linguagem, tradução e tradição - uevora.pt · 2014. 10. 24. · 1 resumo linguagem, tradução...
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UNIVERSIDADE DE EacuteVORA
Instituto de Investigaccedilatildeo e Formaccedilatildeo Avanccedilada
Linguagem Traduccedilatildeo e Tradiccedilatildeo
_________________________________________________________________________________________
A recepccedilatildeo de Heidegger em portuguecircs
Dissertaccedilatildeo de Doutoramento em Filosofia
Orientadores Professora Doutora Irene Borges-Duarte (Universidade de
Eacutevora)
Professora Doutora Constanccedila Marcondes Ceacutesar (Pontifiacutecia Universidade Catoacutelica de Campinas)
Maria Adelaide Neto de Mascarenhas Pacheco
Eacutevora - 2011
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UNIVERSIDADE DE EacuteVORA
Instituto de Investigaccedilatildeo e Formaccedilatildeo Avanccedilada
Linguagem Traduccedilatildeo e Tradiccedilatildeo
_________________________________________________________________________________________
A recepccedilatildeo de Heidegger em portuguecircs
Dissertaccedilatildeo de Doutoramento em Filosofia
Orientadores Professora Dutora Irene Borges-Duarte (Universidade de
Eacutevora)
Professora Doutora Constanccedila Marcondes Ceacutesar (Pontifiacutecia Universidade Catoacutelica de Campinas)
Maria Adelaide Neto de Mascarenhas Pacheco
Eacutevora - 2011
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Resumo
Linguagem Traduccedilatildeo e Tradiccedilatildeo A recepccedilatildeo de Heidegger em liacutengua portuguesa Devido agrave persistecircncia do latim como liacutengua das comunicaccedilotildees cientiacuteficas e filosoacuteficas e em seguida da hegemonia cultural francesa foi apenas no seacuteculo XX que comeccedilaram a ser traduzidos para portuguecircs os autores mais importantes da tradiccedilatildeo filosoacutefica A primeira consequecircncia desta longa ausecircncia de traduccedilotildees portuguesas de filosofia foi a interrupccedilatildeo da transmissatildeo da tradiccedilatildeo filosoacutefica designadamente dos textos latinos dos pensadores da escolaacutestica peninsular No entanto tal natildeo impediu que esta tradiccedilatildeo humanista esquecida se misturasse de forma ecleacutectica com a filosofia moderna importada em liacutengua francesa e que sua influecircncia se mantivesse presente na cultura e na liacutengua portuguesas Investigou-se o modo como esta situaccedilatildeo hermenecircutica determinou a recepccedilatildeo de Heidegger analisando os escritos de vaacuterias geraccedilotildees de pensadores que comentaram e traduziram em liacutengua portuguesa o filoacutesofo alematildeo entre 1938 e 1989 tendo podido reconhecer a influecircncia daquela tradiccedilatildeo humanista na elaboraccedilatildeo dos principais pontos de vista interpretativos
Abstract Language Translation and Tradition Heideggerrsquos reception in Portuguese Due to Latin‟s persistence as the language used in scientific and philosophical communications and also to the cultural French hegemony it was only in the twentieth century that the works of the main authors of philosophical tradition were translated into Portuguese The first consequence of this long absence of Portuguese translations of philosophical texts was a disruption in the transmission of philosophical tradition namely in the transmission of the Latin texts of the second scholasticism However this has not prevented the blending of this humanist tradition with the modern philosophy translated into French and that this influence has remained in Portuguese culture and language We have studied some writings of several generations of thinkers who have commented and translated the texts of the German philosopher between 1938 and 1989 into the Portuguese language to find out how this ldquohermeneutic situationrdquo had conducted Heideggerbdquos reception We have been able to find the influence of that humanist tradition in giving rise to the main hermeneutic points of view
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3
Esta dissertaccedilatildeo de Doutoramento foi elaborada no acircmbito do projecto de investigaccedilatildeo ldquoHeidegger em Portuguecircs Da Loacutegica de 1934 aos Contributos para a Filosofiardquo (1936-1938) [POCIFIl (606002004)] do Centro de Filosofia da Universidade de Lisboa e Universidade de Eacutevora e parcialmente financiada pela Bolsa de Investigaccedilatildeo SFRBD289962006 da Fundaccedilatildeo Para a Ciecircncia e Tecnologia Dirijo por isso os meus agradecimentos agraves trecircs instituiccedilotildees acima referidas e especialmente agrave Fundaccedilatildeo Para a Ciecircncia e Tecnologia cujo apoio financeiro tornou possiacutevel a concretizaccedilatildeo da investigaccedilatildeo assim como agrave Professora Doutora Irene Borges-Duarte da Universidade de Eacutevora e agrave Professora Doutora Constanccedila Marcondes Ceacutesar da Pontifiacutecia Universidade Catoacutelica de Campinas cuja orientaccedilatildeo competente e encorajamento tornaram possiacutevel superar as dificuldades inerentes agraves diversas fases da elaboraccedilatildeo do presente trabalho acadeacutemico
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IacuteNDICE
Introduccedilatildeo 9
1 A constituiccedilatildeo da recepccedilatildeo de Heidegger em liacutengua portuguesa como tema a investigar 11
2 O problema filosoacutefico da traduccedilatildeo 16
3 As mudanccedilas de paradigma na teoria da traduccedilatildeo 19
4 A traduccedilatildeo e a sua conexatildeo com a temporalidade 26
5 A recepccedilatildeo de Heidegger como um problema de traduccedilatildeo 34
6 Metodologia usada 39
7 A estrutura da dissertaccedilatildeo 43
Siglas e abreviaturas mais usadas 47
Parte I O conceito fenomenoloacutegico de traduccedilatildeo e o problema da tradiccedilatildeo 49
Capiacutetulo I - A viragem hermenecircutica e o estatuto das liacutenguas 51
1 Linguagem e ldquoabertura ontoloacutegicardquo 55
2 O logos hermenecircutico e o logos apofacircntico 62
3 Linguagem facticidade e existecircncia 66
4 O estado de aberto do Dasein e o projecto lanccedilado 70
5 A Auslegung e a estrutura preacutevia da compreensatildeo 74
6 Rede e Sprache 77
7 A temporalidade como fundamento do ldquoestado de abertordquo do Dasein 83
8 Linguagem e verdade 88
9 Natildeo-ser e finitude 94
10 A libertaccedilatildeo da gramaacutetica em relaccedilatildeo agrave loacutegica 100
11 Liacutengua povo e histoacuteria 106
12 A liacutengua como Ereignis 111
13 Linguagem e poesia 114
14 Poesia e Filosofia ou diaacutelogo entre cumes 118
Capiacutetulo II ndash A pluralidade das aberturas de mundo e o problema hermenecircutico 125
1 Hermenecircutica e historicidade 131
2 Tradiccedilatildeo e traduccedilatildeo 138
3 A reabilitaccedilatildeo do preconceito em Gadamer 142
4 A tradiccedilatildeo 146
5 A produtividade da distacircncia temporal 149
6 A fusatildeo de horizontes e a alteridade 152
7 O conceito hermenecircutico de texto 157
8 A negatividade da experiecircncia hermenecircutica 161
6
Parte II ndash A recepccedilatildeo de Heidegger em Liacutengua portuguesa traduccedilatildeo e questionamento da tradiccedilatildeo 169
Capiacutetulo I - Traduccedilatildeo e tradiccedilatildeo no pensamento portuguecircs e brasileiro 171
1 A orientaccedilatildeo humanista da escolaacutestica peninsular 173 1 1 Os Conimbricences e a traduccedilatildeo de Aristoacuteteles 175 1 2 A Escola de Eacutevora e a interpretaccedilatildeo de Aristoacuteteles agrave luz do novo contexto histoacuterico e dos seus problemas 180 1 3 Apogeu e decadecircncia da tradiccedilatildeo escolaacutestica 184
2 A modernidade pombalina e a decadecircncia da tradiccedilatildeo escolaacutestica 190 2 1 O Projecto pedagoacutegico do iluminismo portuguecircs 193 2 2 A Criacutetica agrave tradiccedilatildeo escolaacutestica e o ecletismo filosoacutefico 197 2 3 Linguagem e traduccedilatildeo 202
3 A mediaccedilatildeo francoacutefona e o ldquoeclipse da filosofiardquo 204 3 1 O ecletismo de Victor Cousin 204 3 2 O Positivismo 207
4 A reacccedilatildeo anti-positivista e a consciecircncia de si mesmo na cultura portuguesa 212 4 1 A viragem de Antero 212 4 2 A heranccedila de Antero e o diaacutelogo com a filosofia europeia 216
5 Traduccedilatildeo e consciecircncia de si na cultura Brasileira 222
6 A liacutengua portuguesa a tradiccedilatildeo e a traduccedilatildeo 227
Capiacutetulo II - Traduccedilatildeo portuguesa de Heidegger 233
1 Recepccedilatildeo de Heidegger em Portugal 235 11 Os primeiros divulgadores 235
111 Delfim Santos 236 112 Vergiacutelio Ferreira 239 113 Antoacutenio Joseacute Brandatildeo 241
12 A compreensatildeo da obra de Heidegger e a sua traduccedilatildeo apoacutes os anos 50 244 121 Pe Manuel Antunes 245 122 Joseacute Enes 248 123 Eudoro de Sousa 249
2 A recepccedilatildeo de Heidegger no Brasil 250 21 Vicente Ferreira da Silva 251 22 Gerd Alberto Bornheim 252 23 Emmanuel Carneiro Leatildeo 253 24 Maria do Carmo Tavares Miranda 254 25 Benedito Nunes 255 26 Ernildo Stein 256
3 Determinaccedilatildeo da perspectiva hermenecircutica 258
4 O Diaacutelogo com ldquoo primeiro Heideggerrdquo Existecircncia e sentido 261 4 1 Delfim Santos 261
411 Positivismo e Metafiacutesica 261 412 Humanismo e existencialismo 269 413 As ciecircncias do espiacuterito 274
4 2 Vergiacutelio Ferreira 283 421 O existencialismo e a morte de Deus 285 422 A Verdade como Apariccedilatildeo e o ser-para-a-morte 290
5 O diaacutelogo com ldquoo segundo Heideggerrdquo e o problema do mito 295 5 1 Eudoro de Sousa e a Trans-objectividade 297 5 2 O sagrado e o significado do drama ritual 300 5 3 Vicente Ferreira da Silva e o ser como Fascinador 308
6 Ontologia e finitude 310 6 1 Gerd Bornheim e a diferenccedila ontoloacutegica 310
611 Os fundamentos existenciais do filosofar 310 612 Destruiccedilatildeo da Metafiacutesica e redescoberta da finitude 315
7
613 A reformulaccedilatildeo heideggeriana da dialeacutectica 319 614 A diferenccedila ontoloacutegica e a centralidade da praxis 323
6 2 Ernildo Stein ndash finitude e circularidade ontoloacutegica 328 621 Ser e Verdade em Heidegger 328 622 Negatividade e finitude 332 623 A circularidade da questatildeo ontoloacutegica 335 624 Linguagem e finitude 339
7 O desvendamento do ser como hermenecircutica 343 7 1 Emmanuel Carneiro Leatildeo 343
711 A novidade da hermenecircutica heideggeriana 343 712 Hermenecircutica e Teologia 346 713 Hermenecircutica da eacutepoca contemporacircnea e pensar originaacuterio de Heidegger 352
7 2 Joseacute Enes e o reencontro com a tradiccedilatildeo 356 721 A noeticidade hermenecircutica em S Tomaacutes de Aquino 358 722 O intuito e os juiacutezos de percepccedilatildeo externa 361 723 A Verdade e o Ser 368 724 A linguagem como via de acesso ao ser e o meacutetodo analiacutetico-expectante 372
Capiacutetulo III - O Diaacutelogo de Vicente Ferreira da Silva com Heidegger 381
1 A determinaccedilatildeo da situaccedilatildeo hermenecircutica 383
2 O estabelecimento progressivo de um ponto de vista interpretativo 388 21 A reformulaccedilatildeo da questatildeo antropoloacutegica e a descoberta do segundo Heidegger 388 22 O homem e o ditado do ser 393 23 O caminho de transiccedilatildeo para uma filosofia da Mitologia 399 24 A destruiccedilatildeo da metafiacutesica da subjectividade como condiccedilatildeo preacutevia para uma filosofia da Mitologia 404 25 Os Mitos como origem 410 26 Panteiacutesmo poeacutetico e Mitologia 415 27 Poesia filosofia e pensamento maacutegico da Origem 419
3 A apropriaccedilatildeo expropriadora de conceitos centrais da filosofia heideggeriana 423 3 1 O Ser como Fascinador 423 3 2 O pocircr-se em obra da verdade do ser 430 3 3 Continuidade da tradiccedilatildeo e ruptura da crise 436 3 4 A quadratura do mundo 441 3 5 O projecto lanccedilado e a recusa projectante 449
4 O questionamento da tradiccedilatildeo humanista 457 4 1 Humanismo e Cristianismo 457 4 2 Apogeu e ocaso da tradiccedilatildeo humaniacutestica 465 4 3 O Homem como lugar de desvendamento do real 471 4 4 A nova religiatildeo coacutesmica e o ciclo natildeo humaniacutestico da cultura 477 4 5 Vicente Ferreira da Silva eacute um pensador anti-humanista 484
5 A traduccedilatildeo como Ereignis em Vicente Ferreira da Silva 492
Conclusatildeo - A traduccedilatildeo como viagem entre diferentes margens 501
1 A histoacuteria das traduccedilotildees portuguesas de filosofia e a decisatildeo pelo futuro da liacutengua 503
2 A interpretaccedilatildeo como traduccedilatildeo apropriada 506
3 A tradiccedilatildeo humanista e a traduccedilatildeo filosoacutefica 512
APEcircNDICE 521
I - Traduccedilotildees de Filosofia em liacutengua portuguesa ateacute 1959 523
1- Traduccedilotildees Portuguesas de Filosofia (ateacute 1959) 523 A primeira traduccedilatildeo portuguesa de filosofia 523 A O seacuteculo XVIII 523
8
B O seacuteculo XIX 524 C A primeira metade do seacuteculo XX 524
1 Filosofia alematilde 524 2 Filosofia Grega 526 3 Traduccedilotildees cientiacuteficas 528
2 - Traduccedilotildees brasileiras de Filosofia (1931-1959) 528 A Filosofia Alematilde 528 B Filosofia grega 529 C Escolaacutestica 530
II - Cronologia da recepccedilatildeo de Heidegger em liacutengua portuguesa 533
1 ndash Traduccedilotildees Portuguesas e Brasileiras de Heidegger 533
2 - Bibliografia criacutetica traduzida para portuguecircs 536
3 - O diaacutelogo com Heidegger em liacutengua portuguesa 539 A Trabalhos acadeacutemicos sobre Heidegger 539
1 Em Portugal 539 2 No Brasil 540
B Estudos monograacuteficos que dialogam com Heidegger 544 C Artigos em revistas e obras colectivas 549
Bibliografia 571
1 Ediccedilotildees de referecircncia dos autores centrais do trabalho 573
a Martin Heidegger Gesamtausgabe 573
b Hans-Georg Gadamer Gesammelte Werke 573
c Vicente Ferreira da Silva Obras Completas 574
2 Bibliografia usada para a elaboraccedilatildeo da dissertaccedilatildeo 574
Parte I sobre o problema filosoacutefico da traduccedilatildeo e sua conexatildeo com a tradiccedilatildeo 574 Textos de Heidegger e Gadamer 574
De Heidegger Martin 574 De Gadamer Hans-Georg 577
Estudos 577 Referecircncias 580
Parte II Traduccedilatildeo e tradiccedilatildeo em Portugal e no Brasil A recepccedilatildeo de Heidegger em portuguecircs 582
A Sobre traduccedilatildeo e transmissatildeo da tradiccedilatildeo filosoacutefica em portuguecircs 582 Estudos de caraacutecter geral 582 Obras representativas dos periacuteodos histoacutericos 583
B Retoacuterica poesia e religiatildeo 586 C O diaacutelogo com Heidegger em liacutengua portuguesa (1938-1989) 590
Estudos sobre a recepccedilatildeo de Heidegger em Liacutengua Portuguesa 590 Textos dos inteacuterpretes de Heidegger 591 Estudos criacuteticos 597 Contextualizaccedilatildeo 599
9
INTRODUCcedilAtildeO
10
11
1 A constituiccedilatildeo da recepccedilatildeo de Heidegger em liacutengua portuguesa
como tema a investigar
Com o desaparecimento do latim como liacutengua universal da comunicaccedilatildeo
cientiacutefica a consciecircncia moderna afirmou-se como uma consciecircncia cindida
entre o fasciacutenio por uma linguagem universal rigorosa e capaz de ler os
segredos do livro do universo e de os partilhar sem ambiguidade realizada
pela matemaacutetica e o pecado original das muacuteltiplas liacutenguas nacionais
colocando entraves agrave comunicaccedilatildeo cientiacutefica agrave partilha das obras-primas da
literatura europeia ao entendimento entre os povos europeus
A siacutendrome de Babel assola desde entatildeo a consciecircncia europeia que se
lanccedilou na traduccedilatildeo como quem lanccedila matildeo de um expediente pragmaacutetico
capaz de minorar o caos e a desordem e assegurar o comeacutercio das
mercadorias das artes e das ideias Os problemas colocados pela praacutetica
desta actividade de traduccedilatildeo haacute muito tematizados por aqueles que se
dedicaram agrave traduccedilatildeo literaacuteria e filosoacutefica vieram tomando relevacircncia
crescente tornando-se objecto de reflexatildeo filosoacutefica e finalmente
convertendo-se em tema de uma ldquodisciplinardquo universitaacuteria com as suas
exigecircncias cientiacuteficas
Se algumas liacutenguas como o alematildeo parecem naturalmente vocacionadas para
a traduccedilatildeo sendo a fixaccedilatildeo do cacircnone linguiacutestico inseparaacutevel da traduccedilatildeo dos
grandes textos sagrados noutras como foi o caso das liacutenguas latinas este
movimento de traduccedilatildeo foi mais tardio e de certo modo entravado e
condicionado pelas circunstacircncias histoacutericas ligadas agrave Contra-Reforma Sendo
as comunicaccedilotildees culturais filtradas pelo poder poliacutetico e religioso e geralmente
confinadas ao espaccedilo delimitado pela Contra-Reforma as afinidades
linguiacutesticas e culturais entre os povos latinos facilitaram as comunicaccedilotildees e
muitas vezes dispensaram as traduccedilotildees
Assim acompanhando a longa vigecircncia da Escolaacutestica Peninsular entre noacutes o
latim manteve-se ateacute muito tarde como liacutengua de ensino da filosofia natildeo tendo
a reforma pombalina modificado esta situaccedilatildeo Posteriormente o lugar do latim
veio a ser ocupado pela liacutengua francesa liacutengua que mediava o acesso agraves
revistas cientiacuteficas e filosoacuteficas e agraves obras escritas pelos filoacutesofos que eram
traduzidas para o puacuteblico francecircs
12
Esta entrada tardia no movimento da traduccedilatildeo filosoacutefica significou um
crescente desfasamento das filosofias moderna e contemporacircnea que se
acentuou rapidamente quando o centro do pensamento filosoacutefico se deslocou
para a Alemanha e a filosofia comeccedilou a ser produzida numa liacutengua a que
fomos ficando quase inteiramente alheios
Foi apenas no periacuteodo da Primeira Repuacuteblica que os intelectuais portugueses
comeccedilaram a sentir a necessidade de fundar filosoficamente as suas opccedilotildees
esteacuteticas religiosas ou poliacuteticas e por conseguinte comeccedilou a ser necessaacuterio
o acesso agraves obras dos grandes pensadores europeus tendo sido realizado um
importante esforccedilo no sentido da traduccedilatildeo e actualizaccedilatildeo do pensamento
cientiacutefico e filosoacutefico1
Puderam assim ser traduzidos autores fundamentais do pensamento
contemporacircneo como Nietzsche Darwin Spencer assim como alguns autores
da tradiccedilatildeo filosoacutefica como Platatildeo ou Santo Agostinho De qualquer modo este
esforccedilo foi natildeo soacute tardio como insuficiente e continuou a ser praacutetica corrente o
recurso agraves traduccedilotildees francesas inglesas ou espanholas quando se tratava de
autores cujos idiomas natildeo eram dominados pelos intelectuais portugueses
como era o caso dos pensadores alematildees Assim as primeiras traduccedilotildees dos
filoacutesofos do idealismo alematildeo foram feitas apenas a partir da deacutecada de 40 de
Kant foi traduzido A Paz Perpeacutetua por Alberto Machado da Cruz em 1941 e Da
Forma e dos Princiacutepios do Mundo Sensiacutevel e Inteligiacutevel por Francisco Mendes
da Luz em 1943 de Hegel a Introduccedilatildeo agrave Histoacuteria da Filosofia por Antoacutenio
Pinto de Carvalho em 1949
Este atraso no movimento de traduccedilatildeo filosoacutefica do qual comeccedilaacutemos
timidamente a recuperar a partir da Primeira Repuacuteblica estaacute longe de ser uma
coisa do passado de facto o movimento de traduccedilatildeo parece ameaccedilado por
vaacuterias debilidades extriacutensecas ligadas agrave exiguidade do puacuteblico a que essas
traduccedilotildees se destinam agrave precariedade do estatuto do tradutor assim como agrave
fragilidade das instituiccedilotildees
1 Cf A minha dissertaccedilatildeo de mestrado A Vida e o Traacutegico em Raul Brandatildeo (FLUL 2003) 9-12
Analisa-se aiacute a extensatildeo e limites da traduccedilatildeo filosoacutefica em Portugal na primeira metade do seacuteculo XX
com particular destaque para o periacuteodo da Primeira Repuacuteblica
13
Esta entrada tardia na tarefa da traduccedilatildeo filosoacutefica testemunha aleacutem disso
uma recusa agrave ldquomediaccedilatildeordquo linguiacutestica que derivou historicamente da hegemonia
cultural do latim ateacute uma eacutepoca tardia e num segundo tempo da hegemonia
cultural francesa2 e teve o efeito de nos expor a decisotildees hermenecircuticas
alheias lendo filosofia em francecircs ficamos inconscientemente expostos a um
ponto de vista interpretativo exterior e portanto impedidos de fazer uma
apropriaccedilatildeo autecircntica da tradiccedilatildeo filosoacutefica
Por outro lado esta recusa da mediaccedilatildeo linguiacutestica cristalizou-se muitas vezes
numa afirmaccedilatildeo dum pensamento proacuteprio associado ao florescimento da
poesia onde encontrou lugar a expressatildeo de uma preocupaccedilatildeo identitaacuteria e de
uma afirmaccedilatildeo e sacralizaccedilatildeo da liacutengua materna
A liacutengua portuguesa ganhou assim o seu proacuteprio rosto fortemente marcado por
uma tradiccedilatildeo poeacutetica e literaacuteria criada no diaacutelogo com a literatura europeia e
com a sua proacutepria histoacuteria tradiccedilatildeo esta que ganhou consciecircncia de si mesma
na obra de pensadores-poetas como Teixeira de Pascoaes e Fernando
Pessoa3
Na sequecircncia da minha contribuiccedilatildeo para a investigaccedilatildeo bibliograacutefica4 jaacute
realizada no acircmbito do projecto ldquoHeidegger em Portuguecircs Da Loacutegica de 1934
aos Contributos para a Filosofia (1936-1938) [POCIFIl (606002004)] propus-
me analisar alguns dos comentaacuterios da obra do filoacutesofo alematildeo em liacutengua
portuguesa para compreender o modo como esta experiecircncia da liacutengua5 teria
2 Cf Ricœur ldquoDeacutefi et bonheur de la traductionrdquo in Sur la traduction Paris 2000 Neste ensaio Ricœur
introduz o conceito de matriz psicanaliacutetica de resistecircncia agrave traduccedilatildeo e associa essa recusa agrave mediaccedilatildeo
linguiacutestica aos efeitos de uma estrateacutegia de dominaccedilatildeo cultural ldquoLa preacutetention agrave l‟autosuffisance le refus
de la meacutediation de l‟eacutetranger ont nourri en secret maints ethnocentrismes linguistiques et plus
gravement maintes preacutetentions agrave l‟heacutegeacutemonie culturelle telle qu‟on a pu l‟observer de la part du latin de
l‟Antiquiteacute tardive agrave la fin du Moyen Acircge et mecircme au-delagrave de la Renaissance de la part aussi du franccedilais
agrave l‟acircge classique de la part de l‟anglo-ameacutericain de nos joursrdquo (Ob cit 10-19) 3 Cf O meu artigo ldquoLigravengua e Histoacuteria em Heidegger e Pascoaesrdquo em Heidegger Linguagem e Traduccedilatildeo
Lisboa 2002 (417-432) Interroga-se aiacute a proximidade entre o pensamento poeacutetico de Pascoaes e alguns
aspectos da ontofenomenologia da linguagem de Heidegger sublinhando-se o papel fundador da histoacuteria
que ambos os autores conferem agrave linguagem enquanto liacutengua dum povo histoacuterico recriada pelos seus
grandes poetas 4 Cf Heidegger em Portuguecircs [em linha] Lisboa Centro de Filosofia da Universidade de Lisboa [2008]
[Consult 20 de Setembro 2009] Disponiacutevel na WWW ltURL=httpwwwmartin-heideggernetgt
5 Ingeborg Schuumlssler pensando a linguagem como Ereignis esclarece a diferenccedila entre a experiecircncia da
linguagem inerente agrave poesia e a experiecircncia da linguagem como ldquofundo disponigravevelrdquo que podemos fazer
nas modernas sociedades de informaccedilatildeo esta eacute a experiecircncia de desocultaccedilatildeo total ldquoparle trop de son
eacuteclaircierdquo e abre o ser como pura presenccedila enquanto a primeira eacute a palavra que abre o ser a partir da
ausecircncia a fim de lhe permitir desenvolver-se na sua essecircncia (ldquoLe langage comme fonds disponible
14
marcado a recepccedilatildeo de Heidegger em portuguecircs Se este rosto retoacuterico e
poeacutetico da nossa liacutengua foi por alguns autores evidenciado como obstaacuteculo natildeo
soacute agrave traduccedilatildeo mas agrave produccedilatildeo filosoacutefica parti do princiacutepio de que ele natildeo
pode poreacutem estar dissociado de uma visatildeo do mundo e de uma tradiccedilatildeo
hermenecircutica6 Pretendi pois surpreender essa presenccedila da tradiccedilatildeo e ver o
modo como ela dispocircs os pensadores que leram e comentaram Heidegger em
liacutengua portuguesa a ouvir o que nos seus textos eacute dito e a entrar em diaacutelogo
com eles7
Tratando-se de um autor que recusa a linguagem da tradiccedilatildeo filosoacutefica e cujas
experiecircncias linguiacutesticas satildeo elas mesmas um incentivo agrave invenccedilatildeo e agrave
criatividade agrave redescoberta de si mesma e das potencialidades de sentido da
liacutengua de chegada dos seus tradutores e inteacuterpretes tinha a convicccedilatildeo de que
a sua traduccedilatildeo e interpretaccedilatildeo natildeo poderia deixar de ser um desafio e um
incentivo a uma maior consciecircncia da nossa liacutengua e da cultura
A minha proacutepria experiecircncia de traduccedilatildeo das Liccedilotildees de Loacutegica de 348- apesar
de se tratar duma obra em que Heidegger usa em boa parte a linguagem da
tradiccedilatildeo filosoacutefica natildeo colocando por isso as mesmas dificuldades de obras
posteriores - veio a reforccedilar esta convicccedilatildeo da importacircncia decisiva da
ldquoexperiecircncia da liacutenguardquo na compreensatildeo e consequentes opccedilotildees de traduccedilatildeo
Pude constatar que alguns pensadores portugueses e brasileiros desde os
anos 30 e 40 natildeo apenas se interessaram a fundo por Heidegger como
(Bestand) et comme eacutevegravenement-appropriement (Ereignis)ldquo in Heidegger Linguagem e Traduccedilatildeo
Lisboa 2002 334-355) 6 Note-se que a tradiccedilatildeo hermenecircutica transportada pela ligravengua se fundamenta na ldquofalardquo preacute-teoacuterica ligada
agrave expressatildeo do sentido captado antes de todo o enunciado teoreacutetico natildeo implicando necessariamente uma
consciecircncia expliacutecita de si mesma nem uma fundamentaccedilatildeo teoacuterica Sobre este ponto cf Ramoacuten
Rodriacuteguez (Hermeneacuteutica y Subjetividad Madrid1993 29) ldquo[] el momento de la comprensioacuten en
sentido estricto el momento en que algo llega a ser entendido en lo que es y como tal enunciado ndash en la
terminologiacutea de Heidegger Auslegung y Aussage ndash son desarrollos de lo ya abierto por el comprender
originalrdquo 7 A importacircncia que a tradiccedilatildeo poeacutetica pode ter na recepccedilatildeo de Heidegger em qualquer liacutengua eacute bem
documentada pela comunicaccedilatildeo de Franccedilois Feacutedier ao Congresso Internacional de Lausanne de 2004 a
propoacutesito da resoluccedilatildeo das dificuldades da traduccedilatildeo francesa do termo Ereignis A utilizaccedilatildeo de
referecircncias da poesia francesa (Verlaine) para chegar a estabelecer a traduccedilatildeo de ldquoAvenancerdquo assim como
a apreciaccedilatildeo da traduccedilatildeo assim conseguida satildeo particularmente elucidativas ldquoAvenance n‟est pas le
miraculeux eacutequivalent franccedilais de Ereignis Cest dans notre langue ce qui nous met en eacutetat de pouvoir agrave
notre tour faire l‟expeacuterience de ce dont Heidegger a fait l‟expeacuterience avec l‟Ereignis Mais l‟ideacutee mecircme
que les deux expeacuteriences puissent ecirctre identiques et donc qu‟elles puissent s‟identifier l‟une agrave l‟autre est
sans doute le dernier avatar d‟un mode de repreacutesentation qui deacutecideacutement ne doit plus avoir cours parce
qu‟il a eacutepuiseacute sa charge de veacuteriteacuterdquo (Heideggers Beitraumlge zur Philosophie Frankfurt am Main 2009 121) 8 Cf Martin Heidegger Loacutegica A pergunta pela essecircncia da linguagem Coord Ciecircntifica de Irene
Borges-Duarte trad de Maria Adelaide Pacheco e Helga Hook Quadrado Lisboa Gulbenkian 2008
15
tiveram a possibilidade de aceder agrave sua obra em alematildeo comentando-a em
ensaios escritos em liacutengua portuguesa Ora eacute preciso sublinhar que sendo
Heidegger um pensador que pensa no confronto com a tradiccedilatildeo e com a
linguagem da tradiccedilatildeo filosoacutefica procedendo a uma recriaccedilatildeo linguiacutestica a partir
de referecircncias literaacuterias poeacuteticas e muitas vezes dialectais a possibilidade de
aceder linguisticamente em alematildeo deu a estes autores portugueses e
brasileiros a uacutenica via para aceder ao sentido originaacuterio dos textos
heideggerianos e poder subtrair-se agrave mediaccedilatildeo francoacutefona
Contudo natildeo haacute duacutevida de que natildeo sentiram a obrigaccedilatildeo de levar a cabo a sua
traduccedilatildeo em sentido estrito Se exceptuarmos o caso isolado da traduccedilatildeo de
Antoacutenio Joseacute Brandatildeo de A Essecircncia da Verdade em 1946 na revista Rumo
apenas nos anos sessenta comeccedilaram a aparecer com alguma regularidade as
traduccedilotildees portuguesas de Heidegger9 e o esforccedilo de aceder linguisticamente
ao pensamento do filoacutesofo alematildeo passou inicialmente entre noacutes para o
grande puacuteblico pela mediaccedilatildeo das traduccedilotildees francesas como vinha
acontecendo desde o seacuteculo XIX a toda a filosofia alematilde
Partindo do pressuposto hermenecircutico de que a interpretaccedilatildeo de um autor
nunca pode ser objectiva nem livre de preconceitos mas que ela eacute dirigida por
uma estrutura preacutevia que determina em cada caso a compreensatildeo10
questionaacutemos de que modo esta ldquosituaccedilatildeordquo pode ter condicionado o ldquocomordquo da
interpretaccedilatildeo
Procuraacutemos identificar este horizonte hermenecircutico ldquopreacuteviordquo que se projectou
sobre os textos de Heidegger interpretados em liacutengua portuguesa procurando
aiacute escutar o eco da tradiccedilatildeo e o efeito do preconceito tendo poreacutem em conta
que essa projecccedilatildeo pode ser a sombra que oculta e distorce ou o horizonte
que se experimenta a si mesmo no confronto com o texto a interpretar e que
neste confronto pode ser ldquoabertordquo de modo originaacuterio encontrar exemplos
9 Cf Borges-Duarte Irene e Saacute Alexandre de A Recepccedilatildeo de Heidegger em Portugal Estudo
bibliograacutefico preliminar in Philosophica 13 Lisboa 1999
10 Cf Friedrich-Wilhelm von Herrmann in ldquoUumlbersetzung als philosophisches Problemrdquo in Zur
philosophischen Aktualitaumlt Heideggers Im Spiegel der Welt Sprache Uumlbersetzung Auseinandersetzung
Frankfurt am Main 1992 110 ldquoJede Uumlbersetzung ist schon Auslegung jede Auslegung aber ist in einer
dreifachen Vor-struktur verfaβt Daher ist es eine Taumluschung und eine Verfehlen der Wesensverfassung
der Auslegung zu meinen Auslegung koumlnne und muumlsse voraussetzungslos und in diesem Sinne objektiv
seinrdquo
16
deste efeito negativo e positivo da tradiccedilatildeo e do preconceito foi o propoacutesito que
presidiu agrave selecccedilatildeo de autores estudados
Com o conhecimento progressivo da totalidade da obra do pensador alematildeo
possibilitado pela publicaccedilatildeo da ediccedilatildeo integral por Vittorio Klostermann a partir
de 75 e com a realizaccedilatildeo das primeiras traduccedilotildees e de muacuteltiplos comentaacuterios
em portuguecircs foi levada a cabo uma apropriaccedilatildeo da obra do pensador alematildeo
em liacutengua portuguesa que tomou corpo num conjunto de textos suficientemente
significativos Pude assim interrogar esses textos a fim de aiacute encontrar essa
complexa operaccedilatildeo hermenecircutica de apropriaccedilatildeo-expropriaccedilatildeo que eacute a
essecircncia de toda a traduccedilatildeo
2 O problema filosoacutefico da traduccedilatildeo
A traduccedilatildeo tornou-se a partir do ensaio de Schleiermacher Uumlber die
verschiedenen Methoden des Uumlbersetzen de 181311 um problema filosoacutefico
tendo sido aiacute abordada a questatildeo da traduccedilatildeo no interior do quadro mais geral
das teorias da linguagem e da natureza do espiacuterito Goethe Schlegel
Humboldt Paul Valeacutery Walter Benjamin Ortega e Gasset reflectiram sobre o
problema da traduccedilatildeo contribuindo para o enriquecimento e definiccedilatildeo dessa
problemaacutetica na sua dupla vertente poeacutetica e filosoacutefica
A partir de 1940 as reflexotildees sobre traduccedilatildeo adquirem um caraacutecter
sistemaacutetico com a organizaccedilatildeo profissional dos tradutores a criaccedilatildeo de
revistas e simpoacutesios internacionais Assistimos por um lado a tentativas de
pensar as relaccedilotildees entre loacutegica formal e os modelos de transposiccedilatildeo linguiacutestica
11
bdquoDer Paraphrast verfaumlhrt mit den Elementen beider Sprachen als ob sie mathematische Zeichen waumlren
die sich durch Vermehrung und Verminderung auf gleichen Werth zuruumlkfuumlhren lieszligen und weder der
verwandelten Sprache noch der Ursprache Geist kann in diesem Verfahren erscheinen [] Die
Nachbildung dagegen beugt sich unter der Irrationalitaumlt der Sprachen sie gesteht man koumlnne von einem
Kunstwerk der Rede kein Abbild in einer andern Sprache hervorbringen das in seinen einzelnen Teilen
den einzelnen Teilen des Urbildes genau entspraumlche sondern es bleibe bei der Verschiedenheit der
Sprachen mit welcher so viele andere Verschiedenheiten wesentlich zusammenhaumlngen nichts anders
uumlbrig als ein Nachbild auszuarbeiten ein Ganzes aus merklich von den Teilen des Urbildes
verschiedenen Teilen zusammengesezt welches dennoch in seiner Wirkung jenem Ganzen so nahe
komme als die Verschiedenheit des Materials nur immer gestatte
Aber nun der eigentliche Uumlbersetzer der diese beiden ganz getrennten Personen seinen Schriftsteller und
seinen Leser wirklich einander zufuumlhren und dem letzten ohne ihn jedoch aus dem Kreise seiner
Muttersprache heraus zu noumltigen zu einem moumlglichst richtigen und vollstaumlndigen Verstaumlndnis und Genuszlig
des ersten verhelfen will was fuumlr Wege kann er hierzu einschlagenldquo Friedrich Schleiermacher Das
Problem des Uumlbersetzens Stuttgart 1963 46-47
17
(Quine Word and Object (1960)) por outro lado e numa perspectiva contraacuteria
a uma indagaccedilatildeo hermenecircutica que se apoia na redescoberta do artigo Die
Aufgabe des Uumlbersetzers de Walter Benjamin publicado pela primeira vez em
1923 assim como nas contribuiccedilotildees de Heidegger e de Gadamer
O problema da traduccedilatildeo tem sido formulado como o da proacutepria possibilidade ou
impossibilidade de autecircnticas transferecircncias de sentido entre diferentes
liacutenguas O postulado da intraduzibilidade apoiou-se originariamente em tabus
de ordem religiosa relativamente agrave possibilidade de traduccedilatildeo para as liacutenguas
humanas do Logos divino e a partir do seacuteculo XV na convicccedilatildeo secular de
uma perda de sentido na traduccedilatildeo da poesia onde a uniatildeo do conteuacutedo e da
forma eacute tatildeo estreita que a sua dissociaccedilatildeo parece ser inadmissiacutevel (Diderot
Lettre sur les sourds et muets (1751)) Os mesmos argumentos satildeo por vezes
aduzidos relativamente agrave prosa sobretudo no domiacutenio da filosofia onde as
dificuldades de traduccedilatildeo do vocabulaacuterio filosoacutefico grego latino ou alematildeo para
outras liacutenguas criam a mesma sensaccedilatildeo de perda de sentido e de um processo
de entropia inerente ao acto de traduzir
Os problemas de traduccedilatildeo no acircmbito da filosofia adquirem contudo um
caraacutecter distinto e uma outra relevacircncia relacionando-se com a proacutepria
natureza do pensamento filosoacutefico e com a sua permanente tensatildeo entre uma
aspiraccedilatildeo agrave universalidade e o seu enraizamento numa situaccedilatildeo histoacuterico-
cultural
O paradigma matemaacutetico e cartesiano assim como o a priori kantiano visaram
dotar o pensamento de um estatuto de universalidade capaz de romper com o
particularismo cultural e o confinamento linguiacutestico Poreacutem os
desenvolvimentos da filosofia da linguagem na Alemanha12 vieram pocircr em
causa esta universalidade da razatildeo Hamann com a sua criacutetica agrave
universalidade do a priori kantiano e Herder com a sua sensibilidade agrave
12
ldquoIt is one of the achievements of Romanticism to have sharpened the sense of locale to have given
specific density to our grasp of geographical and historical particularity Herder was possessed of a sense
of place His ldquoSprachphilosophierdquo marks a translation from the inspired fantastications of Hamann to the
development of genuine comparative linguistics in the early nineteenth century [hellip] Like Leibniz Herder
had a vivid realisation of the atomic quality of human experience each culture each idiom being a
particular crystal reflecting the world in a particular way The new nationalism and vocabulary of race
provided Herder with a ready focus He called for ldquoa general physiognomy of the nations from their
languagesrdquo He was convinced of the irreductible spiritual individuality of each language and particulary
of German whose antique expressive strengths had lain dormant but were now armed for the light of a
new age and for the creation of a literature of world rankrdquo (George Steiner After Babel aspects of
Language and Translation Oxford-New York 1998 81-82)
18
diversidade de liacutenguas e de culturas abriram caminho para a monumental obra
de Humboldt Para Humboldt a linguagem eacute o verdadeiro a priori do
conhecimento e cada liacutengua transporta consigo uma particular ldquoabertura de
mundordquo13 Aplicando este princiacutepio ao grego e ao latim ele iraacute demonstrar
como cada uma destas liacutenguas determina formas proacuteprias e contrastantes de
civilizaccedilatildeo
Por outro lado as filosofias universalistas da linguagem apoiam-se na
convicccedilatildeo de que a traduccedilatildeo interlinguiacutestica que constantemente ocorre e
proporciona contiacutenuas transferecircncias de sentido contraria esta multiplicidade de
aberturas de mundo e exige que se admita a existecircncia de universais
linguiacutesticos Esta tese universalista aparece pela primeira vez formulada por
Roger Bacon rdquoGrammatica una et aedem est secundum substantiam in
omnibus linguis licet accidentaliter varieturrdquo [a gramaacutetica eacute una e a mesma em
substacircncia em todas as liacutenguas consentindo variaccedilotildees acidentais] tendo
posteriormente dado lugar a numerosos estudos estatiacutesticos e etnolinguiacutesticos
visando encontrar estes invariantes linguiacutesticos14
Actualmente estas teses universalistas foram retomadas pela gramaacutetica de
Chomsky15 que parte do princiacutepio de que as diferenccedilas existentes entre as
liacutenguas representam apenas diferenccedilas de estruturas de superfiacutecie que pouco
nos dizem da estrutura profunda subjacente postulada como universal Estas
13
bdquoDie Geisteseigentuumlmlichkeit und die Sprachgestaltung eines Volkes stehen in solcher Innigkeit der
Verschmelzung in einander daszlig wenn die eine gegeben waumlre die andre muumlszligte vollstaumlndig aus ihr
abgeleitet werden koumlnnen Denn die Intellektualitaumlt und die Sprache gestatten und befoumlrdern nur einander
gegenseitig zusagende Formen Die Sprache ist gleichsam die aumluszligerliche Erscheinung des Geistes der
Voumllker ihre Sprache ist ihr Geist und ihr Geist ihre Sprache man kann sich beide nie identisch genug
denken Wie sie in Wahrheit miteinander in einer und ebenderselben unserem Begreifen unzugaumlnglichen
Quelle zusammenkommen bleibt uns unerklaumlrlich verborgen Ohne aber uumlber die Prioritaumlt der einen oder
andren entscheiden zu wollen muumlssen wir als das reale Erklaumlrungsprinzip und als den wahren
Bestimmungsgrund der Sprachverschiedenheit die geistige Kraft der Nationen ansehen weil sie allein
lebendig selbstaumlndig vor uns steht die Sprache dagegen nur an ihr haftet bdquoW v Humboldt Uumlber die
Verschiedenheit des menschlichen Sprachbaues und ihren Einfluszlig auf die geistige Entwicklung des
Menschensgeschlechts Berlin 1936 sect7 37 14
ldquoThe empirical conviction that the human mind actually does communicate across linguistic barriers is
the pivot of universalism To the twelfth-century relativism of Pierre Heacutelie with his belief that the
disaster at Babel had generated as many kinds of irreconcilable grammar as there are languages Roger
Bacon opposed his famous axiom of unityhellipWithout a grammatica universalis there could be no hope of
genuine discourse among men nor any rational science of language The accidental historically moulded
differences between tongues are no doubt formidable But underlying these there are principles of unity
of invariance of organized form which determine the specific genius of human speech Amid immense
diversities of exterior shape all languages are ldquocut from the same patternrdquordquo (George Steiner ob Cit 98) 15
ldquoChomskian grammar is emphatically universalist (but what other theory of grammar ndash structural
stratificational tagmemic comparative ndash has not been so) No theory of mental life since that of
Descartes and the seventeenthndashcentury grammarians of Port Royal has drawn more explicitly on a
generalized and unified picture of innate human capacities[hellip]rdquo (Ibidem 103)
19
ldquoestruturas profundasrdquo seriam elementos inatos do espiacuterito humano que o
tornam capaz de executar certas sequecircncias de operaccedilotildees formais e
engendram as frases que efectivamente vemos e ouvimos Partindo destes
enunciados por meio da aacutervore de derivaccedilatildeo adequada podemos inferir a
estrutura profunda e chegar a um certo grau de elucidaccedilatildeo da sua natureza16
As provas da existecircncia desta estrutura profunda satildeo contudo provisoacuterias e
conjecturais apoiando-se no conhecimento de uma parte diminuta da
totalidade das liacutenguas actualmente activas
A traduccedilatildeo estaacute assim no centro desta controveacutersia sobre a natureza da
linguagem e deveria fornecer com a sua praacutetica de traduccedilatildeo adequada ou os
exemplos efectivos de intraduzibilidade uma demonstraccedilatildeo a favor de uma ou
de outra destas posiccedilotildees Contudo uma coisa eacute reconhecer a importacircncia do
movimento de traduccedilatildeo que constantemente ocorreu nos mais diversos
domiacutenios possibilitando o enriquecimento das liacutenguas e culturas europeias e
outra coisa diferente demonstrar teoricamente a possibilidade de autecircnticas
transferecircncias de sentido entre liacutenguas
Com efeito se as traduccedilotildees que constantemente ocorrem entre liacutenguas
diferentes tecircm como resultado um conjunto de textos dotados dum sentido
partilhaacutevel a questatildeo do estatuto e da dimensatildeo do sentido que eacute comunicado
e traduzido permanece em aberto
3 As mudanccedilas de paradigma na teoria da traduccedilatildeo
A transferecircncia de sentido entre diferentes liacutenguas era tradicionalmente
avaliada a partir dum ideal de fidelidade pensado como correspondecircncia entre
o texto de partida e o texto de chegada Essa correspondecircncia era conseguida
umas vezes seguindo um modelo literal procurando a equivalecircncia entre
unidades linguiacutesticas outras vezes procurando natildeo tanto a fidelidade agrave letra
como ao sentido
Durante seacuteculos os tradutores fundaram este paradigma em Ciacutecero e Horaacutecio e
consideravam-no definitivamente estabelecido pelos claacutessicos inspirando-se
nele para as suas traduccedilotildees filosoacuteficas e literaacuterias A traduccedilatildeo era uma questatildeo
16
Cf Noam Chomsky Syntactic Structures Berlin 195718-34
20
de restituiccedilatildeo do sentido do texto original que no caso da traduccedilatildeo literaacuteria ou
da traduccedilatildeo poeacutetica poderia ainda ser acompanhada de uma exigecircncia de
restituiccedilatildeo da forma17
Contudo esta tarefa de reconstituiccedilatildeo do sentido afigurou-se muitas vezes aos
tradutores uma tarefa que soacute imperfeitamente poderia ser realizada sendo esta
experiecircncia dos limites corrente na traduccedilatildeo das obras poeacuteticas onde o
sentido a forma esteacutetica e a liacutengua se encontram intrinsecamente ligados
Apesar deste ideal de fidelidade nem sempre poder ser alcanccedilado ele orientou
o trabalho do tradutor e estabeleceu-se como cacircnone das traduccedilotildees realizadas
fundamentando-se na ideia da autonomia do pensamento em relaccedilatildeo agrave
linguagem do inteligiacutevel em relaccedilatildeo ao signo sensiacutevel que o comunica
Susan Bassnett em Estudos de Traduccedilatildeo sublinha que as novas perspectivas
desenvolvidas pela Teoria da Traduccedilatildeo se encaminham para o abandono da
via tradicional de avaliaccedilatildeo das perdas e infidelidades ocorridas no processo
centrando-se primordialmente no como da traduccedilatildeo isto eacute na compreensatildeo do
que ocorre na mudanccedila de um sistema de signos linguiacutesticos para outro18
17
Frederik M Rener sublinha como Steiner o caraacutecter tardio da reflexatildeo teoacuterica sobre traduccedilatildeo dando
ainda grande destaque agrave inspiraccedilatildeo dos estudos de traduccedilatildeo em Ciacutecero e S Jeroacutenimo ldquoTranslation began
as a practical skill and remained such for a long period of time It was rather late in its history more
precisely in the 15th and 16th centuries that the first attempts were made to devote a treatise to abstract
questions such as the nature of translation or its subdivisions Yet when these works appeared on the
scene they did not present original ideas apt to revolutionize the field These works were rather efforts
tending to reduce to a system the ideas and customs both current at the time and developed over the
centuries In turn these ideas were taken from the statement and the practice of important translators of
the past In Western Europe Cicero and Jerome held the position of auctores pricipes in matters of
translation and they were consulted on questions of theory as well as practicerdquo (Frederik M Rener
Interpretatio Language and Translation from Cicero to Tytler Amsterdam - Atlanta GA 1989 306)
Frederick Rener chama a atenccedilatildeo para o facto de que a pluralidade de termos latinos usados para designar
a traduccedilatildeo (transferre transvertere transcribere Latine exprimere Latino sermone tradere mutare e
ainda interpretare) sugere que a traduccedilatildeo latina natildeo se restringia ao ideal de fidelidade ao sentido mas
conhecia vaacuterias modalidades de acordo com as caracterigravesticas do texto a traduzir Cigravecero traduzia ldquout
oratordquo que apontava para uma restituiccedilatildeo retoacuterica do sentido e tambeacutem ldquototidem verbisrdquo isto eacute
literalmente Mais agrave frente daremos conta de idecircntico ponto de vista de Susan Bassnett
Esta mesma tese de que por vezes a traduccedilatildeo latina eacute recriaccedilatildeo original do texto grego eacute fundamentada
por F Renner em De Officiis onde Ciacutecero admite abertamente que as ideias defendidas no tratado foram
recolhidas do estoicismo grego natildeo agrave maneira do tradutor mas do ldquoconhecedorrdquo retirando das fontes
estoacuteicas soacute a parte que lhe conveacutem e usando-a de acordo com o seu propoacutesito Ciacutecero faria assim uma
distinccedilatildeo entre a traduccedilatildeo literal e a imitaccedilatildeo criativa (imitatio) ldquoCicero is drawing a dividing line
between the normal approach used when translation (ut interpres) and this technique of creative imitation
while at the same time defining the main features of the latter In using imitatio the translator is said to
have complete freedom with the quantity (quantum) of the original material and the manner in which it is
used (quoque modo) implying a modification of context and of wording The only criterion guiding his
decision is the judgment of the artist himself (iudicio arbitrioque nostro)rdquo (Ob cit 307) 18
Susan Bassnett em Translation Studies chama a atenccedilatildeo para as dificuldades de fazer uma periodizaccedilatildeo
cronoloacutegica da histoacuteria da traduccedilatildeo Embora reconheccedila que houve diferentes concepccedilotildees sobre traduccedilatildeo
que dominaram em certos periacuteodos da histoacuteria a autora chama tambeacutem a atenccedilatildeo para a existecircncia de
21
Tambeacutem George Steiner em Depois de Babel19 mostra que a traduccedilatildeo envolve
uma interpretaccedilatildeo e uma transposiccedilatildeo que natildeo deixa o sentido intacto mas
uma transformaccedilatildeo e mesmo uma recriaccedilatildeo fortemente marcada pela liacutengua de
chegada do tradutor e sistematiza este movimento hermenecircutico em 4 tempos
de que o primeiro seria um investimento de crenccedila na consistecircncia e seriedade
do texto com que se confronta o tradutor na convicccedilatildeo de que ldquoalguma coisa
estaacute alirdquo que merece ser traduzido o segundo tempo seria um movimento de
agressatildeo invasatildeo e apropriaccedilatildeo do sentido do texto que passa pelo seu
desmembramento e dissecaccedilatildeo o terceiro tempo seria o da incorporaccedilatildeo no
campo semacircntico natal e preexistente que admite vaacuterios graus de assimilaccedilatildeo
e de recolocaccedilatildeo da aclimataccedilatildeo completa ou pelo contraacuterio de estranheza e
distanciaccedilatildeo sendo o uacuteltimo tempo o da procura do equiliacutebrio entre o texto de
partida e o de chegada
Este movimento de transposiccedilatildeo natildeo conduz a uma coacutepia que manteacutem o
sentido intacto mas a um duplo que sofre uma inevitaacutevel transfiguraccedilatildeo de
sentido imposta pelos constrangimentos gramaticais e pela mudanccedila de
contexto cultural Esta alteraccedilatildeo de sentido pode ser objecto de avaliaccedilatildeo o
que ele faz detalhadamente a propoacutesito das diferentes traduccedilotildees da poesia de
Shakespeare e de Homero mas tambeacutem de traduccedilotildees de alguns textos de
prosa no domiacutenio da ficccedilatildeo literaacuteria e da filosofia
O novo ponto de vista estabelecido segundo Susan Bassnett a partir dos
novos estudos de traduccedilatildeo dos anos noventa rejeita pois o antigo ideal de
ldquofidelidaderdquo para se centrar na investigaccedilatildeo do que acontece quando um texto
eacute transferido da cultura de partida para a cultura de chegada e estaacute associado
diferentes linhas de abordagem da traduccedilatildeo que natildeo coincidem com um contexto temporal determinado eacute
o caso da opccedilatildeo pela ldquotraduccedilatildeo literalrdquo ou pela ldquotraduccedilatildeo segundo o sentidordquo distinccedilatildeo jaacute estabelecida por
Ciacutecero (Susan Bassnett Translation Studies London 1980 42)
No entanto a constituiccedilatildeo de uma aacuterea disciplinar dos Estudos de Traduccedilatildeo implica segundo a autora
uma mudanccedila de perspectiva retirando a poleacutemica do campo normativo e colocando a ecircnfase na
compreensatildeo do que realmente ocorre em diferentes tipos de traduccedilatildeo ldquoThe translator who makes no
attempt to understand the how behind the translation process is like the driver of a Rolls who has no idea
what makes the car move Likewise the mechanic who spends a lifetime taking engines apart but never
goes out for a drive in the country is a fitting image for the dry academician who examines the how at the
expense of what isrdquo (Ob cit 76) 19
George Steiner leva a cabo uma periodizaccedilatildeo cronoloacutegica da histoacuteria da traduccedilatildeo em 4 periacuteodos o
primeiro estende-se desde Ciacutecero agrave publicaccedilatildeo em 1791 da obra de Alexander Tytler Essay on the
principles of translation o segundo periacuteodo estende-se ateacute agrave publicaccedilatildeo em 1946 de Sous l‟invocation
de Saint Jerocircme de Larbaud o terceiro comeccedila com a publicaccedilatildeo dos primeiros escritos sobre traduccedilatildeo
automaacutetica nos anos quarenta do seacuteculo XX e o uacuteltimo tem origem nos anos sessenta e caracteriza-se por
ldquoum regresso agrave indagaccedilatildeo hermenecircutica quase metafigravesica sobre a traduccedilatildeo e a interpretaccedilatildeordquo largamente
influenciado pela descoberta do manuscrito de Walter Benjamin ldquoDie Aufgabe des Uumlbersetzersrdquo assim
como por Heidegger e Gadamer (Idem After Babel 248-252)
22
a uma nova importacircncia conferida agrave traduccedilatildeo e ao tradutor este jaacute natildeo estaacute
confinado a um papel subserviente mas eacute-lhe conferido um papel criador e
potencialmente subversivo Os novos estudos de traduccedilatildeo comeccedilaram a
explorar as implicaccedilotildees da traduccedilatildeo num quadro cultural e histoacuterico mais
alargado e a ver no tradutor um mediador entre liacutenguas e culturas diferentes e
no acto de traduccedilatildeo uma tarefa arriscada implicando a manipulaccedilatildeo do sentido
e a criatividade20
Este novo ponto de vista sobre a traduccedilatildeo e o papel do tradutor tem-se
traduzido numa crescente aproximaccedilatildeo entre literatura traduzida e literatura
original reconhecendo-se no interior da Literatura Comparada o papel da
primeira na configuraccedilatildeo da histoacuteria das literaturas nacionais O novo estatuto
hermenecircutico reconhecido ao processo de reescrita da traduccedilatildeo levou
progressivamente ao reconhecimento da traduccedilatildeo como o lugar privilegiado
para a reflexatildeo sobre as vaacuterias vertentes do processo literaacuterio
Na literatura traduzida reconhece-se a produccedilatildeo de efeitos nas liacutenguas e nas
literaturas da liacutengua de chegada e por conseguinte a histoacuteria da traduccedilatildeo
tende a incorporar-se na histoacuteria da literatura como uma das suas vertentes
essenciais Joatildeo Barrento em O Poccedilo de Babel sublinha que as traduccedilotildees em
sentido estrito podem ser pensadas como o efeito da proacutepria obra a ser
traduzida enquanto seu efeito especular mas elas arrastam esse efeito
especular para o domiacutenio da liacutengua de chegada e para o corpo vivo da
literatura produzida nessa liacutengua ldquoO espelho gera assim necessariamente um
duplo do texto-primeiro O duplo ndash sabemo-lo por ETA Hoffmann
Maupassant Dostoiewsky Oscar Wilde ou Freud ndash eacute uma estrateacutegia de
sobrevivecircncia do Eu (aqui do texto original como tambeacutem entende Walter
Benjamin) um alter- ego que desmente (embora contraditoriamente porque a
traduccedilatildeo eacute sempre renascimento e morte ndash apagamento do original ndash do Eu
20
Susan Bassnett salienta que este novo interesse pela traduccedilatildeo modificaraacute a nossa compreensatildeo das
ligravenguas e das culturas e levaraacute a uma revisatildeo da histoacuteria das literaturas ldquoResearch in Translation Studies
has barely begun There are dozens of books to be written doctoral theses to be pursued theoretical texts
to be discovered and translated literary history is waiting to be rewritten as the new knowledge filters
through Who would have believed back in the late 1960s that feminism would have transformed the
literary canon forced a revaluation of the process of canonization changed our knowledge about the past
and radically altered our perceptions of language and culture today Yet such changes have happened
and an alternative gender-based perspective has now decisively entered literary study I suggest that we
are witnessing a similar major shift in our perception of cultural history with the work that is taking place
in Translation Studies and the fact that so much work is developing outside the Euro-American tradition
is an indication of the speed and extent of that shiftrdquo (Idem Translation Studies Preface to the revised
edition XVIII-XIX)
23
pelo Outro do Eu no Outro) a impossibilidade de traduccedilatildeo e traz para (tra-duz)
ou introduz na liacutengua de chegada (a liacutengua portuguesa) algo da outra liacutengua e
literaturacultura ndash melhor dizendo transporta idiossincrasias literaacuterias e
culturais alheias in medio linguae atraveacutes da proacutepria liacutengua marcas que de
acordo com factores e vicissitudes histoacuterico-literaacuterios e socioloacutegicos diversos
podem passar em maior ou menor grau para o corpo vivo da liacutengua e da
literatura de chegadardquo21
O reconhecimento das alteraccedilotildees e reconfiguraccedilotildees inerentes agrave traduccedilatildeo e
portanto agrave sua incorporaccedilatildeo nas liacutenguas de chegada levou muitos autores a
substituir a metaacutefora do espelho pela do efeito refractaacuterio Este efeito natildeo pode
ser considerado como uma recepccedilatildeo passiva de um texto traduzido mas um
processo activo de assimilaccedilatildeo que implica o ldquodevorarrdquo e o refazer o texto
original sem eliminar ou negar a sua alteridade assimilaccedilatildeo de que resultaria
uma multiplicidade de traduccedilotildees que satildeo elas mesmas variaccedilotildees assimeacutetricas
implicando flutuaccedilotildees mais ou menos importantes de sentido
O reconhecimento deste efeito de refracccedilatildeo provocado pelas muacuteltiplas
traduccedilotildees de um texto em diferentes liacutenguas torna obsoletas as categorias de
recepccedilatildeo passiva e recepccedilatildeo activa em que tradicionalmente se categoriza a
recepccedilatildeo de um autor estrangeiro Efectivamente a simples leitura que a
traduccedilatildeo possibilita ampliar e multiplicar eacute sempre a leitura dum texto recriado
e duma variaccedilatildeo que iraacute repercutir-se na criaccedilatildeo de obras originais A traduccedilatildeo
e a criaccedilatildeo de obra original natildeo estatildeo separadas por um abismo intransponiacutevel
mas haacute entre elas uma soluccedilatildeo de continuidade assinalada por diversos graus
de assimilaccedilatildeo e incorporaccedilatildeo o que pode legitimar uma extensatildeo do conceito
de traduccedilatildeo ao conjunto das formas diferentes de recepccedilatildeo
Gera-se assim uma tendecircncia para a ldquodessacralizaccedilatildeordquo da obra original que
tende a ser vista ela mesma como resultado de um complexo processo de
traduccedilatildeo George Steiner em Depois de Babel defende a tese de que toda a
histoacuteria da arte como tambeacutem da filosofia consiste mesmo nos seus
momentos criadores mais originais numa retomaccedilatildeo de um nuacutemero limitado de
arqueacutetipos ldquoOs temas de uma boa parte da nossa filosofia arte e literatura satildeo
uma sequecircncia de variaccedilotildees e os gestos por meio dos quais articulamos o
sentido e os valores fundamentais revelam-se quando os examinamos de
21
Joatildeo Barrento O Poccedilo de Babel - para uma poeacutetica da traduccedilatildeo literaacuteria Lisboa 2002 80
24
perto em nuacutemero limitado O ldquoconjunto organizadordquo inicial engendrou uma seacuterie
incomensuraacutevel de variantes e figuras locais (as nossas ldquotopologiasrdquo) mas
parece conter em si proacuteprio natildeo mais que um nuacutemero restrito de unidadesrdquo 22
Esta consideraccedilatildeo da obra original como ldquotraduccedilatildeordquo ou retomaccedilatildeo e
actualizaccedilatildeo de arqueacutetipos remonta na realidade segundo Steiner a antigas
formulaccedilotildees da teoria da traduccedilatildeo a teoria da traduccedilatildeo desde o seacuteculo XVII
define quase sempre trecircs categorias a primeira corresponde agrave traduccedilatildeo
estritamente literal termo a termo a segunda corresponde agrave translaccedilatildeo por
meio de um enunciado fiel ao sentido mas autoacutenomo a terceira categoria eacute a
da imitatio que implica a recriaccedilatildeo variaccedilatildeo e interpretaccedilatildeo paralela podendo
esta categoria incluir por exemplo a relaccedilatildeo de James Joyce com Homero Este
esquema triaacutedico cujas linhas de demarcaccedilatildeo satildeo fluidas autoriza a leitura e
interpretaccedilatildeo de muitas das grandes obras originais como ldquotraduccedilatildeordquo
Assim podemos verificar que antigas categorizaccedilotildees instituiacutedas haacute muito
pelos teoacutericos da traduccedilatildeo hoje recuperadas e revalorizadas pelas modernas
contribuiccedilotildees no domiacutenio da Literatura Comparada e da Filosofia da
Linguagem vieram mostrar que natildeo haacute um fosso intransponiacutevel entre a criaccedilatildeo
de obras originais e a influecircncia de autores estrangeiros e mais radicalmente
mostra que a originalidade absoluta eacute um mito que tem ser substituiacutedo pela
ideia de intertextualidade
Assim entre traduccedilatildeo e tradiccedilatildeo haacute um nexo que os modernos estudos de
traduccedilatildeo vieram pocircr a claro a totalidade dos textos que constituem a tradiccedilatildeo
filosoacutefica e literaacuteria europeia satildeo simultaneamente originais e traduccedilotildees de
outros textos como sublinha Octaacutevio Paz em Traduccioacuten Literatura y
Literalidad ldquoQualquer texto eacute uacutenico e eacute ao mesmo tempo a traduccedilatildeo de outro
texto Nenhum texto eacute original porque a proacutepria linguagem na sua essecircncia jaacute
eacute uma traduccedilatildeo primeiramente do mundo natildeo-verbal e em segundo lugar
porque cada signo e cada frase eacute a traduccedilatildeo de outro signo e de outra frase
22
ldquoThe themes of which so much of our philosophy art literature are a sequence of variations the
gestures through which we articulate fundamental meanings and values are if we consider them closely
quite restricted The initial ldquosetrdquo has generated an incommensurable series of local variants and figures
(our ldquotopologiesrdquo) but in itself it seems to have contained only a limited number of unitsrdquo (George
Steiner After Babel 486)
25
Este argumento pode poreacutem ser revertido sem perder nenhuma da sua
validade todos os textos satildeo originais porque todas as traduccedilotildees satildeo
diferentes Ateacute certo ponto todas as traduccedilotildees satildeo uma invenccedilatildeo e enquanto
tal uacutenicasrdquo23
A relaccedilatildeo com a tradiccedilatildeo filosoacutefica e literaacuteria tornou-se um problema teoacuterico
discutido nas teorias de traduccedilatildeo chamadas poacutes-coloniais para as quais se
tornou pertinente a reflexatildeo sobre a relaccedilatildeo das culturas dominadas com as
culturas dominantes Essa assimetria cultural levava a ver a traduccedilatildeo como
coacutepia inferior ao texto original e na praacutetica da traduccedilatildeo um processo de
moldagem das culturas dominadas por uma tradiccedilatildeo literaacuteria que lhe era alheia
Particularmente na Ameacuterica Latina cujos povos levam a cabo uma busca da
sua identidade cultural desenvolveu-se uma nova visatildeo chamada poacutes-colonial
desta relaccedilatildeo entre traduccedilatildeo e texto original que os coloca em peacute de igualdade
e tende a enfatizar a traduccedilatildeo como apropriaccedilatildeo original e recriaccedilatildeo de uma
tradiccedilatildeo
A mudanccedila de paradigma dos estudos de traduccedilatildeo teve vaacuterias fontes uma das
quais eacute sem duacutevida a praacutetica viva da traduccedilatildeo e o novo contexto da
globalizaccedilatildeo e da multiplicidade dos contactos inter-culturais em que ela eacute
levada a cabo Sob o impacto de tais mudanccedilas veio-se a compreender a
complexidade desse lugar rdquointerrdquo em que ela eacute levada a cabo e que tende a ser
visto mais como um espaccedilo de mediaccedilatildeo e negociaccedilatildeo entre liacutenguas e culturas
diferentes do que como um lugar neutro atraveacutes do qual se processam
transferecircncias de sentido passiacuteveis de serem avaliadas por um ideal de
fidelidade agora julgado ilusoacuterio e mistificador do que realmente ocorre nessas
transferecircncias
23
ldquoCada texto es uacutenico y simultaacuteneamente es la traduccioacuten de otro texto Ninguacuten texto es enteramente
original porque el lenguaje mismo en su esencia es ya una traduccioacuten primero del mundo no-verbal y
despueacutes porque cada signo y cada frase es la traduccioacuten de otro signo e de otra frase Pero ese
razonamiento puede invertirse sin perder validez todos los textos son originales porque cada traduccioacuten
es distinta Cada traduccioacuten es hasta cierto punto una invencioacuten y asigrave constituye un texto uacutenicordquo Octaacutevio
Paz Traduccioacuten Literatura y Literalidad Barcelona 199013
26
4 A traduccedilatildeo e a sua conexatildeo com a temporalidade
No entanto do ponto de vista histoacuterico eacute necessaacuterio ter em conta que esta
mudanccedila de paradigma que ocorre nos estudos de traduccedilatildeo a partir dos anos
noventa foi na realidade antecipada pela filosofia Jaacute em Phaumlnomenologische
Interpretationen zu Aristoacuteteles do semestre de Inverno de 1921192224
Heidegger se confronta com o problema da traduccedilatildeo filosoacutefica e do modo como
ela se interliga com a interpretaccedilatildeo e esta temaacutetica eacute retomada em todos os
ensaios sobre filosofia grega em estreita articulaccedilatildeo com as suas proacuteprias
traduccedilotildees de muacuteltiplos textos gregos
Significativamente foi tambeacutem a relevante e enigmaacutetica experiecircncia de
traduccedilatildeo dos claacutessicos levada a cabo por Houmllderlin25 expressa na sua proacutepria
poesia nas cartas e nas traduccedilotildees ldquoem sentido estritordquo que suscitou a reflexatildeo
de Heidegger sobre a temaacutetica da traduccedilatildeo e constituiu uma das fontes da sua
ontofenomenologia da linguagem
As distorccedilotildees de sentido provocadas pelas operaccedilotildees hermenecircuticas de
traduccedilatildeo e interpretaccedilatildeo marcaram segundo Heidegger as traduccedilotildees latinas
dos filoacutesofos gregos26 com importantes consequecircncias negativas para o
desenrolar da histoacuteria do ocidente enquanto o modelo de traduccedilatildeo autecircntica se
encontra prefigurado em Houmllderlin
24
Cf Martin Heidegger EpF (GA 61) Nesta obra Heidegger analisa e explora as implicaccedilotildees do
enraizamento da interpretaccedilatildeo filosoacutefica na vida faacutectica do Dasein relendo agrave luz desta tese a leitura
medieval e moderna da obra de Aristoacuteteles O conceito de ldquosituaccedilatildeo hermenecircuticardquo que aigrave eacute antecipado
seraacute exposto em AhS (GA 62) 25
Cf George Steiner em After Babel O autor afirma a grande importacircncia das traduccedilotildees (fragmentaacuterias e
muitas vezes feitas para uso privado) de Houmllderlin dos autores claacutessicos como Homero Piacutendaro
Soacutefocles Euriacutepedes Virgiacutelio e Horaacutecio e defende que elas representam um acto hermenecircutico de
violecircncia extrema forccedilando as barreiras linguiacutesticas Steiner sublinha que usando ldquouma literalidade
paradoxalrdquo Houmllderlin construigravea as suas traduccedilotildees numa zona intermediaacuteria entre o antigo e o moderno o
grego e o alematildeo Do mesmo modo a sua primeira poesia representa uma tentativa de renovar o alematildeo
atraveacutes do regresso agrave forccedila da sua fonte originaacuteria reinterpretando o significado dos termos de acordo
com a sua suposta etimologia ldquoHis etymologizing is part of an anti-Enlightenment tactic of linguistic
nationalism and numinous historicism Herder and Klopstock were direct influential forerunners But
Houmllderlin pressed further He was trying to move upstream not only to the historical springs of German
but to the primal energies of human discourserdquo (Ob cit 341) 26
Cf Susan Bassnett em Translation Studies Sobre o estatuto da traduccedilatildeo entre os romanos e a
importacircncia e qualidade das traduccedilotildees latinas a autora demonstra que as posiccedilotildees de Horaacutecio e Ciacutecero
sobre traduccedilatildeo tiveram grande importacircncia para geraccedilotildees de futuros tradutores e ainda que as suas
traduccedilotildees satildeo recriaccedilatildeo e natildeo uma imitaccedilatildeo servil dos textos gregos Segundo Susan Bassnett estes
tradutores latinos tinham como objectivo o enriquecimento da liacutengua romana colocando a ecircnfase nos
criteacuterios esteacuteticos da liacutengua de chegada e natildeo nas noccedilotildees mais riacutegidas de fidelidade ldquoThe art of the
translator for Horace and Cicero then consisted in judicious interpretation of the SL text so as to
produce a TL version based on the principle non verbum de verbo sed sensum exprimere de sensu (of
expressing not word for word but sense for sense) and his responsibility was to the TL readersrdquo (Obcit
44)
27
No entanto a contribuiccedilatildeo mais relevante de Heidegger natildeo seraacute tanto esta
reavaliaccedilatildeo das traduccedilotildees que constituem o cerne da tradiccedilatildeo filosoacutefica mas
sim o ter desconstruiacutedo o acircmbito teoacuterico e metafiacutesico do cacircnone ldquofidelidaderdquo
que vigorava nas teorias dominantes de traduccedilatildeo
Em Heidegger a traduccedilatildeo torna-se ela mesma um problema metafiacutesico que
deve ser pensado em estreita articulaccedilatildeo com a questatildeo do ser e da
linguagem A ligaccedilatildeo indissociaacutevel entre pensamento e linguagem
estabelecida em Sein und Zeit choca frontalmente com a tese da separaccedilatildeo
entre sentido inteligiacutevel e signo sensiacutevel que suportava o paradigma claacutessico de
traduccedilatildeo
Heidegger estabeleceu em Sein und Zeit a historicidade como uma dimensatildeo
intriacutenseca da existecircncia humana o ser do homem tem a sua especificidade
enquanto eacute existecircncia ex-staacutetica podendo em cada instante assumir o
passado projectando-o no porvir em direcccedilatildeo ao futuro Assim a
especificidade ontoloacutegica do ser humano reside no facto de ele natildeo ser isto ou
aquilo mas sim fazer-se a si mesmo assumindo-se como possibilidade ou
projecto A temporalidade eacute o proacuteprio modo de ser do homem enquanto
gestaccedilatildeo de si mesmo ou existecircncia
A linguagem enquanto fala (Rede)27 eacute exerciacutecio de presentificaccedilatildeo em que a
articulaccedilatildeo dos trecircs ecircxtases temporais (passado presente e futuro)
fundamenta a constituiccedilatildeo dum horizonte preacutevio de sentido no qual o mundo
pode aparecer como tal
Heidegger iraacute mais tarde em as Liccedilotildees de Loacutegica do semestre de Veratildeo de
1934 retomar a questatildeo da linguagem enriquecendo a perspectiva
transcendental de Ser e Tempo com a perspectiva histoacuterica e temporal Nessa
obra a linguagem natildeo eacute a fala (Rede) mas ela apresenta-se facticamente
enquanto liacutengua (Sprache)28 isto eacute enquanto fala histoacuterica em que um povo
concreto exprime a imediata compreensatildeo do mundo
27
ldquoDie Rede ist die bedeutungsmaumlβige Gliederung der befindlichen Verstaumlndlichkeit des In-der-Welt-
seins Als konstitutive Momente gehoumlren ihr zu das Woruumlber der Rede (das Beredete) das Geredete als
solches die Mitteilung und die Bekundung Das sind keine Eigenschaften die sich nur empirisch an der
Sprache aufraffen lassen sondern in der Seinsverfassung des Daseins verwurzelte existenziale
Charaktere die so etwas wie Sprache ontologisch erst ermoumlglichenrdquo SuZ GA 2 sect34 162 28
ldquoDie Sprache ist das Walten der weltbildenden und bewahrenden Mitte des geschichtlichen Daseins des
Volkesrdquo LWS GA 38 169 (Cf traduccedilatildeo portuguesa Martin Heidegger Loacutegica A pergunta pela
28
Aiacute Heidegger expotildee uma concepccedilatildeo da histoacuteria fundando-a na temporalidade
intriacutenseca da existecircncia humana a histoacuteria eacute o ir fazendo-se a si mesma da
existecircncia na unidade dos trecircs ecircxtases temporais passado presente e futuro
sendo esta auto-gestaccedilatildeo temporal o modo do acontecer humano
(Geschehen) Nem todo o acontecer eacute poreacutem histoacuterico - histoacuterico eacute apenas
aquele acontecer em que acontece a renovada decisatildeo (Entscheidung29) de um
povo por si mesmo ou por conservar a sua determinaccedilatildeo
Nesta concepccedilatildeo da histoacuteria como temporalidade imanente ao movimento de
auto-gestaccedilatildeo dum povo a partir de si mesmo a importacircncia do passado eacute
totalmente reavaliada O passado natildeo eacute nunca o que estaacute a passar nem a
presenccedila morta do que jaacute passou mas o que desde o antes permanece e eacute
trazido para o presente O acontecer propriamente histoacuterico eacute soacute e apenas
aquele acontecer que o homem toma a cargo como seu e pelo qual se decide
como sendo a sua heranccedila o que faz da histoacuteria um movimento de
actualizaccedilatildeo permanente do passado o retomaacute-lo de forma criativa e
projectiva convertendo-o em tradiccedilatildeo (Uumlberlieferung 30) viva
Ora esta retomaccedilatildeo criadora do passado que o converte em tradiccedilatildeo viva eacute
sempre loacutegico-linguiacutestica daacute-se na linguagem que eacute sempre a liacutengua dum
povo histoacuterico determinado A linguagem eacute assim notificaccedilatildeo (Kunde31) ou
notiacutecia da histoacuteria ela eacute o centro da proacutepria existecircncia histoacuterica de um povo que
cria e conserva mundo e testemunha o modo como numa determinada eacutepoca
histoacuterica um povo assume a abertura ao ser (Offenbarkeit)
Deste modo a hermenecircutica heideggeriana que toma como ponto de partida o
ser do homem como temporalidade e a verdade como desvelamento histoacuterico-
temporal permite ver esse espaccedilo ldquointer-cultural e inter-linguiacutesticordquo em que
trabalham os tradutores como inter-temporalidade As diversas liacutenguas
histoacutericas transportam consigo horizontes de sentido natildeo apenas distintos mas
essecircncia da linguagem coord cientiacutefica de Irene Borges-Duarte trad de Maria Adelaide Pacheco e
Helga Hook Quadrado Gulbenkian 2008) 29
bdquoDas Wesen der Entscheidung haben wir in der Entschlossenheit gesehen Die Entschlossenheit aber ist
kein einmaliger Akt sondern ein Geschehen kraft dessen wir in das Geschehen in dem wir stehen
eingefuumlgt werdenrdquo Ibidem 97 30
bdquoGewesenheit darf aber nicht als Vergangenheit begriffen werden Das von fruumlher her Wesende hat
seine Eigentuumlmliches darin daβ es uumlber jedes Heutige und Jetzige immer schon hinweggegriffen hat Es
west als Uumlberlieferungldquo Ibidem 117 31
bdquoUnter Geschichtskunde verstehen wir die jeweilige Art und Weise der Offenbarkeit in der ein Zeitalter
in der Geschichte steht so zwar daβ diese Offenbarkeit das geschichtliche Sein des Zeitalters mit traumlgt
und mit leitetldquo Ibidem 93
29
incomensuraacuteveis fazendo com que toda a traduccedilatildeo seja uma complexa
operaccedilatildeo hermenecircutica de confrontaccedilatildeo de distintos horizontes histoacuterico-
linguiacutesticos onde se jogam importantes mutaccedilotildees de sentido
De acordo com este novo paradigma o tradutor eacute tambeacutem um viajante algueacutem
que viaja de uma fonte para outra sendo relativamente secundaacuterio saber se
essa viagem decorre entre diferentes liacutenguas ou no interior da mesma liacutengua
pois a apropriaccedilatildeo dum texto do passado e a sua transposiccedilatildeo para o presente
eacute essencialmente uma operaccedilatildeo de traduccedilatildeo ou seja de transposiccedilatildeo para um
novo horizonte histoacuterico-temporal implicando tambeacutem idecircntica apropriaccedilatildeo
expropriadora
Gadamer iraacute retomar esta temaacutetica heideggeriana sublinhando ainda mais
fortemente que toda a traduccedilatildeo atraiccediloa o texto original Retomando a noccedilatildeo
de ciacuterculo hermenecircutico32 estabelecida por Heidegger em Sein und Zeit e
explorando as suas implicaccedilotildees teoacutericas Gadamer mostra que qualquer texto
soacute pode ser compreendido a partir duma antecipaccedilatildeo ou duma expectativa de
sentido que vai em seguida ser corrigida e revista no confronto com ldquoa coisa
mesmardquo
Gadamer leva a cabo a reabilitaccedilatildeo da tradiccedilatildeo e preconceitos33 como
condiccedilotildees preacutevias de toda a interpretaccedilatildeo reconduzindo a pretensatildeo da
Aufklaumlrung de uma razatildeo destituiacuteda de preconceitos a uma utopia
absolutamente inviaacutevel A autonomia absoluta da razatildeo eacute impossiacutevel pois a
razatildeo necessita sempre da garantia externa duma ldquoautoridaderdquo seja ela a do
especialista a de algueacutem que se situa no topo de uma hierarquia ou a de uma
tradiccedilatildeo
O acto de interpretar natildeo pode pois ser livre de preconceitos podendo apenas
interessar a uma teoria hermenecircutica destrinccedilar entre os preconceitos positivos
e fecundos e os prejuiacutezos negativos que encobrem e dificultam o acesso ldquoagraves
coisas mesmasrdquo destrinccedila essa que o proacuteprio processo de compreensatildeo vai
produzindo espontaneamente O inteacuterprete natildeo eacute o que aborda directamente o
32
bdquoDer ldquoZirkelrdquo im Verstehen gehoumlrt zur Struktur des Sinnes welches Phaumlnomen in der existenzialen
Verfassung des Daseins im auslegenden Verstehen verwurzelt ist Seiendes dem es als In-der-Welt-sein
um sein Sein selbst geht hat eine ontologische Zirkelstrukturldquo SuZ GA 2 sect32 153 33
Para Gadamer a autonomia das ciecircncias humanas deve ser fundada na tradiccedilatildeo humanista e no conceito
de Bildung que ela elaborou e natildeo no paradigma metodoloacutegico a que Diltey as subordina cf Jean
Grondin L‟Universaliteacute de l‟ hermeacuteneutique Paris 1993 162-163
30
texto livre de opiniotildees preacutevias mas o que toma consciecircncia dessa opiniatildeo
preacutevia e a potildee expressamente agrave prova procurando a sua legitimaccedilatildeo no texto
que interpreta
A situaccedilatildeo hermenecircutica eacute esse aiacute que natildeo engloba apenas os preconceitos
individuais mas o conjunto de juiacutezos que testemunham o presente histoacuterico e
dele emanam e que delimitam os temas susceptiacuteveis de serem investigados e
as questotildees que podem ocupar o centro da reflexatildeo
No entanto o inteacuterprete se tem uma consciecircncia hermenecircutica eacute tambeacutem
aquele que compreende a alteridade do texto isto eacute entende e aceita que o
texto que interpreta se situa num outro contexto histoacuterico-linguiacutestico que o seu
autor e o acto da sua criaccedilatildeo se inserem num outro horizonte
Esta consciecircncia da alteridade eacute um momento imprescindiacutevel da consciecircncia
hermenecircutica que tem assim que ser tambeacutem uma consciecircncia histoacuterica
sensiacutevel agrave importacircncia da temporalidade e ao facto do sentido de um texto se
poder diversificar e amplificar no decurso de diferentes eacutepocas histoacutericas e de
diferentes geraccedilotildees de leitores A distacircncia histoacuterica eacute assim uma vantagem
hermenecircutica porque representa a possibilidade de o inteacuterprete se confrontar
com uma multiplicidade de leituras dum mesmo texto e as deixar ressoar em si
como uma multiplicidade de vozes A tradiccedilatildeo eacute para Gadamer precisamente
essa multiplicidade que como afirmava Heidegger em Houmllderlin e a Essecircncia
da Poesia ldquoeacute capaz de divergir a partir do mesmordquo
A interpretaccedilatildeo implica assim este ouvir da tradiccedilatildeo como uma multiplicidade
que transporta em si o eco do passado e simultaneamente o escutar essa
multiplicidade de acordo com um horizonte de sentido que eacute sempre imposto
pela situaccedilatildeo presente ldquoNas ciecircncias do espiacuterito eacute ao contraacuterio o presente e
os seus interesses proacuteprios que em cada eacutepoca datildeo uma motivaccedilatildeo particular
ao interesse da investigaccedilatildeo votada agrave tradiccedilatildeordquo34
A reabilitaccedilatildeo da tradiccedilatildeo e do preconceito em Gadamer tem que ser
compreendida em conexatildeo com a noccedilatildeo de histoacuteria efectual
(Wirkungsgeschichte) isto eacute com a noccedilatildeo de uma tradiccedilatildeo que se transmite
efectivamente queiramos noacutes ou natildeo e sob cujo impeacuterio nos situamos sempre
34
bdquoBei den Geisteswissenschaften ist vielmehr das Forschungsinteresse das sich der Uumlberlieferung
zuwedet durch die jeweilige Gegenwart und ihre Interessen in besonderer Weise motiviertldquo WuM GW
1 289
31
qualquer que seja o niacutevel de reflexatildeo em que nos situemos A tradiccedilatildeo opera
em noacutes como uma estrutura preacutevia fazendo de qualquer acto hermenecircutico
uma projecccedilatildeo desse preacutevio isto eacute a actualizaccedilatildeo e desenvolvimento de um
projecto que estaacute sempre jaacute previamente lanccedilado O ciacuterculo hermenecircutico natildeo
eacute assim nada de subjectivo mas um jogo necessaacuterio onde o texto e o inteacuterprete
se movem um agrave volta do outro ldquoO ciacuterculo natildeo eacute de natureza formal ele natildeo eacute
nem subjectivo nem objectivo pelo contraacuterio ele natildeo faz senatildeo apresentar o
compreender como o jogo onde passam um no outro o movimento da tradiccedilatildeo
e o do inteacuterprete A antecipaccedilatildeo de sentido que guia a nossa compreensatildeo de
um texto natildeo eacute um acto da subjectividade mas determina-se a partir da
comunidade (Gemeinsamkeit) que nos liga agrave tradiccedilatildeordquo35
Podemos no entanto perguntar se este conceito de ldquocircularidade
hermenecircuticardquo natildeo poderaacute legitimar a deturpaccedilatildeo da descodificaccedilatildeo de
mensagens principalmente quando elas satildeo emanadas de contextos
culturalmente ou cronologicamente muito distantes Com efeito a
ldquoconsistecircnciardquo da fixaccedilatildeo do sentido do texto que eacute o proacuteprio moacutebil da escrita
poderia dissolver-se no jogo das interpretaccedilotildees dando lugar a uma flutuaccedilatildeo
irrestrita do sentido
O conceito de ldquoidealidade do textordquo proposto por Ricœur vem chamar a
atenccedilatildeo para o facto de o texto impor um modo de ser ou um projecto de
mundo que desvela diante de si mesmo A apropriaccedilatildeo pelo inteacuterprete nada
teria a ver com a relaccedilatildeo entre duas subjectividades devendo antes ser
compreendida como aquilo a que Hans-Georg Gadamer chama a fusatildeo de
horizontes (Horizonntsverschmeltzung) o horizonte do mundo do leitor funde-
se com o horizonte do mundo do escritor A idealidade do texto seria assim o
viacutenculo mediador neste processo de fusatildeo de horizontes
Esta ldquoidealidade do textordquo que exige do leitor-inteacuterprete que pense levado pela
flecha do sentido do texto eacute no entanto um momento dum processo mais
vasto do alargamento das suas proacuteprias possibilidades de projecccedilatildeo Soacute a
interpretaccedilatildeo que segue a flecha do sentido do texto e que tenta pensar em
35
bdquoDer Zirkel ist also nicht formaler Natur Er ist weder subjektiv noch objektiv sondern beschreibt das
Verstehen als das Ineinanderspiel der Bewegung der Uumlberlieferung und der Bewegung des Interpreten
Die Antizipation von Sinn die unser Verstaumlndnis eines Textes leitet ist nicht eine Handlung der
Subjektivitaumlt sondern bestimmt sich aus der Gemeinsamkeit die uns mit der Uumlberlieferung verbindetldquo
Ibidem 298
32
conformidade com ela daacute origem a uma verdadeira auto-compreensatildeo Ricœur
opotildee o ldquosi mesmordquo36 que resulta da compreensatildeo do texto ao ego que
pretende precedecirc-lo e afirma que eacute o texto que com o seu poder universal de
desvelamento de um mundo fornece um ldquosi mesmordquo ao ego Em jogo natildeo estaacute
pois a restituiccedilatildeo do sentido do texto como algo de intemporal e imoacutevel mas
um processo de apropriaccedilatildeo vivo que o integra na compreensatildeo de ldquosi
mesmordquo que finalmente eacute toda a interpretaccedilatildeo e por conseguinte toda a
traduccedilatildeo
Outra importante fonte de mudanccedila nos paradigmas que orientavam a
compreensatildeo da traduccedilatildeo foi o texto de Walter Benjamin Die Aufgabe des
Uumlbersetzers escrito em 1921 como introduccedilatildeo agrave sua traduccedilatildeo dos Tableaux
Parisiens de Baudelaire Aiacute Walter Benjamin repensa a tarefa do tradutor a
partir da multiplicidade das liacutenguas considerando que cada liacutengua actual de per
si impotildee uma restriccedilatildeo e um estreitamento do sentido de que as grandes obras
aspiram a libertar-se A traduzibilidade (Uumlbersetzbarkeit) eacute uma caracteriacutestica
que pertence a certas obras que contecircm em si mesmas a matriz a partir da
qual se desenvolvem as suas muacuteltiplas traduccedilotildees como figuras particulares de
um desenvolvimento orgacircnico
Assim existe uma relaccedilatildeo estreita entre traduccedilatildeo e original a traduccedilatildeo na
verdade sai do original e dela depende mas por outro lado tambeacutem o original
depende da traduccedilatildeo para a sua proacutepria sobrevivecircncia como obra vigente nas
geraccedilotildees futuras Esta sobrevivecircncia natildeo significa apenas que a traduccedilatildeo
comunica a obra a novos puacuteblicos leitores mas sim que na traduccedilatildeo a vida do
original alcanccedila um desenvolvimento renovado mais tardio e mais amplo
A relaccedilatildeo entre original e traduccedilatildeo eacute pensada pois em termos que potildeem em
causa a ideia ldquocorrespondecircnciardquo recorrente nos estudos de traduccedilatildeo entre
ambos natildeo haacute necessariamente uma relaccedilatildeo de semelhanccedila mas uma relaccedilatildeo
36
Ricœur defende que a interpretaccedilatildeo implica a relaccedilatildeo entre desvelamento e a apropriaccedilatildeo aquilo de que
importa apropriarmo-nos eacute o sentido do texto concebido de modo dinacircmico isto eacute o poder de desvelar
um mundo que constitui a referecircncia do texto O sujeito natildeo projecta um a priori sobre o texto pensando
descobri-lo no que lecirc mas ao apropriar-se do sentido do texto o leitor eacute alargado na sua capacidade de
autoprojecccedilatildeo e acede a uma nova autocompreensatildeo ou seja a um ldquosi mesmordquo ldquoSoacute a interpretaccedilatildeo que
obedece agrave injunccedilatildeo do texto que segue a flecha do sentido e que tenta pensar em conformidade com ela
inicia uma nova autocompreensatildeo Nesta autocompreensatildeo eu oporia o Si mesmo que parte da
compreensatildeo do texto ao ego que pretende precedecirc-lo Eacute o texto com o seu poder universal de
desvelamento de um mundo que fornece um Si mesmo ao egordquo Idem Teoria da Interpretaccedilatildeo Lisboa
1987 106
33
de parentesco susceptiacutevel de ser compreendida como um parentesco das
duas liacutenguas em que trabalha o tradutor
Haacute para Walter Benjamin um parentesco entre todas as liacutenguas que natildeo se
explica pela filologia mas sim pelo facto de todas elas serem habitadas por
uma pulsatildeo intriacutenseca ou por um desejo obscuro da ldquoliacutengua purardquo liacutengua que
seraacute a unidade de todas as liacutenguas e dos vaacuterios modos de pensar que
unilateralmente cada uma delas transporta consigo Esta liacutengua universal37
capaz de enunciar a verdade eacute projectada para o fim da histoacuteria numa visatildeo
escatoloacutegica dominada pelo mito de Babel
A tarefa do tradutor eacute assim dar passos no sentido da aproximaccedilatildeo dessa
liacutengua pura ou dessa reversatildeo da multiplicidade e da diferenciaccedilatildeo linguiacutestica
instauradas com Babel Cada traduccedilatildeo digna desse nome constitui-se como
um testemunho desse parentesco entre as liacutenguas natildeo porque ela seja
semelhante ao original mas porque ela se apresenta como prova do
crescimento da linguagem cada traduccedilatildeo representa um determinado estaacutedio
temporal da histoacuteria da linguagem e do seu crescimento em direcccedilatildeo agrave liacutengua
pura
Cada traduccedilatildeo faz-se eco da voz oculta que habita a obra e que aspira a
ldquoressoarrdquo nas outras liacutenguas Ao fazer-se eco dessa voz transpondo a obra
para outra liacutengua natildeo pode no entanto manter intacto o seu conteuacutedo porque
conteuacutedo e forma estatildeo intrinsecamente ligados na obra como jaacute em cada uma
das liacutenguas o estatildeo o campo lexical e o campo semacircntico O encontro da
alteridade e da diferenccedila das liacutenguas impulsiona um livre desenvolvimento da
liacutengua do tradutor cujos limites se alargam para a constituiccedilatildeo dum novo texto
que intersecta o texto original sem se deter nele ldquoDe acordo com isto o que
resta do sentido na relaccedilatildeo da significaccedilatildeo da traduccedilatildeo e do original pode ser
compreendido por meio de uma comparaccedilatildeo Tal como a tangente intersecta o
ciacuterculo apenas de fugida e num uacutenico ponto e tal como esta intersecccedilatildeo e natildeo
o ponto lhe prescreve a lei de acordo com a qual ela prolonga o seu curso ateacute
ao infinito assim a traduccedilatildeo intersecta de fugida e apenas no ponto
37
Cf Steiner em After Babel O autor salienta a importacircncia duma tradiccedilatildeo cabaliacutestica e gnoacutestica na qual
filia o conceito de Walter Benjamin de ldquoligravengua universalrdquo rdquoThis ldquopure languagerdquo [hellip] is like a hidden
spring seeking to force its way through the silted channels of our differing tongues At the ldquomessianic end
of their historyrdquo (again a Kabbalistic or Hasidic formulation) all separate languages will return to their
source of common life In the interim translation has a task of profound philosophic ethical and magical
importrdquo (Ob cit 67)
34
infinitamente pequeno do sentido do original para seguir o seu caminho mais
proacuteprio de acordo com a lei da fidelidade agrave liberdade do movimento da
linguagem38
Embora partindo de outros pressupostos Walter Benjamin vem tambeacutem pocircr em
causa o paradigma da traduccedilatildeo fiel ao texto original e do tradutor como
estando ao serviccedilo do texto Na medida em que exalta a traduccedilatildeo como
recriaccedilatildeo e amplificaccedilatildeo do sentido do texto original e vecirc na liacutengua do tradutor
um passo em frente em direcccedilatildeo agrave ldquoliacutengua purardquo o texto do tradutor sob certo
ponto de vista representa um estaacutedio mais alto da vida da proacutepria obra
possuindo um valor intriacutenseco
A releitura de Derrida de Walter Benjamin em Les Tours de Babel veio
sublinhar a importacircncia da traduccedilatildeo natildeo apenas como forma de comunicaccedilatildeo
inter-linguiacutestica e inter-cultural mas tambeacutem como comunicaccedilatildeo inter-temporal
O tradutor assegura a continuidade e a sobrevivecircncia dum texto atraveacutes do
tempo e deste modo a traduccedilatildeo exprime e realiza a vida da proacutepria obra
desdobrando as suas possibilidades intriacutensecas ao longo de vaacuterias eacutepocas
histoacutericas e cada traduccedilatildeo eacute de certo modo um novo ldquooriginalrdquo numa outra
liacutengua
5 A recepccedilatildeo de Heidegger como um problema de traduccedilatildeo
Um dos aspectos mais significativos das mudanccedilas ocorridas na teoria da
traduccedilatildeo foi a proacutepria extensatildeo do conceito de traduccedilatildeo que jaacute natildeo designa
apenas a transposiccedilatildeo do sentido de uma mensagem para outro coacutedigo
linguiacutestico (traduccedilatildeo inter-linguiacutestica) mas ainda a transposiccedilatildeo de um texto no
interior de uma mesma liacutengua para a proacutepria linguagem do leitor-inteacuterprete e
para o seu contexto histoacuterico-cultural (traduccedilatildeo intra-linguiacutestica)39
38
ldquoWas hiernach fuumlr das Verhaumlltnis von Uumlbersetzung und Original an Bedeutung dem Sinn verbleibt laumlβt
sich in einem Vergleich fassen Wie die Tangente den Kreis fluumlchtig und nur in einem Punkte beruumlhrt und
wie ihr wohl diese Beruumlhrung nicht aber der Punkt der Gesetz vorschreibt nach dem sie weiter ins
Unendliche ihre gerade Bahn zieht so beruumlhrt die Uumlbersetzung fluumlchtig und nur in dem unendlich kleinen
Punkte des Sinnes des Original um nach dem Gesetzte der treue in der Freiheit der Sprach Bewegung
ihre eigenste Bahn zu verfolgenldquo Walter Benjamin Die Aufgabe des Uumlbersetzers GS IV1 19-20 39
ldquoMan meint das laquo Uumlbersetzen raquo sei die Uumlbertragung einer Sprache in eine andere der Fremdsprache in
die Muttersprache oder auch umgekehrt Wir verkennen jedoch daβ wir staumlndig auch schon unsere eigene
Sprache die Muttersprache in ihr eigenes Wort uumlbersetzen Sprechen und Sagen ist in sich ein
Uumlbersetzen dessen Wesen keineswegs darin aufgehen kann daβ das uumlbersetzende und das uumlbersetzte
Wort verschiedenen Sprachen angehoumlren In jedem Gespraumlch und Selbstgespraumlch waltet ein
35
Toda a autecircntica interpretaccedilatildeo eacute traduccedilatildeo uma vez que eacute uma apropriaccedilatildeo
realizada a partir da situaccedilatildeo do inteacuterprete e visando a reconstruccedilatildeo duma
mensagem alheia numa linguagem proacutepria O inteacuterprete ainda quando se
ocupa de um texto escrito na sua proacutepria liacutengua pretende ldquodizer a mesma coisa
de outra maneirardquo procurando equivalentes lexicais ou reconstruindo
argumentos Esta traduccedilatildeo que constantemente ocorre na simples explicaccedilatildeo
de um texto visando aproximar o leitor da obra que em cada caso se
interpreta eacute um processo de mediaccedilatildeo tambeacutem ele implicando a experiecircncia
do malogro da perfeita identidade do sentido que encontramos na traduccedilatildeo em
sentido estrito40
Traduccedilatildeo e interpretaccedilatildeo satildeo pois operaccedilotildees idecircnticas e co-extensivas satildeo
operaccedilotildees hermenecircuticas similares implicando idecircntica operaccedilatildeo de
apropriaccedilatildeo-expropriaccedilatildeo que potildee em jogo diferentes horizontes histoacuterico-
temporais aquele a que pertence o texto de partida e o do proacuteprio tradutor
Mas a centralidade da traduccedilatildeo ficaraacute mais patente se tivermos em mente que
para Heidegger pensar eacute traduzir isto eacute eacute a apropriaccedilatildeo originaacuteria daquilo que
eacute dado como exterior e alheio e a sua traduccedilatildeo numa linguagem proacutepria Com
Heidegger a traduccedilatildeo natildeo eacute um problema filosoacutefico menor porque a traduccedilatildeo eacute
inerente ao pensar que se exerce no acircmbito da linguagem e da histoacuteria e quem
o leva a cabo eacute o homem concreto com uma relaccedilatildeo determinada com a
histoacuteria e o tempo41
urspruumlngliches Uumlbersetzen Wir meinen dabei nicht erst den Vorgang daβ wir eine Redewendung durch
eine andere derselben Sprache ersetzen und uns der laquoUmschreibungraquo bedienen Der Wechsel in der
Wortwahl ist bereits die Folge davon daβ sich uns das was zu sagen ist uumlbergesetzt hat in eine andere
Wahrheit und Klarheit oder auch Fragwuumlrdigkeitrdquo P GA 54 17-18 40
Cf Paul Ricœur em ldquoLe paradigme de la traductionrdquo ldquoDeux voies d‟accegraves s‟offrent au problegraveme poseacute
par lbdquoacte de traduire soit prendre le terme ldquotraductionldquo au sens strict de transfert d‟un message verbal
d‟une langue dans une autre soit le prendre au sens large comme synonyme de l‟interpreacutetation de tout
ensemble signifiant a lbdquo inteacuterieur de la mecircme communauteacute linguistique
Les deux approches ont leur droit la premiegravere choisie par Antoine Berman dans Lbdquoeacutepreuve de lbdquo
eacutetranger tient compte du fait massif de la pluraliteacute et de la diversiteacute des langues la seconde suivie par
George Steiner dans Apregraves Babel s‟adresse directement au pheacutenomegravene englobant que l‟auteur reacutesume
ainsi bdquoComprendre c‟est traduireldquoldquoIdem ldquoLe paradigme de la traductionrdquo in Sur la traduction Paris
2004 21- 22 41
Cf Friedrich-Wilhelm von Herrmann Im Spiegel der Welt Sprache Uumlbersetzung
Auseinandersetzung 108 ldquoDie Uumlbersetzung aus einer Sprache in eine andere Sprache scheint nur ein
begrenztes und uumlberdies untergeordnetes philosophisches Problem zu sein Kaum aber hat sich die
Besinnung auf dieses Phaumlnomenon eingelassen macht sie auch schon die Erfahrung daβ sie aus dem
vermeintlich begrenzten Fragebereich hinaus in eine Weiter philosophischer Grundfragen gefuumlhrt wird
Das Uumlbersetzen vollzieht sich in den Bereichen von Sprache und Geschichte sein Vollzieher aber ist der
Mensch in seinem Verhaumlltnis zu Sprache und Geschichterdquo
36
Para reconhecer a centralidade que a questatildeo filosoacutefica da traduccedilatildeo assume
para Heidegger eacute ainda necessaacuterio ter em conta que ela se liga estreitamente agrave
histoacuteria do ser Com efeito para Heidegger a traduccedilatildeo latina dos termos
fundamentais do pensamento grego natildeo foi uma operaccedilatildeo inofensiva mas
produziu um efeito sob o qual ainda hoje estamos pois nela se jogou a
retracccedilatildeo e o esquecimento do ser e inversamente a superaccedilatildeo do
esquecimento do ser consiste no esforccedilo de superaccedilatildeo dessa mediaccedilatildeo latina
e no regresso agrave experiecircncia originaacuteria do pensamento grego convicccedilatildeo
inseparaacutevel do seu proacuteprio esforccedilo de traduccedilatildeo directa dos termos filosoacuteficos
gregos para o alematildeo42
Eacute este conceito amplo e central de ldquotraduccedilatildeordquo como arriscada transposiccedilatildeo do
pensar para um outro contexto histoacuterico-linguiacutestico que aqui visaremos como
categoria que sendo co-extensiva com a de interpretaccedilatildeo permite pensar a
totalidade dos momentos que constituem a recepccedilatildeo de um autor numa outra
comunidade linguiacutestica Essa recepccedilatildeo de uma obra escrita numa outra liacutengua
envolve diferentes niacuteveis de assimilaccedilatildeo e incorporaccedilatildeo na liacutengua e na cultura
de chegada desde a sua simples leitura e compreensatildeo agrave transposiccedilatildeo
linguiacutestica das obras realizadas pela actividade de tradutores e editores ateacute
aos comentaacuterios em revistas de especialidade aos ensaios e dissertaccedilotildees
acadeacutemicas e finalmente agrave incorporaccedilatildeo na criaccedilatildeo de obras originais
A categorizaccedilatildeo de todos estes modos de assimilaccedilatildeo e incorporaccedilatildeo do autor
estrangeiro num outro contexto histoacuterico-linguiacutestico como ldquotraduccedilatildeordquo permite-
nos centrar a investigaccedilatildeo na experiecircncia inter-linguiacutestica remetendo para a
intermediaccedilatildeo de distintos contextos culturais com a sua complexidade
intriacutenseca tornando a tarefa daquele que interpreta e comenta um difiacutecil
compromisso entre a fidelidade ao texto e a aproximaccedilatildeo ao contexto e aos
problemas do presente histoacuterico do seu leitor43
42
ldquoDas Verhaumlltnis von Uumlbersetzung und Geschichte wird von Heidegger vor allem in zwei
Hinblicknahmen bedacht Zum einen ist es die uumlbersetzende Uumlbernahme des griechischen Denkens
insbesondere der griechischen Grundworte des Denkens durch das Roumlmisch-Lateinische sowie die
uumlbersetzende Aneignung der roumlmisch vermittelten griechischen Grundworte durch das neuzeitliche
Denken Diese erste Hinblicknahme betrifft die Geschichte der Metaphysik als Geschichte des Seins und
der Seinsvergessenheit Die zweite Hinblicknahme auf das genannte Verhaumlltnis ist geleitet von der
denkenden Uumlberwindung der Seinsvergessenheit und besteht in dem denkerischen Bemuumlhen in
unmittelbarem Ruumlckgang auf das griechische Denken dessen verschuumlttete Erfahrungen so freizulegen daβ
diese den Weg in eine urspruumlnglichere Erfahrung des Wesens des Seins weisenrdquo Ibidem 120 43
Cf Ricœur in ldquoUn ldquopassagerdquo traduire l‟intraduisiblerdquo Neste artigo Ricœur refere um intraduzigravevel
inicial encontrado pelo tradutor a diversidade das liacutenguas como conjuntos culturais diferentes atraveacutes
37
Pensar a recepccedilatildeo dum autor de acordo com a categoria da traduccedilatildeo permite
assim anular as distinccedilotildees correntes entre uma recepccedilatildeo passiva e activa que
soacute cabiam no quadro de referecircncia teoacuterico que considerava a leitura dum texto
e a sua interpretaccedilatildeo criacutetica como operaccedilotildees essencialmente distintas
sublinhando antes a constacircncia de certas operaccedilotildees hermenecircuticas baacutesicas
transversais a todas estas formas e geacuteneros literaacuterios
A traduccedilatildeo de Heidegger para as diversas liacutenguas europeias foi desde o
primeiro momento acompanhada de controveacutersias e dificuldades suscitando de
imediato o problema do risco inerente agrave experiecircncia inter-linguiacutestica e dos
limites do traduziacutevel
A influecircncia de Heidegger iniciou-se com a publicaccedilatildeo de Sein und Zeit em
1927 primeira obra onde expocircs o seu pensamento cuja difusatildeo quase
imediata captou a atenccedilatildeo do puacuteblico filosoacutefico de quase toda a Europa A
irradiaccedilatildeo da influecircncia de Heidegger natildeo deixou de crescer a partir desta
data sendo balizada em trecircs grandes periacuteodos44
1ordm Periacuteodo ndash entre 1927 data da publicaccedilatildeo de Sein und Zeit e 1951
data da sua primeira traduccedilatildeo integral realizada por Gaos para o
espanhol
2ordm Periacuteodo ndash entre 1952 e 1975 ano em que foi iniciada a publicaccedilatildeo
das obras completas de Heidegger por Vittorio Klostermann
3ordm Periacuteodo ndash de 1975 ateacute aos nossos dias
Ao longo destes anos uma interpretaccedilatildeo centrada dominantemente na anaacutelise
da existecircncia em Sein und Zeit 45 foi sendo corrigida desde logo pelo proacuteprio
dos quais se exprimem distintas visotildees do mundo que podem enfrentar-se entre si no interior dum mesmo
sistema fonoloacutegico lexical e sintaacutectico fazendo duma cultura nacional uma rede de visotildees do mundo em
competiccedilatildeo oculta Ricœur indica ainda um intraduzigravevel final engendrado pela proacutepria praacutetica da
traduccedilatildeo relacionado com a impossibilidade de estabelecer um criteacuterio absoluto da boa traduccedilatildeo ndash este
criteacuterio absoluto seria o mesmo sentido escrito algures acima e entre o texto de origem e o texto de
chegada bdquoCe troisiegraveme texte serait porteur du sens identique supposeacute circuler du premier au second D‟ou
le paradoxe dissimuleacute sous le dilemme pratique entre fideacuteliteacute et trahison une bonne traduction ne peut
viser qu‟agrave une eacutequivalence preacutesumeacutee non fondeacutee dans une identiteacute de sens deacutemontrablerdquo Idem art cit
in Sur la traduction 60 44
Cf Irene Borges-Duarte em ldquoHeidegger em Portuguecircs Contribuiccedilatildeo para um reportoacuterio bibliograacuteficordquo
in Filosofia volIII nordm12 Lisboa 1989 173-184 45
Cf artigo de Rudolf Bohem L‟ecirctre et le temps d‟une traduction Neste artigo o tradutor (co-autor da
traduccedilatildeo francesa de SuZ editada em 1964 pela Gallimard) reafirma a centralidade de uma filosofia da
existecircncia nesta obra capital de Heidegger ldquoMais je ne peux terminer ces remarques sans donner
expression agrave mon eacutetonnement du fait que cet ouvrage Sein und Zeit de Heidegger bien qu‟il ait eacuteteacute
traduit depuis en plus de vingt langues agrave travers du monde entier et qu‟il soit peut-ecirctre le livre
38
Heidegger que a partir dos primeiros comentaacuterios da sua obra rejeitou que a
sua leitura de o homem como ser-no-mundo pudesse ser interpretada como um
existencialismo e uma reflexatildeo antropoloacutegica - depois por um conhecimento
progressivo da globalidade dos seus textos filosoacuteficos
De facto a divulgaccedilatildeo progressiva da obra de Heidegger veio a possibilitar a
sua compreensatildeo como um pensamento em movimento de constituiccedilatildeo cuja
progressiva elaboraccedilatildeo apesar das descontinuidades natildeo deixa de revelar a
unidade de quem persegue uma questatildeo central questatildeo que desde Sein und
Zeit e ateacute ao fim ocupou Heidegger ininterruptamente o problema do ser
A difusatildeo do pensamento de Heidegger nas vaacuterias liacutenguas europeias foi assim
acompanhada desde o iniacutecio por controveacutersias dificuldades de interpretaccedilatildeo e
mal-entendidos eles mesmos interessantes enquanto sintomas segundo
Heidegger da nossa situaccedilatildeo presente de esquecimento e abandono da
questatildeo do ser Estas transformaccedilotildees de sentido que acompanharam as vaacuterias
traduccedilotildees suscitam a experiecircncia viva da finitude e da imperfeiccedilatildeo de toda a
traduccedilatildeo entendida como restituiccedilatildeo fiel do sentido mas tambeacutem a
consciecircncia do caraacutecter necessariamente histoacuterico e linguisticamente
condicionado da tarefa do tradutor testemunhado directamente pelos
tradutores de Sein und Zeit46
Se a divulgaccedilatildeo progressiva da obra de Heidegger permitiu corrigir as iniciais
distorccedilotildees eacute preciso ter em conta que nenhuma interpretaccedilatildeo eacute poreacutem
independente dum ponto de vista preacutevio problema hermenecircutico colocado por
Heidegger em Sein und Zeit ao mostrar que uma Vor-struktur predetermina
toda a compreensatildeo e por Gadamer ao postular que nenhuma interpretaccedilatildeo
philosophique le plus connu du vingtiegraveme siegravecle a produit si peu d‟effet Ce fut peut-ecirctre a moins
partiellement la faute de Heidegger lui-mecircme il s‟est toujours refuseacute agrave ecirctre consideacutereacute comme un
philosophe de l‟existence voire ldquoexistentialisterdquo et n‟a souligneacute que lintroduction dans Sein und Zeit de
la question de l‟Ecirctre alors que cette derniegravere question nest guegravere eacutelaboreacutee dans le livre tel qu‟il a paru et
qu‟il preacutesente par contre bel et bien une philosophie de l‟existence tout comme lacute Ecirctre et le Neacuteant de
Sartre et la Pheacutenomeacutenologie de la Perception de Merleau-Pontyrdquo (Idem art cit in Translating
Heidegger‟s ndash Sein und Zeit 103) 46
Destes testemunhos eacute particularmente significativo para o presente trabalho o de Christian Sommer
tradutor francecircs em ldquoTraduire La Lingua Heideggerianardquo que a propoacutesito da experiecircncia de traduccedilatildeo de
Heidegger para as liacutenguas latinas afirma rdquoHeidegger tributaire et continuateur d‟une tradition allemande
qui remonte au moins agrave Leibniz entend construire une langue philosophique allemande deacutelatiniseacutee en
renouant par ldquodestructionrdquo avec la terminologie grecque La philosophie a parleacute grec elle parle et
parlera allemand l‟allemand d‟Heidegger Deacutes lors l‟acte de traduire (et d‟interpreacuteter) Heidegger dans
une langue latine meacuteriterait d‟ecirctre plus largement probleacutematiseacute car agrave la ldquodeacutelatinisationrdquo heideggeacuterienne
de la philosophie correspond de fait une ldquorelatinisationrdquo de la philosophie heideggeacuteriennerdquo (Christian
Sommer artcit in Translating Heidegger‟s ndash Sein und Zeit 306-307)
39
se faz independentemente da tradiccedilatildeo e do preconceito estas satildeo as
condiccedilotildees nas quais ouvimos e com as quais podemos entrar numa discussatildeo
interpretativa
Focalizaremos o nosso estudo natildeo na traduccedilatildeo em sentido estrito mas nos
comentaacuterios com que progressivamente os pensadores portugueses e
brasileiros foram levando aos seus leitores a divulgaccedilatildeo do pensamento
heideggeriano por ser aiacute que podemos surpreender mais claramente essa Vor-
struktur que determina a compreensatildeo por vezes obscurecendo-a mas
noutras abrindo uma via de acesso ao sentido dos textos
6 Metodologia usada
Eacute pois partindo deste conceito de traduccedilatildeo estabelecido pela fenomenologia
hermenecircutica 47 que abordaremos a recepccedilatildeo de Heidegger em liacutengua
portuguesa visando natildeo apenas mostrar as deslocaccedilotildees de sentido e as
distorccedilotildees que acompanham a recepccedilatildeo de Heidegger em liacutengua portuguesa
mas ainda avaliaacute-los e interpretaacute-los de acordo com o quadro de referecircncia
teoacuterico e metodoloacutegico que esse conceito determina
Uma investigaccedilatildeo deste geacutenero confronta-se desde logo com a abundacircncia e a
disparidade de fontes a analisar e o risco de dispersatildeo pelo que se impocircs a
definiccedilatildeo de um criteacuterio de selecccedilatildeo do tipo de textos a incluir na anaacutelise As
traduccedilotildees em sentido estrito foram analisadas no seu conjunto e integradas
no contexto geral da histoacuteria da traduccedilatildeo filosoacutefica portuguesa renunciaacutemos a
uma anaacutelise criacutetica das ldquotraduccedilotildeesrdquo em sentido estrito e a produzir quaisquer
juiacutezos de valor sobre a qualidade dos textos produzidos decidindo se se situam
ao niacutevel trivial da amaacutelgama informe de transposiccedilotildees gramaticais irreflectidas
de hiacutebridos gramaticais que natildeo pertencem a nenhuma liacutengua ou se pelo
contraacuterio traduzem uma estrateacutegia coerente de recriaccedilatildeo do texto em liacutengua
portuguesa atenta aos problemas de transposiccedilatildeo do vocabulaacuterio filosoacutefico e
47
Cf Von Herrmann (Im Spiegel der Welt Sprache Uumlbersetzung Auseinandersetzung 111) ldquo[hellip]
Phaumlnomenologie ist nach dem Methodenparagraph von Sein und Zeit das was sich zeigt so wie es sich
von ihm selbst her zeigt von ihm selbst her sehen lassen (SuZ 34) Nicht nur versteht sich die
Phaumlnomenologie Heideggers als hermeneutische als auslegende Phaumlnomenologie sondern auch
umgekehrt bestimmt Heidegger die Auslegung als phaumlnomenologische houmlrend-sehenlassende Auslegung
Und wenn die Auslegung eine wesenhafte Vollzugsbedingung der Uumlbersetzung ist vollzieht sich auch
das Uumlbersetzen nur dann wesensgerecht wenn seine Vorgehensweise phaumlnomenologisch bestimmt istrdquo
40
agraves fontes filoloacutegicas dos textos heideggerianos Esta anaacutelise do maior
interesse e complementar do agora investigado natildeo poderia ser aqui levada a
cabo e esse trabalho dos tradutores interessou-nos apenas enquanto indiacutecio da
difusatildeo do pensamento de Heidegger e da sua introduccedilatildeo no seio do
pensamento portuguecircs
Na traduccedilatildeo que noacutes proacuteprios fizemos da terminologia heideggeriana optaacutemos
por seguir o leacutexico estabelecido pelo projecto Heidegger em Portuguecircs que
acompanhou as traduccedilotildees jaacute publicadas e relativamente a Ser e Tempo
adoptaacutemos o procedimento habitual de seguir a traduccedilatildeo estabelecida por
Gaos
Fomos ainda obrigados a determinar o periacuteodo a investigar tendo como
preocupaccedilotildees os limites impostos pela exequibilidade da investigaccedilatildeo e
tambeacutem a necessidade de nele incluir um nuacutemero suficientemente significativo
de fontes Delimitaacutemos o periacuteodo entre 1938 e 1989 este periacuteodo aparece-nos
naturalmente limitado pela publicaccedilatildeo do primeiro texto de Delfim Santos sobre
Heidegger (ldquoHeidegger e Houmllderlin ou a essecircncia da poesia Revista de
Portugal Lisboa nordm4 193848) no entanto a maior parte dos trabalhos
analisados satildeo posteriores agrave data de 1952 ano seguinte agrave traduccedilatildeo espanhola
de Gaos de Sein und Zeit importante marco no domiacutenio da traduccedilatildeo e da
difusatildeo do pensamento de Heidegger ateacute aiacute conhecido atraveacutes de traduccedilotildees
francesas fragmentaacuterias e parciais49
Embora a partir dos anos 30 jaacute houvesse em Portugal algum conhecimento de
Heidegger atraveacutes de traduccedilotildees francesas soacute a partir dos anos 50 e 60
encontramos um nuacutemero significativo de fontes que permitem fixar uma
tentativa de superar uma leitura centrada na problemaacutetica existencial e os
primeiros esforccedilos para traduzir linguisticamente em portuguecircs uma
compreensatildeo mais globalizante do filoacutesofo alematildeo
Depois do caso isolado que foi a traduccedilatildeo de Vom Wesen der Wahrheit em 46
soacute nos anos sessenta se iniciou a traduccedilatildeo regular das obras de Heidegger 50
com a traduccedilatildeo de Ernildo Stein de Einfuumlhrung in die Metaphysik em 1966 e a
traduccedilatildeo de Uumlber den Humanismus Brief an Jean Beaufret onde a linguagem
48
Cf ldquoO diaacutelogo com Heidegger em ligravengua portuguesa ldquo in Apecircndice do presente trabalho p 539 49
Cf Ricardo Maliandi bdquoHeidegger in Lateinamerikaldquo in Zur philosophischen Aktualitaumlt Heideggers III
Im Spiegel der Welt Frankfurt am Main 1989 199-209 50
CfrdquoTraduccedilotildees Portuguesas e Brasileiras de Heideggerrdquo in Apecircndice da Dissertaccedilatildeo p 533
41
aparece pela primeira vez como a questatildeo fundamental por Carneiro Leatildeo no
Brasil em 1967 e por A Stein em Portugal em 1973
Neste periacuteodo eacute ainda publicado um nuacutemero significativo de obras sobre
Heidegger assim como muacuteltiplos artigos em revistas de liacutengua portuguesa por
autores como Ernildo Stein Zeljko Loparic Eduardo Abranches de Soveral
Manuel Antunes e outros51
Neste segmento temporal encontramos tambeacutem a publicaccedilatildeo de obras de
pensadores que em liacutengua portuguesa procuram encetar um diaacutelogo com
Heidegger tendo esse diaacutelogo um papel estruturante na sua produccedilatildeo
filosoacutefica
Em Portugal Delfim Santos que tinha uma formaccedilatildeo filosoacutefica extensa e
actualizada tornada possiacutevel pela sua condiccedilatildeo de bolseiro na deacutecada de 30
na Aacuteustria e na Alemanha conhecia as obras de Husserl e Heidegger que
divulgou atraveacutes de numerosos artigos e comunicaccedilotildees entre os anos de 1938
e 1966 explorando as implicaccedilotildees duma leitura existencial de Heidegger em
diversos campos da cultura como a educaccedilatildeo o direito e a psicoterapia
O Grupo de Satildeo Paulo centrado nas figuras de Eudoro de Sousa e Vicente
Ferreira da Silva produziu uma reflexatildeo sobre as relaccedilotildees entre histoacuteria
poesia e mito que muito devem agrave leitura de Heidegger como podemos
constatar pela leitura de Ideias Para um Novo Conceito de Homem (1951) de
Vicente Ferreira da Silva e Mitologias I (1981) e Mitologias II (1982) de Eudoro
de Sousa
Joseacute Enes a partir de 1969 tem reflectido sobre o problema do ser e da
linguagem fortemente influenciado pela leitura daquilo a que eacute costume
chamar-se o ldquosegundo Heideggerrdquo inspirando-se nessa leitura para fazer uma
reapropriaccedilatildeo do pensamento de Satildeo Tomaacutes de Aquino e da tradiccedilatildeo
escolaacutestica
Pensamos assim ter seleccionado um periacuteodo suficientemente significativo
pela abundacircncia e relevacircncia dos textos que assinalam a recepccedilatildeo de
Heidegger traduccedilotildees artigos de revistas dissertaccedilotildees acadeacutemicas e obras
originais Dentre esse conjunto diacutespar de fontes procedemos a uma selecccedilatildeo
51
Cf Constanccedila Marcondes Ceacutesar O Grupo de Satildeo Paulo Lisboa 2000 231-243
42
dos autores e dos textos a partir do pressuposto de que uma interpretaccedilatildeo tem
ecircxito apenas quando ela presta atenccedilatildeo e escuta o texto que traduz e o que
nele eacute dito de tal modo que num tal escutar potildee a caminho uma discussatildeo
interpretativa52
Pudemos assim seleccionar como autores mais significativos Delfim Santos
Vergiacutelio Ferreira Eudoro de Sousa Vicente Ferreira da Silva Gerd Bornheim e
Ernildo Stein assim como Joseacute Enes e Emmanuel Carneiro Leatildeo
Um segundo problema metodoloacutegico foi a necessidade de optar entre um
criteacuterio histoacuterico-descritivo que apresentasse a evoluccedilatildeo da interpretaccedilatildeo de
Heidegger de uma geraccedilatildeo de pensadores para outra dando conta da sua
progressiva incorporaccedilatildeo na liacutengua e cultura lusoacutefonas e um ponto de vista
sistemaacutetico capaz de classificar e sistematizar os contributos dos vaacuterios
autores de acordo com a sua direcccedilatildeo interpretativa
Optaacutemos por tentar conciliar os dois criteacuterios procurando num primeiro
momento articular uma perspectiva histoacuterica que integra a traduccedilatildeo de
Heidegger na histoacuteria da traduccedilatildeo portuguesa de filosofia e num segundo
momento articular e agrupar os autores de acordo com a perspectiva
(Blickrichtung) a partir da qual abordam o pensador alematildeo
Na organizaccedilatildeo dos seus textos usaacutemos como criteacuterio as diferentes vias de
acesso ao pensamento heideggeriano independentemente dos autores se
situarem de um ou do outro lado Atlacircntico questatildeo de somenos importacircncia
porquanto autores portugueses e brasileiros dialogam entre si e influenciam-se
reciprocamente no acircmbito da liacutengua comum
Assim pudemos ordenar os textos e os autores de acordo com as 4 direcccedilotildees
interpretativas
Sentido e existecircncia
Ontologia e finitude
Mito e logos
Hermenecircutica e desvelamento do ser
52
ldquoEine Auslegung die eine Uumlbersetzen vorbereitet gluumlckt nur dann wenn sie zu dem auszulegendem
Text und dem in ihm Gesagten uumlbersetzt so daβ sie auf das Gesagte houmlrt und in solchem Houmlren ein
auslegendes Zwiegespraumlch in Gang setztrdquo Friedrich-Wilhelm von Herrmann Im Spiegel der Welt
Sprache Uumlbersetzung Auseinandersetzung 109
43
A compreensatildeo da traduccedilatildeo como Ereignis orientou a selecccedilatildeo do caso
especial de Vicente Ferreira da Silva como objecto de estudo Escolhemos a
anaacutelise do caso deste pensador brasileiro pois ele desenvolveu um
pensamento original em torno da relaccedilatildeo entre mito poesia e filosofia a partir
dum intenso diaacutelogo com o pensamento de Heidegger
7 A estrutura da dissertaccedilatildeo
A presente dissertaccedilatildeo articula-se em duas partes desenvolvendo-se segundo
a disposiccedilatildeo a seguir indicada
A primeira parte apresenta o problema filosoacutefico da traduccedilatildeo e a
fundamentaccedilatildeo dos conceitos fundamentais que suportam a investigaccedilatildeo
articulados em dois capiacutetulos No primeiro capiacutetulo satildeo exploradas as
implicaccedilotildees da viragem hermenecircutica heideggeriana centrando-se a nossa
anaacutelise na articulaccedilatildeo entre linguagem facticidade e existecircncia Aiacute satildeo ainda
analisados os conceitos de ldquosituaccedilatildeo hermenecircuticardquo e ldquociacuterculo hermenecircuticordquo
que atravessam e suportam a nossa investigaccedilatildeo No segundo capiacutetulo seratildeo
analisados os contributos de Gadamer para a elucidaccedilatildeo do problema
hermenecircutico com especial relevacircncia para a reabilitaccedilatildeo dos conceitos de
tradiccedilatildeo e de preconceito assim como para a determinaccedilatildeo da interpretaccedilatildeo
como uma controlada ldquofusatildeo de horizontesrdquo (Horizontverschmelzung)
Na segunda parte abordaremos a problemaacutetica da traduccedilatildeo em Portugal em
trecircs capiacutetulos No primeiro abordaremos a histoacuteria da traduccedilatildeo de filosofia em
Portugal procurando aiacute encontrar as razotildees da recusa agrave mediaccedilatildeo linguiacutestica e
os efeitos dessa recusa no modo como entre noacutes se transmitiu a tradiccedilatildeo
filosoacutefica No capiacutetulo segundo analisaremos a recepccedilatildeo de Heidegger em
Portugal e no Brasil partindo do conceito de ldquosituaccedilatildeo hermenecircuticardquo exposta
por Heidegger em Phaumlnomenologische Interpretationen zu Aristoteles de
192253 Este conceito transversal a toda a investigaccedilatildeo seraacute aqui aplicado agrave
anaacutelise das fontes que assinalam a recepccedilatildeo de Heidegger em Portugal e no
53
ldquoDie folgenden Untersuchungen dienen einer Geschichte der Ontologie und Logik Als Interpretationen
stehen sie unter bestimmten Bedigungen des Auslegens und Verstehens Der Sachgehalt jeder
Interpretation das ist der thematische Gegenstand im Wie seines Ausgelegtseins vermag nur dann
angemessen fuumlr sich selbst zu sprechen wenn die jeweilige hermeneutische Situation auf die Jede
Interpretation relativ ist als genuumlgend deutlich ausgezeichnet verfuumlgbar gemacht wirdldquo AhS GA 62
346-347
44
Brasil permitindo-nos ir mais longe do que uma simples exposiccedilatildeo histoacuterica e
descritiva e fornecendo-nos um princiacutepio teoacuterico e metodoloacutegico capaz de
organizar os dados e mostrar a direcccedilatildeo de um ponto de vista interpretativo No
capiacutetulo terceiro levaremos a cabo a anaacutelise do caso de Vicente Ferreira da
Silva autor no qual essa fusatildeo de horizontes tematizada por Gadamer eacute
particularmente produtiva Escutando o apelo do segundo Heidegger em
direcccedilatildeo agrave questatildeo do ser e da linguagem o pensador brasileiro fez-se tambeacutem
o eco da influecircncia de pensadores portugueses como Eudoro de Sousa e
Agostinho da Silva bem como de outros pensadores latinos e ainda da poetiza
Dora Ferreira da Silva abrindo uma via de acesso original agrave questatildeo da poesia
e da mitologia Na conclusatildeo retomamos o jaacute analisado a fim de determinar se
foram dados passos significativos para a constituiccedilatildeo de qualquer coisa como
um ldquoponto de vistardquo (Blickstand) e ldquouma perspectivardquo (Blickrichtung) capazes
de virem a delimitar um horizonte de compreensatildeo e uma interpretaccedilatildeo
originaacuteria do pensador alematildeo em liacutengua portuguesa
Ao discutirmos se na recepccedilatildeo de Heidegger em liacutengua portuguesa se
verificam as distorccedilotildees provenientes duma relaccedilatildeo inautecircntica com a tradiccedilatildeo
filosoacutefica ou se os autores que puderam ter acesso aos textos originais na
liacutengua alematilde e com ele dialogaram em portuguecircs deram passos significativos
para superar essas distorccedilotildees e alcanccedilar o estatuto de uma verdadeira
interpretaccedilatildeo iremos confrontar-nos com a temaacutetica da tradiccedilatildeo
Seraacute aiacute questionada a presenccedila nos inteacuterpretes de Heidegger em liacutengua
portuguesa da tradiccedilatildeo humanista em confronto com a condenaccedilatildeo
heideggeriana do humanismo e com a sua desvalorizaccedilatildeo do latim e das
liacutenguas latinas Retomaremos pois a discussatildeo jaacute iniciada por Ernesto Grassi e
Franco Volpi em torno desta temaacutetica e da importacircncia dum legado que
constitui o patrimoacutenio comum daquilo a que este segundo pensador chama a
Romanidade Filosoacutefica54
54
Cf Franco Volpi em comunicaccedilatildeo ao Congresso Heidegger Linguagem e Traduccedilatildeo (Lisboa Marccedilo de
2003) intitulada Heidegger el problema de la intraducibilidad y la romanidad filosoacutefica Nesta
comunicaccedilatildeo Franco Volpi defende que Heidegger teria retomado e radicalizado a ideia do idealismo
alematildeo de que a filosofia deveria falar alematildeo como noutro tempo falara grego e procurar um acesso
directo e original ao pensamento heleacutenico evitando a mediaccedilatildeo do latim com a consequente depreciaccedilatildeo
da romanidade e latinidade filosoacuteficas Franco Volpi potildee ainda a hipoacutetese de que Heidegger na sua criacutetica
ao humanismo romano teria acompanhado de perto a afirmaccedilatildeo ideoloacutegica do pangermanismo ldquoTras la
toma de poder por el nacionalismo la cuestioacuten del humanismo romano habiacutea dejado de ser una cuestioacuten
uacutenicamente filosoacutefica neutra habiacutea adquirido importantes connotaciones poliacuteticas El programa
45
A bibliografia apresentada no fim da dissertaccedilatildeo constitui a recompilaccedilatildeo dos
tiacutetulos mais importantes para a elaboraccedilatildeo do trabalho e estaacute organizada em
duas partes
A primeira parte eacute constituiacuteda por um apecircndice contendo um primeiro capiacutetulo
relativo agrave histoacuteria das traduccedilotildees portuguesas de filosofia que pretende dar
conta dos tiacutetulos mais significativos traduzidos em Portugal e no Brasil ateacute
1959 e que foi relevante para a geacutenese da problemaacutetica investigada e um
segundo relativo agrave cronologia da recepccedilatildeo de Heidegger que pretende dar a
conhecer a amplitude desta recepccedilatildeo em Portugal e no Brasil Esta bibliografia
da recepccedilatildeo de Heidegger em portuguecircs estende-se ateacute agrave actualidade
extravasando os limites cronoloacutegicos da investigaccedilatildeo que levaacutemos a cabo mas
possibilita por isso mesmo ldquosituarrdquo o segmento temporal de que nos
ocupaacutemos e melhor compreender o seu significado
Na segunda parte da bibliografia incluem-se as obras de Heidegger e de
Gadamer nas quais fundamos a investigaccedilatildeo assim como a literatura
secundaacuteria sobre os problemas filosoacuteficos da traduccedilatildeo e tradiccedilatildeo Nesta
segunda parte incluiacutemos ainda as obras dos inteacuterpretes de Heidegger em
liacutengua portuguesa que foram analisadas assim como a bibliografia secundaacuteria
relativa aos diversos autores e a bibliografia de contextualizaccedilatildeo temaacutetica
relativa ao pensamento portuguecircs e brasileiro
ideoloacutegico pangermaacutenico reactivoacute y radicalizoacute la cuestioacuten del primado del pueblo alemaacuten frente al cual la
romanidad y la latinidad aparecigravean como derivadas e ldquosecundariasrdquordquo (Op cit 534)
Ainda nesta comunicaccedilatildeo Volpi demonstra a riqueza do vocabulaacuterio latino no acircmbito poliacutetico juriacutedico e
religioso mostrando a sua essencial originalidade em relaccedilatildeo ao contexto da cultura e liacutengua gregas assim
como o seu papel determinante na construccedilatildeo da civilizaccedilatildeo europeia
46
47
SIGLAS E ABREVIATURAS MAIS USADAS
A maior parte das siglas corresponde a obras de Heidegger Quando natildeo se
trate de uma obra sua o nome do autor eacute assinalado entre parecircntesis
SuZ Sein und Zeit
AhS bdquoPhaumlnomenologische Interpretation zu Aristoteles (Anzeige der hermeneutische
Situation)ldquo
EpF Phaumlnomenologische Interpretationen zu Aristoteles Einfuumlhrung in die
phaumlnomenologische Forschung
LWS Logik als die Frage nach dem Wesen der Sprache
WuM Wahrheit und Methode (Gadamer)
GS Gesammelte Schriften (Walter Benjamin)
GA Gesamtausgabe (Martin Heidegger)
HWD bdquoHoumllderlin und das Wesen der Dichtungldquo
UKw bdquoDer Ursprung des Kunstwerkesldquo
WwF bdquoWie wenn am Feiertaghellipldquo
WhD Was heiβt Denken
HH Houmllderlins Hymnen ―Germanien und ―Der Rhein―
GW Gesammelte Werke (Gadamer)
P Parmeacutenides
Buh bdquoBrief uumlber den Humanismusldquo
VWG bdquoVon Wesen des Grundesldquo
GP Die Grundprobleme der Phaumlnomenologie
D bdquoDas Dingldquo
GD bdquoGrundsaumltze des Denkens―
H Holzwege
IuD Identitaumlt und Differenz
HHI Houmllderlins Hymnen bdquo Der Isterldquo
ZW ―Die Zeit des Weltbildesrdquo
48
49
Parte I O conceito fenomenoloacutegico de traduccedilatildeo e o
problema da tradiccedilatildeo
50
51
Capiacutetulo I - A viragem hermenecircutica e o estatuto das liacutenguas
52
53
Heidegger afirmou em Ser e Tempo na continuidade da tradiccedilatildeo de Hamann
Herder e Humboldt que a loacutegica se constitui historicamente como aquele
aspecto da tradiccedilatildeo filosoacutefica que deturpou e vedou o acesso ao ser da
linguagem55
De facto a questatildeo do impeacuterio da loacutegica sobre a gramaacutetica tinha jaacute sido
anteriormente discutida por Hamann e Humboldt e podemos sintetizar a
questatildeo dizendo que Hamann56 abre uma poleacutemica contra o iluminismo
chamando a atenccedilatildeo para o facto de que as categorias loacutegicas a que Kant viria
a chamar as categorias do entendimento determinam as categorias
gramaticais e as regras sintaacutecticas Sob o impeacuterio destas categorias
desenvolve-se um dizer que respeita mais o princiacutepio de identidade do que a
singularidade e a diversidade da experiecircncia mais a abstracccedilatildeo do conceito do
que a materialidade das sensaccedilotildees e os afectos e que privilegia as oraccedilotildees
subordinadas57 Contra este dizer e pensar disciplinado pela norma e pela
razatildeo Hamann viraacute propor a libertaccedilatildeo da linguagem que para ele seraacute a
liberdade poeacutetica da metaacutefora e da transgressatildeo da norma linguiacutestica e para
Humboldt a reivindicaccedilatildeo da libertaccedilatildeo das gramaacuteticas em relaccedilatildeo agrave loacutegica e o
reconhecimento da pluralidade de aberturas do mundo instauradas pelas
diferentes liacutenguas
Esta mudanccedila de paradigma na filosofia da linguagem implica uma posiccedilatildeo
relativista face agrave possibilidade da traduccedilatildeo duma liacutengua para outra assim como
agrave possibilidade de falantes de diversas liacutenguas se entenderem sobre o mesmo
De facto Hamann ao considerar a linguagem como a raiz comum do
ldquoentendimentordquo e da ldquosensibilidaderdquo constitui-a como uma instacircncia alternativa
ao eu transcendental uma vez que para ela podem reclamar-se funccedilotildees
idecircnticas na constituiccedilatildeo da experiecircncia Contudo esta superaccedilatildeo do eu
55
Cristina Lafont defende que a tese heideggeriana da funccedilatildeo de abertura de mundo da linguagem se
insere numa tradiccedilatildeo da filosofia alematilde que designa como ldquoa tradiccedilatildeo de Hamann-Herder-Humboldtrdquo
Esta tradiccedilatildeo critica a filosofia da consciecircncia - cuja concepccedilatildeo da linguagem eacute a de um ldquoinstrumentordquo
para a designaccedilatildeo de entidades extra-linguiacutesticas ou para a expressatildeo de pensamentos preacute-linguiacutesticos ndash e
atribui agrave linguagem um papel constitutivo na nossa relaccedilatildeo com o mundo Cf Idem Lenguaje y apertura
del mundo Madrid (1997) 22 56
Cf Cristina Lafont considera que a criacutetica de Hamann a Kant pode considerar-se como o nuacutecleo desta
mudanccedila de paradigma na filosofia da linguagem ldquoHamann localizoacute en el lenguaje la raiacutez comuacuten del
ldquoentendimientordquo y la ldquosensibilidadrdquo buscada por Kant y con ello confirioacute al lenguaje una dimensioacuten a la
vez empiacuterica e transcendental Es precisamente este paso el que convierte al lenguaje en una instancia que
entra en competencia con el Yo transcendentalrdquo Ibidem 22 57
Cf Johan Georg Hamann As Memoraacuteveis Socraacuteticas Lisboa (1999) 55 ldquoA ignoracircncia socraacutetica era
um sentir Ora entre um sentir e uma proposiccedilatildeo teoacuterica vai uma diferenccedila maior do que aquela que existe
entre um animal vivo e o respectivo esqueleto na sala de Anatomiardquo
54
transcendental significa que agrave universalidade da consciecircncia se contrapotildee a
diversidade das vaacuterias liacutenguas naturais
Assim a unidade transcendental da apercepccedilatildeo seraacute fraccionada em muacuteltiplas
aberturas de mundo ou imagens do mundo correspondentes agraves diversas
liacutenguas naturais Sendo estas aberturas de mundo articuladas nas diferentes
liacutenguas naturais incomensuraacuteveis natildeo soacute resulta impossiacutevel falar de uma
consciecircncia em geral como natildeo tem tambeacutem qualquer sentido falar de um
mundo objectivo constituiacutedo por entidades independentes da linguagem58
Esta tradiccedilatildeo levou tambeacutem a cabo uma criacutetica agrave concepccedilatildeo instrumental da
linguagem dominante desde Aristoacuteteles que centrando-se sobre os nomes
lhes reconhece a funccedilatildeo de designar ou mostrar o ente Humboldt criticando
esta concepccedilatildeo pobre e restritiva das funccedilotildees da linguagem mostra que a
palavra nunca designa directamente o ente mas uma representaccedilatildeo que se
por um lado se refere ao ente por outro lado tem tambeacutem uma dimensatildeo
subjectiva que consiste num modo de apreensatildeo deste (o significado)59
Humboldt ao introduzir esta distinccedilatildeo entre a referecircncia e o significado vai
mostrar que a palavra nunca designa directamente um objecto mas que entre
ambos se interpotildee o universo dos significados e dos conceitos Se palavras
distintas em diferentes liacutenguas se referem ao mesmo objecto isto significaraacute
para Humboldt que cada liacutengua oferece uma perspectiva do mundo proacutepria60
Heidegger insere-se claramente nesta tradiccedilatildeo (embora natildeo a assuma
explicitamente) que reivindica para a linguagem um papel central na
constituiccedilatildeo da experiecircncia atribuindo-lhe como funccedilatildeo central a abertura de
58
A tese de Humboldt de que ldquoa cada ligravengua subjaz uma perspectiva particular de mundordquo eacute uma das
consequecircncias desta viragem na filosofia da linguagem Cf Cristina Lafont (ob cit 24) sublinha que
Humboldt procurou uma saiacuteda para as consequecircncias relativistas desta tese procurando garantir a
objectividade da experiecircncia pela investigaccedilatildeo das condiccedilotildees formais da comunicaccedilatildeo intersubjectiva 59
Cf Bernhard Sylla Hermeneutik der langue Weisgerber Heidegger und die Sprachphilosophie nach
Humboldt Wuumlrzburg (2009) Comentando a contribuiccedilatildeo de Humboldt o autor sublinha a novidade e o
caraacutecter antecipador da sua perspectiva sobre a natureza da linguagem humana agrave qual atribui a funccedilatildeo
primaacuteria de significaccedilatildeo ldquoIn den vorgehenden Paragraphen hatte Humboldt schon die wesentliche
Bedeutung des Lautcharakters von Sprache eroumlrtert wobei der Sprachlaut sich vom tierischen Laut
dadurch unterscheidet dass ersterem die ldquoAbsicht und die Faumlhigkeit zur Bedeutsamkeitrdquo zukomme dh
jeder sprachliche Laut ist artikuliertes Laut Quasi im Vorgriff auf spaumltere Erkenntnisse der
strukturalistischen Phonologie hebt Humboldt in der Folge hervor dass die bedeutungsdifferenzierende
Funktion der Laute und ihre Einbettung in ein Lautsystem ein wesentliches Merkmal der Sprachlaute seildquo
(Idem ob cit 132) 60
bdquo[hellip] si se asume que los signos linguumligravesticos en general solo pueden referirse a algo ldquoindirectamenterdquo
es decir mediante ldquosignificadosrdquo o ldquoconceptosrdquo entonces resulta praacutecticamente inevitable la
consecuencia idealista que Humboldt mismo extrae de esta suposicioacuten a saber que ldquoel hombre vive con
los objetos () exclusivamente tal y como el lenguaje se los presentardquordquo (Cristina Lafont ob cit 27)
55
mundo em detrimento da funccedilatildeo designativa61 Heidegger natildeo apenas assume
e leva agraves uacuteltimas consequecircncias esta tese como pretende fundaacute-la numa
preacutevia confrontaccedilatildeo com a loacutegica capaz de a abalar a partir dos seus
fundamentos confrontaccedilatildeo esta que nenhum dos autores referidos teria sido
capaz de fazer
1 Linguagem e ldquoabertura ontoloacutegicardquo
A histoacuterica confrontaccedilatildeo com Aristoacuteteles desempenha um papel central na
investigaccedilatildeo sobre a essecircncia da linguagem pois na perspectiva de
Heidegger o filoacutesofo grego assume uma particular importacircncia na histoacuteria da
filosofia como autor que se por um lado ainda reproduz o eco longiacutenquo do
pensamento originaacuterio por outro lado abre tambeacutem o caminho para impor o
logos como razatildeo e a loacutegica como ciecircncia normativa do pensamento e da
linguagem
Esse confronto com Aristoacuteteles a propoacutesito da questatildeo da linguagem eacute levado
a cabo em dois momentos essenciais em Ser e Tempo de 1927 e em Logik als
die Frage nach dem Wesen der Sprache tiacutetulo sob o qual foram publicadas as
liccedilotildees de loacutegica do semestre de Veratildeo de 193462 sendo esse confronto levado
a cabo em ambos os momentos na mesma disposiccedilatildeo fenomenoloacutegica
A Fenomenologia eacute para Heidegger63 um meacutetodo de acesso a qualquer
campo de investigaccedilatildeo temaacutetico e por conseguinte tambeacutem agrave investigaccedilatildeo da
61
Cf Bernhard Sylla refere a criacutetica de Heidegger a Humboldt e Herder situando-os ainda no acircmbito
duma metafiacutesica da linguagem mas sintetiza deste modo o aspecto que Heidegger valorizava nestes dois
pensadores bdquoWas Heidegger an Herder und Humboldt schaumltz sind also nicht deren theoretische
Konzeptionen als solche sondern vielmehr die ldquotiefdunklen Ahnungenldquo eines eigentlicheren Geschehens
die im Rahmen der von ihnen befolgten metaphysischen Paradigmen allerdings keine
Entwicklungsmoumlglichkeiten hatten Waumlhrend bezuumlglich Herder hier insbesondere die ungewoumlhnliche
Rolle des Horchens auf Sprache herausgestrichen wird ist es bei Humboldt ein weit grundlegenderer Zug
von Sprache naumlmlich die Eroumlffnung des Horizontes fuumlr dasjenige Verfahren das Heidegger selbst als
einzig wesentliches und ldquoeigentlichesrdquo verfolgte die Umwandlung der gewoumlhnlichen Sprache in eine
andere ldquourspruumlnglichererdquo und ldquoeigentlicherdquoldquo (Idem ob cit 367) 62
Martin Heidegger Loacutegica A pergunta pela essecircncia da linguagem Coord Ciecircntifica de Irene Borges-
Duarte trad de Maria Adelaide Pacheco e Helga Hook Quadrado Lisboa Gulbenkian 2008 63
Cf Otto Poumlggeler in Der Denkweg Martin Heideggers Tuumlbingen 1963 O autor sublinha que
Heidegger nas suas liccedilotildees apoacutes a Primeira Guerra Mundial jaacute colocava objecccedilotildees ao modo como Husserl
desenvolvia a fenomenologia a fenomenologia natildeo partia da intuiccedilatildeo entendida como intuiccedilatildeo de
objectos mas do compreender enraizado na vida como facticidade e historicidade A reduccedilatildeo
fenomenoloacutegica natildeo pode ser vista como o regresso a uma consciecircncia constituinte mas nessa reduccedilatildeo
deve ser conservada a vida faacutectica ldquoHeidegger gruumlndet die Phaumlnomenologie im Verstehen des faktischen
Leben in der Hermeneutik der Faktizitaumlt Die Phaumlnomenologie wird so zur bdquohermeneutische
Phaumlnomenologierdquoldquo (Idem ob cit 70)
56
linguagem O meacutetodo de proceder fenomenoloacutegico visa abrir uma via de
acesso ao ser lutando contra a dissimulaccedilatildeo e o encobrimento em que ele
permanece a maior parte do tempo e Heidegger sintetiza-o nas trecircs indicaccedilotildees
metodoloacutegicas da reduccedilatildeo fenomenoloacutegica da construccedilatildeo fenomenoloacutegica e
da destruiccedilatildeo fenomenoloacutegica64
A destruiccedilatildeo fenomenoloacutegica eacute o exerciacutecio da criacutetica aos fenoacutemenos
dissimuladores que encobrem o ser e deve acompanhar os outros dois
procedimentos metoacutedicos como condiccedilatildeo da possibilidade de
encaminhamento da investigaccedilatildeo no sentido dum progressivo desvelamento do
ser da linguagem
Ora a loacutegica constitui-se historicamente ndash o que Heidegger afirmara em Ser e
Tempo na continuidade da tradiccedilatildeo de Hamann Herder e Humboldt ndash como
aquele aspecto da tradiccedilatildeo filosoacutefica que deturpou e nos vedou o acesso ao ser
da linguagem Desse modo a destruiccedilatildeo da loacutegica impotildee-se como
procedimento metodoloacutegico essencial para que a investigaccedilatildeo possa tomar o
caminho pretendido e chegue a mostrar o ser da linguagem tal como ele
aparece ao olhar compreensivo da reconstruccedilatildeo fenomenoloacutegica ou tal como
ele se mostra a respeito de si mesmo
Nas Liccedilotildees de Loacutegica Heidegger esclarece o sentido em que deve ser tomada
esta ldquodestruiccedilatildeo da loacutegicardquo precisando que destruiacute-la natildeo significa
menosprezaacute-la como supeacuterflua mas apenas compreendecirc-la e abalaacute-la a partir
dos seus fundamentos tarefa que Heidegger afirma estar ainda a dar os seus
primeiros passos ldquoNatildeo se supera o intelectualismo com o mero resmungar
mas atraveacutes da austeridade e do rigor dum pensar completamente novo e
seguro Isso natildeo acontece da noite para o dia nem por encomenda Isso natildeo
acontece enquanto o domiacutenio e o poder da loacutegica tradicional natildeo se tiverem
quebrado Isso exige uma luta na qual o nosso destino espiritual e histoacuterico se
decide uma luta para a qual neste momento nem sequer temos as armas e
em que natildeo conhecemos ainda o adversaacuterio de modo que corremos o risco de
inadvertidamente fazer causa comum com o adversaacuterio em vez de o atacar
64
No curso de Marburgo de 19191920 (GP GA 58) Heidegger discute os trecircs momentos fundamentais
do meacutetodo fenomenoloacutegico a reduccedilatildeo fenomenoloacutegica a construccedilatildeo fenomenoloacutegica e a destruiccedilatildeo
fenomenoloacutegica destinados a facultar o acesso a qualquer campo de investigaccedilatildeo da fenomenologia
Sobre este ponto Cf Friedrich-Wilhelm Von Herrmann A Ideia de Fenomenologia em Heidegger e
Husserl Phainomenon (2003) 180-183
57
Noacutes temos que saber que a nossa histoacuteria espiritual remete para haacute 2000 anos
Esta histoacuteria na sua forccedila instituinte estaacute hoje ainda presente mesmo que a
maioria natildeo suspeite nada dissordquo65
A magnitude desta tarefa de abalar a loacutegica a partir dos seus fundamentos
reside no facto de ela natildeo ser um qualquer domiacutenio do pensar mas aquele
domiacutenio fundante da histoacuteria da nossa cultura sob o impeacuterio do qual se
desenvolveu a nossa histoacuteria espiritual enquanto histoacuteria da racionalidade
teacutecnica e cientiacutefica que mais tarde Heidegger designaraacute por Gestell Abalar a
loacutegica a partir dos seus fundamentos significa abalar os proacuteprios fundamentos
da nossa histoacuteria e assim poder libertar a essecircncia da linguagem ldquoSoacute uma
longa e dolorosa libertaccedilatildeo nos traz para o ar livre e nos prepara para criar a
nova forma da linguagem (Rede)rdquo
A loacutegica constituiu-se com Aristoacuteteles como ciecircncia normativa do pensar e
simultaneamente condicionou a articulaccedilatildeo da linguagem e a sua
normalizaccedilatildeo atraveacutes das categorias da gramaacutetica Atraveacutes do seu impeacuterio
sobre as diversas gramaacuteticas a loacutegica aristoteacutelica constitui-se como ldquosiacutetio de
origem da linguagem faacutecticardquo isto eacute das diversas liacutenguas tal como satildeo
efectivamente usadas para produzir os enunciados cientiacuteficos e as proposiccedilotildees
metafiacutesicas
Assim a loacutegica aristoteacutelica que se manteve praticamente inalterada ao longo
da nossa histoacuteria vigorou e regeu todo o pensar ocidental como instrumento e
propedecircutica do pensar e do conhecer
Natildeo poderemos no entanto compreender a confrontaccedilatildeo de Heidegger com
Aristoacuteteles se natildeo tivermos em conta que esse confronto se estabelece a partir
da partilha de um solo comum claramente estabelecido em Ser e Tempo de
facto em Aristoacuteteles Heidegger encontra ainda a conservaccedilatildeo da noccedilatildeo grega
originaacuteria da linguagem como logos assim como o eco do pensar inaugural
que lhe conferia um papel central na constituiccedilatildeo ontoloacutegica do homem rdquoSeraacute
65
bdquoMit bloszligem Schimpfen wird der Intellektualismus nicht uumlberwunden sondern durch die Haumlrte und
Strenge eines ganz neuen und gesicherten Denkens Es kommt nicht uumlber Nacht und nicht auf Bestellung
Es kommt so lange nicht als Herrschaft und Macht der uumlberlieferten Logik nicht von Grund auf
gebrochen sind Das fordert einen Kampf in dem sich unser geistiges und geschichtliches Schicksal
entscheidet einen Kampf zu dem wir heute noch nicht einmal die Waffen haben und in dem wir heute
noch nicht einmal den Gegner kennen so daβ wir Gefahr laufen unversehens mit dem Gegner
gemeinsame Sache zu machen anstatt ihn anzugreifen Wir muumlssen wissen daβ unsere geistige
Geschichte 2000 Jahre zuruumlck gebunden ist Diese Geschichte ist in ihrer gestaltenden Kraft heute noch
Gegenwart auch wenn die meisten nichts davon ahnenldquo LWS GA 38 89
58
um acaso que os gregos cujo existir quotidiano se tinha colocado
preponderantemente no falar um com o outro e que ao mesmo tempo rdquotinham
olhosrdquo para ver definissem a essecircncia do homem tanto na interpretaccedilatildeo preacute-
filosoacutefica do Dasein como na filosoacutefica como δῷολ ιoacuteγολ ἔχολrdquo66
Se o conceito aristoteacutelico de logos eacute submetido por Heidegger a uma
destruiccedilatildeo fenomenoloacutegica com tal procedimento metodoloacutegico Heidegger
pretende levar a cabo uma desmontagem conceptual que permita reconstruir a
situaccedilatildeo originaacuteria desse conceito Logos no pensamento grego inaugural natildeo
designava a razatildeo mas a identidade essencial entre falar e pensar o homem
eacute para os gregos um ente que fala isto eacute um ente no qual se articula a
compreensatildeo do mundo
Logos neste sentido originaacuterio seraacute traduzido por Heidegger em Ser e Tempo
atraveacutes da palavra alematilde Rede (faladiscurso) e explicitado em Ser e Tempo
como ldquoarticulaccedilatildeo da compreensibilidaderdquo ldquoA fala eacute a articulaccedilatildeo da
compreensibilidade Serve por isso jaacute de base agrave interpretaccedilatildeo e agrave proposiccedilatildeo
O articulaacutevel na interpretaccedilatildeo ou mais originariamente jaacute na fala chamamo-lo
o sentido O articulado na articulaccedilatildeo da fala chamamo-lo enquanto tal o todo
do significadordquo67
A linguagem enquanto logos articula-se originariamente com a questatildeo do ser
e da verdade mas de um outro modo que natildeo aquele que se encontra em
Aristoacuteteles o logos (nesse sentido originaacuterio que agora Heidegger visa
recuperar) natildeo designa a proposiccedilatildeo mas o falar um com o outro no qual se
partilha um sentido comum ou se descobre um mundo na totalidade da sua
significaccedilatildeo
Os quatro momentos estruturais da fala (Rede) que a investigaccedilatildeo
fenomenoloacutegica de Ser e Tempo permitiu aclarar mostram precisamente esta
dimensatildeo simultaneamente totalizante e dialoacutegica da linguagem
66
bdquoIst es Zufall daszlig die Griechen deren alltaumlgliches Existieren sich vorwiegend in das Miteinanderreden
verlegt hatte und die zugleich bdquoAugen hattenldquo zu sehen in der vor philosophischen sowohl wie in der
philosophischen Daseinsauslegung das Wesen des Menschen bestimmten als δῷολ ιoacuteγολ ἔτολldquo SuZ
GA 2 sect34 165 67
bdquoRede ist die Artikulation der Verstaumlndlichkeit Sie liegt daher der Auslegung und Aussage schon
zugrunde Das in der Auslegung urspruumlnglicher mithin schon in der Rede Artikulierbare nannten wir den
Sinn Das in der redenden Artikulation Gegliederte als solches nennen wir das Bedeutungsganzeldquo SuZ
GA 2 sect34 161
59
1 O ldquosobre que se falardquo aponta para a funccedilatildeo de designaccedilatildeo
salientada por Aristoacuteteles a propoacutesito da proposiccedilatildeo cujo sujeito
indica o ente de que se fala Para Heidegger esta funccedilatildeo de
designaccedilatildeo pode contudo ser desempenhada por enunciados
linguiacutesticos natildeo proposicionais como uma ordem ou um desejo
ou uma pergunta
2 O segundo momento estrutural eacute ldquoo que se falardquo isto eacute o que eacute
dito no desejar ordenar perguntar etc e que eacute objecto de
comunicaccedilatildeo
3 O terceiro momento eacute a comunicaccedilatildeo na qual se constitui a
articulaccedilatildeo de ldquoser um com outrordquo
4 O quarto momento eacute a manifestaccedilatildeo ou o expressar-se do estado
de acircnimo pelo tom e a maneira de dizer
Estes 4 momentos apontam inequivocamente para uma concepccedilatildeo de
linguagem que extravasa os limites da proposiccedilatildeo - a fala tem uma estrutura
essencialmente dialoacutegica mesmo quando confinada ao exerciacutecio do
pensamento solitaacuterio pensar eacute falar com o outro como se encontra jaacute
evidenciado na dialeacutectica platoacutenica
Agrave fala (Rede) eacute inerente o ser-com e ela aponta sempre pois para uma
partilha ou um instituir do sentido plano do social de modo que aquele que fala
(e que pensa) eacute sempre jaacute algueacutem que participa dum jogo comunicativo cujas
normas o precedem e condicionam
Cada acto singular de fala exerce-se a partir duma comunhatildeo preacutevia de sentido
que tem uma dimensatildeo simultaneamente compreensiva e afectiva reinstaura e
actualiza essa comunhatildeo ou esse ser-um-com-o-outro ldquoA comunicaccedilatildeo nunca
eacute como um transporte de vivecircncias por exemplo de opiniotildees e desejos do
interior de um sujeito ao interior de outro O ser-aiacute-com eacute essencialmente jaacute
patente na afectividade e compreensatildeo em comum O ser-com eacute partilhado
ldquoexplicitamenterdquo na fala quer dizer jaacute o eacute soacute natildeo eacute partilhado enquanto natildeo
assumido nem apropriadordquo 68
68
bdquoMitteilung ist nie so etwas wie ein Transport von Erlebnissen zum Beispiel Meinungen und
Wuumlnschen aus dem Inneren des einen Subjekts in das Innere des anderen Mitdasein ist wesenhaft schon
60
Se Heidegger tem consciecircncia de seguir o caminho jaacute aberto por Humboldt ao
recuperar este sentido totalizante do logos como discurso instituinte duma
significaccedilatildeo comum ele pretende contudo ir mais longe ldquoA teoria da
significaccedilatildeo natildeo se produz por si comparando as mais e mais diversas liacutenguas
possiacuteveis Tatildeo-pouco basta regressar ao horizonte filosoacutefico dentro do qual W
V Humboldt colocou o problema da linguagem A teoria da significaccedilatildeo tem as
suas raiacutezes na ontologia do Dasein A sua prosperidade e decadecircncia seguem
os destinos destardquo69
A viragem hermenecircutica estaacute aqui claramente indicada como afirmaccedilatildeo radical
da centralidade da linguagem na constituiccedilatildeo da experiecircncia e
simultaneamente como uma viragem que ambiciona tornar-se autenticamente
vigente ultrapassando o plano da simples anaacutelise linguiacutestica em que se movia
Humboldt para cumprir-se no plano da ontologia fundamental Esta viragem
seraacute efectivamente concretizada nos vaacuterios paraacutegrafos de Ser e Tempo
dedicados agrave tarefa de encontrar um lugar ontoloacutegico para a linguagem na
constituiccedilatildeo do ser do homem aiacute conduzindo agrave consideraccedilatildeo de que a
linguagem eacute inerente ao ldquoestado de abertordquo [Erschlossenheit] do Dasein
Assim a elucidaccedilatildeo do estado de aberto do Dasein eacute um aspecto crucial para
compreender a problemaacutetica da linguagem em Ser e Tempo o Dasein move-se
sempre em cada caso num mundo jaacute aberto isto eacute num mundo jaacute
simbolicamente estruturado e por isso mesmo susceptiacutevel de ser
compreendido Mundo natildeo tem por isso o significado ocircntico da totalidade dos
entes ldquodiante dos olhosrdquo que se opotildeem ao Dasein nem tatildeo-pouco o significado
ontoloacutegico do ser desses entes Mundo tem o significado englobante do ldquoem
querdquo o Dasein faacutectico vive e exerce a sua existecircncia e do qual tem sempre uma
compreensatildeo preacute-ontoloacutegica ldquoMundo pode por outro lado ser compreendido
num sentido ocircntico agora poreacutem natildeo como o ente que o Dasein
essencialmente natildeo eacute e que pode encontrar intra-mundanamente mas como o
offenbar in der Mitbefindlichkeit und im Mitverstehen Das Mitsein wird in der Rede bdquoausdruumlcklichrdquo
geteilt das heiszligt es ist schon nur ungeteilt als nicht ergriffenes und zugeeignetesldquo SuZ GA2 sect34 162 69
bdquoDie Bedeutungslehre ergibt sich nicht von selbst durch umfassendes Vergleichen moumlglichst vieler und
entlegener Sprachen Ebensowenig genuumlgt die Uumlbernahme etwa des philosophischen Horizonts innerhalb
dessen W v Humboldt die Sprache zum Problem machte Die Bedeutungslehre ist in der Ontologie des
Daseins verwurzelt Ihr Gedeihen und Verderben haumlngt am Schicksal dieserldquo SuZ GA2 sect34 166
61
ldquoonderdquo um Dasein faacutectico como tal ldquoviverdquo Mundo tem aqui um significado
existencial preacute-ontoloacutegicordquo70
Haacute assim uma conexatildeo estreita entre a linguagem e a estrutura do Dasein
enquanto ser-no-mundo ser-no-mundo significa mover-se no interior duma
abertura ontoloacutegica jaacute aberta na linguagem efectivamente falada e estruturante
dessa totalidade que eacute o mundo A linguagem eacute uma instacircncia uacuteltima inerente
ao estado de aberto do Dasein e que possibilita todo o conhecimento intra-
mundano Nesta funccedilatildeo de abertura de mundo haacute que destacar o seu caraacutecter
globalizante ou holiacutestico integrando toda a articulaccedilatildeo de sentido que eacute
inerente natildeo apenas aos discursos teoacutericos mas muito antes disso e mais
originariamente agrave acccedilatildeo praacutetica do quotidiano ao simples ldquoocupar-se com as
coisas agrave matildeordquo o que mais tarde iraacute tornar possiacutevel a Heidegger a interpretaccedilatildeo
da teacutecnica e da arte como linguagem
A linguagem natildeo estaacute assim prioritariamente ligada ao conhecimento
proposicional e ao comportamento teoreacutetico - como em Aristoacuteteles - sendo este
apenas um caso particular do Besorgen ou do ocupar-se que caracteriza o In-
der-Welt-Sein Tomar este comportamento teoreacutetico como ponto de partida
para a compreensatildeo da linguagem induz uma compreensatildeo restritiva e
empobrecedora da linguagem que assim fica submetida agraves exigecircncias
normativas desse campo de visatildeo ldquoO comportamento praacutetico natildeo eacute ldquoateoreacuteticordquo
no sentido de privado de visatildeo e a sua diferenccedila em relaccedilatildeo ao
comportamento teoreacutetico natildeo reside apenas em que este eacute reflectido e aquele
agido e que a acccedilatildeo para natildeo permanecer cega usa o conhecimento
teoreacutetico mas reflectir eacute originariamente um ocupar-se como o agir tem a sua
visatildeo O comportamento teoreacutetico eacute soacute ver numa direcccedilatildeo precisa privado de
visatildeo englobante O ver numa direcccedilatildeo natildeo eacute porque privado de visatildeo agrave volta
sem regras constroacutei para si o seu cacircnone no Meacutetodordquo71
70
bdquoWelt kann wiederum in einem ontischen Sinn verstanden werden jetzt aber nicht als das Seiende das
das Dasein wesenhaft nicht ist und das innerweltlich begegnen kann sondern als das ldquoworinrdquo ein
faktisches Dasein als dieses ldquolebtrdquo Welt hat hier eine vorontologisch existentielle Bedeutungrdquo SuZ GA
2 sect14 65 71
bdquoDas ldquopraktischerdquo Verhalten ist nicht ldquoatheoretischrdquo im Sinne der Sichtlosigkeit und sein Unterschied
gegen das theoretische Verhalten liegt nicht nur darin daβ hier betrachtet und dort gehandelt wird und
daβ das Handeln um nicht blind zu bleiben theoretisches Erkennen anwendet sondern das Betrachten ist
so urspruumlnglich ein Besorgen wie das Handeln seine Sicht hat Das theoretische Verhalten ist
unumsichtiges Nur-hinsehen Das Hinsehen ist weil unumsichtig nicht regellos seinen Kanon bildet es
sich in der Methoderdquo SuZ GA 2 sect 15 69
62
Rompendo com uma concepccedilatildeo excessivamente restritiva da linguagem que
se encontra instituiacuteda em Aristoacuteteles Heidegger recupera a compreensatildeo mais
originaacuteria da linguagem como esse logos comum de que jaacute falava Heraclito
permitindo-lhe afirmar que ldquotodas as coisas satildeo umrdquo A temaacutetica ontoloacutegica estaacute
assim para Heidegger intrinsecamente ligada com esta funccedilatildeo de ldquoabrir
mundordquo que ele afirma como a funccedilatildeo primeira da linguagem eacute a linguagem
que fixa e institui o sentido do ser em geral
Sendo a linguagem o fio condutor para o esclarecimento da problemaacutetica
ontoloacutegica eacute na confrontaccedilatildeo com Aristoacuteteles e na destruiccedilatildeo de uma
concepccedilatildeo simultaneamente normativa e restritiva do logos que esta temaacutetica
poderaacute ser cabalmente compreendida72
2 O logos hermenecircutico e o logos apofacircntico
Trata-se em primeiro lugar para Heidegger de enfrentar a tradiccedilatildeo filosoacutefica
que traduziu e interpretou logos como rdquo[] razatildeo juiacutezo conceito definiccedilatildeo
fundamento proporccedilatildeordquo O questionamento de Heidegger centra-se na questatildeo
de saber porque se interpretou logos no sentido de proposiccedilatildeo e de juiacutezo ou
seja como siacutentese de conceitos que na sua perspectiva tem a funccedilatildeo de
permitir ver algo em seu estar junto com algo permitir ver algo como algo
A siacutentese implicada nos enunciados verbais que classificamos como
proposiccedilotildees funda-se na funccedilatildeo primordial atribuiacuteda por Aristoacuteteles agrave
linguagem e por ele designada de ἀποθαίλεζζαη (dar a ver algo como algo) A
confrontaccedilatildeo com Aristoacuteteles vai centrar-se nesta primazia atribuiacuteda pelo
filoacutesofo grego agrave funccedilatildeo apofacircntica da linguagem ldquoιoacuteγος no sentido da fala quer
dizer antes o mesmo que δειοῦλ fazer patente ldquoaquilo de que se falardquo na fala
Aristoacuteteles explicou com mais rigor esta funccedilatildeo da fala chamando-lhe
ἀποθαίλεζζαηrdquo73
72
Cf Tatiana Aguilar-Aacutelvarez Bay em El Lenguaje en el Primer Heidegger (Meacutexico 1998) A autora
defende a tese de que Ser e Tempo se desenrola agrave volta do problema central da loacutegica como ciecircncia da
verdade e que eacute nesse contexto que a linguagem assume especial relevacircncia Heidegger reformula o
conceito de logos deslocando o conceito de verdade para a linguagem tema transversal a toda a obra e de
modo algum circunscrita ao apartado que se lhe dedica (Idem ob cit 283) 73
bdquoλoacuteγος als Rede besagt vielmehr soviel wie δελοῦν offenbar machen das wovon in der Rede rdquodie
Rederdquo ist Aristoteles hat diese Funktion der Rede schaumlrfer expliziert als ἀποφαίνεζζαηldquo SuZ GA 2 sect7
32
63
A funccedilatildeo apofacircntica atribui ao logos a possibilidade de dar a ver aquilo de que
se fala aos que falam uns com os outros recobrindo assim simultaneamente a
funccedilatildeo de designaccedilatildeo proacutepria do sujeito da proposiccedilatildeo (que torna patente
aquilo que designa) e a funccedilatildeo de atribuiccedilatildeo inerente agrave predicaccedilatildeo ou
ςύλζεζης que natildeo satildeo aliaacutes distinguidas por Heidegger Na criacutetica ao ldquodar a
ver algo como algordquo caracteriacutestico do logos apofacircntico Heidegger visa
sobretudo o facto de Aristoacuteteles considerar os enunciados verbais como
designando directamente as coisas ldquodiante dos olhosrdquo
E porque a funccedilatildeo da linguagem para Aristoacuteteles consiste no simples permitir
ver algo o mostrado enquanto tal o uumlποθείκελολ o que ldquoestaacute diante dos
olhosrdquo o logos poderaacute tambeacutem ser interpretado como significando razatildeo de
ser ou ratio
Esta funccedilatildeo de designaccedilatildeo dos entes tomada como funccedilatildeo primaacuteria da
linguagem deixa poreacutem de lado a questatildeo do sentido - daiacute que Heidegger
pressuponha natildeo a falsidade da funccedilatildeo apofacircntica da linguagem afirmada por
Aristoacuteteles mas o seu caraacutecter secundaacuterio e derivado Uma funccedilatildeo anterior e
mais fundamental da linguagem eacute por ele pressuposta sob a designaccedilatildeo de
ldquologos hermenecircuticordquo O logos hermenecircutico pode mostrar-se no acto
antepredicativo do simples compreender as coisas agrave matildeo
Heidegger vai em seguida questionar-se sobre o conceito de verdade
dominante na tradiccedilatildeo metafiacutesica a verdade como concordacircncia salientado o
seu caraacutecter superficial e derivado ldquoEsta ideia natildeo eacute em nenhum caso a
primaacuteria no conceito de ἀιήζεηα O ser verdade do ιόγος como ἀιεζεύεηλ quer
dizer no ιέγεηλ como ἀποθαίλεζζαη extrair do seu ocultamento o ente de que
se fala e permitir vecirc-lo descobri-lo como natildeo oculto (ἀιεζές)rdquo74
Aprofundando o seu questionamento sobre a possibilidade ontoloacutegica deste
extrair do ocultamente Heidegger conclui que esta radica no proacuteprio Dasein e
na sua constituiccedilatildeo ontoloacutegica que tem em si mesma a possibilidade de uma
atitude de desocultaccedilatildeo e de abertura relativamente aos entes
74
bdquoDiese Idee ist keinesfalls die primaumlre im Begriff der ἀλήζεηα Das bdquoWahrseinrdquo des λόγος als ἀλεζεύεην
besagt das Seiende wovon die Rede ist im λέγεην als ἀποφαίνεζζαη aus seiner Verborgenheit heraus
nehmen und es als Unverborgenes (ἀλεζές) sehen lassen entdeckenldquo SuZ GA sect7 33
64
Esta atitude natildeo se restringe de modo algum ao logos apofacircntico ou aos
enunciados proposicionais mas eacute antes de mais inerente agrave proacutepria aisthesis e
ao noein este confronto com Aristoacuteteles tem como resultado salientar o
caraacutecter secundaacuterio e derivado dos enunciados proposicionais e a
necessidade de alargar e radicalizar o conceito de logos de modo a dar conta
e a recobrir esta atitude de desocultaccedilatildeo e abertura inerentes ao Dasein
O logos hermenecircutico eacute a expressatildeo encontrada por Heidegger para indicar
esta perspectiva globalizante em que agora se encara a fala de facto
Heidegger aponta para uma linguagem antepredicativa inerente ao Dasein
como ser-no-mundo isto eacute a uma atitude compreensiva e interpretativa do
mundo englobante que fundamenta a possibilidade da linguagem expressa
dos enunciados verbais numa qualquer liacutengua e ainda dos enunciados
proposicionais inerentes a uma atitude teoreacutetica75
Haacute para Heidegger uma linguagem (logos) inerente aos modos preacute-teoreacuteticos
de relacionamento do Dasein com o mundo agrave volta e com os entes intra-
mundanos uma vez que este modo de relacionamento mesmo enquanto
praxis se mostra enquanto um rdquotratar comrdquo orientado para um rdquopara querdquo que
estrutura uma situaccedilatildeo significativa que em cada caso existe Em conformidade
com isto Heidegger diraacute no sect 32 de Ser e Tempo ldquoA indicaccedilatildeo do rdquopara quecircrdquo
natildeo eacute simplesmente o nomear algo mas o nomeado eacute compreendido como
aquilo pelo que haacute que tomar aquilo pelo que se pergunta O aberto no
compreender o compreendido eacute sempre jaacute acessiacutevel de tal maneira que nele
pode destacar-se expressamente o seu rdquocomo quecircrdquo O rdquocomordquo constitui a
estrutura do estado de expresso de algo compreendido constitui a
interpretaccedilatildeo O rdquoandar em tornordquo interpretando no rdquover em tornordquo com o rdquoagrave-
matildeordquo no mundo circundante que o ldquovecircrdquo como mesa porta carro ponte natildeo
necessita forccedilosamente de explicitar o interpretado no rdquover em tornordquo tambeacutem
75
A afirmaccedilatildeo do primado do logos hermenecircutico eacute uma questatildeo central relativamente agrave investigaccedilatildeo
levada a cabo em Ser e Tempo pois conecta-se com a dimensatildeo ontoloacutegica da linguagem ldquoNos
encontramos ante un punto decisivo en la interpretacioacuten heideggeriana del habla La distincioacuten que lleva a
cabo a continuacioacuten explica el alcance que atribuye al lenguaje maacutes adelante La estructura-como que
estaacute en la base del significar se distingue de la siacutentesis y la diaacuteiresis como lo ontoloacutegico de lo loacutegico En
la comprensioacuten que se deriva de la estructura-como nos hacemos con lo que las cosas son no soacutelo con
alguna de sus notas El significado el sentido de algo se da en este aacutembitordquo Tatiana Aguilar-Aacutelvarez
Bay El Lenguaje en el Primer Heidegger 76-77
65
numa proposiccedilatildeo determinante Todo o simples ver antepredicativamente o rdquoagrave-
matildeordquo eacute jaacute em si mesmo interpretativo-compreensorrdquo 76
O simples ver das coisas eacute sempre jaacute uma articulaccedilatildeo da inteligibilidade eacute-lhe
subjacente a compreensatildeo de algo como algo (Als-Struktur)77 que configura
uma funccedilatildeo de abertura ou de interpretaccedilatildeo que eacute inerente ao Dasein
enquanto ser-no-mundo Eacute essa possibilidade que possui o Dasein de olhar agrave
volta compreendendo que faz com que ldquoo mundordquo esteja sempre jaacute
compreendido e interpretado ldquoO olhar agrave volta descobre significa ldquoo mundordquo jaacute
compreendido eacute interpretado O ldquoagrave-matildeordquo entra expressamente no campo do ver
compreensorrdquo78
Heidegger sublinha vaacuterias vezes em Ser e Tempo que esta articulaccedilatildeo da
inteligibilidade eacute preacutevia a qualquer enunciado temaacutetico sobre as coisas que
qualquer enunciado se limita a expressar o rdquocomordquo previamente apropriado
pela interpretaccedilatildeo compreensiva do mundo agrave volta e ainda que esta
apropriaccedilatildeo preacutevia deve jaacute estar presente para que possa ser expressaacutevel num
qualquer enunciado A fala (Rede) eacute precisamente essa articulaccedilatildeo da
inteligibilidade preacutevia a qualquer enunciado e fundante de qualquer discurso
linguiacutestico para os quais Heidegger reserva o termo alematildeo de Sprache
A destruiccedilatildeo fenomenoloacutegica como desmontagem do conceito aristoteacutelico do
logos apofantikos teve pois como resultado possibilitar uma aproximaccedilatildeo da
experiecircncia faacutectica de vida e uma tentativa de reconstruccedilatildeo do conceito de
logos fiel a essa experiecircncia originaacuteria da fala como articulaccedilatildeo totalizante de
sentido em que afinal consiste ldquoum mundordquo ldquoOs entes intra-mundanos satildeo
projectados sem excepccedilatildeo sobre o fundo de mundo isto eacute sobre um todo de
76
bdquoDie Angabe des Wozu ist nicht einfach die Nennung von etwas sondern das Genannte ist verstanden
als das als welches das in Frage stehende zu nehmen ist Das im Verstehen Erschlossene das
Verstandene ist immer schon so zugaumlnglich daβ an ihm sein bdquoals wasrdquo ausdruumlcklich abgehoben werden
kann Das bdquoAlsrdquo macht die Struktur der Ausdruumlcklichkeit eines Verstandenen aus es konstituiert die
Auslegung Der umsichtig-auslegende Umgang mit dem umweltlich Zuhandenen der dieses als Tisch
Tuumlr Wagen Bruumlcke bdquosiehtldquo braucht das umsichtig Ausgelegte nicht notwendig auch schon in einer
bestimmenden Aussage auseinander zu legen Alles vorpraumldikative schlichte Sehen des Zuhandenen ist an
ihm selbst schon verstehend-auslegendldquo SuZ GA 2 sect32 149 77
Joatildeo Paisana chama a atenccedilatildeo para a distinccedilatildeo entre a estrutura ldquoenquanto querdquo (Als-Strucktur)
hermenecircutica (isto eacute ante-predicativa) e a estrutura ldquoenquanto querdquo apofacircntica (predicativa) Cf idem
Histoacuteria da Filosofia e Tradiccedilatildeo Filosoacutefica Lisboa 1993 37 78
ldquoDie Umsicht entdeckt das bedeutet die schon verstandene ldquoWeltrdquo wird ausgelegt Das Zuhandene
kommt ausdruumlcklich in die verstehende Sichtrdquo SuZ GA 2 sect32 148
66
significaccedilatildeo a cujas relaccedilotildees de referecircncia se fixou antecipadamente o ldquoocupar-
se comrdquo enquanto ldquoser no mundordquordquo79
3 Linguagem facticidade e existecircncia
A fenomenologia hermenecircutica limita-se a dar a conhecer e a tornar expliacutecita
essa articulaccedilatildeo da inteligibilidade que o Dasein realiza inexplicitamente e a
levaacute-la progressivamente a uma compreensatildeo expressa Mediante a
interpretaccedilatildeo hermenecircutica realizada em Ser e Tempo Heidegger poderaacute
mostrar que a linguagem deve ser apreendida como a experiecircncia viva da
unidade entre pensar e falar integrando-a no contexto concreto da existecircncia
Assim procede-se a uma deslocaccedilatildeo total do acircngulo de abordagem do
fenoacutemeno linguiacutestico Compreender a linguagem eacute caminhar na via da auto-
interpretaccedilatildeo do Dasein natildeo como um Dasein ideal mas como um Dasein
faacutectico tal como ele vive ou existe em cada dia
Trata-se duma rdquoviragem copernicanardquo no modo de aceder agrave linguagem que
natildeo pode ser tomada como objecto dum discurso cientiacutefico nem de qualquer
intenccedilatildeo normativa escapando inteiramente quer agrave loacutegica tradicional quer agrave
gramaacutetica que lhe foi historicamente subordinada Aceder agrave linguagem implica
compreendecirc-la teoricamente sem deixar de ser fiel agrave nossa experiecircncia viva da
fala
Fiel a esta intenccedilatildeo de tomar como ponto de partida para investigar a
linguagem o Dasein faacutectico enquanto ser jaacute sempre lanccedilado no mundo
Heidegger vai mostrar que o Dasein experiencia-se no seu caraacutecter
fundamental de aberto na modalidade fundamental da Erschlossenheit
enquanto se ocupa dos entes agrave-matildeo e eacute com-os-outros Tomando como ponto
de partida a praxis vital quotidiana - o homem enquanto eacute junto dos entes intra-
mundanos em e pelo cuidado (Sorge) - Heidegger vai mostrar e identificar
fenomenologicamente os modos de relacionamento (Verhaltungen) implicados
no estar ocupado com os entes junto dos quais estamos
79
bdquoDas innerweltlich Seiende uumlberhaupt ist auf Welt hin entworfen das heiβt auf ein Ganzes von
Bedeutsamkeit in deren Verweisungsbezuumlgen das Besorgen als In-der-Welt-sein sich im vorhinein
festgemacht hatldquo SuZ GA 2 sect32 151
67
Neste mostrar e identificar fenomenologicamente as vaacuterias modalidades de
relacionamento Heidegger vai indicar dois modos essencialmente praacuteticos o
Besorgen ou estar ocupado com os entes-agrave-matildeo ldquocuidando derdquo e o Fuumlrsorgen
ou o ldquopreocupar-se comrdquo os entes que tecircm a forma do Dasein (solicitude) Eacute
partindo destas relaccedilotildees praacuteticas do Dasein com os entes que a fenomenologia
hermenecircutica de Heidegger vai pocircr agrave mostra e identificar aquilo que desde o
princiacutepio Heidegger se propotildee investigar o ser do ente
Todavia eacute sabido que Heidegger iraacute encontrar uma diversidade de modos de
ser de que destacamos pela sua pertinecircncia para a temaacutetica da linguagem a
existecircncia (Existenz) o estar-agrave-matildeo (Zuhandensein) e o estar diante dos olhos
(Vorhandensein)
Existecircncia80 eacute o modo de ser proacuteprio do homem que tem como particularidade
ontoloacutegica levar em si mesmo o seu proacuteprio ser ou referir-se a uma
possibilidade de ser ldquoO Dasein determina-se como ente em cada caso
partindo de uma possibilidade que ele eacute e que no seu ser compreende de
alguma maneira Este eacute o sentido formal de o Dasein ter por constituiccedilatildeo a
existecircnciardquo81
O estar-agrave-matildeo eacute o ente de que na praacutetica me sirvo e que assim constituo como
utensiacutelio ou como ldquomeio parardquo e que quando objecto de uma consideraccedilatildeo
80
Cf Tatiana Aguilar-Aacutelvarez Bay em El Lenguaje en el Primer Heidegger rebatendo a leitura de Ser e
Tempo centrada na temaacutetica da existecircncia defende que a necessidade de um desvio para a analiacutetica da
existecircncia em Ser e Tempo deriva da tendecircncia do Dasein a interpretar o seu ser reflexivamente sem se
aperceber que as categorias vaacutelidas para os restantes entes satildeo inadequadas para a existecircncia (sendo esta
temaacutetica secundaacuteria e subordinada agrave questatildeo central explanaccedilatildeo original do tempo como horizonte da
compreensatildeo do ser) ldquoEn la ldquoIntroduccioacutenrdquo Heidegger adelanta lo que va a ser el resultado final de Ser y
Tiempo que tambieacuten se refleja en el tiacutetulo de la obra el sentido del ser del Dasein es la temporalidad
Puesto que en el Dasein se da la comprensioacuten del ser El cometido de la analiacutetica existencial consiste en
mostrar que el tiempo posibilita la comprensioacuten del ser rdquohellipaquello desde lo cual el Dasein en general se
comprende e interpreta aunque no expresamente lo que se dice ldquoserrdquo es el tiempo [hellip] Para hacerlo
evidente asiacute se ha menester de una explanacioacuten original del tiempo como horizonte de la comprensioacuten
del ser partiendo de la temporalidad como ser del Dasein que comprende el Serrdquo
Queda asiacute establecido el criterio seguacuten el cual se efectuacutea la destruccioacuten de la ontologiacutea Levarla a cabo
significa decidir acerca de si se reconoce la funcioacuten ontoloacutegica primordial del tiempo
Independientemente de que se advierta o no el tiempo es el horizonte desde el cual se patentiza el ente
Sin embargo el no hacerlo expliacutecito da lugar al modelo ontoloacutegico que Heidegger pretende superar la
sustancializacioacuten de la temporalidad o el predominio de la presencia Este esquema impide que se
advierta la pertenencia del tiempo a la comprensioacuten del ser y por consiguiente la necesidad de hacer del
anaacutelisis del Dasein el hilo conductor de la ontologiacutea La raiacutez de esta desviacioacuten estaacute en la tendencia del
Dasein a interpretar su ser reflejamente sin darse cuenta de que las categoriacuteas vaacutelidas para el resto de los
entes son inadecuadas para la existencia Superar esta confusioacuten compete a la analiacutetica existenciaacuterias en
tanto que ontologigravea fundamentalrdquo (Idem ob cit 126-127) 81
bdquoDas Dasein bestimmt sich als Seiendes je aus einer Moumlglichkeit die es ist und in seinem Sein
irgendwie versteht Das ist der formale Sinn der Existenzverfassung des Daseinsldquo SuZ GA 2 sect9 43
68
teoreacutetica se pode converter num estar-perante assumindo a condiccedilatildeo de ente
rdquodiante dos olhosrdquo de um observador desinteressado
Tal natildeo eacute o caso da existecircncia como modo de ser que me eacute proacuteprio e que me
diferencia de todo o ente junto de qual habito a existecircncia eacute enquanto modo
de ser uma relaccedilatildeo ao ser (Seinsverhaltnis) o modo de ser do ente que se
relaciona consigo mesmo na medida em que se compreende no seu ser
Esta relaccedilatildeo ao ser que eacute inerente agrave existecircncia constitui o fundamento
ontoloacutegico do caraacutecter aberto do Dasein e configura esta abertura como tendo
simultaneamente um caraacutecter praacutetico expresso no Besorgen e Fuumlrsorgen e
loacutegico-linguiacutestico enquanto compreensivo-interpretativo do sentido englobante
e inerente aos vaacuterios modos de ser Estes dois aspectos praacutetico e loacutegico-
linguiacutestico natildeo podem aliaacutes em rigor ser distinguidos
Em Heidegger tenta-se remontar a qualquer coisa anterior agraves distinccedilotildees
categoriais aristoteacutelicas de teoria poiesis e praxis que a tradiccedilatildeo metafiacutesica
nos legou como domiacutenios da ciecircncia da teacutecnica e da acccedilatildeo eacutetica indicando
uma instacircncia fundadora mais originaacuteria que lhes subjaz e as fundamenta e
que eacute precisamente a linguagem enquanto fala (Rede)
O caraacutecter aberto do Dasein reside precisamente na linguagem enquanto fala
(Rede) ou articulaccedilatildeo da inteligibilidade A fala eacute inerente ao homem que pode
bem ser definido como Heidegger bem salienta comentando Aristoacuteteles como
o ser que fala E a abertura (Welterschlieszligung) instaurada pela linguagem
enquanto fala eacute uma abertura ontoloacutegica ou seja tem a funccedilatildeo de deixar ver
de iluminar e eacute a proacutepria iluminaccedilatildeo onde o ser se desvela e pode sair da
ocultaccedilatildeo82
Heidegger retoma pois a funccedilatildeo de abertura de mundo que Humboldt jaacute
assinalara agrave linguagem dando-lhe no entanto uma importacircncia central e
decisiva porque directamente relacionada com o problema ontoloacutegico A
linguagem eacute originariamente natildeo um meio de comunicaccedilatildeo ou instrumento
como os outros mas uma estrutura existenciaacuteria do Dasein na qual se
82
Cf Tatiana Aguilar-Aacutelvarez Bay rdquoEl habla compete al hombre no en funcioacuten de su particularidad sino
porque ser al modo del Dasein significa ser en el Da estar de antemano en la apertura En este sentido
aunque el habla determina formalmente al Dasein-hombre es una instancia que lo transciende Es decir
el habla es impronta del ser que hay en la existencia el punto de contacto entre lo irrestricto ordene en el
que se basa su universalidad y el Dasein en el que se ejercerdquo (Idem El Lenguaje en el Primer Heidegger
283)
69
configura a sua abertura ontoloacutegica ou a sua possibilidade de uma
compreensatildeo do ser
Assim a distinccedilatildeo entre Rede e Sprache acompanha e ajuda a esclarecer a
distinccedilatildeo entre o plano ocircntico dos entes e o plano ontoloacutegico do ser ldquoOs entes
satildeo independentemente da experiecircncia do saber e dos conceitos com que se
abrem descobrem e definem Mas o ser soacute ldquoeacuterdquo na compreensatildeo do ente a cujo
ser eacute inerente o que se chama compreensatildeo do ser Daiacute que o ser possa natildeo
ser aprisionado em conceitos mas que nunca seja de todo incompreendidordquo83
Contudo natildeo eacute suficiente mostrar que uma compreensatildeo preacute-ontoloacutegica eacute
inerente ao Dasein enquanto ser que fala mas Heidegger tem em vista
esclarecer as condiccedilotildees de possibilidade de tal compreensatildeo radicando-as na
estrutura da existecircncia Ora afirmar que ldquoa essecircncia do Dasein estaacute na sua
existecircnciardquo significa dizer que este se determina como ente em cada caso
partindo duma possibilidade que ele eacute e que compreende no seu ser
Apropriando-se duma possibilidade de ser o Dasein projecta uma
compreensatildeo do ser abrindo em cada caso ldquoum mundordquo Esta abertura
(Erschlossenheit) corresponde ao estar descerrado (Aufgeschlossenheit) do ser
dos entes ao estar descoberto do ser que se encobre e que proporciona sob o
modo do desvelamento (Unverborgenheit) a experiecircncia do acontecer da
verdade
A verdade jaacute natildeo eacute primariamente um atributo da proposiccedilatildeo nem remete para
uma primazia do discurso cientiacutefico como tem sido afirmado pela tradiccedilatildeo
filosoacutefica dominante no ocidente84 mas a verdade pertence em primeiro lugar
ao proacuteprio Dasein pois eacute ele que enquanto responsaacutevel pelo desvelamento
que eacute o acontecer da verdade eacute em primeiro lugar verdadeiro85
83
bdquoSeiendes ist unabhaumlngig von Erfahrung Kenntnis und Erfassen wodurch es erschlossen entdeckt und
bestimmt wird Sein aber ldquoistrdquo nur in Verstehen des Seienden zu dessen Sein so etwas wie
Seinsverstaumlndnis gehoumlrt Sein kann daher unbegriffen sein aber es ist nie voumlllig unverstandenrdquo SuZ GA
2 sect39 183 84
No sect44 de Ser e Tempo Heidegger resume em trecircs teses fundamentais a concepccedilatildeo tradicional da
essecircncia da verdade 1 o lugar da verdade eacute o juiacutezo 2 a essecircncia da verdade reside na correspondecircncia
do juiacutezo com o seu objecto 3 Aristoacuteteles remeteu o lugar da verdade ao juiacutezo e inaugurou a definiccedilatildeo da
verdade como correspondecircncia
A estrateacutegia de Heidegger para criticar este conceito de verdade eacute uma estrateacutegia de confrontaccedilatildeo natildeo
apenas com a verdade como correspondecircncia de Aristoacuteteles mas tambeacutem com o criteacuterio de evidecircncia
avanccedilado pelas filosofias da consciecircncia Cf Cristina Lafont (Lenguaje y apertura del mundo 158-159) 85
Em Ser e Tempo a verdade do enunciado soacute eacute possiacutevel sobre a base do estado de descoberto
(Entdeckheit) entendido como estado de aberto dos entes intramundanos isto eacute o enunciado soacute pode
70
Assim perguntar pela verdade dum discurso teoreacutetico como o discurso
filosoacutefico implica retornar agraves condiccedilotildees faacutecticas da produccedilatildeo desse discurso e
ao modo proacuteprio ou improacuteprio como aquele que fala exerce a sua existecircncia
De facto o Dasein por ser em cada caso a sua possibilidade pode ldquoescolher-
serdquo a si mesmo apropriando-se por si mesmo para si mesmo ou pelo
contraacuterio estar perdido de si mesmo e natildeo chegar a ganhar-se nunca86
A impropriedade que acompanha o exerciacutecio concreto da existecircncia do Dasein
enquanto trabalha e se atarefa com as coisas agrave-matildeo natildeo tem um sentido
negativo mas ela eacute uma determinaccedilatildeo positiva do Dasein que se revela
extremamente importante para compreender a sua possibilidade de retornar a
si mesmo e de exercer de modo apropriado a fala87
4 O estado de aberto do Dasein e o projecto lanccedilado
Este enraizamento existencial da verdade de todo o discurso teoreacutetico pode ser
mais claramente compreendido a partir da ideia de ldquoprojecto lanccediladordquo
(geworfene Entwurf) que desempenha um papel central na tematizaccedilatildeo
heideggeriana da funccedilatildeo hermenecircutica da linguagem
A noccedilatildeo de projecccedilatildeo fundamenta-se na constituiccedilatildeo ontoloacutegica do homem
enquanto ex-sistecircncia isto eacute como ser que se determina em cada caso a partir
de uma possibilidade que ele compreende no seu ser A categoria da
possibilidade eacute ldquoa mais originaacuteria determinaccedilatildeo do ser do homemrdquo pois tudo o
que faz faacute-lo em referecircncia a possibilidades que fazem parte do que ele eacute ldquoO
Dasein natildeo eacute rdquoalgo diante dos olhosrdquo que possua como qualidade adicional a
produzir-se sobre um fundo de mundo jaacute aberto e essa abertura haacute-de jaacute ter acontecido sempre
previamente delimitando as possibilidades dos enunciados dotados de sentido Cf Ibidem 166 86
O estado de aberto dos entes intramundanos constitui-se atraveacutes do estado de aberto do Dasein e eacute
neste que se encontra o fenoacutemeno mais originaacuterio da verdade ldquoEl ldquoestado de abiertordquo se constituye a
traveacutes del ldquoencontrarserdquo el comprender y el habla y concierne cooriginariamente al mundo al ldquoser enrdquo y
al ldquosigrave mismordquordquo Ibidem 181 87
Cf Tatiana Aguilar-Aacutelvarez Bay bdquoExistencia formalmente significa bdquoser relativamente aldquo Esto es un
modo de ser al que le es propio hacerse o proyectarse mediante el ejercicio de las propias posibilidades
En cuanto que existir eacute no tener maacutes remedio que hacerse cargo del propio ser Heidegger lo caracteriza
como ser en cada caso miacuteo como aquello de lo que no puedo desentenderme De aquiacute se sigue que el
Dasein pueda ser impropia o propiamente En el modo de ser de la impropiedad la existencia no sufre
menoscabe no es menos es en una de sus posibles modalidadesldquo (Idem El Lenguaje en el Primer
Heidegger 130-131)
71
de poder algo mas eacute primariamente rdquoser possiacutevelrdquo O Dasein eacute em cada caso
aquilo que ele pode ser e tal como eacute a sua possibilidaderdquo 88
A estrutura deste poder ser eacute o ldquoprojectordquo (Entwurf) que natildeo deve ser
entendido como planificaccedilatildeo deliberada mas como a proacutepria forma de ser do
homem na medida em que ele estaacute sempre orientado em direcccedilatildeo aos seus
possiacuteveis89
Contudo este projecto natildeo deve ser entendido como um projectar-se em
direcccedilatildeo a infinitas possibilidades mas estaacute ele mesmo circunscrito e limitado
pela estrutura formal constituiacuteda pelos trecircs existenciaacuterios da Befindlichkeit do
Verstehen e da Rede
A Befindlichkeit ou seja o sentir-se afectado do Dasein no meio da totalidade
dos entes testemunha a sua condiccedilatildeo faacutectica a sua natureza de projecto
lanccedilado enquanto de-jecccedilatildeo a partir de um onde que se desconhece e numa
direcccedilatildeo que tambeacutem eacute desconhecida A afectividade (Befindlichkeit) eacute o modo
como em cada caso o Dasein eacute afectado pela sua facticidade ou pela sua
condiccedilatildeo de estar sempre jaacute previamente lanccedilado que marca a sua
irremediaacutevel finitude ldquoO ser tornou-se patente como uma carga Porquecirc natildeo se
sabe E o Dasein natildeo pode saber coisa semelhante porque as possibilidades
de rdquoabrirrdquo de que dispotildee o conhecimento permanecem demasiado curtas frente
ao rdquoabrirrdquo originaacuterio dos estados de acircnimo nos quais o Dasein eacute trazido diante
do seu ser como rdquoaiacuterdquordquo 90
A Befindlichkeit eacute o fundamento existenciaacuterio dos diversos estados de acircnimo
ou Stimmungen ocircnticos como o medo a anguacutestia ou o espanto ldquoO que
designamos ontologicamente com o termo afectividade eacute onticamente o mais
conhecido e trivial a tonalidade afectiva o estar afinadordquo 91
88
bdquoDasein ist nicht ein Vorhandenes das als Zugabe noch besitzt etwas zu koumlnnen sondern es ist primaumlr
Moumlglichsein Dasein ist je das was es sein Kann und wie es seine Moumlglichkeit istldquo SuZ GA 2 sect31 143 89
O projecto eacute um projecto hermenecircutico ou um projecto de constituiccedilatildeo de sentido que desvela e abre
um mundo Equiparando este projecto de sentido com a verdade Heidegger pode negar ao conceito de
verdade as propriedades de validade universal necessidade e intemporalidade (CfCristina Lafont
Lenguaje y apertura del mundo 188-189) 90
bdquoDas Sein ist als Last offenbar geworden Warum weiszlig man nicht Und das Dasein kann dergleichen
nicht wissen weil die Erschlieszligungsmoumlglichkeiten des Erkennens viel zu kurz tragen gegenuumlber dem
urspruumlnglichen Erschlieszligen der Stimmungen in denen das Dasein vor sein Sein als Da gebracht istldquo SuZ
GA 2 sect29 134 91
bdquoWas wir ontologisch mit dem Titel Befindlichkeit anzeigen ist ontisch das Bekannteste und
Alltaumlglichste die Stimmung das Gestimmtseinldquo SuZ GA 2 sect29 134
72
A importacircncia da afectividade ou do pathos para a instacircncia da linguagem
enquanto discurso persuasivo era jaacute tema analisado por Aristoacuteteles na
Retoacuterica mas vecirc-se aqui retomada por Heidegger de um modo muito mais
originaacuterio ela eacute a instacircncia que em primeiro lugar abre o Dasein de um modo
inteiramente involuntaacuterio e de um modo igualmente decisivo para a totalidade
daquilo que eacute revelando-o na sua problematicidade Este estado de aberto em
que o Dasein se encontra nos estados de acircnimo abre o mundo como um todo e
torna possiacutevel referir-se a essa totalidade ou o exerciacutecio apropriado de o ldquoIn-
der-Welt-Seinrdquo
Este reconhecimento da importacircncia da afectividade como momento estrutural
do estado de aberto do Dasein natildeo remete no entanto para um irracionalismo
ou para a negaccedilatildeo do papel da razatildeo na compreensatildeo do mundo apelando
apenas para a existecircncia de um modo de rdquoevidecircnciardquo mais originaacuterio que a
evidecircncia racional Na Befindlichkeit o Dasein encontra-se sempre jaacute num
determinado estado de acircnimo que o coloca diante do seu aiacute como enigma
Contudo a Befindlichkeit remete a maior para das vezes o Dasein para uma
fuga a si mesmo cuja constituiccedilatildeo existenciaacuteria eacute designada por Heidegger
como rdquoquedardquo ldquoA afectividade natildeo se limita a abrir o Dasein no seu estado de
lanccedilado e no seu estado de referido ao mundo aberto em cada caso jaacute com o
seu ser eacute inclusivamente a forma de ser existenciaacuteria em que o Dasein se estaacute
entregando constantemente ao rdquomundordquo se deixa rdquoferirrdquo por este de tal forma
que de certo modo se esquiva a si mesmo A constituiccedilatildeo existenciaacuteria de
este esquivar-se ficaraacute clara no fenoacutemeno da quedardquo92
A afectividade lanccedila o Dasein para o mundo fazendo como ele se lhe refira no
modo da abertura ou do fechamento Esta oscilaccedilatildeo entre o existir em
propriedade e o existir inautecircntico que faz do homem um ser instaacutevel e
ambiacuteguo radica neste fundo obscuro de emoccedilotildees que dominam a sua
experiecircncia do mundo Longe de ser um constructo humano a experiecircncia vem
ao encontro do homem e arrasta-o por razotildees desconhecidas e de modo
inesperado toda a experiecircncia decisiva arrasta o ser do homem domina-o
92
bdquoDie Befindlichkeit erschlieszligt nicht nur das Dasein in seiner Geworfenheit und Angewiesenheit auf die
mit seinem Sein je schon erschlossene Welt sie ist selbst die existenziale Seinsart in der es sich staumlndig
an die bdquoWeltrdquo ausliefert sich von ihr angehen laumlszligt derart daszlig es ihm selbst in gewisser Weise ausweicht
Die existenziale Verfassung dieses Ausweichens wird am Phaumlnomen des Verfallens deutlich werdenldquo
SuZ GA 2 sect29 139
73
transforma-o e eacute por ele sofrida rdquode ponta a pontardquo como se indica no termo
grego pathos Eacute essa condiccedilatildeo patoloacutegica da experiecircncia que se indica no
existenciaacuterio da Befindlichkeit e que mais tarde iraacute ser referida por Heidegger
agraves diversas Stimmungen epocais e relacionadas com o devir da histoacuteria
universal e o obscuro domiacutenio da temporalidade (Zeitlichkeit)
O Verstehen (compreensatildeo) natildeo tem uma dimensatildeo cognoscitiva mas
relaciona-se inteiramente com o conceito existenciaacuterio de possibilidade
Compreender como ldquopoder-serrdquo eacute o existenciaacuterio que corresponde agrave
peculiaridade ontoloacutegica do Dasein como ser que natildeo estaacute completo cuja
entidade estaacute sempre por fazer Ser para a existecircncia humana eacute sempre poder-
ser e este poder-ser tem a estrutura dum projectar (Entwerfen) ou dum estar
orientado em direcccedilatildeo a possibilidades Compreender eacute assim antes de mais
compreender-se tomando a seu cargo aquilo que se pode ser
O existenciaacuterio da compreensatildeo (Verstehen) corresponde de algum modo agrave
espontaneidade do entendimento em Kant embora em Heidegger este
existenciaacuterio natildeo remeta para uma faculdade dos conceitos mas antes para
uma compreensatildeo preacute-conceptual orientada para a significaccedilatildeo do mundo
como totalidade ldquoO estado de aberto do compreender abarca enquanto estado
de aberto do por mor de e da significatividade de maneira igualmente originaacuteria
o iacutentegro ser-no-mundo A significatividade eacute aquilo sobre cujo fundo eacute aberto o
mundo enquanto talrdquo 93
Ora este ldquofundo de mundordquo eacute projectado por um compreender que eacute sempre
afectivo donde resulta que ele se projecta natildeo a partir de uma livre decisatildeo
mas a partir de possibilidades limitadas previamente circunscritas pelo modo
como o Dasein se encontra lanccedilado no mundo O poder ser da compreensatildeo
estaacute entrelaccedilado com o ldquojaacute serrdquo que o limita negativamente mas que o orienta
tambeacutem positivamente para determinadas possibilidades de abrir o mundo na
sua significatividade94
93
bdquoDie Erschlossenheit des Verstehens betrifft als die von Worumwillen und Bedeutsamkeit
gleichurspruumlnglich das volle In-der-Welt-sein Bedeutsamkeit ist das woraufhin Welt als solche
erschlossen istldquo SuZ GA2 sect31 143 94
Cristina Lafont (Lenguaje y apertura del mundo 190) chama a atenccedilatildeo para o facto de este conceito
heideggeriano de ldquoprojecto de sentidordquo inerente ao projecto lanccedilado implicar que a verdade ontoloacutegica
tenha um caraacutecter normativo e prescritivo o que foi teoricamente elaborado em Vom Wesen des Grundes
74
O conceito de ldquoprojecto lanccediladordquo implica que o projecto que somos nos escapa
sempre pois nos escapa o iniacutecio do movimento que no entanto noacutes mesmos
somos e de que apenas podemos tomar consciecircncia como abrindo
possibilidades de ser O ter sido jaacute lanccedilado constitui o nuacutecleo da facticidade da
existecircncia as possibilidades do meu poder ser satildeo precisamente enquanto
faacutecticas constituem-se como tal no seio de um estar em situaccedilatildeo para que
remete o proacuteprio conceito de Da-sein ou de ser-aiacute95
O conceito de ldquoprojecto lanccediladordquo (geworfene Entwurf) tem um papel central em
Ser e Tempo e nele reside a finitude constitutiva do Dasein e da sua
possibilidade de intelecccedilatildeo A ideia de lanccedilamento eacute a ideia de que o projecto
que somos estaacute sempre previamente circunscrito ou orientado por um
movimento inicial cuja geacutenese natildeo conhecemos mas que por natildeo ser erraacutetico
mas direccionado nos deixa apenas a liberdade para assumir como nossa a
possibilidade que nos cabe cabendo-nos igualmente a responsabilidade de
encontrar-nos a noacutes mesmos nas nossas possibilidades sempre que de noacutes
mesmos nos extraviamos96
Eacute este compreender originaacuterio que antecipa o conhecimento expliacutecito abrindo
rdquoonderdquo ou ldquoaiacuterdquo do ser implicando a totalidade do In-der-Weltndashsein Projectando-
se em direcccedilatildeo agraves suas possibilidades o Dasein abre o mundo como
significatividade e os entes agrave-matildeo adquirem a qualidade de uacuteteis nocivos
manejaacuteveis dispondo-se segundo um conjunto de categorias e ordenando-se
de acordo com uma finalidade uacuteltima
5 A Auslegung e a estrutura preacutevia da compreensatildeo
A interpretaccedilatildeo que se expressa num conjunto de enunciados teoreacuteticos eacute na
realidade na perspectiva heideggeriana um desenrolar das possibilidades que
95
Tatiana Aguilar-Aacutelvarez Bay sublinha a relaccedilatildeo entre a noccedilatildeo de projecccedilatildeo e de destino (Geschick) em
Ser e Tempo ldquoEsta proyeccioacuten no es absoluta sino que estaacute mediatizada precisamente por el mundo al
que el Dasein estaacute referido de antemano El ser en relacioacuten con los entes que se hacen patentes dentro del
mundo es indisociable del ser faacutectico del hombre es decir de su modo peculiar de existir Heidegger
afirma que esta relacioacuten es el destino de Daseinrdquo (Idem El Lenguaje en el Primer Heidegger 135) 96
ldquoSi toda verdad de enunciados sobre entes intramundanos es relativa al horizonte histoacuterico de nuestro
comprender todo el problema de la verdad se concentra pues en este horizonte y la cuestioacuten decisiva
deberiacutea ser entonces iquestde que forma es posible interrogar tambieacuten por la verdad de este horizonte(hellip)
Esta pregunta resulta superflua para Heidegger en la medida en que eacutel denomina el correspondiente
comprender en tanto que ldquoestado de abiertordquo una verdad ya en sigrave e para sigraverdquo (Cristina Lafont Lenguaje y
apertura del mundo 190-191)
75
jaacute se encontram circunscritas na compreensatildeo e o caraacutecter limitado e
direccionado dessas possibilidades eacute esclarecido por Heidegger a partir daquilo
que ele designa como Vor-struktur da compreensatildeo
Efectivamente a compreensatildeo implica um segundo momento em que algo eacute
compreendido como aquilo que eacute desenvolvendo e apropriando essas
possibilidades compreendendo-as e assim realizando-se como interpretaccedilatildeo
(Auslegung) A interpretaccedilatildeo natildeo remete imediatamente para um conhecimento
teoacuterico mas todo o simples ver antepredicativo o mundo agrave volta eacute jaacute
interpretativo-compreensor o simples agir do quotidiano jaacute implica o interpretar
rdquoalgo como algordquo e esse rdquocomordquo constitui a interpretaccedilatildeo o logos hermenecircutico
que como jaacute referimos eacute anterior a toda proposiccedilatildeo e todo o enunciado
expresso linguisticamente
Este compreender-interpretando abre duplamente a existecircncia e o mundo
designando-se essa dupla abertura como ldquoabertura horizontal ex-staacuteticardquo Esta
abertura horizontal ex-staacutetica eacute aberta pelas possibilidades inscritas no
compreender o que implica que eacute uma abertura limitada circunscrita e
direccionada pela facticidade irrecusaacutevel da existecircncia
Eacute a partir desta abertura aberta pelo compreender originaacuterio que se desenvolve
a compreensatildeo expliacutecita pela qual nos apropriamos expressamente de um
sentido que estava jaacute aberto Aussage (enunciaccedilatildeo) e Auslegung (enquanto
interpretaccedilatildeo expliacutecita traduzida em enunciados) fundam-se num ter jaacute
compreendido aquilo que se vai interpretar
A abertura horizontal extaacutetica projecta sobre a totalidade dos entes um
horizonte de sentido que torna possiacutevel que algo seja compreensiacutevel como
algo abre a possibilidade de compreensatildeo dos entes intra-mundanos tenham
estes ou natildeo a forma do Dasein Esta estrutura projectante ou a preacute-estrutura
(Vorstruktur) da compreensatildeo projecta um campo preacutevio de sentido
estruturado em trecircs momentos ldquoA interpretaccedilatildeo de algo como algo eacute
essencialmente fundada no ter preacutevio no ver e captar preacuteviosrdquo97
O ter preacutevio (Vorhabe) ou o ter antecipadamente eacute o acircmbito intencional que
permite a compreensatildeo O ver preacutevio (Vorsicht) ou a visatildeo projectante no
97
bdquoDie Auslegung von Etwas als Etwas wird wesenhaft durch Vorhabe Vorsicht und Vorgriff fundiertldquo
SuZ GA 2 sect32 150
76
futuro estando expectante em relaccedilatildeo agravequilo que vai aparecer O captar preacutevio
(Vorgriff) eacute a articulaccedilatildeo preacute-conceptual do Vorhabe e do Vorsicht isto eacute a preacute-
captaccedilatildeo natildeo expliacutecita de algo
Para Heidegger toda a interpretaccedilatildeo do mundo se move dentro dos limites e
das possibilidades contidas em cada caso nesta estrutura preacutevia que
seriacuteamos tentados a aproximar do a priori kantiano No entanto a esta
estrutura formal preacutevia a que Heidegger chama a preacute-estrutura da
compreensatildeo distingue-se do plano transcendental da filosofia kantiana do
conhecimento pois natildeo tem um caraacutecter exclusivamente formal Agrave Vor-struktur
eacute inerente um certo conteuacutedo derivado da natureza do Dasein como projecto
lanccedilado em direcccedilatildeo a certas possibilidades concretas e portanto esta
armadura formal projecta em cada caso um sentido determinado sobre a
totalidade dos entes fazendo aiacute surgir uma figura de mundo98
O compreender originaacuterio que eacute projecto lanccedilado (geworfene Entwurf) antecipa
constantemente o conhecimento explicitamente ou discursivamente formulado
a Auslegung e Aussage satildeo desenvolvimentos do que estaacute previamente aberto
pelo compreender originaacuterio Toda a interpretaccedilatildeo se funda num ter
compreendido ou num campo preacutevio de sentido contido na Vorstruktur e
implicada nos seus 3 momentos estruturais 99
Deste modo o conhecimento teoreacutetico eacute apenas um caso particular e derivado
da interpretaccedilatildeo que eacute na sua origem atemaacutetica e holiacutestica e soacute num segundo
tempo pode tornar-se discursiva e conceptual Daqui resulta como importante
consequecircncia que toda a interpretaccedilatildeo inclusivamente a interpretaccedilatildeo que se
expressa em enunciados cientiacuteficos ou proposiccedilotildees metafiacutesicas eacute na realidade
levada a cabo a partir de uma experiecircncia antepredicativa de sentido
98
Sobre a relaccedilatildeo entre a Vor-struktur e o sentido cf SuZ sect32 151 bdquoDer Begriff des Sinnes umfaszligt das
formale Geruumlst dessen was notwendig zu dem gehoumlrt was verstehende Auslegung artikuliert Sinn ist das
durch Vorhabe Vorsicht und Vorgriff strukturierte Woraufhin des Entwurfs aus dem her etwas als etwas
verstaumlndlich wird Sofern Verstehen und Auslegung die existenziale Verfassung des Seins des Da
ausmachen muszlig Sinn als das formal-existenziale Geruumlst der dem Verstehen zugehoumlrigen Erschlossenheit
begriffen werdenldquo 99
Cf Bernhard Sylla sublinha a relaccedilatildeo entre a Vor-struktur e o ciacuterculo hermenecircutico bdquoDas Geschehen
des hermeneutischen Zirkels des Auslegens wird von Heidegger mit Hilfe der Termini Vorhabe Vorsicht
und Vorgriff dargestellt Mit der Terminus Vorhabe soll gesagt werden dass jede Auslegung aus einer
bestimmten Situativitaumlt des Daseins in seinem jeweiligen Bewandtniszusammenhang ihren Ausgang
nimmt Der Begriff Vorsicht zeigt an dass mit der Vorhabe auch ein Um-zu-Verhaumlltnis verbunden ist
dass die Auslegung also mit einer umweltlich-besorgenden Zweckhaftigkeit verbunden ist Der Terminus
Vorgriff soll besagen dass die Auslegung sich zumeist aber nicht notwendigerweise an eine durch
fruumlhere Auslegungen schon ausgebildete Begrifflichkeit bzw Weltausgelegtheit haumlltldquo(Idem Hermeneutik
der langue 252)
77
Esta preacute-estrutura da compreensatildeo natildeo pode ter aquele caraacutecter meramente
vazio e formal que tem o a priori Kantiano que pretende esclarecer as
possibilidades universais da constituiccedilatildeo da experiecircncia A Vor-struktur refere-
se a essa experiecircncia antepredicativa de sentido que se enraiacuteza na facticidade
da existecircncia condicionando o Dasein e fazendo dele precisamente aquilo que
ele eacute um ser aiacute
Condicionando necessariamente todo o enunciado expresso linguisticamente a
preacute-estrutura da compreensatildeo natildeo aponta para a validade universal das
proposiccedilotildees teoreacuteticas do conhecimento cientiacutefico mas para a relativizaccedilatildeo
destas tambeacutem elas assentes no Vorhabe no Vorsicht e num Vorgriiff isto eacute
numa intencionalidade e numa conceptualidade preacutevia que precisa de ser
esclarecida
Ser e Tempo vem esclarecer as condiccedilotildees de todo e qualquer projecto de
interpretaccedilatildeo mostrando por um lado que o sentido radica no Dasein que soacute
ele pode ter sentido ou carecer dele mas que por outro lado natildeo podemos
dizer que o sentido deriva de uma escolha ou eacute a criaccedilatildeo duma subjectividade
auto-referente O Dasein eacute um ser-no-mundo e portanto projecta-se a si
mesmo a partir do aiacute que eacute em cada caso a sua situaccedilatildeo
6 Rede e Sprache
A tese central de Heidegger da primazia do logos hermenecircutico relativamente
ao logos apofacircntico consiste precisamente nesta tese de que a linguagem
proposicional se enraiacuteza numa experiecircncia antepredicativa de sentido O
mostrar algo junto com algo da proposiccedilatildeo natildeo eacute o que nos descobre o ente
pela primeira vez ele foi sempre jaacute descoberto de modo muito mais originaacuterio
na interpretaccedilatildeo antepredicativa
Daqui resulta que a linguagem enquanto conjunto de enunciados verbais se
fundamenta na fala (Rede) entendida como articulaccedilatildeo de sentido Na fala
(Rede) articulam-se a Befindlichkeit isto eacute uma afectividade receptiva que
surge como a heranccedila de algo e a compreensatildeo dinacircmica e projectiva do
Verstehen
78
Esta articulaccedilatildeo a Rede (fala ou discurso) eacute estabelecida em Ser e Tempo
como fundamento ontoloacutegico-existenciaacuteria da linguagem Esta instacircncia da fala
como existenciaacuterio do Dasein eacute a articulaccedilatildeo significativa da
compreensibilidade do ser no mundo que subjaz a todo o enunciado linguiacutestico
e a toda a linguagem faacutectica100
A funccedilatildeo fundamental da fala (Rede) eacute segundo Heidegger estabelece em
Sein und Zeit realizar a abertura ontoloacutegica isto eacute abrir aquele fundo de
mundo ou horizonte de sentido no qual os entes podem aparecer Esta funccedilatildeo
de ldquoabertura de mundordquo eacute nesta obra fixada por Heidegger como a funccedilatildeo
primaacuteria da linguagem o que seraacute reafirmado mais tarde em Houmllderlin e a
Essecircncia da Poesia ldquoA linguagem natildeo eacute soacute um instrumento que o homem
tambeacutem possui aleacutem de muitos outros mas esta daacute acima de tudo a
possibilidade de estar no meio da abertura do ente Apenas onde haacute linguagem
haacute mundordquo101
A linguagem (Sprache) eacute o estado de expresso da fala e ela soacute existe na
pluralidade das liacutenguas facticamente faladas pelos diversos povos
fragmentando-se aiacute numa infinidade de actos de elocutoacuterios A fala enquanto
Rede eacute no entanto um existenciaacuterio do Dasein e portanto eacute uma estrutura
universal do Dasein co-extensiva com o campo de sentido A linguagem
enquanto Rede acolhe toda a experiecircncia antepredicativa de sentido nela se
fundamentando a tese heideggeriana posterior da linguagem como ldquocasa do
serrdquo
O que para noacutes oculta esta vocaccedilatildeo ontoloacutegica inerente a toda a linguagem eacute
o facto de na linguagem faacutectica (Sprache) esta unidade de sentido se
fragmentar numa multiplicidade de palavras que podem converter-se em
instrumentos de comunicaccedilatildeo e de circulaccedilatildeo de informaccedilatildeo e assim virem a
ser tomadas como qualquer outro ente intra-mundano
100
Cf Tatiana Aguilar-Aacutelvarez Bay sublinha que sob a designaccedilatildeo de Rede Heidegger leva a cabo uma
ampliaccedilatildeo da noccedilatildeo de linguagem que toma a forma de ser do Dasein de tal forma que se identifica a sua
funccedilatildeo com o exerciacutecio da existecircncia recobrindo tanto o falar como o ouvir ldquoPara Heidegger el hablar
no es una actividad sectorial o localizada involucra iacutentegramente al existir y le otorga unidad Por esto es
vaacutelido afirmar que el Dasein habla sin interrupcioacuten aun cuando no emita palabrasrdquo (Idem El Lenguaje
en el Primer Heidegger 215) 101
bdquo Die Sprache ist nicht nur ein Werkzeug das der Mensch neben vielen anderen auch besitzt sondern
die Sprache gewaumlhrt uumlberhaupt erst die Moumlglichkeit inmitten der Offenheit von Seiendem zu stehenNur
wo Sprache da ist Welt[hellip]ldquo HWD GA 4 3738
79
Considerando a Rede como o fundamento de toda a linguagem faacutectica ndash rdquoO
fundamento ontoloacutegico-existenciaacuterio da linguagem eacute a falardquo102 - Heidegger
obriga-nos a repensar a nossa relaccedilatildeo com a linguagem e as liacutenguas A
afirmaccedilatildeo da funccedilatildeo essencial da linguagem como a de abrir mundo torna
impossiacutevel tomaacute-la como qualquer outro ente intra-mundano e convertecirc-la em
objecto de uma qualquer ciecircncia Tomar a linguagem como objecto
desmembraacute-la pelos procedimentos analiacuteticos da ciecircncia eacute analisar um
cadaacutever mas a linguagem enquanto liacutengua viva manteacutem pelo contraacuterio a
unidade de um organismo e eacute percorrida pelo sopro do espiacuterito precisamente
enquanto ela abre um mundo103
O fundamentar a linguagem faacutectica (Sprache) no existenciaacuterio da fala abre
caminho para a consideraccedilatildeo da unidade entre pensar e dizer e para admitir a
natureza intrinsecamente linguiacutestica do pensar Como Gadamer natildeo deixaraacute de
sublinhar Heidegger retoma a tese de autores cristatildeos como Santo Agostinho
em De Trinitate da unidade entre o signo sensiacutevel e o sentido inteligiacutevel ldquoPor
conseguinte a palavra que ressoa fora eacute o signo da palavra que brilha dentro
agrave qual corresponde melhor o nome de ldquopalavrardquo Pois aquela que se pronuncia
com a boca da carne eacute a voz da palavra e tambeacutem ela se chama palavra em
virtude de aquilo pelo qual foi assumida para que aparecesse fora Com efeito
102
bdquoDas existenzial-ontologische Fundament der Sprache ist die Rederdquo SuZ GA 2 sect34 160 103
Cf Bernhard Sylla sustenta que a noccedilatildeo de liacutengua (Sprache) em Sein und Zeit ainda eacute indeterminada
sendo correlacionada com a Rede que na forma decaiacuteda da fala quotidiana ou Gerede eacute o seu
fundamento existenciaacuterio ldquoKonzentriert man sich auf eine Interpretation von Sein und Zeit so erscheint
der Begriff Sprache unbestimmt [hellip] Das Verhaumlltnis von Rede und Sprache wird erst deutlicher wenn
man das was Heidegger mit dem Terminus Gerede bezeichnet naumlhert analysiertrdquo (Idem Hermeneutik
der langue 260) Esta vinculaccedilatildeo da linguagem enquanto liacutengua ao existenciaacuterio da Gerede estaria
subjacente agrave conviccccedilatildeo posterior de Heidegger de que toda a articulaccedilatildeo linguiacutestica decaiacutea
necessariamente no ldquojaacute interpretadordquo e conectar-se-ia com a estrateacutegia linguiacutestica do proacuteprio Heidegger
explicaacutevel como fuga a um dizer abertamente articulado ldquoHeidegger wird in Gefolge von Sein und Zeit
mehr und mehr dahin tendieren Eigentliches nicht (offen) artikuliert zu sagen um es so der oumlffentlichen
Ausgelegtheit zu entziehen Dieses Tendenz setzt sich erst allmaumlhlich durch und korreliert immer mit
einem Dennoch-Sagen auf das sich die oumlffentliche Auslegung Heideggers verstaumlndlicherweise stuumltz
Heideggers Strategie des nicht offen artikulierten Sagens wir dagegen nur ansatzweise bemerkt und in der
philosophischen Auslegung Heideggers nicht zureichend beruumlcksichtigtrdquo (Ibidem 265)
Diferente eacute a perspectiva de Tatiana Aacutelvarez para quem a linguagem (Sprache) eacute o modo de expresso da
fala (Rede) isto eacute um dos modos em que ela pode dar-se (el lenguaje es un estado del habla uno de los
modos en que esta pude darse) natildeo estando essenciamente vinculada agrave sua forma decaiacuteda ou Gereda
ldquoUna muestra de la anterioridad del habla respecto al lenguaje ndash anterioridad en el orden de
fundamentacioacuten ndash es que eacuteste se desmiembra si no estaacute respaldado por el hablardquo (Idem El Lenguaje en el
Primer Heidegger 200) No entanto a autora chama a atenccedilatildeo para que a Rede tanto pode expressar-se
pela linguagem como manifestar-se pelo silecircncio defendendo a primazia do silecircncio como fala interior
em Ser e Tempo ldquo No se trata de una afirmacioacuten metafoacuterica El silencio es habla porque al igual que el
lenguaje hace expliacutecita la trama significativa relativa al habla La idea se pone especialmente de
manifiesto en el anaacutelisis heideggeriano de la voz o llamado de concienciardquo (Idem El Lenguaje en el
Primer Heidegger 201)
80
a nossa palavra faz-se de algum modo fora do corpo enquanto assume aquela
em que se manifesta aos sentidos dos homens do mesmo modo que o Verbo
de Deus se fez carne enquanto assumiu aquela em que tambeacutem ele se
manifestou aos sentidos do homemrdquo104
Eacute esta unidade entre pensar e dizer aqui enunciado por Santo Agostinho como
unidade do Verbo com a carne que se encontra reafirmada em Heidegger
apontando inequivocamente para o facto irremediaacutevel de que pensamos numa
linguagem lanccedilados pela flecha do sentido que as palavras jaacute instituiacuteram e
traziam consigo muito antes de cada acto singular de pensamento
A universalidade do discurso metafiacutesico agrave qual aspirava Aristoacuteteles eacute uma
empresa impossiacutevel natildeo porque aos seus conceitos natildeo corresponda qualquer
conteuacutedo positivo de uma experiecircncia como queria Kant mas precisamente
devido a esta natureza linguiacutestica do pensar Toda a experiecircncia eacute sempre e
necessariamente interpretada e poderiacuteamos acrescentar linguisticamente
confeiccediloada sendo esta limitaccedilatildeo intriacutenseca tatildeo efectiva para a metafiacutesica
como para as muacuteltiplas ciecircncias Todo o discurso teoreacutetico se insere numa
figura de mundo aberto pela linguagem e manteacutem a sua vigecircncia apenas no
interior desta
Assim a questatildeo jaacute colocada por Humboldt de que as diversas liacutenguas faladas
pelos povos histoacutericos instauram diferentes aberturas de mundo vecirc-se
retomada por Heidegger e filosoficamente fundamentada na linguagem
enquanto existenciaacuterio do Dasein Este relativismo linguiacutestico implica
naturalmente uma nova posiccedilatildeo perante a traduccedilatildeo filosoacutefica que sempre
ambicionou como correlato do estatuto cientiacutefico da metafiacutesica o rigor
filoloacutegico suficiente para manter intacto o sentido das grandes obras
transpondo-o sem o alterar para outro sistema de signos linguiacutesticos
Subvertendo inteiramente os dados do problema da traduccedilatildeo filosoacutefica
Heidegger iraacute afirmar que a traduccedilatildeo aparentemente literal que pretende
104
laquoProinde uerbum quod foris sonat signum est uerbi quod intus lucet cui magis uerbi competit nomen
Nam illud quod profertur carnis ore uox uerbi est uerbumque et ipsum dicitur propter illud a quo ut foris
appareret assumptum est Ita enim uerbum nostrum uox quodam modo corporis fit assumendo eam in qua
manifestetur sensibus hominum sicut uerbum dei caro factum est assumendo eam in qua et ipsum
manifestaretur sensibus hominum Et sicut uerbum nostrum fit uox nec mutatur in uocem ita uerbum dei
caro quidem factum est sed absit ut mutaretur in carnem Assumendo quippe illam non in eam se
consumendo et hoc nostrum uox fit et illud caro factum estraquo Santo Agostinho De Trinitate Livro XV
XI sect20
81
apresentar-se como uma simples operaccedilatildeo que assegura a passagem do
sentido de uma liacutengua para outra apenas encobre as inevitaacuteveis mutaccedilotildees de
sentido inerentes a uma transposiccedilatildeo linguiacutestica ocultaccedilatildeo que segundo
Heidegger teria sido responsaacutevel pela decadecircncia e pelo desterro do
pensamento ocidental ldquoA traduccedilatildeo dos nomes gregos para a liacutengua latina natildeo
eacute de modo nenhum um acontecimento sem consequecircncias como ainda nos
nossos dias se julga ser Pelo contraacuterio atraacutes da traduccedilatildeo [Uumlbersetzung]
aparentemente literal e portanto aparentemente preservadora [do sentido]
encobre-se um transpor [uumlbersetzen] da experiecircncia grega para um outro modo
de pensar O pensamento romano toma posse das palavras gregas sem uma
experiecircncia igualmente originaacuteria que corresponda agravequilo que elas dizem sem
a palavra grega O desterro [Bodenlosigkeit - falta de solo] do pensamento
ocidental comeccedila com esta traduccedilatildeordquo105
Arrancando os termos da filosofia grega ao contexto histoacutericondashlinguiacutestico a que
pertenciam as obras dos pensadores gregos as traduccedilotildees latinas pretenderam
conferir-lhes uma validade universal e intemporal transformando-os assim em
qualquer coisa de ldquooacutebviordquo e lanccedilando a filosofia no caminho da
Bodenlosigkeit106
Ora o chatildeo (Boden) no qual haacute que voltar a enraizar o pensar eacute antes de
mais para Heidegger a linguagem entendida como linguagem viva de uma
comunidade linguiacutestica A liacutengua grega transporta consigo uma experiecircncia
grega isto eacute uma experiecircncia que nos eacute necessariamente em grande parte
alheia e distante como Heidegger natildeo deixaraacute de constantemente sublinhar A
propoacutesito da traduccedilatildeo de fuacutesis palavra-chave dos primeiros pensadores
gregos comenta Heidegger na sua leitura do poema de Houmllderlin Wie Wenn
105
bdquoFreilich ist diese Uumlbersetzung der griechischen Namen in die lateinische Sprache keineswegs der
harmlose Vorgang fuumlr den er noch heutigentags gehalten wird Vielmehr verbirgt sich hinter der
anscheinend woumlrtlichen und somit bewahrenden Uumlbersetzung ein Uumlbersetzen griechischer Erfahrung in
eine andere Denkungsart Das roumlmisches Denken uumlbernimmt die griechischen Woumlrter ohne die
entsprechende gleichurspruumlngliche Erfahrung dessen was sie sagen ohne das griechische Wort Die
Bodenlosigkeit des abendlaumlndischen Denkens beginnt mit diesem Uumlbersetzenldquo UKw GA 5 13 (Cf
traduccedilatildeo portuguesa Martin Heidegger ldquo A Origem da Obra de Arterdquo in Caminhos de Floresta coord
Cientiacutefica de Irene Borges-Duarte trad Filipa Pedroso e Irene Borges-Duarte Gulbenkian 2002) 106
Esclarecendo a distinccedilatildeo entre estes dois tipos de traduccedilatildeo von Herrmann contrapotildee a traduccedilatildeo literal
(woumlrtliche) agrave traduccedilatildeo restituidora do sentido (wortgetreue) ldquoNur dann wenn eine Uumlbersetzung als
Auslegung sich phaumlnomenologisch vollzieht ist sie keine bloszlig ldquowoumlrtlicherdquo sondern eine ldquowortgetreuerdquo
Uumlbersetzung [] In der Unterscheidung zwischen einer bloszlig woumlrtlichen und eine wortgetreuen
Uumlbersetzung bringt sich der Unterschied zwischen der Wesensbestimmung des Menschen als vernuumlnftiges
Lebewesen und als Dasein zur Geltungldquo (Idem Im Spiegel der Welt Sprache Uumlbersetzung
Auseinandersetzung 112)
82
am Feiertag o seguinte ldquoNatureza natura diz-se em grego θuacuteζις Esta palavra
eacute a palavra fundamental do pensador no iniacutecio do pensar ocidental Mas jaacute a
traduccedilatildeo de θuacuteζις por natura (natureza) transporta o mais tardio para o inicial e
coloca o longiacutenquo no lugar daquilo que soacute eacute proacuteprio do iniacuteciordquo 107
A experiecircncia da traduccedilatildeo autecircntica que se encontra modelarmente
representada em Houmllderlin eacute pois para Heidegger a experiecircncia da
impossibilidade de encontrar a equivalecircncia linguiacutestica e da problematicidade
inerente ao acto de traduzir
A impossibilidade de transpor a experiecircncia grega da fuacutesis108 para a palavra
alematilde de raiz latina ldquoNaturrdquo teria sido para Heidegger essencial na geacutenese do
proacuteprio poema que a partir de certa altura renuncia agravequela palavra alematilde
substituindo-a por ldquodas Heilligerdquo Em total consonacircncia com o que aqui afirma
muito mais tarde em Was Heiszligt Denken Heidegger afirmaraacute ldquoFalar a liacutengua eacute
totalmente diferente de utilizar uma liacutengua O falar habitual natildeo faz senatildeo
utilizar a liacutengua O seu caraacutecter habitual consiste precisamente numa tal
relaccedilatildeo com a liacutengua Ora sendo dado que o pensamento ou de uma forma
diferente a poesia natildeo utiliza os termos mas diz as palavras noacutes estamos
desde que tomamos o caminho do pensar obrigados a prestar especial
atenccedilatildeo ao dizer das palavrasrdquo109
As palavras natildeo satildeo termos que a loacutegica define como expressatildeo uniacutevoca de
conceitos e cujo significado habitual se encontra alinhado nos dicionaacuterios As
107
bdquoNatur natura heiβt griechisch θύζης Dieses Wort ist das Grundwort der Denker im Anfang des
abendlaumlndischen Denkens Aber schon die Uumlbersetzung von θύζης mit natura (Natur) uumlbertraumlgt sogleich
Spaumlteres in das Anfaumlngliche und setzt Entfremdetes an die Stelle dessen was nur dem Anfang eigen istldquo
WwF GA 4 56 108
Cf Hans Jaeger mostra os quatro aspectos essenciais que Heidegger vecirc no conceito grego de fuacutesis
aquilo que permanece recolhendo-se em si mesmo pertence-lhe o brilhar no seu aparecer (phainesthai)
o passar do velamento ao desvelamento (aletheia) o vigorar que em tudo vigora como crescer e abrir-se
ldquoDie Physis wurde von den Griechen im wesentlichen unter vier Aspekten gesehen a) Sie war
grundlegend das Staumlndige das waumlhrende Verweilen die in sich gesammelte Gesammeltheit b) zu ihr
gehoumlrt das Scheinen (phainesthai) sie west in scheinenden- Erscheinenrdquo c) dies scheinende Erscheinen
ist ein Aufgehen aus der Verborgenheit in die Unverborgenheit (phyein verwandt mit ldquoWahrheitrdquo im
Sinne von ldquoaleacutetheiardquo ldquoUnverborgenheitrdquo d) phainesthai heiβt ldquowachsen aufgehenrdquo) als solche ist sie
schlieszliglich ist die Physis in ihrem Verweilen und staumlndigen Waumlhren ein Walten das alles durchwaltet So
ist die Physis auch ldquodas Unheimlicherdquo und das ldquoUumlberwaumlltigenderdquo (to deinon) eine Bedeutung die
Heidegger im ersten Chorlied ldquoVielfaumlltig das Unheimlichehelliprdquo von Sophokles ldquoAntigravegonardquo findetrdquo (Idem
Heidegger und die Sprache Bern Francke Verlag 1971 34) 109
bdquoDie Sprache sprechen ist etwas voumlllig anderes als eine Sprache benuumltzen Das gewoumlhnliche Sprechen
benuumltzt nur die Sprache Seine Gewoumlhnlichkeit besteht gerade in diesem Verhaumlltnis zur Sprache Weil
aber das Denken und auf andere Weise das Dichten nicht Woumlrter benuumltzen sondern die Worte sagen
darum sind wir sobald wir uns auf einen Weg des Denkens begeben auch schon daran gehalten eigens
auf das Sagen des Wortes zu achtenldquo WhD GA 8 133
83
palavras satildeo fontes de sentido enquanto elementos de um contexto global e
desenham uma certa figura de mundo num certo modo dominante do mostrar-
se retraindo-se do ser
Enquanto criaccedilotildees da linguagem os ldquotextosrdquo em sentido eminente satildeo aqueles
que realizam em si a articulaccedilatildeo e o abrir compreensor do sentido que se
projecta a partir da existecircncia e inversamente exigem daquele que os
interpreta a escuta110 como atenccedilatildeo ao acircmbito a partir do qual eles falam
Romper com o sentido ldquooacutebviordquo dos termos filosoacuteficos significa romper com o
seu sentido ldquohabitualrdquo e tomaacute-los como um signo isto eacute como um sinal que soacute
podemos entender a partir duma preacute-compreensatildeo do domiacutenio donde esse
signo surgiu isto eacute do evento do desvelamento do ser que ele assinala111
Heidegger arruiacutena deste modo a tese da separaccedilatildeo entre sentido inteligiacutevel e
signo sensiacutevel que suportava o paradigma claacutessico de traduccedilatildeo e propotildee um
modelo alternativo de traduccedilatildeo
7 A temporalidade como fundamento do ldquoestado de abertordquo do
Dasein
A compreensatildeo das criaccedilotildees linguiacutesticas eacute um problema hermenecircutico no
sentido etimoloacutegico de decifraccedilatildeo de uma mensagem e no sentido teacutecnico e
fenomenoloacutegico que Heidegger daacute a este conceito em Ser e Tempo ldquo[] o
sentido metoacutedico de descriccedilatildeo fenomenoloacutegica eacute interpretaccedilatildeo O λογος da
fenomenologia do Dasein tem o caraacutecter do έρμενεύειν mediante o qual se datildeo
110
Cf Esta capacidade da traduccedilatildeo autecircntica escutar na direcccedilatildeo para que aponta o texto para aleacutem do
proacuteprio texto sublinhada por von Herrmann no citado artigo Uumlbersetzung als philosophisches Problem
deve ser correlacionada com a reinterpretaccedilatildeo heideggeriana da linguagem como Rede Tatiana Aguilar-
Aacutelvarez Bay sublinha a consideraccedilatildeo da fala (Rede) como possibilidade de ouvir ou de escutar (Houmlren)
que imediatamente habilita o Dasein a obedecer ao ser (Horchen) bdquoEn la caracterizacioacuten del habla como
poder oiacuter estaacute impliacutecito el rasgo que a nuestro juicio constituye el elemento esencial de la interpretacioacuten
heideggeriana del lenguaje [] Por tanto como el comprender se resuelve en el oiacuter propio de habla
originaria (Rede) - distinta del lenguaje (Sprache) ndash el hombre es mas un oyente que un hablante Oiacuter
implica por decirlo de modo graacutefico estar metido en el Da-sein esto es en la apertura Aun cuando el
hombre es necesario para que el sentido del ser se revele no se identifica con la apertura que lo hace
posible El caraacutecter de mediacioacuten de ser instrumento para que el ser se manifieste es precisamente el
hablaldquo (Idem El Lenguaje en el Primer Heidegger 216-217) 111
Ivo de Genaro destaca como essenciais ao conceito fenomenoloacutegico de traduccedilatildeo a escuta atenta do
texto a demora na sua linguagem e o deixar-se conduzir pelo seu sentido como meios de aceder ao
desvelamento do ser em que ele se inscreve bdquoUumlbersetzung ins Wesen ndash nichts anderes ist das Sehen der
Phaumlnomenologie ndash ist Sache eines gewandelten Aufenthalts in der Sprache houmlrende Fuumlgsamkeit
Gefuumlgigkeit ins Fuumlhrige Durchholende als welches das Gefuumlge von Welt sich bekundetldquo Ivo de
Gennaro Logos ndash Heidegger liest Heraklit Berlin (2001) 65
84
a conhecer a compreensatildeo do ser inerente ao proacuteprio Dasein o sentido proacuteprio
do ser e as estruturas fundamentais do seu ser peculiar A Fenomenologia do
Dasein eacute hermenecircutica na significaccedilatildeo originaacuteria da palavra a qual designa o
negoacutecio da interpretaccedilatildeordquo112
A Fenomenologia hermenecircutica pensa pois as criaccedilotildees linguiacutesticas a partir do
seu fundamento ontoloacutegico isto eacute a partir das estruturas fundamentais do
Dasein que suportam todo e qualquer projecto de interpretaccedilatildeo que acima
referimos e cuja unidade se fundamenta na temporalidade
A contribuiccedilatildeo fundamental de Heidegger para abalar os fundamentos em que
assentava a filosofia da linguagem reside no facto de ele ter dado um sentido
preciso agrave relaccedilatildeo entre linguagem e temporalidade o logos tomado como
razatildeo ou como linguagem enunciativa reduz o ser a um ldquoeacuterdquo - coacutepula de uma
proposiccedilatildeo - e remete como vimos para uma concepccedilatildeo do ser como
presenccedila ou substacircncia Pelo contraacuterio o logos tomado no seu sentido
originaacuterio de fala (Rede) remete para uma relaccedilatildeo originaacuteria entre ser e
temporalidade Nela se articulam o sido ou a reiteraccedilatildeo do passado e a
projecccedilatildeo do futuro que constituem o estado de aberto do Dasein
O tempo enquanto temporalidade fundamenta a totalidade do estado de aberto
do Dasein atravessando os seus trecircs momentos estruturais e possibilitando a
sua unidade Cada um dos existenciaacuterios se relaciona com um dos trecircs ecircxtases
temporais o compreender tem um caraacutecter dinacircmico e projectivo eacute um
antecipar-se a si mesmo em direcccedilatildeo ao futuro a afectividade pelo contraacuterio
temporaliza-se predominantemente no passado a fala como articulaccedilatildeo da
afectividade e do compreender funda-se na unidade extaacutetica da temporalidade
e natildeo se temporaliza num ecircxtase determinado
No entanto aquilo que aqui importa compreender claramente eacute o que aqui eacute
pensado sob a designaccedilatildeo de ldquoecircxtases temporaisrdquo ou de temporalidade
extaacutetica passado presente e futuro natildeo satildeo segmentos recortados no tempo
linear e objectivo mas relacionam-se com dinacircmica intrinsecamente temporal
112
bdquo [] der methodische Sinn der phaumlnomenologischen Deskription ist Auslegung Der ιόγος der
Phaumlnomenologie des Daseins hat den Charakter des έρκελεύεηλ durch das dem zum Dasein selbst
gehoumlrigen Seinsverstaumlndnis der eigentliche Sinn von Sein und die Grundstrukturen seines eigenen Seins
kundgegeben werden Phaumlnomenologie des Daseins ist Hermeneutik in der urspruumlnglichen Bedeutung des
Wortes wonach es das Geschaumlft der Auslegung bezeichnetldquo SuZ GA 2 sect7 37
85
da existecircncia enquanto projecto lanccedilado A analiacutetica existencial de Ser e
Tempo pensa o tempo como o sentido de ser do Dasein que eacute em si mesmo
temporal (Zeitlich) e o tempo atravessa a estrutura tripartida da existecircncia sem
lhe acrescentar nada mas tornando possiacutevel a sua unidade
De facto o Dasein exerce a sua existecircncia oscilando de forma ambiacutegua e
imprevisiacutevel entre o exerciacutecio apropriado da temporalidade extaacutetica que lhe
permite ser um si mesmo e a queda na presenccedila do presente na dispersatildeo e
na perda de si mesmo em que permanece na maior parte do tempo113 Esta
ambiguidade inerente agrave existecircncia afecta o compreender a afectividade e a
fala modificando esses existenciaacuterios e distorcendo-os em modalidades de
temporalizaccedilatildeo inapropriadas mas igualmente fundamentais e
ontologicamente constitutivas
O compreender eacute o projectar-se em direcccedilatildeo a um possiacutevel e o manter-se
numa possibilidade existencial antecipando-se a si mesmo e lanccedilando-se em
direcccedilatildeo ao futuro ndash este movimento de futuraccedilatildeo eacute inerente agrave existecircncia que eacute
assim porvir (kunftig) Contudo o compreender improacuteprio eacute essencialmente
diferente implica um movimento de projecccedilatildeo que se desvia de si mesmo em
direcccedilatildeo agraves possibilidades abertas pelas coisas e assim o Dasein rdquopreocupa-
serdquo com a urgecircncia dos afazeres esquece-se de si mesmo dispersa-se nas
possibilidades apresentadas pelos sucessos ou fracassos no lidar com as
coisas-agrave-matildeo caindo na presenccedila do presente
Ao contraacuterio o compreender proacuteprio implica o rdquoestado de resoluccedilatildeordquo ou a
apropriaccedilatildeo de si mesmo pelo movimento projectivo em direcccedilatildeo a uma
possibilidade existencial Retornando sobre si mesmo a partir da dispersatildeo do
quotidiano e da preocupaccedilatildeo com o imediato o Dasein apropria-se de si
mesmo O compreender implica pois o projectar-se em direcccedilatildeo ao futuro ou o
advir e a partir dele retroceder sobre si mesmo tomado na sua singularidade
essencial e neste voltar para si mesmo (auf sich zu kommen) o Dasein realiza-
se assim como porvir (Kunftig)
113
Cf Bernhard Sylla bdquoDie Zweideutigkeit bewirkt eine kategorische da existentiale Unsicherheit
hinsichtlich der Unterscheidung von Sein und Seienden und auf tiefere Ebene von Eigentlichkeit und
Uneigentlichkeit Deswegen bezeichnet Heidegger sie als bdquoSteigerung des Verfallensldquo Man muumlsste sogar
sagen dass die Zweideutigkeit nicht nur eine Steigerung des Verfallens ist sondern dessen sbquotiefstes
Wesenbdquo Heidegger vergleichet ihre Wirkung mit derjenigen eines sbquoWirbelsbdquo sozusagen eines
schicksalhaften Maalstromsldquo (Idem Hermeneutik der langue 264)
86
No entanto o conceito de projecto lanccedilado implica como vimos que a
projecccedilatildeo se daacute sempre num ser que jaacute eacute e portanto o poder-ser eacute sempre o
poder ser de um jaacute sido Ao voltar a si mesmo compreendendo o Dasein toma
a seu cargo o ente que ele jaacute eacute e reitera simultaneamente o que ele foi ou o
sido114
O movimento projectivo inerente ao compreender natildeo abre uma possibilidade
arbitraacuteria mas eacute na realidade a reiteraccedilatildeo do sido ou do passado que se
limita a desenvolver as possibilidades nele contidas e a actualizaacute-las Esta
reiteraccedilatildeo do passado implica um movimento de retorno sobre si mesmo
essencialmente projectado no futuro rdquoSe bem que o compreender rdquoocupando-
se derdquo improacuteprio se defina pelo tornar presente aquilo de que se ocupa a
temporalizaccedilatildeo do compreender leva-se a cabo primariamente no futurordquo115
A afectividade tem o caraacutecter passivo e receptivo do rdquoser afectadordquo e potildee o
Dasein diante de si mesmo como projecto sempre jaacute previamente lanccedilado Eacute
na anguacutestia que experimentamos a afectividade proacutepria sentindo-nos
afectados pelo estar lanccedilado no meio dum mundo natildeo-familiar e inoacutespito A
anguacutestia subtrai o Dasein agraves possibilidades mundanas contidas nas coisas de
que se ocupa e coloca-o diante de si mesmo libertando-o para a sua
possibilidade mais proacutepria ou seja para a morte Pelo contraacuterio no estado de
acircnimo improacuteprio do temor o Dasein eacute atraiacutedo pelos entes circundantes de que
se ocupa o temor abre o mundo agrave volta como algo de ameaccedilador
No discurso (Rede) articulam-se o compreender e a afectividade e ela funda-se
por isso mesmo na unidade extaacutetica da temporalidade e natildeo se temporaliza
primariamente num ecircxtase determinado A fala enquanto Rede eacute em si mesma
temporal natildeo porque se refira enquanto linguagem expressa ou Sprache a
acontecimentos que se desenrolam no tempo ou porque use os diversos
tempos verbais Ela eacute temporal originariamente enquanto estrutura
existenciaacuteria isto eacute enquanto fala preacute-gramatical ela deriva em si mesma da
unidade da temporalidade extaacutetica nela se articulando os trecircs ecircxtases da
114
Cf Ramoacuten Rodriacuteguez (Hemeneutica y Subjectividad 30) O autor sublinha que a contribuiccedilatildeo
fundamental de Heidegger no contexto da filosofia da histoacuteria foi ter mostrado a temporalidade como o
sentido do ser do Dasein isto eacute como aquilo que atravessa a estrutura da existecircncia e torna inteligiacutevel a
sua unidade 115
bdquoObzwar sich das uneigentliche besorgende Verstehen aus dem Gegenwaumlrtigen des Besorgten
bestimmt vollzieht sich doch die Zeitigung des Verstehens primaumlr in der Zukunftldquo SuZ GA 2 sect68 339
87
temporalidade o passado o futuro e o presente e por isso ela natildeo se
temporaliza num ecircxtase determinado
A fala enquanto Rede remete para a constante fusatildeo entre o passado e o
futuro como dois horizontes que incessantemente se misturam ao movimento
de futuraccedilatildeo da compreensatildeo pertence necessariamente um passado como
um momento intriacutenseco de si mesmo compreendido no futuro por outro lado o
passado soacute eacute compreendido como passado por esse movimento do projectar
que retorna sobre si a partir do futuro Esta fusatildeo entre os horizontes do futuro
e do passado que constitui o gestar-se apropriado da existecircncia projecta um
horizonte de sentido no qual os entes aparecem como presenccedila
No entanto este horizonte de presenccedila natildeo remete imediatamente para uma
instacircncia discursiva mas para uma desvelaccedilatildeo instantacircnea e intuitiva de
sentido que Heidegger denomina como rdquoolhar instantacircneordquo (Augenblick) o que
tem sido posto em correlaccedilatildeo com o Kairos de Santo Agostinho Este instante
kairoloacutegico do desvendamento do sentido suporta a constituiccedilatildeo ontoloacutegica das
grandes criaccedilotildees linguiacutesticas e como a seguir vemos dos acontecimentos
propriamente histoacutericos
A vocaccedilatildeo ontoloacutegica da linguagem a sua funccedilatildeo de abertura de mundo
(Welterschlieszligung) funda-se pois na unidade dos esquemas horizontais do
futuro do sido e do presente - a fala (Rede) eacute responsaacutevel pela projecccedilatildeo
instantacircnea de um horizonte de inteligibilidade ou pela abertura aberta que
torna possiacutevel o surgimento dos entes Essa diferenccedila entre o horizonte e o
que aparece nesse horizonte esclarece a noccedilatildeo de diferenccedila ontoloacutegica ou a
noccedilatildeo da diferenccedila entre ser e ente
Enquanto linguagem expressa ou Sprache tem o presente um papel
preferencial na sua constituiccedilatildeo No entanto esta articulaccedilatildeo da temporalidade
sob o modo do presentear ou do tornar presente pode fazer-se no modo
inautecircntico da linguagem decaiacuteda do falatoacuterio e da dispersatildeo ou sob o modo
da presenccedila genuiacutena ou instantacircnea iluminaccedilatildeo rdquoO presente mantido na
temporalidade proacutepria ou presente proacuteprio chamamos-lhe o rdquoolhar
instantacircneordquordquo 116 O tempo instantacircneo eacute a temporalidade inerente ao olhar
instantacircneo daquele que a partir do sido se projecta em direcccedilatildeo ao futuro e
116
bdquoDie in der eigentlichen Zeitlichkeit gehaltene mithin eigentliche Gegenwart nennen wir den
Augenblickrdquo SuZ GA 2 sect68 338
88
assim abre de forma originaacuteria um horizonte de presenccedila em que as coisas e
os homens podem fazer frente a uma nova luz fazendo surgir a unidade de
significaccedilatildeo de um mundo117
Mais tarde Heidegger identificaraacute esta dimensatildeo poieacutetica da linguagem isto eacute
este instantacircneo levantar de um mundo originariamente inscrito na linguagem
humana com a obra de arte Esta temporalidade proacutepria das criaccedilotildees
humanas118 enquanto criaccedilotildees linguiacutesticas essencialmente diferente da
temporalidade das coisas ou dos entes da natureza faz da sua compreensatildeo
um problema que de modo algum pode ser resolvido pelas metodologias
usadas nas ciecircncias nem submetido ao seu ideal de objectividade
Eacute a partir deste fundamente ontoloacutegico isto eacute a partir desta oscilaccedilatildeo do
Dasein entre o exerciacutecio apropriado e natildeo apropriado da temporalidade extaacutetica
que podem ser compreendidas todas as criaccedilotildees linguiacutesticas e por
conseguinte eacute tambeacutem nesse plano que pode ser relanccedilada a discussatildeo do
problema da traduccedilatildeo
8 Linguagem e verdade
A confrontaccedilatildeo com Aristoacuteteles levada a cabo em Ser e Tempo a propoacutesito da
natureza da linguagem tem um dos seus mais importantes e emblemaacuteticos
momentos no sect 44 que tem como tiacutetulo O Dasein o Estado de Aberto e a
Verdade (Dasein Erschlossenheit und Wahrheit) Aiacute Heidegger confronta-se
natildeo apenas com Aristoacuteteles mas com a interpretaccedilatildeo que a tradiccedilatildeo metafiacutesica
dele impocircs e que hoje encobre e dificulta o acesso ao que no pensador grego
ainda estava resguardado como pensar originaacuterio a propoacutesito do problema da
verdade A tradiccedilatildeo metafiacutesica impocircs e transmitiu uma mesma significaccedilatildeo do
conceito de verdade como ldquoconcordacircnciardquo do juiacutezo com o seu objecto que
esteve em vigor ateacute Kant e foi por ele mantida num primeiro momento
117
Sobre a pertinecircncia desta ambiguidade estrutural da fala para uma teoria da interpretaccedilatildeo eacute preciso ter
em conta que a tendecircncia para a decadecircncia da Rede em Gerede eacute constitutiva do Dasein levando-o a
constantemente mover-se no jaacute interpretado e no habitual pelo que uma interpretaccedilatildeo autecircntica soacute pode
constituir-se contra esta tendecircncia para cair na confusa e abstracta generalidade das ldquoverdades comunsrdquo
Isto mesmo sublinha Bernhard Sylla na obra acima citada mostrando aleacutem disso como tal consideraccedilatildeo
determinou o exerciacutecio da linguagem pelo proacuteprio Heidegger nas obras posteriores a Ser e Tempo (Cf
Hermeneutik der langue 265) 118
bdquoEin Werk ist nur Werk in dem es der Zumutung der Zu-kunft entspricht und dadurch das Gewesene
in sein verborgenes Wesen befreit uumlberliefertldquo GD GA 79 83
89
enunciou-se a tese de que o lugar da verdade eacute a proposiccedilatildeo e num segundo
momento acompanhando o nascimento da ciecircncia moderna avanccedilou-se a
tese de que essa adequaccedilatildeo das proposiccedilotildees agraves coisas deveria ser objecto de
verificaccedilatildeo pela mostraccedilatildeo empiacuterica do ente por ela designado
Como acima vimos esta decisatildeo de fazer da proposiccedilatildeo o lugar da verdade
repousa no reconhecimento aristoteacutelico da funccedilatildeo apofacircntica da linguagem
ldquoUma proposiccedilatildeo verdadeira significa descobre o ente em si mesmo Depotildee
mostra ldquopermite verrdquo (ἀπόθαλζης) o ente no seu estado de descoberto O ser
verdadeiro (verdade) da proposiccedilatildeo tem que ser entendido como ser
descobridor 119
No entanto a tradiccedilatildeo instituiu uma interpretaccedilatildeo decaiacuteda e deturpada deste
ldquopermitir verldquo pensado por Aristoacuteteles como atributo da proposiccedilatildeo verdadeira
O que Aristoacuteteles teria querido dizer eacute que o logos pode ser encobridor ou
descobridor e esta dupla possibilidade eacute o que eacute relevante para apurar a
natureza da verdade Aristoacuteteles pensaria ainda de acordo com o conceito da
verdade como aletheia dos primeiros pensadores gregos embora dele guarde
apenas um eco distante e natildeo leve a cabo uma formulaccedilatildeo expliacutecita desse
conceito de verdade
Se a tradiccedilatildeo120 deturpou este conceito de verdade impondo a traduccedilatildeo de
aletheia como adequaccedilatildeo como oacutebvia e consensual tal deveu-se a uma
interpretaccedilatildeo restritiva da funccedilatildeo apofacircntica do logos exclusivamente
confinada agrave linguagem proposicional da ciecircncia e da metafiacutesica a proposiccedilatildeo eacute
um tipo especiacutefico de enunciado verbal que designa um ente mostrando-a na
sua presenccedila
A tradiccedilatildeo impocircs uma interpretaccedilatildeo unilateral de Aristoacuteteles valorizando neste
autor natildeo apenas a loacutegica mas a ontologia da presenccedila a que esta se encontra
intrinsecamente ligada Nesta mesma tradiccedilatildeo se inscrevem as filosofias da
consciecircncia e em particular o criticismo kantiano De facto se Kant julga no
119
bdquoDie Aussage ist wahr bedeutet sie entdeckt das Seiende an ihm selbst Sie sagt aus sie zeigt auf sie
bdquolaumlβt sehenrdquo (ἀπόφανζης) das Seiende in seiner Entdecktheit Wahrsein (Wahrheit) der Aussage muszlig
verstanden werden als bdquoentdeckend-seinldquo SuZ GA 2 sect44 218 120
Joatildeo Paisana sublinha em Histoacuteria da Filosofia e Tradiccedilatildeo Filosoacutefica (Lisboa 1993) que a tradiccedilatildeo
nunca veicula o passado na sua totalidade mas implica necessariamente uma funccedilatildeo de selecccedilatildeo nem
todas as obras e acontecimentos do passado satildeo conservadas de igual modo e apenas satildeo conservados e
transmitidos os acontecimentos que podem aparecer como resposta a questotildees presentes A tradiccedilatildeo
porque eacute uma resposta embora natildeo temaacutetica possui necessariamente um caraacutecter selectivo Cf Idem
obcit 18-19
90
tribunal da razatildeo a Metafiacutesica condenando irrevogavelmente a sua pretensatildeo
ao estatuto de ciecircncia isto eacute a sua pretensatildeo a instituir verdades universais e
imutaacuteveis natildeo deixou no entanto de nesse mesmo tribunal exaltar e fundar o
estatuto da ciecircncia como lugar duma verdade universal e intemporal ainda
que duma verdade relativa agrave espeacutecie humana e ao mundo fenomeacutenico
Heidegger confronta-se com esta concepccedilatildeo da verdade imposta pela tradiccedilatildeo
metafiacutesica121 e pela ciecircncia moderna mostrando que subjacente a esta
concepccedilatildeo da verdade como concordacircncia se postula a semelhanccedila entre um
ente (sujeito) com outro (objecto) entendidos como Vorhanden ou como
presenccedila A destruiccedilatildeo fenomenoloacutegica desta concepccedilatildeo de verdade
possibilitou a Heidegger aceder ao sentido originaacuterio da verdade como
desvendamento dos primoacuterdios da filosofia grega Heidegger mostra que a
tradiccedilatildeo metafiacutesica traduzindo aletheia por adaequatio se constitui como
encobrimento e distorccedilatildeo do sentido originaacuterio da palavra grega que apontava
num sentido radicalmente diferente para os primeiros gregos isto eacute para o
prestigioso iniacutecio da nossa civilizaccedilatildeo a verdade era uma experiecircncia preacute-
ontoloacutegica do ser como acontecer remetendo assim para a temporalidade e a
histoacuteria
Heidegger vai retomar esta concepccedilatildeo originaacuteria de verdade e reconstruiacute-la de
acordo com o novo fundamento ontoloacutegico proposto pela analiacutetica do Dasein
ldquoA verdade natildeo tem a estrutura de uma concordacircncia entre o conhecer e o
objecto no sentido de uma semelhanccedila de um ente (sujeito) com outro
(objecto)
O ser verdadeiro como ser descobridor soacute eacute ontologicamente possiacutevel por sua
vez sobre o fundamento do ser-no-mundo Este fenoacutemeno no qual noacutes
reconhecemos uma estrutura fundamental do Dasein eacute o fundamento do
fenoacutemeno originaacuterio da verdade122
121
Esclarecendo a distinccedilatildeo entre conhecimento histoacuterico e tradiccedilatildeo Joatildeo Paisana afirma que o
conhecimento histoacuterico implica sempre a tradiccedilatildeo mas o inverso natildeo eacute verdadeiro O conhecimento
histoacuterico eacute um conhecimento expresso e temaacutetico da tradiccedilatildeo que implica a exegese dos textos em que
essa tradiccedilatildeo se fundamenta e o seu necessaacuterio questionamento ldquoA histoacuteria da filosofia nem eacute redutigravevel agrave
tradiccedilatildeo filosoacutefica nem a uma mera investigaccedilatildeo empiacuterica ela eacute uma disciplina filosoacutefica soacute formulaacutevel a
partir da questatildeo expressa que interroga pela filosofiardquo (Ibidem 31) 122
bdquoWahrheit hat also gar nicht die Struktur einer Uumlbereinstimmung zwischen Erkennen und Gegenstand
im Sinne einer Angleichung eines Seienden (Subjekt) an ein anderes (Objekt)
91
Afirmando que o fundamento da verdade eacute o proacuteprio Dasein enquanto ser no
mundo Heidegger identifica a verdade com a funccedilatildeo de abertura de mundo
que eacute inerente agrave linguagem Esta deslocaccedilatildeo da verdade para o Dasein como
ser-no-mundo vai ter importantes consequecircncias pois ela deixa de ser
primordialmente um problema gnosioloacutegico para passar a ser entendida de um
modo mais radical na sua significaccedilatildeo ontoloacutegica
Com efeito O Dasein natildeo eacute uma consciecircncia abstracta que se confronta com o
mundo constituindo-o como objecto por meio das categorias trata-se duma
consciecircncia situada no mundo sempre jaacute interpretado pela linguagem estaacute jaacute
sempre lanccedilado nesse mundo pela Gworfenheit A verdade que se articula na
linguagem natildeo eacute a posiccedilatildeo dum sujeito mas encontra-se sempre jaacute lanccedilada
como projecccedilatildeo cujo iniacutecio nos escapa
Por outro lado o lugar da verdade natildeo eacute a proposiccedilatildeo mas o logos
hermenecircutico como interpretaccedilatildeo antepredicativa A compreensatildeo do ser dos
entes daacute-se precisamente no Dasein que antes duma compreensatildeo expliacutecita e
temaacutetica tem uma compreensatildeo totalizante e vaga uma preacute-compreensatildeo que
lhe permite colocar a pergunta pelo ser Como poder-ser o Dasein tem a
estrutura do projecto (Entwurf) e compreende projectando Este compreender
projectando eacute o estado de aberto do ser em geral rdquoNo estado de projectado do
seu ser sobre o por mor de em uniacutessono com o estado de projectado sobre a
significatividade (mundo) reside o estado de aberto do ser em geralrdquo123
Neste projectar de possibilidades estaacute antecipada uma compreensatildeo preacute-
ontoloacutegica do ser A interpretaccedilatildeo funda-se neste compreender desenvolvendo
as possibilidades nele projectadas elaborando-as e explicitando-as Mas estas
possibilidades assim apropriadas e desenvolvidas num projecto de
compreensatildeo jaacute estavam previamente lanccediladas no contexto em que o Dasein
vive e fala A condiccedilatildeo de projecto lanccedilado do Dasein implica que ele se
encontra radicalmente limitado na escolha das suas possibilidades de
interpretaccedilatildeo ao movimento de futuraccedilatildeo do projecto pertence de forma
Das Wahrsein als Entdeckend-sein ist wiederum ontologisch nur moumlglich auf dem Grunde des In-der-
Welt-seins Dieses Phaumlnomen in dem wir eine Grundverfassung des Daseins erkannten ist das
Fundament des urspruumlnglichen Phaumlnomens der Wahrheitldquo SuZ GA 2 sect44 218219 123
bdquoIn der Entworfenheit seines Seins auf das Worumwillen ist eins mit der auf die Bedeutsamkeit (Welt)
liegt Erschlossenheit von Sein uumlberhauptldquo SuZ GA 2 sect31 147
92
igualmente originaacuteria um passado que haacute-de ser compreendido como um
momento do ldquosi mesmordquo integrado no futuro
A verdade eacute assim um atributo do discurso que tem em si mesmo a
possibilidade de ser descobridor e de abrir mundo como tambeacutem de encobrir
e cerrar aquilo que poderia abrir duplicidade que traduz a ambiguidade
constitutiva da existecircncia Assim a interpretaccedilatildeo das criaccedilotildees humanas que
pretenda aceder agrave sua verdade originaacuteria tem de apreendecirc-la a partir do seu
enraizamento existencial Os textos apresentados pela tradiccedilatildeo satildeo
notificaccedilotildees do ser na linguagem do homem representam uma possibilidade
de interpretaccedilatildeo que foi positivamente apropriada pelo poeta e o pensador
enquanto possibilidade jaacute lanccedilada na sua existecircncia faacutectica124
Contudo esta exigecircncia de apreender a verdade de um enunciado a partir do
seu horizonte existencial que eacute a condiccedilatildeo da apreensatildeo do seu serndash
verdadeiro eacute uma exigecircncia paradoxal porque por causa do nosso proacuteprio
enraizamento num horizonte temporal natildeo podemos jamais coincidir com a
facticidade da existecircncia que motivou um enunciado verdadeiro O interpretar
esses textos da tradiccedilatildeo eacute sempre uma tentativa de desobstruir de cavar uma
passagem para algo que se oculta e encobre na desocultaccedilatildeo mesma que
assim se instituiu e fixou na escrita
Assim em vez de tentar coincidir com essa impossiacutevel alteridade do texto noacutes
devemos compreendermo-nos nele apropriando-nos positivamente da nossa
proacutepria existecircncia e desenrolando as possibilidades de compreensatildeo nela
contidas isto eacute compreendendo-nos a noacutes mesmos no nosso ser ldquoO Dasein eacute
aberto em relaccedilatildeo agrave sua existecircncia proacutepria ou impropriamente para si mesmo
Existindo compreende-se a si mesmo mas de tal modo que este compreender
natildeo representa um puro apreender mas constitui o ser existencial do faacutectico
poder-ser O ser aberto eacute o de um ente para o qual estaacute em causa este ser O
sentido deste ser isto eacute o cuidado que o torna possiacutevel na sua constituiccedilatildeo
constitui originariamente o ser do poder-ser O sentido do ser do Dasein natildeo eacute
124
Cf Otto Poumlggeler (Der Denkweg Martin Heideggers 90) bdquoDie Wahrheit ist als Erschlossenheit des
Daseins in ihr Eigentlichkeit bdquoWahrheit der Existenzldquo Sie ist durch Geworfenheit und Entwurf
charakterisiert so aber wie Heidegger in Sein und Zeit nur Kurtz andeute durch vorlaufende
Entschlossenheit und damit durch Geschichtlichkeitldquo
93
uma outra coisa que flutue no vazio e ldquoforardquo dele mesmo mas o proacuteprio Dasein
que se compreende a si mesmordquo125
Compreendendo-se a si mesma a existecircncia adquire sentido e projecta aquele
fundo de mundo como significatividade na qual os entes podem aparecer no
seu ser O ser-no-mundo aberto para si mesmo compreende simultaneamente
o ente que ele proacuteprio eacute e o ser dos entes descobertos nesse mundo isto eacute os
entes da natureza as coisas e as criaccedilotildees humanas
O conhecimento ocircntico dos entes no domiacutenio das vaacuterias ciecircncias funda-se ele
mesmo num projectar mais originaacuterio dentro qual se projectou o ideal moderno
de conhecimento metoacutedico e de objectividade e que eacute assim ele mesmo
secundaacuterio e derivado
Contudo o interpretar e traduzir os textos do passado implica o elevar-se a
uma consciecircncia hermenecircutica expliacutecita e coloca uma exigecircncia mais alta a
interpretaccedilatildeo e traduccedilatildeo situam-se na realidade entre o ouvir no texto o que
se situa para aleacutem dele como fundamento da sua verdade e no asssumir e
desenvolver positivamente as possibilidades de compreensatildeo que se
encontram inscritas na proacutepria situaccedilatildeo do inteacuterprete
Aceder agrave verdade de uma interpretaccedilatildeo eacute assim desenrolar um projecto
hermenecircutico que se sabe a si mesmo como possiacutevel na sua possibilidade
compreendendo-se na sua radical incompletude e inacabamento Soacute tem
acesso agrave verdade da interpretaccedilatildeo aquele que se compreende a si mesmo
naquilo que interpreta apropriando-se positivamente das suas proacuteprias
possibilidades hermenecircuticas e mantendo-as enquanto tal
O problema da traduccedilatildeo e da interpretaccedilatildeo deve ser articulado com a
tematizaccedilatildeo heideggeriana do problema da verdade Heidegger desloca-a do
plano da universalidade e da intemporalidade inerente a uma atitude teoreacutetica e
contemplativa em que a colocou a tradiccedilatildeo metafiacutesica desde Platatildeo a Kant
125
bdquoDas Dasein ist ihm selbst hinsichtlich seiner Existenz eigentlich oder uneigentlich erschlossen
Existierend versteht es sich so zwar dass dieses Verstehen kein pures Erfassen darstellt sondern das
existenzielle Sein des faktischen Seinkoumlnnens ausmacht Das erschlossene Sein ist das eines Seienden
dem es um dieses Sein geht Der Sinn dieses Seins das heiβt der Sorge der diese in ihrer Konstitution
ermoumlglicht macht urspruumlnglich das Sein des Seinkoumlnnens aus Der Seinssinn des Daseins ist nicht ein
freischwebendes Anderes und bdquoAuβerhalbldquo seiner selbst sondern das sich verstehende Dasein selbstldquo
SuZ GA 2 sect65 325
94
para o plano da radical singularidade e temporalidade que eacute o da existecircncia
concreta do homem enquanto ser-no-mundo
A verdade natildeo eacute para Heidegger a universalidade abstracta de um enunciado
mas tem a forma da singularidade irrepetiacutevel dum desvendamento do sentido
fundando-se nessa irredutiacutevel singularidade dum Da-sein que se compreende a
si mesmo no exerciacutecio da sua existecircncia faacutectica126
9 Natildeo-ser e finitude
Eacute sabido que em Heidegger haacute um nexo expliacutecito entre a experiecircncia da morte
como possibilidade iminente inexplicaacutevel e infundada e uma viragem no uso da
linguagem o salto da linguagem decaiacuteda da publicidade da certeza cientiacutefica e
da tradiccedilatildeo metafiacutesica genericamente classificada como falatoacuterio [Gerede] para
o exerciacutecio apropriado da linguagem enquanto linguagem originaacuteria (Rede)
esse salto eacute tambeacutem a experiecircncia do fracasso de todo o discurso loacutegico-
demonstrativo com pretensotildees agrave universalidade face agrave anguacutestia do Dasein
diante da possibilidade iminente da sua proacutepria morte
No sect 46 de Ser e Tempo Heidegger confronta os resultados da analiacutetica
existencial com a categoria de totalidade sob a rubrica ldquoDas moumlgliche
Ganzsein des Daseins und das Sein zum Toderdquo demonstrando que se com a
categoria de totalidade pretendermos designar a seacuterie de todos os possiacuteveis
em direcccedilatildeo aos quais se projecta a existecircncia esta soacute pode poreacutem estar
completa no fim isto eacute na morte natildeo podendo por isso ser compreendida pelo
Dasein que jaacute natildeo eacute
Contudo a morte natildeo tem apenas uma funccedilatildeo negativa e desconstrutiva em
relaccedilatildeo agrave possibilidade de uma compreensatildeo metafiacutesica do ser homem Ela
tem uma funccedilatildeo positiva porque esclarece a natureza do Dasein como um ser-
aiacute mostrando a temporalidade intriacutenseca do projecto que ele eacute enquanto
projecto lanccedilado ele estaacute sempre jaacute lanccedilado em direcccedilatildeo agrave sua uacuteltima e mais
caracteriacutestica possibilidade isto eacute estaacute sempre lanccedilado em direcccedilatildeo agrave morte
126
O Seminaacuterio Sobre a Essecircncia da Verdade retoma esta temaacutetica jaacute aberta em Ser e Tempo
desenvolvendo-a numa direcccedilatildeo que Otto Poumlggeler sintetiza deste modo ldquoAuf diese Frage nach der
Wahrheit des Seins fuumlhrt der Vorrang Vom Wesen der Wahrheit hin Er soll durch seinen Gang zeigen
daβ diese Frage eine geschichtlich ist bdquo daβ das Wesen der Wahrheit nicht das leere bdquo Generelleldquo einer
bdquoabstraktenldquo Allgemeinheit ist sondern das sich verbergende Einzige der einmaligen Geschichte der
Entbergung des bdquoSinnesldquo dessen was wir das Sein nennen und seit langem nur als das Seiende im Ganzen
zu bedenken gewohnt sindldquo (Idem Der Denkweg Martin Heideggers 99)
95
Na sua natureza de possibilidade uacuteltima universal ela esclarece a essecircncia dos
possiacuteveis que eacute precisamente a de ainda natildeo serem e mostra que a existecircncia
estaacute afectada por uma radical incompletude
Assim o Dasein natildeo pode ser objecto de um conhecimento totalizante natildeo por
qualquer limitaccedilatildeo da faculdade de conhecer mas pela natureza da existecircncia
que ele eacute ldquoEste ente natildeo tem de modo nenhum o modo de ser de um ente
intra-mundano disponiacutevel O em conjunto do ente tal como o Dasein eacute
enquanto ldquocorrerdquo ateacute que cumpriu o seu ldquopercursordquo natildeo se constitui atraveacutes da
junccedilatildeo ldquosucessivardquo de fragmentos de um ente que jaacute estaacute disponiacutevel em
qualquer modo ou lugar O Dasein natildeo eacute apenas em conjunto quando o seu
ainda natildeo se preencheu tanto mais que entatildeo ele jaacute natildeo eacute O Dasein existe em
cada caso jaacute precisamente de tal modo que sempre lhe pertence o seu ainda
natildeordquo127
Assim se a morte natildeo nos permite pensar o que estaacute para laacute do fim permite-
nos contudo pensar a existecircncia enquanto se situa do lado de caacute dessa uacuteltima
possibilidade mostrando que todas as formas que a existecircncia jaacute alcanccedilou satildeo
apenas a realizaccedilatildeo de possiacuteveis destinados a ser ultrapassados e superados
isto eacute mostra a existecircncia enquanto processo aberto e em transformaccedilatildeo
Eacute o ser-para-morte que nos permite tambeacutem repensar a natureza das criaccedilotildees
linguiacutesticas os textos em sentido geneacuterico como o caso particular dos grandes
textos da tradiccedilatildeo filosoacutefica como possibilidades hermenecircuticas destinadas a
ser superadas e ultrapassadas pelo proacuteprio movimento projectivo da
existecircncia
Contudo o ser-para-a-morte natildeo induz num relativismo niilista pois eacute tambeacutem
o confronto com o abismo da morte que cria a disposiccedilatildeo para a escuta da voz
ldquointeriorrdquo que chama apelando a uma ruptura com a existecircncia improacutepria o
estar ocupado [Besorgen] com as tarefas do quotidiano e a dispersatildeo por
muacuteltiplas possibilidades mundanas
127
ldquoDieses Seiende hat uumlberhaupt nicht die Seinsart eines innerweltlich Zuhandenen Das Zusammen des
Seienden als welches das Dasein bdquoin seinem Verlaufldquo ist bis es bdquoseinen Lauf bdquo vollendet hat konstituiert
sich nicht durch eine bdquofortlaufendeldquo Anstuumlckung von Seiendem das von ihm selbst her schon irgendwie
und ndashwo zuhanden ist Das Dasein ist nicht erst zusammen wenn sein Noch-nicht sich aufgefuumlllt hat so
wenig daβ es dann gerade nicht mehr ist Das Dasein existiert je schon immer gerade so daβ zu ihm sein
Noch-nicht gehoumlrtldquo SuZ GA 2 sect 48 243
96
A natureza desta voz interior ou deste chamamento eacute esclarecida em Ser e
Tempo como um aspecto ou uma manifestaccedilatildeo do uso apropriado da
linguagem enquanto Rede [fala] que esclarece a proacutepria essecircncia da
linguagem enquanto existenciaacuterio ldquoCompreendemos o chamamento [Ruf]
como um modo da fala [Rede] Ele articula a compreensibilidade A
caracteriacutestica da consciecircncia como chamamento natildeo eacute de modo algum apenas
uma ldquoimagemrdquo como a do tribunal da consciecircncia de Kant [] Na tendecircncia do
chamamento a abrir haacute o momento do choque da sacudidela intermitente
Somos chamados da distacircncia para o distante Pelo chamamento eacute alcanccedilado
quem quer ser reconduzido a si mesmo ldquo128
O chamamento [Ruf] eacute o exemplo paradigmaacutetico da Rede [fala] enquanto
linguagem que abala o falatoacuterio o simples falar por falar em que caiacutemos a
maior parte do tempo ou Gerede Na sua linguagem interior e silenciosa
articula-se a Befindlichkeit o ser disposto pelo qual somos lanccedilados a partir do
passado com o Verstehen a compreensatildeo projectante Pela articulaccedilatildeo de
ambos o Dasein apropria-se de si mesmo e das suas possibilidades genuiacutenas e
pode ser um ldquosi mesmordquo [selbst]
A voz interior e silenciosa da consciecircncia natildeo deve ser compreendida na
interpretaccedilatildeo de Heidegger como uma faculdade da alma nem como a voz de
um Deus transcendente nem como uma lei moral mas a partir da estrutura
existenciaacuteria do Dasein como ldquolinguagemrdquo em sentido eminente129
Se o falatoacuterio [Gerede] coloca o Dasein no plano ldquoocircnticordquo em que as coisas
aparecem como simples presenccedila a voz da consciecircncia abre o Dasein para a
sua natureza intrinsecamente temporal projectando-o em direcccedilatildeo agraves suas
possibilidades genuiacutenas e mais radicalmente em direcccedilatildeo agrave possibilidade
universal da morte
128
ldquoDas Rufen fassen Wir als Modus der Rede Sie gliedert die Verstaumlndlichkeit Die Charakteristik des
Gewissens als Ruf ist keineswegs nur ein bdquoBildldquo etwa wie die kantische Gerichtshofvorstellung von
Gewissen [] In der Erschlieβungstendenz des Rufes liegt das Moment des Stoβes des abgesetzten
Aufruumlttelns Gerufen wird aus der Ferne in die Ferne Vom Ruf getroffen wird wer zuruumlckgeholt sein
willldquo SuZ GA 2 sect55 271 129
Tatiana Aacutelvarez sublinha que na anaacutelise da morte levada a cabo em Ser e Tempo Heidegger faz uma
constante contraposiccedilatildeo entre falatoacuterio e silecircncio ambos os fenoacutemenos satildeo derivados da fala mas o
falatoacuterio eacute a linguagem da inautenticidade enquanto o silecircncio eacute um iacutendice de autenticidade e daacute a
entender mais que muitas palavras traduzindo a iacutendole taciturna daquele que compreende a verdade da
sua condiccedilatildeo de ser-para-a-morte (Idem El Lenguaje en el Primer Heidegger 234-235)
97
Natildeo se trata no entanto de retirar o Dasein para fora do mundo e o remeter
ao isolamento da sua consciecircncia mas pelo contraacuterio de desvendar de forma
apropriada a estrutura do homem como ser-no-mundo reafirmando aquilo que
a noccedilatildeo de ciacuterculo hermenecircutico jaacute esclarecia que o homem eacute no mundo
estando jaacute sempre lanccedilado num contexto histoacuterico-linguiacutestico que constitui um
horizonte de compreensatildeo inultrapassaacutevel
O lanccedilamento contra o nada da morte eacute o movimento em ricochete que atira o
que se lanccedila mais para traacutes em direcccedilatildeo agrave sua condiccedilatildeo de projecto jaacute lanccedilado
[Geworfenheit] e assim funda natildeo soacute uma compreensatildeo apropriada da
existecircncia como tambeacutem uma compreensatildeo autecircntica da historicidade
intriacutenseca do Dasein
Eacute neste movimento retroprojectivo que o homem se descobre herdeiro duma
liacutengua e duma histoacuteria que lhe preacute-existem transportando consigo uma figura
de mundo que lhe impotildee necessariamente um horizonte preacutevio e assim
condicionam a sua compreensatildeo projectiva e por conseguinte o ponto de vista
interpretativo em que se funda toda e qualquer filosofia Projectando-se
resolutamente contra o nada o Dasein resolve-se a ser aquilo que jaacute era
apropriando-se de si mesmo e dos seus possiacuteveis
A decisatildeo por uma possibilidade faz-se no entanto pela rejeiccedilatildeo e a anulaccedilatildeo
de outras possibilidades que se encontram unilateralmente excluiacutedas pelo que
o movimento da compreensatildeo projectiva [Entwurf] implica sempre a imposiccedilatildeo
dum campo de visatildeo restritivo e uma negaccedilatildeo
Lanccedilado no mundo pela Geworfenheit relanccedilando-se pela projecccedilatildeo [Entwurf]
em direcccedilatildeo ao futuro o Dasein experimenta-se como a unidade de um ldquosi
mesmordquo a que eacute inerente um projecto de compreensatildeo do ser em geral e
portanto um mundo Assim e soacute assim haacute para o Dasein um mundo ou um aiacute
em que o Dasein se pode inserir de um modo originaacuterio e total que eacute anterior a
toda a distinccedilatildeo entre a conduta teoreacutetica e praacutetica
Contudo ser um ldquosi mesmordquo significa sempre ldquoser culpadordquo [ldquoschuldigseinrdquo] de
excluir e remeter ao nada outras possibilidades existenciais eacute o proacuteprio
movimento de projecccedilatildeo daquele que se projecta em direcccedilatildeo ao que pode ser
que estaacute afectado de natildeo ser ldquoA projecccedilatildeo natildeo eacute apenas determinada como
98
projectada pela negaccedilatildeo do fundamento mas eacute ela mesma que enquanto
projecccedilatildeo eacute essencialmente negaccedilatildeordquo130
A negatividade eacute assim para Heidegger um aspecto constitutivo da estrutura
existenciaacuteria da projecccedilatildeo dando a ver a ausecircncia de um fundamento absoluto
para as escolhas que resultam apenas da necessidade de ldquose ser aquilo que se
pode serrdquo O ser-verdadeiro daquele que se lanccedila corajosamente contra a
morte consiste apenas na firmeza de uma resoluccedilatildeo [Entschlossenheit] de
situar-se no interior de uma abertura ontoloacutegica jaacute aberta na liacutengua e na
histoacuteria permitindo o acesso a uma verdade que natildeo tem outra medida que o
grau de apropriaccedilatildeo das condiccedilotildees previamente inscritas na situaccedilatildeo
A Verdade como desvendamento tem sempre como contrapartida um
encobrimento natildeo eacute a luz do sol do mundo inteligiacutevel que dissipa as sombras e
recorta as formas num fundo de absoluta visibilidade mas luz que iluminando
projecta sombra e oculta mantendo a reserva e o misteacuterio
Esta negatividade constitutiva da estrutura de projecccedilatildeo faz tambeacutem com que
para Heidegger como para Hegel o espiacuterito natildeo possa deter-se em nenhuma
figura da verdade tomando-a como definitiva Eacute certo que ldquoa quedardquo na
presenccedila do presente manteacutem sobre todas as criaccedilotildees humanas ameaccedila da
esclerose do pensamento mas o Dasein que se lanccedila resolutamente contra a
morte manteacutem-se livre para poder decidir-se por um novo comeccedilo ou um novo
lanccedilamento ldquoCom o fenoacutemeno da resoluccedilatildeo [Entschlossenheit] fomos
colocados diante da verdade originaacuteria da existecircncia A resoluccedilatildeo eacute o Dasein
posto a descoberto para si mesmo no seu poder ser faacutectico em cada caso de
tal modo que ele mesmo eacute este pocircr a descoberto e ser posto a descoberto Agrave
verdade pertence o seu correspondente ter-por-verdadeiro A apropriaccedilatildeo
expressa do aberto ou descoberto eacute o estar certo [] O que significa entatildeo a
certeza pertencente a uma tal resoluccedilatildeo Ela deve manter-se no aberto atraveacutes
da decisatildeo Mas isto significa ela natildeo pode justamente obstinar-se na situaccedilatildeo
mas deve compreender que a decisatildeo de acordo como o seu proacuteprio sentido
de abertura tem que manter-se livre para a sua possibilidade faacutectica em cada
130
rdquoDer Entwurf ist nicht nur als je geworfener durch die Nichtigkeit des Grundseins bestimmt sondern
als Entwurf selbst wesenhaft nichtigrdquo SuZ GA 2 sect 58 285
99
caso A certeza da decisatildeo significa manter-se livre para a sua possiacutevel e em
cada caso facticamente necessaacuteria retiradardquo131
Assim ldquoa resoluccedilatildeordquo eacute justamente o inverso de buscar uma fuga diante da
morte eacute estar decidido a ldquomanter a morte como potecircncia dominante da
existecircnciardquo aceitando que em cada caso a verdade eacute limitada por um horizonte
histoacuterico-linguiacutestico finito inultrapassaacutevel e pereciacutevel132
Contudo e por isso mesmo ldquomanter a morte como potecircncia dominante da
existecircnciardquo obriga tambeacutem a reconhecer que esse horizonte soacute pode manter-se
vivo enquanto for moacutevel e se dilatar embora natildeo arbitraria nem
indefinidamente a cada novo lanccedilamento
Eacute assim tambeacutem agrave luz do que ficou dito que podemos compreender que a
problemaacutetica da relaccedilatildeo com os textos que a tradiccedilatildeo nos apresenta tenha que
ser repensada e que a verdade que em cada um deles se anuncia seja a
verdade limitada de um horizonte pereciacutevel que caso se queira manter viva
teraacute de sofrer ser relanccedilada e retomada a partir das possibilidades inscritas na
situaccedilatildeo do leitor actual
Compreensatildeo dum texto traduccedilatildeo e interpretaccedilatildeo satildeo operaccedilotildees
hermenecircuticas similares que testemunham a negatividade e a finitude do
Dasein enquanto projecto lanccedilado ldquoA projecccedilatildeo natildeo eacute soacute determinada como
131
ldquoMit dem Phaumlnomen der Entschlossenheit wurden wir vor die urspruumlngliche Wahrheit der Existenz
gefuumlhrt Entschlossen ist das Dasein ihm selbst in seinem jeweiligen faktischen Seinkoumlnnen enthuumlllt so
zwar daβ es selbst dieses Enthuumlllen und Enthuumllltsein ist Zur Wahrheit gehoumlrt ein ihr je entsprechendes
Fuumlr-wahr-halten Die ausdruumlckliche Zueignung des Erschlossenen bzw Entdeckten ist das Gewiβsein []
Was bedeutet dann die solcher Entschlossenheit zugehoumlrige Gewiβheit Sie soll sich in dem durch den
Entschluβ Erschlossen halten Dies besagt aber sie kann sich gerade nicht auf die Situation versteifen
sondern muβ verstehen daβ der Entschluβ seinem eigenen Erschlieβungssinn nach frei und offen gehalten
werden muβ fuumlr die jeweilige faktische Moumlglichkeit Die Gewiβheit des Entschlusses bedeutet
Sichfreihalten fuumlr seine moumlgliche und je faktisch notwendige Zuruumlcknahmeldquo SuZ GA 2 sect62 307308 132
Cf Alexandre Franco de Saacute em ldquoDa Morte agrave Origem Heidegger e os vindourosrdquo (in A Morte e a
Origem ndash Em torno de Heidegger e de Freud Lisboa 2008) assinala que com a inscriccedilatildeo da
negatividade no proacuteprio ser do Dasein em Ser e Tempo Heidegger inicia a radicalizaccedilatildeo filosoacutefica do
tema da finitude que adquire nos textos posteriores um estatuto cada vez mais originaacuterio podendo-se ler
em Kant e o Problema da Metafiacutesica que ldquomais original que o homem eacute a finitude do Dasein nelerdquo ldquoUma
tal radicalizaccedilatildeo da finitude na estrutura ontoloacutegica do Dasein a afirmaccedilatildeo heideggeriana de um caraacutecter
originaacuterio da negatividade na essecircncia do proacuteprio Dasein natildeo pode deixar de ter o sentido de uma
progressiva deslocaccedilatildeo da sua morte do fim para a origem num processo em que a vida do Dasein e a
vida do animal vivente se comeccedilam radicalmente a separarrdquo (Idem Obcit 57) Esta radicalizaccedilatildeo da
finitude deslocando a morte do fim para a origem articular-se-ia com a mutaccedilatildeo do conceito de Dasein
que apoacutes Ser e Tempo jaacute natildeo designaraacute um ente individual mas o modo de ser do humano que pode ser
compreendido quer individual quer colectivamente ldquoEacute nesse sentido que a partir dos anos 30 Heidegger
poderaacute aludir nas suas liccedilotildees ao ldquonosso Dasein histoacutericordquo (unser geschichtliches Dasein) ou seja a uma
existecircncia histoacuterica colectiva e ao povo como protagonista dessa mesma existecircnciardquo (Idem Obcit
5859)
100
lanccedilada em cada caso pelo natildeo ser do ser fundamento mas enquanto
projecccedilatildeo eacute ela mesma essencialmente natildeo ser Esta determinaccedilatildeo natildeo
significa por sua vez de maneira alguma a propriedade ocircntica do ldquofracassadordquo
ou ldquosem valorrdquo mas um aspecto constitutivo existenciaacuterio da estrutura do ser
do projectarrdquo133
Aquele que compreende compreende apropriando-se livremente de uma
possibilidade hermenecircutica que por ser a sua estaacute jaacute lanccedilada como
possibilidade que nega e anula outras essa unilateralidade em que consiste
toda a interpretaccedilatildeo natildeo eacute contudo nada de arbitraacuterio ou sem valor mas uma
escolha necessaacuteria e por isso mesmo eacute a uacutenica verdade possiacutevel para a
situaccedilatildeo - que em cada caso eacute o aiacute do ser
Liberdade e necessidade satildeo o verso e o reverso do Dasein e da sua
constitutiva finitude ldquoO suposto natildeo-ser eacute inerente ao ser livre do Dasein para
as suas possibilidades existenciais Mas a liberdade soacute eacute na escolha de uma
possibilidade isto eacute em natildeo ter escolhido e natildeo poder escolher tambeacutem
outrasrdquo134
Aceder agrave verdade de uma interpretaccedilatildeo eacute assim justamente o contraacuterio de
uma atitude de imparcialidade mas o assumir e sustentar uma decisatildeo
hermenecircutica que descobre encobrindo que ilumina o real numa certa
direcccedilatildeo e por isso mesmo oculta e mergulha na obscuridade aquilo mesmo
que potildee a descoberto
10 A libertaccedilatildeo da gramaacutetica em relaccedilatildeo agrave loacutegica
Podemos pois compreender que o problema da linguagem em Heidegger natildeo
seja apenas o de apreendecirc-la e descrevecirc-la como fala que se exerce no
exerciacutecio faacutectico da existecircncia
Heidegger vai-se encaminhar no sentido de romper com a linguagem da
metafiacutesica (pensada sob a categoria da Gerede) e de dilatar as possibilidades
133
bdquoDer Entwurf ist nicht nur als je geworfener durch die Nichtigkeit des Grundseins bestimmt sondern
als Entwurf selbst wesenhaft nichtig Diese Bestimmung meint wiederum keineswegs die ontische
Eigenschaft der bdquoerfolglosldquo oder bdquounwertigldquo sondern ein existentiales Konstitutivum der Seinsstruktur
des Entwerfensldquo SuZ GA 2 sect58 285 134
bdquoDie gemeinte Nichtigkeit gehoumlrt zum Freisein des Daseins fuumlr seine existentiellen Moumlglichkeiten Die
Freiheit aber ist nur in der Wahl der einen das heiβt im Tragen des Nichtgewaumlhlthabens und
Nichtauchwaumlhlenkoumlnnens der anderenldquo SuZ GA 2 sect58 285
101
ontoloacutegicas da linguagem exercendo a sua funccedilatildeo desocultante e
desencobridora esforccedilo que seraacute constantemente renovado ao longo de toda a
sua obra e eacute particularmente visiacutevel nos textos do segundo Heidegger135
Este esforccedilo que jaacute estaacute claramente anunciado em Ser e Tempo e
direccionado no sentido apontado pela Geworfenheit da procura de uma
linguagem originaacuteria exige no entanto a confrontaccedilatildeo preacutevia com uma
decaiacuteda tradiccedilatildeo filosoacutefica que impocircs a normalizaccedilatildeo da linguagem atraveacutes da
gramaacutetica e da loacutegica
ldquoOs gregos natildeo tecircm nenhuma palavra para linguagem [Sprache] eles
compreenderam ldquoagrave partidardquo este fenoacutemeno como fala [Rede] Contudo a
reflexatildeo filosoacutefica fixou preferencialmente a atenccedilatildeo no logos como proposiccedilatildeo
e por isso o estudo das estruturas fundamentais das formas e partes
integrantes do discurso seguiu o fio condutor desse logos A gramaacutetica
procurou o seu fundamento na ldquoloacutegicardquo deste logos136
Heidegger retoma a questatildeo do impeacuterio da loacutegica sobre a gramaacutetica jaacute
discutida por Hamann e Humboldt Como acima jaacute referimos Hamann abre
uma poleacutemica contra o iluminismo chamando a atenccedilatildeo para o facto que as
categorias loacutegicas a que Kant viria a chamar as categorias do entendimento
determinam as categorias gramaticais e as regras sintaacutecticas A loacutegica
determinou a constituiccedilatildeo das gramaacuteticas como ciecircncias normalizadoras das
diversas liacutenguas que submetidas a essa universal intenccedilatildeo normalizadora e
disciplinadora se encontram entre si estabelecendo aquela concordacircncia de
categorias gramaticais e de regras sintaacutecticas
Assim a unidade das gramaacuteticas que referia Bacon natildeo testemunha para
Heidegger como para Hamann e Humboldt a existecircncia de universais
linguiacutesticos mas sim algo de muito diferente o impeacuterio universal da loacutegica
135
Mariacutea Fernanda Benedito sustenta que esta busca heideggeriana de renovaccedilatildeo das possibilidades
ontoloacutegicas da linguagem tem que ser correlacionada com a desarticulaccedilatildeo da linguagem e a destruiccedilatildeo da
sua funccedilatildeo comunicativa Heidegger teria como modelo o silecircncio da fala entendida como apelo (Ruf)
diante da morte (Cf Heidegger en su lenguaje Madrid (1992) 56-62) Natildeo eacute este o nosso ponto de
vista como acima esclarecemos pois esse apelo (Ruf) entendemo-lo como apelo agrave ruptura com a Gerede
ou seja agrave linguagem das vagas generalidades e a um exercigravecio ldquoproacutepriordquo da linguagem entendido como
um falar ldquopor si mesmordquo enraizado na existecircncia que natildeo anula mas pressupotildee o destinataacuterio ainda que
o pressuponha de um outro modo Este ponto como em geral o problema da alteridade natildeo se encontra
no entanto suficientemente esclarecido em Ser e Tempo nem talvez nas obras posteriores 136
bdquoDie Griechen haben kein Wort fuumlr Sprache sie verstanden dieses Phaumlnomen ldquo zunaumlchstrdquo als Rede
Weil jedoch fuumlr die philosophische Besinnung des ιόγος vorwiegend als Aussage in den Blick kam
vollzog sich die Ausarbeitung der Grundstrukturen der Formen und Bestandstuumlcke der Rede am Leitfaden
dieses Logos Die Grammatik suchte ihr Fundament in der bdquoLogikldquo dieses Logosrdquo SuZ GA 2 sect34 165
102
impeacuterio esse cujo efeito eacute apagar as marcas linguiacutesticas da diversidade e
singularidade das experiecircncias histoacutericas dos vaacuterios povos
Desse modo a destruiccedilatildeo da loacutegica impotildee-se como procedimento
metodoloacutegico essencial para a libertaccedilatildeo das gramaacuteticas e para que a
linguagem possa mostrar-se como ela aparece ao olhar compreensivo da
reconstruccedilatildeo fenomenoloacutegica ou tal como ela se mostra a respeito de si
mesma
A procura da linguagem ldquoapropriadardquo torna-se a partir daqui um problema
central da filosofia heideggeriana da soluccedilatildeo do qual depende a possibilidade
de um pensar-do-ser No entanto a intensa experimentaccedilatildeo do falar nas zonas
de fronteira da gramaacutetica e a violaccedilatildeo da norma linguiacutestica137 que traduzem o
esforccedilo heideggeriano posterior de ensaiar um outro exerciacutecio da linguagem
devem ser entendidas de maneira adequada e natildeo apenas no sentido negativo
de uma desarticulaccedilatildeo e destruiccedilatildeo da dimensatildeo comunicativa da linguagem
Esta tarefa eacute preparada no seminaacuterio do semestre de Veratildeo de 1934 integrado
na Gesamtausgabe sob o tiacutetulo Die Logik als die Frage nach dem Wesen der
Sprache
ldquoA tarefa duma libertaccedilatildeo da Gramaacutetica em relaccedilatildeo agrave loacutegica necessita
previamente de uma compreensatildeo positiva da estrutura fundamental a priori da
fala [Rede] em geral como existenciaacuterio e natildeo pode ser levada a cabo
simplesmente pelo melhoramento e acabamento do que eacute tradicionalrdquo138
A confrontaccedilatildeo com a loacutegica levada a cabo nas Liccedilotildees de Loacutegica aponta
claramente no sentido de uma ruptura cujo sentido se trata aqui de precisar a
loacutegica aristoteacutelica que se manteve praticamente inalterada ao longo da nossa
histoacuteria vigorou e regeu todo o pensar ocidental como instrumento e
propedecircutica do pensar e do conhecer Atraveacutes do seu impeacuterio sobre as
diversas gramaacuteticas a loacutegica aristoteacutelica constitui-se como ldquosiacutetio de origem da
137
O levantamento sistemaacutetico das decisotildees hermenecircuticas tomadas por Heidegger no campo da
morfologia da sintaxe do leacutexico para a constituiccedilatildeo de uma linguagem apropriada encontra-se em
Bernhard Sylla Hermeneutik der langue 307-362 138
bdquoDie Aufgabe einer Befreiung der Grammatik von der Logik bedarf vorgaumlngig eines positiven
Verstaumlndnisses der apriorischen Grundstruktur von Rede uumlberhaupt als Existenzial und kann nicht
nachtraumlglich durch Verbesserungen und Ergaumlnzungen des Uumlberlieferten durchgefuumlhrt werdenldquo SuZ GA
2 sect34 165166
103
linguagem faacutecticardquo isto eacute das diversas liacutenguas tal como satildeo efectivamente
usadas para produzir os enunciados cientiacuteficos e as proposiccedilotildees metafiacutesicas
Embora Heidegger aceite a definiccedilatildeo tradicional da loacutegica como a ciecircncia das
estruturas formais e regras do pensar haacute que ter em conta que a loacutegica como
ciecircncia do logos eacute consoante o sentido originaacuterio da palavra logos
simultaneamente a ciecircncia do pensar do falar (Reden) e do dizer (Sprechen)
rdquoA loacutegica eacute a ciecircncia do λόγος da fala (Rede) rigorosamente da linguagem
(Sprache)rdquo 139
Portanto questionar a loacutegica seraacute questionaacute-la nesse sentido abrangente de
ciecircncia que visa a normalizaccedilatildeo tanto do pensar como da linguagem sempre
entendidos como unidade essencial como articulaccedilatildeo loacutegico-linguiacutestica
Destruir ou abalar a loacutegica significaraacute pois destruir uma concepccedilatildeo falsa e
dissimuladora que ocultou a verdadeira essecircncia quer do pensamento quer
da linguagem
Poreacutem natildeo basta afirmar que a loacutegica impocircs uma certa concepccedilatildeo sobre a
linguagem mas eacute ainda preciso saber como a impocircs as categorias gramaticais
nasceram da loacutegica mas esta por seu lado foi forjada por uma liacutengua (a
grega) a partir de uma certa maneira de pensar que pela primeira vez se
afirmou no homem grego De modo que a relaccedilatildeo entre loacutegica e linguagem eacute
de certo modo uma relaccedilatildeo circular a loacutegica preacute-formou a nossa compreensatildeo
da linguagem mas por seu lado foi criada pela linguagem isto eacute pela liacutengua
grega
Para Heidegger os fundamentos da Loacutegica devem ser buscados na ontologia
grega e derivados duma certa relaccedilatildeo do Homem com a questatildeo do ser que
historicamente se impocircs na Greacutecia ldquoA loacutegica natildeo eacute pois para noacutes um
adestramento para um melhor ou pior meacutetodo do pensar mas o medir
questionante dos abismos do ser natildeo eacute a ressequida colecccedilatildeo das perpeacutetuas
leis do pensar mas o lugar da questionabilidade do homem da sua medidardquo140
139
bdquoDie Logik ist die Wissenschaft vom ιόγος von der Rede strenggenommen von der Spracheldquo LWS
GA 38 14 140
bdquoDie Logik ist daher fuumlr uns nicht eine Abrichtung zu einem besseren oder schlechteren
Denkverfahren sondern das fragende Abschreiten der Abgruumlnde des Seins nicht die vertrocknete
Sammlung ewiger Denkgesetze sondern Staumltte der Fragwuumlrdigkeit des Menschen seiner Groumlszligeldquo Ibidem
910
104
Abalar a loacutegica eacute pois questionar uma certa compreensatildeo do homem de si
mesmo e uma certa compreensatildeo do ser que emergiram pela primeira vez
entre os gregos e que dominaram e satildeo o fundamento oculto duma tradiccedilatildeo em
que ainda permanecemos
Ora o que caracteriza a nossa compreensatildeo ldquodo que eacuterdquo eacute o modo como ela se
daacute no interior daquilo a que chamamos ldquociecircnciardquo Aquilo que eacute ergue-se diante
do homem como objecto isto eacute como algo que estaacute perante o sujeito como
subsistente Indo mais fundo pergunta-se poreacutem donde emergiu esta
compreensatildeo do homem de si mesmo como sujeito e do ente como objecto A
noccedilatildeo de sujeito teve origem no termo grego hypokeimenon o que subjaz A
ele se refere todo o dizer relativo agravequilo que eacute isto eacute a ele se referem todos os
predicados
A loacutegica institui pois no enunciado um modo de dizer cuja estrutura eacute predicar
o sujeito aquilo que subjaz ou aquilo que eacute a substacircncia Assim a
compreensatildeo do ser que corresponde agrave loacutegica do enunciado proposicional eacute a
compreensatildeo do ser como substacircncia como aquilo que permanece para aleacutem
de toda a mudanccedila
Heidegger afirma que para libertar a linguagem desta ldquoloacutegicardquo temos que
romper com esta ontologia da presenccedila e aceder agrave experiecircncia originaacuteria da
articulaccedilatildeo do sentido ou da compreensatildeo do ser que acompanha o homem
enquanto ele vive trabalha e se gesta a si mesmo enquanto tempo e histoacuteria
Libertar as gramaacuteticas eacute assim uma tarefa que pode ser compreendida
negativamente como destruiccedilatildeo da loacutegica mas que positivamente indica o
retomar as possibilidades que jaacute se encontram nas vaacuterias liacutenguas naturais que
acompanham a existecircncia faacutectica do homem141
Libertar a linguagem da loacutegica significaraacute para Heidegger em primeiro lugar
reconhecer como Humboldt a dignidade e a importacircncia das vaacuterias liacutenguas
141
Sobre a relaccedilatildeo de Heidegger com a gramaacutetica e a linguiacutestica ver Bernhard Sylla (Hermeneutik der
langue 311) ldquoAn bdquometaphysischrdquo gegruumlndeter Sprachwissenschaft kritisiert Heidegger zahlreiche
Einzelaspekte Die zentrale Kritik richtet sich gegen die bdquofataleldquo grammatischen Kategorien Subjekt und
Objekt und den undifferenzierten nur aufs Seiende verweisenden Gebrauch der Kopula [] Neben die
Gebundenheit an grammatische Kategorien ist es vor allem noch die Tendenz zur Desambiguierung zur
Eindeutigkeit die kritisiert wird Diese mache sich einerseits im Lexikalischen bemerkbar insofern die
Tendenz bestehe Homonyme und Polyseme zu identifizieren uns als varianten im Woumlrterbuch
aufzulisten so daβ sie als Einheiten handhabbar werden Vieldeutigkeit darf nach Heidegger aber nie zu
gleichrangiger Nebenordnung fuumlhren sondern sei einerseits Zeichen fuumlr Reichhaltigkeit von Woumlrtern
andererseits Herausforderung zur Detektion der wesentlichen sbquoSemantikbdquoldquo
105
histoacutericas enquanto instauradores de diferentes aberturas de mundo142 Em
vez da ldquomesmidaderdquo assegurada pela loacutegica temos a valorizaccedilatildeo da
multiplicidade e da diversidade de horizontes de sentido transportados pelas
diferentes liacutenguas faladas pelos homens
Eacute esta funccedilatildeo de abertura de mundo ou de instaurar uma compreensatildeo preacute-
ontoloacutegica que jaacute tinha sido assinalada agrave linguagem enquanto Rede que aqui
se recupera para a linguagem faacutectica isto eacute para as diversas liacutenguas
histoacutericas que aqui satildeo analisadas na sua conexatildeo com a vida dos povos
enquanto trabalham e edificam o seu mundo A linguagem enquanto liacutengua
fundamenta-se no povo cujo ser-histoacuterico se trata aqui de compreender de
uma forma que escapara a Humboldt ldquoo povordquo deve ser repensado sobre o
fundamento ontoloacutegico do ser do homem enquanto temporalidade
Como acima referimos Hamann jaacute tinha demonstrado que sob o domiacutenio da
loacutegica se impocircs um dizer que se subordina ao princiacutepio de identidade
ignorando a irredutiacutevel heterogeneidade das experiecircncias que eacute apropriado
para enunciar a abstracccedilatildeo dos conceitos mas recusa a dimensatildeo corporal
das sensaccedilotildees e os afectos Contra este dizer e pensar disciplinado pela
norma e pela razatildeo Hamann viraacute incitar agrave transgressatildeo da norma linguiacutestica e
Humboldt agrave reivindicaccedilatildeo da libertaccedilatildeo das gramaacuteticas em relaccedilatildeo agrave loacutegica e
ao reconhecimento da pluralidade de aberturas do mundo instauradas pelas
diferentes liacutenguas
Heidegger insere-se claramente nesta tradiccedilatildeo (embora natildeo a assuma
explicitamente) radicalizando-a uma vez que ele pretende realizar uma
confrontaccedilatildeo com a loacutegica que pretende abalar a ontologia da presenccedila em
que esta se fundamenta E pretende ao mesmo tempo fundar positivamente
essa libertaccedilatildeo das liacutenguas naturais numa relaccedilatildeo autecircntica do homem com a
temporalidade a multiplicidade das aberturas de mundo das diferentes liacutenguas
adquire assim um soacutelido fundamento ontoloacutegico
Embora esta conexatildeo entre liacutengua (Sprache) e povo (Volk) natildeo tenha a partir
de 36 ocupado um lugar central na filosofia heideggeriana da linguagem em
outras ocasiotildees Heidegger natildeo deixaraacute de afirmar que a multiplicidade de
142
Note-se que Heidegger excluiacutea no entanto a possibilidade de reactivar qualquer liacutengua antiga ou de
pelo contraacuterio construir uma nova liacutengua que acompanhasse o novo iniacutecio do pensar Trata-se antes de
modificar o uso da liacutengua atraveacutes duma reinterpretaccedilatildeo da gramaacutetica e exploraccedilatildeo da etimologia Cf
Bernhard Sylla ob cit 312
106
liacutenguas e dialectos que constituem o falar dos povos143 constitui um legado da
experiecircncia histoacuterica que interessa preservar como o solo em que se deve
enraizar toda a possibilidade do dizer do pensar como se encontra afirmado no
ensaio sobre Hebel
Babel natildeo eacute uma maldiccedilatildeo que se trataria de corrigir mas a condiccedilatildeo
ontoloacutegica do homem como ser histoacuterico e temporal que haacute que positivamente
assumir para desenvolver plenamente as potencialidades ocultas da
linguagem
11 Liacutengua povo e histoacuteria
Para a compreensatildeo desta fundamentaccedilatildeo ontoloacutegica da diversidade de
horizontes de sentido inerentes agraves diferentes liacutenguas eacute essencial tomarmos em
consideraccedilatildeo a distinccedilatildeo estabelecida em Logik als die Frage nach dem Wesen
der Sprache entre a temporalidade inerente agraves coisas e agrave natureza em geral ou
intra-temporalidade (Innerzeitgkeit) e a temporalidade inerente ao ser do
homem (Zeitlichkeit)
Se a primeira se refere a um horizonte temporal dado como um quadro onde
os diversos factos se alinham em relaccedilatildeo de sucessatildeo ou de simultaneidade a
segunda coincide com o movimento de auto-gestaccedilatildeo da existecircncia tal como
foi posto a claro pela analiacutetica do Dasein levada a cabo em Ser e Tempo
Heidegger procede a uma reinterpretaccedilatildeo da histoacuteria fundando-a nesta
temporalidade inerente agrave existecircncia e tendo em conta as aquisiccedilotildees
fundamentais de Ser e Tempo segundo as quais esta pode ser exercida de
forma apropriada pelo Dasein que se lanccedila em direcccedilatildeo agrave morte assumindo a
sua finitude ontoloacutegica e apropriando-se de si como um ldquosi mesmordquo ou pelo
contraacuterio e como acontece na maior parte do tempo perdendo-se na dispersatildeo
das possibilidades e no atarefar-se inerente ao mero fazer pela vida No
primeiro caso temos o exerciacutecio da temporalidade na sua unidade extaacutetica no
segundo a queda na presenccedila do presente
143
A conexatildeo entre liacutengua (Sprache) e povo (Volk) eacute desenvolvida por Heidegger entre 1934 e 1936 em
Logik als die Frage nach dem Wesen der Sprache Einfuumlhrung in die Metaphysik Houmllderlin und das
Wesen der Dichtung e Der Ursprung des Kunstwerkes
107
Em estrita correspondecircncia com esta dupla maneira de exercer a
temporalidade temos duas maneiras de entender a histoacuteria para as quais
Heidegger reserva os conceitos de historiografia (Historie144) e histoacuteria
(Geschichte)145 sendo a primeira entendida segundo o paradigma da ciecircncia e
o seu ideal de objectividade segundo os quais o acontecer da natureza e o
acontecer humano natildeo seriam essencialmente diferentes e a segunda como
auto-gestaccedilatildeo de um povo a partir de si mesmo ou como um acontecer
voluntaacuterio e sapiente do qual pode ser conservada uma notificaccedilatildeo
Este acontecer da histoacuteria (Geschehen) natildeo eacute o simples transcorrer (Vorgaumlnge)
instintivo da vida proacuteprio das plantas e dos animais mas eacute um acontecer
voluntaacuterio e consciente fundado num saber que pode conservar-se como
notificaccedilatildeo (Kunde) ldquoA vida das plantas e dos animais eacute a unidade instintiva
caracteriacutestica de uma totalidade viva O acontecer humano pelo contraacuterio eacute
voluntaacuterio e por isso sapiente e na verdade natildeo apenas em cada caso em si
mesmo de tal modo que o saber e o querer sejam co-determinantes para o
acontecer humano no seu cumprimento mas tambeacutem enquanto este acontecer
enquanto acontecer permanece no saber e tambeacutem de certo modo no querer -
por conseguinte pode ser dele conservada uma notificaccedilatildeo [Kunde] e por isso
esse acontecer eacute susceptiacutevel de ser investigado [erkundbar]rdquo146
Histoacuteria e historiografia satildeo conceitos diferentes da histoacuteria noacutes podemos dizer
que ela eacute aquele acontecer de que pode ser dada e conservada uma
notificaccedilatildeo mas esta notificaccedilatildeo eacute apenas uma preacute-condiccedilatildeo ou uma forma
preacutevia da historiografia A historiografia ou a ciecircncia da histoacuteria visa dar a
inteligibilidade ou a verdade acerca da histoacuteria sendo determinada pela atitude
em relaccedilatildeo agrave essecircncia da verdade Ora noacutes movemo-nos no interior do
conceito de verdade como adequaccedilatildeo do juiacutezo ao seu objecto ou como
objectividade A questatildeo que podemos pocircr eacute no entanto se este ideal de
144
bdquoFuumlr das Erkunden haben die griechen das Wort ἱςηορία gebraucht Dieses Wort bekam erst in Vorlauf
ihrer eigenen Geschichte die Bedeutung von bdquoGeschichtskundeldquo Das Wort bedeutet heute als bdquoHistorieldquo
das Wissen um die Geschichteldquo LWS GA 38 87 145
bdquoWir bestimmen mit dieser Einschraumlnkung Geschichte als Sein des Menschen [hellip] ldquo Ibidem 86 146
bdquoPflanzliches und tierisches Leben ist eigentuumlmlich triebmaumlβige Einheit eines Lebensganzen Das
menschliche Geschehen dagegen ist willentlich und deshalb wissend und zwar nicht nur jeweils in sich
selbst so daβ Wissen und Wille mitbestimmend waumlre fuumlr das menschliche Geschehen in seinem Vollzug
sondern auch insofern als dieses Geschehen als Geschehen im Wissen und gewissermaβen auch im
Wollen bleibt ndash daβ somit eine Kunde davon bewahrt bleiben kann und daβ deshalb dieses Geschehen
erkundbar istldquo Ibidem 86
108
objectividade que a historiografia cientiacutefica persegue permite dar conta daquilo
que eacute essecircncia da histoacuteria e do que constitui o ser-histoacuterico de um determinado
evento
De facto para Heidegger Geschichte e Historie natildeo satildeo apensas coisas
diferentes mas ateacute certo ponto contraacuterias se encararmos Historie no sentido
moderno de ciecircncia da histoacuteria Para esta ciecircncia da histoacuteria os acontecimentos
histoacutericos satildeo sempre acontecimentos passados que porque satildeo passados
podem ser encarados como entes que estatildeo perante como simples ldquoobjectosrdquo
e por isso ser concatenados segundo relaccedilotildees de causa e efeito como os
entes da natureza Ora a histoacuteria no sentido apropriado (Geschichte) eacute o
gestar-se de si mesmo de um povo que se apropria do seu passado e a partir
dele se determina no presente e projecta no futuro Nenhum acontecimento
histoacuterico (Geschehen) pode ser encarado como qualquer coisa de
simplesmente passado pois histoacutericos satildeo apenas os acontecimentos que uma
colectividade toma como seus trazendo-os para o presente e determinando-se
a actualizaacute-los como cumprimento de uma missatildeo e entrega a um destino147
Para compreender a novidade da consciecircncia histoacuterica proposta por Heidegger
podemos confrontaacute-la natildeo apenas com a historiografia cientiacutefica o que o
proacuteprio Heidegger repetidamente fez mas ainda com a filosofia da histoacuteria
hegeliana em cuja vizinhanccedila Heidegger indiscutivelmente se situa na medida
em que para ambos os autores na histoacuteria humana se joga simultaneamente a
histoacuteria do ser
Na filosofia hegeliana da histoacuteria todas as aquisiccedilotildees do espiacuterito humano se
vecircem convertidas em etapas do espiacuterito finito na sua marcha dialeacutectica em
direcccedilatildeo agrave Verdade ou ao momento final de totalizaccedilatildeo em que cada um dos
momentos passados se vecirc simultaneamente integrado e ultrapassado
segundo categoria da Aufhebung
Em Hegel estamos perante uma consciecircncia histoacuterica como consciecircncia do
devir temporal do Espiacuterito que dissolve todas as suas formas e as condena agrave
147
ldquoDas Vergangene ist nicht einfach das Vergehende sondern das noch Bleibende das Weiterwirkende
von fruumlher her noch irgendwie Seiende das von fruumlher noch west sein Wesen treibt das noch Wesende
oder das Gewesene Das Gewesene ist zwar immer ein Vergangenes aber nicht jedes Vergangene ist ein
Gewesenes im Sinne des von fruumlher her Wesenden einerseits also das Vergangene und andererseits das
Gewesene und noch Wesende So unterliegt die Zeitbestimmung der Charakteristik des Vergehens aber
auch des Wesensldquo Ibidem 103
109
finitude e ao transitoacuterio mas que se encontra rigidamente e optimisticamente
dirigido para um telos no qual se anuncia a reconciliaccedilatildeo do espiacuterito consigo
mesmo e a sua realizaccedilatildeo como Ideia
Em Heidegger o tempo arrasta e domina igualmente o ser do homem natildeo
contudo segundo a lei duma inexoraacutevel dialeacutectica mas como poder obscuro
das vaacuterias Stimmungen epocais que impotildeem a cada povo um certo modo de
ldquoestar afinadordquo com uma tonalidade afectiva As Stimmungen epocais lanccedilam e
destinam o ser futuro dos povos de modo essencialmente obscuro mas esse
ser lanccedilado solo comum dum povo histoacuterico eacute o passado ou ldquoo sidordquo ao qual
cada povo deve voltar caso queira ser histoacuterico e poder projectar-se no futuro
O impulso para o futuro ou o movimento de futuraccedilatildeo ao qual corresponde o
existenciaacuterio da compreensatildeo que lanccedila um povo para a frente em direcccedilatildeo
aos seus possiacuteveis eacute lanccedilado em ricochete para traacutes em direcccedilatildeo ao passado
tomando-o natildeo como algo que passou ou que estaacute a passar mas como o sido
(das Gewesene) ou o que desde o antes ainda estaacute a ser como tradiccedilatildeo
Assim a fusatildeo de horizontes temporais com o seu caraacutecter fluido e
imprevisiacutevel embora nunca casual (como Heidegger diraacute mais tarde
obscuramente destinado pelo movimento de destinaccedilatildeo do ser) eacute o nuacutecleo da
consciecircncia histoacuterica heideggeriana148 como em Hegel era a categoria
dialeacutectica da Aufhebung
Esta fusatildeo de horizontes daacute-se em certos momentos privilegiados e
imprevisiacuteveis da histoacuteria (Ereignis)149 e suporta as grandes tarefas dum povo
148
Cf Ramoacuten Rodriacuteguez assinala que agrave historicidade como condiccedilatildeo ontoloacutegica natildeo escapa nenhum
comportamento humano nem mesmo o trabalho cientiacutefico-criacutetico da filosofia Deste modo a tradiccedilatildeo natildeo
pode constituir um obstaacuteculo para a filosofia mas eacute pelo contraacuterio uma condiccedilatildeo de possibilidade para o
questionamento filosoacutefico ldquoLa reflexioacuten filosoacutefica que como acto de inteleccioacuten sabe de su ineludible
historicidad ha de incorporar un discernimiento histoacuterico que se haga cargo del horizonte preciso en que
se encuentra Soacutelo asiacute ldquocon la apropiacioacuten positiva del pasadordquo se pone un interrogar cientigravefico ldquoen la
plena posesioacuten de sus maacutes propias posibilidades de preguntarrdquordquo (Idem Hermeneutica y Subjectividad
40) 149
Alexandre de Saacute contrapotildee a categoria de ldquoEreignisrdquo como exposiccedilatildeo e entrega ao ser ao conceito de
ldquomobilizaccedilatildeo totalldquo desenvolvidos pela ideologia nacional-socialista que impregnava o contexto
histoacuterico-linguiacutestico da Alemanha nos anos 30 em que se inscrevem as Liccedilotildees de Loacutegica ldquoMas na
pertenccedila do Dasein ao ser a apropriaccedilatildeo do Dasein pelo serndashapropriaccedilatildeo que o caraacutecter originaacuterio da
morte assinala ndash tem aqui um caraacutecter diametralmente oposto agrave apropriaccedilatildeo da vida pelo poder Esta
oposiccedilatildeo eacute a chave para a compreensatildeo do conceito heideggeriano de acontecimento-dendashapropriaccedilatildeo
(Ereignis) [hellip] A pertenccedila do Dasein ao ser abre neste natildeo uma subordinaccedilatildeo a uma instacircncia de poder
que o submete mas a sua vinculaccedilatildeo a um acontecimento que precisa dele para que ele mesmo seja
enquanto essecircncia enquanto Wesen entendido no sentido verbal de uma essenciaccedilatildeo (wesung) (Idem
ldquoDa Morte agrave Origem Heidegger e os vindourosrdquo in A Morte e a Origem ndash Em torno de Heidegger e de
Freud 61)
110
histoacuterico enquanto trabalho e criaccedilatildeo das grandes obras que como se
encontra dito em A Origem da Obra de Arte satildeo sempre criaccedilotildees linguiacutesticas
A obra articula e traz ao presente esta fusatildeo de horizonte fazendo brilhar na
sua aparecircncia ldquoum mundordquo
Se ateacute certo ponto Heidegger manteacutem esse conservar do passado e a criaccedilatildeo
do novo caracteriacutesticos da dialeacutectica hegeliana lembremo-nos no entanto que
a dialeacutectica eacute o movimento inerente ao autodesenvolvimento do Espiacuterito
Universal ou da Ideia de que o Espiacuterito de cada povo (Volksgeist) eacute um
momento ou uma forma transitoacuteria Outra coisa muito diferente se passa em
Heidegger para quem a dinacircmica da existecircncia de cada povo eacute por si mesma
criadora de mundo e de histoacuteria graccedilas agrave suacutebita e imediata fusatildeo de horizontes
temporais que acontece no acontecer propriamente histoacuterico ou Ereignis O
mundo de cada povo histoacuterico repousa na sua proacutepria temporalidade como
uma totalidade viva e em crescimento e natildeo eacute um degrau da marcha
progressiva do Espiacuterito do Mundo (Weltgeist) em direcccedilatildeo agrave Liberdade como
em Hegel
Para Heidegger a histoacuteria natildeo tem assim um sentido preciso ou pelo menos
natildeo podemos aceder a ele nem tornaacute-lo inteligiacutevel sendo antes uma irredutiacutevel
multiplicidade que se encontra e entrechoca num movimento essencialmente
e obscuramente destinado pelo tempo - ou como mais tarde Heidegger diraacute
tambeacutem pela histoacuteria do ser150 que se revela subtraindo-se e ocultando-se
envolvendo assim a marcha da histoacuteria humana num fundo de opacidade e de
misteacuterio 151
Esta opacidade fundamental do poder do tempo que suporta e destina a
histoacuteria tem como consequecircncia que as diversas aberturas de mundo satildeo
150
Cf Ramoacuten Rodrigraveguez (ob cit 42) ldquoLa idea de una historia del ser es la invitacioacuten a pensar lo
histoacuterico no a partir de un proceso que transcurre sino de este enviarse (Sichzuschicken) y sustraerse
(Sichentziehen) del ser De ahiacute que el concepto histoacuterico de eacutepoca miente desde este punto de vista no un
determinado corte en la sucesioacuten de los hechos histoacutericos sino el aparecer de una figura del mundo a
partir de la epojeacute de la abstencioacuten o retraimiento del serrdquo 151
Esta obscuridade essencial do poder do tempo faz com que a tradiccedilatildeo tenha um aspecto negativo e se
converta em fonte de encobrimento como sublinha Ramoacuten Rodriacuteguez (ob cit 40) ldquoPero si bien la
historicidad ontoloacutegica hace necesaria una reflexioacuten histoacuterica que asuma conscientemente lo que somos
tal necesidad se ve reforzada por la conviccioacuten [hellip] de que la estructura de transmisioacuten no garantiza la
inteligibilidad de lo transmitido sino que maacutes bien nos lo entrega como un contenido opaco que actuacutea sin
mostrar su propio poder De esta forma encubre maacutes que descubre Es el aspecto negativo de la tradicioacuten
que se encuentra en la base da las cautelas metodoloacutegicas Toda la consideracioacuten heideggeriana del
pasado se encuentra en Ser y tiempo transida de esa doble conciencia que posibilita nuestra
comprensioacuten del mundo siendo a la vez la fuente de su encubrimientordquo
111
incomensuraacuteveis isto eacute cada povo vive no seu mundo e interpreta-se a si
mesmo a partir da sua proacutepria histoacuteria sem que para tal possa ser procurado
outra justificaccedilatildeo ou fundamento
Esta incomensurabilidade das aberturas de mundo instituiacutedas pelas diversas
liacutenguas histoacutericas choca com a tese heideggeriana da supremacia da cultura
europeia em conexatildeo com a ideia da transmissatildeo do legado da origem grega
no entanto haacute que sublinhar que esta ubris europeiacutesta de Heidegger se foi
esbatendo a partir de 1959 data da conferecircncia Houmllderlins Erde und Himmel
em conexatildeo com a tese da igual dignidade ontoloacutegica das vaacuterias civilizaccedilotildees
resultantes dos vaacuterios envios do ser 152
12 A liacutengua como Ereignis
Poreacutem se a histoacuteria (Geschichte) eacute um acontecer nem todo o acontecer
pode ter por si mesmo a dignidade de ser histoacuterico pois histoacuterico eacute soacute aquele
acontecimento ldquoinauguralrdquo que assinala a determinaccedilatildeo dum povo e que pode
ser repetido e actualizado como forccedila imanente e projectiva que manteacutem esse
povo como tal e o faz existir no acircmbito da histoacuteria ldquoA Histoacuteria [Geschichte] eacute
um acontecimento propiacutecio [Ereignis] na medida em que ele acontece
[Geschieht]rdquo153
Para determinar verdadeiramente a essecircncia da histoacuteria eacute preciso clarificar a
noccedilatildeo de Ereignis154 que aparece em Logik e que teraacute uma importacircncia
152
Embora Heidegger defendesse a tese da supremacia da cultura europeia em conexatildeo com a ideia da
transmissatildeo do legado da origem grega esta tese foi-se esbatendo a partir de 1959 data da conferecircncia
Houmllderlins Erde und Himmel pressupondo a partir daiacute a igual dignidade ontoloacutegica das vaacuterias
civilizaccedilotildees resultantes dos vaacuterios envios do ser Cf Maria Adelaide Pacheco ldquoA Europa como Legado
em Gadamerrdquo in Razatildeo e Liberdade II 1425 153
bdquoGeschichte ist ein Ereignis sofern es geschiehtldquo LWS GA 38 87 154
Cf Eacute indispensaacutevel ter em conta a centralidade do termo alematildeo Ereignis assim como o campo
semacircntico que lhe foi associado pela estrateacutegia linguigravestica do segundo Heidegger rdquoNo alematildeo o er- tem
3 significados-base conseguiralcanccedilar algo por completo ou antecipar este alcance (erhalten ersteigen
etc) o deixar aparecerdesabrocharbrotar algo (erwarten erhoffen) o iniacutecio originaacuterio de algo e o seu
crescimento num acontecimento ou processo de caraacutecter transformador (erschauen erroumlten erbluumlhen)
Para aleacutem disso eacute tambeacutem uacutetil saber que o er- proveacutem do alto-alematildeo ar- ir- ou ur- estando portanto
numa relaccedilatildeo de proximidade com o prefixo ur- que exprime a origem a originariedade Vecirc-se
nitidamente que o er- alematildeo reuacutene em si uma espeacutecie de matriz essencial dos traccedilos fundamentais do
Ereignis originariedade transformaccedilatildeo caraacutecter da physis originaacuteria gelassenheit antecipaccedilatildeo utoacutepica
da integraccedilatildeo completa do inteiro da uniatildeo do uno O er- natildeo apenas ganha uma funccedilatildeo lexical eacute antes
elevado embora encobertamente ao estatuto de palavra-chave da filosofia heideggeriana apoacutes a kehrerdquo
(Bernhard Sylla ldquoA Origem e a Fala da Langue em Heideggerrdquo in A Morte e a Origem - Em torno de
Heidegger e de Freud 174) Sobre a problemaacutetica da traduccedilatildeo de ldquoEreignisrdquo para portuguecircs Cf Bernhard
112
fulcral na obra posterior de Heidegger O termo Ereignis natildeo designa todo o
acontecer (Geschehen) mas permite demarcar em todo o acontecer aquele
que eacute histoacuterico daquele que pertencendo agrave histoacuteria eacute no entanto natildeo-
histoacuteria no mesmo sentido em que dizemos que o vale pertence agrave montanha
Ereignis designa aquele acontecer significativo pelo qual um povo se gesta a si
mesmo projectando-se no futuro a partir do seu passado Ereignis eacute o
acontecer instantacircneo da verdade ou o acontecer instantacircneo da resoluccedilatildeo
(Entschlossenheit) em que um povo se decide colectivamente a tomar a cargo
o seu proacuteprio destino ou a sua proacutepria determinaccedilatildeo (Bestimmung) fazendo
assim histoacuteria
Histoacuterico em sentido apropriado natildeo eacute assim nunca um acontecimento
passado nem um acontecimento simplesmente presente nem uma utopia
projectada num longiacutenquo e vago futuro Histoacuterico eacute o Ereignis o
acontecimento propiacutecio em que um povo se experimenta a si mesmo na
unidade nos trecircs ecircxtases temporais em que passado presente e futuro se
articulam de modo simultaneamente luminoso e misterioso
O Ereignis natildeo designa apenas o acontecer humano mas um acontecer no
qual o que estaacute em jogo eacute a compreensatildeo do ser Assim o Ereignis assinala
um acontecer em que natildeo acontece apenas a histoacuteria dum povo nem a histoacuteria
do homem mas onde acontece um modo particular de entrega do ser No
Ereignis o ser apropria-se do homem e o homem apropria-se do ser e essa
reciacuteproca apropriaccedilatildeo daacute-se na linguagem e pela linguagem
A linguagem eacute pois na sua essecircncia um acontecer o que significa que ela
natildeo tem apenas a funccedilatildeo de comunicar informaccedilotildees acerca da histoacuteria nem de
ldquoevocarrdquo eventos mas que ela eacute um acontecer ontoloacutegico que funda a histoacuteria
Assim podemos compreender a afirmaccedilatildeo de Heidegger em Houmllderlin e a
Essecircncia da Poesia de que a linguagem eacute ldquoo supremo acontecimento da
existecircncia humanardquo ldquoo acontecimento que dispotildee da mais elevada
possibilidade de ser do homemrdquo
A linguagem natildeo eacute assim apenas um instrumento de que o homem dispotildee
isto eacute natildeo pode ser tomada como um ente intra-mundano mas tem a funccedilatildeo
Sylla em ldquoHeideggers Er-eignis auf Portugiesischrdquo in Heideggers Beitraumlge zur Philosophie Frankfurt
am Main 2009 463-472
113
de instaurar uma abertura ontoloacutegica na qual os entes podem aparecer com a
configuraccedilatildeo total de um mundo E o abrir loacutegico-linguiacutestico dessa abertura eacute
propriamente aquele acontecer a que se chama na terminologia heideggeriana
o Ereignis
Nesta consideraccedilatildeo da linguagem como Ereignis estatildeo em jogo as diferentes
liacutenguas histoacutericas como tendo a funccedilatildeo essencial da criaccedilatildeo do mundo de um
povo histoacuterico entendendo por ldquomundordquo natildeo apenas as obras de arte as
criaccedilotildees da teacutecnica as religiotildees mas a totalidade dum modo de interpretar-se
a si mesmo e a tudo o que eacute
ldquo Apenas onde haacute linguagem haacute mundo quer dizer esta esfera em permanente
transiccedilatildeo de decisatildeo e de obra de acccedilatildeo e de responsabilidade mas tambeacutem
de arbiacutetrio e de ruiacutedo de decadecircncia e de confusatildeo Somente onde reina
mundo haacute histoacuteria[hellip] a linguagem natildeo eacute um instrumento disponiacutevel mas
aquele acontecimento propiacutecio que dispotildee da mais alta possibilidade de ser do
homemrdquo155
O uso desta categoria de mundo esclarece esta dimensatildeo poieacutetica da
linguagem pelo seu contraste com o mundo tomado como ideia da razatildeo
teoacuterica O mundo como ideia da razatildeo teoacuterica representa o impulso da razatildeo
teoacuterica para a totalizaccedilatildeo do edifiacutecio do saber isto eacute para nada deixar de fora
das siacutenteses dum entendimento legislador da natureza Ora a categoria de
mundo em Heidegger eacute uma categoria que natildeo aponta para uma subjectividade
que legisla sobre os objectos isto eacute sobre a natureza mas para um Dasein
que enquanto falante de uma liacutengua histoacuterica assume a responsabilidade pelo
desvelamento do ser
Na medida em que acolhe o desvelamento do ser o Dasein reuacutene a dispersatildeo e
do caos faz um mundo e este acontece nesse acontecer preacutevio que eacute a
linguagem falada por um povo histoacuterico ldquoMundo natildeo eacute uma ideia da razatildeo
teoacuterica mas mundo notifica-se na notificaccedilatildeo do ser histoacuterico e esta notificaccedilatildeo
eacute o ser revelado do ser do ente no misteacuterio Na notificaccedilatildeo e atraveacutes dela
vigora o mundo
155
bdquo Nur wo Sprache da ist Welt das heiβt der stets sich wandelnde Umkreis von Entscheidung und
Werk von Tat und Verantwortung aber auch von Willkuumlr und Laumlrm Verfall und Verwirrung Nur wo
Welt waltet da ist Geschichte[] Die Sprache ist nich ein verfugbaumlres Werkzeug sondern dasjenige
Ereignis das uumlber die houmlchste Moumlglichkeit des Menschseins verfuumlgtldquo HWD GA 4 3738
114
Poreacutem esta notificaccedilatildeo acontece no acontecer originaacuterio da linguagem Nela
acontece o estar exposto ao ente acontece a entrega ao ser156
A essecircncia do logos enquanto linguagem natildeo aponta assim para a
univocidade da loacutegica nem para o ser como presenccedila mas para o ser como
evento histoacuterico-temporal que acontece na liacutengua de um povo e o constitui
assim como histoacuterico
13 Linguagem e poesia
Com a comunicaccedilatildeo realizada na conferecircncia de 1936 em Roma sob o tiacutetulo
Houmllderlin und das Wesen der Dichtung Heidegger tornou puacuteblico o seu novo
caminho da meditaccedilatildeo sobre a linguagem que inaugurara jaacute em 1934 com as
liccedilotildees dos dois semestres de 1934 respectivamente sobre a Loacutegica e os Hinos
de Houmllderlin
Embora essa meditaccedilatildeo tenha exaltado em Houmllderlin o poeta da poesia e o
grande tradutor da poesia grega ela ocupar-se-aacute em seguida tambeacutem de
outros poetas de liacutengua alematilde como Rilke (ldquoWozu Dichterrdquo in Holzwege)
Stephan George (ldquoDas Wesen der Spracherdquo e ldquoDas Wortrdquo in Unterwegs zur
Sprache) e Georg Trakl (bdquoDie Spracheldquo e bdquoDie Sprache im Gedichtldquo in
Unterwegs zur Sprache)
Esta viragem de Heidegger em direcccedilatildeo agrave poesia natildeo representa nenhum
desvio relativamente aos problemas filosoacuteficos que constituiacuteam o eixo central
de Ser e Tempo significando antes uma continuaccedilatildeo e um aprofundamento da
sua investigaccedilatildeo sobre o ser da linguagem tornada necessaacuteria pela sua
proacutepria experiecircncia das dificuldades em romper com a linguagem da tradiccedilatildeo
metafiacutesica157
Como acima referimos jaacute nas Liccedilotildees de Loacutegica Heidegger afirmara que as
vaacuterias liacutenguas satildeo a poesia originaacuteria comum a um determinado povo Poesia e
156
bdquoWelt ist nicht eine Idee der theoretischen Vernunft sondern Welt kuumlndet sich in der Kunde des
geschichtlichen Seins und diese Kunde ist die Offenbarkeit des Seins des Seienden im Geheimnis In der
Kunde und durch sie waltet die Welt
Diese Kunde aber geschieht im Urgeschehnis der Sprache In ihr geschieht die Ausgesetzheit-in das
Seiende geschieht die Uumlberantwortung an das Seinldquo LWS GA 38 168 157
Cf a obra hoje claacutessica de Hans Jaeger Heidegger und die Sprache (Bern 1971) bdquoHeidegger war an
dem Punkt angelangt wo er spuumlrte daβ die Sprache von Sein und Zeit nicht mehr ausreichte Er hat ja
selbst erklaumlrt warum er den Schluβ des ersten Teils von Sein und Zeit nicht beendet konnte Ihm fehlt die
dazu angemessene Sprache Dazu brauchte der Denker den Dichterldquo (Ob cit 50)
115
linguagem mantecircm ente si uma ligaccedilatildeo tatildeo essencial precisamente porque
cada liacutengua histoacuterica eacute o acontecer fundamental (Ereignis) no qual um povo se
expotildee ao desvelamento histoacuterico-temporal do ser e assim lhe adveacutem o poder
de instituir e criar o seu mundo histoacuterico ldquoA essecircncia da linguagem estaacute aiacute
onde ela acontece como poder criador de mundo isto eacute onde ela comeccedila a
modelar e estruturar o ser do ente A linguagem originaacuteria eacute a linguagem da
poesiardquo 158
Os poetas datildeo voz agrave vontade de soberania de um povo que impotildee a si mesmo
uma certa interpretaccedilatildeo daquilo que eacute e lhe daacute a forma de um mundo Na
linguagem poeacutetica conserva-se e transmite-se a decisatildeo (Entschlossenheit)
pela qual um povo se projectou e se conservou na histoacuteria ela representa ldquoo
domiacutenio do centro de existecircncia histoacuterica do povo que cria e conserva
mundordquo159 A poesia realiza assim a essecircncia da linguagem como ditado
poeacutetico precisamente porque acolhe e interpreta o apelo do ser de acordo com
a memoacuteria de um povo histoacuterico
Se a linguagem tem no seu exerciacutecio apropriado esta funccedilatildeo de levantar um
mundo eacute porque a palavra tem o poder natildeo apenas de nomear mas de ao
nomear fundar doar e instituir um sentido permanente capaz de ordenar o
caos e a desordem criados pela voracidade do tempo A linguagem institui um
sentido permanente capaz de reunir a dispersatildeo e alicerccedilar as grandes
criaccedilotildees colectivas da religiatildeo do Estado e ainda a totalidade das obras
criadas pela arte e pelo trabalho
O Estado eacute o ser histoacuterico do povo e representa o poder de um povo impor a
sua vontade de gestar-se a si mesmo a partir do seu passado e da sua
tradiccedilatildeo e por isso o seu fundamento originaacuterio eacute a linguagem enquanto ditado
poeacutetico ldquoO Estado eacute apenas na medida em que e enquanto acontecer a
158
bdquoDas Wesen der Sprache west dort wo sie als weltbildende Macht geschieht dh wo sie das Sein des
Seienden im voraus erst vorbildet und ins Gefuumlge bringt Die urspruumlngliche Sprache ist die Sprache der
Dichtungldquo LWS GA 38 170 159
Bernhard Sylla sublinha o contexto histoacuterico do seminaacuterio do semestre de Veratildeo de 1934 vendo aiacute os
indiacutecios de um primeiro distanciamento de Heidegger em relaccedilatildeo ao nazismo Este distanciamento seria
particularmente evidente na determinaccedilatildeo do conceito de ldquopovordquo (Volk) a propoacutesito do qual Heidegger
rejeita a compreensatildeo habitual e tambeacutem partilhada pelo nacional-socialismo do povo como corpo alma
ou espiacuterito contrapondo-lhe a tese de que um povo se fundamenta na decisatildeo relativa ao ser que se
expressa no pensar e no poetar ldquoIn der anschlieszligenden breiten Diskussion des Volksbegriffs werden die
uumlblichen und implizit auch nationalsozialistischen Auffassungen von Volk als Koumlrper Seele oder Geist
abgelehnt Diese Ablehnungen muumlnden dann in die These dass nur reine wahrhaft seinsbezogene
Entschlossenheit also ein Einsprung ins seinseroumlffnende Denken und Dichten Dasein als Volk gruumlnden
koumlnneldquo Idem Hermeneutik der langue 300
116
imposiccedilatildeo da vontade de dominaccedilatildeo que nasce da missatildeo e do encargo e
inversamente se torna trabalho e obra O homem o povo o tempo a histoacuteria
o ser o Estado ndash isto natildeo satildeo conceitos abstractos colocados como objectos
para exerciacutecios de definiccedilatildeo mas a relaccedilatildeo da essecircncia eacute sempre uma relaccedilatildeo
histoacuterica Isto quer contudo dizer decidir-se desde o sido para o futurordquo160
Contudo em Houmllderlin e a Essecircncia da Poesia Heidegger viraacute pensar esse
papel fundante da poesia de um modo mais radical Pensando a essecircncia da
poesia a partir da essecircncia da linguagem Heidegger mostra - a partir do
caraacutecter exemplar da poesia de Houmllderlin - que ela natildeo se limita a usar a
linguagem como mateacuteria-prima disponiacutevel mas realiza a autecircntica essecircncia da
linguagem como ldquofundaccedilatildeo do serrdquo a poesia eacute a fundaccedilatildeo do ser pela palavra
e o poeta nomeia os deuses e todas as coisas instituindo e ditando a sua
significaccedilatildeo
Do mesmo modo em Der Ursprung des Kunstwerkes de 3536 toda a
linguagem enquanto liacutengua falada por um povo histoacuterico natildeo eacute poesia pelo
facto de que eacute poetizar originaacuterio mas o poetizar acontece na linguagem
porque esta encerra em si a essecircncia originaacuteria da poesia A liacutengua dum povo
que se assume a si mesmo como histoacuterico eacute tambeacutem a instauraccedilatildeo da abertura
ontoloacutegica originaacuteria que desvela os entes e permite que eles apareccedilam na
Lichtung do ser E eacute no interior desta abertura originaacuteria que podem ter lugar as
criaccedilotildees poeacuteticas em sentido estrito como a criaccedilatildeo das obras de arte em
geral ldquoA arquitectura e as artes figurativas pelo contraacuterio acontecem sempre e
jaacute sempre soacute no espaccedilo aberto do dizer e do nomear Estatildeo imbuiacutedas e
guiadas por este Eacute por isso que permanecem como caminhos e modos
singulares como a verdade se rectifica na obra Satildeo um poetizar ndash em cada
caso e na sua respectiva forma ndash dentro da clareira [Lichtung] do ente a qual jaacute
aconteceu inadvertidamente na linguagemrdquo161
160
bdquoDer Staat ist nur sofern und solange die Durchsetzung des Herrschaftswillens geschieht der aus
Sendung und Auftrag entspringt und umgekehrt zu Arbeit und Werk wird Der Mensch das Volk die
Zeit die Geschichte das Sein der Staat ndashdas sind keine abgezogenen Begriffe als Gegenstaumlnde fuumlr
Definitionsuumlbungen sondern das Wesensverhaumlltnis ist jederzeit ein geschichtliches dh aber
zukuumlnftiggewesenes Sichentscheidenldquo LWS GA 38 165 161
bdquoBauen und Bilden dagegen geschehen immer schon und immer nur im Oumlffenen der Sage und des
Nennens Von diesem werden sie durchwaltet und geleitet Aber gerade deshalb bleiben sie eigene Wege
und Weisen wie die Wahrheit sich ins Werk richtet Sie sind ein je eigenes Dichten innerhalb der
Lichtung des Seienden die schon und ganz unbeachtet in der Sprache geschehen istldquo UKw GA 5 61
117
A linguagem enquanto liacutengua falada por um povo vive no risco da queda e da
degradaccedilatildeo na iminecircncia da perda do seu poder de abrir mundo e de fazer
histoacuteria Na realidade ela vive entre os momentos altos do Ereignis em que se
eleva agrave altura dos grandes combates entre o mundo e a terra e levanta as
grandes obras de arte e a degradaccedilatildeo e a queda na transmissatildeo falsificada
que eacute apenas o esclerosamento da tradiccedilatildeo que transmite
Ateacute mesmo as chamadas liacutenguas histoacutericas estatildeo sempre e inevitavelmente em
risco de decadecircncia e de perda da sua vocaccedilatildeo ontoloacutegica na medida em que
estatildeo sujeitas ao uso e agrave usura quotidianos ao desgaste inerente ao servir
como simples instrumento de comunicaccedilatildeo Por isso eacute na grande poesia que
se encontra salvaguardada contra a tendecircncia para a decadecircncia a vocaccedilatildeo
ontoloacutegica das liacutenguas histoacutericas e pela mesma razatildeo Heidegger valorizaraacute a
poesia como caminho para a libertaccedilatildeo da linguagem originaacuteria o que deve ser
compreendido em estreita ligaccedilatildeo com a dimensatildeo projectiva do Entwurf em
particular do existentieller Entwurf zum Tode Efectivamente o lanccedilamento
contra a morte implica como vimos a consciecircncia de que todo o projecto de
compreensatildeo estaacute constantemente ameaccedilado pela esclerose do pensamento
Ora como Heidegger diraacute em A Origem da Obra de Arte a poesia no seu
prolongado combate entre o mundo e a terra natildeo se limita a expor um mundo
preacute-existente mas cria e institui uma nova verdade que contudo estaacute sempre
ameaccedilada de ruiacutena e perda de fundamento162
Esta dimensatildeo projectiva e instituinte do novo que pertence intrinsecamente agrave
linguagem poeacutetica - na qual reside a sua dimensatildeo propriamente poieacutetica -
confere a esta o estatuto privilegiado de paradigma da linguagem apropriada e
da sua originaacuteria possibilidade ontoloacutegica e assim apela agrave vizinhanccedila e agrave
162
Cf Hans Jaeger sublinha a novidade da tematizaccedilatildeo da questatildeo do ser e da verdade que estaacute implicada
na afirmaccedilatildeo heideggeriana do pocircr-se-em obra da verdade como a essecircncia da obra de arte ldquoWas im
Kunstwerk am Werk ist ist ein ldquoGeschehen der Wahrheitrdquo und die Kunst ist ldquodas Sich-ins-Werk-Setzen
der Wahrheitrdquo des Seienden Diese Wahrheit im Kunstwerk bedeutet natuumlrlich nicht moumlglichst treue
Wiedergabe des Dargestellten auch nicht Uumlbereinstimmung mit dem Wesen der dargestellten Dingerdquo
(Ob cit 44)
Segundo Hans Jaeger este pocircr-se em obra da verdade como prolongado combate entre o mundo e a terra
que acontece na arte eacute uma reformulaccedilatildeo do conceito de verdade de Ser e Tempo na direcccedilatildeo de uma
ruptura mais radical com a metafiacutesica Pensando a verdade como combate entre o mundo e a terra
Heidegger pensa-a como velamentodesvelamento rdquoDas Ins-Werk-Setzen der Wahrheit als das Wesen
des Kunstwerkes ist der ldquoliebende Streitrdquo von Unverborgenheit und Verborgenheit Bisher hatten wir die
Wahrheit bei Heidegger immer als ldquoUnverborgenheitrdquo (griechisch bdquoalegravetheialdquo) kennengelernt Aber das
Wort mit seiner Vorsilbe Un-sagt ja schon daβ die Wahrheit immer aus dem Verborgenheit entborgen
werden muβ also die Verborgenheit zu Wahrheit als Unverborgenheit gehoumlrt mithin Wahrheit nicht ohne
ldquoUn-wahrheitrdquo ist was natuumlrlich nicht Falschheit bedeutetldquo (Ob cit 46-47)
118
proximidade da filosofia A poesia realiza e desenvolve a dimensatildeo poieacutetica da
linguagem porque pode instaurar uma abertura de mundo e vigiar essa
abertura contra a tendecircncia para o cerramento imposta pela decadecircncia e o
extravio (Verfall)
Assim a linguagem pensada como Ereignis eacute para Heidegger a linguagem
criadora aquela que se conecta com temporalidade da criaccedilatildeo isto eacute com o
tempo dos poetas dos pensadores e dos criadores do Estado que
fundamentam o ser-aiacute histoacuterico de um povo o que seraacute designado por
Heidegger em Houmllderlins Hymnen como ldquoo tempo do cumesrdquo163
14 Poesia e Filosofia ou diaacutelogo entre cumes
No entanto porque privilegiou Heidegger a poesia de Houmllderlin e a partir de
trinta e trecircs natildeo deixou de voltar agrave sua poesia e de com ela estabelecer uma
relaccedilatildeo de parentesco Esse parentesco muacuteltiplas vezes reafirmado tem como
fundo a proximidade de Houmllderlin aos gregos com os seus deuses a sua
experiecircncia da natureza e do sagrado
Houmllderlin era para Heidegger como acima referimos o paradigma do tradutor
autecircntico pela sua transposiccedilatildeo da palavra grega para o alematildeo tendo o
diaacutelogo com o poeta atravessado a sua proacutepria obra e inspirado parcialmente a
sua proacutepria linguagem164 No entanto Heidegger natildeo deixa tambeacutem de
sublinhar a distacircncia entre o pensar e o poetar afirmando que o pensador diz o
Ser e o poeta diz o Sagrado e que ambas se situam numa vizinhanccedila como a
de duas montanhas cuja proximidade eacute tambeacutem a separaccedilatildeo Estes cumes
estatildeo muito perto um do outro e os que os habitam compreendem-se por isso
uns aos outros mas eacute tambeacutem nesta proximidade que se encontram separados
pelos abismos que os dividem165
163
bdquoDie Zeit der Schaffenden ndash hochaufwogendes Gebirge die Gipfel der Berge die einsam hineinstehen
in den Aumlther und das heiβt in den Bereich des Goumlttlichen Diese Zeiten des Schaffenden ragen heraus
uumlber das bloβe Nacheinander der eiligen Tage in der Flachheit des Alltӓglichen und sind doch kein
starres zeitloses Daruumlberhinaus sondern Zeiten aufwogend uumlber die Erde hin eigenes Fluten und eigenes
Gesetzldquo HH GA 3952 164
Cf Sobre a influecircncia dos poemas de Houmllderlin na terminologia heideggeriana ver Hans Jaeger ob
Cit 51-59 165
bdquoDiese Gipfel sind sich ganz nahe und so auch die Schaffenden die auf ihnen wohnen muumlssen wo
jeder je seine Bestimmung zum Austrag bringt und von daher die Anderen auf den anderen Gipfeln von
Grund aus versteht Und doch - in dieser Nahe sind sie gerade am getrenntesten durch die Abgruumlnde
zwischen den Bergen an denen jeder stehtldquo HH GA 39 52
119
Eacute a consciecircncia expliacutecita desta distacircncia abissal do pensar ao poeta que nos
permite abordar os textos heideggerianos sobre a poesia como cumprimento e
execuccedilatildeo daquilo que Heidegger pensa ser a traduccedilatildeo autecircntica Em Houmllderlin
e a Essecircncia da Poesia o filoacutesofo escuta o texto do poeta alematildeo dispondo-se
a ouvir nesses textos o eco do mundo grego e da sua experiecircncia originaacuteria do
ser e da linguagem e a traduzi-la para a sua linguagem de pensador
Eacute esta direcccedilatildeo interpretativa que permite a Heidegger em Houmllderlin e a
Essecircncia da Poesia trazer agrave luz a experiecircncia originaacuteria dos gregos da
linguagem como ldquosagardquo ldquoA fundaccedilatildeo do ser estaacute vinculada aos acenos dos
deuses E ao mesmo tempo a palavra poeacutetica natildeo eacute senatildeo a interpretaccedilatildeo da
ldquovoz do povordquo Assim designa Houmllderlin as sagas nas quais um povo se
rememora na sua pertenccedila ao ente no seu todordquo166
A experiecircncia grega do poetar que ressoa em Houmllderlin indica que a poesia
estaacute tambeacutem vinculada ao aceno dos Deuses ela recebe os primeiros sinais do
aceno dos deuses mas interpreta-os na linguagem do povo Os poetas estatildeo
entre os deuses e o povo foram banidos para esse lugar ldquoentrerdquo ambos lugar
solitaacuterio e aparentemente insignificante no qual se decide no entanto o
significado de todas as coisas quem eacute o homem e qual a sua morada
O tiacutetulo do poema ldquoAndenkenrdquo tornou-se para Heidegger a Grundwort do seu
ldquopensar rememoranterdquo que pensando a partir do passado histoacuterico (grego)
consegue tornaacute-lo vivo para o presente e frutuoso para o futuro
Este resguardar vigilante que salvaguarda a experiecircncia originariamente grega
como heranccedila para os vindouros natildeo pode ser dissociada da funccedilatildeo
hermenecircutica do inteacuterprete como aquele que transpotildee (uumlbersetzt) a verdade
da obra para um outro tempo
Ora a essecircncia dessa missatildeo cometida igualmente ao pensador e ao poeta natildeo
eacute pensada por Heidegger como repeticcedilatildeo mimeacutetica mas como a luta do
desvelamento contra o encobrimento e a esclerose luta cuja sucesso depende
da capacidade de vinculaccedilatildeo ao presente histoacuterico do proacuteprio povo
166
bdquoDie Stiftung des Seins ist gebunden an die Winke der Goumltter Und zugleich ist das dichterische Wort
nur die Auslegung der bdquoStimme des Volkesldquo So nennt Houmllderlin die Sagen in denen ein Volk eingedenk
ist seiner Zugehoumlrigkeit zum Seienden in Ganzenldquo HWD GA 4 46
120
O apelo dos deuses deve chegar ao solo da paacutetria e estabelecer uma
vinculaccedilatildeo ao proacuteprio povo do poeta na liacutengua onde ressoa a particularidade
da ldquoHeimatrdquo Eacute na liacutenguandashmatildee que se faz a aprendizagem do que eacute familiar e
proacuteximo mas que permanece muitas vezes distante e alheio aos que estatildeo
nela ocupados (besorgt) Estes ainda natildeo estatildeo preparados para ter como sua
pertenccedila o mais proacuteprio da ldquoHeimatrdquo afirma Heidegger em HeimkunftAn die
Verwandten em nota raacutepida mas de essencial significado
Movendo-se entre dois horizontes histoacuterico-linguiacutesticos a poesia e o
pensamento movem-se entre o distante apelo dos deuses e o ser proacuteximo dum
povo lutando para arrancar ambos ao encobrimento Esta movimentaccedilatildeo entre
horizontes natildeo eacute como um movimento contiacutenuo o deslizar na estrada ldquona qual
todos podem passar ao lado uns dos outroshellip para se encontrarem no meio da
multidatildeordquo mas o percurso arriscado numa ldquovereda pejada de pedras ldquo na qual
se movimenta o solitaacuterio pastor
Trazer o originaacuterio apelo dos deuses a esse centro da existecircncia histoacuterica do
povo eacute reunir o disperso para edificar um mundo tarefa criadora para a qual
Heidegger reserva no ensaio sobre Hebel o termo Aufheben aiacute entendido no
sentido dum recolher o que estaacute disperso e ainda no sentido duma elevaccedilatildeo
transfiguraccedilatildeo e metamorfose Este Aufheben que a poesia e o pensamento
realizam eacute assim sempre simultaneamente um reunir e salvar da dispersatildeo
um conservar aquilo que singulariza um povo dando a isso que se conserva
uma nova forma
A decisatildeo (Entschlossenheit) pela qual um povo se projectou e se conservou
na histoacuteria eacute assim conservada e transfigurada na obra do poeta e do
pensador Aiacute pela mediaccedilatildeo linguiacutestica de ambos o apelo dos deuses fala a
partir do centro de existecircncia histoacuterica dum povo e incita-o a criar e conservar
mundo
Eacute esta experiecircncia essencial da linguagem que Heidegger ldquoarrancaldquo agrave poesia
de Houmllderlin como experiecircncia que nela se encontra simultaneamente revelada
e oculta toda a ldquotraduccedilatildeordquo da poesia de Houmllderlin na linguagem do pensador eacute
121
enfrentamento poleacutemico em direcccedilatildeo ao natildeo-dito ao fundamento impensado
da palavra poeacutetica167
Em A Origem da Obra de Arte Heidegger fundamenta esta experiecircncia da
ldquoverdaderdquo feita no confronto dos textos do poeta ampliando esta compreensatildeo
da linguagem como Dichtung estendendo-a agrave obra de arte em geral ele
especifica esse conceito de ldquoditado poeacuteticordquo como poder instituinte168 A
linguagem natildeo se limita a nomear mas enquanto fala ela institui uma
interpretaccedilatildeo daquilo que eacute isto eacute institui uma abertura de mundo no triplo
sentido da doaccedilatildeo de sentido da fundaccedilatildeo de um mundo e do iniacutecio de uma
eacutepoca histoacuterica ldquo[] A essecircncia do ditado poeacutetico eacute instituiccedilatildeo da verdade
Compreendemos aqui o instituir num triplo sentido instituir como doar
[Schenken] instituir como fundar [Gruumlnden] e instituir como iniciar
[Anfangen]rdquo169
Se este poder de instituir uma nova eacutepoca histoacuterica (Zeitalter) pertence
essencialmente agrave grande poesia aquele mundo que ela patenteia natildeo eacute nunca
uma criaccedilatildeo arbitraacuteria mas aquilo que jaacute estava lanccedilado no aiacute ser de um povo
histoacuterico A obra de arte patenteia e resguarda esse mundo para os vindouros
e eacute assim origem e iniacutecio - eacute o modo fundamental como a verdade vem a ser
Este ldquopocircr-se em obra da verdaderdquo que acontece na arte eacute poreacutem o conflito
entre o mundo e a terra entre o estar encoberto (Verborgenheit) e o natildeo estar
encoberto (Unverborgenheit) que acontecem na obra de arte e satildeo a sua
essecircncia ldquoA verdade rectifica-se [richtet sich in] na obra A verdade estaacute a ser
apenas enquanto combate entre clareira e encobrimento no estar-em-
167
Cf O caraacutecter poleacutemico deste diaacutelogo de Heidegger com a poesia eacute interpretado por Hans Jaeger no
sentido heraclitiano de polemos e segundo este autor pode ser detectado em todos os textos onde o
filoacutesofo interpreta a poesia ldquoHeideggers Uumlbersetzung und Interpretation des Chorlieds aus der
ldquoAntigonardquo ist das erste ldquoZwiegespraumlchrdquo zwischen dem Denker und einem Dichter Wir werden solchen
Dialogen in Form von Erlaumluterungen von jetzt ab immer wieder begegnen Die Erlaumluterung des Chorlieds
ist eine ldquoAuseinandersetzungrdquo im Sinne von Heraklits polemos ein bdquoliebender Streitldquo bei dem Heidegger
in gewisser Weise ebenfalls ldquogewalttaumltigrdquo vorgehtrdquo (Ob cit 36) 168
Cristina Lafont salienta a importacircncia da ampliaccedilatildeo do conceito de verdade em UKw com a dupla
finalidade de atribuir um lugar subordinado ao saber ocircntico isto eacute agrave ciecircncia e de mostrar o seu caraacutecter
derivado em relaccedilatildeo agravequeles aspectos da cultura como a arte a poliacutetica a filosofia que possuem uma
forccedila de ldquoabertura de mundordquo e que graccedilas a ela tecircm capacidade de ldquopocircr em vigor a verdaderdquo entendida
como saber ontoloacutegico de fundo A abertura de mundo como fundaccedilatildeo da verdade seria caracterizada
pelos seguintes traccedilos ldquodoaccedilatildeordquo como acontecer do desocultamento que natildeo depende do ente intra-
mundano ldquofundamentordquo como instauraccedilatildeo de uma ordem normativa e ldquoinigraveciordquo como caraacutecter epocal e
radical novidade e descontinuidade (Ob cit 195-196) 169
bdquoDas Wesen der Dichtung aber ist die Stiftung der Wahrheit Das Stiften verstehen wir hier in einem
dreifachen Sinne Stiften als Schenken Stiften als Gruumlnden und Stiften als Anfangenldquo UKw GA 5 62
122
antagonismo do mundo e da terra A verdade quer ser rectificada na obra
enquanto combate do mundo e da terrardquo170
Visto agrave luz deste novo conceito de verdade o texto poeacutetico como todo o texto
que diz algo essencial apela por si mesmo e a partir da sua natureza veraz agrave
interpretaccedilatildeo e agrave traduccedilatildeo a obra de arte projecta uma verdade para aqueles
que hatildeo-de vir e reclama ser por eles interpretada e salvaguardada
salvaguardaacute-la significa poreacutem acolhecirc-la natildeo como substacircncia imoacutevel que
repousa em si mesma mas deixaacute-la brilhar a partir do seu ser proacuteprio da sua
natureza essencial de conflito entre o mundo e a terra pois ldquoa obra levantando
um mundo e elaborando a terra eacute a contenda deste combate no qual se
conquista o natildeo estar encoberto do ente no seu todo - a verdaderdquo
Ora interpretar a obra eacute entatildeo se este interpretar quer ser conforme com o ser
da obra um resguardar que eacute essencialmente ldquoo instar [innestehen] da
abertura do enterdquo que acontece na obra como insistecircncia no combate que a
obra conformou Este interpretar eacute pois exactamente o contraacuterio da
concordacircncia mas combate polemos que exige uma decisatildeo ldquoResguardar a
obra quer dizer o instar [innestehen] da abertura do ente que acontece na
obra Mas a insistecircncia [Instaumlndigkeit] do resguardar eacute um saber Poreacutem o
saber natildeo consiste num mero conhecer e representar de algo Quem sabe
verdadeiramente do ente sabe aquilo que quer no meio do enterdquo171
Da frequecircncia dos textos poeacuteticos Heidegger ainda recolhe a experiecircncia da
transmissatildeo autecircntica da tradiccedilatildeo ponto que para a presente investigaccedilatildeo tem
uma importacircncia capital a poesia eacute tambeacutem o lugar da conservaccedilatildeo da
tradiccedilatildeo - a tradiccedilatildeo poeacutetica europeia de Soacutefocles a Houmllderlin eacute para
Heidegger um diaacutelogo que atraveacutes do tempo permite que vaacuterias geraccedilotildees
divirjam a partir do mesmo ldquoDesde que o homem se coloca no permanente de
um permanecer soacute entatildeo ele pode expor-se ao mutaacutevel ao vindouro e ao
fugaz porque apenas aquilo que eacute perseverante eacute mutaacutevel Soacute desde que o
tempo rdquovorazrdquo foi dilacerado em presente passado e futuro existe a
170
bdquoDie Wahrheit richtet sich ins Werk Wahrheit west nur als der Streit zwischen Lichtung und
Verbergung in der Gegenwendigkeit von Welt und Erde Die Wahrheit will als dieser Streit von Welt und
Erde gerichtet werdenldquo Ibidem 50 171
Bewahrung des Werkes heiβt Innestehen in der Werk geschehenden Offenheit des Seienden Die
Instaumlndigkeit der Bewahrung aber ist ein Wissen Wissen besteht darin jedoch nicht im bloβen kennen
und Vorstellen von etwas Wer Wahrhaft das Seienden weiβ weiβ was er inmitten des Seienden willldquo
Ibidem 55
123
possibilidade de entrarmos em acordo sobre um permanente Somos um
diaacutelogo desde que o tempo existerdquo172
O diaacutelogo entre as vaacuterias geraccedilotildees de poetas tem ele mesmo a forma poleacutemica
que resulta da exposiccedilatildeo ao poder do tempo e eacute para Heidegger em Houmllderlin
e a Essecircncia da Poesia assim como nas Liccedilotildees de Loacutegica o paradigma de
uma autecircntica transmissatildeo ldquoPor isso a linguagem do poeta natildeo eacute nunca
actual mas sempre sido e futuro O poeta nunca eacute contemporacircneo Os poetas
contemporacircneos deixam-se na verdade classificar como tal mas
permanecem apesar disso um contra-senso A poesia e com ela a linguagem
em sentido proacuteprio acontecem soacute laacute onde o vigorar do ser eacute trazido agrave
intangibilidade superior da palavra originaacuteriardquo173
A palavra originaacuteria eacute assim para Heidegger aquela que se vincula agrave origem
no modo do enfrentamento poleacutemico e natildeo aquela que diz o mesmo pois soacute
podemos entrar em acordo sobre o permanente quando no expomos ao poder
do tempo e agraves suas diversas Stimmungen epocais A obra poeacutetica de Houmllderlin
aparece-lhe precisamente como paradigma e modelo desta linguagem
originaacuteria que conteacutem em si a capacidade de ouvir o distante eco do mundo
grego e de o confrontar com o mutaacutevel o vindouro e o fugaz Ela eacute por isso o
modelo da autecircntica traduccedilatildeo ela eacute diaacutelogo que eacute capaz de divergir a partir do
mesmo porque se expotildee ao tempo e agrave histoacuteria
Esta traduccedilatildeo do grego realizada pela poesia de Houmllderlin deve ser
compreendida como o reverso do ocultamento instituiacuteda pela tradiccedilatildeo
metafiacutesica Trazendo o apelo dos deuses e expondo-o ao poder do tempo com
as suas obscuras Stimmungen epocais o poeta da poesia faz o reverso da
tradiccedilatildeo metafiacutesica com a sua pretensatildeo de universalidade e de
intemporalidade
172
bdquoSeitdem der Mensch sich in die Gegenwart eines Bleibenden stellt seitdem kann er sich erst dem
Wandelbaren dem Kommenden und Gehenden aussetzen denn nur das Beharrliche ist wandelbar Erst
seitdem die bdquoreiβende Zeitldquo aufgerissen ist in Gegenwart Vergangenheit und Zukunft besteht die
Moumlglichkeit sich auf ein Bleibendes zu einigen Ein Gespraumlch sind wir seit der Zeit da es bdquodie Zeit istldquoldquo
HWD GA 4 3940 173
bdquoDeshalb ist die Sprache des Dichters nie heutig sondern immer gewesen und zukuumlnftig Der Dichter
ist nie zeitgenoumlssisch Zeitgenoumlssische Dichter lassen sich zwar organisieren aber sie bleiben trotzdem
ein Widersinn Dichtung und damit eigentliche Sprache geschieht nur dort wo das Walten des Seins in
die uumlberlegene Unberuumlhrbarkeit des urspruumlnglichen Wortes gebracht istldquo LWS GA 38 170
124
Traduccedilatildeo eacute assim tarefa inseparaacutevel do pensar e do poetar e mais
radicalmente tarefa imposta ao homem pelo desvelamento histoacuterico-temporal
da verdade A traduccedilatildeo apropriada teraacute que ser poreacutem pensada ao arrepio da
traduccedilatildeo levada a cabo no interior da histoacuteria da metafiacutesica vinculando-se
antes a este caminhar entre cumes na estreita vereda do pastor metaacutefora na
qual Heidegger pensava a relaccedilatildeo entre poesia e filosofia ou a este polemos
ou diaacutelogo capaz de divergir a partir do mesmo que eacute a tradiccedilatildeo poeacutetica
125
Capiacutetulo II ndash A pluralidade das aberturas de mundo e o
problema hermenecircutico
126
127
Perguntar pela linguagem eacute perguntar pelo ser do homem e o homem eacute um si-
mesmo (der Mensch ist ein Selbst) afirma Heidegger nas Liccedilotildees de Loacutegica
Esta mesmidade natildeo eacute um geacutenero supremo no qual possam desaparecer as
diferenccedilas entre os diversos povos A ela pode aceder-se apenas na decisatildeo
de tomar sobre si a heranccedila de uma tradiccedilatildeo o nosso ldquoser si-mesmordquo eacute o povo
Soacute esta inserccedilatildeo na temporalidade proacutepria da histoacuteria colectiva de um povo nos
pode tornar simultaneamente solidaacuterios sendo um com o outro e responsaacuteveis
por noacutes mesmos e pela nossa determinaccedilatildeo (Bestimmung) ldquoEste triplo sentido
unitaacuterio daquilo a que noacutes chamamos determinaccedilatildeo deixa-nos antes de mais
experimentar encargo e missatildeo trabalho e tonalidade afectiva na sua unidade
soacutebria conforme ao acontecer e com isso tambeacutem o tempo como poder
originaacuterio que harmoniza o nosso ser e em si o determina como acontecer
Deste modo o tempo experimentado como a nossa determinaccedilatildeo natildeo eacute
senatildeo a estrutura do poder [Machtgefuumlge] a grande e uacutenica articulaccedilatildeo [Fuge]
do nosso ser como um ser histoacuterico Ele torna-se a unicidade histoacuterica do
nosso si mesmo Assim o tempo eacute o manancial do povo histoacuterico e do
indiviacuteduo no seio do povo A unidade desta tripla determinaccedilatildeo eacute o caraacutecter
fundamental do acontecerrdquo174
As vaacuterias liacutenguas histoacutericas instituem diferentes ldquoaberturas de mundordquo ou uma
multiplicidade incomensuraacutevel de figuras da verdade cada uma delas sendo
um horizonte intransponiacutevel onde se enraiacutezam as respectivas criaccedilotildees culturais
e tambeacutem as obras filosoacuteficas e cientiacuteficas175
Essa multiplicidade poreacutem origina-se numa mesma fonte originaacuteria o poder
do tempo que dispotildee e destina a histoacuteria atraveacutes do homem e da sua
linguagem a partir da Stimmung epocal e natildeo pode por isso ser objecto de
174
bdquoDieser dreifach-einige Sinn dessen was wir Bestimmung nennen laumlβt uns allererst Auftrag und
Sendung Arbeit und Stimmung in ihrer geschehensmaumlβigen Einheit erfahren damit auch die Zeit als
urspruumlngliche Macht die unser Sein fuumlgt und in sich als Geschehen bestimmt Die Zeit ist so als unsere
Bestimmung erfahren nichts anderes als das Machtgefuumlge die groszlige und einzige Fuge unseres Seins als
eines geschichtlichen Sie wird zur geschichtlichen Einzigkeit unseres Selbst So ist Zeit der Quelltrunk
des geschichtlichen Volkes und des einzelnen im Volk Die Einheit dieser dreifachen Bestimmung ist der
Grundcharakter des Geschehensldquo LWS GA 38 130 175
Cristina Lafont sublinha que em UKw o acontecer da verdade corre por duas vias diferentes por um
lado a histoacuteria intra-mundana do ente e por outro lado a historia do ser que eacute um acontecer faacutectico mas
natildeo intra-mundano que precede a histoacuteria e a torna possiacutevel ldquoDebido a este estatus la ldquohistoria del serrdquo
(como lugar ldquodonde se toman las decisiones esenciales de nuestra historiardquo) representa pues ldquola historia
por excelenciardquo que es siempre la del desvelamiento del serldquo (Ob cit 199)
128
uma total explicitaccedilatildeo discursiva176 Contudo se essas diferenccedilas natildeo podem
ser totalmente inteligiacuteveis natildeo deixam de aparecer e tornar-se patentes nas
grandes criaccedilotildees colectivas e de enraizar o indiviacuteduo isolado numa
comunidade fazendo do Dasein natildeo uma subjectividade encerrada em si mas
um ser um com o outro pertencente a uma comunidade
O exerciacutecio apropriado da existecircncia pelo Dasein como projecto sempre jaacute
previamente lanccedilado (geworfene Entwurf) integra-se assim neste preacutevio
horizonte histoacuterico-linguiacutestico de uma comunidade Esta abertura do indiviacuteduo
aos outros e esta dissoluccedilatildeo de uma certa subjectividade ainda presente na
caracterizaccedilatildeo do Dasein em Ser e Tempo tem contudo o seu contraponto
num certo fechamento dessa comunidade a que Heidegger chama ldquoum povordquo e
que eacute sempre ldquouacutenicordquo enquanto colectividade que salvaguarda a sua
determinaccedilatildeo (Bestimmung) na e pela liacutengua
Assim contra a univocidade da linguagem a que aspira a loacutegica Heidegger
proclama a incontornaacutevel alteridade dos horizontes de sentido transportados
pelas diversas liacutenguas histoacutericas impondo o cuidado por essa alteridade como
tarefa necessaacuteria caso o homem queira ser um si mesmo ou um Da-sein O
ser do homem eacute cuidado pela determinaccedilatildeo (Sorge der Bestimmung) isto eacute
cuidado simultaneamente por aquilo que nega as minhas pretensotildees a um ser
absoluto e que doa todo o sentido
Ora este cuidado tem uma dimensatildeo eacutetica apontando para o dever de colocar
o pensamento ao serviccedilo da linguagem ao inveacutes do que acontece na
representaccedilatildeo comum da linguagem que a considera um simples instrumento
de expressatildeo do pensamento Poesia e filosofia deveratildeo estar ambas cada
uma a seu modo ao serviccedilo da linguagem177
176
Ramoacuten Rodriacuteguez sublinha que embora Ser e Tempo submeta a ideia de sujeito a uma criacutetica constante
e a ideia de abertura ou de estado de aberto natildeo possam entender-se como propriedades de um sujeito o
significado global da obra ainda estaacute imbuiacutedo de um certo subjectivismo a constituiccedilatildeo da realidade eacute
atribuiacuteda ao Dasein que natildeo eacute um sujeito epistemoloacutegico mas a existecircncia humana na sua facticidade O
pensamento tardio de Heidegger eacute a tentativa de consumar o abandono das categorias da subjectividade
abandono que teria surgido quando Heidegger se ocupa da questatildeo da verdade do ser como
desvelamento ldquoLa historia del ser es el modo de pensar el acontecer histoacuterico cuando el pensamiento
trata de hacerse cargo del hecho del desvelamiento [hellip] ldquoHistoria del ser significa envigraveo (destino) del ser
en cuyos enviacuteos tanto el enviar como lo que enviacutea se retraen en la notificacioacuten de si mismosrdquordquo (Ob cit
42) 177
Cristina Lafont sublinha que eacute o caraacutecter totalizante da ldquoabertura de mundordquo produzida pela linguagem
que confere a Heidegger a justificaccedilatildeo para outorgar agrave linguagem a sua primazia em relaccedilatildeo a todos os
fenoacutemenos culturais ldquo [hellip] Heidegger conceptualiza el lenguaje como instancia del elemento del
ldquoarrojamientordquo de tal modo que lardquoapertura del mundordquo ndash que tiene lugar mediante eacutel ndash contiene ya todo
129
No entanto satildeo as implicaccedilotildees metafiacutesicas desta viragem que aqui nos
interessam compreender em toda a sua extensatildeo Se a loacutegica assenta numa
concepccedilatildeo do ser como presenccedila a compreensatildeo heideggeriana da linguagem
estaacute intrinsecamente ligada agrave compreensatildeo do ser como acontecer histoacuterico-
temporal o ser desvenda-se ocultando-se simultaneamente nas liacutenguas dos
diversos povos histoacutericos E essa patecircncia do ser eacute sempre acompanhada de
ocultaccedilatildeo e encobrimento como Heidegger demonstra em A Origem da Obra
de Arte em torno da natureza da obra de arte como luta entre o mundo e a
terra
Como acima jaacute dissemos os diversos horizontes de sentido transportados
pelas vaacuterias liacutenguas histoacutericas e pelas suas criaccedilotildees linguiacutesticas constituem
etapas ou momentos da histoacuteria do ser que contudo se nelas se patenteia e
revela se manteacutem em reserva e se oculta conferindo assim agrave vida histoacuterica um
fundamento impenetraacutevel Estas diversas figuras histoacuterico-linguiacutesticas do ser e
da verdade natildeo mantecircm entre si nenhum nexo loacutegico nem se encaminham
para uma totalizaccedilatildeo como acontecia em Hegel apresentando-se como
totalidades cerradas em si mesmas e carentes de fundamento
O relativismo heideggeriano consiste nesta afirmaccedilatildeo de que nunca podemos
aceder a um ponto de vista exterior ao tempo agrave histoacuteria e agrave liacutengua mas toda a
compreensatildeo eacute ela mesma historicamente situada e por isso mesmo satildeo-lhe
inacessiacuteveis a totalidade dos seus pressupostos178
No entanto este relativismo natildeo eacute nunca um subjectivismo como poderia ateacute
certo ponto ser inferido de Sein und Zeit onde o Dasein ainda podia aparecer
como uma consciecircncia que projecta um horizonte de sentido Apoacutes Sein und
Zeit este horizonte de sentido eacute inerente agraves liacutenguas faladas pelos povos e
depende do movimento de destinaccedilatildeo da histoacuteria
aquello que ldquopuede ser abierto como verdadrdquo Es decir la rdquoapertura de mundordquo que se ha producido en
cada caso merced al lenguaje incluye en siacute ya todas las posibilidades (de significado) las cuales hacen
posible sin duda todo ldquoproyectordquo pero al mismo tiempo tambieacuten lo limitanhelliprdquo (Ob cit 202) 178
O relativismo heideggeriano deriva do facto de conferir agrave linguagem pela sua funccedilatildeo de abertura de
mundo o papel dum uacuteltimo fundamento ldquoEl lenguaje es el uacutenico correlato que satisface completamente
los tres mencionados requisitos exigidos a la ldquoapertura del mundordquo en tanto que ldquofundacioacutenrdquo y por ello
que pude tomarse como modelo para la figura del ldquoproyecto arrojadordquo Este es el caso especialmente en
relacioacuten con la segunda de las propiedades ndash el ldquofundamentarrdquo entendido como lo que establece criterios
ndash y por tanto es el caso tambieacuten para las cuestiones de validez es decir para justificar el calificar la
ldquoapertura del mundordquo de ldquofundacioacuten de la verdad (maacutes originaria)rdquo o criterio uacuteltimordquo (Cristina Lafont
ob cit 203)
130
A consciecircncia histoacuterica como consciecircncia da historicidade do presente e da
relatividade de toda a verdade eacute apoacutes Ser e Tempo o uacutenico modo apropriado
da consciecircncia de si mesmo e a assunccedilatildeo da condiccedilatildeo ontoloacutegica de ser-para-
a-morte Do mesmo modo tambeacutem necessariamente se afigura como
problemaacutetica a compreensatildeo daquelas criaccedilotildees linguiacutesticas alheias ao nosso
horizonte histoacuterico-linguiacutestico pela sua radical alteridade e a estranheza com
que sempre nos aparecem
A incomensurabilidade das aberturas de mundo obriga agrave recolocaccedilatildeo do
problema hermenecircutico sobre um fundamento radicalmente diferente Sempre
que estaacute em causa a interpretaccedilatildeo da acccedilatildeo humana e das suas criaccedilotildees o
ideal de objectividade em que se move a ciecircncia moderna revela-se uma
impossibilidade nos seus proacuteprios termos Movendo-nos no interior do conceito
de verdade como adequaccedilatildeo do juiacutezo ao seu objecto ou como objectividade
exigimos que aquele que conhece possa abstrair-se de si mesmo e dos seus
pressupostos para produzir um juiacutezo capaz de coincidir com o que a coisa eacute
ou pelo menos capaz de instituir universalmente o que a coisa eacute para noacutes
A questatildeo que temos que colocar eacute no entanto se este ideal de objectividade
que a ciecircncia moderna persegue permite dar conta daquilo que eacute essecircncia do
acto hermenecircutico sempre que se trata de interpretar uma obra de arte um
acontecimento histoacuterico ou um texto
Neste caso toda a compreensatildeo eacute necessariamente uma transposiccedilatildeo ela
mesma patente na expressatildeo alematilde Uumlbersetzen179 (traduccedilatildeo) de um
horizonte histoacuterico-linguiacutestico para outro ou de uma abertura de mundo para
outra transposiccedilatildeo que implica simultaneamente uma apropriaccedilatildeo e uma
expropriaccedilatildeo
No traduzir estaacute o homem dirigindo-se agrave fronteira natildeo como a um lugar neutral
onde pode reinar a imparcialidade mas como ao lugar onde deveratildeo ser
tomadas as decisotildees hermenecircuticas fundamentais onde tem que ser levada a
cabo essa ldquoliebende streitrdquo que pode extrair a verdade da sua ocultaccedilatildeo
179
bdquoDie Rede vom Uumlbersetzen als Uumlbersetzen hat es inzwischen zum gefluumlgelten Wort gebracht das in
den Betrachtungen uumlber die bdquo Kunst der Uumlbertragungldquo immer wieder gern zitiert wird Und doch bleibt
der hier genannte Grundzug das Geschehen der Uumlber- als Versetzung bdquoin den Bereich einer gewandelten
Wahrheitldquo in seiner Trageweite zumeist unbedacht Der mitunter mangelnden bdquoAchtung vor der Sprachldquo
entstammen dann auch unzulaumlngliche Bestimmungen zum einen der Notwendigkeit und Moumlglichkeit
sowie zum anderen der wesentlichen Grenzen und Unmoumlglichkeiten des Uumlbersetzensldquo Ivo de Genaro
Logos - Heidegger liest Heraklit 62-63
131
As questotildees filoloacutegicas e a preocupaccedilatildeo de rigor associada agrave filologia tendem
assim a ser desvalorizadas por Heidegger em detrimento do mostrar a ldquoluta
com a palavrardquo que se encontra na geacutenese mesma da obra linguiacutestica e
determina a sua compreensatildeo genuiacutena
Toda a traduccedilatildeo implica uma movimentaccedilatildeo entre o tempo criador da obra que
pugna agrave sua maneira pela conservaccedilatildeo e plenitude da verdade e o tempo da
proacutepria liacutengua que eacute preciso em cada caso arrancar agrave dispersatildeo e agrave
decadecircncia porque natildeo sabemos quem somos se natildeo estivermos afinados
com o nosso tempo histoacuterico
Estas duas tarefas misturam-se e possibilitam-se reciprocamente porque natildeo
podemos saber quem somos se natildeo entrarmos no diaacutelogo com as grandes
criaccedilotildees linguiacutesticas que criam a possibilidade de virmos a saber quem somos
nem podemos compreender essas obras se natildeo comeccedilarmos pode deixar
emergir a questatildeo da liacutengua do tempo que em cada caso somos
Traduzir eacute um transpor de uma margem para outra que eacute tambeacutem ligaccedilatildeo uma
aquisiccedilatildeo e uma incorporaccedilatildeo mas o que afinal estaacute em causa nessa operaccedilatildeo
hermenecircutica eacute a linguagem e o pensamento na sua essencial e paradoxal
(in)traduzibilidade180 Por isso a linguagem eacute ldquoo mais perigoso de todos os
bensrdquo - se por um lado daacute ao homem a possibilidade das supremas
realizaccedilotildees por outro arrasta a possibilidade das supremas derrocadas
Em toda a traduccedilatildeo e interpretaccedilatildeo das grandes obras procedem-se a
mutaccedilotildees de sentido nas quais se decide e se joga a compreensatildeo do ser e eacute
por isso mesmo e natildeo por serem eventos dataacuteveis que decorrem num
momento determinado do tempo que elas satildeo intrinsecamente temporais isto
eacute histoacutericas
1 Hermenecircutica e historicidade
Eacute relativamente aos textos que constituem o legado da tradiccedilatildeo filosoacutefica que o
conceito fenomenoloacutegico de traduccedilatildeo como apropriaccedilatildeo expropriadora coloca
180
bdquoEs ist sogleich einsichtig daβ das Uumlbersetzen als Wesen des Sprechens und Sagens nichts anderes
expliziert als den Grundcharakter des daseinsmaumlszligigen Sprechens Der Mensch spricht uumlbersetzend (ins
Offene) weil er ek-sistierend westldquo Ibidem 64
132
mais interrogaccedilotildees chocando com o imperativo eacutetico de ldquofidelidaderdquo e com a
ideia de ldquotraduccedilatildeo fidedignardquo a que essa tradiccedilatildeo nos acostumou181
Vejamos entatildeo se este imperativo de fidelidade da traduccedilatildeo pode de algum
modo ser compatiacutevel com a temporalidade intriacutenseca do acto hermenecircutico
(Zeitlichkeit) e com as condiccedilotildees de toda a interpretaccedilatildeo
Ao determinar a estrutura da compreensatildeo subjacente a toda a interpretaccedilatildeo
Heidegger tinha mostrado jaacute no sect 32 de Ser e Tempo que todo o conhecimento
humano estaacute fundado numa experiecircncia antepredicativa de sentido ou num
pressuposto que condiciona a proacutepria busca do fundamento que seria suposto
a ciecircncia fazer
Se a compreensatildeo eacute uma projecccedilatildeo em direcccedilatildeo aos seus proacuteprios possiacuteveis
esses possiacuteveis soacute podem ser apropriados a partir de um ter jaacute sido ou seja
de um retorno em direcccedilatildeo a um passado que assim se constitui em algo que
continua a ser projectando-se no futuro
Esta circularidade da compreensatildeo eacute assumida pois natildeo como limite negativo
que restringe o alcance da interpretaccedilatildeo mas positivamente como caminho e
via para aquilo a que poderiacuteamos chamar uma autecircntica interpretaccedilatildeo
dignidade a que nem todo o enunciado teoreacutetico pode legitimamente aspirar
A articulaccedilatildeo dos trecircs ecircxtases temporais que constitui a forma de gestaccedilatildeo da
existecircncia e da sua auto-transmissatildeo histoacuterica mostra como eacute possiacutevel a
sobrevivecircncia do passado no presente e no futuro como parte essencial deles
a presenccedila do passado natildeo eacute a presenccedila de algo de morto e riacutegido mas a
presenccedila de algo que se manteacutem vivo na proacutepria possibilidade de projecccedilatildeo
futura isto eacute como um reservatoacuterio limitado de possibilidades que satildeo
contudo susceptiacuteveis de sucessivas reactualizaccedilotildees Esta fusatildeo entre o
passado e o futuro determina o presente proacuteprio ou instante (Augenblick) da
decisatildeo em que o Dasein se apropria de si mesmo cria a obra ou a
interpretaccedilatildeo originaacuteria
181
Sobre os problemas especiacuteficos da aplicaccedilatildeo deste conceito fenomenoloacutegico de traduccedilatildeo aos textos de
filosofia cf Irene Borges-Duarte em ldquoA traduccedilatildeo como fenomenologia O caso Heideggerrdquo (Heidegger
Linguagem e Traduccedilatildeo Lisboa 2002 452) ldquoMas ldquoaquilo que desse modo na traduccedilatildeo e como traduccedilatildeo
vem a aparecer natildeo eacute algo inteiramente novo mas algo marcado pela gravidade do jaacute de antematildeo dito de
uma determinada forma e numa configuraccedilatildeo determinada o texto de um autor Se a arte da traduccedilatildeo se
joga entre duas liacutenguas e entre dois mundos que nelas moram a arte do tradutor enquanto veiacuteculo
ontoloacutegico desse jogo move-se aleacutem disso entre duas diacutevidas aquela que tem para com o dito e a que
tem para com a sua figura faacutectica concreta para com o texto e o seu autorrdquo
133
Pelo facto de toda a interpretaccedilatildeo implicar esta projecccedilatildeo eacute que Heidegger
indica que toda a interpretaccedilatildeo deve apropriar-se previamente das suas
possibilidades reconhecendo identificando e assumindo como tais os
pressupostos desse acto interpretativo residindo neste regresso a si mesma a
noccedilatildeo de ciacuterculo hermenecircutico ldquoO cumprimento das condiccedilotildees fundamentais
de um possiacutevel interpretar radica antes em natildeo comeccedilar por desconhecer as
condiccedilotildees essenciais para levaacute-lo a cabo O decisivo natildeo eacute sair do ciacuterculo mas
entrar nele de modo justo Este ciacuterculo do compreender natildeo eacute um ciacuterculo em
que se move uma qualquer forma de conhecimento mas eacute a expressatildeo da
estrutura existenciaacuteria do preacutevio [Vor-Struktur] peculiar ao proacuteprio Daseinrdquo 182
Ora as Liccedilotildees de Loacutegica vieram esclarecer que essa antecipaccedilatildeo de sentido
ou essa estrutura existenciaacuteria do preacutevio eacute a pertenccedila a uma tradiccedilatildeo que se
encontra sempre presente na liacutengua de um povo histoacuterico Deste modo a
Vorstruktur da compreensatildeo que foi em Ser e Tempo estabelecida como
temporalidade eacute depois constituiacuteda como historicidade O passado estaacute
presente no conjunto das possibilidades preacutevias contidas no ter preacutevio
(Vorhabe) na preacute-visatildeo (Vorsicht) e na preacute-captaccedilatildeo (Vorgriff) com que como
falantes de uma liacutengua histoacuterica vamos sempre jaacute equipados para a
compreensatildeo de algo
A compreensatildeo de algo como um texto um facto histoacuterico ou uma obra de arte
dependem de um campo de sentido basicamente transmitido e nunca de uma
autoposiccedilatildeo do sujeito - o que se por um lado limita e restringe as
possibilidades hermenecircuticas por outro lado se prefigura como condiccedilatildeo
positiva de possibilidade de compreensatildeo
O ciacuterculo hermenecircutico nada tem pois de subjectivo nem a interpretaccedilatildeo
autecircntica tem nada de arbitraacuterio estando pelo contraacuterio subordinada a um
projecto de compreensatildeo que se encontra sempre jaacute previamente lanccedilado Se
ningueacutem escapa agrave heranccedila de si mesmo natildeo somos nunca livres em relaccedilatildeo a
esta circularidade hermenecircutica que sobredetermina toda a compreensatildeo no
182
bdquoDie Erfuumlllung der Grundbedingungen moumlglichen Auslegens liegt vielmehr darin dieses nicht zuvor
hinsichtlich seiner wesenhaften Vollzugsbedingungen zu verkennen Das Entscheidende ist nicht aus
dem Zirkel heraus- sondern in hin nach der rechten Weise hineinzukommen Dieser Zirkel des
Verstehens ist nicht ein Kreis in dem sich eine beliebige Erkenntnisart bewegt sondern er ist der
Ausdruck der existenzialen Vor-struktur des Daseins selbstrdquo SuZ GA 2 sect32 153
134
entanto temos sempre a possibilidade de assumir conscientemente a nossa
proacutepria historicidade ou de estar na histoacuteria sem assumi-la
A distinccedilatildeo entre este modo proacuteprio e improacuteprio de estar na histoacuteria183 eacute o que
permite estabelecer a diferenccedila entre uma consciecircncia hermeneuticamente
desenvolvida que se sabe herdeira de uma tradiccedilatildeo e aquela que cai na
tradiccedilatildeo tomando-a como qualquer coisa de oacutebvio e deixando assim que essa
tradiccedilatildeo morta se lhe imponha como ldquoevidenterdquo encobrindo o acesso agraves fontes
donde se extraiacuteram os conceitos transmitidos Um exemplo que ilustra estas
duas maneiras de estar na histoacuteria podemos encontraacute-lo na oposiccedilatildeo que
Heidegger estabelece entre o modo como se cai na evidente traduccedilatildeo de
aletheia por adequaccedilatildeo ou correspondecircncia por efeito da traduccedilatildeo latina de
adaequatio ou a intenccedilatildeo de uma traduccedilatildeo originaacuteria de que a traduccedilatildeo de
aletheia por Unverborgenheit eacute exemplar O proacuteprio trabalho hermenecircutico de
Heidegger com os textos gregos ilustra esta intenccedilatildeo de aceder a uma
traduccedilatildeo originaacuteria capaz de nos introduzir no domiacutenio a partir do qual os
primeiros pensadores gregos pensaram
Se uma consciecircncia hermeneuticamente desenvolvida estaacute consciente da
distacircncia histoacuterica das fontes a que se reporta ela estaacute pois igualmente
consciente da forccedila e do peso da tradiccedilatildeo que elas constituiacuteram e de que eacute
preciso apropriar-se delas positivamente para poder vir a desenvolver as suas
proacuteprias possibilidades de questionar ldquoA elaboraccedilatildeo da questatildeo do ser tem
pois que extrair do mais peculiar sentido do proacuteprio perguntar que eacute um
perguntar histoacuterico a sugestatildeo de perguntar pela sua proacutepria histoacuteria quer
dizer de tornar-se historiograacutefico para pocircr-se como a apropriaccedilatildeo positiva do
passado na plena posse das suas mais proacuteprias possibilidades de
questionarrdquo184
183
Esta distinccedilatildeo eacute retomada por Joatildeo Paisana como distinccedilatildeo entre ser determinado imediatamente pela
tradiccedilatildeo e submetecirc-la agrave exegese compreendendo-a como resposta expressa a uma questatildeo que estaacute ela
mesma oculta Esta exegese da tradiccedilatildeo implica um momento da sua destruiccedilatildeo isto eacute o colocaacute-la
radicalmente em questatildeo quanto agrave sua verdade momento esse que natildeo deve ser no entanto considerado
como rejeiccedilatildeo absoluta mas como sua discussatildeo e relativizaccedilatildeo que a compreende como uma
possibilidade de resposta entre outras No momento seguinte agrave sua necessaacuteria discussatildeo ela pode vir a
mostrar-se vaacutelida mas o que valida a tradiccedilatildeo eacute agora o diaacutelogo e o consenso que resultaram do trabalho
hermenecircutico (Idem Histoacuteria da Filosofia e Tradiccedilatildeo Filosoacutefica 30-31) 184
Die Ausarbeitung der Seinsfrage muβ so aus dem eigensten Seinssinn des Fragens selbst als eines
geschichtlichen die Anweisung vernehmen seiner eigenen Geschichte nachzufragen dh historisch zu
werden um sich in der positiven Aneignung der Vergangenheit in den Vollen Besitz der eigensten
Fragemoumlglichkeiten zu bringenldquo SuZ GA 2 sect6 20-21
135
A necessidade de apropriaccedilatildeo de ldquosituaccedilatildeo hermenecircuticardquo que Heidegger
desenvolveu nas ldquoInterpretaccedilotildees Fenomenoloacutegicas de Aristoacutetelesrdquo (19211922)
aponta por outro lado para o presente e para a existecircncia faacutectica do Dasein
como portadores de um sentido e de tendecircncias interpretativas peculiares de
cada geraccedilatildeo e de cada eacutepoca histoacuterica ldquoEm cada geraccedilatildeo ou numa
sequecircncia delas esclarecem-se determinadas possibilidade de entrada na
histoacuteria como tal determinada compreensatildeo fundamental do conjunto da
histoacuteria determinadas avaliaccedilotildees de uma eacutepoca singular e determinadas
ldquopreferecircnciasrdquo por uma uacutenica filosofiardquo185
Na clarificaccedilatildeo desta ldquosituaccedilatildeordquo186 isto eacute do contexto vital onde se desenrolam
as experiecircncias fundamentais do presente histoacuterico reside a possibilidade de
ganhar um horizonte ldquoproacutepriordquo de compreensatildeo e em geral da projecccedilatildeo de
um sistema do desenhar de novas perspectivas de novos e inesperados
desenvolvimentos de um ponto de vista de diferentes modos de
consciecircncia187
Se eacute verdade que para se compreender a ldquosituaccedilatildeo hermenecircuticardquo eacute preciso
estar afinado com a Stimmung epocal natildeo eacute menos verdade que como
Heidegger repetidamente afirma esta soacute pode ser compreendida a partir da
consciecircncia histoacuterico-criacutetica que eacute capaz de compreender o presente agrave luz das
possibilidades hermenecircuticas contidas numa tradiccedilatildeo a que se pertence e de
reconhecer que nele actua de forma inelutaacutevel esse campo de sentido herdado
185
bdquoIn Jener Generation oder in einer Abfolge solcher legen sich bestimmte Zugangsmoumlglichkeiten zur
Geschichte als solcher bestimmte Grundauffassungen der Gesamtgeschichte bestimmte
Wertschaumltzungen einzelner Zeitalter und bestimmte bdquoVorliebenldquo fuumlr einzelne Philosophien festldquo EpF
GA 61 3 186
bdquoDer Sachgehalt jeder Interpretation das ist der thematische Gegenstand im Wie seines
Ausgelegtseins vermag nur dann angemessen fuumlr sich selbst zu sprechen wenn die jeweilige
hermeneutische Situation auf die jede Interpretation relativ ist als genuumlgend deutlich ausgezeichnet
verfuumlgbar gemacht wird
Jede Auslegung hat je nach Sachfeld und Erkenntnisanspruch 1 ihren mehr oder minder ausdruumlcklich
zugeeigneten und verfestigten Blickstand 2 eine hieraus motivierte Blickrichtung in der sich bestimmt
das bdquoals wasldquo in dem der Interpretationsgegenstand vorgrifflich genommen und das bdquoworaufhinldquo auf das
er ausgelegt werden soll 3 eine mit Blickstand und Blickrichtung ausgegrenzte Sichtweite innerhalb
deren der jeweilige Objecktivitaumltsanspruch der Interpretation sich bewegtldquo Heidegger AhS GA 62 346 187
A oposiccedilatildeo entre histoacuteria da filosofia e o presente histoacuterico do filoacutesofo aparece como oposiccedilatildeo entre
histoacuteria da filosofia e sistema filosoacutefico mas trata-se segundo Joatildeo Paisana de uma oposiccedilatildeo natildeo
pertinente O que importa eacute ter em mente que a consciecircncia da proacutepria situaccedilatildeo eacute indispensaacutevel ao que o
autor designa como o segundo momento da exegese da tradiccedilatildeo o da construccedilatildeo na qual ldquose articulam as
possibilidades histoacutericas projectando-as unitariamente no espaccedilo aberto pelo questionar sobre a coisa
mesma da questatildeo em direcccedilatildeo agrave sua verdaderdquo (Idem obcit 31) A verdade filosoacutefica implica
necessariamente ldquoum rasto histoacutericordquo e natildeo pode ser nunca um acto inaugural mas por outro lado ela soacute
eacute possiacutevel no espaccedilo aberto pelo questionar de algum modo enraizado no presente
136
Esta imposiccedilatildeo dum campo de sentido preacutevio faz-se em primeiro lugar pela
linguagem e pelos usos linguiacutesticos como jaacute nas Interpretaccedilotildees
Fenomenoloacutegicas de Aristoacuteteles Heidegger sublinhava ldquoUm uso linguiacutestico vem
de uma histoacuteria ateacute noacutes e nasceu precisamente outrora de uma determinada
experiecircncia A histoacuteria pode perder-se no esquecimento a tradiccedilatildeo expressa
pode retirar-se No fluir de um uso linguiacutestico reside um peculiar confiar na
histoacuteria do espiacuterito um agarrar da ldquotradiccedilatildeordquo e na verdade de todo o consumar
histoacuterico - da mesma maneira tambeacutem a possibilidade de todo o extraviordquo188
Os usos linguiacutesticos impotildeem-nos quer queiramos quer natildeo uma
conceptualizaccedilatildeo preacutevia (Vorgriff) que delimita as possibilidades de
compreensatildeo e fixa uma tendecircncia interpretativa os vocaacutebulos transportam
consigo um sentido orientando o pensamento Mas a forccedila da tradiccedilatildeo estaacute
enraizada na proacutepria vida faacutectica do Dasein e informa ainda o contexto histoacuterico
concreto onde facticamente se desenrola a investigaccedilatildeo a Universidade eacute ela
mesmo simultaneamente um produto da tradiccedilatildeo e o contexto vital onde aqui e
agora uma geraccedilatildeo se relaciona com o passado e a tradiccedilatildeo189
Toda a interpretaccedilatildeo deve comeccedilar pela reflexatildeo do inteacuterprete sobre as ideias
preconcebidas que resultam da ldquosituaccedilatildeo hermenecircuticardquo em que ele se
encontra o grau de apropriaccedilatildeo da situaccedilatildeo hermenecircutica das suas ideias e
dos seus problemas eacute decisivo para o destino de toda a interpretaccedilatildeo porque
satildeo essas antecipaccedilotildees de sentido que vatildeo confrontar-se com o texto que haacute
que interpretar
Assim esse texto que haacute que interpretar e cujo sentido pleno soacute pode
esclarecer-se a partir da ldquoabertura de mundordquo ou do horizonte histoacuterico-
linguiacutestico em que se insere como eacute exemplarmente o caso da filosofia grega
estaacute sujeito a uma interpretaccedilatildeo que padece necessariamente da restriccedilatildeo dum
horizonte imposto pela situaccedilatildeo hermenecircutica do inteacuterprete Heidegger mostrou
que a recepccedilatildeo de Aristoacuteteles ilustra de que modo e ateacute que ponto a
188
bdquoEin Sprachgebrauch kommt aus einer Geschichte uns zu und ist je einmal aus einer bestimmten
Erfahrung erwachsen Die Geschichte kann in Vergessenheit geraten die ausdrucksmaumlβige Tradition
kann abreiβen Im Eingleiten in einen Sprachgebrauch liegt ein eigentuumlmliches Vertrauen zur
Geistesgeschichte ein Ergreifen der bdquo Traditionldquo und zwar der ganz besonderen vollzugsgeschichtlichen
zugleich aber auch die Moumlglichkeit der Entgleisungldquo EpF GA 61 42 189
A importacircncia da Universidade como lugar institucional da transmissatildeo da tradiccedilatildeo encontra-se ainda
sublinhada por T S Kuhn em A Estrutura das Revoluccedilotildees Cientiacuteficas em termos similares Neste caso
mostra-se como o funcionamento e as relaccedilotildees de poder no interior da instituiccedilatildeo condicionam a
investigaccedilatildeo particularmente nos perigraveodos de ldquociecircncia extraordinaacuteriardquo quando estatildeo em causa conflitos
entre teorias paradigmaacuteticas
137
interpretaccedilatildeo foi efectivamente condicionada pelo ponto de vista imposto pela
situaccedilatildeo quer na eacutepoca do cristianismo medieval que levou a cabo uma certa
interpretaccedilatildeo metafiacutesica de Aristoacuteteles e impocircs a sua valorizaccedilatildeo positiva no
acircmbito da escolaacutestica quer na eacutepoca contemporacircnea em que por influecircncia da
ciecircncia e da filosofia poacutes-kantiana se institui uma interpretaccedilatildeo gnosioloacutegica de
Aristoacuteteles e se combateu essa valorizaccedilatildeo positiva da eacutepoca medieval
E em Was heiszligt denken Heidegger reafirmaraacute esta mesma relatividade de
toda a interpretaccedilatildeo ldquoChocamos frontalmente contra o sentido de toda a
interpretaccedilatildeo quando nos persuadimos que haveria uma interpretaccedilatildeo que natildeo
fosse a dum ponto de vista isto eacute que pudesse ser absolutamente vaacutelida
Absolutamente vaacutelida natildeo eacute senatildeo no melhor dos casos a esfera de
representaccedilotildees no interior da qual se situa antecipadamente o texto a
interpretar A validade desta esfera de representaccedilotildees que colocamos de iniacutecio
natildeo pode ser um absoluto a natildeo ser que o seu absoluto repouse sobre uma
incondicionalidade e esta seja a de uma feacute A incondicionalidade da feacute e a
problematicidade do pensamento satildeo dois domiacutenios separados por um
abismordquo 190
Uma obra filosoacutefica situa-se no interior de uma certa esfera de representaccedilotildees
inerentes agrave figura do ser imperante no contexto histoacuterico-linguiacutestico E uma
apropriaccedilatildeo originaacuteria teraacute sempre que tentar apreendecirc-la a partir dessa
ldquoabertura de mundordquo em que ela se integra como seu horizonte de sentido
ldquopreacuteviordquo Contudo este contexto histoacuterico-linguiacutestico de certo modo absoluto e
inquestionaacutevel eacute objecto de diferentes interpretaccedilotildees que dependem
largamente da situaccedilatildeo hermenecircutica em que se encontra o tradutor e o
inteacuterprete e do ponto de vista que eacute imposto por essa situaccedilatildeo
A interpretaccedilatildeo autecircntica isto eacute aquela que eacute levada a cabo por uma
consciecircncia hermeneuticamente desenvolvida natildeo tem pois como finalidade a
produccedilatildeo de uma verdade objectiva nem definitiva sobre os textos mas eacute pelo
contraacuterio aquela que tem consciecircncia de mover-se entre dois horizontes
190
bdquoMan verstoumlβt aber gegen den Sinn jeder Interpretation wenn man der Meinung huldigt es gaumlbe eine
Auslegung die beziehungslos d h absolut guumlltig sein koumlnnte Absolut guumlltig ist im aumluβersten Falle nur
die Vorstellungsbezirk innerhalb dessen man den auszulegenden Text zum Voraus ansetzt Die
Guumlltigkeit dieses vorausgesetzten Vorstellungsbezirkes kann nur dann eine absolute sein wenn ihre
Absolutheit auf einer Unbedingtheit und zwar der eines Glaubens beruht
Die Unbedingtheit des Glaubens und die Fragwuumlrdigkeit des Denkens sind zwei abgruumlndig verschiedene
Bereicheldquo WhD GA 8 181
138
distintos e que eacute capaz de deixar-se conduzir ao acircmbito originaacuterio de onde
partiu a elaboraccedilatildeo de uma obra e de retornar a si mesmo e ao seu proacuteprio
horizonte histoacuterico aiacute produzindo um ldquoduplordquo que natildeo eacute uma coacutepia nem
substitui o original mas abre uma via de acesso para ele
Agrave luz desta consciecircncia hermenecircutica que eacute simultaneamente uma
consciecircncia histoacuterica sensiacutevel agraves diferenccedilas entre o proacuteprio horizonte histoacuterico-
linguiacutestico e aquele a que pertence a obra a traduzir ou interpretar que eacute capaz
de se movimentar entre eles aquele imperativo de fidelidade ao dito tem de ser
inteiramente modificado
2 Tradiccedilatildeo e traduccedilatildeo
Esses dois horizontes que a uma consciecircncia histoacuterica devem sempre
aparecer como distintos satildeo contudo essencialmente moacuteveis interpenetram-se
e articulam-se pois o passado e o distante caminham sobre noacutes condicionando
a apropriaccedilatildeo do presente e por outro lado essa apropriaccedilatildeo do passado de
modo algum pode ser ldquoobjectivardquo mas eacute condicionada pela figura histoacuterico-
epocal do ser dominante na eacutepoca presente
Eacute essa articulaccedilatildeo que permite criar uma abordagem da histoacuteria da filosofia que
natildeo se limita a prolongar e dar continuidade a um passado mas retoma-o
actualiza-o e renova-o transportando-o para o presente fazendo assim dessa
histoacuteria uma tradiccedilatildeo viva (Uumlberlieferung) capaz de se projectar no futuro
ldquoAssim o ter sido e o futuro natildeo satildeo dois espaccedilos de tempo de tal modo que
possamos deslizar de um para o outro mas o futuro e o ter sido satildeo em si
aqueles poderes do tempo o poder do proacuteprio tempo no qual estamos Noacutes soacute
somos vindouros na medida em que assumirmos o ter sido como tradiccedilatildeordquo191
A relaccedilatildeo da filosofia com a sua proacutepria histoacuteria caso seja uma relaccedilatildeo
apropriada eacute sempre simultaneamente apropriaccedilatildeo da tradiccedilatildeo e criaccedilatildeo
(Zucht) o que transforma a tradiccedilatildeo filosoacutefica em qualquer coisa de vivo capaz
de perdurar e persistir no tempo tomando novas configuraccedilotildees ldquoDeste modo
noacutes alcanccedilaacutemos uma compreensatildeo completamente diferente do tempo na sua
191
bdquoSo sind Gewesenheit und Zukunft nicht zwei Zeitraumlume nicht derart daβ wir von einem in den
anderen rutschen koumlnnen sondern Zukunft und Gewesenheit sind in sich einige Zeitmaumlchte die Macht
der Zeit selbst in der wir stehen Wir sind nur zukuumlnftig indem wir die Gewesenheit als Uumlberlieferung
uumlbernehmenldquo LWS GA 38 124
139
temporalidadetemporalizaccedilatildeo ndash e com isso o solo a partir do qual noacutes
podemos antes de tudo determinar a histoacuteria no seu caraacutecter de acontecer O
acontecer natildeo eacute um processo mas tradiccedilatildeordquo192
Natildeo eacute apenas o conceito de tradiccedilatildeo filosoacutefica que assim se encontra
modificado por Heidegger mas ainda a relaccedilatildeo iacutentima que este conceito de
tradiccedilatildeo manteacutem com o de traduccedilatildeo De facto para Heidegger a tradiccedilatildeo
implica sempre uma traduccedilatildeo no sentido essencial que estaacute contido na palavra
alematilde de Uumlbersetzen isto eacute de trans-posiccedilatildeo histoacuterico-temporal de um sentido
que nos eacute dado sempre como alheio Essa transposiccedilatildeo eacute um movimento entre
esse campo de sentido alheio a que pertence um texto que nos eacute dado pela
histoacuteria e o proacuteprio isto eacute o contexto histoacuterico-linguiacutestico a que pertence aquele
que pensa
Assim a traduccedilatildeo natildeo implica necessariamente a transposiccedilatildeo de uma liacutengua
nacional para outra como Heidegger claramente indicaraacute em Was heiszligt
denken mas indica sempre a necessidade de uma dupla apropriaccedilatildeo a
apropriaccedilatildeo ldquooriginaacuteriardquo do alheio por um movimento de desconstruccedilatildeo de
releituras impostas por uma tradiccedilatildeo esclerosada e uma apropriaccedilatildeo do
ldquoproacutepriordquo que enquanto o mais proacuteximo eacute sempre o mais distante e exige ser
compreendido e apropriado como tal
A unidade destes dois momentos trazidos agrave intimidade [Innigkeit] constitui o
coraccedilatildeo da traduccedilatildeo e eacute essa intimidade que faz de algumas das traduccedilotildees
feitas nas muacuteltiplas liacutenguas traduccedilotildees essenciais isto eacute ldquopontos nodais de
junccedilatildeo e de articulaccedilatildeordquo193 que pertencem ao proacuteprio movimento de destinaccedilatildeo
do ser
A possibilidade da filosofia tomar posse das suas possibilidades de questionar
resulta para Heidegger destas traduccedilotildees essenciais que articulam a
transmissatildeo de uma tradiccedilatildeo Cada questatildeo filosoacutefica e cada resposta a essa
questatildeo estatildeo sustentadas por uma decisatildeo de assumir a tradiccedilatildeo que assim
192
bdquoDamit haben wir ein voumlllig anderes Verstaumlndnis der Zeit in ihrer ZeitigkeitZeitigung gewonnen ndash und
damit den Boden von dem aus wir die Geschichte in ihrem Geschehenscharakter allererst bestimmen
koumlnnen Geschehen ist kein Vorgang sondern Uumlberlieferungldquo Ibidem 125 193
Cf John Sallis em ldquoSobre a Traduccedilatildeo de Platatildeo a Heideggerrdquo (in Heidegger Linguagem e Traduccedilatildeo
Lisboa 2002 179) rdquoUma traduccedilatildeo essencial corresponde hellip ao modo pelo qual uma ligravengua fala ao envio
do ser [wie im Geschick des Seins eine Sprache spricht] Eacute porque tais traduccedilotildees inscrevem
responsivamente o dizer no interior do envio do ser (enquanto ηδέα enquanto έλέργεηα enquanto
actualitas etc) que elas pertencem ao movimento mais interior da histoacuteria constituindo pontos nodais
pontos de junccedilatildeo onde tem lugar a tradiccedilatildeo (transmissatildeo a partir do envio do ser)rdquo
140
cada filoacutesofo decide actualizar e fazer presente como Widerholung de um
perguntar essencial
O perguntar (fragen) e o responder (antworten) que constituem a essecircncia do
pensar isto eacute da filosofia como consciecircncia criacutetica e problemaacutetica enraiacutezam-
se na responsabilidade (Verantwortung) de assumir o sido e trazecirc-lo para o
presente como determinaccedilatildeo isto eacute na responsabilidade pela actualizaccedilatildeo de
uma tradiccedilatildeo que natildeo pode ser transmitida sem ser incessantemente traduzida
Assim a consciecircncia filosoacutefica deve assumir a historicidade inerente ao gestar-
se da existecircncia humana colocando-se a si mesma sob o poder do tempo ldquoO
encargo como nossa missatildeo eacute a nossa determinaccedilatildeo em sentido originaacuterio eacute o
poder do proacuteprio tempo no qual noacutes nos encontramos que nos autoriza ao
nosso futuro ao mesmo tempo que nos lega o legado da nossa origemrdquo194
A filosofia como consciecircncia hermeneuticamente desenvolvida implica assim
um pensar que se assume como responsaacutevel pela apropriaccedilatildeo dum perguntar
e responder originaacuterios e pela sua transposiccedilatildeo para um outro contexto
histoacuterico-linguiacutestico ou seja implica uma traduccedilatildeo consciente dos seus
proacuteprios pressupostos histoacutericos e enraizada na temporalidade Esta tomada de
consciecircncia dos seus proacuteprios pressupostos histoacutericos eacute contudo limitada
porque a consciecircncia filosoacutefica estaacute ela tambeacutem sob o mesmo poder do tempo
ao qual estamos expostos e que experimentamos como disposiccedilatildeo de acircnimo
(Stimmung) isto eacute como esse fundo obscuro de emoccedilotildees que arrebatam
misteriosamente os povos e os lanccedilam no meio do acontecer histoacuterico ldquoDos
primoacuterdios ateacute ao presente actua na filosofia a interdependecircncia interna e
misteriosa entre o poder do tempo e a respectiva compreensatildeo do ser o
respectivo domiacutenio de um conceito de ser Porque esta interdependecircncia
existe fala-se de rdquoSer e Tempo Este natildeo eacute nenhum vulgar tiacutetulo para um
qualquer livro mas a mais intriacutenseca e encoberta questatildeo da nossa filosofia
[]rdquo195
194
bdquoDer Auftrag als unsere Sendung ist unsere Bestimmung im urspruumlnglichen Sinne ist die Macht der
Zeit selbst in der wir stehen die uns zu unserem Kuumlnftigen ermaumlchtigt indem sie uns das Vermaumlchtnis
unseres Ursprungs vermachtldquo LWS GA 38 127 195
bdquoVon Anfang an bis zur Gegenwart wirkt in der Philosophie der geheimnisvolle innere
Zusammenhang zwischen der Macht der Zeit und dem jeweiligen Verstaumlndnis des Seins der jeweiligen
Herrschaft eines Seinsbegriffs Weil dieser Zusammenhag besteht deshalb ist die Rede von bdquo Sein und
Zeitldquo Dies ist kein beliebiger Titel fuumlr irgendein Buch sondern die innerste und verborgenste Frage
unserer Philosophie []ldquo Ibidem 132
141
Eacute esta exposiccedilatildeo ao poder do tempo e agraves muacuteltiplas stimmungen epocais que
faz com que a tradiccedilatildeo filosoacutefica tenha um caraacutecter plural desdobrando-se em
muacuteltiplas tradiccedilotildees de modo que a transmissatildeo da tradiccedilatildeo teraacute que ser um
diaacutelogo entre diferentes linhagens de pensadores que satildeo capazes de divergir
e de polemizar a partir do mesmo o que se encontra claramente afirmado em
Was Heiszligt Denken
Assim a existecircncia de diferentes traduccedilotildees e interpretaccedilotildees de uma obra
filosoacutefica eacute inevitaacutevel e decorrente da proacutepria histoacuteria e a discussatildeo sobre essas
diferenccedilas soacute pode consistir numa reflexatildeo sobre os pressupostos que preacute-
determinam ldquoa direcccedilatildeordquo de cada uma delas Esta reflexatildeo e este
questionamento satildeo aliaacutes necessaacuterios para desobstruir o acesso agraves fontes
isto eacute ao texto originaacuterio e entrar ldquono lugar de proveniecircnciardquo do seu dizer
A traduccedilatildeo apropriada de um texto coloca natildeo soacute a necessidade desta
ldquodesobstruccedilatildeordquo como ainda a de uma explicitaccedilatildeo dos pressupostos da nova
proposta que assim satildeo assumidos e expostos agrave contestaccedilatildeo e ao confronto
como o texto que se trata de traduzir
Deste modo a interpretaccedilatildeo e a traduccedilatildeo poderatildeo desenrolar-se como um
diaacutelogo (parcialmente) consciente dos seus proacuteprios pressupostos histoacutericos
capaz de ir para aleacutem do texto em direcccedilatildeo agravequilo que estaacute para aleacutem dele ao
apelo muitas vezes inexpresso que motiva o proacuteprio texto196
Esse apelo eacute o da questatildeo do Ser questatildeo que interpela os diferentes
pensadores ao longo do tempo e que faz com que pensadores como Kant e
Parmeacutenides apesar de todas as diferenccedilas do seu dizer se movam num
domiacutenio que eacute ldquoo mesmordquo e que eacute aliaacutes instituiacutedo por Parmeacutenides como o
domiacutenio comum de todo o pensar ocidental ldquo[hellip] a frase ldquoηὸ γὰρ αὐηὸ νοεῖν
ἐζηίν ηε καὶ εἶναιldquo torna-se o tema fundamental do conjunto do pensamento
europeu-ocidental A sua histoacuteria eacute no fundo uma sequecircncia de variaccedilotildees
196
Cf Ivo de Gennaro Logos ndash Heidegger liest Heraklit bdquoDas Uumlbersetzen uumlbersetzt wie Houmllderlin
schreibt bdquogegen die exzentrische Begeisterungldquo d h gegen das Orientalische und den Griechen
Angeborene und Natuumlrliche bdquogegenldquo aber nicht als das feindliche contra sondern entgegen in Richtung
auf dieses Natuumlrliche es setzt zu ihm uumlber um es bdquokuumlhner [zu] exponierenldquo d h die Griechen in ihrem
Eigenen zu bdquouumlbertreffenldquo somit griechisch und d h schon griechischer [zu denken] als die Griechen
selbstldquo(Ob cit 80)
142
sobre este uacutenico tema mesmo aiacute onde a palavra de Parmeacutenides natildeo eacute
expressamente evocadardquo197
A histoacuteria da filosofia desenrola-se assim como um conjunto de variaccedilotildees sobre
um mesmo tema e as diferenccedilas entre discursos filosoacuteficos situados em
contexto histoacuterico-linguiacutesticos distintos devem ser correlacionadas natildeo apenas
com as diferentes aberturas de mundo em que necessariamente se inserem
mas ainda com este acircmbito comum ao questionamento filosoacutefico que torna
possiacutevel o diaacutelogo e a confrontaccedilatildeo entre diferentes ldquolinhagensrdquo de pensadores
3 A reabilitaccedilatildeo do preconceito em Gadamer
Se Heidegger se interessou pelo problema hermenecircutico tendo sempre em
vista a questatildeo ontoloacutegica Gadamer toma de certo modo o caminho inverso
Partindo da criacutetica levada a cabo por Heidegger agrave ontologia da presenccedila que
estaacute subjacente ao ideal de objectividade das ciecircncias ele vai pensar as
consequecircncias para a hermenecircutica das ciecircncias humanas da temporalidade
do Dasein e da estrutura circular da compreensatildeo198
Tendo iniciado os estudos de filologia claacutessica em 1925 com a preocupaccedilatildeo
expliacutecita da articulaccedilatildeo das questotildees filosoacuteficas com os problemas filoloacutegicos e
tendo-se ocupado em complemento do seu trabalho acadeacutemico da traduccedilatildeo
dos pensadores gregos para o alematildeo Gadamer estava em condiccedilotildees
privilegiadas pela frequentaccedilatildeo sapiente dos claacutessicos e pelo seu esforccedilo de
os trazer para o presente histoacuterico para reflectir sobre o problema
hermenecircutico da traduccedilatildeo e enriquecer os contributos de Heidegger199
197
bdquo[] der Spruch ηὸ γὰρ αὐηὸ λοεῖλ ἐζηίλ ηε θαὶ εἶλαη wird das Grundthema des gesamten
abendlaumlndisch-europaumlischen Denkens Dessen Geschichte ist im Grunde eine Folge von Variationen zu
diesem einem Thema auch dort wo der Spruch des Parmenides nicht eigens genannt wirdldquo WhD GA 8
246 198
Visto que a hermenecircutica da compreensatildeo natildeo poderia ter por objectivo descobrir um fundamento
universalmente vaacutelido para o conhecimento as interrogaccedilotildees epistemoloacutegicas relativas agrave metodologia das
ciecircncias humanas natildeo tinham para Heidegger qualquer relevacircncia testemunhando antes a recusa em
reconhecer a finitude do Dasein Gadamer natildeo retoma no entanto o diaacutelogo com as ciecircncias humanas
com a intenccedilatildeo de estabelecer um projecto metodoloacutegico para essa aacuterea do saber mas sim com a intenccedilatildeo
expressa de mostrar a ausecircncia de sentido dum tal projecto A tese de Gadamer seraacute de que as ciecircncias
humanas deveriam afastar-se do paradigma metodoloacutegico das ciecircncias exactas e fundar-se num retomar
do conceito de Bildung desenvolvido pela tradiccedilatildeo humanista (Cf Jean Grondin L‟Universaliteacute
hermeacuteneutique Paris 1993 157-164) 199
Cf Jean Grondin em HansndashGeorg Gadamer Eine Biographie Tuumlbingen 1999 144-146 O autor
sublinha que Gadamer conhecia melhor os claacutessicos que Heidegger e que ele encontrou no periacuteodo da
Segunda Guerra Mundial no regresso aos claacutessicos uma resposta agrave incerteza e ao desvario do tempo em
particular nas leituras de Piacutendaro no Evangelho de S Joatildeo na tradiccedilatildeo retoacuterica latina na Eacutetica de
Aristoacuteteles e sobretudo nos Diaacutelogos de Platatildeo
143
Retomando o conceito de ciacuterculo hermenecircutico de Ser e Tempo Gadamer
sublinha que essa estrutura circular da compreensatildeo conteacutem a possibilidade
positiva de uma compreensatildeo originaacuteria na medida em que aponta a exigecircncia
de o inteacuterprete natildeo permitir que as suas intuiccedilotildees e antecipaccedilotildees de sentido se
lhe imponham espontaneamente ldquopor meio de intuiccedilotildees e noccedilotildees popularesrdquo
exigindo que este as elabore no confronto com ldquoas coisas mesmasrdquo (isto eacute os
textos a interpretar que se referem eles mesmos agraves coisas) ldquoele soacute fez no
fundamental o que uma consciecircncia histoacuterico-hermenecircutica em cada caso
exige Um compreender dirigido por uma consciecircncia hermenecircutica tem de
esforccedilar-se por natildeo consumar simplesmente as suas antecipaccedilotildees mas tornaacute-
las conscientes para as controlar e assim poder ganhar um correcto
entendimento Isto eacute o que Heidegger quer dizer quando ele exige que na
elaboraccedilatildeo do Vorhabe Vorsicht e Vorgriff a partir das proacuteprias coisas se
assegure o tema cientiacuteficordquo200
O inteacuterprete aborda sempre o texto a partir do esboccedilo da totalidade de sentido
e confronta sucessivamente essa antecipaccedilatildeo da totalidade com o proacuteprio
texto corrigindo esse esboccedilo inicial de acordo com as confirmaccedilotildees obtidas no
decurso do trabalho hermenecircutico O inteacuterprete natildeo eacute algueacutem com uma razatildeo
vazia de preconceitos mas estaacute sempre munido de uma preacute-compreensatildeo que
potildee expressamente agrave prova interrogando-se sobre a sua validade e a sua
legitimidade
Natildeo se trata assim nem de uma razatildeo despida de preconceitos nem de
manter a todo o custo uma opiniatildeo preacutevia mas de uma abertura agrave opiniatildeo do
outro ou de escuta do texto O reconhecimento da alteridade do texto natildeo
exige um abandono da opiniatildeo do inteacuterprete mas a abertura dum diaacutelogo que
as coloque numa relaccedilatildeo reciacuteproca
Haacute assim um preconceito ou um juiacutezo preacutevio (Vorurteil) que dirige e orienta o
trabalho hermenecircutico em flagrante oposiccedilatildeo ao ideal duma razatildeo
inteiramente liberta de preconceitos preconizado pela Aufklaumlrung A
Aufklaumlrung ao interpretar o preconceito (Vorurteil) como um juiacutezo sem
fundamento ldquona coisa mesmardquo postulou que ele eacute sempre infundado e
200
ldquoEr hat damit im Grund nur getan was das historisch-hermeneutische Bewuβtsein in jedem Fall
verlangt Ein mit methodischem Bewuβtsein gefuumlhrtes Verstehen wird bestrebt sein muumlssen seine
Antizipationen nicht einfach zu vollziehen sondern sie selber bewuβt zu machen um sie zu kontrollieren
und dadurch von den Sachen her das rechte Verstaumlndnis zu gewinnen Das ist es was Heidegger meint
wenn er fordert in der Ausarbeitung von Vorhabe Vorsicht und Vorgriff aus den Sachen selbst her das
wissenschaftliche Thema zu bdquosichernldquoldquo WuM GW I274)
144
totalmente ilegiacutetimo tendo lanccedilado o descreacutedito sobre os preconceitos no seu
conjunto e exigido que o trabalho cientiacutefico os excluiacutesse totalmente o que eacute
impossiacutevel De facto o rdquopreconceitordquo (Vorurteil) natildeo quer dizer
necessariamente um falso juiacutezo (Urteil) No seu conceito ele implica que ele
pode ser valorizado positiva ou negativamenterdquo201
Esta criacutetica da Aufklaumlrung ao preconceito liga-se em particular agrave criacutetica agrave
tradiccedilatildeo religiosa e agrave hermenecircutica biacuteblica pretendendo submeter a tradiccedilatildeo
religiosa escrita a um julgamento da razatildeo A hermenecircutica racionalista da
biacuteblia faz da tradiccedilatildeo um objecto de criacutetica exactamente como o faz a ciecircncia
da natureza relativamente aos testemunhos dos sentidos a razatildeo e natildeo a
tradiccedilatildeo eacute o fundamento uacuteltimo da autoridade
Ora esta autonomia absoluta da razatildeo expressa na exigecircncia kantiana ldquoserve-
te do teu proacuteprio entendimentordquo ou ainda na duacutevida metoacutedica cartesiana eacute para
Gadamer um ideal impossiacutevel que ignora a historicidade da razatildeo A
destruiccedilatildeo desta exigecircncia global do iluminismo e a assunccedilatildeo da finitude da
razatildeo assim como de uma consciecircncia histoacuterica satildeo condiccedilotildees imprescindiacuteveis
para a construccedilatildeo de uma hermenecircutica filosoacutefica202
A razatildeo enquanto real e histoacuterica estaacute sempre submetida aos dados sobre os
quais ela exerce a sua acccedilatildeo as grandes realidades histoacutericas a sociedade o
Estado as criaccedilotildees linguiacutesticas dominam as vivecircncias e a experiecircncia fazendo
com que noacutes pertenccedilamos agrave histoacuteria Esta noccedilatildeo de pertenccedila histoacuterica eacute em
Gadamer uma noccedilatildeo chave para compreender aquilo que aqui se entende por
preconceito ldquoMuito antes que noacutes possamos aceder agrave compreensatildeo de noacutes
mesmos pela reflexatildeo sobre o passado noacutes compreendemo-nos
espontaneamente na famiacutelia na sociedade e no Estado em que vivemos O
domiacutenio da subjectividade eacute um espelho deformador A tomada de consciecircncia
do indiviacuteduo por si mesmo natildeo eacute senatildeo a luz treacutemula no ciacuterculo fechado da vida
201
bdquoldquoVorurteileldquo heiβt also dadurch nicht notwendig falsches Urteil In seinem Begriff liegt daβ er
positiv und negativ gewertet werden kannldquo (Ibidem 275) 202
A construccedilatildeo da hermenecircutica gadameriana estaacute fundada natildeo apenas no enfrentamento com o
racionalismo da Aufklaumlrung mas com o Platonismo Gadamer faz remontar a Platatildeo o ldquoesquecimento da
linguagemrdquo (Sprachevergessenheit) que marcou a filosofia no ocidente Cf Jean Grondin ldquoNach
Gadamer wolle Platon naumlmlich zeigen daβ man nicht durch Worte zur Erkenntnis der Dinge gelange Er
wolle sich damit von den Sophisten absetzen die lehren daβ eine Beherrschung der Worte eine
Meisterung der Sachen verbuumlrge Dem gegenuumlber muumlsse sich nach Platon die echte Erkenntnis so weit
wie moumlglich von der Herrschaft der Worte befreien um zu den Dingen selbst dh zu den Ideen zu
streben und zu gelangenldquo (Idem Einfuumlhrung zu Gadamer Tuumlbingen 2000 207208)
145
histoacuterica Eacute por isso que os preconceitos do indiviacuteduo bem mais que os seus
juiacutezos constituem a realidade histoacuterica do seu serrdquo203
O problema hermenecircutico tem pois a sua raiz neste reconhecimento do papel
imprescindiacutevel dos preconceitos historicamente fundados em toda a
interpretaccedilatildeo ldquoeacute necessaacuterio uma reabilitaccedilatildeo fundamental do conceito de
preconceito e um reconhecimento de que existem preconceitos legiacutetimos se
quisermos que seja tomado em conta o modo de ser histoacuterico e finito do
homem Assim para uma verdadeira hermenecircutica histoacuterica torna-se
formulaacutevel uma questatildeo a sua questatildeo gnosioloacutegica central Onde deve
fundamentar-se a legitimaccedilatildeo dos preconceitos O que distingue os
preconceitos legiacutetimos dos incontaacuteveis preconceitos cuja superaccedilatildeo eacute o
indiscutiacutevel objectivo de razatildeo criacuteticardquo204
Gadamer encontra a fundamentaccedilatildeo do preconceito na antecipaccedilatildeo de sentido
imposta pela Vorstruktur da compreensatildeo Contudo essa antecipaccedilatildeo de
sentido que guia a nossa compreensatildeo de um texto natildeo tem como acima
vimos qualquer fundamento na subjectividade individual mas na comunidade
(Gemeinsamkeit) que nos liga agrave tradiccedilatildeo Ora esta comunidade que constitui
aquilo a que chamamos uma tradiccedilatildeo natildeo eacute como vimos aliaacutes em Heidegger
algo de dado mas algo que estaacute em contiacutenua formaccedilatildeo na medida em que
noacutes participamos no acontecimento da sua transmissatildeo205
203
ldquoLange bevor wir uns in der Ruumlckbesinnung selber verstehen verstehen wir uns auf
selbstverstaumlndliche Weise in Familie Gesellschaft und Staat in denen wir leben Der Fokus der
Subjektivitaumlt ist ein Zerrspiegel Die Selbstbesinnung des Individuums ist nur ein Flackern im
geschlossenen Stromkreis des geschichtlichen Lebens Darum sind die Vorurteile des einzelnen weit mehr
als seine Urteile die geschichtliche Wirklichkeit seines Seinsrdquo WuM GW I 281 204
bdquoEs bedarf einer grundsaumltzlichen Rehabilitierung des Begriffs des Vorurteils und einer Anerkennung
dessen daβ es legitime Vorurteile gibt wenn man der endlich-geschichtlichen Seinsweise des Menschen
gerecht werden will Damit wird die fuumlr eine wahrhaft geschichtliche Hermeneutik zentrale Frage ihre
erkenntnistheoretische Grundfrage formulierbar Worin soll die Legitimation von Vorurteilen ihren
Grund finden Was unterscheidet legitime Vorurteile von all den unzaumlhligen Vorurteilen deren
Uumlberwindung das unbestreitbare Anliegen der kritischen Vernunft istldquo (Ibidem 281282) 205
Esta valorizaccedilatildeo da tradiccedilatildeo daacute lugar em Verdade e Meacutetodo agrave reavaliaccedilatildeo da tradiccedilatildeo humanista
pensada como um legado grego sujeito a muacuteltiplas leituras ao longo do tempo e responsaacutevel pela
elaboraccedilatildeo de conceitos como sensus comunis gosto e juiacutezo que permitiriam dar conta da pretensatildeo de
autonomia das ciecircncias humanas Esta tradiccedilatildeo teria entrado em decadecircncia como resultado de uma
estetizaccedilatildeo dos conceitos fundamentais de sensus comunis e gosto levada a cabo por Kant em a Criacutetica da
Faculdade de Julgar Desacreditando todo o conhecimento teoacuterico que natildeo o das ciecircncias da natureza
Kant teria obrigado as ciecircncias humanas a definir-se a si mesmas em torno do paradigma metodoloacutegico
(Cf Jean Grondin Lbdquo universaliteacute de lbdquohermeneutique 163)
146
4 A tradiccedilatildeo
A valorizaccedilatildeo da tradiccedilatildeo eacute uma questatildeo central da hermenecircutica de Gadamer
e assume aiacute um papel distinto daquele que lhe conferia Heidegger para quem
o papel obstrutivo da tradiccedilatildeo metafiacutesica assumia uma importacircncia decisiva
impondo como tarefa o seu enfrentamento desconstrutivo para se poder
aceder agrave riqueza do grande iniacutecio grego
De facto poderiacuteamos dizer que o fasciacutenio dos dois autores pela Greacutecia se
refere a dois legados diferentes num caso procura recuar-se ateacute agraves
possibilidades originaacuterias contidas na indistinccedilatildeo da filosofia religiatildeo e poesia
dos preacute-socraacuteticos no outro estima-se precisamente o momento da afirmaccedilatildeo
da filosofia como atitude teoreacutetica ldquoQue Platatildeo fora mais do que o precursor da
ldquoontoteologia aristoteacutelicardquo nele divisada por Heidegger foi sempre uma certeza
para mim e ainda que a ldquosimples presenccedilardquo (Vorhandenheit) natildeo podia
descrever do mesmo modo a ciecircncia moderna e o seu ideal de objectividade e
por outro lado o pensamento antigo na sua dedicaccedilatildeo agrave theoria Acompanhei
bem pois o Heidegger tardio perguntando pela verdade da arte mas fiz uma
espeacutecie de opccedilatildeo pelos ldquoAntigosrdquo no seu todordquo206
De facto Gadamer interpreta esse passo atraacutes (Schritt zuruumlck) preconizado por
Heidegger em direcccedilatildeo ao iniacutecio desse envio do ser contido no legado grego
como regresso ao modelo dialoacutegico da filosofia platoacutenica e agrave noccedilatildeo aristoteacutelica
de praxis e pensa a Filosofia como rememoraccedilatildeo dessa antiga sabedoria que
lhes estaacute associada207
Em Gadamer o legado grego eacute pensado como uma heranccedila viva que foi
retomada e acrescentada em diversos momentos histoacutericos e que possui por
isso mesmo a continuidade e a autoridade de uma autecircntica tradiccedilatildeo Esse
legado eacute ouvido por noacutes atraveacutes das muacuteltiplas vozes que repetiram e
actualizaram a sabedoria dos primeiros filoacutesofos gregos e para chegar ateacute ele
206
bdquoDaβ Plato mehr war als der Vorbereiter der aristotelischen ldquo Ontoteologierdquo den Heidegger in ihm
sah blieb mir bestaumlndig gewiβ und ebenso daβ bdquoVorhandenheitldquo nicht in der gleichen Weise die
moderne Wissenschaft und ihr Ideal der Objektivitaumlt und auf der anderen Seite das antike Denken in seine
Hingabe an die bdquoTheorialdquo beschreiben konnte So ging ich wohl mit dem spaumlten Heidegger mit indem ich
nach der Wahrheit in der Kunst fragte vollzog aber zugleich eine Art Option fuumlr die bdquoAltenldquo insgesamtldquo
(Gadamer Das Erbe Europas Frankfurt am Main 1989 170) 207
bdquoHier sind wir bei dem was wir Praxis nennen Praxis ist dabei nicht in jenem theoretischen Sinne zu
verstehen in dem sie nichts als Anwendung von Theorie ist Es geht um Praxis in einem urspruumlnglichen
Sinne in jenem griechischen Sinne in dem Praxis einen ndash ich haumltte fast gesagt ndash inaktiven Sinn hatte Ein
griechischer Brief schloβ mit der Wendung εὖ πράηηεηλ was man uumlbersetzt bdquoLaβ es dir gutgehenldquo Wie es
einem geht das ist mit Praxis gemeint Ob es nun gut - ob es auch schlechtgeht jedenfalls daβ es einem
irgendwie geht daβ wir also nicht Meister und Herren unserer Lebenslage sind []ldquo (Ibidem 24)
147
eacute imprescindiacutevel ouvir a tradiccedilatildeo humanista da qual ele fazia uma interpretaccedilatildeo
muito diversa da de Heidegger A posiccedilatildeo de Gadamer face agrave tradiccedilatildeo
humanista afasta-se radicalmente da posiccedilatildeo de Heidegger que se encontra
fundamentada na Carta sobre o Humanismo de 1946
A tradiccedilatildeo humanista assume pelo contraacuterio em Gadamer uma importacircncia
fundamental natildeo apenas porque ela retoma aspectos essenciais do legado
grego mas porque os retoma em conexatildeo com o acircmbito daquilo que entre noacutes
eacute designado de ldquohumanidadesrdquo e que no pensamento de liacutengua alematilde se
designa de ldquociecircncias do espiacuteritordquo
Gadamer pretende fundamentar a possibilidade de autonomia do acircmbito do
saber relativo ao homem e agrave sua acccedilatildeo restringindo ndash como Kant - as
pretensotildees do entendimento legislador da natureza e demonstrando que este
se fundamenta numa visatildeo unilateral e meramente teacutecnica da compreensatildeo
Embora partindo de Dilthey Gadamer considera-o ainda prisioneiro das
concepccedilotildees metodoloacutegicas das ciecircncias da natureza e procura mostrar que o
problema do conhecimento das ciecircncias humanas natildeo eacute um problema de
meacutetodo mas sim de redescobrir uma ideia de sabedoria inerente agraves antigas
tradiccedilotildees como a arte a filosofia praacutetica a retoacuterica que se fundamentam numa
concepccedilatildeo natildeo instrumental da compreensatildeo (Verstehen)
Assim Gadamer afirma que o que constitui a cientificidade das ciecircncias
humanas natildeo se encontra na ideia de meacutetodo da ciecircncia moderna mas na
tradiccedilatildeo humanista ldquoO que constitui a cientificidade das ciecircncias do espiacuterito
deixa-se compreender melhor a partir da tradiccedilatildeo do conceito de cultura
[Bildung] do que a partir da ideia de meacutetodo da ciecircncia moderna Eacute a tradiccedilatildeo
humanista agrave qual noacutes somos reconduzidos Ela ganha na discussatildeo contra as
exigecircncias da ciecircncia moderna um novo significadordquo208
A tradiccedilatildeo humanista nascida do renascimento italiano e a sua concepccedilatildeo de
cultura (Bildung) como meio de afirmaccedilatildeo da humanidade do homem
representa para Gadamer uma recuperaccedilatildeo desta ideia de sabedoria tatildeo
importante no pensamento grego Um aspecto caracteriacutestico deste conceito de
cultura como Bildung eacute que ele prescreve a tarefa (Bildungsaufgabe) da
formaccedilatildeo humana como o elevar do homem acima do particularismo e fazecirc-lo
208
ldquoWas die Geisteswissenschaften zu Wissenschaften macht laumlβt sich eher aus der Tradition des
Bildungsbegriffes verstehen als aus der Methodenidee der modernen Wissenschaft Es ist die
humanistische Tradition auf die wir zuruumlckverwiesen werden Sie gewinnt im Widerstand gegen die
Anspruumlche der modernen Wissenschaft eine neue Bedeutungldquo WuM GW I 23
148
aceder agrave generalidade Na Fenomenologia do Espiacuterito em torno da dialeacutectica
do senhor e do escravo Hegel aponta como determinaccedilatildeo fundamental do
espiacuterito reconhecer-se a si mesmo no seu ser-outro ldquoJaacute nesta descriccedilatildeo da
cultura praacutetica em Hegel reconhecemos a determinaccedilatildeo fundamental do
espiacuterito histoacuterico reconciliar-se consigo mesmo reconhecer-se no seu ser-
outrordquo209
Gadamer encontra aqui a essecircncia da cultura - a construccedilatildeo de um sentido
geral e comum pelo encontro com a alteridade tarefa que estava subjacente
ao ideal grego de sabedoria mas que necessariamente escapa ao conceito
moderno de ciecircncia e aos conceitos metodoloacutegicos com ela ligados Eacute nesta
tarefa que Gadamer vecirc o verdadeiro fundamento das Geisteswissenschaften
ldquoQue nas ciecircncias do espiacuterito apesar de toda a metodologia da sua
investigaccedilatildeo actua a influecircncia da tradiccedilatildeo que eacute a sua proacutepria essecircncia e o
seu caraacutecter distintivo tornar-se-aacute claro quando noacutes nos ocuparmos da histoacuteria
da investigaccedilatildeo e prestarmos atenccedilatildeo agrave diferenccedila que existe entre a histoacuteria da
ciecircncia no acircmbito das ciecircncias do espiacuterito e das ciecircncias humanasrdquo210
O que Gadamer demonstra eacute que assumir positivamente o ciacuterculo
hermenecircutico eacute apropriar-se duma possibilidade de compreensatildeo
desenvolvendo e actualizando as possibilidades que se encontram inscritas na
tradiccedilatildeo A tradiccedilatildeo significa um horizonte normativo em que podemos fundar a
seguranccedila de um projecto de investigaccedilatildeo relativo agrave acccedilatildeo humana e agraves suas
criaccedilotildees
A preacute-compreensatildeo que guia o trabalho do inteacuterprete eacute em primeiro lugar a
sua proacutepria expectativa de sentido relativamente ao assunto de que trata o
texto expectativa transcendente em relaccedilatildeo a este e a partir da qual pode ser
compreendido o seu sentido imanente Esta constataccedilatildeo de que entre o
inteacuterprete e o texto se visa ldquoa mesma coisardquo remete para a tradiccedilatildeo em que
ambos se inscrevem Quem quer compreender tem uma ligaccedilatildeo ao assunto
que se exprime no texto devido agrave tradiccedilatildeo e articula-se consciente ou
209
bdquoSchon an dieser Beschreibung der praktischen Bildung durch Hegel erkennt man die
Grundbestimmung des geschichtlichen Geistes sich mit sich selbst zu versoumlhnen sich selbst zu erkennen
im Andersseinldquo (Ibidem 19) 210
ldquoDaβ in den Geisteswissenschaften trotz aller Methodik ihres Verfahrens ein Einschlag von Tradition
wirksam ist der ihr eigentliches Wesen ist und ihre Auszeichnung ausmacht wird sofort deutlich wenn
wir die Geschichte der Forschung ins Auge fassen und auf den Unterschied achten der zwischen der
Wissenschaftsgeschichte auf dem Gebiete der Geisteswissenschaften und dem der Naturwissenschaften
bestehtldquo (Ibidem 287-288)
149
inconscientemente a essa tradiccedilatildeo e aos muacuteltiplos actos de fala que constituem
a sua transmissatildeo
Esta vinculaccedilatildeo deve ser entendida em termos natildeo psicoloacutegicos mas
hermenecircuticos como uma vinculaccedilatildeo ao dito ou seja agrave linguagem em que a
tradiccedilatildeo se nos dirige agrave saga (Die Sage) que ela nos conta211 Este facto
aparentemente ldquoevidenterdquo de que a tradiccedilatildeo se dirige a noacutes atraveacutes do dito e
que esse dito seja sempre em cada caso o de uma liacutengua determinada tem
para o assunto que investigamos uma importacircncia relevante
De facto se esta vinculaccedilatildeo agrave tradiccedilatildeo segundo Gadamer implica sempre
uma tensatildeo entre a familiaridade e a estranheza entre a objectividade distante
do saber histoacuterico e a pertenccedila esse jogo entre familiaridade e estranheza eacute
fortemente condicionado pela liacutengua em que eacute contada a ldquosagardquo da tradiccedilatildeo
uma tradiccedilatildeo que nos fala em latim fala-nos a noacutes falantes das liacutenguas latinas
a partir do lugar da origem das nossas proacuteprias liacutenguas com as palavras que
forjaram o nosso mundo impondo-se-nos com uma autoridade que natildeo poderaacute
em nenhum caso ser ignorada
Eacute segundo Gadamer entre a familiaridade e a estranheza que a hermenecircutica
tem o seu lugar ldquoEla joga entre estranheza e familiaridade que a tradiccedilatildeo tem
para noacutes entre a dita objectividade histoacuterica distante e a pertenccedila a uma
tradiccedilatildeo212 Neste entre eacute o verdadeiro lugar da hermenecircuticardquo213
5 A produtividade da distacircncia temporal
A hermenecircutica deve limitar-se a esclarecer as condiccedilotildees nas quais ocorre a
interpretaccedilatildeo condiccedilotildees estas que satildeo dadas ao inteacuterprete e natildeo objecto de
escolha ou de decisatildeo os preconceitos e os pressupostos do inteacuterprete natildeo
211
Gadamer renovou a compreensatildeo da linguagem como Ereignis a partir a ideia cristatilde de Encarnaccedilatildeo
tematizada em De Trinitate por S Agostinho O dogma da Encarnaccedilatildeo forneceu-lhe o modelo teoacuterico
para a compreensatildeo da pertenccedila recigraveproca e entre ldquosentido inteligigravevelrdquo e ldquopalavrardquo sensigravevel assim como
para a compreensatildeo do caraacutecter de um ldquoacontecer ldquo que tem o ldquotornar-se carnal ldquo do sentido Para
Gadamer o acontecer do sentido soacute eacute possiacutevel graccedilas agrave materialidade das suas muacuteltiplas apariccedilotildees e natildeo
pode ser delas isolado no entanto entre o ser material da palavra e o sentido que a anima haacute uma tensatildeo e
natildeo uma perfeita identidade (Cf Jean Grondin ob cit 213-216) 212
Joatildeo Paisana critica Gadamer por abolir a distinccedilatildeo entre tradiccedilatildeo e consciecircncia histoacuterica por efeito do
seu tradicionalismo Com efeito para o filoacutesofo portuguecircs a tradiccedilatildeo desempenha um papel determinante
na situaccedilatildeo hermenecircutica mas a consciecircncia histoacuterica soacute pode ser ganha na tarefa hermenecircutica de
exegese dos textos que implica sempre o questionamento ou seja o momento negativo e destrutivo da
proacutepria tradiccedilatildeo Idem Histoacuteria da Filosofia e Tradiccedilatildeo Filosoacutefica 24-25 213
bdquoSie spielt zwischen Fremdheit und Vertrautheit die die Uumlberlieferung fuumlr uns hat zwischen der
historisch gemeinten abstaumlndigen Gegenstaumlndlichkeit und der Zugehoumlrigkeit zu einer Tradition In diesen
Zwischen ist der wahre Ort der Hermeneutikldquo (WuM GW I 300)
150
estatildeo agrave sua livre disposiccedilatildeo nem ele estaacute agrave partida em condiccedilotildees de fazer uma
distinccedilatildeo entre preconceitos positivos e fecundos e negativos e obstrutivos
Natildeo podendo o acto de interpretar ser livre de preconceitos deve apenas
interessar a uma teoria hermenecircutica mostrar o modo como na consciecircncia do
inteacuterprete acontece esta separaccedilatildeo entre os pressupostos negativos que
determinam uma incompreensatildeo e os positivos que podem desempenhar um
papel fecundo esta separaccedilatildeo (Scheidung) pode acontecer precisamente
porque esse ldquoentreldquo no qual se move o trabalho do tradutor ou do inteacuterprete eacute a
distacircncia temporal entre o seu presente histoacuterico e o do texto a interpretar
Entre o inteacuterprete e o texto haacute sempre uma diferenccedila insuperaacutevel e ela resulta
da distacircncia histoacuterica que os separa Ora essa distacircncia histoacuterica natildeo eacute para
Gadamer um obstaacuteculo mas uma distacircncia produtiva que permite o
desdobramento e a amplificaccedilatildeo do sentido de um texto ldquoO sentido de um
texto ultrapassa o autor natildeo ocasionalmente mas sempre Eacute por isso que a
compreensatildeo eacute uma atitude natildeo unicamente reprodutiva mas produtivardquo214
Esta produtividade hermenecircutica da distacircncia temporal natildeo consiste no entanto
em que futuro inteacuterprete ldquocompreenda melhorrdquo isto eacute de modo mais claro ou
mais consciente face a um acto de criaccedilatildeo inconsciente mas sim no facto que
compreender necessariamente ldquode modo diferenterdquo o que faz com que a
autecircntica interpretaccedilatildeo nunca possa simplesmente mover-se no jaacute interpretado
mas pelo contraacuterio surja apenas quando jaacute natildeo podemos interpretar do
mesmo modo ou quando haacute uma expectativa defraudada de sentido
A interpretaccedilatildeo resulta das decisotildees (Entscheidungen) hermenecircuticas do
inteacuterprete que longe de serem casuais ou arbitraacuterias consistem antes de mais
nessa separaccedilatildeo (Scheidung) entre os preconceitos positivos e negativos que
se encontram inscritos na sua situaccedilatildeo hermenecircutica e que limitam e
restringem as suas possibilidades Eacute a proacutepria distacircncia temporal que permite
que se processe essa separaccedilatildeo ao confrontar o inteacuterprete com um texto do
passado ela confronta-o com a origem histoacuterica dos seus proacuteprios
pressupostos e permite a separaccedilatildeo entre preconceitos puramente subjectivos
ligados agraves modas ou agraves ideologias dominantes no seu presente histoacuterico e
214
ldquoNicht nur gelegentlich sondern immer uumlbertrifft der Sinn eines Textes seinen Autor Daher ist
Verstehen kein nur reproduktives sondern stets auch ein produktives Verhaltenrdquo (Ibidem 301)
151
aqueles que falam com a autoridade da voz da tradiccedilatildeo e que assim podem
ser escutados na sua alteridade
Esta suspensatildeo do proacuteprio preconceito natildeo eacute possiacutevel para Gadamer sem
esse encontro com a tradiccedilatildeo ldquoPois enquanto um preconceito nos determina
noacutes natildeo sabemos que eacute um juiacutezo e natildeo eacute como tal que o tomamos em
consideraccedilatildeo Como pode ele ser posto em evidecircncia como tal Enquanto um
preconceito estiver em jogo constante e imperceptivelmente noacutes natildeo
conseguimos por assim dizer trazecirc-lo diante de noacutes Para isso eacute preciso
provocaacute-lo de algum modo Ora o que o pode provocar eacute o encontro com a
tradiccedilatildeordquo215
Embora natildeo seja claro o modo como o encontro com a tradiccedilatildeo permite
superar os preconceitos negativos podemos tentar compreender este processo
agrave luz do que acima referimos o encontro com a tradiccedilatildeo humanista permitiria
na perspectiva de Gadamer eliminar os preconceitos metodoloacutegicos que
pesavam sobre as ciecircncias humanas
A suspensatildeo dos proacuteprios preconceitos natildeo significa no entanto o seu
abandono significa que satildeo postos em questatildeo e confrontados com um outro
ou com o que o texto nos diz Soacute entatildeo os preconceitos podem estar
verdadeiramente em jogo e assim permitir que a pretensatildeo do outro agrave
verdade216 seja reconhecida como tal e entre tambeacutem em jogo
Esta confrontaccedilatildeo com os textos que constituem a nossa tradiccedilatildeo tem assim
para Gadamer um efeito propedecircutico o duplo efeito de filtrar os preconceitos
prejudiciais e negativos de natureza puramente subjectiva e de evidenciar o
peso da tradiccedilatildeo Do mesmo modo a distacircncia temporal esse ldquoentrerdquo onde se
desenrola o trabalho hermenecircutico do tradutor e do inteacuterprete que se ocupa do
passado longiacutenquo longe de ser um inconveniente ou um abismo insuperaacutevel
215
ldquoDenn solange ein Vorurteil uns bestimmt wissen und bedenken wir es nicht als Urteil Wie soll es als
solches zur Abhebung kommen Ein Vorurteil gleichsam vor sich zu bringen kann nicht gelingen
solange dies Vorurteil bestaumlndig und unbemerkt im Spiele ist sondern nur dann wenn es so zusagen
gereizt wird Was so zu reizen vermag ist eben die Begegnung mit der Uumlberlieferungrdquo (Ibidem 304) 216
Jean Grondin sublinha que Gadamer vecirc a verdade como adequaccedilatildeo mas interpreta essa a adequaccedilatildeo
como o movimentar-se do inteacuterprete na justa direcccedilatildeo do texto devendo essa direcccedilatildeo ser aferida de
acordo com o proacuteprio texto a interpretar O tipo de adequaccedilatildeo que aqui estaacute em causa eacute uma concordacircncia
idecircntica agrave que se verifica entre uma interpretaccedilatildeo musical e a pauta a interpretar ldquoDie recht verstandene
adaequatio vergiβt also nie diese konstitutive Bewegung des Verstehenden auf die Sache zu Die hier
einschlaumlgigen Ideen von Uumlbereinstimmung Einklang Konkordanz Konsonanz verdeutlichen es mit
allem Nachdruck die Wahrheit ist eine Sache von Uumlbereinstimmung im nahezu musikalischen Sinne
insofern der Verstehende mit der Interpretandum zusammenstimmtbdquo (Idem Einfuumlhrung zu Gadamer
136137)
152
eacute uma distacircncia produtiva capaz de produzir novas conexotildees de sentido
fazendo nascer novas fontes de compreensatildeo que guiam uma compreensatildeo
verdadeira
A tradiccedilatildeo apresenta-se deste modo como um processo essencialmente plural
e aberto capaz de desvendar novas conexotildees de sentido e natildeo como
anquilosamento e obstaacuteculo no acesso agrave origem como Heidegger sublinhara
ldquoA distacircncia temporal tem evidentemente ainda um outro sentido que natildeo o da
extinccedilatildeo do apropriado interesse no objecto Ela deixa o verdadeiro sentido
que um assunto conteacutem pocircr-se pela primeira vez a descoberto O transbordar
do verdadeiro sentido que estaacute contido num texto ou numa criaccedilatildeo artiacutestica
nunca chega a uma conclusatildeo mas eacute na verdade um processo interminaacutevel
Natildeo apenas satildeo excluiacutedas novas fontes de erro de modo a que o verdadeiro
sentido seja filtrado dos muacuteltiplos encobrimentos mas surgem constantemente
novas fontes de compreensatildeo que abrem insupostas relaccedilotildees de sentidoldquo217
6 A fusatildeo de horizontes e a alteridade
Para Gadamer esta produtividade da distacircncia temporal soacute se verifica no
entanto na condiccedilatildeo de que a consciecircncia hermenecircutica esteja consciente da
sua proacutepria historicidade - esta consciecircncia histoacuterica eacute aquilo a que ele chama
consciecircncia da histoacuteria efectual218
A histoacuteria efectual consiste no facto de que quando procuramos compreender
um fenoacutemeno histoacuterico noacutes estamos sempre sujeitos aos efeitos desse
217
bdquoDer zeitliche Abstand hat offenbar noch einen anderen Sinn als den der Abtoumltung des eigenen
Interesses am Gegenstand Er laumlβt den wahren Sinn der in einer Sache liegt erst voll herauskommen Die
Ausschoumlpfung des wahren Sinnes aber der in einem Text oder in einer kuumlnstlerischen Schoumlpfung gelegen
ist kommt nicht irgendwo zum Abschluβ sondern ist in Wahrheit ein unendlicher Prozeβ Es werden
nicht nur immer neue Fehlerquellen ausgeschaltet so daβ der wahre Sinn aus allerlei Truumlbungen
herausgefiltert wird sondern es entspringen stets neue Quellen des Verstaumlndnisses die ungeahnte
Sinnbezuumlge offenbarenldquo WuM GW I 303 218
A expressatildeo bdquoWirkungsgeschichteldquo existia desde o seacuteculo XIX onde comeccedilou a ser usada por aquelas
disciplinas que se interessavam pela investigaccedilatildeo histoacuterica dos efeitos da recepccedilatildeo de uma obra ou de um
acontecimento histoacuterico A investigaccedilatildeo visava a separaccedilatildeo entre a obra e a histoacuteria dos seus efeitos para
poder investigaacute-los de modo ldquoobjectivordquo pressupondo que a consciecircncia histoacuterica poderia emancipar-se
dos efeitos dessa histoacuteria efectual O conceito de Gadamer de ldquoWirkungsgeschichterdquo foi construigravedo contra
este pressuposto duma consciecircncia histoacuterica ldquoobjectivardquo e livre de pressupostos implicando pelo
contraacuterio uma consciecircncia histoacuterica que se sabe sob os efeitos daquilo que interpreta ldquoDas Wort
ldquoWirkungrdquo unterstreicht hier daβ diese Geschichte auch da am Werke ist wo sie nicht vermutet oder
wahrgenommen wird Es ist in diesem Zusammenhang ein schoumlnes Wort weil es im Deutschen sowohl
den Wirkungsprozeβ (also die wirkende Geschichte) als auch sein Produkt (die Geschichte aber auch
unser Bewuβtsein) bezeichnet Die Vorurteile des einzelnen die bdquoweit mehr als seine Urteile die
geschichtliche Wirklichkeit seines Seinsldquo (WuM 281) ausmachen sind das Werk der
Wirkungsgeschichteldquo (Jean Grondin Einfuumlhrung zu Gadamer 145)
153
fenoacutemeno que queremos entender ldquoQuando noacutes procuramos compreender um
fenoacutemeno histoacuterico a partir da distacircncia histoacuterica determinante no conjunto para
a nossa situaccedilatildeo hermenecircutica noacutes estamos jaacute sob os efeitos da histoacuteria
efectualrdquo219
Esta histoacuteria efectual determina antecipadamente o que pode apresentar-se
como problema e ser constituiacutedo como objecto de investigaccedilatildeo e a sua acccedilatildeo
natildeo depende de modo algum do grau de consciecircncia que temos dela impondo-
se mesmo que o investigador tenha a ilusatildeo da autonomia da sua razatildeo e da
objectividade da sua investigaccedilatildeo220
A consciecircncia proacutepria da histoacuteria efectual eacute por isso mesmo imprescindiacutevel e
identifica-se com a consciecircncia da ldquosituaccedilatildeo hermenecircuticardquo em que se encontra
imerso o inteacuterprete a situaccedilatildeo hermenecircutica eacute determinada pelos preconceitos
que levamos connosco e constitui o horizonte do presente histoacuterico Ela eacute o ldquoaiacuterdquo
em que se situa o inteacuterprete e que delimita uma perspectiva ou um ponto de
vista isto eacute um horizonte ldquoO que define o conceito de situaccedilatildeo eacute precisamente
o facto de que ela representa um lugar onde se estaacute e que limita as
possibilidades de visatildeo Eacute por isso que o conceito de horizonte estaacute
essencialmente ligado ao de situaccedilatildeo O horizonte eacute o campo de visatildeo que
compreende e inclui tudo o que se pode ver de um ponto precisordquo221
A situaccedilatildeo hermenecircutica delimita um horizonte que por um lado abre uma
possibilidade de visatildeo por outro lado tem um efeito restritivo limitando esse
campo de visatildeo assim o horizonte determina antecipadamente os problemas
219
bdquoWenn wir aus der fuumlr unsere hermeneutische Situation im ganzen bestimmenden historischen Distanz
eine historische Erscheinung zu verstehen suchen unterliegen wir immer bereits den Wirkungen der
Wirkungsgeschichteldquo (WuM GW I 305) 220
Cf Richard T Gray em ldquoUumlbersetzung als Wirkungsgeschichterdquo O autor defende a existecircncia de vaacuterias
Wirkungsgeschichte actuando em simultacircneo sob a forma de diferentes tradiccedilotildees hermenecircuticas
propondo distintas interpretaccedilotildees para um mesmo texto e reflecte sobre os problemas que tal facto coloca
agrave tarefa do tradutor designadamente na fixaccedilatildeo de um simples glossaacuterio bdquoDie Erfahrung fuumlhrte uns zu
der Einsicht daβ der wirkungsgeschichtliche Zusammenhang in dem Uumlbersetzer arbeiten deshalb
wesentlich komplexer ist als der in dem Herausgeber primaumlrer Texte arbeiten weil beim Uumlbersetzen eine
vielschichtige Uumlbersetzungsgeschichte mitgedacht werden muβ Die Uumlbersetzungspraxis befindet sich
also im Schnittpunkt mehrerer Wirkungsgeschichten sie ist nicht nur von der Rezeptionstradition des
Originaltextes bedingt sondern auch von bestimmten Uumlbersetzungstraditionen die ihrerseits wiederum
verschiedene Wirkungsgeschichten konkretisieren und bestimmenrdquo (Idem art cit in Goumlttinger Beitraumlge
zur Internationalen Uumlbersetzungsforschung Berlin Erich Schmidt Verlag 1993 686) 221
bdquoWir bestimmen den Begriff der Situation eben dadurch daβ sie einen Standort darstellt der die
Moumlglichkeiten des Sehens beschraumlnkt Zum Begriff der Situation gehoumlrt daher wesenhaft der Begriff des
Horizontes Horizont ist der Gesichtskreis der all das umfaβt und umschlieβt was von einem Punkt aus
sichtbar istldquo WuM GW I 307
154
e o objecto de investigaccedilatildeo e por isso mesmo encobre e dissimula uma parte
da realidade
Eacute a partir desta tomada de posse do proacuteprio horizonte hermenecircutico que
podemos compreender adequadamente um texto da tradiccedilatildeo na sua verdade
isto eacute enquanto ele eacute mais do que algo ldquohistoacutericordquo mas pelo contraacuterio eacute
portador de um sentido ou de uma verdade capaz de impor-se a si mesma
Heidegger afirma repetidamente que o inteacuterprete deve admitir a alteridade do
texto procurando compreendecirc-lo a partir do seu proacuteprio horizonte histoacuterico-
linguiacutestico e colocando-se no lugar do outro
Na realidade a reconstruccedilatildeo do horizonte histoacuterico natildeo eacute nunca o objectivo
uacuteltimo do trabalho hermenecircutico mas um momento do processo da
compreensatildeo222
Toda a interpretaccedilatildeo se desenrola entre dois horizontes Se o inteacuterprete estaacute
mergulhado numa situaccedilatildeo hermenecircutica determinada pelos preconceitos que
ela transporta consigo impondo um horizonte que circunscreve o que podemos
ver esse horizonte eacute contudo moacutevel e aberto alargando-se no confronto com o
passado De facto soacute tomamos posse do proacuteprio horizonte no confronto com o
passado e com a tradiccedilatildeo agrave qual pertencemos ldquoNa verdade o horizonte ao
qual pertencemos estaacute em constante formaccedilatildeo na medida em que temos que
pocircr agrave prova constantemente todos os nossos preconceitos A um tal pocircr agrave
prova pertence natildeo em uacuteltimo lugar o encontro com o passado e o
compreender da tradiccedilatildeo da qual viemos O horizonte do presente natildeo se
constroacutei sem o passadordquo223
222
Cf Richard T Gray sublinha que a hermenecircutica de Gadamer mostra que eacute impossiacutevel toda a traduccedilatildeo
ldquoobjectivardquo de um texto pois reconhece a existecircncia de um abismo entre o contexto histoacuterico e cultural a
que pertence um texto do passado e o presente histoacuterico do seu inteacuterprete e que em vez da tentativa de
transpor esse abismo ele apela para uma apropriaccedilatildeo e actualizaccedilatildeo do sentido texto ldquoDamit setzt
Gadamer seine ldquophilosophischerdquo Hermeneutik die sich als allgemeine Theorie des
geisteswissenschaftlichen Verstehens begreift von einer auf ldquoobjektiverdquo Wiedergabe zielenden
Einfuumlhlungshermeneutik ab Dieser Unterschied laumlβt sich vielleicht am einfachsten so erklaumlren Der
Einfuumlhlungshermeneutiker ist bemuumlht den in von seinem Originaltext trennenden kulturellen und
geschichtlichen Abgrund auf die Weise zu uumlberbruumlcken daβ er die Bedingungen aus denen der Text
entstanden ist zu rekonstruieren und sich quasi in den Geist des Autors zuruumlckzuversetzen versucht der
philosophische Hermeneutiker erkannt diesen Abgrund unuumlberbruumlckbar bzw vergangene
kulturhistorische Umstaumlnde als unwiederbringbar an und versucht den Originaltext sozusagen ein neuen
Geist einzuhauchen indem er ihn bewuβt auf seine eigene aktuelle geschichtlich-kulturelle Situation
beziehtrdquo (Ob cit 687) 223
bdquoIn Wahrheit ist der Horizont der Gegenwart in steter Bildung begriffen sofern wir alle unsere
Vorurteile staumlndig erproben muumlssen Zu solcher Erprobung gehoumlrt nicht zuletzt die Begegnung mit der
Vergangenheit und das Verstehen der Uumlberlieferung aus der wir kommenldquo WuM GW I 311
155
Do mesmo modo tambeacutem natildeo haacute um horizonte histoacuterico em si a que pertenccedila
o texto a interpretar na sua alteridade e de que possamos apoderar-nos Trata-
se antes de nos transportarmos para esse horizonte natildeo para coincidir com a
alteridade do texto mas para conscientes dessa alteridade nos elevarmos a
uma generalidade mais alta
Assim o trabalho hermenecircutico cumpre-se como uma fusatildeo de horizontes
(Horizontsverschmeltzung) ―Haacute tatildeo pouco um horizonte presente para si como
haacute um horizonte histoacuterico que o homem teria que ganhar O Compreender eacute
muito mais o acontecer de uma fusatildeo de tais horizontes supostamente
existentes para si mesmosrdquo224
Essa fusatildeo de horizontes processa-se constantemente de forma espontacircnea e
natildeo controlada fazendo-nos cair na tradiccedilatildeo e deixando que ela nos imponha
ideias e teorias que obscurecem e distorcem aquilo que se trata de interpretar
por influecircncia dos preconceitos negativos e subjectivos
A realizaccedilatildeo controlada deste processo eacute para Gadamer o problema central
de toda a hermenecircutica e eacute ela que permite uma apropriada interpretaccedilatildeo A
realizaccedilatildeo dessa tarefa hermenecircutica implica a confrontaccedilatildeo de horizontes por
um lado como processo de distinccedilatildeo (Abhebung) que os destaca um do outro
e os confronta na sua alteridade por outro lado como a sua fusatildeo e a
superaccedilatildeo dessa alteridade (Aufhebung) Trata-se de um processo dialeacutectico
cujo resultado uacuteltimo eacute uma crescente mobilidade e alargamento do nosso
horizonte de compreensatildeo
A interpretaccedilatildeo eacute uma tarefa onde a subjectividade do inteacuterprete natildeo tem
relevacircncia pois o seu papel eacute servir de instrumento e mediador do proacuteprio
processo de transmissatildeo da tradiccedilatildeo225 ldquoO proacuteprio compreender deve ser
pensado menos como uma acccedilatildeo da subjectividade que como inserccedilatildeo no
224
bdquoEs gibt so wenig einen Gegenwartshorizont fuumlr sich wie es historische Horizonte gibt die man zu
gewinnen haumltte Vielmehr ist Verstehen immer der Vorgang der Verschmelzung solcher vermeintlich fuumlr
sich seiender Horizonteldquo (Ibidem 311) 225
Cf Jean Grondin em LacuteUniversaliteacute de lbdquohermeacuteneutique Paris 1993 169 ldquoOccupant une position
intermeacutediaire entre l‟auto-effacement de l‟interpregravete postuleacute par le positivisme et le perspectivisme
geacuteneacuteraliseacute de Nietzsche Gadamer se fait dans la ligneacutee de Heidegger le deacutefenseur d‟une compreacutehension
critique et historiquement reacutefleacutechiebdquo
156
processo de transmissatildeo onde se mediatizam constantemente o passado e o
presenterdquo226
Este processo de mediaccedilatildeo entre o passado e o presente que ocorre quando
interpretamos textos do passado tem para Gadamer uma natureza dialeacutectica
inteiramente extensiacutevel ao processo que ocorre na interpretaccedilatildeo e na traduccedilatildeo
inter-linguiacutestica Assim as diversas aberturas de mundo inerentes agraves vaacuterias
liacutenguas histoacutericas impotildeem uma tradiccedilatildeo hermenecircutica e um horizonte de
compreensatildeo restritivo que no entanto se caracteriza pela sua mobilidade e
abertura ldquoTal como o indiviacuteduo natildeo eacute nunca um indiviacuteduo isolado porque se
entende sempre jaacute com os outros do mesmo modo o horizonte fechado que
circunscreve uma civilizaccedilatildeo eacute uma abstracccedilatildeo A mobilidade histoacuterica do
Dasein humano eacute precisamente constituiacuteda pelo facto que ele natildeo estaacute
absolutamente preso a um lugar que ele nunca tem um horizonte
verdadeiramente fechado O horizonte eacute pelo contraacuterio qualquer coisa na qual
noacutes penetramos progressivamente e que se desloca connosco Para aquele
que se move os horizontes mudamrdquo 227
Esta acentuaccedilatildeo da mobilidade histoacuterica do Dasein tem em Gadamer a sua
perfeita correspondecircncia na acentuaccedilatildeo da natureza dialoacutegica da linguagem
em que ele vecirc o caminho para a superaccedilatildeo da metafiacutesica Assim Gadamer
afirma ldquoA minha ideia eacute que nenhuma linguagem conceptual nem sequer o
que Heidegger chama ldquolinguagem da metafiacutesicardquo significa uma fascinaccedilatildeo
irremediaacutevel para o pensamento supondo que o pensador se confie agrave
linguagem isto eacute entre em diaacutelogo com outros pensadores e com pessoas que
pensam de modo diferente Por isso aceitando totalmente a criacutetica ao conceito
de subjectividade feita por Heidegger conceito no qual mostrou a
sobrevivecircncia da ideia de substacircncia busquei detectar no diaacutelogo o fenoacutemeno
originaacuterio da linguagemrdquo228
226
ldquoDas Verstehen ist selber nicht so sehr als eine Handlung der Subjektivitaumlt zu denken sondern als
Einruumlcken in ein Uumlberlieferungsgeschehen in dem sich Vergangenheit und Gegenwart bestaumlndig
vermittelnrdquo (WuM GW I 295) 227
ldquoWie der Einzelne nie ein Einzelner ist weil er sich immer schon mit anderen versteht so ist auch der
geschlossene Horizont der eine Kultur einschlieβen soll eine Abstraktion Es macht die geschichtliche
Bewegtheit des menschlichen Daseins aus das es keine schlechthinnige Standortgebundenheit besitzt und
daher auch niemals einen wahrhaft geschlossenen Horizont Der Horizont ist vielmehr etwas in das wir
hineinwandern und das mit uns mitwandert Dem Beweglichen verschieben sich die Horizonteldquo (Ibidem
309) 228
ldquoMeine eigene Einsicht scheint nur daβ keine Begriffssprache auch nicht die von Heidegger
sogenannte ldquoSprache der Metaphysikrdquo einen unbrechbaren Bann fuumlr das Denken bedeutet wen sich nur
157
Assim Gadamer leva a cabo uma reinterpretaccedilatildeo hermenecircutica da dialeacutectica
que valoriza o confronto com a alteridade como meio de revelar e desfazer a
clausura e o estreitamento do proacuteprio horizonte Aceitando a alteridade do texto
e arriscando-se ao diaacutelogo com ele podemos construir uma mediaccedilatildeo para a
opacidade do outro recriando ao mesmo tempo um sentido comum229
7 O conceito hermenecircutico de texto
Eacute agrave luz do paradigma hermenecircutico aqui esboccedilado que Gadamer pensa a
natureza do texto O conceito hermenecircutico de texto implica que ele tem que
ser pensado em conexatildeo com o de interpretaccedilatildeo o que caracteriza o conceito
de texto eacute que ele somente aparece agrave compreensatildeo no contexto da
interpretaccedilatildeo Sempre que uma presunccedilatildeo primaacuteria de sentido eacute defraudada
pela resistecircncia de algo surge a referecircncia hermenecircutica ao ldquotextordquo e este
aparece como uma realidade face agrave necessidade da tarefa de interpretaccedilatildeo
O texto eacute visto por Gadamer como um conceito hermenecircutico e natildeo a partir da
perspectiva da gramaacutetica e da linguiacutestica que visam aclarar os mecanismos de
funcionamento da linguagem deixando de lado o sentido Considerado do
ponto de vista hermenecircutico o texto eacute uma fase do acontecer da compreensatildeo
que encerra o isolamento inerente agrave fixaccedilatildeo pela escrita mas que porque tem
em vista a comunicaccedilatildeo do sentido tem que ser legiacutevel e visa necessariamente
o outro
Assim a compreensatildeo dum texto depende de condiccedilotildees de comunicaccedilatildeo que
ultrapassam o que nele estaacute dito implicando em cada caso uma peculiar
situaccedilatildeo de consenso O conceito de texto implica para Gadamer a referecircncia
a um consenso problemaacutetico natildeo haacute propriamente texto quando ele notifica
der Denkende der Sprache anvertraut und das heiβt wen er in den Dialog mit anderen Denkenden und
mit anders Denkenden sich einlaumlβt In voller Anerkennung der durch Heidegger geleisteten Kritik am
Subjektsbegriff dem er seinen Hintergrund von Substanz nachwies suchte ich daher im Dialog das
urspruumlngliche Phaumlnomen der Sprache zu fassenrdquo WuM GW II 332 229
Os diaacutelogos platoacutenicos influenciaram fortemente a compreensatildeo da linguagem em Gadamer agrave loacutegica
do enunciado ele contrapotildee a concepccedilatildeo da linguagem como exerciacutecio vivo do diaacutelogo Eacute tambeacutem o
modelo platoacutenico do diaacutelogo da pergunta e da resposta que orienta a sua concepccedilatildeo da interpretaccedilatildeo de
um texto quem interpreta um texto compreende-o como resposta a uma questatildeo colocada pelo inteacuterprete
Eacute este mesmo modelo dialoacutegico que estaacute presente quando Gadamer sublinha que uma adequada
interpretaccedilatildeo exige deixar falar o texto acentuando-o e sublinhando o seu sentido procurando restitui-lo
linguisticamente Na perspectiva de Gadamer esta sobre-exposiccedilatildeo do texto eacute um momento fundamental
da compreensatildeo e pode ser encontrado na boa traduccedilatildeo (Cf Jean Grondin Einfuumlhrung zu Gadamer 198-
199)
158
algo que soacute me eacute destinado a mim ou quando o destinataacuterio eacute um grupo restrito
de especialistas pressupondo condiccedilotildees preacutevias de assentimento
Recorrendo ao conceito heideggeriano de notificaccedilatildeo Gadamer mostra a
temporalidade do texto onde o notificado originariamente eacute projectado para o
futuro de uma apropriaccedilatildeo Essa notificaccedilatildeo deve ser fixada pela escrita de tal
modo que a sua posterior apropriaccedilatildeo seja uniacutevoca ldquoO texto fixado deve fixar a
notificaccedilatildeo de tal modo que o seu sentido seja claramente compreensiacutevel Aqui
agrave tarefa do escritor corresponde a tarefa do que lecirc daquele a quem o texto se
dirige do inteacuterprete de alcanccedilar uma tal compreensatildeo de deixar falar outra vez
o texto fixadordquo230
A tarefa do leitor ou do inteacuterprete eacute alcanccedilar a compreensatildeo do texto fazendo-
o falar novamente restituindo agrave informaccedilatildeo a autenticidade original
compreender um texto eacute apropriar-se dele ldquoconforme o sentidordquo e natildeo ldquoao peacute da
letrardquo O texto natildeo eacute algo de acabado mas uma fase de realizaccedilatildeo dum
processo ininterrupto de compreensatildeo e o seu sentido pode amplificar-se e
desdobrar-se em cada uma das suas interpretaccedilotildees
Contudo se a interpretaccedilatildeo se coloca como tarefa quando o conteuacutedo do texto
eacute controverso esta nada tem de arbitraacuterio ou de subjectivo pois o texto tem um
caraacutecter prescritivo O que aqui se trata de clarificar eacute a natureza peculiar
desse caraacutecter prescritivo que haacute que entender a partir do modelo dialoacutegico
acima referido compreender um texto eacute compreender o que ele diz para um
diaacutelogo cujo interlocutor se encontra numa situaccedilatildeo determinada
Assim a distacircncia temporal entre ao momento da fixaccedilatildeo da escrita e o da sua
interpretaccedilatildeo natildeo pode ser suprimida sendo pelo contraacuterio constitutivas do
conceito hermenecircutico de ldquotextordquo A compreensatildeo dum texto implica sempre
de algum modo a referecircncia do texto a compreender agrave situaccedilatildeo presente do
inteacuterprete e por isso mesmo toda a fixaccedilatildeo escrita do texto prevecirc um espaccedilo
de ldquojogo da interpretaccedilatildeordquo231
230
ldquoDer fixierte Text soll die urspruumlngliche Kundgabe so fixieren daβ hier Sinn eindeutig verstaumlndlich
wird Hier entspricht der Aufgabe des Schreibenden die Aufgabe des Lesenden Adressaten Interpreten
zu solchem Verstaumlndnis zu gelangen dh den fixierten Text wieder sprechen zu lassenldquo WuM GW II
345 231
A caracterizaccedilatildeo de Gadamer da interpretaccedilatildeo como ldquojogordquo (Spiel) relaciona-se estreitamente com a
importacircncia que a interpretaccedilatildeo da obra de arte assumiu no seu pensamento designadamente como
paradigma do ldquotextordquo Holger Schmid analisa este aspecto mostrando a influecircncia que a experiecircncia
hermenecircutica da arte desempenhou na reformulaccedilatildeo levada a cabo por aquele pensador da consideraccedilatildeo
hermenecircutica do ldquotextordquo como ldquoobrardquo linguigravestica (Sprach-Werk) ldquoe da noccedilatildeo de aplicaccedilatildeo (Application)
159
A traduccedilatildeo de textos literaacuterios mostra para Gadamer de forma particularmente
niacutetida o aparecimento do texto ele estaacute aiacute na sua presenccedila face a uma
infinidade de possibilidades de ser traduzido para a liacutengua de chegada A
traduccedilatildeo implica uma tensatildeo entre o sentido do texto original e as exigecircncias
do contexto histoacuterico-linguiacutestico a que pertence o tradutor que aparece assim
como um inteacuterprete ldquono sentido literal da palavra interpres mediador da falardquo
O tradutor-inteacuterprete deve superar o elemento estranho que impede a
inteligibilidade de um texto ele faz-se mediador quando um texto natildeo pode ser
escutado e compreendido pelos seus potenciais leitores Essa mediaccedilatildeo
realizada pelo tradutor e pelo inteacuterprete eacute caracterizada por Gadamer nestes
termos que remetem para um processo de negociaccedilatildeo entre o texto e contexto
histoacuterico-linguiacutestico dos seus leitores ldquoEssa linguagem mediadora possui ela
proacutepria uma estrutura dialogal O inteacuterprete que faz a intermediaccedilatildeo entre as
duas partes do diaacutelogo nada pode fazer a natildeo ser considerar a sua distacircncia
frente ao emaranhado de ambas as posiccedilotildees como uma espeacutecie de
superioridade Por isso a sua ajuda no entendimento natildeo se limita ao plano da
linguagem mas passa sempre por uma intermediaccedilatildeo real que busca equilibrar
o direito e os limites de ambas as partes O ldquointermediaacuterio do discursordquo
converte-se em ldquonegociadorrdquo Creio que se daacute uma relaccedilatildeo muito parecida
entre o texto e o leitor Apoacutes superar o elemento estranho no texto ajudando
assim o leitor a compreendecirc-lo a retirada do inteacuterprete natildeo significa o
desaparecimento em sentido negativo Significa antes a sua entrada na
comunicaccedilatildeo resolvendo assim a tensatildeo entre o horizonte do texto e o
horizonte do leitor Eacute o que chamo de fusatildeo de horizontesrdquo232
como ldquoreproduccedilatildeordquo (Reproduction) no sentido da reproduccedilatildeo de um peccedila musical ldquoFuumlr das Verhaumlltnis
Sprache-Kunst ist der wichtigste Befund Houmlren bleibt metaphorisch verstanden und ist eigentlich Lesen
Gerade in spaumlteren uumlber lyrische Sprache sinnenden Uumlberlegungen hellip wird der Nexus von Sinngehalt
und innerem Ohr mit der unvordenklichen Schriftlichkeit besiegelt dhes wird erneut oder erst recht der
Literatur ndash als ein Schriftliches das aller moumlglichen Verlautlichung voraus ist- das sprachliche Kunstwerk
ldquoal solchesrdquo ganz ausdruumlcklich gleichgesetzt
Gespraumlch-Charakter Gebilde des inneren Ohrs Schriftlichkeit sind die Momente des hermeneutischen
Werk-Konzepts als Literaturrdquo (Holger Schmid Kunst des Houmlrens Orte und Grenzen philosophischer
Spracherfahrung Koumlln 1999 38) 232
ldquoDieses Dazwischenreden hat selber Dialogstruktur Der Dolmetscher der zwischen zwei Parteien
vermittelt wird gar nichts anders koumlnnen als seine Distanz gegenuumlber den beiden Positionen wie eine Art
Uumlberlegenheit uumlber die beiderseitige Befangenheit zu erfahren Seine Mithilfe bei der Verstaumlndigung
beschraumlnkt sich daher nicht auf die rein linguistische Ebene sondern geht immer in eine sachliche
Vermittlung uumlber die Recht und Grenzen der beiden Parteien miteinander zum Ausgleich zu bringen
versucht Der ldquoDazwischenredenderdquo wird zum ldquoUnterhaumlndlerrdquo Nun scheint mir ein analoges Verhaumlltnis
auch zwischen dem Text und dem Leser zu bestehen Wenn der Interpret das Befremdliche in einem Text
uumlberwindet und damit dem Leser zum Verstaumlndnis des Textes verhilft bedeutet sein eigenes Zuruumlcktreten
160
O papel de mediaccedilatildeo do tradutorinteacuterprete dos textos literaacuterios natildeo eacute pois o
de fazer uma restituiccedilatildeo do sentido segundo um ideal de fidelidade ao texto
mas o de algueacutem que eacute capaz de negociar o sentido e de reconhecendo o
direito de ambas as partes promover essa dialeacutectica da fusatildeo de horizontes
em que consiste o processo de interpretaccedilatildeo
Se eacute verdade que o tradutor e o inteacuterprete tecircm como funccedilatildeo a de ldquoservirrdquo o
texto tornando-o inteligiacutevel eacute tambeacutem certo que tal soacute pode fazer-se mediante
esse processo de compromisso e negociaccedilatildeo que eacute a sua proacutepria contribuiccedilatildeo
resultando na produccedilatildeo de uma inevitaacutevel alteraccedilatildeo de sentido incorporada
nesse duplo do texto originaacuterio que eacute a traduccedilatildeo
A categoria da ldquoaplicaccedilatildeordquo recuperada por Gadamer a partir da hermenecircutica
juriacutedica e biacuteblica permite tambeacutem esclarecer melhor esta mediaccedilatildeo do
inteacuterprete Na interpretaccedilatildeo dos textos juriacutedicos ou dos textos biacuteblicos podemos
perceber a tensatildeo entre ldquoa identidade da coisa comumrdquo e a situaccedilatildeo mutaacutevel na
qual ela eacute em cada caso compreendida Toda a interpretaccedilatildeo tem neste caso
de fazer o compromisso e a mediaccedilatildeo entre as exigecircncias do sentido original
do texto e as exigecircncias por vezes normativas do presente histoacuterico ldquoNoacutes
adquirimos a convicccedilatildeo de que a aplicaccedilatildeo natildeo eacute uma parte acessoacuteria e
ocasional do fenoacutemeno na compreensatildeo mas que ela contribui a determinaacute-la
desde o iniacutecio e no seu conjunto O inteacuterprete natildeo visa absolutamente mais
nada senatildeo a compreensatildeo desse universal o texto isto eacute compreender o que
diz a tradiccedilatildeo o que constitui o sentido e a significaccedilatildeo do texto Mas para o
compreender ele natildeo pode fazer abstracccedilatildeo de si mesmo e da situaccedilatildeo
hermenecircutica na qual se encontra Eacute necessaacuterio referir o texto a esta situaccedilatildeo
se ele na verdade quer aceder agrave compreensatildeordquo233
nicht Verschwinden im negativen Sinn sondern sein Eingehen in die Kommunikation so daβ die
Spannung zwischen dem Horizont des Textes und dem Horizont des Lesers aufgeloumlst wird ndash was ich
Horizontverschmelzung genannt habeldquo WuM GW II 351 233
bdquoAuch wir hatten uns davon uumlberzeugt daβ die Anwendung nicht ein nachtraumlglicher und
gelegentlicher Teil des Verstehensphaumlnomens ist sondern es von vornherein und im ganzen mitbestimmt
Auch hier war Anwendung nicht die Beziehung von etwas Allgemeinem das vorgegeben waumlre auf die
besondere Situation Der Interpret der es mit einer Uumlberlieferung zu tun hat sucht sich die Selbe zu
applizieren Aber auch hier heiβt das nicht daβ der uumlberlieferte Text fuumlr ihn als ein Allgemeines gegeben
und verstanden und dadurch erst fuumlr besondere Anwendungen in Gebrauch genommen wuumlrde Der
Interpret will vielmehr gar nichts anderes als dies Allgemeine -den Text ndash verstehen dh verstehen was
die Uumlberlieferung sagt was Sinn und Bedeutung des Textes ausmacht Um das zu verstehen darf er aber
nicht von sich selbst und der konkreten hermeneutischen Situation in der er sich befindet absehen
wollen Er muβ den Text auf diese Situation beziehen wenn er uumlberhaupt verstehen willldquo WuM GW I
329
161
Esta categoria eacute central na hermenecircutica de Gadamer para a qual todo o
compreender conteacutem simultaneamente uma referecircncia ao universal do texto e
uma aplicaccedilatildeo agrave situaccedilatildeo concreta daquele que compreende no interior da
qual ele fala O sentido de um texto do passado soacute pode ser compreendido no
presente e na liacutengua na qual falamos e exige por isso mesmo uma traduccedilatildeo
que eacute tanto mais conseguida quanto mais consciente de tal processo estiver
Gadamer pensa pois o processo da traduccedilatildeo como um acontecer no qual um
sentido estranho que eacute vinculativo para o inteacuterprete se deixa traduzir na sua
liacutengua e para a sua eacutepoca Um texto soacute pode entrar no diaacutelogo se nos falar
mas fala-nos apenas na liacutengua que em cada caso falamos
8 A negatividade da experiecircncia hermenecircutica
O conceito de texto refere-se como acima vimos a um momento de natildeo
compreensatildeo de natildeo sentido essencial para definir a ldquoexperiecircncia
hermenecircuticardquo uma experiecircncia hermenecircutica autecircntica eacute aquela que nega as
antecipaccedilotildees de sentido ou as ilusotildees do inteacuterprete e por isso eacute capaz de
gerar uma ldquoaberturardquo ldquoOra esta ldquoa experiecircncia verdadeirardquo eacute sempre uma
experiecircncia negativa Fazer a experiecircncia dum objecto significa natildeo ter ateacute ao
presente visto as coisas correctamente e saber melhor daqui em diante do
que se trata A negatividade da experiecircncia tem pois um sentido
particularmente criadorrdquo234
Esta negatividade da experiecircncia hermenecircutica eacute para Gadamer a experiecircncia
da finitude eacute a experiecircncia do ser-para-a-morte ou do caraacutecter histoacuterico do
homem e natildeo a experiecircncia capaz de fazer aceder ao universal ou agrave ciecircncia
como em Hegel Esta negatividade inscrita na experiecircncia hermenecircutica eacute o
que estaacute no fundamento da sua abertura rdquoComo o sabia jaacute Bacon natildeo eacute senatildeo
graccedilas a instacircncias negativas que se chega a uma experiecircncia nova Toda a
experiecircncia digna desse nome defrauda uma expectativa Assim o ser histoacuterico
234
ldquoDiese die eigentliche Erfahrung ist immer eine negative Wenn wir in einem Gegenstand eine
Erfahrung machen so heiβt daβ wir die Dinge bisher nicht richtig gesehen haben und nun besser wissen
wie es damit steht Die Negativitaumlt der Erfahrung hat also einen eigentuumlmlich produktiven Sinnrdquo WuM
GW I 359
162
do homem conteacutem como elemento essencial uma negaccedilatildeo fundamental Que
se revela na relaccedilatildeo essencial entre experiecircncia e discernimento235
A negatividade da experiecircncia hermenecircutica eacute a consciecircncia vivida de uma
contradiccedilatildeo nela emergem simultaneamente a consciecircncia de si mesmo e da
sua proacutepria situaccedilatildeo hermenecircutica dos seus limites constitutivos assim como
da forccedila e dos efeitos da tradiccedilatildeo Eacute a tradiccedilatildeo que acede agrave experiecircncia
enquanto linguagem isto eacute enquanto conteuacutedo de sentido fixado no texto
capaz de entrar em contradiccedilatildeo com as expectativas de sentido do inteacuterprete
A primeira condiccedilatildeo de uma experiecircncia negativa isto eacute de um autecircntico
diaacutelogo com a tradiccedilatildeo eacute que lhe seja reconhecido o estatuto de interlocutor
vaacutelido escutando as suas razotildees dando todo o peso agrave palavra com que se nos
dirige A abertura agrave tradiccedilatildeo significa natildeo apenas o reconhecimento da sua
alteridade mas o reconhecimento de que ela tem qualquer coisa a dizer-nos a
partilha duma experiecircncia Eacute este ouvir a voz da tradiccedilatildeo reconhecendo a
alteridade dos textos dela emanados e a sua pretensatildeo agrave verdade que
constitui o aspecto singular da hermenecircutica de Gadamer e a sua contribuiccedilatildeo
fundamental para esclarecer ldquoo negoacutecio da interpretaccedilatildeordquo236
A estrutura loacutegica da experiecircncia hermenecircutica eacute a da negatividade da questatildeo
que na sua forma mais radical eacute o saber do natildeo-saber da docta ignorantia
socraacutetica que Gadamer sublinha como constitutiva de uma verdadeira
interpretaccedilatildeo Segundo o modelo dos primeiros diaacutelogos platoacutenicos a autecircntica
questatildeo distingue-se das questotildees meramente pedagoacutegicas ou das questotildees
meramente retoacutericas pela sua abertura perguntar significa que aquele que
pergunta deixa a questatildeo em suspenso mantendo equiliacutebrio entre as
alternativas A primazia da questatildeo sobre a reposta implica que o saber deve
estar sempre virado ao mesmo tempo para os opostos pensando o possiacutevel
enquanto possiacutevel
235
ldquoNur durch negative Instanzen gelangt man wie schon Bacon gewuβt hat zu neuer Erfahrung Jede
Erfahrung die diesen Namen Verdient durchkreuzt eine Erwartung So enthaumllt das geschichtliche Sein
des Menschen als eins Wesensmoment eine grundsaumltzliche Negation die in dem wesenhaften Bezug von
Erfahrung und Einsicht zutage trittrdquo WuM GW I 362 236
Cf Maria Luisa Portocarrero Ferreira da Silva em O Preconceito em Gadamer Sentido de uma
Reabilitaccedilatildeo Coimbra 1989 214 ldquoNatildeo eacute pois como pura estrutura coacutedigo ou intenccedilatildeo que o texto nos
atinge mas como sentido direccional Ele soacute se converte para noacutes em objecto de compreensatildeo lembra-
nos Gadamer quando questiona a nossa auto-compreensatildeo fazendo por sua vez nascer a nossa proacutepria
questatildeo quanto ao assunto tratadordquo
163
O acesso ao questionar isto eacute ao saber do natildeo saber eacute barrado pela opiniatildeo
que tem como caracteriacutestica a tendecircncia a expandir-se a ser a opiniatildeo de toda
a gente (doxa era explicita Gadamer a decisatildeo final agrave qual se esforccedilava por
chegar a Assembleia) A questatildeo soacute pode vir ao espiacuterito rompendo ldquoa
imensidatildeo sem relevordquo da opiniatildeo corrente pela forccedila da negatividade da
experiecircncia hermenecircutica eacute sob o impulso daquilo que natildeo se verga agrave opiniatildeo
preacute-concebida que fazemos a autecircntica experiecircncia da questatildeo
Para Gadamer nenhum meacutetodo pode ensinar a questionar e a distinguir o que
realmente eacute um problema e isso limita radicalmente o interesse pelo meacutetodo
que a filosofia e as ciecircncias poacutes-cartesianas adoptaram sem reservas Eacute a
experiecircncia hermenecircutica do texto que pela sua intriacutenseca negatividade pode
fazer emergir a questatildeo enquanto tal O facto de que um texto transmitido se
torne objecto de interpretaccedilatildeo implica jaacute o facto de que ele potildee uma questatildeo ao
inteacuterprete compreender um texto eacute compreender esta questatildeo ganhando um
horizonte de interrogaccedilatildeo a partir daquilo que estaacute para caacute do texto isto eacute a
partir da situaccedilatildeo hermenecircutica do inteacuterprete237
De acordo com esta indicaccedilatildeo de Gadamer ganham particular importacircncia
aqueles textos cuja interpretaccedilatildeo se revela particularmente poleacutemica e
controversa como eacute o caso dos textos de Heidegger em particular os textos do
ldquosegundo Heideggerrdquo cuja linguagem hermeacutetica teria o propoacutesito de radicalizar
esta negatividade da experiecircncia hermenecircutica fazendo assim com que os
seus leitores pudessem ter acesso agrave questatildeo do Ser acesso que segundo
este seria sistematicamente obstruiacutedo pela linguagem decaiacuteda da tradiccedilatildeo
metafiacutesica
No entanto ao opor uma questatildeo ao texto noacutes vamos necessariamente para laacute
do texto agrave interrogaccedilatildeo agrave qual ele se apresenta como resposta e que admite
necessariamente outras respostas Para compreender um texto num sentido
que eacute o seu eacute preciso ganhar um horizonte de interrogaccedilatildeo que como tal
comporta necessariamente outras respostas e remete para outros textos Esse
horizonte de interrogaccedilatildeo que estaacute para aleacutem do texto soacute pode ser ganho num
237
ldquoA fusatildeo de horizontes eacute assim uma fusatildeo de questotildees e direcccedilotildees o proacuteprio texto deve ser entendido
como uma resposta a um verdadeiro perguntar uma fase do acontecer dialoacutegico da compreensatildeoldquo
(Ibidem 215)
164
movimento de retorno agrave tradiccedilatildeo238 em que ele se inscreve exigecircncia a que
naturalmente estaacute tambeacutem sujeita a interpretaccedilatildeo dos textos heideggerianos
A tradiccedilatildeo tem assim um caraacutecter prescritivo pois ela determina o sentido da
abertura hermenecircutica deixando contudo espaccedilo para o jogo das
interpretaccedilotildees isto eacute para a liberdade e para a criatividade do inteacuterprete (que
natildeo podem ser confundidas com arbiacutetrio e subjectividade)
A metaacutefora do jogo com a qual Gadamer pensa a liberdade do tradutor e o
inteacuterprete eacute ela mesma sugestiva dum sistema de regras que contudo natildeo
anula a criatividade e a imprevisibilidade das decisotildees de cada jogador e que eacute
mesmo a condiccedilatildeo da sua possibilidade239 Este retorno agrave tradiccedilatildeo em que se
inscreve o texto afigura-se para Gadamer essencial pois ela apresenta-se
como a experiecircncia necessaacuteria dum limite e simultaneamente como
possibilitante desse jogo em que cada um pode tomar a sua proacutepria decisatildeo
visando a liberdade de uma apropriaccedilatildeo
O rigor na interpretaccedilatildeo e a fidelidade ao sentido do texto natildeo eacute pois aceder agrave
sua verdade intemporal - empresa impossiacutevel e condenada ao fracasso devido
agrave distacircncia temporal - mas aceder ao horizonte de interrogaccedilatildeo no interior do
qual se pode determinar a orientaccedilatildeo semacircntica do texto e jogar o jogo das
interpretaccedilotildees
238
Gadamer natildeo subscreve a perspectiva extremamente criacutetica de Heidegger relativamente agrave histoacuteria da
metafiacutesica na qual ele natildeo vecirc o desenrolar do acontecer fundamental do esquecimento do ser que
destinou o rumo da civilizaccedilatildeo ocidental mas antes uma comunidade de pensadores que convergem e
divergem atraveacutes do diaacutelogo Cf Rui Sampaio da SilvardquoGadamer e a Heranccedila Heideggerianardquo in Revista
Portuguesa de Filosofia LVI Braga 2000530 239
A conciliaccedilatildeo da tradiccedilatildeo como prescritiva de um horizonte hermenecircutico com a categoria ldquojogordquo que
remete para a liberdade criadora do inteacuterprete eacute explicada por Marciej Potepa a partir da experiecircncia
praacutetica da traduccedilatildeo como uma totalidade sistemaacutetica de regras e convenccedilotildees cuja aplicaccedilatildeo eacute deixada agrave
criatividade do tradutor na forma sugestiva que a seguir se refere ldquoDie Spiel-Dimension die kein
subjektives Verhalten des Interpreten bezeichnet ist eine umfassende Groumlszlige die nicht nur fuumlr die Position
des literarischen Uumlbersetzens gilt sondern das sprachliche und textuelle Verhalten des Lesers und
Uumlbersetzers uumlberhaupt transparent macht Diese Reflexion wurde schon von Hans Georg Gadamer in
Wahrheit und Methode fruchtbar gemacht in Frankreich wird sie u a von Roland Barthes Jacques
Derrida und Pierre Bourdieu wieder aufgegriffen unter den Sprach ndash und Uumlbersetzungswissenschaftlern
hat in den letzten Jahren vor allem Mario Wandruszka auf die Relevanz der Spiegel-Metapher
hingewiesen
Die Fundamentale am Spielbegriff scheint mir zu sein daβ an ihm deutlich zum Vorschein kommt wer
spielt geht in einer Totalitaumlt auf die die eigene Subjektivitaumlt uumlbersteigt wer aus dem Spiel heraustritt
wird zum ldquo Spielverderberrdquo Man kann Spiel nicht fraglos mit Freiheit identifizieren wie Wills das tut
weil der Spielender immer schon an Regeln gebunden ist die er sich nicht ausgewaumlhlt hat die er aber
akzeptieren muβ um uumlberhaupt spielen zu koumlnnen Da gibt es (wie in der Sprache) ein Regelsystem mit
Regelanweisungen jedoch ohne kausallogische Begruumlndungsmoumlglichkeiten der Regelanwendung So
beruht das Spiel wie das Schreiben Sprechen Verstehen und Uumlbersetzen auf Konventionen die aber das
Kreative weder zerstoumlren noch ausklammern sondern man kann geradezu sagen daβ sich die Kreativitaumlt
erst im Umgang mit dem Regelsystem ins Spiel bringtrdquo (Marciej Potepa Hermeneutische Dimension des
Textuumlbersetzens Goumlttinger Beitraumlge zur Internationalen Uumlbersetzungsforschug Berlin 1993 210)
165
Trazendo o sentido do texto para o presente vivo do diaacutelogo introduzimo-lo no
movimento dialeacutectico da questatildeo e da resposta que eacute a essecircncia do trabalho
hermenecircutico movimento em que pode dar-se a fusatildeo de horizontes capaz de
produzir uma amplificaccedilatildeo e uma recriaccedilatildeo do sentido do texto A autecircntica
interpretaccedilatildeo eacute assim Ereignis o acontecimento propiacutecio e histoacuterico em sentido
eminente240
A interpretaccedilatildeo tendo ela mesma o caraacutecter de um acontecer eacute uma tarefa
interminaacutevel e inconclusa e aberta agrave maneira do diaacutelogo socraacutetico e natildeo da
dialeacutectica hegeliana que pretende na marcha da razatildeo aceder a uma verdade
total no interior da qual todos os momentos da histoacuteria ganham um sentido
definitivo
O texto natildeo eacute um objecto que podemos decompor em enunciados que
poderiam por sua vez ser transpostos para uma outra linguagem
reconstituindo integralmente o sentido segundo paradigma de objectividade
vigente nas ciecircncias Trata-se antes de tomaacute-lo como interlocutor de um
diaacutelogo que se desenrola no tempo e se desenrola segundo certas
possibilidade hermenecircuticas circunscritas pela linguagem e pela eacutepoca em que
esse diaacutelogo acontece241
Assim nas diversas interpretaccedilotildees de um texto por um lado assegura-se uma
continuidade de sentido em cada caso mas por ouro lado essa continuidade
240
Pensar a traduccedilatildeo sob a categoria do Ereignis ou do acontecimento propiacutecio implica pensaacute-la como
um acontecer singular e irrepetiacutevel agrave semelhanccedila da arte Note-se que essa singularidade eacute sublinhada
tambeacutem por Von Herrmann como caracteriacutestica da traduccedilatildeo autecircntica em Uumlbersetzung als
philosophisches Problem ldquoDie mannigfaltigen dichterischen und denkerischen Erfahrungen mit dem
Wesen der Sprache haben ihr Gemeinsames darin daβ in ihnen etwas zur Sprache des Kunstwerkes und
des Gedankenwerkes gebracht wird ldquowas bislang noch nie gesprochen wurderdquo und das so wie es jeweils
dichterisch und denkerisch gesprochen worden ist nie wieder in der gleichen Weise gesprochen wird Zur
dichterischen und zur denkerischen Erfharung mit der Wesen der Sprache gehoumlrt somit die jeweilige
Einmaligkeit und Unwiederholbarkeit Das gilt fuumlr jedes sprachliche Kunstwerk der eresten wie der
zweiten Erfahrungsmoumlglichkeit das gilt ebenso fuumlr jedes sprachliche gedankenwerk Im Unterschied dazu
ist das alltaumlglich Gesprochene vielmalig wiederholbar [hellip] Eine Uumlbersetzung ist - so koumlnnen wir jetzt
sagen ndash dann eine wesentliche Uumlbersetzung wenn sie eine werkgewordene dichterische oder denkerische
Erfahrung mit dem Wesen der Sprache uumlbersetzt Insofern aber jede werkgewordene dischterische und
denkerische Erfahrung mit der Sprache einzigartig und unwiederholbar ist ist sie im recht verstandenen
Sinne auch nicht uumlbersetzbar Dagegen ist die vielmalige Wiederholbarkeit des gewoumlhnlich Gesprochenen
der Grund dafuumlr daβ es restlos uumlbersetzbar istrdquo von Herrmann art cit in Im Spiegel der Welt Sprache
Uumlbersetzung Auseinandersetzung 117118) 241
Maria Luiacutesa Portocarrero aponta duas diferenccedilas fundamentais entre a abordagem hermenecircutica e a
abordagem metoacutedico-cientiacutefica do real a primeira consiste no facto de o mundo hermeneuticamente
experienciado ter um caraacutecter co-referencial ou linguiacutestico e o texto natildeo dever ser entendido como
expressatildeo duma subjectividade mas como tendo-se destacado da contingecircncia da sua origem e libertado
para novas relaccedilotildees O segundo consiste no facto de a co-referecircncia implicar para a hermenecircutica natildeo o
enunciado do logos apofacircntico mas uma loacutegica dialoacutegica da questatildeo do limite e da alteridade Cf Idem
O Preconceito em Gadamer Sentido de uma Reabilitaccedilatildeo 215-216
166
de sentido natildeo suprime a alteridade e a diferenccedila que satildeo pelo contraacuterio as
condiccedilotildees imprescindiacuteveis de um verdadeiro diaacutelogo A transmissatildeo dos textos
que constituem a tradiccedilatildeo filosoacutefica a que neste caso nos reportamos eacute
assim para Gadamer como para Heidegger um processo de sucessivas
interpretaccedilotildees e variaccedilotildees que tecircm uma semelhanccedila assinalaacutevel com a
interpretaccedilatildeo duma composiccedilatildeo musical
A fixaccedilatildeo escrita do sentido do texto salvaguarda como acontece na escrita
musical uma margem para esse infinito jogo de interpretaccedilotildees em que
consistem as suas muacuteltiplas traduccedilotildees inter-linguiacutesticas ou intra-linguiacutesticas e
o diaacutelogo do presente do inteacuterprete com a tradiccedilatildeo prescreve a direcccedilatildeo dessas
diversas recriaccedilotildees vivas
Esta natureza dialoacutegica da experiecircncia hermenecircutica que Gadamer reclama
como heranccedila dos diaacutelogos de Platatildeo e da disputatio da escolaacutestica medieval
vem acrescentar-se ao que Heidegger jaacute afirmara sobre o caraacutecter finito de
toda a interpretaccedilatildeo irremediavelmente submetida agraves possibilidades de um
horizonte hitoacuterico-linguiacutestico e permite esclarecer o problema deixado em
aberto por Heidegger da compreensatildeo do outro
De facto a incomensurabilidade das aberturas de mundo transportadas pelas
vaacuterias liacutenguas histoacutericas arrasta em Heidegger a ideia de um certo
fechamento em si mesmo entendendo este si mesmo como ldquoa determinaccedilatildeordquo
que singulariza um povo histoacuterico
Gadamer sublinha poreacutem que longe de estarmos condenados agrave clausura no
nosso proacuteprio horizonte o diaacutelogo com textos oriundos de vaacuterias tradiccedilotildees
representa uma possibilidade de aprofundar a negatividade da experiecircncia
hermenecircutica e de assim ir acontecendo o alargamento do nosso proacuteprio
horizonte de compreensatildeo
Tal como acontece nos diaacutelogos socraacuteticos o encontro com a alteridade do
texto implica esse momento de suspensatildeo e de encontro com outros possiacuteveis
que satildeo mantidos enquanto tal gerando uma abertura na qual podemos
persistir numa questatildeo
Eacute certo que o primado hermenecircutico da questatildeo implica tambeacutem uma
delimitaccedilatildeo dessa abertura feita pela explicitaccedilatildeo dos seus pressupostos a
partir dos quais eacute feita a sua formulaccedilatildeo Uma questatildeo bem colocada eacute para
167
Gadamer uma questatildeo que conteacutem um sentido isto eacute uma orientaccedilatildeo na
direcccedilatildeo da qual a resposta deve ser procurada colocando os membros das
alternativas de tal modo que entre eles pode haver uma decisatildeo pela
preponderacircncia das razotildees dadas por uma das alternativas
Compreender um texto eacute pois necessariamente iluminar o texto a partir de
uma questatildeo que tem ela mesma um sentido e uma orientaccedilatildeo determinados
duplamente pela situaccedilatildeo hermenecircutica do inteacuterprete e pelo seu encontro com
a tradiccedilatildeo242 Interpretar um texto eacute ser orientado por um ponto de vista ou de
uma perspectiva abertos por esse horizonte de interrogaccedilatildeo que eacute sempre
historicamente situado
Em cada nova interpretaccedilatildeo trata-se sempre de ver o texto a partir de uma
iluminaccedilatildeo parcial que deixa necessariamente na sombra outras possibilidades
hermenecircuticas Contudo se cada uma das interpretaccedilotildees estiver consciente da
sua proacutepria finitude e unilateralidade o processo hermenecircutico ele mesmo
nunca se encontra definitivamente cerrado
Natildeo haacute por isso nenhuma traduccedilatildeo nem interpretaccedilatildeo em si que pudessem
servir de modelo ou estabelecer um criteacuterio de verdade mas todas satildeo apenas
etapas de um diaacutelogo inacabado O importante contudo natildeo eacute estar de posse
de um criteacuterio absoluto para estabelecer a ldquoboardquo interpretaccedilatildeo mas sim saber
distinguir entre a simples opiniatildeo e a verdade ou seja entre aquilo que eacute
autenticamente ldquoseurdquo e aquilo que deriva da generalidade abstracta ou do
preconceito dominante243
242
Franccedilois Renaud problematiza o conceito gadameriano de tradiccedilatildeo entendida como uma corrente
uacutenica marcada pela continuidade segundo o autor a consideraccedilatildeo da tradiccedilatildeo numa perspectiva dialoacutegica
e criacutetica exigiria antes que fossem sublinhadas a pluralidade e a descontinuidade ldquoGadamer‟s
hermenecircuticas rests on the assumption that there is only one stream of tradition This assumption implies
however an all too unitary and harmonious concept of tradition whereby the phenomenon of plurality
selection and conflicts are insufficiently taken into account This approach is exemplified in the privileged
metaphors of hearing (Houmlren) and belongingness (Gehoumlren) both paradigmatic of traditionrdquo Idem
Classical als Otherness Revista Portuguesa de Filosofia LVI Braga 2000 243
Cf Marciej Potepa rdquoAnstatt von unfehlbaren Uumlbersetzungen zu sprechen sollte eine beinahe
unbegrenzte Offenheit des Uumlbersetzens postuliert werden Das heiβt aber nicht daβ er die Freiheit haumltte
mit der Sprache des Textes zu machen was er will Ziel des Uumlbersetzens ist vielmehr die
Nichtbeliebigkeit der Entscheidung um richtige und angemessene Formulierung zu finden Die
Bedingung fuumlr diese Nichtbeliebigkeit ist die Beteiligung Das Textuumlbersetzen nimmt seinen Ausgang in
der Lebenswelt des Textautors und wird mit der Lebens ndash und Sprachwelt des Uumlbersetzers durch die
Uumlbersetzung verbundenldquo (Ob cit 212)
168
169
Parte II ndash A recepccedilatildeo de Heidegger em Liacutengua portuguesa traduccedilatildeo e questionamento da tradiccedilatildeo
170
171
Capiacutetulo I - Traduccedilatildeo e tradiccedilatildeo no pensamento portuguecircs e
brasileiro
172
173
1 A orientaccedilatildeo humanista da escolaacutestica peninsular
Como atraacutes referimos Heidegger considerava que a traduccedilatildeo latina da filosofia
grega totalmente extriacutenseca ao contexto da liacutengua e da cultura heleacutenicas tinha
deturpado os textos atraveacutes de uma leitura ldquohumanistardquo destes tendo assim
contribuiacutedo para o esquecimento do problema do ser
Para avaliar esta afirmaccedilatildeo eacute necessaacuterio lembrar que foi uma caracteriacutestica
fundamental do Humanismo a grande importacircncia dada agraves liacutenguas no plano
social da comunicaccedilatildeo viva em recuperaccedilatildeo duma tradiccedilatildeo retoacuterica grega e
latina (os Sofistas Ciacutecero e Quintiliano) e que o Renascimento se caracterizou
pelo cultivo da uma racionalidade praacutetica e aberta ligada agrave vida social e agraves
virtudes eacuteticas Eacute um toacutepico fundamental do Humanismo a estreita alianccedila entre
razatildeo e linguagem defendida por Ciacutecero244 e os humanistas nos seacuteculos XV e
XVI consideram a linguagem e as liacutenguas de importacircncia vital natildeo soacute para a
vida praacutetica mas tambeacutem para a filosofia a teologia e as ciecircncias245
Esta preponderacircncia da linguagem inspirou natildeo apenas o incentivo do estudo
das liacutenguas claacutessicas mas tambeacutem o culto da retoacuterica e ainda o trabalho de
traduccedilatildeo dos autores gregos numa primeira fase para o latim erudito e numa
segunda fase tambeacutem para as liacutenguas vulgares246
244 ldquoPrincipio generi animantium omni est a natura tributum ut se vitam corpusque tueatur declinet ea
quae nocitura videantur omniaque quae sint ad vivendum necessaria anquirat et paret ut pastum ut
latibula ut alia generis eiusdem Commune item animantium omnium est coniunctionis appetitus
procreandi causa et cura quaedam eorum quae procreata sint Sed inter hominem et beluam hoc maxime
interest quod haec tantum quantum sensu movetur ad id solum quod adest quodque praesens est se
accommodat paulum admodum sentiens praeteritum aut futurum Homo autem quod rationis est
particeps per quam consequentia cernit causas rerum videt earumque praegressus et quasi antecessiones
non ignorat similitudines comparat rebusque praesentibus adiungit atque adnectit futuras facile totius
vitae cursum videt ad eamque degendam praeparat res necessarias Eademque natura vi rationis hominem
conciliat homini et ad orationis et ad vitae societatem ingenerat [hellip]rdquo (Cigravecero De Oficiis I 11-12) 245
Cf Leonel Ribeiro in Linguagem Retoacuterica e Filosofia no Renascimento Lisboa 2004 14-22 O autor
afirma que podemos encontrar em todos os humanistas um axioma cuja matriz se encontra em Ciacutecero
segundo o qual consumar a unidade entre sabedoria e eloquecircncia significava restaurar o sentido mais
antigo da sabedoria humana antes desta ter sido ocupada pelos filoacutesofos designadamente por Soacutecrates e
pela Academia
Esta consciecircncia da condiccedilatildeo linguiacutestica do homem espelhava-se claramente no plano curricular dos
studia humanitatis que conferia um lugar muito importante agraves disciplinas da linguagem designadamente
agrave Gramaacutetica e agrave Retoacuterica como o nuacutecleo do seu projecto pedagoacutegico-cultural 246
Segundo Leonel Ribeiro dos Santos nos pensadores dos seacuteculos XV e XVI encontra-se uma
vastiacutessima praacutetica da traduccedilatildeo filosoacutefica e uma diversificada reflexatildeo sobre essa praacutetica que oscila entre
dois extremos a afirmaccedilatildeo da impossibilidade de traduzir completamente que confere autoridade apenas
ao original e aos que a ele tecircm acesso e a afirmaccedilatildeo da igual dignidade de todas as liacutenguas e consequente
possibilidade de multiplicar o sentido da obra e as suas virtualidades pela traduccedilatildeo (Ob cit 170)
174
A traduccedilatildeo visava recuperar o sentido originaacuterio dos textos contra as distorccedilotildees
introduzidas por um desconhecimento das liacutenguas claacutessicas e por uso dum
latim baacuterbaro por deficiente domiacutenio da gramaacutetica e da retoacuterica Assim a
traduccedilatildeo encarada como restituiccedilatildeo do sentido verdadeiro dos textos era
considerada uma tarefa preliminar a qualquer investigaccedilatildeo filosoacutefica e condiccedilatildeo
de possibilidade do ensino da filosofia
Esta mesma tradiccedilatildeo humanista foi retomada e desenvolvida pela restauraccedilatildeo
escolaacutestica movimento filosoacutefico caracteriacutestico da Peniacutensula Ibeacuterica que teve o
seu iniacutecio em Espanha nos finais do seacutec XV e em Portugal no iniacutecio do seacutec
XVI tendo perdurado entre noacutes ateacute ao seacutec XVIII Esse movimento
desenvolveu-se sob o impulso da Contra-Reforma catoacutelica antes e depois do
Conciacutelio de Trento e significou um projecto pedagoacutegico inspirado no
humanismo mas tambeacutem num regresso a Aristoacuteteles que foi interpretado
fundamentalmente na linha de S Tomaacutes e de Duns Escoto
Os principais centros onde a Segunda Escolaacutestica teve implantaccedilatildeo foram as
Universidades espanholas de Salamanca e Alcalaacute e as portuguesas de
Coimbra e Eacutevora Dominicanos e Jesuiacutetas sustentavam o movimento
destacando-se entre os primeiros Francisco de Vitoacuteria e Domingo Bantildeez e
entre os segundos Luiacutes de Molina Francisco Suarez e Pedro da Fonseca
assim como os conimbricenses247
A criaccedilatildeo do Coleacutegio das Artes em Coimbra248 significou uma transformaccedilatildeo da
nossa cultura segundo os moldes do humanismo que se implantou tambeacutem na
Universidade de Eacutevora e noutras escolas dos jesuiacutetas designadamente nos
coleacutegios de Satildeo Paulo de Braga e de Santo Antatildeo em Lisboa
O quadro curricular incluiacutea o estudo da Gramaacutetica Retoacuterica e Poesia (latinas)
Grego Hebraico Matemaacutetica e Artes (estudos filosoacuteficos num ciclo de 3 anos e
meio cujo nuacutecleo central era a explicaccedilatildeo das obras de Aristoacuteteles) e
Teologia249 Embora a filosofia aristoteacutelica e a teologia tenham no referido
247
Cf Comunicaccedilatildeo de Luacutecio Craveiro da Silva nas Jornadas ldquo Luigraves de Molina Regressa a Eacutevorardquo Eacutevora
1987 85 248
D Joatildeo III criou o Coleacutegio das Artes cujo primeiro regimento data de 16 de Novembro de 1547
atribuindo-lhe os prepatoacuterios para as faculdades maiores cf Pinharanda Gomes em Os Conimbricenses
Lisboa 1992 22-37 249
O plano curricular dos coleacutegios da Companhia de Jesus sofreu vaacuterias modificaccedilotildees sendo a Ratio
atque Institutio Studiorum de 1599 considerada a definitiva Demorou treze anos a ser melhorada com
contribuiccedilotildees dos programas dos coleacutegios de diferentes nacionalidades e o contributo da experiecircncia
conimbricense teria sido grande (cf Pinharanda Gomes ob cit 43) A concepccedilatildeo humanista de cultura
175
quadro curricular um papel muito importante e de algum modo central eacute
importante atender ao grande peso que no curriculum tecircm as disciplinas
ligadas agrave linguagem assim como agrave finalidade praacutetica do curso (entendido no
sentido da preparaccedilatildeo eacutetica e no sentido abrangente da palavra tambeacutem
poliacutetico) o que fica patente com o peso dado agrave oratoacuteria fundada no estudo da
Retoacuterica e da Poeacutetica de Aristoacuteteles e da Oratoacuteria de Ciacutecero250
1 1 Os Conimbricences e a traduccedilatildeo de Aristoacuteteles
Em conformidade com a prioridade dada agrave traduccedilatildeo pelos humanistas logo
nos primeiros anos de fundaccedilatildeo do Coleacutegio das Artes de Coimbra a
restauraccedilatildeo do aristotelismo foi sentida como exigecircncia da traduccedilatildeo latina dos
textos fundamentais de Aristoacuteteles Assim se publicou uma selecta de textos
que constituem O Organon aristoteacutelico numa versatildeo latina intitulada Loacutegica
Aristotelis ab eruditissimis hominibus conversa da autoria de Nicolau de
Grouchy (professor bordalecircs que leccionou em Coimbra de 1548 a 1550)
visando tornar Aristoacuteteles acessiacutevel aos alunos atraveacutes duma versatildeo latina
inspirada no latim erudito de Ciacutecero mas sem romper inteiramente com a
terminologia consagrada na tradiccedilatildeo escolaacutestica
Esta traduccedilatildeo de Grouchy foi no entanto substituiacuteda a partir de 1556 pela de
Joatildeo Argiropulo considerada mais consentacircnea com a tradiccedilatildeo escolaacutestica251
A Ratio Studiorum acima referida promulgada em 1559 para toda a
Companhia de Jesus regulamentava o ensino da Filosofia252 impondo o
estaria presente nos princiacutepios pedagoacutegicos orientadores [assim referidos por Pinharanda Gomes ldquoA ratio
eacute um sistema metoacutedico assente em premissas pedagoacutegicas a primeira das quais eacute a alianccedila da virtude com
a ciecircncia ou as letras natildeo bastando que os estudantes se transformem em saacutebios sendo preciso educaacute-los
para pessoas de acccedilatildeo numa perspectiva da eacutetica e da vivecircncia evangeacutelicasrdquo (Pinharanda Gomes ob cit
44)] assim como no predomiacutenio das disciplinas ligadas agrave linguagem Na realidade se os humanistas
italianos dos seacuteculos XV e XVI foram os primeiros autores de um curriculum de estudos humanista
foram os Jesuiacutetas que o divulgaram e implementaram agrave escala europeia (e global) criando um sistema de
ensino supra-nacional e mesmo supra-continental desde o Brasil agrave China A ratio studiorum
institucionalizou pois um curriculum humanista de alcance europeu com irradiaccedilatildeo universal (sobre as
linhas gerais do meacutetodo de estudos preconizados pela ratio studiorum cf Coacutedigo Pedagoacutegico dos
Jesuitas Ratio Studiorum da Companhia de Jesus Lisboa 2009 43-46) 250
XVI Regulae Professoris Retoricae in Coacutedigo Pedagoacutegico dos Jesuitas Ratio Studiorum da
Companhia de Jesus 198 251
Cf Pinharanda Gomes em Os Conimbricenses 136 252
Cf XIX Coacutedigo Pedagoacutegico dos Jesuitas Ratio Studiorum da Companhia de Jesus dos Jesuiacutetas 132
Esta regra prescrevia como fins do ensino de trecircs anos da filosofia preparar os alunos para a teologia
impondo ainda a obrigaccedilatildeo dos professores natildeo se afastarem de Aristoacuteteles a natildeo ser nas mateacuterias em que
entrasse em contradiccedilatildeo com a doutrina do Conciacutelio de Latratildeo e ainda que seguissem ldquosempre que for
precisordquo S Tomaacutes de Aquino Sobre as mateacuterias a leccionar impunha-se no primeiro ano o ensino da
176
meacutetodo da disputatio253 que tatildeo criticado haveria de ser pelos iluministas
portugueses e que visava o desenvolvimento de competecircncias argumentativas
pela apresentaccedilatildeo de uma tese argumentaccedilatildeo e conclusatildeo seguidos de um
exerciacutecio de refutaccedilatildeo
Esta praacutetica da disputatio devia obrigatoriamente orientar-se para a defesa da
filosofia aristoteacutelica dos dogmas impostos pela Contra-Reforma e ainda para a
doutrina oficial da Companhia de Jesus o que pode deduzir-se das ldquoregras
para a escolha de opiniotildees dos filoacutesofosrdquo elaboradas em 1593 pela
Congregaccedilatildeo Geral dos Jesuiacutetas ldquoOs mestres da filosofia natildeo se apartem de
Aristoacuteteles em coisa alguma de importacircncia a natildeo ser que se ofereccedila algum
ponto contraacuterio agrave doutrina que defendem geralmente as universidades e muito
mais se repugna agrave feacute ortodoxa Natildeo introduzam qualquer questatildeo ou opiniatildeo
nova que natildeo esteja defendida por algum bom autor Entendem tambeacutem que
se houver alguns mestres inclinados a novidades ou de engenho demasiado
livre devem ser removidos do ofiacutecio de ensinarrdquo254
A compendarizaccedilatildeo das liccedilotildees do Coleacutegio das Artes de Coimbra foi feita ao
longo de 14 anos (de 1592 a 1606) sendo esse labor continuado devido a
vaacuterios professores do Coleacutegio entre os quais se salienta Manuel de Goacuteis
Basicamente constituiacutedas por um comentaacuterio agrave filosofia aristoteacutelica foram
publicadas sob a designaccedilatildeo de Commentarii Collegii Conimbricensis e
Societate Jesu255 tendo sido estes usados no ensino dos coleacutegios de jesuiacutetas
quer em Portugal quer no Brasil 256Os Commentarii257 gozaram ainda de
loacutegica com o comentaacuterio de Peri Hermeneias dos Primeiros Analiacuteticos assim como o comentaacuterio dos
prolegoacutemenos de A Fiacutesica sobre a classificaccedilatildeo das ciecircncias e a distinccedilatildeo entre ciecircncias praacuteticas e
teoreacuteticas no segundo ano seriam comentados os oito livros da Fiacutesica no terceiro ano seriam ensinados o
De anima e a Metafiacutesica 253
A mesma regra IX relativa ao ensino da Filosofia impunha no seu ponto 17 a realizaccedilatildeo de disputas
mensais obrigatoacuterias 254
Manuel Maria Carrilho Razatildeo e Transmissatildeo da Filosofia Lisboa Imprensa Nacional ndash Casa da
Moeda 1987 191 Estas regras satildeo jaacute antecipadas na Ratio Studiorum Efectivamente em I Regras para o
Provincial adverte-se que se algum professor de Filosofia ldquose revelar mais inclinado agraves novidades ou de
espigraverito mais livrerdquo seja desde logo afastado do ensinordquo (Ratio Studiorum ob cit 62) 255
Os Commentarii eram a compendiarizaccedilatildeo de liccedilotildees ditadas por vaacuterios professores do Coleacutegio das
Artes de Coimbra Sobre as disputas geradas pelo caraacutecter colegial da obra Cf Pinharanda Gomes em
Os Conimbricenses 76 77 256
Os Commentarii eram seguidos como liccedilatildeo magistral nos coleacutegios de Braga Eacutevora e Porto no coleacutegio
de Olinda da Baiacutea no Coleacutegio de Satildeo Paulo em Luanda no Colegio de Satildeo Paulo em Goa e nas escolas
de Jesuitas na China (Pinharanda Gomes Idem 171- 172) 257
Tomando como eixo a organizaccedilatildeo dos comentaacuterios nos volumes da Biblioteca Nacional Pinharanda
Gomes apresenta a organizaccedilatildeo dos Commentarii em V Tomos I- In Octo Libros Physicorum III De
Coelo In Libros Meteorum In Parva Naturalia II II Ethicorum ad Nicomachum III De Generatione et
Corruptione IV De Anima De Anima SeparataQuinque sensus V In Universam Dialecticam Segundo
o mesmo autor as lacunas relacionam-se com o facto de o curso natildeo comeccedilar pela loacutegica e ainda com a
177
grande prestiacutegio nos meios acadeacutemicos da Europa no seu tempo tendo sido
vaacuterias vezes editados na Alemanha em Franccedila e em Itaacutelia258
Relativamente agrave leitura humanista de Aristoacuteteles eacute de salientar o contributo de
Pedro da Fonseca (1528-1599) cujos comentaacuterios agrave Metafiacutesica de Aristoacuteteles
satildeo considerados notaacuteveis do ponto de vista filoloacutegico quer pelo conhecimento
do texto grego quer pela traduccedilatildeo latina e ainda por um conhecimento
vastiacutessimo dos comentadores de Aristoacuteteles Aiacute a Metafiacutesica de Aristoacuteteles eacute
interpretada na perspectiva da conciliaccedilatildeo com as verdades da feacute proposta por
de S Tomaacutes de Aquino sendo ainda discutidas teses dos principais filoacutesofos
da Antiguidade e da Idade Meacutedia
O que torna notaacutevel este trabalho de comentaacuterio eacute o facto de ele tomar em
consideraccedilatildeo os comentadores e a tradiccedilatildeo estabelecida sem no entanto
deixar de apoiar-se sempre directamente no texto grego de Aristoacuteteles
As Instituiccedilotildees Dialeacutecticas de Pedro da Fonseca publicadas numa primeira
ediccedilatildeo em 1590 e numa segunda em 1608 inserem-se na tradiccedilatildeo dos
dialeacutecticos humanistas que cultivaram o que ficou conhecido como ldquoloacutegica
toacutepicardquo
Os fundadores da orientaccedilatildeo humanista no campo da loacutegica foram Lourenccedilo
Valla e Rudolfo Agriacutecola que contrapuseram agrave interpretaccedilatildeo escolaacutestica
medieval a interpretaccedilatildeo que Ciacutecero fazia de Aristoacuteteles Este pensador latino
valorizava a dialeacutectica como arte de argumentar e como fundamento da
eloquentia ao serviccedilo dos problemas da vida praacutetica propondo ainda uma
interpretaccedilatildeo proacutepria da dialeacutectica segundo a qual ela seria o poder de concluir
dos contraacuterios uma arte que a partir duma tese tanto permite sustentar os
proacutes como os contra
Descrendo da capacidade dos sistemas filosoacuteficos atingirem a verdade Ciacutecero
sustenta que o homem apenas pode decidir-se por niacuteveis diferentes de
probabilidade ndash essa decisatildeo pode conseguir-se por uma ratio argumentandi
ausecircncia dos comentaacuterios da Metafiacutesica As dificuldades na compendiarizaccedilatildeo das liccedilotildees de Metafiacutesica
identificadas por Pinharanda Gomes satildeo sugestivas da existecircncia de diversos acircngulos interpretativos da
Metafiacutesica aristoteacutelica Os Commentariorum Metaphysicorum de Pedro da Fonseca cuja impressatildeo total
ficou pronta em 1612 foram lidos no Coleacutegio a tiacutetulo precaacuterio enquanto se aguardava pela realizaccedilatildeo dos
respectivos Commentarii que natildeo chegaram a ser redigidos O curso de Loacutegica acabou por ser no
entanto mais tarde redigido por Sebastiatildeo do Couto com o tiacutetulo de Universam Dialecticam Cf
Pinharanda Gomes Idem 79-88 258
O total de ediccedilotildees europeias foi de 112 Cf Pinharanda Gomes Idem 174
178
adequada Eacute essa ratio argumentandi que conveacutem ao poliacutetico e eacute ela que eacute
cultivada na oratoacuteria259
Os humanistas herdeiros deste cepticismo de Ciacutecero defenderam uma
concepccedilatildeo de filosofia segundo o qual o filoacutesofo natildeo eacute um saacutebio mas um
amante da sabedoria para o qual natildeo existem quaisquer certezas O meacutetodo
universal eacute a dialeacutectica entendida como arte de discorrer com probabilidade
acerca de qualquer assunto
Ao contraacuterio dos humanistas Pedro da Fonseca regressa agrave distinccedilatildeo
aristoteacutelica entre demonstraccedilatildeo cientiacutefica e silogismo dialeacutectico afirmando que
a primeira visa produzir ciecircncia e o segundo gerar opiniatildeo - no entanto admite
que na maior parte das ciecircncias se trata tambeacutem de discutir mateacuterias
controversas e de defender opiniotildees provaacuteveis pelo que estas tambeacutem natildeo
podem prescindir da dialeacutectica Recolhe ainda da tradiccedilatildeo humanista a
chamada ldquoloacutegica toacutepicardquo meacutetodo que recorre a uma repertoacuterio de ideias gerais
que podiam ser citadas a propoacutesito de todos os discursos (lugares-comuns ou
toacutepicos) e ser usadas em qualquer momento para argumentar
As obras de Pedro da Fonseca Commentariorum Metaphysicorum
Institutionum Dialecticarum e Isagoge Philosophica foram tambeacutem
repetidamente editadas em Itaacutelia Alemanha e Franccedila sendo nestes paiacuteses em
geral identificadas com a obra dos conimbricenses e aiacute lidas por filoacutesofos como
Leibniz Wolff Malebranche e Descartes 260
259
[hellip] multi erant praeterea clari in philosophia et nobiles a quibus omnibus una paene voce repelli
oratorem a gubernaculis civitatum excludi ab omni doctrina rerumque maiorum scientia ac tantum in
iudicia et contiunculas tamquam in aliquod pistrinum detrudi et compingi videbam sed ego neque illis
adsentiebar neque harum disputationum inventori et principi longe omnium in dicendo gravissimo et
eloquentissimo Platoni cuius tum Athenis cum Charmada diligentius legi Gorgiam quo in libro in hoc
maxime admirabar Platonem quod mihi [in] oratoribus inridendis ipse esse orator summus videbatur
Verbi enim controversia iam diu torquet Graeculos homines contentionis cupidiores quam veritatis Nam
si quis hunc statuit esse oratorem qui tantummodo in iure aut in iudiciis possit aut apud populum aut in
senatu copiose loqui tamen huic ipsi multa tribuat et concedat necesse est neque enim sine multa
pertractatione omnium rerum publicarum neque sine legum morum iuris scientia neque natura hominum
incognita ac moribus in his ipsis rebus satis callide versari et perite potest qui autem haec cognoverit
sine quibus ne illa quidem minima in causis quisquam recte tueri potest quid huic abesse poterit de
maximarum rerum scientia Sin oratoris nihil vis esse nisi composite ornate copiose loqui quaero id
ipsum qui possit adsequi sine ea scientia quam ei non conceditis Dicendi enim virtus nisi ei qui dicet
ea quae dicet percepta sunt exstare non potest (Ciacutecero De Oratore 1 46-48) 260
O Institutionum Dialecticarum de Pedro da Fonseca teve 36 ediccedilotildees ateacute ao primeiro quartel do seacuteculo
XVIII em Itaacutelia Alemanha e Franccedila os Commentariorum Metaphysicorum tiveram trinta e uma ediccedilotildees
em Itaacutelia Franccedila e Alemanha (Pinharanda Gomes ob cit 175)
179
Embora se tenha institucionalizado uma visatildeo essencialmente negativa destes
pensadores e da acccedilatildeo pedagoacutegica dos jesuiacutetas a quem se atribui o
afastamento de Portugal e do Brasil da Filosofia e da Ciecircncia moderna esta
visatildeo simplificadora tem vindo a ser posta em causa por um conhecimento
histoacuterico mais preciso
Assim sabemos hoje que a contribuiccedilatildeo da Companhia de Jesus para a
revoluccedilatildeo cientiacutefica do seacuteculo XVI foi notaacutevel e que os jesuiacutetas desenvolveram
em toda a Europa (e tambeacutem em Portugal) um importante trabalho pedagoacutegico
em torno do ensino da matemaacutetica261 O vasto espoacutelio dos professores do
Coleacutegio de Santo Antatildeo que funcionou em Lisboa entre 1590 e 1759 veio
mostrar que sob a designaccedilatildeo de Aula da Esfera se ensinava nesse coleacutegio
um curso de Matemaacutetica assim como Astronomia e Geografia tendo esses
estudos estado a cargo a partir no seacuteculo XVII predominantemente de
estrangeiros perfeitamente a par da Filosofia e da Ciecircncia moderna Entre eles
cumpre mencionar J Paulo Lembo lente da Aula da Esfera entre 1615 e 1617
que conhecera pessoalmente Galileu e subscrevera juntamente com outros
jesuiacutetas do Coleacutegio Romano um parecer favoraacutevel agraves suas descobertas262 O
estudo da documentaccedilatildeo da Universidade de Eacutevora referente ao mesmo
periacuteodo veio a revelar tambeacutem a existecircncia de livros teses e debates
evidenciando um normal contacto com as ideias da Europa e um conhecimento
de autores modernos como Descartes Gassendi Galileu Kepler e Newton263
Alguns estudos como o de Serafim Leite dedicado ao jesuiacuteta Diogo Soares e
o de Jaime Cortesatildeo sobre os ldquoPadres matemaacuteticos no Brasilrdquo mostram ainda
que esta actividade cientiacutefica dos jesuiacutetas se estendeu ao novo mundo264
No entanto as dificuldades de conciliaccedilatildeo dos princiacutepios da Metafiacutesica e da
Fiacutesica de Aristoacuteteles com os avanccedilos da ciecircncia moderna assim como o
contexto histoacuterico-cultural criado apoacutes o Conciacutelio de Trento levaram a que a
produccedilatildeo filosoacutefica dos jesuiacutetas ficasse largamente alheia aos modernos
problemas epistemoloacutegicos e se ativesse agrave problemaacutetica eacutetico-religiosa
261
Domingos Mauriacutecio Gomes dos Santos ldquoOs jesuigravetas e o ensino das Matemaacuteticas em Portugalrdquo
Broteacuteria 20 1935 262
J Pereira Gomes ldquoA Aula da Esferardquo in Enciclopeacutedia Luso-Brasileira de Cultura vol VII 102 263
Joatildeo Pereira Gomes Os Professores de Filosofia da Universidade de Eacutevora Eacutevora Cacircmara
Municipal 1960 264
Serafim Leite ldquoDiogo Soares Matemaacutetico Astroacutenomo e Geoacutegrafo de sua Majestade no estado do
Brasilrdquo in Broteacuteria 45 1947 e Jaime Cortesatildeo ldquoA Missatildeo dos Padres Matemaacuteticos no Brasilrdquo in Studia
1 1958
180
Apesar da referida ordem para que os professores de filosofia natildeo se
afastassem em caso algum da doutrina aristoteacutelica ter sido seguida natildeo
apenas no coleacutegio das Artes de Coimbra mas tambeacutem no Coleacutegio do Espiacuterito
Santo e noutras escolas dos jesuiacutetas como os coleacutegios de Satildeo Paulo de
Braga e Santo Antatildeo em Lisboa haacute que ter em conta que na realidade os
pensadores da Segunda Escolaacutestica fizeram uma releitura de Aristoacuteteles
visando adaptaacute-lo ao espiacuterito humanista em vigor como tambeacutem aos novos
problemas eacuteticos e poliacutetico-juriacutedicos emergentes do novo mundo criados pelos
descobrimentos pela expansatildeo ibeacuterica e pela colonizaccedilatildeo assim como pela
difusatildeo do cristianismo numa grande diversidade de contextos culturais
1 2 A Escola de Eacutevora e a interpretaccedilatildeo de Aristoacuteteles agrave luz do novo
contexto histoacuterico e dos seus problemas
Entre noacutes o segundo centro de irradiaccedilatildeo deste movimento de restauraccedilatildeo da
filosofia escolaacutestica foi o Coleacutegio do Espiacuterito Santo em Eacutevora Fundado pelo
Cardeal D Henrique que o confiou aos Jesuiacutetas veio a ser elevada a
Universidade em 15 de Abril de 1559 sendo a segunda Universidade do Paiacutes e
uma das mais reputadas da Peniacutensula Ibeacuterica
Tratando-se duma Universidade eclesiaacutestica contava entatildeo com duas caacutetedras
de Teologia uma de Sagrada Escritura e sete de Latim vindo mais tarde a
juntar-se-lhe quatro de Filosofia e uma de Matemaacutetica Foi uma das mais
reputadas Universidades europeias pelo prestiacutegio de mestres estrangeiros
notaacuteveis como Luiacutes de Molina e Francisco Suarez tendo nela ensinado
tambeacutem durante algum tempo Pedro da Fonseca considerado o mais
importante filoacutesofo portuguecircs quinhentista
Dos seus mestres destacamos a importacircncia de Molina pela influecircncia que as
suas teses vieram a ter na obra retoacuterica de Vieira265 Molina em Concordia
liberi arbitrii cum gratiae donis divina paraescientia providentia
predestinatione et reprobatione ad nonnulos primae partis S Thomae
articulus Lisboa 1588 e Apendix ad Concordiam Liberi arbitrii Lisboa 1588
265
Sobre a influecircncia de Suarez e Molina em Vieira Cf artigo de Pedro Calafate ldquo A Escolaacutestica
Peninsular no Pensamento Antropoloacutegico de Vieirardquo in Razatildeo e Liberdade - homenagem a Manuel Joseacute
Carmo Ferreira Lisboa2010 1011-1024
181
debate a questatildeo da possibilidade de harmonizar os auxiacutelios da graccedila de Deus
com a liberdade humana
Esta temaacutetica presumivelmente jaacute tratada por Pedro da Fonseca nas suas
aulas na Universidade de Coimbra onde Molina tinha estudado266 surgira na
sequecircncia do Conciacutelio de Trento e do combate aiacute iniciado contra as teses
protestantes sobre a predestinaccedilatildeo Lutero introduzindo a ideia de
predestinaccedilatildeo e de salvaccedilatildeo pela feacute rebaixava o papel da acccedilatildeo humana e
desvalorizava a liberdade o que contrariava directamente a visatildeo antropoloacutegica
de S Tomaacutes de Aquino segundo a qual a vontade humana se moveria de
acordo com um princiacutepio intriacutenseco267
Na sequecircncia daquele conciacutelio abrira-se uma poleacutemica a propoacutesito do problema
de saber qual o modo pela qual a liberdade humana se poderia exercer sem
frustrar a omnipotecircncia divina assim como sobre a questatildeo de saber se os
auxiacutelios concedidos pela graccedila divina predeterminam intrinsecamente a nossa
vontade
A soluccedilatildeo desta questatildeo estaacute segundo Molina na ldquociecircncia meacutediardquo de Deus A
ldquociecircncia meacutediardquo situa-se entre a ciecircncia natural ou necessaacuteria pela qual Deus
conhece todos os seres possiacuteveis como meramente possiacuteveis e a ciecircncia livre
ou de visatildeo pela qual Deus conhece que alguns contingentes existiratildeo Deus
tem uma ciecircncia natural ou intelectiva em virtude da qual conhece todos os
seres e acontecimentos possiacuteveis no seu estado de possibilidade e uma
ciecircncia livre ou de visatildeo pela qual conhece todos os seres e acontecimentos
presentes passados e futuros
Entre as duas Molina pressupotildee uma terceira espeacutecie de ciecircncia que se
relaciona com os conhecimentos dos actos e acontecimentos que dependem
da vontade humana268 Com efeito estes actos pertencem por um lado ao
266
Esta doutrina designada por Pedro da Fonseca como ldquociecircncia dos futuros condicionadosrdquo estaacute
disseminada por toda a obra de Fonseca designadamente pelos Comentaacuterios agrave metafiacutesica de Aristoacuteteles
na Isagoge Filosofica e nas Instituiccedilotildees Dialeacutecticas Cf Manuel Patrigravecio em ldquoA doutrina da Ciecircncia
Meacutedia de Pedro Fonseca a Luis de Molinardquo Luiacutes de Molina Regressa a Eacutevora Eacutevora 166 267
Comentando o texto de Molina Manuel Patriacutecio afirma ldquo O que parece fundamental assinalar no
presente texto de Molina eacute que tanto no que toca ao homem ndash como se sabe e poderaacute confirmar-se com
textos do proacuteprio filoacutesofo e teoacutelogo - como no que respeita a Deus na ldquodoutrina da ciecircncia meacutediardquo o lugar
fulcral eacute ocupado pelo conceito de liberdade de vontade livre de Deus e do homem Eacute a liberdade destas
duas vontades que eacute preciso harmonizar compatibilizar fazer concordarrdquo (Ob cit 168) 268
ldquo Distingue Molina trecircs classes de ciecircncia em Deus a meramente natural a livre a meacutedia A ciecircncia
meramente natural eacute a que natildeo pocircde ser absolutamente de outra maneira por ela conheceu Deus todas as
coisas agraves quais se estende a potecircncia divina quer imediatamente quer pela intervenccedilatildeo das causas
segundas sejam elas ligadas necessariamente entre si sejam contingentes podendo portanto
182
domiacutenio dos possiacuteveis por outro lado pela sua decisatildeo o homem realiza actos
que pertencem ao domiacutenio dos acontecimentos reais A ciecircncia meacutedia eacute aquela
pela qual Deus viu em sua essecircncia o que faria o homem no uso do seu livre
arbiacutetrio se fosse posto nesta ou naquela circunstacircncia podendo se quisesse
fazer o oposto Uma vez que Deus conhece tais acccedilotildees ele prevecirc ab eterno
que atitude o homem tomaria em certas circunstacircncias e soacute entatildeo decide
conceder a sua graccedila por uma acto de vontade inteiramente livre
Assim Molina consegue pensar a conciliaccedilatildeo entre a omnipotecircncia divina e a
liberdade humana na medida em que esta continua livre sob a acccedilatildeo da graccedila
O homem feito agrave imagem e semelhanccedila de Deus eacute o gestor da sua liberdade
e responsaacutevel pelo seu destino quer para o bem quer para o mal o que o
investe de responsabilidade face ao curso da histoacuteria eacute a proclamaccedilatildeo do
humanismo cristatildeo
Apesar das muacuteltiplas controveacutersias e do risco de a obra de Molina ser
colocada por pressatildeo dos Dominicanos no Iacutendice dos livros proibidos vaacuterias
Universidades europeias exprimiram o seu apoio agraves teses de Molina que
abriam a possibilidade de pensar a histoacuteria sob o concurso causal simultacircneo
de Deus e do Homem A Universidade de Sevilha escreveu ao papa em 1602
em defesa de Molina e em 5 de Setembro de 1607 o Papa Paulo V admitiu a
possibilidade de os molinistas poderem continuar a defender as respectivas
posiccedilotildees A importacircncia destas controveacutersias mostra que Molina (como
Fonseca) retomou categorias fundamentais do pensamento aristoteacutelico
(contingecircncia necessidade para repensar o problema antropoloacutegico do livre-
arbiacutetrio num contexto moderno marcado pela consciecircncia da liberdade do
indiviacuteduo na construccedilatildeo do seu proacuteprio destino)
Molina publicou ainda entre 1593 e 1609 De justitiae et jure em 6 volumes
contendo as liccedilotildees ditadas na Universidade de Eacutevora nos anos 157677 e
158182 Esta obra ocupava-se de problemas juriacutedicos relacionados com a
posiccedilatildeo de Portugal no mundo e continha reflexotildees sobre a legislaccedilatildeo
portuguesa Trata de temas como as relaccedilotildees entre a Igreja e o Estado a
indiferentemente existir ou natildeo existir A ciecircncia meramente livre eacute aquela ldquopela qual Deus depois do
acto livre da sua vontade sem nenhuma hipoacutetese nem condiccedilatildeo conheceu absoluta e determinantemente
por todas as complexotildees contingentes quais existiriam e quais realmente natildeo A ciecircncia meacutedia
finalmente eacute aquela ldquopela qual desde a altigravessima imprescrutaacutevel compreensatildeo de todo o livre arbigravetrio viu
em sua essecircncia que faria no uso da sua inata liberdade se fosse posto nesta ou naquela ordem ou
tambeacutem em infinitas ordens de coisas podendo se quisesse fazer na realidade o opostordquo (Ob Cit 174-
175)
183
origem da sociedade a escravatura a colonizaccedilatildeo a guerra justa e o direito de
resistecircncia
De justitiae et jure aborda o problema da justiccedila a partir de textos biacuteblicos
cruzados com textos de Aristoacuteteles269 e de S Tomaacutes de Aquino A mesma
concepccedilatildeo da autonomia que inspirava a doutrina da ciecircncia meacutedia ressurge
nas concepccedilotildees eacutetico-juriacutedicas de Molina relativas agraves relaccedilotildees do homem com
a sociedade baseadas no direito natural
O direito natural aparece como uma forma particular do direito divino que se
distingue do direito humano que eacute sempre para ele o direito positivo A
sociedade civil e o poder poliacutetico tecircm o seu fundamento no direito natural o
que implica a rejeiccedilatildeo da tese segundo a qual o regime jurisdicional se baseia
no estado de graccedila (deste modo a situaccedilatildeo de pecado entre os infieacuteis natildeo
suprime o direito de propriedade nem a legitimidade do poder poliacutetico)
Ao abrigo da noccedilatildeo de direito natural ele reconhece que todos os homens fieacuteis
ou infieacuteis europeus iacutendios ou negros estatildeo em peacute de igualdade Sendo o
direito de propriedade comum a todo o geacutenero humano ele discute a
legitimidade do domiacutenio portuguecircs distinguindo claramente o caso de
territoacuterios inabitados como Cabo Verde ou S Tomeacute da situaccedilatildeo de Angola e
Moccedilambique onde havia habitantes e um poder organizado
Molina apenas reconhece (na sequecircncia da doutrina tradicional desde Vitoacuteria)
como fundamento dos tiacutetulos de servidatildeo a guerra justa a condenaccedilatildeo agrave
servidatildeo por delito e o deixar-se vender a si mesmo como escravo Por outro
lado o tiacutetulo de guerra justa ou de justa posse natildeo pode basear-se num
suposto direito das gentes agrave navegaccedilatildeo ao comeacutercio agrave residecircncia agrave extracccedilatildeo
de riquezas agrave fundaccedilatildeo de cidades e outras formas de sociabilidade e de
comunicaccedilatildeo natural com os indiacutegenas pois esses tecircm o direito de impedir tais
praacuteticas nos territoacuterios de que satildeo legiacutetimos possuidores A noccedilatildeo de guerra
justa aplica-se apenas quando forem negados aos descobridores as faculdades
concedidas a todo o geacutenero humano pelo direito das gentes (nomeadamente
269
ldquoA par dos contemporacircneos e dos juristas Aristoacuteteles e S Tomaacutes de Aquino satildeo de facto os dois
autores mais citados na primeira abordagem do sentido da justiccedila A posiccedilatildeo platoacutenica por exemplo natildeo
soacute natildeo eacute discutida como nem sequer eacute mencionada Este silenciamento da posiccedilatildeo platoacutenica mais do que
um desconhecimento puro e simples de A Repuacuteblica e de As Leis indica uma opccedilatildeo de fundo que se iraacute
reflectir de modo mais claro nas questotildees em torno da problemaacutetica do direito naturalrdquo Antoacutenio Manuel
Martins ldquoA Teoria da Justiccedila em Molinardquo Luiacutes de Molina Regressa a Eacutevora 156-157
184
quando lhes for recusado o direito de passagem para comerciar ou
evangelizar)270
A doutrina de Molina foi-se impondo na colonizaccedilatildeo e missionaccedilatildeo da costa da
Aacutefrica oriental e ocidental e chegou mesmo ao Brasil onde apesar do duro
trabalho nos engenhos os negros eram acompanhados pelos missionaacuterios
jesuiacutetas que procuravam melhorar a sua situaccedilatildeo
Da vasta bibliografia de Suarez destacam-se Metaphisycorum Disputationum
obra em que reflecte de forma original sobre diversos problemas no acircmbito da
metafiacutesica escolaacutestica Ele discute a relaccedilatildeo entre a metafiacutesica como ciecircncia
dos primeiros princiacutepios e as ciecircncias particulares que ela funda e legiacutetima
sem contudo interferir no seu funcionamento A metafiacutesica eacute para ele a ciecircncia
do ser que estuda o ens in quantum reale sob o ponto de vista da substacircncia
e tambeacutem dos acidentes e Suarez discute em particular a tendecircncia para o
pensamento humano apreender a realidade por via da abstracccedilatildeo
generalizante apesar do estatuto ontoloacutegico privilegiado do indiviacuteduo e da
importacircncia da sua cognoscibilidade A metafiacutesica de Suarez exerceu uma
enorme influecircncia na Europa estando no entanto o levantamento dessa
influecircncia por fazer
1 3 Apogeu e decadecircncia da tradiccedilatildeo escolaacutestica
Relembrando a criacutetica de Heidegger agrave ldquoromanidade filosoacuteficardquo cuja traduccedilatildeo da
filosofia grega teria implicado um obscurecimento dos seus conceitos
fundamentais e imprimido ao pensamento filosoacutefico uma orientaccedilatildeo humanista
caracterizada pela valorizaccedilatildeo do studium humanitatis em contraposiccedilatildeo ao
barbarismo dos medievais podemos concluir que no essencial ela eacute correcta e
pode aplicar-se cabalmente agrave Segunda Escolaacutestica
De facto a Segunda Escolaacutestica levou a cabo natildeo apenas uma traduccedilatildeo da
filosofia aristoteacutelica associada agrave busca do rigor filoloacutegico como realizou uma
releitura de Aristoacuteteles isto eacute uma operaccedilatildeo de transposiccedilatildeo de sentido para a
soluccedilatildeo de problemas teoloacutegicos no acircmbito da Contra-Reforma assim como de
problemas juriacutedicos e poliacuteticos no contexto dos descobrimentos sendo
270
Sobre a modernidade do jusnaturalismo da escolaacutestica peninsular cf Joseacute Adelino Maltes em ldquoO
Jusnaturalismo catoacutelico dos seacuteculos XVI e XVII e as raigravezes da democraciardquo (Luis de Molina Regressa a
Eacutevora 53-73)
185
largamente dominada por uma leitura humanista Esta apropriaccedilatildeo da filosofia
Aristoteacutelica eacute feita a partir duma ldquosituaccedilatildeo hermenecircuticardquo determinada
dominada por problemas emergentes do contexto histoacuterico-linguiacutestico do
inteacuterprete abrindo certas possibilidades de interpretaccedilatildeo e fechando outras um
certo predomiacutenio da filosofia praacutetica e o desenvolvimento de uma racionalidade
argumentativa orientada para a soluccedilatildeo de problemas eacutetico-poliacuteticos
caracterizam este humanismo dos jesuiacutetas Tambeacutem a abordagem dos
problemas da metafiacutesica tende a enfatizar a autonomia do homem e a sua
liberdade colocando-o no centro da histoacuteria e responsabilizando-o pelo seu
futuro investindo-o duma nova dignidade ontoloacutegica que natildeo eacute obscurecida
nem diminuiacuteda pelo concurso da causa primeira
No entanto que esta leitura humanista de Aristoacuteteles signifique uma
decadecircncia ou empobrecimento do vocabulaacuterio filosoacutefico como pretende
Heidegger eacute altamente discutiacutevel e a riqueza do vocabulaacuterio filosoacutefico latino no
domiacutenio juriacutedico e religioso foi jaacute sublinhada pelo estudo do professor Franco
Volpi sobre esta temaacutetica ldquo [hellip] em geral no domiacutenio do sagrado o latim dos
romanos revela uma riqueza de conceitos de significados e de matizes que
natildeo derivam do grego mas que satildeo originaacuterios e que foram determinantes para
a cultura europeiardquo271
Em segundo lugar podemos afirmar que a reinterpretaccedilatildeo da dialeacutectica e da
retoacuterica aristoteacutelicas agrave luz da tradiccedilatildeo retoacuterica latina contribui largamente para a
renovaccedilatildeo dos estudos sobre argumentaccedilatildeo como do exerciacutecio da retoacuterica
como instrumento para dirigir o espaccedilo puacuteblico (lembremos que o termo
ldquoargumentordquo tem uma origem latina e que Ciacutecero foi o primeiro a defini-lo)
Nesta mesma perspectiva de valorizaccedilatildeo da ldquoromanidade filosoacuteficardquo eacute preciso
acentuar que a escolaacutestica peninsular significou um incremento dos estudos
filosoacuteficos desde logo porque os comentadores conimbricenses e Pedro da
Fonseca fundaram os seus comentaacuterios de Aristoacuteteles num conhecimento
directo dos textos gregos
271
ldquo [hellip] en general en el dominio de lo sagrado el latigraven de los romanos desvela una riqueza de
conceptos de significados y de matices que no derivan del griego sino que son originarios y que han sido
determinantes para la formacioacuten de la cultura europeardquo Franco Volpi ldquoHeidegger El Problema de la
intraducibilidad y la romanidad filosoacuteficardquo in Heidegger Linguagem e Traduccedilatildeo - coloacutequio
internacional Lisboa Centro de Filosofia da Universidade de Lisboa 2002 543
186
No entanto a natildeo traduccedilatildeo para as liacutenguas modernas dos principais autores da
Segunda Escolaacutestica juntamente com os imperativos de ordem ideoloacutegica e
religiosa associados agrave Contra-Reforma foram arrastando o progressivo
anquilosamento da tradiccedilatildeo escolaacutestica
Eacute aqui indispensaacutevel a referecircncia agrave Inquisiccedilatildeo cuja acccedilatildeo conheceu um
recrudescimento no seacuteculo XVII policiando o progresso das nossas letras para
impedir qualquer desvio em relaccedilatildeo agrave ortodoxia A Inquisiccedilatildeo ressalvava da
necessidade de passar pelo crivo da censura as teorias que se mantivessem
nos limites do curso conimbricense e os proacuteprios Jesuiacutetas elaboraram uma
lista de proposiccedilotildees proibidas que deviam ser banidas do ensino272
O Iacutendice Expurgatoacuterio Lusitano elaborado pela Inquisiccedilatildeo portuguesa
continha para aleacutem do cataacutelogo extenso de obras proibidas a seguinte regra
citada por Lopes Praccedila ldquoPorquanto neste reino e particularmente em Lisboa
haacute muito comeacutercio de estrangeiros setentrionais das partes entradas ou
infestadas de heresia proiacutebem-se quaisquer livros em liacutengua Inglesa
Flamenga e Tudesca (ainda que natildeo sejam nomeadas no cataacutelogo) para efeito
que nenhuma se possa ter nem ler sem primeiro apresentar ao Santo Ofiacutecio e
se examinar a sua qualidade E tambeacutem nos Franceses se encomenda que se
tenha muita advertecircncia como natildeo forem notoriamente sem suspeita e
proibidosrdquo273
Mercecirc da rigidez dos mecanismos associados agrave sua transmissatildeo da
dificuldade de contacto com as obras da filosofia moderna e desta suspeiccedilatildeo
relativamente a toda a produccedilatildeo filosoacutefica cientiacutefica e literaacuteria redigida nas
principais liacutenguas europeias a Escolaacutestica Peninsular dificilmente poderia
actualizar-se e vivificar-se no confronto e com os problemas cientiacuteficos eacuteticos e
poliacuteticos da modernidade
No que toca agrave liacutengua portuguesa parece provaacutevel que a longa permanecircncia da
escolaacutestica entre noacutes tenha contribuiacutedo fortemente para que o latim persistisse
ateacute bastante tarde como liacutengua exclusiva da filosofia ao contraacuterio doutros
paiacuteses onde a partir do Renascimento as liacutenguas nacionais eram
ocasionalmente usadas como liacutenguas de traduccedilatildeo
272
Cf Lopes Praccedila Histoacuteria da Filosofia em Portugal Lisboa Guimaratildees amp Cordf Editores 1974 187-196 273
Lopes Praccedila Histoacuteria da Filosofia em Portugal Lisboa Guimaratildees amp Cordf Editores 1974 200
187
A uacutenica traduccedilatildeo de filosofia para liacutengua portuguesa foi no periacuteodo
considerado a traduccedilatildeo de Ciacutecero feita durante o seacuteculo XVI (Ciacutecero
Tratados de Amizade Paradoxos e Sonhos de Scipiatildeo traduzidos do latim em
liacutengua portuguesa por Duarte de Resende no ano de 1531274) que no entanto
pelo seu caraacutecter excepcional e por se tratar dum autor valorizado
principalmente como retoacuterico indicia mais do que uma mudanccedila de
mentalidade relativamente agrave adopccedilatildeo do latim como liacutengua exclusiva do
pensamento filosoacutefico e cientiacutefico a grande difusatildeo e influecircncia ldquoexemplarrdquo da
retoacuterica ciceroniana
Este exemplo frutificou entre noacutes na brilhante oratoacuteria barroca de Antoacutenio Vieira
(Lisboa - 1608 - Baiacutea 1697) cujos sermotildees veiculam uma mundividecircncia
humanista e cristatilde fortemente influenciada pela restauraccedilatildeo escolaacutestica (em
particular pela filosofia da histoacuteria e pelo jusnaturalismo de Molina) e de fundas
repercussotildees na cultura portuguesa e brasileira
Antoacutenio Vieira surge como combinaccedilatildeo do ideal ciceroniano do orador (capaz
de influenciar um vasto auditoacuterio pelo perfil de cidadatildeo exemplar275) e do ideal
heroacuteico e voluntarista do missionaacuterio da Companhia de Jesus capaz de
desafiar os perigos e a hostilidade para difundir a mensagem cristatilde Os seus
sermotildees pregados em liacutengua portuguesa e cuidadosamente revistos pelo seu
autor para futura publicaccedilatildeo testemunham uma apropriaccedilatildeo original da
tradiccedilatildeo retoacuterica
Misturando temas da cultura erudita e da cultura popular enfatizando o pathos
do discurso retoacuterico dominando com mestria inigualaacutevel a arte da eloquecircncia e
natildeo receando aprender e usar as liacutenguas dos gentios a sua oratoacuteria visava
persuadir um auditoacuterio tatildeo vasto e tatildeo heterogeacuteneo que se estendia dos iacutendios
da Amazoacutenia agraves cortes da Europa e agrave cuacuteria romana
Vieira nas suas muacuteltiplas facetas de educador poliacutetico e missionaacuterio
representa um momento de grande consciecircncia da importacircncia da linguagem e
da diversidade das liacutenguas na interacccedilatildeo viva dos homens e no
274
Cf Apecircndice sobre Traduccedilotildees Portuguesas de Filosofia 275
Cf O ldquoSermatildeo da Sexageacutesimardquo foi pregado na Capela Real em Lisboa em Marccedilo de 1655 O Sermatildeo
encerra uma teoria da arte de pregar onde o ideal ciceroniano do orador se alia agrave missatildeo evangelizadora
do pregador Estaacute organizado em dez partes que se constroem agrave volta de uma metaacutefora central pregar eacute
semear Cf Pe Antoacutenio Vieira Sermotildees Porto 1959 Tomo I 3-66
188
estabelecimento dum entendimento comum do justo e do injusto condiccedilatildeo
imprescindiacutevel para manter a coesatildeo de uma comunidade
Os seus sermotildees pregados em Portugal e no Brasil abordam uma variedade de
temas quase inesgotaacutevel de que salientamos a reflexatildeo criacutetica sobre a retoacuterica
e as suas funccedilotildees na sociedade de seiscentos (Sermatildeo de Santo Antoacutenio aos
Peixes276 e Sermatildeo da Sexageacutesima) um enfoque original de problemas de
eacutetica e filosofia poliacutetica a partir da contraposiccedilatildeo entre os dois mundos
platoacutenicos ldquoo mundo dos olhosrdquo e ldquoo mundo dos filoacutesofosrdquo e do necessaacuterio
compromisso entre ambos (Sermatildeo de S Pedro 1644277 Sermatildeo da Dominga
Vigeacutesima Segunda Depois de Pentecostes278) a igualdade dos homens
perante o direito natural279 jaacute defendida por Molina e problemas relacionados
com este princiacutepio como o estatuto dos iacutendios o sofrimento dos escravos
negros nos engenhos o comportamento dos colonos portugueses (Sermatildeo da
Epifania280 Sermatildeo XIV do Rosaacuterio281)
Haacute ainda que salientar a sua obra escrita com maior sobriedade argumentativa
e sem o pathos retoacuterico dos sermotildees onde retoma muitos destes temas
poliacuteticos e desenvolve a temaacutetica escatoloacutegica do V Impeacuterio282 Esta parte mais
especulativa da sua obra eacute constituiacuteda por uma extensa epistolografia (mais de
setecentas cartas) pela Histoacuteria do Futuro - escrita em liacutengua portuguesa
porque destinada a persuadir os portugueses das suas responsabilidades pela
276
Cf O ldquoSermatildeo de Santo Antoacutenio aos Peixesrdquo foi proferido na cidade de S Luiacutes do Maranhatildeo em 1654
constituindo um documento da notaacutevel habilidade oratoacuteria capacidade argumentativa e poder satiacuterico do
Pe Antoacutenio Vieira que aigrave confronta o papel dos pregadores como ldquosal da terrardquo com a indiferenccedila dos
auditoacuterios tomando vaacuterios peixes como siacutembolos dos viacutecios dos colonos portugueses naquele Estado do
Brasil Cf ob cit tomo VII 246-280 277
O ldquoSermatildeo de S Pedrordquo foi pregado em Lisboa em S Juliatildeo em 1644 agrave Veneraacutevel Congregaccedilatildeo dos
Sacerdotes dispondo-se num conjunto de trecircs homilias relativas agrave figura de S Pedro Cf ob cit Tomo
VII 351-384 278
O ldquoSermatildeo da Dominga Vigeacutesima Segundardquo foi pregado no Estado do Maranhatildeo em 1664 e
desenrola-se como comentaacuterio agrave pergunta dos Hebreus se era liacutecito pagar tributo a Ceacutesar Cf ob cit
Tomo VI 226-287 279
Cf Sobre o jusnaturalismo do Pe Antoacutenio Vieira cf Antoacutenio Braz Teixeira em Caminhos e Figuras
da Filosofia do Direito Luso-Brasileira Lisboa 2002 41-51 280
O ldquoSermatildeo da Epifaniardquo foi pregado na Capela Real em 1662 agrave rainha D Luiacutesa regente do reino na
menoridade de D Afonso VI Sobre este sermatildeo escreveu Camilo Castelo Branco ldquoVieira comoveu ateacute
agraves laacutegrimas e fez que a santa liberdade volvesse agrave Ameacuterica a estalar as gargalheiras do iacutendio e a cicatrizar-
lhe as vergastadas do tagenterdquo cf Continuaccedilatildeo e Complemento do Curso de Literatura Portuguesa de
Andrade Ferreira 102 Cf ob cit tomoII 5-61 281
O ldquoSermatildeo Deacutecimo Quarto do Rosaacuteriordquo foi pregado em 1633 agrave irmandade de negros de um engenho
no dia de S Evangelista e descreve o sofrimento dos escravos negros nos engenhos de accediluacutecar do Brasil
Cf ob cit 1959 tomoXI 281-317 282
Sobre a metafiacutesica da Histoacuteria de Vieira cf Paulo Alexandre Borges em A Plenificaccedilatildeo da Histoacuteria
em Padre Antoacutenio Vieira - estudos sobre a ideia de Quinto Impeacuterio na Defesa Perante o Tribunal do
Santo Ofiacutecio Lisboa 1995
189
conduccedilatildeo da histoacuteria em direcccedilatildeo ao Impeacuterio de Cristo - assim como a Clavis
Prophetarum escrita em latim e destinada a persuadir um virtual auditoacuterio
universal dessa segunda epifania anunciada nas profecias biacuteblicas
Esta temaacutetica milenarista do V Impeacuterio eacute suportada em Vieira numa
hermenecircutica dos textos biacuteblicos que tem como pressuposto a ideia de
ldquoaplicaccedilatildeordquo dos textos sagrados a novos contextos e a problemas do acircmbito da
filosofia da Histoacuteria Vieira faz a leitura destes textos tomando-os como textos
metafoacutericos e simboacutelicos cujo sentido oculto pode ser desvendado pela acccedilatildeo
do tempo e da histoacuteria
Esta esperanccedila escatoloacutegica jaacute corrente em contextos de crise desde a Idade
Meacutedia eacute contudo em Vieira fundado natildeo apenas nas profecias biacuteblicas como
tem sido sublinhado mas na doutrina da ciecircncia meacutedia de Molina Convicto do
papel decisivo da vontade livre dos homens e na possibilidade de obter o
auxiacutelio da graccedila como preconizavam os molinistas (ldquoCom efeito sendo
racionais as ovelhas que devem ser trazidas ao redil e hatildeo-de ouvir a voz do
pastor o efeito destinado natildeo depende apenas da vontade de Deus mas
tambeacutem da liberdade e alvedrio do homemrdquo283) Vieira desenvolve um intenso
esforccedilo de persuasatildeo dos seus contemporacircneos visando mobilizar as
vontades atraveacutes do discurso
A obra de Vieira interessa-nos por constituir um momento particular de
consciecircncia da importacircncia da linguagem na negociaccedilatildeo das soluccedilotildees dos
problemas poliacuteticos e na criaccedilatildeo dum sensus comunis capaz de dar coesatildeo a
uma comunidade em contexto de crise e de dispersatildeo como era entatildeo o caso
de Portugal
O interesse da sua obra eacute para noacutes histoacuterico natildeo apenas porque significou
um momento de afirmaccedilatildeo da liacutengua portuguesa mas porque na sua obra a
liacutengua se constitui ela mesma em acontecer histoacuterico em sentido eminente ou
Ereignis nela acontece a apropriaccedilatildeo viva da tradiccedilatildeo escolaacutestica e a
projecccedilatildeo do humanismo cristatildeo que se difundiraacute na cultura luso-brasileira e
animaraacute muitas criaccedilotildees culturais posteriores Neste sentido tatildeo lapidarmente
sublinhado por Fernando Pessoa284 ao designaacute-lo como Imperador da Liacutengua
283
Antoacutenio Vieira Chave dos Profetas Lisboa 2000 689 284
Sobre a influecircncia do profetismo de Vieira em Fernando Pessoa cf Alfredo Antunes em Saudade e
Profetismo em Fernando Pessoa Braga 1983 450-455
190
Portuguesa a sua obra ditou e instituiu um mundo que ateacute hoje ainda eacute o
nosso
2 A modernidade pombalina e a decadecircncia da tradiccedilatildeo escolaacutestica
Para caracterizar e delimitar o conceito de modernidade partimos da posiccedilatildeo
heideggeriana de que cada era da histoacuteria da cultura eacute fundada numa
meditaccedilatildeo metafiacutesica sobre o ente e numa decisatildeo sobre a essecircncia da
verdade ldquoNa metafiacutesica cumpre-se a meditaccedilatildeo sobre a essecircncia do ente e
uma decisatildeo sobre a essecircncia da verdade A metafiacutesica funda uma era na
medida em que atraveacutes de uma determinada interpretaccedilatildeo do ente e atraveacutes
de uma determinada concepccedilatildeo da verdade lhe daacute o fundamento da sua figura
essencialrdquo285
Um dos fenoacutemenos da era a que chamamos ldquomodernardquo foi um novo conceito
de ciecircncia cujo paradigma reside nas ciecircncias experimentais este novo
conceito de ciecircncia deixa-se descrever como investigaccedilatildeo experimental ou
seja como indagaccedilatildeo do ente a partir de um projecto de matematizaccedilatildeo
integral da natureza
Constataacutemos jaacute que a restauraccedilatildeo escolaacutestica pela difusatildeo das matemaacuteticas e
pela actualizaccedilatildeo cientiacutefica de alguns dos seus professores e bibliotecas
contribuiu - apesar das restriccedilotildees apertadas impostas pelo contexto poliacutetico-
religioso - como eacute hoje geralmente reconhecido para a difusatildeo de uma novo
interesse pelas mateacuterias cientiacuteficas natildeo se reduzindo o seu ensino apenas agraves
humanidades
No entanto a relaccedilatildeo da Segunda Escolaacutestica com a ciecircncia moderna tem que
ser compreendida a partir da decisatildeo metafiacutesica que suporta o projecto de
investigaccedilatildeo experimental da natureza que doravante seraacute determinante e
que Heidegger caracteriza nos seguintes termos ldquoSoacute se chega agrave ciecircncia como
investigaccedilatildeo se e apenas se a verdade se transformou em certeza do
representar Eacute na metafiacutesica de Descartes que o ente eacute pela primeira vez
285
ldquoIn der Metaphysik vollzieht sich die Besinnung auf das Wesen des Seienden und eine Entscheidung
uumlber das Wesen der Wahrheit Die Metaphysik begruumlndet ein Zeitalter indem sie ihm durch eine
bestimmte Auslegung des Seienden und durch eine bestimmte Auffassung der Wahrheit den Grund seiner
Wesensgestalt gibtldquo Heidegger ldquoDie Zeit des Weltbildesrdquo in H GA 5 75
191
determinado como objectividade do representar e a verdade como certeza do
representarrdquo286
De acordo com a perspectiva de Heidegger que explicitamente adoptamos
natildeo haveria na Idade Moderna nenhum enfraquecimento da metafiacutesica mas
apenas uma transformaccedilatildeo desta que agora jaacute natildeo parte da pergunta sobre o
ente na totalidade como ocorria na metafiacutesica aristoteacutelico-escolaacutestica mas sim
da pergunta pelo homem considerado como sujeito
A metafiacutesica moderna natildeo parte pois da ideia de Deus mas da ideia do eu da
consciecircncia tomado como o fundamento indiscutiacutevel de toda as certezas face
agrave qual o mundo tende a ser transformado em representaccedilatildeo do sujeito e a ele
oposto como ldquoobjectordquo ldquoDescartes impele o duvidar de todo o conhecimento
ateacute ao ponto em que depara com algo indubitaacutevel que deve fornecer o
fundamento para a nova construccedilatildeo um fundamentum inconcussum uma base
inabalaacutevel um substrato para todo o saber algo estaacutevel e firme um
subjectum287
Esta nova eacutepoca caracteriza-se pois pela tentativa de o homem se libertar da
feacute na revelaccedilatildeo e pela sua auto-posiccedilatildeo como fonte de toda a certeza como
centro e medida de todas as coisas como tentativa de estabelecer de modo
autoacutenomo as normas a que devem subordinar-se o conhecimento e a acccedilatildeo
Natildeo se trata de uma novidade absoluta - haacute que sublinhar que na metafiacutesica
escolaacutestica pressupotildee-se um Deus criador que tudo criou racionalmente
sendo por isso o universo uma totalidade ordenada susceptiacutevel de ser
apropriado pelo intelecto humano e ainda que no interior da Segunda
Escolaacutestica se vinha desenhando um importante movimento de ideias que
sublinhavam a autonomia e a responsabilidade do homem na conduccedilatildeo dos
assuntos humanos
Francisco Gama Caeiro sublinha relativamente ao curso conimbricense que ldquoeacute
bem reconhecida a sua invulgar repercussatildeo na Europa documentada pelo
286
ldquoZur Wissenschaft als Forschung kommt es erst dann und nur dann wenn die Wahrheit zur
Gewissheit des Vorstellens sich gewandelt hat Erstmals wird das Seiende als Gegenstӓndlichkeit des
Vorstellens und die Wahrheit als Gewiβheit des Vorstellens in der Metaphysik des Descartes bestimmtldquo
Heidegger ldquoDie Zeit des Weltbildesrdquo in H GA 5 87 287
ldquoDescartes treibt die Bezweiflung aller Kenntnis bis dorthin wo er auf etwas Unzweifelhaftes stoumlβt
das die Grundlage fuumlr den kommenden Neubau abgeben soll ein fundamentum inconcussum eine
unerschuumltterliche Grundlage eine Unterlage fuumlr alles Wissen ein Bestaumlndiges Beharrendes ein
subiectumrdquo LWS GA 38 146
192
avultado nuacutemero de reimpressotildees que dele se fizeram em Franccedila Alemanha e
Itaacuteliardquo e ainda que ldquoo curso reflectiu-se nomeadamente nos rumos da filosofia
moderna pois ele impregnou de modo profundo o pensamento de Descartes
Leibniz Malebranche e Wolffrdquo288
Assim a afirmaccedilatildeo do homem e da autonomia da sua razatildeo defendida pela
modernidade que teraacute como seu correlato natural a de que todo o ente poderaacute
ser pensado no puro pensar das matemaacuteticas significa uma viragem que se
efectua no interior da tradiccedilatildeo metafiacutesica (e contra ela) mas que de certo
modo jaacute estava preparada por alguns pensadores da Segunda Escolaacutestica
Tal natildeo pode no entanto obscurecer a importacircncia e a significaccedilatildeo da viragem
moderna no sentido duma metafiacutesica da subjectividade que se afirma com o
cogito cartesiano nem a radical ruptura com a autoridade da tradiccedilatildeo religiosa
que se anuncia com a duacutevida cartesiana
Esta ruptura nunca pocircde consumar-se em Portugal graccedilas agraves severas
restriccedilotildees impostas pela Inquisiccedilatildeo ao acesso agrave literatura cientiacutefica e filosoacutefica
europeia A estas restriccedilotildees veio a somar-se ainda a proibiccedilatildeo estabelecida a 7
de Maio de 1746 pelo Reitor do Coleacutegio das Artes de Coimbra em edital de
que ldquonos exames ou liccedilotildees conclusotildees puacuteblicas ou particulares se natildeo ensine
ou defenda opiniotildees novas pouco recebidas e inuacuteteis para o estudo das
ciecircncias maiores como satildeo as de Renato Descartes Gassendi Newton e
outros e nomeadamente qualquer ciecircncia que defenda os aacutetomos de Epicuro
ou negue a realidade dos acidentes eucariacutesticos ou quaisquer conclusotildees
opostas ao sistema de Aristoacuteteles o qual nestas escolas se deve seguir como
repetidas vezes se recomenda nos Estatutos deste Coleacutegio das Artesrdquo289
O que vai caracterizar a entrada de Portugal na modernidade vai ser a tentativa
de acolher a ciecircncia moderna e reformar o ensino sem contudo operar esta
ruptura nem compreender claramente o projecto metafiacutesico que estaacute
subjacente agrave nova ciecircncia experimental290
288
Gama Caeiro ldquoO Pensamento Filosoacutefico em Portugal e no Brasil do seacutec XVI ao seacutec XVIIIrdquo in Actas
do I Congresso Luso-Brasileiro de Filosofia Revista Portuguesa de Filosofia Braga 1982 64 289
Adolpho CrippardquoConceito de Filosofia na Eacutepoca Pombalinardquo in Actas do I Congresso Luso-
Brasileiro de Filosofia Revista Portuguesa de Filosofia Braga 1982 436 290
Sobre o caraacutecter fragmentaacuterio e descontiacutenuo como as correntes da filosofia moderna se repercutiram
na Peniacutensula Ibeacuterica cf Adolpho Crippa ldquoConceito de Filosofia na Eacutepoca Pombalinardquo in Actas do
Congresso Luso - Brasileiro de Filosofia Braga 1982 Referindo-se ao quadro geral da filosofia em
Portugal no seacutec XVIII o autor afirma ldquoO grupo maior era constituigravedo pelos escolaacutesticos ou aristoteacutelicos
os quais identificando-se em alguns pontos essenciais tinham tambeacutem suas divergecircncias Tomistas
193
2 1 O Projecto pedagoacutegico do iluminismo portuguecircs
A entrada na modernidade vai ser dominada por uma discussatildeo sobre
educaccedilatildeo e sobre as necessaacuterias reformas que se querem inspiradas no
ideaacuterio iluminista do progresso e numa abertura agraves ciecircncias experimentais
A ciecircncia moderna em Portugal deu os seus primeiros passos no seacuteculo XVIII
com a criaccedilatildeo por D Joatildeo V na deacutecada de 20 da Aula de Fiacutesica Experimental
no Palaacutecio das Necessidades a cargo da Congregaccedilatildeo do Oratoacuterio assim
como com as liccedilotildees de Filosofia proferidas pelo Pe Joatildeo Baptista no interior da
referida Congregaccedilatildeo que pretendiam recuperar o sentido originaacuterio da
filosofia aristoteacutelica contra as distorccedilotildees escolaacutesticas conciliando-o com a
filosofia dos rdquomodernosrdquo publicadas sob o tiacutetulo Philosophia Aristoteacutelica
Restituta
D Joatildeo V leva ainda a cabo diversas iniciativas visando integrar na cultura
portuguesa o ensino das ciecircncias e da filosofia moderna tendo chamado a
atenccedilatildeo para a necessidade de envio dos nossos estudantes para as grandes
universidades e academias europeias Foi iniciada por Jacob de Castro
Sarmento a traduccedilatildeo das obras de Bacon para portuguecircs o que nunca veio a
ser concluiacutedo (tratando-se segundo Orlando Vitorino da primeira tentativa de
traduzir uma obra por motivos especificamente filosoacuteficos) mas este autor
publicou em 1737 a obra Teoacuterica Verdadeira das Mareacutes Conforme Philosophia
do Incomparaacutevel Cavalheiro Isaac Newton
A deacutecada de 40 ainda sob o reinado de D Joatildeo V ficaraacute marcada pela
publicaccedilatildeo dos dois principais textos do iluminismo portuguecircs A Loacutegica
Racional Geomeacutetrica e Analiacutetica do engenheiro Manuel de Azevedo Fontes
(1744) e o Verdadeiro Meacutetodo de Estudar de Luiacutes Antoacutenio Verney (1746) Esta
uacuteltima obra centrada nos defeitos do ensino e na decadecircncia da cultura
portuguesa dirigia uma criacutetica contundente agrave escolaacutestica e fazia apologia dum
ensino moderno livre dos artifiacutecios da loacutegica silogiacutestica dos problemas
escotistas nominalistas e outros grupos seguiam o caminho tradicional da filosofiaOposto era o grupo
dos modernos (recentiores) que buscava um novo caminho para a filosofofia Por fim apresentaram-se os
ecleacutecticos que procuraram uma independecircncia pessoal frente agraves escolas laquoNovadores e ecleacuteticos foram os
pioneiros do pensamento moderno em Portugal Aparentava-os a concepccedilatildeo mecanicista da natureza e
tinham por si em vez da autoridade e da tradiccedilatildeo da escola os notaacuteveis progressos cientiacuteficos no domiacutenio
da Matemaacutetica e da Fiacutesica e a galeria vasta de grandes nomes do seacuteculo Uns e outros foram os agentes
mais ou menos activos e propulsores da criacutetica e do desapreccedilo da siacutentese escolaacutesticahellipraquordquo (Ob cit 439)
194
nebulosos da metafiacutesica orientado para a ldquofilosofia naturalrdquo291 e a
aprendizagem das liacutenguas modernas preconizando uma aproximaccedilatildeo agraves
modernas ideias pedagoacutegicas em vigor na Europa
Para a nossa temaacutetica eacute particularmente importante a posiccedilatildeo de Verney
relativamente agrave afirmaccedilatildeo das liacutenguas modernas ou ldquovulgaresrdquo como liacutenguas
de difusatildeo do pensamento filosoacutefico e do conhecimento cientiacutefico Esta
preocupaccedilatildeo leva Verney a exigir o ensino da Gramaacutetica e da Ortografia
portuguesas como meio de elevar a liacutengua portuguesa a uma liacutengua culta
retirando-a do estatuto de menoridade relativamente ao latim ldquo A Gramaacutetica eacute
a arte de escrever e falar correctamente Todos aprendem a sua liacutengua no
berccedilo mas se acaso se contentam com essa notiacutecia nunca falaratildeo como
homens doutos Os primeiros mestres das liacutenguas vivas comummente satildeo
mulheres ou gente de pouca literatura de que vem que se aprende a proacutepria
liacutengua com muito erro e palavra improacutepria e pela maior parte palavras
plebeias Eacute necessaacuterio emendar com estudo os erros daquela primeira
doutrinardquo292
Que esta preocupaccedilatildeo de normalizar e disciplinar a aprendizagem da liacutengua
portuguesa marcha a par da preocupaccedilatildeo da aprendizagem das ciecircncias eacute
explicitamente afirmado pelo proacuteprio autor que no apecircndice dedicado agrave
aprendizagem das liacutenguas modernas reafirma a convicccedilatildeo de todos os
espiacuteritos modernos de que as ciecircncias se podem estudar em todas as liacutenguas e
de que ldquoa maior dificuldade das Ciecircncias consiste em elas serem escritas em
Latim liacutengua que os rapazes natildeo entendem bem ldquo293 As criacuteticas de Verney agraves
tentativas de aprender a liacutengua portuguesa atraveacutes da poesia assim como as
severas criacuteticas agrave retoacuterica do Pe Antoacutenio Vieira e agrave poesia de Camotildees no
volume dedicado aos estudos literaacuterios satildeo tambeacutem indicadores do sentido em
que se pretende fazer evoluir a liacutengua294
Outra das frentes deste combate de Verney em prole da actualizaccedilatildeo cientiacutefica
dos portugueses foi a apologia da aprendizagem das liacutenguas estrangeiras
ldquoForam os romanos os primeiros que aprenderam voluntariamente liacutengua
291
O repuacutedio da escolaacutestica no seacuteculo XVIII portuguecircs assentava no repuacutedio da Loacutegica formal da Fiacutesica
qualitativa e da concepccedilatildeo das formas substanciais Cf ob cit 440 292
Luiacutes Antoacutenio Verney O Verdadeiro Meacutetodo de Estudar vol I Lisboa Livraria Saacute da Costa 1949
2627 293
Ibidem vol I 273 294
Cf Ibidem vol II 177-197 e 302-323
195
estrangeira o que natildeo consta que povo algum antes deles tivesse feito E
nisto me parecem mais racionaacuteveis porque conhecendo a necessidade dela
para o estudo da Filosofia Matemaacutetica e Belas-Letras natildeo se envergonharam
de receber liccedilotildees daqueles mesmos a quem tinham vencido e davam leis Este
eacute um grande elogio para uma naccedilatildeo tatildeo considerada como a romana conhecer
que eacute vencida em merecimento e confessar publicamente esse vencimento e
pocircr remeacutedio a essa faltardquo295
Natildeo deixa no entanto de ser sintomaacutetico do sentido desta abertura agrave
modernidade que as liacutenguas que ele reputava como mais importantes para a
difusatildeo das ideias modernas fossem o italiano e o francecircs liacutenguas latinas
coabitando o mesmo espaccedilo da Contra-Reforma O proacuteprio Verney cuja
influecircncia determinante parece ter sido o da filosofia de John Locke leu este
autor traduzido para francecircs liacutengua que dominava desde o berccedilo por ser de
ascendecircncia francesa
A reforma pombalina parcialmente inspirada na obra de Verney culminou com
a reforma da Universidade de Coimbra em 1772296 Como parte desta reforma
foi criado o primeiro Gabinete de Fiacutesica Experimental ldquopara Depoacutesito De
Maacutequinas Aparelhos e Instrumentos os quais satildeo necessaacuterios para que as
liccedilotildees de Fiacutesica se faccedilam com aproveitamento dos estudantesrdquo Tais aparelhos
tornaram possiacuteveis aulas de fiacutesica experimental em que conforme acontecia na
Europa se recriavam o rei as cortes e mesmo o publico em geral mas nunca
foram capazes de fundar um ensino experimental nem de estimular praacuteticas de
investigaccedilatildeo na Universidade
A par de uma inspiraccedilatildeo empirista havia no entanto tambeacutem na referida
reforma uma influecircncia cartesiana bem patente nos novos estatutos da
Universidade Uma das justificaccedilotildees fundamentais da reforma pombalina foi a
tese de que os jesuiacutetas teriam produzido grandes danos relativamente ao
295
Ibidem vol I 2829 296
Segundo Adolpho Crippa a reforma pombalina da Universidade de 1972 teve uma inspiraccedilatildeo
empirista bem patente na adopccedilatildeo das Instituiccedilotildees de Loacutegica de Genovesi como manual de estudo Sob a
influecircncia das teorias empiristas de John Locke e Bacon que chegavam a Portugal de modo indirecto
atraveacutes de comentadores endureceu-se a criacutetica agrave escolaacutestica e adoptou-se uma afirmaccedilatildeo mais radical da
capacidade da razatildeo natural para coordenar os dados da experiecircncia do mesmo modo a reflexatildeo
filosoacutefica deveria acompanhar o trabalho das ciecircncias dependendo directamente da observaccedilatildeo A
reivindicaccedilatildeo da autonomia da Fiacutesica em relaccedilatildeo agrave metafiacutesica e a convicccedilatildeo na sua possibilidade de tudo
conhecer era tambeacutem um aspecto fundamental das teses destes ldquo modernosrdquo em que se inspirou a reforma
pombalina Nesta linha situavam-se Jacob de Castro Sarmento e Luiacutes Antoacutenio de Verney Cf rdquoConceito
de Filosofia na Eacutepoca Pombalinardquo in Actas do I Congresso Luso-Brasileiro de Filosofia 445
196
desenvolvimento cientiacutefico e agraves praacuteticas pedagoacutegicas Os jesuiacutetas eram
acusados de escamotear os problemas relativos agrave importacircncia do meacutetodo
mediante o qual fosse assegurada a ordem nos estudos e a progressatildeo dos
alunos e de adoptar procedimentos pedagoacutegicos que se afastavam da ordem
natural da razatildeo Neste discurso iluminista o meacutetodo dos jesuiacutetas era
designado como analiacutetico e criticado por fundar um tipo de ensino baseado no
comentaacuterio dos textos e numa interpretaccedilatildeo casuiacutestica que favorecia a
arbitrariedade e instalava a duacutevida tornando todas as mateacuterias disputaacuteveis e
arrastando como consequecircncia a falta de conexatildeo entre os conhecimentos e a
incerteza das conclusotildees
A reforma fazia nos estatutos da Universidade de Coimbra a apologia do novo
meacutetodo ldquonaturalrdquo aiacute apelidado de demonstrativo determinando que fosse
utilizado em todas as disciplinas desde a teologia a todas as ciecircncias e agraves
partes que as compotildeem O meacutetodo demonstrativo ou geomeacutetrico preconizava a
ordem da siacutentese como a ordem natural de aprendizagem das diversas
mateacuterias segundo o ideal da evidecircncia preconizado pela filosofia cartesiana
ldquopara mais se facilitar o estudo das ciecircncias e nelas se poderem fazer mais
vantajosos progressos natildeo haacute coisa que mais possa concorrer do que a
disposiccedilatildeo e distribuiccedilatildeo das mesmas ciecircncias e de todas as suas partes por
uma ordem e meacutetodo que primeiro se ensinem e aprendam as que preparem e
datildeo agrave luz para a inteligecircncia das outras e nelas se natildeo passe jamais de umas
proposiccedilotildees para as outras sem que as precedentes se tenham provado e
demonstrado com a maior evidecircncia de que elas foram susceptiacuteveis conforme
a sua natureza e princiacutepiosrdquo297
Este meacutetodo considerado ldquonaturalrdquo tem em vista a boa ordem de exposiccedilatildeo do
conhecimento a fim de se conseguir a rapidez e eficaacutecia do ensino contra a
apregoada morosidade e ineficaacutecia da disputatio em consonacircncia com o ideal
de ldquocertezardquo caracteriacutestico da ciecircncia moderna
Apesar da aparente radicalidade deste combate ao meacutetodo de ensino
escolaacutestico que teve a sua face mais visiacutevel na reforma da Universidade de
Coimbra e na extinccedilatildeo de todas as escolas do Reino cuja direcccedilatildeo estava
entregue agrave Companhia de Jesus esta abertura agrave modernidade natildeo significou
uma ruptura radical com os paradigmas escolaacutesticos
297
Estatutos da Universidade Coimbra (1772) Livro III parte II 142
197
Permanecendo a desconfianccedila face agrave filosofia que se desenvolvia nos paiacuteses
onde as controveacutersias de natureza religiosas e o protestantismo imperavam
como era o caso da Franccedila da Inglaterra e da Alemanha natildeo houve acesso ao
debate filosoacutefico sobre os princiacutepios da metafiacutesica aristoteacutelica nem aos
problemas mais complexos do seu confronto com a ciecircncia moderna
O Santo Ofiacutecio manteve-se e este continuou a sua acccedilatildeo em Portugal tendo-
se o Marquecircs de Pombal limitado a transferir os procedimentos contra os que
possuiacutessem ou vendessem livros proibidos para a Real Mesa Censoacuteria onde
estavam igualmente presentes os inquisidores298 Estando a obra de Galileu e
tambeacutem a de Descartes no Iacutendex os fundadores da ciecircncia e da metafiacutesica
modernas eram praticamente desconhecidos natildeo resultando clara a profunda
ruptura que o meacutetodo experimental implica com a experiecircncia natural e duma
forma geral com o saber empiacuterico
2 2 A Criacutetica agrave tradiccedilatildeo escolaacutestica e o ecletismo filosoacutefico
O pensamento portuguecircs deste periacuteodo teve (como em toda a Europa) como
caracteriacutestica marcante a afirmaccedilatildeo de um ideal de progresso alicerccedilado na
razatildeo e considerado incompatiacutevel com a tradiccedilatildeo escolaacutestica fazendo por isso
a condenaccedilatildeo absoluta do aristotelismo e de toda a tendecircncia metafiacutesica e
especulativa em filosofia
No entanto o tom apologeacutetico insultuoso e persecutoacuterio da criacutetica agrave
escolaacutestica bem expressos nos proacuteprios estatutos da Universidade de
Coimbra oculta um facto que teraacute para o futuro da nossa cultura uma influecircncia
capital em vez de participar do confronto teoacuterico da ciecircncia moderna com a
metafiacutesica aristoteacutelica e os paradigmas do saber escolaacutestico em que toda a
filosofia europeia moderna participou os intelectuais e a cultura portugueses
ficaram arredados desse debate
Assim em vez participar no caminho da criacutetica aberta por Galileu e Descartes
a maior parte da inteligecircncia portuguesa foi levada a optar pela simples
amputaccedilatildeo natildeo soacute da filosofia escolaacutestica como de toda a metafiacutesica
doravante substituiacuteda pela ldquofilosofia naturalrdquo ou pela ldquofiacutesicardquo o que se
anunciava jaacute em Verney
298
Cf Lopes Praccedila Histoacuteria da Filosofia em Portugal Lisboa Guimaratildees Editores 1974 276
198
Efectivamente a criacutetica mordaz e contundente agrave escolaacutestica do volume do
Verdadeiro Meacutetodo de Estudar dedicado aos estudos filosoacuteficos centra-se na
criacutetica aos argumentos de autoridade fundados em Aristoacuteteles na Biacuteblia e nos
decretos papais299 e exige o livre exame da razatildeo de todos os autores da
filosofia moderna exigecircncia muito mais ambiciosa do que o que foi
efectivamente realizado pela reforma pombalina Contudo para Verney esta
abertura agrave modernidade significa no plano concreto dos estudos cuja reforma
se pretende implantar a simples supressatildeo da metafiacutesica e a substituiccedilatildeo da
filosofia pela ciecircncia ldquoEu suponho que a Filosofia eacute conhecer as coisas pelas
suas causas ou conhecer a verdadeira causa das coisas Esta definiccedilatildeo
recebem os mesmos Peripateacuteticos ainda que eles a explicam com palavras
mais obscuras Mas chamem-lhe como quiserem vem a significar o mesmo
vg saber qual eacute a verdadeira causa que faz subir a aacutegua na seringa eacute
Filosofia conhecer a verdadeira causa por que a poacutelvora acesa em uma mina
despedaccedila um grande penhasco eacute Filosofia outras coisas a estas
semelhantes em que pode entrar a verdadeira notiacutecia das causas das coisas
satildeo Filosofiardquo300
Esta amputaccedilatildeo da metafiacutesica impossibilitava a compreensatildeo do essencial da
viragem para a modernidade - sem uma clara consciecircncia dos fundamentos
ontoloacutegicos da revoluccedilatildeo cientiacutefica do seacuteculo XVII nem se ter uma verdadeira
compreensatildeo do meacutetodo cientiacutefico instaurou-se uma compreensatildeo vaga
superficial e empirista da ciecircncia moderna e toda a poleacutemica propriamente
filosoacutefica se centrou na condenaccedilatildeo da metafiacutesica e numa exaltaccedilatildeo da ciecircncia
experimental inspirada em Newton e num debate dos problemas
gnosioloacutegicos dominado pelas posiccedilotildees empiristas relativas agrave origem do
conhecimento sem preocupaccedilotildees de rigor ou de precisatildeo conceptual
Segundo Adolpho Crippa301 a criacutetica de Gassendi a Aristoacuteteles influenciou
fortemente os pensadores portugueses deste periacuteodo induzindo numa criacutetica agrave
filosofia Aristoteacutelica como um vazio jogo de palavras e propondo a experiecircncia
como uacutenica via para a explicaccedilatildeo dos fenoacutemenos fiacutesicos A obra de Gassendi
teria chegado a Portugal atraveacutes do Abregeacute de Philosophie de Gassendi de
299
Luis Antoacutenio Verney O Verdadeiro Meacutetodo de Estudar vol III 89 300
Ibidem vol III 39 301
Cf Adolpho Crippa ldquoConceito de filosofia na eacutepoca pombalinardquo in Actas do I Congresso Luso-
Brasileiro de Filosofia 436-459
199
Bernier (1678) isto eacute atraveacutes de divulgadores e teria sido ldquodada a confusatildeo
generalizadardquo frequentemente confundida com a filosofia cartesiana
Relativamente a Descartes a primeira alusatildeo que lhe eacute feita em Portugal
remonta a 1649 no ldquoCursos Philosophicusrdquo de Francisco Soares Lusitano a
propoacutesito da circulaccedilatildeo do sangue embora se suponha que jaacute existisse um
conhecimento indirecto da obra de Descartes atraveacutes da presenccedila em Portugal
do matemaacutetico P Ciermans e do engenheiro Joatildeo Gillot disciacutepulo do filoacutesofo
francecircs
O Cursos Philosophicus de Antoacutenio Cordeiro (1676-1680) revela tambeacutem um
conhecimento das teorias de Gassendi e Descartes (apesar de omitir qualquer
citaccedilatildeo expliacutecita) assim como a tentativa ecleacutectica de conciliaccedilatildeo com a filosofia
escolaacutestica
Apesar das controveacutersias geradas em toda a Europa pela filosofia cartesiana
ela parece duma forma geral ser mal conhecida em Portugal e o proacuteprio
Verney no Verdadeiro Meacutetodo de Estudar distancia-se de Descartes
considerando o seu sistema ldquomais engenhoso do que verdadeirordquo
Ainda segundo Adolpho Crippa a situaccedilatildeo filosoacutefica durante a segunda metade
do seacuteculo XVIII em Portugal eacute atravessada por controveacutersias pouco claras entre
os defensores da tradiccedilatildeo escolaacutestica e os defensores das novidades
cientiacuteficas entre os quais se contavam frequentemente confundidos uns com
os outros gassendistas e cartesianos As dificuldades de conciliar as
exigecircncias da tradiccedilatildeo metafiacutesica com as exigecircncias da fiacutesica moderna
dominavam estas controveacutersias que dado o contexto poliacutetico-religioso e as
dificuldades no contacto com os centros onde conhecia maior desenvolvimento
a filosofia moderna tambeacutem natildeo poderiam facilmente alcanccedilar uma
clarificaccedilatildeo
Deste modo a tese heideggeriana de que natildeo deixamos de estar sob o efeito
de uma tradiccedilatildeo apenas por a querermos suprimir mas que ela subsiste soacute
que de forma inconsciente e confusa tem aqui uma brilhante confirmaccedilatildeo De
facto os dois paradigmas fundamentais da tradiccedilatildeo escolaacutestica continuaram a
persistir entre noacutes incoacutelumes por um lado continuou a vigorar a aceitaccedilatildeo da
autoridade religiosa baseada na revelaccedilatildeo como indiscutiacutevel (materialmente
apoiada pela actividade da Real Mesa Censoacuteria) por outro lado a maioria dos
iluministas portugueses natildeo rompeu com o paradigma geocecircntrico adoptando
200
a soluccedilatildeo de compromisso de Ticho Brahe que salvaguardava a autoridade da
igreja e o geocentrismo
A tiacutetulo de exemplo podemos referir Frei Manuel do Cenaacuteculo302 um dos
nossos iluministas mais prestigiados que natildeo hesitava em recomendar a
substituiccedilatildeo da loacutegica aristoteacutelica pelo meacutetodo geomeacutetrico dos modernos
reafirmando simultaneamente de uma forma geral a subordinaccedilatildeo do uso da
razatildeo individual agrave autoridade da tradiccedilatildeo religiosa Tal indicaccedilatildeo do dever de
subordinaccedilatildeo da razatildeo agrave autoridade dos textos sagrados pode inferir-se
claramente desta afirmaccedilatildeo de uma das suas Instruccedilotildees Pastorais ldquo Este
pensamento nos leva a dizer do Homem posto em Sociedade Contrahe neste
estado Grandes Obrigaccedilotildees determinadas por direitos merecedores de mais
exacta observacircncia A igualdade e a independecircncia muacutetua que a Natureza deo
a todos os homens natildeo lhes devem servir para abusar pois tem sujeiccedilatildeo a um
Senhor e a Leis Sacrossantas que os obriga a governarem-se que confira
dignidade e Justiccedila agraves suas Acccedilotildeesrdquo303 Que tal subordinaccedilatildeo natildeo visava
simplesmente a ordem praacutetica da acccedilatildeo mas envolvia igualmente o domiacutenio
teoacuterico da especulaccedilatildeo sobre questotildees metafiacutesicas eacute sublinhado por Frei
Manuel do Cenaacuteculo em Cuidados Literaacuterios com a indicaccedilatildeo de que tais
questotildees devem ser resolvidas ldquopelos textos da Sagrada Escritura tradiccedilatildeo
Conciacutelios e Santos Padresrdquo304
Quanto agrave vigecircncia do paradigma geocecircntrico haacute que recordar que ele
continuou a manter-se entre noacutes e a ser ensinado nas caacutetedras universitaacuterias
com as correcccedilotildees introduzidas por Ticho Brahe coexistindo aiacute de forma
paradoxal com a fiacutesica de Newton e a mecacircnica de Galileu ateacute aos fins do
seacuteculo XVIII Esta posiccedilatildeo ecleacutectica no domiacutenio da ciecircncia encontra-se bem
documentada aliaacutes na obra de Verney o qual reporta sem qualquer
apreciaccedilatildeo criacutetica a coexistecircncia dos modelos cosmoloacutegicos de Copeacuternico e
302
Sobre o papel da Congregaccedilatildeo do Oratoacuterio ordem religiosa criada em Franccedila criacutetica do aristotelismo
e rival dos Jesuiacutetas que entrou em Portugal no reinado de D Joatildeo V cf Maria Cacircndida Monteiro
Pacheco em ldquoFilosofia e Ciecircncia no Pensamento Portuguecircs dos sec XVII e XVIIIrdquo Actas do Congresso
Luso-Brasileiro de Filosofia 482 303
Frei Manuel do Cenaacuteculo Da Instruccedilatildeo Pastoral do Excelentiacutessimo e Reverendiacutessimo Senhor Bispo de
Beja sobre as virtudes da ordem natural Lisboa Na Regia Officina Typografica 1785 38-39 304
Cf Frei Manuel do Cenaacuteculo Dos Cuidados Literaacuterios do prelado de Beja em graccedila do seu bispado
Lisboa Na Officina de Simatildeo Thadeo Ferreira 1791 117-118
201
Ticho Brahe admitindo-os igualmente como ficccedilotildees hipoteacuteticas sendo o
empirismo de Bacon a verdadeira pedra basilar da Ciecircncia moderna305
Este ecletismo vecirc-se em Verney elevado a uma ldquofilosofiardquo caracterizada pela
prudente aceitaccedilatildeo de verdades fundadas na experiecircncia e na recusa de
qualquer sistema ldquoEste eacute o sistema moderno natildeo ter sistema e soacute assim eacute que
se tem descoberto alguma verdade Livre de paixatildeo cada Filoacutesofo propotildee as
suas razotildees sobre as coisas que observa as que satildeo claras e certas abraccedilam-
se as que satildeo duvidosas ou se rejeitam ou se recebem no grau de
conjecturasrdquo306
Esta reivindicaccedilatildeo do livre exame da verdade e da autonomia da razatildeo que
parece em Verney estar associada agrave rejeiccedilatildeo dos sistemas natildeo foi no entanto
o espiacuterito que animou a reforma pombalina nem a sua criacutetica agrave tradiccedilatildeo
escolaacutestica
Uma pequena anedota referida por Antoacutenio Paim307 serve para ilustrar a
relaccedilatildeo das instituiccedilotildees de ensino do iluminismo de Pombal com a tradiccedilatildeo
filosoacutefica Tendo mandado na ediccedilatildeo Portuguesa das Instituiccedilotildees de Loacutegica
retirar a referecircncia de Genovesi a Aristoacuteteles como criador da loacutegica Pombal
explica nestes termos a sua determinaccedilatildeo numa carta ao reitor-reformador D
Francisco de Lemos ldquosempre o nome de um filoacutesofo tatildeo abominaacutevel se deve
procurar antes esqueccedila nas liccedilotildees de Coimbra do que se apresente aos olhos
dos acadeacutemicos como um atendiacutevel corifeu da filosofiardquo
O ensino ldquoreformadordquo da filosofia passou a ser feito pelos referidos compecircndios
de Genovesi autor ecleacutectico italiano308 de que em Portugal se adoptou uma
obra de divulgaccedilatildeo simplificada309
305
Cf Luiacutes Antoacutenio Verney O Verdadeiro Meacutetodo de Estudar vol III 30-31 306
Ibidem vol III 1950 202 307
Antoacutenio Paim ldquoAs Luzes no Brasilrdquo in Histoacuteria do Pensamento Filosoacutefico Portuguecircs Lisboa 1999
Vol III 475 308
ldquoAntoacutenio Genovesi professor em Naacutepoles conhecedor e tradutor de Locke ecleacutectico e empirista
adversaacuterio incansaacutevel de qualquer tipo de inatismo causou profunda impressatildeo em Verney Segundo ele
mesmo temos ambos as mesmas opiniotildees e o mesmo sistema de filosofiardquo As instituiccedilotildees de Loacutegica de
Genovesi que deveriam oferecer o suporte epistemoloacutegico para a arrancada em busca da ciecircncia
moderna natildeo iam aleacutem de um modesto texto de loacutegica escrito para rdquogiovanettirdquo Apesar disso
incorporada ao pensamento oficial portuguecircs e tornadas obrigatoacuterias no ensino impressionavam sobretudo
pelo facto de que reuniam aspectos da loacutegica tradicional e enunciados da moderna teoria do
conhecimento sem a preocupaccedilatildeo de aprofundaacute-lasrdquo Adolpho Crippa ldquoConceito de filosofia na eacutepoca
pombalinardquo in Actas do I Congresso Luso-Brasileiro de Filosofia 447 Segundo Adolpho Crippa o
problema fundamental de que se ocupava o pensador italiano era o das origens das ideias na linha do
empirismo de John Locke procurando conciliaacute-la com o aristotelismordquo (Ob cit 447)
202
2 3 Linguagem e traduccedilatildeo
Um outro aspecto da feiccedilatildeo ecleacutectica do iluminismo portuguecircs diz respeito agrave
temaacutetica das liacutenguas e tem uma importacircncia central para o problema da
traduccedilatildeo filosoacutefica Sob o impeacuterio da influecircncia da escola de Port Royal Verney
tem tambeacutem como preocupaccedilatildeo a procura da liacutengua perfeita (que para os
teoacutericos de Port Royal era o francecircs) dando por conseguinte grande
importacircncia ao estudo da Gramaacutetica Contudo em Verney esta preocupaccedilatildeo
toma corpo numa Gramaacutetica Latina capaz de disciplinar o ensino do latim e de
simplificar o uso da liacutengua libertando-o dos formalismos da retoacuterica Verney
compocircs uma parte da sua proacutepria obra em latim na continuaccedilatildeo da tradiccedilatildeo
escolaacutestica
Verney apercebeu-se claramente como acima vimos da queda do latim como
liacutengua universal das comunicaccedilotildees cientiacuteficas e filosoacuteficas e da sua
substituiccedilatildeo pela pluralidade das liacutenguas nacionais O renascimento cultural
portuguecircs eacute visto como consequecircncia da abertura agrave produccedilatildeo cientiacutefica e
filosoacutefica europeiardquo[] soacute acho vestiacutegios de maior erudiccedilatildeo quando a este
reino vinham ensinar os estrangeiros ou quando os portugueses iam aprender
e ensinar fora dele Pelo contraacuterio depois que se deixou este comeacutercio literaacuterio
vejo as coisas muito mudadasrdquo310 Na sequecircncia desta tese apela Verney
como acima vimos para a necessidade de aprender francecircs e italiano ldquoseria
tambeacutem justo que o estudante com o tempo aprendesse Francecircs e Italiano
para poder ler as maravilhosas obras que nestas liacutenguas se tem composto em
todas as ciecircncias de que natildeo temos traduccedilotildees latinasrdquo311
Natildeo haacute contudo na sua obra O Verdadeiro Meacutetodo de Estudar nenhuma
referecircncia agrave necessidade de traduccedilatildeo destas obras para a liacutengua portuguesa
sendo a traduccedilatildeo aiacute ainda pensada (como pode deduzir-se do trecho citado)
como uma operaccedilatildeo de traduccedilatildeo das vaacuterias liacutenguas nacionais para o latim o
que pressupotildee que se continua a aceitar apesar de tudo o latim como liacutengua
universal de comunicaccedilatildeo cientiacutefica
309
Antoacutenio Paim analisa as implicaccedilotildees da versatildeo da obra de Genovesi que circulava em Portugal e no
Brasil nos capiacutetulos sobre Loacutegica Fiacutesica e Teoria do Conhecimento concluindo que elas iam no sentido
de obscurecer o sentido da ciecircncia moderna e romper o contacto com a filosofia assim como de um
afunilar a discussatildeo dos problemas do conhecimento centrando-a nas dificuldades internas da corrente
empirista (Cf ldquoAs Luzes no Brasilrdquo in Histoacuteria do Pensamento Filosoacutefico Portuguecircs vol III 446-447) 310
Luiacutes Antoacutenio Verney O Verdadeiro Meacutetodo de Estudar vol I 268 311
Ibidem vol I 272273
203
As Instituiccedilotildees de Loacutegicas e Metafiacutesica de Antoacutenio Genovesi - apesar de ser
um texto escolar usado para o ensino da filosofia escrito pelo autor como uma
exposiccedilatildeo simplificada da filosofia para jovens sob a designaccedilatildeo de La logica
per i giovanetti - circulavam em ediccedilotildees latinas e soacute em 1786 foram traduzidas
para Portuguecircs as Instituiccedilotildees Metafiacutesicas do mesmo Genovesi foram
traduzidas em 1790 As Instituitiones de Philosophiae Praticae de Eduardo Job
usadas como compecircndio para o ensino da filosofia moral foram editadas
sucessivamente em latim a partir de 1784 soacute sendo traduzidas em 1846 por
Joatildeo Baptista Correia Magalhatildees312
Para aleacutem das traduccedilotildees referidas feitas com fins pedagoacutegicos as restantes
traduccedilotildees efectuadas neste periacuteodo contemplam autores claacutessicos
testemunhando sobretudo o peso que a retoacuterica claacutessica e a filosofia
aristoteacutelica (apesar da sua condenaccedilatildeo expliacutecita) continuavam ainda a ter (ver
anexo I)
Este periacuteodo do pensamento portuguecircs eacute pois largamente dominado pelo
peso de preconceitos instituiacutedos e impostos de modo coercitivo ditados agora
pelo ideaacuterio de um ldquoiluminismo catoacutelicordquo protagonizado por Pombal que rejeita
a tradiccedilatildeo metafiacutesica e pretende abrir-se agrave filosofia e agrave ciecircncia modernas sem
contudo estar disposto a sujeitar-se ao confronto com os textos que pretende
criticar ou exaltar (e que tambeacutem natildeo haacute a preocupaccedilatildeo de traduzir) A
destituiccedilatildeo das caacutetedras de filosofia no ensino superior substituiacutedas pelo
ensino das ciecircncias naturais contribuiu para fragilizar ainda mais a apropriaccedilatildeo
e transmissatildeo da tradiccedilatildeo filosoacutefica sem que por outro lado a esta amputaccedilatildeo
correspondesse um progresso notaacutevel no campo da investigaccedilatildeo cientiacutefica ou
da criaccedilatildeo de uma mentalidade cientiacutefica313
312
Analisando esta obra cuja ediccedilatildeo latina estava truncada sendo omisso o uacuteltimo capiacutetulo sobre a
Poliacutetica Antoacutenio Paim conclui que a obra difundia a ideia da dependecircncia da poliacutetica em relaccedilatildeo agrave
teologia moral e fazia a apologia directa da monarquia absoluta distanciando-se da moralidade moderna
O autor sublinha ainda o efeito pedagoacutegico perverso da combinaccedilatildeo da versatildeo simplificada da obra de
Genovesi com as Instituiccedilotildees de Filosofia Praacutetica de Eduardo Job no sentido de facilitar a criaccedilatildeo nos
jovens de um espiacuterito dogmaacutetico (Cf ldquoAs Luzes no Brasilrdquo in Histoacuteria do Pensamento Filosoacutefico
Portuguecircs vol III 447-453) 313
Antoacutenio Paim ressalva o campo da mineralogia onde pelo seu impacto econoacutemico directo houve um
surto de investigadores No geral poreacutem confirma a apreciaccedilatildeo de que a reforma Pombalina natildeo
conseguiu estimular a investigaccedilatildeo cientigravefica ldquoAntecedendo de meio seacuteculo a providecircncia adoptada por
Napoleatildeo o Marquecircs de Pombal destroacutei a universidade medieval erguendo em seu lugar uma nova
universidade constituiacuteda agrave volta da ciecircncia
Salvo no que respeita agrave mineralogia a incorporaccedilatildeo da ciecircncia moderna em Portugal com a reforma de
1772 natildeo logrou consolidar a pesquisa cientigraveficardquo (Cf Ibidem vol III 481) Segundo o mesmo autor no
que eacute seguido por Adolpho Crippa (cf ldquoConceito de filosofia na eacutepoca pombalinardquo in Actas do I
204
Este desaparecimento da filosofia das instituiccedilotildees de ensino superior significou
ainda a impossibilidade do desenvolvimento da investigaccedilatildeo de problemas
filosoacuteficos e o desaparecimento de haacutebitos de rigor e de fundamentaccedilatildeo das
opccedilotildees filosoacuteficas nos textos que tinham caracterizado o periacuteodo anterior
Neste contexto natildeo se podia fazer sentir a necessidade de progressos no
campo da traduccedilatildeo filosoacutefica
Para o problema que aqui nos ocupa eacute tambeacutem relevante chamar a atenccedilatildeo
para o modo rdquoinautecircnticordquo como se mantecircm e se transmitem de agora em
diante aspectos essenciais da tradiccedilatildeo escolaacutestica Natildeo sendo os seus textos
traduzidos nem ensinados ela teraacute doravante o mesmo destino de toda a
tradiccedilatildeo morta seraacute transmitida sob a forma de um modo de pensar banal e
tornado evidente donde estaacute inteiramente ausente a consciecircncia expliacutecita de
uma tradiccedilatildeo que se trata de legitimar ou de refutar e que se concilia de modo
inconsciente e confuso com a filosofia moderna
3 A mediaccedilatildeo francoacutefona e o ldquoeclipse da filosofiardquo
3 1 O ecletismo de Victor Cousin
Antero de Quental retrata desta forma a submissatildeo cultural a Franccedila em vigor
em Portugal durante o seacuteculo XIX ldquo[] Portugal literariamente eacute quase uma
proviacutencia da Franccedila [] os proacuteprios compecircndios em muitas das caacutetedras de
instruccedilatildeo secundaacuteria e superior satildeo francesas As causas deste singular e
quanto a mim deploraacutevel fenoacutemeno satildeo muitas sendo talvez a principal o facto
de que o regime constitucional em Portugal foi estabelecido por homens que
todos tinham passado largos anos emigrados em Franccedila ndash Trouxeram de laacute as
leis as ideias e tudo que caacute implantaram em oacutedio agraves coisas nacionais
tornando deste modo a inteligecircncia portuguesa feudataacuteria da Franccedilardquo314
A ausecircncia de haacutebitos de traduccedilatildeo das obras filosoacuteficas e cientiacuteficas levava a
que no seacuteculo XIX conforme Antero sublinha os proacuteprios manuais de ensino
fossem importados de Franccedila e lidos em liacutengua francesa Acresce ainda a isto
Congresso Luso-Brasileiro de Filosofia 449) no ciclo Pombalino a ciecircncia eacute incorporada agrave cultura Luso-
Brasileira num sentido muito preciso isto eacute como ciecircncia aplicada 314
Antero de Quental ldquoCarta a Tomazzo Canizzarro a 29 de Maio de 1888ldquo in Ana Maria Almeida
Martins (org) Cartas II 884
205
que a transmissatildeo da tradiccedilatildeo filosoacutefica seriamente fragilizada pela reforma
pombalina veio a sofrer mais um revecircs com a extinccedilatildeo da uacutenica cadeira de
Filosofia propriamente dita que ainda subsistia na Faculdade de Filosofia
eliminada por carta reacutegia de 24 de Janeiro de 1791 e substituiacuteda por uma
cadeira de botacircnica e agricultura315
O regresso da filosofia agrave Universidade haveria de fazer-se de forma tiacutemida com
a criaccedilatildeo do Curso Superior de Letras em Lisboa destinado ao ensino da
Histoacuteria da Literatura e da Filosofia Este abriu portas em 1861 ministrando
um curso de Filosofia de 2 anos que incluiacutea no curriculum apenas trecircs cadeiras
(Filosofia Filosofia e Histoacuteria da Filosofia e Histoacuteria Universal da Filosofia)
sendo frequentado por um nuacutemero irrisoacuterio de alunos (meacutedia anual de 2 alunos
ordinaacuterios e 36 voluntaacuterios) ateacute 1902
O ensino da Filosofia remetido para o secundaacuterio continuou a ser feito pelos
compecircndios de Genovesi apesar das criacuteticas que entretanto surgiam por parte
dos poucos pensadores dignos de nota deste periacuteodo como Silvestre Pinheiro
Ferreira e Cunha Rivara que exigiram sem resultado uma reforma do ensino
da filosofia e a aboliccedilatildeo dos manuais do Genovesi Foi apenas em 1884 que
por decreto de 20 de Setembro esse ensino foi reformado e substituiacutedo por
nova orientaccedilatildeo ecleacutectica influenciada pelo eclectismo francecircs de Victor
Cousin 316
Victor Cousin viu-se em Franccedila elevado agrave condiccedilatildeo de responsaacutevel pela
orientaccedilatildeo geral adoptada no ensino da filosofia preconizando uma completa
separaccedilatildeo entre a filosofia (isto eacute a investigaccedilatildeo sobre os problemas
filosoacuteficos) e a sua transmissatildeo que se confunde como a transmissatildeo de um
certo nuacutemero de ideias de reconhecida utilidade social317 resultantes da
conciliaccedilatildeo ecleacutectica dos vaacuterios sistemas filosoacuteficos
E foi este uacuteltimo aspecto que marcou a influecircncia de Victor Cousin em Portugal
onde foi progressivamente substituindo a influecircncia de Genovesi ateacute ser
315
Cf Manuel Maria Carrilho Razatildeo e Transmissatildeo da Filosofia Lisboa 1987 199-200 316
Ibidem 202 317
ldquoO essencial das teses sobre o ensino da filosofia encontra-se na obra de Cousin Deacutefense de
l‟Uacuteniversiteacute et de la Philosophie Cousin considera que eacute na instruccedilatildeo secundaacuteria que se produz a elite das
sociedades modernas pelo que este ensino deve visar acima de tudo a formaccedilatildeo geral dos homens como
cidadatildeos No plano de estudos do secundaacuterio a filosofia ocupa um papel muito importante visando dispor
os alunos agrave aceitaccedilatildeo da autoridade do Estado pelo desenvolvimento do espiacuterito onde devem ser
inculcadas ldquoas verdades naturais que estatildeo acima dos sistemas e natildeo pertencem a nenhuma escola mas ao
senso comumrdquo pois sem elas natildeo pode haver moral puacuteblica nem privadardquo Cf Ibidem 224
206
oficializada pela reforma de 1844 Este ecletismo constitui-se como rejeiccedilatildeo de
todos os sistemas que segundo Victor Cousin se reduzem a dois o
sensualismo anglo-francecircs e o idealismo alematildeo sistemas jaacute esgotados e
envelhecidos que se trata de salvar pela conciliaccedilatildeo ecleacutectica das suas
contradiccedilotildees 318
Este novo ecletismo que agora se impotildee na filosofia tem pois uma
caracteriacutestica diferente do anterior trata-se dum ecletismo filosoacutefico que natildeo
surge como resposta ao contexto cultural portuguecircs mas que eacute importado de
Franccedila 319A adopccedilatildeo oficial em Portugal do ecletismo de Victor Cousin
significou apenas a escolarizaccedilatildeo da filosofia para fins de utilidade social
pensados agrave luz do contexto histoacuterico-culrural francecircs
A importaccedilatildeo da filosofia em liacutengua francesa320 marcou todo o seacuteculo XIX e
explica a ausecircncia de traduccedilotildees de filosofia neste periacuteodo como pode
facilmente constatar-se pela leitura do apecircndice na sua rubrica relativa agraves
traduccedilotildees portuguesas de filosofia no seacuteculo XIX
A primeira consequecircncia deste facto eacute que neste periacuteodo se selecciona agrave
partida o que se importa e o que se lecirc a partir de revistas e outras publicaccedilotildees
francesas sujeitando-nos portanto a uma decisatildeo alheia sobre o que eacute
importante ler Mas a segunda e mais importante observaccedilatildeo podemos fazecirc-la
a partir do proacuteprio Heidegger e do que na sua obra eacute indicado sobre a estreita
ligaccedilatildeo entre a linguagem enquanto liacutengua dum povo histoacuterico e o exerciacutecio
318
Manuel Maria Carrilho defende que o eclectismo de Victor Cousin eacute um ecletismo do senso comum
porquanto pretende eliminar as diferenccedilas entre sistemas recorrendo a criteacuterios fundados no senso
comum O senso comum ver-se-ia assim elevado ao estatuto de autoridade filosoacutefica Ao senso comum
de Cousin falta por conseguinte uma perspectiva filosoacutefica do conflito das filosofias ou seja falta uma
abordagem filosoacutefica da histoacuteria da filosofia Ibidem 204-215 319
A defesa da funccedilatildeo social da filosofia feita por Cousin deve-se ao facto de que em Franccedila natildeo era jaacute
possiacutevel contar com a autoridade de nenhuma religiatildeo estabelecida para assegurar a coesatildeo social e
portanto era necessaacuterio que os cidadatildeos partilhassem certos princiacutepios sem recorrer a nenhuma
autoridade religiosa mas unicamente fundados na razatildeo Cousin procura assim uma filosofia para o
ensino que estimule uma posiccedilatildeo equidistante de todas as crenccedilas e de todos os sistemas filosoacuteficos
centrada nos princiacutepios estabelecidos a partir da razatildeo comum Esta estrateacutegia tem como pano de fundo a
total separaccedilatildeo entre filosofia e investigaccedilatildeo de problemas filosoacuteficos e a sua transmissatildeo considerada
como mateacuteria a ser decidida em funccedilatildeo da utilidade do ensino puacuteblico e dos interesses do Estado Cf
Ibidem 224 320
Testemunhos desta importaccedilatildeo do ecletismo francecircs foram a Memoacuteria de Cunha Rivara dirigida em
1839 ao Conselho Geral Director do Ensino Primaacuterio e Secundaacuterio onde se propotildee como orientaccedilatildeo para
o ensino da Filosofia o ecletismo de Cousin e o Discurso de Abertura de 1842 assim como no Novo
Discurso de 1843 de Manuel Pinheiro de Almeida de Azevedo em que o ecletismo de Cousin eacute
igualmente defendido como orientaccedilatildeo para o ensino Nos compecircndios esta nova orientaccedilatildeo ecleacutectica
impocircs-se a partir dos anos quarenta e cinquenta Contudo os novos manuais que substituiacuteram os de
Genovesi sem nunca os criticar nem alterar radicalmente a sua orientaccedilatildeo apresentavam-se antes como
um aprofundamento e correcccedilatildeo destes Tais factos levam Manuel Maria Carrilho a afirmar que a nova
orientaccedilatildeo ecleacutectica se apresenta como uma ldquopraacutetica de envelhecimentordquo Ibidem 236-238
207
do pensar Ler um autor em francecircs eacute necessariamente pensaacute-lo vertido para
formas linguiacutesticas que transportam e veiculam um sentido e essa
transposiccedilatildeo semacircntica implica a passagem a um outro horizonte cultural
Procedem-se assim na ausecircncia de traduccedilatildeo a transferecircncias culturais
mecacircnicas e natildeo a um diaacutelogo com os textos a partir de questotildees colocadas
pelo proacuteprio contexto cultural Foi esta importaccedilatildeo superficial e dogmaacutetica que
veio a caracterizar a recepccedilatildeo do positivismo francecircs que entre noacutes marcou as
instituiccedilotildees e a sociedade portuguesa ateacute tornar-se numa ldquoevidecircnciardquo ideoloacutegica
dominante nas classes cultas
3 2 O Positivismo
Criticando o dogmatismo positivista imperante nos meios poliacuteticos e nas
classes cultas e apontando com lucidez a sua raiz na ldquofalta de preparaccedilatildeo
filosoacuteficardquo dos portugueses Antero afirma ainda numa outra carta ldquoO
Positivismo como quasi todas as coisas banais e particularmente as
banalidades francesas parece claro simples e capaz de explicar tudo natildeo
pede aleacutem disso esforccedilo algum de inteligecircncia para ser compreendido eacute
finalmente coacutemodo como todos os dogmatismos estes defeitos satildeo as causas
do momentacircneo favor que encontra em espiacuteritos por um lado frouxos e sem a
menor preparaccedilatildeo filosoacutefica por outro lado impacientes de quebrarem o jugo
de doutrinas puramente convencionadasldquo321
O Positivismo de Augusto Comte retoma a temaacutetica do progresso introduzida
pelo iluminismo fundamentando-a contudo numa visatildeo linear e dogmaacutetica do
desenvolvimento da humanidade ao longo de trecircs estaacutedios teoloacutegico metafiacutesico
e positivo Toda a educaccedilatildeo teoloacutegica metafiacutesica e literaacuteria deveria segundo
este autor ser substituiacuteda por uma formaccedilatildeo positiva e da aplicaccedilatildeo dos
conhecimentos das ciecircncias naturais agrave rdquofiacutesica social ldquo esperava-se a soluccedilatildeo da
crise poliacutetica e moral que atravessava as naccedilotildees civilizadas Ela deveria permitir
a conciliaccedilatildeo do progresso e da ordem condiccedilotildees simultacircneas da civilizaccedilatildeo
moderna e de todo o sistema poliacutetico autecircntico
321
Antero de Quental ldquoCarta a Domingos Tarrosordquo 3 de Junho de 1881 em Ana Maria Almeida Martins
(org) Cartas I Lisboa 1989 561
208
A grande figura do positivismo francecircs natildeo foi poreacutem em Portugal Augusto
Comte mas Littreacute que em Franccedila publicara em 1876 a ldquorevista de Filosofia
Positivardquo e numerosos escritos de divulgaccedilatildeo da filosofia de Comte rejeitando
contudo a uacuteltima fase do seu pensamento de feiccedilatildeo acentuadamente miacutestica
expressa na sua doutrina da ldquoreligiatildeo da Humanidaderdquo
Esta versatildeo do positivismo comteano que valorizava sobretudo a ideia dum
conhecimento positivo e proibia a reflexatildeo sobre toda a temaacutetica metafiacutesica
adquiriu grande prestiacutegio em Portugal e no Brasil em certos meios cientiacuteficos
como foi entre noacutes o caso da medicina Seria poreacutem o positivismo poliacutetico que
haveria de granjear mais tarde grande popularidade322 estando directamente
ligado agrave acccedilatildeo dos liberais e numa segunda fase agrave acccedilatildeo poliacutetica do partido
republicano e a figuras poliacuteticas como Teoacutefilo de Braga Note-se contudo que
nenhuma traduccedilatildeo dos autores positivistas foi realizada neste periacuteodo para
liacutengua portuguesa
A influecircncia do positivismo foi em Portugal tambeacutem marcada pela influecircncia das
teorias de Darwin e Spencer assim como do monismo evolucionista de
Haeckel o grande defensor do evolucionismo na Alemanha que elevou esta
teoria a uma concepccedilatildeo geral do universo fundada na ideia da unidade da
natureza do orgacircnico e do inorgacircnico Na sua obra Natuumlrliche
Schoumlpfungsgeschichte (1868) Haeckel defende que a teoria de Darwin autoriza
uma teoria monista da evoluccedilatildeo que se contrapotildee agrave teoria dualiacutestica
implicitamente contida na explicaccedilatildeo teleoloacutegica do mundo
De Haeckel foram traduzidos 10 tiacutetulos o que testemunha claramente a
importacircncia que lhe atribuiacutea o positivismo portuguecircs De Spencer foi traduzido
Da Liberdade agrave Escravidatildeo por Juacutelio de Matos em 1904 e Do Progresso - sua
Lei e suas Causas por Eduardo Salgueiro em 1939 Apesar de algumas teses
defendidas na universidade de Coimbra sobre as teorias evolucionistas323 as
obras de Darwin tiveram entre noacutes uma traduccedilatildeo tardia tendo sido a sua obra
capital A Origem das Espeacutecies de 1859 traduzida apenas em 1913 por Joaquim
Daacute Mesquita Pauacutel
322
Segundo Zilach Cercal Didonet a experiecircncia da aplicaccedilatildeo das ideias de Comte sobre a organizaccedilatildeo da
sociedade foi feita pela primeira vez no mundo no Rio Grande do Sul onde a Constituiccedilatildeo de 14 de Julho
de 1891 estabeleceu a Ditatura Republicana Cf ldquo O Positivismo e a Constituiccedilatildeo Rio_Grandense de 14
de Julho de 1891rdquo Actas do I Congresso Luso-Brasileiro de Filosofia 598-518 323
Ana Leonor Pereira Darwin em Portugal [1865-1914] Coimbra Livraria Almedina 2001 7475
209
Devido ao generalizado haacutebito de recorrer a traduccedilotildees francesas disponiacuteveis
desde 1862 eacute presumiacutevel que muitos intelectuais portugueses jaacute tivessem tido
acesso agrave teoria de Darwin nessa liacutengua Com efeito por volta de 1910
numerosos artigos de divulgaccedilatildeo das teorias de Darwin surgiram no
ldquoAlmanache Ilustradordquo d‟O Seacuteculo coordenado pelo professor Agostinho Fortes
e noutras publicaccedilotildees
Teoacutefilo de Braga Juacutelio de Matos e Miguel Bombarda personalidades
marcantes na vida da Primeira Repuacuteblica assim como outros intelectuais
associados agrave revista ldquoO Positivismordquo contribuiacuteram tambeacutem para a difusatildeo dum
positivismo social e poliacutetico que procurava fazer a siacutentese entre o positivismo
comteano e o evolucionismo de Darwin Esta siacutentese alcanccedilou uma expressatildeo
original na sociologia de Teoacutefilo de Braga cujo projecto aparece formulado na
sua obra Traccedilos gerais de philosophia positiva comprovada pelas descobertas
cientiacuteficas modernas (Lisboa Nova Livraria Internacional 1877) como um
projecto de reorganizaccedilatildeo da sociologia fundando-a numa base natural mais
precisamente no facto bioloacutegico da populaccedilatildeo
Teoacutefilo de Braga vai tentar conciliar a sociologia positiva de Comte com as leis
da evoluccedilatildeo dos organismos e designadamente com a lei da selecccedilatildeo natural
procurando mostrar que a luta pela vida e a selecccedilatildeo natural contribuem para o
aperfeiccediloamento da espeacutecie e para uma melhor ordenaccedilatildeo social
Em princiacutepio esta tentativa de siacutentese parece afastar Teoacutefilo de Braga da
esfera de influecircncia tradicional da filosofia francesa pois em Franccedila o
positivismo foi sobretudo um obstaacuteculo agrave difusatildeo do Darwinismo que era
criticado agrave luz da ideia positivista de progresso Littreacute cuja influecircncia foi
muitiacutessimo importante em toda a Europa e decisiva no positivismo portuguecircs
aceitava o Darwinismo como uma hipoacutetese cientiacutefica natildeo verificada mas
rebatia todas as suas implicaccedilotildees sociais O princiacutepio da selecccedilatildeo natural
parecia ser estranha agrave lei dos 3 estados e a luta pela vida propor uma
conflitualidade social inconciliaacutevel com o postulado comteano do progresso
como desenvolvimento da ordem
A siacutentese original de Teoacutefilo de Braga entre Darwinismo e Positivismo
assentava na ideia de que a selecccedilatildeo natural e a luta pela vida teriam permitido
uma selecccedilatildeo positiva de sentimentos de solidariedade favoraacuteveis agrave
democracia e agrave coesatildeo social Esta siacutentese teria sido segundo a hipoacutetese de
210
Ana Leonor Ferreira sugerida a Teoacutefilo de Braga pela leitura duma traduccedilatildeo
francesa de Darwin que traduzia Darwin agrave luz de Lamark O princiacutepio de
Lamark da transmissatildeo hereditaacuteria dos caracteres adquiridos permite pensar o
progresso histoacuterico a partir da evoluccedilatildeo bioloacutegica
A respeito da possiacutevel influecircncia da traduccedilatildeo francesa da Origem das Espeacutecies
afirma Ana Leonor Pereira ldquoNatildeo eacute improvaacutevel que Teoacutefilo (tambeacutem)
conhecesse Darwin em Francecircs na traduccedilatildeo de Cleacutement Royer 324 Por essa
via Teoacutefilo ficava plenamente familiarizado com o princiacutepio de Lamark visto
que a tradutora tomava a liberdade de corrigir o texto de Darwin com notas e
comentaacuterios de sentido lamarkiano O seu objectivo era expliacutecita e
assumidamente o seguinte na conclusatildeo da tradutora ldquoc‟est donc comme
disciple de Lamark que j‟ai traduit Ch Darwinrdquo325
Juacutelio de Matos inspirando-se no sistema das ciecircncias de Augusto Comte e na
sua tentativa de fundar o estudo dos fenoacutemenos sociais no estudo das ciecircncias
da vida procedia contudo a uma total reformulaccedilatildeo da sociologia positiva de
Augusto Comte O meacutedico portuense queria fundar uma sociologia e uma
poliacutetica cientiacuteficas nos princiacutepios da luta pela vida e da selecccedilatildeo natural
darwinistas apesar de conhecer perfeitamente a resistecircncia da comunidade
cientiacutefica francesa ao paradigma evolucionista
Na sua Histoacuteria natural ilustrada326 ele dedica um capiacutetulo agrave evoluccedilatildeo do
homem segundo o paradigma evolucionista reproduzindo a posiccedilatildeo de Darwin
em The descent of man segundo a qual o homem natildeo teria nenhum atributo
especiacutefico que o distinguisse do reino animal Nos escritos sociopoliacuteticos
posteriores Juacutelio de Matos explora as implicaccedilotildees sociais dos princiacutepios da luta
pela vida e da selecccedilatildeo natural procurando neles fundar a poleacutemica contra as
teorias socialistas e anarquistas assim como uma criacutetica a todo o
proteccionismo social do Estado responsaacuteveis pela falsificaccedilatildeo da
concorrecircncia vital entre os indiviacuteduos e pela consequente decadecircncia das
sociedades
324
Charles Darwin De l‟Origine des espegraveces par seacutelection naturelle ou des lois de transformation des
ecirctres organiseacutes Traduction de Madame Cleacutemence Royer avec preacuteface et notes du traducteur Nouvelle
eacutedition revue d‟ apregraves l‟eacutedition steacutereacuteotype anglaise avec les additions de lacuteauteur Paris Librairie Marpon
et Flammarion sd -4ordf ediccedilatildeo [1882] 325
Ana Leonor Pereira Darwin em Portugal [1865-1914] 346 326
Juacutelio de Matos Histoacuteria natural illustrada Compilaccedilatildeo feita sobre os mais auctorizados trabalhos
zooloacutegicos Porto Livraria Universal [1880-1882]
211
Foram estas tentativas ecleacutecticas de conciliaccedilatildeo do positivismo de Comte com
o Darwinismo que vieram a marcar o positivismo da Primeira Repuacuteblica este
positivismo darwinista viria a constituir-se como uma espeacutecie de ldquoevidecircnciardquo
ideoloacutegica difusa na cultura portuguesa marcado pela exaltaccedilatildeo da ciecircncia e
pelo combate agrave tradiccedilatildeo religiosa e metafiacutesica patente na literatura de ficccedilatildeo
no ensaiacutesmo poliacutetico e nas instituiccedilotildees republicanas
Eacute necessaacuterio sublinhar o facto de os autores positivistas natildeo terem neste
periacuteodo sido traduzidos pois trata-se de um forte indiacutecio do modo superficial e
inautecircntico de ldquoadesatildeo ldquo a esta corrente filosoacutefica
Outra consequecircncia desta dominaccedilatildeo da francofonia foi o afastamento de
Portugal dos grandes centros de irradiaccedilatildeo do pensamento filosoacutefico europeu
que se situavam no seacuteculo XIX na Alemanha cujas ideias penetram em
Portugal e no Brasil tardiamente e numa primeira fase pela mediaccedilatildeo de
traduccedilotildees e comentadores franceses327
O contacto inicial com as ideias de Kant deu-se segundo Gama Caeiro atraveacutes
da Obra de Victor Cousin segundo outros autores atraveacutes da obra Filosofia de
Kant ou princiacutepios fundamentais da filosofia transcendental em francecircs de
Charles Villiers aparecida em 1801 Em Portugal segundo Cabral Moncada foi
Rodrigues de Brito o primeiro a fazer referecircncias a Kant (1803-1805) revelando
conhecer-lhe mal a doutrina Em Silvestre Pinheiro Ferreira figura importante
no contexto da cultura portuguesa da primeira metade do seacuteculo XIX notamos
uma rejeiccedilatildeo do idealismo kantiano como um ldquotenebroso barbarismordquo ao
mesmo tempo que manifesta um conhecimento superficial e incompleto do
filoacutesofo alematildeo328
Soacute em meados do seacuteculo XIX eacute que o kantismo conseguiria maior penetraccedilatildeo
nos meios universitaacuterios atraveacutes dos cursos de Direito onde o ensino da
Filosofia Juriacutedica se fazia desde a reforma pombalina sob a influecircncia de
pensadores alematildees como Wolff e Leibniz
327
Gama Caeiro refere a escassa presenccedila de Kant em Portugal em contraste com a situaccedilatildeo do Brasil
onde embora tardia a influecircncia de Kant natildeo deixou de ser assinalaacutevel - afirmaccedilatildeo corroborada tambeacutem
por Miguel Reale e Antoacutenio Paim Cf ldquoNotas acerca da recepccedilatildeo de Kant no pensamento filosoacutefico
Portuguecircsrdquo in Dinacircmica do pensar- Homenagem a Oswaldo Market Lisboa 1991 62 328
Silvestre Pinheiro Ferreira eacute uma das principais figuras do pensamento filosoacutefico portuguecircs do tempo
(1769-1846) fundando-se a sua obra num aristotelismo renovado no estudo das fontes gregas que
procura conciliar com a filosofia moderna (Bacon Locke Leibniz e Condillac) Mercecirc dos cargos
diplomaacuteticos que desempenhou teraacute estado na Alemanha onde teria tomado alguma notiacutecia da filosofia
de Kant que constantemente critica na sua obra sem contudo mostrar tecirc-lo compreendido Cf Gama
Caeiro obcit-64-65
212
Para renovar o ensino da Filosofia Juriacutedica no sentido do liberalismo reinante
na Europa e tambeacutem em Portugal desde 1834 Vicente Ferrer Neto Paiva foi de
novo buscar a sua inspiraccedilatildeo agrave Alemanha sem contudo conhecer em
profundidade nem a filosofia de Kant nem os autores poacutes kantianos como
Fichte Schelling ou Hegel
O autor Alematildeo a que Ferrer foi buscar a sua inspiraccedilatildeo para o curso de Direito
foi a um filoacutesofo ldquokantianordquo de importacircncia menor no seu proacuteprio paiacutes Karl
Friederich Krause cuja obra tinha sido divulgada em liacutengua francesa pelo seu
disciacutepulo Ahrens A obra de Ahrens de que surgiu uma traduccedilatildeo portuguesa
em 1844 teria contribuiacutedo decisivamente segundo Cabral Moncada para a
publicaccedilatildeo dos Elementos de direito natural obra na qual Ferrer proclama a
sua emancipaccedilatildeo em relaccedilatildeo agrave filosofia de Wolff e dos escolaacutesticos329 A
corrente de pensamento de inspiraccedilatildeo krausista ter-se-ia expandido tambeacutem agrave
Faculdade de Letras onde inspiraria o ensino filosoacutefico no Curso Superior de
Letras ateacute agrave deacutecada de 70 do seacuteculo XIX assim como agraves Faculdades de Direito
de Satildeo Paulo e de Olinda330
Das traduccedilotildees efectuadas durante o seacuteculo XIX destacam-se apenas como
importantes as de autores claacutessicos designadamente de Platatildeo e Aristoacuteteles
(esta feita por Silvestre Pinheiro Ferreira) tornando a escassez de traduccedilotildees
de autores modernos imediatamente evidente que a importaccedilatildeo da filosofia
atraveacutes da liacutengua francesa era regra praticamente universal
4 A reacccedilatildeo anti-positivista e a consciecircncia de si mesmo na cultura
portuguesa
4 1 A viragem de Antero
A filosofia alematilde surge em Portugal como um contraponto agrave influecircncia
positivista sendo percepcionada por autores como Antero de Quental e
Oliveira Martins como sendo de grande importacircncia pela problemaacutetica
metafiacutesica que introduz no horizonte da cultura portuguesa e da qual se espera
329
Cf Cabral Moncada Subsiacutedios para a Histoacuteria da Filosofia do Direito em Portugal Lisboa Imprensa
Nacional-Casa da Moeda 2003 62-63 330
Cf Antoacutenio Braz Teixeira ldquoCaminhos da Filosofia do Direito Luso-brasileirardquo 2002 103-104
213
natildeo soacute a renovaccedilatildeo dos estudos filosoacuteficos mas ainda a ruptura com o
dogmatismo positivista
Em carta a Carolina Michaeumllis (7 de Agosto de 1885) Antero daacute conta da sua
reacccedilatildeo diante da Filosofia de Hegel ldquo[hellip] a linguagem abstrusa o formalismo
a extraordinaacuteria abstracccedilatildeo de Hegel natildeo me assustavam nem me repeliam
pelo contraacuterio internava-me com audaacutecia aventureira pelos meandros e
sombras daquela floresta admiraacutevel de ideias Afinal aquilo de que o mundo
mais precisava nesta fase de extraordinaacuterio obscurecimento da alma humana
eacute de ideias de filosofia ndash e a poesia voltando a adormecer nos recessos mais
misteriosos do coraccedilatildeo do homem tem de ficar agrave espera ateacute que o novo
siacutembolo se desvende e novas ideias lhe forneccedilam um novo alimento lhe
insuflem nova vidardquo331
Em carta a Wilhelm Stork (1887) o tradutor da sua obra poeacutetica para alematildeo
Antero deu a conhecer a importacircncia de Hegel na sua formaccedilatildeo filosoacutefica ldquoO
hegelianismo foi o ponto de partida das minhas especulaccedilotildees filosoacuteficas e
posso dizer que foi dentro dele que se deu a minha evoluccedilatildeo intelectualrdquo332
Supotildee-se que as primeiras leituras de Hegel datem de 1863 atraveacutes de
traduccedilotildees francesas e eacute sobretudo nos sonetos escritos entre 1863-1870 que a
influecircncia do filoacutesofo alematildeo se faz sentir estando nesta fase associada agrave
influecircncia de Proudhon e agrave crenccedila optimista no progresso da humanidade na
qual Antero fundou a primeira parte da sua actividade intelectual e poliacutetica
Foi poreacutem na fase de abandono das ideias de reforma social que inspiraram a
geraccedilatildeo de 70 e de renuacutencia no plano da acccedilatildeo poliacutetica social e mesmo cultural
que se alargou a recepccedilatildeo da filosofia alematilde com a difusatildeo entre noacutes das obras
de Schopenhauer e de Hartmann333 que souberam elevar o sentimento de
pessimismo e desencanto dominantes na Europa do seu tempo a um sistema
filosoacutefico consistente e elaboraacute-lo ao niacutevel especulativo na continuidade da
tradiccedilatildeo metafiacutesica do Idealismo Alematildeo
331
Antero de Quental ldquoCarta a Carolina Michaeumllis de Vasconcelosrdquo de 7 de Agosto de 1885 em Ana
Maria Almeida Martins (org) Cartas II 748 332
Antero de Quental rdquoCarta a Wilhelm Storkldquo de 14 de Maio de 1887 em Ana Maria Almeida Martins
(org) Cartas II 834 333
Sobre a influecircncia de Schopenhauer e Eduardo von Hartmann em Portugal cf a minha dissertaccedilatildeo de
mestrado A Vida e o Traacutegico em Raul Brandatildeo 5-41
214
Fortemente influenciado pela filosofia hegeliana e pelo socialismo de Proudhon
foi apoacutes 1874334 que Antero se orientou para um pessimismo existencial que se
converteu rapidamente num pessimismo de sistema ligado natildeo a uma reflexatildeo
sobre a sua vida pessoal ou as vicissitudes da vida nacional mas agrave condiccedilatildeo
humana em geral Antero leu a monografia de Ribot La Philosophie de
Schopenhauer publicada em 1874 e a traduccedilatildeo de Burdeau de O Fundamento
da Moral de Schopenhauer assim como Os Aforismos sobre a Sabedoria de
Vida em traduccedilatildeo de Cantacuzegravene
Da influecircncia de Hartmann daacute-nos conta Oliveira Martins num artigo da Revista
Ocidental em que o historiador referindo-se agrave Religiatildeo do Futuro de Eduardo
von Hartmann afirma ldquoas ideias essenciais que esse livro conteacutem sendo
expostas por bocas de franceses embora muitas vezes percam em
profundidade o que ganham em perceptibilidade ou em colorido facilmente
encontram eco nos moccedilos entusiastas que povoam as nossas escolasrdquo335 O
proacuteprio Oliveira Martins recebeu esta influecircncia de Hartmann provavelmente a
partir da leitura da Religiatildeo do Futuro introduzindo alguns aspectos da sua
filosofia quer no Helenismo e a Civilizaccedilatildeo Cristatilde quer no Sistema dos Mitos
Religiosos
Esta influecircncia de Hartmann eacute claramente visiacutevel nos sonetos de Antero escritos
apoacutes 1874 assim como naquilo que eacute geralmente considerado o seu testamento
filosoacutefico Tendecircncias gerais da Filosofia na Segunda Metade do seacutec XIX
publicado na revista de Portugal em 1890
De facto sabemos que Antero tomou um primeiro contacto com a filosofia de
Hartmann atraveacutes da Revue Scientifique de la France et de llsquoEtranger e da
traduccedilatildeo francesa da Religion der Zukunft
Tendo comeccedilado a estudar alematildeo a partir de 1870 possuiu as seguintes obras
de Eduardo von Hartmann Gesammelte Studien und Aufsaumltze 3ordm ed Leipzig
Phaumlnomenologie des sittlichen Bewusstseins Prologomena zu jeder Kuumlntfigen
Ethik Berlim 1879 Religionsphilosophie Ester historischkritische Theil Das
religioumlse Bewuumlsstsein der Menschheit Leipzig Philosophie de llsquoInconscient
traduit de lallemand par D Nolen Paris 1877 La Religion de llsquo Avenir Traduit
334
Joaquim de Carvalho ldquoAntero de Quental e a Filosofia de Eduardo Hartmannrdquo in Obra Completa I
Lisboa 1978 409 335
Oliveira Martins ldquoOs Poetas da Escola Novardquo in Revista Ocidental 2ordf fasc 31 de Maio de 1875 tip
De Cristoacutevatildeo Augusto Rodrigues 159
215
de l‟allemand Paris 1876 Segundo Joaquim de Carvalho nenhum outro
filoacutesofo seu contemporacircneo ocupou tatildeo amplo lugar na sua biblioteca particular
Antero teria lido e meditado atentamente as obras de Hartmann sobretudo a
partir de 1877 data da traduccedilatildeo francesa da Filosofia do Inconsciente
encontrando no filoacutesofo alematildeo a fundamentaccedilatildeo metafiacutesica para as conclusotildees
a que ele proacuteprio chegara no decurso da sua evoluccedilatildeo intelectual336
Consciente da necessidade de cortar com a dependecircncia da liacutengua francesa
Antero comeccedilou em 1870 a estudar alematildeo de motu proacuteprio e sem qualquer
programa escolar e em 1873 o proacuteprio Antero dizia em carta a Oliveira
Martins ldquoTenho estudado o alematildeo e jaacute entendo menos mal o que leioldquo337
afirmaccedilatildeo que deve ser complementada com o que sabemos atraveacutes de
Carolina Michaeumllis segundo a qual ele nunca chegou a possuir mais que um
domiacutenio passivo da liacutengua alematilde ou seja especificamente virado para a leitura
Da necessidade e da importacircncia da praacutetica da traduccedilatildeo Antero estava bem
consciente como o provam as suas criacuteticas agrave traduccedilatildeo do Fausto a partir do
francecircs por Castilho (prosas II 102-5) e ainda pelo facto de ele proacuteprio ter
tentado levar a cabo a traduccedilatildeo do poema de Goethe directamente a partir do
texto alematildeo (desta traduccedilatildeo haacute alguns fragmentos publicados no volume
poacutestumo de Raios de Extinta Luz (Lisboa 1892) e nas Publicaccedilotildees do Instituto
Alematildeo (Centenaacuterio de Goethe Coimbra 1932)338
Em Antero esta proximidade com a cultura alematilde eacute pois marcada por dois
traccedilos essenciais a necessidade de leitura dos textos na liacutengua original e da
sua traduccedilatildeo para o portuguecircs Esta consciecircncia da importacircncia da operaccedilatildeo
de traduccedilatildeo caminha juntamente com uma consciecircncia criacutetica relativamente agrave
apropriaccedilatildeo dos autores mais relevantes do pensamento cientiacutefico e filosoacutefico
europeu Eacute esta consciecircncia criacutetica e vigilante que marca claramente a sua
relaccedilatildeo com o Darwinismo em primeiro lugar pela distinccedilatildeo entre as leis da
evoluccedilatildeo postuladas pelo paradigma darwinista que ele aceita como
verdadeiras dentro dos limites do conhecimento dos fenoacutemenos que eacute proacuteprio
da ciecircncia e a tentativa de erigi-las em sistema filosoacutefico e em visatildeo do mundo
por Haeckel que Antero rejeita ldquoEacute pois um erro uma ilusatildeo monstruosa esta
336
Joaquim de Carvalho ldquoAntero de Quental e a Filosofia de Eduardo Hartmannrdquo in Obra Completa I
418 337
Antero de Quental ldquoCarta a Oliveira Martinsrdquo de 26 de Agosto de 1874 em Ana Maria Almeida
Martins (org) Cartas I 255 338
Cf Albin Eacuteduard Beau Antero de Quental perante a Alemanha e a Franccedila Coimbra 1942
216
concepccedilatildeo mecacircnica do universo que resulta da grande siacutentese cientiacutefica dos
uacuteltimos 40 anos De modo algum Eacute uma verdade fundamental mas
circunscrita positiva dentro dos seus limites mas incompleta na medida da
estreiteza desses limites Jaacute vimos que satildeo os da mesma inteligecircncia cientiacuteficardquo
339 Com efeito o monismo de Haeckel propunha uma visatildeo ldquocientiacuteficardquo do
mundo e da evoluccedilatildeo baseada na causalidade mecacircnica que nada
acrescentava agrave ciecircncia agrave qual Antero contrapunha uma concepccedilatildeo da
evoluccedilatildeo dinacircmica e espiritualista que recuperava a causalidade teleoloacutegica da
tradiccedilatildeo metafiacutesica rdquoMas haacute duas maneiras de compreender a evoluccedilatildeo A dos
metafiacutesicos alematildees caminhava sim do simples para o complexo mas
ajuntando em cada momento da evoluccedilatildeo ao tipo inferior para o fazer passar
ao superior um elemento de novo um aumento de ser que lhe provinha da
virtualidade infinita da ideia (da substacircncia) no seu processo de
desenvolvimento A evoluccedilatildeo tinha pois segundo eles um conteuacutedo
verdadeiro era essencialmente substancial Para a filosofia cientiacutefica da
natureza poreacutem natildeo haacute tal virtualidade visto natildeo haver tal ideiardquo340
Para Antero a filosofia devia pensar nos seus proacuteprios termos e no acircmbito que
lhe eacute proacuteprio a ideia cientiacutefica de evoluccedilatildeo dando-lhe um conteuacutedo
substancial como acontecia na dialeacutectica de Hegel para quem a consciecircncia
de si mesmo do espiacuterito como razatildeo e Liberdade consubstanciavam o fim da
evoluccedilatildeo Universo
4 2 A heranccedila de Antero e o diaacutelogo com a filosofia europeia
A heranccedila filosoacutefica das Tendecircnciashellip de Antero haveria de frutificar agrave margem
das instituiccedilotildees republicanas dominadas pelo positivismo De facto as
reformas das instituiccedilotildees de ensino no periacuteodo republicano orientaram-se no
sentido da modernizaccedilatildeo e do reforccedilo do ensino das ciecircncias natildeo alterando
substancialmente a situaccedilatildeo jaacute de si tatildeo precaacuteria do ensino da Filosofia apesar
da criaccedilatildeo em 1911 de duas novas Faculdades de Letras onde o curso de
339
Antero de Quental Tendecircncia Gerais da Filosofia na segunda metade do seacuteculo XIX [1ordf ed in
Revista de Portugal 1890] Lisboa 1991 87 340
Ibidem 8384
217
Filosofia continuou a ter existecircncia precaacuteria acabando por se fundir com o de
Histoacuteria341
Foi portanto agrave margem da universidade no seio dos movimentos sociais das
correntes de opiniatildeo e das controveacutersias que se desenrolaram entre os
intelectuais agrupados em torno de revistas como A Seara Nova O Orpheu A
Aacuteguia em torno de problemas poliacuteticos sociais e esteacuteticos que se desenvolveu
a consciecircncia da necessidade de um diaacutelogo em portuguecircs com a filosofia
europeia
Como resultado mais significativo deste diaacutelogo (embora de modo nenhum
como uacutenica vertente) sublinhamos o facto de se ter criado entre noacutes um
pensamento poliacutetico que procura uma fundamentaccedilatildeo filosoacutefica e que teve a
nosso ver em Raul Proenccedila um dos seus representantes mais brilhantes tendo
dado continuidade ao diaacutelogo iniciado por Antero com a filosofia alematilde
Raul Proenccedila retoma a criacutetica ao positivismo iniciada por Antero dirigindo-a
agora ao positivismo social e poliacutetico dos republicanos e procurando fundar a
ideia de socialismo democraacutetico numa siacutentese original da eacutetica de Kant e da
filosofia de Nietzsche
Raul Proenccedila que natildeo hesitava em considerar que a falta de elites era a causa
fundamental da crise da Primeira Repuacuteblica apontava como viacutecios
fundamentais da nossa educaccedilatildeo a par da ausecircncia de formaccedilatildeo cientiacutefica
dos preconceitos e do fanatismo em mateacuteria religiosa a ausecircncia de espiacuterito
filosoacutefico ldquoPodem filiar-se nessa ausecircncia de espiacuterito filosoacutefico o preconceito
da autoridade e o preconceito das maiorias a preocupaccedilatildeo da pessoa que
defende essa doutrina ou do nuacutemero que a apoia
Mas jaacute Lamark dizia em 1809 ldquoa experiecircncia mostra que os indiviacuteduos que tecircm
a inteligecircncia mais desenvolvida e que reuacutenem mais luz compotildeem em todos os
tempos uma minoria extremamente pequenardquo
O nosso futuro depende da formaccedilatildeo desta elite levantada generosa Cheia de
coragem e abnegaccedilatildeo cheia de ideias que faccedila esquecer esse falso escol que
para aiacute estaacute supondo-se glorioso e imortalrdquo342
341
Cf Joel Serratildeo e Oliveira Marques Nova Histoacuteria de Portugal - Portugal da Monarquia para a
Repuacuteblica Lisboa 1991 563-564 342
Raul Proenccedila ldquoAlguns vigravecios na educaccedilatildeo do nosso paigravesrdquo [Alma Nacional Maio de 1910] Antoacutenio
Reis Raul Proenccedila - Estudo e Antologia Lisboa 1989 110
218
Equacionando a possibilidade de renascimento da cultura portuguesa a partir
da formaccedilatildeo de elites e ainda da sua ligaccedilatildeo ao conjunto da sociedade
colocou a sua energia ao serviccedilo da divulgaccedilatildeo do livro procedendo a uma
importante reorganizaccedilatildeo da Biblioteca Nacional na qualidade de director dos
Serviccedilos Teacutecnicos (cargo para que tinha sido nomeado por Leonardo Coimbra)
participou na fundaccedilatildeo da Universidade Popular que visava levar o
conhecimento de diversas mateacuterias agraves pessoas privadas de uma educaccedilatildeo
formal e foi ainda um dos fundadores e director da revista Seara Nova em
cujas paacuteginas pugnava pela mudanccedila de mentalidades que ele reputava ser a
chave da soluccedilatildeo dos problemas nacionais
No campo da filosofia a sua uacutenica obra foi um estudo sobre o eterno retorno
iniciado entre 1916 - 1917 e interrompido pela dificuldade de acesso agraves obras
que costumava mandar vir da Alemanha (devido agrave ausecircncia das ligaccedilotildees
postais em consequecircncia da guerra) A redacccedilatildeo da obra foi retomada apoacutes a
sua doenccedila em 1938
Nietzsche tinha comeccedilado a ser divulgado numa traduccedilatildeo francesa da Mercure
de France desde o iniacutecio do seacuteculo mas entre 1913 e 1916 foram traduzidas
para portuguecircs trecircs das suas obras entre as quais Assim Falava Zaratustra
por de Antoacutenio Arauacutejo Pereira A sua influecircncia foi particularmente importante
na primeira geraccedilatildeo da Aacuteguia (de que Raul Proenccedila tambeacutem fizera inicialmente
parte) que aceitava geralmente o vitalismo do filoacutesofo alematildeo embora
repudiasse a sua criacutetica da moral343
Desde 1910 que Raul Proenccedila aludia em diversos artigos a Nietzsche
deixando transparecer quer o seu fasciacutenio pelo lado dionisiacuteaco do filoacutesofo
alematildeo quer a criacutetica ao seu individualismo No Eterno Retorno ele vai no
entanto analisar de forma criacutetica e sistemaacutetica este tema de Nietzsche
refutando a ideia de eterno retorno em nome da ideia de progresso e de
liberdade que constituiacuteam o cerne das suas convicccedilotildees poliacuteticas
O que eacute no entanto notaacutevel neste trabalho de Raul Proenccedila eacute a preocupaccedilatildeo
de fundar o seu comentaacuterio nos excertos de Nietzsche referenciados sempre
no original alematildeo (Werke Leipzig 1895-1912) assim como a discussatildeo de
problemas de traduccedilatildeo para portuguecircs de termos como Werden ou da
343
Cf Ameacuterico Enes Monteiro A Recepccedilatildeo da Obra de Friedrich Nietzsche na vida intelectual
portuguesa Porto 2000 124-183
219
expressatildeo Wiederkunft des Gleichen que evidenciam a consciecircncia da
complexidade da problemaacutetica da traduccedilatildeo e da sua importacircncia344
Paralelamente Raul Proenccedila leva a cabo um levantamento histoacuterico da ideia de
eterno retorno sempre alicerccedilado numa correcta utilizaccedilatildeo das fontes
designadamente da filosofia grega preacute-socraacutetica de Aristoacuteteles e dos seus
comentadores evidenciando um conhecimento da tradiccedilatildeo filosoacutefica e uma
preocupaccedilatildeo de rigor invulgares
A primeira metade do seacuteculo XX deu continuidade agrave figura do poeta-filoacutesofo jaacute
protagonizada por Antero que a par da sua criaccedilatildeo poeacutetica manteacutem escritos
reflexivos sobre a sua criaccedilatildeo poeacutetica e alimenta um diaacutelogo com textos
filosoacuteficos
Preocupados em legitimar a poesia e o mito como lugar de manifestaccedilatildeo da
verdade estes autores colhem nas filosofias vitalistas a argumentaccedilatildeo que lhes
permite contestar o positivismo dominante e compreender a dinacircmica da
criaccedilatildeo poeacutetica Esta outra face da heranccedila de Antero conduziu ao
desenvolvimento entre noacutes dum pensamento poeacutetico original que inspirou tanto
a obra de Pascoaes como a de Junqueiro sendo designado por Fernando
Pessoa como ldquoPanteiacutesmo Transcendentalrdquo de que este esperava um poderoso
impulso de renovaccedilatildeo da poesia nacional e europeia345
O nacionalismo literaacuterio romacircntico difundido pelo movimento a Renascenccedila
Portuguesa e protagonizado por Pascoaes assim como o cosmopolitismo de
Fernando Pessoa confluem na mesma consciecircncia da importacircncia de fundar as
suas opccedilotildees esteacuteticas num diaacutelogo com a filosofia europeia
Nestes dois poetas-filoacutesofos emerge a afirmaccedilatildeo progressiva da consciecircncia da
liacutengua e da tradiccedilatildeo poeacutetica em que se insere o seu proacuteprio trabalho como um
horizonte de sentido a partir do qual eacute possiacutevel encetar um diaacutelogo genuiacuteno
com a cultura europeia cortando com os haacutebitos de imitaccedilatildeo servil tatildeo
criticados por Antero O Homem Universal de Pascoaes o manifesto O
Ultimatum ou o ensaio A Nova Poesia Portuguesa de Fernando Pessoa
documentam a consciecircncia reflexiva (e filosoficamente informada) dessa opccedilatildeo
que levava os poetas ldquoa preferir Orfeu agrave musa mais severa de Parmeacutenidesrdquo na
expressatildeo feliz de Eduardo Lourenccedilo
344
Cf Raul Proenccedila O Eterno Retorno 1ordf ed Lisboa 1987 5859 345
Fernando Pessoa A Nova Poesia Portuguesa Lisboa 1944
220
A tentativa de pensar filosoficamente em portuguecircs subtraindo-se agraves modas
ideoloacutegicas e ao mimetismo provinciano tatildeo bem caracterizado por Antero e
Pessoa foi levada a cabo por pensadores como Sampaio Bruno Leonardo
Coimbra e Joseacute Marinho fundadores daquilo a que se veio a chamar ldquoa
filosofia portuguesardquo Criacuteticos do positivismo essencialmente preocupados com
o problema de Deus eles satildeo pensadores assistemaacuteticos dificilmente
escolarizaacuteveis para quem a verdade se apresenta como parusia e eacute
dificilmente objecto de exposiccedilatildeo discursiva a sua influecircncia apesar de
assinalaacutevel foi exterior agraves universidades
Este renovado interesse pela filosofia que acompanhou todos os movimentos
de ideias da Primeira Repuacuteblica reflectiu-se na Universidade Popular346 cujo
nuacutecleo mais importante se situava no Porto Esta era animada pela ambiccedilatildeo de
formaccedilatildeo das elites de que o paiacutes necessitava assim como de combater a
influecircncia do positivismo dominante Paralelamente aos cursos de liacutenguas
eram realizadas conferecircncias e liccedilotildees de divulgaccedilatildeo cientiacutefica e filosoacutefica por
intelectuais reputados como Jaime Cortesatildeo e Leonardo Coimbra sendo a
actividade docente acompanhada de uma actividade editorial de divulgaccedilatildeo de
autores claacutessicos e modernos
Este notaacutevel esforccedilo de divulgaccedilatildeo expressa-se sobretudo na nova
preocupaccedilatildeo pelas traduccedilotildees de filosofia em liacutengua portuguesa inesperado no
que Raul Proenccedila chamava ldquoo povo mais anti-filosoacutefico da Europardquo
De Descartes satildeo traduzidas as Meditaccedilotildees Metafiacutesicas por Antoacutenio Seacutergio
em 1930 e O Discurso do Meacutetodo e Tratado das Paixotildees por Newton de
Macedo em 1937 De Leibniz satildeo traduzidos os Novos Ensaios sobre o
Entendimento Humano em 1931 por Antoacutenio Seacutergio De Augusto Comte eacute
traduzida a obra A Importacircncia da Filosofia Positiva em 1939 De Nietzsche
satildeo traduzidas Assim Falava Zaratustra por Arauacutejo Pereira em 1913 A
Genealogia da Moral por Carlos Joseacute de Meneses em 1913 e o Anticristo pelo
mesmo tradutor em 1916 Eacute traduzido O Capital de Marx em 1912 As
Confissotildees de Santo Agostinho satildeo traduzidas em 1905 Platatildeo tem traduzidos
346
O movimento das Universidades Populares surgira em Franccedila nos finais do seacutec XIX com o objectivo
de difundir a cultura nas classes populares Apoacutes 1910 o movimento das Universidades Populares
conheceu em Portugal alguma expansatildeo com a criaccedilatildeo das Universidades Populares do Porto de Setuacutebal
e de Lisboa com a finalidade de realizar conferecircncias e cursos sistemaacuteticos publicando ainda uma revista
de cultura intitulada Educaccedilatildeo Popular Cf Joel Serratildeo e Antoacutenio Marques Nova Histoacuteria de Portugal -
Portugal da Monarquia para a Repuacuteblica 612-613
221
neste periacuteodo A Apologia de Soacutecrates por Acircngelo Ribeiro em 1923 O Criacuteton
por Agostinho da Silva em 1938 e o Feacutedon por Acircngelo Ribeiro em 1919 e
ainda O Banquete pelo mesmo tradutor em 1934
Os proacuteprios positivistas foram sensiacuteveis a este movimento de traduccedilatildeo e
levaram a cabo traduccedilotildees muito importantes para a actualizaccedilatildeo do
pensamento cientiacutefico portuguecircs Destacam-se de Darwin A Origem do
Homem por Joatildeo Carlos de Oliveira em 1910 e A Selecccedilatildeo Artificial por Lobo
Vilela em 1939 De Haeckel haacute a traduccedilatildeo de dez tiacutetulos os primeiros dos
quais satildeo Enigmas do Universo Origem do Homem e Religiatildeo e Evoluccedilatildeo em
1908 De Spencer eacute traduzido por Juacutelio de Matos em 1904 Da Liberdade agrave
Escravidatildeo e Do Progresso ndash Sua Lei e Suas Causas por Eduardo Salgueiro
em 1939
Como importantes fragilidades deste movimento de traduccedilatildeo temos o facto
sublinhado justamente por Orlando Vitorino347 de que grande parte das
traduccedilotildees de filosofia do periacuteodo republicano obedecem a intuitos poliacuteticos ou
religiosos estando integradas em colecccedilotildees como ldquoBiblioteca de Educaccedilatildeo
Nacionalrdquo de caraacutecter anarquista dirigida por Agostinho Fortes e a colecccedilatildeo
ldquoCiecircncia e Religiatildeordquo de apologia catoacutelica dirigida por Gomes dos Santos
Seraacute necessaacuterio esperar pelos anos 40 para ver surgir as primeiras colecccedilotildees
exclusivamente dedicadas agrave Filosofia a livraria Atlacircntida de Coimbra lanccedilou a
colecccedilatildeo ldquoBiblioteca filosoacuteficardquo dirigida pelo professor Joaquim de Carvalho e
a Guimaratildees Editores a colecccedilatildeo ldquoFilosofia e Ensaiosrdquo
Relativamente agraves traduccedilotildees de filosofia alematilde antes da deacutecada de 40 apenas
Nietzsche tinha sido traduzido sendo apenas a partir daiacute que vatildeo ser
traduzidos alguns textos dos filoacutesofos alematildees contemporacircneos mais
significativos 348
Eacute de salientar ainda que se daacute continuidade agraves traduccedilotildees de Aristoacuteteles e se
traduz um nuacutemero muito significativo de diaacutelogos de Platatildeo o que indicia uma
redescoberta da cultura e da filosofia gregas para a qual contribuem
especialistas como Eudoro de Sousa e Agostinho da Silva
347
Cf Orlando Vitorino Traduccedilotildees Portuguesas de Filosofia Lisboa 1958 348
Cf Apecircndice 1 deste trabalho ldquoTraduccedilotildees de Filosofia em Ligravengua Portuguesa ateacute 1959rdquo
222
Este interesse pela filosofia e pelas traduccedilotildees portuguesas de Filosofia ao
longo da primeira metade do seacuteculo XX mostra claramente que entre as elites
se difunde o interesse pelas ldquoideias geraisrdquo cuja ausecircncia Pessoa tanto
criticava como tiacutepico do ldquocaso mental portuguecircsrdquo
A estabilizaccedilatildeo do movimento de traduccedilatildeo e a sua orientaccedilatildeo de acordo com
criteacuterios rigorosos marcharaacute a par do fortalecimento da situaccedilatildeo da filosofia nas
Universidades portuguesas assim como da sua ligaccedilatildeo aos centros europeus
de criaccedilatildeo e difusatildeo da filosofia para o qual a Gulbenkian muito contribuiraacute
com o seu sistema de bolsas
Note-se ainda que ao contraacuterio do que aconteceu no Brasil em Portugal natildeo
foi feita a traduccedilatildeo de nenhum dos autores da escolaacutestica designadamente de
S Tomaacutes de Aquino apesar da introduccedilatildeo em Portugal da corrente neo-
escolaacutestica no iniacutecio do seacuteculo XX
5 Traduccedilatildeo e consciecircncia de si na cultura Brasileira
O pensamento brasileiro tem uma matriz comum ao pensamento portuguecircs
que radica natildeo soacute no periacuteodo colonial mas tambeacutem na proximidade cultural
criada pela comunidade linguiacutestica Essa matriz comum estabeleceu-se numa
primeira fase por influecircncia do magisteacuterio dos jesuiacutetas cuja acccedilatildeo no Brasil
levou agrave instituiccedilatildeo dos cursos de Artes a partir de 1572 assim como dos cursos
de Matemaacutetica e Fiacutesica de Teologia Moral Dogmaacutetica e Sagrada Escritura os
Estudos Gerais do Coleacutegio da Baiacutea e as primeiras tentativas para se criar a
Universidade do Brasil
A influecircncia dos jesuiacutetas no Brasil natildeo se resume a uma transposiccedilatildeo mecacircnica
da filosofia escolaacutestica para territoacuterio brasileiro pelo contraacuterio a problemaacutetica
social da colonizaccedilatildeo e do estatuto dos iacutendios teve ela mesma um papel central
na elaboraccedilatildeo da filosofia juriacutedica e poliacutetica da Segunda Escolaacutestica como
acima vimos
A educaccedilatildeo jesuiacutetica modelou a inteligecircncia brasileira ateacute meados do seacuteculo
XVIII tendo contribuiacutedo para a difusatildeo das ideias filosoacuteficas no Brasil e o
legado do humanismo cristatildeo do Pe Antoacutenio Vieira expresso nos sermotildees
cartas e outros escritos constitui um traccedilo de uniatildeo persistente entre a cultura
brasileira e a cultura portuguesa
223
Com a segunda metade do seacuteculo XVIII assistimos a uma nova fase na cultura
brasileira marcada pela influecircncia da reforma pombalina e dum iluminismo de
feiccedilatildeo ecleacutectica ligada ao pensamento de Verney Os homens que
encabeccedilaram os destinos do Brasil eram formados pela nova pedagogia
pombalina e a mesma poleacutemica entre tradicionalistas e os apologistas dos
autores modernos atravessa a cultura brasileira deste periacuteodo Caracterizando
este iluminismo brasileiro Francisco Gama Caeiro afirmava rdquoA Filosofia
vazada em moldes dum iluminismo tropical passa quase a ser um estado de
alma uma vivecircncia apaixonada um manifesto pedagoacutegico que convive de
modo talvez ingeacutenuo com a Ideologia embora com ela se natildeo confunda
Reclama para si a liberdade de expressatildeo e como meio de comunicar dispotildee
do texto literaacuterio da memoacuteria cientiacutefica da prelecccedilatildeo de retoacuterica da oraccedilatildeo
acadeacutemicardquo349
Este periacuteodo pombalino que do lado brasileiro Antoacutenio Paim estende ateacute agrave
criaccedilatildeo da Real Academia Militar em 1810 estaria na origem da corrente
filosoacutefica cientificista e do posterior peso do positivismo no periacuteodo republicano
350
Contudo os traccedilos distintivos no pensamento brasileiro surgiriam associados agrave
reivindicaccedilatildeo da autonomia poliacutetica e agraves tarefas da independecircncia Uma das
singularidades do pensamento brasileiro (relativamente ao pensamento
portuguecircs) foi uma maior influecircncia do pensamento Kantiano que logo desde a
independecircncia se foi impondo sobretudo pelo impacto da sua eacutetica e filosofia
poliacutetica mais consentacircneos com as tarefas poliacuteticas ligadas agrave independecircncia
Efectivamente tem vindo a ser sublinhada 351 a influecircncia de Kant na ideia de
independecircncia tendo sido a cidade de Satildeo Paulo o primeiro centro de difusatildeo
do pensamento alematildeo muito embora natildeo houvesse ainda conhecimento da
liacutengua Aiacute o conhecimento de Kant foi difundido como em Portugal atraveacutes da
liacutengua e dos autores franceses como Mme Stael e Charles Villiers e
posteriormente divulgado activamente por Martim Francisco e Antoacutenio Feijoacute
349
Cf Francisco Gama Caeiro ldquoO Pensamento Filosoacutefico do seacuteculo XVI ao Seacuteculo XVIII em Portugal e
no Brasilrdquo Actas do I Congresso Luso-Brasileiro de Filosofia in Revista Portuguesa de Filosofia Braga
1982 350
Antoacutenio Paim ldquoFilosofia Portuguesa e Brasileira Convergecircncias e peculiaridadesrdquo Actas do I
Congresso Luso-Brasileiro de Filosofia in Revista Portuguesa de Filosofia Braga 1982 351
Cf Glaacuteucio Veiga ldquoKant e o Brasilrdquo Revista Brasileira de Filosofia vol 1 1951 e Miguel Reale ldquoA
Filosofia Alematilde no Brasilrdquo Revista Brasileira de Filosofia vol 24 1974
224
O Pe Antoacutenio Feijoacute (1784-1873) foi um dos difusores do Kantismo em que se
procura inspirar para legitimar a conciliaccedilatildeo ecleacutetica entre a tradiccedilatildeo
escolaacutestica e os novos valores emergentes da revoluccedilatildeo francesa Kant e
Rousseau satildeo duas influecircncias persistentes no seu pensamento moral e
poliacutetico e inspiradores da sua actividade poliacutetica no primeiro reinado
O krausismo considerada a segunda etapa de difusatildeo da influecircncia de Kant
foi como acima referimos tambeacutem uma corrente influente no campo da
Filosofia do Direito e da Filosofia Poliacutetica sobretudo em Satildeo Paulo (1781-
1832) sendo aiacute importado atraveacutes da Faculdade de Direito de Coimbra
A terceira fase de difusatildeo da influecircncia de Kant refere-se agrave influecircncia da escola
neokantiana O neokantismo inicia-se na Alemanha a partir do livro Kant e os
seus epiacutegonos de Otto Liebeman (1865) e torna-se o movimento filosoacutefico
dominante na Alemanha designado de Escola de Marburgo no periacuteodo
compreendido entre 1890 e a Primeira Guerra Mundial protagonizado por
Herman Cohen Paul Natorp e Cassirer
Os textos-base da escola de Marburgo nunca foram traduzidos pelo que o
conhecimento do pensamento destes autores tanto em Portugal como no
Brasil teraacute sido muito prejudicado embora o neokantismo tenha tido uma
influecircncia assinalaacutevel no caso de Portugal na Filosofia do Direito (Cabral
Moncada) e no caso do Brasil na geacutenese da Escola do Recife
A Escola do Recife constitui-se como movimento de cisatildeo a partir do
positivismo dos anos 70 propondo-se a sua superaccedilatildeo Tobias Barreto foi o
seu iniciador tendo difundido o conceito neo-kantiano de filosofia como
epistemologia ocupou-se principalmente da distinccedilatildeo entre os conceitos de
natureza e cultura fundamentando o primeiro na causalidade eficiente e o
segundo na causalidade final
Um dos seus seguidores foi Siacutelvio Romero que sob a influecircncia do
evolucionismo de Spencer defendeu a superaccedilatildeo da oposiccedilatildeo entre natureza
e cultura e deu um cunho socioloacutegico agraves investigaccedilotildees sobre a cultura
encaminhando-se para investigaccedilotildees no terreno sobre a diversidade cultural
brasileira352
352
Cf Antoacutenio Paim A Filosofia Brasileira Contemporacircnea ndash estudos complementares agrave Histoacuteria das
Ideias Filosoacuteficas no Brasil vol 7 Londrina 2000 92
225
Depois da Segunda Guerra Mundial deu-se o pleno desenvolvimento da Escola
Culturalista com a criaccedilatildeo do Instituto Brasileiro de Filosofia que teve como
um dos objectivos defender a pluralidade de correntes do pensamento filosoacutefico
brasileiro designadamente atraveacutes da Revista Brasileira de Filosofia
Esta corrente filosoacutefica designada de ldquoculturalismordquo tem-se destacado pela sua
reflexatildeo sobre problemas da Eacutetica e da Filosofia do Direito (Miguel Reale)
assim como sobre a temaacutetica das filosofias nacionais (Antoacutenio Paim) e veio
ainda a defender o enraizamento da filosofia na diversidade cultural dos vaacuterios
povos em consonacircncia com posiccedilatildeo idecircntica que em Portugal veio a ser
defendida por Joseacute Marinho
O culturalismo sublinha a estreita ligaccedilatildeo entre a filosofia e a cultura
chamando a atenccedilatildeo para os problemas filosoacuteficos que emergem natildeo apenas
da tradiccedilatildeo filosoacutefica mas da evoluccedilatildeo cultural dos povos como sublinha
Antoacutenio Paim um dos seus mais destacados representantes ldquoProcurando ater-
me ao essencial o culturalismo brasileiro atribui grande importacircncia agrave teoria
dos objectos para insistir que corresponde a grande empobrecimento limitaacute-los
a objectos naturais e ideais O reconhecimento da existecircncia de objectos
referidos a valores permite natildeo soacute explicar adequadamente a singularidade do
saber filosoacutefico como igualmente circunscrever de modo preciso o campo de
investigaccedilatildeo das ciecircncias sociaisrdquo353
Segundo Antoacutenio Paim as primeiras traduccedilotildees brasileiras do pensamento
filosoacutefico europeu comeccedilaram apenas nos anos 30 mas o volume de
traduccedilotildees e o nuacutemero de autores traduzidos foi muito maior que em
Portugal354 Destacam-se a seguintes traduccedilotildees de Descartes As Meditaccedilotildees
Metafiacutesicas por AS Costa em 1937 O Discurso do Meacutetodo por Paulo Oliveira
em 1938 As Regras para a Direcccedilatildeo do Espiacuterito por Hermes Vieira em 1938
de Rousseau O Contrato Social em 1934 O Discurso sobre as Ciecircncias e as
Artes a Origem das desigualdades e as Confissotildees em 1936 A Eacutetica de
Spinoza foi traduzida por Luacutecio Xavier em 1937 o Novum Organon de Bacon
foi traduzido por L A Fisher em 1938
353
Ibidem 96 354
Cf Antoacutenio Paim Bibliografia Filosoacutefica Brasileira periacuteodo contemporacircneo 1931-1977 Satildeo Paulo-
Brasiacutelia 1979
226
De Hegel foi traduzida a Enciclopeacutedia Das Ciecircncias Filosoacuteficas trad de Liacutevio
Xavier 1936 de Schopenhauer Dores do Mundo por H Antunes 1931 O
Amor as Mulheres e a Morte trad de Emiacutelio Braizo 1936de Nietzsche O
Crepuacutesculo dos Iacutedolos trad de Persiano da Fonseca de 1943
Segundo Antoacutenio Paim estas traduccedilotildees natildeo obedeciam a criteacuterios de rigor
cientiacutefico que soacute vieram a ser adoptados no poacutes-guerra A traduccedilatildeo adequada
dos textos claacutessicos comeccedilou com a Summa Teologica de S Tomaacutes por
Alexandre Correia publicada em 1944 tendo em seguida o movimento de
traduccedilatildeo prosseguido jaacute dentro dos criteacuterios cientiacuteficos requeridos com as
traduccedilotildees de Aristoacuteteles
Note-se tambeacutem que ao contraacuterio do que aconteceu em Portugal S Tomaacutes de
Aquino foi um autor muito traduzido no Brasil tendo havido vaacuterias ediccedilotildees da
traduccedilatildeo da Summa Teologica355 o que indicia a importacircncia do neotomismo
corrente filosoacutefica importante nos anos trinta e cinquenta e posteriormente
revitalizada por Leonardo Van Acker professor belga da Universidade de
Lovaina radicado no Brasil
De Kant foram traduzidos A Paz perpeacutetua trad De Galvatildeo de Queiroacutes de
1944 A criacutetica da Razatildeo Praacutetica trad De Afonso Bertagnoli 1947 a Criacutetica da
Razatildeo Pura Rodrigues Merege 1959 os Prolegoacutemenos de Antoacutenio Pinto de
Carvalho de 1959 e a Fundamentaccedilatildeo da Metafiacutesica dos Costumes de Kant de
Antoacutenio Pinto de Carvalho de 1964
A anaacutelise das traduccedilotildees realizadas confirma a mais ampla e mais consistente
recepccedilatildeo da filosofia kantiana no Brasil Este diaacutelogo com o pensamento
kantiano teria segundo Antoacutenio Paim contribuiacutedo para encaminhar a reflexatildeo
filosoacutefica num sentido divergente em relaccedilatildeo ao pensamento portuguecircs com
uma marcada centragem nas questotildees de ordem eacuteticas poliacutetica e
antropoloacutegica como pode deduzir-se da influente corrente do culturalismo
Haacute ainda que salientar que desde que a Universidade foi adoptada como forma
de organizaccedilatildeo do ensino superior brasileiro pela Reforma Francisco Campos
de 1931 o ensino da Filosofia foi nela integrado acompanhando a expansatildeo
da Universidade pelos diversos Estados e sendo criadas Faculdades de
Filosofia na maioria das capitais Segundo Antoacutenio Paim em 1974 o nuacutemero de
355
Cf Apecircndice 1 deste trabalho ldquoTraduccedilotildees de Filosofia em Ligravengua Portuguesardquo ateacute 1959
227
cursos de filosofia correspondia a 55 com cerca de 5 mil alunos
matriculados356 o que daacute uma indicaccedilatildeo da vastidatildeo natildeo soacute da
profissionalizaccedilatildeo da filosofia como do puacuteblico leitor a quem se dirigiam as
traduccedilotildees brasileiras de Filosofia ao contraacuterio do que se passava em Portugal
desde logo devido aos evidentes constrangimentos demograacuteficos mas ainda
devido agrave menor presenccedila e capacidade de captaccedilatildeo de alunos dos cursos de
Filosofia no interior da Universidade
6 A liacutengua portuguesa a tradiccedilatildeo e a traduccedilatildeo
A histoacuteria das traduccedilotildees portuguesas de filosofia fornece-nos as indicaccedilotildees
necessaacuterias para a caracterizaccedilatildeo da ldquosituaccedilatildeo hermenecircuticardquo que condicionou
a recepccedilatildeo do pensamento de Heidegger Com efeito vimos atraacutes que toda a
interpretaccedilatildeo eacute condicionada pelo aiacute do inteacuterprete pelo lugar em que ele estaacute e
que delimita as suas possibilidades de visatildeo Toda a interpretaccedilatildeo eacute
condicionada por um horizonte que determina antecipadamente os problemas e
temas que podem constituir-se como objecto de investigaccedilatildeo
De acordo com a posiccedilatildeo de Gadamer segundo a qual a situaccedilatildeo
hermenecircutica eacute em cada caso determinada pelo modo como nela opera a
tradiccedilatildeo e pelos preconceitos que actuam no presente histoacuterico do inteacuterprete
podemos relevar quatro linhas de forccedila determinantes na situaccedilatildeo
hermenecircutica dos inteacuterpretes de Heidegger em liacutengua portuguesa
Em primeiro lugar a ruptura meramente ldquoideoloacutegicardquo com a escolaacutestica
realizada pelas reformas pombalinas e a natildeo traduccedilatildeo dos seus textos
fundamentais para o portuguecircs Estes factos tiveram como consequecircncia natildeo o
desaparecimento dessa tradiccedilatildeo escolaacutestica que eacute uma fortiacutessima matriz da
nossa cultura mas apenas o facto de ela se ter tornado uma tradiccedilatildeo morta
que duma forma inconsciente tem sobrevivido misturando-se de forma confusa
com a recepccedilatildeo da filosofia da moderna e contemporacircnea ndash o que explica o
ecletismo de grande parte do pensamento portuguecircs
Esta influecircncia latente da escolaacutestica pode inferir-se da persistecircncia de
algumas traduccedilotildees de Aristoacuteteles ao longo dos vaacuterios periacuteodos considerados e
constatar-se em autores contemporacircneos que confrontados com a temaacutetica do
356
Cf Antoacutenio Paim A Filosofia Brasileira Contemporacircnea 301
228
niilismo pretendem regressar a um humanismo cristatildeo teocecircntrico como
Leonardo Coimbra357 ou como Joseacute Marinho pretendem recuperar uma antiga
tradiccedilatildeo sapiencial vendo a filosofia como um confronto com o enigma do ser
e propondo o regresso ao estudo das temaacuteticas tradicionais da Metafiacutesica358
Em segundo lugar haacute que sublinhar o facto de o francecircs se ter instalado entre
noacutes durante todo o seacuteculo XIX como liacutengua de acesso ao pensamento
filosoacutefico Isto teve as importantes consequecircncias jaacute referidas de que a decisatildeo
do que se lecirc depende de decisotildees alheias designadamente das editoras e
revistas francesas e que os autores alematildees lidos nesta liacutengua satildeo apropriados
num outro contexto de sentido e a sua compreensatildeo sujeita a distorccedilotildees
Assim a recepccedilatildeo da filosofia contemporacircnea natildeo teve como consequecircncia
uma verdadeira rdquoapropriaccedilatildeordquo mas sim o caraacutecter de uma superficial adesatildeo a
modas filosoacuteficas que rapidamente se convertem em ideologias e penetram a
cultura portuguesa como sendo formas de pensar rdquooacutebviasrdquo assimiladas sem
espiacuterito criacutetico e sem um acesso agraves fontes o que aconteceu largamente com o
positivismo como eacute referido justamente por Antero de Quental
A rejeiccedilatildeo desta importaccedilatildeo das modas filosoacuteficas por via francesa foi muitas
vezes acompanhada de uma preocupaccedilatildeo identitaacuteria que procura a afirmaccedilatildeo
da liacutengua portuguesa agrave margem e contra a tradiccedilatildeo filosoacutefica de que Agostinho
da Silva nalguns passos da sua obra se faz eco ldquoPonha-se pois como um
princiacutepio geral para o paiacutes o gosto do concreto e a obrigaccedilatildeo do concreto
levando tais exigecircncias a todos os domiacutenios natildeo deixando por exemplo que
se disserte sobre filosofia sem a ter lido
[] aqui se potildee tambeacutem como se sabe uma grave questatildeo da nossa histoacuteria
cultural se houve entre noacutes ou natildeo filoacutesofos a natildeo ser a que se importa e se
continua importando com os seus pontos de apoio mais fortes na escolaacutestica
de inspiraccedilatildeo aristoteacutelica aleacutem de tudo fortemente inclinados ao concreto num
positivismo quase sempre ingeacutenuo porquanto parecem esquecer-se os nossos
de que era Comte um matemaacutetico e numas intuiccedilotildees e arroubos bergsoacutenicos e
poacutes-bergsoacutenicos de que haacute pouco a dizer porque informes demaisrdquo359
357
Cf Leonardo Coimbra A Ruacutessia de Hoje e o Homem de Sempre [1ordf ed Porto Livraria Tavares
1935] Obras de Leonardo Coimbra vol I Porto 1983 358
Joseacute Marinho Filosofia - Ensino ou Iniciaccedilatildeo Lisboa 1972 359
Agostinho da Silva Ensaios Sobre Cultura e Literatura Portuguesa e Brasileira II Lisboa 2001 70
229
Tais preconceitos segundo os quais o portuguecircs (e mesmo as liacutenguas ibeacutericas
em geral) pela sua vinculaccedilatildeo ao concreto seria inapto para a filosofia devem
ser correlacionados com o atraso de dois seacuteculos na traduccedilatildeo da tradiccedilatildeo
filosoacutefica para liacutengua portuguesa a escassez e a fraca qualidade das traduccedilotildees
efectuadas ateacute aos anos cinquenta
Eacute de salientar que as criacuteticas de Heidegger agrave traduccedilatildeo dos autores gregos para
o latim e ainda a criacutetica ao humanismo latino na Carta sobre o Humanismo
vieram ampliar o preconceito a que nos estamos a referir estendendo-o agrave
totalidade das liacutenguas latinas
A refutaccedilatildeo deste preconceito da impossibilidade de o latim se assumir como
liacutengua filosoacutefica foi feita entre noacutes de modo eloquente no plano dos factos pela
produccedilatildeo filosoacutefica da Segunda Escolaacutestica360 mas a natildeo traduccedilatildeo dos seus
textos determinou um crescente desconhecimento e impossibilidade de
actualizaccedilatildeo desta tradiccedilatildeo
Assim na nossa liacutengua o repertoacuterio conceptual (Vorgriff) foi empobrecido por
ausecircncia de uma apropriaccedilatildeo da tradiccedilatildeo filosoacutefica e marcado sobretudo por
uma mistura ecleacutectica de conceitos da escolaacutestica e da filosofia aristoteacutelica
com conceitos bebidos nas traduccedilotildees francesas da filosofia moderna e
contemporacircnea constituindo este ecletismo pouco consciente e a rejeiccedilatildeo natildeo
fundamentada da noccedilatildeo de sistema a fonte de um forte preconceito (Vorbegriff)
contra a filosofia
Em terceiro lugar haacute que ter presente que em Portugal foi uma tradiccedilatildeo poeacutetica
e literaacuteria que se veio afirmando no sentido preciso em que devemos entender
o termo tradiccedilatildeo um diaacutelogo entre poetas de vaacuterias geraccedilotildees que
permanentemente se enraiacuteza do passado e actualiza esse passado em novas
obras linguiacutesticas que se projectam de forma criadora na cultura portuguesa
assumindo tambeacutem uma dimensatildeo universal Esta tradiccedilatildeo poeacutetica
desenvolveu-se nos seus maiores momentos (Camotildees Antero Pascoaes
Vergiacutelio Ferreira Raul Brandatildeo Pessoa) na vizinhanccedila da filosofia e da poesia
europeias estabelecendo com esta um diaacutelogo criador mantendo contudo o
seu enraizamento no solo firme da sua proacutepria tradiccedilatildeo
360
Cf ver o 1ordm capiacutetulo da parte II deste trabalho
230
Esta tradiccedilatildeo poeacutetico-literaacuteria reagindo contra o positivismo dominante e
depois agraves temaacuteticas do niilismo e da morte de Deus produziu no seacuteculo XIX e
XX uma meditaccedilatildeo poeacutetica sobre os problemas do sentido da existecircncia361 e
uma reinterpretaccedilatildeo miacutetica e panteiacutesta do cristianismo agrave margem da tradiccedilatildeo
religiosa362 assim como uma consciecircncia da liacutengua e da histoacuteria como
horizontes hermenecircuticos condicionadores do pensar363
Esta tradiccedilatildeo marcou fortemente a liacutengua portuguesa como liacutengua retoacuterica e
poeacutetica que transporta consigo uma forte tradiccedilatildeo impondo os seus proacuteprios
temas e problemas que satildeo muitas vezes problemas filosoacuteficos (Vorsicht)
Natildeo eacute pois de modo algum um acaso que o iniacutecio da consciecircncia da
necessidade traduccedilatildeo filosoacutefica tenha emergido no interior desta tradiccedilatildeo
poeacutetica esta encontrou na filosofia alematilde o repertoacuterio conceptual e a discussatildeo
de temas e problemas que permitiam responder agrave necessidade de reagir
contra o positivismo e de fundamentar opccedilotildees poliacuteticas eacuteticas e esteacuteticas
assim como de relanccedilar o interesse pelas questotildees da ontologia e da
metafiacutesica numa outra via que natildeo a da escolaacutestica
Em quarto lugar haacute que ressaltar a evoluccedilatildeo contemporacircnea do pensamento
brasileiro o seu maior dinamismo e vitalidade permitem confirmar o influxo
positivo da actividade de traduccedilatildeo na capacidade de apropriaccedilatildeo da tradiccedilatildeo e
de actualizaccedilatildeo do pensamento filosoacutefico no contacto com os problemas vivos
da cultura364
No Brasil apesar da existecircncia de uma matriz comum ao pensamento
portuguecircs haacute a destacar uma maior afirmaccedilatildeo da filosofia facilmente
constataacutevel natildeo apenas pelo nuacutemero de obras publicadas ou pelo nuacutemero de
361
Cf A minha dissertaccedilatildeo de mestrado atraacutes citada A Vida e o Traacutegico em Raul Brandatildeo 362
Cf Jorge Peixoto Coutinho ldquoJunqueiro-Pascoaes e a hermenecircutica do cristianismordquo Coloacutequio Guerra
Junqueiro e a Modernidade Porto 1997 80-98 363
Cf Maria Adelaide Pacheco ldquoLigravengua e Histoacuteria em Heidegger e Pascoaesrdquo in Heidegger Linguagem
e Traduccedilatildeo 417-432 364
Veja-se a este respeito a reflexatildeo de Miguel Reale sobre a evoluccedilatildeo da presenccedila da filosofia no
pensamento brasileiro ldquoA histoacuteria da cultura do Brasil foi durante muito tempo a histoacuteria da repercussatildeo
em nossa sociedade de correntes especulativas ou programaacuteticas recebidas de aleacutem-mar Daiacute a
caracteriacutestica ainda recente de uma actividade mental assinalada pelo comportamento proacuteprio de quem se
conforma de antematildeo a viver de transplantes e de improvisados reajustes de estruturas importadas tanto
no plano da tecnologia como no das instituiccedilotildees poliacuteticas
Ora se examinarmos a situaccedilatildeo actual vermos que [hellip] aquela atitude de reproduccedilatildeo passiva torna-se
cada vez mais excepcional de tal modo que vamos adquirindo cada vez mais consciecircncia de que natildeo haacute
arqueacutetipos para serem copiados mas antes diaacutelogos necessaacuterios entre domiacutenios culturais distintos [hellip]rdquo
Miguel Reale Estudos de Filosofia Brasileira Lisboa 1994 34
231
cursos de filosofia existentes mas pela sua organizaccedilatildeo em instituiccedilotildees como
o Instituto Brasileiro de Filosofia ou a Academia Brasileira de Filosofia
Para esta maior vitalidade e consolidaccedilatildeo da filosofia contribuiacuteram fortemente a
preocupaccedilatildeo pela traduccedilatildeo natildeo apenas dos autores fundamentais da filosofia
moderna e contemporacircnea mas tambeacutem os autores da tradiccedilatildeo filosoacutefica365
Um contacto mais precoce com a filosofia alematilde e uma maior influecircncia da
filosofia kantiana ligada agraves tarefas histoacuterico-poliacuteticas da independecircncia foram
encaminhando a reflexatildeo filosoacutefica no sentido duma nova problemaacutetica e da
afirmaccedilatildeo dum pensamento filosoacutefico mais consciente de si mesmo e mais
consistente na sua elaboraccedilatildeo teoacuterico-conceptual o problema da finitude da
razatildeo teoacuterica e da impossibilidade da metafiacutesica assim como o primado das
questotildees eacutetico-poliacuteticas e de uma filosofia da cultura foram-se impondo como
marcas distintivas do pensamento brasileiro
Contudo esta viragem em direcccedilatildeo agrave modernidade eacute acompanhada pela
existecircncia dum contacto natildeo interrompido com a tradiccedilatildeo possibilitado pelas
correntes tomistas e neotomistas e pela traduccedilatildeo das obras de referecircncia desta
corrente filosoacutefica assim como pelas traduccedilotildees dos autores claacutessicos366
365
Cf Antoacutenio Paim destaca como traduccedilotildees do pensamento claacutessico mais significativas a traduccedilatildeo da
obra completa de Platatildeo de iniciativa da editora Globo a iniciativa da Editora Abril de 50 tiacutetulos de
vaacuterios autores claacutessicos na colecccedilatildeo ldquoOs Pensadoresrdquo Acrescenta ainda a traduccedilatildeo da Summa Teoloacutegica
de S Tomaacutes de Aquino e dos Prolegoacutemenos e a Fundamentaccedilatildeo da Metafiacutesica dos Costumes de Kant
Concluindo a partir do levantamento das traduccedilotildees efectuadas entre 1930 e 1977 afirma que este
rdquopermite verificar que se concluiu no perigraveodo a traduccedilatildeo das principais obras claacutessicas da filosofia Resta
por certo efectivar a versatildeo da obra completa de algumas figuras do pensamento ocidental a exemplo do
que se fez em relaccedilatildeo a Platatildeo e S Tomaacutes Tal eacute o caso certamente de Aristoacuteteles e de Kantrdquo
(Bibliografia Filosoacutefica Brasileira periacuteodo contemporacircneo 1931-1977 Introduccedilatildeo) 366
Em contraste com esta situaccedilatildeo da traduccedilatildeo dos autores da tradiccedilatildeo filosoacutefica que constataacutemos para o
Brasil veja-se a nota introdutoacuteria da Bibliografia Filosoacutefica Portuguesa - que faz o levantamento de
cerca de 7000 tiacutetulos publicados entre 1931 e 1987 - de Maria de Lurdes Ganho e Mendo Castro
Henriques ldquoMuito embora o valor cientiacutefico das obras aqui reportoriadas seja necessariamente desigual e
se registem graviacutessimas carecircncias sobretudo na traduccedilatildeo de textos claacutessicos certamente que o estudioso
natildeo deixaraacute de encontrar muacuteltiplas pistas e sugestotildeesrdquo (Sociedade Cientiacutefica da Universidade Catoacutelica
Portuguesa Bibliografia Filosoacutefica Portuguesa (1931-1987) LisboaSatildeo Paulo 1988 XII
232
233
Capiacutetulo II - Traduccedilatildeo portuguesa de Heidegger
234
235
1 Recepccedilatildeo de Heidegger em Portugal
11 Os primeiros divulgadores
Como acima referimos a influecircncia de Heidegger iniciou-se com a publicaccedilatildeo
de Sein und Zeit em 1927 cuja difusatildeo lhe granjeou uma notoriedade quase
imediata captando a atenccedilatildeo do puacuteblico atento agraves questotildees filosoacuteficas de
quase toda a Europa A irradiaccedilatildeo da influecircncia de Heidegger num primeiro
periacuteodo foi caracterizada por um conhecimento fragmentaacuterio das suas obras
uma vez que a primeira traduccedilatildeo integral de Sein und Zeit realizada por Gaos
para o espanhol foi feita apenas em 1951 e que soacute nos anos setenta Vittorio
Klostermann iniciou a publicaccedilatildeo das obras completas
Ao longo destes primeiros anos a leitura de Heidegger centrada
dominantemente na anaacutelise da existecircncia em Sein und Zeit impocircs uma
primeira interpretaccedilatildeo da filosofia heideggeriana como um existencialismo 367e
uma reflexatildeo antropoloacutegica interpretaccedilatildeo que foi sendo corrigida desde logo
pelo proacuteprio Heidegger depois por um conhecimento progressivo da
globalidade dos seus textos filosoacuteficos
Eacute esta mesma interpretaccedilatildeo existencialista que marca a primeira recepccedilatildeo de
Heidegger em liacutengua portuguesa que eacute aliaacutes anterior ao desenvolvimento dos
primeiros estudos portugueses de fenomenologia que apareceram na Revista
Portuguesa de Filosofia soacute no ano de 1946 (Diamantino Martins
Fenomenologia e Imortalidade e Severino Tavares Os Arquivos de Husserl
Revista Portuguesa de Filosofia 21946)
Tem-se apontado como primeiro autor a comentar o pensamento de Heidegger
em liacutengua portuguesa Leonardo Coimbra368 De facto em O Homem agraves matildeos
367
Sobre a recepccedilatildeo do existencialismo em Portugal cf comunicaccedilatildeo de Miguel Reale ldquoDelfim Santos e
a geacutenese do existencialismo em Portugalrdquo nas Actas do Congresso Internacional de 2008rdquoDelfim Santos
e a Escola do Portordquo(199-234) O autor mostra que a recepccedilatildeo do existencialismo em Portugal foi desde
logo uma aclimataccedilatildeo agraves tendecircncias intelectuais mais marcantes do paiacutes desde o seacuteculo XIX sem uma
avaliaccedilatildeo rigorosa do valor intriacutenseco dos autores nem da argumentaccedilatildeo produzida Miguel Reale
distingue trecircs fases na recepccedilatildeo do existencialismo a primeira protagonizada por Leonardo Coimbra
Garcia Domingos Delfim Santos Joseacute Brandatildeo e Luiacutes Cabral Moncada os primeiros difusores a
segunda fase marcada pelo debate entre o pensamento catoacutelico e o existencialismo levado a cabo por
Alexandre Fradique Morujatildeo Diamantino Martins Joseacute Enes e Manuel Antunes a terceira pela
nacionalizaccedilatildeo do existencialismo por Antoacutenio Quadros que faz uma ligaccedilatildeo entre a temaacutetica do
saudosismo e as filosofias existencialistas 368
Cristiana Abranches de Soveral em A Filosofia Pedagoacutegica de Delfim Santos refere como primeiro
comentaacuterio em liacutengua portuguesa ao pensamento de Heidegger o ensaio de 1935 A Ruacutessia de Hoje e o
Homem de Sempre de Leonardo Coimbra Embora neste ensaio natildeo haja uma referecircncia expliacutecita a
Heidegger mas sim agrave fenomenologia alematilde na generalidade eacute presumiacutevel que tivesse sido influenciado
por um conhecimento de algumas obras de Heidegger Sobre este ensaio de Leonardo Coimbra cf Maria
236
do Destino escrito no ano de 1935 mas editado postumamente em 1950
Leonardo Coimbra a propoacutesito da luta do homem com o Destino - temaacutetica
muito explorada pelo do pensamento poeacutetico e existencial de Raul Brandatildeo e
Teixeira de Pascoes369 - insere um curto comentaacuterio que chama a atenccedilatildeo para
a temaacutetica da existecircncia que Heidegger teria desenvolvido a partir de uma
renovaccedilatildeo do argumento ontoloacutegico de Santo Anselmo370
111Delfim Santos
No entanto em ldquoDialeacutectica totalistardquo371 artigo publicado em 1933 na revista
Presenccedila Delfim Santos jaacute citara Heidegger tendo sido ele o primeiro
divulgador do seu pensamento Delfim Santos tinha uma formaccedilatildeo filosoacutefica
extensa e actualizada tornada possiacutevel pela sua condiccedilatildeo de bolseiro na
deacutecada de 30 na Aacuteustria e na Alemanha Foi bolseiro da Junta de Educaccedilatildeo
Nacional entre 35 e 37 em Viena de Aacuteustria onde tomou parte das
conferecircncias do Ciacuterculo de Viena e assistiu a conferecircncias de Husserl Em
Berlim assistiu agraves liccedilotildees de Metafiacutesica do Conhecimento de Nicolai Hartmann
tendo-se depois transferido para Londres onde continuou os seus estudos
sobre Filosofia das Ciecircncias publicando em seguida A Situaccedilatildeo Valorativa do
Positivismo em que discute os pressupostos teoacutericos desta corrente filosoacutefica
Regressando a Portugal em 37372 seraacute convidado a voltar ao estrangeiro na
qualidade de leitor na Universidade de Berlim remontando a esta segunda
Adelaide Pacheco em ldquoA Presenccedila de Heidegger em Portugal o pensar como Re-memoraccedilatildeordquo (Revista
Portuguesa de Filosofia tomo LIX 1210-1216) Trata-se de um erro que segue uma afirmaccedilatildeo de
Antoacutenio Quadros em ldquoExistencialismo e filosofia existencialista em Portugalrdquo in Logos Enciclopeacutedia
Luso-Brasileira de Filosofia Lisboa Satildeo Paulo Ed Verbo 1990 De facto o ensaio onde Leonardo
Coimbra refere explicitamente Heidegger eacute O Homem agraves matildeos do Destino escrito no mesmo ano 369
Sobre o existencialismo ldquoavant la letttrerdquo destes autores cf a minha dissertaccedilatildeo de mestrado A Vida e o
Traacutegico em Raul Brandatildeo 370
ldquoHeidegger encontra com efeito na existecircncia humana perdida no mundo e na existecircncia humana
reencontrando-se os caracteres fenomenoloacutegicos da existecircncia A fenomenologia da existecircncia eacute para
ele a ontologia da realidade Existecircncia que se encontra existecircncia humana pois que nenhuma existecircncia
haacute que natildeo esteja nesta envolvida ndash ele conclui por um renovo do argumento ontoloacutegico de Santo
Anselmo O primeiro caraacutecter daacute a inquietaccedilatildeo o mal-estar e o medo que o homem banal adormece na
uniformidade do mal de todo o mundo O segundo caraacutecter daacute a anguacutestia perante o desamparo da sua
existecircncia finita e humilhada Esta anguacutestia eacute sobretudo a anguacutestia perante a Morte temporalizaccedilatildeo
primordial em que o passado e o presente se englobam num verdadeiro futurordquo Leonardo Coimbra ldquoO
Homem agraves matildeos com o Destinordquo Obras de Leonardo Coimbra II Porto 1983 1012 371
Delfim Santos ldquoDialeacutectica Totalistardquo in Presenccedila 39 1933 (Obras Completas I - Da Filosofia
Lisboa 1982 31-38) 372
Miguel Reale chama a atenccedilatildeo para o facto de que o manuscrito do artigo Da Filosofia em que Delfim
Santos volta a citar Heidegger eacute de 1937 (embora fosse publicado apenas em 1939) Neste artigo cruzam-
237
estadia no estrangeiro o seu contacto com o pensamento de Martin
Heidegger373 Eacute geralmente reconhecido que o seu contacto com o
pensamento de Nicolai Hartmann e de Martin Heidegger desempenhou um
importante papel na sua trajectoacuteria intelectual que na deacutecada de 40 sofre uma
importante inflexatildeo desviando-se dos problemas da ciecircncia para temaacuteticas
ligadas agrave metafiacutesica e agrave ontologia374
Delfim Santos tornou-se um activo divulgador do pensamento de Heidegger
entre noacutes atraveacutes de numerosos artigos e conferecircncias sem no entanto
chegar a tomar a iniciativa da sua traduccedilatildeo Esta falta de iniciativa foi no seu
caso uma deliberaccedilatildeo que ele justifica logo no artigo escrito em 1938 e
intitulado Heidegger e Houmllderlin ou a essecircncia da poesia com o postulado da
impossibilidade de transferecircncias rigorosas de sentido entre liacutenguas tatildeo
diferentes como as liacutenguas latinas e germacircnicas e ainda com a especificidade
do ldquoestilordquo heideggeriano ldquoHeidegger eacute por esse motivo intraduziacutevel porque a
sua ldquoforma de pensamentordquo desloca a base de referecircncia da liacutengua alematilde e
portanto todo o sistema de correspondecircncia estabelecido entre esta e qualquer
outra liacutenguardquo375
Optando assim por ao inveacutes duma traduccedilatildeo fazer um resumo dos aspectos
essenciais do ensaio Houmllderlin e a essecircncia da poesia natildeo deixa no entanto
de enfrentar problemas hermenecircuticos e de ter que tomar decisotildees de
traduccedilatildeo que hoje nos aparecem como duvidosas senatildeo como totalmente
erradas Eacute o caso da traduccedilatildeo de ldquosein des Seienden como ldquoser do sendordquo
traduccedilatildeo que parece contaminada pela problemaacutetica metafiacutesica da distinccedilatildeo
entre essecircncia e existecircncia como mais agrave frente mostraremos revelando uma
se as influecircncias de Leonardo Coimbra e de Nicolai Hartmann e a referecircncia a Heidegger eacute ainda lateral
Miguel Reale lembra igualmente o facto de que na correspondecircncia a primeira referecircncia a Heidegger
ocorre numa carta dirigida a Joseacute Marinho no mesmo ano A passagem transcrita da referida carta eacute a
seguinte ldquoHeidegger parte da meditaccedilatildeo sobre o conceito de existecircncia e encontra que esta natildeo pode ter a
predicaccedilatildeo universal que lhe deu a filosofia tradicional Existecircncia tem sentido humano e natildeo pode ser
atribuiacuteda nem ao domiacutenio das coisas nem a cada uma das regiotildees que concorrem na formaccedilatildeo do homem
A filosofia existencial eacute antropologia filosoacutefica e neste sentido interessa-lhe a descriccedilatildeo fenomenoloacutegica
da anguacutestia como essencial no comportamento humanordquo Miguel Reale ldquoDelfim Santos e a Geacutenese do
Existencialismo em Portugalrdquo in Delfim Santos e a Escola do Porto 205 373
Cf Manuel Guedes da Silva Miranda Delfim Santos - A Metafiacutesica como Filosofia Fundamental
Lisboa 2003 21-23 374
Cf Constanccedila Marcondes Ceacutesar em ldquoDelfim Santos e Eudoro de Sousardquo Actas do Congresso
Internacional Delfim Santos e a Escola do Porto 156 375
Delfim Santos ldquoHeidegger e Houmllderlin ou a essecircncia da poesiardquo Revista de Portugal Lisboa nordm 4
1938 in Obras Completas vol II Lisboa 1987 333
238
incompreensatildeo do modo especiacutefico de enfrentamento da questatildeo ontoloacutegica agrave
margem dessa tradiccedilatildeo e contra ela feita em Ser e Tempo
Os artigos sobre Heidegger posteriores ocasionalmente publicados por Delfim
Santos ao longo das deacutecadas de 40 e 50376 revelam no entanto uma leitura
atenta de Ser e Tempo obra para que remetem as suas diversas referecircncias e
comentaacuterios valorizando nela sobretudo a temaacutetica existencial Como
podemos constatar pelo prefaacutecio agrave obra de Reacutegis Jolivet As Doutrinas
Existencialistas de Kierkegaard a Sartre Delfim Santos integrou Heidegger na
corrente mais vasta do existencialismo europeu ao lado de Sartre Kierkegaard
e Jaspers
Eacute preciso ainda constatar que Delfim Santos introduziu entre noacutes uma criacutetica agraves
correntes neo-positivistas e defendeu uma interpretaccedilatildeo humanista da cultura
agrave luz da qual ele leu Ser e Tempo leitura que distorce por vezes
flagrantemente o sentido do texto de Heidegger estas distorccedilotildees por um lado
reflectem as incompreensotildees iniciais que rodearam a recepccedilatildeo dos textos do
ldquoprimeiro Heideggerrdquo em toda a Europa por outro natildeo deixam de reflectir ainda
a imposiccedilatildeo de preconceitos inerentes agrave ldquosituaccedilatildeo hermenecircuticardquo do proacuteprio
Delfim Santos como inteacuterprete e revelam-se de grande interesse para a nossa
investigaccedilatildeo
Se podemos considerar que Delfim Santos contribuiu para divulgar uma
interpretaccedilatildeo existencialista e humanista de Heidegger que hoje nos surge
como distorccedilatildeo dos textos e alteraccedilatildeo de sentido no entanto haacute que
reconhecer que Delfim Santos apresenta um notaacutevel esforccedilo de reflexatildeo das
implicaccedilotildees do pensamento existencial de Heidegger em diversos campos da
cultura Este explora sobretudo as implicaccedilotildees da analiacutetica da existecircncia
desenvolvida por Heidegger em Sein und Zeit encontrando na condiccedilatildeo do
Dasein como ser no mundo a fundamentaccedilatildeo para uma pedagogia existencial
uma nova filosofia juriacutedica e abrindo pistas para uma nova abordagem da
psicopatologia
Na mesma linha de uma hermenecircutica existencialista de Heidegger temos o
caso de Garcia Pereira377 que na sua tese de Doutoramento apresentada em
376
Cf Anexo II da bibliografia 377
Em 1933 Garcia Domingos num pequeno ensaio intitulado Da Cultura lido na sessatildeo inaugural do
Liceu Infante de Sagres em Portimatildeo fazia jaacute referecircncias a vaacuterios autores existencialistas entre os quais
239
1939 agrave Faculdade de Letras de Lisboa intitulada Da essecircncia da existecircncia e
da valecircncia Investigaccedilotildees sobre as raiacutezes metafiacutesicas do pensamento e as
perspectivas transcendentais do ser jaacute incluiacutea diversas obras de Heidegger
assim como de Jaspers Kierkegaard e e Gabriel Marcel378
112 Vergiacutelio Ferreira
Vergiacutelio Ferreira foi dos autores mais marcantes nesta interpretaccedilatildeo
existencialista de Heidegger Reconhecendo-se na conferecircncia subordinada
ao tema Existencialismo e Literatura de 1964 simultaneamente como um
herdeiro do existencialismo avant la lettre de Raul Brandatildeo ele reivindica para
si a influecircncia das filosofias existencialistas que pontuavam ao tempo na
Europa
Heidegger aparece-nos ao lado de Sartre Jaspers Kierkgaard Malraux
Camus e Gabriel Marcel como autores de que Vergiacutelio Ferreira destaca a
problemaacutetica existencial e as novas perspectivas que essa problemaacutetica da
existecircncia abre agrave literatura ldquoPara todos estes pensadores poreacutem [] o centro
de interesses eacute ainda e sempre o proacuteprio homem o indiviacuteduo concreto comeccedilo
e fim dos seus problemas ainda que admitamos como temos que admitir que
por ele passam os problemas do mundo dos outros homensrdquo379 Heidegger
como Sartre e Jaspers satildeo referidos por Vergiacutelio Ferreira como referecircncias
filosoacuteficas que permitiram abrir novos horizontes agrave literatura por um retorno do
homem a si mesmo e por uma centraccedilatildeo subjectiva de todo o questionar
metafiacutesico ldquoComo vedes de certo modo foi como se o homem reparasse a
certa altura que se perdera a si de vista e a si regressasse para re-entender o
seu caminho e refazecirc-lo se pudesse Ora bem a fundamental descoberta de
todo este questionar foi a descoberta de que eacute no proacuteprio homem que
ultimamente residem todas as decisotildees ou formulaccedilotildees daquilo que
Gabriel Marcel Cf Miguel Reale ldquoDelfim Santos e a Geacutenese do Existencialismo em Portugalrdquo in Delfim
Santos e a Escola do Porto 202 378
Cf Ibidem 203 379
Vergigravelio Ferreira ldquoExistencialismo e Literaturardquo [1964] in Espaccedilo do Invisiacutevel 2 Venda Nova 1991
36
240
posteriormente se concebeu como determinaccedilotildees objectivas todos os valores
transcendentesrdquo380
A analiacutetica existencial de Ser e Tempo evidencia a condiccedilatildeo humana como
atravessada por uma tensatildeo dramaacutetica entre a autenticidade e a
inautenticidade e a busca de sentido do homem que se projecta solitariamente
em direcccedilatildeo agrave morte ignorando a sua origem e o seu destino faz da proacutepria
existecircncia uma aventura de desfecho incerto de que a literatura existencialista
francesa explorou as possibilidades
Vergiacutelio Ferreira explora a partir da sua novela A Mudanccedila de 1949 o
confronto com o absurdo e a anguacutestia do homem que enfrenta solitariamente a
sua existecircncia inserindo-se nesta literatura existencialista desenvolvida em
Franccedila Ele proacuteprio se fez um divulgador da filosofia de Sartre com a obra Da
Fenomenologia de Sartre de 1962 e com a sua traduccedilatildeo de O Existencialismo
eacute um Humanismo
Note-se no entanto que nenhum destes autores entre noacutes introdutores do
pensamento existencial traduziu qualquer texto de Heidegger pelo que o
acesso aos seus textos foi mediado para a maioria dos intelectuais
portugueses pelas traduccedilotildees francesas Acresce ainda a isto que tanto Delfim
Santos como Vergiacutelio Ferreira centraram os esforccedilos de traduccedilatildeo em obras
francesas de divulgaccedilatildeo do existencialismo (Jolitet Regis As Doutrinas
Existencialistas trad de Antoacutenio Vasconcelos e Lencastre prefaacutecio de Delfim
Santos Colecccedilatildeo Filosofia e Religiatildeo 8 1953 Porto e Sartre O
existencialismo eacute um humanismo trad de Vergiacutelio Ferreira Lisboa Presenccedila
1978)381
380
Ibidem 3738 381
Sobre a confusatildeo entre a fenomenologia alematilde e o existencialismo francecircs reinante no tempo datildeo-nos
um excelente testemunho os textos da autobiografia intelectual de Joseacute Marinho escritos nos anos 50 para
serem inseridos na ediccedilatildeo de Aforismos sobre o que mais importa Ao referir a necessidade de os
intelectuais portugueses reverem a sua posiccedilatildeo face a estas duas correntes do pensamento contemporacircneo
Marinho afirma rdquoCertamente que uma boa parte das pessoas que de filosofia se ocupam teratildeo
forccedilosamente de rever as suas criacuteticas ou faacuteceis desdeacutens perante a fenomenologia ou o existencialismo ndash
duas atitudes muito diferentes mas que por vezes aparecem fundidasrdquo (rdquoAutobiografia Espiritual e outros
textos autobiograacuteficosrdquo in Obras de Joseacute Marinho vol I Lisboa 374) E noutro passo da mesma auto-
biografia esclarecendo a sua relaccedilatildeo com estas correntes que ele diferenciava ldquoEsta dialeacutectica da
plenitude e da carecircncia natildeo a recebi eu do existencialismo que era entatildeo para mim uma filosofia suspeita
Hoje compreendo-a como crise e iniciaccedilatildeo na ontologia fundamental apesar dos desvios antropoloacutegicos
que sofre em Franccedilardquo (Ob cit 364)
241
As obras de Heidegger chegaram pois ao conhecimento da grande maioria dos
intelectuais portugueses382 atraveacutes de publicaccedilotildees ou traduccedilotildees francesas ou
seja chegaram vertidas para uma liacutengua latina com a qual temos grande
familiaridade e a cuja influecircncia noacutes nos encontramos historicamente expostos
E natildeo eacute certamente indiferente que a sua leitura nos tenha chegado primeiro
natildeo na liacutengua de Kant e Hegel nem na nossa proacutepria liacutengua mas na liacutengua de
Sartre e Camus tendo este facto contribuiacutedo largamente para que uma
interpretaccedilatildeo existencialista se impusesse entre noacutes
113 Antoacutenio Joseacute Brandatildeo
Neste primeiro periacuteodo de recepccedilatildeo de Heidegger temos no entanto algumas
excepccedilotildees a esta mediaccedilatildeo francoacutefona383 Destaca-se a traduccedilatildeo portuguesa de
Von Wesen der Wahrheit publicada na revista Rumo em 1946384 atribuiacuteda a
Antoacutenio Joseacute Brandatildeo Esta traduccedilatildeo vem acompanhada por um artigo intitulado
Martin Heidegger que refere a notoriedade do pensamento de Heidegger assim
como o caraacutecter restrito e mediado pelas traduccedilotildees francesas da difusatildeo do seu
pensamento em Portugal ldquoEacute recente conta poucos anos a fama de Martin
Heidegger em Portugal O reduzido puacuteblico que entre noacutes dedica algum
interesse aos assuntos filosoacuteficos ou procura informar-se do que se passa laacute
fora teve conhecimento da raacutepida celeridade deste filoacutesofo e da contagiosa
repercussatildeo da sua obra Como sempre poreacutem esse conhecimento natildeo foi
directo resultou de artigos e relatos aparecidos em revistas francesas ou
espanholasrdquo385 Esse artigo da Rumo denuncia lucidamente a controveacutersia de
caraacutecter ideoloacutegico e natildeo fundada no conhecimento directo dos textos jaacute
instalada em Portugal a propoacutesito de Heidegger e propotildee a traduccedilatildeo portuguesa
382
Comprovaccedilatildeo desta mediaccedilatildeo francoacutefona eacute a obra de Orlando Vitorino Refutaccedilatildeo da Filosofia
Triunfante de 1976 que no uacuteltimo capiacutetulo inclui uma extensa referecircncia ao conceito heideggeriano de
verdade pretendendo demonstrar que este se insere nas tendecircncias dominantes da filosofia moderna Aiacute
satildeo referidas em notas de rodapeacute sempre as traduccedilotildees francesas das obras de Heidegger nomeadamente
De L‟Essence de la veacuteriteacute Essais et Confeacuterences e Questions II Eacute aiacute manifesta uma incompreensatildeo do
conceito heideggeriano de Verdade definido pelo pensador portuguecircs como ldquoconformidade ocircnticardquo Cf
Refutaccedilatildeo da Filosofia Triunfante Lisboa 1976 253-257 383
Como excepccedilatildeo a esta recepccedilatildeo da filosofia alematilde pela mediaccedilatildeo francoacutefona eacute de salientar as
conferecircncias de Gadamer (em francecircs e alematildeo) no Instituto Alematildeo em Lisboa Porto e Coimbra em
1944 Os temas das conferecircncias foram ldquoGoethe und die Philosophierdquo ldquoDas Problem der Geschichte in
der neueren deutschen Philosophieldquo e bdquoPrometheus und die Tragoumldie der Kulturldquo Cf Jen Grondin
Hans-Georg Gadamer Eine Biographie Tuumlbingen1999 258-260) 384
ldquoDa Essecircncia da Verdaderdquo in Rumo nordm2 Lisboa Julho 1946 385
ldquoMartin Heideggerrdquo in Rumo nordm2 Julho 1946 275
242
de Von Wesen der Wahrheit como incitaccedilatildeo a uma verdadeira aprendizagem da
dialeacutectica fundada na compreensatildeo ldquodas coisas mesmasrdquo que se quer refutar386
A propoacutesito da decisatildeo da traduccedilatildeo deste texto num dos nuacutemeros seguintes da
revista Rumo em editorial intitulado Martinho Heidegger e Rumo afirma-se387 o
seguinte ldquoPropositadamente se escolheu o ensaio sobre a essecircncia da
Verdade ndash a primeira vez traduzido em liacutengua portuguesa no nordm 2 desta revista
ndash natildeo soacute porque eacute da praxe a partir de Kant comeccedilar pelos problemas do
conhecimento mas porque neste trabalho Heidegger especula sobre
problemas em que jaacute se debruccedilaram pensadores portugueses de seiscentos o
que permite estabelecer pontos de contacto e linhas de divergecircncias entre a
moderna corrente heideggeriana e a nossa tradiccedilatildeo filosoacuteficardquo388
Mais agrave frente no mesmo artigo se afirma que Heidegger como os escolaacutesticos
visava ldquoo problema do ser enquanto serrdquo mas onde os escolaacutesticos distinguem
e hierarquizam os diversos graus de ser Heidegger ldquoaperta-o no anel estreito
da existecircncia temporalrdquo389
A revista segue ainda o ponto de vista dominante da compreensatildeo de
Heidegger como um autor existencialista identificando Heidegger como ldquoo mais
alto representante do existencialismo ateurdquo De acordo com este ponto de vista
que se toma como adquirido mais agrave frente o citado artigo critica-o por construir
a sua filosofia de costas voltadas para a teologia e para a sua heranccedila catoacutelica
reafirmando os princiacutepios editorias da revista compatiacuteveis com uma filosofia
cristatilde que natildeo pode ldquoconceber o ser que somos independentemente do ser que
nos criourdquo390
Antoacutenio Joseacute Brandatildeo (1906-1984) introduziu ainda o diaacutelogo com o
pensamento de Heidegger na teoria do Direito na sua Dissertaccedilatildeo de
Doutoramento intitulada O Direito Ensaio de Ontologia Juriacutedica apresentada
na Universidade de Lisboa em 1942 Aiacute no cap I artigo 2 no seu sect 4 dedicado
386
Miguel Reale refere que este artigo de Joseacute Brandatildeo introduzia uma crigravetica aos ldquoneotomistas zelososrdquo
que criticavam apressadamente Heidegger numa perspectiva apologeacutetica o que teria provocado uma
ruptura na revista Rumo com a saiacuteda de Joseacute Brandatildeo Delfim Santos e Cabral Moncada os
colaboradores vinculados ao pensamento alematildeo Cf Miguel Reale ldquoDelfim Santos e a Geacutenese do
Existencialismo em Portugalrdquo in Delfim Santos e a Escola do Porto 213 387
A propoacutesito do editorial deste segundo nuacutemero afirma Miguel Reale que ele teria sido escrito pelo seu
director Maacuterio de Albuquerque como resposta agrave saiacuteda da revista de Delfim Santos Cabral Moncada e
Antoacutenio Brandatildeo (Ibidem 213) 388
ldquoMartinho Heidegger e Rumordquo in Rumo nordm3 e 4 Agosto-Setembro de 1946 475 389
Ibidem 476 390
Ibidem 476
243
agrave ldquoontologia existencialrdquo faz numerosas referecircncias a Heidegger salientando
que este cumprira a tarefa natildeo realizada por Husserl da ldquodescriccedilatildeo analiacutetica
da existecircncia temporal do homem da vida natural e do seu saber natildeo teoreacutetico
dirigido para o existente - para o mundo das coisas que se apresenta na
mesma imediatidade como eacute apreendido mundo dos valoresrdquo391
Confrontando a ontologia existencial de Heidegger com a ontologia tradicional
(escolaacutestica) e com a ontologia de Nicolai Hartmann decide-se pela maior
relevacircncia das duas uacuteltimas para a teoria do Direito392 No entanto na sua
filosofia do direito ele dialoga com a concepccedilatildeo da histoacuteria de Heidegger
repensando a nova luz a exegese do Direito jaacute natildeo tomada como uma mera
interpretaccedilatildeo loacutegica das normas mas como uma interpretaccedilatildeo capaz de
determinar o que na norma haacute de juriacutedico isto eacute de aplicaacutevel a cada caso
concreto de acordo com a sensibilidade juriacutedica vigente A interpretaccedilatildeo da lei
eacute assim uma permanente actualizaccedilatildeo do passado de acordo com o espiacuterito
objectivo vigente numa certa comunidade e numa certa eacutepoca histoacuterica (O
Direito Ensaio de Ontologia juriacutedica Lisboa 1948)
Antoacutenio Joseacute Brandatildeo prefaciou tambeacutem mais tarde a traduccedilatildeo portuguesa da
Carta sobre o Humanismo editada pela Guimaratildees em 1973 mostrando as
conexotildees desse texto com Ser e Tempo e com Sobre a Essecircncia da Verdade e
evidenciando aiacute uma correcta compreensatildeo da criacutetica de Heidegger ao
humanismo393
Podemos pois concluir que estes primeiros divulgadores tendem a fazer uma
leitura de Heidegger que eacute centradas na temaacutetica da existecircncia e aparece
contaminada por um lado pelas filosofias existencialistas por outro pela
metafiacutesica escolaacutestica Por outro lado a consciecircncia da necessidade de traduzir
391
Antoacutenio Joseacute Brandatildeo Vigecircncia e temporalidade do direito e outros ensaios de filosofia juriacutedica
Lisboa 2001 164 392
Antoacutenio Joseacute Brandatildeo dirige a Heidegger a criacutetica de Hartmann ldquoCom efeito a Heidegger pode
dirigir-se a criacutetica de Hartmann ldquoconfundiu dois problemas diversos ndash o ser e o sentido do ser Soacute o
primeiro eacute ontoloacutegico O outro natildeo Todo o sentido eacute sempre sentido para algueacutem Mas o ser existe por
definiccedilatildeo quer tenha quer natildeo tenha sentido para algueacutem Para ser natildeo carece de ldquoser pensadordquo A sua
existecircncia eacute em si indiferente aos possiacuteveis sentidos que lhe possam atribuirrdquo Ibidem 170 393
No referido prefaacutecio Antoacutenio Joseacute Brandatildeo sublinha a conexatildeo estabelecida por Heidegger entre
humanismo e metafiacutesica e destaca A Carta Sobre o Humanismo como a abertura de uma nova via para
pensar o homem agrave margem da problemaacutetica antropoloacutegica estabelecida pela tradiccedilatildeo na proximidade do
Ser No sect9 deste prefaacutecio explicita a distacircncia entre a perspectiva de Heidegger e todos os
existencialismos designadamente na versatildeo sartriana Cf Idem Prefaacutecio in Martin Heidegger Carta
Sobre o Humanismo trad de Arnaldo Stein Lisboa 1973