941

O Belo e o Sublime (Ensaio de Esteacutetica e Moral) trad de Alberto

Machado Cruz Porto Livraria Educaccedilatildeo Nacional 1943

Da Forma e dos Princiacutepios do Mundo Sensiacutevel e do Mundo Inteligiacutevel

trad e prefaacutecio de Francisco Paulo Mendes da Luz Coimbra Editorial

Saber 1943

Ensaios de Kant a propoacutesito do Terramoto de 1755 trad de Luiacutes Silveira

Lisboa Publicaccedilotildees Culturais da Cacircmara Municipal de Lisboa1955

Da Forma e dos Princiacutepios do Mundo Sensiacutevel e do Mundo Inteligiacutevel

trad de Francisco Mendes da Luz sd Coimbra

Hessen Johannes Filosofia dos Valores traduccedilatildeo e prefaacutecio de L Cabral

Moncada Colecccedilatildeo Studium Coimbra Armeacutenio Amado 1944

Lutero Visto Pelos Catoacutelicos trad de L Cabral Moncada Coimbra

Armeacutenio Amado 2ordf ediccedilatildeo 1951

Husserl Edmundo A Filosofia como Ciecircncia de Rigor trad de Albin Beau

prefaacutecio de Joaquim de Carvalho Coimbra Livraria Atlacircntida 1952

Hegel G W F Esteacutetica vol II O Belo Artiacutestico ou o Ideal trad de Orlando

Vitorino Lisboa Guimaratildees amp Ca Editores 1953

Esteacutetica vol I A Ideia e o Ideal traduccedilatildeo de Orlando Vitorino Lisboa

Guimaratildees Editores 1956

Esteacutetica vol III A Arte Simboacutelica traduccedilatildeo de Orlando Vitorino Lisboa

Guimaratildees Editores 1956

2 Filosofia Grega

Platatildeo Feacutedon trad de Acircngelo Ribeiro prefaacutecio de Leonardo Coimbra Lisboa

Renascenccedila Portuguesa 1919

Apologia de Soacutecrates trad Acircngelo Ribeiro Porto 1923

O Banquete trad de Acircngelo Ribeiro Porto 1924

Criacuteton trad de Agostinho da Silva Lisboa 1934

527

Defesa de Soacutecrates trad de Agostinho da Silva Lisboa 1937

Criacuteton trad de Agostinho da Silva Lisboa 2ordf ed 1938

Diaacutelogo Sobre a Justiccedila trad de Lobo Vilela ldquoCadernos de Inqueacuterito

Filosofia e Religiatildeordquo Lisboa 1939

Alcibiacuteades trad de Alberto Machado Cruz Porto 1941

Cartas I a VI trad de Alberto Machado da Cruz Porto 1941

Carta VII trad de Alberto Machado da Cruz Porto 1941

Cartas VIII a XIII trad de Alberto Machado da Cruz Porto Livraria

Educaccedilatildeo Nacional 1941

Feacutedon trad de Acircngelo Ribeiro Lisboa 3ordf ed 1941

Hiacutepias menor trad de Alberto Machado Cruz Porto 1941

Hiacutepias maior trad de Santana Dioniacutesio Lisboa 1945

Hiacutepias Menor trad de Santana Dioniacutesio Porto 1945

Meacutenon trad de Lobo Vilela Lisboa 1945

Parmeacutenides trad de Lobo Vilela Lisboa 1945

Protaacutegoras trad de Lobo Vilela Lisboa 1945

Teoria do Amor - excerto de O Banquete trad de Agostinho da Silva in

ldquoCadernos de Antologiardquo Lisboa sd

Teoria do Amor Antologia Introduccedilatildeo aos grandes autores Vila Nova de

Famalicatildeo 1944

Feacutedon trad de Dias Palmeira Coimbra Livraria Atlacircntida 1947

Timeu trad de M Maia Pinto Porto 1952

Apologia de Soacutecrates trad de Santana Dioniacutesio Lisboa Seara Nova

1953

Aristoacuteteles Constituiccedilatildeo de Atenas (de A Poliacutetica) trad De Nuno M Cruz

Porto 1941

Metafiacutesica (I e II) trad de Vicenzo Cocco Coimbra Livraria

Atlacircntida1951

Poeacutetica trad de Eudoro de Sousa Lisboa 1951

528

3 Traduccedilotildees cientiacuteficas

Darwin Charles A origem do Homem trad Joatildeo Correcirca dOliveira 1ordf ed

Porto Magalhatildees amp Moniz 1910 2ordf ed Porto Companhia Portuguesa

1917

A Selecccedilatildeo Artificial trad Lobo Vilela Lisboa Ed Inqueacuterito 1939

Spencer Herbert Da educaccedilatildeo Intellectual moral e physica Lisboa Nova

Livraria Internacional 1887

A justiccedila trad Augusto Gil Lisboa Aillaud amp Bertrand 1891

Do Progresso sua lei e sua causa trad Eduardo Salgueiro Lisboa Ed

Inqueacuterito 1939

2 - Traduccedilotildees brasileiras de Filosofia (1931-1959)

A Filosofia Alematilde

Schopenhauer Arthur Dores do Mundo Rio de Janeiro H Antunes

1931

O Amor as Mulheres e a Morte trad de Emiacutelio Braizo Satildeo Paulo Cultura

Moderna 1936

Metafiacutesica do Amor trad de M C da Rocha Satildeo Paulo Cultura

Moderna 1938

A Sabedoria da Vida trad de Roacutemulo Argentiegravere Satildeo Paulo Cultura

Moderna 1938

O Mundo como Vontade e Representaccedilatildeo trad e prefaacutecio de Heraldo

Barbuy Satildeo Paulo Ed e Publ Brasil 1941

Regras de Conduta Para Bem Viver trad de Eloi Pontes Rio de Janeiro

Ed Vecchi 1950

Aforismos para a Sabedoria na Vida trad e prefaacutecio por Geneacutesio de

Almeida Moura Satildeo Paulo Melhoramentos 1953

Hegel G W F Enciclopeacutedia das Ciecircncias Filosoacuteficas ndash Em compecircndio trad e

prefaacutecio de Liacutevio Xavier Satildeo Paulo Volume I ndash Loacutegica Volume II ndash

Filosofia da Natureza Volume III ndash Filosofia do Espiacuterito 1936

529

Kant Immanuel A Paz Perpeacutetua trad de Rafael Benaion Rio de Janeiro

Coeditora Brasiacutelica Cooperativa 1939

Da Razatildeo Praacutetica trad e prefaacutecio de Afonso Bertagnoli Satildeo Paulo Ed e

Publ Brasil 1947

Prolegoacutemenos a toda Metafiacutesica Futura que Possa Apresentar-se como

Ciecircncia trad introduccedilatildeo e notas de Antoacutenio Pinto de Carvalho Satildeo

Paulo Cia Editora Nacional 1959

Criacutetica da Razatildeo Pura trad de J Rodrigues Merege 2ordf ed Satildeo Paulo

Ed e Publ Brasil 1959

Nietzsche F W Assim Falava Zaratustra trad rev por Joseacute Mendes de

Sousa Satildeo Paulo Ed e Publ Brasil 1942

O Crepuacutesculo dos Iacutedolos trad de Persiano da Fonseca Rio de Janeiro

Ed Vecchi 1943

Ecce-homo Como cheguei a ser o que sou trad de Lourival de Queiroacutes

Henkel Pref de Afonso Bertagnoli 1ordf ed Satildeo Paulo Ed e Publ Brasil

Editora ca 1936 2ordf ed Satildeo Paulo Ed e Publ Brasil Editora 1944

Vontade de Potecircncia Prefaacutecio agrave ediccedilatildeo alematilde por Elisabeth Foerster-

Nietzsche trad proacutelogo e notas de Maacuterio D Ferreira Santos Porto

Alegre Globo 1945

Aleacutem do Bem e do Mal trad de Maacuterio D Ferreira Santos Satildeo Paulo Ed

Sagitaacuterio 1948

A Origem da Trageacutedia Proveniente do Espiacuterito da Muacutesica Pref e trad de

Erwin Theodor Satildeo Paulo Cupolo 1950

A Genealogia da Moral trad de A A Rocha Rio de Janeiro Org

Simotildees 1953

O Anticristo Estudo Criacutetico Sobre a Crenccedila Cristatilde trad de Carlos Joseacute de

Meneses Rio de Janeiro Org Simotildees 1953

Jaspers Karl Razatildeo e Anti-razatildeo em Nosso Tempo Rio de Janeiro ISEB

1958

B Filosofia grega

Platatildeo Apologia de Soacutecrates trad de Maria Lacerda Moura1ordf ed

Satildeo Paulo Atena Ed 1939 3a ed Satildeo Paulo Atena Ed 1946

Feacutedon trad de Miguel Ruas Rio de Janeiro H Antunes 1941

A Repuacuteblica trad de Albertino Pinheiro Satildeo Paulo Atena Ed 1943

530

O Banquete (Em apecircndice Do Amor de Plotino) trad de Albertino

Pinheiro Satildeo Paulo Atena Ed 1943

Diaacutelogo sobre a Justiccedila trad de Lobo Vilela Rio de Janeiro Ed Inqueacuterito

1943

Diaacutelogos Menon Banquete Fedro Platatildeo - vida obra doutrina por

Paulo Tannery trad de Jorge Paiacuteeikat Porto Alegre Globo 1945

O Banquete trad de Albertino Pinheiro Satildeo Paulo Atena Ed 1948

Feacutedon trad de Miguel Ruas Satildeo PauIo Atena Ed 1949

A Repuacuteblica trad de Albertino Pinheiro 6a ed Satildeo Paulo Atena Ed

1956

Aristoacuteteles A Eacutetica de Nicoacutemaco trad de Caacutessio M Fonseca Satildeo Paulo

Atena Ed 1940

A Eacutetica de Nicoacutemaco trad de Caacutessio M Fonseca 2a ed Satildeo Paulo

Atena Ed 1944

A Poliacutetica trad de Nestor Silveira Chaves Satildeo Paulo Atena Ed 1944

A Poliacutetica trad de Nestor Silveira Chaves 3a ed Satildeo Paulo Atena Ed

1950

C Escolaacutestica

Tomaacutes de Aquino santo Suma Teoloacutegica 1ordf parte Questotildees 1-13 Da

Essecircncia de Deus Vol I trad de Alexandre Correia (acompanhada de

texto latino) Satildeo Paulo Sedes Sapientiae 1944

Suma Teoloacutegica 1ordf parte Questotildees 27-43 Da Trindade Vol III trad de

Alexandre Correia (acompanhada do texto latino) Satildeo Paulo Sedes

Sapientiae 1946

Suma Teoloacutegica 1ordf parte Questotildees 44-49 Da processatildeo e da distinccedilatildeo

das criaturas Vol IV trad de Alexandre Correia (acompanhada do texto

latino) Satildeo Paulo Sedes Sapientiae 1946

Do Governo dos Priacutencipes e Do Governo dos Judeus trad de Arlindo

Veiga dos Santos Satildeo Paulo Ed Anchieta 1946

Suma Teoloacutegica 2a parte I Questotildees 1-17 Do Fim Uacuteltimo em Geral e

da Beatilidade Da cogniccedilatildeo dos actos humanos vol XI trad de

Alexandre Correia (acompanhada do texto latino) Satildeo Paulo Sedes

Sapientiae 1949

531

Sobre o Ente e a Essecircncia trad de Joseacute Correia Juacutenior Satildeo Paulo

1952

Suma Teoloacutegica 3ordf parte Questotildees 1-26 Da incarnaccedilatildeo Consequecircncias

da incarnaccedilatildeo Vol XXII trad de Alexandre Correia (acompanhada do

texto latino) Satildeo Paulo Sedes Sapientiae 1959

Suma Teoloacutegica 3ordf parte Questotildees 27-45 Da Virgem Maria e da sua

Concepccedilatildeo Vida paixatildeo morte ressurreiccedilatildeo e ascenccedilatildeo de Cristo Vol

XXIII trad de Aexandre Correia (acompanhada do texto latino) Satildeo

Paulo Sedes Sapientiae 1959

Suma Teoloacutegica 3ordf parte Questotildees 46-59 Da paixatildeo morte sepultura e

descida de Cristo aos infernos Da exaltaccedilatildeo de Cristo vol XXIV trad de

Alexandre Correia (acompanhada do texto latino) Satildeo Paulo

Sedes Sapientiae 1959

Suma Teoloacutegica 3ordf parte Questotildees 60-72 Dos sacramentos em geral

Do batismo e da confirmaccedilatildeo Vol XXV trad de Alexandre Correia

(acompanhada do texto latino) Satildeo Paulo Sedes Sapientiae 1959

Suma Teoloacutegica 3ordf parte Questotildees 73-90 Da eucaristia Da penitecircncia

Vol XVII trad de Alexandre Correia (acompanhada do texto latino) Satildeo

Paulo Sedes Sapientiae 1959

532

533

II - Cronologia da recepccedilatildeo de Heidegger em

liacutengua portuguesa

1 ndash Traduccedilotildees Portuguesas e Brasileiras de Heidegger

1946 Sobre a Essecircncia da Verdade trad Antoacutenio Joseacute Brandatildeo Rumo nordm 2 Lisboa

1966 Introduccedilatildeo agrave Metafiacutesica trad e apres de Emmanuel Carneiro Leatildeo Rio

de Janeiro Tempo Brasileiro

1967 Carta Sobre o Humanismo trad de Emmanuel Carneiro Leatildeo Rio de

Janeiro Tempo Brasileiro

1969 O Caminho do Campo trad e intr de Ernildo Stein Satildeo Paulo Duas

Cidades

1969 O que eacute a Metafiacutesica trad e intr de Ernildo Stein Satildeo Paulo Duas

Cidades

1969 Sobre o Problema do Ser trad e intr de Ernildo Stein Satildeo Paulo Duas

Cidades

1969 Da Experiecircncia do Pensar trad de Maria do Carmo Tavares de Miranda

Porto Alegre Editora Globo

1970 Sobre a Essecircncia da Verdade trad e intr de Ernildo Stein Satildeo Paulo

Duas Cidades

1970 A Tese de Kant Sobre o Ser trad e intr de Ernildo Stein Satildeo Paulo

Duas Cidades

1971 Sobre a Essecircncia do Fundamento trad e intr de Ernildo Stein Satildeo

Paulo Duas Cidades

1971 Identidade e Diferenccedila trad e int de Ernildo Stein Satildeo Paulo Duas

Cidades

1971 A Determinaccedilatildeo do Ser do Ente Segundo Leibniz trad e int de Ernildo

Stein Satildeo Paulo Duas Cidades

1971 Hegel e os Gregos trad e intr de Ernildo Stein Satildeo Paulo Duas

Cidades

1971 O que eacute isto ndash a filosofia trad de Ernildo Stein Satildeo Paulo Duas

Cidades

1972 O Fim da Filosofia ou a Questatildeo do Pensar trad e intr de Ernildo Stein

Satildeo Paulo Duas Cidades

534

1973 O fim da filosofia e a tarefa do pensamento [1966] in Conferecircncias e

escritos filosoacuteficos trad Ernildo Stein Satildeo Paulo Abril Cultural (Os

Pensadores) 2ordf ed 1979

1973 Identidade e diferenccedila in Conferecircncias e escritos filosoacuteficos trad Ernildo

Stein Satildeo Paulo Abril Cultural (Os Pensadores) 2ordf ed 1979

1973 ldquoTempo e serrdquo in Conferecircncias e escritos filosoacuteficos trad Ernildo Stein

Satildeo Paulo Abril Cultural (Os Pensadores) 2ordf ed 1979

1973 Meu caminho para a fenomenologia [1963] in Conferecircncias e escritos

filosoacuteficos trad Ernildo Stein Satildeo Paulo Abril Cultural (Os Pensadores)

2ordf ed 1979

1973 Carta sobre o Humanismo trad Ernildo Stein pref Antoacutenio Joseacute

Brandatildeo Lisboa Guimaratildees 2ordf ed revista por Pinharanda Gomes 1980

1973 ldquoA sentenccedila de Anaximandrordquo in Criacutetica moderna ndash Preacute-Socraacuteticos trad

Ernildo Stein Satildeo Paulo Abril Cultural (Os Pensadores) 2ordf ed 1979

1973 Conferecircncias e escritos filosoacuteficos traduccedilatildeo e notas de Ernildo Stein in

Sartre Jean-Paul O Existencialismo eacute um humanismo Satildeo Paulo Abril

Cultural

1979 Carta sobre o Humanismo in Conferecircncias e escritos filosoacuteficos trad

Ernildo Stein Satildeo Paulo Abril Cultural

1984 A coisa trad Eudoro de Sousa in Mitologia Lisboa Guimaratildees Editores

1987 O Caminho do Campo trad e intr de Mafalda Faria Blanc in Revista

Portuguesa de Filosofia Braga XLIII

1988 A essecircncia do Fundamento trad de Artur Mouratildeo Lisboa Ediccedilotildees 70

1988 Ser e Tempo 2 vol trad Maacutercia de Saacute Cavalcante Petroacutepolis Vozes

1989 Jaacute soacute um Deus nos pode ainda salvar entrevista com Martin Heidegger

trad e notas de Irene Borges-Duarte in Filosofia Publicaccedilotildees da

Sociedade Portuguesa de Filosofia Lisboa

1989 Houmllderlin e a Essecircncia da Poesia trad do grupo de traduccedilatildeo de alematildeo

filosoacutefico orientado por Helga Hook Quadrado intr de Mafalda Blanc in

Filosofia Publicaccedilatildeo da Sociedade Portuguesa de Filosofia Lisboa

1989 Sobre a Madona Sixtina trad e notas de Irene Borges-Duarte in Filosofia

Publicaccedilotildees da Sociedade Portuguesa de Filosofia Lisboa

1991 A Origem da Obra de Arte trad Maria da Conceiccedilatildeo Costa Lisboa

Ediccedilotildees 70

535

1992 O que eacute uma coisa A doutrina de Kant dos princiacutepios transcendentais

trad de Carlos Morujatildeo Lisboa Ediccedilotildees 70

1995 Sobre a essecircncia da verdade trad Carlos Morujatildeo Porto Porto Editora

1995 Liacutengua da tradiccedilatildeo e liacutengua teacutecnica trad do francecircs de Maacuterio Botas

Lisboa Vega

1997 ldquoDiscurso do reitorado A universidade alematilde frente a tudo e contra tudo

ela mesmardquo trad do francecircs de Joseacute Pedro Cabrera in HEIDEGGER

Martin Escritos poliacuteticos Lisboa Piaget

1997 A auto-afirmaccedilatildeo da universidade alematilde trad Fausto Castilho Curitiba

Secretaria de Estado da Cultura (Ediccedilatildeo Bilingue)

1997 Introduccedilatildeo agrave Metafiacutesica trad Maacuterio Matos e Bernhard Sylla Lisboa

Piaget

1997 Trad parcial (sect76) in Martin Heidegger profeta da poacutes-modernidade as

24 proposiccedilotildees sobre a ciecircncia trad Ernildo Stein in Stein Ernildo

Epistemologia e criacutetica da modernidade Ijuiacute-RS Editora Unijuiacute

1997 ldquoO reitorado de 1933-1934 factos e reflexotildeesrdquo trad do francecircs de Joseacute

Pedro Cabrera in HEIDEGGER Martin Escritos poliacuteticos Lisboa Piaget

1997 ldquoMartin Heidegger entrevistado pelo Der Spiegelrdquo trad do francecircs de

Joseacute Pedro Cabrera in HEIDEGGER Martin Escritos poliacuteticos Lisboa

Piaget

1997 ldquoPorque eacute que continuamos na proviacutenciardquo trad do francecircs de Joseacute Pedro

Cabrera in HEIDEGGER Martin Escritos poliacuteticos Lisboa Piaget

1999 O princiacutepio do fundamento trad Jorge Telles Menezes Lisboa Piaget

2000 Nietzsche ndash metafiacutesica e niilismo trad Marco Antoacutenio Casanova Rio de

Janeiro Relume Dumaraacute

2000 Ensaios e conferecircncias [1954] trad Emmanuel Carneiro Leatildeo Gilvan

Fogel Marcia de Saacute Cavalcante Schuback Rio de Janeiro Ed Vozes 2ordf

ed 2002 3ordf ed 2006

2000 Serenidade trad Maria Madalena Andrade Olga Santos Lisboa Piaget

2001 Seminaacuterios de Zollikon (Ed de Medard Boss 1987) trad da 2ordf ed

Alematilde (1994) por G Arnhold M F de Almeida Prado Satildeo Paulo EDUC

Rio de Janeiro Vozes

2002 Caminhos de Floresta coordenaccedilatildeo cientiacutefica da ediccedilatildeo e traduccedilatildeo Irene

Borges-Duarte trad de Irene Borges-Duarte Filipa Pedroso Alexandre

Franco de Saacute Heacutelder Lourenccedilo Bernhard Sylla Viacutetor Moura Joatildeo

Constacircncio Lisboa Gulbenkian XXXIII

536

2002 ldquoA palavra de Nietzsche bdquoDeus morreu‟rdquo trad de Alexandre Franco de Saacute

in Caminhos de Floresta [vide] Lisboa Gulbenkian

2002 ldquoO Conceito de Experiecircncia em Hegelrdquo trad Helder Lourenccedilo in

Caminhos de Floresta [vide] Lisboa Gulbenkian

2002 ldquoO Dito de Anaximandrordquo trad Joatildeo Constacircncio in Caminhos de Floresta

[vide] Lisboa Gulbenkian

2006 Que eacute isto ndash A filosofia Identidade e Diferenccedila trad int e notas de

Ernildo Stein Rio de Janeiro Ed Vozes

2008 Loacutegica A Pergunta pela essecircncia da linguagem coord cientiacutefica Irene

Borges-Duarte trad de Maria Adelaide Neto de Mascarenhas Pacheco e

Helga Hook Quadrado Lisboa Fundaccedilatildeo Calouste Gulbenkian

2 - Bibliografia criacutetica traduzida para portuguecircs

1969 Axelos Kostas Introduccedilatildeo ao pensamento futuro Sobre Marx e

Heidegger trad de Emmanuel Carneiro Leatildeo Rio de Janeiro Tempo

Brasileiro

1975 Giles Thomas R Histoacuteria do Existencialismo e da fenomenologia Satildeo

Paulo Editoras EPUUSP 2 volumes

1976 Beaufret Jean Introduccedilatildeo agraves Filosofias da Existecircncia trad de Salma

Tannus Satildeo Paulo Duas Cidades

1979 Resweber J P O pensamento de Heidegger trad Joatildeo Agostinho dos

Santos Coimbra Almedina

1982 Steiner George As ideacuteias de Heidegger trad Aacutelvaro Cabral Satildeo Paulo

Cultrix

1982 Trotignon Pierre Heidegger trad A J Rodrigues Lisboa Ediccedilotildees 70

1986 Palmer Richard Hermenecircutica trad L Ribeiro Ferreira Lisboa Ediccedilotildees

70

1988 Vatimo Gianni As aventuras da diferenccedila e o que significa pensar

depois de Heidegger e Nietzsche trad Joseacute Eduardo Rodil

1989 Apel Karl-Otto ldquoConstituiccedilatildeo do sentido e justificaccedilatildeo da validade

Heidegger e o problema da filosofia transcendentalrdquo trad Jorge Ceacutesar

das Neves RFP Braga 4513

1989 Berlich Alfred ldquoA filosofia alematilde ocidental depois de 1960rdquo trad

Fernanda Portela e Leopoldina Almeida Filosofia Lisboa Publicaccedilatildeo da

Sociedade Portuguesa de Filosofia 11-12III

537

1989 Feacutedier Franccedilois Heidegger anatomia de um escacircndalo trad de Orlando

dos Reis Petroacutepolis Vozes

1989 Ferry Luc Renaut Alain Heidegger e os modernos trad Alexandre

Costa e Sousa Lisboa Teorema

1989 Vattimo Gianni Introduccedilatildeo a Heidegger trad Joatildeo Gama Lisboa

Ediccedilotildees 70

1990 Fariacuteas Victor Heidegger e o nazismo trad Maria do Carmo Euseacutebio

Janeiro Lisboa Caminho

1990 Steiner George Heidegger trad de Joatildeo Paz Lisboa Publicaccedilotildees Dom

Quixote Biblioteca de Filosofia

1991 Perniola Mario Esteacutetica e Poliacutetica Nietzsche e Heidegger trad e

prefaacutecio de Antoacutenio Guerreiro Lisboa Sagres-Promontoacuterio

1993 Boutot Alain Introduccedilatildeo agrave filosofia de Heidegger trad Francisco

Gonccedilalves Lisboa Europa-Ameacuterica

1997 Barash Jeffrey Andrew Heidegger e o seu seacuteculo trad Andreacute do

Nascimento Lisboa Piaget

1997 Dastur Franccediloise Heidegger e a questatildeo do tempo Lisboa Piaget sd

1997 Franck Didier Heidegger e o problema do espaccedilo trad Joatildeo Paz

Lisboa Piaget

1997 Haar Michel Heidegger e a essecircncia do homem trad Ana C Alves

Lisboa Piaget

1997 Levinas Emmanuel Descobrindo a existecircncia com Husserl e Heidegger

trad Fernanda Oliveira Lisboa Piaget

1997 Pasqua Herveacute Introduccedilatildeo agrave leitura de Ser e Tempo de Martin Heidegger

trad Joana Chaves Lisboa Piaget

1997 Vattimo Gianni Introduccedilatildeo a Heidegger trad Joatildeo Gama Lisboa

Piaget

1997 Zarader Marlegravene Heidegger e as palavras da origem trad Joatildeo Duarte

Lisboa Piaget

1998 Caputo John Desmitificando Heidegger trad Leonor Aguiar Lisboa

Piaget

1998 Guignon Charles (dir) Poliedro Heidegger trad Joatildeo C Silva Lisboa

Piaget

1998 Hodge Joanna Heidegger e a Eacutetica trad Gonccedilalo Couceiro Feio

Lisboa Piaget

538

1998 Janicaud Dominique A sombra deste pensamento trad Joana Chaves

Lisboa Piaget

1998 Thiele Leslie Paul Martin Heidegger e a poliacutetica poacutes-moderna Lisboa

Piaget

1998 Wolin Richard A Poliacutetica do Ser O pensamento poliacutetico de Martin

Heidegger trad de Leonardo Mateus Lisboa Piaget

1998 Wolin Richard Labirintos em torno a Benjamin Habermas Schmitt

Arendt Derrida Marx Heidegger e outros trad de Maria Joseacute Figueiredo

Lisboa Piaget

1998 Franck Didier Heidegger e o problema do espaccedilo trad Joatildeo Paz

Lisboa Instituto Piaget

1999 Rorty Richard Ensaios sobre Heidegger e outros trad de Eugeacutenia

Antunes Lisboa Instituto Piaget

1999 Zarader Marlegravene A diacutevida impensada Heidegger e a heranccedila hebraica

trad Siacutelvia Meneses Lisboa Piaget

2000 Faye Jean-Pierre A Cilada a Filosofia heideggeriana e o nacional-

socialismo trad de Maria Ludovina Figueiredo Lisboa Piaget

2000 Foltz Bruce V Habitar a Terra Heidegger Eacutetica Ambiental e a

Metafiacutesica da Natureza trad de J Seixas e Sousa Lisboa Piaget

2000 Ott Hugo Martin Heidegger a caminho da sua biografia trad de Sandra

L Vieira Lisboa Piaget

2000 Taminiaux Jacques Leituras da Ontologia Fundamental Ensaios sobre

Heidegger trad de Joatildeo Paz Lisboa Piaget Colecccedilatildeo Pensamento e

Filosofia

2001 Poumlggeler Otto A via do pensamento em Martin Heidegger trad de Jorge

Telles Menezes Lisboa Piaget

2001 Zimmerman Michael Confronto de Heidegger com a Modernidade

Tecnologia Poliacutetica Arte trad de Joatildeo Sousa Ramos Lisboa Piaget

2002 Lotz Johannes Baptist Martin Heidegger e S Tomaacutes de Aquino trad de

Lumir Nahodil Lisboa Piaget

2002 Safransky Ruumldiger Um Mestre na Alemanha Heidegger e o seu Tempo

trad de Jorge Telles de Menezes Lisboa Piaget

2003 Derrida Jacques Poliacuteticas da amizade seguido de O ouvido de

Heidegger trad Fernanda Bernardo Porto Campo das Letras

539

2003 Herrmann Friedrich-Wilhelm von A ideia de Fenomenologia em

Heidegger e Husserl Fenomenologia Hermenecircutica do aiacute-ser e

Fenomenologia Reflexiva da Consciecircncia Separata de Phainomenon 7

trad P Sobral Pignatelli revisatildeo e anotaccedilatildeo de Irene Borges-Duarte

2007 Gadamer Hans-Georg Hermenecircutica em Retrospectiva Vol I

Heidegger em Retrospectiva trad de MA Casanova Petroacutepolis Vozes

3 - O diaacutelogo com Heidegger em liacutengua portuguesa

A Trabalhos acadeacutemicos sobre Heidegger [Dissertaccedilotildees de Licenciatura (L) Mestrado (MA) Doutoramento (PhD)]

1 Em Portugal

1938 Correia Joatildeo Frade A personalidade humana Da concepccedilatildeo joacutenica agrave

metafiacutesica existencial de Heidegger Esboccedilo L Coimbra FLUC

1943 Antunes Pe Manuel Panorama da Filosofia Existencial de Kierkegaard a

Heidegger L Braga FFB

1965 Soveral Eduardo Abranches de O meacutetodo fenomenoloacutegico PhD Porto

FLUP

1966 Fraga Gustavo de De Husserl a Heidegger elementos para uma

problemaacutetica da fenomenologia PhD Coimbra FLUC

1969 Enes Joseacute Agrave Porta do Ser ensaio sobre a justificaccedilatildeo noeacutetica do Juiacutezo

de percepccedilatildeo externa em S Tomaacutes de Aquino PhD

1970 Silva Carlos H Carmo Do Ser e das Aparecircncias ou da diferenccedila

ontoloacutegica fundamental L Lisboa FLUL 2 vol

1972 Branco Maria Eugeacutenia A verdade e a liberdade no pensamento

heideggeriano L Lisboa FLUL VII

1984 Blanc Mafalda de Faria O fundamento em Heidegger Vom Wesen des

Grundes - Der Satz von Grund Interpretaccedilatildeo-Perspectivaccedilatildeo MA

Lisboa FLUL

1987 Paisana Joatildeo Fenomenologia explicitativa e fenomenologia

hermenecircutica (A relaccedilatildeo entre as filosofias de Husserl e Heidegger) PhD

Lisboa FLUL

1987 Carvalho Maacuterio Jorge de Almeida A fenomenologia do primeiro

Heidegger e o problema ontoloacutegico MA Lisboa UNL

540

1990 Miranda Joseacute A Braganccedila de Fundamentos de uma analiacutetica da

actualidade contributos para uma teoria criacutetica da experiecircncia PhD

Lisboa FCSH UNL

1990 Morujatildeo Carlos Martin Heidegger verdade e liberdade Vom Wesen der

Wahrheit MA Lisboa FLUL

1996 Carvalho Maacuterio Jorge de Almeida Problemas fundamentais de

Fenomenologia da finitude PhD Lisboa UNL 3 vols

1997 Saacute Alexandre Franco de A criacutetica do Ocidente na filosofia de Martin

Heidegger De Sein und Zeit aos Beitraumlge zur Philosophie MA Lisboa

FLUL

1997 Silva Liliana Monteiro Loureiro Martins da Pensamento e queda em

Martin Heidegger MA Lisboa FLUL

1997 Silva Rui Sampaio da Heidegger Gadamer e o problema do

fundacionalismo MA Lisboa FCSH UNLp

1999 Tavares Maria Isabel Peixoto A Crise do Homem contemporacircneo na

―Carta sobre o Humanismo de M Heidegger MA Coimbra UCP

2004 Hespanhol Joatildeo Canha Pinto Terra Mundo e Poesia MA Porto

FLUP

2009 Soares Stela Maria dos Santos O espaccedilo pictural em Heidegger MA

Lisboa FBAUL

2 No Brasil

1955 Machado Geraldo Pinheiro A noccedilatildeo de ser em Maritain e Heidegger

comparadas no plano de um primeiro momento da ontologia PhD

Faculdade de Filosofia Ciecircncias e Letras da USP

1963 Leatildeo Emmanuel Carneiro De Problematicae Hermeneuticae

Philosophicae Iuxta Martin Heidegger PhD Roma Itaacutelia Pontifiacutecio

Ateneu Antoniano

1968 Stein Ernildo Jacob Compreensatildeo e Finitude - Estrutura e movimento da

interrogaccedilatildeo heideggeriana PhD Universidade Federal do Rio Grande do

Sul UFRGS

1975 Brito Orsely Ferreira de Arte e verdade em Heidegger tese de livre

docecircncia UF Fluminense Niteroacutei

1977 Tribuzy Terezinha Prado Negreiros Arte e Ontologia em Heidegger

MA Rio de Janeiro PUC-RJ

541

1979 Mezzari Libera O Ser e a palavra em Heidegger e Drummond MA

PUC do Rio Grande do Sul Instituto de Letras e Artes Porto Alegre

1979 Simon Maria Celia A questatildeo da verdade a partir do pensamento de

Martin Heidegger MA UF do Rio de Janeiro

1985 Beaini Thais Curi Arte como fruto das concepccedilotildees epocais do ser

reconstituiccedilatildeo do enfoque heideggeriano PhD USP

1986 Cavalcante Marcia de Saacute O espaccedilo ndash entre poesia e pensamento PhD

UF do Rio de Janeiro

1990 Fleig Mario Os esquemas horizontais em Ser e tempolsquo PhD PUC do

Rio Grande do Sul Porto Alegre

1991 Yukizaki Suemy A questatildeo da autodidaxia em educaccedilatildeo e seus

fundamentos nas filosofias de Kant e de Heidegger MA Instituto de

Estudos Avanccedilados em Educaccedilatildeo da Fundaccedilatildeo Getuacutelio Vargas Rio de

Janeiro

1992 Gmeiner Conceiccedilatildeo Neves Linguagem originaria um estudo sobre a

linguagem na perspectiva de Martin Heidegger PhD USP

1993 DAgord Marta Regina Hermenecircutica do Dasein e superaccedilatildeo da ideia de

sujeito um estudo sobre o lugar do conceito de subjetividade na obra de

Martin Heidegger MA UF do Rio Grande do Sul Instituto de Filosofia e

Ciecircncias Humanas Porto Alegre

1994 Reis Roacutebson Ramos dos Verdade e interpretaccedilatildeo fenomenoloacutegica PhD

UF do Rio Grande do Sul Instituto de Filosofia e Ciecircncias Humanas

Porto Alegre

1995 Almeida Fernando Milton de Cuidar de ser mdash uma aproximaccedilatildeo do

pensamento heideggeriano MA PUC Satildeo Paulo

1995 Werle Marco Aureacutelio Noccedilatildeo da poesia em Houmllderlin segundo Heidegger

MA USP

1996 Moura Joseacute de Castro Discurso de jovens graacutevidas uma abordagem

fenomenoloacutegico-hermenecircutica agrave luz de Heidegger PhD USP

1998 Costa Cristina Dias O conceito de mundo em Ser e Tempo de Martin

Heidegger MA Universidade Federal de Santa Maria

1999 Delavy Fernando Americo Cuidado e Temporalidade em Ser e Tempo

de Martin Heidegger MA Universidade Federal de Santa Maria

1999 Tolfo Rogeacuterio Linguagem e Mundo a fenomenologia do sinal em Ser e

Tempo MA Universidade Federal de Santa Maria

542

1999 Ferreira Noeli Andrade A tradiccedilatildeo no modo-de-ser-com-o-outro-no-

mundo da enfermagem uma abordagem agrave luz de Heidegger PhD

EEERP Programa de Interunidades em Enfermagem Ribeiratildeo Preto

1999 Schneider Jacoacute Fernando Ser-famiacutelia de esquizofreacutenico hermenecircutica

de discursos fundamentada em Martin Heidegger PhD Escola de

Enfermagem de Ribeiratildeo Preto da USP Ribeiratildeo Preto

2000 Ferreira Juacutenior Wanderley Joseacute Heidegger a questatildeo da teacutecnica e a

superaccedilatildeo da metafiacutesica MA Universidade Estadual de Campinas

Instituto de Filosofia e Ciecircncias Humanas Campinas

2001 Quadros Siacutelvia Regina Capaverde de A compreensatildeo e sua estrutura

preacutevia em Ser e Tempo de Martin Heidegger MA Universidade Federal

de Santa Maria

2001 Cavalcanti Patrick Estellita Pessoa Heidegger e o Teacutedio Sobre a

Gecircnese do Conceito de Dasein MA Universidade Federal do Rio de

Janeiro

2001 Luz Maria Helena Arauacutejo A dimensatildeo cotidiana da pessoa ostomizada

um estudo de enfermagem no referencial de Martin Heidegger PhD

Escola de Enfermagem Anna Nery da UF do Rio de Janeiro

2001 Silveira Marli Anguacutestia e alteridade em Ser e Tempo MA

Universidade Federal de Santa Maria

2002 Bilibio Evandro A temporalidade do Dasein em Ser e Tempo de Martin

Heidegger MA Universidade Federal de Santa Maria

2002 Colpo Marcos Oreste Fundamentos para uma filosofia da educaccedilatildeo a

partir da ontologia de Martin Heidegger MA USP

2002 Piccini Josefina Daniel Criacuteticas de Martin Heidegger agrave Daseinsanalyse

psiquiaacutetrica de Ludwig Binswanger MA PUC de Satildeo Paulo

2003 Freitas Heacutelia Maria Soares de A noccedilatildeo de indicaccedilatildeo formal em

Heidegger MA Universidade Federal de Santa Maria

2003 Almeida Rogeacuterio O conceito de cuidado em Ser e Tempo de Martin

Heidegger MA Universidade Federal de Santa Maria

2003 Trindade Ellika Hermenecircutica do existir do homem de meia-idade ndash

paternidade sexualidade e projectos de vida um olhar agrave luz de

Heidegger PhD USP Ribeiratildeo Preto

2004 Betanin Tatiana O conceito de jogo na ontologia fundamental de Martin

Heidegger MA Universidade Federal de Santa Maria

2004 Betanin Tatiana Transcendecircncia e jogo na ontologia fundamental de

Martin Heidegger MAUniversidade Federal de Santa Maria

543

2004 Felin Rodrigo O cuidado como fundamento das pulsotildees em Ser e

Tempo de Martin Heidegger MA Universidade Federal de Santa Maria

2004 Froumlhlich Andreacute Spies O conceito de anguacutestia em Ser e Tempo MA

Pontifiacutecia Universidade Catoacutelica do Rio Grande do Sul

2004 Machado Jorge Torres Culpa e existecircncia uma retomada dos indiacutecios

formais como ferramenta metodoloacutegica de M Heidegger PhD Pontifiacutecia

Universidade Catoacutelica do Rio Grande do Sul

2005 Brasil Luciano de Faria A espacialidade do Dasein Um estudo sobre o

paraacutegrafo 24 de Ser e tempo MA Pontifiacutecia Universidade Catoacutelica do

Rio Grande do Sul

2005 Seibt Cezar Luiz Passagem para o Mundo - A cotidianidade e o poder-

ser proacuteprio em Ser e Tempo MAPontifiacutecia Universidade Catoacutelica do Rio

Grande do Sul

2006 Sayatildeo Sandro Cozza Sobre a leveza do humano um diaacutelogo com

Heidegger Sartre e Levinas PhD Pontifiacutecia Universidade Catoacutelica do Rio

Grande do Sul

2006 Souza Juacutenior Neacutelson Da transcedentalidade do Dasein agrave verdade da

essecircncia caracterizaccedilatildeo dos momentos estruturantes da filosofia de

Heidegger entre o final da deacutecada de 20 e o iniacutecio da de 30 PhD

Pontifiacutecia Universidade Catoacutelica do Rio Grande do Sul

2007 Goulart Junior Ademar Pires A gecircnese ontoloacutegica do comportamento

cientiacutefico no pensamento de Martin Heidegger MA Universidade

Federal de Santa Maria

2007 Dias Luciana da Costa A fuga dos deuses arte niilismo e a construccedilatildeo

do ser em Martin Heidegger PhD Universidade do Estado do Rio de

Janeiro

2007 Fanton Marcos Filosofia Hermenecircutica e Hermenecircutica Juriacutedica um

estudo a partir de Ser e Tempo L Pontifiacutecia Universidade Catoacutelica do Rio

Grande do Sul

2007 Pantaleoni Caacutessio Eduardo Duarte Insuficiecircncia necessidade e

possibilidade do sentido do ser Heidegger e a superaccedilatildeo da metafiacutesica

MA Pontifiacutecia Universidade Catoacutelica do Rio Grande do Sul

2007 Rocco Ricardo A questatildeo da teacutecnica em Heidegger MA Universidade

do Vale do Rio dos Sinos

2007 Sassi Vagner A questatildeo acerca da origem e a apropriaccedilatildeo natildeo-

objetivante da tradiccedilatildeo no jovem Heidegger PhD Pontifiacutecia Universidade

Catoacutelica do Rio Grande do Sul

544

2008 Freitas Heacutelia Maria Soares de A questatildeo da linguagem em Ser e tempo

PhD Universidade do Estado do Rio de Janeiro

2009 Moura Paulo Rogeacuterio Garcez de O pensamento sobre a teacutecnica

moderna em Heidegger MA Universidade Federal de Santa Maria

2009 Flores Juliana Mezzomo Natureza e funccedilatildeo do conceito de totalidade na

obra de Martin Heidegger MA Universidade Federal de Santa Maria

2009 Nascimento Thiago Carreira Alves Sentido e compreensatildeo em Ser e

Tempo de Martin Heidegger MA Universidade Federal de Santa Maria

2009 Vanny Adel Fernando de Almeida O conceito de significatividade em Ser

e Tempo de Martin Heidegger MA Universidade Federal de Santa

Maria

B Estudos monograacuteficos que dialogam com Heidegger

1942 Brandatildeo Antoacutenio Joseacute O direito ensaio de ontologia juriacutedica Lisboa

Ediccedilatildeo AJ Brandatildeo

1946 Santos Delfim Fundamentaccedilatildeo Existencial da Pedagogia Lisboa Graacutef

Lisbonense

1949 Silva Vicente Ferreira da Exegese da Acccedilatildeo Satildeo Paulo Livraria Martins

Editores

1950 Silva Vicente Ferreira da Dialeacutectica das Consciecircncias Satildeo Paulo ed do

autor

1950 Barbuy Heraldo O problema do Ser Satildeo Paulo Livraria Martins

1953 Macedo Siacutelvio de A interpretaccedilatildeo e a estrutura linguiacutestica na filosofia de

Heidegger Maceioacute Casa Ramalho

1953 Silva Vicente Ferreira da Teologia e Anti-humanismo Satildeo Paulo ediccedilatildeo

de autor

1954 Ferreira Vergiacutelio Espaccedilo do Invisiacutevel 1 1ordf ed Lisboa Portugaacutelia

1954 Mattos Carlos Lopes de Heidegger e o problema da filosofia Limeira

ed Letras da Proviacutencia

1954 Veiga Glaacuteucio Notas sobre Heidegger Recife Imprensa Oficial

1956 Abranches Cassiano Santos Metafiacutesica Braga Livraria Cruz

1959 Bornheim Gerd Aspectos Filosoacuteficos do Romantismo Porto Alegre

Instituto Estadual do Livro

545

1959 Miranda Maria do Carmo Tavares Meditaccedilotildees sobre a Filosofia Braga

Faculdade de Filosofia

1964 Fraga Gustavo de De Husserl a Heidegger Elementos para uma

problemaacutetica da Fenomenologia Separata da Revista Biblos vol 40

Coimbra

1965 Fraga Gustavo de Sobre Heidegger Coimbra Almedina

1966 Macedo Siacutelvio de Intuiccedilatildeo e linguagem em Bergson e Heidegger

Maceioacute Graacutefica Satildeo Pedro

1966 Nunes Benedito Introduccedilatildeo agrave Filosofia da Arte Satildeo Paulo Editora

Universidade de Satildeo Paulo

1966 Stein Ernildo Jacob Introduccedilatildeo ao pensamento de Martin Heidegger

Porto Alegre Ed Itahaca

1967 Stein Ernildo Jacob Compreensatildeo e finitude estrutura e movimento da

interrogaccedilatildeo heideggeriana Porto Alegre Eacutetica Impressora (2 tomos)

1968 Soveral Eduardo Abranches O meacutetodo fenomenoloacutegico Estudo para a

determinaccedilatildeo do seu valor filosoacutefico Vol 1 O valor do meacutetodo para a

Filosofia Porto Centro de Estudos Humaniacutesticos

1969 Enes Joseacute Agrave Porta do Ser Ensaio sobre a justificaccedilatildeo noeacutetica do juiacutezo

da percepccedilatildeo externa em Satildeo Tomaacutes de Aquino Lisboa Difusatildeo Dilsar

2ordf ed rev aumentada Lisboa INIC 1990

1969 Nunes Benedito O dorso do tigre ensaios Satildeo Paulo Perspectiva

1970 Bornheim Gerd Introduccedilatildeo ao Filosofar - o pensamento filosoacutefico em

bases existenciais Porto Alegre Globo

1970 Macdowell Joatildeo Augusto Amazonas A gecircnese da ontologia fundamental

de Martin Heidegger ensaio de caracterizaccedilatildeo do modo de pensar de

Sein und Zeit‟ Satildeo Paulo HerderUSP

1972 Bornheim Gerd Metafiacutesica e Finitude 1ordf ed Porto Alegre Movimento

1972 ed revista e ampliada Satildeo Paulo Editora Perspectivas 2001

1973 Sousa Eudoro de Dioniacutesio em Creta Satildeo Paulo Livraria Duas Cidades

1973 Stein Ernildo Jacob A questatildeo do meacutetodo na filosofia um estudo do

modelo heideggeriano Satildeo Paulo Livraria Duas Cidades

1976 Ferreira Vergiacutelio Espaccedilo do Invisiacutevel 2 Lisboa Arcaacutedia

1976 Leatildeo Emmanuel Carneiro Aprendendo a Pensar Petroacutepolis Editora

VozesVol I e Vol II

546

1976 Stein Ernildo Jacob Melancolia ensaios sobre a finitude no pensamento

ocidental Porto Alegre Movimento

1977 Bornheim Gerd Dialeacutectica teoria praxis Ensaio para uma criacutetica da

fundamentaccedilatildeo ontoloacutegica da dialeacutectica Porto Alegre GloboUSP

1977 AAVV Heidegger (1889-1976) nuacutemero monograacutefico da RPF Braga

334

1977 Stein Ernildo Jacob Anamnese a filosofia e o retorno do reprimido Porto

Alegre EDIPUCRS

1980 Sousa Eudoro de Mitologia Brasiacutelia Universidade de Brasiacutelia

1980 Pereira Aloiacutesio Ferraz Estado e direito na perspectiva da liberdade uma

criacutetica segundo Martin Heidegger ed Revista dos Tribunais Satildeo Paulo

1980 Pereira Miguel Baptista Lugar de Ser e Tempo na filosofia

contemporacircnea da linguagem sep Biblos 56 Coimbra Faculdade de

Letras

1981 Beaini Thais Curi Escuta do silecircncio um estudo sobre a linguagem no

pensamento de Heidegger Satildeo Paulo Cortez

1981 Sousa Eudoro de Histoacuteria e Mito Brasiacutelia Editora Universidade de

Brasiacutelia

1982 Enes Joseacute Estudos e Ensaios Ponta Delgada sn

1983 Enes Joseacute Linguagem e Ser Lisboa Imprensa Nacional - Casa da

Moeda

1986 Barata-Moura Joseacute Da representaccedilatildeo agrave praxis Itineraacuterios do idealismo

contemporacircneo Lisboa Caminho

1986 Barata-Moura Joseacute Ontologias da Praxis e Idealismo Lisboa Caminho

1986 Beaini Thais Curi Heidegger arte como cultivo do inaparente Satildeo

Paulo Nova Stella

1986 Nunes Benedito Passagem para o poeacutetico filosofia e poesia em Martin

Heidegger Satildeo Paulo Aacutetica

1986 Stein Ernildo Jacob Criacutetica da ideologia e racionalidade Porto Alegre

Movimento

1988 Stein Ernildo Jacob Racionalidade e existecircncia uma introduccedilatildeo agrave

filosofia Porto Alegre LampPM

1988 Stein Ernildo Jacob Seis estudos sobre Ser e Tempo Petroacutepolis RJ

Editora Vozes

547

1989 AAVV Martin Heidegger RPF Braga 453

1989 AAVV Heidegger um seacuteculo Filosofia publicaccedilatildeo da Sociedade

Portuguesa de Filosofia Lisboa III1-2

1990 AAVV A Poleacutemica sobre Heidegger e o Nazismo Veacutertice Lisboa 2ordf

seacuterie Fev

1990 Loparic Zeljko Heidegger reacuteu um ensaio sobre a periculosidade da

filosofia Satildeo Paulo Campinas Papirus

1990 Pereira Miguel Baptista Modernidade e Tempo para uma leitura do

discurso moderno Coimbra Minerva

1990 Stein Ernildo Jacob Seis estudos sobre ser e tempo Petroacutepolis Vozes

1991 Ferreira Vergiacutelio ldquoExistencialismo e Literaturardquo in Espaccedilo do Invisiacutevel 2

Venda Nova Bertrand Editora

1992 Belo Fernando Heidegger pensador da Terra Coimbra APF

1992 Paisana Joatildeo Fenomenologia e hermenecircutica A relaccedilatildeo entre as

filosofias de Husserl e Heidegger Lisboa Presenccedila

1993 Paisana Joatildeo Histoacuteria da filosofia e tradiccedilatildeo filosoacutefica Lisboa Colibri

1993 Belo Fernando Filosofia e Ciecircncias da Linguagem Lisboa Colibri

1993 Nunes Benedito No Tempo do Niilismo e Outros Ensaios Satildeo Paulo

Editora Aacutetica

1993 Soveral Eduardo Abranches Meditaccedilatildeo Heideggeriana Porto Ed

Conselho Directivo da FLUP

1993 Stein Ernildo Jacob Seminaacuterio sobre a verdade liccedilotildees preliminares

sobre o paraacutegrafo 44 de Sein und Zeit Petroacutepolis Vozes

1994 Figueiredo Luiacutes Claacuteudio Escutar recordar dizer encontros

heideggerianos com a cliacutenica psicanaliacutetica seguido de Fala e

Acontecimento em Anaacutelise Satildeo Paulo Escuta EDUC

1995 Soveral Eduardo Abranches de Ensaios Filosoacuteficos Porto Elcla

1995 Loparic Zeljko Eacutetica e Finitude Satildeo Paulo Educ

1996 Stein Ernildo Jacob Aproximaccedilotildees sobre hermenecircutica Porto Alegre

EDIPUCRS

1997 Blanc Mafalda de Faria Introduccedilatildeo agrave Ontologia Lisboa Piaget

1997 Motta Maria da Graccedila O ser doente no triacuteplice mundo da crianccedila famiacutelia

e hospital uma descriccedilatildeo fenomenoloacutegica das mudanccedilas existenciais

Florianoacutepolis UFSCCurso de Poacutes-Graduaccedilatildeo em Enfermagem

548

1997 Stein Ernildo Jacob A caminho de uma fundamentaccedilatildeo poacutes-metafiacutesica

Porto Alegre EDIPUCRS

1997 Stein Ernildo Jacob Epistemologia e criacutetica da modernidade Ijuiacute

UNIJUIacute

1998 Blanc Mafalda de Faria O fundamento em Heidegger Lisboa Piaget

1998 Dias Sousa Esteacutetica do conceito A Filosofia na era da comunicaccedilatildeo

Coimbra Ed Peacute de Paacutegina

1999 Enes Joseacute Noeticidade e Ontologia Lisboa Imprensa Nacional - Casa

da Moeda

2000 Ceacutesar Constanccedila Marcondes O Grupo de Satildeo Paulo Lisboa Imprensa

Nacional-Casa da Moeda

2000 Morujatildeo Carlos Verdade e Liberdade em Martin Heidegger Lisboa

Piaget

2000 Nunes Benedito O Nietzsche de Heidegger Rio de Janeiro Pazulin

2000 Reis Roacutebson Ramos dos amp Rocha Ronai (coord) Filosofia

Hermenecircutica Santa Maria Editora da UFSM

2000 Stein Ernildo Jacob Diferenccedila e metafiacutesica ensaios sobre a

desconstruccedilatildeo Porto Alegre EDIPUCRS

2001 Seixas Elisabete (Org) Dossier Heidegger Porto Porto Editora

2001 Stein Ernildo Jacob Compreensatildeo e Finitude - Estrutura e movimento da

interrogaccedilatildeo heideggeriana Rio Grande do Sul Editora Unijuiacute

2002 Stein Ernildo Jacob Pensar eacute pensar a diferenccedila filosofia e

conhecimento empiacuterico Ijuiacute Unijuiacute (2ordf ed Unijuiacute 2006)

2002 Stein Ernildo Jacob Uma breve introduccedilatildeo agrave filosofia Ijuiacute Unijuiacute

2003 AAVV A Heranccedila de Heidegger RPF Braga 594

2003 Loparic Zeljko Winnicott e o pensamento poacutes-metafiacutesico Satildeo Paulo

Editora Escuta

2003 Stein Ernildo Jacob Nas proximidades da antropologia Ijuiacute Editora

Unijuiacute

2004 Borges-Duarte Irene Henriques F Matos Dias I (Coord) Heidegger

Linguagem e Traduccedilatildeo Actas do Coloacutequio Internacional Marccedilo de 2002

Lisboa CFUL

549

2004 Loparic Zeljko A linguagem objetificante e natildeo-objetificante em

Heidegger Cd-Rom do III Coloacutequio do Ciacuterculo Latino-Americano de

Fenomenologia (CLAFEN) Lima

2004 Loparic Zeljko Heidegger Rio de Janeiro Jorge Zahar

2006 Casanova Marco A Nada a Caminho Impessoalidade niilismo e teacutecnica

na obra de M Heidegger Rio de Janeiro Forense Universitaacuteria

2009 Casanova Marco Compreender Heidegger Petroacutepolis Vozes

C - Artigos em revistas e obras colectivas

1938 Santos Delfim ldquoHeidegger e Houmllderlin ou a essecircncia da poesiardquo in sep

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1939 Santos Delfim rdquoDa Filosofiardquo [sn] Porto Imprensa Portuguesa

1939 Domingues Garcia ldquoA filosofia da anguacutestia de Martinho Heideggerrdquo in

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1948 Santos Delfim ldquoPsicologia e Direitordquo in Boletim do Ministeacuterio da Justiccedila

nordm 6 Maio Lisboa

1949 Beau Albin Eduard ldquoO humanismo no pensamento de Heideggerrdquo in

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1949 Santos Delfim ldquoDireito Justiccedila e Liberdade A propoacutesito do Congresso

Internacional de Amsterdatildeordquo in Boletim do Ministeacuterio da Justiccedila nordm 10

Lisboa

1950 Santos Delfim ldquoTemaacutetica Existencialrdquo in sep da revista Atlacircntico nordm 2 3ordf

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1951 Silva Vicente Ferreira da ldquoMartin Heidegger Holzwegerdquo in Revista

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Filosofia

1951 Silva Vicente Ferreira da ldquoA uacuteltima fase do pensamento de Heideggerrdquo

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Brasileiro de Filosofia

1951 Silva Vicente Ferreira da ldquoIdeias para Um Novo Conceito de Homemrdquo in

sep da Revista Brasileira de Filosofia vol I fasc 4 Satildeo Paulo Instituto

Brasileiro de Filosofia

1951 Beau Albin Eduard ldquoMartin Heidegger Was ist Metaphysikldquo Biblos 27

Coimbra Faculdade de Letras

550

1952 Silva Vicente Ferreira da ldquoO Homem e Sua proveniecircnciardquo Revista

Brasileira de Filosofia nordm 7 Satildeo Paulo Instituto Brasileiro de Filosofia

1952 Santos Delfim ldquoO Sentido Existencial da Anguacutestia sep dos Anais

Portugueses de Psiquiatria vol IV nordm 4 Lisboa Faculdade de Medicina

1952 Martins Diamantino ldquoUma Conferecircncia de Heideggerrdquo in Revista

Portuguesa de Filosofia vol 8 Braga Faculdade de Filosofia de Braga

1953 Santos Delfim Prefaacutecio agrave trad port de Regis Jolivet As Doutrinas

Existencialistas de Kierkegaard a Sartre Porto Livraria Tavares Martins

1953 Martins Diamantino ldquoS Tomaacutes e Heideggerrdquo in Revista Portuguesa de

Filosofia vol 9 Braga Faculdade de Filosofia de Braga

1955 Silva Vicente Ferreira da rdquoOs Pastores do Serrdquo in Diaacutelogo nordm 2 Satildeo

Paulo Sociedade Cultural Nova Criacutetica

1955 Silva Vicente Ferreira da ldquoEnzo Paci e o pensamento Sul-Americanordquo in

Revista Brasileira de Filosofia vol 5 fasc 18 Satildeo Paulo Instituto

Brasileiro de Filosofia

1955 Silva Vicente Ferreira da ldquoIntroduccedilatildeo agrave Filosofia da Mitologia in sep da

Revista Brasileira de Filosofia vol 5 fasc 4 Satildeo Paulo Instituto Brasileiro

de Filosofia

1956 Silva Vicente Ferreira da ldquoO Ser in-funsivoldquo in Diaacutelogo nordm 3 Satildeo Paulo

Sociedade Cultural Nova Criacutetica

1956 Silva Vicente Ferreira da ldquoA transparecircncia da Histoacuteriardquo in Diaacutelogo nordm 4

Satildeo Paulo Sociedade Cultural Nova Criacutetica

1957 Silva Vicente Ferreira da ldquoA Fonte e o Pensamentordquo in Diaacutelogo nordm 7

Satildeo Paulo Sociedade Cultural Nova Criacutetica

1957 Silva Vicente Ferreira da ldquoSanto Tomaacutes e Heideggerrdquo in Diaacutelogo nordm 6

Satildeo Paulo Sociedade Cultural Nova Criacutetica

1958 Silva Vicente Ferreira da ldquoDiaacuterio Filosoacuteficordquo in Cavalo Azul nordm 3 Satildeo

Paulo

1958 Silva Vicente Ferreira da rdquoInstrumentos Coisas e Culturardquo Revista

Brasileira de Filosofia vol 8 fasc 30 Satildeo Paulo Instituto Brasileiro de

Filosofia

1959 Silva Vicente Ferreira da ldquoHistoacuteria e Meta-histoacuteriardquo Congresso

Internacional de Filosofia Satildeo Paulo

1960 Silva Vicente Ferreira da ldquoO Ocaso do Pensamento Humaniacutesticordquo in

Diaacutelogo nordm 13 Satildeo Paulo Sociedade Cultural Nova Criacutetica

551

1960 Carvalho A Pinto ldquoO humanismo de Heideggerrdquo in Kriterion 13 Belo

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1960 Miranda Maria do Carmo Tavares ldquoCaminho e experiecircncia (Notas a

propoacutesito do Der Feldweg e do Aus der Erfahrung des Denkens de M

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Pernambuco 2 Recife

1961 Miranda Maria do Carmo Tavares ldquoO pensar e o ser enterdquo in Revista

filosoacutefica do Nordeste 2 Fortaleza

1961 Silva Vicente Ferreira da ldquoO homem e a Liberdade na tradiccedilatildeo

Humaniacutesticardquo in Revista Brasileira de Filosofia vol 11 fasc 41 Satildeo

Paulo Instituto Brasileiro de Filosofia

1962 Silva Vicente Ferreira da ldquoDiaacutelogo do Marrdquo in Diaacutelogo nordm 14 Satildeo Paulo

Sociedade Cultural Nova Criacutetica

1962 Ferreira Vergiacutelio prefaacutecio agrave traduccedilatildeo portuguesa de O Existencialismo eacute

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1963 Pires Celestino ldquoHeidegger e o Ser como Histoacuteriardquo sep da Revista

Portuguesa de Filosofia vol 19 Braga Faculdade de Filosofia de Braga

1964 Pires Celestino ldquoOntologia e Metafiacutesicardquo in Revista Portuguesa de

Filosofia vol 20 Braga Faculdade de Filosofia de Braga

1965 Fraga Gustavo de ldquoSobre Heideggerrdquo in Revista Portuguesa de

Filosofia vol 21 Braga Faculdade de Filosofia de Braga

1965 Fragata Juacutelio ldquoExistencialismo e cristianismordquo in Broteacuteria 80 Lisboa

1966 Pires Celestino ldquoDa fenomenologia agrave verdade Um caminho de Martin

Heideggerrdquo in Revista Portuguesa de Filosofia vol 22 Braga Faculdade

de Filosofia de Braga

1968 Carrolo C A ldquoReflexatildeo sobre a fenomenologia a propoacutesito do sect7 de

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Faculdade de Filosofia de Braga

1968 Fraga Gustavo de ldquoDe Husserl a Heidegger ndash Elementos para uma

problemaacutetica da fenomenologiardquo Revista Portuguesa de Filosofia vol 24

Braga Faculdade de Filosofia de Braga

1968 Rodrigues A Noacutebrega ldquoVerdade e liberdade Um tema de Martin

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Filosofia vol 24 Braga Faculdade de Filosofia de Braga

1968 Stein Ernildo Jacob rdquoHeidegger O enigma da sociedade industrialldquo (com

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552

1968 Stein Ernildo Jacob rdquoNas origens da diferenccedila ontoloacutegicardquo in Caderno de

Saacutebado Correio do Povo 09 Mar Porto Alegre

1968 Stein Ernildo Jacob rdquoPossibilidade de uma nova ontologiardquo in Organon

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1969 Antunes Pe Manuel ldquoHeidegger e a sua Influecircnciardquo in Broteacuteria 89

Lisboa

1969 Stein Ernildo Jacob ldquoEm busca de uma Ontologia da Finituderdquo in Revista

Brasileira de Filosofia vol 19 fasc76 Braga Faculdade de Filosofia de

Braga

1970 Pires Celestino rdquoDeus e a teologia em Martin Heideggerrdquo in sep Revista

Portuguesa de Filosofia vol26 Braga Faculdade de Filosofia de Braga

1970 Bornheim Gerd rdquoA filosofia Alematilde apoacutes a primeira Guerra Mundialrdquo in

Revista Brasileira de Filosofia vol 20 fasc 79 Satildeo Paulo Instituto

Brasileiro de Filosofia

1970 Filipe Almor ldquoHeidegger e a sua influecircnciardquo Broteacuteria 90 Lisboa

1970 Fragata Juacutelio ldquoO problema de Deus na fenomenologiardquo in Revista

Portuguesa de Filosofia 26 Braga Faculdade de filosofia de Braga

1971 Penedos A dos ldquoA interpretaccedilatildeo heideggeriana da Alegoria da Caverna

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1971 Stein Ernildo Jacob ldquoAlgumas consideraccedilotildees sobre o meacutetodo

fenomenoloacutegico em Ser e Tempordquo in Revista Brasileira de Filosofia v 1

Satildeo Paulo Instituto Brasileiro de Filosofia

1973 Pires Celestino ldquoCrise da Metafiacutesica crise do Homemrdquo in Revista

Portuguesa de Filosofia 29 Braga Faculdade de Filosofia de Braga

1973 Santos Delfim ldquoHeideggerrdquo [ineacutedito natildeo datado] in Obras Completas

volII Lisboa Gulbenkian

1973 Stein Ernildo Jacob ldquoHeidegger e a paciecircncia do conceitordquo in Caderno

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1974 Lotz Johannes Baptista ldquoA actualidade do pensamento de S Tomaacutes Um

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1974 Pegoraro Olinto ldquoA verdade em Satildeo Tomaacutes e M Heideggerrdquo in A

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1975 Aquino M F de ldquoA visatildeo do mundo em Husserl e Heideggerrdquo in Siacutentese

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553

1975 Fogel G ldquoHegel e a identidade Heidegger e a diferenccedilardquo in Vozes 69

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1975 Mota W Silveira da ldquoA consciecircncia valorativa contemporacircnea sob uma

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Instituto Brasileiro de Filosofia

19751976 Nogueira Joatildeo Paulo ldquoHeidegger ou os novos caminhos da

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1976 Antunes Pe Manuel ldquoHeidegger Renovador da Filosofiardquo in Broteacuteria

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1976 Botelho A ldquoMartin Heideggerrdquo in Revista Brasileira de Filosofia 26 Satildeo

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1976 Gomes F Soares ldquoMartin Heidegger (1889-1976)rdquo in Revista

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Braga

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Satildeo Paulo

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1990 Cunha Tito Cardoso e ldquoHeidegger e o nazismordquo Veacutertice II seacuterie Fev

Lisboa

1990 Fariacuteas Victor ldquoHeidegger e o Nazismordquo Veacutertice II seacuterie Fev Lisboa

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2002 Nova M A S C ldquoO salto de volta a meditaccedilatildeo heideggeriana do

princiacutepio da filosofia a partir do acontecimento do fimrdquo in Oliveira N amp

Souza R Ronai (coord) Fenomenologia Hoje II Significado e

Linguagem Porto Alegre Edipucrs

2002 Reis Roacutebson Ramos dos Matemaacutetica e ontologia no primeiro

Heidegger in Oliveira N amp Souza R Ronai (coord) Fenomenologia

Hoje II Significado e Linguagem Porto Alegre Edipucrs

2002 Reis Roacutebson Ramos dos Sentido e Interpretaccedilatildeo na Fenomenologia-

hermenecircutica de Martin Heidegger in Anais da III Semana de Filosofia

Contemporacircnea Ilheacuteus UESC

2002 Saacute Alexandre Franco de ldquoDa destruiccedilatildeo fenomenoloacutegica agrave confrontaccedilatildeo

Heidegger e a incompletude da Ontologia Fundamentalrdquo in Actas do

Primeiro Congresso da Associaccedilatildeo Portuguesa de Filosofia

Fenomenoloacutegica in Phainomenon Lisboa Centro de Filosofia da

Universidade de Lisboa

2002 Saacute Alexandre Franco de ldquoHeidegger e a questatildeo da Eacutetica Entre as duas

vias da questatildeo do Serrdquo in Phainomenon 56 Lisboa Centro de Filosofia

da Universidade de Lisboa

2002 Reis Roacutebson Ramos dos ldquoHeidegger e a doutrina da validaderdquo in X

Encontro Nacional de Filosofia da ANPOF Atas do X Encontro Nacional

de Filosofia da ANPOF Campinas ndash Satildeo Paulo Associaccedilatildeo Nacional de

Poacutes-Graduaccedilatildeo em Filosofia

20022003 Borges-Duarte Irene ldquoO espelho equiacutevoco O nuacutecleo filosoacutefico da

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Joatildeo Paisana 56 Lisboa Centro de Filosofia da Universidade de Lisboa

2003 Belo Fernando ldquoO legado de Heidegger agraves ciecircnciasrdquo in Revista

Portuguesa de Filosofia 59-4 Braga Faculdade de Filosofia de Braga

2003 Borges-Duarte Irene ldquoA experiecircncia patoloacutegica do tempo Para uma

fenomenologia da forma temporalrdquo in JM Santos P Alves A Barata

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da Associaccedilatildeo Portuguesa de Filosofia Fenomenoloacutegica Lisboa Centro

de Filosofia da Universidade de Lisboa

2003 Borges-Duarte Irene ldquoHusserl e a fenomenologia heideggeriana da

Fenomenologiardquo in Phainomenon 7 Lisboa Centro de Filosofia da

Universidade de Lisboa

565

2003 Borges-Duarte Irene ldquoO templo e o portal Heidegger entre Paestum e

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Universidade de Lisboa

2003 Cardinalli Ida Elizabeth ldquoDaseinsanalyse corpo e corporeidaderdquo in

Daseinsanalyse 12 Satildeo Paulo Associaccedilatildeo Brasileira de Daseinsanalyse

2003 Hebeche Luiz ldquoA proclamaccedilatildeo do Anticristo Ensaio sobre Heidegger e

Satildeo Paulordquo in Revista Portuguesa de Filosofia 594 Braga Faculdade de

Filosofia de Braga

2003 Loparic Zeljko Breve nota sobre Heidegger como leitor de Juumlnger in

Natureza Humana 4 1 Satildeo Paulo Grupo de Pesquisa em Filosofia e

Praacuteticas Psicoteraacutepicas da UNICAMP

2003 Oliveira Nythamar de ldquoDesmitologizando Heidegger a Hermenecircutica

radical de John D Caputordquo in Revista Portuguesa de Filosofia 59-4

Braga Faculdade de Filosofia de Braga

2003 Pacheco Maria Adelaide ldquoA Presenccedila de Heidegger em Portugalrdquo in

Revista Portuguesa de Filosofia 59-4 Braga Faculdade de Filosofia de

Braga

2003 Reis Roacutebson Ramos dos Validade e intencionalidade observaccedilotildees

sobre Lotze Lask e Heidegger in Helfe R I Rohden L Scheid S

Ronai (coord) O que eacute Filosofia Satildeo Leopoldo Editora Unisinos

2003 Reis Roacutebson Ramos dos ldquoElementos de uma interpretaccedilatildeo

fenomenoloacutegica da negaccedilatildeordquo in O Que Nos Faz Pensar 17 Rio de

Janeiro Pontifiacutecia Universidade Catoacutelica do Rio de Janeiro -

Departamento de Filosofia

2003 Ribeiro Caroline V Um breve olhar heideggeriano de algumas bases

epistemoloacutegicas da Psicologia da Educaccedilatildeo in Aprender Caderno de

Filosofia e Psicologia da Educaccedilatildeo 01 Vitoacuteria da Conquista

Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia (Uesb)

2003 Saacute Alexandre Franco de ldquoA poliacutetica sobre a linha Martin Heidegger

Ernst Juumlnger e a confrontaccedilatildeo sobre a era do niilismordquo in Revista

Portuguesa de Filosofia 59 - 4 Braga Faculdade de Filosofia de Braga

2003 Stein Ernildo Jacob rdquoSemacircntica formal e diferenccedila ontoloacutegicardquo in Jayme

Paviani Heloiacutesa Feltes (Org) Produccedilatildeo de sentido - estudos

transdicliplinares Caxias do Sul EDUCS

2003 Stein Ernildo Jacob ldquoO que eacute filosofiardquo Ihu On Line Satildeo Leopoldo

566

2004 Barrento Joatildeo ldquoDar ouvidos agrave distacircncia ndash a pergunta sobre a

traduzibilidade de Heideggerrdquo in Heidegger Linguagem e Traduccedilatildeo

Lisboa Centro de Filosofia da Universidade de Lisboa

2004 Belo Fernando ldquoTraduzir do grego para heideggerianordquo in Heidegger

Linguagem e Traduccedilatildeo Lisboa Centro de Filosofia da Universidade de

Lisboa

2004 Bernardo Fernanda ldquoTraduccedilotildees-Perversotildees da justiccedila de Heidegger a

Derridardquo in Heidegger Linguagem e Traduccedilatildeo Lisboa Centro de

Filosofia da Universidade de Lisboa

2004 Blanc Mafalda de Faria ldquoArte de Habitarrdquo in Communio Revista

Internacional Catoacutelica XXI4 Lisboa

2004 Blanc Mafalda de Faria ldquoIntersubjectividade e Pessoa uma reflexatildeo

sobre a estrutura comunitaacuteria do serrdquo in Phainomenon 9 Lisboa Centro

de Filosofia da Universidade de Lisboa

2004 Borges-Duarte Irene ldquoA traduccedilatildeo como fenomenologia o caso

Heideggerrdquo in Heidegger Linguagem e Traduccedilatildeo Lisboa Centro de

Filosofia da Universidade de Lisboa

2004 Cardinalli Ida Elizabeth ldquoDaseinsanalyse e esquizofrenia um estudo na

obra de Medard Bossrdquo 1ordf Ed Satildeo Paulo EDUC Fapesp

2004 Cardinalli Ida Elizabet Branco C B Oliveira P M ldquoPsicoterapia

fenomenoloacutegica-existencial de algumas maneiras patoloacutegicas do existirrdquo

in Boletim Cliacutenico da Cliacutenica Ana Maria Poppovic da PUC-SP XVIII Satildeo

Paulo Pontifiacutecia Universidade Catoacutelica de Satildeo Paulo

2004 Castro Paulo Alexandre e ldquoA Ontopotencialidade da linguagem em

Heideggerrdquo in Heidegger Linguagem e Traduccedilatildeo Lisboa Centro de

Filosofia da Universidade de Lisboa

2004 Duarte Andreacute de M ldquoHeidegger e a possibilidade de uma antropologia

existencialrdquo in Natureza Humana volume 61 Satildeo Paulo Grupo de

Pesquisa em Filosofia e Praacuteticas Psicoteraacutepicas da UNICAMP

2004 Morujatildeo Carlos ldquoA linguagem da metafiacutesica e a questatildeo do sentido do

ser A propoacutesito de uma referecircncia a Schelling em Brief uumlber den

laquoHumanismusraquordquo in Heidegger Linguagem e Traduccedilatildeo Lisboa Centro de

Filosofia da Universidade de Lisboa

2004 Pacheco Maria Adelaide ldquoLiacutengua e Histoacuteria em Heidegger e Pascoaesrdquo

in Heidegger Linguagem e Traduccedilatildeo Lisboa Centro de Filosofia da

Universidade de Lisboa

567

2004 Quadrado Helga Hoock ldquoTraduzir Heidegger princiacutepio (s) sem fim agrave

vistardquo in Heidegger Linguagem e Traduccedilatildeo Lisboa Centro de Filosofia

da Universidade de Lisboa

2004 Reis Roacutebson Ramos dos ldquoO conceito fenomenoloacutegico-hermenecircutico de

naturezardquo in XI Encontro Nacional de Filosofia da ANPOF (Patrocionado

pela Associaccedilatildeo Nacional de Poacutes-graduaccedilatildeo em Filosofia) Livro de Atas

Salvador Editora da UESC EDUFBA

2004 Reis Roacutebson Ramos dos ldquoO outro fim para o Dasein o conceito de

nascimento na ontologia existencialrdquo in Natureza Humana volume 61

Satildeo Paulo Grupo de Pesquisa em Filosofia e Praacuteticas Psicoteraacutepicas da

UNICAMP

2004 Reis Roacutebson Ramos dos ldquoA constituiccedilatildeo ontoloacutegica dos fatos cientiacuteficos

na fenomenologia hermenecircutica de Martin Heideggerrdquo in Gutierrez

Carlos Ronai (coord) Ho hay hechos soacutelo interpretaciones Bogotaacute

Ediciones Uniandes

2004 Reis Roacutebson Ramos dos ldquoA dissoluccedilatildeo da ideacuteia da Loacutegicardquo in Natureza

Humana volume 5 2 Satildeo Paulo Grupo de Pesquisa em Filosofia e

Praacuteticas Psicoteraacutepicas da UNICAMP

2004 Reis Roacutebson Ramos dos ldquoHeidegger origem e finitude do tempordquo in

revista Doispontos 11 Curitiba-PR Departamento de Filosofia -

Universidades Federais do Paranaacute e de Satildeo Carlos

2004 Reis Roacutebson Ramos dos ldquoIlusatildeo e indicaccedilatildeo formal nos conceitos

filosoacuteficosrdquo in revista Integraccedilatildeo Ensino Pesquisa Extensatildeo 37Abril-

Maio-Junho Satildeo Paulo Universidade Satildeo Judas Tadeu

2004 Reis Roacutebson Ramos dos ldquoO conceito de natureza na fenomenologia

hermenecircuticardquo in Revista Ciecircncia e Ambiente 28 Janeiro-Junho Santa

Maria Universidade Federal de Santa Maria

2004 Ribeiro Caroline V Para dar voz ao que rasura contribuiccedilotildees

heideggerianas e psicanaliacuteticas para o entendimento do fracasso escolar

in Agere - Revista de Educaccedilatildeo e Cultura 07 Salvador FACED -

Universidade Federal da Bahia

2004 Saacute Alexandre Franco de ldquoLinguagem e poliacutetica sobre uma Kehre

impliacutecita na filosofia de Martin Heideggerrdquo in Heidegger Linguagem e

Traduccedilatildeo Lisboa Centro de Filosofia da Universidade de Lisboa

2004 Sallis John ldquoSobre a traduccedilatildeo de Platatildeo a Heideggerrdquo in Heidegger

Linguagem e Traduccedilatildeo Lisboa Centro de Filosofia da Universidade de

Lisboa

568

2004 Silva Rui Sampaio ldquoA linguagem em Ser e Tempo uma perspectiva

criacuteticardquo in Heidegger Linguagem e Traduccedilatildeo Lisboa Centro de Filosofia

da Universidade de Lisboa

2004 Stein Ernildo Jacob rdquoEm busca da linguagem para um dizer natildeo-

metafiacutesicordquo in Natureza Humana v 6 n 1 PUC-Satildeo Paulo Grupo de

Pesquisa em Filosofia e Praacuteticas Psicoteraacutepicas da UNICAMP

2004 Nova M A S C ldquoNiilismo e teacutedio Friedrich Nietzsche e Martin

Heidegger na encruzilhada do tempo modernordquo in XI Encontro da

Associaccedilatildeo Nacional de Poacutes-graduaccedilatildeo em Filosofia Salvador Atas do XI

Encontro da ANPOF Salvador Editora da UESC

2005 Boeder Heribert ldquoA fronteira da Modernidade e o ldquoLegadordquo de

Heideggerrdquo trad de Alexandre Franco de Saacute in Phainomenon 10

Lisboa Centro de Filosofia da Universidade de Lisboa

2005 Borges-Duarte Irene ldquoO homem como fim em si De Kant a Heidegger e

Jonasrdquo in Revista Portuguesa de Filosofia 61 3-4 (Nuacutemero monograacutefico

Heranccedila de Kant II) Braga Faculdade de Filosofia de Braga

2005 Cardinalli Ida Elizabeth Paiva J A Frazatto J C Salviati N R S

ldquoAgressividade uma reflexatildeo fenomenoloacutegica-existencialrdquo in Boletim

Cliacutenico da Faculdade de Psicologia XX Satildeo Paulo PUC-Satildeo Paulo

2005 Duarte Andreacute de M ldquoHeidegger e a linguagem do acolhimento do ser ao

acolhimento do outrordquo in Natureza Humana 07 1 PUC-Satildeo Paulo

Grupo de Pesquisa em Filosofia e Praacuteticas Psicoteraacutepicas da UNICAMP

2005 Duarte Andreacute de M ldquoHeidegger e a Modernidade notas sobre a crise do

presenterdquo in Ricardo Marcelo Fonseca (Org) Criacutetica da Modernidade

diaacutelogos com o direito Florianoacutepolis Fundaccedilatildeo Boiteux

2005 Reis Roacutebson Ramos dos ldquoHeidegger verdade desocultamento e

normatividaderdquo in O Que nos Faz Pensar 20 Rio de Janeiro Pontifiacutecia

Universidade Catoacutelica do Rio de Janeiro - Departamento de Filosofia

2005 Saacute Alexandre Franco de ldquoIniacutecio e Comeccedilo em Heidegger e Boeder do

pensar da Histoacuteria do Ser ao pensar logoteacutecnicordquo in Phainomenon 10

Lisboa Centro de Filosofia da Universidade de Lisboa

2006 Borges-Duarte Irene ldquoA Imaginaccedilatildeo na Montanha maacutegica Kant em

Davos 1929rdquo in L Ribeiro dos Santos (Coord) Kant Actualidade e

Posteridade Lisboa Centro de Filosofia da Universidade de Lisboa

2006 Borges-Duarte Irene ldquoKant nos Beitraumlge zur Philosophie de Heideggerrdquo

in M C Pimentel C Morujatildeo M S Gil (Org) Congresso Internacional

Immanuel Kant nos 200 anos da sua morte Lisboa Universidade Catoacutelica

Portuguesa

569

2006 Borges-Duarte Irene ldquoO teacutedio como experiecircncia ontoloacutegica Aspectos da

Daseinsanalyse heideggerianardquo in M J Cantista (Org) Subjectividade e

Racionalidade Uma abordagem fenomenoloacutegico-hermenecircutica Porto

Campo das Letras

2006 Borges-Duarte Irene ldquoPode adiar-se a Ontologia Uma homenagem

criacutetica a Paul Ricœurrdquo in F Henriques (Org) A Filosofia de Paul Ricœur

Temas e percursos Coimbra Ariadne

2006 Duarte Andreacute de M ldquoGianni Vattimo inteacuterprete de Heidegger e da poacutes-

modernidaderdquo in Alceu Revista de Comunicaccedilatildeo Cultura e Poliacutetica 1

Rio de Janeiro Pontifiacutecia Universidade Catoacutelica do Rio de Janeiro -

Departamento de Comunicaccedilatildeo Social

2006 Duarte Andreacute de M ldquoHeidegger e Foucault criacuteticos da modernidade

humanismo teacutecnica e biopoliacuteticardquo in TransFormAccedilatildeo vol 29 (n 2) Satildeo

Paulo Universidade Estadual Paulista - Departamento de Filosofia

2006 Feron Olivier ldquoDe Marburg a Davos ou o outro Coloacutequio da Uacuteltima Ceiardquo

in L Ribeiro dos Santos (Coord) Kant Actualidade e Posteridade

Lisboa Centro de Filosofia da Universidade de Lisboa

2006 Reis Roacutebson Ramos dos ldquoA sublimidade da natureza em Os Conceitos

Fundamentais da Metafiacutesicardquo in XI Coloacutequio Heidegger Heidegger e a

Arte Coloacutequios Heidegger Programa e Caderno de Resumos Satildeo Paulo

Pontifiacutecia Universidade Catoacutelica de Satildeo Paulo

2006 Reis Roacutebson Ramos dos ldquoHeidegger e Heisenbeg o impacto da Fiacutesica

atocircmica no projeto da ontologia fundamentalrdquo in XII Encontro Nacional de

Filosofia da Associaccedilatildeo Nacional de Poacutes-graduaccedilatildeo em Filosofia Livro de

Atas Salvador Quarteto Editora

2006 Reis Roacutebson Ramos dos ldquoObservaccedilotildees sobre a relaccedilatildeo entre loacutegica e

ontologia na fenomenologia hermenecircutica de Martin Heideggerrdquo in

Oliveira N Ronai (coord) Hermenecircutica e Filosofia primeira Festschrift

para Ernildo Stein Ijuiacute Editora Unijuiacute

2006 Santos Gustavo A Oliveira ldquoO Falar da Linguagem em pesquisa

fenomenoloacutegica sobre a poeacutetica do pesquisarrdquo III Seminaacuterio Internacional

de Pesquisa e Estudos Qualitativos amp V Encontro de Fenomenologia e

Anaacutelise do Existir Satildeo Bernardo do Campo ndash Satildeo Paulo

2006 Nova M A S C ldquoFundamento e transcendecircnciardquo in Nythamar de

Oliveira Draiton Gonzaga de Sousa (Org) Hermenecircutica e filosofia

primeira Festschrift para Ernildo Stein Ijuiacute Editora Unijuiacute

2006 Beaini Thais Curi Sartre e Heidegger de Ser e Tempo a O Ser e o

Nada Revista Humanitas Instituto de Filosofia e Ciecircncias Humanas da

Universidade Federal do Paraacute

570

2007 Saacute Alexandre Franco de Heidegger e o fim do mundo in sep de

Phainomenon Revista de Fenomenologia Lisboa Centro de Filosofia da

Universidade de Lisboa

2007 Martins Maria Manuela Brito ldquoA morte enquanto bdquoexcedente‟ (Ausstand)

leitura de alguns paraacutegrafos de Sein und Zeitrdquo in Cantista MJ (coord)

Desenvolvimentos da Fenomenologia na Contemporaneidade Porto

Campo das Letras

2007 Martins Maria Manuela Brito ldquoA destruktion da ideia de humanismo na

encruzilhada do pensamento antigo e cristatildeo segundo Heidegger na Carta

sobre o Humanismo in Didaskalia vol 37 fasc 1 Lisboa Universidade

Catoacutelica Editora

2007 Santos Gustavo A Oliveira ldquoO modo de ser em pacircnico da deserccedilatildeo do

espaccedilo puacuteblico ao habitar cotidianordquo in XI Coloacutequio Internacional de

Psicossociologia e Sociologia Cliacutenica sociedade contemporacircnea ruptura

e viacutenculos sociais Belo Horizonte UFMG

2007 Stein Ernildo Jacob rdquoA era do dis-positivo um modo heideggeriano de

pensar a questatildeo da teacutecnicardquo in Arnildo Pommer Paulo Denisar Fraga

(Org) Filosofia e Criacutetica - Festschrift dos 50 anos do Curso de Filosofia

da Unijuiacute v 1 1 ed Ijuiacute Editora UNIJUIacute

2007 Stein Ernildo Jacob ldquoUma enigmaacutetica preocupaccedilatildeo de Heidegger numa

correspondecircncia de 1945rdquo in Humanidades em Revista v 04 Ijuiacute

Departamento de Filosofia e Psicologia da UNIJUIacute

2008 Reis Roacutebson Ramos dos ldquoIdentidade finitude e reconhecimento na

ontologia da possibilidade finita de Martin Heideggerrdquo in Natureza

Humana volume 10 nuacutemero especial 1 Satildeo Paulo Grupo de Pesquisa

em Filosofia e Praacuteticas Psicoteraacutepicas da UNICAMP

2008 Borges-Duarte Irene (coordenaccedilatildeo de) A morte e a origem

Homenagem a Heidegger e a Freud Lisboa Centro de Filosofia da

Universidade de Lisboa

2009 Stein Ernildo Jacob ldquoUma inovaccedilatildeo para aleacutem dos mestres da suspeita

Um caminho histoacuterico para Ser e Tempordquo in Cultura e Feacute v 124 Porto

Alegre Instituto de Desenvolvimento Cultural (IDC)

571

Bibliografia

572

573

A elaboraccedilatildeo desta bibliografia pretende ser reveladora dos caminhos da recepccedilatildeo de Heidegger em liacutengua portuguesa isso obrigou a organizaacute-la segundo os seguintes criteacuterios

1 Ediccedilotildees de referecircncia dos autores centrais do trabalho

2 Bibliografia usada para a elaboraccedilatildeo da dissertaccedilatildeo e organizada em

duas partes

3 As obras fundamentais que assinalam a evoluccedilatildeo da traduccedilatildeo

portuguesa de filosofia (apecircndice I)

4 Obras que assinalam a recepccedilatildeo de Heidegger no pensamento

portuguecircs e brasileiro (apecircndice II)

1 Ediccedilotildees de referecircncia dos autores centrais do trabalho

a Martin Heidegger Gesamtausgabe Publica-se desde 1975 em Frankfurt editora Klostermann a ediccedilatildeo da obra completa em versatildeo ldquode uacuteltima matildeo sob a direcccedilatildeo geral de Friedrich-Wilhelm von Herrmann e o tiacutetulo de Gesamtausgabe (abrev GA) Estaacute organizada em quatro secccedilotildees

I Obra publicada (1910-1976) Inclui os vols 1-16

II Liccedilotildees universitaacuterias (Freiburg 1919-1944 Marburg 1923-

1928) Inclui os vols 17-63

III Ineacuteditos (Estudos Conferecircncias Pensamentos) Inclui os

vols 64-81 natildeo estando ainda publicados os vols 72 73 e

74

IV Notas e Indicaccedilotildees Inclui os vols 82-102 tendo sido

apenas publicados os vols 85 86 87 88 e 90

b Hans-Georg Gadamer Gesammelte Werke Foi publicada a ediccedilatildeo das obras de Gadamer entre 1985 e 1995 por JCB Mohr (Paul Siebeck) sob o tiacutetulo de Gesammelte Werke (abrev GW) em Tuumlbingen Estaacute organizada em 10 tomos com os seguintes tiacutetulos

Band 1 e 2 Hermeneutik Band 3 e 4 Neuere Philosophie Band 567 Griechische Philosophie Band 89 Aestetik und Poetik Band 10 Hermeneutik im Ruumlckblick

574

c Vicente Ferreira da Silva Obras Completas As Obras Completas de Ferreira da Silva foram publicadas em Satildeo Paulo pelo Instituto Brasileiro de Filosofia entre 1964 e 1967 Estatildeo organizadas em dois volumes cuja ediccedilatildeo se encontra esgotada

Volume I ndash conteacutem os livros publicados por Vicente Ferreira da

Silva entre 1948 e 1955 e ainda outros trabalhos publicados entre 1948 e 1962

Volume II ndash conteacutem artigos comentaacuterios e resenhas publicados entre 1941 e 1963

2 Bibliografia usada para a elaboraccedilatildeo da dissertaccedilatildeo

Parte I sobre o problema filosoacutefico da traduccedilatildeo e sua conexatildeo com a tradiccedilatildeo

Textos de Heidegger e Gadamer Incluem-se aqui as obras de Heidegger e Gadamer que foram consultadas para o esclarecimento do conceito fenomenoloacutegico de traduccedilatildeo assim como para a elaboraccedilatildeo da problemaacutetica da tradiccedilatildeo

De Heidegger Martin

19211922

Phaumlnomenologische Interpretation zu Aristoteles Einfuumlhrung in die

Phaumlnomenologische Forschung GA 61 1985

1922

bdquoPhaumlnomenologische Interpretation zu Aristoteles Anzeige der hermeneutische

Situationldquo GA 62 2005

1927

Sein und Zeit GA 2 1977

1927

Die Grundprobleme der Phӓnomenologie GA 24 1997

575

1929

bdquoVom Wesen des Grundesldquo GA 9 1965

1929

bdquoWas ist Metaphysikldquo GA 9 1965

19331934

bdquoVom Wesen der Wahrheit (Wintersemester 193334)ldquo GA 3637 2001

1934

Logik als die Frage nach dem Wesen der Sprache GA 38 1988

19341935

Houmllderlins Hymne bdquoGermanien― und bdquoDer Rhein― GA 39 1999

1935

Einfuumlhrung in die Metaphysik GA 401983 19351936

bdquoDer Ursprung des Kunstwerkesldquo in Holzwege GA 5 1952

1936

bdquoHoumllderlin und das Wesen der Dichtungldquo in Erlaumluterungen zu Houmllderlins

Dichtung GA 4 1981

1938

bdquoDie Zeit des Weltbildesldquo in Holzwege GA 5 1977

1940

bdquoDer europaumlische Nihilismusldquo GA 62 1997

1941

bdquoWie wenn an Feiertageldquoin Erlaumluterungen zu Houmllderlins Dichtung GA 4

1981

1942

Houmllderlins Hymne ―Der Ister― GA 531984

19421943

Parmenides GA 54 1982

1943

576

bdquoAndenken― in Erlaumluterungen zu Houmllderlins Dichtung GA 4 1981

1944

bdquoHeimkunft An die Verwandten― in Erlaumluterungen zu Houmllderlins Dichtung GA

4 1981

1946

bdquoBrief uumlber den Humanismusldquo in Wegmarken GA 9 1976

1949

bdquoDas Dingldquo in Bremer und Freiburger Vortraumlge GA 79 2000

1949

bdquoEinleitung zu Was ist Metaphysik― in Wegmarken GA 9 1965

1950

bdquoDie Spracheldquo in Unterwegs zur Sprache GA 12 1985

1951

bdquoBauen Wohnen Denkenldquo in Vortraumlge und Aufsaumltze GA 7 2000

1952

Was heiβt Denken GA 8 2002

1953

bdquoDie Frage nach der Technikldquo in Vortraumlge und Aufsaumltze GA 7 2000

195354

bdquoAus einem Gespraumlch von der Sprache Zwischen einem Japaner und einem

Fragendenldquo in Unterwegs zur Sprache GA 12 1985

1955

Identitaumlt und Differenz GA 11 2006

1955

bdquoZur Seinsfrageldquo in Wegmarken GA 9 1965

1857

bdquoGrundsaumltze des Denkensldquo in Bremer und Freiburger Vortraumlge GA 79 1994

1957

bdquoHebel der Hausfreundldquo in GA 13 1983

577

1958

bdquoDas Wortldquo in Unterwegs zur Sprache GA 12 1985

1959

Der Weg zur Sprache in Unterwegs zur Sprache GA 12 1985

1960

bdquoHoumllderlins Erde und Himmelldquo in Erlaumluterungen zu Houmllderlins Dichtung GA 4

1981

1964

bdquoDas Ende der Philosophie und die Aufgabe des Denkensldquo in Zur Sache des

Denkens GA 14 2007

De Gadamer Hans-Georg

1960

Wahrheit und Methode Grundzuumlge einer philosophischen Hermeneutik GW 1

1986

1966

bdquoMensch und Spracheldquo GW 2 1986

1970

bdquoWie weit schreibt Sprache das Denken vorldquo GW 2 1986

1972

bdquoDie Unfaumlhigkeit zum Gespraumlchldquo GW 2 1986

1978

bdquoHermeneutik als theoretische und praktische Aufgabeldquo GW 2 1986

1983

bdquoText und Interpretationldquo in GW 2 1986

1989

Das Erbe Europas Suhrkamp Verlag Frankfurt am Main 1989

Estudos Incluem-se nesta rubrica estudos que se dedicam parcial ou totalmente a

questotildees da linguagem e da traduccedilatildeo no pensamento de Heidegger e

578

Gadamer Estes estudos estatildeo organizados segundo a ordem alfabeacutetica dos

respectivos autores e no caso de artigos em obras colectivas o que segue o

nome da obra indica que a referecircncia completa deve ser procurada na entrada

correspondente aos nomes dos respectivos organizadores

Aguilar-Aacutelvarez Bay Tatiana El lenguaje en el Primer Heidegger Meacutexico Fondo de Cultura Econoacutemica 1998 Benedito Maria Fernanda Heidegger en su lenguaje Madrid Editorial Tecnos

SA 1992

Berciano Villalibre Modesto La critica de Heidegger al pensar Occidental

Salamanca Universidade Pontifiacutecia 1990

Berciano Villalibre Modesto La revolucioacuten filosoacutefica de Martin Heidegger

Madrid editorial Biblioteca Nueva SL 2001

Bohem Rudolf ldquoL‟ecirctre et le temps d‟une traductionldquo in Translating Heideggerlsquos ndash Sein und Zeit Bucarest 2005 Borges-Duarte Irene ldquoA traduccedilatildeo como fenomenologia O caso Heideggerrdquo in Heidegger Linguagem e Traduccedilatildeo Lisboa 2002 447-460 Borges-Duarte Irene ldquoEl idioma de la interpretacioacuten Kant en los Beitrӓgerdquo in Heideggers Beitrӓge zur Philosophie Internationales Kolloquium vom 20-22 Mai 2004 an der Universitӓt Lausanne Frankfurt am Main 2009 153-170 Borges-Duarte Irene (org) A Morte e a Origem ndash Em torno de Heidegger e de Freud Lisboa Centro de Filosofia da Universidade de Lisboa 2008 Borges-Duarte Irene (org) Heidegger Linguagem e Traduccedilatildeo Lisboa Centro

de Filosofia da Universidade de Lisboa 2002

Ciocan Cristian (org) Translating Heideggerlsquos ndash Sein und Zeit Studia Phaenomenologica vol V2005 Bucarest Humanitas 2005 Feacutedier Franccedilois rdquoComment je traduit bdquoEreignisldquoldquo in Heideggers Beitrӓge zur

Philosophie Internationales Kolloquium vom 20-22 Mai 2004 an der

Universitӓt Lausanne Frankfurt am Main 2009 103-122

Frank Armin Paul Maaszlig Kurt-Juumlrgen Paul Fritz Turk Horst (org)

Goumlttinger Beitraumlge zur Internationalen Uumlbersetzungsforschung Berlin Erich

Schmidt Verlag 1993

Gennaro Ivo de Logos ndash Heidegger liest Heraklit Berlin Duncker amp Humboldt 2001 Gray Richard T ldquoUumlbersetzungsgeschichte als Wirkungsgeschichterdquo in

Goumlttinger Beitraumlge zur Internationalen Uumlbersetzungsforschung Band 8 Teil 2

Berlin 1993 685-695

579

Grondin Jean HansndashGeorg Gadamer Eine Biographie Tuumlbingen Moher Siebeck 1999 Grondin Jean Einfuumlhrung zu Gadamer Tuumlbingen Mohr Siebeck 2000

Herrmann Friedrich-Wilhelm von rdquoA ideia de Fenomenologia em Heidegger e

Husserlrdquo in Separata de Phainomenon nordm 7 157-194 Centro de Filosofia da

Universidade de Lisboa 2003

Herrmann Friedrich-Wilhelm von ldquoUumlbersetzung als philosophisches Problem in Zur Philosophischen Aktualitaumlt Heideggers III Im Spiegel der Welt Sprache Uumlbersetzung Auseinandersetzung Frankfurt am Main 1992 108-124 Jaeger Hans Heidegger und Die Sprache Bern Francke Verlag 1971 Lafont Cristina Sprache und Welterschlieβung Zur linguistischen Wende der Hermeneutik Heideggers Frankfurt Suhrkamp 1994 tr Cristina Lafont Lenguaje y apertura del mundo Madrid Alianza Editorial SA 1997 Maliandi Ricardo ldquoHeidegger in Lateinamerikardquo in Zur philosophischen Aktualitaumlt Heideggers III Im Spiegel der Welt Sprache Uumlbersetzung Auseinandersetzung Frankfurt am Main 1992 199-209

Mejiacutea Emmanuel Schuumlssler Ingeborg (org) Heideggers Beitrӓge zur

Philosophie Internationales Kolloquium vom 20-22 Mai 2004 an der

Universitӓt Lausanne Frankfurt am Main Vittorio Klostermann 2009

Pacheco Maria Adelaide bdquoA Europa como legado em Gadamerldquo in Razatildeo e Liberdade Homenagem a Manuel Joseacute do Carmo Ferreira volII Lisboa Centro de Filosofia da Universidade de Lisboa 2010 1423-1442 Papenfuss Dietrich Poumlggeler Otto (org) Zur Philosophischen Aktualitaumlt

Heideggers III Im Spiegel der Welt Sprache Uumlbersetzung

Auseinandersetzung Frankfurt am Main Vittorio Klostermann 1992

Poumlggeler Otto Der Denkweg Martin Heideggers Pfullingen Neske 1963

agora em Stuttgart Neske 1994

Potepa Marciej bdquoDie Hermeneutische Dimension des Textuumlbersetzensldquo in

Goumlttinger Beitraumlge zur Internationalen Uumlbersetzungsforschung Band 8 Teil 1

Berlin 1993 204-213

Reimatildeo Cassiano (org) H G Gadamer Experiecircncia Linguagem e

Interpretaccedilatildeo Lisboa Universidade Catoacutelica Editora 2003

Rodriacuteguez Ramoacuten Hermeneacuteutica y subjetividad Madrid Editorial Trotta 1993

Saacute Alexandre Franco de ldquoDa Morte agrave Origem Heidegger e os vindourosrdquo in A Morte e a Origem ndash Em torno de Heidegger e de Freud Lisboa 2008 49-62 Schmid Holger Kunst des Houmlrens Orte und Grenzen philosophischer Spracherfahrung Koumlln Boumlhlau Verlag 1999

580

Schuumlssler Ingeborg ldquoLe langage comme fonds laquodisponibleraquo (Bestand) et comme laquoeacutevegravenement-appropriementraquo (Ereignis) selon Martin Heideggerldquo in Heidegger Linguagem e Traduccedilatildeo Lisboa 2002 333-356 Silva Maria Luisa Portocarrero Ferreira da O Preconceito em H-G Gadamer

Sentido de uma Reabilitaccedilatildeo Coimbra Junta Nacional de Investigaccedilatildeo

CientiacuteficaFundaccedilatildeo Calouste Gulbenkian 1995

Silva Rui Sampaio da ldquoGadamer e a Heranccedila Heideggerianardquo in Revista Portuguesa de Filosofia LVI fac3-4 Braga Faculdade de Filosofia de Braga 2000 521-541

Sommer Christian ldquoTraduire la lingua heideggerianardquo in Translating Heideggerlsquos ndash Sein und Zeit Bucarest 2005 305-316 Sylla Bernhard ldquoA Origem e a Fala da Langue em Heideggerrdquo in A Morte e a Origem ndash Em torno de Heidegger e de Freud Lisboa 2008 169-178 Sylla Bernhard Hermeneutik der langue Weisgerber Heidegger und die Sprachphilosophie nach Humboldt Wuumlrzburg Koumlnigshausen amp Neumann 2009 Vattimo Gianni Introduzione a Heidegger Latenza Roma-Bari 1971

Volpi Franco ldquoTraduzione e Traducibilitagrave di Martin Heidegger in Chora Universitagrave degli Studi di Milano Facultagrave di Lettere e Filosofia 20012002 24-27 Volpi Franco ldquoHeidegger el problema de la intraducibilidad y la romanidad filosoacutefica in Heidegger Linguagem e Traduccedilatildeo Lisboa 2002 525-543

Referecircncias

Incluem-se nesta rubrica algumas obras que foram consultadas como referecircncias obrigatoacuterias no acircmbito dos problemas da filosofia da linguagem e dos estudos de traduccedilatildeo Estas obras estatildeo ordenadas cronologicamente a fim de permitir o seu enquadramento na histoacuteria destes problemas

44 AC Cicero Marco Tulio De Officiis Antuerpiae ex officina Christiphori Plantini 1579

55 AC Cicero Marco Tulio De Oratore agora em London Harvard University

Press 1960 400-428 Santo Agostinho De Trinitate agora em Lisboa Paulinas 2007

1759-1760 Hamann Johann Georg Sokratische Denkwuumlrdigkeiten Koenigsberg agora em Stuttgart Reclam Verlag 1968 tr port As Memoraacuteveis Socraacuteticas Lisboa Centro de Filosofia da Universidade de Lisboa 1999

581

1772 Herder Johann Gottfried von Abhandlung uumlber den Ursprung der Sprache welche den von der Koumlniglichen Academie der Wissenschaften fuumlr das Jahr 1770 gesetzten Preis erhalten hat 1ordf ed Berlin Koumlniglichen Akademie der Wissenschaften agora em Werke Band 1 Fankfurt am Main Ulrich Gaier 1985

1812 Schleiermacher Friedrich Uumlber die verschiedenen Methoden des Uumlbersetzens agora em Das Problem des Uumlbersetzens Stuttgart Hg von Hans Joachim Stoumlrig 1963

1836 Humboldt W v Uumlber die Verschiedenheit des menschlichen Sprachbaues und ihren Einfluszlig auf die geistige Entwicklung des Menschengeschlechts Berlin Druckerei der Koumlniglichen Akademie der

Wissenschaften agora em Muumlnchen Schoumlningh1998

1921 Benjamin Walter Die Aufgabe des Uumlbersetzers in Gesammelte Schriften Band IV 1 Frankfurt am Main Suhrkamp Verlag1980

1957 Chomsky Noam Syntactic Structures Berlin Walter Gruyte Gmbh 1971 Paz Octaacutevio Traduccioacuten Literatura y Literalidad Barcelona Tusquets

Editores 1975 Steiner George After Babel aspects of Language and Translation

Oxford-New York Oxford University Press agora em Oxford-New York Oxford University Press 1998

1976 Ricœur Paul Interpretation Theory discourse and the surplus of

meanings Fort Worth Texas Christian University Press tr port Teoria da Interpretaccedilatildeo Lisboa Ediccedilotildees 70 1987

1980 Bassnett Susan Translation Studies London Methuen amp Co Ltdagora

em London Routledge 1994

1984 Steiner George Antigones Oxford Oxford University Press

1987 Belo Fernando Linguagem e Filosofia algumas questotildees para hoje Lisboa Imprensa Nacional-Casa da Moeda

1989 Rener Frederik M Interpretatio Language and Translation from Cicero to Tytler Amsterdam ndash Atlanta GA Rodopi

1993 Grondin Jean Llsquouniversaliteacute de llsquohermeacuteneutique Paris P U F

1999 Justo Joseacute Miranda ldquoUm Argos a Norte - JG Hamann experiecircncia da singularidade e periferia da Filosofiardquo pref agrave tr port de Hamann As Memoraacuteveis Socraacuteticas Lisboa Centro de Filosofia da Universidade de Lisboa

2002 Sallis John On Translation Bloomington Indiana University Press

2002 Justo Joseacute Miranda ldquoFriedrich Schleiermacher ndash A Traduccedilatildeo como Tarefa da dialeacutecticardquo in Borges-Duarte Irene (org) Heidegger Linguagem e Traduccedilatildeo Lisboa Centro de Filosofia da Universidade de Lisboa 253-276

582

2002 Barrento Joatildeo O Poccedilo de Babel - Para uma Poeacutetica da Traduccedilatildeo Literaacuteria Lisboa Reloacutegio d‟Aacutegua

2004 Ricœur Paul Sur la traduction Paris Bayard

2005 Ricœur Paul Llsquohermeacuteneutique Biblique Paris Les Editions du Cerf

Parte II Traduccedilatildeo e tradiccedilatildeo em Portugal e no Brasil A recepccedilatildeo de Heidegger em portuguecircs

A Sobre traduccedilatildeo e transmissatildeo da tradiccedilatildeo filosoacutefica em portuguecircs

Nesta rubrica incluem-se obras sobre aspectos relevantes para a histoacuteria da

traduccedilatildeo e transmissatildeo da tradiccedilatildeo filosoacutefica em Portugal organizadas por

ordem cronoloacutegica e dividas em duas secccedilotildees a primeira das quais inclui obras

gerais sobre histoacuteria da traduccedilatildeo e do pensamento luso-brasileiro e a segunda

obras e artigos que documentam os periacuteodos histoacutericos analisados

Estudos de caraacutecter geral

1958 Vitorino Orlando Traduccedilotildees Portuguesas de Filosofia Lisboa Inspecccedilatildeo

Superior das Bibliotecas e Arquivos

1969 Gomes Pinharanda rdquoA Cultura Portuguesa e as Traduccedilotildees Portuguesas de Filosofiardquo in Pensamento Portuguecircs Vol I Braga Editora Pax

1974 Praccedila Lopes Histoacuteria da Filosofia em Portugal Lisboa Guimaratildees amp Cordf

Editores

1988 Ganho Maria de Lurdes e Henriques Mendo Castro Bibliografia Filosoacutefica Portuguesa (1931-1987) Sociedade Cientiacutefica da Universidade Catoacutelica Portuguesa LisboaSatildeo Paulo

1991 Serratildeo Joel e Oliveira Marques Nova Histoacuteria de Portugal-Portugal da Monarquia para a Repuacuteblica Lisboa Presenccedila

1993 Calafate Pedro ldquoRevistas Filosoacuteficas em Portugalrdquo in Philosophica nordm2

Departamento de Filosofia da Faculdade de Letras de Lisboa 99-114

1998 Calafate Pedro Metamorfoses da Palavra estudos sobre o Pensamento

Portuguecircs e Brasileiro Lisboa Imprensa Nacional-Casa da Moeda

1999-2000 Calafate Pedro direcccedilatildeo de Histoacuteria do Pensamento Filosoacutefico

Portuguecircs 5 tomos Lisboa Editorial Caminho

2001 Seruya Teresa (org) Estudos de Traduccedilatildeo em Portugal Lisboa Centro de Literatura e Cultura Portuguesa e Brasileira Universidade Catoacutelica

583

2004 Gomes Pinharanda Dicionaacuterio de Filosofia Portuguesa Lisboa D

Quixote

Obras representativas dos periacuteodos histoacutericos

1599 O Coacutedigo Pedagoacutegico dos Jesuiacutetas Ratio studiorum da Companhia de

Jesus ediccedilatildeo bilingue latim-portuguecircs trad portuguesa de Margarida

Miranda Lisboa Esfera do Caos 2009

1746 Verney Luiacutes Antoacutenio Verdadeiro Meacutetodo de Estudar para ser uacutetil agrave

Repuacuteblica e agrave Igreja Proporcionado ao Estilo e Necessidade de

Portugal Valensa [Naacutepoles] Oficina de Antoacutenio Balle agora em Lisboa

Livraria Saacute da Costa 1949

1772 Estatutos da Universidade de Coimbra Lisboa Reacutegia Officina Typograacutefica

1785 Cenaacuteculo Frei Manuel do Instruccedilatildeo Pastoral do Excelentiacutessimo e

Reverendiacutessimo Senhor Bispo de Beja sobre as virtudes de ordem

natural Lisboa Reacutegia Oficina Tipograacutefica

1791 Cenaacuteculo Frei Manuel do Cuidados Literaacuterios do Prelado de Beja em

graccedila do seu Bispado Lisboa Na Oficina de Simatildeo Thadeu Ferreira

1890 Quental Antero de Tendecircncias Gerais da Filosofia na Segunda Metade

do Seacuteculo XIX in Revista de Portugal ed usada Lisboa Fundaccedilatildeo

Calouste Gulbenkian 1989

1910 Proenccedila Rauacutel ldquoAlguns viacutecios da educaccedilatildeo do nosso paiacutes [Alma

Nacional Maio de 1910] agora em Antoacutenio Reis Rauacutel Proenccedila ndash Estudo

e Antologia Publicaccedilotildees Alfa SA Lisboa 1989

1932 Marinho Joseacute rdquoAutobiografia Espiritual e outros textos autobiograacuteficosrdquo agora em Aforismos sobre o que mais importa Obras de Joseacute Marinho vol I ed de Jorge Croce Rivera Lisboa INCM 1994

1935 Santos Domingos Mauriacutecio Gomes dos ldquoOs jesuiacutetas e o ensino das

Matemaacuteticas em Portugalrdquo Broteacuteria 20

1935 Coimbra Leonardo A Ruacutessia de Hoje e Homem de Sempre 1ordf ed

Porto Livraria Tavares agora em Obras de Leonardo Coimbra vol I

Porto Lello amp Irmatildeo Editores 1983

1938 Moncada Luiacutes Cabral Subsiacutedios para Histoacuteria da Filosofia do Direito em

Portugal 1ordf ed Coimbra [sn] agora em Lisboa Imprensa Nacional -

Casa da Moeda 2003

1939 Proenccedila Rauacutel O Eterno Retorno agora em Lisboa Biblioteca Nacional

1987

584

1942 Beau Albin Eduard Antero de Quental perante a Alemanha e a Franccedila

reflexotildees e reacccedilotildees Coimbra Coimbra Editora

1947 Leite Serafim ldquoDiogo Soares Matemaacutetico Astroacutenomo e Geoacutegrafo de sua

Majestade no Estado do Brasilrdquo in Broteacuteria 45 596-604

1950 Coimbra Leonardo ldquoO Homem agraves matildeos com o Destino in Sep da Revista Portuguesa de Filosofia Braga Faculdade de Filosofia de Braga vol VI agora em Obras de Leonardo Coimbra II Porto Lello amp Irmatildeo ndash Editores 1983

1951 Veiga Glaacuteucio Kant e o Brasil Revista Brasileira de Filosofia vol I fasc

1-2 Satildeo Paulo Instituto Brasileiro de Filosofia 86-97

1958 Cortesatildeo Jaime ldquoA missatildeo dos Padres Matemaacuteticos no Brasilrdquo sep

Studia1 Ag Geral Ultramar Lisboa

1960 Gomes Joatildeo Pereira Os Professores de Filosofia da Universidade de

Eacutevora Eacutevora Cacircmara Municipal

1968 Gomes Joatildeo Pereira ldquoA Aula da Esferardquo in Enciclopeacutedia Luso-Brasileira de Cultura vol 7 Lisboa Verbo 112-114

1972 Marinho Joseacute Filosofia ndash Ensino ou Iniciaccedilatildeo Lisboa Instituto

Gulbenkian de Ciecircncia

1974 Reale Miguel ldquoFilosofia Alematilde no Brasilrdquo Revista Brasileira de Filosofia

fasc 93 vol 24 Satildeo Paulo Instituto Brasileiro de Filosofia

FevereiroMarccedilo 1974 3-18

1976 Vitorino Orlando Refutaccedilatildeo da Filosofia Triunfante Teoremas Lisboa

1978 Carvalho Joaquim de ldquoAntero de Quental e a Filosofia de Eduardo Hartmannrdquo in Joaquim de Carvalho Obra Completa I Lisboa Gulbenkian

1982 Caeiro Francisco Gama ldquoO pensamento Filosoacutefico em Portugal e no

Brasil do seacutec XVI ao seacutec XVIIIrdquo in Actas do I Congresso Luso-Brasileiro

de Filosofia Braga 51-90

1982 Pacheco Maria Cacircndida Monteiro ldquoFilosofia e Ciecircncia no Pensamento Portuguecircs dos seacutec XVII e XVIIIrdquo in Actas do I Congresso Luso-Brasileiro de Filosofia Braga 474-486

1982 Crippa Adolpho rdquoConceito de Filosofia na Eacutepoca Pombalinardquo in Actas do

I Congresso Luso-Brasileiro de Filosofia Braga 435-449

1982 Paim Antoacutenio ldquoFilosofia Portuguesa e Brasileira Convergecircncias e

peculiaridadesrdquo in Actas do I Congresso Luso-Brasileiro de Filosofia

Braga 91-95

585

1982 Didonet Zilach Cercal ldquoO Positivismo e a Constituiccedilatildeo Rio-Grandense de 14 de Julho de 1891rdquo in Actas do I Congresso Luso-Brasileiro de Filosofia Braga 508-518

1982 Gonccedilalves Joaquim Cerqueira (org) Actas do I Congresso Luso-

Brasileiro de Filosofia in Revista Portuguesa de Filosofia tomo XXXVIII

fasc 4 Braga Faculdade de Filosofia de Braga

1983 Patriacutecio Manuel ldquoO anti-aristotelismo expliacutecito de Leonardo Coimbra

contribuiccedilatildeo para o estudo do problemardquo in Sep Revista Portuguesa de

Filosofia nordm 39 Braga Faculdade de Filosofia de Braga

1987 Carrilho Manuel Maria Razatildeo e Transmissatildeo da Filosofia Lisboa

Imprensa Nacional - Casa da Moeda

1989 Almeida Ana Maria org intr e notas de Cartas I 1852-1881 Obras

Completas de Antero de Quental Universidade dos Accedilores Editorial

Comunicaccedilatildeo

1989 Almeida Ana Maria org intr e notas de Cartas II 1881-1891 Obras

Completas de Antero de Quental Universidade dos Accedilores Editorial

Comunicaccedilatildeo

1989 Reis Antoacutenio Rauacutel Proenccedila ndash Estudo e Antologia Lisboa Publicaccedilotildees

Alfa SA

1991 Caeiro Francisco Gama ldquoNota acerca da recepccedilatildeo de Kant no

pensamento filosoacutefico portuguecircsrdquo in Dinacircmica do Pensar - Homenagem

a Oswaldo Market Lisboa Faculdade de Letras 59-90

1991 Teixeira Antoacutenio Braz Caminhos e Figuras da Filosofia do Direito Luso-Brasileiro 1ordf ed Lisboa Imprensa Nacional ndash Casa da Moeda 2ordf ed ampliada Lisboa Novo Imbondeiro 2002

1992 Gomes Pinharanda Os Conimbricenses Lisboa Guimaratildees Editores

1992 Matos Seacutergio Campos ldquoHistoacuteria Positivismo e Funccedilatildeo dos Grandes Homens no Uacuteltimo Quartel do Seacuteculo XIXrdquo in Separata de Peneacutelope nordm 8 Lisboa

1992 Lourenccedilo Eduardo ldquoPortugal e os Jesuiacutetasrdquo in Oceano agora em Eduardo Lourenccedilo A Morte de Colombo - Metamorfose e Fim do Ocidente como Mito Lisboa Gradiva 2005

1996 Soveral Eduardo Abranches de Pensamento Luso-Brasileiro - estudos e

ensaios Lisboa Instituto Superior de Novas Profissotildees

1997 Silva Luacutecio Craveiro da ldquoMolina e a Companhia de Jesusrdquo in Luiacutes de Molina regressa a Eacutevora Eacutevora 83-95

1997 Patriacutecio Manuel ldquoA doutrina da Ciecircncia Meacutedia de Pedro Fonseca a Luis de Molinardquo in Luiacutes de Molina regressa a Eacutevora Eacutevora 163-181

586

1997 Martins Antoacutenio Manuel ldquoA teoria da Justiccedila em Molinardquo in Luiacutes de Molina regressa a Eacutevora Eacutevora 153-161

1997 Maltez Joseacute Adelino ldquoO jusnaturalismo catoacutelico dos seacuteculos XVI e XVII e as raiacutezes da democraciardquo in Luiacutes de Molina regressa a Eacutevora Eacutevora 51-73

1997 Borges-Duarte Irene (org) Luiacutes de Molina regressa a Eacutevora Eacutevora Fundaccedilatildeo Luiacutes de Molina

1999 Paim Antoacutenio ldquoAs Luzes no Brasilrdquo in Histoacuteria do Pensamento Filosoacutefico Portuguecircs Vol III Lisboa Editora Caminho 437-501

2000 Henriques Fernanda ldquoFilosofia Cultura e linguagem a pertinecircncia do

ensino da filosofia em liacutengua portuguesardquo in Luiz Alberto Cerqueira

(org) Aristotelismo Anti-aristotelismo Ensino de Filosofia Rio de

Janeiro Editora Aacutegora da Ilha

2000 Monteiro Ameacuterico Enes A Recepccedilatildeo da Obra de Friedrich Nietzsche na

Vida Intelectual Portuguesa (1892 - 1939) Porto Lello Editores

Universidade Catoacutelica Portuguesa

2001 Pereira Ana Leonor Darwin em Portugal [1865-1914] Coimbra Livraria

Almedina

2003 Franco Joseacute Eduardo ldquoHistoacuteria da Revista Broteacuteria - 1902-2002rdquo in Feacute

Ciecircncia Cultura Broteacuteria - 100 anos Lisboa Gradiva 89-139

2003 Pereira Joseacute Esteves ldquoA Broteacuteria e o pensamento filosoacutefico portuguecircs

(1925-1964)rdquo in Feacute Ciecircncia Cultura Broteacuteria - 100 anos Lisboa

Gradiva 233-253

B Retoacuterica poesia e religiatildeo

Incluem-se aqui obras da tradiccedilatildeo poeacutetica e retoacuterica de liacutengua portuguesa

assim como estudos sobre as mesmas cuja consulta foi relevante para o

presente trabalho As obras aqui referidas estatildeo ordenadas cronologicamente

com a finalidade de evidenciar os momentos fundamentais desta tradiccedilatildeo

1595 Camotildees Luiacutes de Socircbolos Rios Que Vatildeo ldquoBabel e Siatildeordquo agora em

Liacutericas Porto Lello e Irmatildeo Editores 1980

1633 Vieira Pe Antoacutenio O Sermatildeo Deacutecimo Quarto do Rosaacuterio (pregado em 1633 na Baiacutea aos pretos de um engenho) agora em Sermotildees Tomo XI Porto Lello amp Irmatildeo 1959

1644 Vieira Pe Antoacutenio O Sermatildeo de S Pedro (pregado em Lisboa em S Juliatildeo em 1644) agora em Sermotildees Tomo VII Porto Lello amp Irmatildeo 1959

587

1655 Vieira Pe Antoacutenio Sermatildeo da Sexageacutesima (pregado na Capela Real em Lisboa em Marccedilo de 1655) agora em Sermotildees Tomo I Porto Lello amp Irmatildeo 1959

1654 Vieira Pe Antoacutenio Sermatildeo de Santo Antoacutenio aos Peixes (proferido na cidade de S Luiacutes do Maranhatildeo em 1654) agora em Sermotildees tomoVII Porto Lello amp Irmatildeo 1959

1662 Vieira Pe Antoacutenio Sermatildeo da Epifania (pregado na Capela Real em 1662) agora em Sermotildees Tomo II Porto Lello amp Irmatildeo 1959

1664 Vieira Pe Antoacutenio Sermatildeo da Dominga Vigeacutesima Segunda (pregado no Estado do Maranhatildeo em 1664) agora em Sermotildees tomo VI Porto Lello amp Irmatildeo 1959

1697 Vieira Pe Antoacutenio Clavis Prophetarum agora em Chave dos Profetas

ed criacutetica fixaccedilatildeo do texto trad notas e glossaacuterio de Arnaldo do

Espiacuterito Santo trad rev Joatildeo Pereira Gomes Lisboa Biblioteca

Nacional 2000

1872 Quental Antero de Primaveras Romacircnticas 1a ed Porto Imprensa

Portugueza agora em Porto Lelloamp Irmatildeo 1984

1875 Martins Oliveira ldquoOs Poetas da Escola Novardquo in Revista Ocidental 2ordf

fasc 31 de Maio de 1875 tip de Cristoacutevatildeo Augusto Rodrigues

1903 Pascoaes Teixeira de Jesus e Patilde 1ordf ed Porto Livraria Joseacute

Figueirinhas Juacutenior agora em As Sombras agrave Ventura Jesus e Patilde

Lisboa Assiacuterio amp Alvim 1996

1907 Pascoaes Teixeira de As Sombras 1ordf ed Lisboa Liv Ferreira agora

em As Sombras agrave Ventura Jesus e Patilde Lisboa Assiacuterio amp Alvim 1996

1911 Pascoaes Teixeira de Maracircnus 1ordf ed Porto Magalhatildees e Moniz Lda

Editores agora em Lisboa Assiacuterio amp Alvim 1990

1912 Pascoaes Teixeira de ldquoAinda o Saudosismo e a Renascenccedilardquo in A

Aacuteguia IIordf seacuterie nordm 12

1912 Pessoa Fernando ldquoA Nova Poesia Portuguesa sociologicamente

consideradardquo in A Aacuteguia Abril de 1912 agora em A Nova Poesia

Portuguesa 2ordmed Lisboa Inqueacuterito 1944

1919 Pascoaes Teixeira de Os Poetas Lusiacuteadas 1ordf ed Porto tip Costa

Carregal agora em Lisboa Assiacuterio ampAlvim 1987

1906-1930 Pessoa Fernando Textos Filosoacuteficos Lisboa Aacutetica 1994

1937 Pascoaes Teixeira de O Homem Universal 1ordf ed Lisboa Ediccedilotildees

Europa agora em Lisboa Assiacuterio ampAlvim 1993

588

1944 Silva Agostinho da Conversaccedilatildeo com Diotima V N de Famalicatildeo

Ediccedilatildeo de Autor

1944 Pessoa Fernando Poesias de Aacutelvaro de Campos 1ordf ed Lisboa Aacutetica

1946 Pessoa Fernando Odes de Ricardo Reis 1ordf ed Lisboa Aacutetica

1946-1947 Silva Agostinho da ldquoComeacutedia Latina 1ordf ed Claacutessicos de Ouro Ediccedilotildees de Ouro Brasil agora in Dispersos Lisboa Instituto de Cultura e Liacutengua Portuguesa 1988

1959 Silva Agostinho da Um Fernando Pessoa 1ordf ed Porto Alegre Instituto

Estadual do Livro

1970 Silva Dora Ferreira da ldquoAndanccedilasrdquo ed de autor agora em Poesia

Reunida Rio de Janeiro Topbooks Editora 1999

1971 Silva Agostinho da ldquoHaacute quem proponha chamar-se-lhe docimologiardquo

Notiacutecia nordm 603 26 de Junho de 1971 agora em Ensaios sobre Cultura e

Literatura Portuguesa e Brasileira II Lisboa Acircncora Editora 2001

1972 Silva Agostinho da ldquoComposiccedilatildeo do Brasilrdquo Vida Mundial nordm 1711 agora

em Ensaios sobre Cultura e Literatura Portuguesa e Brasileira II Lisboa

Acircncora Editora 2001

1972 Silva Agostinho da ldquoO Espiacuterito Santo das Ilhas Atlacircnticasrdquo Vida Mundial

2141972 agora em Ensaios sobre Cultura e Literatura Portuguesa e

Brasileira II Lisboa Acircncora Editora 2001

1973 Silva Dora Ferreira da ldquoUma Via de Ver as Coisasrdquo 1ordf ed Satildeo Paulo

Editora Duas Cidades agora em Poesia Reunida Rio de Janeiro

Topbooks Editora 1999

1976 Silva Dora Ferreira da ldquoMenina Seu Mundordquo 1ordf ed Satildeo Paulo Massao

Ohno Editor agora em Poesia Reunida Rio de Janeiro Topbooks

Editora 1999

1979 Silva Dora Ferreira da ldquoJardins (esconderijos)rdquo ed de autor agora em

Poesia Reunida Rio de Janeiro Topbooks Editora 1999

1981 Marinho Joseacute Estudos Sobre o pensamento Portuguecircs Contemporacircneo

Lisboa Biblioteca Nacional

1983 Antunes Alfredo Saudade e Profetismo em Fernando Pessoa Braga Faculdade de Filosofia

1984 Costa Dalila Pereira da Da Serpente agrave Imaculada Porto Lello amp Irmatildeo

19861987 Quadros Antoacutenio Portugal - Razatildeo e Misteacuterio 1ordm Vol ldquoUma

Arqueologia da Tradiccedilatildeo Portuguesardquo 2ordm Vol ldquoO Projecto Aacuteureo ou o

Impeacuterio do Espiacuterito Santordquo Lisboa Guimaratildees Editora

589

1990 Silva Agostinho da Do Agostinho em Torno de Pessoa 1ordf ed Lisboa

Ulmeiro

1991 Costa Dalila Pereira da Espirituais Portugueses ndash Antologia Lisboa

Guimaratildees Editores

1994 Coutinho Jorge O Pensamento de Teixeira de Pascoaes Braga

Universidade Catoacutelica

1995 Borges Paulo Alexandre Esteves A Plenificaccedilatildeo da Histoacuteria em Padre

Antoacutenio Vieira estudo sobre a ideia do Quinto Impeacuterio na defesa

perante o Tribuna do Santo Ofiacutecio Lisboa Imprensa Nacional-Casa da

Moeda

1996 Silva Dora Ferreira da ldquoPoemas da Estrangeirardquo 1ordf ed Satildeo Paulo

Massao Ohno Editor agora em Poesia Reunida Rio de Janeiro

Topbooks Editora 1999

1997 Coutinho Jorge Peixoto ldquoJunqueiro-Pascoaes e a hermenecircutica do cristianismordquo in Samuel Paulo (coord) Coloacutequio Guerra Junqueiro e a Modernidade Porto Lello Editores 79-90

2001 Silva Agostinho da Ensaios sobre Cultura e Literatura Portuguesa e

Brasileira II Porto Acircncora Editora

2003 Pacheco Maria Adelaide A Vida e o Traacutegico em Raul Brandatildeo

Dissertaccedilatildeo de Mestrado Faculdade de Letras da Universidade de

Lisboa

2007 Carvalho Isaque Pereira de ldquoTeologia e Mito-poieacutetica da Histoacuteria em Agostinho da Silvardquo in Agostinho da Silva Pensador do Mundo a Haver Lisboa 331-338

2007 Teixeira Braz ldquoAgostinho da Silva e o pensamento russo algumas

convergecircncias e afinidadesrdquo in Agostinho da Silva Pensador do Mundo a Haver Lisboa 91-98

2007 Epifacircnio Renato (org) Agostinho da Silva Pensador do Mundo a Haver

Actas do Congresso Internacional do Centenaacuterio de Agostinho da Silva Lisboa Associaccedilatildeo Agostinho da Silva e Zeacutefiro

2008 Borges Paulo Princiacutepio e Manifestaccedilatildeo Metafiacutesica e Teologia da Origem

em Teixeira de Pascoaes Lisboa INCM 2008 Lourenccedilo Eduardo Fernando Pessoa Rei da Nossa Baviera Lisboa

Gradiva

2009 Coutinho Jorge ldquoTeologia e Metafiacutesica em Aacutelvaro Ribeirordquo in O

Pensamento Luso-Galaico-Brasileiro vol I Lisboa 485-504

590

2009 Silva Joatildeo Amadeu Carvalho da ldquoO Desejado e o Encoberto Nobre e

Pessoardquo in O Pensamento Luso-Galaico-Brasileiro vol III Lisboa

615-626

2009 AAVV O Pensamento Luso-Galaico-Brasileiro 3 vols Lisboa Imprensa

Nacional - Casa da Moeda

2010 Calafate Pedro ldquoA Escolaacutestica Peninsular no Pensamento Antropoloacutegico

de Antoacutenio Vieirardquo in Razatildeo e Liberdade Homenagem a Manuel Joseacute

do Carmo Ferreira vol 2 Centro de Filosofia da UL 1011-1024

C O diaacutelogo com Heidegger em liacutengua portuguesa (1938-1989)

Estudos sobre a recepccedilatildeo de Heidegger em Liacutengua Portuguesa

Aqui satildeo referidos repertoacuterios bibliograacuteficos obras e artigos cuja consulta foi imprescindiacutevel para determinar a extensatildeo e direcccedilatildeo da recepccedilatildeo de Heidegger em Portugal e no Brasil

1979 Paim Antoacutenio Bibliografia Filosoacutefica Brasileira (periacuteodo contemporacircneo 1931-1977) Rio de Janeiro Ediccedilotildees GRD

1983 Oliveira Beneval de A Fenomenologia no Brasil Rio de Janeiro Pallas

1989 Borges-Duarte Irene ldquoHeidegger em Portuguecircs (contribuiccedilatildeo para um repertoacuterio bibliograacutefico)rdquo in Filosofia vol III nordm 12 Outono de 1989 Lisboa Sociedade Portuguesa de Filosofia 173-184

1990 Quadros Antoacutenio ldquoExistencialismo e filosofia existencialista em Portugalrdquo in Logos Enciclopeacutedia Luso-Brasileira de Filosofia LisboaSatildeo Paulo Ed Verbo

1994 Reale Miguel Estudos de Filosofia Brasileira Lisboa Instituto de

Filosofia Luso-Brasileira

1996 Soveral Eduardo Abranches de Pensamento Luso-Brasileiro estudos e ensaios Lisboa Instituto Superior de Novas Profissotildees

1999 Borges-Duarte Irene e Saacute Alexandre de A Recepccedilatildeo de Heidegger em

Portugal Estudo bibliograacutefico preliminar in Philosophica 13

Departamento de Filosofia da Faculdade de Letras da Universidade de

Lisboa 151-167

2000 Paim Antoacutenio A Filosofia Brasileira Contemporacircnea Londrina Ediccedilotildees

Cefil

20002001 Guimaratildees Aquiles Cortes ldquoO Pensamento Fenomenoloacutegico no

Brasilrdquo Cultura ndash Revista de Histoacuteria e Teoria das Ideias vol XII IIordf

591

seacuterie Lisboa Centro de Histoacuteria da Cultura da Universidade Nova de

Lisboa 183-189

2003 Pacheco Maria Adelaide ldquoA Presenccedila de Heidegger em Portugalrdquo in

Revista Portuguesa de Filosofia Outubro-Dezembro vol 59 fasc 4

Braga Faculdade de Filosofia de Braga 1203-1228

2007 Epifacircnio Renato Repertoacuterio da bibliografia filosoacutefica portuguesa 1988-

2005 Lisboa Centro de Filosofia da Universidade de Lisboa

2008 Heidegger em Portuguecircs [em linha] Lisboa Centro de Filosofia da

Universidade de Lisboa [2008] [Consult 20 de Setembro 2009]

Disponiacutevel na WWW ltURL=httpwwwmartin-heideggernetgt

2010 Nataacuterio Maria Celeste Teixeira Antoacutenio Braz Epifacircnio Renato (org) O

Movimento Fenomenoloacutegico em Portugal e no Brasil Sintra Zeacutefiro

Textos dos inteacuterpretes de Heidegger

Nesta rubrica referem-se as obras e artigos que comentaram Heidegger em

liacutengua portuguesa A bibliografia apresentada natildeo eacute exaustiva referindo

apenas as obras e artigos que foram analisados e estaacute ordenada

cronologicamente de modo a evidenciar as trecircs geraccedilotildees de comentadores de

Heidegger

Brandatildeo Antoacutenio Joseacute (1906-1984)

Vigecircncia e Temporalidade do Direito e outros ensaios Sep do Boletim da Faculdade de Direito de Coimbra vol 19 Coimbra 1943 agora em Vigecircncia e Temporalidade do Direito e outros ensaios Lisboa INCM 2001

Santos Delfim (1907-1966)

Livros

Fundamentaccedilatildeo Existencial da Pedagogia Lisboa Graacutef Lisbonense 1946

Artigos e prefaacutecios

ldquoHeidegger e Houmllderlin ou a essecircncia da poesiardquo Revista de Portugal Lisboa

nordm4 1938 agora em Obras Completas vol I Lisboa Gulbenkian 1973

ldquoDa Filosofiardquo [sn] Pocircrto Imprensa Portuguesa 1939 agora em Obras

Completas tomo I Lisboa Gulbenkian 1982

ldquoHumanismo e Culturardquo Diaacuterio Popular 13 de Maio de 1943 in Obras

Completas vol III Lisboa Gulbenkian 1987

592

ldquoPsicologia e Direitordquo Boletim do Ministeacuterio da Justiccedila nordm6 Maio 1948 agora

em Obras Completas tomo III Lisboa Gulbenkian 1987

rdquoObjecto da Metafiacutesica em Suarezrdquo Actas del IV Centenaacuterio del Nacimiento de

Franciso Suarez Madrid Direcccedilatildeo-Geral de Propaganda 1949 agora em

Obras Completas tomo II Lisboa Gulbenkian 1973

ldquoTemaacutetica Existencialrdquo Separata do nordf2 da revista Atlacircntico 3ordf seacuterie 1950

agora em Obras Completas tomo II Lisboa Gulbenkian 1973

ldquoS Tomaacutes e o Nosso Tempordquo [Ineacutedito de 7-3-51] agora em Obras Completas

tomo II Lisboa Gulbenkian 1973

ldquoO Homem e o seu Destino Diaacuterio do Norte 22-3-1951 agora em Obras

Completas tomo II Lisboa Gulbenkian 1973

ldquoSentido Existencial da Anguacutestiardquo Separata dos Anais Portugueses de

Psiquiatria vol IV nordm4 Dezembro de 1952 agora em Obras Completas tomo

II Lisboa Gulbenkian 1973

rdquoNatureza e Espiacuteritordquo Ler Lisboa ano I nordm4 Julho de 1952 agora em Obras

Completas tomo II Lisboa Gulbenkian 1973

Prefaacutecio agrave Traduccedilatildeo de Regis Jolivet As Doutrinas Existencialistas de

Kierkegaard a Sartre Porto Livraria Tavares Martins 1953 agora em Obras

Completas tomo II Lisboa Gulbenkian 1973

rdquoA Filosofia Como Ontologia Fundamentalrdquo Actas do I Congresso Nacional de

Filosofia - Revista Portuguesa de Filosofia Braga 1955 tomo XI-II fasc3-4

agora em Obras Completas tomo II Lisboa Gulbenkian 1973

ldquoFilosofia Existencialrdquo [ineacutedito natildeo datado] em Obras Completas tomo I

Lisboa Gulbenkian 1982

rdquoMetafiacutesica e Positivismordquo [ineacutedito natildeo datado] em Obras Completas tomo II

Lisboa Gulbenkian 1973

rdquoHeideggerrdquo [ineacutedito natildeo datado] em Obras Completas tomo II Lisboa

Gulbenkian 1973

Publicaccedilotildees poacutestumas

Obras Completas Lisboa Gulbenkian 1973

Sousa Eudoro de (1911-1987)

As nuacutepcias do Ceacuteu e da Terra Lisboa sn 1944

593

Mitologia y Ritual Mendoza Universidad Nacional de Cuyo 1950 agora em Dioniacutesio em Creta e Outros Ensaios Lisboa Imprensa Nacional-Casa da Moeda 2004 Orfeu e os comentadores de Platatildeo Lisboa Associaccedilatildeo Portuguesa para o Progresso das Ciecircncias 1950 O Mito em Elecircusis Coimbra [sn] 1951 Dioniacutesio em Creta 1ordf ed Livraria Duas Cidades Satildeo Paulo 1973 agora in Dioniacutesio em Creta e Outros Ensaios Lisboa Imprensa Nacional-Casa da Moeda 2004 As Bacantes de Euriacutepides Satildeo Paulo Livraria Duas Cidades 1974 Horizonte e complementariedade ensaio sobre a relaccedilatildeo entre mito e metafiacutesica nos primeiros filoacutesofos gregos BrasiacuteliaSatildeo Paulo Universidade de BrasiacuteliaDuas Cidades 1975 Mitologia 1ordf ed Brasiacutelia Universidade de Brasiacutelia 1980 agora in Mitologia Histoacuteria e Mito Lisboa Imprensa Nacional-Casa da Moeda 2004 Histoacuteria e Mito 1ordf ed Brasiacutelia Universidade de Brasiacutelia 1981 agora in Mitologia Histoacuteria e Mito Lisboa Imprensa Nacional-Casa da Moeda 2004

Ferreira Vergiacutelio (1916-1996)

Mudanccedila Lisboa Tip Garcia ampCarvalho 1949

Espaccedilo do Invisiacutevel 1 1ordf ed Lisboa Portugaacutelia 1954

Apariccedilatildeo 1ordf ed Lisboa Portugaacutelia ed 1959

Espaccedilo do Invisiacutevel 2 Venda Nova Bertrand Editora 1991

Prefaacutecio agrave traduccedilatildeo portuguesa de O Existencialismo eacute um Humanismo

Lisboa ed Presenccedila 1962

Silva Vicente Ferreia da (1916-1963)

Livros

Exegese da Acccedilatildeo Satildeo Paulo Livraria Martins Editores 1949

Dialeacutectica das Consciecircncias Satildeo Paulo ediccedilatildeo de autor 1950

Teologia e Anti-humanismo Satildeo Paulo ediccedilatildeo de autor 1953

594

Artigos em revistas e comentaacuterios

ldquoMartin Heidegger Holzwegerdquo in Revista Brasileira de Filosofia vol I fasc 1-2

Satildeo Paulo Instituto Brasileiro de Filosofia 1951

ldquoA uacuteltima fase do pensamento de Heideggerrdquo in Revista Brasileira de Filosofia

vol I fasc 3 Satildeo Paulo Instituto Brasileiro de Filosofia 1951

ldquoIdeias para Um Novo Conceito de Homemrdquo Separata da Revista Brasileira de

Filosofia vol I fasc 4 Outubro-Dezembro Satildeo Paulo Instituto Brasileiro de

Filosofia 1951

ldquoSobre a Origem e o Fim do Mundordquo Jornal de Letras Abril 1951

ldquoO Homem e Sua proveniecircnciardquo Revista Brasileira de Filosofia nordm7 Satildeo Paulo

Instituto Brasileiro de Filosofia 1952

ldquoSobre a Teoria dos Modelosrdquo Revista Brasileira de Filosofia vol3 fasc 9

Satildeo Paulo Instituto Brasileiro de Filosofia 1953

ldquoPara uma Etnogonia Filosoacuteficardquo Revista Brasileira de Filosofia nordm 16 Satildeo

Paulo Instituto Brasileiro de Filosofia 1954

rdquoA Experiecircncia do Divino Nos Povos Auroraisrdquo Diaacutelogo nordm1 Satildeo Paulo 1955

―A Feacute nas Origensrdquo Diaacutelogo nordm2 Satildeo Paulo 1955

ldquoA Religiatildeo e a Sexualidaderdquo Diaacutelogo nordm 2 Satildeo Paulo 1955

rdquoOs Pastores do Serrdquo Diaacutelogo nordm 2 Satildeo Paulo 1955

ldquoHermenecircutica da Eacutepoca Humana Revista Brasileira de Filosofia vol 5 fasc

18 Satildeo Paulo Instituto Brasileiro de Filosofia 1955

ldquoEnzo Paci e o pensamento Sul-Americanordquo Revista Brasileira de Filosofia

vol5 fasc 18 Satildeo Paulo Instituto Brasileiro de Filosofia 1955

rdquoIntroduccedilatildeo agrave Filosofia da Mitologiardquo Revista Brasileira de Filosofia vol5

fasc4 Satildeo Paulo Instituto Brasileiro de Filosofia 1955

ldquoO Ser in-funsivoldquo Diaacutelogo nordm 3 Satildeo Paulo 1956

ldquoA transparecircncia da Histoacuteriardquo Diaacutelogo nordm 4 Satildeo Paulo 1956

ldquoNatureza e Cristianismordquo in Revista Brasileira de Filosofia vol 7 fasc 27

Satildeo Paulo Instituto Brasileiro de Filosofia 1957

ldquoA Fonte e o Pensamentordquo Diaacutelogo nordm 7 Satildeo Paulo 1957

ldquoDiaacuterio Filosoacuteficordquo Cavalo Azul nordm 3 1958

rdquoInstrumentos Coisas e Culturardquo Revista Brasileira de Filosofia vol 8 fasc

30 Satildeo Paulo Instituto Brasileiro de Filosofia 1958

595

ldquoParadoxos de uma Eacutepocardquo Jornal do Comeacutercio 2 de Fevereiro Rio de

Janeiro 1958

ldquoHistoacuteria e Meta-histoacuteriardquo Congresso Internacional de Filosofia Satildeo Paulo

1959

ldquoRaccedila e Mitordquo comunicaccedilatildeo apresentada ao 3ordm Congresso Nacional de

Filosofia Satildeo Paulo 1959

ldquoO Ocaso do Pensamento Humaniacutesticordquo Diaacutelogo nordm 13 Satildeo Paulo 1960

ldquoO homem e a Liberdade na tradiccedilatildeo Humaniacutesticardquo Revista Brasileira de

Filosofia vol 11 fasc 41 Satildeo Paulo Instituto Brasileiro de Filosofia 1961

ldquoA Natureza do Simbolismordquo Revista Brasileira de Filosofia vol 12 fasc 48

Satildeo Paulo Instituto Brasileiro de Filosofia 1962

ldquoA Origem Religiosa da Culturardquo Convivium vol 1 nordm 1 Satildeo Paulo 1962

ldquoLiberdade e Imaginaccedilatildeordquo Convivium vol 2 fasc 4 Satildeo Paulo 1962

ldquoDiaacutelogo do Marrdquo Diaacutelogo nordm 14 Satildeo Paulo 1962

Publicaccedilotildees Poacutestumas

ldquoRetrato do intelectual de direitardquo (1963) in Convivium Maio-junho de 1972

ldquoDiagnose do Intelectual de esquerdardquo (1963) Convivium Maio-junho de 1972

ldquoUm novo sentido da vidardquo (1963) Convivium Maio-junho de 1972

Obras Completas Satildeo Paulo Instituto Brasileiro de Filosofia 2 vol 1966

Dialeacutectica das Consciecircncias e outros ensaios Lisboa Imprensa Nacional-Casa

da Moeda 2002

Ineacuteditos Sd

ldquoDiaacutelogo da Montanhardquo in Dialeacutectica das Consciecircncias e outros ensaios

Lisboa Imprensa Nacional-Casa da Moeda 2002

ldquoDiaacutelogo do Espantordquo in Dialeacutectica das Consciecircncias e outros ensaios Lisboa

Imprensa Nacional-Casa da Moeda 2002

ldquoDiaacutelogo do Riordquo in Dialeacutectica das Consciecircncias e outros ensaios Lisboa

Imprensa Nacional-Casa da Moeda 2002

ldquoCriacutetica do Cristianismordquo in Dialeacutectica das Consciecircncias e outros ensaios

Lisboa Imprensa Nacional-Casa da Moeda 2002

ldquoTeologia e Mitologiardquo in Dialeacutectica da Consciecircncia e outros ensaiosrdquo Lisboa

Imprensa Nacional-Casa da Moeda 2002

596

Antunes Pe Manuel (1918-1985)

ldquoHeidegger e a sua Influecircnciardquo in Broteacuteria 89 Lisboa 1969 reeditado em

Grandes Contemporacircneos Lisboa Verbo 1973

ldquoHeidegger Renovador da Filosofiardquoin Broteacuteria 103 Lisboa 1976 reeditado em Occasionalia ndash Homens e Ideias de Ontem e de Hoje Multinova 1980

Obras Completas tomo I Lisboa Fundaccedilatildeo Calouste Gulbenkian 2005

Enes Joseacute (1924)

Livros

Agrave Porta do Ser Ensaio sobre a justificaccedilatildeo noeacutetica do juiacutezo da percepccedilatildeo

externa em Satildeo Tomaacutes de Aquino Lisboa Difusatildeo Dilsar 1969

Linguagem e Ser Lisboa Imprensa Nacional-Casa da Moeda 1983

Noeticidade e Ontologia Lisboa Imprensa Nacional-Casa da Moeda 1999

Artigos

ldquoDiamantino Martins - O problema de Deusrdquo Atlacircntida oacutergatildeo do Instituto

Accediloriano de Cultura Accedilores 1957

Miranda Maria do Carmo Tavares (1926)

Meditaccedilotildees sobre a Filosofia Braga Faculdade de Filosofia 1959

Leatildeo Emmanuel Carneiro (1927)

Aprendendo a Pensar I Rio de Janeiro Editora Vozes 1974 agora em

Aprendendo a Pensar Petroacutepolis Editora Vozes 2002

Bornheim Gerd (1929)

Livros

Aspectos Filosoacuteficos do Romantismo Porto Alegre Instituto Estadual do Livro

1959

Introduccedilatildeo ao Filosofar - o pensamento filosoacutefico em bases existenciais 1ordf ed

Porto Alegre Globo 1970 agora in Satildeo Paulo Editora Globo 11ordf ediccedilatildeo

2006

597

Metafiacutesica e Finitude 1ordf ed Porto Alegre Movimento 1972 ed revista e

ampliada Satildeo Paulo Editora Perspectivas 2001

Dialeacutectica teoria praxis Ensaio para uma criacutetica da fundamentaccedilatildeo ontoloacutegica da dialeacutectica Porto Alegre GloboUSP 1977

Artigos

rdquoA filosofia Alematilde apoacutes a primeira Guerra Mundialrdquo[Revista Brasileira de Filosofia volXX fasc79 Satildeo Paulo Instituto Brasileiro de Filosofia 1970 ] in Metafiacutesica e Finitude Satildeo Paulo Editora Perspectivas 2001

ldquoSobre a linguagem musicalrdquo [1967] in Metafiacutesica e Finitude Satildeo Paulo

Editora Perspectivas 2001

ldquoHeidegger A questatildeo do Ser e a dialeacutecticardquo [1970] in Metafiacutesica e Finitude

Satildeo Paulo Editora Perspectivas 2001

ldquoSentido e Criatividaderdquo [1970] in Metafiacutesica e Finitude Satildeo Paulo Editora

Perspectivas 2001

ldquoFilosofia e Poesiardquo sd in Metafiacutesica e Finitude Satildeo Paulo Editora Perspectivas 2001

Nunes Benedito (1929)

Introduccedilatildeo agrave Filosofia da Arte Satildeo Paulo Editora Universidade de Satildeo Paulo

1966

Stein Ernildo Jacob (1934)

Compreensatildeo e Finitude - Estrutura e movimento da interrogaccedilatildeo

heideggeriana [1968] Rio Grande do Sul Editora Unijuiacute 2001

ldquoEm busca de uma Ontologia da Finituderdquo Revista Brasileira de Filosofia vol

XIX fasc76 outNov 1969 Satildeo Paulo Instituto Brasileiro de Filosofia

A Questatildeo do Meacutetodo na Filosofia um estudo do modelo heideggeriano Porto Alegre Editora Movimento 1983

Seis Estudos sobre Ser e Tempo Petroacutepolis Editora Vozes 1988

Estudos criacuteticos

Aqui satildeo referidos obras e artigos sobre alguns dos inteacuterpretes de Heidegger em liacutengua portuguesa que foram objecto de estudo no presente trabalho organizados por ordem alfabeacutetica dos respectivos autores

598

AAVV bdquoO Pensamento de Vicente Ferreira da Silvardquo in Convivium Maio-Junho Satildeo Paulo 1972

Bernardo Luis Manuel ldquoA noccedilatildeo de Universo Ontoloacutegico na Obra de Joseacute Enesrdquo in O Pensamento Luso-Galaico-Brasileiro Actas do Congresso vol I Lisboa INCM 2009 649-686

Borges Paulo Alexandre Esteves ldquoDo perene regresso da filosofia agrave caverna da danccedila e do drama iniciaacutetico Rito e Mito em Vicente Ferreira da Silva e Eudoro de Sousardquo in Mito e Cultura Vicente Ferreira da Silva e Eudoro de Sousa - Actas do V Coloacutequio Tobias Barreto Lisboa 2001 97-111

Ceacutesar Constanccedila Marcondes Vicente Ferreira da Silva trajectoacuteria intelectual e contribuiccedilatildeo filosoacutefica tese de Livre-Docecircncia em Filosofia apresentada agrave

Pontifiacutecia Universidade Catoacutelica de Campinas 1980 155-170

Ceacutesar Constanccedila Marcondes O Grupo de Satildeo Paulo Lisboa Imprensa Nacional-Casa da Moeda 2000

Ceacutesar Constanccedila Marcondes ldquoDelfim Santos e Eudoro de Sousardquo in Delfim Santos e a Escola do Porto Lisboa 2008

Ceacutesar Constanccedila Marcondes ldquoA Compreensatildeo Heterodoxa do Sagrado Agostinho da Silva Eudoro de Sousa Vicente Ferreira da Silvardquo in O Pensamento Luso-Galaico-Brasileiro Actas do Congresso vol II Lisboa INCM 2009 17-30

Grassi Ernesto ldquoRecordaccedilatildeo e Metaacuteforardquo in Convivium Maio-Junho Satildeo Paulo 1972 202-204

Guimaratildees Aquiles Cocircrtes ldquoMetafiacutesica e Ontologia na Filosofia Brasileirardquo in O Pensamento Luso-Galaico-Brasileiro Actas do Congresso vol I Lisboa INCM 2009 199-212

Instituto de Filosofia Luso-Brasileira (org) Mito e Cultura Vicente Ferreira da Silva e Eudoro de Sousa - Actas do V Coloacutequio Tobias Barreto Lisboa Instituto de Filosofia Luso-Brasileira 2001

Mariacuteas Juliaacuten ldquoUma Vocaccedilatildeo Filosoacuteficardquo in Convivium Maio-Junho Satildeo Paulo 1972 183-188

Martins Cacircndido ldquoA Voz ensaiacutestica da ficccedilatildeo de Vergiacutelio Ferreirardquo in O Pensamento Luso-Galaico-Brasileiro Actas do Congresso vol III Lisboa INCM 2009 645-660

Mendonccedila Ana Maria Bijoacuteias ldquoVisatildeo Antropoloacutegica em Vergiacutelio Ferreira um humanismo impossiacutevelldquo in O Pensamento Luso-Galaico-Brasileiro Actas do Congresso vol II Lisboa INCM 2009 443-454

Miranda Manuel Guedes da Silva Delfim Santos - A Metafiacutesica como Filosofia Fundamental Lisboa Fundaccedilatildeo C Gulbenkian e Fundaccedilatildeo para a Ciecircncia e Tecnologia 2003

Morujatildeo Carlos ldquoDelfim Santos Hartmann e Heideggerrdquo in Delfim Santos e a Escola do Porto Lisboa 2008 171-182

599

Pacheco Maria Adelaide ldquoO pensar como traduccedilatildeo em Vicente Ferreira da Silvardquo in O Pensamento Luso-Galaico-Brasileiro Actas do Congresso vol I Lisboa INCM 2009 701-724 Reale Miguel A posiccedilatildeo de Vicente Ferreira da Silva Filho no Instituto Brasileiro de Filosofia in Mito e Cultura Vicente Ferreira da Silva e Eudoro de Sousa - Actas do V Coloacutequio Tobias Barreto Lisboa 2001 39-42 Reale Miguel ldquoDelfim Santos e a geacutenese do existencialismo em Portugalrdquo in Delfim Santos e a Escola do Porto Lisboa 2008 199-234 Silva Dora Ferreira da Diaacutelogos sobre poesia e filosofia recordando Vicente Ferreira da Silvardquo [em linha] in Agulha [2003] nordm36 Fortaleza Satildeo Paulo Outubro de 2003 [Consult16 de Marccedilo 2007] Disponiacutevel na WWW URLhttpwwwrevistaagulhanombrag56capahtm 2003

Silva Maria Helena Varela Conjunccedilotildees Filosoacuteficas Luso-Brasileiras Lisboa Fundaccedilatildeo Lusiacuteada 2002

Soveral Cristiana Abranches de A Filosofia Pedagoacutegica de Delfim Santos Lisboa INCM 2000

Soveral Cristiana Abranches de (org) Delfim Santos e a Escola do Porto Actas do Congresso Internacional Lisboa INCM 2008

Teixeira Antoacutenio Braz ldquoO Sagrado no Pensamento de Vicente Ferreira da Silvardquo in Mito e Cultura Vicente Ferreira da Silva e Eudoro de Sousa - Actas do V Coloacutequio Tobias Barreto Lisboa 2001 85-96

Teixeira Antoacutenio Braz ldquoA Aventura Filosoacutefica de Vicente Ferreira da Silvardquo prefaacutecio de Dialeacutectica das Consciecircncia e Outros Ensaios Lisboa Imprensa Nacional-Casa da Moeda 2002

Contextualizaccedilatildeo

Aqui satildeo referidas obras cuja consulta foi imprescindiacutevel para contextualizar a recepccedilatildeo de Heidegger em liacutengua portuguesa Optou-se por organizaacute-las segundo a ordem cronoloacutegica da respectiva publicaccedilatildeo a fim de evidenciar a dimensatildeo histoacuterico-temporal desta contextualizaccedilatildeo

1819 Schopenhauer Arthur Die Welt als Wille und Vorstellung 1ordf ed Leipzig Brockhaus Verlag agora em Die Welt als Wille und Vorstellung Stuttgart Frankfurt am Main Cotta Insel ndash Verlag 1960

1872 Nietzsche Friedrich Die Geburt der Tragoumldie aus dem Geist der Musik 1ordf ed Leipzig E W Fritzsch agora em Saumlmtliche Werke Band I Stuttgart Alfred Kroumlner Verlag 1964

1887 Nietzsche Friedrich Zur Genealogie der Moral 1ordf ed Leipzig CG Nauman agora em Saumlmtliche Werke Band VII Stuttgart Alfred Kroumlner Verlag 1964

600

1917 OTTO Rudolf Das Heilige Uumlber das Irrationale in der Idee des Goumlttlichen und sein Verhaumlltnis zum Rationalen Breslau Trewendt amp Granier agora em Muumlnchen Verlag CHBeck 1991

1927 Gueacutenon Reneacute La Crise du Monde Moderne 1ordf ed Paris Bossard agora em La Crise du Monde Moderne Paris Gallimard 1946

1929 Otto Walter Die Goumltter Griechlands - das Bild des Goumlttlichen im Spiegel des griechischen Geistes Bonn Verlag Friedrich Cohen agora em Fankfurt am Main Vittorio Klostermann 2002

1934 Evola Julius Rivolta contro il mondo moderno Milano Hoepli trad port A Revolta Contra o Mundo Moderno Lisboa Publicaccedilotildees D Quixote 1969

1945 Gueacutenon Reneacute Le Regravegne de la Quantiteacute et les Signes des Temps Paris Gallimard trad port O Reino da Quantidade e os Sinais dos Tempos Lisboa D Quixote 1989

1946 Grassi Ernesto Verteidigung des individuellen Lebens Bern Verlag A Francke AG

1947 Quintela Paulo Houmllderlin Porto Editorial Inova Limitada

1951 Juumlnger Ernst Der Waldgang 1ordf ed Frankfurt am Main Vittorio Klostermann agora em Saumlmtliche Werke Band 7 Klett-Cotta Stuttgart 1980

1953 Gusdorf Georges Mythe et Meacutetaphysique Introduction agrave la Philosophie Paris Flammarion

1957 Eliade Mircea Das Heilige und das Profane Hamburgo Rowohlt trad port O Sagrado e o Profano Lisboa Livros do Brasil 1999

1971 Instituto de Literaturas Anglo-Americanas (org) Friedrich Houmllderlin 1770-1970 homenaje a su centenario La Plata Universidad Nacional de La Plata

1983 Grassi Ernesto Heidegger and the question of Renaissance Humanism - Four Studies New York Center for Medieval and Early Renaissance

Studies

1983 Loumlwith Karl Weltgeschichte und Heilsgeschehen Stutgart JB Metzler Verlag

1996 Volpi Franco Il nichilismo Roma-Bari Laterza amp Figli Spa

19982001 Blanc Mafalda Estudos sobre o Ser Lisboa Gulbenkian

2002 Lourenccedilo Eduardo Poesia e Metafiacutesica Lisboa Gradiva

2002 Pacheco Maria Adelaide ldquoLiacutengua e Histoacuteria em Heidegger e Pascoaesrdquo in Heidegger Linguagem e Traduccedilatildeo Centro de Filosofia da Universidade de Lisboa 417-432

2004 Santos Leonel Ribeiro dos Linguagem Filosofia e Retoacuterica no Renascimento Lisboa Ediccedilotildees Colibri

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