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Livro sobre pesquisas na área de letras e linguística

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  • BIBLIOTECA DIGITAL DO NETLLI VOLUME 5

    Edson Soares Martins e Francisco de Freitas Leite

    Lngua, Literatura e Ensino: pesquisa acadmica no DLL/URCA

    CRATO - CE 2010

  • LINGUA, LITERATURA E ENSINO MARTINS & LEITE (ORGS)

    ESTE LIVRO FOI PUBLICADO EM FORMATO FSICO, COM O ISBN 978-85-61375-78-2. A PAGINAO DESTE

    ARQUIVO NO CORRESPONDE AO ORIGINAL IMPRESSO.

    ESTA EDIO FOI PREPARADA PARA PUBLICAO EM FORMATO PDF, PARA DISPONIBILIZAO ONLINE A

    PARTIR DA PGINA DO NETLLI/DGP-CNPq, COM FINS ESTRITAMENTE DIDTICOS. UMA EDIO

    ELETRNICA, COM NOVO ISBN EST EM CURSO E SER PUBLICADA NA BIBLIOTECA DIGITAL DO NETLLI, COM

    ACESSO ABERTO E GRATUITO.

  • COMPOSIO DO NETLLI

    PESQUISADORES EDSON SOARES MARTINS

    FRANCISCO DE FREITAS LEITE HARLON HOMEM DE LACERDA SOUSA

    NEWTON DE CASTRO PONTES RIDALVO FLIX DE ARAJO

    PESQUISADORES-ORIENTANDOS

    ANA GLEYSCE BRITO EDSON NASCIMENTO

    EVANDRO CESAR IGOR ROSENDO JNATAS CRUZ

    JOSERLNDIO COSTA MISAEL BRITO NDIA PINHO

    NILDETE MORAES PATRCIA GOMES SYBELLE DUARTE

    VLDIA XAVIER YASMINE MORAES

  • BIBLIOTECA DIGITAL DO NETLLI VOLUME 5

    Sumrio

    APRESENTAO ............................................ 7 Maria Eneida Feitosa

    A VARIAO DE ESTILO NAS CARTAS DO PADRE CCERO........................................ 9 Francisco de Freitas Leite

    A TRAIO ESTRUTURAL ...................... 31 Harlon Homem de Lacerda Sousa

    DICIONRIO E ENSINO DE LATIM ...... 67 Francisco Edmar Cialdine Arruda

    O SUJEITO, O ESPELHO E O POLVILHO: REFLEXES SOBRE O DISCURSO E O PODER EM SUBSTNCIA DE G. ROSA E O ESPELHO DE MACHADO DE ASSIS ............................................................................ 87 Edson Soares Martins

    SOBRE OS AUTORES .................................122

  • LINGUA, LITERATURA E ENSINO MARTINS & LEITE (ORGS)

  • Apresentao O conjunto de temas que o leitor encontrar neste livro bastante representativo da variedade das reas de interesse de nossos colegas do Departamento de Lnguas e Literaturas da Universidade Regional do Cariri.

    H aqui dois trabalhos voltados para problemas da reflexo acadmica sobre a lngua. O estudo filolgico-epistologrfico do professor Francisco de Freitas, que o jovem decano da Lngua Latina no DLL, j desdobramento do trabalho de mestrado concludo no Programa de Ps-graduao em Lingstica da UFPB. J o captulo de Francisco Edmar Cialdine fruto de sua formao na pesquisa em Lexicografia na UECE, rea do mestrado deste nosso outro jovem professor de Latim.

    Nos domnios da literatura, temos o prazer de conhecer outros dois trabalhos. O estudo de Harlon de Lacerda sobre Calabar: o elogio da traio (de Chico Buarque e Ruy Guerra) pertence ao campo da pesquisa em dramaturgia. Nesta rea o jovem professor concluiu seu mestrado no PPGL da UFPB. O outro trabalho, de Edson Soares Martins, foi, originalmente, concebido como ensaio quando seu autor cumpria a integralizao dos crditos exigidos

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    para o doutorado recentemente concludo, tambm no PPGL/UFPB.

    Este livro , tambm, representativo de algo mais que a saudvel heterogenia da formao de nosso corpo docente. representativo, principalmente, do crescente e contnuo fortalecimento da pesquisa em nossa atividade profissional. Das atividades de iniciao cientfica capacitao em cursos/programas de mestrado e doutorado, os professores do DLL vm afirmando seu amadurecimento como corpo coletivo.

    Ensinar , assim, cada vez mais, aprender. E auxiliar a aprendizagem.

    Senti-me honrada com o convite para apresentar esta publicao. Mas tambm sinto, e confesso, a emoo de estar presente em uma hora decisiva e feliz, no ano que o Curso de Letras faz 50 anos: a hora em que nossos trabalhos convergem para um registro importante de nosso crescimento profissional.

    Boa leitura!

    Maria Eneida Feitosa Professora de Teoria da Literatura DLL/URCA

  • A VARIAO DE ESTILO NAS CARTAS DO PADRE CCERO

    por Francisco de Freitas Leite 1

    CONSIDERAES PRELIMINARES

    No nenhuma novidade dizer que uma lngua no um bloco homogneo, imutvel e invarivel, no entanto muitos professores ainda apresentam dificuldades em levar uma concepo de lngua varivel e que envolva o social e o cultural para suas aulas.

    Pretendemos com este trabalho contribuir de alguma forma para o fomento da possibilidade de se pesquisar a lngua viva,

    falada por pessoas reais, em situaes reais de usos de uma determinada poca e lugar, a fim de, tambm, chamar a ateno da escola para uma outra possibilidade que no seja somente

    1 Mestre em Lingustica pela UFPB e professor da Graduao e da Ps-graduao lato sensu da URCA. E-mail: [email protected].

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    aquela tradicional dos manuais de gramtica normativa de se ensinar lnguas. O que almejamos algo como o proposto por Bagno (2002, p. 1384) ao tratar da pesquisa lingustica como parte de uma prtica que deveria ser corriqueira para uma educao lingustica na escola.

    O estilo de fala um dos alvos no estudo da variao sociolingustica. E o objetivo deste trabalho justamente investigar a relao

    existente entre fatores extralingusticos e a variao de estilo da linguagem nas cartas do Padre Ccero, seguindo o princpio bsico de que, segundo Monteiro (2002, p. 68), nenhum falante utiliza a lngua da mesma forma em todas as ocasies, o que implica a escolha entre vrias possibilidades de expresso.

    Nossa ateno estar voltada, pois, a detectar, dentro daquilo que se chama universo extralingustico, o que mais favorece a ocorrncia de um ou outro estilo nas cartas d o Padre Ccero. Seguiremos ora as orientaes da sociolingustica variacionista, ora as contribuies da sociolingustica interacionista.

    O CORPUS

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    De um total de 242 cartas escritas pelo Padre Ccero e que se encontram transcritas em Silva (1982), o corpus constitudo de 12 cartas que foram selecionadas segundo os seguintes critrios e assim distribudas:

    4 cartas considerados os interlocutores, sendo 2 cartas dirigidas a

    autoridades religiosas e outras 2 cartas dirigidas a familiares; 4 cartas considerados os assuntos tratados, sendo 2 correspondncias polticas e outras 2 cartas que tratam de assuntos pessoais; 4 cartas considerado o estado emocional do Padre Ccero, sendo 2 cartas envolvendo questes religiosas e outras 2 cartas envolvendo negcios. So cartas que datam de 1892 a 1932,

    correspondendo, portanto, a uma sincronia de 30 anos.

    OS ESTILOS E A METODOLOGIA DA PESQUISA

    Para a consecuo do objetivo de observar a variao de estilo e a sua relao com condicionadores extralingusticos (ou

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    socioculturais), determinamos uma metodologia de pesquisa que pode ser resumida da seguinte forma:

    (I) seleo de 12 (doze) cartas conforme

    critrios e distribuio supracitados. (II) delimitao de 3 estilos a serem

    considerados: Monitorado

    Semimonitorado Vernacular

    (III) escolha de 3 condicionadores

    extralingusticos do estilo, cada um com 3 padres diferentes:

    Destinatrio padres: 1 (status familiar); 2 (mesmo status); 3 (status superior); Assunto padres: 1 (informal); 2 (mais ou menos formal); 3 (formal); Estado emocional padres: 1 (tenso); 2 (mais ou menos tenso); 3 (normal).

    (IV) determinao, a priori, de 6 (seis) pontos da linguagem das cartas, denominadas observveis lingusticas do estilo:

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    Conjunes Pronomes de tratamento Lxico Colocao pronominal Coordenao/subordinao das

    oraes Voz ativa/voz passiva

    Em cada carta, foi observado: a frequncia e o tipo de conjunes usadas; quais os pronomes de tratamento usados e em que frequncia; a escolha do lxico se mais comum ou se mais culto, chegando ao uso de estrangeirismos; a ocorrncia de nclises e de prclises em seu uso padro e no padro; a predominncia de oraes coordenadas ou subordinadas; e, por fim, a predominncia de oraes em voz ativa ou passiva.

    Ao final da anlise das cartas, percebemos que deveramos desprezar as observveis lingusticas: conjunes, coordenao/subordinao das oraes e voz ativa/voz passiva, visto no apresentarem relevncia no que se refere diferena de estilos nas cartas, ou seja, praticamente em todas as

    cartas, h predominncia de oraes subordinadas e na voz ativa, alm de um uso quase que uniforme das mesmas conjunes.

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    Portanto, as observveis lingusticas que se mostraram produtivas sendo aquelas que foram mantidas para a determinao do estilo foram: pronomes de tratamento, lxico e colocao pronominal.

    Cada carta recebeu uma ficha contendo: o nmero da carta (01 a 18), a(s) pgina(s) em que est localizada no livro de SILVA (1982), indicao do local e data conforme consta no original, alm de uma tabela como a (01)

    reproduzida abaixo, a qual era preenchida com os comentrios acerca dos destinatrios, d o assunto e do estado emocional. A partir desses comentrios procedia-se classificao do padro em 1, 2 ou 3: CARTA 01 p. 12 LOCAL E DATA: Crato, 22 de abril de 1892.

    Destinatrio Assunto Estado

    emocional

    Comentr

    ios

    Bispo do Cear Jos Vieira

    Informes, pedidos de

    desculpa, respostas.

    s vsperas

    da suspenso

    das ordens

    Padres 3 3 2

    Tabela 01

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    Feita esta classificao preliminar, procedemos s leituras da carta. Em cada leitura, 6 (seis) leituras para cada carta, anotamos as informaes sobre as observveis lingusticas, para depois classificar o estilo da carta em: monitorado, semimonitorado ou vernacular.

    Somente aps executar este trabalho com as 12 cartas, passamos a relacionar o estilo de cada carta com os condicionadores

    extralingusticos para procedermos s concluses sobre a correlao existente entre estes e aquele.

    A NOMENCLATURA

    Alguns termos usados so neologismos criados exclusivamente para esta pesquisa, outros termos tm acepes distintas que merecem explicao. Tratemos, pois, da nomenclatura usada neste trabalho.

    OS TRS ESTILOS

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    Como j foi dito, consideramos trs estilos nas cartas: monitorado, semimonitorado e vernacular.

    O estilo monitorado corresponde a uma linguagem mais cuidada, com ateno s normas da lngua padro. O termo monitorado tem essa acepo que corresponde quela usada por Bortoni-Ricardo (2004, p. 26).

    Semimonitorado um neologismo que se refere a um grau de monitorao intermedirio

    do estilo entre o mais monitorado e o menos monitorado.

    Vernacular outro neologismo que tem uma acepo aproximada com o sentido usado por Labov (apud CHAGAS, 2002, p. 148) para o termo vernculo, ou seja, um tipo de construo que os falantes usam enquanto esto conversando vontade e sem esforo consciente para falar corretamente. O estilo vernacular, obviamente, no se refere linguagem oral espontnea, mas maneira menos monitorada de estilo, isto , maneira mais espontnea da linguagem escrita que se aproxima da oralidade, com ocorrncia de diticos (que s o contexto familiar reconhece), lxico regional ou popular, sintaxe simplificada e tratamento no cerimonioso.

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    AS OBSERVVEIS LINGUSTICAS

    DETERMINADORAS DO ESTILO

    Para que fossem determinados os estilos

    predominantes em cada carta, optamos por um critrio tcnico e objetivo a fim de que no nos perdssemos por uma ateno demasiada em uma caracterstica lingustica e menos em outras, o que poderia comprometer a objetividade da pesquisa. Para tanto, selecionamos, a priori, como j foi mencionado, 6 (seis) pontos da linguagem das cartas, a que denominamos observveis lingusticas determinadoras do estilo. Dessas 6 (seis) observveis, apenas 3 (trs) delas se mostraram

    produtivas e relevantes para o objetivo da pesquisa: os pronomes de tratamento, o lxico e a colocao pronominal.

    Partimos ento do princpio de que a classificao dos estilos seria da seguinte forma:

    Estilo monitorado: a linguagem

    revela um trato cerimonioso denotado pelos pronomes de tratamento; um lxico culto, formal ou com ocorrncia de latinismos; e

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    predominncia de nclises formais e prclises previstas na lngua padro.

    Estilo semimonitorado: a

    linguagem apresenta-se como no cerimonioso, com o uso do pronome de tratamento voc; um lxico variando do culto ao comum; e predominncia de nclises formais e prclises no previstas na lngua padro.

    Estilo vernacular: a linguagem

    apresenta-se como no cerimonioso, com o uso do pronome de tratamento voc; um lxico predominantemente comum e regional; e pouca ou nenhuma ocorrncia de nclises (ou com ocorrncias de nclises no padro), mas com predominncia de prclises, inclusive as no previstas na lngua padro.

    Outras observveis lingusticas poderiam ter sido escolhidas para o trabalho de determinao do estilo das cartas, mas optamos por essas trs, acreditando que podemos definir um estilo observando o uso dos pronomes de tratamento, a escolha lexical e a ateno dada colocao dos pronomes oblquos tonos,

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    elemento da sintaxe que se revelou, na execuo a pesquisa, muito sensvel a variaes estilsticas e , portanto, imprescindvel determinao do estilo utilizado.

    OS CONDICIONADORES EXTRALINGUSTICOS DO ESTILO

    A variao estilstica comum a todos os falantes. Usando palavras de Monteiro (2002, p. 70): no existem falantes de estilo nico. E essa variao estilstica sofre forte presso d o contexto. Isto quer dizer que o estilo depende de

    com quem se fala, em que lugar, sobre o que se fala, etc.

    Para o caso especfico do gnero discursivo carta, desprezamos o lugar (por terem sido todas escritas no Juazeiro ou em cidades muito prximas), a idade dos destinatrios (por serem todos adultos), entre outros elementos extralingusticos, optando por observar a relao do estilo predominante nas cartas com os condicionadores extralingusticos: destinatrio, assunto e estado emocional.

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    OS PADRES

    Distinguimos para cada um dos condicionadores extralingusticos do estilo trs

    padres, atravs dos quais classificamos cada carta a fim de procedermos identificao daqueles padres que favoreciam determinados estilos.

    Explicitemos cada padro:

    Para o condicionador extralingustico destinatrio , temos os seguintes padres:

    1 (status familiar): quando o destinatrio irm, me, afilhada, amigo ou compadre ntimos;

    2 (mesmo status): quando o destinatrio padre, militar, compadre ou amigo(a) de hierarquia

    social idntica; 3 (status superior): quando o

    destinatrio monsenhor, bispo ou militar de hierarquia social superior;

    Para o condicionador extralingustico

    assunto, temos os seguintes padres:

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    1 (informal): quando o assunto trata de informes, notcia , negcio ou assuntos pessoais informais;

    2 (mais ou menos formal): quando o assunto trata de notcias, negcios, relatos, desabafos ou solicitaes com certo tom de formalidade;

    3 (formal): quando o assunto trata de respostas, justificativas, comentrio e questes religiosas com formalidades;

    Para o condicionador extralingustico estado emocional , temos os seguintes padres:

    1 (tenso): quando se revela tenso psicolgica ou emocional, em geral, no perodo de questes religiosas;

    2 (mais ou menos tenso): quando se revela leve tenso em perodos conturbados da vida;

    3 (normal): quando se revela tranquilidade psicolgica ou emocional.

    A VARIAO DE ESTILOS E OS

    CONDICIONADORES EXTRALINGUSTICOS

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    Aps minuciosas leituras seis leituras para cada carta em que eram quantificadas as ocorrncias das observveis lingusticas, obtivemos as seguintes classificaes do estilo das cartas:

    Carta 01 monitorado Carta 02 monitorado Carta 03 vernacular Carta 04 vernacular Carta 05 monitorado

    Carta 06 semimonitorado Carta 07 vernacular Carta 08 semimonitorado Carta 09 semimonitorado Carta 10 semimonitorado Carta 11 semimonitorado Carta 12 vernacular

    So, portanto, 3 cartas em estilo

    monitorado, 5 em estilo semimonitorado e 4 em estilo vernacular.

    O DESTINATRIO

    As trs cartas em estilo monitorado tm o

    destinatrio de padro 3. Isso sugere que o status superior do destinatrio tem grande peso na determinao do estilo monitorado.

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    As cinco cartas em estilo semimonitorado tm o destinatrio de padro 2. Isso sugere que o destinatrio de mesmo status social favorece o uso do estilo semimonitorado.

    As quatro cartas em estilo vernacular tm o destinatrio de padro 1. Isso sugere que o status familiar do destinatrio propende ao estilo vernacular.

    A tabela 02 apresenta em nmeros percentuais as ocorrncias de cada um dos

    padres dos destinatrios em cartas dos trs estilos: Destinatrio

    Padres 1 2 3

    Cartas em estilo

    monitorado

    0% 0% 100%

    Cartas em estilo semimonitorado

    0% 100% 0%

    Cartas em estilo

    vernacular

    100% 0% 0%

    Tabela 02

    Numa anlise superficial, poder-se-ia dizer que a questo da determinao do estilo das cartas seria resolvida somente se observando o destinatrio, mas preferimos dizer sugere a, por exemplo, conclui, visto que os

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    outros condicionadores extralingusticos tm outras informaes a serem consideradas.

    O ASSUNTO TRATADO

    Das trs cartas em estilo monitorado, duas tm o assunto de padro 3 e uma tem o assunto de padro 2.

    Das cinco cartas em estilo semimonitorado, quatro tm o assunto de padro 2 e uma tem o assunto de padro 3.

    Das quatro cartas em estilo vernacular, duas tm o assunto de padro 2 e duas tm o assunto de padro 1.

    A tabela 03 apresenta em nmeros percentuais as ocorrncias de cada um dos padres do assunto em cartas dos trs estilos: Assunto

    Padres

    1 2 3

    Cartas em estilo monitorado

    0% 33,33% 66,66%

    Cartas em estilo

    semimonitorado

    0% 80% 20%

    Cartas em estilo vernacular

    50% 50% 0%

    Tabela 03

  • LINGUA, LITERATURA E ENSINO MARTINS & LEITE (ORGS)

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    Isso demonstra que o estilo monitorado ocorre mais no padro 3 do assunto tratado, podendo tambm ocorrer no padro 2, mas nunca no padro 1. J o estilo semimonitorado ocorre muito mais no padro 2 do assunto tratado, podendo tambm ocorrer no padro 3, mas nunca no padro 1. Enquanto que o estilo vernacular oscila entre os padres 1 e 2 do assunto tratado, jamais ocorrendo no padro 3.

    O ESTADO EMOCIONAL

    Das trs cartas em estilo monitorado,

    duas tm o estado emocional de padro 2 e uma de padro 3.

    Das cinco cartas em estilo semimonitorado, trs tm o estado emocional de padro 3, uma de padro 2 e uma de padro 1.

    Das quatro cartas em estilo vernacular, trs tm o estado emocional de padro 3 e uma de padro 2.

    A tabela 04 apresenta em nmeros percentuais as ocorrncias de cada um dos padres do estado emocional em cartas dos trs estilos:

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    Estado emocional

    Padres 1 2 3

    Cartas em estilo

    monitorado

    0% 66,66% 33,33%

    Cartas em estilo semimonitorado

    20% 20% 60%

    Cartas em estilo

    vernacular

    0% 25% 75%

    Tabela 04 No h ocorrncias de padro 1 do estado

    emocional nos estilos monitorado e vernacular, apenas uma ocorrncia de padro 1 em estilo semimonitorado.

    Os dados revelam que o padro 3 do estado emocional pode favorecer os trs estilos, havendo, porm, uma tendncia de favorecer

    mais os estilos vernacular e semimonitorado. O padro 2 do estado emocional pode

    favorecer os trs estilo, havendo, no entanto, uma tendncia de favorecer mais o estilo monitorado que os outros dois estilos.

    CONCLUSES

    Podemos elaborar uma regra para a determinao do estilo das cartas do Padre

  • LINGUA, LITERATURA E ENSINO MARTINS & LEITE (ORGS)

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    Ccero, usando a seguinte regra numrica conforme tabela 06:

    condicionadores

    estilos

    Destinatrio

    padro

    Assunto

    padro

    Estado emocional

    padro

    Valores

    Monitorado 3 3 (2) 2 (3) 7 a 9

    Semimonitorado 2 2 (3) 3 (1 ou 2) 5 a 8

    Vernacular 1 1 (2) 3 (2) 4 a 6

    Tabela 06

    Considerando-se que esto entre parnteses os nmeros alternativos, temos:

    A sequncia 3 3 (2) 2 (3), ou a soma desses nmeros dando de 7 a 9 tem-se o estilo monitorado (aumentando a probabilidade em ordem crescente).

    A sequncia 2 2 (3) 3 (1 ou 2), ou a soma desses nmeros dando de 5 a 8 tem-se o estilo semimonitorado (com maior

    probabilidade dos valores 6 e 7). A sequncia 1 1 (2) 3 (2), ou a soma

    desses nmeros dando de 4 a 6 tem-se o estilo vernacular (aumentando a probabilidade em ordem decrescente).

    Podemos concluir dizendo que, pelo menos no recorte sincrnico em que se situa este trabalho, sabendo (i) o status do destinatrio, (ii) o grau de formalidade da carta

  • BIBLIOTECA DIGITAL DO NETLLI VOLUME 5

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    e (iii) o estado emocional em que o Padre Ccero estava na poca em que escreveu a carta, com grande probabilidade de acerto, ao se aplicar a regra, sabe-se o estilo que predomina na carta.

    Isso comprova estreita ligao existente entre fatores extralingusticos (ou socioculturais) e o estilo da linguagem predominante nas cartas.

    E, ainda, que o status do destinatrio o fator extralingustico que mais pesa na escolha

    do estilo, seguido, em hierarquia decrescente, pelo grau de formalidade do assunto e pelo estado emocional de quem escreve. REFERNCIAS CHAGAS, Paulo. A mudana lingustica. In: FIORIN, J. L. (org.). Introduo lingustica I.

    Objetos tericos. So Paulo: Contexto, 2002. p. 141-163. BAGNO, M.; STUBBS, M.; GAGN, G. Lngua Materna: letramento, variao e ensino. So Paulo: Parbola, 2002. p. 13-84. BLOM, J.P. & GUMPERZ, J. J. O significado social

    na estrutura lingustica: alternncia de cdigo na Noruega. In: RIBEIRO, Branca T. & GARCEZ, Pedro M. Sociolingustica Interacional: antropologia, lingustica e sociologia em anlis e

  • LINGUA, LITERATURA E ENSINO MARTINS & LEITE (ORGS)

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    do discurso. Porto Alegre: AGE, 1998. p. 31-5. BORTONI-RICARDO, Stella Maris. A contribuio da Sociolingustica para o desenvolvimento da Educao: dos anos 70 aos anos 90. In:

    Fotografias Sociolingusticas II, Braslia: Universidade de Braslia (no prelo), 1991. __________ . A variao monitorada em sala de aula. Universidade de Braslia, a aparecer em Polifonia, UFMT, 1994.

    __________ . O debate sobre a aplicao da Sociolingustica Educao In: Brando, S. & Indiani, M. (Orgs). Pesquisa e ensino da Lngua: Contribuies da Sociolingustica. Anais do II Simpsio do GT da Sociolingustica da ANPOLL, 1996. p. 17-30.

    __________ . Educao em Lngua Materna: a sociolingustica na sala de aula. So Paulo: Parbola, 2004. MOLLICA, M. C . de M. & NASCIMENTO, R. A. d o N. Monitoramento estilstico entre ns e a gente na escola. In: GORSKI, E. M. & COELHO, I .

    L. (Orgs.). Sociolingustica e ensino: contribuies para a formao do professor de lngua. Florianpolis: Editora da UFSC, 2006. p. 227-233. MONTEIRO, J. Lemos. Para compreender Labov.

    2. ed. Petrpolis: Vozes, 2002.

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    SILVA, Antenor de Andrade. Cartas do Padre Ccero (1877 1934): dos originais manuscritos . Salvador: E. P. Salesianas, 1982.

  • A TRAIO ESTRUTURAL

    por Harlon Homem de Lacerda Sousa

    Se fazeis questo de saber por que motivo me agrada aparecer diante de vs com uma roupa to extravagante, eu vo-lo direi em seguida, se tiverdes a gentileza de me prestar ateno. No a ateno que costumais prestar aos oradores sacros. Mas a que prestais aos charlates, aos intrujes e aos bobos da rua. (1974, p. 13)

    Plenamente iluminada, Brbara levanta-se e veste-se, calmamente, cantando Cala a Boca, Brbara. Aps a cano, a personagem enuncia a fala supracitada. Esta fala significativa para toda a pea Calabar: o elogio da traio2 escrita no incio da dcada de 1970 por Chico Buarque e

    2 BUARQUE, Chico e GUERRA, Ruy. Calabar: o elogio da traio. So Paulo: Crculo do Livro, 1974. Utilizamos nesta leitura apenas a primeira verso desta pea.

  • BIBLIOTECA DIGITAL DO NETLLI VOLUME 5

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    Ruy Guerra. A partir dessa fala, percebe-se: o dilogo com outro texto, neste caso, o Elogio da Loucura de Erasmus de Rotterdam; um tom transgressor e anrquico nas palavras; a relao conflitante entre tipos de discurso; o contexto poltico no qual a pea est submersa; o passado histrico representado pela fbula. O elemento que guia e fundamenta toda a pea, a traio. A traio percebida em vrios nveis, temticos e estruturais. Neste artigo, demonstraremos como

    a traio concebida estruturalmente neste texto.

    O ttulo da pea Calabar: o elogio da traio sugere a dramatizao da vida do major Domingos Fernandes Calabar, um senhor de engenho da vila de Porto Calvo que, no sculo XVII, lutou com os portugueses contra a invaso holandesa e, diante de circunstncias que podem ter ido desde uma conscincia patritica at o interesse por um melhor soldo, passou a lutar com os flamengos. Acusado de alta traio pelos lusitanos, foi condenado forca e esquartejado

    por traidor e aleivoso sua ptria e ao seu rei e senhor... (rufos) que seja morto de morte natural para sempre na forca... (rufos) e seu

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    corpo esquartejado, salgado e jogado aos quatro cantos... (rufos) e a sua casa seja derrubada pedra por pedra e salgado o seu cho para que nele no cresam mais ervas daninhas... (rufos) e os seus bens confiscados e seus descendentes declarados infames at a quinta gerao... (rufos) para que no perdurem na memria... (rufos). (1974, p. 53)

    Entretanto, o major alagoano no surge

    no texto seno em um momento indicado por uma rubrica: Rufar de tambores. Em claro-escuro, soldados trazem um homem num cerimonial de execuo. Oficial l a s entena entrecortada por rufos de tambor. Calabar no identificado. Calabar no faz parte dessa pea. Quem l/v o texto buarque-guerreano procurando ouvir Calabar trado, pois o heri est ausente. Porm, em todo o texto o nome de Calabar pronunciado. Sabemos quem Calabar pela voz de todas as personagens da pea. A ausncia do heri, se pode ser entendida

    dramaticamente como tal, diminuda pelas referncias constantes ao major. Antes de compreender esse texto dramtico como sendo desenvolvido por uma ao centrada na

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    trajetria de um heri, necessrio pontuar a mistura de estilos que existe nesse texto. H algumas convenes, como o compre e a commre3, trazidas do Teatro de Revista que coligariam a pea Calabar a uma tradio popular; algumas canes, cenas e rubricas inscrevem o texto na perspectiva pica de teatro poltico aproximada s formulaes de Brecht, que, de certa forma, no distancia Calabar de um teatro popular, j que o Teatro pico de Brecht

    tem razes nessa tradio dramtica; possvel ler, ainda, esse texto, considerando a ao e a trajetria de um heri, como seria possvel num drama moderno de tradio aristotlica. Tambm h momentos da pea nos quais algumas personagens so dotadas de empatia, capaz de suscitar sentimentos de temor e piedade, o que dota o texto de tragicidade. o caso da personagem Brbara, entre a execuo de Calabar e seu delrio (loucura) com Anna de Amsterdam. A tese de uma mistura de formas na

    3 O compadre (compre) e a comadre (commre) um recurso do teatro de revista no Brasil nos scu lo sXIX e XX. Na chamada revista de ano eles eram os mestres-de-cerimnia, os responsveis pelo andamento do espetculo, ao conduzir e costurar o fio do enredo Cf. ANTUNES, Delson. Fora do Srio: um panorama do teatro de revista no Brasil. Rio de Janeiro: Funarte, 2004. e VENEZIANO, Neyde. O Teatro de Revista no Brasil: dramaturgia e convenes. Campinas: Pontes; Editora da Universidade Estadual de Campinas, 1991.

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    pea Calabar: o elogio da traio fundamenta-se no jogo da traio construdo pelos autores. Traio das formas, traio dos estilos, traio dos gneros traio estrutural. A variao entre o alto estilo potico da tragdia e o baixo-cmico grotesco; a comicidade da Revista com Anna, Nassau e o Frei e a tragicidade em Calabar, Brbara e Souto; sob uma determinada perspectiva, h a trajetria de um nome que herico e prfido como linha mestra da ao,

    vista de outro modo, h a sobreposio de quadros com continuidade garantida pelo Frei e Brbara, compre e commre.

    No incio da trama narrado o tempo e o espao da ao. Pela voz do Frei somos informados, a partir de uma perspectiva da ordem4, sobre as coisas que esto acontecendo. Mathias de Albuquerque, no seu dilogo com o escrivo, coloca o conflito bsico da ao: a desero de Calabar. Em seguida conhecemos Calabar, atravs de Mathias, como um valoroso guerreiro, um heri. A cano Cala a boca,

    4 O que chamamos de perspect iva da ordem o d iscurso vinculado s falas das personagens Frei Manoel do Salvador e Mathias de Albuquerque. O Frei, por exemplo, a alegoria do discurso da Igreja e da maneira de esta instituio encarar as relaes sociais (no sculo XVII); Brbara estaria ligada a uma perspectiva transgressora, seu discurso voltado para a viso do oprimido e do marginalizado.

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    Brbara refora a caracterizao herica de Calabar, quando o define como o detentor dos segredos da terra conhecimento sobre-humano. Este incio oferece elementos dramticos prprios a um drama histrico alinhado tradio aristotlica. A cena que traz o dilogo entre Frei e Holands, com a participao de Anna e do coro de moradores, parece trair a continuidade da ao, que s mantida quando surge Sebastio do Souto com

    sua armadilha lanada ao oficial holands. Novamente Calabar o centro da ao, mesmo sem estar presente. Toda a sequncia de Mathias de Albuquerque regozijando-se de seu poderio e de sua vingana contra Calabar, depois das negativas do guerreiro aos seus apelos, acentua a traio a marca de Calabar. A ira de Aquiles, a persuaso e sabedoria de Ulisses so as marcas desses heris, assim como a de Calabar a traio. possvel pensar que o heri da trama a traio personificada e/ou nomeada como Calabar. Quando o soldado aleivoso executado, torna-se clara a noo de que a marca do heri est impregnada nas outras personagens. Calabar, a traio em pessoa, uma ideia. Na segunda parte da pea, Nassau retoma a luta de Calabar. A traio tem sua trajetria continuada

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    nas palavras de Souto, que se quer Calabar, do Frei, de Brbara, de Nassau.

    A ao, alma do drama, construda na trajetria da traio. Os conflitos que garantem a progresso da fbula esto postos entre os discursos da ordem e da transgresso, um sempre traindo o outro ou negando a traio. Elementos como o reconhecimento e a peripcia completam o enredo de Calabar . O momento no qual o Frei reconhece Brbara; ou quando

    Brbara reconhece nos heris delatores os outrora companheiros de Calabar; a inverso praticada na relao entre Souto e Brbara; ou no Frei, inimigo dos holandeses protestantes, depois aliado de Nassau. Esses momentos do extrema dramaticidade pea, que no pode ser conformada a uma nica forma, estilo ou tradio. O jogo, o movimento ldico possibilitado pela traio transforma essa pea numa obra na qual tema e estrutura andam juntos.

    A leitura da pea Calabar: o elogio da traio com elementos da tradio aristotlica deve partir de princpios bsicos como a unidade de ao e a trajetria do heri. Se entendermos que o heri Calabar, ento, a unidade de ao est presente na progresso

    colidente da traio at o final do drama. Para

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    que a pea possa ser analisada sob uma perspectiva aristotlica, os acontecimentos da ao devem estar ligados causal e necessariamente para serem verossmeis e ainda, segundo escreve Aristteles na Potica5: Todos os acontecimentos se devem suceder em conexo tal que, uma vez suprimido ou deslocado um deles, tambm se confunda ou mude a ordem do todo. Pois no faz parte do todo o que, quer seja quer no seja, no altera

    esse todo (51a 16, p. 208). H na pea uma ordem verossmil, construda com base na causalidade, mas constituda de um afrouxamento tal que alguns acontecimentos podem ser suprimidos sem que se confunda ou mude a ordem do todo. obvio que Calabar no um drama fechado, mas mantm uma ordem bsica na progresso dos acontecimentos. O regozijo de Mathias no sucesso da armadilha contra Calabar verossmil em relao s negativas que o traidor havia manifestado no incio da trama, assim como justifica a vontade do governador em executar o traidor; a embriaguez de Brbara, na segunda parte da pea, verossmil enquanto postura delirante

    5 ARISTTELES. Potica. Traduo, Prefcio, Introduo, Comentrio e Apndices de Eudoro de Sousa. So Paulo: Ars Poetica, 1993.

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    quando da execuo de seu homem, e tambm com o assdio promovido em dois momentos por Anna de Amsterdam. Essa ordem bsica exemplificada acima sempre norteada pela traio e pelos conflitos gerados nos discursos contrrios (ordem e transgresso). A ausncia do heri possibilita a (in)existncia de uma ao trgica na pea. A partir das falas das personagens conhecemos o heri. Calabar dotado de caractersticas que o diferem das

    demais personagens. Sabemos que uma ao trgica complexa, construda com a trajetria do heri, composta por reconhecimento e peripcia. A trajetria de Calabar iniciada no momento em que Mathias tenta traz-lo de volta s foras luso-espanholas, oferecendo subornos como patentes mais altas ou o perdo de dvidas. Ou seja, Calabar, que pertencia s foras de resistncia, reconhecido como traidor e tem seu destino mudado pela traio houve um reconhecimento e uma peripcia. Se, naquele instante, Calabar aceitasse o pedido do governador, sua trajetria terminaria ali. Mas, logo em seguida, ficamos sabendo das negativas feitas em lngua de serpente pelo heri. Sua trajetria ento se encaminha para o desfecho. Em meio s trapaas de Sebastio do Souto, aos

    desmandos de Mathias, s traies de Dias e

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    Camaro suas respectivas raas, vemos que Calabar no foi mais do que um bode expiatrio. A certeza de que a execuo do heri um estratagema, at uma vingana pessoal, suscita os sentimentos trgicos de temor e piedade. O erro trgico de Calabar foi trair interesses e convenes maiores que ele. E fica clara, na pea, a noo de um erro intelectual e no de uma falha moral. O que levou o heri a trair foi seu carter desmedido, idealista, no se

    submetendo aos subornos de Mathias. A catstrofe se d, ento, em meio a rufos de tambor, com barao e prego.

    Continuando com a tradio aristotlica, sabemos que o heri progride por fora de uma vontade, subjetiva ou objetiva, construda sobre valores (ticos, morais, polticos, sociais, divinos etc.) que so estabelecidos ou estabelecem o assunto da trama. A traio delineia os heris traidores. Embora todas as personagens traiam de uma forma ou de outra, algumas delas so caracterizadas empaticamente, como Brbara ou Nassau. Essa empatia que possibilita a identificao e apropriao do discurso da transgresso em detrimento do discurso da ordem.

    A identificao com o discurso da

    transgresso e a maneira como arranjada a

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    ao de Calabar determinam um efeito do testemunho. A veracidade implicada nos acontecimentos representados na pea, como a traio e execuo de Calabar, a postura do Frei diante de Maurcio de Nassau, a excentricidade do prncipe de Orange etc, dota as personagens que realmente existiram, no sculo XVII, e que esto agindo, de uma funo testemunhal. Essa funo faz ressurgir, na memria coletiva, uma srie de fatores que

    garantem a associao com o tempo presente: o opressor oprime em qualquer tempo; o populista faz promessas em qualquer tempo; o marginalizado oprimido e vencido em qualquer tempo. O evento particular da invaso holandesa e da traio de Calabar prenhe de um potencial universalizante cabvel em vrios momentos da Histria brasileira, latino-americana ou mundial. A postura combativa e questionadora presente em Calabar conforma-se ao conceito benjaminiano de cesura6: a

    6 O conceito de cesura em Walter Benjamin, segundo Jeanne Marie Gagnebin, tem uma uma funo dupla: em primeiro lugar, crit icam uma concepo trivial da relao histrica, em particular uma relao de causalidade determinista, to fcil de estabelecer a posteriori; a essa causalidade achatada ope a intensidade de um encontro sbito ent re dois (ou mais acontecimentos que, de repente, so (com)preendidos pela interrupo da narrao e se cristalizam numa significao indita: processo de significao baseado na semelhana

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    necessidade de olhar-se a histria duplamente, de restaurar o passado e transformar o presente.

    A ao e o heri no drama de tradio aristotlica no se conformam totalmente estrutura de Calabar (antes existem fora dela), mas tambm constituem a estrutura que acolhe as convenes do Teatro de Revista e algumas formulaes do Teatro pico de Brecht. possvel que os dramaturgos no tivessem a

    inteno de fazer esse tipo de jogo, mas o texto possibilita a leitura de um texto que alia tradio a uma traio formal e estilstica.

    Alm da leitura aristotlica, a pea Calabar deixa que dela se faa uma leitura pica. O teatro de Brecht, alguns de seus conceitos so aplicveis a esse drama da traio. Quando Brecht7 formula conceitos para a efetividade do teatro pico:

    [o teatro pico] narra um acontecimento; faz do espectador

    repentinamente percebida entre dois episdios, que podem estar distantes na cronologia , e, ao mesmo tempo, baseados em suas diferenas reveladoras de uma insero histrica distinta. GAGNEBIN, Jeanne Marie. Histria e Narrao em Walter Benjamin . 2 ed. 1 reimp. So Paulo: Perspectiva, 2004. p. 105-6 7 BRECHT, Bertolt. Estudos sobre teatro. Traduo: Fiama Pais Brando. 2 ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2005.

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    uma testemunha e desperta-lhe a atividade; fora-o a tomar decises; proporciona-lhe viso do mundo; colocado diante da ao; trabalhado com argumentos; so impelidos para uma conscientizao; o homem objeto de anlise; o homem suscetvel de ser modificado e de modificar; tenso do decurso da ao; cada cena em funo de si mesma; os acontecimentos decorrem em curva; nem tudo na natureza gradativo; o mundo, como ser; o homem deve; [pe] seus motivos; o ser social determina o pensamento. (2005, p. 31)

    totalmente praticvel, para no dizer

    bvio, conformar a pea Calabar aos conceitos do Teatro pico brechtiano. O momento poltico no qual e para o qual a pea foi escrita requer uma postura combativa, no mnimo questionadora, de uma obra de arte. No teatro, essa postura privilegiada no teatro pico de

    Brecht e houve tentativas vrias de utilizar essa esttica no teatro moderno brasileiro. O fato que seria redutor deixar de lado elementos que pedem outros tipos de leitura, como a ocorrncia de convenes do teatro de revista

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    ou componentes de uma dramaturgia aristotlica, para entender Calabar como um drama pico adaptvel a todo custo ao molde brechtiano. Em todo caso, os conceitos supracitados fazem parte da pea que est sendo analisada. Outra conveno do teatro pico, a msica, elemento central em Calabar . As canes so, como escreve Brecht, a mais valiosa contribuio para o tema e a msica facilita a compreenso do texto; interpreta o

    texto; pressupe o texto; assume uma posio; revela um comportamento (2005, p. 32). So essenciais ao texto canes como Miserere Nobis , Cala a boca, Brbara, Fado Tropical, Anna de Amsterdam, Vence na vida quem diz sim etc. na compreenso ou pressuposio do texto, assumindo uma posio. O efeito de distanciamento, embora no seja to explorado na pea, e a alegoria, to cara ao teatro brechtiano, ocorrem em vrios momentos do texto. Este tipo de Teatro, aliado aos outros j descritos, formam o elogio da traio.

    A traio estava em primeiro plano durante os anos de chumbo. No apenas o surgimento de traidores como Calabar, caso d o Capito Carlos Lamarca ou Marighela, mas a necessidade de traidores. Chico Buarque e Ruy

    Guerra transformaram um episdio da Histria

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    do Brasil numa reflexo que assume carter universal. O aproveitamento artstico do tema da traio arraigado na prpria estrutura do drama, na mistura de formas e estilos, traz tona a relao entre arte e poltica. A qualidade literria ou dramtica estabelece o alcance poltico do texto que pode ser lido ou montado a qualquer momento, no apenas naqueles anos de chumbo. Muitos traidores precisam aparecer, muitas Brbaras precisam esbravejar ainda

    nesses tempos de democracia.

    Por que que ele foi pra l? As propostas de leitura apresentadas

    acima podem ser melhor verificadas no texto. A utilizao de recursos do Teatro de Revista, d o Teatro pico e da dramaturgia aristotlica na pea Calabar: o elogio da traio produzem um efeito catico para estipular um gnero ou uma forma para esse drama, o que rendeu crticas cruis dos especialistas talvez por no terem

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    pensado numa utilizao intencional e artstica deste caos como Sbato Magaldi8:

    A responsabilidade no cabe direo de Fernando Peixoto nem ao elenco de valor, que tudo faz para salvar o texto. Mas h certos produtos que se disfaram com uma montagem hbil. A primeira leitura de Calabar, logo que se lanou o livro, em 1973, no sugeria a possibilidade de vir a funcionar o espetculo. Nova leitura, antes de atual estria, confirmou a impresso. Como conseguiria o grupo forjar a organicidade de uma obra informe, frouxa, confusa, incapaz de desenvolver a prpria idia?

    Da Revista vemos a configurao das

    personagens Brbara e Frei como compre e commre, alm disso, as ltimas falas de Frei e Brbara dirigidas ao pblico e o final apotetico podem ser percebidas como convenes filiadas Revista:

    Frei (para a multido)

    8 MAGALDI, Sbato. Uma luta dos atores contra o texto de Chico. Quem venceu? Disponvel em: www .chicobuarque.com.br. Acesso em: 10 de setembro de 2010.

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    Tenham f, irmos. O que bom para a Holanda bom pro Brasil! Brbara (para o pblico) Esperais um eplogo do que vos disse at agora? Estou lendo em vossas fisionomias. Mas sois verdadeiramente tolos se imaginais que eu tenha podido reter de memria toda essa mistura de palavras que vos impingi. A histria uma colcha de retalhos. Em lugar de eplogo, quero vos oferecer uma sentena: odeio o ouvinte de memria fiel demais. Por isso, sede sos, aplaudi, vivei, bebei, tra, celebrrimos iniciados nos mistrios da traio. O elenco canta O elogio da traio. O que bom pra Holanda bom pro Brasil O que bom pra Luanda bom pro Brasil O que bom pra Espanha bom pro Brasil O que bom pra Alemanha bom pro Brasil O que bom pro Japo bom pro Brasil O que bom pro Gabo bom pro Brasil

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    O que bom pro galego bom pro Brasil O que bom pro grego bom pro Brasil O que bom pra troiano bom pro Brasil O que bom pra baiano bom pro Brasil O que bom pra ingls bom pro Brasil O que bom pra vocs bom pro Brasil O que bom pra mame bom pro Brasil O que bom pro nenm bom pro Brasil O que bom pra fulano bom pro Brasil O que bom pra (................) bom pro Brasil (...) At baixar o pano.(p. 137)

    Delson Antunes9 escreve sobre a apoteose como parte da estrutura da revista que perdurou durante toda a histria do gnero no pas. Os seus motivos no correspondiam

    9 Op. cit.

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    necessariamente ao temas do enredo principal, pois poderiam ser feitos em homenagem s riquezas nacionais, datas histricas [...] (p. 18). Neyde Veneziano ressalta a conotao de exaltao patritica (1991, p. 110) da apoteose durante a primeira dcada do sculo XX, perodo da Primeira Guerra Mundial e do regionalismo-nacionalista. O tom festivo, grandioso com tod o o elenco cantando o Elogio da traio completa a apoteose final, semelhante a uma revista, com o

    tom irnico que compe toda a pea. Assim como Oswald de Andrade aproveitou a forma da revista em algumas de suas peas, como O Homem e o Cavalo, Calabar brinca com as convenes deste tipo de teatro que formou pblico durante dcadas nos palcos do sudeste brasileiro.

    As formulaes de Brecht podem ser aplicadas na escolha do tema e construo da trama. A escolha de uma personagem marginalizada como Calabar para ttulo do drama revela um posicionamento de combate ao sistema. A trama questionadora, que exibe um didatismo procurando a transformao da sociedade e procura centrar-se em sentimentos que motivem essa transformao. Brecht escreveu:

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    Necessitamos de um teatro que no nos proporcione somente as sensaes, as idias e os impulsos que so permitidos pelo respectivo contexto histrico das relaes humanas (o contexto em que as aes se realizam), mas, sim, que empregue e suscite pensamentos e sentimentos que desempenhem um papel na modificao desse contexto. [...] Tal contexto tem de ser caracterizado na sua relatividade histrica. Ora, isto significa uma ruptura com o nosso hbito de despojar das suas diferenas as diversas estruturas sociais das pocas passadas, de maneira a faz-las aproximarem-se mais ou menos da nossa, a qual, por sua vez, adquire, por meio desta operao, o carter de algo sempre existente, portanto, eterno. (2005, p. 142)

    A ruptura com estruturas sociais das

    pocas passadas, fazendo-as aproximarem-se mais ou menos da nossa encontrada em toda a pea buarque-guerreana. Quando o Agente da CIO fala ao escrivo: Silncio! Escrivo no sente. De agora em diante, neste Brasil holands,

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    escrivo escreve. Assim como estudante estuda, cantor canta, ator atua, etc., etc., etc. ... (p. 135); ou os discursos populistas de Maurcio de Nassau. Posturas cabveis queles tipos histricos e que so constituintes do tipo atuais, sejam censores ou polticos. A postura conformista de Anna de Amsterdam em Vence na vida quem diz sim ou esse mesmo tipo de comportamento em Henrique Dias e Filipe Camaro estabelecem essa aproximao entre as

    pocas. Nesse mesmo sentido, Elizabete Sanches Rocha 10 fala sobre o posicionamento dos soldados Dias e Camaro na pea: Esta atualizao histrica, que recorre a um acontecimento do sculo XVII para fazer referncia necessidade de transformao no presente, assinalada por Brecht como fundamental no propsito de conscientizao social (2006, p. 175). Quanto caracterizao social das personagens, o dramaturgo alemo escreve:

    Se os personagens em cena forem movimentados por impulsos de carter social, que variam de

    10 ROCHA, Elizabete Sanches: O Elogio da Liberdade : procedimentos estticos em Calabar. Franca: UNESP-FHDSS, 2006 (Srie Teses e Dissertaes, n.14)

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    acordo com as pocas, se assim considerarmos, estaremos dificultando uma aclimatao emocional do espectador. No poder simplesmente sentir: esta maneira que eu agiria; mas, dir, quando muito: se eu tivesse vivido sobre essas circunstncias... E se encenarmos peas de nossa prpria poca tal como se fossem peas histricas, possvel que paream ao espectador igualmente singulares as circunstncias em que ele prprio age e aqui que a atitude crtica comea. (BRECHT apud ROCHA, 2006, p. 175).

    A conscientizao proposta a partir d o

    entendimento de dois tipos de discurso que representam a Histria, vistas como o discurso da ordem e discurso da transgresso, elaborados de maneira narrativa em alguns momentos do drama, caracterstico do teatro pico. O afrouxamento da causalidade na ao,

    com a incidncia de quadros dispensveis para o andamento do enredo, estimula a interpretao de um drama no-aristotlico e adequado ao teatro brechtiano. Essas caractersticas estruturais que filiam e poderiam

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    conformar Calabar: o elogio da traio completamente ao teatro pico de Brecht esbarram nas possibilidades de empatia, por exemplo, que algumas personagens produzem. Essas mltiplas possibilidades dramticas, que vo de encontro s picas brechtianas, diluem a interpretao de uma nica forma para compreender a pea em tela. Mas a incidncia de caractersticas picas regem o objetivo poltico de Calabar.

    O mito a imitao de uma ao Alm da tragdia fora da pea, vista

    anteriormente, possvel analisar uma sequncia luz de categorias aristotlicas. Brbara uma personagem emptica que suscita sentimentos de temor e piedade. Essa caracterstica associa-a a preceitos da dramaturgia aristotlica e produzem um efeito trgico num momento especfico da pea. A sequncia entre a execuo de Calabar e a seduo por Anna de Amsterdam trazem elementos que possibilitam essa associao:

    Mathias (para o oficial)

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    Podem dar incio execuo (sai). Subitamente iluminada, Brbara canta Tatuagem. Brbara (cantando) Quero ficar no teu corpo feito tatuagem Que pra te dar coragem Pra seguir viagem Quando a noite vem. E tambm pra me perpetuar Em tua escrava, Que voc pega, esfrega, nega Mas no lava. Quero brincar no corpo feito bailarina Que logo se alucina, Salta e te ilumina Quando a noite vem. E nos msculos exaustos Do teu brao Repousar frouxa, murcha, farta, Morta de cansao. Quero pesar feito cruz nas tuas costas Que te retalha em postas Mas no fundo gostas Quando a noite vem. Quero ser a cicatriz risonha e corrosiva, Marcada a frio A ferro e fogo Em carne viva.

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    Coraes de me, arpes, Sereias e serpentes Que te rabiscam o corpo todo mas no sentes. Rufar de tambores. Em claro-escuro, soldados trazem um homem num cerimonial de execuo. Oficial l a sentena entrecortada por rufos de tambor. Oficial ... com barao e prego... (rufos) por traidor e aleivoso sua ptria e ao seu rei e senhor... (rufos) que seja morto de morte natural para sempre na forca... (rufos) e seu corpo esquartejado, salgado e jogado aos quatro cantos... (rufos) e a sua casa seja derrubada pedra por pedra e salgado o seu cho para que nele no cresam mais ervas daninhas... (rufos) e os seus bens confiscados e seus descendentes declarados infames at a quinta gerao... (rufos) para que no perdurem na memria... (rufos). (p. 54)

    A cano Tatuagem traz signos de

    devoo, de amor entre Brbara e Calabar. A

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    impossibilidade de separao entre os dois amantes deixa prever a intensidade da dor sentida por Brbara com a execuo do seu homem conhecida pelo pblico na fala seguinte, do oficial. Compem a cena Brbara, Souto, Dias e Camaro. Os guerreiros tentam eximir-se da morte do guerreiro traidor, Brbara parece no prestar ateno aos trs guerreiros. As falas dos soldados trazem elementos que intensificam o sentimento de compaixo pela condio de

    Brbara:

    Souto Brbara! Dias (irritado) O que voc quer com ela? Souto Nada. Dias Deixa ela em paz. Souto O que que ela pode estar pensando? Dias Como que eu vou saber? Ela j sabe que ele vai ser enforcado? Camaro No sei. Souto

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    Acho que no. Mas essas coisas a gente adivinha. Na precisa que ningum venha dizer. Camaro ... Eu acho que ela sabe. De qualquer forma triste ver algum morrer assim. (p. 55)

    A seguir, os trs continuam o dilogo

    colocando definies de medo e morte (elementos do trgico) construindo ainda a produo do sentimento de comoo pela viva at que Brbara parece despertar. Olha para os trs. E diz:

    Brbara (para Dias) Eu conheo voc. Dias Meu nome Henrique Dias, Governador dos Pretos, Crioulos e Mulatos. Camaro Eu sou Antnio Felipe Camaro, Governador e Capito-Mor de Todos os ndios da Costa do Brasil. Brbara E, evidentemente, voc Sebastio. Vocs todos lutaram ao lado dele... Dias Antes.

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    Brbara Houve uma poca em que foram amigos... Souto Fomos. Brbara E agora? Dias Agora? Brbara O que que vocs vo fazer? Camaro Ns? Dias Ns no temos nada com isso... Souto Somos apenas soldados... Camaro Lutamos... cumprimos ordens superiores. Dias Esse no o nosso setor. Isso com o rei e o carrasco. (p. 59)

    Nesse momento d-se o reconhecimento .

    Brbara reconhece nos soldados os antigos companheiros de Calabar e percebe a traio deles. A mulher os enfrenta. No dilogo subsequente, ela passa a question-los sobre seu posicionamento como negro ou ndio diante da guerra e da sociedade. At que, diante da inrcia

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    e comodismo dos trs, ela, sabendo que seu homem ser executado por no ser conformista ou inerte, pe-se a perguntar:

    Brbara Por isso vo mat-lo, no , Dias? Dias Eu estou chegando. No vi nada. Dias (cantando) Se vejo um homem cado Eu no sinto d nem asco. Eu tenho o olhar embutido Em mscara de carrasco. Brbara Por isso vo mat-lo, no , Camaro? Camaro Eu estou chegando. No vi nada. Camaro (cantando) Se tem um homem na forca Minha lngua se embaraa. Saliva me cala a boca Em feitio de mordaa. Souto, Dias e Camaro (cantando) No tenho nada com isso, Sou vassalo do vassalo. Eu trato do meu servio, Eu cuido do meu cavalo. No tenho nada com isso, Estou cansado e com pressa. A guerra o meu compromisso,

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    E nada mais me interessa. Rufo de tambor e morte de Calabar. Os trs guerreiros s e imobilizam, um ao lado do outro: Camaro, os olhos baixos, as costas da mo cobrindo a boca; Dias, uma das mos cobrindo os olhos; Souto, a cabea cada sobre o peito, as duas mos escondendo os ouvidos. O conjunto sugere a imagem dos trs macaquinhos de marfim. Brbara canta Cuidado. Ningum sabe de nada. Ningum viu nada. Ningum fez nada. Ningum culpado. Bichos de estimao, Nesse jardim, Cuidado, Esto todos gordos. Sempre cem por cento cegos, Cem por cento surdo-mudos. Cem por cento sem perceber A agonia Da luz Do dia. Voc, Seu ventre inchado, Ainda vai gerar

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    Um fruto errado. Um bonequinho, Um macaquinho de marfim, Castrado. Souto, Dias e Camaro e os soldados saem. noite. Brbara remexe o sangue de Calabar numa bacia num gesto caseiro. (p. 68)

    Os soldados fogem s tentativas de

    Brbara em salvar o seu homem atravs do questionamento, do debate, da argumentao em favor da luta contra os opressores. Os trs comportam-se como um macaquinho de marfim, / castrado, no vem, no falam, no ouvem e no agem. Brbara est sozinha. O temor e a piedade crescem diante da solido da mulher que, como indica a rubrica, remexe o sangue de Calabar. Os sentimentos trgicos crescem no dilogo entre Anna e Brbara:

    Anna Brbara! Brbara olha a holandesa, depois desvia o olhar, atrada pelo sangue. Anna Foi todo mundo embora... Voc no pode ficar aqui sozinha!

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    Brbara, mansamente, como num gemido, entoa lentamente Cala a boca, Brbara, que serve de fundo s palavras de Anna. Anna Se eu ainda me lembrasse do que senti, quando perdi pela primeira vez o homem que eu amei, talvez pudesse te dizer alguma coisa... Mas foi h tanto tempo... triste dizer isso, mas nem tenho mais a certeza da cor dos seus olhos... E no entanto eu estremecia de prazer, cada vez que ele me olhava... Como estremeo agora... s de lembrar... E nem te conheo direito... Mas talvez seja melhor assim... Seno iramos lembrar juntas coisas que agora devem ser esquecidas... Coisas que voc tem de esquecer... Brbara Eu no vou esquec-lo. Ele est vivo. Anna Ele morreu. Brbara (raivosa) Cadela! Anna (meiga) Ele morreu, Brbara. Voc sabe... Brbara No.

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    Anna Esse sangue... Brbara o sangue de Calabar... Anna Esses braos... Brbara So os braos de Calabar... Anna Essas pernas... Aquela cabea... Brbara tudo de Calabar. So as pernas de Calabar... a cabea de Calabar... Anna Eles o mataram. Brbara No. Calabar est vivo. (p. 70)

    Com a solido, a revolta e a dor, Brbara

    entra em delrio, fica louca. A loucura, morte em vida, arremata a tragicidade desta sequncia que continua repleta de elementos patticos:

    Anna Brbara! Brbara (teimosa) Eles no so capazes de o matar... Eles bem que tentaram destru-lo, mas no conseguiram... Calabar mais esperto que todos eles

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    juntos... Calabar mais valente sozinho que todos esses exrcitos que eles comandam... Calabar no se mata assim to fcil, como um bicho qualquer... Eu no deixo! (...) Brbara Anna, para Calabar morrer preciso que tambm me matem. Porque eu o amo. Para Calabar morrer, preciso que tambm me esquartejem. Porque eu o amo demais... E se me matarem, e se me esquartejarem, se me espalharem aos pedaos por a, eu morro... Mas mesmo assim Calabar capaz de continuar vivo... Brbara comea a chorar mansamente. Brbara est suja de sangue e Anna, envolvendo Brbara se suja tambm. Brbara Eu quero Calabar, Anna... (Brbara acaricia o rosto de Anna) tudo o que eu sei amar Calabar, Anna... Anna comea a cantar Anna e Brbara. (...) Amanhece. Anna e Brbara ficam cadas. A msica vai baixando. Entram ruidosamente em cena alguns soldados holandeses, que

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    logo se calam, olhando em volta. Brbara encara o pblico. Brbara No posso deixar nesse momento de manifestar um grande desprezo, no sei se pela ingratido, pela covardia ou pelo fingimento dos mortais. (p. 70-75)

    A fria de Brbara, que no aceita a morte de Calabar, o delrio de ver no rosto de Anna o rosto de Calabar e, finalmente, a ltima fala de Brbara. Esta ltima retirada do Elogio da Loucura de Rotterdam. Brbara fala com a voz da loucura, um grito clarividente. Os signos patticos, o temor diante da execuo indevida de um ente prximo, a piedade diante da solido e o desfecho com o delrio de Brbara so elementos trgicos e dramticos que estabelecem uma associao com a dramaturgia aristotlica.

    A pea Calabar: o elogio da traio , entendida a partir da tese da mistura ldica de formas, estilos e gneros, configura-se como

    uma obra de arte literria que se demarca de obras de protesto cuja significao se limita apenas a um determinado contexto histrico. A utilizao de recursos lricos, picos, populares,

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    trgicos, cmicos etc. aliada intertextualidade com documentos, crnicas ou stiras como a de Erasmo de Rotterdam, confere qualidade artstica a essa pea, distante de ser uma obra informe, frouxa, confusa, incapaz de desenvolver a prpria idia, que sofreu com a censura e o esquecimento da crtica durante dcadas.

  • DICIONRIO E ENSINO DE LATIM

    por Francisco Edmar Cialdine Arruda

    O ensino de lngua latina nas universidades brasileiras no possui boa fama diante dos alunos que iniciam um curso superior cuja grade curricular oferece a referida matria. As dificuldades que os

    aprendizes enfrentam diante das incontveis listas e quadros de declinaes e conjugaes somam-se s metodologias tradicionais que priorizam a memorizao; bem como a ausncia de material didtico que privilegie o aprendiz iniciante destacamos, aqui, o dicionrio latino, material sem o qual se torna quase impossvel qualquer atividade de traduo. Nosso objetivo apresentar um debate terico que envolva a Lexicografia pedaggica e o ensino de latim.

    DA LEXICOGRAFIA PEDAGGICA Tradicionalmente e, de modo amplo,

    podemos dizer que a Lexicografia trata das questes ligadas aos dicionrios: sua produo, anlise, usos

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    etc. Dentre tantas questes, h aquelas que ligam a Lexicografia ao ensino de lnguas. Lexicografia pedaggica que ir se deter s reflexes ligadas ao dicionrio de uso escolar. Para Humbl (1998), citado por Pontes (2009), essa disciplina se define a partir de duas caractersticas fundamentais: a escolha de um pblico definido (o aprendiz de lngua) e de um fim especfico (a aprendizagem de lngua). Essas discusses ampliam a viso que temos de dicionrio escolar e seus usos em sala de aula.

    De fato, preciso ter em mente que as questes que orientam um dicionrio com finalidades didticas so complexas. De incio, o lexicgrafo

    pedagogo define o usurio ideal da sua obra, para tanto preciso saber seu nvel de conhecimento lingstico, comunicativo e de mundo, isso far com que o dicionarista focalize sua produo nas necessidades de aprendizagem do usurio. Definido tal ponto, o produtor do dicionrio poder trabalhar a estrutura do dicionrio a favor de seu objetivo. Percebemos, assim, a importncia do usurio diante da produo lexicogrfica.

    A ateno dada ao usurio em potencial do dicionrio influencia diretamente nas propostas de classificao de dicionrios. Pontes (2009) afirma que o usurio um elemento essencial para definir os diversos tipos de dicionrios, a partir das diferentes caractersticas formais motivadas pelos seus diversos usos e finalidades. Os aspectos que podem servir para

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    caracterizar o usurio podem estar relacionados com questes, como, idade, competncia na lngua materna, nvel de conhecimento em lnguas estrangeiras ou a funo voltada para a produo ou para a compreenso. Por isso, dada a importncia do usurio para caracterizar um tipo dicionrio, cabe indicar informaes relacionadas s suas finalidades e a que tipo de usurio pretende atender em suas pginas iniciais. Desse modo, uma vez que, vrias so as necessidades dos usurios e uma obra lexicogrfica dificilmente contemplaria todas, vrios sero os tipos de dicionrio e suas formas de classificao.

    claro que tais questes e as pesquisas

    ligadas a elas esto em seus primeiros passos, no entanto perceptvel que a Lexicografia pedaggica vem se desenvolvendo cada vez mais e fazendo uso de outras reas de pesquisa como, por exemplo, a Teoria da Multimodalidade.

    A Teoria da Multimodalidade (KRESS; VAN LEEWEN 1991) trata dos diversos modos semiticos utilizados em uma comunicao, em especial destacamos os aspectos visuais encontrados em materiais didticos como, por exemplo, dicionrios infantis. Pontes (2009) aponta para a existncia de uma gradao de recursos visuais utilizados em dicionrios. Teramos os dicionrios gerais, com quase nenhum recurso visual, de um lado e, do outro, os dicionrio ilustrados infantis. Tal como o autor, acreditamos que realmente haja essa gradao.

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    Observemos alguns exemplos retirados de diferentes edies do dicionrio Aurlio (Ferreira, 1975, 2001, 2005a).

    Esse exemplo foi retirado da primeira

    edio de um dicionrio Aurlio geral. Notemos que so poucos os recursos visuais empregados aqui. H apenas o uso de itlico, negrito, os smbolos e ,

    alm disso, chamamos a ateno para o espaamento empregado nos exemplos de uso para dar destaque s colocaes. Todavia, o dicionarista no faz uso de cores na microestrutura dessa edio, diferentemente dos dois exemplos abaixo11:

    11 O primeiro caso, Ferreira (2001), foi retirado do Mini Aurlio escolar do Sculo XXI, que, apesar do autor destacar a quantidade de 32 mil verbetes o que o classifica como tipo 3 para as sries finais do Ensino Fundamental parece-nos que seu uso se estende, tambm, ao Ensino Mdio. J o segundo exemplo, Ferreira (2005a), foi retirado do dicionrio escolar Aurlio Jnior, cuja nomenclatura, segundo o autor, comporta 30 mil verbetes e indicado para 4 a 6 ano do Ensino Fundamental I.

    Careca. S. f. 1. Calva (1). 2. Calvce, acomia. S. 2 g. 3. Indivduo calvo. S. m. 4. Bras. Pop. V. Diabo (2). Adj. 2g. 5. Diz-se de indivduo calvo. 6. Pop. Diz-se do pneu liso, com os frisos j inteiramente gastos pelo uso. Estar careca de. Bras. Fam. Estar habituadssimo a; estar cansado de: E s t o u c a r e c a d e falar dela; E s t o u c a r e c a d e ouvir aquela histria. (FERREIRA, 1975)

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    Em ambos os exemplos, temos uma maior

    variedade de recursos visuais em uso. H uso de cores e fontes diferentes alm dos citados no exemplo

    primeiro. Comparemos agora os trs exemplos j citados com outros dois retirados de dicionrios infantis ilustrados, o Dicionrio Aurlio infantil, ilustrado pelo cartunista Ziraldo, de 1989 (Ferreira, 1989) e o dicionrio Aurelinho de 2005 (Ferreira, 2005b), respectivamente:

    Figura 01: verbete carneiro (FERREIRA, 1989)

    ca.re.ca. subst. fem. 1. Calva. 2. Calvce. subst. 2 gn. 3. Pessoa calva. adj 2 gn. 4. Diz-se de pessoa calva. (FERREIRA, 2005a)

    ca.re.ca. Sf. 1. Calva (1). 2. Calvce. S2g. 3. Pessoa calva. Adj2g. 4. Diz-se de pessoa calva. (FERREIRA, 2001)

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    Nos trs exemplos anteriores, no h uso

    de ilustraes diferentemente desses dois ltimos, Ferreira (1989) e Ferreira (2005b). Notemos, no entanto, que, apesar de ilustrado, Ferreira (1989), nessa obra, no faz uso de tantos recursos visuais (cores e formas) quanto Ferreira (2005b) cujas entradas e classe gramatical so destacadas em verde. Ademais, a ilustrao do segundo caso uma fotografia e no um desenho. O uso de fotografia no lugar de desenhos, aproxima a imagem de um contexto mais real.

    Por fim, ressaltamos que tais recursos visuais so de grande importncia para quaisquer

    obras lexicogrficas por tornarem-nas ferramentas mais eficazes para o aprendiz de lngua.

    Figura 02: verbete carneiro (FERREIRA, 2005b)

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    DO ENSINO DE LATIM

    De incio, importa-nos ressaltar que os

    estudos latinos tm passado por modificaes no decorrer dos ltimos anos. Na dcada de 60, observamos o fim de sua obrigatoriedade no currculo escolar e a reduo da carga horria de disciplinas de estudos clssicos nos cursos de Letras. Sobre isso, Oliveira (2004) afirma:

    A partir da segunda metade do sculo XX comeam a aflorar as tendncias para as mudanas que vinham latentes ao longo de dcadas. A dcada de 60 foi um perodo de verdadeira exploso, um momento de revelao da crise fazendo eclodir um processo acelerado de mudanas que at hoje no encontramos seu ponto de equilbrio. (OLIVEIRA, 2004, p. 249. grifo nosso)

    Boa parte desse referido desequilbrio

    ocorre por incertezas quanto aos objetivos do ensino das lnguas clssicas, conseqncia das crenas existentes a partir de um ensino tradicional prescritivista. Nbrega (1962) apud Mioti (2006), apresenta, dentre os objetivos de ensino de latim, aqueles de carter disciplinar, isto , que fazem uso

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    do raciocnio de maneira bastante acentuada, a ponto de ser o latim considerado a matemtica das lnguas, ao propiciar o desenvolvimento da inteligncia (MIOTI, 2006, p. 13). No entanto, a prpria Mioti, que critica tal viso, justifica o posicionamento de Nbrega, uma vez que a obra deste data de um perodo cuja educao se pautava por uma concepo tecnicista que sobrepunha as matrias tidas como mais humanistas (Mioti, 2006, p. 14).

    De fato, no podemos ignorar as peculiaridades prprias das lnguas clssicas em relao s lnguas modernas das quais podemos destacar a inexistncia de falantes nativos sob pena

    de tomarmos atitudes, por vezes, questionveis, como utilizar metodologias de ensino de lnguas modernas, sem qualquer adequao, no ensino de lnguas clssicas. Tais iniciativas podem estimular o debate sobre a importncia do latim na atualidade, mas devem ser vistas com cuidado sob pena de cairmos em inadequaes. Sobre o tema, destacamos Moita Lopes (1996). O autor faz uso de modernas teorias de ensino de lnguas, mais especificamente das teorias interacionistas da leitura, como forma de alavancar o ensino das lnguas e ele usa como exemplo o ensino de latim.

    Assim, vrios podem ser os objetivos que orientam os estudos da lngua latina. Muitos livros e cursos de ensino de latim, em suas introdues, defendem que seu objetivo central possibilitar ao

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    aluno capacidade de ler os originais de textos literrios de autores latinos como Ccero, Ovdio, Virglio etc. Mioti (2006) defende que, atravs desses textos, poderamos ter contato com os aspectos culturais que circundam a antiguidade clssica. Ademais, h questes relativas ao aprimoramento da lngua portuguesa, isto , a lngua portuguesa, como uma lngua neolatina, guarda, em sua estrutura lingstica, resqucios da estrutura latina. Assim sendo, muitos estudiosos tradicionais como, por exemplo, Nbrega (1962 apud Mioti, 2006) e Mello (apud Oliveira, 2004) defendem que o conhecimento da lngua latina auxilia no domnio da lngua

    portuguesa. Furlan (2006 p. 16), na introduo de sua obra, cita o relatrio da Comisso Nacional para o Aperfeioamento do Ensino/ Aprendizagem da Lngua Materna, de 1986, cujo texto defende a re-introduo do latim no ensino mdio objetivando um conhecimento mais profundo da lngua portuguesa.

    Apesar das crticas traadas a tal objetivo, no podemos negligenciar a importncia do estudo do latim para a lngua portuguesa. Ter uma base latina necessrio para estudos diacrnicos da lngua. Estes, por sua vez, acabam por complementar as lacunas deixadas por uma concepo estritamente sincrnica da lngua, dando um suporte ainda mais slido para o professor de lngua portuguesa.

    Em nosso trabalho, procuramos adotar uma concepo de ensino que abrangesse tanto a

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    leitura de textos clssicos, quanto os aspectos lingsticos. Tal posicionamento nos parece coerente com as dificuldades apontadas por Moita Lopes (1996) sobre o ensino de lnguas clssicas. No referido captulo, o autor defende um ensino interacionista da leitura, como j afirmamos, que se baseia no uso conjunto do conhecimento sistmico (conhecimento da estrutura lingstica) e do conhecimento esquemtico (conhecimento de mundo do leitor). Ele sinaliza que o foco dado pelos professores de lnguas clssicas aos aspectos sistmicos acaba por comprometer o ensino de tais lnguas por deixar de lado os aspectos esquemticos,

    que so cruciais no ato da compreenso escrita e que podem at minimizar a falta de conhecimentos sistmicos por parte do aluno (MOITA LOPES, 1996, p. 150). De fato, o autor justifica essa prtica comum dos professores de enfatizar a lngua por conta dos pouco conhecimento sistmico e esquemtico dos alunos, ele afirma:

    Depreende-se da concepo interacionista de leitura que ensinar a ler ensinar o leitor-aprendiz a relacionar os conhecimentos sistmico e esquemtico atravs de procedimentos interpretativos. Note-se, antes de mais nada, que o aluno de LCs [Lnguas Clssicas] j est familiarizado com o ato de ler em sua LM [lngua materna] e,

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    por vezes, em uma ou mais LEs [lnguas estrangeiras. Portanto, o que ele tem a fazer aprender a ler uma LC. Todavia, devido falta dos conhecimentos sistmico e esquemtico por parte do aluno, esses procedimentos no podem ser ativados, por assim dizer, pelo leitor-aprendiz. O professor tem, ento, de facilitar a utilizao desses procedimentos interpretativos atravs de artifcios pedaggicos adequados. (MOITA LOPES, 1996, p. 152. grifo nosso)

    Desse modo, podemos dizer que o

    problema no est em se trabalhar os aspectos lingsticos do latim, mas sim, tornar tais aspectos seu foco (Furlan 2006).

    Acreditamos que unir objetivos como: a leitura de textos clssicos e o conhecimento profundo da estrutura da lngua (seja como suporte para o

    desenvolvimento do conhecimento sistmico, seja como base de estudos diacrnicos) pode vir a contribuir para a formao do profissional da linguagem.

    DOS DICIONRIOS LATINOS EM GERAL

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    Sob vrios aspectos, a lexicografia latina est pautada na viso tradicional de ensino de latim. Raras so as obras que fazem uso de teorias lingsticas, de teorias de ensino de lngua ou mesmo da lexicografia moderna:

    A descrio do lxico latino nos dicionrios, como no poderia de ser, segue a descrio da gramtica. As formas eleitas para figurar nas entradas dos verbetes tm a finalidade de remeter ao paradigma [sic], entendido tradicionalmente como conjunto descrito pela gramtica que serve de modelo declinao ou conjugao. Essa soluo s faz sentido como parte de uma abordagem que prev a assimilao mnemnica dos dados, j que torna problemtica a localizao da entrada de qualquer variante nominal que no seja o nominativo singular, ou verbal que no seja a primeira pessoa do singular do presente do indicativo. (LONGO, 2006, p.43)

    Como conseqncia, no raro, deparamo-nos com situaes como a apontada por Torro (1997): alunos que, mesmo j estando no quarto ano de latim, insistiam em procurar no dicionrio o significado da palavra erat. Com isso, o dicionrio,

    ferramenta essencial segundo os autores citados

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    acima e tantos outros, acaba por se tornar prejudicial ao aluno iniciante de latim. fato que Torro (op. cit) assinala possveis vantagens e desvantagens no uso do dicionrio. Para ser mais exato, o autor se detm s questes de aquisio de vocabulrio sugerindo, inclusive, alguns meios que poderiam auxiliar nesse processo. Destacamos algumas sugestes que poderiam ser aproveitadas na composio de um dicionrio:

    1. A reunio de palavras em famlias, que vir permitir ao aluno utilizar em simultneo a memria, mas tambm o raciocnio para progredir neste campo (TORRO, 1997, p. 3); 2. A explorao etimolgica cuja vantagem de permitir que o aluno enriquea o vocabulrio de lngua clssica e de outras lnguas modernas; 3. A explorao de vocbulos compostos atravs do conhecimento de prefixos e sufixos produtivos da lngua.

    Tais tpicos podem auxiliar o lexicgrafo

    ao tomar decises sobre a macroestrutura como, por exemplo, a existncia ou no de uma lista de palavras cognatas, a incluso ou no de prefixos e sufixos mais produtivos como entradas e a relevncia de informaes etimolgicas no corpo da microestrutura.

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    No que se refere ao uso de dicionrio em si, o autor afirma que a escolha do momento de iniciar o aluno no uso do dicionrio, se cedo ou mais tardiamente, possui suas conseqncias e, por conseguinte, o professor deve faz-lo no momento que notar sua necessidade; contudo, ao decidir introduzir o uso do dicionrio s aulas, de extrema importncia que o professor reserve o tempo que for necessrio para esclarecer ao aluno sobre como encontrar as informaes contidas no corpo da obra lexicogrfica. Salientamos a importncia de tal atitude, principalmente, por notarmos que os dicionrios latinos comumente carecem de

    explicaes sobre seu uso, cabendo ao consulente perceber, na prtica, como as informaes esto dispostas na sua nomenclatura.

    J Lima (1995 apud Longo, 2006), ao tratar da questo, assinala trs pontos tidos como essenciais para um dicionrio latino feito a partir de uma perspectiva lingstica: o vocbulo, a significao lxica e o valor. Diante de uma teoria lexicogrfica moderna, parece-nos que os respectivos termos equivalem a: a entrada, o enunciado definitrio e exemplos de uso. Assim sendo, neste trabalho usaremos os termos equivalentes j consagrados pelos estudos lexicais modernos. Importante salientar que daremos especial destaque entrada.

    A principal problemtica, apontada por Longo (2006), sobre as entradas em dicionrios

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    latinos gira em torno do grupo de palavras flexionveis: substantivos, adjetivos e verbos. De fato, palavras como o advrbio hodie ou a preposio inter no se configuram problemas para um consulente iniciante. Todavia, se a palavra for, como no exemplo de Torro (1997), erat e o aluno buscar exatamente essa palavra, ele dificilmente encontrar seu significado, uma vez que as formas lematizadas dos verbos iniciam com estes na primeira pessoa do singular do presente do indicativo ativo seguida das demais formas primitivas, a saber: sum, es, esse, fui. O mesmo pode ser dito sobre substantivos e adjetivos cuja entrada privilegia o caso

    nominativo que, no raro, possui uma forma completamente diferente dos demais casos. Sobre esta questo, Longo (op. cit) aponta uma possvel explicao:

    Um dos argumentos usados para defender a apresentao do nominativo, na entrada dos verbetes nominais dos dicionrios, pode ser o de que esse o caso que mais deformaes sofreu em decorrncia do uso. De fato h situaes em que, sincronicamente, impossvel inferir o nominativo a partir do tema. Como, por exemplo, prever gurges a partir de gurgit-? Certamente, as leis da fontica histrica do latim que explicam os fenmenos evolutivos

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    podem justificar tal irregularidade. (LONGO, 2006, p.50. Grifo nosso)

    Realmente, para um aluno iniciante, como nossa prpria experincia docente de latim aponta, traduzir um enunciado com o vocbulo gurgitem

    exige um conhecimento da lngua que ele ainda est em vias de aprender. Uma possvel soluo defendida por Longo (op. cit) o uso do tema. Atravs dele torna-se possvel criar oposies com a flexo de caso, j que os temas so unidades virtualmente presentes em todas as manifestaes latinas. Ainda assim, h o problema dos itens lexicais cujo nominativo difere do tema. Para solucionar tal questo, a autora advoga a favor da identificao dos temas atravs de palavras cognatas, como, por exemplo, das palavras corpreo, corporal, corporao para apresentar ao aluno o tema latino corpor- e o nominativo corpus. Mais do que simplesmente apresent-los, importante, segundo a autora, deixar claro para o aluno que ambos os itens lexicais acima so variantes de um mesmo tema.

    A despeito do que a autora defende, acreditamos que uma alternativa seria apresentar a entrada a partir de uma base comum entre ambos, isto , de corpor- e corpus, a base corp- como entrada para o que um dicionrio tradicional poderia trazer como corpus, oris. Tal deciso acreditamos

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    tornar o dicionrio latino mais funcional para o aprendiz iniciante.

    CONSIDERAES FINAIS A despeito de tudo, procuramos colaborar

    para o desenvolvimento de um dilogo interdisciplinar entre diferentes campos de estudos. Na verdade, h muito a se considerar no que tange Lexicografia latina. Chamamos a ateno dos

    professores e pesquisadores latinistas para a os estudos lexicogrficos modernos. Todavia, no fcil falar sobre dicionrios, essa obra cuja fama o torna algo inviolvel e incontestvel. De fato, tal crena se espalha por todas as instncias dos estudos lexicais. Muito embora as pesquisas crescentes dentro desse campo de estudo busquem desenvolver uma viso cientfica sobre os dicionrios, estudar essa temtica ainda requer um processo de garimpagem, por vezes, cansativo. O que se dir, ento, da produo de um dicionrio de cunho pedaggico? Por tal razo, procuramos elucidar nossa perspectiva acerca da Lexicografia pedaggica e como os estudos feitos, hoje, podem contribuir para seu desenvolvimento, em especial, os estudos ligados Teoria da Multimodalidade. Realmente, acreditamos que essa

    teoria seria um acrscimo salutar lexicografia latina.

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    No toa, os dicionrios para aprendizes, cada vez mais, fazem uso de recursos visuais cores, ilustraes etc. em sua estrutura. O uso de ilustraes em dicionrios de lnguas clssicas poderia elucidar o consulente a cerca da realidade social, histrica e cultural que permeia a antiguidade clssica. Podemos exemplificar com imagens de carter mitolgico, obras de arte, gravuras com lugares, bustos de personagens histricos, desenhos representativos de situaes, como um teatro romano da poca.

    REFERNCIAS

    FERREIRA, Aurlio Buarque de Holanda. Novo dicionrio da lngua portuguesa. 1 ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1975. ___________. Dicionrio Aurlio Infantil de lngua portuguesa.. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1989. ___________. Miniaurlio Sculo XXI. 5 ed.rev.ampliada. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2001. ___________. Dicionrio Aurlio Jnior: dicionrio escolar da lngua portuguesa. Curitiba: Positivo, 2005a. ___________. Aurelinho: dicionrio infantil ilustrado da lngua portuguesa. Curitiba: Positivo, 2005b. FURLAN, Oswaldo Antnio. Lngua e literatura latina e sua derivao potuguesa. Petrpolis: Vozes, 2006.

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    KRESS, Gunther; VAN LEEUWEN, Theo. Reading images: the grammar of visual design. London: Routledge. 1996 LONGO, Giovanna. Ensino de Latim: problemas lingsticos e uso de dicionrio. 2006. 105 f. Dissertao (Mestrado em Lingstica) Faculdade de Cincias e Letras, Universidade Estadual Paulista, Araraquara, SP, 2006. MIOTI, Charlene Martins. O ensino do latim nas universidades pblicas do estado de So Paulo e o mtodo ingls reading latin: um estudo de caso. 2006. 145 f. Dissertao (Mestrado em Lingstica) Instituto de Estudos da Linguagem, Universidade

    Estadual de Campinas, Campinas, 2006. MOITA LOPES, Luiz Paulo da. Leitura e ensino de lnguas clssicas. In _____. Oficina de Lingstica aplicada: a natureza social e educacional dos processos de ensino/ aprendizagem de lnguas. Campinas: Mercado das Letras, 1996. cap. 10, p. 147-163. OLIVEIRA, Alzir. Discurso e prtica didtica do latim no ensino de graduao in PINHEIRO, Hlder (org.). Territrio da linguagem. Campina Grande: Bagagem, 2004 PONTES, Antnio Luciano. Dicionrio para uso escolar: O que , como se l criticamente. Fortaleza: EDUECE, 2009. TORRO, Joo Manuel Nunes. A aquisio de vocabulrio e o uso de dicionrio. II Colquio

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    Clssico Actas. Aveiro, Universidade, 1997. Disponvel em >. Acesso em 25/ 10/ 2009

  • O SUJEITO, O ESPELHO E O POLVILHO: REFLEXES SOBRE O DISCURSO E O PODER

    EM SUBSTNCIA DE G. ROSA E O ESPELHO DE MACHADO DE ASSIS

    por Edson Soares Martins

    Consideraes iniciais

    Iniciaremos nossas reflexes por consideraes dispersas que servem, literalmente, de pretexto sobre a relao entre discurso cientfico e sujeito, para somente depois avanar sobre a discusso do estatuto do sujeito na Anlise do Discurso e no Marxismo. Da abordagem exploratria destes elementos tericos, partiremos, na ltima sesso do texto, para o objetivo principal de nosso estudo, que se constitui um esboo de leitura dos conto O espelho (Esboo de uma nova teoria da alma humana), de Machado de Assis, e Substncia, de Guimares Rosa, luz dos pressupostos discutidos ao longo das primeiras sees deste ensaio.

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    Iniciar por esta contraposio entre subjetividade e discurso cientfico, apesar do aparente contra-senso metodolgico, pode ser bastante produtivo, sobremaneira porque os tpicos que norteiam a discusso entre objetividade e subjetividade no discurso cientfico permitem, no caso delimitado de nosso objetivo, uma nitidez conceitual no somente desejada como indispensvel. Desnecessrio tambm dizer, em face desse mesmo objetivo, que no se pretende nenhum resultado original ou conclusivo. Pelo contrrio, ficaremos muito satisfeitos se, ao final dessa tentativa, pudermos fixar minimamente a nossa hiptese de que

    a categoria sujeito nesses dois campos do saber ainda constitui um tpico de investigao desafiador, cuja potencialidade heurstica pode ter muito a contribuir com o campo dos estudos literrios.

    As margens do discurso cientfico e sua instncia falvel

    Depreende-se do discurso cientfico uma condio interna, que a de sua veridico, ampliando nossas categorias iniciais, portanto, para subjetividade, discurso cientfico e verdade. Nesse momento inicial, tomaremos os trs termos em um sentido inconvenientemente amplo. Por discurso,

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    entenderemos tanto os esquemas mentais prprios da atividade cientfica como a sua textualizao. Sob a consigna de subjetividade, depositaremos no somente a condio do indivduo atravessado por aqueles esquemas mentais, como tambm uma condio abstrata do fazer cientfico que denominaremos, por oposio categoria transparente da verdade, como instncia da falibilidade virtual do discurso cientfico. Passemos aos argumentos.

    O fato de que todo o progresso cientfico, como nos adverte Gramsci (1978, p. 66), consistiu no fato de que novas observaes e experincias corrigiram as

    experincias e observaes precedentes, suficiente, por enquanto, para indiciar que a verdade existe independentemente do sujeito que sobre ela pensa ou se pronuncia. Ela desmentida quando se corrige a teoria ou os resultados da aplicao da teoria pelo pesquisador, mas sempre confirmada dentro do sistema totalizante que se ergue para alm das teorias e de sua aplicao. Esse sistema a prpria cincia ou a formao discursiva da cincia ou da veridico cientfica.

    Se considerssemos, por mero exerccio especulativo, a possibilidade de a verdade encontrar-se no discurso sistematizado sobre o real e no no real em si , estaramos dispostos tambm a admitir que no so os fenmenos, mas as intuies

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    fantsticas do indivduo o verdadeiro objeto da cincia e que aquilo a que chamamos progresso nada mais era que o cortejo daquelas coruscantes intuies de sujeitos brilhantes? Assim nos parece, no que diz respeito ao desenvolvimento histrico da teorizao sobre a estrutura do tomo, por exemplo! Caem por terra discursos seculares, mas no se imputa (nem se deveria imputar) Fsica a acusao de ser incapaz de descrever, de modo confivel, a natureza e suas leis.

    Como se colocaria, no termos da existncia de uma verdade interna ao fazer cientfico, o problema daquilo que no se conhece hoje e que ser conhecido amanh? No deveria estar toda a v