limites da adaptação do missionário - héber negrão

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LIMITES DA ADAPTAÇÃO DO MISSIONÁRIO Bases Teóricas para a Adaptação Todos nós sabemos que para que o missionário pregue o Evangelho de maneira efetiva no campo é necessário que ele se adapte culturalmente a ponto de conhecer a cultura bem o suficiente para poder transmitir a mensagem de maneira inteligível. Esse é a principal tarefa do missionário: comunicar o Evangelho de modo compreensível culturalmente para o povo evangelizado. A maneira como esta adaptação cultura ocorre é bem variada e algumas vezes controversa. Paul Hiebert em seu livro “O Evangelho e a Diversidade das Culturas” trata com muita propriedade o tema da adaptação do missionário no campo e como a cultura para onde ele foi enviado influencia nesta adaptação. Hiebert divide a cultura em três níveis. O nível cognitivo que está relacionado aos conhecimentos compartilhados pelos indivíduos e o modo como estes conhecimentos são obtido. O nível afetivo que trata de gostos pessoais e maneiras de expressar os sentimentos. Por fim o nível avaliador que fala dos elementos culturais pelos quais os indivíduos de uma cultura são julgados e avaliados. É interessante o paralelo que este autor faz ao tratar da identificação do missionário na nova cultura. Segundo ele existem empecilhos em cada uma dessas dimensões que interferem na identificação do missionário. No nível 1

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Quais os limites para a adaptção do missionário no campo? Até onde ele pode ir para se identificar com o povo? Essa e outras perguntas são respondidas neste artigo.

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Page 1: Limites da adaptação do missionário - Héber Negrão

LIMITES DA ADAPTAÇÃO DO MISSIONÁRIO

Bases Teóricas para a Adaptação

Todos nós sabemos que para que o missionário pregue o Evangelho de

maneira efetiva no campo é necessário que ele se adapte culturalmente a ponto de

conhecer a cultura bem o suficiente para poder transmitir a mensagem de maneira

inteligível. Esse é a principal tarefa do missionário: comunicar o Evangelho de modo

compreensível culturalmente para o povo evangelizado. A maneira como esta adaptação

cultura ocorre é bem variada e algumas vezes controversa.

Paul Hiebert em seu livro “O Evangelho e a Diversidade das Culturas” trata

com muita propriedade o tema da adaptação do missionário no campo e como a cultura

para onde ele foi enviado influencia nesta adaptação. Hiebert divide a cultura em três

níveis. O nível cognitivo que está relacionado aos conhecimentos compartilhados pelos

indivíduos e o modo como estes conhecimentos são obtido. O nível afetivo que trata de

gostos pessoais e maneiras de expressar os sentimentos. Por fim o nível avaliador que

fala dos elementos culturais pelos quais os indivíduos de uma cultura são julgados e

avaliados.

É interessante o paralelo que este autor faz ao tratar da identificação do

missionário na nova cultura. Segundo ele existem empecilhos em cada uma dessas

dimensões que interferem na identificação do missionário. No nível cognitivo o

missionário encontra dificuldades ao enfrentar mal-entendidos culturais que seria

causado pelo pouco conhecimento da cultura onde ele está inserido. O etnocentrismo é a

barreira no nível emocional. Para o autor “a raiz do etnocentrismo é a nossa tendência

humana de reagir à maneira das outras pessoas utilizando nossos próprios pressupostos

afetivos e reforçar essas respostas com profundos sentimentos de aprovação ou

desaprovação.” (HIEBERT, p.97). No nível avaliador a dificuldade está nos

julgamentos prematuros que o missionário faz ao entrar na nova cultura ao encarar a

nova sociedade como se já soubesse tudo sobre ela.

Ele também destaca algumas dificuldades que o missionário enfrenta quando

chega ao campo especificamente tratando das diferenças culturais. Uma delas é o

choque cultural que ocorre quando o missionário se vê vivendo em outra cultura tendo

que lidar com diferenças alimentares, sociais, econômicas. Indo rumo identificação o

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missionário encontra várias ferramentas úteis que o ajudarão a superar o choque cultural

inicial. Desenvolver a confiança é uma dessas ferramentas que eu gostaria de me ater

para uma reflexão. O autor nos diz que “o passo mais importante ao entrar em uma nova

cultura é desenvolver a confiança. Só quando as pessoas confiarem em nós é que

ouvirão o que temos para dizer” (ibid, p.83). Uma das maneiras apresentadas por ele

para que essa confiança seja conquistada é que as pessoas alcançadas precisão ter

motivos válidos para virem até nós.

Além de Paul Hiebert, muitos outros missionários têm trabalhado o tema da

adaptação do missionário no campo. Um dos mais debatidos e questionados tem sido o

modelo de contextualização de um missionário que trabalha entre povos muçulmanos e

usa o nome fictício de John Travis para não se comprometer. Ele escreveu sobre 6 tipos

de comunidades cristocêntricas que apresentam níveis diferentes de contextualização.

Seu público alvo ao escrever o artigo eram comunidades árabes, mas Jairo de Oliveira e

Barbara Burns adaptaram aquele contexto e os expuseram de maneira mais geral.

Considerando a importância de um registro original destes “Espectros C1 a

C6”1 vou expor abaixo cada um dos níveis de contextualização baseado no texto

original de Travis, entretanto acredito ser mais útil estabelecer uma comparação

relacionando o modelo de Travis com o conteúdo adaptado de Barbara Burns.

John Travis Bárbara BurnsC1 Igrejas tradicionais utilizando linguagem dos de fora: podem ser

igrejas tradicionais encontradas no mundo muçulmano. Todos adoram a Jesus como Senhor e os principais elementos do Evangelho são os mesmos para todos. Aqui encontramos uma grande lacuna cultural entre a igreja e a comunidade islâmica em que está inserida. Os crentes se denominam “cristãos”.

De maneira mais geral o missionário leva suas próprias formas de culto, comunicação e estilo de vida e impõe ao povo evangelizado

C2 Igrejas tradicionais utilizando a linguagem dos de dentro: praticamente igual ao C1, exceto pelo linguajar falado. Apesar de usarem termos comuns para os muçulmanos a distância cultural entre o C2 e a comunidade ainda permanece grande. A maioria das igrejas cristãs no mundo islâmico é encontrada nestas categorias C1 e C2.Os crentes se denominam “cristãos”.

Somente a linguagem se adapta ao contexto do povo evangelizado. Os crentes são chamados de ‘cristãos’.

C3 Comunidades cristocêntricas contextualizadas usando a linguagem dos de dentro e elementos culturais neutros dos de dentro: as formas culturais neutras utilizadas pelo C3 podem ser a música, artes, vestimentas, etc. Os elementos islâmicos são filtrados e reinterpretados para poderem ser usados no culto cristão. O objetivo deste grupo é mostrar o evangelho como uma mensagem própria para o povo e assim diminuir a distância que normalmente existe. Os crentes do C3 se denominam “cristãos”.

Comunidades cristocêntricas usam linguagens e formas culturais neutras. Os missionários vivem mais próximos do povo mas rejeitam as práticas que são antibíblicas.

C4 Comunidades cristocêntricas contextualizadas usando linguagem dos de dentro e formas islâmicas possíveis: esse grupo é muito semelhante ao C3, porém faz uso de práticas religiosas dos muçulmanos que são

Comunidades cristocêntricas que usam formas religiosas da

1 Nome do artigo original escrito por John Travis

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permissíveis biblicamente, como fazer orações com as mãos levantadas, guardar o jejum, não comer carne de porco e usar expressões religiosas do islamismo. Apesar de serem cristãs, essas pessoas são vistas como muçulmanas pela comunidade islâmica. Eles se autodenominam seguidores de Isa2, o Messias

própria cultura, desde que não seja antibíblica.

C5 Comunidades cristocêntricas de muçulmanos messiânicos que aceitaram a Jesus como Senhor e Salvador: os crentes são bem aceitos na sociedade islâmica, as doutrinas da teologia islâmica que são incompatíveis coma Bíblia são rejeitadas. Tem encontros regulares com outros cristãos e compartilham sua fé cristã com muçulmanos. Os crentes C5 são considerados muçulmanos pela comunidade se denominam muçulmanos seguidores de Isa, o Messias.

Rejeita quase todas as formas tradicionais e bíblicas do cristianismo e identificando quase que completamente com o povo evangelizado.

C6 Pequenas comunidades cristocêntricas subterrâneas: são perseguidos e por isso fazem suas reuniões de adoração secretamente. Não compartilham sua fé cristã abertamente e são vistos como muçulmanos pela comunidade e identificam-se como muçulmanos.

Já não deixa o povo com quase nenhuma identidade cristã. São crentes secretos e perseguidos.

Segundo Travis o “objetivo do espectro é dar assistência a plantadores de

igrejas e crentes vindos do islamismo, para que descubram que tipo de comunidade

cristocêntrica pode conduzir o maior número de pessoas do grupo-alvo para Cristo e que

melhor se ajusta em determinado contexto.” (TRAVIS, p.690)

Exageros na Adaptação

Phil Parshall escreveu um artigo intitulado “Indo longe demais” para tentar

dialogar com a estrutura de contextualização sugerida por John Travis. Ambos

trabalharam como missionários em contextos de islamismo3. O Dr. Parshall argumenta

que exagerar no nível de identificação com um povo pode ser perigoso. Para ele é

seguro andar entre os níveis C1 e C4 pois, nestes setores, a Bíblia ainda se mantém

acima da cultura e é considerada parâmetro da ação missionária. O ideal seria caminha

progressivamente do C1 ao C4 em busca de uma igreja cada vez mais contextualizada.

Os que fazem uso do nível C5, segundo o autor, são tendenciosos a cair no sincretismo

religioso. Em suas próprias palavras observamos:

Aceito a idéia de que C1 começa numa contextualização baixa e trabalha gradualmente até chegar ao C4, no alto. Tudo dentro desse setor é legítimo, desde que fundamentado pelo constante uso de referências cruzadas e sujeito à verdade bíblica. O C5 pode ser situado em qualquer lugar ao longo do espectro do sincretismo, dependendo de como cada questão é apresentada e entendida pela comunidade muçulmana. (PARSHALL, p. 689)

2 Isa é o nome que os muçulmanos dão a Jesus.3 Eventualmente o contexto islâmico será utilizado como exemplos quando este autor for referido.

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O Dr. Phil Parshall faz um interessante paralelo entre as vantagens e as

desvantagens do método C5 entre os muçulmanos. Segundo a entrevista que ele

elaborou com alguns cristãos C5 foi notável o quanto eles valorizavam a leitura no NT e

as reuniões nas casas para adorarem a Alá. Havia uma compreensão de que Alá os

amava e de que Isa havia morrido por eles para perdoar seus pecados acreditando ser ele

o único Salvador. As desvantagens mostradas na pesquisa é que estes irmãos

identificavam quatro livros sagrados4 e destes o mais importante era o Alcorão. Boa

parte dos entrevistados freqüentava regularmente a mesquita e alegavam que Maomé

era um profeta de Deus. Quase metade das pessoas entrevistadas não cria na Trindade.

John Travis escreveu o artigo “Todos os muçulmanos devem deixar o islã para

seguir a Jesus?” para justificar o uso do método de contextualização C5 entre os povos

muçulmanos. Para ele a salvação pela fé em Cristo é muito mais importante do que a

religião que determinada pessoa segue. “Afirmamos que as pessoas são salvas pela fé

em Cristo, e não por fazerem parte de uma religião. Os seguidores muçulmanos de

Cristo (isto é, os crentes C5) são nossos irmãos e irmãs no Senhor, embora nunca

mudem de religião.” (TRAVIS, p.694)

Ele continua seu artigo afirmando que é mais fácil um islâmico freqüentar uma

reunião na casa de um crente C5 onde a Bíblia é estudada do que se algum missionário

fosse tentar fazer isso. Segundo este autor os cristãos C5 são provenientes de grupos

resistentes e que para ter uma perspectiva mais adequada de sua conversão o que deve

ser avaliada é a vida destes cristãos e não necessariamente a sua teologia.

John Travis continua a explicação de seu método C5 mostrando que é possível

não somente a existência de cristãos nesse nível de contextualização como também de

missionários C5, ou seja, quando alguém se torna um muçulmano para alcançar os

muçulmanos. Ele defende essa posição dizendo que “esses missionários seriam

muçulmanos no sentido árabe literal da palavra (‘submissos a Deus’), e sua teologia irá

diferenciar, naturalmente, da teologia muçulmana padrão em vários aspectos

fundamentais.” (ibid, p. 969). Ele conta com sua experiência para mostrar que a maioria

dos islâmicos teria uma grande barreira para ouvir o evangelho vindo de um missionário

ou amigo cristão, por isso o método C5 tem o objetivo de comunicar a salvação em

Cristo sem forçar o muçulmano a mudar de religião.

4 Os quatro livros são a Tora (Lei), o Zabur (Profetas), o Injil (Evangelhos) e o Alcorão, sendo que os 3 primeiros são os que compões a Bíblia cristã.

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John Travis coloca a fé em Cristo e a vida cristã acima da identidade religiosa

e dos ensinos das Escrituras se levarmos em consideração uma vida cristã que produza

frutos notáveis de arrependimento e conversão. Para ele se dificuldade maior de um

muçulmano se converter ao Senhor é somente a teologia então é mais importante

procurar um jeito de aceitar muçulmanos convertidos, mas que continuam muçulmanos.

Em suas palavras:

Se o único grande impedimento para o muçulmano abraçar a fé em Cristo não é teológico (aceitar a Cristo como Senhor), mas cultural e de identidade religiosa (isto é, abandonar a comunidade islâmica), talvez a maior parte de nossa energia missiológica deva ser dedicada à busca de um caminho pelo qual ele possa permanecer muçulmano, porém vivendo como verdadeiro seguidor do Senhor Jesus. (ibid, p. 697)

Bases Bíblicas para Adaptação

Barbara Burns mostra qual deve ser o nosso padrão para avaliarmos até que

ponto um missionário pode se identificar em uma cultura. Ele defende muito

apropriadamente que a Bíblia deve ser o nosso ponto de partida para qualquer discussão

que tivermos sobre este assunto. Existem muitos missionários realmente comprometidos

com uma contextualização apropriada e bíblica, mas existem também muitos

missionários que estão mais tendenciosos a anular a Bíblia para que suas suposições

culturais sejam confirmadas. Eles preferem adaptar a Bíblia ao modelo cultural da

comunidade em que estão inseridos baseados no argumento que tudo é válido para

comunicar o Evangelho. Segundo Burns “há alguns que estão dispostos a abrir mão de

todo o ensino bíblico para começar a construir uma teologia a partir do zero na nova

cultura. Estes têm a intenção de preservar a cultura inclusive a religião do povo

receptor, a qualquer custo.” (BURNS, p. 96)

Nosso maior modelo de encarnação e adaptação a um povo completamente

diferente foi o Senhor Jesus. Ele não teve que abandonar somente seus costumes. Ele

decidiu abrir mão de seus privilégios de ser Deus para habitar entre nós, seres inferiores

e criados. Quando entendemos que o próprio Deus veio armar sua tenda para morar

entre nós, conviver conosco, conhecer nossos defeitos e ainda assim, depois de tanta

convivência ainda estar disposto a morrer por essa raça inferior devemos nos sentir

constrangidos quando não abrimos mão de nossos direitos como missionários entre

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outros povos. Devemos olhar para o exemplo de Cristo e nos esvaziar completamente de

nós mesmos em prol do povo que queremos alcançar.

Outro grande exemplo de missionário no Novo Testamento que se identificou

muito bem com a cultura que evangelizava foi Paulo. Ele era judeu do partido dos

fariseus, mas também profundo conhecedor da mentalidade e filosofia grega. Foi para

este povo que o Senhor lhe chamou para servir como missionário. Esse deve ser um dos

modelos para quem devemos nos espelhar quando pensarmos em adaptação cultural e

contextualização da mensagem que vamos levar.

A visita de Paulo e Barnabé a Listra nos fornece um exemplo esclarecedor dos

limites que os missionários devem respeitar ao chegar ao campo [At 14]. Listra era uma

cidade agrícola e muito idólatra. Seus habitantes veneravam os deuses Zeus e Hermes

que, segundo uma lenda antiga, já haviam visitado aquela cidade, no entanto não foram

bem recebidos deixando os moradores sofrendo sérios castigos. Os habitantes de Listra,

desde então, vinham esperando que os deuses retornassem novamente para lhes dar o

devido tributo.

O primeiro evento ocorrido em Listra quando Paulo e Barnabé chegaram foi a

cura de um aleijado desde o nascimento. O paralítico saiu em grande alegria dando

testemunho de sua cura e todos que o conheciam observaram aquela situação extasiados

reconhecendo – baseado em seus próprio contexto histórico – que os deuses haviam

chegado até eles novamente. Bertil Ekström diz que “a interpretação do povo foi de

acordo com o seu conhecimento certamente usando seu referencial de lendas já

mencionadas acima. Só poderiam ser deuses que estavam aparecendo daquela forma

milagrosa.” (EKSTRÖM, p.19)

Nesse momento Paulo e Barnabé, ao invés de se identificarem como aqueles

deuses ou como os mensageiros do verdadeiro Deus5, deixaram de lado aquela possível

associação cultural para se mostrarem tão humanos quanto aquelas pessoas, e que

estavam representado o Deus Criador dos céus e da terra. É possível que o resultado de

uma possível identificação dos missionários com os deuses do povo tivesse um efeito

ainda maior do que o que aquele gerado na ocasião, mas Paulo preferiu deixar essa

associação cultural errada e se apresentar ao povo de uma maneira diferente, mesmo que

não fizesse tanto sentido para aquela cultura.

5 Era bem possível se identificar como mensageiros, uma vez que um dos deuses adorados ali era Hermes, o mensageiro dos deuses do Olimpo.

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O apóstolo Paulo era também um excelente construtor de pontes culturais.

Para que ele pudesse ter acesso ao povo e levar uma mensagem que pudesse ser bem

compreendida ele baseava seus ensinamentos em elementos culturais que o povo tinha

certa familiaridade para, em seguida, trazer a verdade de Deus. Abaixo estão alguns

exemplos:

Em Antioquia da Pisídia [At 13.16-41]: nessa ocasião Paulo pregou em uma

sinagoga onde a maioria dos participantes era judia que conheciam a história do povo de

Israel, guardavam suas leis e adoravam a Jeová, o Deus verdadeiro. É interessante

observar que Paulo iniciou seu sermão elogiando os judeus daquela cidade por adorarem

ao Deus verdadeiro e não criticando por não aceitarem a divindade de Jesus. Os

principais pontos de contato usados por Paulo em sua mensagem na sinagoga foram:

A crença num único Deus que havia se revelado a Israel Conhecimento do Antigo Testamento que consideravam Palavra Inspirada do

próprio Deus Conhecimento da história de Israel Obediência a Lei de Moisés como sendo os mandamentos de Deus Esperança no Messias prometido pelos profetas Crença no dia do julgamento divino Conhecimento de João Batista Conhecimento sobre a vida de Jesus de Nazaré

Em Atenas [At 17.22-31]: nesta cidade a situação já era bem diferente. As

pessoas a serem evangelizadas naquele lugar não tinham os mesmos pressupostos

religiosos que as de Antioquia. Eles não praticavam o monoteísmo, e não havia um

conceito messiânico entre eles, não esperavam ninguém que pudesse salvá-los, nem

mesmo acreditavam que precisavam de salvação. Por isso Paulo utilizou uma

abordagem diferente.

Como já vimos, Paulo não começou atacando o repugnante politeísmo dos

atenienses, nem começou a falar desprezando-os ou menosprezando-os. Em outras

palavras: Paulo não chegou a eles com o pensamento “o que está errado na maneira

deles pensarem?”, ou “ como posso atacar as idéias e o modo de vida deles?”. Pelo

contrário, a idéia inicial de Paulo foi perguntar “o que está correto na maneira de pensar

dos atenienses?” e “o que eu posso elogiar do seu estilo de vida?”. Paulo chegou com a

mente e o coração abertos, com predisposição para amá-los e a mostrar-lhes o

evangelho a partir de pontos positivos da visão de mundo deles. As pontes utilizadas por

Paulo foram para comunicar o evangelho foram:

Eram pessoas religiosas

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Tinham um grande desejo de adorar e conhecer a Deus Acreditavam que Deus é maior e mais poderoso que as pessoas Acreditavam que Deus não é dependente de ofertas dos humanos Entendiam que Deus não precisa de uma casa para morar Valorizavam a dignidade humana, aceitando que existe uma qualidade divina

nos seres humanos. Por fim Paulo lhes deu a conhecer o Deus até então desconhecido.

Além desses elementos culturais Paulo conhecia profundamente a maneira de

pensar dos gregos e usou este conhecimento para expor o Evangelho em Atenas. Paulo

citou dois pensadores gregos: Epimênedes e Aratus [At 17.28]. Fez alusão ao Deus

desconhecido, mais um deus do panteão grego [At 17.23]. Ele tinha familiaridade com o

pensamento estóico e epicureu de que Deus não precisa dos favores dos homens [At

17.25]

Paulo também conhecia profundamente o vocabulário e os métodos de

comunicação destes dois povos. A tabela abaixo demonstra como o apóstolo usou

palavras chaves para expor o Evangelho:

Judeus e gentios prosélitos em AntioquiaAt 13.16-41

Na Colina de Marte com os AteniensesAt 17.22-31

Deus v.16,17,21,26,30,33,34,37 – Paulo usa o termo de vasto conhecimento dos judeus e gentios prosélitos para se referir ao Senhor Deus.

“O divino” vv.23,29 – Paulo iniciou com esta expressão usada pelos gregos ao se referirem a alguma divindade. No entanto aprofundou o assunto sobre Deus se referindo a Ele como “Criador” e “Juiz de todas as coisas” no fim do seu discurso.

Jesus v.23 – além deste nome, Paulo menciona outras duas referências a Jesus familiares aos judeus: Salvador e Promessa

“o varão” v.31 – os gregos não conheciam Jesus Cristo, então Paulo se referiu a ele com um termo grego utilizado para “homem”.

Citações do Antigo Testamento vv.34,35,41 – Paulo cita dois salmos (Sl 2 e 15) e um profeta (Habacuque)

Citações literárias v.28 – ele citou dois poetas gregos em sua exposição: Epimênedes e Aratus.

Estilo literário – Paulo usa uma narrativa com levantamento de dados históricos do povo de Israel pra comprovar a que Jesus é o Messias.

Aliterações com a letra “p” – isso tornou o estilo do discurso de Paulo mais elevado e culto no grego clássico

Termos judaicos – Paulo usando símbolos do povo judeu e mencionando personagens e fatos importantes na história da nação.

Termos gregos – Paulo utilizou diversas outras expressões exclusivamente gregas em seu discurso na Colina de Marte.

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Estudo de Caso

Suruwahá

Os missionários de Jovens com uma Missão (JOCUM) quando entraram para

trabalhar com o povo Suruwahá tinham o objetivo claro de tentar encontrar um sentido

para o Evangelho para que uma cultura animista e isolada pudesse compreendê-lo como

sendo próprio para ela. Para isso eles decidiram viver uma vida muito próxima do povo,

em anos de imersão cultural por aproximadamente dez anos. “Moravam todos nas

malocas junto com os índios, comiam a comida suruwahá esse aqueciam a noite ao

fogo, vestiam tangas de algodão, dançavam no meio das malocas nas festas” (SUZUKI,

p. 126)

Tendo sido aprofundado este relacionamento com os indígenas, os

missionários da JOCUM decidiram que seguir o padrão tradicional não seria

interessante para um povo como os Suruwahá que estavam isolados e que viviam um

momento histórico muito sensível por causa do costume que os jovens tinham de se

suicidar. Para citar as próprias palavras da missionária: “os roteiros tradicionalmente

propostos, como aprendizagem da língua, seguida de elaboração de ortografia,

programa de educação bilíngüe, tradução do Novo Testamento, implantação de igreja,

etc, pareciam não se aplicar [...]. Qualquer mudança social ou de paradigmas que fosse

introduzida de maneira brusca poderia agravar o etno-trauma e acelerar esse processo de

autodestruição.” (ibid, p. 128)

Apesar dessa preocupação dos missionários, surgiu um grupo de cristãos

indígenas naquela sociedade, ainda que ele não pudesse ser percebido pelos olhos

externos àquela cultura. Esses cristãos tiveram um encontro real com o Jesus e o

reconhecem como Senhor de suas vidas, no entanto existem elementos controversos

quando tentamos observar os frutos de um verdadeiro cristianismo. Os cristãos

convertidos continuam mantendo práticas religiosas do seu povo, nenhum dos cristãos

indígenas afirma ter mudado de religião, até os próprios missionários são chamados

para auxiliar os pajés nas atividades de soprar a doença dos enfermos, a religião trazida

pelos missionários tornou-se tão somente uma complementação, uma atualização de sua

própria religião. “Esse ambiente de respeito mútuo permitiu que o evangelho fosse visto

não como uma religião em competição com a deles, mas como uma nova experiência

metafísica, sagrada, que poderia enriquecer e transformar suas vidas.

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Barbara Burns, ao comentar a ação destes missionários resume muito bem a

posição bíblica quanto a essa situação. “É de se admirar o esforço da equipe entre os

Suruwahá na sua identificação e contextualização [...]. No entanto parece que

excederam os limites bíblicos em adotar o que eles descrevem como uma aplicação

extrema do modelo C5.” (BURNS, p.113)

CONCLUSÃO

É necessário lembrar que nem todos os métodos criados para determinados

campos missionários são aplicáveis em outros. Apesar de ter sido amplamente difundido

esse modelo, não dá para colocar o Espectro C1 a C6 e levá-lo para outra cultura

diferente daquele para o qual ele foi elaborado. Existem aplicações de métodos

adaptados, mas nem sempre isso vai acontecer de maneira satisfatória. Se eu pudesse

escolher entre quais modelos utilizar, acredito que eu etária mais a vontade em aplicar o

C3, e usar o C4 só mesmo se a igreja autóctone se direcionar para isso.

Nossa maneira de nos inserirmos na cultura deve seguir os padrões bíblicos. O

Dr. Phil Parshall estabeleceu cinco diretrizes que ajudam o missionário a evitar o

sincretismo que acredito possam servir a nós missionários:

Devemos conhecer o que a Bíblia ensina sobre o sincretismo.

A religião do povo alcançado deve ser estudada a fundo.

É preciso que o missionário tenha uma metodologia aberta e flexível.

A contextualização precisa de análises constantes.

Os missionários precisam ter cuidado ao comunicar um evangelho que tem sido

sincrético na cultura ocidental.

Finalizo este trabalho citando um clamor sincero que o Dr. Parshall faz aos

adeptos do modelo C5. “Suplico que consideremos melhor a carga islâmica de decepção

e também as conseqüências a longo prazo de suas ações. Estou convencido de que os

missionários C5 estão pisando em solo teológico e missiológico muito instável.”

(PARSHALL, p. 693).

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BIBLIOGREFIA

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SUZUKI, Márcia. Suicídio e Contextualização na tribo Suruwahá: uma aplicação da

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TRAVIS, John. Todos os muçulmanos devem deixar o ‘islã’ para seguir a Jesus? In:

WINTER, Ralph; HAWTHORNE, Steven; BRADFORD, Kevin. Perspectivas no

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