língua portuguesa em timor-leste: ensino e cidadania [dissertação]

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Observando conceitos da área da Didáctica das Línguas, é construído um quadro teórico que olha para o estatuto da língua portuguesa em Timor-Leste e para o seu contexto de aprendizagem. O trabalho também se debruça sobre a relação entre língua e cultura, apontando possíveis efeitos negativos de uma reintrodução da língua portuguesa em Timor-Leste por agentes de cooperação portugueses, veiculadores de parâmetros culturais diferentes. Ao mesmo tempo, associa-se o ensino da língua portuguesa ao desenvolvimento de valores de cidadania democrática nos jovens aprendentes.

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UNIVERSIDADE DE LISBOA FACULDADE DE LETRAS DEPARTAMENTO DE LNGUA E CULTURA PORTUGUESA

LNGUA PORTUGUESA EM TIMOR-LESTE: ENSINO E CIDADANIA

Nuno Carlos Henriques de Almeida

Mestrado em Lngua e Cultura Portuguesa rea de Especializao em Metodologia do Ensino de Portugus Lngua Estrangeira / Lngua Segunda

2008 i

UNIVERSIDADE DE LISBOA FACULDADE DE LETRAS DEPARTAMENTO DE LNGUA E CULTURA PORTUGUESA

LNGUA PORTUGUESA EM TIMOR-LESTE: ENSINO E CIDADANIA

Nuno Carlos Henriques de Almeida

Mestrado em Lngua e Cultura Portuguesa rea de Especializao em Metodologia do Ensino de Portugus Lngua Estrangeira / Lngua Segunda

Dissertao de Mestrado orientada pela Professora Doutora Maria Jos dos Reis Grosso

2008 ii

Mais que tudo me cresceu E viveu vida dura Luz pura vigilante prematura Gosto de saber que estar sempre A ver o caminho meu

ndiceLista de Quadros........................................................................................................................... iii Lista de Figuras ............................................................................................................................. iii Lista de Grficos ........................................................................................................................... iii Lista de Anexos............................................................................................................................. iii Agradecimentos ............................................................................................................................iv Resumo.......................................................................................................................................... v Abstract .........................................................................................................................................vi Lista de Siglas Utilizadas ...............................................................................................................vii 0. INTRODUO ........................................................................................................................ 1 0.1. 0.2. 0.3. 0.4. PERTINNCIA E OBJECTIVOS DO TRABALHO ................................................................. 2 ENQUADRAMENTO TERICO E METODOLGICO......................................................... 6 ESTRUTURA ................................................................................................................... 9 CONTEXTO DE REALIZAO DO TRABALHO E LIMITAES ........................................ 10

1. CAPTULO I: CONTEXTUALIZAO DE TIMOR-LESTE............................................................... 12 1.1. 1.2. 1.3. 1.4. 1.5. 1.6. 2. INTRODUO .............................................................................................................. 12 BREVE ENQUADRAMENTO HISTRICO ....................................................................... 12 PRESENA DA LNGUA PORTUGUESA EM TIMOR-LESTE ............................................ 16 LNGUA PORTUGUESA FACTOR DE IDENTIDADE...................................................... 22 PANORAMA LINGUSTICO ........................................................................................... 28 CONSIDERAES FINAIS .............................................................................................. 31

CAPTULO II: ENQUADRAMENTO DA LNGUA PORTUGUESA EM TIMOR-LESTE................. 34 2.1. 2.2. 2.3. 2.4. 2.5. 2.6. INTRODUO .............................................................................................................. 34 LNGUA OFICIAL, LNGUA DE ESCOLARIZAO E LNGUA NACIONAL ........................ 34 LNGUA MATERNA, LNGUA ESTRANGEIRA, LNGUA SEGUNDA ................................. 37 AQUISIO VS. APRENDIZAGEM E ENSINO COMUNICATIVO ..................................... 47 PLURILINGUISMO ........................................................................................................ 57 CONSIDERAES FINAIS .............................................................................................. 59

3.

CAPTULO III: LNGUA PORTUGUESA, CULTURA E CIDADANIA ........................................... 62 3.1. 3.2. 3.3. INTRODUO .............................................................................................................. 62 CONSIDERAES TERICAS: CULTURA E LNGUA....................................................... 63 O CASO DE TIMOR-LESTE ............................................................................................ 69 i

3.4. 3.5. 3.6.

LNGUA E MUDANA CULTURAL ................................................................................. 77 LNGUA PORTUGUESA E CIDADANIA .......................................................................... 79 CONSIDERAES FINAIS .............................................................................................. 84

4. CAPTULO IV: O PAPEL DA LNGUA PORTUGUESA PARA O PBLICO TIMORENSE NO ADULTO ....................................................................................................................................... 87 4.1. 4.2. 4.3. 4.4. 4.5. 4.6. 5. INTRODUO .............................................................................................................. 87 QUESTES METODOLGICAS ..................................................................................... 87 O INQURITO ............................................................................................................... 89 CARACTERIZAO DA AMOSTRA ................................................................................ 92 APRESENTAO E INTERPRETAO DOS DADOS ....................................................... 93 CONSIDERAES FINAIS ............................................................................................ 125

CAPTULO V: CONCLUSES ............................................................................................... 128

BIBLIOGRAFIA ............................................................................................................................ 133

ANEXOS ..................................................................................................................................... 143

ii

Lista de QuadrosQuadro 1 - Desenvolvimento de L1 e L2 ........................................................................ 49 Quadro 2 - Uso dos substantivos familiares em ttum ................................................... 71

Lista de FigurasFigura 1 - As camadas de uma cebola ou os diferentes nveis de manifestao de uma cultura ..................................................................................................................... 77

Lista de GrficosGrfico 1 - Questo 1 ..................................................................................................... 94 Grfico 2 - Questo 2 ..................................................................................................... 97 Grfico 3 - Questo 3 ................................................................................................... 101 Grfico 4 - Questo 4 ................................................................................................... 105 Grfico 5 - Questo 5 ................................................................................................... 108 Grfico 6 - Questo 6 ................................................................................................... 111 Grfico 7 - Questo 7a ................................................................................................. 113 Grfico 8 - Questo 7b ................................................................................................. 117 Grfico 9 - Questo 8 ................................................................................................... 120 Grfico 10 - Questo 9 ................................................................................................. 122 Grfico 11 - Questo 10 ............................................................................................... 124

Lista de AnexosAnexo 1 ........................................................................................................................ 144

iii

Agradecimentos

Em primeiro lugar, os meus agradecimentos Professora Doutora Maria Jos dos Reis Grosso, pela orientao cientfica, pela disponibilidade sem reservas, pelo confortante apoio e incentivo, sem os quais este trabalho no teria sido possvel.

Aos professores Jos Pinto Vieira, Faustino Almeida e Loureno Fernandes, por terem possibilitado a aplicao do inqurito e pela ajuda na traduo do mesmo.

Uma palavra de agradecimento tambm a todos os que contriburam com as suas produes para a realizao deste estudo.

Soraia, amiga, colega e companheira, agradeo especialmente pela fora e optimismo nos momentos mais difceis e pelo constante apoio, fundamentais para a realizao desta dissertao.

iv

Resumo

Este trabalho pretende apresentar um quadro geral da situao da lngua portuguesa e do seu ensino em Timor-Leste, associando-o ao desenvolvimento de valores de cidadania. Para tal, comea-se por contextualizar a presena da lngua portuguesa naquele pas, atravs da apresentao de dados histricos, analisando o papel desta lngua na formao de uma identidade cultural timorense e apresentando muito brevemente o panorama lingustico actual, onde a lngua portuguesa est inserida. Observando conceitos da rea da Didctica das Lnguas, construdo um quadro terico que olha para o estatuto da lngua portuguesa em Timor-Leste e para o seu contexto de aprendizagem. O trabalho tambm se debrua sobre a relao entre lngua e cultura, apontando possveis efeitos negativos de uma reintroduo da lngua portuguesa em Timor-Leste por agentes de cooperao portugueses, veiculadores de parmetros culturais diferentes. Ao mesmo tempo, associa-se o ensino da lngua portuguesa ao desenvolvimento de valores de cidadania democrtica nos jovens aprendentes. Pretende-se ainda dar a conhecer o modo como os jovens do nvel de ensino pr-secundrio perspectivam a lngua portuguesa atravs da apresentao e interpretao dos resultados da aplicao de um inqurito. Ao longo de todo o seu percurso, esta dissertao pretende retirar implicaes prticas para optimizar e adequar a abordagem do ensino da lngua portuguesa aos jovens, em Timor-Leste.

Palavras-chave: lngua estrangeira, lngua segunda, ensino comunicativo, plurilinguismo, competncia intercultural.

v

Abstract

This work intends to present a general framework of portuguese language situation and its teaching in East Timor, relating it to the development of citizenship values. To do that, it is started by contextualizing portuguese language presence in that country, through the presentation of historical data, analyzing this language role in the formation of an easttimorese cultural identity and presenting very briefly the actual linguistic panorama, where portuguese language is inserted. Observing concepts from Language Teaching area, it is built a theoretical framework that looks into portuguese language status in East Timor and its learning context. The work also delves into the relation between language and culture, pointing out possible negative effects of a portuguese language reintroduction in East Timor by portuguese cooperation agents, carriers of different cultural parameters. At the same time, portuguese language teaching is associated to development of democratic citizenship values in young learners. It is also intended to show how pre-secondary level students perspective the portuguese language, through an enquiry results presentation and interpretation. Along all its way, this dissertation intends to get practical implications to optimize and adequate approach to portuguese language teaching to youngsters, in East Timor.

Keywords: foreign language, second language, communicative teaching, plurilingualism, intercultural ability.

vi

Lista de Siglas UtilizadasADB CNRT CPLP DTL ETTA FRETILIN GERTIL IPAD L2/LS LE LM LN LNM LO ONU PE PL2/PLS PLE PLM PLNM PRLP QECR RDTL UNDP UNESCO UNMISET UNMIT UNOTIL UNTAET WB Asian Development Bank Conselho Nacional de Resistncia Timorense Comunidade de Pases de Lngua Portuguesa Dicionrio Temtico da Lusofonia East Timor Transitional Administration Frente Revolucionria Timor-Leste Independente Grupo de Estudos de Reconstruo de Timor-Leste Instituto Portugus de Apoio ao Desenvolvimento Lngua Segunda Lngua Estrangeira Lngua Materna Lngua Nacional Lngua No Materna Lngua Oficial Organizao das Naes Unidas Portugus Europeu Portugus Lngua Segunda Portugus Lngua Estrangeira Portugus Lngua Materna Portugus Lngua No Materna Projecto de Reintroduo da Lngua Portuguesa (em Timor-Leste) Quadro Europeu Comum de Referncia (para as Lnguas) Repblica Democrtica de Timor Leste United Nations Development Program United Nations Educational, Scientific and Cultural Organization United Nations Mission of Support in East Timor United Nations Mission in Timor-Leste United Nations Office in Timor-Leste United Nations Transitional Administration in East Timor World Bank

vii

Lngua Portuguesa em Timor-Leste: Ensino e Cidadania

Nuno Almeida

0. INTRODUOComo pas de lngua oficial portuguesa, Timor Leste privilegiar as relaes com todos os pases em frica, Amrica Latina e Europa que partilham a mesma lngua e contribuir para o reforo da Comunidade dos Pases de Lngua Portuguesa CPLP e para a construo do relacionamento desta Comunidade com as Comunidades dos pases da sia e do Pacfico. 1

Esta deciso aprovada pela Conveno Nacional Timorense na Dispora, em Abril de 1998, em Peniche, juntamente com a criao formal do CNRT (Conselho Nacional da Resistncia Timorense), antecipava as opes que seriam posteriormente tomadas na j Repblica Democrtica de Timor-Leste, independente. Para espanto da comunidade internacional, este novo pas viria a escolher como lngua oficial o portugus, retomando, formalmente e por vontade prpria, os antigos laos estabelecidos com Portugal e a lngua portuguesa ao longo de mais de quatro sculos.

No ano seguinte, quando os timorenses votaram no referendo sua autodeterminao, estavam a mudar a histria do seu pequeno pas. Depois de sculos de domnio externo, foi esse o primeiro passo para que se operassem mudanas radicais a nvel poltico e social. Um tal rompimento com o passado fragilizou a ordem social e ter tido certamente consequncias tambm em dimenses mais profundas como a identidade e a cultura de Timor-Leste. 2

Em termos lingusticos, abriu-se o caminho para a adopo da lngua portuguesa como lngua oficial e para a ascenso social e poltica do ttum tambm ao estatuto de lngua oficial de Timor-Leste. Se a lngua ttum, uma das lnguas locais, um factor deConveno Nacional Timorense na Dispora (1998), Carta Magna de Liberdades, Direitos, Deveres e Garantias do Povo de Timor-Leste, Peniche citado por Joo Paulo T. Esperana (2001), Estudos de Lingustica Timorense, Aveiro, SUL Associao de Cooperao para o Desenvolvimento, pp. 125-126. 2 Deve esclarecer-se neste momento inicial que, ao longo do trabalho, so usadas as designaes TimorLeste e Timor para referir a parte da lha de Timor que esteve sob administrao portuguesa at 1975, que tambm nomeada de Timor Lorosae ou Timor Oriental em outros trabalhos. Porque o nome oficial daquele pas em lngua portuguesa tambm lngua oficial daquele pas Repblica Democrtica de Timor-Leste, para nomear o pas no usada a designao Timor Oriental, que fica reservada para a funo unicamente de localizao geogrfica. Quanto a Timor Lorosae, parece desnecessrio recorrer a estas palavras da lngua ttum num texto em portugus, assim, para evitar as excessivas repeties, usa-se Timor - diferente de Ilha de Timor.1

1

Introduo

mudana interno, o portugus aparece como um factor externo de mudana, pese embora a ligao histrica e afectiva dos timorenses com a lngua portuguesa.

O facto de atribuir o estatuto de lngua oficial a uma lngua implicava uma srie de aces concretas com vista sua divulgao, ensino e uso. As duas lnguas oficiais escolhidas traziam desde logo alguns problemas para a efectivao do seu estatuto. Por um lado, o ttum, apesar de funcionar como uma lngua franca, conhecida por uma boa parte da populao, no era uma lngua que permitisse a comunicao internacional, sendo ainda pouco estudada e no tendo sequer grafia oficial, pelo que era necessrio investir no estudo cientfico desta lngua e no seu ensino formal nas escolas; por outro lado, o portugus, apesar de ser uma lngua internacional, no era uma lngua nacional, isto , apesar de ser falada por pessoas de outros pases, em instituies internacionais, praticamente no era falada em Timor, visto que no havia essa necessidade 3, pelo que era necessria uma estratgia de ensino em massa desta lngua e uma capacitao de todos os agentes das instituies pblicas para a usarem nos seus servios, de modo a impedir a criao de desigualdades sociais de acesso aos servios do estado. 4

0.1.

PERTINNCIA E OBJECTIVOS DO TRABALHO

Para ajudar na rdua tarefa de tornar efectiva a adopo do portugus como lngua oficial, foi com naturalidade que Portugal se afirmou como principal parceiro de TimorLeste. Como tal, o governo portugus enviou um grande nmero de professores, iniciando-se assim o processo de reintroduo da lngua portuguesa em Timor-Leste. Mas, nos primeiros anos, os cursos e as aces de formao foram feitos com pouco critrio e com resultados relativamente modestos 5.O portugus nunca se tornou lngua de comunicao quotidiana, nem lngua de contacto entre os grupos etnolingusticos. Tal funo era desempenhada pelo ttum, lngua veicular, por imposio do liurai de U-Hli e lngua de evangelizao. O portugus, durante anos, conviveu com uma situao de grande fragmentao lingustica: uma vintena de lnguas locais com significativas diferenas lingusticas e uma lngua comum o ttum (que tambm lngua oficial da Igreja). (Lus Costa (2005), Lnguas de Timor, in Dicionrio Temtico da Lusofonia, Lisboa, Texto Editores, p. 614). 4 Sobre esta problemtica, de interesse ver Joo Paulo T. Esperana (2001), Algumas achegas sobre poltica e planificao lingustica em Timor Oriental (comunicao apresentada no Colquio A Lusofonia a haver, 1999), in Estudos de Lingustica Timorense, Aveiro, SUL Associao de Cooperao para o Desenvolvimento, pp. 91-133. 5 Antnio Barbedo de Magalhes (2007), Timor-Leste Interesses internacionais e actores locais, Vol. III, Porto, Afrontamento, p. 658.3

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Lngua Portuguesa em Timor-Leste: Ensino e Cidadania

Nuno Almeida

claro que Portugal, comparativamente a Timor-Leste, um pas superiormente munido de capacidade cientfica e profissional, sobretudo, em particular, no que concerne ao ensino e divulgao da lngua portuguesa. Contudo, para Portugal e para os portugueses, a lngua foi desde sempre uma questo pacfica, pois a sua lngua materna. 6 Sendo Portugal um pas tradicionalmente de emigrao, recebendo apenas imigrantes das ex-colnias, de lngua oficial portuguesa, o ensino da lngua portuguesa e a formao dos professores desta disciplina tm sido, naturalmente, feitos na perspectiva de lngua materna, at ao passado recente, em que comearam a chegar a Portugal cidados de pases europeus, nomeadamente de Leste, para se integrarem no mercado de trabalho nacional, facto que despertou finalmente, na comunidade cientfica, um interesse mais efectivo em questes viradas para a lngua portuguesa perspectivada como lngua estrangeira ou lngua segunda. E em boa hora esse interesse tem vindo a crescer, a julgar pelas palavras crticas de LEIRIA: Como sabido, e apesar do orgulho com que alguns referem frequentemente a importncia do Portugus entre as lnguas do mundo, ainda so muito poucos os trabalhos de investigao do portugus enquanto lngua no-materna 7. A apresentao de um olhar mais cientfico sobre o caso da lngua portuguesa e do seu processo de ensino em Timor-Leste , por isso, uma virtude do presente trabalho.

Se os imigrantes da Europa de Leste so um desafio para o ensino do portugus em Portugal, o caso de Timor-Leste um interessante e difcil teste capacidade cientfica e pedaggica dos recursos portugueses no domnio do ensino da lngua portuguesa fora de fronteiras. neste mbito que este trabalho pretende ser relevante, analisando a realidade timorense luz de conceitos da rea da Didctica de Lngua Estrangeira / Lngua Segunda e de outras reas do conhecimento cientfico que com esta disciplina se relacionam, com o intuito de melhor se poder delinear estratgias de actuao. Para alm disto, contribui para um conhecimento mais objectivo da relao e do posicionamento dos estudantes timorenses face ao portugus e para que se faa aUma referncia aqui queles falantes do mirands cuja lngua materna no foi o portugus. Ainda assim, tambm para estes, nunca constou que a lngua oficial fosse uma situao problemtica. 7 Isabel Leiria (2004), Portugus lngua segunda e lngua estrangeira: investigao e ensino in Idiomtico 3, Instituto Cames p. 8. No artigo original, a autora acrescenta uma nota: Gostaria, por isso mesmo, de lembrar aqui os trabalhos desenvolvidos na Universidade Eduardo Mondlane, em Maputo, e na Unicamp, Universidade de Campinas, no Brasil. Espero, sinceramente, ter deixado muitos de fora6

3

Introduo

reintroduo da lngua portuguesa em Timor no negligenciando determinados factores culturais que podero ser verdadeiramente importantes para o sucesso e idoneidade da tarefa; poder, portanto, ser um trabalho til para os agentes educativos e polticos portugueses, timorenses ou outros que se ocupem desta questo, em Timor.

A situao de Timor-Leste , de facto, um caso diferente de tudo o que se conhece em termos de ensino do portugus. O caso que poderia servir de referncia, por comparao, seria o de Macau, onde, desde a dcada de 80 se desenvolveu um esforo considervel na adequao de contedos, metodologias e materiais quele contexto especfico. Porm, do trabalho feito em Macau, poder copiar-se apenas o esforo feito em termos de investigao sobre o contexto e sobre a adequao didctica; isto porque existe, para alm de outras, uma grande diferena que faz com que o processo em Timor-Leste seja verdadeiramente sui generis: a lngua portuguesa aprendida com o objectivo de a usar em Timor, para, como sublinha tambm ANTUNES, servir de canal para a cultura autctone (excluindo, por isso, um dos pressupostos bsicos da didctica de lnguas estrangeiras: aproximao cultura da ptria me da lngua estrangeira em causa). 8 Para que se perceba a importncia desta questo, feita neste trabalho uma necessria reflexo sobre essa peculiaridade, relacionando-a com o facto de, em TimorLeste, a implementao da lngua portuguesa aparecer associada implementao da democracia.

A comparao com a situao do ensino do portugus em Timor-Leste anterior a 1975, altura em que cessou a administrao portuguesa do territrio, tambm impossvel, desde logo porque a perspectiva com que a cincia olha para o ensino das lnguas mudou muito de ento para c, mas tambm porque, em quase todo esse perodo, o ensino do portugus era apenas para algumas elites e minorias privilegiadas, ao passo que, no presente, se trata de uma massificao da lngua portuguesa no territrio, procurando-se chegar a todas as pessoas, novas e velhas, independentemente da sua profisso. Admitindo-se que os mais velhos se identificam com a lngua portuguesa,8

Ricardo Jorge F. Antunes (2003), A Lngua Portuguesa em Timor Lorosae Contributos para a sua Didctica, Dissertao de Mestrado em Didctica das Lnguas, Aveiro, Universidade de Aveiro, p. 7. Este autor identifica ainda outras diferenas: enquanto, em Timor-Leste, a lngua portuguesa est numa fase de implementao, em Macau, est a terminar um ciclo; h um contraste claro entre a ruralidade timorense e urbanidade macaense; em Macau procura-se a lngua portuguesa por motivos pragmticos ao passo que, em Timor, os motivos so afectivos.

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Lngua Portuguesa em Timor-Leste: Ensino e Cidadania

Nuno Almeida

porque ainda com ela conviveram, e que os jovens escolarizados pelo domnio indonsio podero manifestar mais afinidade com essa cultura e com a lngua indonsia, falta saber de que forma a gerao mais recente 9 a primeira a iniciar a escolaridade depois da independncia, em que a lngua portuguesa j deveria ser lngua de instruo olha para essa lngua, da qual teria apenas, antes do incio do seu percurso escolar (coincidente com a independncia), uma imagem remota, eventualmente passada pelos avs. com esse propsito que se apresentam os resultados da aplicao de um inqurito, que tem a pertinncia de fornecer dados concretos sobre esta questo.

De um modo mais claro, espera-se que o presente trabalho de investigao possa percorrer, em maior profundidade nuns pontos do que noutros, o caminho certo para o cumprimento de objectivos como:

Apresentar um enquadramento da lngua portuguesa em Timor-Leste, a nvel histrico, social, cultural e identitrio; Definir a situao da lngua portuguesa em Timor-Leste, tendo em conta o contexto de aprendizagem, de modo a reflectir sobre implicaes prticas da resultantes;

Problematizar a adequao do ensino da lngua portuguesa em Timor-Leste realidade cultural timorense, minimizando possveis efeitos advindos da presena de agentes de formao externos e mostrar caminhos que, partindo da diversidade lingustica existente no territrio, associem os valores da cidadania democrtica ao ensino da lngua portuguesa em Timor-Leste e valorizao das lnguas nacionais daquele pas;

Obter e interpretar dados concretos, no sentido de perceber como perspectivam a lngua portuguesa os primeiros jovens escolarizados nesta lngua, em TimorLeste, retirando desse exerccio pistas de actuao para a melhoria do processo de ensino.

9

Deve esclarecer-se que este trabalho foca sobretudo a situao vivida pelos jovens que entraram para o sistema escolar em 1999/2000, porque esta a primeira gerao de timorenses fruto da escola em portugus. Esta opo explicada com mais detalhe em 4.3.: O Inqurito.

5

Introduo

Estes objectivos, mais especficos, concorrem para outro objectivo de mbito mais geral:

Permitir a extraco de concluses que contribuam para o sucesso e adequao do ensino da lngua portuguesa em Timor-Leste.

0.2.

ENQUADRAMENTO TERICO E METODOLGICO

Apesar de, em termos tericos, recorrer a disciplinas diversas, este trabalho insere-se na Didctica das Lnguas, concretamente, no mbito da Didctica de Portugus Lngua Estrangeira / Lngua Segunda (PLE/PL2), desde logo pelos seus objectivos, que giram em torno do processo de ensino da lngua portuguesa no contexto especfico de TimorLeste, tendo em vista a sua melhoria.

Deve dizer-se desde j que, dado o valor e o volume da produo cientfica no campo do Ensino de Lnguas, desenvolvida particularmente nos ltimos anos, numa perspectiva comunicativa, e a pertinncia da relao, que tem vindo a ser estabelecida entre esta disciplina e o desenvolvimento de valores de cidadania democrtica, para o caso de Timor-Leste, este trabalho acaba por se inspirar, em certa medida, na direco tomada pela investigao, no mbito das polticas de educao lingustica, do Conselho da Europa.

claro que, no exerccio de investigao nesta rea, cada vez mais assumida como interdisciplinar, necessrio recorrer a conceitos e prticas de outras latitudes do conhecimento cientfico. De imediato se pensa, de um modo mais geral, em Lingustica, Sociologia ou Histria e, mais especificamente, em Lingustica Aplicada,

Sociolingustica, Sociologia da Linguagem ou Poltica de Lngua, para nomear, a ttulo de exemplo, algumas com as quais mais visivelmente este trabalho ter pontos comuns. No parece muito producente, no entanto, dada a natureza mais prtica do trabalho e os objectivos definidos, gastar muito tempo na explanao deste item, justificando e explicando a sua relao com cada uma das disciplinas e, eventualmente, problematizando a influncia que cada uma delas tem no contributo de todas para a6

Lngua Portuguesa em Timor-Leste: Ensino e Cidadania

Nuno Almeida

realizao do mesmo, correndo o risco de, ainda assim, ser inconclusivo. Sendo assim, considera-se suficientemente esclarecida, para o efeito, esta questo, cabendo, contudo, acrescentar ainda, de forma perfeitamente discutvel que, na prtica, o que enquadra determinado trabalho em dada disciplina, acaba por ser sempre o uso que se faz dele, isto o mesmo que dizer que, se um socilogo usar este trabalho ou parte dele para melhor compreender a sociedade timorense, manifestar-se- a sua vertente sociolgica, mas se, por outro lado, ele for usado para levantamento de alguns dados histricos, ser ento visvel a sua vertente histrica.

Com uma forte componente observativa e interpretativa, este trabalho pretende ser um contributo a nvel prtico, mas tambm terico. A nvel prtico, no mbito do ensino da lngua portuguesa em Timor-Leste; a nvel terico, para a formulao de teorias, no mbito especfico da Didctica de Lnguas, que tenham em conta a realidade daquele pas. ALMEIDA & PINTO esclarecem a importncia da recolha de dados realizada por trabalhos de natureza emprica para a investigao: a teoria aparece subordinada exterior e posterior recolha de dados: resulta da induo-depurao da evidncia emprica 10. Contudo, existem opinies divergentes: POPPER afirma que as observaes esto impregnadas de teoria 11; LAKATOS defende que todas as proposies da cincia so tericas e que, por isso, uma proposio factual apenas uma espcie particular de proposio terica 12 . No sendo relevante fazer aqui a discusso do processo de construo do conhecimento partindo da observao para a teoria, ou estando irremediavelmente associado teoria, por mais emprica que seja uma investigao fica a convico de que ser um contributo para a construo de conhecimento cientfico em torno do caso do ensino do portugus em Timor-Leste.

Para um melhor entendimento de todo o trabalho, tendo presentes as informaes apresentadas e discutidas ao longo do mesmo, necessrio ter a noo dos procedimentos que permitiram a sua realizao. Para tal, so devidas algumas brevssimas palavras para focar a questo metodolgica, que se prende forma como a10

Joo F. Almeida, Jos M. Pinto (2007), Da Teoria Investigao Emprica. Problemas Metodolgicos Gerais, in Metodologia das Cincias Sociais (14 ed.), Porto, Afrontamento, p. 62. 11 Cf. Karl R. Popper (1974), Objective Knowledge, an Evolutionary Approach, Oxford, Oxford University Press, pp. 71 e segs. 12 Cf. Imre Lakatos (1983), The Metodology of Scientific Research Programmes, Philosophical Papers, Vol. I, Cambridge, Cambridge University Press, pp. 16 e segs.

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Introduo

investigao [foi] feita, isto , ao processo de coleta, tratamento de dados e discusso dos resultados. 13

O trabalho enquadra-se, como foi j dito, na investigao em Didctica das Lnguas, que se faz, como descreve ANTUNES, apoiando-se nos conceitos de ALARCO 14 e ANDRADE & S 15 , em trs dimenses: a dimenso racional (j que abstrai do concreto, estudando os fenmenos em diferido), a dimenso analtica (ao decompor a realidade estudada) e a integradora (ao apelar para conhecimentos diversos para descrever e interpretar os factos dessa mesma realidade). 16

Nas cincias sociais, desenvolveram-se procedimentos padronizados de recolha de informao sobre a realidade (exemplo disso so as tcnicas de inqurito por questionrio, da entrevista, da anlise de contedo) 17. O inqurito por questionrio foi a tcnica escolhida para auxiliar este trabalho.

Ao longo do processo de investigao, a informao foi recolhida atravs de procedimentos diferenciados, com objectivos diferentes: i) de modo a poder obter validade cientfica, este trabalho teria de ser apoiado por um enquadramento terico e conceptual adequado e pertinente para tal, recorreu-se mormente investigao bibliogrfica; ii) era tambm importante assumir a investigao como uma ponte entre a teoria e a aplicao prtica para isso, revelou-se de muita utilidade a observao participante proporcionada por dois anos de actividade enquanto professor de lngua portuguesa, no mbito do trabalho desenvolvido pela Cooperao Portuguesa, em Timor-Leste, sob a tutela do Instituto de Apoio ao Desenvolvimento (IPAD); iii) por ltimo, pela necessidade de recolher informao concreta sobre aspectos da convivncia

Isabel Alarco (2001), Escola reflexiva e nova racionalidade, Porto Alegre, Artmed, p. 137. Isabel Alarco (1991), A Didctica Curricular: fantasmas, sonhos, realidades, in Actas do 2 Encontro Nacional de Didcticas e Metodologias de Ensino, Aveiro, Universidade de Aveiro, pp. 299317. 15 Ana Isabel de O. Andrade, Maria Helena B. de A. S (1995), Processos de interaco verbal em aula de Francs Lngua Estrangeira, Vol. I, Aveiro, Universidade de Aveiro. 16 Ricardo Jorge F. Antunes (2003), A Lngua Portuguesa em Timor Lorosae Contributos para a sua Didctica, Dissertao de Mestrado em Didctica das Lnguas, Aveiro, Universidade de Aveiro, p. 158. 17 Para uma descrio das tcnicas de recolha de informao em cincias sociais, veja-se Joo Ferreira de Almeida, Jos Madureira Pinto (1982), A investigao nas cincias sociais, Lisboa, Presena, (3 ed.), pp. 93-114.14

13

8

Lngua Portuguesa em Timor-Leste: Ensino e Cidadania

Nuno Almeida

dos jovens aprendentes com a lngua portuguesa recorreu-se ao inqurito por questionrio.

0.3.

ESTRUTURA

Este trabalho organizado em cinco captulos. Para dar desde j uma ideia da estrutura global de toda a dissertao e da forma como a informao vai sendo organizada, resume-se aqui cada uma das partes.

O primeiro captulo serve para contextualizar Timor-Leste e a presena da lngua portuguesa naquele pas. Primeiramente, apresentada uma breve contextualizao histrica do territrio, desde o perodo em que teve incio a relao entre Portugal e a Ilha de Timor, seguida de uma observao diacrnica, mais especfica, da presena da lngua portuguesa naquele espao, focando as suas razes e os seus agentes. Posteriormente, abordada a natureza e as motivaes da ligao entre a lngua portuguesa e a formao da identidade cultural timorense, dando-se ainda uma perspectiva genrica do panorama lingustico actual de Timor-Leste.

O segundo captulo pretende aplicar conceitos do mbito da Didctica de Lnguas ao caso Timor-Leste, de modo a enquadrar o ensino da lngua portuguesa neste pas e sugerir pistas de actuao com vista sua melhoria. So abordados conceitos como Lngua Materna, Lngua Oficial, Lngua de Instruo, Lngua Nacional, Lngua Materna, Lngua Estrangeira e Lngua Segunda, para alm de outros considerados pertinentes luz dos objectivos atrs apontados.

No terceiro captulo, so chamados outros conceitos, de mbito sociolgico, para mostrar que o ensino da lngua portuguesa em Timor-Leste, tendo em conta o contexto de cooperao portuguesa em que vem sendo desenvolvido, pode ter consequncias negativas na realidade cultural dos aprendentes, sendo avanadas hipteses de minorao de tais consequncias. Posteriormente, o trabalho incide sobre a pertinncia e possibilidades de associao do ensino da lngua portuguesa, em Timor-Leste, formao e ao desenvolvimento de valores de cidadania democrtica.9

Introduo

O quarto captulo descreve a aplicao de um inqurito a um grupo de jovens estudantes timorenses, mostrando os dados obtidos e fazendo a sua interpretao. O inqurito pretende dar a conhecer o modo como os jovens perspectivam a lngua portuguesa. A apresentao dos dados e a interpretao dos mesmos vai sendo desenvolvida, em simultneo, ao longo do captulo, ao mesmo tempo que vo sendo retiradas implicaes prticas para o ensino da lngua portuguesa em Timor-Leste.

O ltimo captulo reservado para a apresentao de concluses que derivam da observao transversal dos dados recolhidos e da informao obtida. As concluses apresentadas no poderiam ter outro objectivo que no fosse o de contriburem para o sucesso e adequao do ensino do portugus em Timor.

0.4.

CONTEXTO DE REALIZAO DO TRABALHO E LIMITAES

Introduzido que est o trabalho, devidamente contextualizado a nvel cientfico, falta fazer uma breve contextualizao do mesmo a nvel pessoal. , por isso que, momentaneamente na primeira pessoa, escrevemos algumas linhas para enquadrarmos a realizao desta investigao.

No ano lectivo de 2006/07, depois de termos terminado a parte curricular do Mestrado em Lngua e Cultura Portuguesa Metodologia do Ensino do Portugus (LE/L2), surgiu a oportunidade de integrar o corpo de docentes que, desde o ano 2000, desenvolvem, em Timor-Leste, o Projecto de Reintroduo de Lngua Portuguesa (PRLP). Uma vez que era chegado o momento de realizar um trabalho de investigao para apresentar como dissertao para a obteno do grau de mestre, foi com naturalidade que decidimos integrar o referido projecto, com a expectativa de poder vir a desenvolver, durante a presena em Timor, um trabalho que pudesse ser um contributo vlido para o processo de ensino da lngua portuguesa em Timor-Leste.

O primeiro perodo de actividade docente em Timor-Leste foi de difcil adaptao. Fomos colocados na capital do distrito de Lautm, Lospalos, juntamente com outros10

Lngua Portuguesa em Timor-Leste: Ensino e Cidadania

Nuno Almeida

seis formadores, para dar formao a todos os professores daquele distrito. A formao desenvolvida passava sobretudo pelo ensino da lngua, num Curso de Lngua Portuguesa, com quatro nveis, mas tambm pela leccionao de disciplinas prprias de um currculo de formao pedaggica. O preenchimento do horrio com 24 horas lectivas semanais (para leccionar duas horas efectivas, em certos pontos do distrito, precisvamos de gastar quatro horas na deslocao), juntamente com a atribuio de turmas de vrios nveis e todo o trabalho de secretaria, no deixavam muito tempo livre para a realizao de actividades com vista realizao deste trabalho.

No ano lectivo de 2007/08 voltmos a Timor, e a Lospalos. No entanto, depois de Janeiro de 2008, as condies de trabalho melhoraram bastante, com a ampliao da residncia, a reduo do nmero de nveis e disciplinas diferentes no horrio e a fixao das actividades lectivas apenas na capital do distrito deixaram mais tempo para que nos pudssemos realmente lanar na elaborao de um trabalho de investigao. Nessa altura, pela experincia adquirida no ano anterior quanto forma de organizar o trabalho, a principal limitao passava a ser a pesquisa bibliogrfica, visto que no existiam espaos para consulta de livros no distrito de Lautm. Mesmo em Dli, onde nos deslocvamos um fim-de-semana em cada ms, a pouca bibliografia disponvel no estava facilmente acessvel, sobretudo ao fim-de-semana, perodo em que, diga-se, depois das necessrias reunies com a coordenao do projecto e do tempo gasto a comprar todos os produtos, alimentares e outros, suficientes para um ms de vida no distrito (a cinco horas de Dli), fazer pesquisa bibliogrfica tornava-se muito difcil. Assim, foi com muito esforo e dedicao que fomos avanando na investigao, da qual resultou o trabalho que agora apresentamos.

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Captulo I: Contextualizao de Timor-Leste

1. CAPTULO I: CONTEXTUALIZAO DE TIMOR-LESTE18

1.1.

INTRODUO

Para que este trabalho seja devidamente enquadrado, necessrio reservar algum espao para contextualizar Timor-Leste, de modo a obter um melhor conhecimento global daquele pas e da sua relao com a lngua portuguesa. Parece pertinente, embora em linhas gerais, apresentar um enquadramento a nvel da situao geopoltica e da histria de Timor-Leste, acrescentando alguns dados mais especficos sobre a presena da lngua portuguesa naquele territrio, sobre a relao entre o portugus e a identidade timorense, bem como sobre o panorama lingustico actual.

1.2.

BREVE ENQUADRAMENTO HISTRICO 19

Timor-Leste um pequeno pas situado entre aproximadamente 17000 ilhas do Sudeste Asitico, tendo ao Sul a vizinhana prxima da Austrlia e a Norte a companhia do enorme Arquiplago da Indonsia. Este pas tem uma extenso territorial de aproximadamente 15000 quilmetros quadrados 20 . Calcula-se que cerca de 830000 pessoas habitem este territrio, organizado em 13 distritos, que se dividem em 67 subdistritos, 498 sucos e mais de 2000 aldeias 21.

Deve esclarecer-se desde j que, ao pesquisar elementos sobre Timor-Leste, nem sempre os dados so coerentes quando se confrontam fontes diversas. Esta situao dever-se- ao facto de ter ficado destruda uma boa parte dos registos e dos documentos pessoais durante os ltimos anos da presena indonsia sobretudo no perodo imediatamente aps o referendo para auto-determinao, altura em que mais de metade dos edifcios e casas de habitao foram incendiados. Assim, alguns dos nmeros so frequentemente resultado de projeces estatsticas. 19 Para se obter uma perspectiva histrica de Timor-Leste, a partir da Segunda Grande Guerra, at ao presente, o perodo mais determinante para se perceberem as opes tomadas pelos lderes polticos actuais, veja-se Antnio Barbedo de Magalhes (2007), Timor-Leste Interesses internacionais e actores locais, Porto, Afrontamento, que enquadra de modo claro e extremamente completo a histria recente daquele pas na dinmica dos interesses polticos e econmicos globais. 20 Cf. Faculdade de Arquitectura Universidade Tcnica de Lisboa e GERTIL Grupo de Estudos de Reconstruo de Timor-Leste (2002), Atlas de Timor Leste, Lisboa, Lidel. 21 Cf. SSTL (2001), The Survey of Sucos: initial analysis and implications for poverty reduction, Dli, East Timor Transitional Administration (ETTA), Asian Development Bank (ADB), World Bank (WB) and United Nations Development Program (UNDP).

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Lngua Portuguesa em Timor-Leste: Ensino e Cidadania

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No contexto das regies colonizadas, Timor-Leste foi uma das ltimas colnias de Portugal, situada no mundo oriental, que lutou pela sua emancipao e, aps um dos mais longos processos de colonizao e cerca de trs dcadas de domnio indonsio, teve a sua independncia restaurada, com o primeiro governo instalado em 2002. Originalmente, este pas esteve sob o domnio portugus desde o incio do sculo XVI 22. Em 1975, beneficiando das mudanas decorrentes do 25 de Abril de 74 e da queda do regime ditatorial salazarista em Portugal, depois de um perodo poltico conturbado a nvel interno, Timor-Leste declarou a sua independncia. Quase de imediato, por razes de ordem estratgica, poltica e econmica, a Indonsia invadiu o territrio de Timor-Leste e anexou-o como sua provncia. Esta invaso ocorreu num perodo crtico da guerra fria no Sudeste Asitico e teve, por isso, um importante apoio da Austrlia, dos Estados Unidos e de outros pases Ocidentais 23 No entanto, em 1999, depois de ter encontrado uma forte resistncia durante o perodo de ocupao 24 , a Indonsia viu-se obrigada a admitir a realizao de um referendo que decidiria se o destino de Timor-Leste passaria ou no por uma autonomia total. Foi esse o primeiro passo para o nascimento efectivo da Repblica Democrtica de Timor-Leste (RDTL).

A instaurao da RDTL deu-se a 20 de Maio de 2002, sob o regime da nova Constituio e a posse do primeiro Governo eleito democraticamente, sendo Kay Rala Xanana Gusmo o Presidente da Repblica. O perodo compreendido entre 1999 e 2002 foi acompanhado pelo Conselho de Segurana das Naes Unidas por meio da United Nations Transitional Administration in East Timor UNTAET, com mandato de Misso de Administrao de Transio entre o domnio indonsio e o Estado independente. Depois da passagem do testemunho ao novo Governo, a UNTAET foi transformada em United Nations Mission of Support in East Timor UNMISET, Misso de Suporte aA data exacta da chegada dos portugueses a Timor no conhecida, havendo vrias propostas, consoante os autores, que apontam para os anos compreendidos entre 1511 e 1515. 23 Antnio Barbedo de Magalhes (2007), Timor-Leste Interesses internacionais e actores locais, Vol. I, Porto, Afrontamento, p. 171. 24 Para que se perceba a natureza desta ocupao, leia-se o relato da AMNISTIA INTERNACIONAL, em 1994: Em Timor-Leste, a antiga colnia portuguesa invadida pela Indonsia em 1975 e ainda sob ocupao em desafio s resolues das Naes Unidas, ocorreram algumas das piores violaes. A gravidade do problema foi percebido por muita gente em Novembro de 1991, quando foras indonsias atingiram a tiro cerca de 270 manifestantes pacficos no Cemitrio de Santa Cruz, em Dli, a capital. Os assassinatos polticos no so um fenmeno novo em Timor-Leste. Fazem parte de um amplo padro de violaes que tem persistido ao longo de 20 anos. (Amnistia Internacional (1994), Indonsia e Timor Leste Poder e Impunidade, os Direitos Humanos sob a Nova Ordem, Lisboa, Publicaes Amnistia Internacional, pp. 1-3).22

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Captulo I: Contextualizao de Timor-Leste

Timor-Leste, ambas sob mandato do Conselho de Segurana da ONU, cuja finalidade foi constituir-se como fora de manuteno da paz e de suporte ao desenvolvimento institucional. Depois de concludo o mandato da Fora de Paz da ONU, em Maio de 2005, o Conselho de Segurana estabeleceu uma misso poltica especial de um ano: o Gabinete das Naes Unidas em Timor-Leste UNOTIL para manter apoio a algumas reas estratgicas e mais carentes de quadros humanos especializados. Contudo, em 2006, Timor-Leste voltou a viver um clima de instabilidade poltica, fazendo com que fosse necessrio enviar novamente um contingente mais alargado de militares para manuteno da paz. Depois de foras de segurana de vrios pases terem voltado a Timor, a pedido do governo timorense, em Setembro que a recm-criada UN Integrated Mission in Timor-Leste UNMIT inicia oficialmente as suas actividades de policiamento. 25

Timor-Leste hoje um pas independente, mas com muitas limitaes e dificuldades, que fazem com que, na prtica, a independncia de Timor-Leste seja ainda relativa. O baixssimo nvel de desenvolvimento deste territrio decorre, sobretudo, dos quatro sculos e meio de explorao a que foi sujeito, praticamente sem receber qualquer tipo de investimento portugus, juntando-se a esses os vinte e quatro anos de domnio militar indonsio, cujo regime imps mudanas estruturais profundas naquela regio ocupada. Se, por um lado, o longo perodo de colonizao portuguesa em quase nada contribuiu para o desenvolvimento dessa regio, por outro lado, a lngua portuguesa e a religio catlica foram formadoras de uma determinada cultura, cujas marcas se misturaram com as culturas nativas, de influncia chinesa e malaia, que remontam ao sculo XIII, atradas pela explorao de sndalo, hoje extinta.

Na condio de colnia ultramarina, Timor-Leste manteve-se isolada e distante de qualquer possibilidade de desenvolvimento, quer pela condio de ilha, quer pelas limitadas perspectivas de retorno econmico e poltico por parte de Portugal. Para dar uma ideia do grau de alienao, a criao em Timor da primeira escola oficial aconteceu apenas em 1915, quatro sculos aps a ocupao daquela terra 26.Cf. Antnio Barbedo de Magalhes (2007), op. cit, Vol. III, Parte VIII, Cronologia de Timor-Leste, pp. 866-948. 26 Cf. Taur Matan Ruak (2001), A importncia da lngua portuguesa na resistncia contra a ocupao indonsia, in Cames Revista de Letras e Culturas Lusfonas, n 14 Jul-Set 2001, Lisboa, Instituto Cames, p. 4025

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Diferentemente do que aconteceu no processo de colonizao portuguesa, o domnio indonsio, de 1975 a 1999, promoveu investimentos em infra-estruturas e em educao, com a finalidade de conquistar a adeso timorense, no sentido de desestruturar as identidades e os valores locais oriundos da cultura ocidental construdos ao longo do perodo anterior, com o objectivo de criar estruturas de submisso. Nesse perodo, o Governo indonsio implantou muitas escolas pblicas no pas. Com o intuito de assegurar o domnio territorial, o regime indonsio tratou de substituir os referenciais at ento em vigor, particularmente a lngua portuguesa, trocando-a pela lngua indonsia. Para tal, enviou professores indonsios para o terreno, imprimindo uma educao de subservincia ao novo regime 27.

Com a realizao do referendo para a auto-determinao em 30 de Agosto de 1999 e a divulgao dos resultados a favor da independncia, foras indonsias, em conjunto com as milcias por estas criadas, aterrorizaram a populao timorense, deportaram cerca de um quarto da populao para a Indonsia e destruram o territrio, incendiando a maior parte das casas 28. Com o agravamento da crise e a demora da resoluo do Conselho de Segurana da ONU, o pas foi devastado, com reflexos ainda hoje visveis 29. As escolas ficaram destrudas e os professores indonsios retornaram sua origem. Em consequncia destes conflitos, com a colaborao da comunidade internacional, o Governo de Timor-Leste tem vindo a reconstruir a rede escolar e a organizar e implementar o currculo escolar, para alm de fazer um grande esforo na capacitao dos seus professores, nomeadamente no que se refere formao em lngua portuguesa.

Segundo o Relatrio do Banco Mundial Timor-Leste Education The Way Forward, de Dezembro de 2003, durante a ocupao indonsia, os quadros tcnicos, profissionais e administrativos eram ocupados por indonsios. Em resultado disso, 20 porcento dos professores primrios e 90 porcento dos professores secundrios no eram timorenses. 28 Antnio Barbedo de Magalhes (2007), op. cit, Vol. III, p. 597. 29 Alm da destruio das infra-estruturas escolares, outro problema diz respeito ao desaparecimento da maioria dos registos e documentos escolares ou pessoais.

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Captulo I: Contextualizao de Timor-Leste

1.3.

PRESENA DA LNGUA PORTUGUESA EM TIMOR-LESTE 30

A presena da lngua portuguesa em Timor remonta ao sculo XVI, altura em que, tendo chegado ao Oriente, os portugueses iniciaram uma srie de contactos, a princpio, com fins exclusivamente comerciais, com os reinos mais receptivos. Foi a vontade de estabelecer relaes comerciais e de evangelizar que foi reforando o contacto dos portugueses com as muitas ilhas daquela regio, dando-lhe uma certa regularidade, da qual nasceu a introduo da sua lngua naquelas paragens.

Com o tempo, onde a presena portuguesa se traduziu pelo estabelecimento mais ou menos efectivo de uma soberania portuguesa, o portugus imps-se como lngua de administrao 31 . Para que houvesse uma introduo da lngua portuguesa, teve necessariamente de haver um pblico interessado em aprend-la, motivado essencialmente pelos benefcios comerciais que da poderiam advir. Nessa altura, as relaes com as populaes locais teriam sido apenas na base das trocas comerciais. Presume-se que se entendiam, no princpio, por meio de gestos e, aos poucos, na certeza de poderem fazer escoar os seus produtos, porque o negcio lhes trazia benefcios materiais, foram-se aperfeioando at poderem comunicar-se com menos embarao com os portugueses 32.

Alm das motivaes comerciais, supe-se que a Igreja tenha tambm contribudo para o despertar do interesse das populaes em relao lngua portuguesa. curioso verificar que o incio da difuso da lngua portuguesa no Oriente tido como um fenmeno espontneo: E as mais das vezes desnecessrio se torna supor que tenha havido uma deliberada poltica em tal sentido para explicar a difuso do portugus 33. Porm, no se pode dizer que tenha continuado assim por muito tempo, j que, cerca de 1560, chegaram [a Timor] os primeiros missionrios portugueses que, a custo de muitoSobre a histria da presena da lngua portuguesa em Timor, ANTUNES desenvolveu um trabalho bastante completo e pertinente, recolhendo informao dispersa de vrios autores em Ricardo Jorge F. Antunes (2003), A Lngua Portuguesa em Timor Lorosae Contributos para a sua Didctica, Dissertao de Mestrado em Didctica das Lnguas, Aveiro, Universidade de Aveiro, Caps. II a IV. Esse trabalho foi uma boa base de apoio para a elaborao desta seco do captulo. 31 Lus Filipe F. R. Thomaz (2002), Babel Lorosae o problema lingustico de Timor Leste, Cadernos Cames, Instituto Cames, Lisboa, p. 132 citado por Ricardo Jorge F. Antunes (2003), op. cit., p. 55. 32 Taur Matan Ruak (2001), op. cit., p. 40. 33 Lus Filipe F. R.Thomaz (2002), op. cit., p. 133 citado por ANTUNES, Ricardo Jorge Ferreira (2003), op. cit., p. 56.30

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sacrifcio, conseguiram expandir a lngua portuguesa atravs da alfabetizao nas escolas e das preces expressas nas capelas e igrejas catlicas 34 , o que faz supor a existncia de uma intencionalidade na difuso da lngua e, ao mesmo tempo, deixa transparecer um protagonismo da Igreja nesse processo.

Esse protagonismo da Igreja assim resumido por COSTA: A principal via de difuso do portugus em Timor-Leste foi a da missionao. Durante os primeiros cento e cinquenta anos foram os missionrios que se ocuparam do ensino, desenvolveram o primeiro manual bilingue (Cartilha Tetum, P.e Laranjeira, 1916) para ensinar Portugus. Foram ainda os missionrios que implementaram as escolas primrias, fundaram a Escola de Professores Catequistas, a Escola de Artes e Ofcios e o Seminrio Menor (primeiro em Soiaba, em 1898, e depois em Dare, em 1951). 35

Se, para os comerciantes, no seria necessrio atingir um nvel muito complexo da lngua, para os missionrios, a questo da lngua era vista com outros olhos. Como noutros continentes, [em Timor], naqueles sculos, os missionrios eram os que mais precisavam de mais vocabulrio para poder contactar almas, espritos, coraes e lev-los mudana de critrios, novas ideias, realidades, novas esperanas. Precisavam afinal de um vocabulrio mais rico do que o necessrio para o comrcio daquele tempo 36.

Para alm de ir ensinando a lngua portuguesa ao mesmo tempo que iam estudando as lnguas locais, os missionrios comearam a introduzir no territrio nomes portugueses atravs do baptismo. Por 1590 baptizado com o nome de D. Loureno, aps educado em Malaca, o primeiro chefe timorense, o herdeiro do reino de Mena a que outros se seguem, sobretudo depois de 1633 37. De facto, a estratgia da Igreja era duplamente produtiva j que, por um lado, aumentava a sua rea de influncia, convertendo ao catolicismo elementos influentes da sociedade timorense, apresentando-os como seus

Taur Matan Ruak (2001), op. cit., p. 40. Lus Costa (2005), Lnguas de Timor, in Dicionrio Temtico da Lusofonia, Lisboa, Texto Editores, p. 614. 36 P.e Joo Felgueiras (2001), As Razes da Resistncia, in Cames Revista de Letras e Culturas Lusfonas, n 14 Jul-Set 2001, Lisboa, Instituto Cames, p. 42-44. 37 Lus Filipe F. R. Thomaz (2002), op. cit., p. 136 citado por Ricardo Jorge F. Antunes (2003), op. cit., p. 61.35

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Captulo I: Contextualizao de Timor-Leste

aliados; por outro lado, estava j, naquele tempo a criar razes profundas para a presena da lngua portuguesa em Timor-Leste.

A lngua portuguesa circulou por motivaes comerciais e religiosas at ao incio do sculo XVIII, altura em que, no ano de 1702, desembarcou na ilha o primeiro Governador de Timor, facto que passou a acrescentar ao portugus um significado poltico. O territrio passou a ser estruturado em torno de uma administrao central. O portugus foi, logicamente, a lngua administrativa, e a sua difuso deve ter-se ento incrementado 38. Agora o portugus passava a ser tambm a lngua de contacto com as elites administrativas, ganhando um elevado estatuto.

Ao longo dos tempos, a lngua portuguesa foi ganhando o seu espao prprio em TimorLeste, talvez mais do que seria expectvel, a julgar pelas palavras de THOMAZ: natural que aps a extino das ordens religiosas, em 1834, a instruo, e com ela, o uso do portugus tenham regredido muito pois desapareceram os seminrios e conventos dos Dominicanos e o clero chegou a reduzir-se, no terceiro quartel do sculo XIX, a dois sacerdotes seculares goeses. A despeito disso, o portugus continuava, pelo menos no meio urbano de Dli, a ser de uso corrente, em contraste com o que se passava nas possesses holandesas, onde era o malaio que imperava 39.

Entre finais do sculo XIX e princpios do sculo XX, com o controlo efectivo sobre todo o espao geogrfico e social de Timor, a presena da lngua portuguesa ganhou um novo flego, alargando-se a zonas mais isoladas fora da capital, nomeadamente atravs da presena da administrao nesses locais, que comeou a integrar tambm timorenses. Os rgulos perderam parte dos seus poderes, tutelados agora por uma administrao burocrtica de tipo colonial, presente em todos os cantos da provncia e no j, como at ento, [apenas] na capital. Os quadros do funcionalismo dilataram-se e neles comearam a penetrar aos poucos os timorenses letrados 40 , para o que certamente teriam de ser falantes de portugus.38

Lus Filipe F. R. Thomaz (2002), op. cit., p. 137 citado por Ricardo Jorge F. Antunes (2003), op. cit., p. 63. 39 Lus Filipe F. R. Thomaz (2002), op. cit., p. 137 citado por Ricardo Jorge F. Antunes (2003), op. cit., p. 64. 40 Lus Filipe F. R. Thomaz (2002), op. cit., p. 138 citado por Ricardo Jorge F. Antunes (2003), op. cit., p. 65.

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Foi tambm no final do sculo XIX que o bispo de Macau, que assumia o controlo diocesano de Timor, deu um novo impulso ao trabalho da Igreja naquele territrio, ao reorganizar as misses catlicas, criando igrejas, escolas, a cargo do clero secular e seus auxiliares e das Madres Canossianas, que trouxe para Timor41

, com a

particularidade de estender, pela primeira vez, o ensino formal, e portanto a lngua portuguesa, s raparigas, alargando assim um pouco mais a abrangncia do portugus na sociedade timorense.

Um momento particularmente importante para a continuidade da presena do portugus em Timor-Leste foi a fundao, em 1898, do Colgio da Soibada, dirigido at 1910 pelos Jesutas. Destinava-se formao de professores catequistas, incumbidos ao mesmo tempo da alfabetizao e da instruo religiosa das populaes rurais. Por a passaram sucessivas geraes de Timorenses que tm constitudo at aos dias de hoje a elite cultural do territrio [elite esta, que, cerca de um sculo depois, viria a ser responsvel pela livre escolha do portugus para lngua oficial de Timor independente]. [Dando continuidade a este frtil perodo de divulgao da lngua portuguesa] em 1915 abriu a primeira Escola Oficial em Dli, a que outras se seguiram, espalhadas pelo territrio, embora em profuso menor que as escolas missionrias. Juntaram-se-lhes, na dcada de 60 as escolas militares, mantidas pelo exrcito nas zonas mais recnditas, cujo nmero chegou a ultrapassar a centena 42.

Outro ponto importante para a fixao da lngua portuguesa em Timor foi a criao, j no perodo do Estado Novo, do conceito de assimilado. Este conceito foi criado em 1930 pelo Acto Colonial e implicava a diviso dos habitantes em duas categorias: indgenas (nativos no assimilados) e no indgenas, incluindo mestios (brancos) e assimilados (nativos assimilados). Para adquirir o estatuto de assimilado, e a consequente cidadania portuguesa, um timorense tinha que falar portugus 43. de ver que esta condio era fomentadora do interesse em aprender portugus.41

Lus Filipe F. R. Thomaz (2002), op. cit., p. 138 citado por Ricardo Jorge F. Antunes (2003), op. cit., p. 66. 42 Lus Filipe F. R. Thomaz (2002), op. cit., p. 138 citado por Ricardo Jorge F. Antunes (2003), op. cit., p. 67. 43 John G. Taylor (1991), Timor: a histria oculta (traduo de Antnio S Amaral), Venda Nova, Bertrand Editora, p. 41 citado por Ricardo Jorge F. Antunes (2003), op. cit., p. 69.

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Durante o perodo de administrao portuguesa, foi s a partir da dcada de sessenta, com especial empenho nos primeiros anos da dcada seguinte, que houve um forte incremento da escolaridade, com a criao de escolas por todo o territrio, na tentativa de alfabetizar toda a populao em idade escolar. O esforo dos missionrios no era correspondido pelo governo portugus que, [] talvez com certo arrependimento, tentou equilibrar o esforo feito pelos missionrios, expandindo a lngua portuguesa atravs de aberturas de mais escolas, empregando at para o efeito soldados portugueses em servio nesta ilha 44 . Como resultado, a taxa de alfabetizao subiu assim rapidamente (de 28 por cento em 1970-1971, para 77 por cento em 1973-1974) 45.

Tendo em mente que a expanso da lngua portuguesa, em Timor-Leste, teria de passar pelos bancos das escolas, a administrao portuguesa no fez muito para que ela acontecesse. De facto, os mais de quatro sculos de presena portuguesa no foram de todo produtivos no que diz respeito educao e formao. Veja-se a perspectiva apresentada por COSTA: A inexistncia de um plano adequado civilizao e situao socioeconmica teve como resultado o atraso de formao de quadros timorenses. Todas as tentativas de actualizao do plano de ensino s incidiam no aspecto moral para pacificar os espritos belicosos dos liurais e para facilitar a presena e o domnio da administrao portuguesa atravs do rendimento escolar. O programa de escolarizao foi bastante lento, o que explica a dbil percentagem de 28%, em 1970, de crianas a frequentarem as escolas, nmero esse que ascendeu a 51% em 1972 e a 77% em 1974. 46

Com a queda do regime salazarista em Portugal, abriu-se espao ocupao de TimorLeste por parte da Indonsia, em 1975. Este foi o perodo mais negro da histria do pas, devido s atrocidades cometidas pelos militares invasores, embora com alguns picos, ao longo de todo o perodo de ocupao (24 anos). Tambm para a prpria lngua portuguesa, estes foram uns anos conturbados, em que viu seriamente limitada a sua presena naquele territrio, j que os indonsios, conotando-a com a resistncia queTaur Matan Ruak (2001), op. cit., p. 40. Lus Filipe F. R. Thomaz (2002), op. cit., p. 140 citado por Ricardo Jorge F. Antunes (2003), op. cit., p. 71. 46 Lus Costa (2005), Lnguas de Timor, in Dicionrio Temtico da Lusofonia, Lisboa, Texto Editores, p. 614.45 44

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foram encontrando ao longo do seu esforo de domnio, procuraram faz-la desaparecer, proibindo o seu uso.

RUAK descreve bem este perodo: [] apesar de j ser to pobre a herana lusfona deixada pelos ltimos governantes portugueses, acontecimentos posteriores ainda vieram deterior-la muito mais ao ponto de a eliminar por completo. [] aos que ficaram no pas, particularmente sob o controle administrativo do ocupante, foram-lhes retirados progressiva e inteligentemente a possibilidade de continuarem a falar o portugus, com pesadas imposies, nomeadamente, a proibio do uso da lngua portuguesa, introduo e projeco da lngua malaia, restries e limitaes do ensino do portugus, [] para mais tarde o abolir totalmente. A presena do portugus em Timor passava ento a estar ligada ao movimento de resistncia timorense. Este ex-lder da Resistncia indica os factores que permitiram a manuteno desta lngua nesse contexto: primeiro, a presena da classe dirigente lusfona; segundo, por ser a nica lngua ortograficamente desenvolvida; terceiro, porque era a nossa lngua oficial definida desde sempre; por ltimo, porque era uma das armas para contrapor lngua malaia no mbito da luta cultural. Para alm disto, os resistentes tentavam alargar o nmero de falantes. Para tal, utilizavam todos os recursos disponveis para no s preservar a lngua, mas, essencialmente, expandi-la aos menores e analfabetos, atravs de aprendizagem, at utilizando para isso carvo e casca de certas plantas para servir de papel. 47

Paradoxalmente, o perodo de ocupao indonsia diminuiu significativamente o nmero de falantes da lngua portuguesa 48, provocando, contudo, uma valorizao desta lngua como factor de unidade nacional contra o invasor. Depois de um perodo de perseguio no qual falar portugus poderia significar a morte, o portugus emerge reforado por um desejo de afirmao identitria dos timorenses. 49 Prova disso, um ano

Taur Matan Ruak (2001), op. cit., p. 41. O nmero de falantes era reduzido em 1975, no obstante os esforos feitos nos ltimos anos de domnio portugus, como o afirma RUAK: Como era de esperar, no obstante esse tardio esforo, at 1975, apenas 5% da populao se podia exprimir em portugus e talvez menos de metade se comunicava na mesma lngua, oscilando esta apenas da elite administrativa para o clero catlico. (Taur Matan Ruak (2001), op. cit., p. 40). 49 Esta afirmao visvel para quem (sendo portugus), em Timor, tenha contacto com as geraes mais velhas, que falam portugus com o prazer de quem saboreia a liberdade misturada com o orgulho da48

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depois da sua eleio (que acontecera a 30 de Agosto de 2000), a Assembleia Constituinte de 88 membros decidiu, por 80 votos a favor, 3 abstenes, e nenhum voto contra (5 deputados estavam ausentes) escolher o portugus e o ttum como as duas lnguas oficiais de Timor-Leste 50, marcando de forma indelvel a presena da lngua portuguesa naquele pas, agora por vontade e escolha prpria.

1.4.

LNGUA PORTUGUESA FACTOR DE IDENTIDADE

inegvel, pelas decises tomadas no passado recente pelos dirigentes timorenses, em relao questo da lngua portuguesa em Timor-Leste, atribuindo-lhe o papel de lngua oficial, e pelo esforo que no presente feito para a sua divulgao e ensino, que esta lngua tem, nesse distante pas, um enorme valor cultural e afectivo. Na verdade, uma lngua que foi banida ostensivamente durante mais de 20 anos, proibida nas escolas e que se apresenta viosa logo a seguir libertao, mostra que estava mesmo com profundas razes nos valores culturais mais sagrados deste povo. [] A experincia de ensinar a Lngua Portuguesa, mais abertamente, mas ainda discreta, anos antes do referendo, veio a demonstrar vigorosamente que a semente da Lngua Portuguesa esperava no corao do povo, das crianas e dos jovens o momento para germinar 51.

HULL tambm afirma que o facto de o Portugus ter sobrevivido perseguio que lhe foi movida, prova que parte integrante da cultura nacional (ao contrrio do holands, que desapareceu completamente da Indonsia depois da independncia). 52

Pelo que dado a conhecer nos trabalhos sobre esse assunto, para a apropriao, por parte dos timorenses, da lngua portuguesa como factor de identidade cultural, contriburam vrios factores, que se podem, de um modo geral, resumir a cinco, que se inter-relacionam e, por vezes se confundem: - O misticismo de Portugal e dos portugueses;diferena, muitas vezes para relatar de acontecimentos terrveis passados durante o perodo de ocupao indonsia. 50 Antnio Barbedo de Magalhes (2007), op. cit., Vol. III, p. 657. 51 P.e Joo Felgueiras (2001), op. cit., p. 49. 52 Geoffrey Hull (2001), Lngua, Identidade e Resistncia entrevista a Geoffrey Hull, in Cames Revista de Letras e Culturas Lusfonas, n 14 Jul-Set 2001, Lisboa, Instituto Cames, p. 88.

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- A actuao da Igreja na aproximao s razes culturais do povo e o seu papel na difuso da lngua portuguesa e na formao; - A durao do domnio portugus (quatro sculos e meio) e a construo de uma memria colectiva; - A comparao entre o carcter violento das invases protagonizadas por outras naes (primeiro o Japo, durante a Segunda Guerra Mundial, e depois a Indonsia) e a administrao mais moderada do territrio praticada pelos portugueses. - A associao do portugus ao movimento da resistncia e ao consequente despertar de uma unidade nacional, funcionando como uma arma de luta cultural.

Ao longo da histria do territrio, foram diversas as rebelies de reinos que no pretendiam seguir os desgnios da coroa portuguesa. Os portugueses sempre foram eficazes na resoluo destas revoltas, graas sua habilidade para cimentar alianas e para impor um sentido de aliana partilhada entre aliados inconstantes. As recompensas e a concesso de graus honorficos contriburam para criar uma identidade lusitana imaginria, talvez funcionando em reciprocidade com a exibio de bandeiras lulics (objectos sagrados) 53.

Este misticismo dos portugueses est presente na cultura popular tambm ligado aos missionrios, como ilustra de forma exemplar uma lenda sobre a chegada dos portugueses ilha originalmente recolhida e publicada por S 54 , resumida por TAVARES 55 e includa no trabalho de ANTUNES, que se transcreve em seguida.

H muitos sculos, encontrando-se todos os Liurai (senhor da terra, rgulo, chefe de Timor) numa cerimnia sagrada, notaram que se aproximava uma grande armada. Temerosos que lhes fosse fazer guerra, reuniram-se os Liurai na praia com os seus homens todos armados, espera do desembarque dos desconhecidos. No entanto, a armada lanou ferro ao largo e s um bote se aproximou de terra, no qual vinha um homem de grandes barbas brancas, vestido com uma batina preta, empunhando na mo esquerda um crucifixo. Quando chegava praia, Geoffrey Gunn (2001), Lngua e Cultura na construo da Identidade de Timor-Leste, in Cames Revista de Letras e Culturas Lusfonas, n 14 Jul-Set 2001, Lisboa, Instituto Cames, p. 21. 54 Artur Baslio de S (1961), Textos em Teto da Literatura Oral Timorense, Vol. I, Estudos de Cincias Polticas e Sociais, n 45, Lisboa, Centro de Estudos Polticos e Sociais, Junta de Investigaes do Ultramar. 55 Manuel Viegas Tavares, Bua sei saren malus dikin loron ida: A integrao dos timorenses na sociedade portuguesa, Coleco Estudos e Documentos, Lisboa, Instituto Piaget, pp. 39-41.53

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Captulo I: Contextualizao de Timor-Lesteperguntaram-lhe de terra, atravs de um lngua, o que queriam e para que eram as suas armas, respondendo o homem da batina preta que queriam desembarcar pois vinham do outro lado do mar, de muito longe, de um grande reino, por ordem de Deus, para vos anunciar os Seus mandamentos. Traduzida a resposta pelo intrprete, o rgulo chefe mandou dizer que no podiam desembarcar e que se tentassem os matariam a todos. Perante tal firmeza pediram os do barco que ao menos os deixassem abastecer-se de gua, o que foi aceite com a condio de serem s alguns deles a ir a terra, e nada mais tentassem. () Ao ver que estavam sozinhos, o frade disse aos marinheiros para enterrarem na fonte, bem fundo, a ncora da nau e depois que esticassem a corrente, feito o que regressaram todos a bordo e iaram o pano, ficando o barco parado devido priso do ferro. Avisado o rgulo do acontecido, convocou todos os guerreiros que tudo fizeram para soltar a ncora do fundo do poo, e como nada conseguissem mandou perguntar aos do barco o porqu de to estranha atitude, tendo o homem da batina respondido que o fizeram porque no tendo eles querido tomar conhecimento dos mandamentos de Deus, iam rebocar a ilha at Portugal. Como ningum de terra acreditasse e ainda os insultassem, o homem do hbito preto subiu ao castelo da popa para que o vissem bem, ps-se de joelhos e levantando os braos aos cus deu ordem de partida. Imediatamente a nau comeou a mover-se e toda a terra estremeceu, arrastada pelo barco. Os de terra, cheios de pavor, gritaram para que parasse pois no queriam ir para Portugal, respondendo o homem da batina que s parariam o barco se autorizassem o seu desembarque e quisessem ouvir os mandamentos de Deus que ali os trouxera. Os rgulos e o povo concordaram numa s voz, pelo que o missionrio voltou a terra, tendo os da nau cortado a amarra e seguido a sua rota. Pouco tempo depois o rgulo e muita outra gente aceitavam os mandamentos de Deus e convertiam-se ao cristianismo, que a breve trecho se espalhou pela ilha. 56

GUNN no esquece que o papel da Igreja na promoo e proteco desta identidade no pode ser ignorado 57 . A igreja foi desde sempre o principal impulsionador da formao escolar em Timor, com a excepo dos ltimos anos da administrao portuguesa, em que os governantes se esforaram mais. Para alm disto, contriburam para o sentimento de unidade em torno da f, atravs do qual os timorenses se foram associando Igreja, no seio da qual conviviam com a lngua portuguesa. FELGUEIRAS acrescenta ainda que aos missionrios deve a cultura universal o ter transformado em valores culturais formas de fala, muito longe do que at ento se conhecia. [] No s

56 57

Ricardo Jorge F. Antunes (2003), op. cit., pp. 58-59. Geoffrey Gunn (2001), op. cit., p. 25.

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os povos de Timor Lorosae, mas mesmo do Sudeste Asitico, encontram na origem da sua escrita e cultura, o mesmo esforo cultural, humano e cientfico. assim, como outros povos espalhados pelo Globo, que tambm os povos de Timor Lorosae, que falam os variados dialectos ou lnguas, constatam e agradecem que o alfabeto da lngua portuguesa, trazido pelos missionrios portugueses, os tenha ajudado a transformar em linguagem escrita as suas lendas e histrias e a preservar, incluso, a existncia destes dialectos 58.

A longa durao do convvio com os portugueses foi tambm importante para a definio de uma identidade, como esclarece FELGUEIRAS, na primeira pessoa: Cerca de 450 anos de contacto da cultura portuguesa com os povos de Timor Lorosae deu tempo e oportunidade aos povos de todas as regies de Timor para uma natural osmose ou intercmbio de valores. Este intercmbio dava-se, como bvio, sobretudo nos vocabulrios, at aprendizagem e uso da lngua mais rica de expresso. [] fomos surpreendidos por uma invaso em forma, e para domnio total. Ningum se tinha preparado em nada para enfrentar a nova situao. Tivemos de sobreviver com o que tnhamos! Foi assim, que tudo foi posto prova, sobretudo as vidas e os valores culturais 59 . Nesta situao inesperada, os timorenses agarraram-se ao passado. Para alm disto observa, em comparao com o perodo indonsio: Ter sido pouco o que [os portugueses] fizeram, mas houve sculos de vida comum, de seguimento das mesmas leis, da mesma f e da mesma lngua. Poderei deduzir o seguinte. O povo timorense durante 4 sculos conheceu e desenvolveu valores superiores comuns, esteve em contacto com dirigentes de valor, como governantes, bispos missionrios, funcionrios de diversos continentes ligados na mesma administrao e usando e ensinando a mesma lngua 60.

P.e Joo Felgueiras (2001), op. cit., p. 44. P.e Joo Felgueiras (2001), op. cit., p. 44. Refira-se que a Igreja congregou os timorenses e deu-lhes um ideal e um refgio espiritual, num perodo de grandes sacrifcios. No entanto, apesar de uma longa presena que lhe deu uma fora simblica, foi s nos anos seguintes chegada dos indonsios que o nmero de fiis aumentou substancialmente. Este aumento deveu-se ao facto de existir, na Indonsia a obrigatoriedade, para todos os habitantes, de declarar uma religio; como o animismo no era considerado religio, os timorenses voltaram-se para o que conheciam a Igreja Catlica, que os recebeu e os foi confortando e, dentro das suas possibilidades, protegendo das atrocidades e privaes que foram vivendo. 60 P.e Joo Felgueiras (2001), op. cit., p. 45.59

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Focando tambm a importncia do largo perodo de tempo em que os portugueses controlaram o territrio, MATTOSO explica os factores que esto na gnese da formao de uma identidade nacional: os factores mais decisivos para a ecloso de uma identidade nacional so as prticas administrativas e culturais adoptadas continuamente durante um perodo longo, associadas a circuitos econmicos polarizados por cidades que exercem durante o mesmo perodo uma funo directiva nos trs domnios (administrativo, cultural e econmico). Quer dizer, no caso de TimorLeste, a administrao portuguesa, que efectivamente exerceu esse papel desde o princpio do sculo XVIII at 1975. E continua, apoiando a sua explicao de uma afinidade identitria entre os timorenses e os portugueses na existncia de uma memria comum: Assim, s razes por assim dizer estruturais, que contriburam para a manuteno dos laos de solidariedade criados pela colonizao portuguesa, juntaramse razes histricas, quer dizer, acontecimentos colectivos vividos em comum e que foram a base de uma memria comum. Durante a Segunda Grande Guerra, os acontecimentos colectivos passaram pelo combate aos japoneses instalados na ilha e a memria colectiva reteve as atrocidades cometidas nessa altura. Nesse sentido, a conscincia colectiva, que atribuiu aos Japoneses a qualificao de estrangeiros, de inimigos, de outros, favoreceu, de certo modo, o nascimento da noo de Timorenses como ns mesmos. No fim da guerra, esta noo ficou associada ideia de fidelidade aos Portugueses, mas com o tempo acabou por se tornar uma espcie de conscincia pr-nacional 61.

Os acontecimentos vividos no perodo de ocupao militar de Timor-Leste pela indonsia foram ainda mais decisivos para a formao da memria colectiva. Os timorenses no esquecem os actos de genocdio, o perodo de resistncia activa e passiva durante vrios anos de um pequeno territrio que o exrcito indonsio no conseguia ocupar efectivamente []. Junte-se a isto, [] a lembrana e o respeito sagrado pelas centenas de milhares de mortos ou assassinados pelos estrangeiros, quer dizer, por aqueles que no foram nunca reconhecidos como tendo o direito de administrar o territrio. [] Assim, o uso da fora bruta pelo invasor contribuiu para dar um sentido colectivo resistncia 62.61

Jos Mattoso (2001), Sobre a Identidade de Timor Lorosae, in Cames Revista de Letras e Culturas Lusfonas, n 14 Jul-Set 2001, Lisboa, Instituto Cames, p. 8. 62 Jos Mattoso (2001), op. cit, pp. 9-10.

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Devido s deficientes vias e meios de comunicao e morfologia do terreno, poucos foram os timorenses que tiveram uma perspectiva nacional do seu pas durante o domnio portugus. Esta conscincia nacional surge com a Fretilin 63, que usava a lngua portuguesa para a afirmar. Segundo GUNN, pode dizer-se que a Fretilin, o primeiro partido poltico baseado nas massas em Timor-Leste, foi a primeira organizao que se assumiu como verdadeiramente timorense, identificando-se espiritualmente com o conceito. Os homens mauberes da Fretilin eram to simblicos quanto a inveno de Timor-Leste. Tambm pela primeira vez o Ttum surgiu como uma lngua franca indgena, primus inter pares, ao mesmo ttulo que o portugus, a lngua da modernidade. Por exemplo, o jornal da Fretilin era impresso em portugus [] 64.

Depois da ocupao indonsia, o movimento de resistncia trouxe a conscincia de uma identidade diferente dos parmetros culturais demonstrados pelos invasores. Era tambm na lngua portuguesa que residia essa diferena identitria e era atravs dela que se fazia a resistncia. RUAK afirma que a lngua portuguesa era uma das armas para contrapor lngua malaia no mbito da luta cultural 65 . Esta luta cultural, no entender de GUNN, passou pela linguagem e pelo sistema escolar indonsio, que serviram para que os habitantes de Timor-Leste fossem involuntariamente esclarecidos acerca da sua identidade indonsia. Escusado ser dizer que a Histria de Timor foi, sem transio, incorporada na Histria nacional da Indonsia 66.

Tambm FELGUEIRAS afirma que a Lngua Portuguesa estava to arraigada j de sculos em Timor, que a destruio resultante da invaso fez despertar no Povo a sabedoria para a transformar numa arma eficiente de defesa e de resistncia. [] Ficam apontados alguns elementos que nos podem dar a entender que a Lngua Portuguesa tinha profundas razes em Timor e que, mesmo com a perseguio a partir de 1975, aquelas razes tornaram eficiente o esforo da clandestinidade para a promoo deste valor da sua cultura e agora vista como poderosa arma cultural. E continua, contando como se tentava a todo o custo proteger a parte fsica da lngua

63 64

FRETILIN Frente Revolucionria Timor-Leste Independente. Geoffrey Gunn (2001), op. cit., p. 22. 65 Taur Matan Ruak (2001), op. cit., p. 41. 66 Geoffrey Gunn (2001), op. cit., p. 22.

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portuguesa, os livros: Os primeiros 10 anos de guerra foram, muitas vezes, de risco para quem tivesse livros ou fizesse uso da Lngua Portuguesa. Nesses primeiros anos, os livros eram escondidos, enterrados, espera de melhores tempos. Em geral o livro no sobrevivia enterrado, mesmo dentro de sacos de plstico. Era com tristeza que se ouvia o timorense a lamentar que os seus livros tinham apodrecido. 67

Em suma, podem usar-se as palavras de FELGUEIRAS quando diz que o ensino da Lngua Portuguesa em Timor, segundo me parece, uma actividade que brota mais da alma e da vontade do Povo do que de qualquer outra iniciativa 68, tal a fora que esta lngua ganhou como factor de identidade no seio da comunidade timorense. Esta ideia est bem expressa nas palavras de RUAK: Queremos, enfim, afirmar que nunca perdemos a vontade de manter a lngua portuguesa, tanto oral como ortograficamente, apesar das vrias dificuldades e limitaes impostas na reduo fsica dos falantes da lngua portuguesa. Sempre com o esprito de que a mesma ser a nossa lngua oficial, logramos conseguir aquilo que para muitos foi um sonho. Com muita razo dizemos: Valeu a pena lutar! 69

Pode afirmar-se ento que na edificao da Histria de Timor, as fontes portuguesas, seja de que natureza for, no deixaro de ter um papel de relevo incontornvel. 70

1.5.

PANORAMA LINGUSTICO

Timor-Leste, sendo um pequeno pas, tem uma enorme diversidade lingustica e um caso complexo a este nvel, quanto mais no seja, a julgar pela diversidade de concluses e classificaes a que se vem assistindo, como o nota em tom crtico ESPERANA num artigo em que tenta sintetizar informaes sobre os estudos realizados neste mbito: Timor tem sido descrito frequentemente como uma Babel, devido sua diversidade lingustica. O nmero de lnguas e dialectos varia conforme os autores, principalmente pelos critrios (ou a falta deles) que usam para fazer a

P.e Joo Felgueiras (2001), op. cit., pp. 46-48. P.e Joo Felgueiras (2001), op. cit., p. 49. 69 Taur Matan Ruak (2001), op. cit., p. 41. 70 Joo Loureiro (2001), As Imagens de Timor, in Cames Revista de Letras e Culturas Lusfonas, n 14 Jul-Set 2001, Lisboa, Instituto Cames, p. 161.68

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distino entre uns e outros 71 . Tambm no importa aqui fazer essa distino, no entanto fica a noo de que, para a lngua portuguesa, comparativamente com Portugal, um pas em que as fronteiras lingusticas correspondem grosso modo s fronteiras polticas, o panorama lingustico de Timor se apresenta como um terreno menos pacfico, onde apesar de tudo, se conseguiu, como j visto anteriormente neste captulo, afirmar e fixar.

Actualmente, as lnguas oficiais em Timor-Leste, como definido pela Constituio da Repblica Democrtica de Timor-Leste, no artigo 13, so o ttum e o portugus. Contudo, o artigo 159 determinou que a lngua indonsia e a inglesa fossem lnguas de trabalho em uso na administrao pblica a par das lnguas oficiais, enquanto tal se mostrasse necessrio. No obstante, at ao presente momento, nenhuma destas lnguas falada por toda a populao. 72

Em 1993, ESPERANA descrevia assim a situao de Timor-Leste: Hoje o portugus uma lngua de resistncia ensinada em casa pelos pais e falada por guerrilheiros que lutam h quase dezoito anos nas montanhas, muitos dos quais nunca chegaram a aprender a lngua do invasor. O Ttum falado pela maioria da populao e, apesar das deslocaes foradas de populaes que os indonsios puseram em prtica durante algum tempo, as lnguas locais (mambae, tokodede, makassae, bunak, etc.) mantm-se vivas. Em Dli, [] o bahasa Indonesia j amplamente falado, substituindo por vezes o Ttum (e o Portugus) nas conversas do dia-a-dia entre familiares e amigos. 73

COSTA, em 2005, alerta para a dificuldade de comunicao no recente pas: O estrangeiro que queira percorrer o territrio e tentar comunicar com os seus habitantes v-se perante uma bablica imagem de Timor e tem de recorrer a um intrprete, j que no pode estabelecer um verdadeiro entendimento entre indivduos de grupos diferentes, cada um falando a sua lngua materna. Assim, h que recorrer ao ttum,Joo Paulo T. Esperana (2001), Estudos de Lingustica Timorense, Aveiro, SUL Associao de Cooperao para o Desenvolvimento, p.98. 72 Antnio Barbedo de Magalhes (2007), op. cit., Vol. III, p. 658. 73 Joo Paulo T Esperana, Paula Reis (2001), A lngua portuguesa em Timor Leste um olhar sobre o passado e algumas reflexes para o futuro, (comunicao apresentada s V Jornadas de Timor da Universidade do Porto), 1993, in Estudos de Lingustica Timorense, Aveiro, SUL Associao de Cooperao para o Desenvolvimento, p.136.71

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lngua comum maioria dos grupos. As lnguas de Timor, umas apresentam afinidades com a famlia austronsia, tais como o Baikeno, Manbae, Galolen, Tetun, etc., sendolhe outras estranhas, geralmente classificadas como papuas, tais como bunak, fatluku, makasae, etc. 74

Veja-se ainda como MAGALHES se refere realidade actual (2007): Seis anos depois desta deciso da Assembleia Constituinte timorense [relativamente s lnguas oficiais], ainda persistem dificuldades de comunicao entre os timorenses. De algum modo poder-se- dizer que o ttum a lngua da Nao Timorense (embora pouco ou nada falada na ponta leste), o portugus , em grande parte, a lngua do Estado, a lngua indonsia uma lngua veicular, e o ingls uma lngua de trabalho, nomeadamente nos contactos internacionais. Numerosas outras lnguas e dialectos so utilizados localmente, nomeadamente nas relaes familiares 75.

De modo geral, do que foi dito, percebe-se claramente que Timor-Leste um caso de enorme complexidade, dentro do qual o portugus parece enfrentar dificuldades de manuteno. Para perceber um pouco melhor essa realidade e para referir dados mais precisos, parece seguro recorrer a um artigo de CARVALHO que sintetiza de modo claro as informaes recolhidas por HULL 76 , linguista australiano, autor dos mais completos estudos sobre as origens das lnguas da ilha de Timor e profundo conhecedor dessa realidade:

A jovem Repblica situa-se numa ilha dividida em 18 lnguas nacionais [segundo] a seguinte classificao provisria: i) um grupo A, integrado no continuum de Roti a Wetar, no que corresponde parte ocidental, compe-se do Dawan, com o seu dialecto Baiqueno; no sector central, da ilha, acrescenta-se o Ttum, com os seus dialectos Trik, Belu, Bekais, Praa ou Dli 77 e o Habu; a norte inclui-se o Raklungu ao lado do74

Lus Costa (2005), Lnguas de Timor, in Dicionrio Temtico da Lusofonia, Lisboa, Texto Editores, pp. 614-615. 75 Antnio Barbedo de Magalhes (2007), op. cit., Vol. III, p. 658. Cf. nota 152 sobre a separao funcional das lnguas. 76 Para se aceder a uma informao mais completa e detalhada sobre o universo lingustico de Timor, que no cabe no mbito e natureza deste trabalho, veja-se: Geoffrey Hull (1998), The Languages of Timor 1772-1997: a Literature Review in Studies in Languages and Cultures of East Timor, Sydney, University of Western Sydney Macarthur. 77 G. Hull classifica o Ttum-Dli como crioulo. [nota no artigo de CARVALHO].

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Rasuk e do Raklungy, assim como o Galoli, muito aparentado com certos dialectos de Wetar; e, para finalizar, na regio oriental apresentam-se o Kairui, o Waimata, o Midiki e o dialecto Nauete: ii) um grupo B compe-se das seguintes regies: ocidental, com o Kemak (e o seu dialecto Nogo), o Tokodede (e o seu dialecto Keta); central, com o Mambae (e o seu dialecto Lolein) e oriental, com o Idat e o Lakalei. H ainda cinco lnguas Bunak, com o dialecto Marae, Makasai, Makalero, Fataluku e Lovaia, com o dialecto Makua que, no constituindo um grupo, partilham caractersticas com A e com B. 78

Apesar deste complexo mosaico lingustico, a lngua portuguesa no sucumbiu talvez devido ao referenciado uso do portugus como lngua de resistncia, na parte da ilha anteriormente administrada por Portugal, durante o perodo de ocupao indonsia. E, se, no meio da variedade, o ttum ocupa [] lugar de destaque pelo seu papel de lngua franca 79 , de forma a assegurar a comunicao entre os timorenses, a lngua portuguesa assumiu-se como uma marca identitria. por isso que a reintroduo da lngua portuguesa em Timor-Leste se reveste de grande importncia, at porque carrega uma grande responsabilidade no resgate de valores socioculturais esmagados por uma poltica repressiva de ocupao.

1.6.

CONSIDERAES FINAIS

Territrio distante, Timor-Leste situa-se numa zona do globo que foi alvo de interesses estratgicos portugueses, no mbito do comrcio mundial e da explorao de recursos naturais com fins econmicos. Essas, a par com a ambio evangelizadora da Igreja, foram as principais razes que levaram ao estabelecimento de relaes entre os portugueses e os povos da ilha de Timor, h cerca de cinco sculos. Depois de quatro sculos e meio de domnio, menos formal nos primeiros tempos, apenas com algum ascendente dos missionrios que l foram estabelecendo redes incipientes de organizao administrativa, e mais formal nos ltimos trs sculos, com a criao de

Maria Jos Albarran de Carvalho (2001), Panorama Lingustico de Timor, in Cames Revista de Letras e Culturas Lusfonas, n 14 Jul-Set 2001, Lisboa, Instituto Cames, p. 65. 79 Joo Paulo T. Esperana (2001), Algumas achegas sobre poltica e planificao lingustica em Timor Oriental in Estudos de Lingustica Timorense, Aveiro, SUL Associao