liÇÕes aos meus alunos (vol. 1)

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Lições aos Meus Alunos (Vol. 1)

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LIÇÕES AOS MEUS ALUNOS (Vol. 1) [Clique na palavra ÍNDICE]

HOMILÉTICA E TEOLOGIA PASTORAL

C. H. SPURGEON

PUBLICAÇÕES EVANGÉLICAS SELECIONADAS

Título original: Lectures To My Students

Tradução do original por: Odayr Olivetti

Primeira Edição em Português

1980

Contracapa:

Quem já ouviu falar de Charles Haddon Spurgeon – conhecido

como "o príncipe dos pregadores" – certamente ficou sabendo da sua

graça, inteligência e sabedoria espirituais, e da grande influência que

exerceu, não somente no seu próprio ministério, como também na vida e

ministério de muitos outros pastores e obreiros cristãos. Como

experiente servo de Deus ele foi uma luz que brilhou entre os seus

contemporâneos.

Neste livro nos o encontramos na melhor expressão do seu ensino

pastoral. As lições constantes nos dez capítulos foram originalmente

dirigidas aos seus alunos na Escola Bíblica que fundou para preparar

pastores. Ninguém que se sente chamado para pregar a Palavra de Deus

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Lições aos Meus Alunos (Vol. 1)

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pode dar-se ao luxo de negligenciar a leitura de uma obra tão

reconhecida e marcante que trata do assunto da pregação.

Se quisermos um indício do sucesso deste grande servo de Deus

então nada melhor poderemos fazer que estudar esta obra!

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Lições aos Meus Alunos (Vol. 1)

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ÍNDICE

1. O Espírito Santo em Relação com o Nosso Ministério.......3

2. Necessidade de Progresso Ministerial.............................32

3. Necessidade de Decisão pela Verdade............................53

4. Pregação ao Ar Livre: Esboço de Sua História................72

5. Pregação ao Ar Livre: Notas Adicionais...........................98

6. Postura, Atitude, Gestos Etc...........................................123

7. Postura, Atitude, Gestos Etc. (Segunda Preleção).........146

8. Fervor: Sua Deformação e Sua Preservação.................169

9. Cego de um Olho e Surdo de um Ouvido.......................193

10. Conversão como o Nosso Objetivo................................214

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Lições aos Meus Alunos (Vol. 1)

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O ESPÍRITO SANTO EM RELAÇÃO COM O NOSSO

MINISTÉRIO

Escolhi um tópico sobre o qual seria difícil dizer algo que já não

tenha sido dito antes muitas vezes. Mas, como o tema é da mais alta

importância, é bom deter-nos nele com freqüência, e ainda que só

exponhamos velhas coisas e nada mais, talvez seja sábio fazer-vos

lembrar-se delas. Nosso é: O Espírito Santo em Relação com o Nosso

Ministério, ou – a obra do Espírito Santo concernente a nós como

ministros do evangelho de Jesus Cristo.

"CREIO NO ESPÍRITO SANTO." Tendo pronunciado esta frase

como conteúdo do credo, espero que possamos repeti-la também como

um solilóquio devoto impulsionado por nossa experiência pessoal aos

nossos lábios. Para nós, a presença e a obra do Espírito Santo constituem

a base da nossa confiança quanto à sabedoria e ao elemento de esperança

da obra da nossa vida. Se não crêssemos no Espírito Santo, teríamos

renunciado ao nosso ministério muito antes, pois, "quem é suficiente

para estas coisas?" Nossa esperança de sucesso e nossa força para a

continuidade do serviço jazem em nossa crença em que o Espírito do

Senhor repousa sobre nós.

Por ora dou por certo que todos nós estamos cônscios da existência

do Espírito Santo. Dissemos que cremos nEle. Na verdade avançamos

além da fé, nesta questão, e penetramos na região da consciência. Houve

tempo em que a maioria de nos cria na existência dos nossos amigos

presentes, pois tínhamos ouvido falar deles com os nossos ouvidos, mas

agora nós vemos uns aos outros, trocamos apertos de mão fraternais e

experimentamos a influência do companheirismo agradável, e portanto

agora não é tanto que cremos, como conhecemos. Igualmente

experimentamos o Espírito de Deus operando em nossos corações, temos

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conhecido e percebido o poder que Ele exerce sobre os espíritos

humanos, e O conhecemos por contato pessoal, freqüente e consciente.

Pela sensibilidade do nosso espírito tomamos consciência da presença do

Espírito de Deus, do mesmo modo como tomamos consciência da

existência das almas dos nossos semelhantes por sua ação sobre as

nossas almas, assim como estamos certos da existência da matéria pela

sua ação sobre os nossos sentidos. Fomos elevados da obscura esfera

daquilo que é apenas mente e matéria às fulgurâncias celestiais do

mundo espiritual. Agora, como homens espirituais, discernimos as coisas

espirituais, sentimos as forças superiores dos domínios do espírito, e

sabemos que há um Espírito Santo, pois O sentimos operar em nossos

espíritos. Não fosse assim, certamente não teríamos direito de estar no

ministério da igreja de Cristo. Deveríamos permanecer até como

membros da igreja? Mas, irmãos, fomos vivificados espiritualmente.

Temos definida consciência de uma vida nova, com tudo o que dela

resulta; somos novas criaturas em Cristo Jesus e vivemos num mundo

novo. Fomos iluminados e capacitados a contemplar coisas que os olhos

não vêem. Fomos guiados para a verdade de tal natureza que a carne e o

sangue jamais poderiam ter revelado. Temos sido consolados pelo

Espírito. Muitíssimas vezes o Santo Parácleto nos tem levantado dos

abismos da tristeza às alturas da alegria. Em certa medida, também

fomos santificados por Ele; e estamos cônscios de que a santificação vai

sendo operada em nós por diferentes formas e meios. Portanto, dadas

estas experiências pessoais todas, sabemos que o Espírito Santo existe,

com a mesma certeza de que nos mesmos existimos.

Sinto-me tentado a demorar-me aqui, pois este ponto merece maior

consideração. Os descrentes pedem fatos. A velha doutrina comercial de

Gradgrind entrou na religião, e o cético brada: "O que quero são fatos!"

Estes são os nossos fatos: Não nos esqueçamos de usá-los. Um cético me

desafia com esta observação: "Não posso fixar minha fé num livro ou

numa história. Quero ver fatos reais." Minha resposta é: "Você não os

pode ver porque os seus olhos estão vendados. Mas os fatos estão aí,

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nem mais nem menos. Aqueles dentre nos que têm olhos vêem coisas

maravilhosas, embora você não as veja."

Se ele ridiculariza a minha afirmação, não fico espantado nem um

pouco. Já o esperava. Ficaria espantado, e muito, se não o fizesse. Mas

exijo respeito por minha posição como testemunha de fatos, e dirijo ao

meu oponente a pergunta: "Que direito tem você de recusar a minha

prova? Se eu fosse cego, e você me dissesse que possui uma faculdade

chamada visão, eu seria irracional se o ofendesse chamando-lhe otimista

convencido. Tudo que você tem direito de dizer é que nada sabe sobre

isto mas não está autorizado a chamar-nos de mentirosos ou bobos. Você

pode juntar-se aos ofensores do passado e declarar que o homem

espiritual é louco, mas isso não desfaz as afirmações deste."

Irmãos, para mim, os fatos produzidos pelo Espírito de Deus

demonstram a veracidade da religião cristã com a mesma clareza com

que a destruição de Faraó no Mar Vermelho, ou o maná caído no deserto,

ou a água saltando da rocha ferida, podiam provar a Israel a presença de

Deus no meio das suas tribos.

Chegamos agora ao cerne do nosso assunto. Para nós, ministros, o

Espírito Santo é absolutamente essencial. Sem Ele o nosso oficio não

passa de um nome. Não nos arrogamos sacerdócio além e acima daquele

que pertence a todos os filhos de Deus. Mas somos sucessores daqueles

que, nos velhos tempos, foram movidos por Deus a proclamar a Sua

Palavra, a dar testemunho contra as transgressões e a dirigir a Sua causa.

A menos que o espírito dos profetas esteja repousando sobre nós, o

manto que usamos não passa de um traje tosco e enganoso. Como

objetos dignos de aversão, devíamos ser expulsos da sociedade dos

sinceros por ousarmos falar em nome do Senhor – se é que o Espírito de

Deus não repousa sobre nós. Cremos que somos arautos de Jesus Cristo,

designados para continuar o Seu testemunho na terra. Mas, sobre Ele e

sobre o Seu testemunho sempre repousou o Espírito de Deus, e se Este

não repousa sobre nós, é evidente que não somos enviados ao mundo

como Cristo foi. No dia de Pentecoste, o início da grande obra de

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converter o mundo foi com línguas flamejantes e com um forte e

impetuoso vento, símbolos da presença do Espírito. Portanto, se

pretendemos ter bom êxito sem o Espírito, não estamos seguindo a

norma pentecostal. Se não temos o Espírito que Jesus prometeu, não

podemos cumprir a comissão que Jesus deu.

Não seria preciso advertir algum irmão aqui sobre a ilusão de que

podemos ter o Espírito de Deus no sentido de sermos inspirados.

Contudo, os membros de certa seita litigiosa moderna precisam ser

advertidos sobre essa loucura. Defendem a idéia de que as suas reuniões

são realizadas sob "a presidência do Espírito Santo" – noção sobre a qual

só posso dizer que fui incapaz de descobrir na Escritura Sagrada tanto a

expressão como a idéia. Encontro, sim, no Novo Testamento, um grupo

de coríntios notavelmente dotados, que gostavam de falar e dados a lutas

partidárias – verdadeiros representantes daqueles a quem me referi. Mas,

como Paulo disse deles, "Dou graças porque a nenhum de vós batizei",

também dou graças ao Senhor que poucos daquela escola alguma vez se

acharam em nosso meio. Poderia parecer que as suas assembléias

possuem um dom peculiar de inspiração, não chegando inteiramente à

infalibilidade, mas aproximando-se bem dela. Se vocês se meteram

nessas reuniões, pergunto enfaticamente se foram mais edificados pelas

preleções produzidas sob a presidência celestial, do que pelas preleções

de comuns pregadores da Palavra.

Estes se consideram sob a influência do Espírito Santo somente

como um espírito está sob a influência de outro espírito, ou como uma

mente sob a influência de outra. Não somos passivos transmissores de

infalibilidade. Somos sinceros instruidores de coisas que aprendemos, na

medida em que as pudemos captar. Como as nossas mentes são ativas e

têm existência pessoal enquanto o Espírito age sobre elas, transparecem

as nossas fraquezas bem como a Sua sabedoria. E enquanto revelamos

aquilo que Ele nos fez saber, somos grandemente humilhados pelo temor

de que a nossa ignorância e os nossos erros se manifestem em certo grau

ao mesmo tempo, porque não nos sujeitamos mais perfeitamente ao

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poder divino. Não desconfio que vocês se extraviem na direção a que

aludi. Certamente não é provável que os resultados de experiências

anteriores induzam sábios a essa loucura.

Eis nossa primeira pergunta: Onde havemos de buscar o auxilio do

Espírito Santo? Quando tivermos falado sobre este ponto,

consideraremos mui solenemente um segundo: Como podemos perder

essa assistência? Oremos no sentido de que, pela bênção de Deus, a

consideração deste ponto nos ajude a retê-la.

Onde havemos de buscar o auxílio do Espírito Santo? Devo

responder: por sete ou oito meios,

1. Primeiro, Ele é o Espírito de conhecimento. "Ele vos guiará a

toda a verdade." Nisto, precisamos do Seu ensino.

Temos urgente necessidade de estudar, pois o mestre de outros

precisa instruir-se. Subir ao púlpito normalmente despreparado é

presunção imperdoável. Nada poderá rebaixar-nos mais efetivamente, e

ao nosso oficio. Depois de um discurso que o bispo de Lichfield fez em

visita oficial, discurso sobre a necessidade de zeloso estudo da Palavra,

certo clérigo disse à sua reverendíssima que não podia crer em sua

doutrina, "pois", disse ele, "muitas vezes, quando estou no gabinete

pastoral, pronto para pregar, não sei sobre o que vou falar, mas vou para

o púlpito, prego, e não penso em nada disso." O bispo respondeu : "E

você está certo em não pensar nada disso, pois os oficiais da igreja me

disseram que partilham da sua opinião."

Se não somos instruídos, como podemos instruir outros? Se não nos

dedicamos a pensar, como podemos levar outros a pensar? É em nosso

labor de estudar, nesse bendito trabalho em que estamos a sós com o

Livro diante de nós, que precisamos da ajuda do Espírito Santo. Com Ele

está a chave do tesouro celeste, e pode enriquecer-nos além da nossa

imaginação. Com Ele está o guia da doutrina mais labiríntica, e pode

conduzir-nos no caminho da verdade. Pode romper os portais de bronze

e picar em pedaços as barras de ferro, e dar-nos os tesouros das trevas e

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as riquezas ocultas dos lugares secretos. Se vocês estudarem os originais,

consultarem comentários e meditarem profundamente, mas deixarem de

clamar vigorosamente ao Espírito de Deus, o seu estudo não lhes trará

proveito. Entretanto, ainda que lhes seja vedado o emprego daqueles

recursos (o que confio não lhes suceda), se esperarem do Espírito Santo

em simples dependência do Seu ensino, aprenderão muito da intenção

divina.

O Espírito de Deus nos é peculiarmente precioso, porque de modo

muito especial Ele nos instrui sobre a pessoa e a obra de nosso Senhor

Jesus Cristo; e este é o ponto principal da nossa pregação. Ele toma

coisas de Cristo e no-las mostra. Se tomasse coisas de doutrina ou

preceito, ficaríamos contentes por essa bondosa assistência. Mas, visto

que se deleita especialmente nas coisas de Cristo, e focaliza a Sua

sagrada luz na cruz, regozijamo-nos ao ver o centro do nosso testemunho

iluminado tão divinamente, e nos asseguramos de que a luz se difundirá

sobre todo o restante do nosso ministério. Busquemos ao Espírito de

Deus com este brado: "Ó Espírito Santo, revela-nos o Filho de Deus, e

assim mostra-nos o Pai."

Como Espírito de conhecimento, não só nos instrui quanto ao

evangelho, mas também nos leva a ver o Senhor em todas as outras

coisas. Não devemos fechar os nossos olhos para Deus na natureza, ou

na história geral, ou nas ocorrências providenciais diárias, ou em nossa

experiência pessoal. E em todas estas coisas, o nosso Intérprete da mente

de Deus é o bendito Espírito. Se clamamos: "Ensina-me o que queres

que faça"; ou, "mostra-me o motivo pelo qual contendes comigo"; ou,

"dize-me qual é a Tua intenção nesta rica previdência de misericórdia";

ou, "revela-me o Teu propósito naquela outra dispensarão mista de juízo

e graça" – seremos bem instruídos em cada caso. Pois o Espírito é o

candeeiro de sete braços do santuário, e pela Sua luz todas as coisas

podem ser vistas corretamente.

Como Goodwin observa bem : "É preciso haver luz acompanhando

a verdade, se temos de conhecê-la. Prova-nos isto a experiência de todos

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os homens envoltos na graça de Deus. Qual a razão por que vocês vêem

algumas coisas num capítulo numa ocasião, e não em outra; alguma

porção da graça em seus corações numa ocasião, e não em outra; têm um

vislumbre das realidades espirituais numa ocasião, e não em outra? Os

olhos são os mesmos, mas é o Espírito Santo que abre e fecha esta

lanterna de furta-fogo, como eu poderia chamar-lhe. Conforme Ele a

abre mais, ou a aperta, ou a fecha, estreitando-a, temos maior ou menor

visão. E às vezes Ele a fecha totalmente, e então a alma fica na

escuridão, embora seus olhos nunca tenham estado tão bons." Amados

irmãos, Não deixem de ira Ele em busca desta luz, ou ficarão nas trevas

e serão guias cegos de cegos.

2. Em segundo lugar, o Espírito é chamado Espírito de sabedoria, e

precisamos enormemente dEle nesta capacidade.

Sim, pois o conhecimento pode ser perigoso, se não for

acompanhado pela sabedoria, que é a arte de usar acertadamente o que

conhecemos. Manejar bem a Palavra de Deus é tão importante como

compreendê-la plenamente. Alguns que evidentemente compreenderam

uma parte do evangelho, deram indevida proeminência a essa porção

isolada e, portanto, exibiram um cristianismo deformado, para prejuízo

daqueles que o receberam, visto que, em conseqüência disso, exibiram

por sua vez um caráter deformado. O nariz é um trapo proeminente do

rosto do homem. É possível, porém, fazê-lo tão grande que os olhos, a

boca e tudo mais sejam lançados à insignificância. Um desenho assim é

caricatura, não retrato. Do mesmo modo, certas doutrinas importantes do

evangelho podem ser proclamadas com tal excesso que se lança o

restante da verdade à sombra, e a pregação já não é o evangelho em sua

beleza natural, mas uma caricatura do evangelho. Contudo, deixem-me

dizê-lo, algumas pessoas parecem fortemente apegadas a essa caricatura.

O Espírito de Deus lhes ensinará o emprego da faca sacrificial para

dividir as ofertas. E lhes mostrará como usar as balanças do santuário,

para pesarem e misturarem as preciosas especiarias em quantidades

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certas. Todo pregador experimentado sente que esse é o momento

supremo, e bom será que seja capaz de resistir à tentação de negligenciá-

lo.

Que lástima, alguns dos nossos ouvintes não desejam ouvir todo o

conselho de Deus! Têm as suas doutrinas favoritas e gostariam de fazer-

nos calar em tudo mais. Muitos são como a escocesa que, depois de

ouvir um sermão, disse: "Estaria muito bem, se não fosse aquela droga

de deveres no fim." Há irmãos dessa espécie. Desfrutam da parte

consoladora – as promessas e as doutrinas – mas só de leve se deve tocar

na santidade prática. A fidelidade requer que entreguemos o evangelho

sob todos os ângulos, sem omitir nada e sem exagerar em nada. Para isto

requer-se muita sabedoria. Com seriedade indago se algum de nós tem o

tanto desta sabedoria que necessitamos. Provavelmente somos afligidos

por algumas parcialidades inescusáveis e inclinações injustificáveis.

Ponhamo-las para fora e acabemos com elas. Talvez tenhamos

consciência de que passamos por alto certos textos, não porque não o

compreendemos (o que poderia justificar-se), mas porque os

compreendemos e raramente gostamos de dizer o que eles nos

ensinaram, ou porque talvez haja alguma imperfeição em nós, ou algum

preconceito entre os nossos ouvintes que aqueles textos revelariam de

modo demasiado claro para que nos sentíssemos bem. Esse silêncio

pecaminoso tem que ser eliminado imediatamente. Para sermos sábios

mordomos e repartirmos as porções certas de alimento para os membros

da casa do divino Senhor, precisamos do Teu ensino, ó Espírito de Deus!

Tampouco isso é tudo, pois mesmo que saibamos manejar bem a

Palavra de Deus, carecemos de sabedoria para a seleção da porção

particular da verdade que é mais aplicável à ocasião e às pessoas

reunidas. Como também de igual descrição no tom e na maneira de

apresentar a doutrina. Creio de muitos irmãos que pregam sobre a

responsabilidade humana, lançam-se de modo tão legalista que causam

desgosto a todos os que amam as doutrinas da graça. Por outro lado,

receio que muitos pregam a soberania de Deus de modo tal que afastam

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inteiramente da ala calvinista todas as pessoas que crêem na livre ação

do homem. Não devemos ocultar a verdade por um momento sequer,

mas devemos ter sabedoria para pregá-la sem que haja choque ou ofensa,

e, sim, um esclarecimento gradativo daqueles que não conseguem vê-la

de todo, e um processo pelo qual se conduzam os irmãos mais fracos ao

pleno círculo da doutrina do evangelho.

Irmãos, precisamos de sabedoria também no modo de colocar as

coisas para diferentes pessoas. Pode-se demolir um ser humano com a

mesma verdade destinada a edificá-lo. Pode-se causar enjôo a alguém

com o mel com que se pretendia adoçar-lhe a boca. Tem-se pregado a

grande misericórdia de Deus sem cuidado, o que tem levado centenas á

licenciosidade. Por outro lado, tem-se ocasionalmente apregoado a

terribilidade do Senhor com violência tão fulminante que tem levado

muitos ao desespero, e daí a um decidido desafio ao Altíssimo. A

sabedoria é proveitosa para dirigir, e aquele que a tem expõe a verdade

na ocasião certa e trajada com as suas vestes mais apropriadas. Quem

pode dar-nos esta sabedoria, senão o bendito Espírito de Deus? Irmãos,

vejam que, com a mais humilde reverência, esperem a Sua direção.

3. Terceiro, precisamos do Espírito de outra maneira, a saber, como

a brasa viva tirada do altar, tocando os nossos lábios. Assim, quando

temos conhecimento e sabedoria para escolher a porção certa da verdade,

podemos desfrutar liberdade de expressão quando vamos entregá-la.

"Eis que ela tocou os teus lábios."

Quão gloriosamente fala o homem quando os seus lábios estão

empolados pela brasa viva do altar – sentindo o poder de fogo da

verdade, não apenas no recôndito da alma, mas nos próprios lábios com

os quais está falando! Reparem nessas ocasiões como estremece a sua

fala. Não notaram agora mesmo, na reunião de oração, em dois dos

irmãos que elevaram súplicas, como era trêmulo o tom da sua voz, e

como tremiam as estruturas dos seus corpos? Porque não somente os

seus corações foram tocados, como espero tenham sido todos os nossos

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corações, mas os seus lábios foram tocados, e esse toque influiu em seu

falar, irmãos, precisamos do Espírito de Deus para abrir as nossas bocas,

para podermos proclamar os louvores do Senhor, ou então não falaremos

com poder.

Necessitamos da influência divina para impedir que digamos muitas

coisas que, caso saíssem de fato das nossas 1ínguas, estragariam a nossa

mensagem. Aqueles dentre nós que têm o perigoso talento para o

humorismo, às vezes precisam parar, pegar a palavra ao sair da boca,

olhar bem para ela, e ver se presta bem para a edificação. E aqueles cujo

viver anterior os conduziu entre os grosseiros e rudes, precisam vigiar

com olhos de lince a falta de delicadeza. Longe de nós, irmãos, dizer

uma sílaba que sugira um pensamento impuro ou que desperte uma

lembrança duvidosa. Precisamos do Espírito de Deus para pôr freio e

cabresto em nós para impedir que falemos coisas que levem a mente dos

ouvintes para longe de Cristo e das realidades eternas, fazendo-os pensar

em coisas vis da terra.

Irmãos, também precisamos do Espírito Santo para nos impulsionar,

em nossa tarefa de comunicar a Palavra. Não duvido que vocês estejam

todos conscientes dos diferentes estados mentais que ocorrem na

pregação. Alguns desses estados decorrem das diferentes condições

físicas. Um resfriado não só tira a clareza da voz, mas também congela o

fluxo dos pensamentos. Da minha parte, se eu não posso falar com

clareza, também fico incapaz de pensar com clareza, e o conteúdo a

transmitir fica rouco também, como a voz. Igualmente o estômago e

todos os órgãos do corpo afetam a mente. Mas não me refiro a essas

coisas. Terão vocês consciência das alterações completamente

independentes do corpo? Quando estão robustos, não se sentem um dia

pesados como os carros de Faraó com as rodas retiradas, e noutra ocasião

com tanta liberdade como "uma corça deixada solta"? Hoje o ramo brilha

com o orvalho, ontem foi crestado pela seca. Quem não sabe que o

Espírito de Deus está nisso tudo?

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Às vezes o Espírito divino age em nós de molde a livrar-nos

completamente de nós mesmos. Em tais ocasiões, do começo ao fim do

sermão podíamos dizer: "Se no corpo ou fora do corpo, não sei, Deus o

sabe". Tudo foi esquecido, menos certo absorvente assunto em mãos. Se

me fosse proibido entrar no Céu, mas me fosse dado escolher a condição

em que passarei a eternidade, escolheria aquela em que às vezes me sinto

quando prego o evangelho. Nesse estado prefigura-se o Céu: a mente

cerrada para todas as influências perturbadoras, adorando o majestoso

Deus, com plena consciência de Sua presença, todas as faculdades

elevadas e jubilosamente cheias de vigor no máximo de sua capacidade,

todos os pensamentos e poderes da alma alegremente ocupados em

contemplar a glória do Senhor e exaltando com as multidões atentas o

Bem-amado da nossa alma; e durante todo esse intervalo, a mais pura

benevolência concebível para com as demais criaturas a incentivar o

coração a pleitear com elas em prol do nome de Deus – que estado

mental pode rivalizar-se com este? Pena é que alcançamos este ideal,

porém, sem o podermos manter sempre, pois também sabemos o que é

pregar em cadeias ou dar murros no ar.

Não podemos atribuir santas e felizes mudanças ocorridas em nosso

ministério a nada menos que a ação do Espírito Santo em nossas almas.

Estou certo de que o Espírito Santo realiza esta obra. Vezes sem conta,

quando me assaltam dúvidas sugeridas pelo infiel, posso arremessá-las

aos ares com total desdém, porque tenho definida consciência de um

poder que opera em mim quando falo em nome do Senhor, poder que

transcende infinitamente a qualquer capacidade ou eloqüência pessoal, e

que sobrepuja em muito qualquer energia derivada do entusiasmo que

sinto quando faço uma preleção secular ou um discurso. Aquele poder é

tão diferente deste, que tenho toda a certeza de que não é da mesma

ordem ou classe do entusiasmo dos políticos ou do ardor da oratória pura

e simples. Oxalá experimentemos com muita freqüência a energia divina,

e falemos com poder.

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4. Mas então, em quarto lugar, o Espírito de Deus age também

como óleo que unge e isto se relaciona com todo o trabalho da pregação

– não simplesmente com a alocução oral, mas com toda a transmissão do

discurso. Ele pode fazê-los sensíveis ao assunto, até ao ponto de ficarem

dominados por ele, quer achatados na terra, quer elevados às alturas

como em asas de águias. Acresce que, além do assunto, Ele os faz

sensíveis ao seu objeto, até anelarem pela conversão dos homens e pelo

despertamento dos cristãos, para que se elevem a algo mais nobre do que

tudo que já conhecem. Ao mesmo tempo, outro sentimento estará com

vocês, a saber, um intenso desejo de que Deus seja glorificado mediante

a verdade que estão proclamando. Vocês ficam conscientes de um

profundo e compassivo interesse pelas pessoas a que estão falando,

lamentando que alguns saibam pouco, e que outros saibam muito e,

contudo, o recusam. Vocês fitam alguns semblantes e, em silêncio, o seu

coração lhes diz: "Ali caí orvalho", e, voltando-se para outros, com

tristeza percebem que são como as partes áridas da montanha de Gilboa.

Tudo isto se dá durante o sermão. Não podemos contar quantos

pensamentos passam pela mente de uma vez. Uma vez contei oito grupos

de pensamentos que ocupavam o meu cérebro simuitaneamente, ou ao

menos dentro do espaço do mesmo segundo. Estava pregando o

evangelho com todas as minhas forças, mas não pude deixar de

sensibilizar-me por uma senhora que estava evidentemente prestes a

desmaiar, e também fiquei procurando o irmão encarregado das janelas,

para que nos desse mais ar. Estava pensando na ilustração que omitira na

primeira divisão, procurando dar forma à segunda divisão, perguntando-

me se este sentira o peso da minha reputação, se aquele se fortalecera

com a observação consoladora, e ao mesmo tempo estava louvando a

Deus por desfrutar eu pessoalmente da verdade que estava proclamando.

Alguns intérpretes consideram os querubins de quatro rostos como

emblemas dos ministros. Eu certamente não vejo dificuldade na forma

quádrupla, pois o Espírito Santo pode multiplicar os nossos estados

mentais, e fazer de nós homens muito superiores além do que somos por

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Lições aos Meus Alunos (Vol. 1)

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natureza. O quanto pode Ele fazer de nós, e quão grandiosamente pode

elevar-nos, não ouso conjeturar. Certamente Ele pode fazer muitíssimo

acima do que pedimos ou pensamos.

Especialmente faz parte da obra do Espírito Santo manter em nós

uma disposição devocional enquanto estamos entregando a mensagem.

Esta é uma condição que se deve ambicionar grandemente – continuar a

orar enquanto estamos ocupados com a prédica; cumprir os

mandamentos do Senhor, dando ouvidos à voz da Sua Palavra; manter os

olhos postos no trono, e as asas em constante movimento. Espero que

saibamos o que isto significa. Estou certo de que sabemos o seu oposto,

ou de que logo o experimentaremos, isto é, o mal de pregar sem espírito

de devoção. Que pode ser pior do que falar sob a influência de um

espírito arrogante ou irritado? Que é mais debilitante do que pregar num

espírito incrédulo? Por outro lado, que bênção arder fervorosamente

enquanto brilhamos diante dos olhos de outros! Esta é a obra do Espírito

de Deus. Adorável Consolador, opera em nós!

Em nossos púlpitos precisamos unir o espírito de dependência com

o de devoção, de modo que, durante a pregação toda, desde a primeira

palavra até a última sílaba, olhemos ao alto para o Forte em busca de

força. É bom lembrar que, embora tivessem chegado até o presente

ponto, se o Espírito Santo os deixasse, fariam papel de tolos antes de

acabar o sermão. Elevando os olhos para os montes de onde vem o

socorro durante o sermão inteiro, com absoluta dependência de Deus,

vocês pregarão com espírito de bravia confiança o tempo todo. Talvez eu

esteja errado ao dizer "bravia", pois não é coisa bravia confiar em Deus;

para os verdadeiros crentes é simples questão de doce necessidade –

como podem deixar de confiar nEle? Por que haveriam de duvidar do

seu Amigo sempre fiel?

Outro dia de manhã, pregando à minha igreja sobre o texto, "A

minha graça te basta", disse aos irmãos que pela primeira vez em minha

vida tinha experimentado o que Abraão sentiu quando se inclinou sobre

o seu rosto e riu. Voltava para casa depois de uma semana de trabalho

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Lições aos Meus Alunos (Vol. 1)

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intenso, quando vejo à minha mente o texto: "A minha graça te basta."

Veio, porém, com a ênfase posta em duas palavras: "A Minha graça te

basta." Minha alma disse: "Sem dúvida é assim. Seguramente, a graça do

Deus infinito é mais que suficiente para um simples inseto como eu." E

ri, e tornei a rir, ao pensar em quanto o suprimento excedia a todas as

minhas necessidades. Parecia que eu era um pequeno peixe no mar, e na

minha sede dizia: "Viva, vou beber o oceano inteiro." Então o Pai das

águas ergueu sublime a cabeça e disse a sorrir: "Pequenino peixe, a

ilimitada vastidão marinha te basta." Este pensamento fez com que a

descrença parecesse supinamente ridícula, como de fato é.

Irmãos, devemos pregar cientes de que Deus pretende abençoar a

Palavra proclamada, pois temos Sua promessa neste sentido. E ao termos

pregado, devemos procurar as pessoas atingidas pela bênção. Dirão

vocês: "Fico dominado pelo espanto ao ver que Deus converte almas por

meio do meu pobre ministério"? Falsa humildade! O seu ministério é

pobre de verdade. Toda gente sabe disso, e vocês devem sabê-lo mais

que ninguém. Mas, ao mesmo tempo, é coisa para espantar que, o Deus

que disse: "A minha palavra não voltará para mim vazia", cumpra o que

prometeu? A refeição irá perder o seu valor nutritivo porque o prato é

barato? A graça divina haverá de ser sobrepujada por nossa fraqueza?

Não. Mas temos este tesouro em vasos de barro, para que a excelência do

poder seja de Deus e não nossa.

Precisamos ainda do Espírito Santo durante o sermão todo para

manter os nossos corações e mentes em condição apropriada. Sim,

porque, se não tivermos o espírito certo perderemos a entonação que

persuade e prevalece, e o povo descobrirá que a força de Sansão o

deixou. Uns pregam como quem está ralhando, e assim põem à mostra o

seu mau gênio. Outros se pregam a si próprios, e assim revelam o seu

orgulho. Alguns discursam como se estivessem condescendendo em

ocupar o púlpito, enquanto outros pregam como se estivessem pedindo

desculpa por existirem. Para evitar erros nas maneiras e no tom da

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Lições aos Meus Alunos (Vol. 1)

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prédica, precisamos ser guiados pelo Espírito Santo, posto que só Ele nos

ensina com proveito.

5. Em quinto lugar, dependemos inteiramente do Espírito de Deus

para produzir efeito concreto decorrente do evangelho, o que deve

sempre constituir o nosso objetivo. Não nos levantamos em nossos

púlpitos a fim de desfraldar a nossa habilidade na esgrima esportiva da

espada espiritual, mas, sim, para empreender luta de verdade. O objeto

que temos em mira é fazer a espada do Espírito traspassar o coração dos

homens. Se em algum sentido se pode pensar na pregação como uma

exibição pública, há de ser como a exibição do jogo do cultivo, que

consiste em cultivar realmente a terra. A competição não está na

aparência dos arados, mas no trabalho feito. Dessa forma sejam julgados

os ministros pelo modo como manejam o arado do evangelho, e como

sulcam o solo da lavoura, de ponta a ponta.

Sempre visem ao efeito. "Ora", dirá alguém, "entendi que você

tenha dito: "Nunca faça isso." Digo também que nunca visem ao efeito,

no sentido infeliz dessa expressão. Nunca visem ao efeito segundo o

modo dos artífices de clímax, dos declamadores de poesia, dos

manipuladores de lenços, e dos sopradores de palavrório bombástico.

Para o homem que degrada o púlpito reduzindo-o a um palco de teatro

para exibir-se, muito melhor que não tivesse nascido. Visem à correta

espécie de efeito: inspirar os crentes para coisas mais nobres; levá-los

para mais perto do seu Senhor; fortalecer os que vacilam até que se

livrem dos seus temores; levar os pecadores ao arrependimento e ao

exercício da fé incondicional em Cristo. Sem que se sigam estes sinais,

para que servem os nossos sermões? Seria uma lástima dizer com certo

arcebispo: "Passei por muitas posições de honra e de confiança, tanto na

igreja como no estado, mais do que qualquer colega da minha ordem na

Inglaterra, durante os últimos setenta anos. Mas se tivesse a certeza de

que, por minha pregação, ao menos uma alma tivesse sido convertida a

Deus, teria nisso maior consolo do que em todos os honrosos ofícios que

me deram."

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Lições aos Meus Alunos (Vol. 1)

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Milagres da graça devem constituir os selos do nosso ministério.

Quem pode dá-los, senão o Espírito de Deus? Converter uma alma sem o

Espírito de Deus! Ora, vocês não podem nem fazer um inseto. Muito

menos criar um novo coração e um espírito reto. Tentem conduzir os

filhos de Deus a uma vida mais elevada, sem o Espírito Santo! É

indizivelmente mais provável que os levem à segurança carnal, se

procurarem elevá-los por seus próprios métodos, sejam estes quais

forem. Não poderemos alcançar os nossos fins se omitirmos a

cooperação do Espírito do Senhor. Portanto, com forte clamor e

lágrimas, ponham nEle a sua esperança, dia a dia.

A falta de reconhecimento definido do poder do Espírito Santo jaz

na raiz de muitos ministérios vãos. As violentas palavras de Robert Hall

são tão verdadeiras agora como quando as esparramou como lava

derretida sobre uma geração semi-sociniana. "Por um lado, merece

atenção o fato de que os mais eminentes e bem sucedidos pregadores do

evangelho – um Brainerd, um Baxter, um Schwartz – foram os mais

notáveis pela simples dependência em que se colocavam do auxílio

espiritual. Por outro lado, nenhum sucesso acompanhou os ministérios

daqueles que têm negligenciado ou negado esta doutrina. Estes

encontraram a maior censura à sua presunção no total fracasso dos seus

esforços, em que ninguém lutara pela realidade da interferência divina,

no que a eles se refere; pois, quando o braço do Senhor se revela aqueles

pretensos mestres do cristianismo, quem acreditará que não haja tal

braço? Foi preciso deixá-los trabalhar num campo a respeito do qual

Deus ordenou que não caísse chuva nele. Como se conscientes disso, por

último voltaram os seus esforços para um novo canal e, sem esperança

de conversão de pecadores, limitaram-se à sedução dos fiéis. Nisto, é

preciso confessar, eles têm agido de modo perfeitamente coerente com

os seus princípios. Pois que, ao menos, a propagação da heresia não

requer a assistência divina."

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6. Em seguida, necessitamos do Espírito de Deus como o Espírito

de súplicas, que faz intercessão pelos santos de acordo com a vontade de

Deus.

Uma parte muito importante da nossa vida consiste em orar no

Espírito Santo, e o ministro que não pensa assim, melhor seria que

abandonasse o ministério. É preciso que abundante oração acompanhe a

pregação zelosa. Não podemos estar sempre de joelhos fisicamente, mas

a alma jamais deve abandonar a postura da devoção. O hábito de orar é

bom, mas o espírito de oração é melhor. Deve-se manter o retiro

periódico, mas a continua comunhão com Deus deve ser o nosso

objetivo. Em regra, nos ministros, nunca devemos ficar muitos minutos

sem erguer de fato os nossos corações em oração.

Alguns de nos poderíamos dizer com sinceridade que raramente

passamos um quarto de hora sem falar com Deus, e isto não como dever,

mas como instinto, como um hábito da nova natureza pelo qual não

reclamamos maior crédito do que o bebê por chorar em busca da mãe.

Como poderíamos agir doutro modo? Agora, se devemos estar

intensamente no espírito de oração, temos necessidade de que o óleo

secreto seja derramado no fogo sagrado da devoção dos nossos corações.

Oxalá queiramos ser mais e mais visitados pelo Espírito de graça e de

súplicas.

Quanto às nossas orações em público, queira Deus que nunca digam

com verdade que elas são oficiais, formais e frias. Contudo, é o que

serão se o suprimento do Espírito for deficiente. Não julgo os que usam

liturgia. Mas aos que estão acostumados a fazer oração espontânea, digo

– vocês não podem orar em público de modo aceitável, ano após ano,

sem o Espírito de Deus. As orações mortas serão ofensivas ao povo

muito antes de correr um ano. Como há de ser, então? De onde virá o

nosso socorro? Certos fracotes dizem: "Tenhamos liturgia!" Em vez de

procurar o auxílio divino, descem ao Egito, em busca de socorro. Em vez

de colocar-se na dependência do Espírito de Deus, vão orar seguindo um

livro! De minha parte, quando não consigo orar, prefiro estar ciente disso

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e ficar gemendo por causa da aridez da minha alma, até que o Senhor me

visite com a bênção de uma devoção frutífera.

Se vocês estiverem cheios do Espírito Santo, lançarão fora com

alegria todos os grilhões formais para se entregarem à corrente sagrada e

serem levados até encontrarem águas profundas. As vezes desfrutarão

mais íntima comunhão com Deus pela oração no púlpito do que em

qualquer outro lugar. Quanto a mim, a minha mais grandiosa hora

secreta de oração muitas vezes dá-se em público. A minha mais genuína

experiência de estar a sós com Deus tem-me ocorrido enquanto elevo

súplicas em meio a milhares de pessoas. Abro os olhos no fim de uma

oração e volto ao povo reunido com uma espécie de choque ao ver que

me acho na terra, entre os homens. Essas ocasiões não estão sob o nosso

comando. Tampouco podemos elevar-nos a essas condições mediante

quaisquer adestramentos ou esforços. Nenhuma língua pode descrever

quão benditas são para o ministro e para os demais irmãos essas

condições! Quão repleta de poder e de bênçãos há de ser também a

prática habitual da oração não posso deter-me aqui para proclamar. Mas

para isso tudo temos que elevar os olhos para o Espírito Santo. E,

louvado seja Deus, não olharemos em vão, pois dEle se diz

especificamente que Ele ajuda as nossas fraquezas na oração.

7. Além do mais, é importante estar sob a influência do Espírito

Santo, uma vez que Ele é o Espírito de Santidade. Sim, porquanto uma

parte muito considerável e essencial do ministério cristão consiste em

servir de exemplo. Nossa gente observa com muita atenção o que

dizemos do púlpito e o que fazemos na esfera social e em tudo mais.

Meus irmãos, acham fácil ser santos? – santos que outros possam

considerar como exemplos? Devemos ser maridos tais, que todos os

maridos da igreja possam ser como somos, sem risco. É assim conosco?

Devemos ser os melhores pais. Lástima! Alguns ministros que conheço

estão longe disto pois, com referência às suas famílias, guardam bem as

vinhas alheias, porém não guardam bem as suas. Seus filhos do

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negligenciados e não crescem como semente santa. É assim com os

seus? Nas conversas com os nossos semelhantes, somos inculpáveis e

inofensivos, como filhos de Deus irrepreensíveis? É o que nos cabe ser.

Respeito as razões pelas quais o Sr. Whitefield mantinha sempre o terno

de linho escrupulosamente limpo. "Não, Não", costumava dizer, "isto

não é ninharia. O ministro não deve ter mancha, nem mesmo em sua

roupa, se possível."

Não há como exagerar a pureza num ministro. Vocês conhecem

algum colega infeliz que apareceu salpicado, e afetuosamente o

ajudaram a remover as manchas, mas perceberam que teria sido melhor

se as roupas estivessem alvas sempre. Oh, mantenham-se imaculados do

mundo! Como pode ser assim estando nós num cenário de tentação e

vivendo cercados de pecados? Somente se formos preservados por um

poder superior. Se vocês hão de andar em toda a santidade e pureza,

como convém aos ministros do evangelho, devem ser diariamente

enchidos do Espírito Santo.

8. Uma vez mais, precisamos do Espírito Santo em Sua qualidade

de Espírito de discernimento, pois Ele conhece as mentes dos homens

como conhece a de Deus, e necessitamos muito disto quando lidamos

com personalidades difíceis.

Há neste mundo alguns indivíduos que talvez pudessem receber

permissão para pregar, mas que nunca deveríamos tolerar que se

tornassem pastores. São desqualificados mental ou espiritualmente. Na

igreja de São Zeno, em Verona, vi uma estátua daquele santo,

representando-o sentado. O artista lhe deu pernas acima dos joelhos tão

curtas que ficou sem colo para abrigar crianças, de modo que ele não

poderia ser um pai bom para aconchegar os filhos. Receio que haja

muitos outros que trabalham com semelhante falta de habilitação. Não

podem levar a sua mente a entrar de coração nos cuidados pastorais. São

capazes de dogmatizar sobre uma doutrina e de polemizar sobre uma

ordenança, mas, entrar em compassiva empatia com uma experiência

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alheia está longe deles. Uma pessoa assim só pode prestar frio consolo às

consciências aflitas.

Seu conselho terá o mesmo valor do conselho dado pelo montanhês

escocês que, segundo contam, viu um inglês afundando num pântano em

Ben Nevis. "Estou afundando!", gritou o viajante. "Você pode dizer-me

como sair daqui?" O montanhês calmamente replicou: "Acho que é

provável que você não vá conseguir sair daí nunca", e seguiu seu

caminho. Conhecemos ministros dessa laia. Ficam confusos e quase

perdem a paciência com os pecadores, lutando à beira do desânimo. Se

eu e você, despreparados para a arte do pastoreio, fôssemos colocados

entre ovelhas e cordeiros no início da primavera, que haveríamos de

fazer com eles? Na mesma perplexidade se acham os que nunca foram

ensinados pelo Espírito Santo sobre a maneira de cuidar das almas.

Oxalá as Suas instruções nos livrem de tão desditosa incompetência!

Sobretudo, irmãos, por mais ternura de coração ou amorosa

preocupação que tenhamos, Não saberemos tratar da imensa variedade

de casos, a não ser que o Espírito de Deus nos dirija, pois não existem

dois indivíduos iguais. E mesmo um caso idêntico a outro requererá

tratamento diferente em diferentes ocasiões. Num período poderá ser

melhor consolar, noutro repreender. E a pessoa de quem você se

compadeceu com empatia até às lágrimas hoje, talvez necessite que a

enfrente com olhar carrancudo amanhã, por dizer tolices da consolação

que você lhe deu. Os que curam os quebrantados de coração e

proclamam libertação aos cativos precisam ter sobre si o Espírito do

Senhor.

Na supervisão e direção de uma igreja é necessário o auxílio do

Espírito. No fundo, o principal motivo da divido de nossa denominação

está na dificuldade proveniente do nosso governo eclesiástico. Tem-se

dito que "tende à intranqüilidade do ministério." Sem dúvida, é muito

penoso para quem suspira pelas dignidades oficiais e sente necessidade

de ser o Excelentíssimo Senhor Oráculo, diante de quem até um cachorro

fica proibido de latir. Os incapazes de dirigir algo além de bebês são

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justamente as pessoas que têm maior sede de autoridade e, vendo-se mal

aquinhoados dela nestas partes, procuram outras regiões. Se você não

pode governar-se a si próprio, se não é varonil e independente, se são é

superior quanto ao peso moral, se não tem maior dom e graça do que os

seus ouvintes comuns, poderá vestir uma toga e ter a pretensão de ser o

líder da igreja – mas, não numa igreja de governo batista ou

neotestamentário. De minha parte, detestaria ser pastor de pessoas que

nada têm que dizer, ou que, se chegam a dizer algo, bem podiam ter

ficado caladas, pois o pastor é Sua Excelência, o Soberano, e os demais

são leigos – cada qual um João-ninguém. Preferiria antes ser líder de seis

homens livres, cujo entusiástico amor fosse o meu único poder sobre

eles, do que bancar ditador de uma vintena de nações escravizadas.

Que posição é mais nobre do que a do pai espiritual que não se

arroga autoridade e, todavia, é estimado por todos, e cuja palavra é dita

apenas como terno conselho mas é recebida como tendo força de leí? Ao

consultar os desejos de outros, vê que o primeiro desejo deles é saber o

que ele recomenda e, cedendo sempre aos desejos de outros, vê que se

alegram em ceder aos seus. Amorosamente firme e generosamente

gentil, é o chefe de todos porque é servo de todos. Isto não requer

sabedoria do Alto? Que poderia ter maior necessidade dela? Quando

Davi se estabeleceu no trono, disse: "É Ele que submete a mim o meu

povo." E assim pode falar todo feliz o pastor quando vê tantos irmãos de

temperamentos diversos querendo alegremente estar sob disciplina e

aceitar a sua liderança na obra do Senhor. Se o Senhor não estivesse

entre nos, logo haveria confusão. Ministros, diáconos e presbíteros, todos

precisam ser sábios, mas se o pombo sagrado parte, e o espírito de

contenda entra, é o fim para nós.

Irmãos, o nosso sistema não funcionará sem o Espírito de Deus, e

me alegra que não funcione, pois as suas paralisações e suas rupturas

chamam a nossa atenção para o fato da Sua ausência. Nunca se teve a

intenção de que o nosso sistema promovesse a glória de sacerdotes e

pastores, mas é planejado para educar cristãos varonis, que não releguem

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a sua fé a segundo plano. Que sou eu, e que são vocês, para que devamos

ser senhores dominando a herança de Deus? Algum de nós se atreverá a

dizer com o reí francês, "L'état, c'est moi" – o estado sou eu" – eu sou a

pessoa mais importante da minha igreja? Se for assim, não é provável

que o Espírito Santo faça uso desses instrumentos inadequados. Mas se

conhecemos os nossos lugares e desejamos conservá-los com toda a

humildade, Ele nos ajudará, e as igrejas florescerão sob os nossos

cuidados.

Dei-lhes um alongado catálogo de pontos nos quais o Espírito Santo

nos é absolutamente necessário. Contudo, a lista está muito longe de ser

completa. Deixei-a intencionalmente imperfeita porque, se eu tentasse

completá-la, todo o nosso tempo expiraria antes de podermos responder

a pergunta: Como Podemos Perder Esta Assistência Necessária?

Que nenhum de nós jamais faça esta experiência, mas é certo que os

ministros podem perder o auxilio do Espírito Santo. Cada pessoa aqui

presente pode perdê-lo. Vocês não perecerão, uma vez que são crentes,

porque a vida eterna está em vocês. Podem, porém, perecer como

ministros, de quem não se ouça mais falar que são testemunhas em prol

do Senhor. Se suceder isso, não será sem motivo. O Espírito reclama

soberania semelhante à do vento que sopra onde quer. Entretanto, jamais

sonhemos que soberania e capricho são a mesma coisa. O bendito

Espírito age como quer, mas sempre de modo justo, sábio, e com motivo

e razão. Às vezes Ele dá ou retira a Sua bênção, por razões relativas a

nós mesmos.

Notem o curso de um rio como o Tâmisa – como torce e retorce a

seu bel prazer. Contudo, há razão para cada volta ou curva. O geólogo,

estudando o solo e observando a forma da rocha, vê a razão pela qual o

leito do rio se desvia para a direita ou para a esquerda. Assim, apesar de

que o Espírito de Deus abençoa um pregador mais que outro, e a razão

não pode ser tal que algum homem possa congratular-se consigo por sua

própria bondade, todavia há certas coisas concernentes aos ministros

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cristãos que Deus abençoa, e certas outras coisas que impedem o bom

êxito. O Espírito de Deus caí como o orvalho, com mistério e poder.

Mas, no mundo espiritual é como no mundo natural: certas substâncias

se molham com a umidade celestial, ao passo que outras estão sempre

secas.

Porventura não existe uma causa? O vento sopra onde quer, mas se

desejamos sentir uma forte viração, temos que ir ao mar ou subir as

colinas. O Espírito de Deus tem lugares favoritos para a demonstração

do Seu poder. Ele é simbolizado por uma pomba, e a pomba tem os seus

retiros preferidos. Freqüenta as correntes de águas, os lugares pacíficos e

calmos. Não a encontramos no campo de batalha, nem a vemos pousar

na carniça. Há coisas congruentes com o Espírito e coisas contrárias à

Sua mente. O Espírito de Deus compara-se com a luz. A luz pode brilhar

onde quiser, mas uns corpos são opacos, enquanto que outros são

transparentes. Assim, há homens através dos quais nunca aparece o Seu

brilho. Portanto, deste modo se pode demonstrar que, embora o Espírito

Santo seja o "livre Espírito" de Deus, de modo nenhum age por capricho.

Entretanto, diletos irmãos, o Espírito de Deus pode ser entristecido,

contrariado, e pode mesmo sofrer resistência. Negar isto é opor-se ao

testemunho freqüente da Escritura. Pior de tudo, podemos menosprezá-

Lo e insultá-Lo a tal ponto que Ele não fale mais por nosso intermédio,

mas nos deixe como deixou o reí Saul antigamente. Seria lamentável se

existissem homens no ministério cristão aos quais sucedesse isto; temo,

porém, que existam.

Irmãos, quais serão os males que entristecem o Espírito? Respondo:

tudo que vos desqualifique como cristãos comuns para a comunhão com

Deus também vos desqualifica para experimentarem o poder

extraordinário do Espírito Santo como ministros. À parte disso, porém,

há obstáculos especiais.

Dentre os primeiros, devemos mencionar a falta de sensibilidade,

ou seja, aquele estado de frieza emocional que nasce da desobediência às

ternas influências do Espírito. Devemos ser delicadamente sensíveis ao

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Seu mais leve movimento, e então poderemos esperar a Sua presença em

nós. Mas, se somos como o cavalo e a mula que não têm entendimento,

segundo a expressão bíblica, sentiremos o chicote, mas não

desfrutaremos das ternas influências do Consolador.

Outro defeito entristecedor é a falta de veracidade. Quando um

grande músico pega um violão ou toca harpa e vê que as notas falseiam,

detêm a mão. As almas de alguns homens não são sinceras. Eles são

sofisticados e hipócritas. O Espírito de Cristo não será cúmplice de

homens aplicados à desprezível ocupação de iludir e enganar. Será este o

caso aqui – que vocês preguem certas doutrinas, não porque crêem nelas,

mas porque a sua igreja espera que as preguem? Estarão vocês dando

tempo ao tempo até poderem, sem risco, renunciar ao seu credo atual e

apregoar o que a sua mente covarde realmente sustenta ser verdadeiro?

Neste caso vocês são decaídos de fato, e estão abaixo dos escravos mais

indignos. Deus nos livre dos homens traiçoeiros, e se estes chegam a

formar em nossas fileiras, oxalá sejam rapidamente expulsos ao som da

Marcha do Velhaco (Rogue's March). Se nos sentimos aversão por eles,

quanto mais os detestará o Espírito da verdade!

Vocês poderão contristar grandemente o Espírito Santo com uma

geral escassez de graça. A frase é temível, mas descreve certas pessoas

melhor do que todas as outras que me ocorrem. A família Graça-Escassa

geralmente tem um dos seus membros no ministério. Conheço o tipo.

Não é insincero nem imoral, Não tem mau gênio nem é auto-indulgente,

mas algo lhe falta. Não seria fácil provar essa ausência por meio de

alguma ofensa ostensiva de sua parte. O que lhe falta, porém, falta à sua

personalidade toda, e essa carência arruína tudo. Falta-lhe aquilo que por

excelência é necessário. Ele não é espiritual. Não há nele o aroma de

Cristo. O seu coração nunca se inflama no seu interior. Sua alma não

vive. Falta-lhe a graça. Não podemos esperar que o Espírito de Deus

abençoe um ministério que jamais devia ter sido exercido, e certamente

um ministério não revestido da graça é dessa natureza.

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Outro mal que expulsa o Espírito divino é o orgulho. O modo de ser

bem grande consiste em ser bem pequeno. Ser muito notável em sua

própria estima é não ser notado por Deus. Se você tem profunda

necessidade de viver nos lugares elevados da Terra, achará frios e áridos

os pontos culminantes das montanhas. O Senhor habita com os humildes,

mas de longe conhece o soberbo.

A preguiça também contraria o Espírito Santo. Não posso imaginar

o Espírito esperando à porta do mandrião, e suprindo as deficiências

criadas pela indolência. A ociosidade na causa do Redentor é um mal

para o qual não se pode inventar desculpa. Nós mesmos sentimos

arrepios ao vermos os movimentos vagarosos dos preguiçosos, e

estejamos certos de que o Espírito Santo, ativo como é, fica igualmente

contrariado com os que agem levianamente na obra do Senhor.

A negligência na oração particular, como muitos outros males,

produzirá o mesmo resultado infeliz. Todavia, não é preciso alongar o

assunto, pois as suas próprias consciências, irmãos, lhes dirão o que

entristece o Santo de Israel.

Agora lhes rogo que atentem para esta palavra: Vocês sabem o que

poderá acontecer se o Espírito de Deus for grandemente contristado e

retirar-se de nós? Há duas suposições.

A primeira é que nunca fomos verdadeiros servos de Deus, mas

apenas usados temporariamente por Ele, como Balaão, e até a jumenta

cavalgada por ele. Suponhamos, irmãos, que eu e vocês continuemos

pregando por um tempo sem que nem nós nem outros suspeitemos que

fomos destituídos do Espírito de Deus. Todo o nosso ministério pode

acabar-se de um golpe, e nós com ele. Talvez sejamos derribados na

primavera, como aconteceu com Nadabe e Abiú, para não mais

ministrarmos perante o Senhor, ou talvez sejamos removidos nos anos do

amadurecimento, como Hofni e Finéias, não podendo continuar servindo

no tabernáculo da congregação. Não temos nenhum analista inspirado

que nos registre a súbita eliminação de homens que prometem muito. Se

o tivéssemos, porém, talvez lêssemos aterrorizados – sobre zelo

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sustentado por bebidas fortes, sobre farisaísmo associado a corrupção

secreta, sobre ortodoxia declarada ocultando infidelidade absoluta, ou

sobre alguma outra forma de fogo estranho apresentado no altar, até que

o Senhor não o suporte mais e elimine os ofensores com repentino golpe.

Caberá a algum de nós essa terrível condenação?

É uma pena, mas vi alguns que, como Saul, foram abandonados

pelo Espírito Santo. Está escrito que o Espírito de Deus veio sobre Saul.

Entretanto, ele não foi fiel à influência divina, esta o deixou, e um

espírito mau lhe tomou o lugar. Notem como o pregador de quem o

Espírito se retirou banca jeitosamente o cínico, critica todos os demais,

arremessa o dardo da calúnia a alguém melhor do que ele. Saul esteve

uma vez entre os profetas, mas se sentia mais à vontade entre os

perseguidores. O pregador frustrado procura destruir o verdadeiro

evangelista, recorre aos encantos da filosofia, e busca o auxílio de

heresias mortas, mas o seu poder se foi e logo os filisteus o encontrarão

entre os mortos. "Não o noticieis em Gate, nem o publiqueis nas ruas de

Ascalom... Vos, filhas de Israel, chorai por Saul ... Como caíram os

valentes no meio da peleja!"

Também alguns que foram abandonados pelo Espírito de Deus se

tornaram semelhantes aos filhos de Ceva, um judeu. Estes presunçosos

tentaram expulsar demônios em nome de Jesus, a quem Paulo pregava,

mas os demônios saltaram sobre eles e o subjugaram. Assim, enquanto

certos pregadores pregavam contra o pecado, os próprio vícios que

denunciavam os derrotaram. Os filhos de Ceva têm estado entre nós. Os

demônios da bebedice prevaleceram sobre o próprio individuo que

denunciava o cálice fascinante, e o demônio da impureza saltou sobre o

pregador que aplaudia a castidade. Se o Espírito Santo estiver ausente, de

todas as posições a nossa é a mais perigosa. Cautela, pois!

É lamentável, mas alguns ministros ficaram como Balaão. Era um

profeta, não era? Não falava em nome do Senhor? Não se lhe chamou

"homem de olhos abertos... que tem a visão do Todo-poderoso"? Apesar

disso, Balaão lutou contra Israel e com astúcia arquitetou um plano pelo

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qual o povo escolhido poderia ser vencido. Ministros do evangelho há

que se tornaram súditos do papa, infiéis, livre-pensadores, e conspiraram

para a destruição daquilo que antes professavam pregar. Podemos ser

apóstolos, mas como Judas, terminar sendo filhos da perdição. Ai de nós,

se for este o caso!

Irmãos, presumirei que somos realmente filhos de Deus. E então?

Ora, mesmo neste caso, se o Espírito de Deus nos deixar, poderemos ser

eliminados de um golpe, como se deu com o iludido profeta que deixou

de obedecer a ordem do Senhor nos dias de Jeroboão. Era sem dúvida

um homem de Deus, e a sua morte física de modo algum prova que tenha

perdido a alma, mas rompeu aquilo que sabia ser uma ordem de Deus

dada especialmente para ele. Seu ministério terminou ali e naquela exata

ocasião, pois um leão o encontrou no caminho e o matou. Queira o

Espírito Santo proteger-nos dos enganadores e manter-nos fiéis à voz de

Deus.

Pior ainda, podemos reproduzir a vida de Sansão, sobre quem veio

o Espírito de Deus nos campos de Dã. Mas, no regaço de Dalila perdeu a

força, e na masmorra perdeu os olhos. Concluiu com bravura a carreira,

cego como estava, mas quem de nós deseja tentar destino tal?

Ou – e este último me entristece além de toda a expressão, porque

tem maior probabilidade de acontecer do que qualquer de todos os

restantes – o Espírito de Deus pode retirar-se de nós, em penoso grau,

para estrago do encerramento da nossa carreira, como foi no caso de

Moisés. Não perderemos as nossas almas, não, nem mesmo as nossas

coroas no Céu ou ainda a nossa reputação na terra, porém ficaremos sob

uma nuvem em nossos últimos dias por termos falado uma vez

imprudentemente com os nossos lábios.

Recentemente estudei os últimos dias do grande profeta do Horebe,

e ainda não me recuperei da profunda tristeza de espírito que me

sobreveio. Qual foi o pecado de Moisés? Não há por que inquirir. Não

foi grosseiro como a transgressão de Davi, nem chocante como o

fracasso de Pedro, nem fraco e tolo como a grave falta do seu irmão

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Lições aos Meus Alunos (Vol. 1)

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Arão. Na verdade, parece uma ofensa infinitesimal quando pesada na

balança do julgamento usual. Mas então, vocês vêem, foi o pecado de

Moisés, homem favorecido por Deus mais que todos os outros, o pecado

de um líder do povo, de um representante do Reí divino.

O Senhor o podia ter passado por alto em qualquer outro, não

porém em Moisés. Moisés teve que ser punido com a proibição de

introduzir o povo na terra prometida. É certo que teve gloriosa visão do

alto de Pisga, e tudo mais que podia mitigar o rigor da sentença, mas foi

grande desapontamento nunca entrar na terra da herança de Israel, e isso

por ter falado uma vez impensadamente.

Eu não poderia fugir ao serviço do Mestre, mas tremo em Sua

presença. Quem pode estar sem culpa, quando até Moisés errou? É coisa

terrível ser amado de Deus. "Quem dentre nós habitará com o fogo

consumidor? Quem dentre nós habitará com as labaredas eternas? O que

anda em justiça, e o que fala com retidão." – Somente este pode

enfrentar as devoradoras chamas do amor.

Rogo-lhes, irmãos que procurem ocupar o lugar de Moisés, mas

tremam ao fazê-lo. Temam e tremam por todo o bem que Deus faça

passar diante de vocês. Quando estiverem transbordando de frutos do

Espírito, inclinem-se até o pó perante o trono, e sirvam ao Senhor com

temor. "O Senhor nosso Deus é Deus zeloso." Lembrem-se de que Deus

veio a nós, não para exaltar-nos, mas para exaltar-Se, e temos que atentar

para o fato de que a gloria de Deus é o único objetivo de tudo que

fazemos. "Importa que Ele cresça, e eu diminua."

Oxalá Deus nos induza a isto e nos faça andar muito cuidadosa e

humildemente diante dEle. Deus nos sondará e nos provará, pois o juízo

começa em Sua casa, e nessa casa começa com os Seus ministros.

Quererá algum de nós ser achado em falta? Retirará o abismo do inferno

uma parte dos seus infelizes habitantes do meio do nosso grupo de

pastores? Será terrível a sentença de um pastor decaído. A sua

condenação causará espanto aos transgressores comuns. "Das

profundezas o inferno se move por ti para encontrar-te em tua vinda."

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Lições aos Meus Alunos (Vol. 1)

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Todos eles te dirão: "Também tu te tornaste fraco, igual a nós? Ficaste

parecido conosco?"

Clamemos ao Espírito de Deus, que nos faça e nos mantenha vivos

para Deus, fiéis ao nosso oficio e úteis à nossa geração – e limpos do

sangue das almas.

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Lições aos Meus Alunos (Vol. 1)

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NECESSIDADE DE PROGRESSO MINISTERIAL

Caros soldados, companheiros meus! Somos poucos, e temos

violenta luta diante de nós. Portanto, é preciso fazer que cada homem

renda o mais possível e seja estimulado até o ponto máximo das suas

energias. É desejável que os ministros do Senhor sejam os elementos de

vanguarda da igreja. Na verdade, do universo todo, pois a época o

requer. Portanto, quanto a vocês, em suas qualificações pessoais, dou-

lhes este moto: "Sigam avante." Avante nas conquistas pessoais, avante

nos dons e na graça, avante na capacitação para a obra, e avante no

processo de amoldar-se à imagem de Jesus. Os pontos de que tratarei a

seguir começam da base e seguem linha ascendente.

1. Primeiro, diletos irmãos, acho necessário dizer-me a mim e a

vocês que devemos ir avante em nossas aquisições intelectuais. Não nos

serve de nada apresentar-nos continuamente diante de Deus em nossa

pior forma. Não somos capazes de apresentar-nos na melhor forma aos

Seus olhos. Mas, custe o que custar, não permitamos que a oferta seja

mutilada e manchada por nossa preguiça. "Amarás o Senhor teu Deus de

todo o teu coração" é, talvez, mais fácil de aceitar do que amá-Lo de

todo o entendimento. Contudo, precisamos dar-lhe a nossa mente, bem

como os nossos afetos, e essa mente deve estar bem suprida, para que

não Lhe ofereçamos um cofre vazio. O nosso ministério exige a mente.

Não insistirei sobre "o iluminismo da época." Todavia, é mais que certo

que há um grande avanço entre todas as classes, e que haverá maior

ainda. Já se foi o tempo em que os discursos destituídos de gramática

eram satisfatórios para o pregador.

Mesmo num povoado rural onde, segundo a tradição, "ninguém

sabe nada", não falta o mestre-escola, e a falta de instrução perde

utilidade mais que nunca. Pois, enquanto o orador quer que os ouvintes

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Lições aos Meus Alunos (Vol. 1)

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lembrem o evangelho, lembrarão por outro lado as suas expressões

gramaticalmente péssimas, e as repetirão como temas para gracejos,

quando queríamos que conversassem com solene fervor sobre as

doutrinas divinas. Caros irmãos, precisamos cultivar-nos ao máximo. E

devemos fazê-lo, primeiro, reunindo o máximo de conhecimentos, para

encher o celeiro; depois adquirindo discernimento para joeirar tudo que

foi amontoado; e finalmente, exercendo a capacidade mental de firme

fixação na memória, pela qual podemos armazenar no celeiro o cereal

selecionado. Pode ser que estes três pontos não tenham importância

igual, mas são todos necessários ao homem completo.

Digo-lhes que devemos fazer grandes esforços para adquirir

informação, principalmente de natureza bíblica. Não devemos limitar-

nos a um tópico do estudo, do contrário, não exercitaremos nossa

plenitude mental. Deus fez o mundo para o homem, e dotou o homem de

mente destinada a ocupar e usar o mundo todo. É o locatário, e a

natureza é por um pouco de tempo a sua casa. Por que haveria de privar-

se de qualquer dos seus quartos? Por que negar-se a saborear alguma das

refeições tornadas puras que o grandioso Pai colocou sobre a mesa?

Contudo, a nossa principal atividade é estudar as Escrituras. A principal

ocupação do ferrador é ferrar cavalos. Que trate de saber fazê-lo bem,

pois, ainda que fosse capaz de cingir um anjo com um cinto de ouro,

falharia como ferrador se não soubesse forjar e fixar ferraduras. Pouco

vale que vocês sejam capazes de escrever poesia com o maior

brilhantismo, como talvez o sejam, se não puderem pregar um bom

sermão, persuasivo, que produza o efeito de fortalecer os santos e

convencer os pecadores. Estudem a Bíblia, diletos irmãos, de capa a

capa, com toda a ajuda que possam obter. Lembrem-se de que agora os

recursos ao alcance dos cristãos comuns são muito mais amplos do que

no tempo dos nossos país. Portanto, vocês têm que ser maiores

especialistas em Bíblia, se pretendem manter-se diante dos seus ouvintes,

Interponham todo o conhecimento, mas, acima de todas as coisas,

meditem dia e noite na lei do Senhor.

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Lições aos Meus Alunos (Vol. 1)

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Instruam-se bem em teologia. Não reparem na zombaria daqueles

que a criticam porque nessa esfera são ignorantes. Muitos pregadores

não são teólogos. Daí os erros que cometem. Não fará mal algum ao

mais galhardo evangelista se ele também for bom teólogo. Talvez seja

este, com freqüência, o modo de livrá-lo de erros crassos.

Hoje em dia ouvimos homens que recortam uma frase da Escritura,

isolando-a do seu contexto, e bradam: "Eureka! Eureka!", como se

tivessem achado uma nova verdade. No entanto, não descobriram um

diamante, mas, sim, um caco de vidro. Se fossem capazes de comparar

coisas espirituais com espirituais, se compreendessem a analogia da fé, e

se estivessem familiarizados com o santo saber dos grandes estudiosos

da Bíblia que o passado conheceu, não se apressariam tanto em jactar-se

do seu conhecimento maravilhoso. Tratemos de inteirar-nos

completamente das grandes doutrinas da Palavra de Deus. Exponhamos

com poder a Escritura. Estou certo de que nenhuma forma de pregação

durará tanto, ou edificará tão bem uma igreja como a pregação

expositiva. Renunciar totalmente o discurso exortativo pelo expositivo

seria precipitar-se a um extremo absurdo. Mas, não serei capaz de

exagerar ao afirmar-lhes categoricamente que, se os seus ministérios hão

de ser duradouramente úteis, vocês terão que ser expositores. Para isso,

deverão compreender pessoalmente a Palavra, e deverão ser capazes de

comentá-la de modo que as pessoas sejam edificadas por ela. Irmãos,

manejem com domínio as suas Bíblias. Sejam quais forem as obras não

examinadas por vocês, sintam-se em casa com os escritos dos profetas e

apóstolos. "A palavra de Cristo habite em vós ricamente." .

Uma vez dada precedência aos escritos inspirados, não

negligenciem nenhuma esfera do conhecimento. A presença de Jesus na

terra santificou os domínios da natureza, e o que Ele purificou não

chamem de impuro. Tudo que o Pai fez lhes pertence, e vocês devem

aprender disso. Podem ler o diário de um naturalista, ou da viagem de

alguém, e tirar proveito dessa leitura. Sim, e mesmo de um velho livro

sobre ervas ou de um manual de alquimia poderão colher mel, como o

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Lições aos Meus Alunos (Vol. 1)

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fez Sansão da carcaça de um leão. Há pérolas em conchas de ostras, e

frutas em galhos espinhentos. As veredas da verdadeira ciência,

particularmente da historia natural e da botânica, destilam gordura. A

geologia, enquanto fato, e não ficção, está repleta de tesouros. A historia

– esplêndidas são as visões que faz passar diante de vocês – é a

eminentemente instrutiva. Na verdade, cada rincão dos domínios de

Deus na natureza pulula de preciosos ensinamentos. Sigam as trilhas do

conhecimento, de acordo com o tempo, a oportunidade e os dotes

particulares de que disponham. E não hesitem em fazê-lo por causa de

alguma apreensão de que se instruirão a um nível demasiado alto.

Quando a graça for abundante, o saber não os inchará, nem prejudicará a

sua simplicidade no evangelho. Sirvam a Deus com o grau de educação

que tenham, e dêem graças a Ele por soprar por meio de vocês, se são

buzinas de chifres de carneiro. Mas, se há possibilidade de se tornarem

trombetas de prata, prefiram isto.

Já disse que devemos aprender a discernir, e agora é o momento

oportuno para insistir neste ponto. Muitos correm atrás de novidades,

encantados com toda e qualquer invenção. Aprendam a julgar a verdade

e as suas imitações, assim, não serão desencaminhados. Outros há que se

apegam como certos moluscos a velhos ensinos, sendo que talvez estes

não passem de erros antigos. Submetam à prova todas as coisas e

retenham o que é bom. Deve-se recomendar muito o emprego do

ventilador e da peneira para joeirar. Diletos irmãos, quem pede ao

Senhor que lhe dê vida límpida com a qual veja a verdade e distinga os

seus frutos, e, graças ao constante exercício das suas faculdades, obteve

capacidade para julgar acuradamente, está preparado para ser

comandante de hostes do Senhor. Mas, nem todos são assim. É doloroso

observar quantos estão prontos para abraçar qualquer coisa, bastando que

lhes seja apresentada com ardor. Engolem remédios de todo e qualquer

charlatão espiritual que tenha suficiente convicção mascarada para

parecer sincero. Não sejam crianças assim no entendimento, mas

submetam tudo à prova cuidadosamente, antes de aceitá-lo. Peçam ao

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Lições aos Meus Alunos (Vol. 1)

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Espírito Santo que lhes dê o dom do discernimento, de modo que possam

conduzir os seus rebanhos para longe das campinas venenosas e levá-los

a pastagens seguras.

Quando, no devido tempo, tenham obtido a capacidade de adquirir

conhecimento e a aptidão para discernir, busquem em seguida a

capacidade para reter, e segurem com firmeza o que aprenderam. Nestes

tempos certas pessoas se vangloriam de ser como cata-ventos. Não

conservam nada. Na verdade, nada possuem que valha a pena reter.

Creram ontem naquilo em que não crêem hoje, nem crerão amanhã. E

seria um profeta maior do que Isaías quem conseguisse dizer o que eles

crerão quando o recôncavo da lua nova se encher, pois estão mudando

constantemente. Parecem ter nascido sob a influência da luz, partilhando

dos hábitos de sua variação. Esses homens podem ser sinceros como se

dizem, mas, de que valem? Como boas árvores transplantadas muitas

vezes, podem ter natureza nobre, mas nada produzem. Sua vitalidade

esvai-se no esforço por criar raízes e tornar a criá-las. Não têm seiva

suficiente para produzir frutos. Estejam certos de que têm a verdade e,

depois, estejam certos de que a mantêm. Estejam prontos para uma nova

verdade, desde que seja verdade. Relutem, porém, em subscrever a

crença de que se encontrou uma luz melhor do que a do sol.

Os que apregoam pelas ruas novas verdades, como os jornaleiros

fazem com uma segunda edição de um vespertino, geralmente não estão

em condição melhor do que deveriam. A bela jovem da verdade não

pinta as faces, nem enfeita a cabeça como Jezabel, seguindo cada nova

moda filosófica. Contenta-se com sua beleza natural, e seu aspecto é

essencialmente o mesmo ontem, hoje, e para sempre. Quando os homens

mudam com freqüência, em geral precisam ser mudados no sentido mais

enfático. A nossa boa gente de "pensamento moderno" está fazendo

incalculável dano às almas, semelhante a Nero tocando rabeca no alto de

uma torre com Roma a queimar-se aos seus pés. Almas estão sendo

condenadas, e, contudo esses homens ficam traçando teorias. O inferno

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Lições aos Meus Alunos (Vol. 1)

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escancara a boca, e engole miríades, mas os que deviam estar espalhando

as boas novas da salvação "andam atrás de novas 1inhas de pensamento."

Cultíssimos assassinos espirituais, verão que a sua alardeada

"cultura" não lhes servirá de escusa no dia do Juízo. Por Deus, tratemos

de saber como os homens hão de salvar-se, e ponhamos mãos à obra. É

detestável desperdício ficar sempre a discutir quanto ao modo certo de

fazer pão enquanto uma nação perece de fome. Já é tempo de sabermos o

que ensinar, ou então de renunciar ao nosso oficio. "Aprender sempre, e

nunca chegar à verdade" é o lema dos piores homens, não dos melhores.

Vi em Roma a estátua de um rapaz tirando um espinho do pé. Fui-me

embora. Um ano depois voltei, e lá estava sentado o mesmíssimo rapaz,

tirando ainda o corpo estranho. Será este o nosso modelo? "Amoldo o

meu credo toda semana", confessou-me um desses teólogos. A que

assemelharei esses inconstantes? Não são como aquelas aves que

aparecem no Cabo de Ouro, no estreito de Bósforo, e se podem ver de

Constantinopla, das quais se diz que estão sempre batendo as asas, nunca

em repouso? Ninguém jamais as viu pousar na água ou na terra. Estão

sempre pairando em pleno ar. Os nativos lhes chamam "almas perdidas",

sempre a buscar descanso em vão.

Com toda a certeza, homens que não acham repouso pessoal na

verdade, se não é que eles mesmos não se salvam, ao menos têm pouca

probabilidade de salvar outros. Aquele que não tem nenhuma verdade

segura para transmitir, não deve admirar-se de que os seus ouvintes

depositem pouca confiança nele. Temos que conhecer a verdade,

compreendê-la, e retê-la com mão firme, ou não poderemos esperar levar

outros a crer nela. Irmãos, eu os responsabilizo: procurem conhecer e

discernir; depois, aplicado o discernimento, lutem para arraigar-se e

alicerçar-se na verdade. Mantenham em pleno funcionamento os

processos de encher o celeiro, joeirar o cereal e armazená-lo. Assim, em

sua vida mental, irão avante.

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2. Precisamos ir avante nas qualificações oratórias. Estou

começando do fundo, mas mesmo este ponto é importante, pois é uma

pena que até os pés desta imagem sejam de barro. Daquilo que possa ter

alguma utilidade ao nosso propósito, nada é fútil. Só pela perda de um

cravo, o cavalo perdeu a ferradura, e deixou de servir para a batalha.

Aquela ferradura era apenas uma banal tira de ferro a ferir o solo.

Entretanto, ainda que o lombo esteja cingido de raios e trovões, de nada

vale se se perdeu a ferradura. Uma pessoa pode ficar irremediavelmente

arruinada por inutilidade espiritual, não porque falhe no caráter ou no

espírito, mas porque fraqueja no intelecto ou na oratória.

Portanto, comecei com estes pontos, e torno a observar que

devemos melhorar na alocução. Nem todos podem falar como alguns, e

nem mesmo estes podem atingir a sua eloqüência ideal. Se há algum

irmão aqui que pensa que pode pregar tão bem como deve, advirto-o a

desistir de uma vez. Fazendo-o estará agindo tão sabiamente como o

grande pintor que quebrou a sua paleta e, virando-se para a esposa, disse:

"Meus dias de pintar passaram, pois já me satisfiz e, portanto, ser que o

meu poder se foi." Ainda que existam outras perfeições atingíveis, tenho

a certeza de que aquele que acha que conseguiu perfeição na oratória,

confunde eloqüência com volubilidade, e argumento com verbosidade.

Seja qual for o seu conhecimento, Não poderão ser ministros

verdadeiramente eficientes, se não forem "aptos para ensinar."

Vocês sabem de ministros que erraram a vocação e, evidentemente,

não têm dons para exercê-la. Certifiquem-se de que ninguém pense a

mesma coisa de vocês. Há colegas de ministério que pregam de modo

intolerável: ou nos provocam raiva, ou nos dão sono. Nenhum anestésico

pode igualar-se a alguns discursos nas propriedades soníferas. Nenhum

ser humano que não seja dotado de infinita paciência poderia suportar

ouvi-los, e bem faz a natureza em libertá-lo por meio do sono.

Outro dia ouvi alguém dizer que certo pregador não tinha mais dons

que uma ostra, para o ministério. Em minha opinião, foi um ultraje á

ostra, pois esse nobre bivalve demonstra grande descrição em seus

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intróitos, e sabe quando deve concluir. Se alguns fossem condenados a

ouvir os seus próprios sermões, teriam merecido julgamento, e logo

clamariam com Caim: "É tamanho o meu castigo, que já não posso

suportá-lo." Oxalá não caíamos sob a mesma condenação.

Irmãos, devemos cultivar clareza de estilo. Quando um homem não

me faz entender o que quer dizer, é porque nem ele mesmo sabe o que

quer dizer. O ouvinte mediano, incapaz de seguir o curso do pensamento

do pregador, não devia ficar aborrecido consigo, mas censurar o

pregador, cuja obrigação é apresentar o assunto com clareza. Se

olharmos dentro de um poço, se estiver vazio nos parecerá muito fundo,

mas se houver água nele, veremos a claridade refletida. Creio que muitos

pregadores "profundos" são assim apenas porque são como poços secos,

sem nada dentro, exceto folhas podres, algumas pedras, e talvez um ou

dois gatos mortos. Se houver águas vivas em sua pregação, esta pode ser

muito profunda, mas a luz da verdade lhe dará clareza. Não basta falar de

modo tão claro que vocês sejam compreendidos; devem falar de modo

que não sejam mal compreendidos.

Além da clareza, devemos cultivar um estilo convincente. Nosso

discurso deve ser poderoso. Alguns imaginam que isto consiste em falar

alto, mas posso garantir-lhes que laboram em erro. Rugir não melhora

um tolice. Deus não nos pede que gritemos como se estivéssemos

falando a dez mil pessoas, quando nos dirigimos a trezentas somente.

Sejamos convincentes em razão da excelência do assunto e da

energia de espírito que aplicamos à apresentação dele. Numa palavra,

vejamos que o nosso falar seja natural e vívido. Espero que já tenhamos

anatematizado os truques dos oradores profissionais – os efeitos

forçados, o clímax calculado, a pausa planejada, o pavonear teatral, a

declamação artificiosa das palavras, e não sei que mais – que podem ver

em certos clérigos pomposos que ainda sobrevivem na face da terra.

Oxalá dentro em pouco sejam eles espécies extintas. Oxalá todos nos

aprendamos um modo simples, natural e vivo de falar do evangelho,

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porque estou persuadido de que esse estilo é o que tende a ser abençoado

por Deus.

Entre muitas outras coisas, precisamos cultivar a persuasão. Alguns

irmãos exercem grande influência sobre as pessoas, ao passo que outros,

dotados de maiores dons, são nulos nisso. Estes parecem que não tomam

contato com as pessoas, não as cativam e não tocam sua sensibilidade.

Há pregadores que, em seus sermões, parecem pegar um por um dos

ouvintes pela gola, e enfiar direto em suas almas a verdade. Outros

generalizam tanto, e além disso são tão frios, que fazem pensar que estão

falando de habitantes de algum planeta remoto, cujos assuntos não lhes

interessam muito. Aprendam a arte de pleitear com os homens. Farão

bem isso se olharem com freqüência para o Senhor. Se bem me lembro,

o velho conto clássico diz-nos que, quando um soldado estava para matar

Dario, o filho deste, que era mudo desde a infância, de repente gritou

surpreso: "Você não sabe que ele é o reí?" Sua língua silenciosa foi solta

pelo amor a seu pai. Bem pode acontecer que a nossa língua encontre

fala vigorosa quando virmos o Senhor crucificado por causa do pecado.

Se houver alguma fala em nos, isto a levantará.

Também o conhecimento dos terrores do Senhor nos há de ativar

para persuadirmos os homens. Não podemos fazer outra coisa que

insistir com eles para que se reconciliem com Deus.

Irmãos, observem aqueles que amorosamente conquistam pecadores

para Jesus. Descubram o seu segredo, e não descansem enquanto não

obtiverem o mesmo poder. Se vocês os acham muito simples e toscos,

mas vêem que eles são realmente úteis, diga cada um a si próprio: "É

esse o meu modelo." Se, por outro lado, ouvem um pregador muito

admirado, e, ao pesquisarem, vêem que almas não se convertem

salvadoramente, cada qual diga a si mesmo: "Isto não é para mim, pois

não estou procurando ser grande, e, sim útil de fato." .

Portanto, vejam que a sua oratória melhore constantemente em

clareza, em poder de convicção, em naturalidade e em persuasão.

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Diletos irmãos, tentem conseguir um estilo de alocução tal que os

leve a adaptar-se aos seus ouvintes. Muita coisa depende disso. O

pregador que se dirigisse a ouvintes com bom grau de instrução em

linguagem que usaria ao falar a um grupo de feirantes se mostraria louco.

Por outro lado, aquele que se põe entre mineiros e carvoeiros

empregando expressões técnicas da teologia e frases próprias das salas

de recepção, age como idiota. A confusão de línguas em Babel foi mais

completa do que imaginamos. Não deu línguas diferentes a grandes

nações apenas, mas fez com que a fala de cada classe diferisse das

outras. Um sujeito de um mercado de peixes como Billingsgate não pode

entender um figurão de Brasenose College, Oxford.

Agora, como o feirante não pode aprender o linguajar universitário,

que o universitário trate de aprender o linguajar do feirante.

"Empregamos a linguagem do mercado", dizia Whitefield, e isto o

honrava muito. Todavia, quando se levantava no salão da condessa de

Huntingdon, e a sua palavra encantava os nobres descrentes que ela

trazia para ouvi-lo, adotava outro estilo. Sua linguagem era igualmente

clara em cada caso, porque era igualmente familiar aos ouvintes. Não

usava ipsissima verba, caso em que a sua linguagem perderia a clareza

num ou outro caso e, ou seria baixo calão para a nobreza, ou grego para

o povo comum. Em nossa maneira de falar devemos procurar ser "tudo

para todos." O maior mestre da oratória é aquele que é capaz de dirigir-

se a qualquer classe de pessoas de maneira adequada à condição delas, e

de molde a tocar-lhes o coração.

Irmãos, não deixemos que ninguém seja melhor do que nós na

capacidade de falar; Não deixemos que ninguém nos sobrepuje no

domínio da nossa língua materna. Amados companheiros de armas,

nossas línguas são as espadas que Deus nos deu para que as usemos por

Ele, tal como se disse de nosso Senhor: "Da sua boca saía uma aguda

espada de dois fios." Afiem bem essas espadas. Cultivem a sua

capacidade de falar, e estejam entre os maiores do território na

transmissão oral. Não os exorto por achar que sejam notadamente

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Lições aos Meus Alunos (Vol. 1)

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deficientes. Longe disso, pois toda gente me diz: "Conhecemos os seus

alunos pelo falar claro e destemido deles." Isto me leva a crer que vocês

têm em si grandes porções do dom, e lhes rogo que dêem duro para

aperfeiçoá-lo.

3. Irmãos, temos que ser mais zelosos ainda em ir avante nas

qualidades morais. Oxalá os pontos que vou mencionar se prestem aos

que deles necessitam, mas eu lhes asseguro que não tenho nenhum de

vocês particularmente em mira. Desejamos subir ao mais elevado gênero

de ministério e, sendo assim, ainda que obtenhamos qualificações

intelectuais e oratórias, falharemos se não possuirmos também altas

qualidades morais.

Há males que devemos sacudir de nós como Paulo sacudiu da mão

a víbora, e há virtudes que devemos obter a qualquer custo.

A auto-indulgência já matou os seus milhares. Tremamos ante o

perigo de perecer às mãos dessa Dalila. Tratemos de manter todas as

paixões e hábito sob a devida sujeição. Se não formos senhores de nós

mesmos, não estaremos aptos a ser dirigentes na igreja.

Temos que por fora toda idéia de importância pessoal nossa. Deus

não abençoará o homem que se considera grande. Gloriar-se mesmo na

obra de Deus o Espírito em você é pisar perigosamente perto da adulação

própria. "Louve-te o estranho, e não a tua boca" – e fiquem contentes

quando esse estranho tiver bastante bom sonso para segurar a língua.

Também precisamos dominar o nosso temperamento. O

temperamento forte não é totalmente um mal. Homens chochos como

sapatos velhos geralmente são de pouco valor. Eu não lhes diria: "Caros

irmãos, tenham gênio forte", mas lhes digo: "Se o têm, tratem de

dominá-lo cuidadosamente." Dou graças a Deus quando vejo um

ministro com temperamento suficientemente forte para indignar-se com

o erro, e para manter-se firme por aquilo que é reto. Contudo, o

temperamento forte é uma ferramenta cortante, e muitas vezes fere

aquele que o manuseia. "Gentil, sensível aos rogos" – preferindo sofrer o

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mal antes de infligi-lo, este deve ser o nosso espírito. Se algum irmão

aqui ferve depressa demais, saiba que ao fazê-lo não escalda a ninguém

senão ao diabo, e então é melhor que se evapore.

Precisamos – especialmente alguns de nós – vencer nossa tendência

para a leviandade. Existe grande distinção entre a santa jovialidade, que

é uma virtude, e aquela leviandade geral, que é um defeito moral. Há

uma leviandade que não tem suficiente ânimo para rir, mas que zomba

de tudo; é irreverente, fútil e falsa. A risada sincera não constitui

leviandade, mais que o choro sincero. Falo daquela capa religiosa que é

pretensiosa, mas rala, superficial e insincera quanto às questões de peso.

Piedade não é brincadeira. Nem mera formalidade. Cuidem-se para não

serem atores. Nunca dêem a pessoas sérias a impressão de que vocês não

crêem no que dizem, e que não passam de profissionais. Ter fogo nos

lábios e gelo na alma é nota de reprovação. Deus nos livre de sermos

superfinos e superficiais. Oxalá jamais sejamos as borboletas do jardim

de Deus.

Ao mesmo tempos, devemos evitar tudo que lembre a ferocidade da

intolerância. Conheço uma classe de pessoas religiosas que, não tenho

dúvida, nasceram de mulher, mas parecem ter sido amamentadas por

uma loba. Não lhes faço ofensa; não foram criados assim Rômulo e

Remo, fundadores de Roma? Alguns homens belicosos dessa ordem

tiveram bastante poder intelectual para fundar dinastias do pensamento.

Mas a bondade humanitária e o amor fraternal associam-se melhor ao

reino de Cristo. Não devemos sair pelo mundo à capa de heresias, como

cães terrier farejando ratos. Tampouco haveremos de confiar tanto em

nossa infalibilidade, a ponto de levantarmos pelourinhos eclesiásticos

para neles queimar todos os que diferem de nós, Não, é certo, com feixes

de lenha, mas com aquele carvão de zimbro, que consiste de forte

preconceito e desconfiança cruel.

Em acréscimo a isso tudo, há maneirismos, caprichos e

comportamentos que não posso descrever agora, contra os quais

devemos lutar. Sim, porque pequeninas falhas muitas vezes podem ser a

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Lições aos Meus Alunos (Vol. 1)

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causa do fracasso, e libertar-nos delas pode ser o segredo do sucesso.

Não menoscabem aquilo que mesmo em diminuto grau estorva a sua

ação proveitosa. Expulsem do templo da sua alma as bancas dos

vendedores de pombas, bem como dos comerciantes de ovelhas e vacas.

Além disso, diletos irmãos, precisamos adquirir certos hábitos e

faculdades morais, bem como lançar fora os seus opostos. Aquele que

não tem integridade de espírito jamais fará muito pela causa de Deus. Se

nos orientarmos pela política, se adotarmos qualquer modo de agir que

não seja reto, em pouco tempo naufragaremos. Caros irmãos, estejam

dispostos a ser pobres, a ser desprezados, a perder a vida – não, porém, a

agir desonestamente. Que para vocês a única política seja a honestidade.

Oxalá possuam também a grande característica moral da coragem.

Por esta não queremos dizer impertinência, atrevimento ou presunção,

mas a verdadeira coragem de fazer e dizer calmamente a coisa certa, e ir

em frente em todas as circunstâncias, ainda que não haja ninguém para

dizer-lhe uma boa palavra. Espanta-me o número de cristãos que têm

medo de falar a verdade aos seus irmãos na fé. Graças a Deus, posso

dizer que não há um membro da minha igreja, nenhum oficial da igreja, e

nenhum homem do mundo a quem eu tema dizer na frente o que diria em

sua ausência. Abaixo de Deus, devo minha posição em minha igreja à

ausência de toda política, e ao hábito de dizer o que penso.

A idéia de tornar as coisas agradáveis a todos é perigosa e iníqua.

Se você diz uma coisa a um homem, e outra a outro, um dia eles

compararão as notas, e você será posto a descoberto e será desprezado. O

homem de duas caras mais cedo ou mais tarde será objeto de desdém, e

com razão. Acima de tudo, evitem a covardia, pois esta torna mentirosos

os homens. Se tiverem que dizer algo acerca de uma pessoa, seja esta a

medida do que digam – "Quanto ousarei dizer na presença dela?" Não se

devem permitir sequer uma palavra mais de censura a qualquer ser

vivente. Se a sua regra for esta, a sua coragem os livrará de mil

dificuldades, e lhes granjeará respeito duradouro.

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Lições aos Meus Alunos (Vol. 1)

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Tendo integridade e coragem, diletos irmãos, oxalá sejam dotados

de zelo indômito.

Zelo? Que é isso? Como o descreverei? Tratem de possuí-lo, e

saberão o que é. Deixem-se consumir de amor a Cristo, e vejam que a

chama continue a arder ininterruptamente não ardendo em chamas vivas

nas reuniões públicas, e morrendo no trabalho rotineiro de cada dia.

Necessitamos perseverança indomável, resolução infatigável, e uma

combinação de piedosa obstinação, abnegação, amabilidade santa e

coragem invencível.

Aprimorem-se também numa capacidade que é ao mesmo tempo

moral e intelectual, a saber, a capacidade de concentrar todas as suas

forças na obra a que foram chamados. Colijam os seus pensamentos,

reúnam todas as suas faculdades, juntem as suas energias, focalizem as

suas capacidades. Despejem todos os mananciais da sua alma num só

canal, fazendo-o jorrar para diante numa só corrente indivisa. A alguns

falta essa qualidade. São dispersivos, e fracassam. Juntem os seus

batalhões e lancem-nos sobre o inimigo. Não tentem ser grandes nisto e

naquilo – ser "tudo em turnos, e nada duradouramente", mas consintam

que toda a sua natureza seja levada cativa por Jesus Cristo, e deponham

tudo aos pés dAquele que derramou o Seu sangue e morreu por vocês.

4. Acima disso tudo, precisamos de qualificações espirituais, graças

que hão de ser desenvolvidas em nós pelo Senhor. Estou certo de que

esta é a principal questão. Outras coisas são preciosas, mas esta não tem

preço. Devemos ser ricos para com Deus.

É necessário que nos conheçamos a nós mesmos. O pregador deve

ser grande na ciência do coração, na filosofia da experiência interior.

Existem duas escolas de experiência, e nenhuma tem prazer em aprender

da outra. Tenhamos satisfação em aprender de ambas. Uma fala de filho

de Deus como alguém que conhece a profunda depravação do seu

coração, que compreende a asquerosidade da sua natureza, e diariamente

sente que em sua carne não habita bem algum. "O homem que não sabe e

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Lições aos Meus Alunos (Vol. 1)

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não sente isso", dizem os dessa escola, "e que o sente mediante amargas

e penosos experiências do dia a dia, não tem em si, a vida de Deus." É

inútil falar-lhes da liberdade e da alegria no Espírito Santo. Não as têm.

Aprendamos desses irmãos unilaterais. Sabem muito daquilo que se deve

saber. Ai do ministro que ignora o seu conjunto de verdades. Martinho

Lutero costumava dizer que a tentação é o melhor mestre do ministro. Há

verdade nesse lado da questão.

Outra escola de crentes detém-se demoradamente na gloriosa obra

do Espírito de Deus. Tais irmãos fazem bem. E bem-aventurados são por

isso. Crêem no Espírito de Deus como um poder purificador, que varre

os estábulos imundos da alma e faz dela um templo para Deus. Mas

freqüentemente falam como se não pecassem mais, ou se não fossem

mais importunados por tentações. Gloriam-se como se já tivessem

terminado a batalha e obtido a vitória. Aprendamos desses irmãos.

Tratemos de conhecer toda a verdade que nos possam ensinar.

Familiarizemo-nos com os picos culminantes e com a gloria que neles

fulge, com os montes Hermom e Tabor onde podemos transfigurar-nos

com nosso Senhor. Não temam ficar demasiado santos. Não temam

encher-se demais do Espírito Santo.

Gostaria que vocês fossem sábios dos dois lados, e capazes de lidar

com as pessoas, tanto em seus conflitos como em suas alegrias,

familiarizados com ambos os tipos de experiência. Saibam onde Adão os

deixou; saibam onde o Espírito de Deus os colocou. Não se limitem a

saber um desses aspectos tão exclusivamente que esqueçam o outro.

Creio que se há homens tendentes a clamar: "Miserável homem que eu

sou! Quem me livrará do corpo desta morte?" serão sempre os ministros,

porque temos que ser tentados em todos os pontos, para podermos

consolar outros.

Num vagão de trem eu vi, na semana passada, um pobre homem

com a perna estendida sobre o assento. Um funcionário, vendo-o nessa

posição, observou-lhe: "Estes estofados não foram feitos para você pôr

neles as suas botas sujas." Logo que o guarda se foi, o homem tornou a

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Lições aos Meus Alunos (Vol. 1)

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estender a perna, e me disse: "Estou certo de que ele nunca fraturou a

perna em dois lugares, ou não seria tão duro comigo." Quando ouço

irmãos que vivem comodamente, com boa renda, condenarem outros

muito provados, por não se alegrarem estes como aqueles, percebo que

nada sabem dos ossos quebrados que outros têm que arrastar durante

toda a sua peregrinação.

Irmãos, conheçam o homem em Cristo e fora de Cristo. Estudem-no

em seu melhor e em seu pior estado. Conheçam a sua anatomia, os seus

segredos e as suas paixões. Não podem fazer isso por meio de livros.

Precisam ter experiência espiritual pessoal. Somente Deus lhes pode dar

isso.

Dentre todas as aquisições espirituais, é necessário além de todas as

outras coisas, conhecer Aquele que é o remédio certo para todas as

doenças. Conheçam Jesus. Sentem-se a Seus pés. Considerem Sua

natureza, Sua obra, Seus sofrimentos, Sua gloria. Regozijem-se em Sua

presença – tenham comunhão com Ele, dia após dia. Conhecer a Cristo é

compreender a ciência mais excelente. Vocês não podem deixar de ser

sábios, se tiverem comunhão com a sabedoria. Não lhes poderá faltar

força, se tiverem comunhão com o poderoso Filho de Deus.

Outro dia vi numa gruta italiana urna minúscula samambaia

crescendo num local onde as suas folhas cintilavam e dançavam

continuamente sob os borrifos de uma fonte. Estava sempre verde. Nem

a sequidão do estio, nem o frio do inverno a afetavam. Assim, vivamos

sempre sob a doce influência do amor de Jesus. Permaneçam em Deus,

irmãos. Não O visitem ocasionalmente, mas habitem nEle. Na Itália se

diz que onde não entra o sol, entra o médico. Onde não brilha Jesus, a

alma está doente. Aqueçam-se aos raios de Sua luz, e vocês serão

vigorosos no serviço do Senhor.

Domingo passado, à noite, usei um texto que me empolgou:

"Ninguém conhece o Filho, senão o Pai." Disse eu aos ouvintes que os

pobres pecadores que tinham vindo a Jesus e confiaram nEle pensavam

que O conheciam, mas conheciam apenas um pouco dEle. Santos com

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Lições aos Meus Alunos (Vol. 1)

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sessenta anos de experiência, que andavam todo dia com Ele, acham que

O conhecem. Contudo, são apenas principiantes ainda. Os espíritos

perfeitos perante o trono, que durante milênios O adoram perpetuamente,

talvez pensem que O conhecem, mas não O conhecem plenamente.

"Ninguém conhece o Filho, senão o Pai." Cristo é tão glorioso que

somente o Deus infinito tem pleno conhecimento dEle. Portanto, não

haverá limite para o nosso estudo, nem estreiteza em nossa linha de

pensamento, se fizermos de nosso Senhor o grande objeto de todas as

nossas meditações.

Irmãos, como resultado disso, se é que havemos de ser homens

fortes, temos que amoldar-nos a nosso Senhor. Oh, ser como Ele!

Bendita a cruz em que sofrermos, se sofrermos para tornar-nos

semelhantes ao Senhor Jesus. Se nos amoldarmos a Cristo, teremos

prodigiosa unção sobre o nosso ministério, e sem isso, de que vale um

ministério?

Numa palavra, precisamos esforçar-nos pela santidade de caráter.

Santidade, que é? Não é integridade de caráter? Uma condição

equilibrada em que não há falta nem excesso? Não é moralidade. Esta é

uma estátua fria e sem vida. Santidade é vida. Vocês têm que ter

santidade. E, amados irmãos, se falharem nas qualificações intelectuais

(como espero que não), e se tiverem escassa medida de poder oratório

(como creio que não), todavia, confiem nisto: uma vida santa é, em si

mesma, um poder maravilhoso, e suprirá muitas deficiências. É, de fato,

o melhor sermão que o melhor homem pode pregar. Tomemos a

resolução de que toda a pureza que se possa ter, teremos, que toda a

santidade que se possa alcançar, obteremos, e que toda a semelhança

com Cristo que seja possível neste mundo de pecado, por certo haverá

em nós, mediante a obra do Espírito de Deus. O Senhor nos eleve a

todos, como colégio, a uma tribuna mais alta, e Ele terá a gloria!

5. Caros irmãos, ainda não terminei. Tenho que dizer-lhes: vão

avante no trabalho prático, pois, no fim das contas, seremos conhecidos

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pelo que tivermos feito. Devemos ser tão poderosos em atos como na

palavra.

Há bons irmãos no mundo que não são nada práticos. A grandiosa

doutrina da segunda vinda os faz ficar de boca aberta, com os olhos nos

céus, de modo que me disponho a dizer: "Varões de Plymouth, por que

estais olhando para o céu?" O fato de que Jesus está para vir não é razão

para contemplação das estrelas, mas, sim, para trabalhar no poder do

Espírito Santo. Não se deixem levar tanto por especulações, que

cheguem a preferir ler uma obscura passagem do Apocalipse a ensinar

numa escola de maltrapilhos, ou discursar aos pobres sobre Jesus. É

preciso que acabemos com os sonhos à luz do dia, e que nos lancemos ao

trabalho. Acredito em ovos, mas temos que fazer com que saiam frangos

deles. Não importa o tamanho do ovo. Pode ser ovo de avestruz, se

quiserem, mas, se não houver nada nele, fora com a casca! Se sair

alguma coisa dele, Deus abençoe as suas especulações, e mesmo que

vocês vão um pouco além do que julgo sábio aventurar-se, ainda assim,

se isso os tornar mais úteis, louvado seja Deus!

Queremos fatos – ações realizadas, almas salvas. Está bem que se

escrevam ensaios. Mas, quais almas vocês impediram de ir para o

inferno? A maneira excelente como dirigem a sua escola interessa-me.

Mas, quantas crianças foram trazidas para a igreja por meio dela?

Alegra-nos ouvir daquelas reuniões especiais. Mas, quantos realmente

nasceram de novo nelas? Os santos são edificados? Convertem-se

pecadores? Balançar para lá e para cá num portão de cinco travas não é

progresso, conquanto alguns parecem pensar que sim. Vejo-os num

perpétuo Elísio, sussurrando para si mesmos e para os amigos: "Estamos

muito bem acomodados." Deus nos livre de viver confortavelmente,

enquanto os pecadores afundam no inferno.

Viajando pelas estradas das montanhas da Suíça, vêem-se

continuamente marcas de perfuratrizes; e na vida de todo ministro devem

existir trapos de duro labor. Irmãos, façam alguma coisa; façam alguma

coisa; façam alguma coisa. Enquanto as comissões desperdiçam tempo

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em deliberações, façam alguma coisa. Enquanto as sociedades e uniões

elaboram estatutos, ganhemos almas. Muitas vezes discutimos,

discutimos, e discutimos, e Satanás ri-se à socapa. É tempo de parar de

planejar e de procurar o que planejar. Rogo-lhes, sejam homens de ação,

todos vocês. Mãos à obra, e tratem de sair-se como homens. A idéia de

guerra do velho Suvarov é também a minha: "Avançar e lutar! Nada de

teorias! Ao ataque! Formar fileiras! Baionetas á carga! Afundem no

centro do inimigo!" Nosso único objetivo é salvar almas, e isto não é

coisa para comentar, mas para fazer no poder de Deus.

6. Finalmente, e aqui vou entregar-lhes uma mensagem que pesa

sobre mim – prossigam avante na questão da escolha da sua esfera de

ação. Rogo hoje por aqueles que não podem rogar por si, a saber, as

grandes multidões do mundo pagão, em outras terras.

Os nossos púlpitos atuais estão toleravelmente bem supridos, mas

temos necessidade de homens que edifiquem sobre novos alicerces.

Quem o fará? Estamos nos, como uma companhia de homens fiéis, com

a consciência esclarecida acerca dos pagãos? Milhões há que nunca

ouviram o nome de Jesus. Centenas de milhões viram um missionário só

uma vez em suas vidas, e nada sabem do nosso Reí. Deixaremos que

pereçam? Podemos ir para a cama e dormir enquanto a China, a Índia, o

Japão e outros países estão sob condenação? Estamos limpos do sangue

deles? Não têm eles direito sobre nós? Devemos colocar a coisa neste pé:

"Posso provar que não devo ir?" e Não: "Posso provar que devo ir?"

Quando alguém pode provar honestamente que não deve ir, está

absolvido; de outra forma, não.

Meus irmãos, que resposta darão? Apresento-lhes a questão pessoa

por pessoa. Não lhes levanto uma questão que eu não tenha apresentado

honestamente a mim mesmo. Tenho pensado que, se alguns dos nossos

principais ministros fossem, causaria grande efeito, dando incentivo ás

igrejas, e me perguntei sinceramente se eu devia ir. Depois de pesar

todos os pontos, senti-me levado a manter o meu lugar. Creio que o

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julgamento da maioria dos cristãos seria o mesmo. Mas creio que iria

alegremente se esse fosse o meu dever. Irmãos, procurem situar-se pelo

mesmo processo. Temos que levar os pagãos a converter-se. Deus tem

miríades de eleitos Seus entre eles. Compete-nos ir e procurá-los, até

encontrá-los. Muitas dificuldades foram removidas, as terras estão todas

abertas para nós, e as distâncias foram anuladas. É certo que não temos o

dom pentecostal de línguas, mas rapidamente se aprendem línguas,

enquanto que a arte de imprimir equivale bem ao dom perdido. Os

perigos próprios das missões não deveriam segurar nenhum homem de

verdade, ainda que fossem muito grandes, mas estão agora reduzidos ao

mínimo. Há centenas de lugares em que a cruz de Cristo é desconhecida,

lugares aos quais podemos ir sem risco. Quem irá? Devem ir os irmãos

jovens, bem dotados, e que não tomaram ainda responsabilidades de

família.

Todo estudante, ao matricular-se nesta escola, deve considerar esta

matéria, e entregar-se à obra, a menos que haja razões concludentes para

não fazer isso. É um fato que, mesmo para as colônias, é bem difícil

encontrar homens, pois tive oportunidades na Austrália que fui obrigado

a declinar. Não devia ser assim. Decerto existe ainda algum sacrifício

próprio entre nós, e alguns de nós estão dispostos a exilar-se por Jesus. A

missão desfalece por falta de homens. Se aparecessem os homens, a

liberalidade da igreja supriria as necessidades deles. De fato a

liberalidade da igreja já fez a provisão dos recursos, mas, apesar disso,

não há homens para ir. Irmãos, jamais acharei que nós, como um grupo

de homens, cumprimos o nosso dever enquanto não virmos

companheiros nossos lutando por Jesus em todas as terras, situados na

vanguarda do conflito. Creio que, se Deus os impulsionar a irem, estarão

entre os melhores missionários, porque farão da pregação do evangelho o

traço dominante do seu trabalho, e é esse o caminho certo de Deus para o

poder.

Gostaria que as nossas igrejas imitassem a do pastor Harms, da

Alemanha, na qual cada membro era consagrado a Deus, de fato e de

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Lições aos Meus Alunos (Vol. 1)

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verdade. Os fazendeiros davam os produtos de suas terras, os operários

seu trabalho. Alguém deu uma casa grande para o funcionamento de uma

escola da missão. O pastor Harms obteve dinheiro para um navio, que

ele equipou, para viagens à África. Daí, enviou missionários, e pequenos

grupos de sua igreja com eles, para formar comunidades cristãs entre os

boximanes. Quando é que as nossas igrejas vão ser assim abnegadas e

dinâmicas? Vejam os morávios! Como cada homem e mulher se torna

um missionário, e quanto fazem em conseqüência! Captemos o espírito

deles. É certo esse espírito? Então é certo possuí-lo.

Não nos basta dizer: "Esses morávios são gente extraordinária!"

Devemos ser extraordinários também. Cristo não resgatou os morávios

mais do que a nós. Eles não têm maior obrigação de fazer sacrifícios do

que nós. Então, por que esta negligência? Quando lemos sobre homens

heróicos, que entregaram tudo por Jesus, não devemos admirá-los

simplesmente, mas imitá-los.

Quem os imitará agora? Decidamos de uma vez! Não há alguns de

vocês desejosos de consagrar-se ao Senhor? "Avante" é a palavra-senha

hoje! Não há espíritos valentes que tomem a vanguarda? Orem todos

para que, durante este Pentecoste, o Espírito diga: "Apartai-me a

Barnabé e a Saulo para a obra."

Avante! Em nome de Deus, AVANTE!!

___________________________________________

* Não se engane o leitor, pensando que a situação é melhor hoje. Na

verdade, na população atual de mais de quatro bilhões, bilhões não

conhecem Jesus Cristo! – Nota do Tradutor.

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NECESSIDADE DE DECISÃO PELA VERDADE

Algumas coisas são verdadeiras e algumas são falsas. Considero

isso um axioma. Mas há muitas pessoas que, evidentemente, Não

acreditam nisso. Parece que o princípio vigente na era atual é este: "As

coisas são verdadeiras ou falsas, conforme o ponto de vista do qual as

olhamos. O preto é branco, e o branco é preto, segundo as circunstâncias;

e não importa muito como as denominemos. É certo que a verdade é

verdadeira, mas seria descortês dizer que o seu oposto é mentira. Não

devemos ter mentalidade estreita e, sim, lembrar o moto: "Tantos

homens, tantas mentes." Os nossos antepassados eram decididos quanto

a manter marcos. Tinham vigorosas noções sobre pontos fixos da

doutrina revelada, e se apegavam tenazmente àquilo que acreditavam ser

escriturístico. Seus campos eram protegidos por cercas e valas, mas seus

filhos arrancaram as cercas, encheram as valas, nivelaram tudo, e

brincaram de pular carniça com as pedras que marcavam os limites.

A escola moderna de pensamento ri-se do "ridículo" caráter positivo

dos reformadores e dos puritanos. Vai avançando em "gloriosa"

liberalidade, e não vai demorar muito estarão proclamando uma grande

aliança entre o céu e o inferno, ou melhor, o amálgama dos dois

estabelecimentos em termos de concessão mútua, permitindo que a

falsidade e a verdade se deitem lado a lado, como o leão com o cordeiro.

Todavia, apesar disso, minha firme crença antiquada é que umas

doutrinas são verdadeiras, e que afirmações que sejam diametralmente

opostas a elas não são verdadeiras – que quando "Não" é o fato, "Sim"

está fora do páreo, e que quando "Sim" é justificável, "Não" tem que ser

abandonado. Creio que o cavalheiro que tem deixado perplexas as nossas

cortes por muito tempo é, ou Roger Tichborne, ou alguma outra

personagem (no rumoroso "Caso Tichborne", em que um réu assumiu

falsamente a identidade de Tichborne). Ainda não sou capaz de conceber

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Lições aos Meus Alunos (Vol. 1)

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que ele seja ao mesmo tempo o verdadeiro herdeiro e um impostor.

Entretanto, em questões religiosas o ponto de observação está mais ou

menos nessa latitude.

Meus irmãos, temos uma fé firme para pregar. Somos enviados com

uma mensagem definida procedente de Deus. Não nos compete fabricar

a mensagem enquanto vamos. Não somos enviados por nosso Mestre e

Senhor com uma missão elaborada deste modo: "Conforme meditem em

seu coração e inventem em sua cabeça, assim preguem. Mantenham-se a

par dos tempos. O que quer que as pessoas queiram ouvir, digam-lhes, e

serão salvas." Na verdade, não é isso que lemos. Há algo definido na

Bíblia. Não é como um pedaço de cera que amoldamos como queremos,

nem uma peça de tecido que cortamos de acordo com a moda. Os

grandes pensadores, pelo que parece, vêem as Escrituras como uma

caixa de letras com as quais podem brincar, fazendo delas o que querem,

ou uma garrafa de mágico, da qual podem extrair qualquer coisa que

escolham, desde o ateísmo até o espiritismo. Sou obsoleto demais para

cair e prestar culto a essa teoria. Há algo que me foi dito na Bíblia – dito

com certeza – não posto diante de mim com um "mas", um "talvez", um

"se", um "pode ser", e cinqüenta mil suspeitas por detrás, de sorte que a

soma e a suma disso tudo é: talvez não seja assim, afinal. É-me, porém,

revelado como fato infalível, no qual se deve crer, e cujo oposto é um

erro mortal, proveniente do pai da mentira.

Portanto, crendo que existe tanto a verdade como a falsidade, que

há verdades na Bíblia, e que o evangelho consiste de algo definido que

deve ser crido pelos homens, cabe-nos sermos decididos quanto ao que

ensinamos, e ensiná-lo de maneira decidida. Temos que lidar com

homens que se perderão ou se salvarão, e certamente não serão salvos

por doutrinas erradas. Temos que tratar com Deus, de quem somos

servos. E não O honraremos proclamando falsidade. Tampouco nos dará

recompensa, dizendo: "Bem está, servo bom e fiel. Manejaste o

evangelho tão judiciosamente, como qualquer um que viveu antes de ti."

Ocupamos uma posição muito solene, e o nosso espírito deve ser o do

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Lições aos Meus Alunos (Vol. 1)

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velho Micaías, que disse: "Vive o Senhor, que o que o Senhor me disser

isso falarei." Nem mais nem menos do que a Palavra de Deus somos

chamados a proclamar. Mas essa Palavra somos obrigados a declarar

com um espírito que convença os filhos dos homens de que, pensem o

que pensarem dela, cremos em Deus, e não ficamos abalados em nossa

confiança nEle.

Irmãos, em que devemos ser positivos? Bem, existem cavalheiros

que imaginam que não há princípios fixos sobre os quais firmar-se.

"Talvez umas poucas doutrinas", disse-me alguém, "talvez umas poucas

doutrinas seja possível considerar firmadas. Talvez esteja estabelecido

que há um só Deus; mas não se deve dogmatizar sobre a Sua

personalidade: muita coisa se pode dizer em favor do panteísmo."

Homens assim se infiltram em nosso ministério, mas em geral do

bastante astutos para esconder a permissividade de suas mentes sob a

fraseologia crista. Deste modo, agem em harmonia com os seus

princípios, pois, a sua regra fundamental é que a verdade é pouco

importante.

Quanto a nos – ou, pelo menos, quanto a mim – tenho certeza de

que há um Deus, e pretendo pregá-Lo como faz alguém absolutamente

seguro disso. Ele é o Criador dos céus e da terra, o soberano autor da

providência, o Senhor da graça. Bendito seja o Seu nome, para todo o

sempre! Não teremos questões e debates concernentes a Ele.

Temos igualmente a certeza de que o livro chamado "Bíblia" é Sua

Palavra, e é inspirado. Não no sentido em que Shakespeare, Milton e

Dryden podem ter sido inspirados, mas num sentido infinitamente mais

alto. Assim, na medida em que temos o texto exato, consideramos as

próprias palavras dele como infalíveis. Cremos que tudo que se afirma

no livro que nos vem de Deus deve ser aceito por nós como inelutável

testemunho dEle, e nada menos que isso. Não permita Deus que nos

enredemos nas várias interpretações do modus da inspiração, as quais por

pouco não a eliminam. O livro é uma produção divina. É perfeito. É o

superior tribunal de recursos – "o juiz que põe termo à demanda."

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Tampouco sonharia com blasfemar contra o meu Criador, como também

questionar a infalibilidade da Sua Palavra.

Também temos certeza quanto à doutrina da bendita Trindade. Não

podemos explicar como cada uma das Pessoas, o Pai e o Filho e o

Espírito Santo, pode ser distinta e perfeita e, contudo, serem os três um

somente, de modo que não há senão um só Deus. Todavia, devemos crer

de fato nesta doutrina, e pretender pregá-la, a despeito dos erros unitário,

sociniano, sabeliano e outros quaisquer. Apegaremo-nos sempre com

firmeza à doutrina da Trindade – da diversidade tríplice em unidade.

Semelhantemente, irmãos, que não haja som incerto da nossa parte

quanto à expiação de nosso Senhor Jesus Cristo. Não podemos deixar o

sangue fora do nosso ministério, ou a vida dele se esvairá, pois podemos

dizer do evangelho: "O sangue é a vida dele." Cristo, o Substituto

perfeito, o sacrifício vicário de Cristo em favor do Seu povo para que

viva por meio dEle – isto devemos anunciar até o dia da nossa morte.

Tampouco devemos vacilar na mente por um momento sequer

quanto ao grande e glorioso Espírito de Deus – quanto à veracidade da

Sua existência, da Sua personalidade, do poder de Suas operações, da

necessidade da Sua influência, da certeza de que ninguém se regenera,

senão graças a Ele; quanto ao fato de que nascemos de novo pelo

Espírito de Deus, e que o Espírito habita nos crentes e é o Autor de todo

o bem neles, sendo Ele que os santifica e os preserva, sem o qual eles

não podem fazer absolutamente nada que seja bom. Não hesitaremos de

jeito nenhum quanto à proclamação destas verdades.

A absoluta necessidade do novo nascimento é uma certeza também.

Desçamos a demonstrações quando tocarmos nesse ponto. Jamais

envenenemos nosso povo com a noção de que o melhoramento moral

será suficiente. Digamos repetidamente: "Importa-vos nascer de novo."

Não cheguemos à condição daquele ministro escocês que, depois que o

velho John Macdonald pregou à sua igreja um sermão para pecadores,

observou: "Bem, Sr. Macdonald, pregou um bom sermão, mas muito

fora de lugar, pois não sei de nenhuma pessoa não regenerada em minha

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igreja". Pobre alma! Com toda a probabilidade ele mesmo não era

regenerado. Não! Não ousemos lisonjear os nossos ouvintes, mas

continuemos a dizer-lhes que nasceram pecadores e necessitam nascer

santos, ou, se não, jamais verão a face de Deus com aceitação.

Horrendo mal é o pecado! Não vacilaremos quanto a isto.

Falaremos desse assunto com tristeza e de modo positivo. E conquanto

alguns sábios levantem difíceis questões sobre o inferno, não deixaremos

de declarar os terrores do Senhor, e o fato de que o Senhor disse: "... irão

estes para o castigo eterno, porém os justos para a vida eterna."

Também jamais venhamos a emitir som incerto quanto à gloriosa

verdade de que a salvação é totalmente pela graça. Se é que nós mesmos

somos salvos, sabemos que somente a graça soberana de Deus o fez, e

entendemos que deve ser a mesma coisa com os demais. Proclamemos:

"Graça! Graça! Graça!", com todas as nossas forças, quer vivendo, quer

morrendo.

Vamos ser muito decisivos também com respeito à justificação pela

fé, pois a salvação não é "de obras, para que ninguém se glorie". "Vida

num olhar ao Crucificado" seja a nossa mensagem. Confiança no

Redentor há de ser a graça salvadora que pediremos ao Senhor que

implante no coração de todos os nossos ouvintes.

E tudo mais que cremos ser verdade bíblica, preguemos

resolutamente. Se houver questões que se podem considerar discutíveis

ou relativamente pouco importantes, falemos delas com a medida de

decido que seja apropriada. Mas pontos que não podem ser contestados,

porque são essenciais e básicos, declararemos sem gaguejar, sem

perguntar aos ouvintes: "Que querem que digamos?" Sim, e sem a escusa

– "Estas são minhas opiniões, mas pode ser que as opiniões de outros

sejam corretas." De modo nenhum devemos pregar o evangelho como

nossas opiniões, mas, sim, como a mente de Deus o testemunho do

Senhor concernente a Seu Filho, e com referência à salvação dos

perdidos. Se nos fosse confiada a tarefa de elaborar o evangelho,

poderíamos alterá-lo adaptando-o ao paladar deste século "modesto."

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Lições aos Meus Alunos (Vol. 1)

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Entretanto, jamais tendo sido empregados para dar origem às boas novas,

mas simplesmente para repeti-las, não nos atrevamos a ir além daquilo

que está registrado. O que Deus nos ensinou, isto ensinamos. Se não

agimos assim, não somos aptos para a posição que ocupamos.

Se tenho uma criada em casa, e por ela envio um recado a alguém á

porta, e ela lhe acrescenta algo por sua própria conta, agindo assim

poderá eliminar a alma mesma do recado, e será responsável pelo que

fez. Não ficará mais a meu serviço, pois preciso de uma empregada que

repita o que digo, tão de perto quanto possível, palavra por palavra. Se o

faz, o responsável pela mensagem sou eu, não ela. Se alguém se zangar

com ela pelo que disse, será muito injusto. Sua briga é comigo, não com

a pessoa que empreguei para agir como o meu porta-voz. Aquele que

tem a Palavra de Deus, digo que a fale fielmente, e não terá necessidade

de responder aos oponentes, exceto com um "Assim diz o Senhor." Esta

é, pois, a matéria a respeito da qual somos decididos.

Como devemos demonstrar essa decisão? Não precisamos

preocupar-nos em responder a esta pergunta. Nossa decisão se mostrará a

seu modo. Se realmente cremos numa verdade, seremos decididos no

que a ela se refere. Certamente não mostraremos a nossa decisão por

meio daquele fanatismo obstinado, furioso e feroz que tira de todos os

outros a oportunidade e a esperança de salvação, e a possibilidade de ser

regenerado, ou até de serem decentemente sinceros, se sucede que

divergem de nós quanto à cor de alguma escama do grande leviatã.

Alguns indivíduos parecem ter sido moldados do modo contrário. Feitos

para serem limas, rasparão mesmo. Sempre prontos para brigar com a

gente, vivem levantando questões acerca da cor da invisibilidade, ou do

peso de uma substancia inexistente. Sempre empunham armas contra

nos, não por causa da importância do ponto em discussão, mas pela

muito maior importância de serem eles o papa da sua facção.

Não saiam pelo mundo de punhos cerrados para brigar, carregando

um revólver teológico no bolso das calças. Não há sentido em ser uma

espécie de galo de briga doutrinário, para excursionar exibindo seu brio,

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Lições aos Meus Alunos (Vol. 1)

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ou um terrier da ortodoxia, prontos para agarrar ratos heterodoxos às

vintenas. Procurem ser suaves quanto ao modo, como também enérgico

quanto ao conteúdo. Estejam preparados para lutar, e sempre tenham a

espada presa à cintura, mas usem uma bainha. Não pode haver sentido

em fazer ondular no ar a espada perante os olhos de toda gente para

provocar conflito, à moda dos nossos bem-amados amigos da Irlanda.

Deles se diz que, na Feira de Donnybrook, tiram seus casacos, arrastam-

nos no chão e gritam, enquanto brandem seus cacetes: "Algum

cavalheiro terá a bondade de pisar na ponta do meu casaco?" São

teólogos assim, de sangue quente e bravio, que nunca ficam em paz

enquanto não estão totalmente metidos em guerra.

Se vocês crêem realmente no evangelho, serão resolutos por ele

através de meios mais razoáveis. A sua própria entonação revelará a sua

sinceridade. Falarão como alguém que tem algo para dizer e que sabe

que o que diz é verdade. Já observaram um velhaco quando está para

dizer uma falsidade? Notaram a maneira como ele a articula? Leva muito

tempo habilitar-se a contar bem uma mentira, pois os órgãos faciais não

foram constituídos e ajustados originalmente para a complacente

transmissão de falsidades. Quando alguém sabe que está dizendo a

verdade, tudo nele corrobora a sua sinceridade. Todo advogado

consumado e de experiência em pouco tempo sabe se uma testemunha é

fiel à verdade ou se é um enganador. A verdade tem seu próprio ar e

modo, seu próprio tom e ênfase.

Eis ali um caipira bronco e desajeitado, no banco das testemunhas.

O advogado procura enganá-lo e confundi-lo, se possível, mas lago vê

que é uma testemunha honesta, e diz de si para si: "Gostaria de abalar a

prova deste sujeito, pois vai prejudicar grandemente o meu lado da

demanda." Sempre deve existir esse mesmo ar de veracidade no que

concerne ao ministro cristão. Só que, como não está apenas dando

testemunho da verdade, mas também quer que os outros se dêem conta

dessa verdade e do poder dela, deve ele ter tom mais decidido do que

uma simples testemunha que expõe fatos que podem ser acreditados ou

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Lições aos Meus Alunos (Vol. 1)

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não, sem quaisquer conseqüências sérias num ou noutro caso. Lutero foi

homem de decisão. Ninguém duvidava de que ele cria no que falava.

Falava com estrondo, pois havia a força do raio em sua fé. Tudo nele

pregava, pois toda a sua natureza cria. Podia-se pensar: "Bem, ele pode

ser doido, ou estar completamente equivocado, mas crê seguramente no

que diz. É a encarnação da fé. Seu coração transborda em seus lábios."

Se havemos de demonstrar decisão quanto à verdade, é preciso que

não o façamos somente por nosso tom e maneira, mas também por

nossas ações diárias. A vida do homem sempre se impõe mais do que o

seu falar. Quando os homens o avaliam, calculam seus atos como

cruzeiros e suas palavras como centavos. Se há desacordo entre a sua

vida e as suas doutrinas, a multidão de espectadores aceita sua prática e

rejeita sua prédica. Uma pessoa pode saber muita coisa da verdade e,

contudo, ser-lhe uma testemunha perniciosa, porque não lhe fortalece o

crédito. O curandeiro que, na história clássica, proclamava um remédio

infalível para resfriados, tossindo e espirrando no meio de cada frase do

seu panegírico, pode servir de imagem e símbolo do ministro profano.

O sátiro da fábula de Esopo ficou indignado com o homem que

soprava quente e frio com a mesma boca, e fez bem indignar-se. Não

posso conceber método mais seguro de predispor os homens contra a

verdade do que este: fazer ressoar os louvores dela através dos lábios de

homens de caráter duvidoso. Quando o diabo virou pregador nos dias do

nosso Senhor, o Mestre mandou-o calar-se, pois não estava interessado

em louvores satânicos. É ridículo ouvir boa verdade proveniente de um

homem mau; é como farinha de trigo em saco de carvão.

Da última vez que estive numa de nossas cidades escocesas, ouvir

falar de um demente do manicômio que se julgava grande personalidade

histórica. Com muita solenidade o pobre homem assumia atitude

majestosa e exclamava: "Eu sou Sir William Wallace. Dê-me um pedaço

de fumo." A descida de Sir William Wallace a um pedaço de tabaco era

demasiado absurda para que se lhe atribuísse seriedade. Todavia, não é

tão absurda nem tão triste como ver um professo embaixador da cruz

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ganancioso, mundano, irascível ou indolente. Como seria estranho ouvir

um homem dizer: "Sou servo do Deus Altíssimo, e irei para qualquer

lugar onde possa receber o maior salário. Fui chamado para trabalhar

somente pela glória de Jesus, e não irei a parte alguma, exceto à igreja de

condição das mais respeitáveis. Para mim o viver é Cristo, mas não

posso fazê-lo sem um salário compensador! "

Irmão, se a verdade estiver em você, fluirá de todo o teu ser como o

perfume se exala de todos os ramos do sândalo; impulsioná-lo-á para

diante como os ventos alísios impelem os navios, inflando-lhes as velas

todas; consumirá com sua energia toda a tua natureza como o incêndio

na floresta queima todas as árvores da mata. A verdade não terá dado a

você sua amizade totalmente, enquanto todos os seus feitos não

estiverem marcados com o seu sinete.

Devemos mostrar nosso espírito decidido em prol da verdade por

meio dos sacrifícios que estamos dispostos a fazer. Este é, na verdade, o

método mais eficiente, como também o mais penoso. Temos que estar

prontos para renunciar a qualquer coisa, a tudo, por amor dos princípios

que esposamos, e temas que estar dispostos a ofender os que mais

contribuem para o nosso sustento, a afastar os nossos mais calorosos

amigos, antes que trair nossas consciências. Temos que estar dispostos a

ser mendigos quanto à bolsa, e refugos quanto à reputação, antes que

agir como traidores. Podemos morrer, mas não podemos negar a

verdade. O custo já foi calculado, e estamos resolvidos a comprar a

verdade por qualquer preço, e a não vendê-la a preço nenhum. Bem

pouco deste espírito se vê hoje em dia. Os homens têm fé salvadora, no

entanto se eximem de problemas; têm grande discernimento, sabendo

discernir onde está a sua própria conveniência; têm grande coração,

sendo tudo para todos se, por todos os meios, podem economizar alguma

quantia. Há muitos vira-latas por aí, que seguiriam aos calcanhares de

qualquer pessoa que lhes dê comida. São dos primeiros a ladrar à

decisão, chamando-lhe dogmatismo obstinado e fanatismo ignorante.

Seu veredito de condenação não nos aflige; é o que deles esperávamos.

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Lições aos Meus Alunos (Vol. 1)

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Acima de tudo, devemos demonstrar o nosso zelo pela verdade

esforçando-nos continuamente, a tempo e fora de tempo, para sustentá-la

do modo mais terno e amável, mas ainda com muita seriedade e firmeza.

Não é preciso falar aos crentes de nossas igrejas como se estivéssemos

meio dormindo. Nossa pregação não deve ser um ronco articulado. É

preciso que haja poder, vida, energia, vigor. Temos que lançar-nos nisso

com todo o nosso ser, e mostrar que o zelo da casa de Deus nos

consome. Como haveremos de manifestar a nossa decisão, o nosso

espírito resoluto? Decerto não harpejando na mesma corda e repetindo

vezes sem conta as mesmas verdades, com a declaração de que cremos

nelas. Esse curso de ação só poderia ocorrer ao incompetente. O tocador

de realejo não é modelo de decisão. Pode ter persistência, não porém

consistência. Eu poderia indicar certos irmãos que aprenderam quatro ou

cinco doutrinas, e as fazem girar sem parar, com sempiterna monotonia.

Sempre me alegro quando eles tocam o seu realejo em alguma rua bem

distante de onde moro. Enfadar os outros com perpétua repetição não é o

modo de manifestar a nossa firmeza na fé.

Meus irmãos, vocês fortalecerão a sua decisão se se lembrarem da

importância destas verdades para as suas próprias almas. Os seus

pecados foram perdoados? Vocês têm esperança do céu? Que influência

têm sobre vocês as solenes verdades da eternidade? Por certo vocês não

foram salvos sem essas coisas e, portanto, devem mantê-las, pois se

sentirão perdidos se não forem verdadeiras. Vocês terão que morrer, e,

estando cônscios de que somente essas coisas poderão sustê-los no artigo

final, tratarão de sustentá-las com todas as suas forças. Não podem

desistir delas. Como pode alguém renunciar a uma verdade que sente que

é vitalmente importante para a sua alma? Diariamente pensa: "Tenho que

viver dela, morrer sobre ela, sem ela fico infeliz agora, e estarei perdido

para sempre. Portanto, com a ajuda de Deus, Não posso abandoná-la."

Amados irmãos, sua experiência de todo dia os sustentará. Espero

que já tenham percebido vividamente, e que experimentem muito mais

ainda, o poder da verdade que apregoam. Creio na doutrina da eleição

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porque tenho absoluta certeza que, se Deus não me escolhesse, eu jamais

O escolheria. Tenho certeza que Ele me escolheu antes de eu nascer, ou

do contrário nunca me escolheria depois disso. E me escolheu por razões

que desconheço, pois eu nunca encontraria nenhum motivo em mim pelo

qual Ele devesse olhar-me com amor especial. Assim, sou forçado a

aceitar essa doutrina. Estou ligado à doutrina da depravação do coração

humano, porque me vejo depravado no coração, e tenho provas diárias

de que em minha carne não habita bem algum. Não posso deixar de

afirmar que é preciso haver expiação antes do perdão, porque é o que a

minha consciência requer, e disso depende a minha paz. O pequeno

tribunal do interior do meu coração não fica satisfeito, a menos que

alguma retribuição seja exigida pela afronta feita a Deus. Às vezes dizem

que tais e quais afirmações não são verdadeiras; mas quando podemos

responder que as experimentamos e provamos, que contestação há para

esta forma de argumentar?

Alguém expõe a fabulosa descoberta de que o mel não é doce. "Mas

eu usei um pouco no meu café da manhã, e o achei dulcíssimo", diz

você, e sua resposta é conclusiva. O outro lhe diz que o sal é venenoso,

mas você mostrará sua saúde e declarará que tem usado sal na comida

nos últimos vinte anos. Diz ele que comer pão é um erro – erro vulgar,

absurdo antiquado; mas em cada refeição você fará do protesto dele um

assunto para alegres risadas. Se você tem experiência diária e habitual da

verdade da Palavra de Deus, não temo que sua mente sofra abalo com

referência a ela. Aqueles jovens companheiros que nunca tiveram

convicção de pecado, mas obtiveram a religião deles como tomam banho

de manhã, saltando dentro da água – depressa pularão fora, como

pularam dentro. Os que não sentem, nem as alegrias nem as depressões

de espírito que demonstram vida espiritual, estão entorpecidos, e sua

mão paralisada não segura a verdade com firmeza. Meros deslizadores

da superfície da Palavra que, como as andorinhas, tocam a água com as

asas, são os primeiros a voar de um território a outro, conforme os guiem

considerações pessoais. Crêem agora nisto, depois naquilo, pois em

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verdade não crêem em nada intensamente. Se você já foi arrastado pelo

barro e pela lama do desespero de alma, se foi lançado de pernas para o

ar, e foi enxuto como um prato quanto a toda sua força e orgulho, e

depois a alegria e a paz de Deus, mediante Jesus Cristo, encheram o seu

coração, confiarei em você dentre cinqüenta mil infiéis.

Sempre que escuto os surrados ataques dos céticos à Palavra de

Deus, sorrio dentro de mim e penso: "Ora, você, simplório! Como pode

levantar tão tolas objeções? Nas controvérsias íntimas que enfrento com

a minha própria descrença tenho sentido dificuldades dez vezes

maiores." A nós, que temos competido com cavalos, não nos cansarão os

que correm a pé. Gordon Cumming e outros matadores de leões não hão

de assustar-se com gatos selvagens. Tampouco os que já enfrentaram

Satanás face a face irão deixar o terreno nas mãos de céticos

pretensiosos, ou de quaisquer outros servos inferiores do maligno.

Meus irmãos, se tivermos comunhão com o Senhor Jesus Cristo,

não poderemos ser levados a duvidar dos pontos fundamentais do

evangelho; nem poderemos ser indecisos. Olhar a cabeça com coroa de

espinhos e as mãos e pés feridos é remédio certo para curar a "dúvida

modernista" e todos os seus caprichos. Apegue-se à "Rocha eterna,

partida por você", e detestará a areia movediça.

O eminente pregador americano, o seráfico Summerfield, quando

estava à morte, virou-se para um amigo no quarto e disse: "Dei uma

olhada na eternidade. Oh, se eu pudesse voltar e tornar a pregar, como

pregaria diferente do modo como o fiz!"

Irmãos, dêem uma olhada na eternidade, se é que desejam ser

resolutos. Recordem como, na alegoria de Bunyan, Ateu encontra

Cristão e Esperançoso no caminho para a Nova Jerusalém, e diz: "Não

existe um país celestial. Percorri longo caminho, e não pude encontrá-

lo". Depois Cristão diz a Esperançoso: "Não o vimos do alto do Monte

Claro, quando estávamos com os pastores?" Havia uma resposta! Assim,

quando os homens nos dizem: "Não existe Cristo – Não há verdade na

religião", replicamos: "Não nos assentamos à Sua sombra com grande

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satisfação? O fruto que nos ofereceu não foi doce ao nosso paladar? Vão

com o seu ceticismo aqueles que não sabem em quem têm crido. Nós

provamos e apalpamos a boa palavra da vida. O que temos visto e

ouvido, isso testificamos. E, quer recebam os homens o nosso

testemunho, quer não, não podemos senão proclamá-lo, pois falamos o

que sabemos, e testificamos o que temos visto." Meus irmãos, é esse o

caminho certo para sermos decididos.

Agora, finalmente, por que devemos ser decididos e arrojados

nesta época em particular? Devemos ser assim porque esta época é

marcada pela dúvida. Pulula de gente com dúvida como o antigo Egito

pululava de rãs. Tropeçamos nessas pessoas por toda parte. Toda gente

duvida de tudo, não apenas na esfera da religião, mas também da política

e da economia social – em todas as esferas mesmo. É a era do progresso,

e, daí, suponho que deve ser a época de soltar as amarras para que toda a

massa política vá um pouco mais adiante. Bem, irmãos, como a época é

de dúvida, seremos sábios se pisarmos e nos firmarmos onde tenhamos a

certeza de ter a verdade sob nós. Talvez, se fosse uma época de

fanatismo, e os homens não quisessem instruir-se, poderíamos inclinar-

nos a ouvir novos mestres. Mas agora temos que estar do lado

conservador, e conservador radical, que é o lado verdadeiramente

conservador. Temos que voltar à radix – à raiz da verdade, e lutar

inflexivelmente por aquilo que Deus revelou, enfrentando assim as

indecisões da época.

Nosso eloqüente amigo, o Sr. Artur Mursell, descreveu

adequadamente a época atual : "Fomos longe demais ao dizer que o pensamento moderno

impacientou-se com a Bíblia, com o evangelho e com a cruz? Vejamos. Que parte da Bíblia não foi atacada? De há muito o Pentateuco foi varrido do cânon como inautêntico. O que lemos sobre a criação e o dilúvio é taxado de fábula. E as leis sobre limites, que Salomão não se acanhou de citar, são sepultadas ou largadas na estante.

"Diferentes homens atacam diferentes porções do Livro, e vários sistemas assestam as suas baterias de preconceitos contra vários pontos. A

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Escritura é até cortada em pedaços por alguns, e lançada aos quatro ventos do céu. E mesmo pelos mais tolerantes vândalos daquilo que é denominado pensamento moderno, é condensada, reduzindo-se a um magro panfleto de moralidade, em vez de ser o tomo de ensinamentos pelos quais temos a vida eterna. Dificilmente sobra um profeta que não tenha sido revisado pelos sabichões destes dias, precisamente com o mesmo espírito com que fariam revisão de uma obra da biblioteca de qualquer alfarrabista. O temanita e o suita jamais interpretaram mal o conturbado Jó com sequer a metade do preconceito dos renomados intelectos do nosso tempo. Isaías, em vez de serrado ao meio, é esquartejado e picado em pedaços. O profeta das lamentações é afogado em suas lágrimas. Ezequiel é reduz ido a átomos de pó entre as suas rodas. Daniel é corporalmente devorado pelos leões eruditos. E Jonas é tragado pelos monstros do abismo com voracidade maior do que a do grande peixe, pois nunca mais o lançam fora. Os relatos e os acontecimentos da crônica grandiosa são rudemente contestados e negados porque algum mestre-escala, de lousa e giz na mão, não consegue acertar as suas somas.

"E todos os milagres que o poder de Deus realizou em favor do Seu povo, ou para a frustração dos inimigos deste, são tratados com desdém como absurdos, porque os catedráticos não podem fazer a mesma coisa com os seus encantamentos. Dos chamadas milagres, alguns poucos são críveis, porque os nossos líderes acham que eles mesmos podem realizá-los. Alguns fenômenos naturais, que um doutor pode exibir a um grupo de militares interessados numa sala escura, ou com uma mesa- repleta de aparelhos, explicarão o milagre do Mar Vermelho. Um aeronauta sobe num balão, depois desce, e explica que não há mistério na coluna de nuvem e na de fogo – e outras ninharias desse tipo. Desta maneira, os nossos grandes homens ficam satisfeitos quando pensam que a sua vara de brinquedo engoliu a vara de Arão. Mas quando a vara de Arão ameaça engolir a deles, estes dizem que essa parte não é autêntica e que o milagre nunca ocorreu.

"O Novo Testamento não se sai melhor do que o Velho nas mãos desses invasores. Não pagam taxa de respeito em sua homenagem quando cruzam a linha. Não reconhecem nenhuma voz de advertência no brado: "Tira os teus sapatos de teus pés; porque o lugar em que tu estás é terra santa." A mente que se detêm em sua carreira de rapina espiritual sob qualquer pretexto respeitável é acusada de ignorante ou servil. Hesitar em pisar num lírio ou numa flor do campo é tolice sentimental de criança, e a

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vanguarda do pensamento desta época só tem dó e escárnio para tal sentimento, pois anda de cabeça erguida por cima da sua alardeada marcha do progresso. Dizem que as lendas que se contam em nossas creches são obsoletas, e que idéias mais amplas estão ganhando terreno, graças a mentes mais capazes de pensar. Não nos inclinamos a crer nisso. A verdade é que poucos, bem poucos, homens que pensam, cujo pensamento consiste em negação do começo ao fim, e cujas mentes vivem torturadas por uma crônica contorção ou curva que as transforma em pontos de interrogação intelectuais, é que lançaram a base deste sistema. A esses poucos homens sinceros em suas dúvidas juntou-se um bando maior de gente simplesmente inquieta. E a essa gente acrescentaram-se homens que são inimigos do espírito e das verdades da Escritura. Todos eles juntos formaram um conciliábulo e deram em chamar-se líderes do pensamento contemporâneo.

"Têm o seu séquito, é certo. Mas, de que consiste? De meros satélites da moda. De ricos, pedantes e ignorantes das nossas cidades populosas. Um cordão de carruagens se vê parando e saindo da entrada de um lugar onde um avançado professor fará uma preleção. E porque a propaganda do modista vai do piso ao teto da sala de conferências, dizem muitos que essas idéias estão ganhando terreno. Mas, numa época de modas como esta, quem jamais suspeitará que esses favoritos da moda sequer têm alguma idéia? É respeitável seguir certo nome por algum tempo, e assim os fúteis seguirão o nome e exibirão a roupa. Quanto às idéias, porém, não se suponha que essas pessoas as têm, mais do que elas mesmas sonhariam com esperar que mais da décima parte da multidões que vão à exibição da Academia Real de Artes entendam as leis da perspectiva. É isso que se tem que fazer; assim, todo aquele que tem uma veste para mostrar e um terno para expor, sai para exibir isso, e todos quantos pretendem andar na moda (e quem não pretende?), estão fadados a avançar com os tempos. E daí vemos as modas avançando pelos sagrados limites do Novo Testamento como se pisassem no assoalho de St. Albans, ou da sala de preleções de um professor qualquer. E as damas arrastam as caudas dos vestidos e os almofadinhas calcam suas enfeitadas botas sobre a autenticidade deste, ou sobre a autoridade daquele, ou sobre a inspiração de outro.

"Gente que nunca ouviu falar de Strauss, de Bauer ou de Tübingen está inteiramente disposta a dizer que o nosso Salvador foi apenas um homem bem intencionado, que cometeu muitas faltas e erros; que os Seus milagres, como se acham registrados no Novo Testamento, são em parte

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imaginários e em parte explicáveis pelas teorias naturais; que a ressurreição de Lázaro jamais ocorreu, visto que o Evangelho de João é falso de ponta a ponta; que se deve rejeitar a expiação como uma doutrina sangrenta e injusta; que Paulo foi um fanático que escreveu sem refletir, e que muito daquilo que leva seu nome nem sequer foi escrito por ele. Assim, de Gênesis a Apocalipse a Bíblia é apagada pela fricção da crítica até que, segundo a fé típica da era em que vivemos, como representada pelos seus líderes, assim chamados, sobram apenas uns poucos fragmentos inspirados."

Além disso, esta época não duvida com sinceridade; vivemos no

meio de uma raça descuidada e frívola. Se os que duvidam fossem

sinceros, haveria mais lugares de reuniões de ímpios para serem

freqüentados do que existem. Mas a descrença, como comunidade

organizada, não prospera. Em Londres, a descrença aberta e declarada

foi abaixo, não passando de uma velha cabana de ferro velho, em frente

da igreja de São Lucas. Creio ser essa a sua posição atual. "O Salão da

Ciência", não é como se chama? Sua literatura ficou exposta durante

muito tempo na metade de uma loja da rua Fleet. Era tudo que conseguiu

sustentar e não sei se mesmo essa metade de loja é usada atualmente. É

algo pobre, obsoleto e tolo. No tempo de Tom Paine bravateava como

um vigoroso blasfemo, mas falava claro e, a seu modo, era categórico e

sério em sua ousadia no falar. Em dias passados, no comando estavam

alguns nomes que se poderiam mencionar com certa medida de respeito.

Hume, por exemplo, Bolingbroke e Voltaire eram grandes em

talento, senão em caráter. Mas onde achar agora um Hobbes ou um

Gibbon? Os que agora duvidam geralmente têm dúvidas porque não se

preocupam nada com a verdade. São indiferentes de todo. O ceticismo

moderno está jogando e brincando com a verdade; e usa o "pensamento

moderno" como diversão, como as damas usam o jogo de croqué ou o de

flechas ao alvo. Esta época não é nada menos que uma época de modas

femininas, de bonecas e de comédia. Mesmo gente boa não crê

integralmente, como seus pais costumavam crer. Até entre os não-

conformistas há alguns que estão vergonhosamente frouxos em suas

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convicções. Têm poucas convicções dominadoras que poderiam levá-los

ao pelourinho, ou mesmo à prisão. Os moluscos tomaram o lugar dos

homens, e os homens viraram águas vivas. Longe de nós, o desejo de

imitá-los!

Ademais, é uma época muito impressionável. Portanto, gastaria de

vê-los bem decididos, para poderem impressioná-la. O estupendo

progresso feito pelo movimento da Igreja Anglo-Católica na Inglaterra

mostra que fervor é poder. Os ritualistas crêem em algo, e esse fato deu-

lhes influência. Para mim, o credo que lhes é peculiar é um disparate

intolerável, e os seus procedimentos são tolices infantis. Mas eles

ousaram ir contra a turba, e a fizeram voltar-se e colocar-se ao lado

deles. Lutaram com bravura, digamo-lo em sua honra. Quando suas

igrejas se tornaram cenários de tumuito e desordem, se ouvia o brado:

"Papismo Não!", lançado pelas classes inferiores, enfrentaram

valentemente o inimigo e jamais recuaram. Foram contra toda a corrente

daquilo que se julgava ser o sentimento profundamente arraigado da

Inglaterra em favor do protestantismo, quase não tendo um bispo para

patrociná-los. Apenas com uns poucos pães e peixes para ampará-los,

cresceram, de um punhado que eram, até se tornarem o partido

dominante e mais importante da Igreja da Inglaterra, e para nossa intensa

surpresa e horror, levaram o povo a receber de novo o papismo, que

considerávamos morto e sepultado.

Se alguém me tivesse dito há vinte anos que a feiticeira de En-Dor

chegaria a ser rainha da Inglaterra, eu acreditaria tanto como poderia

acreditar que veríamos este desenvolvimento da Igreja Anglo-Católica.

O fato é, porém, que os homens foram fervorosos e resolutos,

sustentaram com a maior firmeza aquilo em que criam, e não hesitaram

em impulsionar para diante a sua causa. Portanto, nossa época pode ser

impressionada. Receberá o que lhe for ensinado por gente zelosa, seja

verdade ou falsidade. Poder-se-á objetar que a falsidade será recebida

com maior prontidão. É bem possível. Mas os homens aceitarão qualquer

coisa, se tão-somente vocês a pregarem com tremenda energia e com

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Lições aos Meus Alunos (Vol. 1)

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vigoroso fervor. Se não a receberem no coração, em sentido espiritual,

de algum modo haverá um assentimento e adesão mental, em grande

proporção com a energia com que vocês a proclamarem. Sim, e Deus

abençoará também o nosso espírito resoluto de modo que, quando a

mente for ganha por nosso fervor, e a atenção for conquistada por nosso

zelo, o coração será aberto pelo Espírito de Deus.

Temos que ser decididos. Que é que os dissidentes vêm fazendo em

grande medida, senão tentando ser requintados? Quantos ministros

nossos estão labutando para serem grandes oradores ou pensadores

intelectuais? Não é isto que importa. Nossos jovens ministros foram

ofuscados por essa idéia, e saíram a zurrar como asnos selvagens sob a

noção de que então teriam fama de virem de Jerusalém, ou de terem

recebido educação na Alemanha. O mundo os descobriu. Agora creio

que não há nada que os cristãos genuínos desprezem mais do que a

estulta afetação de intelectualismo. Vocês ouvirão um velho e bom

oficial da igreja dizer: "O Sr. Fulano, que tivemos aqui, era muito

inteligente e pregava sermões esplêndidos, mas por isso a Causa foi

abaixo. Mal podemos sustentar o ministro. Da próxima vez, pretendemos

ter de volta um dos ministros da moda antiga que crêem em algo e o

pregam. Se não, nossa igreja não terá acréscimo algum."

Sairão vocês a dizer ao povo que crêem que podem dizer algo, mas

não sabem o que é? Que não estão inteiramente seguros de que o que

pregam é certo, mas os estatutos da igreja exigem que falem isso, e

portanto o falam? Ora, talvez agradem a tolos e idiotas; e estejam certos

de que propagarão a descrença, mas não poderão fazer mais que isso.

Quando um profeta vai à frente, deve falar da parte do Senhor, e se não

pode agir assim deixemo-lo voltar para a cama.

É absolutamente certo, caros amigos, que temos que ser decididos

agora ou nunca, porque a nossa época manifestamente vaga sem rumo.

Não podemos passar doze meses observando sem ver como ela desce

com a maré. As âncoras foram içadas, e o barco flutua rumo à

destruição. Vai sendo levado agora, tão próximo como posso falar-lhes,

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Lições aos Meus Alunos (Vol. 1)

73

na direção sudeste, e vai chegando no Cabo Vaticano. E se se afastar

muito mais naquela direção, dará nas rochas dos baixios romanos.

Temos que abordá-lo e ligá-lo ao glorioso rebocador da verdade do

evangelho, e arrastá-lo de volta. Eu ficaria contente se pudesse trazê-lo

fazendo-o rodear o Cabo Calvino, diretamente para a Baía do Calvário, e

ancorá-lo no belo porto situado bem junto da Vera Cruz – a cruz de

Cristo.

Conceda-nos Deus Sua graça para o fazermos. Temos que ter mão

forte, manter nosso vapor firme na rota e desafiar a corrente. E assim,

pela graça de Deus, salvaremos esta geração e as gerações por vir.

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Lições aos Meus Alunos (Vol. 1)

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PREGAÇÃO AO AR LIVRE: ESBOÇO DE SUA HISTÓR IA

Há certos costumes para os quais não há pontos a favor, exceto que

são muito antigos. Em tais casos, a antigüídade não tem maior valor do

que a ferrugem de uma moeda falsa. Contudo, é feliz a circunstância em

que o uso das eras pode ser apresentado em favor de uma prática

realmente boa e escriturística, pois a reveste de um halo de reverência.

Pois bem, pode-se argumentar, quase sem temor de refutação, que a

pregação ao ar livre é tão velha como a própria pregação. Estamos em

plena liberdade para crer que Enoque, o sétimo depois de Adão, quando

profetizava, Não pedia melhor púlpito que um outeiro, e que Noé, como

pregoeiro da justiça, dispunha-se a arrazoar com os seus contemporâneos

no estaleiro em que construía a sua maravilhosa arca.

Certamente, Moisés e Josué achavam o seu lugar mais conveniente

para discursar às enormes assembléias, debaixo do arco celeste, que

dispensa colunas. Samuel concluiu um sermão no campo de Gilgal, no

meio de chuva e trovões, sermão pelo qual repreendeu o povo e o levou a

ajoelhar-se. Elias pôs-se de pé no Carmelo e desafiou a vacilante nação,

bradando: "Até quando coxeareis entre dois pensamentos?" Jonas, cujo

espírito era um tanto parecido, elevou seu brado de advertência nas ruas

de Nínive, e em todos os seus logradouros públicos fez a proclamação da

advertência: "Ainda quarenta dias, e Nínive será subvertida." Para ouvir

Esdras e Neemias "todo o povo se ajuntou como um só homem, na

praça, diante da Porta das Águas." Na verdade, encontramos exemplos

de pregação ao ar livre em toda parte ao redor de nós nos registros do

Velho Testamento.

Contudo, talvez nos baste retornar à origem da nossa santa fé e

ouvir ali o precursor do Salvador clamando no deserto e erguendo a voz

à margem do Jordão. Mesmo o nosso Senhor que é o nosso modelo, mais

que ninguém, pregou a maior parte dos Seus sermões na encosta da

montanha ou na praia do mar ou nas ruas. Por todos os motivos e

propósitos, o nosso Senhor foi pregador ao ar livre. Não ficava calado na

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Lições aos Meus Alunos (Vol. 1)

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sinagoga, mas se sentia igualmente em casa no campo. Não temos em

registro nenhum discurso dEle que tenha sido pronunciado numa capela

real, mas temos o sermão do monte e o sermão da planície. Assim é que

a mais antiga e a mais divina espécie de pregação foi praticada ao ar

livre por Aquele que falou como nenhum homem jamais falou.

Houve reuniões dos Seus discípulos depois da Sua morte, entre

paredes, especialmente a que se deu no cenáculo. Mas a pregação

continuou sondo feita mais freqüentemente no pátio do templo, ou em

quaisquer outros espaços livres disponíveis. A noção de lugares santos e

de casas consagradas para reuniões não lhes havia ocorrido, como

cristãos. Pregavam no templo porque era o local mais freqüentado, mas

com igual fervor, "de casa em casa, não cessavam de ensinar, e de pregar

Jesus, o Cristo."

Os apóstolos e seus sucessores imediatos entregavam a sua

mensagem de misericórdia, não somente em suas casas alugadas e nas

sinagogas, mas também em todo lugar e sempre que a ocasião lhes

favorecia. Isto se pode deduzir facilmente da seguinte afirmação de

Eusébio: "Os divinos e admiráveis discípulos dos apóstolos edificaram a

super-estrutura das igrejas, cujos alicerces tinham sido lançados pelos

apóstolos, em todos os lugares aonde chegaram. Em toda parte deram

prosseguimento à pregação do evangelho, semeando as sementes da

doutrina celestial por todo o mundo. Muitos discípulos, vivos por esse

tempo, distribuíram suas propriedades aos pobres e, deixando o seu país,

fizeram a obra de evangelistas aos que nunca tinham ouvido falar da fé

cristã, pregando Cristo e lhes entregando os escritos evangélicos. Logo

depois de terem plantado a fé em algum país estrangeiro, e de terem

ordenado guias e pastores, aos quais incumbiam do cuidado dessas novas

plantações, partiam para outras nações, assistidos pela graça e pela

poderosa obra do Espírito Santo. Tão logo começavam a pregar o

evangelho, o povo se reunia em massa com eles, e com alegria

cultuavam o verdadeiro Deus, o Criador do mundo, crendo piedosamente

e de coração em Seu nome."

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Lições aos Meus Alunos (Vol. 1)

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Quando desceu a idade das trevas, os melhores pregadores da igreja

que aos poucos declinava foram também pregadores de praça pública.

Como o foram também aqueles freires itinerantes e grandes fundadores

das ordens religiosas que mantinham viva a piedade que ainda restava.

Ouvimos falar de Berthold, de Ratisbon, e seus sessenta ou cem mil

ouvintes num campo perto de Glatz, na Boêmia. Houve também os

Bernardos, os Bernardinos, os Antônios e os Tomazes de grande fama

como pregadores itinerantes, de quem não conseguimos achar tempo

para falar particularmente. O Dr. Lavington, bispo de Exeter, não

dispondo de outros argumentos, afirmou, como prova de que os

metodistas eram idênticos aos papistas, que os primitivos frades

pregadores eram notáveis nas reuniões realizadas em campo aberto.

Citando Ribadeneira, menciona Pedro de Verona, que tinha "um talento

divino para pregar; nem igrejas, nem ruas, nem mercados podiam conter

a grande concorrência que acudia para ouvir os seus sermões." O doutor

bispo facilmente podia ter multiplicado os seus exemplos, como nos

também poderíamos fazê-lo, mas estes nada mais provam do que isto:

para o bem ou para o mal, a pregação ao ar livre é um grande poder.

Quando o anticristo tinha começado a exercer a sua influência mais

universal, os reformadores antes da Reforma agiram muitíssimas vezes

como pregadores de praça pública, como, por exemplo, Arnold de

Brescia, que denunciou as usurpações papais bem às portas do Vaticano.

Seria fácil provar que os avivamentos religiosos geralmente foram

acompanhados, senão causados, por considerável acúmulo de pregações

ao ar livre, ou em lugares incomuns. As primeiras pregações das

doutrinas declaradamente protestantes foram quase necessariamente ao

ar livre, ou em edifícios não dedicados ao culto, porquanto estes estavam

nas mãos do papado. É certo que Wycliffe por algum tempo pregou o

evangelho na igreja de Lutterworth; que Huss, Jerônimo e Savonarola

por algum tempo pronunciaram discursos semi-evangélicos ligados aos

arranjos eclesiásticos que os cercavam. Mas quando começaram a

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Lições aos Meus Alunos (Vol. 1)

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conhecer e a pregar mais plenamente o evangelho, foram levados a

procurar outras tribunas.

Quando a Reforma era ainda um bebê, era como Cristo recém-

nascido, e não tinha onde reclinar a cabeça. Mas uma companhia de

homens comparável à hoste celestial proclamou-o sob os céus abertos,

onde pastores e gente comum a ouviam alegremente. Por toda a

Inglaterra sobram ainda diversas árvores chamadas "carvalhos do

evangelho." Há um local do outro lado do Tamisa conhecido pelo nome

de "Carvalho do evangelho", e eu mesmo já preguei em Addlestone, em

Surrey, sob os longos e copados ramos de um antigo carvalho, debaixo

do qual se diz que John Knox proclamou o evangelho durante a sua

estada na Inglaterra. Quantos terrenos baldios, selvagens e espinhosos, e

quantas solitárias encostas de colinas e pontos secretos nas florestas

foram consagrados da mesma maneira! E tradições há que ainda

sobrevivem em cavernas, rincões, topos de montes, onde nos velhos

tempos multidões de fiéis se reuniam para ouvir a Palavra do Senhor.

Tampouco foi somente em lugares solitários que se ouviu antigamente a

voz do pregador, pois dificilmente há um cruzamento de praça de

mercado que não tenha servido de púlpito para os evangelistas

itinerantes.

Durante o ministério de Wycliffe os seus missionários atravessavam

o país, pregando a Palavra em todo o lugar. Um ato de Parlamento, de

Ricardo II (1382), expõe como queixa do clero que certo número de

pessoas, todas vestidas com o mesmo tipo rústico de roupa de lá

grosseira, iam de cidade em cidade, sem licença das autoridades

eclesiásticas, e pregavam não só nas igrejas, mas também nos cemitérios

e nos mercados, bem como nas feiras. Para ouvir esses arautos da cruz o

povo da região reunia-se em grande número, e os soldados se mesclavam

com a multidão, prontos para defender os pregadores com suas espadas,

se alguém surgisse para molestá-los. Depois da morte de Wycliffe, seus

seguidores não hesitaram em usar os mesmos métodos. Há um registro

notável sobre William Swinderby narrando que, "sendo excomungado e

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Lições aos Meus Alunos (Vol. 1)

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proibido de pregar em qualquer igreja ou cemitério, usou duas pedras de

moinho como púlpito na High-street de Leicester, e ali pregou "em

desobediência ao bispo." "Ali", diz Knighton, "podiam-se ver multidões

de gente de toda parte, tanto da cidade como do campo, dobrando o

número dos que costumavam comparecer quando podiam ouvi-lo

legalmente."

Na Alemanha e noutros países do continente a Reforma recebeu

grande auxilio dos sermões pregados às multidões ao ar livre. Lemos

sobre pregadores luteranos que percorriam o país proclamando a nova

doutrina ao povo nos mercados, nos cemitérios e também nos montes e

nos prados. Em Goslar um estudante de Wittenberg pregou num pomar

de limeiras, que deu aos seus ouvintes a designação de "os Irmãos da

Limeira." D'Aubigné nos relata que em Appenzel, como as multidões

não cabiam nas igrejas, as pregações eram feitas nos campos e nas praças

públicas e, não obstante a fogosa oposição, os morros, as campinas e as

montanhas ecoavam as alegres novas da salvação.

Na vida de Farel encontramos incidentes ligados ao ministério ao ar

livre. Por exemplo, quando Metz pregou o seu primeiro sermão no

cemitério dos dominicanos, seus inimigos fizeram tocar todos os sinos,

mas a sua voz de trovão sobrepujou o som. Somos informados de que em

Neuchâtel "a cidade inteira se tornou sua igreja. Ele pregava no mercado,

nas ruas, junto às portas, em frente das casas e nas praças, e o fazia com

tal poder de persuasão e com tal efeito que conquistou muitíssimos para

o evangelho. Multidões se juntavam para ouvir os seus sermões, e nem

ameaças nem tentativas de persuasão as detinham."

Da History of Protestantism, do Dr. Wylie, transcrevo o seguinte: "Dizem que a primeira pregação campal feita na Holanda deu-se em 14

de junho de 1566, e foi nas vizinhanças de Ghent. O pregador foi Herman Modet, ex-monge que veio a ser o pastor reformado de Oudenard. "Este homem", diz um cronista papista, "foi o primeiro a aventurar-se a pregar em público, e 7000 pessoas ouviram o seu primeiro sermão. ...

"A segunda grande pregação campal foi no dia 23 de julho seguinte, com o povo reunido num vasto prado das proximidades de Ghent. A

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"Palavra" era preciosa naqueles dias, e o povo, avidamente sedento de ouvi-la, preparou-se para ficar dois dias consecutivos sobre o solo. Seus arranjos mais pareciam os de um exército armando o seu acampamento do que os de uma pacífica multidão reunida para prestar culto. Em torno dos adoradores havia uma muralha de barricadas em forma de carretas e carroças. Postaram-se sentinelas em todas as entradas. Fizeram às pressas em rústico púlpito de grossas pranchas e o puseram em cima de uma carreta. Modet foi o pregador, e em volta dele estavam milhares que o ouviam, com suas lanças, machadinhas e espingardas a seu lado, prontas para serem apanhadas a um sinal das sentinelas que mantinham compacta vigilância ao redor da assembléia. Em frente das entradas instalaram balcões onde vendedores ofereciam livros proibidos a todos quantos queriam comprá-los. Ao longo das estradas que levavam ao campo, certas pessoas ficavam paradas com a incumbência de persuadir o viajante casual a dobrar para lá e ouvir o evangelho. ... Terminadas as pregações, a multidão se dispôs a ir a outros distritos, onde acampou do mesmo jeito e ficou o mesmo espaço de tempo, e assim percorreu toda a Flandres Ocidental.

"Nesses conventículos se cantavam sempre os Salmos de Davi, traduzidos para o holandês popular, da versão de Clemente Marot e Teodoro de Beza. As odes do rei hebreu ressoavam, cantadas por cinco a dez mil vozes e, levadas pela brisa sobre matas e campinas, podiam-se ouvir a grandes distancias, cativando o lavrador de volta dos sulcos do seu arado, ou o viajante em seu percurso, fazendo-o deter-se e indagar de onde viria o canto desses menestréis."

É deveras interessante observar que é certo que o canto

congregacional se aviva no mesmo instante em que se aviva a pregação

do evangelho. Em todas as épocas um Moody é assistido por Sankey. A

história se repete porquanto causas semelhantes com toda a segurança

produzem efeitos semelhantes.

Seria uma tarefa interessante preparar um volume de fatos notáveis

relacionados com a pregação ao ar livre, ou, melhor ainda, uma história

consecutiva dela. Não tenho tempo nem sequer para um esboço

completo, mas simplesmente pergunto: Onde estaria a Reforma, se os

seus grandes pregadores se tivessem limitado às igrejas e catedrais?

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Como o povo comum teria sido doutrinado com o evangelho, se não

fosse aqueles evangelistas que iam longe em suas andanças, os

colportores e aqueles ousados inovadores que achavam um púlpito em

cada pilha de pedras, e um auditório em cada espaço aberto nas

proximidades das habitações dos homens?

Entre os exemplos de dentro da nossa ilha altamente favorecida,

não posso deixar de mencionar o notável caso do piedoso Wishart. Da

obra Historical Collections, de Gillie, cito o seguinte:

"George Wishart foi um dos primeiros pregadores das doutrinas dos

reformadores, e sofreu martírio nos dias de Knox. Principalmente a sua

exposição da Epístola aos Romanos excitou os temores e o ódio dos

eclesiásticos romanistas, que o fizeram silenciar em Dundee. Ele foi a

Ayr e começou a pregar o evangelho com grande liberdade e fidelidade.

Mas Dunbar, o então arcebispo de Glasgow, informado da grande

concorrência do povo que se reunia em multidão para ouvir os seus

sermões, e instigado pelo cardeal Beaton, foi até Ayr resolvido a prendê-

lo. Antes, porém, tomou posse da igreja para impedi-lo de pregar nela.

As noticias disto levaram Alexandre, conde de Glencair, e alguns

cavalheiros das cercanias, imediatamente à cidade. Eles desejaram e se

ofereceram para introduzir Wishart na igreja, mas ele não consentiu,

dizendo que "o sermão do bispo não ia fazer muito dano, e que, se lhes

agradasse, gostaria de ir à praça do mercado", o que conseguintemente

fez. E pregou com tanto sucesso, que vários ouvintes, antes inimigos da

verdade, converteram-se nessa ocasião.

"Wishart continuou com os cavalheiros de Kyle, depois da partida

do arcebispo. Havendo o desejo de que pregasse no próximo dia do

Senhor na igreja de Mauchline, foi para lá com esse propósito, mas o

xerife de Ayr tinha posto de norte uma guarnição de soldados no interior

da igreja para mantê-lo fora. Hugh Campbell, de Kinzeancleugh, com

outros paroquianos, sentiram-se excessivamente ofendidos, e teriam

entrado à força na igreja, mas Wishart não o permitiu, dizendo: "Irmãos,

é a palavra de paz que lhes prego. O sangue de ninguém será derramado

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por ela hoje. Jesus Cristo é tão poderoso nos campos como na igreja, e

Ele próprio, quando vivia na carne, pregou mais vezes no deserto e à

berra-mar do que no templo de Jerusalém."

Com isto o povo se apaziguou e foi com ele até a berra do pântano

que fica a sudoeste de Mauchline onde, tendo-se postado sobre o dique

de um canal, pregou à grande multidão. Falou mais de três horas, agindo

Deus extraordinariamente através dele; tanto que Laurence Ranken,

detentor do título de propriedade de Shield, pessoa muito profana,

converteu-se por meio dele. Cerca de um mês após a circunstancia

recém-descrita, foi informado de que irrompera uma praga em Dundee

quatro dias depois de ter saído de lá, e ainda grassava de tal forma que

eliminava numerosas pessoas diariamente. Isto o afetou tanto, que

resolveu voltar, e em seguida despediu-se dos amigos no oeste, os quais

se encheram de tristeza com sua partida. No dia seguinte ao da sua

chegada em Dundee, fez correr a notícia de que ia pregar. Para esse fim,

escolheu um ponto perto da porta oriental, com as pessoas contaminadas

do lado de fora, e as sadias do lado de dentro. O texto que usou nessa

ocasião foi o de Salmos 107.20: "Enviou-lhes a sua palavra e os sarou, e

os livrou do que lhes era mortal." Com esse discurso consolou tanto os

ouvintes, que estes se sentiram felizes tendo tal pregador, e lhe

imploraram que permanecesse com eles enquanto durasse a praga."

Que cena deve ter sido aquela! Raramente um pregador contou com

ouvintes assim e, devo acrescentar, raramente um grupo de ouvintes

contou com um pregador assim. Então, para empregar as palavras de um

velho escritor: "O velho tempo ficou ao lado do pregador com sua foice,

dizendo com voz roufenha: Trabalha durante o que se chama hoje, pois à

norte eu te ceifarei. Ali se pós também, perto do púlpito, a medonha

morte, com suas flechas agudas, dizendo: Atira tuas flechas de Deus, e

eu atirarei as minhas." Este é, de fato, um notável exemplo de pregação

ao ar livre.

Gostaria de ser capaz de oferecer mais dados particulares daquele

famoso discurso feito por John Livingstone no pátio da igreja de Shotts,

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quando nada menos que quinhentos dos seus ouvintes encontraram

Cristo, embora chovesse torrencialmente durante considerável parte do

tempo. Continua sendo um dos grandes sermões ao ar livre da história,

não sobrepujado por nenhum dos sermões pregados entre paredes. Eis

aqui a substância do que sabemos dele: "Ao que parece, não era comum, naqueles dias, ter-se algum sermão

na segunda-feira, depois da ministração da Ceia do senhor. Mas Deus havia dado tanto da Sua presença cheia de graça, e servido a Seu povo tanto da Sua comunhão com Ele, nos dias anteriores ao daquela solenidade, que o povo não sabia como partir sem ação de graças e louvor. Houvera grande afluência de seletos cristãos, com vários ministros eminentes, vindos de quase todos os cantos da terra. Muitos deles estiveram reunidos ali durante diversos dias antes da Ceia, ouvindo sermões, juntando-se em menores ou maiores grupos para oração, louvor e conversações espirituais. Ao passo que os corações se aqueciam com o amor de Deus, tendo alguns expressado o seu desejo de um sermão na segunda-feira, receberam apoio de outros, e em pouco o desejo se tornou amplamente generalizado. O Sr. John Livingstone, capelão da condessa de Wigtown (naquele tempo somente pregador, não ministro ordenado, e com vinte sete anos de idade), com muito trabalho foi convencido a pensar em pregar um sermão.

"Passara a noite em oração e em reunião, mas quando ficou sozinho no campo, por volta das oito ou nove horas da manhã, sobreveio-lhe tal temor no coração, sob o sentimento de indignidade e incapacidade para falar na presença de tantos ministros idosos e respeitáveis, e de tantos cristãos eminentes e experimentados – que pensou em escapar sorrateiramente e fugir de uma vez dali. E foi o que de fato começou a fazer, chegando a certa distância. Mas justamente quando estava a ponto de perder de vista a igreja de Shotts, estas palavras: 'Porventura tenho eu sido para Israel um deserto? Ou uma terra da mais espessa escuridão?', foram introduzidas no seu coração com força tão dominadora, que o constrangeram a achar que o seu dever era voltar e cumprir com a obrigação de pregar. Foi o que por conseguinte fez, e bem assistido, discorrendo durante cerca de uma hora e mera sobre os pontos em que tinha meditado, com base em Ez. 36:25-26: 'Então espargirei água pura sobre vós, e ficareis purificados; de todas as vossas imundícias e de todos os vossos ídolos vos purificarei. Dar-vos-ei

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coração novo, e porei dentro em vos espírito novo; tirarei de vos o coração de pedra e vos darei coração de carne.'

"Quando faltava pouco para terminar, caindo de repente pesada chuva que fez o povo recorrer ás pressas ás suas capas e mantas, ele se pôs a falar o seguinte: 'Se umas poucas gotas de chuva das nuvens os decompuseram tanto, como ficariam cheios de horror e desespero, se Deus os tratasse como merecem. E é como tratará a todos os que forem impenitentes até o fim. Que Deus faça com justiça chover fogo e enxofre sobre eles, como fez com Sodoma, Gomorra e as outras cidades da planície. Que o Filho de Deus, tabernaculando em nossa natureza, e nela obedecendo e sofrendo, seja para nós o único refúgio e abrigo da tempestade da ira divina que merecemos por causa do pecado. Que os Seus méritos e a Sua mediação nos sejam o único amparo a proteger-nos daquela tempestade, da qual ninguém senão os crentes arrependidos serão beneficiados com aquela proteção.' Com estas ou semelhantes expressões com a mesma intenção, e com muitas outras, foi levado por quase uma hora (depois de ter feito o que tinha premeditado) numa torrente de exortações e advertências, com grande expando e ternura de coração."

É preciso não esquecer o ministério regular ao ar livre junto da Cruz

de Paulo, sob as goteiras da velha catedral. Era uma famosa instituição, e

dava aos pregadores notáveis da época a possibilidade de serem ouvidos

por cidadãos em grande número. Reis e príncipes não desdenhavam

sentar-se na galeria construída sobre o muro da catedral e ouvir o

pregador no decorrer do dia. Latimer conta-nos que o cemitério dali

estava em condições tão insalubres que muitos morriam enquanto

ouviam os sermões; e, apesar disso, nunca houve falta de ouvintes.

Agora que a abominação dos sepultamentos no seu interior foi

eliminada, aqueles males não ocorreriam, e a Cruz de Paulo poderia ser

reedificada. Talvez uma mudança para o espaço aberto pudesse destruir

algo do papismo que se vai ligando gradativamente aos serviços da

catedral. A restauração do sistema de pregação pública, do qual a Cruz

de Paulo era o ponto central, é grandemente desejável. Eu gostaria

ardentemente que alguma pessoa, dona de suficiente riqueza, comprasse

um espaço central em nossa grande metrópole, erigisse um púlpito, com

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um certo número de bancos, e então o dedicasse para uso dos ministros

do evangelho credenciados, que ali expusessem livremente o evangelho

a todos os que para ali viessem, sem favor ou distinção. Seria da mais

real utilidade à nossa sempre crescente cidade do que todas as suas

catedrais, abadias e grandes edifícios góticos. Antes que todos os

espaços livres sejam totalmente tomados pela maré cada vez mais alta de

tijolo e reboco, seria uma sabia política garantir Campos do Evangelho,

ou Acres-de-Deus-para-os-Seus-Servos – ou qualquer outro nome que

lhes agrade dar aos espaços abertos dedicados à livre pregação do

evangelho.

Durante toda a época dos puritanos, havia reuniões em todas as

espécies de locais fora dos caminhos, por receio dos perseguidores.

"Tomamos", diz o arcebispo Laud numa carta datada, Fulham,

junho de 1632, "outro conventículo de separatistas em Newington

Woods, no mesmo matagal em que um veado deveria ser posto para ser

capado pelo rei no dia seguinte."

Uma cova ou poço de areia em Hounslow Heath às vezes servia de

conventículo, e há uma caverna peno de Hitchin onde John Bunyan

estava acostumado a pregar nos tempos perigosos. Por toda a Escócia as

várzeas, as cavernas, os estreitos vales e as encostas dos morros estão

cheios de lembranças dos pactuários até o dia de hoje. Vocês não

deixarão de encontrar púlpitos de pedra de onde os austeros pais da

Igreja Presbiteriana vociferavam as suas denúncias do cristianismo e

defendiam as reivindicações do Rei dos reis. Gargil, Cameron e seus

companheiros encontraram locais como esses para os seus bravos

ministérios, no meio das fendas e barrancos das montanhas solitárias. "Muito antes da aurora, por sendas tortuosas, por montes e matas e

tristes desertos, procuravam rincões nas terras altas onde os rios, ali simples ribeiros, repartem-se para mares diferentes. Depressa esses ribeiros despejam-se num vale estreito. Um terreno com relvado vivaz e flores de aparência estranha, em meio a urzes selvagens que tudo rodeiam, fatigam os olhos. Em solidões como estas, teus perseguidos filhos, Escócia, frustraram uma leí sanguinária de um tirano e de um fanático. Sobre sua

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lança inclinado... o grisalho veterano ouviu a Palavra de Deus pela voz de trovão de Cameron, ou derramada por Renwick em suave corrente. Depois ergueu-se a canção, as altas aclamações de louvor; a cotovia cessou o seu lamento; o lugar solitário alegrou-se, e nas acumuladas pedras distantes, o ouvido do vigia captou, vacilante ás vezes, as notas levadas pelo vento.

"Anos mais sombrios seguiram-se, porém; e o povo reunido não mais ousava, à luz do dia, cultuar a Deus, e mesmo nas horas mortas da noite; salvo quando os temporais de inverno bramavam e o estrondo dos travões compelia os homens de sangue a recostar-se em seus covis. Então, intrépidos, os poucos dispersos se reuniam em algum fosso profundo, tendo rochas por dossel, para ouvir a voz, sim, a voz do seu fiel pastor. Ele, ao clarão dos relâmpagos amortalhados, abria o sacro livro e dizia palavras de consolo. Sobre suas almas o seu falar descia suavemente, como a seus pintinhos descem as penas da galinha do mato quando, ao fim da tarde, ela reúne tristemente sua ninhada dispersa por um esporte assassino; e sobre os restantes abre as suas asas com amor. Apertadamente aninhados sob o seu coração, gostam de abrigar-se ao calor da purpúrea plumagem."

Arriscando-me a tornar-me prolixo, creio que devo acrescentar a

seguinte tocante descrição de uma dessas cenas. O retrato em prosa

sobrepuja em excelência o quadro pintado pelo poeta. "Entramos na administração da santa ordenança, encomendando-a e a

nós mesmos à proteção do Senhor dos exércitos, em cujo nome nos havíamos reunido. Nossa confiança estava no braço de Jeová – melhor do que as armas de guerra ou do que a força dos montes. O lugar onde nos juntamos era cômodo em todos os aspectos, e parecia ter sido formado para esse fim. Era uma verdejante elevação, perto da margem das águas (o Whittader). Num e noutro lado havia um espaçoso aclive, na forma de mero círculo, coberto de aprazível pastagem e elevando-se em suave inclinação até uma considerável altura. Acima de nós estava o céu de límpido azul, pois era uma doce e tranqüila manhã de domingo, prometendo que de fato seria "um dos dias do Filho do homem." Houve uma solenidade no local, própria para a ocasião, elevando a alma toda a uma condição pura e santa. As mesas de comunhão foram espalhadas sobre a relva próxima da água, e o povo ajeitou-se com decência e ordem em volta delas. Mas a multidão muito maior sentou-se na superfície do aclive, que ficou apinhado de gente, do topo ao fundo, tão repleto que formava agradável vista, que nunca tivera igual dessa espécie. Cada dia, ao despedir-se o povo congregado, os

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ministros e suas guardas, e tantas pessoas quantas possível, retiravam-se a seus alojamentos localizados em três diferentes povoações rurais, onde podiam prover-se do necessário. Os cavalarianos moviam-se num só grupo, enquanto as pessoas deixavam o local. Depois marchavam ordenadamente atrás, à pequena distância, até que todos estivessem seguramente abrigados em seus alojamentos. De manhã, quando o povo voltava à reunião, os cavalarianos o acompanhavam. As três divisões encontravam-se a uma milha do ponto e marchavam, num só corpo, para o terreno consagrado. Bem acomodada a congregação nos respectivos lugares, os guardas tomavam as suas posições, como antes.

"Estes voluntários acidentais pareciam verdadeiro dom da Previdência, e garantiam a paz e a tranqüilidade dos ouvintes. Pois desde sábado de manhã, quando começou o trabalho, até segunda-feira de tarde, Não sofremos a mínima afronta ou perturbação dos inimigos, o que nos pareceu maravilhoso. A princípio houve alguma apreensão, mas o povo ficou sentado sem se perturbar, e tudo terminou com tanta ordem como se fosse nos dias do apogeu da Escócia. E realmente o espetáculo de tantos rostos sérios, calmos e devotos deve ter causado temor aos adversários, e deve ter sido mais formidável do que qualquer poder externo de aparência feroz e de disposição guerreira. Não desejávamos o patrocínio dos reis da terra. Refulgia na obra certa majestade espiritual e divina, bem como a palpável evidência de que o grande Senhor dos povos estava ali presente. Era de fato Deus agindo, pondo-nos uma mesa no deserto, na presença dos nossos adversários, e erguendo uma coluna de glória entre nós e o inimigo, como a antiga coluna de fogo que separava os acampamentos de Israel e dos egípcios – encorajando a um, mas com escuridão e terror para o outro. Conquanto os nossos votos não tenham sido oferecidos dentro dos átrios da casa de Deus, não lhes faltava sinceridade de coração, que é melhor do que a reverência dos santuários. No meio das montanhas solitárias, lembramos as palavras de nosso Senhor, de que o verdadeiro culto não era peculiar a Jerusalém ou Samaria – de que a beleza da santidade não consistia em edifícios sagrados ou templos materiais. Lembramo-nos da arca dos israelitas, que esteve no deserto, sem lugar para ficar exceto o tabernáculo da planície. Pensamos em Abraão e nos patriarcas antigos, que usavam pedras como altar para nelas porem as suas vítimas, e queimavam o suave incenso á sombra de uma árvore.

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"A ordenança da Última Ceia, aquele memorial do sacrificial amor de Cristo até á Sua segunda vinda, foi administrado com grande significação, comunicando poder e renovadora influência do Alto. Bendito seja Deus, pois visitou a Sua herança quando a fadiga a dominava. Naquele dia Sião revestiu-se da beleza de Sarom e do Carmelo; as montanhas romperam em cânticos, e o ermo veio a germinar e a florescer como um roseiral. Poucos dias como aqueles se viram na desolada Igreja da Escócia; poucos virão a testemunhar semelhante coisa no futuro. Houve abundante efusão do Espírito, derramado amplamente em muitos corações. Suas almas, repassadas de celestial transporte, pareciam respirar um elemento mais divino e chamejar para o alto com o fogo de uma devoção pura e santa. Os ministros foram visivelmente assistidos para falar à vontade à consciência dos ouvintes. Era como se Deus lhes tivesse tocado os lábios com uma brasa viva do Seu altar. Sim, pois, os que testemunharam o trabalho deles declararam que eles se comportavam mais como embaixadores da corte celestial, do que como homens formados em molde terreno.

"As mesas foram servidas por alguns cavalheiros e algumas outras pessoas do mais sério comportamento. Não se admitia ninguém que não tivesse as insígnias de costume, as quais foram distribuídas no sábado, mas somente aos que eram conhecidos dos ministros e de outras pessoas de confiança como isentos de escândalos públicos. Seguiram-se completamente os regulamentos. Os comungantes entravam por uma porta e saíam pela outra, mantendo-se um caminho aberto para que pudessem retomar os seus lugares na encosta. O Sr. Welsh pregou o sermão pertinente ao ato e serviu as duas primeiras mesas, como normalmente era encarregado de fazer em tais ocasiões.

"Os outros quatro ministros, Sr. Blackader, Dickson, Riddel e Rae, exortaram os restantes, cada um em sua vez. A ministração das mesas foi encerrada pelo Sr. Welsh com solene ação de graças. E solene foi, como também foi agradável e edificante ver a seriedade e compostura de todos os presentes, bem como de todas as partes do culto. A comunhão foi concluída serenamente, todo o povo elevando a Deus sua gratidão e cantando com jubilosas vozes hinos à Rocha da sua salvação. Foi agradável, ao cair da noite, ouvir sua melodia avolumar-se em uníssono pela colina, com todo o povo unido em harmonia e louvando a Deus com a linguagem dos salmos.

"Havia duas mesas compridas e uma curta, na parte da frente, com assentos em cada lado. Em cada mesa cabiam sentadas cerca de cem

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pessoas. Havia dezesseis mesas ao todo, de sorte que cerca de três mil pessoas participaram da comunhão aquele dia."

Talvez o mais notável lugar já escolhido para um discurso seja o

centro do rio Tweed, onde o Sr. Welsh pregou muitas vezes durante

duras geadas, para escapar das autoridades, quer da Escócia quer da

Inglaterra, dependendo daquela que interferisse. Os lutadores muitas

vezes escolhiam a fronteira dos dois condados para suas exibições, mas

parece que a prudência destes foi antecipada pelos filhos da luz.

Também é divertido ler que o arcebispo Sharp deu ordem para que

a milícia fosse enviada para dispersar a multidão reunida na encosta do

morro para ouvir o Sr. Blackader, e a informação ao prelado de que

todos os milicianos tinham saído uma hora antes, para ouvir o sermão.

Estou certo de que não posso adivinhar o que seria deste mundo,

não fossem as pregações feitas fora dos muros e debaixo do teto mais

glorioso do que o destas vigas de pinho. Foi um dia de bravura para a

Inglaterra aquele em que Whitefield começou a pregação ao ar livre.

Quando Wesley levantou-se e pregou um sermão no túmulo do seu pai,

em Epworth, porque o clérigo da paróquia não quis admiti-lo no interior

do edifício sagrado (assim chamado). Sobre isto escreve o Sr. Wesley: "Tenho a certeza de que fiz mais bem aos meus paroquianos de

LincoInshire pregando três dias na tumba de meu pai, do que pregando três anos em seu púlpito."

A mesma coisa se poderia dizer de toda a pregação ao ar livre

subseqüente, comparada com os discursos regulares feitos em recintos

fechados. "O pensamento de fazer prédicas ao ar livre foi sugerido a Whitefield

por uma multidão de mil pessoas que não conseguiram entrar na igreja de Bermondsey, onde ele pregou num domingo à tarde. Não recebeu incentivo algum quando o mencionou a alguns amigos. Acharam que era uma "idéia maluca." Contudo, teria sido posta em prática no domingo seguinte no Asilo de Ironmonger, se o pregador não tivesse ficado desapontado com seus ouvintes, que eram tão poucos que podiam ouvi-lo pregar do púlpito. Levava consigo dois sermões, um para o recinto fechado, outro para fora."

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A idéia que amadurecera tornando-se assim uma resolução, não

esperaria muito tempo para ser levada à execução. Colocando o

chanceler da diocese impedimentos no caminho de Whitefield em seu

propósito de pregar nas igrejas de Bristol em benefício do seu orfanato,

foi pregar aos operários das minas de carvão de Kingswood, "pela primeira vez num sábado à tarde, colocando-se para isso no

Monte Hannan. Falou sobre Mt. 5:1-3 a todos os que foram ouvi-lo. Mais de duzentas pessoas compareceram. Sua única nota em seu diário foi: "Bendito seja Deus, que o gelo agora está quebrado, e conquistei o campo! Talvez alguns me censurem. Mas, não há uma causa? Os púlpitos são negados; e os pobres carvoeiros estão prestes a perecer por falta de conhecimento."

Agora possuía um púlpito que ninguém poderia tomar-lhe, e seu

coração se regozijava por essa grandiosa dádiva. No dia seguinte o diário

relata: "Estando fechadas as portas de todas as igrejas e, se abertas, sendo

incapazes de conter sequer metade dos que queriam ouvir, às três da tarde fui para Kingswood, para o meio dos mineiros de carvão. Deus nos favoreceu altamente dando-nos um belo dia, e quase duas mil pessoas se reuniram naquela ocasião. Preguei, e me alonguei, sobre João 3:3, falando quase uma hora e, espero, para consolo e edificação dos que me ouviram."

Dois dias depois, postou-se no mesmo ponto e pregou com grande

liberdade a uma reunião de quatro ou cinco mil pessoas. O sol fulgente

em cima, e a imensa multidão em volta dele, em extremo silêncio,

formavam um quadro que o encheu de "santa admiração." No domingo

subseqüente, Bassleton, povoação a duas milhas de Bristol, franqueou-

lhe sua igreja. Havendo-se reunido numerosa congregação, primeiro leu

orações no templo, e depois pregou no cemitério da igreja. Ás quatro,

correu para Kingswood. Embora o mês fosse fevereiro, o tempo estava

incomumente brando e sem neve. O sol poente brilhava com sua mais

completa força. As árvores e as cercas estavam apinhadas de ouvintes

que queriam ver o pregador bem como ouvi-lo. Falou durante uma hora

com voz suficientemente alta para ser ouvida por todos, e seu coração

não deixou de alegrar-se por sua própria mensagem. Escreve em seu

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diário: "Bendito soja Deus, o fogo está aceso; que as portas do inferno

jamais possam prevalecer contra ele!" É importante saber quais foram os

seus sentimentos quando deu com aqueles imensos ajuntamentos de

povo no campo, cujo número crescera de duzentos para vinte mil, e quais

foram os efeitos da sua pregação sobre os seus ouvintes. Suas palavras

são: "Não tendo justiça própria a que renunciar, os mineiros de carvão

alegraram-se ao saber que Jesus era amigo de publicanos, e que não veio para chamar os justos, mas pecadores ao arrependimento. A primeira descoberta de que tinham sido afetados foi por ver os brancos sulcos feitos por suas lágrimas correndo copiosamente em suas faces negras, pois tinham saído dos poços de carvão. Centenas e centenas deles foram logo levados a profundas convicções que (como os fatos resultantes o provam) tiveram um feliz sim, em conversão firme e completa. A mudança foi visível a todos, embora muitos preferissem imputá-la a qualquer outra coisa que não o dedo de Deus. Como a cena era inteiramente nova e eu mal começara a ser um pregador extemporâneo, isto freqüentemente ocasionava muitos conflitos íntimos. Às vezes, quando vinte mil pessoas estavam diante de mim, eu, em minha apreendo, não tinha uma palavra para dizer a Deus ou a eles. Mas nunca fui totalmente abandonado. Muitas vezes soube por feliz experiência o sentido das palavras do Senhor quando disse: "Do seu interior correrão rios de água viva." O amplo firmamento acima de mim, o panorama dos campos adjacentes, com a visão de milhares e milhares, uns em carruagens, outros em lombos de cavalos, outros em árvores e, por vezes, todos juntamente emocionados e molhados de lágrimas, havendo ás vezes, como acréscimo a isso tudo, a solenidade da aproximação da noite era quase demais para mim, e me dominava."

Wesley escreve em seu diário: "Sábado, 31 (março de 1731). Cheguei de noite a Bristol e encontrei o

Sr. Whitefield lá. Eu relutava de início em reconciliar-me com esse estranho modo de pregar nos campos, de que ele me deu um exemplo no domingo, tendo sido toda a minha vida (até muito recentemente) muito obstinado em todos os pontos relativos à decência e à ordem, a ponto de considerar quase um pecado salvar almas, a não ser numa igreja."

Tais eram os sentimentos de um homem que mais tarde se tornou

um dos maiores pregadores de praça pública que já existiram!

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Não me demorarei a descrever o Sr. Whitefield em nosso

logradouro de Kennington entre dezenas de milhares de pessoas, ou em

Moorfields bem de manhã, quando os lampiões piscavam como outros

tantos vaga-lumes sobre uma ribanceira relvosa numa noite de verão.

Nem mencionarei o número imenso de cenas gloriosas com Wesley e

seus mais renomados pregadores. Mas um quadro que mais se aproxima

daquilo que alguns de vocês poderão copiar com facilidade, fixou-se

fortemente em minha memória. E o exponho diante de vocês afim de

que, nos dias vindouros, jamais desprezem o dia das coisas pequenas: "Wesley chegou a Newcastle na sexta-feira, 28 de maio. Saindo a

passeio depois do chá, ficou surpreso e chocado com a grande extensão da iniqüidade reinante. O alcoolismo e o hábito de praguejar pareciam generalizados, e mesmo as bocas das criancinhas estavam cheias de imprecações. De como passou o sábado, não estamos informados. Mas, no domingo de manhã, às sete, ele e John Taylor se postaram perto da bomba d'água, em Sandgate, "a mais pobre e mais vil parte da cidade", e começaram a cantar em dueto o conhecido Salmo 100. Três ou quatro pessoas se aproximaram para ver de que se tratava. Logo o número cresceu e, antes de Wesley terminar a pregação, seus ouvintes eram de mil e duzentos a mil e quinhentos. Quando terminou o culto, o povo ficou de boca aberta, com profundo espanto pelo que dissera Wesley: "Se querem saber quem sou, meu nome é John Wesley. Às cinco da tarde, com a ajuda de Deus, pretendo pregar aqui de novo."

Gloriosas foram aquelas reuniões nos campos e nos terrenos

baldios, que duraram todo o longo período em que Wesley e Whitefield

foram bênçãos para a nossa nação. A pregação em campo aberto foi a

agreste nota dos pássaros cantando nas árvores em testemunho de que a

verdadeira primavera da religião chegara. As aves em cativeiro podem

cantar mais docemente, quem sabe, mas sua música não é tão natural,

nem tão seguro sinal da chegada do verão. Abençoado dia aquele em que

os metodistas e outros começaram a proclamar Jesus ao ar livre. As

portas do inferno tremeram, e os cativos do diabo foram libertados às

centenas e aos milhares.

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Uma vez recomeçada, a frutífera agência de pregação em campo

aberto não teve permissão para cessar. No meio de multidões

escarnecedoras e de chuvas de ovos podres e de coisas imundas, os

seguidores imediatos dos dois grandes metodistas continuaram atacando

vila após vila e cidade após cidade. Suas aventuras foram bem variadas,

mas o seu sucesso geralmente foi grande. Quem lê os incidentes

ocorridos em seus trabalhos, por vezes dá risada. Uma fila de animais de

carga é levada a dispersar gente congregada, e uma máquina de

bombeiros é posta em funcionamento e lançada sobre a multidão com o

mesmo propósito. Sinetas, chaleiras velhas, longos ossos, machadinhas,

cornetas, tambores e bandas de música inteiras foram empregados para

abafar a voz dos pregadores. Num caso, o touro de propriedade coletiva

foi solto, e em outros casos cães foram incitados a brigar. Os pregadores

precisavam ter rostos rijos como pedras, e é o que tinham. John Furz diz: "Logo que comecei a pregar, um homem vejo direto para a frente e

apontou uma arma de fogo ao meu rosto, jurando que estouraria os meus miolos se eu falasse mais uma palavra. Contudo, continuei falando, e ele continuou jurando, ás vezes metendo a boca da arma em minha boca, às vezes contra a minha orelha. Enquanto cantávamos o último hino, ele se pôs atrás de mim, disparou a arma e queimou parte de meu cabelo."

Depois disto, meus irmãos, jamais deveríamos falar de pequenas

interrupções ou aborrecimento. A proximidade de um bacamarte nas

mãos de um filho de Belial não favorece muito a reflexão serena e a

elocução clara, mas a experiência de Furz certamente não foi pior do que

a de John Nelson, que calmamente diz: "Mas quando eu estava no meio do meu discurso, alguém de fora da

congregação atirou uma pedra, que me feriu a cabeça. Todavia, aquilo fez o povo prestar-me maior atenção, principalmente quando viram o sangue correr pelo meu rosto. Assim, tudo ficou tranqüilo até eu terminar e pôr-me a cantar um hino."

A vida de Gideon Ouseley, narrada pelo Dr. Arthur, é um dos mais

poderosos testemunhos do valor da pregação ao ar livre. Na primeira

parte do corrente século, de 1800 a 1830, ele estava na plenitude do seu

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vigor, cavalgando através da Irlanda inteira, pregando o evangelho de

Jesus em todas as cidades. Seu púlpito geralmente era o lombo do seu

cavalo, e ele e seus coadjutores eram conhecidos como os homens de

gorros pretos, por causa do seu costume de usar barretes. Este ministério

cavalariano foi em sua época a causa de um grande avivamento na

Irlanda, e incutiu a esperança de mexer com a maldição profundamente

arraigada entre os irlandeses – o poder do sacerdócio e a superstição do

povo. Ouseley mostrou em todas as ocasiões muita sagacidade e um

toque de humorismo com bom senso. Daí, geralmente pregava em frente

da vitrina do farmacêutico, porque a turba seria o menos liberal possível

com suas pedras, ou, em segundo lugar, procurava ter atrás de si a

residência de um respeitável católico romano, pela mesma razão.

Seu sermão pregado na escadaria de pedra do edifício do mercado

de Enniscorthy foi um belo espécime do seu habilidoso método de

enfrentar uma excitada chusma de irlandeses. Darei boa extensão dele

aqui, para que vocês saibam como agir se alguma vez forem colocados

em circunstâncias semelhantes: "Ele tomou posição, tirou o chapéu, pôs o seu gorro de veludo preto e,

depois de alguns momentos passados em oração silenciosa, começou a cantar. O povo começou a reunir-se ao redor dele e, durante o cântico de algumas estrofes, esteve quieto e aparentemente atento, mas logo começou a ficar inquieto e barulhento. Então ele começou a orar, e por breve tempo seguiu-se a calma. Mas logo, conforme aumentava a multidão, esta foi ficando intranqüila, turbulenta mesmo. Ele concluiu a oração e começou a pregar. Mas evidentemente os presentes não estavam dispostos a ouvi-lo. Antes de pronunciar muitas sentenças, mísseis começaram a voar – a princípio não de tipo muito destrutivo; eram refugos legumes, batatas, nabos, etc. Pouco depois, porém, foram atirados materiais mais duros – cacos de tijolos e pedras alguns dos quais o atingiram e lhe infligiram ferimentos leves. Ele parou e, depois de uma pausa, bradou: "Caros rapazes, que há com vocês hoje? Não querem deixar um velho falar-lhes um pouco?" "Não queremos ouvir nem uma palavra saída da sua cabeça velha", foi a pronta resposta de alguém da multidão. "Mas o que quero dizer-lhes, acho que gostariam de escutar." "Não; não vamos gostar de nada que você possa

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falar-nos." "Como sabem? Quero contar-lhes uma história sobre alguém que vocês dizem que respeitam e amam." "Quem é?" "A bendita virgem." "Oh, e que você sabe sobre a bendita virgem?" "Mais do que vocês pensam. Estou certo de que o que vou dizer-lhes lhes agradará, se tão-somente me escutarem." "Vamos lá, então, disse outra voz, ouçamos o que ele tem para dizer acerca da santa mãe.

"Aí houve calma, e o missionário começou: Era um vez um jovem par de noivos de uma cidadezinha chamada Caná. Ficava naquela região onde o nosso bendito Salvador passou grande parte de Sua vida entre nós. E aquelas pessoas decentes cujos filhos iam casar-se acharam de bom alvitre convidar a bendita virgem para a festa de núpcias, e também a seu bendito Filho e alguns dos Seus discípulos. E todos eles acharam que ficava bem comparecer. Quando estavam à mesa, a virgem mãe julgou notar que o vinho providenciado para o banquete começava a escassear, e a preocupou a idéia de que o bom casal de jovens ia passar vergonha diante dos seus amigos. Por isso ela sussurrou ao seu bendito Filho: "Eles não têm vinho." "Não se preocupe com isso, madame", disse Ele. E um ou dois minutos depois, ela, sabendo bem o que estava no bom coração dEle, disse a um dos criados que estava passando por trás deles: "Faça tudo o que ele lhe disser." Conseguintemente, logo depois, o nosso bendito Senhor disse a outro deles – suponho que fizeram passar a palavra entre eles: "Encham d'água as talhas." (Havia seis destas num canto da sala, e cada uma delas levava quase três galões, pois o povo daquela região usava muita água diariamente.) E, lembrando-se das palavras da virgem santa, fizeram o que Ele mandou, voltaram, e disseram: "Cavalheiro, as talhas estão cheias até as bordas." "Agora, levem um pouco ao mestre-sala, que está à cabeceira da mesa", disse Ele. Eles o fizeram. O mestre-sala o provou, e eis aí, vejam só! Era vinho, e ainda o melhor vinho. Havia bastante dele para a festa; sim, e talvez algum tenha sido deixado para o jovem casal que estava montando casa.

"Em tudo isso, vocês vêem, os criados acataram o conselho da bendita virgem, e fizeram o que ela lhes ordenou. Ora, se ela estivesse entre nos hoje, daria o mesmo conselho a cada um de nós: "Faça tudo o que Ele lhe disser", e com boa razão o diria, pois ela bem sabe que não há nada senão amor por nós em Seu coração, e nada senão sabedoria provém dos Seus lábios. E agora lhes direi algumas coisas que Ele nos fala. Diz Ele: "Esforçai-

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vos por entrar pela porta estreita, pois eu vos digo que muitos procurarão entrar e não poderão."

"E de imediato o pregador, abreviadamente, mas com clareza e energia, expôs a natureza da porta da vida, sua estreiteza, e a tremenda necessidade do homem esforçar-se para passar por ela, concluindo com o conselho da virgem: "Faça tudo o que Ele lhe disser." De semelhante modo ele explicou e incutiu em seus ouvintes algumas outras contundentes palavras do nosso divino Senhor: "Quem não nascer da água e do Espírito, não pode entrar no reino de Deus"; e: "Se alguém quer vir após mim, a si mesmo se negue, dia a dia tome a sua cruz e siga-me" – reforçando a sua exortação, em cada exemplo, com o conselho dado pela virgem aos criados de Caná. "Mas não, rompeu ele afinal, não; com todo o amor e reverência que vocês pretendem ter pela bendita virgem, não querem seguir o seu conselho, mas estão muito dispostos a dar ouvidos a qualquer mestre-escola beberrão que os seduzirá e os levará a um bar, e meterá males e iniqüidades em suas cabeças." Aqui ele foi interrompido por uma voz que parecia ser de um ancião, exclamando: "Você está certo; está certo. Se passou a vida toda falando mentiras, o que está dizendo agora é a verdade." E assim o pregador conseguiu chegar ao fim do seu discurso com muito bom efeito."

A historia do Primitivo Metodismo podia ser incorporada

substancialmente aqui, como parte do nosso esboço da pregação ao ar

livre, pois aquele maravilhoso movimento missionário deveu o seu

surgimento e o seu progresso a esse instrumento de ação. É, todavia, uma

singular reprodução dos acontecimentos dados no primeiro período do

metodismo de oitenta ou noventa anos atrás. Os wesleyanos tornaram-se

respeitáveis, e foi a época em que o fogo antigo precisou arder no meio

de outra classe de homens. Se Wesley estivesse vivo, ter-se-ia gloriado

nos pobres mas bravos pregadores que arriscavam a vida para proclamar

a mensagem do amor eterno entre os depravados, e os teria chefiado na

cruzada que empreenderam. Fosse como fosse, outros líderes se

apresentaram, e em pouco tempo o zelo deles impeliu uma hoste de

fervorosas testemunhas que não podiam ser intimidadas por turmas

desordeiras, nem pelos magistrados, nem pelo clero. Tampouco podiam

ter o seu ânimo esfriado pelos "gentis" irmãos cujo senhorio eles

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atacavam tão terrivelmente. Então apareceram em abundancia as velhas

armas. Produtos agrícolas em todos os estágios de decomposição

premiavam os zelosos apóstolos nabos e batatas foram os primeiros

pratos, logo seguidos de ovos podres, em quantidade extraordinária,

sendo que temos notado que freqüentemente estes últimos eram ovos de

ganso, escolhidos, supomos, por seu tamanho. Um balde de alcatrão de

hulha estava geralmente de prontidão; sujeira tirada dos bebedouros dos

cavalos vinha também, e isso tudo ao som de assobios agudos, cornetas e

tambores de sentinelas. Barris de cerveja eram providenciados pelos

defensores de "igreja e reí", para refrigério dos atacantes ortodoxos,

enquanto que tanto os pregadores como os seus discípulos eram tratados

com tal brutalidade que despertavam compaixão até no coração de

adversários.

Tudo isso era, felizmente, uma violação da leí, mas os poderosos,

descompromissados, fingiam que não viam os transgressores, e se

esforçavam para intimidar o pregador e silenciá-lo. Por amor a Cristo,

alegravam-se por serem tratados como vadios e vagabundos, e o Senhor

os revestiu de grande honra. Conseguiam-se discípulos, e os

perturbadores se multiplicavam, Até um período bem recente, esses

devotados irmãos foram combatidos com violência, mas a sua jubilosa

experiência os levou a perseverarem em seus hábitos de cantar pelas

ruas, de reunir-se ao ar livre, e de outras irregularidades. Benditas

irregularidades, pelas quais centenas de extraviados foram encontrados e

conduzidos ao aprisco de Jesus.

Não me dá o tempo para ilustrar o assunto com descrições da obra

de Christmas Evans e de outros em Gales, ou dos Haldanes na Escócia,

ou ainda de Rowland Hill e seus irmãos espirituais na Inglaterra. Se

quiserem desenvolver o tema, esses nomes poderão servir de sugestões

para o descobrimento de materiais abundantes. E posso acrescentar à

lista The Life of Dr. Guthrie, em que ele registra notáveis reuniões ao ar

livre, na época do rompimento, quando a Igreja Livre ainda não tinha

locais de culto construídos por mãos humanas.

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Devo deter-me um momento quanto a Roberto Flockhart de

Edimburgo. Embora luz menor, foi uma luz constante, e bom exemplo

de toda a massa de testemunhas de Cristo nas ruas. Todas as noites, com

qualquer tempo e no meio de muitas perseguições, este bravo

permaneceu falando nas ruas durante quarenta e três anos. Pensem

nisso, e jamais ficarão desalentados. Quando estava prestes a tombar na

sepultura, o velho soldado ainda estava no seu posto. "A paixão pelas

almas", disse ele, "levou-me às ruas e vielas da minha cidade natal, para

argumentar com os pecadores e persuadi-los a virem a Jesus. O amor de

Cristo me constrangeu." Nem a hostilidade da polícia, nem os insultos

dos papistas, dos unitários e de outros que tais, puderam demovê-lo. Ele

censurava o erro com os mais claros termos, e pregava com todo o seu

poder a salvação pela graça. Seu pensamento é tão recente que

Edimburgo ainda se lembra dele. Há lugar para tal coisa em todas as

cidades e povoações; há necessidade de centenas de obreiros de sua

nobre estirpe nesta enorme nação de Londres – posso dar-lhe título

menor?

Na América, homens como Peter Cartwright, Lorenzo Dow, Jacob

Gluber e outros da geração passada, mantiveram uma gloriosa guerra a

céu aberto à sua maneira original. E em época mais recente, o amado

Taylor deu-nos outra prova do imensurável poder deste modo de

empreender cruzadas, em sua obra Seven Years of Street Preaching in

San Francisco, California (Sete Anos de Pregação nas Ruas de São

Francisco). Conquanto duramente tentado a fazê-lo, vou abster-me desta

vez de fazer extratos daquela obra deveras notável.

As reuniões em acampamentos são uma espécie de pregação

campal associada, e se institucionalizaram nos Estados Unidos, onde

tudo tem que ser feito em grande escala. Isto me levaria a outro assunto.

Portanto, simplesmente lhes propiciarei um vislumbre desse meio útil, e

depois pararei. A seguinte descrição das primeiras reuniões em

acampamentos na América é da pena do autor de uma Narrative of

Mission to Nova Scotia (Narrativa de uma Missão na Nova Escócia):

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"As barracas geralmente são armadas em forma de crescente, em cujo centro está uma plataforma para os pregadores. À volta desta, em todas as direções, são colocadas fileiras de pranchas de madeira para as pessoas se sentarem e ouvirem a Palavra. Entre as árvores, que estendem suas copas sobre esta igreja no bosque, foram pendurados lampiões, que ardem a noite inteira e fornecem luz para os vários exercícios religiosos que ocupam as solenes horas da noite alta.

"Eram quase vinte três horas quando cheguei pela primeira vez á margem do acampamento. Deixei meu barco na beira da mata, a uma milha da cena. E quando dei com o terreno do acampamento, minha curiosidade converteu-se em espanto, ao contemplar os lampiões pendentes por entre as árvores; as barracas ocupando em semi-círculo um amplo espaço; quatro mil pessoas no centro deste, ouvindo com profunda atenção o pregador, cuja altíssima voz e animada maneira levavam a vibração de cada palavra à grande distância, através da floresta profundamente umbrosa onde, salvo as tremeluzentes luzes do acampamento, as trevas cobriam tudo e espalhavam sombras decuplicadas. Tudo incitava a minha admiração e forçosamente me fazia lembrar os hebreus no deserto. As reuniões em geral começavam segunda-feira de manhã, encerrando-se na manhã da sexta-feira seguinte. Os trabalhos diários do efetuados da seguinte maneira: de manhã, às cinco horas, soa no acampamento a corneta chamando para a pregação ou para a oração. Isto, com exercícios similares, ou com um breve intervalo, leva até à hora do desjejum, às oito horas. Às dez soa a corneta para a pregação pública, depois da qual, até o meio-dia preenche-se o intervalo com pequenos grupos de oração, que se espalham por todo o acampamento, para um lado e outro, nas barracas e debaixo das árvores. Depois do almoço, toca a corneta às catorze horas; é para pregação.

"Eu devia ter anotado que, geralmente, uma ou duas mulheres ficam em cada barraca, encarregadas de preparar as coisas para as refeições. Mantêm-se fogo aceso em diferentes partes do acampamento, onde se ferve água para o chá, sendo proibido o uso de bebidas alcoólicas. Depois da pregação da tarde, as coisas seguem quase o mesmo curso seguido de manhã, só que os grupos de oração são em maior escala, e se dá maior amplitude às exortações vigorosas e às orações em voz alta. Alguns que realizam os trabalhos nestas ocasiões, logo perdem a voz e, no fim da reunião no acampamento, muitos dos pregadores e dos demais participantes só conseguem falar cochichando. Às dezoito horas, a corneta convoca para

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a pregação, após o que, embora não de modo regular, todos os passos acima descritos continuam até adentrar a noite. Sim; e durante qualquer parte da noite em que você se desperte, vozes de louvor ressoam no ermo."

Se reuniões como essas poderiam ser feitas em nosso país, sob

prudente administração, não posso decidir. É questão que me toca,

porém, como digna de consideração se, em alguns terrenos espaçosos

não se poderiam realizar serviços espirituais no verão, digamos por uma

semana cada vez, dirigidos por ministros que se sucedessem uns aos

outros na proclamação do evangelho sob as árvores. Sermões e reuniões

de oração, discursos e hinos, podiam seguir-se uns aos outros em sábia

sucessão. Talvez milhares pudessem ser induzidos a reunir-se para

prestar culto a Deus, entre os quais poderiam estar vintenas e centenas de

pessoas que nunca entram em nossos santuários regulares. Não somente

algo precisa ser feito para evangelizar os milhões, mas tudo precisa ser

feito, e talvez, em meio à variedade de esforços, a coisa melhor venha a

ser descoberta. "Com o fim de, por todos os modos, salvar alguns", deve

ser o nosso moto. E isto deve estimular-nos a irmos adiante, pelas

estradas e encruzilhadas, e a compeli-los a entrar.

Irmãos, falo como a sábios. Ponderem o que digo.

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PREGAÇÃO AO AR LIVRE – NOTAS ADICIONAIS

Temo que em algumas das nossas igrejas rurais menos esclarecidas

haja alguns indivíduos conservadores que quase crêem que pregar em

qualquer lugar que não seja templo ou capela seria uma inovação

chocante, traço seguro de tendências heréticas, e sinal de zelo sem

conhecimento. Qualquer jovem colega que cuide da sua comodidade

entre eles não deve sugerir nada tão irregular como um sermão fora das

muralhas da sua Sião. Dos velhos tempos se nos diz: "Grita na rua a

sabedoria, nas praças levanta a sua voz; do alto dos muros clama, à

entrada das portas e nas cidades profere as suas palavras"; mas os sábios

da ortodoxia manteriam a sabedoria amordaçada, exceto sob o teto de

um edifício licenciado. Essas pessoas crêem num Novo Testamento que

diz: "Ide, pois, para as encruzilhadas dos caminhos e convidai para as

bodas a quantos encontrardes", e, contudo, não apreciam a obediência

literal a essa ordem. Imaginariam eles que uma bênção especial resulta

de sentar-se num certo banco de madeira, como que em dura sela – uma

invenção de desconforto que de há muito devia ter feito o povo preferir

cultuar a Deus fora, sobre os verdes gramados? Suporiam que a graça

pode ser obtida por boa acústica ou pode ser conseguida das almofadas

dos púlpitos como a poesia? Estariam enamorados do mau ar e da

atmosfera sufocante de alguns dos nossos locais de reunião que os

tornam quase repugnantes ao nariz e aos pulmões, como os locais em

que os papistas fazem as suas missas, impregnados de incenso barato e

grosseiro?

Replicar a esses oponentes é tarefa que não nos anima. Preferimos

adversários dignos do aço que usamos neles, mas esses aí mal merecem

uma ligeira observação. O preconceito deles dá vontade de rir. Mas

talvez tenhamos que chorar por causa disso, se permitirmos que se

levante no caminho dos bons meios empregados.

A pregação ao ar livre não precisa de defesa de nenhuma espécie.

Mas seriam necessários argumentos muito poderosos para provar que

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aquele que nunca pregou fora das paredes do seu local de reuniões

cumpriu o seu dever. Requer-se maior defesa dos serviços religiosos

realizados no interior de edifícios, do que dos cultos feitos fora deles.

Certamente precisariam de escusas os arquitetos que empilham pedra e

tijolo até os céus quando há tanta necessidade de salões para a pregação

entre os pobres pecadores cá embaixo. O que necessita enormemente de

defesa são as florestas de colunas de pedra, que impedem ver o pregador

e ouvir-lhe a voz; os tetos góticos, altíssimos, nos quais todo o som se

perde, e os homens se matam, forçados a gritar até rebentarem seus

vasos sanguíneos; e também requer defesa a produção de ecos pela

exposição de superfícies duras e refratárias, que repelem o som, para

satisfazer as exigências da arte em detrimento da conveniência dos

ouvintes e do orador.

Certamente se exige também, mal e mal, alguma desculpa decente

para aquela gente infantil que sente necessidade de desperdiçar dinheiro

com a colocação de assombrações e monstros nas partes externas das

suas casas de culto, e precisa ter outras ridículas peças do papado nelas

fixadas, por dentro e por fora, para desfigurar em vez de adornar as suas

igrejas e capelas. Não há, porém, necessidade de nenhum tipo de defesa

para o vastíssimo auditório do Pai celeste, em todos os aspectos muito

bem apropriado para a proclamação do evangelho – tão livre, tão

completo, tão expansivo, tão sublime! A realização habitual de reuniões

religiosas em recintos cobertos pode-se desculpar na Inglaterra porque o

nosso clima é execravelmente mau. Mas bem que esse hábito pode ser

interrompido quando o tempo está bom e firme, e se podem obter espaço

e tranqüilidade. Não somos como o povo da Palestina que pode fazer

previsão do tempo e não está correndo toda hora o risco de uma

chuvarada. Mas se nos encontramos sub Jove – sob Júpiter – como

dizem os latinos, devemos esperar que o Jove da hora seja o Jupiter

pluvius – Júpiter chuvoso. Sempre podemos ter um dilúvio quando

menos o desejamos, mas se marcarmos um culto ao ar livre no domingo

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que vem, de manhã, não temos nenhuma garantia de que não ficaremos

molhados até os ossos.

É verdade que alguns sermões notáveis foram pregados na chuva,

mas como regra geral o ardor dos ouvintes raramente é bastante grande

para suportar aguaceiros. Além disso, o frio dos nossos invernos é

intenso demais para permitir serviços religiosos a campo aberto durante

o ano todo, embora na Escócia tenham-me falado de sermões pregados

em plena chuva e neve; e John Nelson escreve que falou a "uma

multidão demasiado grande para ficar dentro de casa, embora estivesse

escuro e nevasse."

Essas coisas podem ser feitas de vez em quando, mas as exceções

somente confirmam a regra. Convém reconhecer também que, quando as

pessoas se reúnem entre paredes, se a casa for tão conveniente que não

se poderia conseguir prontamente mais pessoas como ouvintes, e se

estiver sempre repleta, não há por que ir para fora e pregar a menor

número de pessoas do que as que estariam dentro. Pois, consideradas

todas as coisas, um assento confortável e protegido do tempo, bem como

do barulho e da interferência alheia, é útil para a pessoa ouvir o

evangelho com solenidade e tranqüila reflexão. Um edifício bem

ventilado e bem administrado é vantajoso, se as multidões podem ficar

bem acomodadas e ser induzidas a comparecer. Mas estas condições

raramente se encontram, pelo que meu voto é a favor dos campos

abertos.

O grande beneficio da pregação ao ar livre é que consegue muitos

novos freqüentadores para ouvir o evangelho – que doutro modo jamais

o ouviriam. A ordem do evangelho é: "Ide por todo o mundo e pregai o

evangelho a toda criatura", mas é tão pouco obedecida, que se pode

imaginar que seus termos do: "Ide ao vosso próprio local de culto e

pregai o evangelho às poucas criaturas que entrarão ali."

"Ide, pois, para as encruzilhadas dos caminhos e convidai para as

bodas a quantas encontrardes." Embora isto constitua parte de uma

parábola, merece ser tomado literalmente e, fazendo assim, o seu

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significado será captado melhor. Devemos de fato ir às ruas, vielas e

estradas, pois existem elementos furtivos nas valetas, vagabundos nas

estradas, gente da rua e das vielas, que jamais atingiremos se não os

procurarmos em seus próprios domínios. Os caçadores não devem ficar

parados em casa esperando que as aves venham, e então alvejá-las.

Tampouco devem os pescadores atirar as redes dentro dos seus barcos e

esperar apanhar assim muitos peixes. Os negociantes vão aos mercados,

vão atrás dos seus fregueses e saem à procura de negócios, se estes não

vêm a eles. Assim deve ser conosco.

Alguns dos nossos irmãos ficam palrando sem parar a bancos

vazios e a genuflexórios mofados, quando poderiam estar transmitindo

duradouro beneficio a centenas, se deixassem por um pouco as velhas

paredes e procurassem pedras vivas para Jesus. Oxalá saiam de Reobote

e achem lugar na esquina da rua. Oxalá deixem Salém e procurem paz

para as almas negligenciadas. Oxalá deixem de sonhar em Betel, mas

façam com que um espaço aberto não seja outra coisa que a casa de

Deus. Oxalá desçam do Monte Sião, subam de Enom, e até mesmo se

retirem das igrejas da Trindade, de Santo Agnes, de São Miguel e Todos

os Anjos, de Santa Margarida das Patenas, de São Vedasto, de Santa

Etelburga e de todo o restante delas, e tratem de encontrar novos santos

entre os pecadores que estão perecendo por falta de conhecimento.

Sei de pregações nas ruas de Londres notavelmente abençoadas

para pessoas cujo caráter e condição impediriam totalmente que se

achassem num local de culto. Sei, por exemplo, de um amigo judeu que,

ao vir da Polônia, não entendia nada do idioma inglês. Caminhando pelas

ruas no domingo, notou numerosos grupos que ouviam a zelosos

pregadores. Ele nunca tinha visto coisa igual em seu país, onde a polícia

russa ficaria alarmada se se vissem grupos conversando. Portanto, ficou

interessadíssimo. Conforme foi aprendendo um pouco de inglês, foi-se

tornando mais e mais constante em seu comparecimento para ouvir os

oradores de rua. Na verdade, de inicio fazia isso em grande parte movido

pelo interesse em aprender a língua. Receio que o inglês que aprendeu

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não foi do melhor, juízo que formo tanto do que tenho ouvido da oratória

ao ar livre, como do que ouvi do nosso amigo judeu, cuja teologia é

superior ao seu inglês. Contudo, aquele "verdadeiro israelita" sempre

tem razão ao recomendar os pregadores de rua.

Somos incapazes de calcular quantos outros estrangeiros e

forasteiros podem ter-se tornado concidadãos dos santos e membros da

família de Deus, pela mesma instrumentalidade. Os romanistas também

são atingidos por este método com mais freqüência do que alguns

suporiam. Poucas vezes é sensato publicar casos de conversão de

papistas, mas a minha observação pessoal leva-me a crer que são muito

mais comuns do que há dez anos, e a obra da graça geralmente começa

com o que se ouve do evangelho nas esquinas de nossas ruas. Os infleis

constantemente se rendem à Palavra do Senhor, assim recuperada para

eles. Demais, o evangelista de rua atrai a atenção daquelas pessoas

excêntricas cuja religião não se pode descrever nem imaginar. Essas

pessoas odeiam até olhar as nossas igrejas e os nossos locais de reunião,

mas ficam no meio de uma multidão para ouvir o que se fala e, muitas

vezes, os que mais dão a aparência de que são hostis são os que ficam

mais impressionados com a mensagem.

Além disso, há numerosas pessoas nas grandes cidades que não

possuem roupas próprias para o culto, de acordo com a idéia corrente de

que roupas deveriam ser. E não poucas pessoas há que, elas mesmas,

como também suas vestimentas, são tão sujas, tão mal-cheirosas, tão

repelentes, que o maior filantropo e o democrata mais igualitário

desejariam ter algum espaço entre si e aquelas "airosas" personalidades.

Há outros que, seja qual for o tipo de vestes que usam, não entrariam

numa capela por nenhuma consideração, pois acham que é uma espécie

de castigo assistir a um culto. Possivelmente recordam os aborrecidos

domingos da sua infância e os áridos sermões que ouviram nas poucas

vezes que entraram numa igreja. Mas o certo é que olham para as

pessoas que freqüentam locais de culto como se vissem nelas gente que

se livra da punição que deveria sofrer no mundo por vir, padecendo-a

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neste mundo em lugar daquele. O jornal de domingo, o cachimbo e a

panela os encantam mais do que todas as arengas de bispos e outros

clérigos, quer da igreja estabelecida, quer dos dissidentes.

O evangelista de praça pública muitas vezes cativa esses membros

do partido do "Nada de Igreja" e, ao fazê-lo, freqüentemente acha

algumas das mais ricas gemas que no final adornarão a coroa do

Redentor; jóias que, em razão de sua rusticidade, podem passar sem ser

notadas por uma classe mais enfadonha de conquistadores de almas. Nas

ruas de Nínive, Jonas foi ouvido por multidões que jamais teriam sabido

da sua existência, se ele tivesse alugado um salão. João Batista, junto ao

Jordão, despertou um interesse que nunca teria surgido, se ele se tivesse

restringido à sinagoga. E aqueles que foram de cidade em cidade

proclamando por toda parte a Palavra do Senhor Jesus, nunca teriam

transtornado o mundo se tivessem achado necessário limitar-se a salas

férreas adornadas com o aviso ortodoxo: "O evangelho da graça de Deus

será pregado aqui, no próximo domingo à norte, se Deus quiser."

Estou inteiramente seguro também de que, se pudéssemos persuadir

os nossos amigos da zona rural a saírem um bom número de vezes por

ano para fazer culto numa campina, ou à sombra de um bosque, ou na

encosta de uma colina, ou num jardim, ou num lugar público qualquer,

seria a melhor coisa para os ouvintes habituais. A simples novidade do

lugar renovaria o seu interesse e os despertaria. A ligeira mudança de

cenário exerceria maravilhoso efeito sobre o mais sonolento. Observem

quão mecanicamente eles se dirigem ao seu lugar de culto costumeiro, e

quão mecanicamente se retiram de lá. Caem nos seus bancos como se

tivessem achado afinal um lugar de repouso. Levantam-se com

espantoso esforço, para cantar, e se deixam cair antes que você tenha

tempo para uma doxologia no final do hino, porque nem notaram que ela

vinha a caminho. Como são molengas alguns ouvintes habituais! Muitos

dormem de olhos abertos. Depois de sentar-se certo número de anos no

lugar de sempre, onde os bancos, o púlpito, as galerias e todas as demais

coisas são sempre as mesmas, exceto que ficam um pouco mais sujas e

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manchadas cada semana, onde toda gente ocupa a mesma posição

sempre e para sempre, e o rosto, a voz e a entonação do ministro são as

mesmíssimas de janeiro a dezembro você se põe a sentir a santa quietude

da cena e a ouvir a que ela conduz, como se isso tudo se dirigisse ao

"embotado e frio ouvido da morte." Como o moleiro ouve as rodas do

seu moinho como se não as ouvisse; ou como o foguista mal nota o

barulho da sua máquina depois de suportá-lo por algum tempo; ou como

um habitante de Londres nunca repara no incessante barulho do tráfego,

assim, muitos membros de nossas igrejas tornam-se insensíveis aos mais

fervorosos sermões e os aceitam como uma coisa natural. A pregação e

tudo mais chegam a ser tão habituais que bem podiam deixar de existir

de uma vez.

Daí, uma mudança de lugar poderia ser útil; poderia impedir a

monotonia, sacudir a indiferença, sugerir reflexões, e de mil modos

poderia chamar a atenção e dar nova esperança de boas realizações. Um

grande incêndio que consumisse totalmente algumas das nossas capelas

não seria a maior calamidade ocorrida, se tão-somente fizesse levantar

alguns dos rivais dos sete dorminhocos de Éfeso, que nunca se moverão

enquanto o velho templo e os velhos bancos estiverem juntos. Ademais,

o ar fresco, e este com fartura, é uma grande coisa para todo mortal –

homem, mulher e criança.

Preguei na Escócia duas vezes num domingo em Blairmore, numa

pequena elevação na costa marítima. Depois de discursar com todas as

minhas forças a multidões de ouvintes que somavam milhares, não senti

nem a metade do cansaço que muitas vezes sinto quando me dirijo a

algumas centenas de pessoas num buraco escuro e horrível de Calcutá, a

que dão o nome de capela. Relaciono o meu vigor e a ausência de fadiga

em Blairmore ao fato de não haver ali janelas que pudessem ser fechadas

por pessoas que têm medo de correntes de ar, e ao fato de o teto ser da

altura dos céus. Minha convicção é que um homem pode pregar três ou

quatro vezes ao ar livre no domingo com menor fadiga do que a

ocasionada por um discurso feito numa atmosfera impura, aquecida e

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envenenada pela respiração humana, em que se veda cuidadosamente

toda infusão renovadora de ar natural.

As tendas são ruins – indescritivelmente ruins. Muito piores do que

os piores edifícios. Acho que a tenda é a mais objetável cobertura para

um local de culto que já se inventou. Alegra-me ver tendas empregadas

em Londres, pois o pior lugar é melhor do que nenhum, e porque elas

podem ser transferidas facilmente de um lugar para outro, e não sa muito

caras. Mas, ainda assim, se me fosse dado escolher entre não ter nada e

ter uma tenda, preferiria muitíssimo o ar livre. Sob a lona a voz é

amortecida, e o esforço para falar aumenta grandemente. O material age

qual manta molhada para a voz, mata a sua ressonância e impede a sua

trajetória. Com temerário esforço, no opressivo ar gerado numa tenda, é

mais provável que o pregador seja morto do que ouvido.

Vocês devem ten notado mesmo em nossas reuniões na Escola

Bíblica, quando somos apenas uns duzentos, como é difícil ouvir do

extremo de uma tenda, ainda quando os lados são abertos e o ar é puro.

Talvez possam nessas ocasiões atribuir o fato em certa medida à falta de

atenção e de silêncio da parte dessa congregação um tanto eufórica.

Entretanto, mesmo quando se eleva oração e todos estão calados, tenho

observado grande falta de poder de alcance na melhor voz debaixo de

uma grande tenda.

Se forem pregar ao ar livre no campo, talvez possam escolher o

melhor ponto em que pregar. Se não, naturalmente, usarão o que

conseguirem, e deverão com fé aceitá-lo como o melhor. A escolha de

Hobson* – este ou nenhum – simplifica a questão e evita muita contenda.

Não sejam exigentes demais. Se for o caso de existir um bosque perto do

templo da sua igreja, escolham-no, porque será muito conveniente para

voltar para dentro do salão de reuniões se o tempo não for favorável, ou

se quiserem fazer uma reunião de oração depois do sermão. É bom

* Um certo Hobson, de Cambridge, alugava cavalos, mas o freguês tinha que utilizar-se do cavalo

mais próximo da porta na ocasião – ou não levava nenhum. Nota do tradutor.

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pregar antes dos trabalhos regulares num ponto qualquer perto do local

de culto, de modo que se possa fazer o povo ir direto para dentro do

edifício antes de saber o que vai acontecer. Meia hora de pregação e de

cânticos ao ar livre antes da hora regular de reunião, com freqüência

servirá para encher uma casa vazia. Ao mesmo tempo, nem sempre se

apeguem a pontos próximos e acessíveis, mas escolham uma localização

por uma razão exatamente oposta, justamente por estar longe de qualquer

local de culto e negligenciada por completo. Pendurem lampiões onde

quer que haja um recanto obscuro; quanto mais escuro, mais luz é

necessária. Paradise Row (Passeio do Paraíso) e Pleasant Place (Local

Aprazível) são geralmente os lugares menos paradisíacos e menos

aprazíveis. Para lá volvam os seus passos. Vejam que os habitantes do

vale da sombra da morte percebam que surgiu a luz para eles.

Algures encontrei a recomendação para que se pregue sempre com

um muro atrás. Contra isso, porém, dou meu aparte. Tenham cuidado

com o que possa haver do outro lado do muro. Um evangelista recebeu

uma lata de água fervendo do alto de um muro, acompanhada desta

amável observação: "Aí vai sopa para os protestantes!" Outro foi

favorecido com sujeiras as mais detestáveis despejadas de uma vasilha,

de cima. Gideon Ouseley começou a pregar em Roscommon de costas

para uma parede triangular de uma indústria beneficiadora de tabaco.

Havia ali uma janela com uma porta de madeira, pela qual a mercadoria

era içada para o balcão interior. É para espantar, mas a janela abriu-se de

repente, e dela baixou um balde cheio de água de tabaco – um líquido

pegajoso, dolorosíssimo nos olhos! Nos anos posteriores, o pregador

soube fazer melhor do que postar-se em tão tentadora posição. Que a

experiência dele nos instrua.

Se me coubesse escolher um declive para pregar, preferiria ficar em

frente de um terreno em aclive, ou num espaço aberto circundado a

alguma distância por um muro. Claro que é preciso espaço suficiente

para permitir que os ouvintes se reúnam entre o púlpito e aquilo que

cerca o terreno em frente, mas eu gosto de ver um limite, e não de atirar

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no espaço ilimitado. Não conheço mais belo lugar para um sermão do

que os terrenos do meu amigo Duncan, em Benmore. Era um extenso e

plano prado à frente de terraços em elevação, cobertos de abetos. As

pessoas podiam ocupar os assentos embaixo, ou acomodar-se nos bancos

de relva, comportando-se melhor por estarem bem acomodadas. E assim

eu tinha parte dos meus ouvintes nas galerias em aclive acima de mim, e

os restantes na área que me circundava. Minha voz subia sem

dificuldade, e imagino que, se o povo estivesse sentado colina acima até

uma distância de meia milha, poderia ouvir-me facilmente. Suponho que

o local favorito de Wesley em Gwennap Pit deve ter sido algo da mesma

ordem. Os anfiteatros e as encostas de morros são sempre os pontos

favoritos dos pregadores nos campos, e vocês verão na ocasião as suas

vantagens.

Uma vez o meu amigo Abraão construiu uma grande catedral em

Oxfordshire. O que resta dela ainda é chamado "Tabernáculo de

Spurgeon", e pode ser visto nas proximidades de Minster Lovell, na

forma de um quadrilátero de carvalhos. Originalmente era o beau ideal –

a excelência ideal – de um local de pregação, pois era uma clareira na

espessa floresta de Witchwood, e era alcançada por estradas abertas

através do mato secundário. Jamais esquecerei aquelas "verdes aléias" e

as verdejantes cercas vivas que as encerravam. Chegando à parte interna

do templo, via-se que ela consistia de uma grande quadra, da qual a mata

baixa e as árvores menores tinham sido cortadas, ao passo que deixaram

um número suficiente de carvalhos novos crescerem até considerável

altura, os quais faziam sombra sobre nós com os seus ramos. Ali estava

uma catedral verdadeiramente magnífica, com arcos e colunas. Um

templo não feito por mãos, do qual realmente se poderia dizer: "Pai, Tua mão ergueu estas colunas veneráveis, e deste verde

teto foste o Tecelão."

Jamais vi, tanto em meu país como no continente, uma arquitetura

que rivalizasse com a minha catedral. "Eis que o ouvimos em Efrata: nós

o encontramos nas clareiras do bosque." O firmamento azul era visível

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através da nossa clarabóia, e da grande janela da extremidade o sol nos

sorria na chegada da noite. Senhores, era de fato grandioso prestar culto

assim, sob a abóbada celeste, distante dos sons do matraquear da cidade,

e onde tudo em derredor favorecia a silente comunhão com Deus.

Aquele local foi desfeito, e agora o local de nossas reuniões foi

escolhido à pequena distância dali. Suas características são quase

idênticas, só que os meus muros de vegetação florestal para delimitação

desapareceram para dar lugar a uma extensão aberta de campos

cultivados. Somente permanecem as colunas e o teto do meu templo,

mas ainda estou alegre como os druidas, por cultuar entre carvalhais.

Este ano uma pomba construiu o seu ninho justamente acima da minha

cabeça, e continuou voando para lá e para cá a fim de alimentar os

filhotes, enquanto prosseguia o sermão. Por que não? Onde ela haveria

de sentir-se mais à vontade do que no lugar em que o Deus de amor e

Príncipe da Paz é adorado? É verdade que a minha catedral, provida de

arcos, não é à prova d'água, e outras chuvas, além das chuvas de bênçãos

da graça divina, descerão sobre o povo congregado. Mas isso tem suas

vantagens, pois nos torna mais agradecidos quando o dia é propicio, e a

própria precariedade do tempo provoca grande quantidade de orações

fervorosas.

Certa vez preguei um sermão ao ar livre no tempo da colheita,

durante uma violenta tempestade de chuva. O texto era: "Ele descerá

sobre nós como a chuva, como chuva serôdia que rega a terra", e o certo

é que tivemos a bênção, juntamente com a inconveniência. Eu fiquei

bastante molhado e os meus ouvintes ficaram ensopados, mas

permaneceram ali. Nunca ouvi dizer que algum deles ficasse pior de

saúde, embora, graças a Deus, tenha ouvido contar que almas foram

trazidas a Jesus sob aquele discurso. Uma vez ou outra, e quando há

grande entusiasmo, tais coisas não fazem dano a ninguém. Mas não

devemos esperar milagres, nem aventurar-nos desenfreadamente a um

curso de procedimento que possa matar os enfermos e lançar os

fundamentos da doença nos fortes.

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Recordo bem a pregação feita entre os penhascos de Cheddar. Que

nobre localização! Que beleza e sublimidade! Mas havia perigo de

caírem pedras, soltas pelas pessoas sentadas nas partes mais altas do

penhasco. Por isso, não tornaria a escolher aquele local. Devemos evitar

judiciosamente localizações que possibilitem graves acidentes. Uma

cabeça machucada não qualifica ninguém para desfrutar as belezas da

natureza, ou as consolações da graça. Concluindo um discurso no local

acima referido, invoquei aquelas poderosas rochas a darem testemunho

de que tinha pregado o evangelho ao povo, e a serem testemunhas contra

os meus ouvintes no grande dia final, se rejeitassem a mensagem. Só

outro dia fiquei sabendo de uma pessoa a quem aquele apelo foi tornado

útil pelo Espírito Santo.

Olhem bem o terreno que escolherem, que não seja barrento. Jamais

gosto de ver um homem escorregar e cair de joelhos na lama quando

estou pregando. Zonas de junco são com freqüência tão macias e verdes,

que as escolhemos sem notar que tendem a ficar lodosas, e causar pés

encharcados aos nossos ouvintes. Sempre dêem inconveniências a vocês

mesmos, antes que aos seus ouvintes. É como Jesus faria. Mesmo nas

ruas de Londres, a preocupação com a conveniência dos ouvintes é algo

que concilia uma multidão mais que qualquer outra coisa.

Evitem como seu pior inimigo a proximidade de álamos da

Normandia. Estas árvores fazem perpétuo ruído de silvo e rangido, quase

como o barulho do mar. Cada uma das folhas de certas espécies de

álamo está em permanente movimento, como a língua do tagarela. Pode

ser que o ruído não pareça muito alto, mas apaga a melhor voz. "O som

de movimento nas copas dos pés de amora" está bem, mas, tratem de

livrar-se do barulho dos álamos e de algumas outras árvores, ou sofrerão.

Tive penosa experiência com essa coisa irritante. Padecia-me que a velha

serpente silvava para mim daqueles galhos.

Pregadores experimentados cuidam para que o sol não dê

diretamente nos seus rostos. Tampouco desejam que os seus ouvintes

sejam molestados de igual modo. Portanto, eles tomam este item em

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Lições aos Meus Alunos (Vol. 1)

112

consideração quando planejam um culto. Em Londres não vemos esse

luzeiro bastantes vezes para ficarmos muito preocupados com este ponto.

Não tentem pregar contra o vento, pois será uma vá tentativa.

Poderão lançar a voz a uma curta distância com um esforço espantoso,

mas não poderão ser bem ouvidos nem sequer por poucas pessoas. Não é

freqüente eu adverti-los a considerarem o lado para o qual o vento sopra,

mas nesta ocasião os exorto a fazê-lo, caso contrário trabalharão

inutilmente. Preguem de modo que o vento leve sua voz em direção ao

povo, em vez de soprá-la de volta à sua garganta, ou terão que engolir

suas próprias palavras. Não há como medir quão longe um homem pode

ser ouvido com o vento a seu favor. Em certas atmosferas e climas, como

por exemplo nos da Palestina, as pessoas podem ser ouvidas a algumas

milhas de distância. Frases isoladas de um linguajar bem conhecido na

Inglaterra podem ser reconhecidas bem longe, mas eu tenho sérias

dúvidas sobre alguém que diga que compreendeu uma frase nova a mais

de uma milha de distância. Consta que Whitefield foi ouvido a uma

milha, e me afirmaram que eu mesmo fui ouvido àquela distância, mas

quanto a isso eu sou um tanto cético. Certamente meia milha basta,

mesmo com a ajuda do vento, mas é preciso de que se assegurem de que

serão ouvidos.

No campo deve ser fácil achar um lugar apropriado para pregar.

Uma das primeiras coisas que o ministro deve fazer quando sai da Escola

Bíblica, e se estabelece numa cidade ou vila campestre, é começar a falar

ao ar livre. Geralmente Não terá dificuldade quanto á localização. A terra

está diante dele, e pode escolher segundo o seu desejo. A praça do

mercado será um bom começo. Depois, a parte da frente de um pátio

apinhado de pobres. Em seguida, a esquina favorita dos ociosos da

paróquia. Cheap Jack's Stand – O Ponto do Joãozinho Barateiro dará um

excelente púlpito no domingo à noite, durante a feira do povoado, e uma

carroça servirá bem, no gramado, ou num campo próximo, nas noites dos

dias úteis durante as festas dos camponeses. Ótimo lugar para um

discurso al fresco é o prado onde os velhos olmos, há muito tempo

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Lições aos Meus Alunos (Vol. 1)

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caídos, jazem ainda ali em reserva, como se destinados a servir de

assentos para os nossos ouvintes. Assim também é o cemitério das casas

de reunião onde "dormem os rudes antepassados da aldeia." Consagrem-

nos aos vivos e deixem que o povo desfrute "Meditações entre os

Túmulos." Depois, nada de escusas, e tratem de trabalhar imediatamente.

Em Londres, ou em qualquer cidade grande, é uma grande coisa

encontrar um lugar vago onde possam obter o direito de fazer trabalhos

religiosos a seu bel prazer. Se puderem descobrir um lote de terreno livre

de construção, e se puderem conseguir do proprietário autorização para

usá-lo enquanto ele não o ocupar, será uma grande aquisição, e vale a

pena fazer o pequeno gasto para cercá-lo, pois o pregador será o reí do

castelo e os perturbadores serão invasores. Suponho que não é fácil obter

um lugar assim, principalmente para quem não tem dinheiro; mas vale a

pena pensar nisso. É grande vantagem quando o local de culto tem ainda

um pequeno espaço externo, como na capela de Surrey, ou nos degraus

do Tabernáculo; pois ali se está fora da interferência da polícia e dos

ébrios. Se não contamos com nenhum desses, temos que achar esquinas

de ruas, logradouros em triângulo, recantos silenciosos, e amplos

espaços onde proclamar o evangelho. Anos atrás preguei a enormes

reuniões na Estrada do Reí Edward, Hackney, que consistia então de

campos abertos, mas agora não resta sequer uma jarda disponível.

Naquelas ocasiões o movimento era perigoso para a vida e para a

integridade física, e inumeráveis eram as multidões. Metade do número

garantiria maior segurança. Aquele espaço livre desapareceu,

acontecendo o mesmo com os campos de Brixton onde, em anos recém-

passados, era deleitável ver as multidões reunidas ouvindo a Palavra.

Sobrecarregado com o extraordinário problema de dirigir tanta gente

junta, fui compelido a abster-me desses trabalhos em Londres, não

porém por ter diminuído para mim o senso da sua importância. Com o

Tabernáculo sempre cheio, tenho em casa tanta gente como desejo e,

portanto, não prego ao ar livre, exceto na zona rural. Mas para aqueles

ministros cuja área coberta é pequena, e cujas reuniões de ouvintes são

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Lições aos Meus Alunos (Vol. 1)

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pouco numerosas, o ar livre é o remédio, quer em Londres, quer nas

províncias.

Na promoção de um novo interesse, e nas operações missionárias,

os trabalhos ao ar livre são um dos principais instrumentos. Tratem de

conseguir que as pessoas ouçam lá fora para que, mais dia menos dia,

prestem culto lá dentro. Púlpito não falta. Uma cadeira pode servir, ou a

calçada das vias públicas. Quanto menos formalidade, melhor, e se vocês

começarem conversando simplesmente com os dois ou três que os

rodeiem, sem pretender sermonar, farão bem. Mais benefícios pode ser

feito pela conversação pessoal com um individuo, do que por um

discurso retórico a cinqüenta.

Não queiram interferir nas ocupações de toda gente, mas se se

acumular a multidão, não se apressem a concluir, de puro medo. Logo a

polícia lhes fará saber quando devem terminar. Todavia, vocês são muito

mais necessários onde não corram o perigo de impedir os passos dos

transeuntes, mas vocês mesmos é que estão sujeitos a perigos, Refiro-me

àqueles pátios de cortiços e aos becos de nossas grandes cidades que

jazem fora da rota da decência, e são desconhecidos de toda gente,

menos da polícia; e desta principalmente, devido a desordens e

ferimentos.

Falam da descoberta do interior da África; precisamos de

exploradores para os becos e redutos londrinos. As regiões árticas do

quase tão acessíveis como Dobenson's Rents e Jack Ketch's Warren.

Heróis da cruz – eis aqui para vocês um campo mais glorioso do que os

que El Cid contemplou quando, com sua valorosa destra, bateu os

exércitos de Paynim. "Quem me conduzirá à cidade fortificada? Quem

me guiará até Edom?" Quem nos capacitará a ganhar estes antros e

favelas para Jesus? Quem o fará, senão o Senhor? Os soldados de Cristo

que se aventurarem nessas regiões deverão esperar o avivamento das

práticas dos bons tempos antigos, no que se refere aos cacos de tijolo.

Experimentei certa vez a queda acidental de um vaso de flores de uma

alta janela numa direção notavelmente oblíqua. Contudo, se nascemos

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Lições aos Meus Alunos (Vol. 1)

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para sermos silenciados, vasos de flores não nos matarão. Sob essa

espécie de tratamento, pode ser reanimador o que Christopher Hopper

escreveu sob condições semelhantes, há mais de cem anos. "Eu não ligava muito para um pouco de sujeira, alguns ovos podres, o

som de uma corneta de chifre de vaca, o barulho de sinos ou algumas bolas de neve na estação própria. Mas às vezes eu era saudado com estouros, pedras, cacos de tijolo e cacetes. Desses eu não gostava muito. Não eram agradáveis, nem à carne, nem ao sangue. Às vezes eu perdia um pouco de pele, e uma vez perdi um pouco de sangue, arrancado da minha testa com uma pedra pontuda. Usei uma bandagem durante alguns dias, e não fiquei envergonhado. Gloriei-me na cruz. E quando os meus pequenos sofrimentos se tornavam abundantes por amor a Cristo, o meu consolo se tornava muito mais abundante. Nunca me senti mais feliz na alma, e mais abençoado nos trabalhos."

Fico um tanto contente quando ocasionalmente ouço contar que um

irmão foi trancafiado pela polícia, pois isto lhe faz bem, e também ao

povo. É bonito ver o ministro do evangelho levado pelo servo da leí!

Desperta simpatia por ele e, em seguida, simpatia por sua mensagem.

Muitos que não se interessavam nem um pouco por ele antes, ficam

ansiosos por ouvi-lo, quando lhe ordenam que parta, e mais ainda

quando é levado ao posto policial. Os mais vis membros da humanidade

respeitam o homem que se mete em problemas a fim de fazer-lhes bem,

e se notam que surge uma oposição injusta, tornam-se mais que zelosos

na defesa desse homem.

Estou persuadido de que quanto mais pregação ao ar livre houver

em Londres, melhor. Se pode vir a ser causa de aborrecimento para

alguns, será uma bênção para outros, desde que dirigida adequadamente.

Se o que se prega é o evangelho, e se o espírito do pregador é de amor e

de veracidade, não pode haver dúvida quanto aos resultados: o pão

lançado sobre as águas será encontrado de novo, após muitos dias.

Contudo, o evangelho deve ser pregado de modo digno de ser ouvido,

pois fazer barulho apenas, faz mais mal que bem. Conheço uma família

que quase ficou fora de si pelo horrível lançamento de exortações

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Lições aos Meus Alunos (Vol. 1)

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monótonas, e o rugido de "Salvo nos braços de Jesus" perto de sua porta,

todas as tardes de domingo, o ano inteiro.

São cristãos zelosos, e estariam dispostos a ajudar os seus

atormentadores, se vissem a mais ligeira possibilidade de qualquer

proveito dos violentos berros. Mas, como raramente vêem um ouvinte, e

não acham que o que é proclamado faria qualquer beneficio se fosse

ouvido, lamentam ser forçados a perder suas poucas horas de sossego

porque dois bons homens crêem que têm o dever de fazer um trabalho

ruidoso, mas perfeitamente inútil.

Uma vez vi um homem pregando para nenhum ouvinte, exceto um

cão, que estava sentado sobre a cauda e olhava para cima com muita

reverência enquanto o seu dono discursava. Não havia ninguém nas

janelas, nem transeuntes, mas aquele irmão e o seu cachorro continuaram

no posto, quer o povo ouvisse, quer não. Outra vez passei por um

ardoroso declamador cujo chapéu estava no chão, diante dele, cheio de

papéis, e não havia sequer um cão para ouvi-lo, e ninguém ao alcance da

sua voz. Apesar disso, ele "desperdiçava a sua maviosidade no ar

deserto." Espero que ele tenha recuperado a razão. Realmente deve ser

considerado como parte essencial do sermão que alguém o ouça. O

mundo não pode receber grande beneficio com sermões pregados no

vácuo.

Quanto ao estilo da prédica ao ar livre, certamente deve ser muito

diverso daquilo que prevalece nos recintos fechados e, talvez, se um

orador devesse adquirir um estilo plenamente adaptado a ouvintes na rua,

seria sábio levá-los consigo portas adentro. Grande parte da prática de

fazer sermões pode definir-se como não dizer nada no máximo de

extensão. Mas, portas fora a verbosidade não é admirada. Você tem que

dizer alguma coisa e acabá-la bem, e prosseguir dizendo alguma coisa

mais, se não os ouvintes o farão saber. "E então", grita um crítico de rua,

"desembuche logo, velho companheiro." Ou se faz esta observação:

"Agora, pois, jogue isso fora! É melhor que você vá para casa e aprenda

a sua lição." "Encurte isso, meu velho!", é uma admoestação muito

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Lições aos Meus Alunos (Vol. 1)

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comum, e eu gostaria que os presenteadores deste conselho gratuito

fizessem com que ele fosse ouvido no interior de Ebenézer, Zoar e

alguns outros lugares consagrados aos discursos longos. Onde essas

críticas não são empregadas, os ouvintes censuram a prolixidade indo

embora silenciosamente. Coisa muito desagradável esta, ver dispersar-se

o seu grupo de ouvintes; mas é uma clara notificação de que as suas

idéias andam muito dispersas também.

Na rua, a pessoa deve manter-se animada, empregar muitas

ilustrações e casos, e respingar uma observação curiosa aqui e ali.

Demorar muito num ponto nunca funciona. A argumentação deve ser

breve, clara, e concluída logo. O discurso não deve ser elaborado ou

complicado, nem é preciso que a segunda divisão dependa da primeira,

pois os ouvintes variam, e cada ponto deve ser completo em si mesmo. A

cadeia de pensamentos deve ser desmontada, e cada elo deve ser fundido

e transformado em bala. Você não precisa tanto do sabre de Saladino

para picar um lenço de musselina, como o machado de guerra de

Coração de Leão para quebrar uma barra de ferro. Vá ao ponto de uma

vez, e vá com todo o vigor.

Ao ar livre é preciso usar curtas frases de palavras e breves

passagens de pensamento. Longos parágrafos e grandes argumentos é

melhor reservar para outras ocasiões. Nas grandes reuniões feitas no

sossego do campo, há muito poder no silêncio eloqüente introduzido de

vez em quando. Dá ao povo tempo para tomar fôlego, e também para

refletir. Todavia, não tente fazer isso numa rua de Londres. Trate de ir

adiante ou, se não, alguém levará embora os seus ouvintes. Num sermão

pregado normalmente no campo, as pausas são muito eficientes, e úteis

de várias maneiras, tanto para o orador como para os ouvintes. Mas a um

grupo de pessoas que passam e que não estão inclinadas a nada que se

pareça a um culto, é mais adequado um discurso rápido, curto e incisivo.

Nas ruas o pregador deve agir e falar com intensidade, do princípio

ao fim. Por essa mesma razão, deve ser conciso e deve concentrar-se no

pensamento e na alocução. Não dá certo começar dizendo: "Diletos

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amigos, o meu texto é uma passagem da Palavra inspirada, que contêm

doutrinas da máxima importância e nos expõe, da maneira mais clara a

mais valiosa instrução prática. Chamo a vossa cuidadosa atenção e o

exercício do vosso mais cândido julgamento enquanto o considerarmos

sob vários aspectos e o colocamos sob diferentes luzes, para podermos

perceber sua posição na analogia da fé. Em sua exegese encontraremos

uma arena para os intelectos cultos e para as sensibilidades refinadas.

Como o sussurrante arroio percorre sinuosamente os prados e fertiliza os

pastos, assim a corrente da verdade sagrada fluí através das

extraordinárias palavras que agora estão diante de nós. Ser-nos-á bom

canalizar a cristalina corrente para o reservatório da nossa meditação, a

fim de sorvermos o cálice da sabedoria com os lábios da satisfação."

Cavalheiros, não é esse o tipo mais comumente usado para tecer o

palavreado? E esta arte não está em voga hoje em dia? Se você for ao

obelisco da estrada de Blackfriars e falar desse jeito, será saudado com :

"Vai-te, velho pára-choque!" ou "Não é que ele é uma beleza? Ai DOS

MEUS OLH OS!" Um jovem bem vulgar gritará: "Que boca para um

trapeiro!" E outro bradará em tom de solenidade zombeteira: "AMÉM!"

Se você lhes der ninharia, alegremente lha lançarão de volta ao peito.

Boa medida, recalcada, sacudida, transbordante, generosamente vos

darão. As fraudes e as representações teatrais não receberão misericórdia

de gente reunida nas ruas. Mas, tenha alguma coisa para comunicar, olhe

no rosto dos ouvintes, diga o que pretende coloque-o com clareza,

ousadia, ardor e cortesia – e eles o ouvirão. Nunca fale só para preencher

o tempo ou só para escutar a própria voz; caso contrário, receberá

alguma informação sobre a sua aparência pessoal ou quanto ao seu modo

de falar, informação que provavelmente será mais verdadeira do que

agradável.

"Caracóis!" diz alguém. "Ele seria um ótimo dono de funerária! Ele

os faria chorar!" Este foi o cumprimento dado a um melancólico irmão

cujo tom é peculiarmente fúnebre. "Aí, meu velho", disse um crítico

noutra ocasião, "vá molhar a goela. Você deve sentir-se terrivelmente

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seco depois de tagarelar desse jeito a respeito de coisa nenhuma." Isso

também foi muito apropriado a um irmão demasiado duro de agüentar,

de quem eu já tinha dito que daria um bom mártir, pois sem dúvida

queimaria bem, tão seco era. É triste, muito triste, que seja necessário

fazer estas observações, mas há em alguns de nós um veio travesso que

nos faz notar que as observações do vulgo muitas vezes são verdadeiras,

e "valem como se fossem o espelho da natureza." Como uma caricatura

freqüentemente dá uma idéia mais vívida de uma pessoa do que uma

fotografia, assim estes rudes críticos do populacho acertam o orador nos

pontos vitais com as censuras exageradas que fazem. O orador mais

excelente deve estar preparado para partilhar deste espírito da rua, e a

devolvê-lo, se necessário.

Mas, a ostentação, o ar austero, o formalismo, os rodeios infindos

do santarrão, e a ostensiva pretensão de superioridade, realmente

convidam os gracejos ofensivos, e em considerável medida os merecem.

Chadband e Stiggins, vestidos de preto rançoso, com os cabelos

emplastados, com um colarinho enorme – são objetos de irrisão, como o

próprio Sr. Guido Fawkes (conspirador romanista fanático). O homem

que se considere muito grande provocará imediata oposição, e a pretensa

ostentação de santidade sobrenatural terá o mesmo efeito. Quanto menos

você se pareça com um cura de almas, mais probabilidade terá de ser

ouvido. E se sabem que você é ministro, quanto mais você mostrar que é

um ser humano, melhor. "O que você recebe por isso, governador?", é o

que certamente lhe perguntarão se você parecer um clérigo. Neste caso, é

bom dizer-lhes logo que isso é extra, que você está fazendo horas extras,

e que não haverá coleta. Constantemente dizem: "Você faria maior

beneficio se nos desse um pouco de pão ou de cerveja, em lugar de

folhetos." Mas, uma atitude varonil e a declaração franca de que você

não está procurando salário, mas, sim, o bem deles, silenciarão aquela

antiquada objeção.

Os movimentos do pregador de rua devem ser do melhor tipo.

Devem ser puramente naturais e espontâneos. Nenhum orador deve

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Lições aos Meus Alunos (Vol. 1)

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postar-se na rua de modo grotesco, pois assim se enfraquecerá e estará

pedindo um ataque. O pregador de rua não deve imitar o seu pastor, pois

os ouvintes logo descobrirão a imitação, se o irmão estiver em algum

ponto próximo de casa. Nem deve assumir atitude como a de menininhos

que dizem: "Meu nome é Norval." A postura rígida e formal, com

movimentos regulares dos braços é mãos para cima e para baixo, é

comumente adotada. E condeno mais ainda a atitude de maníacos

selvagens e desvairados que alguns apreciam, atitude que parece o

cruzamento da de Whitefield com ambos os braços no ar, com a de São

Jorge com ambos os pés violentamente empenhados em pisar no dragão.

Alguns são naturalmente prosaicos, e outros labutam arduamente para

ficar assim. Os londrinos maldosos dizem: "Que cura! " Eu só gostaria

de conhecer uma cura para esse mal.

Evitem-se todos os maneirismos. Agora mesmo observo que não se

faz nada sem uma enorme Bíblia de Bagster, de capa mole. Parece haver

um encanto especial no tamanho grande, conquanto quase seja preciso

um carrinho no qual empurrá-la. Com tal Bíblia cheia de fitas, escolha

uma localização no largo Seven Dials, segundo o modelo de um teólogo

graficamente descrito pelo Sr. McCree. Tire o chapéu, ponha nele a sua

Bíblia e ponha-o no chão. Deixe que o bondoso amigo que se aproxima

de você pela direita segure o seu guarda-chuva. Veja como o caro sujeito

se presta para fazê-lo! Não é agradável isso? Ele lhe garante que nunca

sente tanta felicidade como quando está ajudando homens de bem a

fazerem o bem. Agora, feche os olhos para orar. – Quando suas devoções

terminarem, alguém ter-se-á aproveitado da ocasião. Onde está o seu

afeiçoado amigo que segurava o seu guarda-chuva e o seu hinário? Onde

está aquele bem escovado chapéu, e aquela ortodoxa Bagster? Onde?

Mas, onde? O eco responde: "Onde?"

A catástrofe que desse modo descrevi sugere que um irmão faria

bem em acompanhá-lo nos seus primeiros trabalhos como pregador, para

que um vigie enquanto o outro ora. Se alguns amigos forem com você e

fizerem uma roda em redor, será uma grande aquisição; e se eles

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souberem cantar, a ajuda será maior ainda. O grupo de amigos atrairá

outros, ajudará a manter a ordem, e prestará bom serviço fazendo ressoar

sermões por meio de cânticos.

Será muito desejável falar de modo que seja ouvido, mas não há

vantagem em berrar incessantemente. A melhor prédica de rua não é a

que é feita no ponto mais agudo da sua voz, pois será impossível dar a

ênfase própria às passagens mais convincentes quando no percurso todo

você está gritando com todas as suas forças. Quando não há ouvintes por

perto e, todavia, há pessoas paradas e ouvindo do outro lado da rua, não

seria melhor atravessá-la e economizar um pouco da energia que agora

está sendo gasta? A impressão que se tem é que um estilo sereno,

penetrante, coloquial, é dos mais persuasivos. Os homens não berram

nem gritam quando estão pleiteando algo com a mais profunda

seriedade. Em geral eles têm nessas ocasiões menos vendavais e um

pouco mais de chuva; menos declamação e mais lágrimas. Continue sem

parar com o grito monótono, e desgastará a toda gente, e você mesmo se

desgastará. Portanto, sejam sábios desde já, ó vocês que hão de sair-se

bem na proclamação da mensagem do Senhor entre as multidões, e usem

a voz segundo os ditames do bom senso.

Num folheto publicado por aquela excelente sociedade, "The Open

Air Mission" (Missão ao Ar Livre), noto o seguinte:

QUALIFICAÇÕES DOS QUE PREGAM AO AR LIVRE

1. Boa voz.

2. Naturalidade nos modos.

3. Domínio próprio.

4. Bom conhecimento da Escritura e das coisas comuns.

5. Capacidade de adaptar-se a qualquer grupo de ouvintes.

6. Boa capacidade para ilustrar.

7. Zelo, prudência e bom senso.

8. Coração grande e amoroso.

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Lições aos Meus Alunos (Vol. 1)

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9. Crença sincera em tudo que diz.

10. Inteira dependência do Espírito Santo para sucesso.

11. Andar em íntima comunhão com Deus pela oração.

12. Comportamento coerente diante dos homens, por um santo viver.

Se alguém tiver todas estas qualificações, seria melhor que a rainha

o fizesse bispo de uma vez, se bem que nenhuma destas qualidades é

dispensável.

É mais que certa a ocorrência de interrupções nas ruas de Londres.

Em certos lugares tudo corre bem durante meses, mas em outros pontos a

luta começa tão logo o orador abre a boca. Há estações de oposição:

diferentes escolas de adversários surgem e caem, e subseqüentemente há

desordem ou tranqüilidade. O melhor tato nem sempre serve para

impedir distúrbios. Quando os homens estão bêbados, não adianta

argumentar com eles, e dos furiosos papistas irlandeses podemos dizer

praticamente a mesma coisa. Com tais pessoas pouco se pode fazer, a

menos que a multidão em torno coopere, como muitas vezes acontece,

removendo o obstrutor. Certos tipos, se percebem que a pregação vai

prosseguir, interrompem-na de qualquer maneira. Vão resolutos e, se são

contestados uma e outra vez, perseveram ainda. Uma regra constante é

ser sempre cortês e manter a calma, pois se você ficar mal humorado e

zangado, estará tudo perdido para você. Outra regra é manter-se no seu

assunto, e nunca desviar-se para questões partidárias.

Pregue a Cristo, ou não pregue nada. Não dispute nem discuta, a

não ser com os olhos postos na cruz. Se se desviar por um momento,

esteja sempre em guarda para retornar ao seu único tópico. Conte-lhes a

velha história e, se não a ouvirem, vá em frente. Todavia, seja esperto, e

pegue-os com algum estratagema. Persiga o mesmo objeto por muitos

caminhos. Um pouco de habilidade materna é por vezes o melhor

recurso e opera maravilhas com uma multidão. Depois da graça, a

bonomia é a melhor coisa em tais ocasiões. Um irmão das minhas

relações silenciou um violento romanista oferecendo-lhe seu lugar e

pedindo-lhe que pregasse. Os companheiros dele, animados pelo aspecto

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Lições aos Meus Alunos (Vol. 1)

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divertido da coisa, insistiram com ele que o fizesse, mas, como

declinasse, a fábula do invejoso foi narrada e o perturbador desapareceu.

Se for um verdadeiro cético que o atacar, será prudente evitar o debate

quanto possível, ou devolver-lhe perguntas, pois a sua ocupação não é

discutir, mas proclamar o evangelho.

Diz o Sr. John McGregor: "Os céticos são de muitas espécies. Uns

levantam questões para obter respostas, e outros antepõem dificuldades

para confundir as pessoas. Um cético sincero disse-me numa reunião

pública no Hyde-Park: "Venho tentando crer durante os últimos dez

anos, mas há uma contradição que eu não posso deixar de lado, e é esta:

dizem que a imprensa foi inventada há menos de quinhentos anos e,

contudo, dizem que a Bíblia existe há cinco mil anos e, por minha vida,

não consigo entender como pode ser isto." Não pode ser! – mas a

multidão não riu daquele homem. Bem poucas pessoas numa multidão

sabem muito mais do que ele sobre a Bíblia. Mas quão profundamente os

ouvintes beberam do relato que em meia hora fiz dos manuscritos da

Escritura, sua preservação, suas traduções e versões, sua dispersão e

colheita, seu exame comparativo e sua transmissão, e a dominadora

prova da sua genuína veracidade!

Lembro-me de como um incrédulo de Kennington Common foi

eficazmente sustado. Ele não parava de apregoar as belezas da natureza e

as obras da natureza, até que o pregador perguntou-lhe se ele

bondosamente gostaria de dizer o que era a natureza. Replicou que "todo

mundo sabia o que era a natureza." O pregador respondeu, "bem então

será muito fácil você explicar-nos." "Bem, natureza, - natureza,

engasgou, "natureza é natureza." Naturalmente a multidão deu risada e o

sábio se aquietou.

A ignorância, quando aliada a uma língua grosseira e loquaz, deve

ser enfrentada com o recurso de dar-lhe bastante corda. Um sujeito quis

saber "como Jacó soube que Esaú o odiava." Dessa vez ficou sem

resposta, pois o pregador não lhe deu esclarecimento; do contrário, lhe

teria dado munição para encontros futuros.

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Lições aos Meus Alunos (Vol. 1)

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Nossa tarefa não é suprir os homens de argumentos, informando-os

sobre as dificuldades. No processo de responder-lhes os ministros têm

posto à mostra os sentimentos dos incrédulos mais amplamente do que

os próprios incrédulos poderiam tê-lo feito. Os incrédulos somente

"recolhem suas lanças sem ponta e as atiram de novo no escudo da

verdade." Nosso objetivo não é vencê-los nas confrontações lógicas, mas

salvar as suas almas. As dificuldades reais devemos esforçar-nos para

enfrentar. Daí é muito desejável ter-se competente conhecimento dos

argumentos comprobatórios. Mas é melhor conversar com os oponentes

sinceros a sós, quando não ficam com vergonha de admitir que estão

errados, e isto não podemos esperar que suceda no meio da multidão.

Cristo deve ser pregado, quer os homens creiam nEle, quer não. A nossa

experiência do Seu poder para salvar é o nosso melhor argumento, e o

fervor, nossa melhor retórica. Freqüentemente a ocasião sugerirá a coisa

mais pertinente para dizer, e também podemos recorrer ao Espírito

Santo, que nos instruirá no momento exato em que tivermos que falar.

A vocação do orador de praça pública é tão honrosa quanto árdua,

tão útil quanto trabalhosa. Somente Deus pode sustentá-lo nela, mas com

Ele ao seu lado não terá nada a temer. Se dez mil rebeldes se pusessem

diante de você, e uma legião de demônios em cada um deles, você não

precisaria tremer. Aquele que está por você é mais do que todos os que

estão contra. "Por toda a hoste do inferno sendo combatidos, a toda a hoste do inferno derrotamos. Vencendo-a pelo sangue de Jesus, vertido, à conquista final ainda vamos."

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Lições aos Meus Alunos (Vol. 1)

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POSTURA, ATITUDE, GESTOS ETC.

Os assuntos desta preleção serão: "Postura, Gestos e Atitude na

Elocução de Um Sermão." Não tentarei traçar uma rígida e definida linha

divisória entre uns e outros. Seria necessário ter mente com alta

capacidade de discriminação para mantê-los separados. A verdade é que

não é possível fazê-lo, pois eles se fundem naturalmente, uns nos outros.

Como achei impossível, depois de grande esforço, manter sequer

"postura" e "gestos" num estado absolutamente sem mistura em minha

mente, deixei-os andar juntos. Mas espero que não haja confusão

nenhuma no resultado.

O principal é o sermão propriamente dito; seu conteúdo, seu

objetivo e o espírito com o qual é apresentado ao povo, a sagrada unção

do pregador e o poder divino aplicando a verdade ao ouvinte – são

infinitamente mais importantes do que quaisquer pormenores quanto à

maneira de pregar. A postura e a ação são questões relativamente

pequenas e insignificantes. Entretanto, mesmo o sândalo da estátua de

Minerva precisou ser esculpido corretamente e, no serviço de Deus,

mesmo as menores coisas devem ser levadas em consideração com santo

esmero. A vida é feita de pequenos incidentes, e o sucesso muitas vezes

depende da atenção dada aos mínimos pormenores. Pequenas moscas

dão mau cheiro ao ungüento do boticário, e pequenas raposas arruínam

as vinhas. Portanto, as pequenas moscas e raposas devem ser mantidas

fora do nosso ministério. É fora de dúvida que erros, mesmo numa

questão secundária como a da postura, têm prejudicado a mente de

muitos, estragando o sucesso de coisas que, doutro modo, teriam sido

ministérios dos mais aceitáveis. Um homem de talentos acima da média

pode, por atitudes ridículas, ser lançado à última fileira, e ser conservado

lá. Isso é uma grande lástima, mesmo que houvesse somente um caso

desses; mas é de temer que muitos são prejudicados pela mesma causa.

Pequenas excentricidades e disparates na atitude e nos gestos, que

os sensatos se esforçam para não notar, não são deixados de lado pelo

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Lições aos Meus Alunos (Vol. 1)

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público em geral. De fato, a maior parte dos ouvintes fixa os olhos

principalmente nessas coisas, enquanto que aqueles que comparecem

somente para zombar Não vêem outra coisa. As pessoas ou se desgostam

ou se divertem com as singularidades estranhas de certos pregadores; ou

então buscam escusa para a sua falta de atenção, e saltam para esta,

muito conveniente: Não pode haver razão para que devamos ajudar os

homens a resistir aos nossos esforços em beneficio deles. Nenhum

ministro cultiva voluntariamente um hábito que inutilizaria as suas setas,

ou as desviaria do alvo. Portanto, desde que as questões menores, de

movimentos, postura e gestos, podem ter aquele efeito, vocês devem dar-

lhes imediata atenção.

Prontamente admitimos que os movimentos na pregação são uma

coisa de menor conseqüência; pois alguns que obtiveram êxito no mais

elevado sentido foram excessivamente falhos do ponto de vista do

retórico. No presente momento há em Boston, Estados Unidos da

América, um pregador da mais alta classe de poder, de quem escreve um

crítico: "Nas sentenças introdutórias, um braço ou o outro balança ao seu

lado em desamparo, como se fosse feito de vértebras caudais interligadas

frouxamente. Logo passa a exibir comprometedora falta de jeito,

bamboleando para cá e para lá de um modo que faz pensar que uma

perna é mais curta que a outra, e sacudindo a cabeça e os ombros, dando

ênfase que não convence, Levanta uma sobrancelha de maneira

completamente impossível. Mais ninguém consegue entortar o olho

daquele jeito."

Este é um exemplo da vitória da mente sobre a matéria, e da

excelência do ensino desculpando os defeitos da elocução. Mas seria

melhor que não existissem tais desvantagens. As maçãs de ouro não

ficam mais fascinantes quando colocadas em salvas de prata? Por que o

poderoso ensino deveria estar associado a bamboleios e trejeitos?

Contudo, é evidente que a atitude ao pregar não é essencial ao sucesso,

para dizer o mínimo. Parece que Homero achava que a total ausência de

gestos não prejudica o eminente poder da alocução, pois retrata um dos

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Lições aos Meus Alunos (Vol. 1)

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maiores heróis repudiando aqueles, embora não sem alguma percepção

de censura da parte dos ouvintes, como se pode notar: "Mas, erguendo-se Ulisses, todo reflexão, os seus olhos modestos fixou sobre o solo. Parecia sem jeito ou mudo, ali de pé. A fronte não ergueu, nem estendeu o cetro. Mas quando fala, como fluí a elocução! Suaves como os flocos da neve ao cair, os tons copiosos caem com arte serena. Caindo, eles se fundem, e a alma penetram! Com espanto o escutamos, e pasmos, surpresos; nosso ouvido refuta a censura dos olhos."

Nem é preciso retornar aos antigos em busca da prova de que uma

atitude excessivamente calma pode estar ligada ao mais alto poder da

eloqüência, pois nos ocorrem diversos exemplos entre os modernos.

Talvez baste um: o nosso Robert Hall, supremamente dotado, não tinha

movimentos oratórios, movendo-se raramente no púlpito, exceto num

ocasional levantar ou ondular da mão direita e, nos seus momentos de

maior calor emotivo, um alternado recuo e avanço.

Não lhes compete tanto adquirir a atitude certa no púlpito, quanto

1ivrar-se das atitudes errôneas. Se vocês pudessem reduzir-se a

manequins imóveis, melhor seria do que serem ativas e mesmo vigorosas

encarnações do grotesco, como alguns dos nossos irmãos têm sido.

Alguns homens gradativamente caem num estilo suicida de pregação, e é

uma coisa muito rara de se ver, um homem escapar depois de ter-se

emaranhado nas malhas de um péssimo maneirismo. Ninguém gosta de

falar-lhes dos seus estranhos tiques. Assim, não têm consciência deles.

Mas é surpreendente que suas esposas não façam mímica deles e não

riam de sua estupidez.

Ouvi falar de um irmão que, em seus primeiros dias, era mais

aceitável, mas, que, mais tarde, ficou muito atrás na carreira porque aos

poucos foi caindo em maus hábitos. Falava com gemidos dissonantes,

assumia as atitudes mais esquisitas e fazia tão extraordinárias caretas,

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que o povo não tinha prazer em ouvi-lo. Chegou a ser merecedor de

estima e honra, mas não de ser ouvido. Excelentes cristãos dizem que

não sabiam se deviam rir ou chorar quando o ouviam pregar. Sentiam

que pela inclinação da natureza deviam rir, mas que pelos impulsos da

graça deviam chorar quando viam um pregador tão bom completamente

arruinado por atitudes absurdamente artificiais. Se você não se preocupa

com o cultivo de atitudes apropriadas, pelo menos tenha sabedoria

suficiente para evitar ridicularias e simulações. Há uma grande distância

entre o almofadinha, que ondula e perfuma os cabelos, e aquele que

deixa os cabelos penderem como massas de feixes de forro, como a juba

de um animal selvagem.

Jamais os aconselharemos a praticarem posturas diante do espelho,

nem a imitar grandes teólogos, nem a macaquear finos cavalheiros. Por

outro lado, não é preciso ser vulgar ou absurdo. As posturas e atitudes

são simplesmente uma pequena parte da vestimenta de um discurso, e

não é nas vestes que jaz a substância da matéria. Um homem vestido de

fustão é "homem apesar de tudo"; assim, um sermão pregado de modo

estranho pode ser um bom sermão apesar de tudo. Todavia, como

nenhum de vocês usaria roupa de indigente se pudesse obter melhor

vestuário, assim não devem ser desmazelados a ponto de vestir a verdade

como a um mendigo, quando podem ataviá-la como a uma filha de um

príncipe.

Alguns são por natureza muito desajeitados em suas pessoas e em

seus movimentos. Acho que devemos censurar aquilo a que o camponês

chamava seu "jeitão". O passo do rústico é pesado, e seu andar é

relaxado. Pode-se ver que o habitat natural dele é a roça. No pavimento

ou no tapete, ele desconfia dos seus passos, mas na planície lamacenta,

com uma carga de mula de barro em cada bota, avança com facilidade,

senão com elegância. Há um "que" informe e rústico nos elementos

componentes da constituição de alguns homens. Você não os tornaria

elegantes, mesmo que os moesse junto com o trigo num triturador. O

treinador militar voluntário é da maior utilidade em nossas escolas, e

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Lições aos Meus Alunos (Vol. 1)

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aqueles país que acham que o exercício militar é perda de tempo, estão

muito enganados. Há uma aparência, uma agilidade, uma propriedade

geral de conformação, que o corpo humano adquire com o adequado

exercício militar, que raramente vem por qualquer outro meio. Esse

exercício corrige a posição dos ombros do sujeito, evita o excessivo

balanceio dos braços, expande o peito, mostra-lhe o que fazer com as

mãos e, numa palavra, ensina o homem a andar direito, e a adequar-se à

uma espécie de posição modelar, sem qualquer esforço consciente para

conseguí-lo – esforço que seria segura revelação da sua rusticidade.

Gente muito espiritual pensa que estou brincando, mas não estou. Espero

o dia em que se considerará parte essencial da educação ensinar o jovem

a se locomover e a fazer movimentos sem se mostrar desajeitado.

Pode acontecer que os gestos desajeitados decorram de uma fraca

elocução, e da nervosa consciência da falta de poder naquela direção.

Certos homens esplêndidos do nosso conhecimento são tão modestos que

chegam a ser tímidos, e daí se tornam hesitantes no falar e desajeitados

nos modos. Talvez não se possa mencionar exemplo mais notável disto

do que o do finado Dr. James Hamilton, tão caro a nós. Era o mais

amável e virtuoso dos pregadores, mas a sua atitude no púlpito era

penosa em grau extremo. Seu biógrafo diz: "Em recursos e aquisições mentais, ele possuía grande riqueza; mas

na capacidade de expor os seus pensamentos, com todas as variações de tons e claves requeridas pela natureza deles, e ainda de molde a serem ouvidos por todos num grande edifício, era muitíssimo menos dotado. Neste aspecto, por conseguinte, ele sempre se sentia angustiado por ter consciência de estar longe do seu próprio ideal. O certo é que a falta de força vocal e de pronto controle da entonação, prejudicaram grandemente o poder e a popularidade da sua pregação. Na delicadeza dos conceitos, na feliz escolha das expressões, no domínio de figuras contundentes e originais, e no calor do fervor evangélico que pervagava tudo, poucos se igualavam a ele. Todavia, estas raras qualidades eram tosadas em metade da sua força, no que concerne à sua pregação pública, pela necessidade sob a qual constantemente estava de esforçar-se extremamente para fazer-se audível, ficando nas pontas dos pés e atirando as palavras a mancheias,

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para ver se alcançavam as fileiras mais distantes. Se os músculos do seu peito fossem tais que o capacitassem a ficar solidamente firme em descanso, enquanto os lábios realizassem a tarefa de articulação sem a ajuda de sopros auxiliares dos pulmões exageradamente inflados, James Hamilton por certo teria sido seguido por multidões maiores e teria tornado a sua mensagem acessível a um círculo mais amplo e mais variado. Mas não sabemos que outro mal ter-se-ia intrometido de contra-peso no curso desse êxito externo. Conquanto – com todas as suas orações e sofrimentos – este espinho tenha sido deixado em sua carne, permaneceu a grande compensação: "A minha graça te basta, porque o poder se aperfeiçoa na fraqueza." Os talentos todos que ao Senhor aprouve dar-lhe, ele desenvolveu a serviço de Quem lhos deu, e se alguns talentos (he foram negados, Aquele que lhos recusou sabe por que. Ele tudo faz bem."

Partilhamos de coração este sentimento, mas lamentaríamos por um

jovem que se submetesse por seu desiderato a um defeito semelhante, e o

atribuísse à mão do Senhor. O Dr. Hamilton não agiu assim. Fez sérios

esforços para vencer as suas desvantagens naturais e, quanto sabemos,

tomou lições de mais de um professor de oratória. Não se refugiou na

desculpa do preguiçoso, mas trabalhou arduamente para dominar a

dificuldade, e só fracassou nisso porque era um defeito físico sem

remédio. Onde quer que vejamos atitudes desajeitadas evidentemente

inevitáveis, demos-lhes pouca ou nenhuma atenção, cuidando de

recomendar ao irmão que faça o melhor que puder nessas circunstâncias,

avaliando como realização de não pequena monta um mestre de doutrina

cobrir com a riqueza do pensamento e a propriedade da linguagem as

condições toscas do homem exterior, fazendo, assim, a alma triunfar

sobre o corpo. Se havemos, porém, de afligir-nos por qualquer falha na

maneira de pregar, decidamo-nos a dominá-la, pois não é tarefa

impossível. Edward Irving é um extraordinário exemplo do poder de

melhorar neste sentido. De inicio, seus modos eram desajeitados,

constrangidos e forçados. Com diligente cultivo, porém, as suas atitudes

e os seus movimentos tornaram-se notáveis auxílios à sua eloqüência.

Os púlpitos têm muito que responder pelas maneiras desajeitadas

dos pregadores. Que horríveis invenções são eles! Se pudéssemos aboli-

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los, poderíamos dizer deles o que Josué disse de Jericó: "Maldito... seja o

homem que se levantar e reedificar esta cidade de Jericó", pois os

púlpitos tradicionais têm sido maior maldição para as igrejas do que à

primeira vista parece. Nenhum advogado usaria um púlpito para

defender uma causa no tribunal. Como poderia esperar sucesso,

enterrado quase até os ombros? O cliente seria arruinado se o causídico

ficasse aprisionado dessa forma. Quão varonil, quão dominadora é a

atitude com a qual Crisóstomo é geralmente representado! Esquecendo

por ora a sua toga, não se pode senão achar que aquela postura natural é

muito mais digna da verdade sublime, do que a de uma pessoa abaixada

sobre uma folha de papel, olhando muito ocasionalmente para cima, e

então mostrando nada mais que a cabeça e os ombros. Em sua obra

Chironomia, Austin diz com muita propriedade: "A liberdade também é

necessária à elegância da ação. Nenhum gesto poderá ser elegante se

estiver limitado por circunstâncias externas ou se for restringido pela

mente. Se um homem fosse obrigado a dirigir-se a uma assembléia

postado numa janela estreita, através da qual não pudesse estender os

braços e a cabeça, ser-lhe--ia vão tentar gestos elegantes. O

confinamento no menor grau sem dúvida será proporcionalmente

prejudicial à elegância. Assim, o tribunal apinhado de gente será nocivo

à ação do advogado, e o púlpito fechado e fixo que muitas vezes elimina

mais da metade do vulto do pregador, é-lhe igualmente nocivo."

O finado Thomas Binney era incapaz de suportar plataformas.

Sabe-se que ele levava becas e outros materiais para pendurar nos gradis

de uma tribuna aberta, se se achasse metido numa delas. Isto só deve ter

brotado da força do hábito, pois não pode haver vantagem real em

encerrar-se num cárcere de madeira. Sem dúvida, este modo de sentir

reterá o púlpito fechado por mais algum tempo, mas futuramente

encontrarão um argumento em prol da divindade da nossa fé pois ela

sobreviveu aos púlpitos.

Os ministros não devem ser censurados por suas posturas e atitudes

desengonçadas quando se pode ver apenas uma pequena parte do seu

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Lições aos Meus Alunos (Vol. 1)

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corpo durante o discurso. Se fosse costume pregar como Paulo pregou

em Atenas, os oradores públicos se tornariam modelos de propriedade. A

propósito, é interessante notar que Rafael, em sua representação de Paulo

em Atenas, sem dúvida tinha em mente a declaração do apóstolo:

"Deus... não habita em santuários feitos por mãos humanas. Nem é

servido por mãos humanas"; daí o delineia erguendo as mãos. Devo esta

alusão a G.W. Hervey, M.A., que escreveu um "System of Rhetoric"

(Sistema de Retórica) muito eficiente e compreensivo.

Notáveis são as formas que os púlpitos têm assumido de acordo

com os caprichos da fantasia e da tolice humanas. Há vinte anos

alcançaram provavelmente a sua pior forma. Quais poderiam ter sido o

seu propósito e a sua finalidade, seria difícil conjeturar. Um alto púlpito

de madeira, no velho estilo, podia bem lembrar ao ministro a sua

mortalidade, pois não passa de um caixão de defunto posto em pé. Mas,

com que base racional havemos de sepultar vivos os nossos pastores?

Muitas dessas construções assemelham-se a barris; outras são da forma

de tapas para ovos, e copos. Uma terceira categoria evidentemente

seguia o modelo de um paiol sobre quatro pernas. E uma quarta

variedade pode comparar-se a ninhos de andorinha cravados na parede.

Alguns deles são tão altos que fazem rodar as cabeças dos ocupantes,

quando estes se atrevem a olhar para as temíveis profundidades abaixo

deles, e dão torcicolo naqueles que olham durante qualquer espaço de

tempo para o pregador lá no alto. Sinto-me como se estivesse no topo de

um mastro, quando estou empoleirado no alto dessas "torres do

rebanho." Estas abominações são males em si mesmas, e produzem

males.

Falando sobre púlpitos, faço uma digressão e observo, em beneficio

dos diáconos e dos zeladores, que freqüentemente sinto nos púlpitos um

abominável cheiro de gás, que por certo provém de vazamentos nos

canos de gás, e que tende a intoxicar o pregador, ou a fazê-lo adoecer.

Devíamos ser poupados dessa opressão. Também com freqüência

colocam dois grandes lampiões em cada lado da cabeça do ministro, bem

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perto. Assim, comprimem os seus movimentos e o colocam entre dois

fogos. Se há queixas da cabeça quente nos ministros impetuosos, pode-se

explicar prontamente, uma vez que o aparelhamento para produzir

aquele efeito é preparado com grande esmero.

Ainda a outra noite tive o privilégio, quando me sentei ao púlpito,

de sentir como se me tivessem golpeado no cocuruto e, ao olhar para

cima, vi um enorme bico de gás aceso, marca de fabricação Argand, com

um refletor colocado logo acima da minha cabeça, a fim de lançar um

foco de luz sobre a minha Bíblia. Uma invenção atenciosa, sem dúvida,

só que o inventor se esquecera de que os seus queimadores estariam

despejando um calor terrível sobre um cérebro sensível. O pregador não

deseja experimentar uma insolação artificial enquanto prega. Se temos

que padecer tal calamidade, que nos venha durante os nossos feriados, e

que nos venha do sol mesmo. Parece que ninguém, ao construir um

púlpito, considera o pregador como homem de sentimentos e sentidos

iguais aos das outras pessoas. O assento no qual você deve repousar a

intervalos, freqüentemente não passa de uma simples beirada. O puxador

da porta dá em suas costas, enquanto que, quando você se levanta para ir

à frente, geralmente há uma bolsa de guta-percha entre você e o púlpito

propriamente dito. Esta geringonça de borracha visa caridosamente à

assistência de certas pessoas surdas que, espero, são beneficiadas. E

devem ser, pois todo mal há de ter uma influência compensadora. Você

não pode inclinar-se para a frente sem forçar o fechamento dessa

invenção. De minha parte, normalmente deposito sobre ela o meu lenço

de bolso. Isso faz com que os surdos tirem dos ouvidos as pontas do tubo

– e descubram que me ouvem suficientemente bem sem aquilo.

Ninguém conhece o desconforto dos púlpitos, exceto o homem que

esteve em muitos, e viu que cada um é pior do que o anterior.

Geralmente são tão altos, que uma pessoa de baixa estatura como eu mal

pode ver por cima deles, e quando peço algo para subir em cima, trazem-

me um genuflexório. Pensem num ministro do evangelho equilibrando-

se num genuflexório enquanto prega: um Boanerges e um Blondin (o

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Lições aos Meus Alunos (Vol. 1)

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equilibrista) numa só pessoa. É esperar demais, que mantenhamos o

equilíbrio das nossas mentes e o dos nossos corpos ao mesmo tempo. Os

esforços para pôr-me nas pontas dos pés, as reviravoltas de tamboretes e

genuflexórios que tenho tido que sofrer nas pregações, perpassam por

minha memória agora, e reavivam as mais penosas sensações.

Seguramente devemos ser poupados dessas pequenas amolações,

porquanto o mal que causam não se limita ao nosso desconforto pessoal.

Se fosse assim, isso não teria importância. Mas, que lástima! Essas

pequenas coisas muitas vezes fazem a nossa mente saltar da engrenagem,

embaralham os nossos pensamentos e perturbam o nosso espírito.

Deveríamos colocar-nos acima dessas bagatelas, mas, embora o espírito

na verdade esteja pronto, a carne é fraca. É espantoso como a mente é

afetada pelas coisas mais insignificantes. Não há por que perpetuar

desnecessárias causas de desconforto.

A historia de Sydney Smith (clérigo inglês, gênio de

intelectualidade, autor de Plymley Letters) mostra que não estamos sos

em nossa tribulação. "Não posso suportar", disse ele, "ficar aprisionado,

à maneira da mais clássica tradição, no meu púlpito, com a cabeça mal

despontando por cima dele. Gosto de olhar para baixo, para os meus

ouvintes – para fazer fogo neles. As pessoas comuns dizem que sou um

pregador valentão, pois gosto de ter os braços livres, e de dar murros no

púlpito. Um singular contratempo aconteceu-me uma vez, quando, para

conseguir isso, mandei o ajudante empilhar alguns genuflexórios para eu

subir neles. O texto do meu sermão era: "Em tudo somos atribulados,

porém não angustiados; perplexos, porém não desanimados; perseguidos,

porém não desamparados; abatidos, porém não destruídos." Mal

pronunciara estas palavras, e me preparava para ilustrá-las, quando as

ilustrei praticamente, e de um modo que absolutamente não previra. A

minha estrutura armada com genuflexórios desmoronou-se. Eu caí, e

com dificuldade impedi que fosse precipitado aos braços dos ouvintes

que, é preciso dizer, portaram-se muito bem, recobrando a seriedade

mais depressa do que eu podia esperar."

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Mas devo voltar ao nosso assunto, e o farei repetindo a crença em

que púlpitos que parecem caixotes são grandemente responsáveis pelas

posturas estranhas que alguns dos nossos pregadores assumem quando

estão fora das suas jaulas e estão soltos sobre um estrado. Não sabem o

que fazer com as pernas e os braços, sentem-se desajeitados e expostos, e

daí caem em atitudes ridículas. Quando um homem está acostumado a

considerar-se como um "busto animado", sente-se como se tivesse ficado

comprido demais quando o fazem aparecer de corpo inteiro.

Não se pode duvidar de que muitos ficam desajeitados de medo.

Não é sua natureza, nem seu púlpito, mas seu nervosismo que faz dele

um sujeito ridículo. Para alguns é demonstração de grande coragem o só

ficar de pé diante de pessoas reunidas, e falar é na verdade uma penosa

prova. Não admira que a sua atitude seja constrangida, pois se encolhem

e tremem sem parar. Cada nervo está em estado de excitação, e o corpo

todo está trêmulo de medo. Principalmente ficam perplexos sobre o que

fazer com as mãos, e as movem de um lado para outro, de maneira

irrequieta, irregular e sem sentido. Se fossem amarradas pendentes aos

lados do corpo, eles ficariam alegres com essa libertação.

Um clérigo da Igreja Anglicana, defendendo o uso do manuscrito

no púlpito, utiliza o notável argumento de que um homem nervoso, tendo

que virar as folhas do seu discurso, mantêm com isso as mãos ocupadas,

ao passo que, se não tivesse os papéis diante dele, não saberia o que

fazer com elas. É um vento mau que sopra sem trazer benefício a

ninguém; é uma prática má deveras, que não tem nem remotas e

ocasionais vantagens. Porém, para o nervosismo é preciso um tratamento

mais eficiente. O pregador deve tentar vencer o mal, em vez de procurar

um meio de esconder as suas manifestações externas. A prática é um

grande remédio, e um tratamento mais poderoso ainda é a fé em Deus.

Quando o ministro se acostuma com o povo, fica à vontade porque está à

vontade, sente-se em casa, e quanto às suas mãos e pernas ou quaisquer

outras partes do seu corpo, nem pensa. Lança-se ao trabalho de todo o

coração, e assume as posições que num homem fervoroso são as mais

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Lições aos Meus Alunos (Vol. 1)

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naturais, e estas são as mais apropriadas. Gestos não estudados, aos quais

você nunca voltou o pensamento nem por um instante, são os melhores.

O mais alto resultado da arte é banir a arte, e deixar o homem tão livre

como o antílope nas montanhas.

Ocasionais excentricidades de postura e gestos podem decorrer da

dificuldade em encontrar a próxima palavra. Há alguns anos, um

observador americano disse: "As vezes é interessante ver os diferentes

modos pelos quais diferentes indivíduos se saem do mesmo dilema. Nem

sempre o Sr. Calhoun se perde por uma palavra mas, ocasionalmente,

uma fica enroscada na garganta dele, na pronunciarão, como o 'Amen' de

Macbeth. Em tal caso, ele dá um ou dois petulantes puxões no colarinho

da camisa, e passa os ossudos dedos pelos cabelos longos e grisalhos, até

endireitar tudo de novo.

Webster, quando descontente com uma palavra, ou enredado numa

sentença, quase invariavelmente esfrega. com cuidado o canto interno do

olho esquerdo, com o dedo médio da mão direita. Falhando isso, coça

ferozmente o nariz. com o nó do polegar dobrado. Como último recurso

curva os joelhos, separando-os, até suas pernas ficarem parecendo uma

elipse. Depois, enfiando as mãos nos bolsos até o fundo, lança com

vivacidade a seção superior do corpo para a frente, e a palavra está

pronta para vir." O homem deve ser perdoado pelo que faz quando está

em agonia, mas seria grande lucro se nunca padecesse desses embaraços,

e assim escapasse das contorções conseqüentes.

Freqüentemente, o hábito também leva os oradores a movimentos

singulares, e a estes ficam tão apegados que não podem falar sem eles.

Mexer num botão do paletó, ou brincar com os dedos, são coisas que se

vêem com freqüência, não como parte da oratória do pregador, mas

como uma espécie de livre acompanhamento dela. Addison, no

Spectator, narra um divertido incidente desse tipo. "Lembro-me de que quando era jovem, e costumava freqüentar o

Westminster Hall (famosa sala de recepções, banquetes e solenidades, em Londres) havia um conselheiro que nunca pleiteava uma causa sem levar na

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Lições aos Meus Alunos (Vol. 1)

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mão um pedaço de barbante, que costumava ficar enrolando no polegar ou noutro dedo durante o tempo todo em que falava. Os gaiatos daqueles dias chamavam-lhe o fio do discurso dele, pois não era capaz de dizer uma palavra sem o cordão. Um dos seus clientes, mais brincalhão do que sábio, roubou dele o barbante em pleno discurso, mas seria melhor que o tivesse deixado lá, pois perdeu a causa por causa da brincadeira."

Os que ainda estão livres dessas pequenas peculiaridades, estejam

vigilantes para que não se rendam gradualmente a elas. Mas, enquanto

não passam de insignificâncias que poucos notam e que não prejudicam

os esforços do pregador, não há necessidade de atribuir-lhes muita

importância.

A postura do ministro deve ser natural, mas sua natureza não deve

ser de tipo grosseiro; deve ser uma natureza bem educada e elegante.

Deve evitar especialmente aquelas posições nada naturais num orador,

por obstruírem os órgãos de comunicação e por comprimirem os

pulmões. Deve usar o senso comum e não dificultar o seu falar

inclinando-se para a frente sobre a Bíblia ou sobre o púlpito. Inclinar-se

como se você fosse falar confidencialmente com as pessoas que estão

imediatamente embaixo, pode-se tolerar uma vez ou outra, mas como

posição costumeira é tão prejudicial como deselegante. Quem pensa em

debruçar-se quando fala numa sala de visitas? Que tarefa mortal seria

conduzir uma longa conversação com o aparelho respiratório

pressionado contra a quina de uma mesa! Mantenha-se reto, tome

posição firme, e fale como homem.

Alguns poucos oradores erram na outra direção, e atiram a cabeça

para trás, como se estivessem discursando aos anjos, ou como se

estivessem olhando um manuscrito no teto. Isso também vem do mal e, a

menos que uma ocasional e sublime apóstrofe o requeira, de modo

nenhum deve ser praticado. Bem diz John Wesley: "A cabeça não deve

ser mantida muito para cima, nem comicamente lançada muito para a

frente, nem deve descair e ficar pendendo, por assim dizer, sobre o peito;

nem deve ficar inclinada para um lado ou para o outro; mas deve ser

mantida modesta e decentemente ereta, em seu estado e posição natural.

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Lições aos Meus Alunos (Vol. 1)

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Demais, não deve permanecer imóvel, como estátua, nem estar

continuamente em movimento e lançando-se para todos os lados. Para

evitar ambos os extremos, deve voltar-se gentilmente, conforme a

ocasião, ora para um lado, ora para outro; noutras ocasiões deve

permanecer, fixa, olhando direto para a frente, para o meio do auditório."

Muitos assumem uma atitude relaxada, refestelando-se e

espreguiçando-se, como se estivessem recostados no parapeito de uma

ponte e tagarelando com alguém embaixo, num barco ou no rio. Não

vamos ao púlpito para relaxar e para parecer que somos livres e

descontraídos; vamos para um serviço muito solene, e a nossa postura

deve combinar com a nossa missão. Não é recostando-se indolentemente

e relaxando descuidadamente que o pregador vai demonstrar um espírito

reverente e zeloso. Dizem que entre os gregos mesmo os lavradores e

vaqueiros tomam atitudes elegantes, sem pensar que estão fazendo isso.

Creio que o mesmo fato se dá com os italianos, pois, onde quer que eu

visse um romano, homem ou mulher – não importa se estavam dormindo

sobre os degraus do Spagna, ou sentados num fragmento dos banheiros

de Caracalla, ou carregando um fardo na cabeça, ou cavalgando uma

mula – pareciam sempre modelos para um artista. No entanto, esta é a

última coisa que poderia passar pela cabeça deles. Aqueles pitorescos

camponeses nunca receberam aulas de calistenia, nem esquentaram a

cabeça sobre como deviam aparecer ao estrangeiro. A natureza pura e

simples, livre de maneirismo, de enfeites artificiais e de ostentação,

molda os seus hábitos dando-lhes elegância. Seríamos tolos se

quiséssemos imitar os gregos e os italianos, a não ser na sua liberdade de

toda imitação, mas seria bom copiar-lhes os movimentos espontâneos e

naturais. Não há uma só razão pela qual o cristão deva ser palhaço, e há

muitíssimas razões pelas quais o ministro não deve ser grosseiro. Como

Rowland Hill disse que não podia entender porque Satanás deveria ter as

melhores melodias, assim eu também não posso entender por que ele há

de ter os mais elegantes oradores!

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Lições aos Meus Alunos (Vol. 1)

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Agora, deixando a questão da postura, vamos tratar mais

definidamente dos movimentos na pregação. Também é um ponto

secundário e, contudo, importante. Nossa primeira observação será:

nunca devem ser excessivos. Nesta questão os exercícios físicos são de

pouco proveito. Não podemos julgar prontamente quando a

movimentação é excessiva, pois o que seria excessivo numa pessoa,

pode ser bem pertinente e apropriado noutra. Diferentes raças empregam

diferentes movimentações no falar. Dois ingleses conversam com muita

calma e sobriedade um com o outro, comparados com um par de

franceses. Observem os nossos vizinhos gauleses. Falam o tempo todo,

encolhem os ombros e gesticulam com a maior veemência.

Muito bem, pois; podemos permitir que um pregador francês seja

mais demonstrativo do que um inglês ao pregar, porque é como ele é na

conversação comum. Não estou certo de que um teólogo francês seja

normalmente assim, mas, se for, isso pode ser explicado pelo hábito

nacional. Se eu e vocês puséssemos a conversar à moda parisiense nos

exporíamos ao ridículo e, da mesma forma, se nos tornarmos violentos e

veementes no púlpito, poderemos correr o mesmo risco. Sim, pois, se

Addison for uma autoridade, os oradores ingleses empregam menos

gestos do que os de outros países. Como se dá com as raças, assim com

os indivíduos. Alguns gesticulam naturalmente mais que outros, e se for

de fato natural, vemos pouco erro. Por exemplo, não podemos censurar a

maravilhosa gesticulação e idas e vindas de John Gough, pois ele não

seria Gough sem isso. Pergunto-me quantas milhas não anda ele no

transcurso de uma de suas preleções! Não o vemos escalar as encostas de

um vulcão à procura de uma bolha em erupção? Como ficamos com dó

dele quando o vemos afundar os tornozelos nas cinzas quentes! Depois

ele vai embora, lá para o outro extremo do palco do Exeter Hall,

apostrofando um copo d'água. Mas pára ali só um momento e, em pouco,

já fez outra carreira pisando nos calos dos irmãos da liga da temperança,

sentados na fila da frente. Ora, isso fica bem para John Gough. Mas se

você, John Smith ou John Brown, começar a fazer dessas

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Lições aos Meus Alunos (Vol. 1)

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perambulações, logo ficará parecido com o judeu errante, ou com o urso

polar, dos jardins zoológicos, que vai o tempo todo para cá e para lá em

sua cela.

Martinho Lutero costumava dar golpes com o punho de tal forma,

que se exibe em Eisenach uma tampa de mesa creio que de três

polegadas – que ele quebrou quando martelava um texto. A veracidade

da lenda tem sido posta em dúvida, pois se afirma que aquelas delicadas

mãos, que podiam tocar guitarra de maneira tão fascinante, dificilmente

poderiam ter-se dado tão rude tratamento. Mas se a mão for um índice do

caráter do dono, bem podemos acreditar na história, porquanto a força e

a ternura combinavam maravilhosamente em Lutero. A mente dele era

repassada de delicadeza e sensibilidade. Entretanto, estas nunca

diminuíam, antes aumentavam a sua tremenda energia. De modo nenhum

é difícil crer que ele podia despedaçar uma prancha, com o estilo em que

atacava o Papa. E, contudo, podemos imaginar bem que ele podia tocar

as cordas da sua guitarra com mão de donzela. Também Davi podia tocar

harpa habilmente e, no entanto, quebrou com seus braços um arco de

metal.

Conta-se que John Knox uma vez estava tão fraco que, antes de

chegar ao púlpito se esperava que ele caísse desmaiado de fraqueza, mas,

já perante os ouvintes parecia que ia fazer o púlpito em pedaços. Esse era

evidentemente o estilo do período em que os protestantes lutavam por

sua existência, e o papa e os seus sacerdotes, e o diabo e seus anjos maus

eram movidos por extraordinária fúria. Todavia, não creio que

Melancthon achava necessário ser assim tão tremendo, e Calvino não

martelava nem dava golpes daquela maneira. De qualquer forma, você

não precisa estar rebentando tábuas de três polegadas, pois poderia haver

um prego numa delas, nem precisa fazer um púlpito em pedaços, pois,

fazendo-o, poderia ficar sem púlpito nenhum. Dê trancos nas

consciências e procure romper os corações duros pelo poder do Espírito

– mas isso requer poder espiritual. A energia física não é o poder de

Deus para a salvação.

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Lições aos Meus Alunos (Vol. 1)

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É muito fácil exagerar a coisa a ponto de você parecer ridículo.

Talvez fosse a perspicaz percepção desse perigo que levou o Dr. Johnson

a proibir totalmente movimentos no púlpito, e a recomendar

enfaticamente o exemplo do Dr. Watts, porque "ele não se esforçava

para assessorar a eloqüência com qualquer gesticulação; pois, como

nenhuma ação corporal tem qualquer correspondência com a verdade

teológica, ele não via como esta poderia ser fortalecida por aquela."

A observação do grande lexicógrafo é uma tolice, mas, se houver

pensamento com peso suficiente para reduzir o pregador à inação

absoluta, será melhor do que assumir pospões exageradas. Quando Natã

falou com Davi, suponho que contou a parábola com muita serenidade, e

que quando chegou a hora de dizer: "Tu és o homem", dirigiu-lhe um

olhar profundamente severo. Mas jovens ministros há que imaginam que

o profeta correu a largos passos para o meio da sala e, avançando o pé

direito, apontou o dedo como um revólver entre os olhos reais e, batendo

fortemente o pé no chão, gritou: "TU ÉS O HOMEM." Tivesse

acontecido isso, é de temer que o real véu voltasse os pensamentos de si

para o profeta insano, e chamasse a guarda para limpar a sala.

Natã estava com seriedade muito solene para agir com violência

indecente. E como regra geral podemos anotar aqui que a tendência do

sentimento profundo é suavizar os modos, em vez de torná-los

demasiado enérgicos. Quem golpeia o ar, e berra, e ruge, e bate o pé, não

diz nada. E quanto mais a pessoa comunica o que quer dizer, menos

veemência vulgar haverá. João Wesley, em sua obra, Directions

Concerning Pronunciation and Gesture (Orientações sobre Pronúncia e

Gestos), aperta demais o pregador quando diz: "Nunca deve bater

palmas, nem esmurrar o púlpito. Raramente as mãos devem elevar-se

acima dos olhos"; mas, provavelmente ele tinha em mira algum

deslumbrante caso de extravagância. Todavia, tem razão quando adverte

os seus pregadores no sentido de que "as mãos não devem estar em

perpétuo movimento, pois a isto os antigos chamavam tagarelice das

mãos."

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Russell diz com muita sabedoria: "A verdadeira veemência nunca

se degenera transformando-se em violência e vociferação. É a força da

inspiração – não do furor. Não se manifesta nos guinchos, no espumar

frenético, no bater dos pés e nas contorções do excesso vulgar. Em seu

mais intenso entusiasmo, é varonil e nobre; eleva – não degrada. Nunca

se rebaixa ao tom dos gritos, à vulgaridade dos sons guturais, à ênfase

dos berros esganiçados, ao histérico êxtase da entonação, às atitudes de

valentão, e aos punhos cerrados da paixão extravagante."

Quando o seu sermão parecer exigir de você um pouco de ação

imitativa, seja particularmente vigilante para Não ir longe demais, pois

isto poderá acontecer antes que o perceba. Ouvi falar de um jovem

teólogo que, repreendendo os inconversos, exclamou: "Aí vocês fecham

os olhos para a luz (aí fechou os olhos); vocês tapam os ouvidos para a

verdade (aí pós um dedo em cada ouvido); e vocês voltam as costas para

a salvação" (aí virou as costas para o povo). Acaso lhes causa espanto

que, quando os ouvintes viram um homem de pé, com as costas voltadas

para eles e com os dedos nos ouvidos, caíram na risada? Os movimentos

foram pertinentes, mas foram feitos com exagero, e melhor seria que não

fossem feitos. A gesticulação violenta, mesmo quando recomendada por

alguns, irá certamente impressionar a outros por seu lado cômico.

Quando Burke, na Câmara dos Comuns, arremessou a adaga para

mostrar que os ingleses estavam fabricando armas para serem usadas

contra os próprios concidadãos, sua atitude me parece notável e muito

adequada ao fim em vista. Todavia, disse Sheridan: "O cavalheiro nos

trouxe a faca; onde está o garfo?", e Gilray fez uma caricatura maldosa

dele. Os riscos de movimentos demasiado pequenos de modo algum são

grandes, mas você pode ver claramente que há grandes perigos na outra

direção. Portanto, não leve a ação para muito longe, e se você perceber

que há naturalmente muita energia na sua apresentação da mensagem,

reprima um pouco as suas energias. Agite um pouco menos as mãos,

golpeie a Bíblia com um pouco mais de misericórdia e, de modo geral,

tome as coisas com mais calma.

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Lições aos Meus Alunos (Vol. 1)

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Talvez o homem esteja mais perto do meio termo feliz quando os

seus modos não provocam observações, quer de louvor, quer de censura,

porque estão integrados tão completamente no discurso que

absolutamente não são notados como um item à parte. A movimentação

que recebe atenção exagerada, provavelmente é desproporcional e

excessiva. O Sr. Hall, numa recepção, esteve com a Sra. Hannah More, e

seu julgamento das maneiras daquela senhora bem poderia servir de

crítica aos maneirismos dos ministros. "Nada de extraordinário, senhor,

certamente que não. Suas maneiras são demasiados perfeitamente

próprias para serem extraordinárias. Maneiras extraordinárias são más, a

senhora sabe. Ela é uma perfeita dama, e diligentemente evita aquelas

excentricidades que constituem as maneiras extraordinárias."

Em segundo lugar, os movimentos no púlpito devem ser expressivos

e apropriados. A movimentação expressa menos coisas do que a

linguagem, mas, é possível expressar essas poucas coisas com maior

força ainda. Abrir com indignação uma porta e apontar para ela é uma

ação quase tão enfática como dizer: "Saia da sala!" Negar a mão quando

outro estende a sua é marcante declaração de má vontade, e

provavelmente produzirá amargor mais duradouro do que as palavras

mais severas. Um pedido para fazer silêncio sobre certo assunto pode ser

transmitido muito bem cruzando os lábios com o dedo. Um meneio da

cabeça indica desaprovação de modo marcante. Sobrancelhas erguidas

expressam surpresa em estilo categórico. E cada parte do rosto tem sua

eloqüência, exprimindo prazer ou pesar. Que volumes podem ser

condensados num encolher de ombros, e que lamentáveis danos esse

mesmo encolher tem produzido!

Daí, visto que a gesticulação e a postura podem falar

poderosamente, devemos ter o cuidado de fazê-las falar de modo correto.

Jamais teremos que imitar o famoso grego que gritava, "O céu!", com o

dedo apontando para a terra; nem descrever uma fraqueza mortal com

murros no púlpito. Os oradores nervosos parecem atirar ao acaso com os

seus gestos. Você os vê torcer as mãos enquanto se estendem falando das

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Lições aos Meus Alunos (Vol. 1)

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alegrias da fé, ou agarrar-se convulsivamente às bordas do púlpito

quando estão ordenando que, com relação aos bens da terra, tenham mão

aberta. Mesmo quando já não estão mais temerosos, nem sempre os

irmãos manobram os seus gestos fazendo-os ir paralelamente às suas

palavras. Podem-se ver homens denunciando com punhos ameaçadores

as próprias pessoas que eles estão se esforçando para consolar e

fortalecer.

Espero que nenhum irmão dentre vocês seja estúpido a ponto de

cruzar os dedos das mãos enquanto diz: "Não é propósito do evangelho

limitar-se a poucos. Seu espírito é generoso, tendendo a expandir-se

amplamente. Abre os braços para os homens de todas as classes e

nações." Seria igual erro se você abrisse os braços com largueza e

clamasse: "Irmãos, concentrem as suas energias! Reúnam-nas como o

comandante reúne suas tropas junto ao estandarte real no dia da batalha."

Portanto, ponha os gestos no devido lugar e veja como a difusão pode ser

expressa pelas mãos separadas, e a concentração pelas mãos unidas.

Os movimentos e a entonação juntos podem contradizer

absolutamente o significado das palavras. O abade Mullois fala-nos de

um gaiato malicioso que, ao ouvir o pregador pronunciar as terríveis

palavras, "Apartai-vos, malditos", da maneira mais branda, voltou-se

para o companheiro e disse: "Venha cá, meu rapaz, e deixe-me abraçá-

lo; é o que o clérigo acaba de expressar." É uma coisa triste, mas de

modo nenhum rara. Quanta força a linguagem da Escritura pode perder

pela transmissão mal feita pelo pregador! Aquelas palavras que o

pregador francês pronunciou de modo tão ruim são terríveis, e foi como

as senti quando, há pouco tempo, eu as ouvi lançadas entre dentes, com

temível seriedade, por um insano que se julgava profeta enviado para

lançar maldição sobre mim e minha igreja. As palavras, "Apartai-vos,

malditos" vieram dos seus lábios como o ribombar do trovão, e a última

palavra pareceu corroer-me o âmago da alma, quando com olhos

flamejantes e mão estendida o fanático a fez relampejar sobre a

assembléia.

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Numerosos pregadores parecem ter recebido aulas de Bendigo, ou

de algum outro mestre da nobre arte da auto-defesa, pois usam os punhos

como se estivessem prontos para um turno de luta. Não é agradável ver

irmãos pregarem o evangelho da paz nesse estilo belicoso. Contudo, de

modo nenhum é raro ouvir um evangelista pregar com os punhos

cerrados um Cristo livre. É divertido ver tais pregadores assumindo certa

atitude, e dizendo: "Vinde a mim" e, depois, com movimentos giratórios

de ambos o punhos, acrescentarem: "e eu vos darei – descanso." Seria

bom que essas idéias ridículas não fossem sugeridas, mas têm sido

sugeridas mais de uma vez por homens que fervorosamente desejam,

acima de todas as coisas, levar os seus ouvintes a pensarem nas melhores

coisas.

Cavalheiros, não me surpreende que riam, mas é infinitamente

melhor que dêem bastante risada desses absurdos aqui, do que o povo

das suas igrejas rir-se de vocês no futuro. Não lhes estou dando um

quadro imaginário, mas um quadro que já vi, e receio que verei de novo.

Aquelas mãos desajeitadas, uma vez trazidas à sujeição, tornam-se os

nossos melhores aliados. Podemos falar com elas quase tão bem como

com a língua, e fazer uma espécie de música silente com elas, que

aumentará o encanto das nossas palavras.

Se ainda não leram Charles Bell sobre The Hand (A Mão),

comprometam-se a fazê-lo, e notem bem o seguinte passo: "Não podemos deixar de falar da mão como instrumento da expressão.

Escreveram-se dissertações formais sobre isso, mas, se fôssemos constrangidos a procurar autoridades, poderíamos tomar os grandes pintores em evidência, desde que pela posição das mãos, conforme a figura, eles expressam toda sorte de sentimentos. Quem, por exemplo, pode negar a eloqüência das mãos nas Madalenas de Guido, e sua expressividade nos desenhos de Rafael ou na "Última Ceia", de Leonardo Da Vinci? Vemos ali expresso tudo que Quintiliano afirma que a mão é capaz de expressar. "Quanto a outras partes do corpo", diz ele, "competem ao orador, mas estas, podemos dizer, falam por si mesmas. Por meio delas pedimos, prometemos, invocamos, despedimos, ameaçamos, rogamos, abjuramos, expressamos

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medo, alegria, pesar, nossas dúvidas, nosso assentimento, nosso arrependimento; demonstramos moderação ou prodigalidade; indicamos número e tempo."

O rosto, e principalmente os olhos, desempenham um papel muito

importante em toda movimentação apropriada. É uma verdadeira

infelicidade os ministros não poderem olhar para as pessoas da sua

igreja. É estranho ouvi-los argumentar com pessoas que eles não vêem.

Eles imploram que olhem para Jesus sobre a cruz! Você fica a perguntar

onde estão os pecadores. Os olhos do pregador voltam-se para o seu

livro, ou para o teto, ou para o espaço vazio. Parece-me que você precisa

fixar os olhos nos ouvintes quando exorta. Há partes do sermão em que a

sublimidade da doutrina talvez requeira a elevação do olhar, e há outras

partes que permitem que os olhos vagueiem como você quiser. Mas

quando chega a hora de exortar, é impróprio olhar para qualquer lugar,

senão às pessoas às quais está falando. Irmãos que nunca fazem isso

perdem grande poder.

Quando o Dr. Wayland esteve doente, escreveu: "Se hei de

recuperar a saúde, não sei. Todavia, se me for dado voltar a pregar,

certamente farei tudo que puder para aprender a dirigir-me diretamente

aos ouvintes, olhando-os nos rostos, e não no papel sobre o púlpito."

O homem que quiser aperfeiçoar-se na postura e na gesticulação,

deve regular toda a sua estrutura, pois, num caso, o movimento mais

adequado será o da cabeça, noutro, o das mãos e, num terceiro caso, o do

tronco apenas. Diz Quintiliano: "Os lados devem ter sua parte na

gesticulação. O movimento do corpo todo também contribui muito para

o efeito de comunicação; tanto que Cícero é de opinião que se pode fazer

mais com a gesticulação do corpo do que mesmo com as mãos. Assim

diz ele em sua obra, De Oratore (Do Orador): "Não haverá movimentos

artificiais dos dedos, nem cascatear dos dedos para ajustar-se à cadência

calculada da linguagem; mas ele fará gestos com movimentos de todo o

seu corpo e com varonil inflexão do seu lado."

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Lições aos Meus Alunos (Vol. 1)

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Poderia multiplicar ilustrações sobre o sentido de ação apropriada,

mas estas devem bastar. Faça a gesticulação condizer com as palavras e

funcionar como uma espécie de consecutivo comentário e exegese de

natureza prática do que você está dizendo.

Aqui devo fazer uma pausa, esperando continuar o assunto em

minha próxima preleção. Mas estou tão consciente de que muitos acham

o meu assunto tão secundário que não tem nenhuma importância, que

encerro dando um exemplo da maneira cuidadosa como os grandes

pintores atentam para as minúcias mínimas, apenas extraindo esta

inferência que, se eles são assim atentos quanto a coisas pequenas, muito

mais o devemos ser. Diz Vigneul Marville: "Quando estive em Roma, muitas vezes vi Claude, que era então

patrocinado pelas pessoas mais eminentes daquela cidade. Com freqüência o encontrava às margens do Tibre, ou vagando pelas cercanias de Roma, em meio às veneráveis relíquias da antigüidade. Já era idoso, e, contudo, vi-o voltar de um passeio com o lenço cheio de musgo, flores, pedras etc., que poderia examinar em casa com aquela infatigável atenção que fez dele tão exato retratista da natureza. Perguntei-lhe um dia por que meios chegara a tão excelente categoria entre os pintores, mesmo da Itália. "Não poupo esforços, seja no que for, mesmo nas mínimas insignificâncias", foi a modesta resposta desse venerável gênio."

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POSTURA, ATITUDE, GESTOS ETC. (Segunda Preleção)

Esta preleção começa com o terceiro ponto. Lembram-se de que

falamos que a movimentação não deve ser excessiva e, em segundo

lugar, que ela deve ser apropriada. Agora vem a terceira regra: a

movimentação e os gestos nunca devem ser grotescos. Isso é bastante

evidente, e não insistirei no ponto, exceto dando alguns espécimes do

grotesco para que vocês não somente evitem as situações idênticas, mas

também as que tenham características semelhantes. Parece que em todas

as épocas os gestos absurdos têm sido muito numerosos, pois num velho

autor encontro uma longa lista de excentricidades, algumas das quais é

de esperar que tenham abandonado este mundo, enquanto que outras são

descritas em termos tão violentos que provavelmente não passam de

caricaturas dos fatos reais. O referido escritor diz: "Alguns mantêm a cabeça imóvel e virada para um lado, como se fosse

feita de chifre; outros fitam os olhos de modo horrível, como se tivessem a intenção de assustar toda gente; alguns estão sempre torcendo a boca e mexendo o queixo enquanto falam, como se estivessem mascando nozes o tempo todo; alguns, como o apóstata Juliano, respiram insultos, e exprimem desdém e insolência em seus semblantes. Outros, como se personalizassem os heróis fictícios das tragédias, escancaram tremendamente a boca e esticam os maxilares tão amplamente como se fosse engolir a todos; acima de tudo, quando rugem furiosos, espalham espuma para todo lado e ameaçam com a testa enrugada e com olhos que parecem Saturno. Estes, como se estivessem praticando algum jogo, estão continuamente fazendo movimentos com os dedos e, pelo extraordinário trabalho das mãos, esforçam-se para formar no ar, quase posso dizê-lo, todas as figuras usadas pelos matemáticos; aqueles, ao contrario, têm mãos tão pesadas e tão presas em baixo pelo terror, que poderiam mover mais facilmente vigas de madeira. Muitos labutam tanto com os cotovelos que é evidente que, ou foram outrora sapateiros, ou não viveram em outra sociedade que a dos remendões. Alguns são tão instáveis nos movimentos do corpo que parecem

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estar falando numa canoa; outros ainda são tão pesados e grosseiros em seus movimentos, que você poderia pensar que são sacos de estopa pintados para parecerem homens. Vi alguns que davam saltos na plataforma e pulavam até quase caírem fora; homens que exibiam a dança do forrador, e, como diz o velho poeta, expressavam com os pés a sua aptidão. Mas quem é capaz de, num curto espaço, enumerar todos os defeitos de gesticulação, e todos os absurdos da má elocução?"

Certamente esse catálogo poderia contentar o mais voraz

colecionador a serviço da câmara de horrores, mas não incluí a metade

do que pode ser visto em nossos tempos por alguém capaz de vaguear de

uma igreja a outra. Como as crianças parecem não esgotar nunca as suas

travessuras maldosas, assim os pregadores parecem nunca chegar ao fim

dos seus gestos estranhos. Mesmo os melhores caem neles

ocasionalmente.

A primeira espécie de ação grotesca pode ser denominada, a ação

rígida; e é muito comum. A impressão que se tem é que os homens que

exibem este horror Não têm dobras no corpo e têm as juntas enrijecidas.

Os braços e as pernas se movem como se estivessem presas a gonzos de

ferro, e como se fossem feitos de metal excessivamente duro. Um

boneco anatômico de madeira, como os usados pelos artistas, poderia

representar bem os seus braços e pernas, tão retos e rígidos, mas isto não

mostraria os puxões com que esses braços e pernas são atirados para

cima e para baixo. Não há nada que seja circular nos movimentos desses

irmãos; tudo é angular, agudo, mecânico. Se eu tivesse que expor o que

pretendo colocando-me nas atitudes retangulares deles, poderiam pensar

que eu estava fazendo caricatura de mais um teólogo da região

setentrional, tremendamente hábil, e, tendo o temor disto diante dos

meus olhos, e, ainda mais, tendo o máximo respeito por aqueles irmãos,

não ouso entrar em pormenores muito insignificantes. Contudo, é de

supor que esses bons homens têm ciência de que suas pernas não deviam

apresentar-se como se pertencessem a um cavalo de cânhamo, ou a uma

enorme tenaz, e de que os seus braços não deviam ser absolutamente

rígidos como atiradores.

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Já se sugeriu óleo para as juntas, mas parece que falta óleo nos

próprios braços e pernas, que se movem para cima e para baixo como se

pertencessem a uma máquina, e não a um organismo vivo. O certo é que

nenhum exercício poderia curar esse defeito que, em alguns pregadores,

quase chega a ser uma deformidade. No palco do Exeter Hall,

cavalheiros afligidos por rigidez natural não somente fornecem material

para o habilidoso caricaturista, mas também, infelizmente, desviam a

atenção dos seus ouvintes, dos seus admiráveis discursos para os seus

execráveis movimentos.

Em certa ocasião, ouvimos cinco ou seis observações feitas sobre a

grosseria da postura do mestre, e apenas um ou dois elogios ao seu

excelente discurso. "O povo não nota semelhantes insignificâncias",

observa o nosso amigo Philo. Mas o povo nota sim essas

insignificâncias, devessem fazê-lo ou não, e, portanto, é melhor não

exibi-las.

É provável que algumas pessoas excelentes considerem toda esta

preleção como indigna de sua atenção e como tendo humor questionável.

Mas, não posso deixar de fazê-la, pois, embora eu não atribua tanto valor

à movimentação como Demóstenes ao desenvolver o primeiro, o

segundo e o terceiro ponto da oratória, é certo que muito bom discurso

carece de poder por causa do comportamento desajeitado do orador.

Portanto, se eu puder em alguma medida reparar o mal, alegremente

agüentarei a crítica dos meus irmãos mais melancólicos.

Por mais jocosas que as minhas observações pareçam, ajo com

profunda seriedade. A melhor maneira de atacar essas loucuras é com as

leves setas do ridículo, pelo que as emprego, não tendo a mesma opinião

daqueles "Que acham toda a virtude no ar de gravidade, e nos sorrisos vêem sintomas de maldade."

A segunda forma do grotesco não difere propriamente da primeira,

e pode distinguir-se melhor como o tipo mecânico metódico. Neste caso,

os homens se movem como se não fossem seres vivos possuídos de

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vontade e intelecto, mas como autômatos formados para seguirem a

intervalos precisos, movimentos prescritos. Nos fundos do Tabernáculo

um sitiante instalou sobre sua casa uma espécie de cata-vento com forma

de soldadinho, que levanta um braço e depois o outro à menor brisa.

Muitas vezes isso me fez sorrir porque irresistivelmente me recorda

Fulano que alternadamente sacode os braços, ou, se deixa parado um

braço, movimenta o outro para cima e para baixo tão persistentemente

como se o homem fosse acionado pelo vento ou por um maquinismo de

relógio. Para cima e para baixo, para cima e para baixo vai a mão, sem

virar nem para a direita, nem para a esquerda, todo movimento sendo

repudiado, exceto este monótono subir e descer.

Pouco importa quão inquestionável um movimento seja em si

mesmo, virá a ser intolerável se for feito continuadamente, sem variação.

Ludovicus Cresollius, da Bretanha (1620) em seu tratado sobre os

movimentos e a pronúncia do orador, fala um tanto fortemente de um

culto e polido pregador parisiense que o irritara com a enfadonha

monotonia da sua movimentação. "Quando ele se voltava para a

esquerda, falava algumas palavras acompanhadas por um moderado

gesto da mão. Depois, inclinando-se para a direita, desempenhava aquele

mesmo papel. Depois virava para a esquerda, e logo para a direita de

novo. A intervalos medidos e quase iguais, executava o gesto usual e

prosseguia em sua única espécie de movimento. Somente podia

comparar-se aos bois da Babilônia que, com os olhos vendados,

avançavam e retornavam pelo mesmo caminho. Isso me desgostou tanto,

que fechei os olhos, mas mesmo assim não pude eliminar a desagradável

impressão causada pela atitude do orador."

O estilo predominante na Câmara dos Comuns, na medida em que o

tenho visto nas sessões públicas, consiste de um movimento das costas e

da mão para cima e para baixo. O ouvinte parece ver o parlamentar

inclinar-se perante o Presidente e a honorável câmara como um garçom o

faz no restaurante ao receber o pedido de um prato primoroso. "Sim

senhor", "Sim senhor", "Sim senhor", sacudindo o corpo a cada

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exclamação. A divertida trova seguinte, com seus versos curtos, traz

muitos oradores parlamentares à minha memória: "Sr. Parlapatão, Não alise o chapelão; a sua argumentação amassa o chapéu doutro varão."

Isto tem bastante afinidade com o que foi descrito com precisão

como estilo de manejo de bomba. É testemunhado com freqüência, e

consiste de uma longa série de movimentos de braço, visando, talvez, a

aumentar a ênfase, nada conseguindo, porém. Oradores desse tipo

lembram-nos o enigma de Moore: "Por que uma bomba é parecida com o

lorde Castlereagh?" "Porque é coisa de tábua, e bem delgada, que alteia e abaixa o seu braço grosseiro e frio fala, fala, o tempo inteiro, numa eterna torrente, fraca e aguada."

Ocasionalmente se vê um movimento tipo serrote, em que o braço

se estira e se contrai alternadamente. Este movimento é levado à

perfeição quando o orador se inclina sobre o gradil ou sobre a parte da

frente do púlpito, e se dobra para baixo, para o povo, como o serrador em

andaimes, trabalhando em vigamentos. É admirável, quantas vigas o

homem serraria se estivesse de fato trabalhando na madeira, em vez de

estar serrando o ar. Damos graças pela conversão de serradores, mas

confiamos em que se sintam livres para deixar para trás os seus serrotes.

Coisa bem parecida se pode dizer dos numerosos malhadores que

trabalham entre nós, que golpeiam e batem com grande rapidez,

arruinando as Bíblias e espanando os forros dos púlpitos. Os precursores

desses cavalheiros foram celebrados pelas linhas freqüentemente citadas

de Hudibras: "E o púlpito é batido – bombo eclesiástico, Não com baqueta, mas, com o punho do bombástico."

Seu único movimento é malhar, malhar, malhar, sem sentido e sem

motivo, quer o tema seja alegre ou dramático. Pregam com a

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Lições aos Meus Alunos (Vol. 1)

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apresentação de provas e com poder, mas a manifestação é sempre a

mesma. Não ousamos afirmar que eles batem com o punho da

impiedade, mas o certo é que batem, e com o maior vigor. Exibem as

doces influências da poesia das Plêiades* e os gentis galanteios do amor

com golpes dos punhos; e se esforçam para fazer com que você sinta a

beleza e a ternura do tema deles por meio de pancadas do seu malho que

não pára nunca.

Alguns deles são tolos, realmente, e nem sequer martelam com real

boa vontade – e então a coisa fica intolerável. A gente gosta de ouvir um

bom ruído, e de ver um homem malhar com veemência, se é que isso

tem que ser feito afinal. Mas o cavalheiro que temos em mente raramente

ou nunca é ardoroso em seu trabalho, e bate simplesmente porque esse é

seu modo de agir. "O malho enorme escuta-se vibrar em cadenciado e lento golpear."

Se o individuo tem que golpear, que o faça com ardor. Mas não é

preciso ficar batendo perpetuamente. Há melhores meios de tornar-se

pregador contundente do que imitar o teólogo a respeito de quem o seu

assessor litúrgico disse que tinha despedaçado as partes internas de uma

Bíblia e já ia indo longe com outra. Em certos sermões latinos que

constam de manuscritos antigos, com notas marginais, recomenda-se ao

pregador que sacuda o crucifixo e malhe o púlpito com ele, como se

malhasse o próprio Satanás! Deste modo poderia reunir os seus

pensamentos. Mas não deve se dar muito valor a pensamentos coligidos

assim. Terão alguns desses nossos amigos visto esses manuscritos,

apaixonando-se por sua orientação? É o que parece.

Agora, os puxões, os movimentos de serrote, de manejo de bomba,

e de bater poderiam ser suportáveis e até apropriados, se fossem

combinados. Mas a repetição de um deles é cansativa e sem sentido. As

* Plêiades. Mitologia: sete filhas de Atlas, foram transformadas em estrelas. Daí o nome da

constelação das Plêiades ou do Sete-estrelo, mencionada em Jó 38:31. Deu-se também o titulo de

Plêiades a sete poetas da antigüidade. Nota do Tradutor.

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figuras dos mandarins numa casa de chá, continuamente meneando a

cabeça, e das damas de cera que giram com movimentos uniformes na

vitrina do cabeleireiro, não são bons modelos para homens que têm

diante de si a importante obra de conquistar pecadores para viverem na

esfera da graça e da virtude. Vocês devem ser tão fiéis, tão verdadeiros,

tão profundamente ardorosos, que lhes sejam impossíveis os movimentos

meramente mecânicos, e tudo que lhes diz respeito significará vida,

energia, aptidão concentrada e zelo intenso.

Outro método de grotesco pode ser corretamente denominado,

método dos laboriosos. Certos irmãos nunca falharão no ministério por

falta de esforço. Quando sobem à tribuna sacra tencionam dar duro, e

dentro de pouco tempo estão bufando e resfolegando, como se fossem

operários trabalhando por peça. Entram num sermão com a resolução de

romper caminho através dele, empurrando tudo à sua frente. O reino dos

céus sofre violência da parte deles num sentido diverso daquele que é

visado pela Escritura.

"Como vai indo o seu novo pastor?", perguntou um amigo curioso a

um ouvinte simples. "Ora", respondeu o outro, "claro que vai para a

frente, pois toca o pecado como se estivesse abatendo um boi."

Excelente coisa para se fazer espiritualmente, não porém literalmente.

Quando ocasionalmente ouço contar que um rude irmão tirou o

colarinho e a gravata num dia muito quente, e que chegou a tirar o

paletó, acho que ele estava simplesmente se pondo em condições

favoráveis ao orador de físico vigoroso, pois é evidente que esse tipo de

irmão considera o sermão como uma batalha ou como uma luta de

competição. Um furacão irlandês que conheço quebrou uma cadeira

durante uma declamação contra o papado, e fiquei a tremer pela mesa

também. Um distinguido ator que se converteu e se fez pregador em

avançada idade, costumava golpear a mesa ou o assoalho com a bengala

quando se acalorava no discurso. Fez-me desejar tapar os ouvidos

quando as violentas pancadas do seu cajado se repetiam com rapidez e

força crescente. Qual a utilidade peculiar do barulho não sei dizer, pois

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Lições aos Meus Alunos (Vol. 1)

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estávamos todos despertos, e a voz dele era bastante forte. Contudo, não

há porque importar-nos com essa atitude do grande ancião, pois ele se

prestava ao "belo frenesi" do seu dedicado entusiasmo, mas não seria

desejável tal barulho partindo de algum de nós.

A ação laboriosa é freqüentemente uma relíquia herdada da

atividade exercida pelo pregador no passado. Como o velho caçador não

pode esquecer inteiramente os cães de caça, assim o bom homem não

pode livrar-se dos hábitos do estabelecimento em que trabalhava. O

irmão que foi especialista na fabricação de rodas, prega sempre como se

estivesse fazendo rodas. Se você entende da arte de fabricar carros e

rodas, pode perceber a maior parte dos processos ilustrada durante um

dos discursos mais vigorosos dele. Poderá detectar o engenheiro noutro

irmão, o tanoeiro num terceiro, e o merceeiro com sua balança num

quarto irmão. O colega que trabalhou no matadouro certamente nos

mostrará como se abate um boi de corte, quando chegar ao auge da

argumentação. Quando vejo o discurso ir de força em força, e o pregador

acalorar-se em seu trabalho, penso comigo mesmo: "Aí vem o

açougueiro com a sua machadinha, ali vai a gorda vaca, e caí por terra o

boi cativo."

Ora, essas reminiscências das ocupações anteriores nunca são muito

censuráveis e sempre são menos detestáveis do que a falta de jeito por

completo indesculpável dos cavalheiros que viveram nas câmaras do

saber desde a juventude. Às vezes estes labutam muitíssimo, mas com

muito menor semelhança a ocupações úteis. Esmurram o ar e dão duro

no trabalho de não fazer nada. Cavalheiros procedentes das

universidades são, com freqüência, mais abomináveis em suas atitudes

do que as pessoas comuns. Talvez a instrução recebida os tenha privado

da confiança em si, tornando-os nervosos e desajeitados.

Ocorre-me que alguns oradores imaginam que estão batendo

tapetes, ou cortando varetas, ou picando carne para lingüiça, ou passando

manteiga, ou enfiando os dedos nos olhos das pessoas. Ah, se eles

pudessem ver-se a si próprios como os outros os vêem, poderiam parar

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Lições aos Meus Alunos (Vol. 1)

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de representar diante do público, economizando os seus exercícios

físicos para outras ocasiões. Afinal, prefiro as demonstrações vigorosas e

laboriosas aos ares mais calmos e pomposos de certos oradores cheios de

si. Um esfrega as mãos muito satisfeito consigo mesmo, "Lavando suas mãos com sabão invisível, em água imperceptível",

e, enquanto isso, proclama as mais típicas trivialidades com ares de

quem sobrepuja Robert Hall ou Chalmers (famosos pregadores). Outro

faz pausa e olha em volta com nobre semblante, como se tivesse

comunicado inestimável informação a um grupo de indivíduos altamente

favorecidos, dos quais razoavelmente se poderia esperar que atingissem

um estado de intenso entusiasmo e expressassem o seu irresistível senso

de obrigação. Nada do que foi dito, foi além da mais simples conversa de

colegiais. Mas o ar de dignidade, a atitude de autoridade, e mesmo a

entonação dada pelo homem – tudo mostra quão completamente

satisfeito está. Esta pregação não é do tipo laborioso, mas me ocorreu

mencioná-la por ser o inverso dela, merecendo muito maior condenação.

Alguns simplórios se iludem, sem dúvida, e imaginam que quando

alguém fala de maneira pomposa, só pode estar dizendo algo grandioso.

Mas os sensatos primeiro se divertem, e depois se aborrecem com o

modo grandiloqüente, "a la grand seigneur" – à grande senhor.

Uma das grandes vantagens do treinamento da nossa Escola Bíblica

é a certeza de que o maneirismo inflado será por certo, destruído pela

amável violência com que todos os nossos estudantes se deleitam em

livrar o irmão desse perigo. Muitas pessoas cheias de vento foram

derrubadas nesta sala, pelo toque gracioso de vocês, para nunca mais

inflar-se retomando as dimensões antigas – espero eu. No ministério de

todas as igrejas há alguns que seriam beneficiados maravilhosamente por

um pouco da franca, senão rude, crítica suportada por florescentes

oradores que caíram em suas mãos. Gostaria que qualquer ministro a

quem tenha faltado esse martírio deveras instrutivo, encontrasse um

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Lições aos Meus Alunos (Vol. 1)

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amigo suficientemente sincero para apontar-lhe quaisquer

excentricidades nos modos, em que possa ter caído sem perceber.

Mas aqui é preciso não passar por alto outro orador do tipo

laborioso que temos em mente. Vamos denominá-lo, o pregador moto-

contínuo, que é todo ação, e levanta o dedo, ou agita a mão, ou bate

palmas a cada palavra. Nunca está em repouso, nem por um momento. É

tão ansioso por ser enfático, que na verdade anula o seu objetivo, pois,

quando cada palavra do discurso recebe ênfase mediante um gesto, nada

é enfático. Esse irmão desvia a atenção dos ouvintes, das suas palavras

para os seus movimentos. Os olhos realmente levam os pensamentos

para longe do ouvido e, assim, pela segunda vez, o pregador perde o fim

em vista. Essa movimentação contínua agita alguns ouvintes e irrita os

nervos. E não é de admirar, pois quem agüenta ver esse incessante

afagar, e apontar, e sacudir? Na movimentação, como em tudo mais,

"seja a vossa moderação conhecida de todos os homens."

Mencionei, pois, três espécies do grotesco – o rígido, o mecânico e

o laborioso – dando uma vista de olhos ao indolentemente engrandecido.

Encerrarei a lista mencionando outras duas. Existe o tipo marcial, que

também faz limites com o grotesco a ponto de merecer ser incluído nesta

categoria. Alguns pregadores parecem estar combatendo o bom combate

da fé toda vez que se levantam diante de um grupo de ouvintes.

Assumem atitude belicosa e, ou ficam em guarda contra um inimigo

imaginário, ou então atacam o adversário invisível com inflexível

determinação. Não poderiam ter aparência mais feroz se estivessem à

frente de um regimento de cavalaria, nem pareceriam mais satisfeitos no

fim de cada divisão do discurso, se tivessem combatido numa série de

Waterloos (vencendo outros tantos Napoleões). Curvam a cabeça para

um lado, com ar triunfante, como se prestes a dizer: Derrotei aquele

inimigo, e nunca mais ouviremos falar dele."

A última singularidade de movimentos que colocarei sob este ponto

é a do tipo descompassado. Neste caso, as mãos não estão no mesmo

compasso dos lábios. O bom irmão é um pouco tardio em seus

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movimentos e, daí, toda a operação fica desordenada. No princípio você

não consegue decifrar o homem. Parece socar e tocar sem pé nem

cabeça, mas, por fim, você percebe que os movimentos que ele faz –

agora são próprios para o que ele disse segundos antes. O efeito é

estranho ao extremo. É um enigma incompreensível para os que não têm

a chave para decifrá-lo e, quando plenamente compreendido, não perde

nada da sua esquisitice.

Além destas excentricidades, há um tipo de movimentação que,

para usar a expressão mais branda, deve ser descrita como

completamente feia. Para os deste caso, uma plataforma é "geralmente

necessária", pois ninguém consegue fazer-se tão inteiramente ridículo

quando oculto por um púlpito. Agarrar-se a um gradil e curvar-se cada

vez mais para baixo até quase tocar o piso é o cúmulo do absurdo.

Talvez seja uma posição apropriada como prelúdio de uma proeza de

ginástica de agilidade, mas como acompanhamento da eloqüência, é

monstruosa. Entretanto, eu já vi isso mais de uma vez. Acho difícil

descrever com palavras essa posição fora do comum, mas um retrato

mostraria como é ridícula e tornaria obsoleta a atitude. Um ou dois

irmãos se divertiram na minha tribuna dessa maneira extravagante, e são

bem-vindos para repetirem o ato, para ver se, ao ver-se traçados deste

modo rude, considerem aquela postura imponente e impressionante.

Seria muito melhor para tais atores que se relatasse deles o que se

registrou sobre o grande wesleyano Richard Watson: "Ele ficava

perfeitamente ereto, e quase toda a movimentação que empregava era um

ligeiro movimento da mão direita e um significativo meneio ocasional da

cabeça."

O hábito de encolher os ombros chega a dominar alguns

pregadores. Certo número de homens tem ombros largos por natureza, e

muitos outros mais parecem determinados a dar essa impressão, pois

quando não têm algo de peso para transmitir, apóiam-se, elevando as

costas. Um excelente pregador de Bristol, recentemente falecido, fazia

ressaltar a corcova, primeiro de um ombro e depois do outro, enquanto

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os seus grandiosos pensamentos lutavam para sair e, quando conseguia

expressá-los, parecia um corcunda, até o esforço esvair-se. Que lástima

um hábito desses tornar-se inveterado! Quão desejável evitar a sua

formação!

Diz Quintiliano: "Algumas pessoas levantam os ombros quando

falam, mas isso é um erro na gesticulação. Para curar-se disso,

Demóstenes costumava ficar numa tribuna estreita e praticar a oratória

com uma lança pendurada sobre o ombro de modo que, se no calor da

alocução ele deixasse de evitar aquele defeito, seria corrigido ferindo-se

contra a ponta." Este é um remédio agudo, mas valeria a pena uma ferida

ocasional, se os que destorcem a forma humana fossem curados desse

erro.

Numa reunião pública certa ocasião, um cavalheiro que parecia

muito em casa, falando com elevada dose de superioridade familiar, pôs

as mãos para trás, debaixo da dupla cauda do fraque, e o resultado foi

uma figura muito singular, especialmente para os que o viam de perfil,

estando ao lado da tribuna. À medida que o orador ficava mais animado,

movia as pontas do fraque com maior freqüência, lembrando ao

espectador a rabeta-ferreira (ave de cauda inquieta). É preciso ver para

apreciá-lo, mas uma só exibição será suficiente para convencer qualquer

pessoa sensata de que, por mais gracioso que um fraque seja, de modo

nenhum contribuí para a solenidade da ocasião ver as pontas da cauda

desse traje projetando-se por trás do orador.

Vocês também devem ter visto nas reuniões o cavalheiro que põe as

mãos nos quadris e, ou olha como se desafiasse o mundo, ou como se

estivesse suportando considerável dor. Esta posição lembra muito mais a

Billingsgate e as mulheres que ali gritam anunciado a venda de peixes,

do que a eloqüência sacra. Os braços "akimbo", creio que é como dizem

(descrevendo o movimento de colocação das mãos nas cadeiras, com os

cotovelos voltados para fora), e o próprio som da palavra sugerem o

ridículo, não o sublime. Podemos ceder a isso no momento próprio, mas

fazer um discurso com aquela postura é absurdo. Pior ainda é meter as

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mãos nas calças, como as pessoas que se vêem nas estações ferroviárias

francesas que, provavelmente, enfiam as mãos nos bolsos porque nNão

há nada neles, e a natureza detesta o vácuo. Ninguém será criticado por

colocar um dedo no colete por um instante, mas enfiar as mãos nas

calças é ultrajante. Haverá a sensação de completo desprezo pelos

ouvintes e pelo tema, diante de um homem que chegue a fazer isso.

Cavalheiros, porque vocês são cavalheiros, nunca precisarão ser

advertidos contra essa prática, pois não se rebaixarão a ela. Uma vez ou

outra, perante ouvintes excessivamente delicados e emproados, um

homem pode ser tentado a causar choque à estulta afabilidade deles

adotando liberdade e certo relaxamento, visando ao protesto de uma rude

varonilidade. Ver, porém, um homem pregar com as mãos nos bolsos

não nos lembrará nem um profeta, nem um apóstolo. Há irmãos que

estão sempre fazendo isso, e o fazem confiados no poder da sua

personalidade. Pois são estes mesmos que não deveriam fazer coisa

alguma dessa espécie, porque o seu exemplo é poderoso e eles são um

tanto responsáveis pelos fracotes que os imitam.

Outro estilo indecente é quase ligado ao precedente, embora não

seja tão condenável. Pode-se ver nos jantares públicos da classe comum,

onde os alvos coletes precisam de uma pequena exibição extra, e nas

reuniões de operários, em que um empregador oferece um banquete aos

seus homens, e está respondendo ao brinde da "firma". Ocasionalmente

se exibe em reuniões religiosas, onde o orador é homem de importância

local e se sente monarca sobre todos os que estão sob suas vistas. Neste

caso, os polegares são inseridos nas cavas do colete, e o orador atira para

trás o casaco, pondo a descoberto a parte inferior da camisa. A isto dei o

nome de estilo de pingüim, e não consigo achar comparação melhor.

Para um lacaio ou cocheiro num soirée (sarau), ou para um membro da

Ordem dos Sujeitos Estrambóticos, essa atitude pode ser adequada e

digna; e um venerando senhor numa reunião familiar pode falar aos seus

meninos e meninas naquela posição. Mas, para um orador público, e

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muito mais para um ministro, como hábito usual, está tão fora das boas

qualidades requeridas quanto uma postura pode estar.

Companheiro desse modo de agir é o costume de segurar o paletó

perto da gola, como se o orador considerasse necessário manter-se bem

seguro pelas mãos. Alguns agarram firmemente o vestuário nessa parte,

e depois esfregam as mãos para cima e para baixo como se pretendessem

dobrar o paletó em algum ponto, ou alongar a gola. Parecem pender da

parte dianteira do paletó, como um homem agarrado em duas cordas. É

de admirar que a roupa não se rasgue por trás, à altura do pescoço. Esta

prática não acrescenta nada à força ou à clareza do estilo do orador, e sua

provável significação é: "Estou tranqüilo à bessa, e ouvir a minha voz

me deleita grandemente."

Supondo que seria bom eliminar tantas feiúras quantas for possível,

mencionarei mesmo aquelas que são um tanto raras. Lembro-me de um

ministro competente, que estava acostumado a fitar a palma da sua mão

esquerda enquanto, com a direita, parecia ir tirando dali as suas idéias.

Divisões, ilustrações, pontos de exposição, pareciam brotar em sua

palma como outras tantas flores, que ele parecia arrancar

cuidadosamente pela raiz, uma por uma, exibindo-as ao público. Isso

tinha pouca importância, pois o pensamento daquele pregador era da

mais alta ordem de excelência, mas o certo é que aqueles movimentos

não tinham graça nenhuma.

Um pregador de classe nada inferior costumava levantar o punho

até à própria testa e tocar de leve na fronte, como se precisasse bater à

porta da mente para despertar os seus pensamentos. Isso também era

mais peculiar do que eficaz.

Fincar na mão esquerda o indicador da direita, como que abrindo

pequenos buracos na palma, ou usar dito dedo em riste, como se você

estivesse apunhalando o ar, é outra atitude extravagante que não deixa de

ter o seu lado cômico.

Passar a mão pela testa quando o pensamento é profundo e não está

fácil encontrar a palavra exata, é um movimento muito natural, mas

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copar a cabeça não é igualmente aconselhável embora talvez

perfeitamente natural. Vi esta última cena levada a consideráveis

extensões, mas nunca me enamorei dela.

Não posso deixar de mencionar uma ridicularia acidental que é

demasiadamente comum. Alguns irmãos sempre dão ordens com a mão

espalmada, que continuam movendo para cima e para baixo ao ritmo de

cada sentença. Ora, este movimento é excelente a seu modo, se não for

executado de maneira muito monótona, mas infelizmente está sujeito a

acidentes. Se o ardoroso orador continua a mover a mão para cima e para

baixo, corre o grande perigo de apresentar uma aparência com

implicações deploráveis. O objetivo da ação é o simbólico, mas,

infelizmente, o símbolo está um tanto vulgarizado, e tem sido descrito

como "pôr o dedão do despeito no nariz da desfeita." Alguns há que

tolamente cometem esse erro uma série de vezes durante um discurso.

Vocês deram risada destes retratos que procurei esboçar para sua

edificação. Cuidado, que ninguém venha a rir-se de vocês por caírem

nestas atitudes absurdas ou noutras semelhantes.

Devo confessar, porém, que não penso tão mal de qualquer delas,

ou de todas juntas, como penso do estilo superfino, inteiramente

desprezível e abominável. É pior do que o vulgar comum, pois é a

própria essência da vulgaridade, aromatizada com ostentações e ares de

fidalguia. Rowland Hill esboçou a coisa que estou condenando no retrato

que fez do Sr. Taplash. É certo que é uma representação mais correta de

características de cinqüenta anos atrás, do que de agora, mas nos traços

principais ainda é suficientemente exata. "O orador, em sua primeira apresentação, vinha empertigado e vestido

com a mais consumada elegância. Nem um fio de cabelo se achava fora de lugar em seu crânio vazio, no qual o barbeiro estivera exercendo o seu oficio toda a manhã de domingo; e empoado até ficar alvo como a neve. Assim elegantemente decorado, e cheirando como um gato almiscarado, pela abundância de perfume, impregnava o ar de aroma quando passava. Então, com o mais vaidoso saltitar, subiu ao púlpito como se estivesse saindo de uma chapelaria. E ali tinha de exibir Não somente a sua elegante produção

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como também a sua elegância pessoal, sua mão alva e delicada exibindo um anel de diamante, enquanto o seu lenço branco, recendendo a finos aromas, era desdobrado e manuseado com admirável destreza e arte. Seu frasco de sais aromáticos era levado ocasionalmente ao nariz, dando ao dono diversas oportunidades para exibir o cintilante anel. Tendo desse modo ajustado a importante questão do lenço e do frasco de sois, em seguida tirava os óculos, para poder reconhecer a nata do seu auditório, pessoas com as quais talvez tivesse agido galantemente, entretendo-as com sua conversa barata no dia anterior. A estas, tão logo lhes encontrava os olhos, favorecia com um olhar sorridente e com um aceno gentil."

Esta é uma pungente versão de uma resenha publicada por Cooper

sobre certos "mensageiros da graça" que "voltavam a si" quando acabava

o sermão. Pequeninas personalidades, devem ter sido. "Sai o espelho de bolso, e primeiro riscamos a sobrancelha; logo o cabelo aprumamos. Em seguida, com ar graciosamente armado, na poltrona caímos e o braço estendemos e o pousamos gentis no braço da poltrona com o lenço estirado e pendendo da mão. Mais ocupada, a destra oferece ao nariz seu perfume, ou ajuda presta aos olhos gratos com binóculos para ver moventes cenas e olhar a exposição que devagar se esvai. Ora, isto é repugnante, e a mim me ofende mais do que, no homem da igreja, a ociosa negligência e a grosseria rústica."

"Grosseria rústica" é algo reanimador, depois de se estar cansado da

vaidade fútil. Bem fazia Cícero, exortando os oradores a adotarem antes

os gestos do quartel ou da arena, do que os dos dançarinos com suas

finuras efeminadas. Nunca se deve sacrificar a varonilidade à elegância.

Os operários nunca serão levados sequer a pensar na verdade do

evangelho por mestres que são finos almofadinhas. O trabalhador

britânico admira a virilidade e prefere dar ouvidos a alguém que fala

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num estilo natural e sincero. Na verdade, os operários de todas as nações

tendem mais a ser tocados por uma negligência bravia do que por uma

presunçosa atenção à aparência pessoal. A história contada pelo abade

Mullois é – suspeitamos – apenas uma dentre uma série numerosa.

Um operário parisiense convertido, homem de boa disposição mas

franco, cheio de energia e de espírito, que tinha falado muitas vezes com

grande sucesso em agremiações compostas de homens da sua classe, foi

abordado pelo pregador que o levara a Deus. Pediu-lhe que lhe

informasse por qual instrumentalidade ele, que antes fora tão alienado da

religião, chegara a ser restaurado à fé. "Dai-me a informação", disse o

interrogador, "pode ser-me útil nos esforços que faço para recuperar

outros." "Acho que não", replicou o homem, "pois devo dizer-lhe

francamente que o senhor não figura de modo notável no caso." "Não

importa", disse o outro, "Não será a primeira vez que ouço a mesma

observação." "Bem, se quer ouvir, posso contar-lhe em poucas palavras

como se deu o fato. Uma boa senhora me havia importunado, insistindo

que lesse o seu livrinho – perdoe-me a expressão; eu costumava falar

nesse estilo naqueles tempos. Ao ler umas poucas páginas, fiquei tão

impressionado que tive grande desejo de vê-lo.

"Disseram-me que o senhor pregava em certa igreja, e fui ouvi-lo.

Seu sermão acrescentou algum efeito em mim, mas, para falar com

franqueza, muito pouco. Na verdade, comparativamente, nada. O que fez

muito mais por mim foi a sua maneira aberta, simples e descontraída.

Acima de tudo, o seu cabelo mal penteado; pois sempre detestei aqueles

clérigos cujas cabeças lembram a de um cabeleireiro; e disse a mim

mesmo: 'Visto que esse homem se esquece de si próprio em nosso

benefício, devemos, portanto, fazer alguma coisa a favor dele.' Daí

resolvi visitá-lo, e o senhor me embolsou. Foi assim que a coisa começou

e acabou."

Existem tolas senhoritas arrebatadas por algum jovem cujo

principal pensamento é a sua preciosa pessoa. É de esperar que estas

estejam escasseando cada dia que passa. Mas, os homens sensatos, e

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especialmente os robustos trabalhadores das nossas grandes cidades,

detestam completamente qualquer sinal de vaidade num ministro. Onde

quer que você encontre ostentação presunçosa, encontrará ao mesmo

tempo uma barreira entre aquele homem e a multidão dotada de bom

senso. Poucos ouvidos se deleitam com a voz do pavão.

É uma lástima não podermos persuadir todos os ministros a serem

homens, pois é difícil ver como doutro modo serão verdadeiros homens

de Deus. É igualmente deplorável que não possamos induzir os

pregadores a falarem e gesticularem como outras pessoas sensatas, pois

lhes será impossível cativar as massas enquanto não o fizerem. Todas as

estranhas questões de atitude, entonação e vestuário do barricadas entre

nós e o povo. Temos que falar como homens, se queremos ganhar

homens. A recente volta ao uso de chapéu na Igreja Anglicana é, por esta

razão, bem como por razões mais graves, um passo na direção errada. Há

cem anos, o vestuário dos clérigos era quase tão distinto como agora,

mas não tinha sentido doutrinário, e não passava de vaidade no vestir, se

se deve crer em Lloyd, quanto ao que diz em sua Súplica Métrica em

Favor dos Eclesiásticos.

Ele ataca os párocos com muita franqueza e, dentre os restantes,

descreve um janota canônico: "Veja o Nugavã, seus enredos e meneios, um fantoche de igreja, nada mais que autômato ordenado. Olhe o seu andar miúdo e tênue. A religião é creme e capa no seu rosto! É todo religião, desde a cabeça aos pés! Os chapeleiros e os barbeiros fazem isto. Emprega a religião imitando o modista; é ortodoxa somente em coisas exteriores: faixas, luvas, anéis, chapéus, batinas, túnicas. Sinal do seu saber é a touca de doutor, e prova a sua bondade – porque a roupa é boa."

Este apego às vestes garbosas levou a uma empertigada nobreza no

púlpito. Chamavam-lhe "dignidade", e se orgulhavam dela. Distinção e

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decoro eram sua principal preocupação, e estas se mesclavam com

pompa ou com ostentação tola e risonha, conforme as peculiaridades de

cada criatura, até que os sinceros se cansaram das suas representações

ocas, e partiram para longe daquelas ministrações bombásticas. Os

pregadores também estavam preocupados demais com sua apresentação

à altura para terem qualquer interesse por serem úteis. Não iriam

condescender em utilizar os gestos que tornariam as suas palavras um

pouco mais inteligíveis, pois, que lhes interessava o vulgar? Se as

pessoas de bom gosto ficavam satisfeitas, eles tinham toda a recompensa

que desejavam, e enquanto isso as multidões pereciam por falta de

conhecimento. Deus nos livre do comportamento fino e das maneiras

distintas e gentis, se isto mantém o povo alienado do culto público que a

Deus prestamos.

Em nossos dias essa ostentação doentia é muito mais rara,

esperamos, mas sobrevive ainda. Tivemos a honra de conhecer um

ministro que não podia pregar sem suas luvas de pelica preta. Certa vez,

vendo-se sem elas num certo púlpito, desceu e foi à procura delas no

gabinete pastoral. Infelizmente, um dos oficiais tinha ido acomodar-se

nos bancos levando não só o seu chapéu, como tencionava, mas também

o chapéu e as luvas do pregador, e enquanto se descobria isto, o teólogo

estava em terrível agitação, exclamando: "Nunca prego sem luvas. Não

posso fazê-lo. Não poderei ir ao púlpito enquanto não as achar." Gostaria

que não as tivesse encontrado nunca, pois se daria melhor atrás do balcão

de uma loja de confecções do que numa tribuna sacra. Toda sorte de

desalinho deve ser evitada por um ministro, mas os dotados de

varonilidade caem mais freqüentemente neste erro do que no outro

defeito de tipo efeminado. Portanto, façam o máximo para fugir deste

erro pior.

Cowper diz: "Aborreço de alma toda afetação."

Assim deve ser com todos os homens sensatos. Todos os

estratagemas e efeitos teatrais são insuportáveis quando se deve

transmitir a mensagem do Senhor. É melhor ter vestes rotas e fala tosca,

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Lições aos Meus Alunos (Vol. 1)

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de modo sincero e sem arte, do que o pedantismo clerical. É melhor

violar todas as regras da elegância do que ser apenas um intérprete

teatral, um ator consumado, um artista num palco. O caricaturista de

vinte anos atrás favoreceu-me com o título de Enxofre, e colocou lado a

lado comigo um declamador pedante a quem chamou Melado. Fiquei

inteiramente satisfeito com a sorte que me tocou, mas não poderia dizer

tanto se fosse representado com o retrato do meu companheiro. Melaços

e outras substâncias açucaradas me fazem adoecer. Um janota no púlpito

faz-me sentir como Jeú quando viu a cabeça enfeitada e o rosto pintado

de Jezabel, e gritou indignado: "Lançai-a daí abaixo."

Eu ficaria muito aborrecido se alguma das minhas observações

sobre as atitudes grotescas levasse um de vocês a ensaiar posturas e

representações. Isto seria fugir do ruim para o pior. Dissemos que o Dr.

Hamilton recebeu aulas de um mestre a fim de livrar-se de sua falta de

firmeza, mas ficou evidenciado que o resultado não foi muito animador,

e temo seriamente que os mestres profissionais produzem mais males do

que curas. Talvez o mesmo resultado decorra da minha tentativa de

amador, mas, pelo menos, quero impedir quanto possível aquela

desventura com minhas severas advertências. Não pensem em como vão

gesticular quando pregarem, mas aprendam a arte de fazer a coisa certa

sem dedicar-lhe um pensamento sequer.

Nossa última regra resume todas as outras: sejam naturais em suas

atitudes. Fujam até da aparência de gestos estudados. A arte é fria;

somente a natureza tem calor. Que a graça os livre de toda falsa

aparência e, em todos os movimentos e em todos os lugares sejam

autênticos, ainda que tenham que ser considerados rudes e incultos. Que

o seu maneirismo seja seu mesmo. Que nunca seja uma polida mentira,

ou o arremedo da amabilidade, o fingimento da paixão, a simulação da

sensibilidade emotiva, ou a imitação do modo alheio de pregar – o que é

na prática uma mentira. "Foge, pois, de qualquer atitude ou olhar, e teatral movimento ante o espelho ensaiados."

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Lições aos Meus Alunos (Vol. 1)

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Nosso objetivo é remover as excrescências da natureza tosca, não

produzir artificialismo e afetação. Queremos podar a árvore; de modo

nenhum tencionamos aparelhá-la, dando-lhe forma fixa. Queremos que

os nossos estudantes pensem na questão das atitudes no púlpito enquanto

estão conosco na escola, para que nunca mais tenham necessidade de

pensar nisso posteriormente. A matéria é imponderável demais para

fazer parte do seu programa semanal de estudos quando entrarem de fato

na luta da vida ministerial. É preciso que atentem para o assunto agora, e

de modo cabal.

Vocês não são enviados por Deus para pedir sorrisos, mas para

ganhar almas. Seu mestre não é o professor de dança, mas o Espírito

Santo, e a maneira de se conduzirem no púlpito só requer um

pensamento momentâneo, porque pode estorvar o seu bom êxito levando

os ouvintes a fazerem observações sobre o pregador quando o que vocês

querem é que todo o pensamento deles esteja centralizado no assunto da

pregação. Se a melhor atitude tivesse aquele efeito negativo, eu os

exortaria a renegá-la, e se a pior gesticulação impedisse aquele resultado,

eu os aconselharia a praticá-la. Tudo que pretendo é recomendar

movimentos serenos, delicados, espontâneos, porque têm maior

probabilidade de não desviar a atenção.

Toda a questão da entrega da mensagem deve ser una. Tudo deve

estar em harmonia. O pensamento, o espírito, a linguagem, a entonação e

os movimentos devem constituir uma peça só, visando tudo, não à

conquista de honra para nós, mas à glória de Deus e ao bem dos homens.

Se for assim, não há por que temer que vocês violem a norma quanto a

serem naturais, pois não lhes ocorrerá ser doutro modo. Tenho porém um

temor, que é o seguinte: vocês podem cair numa estulta imitação de

algum ministro admirado, e isto em alguma extensão os tirará da trilha

certa. Cada movimento de um homem deve corresponder a ele e brotar

da sua personalidade. O estilo do Dr. Golias, de mais de dois metros de

altura, não se adapta à estatura e à personalidade do nosso amigo

Baixote, que é um Zaqueu entre os pregadores: Tampouco o maneirismo

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Lições aos Meus Alunos (Vol. 1)

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de um idoso e venerando teólogo serve para o jovem Apolo, mal saído

da adolescência.

Ouvi dizer que durante bom tempo muitos jovens ministros

congregacionais imitaram o pastor que pregava na Capela de Weigh

House, em Londres, e assim havia pequenos Binney por toda parte

copiando o grande Thomas em tudo, menos em sua pregação impregnada

de pensamento. Corre o boato de que há por aí um ou dois jovens

Spurgeon. Se é assim, espero que a referência seja aos meus dois filhos,

que têm direito ao nome por nascimento. Se alguns de vocês vierem a ser

copistas de mim, vou considerá-los espinhos na carne, e os classificarei

entre aqueles que, como Paulo diz, "suportamos alegremente."

Contudo, tem-se dito com sabedoria que todo principiante deve

necessariamente ser imitador por algum tempo. O artista segue o seu

mestre enquanto adquire com simplicidade os rudimentos da arte, e

talvez continue sendo a vida toda um pintor da escola à qual se ligara no

princípio. Mas, conforme vai ganhando proficiência, desenvolve a sua

individualidade, chega a ser um pintor com seu próprio estilo – e lhe foi

melhor, e nem um pouco ruim, que nos seus primeiros dias se

contentasse em sentar-se aos pés de um mestre.

Acontece necessariamente a mesma coisa na oratória. Portanto,

pode ser demasiado dizer: nunca imitem ninguém; mas talvez seja

melhor exortá-los a imitarem a melhor atitude que possam encontrar, a

fim de que o estilo de cada um de vocês, durante a sua formação, seja

modelado corretamente. Corrijam a influência de qualquer pessoa com

aquilo que vejam de excelente em outras. Todavia, tratem de criar o seu

próprio modo de se conduzir. Imitação servil é prática de macaco, mas

seguir outro por onde ele conduz direito, e somente ali, é sabedoria do

homem prudente. Nunca, porém, deixem que a originalidade natural seja

malograda por sua imitação dos melhores modelos da antigüidade ou dos

mais apreciados dentre os modernos.

Em conclusão, não permitam que as minhas críticas a várias

posturas e movimentações grotescas os persigam no púlpito. Seria

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Lições aos Meus Alunos (Vol. 1)

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melhor praticá-las todas do que ficar com medo, pois isto os faria

acanhados mentais e desajustados. Lancem-se a isso, quer seja asneira,

quer não. Nesta matéria, poucos erros conterão a metade do mal que

existe no erro do nervosismo. Pode acontecer que, o que seria excêntrico

em outrem, seja muitíssimo apropriado em você. Daí, não tome o dito de

qualquer pessoa como aplicável a todos os casos, nem ao seu mesmo.

Você vê como John Knox é retratado na bem conhecida gravura. Sua

postura é elegante? Talvez não. Todavia, não é exatamente o que devia

ser? Poderá achar algum defeito nela? Não é parecida com Knox, e

repleta de poder? Não se enquadraria bem num homem dentre cada

cinqüenta. Na maioria dos pregadores pareceria forçada, mas no grande

reformador é característica, e combina com a obra que lhe absorveu a

vida. Você deve recordar a pessoa, os tempos e as circunstâncias, e então

o maneirismo passa a ser visto transformado num pregador e herói

enviado para realizar a obra de um Elias e a proclamar as suas

admoestações na presença de uma corte papista que odiava as reformas

que ele exigia.

Seja você mesmo, como Knox foi ele próprio. Ainda que tenha que

ser rude e desajeitado, seja você mesmo. Suas roupas, embora de

confecção caseira, servem-lhe melhor do que as de outro homem, mesmo

que estas sejam feitas da melhor fazenda. Se quiser, poderá seguir a

moda do vestuário do seu preceptor, mas não tome emprestado o casaco

dele. Contente-se com um que seja seu mesmo.

Acima de tudo, seja tão cheio de interesse, fervoroso e gentil, que

os ouvintes liguem pouco para o modo como você veicula a palavra,

pois, se perceberem que ela é recém-chegada do Céu, e a acharem

agradável e abundante, terão em pequena monta o cesto em que lhes é

trazida. Deixe que digam, se lhes aprouver, que a sua presença física é

fraca, mas ore no sentido de que confessem que o seu testemunho tem

peso e poder. Encomende-se à consciência de cada pessoa, à vista de

Deus, e então a simples questão das essências da postura raramente será

levada em conta.

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Lições aos Meus Alunos (Vol. 1)

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FERVOR: SUA DEFORMAÇÃO E SUA PRESERVAÇÃO

Se me perguntassem: Qual a qualidade deveras essencial de um

ministro cristão que assegura êxito na conquista de almas para Cristo?

Eu responderia: "fervor". E se me fizessem a mesma pergunta uma

segunda e uma terceira vez, não mudaria a minha resposta, pois a

observação pessoal me leva a concluir que, em regra, o verdadeiro

sucesso é proporcional ao grau em que o pregador é ardoroso. Tanto os

grandes homens como os de menor vulto obtêm bom êxito se vivem

inteiramente para Deus, e, se não, falham. Conhecemos homens

eminentes que alcançaram alta reputação, atraem multidões de ouvintes e

são muito admirados, mas, não obstante, estão em baixo grau na escala

dos conquistadores de almas. Isso porque tudo o que fazem naquela

direção poderiam aplicar sendo preletores de anatomia ou oradores

políticos.

Ao mesmo tempo, temos visto seus companheiros de habilidades

sendo tão benéficos à atividade ligada à conversão dos pecadores que,

evidentemente, as suas capacidades adquiridas e os seus dons não lhes

constituem obstáculos, e, sim, o inverso. Sim, porquanto, pelo intenso e

devotado uso das suas capacidades, e pela unção do Espírito Santo,

levaram muitos a volver-se para a justiça. Temos visto irmãos de

habilidades muito limitadas, terríveis carretões na igreja, que se mostram

tão ineficientes em suas esferas de ação como os cegos num

observatório. Por outro lado, porém, homens dotados de potencial

igualmente pequeno, são-nos conhecidos como poderosos caçadores

diante do Senhor, mediante cuja santa energia muitos corações foram

capturados para o Salvador.

Delicia-me a observação de McCheyne: "O que Deus abençoa não é

tanto o grande talento, como a grande semelhança com Cristo."

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Lições aos Meus Alunos (Vol. 1)

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Em muitos casos se rastreia e se encontra a explicação quase total

do sucesso ministerial num zelo intenso, numa consumidora paixão pelas

almas e num ardente entusiasmo pela causa de Deus; e cremos que em

cada caso, estando as outras coisas presentes em igual medida, os

homens prosperam no serviço divino na proporção em que os seus

corações estejam inflamados de santo amor: "O deus que responder por

fogo esse será Deus"; e o homem que tiver língua de fogo, esse será

ministro de Deus.

Irmãos, como pregadores, vocês e eu devemos ser sempre

fervorosos com referência ao nosso trabalho de púlpito. Nisto devemos

labutar para atingir de fato o supremo grau de excelência.

Freqüentemente digo a meus irmãos que o púlpito do as Termópilas da

cristandade; ali a batalha será ganha ou perdida. Para nos ministros, a

preservação do nosso poder no púlpito deve ser a nossa grande

preocupação. Temos que ocupar aquela torre de vigia com os nossos

corações e mentes alertados e em pleno vigor. Não nos adiantará sermos

laboriosos pastores se não formos pregadores fervorosos. Receberemos o

perdão de muitos pecados na questão das visitas pastorais, se as almas

forem realmente alimentadas no dia de santo repouso. Mas, alimentadas

é o que devem ser, e nenhuma outra coisa compensará isso. Os fracassos

de muitos ministros que vão água abaixo podem ser explicados pela

ineficácia no púlpito. A principal atividade de um capitão do mar é saber

dirigir o seu navio; nada pode ressarcir a deficiência nisso. Assim os

nossos púlpitos devem receber o nosso maior cuidado, ou tudo andará

torto. Os cães brigam com freqüência porque o suprimento de ossos é

escasso, e freqüentemente os membros das igrejas brigam porque não

recebem alimento espiritual suficiente para mantê-los felizes e pacíficos.

A razão aparente da insatisfação pode parecer alguma outra coisa, mas,

nove vezes em dez a deficiência nas rações é a causa das dissensões que

ocorrem em nossas igrejas. Como todos os outros animais, os homens

sabem quando estão bem alimentados, e geralmente se sentem bem

dispostos depois de uma refeição. Assim, quando os ouvintes vêm à casa

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Lições aos Meus Alunos (Vol. 1)

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de Deus e obtêm "alimento conveniente para eles", esquecem muitas

ofensas na alegria da festa, mas se forem mandados embora com fome,

estarão irritadiços como uma ursa cujas crias lhe foram roubadas.

Agora, para sermos aceitáveis, precisamos ser fervorosos quando

aplicados à pregação propriamente dita. Bem disse Cecil que o espírito

e os modos do pregador muitas vezes produzem mais efeito do que o

conteúdo da mensagem. Ir para o púlpito com o ar negligente daqueles

cavalheiros que se refestelam aqui e acolá, e se recostam na almofada

como se tivessem encontrado afinal um tranqüilo lugar de repouso, é,

creio eu, extremamente censurável. Levantar-se diante do povo para

distribuir lugares comuns que não custaram nada ao pregador, como se

qualquer coisa servisse para um sermão, não apenas deprecia a dignidade

do nosso oficio, mas é ofensivo à vista de Deus.

Temos que ser fervorosamente zelosos no púlpito por amor de nós

mesmos, pois não conseguiremos manter por muito tempo a nossa

posição de líderes da igreja de Deus se formos insípidos. Além disso,

temos que ser dinâmicos por amor dos membros da igreja e dos

conversos, pois, se não formos zelosos, nem eles o serão tampouco. Não

é da ordem da natureza que os rios corram morro acima, e não acontece

com freqüência que o zelo suba dos bancos dos ouvintes ao púlpito. O

natural é que flua de nós para os nossos ouvintes. Portanto, o púlpito

deve estar em nível mais alto de ardor, se é que havemos de, sob Deus,

tornar os crentes mais fervorosos, e conservá-los assim. Aqueles que

acompanham o nosso ministério têm muito que fazer durante a semana.

Muitos deles têm provações na família e pesadas cargas pessoais para

transportar, e freqüentemente entram na reunião frios e desligados, com

os pensamentos perambulando para lá e para cá. Compete-nos apanhar

aqueles pensamentos e lançá-los ao formo do nosso zelo fervoroso,

fundi-los mediante contemplação santa e apelos intensos, despejando-os

depois no molde da verdade.

O ferreiro não pode fazer nada depois que se apaga o fogo, e, neste

aspecto, é o tipo do ministro. Se todas as luzes do mundo exterior se

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Lições aos Meus Alunos (Vol. 1)

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extinguem, a lâmpada que arde no santuário deve permanecer

chamejante; por este fogo jamais deve repicar o toque de recolher.

Devemos considerar os freqüentadores como a madeira e o sacrifício,

bem embebidos duas ou três vezes pelas preocupações da semana, e

sobre os quais devemos, como o profeta, rogar fogo dos céus. Um

ministro molenga cria um auditório de molengas. Você não pode esperar

que os oficiais e os membros da igreja viajem a vapor se o próprio pastor

que elegeram ainda dirige a velha carroça de rodas grandes. Cada um de

nós devia ser como aquele reformador descrito como, "Vividus vultus,

vividi occuli, vividae manus, denique omnia vivida", que prefiro traduzir

livremente assim: "Figura irradiando vida, olhos e mãos cheios de vida;

em suma, um pregador vívido, totalmente vivo." "A tua alma precisa transbordar, se alcançar a alma de outrem é o que quer. A fim de dar aos lábios bem falar, coração transbordante se requer."

Como a igreja, o mundo também sofrerá, se não formos fervorosos.

Não podemos esperar que um evangelho vazio de fervor exerça poderoso

efeito sobre os inconversos ao nosso redor. Uma das desculpas mais

soporíferas para a consciência de uma gerarão iníqua é a indiferença do

pregador. Se o pecador nota que o pregador está meio dormindo

enquanto fala do juízo vindouro, concluí que esse juízo é algo sobre o

que o pregador está sonhando, e resolve considerar isso tudo como

simples ficção. Todo o mundo exterior é objeto de sério perigo a que o

submete o pregador de coração frio, pois ele deduz a mesma conclusão a

que chega o pecador individual: persevera em sua negligência, dedica

suas energias aos seus bens transitórios, e se considera sábio por agir

assim. Como poderia ser de outro modo? Se o profeta deixa para trás o

coração quando professa falar em nome de Deus, que poderá esperar,

senão que os ímpios ao seu redor fiquem persuadidos de que não há nada

na mensagem dele, e que sua comissão evangélica é uma farsa?

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Lições aos Meus Alunos (Vol. 1)

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Ouçam como Whitefield pregava, e nunca mais ousem ser

letárgicos. Winter diz dele que "às vezes chorava copiosamente, e

freqüentemente ficava tão dominado que, por alguns segundos, você

suspeitaria que ele nunca mais se recuperaria; e ao recuperar-se, a

natureza exigia um pouco de tempo para recompor-se. Mal sei se houve

alguma ocasião em que ele foi até o fim do sermão sem chorar pouco ou

muito. Sua voz muitas vezes era interrompida por seus impulsos de

afeto. Eu lhe ouvi dizer no púlpito: "Vocês me censuram por chorar.

Mas, como posso deixar de fazê-lo, quando vocês não choram por si

mesmos, apesar de que as suas almas estão à beira da destruição, e algo

me diz que vocês estão ouvindo um sermão pela última vez e pode ser

que nunca mais tenham oportunidade de receber o oferecimento de

Cristo?"

O fervor no púlpito deve ser real. Não deve ser um arremedo. Nós o

vimos falsificado, mas qualquer pessoa com um pingo de discernimento

podia detectar o embuste. Bater os pés, golpear o púlpito, suar, gritar,

vociferar, citar trechos patéticos de sermões alheios, ou derramar

voluntárias lágrimas de olhos aguacentos, nunca substituirão a

verdadeira agonia de alma e real ternura de espírito. A melhor peça de

representação não passa de representação. Os que só olham as aparências

podem agradar-se dela, mas os que amam a realidade terão desgosto.

Que presunção! Que hipocrisia é, com habilidoso controle da voz, imitar

a paixão que é a obra genuína do Espírito Santo! Tenham cuidado os

meros atores, para não serem achados pecando contra o Espírito Santo

com as suas representações teatrais.

Devemos ser fervorosos no púlpito porque somos fervorosos em

toda parte. Precisamos flamejar em nossos discursos porque estamos

continuadamente inflamados. O zelo que fica armazenado para ser posto

em ação somente nas ocasiões grandiosas é um gás que um dia destruirá

o seu proprietário. Nada senão a verdade pode aparecer na casa do

Senhor. Toda afetação é fogo estranho e provoca a indignação do Deus

da verdade. Seja fervoroso, e parecerá fervoroso. Um coração ardente

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logo achará para si uma língua flamejante. Fingir fervor é um dos mais

desprezíveis artifícios empregados para cortejar a popularidade;

detestemos até o pensar nisso. Pode ir, e seja negligente no púlpito, se é

o que você é no coração. Seja lerdo no falar, arrastado na entonação e

monótono na voz, se é assim que expressa melhor a sua alma. Mesmo

isso seria infinitamente melhor do que fazer do seu ministério uma

mascarada, e de você mesmo um ator.

Entretanto, o nosso zelo durante o ato de pregar deve ser seguido

por intensa solicitude quanto aos resultados posteriores. Se não for

assim, teremos razão para questionar a nossa sinceridade. Deus não

enviará uma colheita de almas aos que nunca vigiam nem regam os

campos que semearam.

Concluído o sermão, só temos que lançar a rede que depois

arrastaremos para a praia mediante a oração e a vigilância. Aqui penso

que não posso fazer melhor do que deixar que um advogado mais hábil

argumente com vocês, e cito as palavras do dr. Watts: "Seja muito

solícito acerca do sucesso dos seus trabalhos no púlpito. Regue a

semente semeada, não somente com oração pública, mas também com

oração em secreto. Rogue a Deus importunamente que Ele não permita

que você trabalhe em vão. Não seja como a estulta avestruz que põe os

ovos na terra e ali os deixa, sem considerar se chegarão à vida ou não (Jó

39:14-17). Deus não deu entendimento àquela ave, mas não permita que

essa insensatez seja o seu caráter ou sua prática. Trabalhe, vigie e ore,

para que os seus sermões e o fruto dos seus estudos se transformem em

palavras de vida divina para as almas.

Uma observação do piedoso Sr. Baxter (que li algures em suas

obras) é que ele jamais conheceu qualquer sucesso considerável dos

talentos mais brilhantes e mais nobres, nem da mais excelente espécie de

pregação, nem mesmo quando os pregadores eram verdadeiramente

religiosos, se não tinham solícito interesse pelo êxito das suas

ministrações. Que o terrível e importante pensamento nas almas salvas

mediante a nossa pregação, ou deixadas a perecer condenadas ao inferno

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Lições aos Meus Alunos (Vol. 1)

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por nossa negligência – digo, que esse temível e tremendo pensamento

habite para sempre os nossos espíritos. Fomos feitos atalaias sobre a casa

de Israel, como Ezequiel; e, se não dermos aviso da aproximação do

perigo, as almas de multidões podem perecer devido à nossa negligência;

mas o sangue das almas será terrivelmente requerido das nossas mãos

(Ezequiel 3:17 etc.).

Tais considerações deveriam fazer-nos insistentes a tempo e fora de

tempo, e levar-nos a manter-nos vestidos de zelo o tempo todo, como de

um manto. Devemos estar todos com o ânimo desperto e sempre estar

assim. Uma coluna de luz e de fogo deve ser o emblema próprio do

pregador. O nosso ministério tem que ser enfático, ou nunca influirá

nestes tempos caracterizados pela irreflexão. E para esse fim os nossos

corações precisam estar habitualmente ardendo, e toda a nossa natureza

precisa estar inflamada de consumidora paixão pela glória de Deus e

pelo bem dos homens.

Agora, irmãos, é tristemente certo que, uma vez obtido, o santo

fervor pode ser facilmente levado ao desânimo. E como questão de fato

esfria-se com maior freqüência na solidão de um pastorado de aldeia do

que no meio de uma sociedade composta de cristãos ardorosos de

coração. Adam, autor de Private Thoughts (Pensamentos Privados)

observou uma vez que "um pobre pároco rural, lutando com o diabo em

sua paróquia, tem idéias mais nobres do que as de Alexandre, o Grande,

em toda a sua vida." E acrescentarei que ele precisa de algo mais que o

ardor de Alexandre para capacitar-se a prosseguir vitorioso em sua

guerra santa. Sleepy Hollow e Dormer's Land (A Cova do Dorminhoco e

A Terra do Dormitório) serão demasiadas para nós, a menos que oremos

rogando que Deus nos anime diariamente.

Contudo, a vida da cidade também tem os seus perigos, e o zelo

está sujeito a arder com fogo brando devido a numerosos envolvimentos,

como fogo espalhado, em vez de concentrado numa pilha. Aquelas

incessantes batidas à porta, e as perpétuas visitas de gente ociosa, são

outros tantos baldes de água fria atirados sobre o nosso devotado zelo.

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De algum modo precisamos garantir a meditação não interrompida, ou

perderemos poder. Londres é um campo de ação peculiarmente tentador

neste sentido.

O zelo também se restringe mais depressa depois de longos anos de

permanência no mesmo serviço, do que quando a novidade dá encanto

ao trabalho. João Wesley diz, no décimo quinto volume dos seus Diários

e Cartas (Journals and Letters): "Sei que, se eu tivesse que pregar um

ano inteiro num lugar só, tanto o pregador como a maioria dos ouvintes

acabaria adormecido." Que será, então, se se tem que ocupar o mesmo

púlpito durante muitos anos?! Neste caso, não é o passo que mata, mas a

extensão da corrida. Nosso Deus é sempre o mesmo, existindo

perpetuamente, e somente Ele pode capacitar-nos a resistir até o fim.

Aquele que ao final de vinte anos de ministério exercido entre as

mesmas pessoas está mais animado que nunca, é grande devedor ao

Espírito vivificante.

O fervor pode ser diminuído pela negligência nos estudos, e

freqüentemente o é. Se não nos exercitamos na Palavra de Deus, Não

pregaremos com o fervor e o garbo espiritual daquele que se alimenta da

verdade que prega e, portanto, é forte e ardoroso. Segundo algumas

autoridades, o ânimo de um inglês em combate depende de estar ele bem

alimentado; não terá estômago para a batalha, se estiver faminto. Se

formos bem nutridos pelo saudável alimento do evangelho, seremos

vigorosos e cheios de ardor.

Um velho e obtuso comandante em Cadiz é descrito por Selden

como tendo-se dirigido aos seus soldados da seguinte maneira: "Que

vergonha será, vocês ingleses, que se alimentam de boa carne e de

cerveja, deixar-se bater por esses desprezíveis espanhóis que não comem

nada mais que laranjas e limões!" A filosofia dele e a minha concordam:

ele esperava entusiasmo e coragem daqueles que estavam bem

alimentados. Irmãos, nunca negligenciem as suas refeições espirituais,

ou terão falta de vigor e os seus espíritos afundarão. Alimentem-se das

substanciais doutrinas da graça, e sobreviverão e suplantarão em

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Lições aos Meus Alunos (Vol. 1)

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produtividade aqueles que se deleitam com os bolos e com as beberagens

de vinho e leite do "pensamento moderno."

Por outro lado, o zelo pode ser amortecido por nossos estudos.

Existe, sem dúvida, algo como alimentar o cérebro às custas do coração,

e muitos, em suas aspirações a serem literatos, qualificam-se mais para

escrever revistas do que para pregar sermões. Um fantástico evangelista

costumava dizer que Cristo foi crucificado embaixo do grego, do latim e

do hebraico. Não devia ser assim, mas acontece muitas vezes que o

estudante juntou lenha na escola, mas perdeu o fogo para fazê-la

inflamar-se. Será para a nossa eterna desgraça, se enterrarmos as nossas

chamas debaixo da lenha reunida para sustentá-las. Se degenerarmos,

transformando-nos em escravos dos livros, será para a satisfação da

antiga serpente, e para a nossa desgraça.

O verdadeiro fervor pode ser grandemente enfraquecido pelas

conversas levianas, e principalmente pelas piadas partilhadas com

colegas de ministério, em cuja companhia freqüentemente tomamos mais

liberdade do que gostaríamos de fazer quando reunidos com outros

cristãos. Há excelentes motivos para sentir-nos em casa quando estamos

com colegas, mas se esta liberdade for levada longe demais, logo

perceberemos que nos sobreveio dano por meio do nosso linguajar fútil.

Jovialidade é uma coisa, frivolidade é outra. É sábio quem, mediante

séria felicidade na conversação, navega entre as negras rochas da

carranca e as areias movediças da leviandade.

Muitas vezes nos vemos em perigo de deteriorar-nos quanto ao zelo

devido aos cristãos frios com quem entramos em contato. Que terríveis

desmancha-prazeres alguns crentes professos são! Suas observações

depois de um sermão bastam para deixar você tonto. Você pensa que

certamente comoveu os corações de pedra mas dolorosamente vê que

aqueles ouvintes não foram influenciados de modo nenhum. Vocês

ferviam, e eles se congelavam. Vocês vinham lutando por uma questão

de vida ou morte, e eles calculavam quantos segundos o sermão ia

demorar, resmungando pelos cinco minutos que acaso foram além da

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Lições aos Meus Alunos (Vol. 1)

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hora usual – tempo adicional que o seu fervor os impeliu a ocupar

pelejando em favor das almas humanas.

Se acontecer que esses indivíduos enregelados forem oficiais da

igreja, de quem vocês naturalmente esperam a mais calorosa simpatia, o

resultado será esfriamento ao máximo grau, quanto mais se vocês forem

jovens e inexperientes. É como se um anjo ficasse confinado numa

geleira flutuante. "Não porás o boi e o jumento sob o mesmo jugo", era

um preceito misericordioso. Mas quando um ministro que dá duro como

um boi fica no mesmo jugo com um oficial que não é outro boi, o

trabalho de arar fica difícil. Alguns doutores impertinentes terão muito

que responder a Deus nesta matéria. Um desses, não faz muito tempo, foi

a um jovem e zeloso evangelista que estava fazendo o melhor que podia,

e lhe disse: "Jovem, você chama isso de pregação?" Considerava-se fiel,

mas foi cruel e descortês e, embora o bom irmão tenha sobrevivido ao

golpe, este não foi menos brutal por isso. Tais ofensas contra os

pequeninos do Senhor são muito raras, espero, mas são mortificantes, e

tendem a afastar os nossos jovens esperançosos.

Muitas vezes os ouvintes como um todo tenderão a enfraquecer o

seu zelo. Você pode ver pelo olhar e pela atitude deles, que não estão

apreciando os seus sinceros e calorosos esforços, e ficará desanimado.

Aqueles bancos vazios do uma grave provação também, e se o recinto

for grande e pequeno o número de freqüentadores, a influência será

muito deprimente. Não é todo homem que pode agüentar ser "uma voz

que clama no deserto." Desordem entre os ouvintes também aflige

dolorosamente os oradores sensíveis. O caminhar de uma mulher com

ruidosos saltos de sapatos, o ranger de um par de botas novas, a queda

freqüente de guarda-chuvas e bengalas, o choro de crianças, e

especialmente o atraso da metade dos componentes da reunião – isso

tudo tende a irritar a mente, a desviá-la do seu objetivo e a diminuir o

ardor.

Dificilmente gostamos de confessar que os nossos corações são

logo prejudicados por essas bagatelas, mas é assim, e não há motivo para

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Lições aos Meus Alunos (Vol. 1)

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admirar-nos disso. Como os frascos do mais precioso ungüento são mais

freqüentemente corrompidos por moscas mortas do que por camelos

mortos, assim coisas insignificantes destroem o fervor mais depressa do

que as maiores contrariedades. Quando se vê em grande desalento, o

homem impulsiona-se a si próprio sem interrupção, e então se atira a seu

Deus, e recebe força divina; mas quando sofre depressões menores é

possível que ele se aflija, e a picuinha causará irritação e se inflamará,

até acontecerem conseqüências mais graves.

Perdoem-me dizer que vocês devem atentar para as condições dos

seus corpos, especialmente na questão de comer, pois qualquer medida

de excesso pode prejudicar a sua digestão e deixá-los aturdidos quando

deviam estar ardendo de fervor. Das memórias de Duncan Matheson

recolho uma historieta muito pertinente: "Em certo lugar onde se estavam fazendo reuniões evangelísticas, os

pregadores leigos, entre os quais estava o Sr. Matheson, foram tratados suntuosamente na casa de um cavalheiro cristão. Depois do jantar, foram para a reunião, não sem alguma diferença de opinião quanto ao melhor método de dirigir os trabalhos da norte. 'O Espírito foi entristecido; Ele não está aqui, de modo algum; é o que sinto', disse um dos mais jovens, com um gemido que de alguma forma contrastava com o imenso prazer anterior, quando desfrutava as luxúrias da mesa. 'Tolice', replicou Matheson, que detestava toda espiritualidade chorosa e mórbida. 'Não é nada desse tipo. Vocês simplesmente comeram muito na janta, e agora sentem o peso da indigestão.' "

Duncan Matheson estava certo, e um pouco mais do seu bom senso

seria grande ganho para alguns que são ultra-espirituais e atribuem todas

as suas modalidades de disposição de ânimo e de sentimento a alguma

causa sobrenatural, quando a verdadeira razão está muito mais perto, à

mão. Não tem acontecido muitas vezes que a dispepsia é confundida

com apostasia, e a má digestão é repreendida como dureza de coração?

Não digo mais nada; para bom entendedor uma palavra basta.

Muitas causas físicas e mentais podem agir para criar letargia

aparente onde há intenso fervor no coração. Em alguns de nós uma noite

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mal dormida, uma alteração no tempo, ou uma observação indelicada

produzirão o mais lamentável efeito. Mas geralmente aqueles que se

queixam de falta de zelo são os mais zelosos do mundo, e a confissão de

falta de vida é em si mesma um argumento de que a vida existe, e não

sem vigor. Não se poupem, nem se deixem levar pela auto-satisfação;

mas, por outro lado, não se difamem a si próprios, nem se afundem no

desânimo. Sua opinião a respeito de si mesmos não tem muito valor;

peçam ao Senhor que os sonde.

Trabalho realizado continuamente por muito tempo sem sucesso

visível é outro freqüente estrago para o zelo fervoroso, conquanto,

retamente compreendido, devesse constituir incentivo para diligência

sete vezes maior. O original Thomas Fuller observa que "nisto Deus tem

humilhado muitos pastores laboriosos fazendo deles nuvens de chuva,

não sobre a Arábia feliz, mas sobre a Arábia deserta e pedregosa." Se o

insucesso nos humilha, está bem, mas se nos desanima, e especialmente

nos leva a pensamentos amargos sobre os colegas mais prósperos,

devemos olhar em torno de nós com grave preocupação. É possível que

tenhamos sido fiéis, e que tenhamos adotado métodos sábios, e que

estejamos no lugar certo, sem contudo atingir o alvo; provavelmente nos

curvaremos e nos sentiremos incapazes de continuar a obra. Mas, se

tratarmos de arrancar coragem e de aumentar o nosso fervor, teremos um

dia abundante colheita, que nos recompensará além da expectativa por

nossa espera. "O lavrador espera pelos preciosos frutos da terra." E com

a santa paciência gerada pelo zelo devemos esperar, sem jamais duvidar

de que o tempo de Sião ser favorecida ainda chegará.

Também é preciso não esquecer nunca que a carne é fraca e

naturalmente inclinada à sonolência. Necessitamos de constante

renovação do impulso divino que nos iniciou na carreira do serviço

cristão. Não somos como flechas, que acham caminho para o alvo

somente graças à instrumentalidade da força com que partiram do arco.

Nem como os pássaros, que levam dentro de si a sua energia motora.

Temos que ser impelidos para a frente como caravelas no mar, pelo

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constante poder dos ventos celestiais, ou não avançaremos. Os

pregadores enviados por Deus não são como caixas de música que, uma

vez acionadas, tocam as melodias programadas; são, porém, como

trombetas, completamente mudas até que o sopro vigoroso os faz emitir

certo som. Lemos sobre alguns que não passam de cães broncos, dados a

cochilar, e seria esse o caráter de todos nós, se não o impedisse a graça

de Deus. Temos necessidade de lutar contra o espírito descuidado e

indiferente. Se não o fizermos, logo seremos mornos como Laodicéia.

Lembrando, pois, diletos irmãos, que devemos ter fervor, que não

podemos usar imitações dele nem achar-lhe substituto, e que é muito

fácil perdê-lo, consideremos por um pouco os modos e meios de

conservar todo o nosso fervor e obter mais. Se havemos de prosseguir, o

nosso fervor deve ser inflamado por uma chama eterna, e só conheço

uma – a chama do amor de Cristo, que mesmo muitas águas não

conseguem apagar. Uma centelha do sol celestial será imorredoura como

a fonte da qual provém. Se a pudermos obter, sim, se a tivermos,

continuaremos cheios de entusiasmo, por mais tempo que vivamos, por

mais que sejamos provados e por mais numerosas sejam as razões para

ficarmos desanimados. Para continuarmos fervorosos no transcurso desta

vida, temos que possuir o fervor da vida celeste com que começar.

Temos esse fogo? É preciso que a verdade arda em nossas almas, ou não

arderá em nossos lábios. Entendemos isto? As doutrinas da graça devem

ser parte integrante de nós, entretecidas com a urdidura e a trama do

nosso ser, e isto somente pode ser efetuado pela mão que originalmente

fez o tecido.

Jamais perderemos o nosso amor a Cristo e o nosso amor às almas,

se foi o Senhor que no-los deu. O Espírito Santo faz que o zelo por Deus

seja um permanente princípio de vida, em vez de uma paixão; será que o

Espírito Santo repousa em nós, ou o nosso presente fervor é um simples

sentimento humano? Sobre este ponto devemos fazer sério exame dos

nossos corações, fazendo-nos a nós mesmos a pergunta: Temos nós o

fogo santo oriundo da verdadeira vocação para o ministério? Se não, por

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que estamos aqui? Se alguém pode viver sem pregar, que viva sem

pregar. Se alguém pode estar satisfeito sem ser um conquistador de

almas – quase ia dizer que seria melhor não tentar fazer esse trabalho,

mas, em vez disso digo – procure ver que a pedra seja tirada do seu

coração, para que possa ter sensibilidade quanto aos que perecem. Antes

disto, na qualidade de ministro, ele pode cometer um engano total,

ocupando o lugar de alguém que poderia ter tido êxito na bendita obra

em que aquele será por certo um fracasso.

O fogo do nosso fervor deve arder no centro vital da fé nas

verdades que pregamos, e da fé no poder que elas têm de abençoar a

humanidade quando o Espírito as aplica ao coração. Aquele que

proclama uma coisa que pode ser verdade ou não, e aquilo que, no todo,

considera bom como qualquer outro tipo de ensino, necessariamente dará

um pregador muito fraco. Como poderá ser zeloso sobre aquilo de que

não está seguro? Se não conhece nada do poder interior da verdade em

seu coração, se nunca provou nem tocou a Palavra da vida, como pode

ser entusiasta? Mas, se o Espírito Santo nos ensinou nos lugares secretos,

e fez a nossa alma compreender no seu íntimo a doutrina que nos cabe

proclamar, então falaremos sempre com língua de fogo.

Irmão, não comece a ensinar outros enquanto o Senhor não o tenha

ensinado. Deve ser um trabalho enfadonho papaguear dogmas que não

interessam ao seu coração nem levam convicção ao seu entendimento.

Eu preferiria catar estopa ou girar manivelas para conseguir o meu café

da manhã, como fazem os mendigos aqui e ali, a ser escravo de um

grupo de freqüentadores de igreja e levar-lhes alimento espiritual que eu

mesmo nunca provei. E depois, que terrível há de ser o fim dessa

carreira! Que temíveis contas deve prestar no final aquele que ensina

publicamente aquilo em que não crê de coração, praticando em nome de

Deus esta detestável hipocrisia!

Irmãos, se o fogo vem do lugar certo para o lugar certo, temos bom

começo; e temos os principais elementos de um final glorioso.

Inflamados por uma brasa viva, trazida do altar aos nossos lábios pelo

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querubim alado, o fogo começou a ser mantido no íntimo do nosso

espírito, e ali manterá vivas as chamas, ainda que o próprio Satanás

labute para apagá-las com os pés.

Mesmo a melhor chama na palavra precisa ser renovada. Ignoro se

os espíritos imortais, como os anjos, bebem do vento e se alimentam de

algum maná superior preparado no céu para eles. Mas o provável é que

nenhum ser criado, embora imortal, esteja completamente livre da

necessidade de receber de fonte externa o sustento de suas forças.

Certamente a chama de zelo no coração renovado, conquanto divina,

precisa ser constantemente alimentada de novo combustível. Mesmo as

lâmpadas do santuário precisavam de azeite. Alimente a chama, meu

irmão, alimente-a freqüentemente. Alimente-a com pensamento santo e

santa contemplação, especialmente com o pensamento sobre a sua obra,

os motivos que o levam a procurar realizá-la, e os grandes resultados

dela, se o Senhor estiver com você. Firme-se no amor de Deus aos

pecadores, na morte de Cristo em favor deles e na obra do Espírito nos

corações humanos. Pense no que tem que ser efetuado no coração dos

homens antes de estes poderem ser salvos. Lembre-se, você não é

enviado para caiar túmulos, mas para abri-los, e esta é uma obra que

homem nenhum pode realizar, a menos que, como fez o Senhor Jesus

junto ao sepulcro de Lázaro, se agite no espírito; e mesmo assim você

não tem poder, sem o Espírito Santo.

Irmãos, meditem com profunda solenidade no destino do pecador

perdido e, como Abraão, quando se levantarem de manhã para ir ao local

de sua comunhão com Deus, dêem uma olhada para os lados de Sodoma

e vejam a fumaça que sobe de lá, como a fumarada de uma fornalha.

Evitem todas as idéias sobre a punição vindoura que a faça parecer

menos terrível e assim embotem a sua ansiedade por salvar seres

imortais do fogo inextinguível. Se os homens são apenas uma espécie

mais nobre de macaco e expiram como os animais irracionais, você pode

muito bem deixá-los perecer sem dó. Se, porém, sua criação à imagem

de Deus incluí a imortalidade, e há algum temor de que por sua

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incredulidade trarão infelicidade sobre si, ponham-se à altura das agonias

desse acontecimento, e envergonhem-se da simples suspeita de

desinteresse. Pensem muito também na bem-aventurança do pecador

salvo, e em como o piedoso Baxter apresenta valiosos argumentos em

favor do zelo fervoroso, derivando-os do "sempiterno repouso dos

santos." Subam aos montes celestiais e recolham lenha lá. Empilhem as

gloriosas achas de madeira do Líbano, e o fogo arderá livremente e dará

um suave perfume quando cada pedaço de cedro seleto rebrilhar nas

chamas. Não haverá por que temer que caiam na letargia, se mantiverem

permanente intimidade com as realidades eternas.

Acima de tudo, alimentem a chama com íntima comunhão com

Cristo. Ninguém que tenha vivido com Jesus nos termos em que viveram

João e Maria jamais foi frio de coração, pois Ele faz arder o coração.

Nunca encontrei um pregador desanimado que estivesse em muita

comunhão com o Senhor Jesus. O zelo da casa de Deus consumia a

nosso Senhor, e quando entramos em contato com Ele, o mesmo zelo

começa a consumir-nos também – e vemos que não podemos senão falar

das coisas que temos visto e ouvido em Sua companhia. Nem podemos

deixar de falar dessas coisas com o fervor que provém da real

familiaridade com elas. Aqueles de nós que têm estado pregando durante

estes vinte cinco anos, às vezes sentem que a mesma obra, o mesmo

assunto, o mesmo povo e o mesmo púlpito, juntos, são capazes de gerar

um sentimento de monotonia, e a monotonia logo pode levar à fadiga.

Mas aí trazemos à memória outra mesmice, que vem a ser a nossa

completa libertação – o Salvador é o mesmo, e podemos ir a Ele do

mesmo modo como o fizemos da primeira vez, visto que "Jesus Cristo é

o mesmo ontem, e hoje, e eternamente." Em Sua presença bebemos

vinho novo e renovamos a nossa mocidade. Ele é a fonte que mana para

sempre a refrescante e restauradora água da vida. Em comunhão com Ele

teremos nossas almas vivificadas para o usufruto de energia perpétua.

Sob o seu sorriso o trabalho de há muito costumeiro é sempre agradável,

e mostra mais encanto do que aquele que a novidade poderia conferir.

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Colhemos novo maná para o nosso povo cada manhã, e quando

vamos distribuí-lo, sentimos a unção de novo óleo destilando sobre nós.

"... os que esperam no Senhor renovarão as suas forças, subirão com asas

como águias; correrão, e não se cansarão; caminharão, e não se

fatigarão." Recém-vindos da presença dAquele que anda entre os

candeeiros de ouro, estamos prontos para escrever ou falar no poder que

somente Ele pode dar. Soldados de Cristo, vocês somente poderão ser

dignos do Capitão que os comanda, permanecendo em comunhão com

Ele e ouvindo a Sua voz, como fez Josué quando se pós junto ao Jordão

e indagou : "Que diz meu Senhor a Seu servo?"

Abanem o fogo, além de alimentá-lo. Abanem-no com muitas

súplicas. Não há como sermos demasiado insistentes uns com os outros

neste ponto; nenhuma linguagem pode ser veemente demais quando se

trata de implorar aos ministros que orem. Para nós e para os nossos

colegas há necessidade absoluta de oração. Necessidade! – Não gosto

muito de falar desse modo; prefiro falar da delícia da oração – o

maravilhoso dulçor e a divina felicidade advinda à alma que vive na

atmosfera da oração. John Fox dizia: "O tempo que passamos com Deus

em secreto é o mais ameno e o mais bem aproveitado. Portanto se amas

tua vida, enamora-te da oração." O devoto Sr. Herve, tomou a seguinte

resolução no leito de enfermidade: "Se Deus poupar a minha vida, lerei

menos e orarei mais." John Cooke, de Maidenhead, escreveu: "O

exercício, o prazer, a honra e o beneficio da oração premem meu espírito

com força crescente, todo dia." Um finado pastor, ao se aproximar do

fim, exclamou: "Desejaria ter orado mais." Este desejo muitos de nós

poderíamos exprimir.

Deve haver períodos especiais de devoção, e é bom mantê-los com

regularidade. Mas o espírito de oração é ainda melhor do que o hábito de

orar. Orar sem cessar é melhor do que orar a intervalos. Será uma feliz

circunstância se nos pudermos com freqüência dobrar os joelhos junto

com irmãos consagrados, e creio que deveria ser uma regra para nós

ministros, nunca separar-nos sem uma palavra de oração. Muita

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intercessão mais subiria ao Céu se fizéssemos disso um ponto para

cumprir particularmente quanto àqueles dentre nos que foram colegas de

estudos. Se possível, que a oração e o louvor santifiquem cada encontro

de amigo e amigo.

Uma prática revigorante é ter um minuto ou dois de súplicas ao

Senhor no gabinete pastoral antes da pregação, se vocês puderem reunir

ali três ou quatro diáconos de coração ardente, ou outros irmãos. Isto

sempre me anima para a luta. Mas, com tudo isso, para abanar o seu

fervor até torná-lo uma chama vigorosa vocês devem buscar o espírito de

continua oração, de modo que estejam orando no Espírito Santo, em todo

lugar e sempre: no estudo, no gabinete pastoral e no púlpito. É bom estar

pleiteando o tempo todo com Deus – sentados ao púlpito, de pé para

anunciar um hino, lendo a passagem bíblica, pregando o sermão;

erguendo uma das mãos vazia para Deus a fim de receber, e com a outra

repartindo ao povo o que Deus dá. Na pregação sejam como um tubo de

transmissão entre os eternos e infinitos suprimentos do Céu e as

necessidades humanas, quase ilimitadas. Para fazer isso, vocês precisam

alcançar o Céu e manter a comunicação, sem interrupção. Orem pelas

pessoas enquanto lhes pregam. Falem com Deus a favor delas enquanto

lhes falam a favor de Deus. Só assim poderão esperar, manter-se em

contínuo fervor. Poucas vezes uma pessoa se levantará sem fervor depois

de pôr-se de joelhos; ou, se acontecer isso, o melhor que faz é voltar a

orar até que a chama sagrada desça sobre a sua alma.

Adam Clarke disse uma vez: "Morra de estudar, e então ore para

tornar a viver." É uma sabia sentença. Não tentem a primeira realização

sem a segunda; e não pensem que a segunda pode ser levada a efeito

honestamente sem a primeira. Trabalhem e orem, como também vigiem

e orem. Mas orem sempre.

Agitem o fogo também, mediante freqüentes tentativas para realizar

novos serviços. Sacudam-se para livrar-se da rotina, saindo dos

costumeiros campos de trabalho e exigindo solo virgem. Sugiro-lhes,

como um meio subordinado mas muito útil para manter o coração

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robusto, o freqüente acréscimo de novas obras aos seus compromissos

habituais. Gostaria de dizer aos irmãos que estão prestes a deixar a

escola para estabelecer-se em ambientes onde terão contato com apenas

umas poucas mentes superiores, e talvez estejam quase sozinhos nas

mais altas alamedas da espiritualidade: olhem bem por vocês mesmos,

para que não se tornem rasos, insípidos e inúteis; conservem sua

capacidade de cativar as almas mantendo espírito empreendedor. Terão

boa parte do trabalho para fazer, poucos os ajudarão, e os anos vão

rolando e rolando pesadamente. Estejam vigilantes contra isso, e

empreguem todos os meios possíveis para impedir que se tornem

fastidiosos e sonolentos, e entre os meios usem aquele que a experiência

me induz a impor-lhes.

Acho bom ter sempre à mão algum trabalho novo. Os velhos e

habituais empreendimentos têm que ser mantidos, mas algo deve ser-lhes

acrescentado. Deve dar-se conosco o que se dá com os intrusos que

usurpam terreno público. A cerca do nosso jardim deve avançar meio

metro ou mais, abrangendo um pouco mais do terreno comum cada ano.

Nunca digam: "Já basta", nem aceitem a política de "Repousem e sejam

agradecidos." Façam tudo que puderem, e depois façam um pouco mais.

Não ser por qual processo o cavalheiro que anuncia que pode tornar

baixotes mais altos procura fazer isso, mas imagino que, se se há de

obter algum resultado no sentido de acrescentar um côvado à estatura de

alguém, seria a pessoa erguer-se todas as manhãs o mais alto que

pudesse na ponta dos pés e, tendo feito isso, tentar dia após dia atingir

um ponto um pouco mais alto. Certamente é esta a maneira de crescer

mental e espiritualmente – "avançando para as (coisas) que estão diante

de mim."

Se o antigo vai ficando um tanto gasto, irmão, junte-lhes novos

esforços, e a massa toda será elevada de novo. Prove-o, e logo descobrirá

a virtude de abrir novos terrenos invadindo novas províncias do inimigo

e escalando alturas antes não atingidas para ali hastear o estandarte do

Senhor. Com relação aos expedientes de que temos tratado, este é por

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certo secundário. Contudo, é muito útil e pode beneficiá-lo grandemente.

Numa cidade campestre, digamos de dois mil habitantes, você, depois de

algum tempo, irá pensar: "Bem, agora, fiz quase tudo que podia neste

lugar." Que fazer então? Há um lugarejo a alguns quilômetros. Planeje

abrir ali uma sala. Encontrando-se ocupado um vilarejo, excursione a

outro, espie a terra, e faça do socorro à indigência espiritual exposta

diante de você uma ambição sua. Suprida a primeira localidade, pense

numa segunda. É o seu dever, e será também a sua salvaguarda. Toda

gente sabe do interesse que há por uma obra nova. O jardineiro se

cansará do seu labor, a menos que lhe permitam introduzir novas flores

na estufa de plantas, ou dar nova forma aos canteiros do jardim. Todo

trabalho monótono é antinatural e cansativo para a mente. Portanto, é

sábio dar variedade ao seu labor.

De muito maior peso é este conselho: fiquem perto de Deus, e

fiquem perto dos seus semelhantes aos quais vocês querem comunicar

bênçãos. Habitem à sombra do Onipotente, habitem onde Jesus se

manifesta, e vivam no poder do Espírito Santo. Sua própria vida depende

disso. Whitefield menciona um rapaz que tinha tão vívida consciência da

presença de Deus, que geralmente andava sem chapéu pelas estradas.

Como eu gostaria que sempre fosse essa a nossa maneira de sentir! Neste

caso, não haveria dificuldade nenhuma em manter o fervor.

Cuidem também. para manter-se nos mais amistosos termos com

aqueles de cujas almas vocês têm a responsabilidade de zelar. Fiquem na

corrente e pesquem. Muitos pregadores ignoram completamente como

vive a grande maioria das pessoas. Estão em casa entre os livros, mas em

alto mar entre os homens. Que pensariam vocês de um botânico que

raramente viu flores de verdade, ou de um astrônomo que nunca passou

uma noite observando os astros? Seriam dignos do nome de homens de

ciência? Assim também o ministro do evangelho não passará de um

charlatão, a menos que se misture com os homens e estude pessoalmente

o caráter deles. "Estudos a partir da vida" – cavalheiros; precisamos ter

muitos destes, se havemos de fazer fiel pintura da vida em nossos

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sermões. Leiam os homens como lêem os livros, e amem as pessoas

antes que as opiniões, ou, do contrário, serão pregadores inanimados.

Fiquem perto dos que se encontram em estado de ansiedade.

Observem as suas dificuldades, as suas angústias e as suas dores de

consciência. Ajudará a fazê-los fervorosos ver-lhes a avidez com que

buscam paz. Por outro lado, ver quão pouco fervorosos os homens são,

na maioria, pode ajudá-los a ter maior zelo para o despertamento deles.

Regozijem-se com aqueles que estão se encontrando com o Salvador;

este é um importante meio de avivar-lhes a alma. Quando puderem levar

a Jesus uma pessoa que chora a perda de um ente querido, sentir-se-ão

jovens de novo. Será como óleo nos ossos ouvir um pecador arrependido

chorar e exclamar: "Agora vejo tudo! Creio, e minha carga se foi. Estou

salvo!"

Às vezes o arrebatamento das almas recém-nascidas de novo os

eletrizarão levando-os a terem ardor apostólico. Quem não se sentiria

capaz de pregar depois de ver pecadores convertidos? Estejam a postos

quando finalmente a graça prende a ovelha perdida, a fim de que, pela

participação no regozijo do grandioso Pastor, vocês possam renovar a

sua mocidade. Morram de trabalhar em favor dos pecadores, e serão

recompensados por ir após eles em fatigante busca, talvez depois de

seguí-los durante meses e anos. Segurem-nos com os firmes laços do

amor, e digam : "Sim, pela graça de Deus, ganhei realmente estas almas"

– e o seu entusiasmo se inflamará.

Se você tiver que trabalhar numa grande cidade, recomendo-lhe

que, seja onde for o local de culto, procure familiarizar-se com a

pobreza, a ignorância e as condições de alcoolismo do lugar. Se puder,

vá junto com um obreiro que já conheça a parte mais pobre da cidade, e

o que vai ver enchê-lo-á de espanto, e a própria visão da doença irá

torná-lo ansioso para revelar o remédio. Há muitos males para se verem,

mesmo nas melhores ruas das nossas grandes cidades, mas há

indescritível profundidade de horror nas condições dos cortiços e

favelas. Assim como o médico percorre os hospitais, você deve percorrer

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os becos e pátios dos cortiços para ver os danos causados pelo pecado.

Será suficiente para fazer um homem derramar lágrimas de sangue

contemplar as desolações que o pecado tem feito na terra. Um dia junto

com um consagrado missionário seria uma bela maneira de concluir o

seu curso acadêmico, e uma adequada preparação para a obra que terá

que realizar em seu próprio campo.

Observe as massas vivendo em seus pecados, envilecidas pela

bebida e pela quebra do dia do Senhor, entregues aos vícios e

blasfemando. Veja-as morrendo curtidas e empedernidas, ou

aterrorizadas e cheias de desespero. Certamente isto reacenderá o zelo

que fenece, se nada mais puder fazê-lo. O mundo está repleto de pobreza

que oprime e de aflição que esmaga. A vergonha e a morte são a porção

de milhares, e é necessário um grande evangelho para satisfazer as

medonhas necessidades das almas humanas. Verdadeiramente assim é.

Você duvida? Vá e veja com os seus próprio olhos. Assim aprenderá a

pregar uma grandiosa salvação, e a engrandecer o grandioso Salvador,

Não com a boca somente, mas de todo o coração. Deste modo se casará

com o seu trabalho além de toda a possibilidade de abandoná-lo.

Os leitos de morte do grandes escolas para nós. Estão determinados

a agir como tônicos para fazer-nos apegados ao nosso labor. Tenho

voltado dos quartos dos moribundos achando que toda gente é doida, e

eu mais que todos. Tenho lamentado o empenho que os homens dedicam

às coisas terrenas, quase dizendo a mim mesmo: Por que esse homem

corria tanto? Por que aquela mulher se enfeitava daquele jeito? Visto que

todos haveriam de morrer logo, eu achava que nada valia a pena, senão

preparar-se para encontrar-se com o seu Deus. Estar com freqüência

onde os homens morrem ajuda-nos a ensiná-los a morrer e a viver.

McCheyne costumava visitar os seus ouvintes enfermos ou moribundos

sábado à tarde, pois, como contou ao Dr. James Hamilton: "Antes de

pregar, ele gostava de olhar por cima do limite final."

Rogo-lhes, além disso, que meçam o seu trabalho à luz de Deus,

Você é servo de Deus ou Não? Se é, como pode ter coração frio? Você

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foi ou não foi enviado pelo Salvador crucificado, para proclamar o Seu

amor e receber a recompensa das Suas feridas? Se foi, como pode

afrouxar-se? O Espírito de Deus está sobre você? Ungiu-o o Senhor para

pregar boas novas aos pobres? Se não o ungiu, não pretenda fazê-lo. Se o

ungiu, "vai nessa tua força, e o Senhor será a tua força." Sua ocupação

não é comércio ou profissão. Seguramente, se você a avaliar pela medida

do comerciante, é o negocio mais pobre sobre a face da terra. Considere-

a como profissão: quem não preferiria qualquer outra, no que concerne a

lucros monetários ou a honras terrestres? Mas se se trata de vocação

divina, sendo você um operador de milagres, habitando no sobrenatural e

trabalhando, não para o tempo mas para a eternidade, você pertence a

outra associação mais nobre – a uma fraternidade mais elevada do que

qualquer outra que proceda da terra e lide com o tempo.

Olhe bem, e reconhecerá que é grande coisa ser pobre como seu

Senhor, se, como Ele, você puder enriquecer a muitos; verá que é

glorioso ser ignorado e desprezado como o foram os primeiros

seguidores do seu Senhor, porque você está tornando conhecido Aquele

que é a vida eterna. Você ficará satisfeito sendo qualquer coisa, ou nada,

e o pensamento acerca de si próprio não entrará em sua mente, ou

somente a cruzará para ser reconhecido como uma coisa mesquinha que

o homem consagrado não deve tolerar. Este é o ponto. Avalie o seu

trabalho como deve, e não temerei que o seu zelo diminua. Contemple-o

à luz do dia do juízo e tendo em vista as eternas recompensas da

fidelidade. Ah, irmãos, a presente alegria de ter conduzido uma alma à

salvação é sobremodo agradável. Vocês a sentiram, creio, e a conhecem

agora.

Salvar uma alma de cair na perdição traz-nos um pouco do céu,

mas, como há de ser no dia do juízo, encontrar os espíritos redimidos por

Cristo, os quais ouviram dos nossos lábios as novas da sua redenção!

Nosso olhar fita adiante um bem-aventurado céu em comunhão com o

nosso Mestre e Senhor, mas também conheceremos a alegria adicional

de encontrar aqueles amados que levamos a Jesus mediante o nosso

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Lições aos Meus Alunos (Vol. 1)

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ministério. Suportemos todas as cruzes, e desprezemos toda a vergonha

pela alegria que Jesus coloca diante de nós – a alegria de ganhar os

nossos semelhantes para Ele.

Mais um pensamento que pode ajudar-nos a manter o nosso zelo

fervoroso: considerem o grande mal que por certo virá sobre nós e

nossos ouvintes se formos negligentes em nosso labor. "Eles perecerão"

– não é esta uma sentença terrível? Para mim é tão terrível como a que se

lhe segue – "mas o seu sangue da tua mão o requererei." Como

descreveremos o destino ruinoso do ministro infiel? E todo ministro

destituído de zelo é infiel. Eu preferiria infinitamente ser entregue a

Tofete como assassino de corpos humanos, a ser condenado como

destruidor de almas humanas. Também não sei de nenhuma condição

que leve o homem a perecer de modo tão fatal e infinito como a do

homem que prega um evangelho em que não crê, e assume o ofício de

pastor sobre um povo cujo bem não deseja intensamente.

Oremos no sentido de que sejamos achados fiéis sempre e para

sempre. Permita Deus que o Espírito Santo nos torne e nos mantenha

assim fiéis.

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Lições aos Meus Alunos (Vol. 1)

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CEGO DE UM OLHO E SURDO DE UM OUVI DO

Tendo dito muitas vezes nesta sala que o ministro deve ter um olho

cego e um ouvido surdo, provoquei a curiosidade de vários irmãos, que

pediram explicação porque lhes parece, como também a mim, que

quanto mais vivos forem os nossos olhos e quanto mais finos forem os

nossos ouvidos, melhor. Bem, cavalheiros, desde que o texto é um tanto

misterioso, terão uma exegese dele.

Parte do significado foi expresso em linguagem simples por

Salomão no livro de Eclesiastes (7:21): "Não apliques o coração a todas

as palavras que se dizem, para que não venhas a ouvir o teu servo a

amaldiçoar-te." Outra versão diz: "Não dês o coração a todas as palavras

ditas" Não as leves ao coração ou não lhes dê importância, não atentes

para elas, nem procedas como se as tivesse ouvido.

Você não pode deter a língua das pessoas; portanto, a melhor coisa

é deter os seus ouvidos, e não ligar para o que digam. Há um mundo de

falatório ocioso por aí, e aquele que lhe dá atenção tem bastante trabalho.

Verá que mesmo aqueles que convivem com ele não estão sempre a

cantar-lhe loas e que, ao causar desagrado aos seus criados mais fiéis,

eles, num acaloramento momentâneo dos ânimos, dizem palavras cruéis

que lhe seria melhor não escutar. Quem é que, sob irritação passageira,

não diz coisas como essas de alguém, das quais se arrepende mais tarde?

Faz parte da generosidade tratar as palavras ditas com exaltada paixão

como se nunca tivessem sido pronunciadas.

Quando uma pessoa está zangada, é sábio andar longe dela e evitar

briga, em vez de se envolver nela. Se formos compelidos a ouvir

linguajar precipitado, devemos esforçar-nos para apagá-lo da memória,

dizendo com Davi: "Mas eu, como surdo, não ouvia, e como mudo, não

abri a boca. Assim eu sou como homem que não ouve, e em cuja boca

não há reprovação." Tácito descreve o sábio como dizendo a alguém que

o criticou: "Você é senhor da sua língua, mas eu também sou senhor dos

meus ouvidos" – você pode dizer o que lhe agradar, mas ouvirei só o que

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Lições aos Meus Alunos (Vol. 1)

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eu escolher. Não podemos fechar os ouvidos como fechamos os olhos,

pois Não temos pálpebras de ouvidos, e, todavia, como lemos daquele

que "cerra os seus ouvidos para não ouvir de sangue", sem dúvida é

possível fechar os portais dos ouvidos de modo que nenhum contrabando

entre.

Diríamos dos mexericos comuns da aldeia e das inadvertidas

palavras de amigos irritados – não as ouçam, ou, se tiverem que ouvi-las,

não se impressionem com elas, pois vocês também falavam com

frivolidade e com raiva em seus dias, e se poriam ainda em posição

difícil, se fossem chamados para explicar cada palavra que tenham dito,

mesmo do seu mais caro amigo. Assim Salomão argumentou ao concluir

a passagem que citamos: "Porque o teu coração também já confessou

muitas vezes que tu amaldiçoaste a outros."

Alargando-me sobre o texto da minha preleção, permitam-me dizer

primeiro – quando iniciarem o seu ministério, façam sua mente começar

com uma folha em branco: sejam surdos e cegos para as velhas

divergências que sobrevivam na igreja. Irmão, tão logo entre no seu

pastorado talvez tenha acolhida por pessoas ansiosas por assegurar a sua

adesão ao lado delas numa rixa de família ou numa controvérsia

eclesiástica. Seja surdo e cego para essa gente, e dê-lhes a certeza de que

o que passou, passou, e de que, como você não herdou o guarda-louça do

seu antecessor, não pretende comer a sua comida fria. Se foi praticada

alguma flagrante injustiça, seja diligente em corrigi-la, mas se for apenas

uma contenda, mande o partido briguento parar com ela, e diga-lhe uma

vez por todas que você não tem nada que ver com isso.

A resposta de Gálio quase lhe serve: "Se houvesse, ó judeus, algum

agravo ou crime enorme, com razão vos sofreria. Mas, se a questão é de

palavras e de nomes, e da leí que entre vós há, vede-o vós mesmos:

porque eu não quero ser juiz dessas coisas." Quando vim para a Capela

da rua New Park como pastor eleito, sendo eu então um jovem

procedente do campo, logo tive entrevista com um bom homem que

tinha abandonado a igreja porque, disse ele, fora "tratado

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Lições aos Meus Alunos (Vol. 1)

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vergonhosamente." Mencionou os nomes de meia dúzia de pessoas,

todas elas proeminentes membros da igreja, que tinha agido de maneira

muito anticristã para com ele – com ele, pobre sofredor inocente, modelo

de paciência e santidade.

Fiquei sabendo logo como era o seu caráter pelo que falou dos

outros (modo de julgar que nunca me enganou), e me preparei

mentalmente sobre como agir. Disse-lhe que a igreja estivera num triste

estado de agitação e que o único modo de sair da confusão era cada um

esquecer o passado e ter novo começo. Ele disse que o transcurso de

anos não alteraria os fatos, e eu repliquei que alteraria a maneira como

uma pessoa os encara, se nesse período tivesse ficado mais sábia e

melhor. Contudo, acrescentei, todo o passado se fora com os meus

predecessores, e ele teria que ir atrás deles nos seus novos campos de

trabalho e resolver os problemas com eles, pois, nem usando tenazes eu

tocaria na questão. Ele ficou um tanto acalorado, mas eu deixei que

irradiasse o calor até esfriar-se de novo, e apertamos as mãos e nos

despedimos. Era um bom homem, mas edificado sobre um princípio

molesto, de sorte que, às vezes, atravessava o caminho de outros de

modo grosseiro. Se eu tivesse penetrado a fundo a narrativa dele e

tivesse examinado o caso, a luta não terminaria nunca.

Estou absolutamente certo de que, para o meu sucesso pessoal e

para a prosperidade da igreja, segui o curso mais sábio ao aplicar o meu

olho cego a todas as contendas anteriores á minha chegada. É o cúmulo

da imprudência um jovem recém-formado, ou recém-chegado de outro

campo de trabalho, deixar-se envolver em intrigas por uma facção, e ser

subornado por tratamento amável e por lisonja, para tornar-se partidário

dessa facção, e assim arruinar-se com a metade do povo da sua igreja.

Não queira nada com partidos e facções, mas, seja o pastor do rebanho

todo, cuidando de todos por igual. Bem-aventurados os pacificadores, e

um modo seguro de pacificar é isolar o fogo da contenda. Não o sopre,

nem o agite, nem lhe ponha lenha, mas deixe que se apague sozinho.

Comece o seu ministério, cego de um olho e surdo de um ouvido.

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Devo recomendar-lhes o uso da mesma faculdade, ou falta dela,

com relação às finanças, na questão do seu salário. Há algumas

ocasiões, principalmente quando se está formando uma nova igreja, em

que talvez não haja um oficial capaz de dirigir esse departamento, e,

portanto, você pode sentir-se chamado a fazê-lo. Neste caso, não deve

ser censurado; deve até ser elogiado. Muita vez também a obra chegaria

ao fim total se o pregador não agisse como seu próprio oficial, e

encontrasse suprimentos temporais e espirituais por seus próprios

esforços. Quanto a estes casos excepcionais nada tenho que dizer, senão

que admiro o obreiro lutador e tenho profunda simpatia por ele, pois está

sobrecarregado e sujeito a ter menos sucesso como soldado do Senhor

porque está enredado nos negócios desta vida.

Nas igrejas bem estabelecidas que oferecem sustento decente, o

ministro fará bem em supervisionar todas as coisas, mas, não

interferindo em nada. Se os oficiais não merecem fé, não deviam ser

oficiais, mas se são dignos do seu ofício, são dignos da nossa confiança.

Sei que ocorrem casos em que são lamentavelmente incompetentes e,

apesar disso, devem ser mantidos. Num tal estado de coisas, o pastor

deve manter aberto o olho que, doutro modo, deveria ficar fechado.

Antes que a administração dos fundos da igreja se torne um escândalo,

precisamos intervir resolutamente, mas, se não houver necessidade

urgente da nossa interferência, será melhor acreditarmos na divisão do

trabalho e deixar que os oficiais executem o seu serviço. Temos o

mesmo direito dos outros oficiais de lidar com as questões financeiras, se

nos agradar, mas, se outros o fizerem por nos, teremos sabedoria em

deixá-los sós, quanto possível. Quando a carteira está vazia, a esposa

está doente, e os filhos são numerosos, o pregador tem que falar, se a

igreja não o provê adequadamente do necessário; mas, levar

constantemente à igreja pedidos de aumento dos honorários não é sábio.

Quando o ministro é remunerado pobremente, e acha que merece

mais, e que a igreja poderia dar-lhe mais, deve falar primeiro com os

oficiais, com delicadeza, coragem e firmeza. Se eles não derem a devida

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atenção, ele o mencionará aos demais irmãos em termos práticos, como

quem trata de um negocio; não como quem suplica uma caridade, mas

procurando despertar o senso de honra deles com o fato de que "o

trabalhador é digno do seu salário." Que diga diretamente o que pensa,

pois não há de que se envergonhar. Haveria, porém, muito mais motivo

para vergonha se ele se desonrasse, e à causa de Deus, enterrando-se em

dividas. Fale ele, pois, tocando no ponto com espírito apropriado ás

pessoas apropriadas, e ali encerre a questão, sem recorrer a queixas

secretas. A fé em Deus concilia-se com os nossos interesses temporais, e

nos capacita a praticarmos o que pregamos, a saber: "Não andeis pois

inquietos, dizendo: Que comeremos, ou que beberemos, ou com que nos

vestiremos?... De certo vosso Pai celestial bem sabe que necessitais de

todas estas coisas."

Alguns que fingem viver pela fé têm empregado meios astutos para

arrancar donativos, girando um saca-rolhas indireto, mas vocês, ou

pedirão simplesmente, como homens, ou deixarão o caso entregue ao

sentimento cristão dos membros de sua igreja, voltando para os itens e

métodos financeiros da igreja um olho cego e um ouvido surdo.

O olho cego e o ouvido surdo serão extremamente próprios para os

mexericos locais. Toda igreja, e, nesse sentido, toda vila e toda família

estão praguejadas de certas senhoras que bebem chá e despejam ácido

sulfúrico pela conversação. Nunca se aquietam, mas cochicham por todo

lado, para contrariedade dos que são consagrados e práticos. Ninguém

precisa mover-se muito; basta observar-lhes as línguas. Nas reuniões de

chá, nas reuniões de costura e em outros encontros, elas praticam a

vivisseção no caráter dos seus vizinhos, e é claro que ficam ansiosas por

provar o gume das suas facas no ministro, na esposa dele, nos seus

filhos, no chapéu da mulher do ministro, no vestido da filha dele, e em

quantas fitas novas ela usou nos últimos seis meses, e assim por diante,

ad infinitum.

Também há certas pessoas que nunca estão tão felizes como quando

"se angustiam de coração" por terem que contar ao ministro que o Sr. A.

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é uma serpente no gramado, que erra muito em ter boa opinião sobre os

Srs. B. e C., e que elas ouviram de muitas bocas que o Sr. D. e sua

esposa estão em péssimas relações. Seguem-se depois fileiras de

observações sobre a Sra. E., que diz que ela e a Sra. F, ouviram

casualmente a Sra. G. dizer à Sra. H. que a Sra. I. devia dizer que o Sr. J.

e a Srta. K. iam sair da capela e ouvir o Sr. L. – e tudo por causa do que

disse o velho M. ao jovem N. a respeito daquela Srta. O.

Jamais dê ouvidos a essa gente. Faça como Nelson fez quando

colocou o seu olho cego no telescópio e declarou que não via o sinal e,

portanto, continuaria a batalha. Os que quiserem murmurar, que

murmurem, mas não os escute, a não ser que murmurem tanto acerca de

uma pessoa que haja a ameaça de que a questão é séria. Neste caso, é

bom fazê-los registrar tudo e falar-lhes com prudente austeridade.

Afirme-lhes que você é obrigado a ter os fatos colocados de forma bem

definida, que a sua memória não é das melhores, que você tem muitas

coisas em que pensar, que você sempre receia cometer enganos nessas

questões, e que, se tivessem a bondade de escrever o que tinham para

dizer, você poderia ter uma visão mais completa do caso e dedicar mais

tempo à sua consideração. A dona Maroca Difama não fará isso; opõe-se

fortemente a fazer afirmações claras e definidas. Prefere falar ao acaso.

Eu gostaria imensamente que, por algum processo, puséssemos fim

aos mexericos, mas suponho que jamais se conseguirá isso, enquanto a

raça humana for o que é, pois Tiago nos diz que "toda natureza, tanto de

bestas feras como de aves, tanto de répteis como de animais do mar, se

amansa e foi domada pela natureza humana; mas nenhum homem pode

domar a língua, é um mal que não se pode refrear; está cheia de peçonha

mortal." O que não se pode curar, temos que suportar, e a melhor

maneira de suportá-lo é não lhe dar ouvidos. No alto de um dos nossos

velhos castelos, um antigo proprietário inscreveu estas linhas: Eles falam. Falam o quê? Deixe que falem.

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Pessoas muito sensíveis deveriam aprender de cor esse lema. Não

vale a pena dar atenção às prosas da aldeia, e você nunca deve interessar-

se por elas, exceto quanto a lamentar a malícia e dureza de coração de

que elas muitas vezes são indicadoras.

Em sua obra, Plain Preaching (Pregação Direta), Mayow diz com

grande energía: "Se você visse uma mulher matar patos e gansos só para

obter uma de suas penas, estaria vendo uma pessoa agir como nós

quando falamos mal de alguém só pelo prazer que sentimos ao falar mal.

Pois o prazer que sentimos não vale nem uma pena, e o pesar que

causamos é maior do que o que sente um homem ao perder os bens que

possui." Encaixe uma observação dessa natureza aqui e ali num sermão,

quando não há no ar nenhum mexerico específico, e talvez seja de algum

beneficio aos mais sensatos; quanto aos demais, não tenho esperança

alguma.

Sobretudo, nunca se junte ao mexeriqueiro, e rogue à sua esposa

que se abstenha disso também. Alguns são tagarelas demais, e me fazem

lembrar o moço que foi enviado a Sócrates para aprender oratória.

Quando foi apresentado ao filósofo, ficou falando sem parar, e tanto que

Sócrates lhe cobrou taxa dupla. "Por que me cobras o dobro?", perguntou

o jovem. "Porque", disse o orador, "preciso ensinar-lhe duas ciências:

uma, como segurar a língua; a outra, como falar." A primeira ciência é a

mais difícil, mas procure alcançar proficiência nela, ou sofrerá muito, e

criará problemas sem fim.

Evite com toda a sua alma aquele espírito de suspeita que azeda a

vida de algumas pessoas, e, para todas as coisas das quais você pode

inferir algo intratável, volte um olho cego e um ouvido surdo. A suspeita

faz do homem um tormento para si próprio e um espião dos demais.

Uma vez que você comece a suspeitar, as causas da desconfiança se

multiplicarão ao seu redor, e o seu próprio espírito de suspeita criará a

maior parte delas. Muitos amigos foram transformados em inimigos por

terem sido objeto de suspeita. Portanto, não fique olhando em volta com

os olhos da desconfiança, nem se ponha à escuta como um abelhudo com

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o apressado ouvido do medo. Ir pelo meio do rebanho cavoucando para

arrancar deslealdade, como um caçador em busca de coelhos, é uma

atividade sórdida, geralmente recompensada do modo mais triste.

O lorde Bacon sabiamente aconselha: "O previdente deixa de

investigar aquilo que detestaria descobrir." Quando não há nada para

descobrir que nos ajude a amar o próximo, é melhor deixar de investigar,

pois poderíamos trazer à luz algo que talvez desse início a anos de

contenda. Não me refiro, é claro, aos casos que requerem disciplina, os

quais precisam ser averiguados completamente e tratados com coragem,

mas tenho em mente apenas as questões pessoais em que o principal

sofredor é você mesmo. Aqui, é sempre melhor não saber, não querer

saber, o que dizem de você, amigos e inimigos. Os que nos elogiam

provavelmente estão tão enganados como os que nos ofendem, e aqueles

podem ser considerados como contrapeso destes, se é que vale a pena

levar em conta o julgamento feito pelos homens. Se temos a aprovação

do nosso Deus, atestada pela consciência em paz, podemos permitir-nos

ser indiferentes às opiniões dos nossos semelhantes, quer nos

recomendem, quer nos condenem. Se não conseguimos atingir este

ponto, somos bebês, e não homens.

Alguns têm o desejo infantil de saber a opinião que seus amigos

têm deles, e, se esta contêm o menor elemento de dissentimento ou

censura, passam logo a considerá-los inimigos. Decerto não somos

papas, e não queremos que os nossos ouvintes nos considerem infalíveis!

Conhecemos homens que ficaram com raiva quando lhes fizeram uma

observação perfeitamente válida e razoável, e que consideram um amigo

sincero como um opositor que tem prazer em achar falha neles. Esta

errônea representação de um lado, logo produziu cólera no outro, e o

resultado foi briga. Quanto melhor é o espírito indulgente! Você deve ser

capaz de agüentar críticas, ou não está apto para estar á frente de uma

igreja. E deve deixar partir o crítico sem incluí-lo entre os seus inimigos

mortais, ou provará que não passa de um fraco. É mais sábio mostrar

dobrada bondade quando você foi severamente sacudido por alguém que

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achava que tinha o dever de fazer isso, pois ele provavelmente é uma

pessoa sincera que vale a pena cativar. Aquele que nos primeiros dias do

seu pastorado duvida que você sirva para ser pastor ali, poderá tornar-se

o seu mais firme defensor, se notar que você cresce na graça e progride

na qualificação para a obra. Portanto, não o considere inimigo por

expressar sinceramente as suas dúvidas. Seu coração não confessa que os

temores dele não eram completamente sem base? Volva o seu ouvido

surdo para aquilo que você julga ser uma áspera crítica feita por ele, e

trate de esforçar-se para pregar melhor.

O gosto por mudanças, o melindre, os gostos avançados, e outras

causas, podem levar as pessoas a ficarem inquietas sob o nosso

ministério, e será bom para nós ignorar isso tudo. Percebendo o perigo, é

preciso não revelar a nossa descoberta, mas, movimentar-nos para

melhorar os nossos sermões, na esperança de que a boa gente seja mais

bem alimentada e esqueça a sua insatisfação. Se forem pessoas realmente

bondosas, o mal incipiente logo passará, e nenhum descontentamento

verdadeiro surgirá – ou, se surgir, não há por que provocá-lo pela

suspeita.

Onde eu soube que havia alguma medida de desafeto para comigo,

não tomei conhecimento, a não ser quando isso me foi imposto à força;

mas, ao contrário, agi para com a pessoa antagônica com o máximo de

cortesia, e de forma a mais amigável – e nunca mais ouvi falar da

questão. Se eu tivesse tratado o bom homem como um opositor, ele teria

feito o melhor que pudesse para interpretar o papel que lhe fora

atribuído, e o executaria para seu próprio prestígio. Mas eu achei que ele

era cristão e tinha direito de não me apreciar, se o julgava justo, e que, se

agiu assim, eu não devia pensar mal dele. Portanto, tratei-o como a um

amigo do meu Senhor, se não meu, incubi-o de fazer algum trabalho que

implicava em confiança nele, coloquei-o à vontade, e aos poucos ganhei

nele um amigo do peito e um companheiro no trabalho.

As melhores pessoas às vezes perdem as estribeiras; nós ficaríamos

contentes se os nossos amigos pudessem esquecer por completo o que

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dissemos quando estávamos mal humorados e raivosos, e seria cristão

agir para com os outros neste assunto como gostaríamos que eles

agissem para conosco. Nunca faça um irmão lembrar que uma vez disse

uma palavra pesada em referência a você. Se o vê com melhor

disposição, não mencione a ocasião mais penosa de antes; se ele for um

homem de espírito reto, no futuro não quererá irritar um pastor que o

tratou tão generosamente, e se for apenas um tipo grosseiro, será uma

lástima sequer argumentar com ele, e, portanto, será melhor deixar o

passado ir à revelia.

Seria melhor ser enganado cem vezes do que viver uma vida de

suspeição. É intolerável. O avarento que passa a noite em claro e ouve

um assaltante em cada folha que caí, não é mais infeliz do que o ministro

que crê que andam armando conspirações contra ele, e que andam

esparramando boatos para prejudicá-lo. Lembro-me de um irmão que

acreditava que o estavam envenenando, e estava persuadido de que até o

assento em que se sentava e as roupas que usava tinham ficado saturados

de morte, graças a alguma química sutil; sua vida era um perpétuo

sobressalto – e é desse jeito a existência – de um pastor quando

desconfia de tudo e de todos que o cercam.

E a suspeita não é apenas fonte de inquietação; é um mal moral, e

prejudica o caráter do homem que a alberga. Nos reis a suspeita produz

tirania, nos maridos ciúme, e nos ministros amargor; e esse amargor de

alma dissolve todos os laços da relação pastoral, comendo como ácido

corrosivo o âmago da própria alma do ofício e fazendo deste uma

maldição em vez de uma bênção. Quando este mal terrível coalha o leite

da bondade humana no coração de um homem, este fica mais apto para

formar nas fileiras dos investigadores da polícia do que para o

ministério. Como uma aranha, põe-se a lançar suas linhas, e forma uma

teia de fios trêmulos, que o envolvem e o advertem do menor toque da

mais diminuta mosca.

Ali está ele sentado ao centro, massa de sensações, todos nervos e

feridas em carne viva, sensível e sensibilizado, um mártir auto-imolado,

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arrastando ao redor de si achas de lenha inflamadas, e aparentemente

ansioso para ser queimado. O mais fiel amigo não está seguro em tais

condições, o maior cuidado em evitar causar ofensa não assegurará

imunidade à desconfiança, mas provavelmente será transformado em

astúcia e covardia. A sociedade corre quase tanto perigo com um homem

desconfiado, como com um cachorro louco, pois morde por todos os

lados sem razão, e espalha a torto e a direito a espuma de sua loucura. É

inútil arrazoar com a vítima dessa loucura, pois, com perversa

engenhosidade, desvia todos os argumentos, levando-os por caminhos

errados, e faz do seu pedido de confiança outro motivo para suspeita. É

triste que não possa ver a iniqüidade da censura sem base que faz a

outros, especialmente àqueles que foram os seus melhores amigos e os

mais firmes sustentáculos da causa de Cristo. "Eu não censuraria virtude assim julgada por sombras de dúvida. A indevida suspeita é abjeção mais vil que a culpa suspeitada."

Ninguém deveria ser transformado em ofensor por causa de uma

palavra. Mas, quando a suspeita impera, até o silêncio vira crime.

Irmãos, evitem esse erro renunciando ao amor próprio. Julguem coisa de

pequena importância o que os homens pensem ou digam de vocês, e

cuidem somente do tratamento que dão ao Senhor. Se vocês forem

sensíveis por natureza, não sejam indulgentes para com essa fraqueza,

nem permitam que outros joguem com ela. Não seria grande degradação

do seu ministério se vocês mantivessem por sua conta um exército de

espiões para coligir informações sobre tudo que o povo da sua igreja diz

de vocês? Contudo, quase chega a isso, permitir que certos intrometidos

lhes tragam todos os mexericos do lugar. Mandem embora essas

criaturas. Detestem esses elementos nocivos, que manipulam

murmurações produzindo brigas. Quem traz, leva, e, sem dúvida, os

mexeriqueiros saem da sua casa e divulgam cada observação saída dos

seus lábios, com abundância de enfeites acrescentados por conta deles.

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Lembrem-se de que, assim como o receptador é tão mau como o

ladrão, quem dá ouvidos ao escândalo participa da sua culpa. Se não

existissem ouvidos que escutam, não existiriam línguas portadoras de

boatos. Enquanto vocês forem compradores de mercadorias de má

qualidade, a demanda produzirá o suprimento, e as fábricas de falsidade

trabalharão com tempo integral. Ninguém quer ser criador de mentiras, e,

todavia, quem ouve com prazer os maledicentes e prontamente acredita

neles, chocará muita ninhada levando-a à vida ativa.

Salomão diz: "o difamador separa os maiores amigos" (Pv. 16:28).

Lançam-se insinuações, provocam-se invejas, até que "o resultado é a

frieza recíproca, sem que se possa entender o porquê; cada um quer saber

qual teria sido a possível causa. Assim, as ligações mais sólidas, longas,

calorosas e confiantes, as fontes das mais doces alegrias da vida,

rompem-se talvez para sempre", (diz o Dr. Wardlaw comentando

Provérbios.) Esta é obra digna do chefe dos demônios, mas nunca

poderia ser levada a cabo se os homens vivessem fora da atmosfera da

suspeita. Sendo como é, o mundo está cheio de tristeza por essa causa,

tristeza tão aguda quão supérflua a sua causa. Isto é deveras doloroso!

Campbell observa eloqüentemente: "As ruínas de velhas amizades, para

mim são um espetáculo mais melancólico do que as de velhos palácios.

Mostram um coração outrora iluminado pela alegria, já amortecido e

deserto, freqüentado por aquelas aves de mau agouro que fazem os seus

ninhos nas ruínas." Ó suspeita, que desolações tens feito na terra!

Aprendam a descrer dos que não confiam nos seus irmãos em

Cristo. Desconfiem daqueles que querem levá-los a desconfiar dos

outros. Uma resoluta descrença em todos os traficantes de escândalos

fará muito para reprimir as suas energias malévolas.

Em sua Cripplegate Lecture, diz Matthew Poole: "A fama comum perdeu sua reputação há muito tempo, e não sei de

nada que tenha feito em nossos dias para recuperá-la; portanto, não deve merecer crédito. Quão poucos relatos de qualquer espécie há que, bem examinados, vemos que não são falsos! De minha parte, confesso que, se

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de vinte relatos acredito num, faço uma concessão muito liberal. Desconfie particularmente das informações ruins, porque estas se espalham mais depressa, sendo agradáveis a muitas pessoas que supõem que a sua própria reputação nunca estará bem alicerçada como quando construída sobre as ruínas da reputação de outros homens."

Porque as pessoas que gostariam de levá-los a desconfiar dos seus

amigos formam um triste grupo, e porque a suspeita em si mesma é um

vício vil e atormentador, decidam-se a voltar para todo esse negocio o

seu olho cego e o seu ouvido surdo.

Preciso dizer uma ou duas palavras sobre a sabedoria de nunca

ouvir o que não lhes foi destinado. O xereta é um individuo medíocre,

pouco melhor, se tanto, do que o informante comum; e se pode pensar

que aquele que ouviu algo por acaso, ouviu o caso mais do que devia.

Jeremias Taylor observa com sabedoria e justiça: "Nunca fique

escutando atrás da porta ou da janela, pois, além do perigo e da

armadilha que há nisso, é também uma invasão da vida particular do meu

próximo, e uma abertura forçada daquilo que ele fecha para que não se

abra." É pertinente o provérbio que diz que os que vivem à escuta

raramente ouvem falar bem deles, ouvir assim é uma espécie de furto,

mas os bens roubados nunca dão vero prazer ao gatuno. A informação

obtida por meios clandestinos, em todos os casos menos nas situações

extremas, fará mais dano que benefício a uma causa. O magistrado pode

julgá-lo um recurso expedito obter provas por tais meios, mas não posso

imaginar um caso em que o ministro deva proceder assim. A nossa

missão é de graça e paz. Não somos promotores em busca de provas

condenatórias, mas amigos cujo amor pode cobrir multidão de ofensas,

os olhos curiosos de Cão, pai de Canaã, nunca se metam em nosso

trabalho. Preferimos a piedosa delicadeza de Sem e Jafé, que andaram de

costas e cobriram a vergonha que o filho do mal publicara com regozijo.

Como regra geral, volte igualmente o olho cego e o ouvido surdo

para as opiniões e observações a seu respeito. Os homens públicos têm

que esperar crítica pública, e, como não se pode considerar infalível o

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Lições aos Meus Alunos (Vol. 1)

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público, os homens públicos podem esperar que os critiquem de modo

nem nobre, nem agradável. Somos obrigados a dar atenção em alguma

medida às observações sinceras e justas, mas, para o cruel veredito do

preconceito, para as críticas frívolas feitas por homens subservientes à

moda, para as tolas afirmações dos ignorantes e para a feroz denúncia

feita pelos adversários, podemos sem risco voltar o ouvido surdo. Não

podemos esperar que nos aprovem aqueles que nós condenamos

mediante o nosso testemunho contra os seus pecados favoritos. Se nos

recomendassem isto mostraria que erramos o nosso alvo.

Naturalmente, esperamos ser aprovados por nosso povo, pelos

membros das nossas igrejas e pelos interessados no evangelho que

freqüentam a igreja. Quando eles fazem observações reveladoras de que

não são grandes admiradores nossos, somos tentados a desanimar-nos,

senão a irritar-nos. Aí jaz uma armadilha. Quando eu estava prestes a

deixar meu cargo no interior para servir em Londres, um dos idosos

varões orou no sentido de que eu ficasse "livre do balido das ovelhas".

Durante a minha vida não pude imaginar o sentido dessa expressão, mas

agora o enigma está claro, e aprendi a fazer eu mesmo aquela oração.

Demasiada consideração dada ao que o nosso povo diz, em louvor ou

depreciação, não nos faz bem. Se habitamos nas alturas com "o grande

Pastor das ovelhas", ligaremos pouco para todos os balidos confusos ao

redor de nós, mas se somos "carnais" e andamos "segundo o homem",

teremos pouco sossego se dermos ouvidos a isto, àquilo e a tudo mais

que cada pobre ovelha possa lançar-nos balindo em volta de nós.

Talvez seja verdade que você estava incomumente cansativo

domingo passado de manhã, mas não havia necessidade alguma de que a

Sra. Sirena fosse contar-lhe que o diácono Jones pensava assim. É mais

que provável que, tendo percorrido a zona rural durante toda a semana

anterior, a sua pregação tenha sido um pouco água com açúcar, mas você

não precisa girar daqui e dali entre as pessoas para verificar se elas

notaram isso ou não. Já não basta que a sua consciência fique intranqüila

sobre esse ponto? Esforce-se para melhorar no futuro, mas não queira

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ouvir tudo o que cada João, José e Maria tenha para dizer sobre isso. Por

outro lado, você cavalgou brioso corcel em seu último sermão, e o

concluiu com floreados de trombetas. Sente-se agora consideravelmente

ansioso para saber que impressão causou. Reprima a sua curiosidade.

Não lhe fará bem inquirir. Se acontecer que os ouvintes concordam com

o seu próprio veredito, servirá somente para alimentar a sua lamentável

vaidade, e se pensarem diferente, a sua pesca de elogios o prejudicará no

conceito deles a seu respeito. Em qualquer caso, tudo girará em torno de

você, e este é um pobre tema para se ficar ansioso por causa dele.

Banque homem, e não se rebaixe procurando cumprimentos como

crianças com roupa nova, que dizem: "Veja só que bonito o meu vestido

novo!" Você não descobriu ainda que a adulação é tão prejudicial como

agradável? Afrouxa a mente e o torna mais sensível à calúnia. Na

proporção em que o elogio o agrada, a censura o faz sofrer.

Além disso, é crime afastar-se do seu grande objetivo de glorificar o

Senhor Jesus por mesquinhas considerações quanto ao seu pequeno ser,

e, se não houvesse outra razão, isto deveria pesar muito para você. O

orgulho é um pecado mortal, e crescerá sem que tome emprestado o

carro de irrigação da paróquia para cultivá-lo. Esqueça as expressões que

fomentem a sua vaidade. Se você se surpreender saboreando manjares

malsãos, confesse o pecado com profunda humildade. Payson mostrou

que era poderoso no Senhor quando escreveu à mãe: "Minha querida mãe, certamente a senhora não deve dizer uma palavra

que sequer pareça uma insinuação de que pensa que estou progredindo na graça. Não posso tolerar isso. Todos daqui, amigos e inimigos, conspiram para arruinar-me. Satanás e o meu próprio coração não deixam de dar sua ajuda. Se a senhora se juntar a eles, temo que toda a água fria que Cristo possa atirar sobre o meu orgulho não impedirá que este irrompa em chamas destruidoras. Na medida em que me adulem e me agradem, meu Pai celestial tem que me apoiar; e por uma indescritível misericórdia é que condescende em fazê-lo. Posso reunir cem razões por que não devo ser orgulhoso, mas o orgulho não atende à razão, nem a nada mais, exceto a

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uma boa sova. Mesmo neste momento sinto-o formigar na ponta dos meus dedos, procurando guiar a minha caneta."

Conhecendo por experiência própria aquelas surras secretas que o

nosso bondoso Pai aplica a Seus servos quando os vê indevidamente

exaltados, cordialmente acrescento as minhas advertências solenes

contra os afagos à carnalidade, afagos que consistem em dar ouvidos aos

elogios dos seus mui gentis amigos. São insensatos, e você precisa ter

cuidado com eles.

Um amigo sensato que não lhe poupe crítica semana após semana,

ser-lhe-á bênção maior do que mil admiradores sem discernimento, se

você tiver suficiente bom senso para agüentar aquele tratamento, e

suficiente graça para ser-lhe agradecido. Quando eu pregava nos Jardins

de Surrey (Surrey Gardens), um censor anônimo dotado de grande

habilidade costumava mandar-me uma lista semanal de meus erros de

pronúncia e outros deslizes na elocução. Nunca apôs o seu nome às

listas, o que foi o único motivo de queixa que tive contra ele, pois me

deixava com uma dívida pela qual eu não podia mostrar o meu

reconhecimento. Aproveito esta oportunidade para confessar as

obrigações que lhe devo, pois, com humor genial, e com evidente desejo

de me beneficiar, anotava implacavelmente tudo que supunha que eu

dissera de modo incorreto. Quanto a algumas dessas correções, ele

estava errado, mas na maior parte estava certo, e suas observações me

capacitaram a perceber e evitar muitos erros. Eu buscava o seu

memorando com muito interesse, e tinha o cuidado de melhorar quanto

às observações que vinham. Se eu tivesse repetido uma sentença dita

dois ou três domingos antes, ele dizia: "Ver a mesma expressão em tal

sermão", mencionando número e página.

Certa ocasião anotou que eu repetia vezes demais o verso: "Nada

trago em minhas mãos", e, acrescentou, "estamos suficientemente

informados da vacuidade das suas mãos." Exigia-me que mostrasse com

que autoridade chamava um homem de "ambicioso" e assim por diante.

É possível que alguns jovens ficassem desanimados, senão zangados,

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com tão severas críticas, mas seriam muito tolos reagindo assim, pois,

ofendendo-se com essa correção estariam jogando fora um valioso

auxilio ao progresso. Nenhum dinheiro pode comprar um julgamento

sincero e franco, e quando o podemos ter por nada, vamos utilizá-lo em

sua máxima extensão. O pior é que dos que oferecem os seus

julgamentos, poucos estão qualificados para formá-los, e seremos

importunados por observações tolas e impertinentes, a menos que lhes

voltemos o olho cego e o ouvido surdo.

No caso das informações falsas a seus respeito, na maior parte use

o ouvido surdo. Infelizmente os mentirosos ainda não são espécimes

extintos, e, como Richard Baxter e John Bunyan, você poderá ser

acusado de crimes que a sua alma aborrece. Não vacile por isso, pois

essa provação sobreveio aos melhores homens, e mesmo o seu Senhor

Não escapou à venenosa língua da falsidade. Em quase todos os casos o

caminho mais sábio a seguir é deixar que essas coisas morram de morte

natural. Uma grande mentira, se despercebida, é como um grande peixe

fora d'água – pula, enterra-se e se esbate, e morre em pouco tempo.

Responder-lhe é supri-la do seu próprio elemento e ajudá-la a ter vida

mais longa. As falsidades geralmente levam consigo a sua própria

refutação e se atormentam a si mesmas até morrer.

Algumas mentiras, em especial, têm um cheiro peculiar, que revela

a sua podridão a todo nariz honesto. Se você fica perturbado com elas, o

objetivo da sua invenção é parcialmente atendido, mas se você agüentar

em silêncio, isto desapontará a malicia e dará a você uma vitória parcial,

e Deus, que o tem sob Seus cuidados, a transformará numa libertação

completa. Sua vida inculpável será sua melhor defesa, e aqueles que a

têm observado não permitirão que você seja condenado tão depressa

como os seus caluniadores esperam. Somente se abstenha de disputar as

suas lutas pessoais e, em nove de dez casos, os seus acusadores não

lucrarão nada com a maledicência deles, a não ser desgosto próprio e

desprezo alheio. Processar o caluniador raramente é sábio.

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Lembro-me de um amado servo de Cristo que em sua juventude era

muito sensível e, sendo acusado falsamente, processou a pessoa. Houve

pedido de desculpa em que se retiraram todos os itens da acusação de

forma a mais ampla, mas o bom homem insistiu em que a escusa fosse

publicada nos jornais, e o resultado o convenceu da sua insensatez.

Multidões que de outro modo nunca teriam ficado sabendo da difamação

perguntavam de que se tratava e faziam comentários, concluindo em

geral com a atilada observação de que ele só tinha que ter feito alguma

coisa imprudente para provocar tal acusação. Dizem que lhe ouviram

dizer que nunca mais voltaria a recorrer a esse método, pois viu que a

escusa pública lhe causou mais mal do que a própria calúnia.

Ocupando como ocupamos uma posição que faz de nós excelentes

alvos para o diabo e seus aliados, o melhor curso a seguir é defender a

nossa inocência com o nosso silêncio e deixar com Deus a nossa

reputação. Todavia, há exceções a esta regra geral. Quando se fazem

acusações públicas, definidas e marcantes a um homem, é sua obrigação

dar-lhes resposta, e da maneira mais clara e mais franca. Declinar a toda

investigação num caso desses é praticamente declarar-se culpado, e seja

qual for o modo de colocar a coisa, o grande público normalmente

considera uma recusa a responder como prova de culpa. Quando se trata

de simples importunação e contrariedade, a melhor coisa é a passividade

total, mas quando a questão assume proporções mais serias, e o nosso

acusador nos desafia a defender-nos, somos obrigados a enfrentar as suas

acusações com honesta exposição dos fatos. Em cada caso deve-se

procurar o conselho do Senhor quanto à maneira de lidar com as línguas

difamadoras e no desfecho a inocência será vindicada e a falsidade será

levada à convicção da sua culpa.

Alguns ministros foram quebrantados em seu espírito, expulsos de

sua posição, e até prejudicados em seu caráter por terem dado atenção a

algum escândalo provinciano.

Conheço um fino jovem, para quem eu previra uma carreira

benéfica, que caiu em grande dificuldade porque ele de início admitiu

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que era uma dificuldade, e depois teve que dar duro para fazer com que

assim fosse. Procurou-me queixando-se de que tinha recebido uma

grande ofensa; e era, mas tudo se resumia a algo que meia-dúzia de

mulheres diziam do seu comportamento depois da morte da sua esposa,

originalmente era uma coisa pequena demais para merecer atenção –

uma Sra. Q, tinha dito que não se espantaria se o ministro se casasse com

a empregada que morava na casa dele; outra a representou como tendo

dito que ele devia desposá-la, e uma terceira, com maliciosa habilidade,

encontrou nas palavras um sentido mais profundo, e as elaborou

transformando-as numa acusação, o pior de tudo foi que o caro e sensível

pregador teve que pôr a boca no mundo e acusar uma ou duas vintenas

de pessoas de espalharem calúnias contra ele, chegando a ameaçar

algumas delas com demandas judiciais. Se tivesse orado sobre aquilo em

secreto, ou se tivesse feito ouvidos moucos, nenhum prejuízo teria

resultado daquele palavrório. Mas esse caro irmão não era capaz de tratar

uma calúnia com sabedoria, pois não possuía o que com empenho

recomendo, isto é, um olho cego e um ouvido surdo.

Ainda, meus irmãos, o olho cego e o ouvido surdo ser-lhes-á útil

com relação a outras igrejas e seus pastores. Delicia-me sempre que um

pastor queima os dedos ao meter-se nas atividades de outras pessoas. Por

que não atende a seus próprios interesses, deixando de bancar bispo na

diocese de outro? Muitas vezes membros de outras igrejas me pedem que

me intrometa em suas contendas; mas, a menos que me procurem com a

devida autorização, nomeando-me oficialmente árbitro, recuso-me.

Alexander Cruden deu-se a si próprio o nome de "o Corregedor", e

nunca lhe invejei o título. Uma inspiração peculiar seria necessária para

capacitar um homem a resolver todas as controvérsias; contudo os menos

qualificados são os mais ávidos para tentar fazê-lo. Na maior parte, a

interferência é um fracasso, por mais bem intencionada que seja. As

dissensões internas em nossas igrejas são muito semelhantes às brigas de

marido e mulher; quando o caso chega a um ponto em que eles têm que

ir a vias de fato, quem interferir será vítima da fúria comum dos dois.

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Ninguém senão o Sr. Ingênuo Verde interferirá numa batalha doméstica,

pois é claro que o marido não vai gostar disso, e a mulher, ainda que

sofrendo por causa de muitos golpes recebidos, dirá: "Deixe em paz o

meu marido; ele tem direito de me bater, se quiser." Por maior que seja a

animosidade dos cônjuges briguentos, parece que fica esquecida no

ressentimento contra os intrusos.

Assim, entre os muito independentes membros da denominação

batista, a pessoa de fora da igreja que interfira de algum modo, pode

estar certa de que receberá o pior. Irmão, não se considere bispo de todas

as igrejas da vizinhança, mas contente-se em olhar por Listra, Derbe,

Tessalônica, ou qualquer que seja a igreja confiada aos seus cuidados, e

deixe Filipos e Éfeso nas mãos do seus próprios pastores. Não anime as

pessoas desleais que acham defeitos nos seus pastores, ou que lhe trazem

notícias dos males que ocorrem noutras igrejas. Quando se encontrar

com colegas de ministério, não se apresse a dar-lhes conselhos. Eles

sabem qual é o dever deles tanto como você, e o seu juízo do programa

de trabalho deles provavelmente se fundamenta em informação parcial

fornecida por fontes maculadas pelo preconceito. Não ofenda o seu

próximo com alguma intromissão. Temos bastante que fazer em casa, e é

prudente ficar fora de todas as contendas que não nos pertencem.

Um dos provérbios do mundo recomenda-nos que lavemos a nossa

roupa suja em casa, e eu lhe acrescentarei uma linha, advertindo a que

não chamemos os nossos vizinhos enquanto a roupa deles está

ensaboada. Devemos isto aos nossos amigos, e será melhor para

promover a paz. "Quem se mete em questão alheia é como aquele que

toma pelas orelhas um cão que passa" – está sujeito a ser mordido, e

poucos terão pena dele. Bridges sabiamente observa que "o nosso

bendito Senhor transmitiu-nos uma lição de piedosa sabedoria. Ele

sanava as contendas ocorridas em sua família, mas, quando chamado a

interferir numa briga que não Lhe pertencia, respondeu "Quem me fez

juiz ou partidor entre vós?" Os juízes que se constituem tais, ganham

pouco respeito; se fossem mais aptos para censurar estariam menos

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inclinados a fazê-lo. Muita diferença insignificante numa igreja tem sido

soprada até virar um fogaréu por ministros de fora que não tinham idéia

do mal que estavam causando; deram os seus veredictos baseados em

declarações ex parte (de um lado), instigando assim adversários que se

sentiam seguros quando podiam dizer que os pastores das igrejas

próximas concordavam inteiramente com eles.

Meu conselho é que nos juntemos aos "João-Não-Sei-Nada", e que

nunca digamos uma palavra sobre uma questão qualquer enquanto não

ouvirmos ambos os lados; e, além disso, que façamos tudo para evitar

um lado e outro, se a questão não for da nossa conta.

Não basta isto para explicar a minha declaração de que tenho um

olho cego e um ouvido surdo, e de que são eles o melhor olho e o melhor

ouvido que tenho?

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CONVERSÃO COMO O NOSSO OBJETIVO

O fim principal do ministério cristão é a glória de Deus. Quer se

convertam as almas, quer não, se Jesus Cristo é fielmente pregado o

ministro não trabalha em vão, pois é o bom cheiro para Deus, nos que se

perdem e nos que se salvam. Contudo, em regra, Deus nos enviou para

pregar a fim de que, mediante o evangelho, os filhos dos homens se

reconciliem com Ele. Aqui e ali pode acontecer que um pregador da

justiça, como Noé, trabalhe sem conseguir levar ninguém para dentro da

arca da salvação, salvo as pessoas que pertençam ao círculo da sua

família; e que outro, como Jeremias, chore em vão por uma nação

impenitente; mas, na maior parte, a obra de pregação visa a salvar os

ouvintes. Compete-nos semear mesmo em lugares pedregosos, onde

nenhum fruto recompense o nosso labor; mas devemos sempre ter em

vista uma colheita e lamentar se ela não aparecer no tempo devido.

Sendo a glória de Deus o nosso objetivo principal, nós o

alcançaremos procurando a edificação dos santos e a conversão dos

pecadores, É nobre tarefa instruir o povo de Deus e edificá-lo em sua

mui santa fé; de modo nenhum podemos negligenciar este dever. Com

este fim, precisamos fazer claras exposições da doutrina do evangelho,

de experiências vitais, e dos deveres cristãos, jamais deixando de

declarar todo o conselho de Deus. Em muitos casos se mantêm em

recesso sublimes verdades com o pretexto de que não são práticas,

quando o simples fato de que foram reveladas prova que o Senhor as

considera valiosas, e ai de nós se pretendemos ser mais sábios que Ele!

Podemos dizer de toda e qualquer doutrina da Escritura: "É sábio dar-lhe

uma língua o homem."

Se se perder uma nota da harmonia divina da verdade, a música

ficará tristemente desfigurada. O povo da sua igreja poderá enfermar

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com graves moléstias espirituais pela falta de alguma modalidade de

nutrição espiritual, falta que só pode ser suprida pelas doutrinas que você

omitiu. No alimento que comemos há ingredientes que de início não

parecem necessários à vida, mas a experiência mostra que são

indispensáveis para a saúde e para as energias. O fósforo não cria carne,

mas faz falta aos ossos. A mesma descrição cabe a muitas substâncias e

condimentos na devida proporção, a economia humana necessita deles.

Exatamente assim, certas verdades que parecem pouco adequadas à

nutrição espiritual, são, todavia, muito benéficas, suprindo os crentes de

espinha dorsal e de musculatura, e reparando os órgãos avariados da

constituição humana do cristão. Temos que pregar "toda a verdade" para

que o homem de Deus esteja perfeitamente habilitado para todas as boas

obras.

Contudo, o nosso grande objetivo de glorificar a Deus deve ser

atingido principalmente pela conquista de almas. Precisamos ver almas

nascidas para Deus. Se não as virmos, o nosso clamor será o de Raquel :

"Dá-me filhos, ou se não morro." Se não ganharmos almas para Cristo,

lamentaremos como o chefe da família que não vê colheita, como o

pescador que volta para a sua cabana com a rede vazia, ou como o

caçador que andou em vão por vales e montes. O nosso falar seria o de

Isaías, com muitos suspiros e gemidos: "Quem deu crédito à nossa

pregação? e a quem se manifestou o braço do Senhor?" Os embaixadores

da paz não devem parar de chorar amargamente, enquanto os pecadores

não chorarem por seus pecados.

Se temos intenso desejo de ver os nossos ouvintes crerem no

Senhor Jesus, como agir para sermos usados por Deus para a produção

desse resultado? Este é o tema da presente preleção.

Desde que a conversão é obra divina, precisamos ter o cuidado de

depender inteiramente do Espírito de Deus e de buscar dEle poder sobre

a mente dos homens. Como esta observação é repetida com freqüência,

temo que bem poucos sintam a sua força, pois, se fôssemos mais

verdadeiramente sensíveis à nossa necessidade do Espírito de Deus, não

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estudaríamos com maior dependência do Seu ensino? Não oraríamos

importunando-O mais para receber dEle a Sua santa unção? Em nossa

pregação, não daríamos mais ampla liberdade para a Sua operação? Não

fracassamos em muitos dos nossos esforços porque praticamente,

conquanto não doutrinariamente, ignoramos o Espírito Santo? Seu lugar

como Deus é o trono, e em todos os nossos empreendimentos Ele deve

ocupar o principio, o meio e o fim; somos instrumentos nas Suas mãos, e

nada mais.

Admitido isso plenamente, que mais se deve fazer para que se

vejam conversões? Por certo devemos ter o cuidado de pregar com

maior proeminência as verdades que têm mais probabilidade de levar

àquele fim. Que verdades são essas? Respondo que primeiro e acima de

tudo devemos pregar a Cristo, e Este crucificado. Onde Jesus é exaltado,

almas são atraídas. "E eu, quando for levantado da terra, todos atrairei a

mim." A pregação da cruz é para os que se salvam sabedoria de Deus e

poder de Deus. O ministro cristão deve pregar todas as verdades que se

agrupam em torno da pessoa e obra do Senhor Jesus, e, a partir daí, deve

pôr às claras com muito ardor e de modo bem definido o mal do pecado,

de que resulta a necessidade de um Salvador.

Que trate de mostrar que o pecado é quebra da leí, que precisa ser

castigado, e que a ira de Deus se manifesta contra ele. Que nunca trate o

pecado como se fosse coisa de somenos importância, ou um

contratempo, mas que o exponha como extremamente ofensivo a Deus.

Que desça aos pontos particulares, não se restringindo a um superficial

relancear de olhos a grosso modo, mas mencionando pormenorizadamente

vários pecados, mormente os mais comuns na ocasião, como a

devoradora e insaciável hidra do alcoolismo, que devasta a nossa terra; a

mentira que, na forma de difamação, é farta por todo lado; e a

licenciosidade, que deve ser mencionada com santa delicadeza e,

contudo, precisa ser denunciada implacavelmente. Devemos reprovar

especialmente aqueles males em que os nossos ouvintes caíram, ou estão

prestes a cair.

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Explique os Dez Mandamentos e obedeça à injunção divina:

"declara a meu povo as suas transgressões, e à casa de Jacó os seus

pecados." Desvende a espiritualidade da leí, como fez o nosso Senhor, e

mostre como ela é transgredida por pensamentos, intenções e

imaginações. Deste modo, muitos pecadores serão aguilhoados no

coração.

O velho Robbie Flochart costumava dizer: "De nada valerá querer

costurar com o fio de seda do evangelho, se não perfurarmos um orifício

para ele com a aguda agulha da leí." A leí vai primeiro, como a agulha, e

puxa o fio do evangelho após si; portanto, pregue sobre o pecado, a

justiça e o juízo por vir. Explique freqüentemente linguagens como a do

Salmo 51; mostre que Deus requer a verdade no íntimo, e que a

purificação com sangue sacrificial é absolutamente necessária. Vise o

coração. Sonde a ferida e toque as veras da alma. Não evite os temas

severos, pois primeiro os homens precisam ser feridos para depois

poderem ser curados, e mortos antes de poderem receber vida. Ninguém

se vestirá com o manto da justiça enquanto não se despir das folhas de

figueira, nem se lavará na fonte da misericórdia enquanto não perceber a

sua imundície. Portanto, meus irmãos, é preciso que não cessemos de

declarar a leí, suas exigências, suas ameaças, e as múltiplas transgressões

que o pecador comete contra a leí.

Ensinem a doutrina da depravação total da natureza humana.

Mostrem aos homens que o pecado não é um acidente, mas o genuíno

produto dos seus corações corruptos. Preguem a doutrina da depravação

natural do homem. É doutrina que está fora de moda, pois hoje em dia

podem-se achar ministros ótimos para falar sobre "a dignidade da

natureza humana." O "lapso estado do homem" – esta é a frase – recebe

alusão às vezes, mas a corrupção da nossa natureza e temas afins são

cuidadosamente evitados. Os etíopes são informados de que podem

embranquecer a sua pele, e se espera que os leopardos removerão as suas

manchas. Irmãos, não caiam nessa ilusão ou, se caírem, podem esperar

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poucas conversões. Vaticinar coisas brandas e atenuar o mal do nosso

estado de perdidos não é o modo de levar homens a Jesus.

Irmãos, a necessidade das operações do divino Espírito Santo

segue-se naturalmente ao ensinamento anterior, pois, necessidade terrível

requer interposição divina. É preciso dizer aos homens que eles estão

mortos, e que somente o Espírito Santo pode vivificá-los; que o Espírito

trabalha de acordo com o Seu bom prazer, e que homem nenhum pode

reivindicar as Suas visitações ou merecer o Seu auxilio. Pensa-se que

este ensino é muito desanimador, e assim é, mas os homens precisam ser

desencorajados quando estão procurando a salvação de maneira errônea.

Livrá-los da presunção de que têm capacidades próprias é um grande

auxilio com vistas a levá-los a olhar para fora de si, para outro –

precisamente para o Senhor Jesus. A doutrina da eleição e outras grandes

verdades que declaram que a salvação decorre totalmente da graça,

sendo, não direito da criatura, mas dádiva do Soberano Senhor, visam

todas a expulsar do homem o orgulho e, assim, a prepará-lo para receber

a misericórdia de Deus.

Também devemos apresentar aos nossos ouvintes a justiça de Deus

e a certeza de que toda transgressão será punida. "Ponha diante deles com ornato terrível a pompa daquele tão tremendo dia em que Jesus Cristo com as nuvens virá."

Façam ressoar nos ouvidos deles a doutrina da segunda vinda de

Cristo, não como curiosidade despertada pela profecia, mas como um

fato solene e prático. É ocioso apresentar o nosso Senhor em termos de

uma ruidosa valentia de um reino terrestre, à moda dos irmãos que crêem

num judaísmo restaurado. Precisamos pregar o Senhor como Aquele que

vem para julgar o mundo com justiça, para convocar as nações à barra do

Seu tribunal, e para separá-las como o pastor aparta as ovelhas dos

cabritos. Paulo pregou sobre a justiça, a temperança e o juízo vindouro, e

fez tremer a Félix; estes temas continuam sendo igualmente poderosos.

Furtaremos do evangelho o seu poder se deixarmos de lado as suas

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ameaças de castigo. É de temer que as opiniões modernas sobre a

aniquilação e a restauração que têm afligido a igreja nestes últimos

tempos levaram muitos ministros a serem indolentes quanto a falar a

respeito do juízo e seus resultados, e, conseqüentemente, os terrores do

Senhor têm exercido pequena influência sobre pregadores e ouvintes. Se

for assim, por mais pesar que sintamos não será suficiente, pois deste

modo é posto de lado o uso de um dos principais meios de conversão.

Diletos irmãos, acima de tudo temos que ser claros sobre a grande

doutrina da salvação das almas – a doutrina da expiação. Precisamos

pregar um real sacrifício substitutivo de bona fide (boa fé), e proclamar o

perdão como seu resultado. Idéias obscuras sobre o sangue expiatório

são em extremo perniciosas. As almas são retidas numa escravidão

desnecessária e se privam os santos da serena confiança da fé porque não

se lhes diz definidamente que "Aquele que não conheceu pecado, (Deus)

o fez pecado por nós; para que nele fôssemos feitos justiça de Deus."

Temos que pregar a doutrina da substituição honesta e inequivocamente,

pois, se há uma doutrina ensinada com clareza na Escritura é esta – "O

castigo que nos traz a paz estava sobre ele, e pelas suas pisaduras

fomos.sarados."

"Ele próprio, Sua pessoa, levou os nossos pecados no madeira."

Esta verdade dá repouso à consciência mostrando como Deus pode ser

justo e o justificador daquele que crê. Esta é a principal rede do pescador

de homens do evangelho. Os peixes são arrastados ou levados na direção

certa por outras verdades, mas esta é a própria rede.

Se os homens hão de ser salvos, temos que pregar nos mais claros

termos a justificação pela fé como método pelo qual a expiação se torna

efetiva na experiência da alma. Se somos salvos pela obra substitutiva de

Cristo, não se requer de nós mérito nenhum, e tudo que os homens têm

que fazer é aceitar com fé singela o que Cristo já fez. É agradável

descansar na grande verdade de que "este, havendo oferecido um único

sacrifício pelos pecados, está assentado para sempre à destra de Deus"

Oh visão gloriosa! – Cristo assentado no lugar de honra porque Sua obra

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Lições aos Meus Alunos (Vol. 1)

222

foi realizada. A alma pode muito bem repousar numa obra tão

evidentemente completa.

A justificação pela fé jamais deve ser obscurecida e, todavia, nem

todos são claros sobre ela. Uma vez ouvi um sermão sobre "Os que

semeiam em lágrimas segarão com alegria", cuja transposição para o

vernáculo foi: "Seja bom, muito bom, e, embora tenha que sofrer em

conseqüência disso, Deus o recompensará no final." O pregador, sem

dúvida, cria na justificação pela fé, mas, com toda a nitidez pregou a

doutrina oposta. Muitos fazem isso quando se dirigem a crianças, e noto

que geralmente falam aos pequeninos sobre amar a Jesus, e não sobre

crer nEle. Isto só pode imprimir uma idéia prejudicial na mente dos

jovens e afastá-los do verdadeiro caminho da paz.

Preguem fervorosamente o amor de Deus em Cristo Jesus, e

engrandeçam a abundante misericórdia do Senhor; preguem-no, porém,

sempre em conexão com a Sua justiça. Não enalteçam isoladamente o

atributo do amor segundo o método geralmente seguido, mas considerem

o amor no elevado sentido teológico em que, como um círculo de ouro,

mantêm no seu interior todos os atributos divinos, pois Deus não seria

amor se não fosse justo, e se não odiasse tudo o que não é santo. Nunca

exaltem um atributo às expensas de outro. Façam com que a misericórdia

infinita se veja em calma coerência com a austera justiça e a soberania

ilimitada. O verdadeiro caráter de Deus presta-se para intimidar,

impressionar e humilhar o pecador; tomem cuidado para não falsificar o

seu Senhor.

Todas estas e outras verdades que completam o sistema evangélico

têm em conta levar os homens à fé. Portanto, façam delas a matéria-

prima do seu ensino.

Em segundo lugar, se anelamos intensamente que almas sejam

salvas, devemos não somente pregar as doutrinas que mais

provavelmente levam a esse fim, mas precisamos empregar modos de

manejar aquelas verdades, modos que tenham probabilidade de

conduzir àquele fim. Perguntam quais serão? Primeiro, devem

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Lições aos Meus Alunos (Vol. 1)

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empenhar-se muito no emprego da instrução. Os pecadores não são

salvos nas trevas, mas das trevas; "não é bom que a alma fique sem

conhecimento." É preciso ensinar os homens sobre si próprios, seu

pecado, sua queda; sobre o seu Salvador, a redenção, a regeneração etc.

Muitas almas despertas aceitariam alegremente o plano divino de

salvação se tão somente o conhecessem; lembram aqueles de quem o

apóstolo disse: "Agora, irmãos, eu sei que o fizestes por ignorância." Se

vocês as instruírem, Deus as salvará. Não está escrito: "A exposição das

tuas palavras dá luz"?

Se o Espírito Santo abençoar o seu ensino, elas verão como estavam

erradas e serão levadas ao arrependimento e à fé. Não acredito na

pregação que consiste principalmente em gritar: "Crede! Crede! Crede!"

Por uma questão de justiça comum, vocês têm a obrigação de dizer à

pobre gente aquilo em que deve crer. É necessário haver instrução, ou,

do contrário, a exortação a crer será ridícula e, na prática, frustrará a

frutificação. Receio que alguns irmãos ortodoxos ficaram com

preconceito contra os vivos apelos do evangelho por terem ouvido as

imaturas e indigestas arengas de oradores avivalistas de cabeças mal

ajustadas. A melhor maneira de levar os pecadores a Cristo é anunciar

Cristo aos pecadores. Exortações, rogos, súplicas, não acompanhadas de

instrução sadia, são como tiros de pólvora seca. Podem gritar, chorar e

apelar, mas não conseguirão levar os homens a crerem naquilo de que

não ouviram, nem a receberem a verdade que nunca lhes apresentaram.

"E, quanto mais sábio foi o pregador, tanto mais sabedoria ao povo

ensinou."

Ao darmos instruções é sábio apelar para o entendimento. A

verdadeira religião é tão lógica que, por assim dizer, não é emocional.

Não sou admirador das idéias singulares do Sr. Finney mas não tenho

dúvida de que ele beneficiou a muitos, e seu poder jazia no emprego de

argumentos claros. Muitos que sabiam da fama dele ficavam

decepcionados, a principio, ao ouvi-lo, porque empregava poucos

recursos da arte de falar e era seco e calmo como um livro de Euclides.

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Lições aos Meus Alunos (Vol. 1)

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Mas, ajustava-se exatamente a certa ordem de intelectos, e estes ficavam

convencidos e convictos com a sua poderosa argumentação. Não se deve

procurar atender às pessoas dotadas de tipo mental lógico? Devemos ser

tudo para todos, e, para esses homens precisamos fazer-nos

argumentativos e apertá-los num canto com deduções claras e inferências

necessárias. Dos argumentos carnais não queremos nenhum, mas, dos

argumentos bons, honestos, que requerem ponderação e consideração,

judiciosos, e que desafiam a mente, quanto mais, melhor.

A classe que exige argumentos lógicos é pequena, comparada com

o número daqueles pelos quais devemos lutar por meio da persuasão

emocional. Requerem não tanto raciocínio, como argumento do coração

– que é a lógica ardendo em chamas. Temos que pleitear com eles como

a mãe o faz com o filho, rogando-lhe que não a magoe, ou como a

amorosa irmã implora ao irmão que volte ao lar paterno e busque

reconciliação; a argumentação tem que ser vitalizada, transformando-se

em persuasão, pelo vivo valor do amor. A lógica fria tem a sua força,

mas, quando a afeição a faz ficar rubra de calor, o poder do argumento

da ternura é inconcebível. O poder que uma mente pode conseguir sobre

outra é enorme, mas, muitas vezes se desenvolve melhor quando a mente

condutora deixou de ter poder sobre si mesma. Quando o zelo

apaixonado arrebata o homem, o seu falar transforma-se numa torrente

irresistível, varrendo tudo diante de si. O homem reconhecidamente

piedoso e devoto, e que é generoso e se sacrifica, tem poder em sua

própria pessoa, e seu conselho e recomendação leva peso por causa do

seu caráter; mas quando se põe a rogar e a persuadir até às lágrimas, sua

influência é maravilhosa, e Deus o Espírito Santo o emparelha sob Seu

jugo para o Seu serviço.

Irmãos, precisamos empenhar-nos com rogos. Súplicas e rogos

devem mesclar-se com as nossas instruções. Todo e qualquer apelo que

atinja a consciência e mova os homens a se lançarem a Jesus temos que

empregar perpetuamente, se por todos os meios havemos de salvar

alguns. Às vezes ouço críticas a ministros que falam de si quando

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Lições aos Meus Alunos (Vol. 1)

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apelam, mas a censura não deve ser levada muito a sério, visto que temos

alto precedente no exemplo de Paulo. A uma igreja que o ama é

perfeitamente admissível mencionar o seu pesar pelo fato de que muitos

freqüentadores não são salvos, e o seu veemente desejo e incessante

oração é pela conversão deles. Você age bem quando menciona a sua

experiência pessoal da bondade de Deus em Cristo Jesus e insiste com os

homens que venham e provem o mesmo. Não devemos ser abstrações ou

simples oficiais para a nossa gente, mas devemos empenhar-nos com os

homens como carne e sangue de verdade, se queremos vê-los

convertidos. Quando você pode citar a sua própria pessoa como um

exemplo vivo do que a graça realizou, o apelo é bastante poderoso para

que seja omitido por temor da acusação de egotismo.

Às vezes, também, devemos mudar de tom. Em vez de instruir,

argumentar e persuadir, devemos passar a ameaçar, e a declarar a ira de

Deus sobre as almas impenitentes. Devemos levantar a cortina e fazê-las

ver o futuro. Mostremos o perigo que correm e tratemos de exortá-las a

escapar da ira vindoura. Isto feito, devemos retornar ao convite, e expor

diante da mente despertada as ricas provisões da graça infinita, provisões

oferecidas de graça aos filhos dos homens. Em nome do nosso Senhor

devemos fazer o convite, bradando: "Quem quiser tome de graça a água

da vida." Não se deixem dissuadir disso, meus irmãos, por aqueles

teólogos hiper-calvinistas que dizem: "Vocês podem instruir e exortar os

ímpios, mas não devem convidá-los ou ameaçá-los." E por que Não?

"Por que são pecadores mortos e, portanto, é absurdo convidá-los, visto

que não podem vir." Por que motivo então podemos exortá-los ou

instruí-los?

O argumento é tão forte, se é que tem de fato alguma forca, que

elimina todas as formas de apelo dirigido aos pecadores, de modo que

somente agem com lógica aqueles que, tendo pregado aos santos,

sentam-se, dizendo: "A eleição obteve este resultado; os demais foram

deixados cegos." Com que base devemos afinal dirigir-nos aos ímpios?

Se só devemos ordenar-lhes coisas que do capazes de fazer sem o

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Lições aos Meus Alunos (Vol. 1)

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Espírito de Deus, ficamos reduzidos a simples moralistas. Se é absurdo

ordenar ao pecador morto que creia e viva, é igualmente vão ordenar-lhe

que considere o seu estado e reflita sobre o seu destino futuro. Na

verdade seria completamente ocioso, se a verdadeira pregação não fosse

um ato de fé adotado pelo Espírito Santo como meio de operar milagres

espirituais. Se contássemos conosco mesmos e não esperássemos

interferências divinas, deveríamos ter a prudência de manter-nos dentro

dos limites da razão, e de persuadir os homens a fazerem somente aquilo

que vissem que eram capazes de realizar. Deveríamos, então, ordenar aos

vivos que vivam, exortar aos dotados de visão a que vejam, e persuadir

os que querem a querer. A tarefa seria tão fácil, chegando mesmo a ser

supérflua. Certamente não seria necessária nenhuma vocação especial do

Espírito Santo para um empreendimento assim tão simples.

Mas, irmãos, onde está o magnífico poder e a vitória da fé se o

nosso ministério é isso e nada mais? Quem dentre os filhos dos homens

acharia que é uma grande vocação ser enviado a uma sinagoga para dizer

a um homem perfeitamente vigoroso: "Levanta-te e anda", ou a alguém

que tem sadios os membros: "Estende a tua mão"? É um pobre Ezequiel

aquele cujo maior feito é gritar: "Vós, almas que vivem, vivei!"

Coloquem-se lado a lado os dois métodos, quanto a resultados

práticos, e se verá que aqueles que nunca exortam os pecadores

raramente são conquistadores de almas em grande medida, mas mantêm

as suas igrejas com conversos oriundos de outros sistemas. Até já os

ouvir dizer: "Oh, os metodistas e os avivalistas estão sendo batedores

irreprimíveis, mas nós pegamos muitas das aves." Se eu abrigasse um

pensamento baixo assim, teria vergonha de expressá-lo. Um sistema que

não pode tocar no mundo exterior, mas tem que deixar a outros o labor

de despertar e converter, labor que julga errôneo, lavra a sua própria

condenação.

Ainda, irmãos, se queremos ver almas salvas, temos que ser sábios

quanto às ocasiões em que nos dirigimos aos inconversos. Gasta-se

muito pouco bom senso nesta questão. Em certos ministérios, há um

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Lições aos Meus Alunos (Vol. 1)

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tempo estabelecido para falar aos pecadores, e este vem tão regularmente

como a chegada da hora do meio-dia. Umas poucas migalhas são

lançadas aos cachorrinhos debaixo da mesa no fim do discurso, e eles

tratam essas migalhas como vocês as tratam, isto é, com indiferença

cortês. Por que a palavra de exortação há de estar sempre no extremo

derradeiro do discurso, quando o mais provável é que os ouvintes

estejam cansados? Por que avisar os homens que se curvem sobre o

arreio, preparando-se para repelir o nosso ataque? Quando o interesse

deles é despertado e eles estão menos na defensiva, façam voar uma seta

aos relapsos, e freqüentemente essa seta única terá mais eficácia do que

toda uma revoada de flechas lançadas de uma vez contra eles quando

estão completamente encaixados em armaduras blindadas. A surpresa é

um grande elemento para obter a atenção e fixar uma observação na

memória, e as ocasiões para dirigir-nos aos indiferentes devem ser

escolhidas tendo-se em mira esse fato. Talvez seja boa a regra de visar à

edificação dos santos no sermão matutino, mas é prudente variar isso, e

deixar que os inconversos às vezes recebam o seu principal trabalho de

preparação e o melhor serviço do dia.

Não concluam um só sermão sem dirigir-se aos descrentes, mas, ao

mesmo tempo, estabeleçam ocasiões para um determinado e contínuo

ataque a eles, e partam com toda a alma para o combate. Nessas ocasiões

tenham como objetivo definido e imediato a conversão de pecadores.

Lutem para remover preconceitos, para esclarecer dúvidas, para

sobrepujar objeções, e para fazer com que o pecador saia de uma vez dos

seus esconderijos. Convoquem os membros da igreja para orações

especiais, roguem-lhes que falem pessoalmente com interessados e com

indiferentes, e vocês mesmos estejam duplamente atentos para falar com

as pessoas individualmente. Vimos que as nossas reuniões de fevereiro,

no Tabernáculo, deram resultados notáveis, sendo que o mês todo foi

dedicado a esforços especiais. Geralmente o inverno é o tempo de

colheita do pregador, porque o povo pode reunir-se melhor nas noites

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Lições aos Meus Alunos (Vol. 1)

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longas e fica impedido dos exercícios e diversões ao ar livre. Preparem-

se bem para a estação apropriada em que "os reis saem para a batalha."

Entre os fatores importantes conducentes à conversão há a sua

entonação, o seu temperamento e o seu estilo na pregação. Se você

pregar a verdade num estilo opaco e monótono, Deus poderá abençoá-la,

mas com toda a probabilidade não o fará. De qualquer forma, a tendência

de um estilo assim é, não suscitar a atenção, mas impedi-la. Não muitas

vezes acontece que os pecadores são despertados por ministros que

estão, eles mesmos, dormindo. Deve-se também evitar o modo apático e

pesado de falar; a falta de terno sentimento é lamentável, e repele em vez

de atrair. O espírito de Elias pode fazer tremer, e quando é extremamente

intenso, pode ir longe como preparativo para a recepção do evangelho;

mas, para a verdadeira conversão necessita-se mais de João – o amor é a

força que vence. Devemos amar os pecadores por Jesus. Grande coração

é a principal qualidade do grande pregador, e devemos cultivar os nossos

afetos com esse fim.

Ao mesmo tempo, a nossa maneira de pregar não deve degenerar,

transformando-se no calão macio e açucarado adotado por alguns que

sempre simulam gostar de toda gente, e adulam as pessoas como que

esperando engambelá-las suavemente, atraindo-as assim para a vida

religiosa. Indivíduos varonis sentem-se mal e desconfiam de hipocrisia

quando ouvem um pregador falando melaços. Sejamos ousados e

francos, e nunca falemos aos ouvintes como se lhes estivéssemos

pedindo um favor, ou como se eles estivessem condescendendo com o

Redentor, permitindo-lhe que os salvasse. Temos a obrigação de ser

humildes, mas o nosso oficio de embaixadores deve impedir que sejamos

servis.

Felizes seremos se pregarmos confiantemente, sempre na esperança

de que Deus abençoe a Sua Palavra pregada. Isto nos comunicará serena

confiança que impedirá a petulância, a irreflexão temerária e o desalento.

Se nós mesmos duvidarmos do poder do evangelho, como poderemos

pregá-lo com autoridade? Alimente o sentimento de que é um homem

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favorecido por ter a permissão de proclamar as boas novas, e regozije-se

com o fato de que a sua missão está carregada de benefícios para os que

se acham diante de você. Faça com que as pessoas vejam quão alegre e

confiante o evangelho o tornou, e isto contribuirá em muito para fazê-las

ansiosas para participar das suas benditas influências.

Pregue com muita solenidade, pois esta ocupação é deveras

importante, mas faça com que a matéria de que trata seja vívida e

agradável, pois isto impedirá que a solenidade se corrompa

transformando-se em monotonia. Seja tão completamente solene que

todas as suas faculdades se despertem e se empenhem, e depois, um jato

de bom humor somente acrescentará mais intensa seriedade ao discurso,

exatamente como a centelha de um relâmpago torna a escuridão da meia-

noite muitíssimo mais impressionante. Pregue fixando um ponto,

concentrando todas as energias no objeto visado. É preciso que não haja

rodeios com passatempos, nem introdução de elegâncias oratórias, nem

suspeita de exibição pessoal, do contrário, você fracassará. Os pecadores

são vivos e logo detectam o menor esforço de auto-glorificação.

Renuncie a tudo por amor daqueles que você anela salvar. Seja louco em

prol de Cristo, se isto os conquistar, ou seja um douto erudito, se isto

tiver maior possibilidade de impressioná-los. Não poupe nem labor no

gabinete, nem oração no quarto, nem zelo no púlpito. Se os homens não

acharem que as suas almas valem um pensamento, leve-os a verem que o

ministro deles é de opinião bem diversa.

Tenha em vista conversões, espere por elas e prepare-se para elas.

Resolva que, ou os seus ouvintes se renderão ao seu Senhor, ou ficarão

sem desculpa, e que uma coisa ou outra há de ser o resultado imediato do

sermão que você acaba de começar. Não deixe que os cristãos ao seu

redor fiquem a indagar quando se salvarão almas, mas inste com eles que

creiam no poder não enfraquecido das boas novas, e ensine-os a se

espantarem se nenhum resultado salvador se seguir à transmissão do

testemunho de Jesus. Não permita que os pecadores ouçam sermões

como coisa natural, nem lhes permita jogarem com as afiadas

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Lições aos Meus Alunos (Vol. 1)

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ferramentas da Escritura como se fossem simples brinquedos. Mas, uma

e outra vez faça-os lembrar-se de que todo verdadeiro sermão evangélico

os fará piores, se não os fizer melhores. A incredulidade deles é um

pecado repetido todo dia, toda hora. Nunca permita que deduzam do seu

ensino que merecem dó por continuarem fazendo de Deus um mentiroso,

rejeitando o Seu Filho.

Uma vez impressionados pelo senso do perigo que correm, não dê

aos ímpios nenhum descanso em seus pecados. Bata repetidamente à

porta dos seus corações, e bata para a vida ou para a morte. A sua

solicitude, o seu fervor, a sua ansiedade, o seu trabalho de parto por eles,

Deus abençoará com vistas ao despertamento deles. Deus age

poderosamente mediante esta instrumentalidade. Mas a nossa agonia

pelas almas deve ser real, não fingida, e, portanto, os nossos corações

devem ser forjados de molde a terem o mesmo sentimento que Deus tem.

Religiosidade de baixo nível significa pouco poder espiritual. Discursos

extremamente penetrantes podem ser pronunciados por homens cujos

corações não estão em ordem para com o Senhor, mas o resultado deles

só terá que ser pequeno. Há algo no próprio tom do homem que tem

estado com Jesus que tem mais poder de tocar o coração do que a

oratória mais perfeita. Lembre-se disto e mantenha ininterrupto andar

com Deus.

Você precisará de muito trabalho feito em secreto, a desoras, se é

que há de reunir muitas das ovelhas perdidas do seu Senhor. Somente

pela oração e jejum você poderá obter poder para expulsar os piores

demônios. Digam os homens o que quiserem da soberania, Deus liga o

sucesso especial a especiais estados de coração, e se estes faltam, Ele

não realizará muitas obras poderosas.

Em acréscimo à pregação fervorosa, será prudente empregar

outros meios. Se você quer ver resultados dos seus sermões, deve ser

acessível aos interessados em fazer perguntas. Uma entrevista após cada

serviço talvez não seja desejável, mas freqüentes oportunidades para

entrar em contato com as pessoas da sua igreja devem ser procuradas, e

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de algum modo devem ser criadas. É chocante pensar que há ministros

destituídos de método para encontrar-se com os ansiosos, e se

entrevistam um aqui, outro ali, deve-se à coragem de quem anda à busca

disso, e não ao zelo do pastor.

Desde o inicio você deve marcar ocasiões freqüentes e regulares

para ver todos os que estão em busca de Cristo, e você deve convidá-los

constantemente a virem falar-lhe. Demais disso, mantenha numerosas

reuniões com os interessados, reuniões em que as alocuções visem todas

a ajudar os que têm problemas e guiar os perplexos, interpondo-lhes

fervorosas orações pelos indivíduos presentes e breves testemunhos de

pessoas recém-convertidas e outras. Como a confissão pública é

continuamente mencionada em conexão com a fé salvadora, você será

sábio se facilitar aos crentes que ainda seguem Jesus de noite que

venham para a frente e votem sua adesão a Ele.

Não se deve persuadir outros a se decidirem, mas devem ser dadas

todas as oportunidades para que o façam, e não se deve colocar nenhuma

pedra de tropeço no caminho das pessoas esperançosas. Quanto aos que

não estão adiantados o bastante para garantir qualquer idéia de batismo,

você poderá ser-lhes em extremo benéfico mediante trato pessoal, e,

portanto, deve procurar conseguí-lo. Uns poucos momentos de

conversação podem bastar para esclarecer dúvidas, corrigir erros e

eliminar pavores. Conheço casos em que foi dado fim a um infortúnio

que durou a vida inteira, com uma simples explicação que poderia ter

sido dada anos antes. Procure as ovelhas extraviadas, uma por uma, e

quando vir que todos os seus pensamentos são necessários para um único

indivíduo, não reclame do seu trabalho, pois o seu Senhor, em Sua

parábola, retrata o bom pastor trazendo de volta para casa as ovelhas

perdidas, não num bando, mas uma por vez, sobre os Seus ombros, e

regozijando-se ao fazê-lo.

Com tudo o que possa fazer, os seus desejos não se cumprirão, pois

a conquista de almas é uma carreira que toma conta do homem. Quanto

mais recompensado por conversões, mais ávido fica por ver gente em

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Lições aos Meus Alunos (Vol. 1)

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maior número nascendo para Deus. Daí, logo você descobrirá que

precisa de auxílio, se é que pretende persuadir a muitos. A rede fica

pesada demais para ser arrastada até a praia por um par de mãos, quando

está repleta de peixes, e você deve fazer sinais aos seus companheiros de

trabalho, chamando-os para lhe prestarem ajuda. Grandes coisas são

realizadas pelo Espírito Santo quando uma igreja inteira se ergue com

santa energia. Neste caso, há centenas de testemunhos, em vez de um só,

e estes se fortalecem uns aos outros; os advogados da causa de Cristo se

sucedem uns aos outros e trabalham ombro a ombro, enquanto as

súplicas ascendem ao céu com a força da importunação unida; assim os

pecadores são cercados por um cordão de severas ameaças, e o próprio

céu é chamado ao campo de batalha.

Parece difícil salvar-se um pecador em certas igrejas, pois seja qual

for o bem que receba do púlpito, fora deste fica enregelado pela

atmosfera ártica circundante. Por outro lado, algumas igrejas tornam

difícil aos homens permanecerem sem converter-se, pois com santo zelo

acossam os indiferentes, levando-os à ansiedade espiritual. Deve

constituir nossa ambição, no poder do Espírito Santo, trabalhar a igreja

toda, dando-lhe excelente condição missionária, fazendo dela um vaso

acumulador tipo Leyden, totalmente carregada de eletricidade divina, de

modo que tudo que entre em contato com ela se encha do seu poder.

Que pode fazer um homem só? Que não pode fazer, com um

exército de entusiastas em torno dele? Medite logo no início na

possibilidade de ter uma igreja de conquistadores de almas. Não

sucumba à idéia generalizada de que só podemos reunir alguns obreiros

prestativos, e que os elementos restantes da comunidade serão

inevitavelmente um peso morto. Possivelmente acontecerá isso, mas não

comece dominado por essa noção, ou do contrário ela se concretizará. O

geral não tem necessidade de ser universal. É possível conseguir coisas

melhores do que qualquer coisa já alcançada. Ponha bem alto o seu

objetivo, e não poupe esforços para atingi-lo. Lute para formar uma

igreja cheia de vida para Jesus, cada membro da igreja com o máximo de

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Lições aos Meus Alunos (Vol. 1)

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energia, e todo o conjunto em atividade incessante pela salvação dos

homens. Para atingir-se este fim, é mister haver o melhor tipo de

pregação para alimentar e fortalecer a tropa, constante oração para fazer

descer poder do alto, e o mais heróico exemplo da sua parte para ativar o

fogo ao zelo dos demais. Então, sob a bênção divina, um comando de

bom senso dirigindo o grosso das tropas não poderá deixar de produzir

os mais desejáveis resultados. Qual de vocês pode captar esta idéia e

fazê-la encarnar-se num fato real?

Convidar um colega de vez em quanto para dirigir trabalhos de

evangelização ver-se-á que é prática muito sábia e útil, pois há alguns

peixes que nunca serão apanhados por sua rede, mas que certamente

caberão por sorte a outro pescador. Vozes novas penetram onde o som

costumeiro perdeu o efeito, e tendem a gerar interesse mais profundo

naqueles que já são atentos. Evangelistas firmes e prudentes podem

prestar ajuda até ao pastor mais eficiente, apanhando frutos que aquele

não tem podido alcançar. Seja como for, isto rompe a continuidade dos

serviços regulares e lhes dá menor probabilidade de ficarem monótonos.

Nunca permita que a inveja o estorve nisso. Suponha que o brilho

de outra lâmpada ofusque o da sua. Que importa, desde que traga luz

para aqueles cujo bem-estar você está procurando? Diga com Moisés:

"Oxalá que todo o povo do Senhor fosse profeta!" Quem estiver livre da

inveja egoística verá que não haverá ocasião para sugeri-la. Sua gente

bem pode ter ciência de que o seu pastor é sobrepujado por outros quanto

ao talento, mas estará pronta para afirmar que ele não é superado por

ninguém quanto ao amor que vota às suas almas. Um filho amoroso não

tem necessidade de acreditar que seu pai é o homem mais culto da

comunidade. Ama-o pelo que ele é, não porque é superior a outros.

Convide uma vez ou outra um irmão cheio de entusiasmo que more por

perto; utilize os talentos da sua própria igreja; e procure os serviços de

algum eminente conquistador de almas, e isto, nas mãos de Deus, pode

romper para você o chão duro, e trazer-lhe dias de maior esplendor.

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Lições aos Meus Alunos (Vol. 1)

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Terminando, amados irmãos, por quaisquer meios, por todos os

meios, esforcem-se para glorificar a Deus mediante conversões, e não

descansem enquanto não for cumprido o desejo do seu coração.