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LIÇÕES COLHIDAS NO JARDIM DE ANTON TCHÉKHOV doi: 10.4025/XIIjeam2013.rodrigueskono.oliveira43
RODRIGUES KONO, Divania Luiza
OLIVEIRA, Terezinha
O prazer da arte é a principal fonte de continuidade histórica, orgulho e senso de unidade para uma cidade, nação ou império (Stuart Hampshire).
Este texto apresenta reflexões motivadas com a leitura da obra O Jardim das
Cerejeiras, a última peça do escritor russo Anton Anton Pavlovitch Tchékhov (1860-
1904). Inicialmente, apresentamos dados biográficos sobre Tchékhov e pontuamos alguns
aspectos relativos ao contexto do autor e da produção de sua obra: a Rússia na passagem
do século XIX ao XX. Entendemos que este contexto é fundamental para a compreensão
do enredo da peça teatral. Logo após, destacamos alguns aspectos de reflexão acerca da
peça, de seus personagens e o modo como se articulam à sociedade russa.
Com relação ao contexto histórico, a Rússia na passagem do século XIX para o
século XX vive um momento de transição, da passagem – tardia se comparada a outros
países da Europa Ocidental – do feudalismo para o capitalismo. Os acontecimentos que
permeiam o período de 1860 a 1905, na Rússia, constituem-se no período vivido por
Tchékhov, bem como o contexto (ou pano de fundo) da obra O Jardim das Cerejeiras.
No campo político, figura a atuação dos czares1, com poder de decisão centralizado
e autoritário. Em um panorama geral, o Império Russo, de economia basicamente agrária,
experimenta um forte crescimento da população – “[...] de cerca de 74 milhões em 1860,
chegou a 133 milhões em1900” (VICENTINO, 1995, p. 49); com um amplo território -
com fronteiras que se estendem da Europa Oriental à Ásia Ocidental – e alto nível de
pobreza. Por outro lado, em atendimento a muitas pressões, o governo inicia o
estabelecimento de instituições administrativas, financeiras e judiciárias e incrementa o
1 O termo czar, explica Tragtenberg (2007, p. 15), “[...] é uma corruptela do termo latino caesar; era o título que os russos atribuíam ao imperador de Bizâncio e depois ao khan (‘chefe’) da Horda Dourada”. O Estado czarista, cuja origem possuía elementos culturais tártaros e bizantinos, formou-se entre 1462 e 1584 “[...] sob Ivan o Grande, Basílio III e Ivan o Terrível” (TRAGTENBERG, 2007, p.15).
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processo de industrialização2. A industrialização, dependente de capitais estrangeiros e
com produção voltada para exportação, foi favorecida pela grande “[...] oferta de mão-de-
obra gerada pelo êxodo rural e se circunscreveu geograficamente aos grandes centros
urbanos, Moscou e Petrogrado, e à região do Don, destacando-se seu alto grau de
concentração” (AQUINO, 2007, p. 367). A população russa, até a Revolução de 1917, é
formada em sua maioria por camponeses, sob o regime da servidão.
O homem que motiva a escrita deste texto é neto de um ex-servo russo. Não é filho
da aristocracia, mas filho de Pável Iegórovitch Tchékhov - um pequeno comerciante - e de
Eugenia Jakovlevna. Tchékhov nasceu em 17 de janeiro de 1860 na pequena cidade
portuária de Taganrog, na região sul da Rússia. Desde a infância, assim como os cinco
irmãos, trabalhou, auxiliando o pai na pequena mercearia. Parte de seu tempo era dedicada
aos ensaios para o coral da igreja, no qual os irmãos também participavam sob a exigência
do pai. É importante registrar que após um ano do nascimento de Tchékhov, ocorre um
fato histórico muito importante na história da Rússia: a emancipação dos camponeses da
servidão, o que desencadeia uma série de reformas no Império russo. O documento da
reforma é assinado pelo czar Alexandre II no dia 19 de fevereiro de 1861, com publicação
em 3 de março do mesmo ano (TRAGTENBERG, 2007).
Em 1876, tendo em vista as dificuldades financeiras, o pai de Tchékhov vendeu a
casa e mudou-se com a família para Moscou. No entanto, Tchékhov permaneceu em
Taganrog por mais três anos para concluir os estudos no liceu. Para sobreviver dava aulas
particulares (VÁSSINA, 2009; SCHNAIDERMAN, 1999). A produção escrita sempre
esteve presente em sua vida. Aos 18 anos, escreveu a peça, conhecida no Ocidente, como
Platonov3.
Ao terminar o liceu, em 1879, foi para Moscou, onde reencontrou a família que
vivia em uma situação de pobreza. Quando, aos 19 anos, ingressou na Faculdade de
Medicina da Universidade de Moscou, já possuía alguns escritos. Neste momento, ainda
sem a pretensão literária, a sua produção escrita se intensificou – especialmente pequenos
contos - com publicações em várias revistas e jornais humorísticos. Esta atividade
2 Vicentino (1995, p. 49) afirma que, na Rússia, “[...] a produção industrial de 1900 era sete vezes superior à de 1860, graças, em grande parte, aos imensos capitais ocidentais dirigidos ao país. No mesmo período, a safra líquida de cereais aumentou em 160% e as exportações mais que quintuplicaram”. 3 Lima (2006, p. 60) explica que Platonov constitui o primeiro ensaio de Tchékhov para escrever uma peça longa. No entanto, “[...] esta primeira investida sequer foi incluída em sua obra pelo autor, de modo que seu título – Platonov – foi dado pelos editores em analogia a sua segunda peça, Ivanov, escrita nove anos mais tarde”.
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colaborou para o sustento da sua família e de seus estudos de medicina (ANGELIDES,
1995; EHRHARD, 1956). Escrevia de forma rápida e objetiva. Em 1880, publicou o
primeiro conto de muitos (TCHÉKHOV, 2010).
No período de juventude, o humor e a sátira, ao gosto da época, eram marcantes em
seus textos, crônicas e contos. Sob o pseudônimo de Antocha Tchekhontê - dentre muitos
que usou – Anton escrevia sobre situações corriqueiras do dia a dia, através das quais
captava “[...] o essencial e o eterno da existência humana” (VÁSSINA, 2009, p. 1). Desta
forma, se originava uma característica marcante da literatura tchekhoviana, que “[...]
diverge dos padrões predominantes no conto e na dramaturgia do final do século XIX”
(ANGELIDES, 1995).
Em 1884, Tchékhov concluiu o curso de medicina e, apesar de não dar muito
crédito à escrita, já possuía grande prestígio como escritor de contos na Rússia. Com
relação à profissão de médico, Tchékhov a exerceu por mais de uma década com empenho
e como uma necessidade. “Chegava a afirmar que a medicina era a sua esposa legítima,
enquanto a literatura seria a amante” (SCHNAIDERMAN, 1999, p. 9).
Além das obras de ficção, Tchékhov nos legou ensaios jornalísticos, diários,
cadernos de anotações e cartas (VÁSSINA, 2009). No período de 1875 a 1904, a coleção
epistolar de Tchékhov – uma das mais importantes da literatura russa - soma 4 400 cartas
(ANGELIDES, 1995).
Na fase de amadurecimento literário, a publicação, em agosto de 1887, da coletânea
No Crepúsculo (V Súmerkakb) rendeu a Tchékhov o prêmio Puchkin4 – “[...] maior láurea
literária concedida pela Academia de Ciências da Rússia” (VÁSSINA, 2009, p. 2). O
período de amadurecimento é coroado, também, pela arte dramática. Em 1898, depois de
um período de insucesso, estreou com êxito a peça A gaivota, sob a direção de Konstantin
Stanislávski (1863-1938) - um dos fundadores, em 1898, do Teatro de Arte de Moscou
(TAM) com Vladimir Nimeróvitch-Dánchenko (1858-1943). Stanislávski, ator e diretor,
montou ainda três peças de Tchékhov: Tio Vânia (1899), Três Irmãs (1901) e o Jardim das
Cerejeiras (1904) (VÁSSINA, 2006). Ainda que a título de reflexão, vale destacar que,
além da renovação na arte cênica, para esses dramaturgos, o teatro era uma arte coletiva e
4 Alexandre Puchkin (1799-1837) é considerado, na atualidade, um dos grandes nomes da literatura russa. Escreveu versos inspirados nos ideais de liberdade; considerado liberal e ateu, foi vigiado pela polícia de Alexandre I (1801-1825), foi preso e deportado para a Rússia meridional. Viveu sob a vigilância do czar Nicolau I (1825-55), que lia, comentava e censurava toda a sua produção escrita (GRIMBERG; SVANSTRÖM, 1980 apud VICENTINO, 1995, p. 47).
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tinha como função a formação do público. O Teatro de Arte de Moscou foi fundamental
para sustentar a inovação presente na arte dramática e, durante sua primeira etapa (1898-
1905), reina as encenações das peças de Tchékhov (VÁSSINA, 2006, p 57).
É interessante observar que a realidade russa desse momento é trágica e Tchékhov
elege um local, que ocupa papel central em sua peça, o foco não está em um dos
personagens, mas em um ambiente belo: um jardim de cerejeiras. Berton (2007) em estudo
as peças de Tchékhov considera este fato da “abolição do protagonista” um indicador da
mudança de sua arte, identificando “[...] um grau ideal de coerência estética entre os
princípios do autor e a estrutura da sua criação artística” (BERTON, 2007, p. 110).
Por outro ângulo, vemos aqui que a literatura traz o belo para tratar do que é feio e
trágico. Anton nos remete a pensar os momentos finais de uma classe social, a aristocracia
russa, e de um tempo, o século XIX, e de uma sociedade que está perdendo a sua
existência, por meio de numa bela imagem: a de um jardim de cerejeiras floridas. A
intenção poética de Tchékhov ao decidir pelo título O Jardim das Cerejeiras em oposição
a cerejal comum, nos é revelada pelos estudos de Millôr Fernandes (2010, p. 9-10) à
biografia de Stanislávski, que relata uma fala dele com o autor: “Víshneviy Sad é um
cerejal comum, que dá lucro. Mas Vishnëviy (Vichiniovii) Sad não é utilitário. Esconde na
sua brancura florida a grande poesia da vida aristocrática que se acaba. Cresce apenas para
a beleza, para os olhos dos estetas privilegiados”. Imaginemos a sutileza do autor,
apresentando-nos um belo cenário, porém, nele estão pessoas desacreditadas da luta, de
pensar possibilidades para uma forma de vida; as condições atuais não mais as sustentam,
por isso estão presas ao passado, à beleza dos dias que marcaram sua infância, seu passado.
Neste ponto, sentimos o potencial educador da literatura, que nos apresenta a beleza para
tratar do que é trágico, que nos sensibiliza para a compreensão de uma sociedade, do
homem em sociedade.
Doze personagens compõem a peça O Jardim das Cerejeiras, são eles: Liuba
(madame Andrêievna Raniévskaia), a proprietária do cerejal; Ânia, a filha de Raniévskaia,
de dezessete anos de idade; Vária, a filha adotiva de Raniévskaia, de 24 anos; Gaiév
(Leonid Andreiêvitch) – irmão de Raniévskaia; Lopakhine (Iermolai Alexêievitch), um
negociante; Trofímov, apelido de Pétia (Piotr Serguêievitch), o estudante; Pichtchik (Bóris
Borissovitch Siminov), um proprietário de terras, assim como Liuba. Carlota Ivanóvna, a
governanta; Epikodov (Sêmin Panteleiêvitch), guarda-livros; Duniacha, uma criada; Firs, o
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criado de 87 anos e Iacha, o criado jovem. Estes personagens podem ser categorizados em
classes sociais, de modo que Liuba, Ânia, Gaiév e Pichtchik compõem a aristocracia rural;
Lopakhine, a burguesia; os servos, os criados que trabalham na casa da família: Firs,
Duniacha, Carlota, Epikodov, Iacha e Vária; e o intelectual que quer se distanciar da
aristocracia e da burguesia: Trofímov.
O tema da obra refere-se ao leilão de uma propriedade rural: o cerejal que está
prestes a ser vendido para pagar as dívidas de sua proprietária Liuba. Na primeira cena,
Liuba retorna de uma viagem de cinco anos à Paris, com a filha Ânia, o criado Iacha e a
governanta Carlota. Na propriedade rural, estão à espera de Liuba, Duniacha e Lopakhine.
Liuba conta aos criados o que ocorreu durante a viagem e os criados contam o que ocorreu
na propriedade durante a ausência da dona. Além dos comentários sobre o leilão da
fazenda, lembranças de eventos anteriores são evocadas pelos personagens. Segundo Lima
(2006) a evocação das lembranças auxilia o dramaturgo a apresentar aos leitores aspectos
precedentes da ação, uma característica marcante do texto de Tchékhov.
Lopakhine, o negociante, é amigo da família e oferece uma sugestão para salvar a
propriedade: “Pois bem; se o cerejal e a terra que acompanha o rio forem cortados em
pequenos lotes, os lotes poderão ser alugados para cabanas de veraneio – calculo que isso
dará um mínimo de 25 mil rublos por ano” (TCÉKHOV, 2010, p. 23). Liuba rejeita esta
sugestão e, no desfecho da peça, Lopakhine arremata a propriedade. Observamos, na peça
teatral, que Tchékhov não trava uma relação de bem e mal entre os personagens, mas
retrata cada personagem a partir de sua relação com os demais (LIMA, 2006). Lopakhine
representa a mentalidade capitalista, está sempre olhando para o relógio, preocupado com o
tempo que está passando, com o aproveitamento desse tempo, com a necessidade de
planejar o futuro e trabalhar para viver. Lopakhine revela a sua história como filho de
servo – do pai de Liuba -, que trabalhou para enriquecer, porém não consegue livrar-se de
seus modos, de sua pouca cultura, que o remetem ao seu passado: a origem camponesa. Em
um dos trechos que esta situação se revela, encontramos este, em que Lopakhine fala a
Duniacha – fazendo referência a um episódio que passou com Liuba, quando rapazinho.
Lopakhine - Camponesinho. É verdade, meu pai era um mujique, e aqui estou eu, colete branco, bota amarela, um porco bem vestido num salão de chá. É, um homem rico, mas, com tudo o que tenho, basta uma raspadela que aparece o matuto. Nasci campônio, continuo sendo. (Vira
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as páginas do livro). Estava lendo este livro, mas não consegui juntar pé com cabeça e caí no sono (TCÉKHOV, 2010, p. 14).
Este personagem, enriquecido, porém, não possui o refinamento e cultura da
aristocracia, olha para o cerejal no sentido utilitário, de tamanho, de quanto pode valer a
propriedade para pagar as dívidas de Liuba e, ainda, obter lucros. Esta, por sua vez, assim
como Gaiev, seu irmão, olha para o cerejal como uma paisagem, um jardim, que possui um
valor sentimental - de lembranças da infância - e estético - de contemplação da beleza.
Estes personagens expressam o conflito entre a aristocracia rural, uma classe que se esvai e
a burguesia, que pode transformar o belo em propriedade. Vejamos este trecho em que
Liuba se assusta com a sugestão de Lopakhine de lotear o cerejal.
Liuba – O que é que tem o nosso jardim? Lopakhine – Vai custar alguma coisa, também. Mas acho que dez homens em dez dias derrubam tudo. Liuba – Derrubam? Perdão, meu caro amigo, mas você não sabe do que é que está falando. Se existe alguma coisa verdadeiramente interessante, notável mesmo, em toda esta província, é o nosso Jardim de Cerejeiras. Lopakhine – Ora, a única coisa admirável no seu... Jardim é o tamanho. A imensidão. Só da cereja de dois em dois anos, com as quais ninguém sabe fazer nada e ninguém quer comprar (TCHÉKHOV, 2010, p. 24).
Lopakhine, em contraste com Liuba e Gaiév que se recusam a enxergar as novas
questões econômicas e sociais, parece atento às transformações da natureza, como
propriedade, como forma de lucro e do processo de modernização que se iniciaria na
Rússia.
Lopakhine – Até pouco tempo atrás aqui no campo só havia senhores e mujiques. Mas agora há os veranistas. Todas as cidades, as mais pequenas, estão sendo rodeadas por essas vilas de verão. Em vinte anos haverá uma verdadeira massa de pessoas assim em toda a parte. Por enquanto, o veranista fica só tomando chá na varanda, mas daqui a pouco vai querer cultivar uma terrinha e, então, tudo isto aqui estará vivo de novo (TCHÉKHOV, 2010, p. 25).
Lima (2006) argumenta que os personagens de Tchékhov expressam as
contradições desse processo de modernização em um país quase feudal. Esta autora se
refere à fábula “Experiência e Pobreza”, narrada por Walter Benjamin, para ilustrar que,
neste momento de transição, a experiência acumulada por uma sociedade encontra-se em
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baixa em relação ao alto grau de desenvolvimento da técnica. Uma passagem da peça é
bem ilustrativa dessa questão, em que Firs - o criado mais velho de 87 anos - diante da
“pressa” de Lopakhine quanto à decisão de Liuba sobre o loteamento das terras, se refere
ao modo como as cerejas eram preparadas e comercializadas.
Firs – Antigamente, há quarenta ou cinqüenta anos botavam as cerejas pra secar, punham de molho, faziam conserva, geléia, licor e costumavam até... Gaiév – Cala a boca, Firs! Firs – Vendiam carroças de cerejas secas pra Moscou e pra Karkov. Dava muito dinheiro! Mas eram muito boas as cerejas naquele tempo: macias, suculentas, doces, cheirosas. Sabiam preparar, antigamente. Liuba – E por que não fazem mais assim? Firs – Desaprenderam (TCHÉKHOV, 2010, p. 24-25).
Lima (2006) afirma que o que está se “desaprendendo”, então, é a experiência do
homem com a natureza, com a terra, um patrimônio que os homens transmitiam de geração
a geração. É este patrimônio humano que os personagens Liuba e Gaiév se recusam a
admitir que faz parte de uma época que se finda – são resquícios do passado.
A representação do jardim para os irmãos Liuba e Gaiév está, também, associada a
um valor de sentimentos, de lembranças do passado, da infância, de momentos de dor e
felicidade ali vividos. Este valor atribuído à propriedade, pelos irmãos, pode ter preço? De
outro modo, para aquele momento, o valor monetário, de rendimentos da propriedade não
pode sustentar o valor sentimental e estético, cultivado pelos irmãos.
Outro ponto na contradição vivida pelo personagem Lopakhine, aparece no terceiro
ato, em que ele compra o cerejal no leilão e dá a notícia a Liuba e aos seus convidados, no
salão de festa.
Lopakhine – O jardim das Cerejeiras é meu. Meu! (Riso nervoso. Não se contém mais.). Meu Deus, o cerejal é meu! Me chamem de bêbado, digam que enlouqueci, que é só um sonho. (Bate com o calcanhar no chão.) Não riam de mim! Se meu pai e meu avô levantassem da tumba agora, iam ver este momento do seu Iermolai, o Iermolai batido e escorraçado, que vocês deixavam andar na neve esmolambado. O analfabeto Iermolai acaba de comprar a mais bela propriedade do mundo! Comprei a casa em que meu pai e meu avô foram escravos, onde não podiam entrar nem na cozinha! Eu sei; eu estou dormindo, eu estou sonhando! É tudo uma fantasia, trabalho de uma imaginação atolada e desenvolvida nas trevas da ignorância. (Pega as chaves, sorrindo para elas com carinho.) Atirou as chaves fora reconhecendo que agora não é mais a dona da casa. (Faz as chaves tilintar.) É isso. (Ouve-se a
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orquestra afinando.) Hei, músicos, toquem! Bem alto! Venham todos assistir o estúpido Iermolai Lopakhine levantar seu machado no meio do jardim e botar no chão todas essas cerejeiras! Vamos construir casas aí e desse mesmo chão os nossos filhos, e os filhos dos nossos filhos, verão brotar uma vida nova. Música, rapazes! (Música.) Pessoal! (Música aumenta. Liuba começa a chorar amargamente, afundada numa cadeira. Lopakhine se aproxima e fala em tom de censura.) Por quê? Por que não me ouviu? Minha pobre amiga, agora é tarde! (Chora.) Oh, tomara que isso acabe logo... que a gente encontre alguma maneira de mudar esta nossa vida absurda e miserável (TCHÉKHOV, 2010, p. 64-65).
Aqui, pelo personagem Lopakhine, observamos as transformações da nova classe,
que se apresenta na oscilação de ter muito dinheiro e de não conquistar a educação e a
cultura, em um misto de aspereza e delicadeza – ao tratar Liuba, por exemplo - e as
ambigüidades entre atraso e progresso. Para Lima (2006) são estes fatores que definem a
“reação apoteótica” de Lopakhine, nesta cena, por isso: “Sua euforia não deve ser lida
como uma vingança, já que todo o tempo ele tentou ajudar sua amiga, mas como um
desrecalque de classe, pelas humilhações que ele e seus ascendentes haviam sofrido ao
longo da vida” (LIMA, 2006, p. 42).
Além de Liuba, Pichtchik é o único personagem que é proprietário de terra. Assim
como Liuba, se vê incapaz de solucionar seus problemas, sempre contraindo empréstimos
para pagar as suas dívidas. No entanto, no fim da peça, tem a sorte de livrar-se do
endividamento, pois um grupo de ingleses aluga sua propriedade por encontrar mineral em
suas terras.
Pichtchik – Espera um pouco... Que calor!... Aconteceu uma coisa espantosa! Uns ingleses entraram na minha fazenda e descobriram uma espécie de argila branca na minha terra! (Para Liuba.) [...] Ah, os ingleses! Dei a eles o direito de explorar o barro branco durante 24 anos. Mas agora tenho que ir. Tenho que ver mais gente. Znoikovo, Kardamanovo.. vou pagar todo mundo. (Bebe.). À saúde de todos! Quinta-feira eu volto (TCHÉKHOV, 2010, p. 73-74).
Nesta peça, podemos destacar o valor atribuído aos bens materiais/objetos pelos
aristocratas em detrimento, por exemplo, aos criados. Por mais que estes empregados
tenham construído uma relação de longa data – como Firs e Duniacha - e compartilhado,
na mesma casa, da história de alegrias e tristezas de seus senhores, a relação que prevalece
é a de indiferença, mando e obediência. Destacamos dois momentos que ilustram bem esta
situação de valor ao objeto e indiferença aos criados que viviam junto à casa. A primeira,
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os modos como Liuba e Ânia se referem ao “quarto das crianças”; a segunda em que Gaiév
se refere a uma estante.
Liuba – Meu quarto de criança, lindo, meu querido quarto de brinquedos. Eu dormia aqui, quando era menina. (Chora.) E aqui estou eu, de novo, menina outra vez... Meu irmão! (Beija Gaiév e Vária. Beija o irmão de novo.) Vária, você não mudou nada – a minha freirinha. E essa aí... é Duniacha! (Beija Duniacha.) (TCHÉKHOV, 2010, p. 16). Ânia – (Olhando para a porta com ternura.) Meu quarto, minhas janelas, será que fui mesmo embora? Em casa, outra vez! Amanhã de manhã quando acordar vou correr pelo jardim... Se eu conseguir dormir! Não dormi a viagem toda de tão ansiosa (TCHÉKHOV, 2010, p. 17).
Gaiév – Você sabe quantos anos tem essa estante, Liuba? Só na semana passada quando eu estava mexendo na gaveta de baixo, descobri a data gravada a fogo: 1803. Cem anos de idade; temos que comemorar este centenário. É um objeto inanimado mas tem vida: guarda livros. Pichtchik – (Espantado.) Cem anos – quem diria!? Gaiév – É. Uma coisa admirável. (Abraça e acaricia a estante.) Querida e honrada estante! Glória a ti que por mais de cem anos tens servido aos ideiais do bem e da justiça. Teu silencioso apelo ao trabalho profícuo nunca arrefeceu numa centena de anos, mantendo (Lágrimas.), em várias gerações desta família, a esperança de um futuro melhor, a fé no dia de amanhã, e inculcou em nós o sentimento da virtude e da consciência social. (Uma pausa.) (TCHÉKHOV, 2010, p. 25-26).
Ao que parece os criados nutrem certa ilusão de que fazem parte da família. No
entanto, nesta relação há limites e pode ocorrer que para os senhores alguns objetos tenham
maior valor sentimental do que um criado. Isso se evidencia na cena anterior, em que
Liuba se emociona ao ver o quarto das crianças, mas parece ter esquecido o rosto da antiga
criada Duniacha. Ou ainda, quando Liuba beija um velho armário e se mostra indiferente
ao ser relembrada da morte da babá, quando de sua ausência; ou ainda, quando Firs é
esquecido na casa quando a família se retira, após a venda do cerejal.
Firs está entre os criados que vivem na casa da família de longa data. Sempre
demonstra atenção aos gostos de seus senhores e, pela idade avançada, não teme em falar o
que pensa, apesar de algumas reprimendas por parte de seus superiores. Em meio às
possíveis confusões mentais da velhice e à surdez, ele explica o seu entendimento da
abolição dos servos.
Liuba – Você envelheceu, Firs. Firs – Eu vou logo buscar, madame.
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Lopakhine – Você envelheceu!, ela disse. Firs – É porque eu já estou vivo há muito tempo. Quando eles quiseram me casar, o seu papai nem era nascido. (Ri.) E quando veio a abolição eu já era primeiro criado de quarto. Mas é claro que eu fui contra, não aceitei a abolição: fiquei com o meu amo. E com minha ama. Eu me lembro de todo mundo festejando, todo mundo muito contente. Mas contente por quê? Ninguém sabia (TCHÉKHOV, 2010, p. 43).
Pelas palavras de Firs, podemos inferir que não havia o que comemorar com a
abolição da servidão. Afinal qual o sentido de liberdade? Firs, talvez pelo longo tempo de
vida, é um personagem que sempre faz referência ao passado comparando-o com situações
do presente e esclarece a sua estranheza com o momento presente, em que alguns papéis
sociais parecem indiferenciados. No trecho a seguir, a referência é ainda o período da
abolição e Lopakhine parece ter esquecido o passado camponês de sua família.
Lopakhine – A vida era muito melhor, naquele tempo. Não faltava chicote pra ninguém. Firs – (Sem ouvir.) Pois é! Os mujiques conheciam seu lugar e os senhores conheciam muito bem o deles. Hoje em dia está tudo tão confuso que a gente não sabe mais quem é ninguém (TCHÉKHOV, 2010, p. 43).
Lima (2006) situa como contraponto cômico da situação dos criados, Iacha, que ao
viajar para a França com a patroa se sente mais “ocidentalizado”, portanto, mais civilizado
em relação aos outros empregados que permaneceram na Rússia, vista por ele, como
atrasada e motivo de vergonha. Quando o cerejal é vendido, Liuba atende ao pedido de
Iacha e o leva para Paris. Neste aspecto, Lima (2006) chama a atenção que o afrouxamento
das barreiras sociais entre senhores – ainda que não percebidas por estes - e criados indica
a fragilidade das normas estabelecidas pela sociedade. No entanto, o que prevalece é a
relação de senhores e criados, portanto, de sujeição destes à vontade do dono.
Vária é a filha adotiva de Liuba. Apesar do carinho manifesto pela mãe, a
personagem pode ser identificada como uma criada, que assume o papel de organizar e
administrar a casa, de receber bem as pessoas, de dar ordens aos outros criados. Em certo
momento, a mãe vê a possibilidade de casar Vária com Lopakhine para salvar a situação
financeira da família. Por fim, rumos diferentes são assumidos pelas duas filhas de Liuba:
Ânia segue para a cidade para estudar e Vária segue como governanta em uma casa de
família, o que fortalece a ideia da filha adotiva como criada.
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Trofímov, estudante, é o representante do pensamento crítico, da cultura e do
conhecimento. Ele critica os personagens Liuba e Lopakhine. A primeira, ele considera
incapaz de encarar a realidade. Vejamos neste trecho como ele fala a Liuba que está
inquieta com a possibilidade da venda do cerejal.
Trofímov – O que importa se hoje o cerejal foi vendido ou não? É assunto encerrado há muito tempo. Não se atormente, Liuba Andrêievna, nem se iluda. Não há como voltar atrás; teus caminhos já foram reclamados pelo mato. Encara a verdade uma vez na vida! (TCHÉKHOV, 2010, p. 56).
Quanto a Lopakhine, Trofímov o considera como uma pessoa sem escrúpulos. A
opinião de Trofímov a respeito de Lopakhine é a seguinte:
Trofímov – (Depois de uma relutância natural.) Eu vou lhe dar a minha opinião. Iermolai Alexêievitch: você é um homem rico, logo será milionário. Logo, você é muito útil à sociedade humana. (Uns risos.) Assim como a pior fera é muito útil à natureza, (Ligeira pausa. Outros risos.) pois devora tudo o que encontra pela frente, (Faz pausa. Outros risos. Ele ergue a mão mostrando que não acabou.) convertendo tudo em excrementos. (Gargalhadas. Vária e Lopakhine não participam.) (TCHÉKHOV, 2010, p. 44).
Este personagem prefere se distanciar de Liuba e Lopakhine para não se corromper
e manter o seu discurso. Neste sentido, Trofímov pode ser entendido como aquele
intelectual “crítico do poder”, que combate constantemente o poder, como definido por L.
A. Coser (1965) e referenciado no livro Intelectuais e Poder de Norberto Bobbio. Este
autor cita como um exemplo histórico deste intelectual que combate permanentemente o
poder “[...] na Rússia, tanto os intelectuais radicais do século XIX como os chamados
intelectuais do 'dissenso' de hoje” (BOBBIO, 1997, p. 113). Assim, podemos inferir que
Trofímov representa a intelectualidade russa e, ao mesmo tempo, questiona, problematiza
qual o papel dos intelectuais diante de uma sociedade em crise. Trofímov possui algumas
impressões sobre o contexto da Rússia, considera necessário o trabalho5 para a vida em
sociedade – assim como Lopakhine - e critica a eficiência da intelligentsia russa - da qual
5 No segundo ato, Trofímov falando do orgulho humano finaliza assim: “Fisiologicamente, o homem é mal construído; intelectualmente, é retardado e de modo geral é grosseiro, brutal e profundamente infeliz. De que se ri a hiena? É preciso acabar com a auto-glorificação da espécie e... botar mãos à obra! Trabalhar. Que é o que interessa (TCHÉKHOV, 2010, p. 44-45).”
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ele participa, mas não se identifica como tal - diante de um quadro de pobreza, de pouca
cultura e de conflitos no país.
Trofímov - A humanidade progride, luta pela perfeição. Tudo que agora está fora de nosso alcance um dia será compreensível e trivial; só que é preciso trabalhar, ajudar com toda nossa força aos que procuram soluções. Aqui na Rússia, por enquanto, são muitos os que falam, poucos os que trabalham. Os intelectuais que conheço não procuram nada, não fazem nada; ficam doentes só com a ideia de qualquer esforço. Intitulam-se humanistas, mas tratam os criados como inferiores e os camponeses como animais. Não sabem coisa alguma, não querem aprender nada, não lêem nada a sério e nunca fazem nada. O que falam sobre ciência é ridículo e seu conhecimento de arte pouco mais que zero. São todos muito sérios, usam caras profundas, discutem assuntos impenetráveis, fazem especulações filosóficas incontestes, e não vêem que em volta, todos – 95 por cento do povo – vivem como selvagens, se insultando e estraçalhando à menor provocação. Comem lixo podre, dormem na imundície e na umidade, trinta ou quarenta no mesmo quarto cheio de percevejos, fezes, fedor e conseqüente degradação moral. É evidente que todos nossos belos discursos só tem uma função – enganar aos outros e a nós mesmos (TCHÉKHOV, 2010, p. 45).
Trofímov ao fazer a crítica aos intelectuais está falando de seu próprio locus. Isso
se verifica no texto de Bobbio (1997) que afirma que são os próprios intelectuais que
tecem as críticas ao seu papel social. Um ponto importante para o entendimento desse
personagem está na própria origem do termo “intelectuais”, conforme Bobbio (1997)
sempre associado ao russo intelligentsia. Assim, quando se fala de intelectuais, na
atualidade, buscamos o contexto russo em pauta aqui.
No particular contexto da história da Rússia pré-revolucionária, de fato, o termo, usado, ao que tudo indica, pela primeira vez, pelo romancista Boborykin e difundido nos últimos decênios do século XIX, significava o conjunto (não necessariamente constituindo um grupo homogêneo) dos livres-pensadores - que iniciaram, promoveram e ao fim fizeram explodir o processo de crítica da autocracia czarista e, em geral, das condições de atraso da sociedade russa (não diversamente do que acontece hoje por obra dos chamados 'dissidentes' no universo soviético), até a eclosão da Revolução (BOBBIO, 1997, p. 122).
É no contexto da Rússia pré-revolucionária que encontramos a identificação dos
homens que produzem as ideias, que lêem o contexto social e podem mobilizar ações para
a mudança social, portanto os intelectuais. Neste contexto, está em pauta o distanciamento
da “[...] aristocracia e a ‘inteligência’ europeizada da massa analfabeta que se manteve
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exclusivamente russa (EHRHARD, 1956, p.7). O problema evidenciado por Trofímov de
distanciamento entre um discurso (o mundo das ideias, o pensamento) e uma prática (ação)
constitui-se, para Bobbio (1997), em um dos problemas centrais da filosofia: a relação
entre teoria e práxis. É também um problema clássico quando se trata do intelectual – do
orador, ou do filósofo, ou do sábio, ou do douto, ou do literato, uma vez que estes termos
mudam conforme os tempos e as sociedades - ou de qualquer figura que lhe seja atribuída a
função de elaborar e disseminar conhecimento para tratar da vida social. Tendo em vista, o
modo como Trofímov quer se distanciar de algumas questões ou se colocar muito acima de
outras – como o amor e a verdade - e pela crítica que recebe de outros personagens - como
Liuba, Lopakhine e Vária - é possível enquadrá-lo, ainda, na categoria
[...] daqueles intelectuais que não pretendem ter nenhuma relação com o poder, na medida em que consideram que o seu reino não é deste mundo e crêem que, uma vez que deram a César o que é de César como cidadãos da cidade terrena, sua tarefa passa a ser, como intelectuais, a de dar a Deus o que é de Deus (BOBBIO, 1997, p. 113).
Neste sentido, este intelectual faz a crítica ao poder e se coloca como “protagonista
de uma história completamente diversa” (BOBBIO, 1997). O discurso, a palavra de
Trofímov é pouco convincente para os representantes da aristocracia e, também, da
burguesia, pois eles identificam a ausência de uma prática que o sustente. O personagem é
caracterizado como alguém que não concretiza a ação. Assim, apresenta-se envelhecido
antes do tempo, que não tem experiência com o amor e, como um eterno estudante que não
consegue concluir a universidade. Todavia, o discurso de Trofímov encontra respaldo na,
também, jovem e estudante Ânia, que muda o seu modo de “sentir” o cerejal. “O que você
fez comigo, Pétia? Já não gosto mais do cerejal como gostava antes. Eu o amava como...
como uma pessoa... querida. Achava que não havia outro lugar no mundo como o nosso
cerejal” (TCHÉKHOV, 2010, p. 49). Trofímov define o Jardim relacionado ao próprio
quadro em que se encontra a Rússia.
Trofímov - Ânia, o nosso cerejal é a Rússia inteira. Uma terra imensa e bela – cheia dos lugares mais maravilhosos. (Pausa.) Já pensou, Ânia?! Teu avô, teu bisavô, todos os teus antepassados eram donos de escravos, possuíam servos, eram proprietários de gente, de alma vivas. De cada cereja, de cada cerejeira em todo o cerejal, de cada folha, de cada tronco há almas humanas que te espiam. Você não ouve as vozes? Oh, é horrendo! Teu cerejal me apavora. Quando à noite eu o atravesso, as
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cascas das árvores brilham tenuemente na escuridão, as velhas cerejeiras parecem transpirar os séculos passados retorcidas por visões horrendas. É. Estamos atrasados pelo menos duzentos anos, não acompanhamos o tempo, não progredimos nada – não conhecemos nem nosso passado. Não fazemos coisa alguma; filosofamos, choramingamos o nosso imenso tédio e bebemos vodca. É claro que para viver no presente temos primeiro que redimir nosso passado, romper com ele. E só faremos isso com muito sofrimento, lutando. E com um trabalho brutal, incansável. Compreende, Ânia? (TCHÉKHOV, 2010, p. 49-50).
Este personagem, como intelectual, situa o contexto histórico da Rússia,
mostrando-a como atrasada e que o cerejal (a Rússia) foi construído pelo trabalho de
escravos e vê como possibilidade de superar a situação de crise, a luta e o trabalho.
Com estas questões postas, evidenciamos a capacidade de Tchékhov de questionar
a realidade social por meio de seus personagens. Em O Jardim das Cerejeiras “[...] o
processo de mudança social torna-se a questão central, o que resultou em uma peça na qual
a originalidade da forma e a complexidade do tema superaram largamente as peças
precedentes” (LIMA, 2006, p. 81).
Na vida profissional Tchékhov cuidou de pessoas enfermas e ele próprio sentiu e
padeceu – em 15 de julho de 1904 - de uma doença, a tuberculose. Este homem que viveu
apenas 44 anos confiava em seu leitor, na possibilidade do leitor dar respostas às
reticências que ele sempre mantinha em seus textos, contos e peças teatrais. Na Carta 62,
ele afirma "Quando escrevo, confio inteiramente no leitor, supondo que ele próprio
acrescentará os elementos subjetivos que faltam ao conto" (ANGELIDES, 1995, p. 35).
As reticências deixadas nas obras, pelo contista e dramaturgo russo, assemelham-se
às reticências, que ele acreditava, existem na vida. O autor preocupou-se em mostrar quem
é o homem, o que move o homem em sua vida cotidiana, em sua realidade, que não é feita
apenas de normas, mas de incertezas (VÁSSINA, 2009). Nas palavras de Belinky (2011, p.
7) “Observador arguto da vida e de tudo o que é humano, Tchékhov foi um homem de
muitas vivências”.
Observamos ainda que a capacidade de tratar o humano é o que identifica um
clássico. Nesta perspectiva, Vássina (2009, p. 3) cita Konstantin Stanislávski que definiu o
sentido essencial da obra do escritor: “Tchékhov apresenta-se inesgotável, porque, apesar
da aparente descrição da vida trivial, em seu leitmotiv (motivo condutor) principal, ou seja,
espiritual, ele sempre fala sobre o Humano com maiúscula”. Vejamos a originalidade do
pensamento de Tchékhov que, para além de marcar uma profunda transformação no modo
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de fazer literatura e teatro na passagem do século XIX para o século XX, nos confia a
possibilidade de pensar o homem através de suas obras.
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