linguagem e poder em spivak foucault e hall

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Nomes: Ana Paula Rodrigues; Nicole Faria; Marcos Martins; Renato Duarte Disciplina: Linguagem e Poder Professor: Ricardo Fabrino Avaliação II Tanto nos estudos culturais quanto na obra de Foucault estão presentes considerações sobre as noções de subjetividade e identidade. Uma importante contribuição de Foucault para este debate é a ideia de discurso. O discurso não é, para o autor, apenas o que é dito, ele é o que possibilita o dito, assim como regula o que não pode ser dito. O discurso é o tecido de onde emergem os enunciados, mas sua dinâmica não permite que qualquer enunciado surja: fazem parte do discurso mecanismos de interdição e regulação para que alguns enunciados não surjam, ao menos como inteligíveis. Usando as palavras do autor: "Suponho que em toda sociedade a produção do discurso é ao mesmo tempo controlada, selecionada, organizada e redistribuída por certo número de procedimentos que têm por função conjurar seus poderes e perigos, dominar seu acontecimento aleatório, esquivar sua pesada e temível materialidade." (Foucault: 9). Essa regulação em torno do discurso existe porque este não é apenas a tradução das lutas e sistemas de dominação,

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Sobre linguagem e poder em alguns autores pos coloniais

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Page 1: Linguagem e poder em spivak foucault e hall

Nomes: Ana Paula Rodrigues; Nicole Faria; Marcos Martins; Renato Duarte

Disciplina: Linguagem e Poder

Professor: Ricardo Fabrino

Avaliação II

Tanto nos estudos culturais quanto na obra de Foucault estão presentes

considerações sobre as noções de subjetividade e identidade. Uma importante

contribuição de Foucault para este debate é a ideia de discurso. O discurso não é, para o

autor, apenas o que é dito, ele é o que possibilita o dito, assim como regula o que não

pode ser dito. O discurso é o tecido de onde emergem os enunciados, mas sua dinâmica

não permite que qualquer enunciado surja: fazem parte do discurso mecanismos de

interdição e regulação para que alguns enunciados não surjam, ao menos como

inteligíveis. Usando as palavras do autor:

"Suponho que em toda sociedade a produção do discurso é ao mesmo

tempo controlada, selecionada, organizada e redistribuída por certo

número de procedimentos que têm por função conjurar seus poderes e

perigos, dominar seu acontecimento aleatório, esquivar sua pesada e

temível materialidade." (Foucault: 9).

Essa regulação em torno do discurso existe porque este não é apenas a tradução

das lutas e sistemas de dominação, ele faz parte da disputa, ele é poderoso em si mesmo.

O discurso é uma importante ferramenta da produção de realidades, ele é o que separa

os indivíduos, diz o que é normal ou não é, por exemplo, o discurso da loucura foi um

meio de separar loucos e sãos e criar, junto com uma certa ideia de loucura, uma noção

de normalidade que deveria ser seguida.

Em seu texto "A ordem do discurso", Foucault enumera três mecanismos de

exclusão que regulam a emergência de discursos, que são: o tabu do objeto, o ritual da

circunstância e o direito exclusivo do sujeito que fala, que dizem respeito,

respectivamente, a sobre o que se pode falar, em qual circunstância se pode falar e quem

pode falar. O discurso religioso, por exemplo, recorre a essas formas de exclusão: não é

qualquer um que pode proferi-lo (direito exclusivo do sujeito que fala), seu poder é

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maior quando ritualizado (ritual da circunstância), existem coisas que não podem ser

ditas (tabu do objeto), tudo isso delimita este discurso, recorta do "acontecimento

infinito e aleatório dos discursos" um possível, tomando a existência de outros discursos

impossível naquele contexto. Outro procedimento de exclusão, típico da sociedade

ocidental e que não se utiliza da interdição, mas da separação e rejeição, é o discurso da

loucura: o louco está sempre para além da razão, está sempre distante e diferenciado, e

esta é a censura que pesa sobre sua voz, nunca levada em conta completamente. Em

terceiro lugar, a separação entre verdadeiro e falso também pode operar como um

sistema de exclusão. Historicamente, o poder da verdade se deslocou de seu enunciador

e dos rituais para o próprio enunciado, não é quem diz ou como se diz que torna algo

verdadeiro, a verdade existe em si mesma, existem ditos verdadeiros que formam mais

um sistema de exclusão propagado institucionalmente pelas escolas, livros, etc. Essa

vontade de verdade, para Foucault, esta permeada pelo desejo e o poder.

Juntos, os procedimentos acima citados formam três grandes sistemas de

exclusão: a palavra proibida, a segregação da loucura e a vontade de verdade. Mas para

além desses sistemas, existem também procedimentos internos de regulação dos

discursos.

Os procedimentos internos funcionam como, sobretudo, princípios de

classificação, ordenação e distribuição dos discursos, e consistem no comentário, no

autor e na disciplina. O comentário é a volta do discurso, é repetir um primeiro texto,

atualizando-o, nas palavras de Foucault consiste em "repetir incansavelmente aquilo

que, no entanto, não havia jamais sido dito." (Foucault: 25). Continuando, "O

comentário conjura o acaso do discurso fazendo-lhe sua parte: permite-lhe dizer algo

além do texto mesmo, mas com a condição de que o texto mesmo seja dito e de certo

modo realizado." (Foucault: 25-26). O princípio do autor serve para dar à obra um

lastro no real, na vida do autor, e muitas vezes dar autoridade ao texto através da

autoridade de quem o proferiu. Por fim, a disciplina também impede a proliferação dos

discursos ao acaso inventando uma tradição que deve ser seguida, regras, métodos,

enfim, o que será requisito para a produção de novos enunciados, que devem ser novos

mas não devem estar fora do arcabouço da disciplina. Dentro da disciplina se delimita

também o que será verdadeiro; não a verdade, mas o que pode-se aceitar naquele

momento histórico, o que a disciplina tem condições de compreender.

Por fim, a rarefação é o terceiro grupo de procedimentos de regulação dos

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discursos, que diz respeito às áreas discursivas em que se pode mais facilmente ou

dificilmente penetrar, e em cada um desses espaços do discurso só entrará quem

satisfizer certas exigências ou for, de início, qualificado em seus termos para fazâ-lo.

Foucault analisa esses procedimentos para mostrar que o discurso não é apenas o

que vem de um sujeito fundante que preenche a língua com seus significados, nem uma

leitura imparcial do mundo empírico, nem a mediação universal entre o real e o sujeito.

A tarefa de Foucault é questionar a vontade de verdade reinante no mundo ocidental e

restituir ao discurso seu caráter de acontecimento. Para isso, temos que investigar o não

dito, perceber os procedimentos de exclusão presentes nos discursos. Da mesma forma,

o autor utiliza-se da genealogia para investigar as condições de surgimento dos

discursos. Assim, na investigação devemos pensar no discurso mais como

acontecimento do que como criação, preferir a ideia de série à de unidade, de

regularidade à originalidade e a condição de possibilidade à significação, isto porque os

discursos não surgem a partir de um sujeito que os cria, eles acontecem parte de uma

série histórica, de maneira regular, atualizando o já existente, eles surgem no tecido de

outro discurso que possibilita sua emergência.

Dito isto, podemos mostrar como, para Foucault, o sujeito não é apenas o

enunciador e criador do discurso, ele é perpassado por discursos que constituem sua

própria subjetividade e identidade. O discurso de gênero, por exemplo, é constituído por

diversos procedimentos de regulação, exclusão, etc., que dizem as possibilidades de

identidade e subjetividade dos indivíduos que já nascem inseridos no discurso, que é

constantemente atualizado. Essa discursividade diz o que é ser homem e o que é ser

mulher, além de dizer que só existem essas duas categorias de gênero. Assim, as

identidades que estão para além deste discurso são vistas como ininteligíveis,

monstruosas e são violentadas pelos processos de exclusão e regulação dos discursos,

que operam como verdades e por meio de instituições, como a língua, a ciência, etc.

Analisar criticamente o caráter de acontecimento descontínuo do discurso, enxergar

seus poros, confrontar a vontade de verdade, são mecanismos para desenvolver outras

possibilidades discursivas, devolver ao discurso sua perigosa potência de aleatoreidade

e acaso, fazer emergir outros discursos, como os movimentos sociais feministas fazem,

por exemplo, ao mostrar geneologicamente de onde veem os papéis de gênero, quais

procedimentos os mantêm, etc., para contestá-los e opor a eles outras realidades

possíveis.

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Considerando as contribuições de Foucault, também devemos expor as críticas

feitas ao autor, principalmente por Spivak, que considera o fato de que a produção

intelectual ocidental é cúmplice dos interesses econômicos do ocidente, e traz o foco da

discussão para o sujeito subalterno do "terceiro mundo", em especial, à mulher

subalterna. Em seu livro "Pode o subalterno falar?", Spivak procura problematizar como

o sujeito do terceiro mundo é representado no discurso ocidental; mostrar como os

intelectuais ocidentais são cúmplices das estratégias do capital internacional, e colocar

em questão as relações entre os discursos Ocidentais e a possibilidade de fala da e pela

mulher subalterna.

Segundo Spivak, os intelectuais ocidentais não se dão conta de sua inserção na

ideologia ocidental que trabalha para a manutenção das relações díspares de poder

internacional, que são calcadas na divisão internacional do trabalho. Para ela, noções

como a de ideologia são muito importantes e não podem ser deixadas de lado, da mesma

forma que o poder macro não pode ser negligenciado. As próprias teorias fazem parte da

ideologia, com pode-se observar pela exclusão masculina da análise da família na obra

de Marx, ou na questão do micro-poder de Foucault, desenvolvida por Deleuze e

Guattari, que Spivak contesta ao dizer:

A relação entre o capitalismo global (exploração econômica) e as

alianças dos Estados-nação (dominação geopolítica) é tão macrológica

que não pode ser responsável pela textura micrológica do poder. Para

se compreender tal responsabilidade, deve-se procurar entender as

teorias da ideologia- de formações de sujeito, que, micrológica e,

muitas vezes, erraticamente, operam os interesses que solidificam

macrologias. (Spivak: 54)

As teorias ocidentais de formação do sujeito fazem parte da ideologia ocidental e

a intelectualidade europeia tem como uma de suas especificidades a constituição do

sujeito do terceiro mundo como um outro homogêneo identificado em relação ao sujeito

europeu. A constituição do sujeito colonial como outro é parte da violência epistêmica

colonial, e dentro destre quadro é difícil dizer de um outro que se tiver oportunidade irá

falar e conhecer suas condições. Nas palavras da autora:

"Devemos agora confrontar a seguinte questão: no outro lado da

divisão internacional do trabalho do capital socializado, dentro e fora

do circuito da violência epistêmica da lei e da educação imperialistas,

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complementando um texto econômico anterior, pode o subalterno

falar?" ( Spivak: 70)

Através desta pergunta, Spivak mostra que o sujeito colonial é diverso e

constituído na diferença: em relação ao poder colonial, o sujeito poderoso local é

subalterno, mas em relação às camadas locais mais baixas na hierarquia, ele é poderoso.

A mulher subalterna, neste contexto onde o sujeito colonial não tem história, está ainda

mais na obscuridade, como podemos ver na análise do sacrifício das viúvas, ora contado

a partir dos homens ingleses, ora a partir dos homens indianos, de modo que voz das

mulheres protagonistas dessas histórias some.

Apesar de reconhecer a importância das análises de Foucault das intrelinhas do

poder, este, como a maioria dos intelectuais europeus, ignora o problema do poder

imperial, e a constituição do sujeito subalterno. Assim, a crítica da representação, de

que o intelectual deve se tornar transparente para que a voz do outro fale não faz sentido

para uma mulher vinda de um contexto de dominação colonial. Para Spivak:

"O subalterno não pode falar. Não há valor algum atribuído à "mulher"

como um item respeitoso nas listas de prioridades globais. A

representação não definhou. A mulher intelectual tem uma tarefa

circunscrita que ela não deve rejeitar com um floreio." (Spivak: 165)

Na corrente dos estudos culturais, citamos como complemento a esta posição de

Spivak a ideia de Hall, retomada em parte de Gramsci, da intelectualidade orgânica, em

que o trabalho intelectual deve estar em consonância com as revoltas sociais e se dirigir

para o mundo social, fazer parte da disputa política. Além disso, assim como Spivak,

Hall também põe em cheque cânones da intelectualidade que representam, mesmo que

não pareça à primeira vista, uma epistemologia colonial. Vejamos sua crítica aos

intelectuais marxistas:

"Desde o início (...) já pairava no ar a sempre pertinente questão das

grandes insuficiências, teóricas e políticas, dos silêncios retumbantes,

das grandes evasões do marxismo- as coisas de que Marx não falava

nem parecia compreender, que eram o nosso objeto privilegiado de

estudo: cultura, ideologia, linguagem, o simbólico. Pelo contrário, os

elementos que aprisionavam o marxismo como forma de pensamento,

como atividade de prática crítica, encontravam-se, já e desde sempre,

presentes- a ortodoxia, o caráter doutrinário, o determinismo, o

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reducionismo, a imutável lei da história, o seu estatuto como

metanarrativa." (pág. 191)

Assim, os estudos culturais retomam a importância do simbólico para mostrar sua

materialidade e realidade, principalmente ao se pensar no poder. É neste sentido que ele

diz da luta cultural, onde o poder cultural opera a produzir diferenças entre os sujeitos,

que irão definir suas identidades. Desta forma ele analisa a ideia de cultura popular não

como tudo o que o povo faz, mas como o que marca a diferença entre o que é do povo,

do que é marginal, e do que é hegemônico. Em suas próprias palavras: "O que conta

não são os objetos culturais intrínseca ou historicamente, mas o estado do jogo das

relações culturais: cruamente falando e de uma forma bem simplificada, o que conta é

a luta de classes na cultura ou em torno dela." (Hall: 242) A diferença e a identidade

trabalham, portanto, de forma historicamente provisória, onde os sujeitos disputam a

cultura em processos de incorporação, distorção, resistência, negociação e recuperação.

Importante lembrar também que nos dois pólos os individuos são diversos, não existe "o

popular" e "o hegemônico", mas alianças e forças sociais que constituem blocos de

poder.

Nesse caso, Hall (2013) inicia essa discussão para tratar de dois paradigmas que

ele acredita pairar sobre os estudos culturais, sendo esses o paradigma culturalista e o

estruturalista. O autor coloca o fato de que os principais autores do início dos estudos

culturais, como Willians e Thompson, desenvolveram o paradigma dominante nesse

campo de estudo, que é o culturalista. Pensando nas ideias apontadas acima onde a

cultura é sempre um campo de disputa, esse primeiro ponto vem colocar o fato de que

os sujeitos são agentes ativos na sua própria história, em detrimento do segundo

paradigma colocado principalmente por Althusser e Levi-Strauss que entendem o sujeito

como portador de estruturas que os falam e os situam.

Hall (2013) procura então criticar e considerar as ideias dessas duas linhas de

pensamento, mostrando primeiramente que o paradigma culturalista coloca o foco sobre

a cultura enquanto padrões de interpretação que são construídos, modificados e

atualizados a todo momento pelos sujeitos sociais, sendo esses sujeitos que os dão

sentido à ela. Segundo Hall (2013), para esse grupo cultura pode ser definido

“ao mesmo tempo como os sentidos e valores que nascem entre as

classes e grupos sociais diferentes, com base em suas relações e

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condições históricas, pelas quais eles lidam com suas condições de

existência e respondem a estas; e também como as tradições e práticas

vividas através das quais esses entendimentos são expressos e nos quais

estão incorporados.” (HALL : 155, 2013)

Entendemos, então, o sujeito para os culturalistas como um sujeito ativo, agente de sua

história e sua cultura, mesmo levando em consideração as estruturas que nesse caso nos

atravessam, mas mediadas por eles mesmos, ainda que de formas diferentes.

Já no paradigma estruturalista o sujeito faz historia através de condições que não

escolheram. Sendo então um contraste ao primeiro paradigma, pois é muito calcado em

uma ideia de oposição entre natureza e cultura, por ter sido principalmente desenvolvido

dentro da antropologia e também pela noção althusseriana de ideologia, conceito que

poderia ser compreendido como o processo de construção dos sujeitos através da

convocação dos mesmos para ocupar espaços já pré-estabelecidos. Para Hall (2013) esse

contraste pode ser melhor entendido da seguinte forma:

Enquanto no “culturalismo” a experiência era o solo – o terreno

do “vivido” - em que interagiam a condição e a consciência, o

estruturalismo insistia que a “experiência”, por definição, não

poderia ser o fundamento de coisa alguma, pois só se podia

“viver” e experimentar as próprias condições dentro e através

de categorias, classificações e quadros de referencia da cultura.

Essas categorias, contudo, não surgiram a partir da experiência

ou nela: antes, a experiência era um “efeito” dessas categorias.

(HALL :162, 2013)

Dessa forma, após analisar esses dois pontos Hall (2013) entende que foram as

vertentes que levaram em conta esses dois paradigmas nos estudos culturais as que mais

se aproximaram das exigências desse campo de estudo. Ainda que nenhum dois se

bastem por si só eles levantam o debate da base/superestrutura que para o autor é um

debate muito relevante para os estudos culturais. Assim, pode-se notar que o mais

adequado aqui seria pensar um sujeito ativo, porém com algumas limitações estruturais,

mas que no caso funcionariam como um lugar de disputa, pois quando, por exemplo, se

“confronta” a estrutura, está ao mesmo tempo as atualizando. Isso, como já disseram os

outros autores apresentados, pode se dar principalmente no campo da linguagem,

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novamente ainda com suas limitações, como diz Spivak sobre a não possibilidade de o

subalterno falar e Foucault sobre os interditos. Porém, o que podemos entender no texto

de Hall é que mesmo sendo constrangido pela estrutura, seria uma ingenuidade pensar

que os indivíduos, estando em posições determinadas, não podem ser agentes de suas

histórias.

Chantal Mouffe e Ernesto Laclau dissertam acerca da importância do

entendimento prévio do conceito de articulação para uma melhor compreensão do

conceito de hegemonia. Através do resgate de Hegel, Laclau e Mouffe partem para a

apresentação de uma ideia a respeito da concepção de identidade, em que para elxs esta

não poderia ser dada através de uma essência fixa; pelo contrário, ela deveria ser

concebida através de um estado dialético e de fluxo contínuo, onde os atores políticos

poderiam funcionar como resultados de relações históricas. Estxs chegam a afirmar que

de acordo com o próprio Hegel : "a identidade nunca é positiva e fechada nela própria,

mas é constituída como transição, relação, diferença" (Lalcau; Mouffe: 166).

Doravante este entendimento, podemos dizer que, pensando no conflito de

classes proposto essencialmente por Karl Marx, xs autorxs talvez não considerariam,

como este último, que as identidades sociais entrariam em conflito a partir de supostas

formações e constituições sólidas próprias. Xs autorxs propõem que o antagonismo

social surgiria justamente a partir da "sobredeterminação de umas entidades por outras".

Podemos refletir sobre isto através da concepção explorada anteriormente em que para

Laclau e Mouffe as identidades seriam sempre relacionais, isto é, não podendo ser

plenamente constituídas.

A respeito da relação entre sujeito e discurso, Laclau e Mouffe refletem acerca

da impossibilidade de atribuição dos aspectos materiais de um discurso à unificação de

experiências ou consciência de um sujeito. Para elxs, na verdade, as ‘’diversas posições

de sujeito’’ são as que aparecem ‘’dispersas numa formação discursiva’’. A autora e o

autor, em seguida, parecem descrever uma espécie de processo a partir do qual as nossas

relações com "objetos" se dariam através do discurso, isto é, críamos nossa percepção

destes por meio das relações de sentidos que lhes atribuímos. Estas relações por sua vez

estariam atravessadas por disputas histórico discursivas de visão de mundo. Laclau e

Mouffe nos mostram com o processo citado acima uma certa impossibibilidade de viver

com a ausência de categorias porém, ao mesmo tempo deixam claro que a experiência e

o próprio ser humano se configuram como incapturáveis por estas categorias. Estes

sentidos que damos às coisas, possuiriam assim uma concepção de fluxo constante,

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onde estaria implícita a impossibilidade de qualquer fixação discursiva.

Acerca da formação da constituição do discurso a partir do seu caráter

incompleto de qualquer fixação discursiva, elxs afirmam que "qualquer discurso se

constitui como tentativa de dominar o campo da discursividade, de deter o fluxo das

diferenças, de construir um centro" (Laclau; Mouffe: 187), estes centros seriam os

denominados pontos nodais, que desempenham o papel de fixação parcial dos sentidos.

O discurso, ou a linguagem, é esta totalidade formada através destas configurações de

sentido, que de alguma maneira, em sua estrutura, envolve pontos de configuração que

atravessam o sujeito.

A partir das ideias expostas anteriormente de cada autor e autora, pensemos a(s)

vivência(s) de tavestis e pessoas trans em relação com o Estado e suas instâncias.

Em seus estudos sobre gênero e Teoria Queer, Judith Butler atribui à linguagem papel

central na conformação dos sujeitos. Ao propor pensar a construção dos corpos/sujeitos

por esta perspectiva, a autora está a questionar o caráter "natural" dos binarismos

(sexo/gênero; homem/mulher; macho/fêmea; masculino/feminino; pênis/vagina),

trazendo a biologia para o campo do social e confrontando seu papel na configuração

das relações sociais. Tais relações encontram-se circunscritas no que a autora denomina

como Matriz de inteligibilidade de gênero, em que se pressupõem uma coerência entre

sexo, gênero, desejo/prática, onde, nesta equação, a heterossexualidade é a expressão

única e obrigatória. Posto isto, sendo as ações performativas dos sujeitos um efeito

destas sanções sociais – onde a repetição destas ações fundamenta e inscreve

siginificados às noções do que é "ser homem" e do que é "ser mulher" – frutos de uma

prática discursiva, da linguagem, estas oposições binárias manteriam assegurada a

estabilidade da matriz heterossexual e a manutenção de tal ordem compulsória.

Uma vez que, como defende Foucault, o discurso é uma ferramenta de poder e

dominação que regula a realidade e as instâncias de normalidade nas relações sociais, as

identidades abjetas, levando em consideração as ideias de Butler, são justamente as

expressões que subvertem este esquema binário/compulsório, quebrando com esta

lógica. E é neste campo que as travestis e pessoas trans se inserem aqui.

Ao pensarmos nas barreiras que inviabilizam uma existência que não possua

incorporada a ela atravessamentos sociais como violência, exclusão social e extrema

vulnerabilidade, podemos nos remeter aos fatores estruturais que nos direcionaram para

os modos normativos como vivemos em nosso contexto Ocidental. O Estado, como

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Estado racional – de Weber – ao assumir um conjunto de regras e normas, que

firmaram-se através do aperfeiçoamento e consolidação da técnica – funcionalismo

especializado –, decisivos para a organização burocrática, se configura como instância

que regula, através de suas práticas, discursivamente e institucionaliza a autonomia dos

sujeitos. A incorporação e naturalização de categorias binárias, excludentes - “modos de

ser” - pressupõe o alijamento de toda e qualquer categoria não inclusa no campo

normativo do Estado.

As travestis, ao assumirem sua identidade de gênero feminina lhes são negados

procedimentos médicos públicos como tratamento hormonal, aplicação de silicone, ou

seja, intervenções corporais que compõem suas identidades, assim como também lhes

são negados os direitos de uso do nome social em suas atividades e compromissos

cotidianos, bem como dão início a sua trajetória de vida “optando” (de maneira

compulsória) ao que lhes cabe como alternativa de fuga e sobrevivência: a evasão

escolar e a saída precoce de suas casas e de suas cidades. Uma vez que deixam seus

lares e seus lugares de origem, elas recorrem à prostituição nas grandes cidades –

brasileiras ou estrangeiras – como modo de subsistência. Modificam seus corpos e

constroem seus ideais de feminino através de métodos não necessariamente

enquadrados na âmbito da legalidade – aplicação de silicone industrial pelas

“bombadeiras”, por exemplo – e que as expõem diretamente a diversos riscos de saúde,

inclusive de morte. Não obstante, o próprio fato de trabalharem na “pista” (prostituírem-

se) as coloca num conflito direto com as categorias dicotômicas reproduzidas

justamente pelas instâncias estatais.

Muitos dos pontos de prostituição os quais as travestis trabalham são administrados por

um “superior”, um chefe. E muitos desses “superiores” são policiais. Estes, repassam

drogas a elas – cocaína, principalmente – e as mantém num regime em que, caso não

movimentem estas substâncias e levantem um montante de dinheiro, são penalizadas.

Penalidades que, obviamente, percorrem os corpos delas pelos caminhos da ameaça e

violência (física e psicológica). Pensando os meandros em que o Estado se faz Estado,

Gramsci propõe um rompimento do antagonismo entre as categorias de sociedade

política e sociedade civil, concebendo ambos elementos de maneira não dicotômica.

Temos, então, o capital de força física e braço do Estado representado na figura do

policial, administrando uma situação onde se cria uma lógica própria e forçosa de

transação econômica sobre uma pessoa e, claro, um corpo com toda sua subjetividade e

poder de agência, socializados por este mesmo Estado que fixou essas identidades e

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concede legitimidade a esta figura (policial) que representa a própria autoridade. É

exatamente esta elasticidade das fronteiras entre o legítimo/ilegítimo e legal/ilegal das

práticas discursivas que esta situação representa. Em relação às pessoas trans, por

exemplo, podemos observar um completo desentendimento do Estado quanto a esta

população no que diz respeito a sua condição enquanto tal. A transexualidade não se

esgota somente nos processos hormonais muito menos na cirurgia de “redesignação

sexual”. O fato de algumas pessoas trans não acharem necessário se submeter aos

processos de hormonização e intervenções cirúrgicas – que muitas vezes são penosos e

custosos – as desqualifica perante o Estado, uma vez que este não reconhece nestes

sujeitos as identidade(s) que elxs atribuem a si próprixs. Sendo o conceito de hegemonia

de Gramsci, o consenso da legitimidade das ações do Estado – não num sentido de

dominação –, em que as categorias que socializam nossos corpos e orientam nossa

apreensão do mundo social são naturalizadas, de forma a fixar as identidades, a

existência dessas pessoas torna-se completamente inviável e invisibilizada, na medida

em que a categoria sexo, por exemplo, abarca uma série de pressupostos (naturalizados)

que engendram “modos de ser” que não as contemplam. Isto é, no momento em que a

pessoa declara-se em não conformidade com seu sexo em relação a identidade de

gênero que apresenta e opta por não passar por todos os processos para que possa ser

reconhecido(a) pelo Estado como tal (transexual, no caso), temos aí a sublimação das

identidades abjetas que as práticas discursivas que visam uma unidade e coerência das

identidades – refletidas aqui no discurso médico científico – suprimiu. Categorias

monolíticas que, junto a tantas outras, dão corpo aos que não possuem autonomia sobre

o próprio corpo.

Estes exemplos demarcam as margens, os limites de legibilidade e ilegibilidade das

práticas discursivas encontradas na própria tecitura da estrutura do Estado, em que

algumas pontas encontram-se soltas e não são incorporadas, alinhavadas; onde os

limites deste (estado) variam de acordo com os diferentes meios os quais se determinam

as relações de dentro e fora, a lei e a exceção, ou seja, as relações de oposição perante o

reconhecimento destas pessoas. Estes exemplos exprimem também as margens em que

as próprias travestis e pessoas trans, nas situações citadas, acabam sendo relegadas.

A (re)e(s)(x)istência de travestis e pessoas trans desenvolvem relações e métodos de

sobrevivência e sociabilidade que, apesar de toda uma série de circunstâncias que as

alija dos seus direitos mínimos, configuram justamente as ações de contraconduta

(Foucault, 2008) que descentralizam a imagem de um sujeito ideal, cujas práticas estão

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inseridas em modos de viver pré estabelecidos, desenvolvidas e reforçadas por um

Estado em que a ausência de heterogeneidade dentro da própria lógica estatal de

organização social engendra as margens que afetam suas próprias estruturas, bem como,

e principalmente, afetam todxs que se encontram fora desta moldura. Ao confrontarem a

estrutura dominante, estxs sujeitxs estão atualizando (Hall, 2013) e reconfigurando a

suposta solidez das identidades, sendo estas, como defendem Laclau e Mouffe ( 1987),

processos de um efeito contínuo e dialético, não fixo. Apesar do lugar de subalternidade

(Spivak, 2008) o qual se localizam e de não poderem falar, estas pessoas estão, de certo

modo, constituindo suas identidades através da diferença, estão expondo os silêncios,

como argumenta a autora indiana, que o discurso dominante produz sobre os sujeitos

subalternos, questionando a validade do que pode ser dito, por quem pode ser dito,

tentando tornar possível um lugar de fala instituído como inválido (Foucault, 2007).

Referências Bibliográficas:

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SPIVAK, G. C. Pode o Subalterno Falar? Belo Horizonte: Editora UFMG, 2008.

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