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    Douglas Lima

    A POLISSEMIA DAS ALFORRIAS:

    SIGNIFICADOS E DINMICAS DAS LIBERTAES DE

    ESCRAVOS NAS MINAS GERAIS SETECENTISTAS

    Belo Horizonte

    Faculdade de Filosofia e Cincias Humanas

    Universidade Federal de Minas Gerais

    2014

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    Douglas Lima

    A POLISSEMIA DAS ALFORRIAS:

    SIGNIFICADOS E DINMICAS DAS LIBERTAES DE

    ESCRAVOS NAS MINAS GERAIS SETECENTISTAS

    Dissertao de mestrado apresentada ao Programa de

    Ps-Graduao em Histria da Faculdade de Filosofia

    e Cincias Humanas da Universidade Federal de Minas

    Gerais como requisito parcial para obteno do ttulo

    de Mestre em Histria.

    Linha de pesquisa: Histria Social da Cultura

    Orientador: Eduardo Frana Paiva

    Belo Horizonte

    Faculdade de Filosofia e Cincias Humanas

    Universidade Federal de Minas Gerais

    2014

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    Ficha catalogrfica elaborada pela Biblioteca da Fafich UFMG

    981.51

    L732p2014

    Lima, DouglasA polissemia das alforrias [manuscrito] : significados e

    dinmicas das libertaes de escravos nas Minas Geraissetecentistas / Douglas Lima. - 2014.

    156 f.Orientador: Eduardo Frana Paiva.

    Dissertao (mestrado) - Universidade Federal de Minas

    Gerais, Faculdade de Filosofia e Cincias Humanas.Inclui bibliografia.

    1. Histria Teses. 2. Escravido - Teses. 3. MinasGerais Histria - Teses. I. Paiva, Eduardo Frana. II.Universidade Federal de Minas Gerais. Faculdade deFilosofia e Cincias Humanas. III. Ttulo.

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    Em memria de

    Felipe Damasceno Fernandes,Serafim Aparecido dos Reis e

    Valdemiro Alves de Jesus

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    Agradecimentos

    Esta dissertao fruto de um longo trabalho, que se iniciou nos meus primeiros

    perodos de graduao, em 2008. Recm-chegado do interior de Minas Gerais, tendo passado

    a adolescncia entre Capelinha e So Joo Evangelista, de repente encontrei-me estudante de

    Histria na UFMG, em Belo Horizonte. Munido somente da cara e da coragem, concorri e fui

    selecionado para participar de um projeto de pesquisa com bolsa de iniciao cientfica, sob

    orientao do professor Eduardo Frana Paiva, o qual, desde ento, tem sido uma presena

    constante na minha formao como historiador. Com ele aprendi a valorizar os detalhes, que

    tantas vezes passam despercebidos na anlise historiogrfica. Eduardo demonstrou uma

    enorme pacincia com meus atrasos e foi muito compreensivo no momento mais difcil da

    minha vida. Sua leitura cuidadosa dos meus textos, as dezenas de livros de difcil acesso que

    me emprestou e as oportunidades nas quais discutimos minhas ideias foram fundamentais

    para que eu pudesse escrever as pginas que seguem.

    Agradeo Fundao de Amparo Pesquisa de Minas Gerais (FAPEMIG) pelo

    auxlio financeiro que me concedeu por nove meses, durante o perodo do mestrado. O

    Conselho Nacional de Desenvolvimento Cientfico e Tecnolgico (CNPq) tambm teve

    participao decisiva na minha formao acadmica, pois fui bolsista de iniciao cientfica

    desta agncia de fomento ao longo de toda graduao.

    A maior parte da base documental deste trabalho custodiada pela Casa Borba Gato,

    arquivo atualmente ligado ao Instituto Brasileiro de Museus (IBRAM), em Sabar. Foi l

    onde tive os meus primeiros contatos com fontes manuscritas. Carla Berenice Starling de

    Almeida, funcionria da instituio, ajudou-me a compreender as garatujas dos tabelies do

    sculo XVIII, guiando-me com seu enorme conhecimento e experincia. Aps esses anos de

    convivncia, Carla agora uma amiga, uma interlocutora e uma colega de ps-graduao.Estendo meus agradecimentos aos outros funcionrios da Casa Borba Gato, e tambm do

    Museu do Ouro, que de vrias formas tornaram possvel o acesso s fontes.

    Registro minha gratido para com os diversos professores que, do primrio

    universidade, partilharam comigo o seu saber. Na UFMG, agradeo a Douglas Cole Libby, a

    Ktia Gerab Baggio, a Luiz Carlos Villalta, a Tarcsio Rodrigues Botelho, a Luiz Arnaut e a

    Regina Helena Alves Silva. Fao meno especial a Jos Newton Coelho Meneses e a

    Vaniclia Silva Santos, que me ofereceram sugestes enriquecedoras, nas disciplinas queministraram e no exame de qualificao deste trabalho. As aulas com os professores Manuel

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    F. Fernndez Chaves e Rafael M. Prez Garca, da Universidad de Sevilla, tambm

    contriburam para alargar minha viso acerca dos temas aqui discutidos e investigados.

    O pessoal da Oficina de Paleografia UFMGtambm se tornou muito presente nos

    ltimos anos. Tenho grande orgulho de participar desta iniciativa discente e colaborativa, que

    rendeu crescimento acadmico e amigos, os quais cito: Fabiana Lo, Gabriel Chagas, Gislaine

    Gonalves, Igor Rocha, Leandro Rezende, Ludmila Torres, Luiza Parreira, Maria Clara C. S.

    Ferreira, Mateus Frizzone, Mateus Rezende e Rodrigo Paulinelli. A eles, que so colegas de

    ps-graduao, ou que em breve estaro no mestrado ou no doutorado, acrescento tambm

    Fabrcio Vinhas, Marileide Cassoli, Cssio Rocha, Walderez Ramalho, Valquria Ferreira da

    Silva, Dbora Cazelato, Kellen Silva, Inez Martins e Natlia Ribeiro.

    Tenho uma enorme lista de amizades, feitas em Capelinha, So Joo Evangelista eBelo Horizonte. Na impossibilidade de apontar nominalmente a todos os meus amigos, reitero

    minha gratido pelo companheirismo e pelos momentos de farra e descontrao. Agradeo

    especialmente a Tadeu Oliveira, Jhonathan Consolao, Renato Zanetti, Josiel Costa, Daniel

    Lopes, Suelen Perptuo, Camila Alkimin, Rafael Fonseca, Allan Fagner, Heverton Pereira,

    Reginaldo Ferreira, Rafael Bicalho e Elivelto Guimares. Seria injusto da minha parte caso

    me esquecesse de Sueli e das minhas primas Aline e Cntia, que generosamente me acolheram

    um tempo em Belo Horizonte. Os colegas e amigos da Moradia Universitria da UFMG, doMovimento Muda Capelinha, da Fundao Artes & Ofcios (Belo Horizonte) e da Escola

    Estadual Paula Rocha (Sabar) tambm foram importantes na minha caminhada.

    Lucila, minha me, tem sido uma fortaleza, na qual me inspiro constantemente.

    Mesmo distncia, seu afeto sempre me acompanha. Meus irmos Vanessa, Eduardo e

    Gustavo tambm so baluartes e companheiros da vida inteira. Nossas cantorias desafinadas

    em Capelinha tornaram-se mais raras, mas quando acontecem so ainda grandes momentos de

    fraternidade e brincadeiras. A finalizao deste trabalho ocorre no momento em que apequena Sofia, minha primeira sobrinha, d seus primeiros passos. A propsito, os passos que

    compartilho com Lvia tornam os meus dias melhores. Sem o seu carinho, minha vida teria

    menos graa e no sei o que seria desta dissertao.

    Dedico este trabalho memria de Felipe Damasceno Fernandes, de Serafim

    Aparecido dos Reis e de Valdemiro Alves de Jesus. Os trs, de formas diferentes,

    contriburam tanto para minha formao humana quanto para a idealizao e execuo do

    presente trabalho.

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    Na transcrio das cartas e escrituras de alforria, trabalhei com Felipe Damasceno

    Fernandes. Devo uma parte substancial das reflexes aqui apresentadas a nossas discusses e

    investigaes conjuntas. Com Felipe, tambm iniciei um grupo de estudos que inspirou a

    posterior criao da Oficina de Paleografia UFMG.Seu precoce desaparecimento, em um

    triste novembro de 2010, no apagou a memria da sua dedicao e da sua alegria

    contagiante.

    Meu tio Serafim, ao lado da minha tia Stael e dos meus primos Vincius, Lucas e

    Pedro, recebeu-me na sua casa, quando me mudei para Belo Horizonte. As lembranas da sua

    generosidade e das suas risadas abrandam um pouco a tristeza provocada por sua perda

    irreparvel, em abril de 2011.

    Este trabalho j estava em processo de escrita, quando meu pai Valdemiro faleceu, aos49 anos, em maro de 2014. Tive que juntar os cacos para poder conciliar minha vida, meu

    trabalho e o desenvolvimento desta dissertao com o luto e a dor experimentados nos ltimos

    meses. Apesar da sua ausncia fsica, ainda sinto sua pulsao. Creio que este trabalho reflete

    muito dos seus ensinamentos e do seu ideal de vida: ser simples e humilde de corao.

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    Resumo

    Esta pesquisa tem o objetivo de investigar os significados e as dinmicas das alforrias

    registradas em Livros de Notas, na antiga Comarca do Rio das Velhas, sobretudo na regio da

    Vila de Sabar, Minas Gerais, entre 1711 e 1740. Para isto, foi utilizada uma metodologia

    comparativa e qualitativa, em um projeto que demandou a leitura e a transcrio integral dos

    registros consultados. As anlises no visam os padres demogrficos e econmicos das

    alforrias, mas compreender seus aspectos jurdicos e cotidianos, em grande medida

    interligados com experincias escravistas de outros tempos e regies. A partir desta

    perspectiva, busca-se enfatizar questes que costumam passar despercebidas em modelos de

    pesquisa mais preocupados em responder a questionamentos de ordem quantitativa. Isto

    permitiu separar as alforrias notariais em duas modalidades: cartas e escrituras. Tambm

    possibilitou o entendimento da importncia de se registrar tais documentos e dos personagens

    envolvidos nos processos. No esforo de maior contextualizao do tema, ao longo do

    trabalho assuntos como as diferentes percepes a respeito das alforrias e as identidades e

    origens dos libertos ocupam espaos relevantes.

    Palavras-chave: Alforria, Escravido, Sabar, Comarca do Rio das Velhas, Minas Gerais,

    Sculo XVIII

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    Abstract

    The aim of this study is to investigate the meanings and the dynamics of the notarized

    manumissions, in the Comarca do Rio das Velhas, especially in the region of the Town of

    Sabar, Minas Gerais, among 1711 and 1740. To achieve the proposed objective, comparative

    and qualitative methodologies have been used, in a project that demanded integral reading and

    transcription of the registers found. The analysis do not aim the demographic and economic

    targets of the manumissions, but the understanding of its legal and daily aspects, connected to

    a great extent, to slavery experiences of other times and regions. From this point of view,

    unnoticed questions in other research models, that aim to answer quantitative questions, are

    emphasized. This has allowed to identify two modalities of notarized manumissions: cartas

    (letters) and escrituras (scriptures). It also allowed the understanding of the importance of

    the documentation register and of the characters involved in the process. In the effort to a

    broader contextualization of the subject, throughout the research, aspects like different

    perceptions about the manumissions and identities and origins of the freedmen occupy

    relevant spaces.

    Keywords: Manumission, Slavery, Sabar, Comarca do Rio das Velhas, Minas Gerais,

    Eighteenth Century

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    Sumrio

    12Abreviaturas e siglas

    13Introduo

    13As duas cartas de alforria de Marcella

    17Alforrias em Sabar, no sculo XVIII

    25Captulo 1 Os significados das alforrias

    25Entre prtica e conceito: as alforrias na historiografia

    32 A escravido, as alforrias e os libertos na tradio jurdica e cultural ibero-

    americana

    45Formulrios de redao e protocolos das alforrias notariais

    54 Captulo 2 As especificidades das alforrias registradas em Livros de Notas

    54O papel jurdico e a importncia social dos tabelies

    60Alforrias em testamentos e registros de batismos

    62As modalidades de alforria registradas em Livros de Notas

    70Cartas de alforria

    80Escrituras de alforria

    88Os requerentes e o registro cartorial de cartas de alforria

    92Alteraes de condio e de qualidade

    97 Captulo 3 Realidades cambiantes: os libertos no contexto sociocultural das Minas

    setecentistas

    97As peties para registro das cartas de alforria em Sabar (1717-1722)

    101O Conde de Assumar e a tentativa de controle das alforrias

    111As vrias faces do liberto e o dinmico mundo mineiro

    115Luzia Pinta: uma liberta capturada pelos tentculos da Inquisio

    127Concluses

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    130Fontes

    134Bibliografia

    149Anexos

    149Esquema analtico das cartas de alforria

    150Transcrio da Petio e carta de alforria de Luzia Pinta, de nao Angola

    151Esquema analtico das escrituras de alforria

    152Transcrio da Escritura de alforria de Miguel, de nao Mina

    153Transcrio do Bando de 21 de novembro de 1719

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    Abreviaturas e siglas

    AHU Arquivo Histrico Ultramarino

    ANTT Arquivo Nacional da Torre do Tombo

    APM Arquivo Pblico Mineiro

    CBG Casa Borba Gato

    CMC Cmara Municipal de Caet

    CMS Cmara Municipal de Sabar

    CPON Cartrio do Primeiro Ofcio de Notas

    CSON Cartrio do Segundo Ofcio de Notas

    f. folha

    IBRAM Instituto Brasileiro de Museus

    IPHAN Instituto do Patrimnio Histrico e Artstico Nacional

    LN Livro de Notas

    MO Museu do Ouro

    n. nmero

    p. pgina

    SC Seo Colonial

    TSO-IL Tribunal do Santo Ofcio-Inquisio de Lisboa

    v. verso/volume

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    Introduo

    Por trs dos grandes vestgios sensveis da paisagem, [os

    artefatos ou as mquinas,] por trs dos escritos aparentemente

    mais inspidos e as instituies aparentemente mais desligadas

    daqueles que as criaram, so os homens que a histria quer

    capturar.

    Marc Bloch1

    As duas cartas de alforria de Marcella

    Existem vrias maneiras de se contar e se compreender a histria dos seres humanos.

    Assim como as verses podem ser muito diferentes umas das outras, muitos so os indivduos

    que se dedicam a narr-las. Os historiadores contam suas histrias interpretando fontes e

    documentos da mais variada natureza: papis manuscritos e impressos, imagens gravadas em

    uma infinidade de suportes, acervos de museus, escavaes arqueolgicas, depoimentos orais,

    bancos de dados. Alm disso, partem de concepes tericas e metodolgicas que lhes

    permitem explicar o funcionamento de parcelas expressivas das experincias humanas no

    transcorrer do tempo.Este trabalho nasceu do estudo de frgeis documentos manuscritos do incio do sculo

    XVIII. Ao longo de cinco anos, em inmeras visitas Casa Borba Gato, um maravilhoso

    arquivo localizado em Sabar, Minas Gerais, li e transcrevi ipsis litteriscentenas de cartas e

    escrituras de alforria, que agora me permitem escrever estas pginas. Muitas proposies e

    interpretaes aqui apresentadas no so novas. Esta a vantagem de se assentar nos ombros

    de gigantes, no caso os vrios historiadores que por todo sculo XX sobretudo nas trs

    dcadas finais se dedicaram a analisar a escravido e suas implicaes no Brasil e outraspartes das Amricas, da frica e da Europa durante a Idade Moderna. Pela prpria

    especificidade das fontes consultadas, no foi possvel acompanhar todos os momentos

    individuais dos personagens aos quais me dediquei a perseguir. No entanto, eles nos

    legaram fragmentos fascinantes de suas vidas, nos quais coexistiram perodos de

    desestruturao social, mas tambm de reconstruo de identidades e estabelecimento de

    1BLOCH, Marc.Apologia da histria, ou, O ofcio de historiador. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2001. p.54.

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    novas relaes afetivas. So trajetrias de mulheres e homens oriundos de diversos lugares da

    frica e de muitos de seus descendentes, que aps permanecerem sob o jugo da escravido

    alcanaram a liberdade.

    As alforrias que consultei foram registradas em Livros de Notas, alguns dos quais se

    encontram muito danificados pela ao do tempo e devem ser cuidadosamente folheados. Mas

    o cuidado no se restringe apenas ao manuseio destas fontes histricas, pois as informaes

    que elas armazenam no falam por si s. Muitas vezes, somente aps a leitura e transcrio

    por inteiro do documento torna-se possvel a compreenso de seu contexto. uma estratgia

    que faz as incurses no arquivo serem demoradas e que exige pacincia. A depender da letra

    do tabelio e do estado de conservao do papel, este mtodo pode apresentar ainda mais

    dificuldades ao historiador. No entanto, os mecanismos cotidianos que resultavam na redaode uma alforria ganham certa inteligibilidade com o uso deste modelo de coleta de dados.

    Para evidenciar a complexidade das fontes s quais me dediquei a pesquisar, comeo

    contando a histria de Marcella, mulher provavelmente jovem, que foi embarcada como

    escrava em uma regio da frica Ocidental conhecida no sculo XVIII como Costa da Mina.

    No foi possvel descobrir o momento de sua chegada a Sabar e nem localizar outras

    informaes a respeito do tempo que viveu sob a escravido. O fato que em 26 de maro de

    1736, Manoel da Costa Valle apresentou-se ao tabelio, Antonio Soares Ferreira, para queeste registrasse a carta de alforria de Marcella, que fora redigida 4 dias antes. Manoel no era

    o senhor da escrava, mas responsabilizou-se por requerer o assento de seu novo estatuto

    jurdico-social em Livro de Notas. Ao transcrever a carta de alforria, o tabelio afirmou que o

    fazia de verbo ad verbum, isto , exatamente da maneira como estava escrito no papel que lhe

    foi entregue.

    O proprietrio de Marcella, chamado Raimundo Mendes Pereira, afirmou que a

    libertou por dois motivos: pelos bons servios que ela lhe prestou e por haver dela recebido 2libras de ouro equivalente a 384.000 ris, quantia que sugere alta valorizao econmica e

    social de sua escrava. No entanto, Raimundo imps algumas exigncias para a alforria.

    Segundo suas palavras, Marcella seria forra como se livre nasera do ventre de sua mae com a

    condiso porem que a todo o tempo me ser obediente e corttez e faltandome a histo esta lhe

    no valer e tambm serei da dita erdeiro cazo que no tenha erdeiro Forssado a tempo de seu

    Falesimento. As condies estabelecidas por Raimundo fazem parte de um conjunto de

    costumes e leis que remontam Antiguidade. Respeitar e demonstrar gratido para com o

    antigo proprietrio foram atitudes esperadas de um liberto em diversas sociedades escravistas,

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    sobretudo as que aplicaram princpios do direito romano. Esta mesma doutrina jurdica

    tambm garantia ao antigo proprietrio, que era designado como patrono, o direito de

    herdar as posses de um ex-escravo, na suposio dele morrer sem deixar descendncia2. Parte

    destas questes ser retomada em outros momentos do trabalho, mas por ora voltemos ao caso

    de Marcella.

    Se a leitura da carta de alforria trasladada em Livro de Notas pelo tabelio Antonio

    Soares Ferreira fosse parcial, se analisasse apenas as palavras do antigo proprietrio e se

    desconsiderasse os elementos formais prprios prtica notarial, talvez esta libertao de

    Marcella, assim como tantas outras ocorridas no sculo XVIII, pudesse ser categorizada como

    condicional. Entretanto, a continuidade do registro revela outra histria e mostra que o

    episdio at aqui narrado apenas uma parte de um contexto ainda mais complexo.Aps trasladar todo documento e se encaminhar para a concluso protocolar do

    assento, o tabelio bruscamente anulou os termos que foram firmados at ali: No teve efeito

    esta carta de liberdade, adiante vai a verdadeira que esta lansei por equivocaso das partes3.

    No se aponta quais equvocos foram cometidos, mas a comparao com a outra verso da

    alforria de Marcella, registrada nas pginas seguintes do mesmo Livro de Notas, permite

    elaborar algumas hipteses e, mais importante, sugere outras formas de relacionamento entre

    a liberta e seu ex-senhor.Mais uma vez, o responsvel por requerer o registro da libertao foi Manoel da Costa

    Valle. Ele reapresentou-se ao tabelio dois dias depois de t-lo procurado pela primeira vez,

    em 28 de maro de 1736. Ainda assim, o novo papel possua a mesma data da alforria

    equivocada, 22 de maro. A carta definitiva bem mais detalhada que a anterior:

    Digo eu Raimundo Mendes Pereira que entre os mais Bens que posuohe bem asim huma escrava por nome Marsella de Nassam Mina a qual

    houve por titolo de compra que dela Fiz ao Ajudante Pedro GomesLima a qual dita escrava Marsella a hei de hoje para todo o sempre porForra, e liberta como se Forra nasese do ventre de sua mai por haverdela Resebido o seu justo presso e valor da quantia de trezenttos eoitenta, e quatro mil reis, cuja quantia Resebi da mo da dita escravaMarsella, e estando prezentes as testemunhas abaixo asinadas pello

    2MALHEIROS, Agostinho Marques Perdigo.A escravido no Brasil: ensaio histrico-jurdico-social. Parte 1:Direito sobre escravos e libertos. Rio de Janeiro: Typographia Nacional, 1866. p. 185-186. Ao longo de todotexto, emprega-se o termo patrono a partir das acepes que lhe eram atribudas na documentao consultada,

    na qual aparece referido.3Carta de alforria anulada de Marcella, de nao Mina. IBRAM/CBG/MO. LN (CSON) 08(23), 1735-1736, f.144v-145. Registro: 26/03/1736, Sabar. Redao: 22/03/1736, Sabar.

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    que de hoje para todo o sempre em diante poder tratar a dita escravaMarsella de sua vida por honde muito lhe paresser sem que eu lhepossa por duvida ou comtradisso alguma porquanto nella no tenhomais dominio Algum em Razam de aver Recebido della a dita quantia

    e justo presso de seu valor e cazo que nesta minha Carta de AlforriaFalte alguma clauzula de direito para no aver toda a validade a heiaqui por expressa e declarada como se nella Fizesse expressa edeclarada menssam na forma do mesmo direito e se nessesario Eu atomo na minha Terssa e asim pesso e Rogo as justissas de SuaMagestade que Deos guarde Fassam dar imteiro vigor e comprimentoa esta minha carta de Alforria na Forma que nella se comtem e porverdade lhe dei esta por mim somente asinada e pedi a ManoelMartins Pereira que esta por mim Fizesse e como Testemunhaasinasse (...) Vila Real aos vinte e dois dias do mes de Marsso de mil esete senttos e trinta e seis annos4

    Entre os muitos elementos prprios a esta modalidade documental, chama ateno a

    afirmativa peremptria de que Raimundo no teria mais nenhum domnio sobre Marcella. A

    justificativa que a alforria fora comprada e, portanto, no poderia se exigir da liberta a

    reverncia devida aos patronos5. Como diversos outros princpios aplicados para regular a

    escravido, a retificao da deciso inicial fora atrelada a pressupostos jurdicos de antiga

    datao. Um proprietrio que concedesse uma alforria a ttulo oneroso, no poderia revog-

    la usando como pretexto a falta de obedincia ou de cortesia por parte do liberto6

    . Mas o quemotivou, ento, a reviso notarial dos termos da libertao de Marcella? Sugesto do tabelio,

    sujeito afeito aos trmites judiciais, que percebeu a ilegalidade do acordo? Interveno da

    liberta, que no aceitou submeter-se s vontades do ex-proprietrio? Ou no processo de

    negociao foram escritas duas verses da alforria e realmente o registro do primeiro

    documento foi um equvoco? A resposta no simples, uma vez que os assentos notariais no

    detalham todos os caminhos percorridos at a definio dos acordos. Ao longo de todo

    trabalho, estas questes sero retomadas e discutidas durante o estudo de outros casos. O queimporta agora reconhecer que a anlise cuidadosa e qualitativa dos registros uma

    estratgia de trabalho valiosa, que ajuda a desvelar dinmicas e contextos multifacetados.

    4Carta de alforria de Marcella, de nao Mina. IBRAM/CBG/MO. LN (CSON) 08(23), 1735-1736, f. 145v-146v. Registro: 28/03/1736, Sabar. Redao: 22/03/1736, Sabar.5SOUSA, Joaquim Jos Caetano Pereira e. Esboo de hum diccionario juridico, theoretico, e practico, remissivo

    s leis compiladas, e extravagantes. Lisboa: Typographia Rollandiana, 1827. Tomo 2. (Sem numerao depginas).6MALHEIROS. op. cit. (1866). p. 188-189.

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    Episdios semelhantes ao protagonizado por Marcella e seu antigo proprietrio talvez

    fossem comuns, mas nem sempre so perceptveis nos Livros de Notas. Os envolvidos neste

    tipo de negociao no eram obrigados a documentar as idas e voltas que resultavam em

    assentos notariais de libertao de escravos. A maior parte dos registros desta natureza no

    trata explicitamente da construo dos acordos e focaliza mais os seus resultados. H casos

    em que as tratativas so tnues e o conhecimento dos diversos tipos de esferas envolvidas na

    constituio formal e scio-cultural dos documentos, pode ajudar a perceber os trajetos que

    resultavam em uma alterao de status jurdico. Uma importante produo historiogrfica

    mais recente, dedicada a investigar padres demogrficos e econmicos das alforrias, mas

    tambm muito preocupada em compreender suas amplas implicaes sociais, correlaciona

    diferentes variveis para entender as mudanas de statusdos escravos a partir de uma enormegama de fontes: testamentos, registros notariais e eclesisticos, inventrios, aes de

    liberdade, entre outros. No entanto, em tais estudos, algumas dinmicas prprias s

    libertaes assentadas em Livros de Notas acabam por ser desconsideradas, mesmo porque o

    escopo destas propostas no visa atingi-las. exatamente nesta lacuna que este trabalho se

    insere. Aqui buscaremos nos aproximar dos mecanismos cotidianos e jurdicos, em muitos

    aspectos partilhados por libertos, senhores e tabelies, que acabaram referenciados nas

    alforrias notariais sabarenses, da primeira metade do Setecentos. Nesta jornada, teremos comohorizonte a conjuntura histrica em que as Minas Gerais se inseriam no recorte temporal

    escolhido, mas o olhar direcionado aos documentos investigados se pautar principalmente

    pela anlise com lupa de fatos circunscritos7.

    Alforrias em Sabar, no incio do sculo XVIII

    A constituio dos significados da alforria na Idade Moderna foi um processo histrico

    moldado com tradies oriundas de vrias sociedades escravistas. A prpria escravido, comtodas as suas prticas correlacionadas, no uma instituio surgida somente durante a

    Modernidade. Apesar de tomarem novas feies nesta poca, em ltima instncia as relaes

    escravistas trazem consigo resqucios de tempos anteriores aos modernos. Ao escrever em

    1866, Perdigo Malheiro deixou claro que Todos os povos, antigos e modernos, ho

    7 BENSA, Alban. Da micro-histria a uma antropologia crtica. In: REVEL, Jacques. Jogos de escalas: aexperincia da microanlise. Rio de Janeiro: Editora da Fundao Getlio Vargas, 1998. p. 42.

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    consagrado com mais ou menos latitude a faculdade de extinguir-se a escravido por

    manumisso ou alforria, e por disposio da lei8.

    Portanto, a compreenso de alguns aspectos das alforrias no contexto colonial passa

    necessariamente por tempos e lugares variados. Embora seja um equvoco determinar origens

    nicas para elementos culturais, como aponta Eduardo Frana Paiva, necessrio tentar

    reconstruir como se entrelaou uma mesma ideia ou conceito em diferentes pocas e

    sociedades9. Um dos caminhos que possibilitam essa tarefa surge com a realizao de estudos

    comparativos e conectados.

    A perspectiva da histria conectada foi inicialmente sugerida por Sanjay

    Subrahmanyam a partir da observao dos vnculos existentes entre algumas reas da Europa

    e partes da sia no incio da Modernidade10. Esta proposta analtica tem sido utilizada porvrios pesquisadores para buscar as ligaes entre contextos que ainda so vistos como

    desconectados, separados e incomunicveis uns com os outros11. Entender trajetrias

    histricas sob este prisma nasce da percepo de que culturas e sociedades no permanecem

    ilhadas, no so absolutamente genunas e que fronteiras sejam elas nacionais, imperiais ou

    naturais nem sempre se conformam como obstculos intransponveis para intercmbios dos

    mais diversos mbitos12.

    O uso da comparao como mtodo histrico foi proposto e utilizado por vrioshistoriadores ao longo do sculo XX. Marc Bloch foi um de seus primeiros e mais notveis

    adeptos. A histria comparativa de Bloch buscava cotejar sociedades espacial e

    temporalmente prximas, com a inteno de encontrar semelhanas em elementos

    8MALHEIROS. op. cit. (1866). p. 92.9 PAIVA, Eduardo Frana. Histrias comparadas, histrias conectadas: escravido e mestiagem no MundoIbrico. In: PAIVA, Eduardo Frana e IVO, Isnara Pereira. (Org.). Escravido, mestiagem e histriascomparadas.So Paulo: Annablume, 2008. p. 14.10SUBRAHMANYAM, Sanjay. Connected Histories: Notes toward a Reconfiguration of Early Modern Eurasia.In:Modern Asian Studies. v. 31, n. 3, 1997. p. 735-762.11GRUZINSKI, Serge. Os mundos misturados da monarquia catlica e outras connected histories. In: Topoi. v.2, n. 2, 2001. p. 175-195; MARCOCCI, Giuseppe. Escravos amerndios e negros africanos: uma histriaconectada Teorias e modelos de discriminao no imprio portugus (ca. 1450-1650). In: Tempo. v. 15, n. 30,2011. p. 41-70; PAIVA, Eduardo Frana. Dar nome ao novo: uma histria lexical das Amricas portuguesa eespanhola, entre os sculos XVI e XVIII (as dinmicas de mestiagem e o mundo do trabalho). Tese de Professor

    Titular em Histria do Brasil apresentada Universidade Federal de Minas Gerais, 2012.12PAIVA. op. cit. (2012). p. 244-247; KOSELLECK, Reinhart. Futuro passado: contribuio semntica dostempos histricos. Rio de Janeiro: Contraponto; Ed. PUC-Rio, 2006. p. 291-292.

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    delimitados. Nesta proposta, a comparao no se estende a todas as esferas sociais e se limita

    a comparar o comparvel13.

    Marcel Detienne apresentou uma proposta de metodologia e aplicao da histria

    comparada mais alargada. Para este autor, durante o sculo XX, histria e antropologia

    compartilharam campos de interesses comuns. Essas disciplinas convergiram, em alguns

    estudos, ao analisar fenmenos observados na Antiguidade, principalmente a grega, como o

    estabelecimento do direito, da poltica e da tica, o uso da moeda e o nascimento da filosofia.

    Detienne observa que a partir dos anos de 1960, aumentou significativamente o interesse

    historiogrfico pelo estudo do cotidiano, estratgia vista como meio para melhor compreender

    historicamente os hbitos e costumes das sociedades14. A histria comparada de Detienne

    preconiza que a comparao no se restrinja somente a sociedades vizinhas, limtrofes e como mesmo nvel de civilizao. um exerccio que pode se dedicar s representaes

    culturais e s categorias e mecanismos de pensamento, tanto de sociedades prximas quanto

    afastadas. Neste modelo, a produo historiogrfica no fica totalmente fundeada nas amarras

    do nacional-local. A estratificao analtica sociocultural perde importncia quando se

    comparam fenmenos mveis, mltiplos e no lineares15.

    A comparao da prtica da alforria em distintas sociedades pode ser realizada com

    outras expectativas, alm de descobrir somente padres, aproximaes e distines. AndraLisly Gonalves buscou comparar alforrias em alguns contextos americanos, na tentativa de

    jogar luz sobre essas realidades para, segundo suas palavras, realar a natureza multifacetada

    do fenmeno. De acordo com a autora, o procedimento da comparao pode reduzir

    insularidades, o que transforma essa metodologia em estratgia adicional para produzir uma

    histria mais analtica16.

    a partir das perspectivas tericas e metodolgicas da histria comparada e da

    histria conectada e, em alguma medida, tambm da histria dos conceitos e da microhistriaque se pretende compreender as alforrias em Minas Gerais, durante a primeira metade do

    sculo XVIII, nomeadamente na regio de Sabar e da antiga Comarca do Rio das Velhas.

    Neste trabalho, se defende que tal prtica/conceito, apesar de possuir caractersticas locais, se

    estabeleceu em conexo com outros espaos e experincias histricas.

    13THEML, Neyde e BUSTAMANTE, Regina Maria da Cunha. Histria comparada: olhares plurais. In: Revistade Histria Comparada. v. 1, n. 1, 2007. p. 3-6.14DETIENNE, Marcel. Comparar o incomparvel. Aparecida: Idias & Letras, 2004. p. 41-58.15THEML e BUSTAMANTE. op. cit. (2007). p. 10-13; DETIENNE. op. cit. (2001). p. 52-54.16GONALVES. op. cit. (2011). p. 61-62.

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    Os marcos temporais da pesquisa se estendem entre os anos 1711 e 1740. O marco

    inicial toma como referncia a criao das primeiras vilas nas Minas, um perodo durante o

    qual as autoridades portuguesas tentavam impor seu domnio nesta regio, que nas palavras de

    Laura de Mello e Souza se encontrava ainda em processo incipiente de configurao, com

    fronteiras fluidas e indefinidas17. Diante das especificidades de alguns documentos, o trabalho

    retroceder aos primrdios do sculo XVIII. O marco final coincide com um perodo a partir

    do qual se percebe, de forma mais efetiva, a consolidao administrativa e social na Capitania.

    Alguns documentos consultados permitem acompanhar trajetrias pessoais e familiares por

    dcadas, o que justifica a realizao de alguns estudos de casos que extrapolam os limites

    propostos.

    As principais fontes que subsidiam a pesquisa so as alforrias registradas em Livros deNotas, nos cartrios do Primeiro e do Segundo Ofcios da Vila de Sabar. uma coleo

    fragmentada, com falhas seriais, em razo da perda de muitos volumes. Atualmente, esta

    documentao encontra-se sob a guarda da Casa Borba Gato, arquivo ligado ao Museu do

    Ouro de Sabar e ao IBRAM (Instituto Brasileiro de Museus). A facilidade de acesso e a

    proximidade com Belo Horizonte foram fatores preponderantes na escolha deste acervo como

    o principal provedor das fontes da pesquisa.

    Grande parte da historiografia costuma utilizar o termo carta de alforria para sereferir genericamente aos documentos que subsidiam este trabalho. Como se perceber, nos

    Livros de Notas existem ao menos duas modalidades de alforrias cartoriais: as muito

    conhecidas cartas de alforria e as escrituras de alforria. Outros documentos registrados nos

    Livros de Notas foram aproveitados, como contratos de compra e venda de escravos e de

    imveis e escrituras de doao de bens. Com o objetivo de cruzar dados acessou-se tambm

    alguns testamentos e inventrios que fazem parte do acervo da Casa Borba Gato. Do Arquivo

    Pblico Mineiro, em Belo Horizonte, foram examinados bandos e cartas de governadores,registros dos quintos do ouro e listas de escravos. A partir de indicaes bibliogrficas, foi

    consultado o processo inquisitorial da negra Luzia Pinta, inteiramente disponvel no stio

    virtual do Arquivo Nacional da Torre do Tombo, em Lisboa. Este caso aqui evocado para

    demonstrar as teias de relacionamento construdas e mantidas pelos libertos ao longo de suas

    vidas.

    17SOUZA, Laura de Mello e.Norma e conflito: aspectos da histria de Minas no sculo XVIII. Belo Horizonte:Editora da UFMG, 1999. p. 87.

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    Os registros de alforria foram transcritos integralmente, para possibilitar anlises mais

    pormenorizadas fora do ambiente arquivstico. As transcries disponibilizadas ao longo do

    texto preservam as caractersticas originais dos documentos e obedecem asNormas Tcnicas

    para Transcrio e Edio de Documentos Manuscritos18. Ao longo do tempo, vrias foram

    as terminologias utilizadas para se referir Sabar. Nos documentos podem-se encontrar

    aluses Vila de Nossa Senhora da Conceio do Sabar, Vila Real, Vila de Sabar e outras

    variaes. Para efeitos de padronizao, optou-se por utilizar apenas o topnimo Sabar nas

    citaes dos documentos.

    As antigas obras impressas que cito foram consultadas com o auxlio da internet. Sem

    este recurso tcnico de tantas possibilidades, seria impossvel o acesso a muitos livros

    publicados entre os sculos XVI e XIX. Grandes acervos fsicos, como a Biblioteca Nacional,no Rio de Janeiro, a Biblioteca Nacional de Portugal, em Lisboa e a Biblioteca Brasiliana

    Guita e Jos Mindlin, em So Paulo, assim como os projetos Internet Archive, Biblioteca

    Virtual Miguel de Cervantes, Google Books e vrios outros h algum tempo se dedicam a

    digitalizar e disponibilizar onlinemilhares de obras raras. Provavelmente, estas iniciativas se

    intensificaro nos prximos anos e os historiadores sero agraciados com o alargamento de

    seu universo de pesquisa.

    A metodologia adotada para anlise das fontes , essencialmente, qualitativa. Emgrande parte dos estudos que utilizam registros notariais de alforrias, sobressai-se o exame

    quantitativo das informaes. Inclusive, esta a tnica do trabalho de Kathleen Higgins, que

    anteriormente examinou as libertaes registradas em Livros de Notas, custodiados pela Casa

    Borba Gato19. A perspectiva aqui proposta pretende esmiuar aspectos que costumam

    permanecer despercebidos quando estes documentos so analisados somente a partir de

    bancos de dados. A viso por inteiro dos assentos de alforria aumenta ainda mais a

    complexidade dos contextos de passagem da escravido liberdade. Tal estratgia depesquisa revelou a existncia de personagens que, em muitos casos, foram fundamentais para

    que as libertaes chegassem a ser formalizadas em livros notariais. Alguns destes indivduos

    que neste trabalho so nomeados de requerentes ocuparam nas vidas dos libertos, um

    papel mais proeminente que o dos ex-senhores.

    18 Normas Tcnicas para Transcrio e Edio de Documentos Manuscritos. Disponvel em:. Acesso: 10 de maio de 2014.19HIGGINS, Kathleen J. Licentious Liberty in a Brazilian gold-mining region: slavery, gender, and socialcontrol in eighteenth-century Sabar, Minas Gerais. University Park: The Pennsylvania State University Press,1999.

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    Outro recurso metodolgico empregado na execuo deste trabalho foi a ligao

    nominativa, ou cruzamento entre diferentes fontes visando seguir pessoas no tempo e entre

    sries documentais diferentes20. Este expediente nem sempre foi possvel, mas quando

    executado ajudou a compreender muitos aspectos cotidianos concernentes s alforrias e aos

    libertos. Sobretudo para a anlise de trajetrias de vidas, o acesso a documentos inter-

    relacionados contribuiu para ampliar o conhecimento das dinmicas pesquisadas. Miguel

    ngel Extremera Extremera j chamou ateno para a importncia do cruzamento de fontes

    na historiografia, quando afirmou que a partir deste mtodo puede conseguirse una

    reconstruccin ms fiable de cualquiera realidad histrica21.

    Este estudo tambm se enveredou na intricada dinmica do universo cartorial. A

    importncia da atuao dos tabelies na sociedade colonial costuma ser apontada,principalmente quando se discutem assuntos como organizao administrativa, controle

    estatal e transmisso patrimonial22. No entanto, o envolvimento cotidiano de pessoas de

    diferentes grupos sociais com oficiais cartorrios uma dimenso que praticamente no foi

    estudada no Brasil. As cartas e escrituras de alforria fornecem detalhes preciosos sobre os

    meandros percorridos at que os forros tivessem sua condio jurdico-social reconhecida

    pelos tabelies. O ambiente cartorial era um importante espao de mediao entre as

    aspiraes por libertao e autonomia dos escravos e as dificuldades para a realizao doprocesso, sintetizadas nos planos e direitos dos senhores. Naquele contexto, o oficial do

    tabelionato, muitas vezes, no desempenhava apenas uma funo estritamente legal, mas

    proporcionava respaldo simblico para os libertos que buscavam formalizar seus novos status.

    Ainda assim, como se perceber, o relacionamento com os tabelies no possua um padro

    nico. Alguns assentos revelam situaes em que os libertos tiveram pouca influncia no

    momento de registro das alforrias. Por outro lado, houve episdios em que o liberto,

    pessoalmente, encarregou-se de requerer a inscrio em Livro de Notas da sua nova condiojurdico-social.

    20 SLENES, Robert W. Na senzala, uma flor Esperanas e recordaes na formao da famlia escrava:Brasil Sudeste, sculo XIX.2 ed. Campinas: Editora da Unicamp, 2011. p. 28-29.21EXTREMERA, Miguel ngel Extremera.El notariado en la Espaa Moderna. Los escribanos pblicos deCrdoba (Siglos XVI-XIX). Madrid: Calambur, 2009. p. 34.22No clssico Vida e morte do bandeirante, publicado pela primeira vez em 1929, Alcntara Machado tratou dealguns protocolos prprios prtica notarial. MACHADO, Alcntara. Vida e morte do bandeirante. So Paulo:Livraria Martins Editora, 1972. p. 109-130. Ver tambm: MOTA, Maria Sarita Cristina. Nas terras deGuaratiba. Uma aproximao histrico-jurdica s definies de posse e propriedade da terra no Brasil entre os

    sculos XVI-XIX. Tese de doutorado apresentada Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro, 2009. p. 68-73.Sobre as atribuies dos tabelies de notas, consultar: SALGADO, Graa (Coord.). Fiscais e Meirinhos: aadministrao no Brasil colonial. 2 ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1985. p. 136-137.

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    A diviso dos captulos baseou-se na tentativa de responder a trs perguntas, que, ao

    cabo, acabaram por se desdobrar em vrias outras. Para o Captulo 1 o questionamento foi:

    quais os significados da alforria? A partir da anlise de uma robusta bibliografia, sem que,

    contudo, toda enorme produo sobre o assunto fosse consultada por completo, busquei

    entender os diferentes olhares propostos pela historiografia dedicada ao tema. As alforrias e

    os libertos na Idade Moderna so alvos de reflexo no apenas de historiadores brasileiros,

    mas tambm de vrias partes das Amricas, da frica e da Europa, sobretudo de Portugal e

    Espanha. Dediquei algumas pginas para situar a possibilidade de mudana de condio

    jurdico-social na legislao ibero-americana de diferentes pocas. Por fim, busquei nas

    alforrias de Sabar similaridades com suas congneres produzidas em outros espaos e

    tempos.Quais so as especificidades das alforrias registradas em Livros de Notas? Esta

    questo permeou a escrita do Captulo 2. Considerei importante iniciar esta parte investigando

    o papel jurdico e social dos tabelies na sociedade colonial. Estes burocratas foram peas

    fundamentais para o funcionamento da Justia e exerciam uma funo de mediao entre as

    pessoas que solicitavam seus prstimos e as esferas poltico-administrativas. Tambm fiz um

    balano sobre alforrias registradas em assentos de batismos e testamentos, fontes que

    subsidiaram trabalhos fundamentais sobre a temtica. O ncleo do captulo centra-se nadiferenciao das tipologias de alforria registradas em Livros de Notas. Os prprios tabelies

    classificavam estes documentos em cartas e escrituras. Embora tivessem a mesma funo,

    eram produzidos em circunstncias distintas. Procuro demonstrar que esta diviso ajuda a

    entender dinmicas sociais importantes nos contextos analisados. A observao destas

    modalidades de registro proporcionou tambm a descoberta dos requerentes. O captulo se

    encerra com uma discusso sobre as alteraes nos filtros sociais de classificao dos forros

    aps a libertao, principalmente os designados como mulatos/pardos.Em seguida, busquei me aproximar ainda mais do cotidiano dos alforriados de Minas

    Gerais. A pergunta que inspirou o Captulo 3 foi: como os libertos se situavam ou eram

    situados no contexto escravista mineiro da primeira metade do sculo XVIII? Inicio esta parte

    discutindo uma especificidade das alforrias notariais em Sabar, entre as dcadas de 1710 e

    1720. Muitas s foram formalizadas por tabelies aps os libertos conseguirem autorizao de

    juzes ordinrios. Depois disso, entro em uma seara de cunho mais poltico. O primeiro

    governador de Minas Gerais, D. Pedro de Almeida, conhecido como Conde de Assumar,

    tentou controlar a ocorrncia das alforrias. Ele proibiu que escravos se libertassem sem sua

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    anuncia, em um bando de 1719. Investiguei como essas decises repercutiram nos Livros de

    Notas. Um tpico relevante a discusso sobre as faces do liberto e o dinmico mundo

    mineiro. Entendo ser muito difcil compreender a insero dos forros em Minas Gerais sem

    ter em conta a flexibilidade social de seu contexto. Encerrei o captulo com um estudo de

    caso, no qual fiz uma tentativa de reconstruo biogrfica da liberta Luzia Pinta. Esta negra,

    originria de Angola, j subsidiou vrios estudos sobre prticas religiosas heterodoxas com

    matriz centro-africana. Mirei para outras experincias sociais de Luzia, favorecido que fui

    pela descoberta de sua carta de alforria.

    Ao leitor, advirto que este trabalho de um historiador em formao. Como tal, desde

    j, reconheo suas limitaes. Mas nestas pginas, tentarei compartilhar descobertas e

    perguntas, muitas delas sem respostas, concebidas a partir de minhas pesquisas e reflexes.Assim como quase tudo na histria, so formulaes que podem se alterar com a realizao de

    novas investigaes. Dar-me-ei por satisfeito se, de alguma forma, este trabalho contribuir

    para o debate sobre os temas aqui discutidos.

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    Captulo1

    Os significados das alforrias

    Tomada isoladamente no lxico, a palavra tem apenas um

    significado. Mas este no mais que uma potncia que se

    realiza no discurso vivo, no qual o significado apenas uma

    pedra no edifcio do sentido.

    Lev Semenovitch Vigotski23

    Entre prtica e conceito: as alforrias na historiografia

    Investigar os processos de formao e de uso dos conceitos pode ajudar a compreender

    muitas caractersticas e especificidades das diversas sociedades escravistas que se sucederam

    pela histria. A possibilidade que existiu em alguns daqueles contextos histricos de se

    modificar a condio de escravo para a de liberto um dos aspectos que mais tem atrado a

    ateno dos historiadores da escravido, sobretudo em estudos realizados a partir das ltimas

    dcadas do sculo XX. Durante os anos de 1970 e 1980, momento de vigorosa renovao na

    produo historiogrfica nacional, durante o qual tambm houve grande interesse de

    historiadores estrangeiros pela histria brasileira, foram realizados importantes estudos sobre

    a escravido no Brasil e, naquele fluxo, o tema da alforria acabou por ganhar relevncia24. A

    partir da dcada de 1990, investigaes sobre o tema avanaram ainda mais com o surgimento

    de novas abordagens terico-metodolgicas e a utilizao de fontes documentais at ento

    desconsideradas e, em alguns casos, at mesmo desconhecidas. A anlise de documentos

    cartorrios permitiu a ampliao do conhecimento sobre o cotidiano escravista e sobre as

    oportunidades que os escravos tinham para mudarem de statusjurdico.

    23 VIGOTSKI, Lev Semenovitch. A construo do pensamento e da linguagem. 3 ed. So Paulo: MartinsFontes, 2001. p. 465.24MATTOSO, Ktia M. de Queirs. Ser escravo no Brasil.So Paulo: Editora Brasiliense, 1982; LARA, SilviaHunold. Campos da violncia: escravos e senhores na Capitania do Rio de Janeiro (1750-1808) . Rio de Janeiro:Paz e Terra, 1988; SCHWARTZ, Stuart. Segredos internos: engenhos e escravos na sociedade colonial. SoPaulo: Companhia das Letras, 1988; RUSSEL-WOOD, A. J. R. Escravos e libertos no Brasil Colonial. RioJaneiro: Civilizao Brasileira, 2005; MATTOSO, Ktia M. de Queirs. A propsito das cartas de alforria, Bahia 1779-1850. Anais da Histria.Assis, n. 4, 1972. p. 23-52; OLIVEIRA, Maria Ins Crtes de. O liberto: seumundo e os outros Salvador, 1790-1890. So Paulo: Corrupio, 1988; ALGRANTI, Leila Mezan. O Feitor

    Ausente: estudo sobre a escravido urbana no Rio de Janeiro 1808-1822. Petrpolis: Vozes, 1988; BELLINI,Ligia. Por amor e por interesse: a relao senhor-escravo em cartas de alforria. In: REIS, Joo Jos (Org.).Escravido e inveno da liberdade. So Paulo: Editora Brasiliense, 1988. p. 73-86.

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    Em portugus, esse aspecto da escravido foi mais comumente conhecido durante o

    longo perodo que se estendeu do sculo XV ao XIX sob a designao de alforria e, em

    menor escala, manumisso. Estes termos, usados para definir, ainda que de maneira fluida,

    uma mudana individual de condio jurdico-social, passaram a ser pensados

    historiograficamente sob enfoques variados.

    No ltimo quartel do sculo XX um dos principais objetivos dos historiadores da

    escravido no Brasil era romper com a percepo que estabelecia o papel dos escravos como

    meros objetos dos caprichos e necessidades de seus senhores. Contrariamente, demonstrou-se

    que escravos e libertos no foram apenas vtimas, mas agentes histricos relevantes e ativos

    no passado brasileiro. Marcada pela preocupao de identificar e dimensionar as trajetrias

    histricas e os discursos dos segmentos sociais que participaram das dinmicas escravistas,parte da produo acadmica sobre alforrias realizada naquele momento preocupou-se em

    compreender o sentido do tema sob o prisma de prtica cultural, ainda que a escolha de tal

    perspectiva no estivesse claramente posta.

    Essa noo faz parte de um conjunto terico que ocupa um espao relevante na obra

    de Roger Chartier. De forma simplificada, prtica pode ser compreendida como discursos,

    atitudes, condutas e tradies que so social, cultural e historicamente produzidos e que

    conferem sentido s abundantes esferas da vida cotidiana dos grupos humanos25

    . Vistas sobesta ptica, as prticas atuam na ordenao, distanciamento, diviso e qualificao de setores

    sociais que se enxergam e se representam de formas distintas.

    Ao analisar as prticas, que no permanecem sempre estticas, o historiador deve se

    atentar s mudanas de significado que elas sofrem ao longo do tempo. Chartier demonstra

    que mesmo os hbitos mais banais no costumam ser praticados de maneira padronizada por

    mulheres e homens em diferentes tempos. Em uma mesma poca, costumes corriqueiros

    podem ser realizados e interpretados de forma diversificada. A prtica da leitura silenciosa,difundida entre os leitores mais hbeis a partir do sculo XV, demonstra claramente que

    alguns aspectos culturais no possuem os mesmos valores para todas as pessoas que os

    operam. De acordo com Chartier, no sculo XIX, depois de profundo enraizamento social da

    25CHARTIER, Roger.A Histria Cultural: entre prticas e representaes. Lisboa: DIFEL, 1990. p. 13-28. Vertambm: BARROS, Jos DAssuno. A histria cultural e a contribuio de Roger Chartier. In: Dilogos.Maring: DHI/PPH/UEM. v. 9, n. 1, 2005. p. 125-141.

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    27

    leitura com os olhos, ler em voz alta era considerado um atributo de pessoas que pouco se

    relacionavam com os domnios da escrita26.

    O estudo das dinmicas histricas pode se enriquecer ainda mais com reflexes sobre

    a formao de termos, conceitos, prticas e concepes de mundo. Reinhart Koselleck

    corrobora esta premissa ao sugerir que linguagem e fatos polticos e sociais aparecem de

    formas diferentes para o historiador e para os atores da histria27. Ou seja, os sentidos

    atribudos s prticas podem ser essencialmente diferentes para os indivduos que os

    manobraram no passado e para os estudiosos que os analisam historiograficamente no

    presente. Pensar a alforria como prtica e ao mesmo tempo considerar as vrias

    especificidades e sentidos do conceito uma perspectiva que ajuda a ampliar o conhecimento

    acerca desse aspecto das sociedades escravistas.O papel exercido pelas alforrias e pelos alforriados no perodo colonial um tema que

    resultou na realizao de estudos fundamentais para a historiografia brasileira. Trabalhos

    como os de Ktia de Queirs Mattoso, Maria Ins Crtes de Oliveira, Lgia Bellini, Russel-

    Wood, Slvia Hunold Lara e Eduardo Frana Paiva foram importantes para repensar os

    lugares sociais ocupados pelos contingentes humanos que alcanaram suas alforrias, assim

    como os processos que permearam as vidas de ex-escravos durante e aps a conquista da

    liberdade28

    . Ao examinar uma grande variedade de fontes, esses historiadores contriburampara desconstruir historiograficamente no Brasil a concepo do escravo-coisa, sem

    vontades prprias e unicamente submisso ao seu senhor.

    O livro Ser escravo no Brasil, de Ktia de Queirs Mattoso, um marco, pois alm de

    considerar temas tradicionais como o trfico, o paternalismo, os castigos fsicos, o trabalho

    compulsrio, os quilombos e as rebelies, esmiuou outros prismas da realidade escravista,

    que vo muito alm da viso de que as experincias de escravos e de seus descendentes foram

    balizadas somente pela dominao senhorial. Mattoso demonstrou que, mesmo vivendo emrealidades adversas, escravos e libertos desenvolveram adaptaes que lhes permitiram

    sobreviver no ambiente escravista29. No entanto, os elementos mais inovadores de sua obra,

    26 CHARTIER, Roger. As prticas da escrita. In: CHARTIER, Roger (Org.). Histria da vida privada: daRenascena ao Sculo das Luzes. So Paulo: Companhia das Letras, 2009. p. 128-133.27KOSELLECK, op. cit. (2006). p. 194.28MATTOSO. op. cit. (1982); OLIVEIRA op. cit. (1988); BELLINI op. cit. (1988); RUSSEL-WOOD. op. cit.(2005); LARA. op. cit. (1988); PAIVA, Eduardo Frana. Escravos e libertos nas Minas Gerais do sculo XVIII:

    estratgias de resistncias atravs dos testamentos. 3 ed. So Paulo: Annablume. Belo Horizonte: PPGH-UFMG, 2009.29MATTOSO. op. cit. (1982). p. 100-107.

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    conforme observou Ciro Flamarion Cardoso, no prefcio da edio brasileira, foram a base

    documental robusta, a busca pela articulao histrica entre diferentes contextos de

    escravido e o tratamento aprofundado destinado s alforrias e aos libertos30.

    Publicado na Frana, em 1978, e no Brasil, em 1982, o livro de Mattoso inaugurou

    uma dcada de grande renovao historiogrfica das pesquisas sobre escravido. O uso de

    documentao cartorria para o estudo do assunto definitivamente foi considerado

    fundamental no esforo de construir uma nova percepo a respeito de escravos e libertos nos

    vrios rinces escravistas do Brasil. Testamentos, inventrios, registros de alforrias em Livros

    de Notas, processos cveis e crimes, entre outras modalidades de documentos, so fontes que

    tm como caracterstica comum a possibilidade de vislumbrar de forma ampla, se comparadas

    com a maior parte dos relatos de viajantes, por exemplo, o contexto social de diferentesregies da colnia e, posteriormente, do imprio. Os testamentos, riqussimos em informaes

    que vo desde a religiosidade at as origens sociais e geogrficas dos envolvidos, ditaram boa

    parte das reflexes realizadas sobre alforrias e libertos entre as dcadas de 1980 e 1990. O

    trabalho de Eduardo Frana Paiva demonstrou, a partir de fontes testamentrias, a presena de

    um grande nmero de ex-escravos que utilizaram diferentes estratgias para chegar

    liberdade. O autor confirmou documentalmente percepes antigas, de que a ocorrncia de

    alforrias nas Minas setecentistas foi muito comum e que o processo que permeava suaconquista era marcado por dinmicas prprias de uma sociedade diversificada social e

    economicamente31.

    Muitos estudos sobre alforrias no Brasil do sculo XIX buscaram entender as

    dimenses sociais, polticas e culturais que tais processos possuram naquele contexto. Ao

    longo do Oitocentos, as noes de liberdade, dialogando com seu contrrio a escravido

    ,transformaram-se em virtude do Iluminismo, das Revolues Francesa e Haitiana, do

    Liberalismo e das campanhas internacionais pelo fim do trfico e pela abolio. Asimplicaes desses fenmenos foram sentidas em vrias regies brasileiras e possibilitaram o

    surgimento de novos significados para a alforria. Esse ltimo aspecto analisado de forma

    aprofundada nos trabalhos de Sidney Chalhoub, Hebe Mattos, Peter Eisenberg, Manolo

    Florentino e Keila Grinberg32, que serviram de inspirao para um grande nmero de teses e

    30MATTOSO. op. cit. (1982). p. 9-10.31PAIVA. op. cit. (2009). p. 33-38.32CHALHOUB, Sidney. Vises da liberdade: uma histria das ltimas dcadas da escravido na Corte . SoPaulo: Companhia das Letras, 2011; MATTOS, Hebe Maria. Das cores do silncio: os significados da liberdadeno sudeste escravista, Brasil, sculo XIX. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1998; EISENBERG, Peter. Homens

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    dissertaes que recentemente tambm se debruaram sobre o tema33. A importncia das

    reflexes sobre as alforrias no sculo XIX tm inspirado alguns historiadores a pensar sobre

    os distintos sentidos da aquisio da liberdade em recortes temporais anteriores34.

    A libertao de escravos um problema historiogrfico que mobiliza estudiosos de

    vrias regies do mundo ibero-americano. Nos ltimos anos, aprofundou-se a tentativa de

    entender o impacto social das alforrias em paralelo a outros processos histricos, como o

    trfico de escravos, as dinmicas econmicas locais e interregionais e a presena de elementos

    jurdico-culturais provenientes de outras experincias escravistas. So inmeros os trabalhos

    dedicados ao assunto para as Amricas portuguesa e espanhola e para a Pennsula Ibrica.

    Justamente por isso, os enfoques e percepes dos historiadores so variados, apesar de

    muitos estudos compartilharem preocupaes. Um dos pontos em comum a viso da alforriacomo uma experincia extremamente complexa. Ao escrever, ainda na dcada de 1970, Ktia

    Mattoso registrou uma preocupao que se tornou uma espcie de preceito para os estudos

    posteriores:

    A alforria nunca uma aventura solitria. Resulta de todo um tecidode solidariedades mltiplas e entrelaadas, de mil confabulaes,processos de compensaes, promessas feitas e mantidas, preceitos,

    at mesmo de convenincia, reflexos e imagens mentais queconstituem, no Brasil da escravido, o quadro de uma sociedade quetem sua prpria concepo do justo e do normal35.

    Esquecidos: escravos e trabalhadores livres no Brasil Sculos XVIII e XIX. Campinas, Ed. da UNICAMP,1989; FLORENTINO, Manolo. Sobre minas, crioulos e a liberdade costumeira no Rio de Janeiro (1789-1871).In: FLORENTINO, Manolo (Org.). Trfico, cativeiro e liberdade: Rio de Janeiro, sculos XVII-XIX. Rio de

    Janeiro: Civilizao Brasileira, 2005. p. 331-366; GRINBERG, Keila.Liberata: a lei da ambiguidade. As aesde liberdade da Corte de Apelao do Rio de Janeiro no sculoXIX. Rio de Janeiro: Relume-Dumar, 1994. Vertambm: BOTELHO, Tarcsio Rodrigues. As alforrias em Minas Gerais no sculo XIX. Varia Histria. n. 23,2000. p. 61-76.33ALADRN, Gabriel.Liberdades negras nas paragens do sul: alforria e insero social de libertos em Porto

    Alegre, 1800-1835.Dissertao de mestrado apresentada Universidade Federal Fluminense, 2008; FERRAZ,Lizandra Meyer. Entradas para a liberdade: formas e frequncia da alforria em Campinas no sculo XIX.Dissertao de mestrado apresentada Universidade Estadual de Campinas, 2010; PEDRO, Alessandra.

    Liberdade sob condio: alforrias e poltica de domnio senhorial em Campinas, 1855-1871. Dissertao demestrado apresentada Universidade Estadual de Campinas, 2009.34 GONALVES, Andra Lisly. As margens da liberdade: Estudo sobre a prtica de alforrias em Minascolonial e provincial. Belo Horizonte: Fino Trao, 2011; SOARES, Mrcio de Sousa. A remisso do cativeiro: addiva da alforria e o governo dos escravos nos Campos de Goitacases, c.1750 c.1830. Rio de Janeiro:

    Apicuri, 2009; ALMEIDA, Ktia Lorena Novais. Escravos e libertos nas Minas do Rio de Contas Bahia,sculo XVIII. Tese de doutorado apresentada Universidade Federal da Bahia, 2012.35MATTOSO. op. cit. (1982). p. 194.

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    Para alguns autores, a compreenso das alforrias depende fundamentalmente do tipo

    de relao estabelecida entre o liberto e seu antigo proprietrio. O trabalho de Orlando

    Patterson, originalmente publicado em 1982, talvez seja um dos mais significativos a adotar

    esta perspectiva. Analisando dezenas de sociedades escravistas, a partir de estudos

    historiogrficos e antropolgicos, este socilogo acredita que em termos utilitaristas, a

    manumisso estendia universalmente e na verdade aprofundava os laos de dependncia entre

    o ex-escravo e o ex-senhor. O posicionamento de Patterson tributrio de uma concepo de

    escravido entendida como um processo que inclui o ato da manumisso e suas

    conseqncias. Escravizao, escravido e manumisso no so meros eventos relacionados;

    so um nico e mesmo processo em diferentes fases36. Esta posio apoiada por Rafael

    Antonio Daz Daz. Para este historiador colombiano, a funo das alforrias consisti enreforzar la esclavitud y encubrir el parasitismo social de los propietarios, al generar en los

    esclavos incentivos para el trabajo y el servicio personal bajo la promesa diferida y ambigua

    de la libertad37. Entre os estudiosos brasileiros, Manoela Carneiro da Cunha provavelmente

    uma das mais importantes referncias a adotar este tipo de interpretao. Para a autora, o

    controle privado da alforria, deciso na qual o Estado no interferia, no s mantinha a

    sujeio entre os escravos, mas permitia a produo de libertos dependentes38. De certa

    forma, Ktia Mattoso tambm se referira viso do forro como algum que, aps a libertao,continua a pertencer ao mundo bem fechado gravitando em torno do seu antigo senhor39.

    Outros estudiosos sugerem tratamentos diferentes para o tema. Jos Luis Belmonte, a

    partir de sua pesquisa sobre Santiago de Cuba, entende a alforria como o instrumento por el

    que el esclavo poda integrarse, legalmente, dentro de la poblacin libre de la sociedad

    colonial americana. A libertao de escravos foi um fenmeno global dentro de la Amrica

    colonial espaola, mas Belmonte destaca que a ocorrncia de variaes regionais resultou em

    estratos de poblacin totalmente diversos

    40

    . Em suas reflexes sobre a Andaluzia escravista,entre os sculos XV e XVI, Alfonso Franco Silva chama a ateno para la importancia que

    36 PATTERSON, Orlando. Escravido e morte social: um estudo comparativo. So Paulo: Editora daUniversidade de So Paulo, 2008. p. 410-412.37DAZ, Rafael Antonio Das. La manumisin de los esclavos o la parodia de la libertad. In: Esclavitud, regin yciudad: el sistema esclavista urbano-regional en Santaf de Bogot, 1700-1750. Bogot: CEJA, 2001. p. 207-209.38CUNHA, Manoel Carneiro da. Sobre os silncios da lei: lei costumeira e positiva nas alforrias de escravos noBrasil no sculo XIX. In:Antropologia do Brasil.2 ed. So Paulo: Editora Brasiliense, 1987. p. 138.39MATTOSO. op. cit. (1982). p. 203.40BELMONTE, Jos Luis. Ser esclavo en Santiago de Cuba: espacios de poder y negociacin en un contexto deexpansin y crisis, 1780-1803.Madrid: Ediciones Doce Calles, 2011. p. 189.

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    tienen en las sociedades peninsulares los libertos negros, como elementos marginales tal vez,

    pero desde luego constantemente presentes en la vida diaria de esas comunidades41.

    Rafael de Bivar Marquese considera que as alforrias, articuladas ao trfico

    transatlntico de africanos, foram essenciais para garantir a reproduo da sociedade

    escravista brasileira. A libertao de escravos funcionou, na maior parte do tempo, como um

    mecanismo para evitar a ocorrncia de um quadro social tenso42. Ponto de vista semelhante

    adotado por Mrcio de Sousa Soares. Em seu estudo sobre a regio de Campos de

    Goitacases, entre 1750 e 1850, o autor procurou romper com as dicotomias que opem

    expanso versuscrise econmica ou expressividade das alforrias nas reas urbanas versus

    insignificncia das mesmas nas zonas rurais. Soares, baseado em Marquese e Orlando

    Patterson, entende que a condio escrava no deve ser considerada como um statusfixo esim como um processo de transformao de status que poderia se prolongar por uma vida

    inteira e se estender pelas geraes seguintes43.

    Eduardo Frana Paiva observou que, na Pennsula Ibrica, a libertao de escravos

    existiu tanto por influncia do passado romano e da adoo do Direito Romano como

    parmetro jurdico, quanto pela longa e forte presena dos muulmanos em boa parte do

    territrio. Ao ser instituda nas Amricas, a escravido levou consigo esta particularidade.

    Paiva ressalta que as alforrias foram responsveis por produzir a ascenso econmica e,tambm, social de uma parte dos ex-escravos e de seus descendentes nessas regies. Em solo

    americano, de acordo com o autor, a libertao de escravos foi um elemento estreitamente

    articulado com mestiagens biolgicas e culturais44.

    Por este breve e incompleto panorama historiogrfico, percebe-se que os sentidos, os

    significados e as percepes das alforrias variaram de acordo com a poca e com a regio em

    que ocorreram. Quando analisadas, elas continuam a apresentar variaes interpretativas

    relevantes. Longe de ser um tema totalmente compreendido, o estudo das alforrias oferecequestes em aberto e que necessitam de maiores reflexes.

    41 SILVA, Alfonso Franco. Los negros libertos en las sociedades andaluzas entre los siglos XV al XVI. In:MALLOL, Maria Tereza Ferrer i e VIVES, Josefina Mutg i (Eds.). De l'Esclavitud a la llibertat: Esclaus illiberts a l'edat mitjana. Barcelona: Consell Superior d'Investigacions Cientfiques, Instituci Mil i Fontanals,Departament d'Estudis Medievals, 2000. p. 574.42MARQUESE, Rafael de Bivar. A dinmica da escravido no Brasil: resistncia, trfico e alforrias, sculos

    XVII a XIX.Novos Estudos.So Paulo: Cebrap, v. 74, 2006. p. 107-123.43SOARES. op. cit. (2009). p. 25-26.44PAIVA. op. cit. (2012). p. 115-127.

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    Os princpios que norteiam este trabalho de alguma forma tributrio de vrias vises

    historiogrficas sobre o tema partem do pressuposto que a libertao de escravos era

    elemento constitutivo e inseparvel da escravido, ao menos a que existiu em Minas Gerais,

    no sculo XVIII. No entanto, as dinmicas das alforrias eram delimitadas por fatores

    histricos extremamente complexos, que nem sempre desfilavam bvios diante das pessoas

    envolvidas nesses processos. Ainda que a comparao da temtica em diferentes sociedades

    escravistas revele fortes similaridades, isso no pode ser tomado como sintoma de uma prtica

    ou conceito padronizados.

    A escravido, as alforrias e os libertos na tradio jurdica e cultural ibero-americana

    No Vocabulario portuguez & latino, obra organizada pelo padre Raphael Bluteau epublicada em vrios volumes, entre 1712 e 1728, o termo alforria explicado como a

    liberdade que o senhor d a seu escravo45. Levar em considerao a definio dicionarizada

    da poca pode ajudar a entender a interpretao de termos e ideias difundidos entre grande

    parte dos crculos letrados e da sociedade do mundo ibrico e americano moderno. No

    entanto, as realidades expressas nos documentos que registram as prticas de alforria

    demonstram uma situao bem mais ampla, em que a constituio da liberdade no uma

    ao que depende apenas do senhor, como Bluteau sugere. O estudo de alguns aspectosformais e tradicionais, que norteavam o funcionamento da escravido na Idade Moderna,

    ajuda a aumentar o horizonte sobre as dinmicas que culminavam na libertao de um

    escravo.

    Um dos corporajurdicos mais importantes para a delimitao dos estatutos sociais,

    produzidos em mbito ibrico, foram Las Siete Partidas. Compiladas no sculo XIII por

    iniciativa do rei Alfonso X, de Castela, a obra usou o direito romano como base para definir a

    escravido. Manuel Lobo Cabrera sustenta que as Partidas so fontes fundamentais paraconhecer detalhes da organizao religiosa, cultural e econmica do contexto histrico em que

    foram produzidas, marcado pela coexistncia de trs culturas e religies distintas em um

    mesmo espao islamismo, cristianismo e judasmo46.

    45BLUTEAU, Raphael. Vocabulario portuguez & latino.Coimbra: Collegio das Artes da Companhia de Jesu,

    1712-1728. v. 1. p. 247.46CABRERA, Manuel Lobo. Las Partidas y la esclavitud: reminiscencias en el sistema esclavista canario. In:Gense de l'tat moderne en Mditerrane. Roma: cole Franaise de Rome, 1993. p. 121-130.

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    Muito antes da expanso martima, a partir do sculo XV, os ibricos j tinham uma

    longa vivncia com a escravido em seus territrios47. Durante a Idade Mdia, em diversas

    reas da Europa foi comum a presena de escravos. Eles predominavam principalmente nos

    espaos integrados com as redes comerciais do Mediterrneo e eram procedentes do Mar

    Negro, do leste europeu e at da sia48. Mas foi a ocupao islmica, entre 711 e 1492, que

    deu um aspecto sui generis ao perfil dos escravos nessas regies. Sobretudo na Pennsula

    Ibrica, parte dos homens e mulheres escravizados, o eram a partir de critrios religiosos. De

    tal forma, que em jurisdies muulmanas havia muitos escravos cristos e em terras crists

    eram comuns os escravos conhecidos como mouros ou sarracenos.Jihade guerra santa

    foram os mecanismos religiosos que impulsionaram as sociedades escravistas mediterrneas

    da frica e da Europa a buscarem escravos nas duas margens do mar, via comrcio epirataria, ainda antes da chegada na Amrica49.

    Manuel Lobo Cabrera destaca que as conquistas do sculo XV fomentaram a

    escravido ibrica. Alm do processo de reconquista dos territrios da Pennsula ocupados por

    mouros, o controle de novos terrenos no alm-mar foi fundamental para castelhanos,

    portugueses e mercadores procedentes de vrios outros lugares inflarem o nmero de escravos

    em cidades como Sevilha, Valncia e Lisboa. Para balizar a escravido nas novas possesses

    territoriais de Castela como, por exemplo, nas Ilhas Canrias foram s Partidas,elaboradas trs sculos antes, a que se recorreu50. Entre suas caractersticas, este cdigo

    47 CARVALHO, Antonio Pedro de. Das origens da escravido moderna em Portugal. Lisboa: TypographiaNacional, 1877.48PALACIOS, Francisco Javier Marzal. La esclavitud en Valencia durante la Baja Edad Media (1375-1425).Tese de doutorado apresentada Universitat de Valencia, 2006. p. 105-244.49 MARTNEZ, Ivn Armenteros. El impacto de la primera trata atlntica en un mercado tradicional deesclavos. Tese de doutorado apresentada Universitat de Barcelona, 2012. p. 123-164; SOYER, Franois.Muslim slaves and freedman in medieval Portugal. In:Al-Quantara.v. 28. n. 2, 2007. p. 489-516; CABRERA.

    op. cit. (1993). p. 123; PALACIOS. op. cit. (2006). p. 1162-1172.50CABRERA. op. cit. (1993). p. 122. Recentemente, os historiadores Manuel F. Fernndez Chaves e Rafael M.Prez Garca tm desenvolvido investigaes sobre a escravido na Sevilha quinhentista. Os autores buscamentender as redes envolvidas no trfico de escravos entre a frica, a Europa e a Amrica espanhola, nas quais osportugueses ocupavam papis proeminentes. Consultar: CHAVES, Manuel F. Fernndez e GARCA, Rafael M.Prez. La esclavitud en la Sevilla del quinientos: reflexin histrica (1540-1570). In: PUENTE, FelipeLorenzana de la e ASCACIBAR, Francisco J. Mateos (coord.). Marginados y minoras sociales en la Espaa

    Moderna y otros estudios sobre Extremadura. VI Jornadas de Historia de Llerena. Llerena: Sociedad Extremeade Historia, 2006. p. 123-133; GARCA, Rafael M. Prez e CHAVES, Manuel F. Fernndez. Sevilla y la tratanegrera atlntica: envos de esclavos desde Cabo Verde a la Amrica Espaola, 1569-1579. In: SANTAL,Len Carlos lvarez (coord.). Estudios de Historia Moderna en Homenaje al profesor Antonio Garca-Baquero.Sevilha: Secretariado de Publicaciones Universidad de Sevilla, 2009. p. 597-622; CHAVES, Manuel F.Fernndez e GARCA, Rafael M. Prez. Las redes de la trata negrera: mercaderes portugueses y trfico de

    esclavos en Sevilla (c. 1560-1580). In: CASARES, Aurelia Martn e BARRANCO, Margarita Garca(compiladoras). La esclavitud negroafricana en la historia de Espaa, siglos XVI y XVII. Granada: EditorialComares, 2010. p. 5-34.

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    jurdico destaca-se por explicar muitos conceitos, categorias e ideias que aparecem

    mencionados em suas pginas.

    Na Quarta Partidase apresenta a definio de escravido, uma postura estabelecida

    por povos antigos, em que alguns homens, que so seres naturalmente livres, ficam sob o

    senhorio de outros51. Em um passado indefinido, os Imperadores resolveram que os cativos

    de guerra deveriam servir aos que os haviam capturado, em vez de serem sumariamente

    mortos costume mais comum at ento. Segundo as Partidas, eram trs as situaes em que

    algum podia ser considerado escravo: os inimigos da f crist capturados na guerra, os filhos

    de mes escravizadas e os que voluntariamente se vendessem52. Trs tambm eram os

    estados, ou condies, que podiam existir entre os homens: livres, escravos e alforriados

    ou libertos. As Partidas vo alm e definem o conceito de condio ou estado doshomens (status hominum). Em lnguas romnicas, esclarece a legislao, essa ideia diz

    respeito maneira como as pessoas vivem ou se localizam no mundo. Asseguram as Partidas,

    que o conhecimento dos estados dos homens tem a utilidade de melhor reparti-los nas suas

    respectivas categorias e de livr-los de injustias. Alm das trs condies bsicas, os seres

    humanos se classificam entre os nascidos e os ainda por nascer, fidalgos e plebeus, clrigos e

    leigos, cristos e mouros ou judeus, homens e mulheres53.

    Aps definirem escravido, as Partidasexplicam o seu reverso: a liberdade, condiodesejada por todos, principalmente pelos que so de nobre corao. O homem que

    naturalmente livre pode fazer o que desejar, desde que no existam regras que impeam ou

    que limitem suas aes. Ainda que registre em seu caput que pretende tratar da liberdade, as

    leis do ttulo 22, na Quarta Partida, tocam em temas relacionados com a servido, o que, de

    acordo com a ptica exposta neste cdigo, no contraditrio. Livrar-se da posio mais vil

    e depreciada do mundo a de escravo e atingir a mais cara e apreciada a liberdade

    no era um processo gratuito. Liberdade era uma condio que podia ser concedida a algum

    51 Na verdade, Las Siete Partidas no se utilizam dos termos esclavitud e esclavo, que ainda no tinham segeneralizado ao longo de sua produo e compilao. Nelas aparecem servidumbre e servo, palavras maisrelacionadas ao vocabulrio do direito romano.52Servidumbre es postura, e establescimiento, que fizieron antiguamente las gentes, por la qual los omes, queeran naturalmente libres, se fazen siervos, e se meten a seorio de otro, contra razon de natura.Las SietePartidas del sabio Rei Don Alonso IX[sic]. Glosadas por el lic. Gregorio Lopez. Madrid: Oficina de D. LeonAmarita, 1829. Quarta Partida, Titulo XXI, Ley 1. v. 2. p. 654.53Las Siete Partidas. Quarta Partida. Titulo XXIII (Del estado de los omes). v. 2. p. 667-668. Para uma

    discusso sobre os status e as condies no direito romano e na legislao ibrica, ver: SILVA JNIOR,Waldomiro Loureno da.A Escravido e a Lei: gnese e conformao da escravido negra na Amrica, sculos

    XVI-XVIII.Dissertao de mestrado apresentada Universidade de So Paulo, 2009. p. 69-72.

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    escravizado, mas que exigia obrigaes para com o ex-proprietrio e sua famlia e em alguns

    casos era passvel de revogao54.

    David Brion Davis observou a vinculao entre Las Siete Partidas e o Cdigo

    Justiniano, uma vez que o corpus legal de Castela ecoando a legislao romana

    reconhecia a guerra, o nascimento e a prpria venda como bases legtimas para a servido

    humana. Os princpios da razo natural, pressupostos nas leis castelhanas, garantiam ao

    escravo a faculdade de se casar, mesmo contra a vontade de seu senhor; se torturado ou

    cruelmente tratado, ele podia se queixar a um juiz, que poderia vend-lo a um senhor mais

    humano. Certamente, as clusulas aumentavam suas chances de alforria. Mas Davis cr que

    a imagem da escravido passada pelas Partidas era idealizada, apresentando pouca relao

    com a lei de vida de Castela55.Os princpios que regiam a condio escrava nas Siete Partidasno se restringiram

    somente ao Reino de Castela, a Espanha unificada e a suas possesses ultramarinas

    conquistadas a partir do final do sculo do XV. Essa legislao tambm teve importncia no

    estabelecimento das normas jurdicas que regulavam as relaes escravistas em Portugal e

    seus domnios. Conforme Antonio Pedro de Carvalho notou, ao escrever em 1877, as

    Partidas, ao lado do direito romano e cannico e de leis locais anteriores, foram as principais

    fontes utilizadas na compilao do que considerado o primeiro cdigo legal portugus: asOrdenaes Afonsinas56.

    A necessidade de regular juridicamente a escravido, de acordo com o historiador

    Saunders, coincide com a chegada dos escravos negros a Portugal, intensificada no transcorrer

    da segunda metade do sculo XV. Mas antes mesmo dessa nova presena humana, a

    sociedade portuguesa j havia definido os lugares sociais dos escravos. A experincia lusitana

    advinda do contato com muulmanos no perodo medieval se refletiu nas Ordenaes

    Afonsinas

    57

    , que usaram o termo mouro como sinnimo de escravo. A situao gerouproblemas para as esferas jurdicas portuguesas, quando tiveram que lidar com as novidades

    sociais do reino. Logo se percebeu que os negros africanos no poderiam ser totalmente

    54Las Siete Partidas. Quarta Partida. Titulo XXII (De la libertad). v. 2. p. 659-667.55DAVIS, David Brion. O problema da escravido na cultura ocidental.Rio de Janeiro: Civilizao Brasileira,2001. p. 124-125.56CARVALHO. op. cit. (1877). p. 22-23; 43.57Segundo Silvia Hunold Lara, as Ordenaes Afonsinasforam baixadas em 1446 ou 1447. No entanto, foram

    impressas apenas no sculo XVIII. LARA, Silvia Hunold. Legislao sobre escravos africanos na Amricaportuguesa. In: ANDRS-GALLEGO, Jos (coord.). Nuevas Aportaciones a la Historia Jurdica deIberoamrica. (CD-ROM). Madrid, Fundacion Historica Tavera, 2000. p. 23.

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    equiparados aos mouros. Comportavam-se de forma distinta, nem todos eles eram

    muulmanos e vinham de regies que, at ento, ainda estavam em processo de

    reconhecimento pelos europeus58.

    Embora no seja possvel precisar com exatido a quantidade de desembarcados, sabe-

    se que desde 1441, data da primeira captura de africanos no Rio do Ouro, houve um

    incessante trfico de negros para Portugal. Saunders acredita que at 1470 chegaram a terras

    lusitanas uma cifra em torno de 1000 escravos anualmente. De 1490 a 1530, o autor indica

    que entre 300 a 2000 escravos aportaram em Lisboa a cada ano. No despertar da Idade

    Moderna, Portugal era o maior destino e o mais destacado comerciante de escravos da

    Europa, ainda que grande parte deles fosse reexportada para outras praas comerciais59.

    Dados apresentados por Saunders sugerem que na metade do sculo XVI, em torno de 10%dos 100.000 habitantes de Lisboa eram escravos e libertos, entre negros e mouros. Essa

    realidade no passou despercebida aos legisladores portugueses, que ao longo do tempo, e

    com a experincia cotidiana, adaptaram a legislao60.

    As Ordenaes Manuelinas61acrescentaram poucas mudanas em relao ao cdigo

    anterior. As lacunas dessa compilao foram preenchidas com novas leis elaboradas no sculo

    XVI. Na legislao deste perodo, percebe-se que o termo escravo paulatinamente foi

    adotado para se referir aos africanos negros em Portugal, ao mesmo tempo em que mourotornou-se sinnimo de mulumano escravizado62. Na percepo de Silvia Hunold Lara, a

    mudana de tratamento ficou evidenciada nas Ordenaes Filipinas63 que passaram a vigorar

    no perodo de unificao das coroas espanhola e portuguesa. Segundo Lara, esta compilao

    representou uma descontinuidade legislativa na abordagem da escravido. At ento vistas

    pelo prisma religioso, em que o embate entre cristos e mouros ditava a tnica, as relaes

    escravistas passaram a ser compreendidas sob as esferas civil, comercial e punitiva64.

    58SAUNDERS, A. C. de C. M.Histria social dos escravos e libertos negros em Portugal (1441-1555). Lisboa:Imprensa Nacional-Casa da Moeda, 1994. p. 157-158.59SAUNDERS. op. cit. (1994). p. 25-54. Para reflexes mais recentes sobre o tema, ver: MENDES, Antnio deAlmeida. Portugal e o trfico de escravos na primeira metade do sculo XVI. In:Africana Studia.n. 7, 2004. p.13-30.60SAUNDERS. op. cit. (1994). p. 84-85, 158.61 As Ordenaes Manuelinas foram editadas pela primeira vez entre 1512 e 1514 e modificadas em 1521.LARA. op. cit. (2000). p. 24.62SAUNDERS. op. cit. (1994). p. 84-85, 158.63As Ordenaes Filipinasforam concludas em 1595, mas s tiveram validade a partir de 1603. LARA. op. cit.(2000). p. 24.64LARA. op. cit. (2000). p. 36-37.

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    J foi percebido pela historiografia que os cdigos legais portugueses organizados

    nos reinados de Afonso V, Manuel I e Felipe I (Felipe II da Espanha) no determinaram

    dispositivos especficos relativos concesso de liberdade aos escravos65. Manoela

    Carneiro da Cunha, apontando que at 1871, no Brasil, as alforrias no foram regulamentadas,

    chama de silncio da lei a inexistncia de preceitos particulares para esta prtica to

    comum. Segundo a autora, se o direito positivo no se pronunciava a respeito da

    possibilidade de libertao de escravos, era o direito costumeiro que regia o funcionamento

    deste mecanismo66.

    Outra constatao que tambm generalizada entre os estudiosos a equiparao que

    as Ordenaes portuguesas fazem entre alforrias e doaes67. Esta uma das poucas

    referncias possibilidade de libertao de escravos, em todas as verses dos cdigos,baixados entre os sculos XV e XVII. Silvia Hunold Lara destacou que

    O Ttulo LXIII do Livro IV das Ordenaes Filipinasdispunha sobreas doaes e alforrias que podiam ser revogadas por motivo deingratido. A alforria (enquanto doao de liberdade ao escravo) podiaser legalmente revogada se o liberto cometer contra quem o forroualguma ingratido pessoal, em sua presena ou em ausncia, quer sejaverbal quer de feito e real. Era considerado ingrato aquele liberto

    que proferisse injrias graves, ferisse o doador ou atentasse contra ele,tratasse ou ordenasse ao que pudesse prejudicar sua fazenda ou prem perigo e dano sua pessoa e que, em caso de o doador passar pornecessidade ou fome, tendo condies, no o socorresse68.

    Se a legislao portuguesa no tratou das alforrias de forma individualizada,

    constatao que partilhada por vrios historiadores, importante observar como o tema foi

    apresentado nas Siete Partidas. Conforme mencionado anteriormente, durante as idades

    Mdia e Moderna, a codificao castelhana serviu de inspirao para diversas leis e

    65LARA. op. cit. (1988). p. 250.66CUNHA. op. cit. (1987). p. 123-144.67MALHEIROS. op. cit. (1866). p. 190; LARA. op. cit. (1988). p. 264-265; SOARES. op. cit. (2009). p. 178;CHALHOUB. op. cit. (2011). p. 170-172; SILVA JNIOR. op. cit. (2009). p. 87; FONSECA, Jorge. Escravosem vora no sculo XVI. vora: Cmara Municipal de vora, 1997. p. 197-198; PIMENTEL, Maria do Rosrio.Viagem ao fundo