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17 revista Liberdades. | Publicação do Instituto Brasileiro de Ciências Criminais | nº 17 – setembro/dezembro de 2014 | ISSN 2175-5280 | Expediente | Apresentação | Entrevista | Spencer Toth Sydow entrevista Ramon Ragués | Artigos | Audiência de custódia e a imediata apresentação do preso ao juiz: rumo à evolução civilizatória do processo penal | Aury Lopes Jr. | Caio Paiva | Reflexões acerca do Direito de Execução Penal | Felipe Lima de Almeida | Existe outro caminho? Uma leitura sobre discurso, feminismo e punição da Lei 11.340/2006 | Mayara de Souza Gomes | A ampliação do conceito de autoria por meio da teoria do domínio por organização | Joyce Keli do Nascimento Silva | Quis, ubii, quibus auxiliis, cur, quomodo, quando? | Tânia Konvalina-Simas | Os problemas do Direito Penal simbólico em face dos princípios da intervenção mínima e da lesividade | André Lozano Andrade | História | Ressonâncias do Discurso de Dorado Montero no Direito Penal Brasileiro | Renato Watanabe de Morais | Resenha de Livro | Jó, vítima de seu povo: o mecanismo vitimário em “A rota antiga dos homens perversos”, de René Girard | Wilson Franck Junior | Milton Gustavo Vasconcelos Barbosa | Resenhas de Filmes | A vida é notícia de jornal. Análises do contemporâneo a partir do filme “O outro lado da rua” | Laila Maria Domith Vicente | Match Point: sorte na vida ou vencer a qualquer preço? | Yuri Felix | David Leal da Silva

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17revista Liberdades.

| Publicação do Instituto Brasileiro de Ciências Criminais | nº 17 – se tembro/dezembro de 2014 | ISSN 2175-5280 |

Expediente | Apresentação | Entrevista | Spencer Toth Sydow entrevista Ramon Ragués | Artigos | Audiência de custódia e a imediata apresentação do preso ao juiz: rumo à evolução civilizatória do processo penal | Aury Lopes Jr. | Caio Paiva | Reflexões acerca do Direito de Execução Penal | Felipe Lima de Almeida | Existe outro caminho? Uma leitura sobre discurso, feminismo e punição da Lei 11.340/2006 | Mayara de Souza Gomes | A ampliação do conceito de autoria por meio da teoria do domínio por organização | Joyce Keli do Nascimento Silva | Quis, ubii, quibus auxiliis, cur, quomodo, quando? | Tânia Konvalina-Simas | Os problemas do Direito Penal simbólico em face dos princípios da intervenção mínima e da lesividade | André Lozano Andrade | História | Ressonâncias do Discurso de Dorado Montero no Direito Penal Brasileiro | Renato Watanabe de Morais | Resenha de Livro | Jó, vítima de seu povo: o mecanismo vitimário em “A rota antiga dos homens perversos”, de René Girard | Wilson Franck Junior | Milton Gustavo Vasconcelos Barbosa | Resenhas de Filmes | A vida é notícia de jornal. Análises do contemporâneo a partir do filme “O outro lado da rua” | Laila Maria Domith Vicente | Match Point: sorte na vida ou vencer a qualquer preço? | Yuri Felix | David Leal da Silva

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INSTITUTO BRASILEIRO DE CIÊNCIAS CRIMINAIS2Revista Liberdades - nº 17 – setembro/dezembro de 2014 I Publicação do Instituto Brasileiro de Ciências Criminais

expediente sumário apresentação entrevista artigos história resenha de livro

resenhas de filmes

EexpedienteDiretoria da Gestão 2013/2014

Publicação do Instituto Brasileiro de Ciências Criminais

Diretoria Executiva

Presidente:Mariângela Gama de Magalhães Gomes

1ª Vice-Presidente:Helena Lobo da Costa

2º Vice-Presidente:Cristiano Avila Maronna

1ª Secretária:Heloisa Estellita

2º Secretário:Pedro Luiz Bueno de Andrade

Suplente:Fernando da Nobrega Cunha

1º Tesoureiro:Fábio Tofic Simantob

2º Tesoureiro:Andre Pires de Andrade Kehdi

Diretora Nacional das Coordenadorias Regionais e Estaduais:Eleonora Rangel Nacif

Conselho Consultivo

Ana Lúcia Menezes Vieira Ana Sofia Schmidt de Oliveira Diogo MalanGustavo Henrique Righi Ivahy Badaró Marta Saad

Ouvidor

Paulo Sérgio de Oliveira

Suplentes da Diretoria Executiva

Átila Pimenta Coelho Machado Cecília de Souza Santos Danyelle da Silva Galvão Fernando da Nobrega CunhaLeopoldo Stefanno G. L. Louveira Matheus Silveira PupoRenato Stanziola Vieira

Assessor da Presidência

Rafael Lira

Colégio de Antigos Presidentes e Diretores

Presidente: Marta Saad

Membros: Alberto Silva Franco Alberto Zacharias Toron Carlos Vico MañasLuiz Flávio GomesMarco Antonio R. NahumMaurício Zanoide de Moraes Roberto PodvalSérgio Mazina Martins Sérgio Salomão Shecaira

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INSTITUTO BRASILEIRO DE CIÊNCIAS CRIMINAIS3Revista Liberdades - nº 17 – setembro/dezembro de 2014 I Publicação do Instituto Brasileiro de Ciências Criminais

Coordenadores-Chefes dos Departamentos

Biblioteca: Ana Elisa Liberatore S. BecharaBoletim: Rogério FernandoTaffarelloComunicação e Marketing: Cristiano Avila MaronnaConvênios: José Carlos Abissamra FilhoCursos: Paula Lima Hyppolito OliveiraEstudos e Projetos Legislativos: Leandro SarcedoIniciação Científica: Bruno Salles Pereira RibeiroMesas de Estudos e Debates: Andrea Cristina D’AngeloMonografias: Fernanda Regina VilaresNúcleo de Pesquisas: Bruna AngottiRelações Internacionais: Marina Pinhão Coelho AraújoRevista Brasileira de Ciências Criminais: Heloisa EstellitaRevista Liberdades: Alexis Couto de Brito

Presidentes dos Grupos de Trabalho

Amicus Curiae: Thiago BottinoCódigo Penal: Renato de Mello Jorge Silveira CooperaçãoJurídica Internacional: Antenor Madruga Direito Penal Econômico: Pierpaolo Cruz BottiniEstudo sobre o Habeas Corpus: Pedro Luiz Bueno de AndradeJustiça e Segurança: Alessandra TeixeiraPolítica Nacional de Drogas: Sérgio Salomão ShecairaSistema Prisional: Fernanda Emy Matsuda

Presidentes das Comissões Organizadoras

18º Concurso de Monografias de Ciências Criminais: Fernanda Regina Vilares20º Seminário Internacional: Sérgio Salomão Shecaira

Comissão Especial IBCCRIM – Coimbra

Presidente:Ana Lúcia Menezes VieiraSecretário-geral:Rafael Lira

Coordenador-chefe da Revista Liberdades

Alexis Couto de Brito

Coordenadores-adjuntos:Bruno Salles Pereira RibeiroFábio LoboscoHumberto Barrionuevo Fabretti João Paulo Orsini Martinelli

Roberto Luiz Corcioli Filho

Conselho Editorial: Alexis Couto de BritoCleunice Valentim Bastos Pitombo Daniel Pacheco Pontes

revista Liberdades.Fábio LoboscoGiovani Agostini SaavedraHumberto Barrionuevo FabrettiJosé Danilo Tavares LobatoJoão Paulo Orsini Martinelli João Paulo SangionLuciano Anderson de Souza Paulo César Busato

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resenhas de filmes

Eexpediente ........................................................................................................................2

Apresentação ...................................................................................................................6

Entrevista

Spencer Toth Sydow entrevista Ramon Ragués ....................................................................................8

Artigos

Audiência de custódia e a imediata apresentação do preso ao juiz: rumo à evolução civilizatória do processo penal ................................................................................11

Aury Lopes Jr. e Caio Paiva

Reflexões acerca do Direito de Execução Penal .................................................................................24

Felipe Lima de Almeida

Existe outro caminho? Uma leitura sobre discurso, feminismo e punição da Lei 11.340/2006 .........50

Mayara de Souza Gomes

A ampliação do conceito de autoria por meio da teoria do domínio por organização .................69

Joyce Keli do Nascimento Silva

Quis, ubii, quibus auxiliis, cur, quomodo, quando? ..............................................................................85

Tânia Konvalina-Simas

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Os problemas do Direito Penal simbólico em face dos princípios da intervenção mínima e da lesividade ....................................................................................................99

André Lozano Andrade

História

Ressonâncias do discurso de Dorado Montero no direito penal brasileiro ........................................118

Renato Watanabe de Morais

Resenha de Livro

Jó, vítima de seu povo: o mecanismo vitimário em “A rota antiga dos homens perversos”, de René Girard .....................................................................................................141

Wilson Franck Junior e Milton Gustavo Vasconcelos Barbosa

Resenhas de Filmes

A vida é notícia de jornal. Análises do contemporâneo a partir do filme “O outro lado da rua” .....149

Laila Maria Domith Vicente

Match Point: sorte na vida ou vencer a qualquer preço? ...................................................................158

Yuri Felix e David Leal da Silva

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ApresentaçãoMais uma edição da Liberdades, e mais uma vez, trabalhos notáveis.

Iniciamos com a entrevista do professor Ramón Ragués realizada pelo professor Spencer Toth Sydow, e faz considerações sobre a teoria da cegueira deliberada.

Nos artigos científicos, variadas reflexões.

No campo processual, Aury Lopes Jr. e Caio Paiva abordam o projeto de lei 554/11 e as vantagens da implementação, no Brasil, da audiência de custódia e imediata apresentação do preso ao juiz.

Em uma abordagem histórica da execução penal na legislação brasileira, Felipe Lima de Almeida disserta sobre a natureza jurídica da execução penal e as finalidades que pretende alcançar.

Passando ao direito material, sobre a tensão que existe entre a violência domestica contra a mulher e a política criminal de ultima ratio, Mayara de Souza Gomes analisa a dicotomia sugerindo uma solução que possa atender aos anseios sociais e sistêmico-penais.

Joyce Keli do Nascimento Silva parte da ação comunicativa de Habermas para analisar autoria mediata e o domínio do fato em aparatos organizados de poder.

Mudando da dogmática para a criminologia, a abordagem de Tânia Konvalina-Simas sobre a importância da profissão de criminologista no cenário jurídico-penal português oferece um entendimento acerca de uma melhor operacionalização da criminologia e sua capacidade de rendimento para os procedimentos penais

André Lozano Andrade também navega pela criminologia e pela política criminal ao discorrer sobre o direito penal simbólico e a intervenção mínima e como tais conceitos podem ser sentidos e absorvidos pelo contexto social.

A abordagem histórica nos é trazida por Renato Watanabe de Morais. O sempre atual e discutido Dorado Montero e seu correcionalismo são revisitados em busca de uma aplicação prática no campo da política de drogas.

Wilson Franck Junior e Milton Gustavo Vasconcelos Barbosa nos trazem a resenha do livro “A rota antiga dos homens perversos”, do sempre crítico René Girard, que apesar de sua formação essencialmente religiosa nos traz observações muito interessantes sobre o ser humano e seus desejo de vingança.

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Por fim, Laila Maria Domith Vicente, Yuri Felix e David Leal da Silva nos trazem duas resenhas de filmes absolutamente recomendáveis. “O outro lado da Rua” interpreta a forma de ser e estar no mundo, e “Match Point” tem como tema de reflexão a competitividade, aceleração e a busca do sucesso no mundo moderno.

Como se vê, mais uma interessante edição, elaborada com a ajuda dos colaboradores, que continuam apostando e prestigiando a nossa publicação.

A todos, uma boa leitura.

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Jó, vítima de seu povo: o mecanismo vitimário em “A rota antiga dos homens perversos”, de René Girard

Wilson Franck JuniorMestrando em Ciências Criminais pela PUC-RS.

Milton Gustavo Vasconcelos BarbosaMestrando em Ciências Criminais pela PUC-RS.

Obra resenhada: GIRARD, René. A rota antiga dos homens perversos. Trad. Tiago Risi. São Paulo: Paulus, 2009.

Sumário: 1. O autor e sua obra; 2. Sobre a obra A rota antiga dos homens perversos; 3. Conclusão.

1. O autor e sua obra

René Girard (25.12.1923, Avignon, França) é um historiador, crítico literário e filósofo social francês. Professor emérito de antropologia da Universidade de Stanford, seu trabalho pertence à tradição da antropologia filosófica. Apontado por Michel Serres como o “Darwin das Ciências Sociais”, Girard é o criador da teoria mimética, um conjunto de insights sobre o comportamento e cultura humana (especialmente sobre o desejo, a violência e o sagrado).

Em sua primeira obra, intitulada Mentira romântica e verdade romanesca, publicada em 1961, Girard formula a teoria do desejo mimético. Sua intuição revela que, longe de ser algo autêntico, o desejo humano é imitativo: o homem deseja pelos olhos de outrem. É o outro, tomado como modelo, quem informa ao imitador o que ele deve desejar. Devido a sua estrutura triangular, formado pelo imitador, modelo e objeto, o desejo mimético é a causa primordial da rivalidade e violência humana. Em 1972, Girard publica A violência e o sagrado, em que teoriza sobre o mecanismo da vítima expiatória, o qual é compreendido como fenômeno fundador da cultura humana, do qual decorrem os mitos e o sagrado primitivo. Nessa obra, Girard credita ao assassínio coletivo o apaziguamento e restauração da ordem nas comunidades primitivas, pois a violência que grassava entre os homens é canalizada contra uma vítima única, promovendo a interrupção (momentânea) do ciclo de vingança que consumia a comunidade. Em seu terceiro livro, Coisas ocultas desde a fundação do mundo, publicado em 1978, Girard não apenas desenvolve e aprofunda seus estudos em antropologia e psicologia,

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mas também empreende um estudo sobre os evangelhos, afirmando que estes revelariam o que estava, nas palavras de Jesus, “oculto desde a fundação do mundo”, isto é, o saber sobre a inocência da vítima do mecanismo expiatório. Girard desenvolve essas intuições em diversos outros trabalhos. Na obra “A rota antiga dos homens perversos”, objeto da presente resenha, ele trata das mesmas questões, mas o faz interpretando o caso de Jó, presente no Velho Testamento da Bíblia.

A teoria mimética, devido a sua abrangência, tem sido desenvolvida em diversas áreas do conhecimento, como a teologia, a mitologia, a sociologia, a antropologia, a psicologia, a economia e a filosofia. Exatamente por isso, há, na atualidade, um crescente interesse no trabalho de René Girard.

2. Sobre a obra A rota antiga dos homens perversos

Na obra A rota antiga dos homens perversos de 1985 René Girard analisa, na esteira das teorias anteriormente desenvolvida em “A violência e o sagrado” de 1972 e em “O bode expiatório” de 1982, o caso de Jó, presente no Velho Testamento da Bíblia. Não apenas consideramos interessante a interpretação girardiana, como pensamos que ela propicia uma reflexão sobre a violência humana em toda a sua extensão, seja na esfera cultural, política ou jurídica. Como veremos no decorrer desta resenha, a violência cultural é o tema principal da obra. Vejamos, nas próximas linhas, como ela se manifesta no caso de Jó. As linhas a seguir, portanto, decorrem da interpretação formulada por René Girard sobre o livro de Jó.

Para o autor, Jó é o bode expiatório de sua comunidade, e a descrição de sua história é o relato da tensão entre o sagrado violento (sacrifical e produzido pela multidão de linchadores) e o sagrado não violento (que concede a palavra às vitimas). Por isso se trata, em suma, da tensão entre a justiça dos perseguidores e a justiça das vítimas.

Inicialmente, Girard se refere às desgraças que abatem sobre Jó. Elas estão enumeradas no prólogo do livro desse personagem, o qual havia perdido seus filhos e seu rebanho, e também lhe incomodavam as feridas. Sua degradação era tamanha que, no paroxismo da crise, adquiriu características animalescas, como o “mau cheiro” de um bode (expiatório):

“Ele afastou de mim os meus irmãos, os parentes procuram evitar-me. Abandonam-me vizinhos e conhecidos, esqueceram-me os hóspedes de minha casa, Minhas servas consideram-se um intruso, a seu ver sou um estranho. Chamo a meu servo, e não me responde, devo até suplicar-lhe. À minha mulher repugna meu hálito, e meu cheiro, aos meus próprios irmãos. Até as crianças me desprezam e insultam-me, se procuro levantar-me. Todos os meus íntimos têm me aversão, meus amigos voltam-se contra mim”. (Jó 19, 13-19)

Embora em sua fala fique evidenciado que todos os seus males são causados pelo desprezo daqueles que o cercam, Jó credita que Satanás, com a permissão de Deus, é seu perseguidor. É exatamente contra a violência coletiva do linchamento,

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dessa justiça da retribuição, que ele se insurge. Ciente de sua inocência, Jó não consegue compreender por que Deus permite a situação em que se encontra. Ele percebe e descreve claramente a polarização do ódio universal que se forma contra si, que une a comunidade: com um só coração todos o odiavam. Jó é o bode expiatório dos bodes expiatórios: a vítima da violência unânime.

Jó jamais previra que seu povo se ergueria contra ele. Homem público infalível, a justiça era sua túnica; o direito era seu manto e seu turbante. Sua voz emudecia os líderes e à sua presença todos se levantavam. Ninguém jamais ousava retrucar suas palavras. Seu prestígio e liderança, que eram reconhecidos por todos, fazia-o crer na impossibilidade de uma virada em sua vida. Entretanto, tal qual Édipo, Jó trilhava, sem saber, a “rota antiga dos homens perversos”, uma rota que conduz à perseguição e ao linchamento. “Da extrema admiração, Jó passou, de uma hora para outra, ao extremo desgosto. E até o último momento, parece que Jó não suspeitava de modo algum da grande reviravolta que se preparava”.1 Jó passa de ídolo popular a bode expiatório. Longe de ser culpado por essa virada, ele é a vítima de uma caprichosa e súbita mudança na opinião pública, sobre a qual não se sabe o motivo. Seus concidadãos, antes unidos em sua adoração, agora se unem para hostilizá-lo.

Jó percorre o que seu “amigo” Elifaz chama de “os velhos caminhos por onde andaram os homens perversos”. Esses caminhos se iniciam no poder e riqueza e terminam em um terrível desastre: “Algo na ascensão desses homens prepara sua queda”.2 Jó está percorrendo as últimas curvas do caminho. O destino dos “homens perversos” está sempre ligado a uma base comum: a conversão da multidão exaltadora em multidão perseguidora, ou, na perspectiva de Girard, a conversão do mimetismo que une pela adoração ao mimetismo que une pelo ódio (contra o bode expiatório).

Elifaz, “amigo” de Jó, tenta convencê-lo de que o melhor que ele tem a fazer é confessar-se culpado e aderir a seus detratores, já que se desencadeou contra ele uma “Justiça Popular” infalível, que não poderia ter outra origem senão divina. A ascensão e a queda dos poderosos seriam, para Elifaz, apenas as duas faces da mesma moeda. Exatamente como nas tragédias gregas, o destino de Jó já estaria traçado; não haveria outra coisa a ser feita senão render-se ao sagrado violento, ao linchamento da comunidade. Mas ao contrário dos heróis gregos, Jô não se rende à multidão.

Os “amigos de Jó” queriam a todo custo minar e enfraquecer sua resistência, invocando, em tal tentativa, turbas de animais e “exércitos celestes”. Ao contrário de agirem imbuídos por uma amizade verdadeira e defenderem Jó contra a multidão, os “amigos” estão tomados pela violência. Jó, portanto, se vê completamente cercado de inimigos. A fala dos falsos amigos, invejosos que eram, reporta a uma caçada humana: “em todos os participantes, o terrível apetite de violência

1 GIRARD, René. A rota antiga dos homens perversos, p.18.2 Idem, ibidem, p. 22.

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é idêntico. Nenhum deles quer renunciar a infringir o golpe decisivo”.3 Na interpretação de Girard, os tais “guerreiros celestes” invocados pelos falsos amigos representam a própria horda de linchadores, os quais, com violência, produzem o sagrado primitivo: “O que se desdobra no discurso dos amigos é uma verdadeira mitologia da vingança divina”.4

Contagiados pela violência do grupo, os “amigos” não conseguem enxergar a inocência de Jó. Por isso seguem cobrando a sua submissão. Crendo estar ajudando-o, na verdade estavam tomando parte em sua queda, que teria seu desfecho no linchamento que se anunciava. “Aqueles que constroem o sagrado com sua violência são incapazes de enxergar a verdade”.5 Jó é visto por eles como culpado, o que os impede de compreender o mecanismo vitimário que ali se forma e do qual fazem parte.

Apesar de toda a insistência, Jó protesta sua inocência a plenos pulmões. Por isso, como diz Girard, “se os amigos pudessem mantê-lo calado, para o que se esforçam, a crença dos perseguidores na culpa do bode expiatório realmente seria unânime e sairia tão vitoriosa que a única análise da questão emanaria daqueles que veem a culpa como real. Não teríamos mais do que uma perspectiva: a dos amigos. Em outras palavras, teríamos um mito. Um mito nada mais é do que essa fé absoluta na onipotência do mal presente numa vítima, essa fé que liberta os perseguidores de suas recriminações recíprocas e forma, consequentemente, um mesmo todo com a fé absoluta numa onipotência de salvação”.6

Mas a batalha entre os “amigos” e ele tem raízes mais profundas do que os diálogos sugerem. Elifaz, Baldade e Zofar relacionavam-se com Jó segundo o paradoxo do “modelo-obstáculo” formulado por Girard em sua teoria mimética; ao contrário do que possa perecer, eles não estavam em nenhum momento consolando-o, mas sim saboreando sua queda. A inveja dos três personagens espreitou por anos nas sombras e não pudera em nenhum outro momento se revelar completamente, pois, afinal, Jó era amado pelo povo. Os “amigos” rivais eram parte da elite que, ao adular Jó, reforçavam sua adoração pela plebe que os imitava. No fundo, os amigos gostariam de ter sido como Jó, adorados pelo povo, mas para isso teriam de superá-lo, o que torna Jó um obstáculo à consecução deste desejo. Por isso, simultaneamente, Jó era modelo e obstáculo para seus “amigos”.

Os acontecimentos que cercam a queda de Jó são um momento de glória para seus rivais. Esse momento apoteótico só foi possível com a adesão das classes mais baixas, que, tendo deixado de amar a Jó, formavam, juntamente com os “amigos”, uma unanimidade violenta. Os dois grupos, elite e plebe, imitavam-se mutuamente na perseguição a Jó, pois a conversão do ídolo popular em bode expiatório acompanha a conversão do modelo (admirado) em obstáculo (odiado).

3 Idem, p. 33.4 GIRARD, René. A rota antiga dos homens perversos, p.35.5 Idem, ibidem, p.35.6 Idem, p.43.

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A ladainha dos “amigos” tem algo de ritual. O clamor ritmado dos três discursos, lembrando o coro das tragédias gregas, emulam os gritos encantatórios que precedem o linchamento. Os “amigos” não são mais do que uma parcela da comunidade; todavia, representam homens de sabedoria cujo poder de convencimento orienta a violência da multidão. A violência das massas é um fenômeno incontrolável e, exatamente por isso, tem uma aparência sobrenatural, sobre-humana, mística. Todavia, é possível tentar canalizá-la contra uma vítima única cujo assassinato pacifica a comunidade, e é precisamente nesse sentido que se destinam os esforços dos falsos amigos. Jó, porém, não se rende à retórica deles, os quais passam a ser denominados pelo próprio Jó de “embusteiros” e “charlatões”. Nem Jó nem os “amigos” têm qualquer poder de decisão sobre a crise que os cerca; é a turba, apenas ela, quem decidirá o destino. Por isso, a pergunta de Elifaz dirigida a Jó (“queres seguir os velhos caminhos por onde andaram os homens perversos?”) induz à ilusão de que de alguma forma Jó poderia mudar seu destino e encerrar a crise, se assim o quisesse.

Exatamente por isso, a passagem pelo “caminho antigo” é um rito cuja origem remonta à própria fundação do mundo. Trata-se, portanto, da repetição do mecanismo do bode expiatório, uma trajetória que muitos já percorreram e que não está sob o controle de quaisquer dos personagens do livro de Jó. Para que essa “rota antiga dos homens perversos” seja eficaz, é preciso, contudo, que a vítima do linchamento declare-se culpada, da mesma forma que era preciso que Jó confessasse os mesmos crimes cometidos por seus antecessores, isto é, pelos homens de outrora que haviam trilhado o “caminho antigo”.

A confissão tem uma importância central nos ritos sacrificiais, pois redime os perseguidores e reafirma a infalibilidade de sua Justiça. A confissão, portanto, é a garantia da perfeição do mecanismo vitimário, pois não deixa margem a contestações e, ainda, permite a realização da catarse coletiva à custa do bode expiatório. Portanto, para que o ciclo da violência unânime se feche, é necessária também a adesão da vítima, como no caso de Édipo. Jó, ao contrário, segue clamando sua inocência apesar de todas as adversidades, o que impede que se forme a união sagrada contra ele. Édipo é a vítima ideal, Jó é seu oposto.

Os “amigos” não creem em Jó, pois estão entre seus perseguidores, e por isso cobram a assunção de todos os pecados que lhe são atribuídos. A mentalidade primitiva dos perseguidores faz com que pensem viver num mundo regido por uma força perfeita e infalível que jamais vitima inocentes. Para eles, “justo” era todo aquele que sempre se posicionava no lado dos perseguidores e aderia a “justiça” divina. E nesse ponto o livro de Jó nos diz muito sobre os regimes políticos totalitários que, como é sabido, concedem grande importância às “confissões espontâneas” nos processos judiciais.

Em determinado momento do livro, a pressão social, personificada na figura dos “amigos”, surte o efeito esperado e conduz ao esmorecimento da resistência de Jó, que acaba por adotar a linguagem de seus perseguidores, crendo que cólera divina recai sobre si. Mas essa adesão parcial ao discurso persecutório dura apenas alguns instantes. Logo em seguida Jó adota outra estratégia: passa a acusar o próprio deus de tê-lo “jogado nas mãos de ímpios”, reconhecendo-o como o “deus

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do bode expiatório”.7 Entretanto, nas palavras de Girard, “Jó não vai ao extremo de repudiar o deus dos perseguidores, mas instala junto dele não o acusador, o diabo, que esse deus já é por definição, mas o seu contrário, um representante dos acusados, um advogado de defesa”.8 O deus dos acusadores e o Deus das vítimas ficam frente a frente, e este, ao contrário daquele, está do lado de Jó. Ele não é mais o terrível general de tropas celestes que atacava abertamente os bodes expiatórios. Esse Deus, como lembra Girard, “dá a Jó uma longa conferência sobre o que se chamava antigamente de história natural. Um pouco de astronomia, um pouco de meteorologia, muito de zoologia. Esse Deus adora os animais”.9 Esse deus ecológico consegue obter o que nenhum dos três “amigos” havia conseguido: um Jó dócil e passivo, que confessa todos os seus erros e se submete à “justiça divina”. Porém, o novo deus não é o Defensor invocado, mas sim uma face mais hipócrita do deus dos perseguidores. Para Girard esse desfecho é fruto de um vilipêndio ao texto original, que foi alterado com o objetivo de neutralizar a revelação do mecanismo vitimário. Portanto, o Jó que o revela é calado por aqueles que maquiaram o texto bíblico.10

Para Girard, a revelação não consumada no livro de Jó prenuncia uma revelação completa, que foi, mais tarde, concluída por Jesus, que também percorreu o “caminho antigo dos homens perversos”. Este também passou de ídolo popular (domingo de ramos) a bode expiatório (paixão). Tal qual Jó, Jesus foi hostilizado e odiado por aqueles que antes ele havia ajudado – dentre os quais se incluem seus amigos, parentes e seguidores. “Ele acabará tornando-se vítima do mesmo poder satânico, acusador e persecutório que domina o mundo e que matou antes dele todos os profetas desde Abel, até a última vítima mencionada na Bíblia”.11 O Deus das vítimas se revela na paixão, mas Ele é incapaz de salvar a vida de Jesus, pois seu reino não é neste mundo. O reino deste mundo é dominado pelos ciclos de violência intermináveis, pelo ranço, inveja, cobiça, e violência das massas. O reino deste mundo é do deus dos perseguidores e da “justiça” perfeita do linchamento.

O Defensor esperado por Jó não ambiciona fazer justiça, pois “faz o sol brilhar e sua chuva cair sobre os justos, como também sobre os injustos”.12 Esse Deus “não serve de árbitro nas discussões entre irmãos. Ele sabe como funciona

7 GIRARD, René. A rota antiga dos homens perversos, p. 153.8 Idem, ibidem, p. 159.9 GIRARD, René. A rota antiga dos homens perversos, p. 160.10 A referência que Girard faz a Deus, ora em letra maiúscula, ora letra minúscula, é proposital. A razão disso é que, para Girard e também para boa parte dos

intérpretes, o texto do livro de Jó teria sido modificado. O Deus que aparece para Jó deveria, pela lógica, ser o Deus das vítimas, ou seja, Aquele que ouve seus apelos e vem ao seu encontro. Esse seria o desdobramento lógico que teria sido ocultado no texto. Entretanto, o deus que aparece não é mais do que o velho deus dos perseguidores, porém em uma versão sofisticada. Girard acredita que essa modificação teve sua gênese no receio frente às possíveis consequências que o texto original ensejaria em sua época. Aqueles que o modificaram temiam seu poder. Impuseram, por isso, uma espécie de barreira frente à novidade do saber do Deus das vítimas.

11 GIRARD, René. A rota antiga dos homens perversos, p. 176.12 GIRARD, René. A rota antiga dos homens perversos, p. 175. Girard está se referindo a uma passagem de Mateus (Mt,5:45).

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a justiça humana”.13 Mas também não se trata de um Deus ausente, pois, como nos diz Girard, Ele “já reina para aqueles que o receberam. Por intermédio daqueles que imitam Jesus e imitam o Pai, o Reino já está entre nós. É uma semente que vem de Jesus e que o mundo não pode expulsar, ainda que se esforce para fazê-lo”.14

3. Conclusão

A abordagem antropológica do texto bíblico desenvolvida por Girard é instigante. Pensamos que ela pode contribuir para a compreensão de temas caros à criminologia. Para citar apenas dois, temos o fenômeno da confissão de acusados em processos judiciais - ao qual se confere grande importância em sistemas penais autoritários, revestindo-se de uma natureza mítica – e também o linchamento (que no Brasil não possui tipificação penal própria, sendo considerado caso de homicídio, atenuado, ainda, pelo art. 65, III, e, do CP).15

Nos tempos atuais há um “estímulo” – que se percebe pela concessão de benesses legais – à confissão “espontânea” dos acusados no processo penal, fenômeno que absolve ou ao menos abranda a responsabilidade do acusador e do julgador em caso de erro judicial. O caso de Jó também nos ensina, por outro lado, que a violência das massas não é focalizada apenas contra as classes menos favorecidas. Longe de ser exclusividade dos “vulneráveis sociais” (no sentido meramente econômico do termo), ela também vitima pessoas famosas, especialmente celebridades do campo artístico e político. Por concentrarem a atenção da opinião pública em geral, essas celebridades correm o risco de, a qualquer momento, sob uma falsa ou verdadeira acusação, trilharem a “rota antiga dos homens perversos”.

A “queda” é um fenômeno recorrente na sociedade atual. Com a contribuição da mídia, ídolos são transformados em “monstros”, e heróis em vilãos. A psicologia das religiões antigas, por isso, tem muito a nos ensinar. Ela revela que, longe de sermos tão sofisticados quanto gostaríamos de pensarmo-nos, ainda compartilhamos de uma série de crenças e práticas ditas “primitivas”.

13 GIRARD, René. A rota antiga dos homens perversos, p. 175.14 GIRARD, René. A rota antiga dos homens perversos, p. 177.15 “Art. 65. São circunstâncias que sempre atenuam a pena: (...) III - ter o agente: (...) e) cometido o crime sob a influência de multidão em tumulto, se não o

provocou.”