lingua nacional e lingua materna

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ENTRE A LÍNGUA NACIONAL E A LÍNGUA MATERNA. M. Onice PAYER [email protected] Universidade do Vale do Sapucaí (UNIVAS) Introdução Há já algum tempo venho refletindo sobre a constituição do sujeito e da prática de linguagem colocando em relação as noções de língua nacional e de língua materna, e nesta oportunidade vou retomar algumas idéias apresentadas sobre esta relação no capítulo central de minha tese de doutorado (Memória da Língua, Imigração e nacionalidade, IEL/UNICAMP, 1999), intitulado “Memória da Língua - Entre a Língua Nacional e a Língua Materna”, relacionando o tema a questões relativas ao ensino de língua e à escrita. Na pesquisa mencionada estudei a relação entre a memória histórica, a escrita e a oralidade tal como funcionam na prática de linguagem constituindo em sujeitos os descendentes de imigrantes italianos no Brasil, tomando como base o referencial teórico da Análise de Discurso. Considerei, sobretudo, as noções de memória discursiva (Courtine, 1981; Pêcheux, 1984), silenciamento, apagamento e forma material da língua (Orlandi, 1992; 1996), os planos da constituição e da formulação do discurso (Pêcheux, 1990), bem como questões acerca da língua nacional tal como trabalhadas no projeto de pesquisa sobre a história das idéias lingüísticas no Brasil 1 . Por injunção da natureza dos fenômenos lingüístico-discursivos encontrados na pesquisa, bem do contexto institucional do trabalho, passei a contrastar a noção de língua nacional com a de língua materna tal como esta vem sendo trabalhada em áreas disciplinares vizinhas. O fato de ter posto em relação as noções de língua nacional e de língua materna, fazendo os deslocamentos necessários para trabalhá-las relativamente ao campo da memória discursiva, constituiu um procedimento que levou a compreender com algum detalhamento, tanto empírica quanto teoricamente, o valor de cada língua presente no contexto da imigração, em seus diferentes estatutos (como língua nacional e como língua materna). Ao mesmo, estudar esta relação 1 Projeto de Pesquisa História das Idéias Lingüísticas, coordenado no IEL/UNICAMP pela Profa. E. Orlandi, inicialmente, e depois pelo Prof. Eduardo Guimarães. O projeto, do qual participei no doutorado, resultou, entre diversas outras publicações, no livro História das Idéias Lingüísticas, E. Orlandi (org.). Campinas. Ed. Pontes, 2001, onde se encontra uma referência geral das questões da língua nacional a que me refiro.

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Lingua Nacional e Lingua Materna

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  • ENTRE A LNGUA NACIONAL E A LNGUA MATERNA.

    M. Onice [email protected]

    Universidade do Vale do Sapuca (UNIVAS)Introduo

    H j algum tempo venho refletindo sobre a constituio do sujeitoe da prtica de linguagem colocando em relao as noes de lnguanacional e de lngua materna, e nesta oportunidade vou retomar algumasidias apresentadas sobre esta relao no captulo central de minha tesede doutorado (Memria da Lngua, Imigrao e nacionalidade,IEL/UNICAMP, 1999), intitulado Memria da Lngua - Entre a LnguaNacional e a Lngua Materna, relacionando o tema a questes relativasao ensino de lngua e escrita.

    Na pesquisa mencionada estudei a relao entre a memriahistrica, a escrita e a oralidade tal como funcionam na prtica delinguagem constituindo em sujeitos os descendentes de imigrantesitalianos no Brasil, tomando como base o referencial terico da Anlisede Discurso. Considerei, sobretudo, as noes de memria discursiva(Courtine, 1981; Pcheux, 1984), silenciamento, apagamento e formamaterial da lngua (Orlandi, 1992; 1996), os planos da constituio e daformulao do discurso (Pcheux, 1990), bem como questes acerca dalngua nacional tal como trabalhadas no projeto de pesquisa sobre ahistria das idias lingsticas no Brasil1. Por injuno da natureza dosfenmenos lingstico-discursivos encontrados na pesquisa, bem docontexto institucional do trabalho, passei a contrastar a noo de lnguanacional com a de lngua materna tal como esta vem sendo trabalhadaem reas disciplinares vizinhas.

    O fato de ter posto em relao as noes de lngua nacional e delngua materna, fazendo os deslocamentos necessrios para trabalh-lasrelativamente ao campo da memria discursiva, constituiu umprocedimento que levou a compreender com algum detalhamento, tantoemprica quanto teoricamente, o valor de cada lngua presente nocontexto da imigrao, em seus diferentes estatutos (como lnguanacional e como lngua materna). Ao mesmo, estudar esta relao1 Projeto de Pesquisa Histria das Idias Lingsticas, coordenado no IEL/UNICAMP pela Profa. E. Orlandi,inicialmente, e depois pelo Prof. Eduardo Guimares. O projeto, do qual participei no doutorado, resultou, entrediversas outras publicaes, no livro Histria das Idias Lingsticas, E. Orlandi (org.). Campinas. Ed. Pontes,2001, onde se encontra uma referncia geral das questes da lngua nacional a que me refiro.

  • permitiu notar como o seu entrelaamento funciona no processo deconstituio do sujeito de linguagem e da prtica discursiva, constituindo-se em desafio para o ensino de lngua e a escrita.

    A tenso entre a lngua nacional e a lngua materna, na histria e nasubjetividade

    Analisando o material registrado na prtica de linguagem dapopulao estudada (no Estado do Esprito Santo), foi possvelcircunscrever certos fenmenos lingstico-discursivos que indicam ofuncionamento atual, no discurso e, portanto, no sujeito de linguagem,de um batimento entre as lnguas encontradas na histria dessapopulao. Esse batimento se liga s memrias discursivas que seproduzem historicamente a respeito das lnguas no interior de umasociedade organizada como sociedade nacional, que como tal conheceufatos histricos da ordem da poltica lingstica tais como a injuno apraticar uma lngua X e a interdio para enunciar em outra lngua Y.

    Notamos que as lnguas que entram nesta tenso no seapresentam com estatutos quaisquer, mas sim so relacionadas a funesque lhes so scio-historicamente atribudas conforme a forma histricapredominante dessa mesma sociedade nacional. Estudamos como oPortugus, em seu estatuto de lngua nacional, foi oficial ecuidadosamente difundido nas regies de densa imigrao, e como aslnguas dos imigrantes foram e so interpretadas, de vrios modos: emdeterminado momento da histria brasileira, no contexto da segundaguerra, sob as ideologias nacionalistas do Estado Novo, elas foramentendidas como lnguas nacionais de outros pases presentes noterritrio brasileiro e como tal foram expressamente interditadas. Mas nasituao histrica mais ampla da imigrao, esta interpretao se mostracircunstanciada. No foi apenas nesse contexto histrico e em funo daguerra que as lnguas dos imigrantes foram silenciadas, j que se trata dahistria de uma sociedade nacional. Encontramos registros histricos, jno incio do sculo XX, de projetos especiais de educao feitos peloEstado para as reas de imigrao, lidando com o bilingismo e visando nacionalizao dos imigrantes estrangeiros no pas. Assim, se por umlado, as lnguas dos imigrantes foram de fato interpretadas como lnguasde outros Estados presentes no territrio brasileiro, constituindo supostaameaa, e sendo, como tal, interditadas vigorosamente no contexto da

  • segunda guerra, por outro lado este episdio serviu tambm com umargumento para a nacionalizao que j se encontrava em curso,saturando no imaginrio social a explicao da proibio das lnguasestrangeiras no pas. Toda a questo da diversidade interna da nao, deordem ideolgica, poltica, social, lingstica, etc. resultou aplainada sob oiderio da unidade nacional e do imaginrio que a voz da naopropagou, de ser uma nao lingisticamente homognea.

    Contudo, apesar da interdio oficial, durante certo tempo a lnguados imigrantes continuou sendo praticada nas comunidades e nosespaos privados, paralelamente lngua nacional do pas. Como ascampanhas de nacionalizao, propositadamente, se iniciaram pelainfncia, na escola primria, foi atravs das geraes mais jovens deestudantes que o portugus se instalou mais definitivamente na prtica delinguagem dessas comunidades. Na atualidade, conforme pudemosconstatar, a lngua dos imigrantes italianos, interditada no espao pblicoe silenciada na verso oficial da nacionalidade reapresenta-se de algumaforma na prtica de linguagem da populao mais velha. Mas em todas asidades encontram-se, menos ou mais audveis, certos elementos dosdialetos italianos.

    O modo de esquecimento dessa lngua apresenta, portanto,aspectos que nos interessa particularmente considerar. Trata-se de umapagamento em que a lngua silenciada deixa os seus vestgios, ainda naatualidade (passados cerca de 70 anos da interdio oficial). Soelementos lingstico-discursivos de ordem fontica, lexical, semntica,morfolgica, sinttica, alm de expresses e provrbios.

    Sem nos atermos descrio destes elementos, consideremos attulo de ilustrao apenas alguns traos morfolgicos em que se observaa confluncia de elementos, radicais e morfemas, ou certos segmentos depalavras, das duas lnguas em questo.

    Em puerinho, tem-se o morfema de diminutivo do portugus,inho, junto ao radical puer, presente tambm em puereto variante doitaliano povereto.

    O termo cinzolento substitui o nome da cor cinza ou cinzento, emuma inveno envolvendo humor, em que o elemento ol acrescentado palavra portuguesa deriva de outras palavras do italiano (esbrindolar,esbegolar, brontolar, brustolar), comuns entre os falantes. O acrscimodesse mesmo elemento ol encontrado, tambm com sentido ldico,em termos como negolcio (por negcio) e esfregolar (por esfregar).

  • Como se pode notar, o acrscimo deste elemento do dialeto a termos doportugus produz um jogo ldico na significao, ao desinstalar amorfologia prpria do portugus.

    Torna-se possvel portanto identificar que o que se produziu nahistria dos imigrantes, no interior da sociedade nacional brasileira, e quefunciona ainda hoje em sua prtica de linguagem com especial efeito nosprocessos de identificao, uma forte tenso entre a lngua nacional e alngua materna.

    Esta tenso se verifica empiricamente, na medida em que envolveum batimento entre lnguas diferentes, como o portugus e o italiano.Mas a tenso entre a lngua nacional e a lngua materna, na extenso quea entendemos, tambm se apresenta como uma questo terica maiscomplexa, envolvendo o prprio estatuto das lnguas - de lngua nacionale de lngua materna - tanto na histria quanto na constituio dasubjetividade que se apresenta na prtica de linguagem dos sujeitosenvolvidos. A lngua nacional e a lngua materna no se recobrem, nemem termos empricos, nem em termos de seu estatuto na prtica delinguagem, de tal modo que se torna impossvel ao sujeito transitar doestatuto de lngua materna ao de lngua nacional sem ter de mudar deestrutura de lngua.

    Em linhas gerais, entendemos que participam desta tenso asimagens ligadas lei, ao Estado, por um lado, e ao familiar, infncia, aocomunitrio (local) e, sobretudo, ao materno, por outro lado. O fato deque a lngua nacional tenha funcionado localmente na histria como umelemento jurdico a atestar a brasilidade do imigrante no contextoconturbado da guerra no deixa de ter um significado nesse processo, namedida em que pressionou a nacionalizao do imigrante. Por outro lado,em seu prprio estatuto, uma lngua nacional se constitui regularmentecomo um importante elemento atravs do qual o Estado Nacional realizaseu ideal de unidade, propagando a idia de unidade lingstica erealizando a homogeneizao tanto da lngua quanto da populao, nainstalao de uma forma de cidadania que tem a propriedade de seapresentar nas formas da universalidade (cf. Gadet e Pcheux, 2004). Istofoi feito, neste caso, como se disse, primeiramente atravs de campanhaspontuais de nacionalizao do ensino e da fiscalizao jurdica cotidiana(com decretos-leis, prises, etc.) da prtica da lngua por imigrantes, tantono espao pblico quanto no privado, e posteriormente atravs damanuteno das formas da lngua nacional pela escola.

  • Por outro lado, participa dessa tenso ainda o fato de que as lnguasmaternas dos imigrantes tenham sido silenciadas na prtica de linguagemcomo elemento juridicamente estranho ordem da nacionalidade, isto ,daquilo que legitimado por uma sociedade nacional. Para se tornarsujeito jurdico, cidado, dizem os autores acima mencionados, necessrio, nessa forma de Estado, abrir mo dos particularismos e daslnguas maternas e, acrescentamos, das memrias chamadas locais.

    Da perspectiva de quem trabalha com o discurso, bastantesignificativo considerar que as lnguas dos imigrantes que foramsilenciadas pelo Estado na histria nacional so tambm suas lnguasmaternas. E desse ponto de vista tambm bastante significativo que adespeito dessa interdio expressa e localizada, elas se tenham mantidode algum modo na prtica oral de linguagem, seja de maneira maisintegral ou de modo mais difuso, em que memria e esquecimento semesclam.

    Nota-se, portanto, que a tenso entre a lngua nacional e a lnguamaterna a que nos referimos se produz na histria, sustentada peloEstado, em um momento importante de sua consolidao como nao, eque, vindo dessa exterioridade, tal tenso atinge a constituio dalinguagem e do sujeito, em seus processos de identificao em relao lngua. Trata-se de uma tenso que se apresenta no processo histrico desubjetivao do sujeito imigrante, processo ao longo do qual esse sujeitoestrangeiro vai se tornando brasileiro.

    Nesta perspectiva, estudando a histria nacional e o processo desubjetivao desse sujeito imigrante relativamente lngua, venhoprocurando compreender as relaes entre lngua e memria, quanto sua permanncia e ao seu esquecimento, relaes que se condensam naexpresso memria da lngua. Como a lngua silenciada dosimigrantes se encontra na memria histrica e nos processos deidentificao em que o sujeito se inscreve?

    Nesta direo, os vestgios de dialetos italianos foram consideradosem nossa pesquisa como traos de retorno no sujeito da memria dalngua apagada. So tambm traos da memria histrica, quepermanecem na lngua. Estes traos de memria da lngua apagadaconstituem tambm, ao lado da lngua nacional, a linguagem e o sujeitode linguagem.

    Considerando que sujeito e sentido se constituem simultaneamente(Orlandi, 1996); que a lngua materna tem funo estruturante no sujeito,

  • como instrumento e como matria dessa estruturao (Revuz, 1998),nosso interesse se dirige a analisar como ento este silenciamento dalngua opera no sujeito e atinge a sua prtica de linguagem, tanto quantoas imagens de si, seu senso de identidade. A relao entre o sujeito e aslnguas que participam de sua histria passa a integrar o foco dasquestes que nos conduzem nessa investigao. Um ponto nodal destaquesto consiste do fato de que, como h uma distino e mesmo umaciso entre a materialidade e o estatuto da lngua nacional e da lnguamaterna, os sujeitos nem sempre passam de uma a outra com anaturalidade necessria aprendizagem da escrita na escola.

    Nessa perspectiva, o que se observa que a lngua materna dosimigrantes, apagada na histria em sua tenso com a lngua nacional,guarda um lugar na constituio do sujeito de linguagem, como lnguaapagada mesmo, e a partir deste lugar, no sujeito e na histria, produzos seus efeitos de sentido.

    Estes efeitos so significativos na prtica discursiva, na medida emque envolvem o sujeito nos seus processos de identificao com relao lngua. Em outro trabalho (Payer, 2003), com a ateno voltada para osprocessos de identificao do sujeito relativamente lngua materna, foipossvel notar que: a) o riso acompanha o aparecimento, involuntrio ouno, de elementos dos dialetos italianos, riso que na perspectivabergsoniana interpretamos como manifestao corporal do equvocoque envolve a relao com a lngua que no se fala mais, mas quereaparece como que por tropeo na linguagem; b) o modo como ossujeitos se entregam sinergia da lngua materna no gesto corporal decantar antigas canes nos dialetos dos seus antepassados; c) a hiper-correo da lngua nacional, na prtica da linguagem desse contexto, porparte de falantes cujos pais falam uma lngua repleta de traos de italiano,e d) a denegao de traos da lngua materna mesmo quando se verificaque eles esto presentes.

    interessante notar, com relao memria histrica que seapresenta na lngua que, dada a natureza desta materialidade da memria na lngua - , nem sempre os sujeitos representam como sendo deoutra lngua certos elementos de lngua que eles falam e que se podereconhecer como estranhos ao portugus. Isto porque para eles esteselementos so constitutivos de sua linguagem: so tidos como evidnciasda prpria lngua. Esta uma particularidade do estudo da memriaatravs da lngua em que vale a pena investir, no meu modo de entender,

  • a fim de que se consiga formular, enunciar os sentidos que foramsilenciados na histria. Esta , pois, uma direo que cabe ainda explorarnos trabalhos da escola na lida com a lngua, com a escrita, conformevamos tratar mais adiante.

    Tentando ultrapassar os mitos compensatrios presentes nasnoes de lngua de origem, de lngua materna como valor absoluto, bemcomo o culto s chamadas lnguas das culturas silenciadas, procura-selevar em conta o papel da lngua materna, sim, mas ao lado daquele dalngua nacional, a fim de compreender como a lngua materna e a lnguanacional jogam entre si na prtica de linguagem dos sujeitos e, portanto,como desafiam, nesse jogo, questo do ensino da lngua nacional e aaprendizagem da escrita. Pois se verdade que a lngua materna constituio sujeito, no menos verdadeiro que a lngua nacional tambm oconstitui, com igual ou maior fora de interpelao.

    Alm disso, outra considerao a que se chega com as anlises, eque torna as questes tericas complexas, que a lngua materna atualdos sujeitos estudados formada de uma materialidade lingstica que constituda por elementos de mais de uma lngua natural.

    Esta constatao contribui para a colocao em causa da noo delngua materna como alguma coisa que coincidiria com a lngua empricafalada pela me (Cf. Revuz, 1998 e Serrani, 1997). Se a lngua maternatem uma funo estruturante fundamental no sujeito - tanto comoinstrumento quanto como matria dessa estruturao, como tal ela pode,por outro lado, constituir-se a partir de materialidades lingsticas de maisde uma lngua especfica (Payer, 1999; Castro, 1998). Isto sem deixar deconsiderar, ainda, que no Brasil o prprio portugus, lngua nacional, vaiadquirindo formas outras, que vo constituindo uma lngua brasileira (cf.Orlandi, 2001).

    Nesse sentido, procurando encaminhar essas questes para umencerramento provisrio em nossa pesquisa, pensando as lnguasrelativamente noo de memria e ao seu apagamento, pudemoscompreender tanto o estatuto de lngua nacional quanto o de lnguamaterna como dimenses distintas da linguagem, que so da ordem damemria. A lngua materna funciona, na situao analisada, comomemria histrica de uma lngua apagada que se mantm, mesmo difusa,e que retorna na prtica de linguagem, participando, desse modo, daconstituio do sujeito da linguagem. Do mesmo modo, funciona naprtica discursiva a imagem de uma lngua nacional, no sentido da

  • memria de uma lngua cultivada pelo Estado Nacional, no sentido deque falam Gadet e Pcheux (2004) e Guimares (2005), como lngua apartir da qual o Estado administra as demais lnguas presentes em seuterritrio.

    Por outro lado, as anlises realizadas permitem observar que o fatode ter havido mais de uma lngua, com seus valores prprios, na histriada constituio do sujeito, bem como o fato de ter havido umsilenciamento das lnguas dos imigrantes bem como de outras lnguas -afetam o sujeito em seu modo de se inscrever na prtica de linguagem.Se, conforme se considera em Anlise de Discurso, o sujeito e o sentido(pela lngua) se constituem simultaneamente, participa desta relao coma linguagem tanto a memria quanto o esquecimento de lnguas queestiveram presentes na histria.

    Memria da lngua e escrita

    As observaes anteriores no so sem conseqncias para oensino de lnguas e nem para a prtica de linguagem, incluindo a escrita na oralidade, de alguma forma, estes elementos tm tido espao,legitimamente ou no, com ou sem um senso de transgresso aacompanh-los.

    Compreendida como uma dimenso da linguagem que da ordemda memria, penso que a lngua materna pode (e deve) ser consideradana reflexo e no ensino da expresso escrita, ao lado da lngua nacional.Porque aquilo de que se abre mo, na escola, para escrever em lnguanacional, faz falta na prpria escrita, na medida em que faz falta nosujeito. Optar pelas formas da lngua nacional ou por aquelas da lnguamaterna, em tal situao em que jogam fortemente estas duas dimensesda linguagem, significaria produzir uma falha. Como vestgios de lnguasapagadas em nossa histria, os traos de memria de outras lnguaspresentes no portugus brasileiro podem ser considerados, a partir deseus aspectos simblico e histrico, como parte tanto da memriahistrica da sociedade quanto dos processos de identificao do sujeitofalante.

    Lidar com estes vestgios ao invs de ignor-los e de prolongar oseu silenciamento pode levar a um modo mais atento de se considerarno s essa linguagem que a se manifesta, mas tambm o prprio sujeitode linguagem. Para alm das costumeiras vises estereotipadas dos

  • falantes, deparamo-nos, nos fatos de linguagem analisados, comimportantes aspectos do sujeito brasileiro, em sua constituio histricaprpria como sujeito de linguagem.

    O que gostaria de precisar e de ressaltar, portanto, diz respeito aomodo de se olhar para a presena desses elementos lingsticos, comoelementos histrico-discursivos, da ordem da memria histrica, diferena de entend-los simplesmente como regionalismos ou dialetosregionais. Trabalhando a partir da Anlise de Discurso com aspectossimblicos que envolvem o processo de constituio da relaosujeito/lngua, queremos ressaltar que esta relao, dada a histria, umarelao tensa e delicada, de aparncia subjetiva (familiar, ntima), mas quese produz na realidade scio-histrica, que pode (e deve) ser consideradacom acuidade maior do que temos testemunhado em nossa histria,assim como em nosso saber metalingstico2.

    O que se inscreve com esta discusso algo relativo ao direito memria, o direito ao passado no que ele tange ao senso de identidade;direito que, como observa R. Robin (1995), as sociedades desenvolvidasno s respeitam e provem, mas tambm tomam como critrio para assuas inovaes e desenvolvimentos.

    O fato de que nos Estados Nacionais uma nica lngua seja elevada categoria de lngua nacional, e o fato de que em nossas sociedadesnacionais a escola tenha sido lugar por excelncia de difuso destamesma lngua nacional, sobretudo atravs da escrita, produziramhistoricamente uma relao imaginria naturalizada, quase termo-a-termo, entre a lngua nacional e a constituio do sujeito. Sou brasileiro:falo portugus. De tal modo isso se d que a presena efetiva dediversas outras lnguas que no o portugus, mesmo fragmentadas (e dasdiversas memrias discursivo/culturais que as acompanham), no tmtido, via de regra, um tratamento considervel seja no ensino, seja nasprticas de linguagem.

    A partir da compreenso da relao contraditria que analisamosentre a lngua materna e a lngua nacional, na situao de imigrao, econsiderando o papel da memria no modo de coexistncia tensa dessaslnguas, as importantes questes que vm se colocando sobre o papel dalngua, em geral, e da lngua materna, em particular, na constituio dosujeito, adquirem certas nuances que preciso considerar. Pois, como

    2 Sobre as pesquisas e reformulaes no modo de considerar teoricamente a diversidade lingstica na histriabrasileira, ver, entre outras obras, a revista Cincia e Cultura, no. 2, ano 57 (abril-junho de 2005), que tem comotema central lnguas do Brasil, sob a organizao do Prof. Eduardo Guimares.

  • dissemos, se lngua materna constitui o sujeito, como se tem afirmado,no menos verdade que a lngua nacional tambm o constitui.

    Para a considerao destas questes, no estudo da relao entre osujeito e as lnguas, a noo de memria pode contribuir de modosignificativo, pois em uma histria como a nossa tanto a memria deuma lngua nacional quanto a memria de lnguas maternas outras (nessecaso, de imigrantes) tm participado da constituio do sujeito, no tantocomo lnguas independentes, mas antes como dimenses distintas dalinguagem, como discursos.

    Reconhecer, pois, um estatuto de memria histrica para os traoslingsticos que em nossa sociedade se diferenciam das formas da lnguanacional pode contribuir, na relao de ensino, para suturar certosterritrios simblicos cindidos, mal costurados nas subjetividades, pelarelao com a lngua, l onde as interdies produzidas na histriafuncionam produzindo o efeito do que seria o mais ntimo, o maissubterrneo, agindo como elementos constrangedores prtica delinguagem de um modo geral, e escrita, em especial. No mais osilenciamento, no mais deixar de dizer, mas deixar reverberar espaossemnticos mltiplos e acolher diversos universos simblicos, lnguas etempos histricos entrecruzados que constituem sentidos aos sujeitos dalinguagem.

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