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Revista de Direito da UCP Edição Especial 40 anos do NPJ Ano I, nº 1, Janeiro a Julho de 2009 Universidade Católica de Petrópolis © 2009 Universidade Católica de Petrópolis. Todos os direitos reservados. Rua Benjamin Constant, 213, Centro - Petrópolis, RJ - Brasil - CEP: 25610-130 Telefone: (24) 2244-4000 Lex Humana

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Revista de Direito da UCP

Edição Especial

40 anos do NPJ

Ano I, nº 1, Janeiro a Julho de 2009

Universidade Católica de Petrópolis© 2009 Universidade Católica de Petrópolis. Todos os direitos reservados.

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Lex Humana Revista de Direito da UCP ISSN 2175-0947

Edição Especial. Ano I, nº 1, jan./jun. 2009

Expediente

Editores:

Prof. Marco Aurélio G. FerreiraProf. Rebeca de Souza

Conselho Editorial:

Prof. Claudio Luiz Braga Dell’Orto; Prof. Cleber Francisco Alves; Profa. Fernanda Duarte Lopes Lucas da Silva; Prof. Francisco Marcos Rohling; Profa. Margarida Maria Lacombe Camargo.

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Edição Especial. Ano I, nº 1, jan./jun. 2009

ApresentaçãoA presente edição especial marca o lançamento da Lex

Humana, ao mesmo tempo em que homenageia os 40 anos do Núcleo de Prática Jurídica do Centro de Ciências Jurídicas da Universidade Católica de Petrópolis.

A edição especial optou por privilegiar aspectos interdisciplinares hoje indissociáveis na produção intelectual das ciências humanas e, em particular, da ciência jurídica. O estudo da dogmática jurídica, em si mesma, não foi, até o presente momento, capaz de dar conta da complexidade das relações humanas, o que exige dos intelectuais do direito, do novo século, a elaboração de um diálogo com outros ramos do saber. Sobre esta perspectiva elaborou-se esta Revista, buscando a confluência com outras disciplinas sem, no entanto, se afastar do debate doutrinário jurídico.

O atual volume prima pela apresentação dos seus artigos com base na abordagem temática fugindo a padrões rigorosos de preenchimento de secções previamente determinadas. Tal estrutura objetivou seguir a tendência hodierna das renomadas revistas de direito do Brasil. Com efeito, o primeiro espaço é inaugurado pelos Direitos Fundamentais, posição justificada não somente pela relevância da matéria, mas também em razão dos princípios institucionais consagrados no Plano de Desenvolvimento Institucional da Universidade Católica de Petrópolis. A seguir, apresentamos o espaço dedicado ao Direito na História, o qual traz as contribuições históricas que visam

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resgatar as bases do pensamento jurídico. Já o terceiro espaço compreendido como Direito interdisciplinar é dedicado à produção acadêmica com abordagem proeminentemente desta natureza, ressaltando que a interdisciplinaridade é aspecto que permeia significantemente todos os trabalhos acadêmicos aqui reunidos. O quarto campo relaciona Direito e Estado sendo dedicado às implicações jurídicas decorrentes das relações do Estado com o cidadão. E, por último, temos o espaço Internacional no qual se inserem as contribuições das produções intelectuais extra- muros.

A pesquisa acadêmica como produção de saber original foi o foco escolhido para a seleção dos textos apresentados, que aqui reunidos formam um corpo de significante contribuição para o estudo do direito.

Esta e outras publicações compreendem o resultado do longo esforço desenvolvido por toda coordenação do Centro de Ciências Jurídicas da UCP, atualmente liderada por sua diretora Prof.ª Ms. Adriana Henrichs Sheremetieff e o vice-diretor Prof. Ms. Klever Leal Filpo, na busca incessante da superação e do reconhecimento da qualidade do ensino jurídico desta Universidade, empenho que hoje se reflete nos excelentes resultados obtidos nas avaliações perante instituições nacionais públicas e privadas, concretizando a conspícua legenda cinzelada no brasão de nossa Universidade Católica de Petrópolis: Non Excidet.

Prof. Ms. Marco Aurélio Gonçalves FerreiraUniversidade Católica de Petrópolis

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Edição Especial. Ano I, nº 1, jan./jun. 2009

EDITORIAL

A organização e publicação de Lex Humana demonstra o empenho da Universidade Católica de Petrópolis em alcançar os objetivos traçados em seu Plano de Desenvolvimento Institucional, que enfatiza o papel da Universidade como espaço de produção de conhecimento. Tal vocação é reafirmada no novo Projeto Pedagógico do Centro de Ciências Jurídicas implementado em 2006, o qual, dando continuidade ao seu antecedente, destaca a importância do desenvolvimento da pesquisa para o aprimoramento das instituições jurídicas e conseqüente colaboração para a solução de controvérsias verificadas no cotidiano da sociedade.

Desse modo, reunimos neste número artigos doutrinários, elaborados por convidados, docentes e discentes do Curso de Direito da Universidade Católica de Petrópolis, relacionados à quatro linhas temáticas importantes e pertinentes a nossa proposta: direitos fundamentais, história do direito, interdisciplinaridade, direito e estado. Contamos ainda com dois artigos elaborados por pesquisadores estrangeiros, os quais nos revelam diferentes experiências e pontos de vistas sobre questões também verificáveis em nossa realidade.

O artigo que abre a nossa Revista foi elaborado

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pelo ilustre jurista Ives Gandra Martins e tem como objeto o direito fundamental à vida. Nesta mesma linha, apresentamos o artigo escrito pelo professor Roberto Wagner Lima Nogueira, que aborda a questão da dignidade da pessoa humana e o artigo produzido por Liliane Moraes Pestana que se refere ao direito fundamental ao meio ambiente.

A segunda linha abrange artigos referentes à evolução de teorias e normas jurídicas ao longo do tempo. Neste momento temos os artigos elaborados por Sérgio André Rocha, sobre a Teoria Hermenêutica, e pelos nossos professores Klever Paulo Leal Filpo, acerca do Recurso de Apelação e Raquel Recker Rabello Bulhões, relacionado ao Direito à Educação.

A seguir, mostramos os artigos que tocam à questão da interdisciplinaridade, produzidos por Bárbara Gomes Lupetti Baptista, o qual aborda as contribuições das ciências sociais para o estudo de direito, por Ana Paula Mendes de Miranda, sobre os movimentos sociais e sua relação com o fortalecimento da democracia e por Leonardo Mees, nosso discente, referente à questão da igualdade.

No quarto momento, temos os artigos escritos pelos professores Pedro de Oliveira Coutinho, à respeito do controle do poder e Daniel Machado Gomes, sobre estado pós nacional e liberdade na Europa contemporânea e o artigo produzido por Márcio Riski, acerca a aspectos da

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participação no suicídio.Concluindo essa edição especial comemorativa dos

40 anos do NPJ, apresentamos as produções de Omar Darío Heffes, sobre violação dos Direitos Humanos na Argentina e María José Sarrabayrouse Oliveira, que tem como tema a justiça penal.

Estes quatorze artigos são resultados da pesquisa em Direito e demonstram a diversidade de nossa ciência. Esperamos que as contribuições aqui reunidas possam contribuir para o desenvolvimento de posturas críticas e reflexivas tão caras aos profissionais da área jurídica.

Profa. Rebeca de SouzaUniversidade Católica de Petrópolis

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ArtigosA VIDA, O DIREITO FUNDAMENTAL....................... 11Ives Gandra da Silva Martins

DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA:CONCEITO FUNDAMENTAL DA CIÊNCIA JURÍDICA ..........................................................................................18Roberto Wagner Lima Nogueira

O MEIO AMBIENTE SADIO E ECOLOGICAMENTE EQUILIBRADO COMO DIREITO HUMANO E A ÉTICA AMBIENTAL..................................................... 45Liliane Moraes Pestana

EVOLUÇÃO HISTÓRICA DA TEORIA HERMENÊUTICA: DO FORMALISMO DO SÉCULO XVIII AO PÓS-POSITIVISMO...................................... 77Sergio André Rocha

ANTECEDENTES HISTÓRICOS DO RECURSO DE APELAÇÃO ................................................................. 161Klever Paulo Leal Filpo

A EDUCAÇÃO NAS CONSTITUIÇÕES BRASILEIRAS ....................................................................................... 179Raquel Recker Rabello Bulhões

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UMA OUTRA VISÃO DO DIREITO: AS CONTRIBUIÇÕES FORNECIDAS PELAS CIÊNCIAS SOCIAIS....................................................................... 189Bárbara Gomes Lupetti Baptista

MOVIMENTOS SOCIAIS, A CONSTRUÇÃO DE SUJEITOS DE DIREITOS E A BUSCA POR DEMO-CRATIZAÇÃO DO ESTADO ..................................... 218Ana Paula Mendes de Miranda

O SENTIMENTO (AÍSTHESIS) DE IGUALDADE E A IGUALAÇÃO CONCEITUAL .................................... 238Leonardo Mees

O CONTROLE DO PODER E A IDÉIA DE CONSTITUIÇÃO ......................................................... 250Pedro de Oliveira Coutinho

ESTADO PÓS-NACIONAL E AMPLIAÇÃO DA LIBERDADE DO CIDADÃO NA EUROPA CONTEMPORÂNEA ................................................... 298Daniel Machado Gomes

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UMA ANÁLISE REINTERPRETATIVA DO SUJEITO PASSIVO NA PARTICIPAÇÃO DE SUICÍDIO ........... 310Márcio Riski

FAMILIARES, VÍCTIMAS Y DERECHOS HUMANOS: LA POLÍTICA Y TRADICIÓN JURÍDICA .................. 341Omar Darío Heffes

OBLIGACIONES Y RELACIONES DE INTERCAMBIO EN EL ÁMBITO DE LA JUSTICIA PENAL ................. 365Maria José Sarrabayrouse Oliveira

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A VIDA, O DIREITO FUNDAMENTAL

Ives Gandra da Silva Martins

O mais relevante direito, na Constituição, indiscutivelmente, é o direito à vida, não sem razão enunciado, entre os cinco princípios fundamentais, como o primeiro deles, na dicção do “caput” do artigo 5º, a saber: “Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes: [....]” (grifos meus).

Neste breve artigo para a revista da Faculdade de Direito da Universidade Católica de Petrópolis pretendo resgatar três opiniões que manifestei, de forma diversa e em diversas vezes sobre o aborto, por entender ser um homicídio uterino, além de as técnicas para conseguí-lo lembrarem aquelas próprias de campos de concentração nazistas, o que justifica a tese que venho defendendo de que haverá necessidade de se criar uma Curadoria do Nascituro no Ministério Público.

1. Homicídio Uterino

Tenho pelo Ministro Marco Aurélio pessoal admiração, pela coragem de suas decisões e pelo acentuado amor ao Direito, à Justiça e à cidadania que sempre demonstrou nutrir. Por esta razão, é com imenso desconforto que dele divirjo, discordando da decisão favorável à morte de nascituros, que proferiu em 2005, felizmente suspensa por decisão do Pretório Excelso até melhor exame da matéria.

Estou convencido --apesar de ser eu um modesto advogado de província e ele, brilhante guardião da Constituição-- de que a decisão foi manifestamente inconstitucional. Maculou o artigo 5º da Lei Suprema, que considera inviolável o direito à vida. Feriu o § 2º do mesmo artigo, que oferta aos tratados internacionais, que cuidam de direitos humanos, a condição de cláusula imodificável da Constituição. Violou o artigo 4º do Pacto de São José, tratado internacional sobre direitos fundamentais a que o Brasil aderiu, e que declara que a vida começa na concepção.

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Juridicamente, a antecipação, pelo aborto, da morte do anencéfalo, é vedada pelo texto maior brasileiro.

O argumento de que o anencéfalo pode ser abortado porque está condenado à morte -e temos na atualidade um bebê anencéfalo com aproximadamente um ano de vida- escancara o caminho para a eutanásia de todos os doentes terminais ou afetados por doenças incuráveis. Possibilita a cultura do eugenismo, no melhor estilo do nacional-socialismo, que propugnava uma raça pura, eliminando os imperfeitos ou socialmente inconvenientes. Fortalece a hipocrisia dos que defendem o aborto de seres humanos, embora considerem crime hediondo provocar o aborto em uma ursa panda ou eliminar baleias ou ainda destruir ovos de tartaruga. Os animais merecem, de alguns –e tenho a certeza que meu prezado amigo, Ministro Marco Aurélio não está entre eles—, mais proteção do que o ser humano, no ventre materno. Enfim, a decisão, do antigo presidente da Suprema Corte abriu uma enorme avenida para os cultores da morte, os homicidas uterinos, os que pretendem transformar o ser humano em lixo hospitalar, muito embora sustada pelo Pretório Excelso até seu pronunciamento futuro.

Nos Estados Unidos, a Suprema Corte americana, no caso Dred Scott, em 1857, defendeu a escravidão e o direito de matar o escravo negro, à luz dos seguintes argumentos: 1) o negro não é uma pessoa humana e pertence a seu dono; 2) não é pessoa perante a lei, mesmo que seja tido por ser humano; 3) só adquire personalidade perante a lei ao nascer, não havendo qualquer preocupação com sua vida; 4) quem julgar a escravidão um mau, que não tenha escravos, mas não deve impor esta maneira de pensar aos outros, pois a escravidão é legal; 5) o homem tem o direito de fazer o que quiser com o que lhe pertence, inclusive com seu escravo; 6) a escravidão é melhor do que deixar o negro enfrentar o mundo.

Em 1973, no caso Roe y Wade, os argumentos utilizados, naquele país, para hospedar o aborto foram os seguintes: 1) o nascituro não é pessoa e pertence à sua mãe; 2) não é pessoa perante a lei, mesmo que seja tido por ser humano; 3) só adquire personalidade ao nascer; 4) quem julgar o aborto mau, não o faça, mas não deve impor esta maneira de pensar aos outros; 5) toda a mulher tem o direito de fazer o que quiser com o seu corpo; 6) é melhor o aborto, do que deixar uma criança mal formada enfrentar a vida (Roberto Martins, Aborto no direito comparado in “A Vida dos Direitos Humanos”, Sérgio Antonio Fabris Editor, 1999).

Como se percebe, a Corte americana usou os mesmos argumentos para justificar a escravidão e aborto.

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Meu caro amigo Ministro Marco Aurélio --cuja divergência atual causa-me profundo desconforto--, ao justificar o aborto, que é a pena de morte, no caso do nascituro anencéfalo, por ser ele um condenado à morte, está, também, justificando a pena de morte a todos os doentes terminais, pela eutanásia, e abrindo a porta para o culto à raça pura, inclusive às manipulações genéticas para que sejam produzidos somente seres humanos perfeitos e saudáveis, e – o que é pior—valorizando a cultura da morte e não a defesa da vida. Uma vez aberto o caminho, por ele passarão todas as teses anti-vida.

Espero - pois a Constituição garante a todos os seres humanos, bem ou mal formados, sadios ou doentes, o direito à vida desde a concepção, sendo a morte apenas a decorrência natural de sua condição e não a decorrência antecipada de convicções ideológicas -, que venha o Supremo Tribunal Federal, quando decidir a referida questão, não acolher a ADPF n. 54 (Ação de descumprimento de preceito fundamental) sobre a qual houve uma manifestação monocrática do ínclito jurista, Marco Aurélio, e sustação posterior, mas provisória, do Plenário da Máxima Instância. Espero, também, que seus pares homenageiem a vida afastando a morte antecipada.

2. As Técnicas Abortistas

Assisti a um programa de televisão em que a obstetra, Dra. Marli Virgínia Lins e Nóbrega, ao falar do sofrimento do feto ou do bebê já formado, durante o abortamento, lembrou que, em alguns países, já se estuda a possibilidade de anestesiá-los, antes da prática do ato, para que não sofram tanto, quando lhes for tirada a vida.

No referido programa da Tribuna Independente, da Rede Vida, os pais de uma criança anencéfala - que não optaram pela antecipação da morte de seu filho, e sim por deixá-lo nascer e viver algumas horas - depuseram relatando que acompanharam o desenvolvimento da criança, por ultra-som, no ventre materno, e que seus gestos demonstravam, ao passar, nos primeiros meses de vida, as mãozinhas pela cabeça, de que sentia a perda gradativa ou a má formação de seu cérebro.

Bernard Nathanson, em seu livro “The hand of God”, arrola as técnicas utilizadas para tirar a vida de seres humanos no ventre materno. Como médico, ele próprio dirigiu pessoalmente por volta de 75.000 abortos, nos Estados Unidos. Chegou a provocar o aborto de um filho seu, concebido em relação que mantivera com aluna do 5º ano da Faculdade de Medicina.

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Começou a repensar o assunto em 1974, ao perceber que era um homicida de crianças. Arrependeu-se e passou a ser, então, um defensor da vida.

No oitavo capítulo de seu livro, refere-se, entre os métodos abortivos, ao sistema de aspiração, introduzido por Bykov, em 1927, e difundido no mundo inteiro, como forma de extermínio em massa de nascituros.

Conta, inclusive, um episódio que acompanhou, por ultra-som, de aplicação do método da aspiração (sugar o feto), por uma equipe médica americana. No momento em que o aspirador foi introduzido no útero materno, o feto procurou desviar-se e seus batimentos cardíacos quase dobraram, quando o aparelho o encontrou. Assim que seus membros foram arrancados, sua boca abriu-se, o que deu origem ao título de um outro estudo seu: “O grito silencioso”.

No método de corte, utilizado nas décadas de sessenta e setenta para interromper a gravidez no início da gestação, um raspador é introduzido para separar o feto e cortá-lo em pedaços, provocando grande hemorragia na mãe. O médico tem que ter o cuidado de verificar se nenhuma parte do nascituro fica no ventre materno, para não provocar uma infecção.

No método da injeção com substância salina, injeta-se o veneno no feto quase sempre com mais de dezoito semanas, e este leva mais de uma hora para morrer, expelindo a mãe um filho morto por envenenamento, em torno de vinte e quatro horas depois.

Nos abortos em que a criança já tem cerca de um quilo, o método aconselhado é a cesariana, e depois – como ocorre nos abortários americanos— deixa-se a criança morrer, numa lata de lixo, apesar de ter nascido viva.

Já menos usado é o processo de queimar o nascituro, como se fosse atingido por uma bomba de “napalm”.

Nenhum método elimina a dor do feto ou do bebê, razão pela qual, como relatou a Dra. Marli, nos países que permitem o aborto, já se fala em anestesiar os nascituros antes de dar execução à morte programada. Em muitos deles há um forte movimento para eliminar a lei permissiva.

Falar, portanto, em aborto de forma “neutra”, sem examinar a dor inflingida ao nascituro, é querer, como a avestruz, ignorar a realidade, ou seja, que o aborto é uma forma de pena de morte, com a utilização de métodos sangrentos e desumanos. Tais métodos são até mais violentos que os empregados para a execução de seres humanos já nascidos, como, por exemplo, o fuzilamento, em que o condenado morre de imediato, ao passo que o sofrimento do nascituro, até morrer, é muito maior.

No caso dos anencéfalos, em que a autorização para a realização

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do aborto – segundo decisão, felizmente afastada, pelo Pretório Excelso, de meu caríssimo amigo e brilhante jurista, Ministro Marco Aurélio de Mello - poderia ser dada até o último dia da gravidez, estar-se-ia perante a seguinte absurda situação: matar a criança no ventre materno, em momento anterior ao parto, seria permitido, não sendo tal ato de eliminação da vida considerado crime. Já matar o anencéfalo um minuto depois do nascimento, seria proibido e o ato considerado criminoso...

José Renato Nalini, desembargador e membro do órgão especial do Tribunal de Justiça de São Paulo, no programa “Caminhos do Direito e da Economia”, promovido pela Academia Internacional de Direito e Economia - da qual o eminente Ministro Marco Aurélio de Mello é um dos mais destacados acadêmicos - mostrou que, nos casos de aborto legal – para ele e para mim a lei penal não foi recepcionada pela Constituição de 1988, que garantiu o direito à vida sem exceções--, a interrupção da gravidez, teoricamente, pode ser realizada a qualquer momento, durante os nove meses de gestação, dependendo, exclusivamente, da decisão da mãe. O que vale dizer, a mãe está, inclusive, autorizada a realizar uma cesariana e a jogar o indesejado bebê no lixo, para ali morrer abandonado, tal como ocorre nos abortários americanos.

Um último aspecto é de se realçar. A anencefalia pode ser parcial ou total, de tal maneira que, mesmo com os mais modernos equipamentos não é possível garantir 100% de precisão diagnóstica o que, de resto, acontece em todos os exames que dependem da habilidade do profissional que os realiza e elabora o laudo médico. Foi o que ocorreu segundo depoimento de uma aluna minha, em seu caso, foi diagnosticada a anencefalia, e esse diagnóstico, felizmente, estava errado.

Tenho levado este tema à reflexão dos cidadãos brasileiros que decidirão se entre as grandes conquistas da civilização moderna está a permissão para transformar o ser humano em lixo hospitalar.

3. Curadoria do Nascituro

Li, recentemente, o depoimento de uma abortada. Em 1977, seus pais biológicos resolveram eliminá-la, nos Estados Unidos, em gravidez de sete meses e meio, mediante injeção no ventre materno de solução salina, que queima o feto por dentro e por fora.

O feto, neste tipo de aborto, é expelido morto, como já disse neste

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estudo, em vinte e quatro horas.O médico, que praticou o aborto, não estava na clínica quando a

criança veio ao mundo, trazida por uma enfermeira, que procurou salvá-la, e não, como o faria, o autor do presumido aborto, que, certamente, estrangularia a criança para completar a obra não concluída.

À evidência, houve seqüelas, mas a enfermeira, que chamara uma ambulância tão logo nascera a criança, levou-a para um hospital, colocando-a numa encubadeira e terminou por adotá-la. Depois de um prognóstico de que teria vida vegetativa, foi-se recuperando, pouco a pouco, estando, hoje, vinte e oito anos depois, a trabalhar onde mora (Nashville, Tennesse) e a participar de maratonas para deficientes. Sua mãe biológica, que fez outros abortos e que não quis vê-la, foi perdoada pela filha, vítima da criminosa tentativa. Apesar das graves seqüelas, Giana Jassen ama a vida e defende o direito de nascer, tanto que tem ministrado palestras pelos Estados Unidos, esclarecendo que ninguém tem o direito de decidir sobre a vida do nascituro, a não ser o próprio (http://sol.sapo.pt/blogs/ppaul2005/default.aspx).

Como atrás expus, as técnicas abortivas que se nivelam a dos campos de concentração nazistas e que, pela violência com que os fetos são tratados pelos defensores do homicídio uterino, são, sistematicamente, escondidas da população em geral.

O aborto é crime contra a vida. Hediondo, pois a mais indefesa das criaturas não tem nenhum defensor. Sua mãe, no mais das vezes, é a algoz, com a decisiva colaboração de médicos, que violam o juramento que fizeram quando se formaram, conhecido como “o juramento de Hipócrates”. Todas as mães, que praticam o aborto, aplicam nos seus filhos, o que as suas mães, não quiseram nelas aplicar, ou seja, a tortura seguida da morte de um ente humano por elas gerado.

Felizmente, começa a haver decisões judiciais que dão esperança. A própria Comissão de Anistia garantiu indenização a pessoa, que era feto no tempo da prisão de sua mãe, e agora, o Senado Federal aprova, na Comissão de Assuntos Econômicos, projeto de lei, outorgando aos pais o direito de deduzirem do imposto de renda despesas do nascituro, desde a concepção, na qualidade de dependente.

Isto me leva a defender a tese de que o Ministério Público deveria criar uma “curadoria do nascituro”. Sendo a vida um direito indisponível, e estando, na função do Parquet, a defesa dos direitos individuais indisponíveis, poderia ser instituída uma curadoria, exclusivamente, para a defesa de todos os nascituros que correm riscos, impondo ao Estado, se sua mãe não o desejar,

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a obrigação de cuidá-lo com a assistência própria. Afinal, todos nós pagamos tributos para preservar a vida e não, para promover a morte. Por esta razão, o Estado deveria ter instituições para cuidar de crianças indesejadas pelos pais.

Creio que a matéria poderia ser examinada pelos eminentes membros do Ministério Público com o que estariam ofertando uma das mais fantásticas demonstrações de respeito ao valor maior do ser humano, que é a vida.

Encerro, pois, esta breve reflexão sobre a questão do aborto, após ter exposto o pensamento que me parece mais adequado ao enfrentamento desta grave questão, que, senão bem conduzida, pode levar o país à cultura da morte e do egoísmo.

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DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA:Conceito Fundamental da Ciência Jurídica

Roberto Wagner Lima Nogueira

“Fatos como os que ocorreram em Auschwitz são violentas advertências sobre o que pode acontecer quando os indivíduos – e por extensão, sociedades inteiras – perdem o contato com os sentimentos humanos básicos.” Tenzi Gyatso, o décimo quarto Dalai Lama

1. Considerações Iniciais

É caro a todo operador do direito, o princípio jurídico posto no artigo 1º, inciso III, da Constituição Federal, qual, a dignidade da pessoa humana. Este escrito, faz deste conceito previsto no mundo do dever ser, uma ponte necessária e imprescindível para o estudo do ser do direito brasileiro no que pertine ao seu conceito fundamental.

2. A Dignidade da Pessoa Humana: como conhecê-la?

Começamos esta seção com uma reflexão propedêutica. Como podemos conhecer o significado do conceito jurídico dignidade da pessoa humana? É sabido que cada ser humano possui seu próprio universo de conhecimento, uma estrutura cultural que é o seu chamado: sistema de referência. Muitas vezes o sistema de referência de um ser humano, não pertence só a ele, pode tal sistema ser o universo cognitivo de uma coletividade. É natural, que oriundos das mesmas contingências, os sistemas de referências de pessoas ou de um mesmo grupo sejam semelhantes uns aos outros.1

Portanto, é mediante o nosso sistema de referência que aproximaremos do objeto de estudo, daí porque tanto se fala que o conhecimento de uma realidade está sempre condicionado pelo sistema de referência do sujeito 1 Cf. TELLES JÚNIOR, Goffredo. O direito quântico. 6 ed. São Paulo: Max Limonad. 1985, p. 284/285. Cf. também, NOGUEIRA, Roberto Wagner Lima, Fundamentos do Dever Tributário. Belo Horizonte: Del Rey. 2003. p. 8/11.

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conhecedor.Neste sentido, poderíamos ponderar que o próprio modo de se

aproximar do objeto eleito não é um ato de liberdade, liberdade aqui pensada como ausência de pré-motivo. Todo ato livre é sempre determinado por algum motivo, qual o patrimônio cultural do sujeito cognoscente, o confronto de uma informação vinda do mundo exterior, com todo o cabedal de aprendizado já armazenado pelo agente.2

Lado outro, o objeto a ser conhecido também está inserido em um sistema de referência, por exemplo, o conceito dignidade da pessoa humana está inserido dentro do sistema de referência que podemos chamar de, Direitos ocidentais, i.e, um conjunto de normas jurídicas, que culturalmente assentam sua especificidade na assimilação dos legados da Grécia e da Roma clássicas, do Cristianismo e da Igreja, das Revoluções liberais e dos prodígios da ciência e da técnica.3

Só a partir destas constatações, é que o leitor poderá entender a construção que se vai delineando neste texto. O sentido atribuído ao conceito dignidade da pessoa humana está marcado por um sistema de referência fruto dos direitos do ocidente, é impossível negar esta afirmação. Entretanto, a consagração do conceito só se afirmará no século XX, após a grande tragédia do Holocausto na 2ª grande guerra, máxime a inesquecível lembrança do ocorrido nos campos de concentração nazista em Auschwitz.

Deste modo, não podemos negar o sistema de referência que circunda o objeto eleito, a dignidade da pessoa humana, como também não podemos negar a nossa visão de mundo, até porque interpretamos e lemos a realidade a partir de nós mesmos, razão pela qual somos concordes com Leonardo Boff quando ensina,

Ler significa reler e compreender, interpretar. Cada um lê com os olhos que tem. E interpreta a partir de onde os pés pisam. Todo ponto de vista é a vista de um ponto. Para entender como alguém lê, é necessário saber como são seus olhos e qual a sua visão de mundo. Isso faz da leitura sempre uma releitura. A cabeça pensa a partir de onde os

2 Cf. TELLES JÚNIOR, Goffredo, op. cit. p. 282/290.3 Cf. JERÔNIMO, Patrícia. Os Direitos do Homem à escala das civilizações – Proposta de análise a partir do confronto dos modelos ocidental e islâmico. Coimbra: Almedina. 2001. p. 187.

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pés pisam. Para compreender, é essencial conhecer o lugar de quem olha. Vale dizer: como alguém vive, com quem convive, que experiências tem, em que trabalha, que desejos alimenta, como assume os dramas da vida e da morte e que esperanças o animam. Isso faz da compreensão sempre uma interpretação. Sendo assim, fica evidente que cada leitor é co-autor. Porque cada um lê e relê com os olhos que tem. Porque compreende e interpreta a partir do mundo que habita.4

3. Sobre o conceito jurídico fundamental e sua natureza

Fixadas nossas premissas para conhecimento de nosso tema, qual, a dignidade da pessoa humana, consoante art. 1º, inciso III, da Constituição Federal, passamos a defini-lo com um conceito jurídico fundamental para o ordenamento brasileiro, bem como ao final discorreremos sobre sua natureza jurídica.

Conceituar é abstrair, é retrooperar até as origens do pensamento em busca do sentido do conceito construído. É como salienta Lourival Vilanova, “O conceito, desta sorte, é uma abstração; o pensamento, por essência, se move no abstrato. Não abstrato na acepção do hipotético, irreal, mas no sentido de que separa o que existe unido, decompõe o que se apresenta em indissolúvel unidade.”5

Sigamos margeando livremente o pensamento do mestre Vilanova. O conceito supremo ou fundamental da cada sistema científico funciona logicamente como um pressuposto do conhecimento. No direito, efetivamente, é ele – conceito fundamental - que delimita dentro do campo do social, a dignidade da pessoa humana como pressuposto da ciência jurídica. Neste sentido, o conceito fundamental da dignidade da pessoa humana tem a função lógica de um a priori. É, com efeito, um esquema prévio, um princípio fundante, um ponto de vista anterior, munido do qual o pensamento se dirige à realidade jurídica, desprezando seus vários setores, fixando aquele que corresponde às linhas ideais delineadas ainda que inicialmente pelo conceito 4 Cf. Águia e a galinha: uma metáfora da condição humana. 24ª ed. Petrópolis: Vozes. 1998, p. 9.5 Sobre o Conceito de Direito. Escritos Jurídicos e Filosóficos. V. 1. São Paulo: AXIS MVNDI-IBET. 2003, p. 14.

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fundamental.6Sem conceito fundamental, é de se indagar como a história,

a sociologia, a biologia e o direito podem extrair do real os seus objetos específicos? Não poderiam. Ouçamos Vilanova:

Para se investigar onde se encontra o direito, fato social e o fenômeno biológico ou histórico, é necessária a constituição prévia de um conceito supremo para cada setor. Supremo ou fundamental, porquanto não é obtido, nem se deixa reduzir a outros conceitos. E é anterior à experiência, uma vez que sem a prévia determinação do conceito, não seria possível o conhecimento. O pensamento perder-se-ia na selva extraordinariamente intricada de fatos diversos que compõem o real, sem aptidão para discernir estes fatos em categorias específicas. O conceito fundamental para cada ciência, é, portanto, a condição de experiência. E, na qualidade de condição, tem de ser a priori. A aprioridade do conceito fundamental nada mais representa do que um dos aspectos das condições transcendentais do conhecimento, postas em relevo pela filosofia kantiana.7

A dignidade da pessoa humana muito embora positivada no texto constitucional, o que à primeira vista parece contrariar o que acima foi dito, sobretudo no que concerne ao a priori do conceito fundamental, é conceito fundamental que antecede ao próprio texto constitucional, é um a priori lógico que condiciona toda experiência hermenêutica interpretativa do art. 1º, III, da Carta Magna. Lembremos de algumas notas essenciais do pensamento de Locke, o direito surge no espaço aberto pela liberdade, à liberdade se auto-limita em nome da dignidade da pessoa humana. Nasce assim, o Estado. O Estado se fundamenta na defesa deste valor fundamental, e só se legitima se diuturnamente estiver compromissado com este valor supremo: a dignidade da pessoa humana.

Nesta perspectiva também se direciona o pensamento de Ingo Wolfang 6 Cf. noutro contexto VILANOVA, Lourival, op. cit. 17.7 Cf. VILANOVA, Lourival, op. cit. p. 17.

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Sarlet, ao dizer que, “Assim, vale lembrar que a dignidade evidentemente não existe apenas onde é reconhecida pelo Direito e na medida que este a reconhece, já que constitui dado prévio, no sentido de preexistente e anterior a toda experiência especulativa.”8

O conceito jurídico dignidade da pessoa humana, (que acima de tudo é um conceito inaugurador de sentido), é o conceito fundamental da ciência jurídica. Na ordem do conhecimento jurídico é o conceito supremo. Não é possível, logicamente, remontar a um conceito mais alto no domínio do jurídico. Nesse particular domínio, ele é único. Por ser o conceito supremo não está coordenado a outros, nem é derivado de outros. Por seu posto lógico, é o vértice da pirâmide jurídica conceitual. Sua amplitude de validez e legitimidade cobre todo o campo dos objetos jurídicos.

Para Radbruch9, citado por Celso Lafer, há princípios fundamentais de Direito que são mais fortes do que todo e qualquer preceito jurídico positivo, de tal modo que toda lei que os contrarie não poderá deixar de ser privada de validade. Eis aí, mais uma vez, o chamamento da dignidade da pessoa humana, como postulado normativo supremo no direito brasileiro.

Não obstante o direito posto, enquanto objeto da ciência do direito, possa ser dividido didaticamente em ramos, o que fornece unidade e sentido às investigações científicas sobre o direito, é o conceito de dignidade da pessoa humano previsto no art. 1º, III da Constituição Federal. Este conceito fundamental funciona logicamente, como o pressuposto unificador de todos os ramos científicos do direito.

Ainda, fortes em Lourival Vilanova, podemos afirmar que o direito é, essencialmente, um esforço humano no sentido de realizar o valor justiça. Essa dimensão ideal existe no conceito fundamental da dignidade da pessoa humana. Pois este conceito não se reduz a uma mera forma de sugestionar atos, com total indiferença para o valor.10 Se o conceito dignidade da pessoa humana é dever ser, e o é; é dever ser de algo. Este algo é a busca incessante da proteção jurídica ao ser humano, busca esta que impregna o conceito fundamental dignidade da pessoa humana por corolário todo o ordenamento 8 Dignidade da Pessoa Humana e Direitos Fundamentais na Constituição Federal de 1988. 4ª ed. rev. e atualizada. Porto Alegre: Livraria do Advogado. 2006, p. 42.9 Apud. LAFER, Celso. A Reconstrução dos Direitos Humanos: um diálogo com o pensamento deHanna Aredent. São Paulo: Cia das Letras, 1988. p. 78.10 Cf. VILANOVA, Lourival, op. cit. p. 50

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jurídico.O conceito dignidade da pessoa humana há que se realizar no mundo

do ser, afinal, salienta Vilanova, as normas jurídicas não constituem “direito” se carecem de toda relação com a realidade social humana.11

Já é hora de acrescentarmos mais uma questão ao debate. Vejamos.Qual é a natureza jurídica do conceito fundamental, dignidade

da pessoa humana? Trata-se de um princípio jurídico? É uma regra? A distinção entre princípios e regras assumiu importância capital em vários planos do cenário jurídico nacional e internacional.

A sistematização dada ao tema, princípio jurídico e regras, como espécies de normas, tem em Ronald Dworkin, seu grande divulgador. Por todos, ouçamos as palavras do Professor Luis Roberto Barroso,

A distinção qualitativa entre regra e princípio é um dos pilares da moderna dogmática constitucional, indispensável para superação do positivismo legalista, onde as normas se cingiam a regras jurídicas. A Constituição passa a ser encarada como um sistema aberto de princípios e regras, permeável a valores jurídicos suprapositivos, no qual as idéias de justiça e de realização dos direitos fundamentais desempenham um papel fundamental.12

Como bem anotou Ana Paula de Barcellos com sutileza, “Não é preciso descrever aqui todas a discussões teóricas envolvendo a distinção entre regras e princípios e nem seria útil reproduzir os vários critérios que têm sido empregados para extremar as duas espécies normativas”, para quem o quiser, remetemos o leitor ao texto da Professora Barcellos ora citado.13

11 Cf. VILANOVA, Lourival, op. cit. p. 60.12 Fundamentos Teóricos e Filosóficos do Novo Direito Constitucional Brasileiro. (Pós-modernidade, teoria crítica e pós-positivismo). In BARROSO, Luís Roberto (org.). A Nova interpretação Constitucional. Ponderação, Direitos Fundamentais e Relações Privadas. 2 ed. Rio de Janeiro: Renovar. 2006, p. 30.13 Alguns parâmetros normativos para a ponderação constitucional. BARROSO, Luís Roberto (org.). A Nova interpretação Constitucional. Ponderação, Direitos Fundamentais e Relações Privadas. 2 ed. Rio de Janeiro: Renovar. 2006. p. 70/71.

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Enfim, para respondermos a indagação acima posta, qual a natureza do conceito dignidade da pessoa humana, vamos nos valer dos ensinamentos de Humberto Ávila.

Para este autor, crítico da classificação proposta por Dworkin, pode-se diferençar os princípios das regras baseado em três argumentos: a)- natureza da descrição/comportamento – as regras descrevem comportamentos ou poderes para atingir fins; princípios descrevem fins cuja realização depende de efeitos decorrentes da adoção de comportamentos; b)- natureza da justificação exigida – as regras exigem um exame de correspondência entre o conceito da norma e o conceito de fato, sempre com a verificação da manutenção ou realização das finalidades sub- e sobrejacentes; os princípios exigem uma compatibilidade entre os efeitos da conduta e a realização gradual do fim; c)- natureza da contribuição para decisão – as regras têm pretensão terminativa, e os princípios têm pretensão complementar.14

A sistematização proposta por Humberto Ávila, torna-se sobremais importante quando cria uma terceira categoria de normas, que não se confunde nem com os princípios nem com as regras, são os chamados postulados normativos, que se caracterizam por serem normas de segundo grau que estruturam a aplicação de outras normas. O autor cita como exemplo de postulados normativos, a proporcionalidade e a razoabilidade, chamados de princípios pela doutrina tradicional.

Pois bem. Para nós a natureza jurídica do conceito fundamental – dignidade da pessoa humana, insculpida no art. 1º, III, da Constituição Federal – é a de um postulado normativo, muito embora tal conceito estar inserido no título I, Dos Princípios Fundamentais. Atecnias da linguagem objeto, que não interferem na linguagem científica. Insista-se, o postulado normativo da dignidade da pessoa humana se diferencia das regras e princípios quanto ao nível e função. Enquanto os princípios e as regras são os objetos da aplicação, o postulado normativo da dignidade da pessoa humana estabelece os critérios de aplicação dos princípios e das regras. E, enquanto os princípios e as regras servem de comandos para determinar condutas obrigatórias, permitidas e proibidas, ou condutas cuja adoção seja necessária para atingir fins, o postulado normativo da dignidade de pessoa humana serve como parâmetro para a realização de outras normas.

Por ser um conceito jurídico fundamental, o postulado normativo da dignidade da pessoa humana é uma metanorma, que estrutura a aplicação de 14 Princípios e Regras e a Segurança Jurídica. Revista de Direito do Estado – RDE. Rio de Janeiro: Renovar. nº 1, janeiro/março de 2006. p. 194/915.

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outras normas, com elas não se confundindo, por isso concordamos com a oportuna nomenclatura proposta por Humberto Ávila.15

4. Apontamentos sobre os modelos jurídicos, ocidental e islâmico

Nos itens anteriores, anotamos ainda que de passagem, a especificidade da construção de sentido do conceito dignidade da pessoa humana no interior dos direitos ocidentais, agora faremos uma sucinta aproximação ao modelo jurídico islâmico.

Como bem pontuado por Ana Paula de Barcellos16, a dignidade da pessoa humana está marcada no ocidente, por quatro momentos fundamentais, a saber: o Cristianismo, o iluminismo-humanista, a obra de Kant e o refluxo da Segunda Grande Guerra Mundial, nessa ordem.

Vejamos o modelo islâmico. O Islão é submissão a Deus. É esse o seu significado etimológico e também o seu sentido mais profundo. Se podemos falar de uma civilização, falaremos ainda com mais propriedade de uma comunidade de fiéis.17

O Alcorão é um código, ainda que nem todas suas disposições possam integrar a categoria de normas jurídicas, porque essencialmente um livro de princípios religiosos e morais, temos de convir que há no Alcorão matéria jurídica. A relação primordial a ordenar no Alcorão é a que une os homens entre si, mas sobretudo a que une os fiéis a Deus.

O direito no Islão está marcado por esta submissão a Deus. Diremos, por isso, que a cada identidade civilizatória corresponde uma identidade jurídica. Negar isto, é sobremaneira difícil.

É como adverte Patrícia Jerônimo,

O Direito não é universal. Universal é a necessidade humanamente sentida de viver de acordo com uma ordem de valores e de normas, não a forma por que essa necessidade ganha concreta

15 Cf. ÁVILA, Humberto. Teoria dos Princípios. da definição à aplicação dos princípios jurídicos. 2ª ed. São Paulo: Malheiros. 2003. p. 79/116.16 A Eficácia Jurídica dos Princípios Constitucionais. O Princípio da Dignidade da Pessoa Humana. Rio de Janeiro: Renovar. 2002. 103/104.17 Cf. JERÔNIMO, Patrícia. Os Direitos do Homem à escala das Civilizações. Proposta de análise do confronto dos Modelos Ocidental e Islâmico. op. cit. p. 107-108.

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realização. Pretender que o Direito pode assumir uma forma única, independente da realidade que intenta ordenar, significa uma inadmissível distorção dos termos da equação que preside às relações entre o jurídico e o humano. Significaria sempre uma pretensão ilegítima – quer porque simplesmente defasada, quer porque as mais das vezes comprometida com projectos de natureza extrajurídica, muito distantes de qualquer ideal de uniformização do justo; dirigidos, acima de tudo, à maximização do domínio.18

A professora portuguesa se filia àquela corrente para a qual o direitos humanos devem ser vistos no conjunto como um Direito Natural civilizacional relativo, ou seja, um Direito Natural não no sentido de universal que deriva da natureza do homem e das coisas, mas um Direito que mais modestamente, se contenta com o ser a expressão do “justo” válida para um concreta comunidade humana.

Se o individualismo é o humanismo possível para os espíritos ocidentais, para os muçulmanos prevalece o coletivo, os muçulmanos não se concebem isoladamente, mas como parte de uma comunidade religiosa, por isso, tal como o mundo a que se dirige, o Direito muçulmano é um Direito religioso, logo, esse caráter absoluto lhe permite uma extensão virtualmente ilimitada, muito além das fronteiras que um ocidental fixaria para os domínios do Direito. Por estas e por outras, é que os conceitos de dignidade da pessoa humana e direitos humanos são construções típicas do ocidente.

Sobre a concepção dos direitos humanos como tema global, debatem duas teorias, os relativistas e os universalistas.

Para os primeiros (relativistas ou culturalistas), a dignidade da pessoa humana – sendo um valor que pode dizer-se universal – conhece formas muito diversas de expressão. Tantas quantas as formas de ser Homem, porque o ser humano é um ser acima de tudo situado (culturalismo). A natureza humana não se realiza numa comunidade abstrata, o homem realiza a sua natureza no seio das culturas. Fora dos domínios ocidentais a dignidade ínsita na natureza humana ganha formas diferentes, não significa necessariamente o reconhecimento aos indivíduos de direitos oponíveis ao poder e aos outros; passa, muitas vezes, por coisas como a honra, sentimento de pertença à 18 Cf. Os Direitos do Homem... op. cit. p. 183.

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comunidade, devoção religiosa, gestos de generosidade e deveres perante o grupo.

Em respeito às diferenças civilizatórias, não está - segundo esta corrente - o ocidente autorizado a julgar outras culturas. Noutro dizer, levado as últimas conseqüências o relativismo há que admitir que tolera a intolerância.

Já os segundos (universalistas), estão estruturados sobre o conceito de dignidade da pessoa humana. A unidade do gênero humano sobrepõe-se, então, à diversidade das culturas habitadas pelo homem. Existe, contra todas as dúvidas dos culturalistas, uma identidade humana universal. E é por referência a ela – bem como à irredutível dignidade da pessoa humana que ela leva implicada – que se justificam os Direitos do Homem com a sua característica de universalidade.19

Mais difícil do que situar os autores em uma corrente ou outra, é fixar para ambas as correntes o significado preciso do que se entende por dignidade da pessoa humana. Vejamos doravante.

Consoante lições de Ingo Wolfgang Sarlet, os Estados Unidos da América, a maior potência do mundo, membro da ONU (Organização das Nações Unidas), em números expressivos de estados federados admite a execução da pena capital, pena de morte. E a sua Suprema Corte, embora não de forma unânime, entende-a constitucional. Entretanto, a Suprema Corte norte-americana, tem decidido que determinadas técnicas de executar a pena capital, são cruéis e desumanas, logo devem ser proibidas. É exemplo, a morte por enforcamento, que constitui no entender da Corte, prática atentatória à dignidade da pessoa humana, nomeadamente, por infligir – ao menos em relação aos outros meios utilizados (letal e eletrocutamento) – sofrimento desnecessário ao sentenciado, já que constatada a possibilidade maior de uma postergação do estado de inconsciência e morte, com risco de asfixia lenta e até mesmo de decapitação parcial ou total, verificada em diversos casos.20

Veja caro leitor, os EUA entendem que a pena de morte não é ofensiva à dignidade da pessoa humana, apenas o modo de executá-la, que pode vir a ser ofensivo à dignidade da pessoa humana.

No Islão, a Constituição Iraniana de 1980, em seu artigo 22, dispõe que, “a dignidade dos indivíduos é inviolável [...] salvo nos casos autorizados por lei”. Vejam o quão frágil também o é a proteção da dignidade da pessoa 19 Cf. JERÔNIMO, Patrícia, op. cit. p. 246/256.20 Cf. SARLET, Ingo Wolfgang, op.cit. p. 56.

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humana neste país, onde ainda se verificam práticas de tortura, mutilações genitais, discriminação religiosa e sexual.21

Como membro da delegação brasileira junto a CDH (Comissão de Direitos Humanos) da ONU, J.A. Lindgren Alves22, destaca a preocupação da CDH com a situação dos direitos humanos no Sudão. Em situação avaliada pela CDH no anos de 1991 a 1994, apurou-se que o sistema penal sudanês contém dois componentes principais, que são radicalmente contrários às provisões das convenções internacionais de que o Sudão é parte. Quais sejam, crimes absolutos e a instituição de retribuição.

Explicando. Os crimes absolutos são imperdoáveis e passíveis de punição corporal ou pena de morte, não contemplando atenuações de responsabilidade baseadas em gênero ou idade, inclusive, a partir da puberdade, havendo completado quinze anos, e até os 70, todos os ofensores são punidos, podendo as crianças entre sete anos e a puberdade ter a sentença transformada pelas Cortes em açoitamento que não excederá vinte chibatadas. 23

São espécies de crimes absolutos, o assalto à mão armada (punível com morte, ou crucificação e morte ou amputação da mão direita e do pé esquerdo); roubo capital (punido pela amputação da mão direita; adultério feminino (punido com morte por apedrejamento se a ré for casada, ou 100 chibatadas, se solteira); adultério masculino (punição com açoitamento, e, adicionalmente, com expatriação por um ano).24

A retribuição múltipla, segundo componente do sistema penal questionado pela CDH, também está prevista no Código Penal e consiste na possibilidade de um indivíduo ser executado em lugar de um grupo e um grupo no lugar de um indivíduo.25

Em respostas aos questionamentos da Comissão de Direitos Humanos (CDH) da ONU, o governo sudanês alegou que algumas dessas práticas do direito islâmico estão enraizadas nas tradições do país. Todavia, ainda que isto seja realmente a realidade do direito sudanês, a verdade é que o Sudão ratificou o Pacto Internacional de Direitos Civis e Políticos e a Convenção

21 Cf. SARLET, Ingo Wolfgang. op. cit. p. 56, nota de rodapé nº 110.22 Os Direitos Humanos como tema global. São Paulo: Perspectiva. 1994, p. 142/14323 Cf. ALVES, J.A. Lindgren, op. cit. p. 14224 Cf. ALVES, J.A. Lindgren, op. cit. p. 143.25 Cf. ALVES, J.A. Lindgren, op. cit. p. 143

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sobre os Direitos da Criança.26

Para finalizar, oportunas são as palavras do embaixador brasileiro, J.A. Lindgren Alves, quando em seu livro aborda o tema da Universalidade dos Direitos Humanos, e não deixa de ponderar,

Do ponto de vista da diplomacia e do direito, o avanço é extraordinário. Apesar disso, porém, não se pode afirmar que, no campo operativo, o universalismo tenha realmente suplantado o relativismo.27

5. Por que a pessoa humana possui dignidade?

Dentre tantas, podemos pelo menos detectar duas questões centrais que envolvem a indagação supra: o ser humano e sua dignidade.

O objetivo principal da filosofia ao longo dos séculos, sempre foi praticamente um, qual, conhecer o homem. São de Kant28 as famosas indagações: 1ª) O que eu posso saber? 2ª) O que eu devo fazer? 3ª) O que eu posso esperar? 4ª) O que é o homem?

A primeira pergunta diz respeito à metafísica, a segunda à moral, a terceira à religião. A bem da verdade as três primeiras, podem ser resumidas na última, a quarta, pois tudo se fundamenta no homem.

O que se entende por dignidade enquanto atributo do homem? Segundo o Dicionário de Filosofia de Nicola Abbagnano29, por princípio da dignidade da pessoa humana, entende-se a exigência enunciada por Kant consoante a fórmula do imperativo categórico: “Age de tal forma que trates a humanidade, tanto na tua pessoa como na pessoa de qualquer outro, sempre também como um fim e nunca unicamente como um meio”. Significando que para Kant, as coisas têm preço, são substituíveis, relativas; o homem tem dignidade, por isso não tem preço, é um valor absoluto e insubstituível.

Etimologicamente, dignidade vem do latim digna, merecedora de alguma coisa digna, significando também cargo, honra ou honraria. É adjetivo derivado da forma verbal decet, de decere, convir. De onde emanam também os significados para decente, de que é sinônimo.30

26 Cf. . ALVES, J.A. Lindgren, op. cit. p. 143.27 Cf. . ALVES, J.A. Lindgren, op. cit. p. 139/140.28 Apud. MONDIN, Battista. Definição Filosófica da Pessoa Humana. Bauru: EDUSC. 1998. p. 7.29 Dicionário de Filosofia Nicola Abbagnano. São Paulo: Martins Fontes. 1998. p. 276.30 SILVA, Deonísio da. De onde vêm as palavras – origens e curiosidades

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Lança luzes sobre a idéia da dignidade da pessoa humana, a Ministra do Supremo Tribunal Federal, Drª Carmem Lúcia Antunes Rocha, quando pontifica que,

Dignidade é o pressuposto da idéia de justiça humana, porque ela é que dita a condição superior do homem como ser de razão e sentimento. Por isso é que a dignidade humana independe de merecimento pessoal ou social. Não se há de ser mister ter de fazer por merecê-la, pois ela é inerente à vida e, nessa contingência, é um direito pré-estatal.

O sistema normativo de direito não constitui, pois, por óbvio, a dignidade da pessoa humana. O que ele pode é tão-somente reconhecê-la como dado essencial da construção jurídico-normativa, princípio do ordenamento e matriz de toda organização social, protegendo o homem e criando garantias institucionais postas à disposição das pessoas a fim de que elas possam garantir a sua eficácia e o respeito à sua estatuição. A dignidade é mais um dado jurídico que uma construção acabada no direito, porque firma e se afirma no sentimento de justiça que domina o pensamento e a busca de cada povo em sua busca de realizar as suas vocações e necessidades.31

Ingo Wolfgang Sarlet, conceitua a dignidade da pessoa humana como,

a qualidade intrínseca e distintiva reconhecida em cada ser humano que o faz merecedor do mesmo respeito e consideração por parte do Estado e

da língua portuguesa. 14ª ed. São Paulo: A Girafa. 2004. p. 264.31 O Princípio da Dignidade da Pessoa Humana e a Exclusão Social. Revista Interesse Público. Ano 1. nº 4, outubro/dezembro de 1999. São Paulo: Notadez. p. 26.

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da comunidade, implicando, neste sentido, um complexo de direitos e deveres fundamentais que assegurem a pessoa tanto contra todo e qualquer ato de cunho degradante e desumano, como venham a lhe garantir as condições existenciais mínimas para uma vida saudável, além de propiciar e promover sua participação ativa e co-responsável nos destinos da própria existência e da vida em comunhão com os demais seres humanos.32

Diante do que já vimos, impera afirmar que o homem é um ser de valor absoluto, por isto um ser dotado de uma dignidade que lhe é imanente, e sem a qual o sentido de justiça humana se esvai.

Assim sendo, já podemos tentar responder a questão que abre este tópico, por que o ser humano possui dignidade? Sigamos. É preciso ir à fonte, que é o próprio homem, porquanto a dignidade é atributo seu. Lado outro, poderíamos analisar o homem sob vários pontos de vista, do ponto de vista da natureza, do ponto de vista religioso, do ponto de vista psicológico, do ponto de vista filosófico, enfim, de várias maneiras.

Numa tomada de posição, vamos tentar responder a provocação que inaugura este tópico, olhando a pessoa humana sob algumas perspectivas jurídico-filosóficas, porquanto toda idéia será reconduzida à base empírica do Texto Constitucional. 1ª resposta) a pessoa humana possui dignidade porque ela é espírito; 2ª resposta) porque o ser humano é pessoa. Vejamos as duas.

5.1. Porque a pessoa humana é espírito

Que o homem seja espírito não é coisa óbvia. O que é óbvio é exatamente o contrário: que o homem é matéria, corpo. Esta é a advertência sábia de Battista Mondin.33

O homem em sua espiritualidade é um ser livre, sobreleva-se além dos limites de espaço e de tempo que o circundam. Avalia e julga o mundo todo da experiência, tanto o passado quanto o presente, podendo ainda prefigurar o seu futuro. O homem em sua condição espiritual é chamado a voltar-se sempre para uma realidade que o transcende. Fruto desta transcendência é a

32 Dignidade da Pessoa Humana... op. cit. p. 60.33 Cf. Definição Filosófica da Pessoa Humana. op. cit. p. 21.

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sua dignidade e superioridade diante do resto da criação34. O homem possui uma razão que o permite sentir que a sua condição de matéria não é a sua essência mais íntima: que existe nele um ser mais profundo, que se chama, sopro vital, espírito, alma ou mente.

O exemplar melhor acabado da espiritualidade do homem é a sua liberdade. Liberdade é condição própria do espírito. Mesmo preso em uma penitenciária, espiritualmente o homem continua livre. O espírito, e somente o espírito, é essencialmente livre. O espírito sopra onde quer. Lembremos do filme ganhador do Oscar, A Vida é Bela, onde mesmo estando ambos em um campo de concentração no período nazista, o pai pintava para o filho as cores da espiritualidade humana.

Em razão desta espiritualidade humana, sábias foram as palavras dos representantes do povo brasileiro, reunidos em Assembléia Nacional Constituinte, quando positivaram no preâmbulo da Constituição da República Federativa do Brasil, “[...] promulgamos, sob a proteção de Deus, a seguinte Constituição da República Federativa do Brasil.

É sabido que o preâmbulo contém uma proclamação de princípios para o ordenamento que acaba de se implantar. O preâmbulo é sim um decisivo elemento de interpretação e integração dos diversos artigos que lhe seguem. É o que nos ensina Alexandre de Moraes35,

Apesar de não fazer parte do texto constitucional propriamente dito e, conseqüentemente não conter normas constitucionais de valor jurídico autônomo, o preâmbulo não é juridicamente irrelevante, uma vez que deve ser observado como elemento de interpretação e integração dos diversos artigos que lhe seguem.

Veja caro leitor, o preâmbulo não é despiciendo para o operador do direito, porquanto o seu valor de elemento de interpretação e integração adere a outros artigos e enunciados da Constituição para que assim sejam aplicados fielmente os valores protegidos pelo povo brasileiro.

Portanto, o enquanto elemento de integração e interpretação 34 JOÃO PAULO II. Carta Encíclica Fides et Ratio. Aos Bispos da Igreja Católica sobre as relações entre a Fé e a Razão. 7ª ed. São Paulo: Paulinas. 2004, p. 8235 Direito Constitucional. 19ª ed. São Paulo: Atlas. 2006. p. 15.

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não autônomo, na dicção acertada de Alexandre Moraes, o preâmbulo é instrumento decisivo para o alcance do significado da dignidade da pessoa humana, positivado art. 1º, III da Carta Magna. Ou, no dizer de Juan Bautista Alberdi, o preâmbulo serve de fonte interpretativa para dissipar as obscuridades das questões práticas e de rumo para atividade política do governo.36

Entendido o preâmbulo como fonte interpretativa das normas constitucionais, já podemos afirmar sem qualquer receio de erro, que a Constituição Federal reconhece que a dignidade da pessoa humana está fundada na existência de Deus. É um nítido reconhecimento Constitucional da natureza espiritual do homem.

Atenção caro e dileto leitor. Não está aqui afirmação de que o Estado brasileiro adota esta ou aquela religião, não seríamos ingênuos a tanto. O que se está a dizer, porque juridicamente possível, é que para nossa Constituição o homem possui dignidade como pessoa humana por que fundado em Deus. É a leitura que se deve fazer do preâmbulo em conexão com o art. 1º, III, da Carta Maior.

No Brasil, existe a separação entre o Estado e a Igreja, sendo assim o Brasil é um país leigo, laico ou não-confessional como bem anota Pedro Lenza.37

Inclusive, consoante art. 5º, VI, “é inviolável a liberdade de consciência e de crença, sendo assegurado o livre exercício dos cultos religiosos e garantida, na forma da lei, a proteção aos locais de culto e suas liturgias”.

Agora, vamos aos esclarecimentos. O Estado é laico, não tem religião, porém, o cidadão e seus direitos estão sob a proteção de Deus, por força da norma interpretativa oriunda do preâmbulo, o que implica a dizer que a Constituição brasileira delineia de forma límpida, a distinção entre espiritualidade e religião.

A Constituição reconhece a espiritualidade do homem, porque invoca a proteção de Dues no preâmbulo. De qual Deus? Claro fica que é o Deus da espiritualidade, o Deus que transcende e agasalha todas as pessoas humanas independentemente do seu credo religioso. O Deus da Constituição da República Federativa do Brasil é o DEUS até mesmo do ateu, do agnóstico, porque é um Deus de pura espiritualidade, fruto da transcendência humana, 36 Apud. MORAES, Alexandre de. op. cit. p. 15.37 Direito Constitucional Esquematizado. 10 ed. São Paulo: Método. 2006. p. 62.

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que ultrapassa os limites estreitos seja do catolicismo, do islamismo, do budismo, do judaísmo, do hinduísmo, ou de qualquer outra religião.

Vejamos agora a distinção entre religião - que é vedado ao Estado brasileiro aderir a uma - e espiritualidade, conceito agasalhado pela Constituição Federal.

A religião objetiva estabelecer princípios éticos e morais básicos, porém, pode-se falar de ética e moralidade sem ter de se recorrer à religião, valendo-se assim do conceito de espiritualidade. Quem nos vai esclarecer a diferença entre a religião e a espiritualidade (conceito constitucionalmente protegido), é o Dalai Lama38, ouçam,

Na realidade, creio que há uma importante distinção a ser feita entre religião e espiritualidade. Julgo que a religião esteja relacionada com a crença no direito à salvação pregada por qualquer tradição de fé, crença esta que tem como um de seus principais aspectos a aceitação de alguma forma de realidade metafísica ou sobrenatural, incluindo possivelmente uma idéia de paraíso ou nirvana. Associados a isso estão os ensinamentos ou dogmas religiosos, rituais, orações, e assim por diante. Considero que a espiritualidade esteja relacionada com aquelas qualidades do espírito humano – tais como amor e compaixão, paciência, tolerância, capacidade de perdoar, contentamento, noção de responsabilidade, noção de harmonia – que trazem felicidade tanto para a própria pessoa quanto para os outros. Ritual e oração, junto com as questões de nirvana e salvação, estão diretamente ligados à fé religiosa, mas essas qualidades interiores não precisam estar. Não existe portanto nenhuma razão pela qual um indivíduo não possa desenvolvê-las, até mesmo em alto grau, sem recorrer a qualquer sistema religioso ou metafísico. É por isso que às vezes digo que talvez se possa dispensar a religião. O que não se pode dispensar são essas qualidades

38 DALAI LAMA. Sua Santidade o Dalai Lama. Um Ética para o Novo Milênio. 7ª ed. Rio de Janeiro: Sextante. 1999. p. 32/33.

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espirituais básicas.

Insistamos neste particular, o postulado normativo da dignidade da pessoa humana, previsto no art. 1º, inciso III da Constituição Federal, deve ser interpretado e conhecido e justificado à luz da experiência espiritual de Deus, contemplada no preâmbulo da Carta Magna, e fonte interpretativa do direito constitucional conforme já vimos de ver.

É importante esta distinção entre espiritualidade e religião, não se trata de uma separação entre uma e outra, tão-somente uma distinção. Uma vez distintas, podem relacionar e conviver, mas sem que uma dependa necessariamente da outra. É pensando assim que podemos conceituar juridicamente a idéia de espiritualidade (preâmbulo da Constituição) como idéia fundante do conceito de dignidade da pessoa humana.

Sem o sentido de espiritualidade presente em nós, não podemos sacar do Texto Constitucional, o exato sentido da dignidade da pessoa humana. Espiritualidade tem a ver com experiência, não com doutrina, não com dogmas, não com ritos, não com celebrações, que são caminhos institucionais capazes de nos ajudar na espiritualidade, mas que são posteriores a espiritualidade.

É como ensina Leonardo Boff39, ouçam, “Nasceram da espiritualidade, podem conter espiritualidade, mas não são a espiritualidade. São água canalizada, não a fonte da água cristalina”

A experiência de Deus que quer iluminar a o sentido da dignidade da pessoa humana no Texto Constitucional, é um encontro que de se dá a partir de Deus. As religiões falam sobre Deus, a espiritualidade é uma experiência a partir de Deus. É uma abertura, uma transcendência, é um abrir e jamais um fechar, daí porque a espiritualidade do sentido da pessoa humana, contido no postulado jurídico da dignidade da pessoa humana engloba todos os homens, inclusive, os não religiosos, os religiosos, os agnósticos etc, porque é conceito jurídico fundamental que transcende as religiões.

Só imbuídos de espiritualidade poderemos compreender o verdadeiro significado da dignidade da pessoa humana em nosso ordenamento jurídico. Só assim poderemos ver no homem um fim em si mesmo, independente de suas riquezas, de seus credos, de sua classe social, de estar empregado ou não empregado etc.

Desenvolver esta espiritualidade em nós, é aperfeiçoar nossa 39 BOFF, Leonardo. Espiritualidade – Um caminho de transformação. 2ª ed. Rio de Janeiro: Sextante. 2001. p. 66.

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capacidade de interpretar o direito a partir de uma visão profundamente humana, só assim o direito fará sentido em nossas vidas. Se somos espiritualizados, somos mais contemplativos, somos capazes de escutar as mensagens e os valores que impregnam o mundo a nossa volta, sobretudo dos excluídos, somos capazes de nos indagar: qual o significado disso tudo para mim?

Nos tornamos mais sensíveis, e por isso evoluímos juridicamente, porque passamos a ver a temporalidade das coisas, a usura do tempo, e saber que não estamos vivos apenas porque ainda não morremos, mas porque a vida, conforme bem lembra Leonardo Boff, é uma oportunidade para crescer, para aceitar nossos defeitos, nossos limites nosso envelhecimento e nossa mortalidade.40

Mais espiritualizados, mais humanos. O Estado brasileiro é laico, quer dizer, não possui religião oficial, porém, como é fundado sob a proteção de Deus, reconhece juridicamente a espiritualidade da pessoa humana, e por conseguinte, a dignidade da pessoa humana, dignidade esta que se estrutura partir da experiência humana de Deus, enquanto espiritualidade.

Nos escritórios, nos gabinetes, onde se desenvolve o direito enquanto jogo de puro poder econômico, pode até triunfar o cinismo, o descrédito em tudo e em todos. Porém, não podemos desprezar a aurora que vem, não podemos desfazer o olhar inocente da uma criança, não podemos contemplar com indiferença a profundidade do céu estrelado sem cair no silêncio e na profunda reverência, nos perguntando o que se esconde atrás das estrelas, qual é o caminho da minha vida, o que posso esperar dela? O que é o ser humano que sou e os que me rodeiam? Para que serve o meu trabalho? Qual o sentido do meu trabalhar?. São perguntas que o ser humano sempre se coloca, e, ao colocá-las revela-se como ser espiritual, e sobretudo com dignidade, uma vez que a dignidade da pessoa humana é valor imanente a todo e qualquer homem.41

O conceito de espiritualidade humana, trabalhado neste tópico sob a ótica do Texto Constitucional e do postulado normativo da dignidade da pessoa humana – art. 1º, III da Constituição Federal, deve ser aplicado à luz da efetividade e concretização (princípio dá máxima efetivação) das normas constitucionais. Aliás, é o alerta que nos faz Cleber Francisco Alves42 quando 40 Espiritualidade. Um caminho de transformação. op. cit. p. 73.41 Cf. BOFF, Leonardo. Espiritualidade... op. cit. p. 80/81.42 ALVES, Cleber Francisco. O Princípio Constitucional da Dignidade da Pessoa Humana: o enfoque da Doutrina Social da Igreja. Rio de Janeiro: Renovar.

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sustenta com saber,

Vale enfatizar que essa noção de dignidade da pessoa humana – ao ingressar no mundo jurídico – não deve ser tomada num sentido meramente teórico ou abstrato, pois tal enfoque não é compatível com o tratamento mais contemporâneo que a principiologia constitucional vem merecendo, como visto anteriormente. Esse princípio, ainda que seja de pouca densidade normativa, deve ter um proeminência absoluta, presidindo todo o trabalho de interpretação e implementação efetiva das demais normas constitucionais e infraconstitucionais, podendo servir de fundamento autônomo e bastante por si só, para embasar decisões que reconhecem a inconstitucionalidade de preceitos que venham a afrontá-lo.

Para finalizar este tópico querido leitor, trazemos à colação as palavras sempre sensíveis e iluminadas, do Ministro do Supremo Tribunal Federal, Carlos Ayres Britto43, que bem se amoldam a tudo que trabalhamos neste item. Ouçamos o Ministro,

Terminemos este segmento reflexivo com a ponderação de que não desconhecemos o grande risco intelectual de quem se dispõe a falar sobre Deus, sabido e ressabido que a existência mesma de Deus nem pode ser rigorosamente confirmada nem rigorosamente desconfirmada pela Ciência. Deus, então, para os intelectuais que O admitem é sempre uma hipótese de trabalho. Um postulado. um conceito que se intui a priori, como é próprio de todo postulado. Logo, falar sobre Ele não é formular proposições deduzidas da análise de elementos objetivos que se conectam para formar

2001. p. 176/177.43 Teoria da Constituição. Rio de Janeiro: Forense. 2003, p. 15.

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um todo unitário, mas saltar imediatamente para uma conclusão. Todavia, não foi a partir da intuição da existência de uma norma fundamental simplesmente pensada, uma norma fundamental hipotética, e, portanto, pressuposta (não efetivamente posta por nenhum órgão jurídico, nenhum costume, nenhum instância volitiva imanente, enfim), que HANS KELSEN pôde falar de uma Ciência do Direito? Uma ordem sistemática de conhecimentos que tem naquela hipotetização normativo-fundamental a sua própria condição inicial de possibilidade como esfera autônoma e científica do saber?

5.2. Porque o ser humano é pessoa

Continuemos a responder àquela indagação primeva, por que o ser humano possui dignidade?

Porque ele é pessoa. Só do homem dizemos que é pessoa, não dizemos do cão, do cavalo, do gato, nem mesmo das plantas e das pedras. O conceito do homem enquanto pessoa se afirma no ocidente a partir do “humanismo”, entendido aqui como aquele amplo movimento espiritual que, no século XV, começou na Itália com alguns pensadores como Ficino, Pico della Mirandola, Valla, Maquiavel etc, que no século seguinte se expandiu por todo continente europeu.

São Tomás de Aquino é chamado de o precursor dos humanistas. O humanismo tem com suas características principais: uma concepção altamente positiva do homem e a volta à era clássica grego-romana tomada com modelo de uma cultura que teve esse alto conceito do homem.44

Por ser pessoa o homem possui dignidade. Lembremos de Kant. As coisas têm preço, possuem valor exterior (de mercado) e manifestam interesses particulares. A dignidade representa um valor interior (moral) e é de interesse geral. A dignidade enquanto valor moral é incomensurável, por não ser mercadoria não pode ser substituído por outro, como soí acontecer no caso das coisas.

Ademais, o homem como valor absoluto dotado de dignidade não 44 MONDIN, Battista. O Humanismo Filosófico de Tomás de Aquino. Bauru: EDUSC. 1998. p. 7

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pode dispor de si mesmo, pelo mesmo raciocínio anterior, ou seja, por não ser coisa. O homem não é “propriedade” de si mesmo. Na medida em que ele é pessoa, ele é o sujeito ao qual pode caber a propriedade de coisas. Ora, se ele fosse propriedade de si mesmo, seria ele uma coisa, cuja posse poderia reivindicar, pura aporia.

Ele é, insista-se, pessoa, o que é diferente de propriedade e, portanto, não é uma coisa, pois é impossível ser, ao mesmo tempo, coisa e pessoa, daí porque o homem não pode dispor de si mesmo, não pode instrumentalizar-se.45

Segundo Battista Mondin, o homem é um ser cultural, espiritual e livre, mas é sobretudo pessoa e um valor absoluto.

É cultural, na medida em que não é como as plantas e os animais, puro produto da natureza; mas o é fruto de uma sapiente colaboração entre natureza e cultura. A cultura não é uma roupa que se vista ou se dispa ao próprio prazer, não é qualquer coisa acidental ou secundária, mas é um elemento constitutivo da essência do homem, ela faz parte da natureza humana. Sem a cultura não é possível existir nem a pessoa individualmente, nem o grupo social. 46

É espiritual na medida em que possui a capacidade de transcender a si próprio, somente o espírito é livre, porque sopra onde quer. É livre porque dotado de autonomia e vontade iluminadas pela razão, não está subordinado aos instintos como estão os animais. É pessoa e valor absoluto porque não é um valor instrumental, ele pertence à ordem dos fins, e não à dos meios.

Agora, o valor absoluto do homem está no espírito. Se não se situa (o valor) no espírito é, totalmente gratuito e arbitrário considerar o homem um valor absoluto. Se o homem é só corpo, só matéria, ele se torna necessariamente uma realidade manipulada, instrumentalizada e, portanto, não pode ter um valor absoluto. O homem é absoluto e infinito enquanto valor, ainda que finito como ser.47

Ninguém melhor do que Miguel Reale, estudou a fundo as questões

45 MORAES, Maria Celina Bodin de. O Conceito de Dignidade Humana: substrato axiológico e conteúdo normativo. In Constituição, Direitos Fundamentais e Direito Privado. 2ª ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado. 2006. p. 115, e p. 135, nota de rodapé nº 96.46 Cf. MONDIN, Battista. Definição Filosófica da Pessoa Humana. op. cit. 15.47 Cf. MONDIN, Battista. Definição Filosófica da Pessoa Humana. op. cit. p. 44.

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filosóficas que envolvem o homem, articulado com o mundo jurídico. São dele, as palavras que seguem,

O homem, considerado na sua objetividade espiritual, enquanto ser que só se realiza no sentido de seu dever ser, é o que chamamos de pessoa. Só o homem possui a dignidade originária de ser enquanto deve ser, pondo-se essencialmente como razão determinante do processo histórico. 48

Malgrado o valor absoluto de todo ser humano, infelizmente, como pontua a Ministra do Supremo Tribunal Federal, Cármen Lúcia Antunes Rocha49, ainda convivemos com subomens empilhados sob viadutos, crianças feito pardais de praça, sem pouso nem ninho certos, velhos purgados da convivência das famílias, desempregados amargurados pelo seu desperdício humano, deficientes atropelados em seu olhar sob as calçadas, presos animalados em gaiolas sem porta, enfim, exclusões sociais de todos os tipos e espécies que ferem mortalmente o princípio da dignidade da pessoa humana.

Ainda fortes no pensamento da Ministra Cármen Lúcia Antunes Rocha50, podemos afirmar que,

Toda pessoa humana é digna. Essa singularidade fundamental e insubstituível é ínsita à condição humana, qualifica-o nessa categoria e o põe acima de qualquer indagação. Quando se questiona, nestes chamados tempos modernos, se há de permitir, ou não o nascimento de um feto no qual se detecte a existência de anomalia a impossibilitá-lo para uma vida autônoma, está-se a infirmar aquela assertiva e a tornar a humanidade um meio para a produção de resultados e a desconhecer ou desprezar a condição do homem de ser que é fim em si mesmo e digno pela própria natureza. Aquilo

48 REALE, Miguel. Filosofia do Direito. 17ª ed. São Paulo: Saraiva. 1996. p. 220.49 O Princípio da Dignidade da Pessoa Humana e a Exclusão Social. op. cit. p. 25. 50 O Princípio da Dignidade da Pessoa Humana... op. cit. p. 28.

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traduz-se, pois, como injustiça contra os que não se apresentam em iguais condições psicofisiológicas, intelectuais etc. É a injustiça havida na indignidade revelada na desumanidade do tratamento dedicado ao outro. É a injustiça do utilitarismo que se serve do homem e o dota de preço segundo a sua condição peculiar, que se expressa numa forma em vez de se valer pela essência humana de que se dota.

Ser pessoa é uma realização em direção ao outro. A realização de nós mesmos passa necessariamente pelo próximo. Por este motivo, para definir adequadamente a pessoa, não basta a subsistência e nem a coexistência com os outros, é necessária também a proexistência, que é o preocupar-se ativamente com o destino do outro. A proexistência que ajuda a realização dos outros (do próximo) repercute positivamente na pessoa do próprio proexistente, é como que se antecipasse uma via para a realização de sua pessoa: consolida-a, enriquece-a, torna-a maior, mais nobre, mais feliz.51

Por fim, fechamos este item com as palavras insuperáveis da Ministra do Supremo Tribunal Federal, Cármen Lúcia Antunes Rocha, que com fina sensibilidade verberou,

A dignidade da pessoa humana é a prova de que o homem é um ser de razão compelido ao outro pelo sentimento, o de fraternidade, o qual, se às vezes se ensaia solapar pelo interesse de um ou outro ganho, nem por isso destrói a certeza de que o centro de tudo ainda é a esperança de que a transcendência do homem faz-se no coração de outro, e nunca na inteligência aprisionada no vislumbre do próprio espelho. Afinal, mesmo de ouro que seja o espelho, só cabe a imagem isolada. Já no coração, ah! coração, cabe tudo.

6. Referências Bibliográficas

51 MONDIN, Battista. Definição Filosófica da Pessoa Humana. ... op. cit. p. 30/31.

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O MEIO AMBIENTE SADIO E ECOLOGICAMENTE EQUILIBRADO COMO DIREITO HUMANO E A ÉTICA AMBIENTAL

Liliane Moraes Pestana

1. Introdução

No estado natural, onde não havia leis, onde não havia Estado enquanto governo, o objetivo maior do ser humano era a sobrevivência, a manutenção da sua vida, da sua própria existência. Logo, era a força que permitia defender a sua vida, que permitia impor a sua vontade sobre a do outro. Assim, surgia o direito natural.

O direito natural, por sua vez, seria composto de um conteúdo mínimo, conteúdo este que seria responsável pelo elo existente entre Moral e Direito. Contudo, para poder falar-se em um conteúdo mínimo do direito natural, há que se partir necessariamente do pressuposto de que o objetivo normal ou natural da sociedade é a sobrevivência.

Neste estado natural, algumas medidas sociais deveriam ser observadas a fim de que fosse possível alcançar essa meta, ou seja, a sobrevivência e, dentre elas, algumas poderiam ser qualificadas como leis naturais, que seriam aquelas regras de conduta que toda organização social deveria respeitar para ser viável a sua existência. Estas normas passam, então, a constituir um elemento comum entre o Direito e a Moral convencional de todas as sociedades, sendo a base pra a realização do propósito de sobrevivência que é buscado pelos homens quando se associam, tanto para as normas jurídicas como para a moral1.

Contudo, esse estado de natureza, não obstante o exercício mais pleno pelo homem da sua liberdade, era um estado frágil e, até mesmo, perigoso. Em conseqüência, os indivíduos passaram a se unir e abriram mão de parte das suas liberdades para, através de um contrato social, conferir a um ente 1 Análise feita por Eusebio Fernandez da postura de Hart sobre a conexão necessária entre a Moral e o Direito e a sua teoria do conteúdo mínimo do Direito Natural. FERNANDEZ, Eusebio. Teoria de la justicia y derechos humanos. Madrid: Editorial Debate, 1991. pp. 70-71.

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moral a regulação das suas vidas, alicerce este das teorias contratualistas de Thomas Hobbes, Rousseau e Locke. Teoria do contrato social que explica a origem da sociedade e do poder político através da passagem do estado de natureza para a sociedade civil e política.

O Estado passa a ser a organização desse poder social e a ele cabe garantir a segurança dos indivíduos.

Todavia, face às atrocidades praticadas por este mesmo Estado, aos privilégios concedidos a poucos e ao totalitarismo e autoritarismo dos regimes absolutistas, predominantemente ao longo da Idade Média e Moderna, várias manifestações desenvolvem-se a fim de reivindicar o respeito e a salvaguarda dos direitos humanos que passam a estar contextualizados, positivados em diversas Declarações e Constituições.

Estes direitos humanos são exatamente esses direitos naturais, os direitos inatos, direitos individuais, direitos do homem e do cidadão, também chamados de direitos fundamentais, direitos públicos subjetivos, liberdades fundamentais ou liberdades públicas. Ao dizer que são direitos fundamentais, pretende-se destacar que se encontram eles estreitamente conectados com a idéia de dignidade humana e são ao mesmo tempo as condições de desenvolvimento dessa idéia de dignidade2.

Os direitos humanos lidam, pois, com os aspectos mais valorados da sociedade humana, visto que, sem a sua tutela, a própria vida e dignidade humana quedam-se inviabilizadas, com características próprias que devem ser respeitadas: imprescritíveis, inalienáveis, irrenunciáveis, invioláveis, universais, interdependentes e complementares3.

Desde o século passado, no entanto, os direitos humanos encontram-se em situação paradoxal eis que, não obstante o seu reconhecimento em diversos textos legais, que proclamam um número crescente de direitos civis, políticos, sociais, econômicos e culturais, que constituem, na história

2 Ressalta o autor acima já mencionado que por trás de cada terminologia encontra-se uma concepção jurídico-política distinta. Contudo, assevera a sua preferência pela denominação de direitos fundamentais do homem por expressar que toda pessoa possui os direitos morais pelo fato de ser um indivíduo e que estes devem ser reconhecidos e garantidos pela sociedade, pelo Direito e pelo poder político, sem nenhum tipo de discriminação social, econômica, jurídica, política, ideológica, cultural ou de sexo. FERNANDEZ. Op. cit., p. 78.3 PAIM, Maria Augusta Fonseca. Direitos Humanos e Meio Ambiente. Revista Jurídica. Campinas: Faculdade de Direito da PUC de Campinas, v. 19, n. 1, 2003. p. 60.

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do direito, a afirmação mais acabada da crença do homem na sua própria dignidade; esses mesmos direitos, infelizmente, transformam-se em ideais utópicos, na medida em que são sistematicamente desrespeitados por grupos sociais e governos4.

Esta situação é mais evidente quando se cuida da questão ambiental. Atualmente, como legado do colonialismo predatório, da revolução industrial desorganizada, do valor puramente utilitário e mecanicista que foi conferido à natureza ao longo da história das civilizações, considerada como objeto, como mercadoria a ser consumida, evidencia-se, cada vez mais, o agravamento nas condições do equilíbrio ambiental. Danos irreversíveis foram cometidos, verdadeiros ataques desmedidos ao meio ambiente que, por sua vez, reage através de fenômenos que não se consegue ainda compreender, como é o caso recente da tsunami, em dezembro de 2004, ou dos furacões que ganham intensidade e devastam cidades, como o ocorrido em Nova Orleans, em 2005, o que demonstra a falta de harmonia e o desequilíbrio latente da natureza.

Despertou-se, portanto, a consciência de que uma vida digna requer um cuidado com sua qualidade e com aspectos da coletividade de modo que o conceito de direitos humanos foi ampliado, dando origem aos direitos de solidariedade ou fraternidade, onde podemos incluir o direito ao meio ambiente sadio e equilibrado.

O presente trabalho pretende apresentar, primeiramente, os direitos humanos em sua origem e evolução histórica, comentando a sua fundamentação, para, posteriormente, traçar um paralelo com o meio ambiente enquanto direito humano de 3ª geração, analisando o direito ao meio ambiente equilibrado como direito fundamental, tal qual é previsto pelo ordenamento jurídico brasileiro, para, por fim, lançar alguns conceitos e teorias concernentes à ética ambiental, reforçando a necessidade de mudança de paradigma do homem frente à natureza, de modo a preservá-la para as presentes e futuras gerações.

2. Os Direitos Humanos

1.1. A evolução histórica

Somente a partir do momento em que limites foram impostos ao poder do Estado é que o conceito de direitos humanos firmou-se na

4 BARRETO, Vicente. Os Fundamentos Éticos dos Direitos Humanos. Revista de Direito Comparado, Belo Horizonte, v. 2, n. 2, março, 1998, p. 343.

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história, o que foi a base das revoluções liberais dos séculos XVII e XVIII, ao estabelecer o postulado da liberdade do indivíduo e o reconhecimento e proteção da dignidade da pessoa humana como direitos fundamentais do homem5.

Contudo, considerar, como pretendem alguns autores, que a origem dos direitos humanos deu-se com o balizamento do Estado pela lei é equivocado. Apesar de não ter conhecido o primado da liberdade individual, na Antiguidade Clássica, Grécia e Roma antigas desenvolveram, já naquela época, algumas idéias sobre o conceito de democracia e república, derivando concepções de participação popular na formação da vontade do Estado e de limitação de poder6.

A divulgação do cristianismo também contribuiu muito para a formação das bases originárias dos direitos humanos, divulgando a idéia de existência de uma igualdade natural entre os homens, uma vez que, sendo o homem criado à imagem e semelhança de Deus, seria ele portador de uma natural dignidade. Possui, portanto, o homem, alto valor intrínseco e uma liberdade inerente à sua natureza, detentor de direitos que devem ser respeitados por todos e pela sociedade política, como bem defendeu São Tomás de Aquino, em seus ensinamentos, baseando-se em um direito natural7.

Ao longo da Idade Média, a divisão em estamentos da sociedade gerou muitas injustiças, não havendo igualdade jurídica e predominando os privilégios concedidos aos poucos.

Diante desse quadro que foi editada a Magna Carta, na Inglaterra, em 1215, pelo Rei João Sem Terra, com finalidade de limitação do seu poder, muito embora tenha sido um documento de proteção dos direitos das classes privilegiadas. Sua importância reside no fato de ter sido após a sua edição que as liberdades dos ingleses foram se afirmando no decorrer da história, e nela foram previstos princípios relevantes como o

5 CARVALHO, Oscar de. Gênese e Evolução dos Direitos Humanos Fundamentais. Revista do Instituto de Pesquisas e Estudos – Divisão Jurídica, Bauru, n. 34, abril/julho, 2002. p. 31.6 Ibidem. p. 33.7 Ibidem. p. 34-35.

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due process of law, na cláusula 398, dentre outros9.Verifica-se, desse modo, que o tema dos direitos humanos, em

seu nascedouro, esteve diretamente associado à necessidade de se reduzir a excessiva interferência do Estado na vida dos cidadãos10.

Contudo, somente com as revoluções inglesas, americana e francesa é que se vislumbra o primeiro momento de afirmação propriamente dita dos direitos humanos em nossa história, pelo que, passamos a discorrer um pouco acerca de cada uma delas e seus principais legados.

A história inglesa, ao longo século XVII, está permeada de luta entre o rei e o Parlamento.

Em 1628, foi submetida ao rei Carlos I a Petição de Direitos – Petition of Rights – pela qual algumas questões não poderiam ser executadas sem autorização parlamentar, muito embora não tenha sido cumprida. Em 1679, o Parlamento votou a Lei do Habeas Corpus, visando à garantia das liberdades individuais. Em 1688 ocorreu a Revolução Gloriosa e Guilherme de Orange foi coroado rei, tendo sido obrigado a assinar a Declaração de Direitos – Bill of Rights – que colocou fim ao absolutismo e instaurou a monarquia parlamentarista11.

O advento do Iluminismo, nos séculos XVII e XVIII, tendo em John Locke seu principal inspirador, “desenvolveu-se um jusnaturalismo de cunho racional, o qual preconizava, em síntese, ser o homem titular de direitos naturais inatos, que seriam eternos e inalienáveis, restringindo-se o papel do Estado a garantir o exercício dessas liberdades (direitos negativos)”.12

Com base nesta nova ideologia e em conseqüência das opressões que a coroa inglesa impunha às treze colônias, em especial a cobrança de tributos exorbitantes e o impedimento do livre comércio, desenvolveu-se

8 “Nenhum homem livre será detido ou preso, nem privado de seus bens, banido ou exilado ou, de algum modo, prejudicado, nem agiremos ou mandaremos agir contra ele, senão mediante um juízo legal de seus pares ou segundo a lei da terra”.9 CARVALHO. Op. cit. p. 36.10 GABRIEL, Antônio José Martins. Direitos humanos e globalização: conquistas e desafios. Revista do Ministério Público, Rio de Janeiro, n. 19, jan.\jun., 2004. p. 40.11 CARVALHO. Op. cit. p. 37-38.12 GABRIEL. Op. cit. p. 40.

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a Revolução Americana. Em 4 de julho de 1776, houve a Declaração da Independência onde estão firmados os postulados do governo consentido, baseado na vontade popular e da existência de direitos inatos e inerentes a todos os homens. Sua base filosófica consiste na noção de que o indivíduo possui direitos anteriores e superiores ao Estado, conforme as formulações jusnaturalistas. Em 1783, Inglaterra assinou o Tratado de Versalhes, reconhecendo a independência das treze colônias13.

A Constituição americana, após inúmeros debates, acabou sendo ratificada por todos os Estados, em 1787, e implantou pela primeira vez na história o presidencialismo e a federação e estabeleceu a tripartição dos poderes. Em 1791, foram editadas as dez primeiras emendas à Constituição, conhecidas como Bill of Rights daquele país. Foram previstos, só para citar alguns direitos, a liberdade de imprensa, de religião e de reunião, os direitos dos acusados e a inviolabilidade das pessoas contra busca e apreensão arbitrárias, proibindo-se penas cruéis e as finanças exageradas, além de outros direitos fundamentais14.

A Revolução Francesa, por sua vez, teve o mérito de pôr fim a toda uma ordem social vigente, ao regime absolutista e aos privilégios remanescentes do Antigo Regime.

A sociedade, dividida em castas - nobreza, clero e o restante da população – obrigava que toda a carga tributária recaísse sob o Terceiro Estado, afora a isenção de impostos e o gozo de favores, tais como cargos públicos e pensões, que eram concedidos ao Primeiro e Segundo Estados. Tudo isso foi fator para gerar revolta e indignação na população, principalmente, na burguesia que começava a se firmar como uma classe detentora de poder econômico que se via em situação desprivilegiada por não ter influência política, passando a reivindicar a mesma.

A revolução veio para pôr fim a esse quadro e estabelecer a igualdade de todos perante a lei. Igualdade esta que foi meramente jurídica e de natureza formal.

A Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, de 1789, traduz o espírito da revolução francesa e teve como base a teoria contratualista e os ideais do jusnaturalismo, garantindo os direitos do cidadão burguês – igualdade perante a lei e o direito de propriedade – e a liberdade individual e direitos do indivíduo em face do Estado. Porém,

13 CARVALHO. Op. cit. p. 38-39.14 CARVALHO. Op. cit. p. 40.

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os problemas das classes menos favorecidas não foram resolvidos 15.Todo esse novo cenário proporcionou o desenvolvimento do

capitalismo moderno que tinha duas novas classes sociais em constante disputa: a burguesia, detentora dos meios de produção, e o proletariado, que possuía apenas a sua força de trabalho como mercadoria.

Pregava-se a não intervenção estatal na economia, nos moldes do liberalismo clássico, sendo o próprio mercado o responsável pelos rumos das relações econômicas e sociais, bem como, afigurando-se como atentado à liberdade individual e à lei do contrato toda e qualquer intromissão ocorrida.

As desigualdades e segregação sociais foram agravando-se, principalmente durante a Revolução Industrial, nos séculos XVIII e XIX. As condições de trabalho eram deploráveis, insalubres e cruéis, explorando-se crianças e mulheres em jornadas de trabalho excessivas, o que se refletiu diretamente nas péssimas condições de vida.

Friedrich Engels retratou bem essa situação em sua obra “A Situação da Classe Trabalhadora na Inglaterra”, tendo convivido de perto com os bairros miseráveis e afetados pela falta de infra-estrutura, de circulação de ar, repletos de epidemias, higiene comprometida e residência da grande maioria dos trabalhadores das indústrias que não tinha meios para se sustentar.

Para fins de ilustrar o que foi um pouco da situação vivenciada pelos ingleses em meados do século XIX, passo a transcrever um trecho da obra citada, quando do exame do chamado “Ninho de Corvos”, o bairro St. Giles:

St. Giles fica no meio da parte mais populosa da cidade, rodeado de ruas largas e luminosas, onde circula o “grande mundo” londrino – muito perto de Oxford street, de Regent Street, de Trafalgar Square e do Strand. É uma massa de três ou quatro andares, construídas sem plano, com ruas tortuosas, estreitas e sujas onde reina uma animação tão intensa como nas principais ruas que atravessam a cidade, com a diferença que, em St. Giles, só se vê pessoas da classe operária. O mercado está instalado nas ruas: cestos de legumes e de frutos,

15 CARVALHO. Op. cit. 41.

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todos naturalmente de má qualidade e dificilmente comestíveis, ainda reduzem a passagem, e deles emana, bem como dos açougues, um cheiro repugnante. As casas são habitadas dos porões aos desvãos, são tão sujas no exterior como no interior e têm um tal aspecto que ninguém as desejaria habitar. Mas isto ainda não é nada comparado às habitações nos corredores e vielas transversais onde se chega através de passagens cobertas, e onde a sujeira e a ruína ultrapassam a imaginação; não se vê, por assim dizer, um único vidro inteiro, as paredes estão leprosas, os batentes das portas e os caixilhos das janelas estão quebrados ou descolados, as portas – quando as há – são feitas de pranchas velhas pregadas umas à outras; aqui, mesmo neste bairro de ladrões, as portas são inúteis porque não há nada para roubar. Em toda parte montes de detritos e de cinzas e as águas vertidas em frente às portas acabam por formar charcos nauseabundos. É aí que habitam os mais pobres dos pobres, os trabalhadores mal pagos, com ladrões, os escroques e as vítimas de prostituição, todos misturados. A maior parte são irlandeses ou descendentes de irlandeses, e os que ainda não se submergiram no turbilhão desta degradação moral que os rodeia, mergulham nela cada vez mais, perdem todos os dias um pouco mais da força para resistir aos efeitos desmoralizantes da miséria, da sujeira e do meio16.

A partir deste relato, compreende-se o fato de não ter demorado muito a haver reações dos operários, principalmente através de greves e rebeliões, reivindicando direitos que, paulatinamente, foram sendo conquistados através de leis protetoras e que deu embasamento ao surgimento dos ideais socialistas e do sindicalismo.16 ENGELS, Friedrich. A situação da classe trabalhadora na Inglaterra. 2. ed. Tradução de Rosa Camargo Artigas e Reginaldo Forti. São Paulo: Global. 1988. p. 39.

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Dessa forma, o movimento socialista, mormente o científico de Karl Marx, a doutrina social da Igreja, com a edição da encíclica Rerum Novarum, em 1891, pelo Papa Leão XIII, as greves operárias, a revolução russa de 1917 e a implantação do primeiro Estado Socialista da história, dentre outros, foram fatores importantes que causaram o fim do Estado liberal clássico17.

As injustiças sociais levaram o Estado para uma postura mais intervencionista o que se nota, nitidamente, com a leitura da Constituição Mexicana de 1917, que foi a primeira a atribuir aos direitos trabalhistas a qualidade de direitos fundamentais. Em 1919, foi editada a Constituição de Weimar que instituiu novos direitos sociais e econômicos, lançando as bases da democracia social18.

A grande depressão e a queda da bolsa de Nova York, em 1929, resultaram em uma intervenção do governo, com profundidade, nas relações econômicas e sociais com objetivo de implantar uma maior igualdade material entre os homens e de assegurar a justiça social, garantindo o direito ao trabalho, à previdência, à educação e à saúde, dentre outros direitos sociais. Tudo isso caracterizou o Welfare State, na tentativa de superar as contradições históricas derivadas do liberalismo clássico, tendo firmado suas bases após a Segunda Guerra Mundial, nos países componentes do bloco ocidental19.

O Estado Social priorizou os direitos econômicos, sociais e culturais que são os direitos positivos ou de segunda geração, podendo-se citar a instituição do salário mínimo, a fixação da jornada de trabalho, a proteção em face do desemprego, invalidez ou morte, a aposentadoria e o direito à greve20.

Com as atrocidades cometidas durante a Segunda Guerra Mundial e a comoção resultante do holocausto, conduziram à criação da Organização das Nações Unidas, em 1945, com a assinatura da Carta de São Francisco. Em 1948, a ONU editou a Declaração Universal dos Direitos do Homem, considerado um Bill of Rights da humanidade. Este documento, embora não seja um tratado e por isso não vincula os Estados membros da ONU, exerceu forte influência na elaboração dos instrumentos nacionais e internacionais de tutela dos direitos humanos21.17 CARVALHO. Op. cit. p. 43.18 Ibidem. p. 43.19 Ibidem. p. 44.20 GABRIEL. Op. cit., pp. 40-41.21 GABRIEL. Op. cit., p. 42.

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Não se deve olvidar, todavia, dos antecedentes à Declaração Universal dos Direitos do Homem, que também tiveram sua importância como marcos do processo de internacionalização dos direitos humanos, como foi o caso da Liga das Nações e a Organização Internacional do Trabalho, o Direito Humanitário (conjunto de leis e costumes de guerra) previsto pela Convenção de Genebra de 1864.

A Declaração Universal dos Direitos do Homem, no entanto, é considerada o divisor de águas ao consolidar o movimento de internacionalização dos direitos humanos, buscando a proteção integral do ser humano, multiplicação e universalização desses direitos.

Prevê os direitos de liberdade22 – civis e políticos contra o risco de interferência arbitrária do Estado na esfera individual –, igualdade – sociais, econômicos e culturais –, os princípios do Estado liberal e democrático e os princípios do Estado social em seu bojo, lado a lado, por essa razão diz-se que ela adotou a concepção de indivisibilidade e interdependência dos direitos humanos, ressaltando a garantia das condições mínimas de vida23.

Em conseqüência, o tratamento conferido aos direitos humanos no âmbito interno das constituições dos Estados perdeu força tendo em vista a tendência atual e cada vez maior no sentido de universalização e proteção internacional dos direitos do homem. Isso não significa que os Estados não devem promover a proteção dos direitos humanos no plano interno tendo em vista que a atuação dos órgãos internacionais só iniciam-se quando os Estados falharem24.

Esta corresponderia, na visão de Norberto Bobbio, a terceira e última etapa da evolução dos direitos humanos25.

22 Liberdades negativas: liberdade de locomoção, de pensamento, de opinião, de religião, de voto, de propriedade, entre outros.23 CARVALHO. Op. cit. p. 45.24 GABRIEL. Op. cit. p. 43.25 Assinala o referido autor a existência de três etapas na evolução dos direitos do homem: a primeira diz respeito à formulação filosófica, da doutrina do jusnaturalismo, que teve em John Locke seu principal e primeiro formulador na era moderna. A segunda é a do acolhimento pelo direito positivo e legislações dessa doutrina desenvolvida, sendo as Declarações de Direitos da revolução americana e francesa as maiores expressões dessa fase, quando, positivados, valem no interior dos Estados que os reconheceram. A terceira, conforme já se verificou, é a que toca a questão da internacionalização dos direitos humanos através de inúmeros tratados internacionais. BOBBIO, Norberto. A Era dos Direitos. 11 ed. Tradução de Carlos

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Tal lógica estrutura-se na consciência de que se os direitos humanos não forem respeitados em todos os lugares, não existirão condições efetivas para o estabelecimento de uma paz reinante na Terra. Inclusive, a própria noção de soberania dos Estados é contestada ante essa tendência de intenacionalização26.

Nesta etapa de internacionalização, chama a atenção a capacidade processual adquirida pelos indivíduos para pleitear direitos na esfera internacional. Atribui-se aos órgãos de supervisão, criados pelos tratados, “capacidade para empreender investigações, requisitar informações dos governos e para elaborar relatórios tendentes à correção de violação a direitos humanos, bem como o sistema de petições individuais e interestatais, noticiando fatos relevantes”27.

Este movimento identifica que a democracia e a estabilidade internacionais não podem ser alcançadas enquanto existirem diferenças gritantes entre nações ricas e as pobres, povos exploradores e explorados. Urge, portanto, a necessidade de se enfatizar o direito ao desenvolvimento, à paz, ao meio ambiente e qualidade de vida, à conservação e utilização do patrimônio histórico e cultural da humanidade são alçados à condição de novos direitos humanos, consagrando-se, assim, os direitos de solidariedade na consciência internacional28.

Hoje, constata-se uma mudança no discurso de atuação do Estado. Após o término da Guerra Fria, realizou-se, em 1993, em Viena, a Conferência Mundial sobre Direitos Humanos que deu origem a uma declaração de cunho mais abrangente mais coerente como o processo contínuo de globalização econômica.

Declarou-se o fim do Estado-providência, a mitificação do estado mínimo, e articulou-se a defesa da necessidade de redução da atuação do Estado. O objetivo é liberar a economia das ingerências normativas do poder público e equilibrar o orçamento do Estado, criando condições mais adequadas ao bom funcionamento do mercado, o que levou a uma flexibilização dos direitos trabalhistas e exacerbada privatização e desmonte da previdência social, aumentando o desemprego e o empobrecimento da classe média. Tudo isso faz aumentar o risco de inviabilizar o exercício da soberania e, em última análise, da própria cidadania e com ela os direitos Nelson Coutinho. Rio de Janeiro: Campus, 1992. p. 30.26 CARVALHO. Op. cit. p. 46.27 GABRIEL. Op. cit. p. 43.28 CARVALHO. Op. cit. p. 47.

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humanos29.É preciso resgatar o debate acerca da importância da afirmação dos

direitos humanos e conscientizar a população dos seus direitos para poderem pressionar os governos no sentido de revitalizar as políticas públicas e não se perder todas as conquistas já realizadas.

1.2. O Fundamento

Os fundamentos dos direitos humanos e o seu peculiar estatuto na ordem jurídica é uma questão que emerge, sobretudo, na atuação e trabalho do jurista, do juiz e do legislador, neste final de século, em virtude da conscientização crescente da sociedade civil no que se refere aos seus direitos fundamentais30.

Os direitos humanos têm seu fundamento antropológico na idéia das necessidades humanas. Com o seu reconhecimento, exercício e proteção, pretende-se satisfazer uma série de exigências que se consideram necessárias para o desenvolvimento de uma vida digna31.

Ocorre que um número significativo de autores sempre associou os direitos humanos com sinônimos de direitos naturais, afirmando que os primeiros seriam a versão moderna dos últimos. Dessa forma, constata-se que por detrás do debate sobre os fundamentos dos direitos humanos existe a forte associação feita com os direitos naturais e a crença de serem estes o modelo justificador do direito positivo. Em razão disso, percebe-se que se tornava necessário desenvolver um modelo teórico que pudesse estruturar logicamente os direitos humanos com a ordem jurídica positiva, buscando-se uma solução que prescindisse o modelo do jusnaturalismo, mas que respondesse à questão da fundamentação do direito e, em especial, dos direitos humanos32.

Importante, então, resgatar o debate em torno da fundamentação dos direitos humanos já que este esteve, por muito tempo, aniquilado diante do debate político interno e da categorização dos direitos humanos como direitos subjetivos públicos. Ao longo do século XX, com a proliferação de declarações internacionais e de legislações nacionais asseguradoras dos direitos, o conflito existente entre os valores e a prática

29 GABRIEL. Op. cit. p. 48-52.30 BARRETO. Op. cit. p. 34331 FERNANDEZ. Op. cit. p. 79.32 BARRETO. Op. cit. p. 344-345.

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política e jurídica, reflexo do insucesso dos diferentes sistemas jurídicos em estabelecer garantias reais para a observância desses dispositivos legais, levou a uma reflexão sobre os fundamentos dos direitos humanos, que somente tornou-se relevante e inseriu-se no plano de uma reflexão metajurídica, quando “as violações desses direitos na prática quotidiana trouxeram consigo um alto grau de relativismo na sua interpretação e provocaram uma conseqüente insegurança nas relações entre os estados e no seio da própria sociedade civil33.

Verifica-se, pois, a necessidade de discutir a fundamentação dos direitos humanos como forma de responder ao argumento autoritário bem como conferir ao direito positivo uma reflexão que vá além da subordinação racional a princípios e valores relacionados com a dignidade humana, estabelecendo-se um patamar metajurídico na análise do direito. Ademais, “a reflexão sobre os fundamentos dos direitos humanos reside, em última análise, na busca da fundamentação racional, portanto universal, dos direitos humanos, que sirva, inclusive, para justificar ou legitimar os próprios princípios gerais de direito”34.

Certo é que em relação aos direitos humanos existem também deveres e obrigações fundamentais que devem ser respeitadas. Ademais, o exercício dos direitos humanos já reconhecidos não é ilimitado, podendo ser restringido no que tange à defesa da dignidade, da segurança, da liberdade ou simplesmente da convivência social, ressaltando que essas restrições, porém, devem estar regulamentadas juridicamente para não serem tomadas como arbitrariedade do poder político35.

A questão da fundamentação dos direitos humanos está relacionada à questão da justificação racional destes direitos e é importante tanto para a elaboração de uma teoria dos direitos humanos como para a sua prática política, o que acaba por refletir na sua tutela e proteção36.

Eusebio Fernandez, com muita propriedade, em sua obra Teoria de la justicia y derechos humanos, discorre sobre as três grandes fundamentações filosóficas que embasaram a teoria dos direitos humanos, quais sejam: a fundamentação jusnaturalista que consiste na consideração dos direitos humanos como direitos naturais;

33 BARRETO. Op. cit. pp. 345-346.34 Ibidem. p. 348.35 FERNANDEZ. Op. cit. p. 80.36 Ibidem. p. 82-83.

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a fundamentação historicista que considera os direitos humanos como direitos históricos e a fundamentação ética que visualiza os direitos humanos como direitos morais37.

Passa-se, então, a traçar, em linhas gerais, um pouco do conteúdo de cada uma das mencionadas fundamentações, valendo-me dos ensinamentos do supracitado autor.

2.2.1 A Fundamentação Jusnaturalista

A fundamentação jusnaturalista é a mais conhecida e de maior tradição histórica. Ela deriva diretamente da crença e defesa do jusnaturalismo como teoria que fundamenta e explica a existência do direito natural.

Caracteriza-se basicamente pela distinção entre direito natural e direito positivo e pela superioridade do direito natural sobre o direito positivo, já que os direitos naturais seriam inerentes ao ser humano, anteriores e superiores às normas escritas e, portanto, inalienáveis e absolutos.

Atenta para o fato de que a influência do direito natural racionalista, de cunho ontológico, ao longo da história dos direitos humanos aparece em uma série de juristas e filósofos do século XVII e XVIII, como Grocio, Pufendorf, Spinoza, Hobbes, Locke, Rousseau, Wolff e Kant, sendo que, para todos eles, o que chamamos hoje de direitos humanos, era vislumbrado como direitos naturais. Além disso, para todos eles, a idéia dos direitos naturais aparece estreitamente conectada à teoria do contrato social.

A influência jusnaturalista também se faz notar nas declarações de direitos do século XVIII.

Contudo, a fundamentação jusnaturalista dos direitos humanos gera problemas de aceitação por parte da corrente contemporânea da Filosofia e teoria do Direito. As principais críticas levantadas são:

a) que os direitos naturais somente podem ser considerados autênticos direitos no sentido técnico-jurídico do termo quando se encontram reconhecidos pelo direito positivo. Assim, quando os partidários da fundamentação jusnaturalista falam de direitos naturais anteriores e superiores ao direito positivo, deve-se entender que estes representam exigências éticas ou princípios jurídicos suprapositivos,

37 Ibidem. p. 84.

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que são aqueles efetivamente anteriores ao direito positivo e, inclusive, superiores do ponto de vista ético ou moral. Logo, não se pode afirmar tratar-se de uma superioridade jurídica já que seria equivocado pensar o direito natural como direito no mesmo sentido do direito positivo;

b) a idéia de natureza humana não é um conceito claro nem preciso, assim, encontra-se falha a apresentação e defesa dos direitos naturais como sendo aqueles deduzidos da natureza humana. O correto seria dizer que os direitos naturais consistem em deduções que fazemos a partir de juízos de valor que aplicamos à natureza humana;

c) deve-se ter em conta que a invariabilidade, a permanência e a independência das condições históricas dos direitos naturais chocam-se com a experiência histórica já que o conteúdo e a importância dada aos direitos humanos varia conforme o momento vivenciado. A lista de direitos humanos modifica-se de acordo com as mudanças ocorridas nos interesses, necessidades, classes no poder, dos meios disponíveis para sua realização, das transformações técnicas, entre outros. Portanto, o que parece fundamental em uma época ou em certa civilização não é fundamental em outras épocas e outras culturas, concluindo-se que não existem direitos fundamentais essencialmente por sua natureza;

d) é ingênua e insuficiente a afirmação de que os direitos humanos existem e são detidos pelos sujeitos independentemente de reconhecimento ou não pelo Direito Positivo. Sem este reconhecimento e amparo pelo ordenamento jurídico, não se vislumbra a sua efetividade e a sua tutela de forma eficaz;

e) por último, a idéia defendida de que a única fundamentação possível dos direitos humanos é a jusnaturalista também é rechaçada já que se deve falar em outras fundamentações, não sendo, portanto, esta a única38.

2.2.2 A Fundamentação Historicista

Para esta fundamentação, os direitos humanos expressam-se como sendo variáveis e relativos a cada contexto histórico vivenciado pelo homem e de acordo com o desenvolvimento das sociedades.

Com base nela, fala-se em direitos de origem social enquanto resultados da evolução da sociedade. Consequentemente, os direitos humanos não se fundam em sua natureza humana, mas sim nas

38 FERNANDEZ. Op. cit., pp. 85-99.

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necessidades humanas e nas possibilidades de satisfazê-las dentro de uma sociedade, respeitando-se sempre o princípio da dignidade da pessoa humana.

A fundamentação historicista dos direitos humanos, assim considerada, descreve a evolução e o desenvolvimento dos direitos humanos.

Porém, não deixa de estar sujeita também a críticas, como, por exemplo, ao indagar-se se a variabilidade histórica dos direitos humanos é tão ampla como se pretende defender. Constata-se que tal variabilidade é bem aplicada aos direitos econômicos, sociais, culturais e os civis e políticos. No entanto, no tocante aos direitos da personalidade, como o direito à vida e à integridade física e moral, não se deve realizar mesmo raciocínio.

Outro ponto diz respeito à consideração dos direitos humanos como satisfação de necessidades humanas. O que se critica é que seria inconcebível reconhecer e garantir todo o tipo de necessidade, sendo necessário eleger aquelas que sejam mais fundamentais.

E, por fim, sendo os direitos humanos, mas também fundamentais, não seria correto considerá-los relativos face ao contexto histórico vivenciado, pois pereceria o caráter fundamental deles39.

Estes são questionamentos e críticas não respondidos pela fundamentação historicista. Por outro lado, não se quer afastar a noção de que os direitos humanos são, sim, fruto da evolução da história da civilização humana e, por isso, sujeitos a evolução e modificação, o que deu base à classificação em gerações de direitos humanos.

Destaca o professor Vicente Barreto que existe uma atenuação nas posições absolutas originais, tanto para os jusnaturalistas, quanto para os historicistas. Os historicistas reconhecem outros direitos mais anteriores aos que surgem no processo de evolução das sociedades, direitos esses que se originaram no próprio processo de formação da sociedade. Os jusnaturalistas, por seu turno, admitem que o progresso da consciência moral é que irá assegurar a explicitação dos direitos naturais, como normas de conduta social, conferindo essa noção temporal de evolução ao seu pensamento. A partir dessas atenuações que foi possível aprovar a Declaração Universal dos Direitos do Homem, pela Assembléia Geral das Nações Unidas, em 1948, com esse denominador comum40.

39 FERNANDEZ. Op. cit. p. 100-103.40 BARRETO. Op. cit. p. 350.

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2.2.3 A Fundamentação Ética

A fim de responder o questionamento acerca do fundamento dos direitos humanos fundamentais e em nome do quê é feita a sua defesa é que Eusébio Fernandez trabalhou a fundamentação ética ou axiológica.

Ela parte da tese de que a origem e fundamento dos direitos humanos não podem ser jurídicos já que o direito positivo não cria os direitos humanos, mas sim, reconhece-os, convertendo-os em normas jurídicas para a sua salvaguarda.

Dessa maneira, a fundamentação ética perfaz-se na idéia de que a base dos direitos humanos encontra-se em torno de exigências que consideramos imprescindíveis para uma vida digna.

Dessa forma, os direitos humanos aparecem como direitos morais, como exigências éticas e direitos que os seres humanos têm pelo fato de serem indivíduos, independentemente de qualquer contingência histórica ou cultural, característica física ou intelectual, poder político ou classe social. Identifica-se a fundamentação ética dos direitos humanos com valores e exigências éticas que respaldam estes direitos, valores relativos à dignidade humana, valores de segurança, liberdade e igualdade.

O qualificativo moral aplicado aos direitos representa tanto a idéia de fundamentação ética como uma limitação no número e conteúdo dos direitos que se depreende do conceito de direitos humanos. Observado dessa forma, somente os direitos morais, aqueles que se aproximam mais da idéia de dignidade humana, podem ser considerados como direitos humanos fundamentais e justificados racionalmente.

Com essa fundamentação, escapa-se das contradições sempre suscitadas entre jusnaturalismo e positivismo e da necessidade ou não do reconhecimento pelo ordenamento jurídico, muito embora se admita ser o fundamento dos direitos humanos anterior ao direito positivo, mas sem a noção de ser este fundamento necessariamente e unicamente jusnaturalista41.

3. Os Direitos Humanos de 3ª Geração

No que tange aos direitos fundamentais, eles surgem a cada etapa 41 FERNANDEZ. Op. cit. p. 104-115.

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da história, o que já nos foi apresentado pela fundamentação historicista dos direitos humanos, por essa razão fala-se em gerações de direitos fundamentais.

Ressalva que merece espaço neste estudo diz respeito à crítica que muitos autores fazem a essa classificação, já que os direitos humanos, em sua essência, são universais, indivisíveis, interdependentes e inter-relacionados, o que leva a sua exigibilidade como um todo, complementam-se e acumulam-se. Ademais, a divisão em gerações não é estanque uma vez que as preocupações sociais, por exemplo, já estavam contidas nas reivindicações da Revolução Francesa e não apenas a partir do aparecimento do Estado Social – Welfare State, e não devem sugerir uma hierarquia entre os direitos42.

Discordando de tal posicionamento, o professor Vicente Barreto sustenta que existe sim uma hierarquização nos direitos humanos o que se relaciona diretamente com os problemas suscitados quanto às suas garantias efetivas, verificando-se uma escala de valores que comporta graus de proteção e havendo somente pouquíssimos direitos com proteção absoluta, o que vem sendo debatido no que se chamou de aporias relativas à hierarquização desses direitos e aporias relacionadas com a própria natureza desses direitos43.

A despeito das ressalvas acima destacadas, o que se pretende com essa classificação em gerações, por outro lado, é, além do caráter didático, tão somente especificar que os direitos do homem são direitos históricos, pois surgem em certas circunstâncias, caracterizados por lutas em defesa de novas liberdades, de modo gradual, acompanhando o progresso técnico, ou seja, o progresso da capacidade do homem de dominar a natureza e os outros homens.

Logo, os direitos de terceira geração não poderiam ter sido sequer imaginados quando foram propostos os de segunda da mesma forma que estes não seriam concebíveis quando do surgimento dos direitos de primeira geração44.

Sucintamente, segue-se uma exposição do conteúdo das 1ª e 2ª gerações, uma vez que as mesmas já foram tratadas no tópico referente à trajetória histórica dos direitos humanos.

Compreendem os direitos da 1ª geração aqueles que dizem 42 PAIM. Op. cit. p. 62.43 BARRETO. Op. cit. p. 357.44 BOBBIO. Op. cit. p. 5-7.

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respeito às liberdades dos indivíduos, sendo os direitos civis e políticos nela incluídos (liberdades individuais oponíveis ao Estado, como limitadores de sua atuação, sendo direitos negativos na medida em que o Estado deve abster-se de perturbar o seu exercício, tais como o direito à vida, à liberdade, à propriedade e à resistência que foram as bases de reivindicações das revoluções liberais).

Os direitos da 2ª geração são considerados os direitos de igualdade, em decorrência do surgimento do Estado do Bem-Estar Social e salvaguarda dos direitos trabalhistas e sociais reivindicados.

São os direitos sociais, econômicos e culturais, como o direito à saúde, à educação, ao trabalho e ao lazer. A finalidade é concretizar uma liberdade material entre os homens e, para tanto, o Estado passa a interferir nas relações econômicas privadas. Pode-se chamá-los de direitos prestacionais ou de natureza positiva eis que são realizados através de uma atuação positiva do Estado45, isto porque exigem para a sua efetividade uma atuação provedora do Poder Executivo, sua concretização depende da realização de políticas públicas o que, obviamente, diretamente vinculado à previsão orçamentária destinada para tal finalidade.

Enquanto os direitos civis e políticos encontram-se protegidos por remédios processuais já consagrados, podendo-se recorrer ao Judiciário em casos de violação pelo Estado de suas liberdades, os direitos sociais, culturais e econômicos, por seu turno, dependem muito mais de uma ação política do que jurídica46.

Analisando os direitos de 3ª geração, destaca-se a sua importância para o presente estudo em razão da valoração dada ao meio ambiente e ao seu equilíbrio, visando à proteção do patrimônio natural às futuras gerações para que possam satisfazer as suas necessidades.

No século XX, a experiência das duas Guerras Mundiais, os danos causados ao meio ambiente, a acirrada competição econômica travada entre as nações, a explosão demográfica, tudo isso foi matriz propulsora para o surgimento dos chamados direitos de 3ª geração.

A complexidade das relações sociais trouxe a consciência de que uma vida digna requer um cuidado com sua qualidade, exaltando-se os aspectos coletivos47.

45 CARVALHO. Op. cit. p. 49.46 GABRIEL. Op. cit. p. 44-45.47 PAIM. Op. cit. p. 61.

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Direito à paz, à preservação do meio ambiente, à autodeterminação dos povos, entre outros, foram direitos que se desenvolveram principalmente em sede de Tratados Internacionais, propulsores da universalização dos direitos humanos48.

Portanto, os direitos de 3ª geração foram firmados recentemente na história e estão assentados nos valores de solidariedade ou fraternidade. Têm como titulares não as pessoas individualmente consideradas, mas sim o gênero humano diante da sua tamanha importância para a manutenção da harmonia no planeta, tendo emergido o conceito de interesse comum da humanidade (Resolução n° 34-53 da Assembléia Geral das Nações Unidas, dezembro de 1988).

Norberto Bobbio definiu a titularidade desses direitos, em particular, observando que ocorreu uma passagem da consideração do indivíduo humano no seu singular, que foi o primeiro sujeito ao qual se atribuíram direitos, para uma consideração de toda a humanidade em conjunto e até mesmo para sujeitos diferentes do homem, como os animais. “Nos movimentos ecológicos, está emergindo quase que um direito da natureza a ser respeitada ou não explorada, onde as palavras “respeito” e “exploração” são exatamente as mesmas usadas tradicionalmente na definição e justificação dos direitos do homem”49.

Não obstante encontrarem-se ainda em elaboração, já foram identificados, ao menos, cinco direitos: o direito ao desenvolvimento, o direito à paz, ao meio ambiente, ao patrimônio comum da humanidade e à comunicação50.

Infelizmente, ainda não é satisfatória a proteção desses direitos por se tratarem de direitos difusos ou de titularidade coletiva, esperando-se por uma maior eficácia neste campo neste novo século que se inaugura, principalmente no sentido de se estabelecer metas passíveis de serem atingidas com o intuito de erradicar a pobreza, promover a justa distribuição de riqueza e viabilizar a satisfação das necessidades básicas de todos em termos de moradia, educação, saúde, emprego, lazer etc, elaborar leis favoráveis ao gozo dos direitos; engendrar remédios constitucionais que viabilizem ao cidadão comum exigir perante o Poder Judiciário a observância e o atendimento de seus direitos pelo Estado; democratizar a gestão pública para maior participação no

48 GABRIEL. Op. cit. p. 41.49 BOBBIO. Op. cit. p. 69.50 CARVALHO. Op. cit. p. 50.

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acompanhamento das políticas públicas sociais traçadas.51

Em decorrência da massificação social que ocorre atualmente, os direitos humanos vêm se ampliando como resposta da sociedade às dificuldades crescentes, já se falando até em uma 4ª geração de direitos humanos, referentes aos efeitos mais traumáticos da pesquisa biológica e conseqüente manipulação do patrimônio genético.

Além disso, há que se considerarem também os efeitos trazidos pela globalização no sentido de seus benefícios serem revertidos em favor de toda a humanidade e buscar mecanismos de efetivação dos direitos fundamentais com a idéia de universalização dos mercados52.

Até agora, o processo de globalização, infelizmente, produziu muito mais excluídos do que globalizados, aumentando o desemprego, a violência e a fome em diversos países, notadamente os inseridos no rol dos subdesenvolvidos. Logo, ao invés de viabilizar o exercício da soberania dos Estados, ela tem aumentado o risco de anular a cidadania e os direitos humanos.

4. O meio ambiente ecologicamente equilibrado como direito fundamental

Primeiramente, antes de adentrar no estudo do meio ambiente como direito fundamental e direito humano, interessante faz-se esclarecer o seu conceito.

Sabendo-se que o meio ambiente possuiu um aspecto artificial, constituído pelo espaço urbano construído; um aspecto cultural, representado pelo patrimônio histórico, artístico, arqueológico, paisagístico e turístico; e um aspecto natural ou físico, formado pelo solo, água, ar, flora, enfim, pela interação dos seres vivos e seus meios, passa-se, então, a conceituar o que seria propriamente o meio ambiente, valendo-se, para tanto, dos ensinamentos de José Afonso da Silva:

O meio ambiente é, assim, a interação do conjunto de elementos naturais, artificiais e culturais que propiciem o desenvolvimento equilibrado da vida em todas as suas formas. A integração busca assumir uma concepção unitária do ambiente,

51 GABRIEL. Op. cit. p. 46.52 GABRIEL. Op. cit, p. 38.

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compreensiva dos recursos naturais e culturais.53

O direito ao meio ambiente saudável e equilibrado possui expressa previsão na Constituição Federal, que o elevou ao status de direito fundamental imanente à vida das presentes e futuras gerações (caput do art. 225)54 e o determinou como princípio geral da ordem econômica brasileira (art. 170, inc. VI, da CF)55.

A proteção do meio ambiente, como já foi previamente analisado, vem inserida no rol de direitos fundamentais de 3ª geração, direitos de solidariedade e fraternidade que têm como titular não um indivíduo nem determinado grupo, mas sim o gênero humano56, por isso também poder-se atribuir a ele a classificação de direito humano.

Traçando-se um paralelo com os direitos humanos, pode-se afirmar que o direito ambiental possui todas as principais características dos direitos humanos, quais sejam: é um direito geral por se aplicar a todos os seres humanos sem distinção; é mais importante do que os direitos não fundamentais por representar, juntamente com os demais direitos humanos, a base para aqueles e por ser condição para sobrevivência humana; é essencial independentemente do tempo ou lugar e, assim, é imutável em seu valor e importância.

Com efeito, verifica-se que o ponto tangencial entre o direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado e os direitos humanos está na fundamentação de ambos que é o direito à vida e à saúde, com vistas a garantir uma vida saudável. Logo, só é possível viver com qualidade e saúde

53 SILVA, José Afonso da. Direito Ambiental Constitucional. 4. ed. São Paulo: Malheiros Editores. 2005. p. 20.54 “Todos têm direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, bem de uso comum do povo e essencial à sadia qualidade de vida, impondo-se ao Poder Público e à coletividade o dever de defendê-lo e preservá-lo para as presentes e futuras gerações.”55 BAZAN, Luís Henrique Ayala. Direito ao desenvolvimento sustentável homogêneo e heterogêneo. Breve análise no federalismo brasileiro. Jus Navigandi, Teresina, a. 9, n. 633, 2 abr. 2005. Disponível em: <http://jus2.uol.com.br/doutrina/texto.asp?id=6558>. Acesso em: 23 set. 2005.56 SILVA, José Afonso da. Fundamentos Constitucionais da Proteção do Meio Ambiente. Revista de Direito Ambiental, São Paulo: Ed. Revista dos Tribunais, ano 7, jul./set. 2002. p. 51-52.

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se o meio ambiente estiver equilibrado57.Dessa forma, o meio ambiente ecologicamente equilibrado,

indubitavelmente, passa a integrar o rol dos direitos humanos. Tal conclusão parte da premissa de que a tutela do meio ambiente é um meio instrumental através do qual se visa a proteger um valor maior que é a qualidade de vida. Está-se, pois, diante de uma nova projeção do direito à vida, já que nele há de ser incluída a manutenção das condições ambientais que são suportes da própria vida58.

Ressalte-se que o direito à qualidade de vida como direito fundamental é reconhecido desde a Declaração Universal dos Direitos do Homem em 1948, em seu artigo XXV59, bem como pela Declaração do Meio Ambiente adotada pela Conferência das Nações Unidas, em Estocolmo, em junho de 1972.

Ao se tratar do direito a meio ambiente como direito humano, está-se estabelecendo um vínculo do desenvolvimento com os direitos humanos, direito a condições dignas de vida e ao meio ambiente sadio e ecologicamente equilibrado como meio de atender as necessidades das presentes e futuras gerações, o que se perfaz como pressuposto para o respeito e concretização do desenvolvimento sustentável e para a formação de cidades sustentáveis.60

O meio ambiente ecologicamente equilibrado correlaciona-se, como já se destacou acima, diretamente com a noção de qualidade de vida que, por seu turno, depende de condições objetivas e subjetivas para ser definida, o que dificulta sobremaneira sua conceituação.

É certo que vai além dos conceitos de salubridade, saúde, segurança, infra-estrutura e desenho urbano. Importante notar que a qualidade de vida vai incorporar, principalmente, as possibilidades de atendimento dos anseios dos indivíduos que a procuram e isso traz ínsita a imagem que cada indivíduo dela constrói, de acordo com seus interesses, objetivos e expectativas de vida.

Na lição de Carla Capena, para conceituar a qualidade de vida, devem ser levados em consideração quatro aspectos: aspectos espaciais, biológicos, sociais e econômicos que irão variar e alterar-se à medida que os atores, com seus interesses, objetivos e expectativas modificam-se. Assim, melhor 57 PAIM. Op. cit. p. 64-65.58 SILVA, José Afonso da. Direito Ambiental Constitucional. 4. ed. São Paulo: Malheiros Editores. 2005. p. 58.59 CAPENA, Carla. Cidades Sustentáveis. In: GARCIA, Maria (coord.) A Cidade e seu Estatuto. São Paulo: Juarez de Oliveira, 2005. p. 140.60 CAPENA. Op. cit. p. 150.

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definição será aquela que se pautar na sensação de bem estar do indivíduo. Entretanto, esta sensação está sujeita a fatores objetivos e externos e subjetivos e internos, dos quais o indivíduo dificilmente conseguirá escapar, tais como prazer, conforto, privacidade, segurança, o papel social ou status, a liberdade61, acesso à tecnologia, serviço de saúde eficaz, moradia, só para citar alguns.

Dessa forma, conceituar qualidade de vida torna-se tarefa muito difícil diante da dificuldade em se estabelecer quais critérios mínimos que mereceriam ser atendidos de modo geral, já que essa sensação de bem estar do indivíduo varia de pessoa para pessoa, de classe social para classe social, de localidade para localidade.

O importante é ter sempre a consciência de que o direito à vida, como matriz de todos os demais direitos fundamentais do Homem, deve ser o vetor para a proteção do meio ambiente, devendo estar acima de quaisquer outras considerações.

Vale registrar alguns dos principais documentos internacionais que previram o meio ambiente como direito humano e direito fundamental, resultado da conscientização que levou à necessidade de se conferir base legal ao meio ambiente no âmbito internacional.

A Declaração de Estocolmo, 1972, organizada pela ONU, resultado da Conferência de Estocolmo, além de reconhecer expressamente o direito ambiental como direito fundamental62, instituiu o Programa das Nações Unidas sobre Meio Ambiente.

A Carta Africana dos Direitos Humanos e dos Direitos dos Povos de 1981 teve sua importância por ser a primeira convenção a afirmar o direito dos povos à preservação do equilíbrio ecológico63.

A Carta Mundial da Natureza de 1982 que estabeleceu uma série de princípios dirigidos à humanidade por ser esta parte da natureza e a vida depende do funcionamento ininterrupto dos sistemas naturais.

61 CAPENA. Op. cit. p. 139.62 “Princípio I. O homem tem direito fundamental à liberdade, à igualdade e ao desfrute de condições de vida adequada em um meio ambiente de qualidade tal que lhe permita levar uma vida digna e gozar de bem-estar, e é portador solene de obrigação de melhorar esse meio ambiente, para as gerações presentes e futuras. A esse respeito as políticas que promovam ou perpetuem o apartheid, a segregação racial, a discriminação, a opressão e dominação estrangeira continuam condenadas e devem ser eliminadas.”63 PAIM. Op. cit p. 73.

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A Comissão Mundial sobre o Meio Ambiente ou Comissão Brundtland, de 1987 que também em seu princípio I definiu o direito a um meio ambiente adequado à saúde e bem-estar como direito fundamental todos os seres humanos, além de definir o conceito de desenvolvimento sustentável, como sendo aquele atende as necessidades do presente sem comprometer as gerações futuras em relação à satisfação das suas próprias necessidades.

O Protocolo Adicional à Convenção Americana sobre Direitos Humanos em matéria de Direitos Econômicos, Sociais e Culturais de 1988, ou Protocolo de São Salvador que inovou ao incluir em seu texto que os Estados signatários devem promover a proteção, preservação e melhoramento do meio ambiente.

A Declaração do Rio de Janeiro e a Agenda 21 provêm da Conferência das Nações Unidas sobre Meio Ambiente e Desenvolvimento ou ECO-92.

A primeira trouxe a correlação que faltava entre desenvolvimento sustentável e meio ambiente ecologicamente equilibrado, e a segunda consiste em um plano global para o século XXI, com ênfase na gestão ambiental descentralizada e participativa, focalizando o plano regional e priorizando uma mudança comportamental do ser humano perante a natureza, que não pode mais ser vista como uma mercadoria inesgotável.

A Convenção sobre a Diversidade Biológica, de 5 de junho de 1992, analisa a questão da conservação da diversidade biológica como sendo um interesse comum da humanidade e a utilização sustentada de seus componentes além da repartição justa e eqüitativa dos benefícios derivados das utilização e exploração dos recursos genéticos, com a adequada transferência de tecnologias, visando, em especial, à preservação de animais e espécies vegetais em seu habitat natural.

Por fim, a Convenção sobre Mudança do Clima, firmada pela ECO-92, que estabeleceu normas para redução na emissão de gases poluentes que aceleram o efeito estufa e a destruição da camada de ozônio e o Protocolo de Kyoto que veio, em 1997, para ratificar os ditames da Convenção do Clima. Inovou o Protocolo ao lançar a idéia de banco para emissão de carbono, que poderá ser quantificado monetariamente e negociado entre as nações signatárias.

Com essa explanação, mencionando-se todos os principais documentos pertinente à temática ambiental, conclui-se pela hodierna vital importância que lhe conferida no âmbito internacional, o que precisa ser concretizado na esfera regional, de acordo com as especificidades de cada

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localidade.Por outro lado, ainda faz-se necessária buscar uma verdadeira

conscientização da sociedade e dos governos para efetivar esse direito ambiental, o que demanda a participação de todos os atores sociais e exige uma mudança comportamental do ser humano, o que será debatido logo a seguir, ao se cuidar da questão da ética ambiental.

5. A Ética Ambiental

É mister, neste momento, analisar a questão da ética nas relações ecológicas, a qual, obviamente, não se limita apenas a discutir quem deve suportar o ônus da preservação, o que será visto neste tópico.

A questão principal a ser desenvolvida transcende a titularidade da preservação e prescinde de uma mudança comportamental do ser humano em relação à natureza.

Mais abrangente que a dimensão normativa, a angulação moral, sem dúvida alguma, impõe uma nova ética que objetiva afastar a visão de ser a sociedade um mercado consumidor e o meio ambiente como uma mercadoria a ser comercializada sem critérios ou freios, de maneira predatória e irresponsável64.

Segue-se, adiante, uma breve análise da ética ambiental, apresentando alguns dos seus aspectos, tendo sido adotado em grande parte, como base do presente estudo, a abordagem elaborada por José Roque Junges em sua obra “Ética Ambiental”.

Percebe-se, portanto, que, atualmente, diante da crise ecológica que se apresenta mundialmente, as questões ambientais não dependem simplesmente de soluções técnicas como solução, mas pedem uma resposta ética, o que se verifica pelo crescente debate em torno da consciência e sensibilidade ecológicas que surgiram como reação a uma mentalidade predatória da natureza, mormente por se saber que os recursos naturais não são uma fonte infinita e ilimitada, à disposição para livre exploração.

Com base nesse raciocínio que surge o dever moral de utilizar os bens naturais de forma equilibrada, solidária e harmônica, afastando-se de vez a idéia que permeou o processo socioeconômico da origem do capitalismo, onde a ideologia predominante era utilizar os recursos naturais disponíveis e tirar o máximo de proveito imediato e o mais rapidamente possível.64 SÉGUIN, Elida. Direito Ambiental: nossa casa planetária. 2. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2002. p. 125.

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Em conseqüência, foram surgindo enfoques antropocêntricos ou biocêntricos na discussão ética da ecologia, afirmando os primeiros que o ser humano é uma figura protagonista no mundo e os problemas ambientais seriam resolvidos sob a perspectiva do papel central do homem em relação à natureza e tem como ponto de partida o ser humano em sua moralidade.

Já os biocêntricos defendem que o ser humano é apenas um elemento a mais no ecossistema da natureza, um elo entre muitos na cadeia de reprodução da vida, entendendo a ecologia como conhecimento e prática de preservação do meio ambiente. Apresenta-se como a única postura coerente de defesa da natureza e preservação do meio ambiente.

Essas são as duas grandes tendências de ética ecológica. Note-se que elas excluem-se entre si. Importante ressaltar, outrossim, que as dificuldades ecológicas só serão equacionadas com a construção de uma sociedade justa e igualitária, priorizando e valorizando a vida em sentido amplo65.

O antropocentrismo admite a existência de deveres humanos em relação à natureza, mesmo que de forma indireta, ou de uma responsabilidade dos homens pelos recursos naturais em prol das gerações futuras. Defende o estabelecimento de limites e regras para a intervenção na natureza e o uso dos recursos naturais para o bem dos próprios seres humanos. Todavia, as restrições pautam-se nos interesses, necessidades ou preferências humanas e não na natureza, seu equilíbrio ou harmonia66.

Fala-se em éticas conservacionistas ou preservacionistas conforme o tipo de interesse humano em destaque.

As éticas de conservação baseiam-se em medidas coercitivas drásticas que limitam as nações ricas em seu consumo e as nações pobres em sua população, pensando a humanidade como um todo sem levar em consideração a preservação do ecossistema. Busca a sobrevivência da civilização e não da biosfera natural67.

As éticas de preservação apontam para valores não-materiais da natureza, sendo esta detentora de valor científico por ser fornecedora de conhecimentos inestimáveis para a pesquisa, para encontrar a excelência moral do ser humano e para fornecer normas de comportamento. O estudo da natureza, sob esta perspectiva, possibilita a formulação de uma ética natural.

As éticas de preservação podem ser divididas em modelos. O 65 JUNGES, José Roque. Ética Ambiental. São Leopoldo: Editora Usininos, 2004. p. 7-10.66 Ibidem. p . 13-14. 67 Ibidem. p. 15.

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primeiro focaliza a importância da proteção da natureza para a formação e a consolidação da identificação civil e cultural de um grupo nacional, já que são necessários símbolos que se associam a essa identidade, como o são os elementos da natureza. O segundo acredita estar no conhecimento da natureza a base para a formação do caráter moral dos seres humanos, visualizando a ecologia como ciência que ensina a conhecer os níveis de interdependência dos diferentes elementos de um ecossistema, preservando o equilíbrio e prevendo conseqüências de uma intervenção humana. O terceiro, por seu turno, privilegia a fruição das belezas naturais porque, dessa forma, a contemplação do belo levaria o ser humano a melhorar o seu caráter. O último modelo preza por uma ecologia profunda que afirma não se poder reduzir a crise ambiental exclusivamente a um conflito ético porque demanda uma mudança de paradigmas conceituais e de percepção do mundo68.

A conclusão a que se chega é que o modelo do homem egoico, compreendido como indivíduo isolado e separado do mundo, encarando a natureza como um objeto que se encontra a seu dispor, cria patologias ambientais. A partir da superação da concepção do ser humano como espécie dominante é que surge o ser humano ecóico em vez do egoico.

Percebe-se, com esta breve explanação, que a ecologia profunda ainda se encontra entre as éticas ecológicas que têm o ser humano como ponto de partida já que se fundamenta na mutação do paradigma de percepção da natureza por parte do ser humano. Apesar disso, ela é significativa por privilegiar a vida como enfoque para a construção do discurso ético69.

O biocentrismo, por sua vez, defende a existência de deveres diretos e indiretos do ser humano para com o meio ambiente que passa a ser titular de direitos.

Existem dois tipos de tendências éticas antiantropocêntricas: biocentrismo mitigado e o biocentrismo global ou ecocentrismo.

O biocentrismo mitigado defende que entidades individuais, detentoras de vida e de sensações, merecem a tutela moral porque são titulares de direitos. Assim, há quem defenda que os animais são sujeitos de vida e, portanto, detentores de autonomia e identidade; há quem afirme que os animais são receptáculos de dor e prazer e há aqueles que estendem a consideração moral aos seres biologicamente organizados e não apenas aos que têm sensações, dando igual consideração a todos os viventes. Porém, essa posição individualizada dos seres vivos é totalmente inviável e 68 JUNGES. Op. cit.p. 17-21.69 Ibidem. p. 22.

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problemáticas para uma visão ecológica70.O biocentrismo global ou ecocentrismo é fortemente

antiantropocêntrico e holístico, não fazendo analogias entre humanos e não-humanos para defender suas posições, como acontece com o biocentrismo mitigado quando fala de sujeito moral ou de direitos de seres individuais. Parte dos conhecimentos científicos da ecologia, do reconhecimento da natureza como um conjunto interdependente para chegar a normas em relação ao meio ambiente. Assim, passa a merecer consideração moral não apenas entidades individuais, como também conjuntos sistêmicos: ecossistemas, biosfera, cadeias alimentares, fluxos energéticos.

Ele valoriza a vida enquanto tal, como um processo global e que depende de inter-relações para sua reprodução, o que se explica pelo equilíbrio existente nos ecossistemas em decorrência das cadeias alimentares. Inspira-se, portanto, na ética do respeito à vida, defendendo uma moral de solidariedade e de simpatia a toda a forma de vida.

Também pode ser vislumbrada a ética biocêntrica global no modelo chamado Ética da Terra, proposto por Aldo Leopold em 1949. Para ele, uma atitude é moralmente justa quando pretende preservar a integridade, a estabilidade e a beleza da comunidade biótica. Sua ética está fundada no fato de pertencer a comunidades bióticas, às quais estão todos os seres ligados como membros. Sendo a Terra uma comunidade biótica, deve-se respeito e empenho à sua preservação e manutenção do equilíbrio71.

O ecocentrismo assume uma posição antiantropocêntrica porque se contrapõe à idéia do homem auto-suficiente e onipotente, produzido pela modernidade, descontextualizado de iter-relações com seu entorno humano e das interdependências do seu ambiente natural. Considera este homem o responsável pelo desastre ecológico que vivenciamos.

É claro que o homem, por ter consciência e intenção ética, possui um papel fundamental no contexto da biosfera e isso não se pretende negar aqui. Por isso que a ética ecológica centra-se naquilo que o homem pode e deve fazer para preservar o meio ambiente natural. Em razão disso que se configura equivocado afastar totalmente da questão ecológica eis que o desafio ambiental consiste exatamente na mudança de atitude do ser humano perante a natureza, que não pode ser reduzida a atender apenas aos interesses humanos, não deve ser vista como um objeto por ser ela a matriz da vida72.70 Ibidem. p. 24-27.71 JUNGES. Op. cit. p. 27-3372 Ibidem. p. 64-66.

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6. Conclusões

A partir de tudo o que foi exposto neste trabalho, pode-se chegar a algumas conclusões acerca da temática envolvida.

Primeiramente, verificou-se que o longo caminho traçado pelo reconhecimento e tutela dos direitos humanos culminou em inúmeros direitos positivados pelo ordenamento jurídico interno dos Estados, mediante Declarações e Constituições, e por tratados internacionais, decorrentes do recente processo de internacionalização e universalização dos direitos humanos.

Esses direitos ganharam força e notoriedade o que foi conquistado por meio de muitas lutas, revoluções e esforço para sua salvaguarda.

Foram classificados em gerações, o que não significa que eles sejam estanques ou valorizados somente naquele momento histórico. Pelo contrário, estão em constante evolução e surgimento e complementam-se, o que só faz aumentar o rol de direitos consagrados e resguardar a dignidade do homem, a sua qualidade de vida, sendo estas as suas bases.

Contudo, toda a ideologia promovida e divulgada pelo discurso de garantia e implementação dos direitos humanos está se esvaziando em decorrência do veloz processo de globalização que, se por um lado traz muitos benefícios como uma maior conexão entre as nações o que pode levar a uma interferência de um Estado em outro para fins de fazer prevalecer a proteção dos direitos humanos, por outro lado deixa claro que o interesse maior sempre em jogo é o econômico.

Portanto, não se pode permitir que séculos de conquistas em termos de reconhecimento e tutela dos direitos humanos percam-se frente à ganância de muitas nações movidas por um sistema capitalista quase que irracional, que visa apenas ao lucro e à acumulação de riquezas.

Dessa forma, busca-se um despertar de consciência dos atores sociais, envolvendo os governos, as comunidades, os ativistas, as organizações não governamentais, entre outros, para que comecem a agir em conjunto em prol dessa mudança de paradigma, da mudança de comportamento e atitude.

Sabe-se que a erradicação total da pobreza, o fim da segregação espacial e racial ainda estão longe de se efetivarem. Nem por isso os indivíduos devem acometer-se da desesperança, do desânimo ou do conformismo. Basta olhar para trás e observar que grandes transformações e mudanças requerem persistência e observância dos ideais.

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Não se pretende, contudo, negar a existência de atuação de diversos grupos e governos neste sentido. É certo que eles ganham espaço a cada dia e suas conquistas já começam a ter caráter multisetorial e atingem mais de um lugar ao mesmo tempo.

O que se quer é lançar o desafio de uma verdadeira atuação em conjunto com vistas a compreender diversas localidades do planeta, atingir povos que têm seus direitos humanos diariamente violados, implantar uma ação global e perseguir a paz mundial a todo custo.

Em relação ao direito ambiental, constata-se, outrossim, a urgente atuação do homem no que tange a evitar maiores danos à natureza. É mister um controle maior pelos Estados da exploração dos recursos naturais, notadamente os recursos não renováveis. Necessário também se faz a elaboração de instrumentos mais eficazes para essa fiscalização e, acima de tudo, é importante haver uma conscientização do homem para que vislumbre na natureza o devido valor que a ela deve ser conferido.

Sem essa mudança, não adianta querer falar em desenvolvimento sustentável, em meio ambiente ecologicamente equilibrado ou na herança do patrimônio natural deixada para as futuras gerações.

7. Referências Bibliográficas

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EVOLUÇÃO HISTÓRICA DA TEORIA HERMENÊUTICA:

DO FORMALISMO DO SÉCULO XVIII AO PÓS-POSITIVISMO

Sergio André Rocha

O propósito deste estudo é a apresentação de considerações acerca de aspectos relevantes das principais escolas hermenêuticas que se sucederam ao longo dos dois últimos séculos, com vistas a formar uma compreensão de como se apresenta a questão da interpretação jurídica hodiernamente.

1. O formalismo jurídico na Alemanha, na Inglaterra e na França

1.1. A jurisprudência dos conceitos e o formalismo jurídico alemão do Século XIX

1.1.1. A escola histórica do direito

O formalismo jurídico na Alemanha e a reação ao direito natural forjaram-se ao longo do século XIX, em princípio com o desenvolvimento da escola histórica do direito e posteriormente com o surgimento da jurisprudência dos conceitos.

O historicismo, que teve início com Gustav Hugo (1764 - 1844) e encontrou seu mais célebre expoente na figura de Friedrich Karl von Savigny (1779 - 1861), legou à jurisprudência dos conceitos a idéia de sistema, extremamente relevante para o seu desenvolvimento.1 Ademais, a escola histórica colocava-se em ponto de colisão com as idéias jus naturalistas, na medida em que, como destaca Norberto Bobbio, “ao direito natural a escola histórica contrapõe o direito consuetudinário, considerado como a forma genuína do direito, enquanto expressão imediata da realidade histórico social

1 Cf. LARENZ, Karl. Metodologia da Ciência do Direito. 3.ed. Tradução José Lamego. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 1997. p. 19; GUERRA FILHO, Willis Santiago. Teoria da Ciência Jurídica. São Paulo: Saraiva, 2001. p. 31.

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e do Volksgeist”.2Todavia, o historicismo rejeitava a possibilidade de que as leis

pudessem ser criadas ex nihilo pelo legislador, sendo estas, na verdade, um fenômeno histórico.3

Tal característica encontra-se relacionada com a própria fragmentação que a Alemanha ostentou até a segunda metade do Século XIX. Não havendo ainda um Estado alemão não havia a crença na prevalência de um direito posto.4

Nesse contexto se encaixa a separação feita por Savigny entre as regras de direito e os institutos jurídicos, a qual de certa forma aproxima seu historicismo da jurisprudência dos conceitos, na medida em que se sustenta que os institutos jurídicos, forjados pelo espírito do povo,5 é que devem 2 BOBBIO, Norberto. O Positivismo Jurídico: Lições de Filosofia do Direito. Tradução Márcio Pugliesi; Edson Bini; Carlos E. Rodrigues. São Paulo: Ícone, 1995. p. 53. Ver, ainda: RADBRUCH, Gustav. Filosofia do Direito. 6. ed. Tradução L. Cabral de Moncada. Coimbra: Arménio Amado, 1997. p. 64 e 65; KAUFMANN, Arthur. Filosofía del Derecho. Tradução Luis Villar Borda. Bogotá: Universidad Externado de Colombia, 1999. p. 70; ADEODATO, João Maurício. Positividade e Conceito de Direito. In: Ética e Retórica: Para uma Teoria da Dogmática Jurídica. São Paulo: Saraiva, 2002. p. 20 e 21; ROBLES, Gregorio. Introducción a la teoría del derecho. 6. ed. Barcelona: Debate, 2003. p. 137; COELHO, L. Fernando. Lógica Jurídica e Interpretação das Leis. 2. ed. Rio de Janeiro: Forense, 1981. p. 233-234.3 Cf. ATIENZA, Manuel. El Sentido del Derecho. 2. ed. Barcelona: Ariel, 2003. p. 232; FERAZ JR., Tercio Sampaio. Introdução ao Estudo do Direito. 3. ed. São Paulo: Atlas, 2001. p. 76.4 Cf. HESPANHA, António Manuel. Cultura Jurídica Européia: Síntese de um Milénio. Mem Martins: Europa-America, 2003. p. 270.5 Cf. SAVIGNY, Friedrich Karl von. Sistema del Derecho Romano Actual. 2. ed. Tradução Jacinto Mesía; Manuel Poley. Madrid: Editorial de Góngora, [s/d]. t. I. p. 66 e 67. Conforme destaca Giorgio del Vecchio, “a ‘consciência histórica do povo’ é um conceito característico da escola histórica do Direito, que o derivou do historicismo filosófico de Schelling e Hegel, tanto que pode ser considerado como uma particular aplicação das doutrinas desses filósofos no campo do Direito. Segundo a escola histórica, todo povo tem um espírito, uma alma própria, que se reflete em uma numerosa série de manifestações: Moral, Direito, Arte, Linguagem, os quais são todos produtores espontâneos e imediatos do espírito popular (Volksgeist)” (DEL VECCHIO, Giorgio. Filosofia del Derecho. 9. ed. Barcelona: Bosch, 1997. p. 120 e 121). Ver também: RECASENS SICHES, Luis. Tratado General de Filosofía del Derecho. 14. ed. México: Editorial Porrúa, 1999. p. 441;

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servir de baliza para a compreensão das regras de direito, de forma que “o legislador cria a regra isolada a partir da idéia que ele formou do instituto jurídico como um todo”.6

É evidente que esses traços de aproximação não significam que o historicismo se confunda com a jurisprudência dos conceitos. De fato, considerando a gênese consuetudinária dos institutos jurídicos de Savigny, jamais se poderia ver os mesmos como conceitos. Como bem ponderam Jean-Cassien Biller e Aglaé Maryioli, “o enfoque histórico redundou em um trabalho de genealogia de conceitos que não é mais histórica, é lógica”.7

Outro importante legado de Savigny foi sua teoria da interpretação.Com efeito, destacava o mestre alemão a indispensabilidade da

interpretação como forma de interação entre o intérprete e o texto, ressaltando que a interpretação “é indispensável para toda aplicação da lei à vida real”, de forma que esta “não está restrita, como crêem alguns, ao caso acidental de obscuridade da lei”.8

OLIVEIRA ASCENÇÃO, José de. Introdução à Ciência do Direito. 3. ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2005. p. 163.6 Cf. COING, Helmut. Elementos Fundamentais da Filosofia do Direito. Tradução Elisete Antoniuk. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris, 2002. p. 315. Nas palavras de Savigny: “A solução de um caso prático não é possível senão referindo-o a uma regra geral, que domine os casos particulares. Esta regra se chama direito, ou direito geral, ou às vezes também direito em sentido objetivo. Se manifesta sobretudo na lei, isto é, na regra promulgada pela autoridade suprema de um Estado.Se a decisão de um caso particular é de natureza restrita e subordinada; se encontra sua raiz viva e sua força de convicção na apreciação da relação de direito, a regra jurídica e a lei, que é sua expressão, têm por base as instituições cuja natureza orgânica se mostra no conjunto mesmo de suas partes constitutivas e em seus desenvolvimentos sucessivos. Assim, pois, quando não se quer limitar-se às manifestações exteriores, mas sim penetrar a essência das coisas, reconhece-se que cada elemento da relação de direito refere-se a uma instituição que o domina e lhe serve de tipo, da mesma forma que cada decisão está dominada por uma regra e este segundo encadeamento, ligando-se ao primeiro, encontra ali a realidade e a vida” (SAVIGNY, Friedrich Karl von, Sistema del Derecho Romano Actual, [s/d], t. I, p. 81).7 BILLIER, Jean-Cassien; MARYIOLI, Aglaé. História da Filosofia do Direito. Barueri: Manole, 2005. p. 191.8 SAVIGNY, Friedrich Karl von, Sistema del Derecho Romano Actual, [s/d], t. I, p. 184.

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Para Savigny, a interpretação seria “a reconstrução do pensamento contido na lei”, podendo a mesma ser decomposta em partes constitutivas, as quais correspondem aos seus quatro elementos (note-se que Savigny fala em elementos e não em métodos): gramatical, lógico, histórico e sistemático.9

Esses seriam os elementos constitutivos de todo e qualquer processo interpretativo, não se podendo escolher um deles em detrimento dos demais, sendo o exame de todos os elementos indispensável para a interpretação da lei.10

Diante do exposto, é possível afirmar que a escola histórica do direito legou à jurisprudência dos conceitos alguns dos fundamentos sobre os quais esta se desenvolveu: seu caráter positivo,11 sua sistematicidade12 e a própria busca de justificação do mais específico no mais geral.13

1.2. A jurisprudência dos conceitos

Diante do exposto, tem-se que a jurisprudência dos conceitos partiu de alguns alicerces lançados pela escola história, os quais foram trabalhados por Friedrich Puchta (1798-1846), discípulo de Savigny, para o desenvolvimento de sua genealogia dos conceitos.14

Os principais expoentes da jurisprudência dos conceitos foram o 9 SAVIGNY, Friedrich Karl von, Sistema del Derecho Romano Actual, [s/d], t. I, p. 187.10 SAVIGNY, Friedrich Karl von, Sistema del Derecho Romano Actual, [s/d], t. I, p. 189.11 Cf. ALCHOURRÓN, Carlos E. Introducción a la Metodología de las Ciencias Jurídicas y Sociales. Buenos Aires: Editorial Astrea, 2002. p. 90.12 Cf. HESPANHA, António Manuel, Cultura Jurídica Européia: Síntese de um Milénio, 2003, p. 274; ANDRADE, José Maria Arruda de. Interpretação da Norma Tributária. São Paulo: MP Editora, 2006. p. 47.13 Mencionando a relação entre a escola histórica e a jurisprudência dos conceitos, ver: DEL VECCHIO, Giorgio, Filosofia del Derecho, 1997, p. 121; LARENZ, Karl, Metodologia da Ciência do Direito, 1997, p. 19; ATIENZA, Manuel, El Sentido del Derecho, 2003, p. 233; FERNÁNDEZ-LARGO, Antonio Osuna. La Hermenéutica Jurídica de Hans-Georg Gadamer. Valladolid: Secretariado de Publicaciones, 1992. p. 20.14 Cf. FERAZ JR., Tercio Sampaio, Introdução ao Estudo do Direito, 2001, p. 77; LARENZ, Karl, Metodologia da Ciência do Direito, 1997, p. 23; HESPANHA, António Manuel, Cultura Jurídica Européia: Síntese de um Milénio, 2003, p. 274.

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supracitado Friedrich Puchta e Rudolf von Ihering (1818-1892), embora este último tenha posteriormente tornado-se um de seus maiores opositores.15

A jurisprudência dos conceitos reflete uma teoria jurídica lógico-racionalista, na medida em que atribui aos conceitos jurídicos a possibilidade de enclausurar o direito, sendo desnecessária qualquer valoração para a compreensão das regras jurídicas, mas sim a sua recondução a conceitos superiores.16

Tem-se aqui o cerne da genealogia dos conceitos de Puchta, explicitada por Karl Larenz nos seguintes termos:

A idéia de Puchta é a seguinte: cada conceito superior autoriza certas afirmações (por ex., o conceito de direito subjetivo é de que se trata de ‘um poder sobre um objeto’); por conseguinte, se um conceito inferior se subsumir ao superior, valerão para ele ‘forçosamente’ todas as afirmações que se fizerem sobre o conceito superior (para o crédito, como espécie de direito subjetivo, significa isto, por ex., que ele é ‘um poder sobre um objeto que esteja sujeito à vontade do credor e que se poderá então vislumbrar, ou na pessoa do devedor, ou no comportamento devido por este último’). A ‘genealogia dos conceitos’ ensina, portanto, que o conceito supremo, de que se deduzem todos os

15 Sobre a teoria conceitualista de Ihering, ver: HART, H. L. A. Jhering’s Heaven of Concepts. In: Essays in Jurisprudence and Philosophy. New York: Oxford University Press, 2001. p. 265-277.16 Nas palavras de Arthur Kaufmann, “traço característico da jurisprudência dos conceitos, que não tem de estar, forçosamente, dependente do positivismo, é a dedução de princípios jurídicos a partir de meros conceitos; por exemplo, do conceito de ‘pessoa jurídica’ retira-se a conseqüência de que a pessoa jurídica, enquanto ‘pessoa’, é suscetível de ser ofendida e de ser incriminada. Os conceitos servem de fonte de conhecimento. É nesse ontologismo, de acordo com o qual a existência procede da essência, que repousa a famosa demonstração ontológica de Deus: do conceito do ‘ser mais perfeito’ resultaria necessariamente a sua existência (caso contrário ele não seria perfeito)” (KAUFMANN, Arthur. A problemática da filosofia do direito ao longo da história. In: KAUFMANN, Arthur; ACEDER, W. (Ufrgs.). Introdução à Filosofia do Direito e à Teoria do Direito Contemporâneas. Tradução Marcos Keel. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 2002. p. 168).

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outros, codetermina os restantes através do seu conteúdo. Porém, de onde precede o conteúdo desse conceito supremo? Um conteúdo terá ele que possuir, se é que dele se podem extrair determinados enunciados, e esse conteúdo não deve proceder dos conceitos dele inferidos, sob pena de ser tudo isto um círculo vicioso. Segundo Puchta, este conteúdo procede da filosofia do Direito: assim, consegue um ponto de partida seguro com que construir dedutivamente todo o sistema e inferir novas proposições jurídicas.17

Partindo-se dessas idéias, é possível compreender a jurisprudência dos conceitos como uma doutrina formalista, segundo a qual a atividade de interpretação/aplicação do direito dar-se-ia de forma lógico-dedutiva, mediante a subsunção de conceitos inferiores a conceitos superiores.18

A genealogia dos conceitos implica um sistema jurídico organizado de forma piramidal, de forma que os conceitos inferiores se legitimam na medida em que podem ser reconduzidos subsuntivamente a conceitos superiores, até se chegar ao conceito supremo que, segundo Puchta, procederia da filosofia.19

Assim, percebe-se que a validade dos conceitos inferiores é definida em termos puramente lógicos, sem qualquer implicação axiológica. Conforme salienta Helmut Coing, “com isto, tanto o trabalho da ciência como o do juiz, torna-se uma atividade puramente lógica: os interesses e valores em jogo não mais aparecem”.20

Na lição de Oliveira Ascenção, decorrência da forma de pensar conceitualista é a idéia de completude do sistema jurídico, de modo que “por

17 LARENZ, Karl, Metodologia da Ciência do Direito, 1997, p. 25.18 Ver: HESPANHA, António Manuel, Cultura Jurídica Européia: Síntese de um Milénio, 2003, p. 283; ANDRADE, José Maria Arruda de, Interpretação da Norma Tributária, 2006, p. 48.19 Cf. LARENZ, Karl, Metodologia da Ciência do Direito, 1997, p. 25. 20 COING, Helmut, Elementos Fundamentais da Filosofia do Direito, 2002, p. 318. Para Arthur Kaufmann, “o método da jurisprudência dos conceitos serviu aos seus representantes para provar que a lei seria fecunda por si mesma, sem recurso às situações da vida” (KAUFMANN, Arthur. A problemática da filosofia do direito ao longo da história, 2002, p. 168).

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processos lógicos, o jurista extrairia do sistema sempre a regra adequada para regular uma situação. Pode aparentemente essa regra faltar e existir uma lacuna; mas no fundo toda a regra estará ao menos implícita no sistema”.21

Aspecto interessante do formalismo alemão do Século XIX é que o mesmo desenvolveu-se antes que a Alemanha tivesse concretizado sua codificação, o que somente viria a acontecer com a edição do Código Civil Alemão que entrou em vigor no ano de 1900.

Como se sabe, o próprio Savigny era um opositor da ideia da codificação na Alemanha, o que deu azo à célebre contenda com Anton Justus Friedrich Thibaut (1772-1840), defensor do esforço codificante.22

Tal fato já denuncia um traço diferencial entre a jurisprudência dos conceitos alemã e a escola da exegese francesa, a ser examinada a seguir. Embora tratem-se de duas escolas formalistas, o formalismo alemão forjou-se com base na consciência histórica e na lógica conceitual, enquanto o formalismo exegético francês tinha como ponto de partida um monumento jurídico-positivo: o Código Civil Napoleônico de 1804.

1.3. A escola da exegese e o formalismo jurídico francês do Século

21 OLIVEIRA ASCENÇÃO, José de, Introdução à Ciência do Direito, 2005, p. 458. Também nesse sentido: HECK, Philipp. El Problema de la Creación del Derecho. Tradução Manuel Entenza. Granada: Comares, 1999. p. 35; FERAZ JR., Tercio Sampaio, Introdução ao Estudo do Direito, 2001, p. 79. Os principais traços da jurisprudência dos conceitos encontram-se bem sintetizados nas seguintes palavras de Maria Margarida Lacombe Camargo: “A atividade científica consistia em estabelecer conceitos bem definidos, que pudessem garantir segurança às relações jurídicas, uma vez diminuída a ambigüidade e a vaguedade dos termos legais. E foi por meio da elaboração de conceitos gerais, posicionados na parte superior da figura de uma pirâmide, capazes de conter e dar origem a outros conceitos de menor alcance numa união total, perfeita e acabada, que o direito alcançou seu maior grau de abstração e autonomia como campo de conhecimento. Esse alto grau de racionalidade deu origem ao ‘dogma da subsunção’ que irá se impor no século seguinte. O direito era tido como fruto de um desdobramento lógico-dedutivo entre premissas capazes de gerar por si sós uma conclusão que servisse de juízo concreto para cada decisão. [...]” (CAMARGO, Maria Margarida Lacombe. Hermenêutica Jurídica e Argumentação: Uma Contribuição ao Estudo do Direito. 2. ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2001. p. 87).22 Sobre o movimento pela codificação de Thibaut e sua contenda com Savigny, ver: BOBBIO, Norberto, O Positivismo Jurídico: Lições de Filosofia do Direito, 1995, p. 53-62.

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XIX

A escola da exegese francesa desenvolveu-se no século XIX principalmente a partir da edição do Código Civil Francês de 1804, o Código de Napoleão, tendo entre seus expoentes Jean Ch. F. Demolombe, Troplong, Alexandre Duranton, Proudhon, Charles Aubry, Frédéric Charles Rau e Pothier, entre outros juristas franceses.23

Como visto, ao contrário da jurisprudência dos conceitos, o exegetismo francês representou um formalismo legalista, na medida em que, tendo por base a magnífica obra legislativa que foi o Código de Napoleão, pensavam os juristas franceses da época ser possível encontrar, no texto da lei, respostas para todas as controvérsias surgidas no âmbito do convívio social.24

Com isso, relegou-se ao intérprete/aplicador do direito uma tarefa 23 Nas palavras de Maria Helena Diniz, “a escola da exegese reuniu a quase-totalidade dos juristas franceses [...] durante a época da codificação do direito civil francês e o tempo que se sucedeu à promulgação do célebre Código de Napoleão” (DINIZ, Maria Helena. Compêndio de Introdução à Ciência do Direito. 5. ed. São Paulo: Saraiva, 1993. p. 47).24 Segundo Maria Margarida Lacombe Camargo, “havia uma pretensão de se encontrar na lei a resposta para todos os conflitos. De fato, em um momento de pouca complexidade social e progresso em lenta evolução, o código napoleônico conseguiu manter-se praticamente inalterado até o final do século, e com ele as propostas da escola da exegese” (CAMARGO, Maria Margarida Lacombe, Hermenêutica Jurídica e Argumentação: Uma Contribuição ao Estudo do Direito, 2001, p. 87). António Manuel Hespanha destaca que diante dos códigos napoleônicos “não podiam valer quaisquer outras fontes de direito. Não o direito doutrinal, racional, suprapositivo, porque ele tinha sido incorporado nos códigos, pelo menos na medida em que isso tinha sido aceite pela vontade popular. Não o direito tradicional, porque a Revolução tinha cortado com o passado e instituído uma ordem política e jurídica nova. Não o direito jurisprudencial, porque aos juízes não competia o poder de estabelecer o direito (poder legislativo), mas apenas o de o aplicar (poder judicial). A lei – nomeadamente, esta lei compendiada e sistematizada em códigos – adquiria, assim, o monopólio da manifestação do direito. A isto se chamou legalismo ou positivismo legal (Gesetzpositivismus)” (HESPANHA, António Manuel, Cultura Jurídica Européia: Síntese de um Milénio, 2003, p. 268-269). Ver, ainda: SALDANHA, Nelson. Da Teologia à Metodologia: Secularização e crise do pensamento jurídico. 2. ed. Belo Horizonte: Del Rey, 2005. p. 77; RECASÉNS SICHES, Luis. Panorama del Pensamiento Jurídico en el Siglo XX. México: Porrua, 1963. t. I. p. 31.

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meramente mecânica de aplicação das normas codificadas,25 as quais sequer deveriam ser objeto de interpretação. Conforme destaca García Máynez, “a interpretação é, pois, partindo desse ponto de vista, esclarecimento dos textos, não interpretação do direito. Ignoro o direito civil – exclamava Bugnet – ‘só conheço o Código de Napoleão’”.26

Esse aspecto foi ressaltado por François Gény, crítico da escola exegética. Segundo o jurista francês, principalmente por obra dos estudiosos que se desenvolveram após a vigência do Código houve uma importante mudança no papel assumido pelo intérprete. Em suas palavras:27

Daí a regra insculpida no artigo 4º do Código, segundo a qual os juízes não poderiam deixar de julgar um caso particular ao argumento de que a lei seria obscura ou omissa, chegando-se, portanto, ao dogma da completude do ordenamento jurídico, o qual deve conter respostas para todas as perguntas.28

25 Cf. AFTALIÓN, Enrique R.; OLANO, Fernando García; VILANOVA, José. Introducción al Derecho. 7. ed. Buenos Aires: La Ley, [196-]. p. 804; COELHO, L. Fernando, Lógica Jurídica e Interpretação das Leis, 1981, p. 226.26 GARCÍA MÁYNEZ, Eduardo. Introducción al Estudio del Derecho. 53. ed. México: Editorial Porrúa, 2002. p. 334. Nas palavras de Luiz Alberto Warat, “a concepção que orienta o método exegético, tanto como a que inspira o método gramatical, se baseia na idéia de que as leis conformam um universo significativo autosuficiente, do qual se pode inferir por atos de derivação racional as soluções para todo o tipo de conflito jurídico. Fundamentalmente supõe a figura de um juiz neutro, mecânico, não criativo. É uma crença mítica, plasmada em uma expressão retórica reiterativa, que ficou sempre no plano conceitual” (WARAT, Luiz Alberto. Introdução Geral ao Direito. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris Editor, 1994. v. I. p. 69-70). Ver, também: BERGEL, Jean-Louis. Teoria Geral do Direito. Tradução Maria Ermantina Galvão. São Paulo, Martins Fontes, 2001. p. 325.27 GÉNY, François. Método de Interpretación y Fuentes en Derecho Privado Positivo. 2. ed. Madrid: Editorial Reus, 1925. p. 23. Nesse sentido, ver também: BONNECASE, Julien. Science du Droit et Romantisme. Paris: Librarie du Recueil Sirey, 1928. p. 9-13.28 Como observa Chaïm Perelman, “o artigo 4 do Código de Napoleão, ao proclamar que o juiz não pode recusar-se a julgar sob pretexto do silêncio, da obscuridade ou da insuficiência da lei, obriga-o a tratar o sistema de direito como completo, sem lacunas, como coerente, sem antinomias e como claro, sem ambigüidades que dêem azo a interpretações diversas. Somente diante de um sistema assim é que o papel do juiz seria conforme à missão que lhe cabe, a de determinar os fatos do processo e daí extrair as conseqüências jurídicas que se impõem, sem colaborar ele próprio na elaboração da lei. Foi nesta perspectiva

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Norberto Bobbio, partindo das lições de Bonnecase, sintetizou as principais características da escola da exegese nos seguintes termos: (a) inversão das relações tradicionais entre direito natural e direito positivo, reconhecendo-se a existência de princípios pré-positivos, mas sustentando-se que os mesmos são irrelevantes para o jurista enquanto não positivados; (b) defesa de uma concepção estatal do direito, de modo que somente seriam jurídicas as regras postas pela organização do Estado; (c) defesa de uma teoria subjetivista da interpretação, no sentido de que se deveria buscar a revelação da vontade do legislador contida no texto legal; (d) apego à literalidade do texto legal; e (e) apego ao princípio da autoridade, com o que se atribuía relevância não só ao texto do código, mas também às lições de seus primeiros comentadores.29

1.4. A escola analítica e o formalismo jurídico inglês do Século XIX

Paralelamente à escola da exegese francesa, desenvolveu-se teoria jurídica semelhante na Inglaterra do Século XIX, a qual ficou conhecida como escola analítica e teve em John Austin (1790-1859) seu principal expoente.30

Todavia, embora Austin seja a principal figura da escola analítica, não é possível examinar o formalismo inglês desse período sem mencionar a pessoa de Jeremy Bentham (1748-1832), cujas idéias influenciaram o pensamento do primeiro.

Em primeiro lugar, Jeremy Bentham era um crítico da common law e um entusiasta da codificação e da legislação. Sobre esse ponto, é arguta a seguinte passagem de Norberto Bobbio, ao comparar as visões alemã, francesa e inglesa sobre a codificação do direito:

Observamos o curioso destino da idéia da codificação: dela não houve vigência na Alemanha

que os juristas da escola da exegese se empenharam em seu trabalho, procurando limitar o papel do juiz ao estabelecimento dos fatos e à sua subsunção sob os termos da lei” (PERELMAN, Chaïm. Lógica Jurídica. Tradução Vergínia K. Pupi. São Paulo: Martins Fontes, 2000. p. 34-35).29 BOBBIO, Norberto, O Positivismo Jurídico: Lições de Filosofia do Direito, 1995, p. 84-89.30 Cf. REALE, Miguel. Filosofia do Direito. 19. ed. São Paulo: Saraiva, 2002. p. 417-418.

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(no período histórico por nós examinado), porque os homens cultos que a ela eram contrários (principalmente Savigny, que podemos chamar de teórico da anticodificação) conseguiram fazer prevalecer seu ponto de vista; na França houve codificação sem ter havido uma teoria da codificação (os juristas da Revolução propuseram de fato a codificação sem, entretanto, teorizá-la; e Montesquieu, o maior filósofo do direito do iluminismo francês, não pode, com certeza, ser considerado um teórico da codificação); na Inglaterra, pelo contrário, onde já no século XVII existiu o maior teórico da onipotência do legislador (Thomas Hobbes), não houve a codificação, mas foi elaborada a mais ampla teoria da codificação, a de Jeremy Bentham, chamado exatamente de o “Newton da legislação”.31

Ademais, além de defensor da legislação, Jeremy Bentham, com seu princípio da utilidade, impunha sobre o direito e demais relações sociais uma relatividade moral que o opunha ao jusnaturalismo.

Tal princípio da utilidade parte da idéia de que a humanidade é guiada por duas grandes forças: sofrimento e prazer, de forma que os indivíduos agiriam sempre em busca de evitar o sofrimento e maximizar o prazer.32

Embora Bentham fosse um entusiasta da legislação, vê-se que seu 31 BOBBIO, Norberto, O Positivismo Jurídico: Lições de Filosofia do Direito, 1995, p. 91.32 Em suas palavras: “A natureza colocou a humanidade sob o governo de dois mestres soberanos, sofrimento e prazer. Cabe a eles determinar o que devemos fazer. De um lado, os standards de certo e errado e de outro, a cadeia de causas e efeitos, estão presos ao seu trono. Sofrimento e prazer nos governam em tudo o que fazemos, em tudo o que falamos, em tudo o que pensamos: todo esforço que podemos fazer para afastar nossa sujeição servirá apenas para confirmá-la. Em palavras um homem pode pretender abjurar seu império, mas em realidade ele permanecerá sujeito a eles todo o tempo. O princípio da utilidade reconhece tal sujeição e assume-a como sendo o fundamento de um sistema cujo objeto é erguer a fábrica da felicidade pelas mãos da razão e da lei” (BENTHAM, Jeremy. The Principles of Morals and Legislation. New York: Prometheus Books, [s/d]. p. 1 e 2).

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utilitarismo não era comparável às posições formalistas da jurisprudência dos conceitos e da escola da exegese. Tanto que Bobbio chega a afirmar que, em parte, as idéias de Bentham se aproximam da jurisprudência dos interesses,33 a ser estudada mais adiante.

O ideário de Jeremy Bentham influenciou o desenvolvimento da escola analítica que teve em John Austin seu maior expoente.34

Traço importante dessa escola é a separação do direito positivo das demais ordens normativas, como a moral. Conforme Angel Latorre, “Austin considera, em primeiro lugar, que se deve distinguir o direito positivo de outros tipos de normas, como os usos sociais ou outros preceitos independentes daquele, que se considera o único verdadeiro direito”.35

Trazendo à colação as palavras do próprio Austin:

Leis propriamente ditas, ou propriamente assim denominadas, são comandos; leis que não são comandos são leis impróprias ou impropriamente assim denominadas. Leis propriamente ditas juntamente com as leis impróprias, podem ser dividas nas quatro espécies a seguir:1. Leis divinas ou leis de Deus: ou seja, leis estabelecidas por Deus para as suas criaturas humanas.2. Leis positivas: ou seja, leis que são simplesmente e estritamente assim denominadas e que compõem a matéria apropriada da teoria jurídica geral e particular.3. Moral positiva, regras de moralidade positiva ou regras morais positivas.4. Leis em sentido metafórico ou figurativo.36

Tal finalidade é verificada no próprio título de seu trabalho principal, 33 BOBBIO, Norberto, O Positivismo Jurídico: Lições de Filosofia do Direito, 1995, p. 98.34 Cf. ATIENZA, Manuel, El Sentido del Derecho, 2003, p. 234.35 LATORRE, Angel. Introdução ao Direito. Tradução Manuel de Alarcão. Coimbra: Almedina, 2002. p. 157.36 AUSTIN, John. The Province of Jurisprudence Determined. New York: Prometheus Books, [s/d]. p. 1.

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The Province of Jurisprudence Determined, que pode ser traduzido como A Determinação do Campo do Direito. Segundo Austin, seu objetivo era “distinguir o direito positivo (o verdadeiro tema do direito) dos objetos ora enumerados, objetos com os quais aquele está ligado apenas por semelhança ou analogia”.37

Deixando de lado as leis divinas, para Austin apenas os comandos compunham o direito positivo, devendo-se entender por comando uma ordem cujo descumprimento é seguido de uma conseqüência (sanção) negativa para o inadimplente.38

Assim, as regras morais quedam-se fora do campo do jurídico, compondo o que Austin denomina moralidade positiva. São chamadas morais para que sejam distinguidas das normas jurídicas e são denominadas positivas, para que não sejam confundidas com as leis divinas.39

2. Movimentos de contestação ao formalismo

2.1. François Gény e a livre investigação científica

Ainda no curso do Século XIX as escolas formalistas francesa e alemã foram objeto de crítica.

Na França, a Escola da Exegese foi alvo de contestação por François Gény (1861-1959) e sua doutrina da livre pesquisa do direito. Na Alemanha, surgiram a jurisprudência dos interesses, cujo expoente maior foi Philipp Heck, e o movimento do direito livre, expressão aparecida em uma conferência de Eugen Ehrlich em 1903.40

Ao examinar a livre investigação científica, Vicente Ráo manifesta-se no sentido de que esta “encontra sua melhor e mais exata qualificação dentro da teoria das lacunas do direito, pois sua finalidade consiste em suprir, mediante livre apuração de novas regras, as omissões, os vazios, que por outro modo se não possam preencher, das normas jurídicas existentes”.41

De fato, parece que o alvo principal da crítica de Gény era a idéia de

37 AUSTIN, John, The Province of Jurisprudence Determined, [s/d], p. 2.38 AUSTIN, John, The Province of Jurisprudence Determined, [s/d], p. 13.39 AUSTIN, John, The Province of Jurisprudence Determined, [s/d], p. 1240 Cf. LARENZ, Karl, Metodologia da Ciência do Direito, 1997, p. 78.41 RÁO, Vicente. O Direito e a Vida dos Direitos. 5. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1999. p. 514.

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esgotamento do direito na legislação,42 tão ao gosto dos juristas franceses do Século XIX, à qual se ligava também uma crítica à teoria hermenêutica que considerava que a interpretação/aplicação do direito se resumia à subsunção de um fato a uma lei preexistente.43 Essa crítica fica clara na lição de Gény:

As fontes formais do direito privado positivo, das quais procurei, no capítulo precedente, precisar o justo alcance e determinar o uso legítimo, dotam seguramente, no limite permitido em sua esfera de ação, da mais segura direção ao intérprete. Mas não pode ocultar-nos que, por penetrante e sutil que possa ser a interpretação dessas manifestações positivas do Direito, não se pode desconhecer sua natureza, e seria exceder seu próprio poder pretender que somente ela satisfizesse todas as aspirações da vida jurídica. Sobretudo – para não falar aqui mais do que da perfeita e mais fecunda, atualmente, das fontes mencionadas, a lei escrita – é claro que examinando-a tal como devemos fazê-lo, como um ato da inteligência e da vontade humana necessariamente limitada em seus propósitos, restrita também em seu alcance efetivo, pode-se assegurar que, por maior que seja a profundidade a que se chegue e por mais engenho que se ponha em solicitar a fórmula, não se poderá deduzir a plena totalidade das soluções que

42 Nas palavras de Maria Helena Diniz, “[...] diz François Gény, a experiência demonstra que a lei escrita é incapaz de solucionar todos os problemas suscitados pelas relações sociais e até mesmo os casos que caem sob sua égide, isto porque a sua solução não depende somente da letra da lei mas também de ponderação dos fatos sociais concretos, por ser necessário investigar as realidades sociais concretas, para que a aplicação da leis produza os resultados perseguidos pelo legislador” (DINIZ, Maria Helena, Compêndio de Introdução à Ciência do Direito, 1993, p. 57).43 Cf. BILLIER, Jean-Cassien; MARYIOLI, Aglaé, História da Filosofia do Direito, 2005, p. 270 e 271; CAMARGO, Maria Margarida Lacombe, Hermenêutica Jurídica e Argumentação: Uma Contribuição ao Estudo do Direito, 2001, p. 71; RECASÉNS SICHES, Luis, Panorama del Pensamiento Jurídico en el Siglo XX, 1963, p. 27.

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reclamam imperiosamente a infinita complexidade das relações sociais.44

O papel da livre investigação científica seria exatamente oferecer ao intérprete/aplicador do direito instrumental para superar as limitações imanentes ao direito positivo.45 Segundo Maria Margarida Lacombe Camargo “de acordo com Gény, uma vez não obtida a resposta para o problema no sistema, o aplicador da lei poderia, por meio da atividade científica, encontrar a solução jurídica fora do âmbito restrito da lei positiva”.

Todavia, conforme adverte François Gény, a idéia de superação da vinculação absoluta entre o juiz e o direito positivo, não significa o império do subjetivismo judicante, com a prevalência do entendimento pessoal do magistrado. É seguindo essa linha de raciocínio que afirma que poder o trabalho do juiz ser qualificado como “livre investigação científica; investigação livre, tendo em vista que se encontra subtraída à ação própria de uma autoridade positiva; investigação científica, ao próprio tempo, porque não pode encontrar bases sólidas além dos elementos objetivos que somente a ciência pode revelar”.46

Assim, segundo Gény as fontes do direito dividem-se em quatro categorias distintas, enunciadas por Jean-Cassien Billier e Agalaé Maryioli:

[...] dados reais que constituem as realidades sociais, econômicas, físicas e também morais, sobre as quais se inscrevem as regras jurídicas; os dados históricos que constituem a tradição, a história institucional e tudo o que se liga à história particular de um país; os dados racionais que constituem tudo o que se refere à ‘natureza das coisas ou do homem’, a sua essência, apresentando as características da necessidade, da imutabilidade e da universalidade, em suma, que constituem ‘o irredutível do direito natural’; os dados ideais que

44 GÉNY, François, Método de Interpretación y Fuentes en Derecho Privado Positivo, 1925, p. 520.45 CAMARGO, Maria Margarida Lacombe, Hermenêutica Jurídica e Argumentação: Uma Contribuição ao Estudo do Direito, 2001, p. 71.46 GÉNY, François, Método de Interpretación y Fuentes en Derecho Privado Positivo, 1925, p. 524.

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correspondem às aspirações mais profundas do homem.47

2.2. A segunda fase do pensamento de Rudolf von Ihering

Na Alemanha, a crítica ao formalismo da jurisprudência dos conceitos ganhou força na pena de Rudolf von Ihering que, como visto, inicialmente fora um de seus principais arautos.

Ihering pode ser considerado o precursor das concepções sociológicas do direito48 e da chamada jurisprudência dos interesses,49 na medida em que sustenta que “o direito é referido a um fim social, do qual recebe o seu conteúdo”.50

A teoria de Ihering encontra-se claramente exposta em sua obra O Fim no Direito, sendo que logo no capítulo primeiro do aludido trabalho ele assevera que:

Um ato de vontade sem causa final é um impossível tão absoluto como o movimento de uma pedra sem causa eficiente. Tal é a lei da causalidade: psicológica no primeiro caso, puramente mecânica no segundo. Para abreviar, chamarei desde logo a primeira lei de finalidade, para indicar assim, por seu mesmo nome, que a causa final é a única razão psicológica da vontade. Enquanto à lei de causalidade mecânica, o termo lei de causalidade bastará para designá-la daqui adiante. Esta lei, neste último sentido, pode explicar-se assim: nenhum acontecimento se produz no mundo físico sem um acontecimento anterior no qual encontra aquele sua causa. É a expressão habitual: não há efeito sem causa. A lei de finalidade diz: não há

47 BILLIER, Jean-Cassien; MARYIOLI, Aglaé, História da Filosofia do Direito, 2005, p. 272.48 Cf. LATORRE, Angel, Introdução ao Direito, 2002, p. 185.49 Cf. BILLIER, Jean-Cassien; MARYIOLI, Aglaé, História da Filosofia do Direito, 2005, p. 277.50 KAUFMANN, Arthur, A problemática da filosofia do direito ao longo da história, 2002, p. 172.

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ação sem causa.51

Nesse contexto, o direito já não se pode separar dos fins sociais que se buscam alcançar, com o que não se pode enclausurar o jurídico nos conceitos aplicados de forma lógico-subsuntiva. Com Larenz podemos afirmar que para Ihering, o direito é “a norma coercitiva do Estado posta a serviço de um fim social”.52

Veja-se que Ihering não contesta a natureza do direito como um conjunto de normas alicerçadas no poder coativo do Estado, pelo contrário, resume o direito ao exercício da coação para a proteção dos fins sociais.53

Nesse cenário, o próprio Ihering questiona: “Qual é, pois, o fim do direito?” Ao que responde: “Vimos que o fim dos atos do ser animado reside na realização de suas condições de existência. Partindo dessa definição, podemos dizer que o direito representa a forma de garantia das condições da vida da sociedade, assegurada pelo poder coativo do Estado”.54

Como bem percebido por Recaséns Siches, “segundo Ihering, o Direito não é a coisa mais alta que há no mundo, não é um fim em si mesmo. É somente um meio a serviço do fim. Este fim consiste na existência em sociedade”.55

2.3. A jurisprudência dos interesses51 IHERING, Rudolf von. El Fin en el Derecho. Tradução Leonardo Rodriguez. Panplona: Analecta Editorial, 2005. p. 852 LARENZ, Karl, Metodologia da Ciência do Direito, 1997, p. 61.53 Em textual: “Depois de muitas voltas chegamos ao final à forma superior de emprego da força para os fins humanos, a organização social da coação; em uma palavra: o Estado. Poderíamos facilitar a tarefa apoderando-nos imediatamente da idéia de a coação social realizada pelo Estado. Mas necessitávamos demonstrar que o direito não pode realizar sua missão enquanto não repouse sobre o Estado. Unicamente no Estado encontra o direito a condição de sua existência: a supremacia sobre a força. Somente no interior do Estado alcança o direito este fim. No exterior, no conflito entre os Estados, a força ante o mesmo se levanta como inimiga tão poderosa como antes de sua aparição histórica nas relações de indivíduo a indivíduo. Nesta região a questão do direito se converte de fato em uma questão de superioridade de forças” (IHERING, Rudolf von, El Fin en el Derecho, 2005, p. 194 e 195).54 IHERING, Rudolf von, El Fin en el Derecho, 2005, p. 274.55 RECASÉNS SICHES, Luis, Panorama del Pensamiento Jurídico en el Siglo XX, 1963, p. 271.

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Conforme referido pode-se considerar Rudolf von Ihering o precursor da jurisprudência dos interesses, todavia, o maior expoente dessa linha de pensamento foi Philipp Heck (1858-1943).

Heck era crítico da jurisprudência dos conceitos, a qual ele acusava de haver limitado o papel do juiz a uma “pura atividade gnosiológica”, de modo que “a tarefa do juiz teria que se limitar a subsumir o caso ao conceito jurídico, negando-se-lhe toda atividade criadora do direito”.56

Parte Philipp Heck do entendimento de que a lei criada pelo legislador não consegue englobar toda realidade social, de modo que caberia ao juiz, a partir de pontos de vistas teleológicos, criar a norma aplicável ao caso concreto.57 Conforme suas palavras, “o pensamento legislativo é necessariamente insuficiente, especialmente quando se trata da nova codificação de um grande âmbito de relações. Também a lei bem elaborada apresenta lacunas e contradições que exigem uma atividade complementadora”.58

Seguindo essa linha de entendimentos, a interpretação jurídica deveria transcender o direito positivo, sendo integrada pela noção de interesse, corporificando a denominada jurisprudência dos interesses. Para Heck,

[...] a característica peculiar dessa tendência consiste em que ela utiliza como conceitos metódicos auxiliares o conceito de interesse e a série de noções que estão com conexão com ele: estimação de interesses, situação de interesses, conteúdo de interesses, etc. Utilizam-se estes conceitos na análise dos problemas normativos, e na estruturação da reflexão desses conceitos auxiliares é ademais imprescindível para uma mais profunda penetração.59

É assim que para Heck “toda decisão deve ser interpretada como uma delimitação de interesses contrapostos e como uma estimação desses 56 HECK, Philipp, El Problema de la Creación del Derecho, 1999, p. 21.57 HECK, Philipp, El Problema de la Creación del Derecho, 1999, p. 52.58 HECK, Philipp, El Problema de la Creación del Derecho, 1999, p. 52.59 HECK, Philipp, El Problema de la Creación del Derecho, 1999, p. 61.

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interesses, conseguida mediante juízos e idéias de valor”.60

Verifica-se, portanto, que com a jurisprudência dos interesses critica-se de modo implacável a idéia de que o direito limita-se à legislação positivada e sua aplicação silogística aos casos concretos, inserindo no processo hermenêutico a consideração teleológica dos interesses em jogo.61

Daí a ponderação de Larenz no sentido de que:

[...] Ao exortar o juiz a aplicar os juízos de valor contidos na lei com vista ao caso judicando, a jurisprudência dos interesses – embora não quebrasse verdadeiramente os limites do positivismo – teve uma atuação libertadora e fecunda sobre uma geração de juristas educada num pensamento formalista e no estrito positivismo legalista. E isto na medida tanto maior quanto aconselhou idêntico processo para o preenchimento das lacunas das leis, abrindo desta sorte ao juiz a possibilidade de desenvolver o direito não apenas na fidelidade à lei, mas de harmonia com as exigências da vida. [...].62

Vê-se, portanto, que a jurisprudência dos interesses representa uma importante modificação na consideração do papel do intérprete, o qual passa a ter nos interesses outros horizontes além da letra do texto legal.

2.4. O Movimento para o Direito Livre

60 HECK, Philipp, El Problema de la Creación del Derecho, 1999, p. 65.61 Cf. LATORRE, Angel, Introdução ao Direito, 2002, p. 187; KAUFMANN, Arthur, A problemática da filosofia do direito ao longo da história, 2002, p. 173; CAMARGO, Maria Margarida Lacombe, Hermenêutica Jurídica e Argumentação: Uma Contribuição ao Estudo do Direito, 2001, p. 97; BILLIER, Jean-Cassien; MARYIOLI, Aglaé, História da Filosofia do Direito, 2005, p. 279; COING, Helmut, Elementos Fundamentais da Filosofia do Direito, 2002, p. 333; AFTALIÓN, Enrique R.; OLANO, Fernando García; VILANOVA, José, Introducción al Derecho, [196-], p. 814; RECASÉNS SICHES, Luis, Panorama del Pensamiento Jurídico en el Siglo XX, 1963, p. 275.62 LARENZ, Karl, Metodologia da Ciência do Direito, 1997, p. 69.

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A expressão movimento para o direito livre foi cunhada por Eugen Ehrlich (1867-1922), embora para Larenz essa linha teórica tenha em Oskar Büllow seu precursor.63

Assim como os demais movimentos de crítica ao formalismo, o movimento para o direito livre volta-se contra a aplicação silogistico-mecânica do direito. Ainda segundo Larenz,

[...] contra uma aplicação puramente esquemática do preceito da lei à situação da vida, acentua Ehrlich a importância de uma ‘livre investigação do Direito’. Com o que não procura uma jurisprudência segundo a apreciação discricionária do juiz chamado a dar a decisão, mas uma jurisprudência que arranque a tradição jurídica e aspire ao ‘Direito justo’, no sentido de Stammler.64

Assim como na livre investigação científica de Gény, o movimento para o direito livre buscava solucionar o problema das lacunas jurídicas. Todavia, havia uma importante distinção entre o que seria uma lacuna para as duas escolas.

Com efeito, para os juristas do movimento para o direito livre haveria uma lacuna não só nos casos em que determinada situação fática houvesse se quedado fora do regramento legislativo, estando-se igualmente diante de uma lacuna nas situações em que a lei não dispusesse claramente qual seria a solução apropriada a um dado caso.65 Nesses casos, caberia ao julgador 63 LARENZ, Karl, Metodologia da Ciência do Direito, 1997, p. 78.64 LARENZ, Karl, Metodologia da Ciência do Direito, 1997, p. 79.65 Seguindo o magistério de Arthur Kaufmann: “Direito Livre quer dizer, no fundo: livre da lei. É certo que os representantes desse movimento sempre se opuseram à ‘fábula-contra-legen’, à acusação de que eles queriam permitir ao juiz ignorar a lei (vigente) e até decidir contra ela. De fato, os juristas do direito livre nunca ensinaram tal coisa. Eles apenas queriam indicar qual o procedimento a adotar o juiz, quando a lei apresentasse lacunas. Contudo, e é este o busílis da questão, segundo a concepção da doutrina no direito livre, a lei não tem lacunas apenas quando não contenha, de todo em todo, uma regulamentação aplicável ao caso, mas já aí onde não resolve o caso de forma expressa e inequívoca (hard case no sentido de H.L.A. Hart). E naturalmente que isto é o que acontece quase sempre, pelos menos em todos os casos discutíveis” (KAUFMANN, Arthur, A problemática da filosofia do direito ao longo da história, 2002, p. 175). Nesse

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buscar, fora do direito positivo, a solução do caso concreto.

3. O realismo jurídico, americano e escandinavo

O realismo jurídico surge nos Estados Unidos e em países escandinavos, tratando-se de uma corrente jurídica sociológica que se difere tanto do formalismo jurídico como das correntes jus naturalistas e axiológicas.

O realismo jurídico norte-americano tem em Oliver W. Holmes (1841-1935), Roscoe Pound (1870-1964), Benjamin Cardozo (1870-1938), Karl Llewellyn (1893-1962), Felix Cohen (1907-1953) e Jerome Frank (1889-1957) alguns de seus principais expoentes.

Já os principais defensores do realismo jurídico escandinavo são Axel Hägerström (1868-1939), Vilhelm Lundstedt (1882-1955), Karl Olivecrona (1897-1980) e Alf Ross (1899-1979), este último certamente o jurista realista cujas idéias foram mais difundidas no Brasil, principalmente em razão da tradução para o vernáculo de sua obra Direito e Justiça.

Assim como o positivismo jurídico, carece o realismo de uma uniformidade, de modo que é possível falar em várias correntes realistas. De toda forma, parece haver uma unidade na idéia de se buscar o direito não nas normas positivas, mas sim nas decisões das cortes, razão pela qual o realismo confere grande relevância à compreensão dos mecanismos que levam os tribunais a proferirem suas decisões.66

O realismo, portanto, não deixa de ser positivista, na medida em que pretende um conhecimento científico e não axiológico do direito.67 Todavia, instaura uma espécie de positivismo sociológico que o afasta das correntes formalistas legalistas como a escola da exegese, a jurisprudência dos conceitos e, posteriormente, a teoria pura do direito kelseniana.

O realismo americano tinha grande foco na indeterminação legal,68 a

mesmo sentido: HESPANHA, António Manuel, Cultura Jurídica Européia: Síntese de um Milénio, 2003, p. 289; KLUG, Ulrich. Lógica Jurídica. Tradução J. C. Gardella. Bogotá: Themis, 2004. p. 11-12.66 Nesse sentido, ver: GREEN, Michael Steven. Legal Realism as Theory of Law. William and Mary Law Review, Williamsburg, n. 46, abr. 2005, p. 1919-1920.67 Cf. LEITER, Brian R. American Legal Realism. In: The Blackwell Guide to Philosophy of Law and Legal Theory. Oxford: Blackwell, 2003. Disponível em SSRN: http://ssrn.com/abstract=339562. Acesso em 21 de fevereiro de 2006.68 Ver: LATORRE, Angel, Introdução ao Direito, 2002, p. 193.

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qual levaria a uma possibilidade de que decisões diversas se fundamentassem em um mesmo diploma normativo. Assim, segundo os realistas as decisões seriam influenciadas mais pelos fatos envolvidos na contenda do que propriamente nas leis evocadas pelas partes.69

Analisando-se o realismo escandinavo a partir das idéias de Alf Ross, percebe-se uma forte crítica ao jus naturalismo e a qualquer idéia metafísica de direito,70 o que fica evidente na comparação que o jurista dinamarquês faz entre as regras jurídicas e as regras do jogo de xadrez:

Com base no que foi dito, formulo a seguinte hipótese: o conceito “direito vigente” (de Illinois, da Califórnia, da common law) pode ser em princípio explicado e definido da mesma maneira que o conceito “norma vigente de xadrez” (para dois jogadores quaisquer). Quer dizer, “direito vigente” significa o conjunto abstrato de idéias normativas que serve como um esquema interpretativo para os fenômenos do direito em ação, o que por sua vez significa que essas normas são efetivamente acatadas e que o são porque são experimentadas e sentidas como socialmente obrigatórias.[...]Vista sob essa luz, nossa conclusão preliminar, estou confiante, não será classificada de lugar comum. Essa análise de um modelo simples é

69 Cf. LEITER, Brian R, American Legal Realism. In: The Blackwell Guide to Philosophy of Law and Legal Theory. Oxford: Blackwell, 2003. Disponível em SSRN: http://ssrn.com/abstract=339562. Acesso em 21 de fevereiro de 2006; BILLIER, Jean-Cassien; MARYIOLI, Aglaé, História da Filosofia do Direito, 2005, p. 254-256.70 Nas palavras de Maria Helena Diniz, “o realismo jurídico abrange correntes teóricas que se afastam de qualquer investigação jusfilosófica de ordem metafísica ou ideológica, negando todo fundamento absoluto à idéia do direito, considerando tão-somente a realidade jurídica, isto é, o direito efetivamente existente ou os fatos sociais e históricos que lhe deram origem. O realismo jurídico busca a realidade efetiva sobre a qual se apóia e dimana o direito, não a realidade sonhada ou ideal. Para os realistas, o direito real e efetivo é aquele que o tribunal declara ao tratar do caso concreto” (DINIZ, Maria Helena, Compêndio de Introdução à Ciência do Direito, 1993, p. 68).

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deliberadamente direcionada no sentido de suscitar dúvidas no que tange à necessidade de explicações metafísicas com respeito ao conceito do direito. A quem ocorreria buscar a validade das normas de xadrez numa validade a priori, numa idéia pura do xadrez concedida ao ser humano por Deus ou deduzida da razão humana eterna? Tal pensamento é ridículo porque não tomamos o xadrez tão a sério como o direito, e assim é porque há emoções mais fortes vinculadas aos conceitos jurídicos. Mas isto não constitui razão para crer que a análise lógica deva adotar uma postura fundamentalmente diferente em um e outro caso.71

Partindo dessa completa separação entre direito e moral e do abandono da idéia de que existe uma noção metafísica de Direito, Ross defende que qualquer ordem jurídica coativa pode ser denominada direito, inclusive o ordenamento jurídico do nacional socialismo. Assim, a classificação de um conjunto de regras como direito nada teria a ver com a concordância ou discordância com as suas prescrições.72

71 ROSS, Alf. Direito e Justiça. Tradução Edson Bini. Bauru: EDIPRO, 2000. p. 41 e 42.72 ROSS, Alf. Direito e Justiça, 2000, p. 55 e 56. Em outra obra, afirma Ross: “De acordo com a visão corrente, o objeto da ciência jurídica é o chamado direito positivo, a lei em vigor. O que isso quer dizer? Como uma explicação preliminar talvez se possa dizer que por isso se queira significar um sistema de leis gerais, determinadas por algumas características externas relacionadas à sua gênese, as quais constituem as leis de uma certa comunidade, conforme são aplicadas ou deveriam ser aplicadas pelas cortes de um país. Que a lei seja chamada ‘positiva’ ou ‘em vigor’ significa em primeiro lugar que essa lei é historicamente estabelecida e passou a existir como um fato que prevalece e que, independentemente da justiça das regras de acordo com normas ideais,válidas por si mesmas, devem ser aceitas. Entendida desse modo, a positividade da lei significa o mesmo que seu caráter de determinação autoritária. Sua validade não decorre de princípios racionais, mas de autoridade historicamente conferida. Em segundo lugar isso significa que o ordenamento não é apenas um sistema de leis válidas, mas leis que realmente, em conjunto, são observadas. Compreendida dessa forma a positividade da lei significa o mesmo que sua efetividade. Em ambos os casos encontra-se expresso que a lei é um fato, o qual encontra-se sujeito a um

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Todavia, para Alf Ross não se encontra o direito no texto das leis, mas nas decisões das cortes. Daí porque defende ele que

[...] o fator decisivo que determina que a proibição é direito vigente é tão-somente o fato de ser efetivamente aplicada pelos tribunais nos casos em que transgressões à lei são descobertas e julgadas. Não faz diferença se as pessoas acatam a proibição ou com freqüência a ignoram. Esta indiferença se traduz no aparente paradoxo segundo o qual quanto mais é uma regra acatada na vida jurídica extrajudicial, mais difícil é verificar se essa regra detém vigência, já que os tribunais têm uma oportunidade muito menor de manifestar sua reação.73

Da mesma forma que seus colegas norte-americanos, Alf Ross sustenta a indeterminação normativa, a qual, em sua percepção, teria como conseqüência a impossibilidade de se extrair qualquer resultado correto ao cabo do processo hermenêutico.74

Assim, a interpretação seria menos um método para compreensão dos textos legais e mais um instrumento para análise da produção da decisão de um tribunal. Nas palavras de Alf Ross,

[...] temos que analisar, portanto, a prática dos tribunais e nos empenharmos em descobrir os princípios ou regras que realmente os norteiam no trânsito da regra geral à decisão particular. Denomina-se essa atividade método jurídico, ou, no caso da aplicação do direito formulado (direito

exame empírico e não racional” (ROSS, Alf. Towards a Realistic Jurisprudence. Tradução Annie I. Fausboll. [s/l]: Scientia Verlad Aalen, 1989. p. 19). Para um comentário abalisado da comparação feita por Ross entre as normas jurídicas e as regras do jogo de xadrez, ver: HART, H. L. A. Scandinavian Realism. In: Essays in Jurisprudence and Philosophy. New York: Oxford University Press, 2001. p. 164-165).73 ROSS, Alf. Direito e Justiça, 2000, p. 59.74 ROSS, Alf. Direito e Justiça, 2000, p. 167.

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legislado em lato sentido), interpretação.75

4. O retorno do formalismo no século XX

4.1. O positivismo jurídico de Hans Kelsen

Como vimos anteriormente, durante o século XIX e início do século XX desenvolveram-se diversos movimentos jurídicos que buscavam a superação das escolas formalistas, buscando-se integrar ao direito dados factuais ocorridos no meio social.

Foi exatamente contra essa “contaminação” do jurídico por outras ciências como a sociologia, a política e a psicologia que se insurgiu o jusfilósofo austríaco Hans Kelsen (1881-1973).

É impossível resumir em poucos parágrafos uma obra que, como apontado por Tércio Sampaio Ferraz Júnior, entre traduções e reimpressões alcança mais de 620 títulos e cujos textos elaborados sobre a mesma supera o número 1.200.76

Dessa forma, trataremos brevemente aqui apenas de dois aspectos da teoria pura do direito: a relação entre direito e moral e a questão da interpretação jurídica.

Logo na introdução de sua teoria pura do direito Kelsen deixa claro seu propósito de estabelecer uma teoria baseada nas normas jurídicas, excluindo tudo que em seu sentir lhes fosse alheio, elevando a ciência jurídica a um patamar científico nunca dantes alcançado.77 Vejam-se os primeiros parágrafos da referida obra:

A Teoria Pura do Direito é uma teoria do Direito

75 ROSS, Alf. Direito e Justiça, 2000, p. 136.76 FERRAZ JÚNIOR, Tércio Sampaio. Por que ler Kelsen, hoje. In: COELHO, Fábio Ulhoa. Para Entender Kelsen. 4. ed. São Paulo: Saraiva, 2001. p. XIII.77 Assim leciona Karl Larenz, para quem “foi Hans Kelsen quem, com admirável energia e improbo rigor de pensamento, se desempenhou de semelhante missão. A sua ‘teoria pura do Direito’ constitui a mais grandiosa tentativa de fundamentação da ciência do Direito como ciência – mantendo-se embora sob o império do conceito positivista desta última e sofrendo das respectivas limitações – que o nosso século veio até hoje a conhecer” (LARENZ, Karl, Metodologia da Ciência do Direito, 1997, p. 92).

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positivo – do direito positivo em geral, não de uma ordem jurídica especial. É teoria geral do Direito, não interpretação de particulares normas jurídicas, nacionais ou internacionais. Contudo, fornece uma teoria da interpretação.Como teoria, quer única e exclusivamente conhecer o seu próprio objeto. Procura responder a esta questão: o que é e como é o Direito? Mas já lhe não importa a questão de saber como deve ser o Direito, ou como deve ele ser feito. É ciência jurídica e não política do Direito.

Quando a si própria se designa como “pura” teoria do Direito, isto significa que ela se propõe garantir um conhecimento apenas dirigido ao Direito e excluir deste conhecimento tudo quanto se não possa, rigorosamente, determinar como Direito. Quer isto dizer que ela pretende libertar a ciência jurídica de todos os elementos que lhe são estranhos. Esse é o seu princípio metodológico fundamental.78

Diferentemente do que muitas vezes se afirma na doutrina, a teoria pura do direito não nega a grande importância da ética, da moral e da justiça para o direito, mas sim a inexistência de uma moral79 ou de uma justiça80 absolutas, que devam ser acolhidas pelas normas jurídicas. Separa-se, aqui, o campo da ciência jurídica, preocupada com as normas positivadas, e da filosofia jurídica, voltada para análise dos fins que deveriam ser perseguidos pelo ordenamento e das normas em vigor como aptas para realizá-los.81

78 KELSEN, Hans. Teoria Pura do Direito. 6. ed. Tradução João Baptista Machado. Coimbra: Armenio Amado, 1984. p. 17.79 Cf. KELSEN, Hans, Teoria Pura do Direito, 1984, p. 100-102. 80 Cf. KELSEN, Hans. O Problema da Justiça. Tradução João Baptista Machado. São Paulo: Martins Fontes, 1998. p. 65.81 António Manuel Hespanha ressaltou os méritos da teoria pura do direito, ao afirmar que: “A teoria pura do direito teve a virtude de, num período de intenso debate político-ideológico (os anos ’30 a ’50 do século XX), ter sublinhado a autonomia do saber jurídico e a sua relativa indisponibilidade em relação aos projetos de poder. Nesta medida, culminou as preocupações da pandectística em estabelecer que nem tudo quanto é querido pelo poder, útil ao povo ou a uma classe, ou funcional em relação a um objetivo social, é automaticamente aceite como justo (i.e., conforme ao direito). A juridicidade parece decorrer de valores internos ao discurso do direito, valores que a vontade política ou a utilidade social

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Seguindo essa linha de raciocínio, a teoria da interpretação jurídica apresentada por Kelsen mostra-se igualmente avalorativa.

Parte Kelsen de sua estrutura piramidal do ordenamento jurídico para definir a interpretação como “uma operação mental que acompanha o processo da aplicação do Direito no seu progredir de um escalão superior para um escalão inferior”.82

Assim, o legislador deve interpretar a Constituição para poder elaborar as leis infraconstitucionais, da mesma forma que o juiz e o administrador devem interpretar as normas do ordenamento jurídico para emitirem suas sentenças e atos administrativos, no contínuo movimento de positivação/concretização das normas jurídicas em atos de aplicação.

Nesse contexto, separa Kelsen a interpretação realizada por um órgão de aplicação do direito (ou seja, a interpretação apta à criação de uma norma individual e concreta) e a interpretação realizada por quem não é aplicador da regra interpretada (por exemplo, interpretação realizada pelas pessoas de direito privado que devem observar o direito e aquela oferecida pela ciência jurídica).

Aspecto importantíssimo da teoria da interpretação kelseniana é a indeterminação dos textos normativos da qual decorre a idéia de que estas são molduras, dentro das quais podem ser identificadas mais de uma norma jurídica. Em suas palavras:

Se por “interpretação” se entende a fixação por via cognoscitiva do sentido do objeto a interpretar, o resultado de uma interpretação jurídica somente

não podem substituir.Neste sentido, embora se possa acusar a teoria pura do direito de aceitar como direito tudo o que provém da vontade do Estado, o certo é que o seu sentido mais profundo é o de constituir um manifesto contra os totalitarismos políticos do seu tempo, que, num sentido ou noutro, procuravam funcionalizar o direito em relação às conveniências do poder, legitimando-o a partir de considerações políticas, como o domínio de classe (estalinismo) ou as necessidades vitais de uma raça (nacional-socialismo). Há que pense que este manifesto é ainda útil contra outro tipo de funcionalizações do direito, nomeadamente, a tendência para justificar como justas as medidas – formal ou informalmente corretas – de um poder legitimado pelo voto, ou as medidas dirigidas à consecução de finalidades de desenvolvimento social ou econômico” (HESPANHA, António Manuel, Cultura Jurídica Européia: Síntese de um Milénio, 2003, p. 310).82 KELSEN, Hans, Teoria Pura do Direito, 1984, p. 463.

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pode ser a fixação da moldura que representa o Direito a interpretar e, conseqüentemente, o conhecimento das várias possibilidades que dentro desta moldura existem. Sendo assim, a interpretação de uma lei não deve necessariamente conduzir a uma única solução como sendo a única correta, mas possivelmente a várias soluções que – na medida em que apenas sejam aferidas pela lei a aplicar – têm igual valor, se bem que apenas uma delas se torne Direito positivo no ato do órgão aplicador do Direito – no ato do Tribunal, especialmente. Dizer que uma sentença judicial é fundada na lei não significa, na verdade, senão que ela se contém dentro da moldura ou quadro que a lei representa – não significa que ela é a norma individual, mas apenas que é uma das normas individuais que podem ser produzidas dentro da moldura da norma geral.83

Ao afirmar que o texto legal é apenas uma moldura dentro da qual se encontram diversas normas jurídicas passíveis de serem criadas pelo aplicador do direito, Kelsen rejeita a possibilidade de que se desenvolva qualquer método jurídico capaz de definir qual seria a norma jurídica correta extraível do texto.84

Seguindo essa linha de raciocínio, sustenta Hans Kelsen que a escolha de uma entre as diversas normas jurídicas contidas na moldura do texto legal sequer seria uma atividade jurídica, mas sim uma atividade de política do direito.85

83 KELSEN, Hans, Teoria Pura do Direito, 1984, p. 467. 84 KELSEN, Hans, Teoria Pura do Direito, 1984, p. 468.85 Em suas palavras: “A questão de saber qual é, de entre as possibilidades que se apresentam nos quadros do Direito a aplicar, a ‘correta’, não é sequer – segundo o próprio pressuposto de que se parte – uma questão de conhecimento dirigido ao Direito positivo, não é um problema de teoria do Direito, mas um problema de política do Direito. A tarefa que consiste em obter, a partir da lei, a única sentença justa (certa) ou o único ato administrativo correto é, no essencial, idêntica à tarefa de quem se proponha, nos quadros da Constituição, criar as únicas leis justas (certas). Assim como da Constituição, através de interpretação, não

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Portanto, não sendo a eleição de uma entre as normas constantes no texto legal uma atividade jurídica, pode a mesma muito bem ser guiada por critérios metajurídicos, como a moral e a justiça.

Em assim sendo, jamais seria possível determinar se a norma eleita seria efetivamente a “correta”, já que pautada tal escolha por elementos estranhos ao direito. Como aduz Kelsen, “do ponto de vista do Direito positivo, nada se pode dizer sobe a sua validade e verificabilidade. Deste ponto de vista, todas as determinações desta espécie apenas podem ser caracterizadas negativamente: são determinações que não resultam do próprio Direito positivo”.86

4.2. O positivismo jurídico de Herbert L. A. Hart

O jusfilósofo inglês Herbert L. A. Hart (1907–1992) foi o outro grande nome do positivismo jurídico no século XX.

Assim como Kelsen, Hart reconhece a indeterminação dos textos legais, desenvolvendo a teoria da textura aberta da linguagem.

Segundo o professor inglês, “qualquer instrumento, precedente ou legislação, seja escolhido para a comunicação de padrões de comportamento, estes, a despeito do quão bem funcionem em um grande número de casos ordinários, em algum ponto em que sua aplicação esteja em questão, irão provar-se indeterminados; eles terão o que foi denominada uma textura aberta. Até aqui nós apresentamos tal fato, no caso da legislação, como uma característica geral da linguagem humana; incerteza nos limites é o preço a ser pago pelo uso de termos gerais classificatórios em qualquer forma de comunicação relativa a temas factuais”.87

Partindo da textura aberta das normas jurídicas, critica Hart o formalismo conceitualista, que pretendia enclausurar a realidade em conceitos.88

podemos extrair as únicas leis corretas, tão-pouco podemos, a partir da lei, por interpretação, obter as únicas sentenças corretas” (KELSEN, Hans, Teoria Pura do Direito, 1984, p. 469). 86 KELSEN, Hans, Teoria Pura do Direito, 1984, p. 470.87 HART, H. L. A. The Concept of Law. 2nd. ed. New York: Oxford University Press, 1997. p. 128. Sobre a textura aberta da linguagem, ver: STRUCHINER, Noel. Direito e Linguagem: Uma Análise da Textura Aberta da Linguagem e sua Aplicação ao Direito. Rio de Janeiro: Renovar, 2002. 88 HART, H. L. A, The Concept of Law, 1997, p. 129.

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A indeterminação legal confere às cortes e autoridades encarregadas de aplicar a norma jurídica uma certa margem para “ponderar, diante das circunstâncias, entre interesses conflitantes que podem variar em peso de caso para caso”.89

Dessa forma, a textura aberta das normas jurídicas deixa ao juiz um poder criativo, a ser exercido mediante interpretação/aplicação de precedentes ou estatutos aos casos concretos. De outro lado, cabem à cortes dar a última palavra sobre o que é o direito,90 no exercício de sua discricionariedade.91

A textura aberta das normas de Hart difere, porém, da idéia do texto legal como moldura trazida por Kelsen. De fato, para Hart a abertura das normas pode levar a uma situação de ausência de qualquer norma jurídica, verdadeira lacuna a ser superada pela discricionariedade do juiz.92 Já o texto-moldura de Kelsen significaria a existência de várias normas que poderiam ser potencialmente extraídas de um dado texto legal e não a existência de uma lacuna.

Para Hart, tal competência discricionária atribuída ao juiz não é ilimitada, não sendo equivalente à competência atribuída aos órgãos legislativos.

Com efeito, Hart sustenta que o exercício desta competência discricionária se dá dentro dos limites do próprio ordenamento jurídico, de onde o julgador extrairá os parâmetros para sua decisão. Exatamente por tal motivo, pelo fato de que o próprio ordenamento orienta o juiz na apreciação dos casos concretos é que para Hart uma decisão jurídica racional não depende de apelação para critérios morais de como a lei deveria ser.93

5. A hermenêutica filosófica de Hans-Georg Gadamer

O filósofo alemão Hans-Georg Gadamer (1900-2002), mesmo não sendo filósofo do direito e, portanto, não tendo posto a hermenêutica jurídica entre suas principais preocupações, desenvolveu, a partir da virada ontológica conduzida por seu mestre Martin Heidegger, uma hermenêutica 89 HART, H. L. A, The Concept of Law, 1997, p. 135.90 HART, H. L. A, The Concept of Law, 1997, p. 145.91 HART, H. L. A, The Concept of Law, 1997, p. 252.92 HART, H. L. A, The Concept of Law, 1997, p. 272.93 HART, H. L. A. Positivism and the Separation of Law and Morals. In: Essays in Jurisprudence and Philosophy. New York: Oxford University Press, 2001. p. 68-69.

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filosófica cujos fundamentos acabam por impor uma modificação no pensar a hermenêutica jurídica.

Entre as modificações trazidas pela hermenêutica filosófica de Hans-Georg Gadamer, destacamos três em especial: (a) a crítica quanto à crença na possibilidade de se alcançar a verdade nas ciências do espírito através da utilização de um método; (b) a revisão da idéia do distanciamento do intérprete em relação ao objeto interpretado, com o reconhecimento de que é no intérprete, com sua tradição e pré-conceitos, que se realiza o processo interpretativo; e (c) a inclusão da aplicação no âmbito do processo hermenêutico, a qual abala os alicerces do entendimento, difundido na seara jurídica, de que a aplicação seria um momento pós-interpretativo, em que o intérprete, estranho ao texto legal e aos fatos sob exame, aplica a estes o resultado da interpretação do texto, resolvendo uma controvérsia jurídica.

Uma breve reflexão acerca desses três pontos revela que os mesmos estão intimamente conectados. Com efeito, a partir do momento que intérprete e objeto implicam-se mutuamente, perde força a idéia de que intérprete e objeto relacionam-se por intermédio de um método que permite que aquele conheça e intérprete este, aplicando-o a outro objeto externo, ao final.

5.1. Uma crítica ao método

A obra principal de Hans-Georg Gadamer, Verdade e Método, editada pela primeira vez no ano de 1960, tem como um de seus principais propósitos apresentar crítica à idéia de que se pode alcançar a verdade, no campo das ciências do espírito, mediante a mera aplicação de um método objetivo, nos moldes das ciências naturais.

Conforme afirma Gadamer logo na introdução de seu pensamento, “na origem, o fenômeno hermenêutico não é, de forma alguma, um problema de método”.94

A crítica ao pensamento metodológico é tão presente em sua obra que alguns de seus críticos e revisores apontam que seu trabalho devia ser

94 GADAMER, Hans-Georg. Verdade e Método I: Traços de uma hermenêutica filosófica. 5. ed. Tradução Flávio Paulo Meurer. Petrópolis: Vozes, 2003. p. 29.

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intitulado Verdade ou Método,95 ou ainda Verdade versus Método.96

A crítica de Gadamer, que pode certamente ser trazida para o campo da hermenêutica jurídica, deve, todavia, ser bem apreendida, de modo a se evitar uma má-compreensão de suas idéias.

De fato, os aportes gadamerianos não são contra a existência dos métodos. Como o próprio Gadamer afirma em entrevista concedida a Carsten Dutt, “é claro que há métodos, e certamente deve-se aprendê-los e aplicá-los”.97

O foco da crítica do professor de Heidelberg, portanto, não é a existência de métodos, mas sim a crença na objetivação da verdade por intermédio de seu uso, assim como a exterioridade metodológica do intérprete em relação ao objeto interpretado. Nas autorizadas palavras de Richard Palmer:

Assim como Heidegger, Gadamer é um crítico da moderna submissão ao pensamento tecnológico, o qual se encontra enraizado no subjetivismo (Subjektität) – ou seja, em tomar a consciência subjetiva do homem, e as certezas da razão na mesma baseadas, como o ponto máximo de referência para o conhecimento humano. Os filósofos pré-cartesianos, por exemplo, os gregos antigos, encaravam seu pensamento como uma parte do próprio ser; eles não tomavam a subjetividade como seu ponto de partida e então fundamentavam a objetividade de seu conhecimento sobre a mesma. Sua abordagem era mais dialética e tentava permitir-se ser guiada pela natureza do que estava sendo compreendido. Conhecimento não era algo que eles adquiriam como uma possessão, mas algo no qual eles participavam, permitindo que os mesmos fossem dirigidos e até mesmo possuídos por seu conhecimento. Nesse sentido

95 Cf. RICOEUR, Paul. Hermeneutics & the Human Sciencies. Tradução de John B. Thompson. Cambridge: Cambridge University Press, 1998. p. 60.96 Cf. GADAMER, Hans-Georg. Gadamer in Conversation. Tradução de Richard Palmer. New Haven/London: Yale University Press, 2001. p. 41.97 Gadamer in Conversation, 2001, p. 41.

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os Gregos alcançaram uma abordagem da verdade que foi além das limitações do pensamento sujeito-objeto moderno, enraizado em um conhecimento subjetivamente correto.

Dessa forma, a abordagem de Gadamer é mais próxima à dialética de Sócrates do que ao pensamento manipulativo e tecnológico moderno. A verdade não é alcançada metodicamente, mas dialeticamente; a abordagem dialética da verdade é vista como a antítese do método, como um meio de superar a tendência do método de pré-estruturar o modo de ver dos indivíduos. Falando mais exatamente, o método é incapaz de revelar novas verdades; ele apenas explicita o tipo de verdade que já se encontra explícita no próprio método.[...].98

Richard Palmer explicita na passagem acima o foco central a crítica de Gadamer, a qual tem por fim uma mudança da função do método nas ciências humanas. Tal foco consiste na idéia de que a legitimação nas ciências do espírito se dá por intermédio da participação dialética do sujeito no processo hermenêutico, e não pela aplicação de qualquer método.

Ao responder questão acerca da crítica metodológica contida em sua obra, o próprio Gadamer responde que o que buscou “demonstrar é que o conceito de método não era caminho apropriado para se atingir legitimidade no campo das ciências humanas e sociais”.99 Conforme conclui “essa é a razão pela qual sugeri que o ideal de conhecimento objetivo, que domina nossos conceitos de conhecimento, ciência e verdade, precisa ser superado pelo ideal de compartilhar algo, de participação”.100

A hermenêutica filosófica gadameriana é mesmo incompatível com a idéia de que se pode ter acesso à verdade através de um método aplicável pelo intérprete.

Com efeito, a teoria de Gadamer funda-se na concepção de que o homem tem acesso ao mundo pela linguagem, a qual deve ser interpretada (compreendida) pelo ser-aí (Dasein101), sendo assim pautada por sua tradição 98 PALMER, Richard. Hermeneutics. Evanston: Northwestern University Press, 1969. p. 164 e 165.99 Gadamer in Conversation, 2001, p. 40.100 Gadamer in Conversation, 2001, p. 40.101 “Dasein: (al.: existência, ser-aí) Termo heideggeriano que significa realidade humana, ente humano, a quem somente o ser pode abrir-se. Mas como é ambíguo, correndo o risco de abrir uma brecha para o humanismo, Heidegger

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e suas pré-compreensões.Ora, se a interpretação se desenvolve no âmbito do horizonte do

intérprete, não se pode conceber que esta corresponda à aplicação de um método exterior ao mesmo. Como destaca Maria Margarida Lacombe Camargo, “Gadamer defende a idéia de que não é tarefa da hermenêutica descobrir métodos para uma correta interpretação, mas refletir sobre o acontecer da própria interpretação, que no âmbito das ciências do espírito corresponde mais especificamente à compreensão”.102

Parece-nos evidente, à primeira vista, que os aportes teóricos de Hans-Georg Gadamer abalam a noção tradicional de método jurídico, ordinariamente entendido como instrumento à disposição do intérprete para se alcançar a verdade contida no texto legal.

Castanheira Neves dá-nos clara visão acerca do formalismo metodológico que por longo período dominou o cenário jurídico, o qual partia de uma deificação do ato legislativo que somente poderia ser alcançada mediante a neutralização do intérprete pela supervalorização do método jurídico.103

Esse pensamento metodológico formalista, nas palavras de François Gény, busca “dar alcance ao pensamento do legislador contido nos textos. Sempre que se compreenda e interprete bem a lei, subsumirá quantas soluções jurídicas sejam necessárias”.104

Todavia, tendo por base as inflexões de Gadamer, tem-se que a relação sujeito-objeto não se dá por intermédio do método, mas sim dentro do próprio ser-aí, de modo que o objeto não é revelado pelo método, mas prefere utilizar a expressão ser-aí. Na linguagem corrente, Dasein quer dizer * existência humana. Enquanto os * entes são fechados em seu universo circundante, o homem é graças à linguagem, aí onde vem o ser. Assim, o Dasein é o ser do existente humano enquanto existência singular e concreta: ‘A essência do ser-aí (Dasein) reside em sua existência (Existenz), isto é, no fato de ultrapassar, de transcender, de ser originariamente ser-no-mundo” (JAPIASSÚ, Hilton; MARCONDES, Danilo. Dicionário Básico de Filosofia. 3. ed. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1996. p. 63). Sobre o Dasein ver também: VATTIMO, Gianni. Introducción a Heidegger. Barcelona: Gedisa, 2002. p. 32-35.102 CAMARGO, Maria Margarida Lacombe, Hermenêutica Jurídica e Argumentação: Uma Contribuição ao Estudo do Direito, 2001, p. 32.103 Cf. NEVES, A. Castanheira. Metodologia Jurídica: Problemas Fundamentais. Coimbra: Coimbra Editora, 1993. p. 28.104 GÉNY, François. Método de Interpretación y Fuentes em Derecho Privado Positivo. Madrid: Editorial Réus, 1925. p. 26.

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compreendido pelo ser.Resta perguntar, então, qual o papel dos chamados métodos de

interpretação jurídica?Os ditos métodos jurídicos (elementos ou critérios de interpretação)

nada mais são do que uma referência aos diversos aspectos envolvidos na compreensão dos textos legislativos e dos fatos jurídicos.105

Com efeito, tais métodos (gramatical, sistemático, teleológico, histórico, axiológico, etc.) lembram apenas os diversos aspectos envolvidos no fenômeno jurídico, não garantindo qualquer certeza ou correção ao resultado da interpretação em um caso particular.106

Seguindo as observações acima e tendo por fundamento as críticas de Gadamer à objetivação metodológica como instrumento à descoberta da verdade no âmbito das ciências humanas, é de se concluir que a crença nos métodos jurídicos como meios para o alcance da correção no campo da hermenêutica jurídica oferece algo que não pode alcançar.

Com efeito, é de se concordar com Eros Grau quando afirma que “a reflexão hermenêutica repudia a metodologia tradicional da interpretação e coloca sob acesas críticas a sistemática escolástica dos métodos, incapaz de responder à questão de se saber por que um determinado método deve ser, em determinado caso, escolhido”.107

Pode-se concluir, portanto, que a correção das ciências humanas não pode ser objetivamente alcançada pela aplicação de métodos, o que implica em uma revisão da própria noção de hermenêutica jurídica, como passamos a examinar.

5.2. A hermenêutica gadameriana e a hermenêutica jurídica

105 Cf. MÜLLER, Friedrich. Métodos de Trabalho do Direito Constitucional. 3. ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2005. p. 27-30.106 Sobre o tema, ver: STRECK, Lenio Luiz. O Efeito Vinculante das Súmulas e o Mito da Efetividade: Uma Crítica Hermenêutica. In: Crítica à Dogmática: Dos Bancos Acadêmicos à Prática dos Tribunais. Porto Alegre: Instituto de Hermenêutica Jurídica, 2005. p. 92; STRECK, Lenio Luiz. A hermenêutica filosófica e as possibilidades de superação do positivismo pelo (neo)constitucionalismo. In: STRECK, Lenio Luiz; ROCHA, Leonel Severo (Orgs.). Constituição, Sistemas Sociais e Hermenêutica. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2005. p. 167. 107 GRAU, Eros Roberto. Ensaio e Discurso sobre a Interpretação/Aplicação do Direito. São Paulo: Malheiros, 2002. p. 90 e 91.

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É vetusto o entendimento de que a interpretação jurídica seria um método para a descoberta da norma contida no texto ou, melhor dizendo, para a descoberta do verdadeiro sentido do texto legal.

Não se reconhecia qualquer caráter criativo a tal atividade, pressupondo que, por via da interpretação, seria possível a descoberta do único sentido já contido no texto legal.

Exposição nessa linha encontra-se, por exemplo, em Carlos Maximiliano, para quem “interpretar é explicar, esclarecer; dar o significado de vocábulo, atitude ou gesto; reproduzir por outras palavras um pensamento exteriorizado; mostrar o sentido verdadeiro de uma expressão; extrair, de frase, sentença ou norma, tudo o que na mesma se contém”.108

Embora tal concepção acerca da interpretação tenha sido abandonada há muito, até mesmo por autores positivistas como Kelsen e Hart, a mesma ainda é sustentada aqui e alhures.

Tal doutrina encontra-se, portanto, em cheque, podendo tal fato ser explicado a partir da hermenêutica filosófica gadameriana.

Com efeito, um primeiro fundamento para a crise do conceito tradicional de interpretação jurídica o temos nas próprias críticas formuladas à objetividade metodológica nas ciências humanas.

Partindo-se da premissa de que não há um método que possa ser

108 MAXIMILIANO, Carlos. Hermenêutica e Aplicação do Direito. 18. ed. Rio de Janeiro: Forense, 1999. p. 9. A idéia de que a interpretação consiste em uma atividade voltada para a descoberta do “verdadeiro” sentido de um texto legal encontra-se presente nos trabalhos de estudiosos da teoria geral do direito e nos compêndios gerais dos diversos “ramos” jurídicos, como em: MÁYNEZ, Eduardo García, Introducción al Estudio del Derecho, 2002, p. 327; COING, Helmut, Elementos Fundamentais da Filosofia do Direito, 2002, p. 326; GUSMÃO, Paulo Dourado de. Introdução ao Estudo do Direito. 26. ed. Rio de Janeiro: Forense, 1999. p. 219; DINIZ, Maria Helena, Compêndio de Introdução à Ciência do Direito, 1993, p. 381; LOPES, Miguel Maria de Serpa. Curso de Direito Civil. 7. ed. Rio de Janeiro: Freitas Bastos, 1989. v. I. p. 114; RODRIGUES, Silvio. Direito Civil. 20. ed. São Paulo: Saraiva, 1989. v. I. p. 24; ESPÍNOLA, Eduardo. Sistema de Direito Civil. Rio de Janeiro: Editora Rio, 1977. p. 157; BEVILAQUA, Clovis. Teoria Geral do Direito Civil. Rio de Janeiro: Editora Rio, 1975. p. 45; JESUS, Damásio E. de. Direito Penal. 19. ed. São Paulo: Saraiva, 1995. v. I. p. 27; MIRABETE, Julio Fabrini. Manual de Direito Penal. São Paulo: Atlas, 1998. v. I. p. 51; DANTAS, Ivo. Princípios Constitucionais e Interpretação Constitucional. Rio de Janeiro: Lúmen Júris, 1995. p. 83.

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aplicado pelo sujeito a um objeto com vistas a se alcançar a verdade nas ciências humanas, a idéias de que a interpretação de um texto presta-se ao alcance de tal verdade mostra-se inviável.

Além da crítica à objetividade metodológica, também o reconhecimento de que toda tarefa hermenêutica encontra-se influenciada pela pré-compreensão do intérprete também abala os alicerces de uma concepção estéril da interpretação jurídica.

A questão dos pré-conceitos e de sua influência no processo hermenêutico encontra-se vinculada à idéia de tradição ou, em outras palavras, à inserção do sujeito em uma determinada tradição, a qual pauta e condiciona sua forma de compreender o mundo.109 Como destaca Gadamer:

[...] encontramo-nos sempre inseridos na tradição, e essa não é uma inserção objetiva, como se o que a tradição nos diz pudesse ser pensado como estranho ou alheio; trata-se sempre de algo próprio, modelo e intimidação, um reconhecer a si mesmos no qual nosso juízo histórico posterior não verá tanto um conhecimento, mas uma transformação espontânea e imperceptível da tradição.110

109 Para Maria Margarida Lacombe Camargo, “Gadamer legitima a pré-compreensão na tradição como processo histórico que o intérprete experimenta. A autoridade da tradição, no entanto, não tira a liberdade do intérprete, uma vez que passe a ser racionalmente conhecida, pois, a partir do momento que formamos uma consciência metódica da compreensão, somos capazes de controlá-la. Mas a compreensão não consiste em uma busca do passado feita por uma razão independente, como procedia o romantismo histórico, considera Gadamer. Consiste, outrossim, na determinação universal do estar aí, isto é, na futuridade do estar aí, feita por uma razão comprometida historicamente. O estar aí faz parte de um processo histórico enquanto experiência humana da qual participamos” (Hermenêutica Jurídica e Argumentação: Uma Contribuição ao Estudo do Direito, 2001, p. 57 e 58). 110 Verdade e Método I: Traços de uma hermenêutica filosófica, 2003, p. 374. Vale a pena mencionar aqui as palavras de David E. Linge sobre a importância da pré-compreensão na hermenêutica jurídica gadameriana: “Não é de surpreender que a noção de pré-conceitos de Gadamer seja um dos aspectos mais controvertidos de sua filosofia. Mais do que qualquer outro elemento de seu pensamento, ela indica sua determinação em reconhecer as insuperáveis finitude e historicidade do compreender, assim como em exibir o papel positivo que

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Segundo Gadamer, pré-conceito “quer dizer um juízo que se forma antes do exame definitivo de todos os momentos segundo a coisa em questão”.111

Ora, o experimentar o mundo dos seres humanos lhes proporciona um conjunto de juízos prévios que condicionam o seu agir hermenêutico em relação a tudo quanto os cerca, de modo que nenhuma experiência sua será plenamente objetiva.112

os mesmos têm em cada transmissão humana de significado. Para Gadamer, o passado tem um poder pervasivo sobre o fenômeno da compreensão, e tal poder foi completamente ignorado pelos filósofos que dominaram a cena antes de Heidegger. O papel do passado não pode ser restringido meramente ao fornecimento de textos e eventos para a composição de ‘objetos’ da interpretação. Como os pré-conceitos e a tradição, o passado também define o ponto que o próprio intérprete ocupa quando compreende” (LINGE, David E. [Introduction to Gadamer’s Philosofical Hermeneutics]. In: GADAMER, Hans-Georg. Philosofical Hermeneutics. Tradução David E. Linge. Berkeley/Los Angeles/London: University of California Press, 1997. p. xv).111 Verdade e Método I: Traços de uma hermenêutica filosófica, 2003, p. 360.112 Essa questão foi muito bem analisada e exposta por Eduardo C. B. Bittar, na passagem a seguir transcrita: “O ser-no-mundo carrega esta experiência de estar-aí (Dasein) da qual não pode se desvincular; não posso modificar minha compreensão-de-mundo, pois ela é já determinada pela minha história-de-mundo, da qual não posso me alhear. As condições existenciais (ek-sistere), estar-aí) em que sou posto determinam também as condições com as quais interpreto e com-vivo com o mundo. A existência ou não dos “pré-conceitos” na determinação de todo sentido apreendido do mundo não depende da vontade humana. Os “pré-conceitos” existem, no sentido deste estar-aí contra o qual não se pode lutar, e estão presentes na avaliação de cada peça de nossa interação com o mundo. A vontade pode dizer não e renunciar aos “pré-conceitos”, mas esta é já uma postura claramente carregada de “pré-conceitos” e de tomadas de posição próprias de um sujeito histórico e gravado por uma experiência particular” (BITTAR, Eduardo C. B. Hans-Georg Gadamer: a experiência hermenêutica e a experiência jurídica. In: BOUCAULT, Carlos E. de Abreu; RODRIGUEZ, José Rodrigo. Hermenêutica Plural. São Paulo: Martins Fontes, 2002. p. 184 e 185). Segundo Konrad Hesse, “o intérprete não pode compreender o conteúdo da norma de um ponto situado fora da existência histórica, por se assim dizer, arquimédico, senão somente na situação histórica concreta, na qual ele se encontra, cuja maturidade enformou seus conteúdos de pensamento e determina seu saber e seu (pré)-juízo. Ele entende o conteúdo da norma de uma (pré)-compreensão, que

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Nessa linha de entendimento, na medida em que o ser-no-mundo não consegue interagir com a realidade ignorando seus pré-conceitos, dados pela tradição, caem por terra os ideais de objetivismo e neutralidade do intérprete, apregoados pelo formalismo jurídico.

É de se salientar, contudo, que a crítica ao objetivismo e o reconhecimento inevitável dos pré-conceitos no processo hermenêutico não transformam a interpretação em um fenômeno subjetivo. Nas palavras de Gadamer, “a compreensão deve ser pensada menos como uma ação da subjetividade e mais como um retroceder que penetra num acontecimento da tradição”.113

De fato, em primeiro lugar deve-se ter em conta que os valores trazidos pela tradição não são experenciados com exclusividade pelo sujeito-intérprete, mas por toda a coletividade, a qual compartilha determinada tradição.

Por outro lado, o fato de que somos guiados por pré-conceitos, dados pela tradição, não significa que nunca tenhamos qualquer controle sobre os mesmos ou, melhor dizendo, que não devamos questioná-los. Assim, como observa Gadamer:

[...] Aquele que quer compreender não pode se entregar de antemão ao arbítrio de suas próprias opiniões prévias, ignorando a opinião do texto da maneira mais obstinada e conseqüente possível – até que este acabe por não poder ser ignorado e derrube a suposta compreensão. Em princípio, quem quer compreender um texto deve estar disposto a deixar que este lhe diga alguma coisa. Por isso, uma consciência formada hermenêuticamente deve, desde o princípio, mostrar-se receptiva à alteridade do texto. Mas essa receptividade não

primeiramente lhe torna possível olhar a norma com certas esperanças, projetar-se um sentido do todo e chegar a um anteprojeto que, então, em penetração mais profunda, carece de confirmação, correção e revisão até que, como resultado de aproximação permanente dos projetos revisados, cada vez, ao “objeto”, determine-se univocamente a unicidade do sentido” (HESSE, Konrad. Elementos de Direito Constitucional da República Federal da Alemanha. Tradução Luís Afonso Heck. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris, 1998. p. 61 e 62).113 Verdade e Método I: Traços de uma hermenêutica filosófica, 2003, p. 385.

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pressupõe nem uma “neutralidade” com relação à coisa nem tampouco um anulamento de si mesma; implica antes uma destacada apropriação das opiniões prévias e preconceitos pessoais. O que importa é dar-se conta dos próprios pressupostos, a fim de que o próprio texto possa apresentar-se em sua alteridade, podendo assim confrontar sua verdade com as opiniões prévias pessoais.114

Ponto dos mais importantes presentes na passagem acima consiste, portanto, na necessidade de o intérprete não se fechar em suas opiniões prévias, abrindo-se para a alteridade do texto.115

114 Verdade e Método I: Traços de uma hermenêutica filosófica, 2003, p. 358.115 Nas palavras de Lenio Streck: “Quando se ouve a alguém ou quando se empreende uma leitura, não é que tenhamos que esquecer todas as opiniões prévias sobre seu conteúdo, ou todas as opiniões próprias, diz o mestre. O que se exige é que simplesmente temos que estar abertos à opinião do outro ou do texto. Entretanto, essa abertura implica sempre que se coloque a opinião do outro em alguma classe de relação com o conjunto de opiniões próprias ou que um se coloque em certa relação com as do outro. Para Gadamer, aquele que pretende compreender não pode entregar-se desde o princípio à sorte de suas próprias opiniões prévias e ignorar a mais obstinada e conseqüentemente possível opinião do texto. Aquele que pretende compreender um texto tem que estar em princípio disposto a que o texto lhe diga algo” (STRECK, Lenio Luiz. Hermenêutica Jurídica (em) Crise. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2003. p. 201). A questão foi bem colocada por Kelly Susane Alflen da Silva, para quem “aquele que tem uma consciência formada hermenêuticamente tem que estar disposto a deixar que o texto lhe diga algo, a acolher a outreidade do texto. Acolher o dito pelo texto sem reparo dos prejuízos significa a perda do sentido da verdade e da verdade em geral, o que H.G. Gadamer chama de mendacidade. Na esfera hermenêutica, isso quer dizer a exclusão do outro da comunicação por causa da inconseqüência consigo mesmo e, dessa forma, a ação hermenêutica se torna baldia por falta de entendimento. Precisamente, por isso, o intérprete deve se livrar dos próprios prejuízos negativos, a fim de que o texto surja em sua outreidade. O contrário, o reforço dos prejuízos pela repetição obstinada, com excelência diz H.G. Gadamer, é próprio do dogmatismo, que é conhecido sob o pretexto de conhecimento sem pressupostos e de objetividade da ciência (jurídica), pela mera transferência do método de outras ciências como, por exemplo, a física, principalmente, quando a ciência é invocada como instância suprema de processos de decisão social. Nisso se encontra a tensão entre o objetivismo ingênuo e o desconhecimento da

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Nesse ponto, parte Gadamer da dialética platônica para sustentar a primazia hermenêutica da pergunta. Citando uma vez mais suas lições:

Nós perguntamos pela estrutura lógica da abertura que caracteriza a consciência hermenêutica, e é bom que não esqueçamos a importância do conceito de pergunta na análise da situação hermenêutica. É claro que toda experiência pressupõe a estrutura da pergunta. Não se fazem experiências sem a atividade do perguntar. O conhecimento de que algo é assim, e não como acreditávamos inicialmente, pressupõe evidentemente a passagem pela pergunta para saber se a coisa é assim ou assado. Do ponto de vista lógico, a abertura que está na essência da experiência é essa abertura do “assim ou assado”. Ela tem a estrutura da pergunta. E assim como a negatividade dialética da experiência consumada, onde temos plena consciência de nossa finitude e limitação, também a forma lógica da pergunta e a negatividade que lhe é inerente encontram sua consumação numa negatividade radical: no saber que não sabe. É a famosa docta ignorantia socrática que abre a verdadeira superioridade da pergunta na negatividade extrema da aporia. É preciso então que nos aprofundemos na essência da pergunta, se quisermos esclarecer em que consiste o modo peculiar de realização da experiência

verdade, i.e., dos interesses agregados ao conhecimento. Particularmente, por isso, considera-se a tarefa hermenêutica suprema; por seu intermédio é possível compreender, explicar e, por conseguinte, dissolver hábitos e prejuízos sociais arraigados imperantes, sobretudo a influência desses na atuação dos profissionais da área jurídica, embora seja uma tarefa difícil, porque colocar em dúvida o que é dogma provoca sempre a resistência de todas as evidências práticas” (SILVA, Kelly Susane Alflen da. Hermenêutica Jurídica e Concretização Judicial. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris Editor, 2000. p. 269). Ver, também: CUNHA, José Ricardo. Fundamentos Axiológicos da Hermenêutica Jurídica. In: BOUCAULT, Carlos E. de Abreu; RODRIGUEZ, José Rodrigo. Hermenêutica Plural. São Paulo: Martins Fontes, 2002. p. 321.

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hermenêutica.116

Dessa forma, o intérprete deve ter consciência de seus pré-conceitos (o que nem sempre é possível) para então iniciar uma relação dialética com o texto, abrindo-se para o mesmo mediante o procedimento de perguntas e respostas.117 Forma-se então o círculo da compreensão.

Com efeito, as opiniões prévias do intérprete permitem que ele interpele o texto, abrindo-se para o mesmo. Com a compreensão as opiniões prévias são substituídas por novas opiniões e assim por diante, em um constante “projetar de novo”.118 Essa questão foi bem posta por Josef Bleicher, que ao analisar a hermenêutica filosófica gadameriana assim se manifesta:116 Verdade e Método I: Traços de uma hermenêutica filosófica, 2003, p. 473. 117 Cf. GADAMER, Hans-Georg. La hermenêutica y la escuela de Dilthey. In: El Giro Hermenéutico. Tradução Arturo Parada. Madrid: Ediciones Cátedra, 1995. p. 146.118 Segundo Gadamer: “[...] o processo descrito por Heidegger de que cada revisão do projeto prévio pode lançar um outro projeto de sentido; que projetos conflitantes podem posicionar-se lado a lado na elaboração, até que se confirme de modo mais unívoco a unicidade de sentido; que a interpretação começa com conceitos prévios substituídos depois por conceitos mais adequados. Em suma, esse constante projetar de novo é o que perfaz o movimento semântico de compreender e de interpretar. Quem procura compreender está sujeito a errar por causa das opiniões prévias, que não se confirmam nas coisas elas mesmas. Dessa forma, a constante tarefa do compreender consiste em elaborar projetos corretos, adequados às coisas, isto é, ousar hipóteses que só devem ser confirmadas ‘nas coisas elas mesmas’. Aqui não há outra ‘objetividade’ além da elaboração da opinião prévia a ser confirmada. Faz sentido afirmar que o intérprete não vai diretamente ao ‘texto’, a partir da opinião prévia pronta e instalada nele. Ao contrário, põe à prova, de maneira expressa, a opinião prévia instalada nele a fim de comprovar sua legitimidade, o que significa, sua origem e sua validade” (GADAMER, Hans-Georg. Sobre o Círculo da Compreensão. In: Verdade e Método II. 2. ed. Petrópolis: Vozes, 2004. p. 75). Esse aspecto circular da compreensão é ressaltado por Gregorio Robles: “[...] a interpretação ‘projeta’, já que em todo momento começa com um ‘projeto de compreensão’ (pré-compreensão) que irá verificar-se e contrastar-se com a experiência. Este contraste mostrará a insuficiência do projeto emitido e a necessidade de substituí-lo por outro. Neste ir e vir da compreensão, para utilizar a expressão de Engisch, radica o chamado círculo hermenêutico” (ROBLES, Gregorio. Introducción a la Teoria del Derecho. 9. ed. Barcelona: Debate, 2003. p. 192).

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A principal tarefa do intérprete é descobrir a pergunta a que o texto vem dar resposta; compreender um texto é compreender a pergunta. Simultaneamente, um texto só se torna um objeto da interpretação se confrontar o intérprete com uma pergunta. Nesta lógica de pergunta e resposta, um texto acaba por ser um acontecimento ao ser atualizado na compreensão, que representa uma possibilidade histórica. Conseqüentemente, o horizonte do sentido é limitado e a abertura, tanto do texto como do intérprete, constitui um elemento estrutural da fusão dos horizontes. Nesta concepção dialógica, os conceitos usados pelo Outro, seja um texto, seja um tu, ganham nova força, por se inserirem na compreensão do intérprete. Ao entendermos a pergunta colocada pelo texto, fizemos já perguntas a nós próprios e, por conseguinte, abrimo-nos a novas possibilidades de sentido.119

Ponto importante da hermenêutica filosófica de Gadamer reside no reconhecimento de que o homem somente recebe o mundo por intermédio da linguagem.120 Em suas palavras, a linguagem é “o centro do ser humano, quando considerada no âmbito que só ela consegue preencher: o âmbito da convivência humana, o âmbito do entendimento, do consenso crescente, tão indispensável à vida humana como o ar que respiramos”.121

119 BLEICHER, Josef. Hermenêutica Contemporânea. Tradução Maria Georgina Segurado. Lisboa: Edições 70, [s/d]. p. 161.120 Cf. PALMER, Richard, Hermeneutics, 1969, p. 205.121 GADAMER, Hans-Georg. Homem e Linguagem. In: Verdade e Método II. 2. ed. Petrópolis: Vozes, 2004. p. 182. Ver, também: GADAMER, Hans-Georg. La Diversidade de las Lenguas y la Comprensión del Mundo. In: Arte y Verdad de la Palabra. Tradução José Francisco Zuñiga García. Barcelona: Paidós, 1998. p. 119. Sobre essa questão, nos diz Luiz Rohden que “com e pela linguagem, marca da finitude humana, a realidade constitui-se mediada lingüisticamente, e desse modo também a ‘força de nossa reflexão é sempre uma força limitada pelo acontecer da lingüisticidade’ que se compreende como ‘condição e possibilidade de toda compreensão, a condição de possibilidade de que todo horizonte de sentido

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Ora, se experimentamos o mundo por intermédio da linguagem, deve-se concluir que o homem é um ser hermenêutico, ou seja, um ser que tem acesso ao mundo através da interpretação, de forma que é possível afirmar que estamos a todo tempo interpretando.122 É assim que, nas palavras de Gadamer, “todo compreender é interpretar e todo interpretar se desenvolve no medium de uma linguagem que pretende deixar falar o objeto, sendo, ao mesmo tempo, a própria linguagem do intérprete”.123

O reconhecimento de que recebemos o mundo pela linguagem e que o tomamos por meio da interpretação torna inviável a idéia de uniformidade interpretativa, já que cada intérprete participa do processo hermenêutico munido de seus pré-conceitos, de modo que sua abertura ao texto se fará a partir de um determinado referencial de razões prévias, as quais pautarão às perguntas apresentadas e a formação do círculo da compreensão. Torna-se inevitável, então, reconhecer o caráter criativo do fenômeno hermenêutico.124

Em resumo, pode-se afirmar que a hermenêutica é o próprio modo de o homem se relacionar com o mundo, de se apropriar do mundo, e não um instrumento de que se pode valer para interpretar certos textos ou fatos, mediante a aplicação de um método. Nas palavras de Richard Palmer, na conclusão de sua análise sobre a teoria de Gadamer,

[...]as chaves para compreensão não são seja determinado por sua vinculação ao acontecer da experiência humana finita’. Do ponto de vista da hermenêutica filosófica, a linguagem não é apenas condição de possibilidade, mas ela mesma é constituinte e constituidora do filosofar” (ROHDEN, Luiz. Hermenêutica Filosófica. São Leopoldo: Editora Unisinos, 2002. p. 227).122 Como leciona Lenio Streck: “Dizendo de outro modo: estamos mergulhados em um mundo que somente aparece (como mundo) na e pela linguagem. Algo só é algo se podemos dizer que é algo. Esse poder-dizer é lingüisticamente mediato, porque nossa capacidade de agir e de dizer-o-mundo é limitado e capitaneado pela linguagem. Como diz Heidegger, todo o processo de compreensão do ser é limitado por uma história do ser que limita a compreensão. Gadamer, assim, eleva a linguagem ao mais alto patamar, em uma ontologia hermenêutica, entendendo, a partir disto, que é a linguagem que determina a compreensão e o próprio objeto hermenêutico. O existir já é um ato de compreender e um interpretar” (Hermenêutica Jurídica (em) Crise, 2003, p. 200).123 Verdade e Método I: Traços de uma hermenêutica filosófica, 2003, p. 503.124 Ver: STRECK, Lenio Luiz, Hermenêutica Jurídica (em) Crise, 2003, p. 203.

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manipulação e controle, mas participação e abertura, não é conhecimento, mas experiência, não é metodologia, mas dialética. Para ele [Gadamer], o propósito da hermenêutica não é estabelecer regras para uma compreensão objetivamente válida, mas conceber compreensão em si tão abrangente quanto possível.125

5.3. Interpretação e aplicação

Uma das conseqüências do objetivismo metodológico antes descrito é a separação dos momentos de interpretação e aplicação das normas jurídicas. Com efeito, sob os influxos dessa linha de pensamento tem-se uma separação bem definida entre o intérprete, o objeto da interpretação e a questão que se pretende solucionar.

Nesse cenário, o processo hermenêutico se daria em duas etapas distintas: em primeiro lugar, o intérprete desvelaria o sentido do texto legal para, então, aplicar a norma jurídica descoberta a uma determinada situação fática. É nesse sentido que se distinguem os momentos de interpretação e aplicação das normas jurídicas.126

Gadamer irá alocar todos os “momentos” da relação intérprete-

125 PALMER, Richard, Hermeneutics, 1969, p. 215.126 Essa distinção entre interpretação e aplicação ainda encontra-se presente na doutrina. Nesse sentido, ver: MAXIMILIANO, Carlos, Hermenêutica e Aplicação do Direito, 1999, p. 6-8; FRANÇA, Limongi. Hermenêutica Jurídica. 7. ed. São Paulo: Saraiva, 1999. p. 35 e 36; PEREIRA, Caio Mário da Silva. Instituições de Direito Civil. 11. ed. Rio de Janeiro: Forense, 1989. v. I. p. 134; FERRARA, Francesco. Interpretação e Aplicação das Leis. 4. ed. Coimbra: Armênio Amado, 1987. p. 185; ASCENSÃO, José de Oliveira, Introdução à Ciência do Direito, 2005, p. 591; MÁYNEZ, Eduardo García. Introducción al Estudio del Derecho, 2002, p. 319; COING, Helmut, Elementos Fundamentais da Filosofia do Direito, 2002, p. 340 e 341; DINIZ, Maria Helena, Compêndio de Introdução à Ciência do Direito, 1993, p. 374; LOPES, Miguel Maria de Serpa, 1989, p. 111; RODRIGUES, Silvio, Direito Civil, 1989, p. 24; PECES-BARBA, Gregório; FERNÁNDEZ, Eusébio; ASÍS, Rafael. Curso de Teoría del Derecho. 2. ed. Madrid: Marcial Pons, 2000. p. 232; AMATUCCI, Andrea. La Interpretación de la Ley Tributaria. In: AMATUCCI, Andrea (Org.). Tratado de Derecho Tributario. Bogotá: Themis, 2001. p. 579-580; CARVALHO, Paulo de Barros. Curso de Direito Tributário. 15. ed. São Paulo: Saraiva, 2003. p. 88-90.

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objeto no âmbito da hermenêutica. Assim, a subtilitas intelligendi (o poder de compreender), a subtilitas explicandi (o poder de interpretar) e a subtilitas applicandi (o poder de aplicar) estão todas contidas no fenômeno hermenêutico.127

Nas palavras do mestre alemão, “‘aplicar’ não é ajustar uma generalidade já dada antecipadamente para desembaraçar em seguida os fios de uma situação particular. Diante de um texto, por exemplo, o intérprete não procura aplicar um critério geral a um caso particular: ele se interessa, ao contrário, pelo significado fundamentalmente original do escrito de que se ocupa”.128

A inclusão da aplicação no processo hermenêutico é uma conseqüência lógica do abandono do objetivismo metodológico, já que a situação de fato que se põe ao intérprete será interpretada juntamente com o texto objeto da interpretação, implicando-se mutuamente e inserindo-se no âmbito da tradição (pré-compreensão) do intérprete.

Como salienta Josef Bleicher, “a ‘aplicação’, como articulação entre o passado e o presente, surge como terceiro momento da unidade da compreensão, da interpretação e da aplicação, que constituem o esforço hermenêutico: a compreensão adequada de um texto, que corresponde às suas necessidades e mensagem, muda com a situação concreta a partir da qual tem lugar; é já sempre uma aplicação”.129

Esse aspecto da teoria de Hans-Georg Gadamer tem particular importância no âmbito jurídico, na medida em que se reconhecem as implicações entre norma e fato, não havendo que se falar em uma interpretação isolada dos textos normativos, desconsiderando-se os fatos envolvidos em dado caso concreto.130 Como fala-nos Lenio Streck, aprendemos com

127 Cf. GADAMER, Hans-Georg, Gadamer in Conversation, 2001, p. 37; GADAMER, Hans-Georg, Verdade e Método I: Traços de uma hermenêutica filosófica, 2003, p. 407.128 GADAMER, Hans-Georg, O problema da consciência histórica, 1998, p. 57. Ver também: GADAMER, Hans-Georg. Hermenêutica clássica e hermenêutica filosófica. In: Verdade e Método II. 2. ed. Petrópolis: Vozes, 2004. p. 131.129 BLEICHER, Josef, Hermenêutica Contemporânea, [s/d], p. 170.130 Nas palavras de Eros Grau: “Interpretação e aplicação não se realizam autonomamente. O intérprete discerne o sentido do texto a partir e em virtude de um determinado caso dado; a interpretação do direito consiste em concretar a lei em cada caso, isto é, na sua aplicação. Assim, existe uma equação entre interpretação e aplicação: não estamos aqui diante de dois momentos distintos,

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Gadamer “que hermenêutica não é método, é filosofia”. E prossegue: “Ora, se interpretar é aplicar, não há um pensamento teórico que ‘flutua’ sobre os objetos do mundo, apto a dar sentido ao ‘mundo sensível’. O sentido é algo que se dá; ele acontece”.131

6. A jurisprudência dos valores

Com o fim da Segunda Guerra Mundial e o assombro quanto à impotência do direito para evitar a solução final posta em curso pelo nacional-socialismo alemão, voltaram-se os teóricos jurídicos para o desenvolvimento de uma teoria que superasse o positivismo jurídico avalorativo, exatamente mediante a busca de justificação da validade das normas em valores superiores ao direito positivo.

Nas palavras de Karl Larenz “o Direito é uma parte da cultura; a cultura é uma realidade referida a valores; o Direito é, portanto, uma realidade determinada, em sua peculiaridade, pela referência ao valor especificamente jurídico, a justiça”.132

porém frente a uma só operação. Interpretação e aplicação consubstanciam um processo unitário, se superpõem” (Ensaio e Discurso sobre a Interpretação/Aplicação do Direito, 2002, p. 76). Ver também: STRECK, Lenio Luiz, O Efeito Vinculante das Súmulas e o Mito da Efetividade: Uma Crítica Hermenêutica, 2005, p. 162; TORRES, Ricardo Lobo, Normas de Interpretação e Integração do Direito, 2006, p. 61.131 STRECK, Lenio Luiz. Jurisdição Constitucional e Hermenêutica: Uma Nova Crítica do Direito. 2. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2004. p. 32.132 LARENZ, Karl. La Filosofía Contemporánea del Derecho y del Estado. Tradução E. Galán Gutiérrez; A. Truyol Serra. Madrid: Editorial Revista de Derecho Privado, 1942. p. 98. A jurisprudência valorativa de Larenz se reflete em sua definição de princípios jurídicos, constante na passagem a seguir: “Os princípios jurídicos são os pensamentos diretores de uma regulação jurídica existente ou possível. Em si mesmos, não são, todavia, regras suscetíveis de aplicação, mas podem transformar-se em regras. Quando remetem a um conteúdo intelectivo que conduz a uma regulação, são princípios ‘materiais’, ainda que lhes falte, todavia, o caráter formal de proposições jurídicas, representando a conexão entre um ‘pressuposto de fato’ e uma ‘conseqüência jurídica’. Os princípios indicam apenas a direção na qual está situada a regra que deve ser encontrada. Podemos dizer que são um primeiro passo para a obtenção da regra, que determina os passos posteriores. Como ao estabelecer as regras de comportamento humano se escolhe entre diferentes possibilidades e, para tanto, realiza-se uma valoração

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Representante dessa linha de pensamento foi o jusfilósofo alemão Gustav Radbruch (1878-1949), para quem “o direito só pode ser compreendido dentro da atitude que refere as realidades aos valores (wertbeziehend). O direito é um fato ou fenômeno cultural, isto é, um fato referido a valores”.133

Em seus “Cinco Minutos de Filosofia”, Radbruch sustenta que a validade do direito positivo não pode ser aferida tendo em vista apenas parâmetros formais. Com efeito, para o jurista alemão “há também princípios fundamentais de direito que são mais fortes do que todo e qualquer preceito jurídico positivo, de tal modo que toda a lei que os contrarie não poderá deixar de ser privada de validade”.134

Uma teoria jurídica voltada à realização de valores implica uma reforma na própria forma de legislar, uma vez que se faz necessária uma maior abertura dos textos legais com a delegação de maior atribuição ao julgador para ponderar os valores em jogo em cada caso concreto.

Torna-se então cada vez mais comum a utilização nos textos legais de conceitos indeterminados e tipos, os quais impõem uma mudança na própria forma mediante a qual os operadores jurídicos devem examinar o fenômeno hermenêutico.

A jurisprudência dos valores, na medida em que impõe uma interpretação jurídica que não se limita ao direito positivo, impõe a ponderação de valores extrajurídicos. Como destaca Karl Larenz, “a passagem a uma ‘jurisprudência de valoração’ só cobra, porém, o seu pleno sentido quando conexionada na maior parte dos autores com o reconhecimento de valores ou critérios de valoração ‘supralegais’ ou ‘pré-positivos’ que subjazem às normas legais e para cuja interpretação e complementação é legítimo lançar mão, pelo menos sob determinadas condições”.135 O sistema jurídico seria então, segundo Canaris, uma ordenação axiológica.136

– este se estima mais do que outro -, os princípios contém pré-decisões sobre os valores posteriores que se tem que encontrar e que se têm que manter dentro do marco assinalado pela pré-decisão, que deve dar satisfação ao princípio” (LARENZ, Karl. El Derecho Justo. Tradução Luis Díes-Picazo. Madrid: Civitas, 2001. p. 32-33).133 RADBRUCH, Gustav, Filosofia do Direito, 1997, p. 45.134 RADBRUCH, Gustav, Filosofia do Direito, 1997, p. 45.135 LARENZ, Karl, Metodologia da Ciência do Direito, 1997, p. 167.136 CANARIS, Claus-Wilhelm. Pensamento Sistemático e Conceito de Sistema na Ciência do Direito. 2.ed. Tradução A. Menezes Cordeiro. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 1996. p. 66-67.

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Questão relevante no campo da jurisprudência dos valores consiste na fundamentação da decisão judicial. De fato, considerando que, como dito, as valorações partem de aspectos não auferíveis pela lógica subsuntiva, impõe-se então o desenvolvimento de novas fórmulas de justificação das decisões judiciais, como a tópica e a teoria da argumentação.

7. O pós-positivismo

O termo pós-positivismo não designa uma corrente uniforme de pensamento, referindo-se às correntes jurídicas contemporâneas decorrentes dessa reaproximação entre direito e valores.137

Um dos marcos desse pensamento voltado a valores é a teoria da justiça de John Rawls (1921–2002).

A teoria da justiça de John Rawls, cujo refinamento teórico impõe redobrada cautela ao se expor seus fundamentos de forma concisa é, em linhas gerais, uma tentativa de se estabelecer critérios para uma justiça pública, relativos à estrutura básica da sociedade,138 a qual somente pode ser aplicável a uma sociedade bem ordenada139 (com regras institucionalizadas democraticamente). Caracteriza-se por ser uma teoria contratualista, determinando que os princípios fundamentais de justiça devem ser pactuados, em uma posição original de igualdade, por pessoas racionais e razoáveis, as quais, protegidas por um véu de ignorância, estariam aptas a estabelecer tais princípios de forma eqüitativa.140 Por seu turno, tais pessoas tenderiam a estabelecer, na posição original, dois princípios distintos: um que garantisse as liberdades fundamentais a todos e outro que previsse que as desigualdades entre os homens somente seriam justas na medida em que beneficiassem os menos favorecidos, e que as oportunidades sociais e econômicas deveriam

137 Cf. TORRES, Ricardo Lobo. Tratado de Direito Constitucional Financeiro e Tributário: Valores e Princípios Constitucionais Tributários. Rio de Janeiro: Renovar, 2005. p. 57; CALSAMIGLIA, Albert. Postpositivismo. Doxa. Cuadernos de Filosofía del Derecho, Alicante, n. 21, 1998, p. 209, CAMARGO, Maria Margarida Lacombe. Eficácia Constitucional: Uma Questão Hermenêutica. In: BOUCALT, Carlos E. de Abreu; RODRIGUEZ , José Rodrigo (Coords.). Hermenêutica Plural. São Paulo: Martins Fontes, 2002. p. 377.138 RAWLS, John. A Theory of Justice. Cambridge: Harvard University Press, 2001. p. 6 e 7.139 RAWLS, John, A Theory of Justice, 2001, p. 397 - 405.140 RAWLS, John, A Theory of Justice, 2001, p. 102-160.

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ser isonomicamente acessíveis.141

A teoria de Rawls é basicamente uma teoria de justiça distributiva, a partir da qual se busca estabelecer mecanismos para distribuir os bens coletivos de forma isonômica entre todos, de forma que todos devem ter iguais oportunidades para atingir as posições socialmente vantajosas, redistribuindo-se pela coletividade as vantagens gozadas arbitrariamente por determinados sujeitos (dons naturais e posições originárias de vantagem).

O ressurgimento das relações direito-moral-justiça, impulsionam, portanto, a teoria jurídica do pós-positivismo, como apontam Luís Roberto Barroso e Ana Paula de Barcellos.142

Nessa mesma linha de idéias, ressalta Maria Margarida Lacombe Camargo que

[...]o pós-positivismo, como movimento de reação ao modelo Kelseniano de negação dos valores, abre-se a duas vertentes. Uma delas, que segue

141 RAWLS, John, A Theory of Justice, 2001, p. 53.142 Em textual: “A superação histórica do jusnaturalismo e o fracasso político do positivismo abriram caminho para um conjunto amplo e ainda inacabado de reflexões acerca do Direito, sua função social e sua interpretação. O pós-positivismo é a designação provisória e genérica de um ideário difuso, no qual se incluem a definição das relações entre valores, princípios e regras, aspectos da chamada nova hermenêutica constitucional, e a teoria dos direitos fundamentais, edificada sobre o fundamento da dignidade humana. A valorização dos princípios, sua incorporação, explícita ou implícita, pelos textos constitucionais e o reconhecimento pela ordem jurídica de sua normatividade fazem parte desse ambiente de reaproximação entre Direito e Ética” (BARROSO, Luís Roberto; BARCELLOS, Ana Paula de. O começo da história. A nova interpretação constitucional e o papel dos princípios no direito brasileiro. In: BARROSO, Luís Roberto (Org.). A Nova Interpretação Constitucional: Ponderação, Direitos Fundamentais e Relações Privadas. Rio de Janeiro: Renovar, 2003. p. 336). Nas palavras de Marcus Abraham: “O pós-positivismo reintroduz no ordenamento jurídico positivo as idéias de justiça e legitimidade, através do constitucionalismo moderno, com o retorno aos valores e com a reaproximação entre moral, ética e o direito, materializados em princípios jurídicos abrigados na Constituição, que passam a ter maior efetividade normativa, influenciando sobremaneira a teoria da interpretação do direito e, inclusive, do direito tributário” (ABRAHAM, Marcus. O Planejamento Tributário e o Direito Privado. São Paulo: Quartier Latin, 2007. p. 96).

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a linha de Dworkin e Alexy, busca recuperar a força normativa dos princípios de direito, com todo seu potencial valorativo. A outra procura, nos fundamentos que sustentam as decisões judiciais, sua força lógico-legitimante, como faz Chaïm Perelman, por exemplo.143

Característica, portanto, do pós-positivismo é a valorização dos princípios jurídicos, principalmente a partir dos aportes de Ronald Dworkin144 (1931- ) e Robert Alexy (1945- ) e suas teorias para a distinção entre princípios e normas.

Para Ronald Dworkin, princípio é “um padrão que deve ser observado, não porque irá alcançar ou assegurar uma situação econômica, política, ou social supostamente desejada, mas porque é uma exigência de justiça ou eqüidade, ou alguma outra dimensão de moralidade”.145

Já segundo Robert Alexy,

[...] o ponto decisivo para a distinção entre regras e princípios é que os princípios são normas que ordenam que algo seja realizado na maior medida possível, dentro das possibilidades jurídicas e reais existentes. Portanto, os princípios são mandados de otimização, que estão caracterizados pelo fato de que podem ser cumpridos em diferente grau e que a medida devida de seu cumprimento não só depende das possibilidades reais mas também das jurídicas. O âmbito das possibilidades jurídicas é determinado pelos princípios e regras opostas.146

143 CAMARGO, Maria Margarida Lacombe, Hermenêutica Jurídica e Argumentação: Uma Contribuição ao Estudo do Direito, 2001, p. 141.144 Interessante a observação de Albert Calsamiglia, quando aponta que a obra de Ronald Dworkin seria o primeiro grande ataque à Escola Analítica de Austin, depurada no positivismo light de Herbert Hart (CALSAMIGLIA, Albert. ¿Por que es Importante Dworkin? Doxa. Cuadernos de Filosofía del Derecho, Alicante, n. 2, 1985, p. 159-161.145 DWORKIN, Ronald. Taking Rights Seriously. Cambridge: Harvard University Press, 1999. p. 22.146 ALEXY, Robert. Teoria de los Derechos Fundamentales. Tradução

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Partindo dessas e outras idéias, Humberto Ávila forjou sua definição de princípios jurídicos, os quais seriam

[...] normas imediatamente finalísticas, primariamente prospectivas e com pretensão de complementariedade e de parcialidade, para cuja aplicação demandam uma avaliação da correlação entre o estado de coisas a ser promovido e os efeitos decorrentes da conduta havida como necessária à sua promoção.147

Tendo os princípios jurídicos, positivados ou não, como diretrizes a serem alcançadas pelo direito, busca-se superar as limitações do positivismo jurídico, tão criticado por Dworkin.148

É pertinente aqui o comentário de Albert Calsamiglia, para quem o

[...] pós-positivismo põe atenção sobre a pergunta que se deve fazer ante a um caso difícil. A resposta do positivismo era acudir ao legislador intersticial. Mas quando o raciocínio judicial se efetua fora do domínio do direito encontramo-nos em terra incógnita. Não deixa de ser curioso que quando mais necessitamos orientação, a teoria positivista emudece.149

Nada obstante, não se pode ter a falsa idéia de que o próprio positivismo jurídico não pode lidar com a revolução principiológica.

Nesse sentido é a lição de Neil MacCormick, que vem trabalhando com os princípios jurídicos dentro de uma perspectiva positivista.

Para MacCormick, “os princípios de um sistema jurídico são as Ernesto Garzón Valdés. Madrid: Centro de Estudios Políticos y Constitucionales, 2001. p. 86.147 ÁVILA, Humberto. Teoria dos Princípios: da definição à aplicação dos princípios jurídicos. São Paulo: Malheiros, 2003. p. 70.148 DWORKIN, Ronald. Law’s Empire. Cambridge: Harvard University Press, 1999.149 CALSAMIGLIA, Albert, Postpositivismo, 1998, p. 212.

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normas gerais conceitualizadas por meio das quais funcionários racionalizam as normas que pertencem ao sistema em virtude de critérios observados internamente”.150

Segundo o professor catedrático da Universidade de Edimburgo, “o princípio estabelece o limite dentro do qual são legítimas decisões judiciais plenamente justificadas por argumentos conseqüencialistas. Sua existência torna possível que um juiz chegue a uma decisão que, de outro modo, deveria caber à legislatura”.151

Todavia, conforme mencionado anteriormente, a reaproximação entre direito e os valores, com a superação da lógica subsuntiva, traz problemas de justificação e legitimação da interpretação/aplicação do direito pelos tribunais, que necessitam demonstrar as razões e motivos de suas valorações. Sobre a questão podemos destacar como contribuições importantes para a nova forma de compreensão do direito tanto a tópica, de Theodor Viehweg,152 quando a teoria da argumentação jurídica, as quais serão examinadas a seguir.

7.1. O pensamento por problemas: A tópica de Theodor Viehweg

O pensamento tópico, que remonta a Cícero e Aristóteles, ressurgiu da década de 50 como uma alternativa ao formalismo jurídico e o raciocínio lógico-dedutivo, encontrando seu maior expoente na figura de Theodor Viehweg (1907-1988).153

Posta por terra a crença na possibilidade de se extrair comandos 150 MacCORMICK, Neil. Argumentação Jurídica e Teoria do Direito. Tradução Waldéa Barcellos. São Paulo: Martins Fontes, 2006. p. 201.151 MacCORMICK, Neil, Argumentação Jurídica e Teoria do Direito, 2006, p. 209.152 Conforme salienta Paulo Bonavides, “a tópica tem que ser compreendida portanto no quadro das conseqüências advindas da reação ao positivismo jurídico clássico e no clima de inteira descrença quanto a uma reestruturação jusnaturalista, como a que se intentou na Alemanha no fim da década de 40, após as feridas abertas na consciência do Ocidente pela tragédia da Segunda Grande Guerra Mundial” (BONAVIDES, Paulo. Curso de Direito Constitucional. 13. ed. São Paulo: Malheiros, 2003. p. 497). No mesmo sentido: BUSTAMANTE, Thomas da Rosa de. Tópica e argumentação jurídica. Revista de Informação Legislativa, Brasília, n. 163, jul.-set. 2004, p. 154-155.153 Ver: VIEHWEG, Theodor. Tópica e Jurisprudência. Tradução Tercio Sampaio Ferraz Jr. Brasília: Departamento de Imprensa Nacional, 1979.

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normativos verdadeiros e desvinculados dos fatos em causa por intermédio da lógica dedutiva, com o ressurgimento dos valores e dos princípios jurídicos, torna-se necessária a discussão de uma forma de pensar o direito que dê conta não apenas do texto normativo, mas de todos os elementos que influenciam a decisão do órgão de aplicação do direito. Esse é, exatamente, o papel da tópica jurídica, a qual é muito bem descrita por Antonio Manuel Hespanha:

A tópica é, como já se disse, o nome dado pela antiga teoria do discurso à técnica de encontrar soluções no domínio dos saberes problemáticos, ou seja, dos saberes em que não existem certezas evidentes, como o direito, a moral, etc. Nestes casos, a legitimação da solução encontrada não decorre tanto da validade das premissas em que esta se baseia como no consenso que suscitou no auditório. Aplicada ao direito, esta idéia vem a colocar o juiz (ou o jurista) na primeira linha da atividade de achamento ou de declaração do direito, o qual, para decidir um caso concreto, lança mão de argumentos (tópicos) disponíveis (princípios doutrinais, precedentes, disposições legislativas), no sentido de ganhar o assentimento (das partes, mas também do público em geral) para a solução. Neste contexto, a lei é apenas um dos argumentos, cuja eficácia argumentativa dependerá tanto da sua consonância com o sentido concreto de justiça vigente no auditório como do prestígio de que a forma “lei” (e, em geral, a entidade “Estado”) aí goze. Para além de constituir uma crítica ao legalismo, a tópica constitui também uma crítica ao normativismo, ou seja, à idéia de que a norma geral e abstrata está no princípio de um processo de subsunção que conduziria ao achamento do direito. Pelo contrário, a tópica defende que é o caso, com o seu caráter concreto e situado, que sugere os argumentos ou pontos de vista relevantes, bem

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como que os permite hierarquizar.154

Como pontua José de Oliveira Ascenção a tópica procura chegar a “um repertório de pontos de vista que darão a solução de casos concretos”.155

Para Chaïm Perelman

[...] a importância dos lugares específicos do direito, isto é, dos tópicos jurídicos, consiste em fornecer razões que permitem afastar soluções não eqüitativas ou desarrazoadas, na medida em que estas negligenciam as considerações que os lugares permitem sintetizar e integrar em uma visão global do direito como ars aequi et boni.156

Segundo Viehweg:

A função dos topoi, tanto gerais como especiais, consiste em servir a uma discussão de problemas. Segue-se daí que sua importância tem que ser muito especial naqueles círculos de problema

154 HESPANHA, António Manuel, Cultura Jurídica Européia: Síntese de um Milénio, 2003, p. 338-339. Leciona Tercio Sampaio Ferraz Jr. que “quando se fala, hoje, em tópica pensa-se, como já dissemos, numa técnica de pensamento que se orienta para problemas. Trata-se de um estilo de pensar e não, propriamente, de um método. Ou seja, não é um conjunto de princípios de avaliação da evidência nem de cânones para julgar a adequação de explicações propostas, nem ainda critério para selecionar hipóteses. Em suma, não se trata de um procedimento verificável rigorosamente. Ao contrário, é um modo de pensar, problemático, que nos permite abordar problemas, deles partir e neles culminar. Assim, pensar topicamente significa manter princípios, conceitos, postulados com caráter problemático visto que jamais perdem sua qualidade tentativa. Veja, por analogia, o que acontece com a elaboração de um dicionário, em que muitos verbetes, pela diversidade de acepções, exigem abordagens, que, partindo de distintos pontos de vista, não fecham nem concluem, embora dêem a possibilidade de compreender a palavra em sua amplitude (problemática)” (FERAZ JR., Tercio Sampaio, Introdução ao Estudo do Direito, 2001, p. 323-324).155 OLIVEIRA ASCENÇÃO, José de, Introdução à Ciência do Direito, 2005, p. 464.156 PERELMAN, Chaïm, Lógica Jurídica, 2000, p. 120.

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em cuja natureza está não perder nunca o seu caráter problemático. Quando se produzem mudanças de situações e em casos particulares, é preciso encontrar novos dados para tentar resolver os problemas. Os topoi, que intervêm com caráter auxiliar, recebem por sua vez sentido a partir do problema. A ordenação com respeito ao problema é sempre essencial para eles. À vista de cada problema aparecem como adequados ou inadequados, conforme um entendimento que nunca é absolutamente imutável. Devem ser entendidos de um modo funcional, como possibilidades de orientação e como fios condutores do pensamento.157

Tal repertório de pontos de vista, de topoi, é sempre provisório e cambiante em função do problema. Como destaca Viehweg, “a tópica não pode ser entendida se não se admite a sugerida inclusão em uma ordem que está sempre por ser determinada”.158

Portanto, pode-se caracterizar a tópica como uma forma de pensar em função do problema.159 Nas palavras de Viehweg,157 VIEHWEG, Theodor, Tópica e Jurisprudência, 1979, p. 38.158 VIEHWEG, Theodor, Tópica e Jurisprudência, 1979, p. 35. Sobre a necessidade de abertura e flexibilidade dos topoi, vale a pena destacar outra passagem de Viehweg, onde afirma que “os topoi e os catálogos de topoi oferecem um auxílio muito apreciável. Porém, o domínio do problema exige flexibilidade e capacidade de alargamento” (VIEHWEG, Theodor, Tópica e Jurisprudência, 1979, p. 41).159 Nas palavras de Manuel Atienza, “a tópica é (de acordo com a distinção de Cícero aludida anteriormente) uma ars inveniende, um procedimento de busca de premissas (de tópicos) que, na realidade, não termina nunca: o repertório de tópicos sempre é necessariamente provisório, elástico. Os tópicos devem ser entendidos de um modo funcional, como possibilidades de orientação e como fios condutores do pensamento que só permitem alcançar conclusões curtas. A isso se contrapõe a ars iudicandi, a lógica demonstrativa que recebe premissas e trabalha com elas, o que permite a elaboração de longas cadeias dedutivas” (ATIENZA, Manuel. As Razões do Direito: Teorias da Argumentação Jurídica. Tradução Maria Cristina Guimarães Cupertino. São Paulo: Landy, 2002. p. 66). Ver também: MAIA, Antônio Cavalcanti. A importância da dimensão argumentativa

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[...] o sistema tópico está em permanente movimento. Suas formulações respectivas indicam meramente os estágios progressivos da argumentação ao tratar de problemas particulares. O sistema pode razoavelmente ser chamado um sistema aberto, já que sua discussão, quer dizer, seu enfoque de um problema particular, está aberta a novos pontos de vista.160

Para um melhor entendimento da tópica é importante a caracterização do problema. Segundo Viehweg:

Para nosso fim, pode chamar-se problema – esta definição basta – toda questão que aparentemente permite mais de uma resposta e que requer necessariamente um entendimento preliminar, de acordo com o qual toma o aspecto de questão que há que levar a sério e para a qual há que buscar uma resposta como solução. [...].161

Como bem notado por Paulo Roberto Soares de Mendonça, as soluções dadas aos problemas podem ser agrupadas em catálogos de soluções, compondo assim um sistema a partir do qual venham a ser solucionados os problemas no futuro. O pensamento tópico funciona de forma inversa, questionando sempre as premissas e extraindo novos pontos de vista a partir dos problemas.162

Nota-se, portanto, que, como salienta Thomas da Rosa de Bustamante,

à compreensão da práxis contemporânea. Revista Trimestral de Direito Civil, Rio de Janeiro, v. 8, out.-dez. 2000, p. 271-272; GARCÍA AMADO, Juan Antonio. Tópica, Derecho y Método Jurídico. Doxa. Cuadernos de Filosofía del Derecho, Alicante, n. 4, 1987, p. 162; BONAVIDES, Paulo, Curso de Direito Constitucional, 2003, p. 490-491.160 VIEHWEG, Theodor. Algunas Consideraciones acerca del Razonamiento Jurídico. In: Tópica y Filosofia del Derecho. Tradução Jorge M. Seña. Barcelona: Gedisa, 1997. p. 127.161 VIEHWEG, Theodor, Tópica e Jurisprudência, 1979, p. 34.162 MENDONÇA. Paulo Roberto Soares de. A Tópica e o Supremo Tribunal Federal. Rio de Janeiro: Renovar, 2003. p. 100.

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“o papel central da tópica é encontrar as premissas que serão utilizadas no raciocínio”.163

A tópica abre o pensamento jurídico para além do texto normativo, o qual figura como mais um tópico a ser levando em consideração, o tópico de partida, mas, como adverte Juan Antonio García Amado, “por sua generalidade, a rigidez de sua forma e sua textura aberta, precisa ser concretizado mediante outros tópicos que determinem seus sentidos possíveis e façam viável a discussão tendente a obter o significado que melhor se adeqüe à realidade de cada caso a resolver”.164

É de se assinalar, com Luiz Alberto Warat, que “a tópica não assegura decisões certas e incontrovertíveis, mas dá soluções aceitáveis dentro do marco da ideologia que adota. Admite a alterabilidade significativa da lei, que origina a problemática interpretativa e decisória”.165

O próprio Viehweg alertava para o fato de que a tópica “não é um método, mas sim um estilo. Ela tem, como qualquer outro estilo, muito de arbítrio amorfo e muito pouco de demonstração”.166

7.2. A teoria da argumentação

As teorias de argumentação encontram-se inseridas nesse contexto de questionamento da lógica formal como forma de realização concreta do direito, aproveitando da tópica a inserção dos fatos (do problema) no processo de criação jurídica. Conforme salienta Maria Margarida Lacombe 163 BUSTAMANTE, Thomas da Rosa de, Tópica e argumentação jurídica, 2004, p. 159.164 GARCÍA AMADO, Juan Antonio, Tópica, Derecho y Método Jurídico, 1987, p. 174. Ver, ainda: CRISTÓVAM, José Sérgio da Silva. Colisões entre Princípios Constitucionais. Curitiba: Juruá: 2006. p. 129.165 WARAT, Luiz Alberto, Introdução Geral ao Direito, 1994, p. 88. Há que se concordar com as ponderações de Antonio Nedel, quando afirma que o que “parece mais importante ressaltar no que concerne à tópica jurídica não são os topoi e o fundamento metafísico que eles suscitam, mas, sim, o caráter dialético e as possibilidades crítico-criativas que a sua índole retórico argumentativa propicia, enquanto método de resolução dos concretos problemas jurídicos, elevando, como o valor mais relevante do direito, a prospecção dialógica que pode conduzir, no âmbito das controvérsias, sua elucidação racional-consensual” (NEDEL, Antônio. Uma Tópica Jurídica: clareira para a emergência do direito. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2006. p. 222).166 VIEHWEG, Theodor, Tópica e Jurisprudência, 1979, p. 71.

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Camargo:

Procuramos também destacar a dimensão concreta própria do pensar jurídico, orientado que é para o problema que se pretende resolver. Coube a Chaïm Perelman realizar a grande guinada na área da metodologia jurídica, quando apontou para as dimensões retórica e argumentativa que, na realidade, fazem o direito. O direito origina-se da prática; não se limita ao conteúdo do texto da lei: surge e é orientado pelas teses construídas sob os parâmetros do fato e da lei, num confronto de idéias que vêm legitimar cada decisão tomada de per si. Ressaltamos, assim, algumas das contribuições mais significativas para a reflexão jurídica contemporânea, avessa à adoção do raciocínio lógico-linear para, em lugar desta, uma proposta mais voltada para a intersubjetividade e para o desafio constante de lidar com situações que requerem respostas convincentes e criativas.167

Uma das críticas voltadas contra a tópica jurídica consiste em não fornecer a mesma um método para a utilização dos diversos tópicos jurídicos, sendo mais uma forma de pensar do que uma metodologia que possa substituir a lógica formal. Como vimos, o próprio Viehweg negava à tópica o caráter de método jurídico.168 As teorias de argumentação diferem da tópica por terem por fim a apresentação de uma nova metodologia jurídica.

Essa é a posição de Manuel Atienza, que ao analisar a função prática da argumentação jurídica afirma:

Por função prática ou técnica da argumentação jurídica, entendo basicamente que esta deve ser capaz de oferecer uma orientação útil nas tarefas de produzir, interpretar e aplicar o Direito. Para que uma teoria da argumentação jurídica possa

167 CAMARGO, Maria Margarida Lacombe, Hermenêutica Jurídica e Argumentação: Uma Contribuição ao Estudo do Direito, 2001, p. 262.168 VIEHWEG, Theodor, Tópica e Jurisprudência, 1979, p. 71.

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cumprir essa função de caráter instrumental (dirigida tanto aos práticos do Direito como aos cultivadores da dogmática jurídica) ela terá de poder oferecer um método que permita reconstruir o processo real da argumentação, além de uma série de critérios para fazer um julgamento sobre a sua correção; como se acaba de indicar, essa é uma tarefa que, em considerável medida, ainda está para ser cumprida.169

Entendo que a argumentação não pode ser vista como um método jurídico a partir do qual seja possível atestar a correção das decisões jurídicas, sendo, isso sim, uma forma de pensar o direito que leva à tomada de decisões justificáveis, a qual é especialmente necessária nas situações em que o texto, por si só, é vago e ambíguo.170

Nessa linha, Neil MacCormick sustenta que o dever judicial de fazer justiça é o dever de proferir decisões que sejam fundamentadas em argumentos satisfatórios.171 O arbítrio judicial seria, portanto, “um arbítrio de proferir a decisão que seja mais bem justificada”.172

Segundo Chaïm Perelman, “motivar uma sentença é justificá-la, não é fundamentá-la de um modo impessoal e, por assim dizer, demonstrativo. É persuadir um auditório, que se deve conhecer, de que a decisão é conforme às suas exigências”.173

Já que busca a adesão dos destinatários da decisão à mesma, a

169 ATIENZA, Manuel, As Razões do Direito: Teorias da Argumentação Jurídica, 2002, p. 333.170 Conforme destaca Humberto Ávila, “[...] Uma teoria jurídica da argumentação não se confunde com uma teoria racional da argumentação, que opta, entre os argumentos que podem ser utilizados, pelo mais racional, plausível ou sustentável. Uma teoria jurídica da argumentação procura fundamentar no próprio ordenamento jurídico a escolha entre os argumentos” (ÁVILA, Humberto. Sistema Constitucional Tributário. São Paulo: Saraiva, 2004. p. 203).171 MacCORMICK, Neil, Argumentação Jurídica e Teoria do Direito, 2006, p. 326.172 MacCORMICK, Neil, Argumentação Jurídica e Teoria do Direito, 2006, p. 327.173 PERELMAN, Chaïm. Ética e Direito. Tradução Maria Emantina Galvão. São Paulo: Martins Fontes, 2002. p. 569-570.

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argumentação jurídica deve se dar no âmbito do diálogo, permitindo a participação daqueles na formação desta. Sobre a adesão dos destinatários ao resultado da interpretação salienta Perelman que “a interpretação da lei, para ser aplicada a um caso específico, deve ser considerada uma hipótese, que só será adotada definitivamente se a solução concreta em que redunda afigurar-se aceitável”.174

É no âmbito da argumentação que serão ponderados os bens, interesses e valores em jogo, de modo que somente em cada caso é que o texto normativo concretizar-se-á em norma jurídica individual e concreta.175

174 PERELMAN, Chaïm, Lógica Jurídica, 2000, p. 115. Em outra passagem, afirma Perelman que “em nítida oposição aos métodos da lógica formal, vimos que toda argumentação deve partir de teses que têm a adesão daqueles a que se quer persuadir ou convencer. Negligenciando esta condição, o orador, aquele que apresenta uma argumentação, arrisca-se a cometer uma petição de princípio” (PERELMAN, Chaïm, Lógica Jurídica, 2000, p. 158). Ver: GARCÍA AMADO, Juan Antonio, Tópica, Derecho y Método Jurídico, 1987, p. 174; CRISTÓVAM, José Sérgio da Silva, Colisões entre Princípios Constitucionais, 2006, p. 129; CRETTON, Ricardo Aziz. Os Princípios da Proporcionalidade e da Razoabilidade e sua Aplicação no Direito Tributário. Rio de Janeiro: Lúmen Júris, 2001. p. 38.175 O debate quanto à ponderação foi introduzido no cenário jurídico nacional no âmbito da discussão quanto à solução da colisão entre princípios, notadamente quando o intérprete está diante dos chamados casos difíceis (Cf. SARMENTO, Daniel. A Ponderação de Interesses na Constituição Federal. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2002. p. 99). Como salienta Ana Paula de Barcellos, “de forma muito geral, a ponderação pode ser descrita como uma técnica de decisão própria para casos difíceis (do inglês hard cases), em relação aos quais o raciocínio tradicional da subsunção não é adequado” (BARCELLOS, Ana Paula de. Alguns Parâmetros Normativos para a Ponderação Constitucional. In: BARROSO, Luís Roberto (Org.). A Nova Interpretação Constitucional: Ponderação, Direitos Fundamentais e Relações Privadas. Rio de Janeiro/São Paulo: Renovar, 2003. p. 55).Todavia, como destaca a própria Ana Paula, “já é possível identificá-la [a ponderação] como uma técnica de decisão jurídica autônoma que, aliás, vem sendo aplicada em diversos outros ambientes que não o do conflito entre princípios” (BARCELLOS, Ana Paula de, Alguns Parâmetros Normativos para a Ponderação Constitucional, 2003, p. 56). Nas palavras de Humberto Ávila, “a ponderação não é método privativo de aplicação dos princípios. A ponderação ou balanceamento (weighing and balancing Abwägung), enquanto sopesamento de razões e contra-razões que culmina com a decisão de interpretação, também pode estar presente no caso de dispositivos hipoteticamente formulados, cuja aplicação é preliminarmente havida como automática (no caso de regras, consoante o critério aqui investigado),

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Na medida em que a teoria do pós-positivismo tem trabalhado com a teoria da argumentação e a justificação das decisões pelo juiz, verifica-se, como ressalta Calsamiglia, a mudança do centro das atenções do Legislativo para o Judiciário.176

Como mencionado, não há uma teoria da argumentação, mas teorias de argumentação, podendo-se destacar, entre os autores que trabalham com a argumentação jurídica, Robert Alexy,177 Klaus Günther,178 Chaïm Perelman179 e Stephen Toulmin.180

8. Síntese conclusiva

Ao fim dessa análise da evolução histórica do pensamento jurídico a partir dos formalismos do século XVIII, chega-se à conclusão de que a hermenêutica contemporânea se desprendeu das balizas impostas pela jurisprudência conceitual e as escolas analítica e exegética.

Hodiernamente mesmo positivistas como Herbert Hart acolhem a influência dos valores sobre o direito, reconhecendo-se, portanto, o caráter axiológico do processo hermenêutico.

como se comprova mediante a análise de alguns exemplos” (ÁVILA, Humberto, Teoria dos Princípios: da definição à aplicação dos princípios jurídicos, 2003, p. 44). Sobre a ponderação como postulado hermenêutico, ver: BARROSO, Luís Roberto. O Começo da História. Nova Interpretação Constitucional e o Papel dos Princípios no Direito Brasileiro. In: BARROSO, Luís Roberto (Org.). A Nova Interpretação Constitucional: Ponderação, Direitos Fundamentais e Relações Privadas. Rio de Janeiro/São Paulo: Renovar, 2003. p. 344-350; CANOTILHO, J. J. Gomes. Direito Constitucional e Teoria da Constituição. 3. ed. Coimbra: Almedina, [s/d]. p. 1161-1165; BARCELOS, Ana Paula. Ponderação, Racionalidade e Atividade Jurisdicional. Rio de Janeiro: Renovar, 2005.176 Cf. CALSAMIGLIA, Albert, Postpositivismo, 1998, p. 215.177 ALEXY, Robert. Teoria da Argumentação: A Teoria do Discurso Racional como Teoria da Justificação Jurídica. Tradução de Zilda Hutchinson Schild Silva. São Paulo: Landy, 2001.178 GÜNTHER, Klaus. Teoria da Argumentação no Direito e na Moral: Justificação e Aplicação. Traducão Cláudio Molz. São Paulo: Landy, 2004.179 PERELMAN, Chaïm; OLBRECHTS-TYTECA, Lucie. Tratado da Argumentação. Tradução Maria Ermantina Galvão. São Paulo: Martins Fontes, 2000; .180 TOULMIN, Stephen. Os Usos do Argumento. Tradução Reinaldo Guarany. São Paulo: Martins Fontes, 2001.

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Foi superado também o objetivismo metodológico de algumas correntes formalistas, que pretendiam que o intérprete encontrasse no texto legal uma única norma verdadeira que seria alcançada pela aplicação dos métodos interpretativos, normalmente derivações dos elementos da interpretação apresentados por Savigny.

Com efeito, a partir dos aportes de Hans-Georg Gadamer tornou-se evidente que o processo hermenêutico se dá no intérprete, de forma que não se pode segregar este do texto interpretado e do objeto sobre o qual se “aplicaria” o direito, como se as normas fossem uma massa de concreto trabalhada pelo intérprete e aplicada sobre os tijolos na construção de uma decisão.

Essa nova colocação da questão tornou relevante a situação do intérprete, passando a ter destaque o exame da sua pré-compreensão, a partir de sua inserção em uma cultura que afeta sua vida hermenêutica.181

Por outro lado, a inevitável abertura da linguagem,182 que torna letra morta o objetivismo metodológico antes pretendido, aliado à transferência do problema hermenêutico para o intérprete, o qual se encontra inserido numa determinada cultura,183 que afeta a sua pré-compreensão, e à prevalência

181 Segundo Wilson Engelmann: “A pré-compreensão é a responsável pela antecipação do sentido das coisas que nos circundam no mundo. Entre a compreensão, como parte integrante do processo de interpretação, e a pré-compreensão estabelece-se a configuração de um círculo. Dito de outro modo, sempre existe um procedimento prévio já conhecido que se projeta sobre a compreensão e vice-versa. [...]” (ENGELMANN, Wilson. Direito Natural, Ética e Hermenêutica. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2006. p. 221.182 Ver: CARRIÓ, Genaro R. Notas sobre Derecho y Lenguage. 4. ed. Buenos Aires: Abeledo-Perrot, 1994. p. 31; ALCHOURRÓN, Carlos R.; BULYGIN, Eugenio. Introducción a la Metodología de las Ciencias Jurídicas y Sociales. Buenos Aires: Editorial Astrea, 2002. p. 62-65; HART, H. L. A.,The Concept of Law, 1997, p. 129; STRUCHINER, Noel, Direito e Linguagem: Uma Análise da Textura Aberta da Linguagem e sua Aplicação ao Direito, 2002, p. 68; ROSS, Alf, Direito e Justiça, 2000, p. 167 ANDRADE, José Maria Arruda de, Interpretação da Norma Tributária, 2006, p. 81-90; BASTOS, Celso Ribeiro. Hermenêutica e Interpretação Constitucional. 2. ed. São Paulo: Celso Bastos Editor, 1999. p. 28-29; GRECO, Marco Aurélio. Planejamento Fiscal e Interpretação da Lei Tributária. São Paulo: Dialética, 1998. p. 159.183 Nas palavras de Rogério Gesta Leal, há que se ter em conta que “quem dá efetividade à interpretação é um ser racional e também histórico, que fala, se comunica dentro da história e de uma história determinada, de uma cultura

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dos valores, torna certamente possível que de um mesmo texto legal sejam extraídas normas jurídicas igualmente válidas, mas de distinto conteúdo.184

Conforme salienta Ricardo Guastini, “muitas disposições – talvez todas as disposições – têm um conteúdo de significado complexo: exprimem não apenas uma única norma, mas sim uma multiplicidade de normas associadas”.185

Trata-se aqui da discussão quanto à possibilidade de uma única resposta correta como resultado do processo de interpretação.

Embora importantes vozes, como a de Ronald Dworkin e,186

determinada, de um contexto determinado. Desta forma, o processo de constituição do significado do texto está profundamente marcado pelos elementos discursivos e categoriais erigidos pelo tempo daquela história” (LEAL, Rogério Gesta. Perspectivas Hermenêuticas dos Direitos Fundamentais no Brasil. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2000. p. 133).184 É pertinente aqui a seguinte passagem de Joseph Raz: “A saída para esse impasse, a forma de reconciliar a existência de uma multiplicidade de interpretações que competem entre si com a objetividade, dirige-se à idéia que freqüentemente é posta metaforicamente dizendo que ‘o significado do objeto não está no objeto’. A útil sugestão da metáfora é esta: se a interpretação depende de algo fora de seu objeto, então, possivelmente, há uma pluralidade de tais objetos adicionais, os quais dão conta da pluralidade de boas interpretações. O subjetivismo com sua pretensão de que qualquer interpretação se sustenta é, sem embargo, uma forma extremada de se entender a metáfora. De acordo com ela, a maneira que qualquer intérprete mira o objeto de interpretação, em qualquer tempo, como se expressa na interpretação, determina seu significado. Este é o porque todas as interpretações são igualmente boas quando são boas. Mas a metáfora mesma permite explicações mais sensatas que identificam outros fatores como os que determinam, em parte, os significados dos objetos, desta maneira determinam suas interpretações apropriadas” (RAZ, Joseph. ¿Por Qué Interpretar? Isonomía, México, n. 5, Out.-1996, p. 29-30).185 GUASTINI, Ricardo. Das Fontes às Normas. Tradução Edson Bini. São Paulo: Quartier Latin, 2005. p. 35. Ver, também: GUASTINI, Ricardo. Teoria e Dogmatica delle Fonti. Milano: Giuffrè, 1998. p. 17; GRAU, Eros Roberto, Ensaio sobre a Interpretação/Aplicação do Direito, 2002, p. 30; GRAU, Eros Roberto. O direito posto e o direito pressuposto. 3. ed. São Paulo: Malheiros, 2000. p. 153.186 DWORKIN, Ronald, Taking Rights Seriously, 1999, p. 279-290. Comentando a teoria de Dworkin, diz Wayne Morrison: “Talvez a mais controvertida das idéias associadas à obra inicial de Dworkin esteja em sua afirmação de que a prática jurídica envolve, necessariamente, a aceitação da idéia de haver sempre uma resposta certa aos dilemas jurídicos e morais.

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no Brasil, Lenio Streck,187 sustentem a possibilidade de se ter uma única resposta correta como resultado do processo hermenêutico, tal não parece refletir a natureza das normas jurídicas.188

Dworkin apresenta duas maneiras de se chegar a essa conclusão: (i) uma envolve a afirmação relativamente fraca de que, como a natureza do direito implica o envolvimento em litígios e sua solução, faz parte do raciocínio prático do direito o fato de que a resposta a um litígio deve ser clara – se disséssemos o tempo todo ‘está empatado’, a natureza prática das soluções jurídicas não teria sentido algum.; (ii) a outra consiste em procurar os pressupostos racionais envolvidos no próprio processo e nas próprias práticas de argumentação jurídica e política. Dworkin quer que consideremos em profundidade o que os advogados estão realmente fazendo em termos de prática nos casos difíceis, e nos pede para usar seu próprio discurso como ponto de partida. O direito parece incerto; não parece haver nenhuma resposta jurídica óbvia. Qual é, porém, a racionalidade dos diferentes aspectos das práticas sociais em questão? Vejamos um caso comum. As partes instruíram os advogados e talvez, depois de várias trocas de cartas, alegações e alegações em contrário, os dois lados decidem resolver a questão em juízo. Se os dois conjuntos de advogados estiverem agindo como agentes jurídicos sérios (isto é, se não estiverem às voltas com atos desnecessários), ambas as partes acreditam que estão certas em sua interpretação e sua crença de que o direito está do seu lado. Na verdade, ambas acreditam que há uma resposta a ser encontrada, e que se trata de uma resposta jurídica. Por que ir ao tribunal se você não acredita que seu lado é o certo? Isto é, que seus argumentos podem convencer o juiz a decidir que o direito é aquilo que você reivindica?” (MORRISON, Wayne. Filosofia do Direito: Dos Gregos ao Pós-modernismo. Tradução Jefferson Luiz Camargo. São Paulo: Martins Fontes, 2006. p. 505-506).187 Cf. STRECK, Lenio Luiz. Verdade e Consenso: Constituição, Hermenêutica e Teorias Discursivas. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2006. p. 183-195.188 Nesse mesmo sentido, negando a possibilidade de se alcançar uma única resposta correta ao cabo da interpretação jurídica, ver: AARNIO, Aulis. Sobre la Ambigüedad Semántica en la Interpretación Jurídica. Doxa. Cuadernos de Filosofía del Derecho, Alicante, n. 4, 1987, p. 109-117; AARNIO, Aulis. La Tesis de la Única Respuesta Correcta y el Principio Regulativo del Razonamiento Jurídico. Doxa. Cuadernos de Filosofía del Derecho, Alicante, n. 8, 1990, p. 23-38; BARRAGÁN, Julia. La Respuesta Correcta Única y la Justificación de la Decisión Jurídica. Doxa. Cuadernos de Filosofía del Derecho, Alicante, n. 8, 1990, p. 64-74; FARALLI, Carla. A Filosofia Contemporânea do Direito: Temas e Desafios. Tradução Candice Premaor Gullo. São Paulo: Martins Fontes, 2006. p. 46-47; KELSEN, Hans, Teoria Pura do Direito, 1984, p. 100-102; FREITAS, Juarez. A Melhor Interpretação Constitucional versus a Única Resposta Correta. Revista

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De fato, como destaca Neil MacCormick, mesmo que haja uma só resposta correta na interpretação das normas, o problema é que não há como identificar se a decisão alcançada em um determinado caso reflete esta única resposta.189

Cabe inteira razão a Marco Aurélio Greco quando este afirma que “o intérprete tem um dever de fidelidade ao texto, mas isto não significa que o resultado da interpretação seja algo meramente matemático ou lógico dedutivo”.190

Não há se negar, portanto, que dentro dos lindes lingüísticos do texto normativo exerce o intérprete uma função criativa, consistente em determinar qual dos sentidos possíveis do texto comporá a norma individual e concreta.191

Latino-Americana de Estudos Constitucionais, Belo Horizonte, n. 2, jul.-dez. 2003, p. 313.189 MacCORMICK, Neil, Argumentação Jurídica e Teoria do Direito, 2006, p. 321. Ver também: GRAU, Eros Roberto, Ensaio e Discurso sobre a Interpretação/Aplicação do Direito, 2002, p. 100-102.190 GRECO, Marco Aurélio. Planejamento Fiscal. São Paulo: Dialética, 2004. p. 377.191 Leciona Paulo de Barros Carvalho: “A missão do exegeta dos textos jurídico-positivos, ainda que possa parecer facilitada pela eventual coincidência da mensagem prescritiva com a seqüência das fórmulas gráficas utilizadas pelo legislador (no direito escrito), oferece ingentes dificuldades, se a proposta for a de um exame mais sério e atilado. E, sendo o direito um objeto da cultura, invariavelmente penetrado por valores, teremos, de um lado, as estimativas, sempre cambiantes em função da ideologia de quem interpreta; de outro, os intrincados problemas que cercam a metalinguagem, também inçada de dúvidas sintáticas e de problemas de ordem semântica e pragmática.Tudo isso, porém, não nos impede de declarar que conhecer o direito é, em última análise, compreendê-lo, interpretá-lo, construindo o conteúdo, sentido e alcance da comunicação legislada. Tal empresa, que nada tem de singela, como vimos, requer o envolvimento do exegeta com as proporções inteiras do todo sistemático, incursionando pelos escalões mais altos e de lá regressando com os vetores axiológicos ditados por juízos que chamamos de princípios” (CARVALHO, Paulo de Barros. Proposta de Modelo Interpretativo para o Direito Tributário. Revista de Direito Tributário, São Paulo, n. 70, 1995, p. 41-42). Para Eros Roberto Grau, “em síntese: a interpretação do direito tem caráter constitutivo – não, pois, meramente declaratório – e consiste na produção, pelo intérprete, a partir de textos normativos e dos fatos atinentes a um determinado caso, de normas jurídicas a serem ponderadas para a solução desse caso, mediante a definição de uma norma

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O reconhecimento de que a interpretação compreende uma função criativa192 não significa que o intérprete crie a norma do nada, ex nihilo. Como

de decisão. Interpretar/aplicar é da concreção [=concretizar] ao direito. Neste sentido, a interpretação/aplicação opera a inserção do direito na realidade; opera a mediação entre o caráter geral do texto normativo e sua aplicação particular; em outros termos, ainda: opera a sua inserção na vida. A interpretação/aplicação vai do universal ao particular, do transcendente ao contingente; opera a inserção das leis [=do direito] no mundo do ser [=mundo da vida]. Como ela se dá no quadro de uma situação determinada, expõe o enunciado semântico do texto no contexto histórico presente, não no contexto da redação do texto. Interpretar o direito é caminhar de um ponto a outro, do universal ao particular, conferindo a carga de contingencialidade que faltava para tornar plenamente contingencial o particular” (GRAU, Eros Roberto. A Ordem Econômica na Constituição de 1988. 11. ed. São Paulo: Malheiros, 2006. p. 163).192 É pertinente transcrever a lição de Luís Roberto Barroso que, embora voltada para a interpretação constitucional, a este campo não se restringe: “A moderna interpretação constitucional diferencia-se da tradicional em razão de alguns fatores: a norma, como relato puramente abstrato, já não desfruta de primazia; o problema, a questão tópica a ser resolvida passa a fornecer elementos para a sua solução; o papel do intérprete deixa de ser de pura aplicação da normas preexistente e passa a incluir uma parcela de criação do Direito do caso concreto. E, como técnica de raciocínio e de decisão, a ponderação passa a conviver com a subsunção. Para que se legitimem suas escolhas, o intérprete terá de servir-se dos elementos da teoria da argumentação, para convencer os destinatários do seu trabalho de que produziu a solução constitucionalmente adequada para a questão que lhe foi submetida. [...]” (BARROSO, Luís Roberto. Colisão entre Liberdade de Expressão e Direitos da Personalidade. Critérios de Ponderação. Interpretação Constitucional adequada do Código Civil e da Lei de Imprensa. In: PEIXINHO, Manoel Messias; GUERRA, Isabella Franco; NASCIMENTO FILHO, Firly (Orgs.). Os Princípios da Constituição de 1988. 2. ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2006. p. 258-259). Sobre a função criativa da interpretação, ver: RECASÉNS SICHES, Luis. Nueva Filosofia de la Interpretacion del Derecho. México: Editorial Porrua, 1980. p. 211-213; COSSIO, Carlos. El Derecho em el Derecho Judicial. Las Lagunas del Derecho. La Valoración Judicial. Buenos Aires: Librería El Foro, 2002. p. 121-122; TORRES, Ricardo Lobo, Normas de Interpretação e Integração do Direito Tributário, 2006, p. 45; LATORRE, Angel, Introdução ao Direito, 2002, p. 109-111; GRAU, Eros Roberto, Ensaio sobre a Interpretação/Aplicação do Direito, 2002, p. 73-75; STRECK, Lenio Luiz, Hermenêutica Jurídica e(m) crise: uma exploração hermenêutica da constituição do direito, 2003, p. 91-92; SCHROTH, Ulrich. Hermenêutica Filosófica e Jurídica. In: KAUFMANN, A.; HASSMER, N. (Orgs.). Introdução à Filosofia do Direito e à

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afirma Eros Roberto Grau, “o produto da interpretação é a norma expressada como tal. Mas ela (a norma) parcialmente preexiste, potencialmente, no invólucro do texto, invólucro do enunciado”.193

Portanto, o intérprete cria, mas não cria do nada nem tampouco tal tarefa deixa de ser pautada por limites constantes no próprio texto interpretado, nos valores e interesses em jogo, os quais afastam qualquer decisionismo.

A abertura da linguagem implica a necessidade de superação da lógica binária que tomou conta do processo de subsunção.194

Teoria do Direito Contemporâneas. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 2002. p. 383-384; GADAMER, Hans-Georg, Verdade e Método: traços fundamentais de uma hermenêutica filosófica, 2003, p. 432-433; LARENZ, Karl, Metodologia da Ciência do Direito, 1997, p. 283-284; ROSS, Alf, Direito e Justiça, 2000, p. 139; RADBRUCH, Gustav, Filosofia do Direito, 1997, p. 230-231; TÔRRES, Heleno Taveira. Interpretação e Integração das Normas Tributárias – Reflexões e Críticas. In: TÔRRES, Heleno Taveira (Coord.). Tratado de Direito Constitucional Tributário: Estudos em Homenagem a Paulo de Barros Carvalho. São Paulo: Saraiva, 2005. p. 112; CARDOZO, Benjamin N. The Nature of the Judicial Process. New Haven: Yale University Press, 1991. p. 112-115; ABRAHAM, Marcus, O Planejamento Tributário e o Direito Privado, 2007, 118-119.193 GRAU, Eros Roberto, Ensaio sobre a Interpretação/Aplicação do Direito, 2002, p. 72-73.194 Marco Aurélio Greco destaca a dificuldade de interpretar o direito com base no instrumental da lógica binária, em longa passagem a seguir transcrita: “Esta dificuldade enfrentada pela doutrina tem sua origem na premissa de que seria possível reconduzir roda realidade sempre a duas categorias opostas e, por conseqüência, a interpretação deveria orientar-se no sentido de identificar a qual delas pertenceria o objeto. Esta idéia de interpretar a realidade, inclusive jurídica, a partir de categorias opostas (lícito/ilícito; direito interno/internacional; vigência/não-vigência; tributo/não-tributo, etc.) retrata um modelo de compreensão do mundo apoiado numa lógica bivalente que, em última análise, encontra sua origem no princípio da não-contradição formulado por Aristóteles. Admitida a idéia de uma lógica bivalente é, então, possível criar uma tabela de verdade das afirmações feitas sobre a realidade. De fato, se algo não pode ser e não ser ao mesmo tempo, determinada conduta, se for lícita, não será ao mesmo tempo ilícita, e assim por diante.Ocorre que esta visão bivalente está passando por uma profunda revisão. Todo modelo teórico de compreensão da realidade implica uma simplificação do objeto para fins de permitir seu exame, a partir de elementos que constituiriam seu núcleo essencial. Esta lógica bivalente (sim/não; certo/errado; 0/1 etc.)

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Como salienta Marco Aurélio Greco, a lógica difusa (lógica fuzzy) seria a mais adequada para tratar com a indeterminação da linguagem, posição também defendida por Arthur Kaufmann.195

Ao descrever o funcionamento da lógica fuzzy, Susan Haack explica que o mesmo se dá aplicando-se variáveis fuzzy a conceitos não-fuzzy.196

Tomando por exemplo o significante verdade, partindo da lógica clássica bivalente trabalharíamos com as noções de verdadeiro/falso. Já a lógica fuzzy trabalha com as noções de muito falso, pouco falso, falso, pouco verdadeiro, muito verdadeiro, etc.197 Tal é exatamente a realidade da interpretação jurídica, onde, como destaca Arthur Kaufmann, “não há uma única solução correta, mas muitas soluções ‘corretas’, isto é, soluções ‘defensáveis’, plausíveis, suscetíveis de consenso”.198

Em um cenário como o descrito acima, temos que o relevante é a justificação, é que a decisão alcançada possa ser justificada de forma a ser aceita como a decisão do caso em disputa, sem que se afirme, com isso, que a decisão correta foi proferida.

São interessantes aqui as colocações de Dworkin sobre a justificação,

está se demonstrando insuficiente ou inadequada para explicar a realidade por corresponder a uma simplificação exagerada de um mundo complexo (simplificação, portanto, irreal).Aliás, inúmeras são as dificuldades que uma lógica bivalente traz ao intérprete do ordenamento jurídico positivo (ou seu aplicador) que pretenda utilizá-la rigorosa e cegamente diante de uma situação concreta. Basta lembrar que, se a experiência jurídica se resumisse a uma lógica formal redutível a padrões absolutos de verdade, não existiria uma quantidade tão elevada de divergências e litígios.Atualmente, estão em andamento vários estudos teóricos que partem de uma lógica não-bivalente e que se reúnem no conjunto que se convencionou denominar de “lógicas deviantes” a que pertence o sistema de lógica fuzzy, particularmente adequado para explicar a experiência jurídica, pois ela parte da idéia da imprecisão da linguagem e de que – por isso – os conceitos sempre apresentam certa margem de vaguedade” (GRECO, Marco Aurélio. Planejamento Tributário. São Paulo: Dialética, 2004. p. 374-375).195 KAUFMANN, Arthur, Filosofía del Derecho, 1999, p. 82.196 HAACK, Susan. Deviant Logic. Fuzzy Logic. Chicago: The University of Chicago Press, 1996. p. 234.197 Cf. HAACK, Susan. Filosofia das Lógicas. Tradução Cezar Augusto Mortari; Luiz Henrique de Araújo Dutra. São Paulo: Editora UNESP, 2002. p. 222-223.198 KAUFMANN, Arthur, Filosofía del Derecho, 1999, p. 82.

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quando este afirma que a mesma tem duas dimensões: uma primeira, segundo a qual uma justificação deve ao menos de modo geral servir para suportar o que se pretende justificar. A título de exemplo, ensina Dworkin que atualmente uma justificação de caráter teológico não seria bastante para sustentar uma decisão. A segunda dimensão implica que a justificação deve se sustentar sobre algum valor suficientemente importante que a decisão venha proteger.199

Cresce, nessa assentada, a importância dos valores e dos princípios, os quais aparecem como instrumentos de justificação de decisões, até mesmo para que em um determinado caso concreto opte-se pela interpretação menos óbvia de acordo com a literalidade de um texto em detrimento da interpretação literal mais óbvia.

A atividade hermenêutica, portanto, se desenvolve nos marcos do pluralismo metodológico,200 não havendo fórmulas que garantam a correção na interpretação de textos normativos.201 Nessa perspectiva, os elementos de interpretação devem ser vistos como pontos de partida, tópicos a serem utilizados no processo hermenêutico.202

Ora, vê-se portanto que o problema hermenêutico atual, como pontuado acima, é de argumentação, participação e justificação. Diante da pluralidade de decisões possíveis muitas vezes presentes, a legitimidade da norma individual e concreta criada diante de dado caso dependerá exatamente do seu processo de criação.

Daí a grande relevância dos órgãos de aplicação do direito, responsáveis pela criação das normas individuais e concretas, principalmente,

199 DWORKIN, Ronald. Justice in Robes. Cambridge: Harvard University Press, 2006. p. 15.200 Cf. TORRES, Ricardo Lobo, Normas de Interpretação e Integração do Direito Tributário, 2006, p. 153-154; COELHO, L. Fernando, Lógica Jurídica e Interpretação das Leis, 1981, p. 203-204; ABRAHAM, Marcus, O Planejamento Tributário e o Direito Privado, 2007, 124-125.201 Ver: AFTALIÓN, Enrique R.; OLANO, Fernando García; VILANOVA, José, Introducción al Derecho, [196-], p. 453.202 Como destaca Recaséns Siches, “o verdadeiro núcleo da função judicial não se radica, nem remotamente, o silogismo que se possa formular, mas sim consiste na eleição de premissas, por parte do juiz. Uma vez eleitas as premissas, a mecânica silogística funcionará com toda facilidade” (RECASÉNS SICHES, Luis, Nueva Filosofia de la Interpretacion del Derecho, 1980, p. 237).

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em um sistema de jurisdição una como o brasileiro,203 do Poder Judiciário, em cujo âmbito as atividades de argumentação, participação e justificação se realizam.

Nesta assentada se reafirma a impossibilidade de separação dos momentos de interpretação e aplicação do direito.

De fato, toda interpretação é já aplicação, já que realizada no intérprete tendo em vista o texto normativo e os fatos da questão sob apreço, o que ressalta a importância dos órgãos de aplicação no processo hermenêutico.204

9. Referências Bibliográficas

203 Sobre a jurisdição una pátria, ver: ROCHA, Sergio André. Processo Administrativo Fiscal: Controle Administrativo do Lançamento Tributário. 2. ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2007. p. 102-104.204 Nas palavras de Castanheira Neves: “O centro metodologicamente referente está, pois, no juízo e não diretamente na norma – a norma será convocada, na sua normatividade, em função da problemática normativo-jurídica do juízo decisório, i. é, convocada pelas possibilidades que a sua normatividade ofereça como critério normativo-jurídico para uma normatividade fundada e problematicamente adequada – e assim com normativo-jurídica justeza – decisão judicativa. O pensamento jurídico de orientação tradicionalmente hermenêutica via o prius metodológico na norma, a determinar, por isso mesmo, em termos hermenêuticamente autônomos: interpretada primeiro a norma na sua autonomia abstrata, antes e independentemente da sua referência à decisão do caso concreto, seria ela depois ‘aplicada’ ao caso com o sentido ou a significação daquele modo determinados, sem consideração das exigências justificativas emergentes do problema do caso decidendo. Eram assim a ‘interpretação’ e a ‘aplicação’ atos metodologicamente de todo diferentes e autônomos. Pelo contrário, deverá reconhecer-se que o juízo da realização concreta do direito, e pelas suas exigências normativo-decisórias, é que dá sentido, conexiona e assimila num processo intencional-metodologicamente unitário todos os elementos que nele concorrem – daí que a determinação do sentido normativo-jurídico da norma apenas se consuma no juízo e pelo juízo, só no juízo e pelo juízo a sua normatividade, sempre de uma aberta indeterminação em abstrato, se vai concretamente determinando. A ‘interpretação’ e a ‘aplicação’ não podem, pois, separar-se, antes se conjugam numa indissolúvel unidade – melhor, essa distinção deixa de ter sentido num processo que refere a norma, desde o princípio, em função do problema judicativo-decisório e realiza o juízo mediante as possibilidades de critério que para ele ofereça a normatividade da norma” (NEVES, A. Castanheira. O Actual Problema Metodológico da Interpretação Jurídica – I. Coimbra: Coimbra Editora, 2003. p. 344-345).

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ANTECEDENTES HISTÓRICOS DO RECURSO DE APELAÇÃO

Klever Paulo Leal Filpo

1. Introdução

Vittorio Scialoja1, em seu estudo sobre o procedimento civil romano, ao tratar dos “remédios jurídicos contra as sentenças”, inicia sua exposição observando que a possibilidade de ir perante um outro magistrado para obter a reforma de uma sentença desfavorável é uma ocorrência tão comum entre nós, que quase parece impossível que tenha havido um tempo em que esse direito de apelação não existia.

É uma passagem que desperta a nossa atenção, não só por enfocar o aspecto histórico-evolutivo do sistema de recursos, colocado normalmente em segundo plano em relação à abordagem técnica, mas também e principalmente pela percepção de que a evolução do direito de recorrer confunde-se com o próprio aprimoramento da ordem jurídica, ao menos em tese cada vez mais democrática.

Com efeito, de um sistema autoritário em que prevalecia a decisão monocrática imutável, passou-se, paulatinamente, à admissibilidade de revisão de toda e qualquer decisão proferida, por força do que hoje conhecemos como princípio do duplo grau de jurisdição.

Para Nery Júnior2, esse princípio é, por assim dizer, “garantia fundamental de boa justiça”, sendo que essa afirmação baseia-se em três premissas.

A primeira leva em conta a falibilidade do ser humano, em razão da qual não é razoável pretender-se que o juiz seja capaz de decidir de modo definitivo e com perfeição, sem que ninguém possa questioná-lo em sua fundamentação ao julgar. A segunda enfoca o aspecto psicológico, pelo qual o vencido reage imediatamente à sentença desfavorável e espera, no mínimo, 1 SCIALOJA, Vittorio. Procedimiento Civil Romano. Buenos Aires: Ediciones Jurídicas Europa-América, 1954. p. 3562 NERY JÚNIOR, Nelson. Princípios Fundamentais – Teoria Geral dos Recursos. 5. ed. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2000. p. 39.

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por um novo julgamento da mesma questão. Finalmente há a necessidade de algum tipo de controle, pois um juiz único daria margem a arbitrariedades.

Porém, se essas constatações foram totalmente assimiladas ao longo dos séculos, tempo houve em que as coisas estavam organizadas de forma diversa. E tendo em vista que o nosso sistema de recursos teve origem em Roma, decerto será válido buscar ali as justificativas para tal afirmação.

Inicialmente, no que diz respeito à existência dos recursos entre os romanos, vale registrar a lição de Mendonça Lima3, o qual aponta para uma divergência entre os autores que se dedicam ao estudo do tema.

Alguns negam a ocorrência de meios de impugnação como recursos propriamente ditos, o que fazem a partir da constatação de que, à época, não existia uma apelação – o recurso por excelência, ou seja, uma oportunidade de obter uma segunda sentença com relação ao mesmo pleito. Outros, por sua vez, admitem que eram utilizados remédios de índole diversa, que até certo ponto produziam um efeito similar ao da apelação.

Partindo da tese sustentada por esse segundo grupo – que admite a existência de determinados antídotos contra as sentenças, mas que se fundavam não na necessidade de uma revisão, e sim em outros conceitos distintos que os colocam mais ou menos distantes de uma verdadeira instituição de apelação – o objetivo da pesquisa realizada foi identificar as razões de um tal posicionamento, bem como localizar, dentre os meios existentes, aquele que foi o embrião do recurso de apelação na maneira como hoje se apresenta.

Esta empreitada não poderia deixar de levar em conta a obra de Vittorio Scialoja, ao qual já se fez referência, sendo certo que suas lições foram o trilho sobre o qual conduziu-se a pesquisa.

Remontando à organização judiciária romana o autor afirma que aquela não era senão um reflexo do ordenamento administrativo, com aplicação dessas normas ao processo civil, regra que encontrava uma única exceção na divisão entre o magistrado in iure e o iudex in iudicio4.

Na organização administrativa, segundo o autor, é absolutamente necessária a observância de uma hierarquia funcional, sendo natural que uma autoridade esteja sujeita à outra, como resulta também normal que alguém que se encontre em grau inferior possa protestar perante aquele de grau 3 LIMA, Alcides de Mendonça. Introdução aos recursos cíveis. 2. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais. 1976. p. 4. 4 Desde a Roma antiga o processo estava dividido em duas fases: in iure e in judicio, situação que será oportunamente estudada.

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superior. Afinal trata-se de poder, e é da natureza das relações de poder que uns sejam mais e outros, menos poderosos. Já na organização judiciária essa necessidade intrínseca não existe.

Mas Scialoja faz uma ressalva, explicando que na prática a hierarquia é verificável, pois de outra forma de nada adiantaria apelar de uma sentença de um juiz inferior perante outro, superior.

Quando um juiz competente para conhecer de uma determinada questão haja sentenciado, não se concebe por que razão, em sendo diferente a sentença do juízo de segundo grau, deva-se dar preferência a esta última, em detrimento da decisão do primeiro juiz, senão por causa da hierarquia que existe entre eles. E de fato esse processo só pode ser compreendido se admitirmos uma organização hierárquica, uma vez que sob essa ótica

[...] o superior tem sempre razão sobre o inferior; mas que isto tenha algo a ver com um verdadeiro juízo, não é tão fácil de entender; e, sem embargo, diariamente vemos que o magistrado superior pode julgar pior que o magistrado inferior, e não obstante haverá que aplicar a segunda sentença só porque a pronunciou o magistrado superior.5

Por esse motivo – o fato de não haver uma justificativa jurídica que aponte para uma certeza quanto à maior confiabilidade da segunda decisão – no direito romano houve um tempo, que perdurou tanto quanto a república, no qual não existia uma verdadeira apelação, mas outros meios que serão estudados adiante.

Antes, porém, será necessário levar em conta as diversas fases pelas quais passou o processo civil romano, desde os primórdios, culminando com as transformações implementadas à época de Justiniano. Decerto não caberia aqui um estudo minucioso sobre a metamorfose que se operou ao longo de todos esses séculos, mas apenas registrar aqueles aspectos relevantes para a consecução do objetivo proposto, com especial atenção para o tratamento dado às sentenças em cada uma dessas fases.

2. O processo civil romano

2.1 Transformações da Organização Social e Política Romana5 Ainda nesse sentido, vide Nery Júnior, op. cit., p. 37.

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Meira 6 admite, para fins didáticos, que a fundação de Roma teria se realizado no ano de 754 a.C., data a partir da qual desenrolaram-se treze séculos, até a morte de Justiniano, no sexto século de nossa era. O mesmo autor registra que as transformações políticas que se verificaram ao longo de tantos anos refletiram, sobremaneira, no direito público e no direito privado. Afinal, “o direito que regeu, na Realeza, uma pequena cidade sobre o Palatino, não poderia ser o mesmo a configurar um imenso Império, que se estendeu da Britânia à Ásia Menor, com zonas de dominação no norte da África”.

Não é por outro motivo que o direito romano, dentre tantos outros “direitos” – egípcio, hebreu, grego – é estudado até os nossos dias. Trata-se de um “vasto campo de observação, verdadeiro laboratório do direito”, que resultou, no dizer de Cretella Júnior7, “num monumento completo, sistemático e perfeito”.

É bem verdade que não há um consenso entre os romanistas sobre a fixação das datas intermediárias e das fases por que passou essa evolução8, existindo vários critérios de separação entre as diferentes etapas. Por isso optou-se por adotar a sistematização apresentada por Meira, que pareceu mais adequada ao desenvolvimento do tema proposto.

A partir desse critério, temos uma divisão em três fases, a saber: 1- A Realeza (de 754 a.C. a 510 a.C); 2- A República (de 510 a.C. a 27 a.C.) e 3- O Império, que por sua vez dividiu-se no Principado (de 27 a.C a 284 d.C.) e no Dominato (de 284 a 565 d.C.).

Cretella Júnior9, traça com bastante clareza e objetividade as características políticas mais relevantes de cada uma dessas fases.

Durante a realeza – período em que Roma foi governada pelos reis – os habitantes da cidade dividiam-se em duas categorias bem distintas e opostas: os patrícios e os plebeus. Os primeiros eram homens livres, descendentes de homens livres, que achavam-se agrupados em clãs familiares do tipo patriarcal10. Os últimos habitavam a cidade, mas não faziam parte de 6 Meira, Sílvio A. B. Curso de Direito Romano – história e fontes. São Paulo: Saraiva, 1975. p. 11.7 Cretella Júnior, José. Direito Romano Moderno (complemento ao curso). Rio de Janeiro: Forense, 1971. p. 10.8 Meira, op. cit., p. 14. e Cretella Júnior, op. cit., p. 11.9 Op. cit., p. 13.10 Gens é o conjunto de pessoas que, pela linha masculina, descendem

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sua organização política. Na realidade a plebe era praticamente estranha à cidade romana, situação que somente alterou-se sob o rei Sérvio Túlio, que lutou por incorporar a plebe à cidade11.

Havia ainda os clientes, grupos de pessoas de origem diversa, que, agregadas aos patrícios, viviam sob a proteção do paterfamilias. Para alguns autores eram os estrangeiros, refugiados em Roma ou, para outros, escravos libertos. Entre patrícios e clientes havia relações de direito, deveres e obrigações12.

O rei, o senado e o povo integravam os poderes públicos em Roma e interagiam para a elaboração das leis. Estas eram propostas pelo rei (rex) ao povo (populus romanus) que reunia-se em assembléias para votar13. Após essa etapa, o senado (senatus) ratificava a lei que fosse aprovada pelo povo, exercendo a sua auctoritas patrum.

A Realeza foi substituída pela República no ano de 510 a.C., e surgiram novas instituições políticas a fim de dar configuração ao estado romano. Desapareceu a figura do rei, e em seu lugar instituíram-se dois cônsules.

Nessa oportunidade não existia uma nítida divisão de poderes como hoje conhecemos. A autoridade era exercida pelos magistrados, entre os quais encaixavam-se os cônsules, os pretores e os questores, dentre outros, sendo que há divergências entre os autores quanto à correta classificação dessas autoridades14.

Os poderes dos cônsules eram bem mais limitados que os dos reis, podendo ser divididos em jurisdictio (poder de ouvir as partes e indicar um juiz para julgar a demanda); cognitio (poder de julgamento das causas criminais); imperium (poder de coerção e aplicação de castigos físicos e intercessio (possibilidade de um cônsul paralisar um ato do outro), dentre

de um antepassado comum; cada uma das tribos primitivas era dividida em dez cúrias, cada cúria em gentes, cada gens em certo número de famílias ou domus.Colocava-se cada família sob a proteção de um chefe onipotente, o paterfanilias. Idem, p. 23.11 Idem, p. 24.12 Meira, op. cit., p. 32.13 As assembléias populares foram órgãos legislativos, no início integradas apenas por patrícios e, posteriormente, também por plebeus.14 Meira, op. cit., em seu Curso de Direito Romano, faz uma descrição bastante detalhada das atribuições de cada uma dessas diversas autoridades, nas diferentes fases da evolução de Roma.

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outros relacionados à administração, ao fisco e ao comando das forças militares.

Interessa-nos, antes de tudo, o praefectus urbi, substituto eventual dos cônsules, que posteriormente deu lugar ao pretor. Este, além dessa função de substituto, passou a exercer a jurisdição civil nas causas entre os romanos, possuindo os poderes de império e de jurisdição15.

O senado instituído na realeza, transferiu-se para a república, mas já cedendo às investidas dos plebeus ávidos por participar, cada vez mais, da vida romana. Além disso foram mantidas as assembléias populares, que dispunham de poder legislativo e eleitoral.

A partir dessa fase, Roma conheceu notável expansão territorial, e com o tempo passou a estender seu domínio sobre vários outros povos. Esse um dos fatores que, posteriormente, no plano interno, contribuiu para a formação do processo extraordinário.

No principado, por seu turno, o imperador ou príncipe não governava sozinho. Partilhava o governo com o senado. A pessoa do príncipe – primeiro magistrado – era sagrada, e ele concentrava em suas mãos poderes quase ilimitados. Foi nessa fase que floresceram, em Roma, os mais notáveis jurisconsultos da antiguidade.

Finalmente, no dominato, o traço político dominante foi a concentração de poderes nas mãos do soberano, que governava sozinho. O imperador tornara-se absoluto, invocando a vontade divina como inspiração de sua autoridade. Nessa fase deu-se a estatização de diversas funções, que passaram a ser exercidas por funcionários públicos.

2.2 Evolução do Sistema Processual Romano

Quanto à evolução do sistema processual romano, pode-se distinguir três momentos: as legis actiones (ações da lei – das origens de Roma até provavelmente 126 a.C.); o processo formular (por cerca de três séculos, de Augusto a Diocleciano) e o processo extraordinário (que identifica-se no tempo com o Dominato), sendo que cada um desses períodos refletiu os costumes e a vida social romana do seu próprio tempo.

Desde a Roma antiga o processo estava dividido em duas fases: in iure e in judicio. Segundo Meira “O pretor tomava conhecimento inicial da causa, ouvia as partes, na primeira fase do processo: in jure. Em seguida encaminhava os litigantes para o juiz (iudex), cujo nome era normalmente 15 Cretella Júnior, op. cit., p. 32.

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extraído da lista dos senadores. Esta a segunda fase do processo: in judicio.”16.A esse juiz, que inicialmente era um particular, cabia julgar a causa

em única e última instância. Essa situação perdurou por longo período, só desaparecendo na terceira fase do processo romano.

Nas ações da lei, o sistema era rígido, formal, ocasionalmente misto de religião e direito. O processo era uma “solenidade pública, oral, testemunhada, com a exteriorização de intenções por atos materiais”. Os litígios se desenvolviam como verdadeiros combates simulados, sendo que se as fórmulas previstas não fossem rigorosamente pronunciadas, daí decorria a nulidade do ato.

Sobre esses fatos, interessante registrar o seguinte exemplo, extraído da obra de Cretella Júnior17:

Segundo a Lei das XII Tábuas, o réu é procurado pelo autor que, se o encontra na rua, lhe dirige as palavras específicas (“verba certa”), chamando-o ao tribunal (“in jus vocatio”). O réu é obrigado a atender à citação e, se não a atende, o autor arranja testemunhas e o prende (“igitur en capito”). Se o demandado foge, o autor tem o direito de empregar a força (“vis”), prendendo-o e torcendo-lhe o pescoço (“obtorto collo”).

E ainda outro, também bastante ilustrativo desse formalismo, extraído dos escritos do jurisconsulto Gaio18 “[...] perdia a ação quem demandasse por videiras cortadas e mencionasse videiras, quando a Lei das XII Tábuas, em que se fundava a ação de videiras cortadas, fazia alusão a árvores cortadas em sentido genérico.”

Nota-se que as partes deveriam seguir com exatidão o que a lei determinava. Além disso não era admitida a interferência de representantes. As próprias partes dirigiam o processo, cabendo ao final, ao vencedor, a tarefa de executar a sentença do juiz.

Sobre a forma de execução da sentença, divergem os romanistas. Para uns, a pessoa do devedor respondia pelos compromissos financeiros, podendo ser vendido como escravo no estrangeiro ou até mesmo morto, após 16 Meira, op. cit., p. 49.17 Op. cit., p. 325.18 Apud Meira, op. cit., p. 19.

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o que seus pedaços seriam repartidos entre os credores. Para outros, a lei mandava repartir os bens, e não a pessoa do devedor.

Esse apego exacerbado às formas rígidas, expondo as partes a perderem a causa se cometessem o mais leve engano, além do papel secundário do magistrado, que exercia o papel de mero expectador do teatro representado pelas partes e estava impedido, portanto, de flexibilizar o rigor da lei diante das peculiaridades do caso concreto, foram, paulatinamente, causando o desaparecimento desse modelo, que foi substituído por outro, mais adequado ao espírito romano de então.

Durante o Principado, com o processo formular, esse rigorismo foi abrandado. Se bem que o processo, ainda dividido naquelas duas fases (in iure e in judicio), trazia, nesse ponto, semelhança com a etapa anterior. A mudança principal operou-se com relação à postura do magistrado. Se as partes compareciam para expor suas pretensões, este, por sua vez, não mantinha uma atitude passiva em face do litígio, como na fase anterior. Redigia uma fórmula que, posteriormente, era remetida para o juiz encarregado de julgar a pendência. Essa primeira fase encerrava-se, normalmente, pela litis contestatio, que pode ser definida como a aceitação dos litigantes em submeter a controvérsia, nos termos da fórmula, ao julgamento de um terceiro19.

Diante do juiz, as partes procuravam provar aquelas alegações apresentadas ao magistrado in iure. A instrução não era escrita, mas sim verbal, assim como a sentença, mas já existia a forma escrita que mais tarde seria a regra.

Aos poucos, entretanto, o processo romano foi perdendo o caráter arbitral de outrora, em razão da absorção, por parte do poder público, das atividades da justiça. Essa foi uma característica do processo extraordinário, que coincidiu no tempo com o Dominato, última fase do Império Romano.

Desapareceu a separação entre o magistrado que conhecia da causa em primeiro lugar e aquele que solucionava o litígio. O mesmo titular, na condição de representante da autoridade pública, passou a reunir os atributos de magistrado e de juiz, antes repartidos. O processo romano perdera os seus traços privatísticos.

A justiça deixou de ser gratuita, cabendo aos litigantes o pagamento 19 A fórmula, que pode ser definida como o escrito redigido pelo magistrado in iure, com a indicação da causa que o juiz deve resolver, é composta de duas partes: uma principal, que é estereotipada, fixa, a mesma em todos os casos; uma parte acessória, móvel, alterável, que varia segundo os casos (Cretella Júnior, op. cit., p. 334-337).

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das custas processuais. Além disso a oralidade do processo foi substituída por outro sistema, em que prevaleciam os atos escritos, redigidos pelos auxiliares da justiça e pelos advogados.

Relevante para o nosso estudo é a constatação de que os magistrados passaram a ser agentes categorizados, pertencentes ao Estado, e dispostos numa escala hierárquica, o que de certa forma contribuiu para o surgimento do recurso de apelação20.

2.3 As Sentenças

Durante a fase das ações da lei, decorrência das solenidades orais em que o processo se desenvolvia, a sentença era também verbal. E o vencedor da causa deveria levar a efeito a execução, por seus próprios meios, já que nessa época não havia oficiais públicos destinados à realização de diligências21.

No processo formular, diante de todos os elementos que lhe eram apresentados, o juiz devia prolatar a sentença na presença das partes22. Porém ele diferia do juiz moderno, já que ao invés de um funcionário nomeado pelo estado, entre pessoas devidamente habilitadas, o juiz romano era um leigo que podia, inclusive, eximir-se do julgamento.

Mesmo assim a sentença era, tal como hoje, o ponto culminante do processo, onde o juiz cumpria a sua missão decidindo a lide, aplicando o direito ao caso concreto. A sentença então proferida, quer condenatória, quer absolutória, era dotada de força jurídica, cujo objetivo era estabelecer uma nova situação e consagrar a coisa julgada.

Já no tocante ao processo extraordinário, ao menos à época do imperador Justiniano23, Scialoja24 dá notícia de que eram duas as formas de pôr fim ao processo: a sentença e a consultatio.

A sentença com que se encerra o processo é a sentença definitiva, à diferença das decisões interlocutórias, tal como ocorre atualmente. Ela não

20 Cretella Júnior, op. cit., p. 342.21 Meira, op. cit., p. 19.22 Cretella Júnior, op. cit., p. 335.23 Justiniano, como termo final do império Romano do oriente, conseguiu, através de comissões constituídas de advogados, juristas e professores, realizar suas famosas compilações, obra que até hoje subsiste em grande parte. Sua morte, no ano 565 d.C., é considerada o termo final para o estudo do direito romano. (Meira, op. cit., p. 14 e 22)24 Op. cit., p. 410-411.

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poderia ser somente verbal. Uma vez concluídos os debates o juiz deveria reunir os seus assessores e redigir uma sentença por escrito, a qual seria lida pelo próprio juiz em audiência. Da leitura só estavam dispensados os juízes de grau supremo, casos em que seria lida por oficiais subalternos.

A outra maneira de pôr fim ao processo extra ordinem, ainda segundo Scialoja, era a consultatio. O juiz que sentisse dificuldades para pronunciar uma sentença, ou que entendia não ser competente para fazê-lo, poderia remeter os autos para o Imperador – e mais tarde também aos supremos magistrados para sentenciarem.

Para tanto, o juiz deveria, inicialmente, anunciar às partes essa intenção e, dentro de determinado prazo, deveria redigir um informe sobre todo o processo, incluindo as suas dúvidas. Às partes também era dado prazo para refutar o informe do juiz, e então o documento era remetido ao Imperador. Tudo indica que essa era uma manobra, de iniciativa dos juizes, para escapar às sanções a que estariam sujeitos caso suas sentenças viessem a ser anuladas.

No julgamento pela autoridade suprema ou por seus magistrados superiores as partes não poderiam intervir, e decerto não caberia recurso contra a sentença daí resultante. Afinal ninguém poderia sobrepor-se ao magnânimo entendimento do Imperador.

A partir de Justiniano, o juiz deveria, sempre que possível, chegar a uma condenação de dar coisa certa, ou para pagar uma quantia certa. Somente em casos excepcionais era admitido que, depois da sentença definitiva, se procedesse a outro juízo de liquidação para chegar à certeza do objeto da condenação. Quando a ação era dirigida a um fazer ou a um deixar de fazer, o juiz deveria converter a obrigação numa prestação em dinheiro, e condenar ao pagamento da soma equivalente. Assim, sempre que possível, as sentenças eram líquidas e, após prolatadas, davam lugar à actio iudicati, com a qual se iniciava o procedimento executivo.

3. Meios de impugnação das sentenças

Tanto no processo das ações da lei como no processo formular, em princípio, os romanos não conheciam recursos propriamente ditos, ou seja, medidas que ensejassem o reexame das decisões proferidas, tal como hoje ocorre. Por outro lado, todos os autores consultados25 são unânimes 25 Mendonça Lima, op. cit., p. 4-10; Cretella Júnior, op. cit., p. 336; Scialoja, op. cit., p. 356-364.

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em afirmar a existência de meios excepcionais, que poderiam ser dirigidos contra as sentenças, dentro de um determinado prazo a partir da sua prolação.

Eram eles a infitiatio iudicati, a revocatio in duplum, a in integrum restitutio e a appellatio com sua correspondente intercessio, cujos elementos característicos são apresentados a seguir.

1.1 Infitiatio iudicati

O vencido podia opor-se à execução impugnando de nulidade a sentença que contra ele seria executada. A idéia era negar que o vencedor da ação tivesse um verdadeiro título executivo.

Como um requisito para a execução fosse a existência, ao menos aparente, de uma sentença válida que poderia ser executada, essa medida se destinava a verificar se o ato que se pretendia executar, extrinsecamente perfeito, também era válido intrinsecamente. Ou seja, se não havia talvez um vício de nulidade.

A sentença pronunciada pelo juiz podia ser nula por muitas razões, especialmente formais. Assim, se alguém queria fazer valer essa sentença viciada, o demandado opunha a sua nulidade e se procedia a um juízo em que se indagava quanto à existência ou não da sentença anterior. Como resultado, verificavam-se dois efeitos: 1) não se poderia promover a execução e 2) poder-se-ia renovar a mesma lide.

Se o demandado na actio iudicati lançasse mão da exceção de nulidade da sentença e sucumbisse, seria condenado em dobro, pois era um dos casos em que “a lide, com a negativa, aumenta em dobro26”.

Como se vê, trata-se de um remédio jurídico totalmente diverso da apelação, pois não se pede a um juiz de segundo grau a reforma da sentença de primeiro grau, mas sim faz-se valer uma nulidade contra um ato viciado.

Por isso essa medida encontraria mais semelhança com o instituto da cassação, definido por Calamandrei27 nos seguintes termos: “o recurso por cassação é uma ação de impugnação que é proposta diante do órgão judiciário supremo para obter-se a anulação de uma sentença de um juiz inferior, que contenha um erro de direito na decisão de mérito.”

1.2 Revocatio in duplum26 “Lis infitiando crescit in duplum” 27 Calamandrei, Piero. Sintesi storica sull´origine e lo sviluppo della cassazione. In: Opere Giuridiche. Napoli: Morano Editore, 1976. p. 694.

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Por outro lado a parte vencida não precisava necessariamente permanecer inerte, esperando que a parte adversária iniciasse a execução, podendo tomar a iniciativa e argüir, antes disso, a nulidade da sentença em via principal.

A expressão in duplun deve-se ao fato de que, se em lugar de esperar a actio judicati o demandado tentava impugnar a sentença e não saía vitorioso, deveria pagar em dobro a quantia na qual fora, antes, condenado.

Na verdade não é um remédio diverso, em essência, da infitiatio. A diferença está no momento em que o vencido toma a iniciativa de negar a sentença que lhe foi desfavorável.

1.3 Restitutio in integrum

Remédio que se poderia interpor contra o decreto do magistrado que, ao instituir o juízo, casualmente omitisse determinada exceção peremptória.

Esse meio de impugnação tinha cabimento em situações muito particulares. Mas também chegou a ser admitido contra sentenças já pronunciadas. Embora rara28, essa possibilidade existia, mas somente diante de questões altamente relevantes e sendo latente a injustiça da decisão recorrida, especialmente nos casos de erro, dolo, violência, falta de idade e perda da capacidade jurídica da parte29.

É o ato mais ousado do pretor, pois tem o condão de paralisar e aniquilar o direito civil, indo além do poder jurisdicional intrínseco de sua função. Afinal o verbo restituere tem significado maior do que somente restituir. Na verdade significa tornar as coisas ao seu estado anterior. Assim, como todos os efeitos civis de um ato podiam ser anulados por essa via, sua interposição passou a ser submetida a certas regras especiais.

De certo modo há traços de semelhança com a nossa apelação, porque o magistrado era levado a fazer uma espécie de revisão da sentença, de forma a verificar se esta ofendera realmente, de forma injusta, os interesses de alguém. Porém o resultado não era uma nova decisão, mas sim a supressão, em virtude do poder de império do magistrado, dos efeitos da sentença já pronunciada.

1.4 Appellatio e intercessio28 Scialoja, op. cit., p. 359.29 Cretella Júnior, op. cit., p. 338.

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A appellatio collegarum consistia numa apelação perante um magistrado de igual (colega) ou maior hierarquia, ou também ante os tribunos da plebe30, por meio da qual obtinha-se a proibição de executar o ato ou, se o ato já estava executado, que não se produzissem seus efeitos.

Scialoja aponta esse remédio como um princípio geral de direito público romano, que teve ampla aplicação. Era um verdadeiro antídoto contra a onipotência do magistrado que, afora essa via, não encontraria nenhum outro obstáculo no exercício de suas funções.

E como os pretores e os magistrados romanos em geral tinham atuação tanto política como judicial e administrativa, em razão da inexistência de uma separação de poderes, poderia qualquer magistrado de igual ou superior hierarquia interceder, e os tribunos da plebe impedir, tanto a prática do ato como a produção de seus efeitos.

Um ponto controvertido é o que diz respeito à aplicabilidade desse meio excepcional em face da sentença do juiz particular. Quanto à possibilidade de sua aplicação em face do ato do magistrado não resta dúvida. Mas essa certeza já não existe com relação à sentença já proferida pelo juiz encarregado de julgar a causa.

De toda sorte a intercessão não tinha o intuito de substituir o ato contra o qual era interposta. Se era possível deter os efeitos da sentença prolatada, a sentença em si não era modificada nem destruída por essa via. Seus efeitos eram negativos, sem criar nada em seu lugar.

Esses institutos mantiveram-se ativos durante longo período, chegando até o Império, quando o novo modelo processual romano deu ensejo à possibilidade de um novo tratamento de todo o processo numa instância superior, conforme será demonstrado.

4. O surgimento da apelação

Constatou-se que os remédios jurídicos oponíveis contra as sentenças até agora examinados estão todos muito mais próximos do recurso

30 Durante a República, para acalmar os ânimos do plebeus que reivindicavam o acesso aos cargos públicos em igualdade de condições com os patrícios, foram criadas magistraturas plebéias (o tribunato e a edilidade da plebe), que não possuíam todos os poderes das magistraturas patrícias, mas tinham o poder de intercessão, quando envolvido o interesse público (Meira, op. cit., p. 44).

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de cassação do direito francês e italiano31, do que da apelação propriamente dita.

Até mesmo a appelattio da qual resultava a intercessão de um magistrado de igual ou superior hierarquia – inobstante a mesma denominação – em nada se assemelhava à nossa apelação, haja vista destinar-se, apenas e tão somente, a deter os efeitos dos decreta dos magistrados.

Foi somente a partir do império, nos tempos de Augusto, que começamos a ter notícia da possibilidade de levar uma questão decidida em primeiro grau perante um juiz de segundo grau, que volta a tratar do mérito da causa e encerra sua jurisdição com uma nova sentença. Aí sim temos uma situação que identifica-se com a apelação tal como hoje existe no nosso processo civil, mas que inicialmente denominava-se provocatio32 – instituto que sofreu uma longa evolução e coexistia com os demais remédios anteriormente descritos.

Posteriormente, com o desaparecimento da antiga appellatio collegarum, a provocatio passou a ser chamada de appellatio.

Num primeiro momento, Augusto permitiu que se reclamasse das sentenças pronunciadas em Roma, e também nas províncias, para certos magistrados especialmente delegados por ele para essa revisão. Mais adiante foram assinalados os diversos graus da apelação, que naturalmente eram interpostas perante juízes de instância superior àquela que prolatou a sentença.

Nessa época não havia somente uma única oportunidade de apelar, mas sim a possibilidade de recorrer sucessivamente, percorrendo toda as instâncias então existentes. Essa situação só foi modificada com Justiniano o qual, tendo notado que do excesso de liberdade decorriam abusos, impediu que se apelasse por mais de duas vezes33.

Quanto ao procedimento, uma vez pronunciada a sentença, a parte podia manifestar, verbalmente, seu intuito de apelar, e nada mais precisava ser dito34. E se não quisesse exercer esse direito imediata e verbalmente,

31 Calamandrei, op. cit, p. 693.32 Termo considerado como sinônimo de appellatio. Lima, op. cit., p. 7.33 Lima, op. cit., p. 9.34 Nery Júnior, op. cit., não demonstra a mesma segurança de Scialoja quanto a essa afirmação. Da página 316 consta o seguinte comentário. “Parece que no direito romano havia a possibilidade de se interpor apelação oralmente. Pelo menos nos é dada a notícia de que bastava a pronúncia da palavra appello para que se considerasse interposto aquele recurso.” Na seqüência admite que: “O texto de

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poderia fazê-lo por escrito, mas somente em alguns dias. Tal como é regra hoje, a apelação tinha efeito suspensivo.

O magistrado de cuja sentença se recorria, por sua vez, tinha o dever de remeter a causa ao magistrado superior. E assim este ficava investido do mérito da controvérsia, devendo pronunciar a sua sentença.

Enquanto no nosso procedimento a apelação é sempre necessária, seja para se reformar uma sentença no mérito, seja para que se declare a nulidade da sentença do primeiro juiz por ser eivada de vício, no direito romano, ao contrário, a partir de quando a apelação foi regulamentada e ordinariamente empregada, nunca foi necessária contra a sentença nula. A esse respeito Calamandrei35 esclarece que a própria lei fixava a conseqüência processual de invalidade contra a sentença que a violasse, considerando inexistente a sentença contra ius constitutiones.

Isto porque para obter-se a declaração de nulidade da sentença, não era necessária a apelação, já que a parte interessada poderia impugnar sua validade por um dos outros meios já estudados. A própria lei estabelecia quando a apelação seria a medida adequada.

Além dessas características, Scialoja faz alusão a outras de igual relevância, também introduzidas no período Justiniano. Em primeiro lugar, a apelação passou a não ser mais cabível contra as decisões interlocutórias, por ter-se constatado que havia se transformado num meio de procrastinação. Foi suprimida a limitação anteriormente existente que restringia a interposição do recurso de apelação a certas causas que excediam determinado valor. Quando ocorria do recurso não ser admitido, havia a previsão de um exame pela autoridade superior, tendo como objeto a revisão da decisão sobre a admissibilidade do recurso. Às partes era exigido que comparecessem perante o juízo de segundo grau para dar andamento ao recurso. E, finalmente, para a prática desses atos havia prazos fatais, no sentido de que se não fossem cumpridos considerava-se que a parte decaíra do direito de recorrer.

A partir da interposição do recurso de apelação, inaugurava-se uma nova gama de possibilidades. Na verdade era como se um novo processo tivesse início. Havia a possibilidade de um novo debate, tal como ocorrera em primeiro grau de jurisdição, por ocasião do julgamento em segunda instância. Era admissível aduzir novos argumentos, bem como a produção de novas provas, de maneira que o juízo de apelação poderia fundamentar Ulpiano (Dig. 49.4.1.7) parece confirmar essa opinião, que, de resto, é sustentada por seguimento autorizado da doutrina.”35 Op. cit., p. 696.

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sua decisão de forma diversa daquela realizada pelo juízo a quo.Por outro lado a parte contra a qual se havia produzido a apelação

poderia demandar também pela reforma da sentença em seu próprio benefício, pretensão que, se fosse obtida, redundaria para o apelante numa sentença pior do que aquela que pretendia ver reformada, pois não havia a proibição do reformatio in pejus.

Finalmente, também é digno de nota que o apelante, no caso de ser rechaçada sua apelação, estava sujeito não somente ao cumprimento da sentença e ao pagamento de custas, mas também a certas penas, variáveis segundo o período histórico considerado. Estas, em certas épocas, chegaram a ser exorbitantes, incluindo o desterro, a confiscação da metade dos bens e trabalhos forçados.

Penas dessa natureza decerto poderiam encontrar explicação no intuito de inibir a interposição de recursos pelos interessados, reduzindo a quantidade de questões submetidas aos órgãos superiores. Mas ainda que tal prática fosse reprovável sob a ótica do direito moderno, não chegou a ofuscar o brilho do instituto.

Com a appellatio, chegaram os romanos ao ápice da evolução do direito dos recursos. Tanto é que os alicerces por eles lançados até hoje persistem no cerne dos sistemas recursais das nações mais desenvolvidas.

5. Conclusão

Cada um dos períodos evolutivos do sistema processual romano refletiu os costumes, a política e a vida social existente ao seu tempo. Os modos primitivos da idade antiga espelharam-se no rigor excessivo e no formalismo das ações da lei; a República gerou o sistema de fórmulas; e o absolutismo imperial, aliado à criação de províncias e ao contato com outros povos, propiciou a formação do processo extraordinário36.

Par e passo com essa evolução sistêmica, operou-se um desenvolvimento dos meios recursais.

Ainda que haja opiniões no sentido da inexistência de meios de impugnação na Roma antiga, antes do surgimento da provocatio no processo extra ordinem, certo é que havia remédios de conteúdo negativo, que se por um lado não davam ensejo à reforma da sentença, por outro não deixavam de proporcionar uma revisão desta. E se impediam que o vencedor tivesse acesso às vantagens que, ab initio, esperava da ação, tinha-se mesmo, sob 36 Meira, op. cit., p. 20.

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esse prisma, um recurso.De toda forma a apelação como instrumento para suspender a eficácia

da sentença e provocar um novo julgamento da mesma causa, obtendo-se ao final uma nova sentença proferida por outro magistrado, como na concepção moderna, só foi mesmo implementada naquele último estágio já referido, sob o Império de Augusto.

Para finalizar, vale transcrever a reflexão de Alcides de Mendonça Lima37 a respeito do verdadeiro significado de uma tal conquista e seus reflexos sobre o desenvolvimento dos meios de impugnação:

[...] os meios de ataque às sentenças, ainda que revestidos de um sentido extremamente primitivo, tinham, sem dúvida, por finalidade precípua a de tornar ineficaz a providência impugnada, libertando-se o vencido de seus efeitos, desde que utilizada a via autorizada pelos costumes ou pela lei.

Nessa manifestação de desconformidade do vencido e na possibilidade de a sentença não vingar, concentra-se a origem de todo o ordenamento recursório, se bem que, apenas séculos mais tarde, se aperfeiçoaria e se incorporaria, definitivamente, à legislação romana com os característicos e atributos peculiares que, sob o influxo de idéias renovadoras, se projetariam pelas épocas vindouras.

6. Referências bibliográficas

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37 Op. cit., p. 10.

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A EDUCAÇÃO NAS CONSTITUIÇÕES BRASILEIRAS

Raquel Recker Rabello Bulhões

1. Introdução

A criança e o adolescente nem sempre tiveram voz e vez, seja na família, na escola, na comunidade ou na sociedade, quanto mais na legislação. Esta situação foi se modificando a partir de meados do século XX, quando estudiosos tiveram como foco central de suas pesquisas investigá-los como sujeitos do meio social. Até então, os estudos relativos à infância, ou que envolvessem questões pertinentes à criança ou ao adolescente, partiam do pressuposto de que eles eram apenas objetos de estudo, e, desta forma, não se levava em consideração que pudessem ter códigos, linguagens, pensamentos, sentimentos e expectativas individuais. As crianças e os adolescentes eram estudados sob o prisma dos adultos, e, portanto, eram tidas como “adultos em miniatura”, meros receptáculos do que lhes era depositado em linguagem, cultura e educação.

Os estudos atuais demonstram que as crianças também são criadoras da cultura e, portanto, sujeitos da sua história e co-partícipes da sociedade. Por isso, captar a perspectiva da criança e traçar meios para que seus anseios sejam observados é uma realidade em quase todas as culturas e legislações. É sob esta vertente, que passa a considerar as crianças e adolescentes como sujeitos de direitos, que este artigo é realizado, buscando-se compreender como esses atores interagem no cenário social em nosso país. Os novos protagonistas adquiriram o “status” de cidadãos por meio de alguns segmentos da sociedade, que, conscientes do seu papel, intercederam por elas e lutaram para que seus direitos fossem tutelados no texto constitucional brasileiro, respeitados e resguardados, e que fossem punidos aqueles que os violassem. Desta forma, a partir do final dos anos oitenta, quando da entrada em vigor da atual Constituição Federal, as crianças e os adolescentes adquiriam a tão sonhada cidadania.

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2. A educação nas Constituições Brasileiras

A preocupação do Poder Público, no que se refere à educação, encontra-se presente em todas constituições brasileiras: desde a primeira delas, pós-independência, outorgada por D. Pedro I, em 1824; passando pela Republicana de 1891; a do Estado Novo de 1934; a de 1937; a de 1946, quando da redemocratização do país; seguida pela de 1967, de inspiração militar com limitação do poder da sociedade civil na escolha de seus governantes; com a agravante do AI-5 de 1968, que desencadeou a Emenda Constitucional no 1 de 1969, até chegarmos à Constituição de 1988, oitava constituição brasileira, denominada pelo seu principal artífice, o deputado Ulysses Guimarães, de “Constituição cidadã”. Apesar disso, observar-se que o enfoque dado à educação nas constituições brasileiras nem sempre foi o mesmo, sofrendo consideráveis modificações com o decurso do tempo.

A Constituição do Império de 1824, que foi outorgada por D. Pedro I sem que houvesse qualquer participação da nação, não se preocupou em dedicar um capítulo específico para a educação, referindo-se a ela em apenas dois incisos1 do art. 179. No que se refere aos interesses da criança e do adolescente, nota-se que o inciso XXXII deste artigo disciplinava a respeito da gratuidade da instrução primária para todos os cidadãos. No entanto, vale lembrar que os direitos e garantias elencados nesta Carta tinham por objetivo atender às reivindicações liberais de Portugal e, sendo assim, a gratuidade universal à educação primária inseriu-se no texto como uma obrigação efetiva do Estado e não foi fruto de interesses articulados e reclamos sociais organizados.

Logo após a Proclamação da República, em 15 de novembro de 1889, foi criada a primeira Constituição Republicana do Brasil, de 1891, elaborada por Rui Barbosa, na qual, ao contrário da Carta anterior, houve a participação dos representantes do povo brasileiro, que reunidos em Congresso Constituinte, com o objetivo de organizar um regime livre e democrático, estabeleceram, decretaram e promulgaram a primeira Constituição Republicana. Esta Constituição traz uma abordagem indireta da

1 Art. 179 CI/24 - A inviolabilidade dos Direitos Civis, e Politicos dos Cidadãos Brazileiros, que tem por base a liberdade, a segurança individual, e a propriedade, é garantida pela Constituição do Imperio, pela maneira seguinte:XXXII. A Instrucção primaria, e gratuita a todos os Cidadãos.XXXIII. Collegios, e Universidades, aonde serão ensinados os elementos das Sciencias, Bellas Letras, e Artes.

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educação, prevista no Título IV, referente aos Cidadãos Brasileiros, e inserida na Seção II, que dispõe sobre as Declarações de Direitos. Na leitura do art. 72 § 6º desta Carta2, nota-se que os constituintes mantiveram o princípio da liberdade e da laicidade do ensino ministrado nos estabelecimentos públicos, mas silenciaram a respeito da sua gratuidade. Verifica-se, também, que esta Constituição consagra a separação do Estado e da Igreja, limitando, deste modo, os poderes de ingerência de um sobre o outro.

Sob o influxo da Revolução de 30, a Constituição da República dos Estados Unidos do Brasil, promulgada em 16 de julho de 1934, representou um processo de modernização do Estado, assegurando, pela primeira vez na história, a educação como um direito de todos, devendo ser ministrada pela família e pelos poderes públicos. Ela mantém a gratuidade do ensino primário e propõe sua extensão a outros níveis de ensino. Segundo Fávero (2005, p. 13), o texto constitucional de 1934 deixa antever que o direito à educação passa a ser “condividido” entre o Estado e a família. Nesta Carta o direito à educação3 aparece disposto, de forma explícita, no art. 149, que compreende as disposições acerca da família, da educação e da cultura.

A partir desta Carta houve a inclusão da família, como um lugar de educação, que será visível em todas as constituições posteriores. Nesse sentido, a família tem a obrigatoriedade de enviar e manter os filhos nas escolas, enquanto incumbe aos poderes públicos assegurar a gratuidade do ensino. Sendo assim, a União deveria se responsabilizar pela tarefa progressiva de fundar e manter escolas secundárias e superiores gratuitas, conforme se verifica no art. 150 parágrafo único4, alíneas a, b e c.2 Art 72 CR/91- A Constituição assegura a brasileiros e a estrangeiros residentes no País a inviolabilidade dos direitos concernentes à liberdade, à segurança individual e à propriedade, nos termos seguintes:§ 6º - Será leigo o ensino ministrado nos estabelecimentos públicos.3 Art 149 CREUB/34 - A educação é direito de todos e deve ser ministrada, pela família e pelos Poderes Públicos, cumprindo a estes proporcioná-la a brasileiros e a estrangeiros domiciliados no País, de modo que possibilite eficientes fatores da vida moral e econômica da Nação, e desenvolva num espírito brasileiro a consciência da solidariedade humana.4 Parágrafo único - O plano nacional de educação constante de lei federal, nos termos dos arts. 5º, nº XIV, e 39, nº 8, letras a e e , só se poderá renovar em prazos determinados, e obedecerá às seguintes normas: a) ensino primário integral gratuito e de freqüência obrigatória extensivo aos adultos; b) tendência à gratuidade do ensino educativo ulterior ao primário, a fim de o tornar mais acessível; c) liberdade de ensino em todos os graus e ramos, observadas as

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A Constituição de 1937 foi a segunda Carta brasileira outorgada, neste caso, pelo Estado Novo, em decorrência das condições políticas e ideológicas, tanto internas quanto externas, que terminaram por derrubar o renovador texto constitucional. Seu prefácio deixa claro que não houve uma participação do povo ao se decretar esta Constituição, que teve por objetivo “assegurar à Nação a sua unidade, o respeito à sua honra e à sua independência, e ao povo brasileiro, sob um regime de paz política e social, as condições necessárias à sua segurança, ao seu bem-estar e à sua prosperidade”, determinando, ainda, o seu cumprimento obrigatório em todo o País. Esta Carta significou um retrocesso considerável em relação à Constituição anterior, especialmente no item que se refere à educação, atribuindo-se à família a responsabilidade primeira pela educação integral da prole, e ao Estado o dever de colaborar para a execução dessa responsabilidade. Observa-se que o art. 130 define o ensino primário como obrigatório e gratuito5, mas, a ênfase do texto refere-se à subsidariedade do Estado no provimento da educação àqueles a quem faltarem recursos.

A partir da Constituição Federal de 1946 é a sociedade, e não o Estado, quem tem a primazia. A liberdade tinha por objetivo permitir uma maior participação popular na vida social e econômica. Nesta Carta a educação passa a ser vista como um direito público subjetivo; no entanto, sabe-se que à família também incumbe o dever de educar os filhos. Nesse sentido, pode-se afirmar que a educação baseia-se no princípio “in loco parentis”, devendo ser ministrada tanto no lar quanto na escola. No que se refere especificamente ao direito à educação6 (art. 166), as idéias contidas nesta Constituição assemelham-se às da Carta de 1934. Sendo assim, a educação encontra-se prevista no capítulo II, que dispõe sobre a Educação e a Cultura. Os incisos I e II do art. 168, definem a obrigatoriedade e a gratuidade ao ensino primário oficial7, no entanto, a ênfase do texto refere-se à subsidariedade do Estado

prescrições da legislação federal e da estadual;5 Art 130 CEUBa/37 - O ensino primário é obrigatório e gratuito. A gratuidade, porém, não exclui o dever de solidariedade dos menos para com os mais necessitados; assim, por ocasião da matrícula, será exigida aos que não alegarem, ou notoriamente não puderem alegar escassez de recursos, uma contribuição módica e mensal para a caixa escolar.6 Art 166 CEUBb/46- A educação é direito de todos e será dada no lar e na escola. Deve inspirar-se nos princípios de liberdade e nos ideais de solidariedade humana.7 Art 168 CEUBb/46 - A legislação do ensino adotará os seguintes

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no provimento do ensino oficial posterior para aqueles que provarem a falta ou insuficiência de recursos.

Vale lembrar que um dos desdobramentos trazidos pela Constituição neoliberal de 1946 diz respeito ao ciclo das leis de diretrizes e bases, sendo a Lei no 4.024/61 (Lei de Diretrizes e Bases – LDBEN1) a primeira lei geral de educação. Esta Lei previa o Plano Nacional de Educação (PNE), que foi elaborado em 1962, revisto em 1965 e complementado pelo Conselho Federal de Educação (CFE) em 1966. O PNE visava instrumentalizar os dois princípios fundamentais da LDBEN1, ou seja, o direito de todos à educação e a igualdade de oportunidades.

A Constituição de 1967, de inspiração militar, com limitação do poder da sociedade civil na escolha de seus governantes, foi decretada e promulgada pelo Congresso Nacional. O direito à educação encontra-se previsto no art. 168, quando trata da Família, da Educação e da Cultura8. O texto constitucional mantém alguns princípios gerais da educação, como o direito de todos, a liberdade de ensino, a igualdade de oportunidades e a limitação da gratuidade, mas inaugura o regime de bolsas de estudos restituíveis, no ensino superior.

A Emenda Constitucional no 1 de 1969 representou, na realidade, uma

princípios: I - o ensino primário é obrigatório e só será dado na língua nacional; II - o ensino primário oficial é gratuito para todos; o ensino oficial ulterior ao primário sê-lo-á para quantos provarem falta ou insuficiência de recursos;8 Art 168 CRFB/67 - A educação é direito de todos e será dada no lar e na escola; assegurada a igualdade de oportunidade, deve inspirar-se no princípio da unidade nacional e nos ideais de liberdade e de solidariedade humana. § 1º - O ensino será ministrado nos diferentes graus pelos Poderes Públicos. § 2º - Respeitadas as disposições legais, o ensino é livre à iniciativa particular, a qual merecerá o amparo técnico e financeiro dos Poderes Públicos, inclusive bolsas de estudo. § 3º - A legislação do ensino adotará os seguintes princípios e normas:I - o ensino primário somente será ministrado na língua nacional;II - o ensino dos sete aos quatorze anos é obrigatório para todos e gratuito nos estabelecimentos primários oficiais; III - o ensino oficial ulterior ao primário será, igualmente, gratuito para quantos, demonstrando efetivo aproveitamento, provarem falta ou insuficiência de recursos. Sempre que possível, o Poder Público substituirá o regime de gratuidade pelo de concessão de bolsas de estudo, exigido o posterior reembolso no caso de ensino de grau superior;

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nova Constituição, com características mais ditatoriais que sua antecessora. Foi responsável pelo esvaziamento dos princípios e mecanismos assegurados nas Cartas de 1934 e 1946. No entanto, manteve todos os dispositivos referentes à educação e reconheceu, pela primeira vez (art. 176), que a educação é um direito de todos e dever do Estado9, devendo ser ministrada tanto no lar quanto na escola. As bolsas de estudos restituíveis se estendem ao ensino médio.

A proposta da Constituinte atual mobilizou a sociedade brasileira, sendo a educação um dos temas mais discutidos. Os debates que antecederam a promulgação da Carta de 1988 foram marcados pela produção de estudos que analisaram a educação nos textos constitucionais, mas principalmente pelo confronto entre os que defendiam a ensino público, laico e gratuito em todos os níveis, em oposição ao setor privado, interessado em obter acesso às verbas públicas. A Constituinte de 1987-88 incorporou a participação da sociedade civil organizada através de consulta a entidades coletivas representativas. Entre as articulações do ensino público e privado destacaram-se o Fórum de Educação na Constituinte em Defesa do Ensino Público e Gratuito, os encontros da Federação Nacional dos Estabelecimentos de Ensino (FENEN) e das Escolas Confessionais.

Em 05 de outubro de 1988, após 20 anos de regime autoritário, foi promulgada uma nova Constituição em clima de democracia, já que era a nação quem legitimava suas normas através de um processo constituinte, por

9 Art 176 EC/69- A educação, inspirada no princípio da unidade nacional e nos ideais de liberdade e solidariedade humana, é direito de todos e dever do Estado, e será dada no lar e na escola.§ 1º - O ensino será ministrado nos diferentes graus pelos Poderes Públicos. § 2º - Respeitadas as disposições legais, o ensino é livre à Iniciativa particular, a qual merecerá o amparo técnico e financeiro dos Poderes Públicos, inclusive bolsas de estudo. § 3º - A legislação do ensino adotará os seguintes princípios e normas:I - o ensino primário somente será ministrado na língua nacional;II - o ensino primário é obrigatório para todos dos sete aos quatorze anos é gratuito nos estabelecimentos primários oficiais;III - o ensino público será igualmente gratuito para quantos, no nível médio e superior, demonstrarem efetivo aproveitamento e provarem falta ou insuficiência de recursos.IV - O Poder Público substituirá, gradativamente, o regime de gratuidade no ensino médio e no superior pelo sistema de concessão de bolsas de estudo, mediante restituição, que a lei regulará;

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isso, ficou ela ficou conhecida como “Constituição Cidadã”. Nesta Carta, o direito à educação10 foi considerado um direito social e aparece previsto no art 205, que trata da Educação, da Cultura e do Desporto.

Oliveira (2001, p. 15-43), ao discutir historicamente a concepção do direito à educação contida nos textos legais das constituições brasileiras, concentra-se na Constituição Federal de 1988, em especial nos artigos 208 e 227. O autor ressalta a importância da criação da Lei no 8.069/90 (ECA), cuja finalidade primordial é a de zelar pelo cumprimento dos direitos da criança e do adolescente previstos na legislação em vigor. Não é demais lembrar que o preceito constitucional do artigo 227 determina a obrigatoriedade da família, da sociedade e do Estado em assegurar à criança e ao adolescente, com absoluta prioridade, entre outros, o direito à educação.

Sabe-se que atualmente a família passa por mudanças, e, por isso, a escola torna-se o espaço basilar que proporcione às crianças e aos adolescentes, cujas famílias enfrentam dificuldades, tanto de cunho emocional quanto material, um ambiente favorável ao desenvolvimento saudável, onde seja possível construir valores e ética. A escola torna-se a saída que estas crianças e adolescentes possuem para desenvolver sua capacidade de pensar, sonhar e buscar modelos saudáveis. Nesse sentido, Aragão e Vargas (2005, p. 72), defendem que “a letra da lei deve ceder lugar à efetivação de práticas assecuratórias ao direito da criança e do adolescente de ter acesso à educação, à cultura, ao esporte e ao lazer”.

Partindo-se da premissa de que a educação é essencial para o desenvolvimento humano integral, torna-se necessário garantir a igualdade de condições de acesso e permanência na escola, de forma que esse direito não seja mitigado em virtude de políticas públicas ineficazes ou insuficientes.

Conforme dispõe o art. 195 caput da Carta Magna11 de 1988, as ações governamentais educacionais, por se tratar da área da assistência social, serão financiadas por toda sociedade e realizadas com recursos provenientes do orçamento da seguridade social. No entanto, com o propósito de resguardar

10 Art 205 – A educação, direito de todos e dever do Estado e da família, será promovida e incentivada com colaboração da sociedade, visando ao pleno desenvolvimento da pessoa, seu preparo para o exercício da cidadania e sua qualificação para o trabalho. 11 Art. 195 – A seguridade social será financiada por toda a sociedade, de forma direta e indireta, nos termos da lei, mediante recursos provenientes dos orçamentos da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios, e das seguintes contribuições sociais: (...)

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o seu efetivo cumprimento, a lei prevê a possibilidade de que esses recursos possam advir de outras fontes, incluindo a participação da população por meio de organizações representativas na formulação das políticas públicas e no seu controle (art. 204, incisos I e II da Constituição Federal)12.

3. Considerações Finais

Os artigos referentes à educação, elencados em cada um das Constituições analisadas, refletem os momentos históricos e políticos em que foram concebidas.

Da análise das Cartas Magnas brasileiras, de 1824 até 1988, pode-se observar que o Estado vai se tornando cada vez mais presente na seara da educação.

Nota-se que desde os primórdios da nossa história sempre foi dado um grande enfoque nas legislações como forma de assegurar que os direitos fossem respeitados, possibilitando a todos um pleno exercício da cidadania, considerado como tal o direito de viver de forma digna, com a satisfação das necessidades básicas.

No entanto, apesar de todo o esforço das nossas Constituições em salvaguardar a questão da educação, ela ainda está longe dos seus objetivos.

Podemos concluir que não basta garantir esses direitos, torna-se mister, além de protegê-los, efetivá-los, e neste sentido, ainda temos um longo caminho a trilhar.

4. Refeências Bibliográficas

ARAGÃO, Selma Regina e VARGAS, Ângelo. O Estatuto da criança e do adolescente em face do novo Código Civil – Cenários da infância e da Juventude brasileira – Rio de Janeiro: Forense, 2005.12 Art. 204 – As ações governamentais na área da assistência social serão realizadas com recursos do orçamento da seguridade social, previstos no art. 195, além de outras fontes, e organizados com base nas seguintes diretrizesI – Descentralização político-administrativa, cabendo a coordenação e às normas gerais à esfera federal e a coordenação e a execução dos respectivos programas às esferas estadual e municipal, bem como a entidades beneficentes e de assistência social;II – Participação da população, por meio de organizações representativas, na formulação das políticas e no controle das ações m todos os níveis.

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UMA OUTRA VISÃO DO DIREITO: AS CONTRIBUIÇÕES FORNECIDAS PELAS CIÊNCIAS SOCIAIS1

Bárbara Gomes Lupetti Baptista

1. Considerações iniciais

Sejam quais forem as outras características que a antropologia e a jurisprudência possam ter em comum – como por exemplo uma linguagem erudita meio incompreensível e uma certa aura de fantasia – ambos se entregam à tarefa artesanal de descobrir princípios gerais em fatos paroquiais [...] No entanto, essa sensibilidade pelo caso individual pode tanto dividir como unir [...] A interação de duas profissões tão voltadas para a prática, tão profundamente limitadas a universos específicos e tão fortemente dependentes de técnicas especiais, teve como resultado mais ambivalência e hesitação que acomodação e síntese [...]. (GEERTZ, 1998, p. 249)

A proposta principal deste trabalho é tentar expor as relevantes contribuições que as ciências sociais podem fornecer à compreensão do Direito e ao desenvolvimento da pesquisa jurídica. Para fazê-lo, parto de uma experiência pessoal, vivenciada durante a elaboração da minha

1 Kant de Lima escreveu um artigo fundamental, discorrendo sobre a contribuição da Antropologia para a pesquisa jurídica no Brasil. Ver: KANT DE LIMA, Roberto. Por uma Antropologia do Direito no Brasil. In: FALCÃO, Joaquim de Arruda. Pesquisa Científica e Direito. Recife: Massangana, 1983. p. 89-116. As características comuns existentes entre o Direito e a Antropologia também são retratadas de forma singular por GEERTZ em “O saber local: fatos e leis em uma perspectiva comparativa” (1998).

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dissertação de mestrado2, cujo resultado me permitiu olhar o Direito sob o viés antropológico e, por isso, enxergar aspectos e mecanismos do nosso sistema judiciário que eu não teria percebido se não tivesse me valido da pesquisa de campo3 que realizei e do diálogo produtivo que me permiti fazer com as ciências sociais.

Utilizar ferramentas de outras áreas do conhecimento – no meu caso, da Antropologia - parece-me fundamental para repensar a estrutura do Direito e a forma como ele se manifesta.

O Direito precisa analisar e (re) pensar as suas práticas e, para tanto, precisa se abrir às contribuições de outras áreas do conhecimento, sob pena de, por se fechar demais, não conseguir dar conta dos seus próprios institutos e, por conseguinte, dos seus problemas, dos seus paradoxos e das suas crises. Bourdieu, Chamboredon e Passeron nos remetem a essa temática, destacando-se o seguinte trecho de sua obra:

2 O título da dissertação, defendida, em maio de 2007, no âmbito do Programa de Pós-graduação em Direito da Universidade Gama Filho, sob a orientação do Professor Roberto Kant de Lima, é: “O Princípio da Oralidade às avessas: um estudo empírico sobre a construção da verdade no processo civil brasileiro.”. 3 Fazer trabalho de campo é conviver intensamente com o objeto de estudo; é vivenciá-lo (MALINOWSKI, 1984).Utilizei-me da etnografia e da observação participante como métodos para a elaboração da pesquisa que resultou na minha dissertação de mestrado. Ou seja, fiz pesquisa de campo no Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro, entrevistando Juízes, advogados, partes e serventuários. O meu ponto de partida foi o discurso desses operadores, diretamente envolvidos nas práticas judiciárias, e que funcionaram como meus interlocutores. Igualmente, na qualidade de advogada, de alguma forma eu estava inserida no campo pesquisado, de forma que a minha presença cotidiana e minha atuação freqüente no Tribunal, contribuíram para a minha familiarização com o tema investigado, de modo que eu não fui apenas uma espectadora na pesquisa de campo, mas, efetivamente, parte atuante nesse contexto. Eu não era, outrossim, uma pesquisadora alheia ao campo, eu era uma pesquisadora, em alguns momentos, e uma advogada atuante, em outros. Nas palavras de Kant de Lima, “o ponto central do método etnográfico é a descrição e a interpretação dos fenômenos observados com a indispensável explicitação tanto das categorias ‘nativas’ como aquelas do saber antropológico utilizado pelo pesquisador [...] A convivência e participação na vida dos grupos costuma-se denominar observação participante [...]”. (Kant de Lima, 1983). Para visualizar como fazer etnografia, utilizando-se da observação participante, ver: FOOTE-WHYTE, 1975, p. 77-86.

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A obediência incondicional a um organon de regras lógicas tende a produzir um efeito de ‘fechamento prematuro’ fazendo desaparecer, para falar como Freud, ‘a elasticidade nas definições’ ou, como diz Carl Hempel, ‘a disponibilidade semântica dos conceitos’ que, pelo menos em certas fases da história de uma ciência ou do desenrolar de uma pesquisa, constituem uma das condições da invenção [...] Toda operação, por mais rotineira e rotinizada que seja, deve ser repensada, tanto em si mesma quanto em função do caso particular. (BOURDIEU, CHAMBOREDON, PASSERON, 2004, pp. 14 e 18).

O meu esforço em tentar dialogar com a Antropologia adveio especialmente do contacto que tive a oportunidade de desfrutar com o Professor Roberto Kant de Lima, advogado e antropólogo, e com a Professora Maria Stella de Amorim, socióloga, ambos Professores do Programa de Pós-graduação da Universidade Gama Filho, onde cursei o mestrado em Direito. Mas não só. Penso que algo antecedeu (e justificou) esse encontro.

Hoje, revendo a minha trajetória pessoal e profissional, entendo que o que me fez buscar uma nova (diferente) forma de compreender o Direito foi, por um lado, a minha absoluta incapacidade de conformação diante daquilo que, sensitivamente, me parece “fora de lugar”; e, por outro lado, a necessidade que eu tinha de encontrar respostas, que o Direito não me fornecia, seja nas Leis, nos livros ou nos manuais, sobre a sua própria estrutura e sobre os seus, nitidamente falhos, mecanismos de funcionamento.

Como estudante do Direito e, ao mesmo tempo, como advogada - ou seja, operadora efetiva no campo4 - eu estranhava muito a discrepância abissal verificada entre o discurso dogmático e a realidade empírica5. “Ler”

4 Utilizo a expressão “campo do direito”, aqui e doravante, com o mesmo sentido de cultura (“cultura jurídica”), o qual, nos dizeres de Bourdieu, seria “o que permite a todos os detentores do mesmo código associar o mesmo sentido às mesmas palavras, aos mesmos comportamentos e às mesmas obras e, de maneira recíproca, de exprimir a mesma intenção significante por intermédio das mesmas palavras, dos mesmos comportamentos e das mesmas obras [...]”. (BOURDIEU, 1987). 5 Ângela Moreira-Leite também aliou esses dois saberes, o jurídico e

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os livros de Direito era, ou melhor, é, completamente diferente de “ver” a sua materialização nas práticas judiciárias. Ocorre que, para mim, hoje, com a estrutura de pensamento que eu construí a partir do contacto com as ciências sociais, não me parece estranho que assim seja. Eu entendi que o Direito visa ao “dever-ser” e, nesse sentido, se concebe como um ideal que não tem ou não precisa ter qualquer compromisso com a realidade. Mas, antes, quando eu me iniciei no campo, era incompreensível pensar o Direito de forma absolutamente desatrelada do cotidiano forense.

A minha vivência como advogada e a falta de respostas para práticas diárias realizadas a todo o instante nos Tribunais não me parecia plausível e acho que foi essa sensibilidade e essa percepção que me fizeram ir em busca dos obscuros desse campo e tentar perceber qual era o mecanismo que permitia que o Direito assim se estruturasse. Quer dizer, eu queria compreender o porquê de as pessoas não estranharem o fato de os livros apontarem algo completamente diferente daquilo que acontecia nos muros circunscritos dos Tribunais.

A pesquisa de campo foi o que me permitiu entender um pouco melhor isso e outros fatores mais, que pretendo compartilhar nesse trabalho.

Aliás, impõe destacar desde logo, o caráter altamente pessoal deste trabalho, que é muito mais fruto da minha experiência acadêmica e profissional, do que da leitura ou da compreensão “teórica” do Direito e de seus institutos.

Ver o Direito sob outra perspectiva que não a sua própria, foi - e tem sido - uma experiência muito rica para mim e tem facilitado bastante a o antropológico, e percebeu as disparidades entre a dogmática e as práticas judiciárias. Chama a atenção o seguinte trecho do seu livro “Em tempo de conciliação” (2003, p. 27-28): “[...] o estudo antropológico do Direito parte da sua compreensão como instância ordenadora e controladora, passa pela interpretação das instituições jurídicas e judiciais e das teorias que o impregnam, atingindo o sistema jurídico como um todo, no momento e nos espaços sociais particularizados em que aquelas instituições e teorias se desenvolvem. Isto implica, portanto, visualizar a ordem legal criada no ordenamento jurídico e a ordem vigente no cotidiano da sociedade, seus cruzamentos, suas superposições, mas também os afastamentos e as disparidades existentes entre elas [...] a socialização dentro desse campo [do direito], produz um saber que ultrapassa a fundamentação de leis, sentenças, pareceres etc., dos poderes executivo, legislativo e judiciário e as atividades técnicas e extrajurídicas. O estudo interpretativo desse saber conduziu à sua percepção como formalmente distante da realidade social [...].”.

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compreensão sobre a minha atividade e sobre a sistemática do meu campo de atuação.

Por derradeiro, ressalto que o método adotado na minha pesquisa busca revelar não apenas os obscuros, mas também os “óbvios” do campo, eis que estes, nem sempre são descritos ou explicitados nos manuais e livros jurídicos, sendo, ocasionalmente, conhecidos por um número limitado de pessoas, em geral, aquelas que atuam rotineiramente nos Tribunais. Assim, a partir dessa proposta descritiva, vez ou outra, o texto pode parecer, para alguns, traçar meras obviedades do Judiciário, no entanto, trata-se de um mecanismo proposital. A sociedade não está socializada com o Direito, não conhece as suas regras e, por conseguinte, não legitima as suas práticas. Entendo que uma forma viável de minimizar essa distância que separa o que deveria estar próximo, por ser complementar – os Tribunais e a sociedade – é tornar conhecidos e explícitos os rituais judiciários.

O Direito, freqüentemente, encoberta os óbvios, pelo fenômeno da naturalização, sendo certo que explicitá-los, a meu ver, nesse contexto, parece bastante relevante.

Kant de Lima, neste diapasão, ressalta que o papel da Antropologia é justamente este: utilizando-se do conhecimento das diferenças entre as sociedades humanas, “estranhar” sua própria sociedade, descobrindo nela aspectos inusitados e ocultos por uma familiaridade embotadora da imaginação sociológica (KANT DE LIMA, 1983, p. 90). Creio que foi, exatamente, esta a influência da Antropologia na minha pesquisa e na minha atuação profissional.

O viés antropológico permitiu-me enxergar além dos muros da dogmática, facilitando uma visão macro, ou interdisciplinar, do nosso sistema judiciário. A tradição do ensino jurídico, dogmático, fecha as perspectivas do conhecimento. O Direito é por demais hermético, daí a dificuldade de reconhecer e legitimar outros campos do conhecimento, mesmo sendo cediço o fato de se tratar, o Direito, de uma disciplina que não pode se compreender a partir de sua própria estrutura, lógica e sistemática interna.

A idéia de compartilhar alguns dados e o desenrolar da minha pesquisa através deste artigo visa, tão-somente, facilitar a compreensão de certos aspectos do Direito que me foram explicitados a partir do diálogo com a Antropologia e que eu reputo interessantes para repensar o campo jurídico.

2. A naturalização: um fenômeno próprio do campo jurídico

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A mim sempre pareceu “estranho” o convívio harmônico e natural de dois tipos absolutamente distintos de formação predominantes no campo do Direito: a educação formal, estabelecida na graduação, nas universidades; e a educação informal, presente no cotidiano forense, nos Tribunais.

“Estranhar” o objeto de investigação, “relativizar” o campo estudado, “desnaturalizar” as práticas judiciárias e o discurso oficial do Direito seriam, para um antropólogo, questões básicas e cruciais para o sucesso da pesquisa. Entretanto, para um advogado ou qualquer outro membro de formação jurídica, socializado nesta área, tais requisitos constituem verdadeiros empecilhos à pesquisa e foram, no meu caso, a maior dificuldade enfrentada.

Primeiro, porque não compreendemos exatamente o que essas categorias – estranhar, relativizar e desnaturalizar – significam; e, segundo, porque a formação jurídica está fulcrada em “certezas” e “verdades irrefutáveis”, ao contrário das ciências sociais, onde nada é definitivo ou permanente. Kant de Lima (1983, p. 98), destaca esse fato:

A contribuição que se pode esperar da Antropologia para a pesquisa jurídica no Brasil será evidentemente vinculada à sua tradição de pesquisa. Desde logo há a advertir que o estranhamento do familiar é um processo doloroso e esquizofrênico a que certamente não estão habituadas as pessoas que se movem no terreno das certezas e dos valores absolutos. A própria tradição do saber jurídico no Brasil, dogmático, normativo, formal, codificado e apoiado numa concepção profundamente hierarquizada e elitista da sociedade, refletida numa hierarquia rígida de valores autodemonstráveis, aponta para o caráter extremamente etnocêntrico de sua produção, distribuição, repartição e consumo. (grifou-se)

Aos poucos, fui entendendo que a essência do meu estudo deveria estar fundamentada na necessidade de distanciamento do meu objeto. Para compreendê-lo, eu deveria valorizar os dados da realidade, desprendendo-me dos marcos teóricos que fundamentaram a minha

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formação em Direito. Logicamente, foi – e ainda é – extremamente difícil para mim, desconstruir as verdades reveladas durante a minha formação e as “certezas” do Direito, fincadas e internalizadas em mim de uma forma bastante marcante, mas ter isso em mente já foi um caminho importante, que me levou ao reconhecimento da importância de questionar e entender o porquê de as coisas serem ou se expressarem de determinado modo6-7.

O questionamento e a relativização são categorias que aprendi na Antropologia e que, de alguma forma, representam a valoração do discurso do interlocutor, ou seja, daquele que está nos ajudando a enxergar o campo a partir da perspectiva de quem está inserido nele. No Direito, a importância disso se multiplica, uma vez que a única forma oficialmente difundida de compreender o sistema é lendo livros e manuais de pessoas “autorizadas” a escrever sobre determinados assuntos, independentemente de a realidade das práticas judiciárias nos mostrar, todos os dias, que o que está nos manuais não existe nos Tribunais.

O trecho a seguir me ajudou a entender um pouco esse mecanismo de relativização:

A antropologia, lá ou cá, na floresta ou na cidade, na aldeia ou na metrópole, não dispensa o caráter relativizador que a presença do ‘outro’ possibilita. É esse jogo de espelhos, essa imagem de si refletida no outro que orienta e conduz o olhar em busca de significados ali onde, à primeira vista, a visão desatenta ou preconceituosa só enxerga exotismo, quando não o perigo, a anormalidade..8

Nesse contexto, chama a atenção e influi sobremaneira na formação dos operadores do Direito, o fato de essa disciplina se reconhecer como

6 Bourdieu (1987) trata desse assunto quando menciona no capítulo que trabalha os sistemas de ensino e sistemas de pensamento, que “[...] quanto mais tais esquemas [de pensamento] encontram-se interiorizados e dominados, tanto mais escapam quase que totalmente às tomadas de consciência [...]”. 7 Sobre a influência da formação escolar – no caso, a formação jurídica – na construção do pensamento e da cultura de um determinado grupo, ver BOURDIEU (1987) e BERMAN (1996). 8 Magnani, Jose Guilherme Cantor. Quando o campo é a cidade: fazendo antropologia na metrópole. Disponível em: http://www.n-a-u.org/QUANDOOCAMPOCAPI.pdf

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um conjunto normativo ideal.Vincular o Direito ao campo do “dever-ser” é um equívoco que o

estudo das práticas judiciárias, segundo o método antropológico, ajuda a explicitar. O mundo do “dever-ser” deve estar atrelado a uma preocupação filosófica, não jurídica. O Direito é um campo prático, empírico, que existe para administrar os conflitos entre as pessoas, seres de carne e osso, que precisam ter os seus problemas cotidianos administrados pelos Tribunais.

Pensar em como as coisas deveriam ser não pode ser uma problemática jurídica. O “mundo do Direito” é o mundo real. Garapon (1997, p. 180) destaca que

[...] um direito demasiado ideal é muitas vezes inaplicável”, de modo tal que “o distanciamento entre o direito dos livros e o direito vivido tornou-se perigoso”, tendo em vista que, para ele, a distorção entre o que a lei determina e o que a prática realiza causa uma “anomia”, decorrente não da ausência do Direito, mas do seu “caráter demasiado abstrato.

Oportuno destacar que, também nesse contexto, a Antropologia dá a sua contribuição, pois a pesquisa de campo é, nada mais nada menos, do que a possibilidade de vivenciar a materialização empírica do Direito, deixando de lado o que os códigos prevêem e o que as Leis determinam para explicitar o que, de fato, as pessoas vinculadas ao campo dizem que sentem e vêem acontecer todos os dias.

O mundo jurídico é estabelecido e legitimado, internamente, como uma esfera à parte das relações sociais, ocorre que, em realidade, o Direito não pode ser estudado de forma dissociada do seu campo social de atuação porque ele é parte do controle social. Em sendo assim, o Direito não pode ser visto como um saber “monolítico” (KANT DE LIMA, 1983).

O mundo jurídico, portanto, não deveria se constituir de um saber especializado, uma vez que a sua lógica e o seu ordenamento se difundem e atingem todas as esferas e camadas sociais. Todavia, é assim que o campo funciona e isto faz com que a produção desse saber específico implique em um tremendo distanciamento formal da realidade, que não se constitui de configurações normativas ideais, como o Direito prevê.

Assim, a realidade acaba, nesse sistema, tendo que se adaptar

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ao Direito, cuja função é - em vez de administrar conflitos - regular o comportamento social (KANT DE LIMA, 1983).

Estudar as práticas judiciárias me permitiu ver, justamente, além da concepção limitada dos códigos, leis e manuais. Eu pude observar, subsidiada pela Antropologia, as diversas representações sociais de um mesmo instituto jurídico. No caso do meu objeto de pesquisa - Princípio da Oralidade - indo a “campo” pude perceber que a dogmática lhe empresta definição única, abstrata e geral, ao passo que a empiria demonstra a existência de significados distintos para a sua materialização9.

Só a empiria nos dá um consenso sobre como as coisas, de fato, se dão no mundo prático. E esse consenso advém dos interlocutores, ou seja, das pessoas que vivenciam as práticas sobre a qual se está estudando. No Direito, a dogmática faz parecer que o objeto de estudo não é real; parece que o saber que você busca está em outro lugar; superior; ideal e inacessível; o que nos faz pensar que o próprio Direito se coloca nesse patamar de certa forma impalpável; exclusivo; não pragmático.

3. O contraditório atuando internamente: a construção do saber jurídico

O Direito se reproduz através de “doutrinas”, que constituem o pensamento de pessoas autorizadas a trabalhar academicamente determinados assuntos. O saber jurídico não é científico, é interpretativo; é dogmático.

Berman (1996; p. 18), ao estudar a formação da tradição jurídica no Ocidente, aclara diversos pontos sobre a questão do Direito como sendo um saber “dogmático”, definindo-o como um campo no qual não se incluem somente as instituições legais, as ordens legais, as decisões

9 É muito curioso o que ocorre quando comparamos o discurso dogmático com o empírico porque na dogmática a oralidade tem uma conotação imensamente positiva, ao passo que no discurso dos operadores, que lidam com a oralidade em seu cotidiano, ela é opostamente vista com uma conotação negativa. É tida como algo que atrapalha o bom andamento do processo e que não tem destinação, de fato, útil. Ademais, as distintas representações que a oralidade recebe, de acordo com o tempo e o espaço em que se materializa, quer dizer, na 1ª instância ou na 2ª instância, em uma audiência ou no gabinete de um magistrado, não são consideradas nos livros jurídicos, mas aparece de forma muito clara na pesquisa empírica.

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legais; mas também tudo aquilo que os especialistas em leis dizem acerca dessas instituições, ordens e decisões legais, tratando-se, pois, de um “meta direito”.

No Direito, o conhecimento advém da interpretação das leis e as pessoas autorizadas a interpretar as leis são os próprios juristas.

A doutrina, principal formadora da construção do “saber jurídico”, é uma criação advinda ou dos Tribunais – através da jurisprudência – ou dos renomados estudiosos do Direito – os Juristas - que estabelecem de que forma as normas devem ser interpretadas.

O reconhecimento das pessoas autorizadas a escrever sobre temas específicos advém especialmente dos cargos importantes que ocupam no Judiciário. As versões consagradas são “a matéria-prima sobre a qual se edifica” a formação jurídica, que se limita a avançar a partir delas, sem, no entanto, questioná-las (KANT DE LIMA, 1997).

Vale dizer que, mais especificamente do que “doutrina”, o que existe no Direito são correntes doutrinárias. Ou seja, sobre quase todo tema jurídico existem grupos, compostos de pessoas renomadas no campo, que interpretam as leis de uma forma peculiar e distinta e que se contradizem mutuamente. Estes grupos são formados por juristas reconhecidos que escrevem sobre o mesmo assunto e, necessariamente, o fazem de forma contraditória; e, também, por ministros e magistrados que, ao proferirem as suas decisões nos processos também criam “doutrina”, tanto que, comumente, revistas jurídicas especializadas publicam, na íntegra, sentenças ou acórdãos proferidos em processos judiciais.

As mencionadas correntes doutrinárias formam o conhecimento jurídico, isto é, constituem o “saber jurídico”.

Nesse contexto, vê-se, também, que os juristas têm uma postura, de certa forma, comprometida com o tema; entretanto, os advogados - por representarem interesses alheios, de seus clientes - podem um dia se aliar a uma corrente doutrinária e noutro dia, a outra, sem que isso lhes cause qualquer problema ético. Eles não precisam se posicionar a favor ou contra o tema, pois o seu papel não é de jurista; o seu papel é usar a corrente doutrinária de forma aleatória e circunstancial, ou seja, de acordo com o interesse que convier ao seu cliente num determinado momento.

Significa dizer que sempre há a possibilidade de existirem, ao menos, duas formas distintas e contraditórias de se interpretar um dispositivo legal e, é justamente isso, que faz com que, em muitas ocasiões, o Direito seja uma loteria. Se você conseguir que a sua ação

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seja distribuída para um juiz que interprete a lei de forma a atender aos seus interesses, a sorte está com você; todavia, se por acaso a sua ação for distribuída para um juiz que interprete a lei de forma a não atender aos seus interesses, o seu caso estará perdido. E tudo isso é legítimo porque é assim mesmo que o Direito funciona. A norma é abstrata e exige interpretação subjetiva e particular.

Por organizar-se através de categorias universalizantes, o Direito possibilita uma luta interna do campo para ver qual das possíveis interpretações das normas terá a melhor aceitação. A literalidade da lei não é vista como o instrumento propiciador do acesso universal das pessoas ao Direito – característica das sociedades democráticas - ao revés, é vista como simplória. (MENDES, 2003).

O campo do Direito é, logo, um campo de luta, de disputa de opiniões, onde uns ganham e outros perdem. A consagração no interior do campo do conhecimento exige uma concorrência pela legitimidade que, por sua vez, destaca os que alcançam o reconhecimento intelectual, dos demais. Distingue os “donos do saber”, dos comuns. (BOURDIEU, 1987).

Bourdieu (1987) nos convoca à reflexão quando deixa no ar a assertiva: “O projeto intelectual de cada um dos contestantes tem outro conteúdo que não seja a oposição ao projeto do outro?”.

Transpondo isso ao Direito, verificamos que, de fato, a preocupação dos “doutrinadores” em legitimar o seu saber é maior do que o compromisso com o conteúdo daquilo que sustentam. Muitas vezes, a competição pela consagração se resume ao contraditório10 de teses por si só, em vez de representar um efetivo comprometimento com a produção intelectual.

Os “juristas” (categoria genérica que inclui tanto os magistrados - que criam a doutrina através de suas decisões - quanto os doutrinadores que, embora consagrados, não exercem necessariamente um cargo público na estrutura hierárquica dos tribunais) disputam a produção do “saber jurídico” de forma tal que - a busca desse mencionado status de criador de um conhecimento exclusivo e único – leva à mútua desqualificação. Ou seja, ganhar a disputa interna do campo pela criação do “saber jurídico” supõe, necessariamente, desqualificar a tese oposta; e esse inesgotável 10 Este sistema de duelo (contraditório) se reproduz no processo e dificulta sobremodo o diálogo das partes e o seu acesso ao Tribunal, personalizado no magistrado.

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duelo de opiniões resulta em contradições e anulações recíprocas.Para exemplificar, considero oportuno transcrever trecho de um

voto vencido, proferido em 2003 por um Ministro do STJ11, nos autos de um processo, no qual fica clara essa disputa interna do campo, ao qual me referi, bem como essa necessidade de afirmar um “saber” específico; em geral, vinculado a um cargo de poder.

Sr. Presidente, li, com extremo agrado, o belíssimo texto em que o Sr. Ministro Francisco Peçanha Martins expõe as suas razões, mas tenho velha convicção de que o art. 557 veio em boa hora, data venia de S. Exa. Não me importa o que pensam os doutrinadores. Enquanto for Ministro do Superior Tribunal de Justiça, assumo a autoridade da minha jurisdição. O pensamento daqueles que não são Ministros deste Tribunal importa como orientação. A eles, porém, não me submeto. Interessa conhecer a doutrina de Barbosa Moreira ou Athos Carneiro. Decido, porém, conforme minha consciência. Precisamos estabelecer nossa autonomia intelectual, para que este Tribunal seja respeitado. É preciso consolidar o entendimento de que os Srs. Ministros Francisco Peçanha Martins e Humberto Gomes de Barros decidem assim, porque pensam assim. E o STJ decide assim, porque a maioria de seus integrantes pensa como esses Ministros. Esse é o pensamento do Superior Tribunal de Justiça, e a doutrina que se amolde a ele. É fundamental expressarmos o que somos. Ninguém nos dá lições. Não somos aprendizes de ninguém. Quando viemos para este Tribunal, corajosamente assumimos a declaração de que temos notável saber jurídico - uma imposição da Constituição Federal. Pode não ser verdade. Em

11 Voto proferido pelo Ministro Humberto Gomes de Barros, nos autos do agravo regimental nos embargos de divergência em recurso especial (AgReg em ERESP) no 279.889/AL. Disponível em: https://ww2.stj.gov.br/revistaeletronica/ita.asp?registro=200101540593&dt_publicacao=07/04/2003.

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relação a mim, certamente, não é, mas, para efeitos constitucionais, minha investidura obriga-me a pensar que assim seja. Peço vênia ao Sr. Ministro Francisco Peçanha Martins, porque ainda não me convenci dos argumentos de S. Exa. Muito obrigado.

Esta natural possibilidade de entendimentos contraditórios sobre as normas – além de criar incongruências e paradoxos no sistema - permite, ainda, que a sua concretização se dê de forma particularizada - não universal - o que leva também à desigualdade.

O princípio do contraditório está internalizado no campo de uma forma irremediável, sendo certo que essa característica se reproduz, inclusive, na formação do saber jurídico. É cediço que o contraditório é uma garantia constitucional, prevista no art. 5º, inciso LV, da CF/88, sendo categorizado, pela dogmática, como um princípio democrático, um princípio de “justiça”, tendo em vista que incorpora a necessidade de que se dê ciência a cada litigante de todos os atos praticados (ou determinados) pelo Juiz e pelo adversário12.

Entretanto, a representação empírica do contraditório não é bem esta. De fato, o que se verifica é que, no sistema contraditório, há um estímulo de conteúdo relativamente “bélico”, onde a oposição necessária de argumentos prevalece. A tese de uma parte é privilegiada em prol da outra e a suposta “síntese”, característica de um processo tipicamente dialético, é, no contraditório, nada mais nada menos, do que a decisão arbitrária da autoridade, não decorrendo, de forma alguma, de um raciocínio logicamente construído, mas do poder que emana do Juiz.

O contraditório é, portanto, caracterizado pelo dever das partes de se contradizerem. Trata-se de um instrumento que possibilita ao Juiz a eleição de teses e que, conseqüentemente, afasta as partes do diálogo, uma vez

12 Oportuno ratificar que o sistema processual brasileiro é contraditório e não adversarial, como, por exemplo, o americano. Quer dizer, as lógicas que o nosso sistema reproduz são necessariamente opostas e excludentes, pois, apenas uma pode prevalecer. Aliás, a título de mera reflexão, o nome que se dá ao princípio é bastante sugestivo. Segundo o Dicionário da Língua Portuguesa de Aurélio Buarque de Holanda, as palavras significam, literalmente: “contraditório: diz-se de duas proposições tais que uma afirma o que a outra nega / adversário: que luta contra.”.

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que se sustenta na oposição de pontos de vista, em que, obrigatoriamente, apenas um sairá vencedor, seja ele a parte de um processo, seja um Jurista defendendo uma determinada interpretação legal.

A aplicação desigual da lei é, nesse sentido, legitimada pelo próprio sistema. (KANT DE LIMA, 1995; DAMATTA, 1979).

Daí surgem, inclusive, as situações previstas por DaMatta, quanto à necessidade de cada cidadão se utilizar de suas relações pessoais para se “safar” do manifesto desequilíbrio entre a previsão legal – de cunho teórico - e a viabilidade de cumprimento das leis – de cunho prático. O “sabe com quem está falando” (autoridade) e o “jeitinho brasileiro” (malandragem) são formas situadas entre o “pode” e o “não pode” que os indivíduos13 encontraram para conviver com um regramento universalizante e repressor e para enfrentar as contradições e paradoxos dele oriundos, notadamente, no caso do Direito, o fato de o mesmo fato ser julgado de forma absolutamente distinta dependendo do magistrado que irá julgá-lo. (DAMATTA, 1979; 1984).

Este campo acredita em leis perfeitas e universais que, ao regularem as relações sociais, submeterão as pessoas que a elas não se adequarem14 à repressão, como se, no Brasil, as leis representassem um contrato social que assegura uma convivência pacífica e consensual entre todos os contratantes.

É assente que em sociedades igualitárias, nas quais, de fato, a democracia se estabeleça - o que não é o caso do Brasil, onde sequer vigora, efetivamente, um Estado Democrático de Direito - as regras são internalizadas pelos sujeitos, tendo em vista que, na verdade, eles são ativos no processo de normalização. Em sociedades desiguais como a

13 DaMatta diferencia a categoria “indivíduo” (sujeito das leis universais) da categoria “pessoa” (sujeito das relações sociais). O “sabe com quem está falando” é a fórmula que magicamente transforma um indivíduo em uma pessoa. DaMatta inclusive ressalta o teor negativo inseparável da palavra indivíduo, sempre ligado a alguém sem princípios. O indivíduo, no Brasil, em vez de ser “alguém”, é “ninguém”; é um qualquer.14 GEERTZ (1978) explicita a cultura como sendo um ingrediente na formação do homem, que é um ser essencialmente inacabado e incompleto. Nesse sentido, o Direito - como parte da cultura – também funciona como um ingrediente na incessante formação humana, não podendo, portanto, ter a pretensão de regular o comportamento social, reprimindo-o e submetendo-o a padrões prévia e arbitrariamente definidos.

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nossa, tradicionalmente elitistas e hierarquizadas (KANT DE LIMA, 1995), as regras são fruto de imposição e de arbitrariedade; sendo, portanto, exteriores aos sujeitos às quais se aplicam. Leis são – em sociedades desiguais – motivo de ameaça, pois a sua aplicação pressupõe, necessariamente, uma interpretação particularizada, cujos resultados são imprevisíveis. A lei, portanto, não é um instrumento de proteção de todos porque é desigualmente aplicada (AMORIM, KANT DE LIMA, MENDES; 2005).

Daí surge, ainda, um outro fator importante para a compreensão do Direito, qual seja, a tutela do cidadão pelo Estado, representado na pessoa do Juiz. A necessidade de um terceiro – alheio ao processo – ter o poder de decidi-lo no lugar das partes diretamente nele envolvidas, provém da tradição paternalista e tutelar da sociedade brasileira e está arraigado na cultura jurídica de forma irremediável. A idéia de que as pessoas não conseguem, não devem e, portanto, não podem resolver os seus problemas e os seus conflitos, sozinhas - sem a intervenção estatal - é algo que marca a cultura jurídica de uma forma impressionante, de maneira que impedir ou até minimizar a intromissão da tutela jurisdicional na vida particular dos cidadãos é quase um ato de “anarquia”.

Em uma sociedade altamente hierárquica, como a brasileira, a existência de uma autoridade decisória – que haja de forma “paternalista” – é fulcral. Ademais, o próprio fato de os indivíduos se reconhecerem como desiguais – como inferiores a quem por eles decide – faz com que a necessidade de um terceiro seja, igualmente, decisiva.

Nesse sentido, essa concepção também reforça a idéia de o Direito se auto-identificar como a solução de todos os males sociais e, conseqüentemente, se colocar em um lugar privilegiado na estrutura social, o que repercute, outrossim, na forma como os próprios operadores do campo se reconhecem e, especialmente, no poder e na autoridade que emanam desse ramo do conhecimento.

Tanto é assim, que os Tribunais, através de seus magistrados, não se definem como administradores dos conflitos sociais que lhe são encaminhados, mas como “pacificadores de conflitos”. O ideal do Direito não é administrar, mas pacificar a sociedade, o que parece absolutamente descabido, tendo em vista que tal pretensão não pertine ao Direito, mas à Sociologia, a partir do momento em que se entende que o conflito é inerente à sociedade, por mais organizada que ela seja.

Além dessas questões, considero relevante salientar, nesse tópico,

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a forma como o Direito se constrói metodologicamente.Trata-se de uma área onde a metodologia utilizada nas pesquisas

é meramente reprodutora, o que advém, me parece, do fato de, nesse ramo do conhecimento, os dados serem considerados como verdades sedimentadas, estabelecidas e incontestáveis, de modo que aos operadores não pode mesmo restar outra alternativa, senão reproduzir o que já está pronto.

Nesse sentido, os trabalhos jurídicos em geral – mesmo os acadêmicos - são recortes que reproduzem tudo o que já fora produzido sobre o mesmo tema e que fora escrito por pessoas consagradas (reconhecidas) no campo, sendo que o número de autores consagrados citados no trabalho é proporcional à qualidade do mesmo15 e a suposta originalidade existe quando se busca assuntos equivalentes no “direito comparado”, o que significa dizer, quando se busca a doutrina estrangeira.

Ocorre que, o estudo comparado no Direito é absolutamente distinto do estudo comparado nas Ciências Sociais. Sendo o Direito um campo em busca de ideais, “comparar” para o Direito significa ir atrás de um padrão ideal. Busca-se o paradigma internacional e se não existirem no Direito brasileiro as mesmas características daquele, reformula-se o brasileiro, a fim de adequá-lo aos padrões do estrangeiro16, o que, na maioria das vezes, não garante êxito, já que se “importam” os institutos sem previamente analisar a sua adequação à realidade17.15 Michel Foucault (2003; p. 76-77), descrevendo como o domínio do saber se firmava na Idade Média, ressalta a disputatio (disputa) como um dos mais célebres rituais de autenticação desse saber. Constituía-se, a disputatio, num ritual de “afrontamento de dois adversários que utilizavam a arma verbal, os processos retóricos e demonstrações baseadas essencialmente no apelo à autoridade”; o que, aliás, nos lembra o atual contraditório. Foucault destaca, abordando o tema, algo que tem íntima relação com o que eu asseverei sobre a falta de criatividade do Direito, dizendo que: “[...] quanto mais autores um dos participantes tivesse a seu lado, quanto mais pudesse invocar testemunhos de autoridade [...] mais possibilidade ele teria de sair vencedor.”. 16 Kant de Lima chama a atenção para o fato de que a reação de não encontrar o “mesmo” costuma ser “valorativa-negativa”; ou seja, a ausência ou a não identificação de valores está atrelada à depreciação (Kant de Lima, 1983).17 Como exemplo, tem-se o due process of law, que é um instituto aplicado ao sistema de administração da justiça criminal americana que foi importado pelo direito brasileiro, sendo traduzido como devido processo legal. A análise empírica do instituto, no Brasil, permite perceber que ele não guarda qualquer relação com

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Fernanda Duarte (2007) destaca e ratifica as questões ora explicitadas de forma bastante objetiva, ressaltando:

[...] De um lado, tem-se a produção doutrinária, marcada pela lógica da repetição que decorre de uma tradição reprodutora de conceitos, categorias e estruturas, descoladas da realidade social brasileira. Em geral, essa doutrina se contenta apenas em dar notícia (ainda que com argumentação bem apresentada e articulada) do debate que se passa no mundo ocidental, pretendendo incorporá-lo de forma automática, no Brasil, como se o seu registro em texto escrito, bastasse para nos “atualizar” e civilizar, colocando nossos autores em sintonia com o que se pensa alhures [...].

Na Antropologia não é assim. Comparar, para a Antropologia, significa contrastar, isto é, ver o que é essencialmente diferente e, eventualmente, semelhante. Inexiste, nesse sentido, uma preocupação de cunho valorativo. A Antropologia busca a comparação a fim de compreender e de repensar as suas próprias categorias, não a fim de copiar o que encontra no objeto comparado.

O conhecimento jurídico é atualizado de forma a não produzir transformações, mas cópias. Conhecer, nesse campo, equivale a deixar as coisas tal como estão e não intervir na sua forma de atuação. Trata-se de uma visão limitada do conhecimento (KANT DE LIMA; VARELLA, 2001).

Para mim, ao contrário. Explicitar as representações práticas dos institutos jurídicos é a melhor forma de compreendê-los e a Antropologia possibilita isso: analisar, empiricamente, os institutos jurídicos e, com isso, entender as suas distintas categorizações para, então, se for o caso, conhecendo-os, transformá-los.

O que eu sempre li nos manuais de Direito eu jamais tive a oportunidade de vivenciar, até mesmo porque não existe um manual sobre as práticas judiciárias ou sobre as rotinas dos Tribunais, de forma que o due proces of law americano, a não ser a tradução literal do nome. Sobre o tema, ver: FERREIRA, Marco Aurélio Gonçalves. O devido processo legal: um estudo comparado. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2004.

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conciliar isso era a minha porfia.Eu nunca tive a pretensão de realizar um trabalho puramente

antropológico, porque não sou antropóloga e, mesmo nesse artigo, não tenho a mínima pretensão de parecer uma cientista social. Sou uma advogada, me reconheço no campo do Direito e a minha idéia sempre foi, simplesmente, aliar metodologias que me possibilitassem compreender aquilo que o Direito nunca me explicou.

O fato de utilizar-me da metodologia da Antropologia como ferramenta para realizar trabalho de campo não torna a minha pesquisa não jurídica; ao revés, creio que a Antropologia é fundamental, no sentido de permitir a conciliação de duas formas de manifestação do Direito, a teórica (dogmática) e a empírica (prática).

Busquei contacto com a Antropologia, conforme salientei anteriormente, porque eu não conseguiria dar conta de uma pesquisa que não trouxesse nada novo e que simplesmente reproduzisse a lógica vigente no campo, o que, aliás, como se pode notar, não tem ajudado muito no aprimoramento do Direito.

Eu não conseguiria escrever sobre institutos jurídicos sem conciliá-los às rotinas dos Tribunais. A mim, pareceu impossível escrever uma dissertação de mestrado sem escrever sobre algo que eu sei que acontece e que não se vê registrado em livros ou manuais jurídicos.

Para quebrar tradições é necessário explicitá-las; só assim antigos comportamentos são transformados em novos comportamentos. Acredito que a Antropologia ajuda muito nisso. Explicitando as práticas judiciárias podemos transformá-las sempre que elas não estejam mais respondendo aos anseios daqueles que delas se utilizam.

Creio, diante do que vivenciei no decorrer do mestrado, que o Direito não pode mais continuar fechando-se em si porque enquanto não estender suas perspectivas, não encontrará a possibilidade, sequer, de compreender o porquê das dificuldades e das crises que vêm enfrentando.

4. A pesquisa de campo no Direito: obstáculos e contribuições

Descrevi outrora que, antes de iniciar propriamente a pesquisa de campo, eu tive de entender em que consistia este tipo de trabalho porque no Direito a empiria é bastante frágil, limitando-se, nosso conhecimento, ao aprendizado das leis, dos procedimentos e dos nomes dos autores que devemos ler quando queremos estudar determinados assuntos.

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Absorvi, em contacto com uma literatura própria das ciências sociais, que, para fazer trabalho de campo, eu deveria, antes de tudo, ir ao Tribunal e ouvir o que as pessoas envolvidas em um processo judicial tinham para dizer a respeito do meu tema, no caso, a manifestação do Princípio da Oralidade no Processo Civil Brasileiro.

Estas pessoas seriam os meus interlocutores (ou informantes), e a minha pesquisa adviria da representação que estas pessoas têm sobre o campo estudado.

Além disso, aprendi que deveria descrever e explicitar o tema de forma absolutamente imparcial, ou seja, eu não poderia jamais induzir os meus entrevistados a responderem aquilo que eu gostaria de ouvir.

Eu deveria estar crua de idéias e pensamentos que pudessem influenciar a minha pesquisa; eu deveria estar aberta aos interlocutores e os meus pontos de vista não poderiam influir na investigação, pois o campo me daria tudo o que fosse preciso para a realização do meu trabalho. Isso foi o mais complicado.

Além de conhecer previamente a doutrina jurídica, eu tinha internalizado algumas representações sobre as práticas judiciárias que eu vivenciava diariamente na minha profissão, portanto, me desligar de tudo isso, iniciar o trabalho e não interpretar os meus dados segundo as minhas convicções foi muito difícil.

A título ilustrativo, narro um fato curioso que me ocorreu. Como se fosse algo natural e imprescindível à pesquisa, eu preparei modelos de questionários padronizados para entrevistar os interlocutores, a respeito da manifestação da oralidade no processo. Elaborei diferentes questionários de acordo com o perfil do entrevistado: fiz um modelo de perguntas para juízes de varas cíveis; outro para juízes de 2ª instância; outro para partes; outro para advogados e outro para testemunhas.

Concatenei o questionário de tal forma que a segunda pergunta pressupunha uma resposta específica à primeira e assim sucessivamente. O questionário apontava, com clareza, que eu tinha um padrão para as respostas, como se eu soubesse exatamente o que tinha de ser respondido e, mais, como se eu estivesse disposta a induzir as respostas para o caminho que me interessava.

Se o meu orientador não tivesse me alertado, eu teria, sem me dar conta, funcionado como um típico inquisidor do Tribunal do Santo Ofício, não como uma pesquisadora, e, certamente, os meus dados estariam completamente desvirtuados do contexto real. Nesse sentido,

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desconhecer as metodologias das ciências sociais e estar tão vinculada ao modo de (re) produção em que se fundamenta a pesquisa no Direito foi um complicador para mim.

Chamam a atenção, também, algumas questões que enfrentei diretamente em campo, nas entrevistas com os magistrados.

Por exemplo, em relação à ausência de questionários – dos quais, logicamente, eu desisti após o evento “inquisitorial” acima narrado - os magistrados entrevistados não compreendiam a possibilidade de eu não ter perguntas previamente fabricadas para contextualizar o tema. Além disso, não compreendiam o porquê das minhas perguntas, “tão óbvias e possíveis de se encontrar em qualquer manual de Direito”.

Certa vez, um magistrado não resistiu e asseverou:

É um prazer recebê-la, para mim não há problema algum em conceder esta entrevista, mas, sinceramente, para quê você está utilizando o seu tempo agendando entrevistas, vindo até o fórum, gravando tudo, para saber coisas que estão em livros ótimos, de autores reconhecidos, que eu posso até indicar? Aonde você pretende chegar e qual, objetivamente, é o seu intuito com este trabalho?

Tentei explicitar o meu objeto, não apenas para esse Juiz, mas para muitas pessoas da área, entretanto, obviamente, não fui compreendida. A metodologia voltada à pesquisa de campo é desconhecida no Direito.

Percebi claramente que a idéia preponderante do campo era a seguinte: se o meu trabalho não era a reprodução do pensamento de alguém considerado importante pelo Direito, ele não era jurídico. Cheguei a pensar – e, na verdade, até hoje tenho essa impressão - que algumas pessoas do campo jurídico assimilaram o meu trabalho muito mais como uma aventura cênica pelos corredores do fórum do que como uma dissertação defendida em um curso de Mestrado em Direito.

Ocorreu, algumas vezes, durante a minha pesquisa, de alguns magistrados que me conheciam como advogada se sentirem constrangidos em responder a determinadas perguntas que eu fazia. Eles ficavam pouco à vontade em esclarecer questões que lhes pareciam óbvias. Eu perguntava, por exemplo, em que atos processuais a oralidade se materializa e eles

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diziam: “Ah Doutora, como a Senhora já sabe ...”.Outro dado importante observado na pesquisa de campo – ainda

em relação às entrevistas com os juízes - diz respeito à influência que a formação jurídica universitária, já citada neste texto, exerce sobre os seus operadores (BOURDIEU, 1987).

Alguns dos juízes por mim entrevistados estão de tal forma condicionados a se utilizarem de doutrina e de conceitos de autores já consagrados para ratificar os seus pensamentos, que não conseguiam opinar livremente na entrevista, quer dizer, sem fazer menção a algum jurista em quem apoiassem a idéia que sustentavam. É como se a informação que me concediam somente me servisse se fosse avalizada por alguém de renome, a quem eles necessitavam fazer referência expressa, como argumento de autoridade18.

Nesses momentos, em que estive com juízes assim, tinha na minha cabeça a idéia de que, para eles, dar entrevistas era como proferir uma sentença, porque eles tinham uma convicção formada, mas precisavam fundamentar esta convicção, comprovando, com o discurso dogmático, que o que diziam tinha fundamento.

Isto ocorreu mais de uma vez, sendo emblemático um fato que vivenciei. Em uma determinada entrevista agendada com uma juíza, aconteceu algo muito curioso. Eu marquei para uma data e quando cheguei, ela me pediu desculpas e disse que não estava preparada, que havia esquecido, solicitando-me que retornasse um outro dia. Agendamos uma nova data e eu saí do gabinete sem compreender exatamente o que significava ela “não estar preparada”. Retornei no dia designado e me surpreendi sobremaneira: ela havia estudado com afinco o princípio da oralidade para me conceder a entrevista. Havia lido vários livros de doutrina, sublinhado algumas notas e estava com todo o material preparado na hora em que cheguei. Tudo estava sobre a sua mesa. A entrevista foi mecânica, com citações de autores do início ao fim e, obviamente, embora a magistrada tenha sido inigualável em termos de atenção e cortesia, não colaborou com a pesquisa da forma como eu esperava.

A atitude desses entrevistados me ajudou a perceber três questões 18 O Professor Roberto Kant de Lima chamou-me a atenção em uma aula, certa vez, dizendo-me que o problema do argumento de autoridade, tão firme no Direito, é que ele se baseia na autoridade e não, propriamente, no argumento. E, de fato, no Direito é assim. Mais vale a autoridade do que o conteúdo do que se sustenta (KANT DE LIMA, 2005, p. 92).

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fundamentais para entender a estrutura do campo: 1) a necessidade pessoal dos juristas de saberem sempre todas as respostas, ou seja, a impossibilidade de não conhecerem algum assunto jurídico; o que – no decorrer da pesquisa – verifiquei tratar-se de uma exigência, inclusive, para o exercício do cargo de juiz; 2) o fato de que a opinião no Direito só tem legitimidade se estiver fundamentada na doutrina; 3) a circunstância de os juristas, efetivamente, não saberem como se faz uma pesquisa empírica, porque, diante do comportamento, demonstraram que, a seu ver, eu estaria ali para testar o seu conhecimento, ou para investigá-los, enfim, para saber algo que eles não poderiam, em hipótese alguma, desconhecer.

Este traço assinala um relevante aspecto da cultura jurídica brasileira: a ameaça pelo estigma do desconhecimento, do erro ou da ignorância. Ainda que todos saibam que é impossível para qualquer ser humano conhecer todo o sistema normativo, desconhecê-lo é uma marca que, no curso da pesquisa, percebi estar vinculada a certo status exigido pelo campo e que serve como álibi para aqueles que estão inseridos se distinguirem dos excluídos.

O fato é que, mesmo no fim da pesquisa, eu não consegui fazer as pessoas inseridas no campo do Direito entenderem que o meu objetivo era explicitar os implícitos; que o meu interesse não era definir a oralidade segundo a doutrina jurídica que já existe sobre o tema, mas explicitá-la como uma categoria que possui representações distintas no campo e que eu não poderia, para estudar o instituto, me prender a uma única categoria do tema, qual seja, a dogmática. Era preciso ouvir as pessoas, distinguir as representações do campo e descrever o que as diferenciava para, assim, compreendê-las de forma mais completa e, com isso, repensá-las.

Eu demorei muito para compreender a metodologia das pesquisas realizadas nas ciências sociais e ainda apresento muitas dificuldades, todavia, aprendi algo com a pesquisa: que as categorias do campo, em realidade, não existem. Elas constituem uma construção e, para identificá-las, nós temos de olhar “debaixo” delas, ou seja, desnaturalizá-las, pois é “estranhando” que se reconhece.

Pensei as categorias, então, como sendo os conceitos ou os significados das práticas judiciárias, a partir da perspectiva dos interlocutores.

Quanto à necessidade de “explicitação”, lembrei-me de que na vida sempre aplicamos um “jargão” que diz: “o melhor caminho para não resolver um problema é fingir que ele não existe” e do quanto isto tem

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relação com o estudo do Direito no Brasil.Tive a certeza de que, descrevendo as práticas judiciárias, os

problemas obscuros do campo jurídico, inevitavelmente, apareceriam. Hoje, terminada a pesquisa, ratifico: enquanto não existirem estudos voltados a essa interlocução com as metodologias das ciências sociais, não enxergaremos as incongruências deste campo e as repercussões sociais de suas rotinas.

Descrevi práticas institucionalizadas no Direito, que todos aqueles que vivenciam o cotidiano dos Tribunais conhecem, que são básicas e corriqueiras para quem lida com as rotinas forenses, mas que, sem a explicitação, se tornam um saber exclusivo de quem as experimenta. Tais práticas só existem dentro dos muros dos Tribunais, pois, dali para fora, ninguém as compreende, tanto porque sobre elas não se escreve, quanto porque, quando se escreve, o que se descreve é completamente diferente do que se realiza.

O Direito faz parte da vida dos cidadãos. Ele influencia o seu cotidiano e, portanto, as pessoas precisam ser socializadas com as suas regras, com a sua estrutura e com o seu funcionamento. Sem isso, o Direito não conseguirá a legitimidade que busca. Nesse sentido, descrever o óbvio é uma forma de tornar conhecidos os mecanismos do Direito.

Por fim, destaco o último – mas não menos tortuoso - obstáculo que tive de enfrentar na tentativa de vivenciar o Direito a partir de um outro (novo) olhar.

Estruturar o texto e começar a escrever foi problemático e isto, mais uma vez, tem a ver com a formação jurídica.

No Direito, quando se pensa em escrever qualquer coisa define-se, a priori, um “marco teórico” para o trabalho. Tanto que, a primeira fase de uma pesquisa jurídica é a elaboração do índice. Sem um índice previamente definido não há forma de se começar um trabalho acadêmico no campo do Direito.

Nas ciências sociais, ao revés, inexiste “marco teórico”. São os dados da pesquisa empírica que estruturam o desenvolvimento do trabalho. A realidade investigada é que dá vida ao texto a ser escrito19.

A razão de tal disparidade é simples: no Direito a realidade deve se adequar à teoria. As leis são padronizadoras do comportamento social 19 DaMatta destaca que nas ciências sociais o pesquisador trabalha com fenômenos que estão “bem perto” dele; eventos humanos, fatos que o pertencem integralmente. (DAMATTA, 1984).

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e, conseqüentemente, tudo o que está entrelaçado nesse campo possui certezas prévias. A essência desse “campo” é “doutrinária” e - como o próprio significado da palavra doutrina (ensinamento) aponta - trata-se, este campo, de um meio em que a pretensão é sempre ensinar por se supor que não há mais nada para se aprender.

Em sendo assim, no Direito, os dados da realidade que não ratifiquem o “marco teórico” previamente definido para o trabalho devem ser dele expurgados: fecha-se os olhos para a sua incontestável existência. Há um desejo muito presente no campo de manter os fatos à distância em procedimentos jurídicos e, nesse contexto, o Direito acaba se afastando, cada vez mais, da estória real e completa (GEERTZ, 1998). Como, aliás, fazem os advogados quando se deparam com uma “tese” que não atende aos seus interesses; simplesmente fingem que ela não existe e buscam outra que lhes tenha serventia.

Nas ciências sociais, a realidade não se sujeita a coisa alguma. A realidade fala; a realidade se apresenta; e cabe ao pesquisador, apenas, explicitá-la.

Quando eu me vi perdida entre esses dois métodos, meu orientador, mais uma vez, acalmou-me. Citando o seu Professor Castro Faria, ele me disse que eu deveria, simplesmente, “ouvir os dados do campo, porque eles têm vida; eles falam”. Entendi e internalizei o significado disso. A dificuldade perdurou porque eu não estava, efetivamente, socializada com essa forma de pesquisar, entretanto, compreender essa idéia foi o pontapé fundamental para que eu pudesse – finalizado o campo – iniciar a sua descrição de forma sistemática e organizada.

Enfim, reputo importante descrever que viver entre o Direito e a Antropologia - dois campos aparentemente antagônicos, mas, de fato, complementares – aguçou a minha sensibilidade para os problemas teóricos que limitam o sistema jurídico a exercer, na prática, a sua função: dar às pessoas a solução “justa” que elas buscam para os seus problemas.

O ensino jurídico é “manualesco” e eu necessitava da vitalidade do mundo das práticas. Sem dúvida, foi essa a mais fundamental contribuição que me foi dada pela Antropologia: a possibilidade de trabalhar, academicamente, questões que estão fervilhando nos Tribunais, porém o próprio campo obscurece.

Fernanda Duarte (2007), mais uma vez, colabora, ajudando a compreender o Direito e sua dificuldade de lidar com essas questões:

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Se olharmos o que os livros falam do Poder Judiciário, de sua essencialidade para a manutenção da democracia e proteção dos direitos fundamentais (Sampaio, 2002), e se olharmos para a própria compreensão que a corporação judicial tem de si não se enxergará nenhuma intencionalidade maquiavélica, explicitada como um complô orquestrado pela toga contra o estado democrático de direito. Trata-se, creio eu, de algo mais profundo, mascarado por um processo reprodutor das práticas que vigoram no campo jurídico e que destoam, em muitas das vezes, da herança moderna do mundo ocidental. Ao comporem o habitus do campo, são compartilhadas por todos seus integrantes, não se refletindo só nos juízes. Entretanto, como o exercício da autoridade estatal é feita pelo juiz, sua participação se torna protagonista, a quem se imputam os “resultados” do sistema jurídico. [...] Assim, é preciso investigar para além do que a doutrina jurídica ensina e para além da compreensão do que a própria magistratura diz ter de sua “missão”. È necessário desvendar os mecanismos lógicos que operam essa desigualdade e ao mesmo tempo a tornam invisível.

O que a Antropologia nos fornece, através de sua metodologia, são formas de descobrir o que está encoberto pelo fenômeno da “naturalização”.

Através do campo, pude perceber que o conhecimento produzido a partir da análise dos dados colhidos na pesquisa é legítimo não por advir do poder ou da autoridade de alguém, mas por representar exatamente aquilo que as pessoas envolvidas no sistema pesquisado pensam a respeito de suas categorias e instituições. Desse modo, a mim pareceu que o campo possibilita a percepção de uma realidade “viva”, dinâmica, uma vez que os fatos estão acontecendo enquanto se procede à pesquisa; ao passo que o estudo abstrato do Direito, formalizado pela dogmática, por ser estático e, especialmente, por não ouvir aqueles que estão diretamente envolvidos com o objeto da pesquisa, não corresponde à realidade investigada, daí a sua ilegitimidade.

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5. Conclusão

Reputo oportuno manifestar, neste momento final do trabalho, que a minha preocupação nunca foi solucionar os problemas do Judiciário, nem mesmo criticar as suas posturas. A minha proposta foi a de explicitar, do ponto de vista pragmático, como o Direito se materializa no cotidiano dos Tribunais. Acredito que demonstrando, às claras, exatamente como a Justiça se estrutura, se organiza e administra os seus conflitos, estarei possibilitando, ainda que de forma indireta, o aperfeiçoamento do sistema vigente. Abrir os olhos e estranhar o que aparentemente parece natural é sempre uma forma mais fácil de recriação e aprimoramento.

A pesquisa não foi realizada com o intuito de criticar ou elogiar; de acusar ou omitir; de investigar ou silenciar. Na verdade, a minha idéia foi, simplesmente, descrever a realidade do Judiciário, tendo em conta os pontos de vista de todos os envolvidos nessa estrutura: os que julgam e os que são julgados.

Acredito que as considerações manifestadas neste trabalho seriam melhor visualizadas e compreendidas se eu descrevesse alguns dados da pesquisa empírica que efetivamente realizei no âmbito do Judiciário Estadual. No entanto, este espaço objetivava, apenas, apontar linhas gerias sobre a relevância do diálogo entre o Direito e a Antropologia20.

Espero ter atingido a finalidade deste trabalho, permitindo a reflexão sobre os temas levantados. A minha proposição foi estudar o Direito sob um novo olhar, de modo a entender as lógicas que regem a sua concretização. A minha busca foi por conhecer como o Direito se materializa e entender o porquê das práticas se apresentarem como se apresentam, independentemente do que proclamam os manuais.

A imensa carga de trabalho que assola o Judiciário automatiza os operadores do campo, impedindo-os de pensar sobre suas próprias atividades e, no caso específico dos magistrados, sobre o resultado da jurisdição que prestam.

A pesquisa de campo procede, justamente, à observação de fatos e fenômenos tal como ocorrem no mundo real, bem como à coleta de dados referentes aos mesmos e, finalmente, à análise e interpretação desses dados, 20 Para que se tenha mais clareza sobre os resultados obtidos a partir do diálogo entre o Direito e a Antropologia, remeto-lhes à leitura da minha dissertação de Mestrado: “O Princípio da Oralidade às avessas: um estudo empírico sobre a construção da verdade no processo civil brasileiro”.

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com base numa fundamentação teórica consistente, objetivando compreender e explicar o problema pesquisado.

Nesse âmbito, explicitar os rituais judiciários tem de ser o foco prioritário da pesquisa - mesmo que tal metodologia seja incomum no campo jurídico – porque somente descrevendo e desnaturalizando (ou desconstruindo) as supostas “certezas” do Direito, será possível repensar a estrutura processual vigente e entender os seus mecanismos, de forma a, talvez, possibilitar que se dê início ao seu aprimoramento. Sem entender isso, não haverá como sequer tentar efetivar transformações eficazes.

Percebo que, normalmente, os trabalhos jurídicos – inclusive os acadêmicos - priorizam explanar os motivos pelos quais a idealização dogmática do Direito não se materializa. Esta, efetivamente, não foi a minha idéia. Na pesquisa realizada, eu pretendi desnudar (ou enxergar além) determinadas categorias fixas e imutáveis do Direito, utilizando-me, através do método etnográfico, de mecanismos de neutralidade e distanciamento que propiciaram uma pesquisa atrelada à realidade.

A Antropologia permitiu que eu ultrapassasse as fechadas visões do campo do Direito e vislumbrasse o mundo empírico dos Tribunais.

Kant de Lima (1983) aborda a necessidade de se “rasgar os véus” do Judiciário e tornar explícitas as suas práticas para que governem essas atividades, regras que sejam definidas e acessíveis a todos; o que hoje ainda não ocorre.

Faço questão de terminar este trabalho reportando-me ao texto que, na verdade, representa o marco da minha interlocução com a Antropologia. Precisamente, foi após ler e entender o significado do trecho a seguir transcrito, extraído do artigo de Kant de Lima, “Por uma Antropologia do Direito no Brasil”, que eu entendi e me motivei a pesquisar e desenvolver uma forma de investigação que me possibilitasse traçar um vínculo entre essas duas áreas, o Direito e a Antropologia:

É preciso ouvir os silêncios desse saber-poder, o que nele está implícito naqueles procedimentos sempre tão ritualizados, abertos e formais, de quem nada teme porque nada deve, expressão máxima de seu arbítrio definitivamente impune e irresponsável [...] Na área do Direito, como apontei, o percurso é tanto mais árduo porque implica na transformação das próprias bases onde se ancora um saber-poder que se difunde

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muito além do jurídico na nossa socialização. Não há glória ou fama nessa luta, nem objetivo a ser alcançado, porfia-se porquanto é bom porfiar [...]. (grifou-se)

6. Bibliografia

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MOVIMENTOS SOCIAIS, A CONSTRUÇÃO DE SUJEITOS DE DIREITOS E A BUSCA POR DEMOCRATIZAÇÃO DO ESTADO

Ana Paula Mendes de Miranda

1. Os movimentos sociais, conflitos e cidadania

Uma sociedade pode ser vista sob dois aspectos aparentemente opostos - os fatores de manutenção da ordem social, relacionados às tradições, e suas forças de transformação, relacionadas à mudança social. Georges Balandier (1976) afirmava que existem setores da sociedade que em matéria de mudança, intensidade e rapidez podem ser dividos em lentos (religião; arranjos culturais, que definem a nação ou uma etnia, dando-lhe o modo de ser e a sua personalidade) e os que são rápidos (o saber científico e a tecnologia, a economia, as técnicas de governo, de administração dos homens e das coisas). Esta idéia pode parecer contraditória, já que no Brasil, tudo que se refere à governos e adminstrações parecem não mudar. No entanto, é preciso lembrar a tradição não é incompatível com a mudança, do mesmo modo que a mudança não o é com uma continuidade.

O presente artigo pretende levantar algumas questões sobre o que significa a organização da sociedade em movimentos sociais na perspectiva da busca por direitos e sua relação com a democratização estatal. Tal abordagem é necessária, porque embora se fale muito a respeito da democratização, muitas vezes é deixado de lado a discussão sobre como os indivíduos se organizam e se mobilizam na busca por direitos.

Em primeiro lugar, é preciso esclarecer que os movimentos sociais são ações sociais de caráter sócio-político e cultural, que revelam formas distintas dos indivíduos e grupos se organizar e expressar suas demandas. Na prática, observam-se diferentes estratégias que variam da denúncia, passando pela pressão direta (assembléias, concentrações, passeatas, etc.) até às pressões indiretas (lobby, promoção de ações judiciais). Na atualidade, os principais movimentos sociais atuam por meio de redes1 sociais, que podem 1 Redes são estruturas da sociedade contemporânea globalizada e informatizada. Referem-se a um tipo de relação social, que são movidos por objetivos estratégicos e produzem articulações com resultados relevantes para os movimentos sociais (Gohn,

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ser locais, regionais, nacionais e internacionais, sendo comum a utilização dos meios de comunicação.

Os movimentos sociais estabelecem processos sociais que criam identidades, transformando-se em fontes de criatividade e inovações socioculturais, conformando o que Alain Touraine chamava de o pulsar da sociedade. Assim, indivíduos que antes estavam dispersos e desorganizados ao se integrarem a grupos para manifestar seus pleitos, passam a compartilhar o sentimento de pertencimento social. Todavia, há que se salientar que alguns movimentos sociais se organizam em torno de idéias conservadoras, baseados em xenofobias, que não buscam mudanças sociais emancipatórias.

As análises sobre a mudança social desenvolvidas por alguns pensadores do séc. XIX, tais como Comte, Spencer e Marx2, estavam marcadas por uma visão linear e teleológica. A tradição marxista considerava que os movimentos sociais eram meras expressões de condições estruturais de classe e suas contradições, que seriam suprimidas com o fim da sociedade capitalista. Porém, deve-se salientar que as teorias marxistas não buscavam apenas a explicação dos fenômenos, mas também serviam para orientar a ação dos próprios movimentos sociais. Desta forma, é um erro considerar que o paradigma marxista seja um mero sinônimo de análise do movimento operário, já que a classe operária representava a subjetividade coletiva, com autoconsciência, que seria capaz de se opor ao Estado liberal, mesmo que isso significasse a homogeneização dos sujeitos individuais.

Diferencia-se dessa interpretação, Georg Simmel (1983), que deu um sentido sociológico ao conflito, identificando sua função social. Deste modo, o conflito é pensado como um processo fundamental para a mudança de uma forma de organização à outra, como necessário à vida do grupo, pois age como um elemento que possibilita sua coesão, já que suscita a busca pelo consenso. Para Simmel, o conflito não era patológico ou nocivo à vida

2003).

2 Para Marx, os movimentos sociais, expressos na luta dos trabalhadores e demais oprimidos pela lógica do capital, entram

freqüentemente em conflito com a sociedade dominante constituindo novas relações sociais e econômicas. A análise dos movimentos

sociais, sob o prisma do marxismo, refere-se a processos de lutas sociais voltadas para a transformação das condições existentes na

realidade social, de carências econômicas e/ou opressão sociopolítica e cultural. Esta abordagem não diz respeito ao estudo das

revoluções em si, também tratado por Marx e alguns marxistas, mas do processo de luta histórica das classes e camadas sociais em situação

de subordinação. Já as revoluções são pontos deste processo, que correspondem a ruptura da “ordem” dominante, quebra da hegemonia do poder das elites e confrontação das forças sociopolíticas em luta, ofensivas ou defensivas. Ver O 18 Brumário e o Manifesto do Partido Comunista.

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social. Suas idéias tiveram grande influência na constituição dos estudos da Escola Sociológica de Chicago3, cuja ênfase nos temas da mudança social, do desenvolvimento da comunidade e pelos processos de participação e educação “para o povo”, foram de grande importância para análises posteriores sobre os movimentos sociais.

Uma das mais importantes contribuições de Simmel foi a idéia de que a identidade dos indivíduos é constituída por uma multiplicidade de vínculos sociais, podendo se constituir até mesmo pela resistência aos mesmos. Nesse sentido, Simmel defende que a liberdade não é algo absoluto, mas uma “permuta de contingências” (Souza e Öelze, 2005:11), uma fórmula para lidar com constrangimentos e obrigações, de modo que a idéia de liberdade está associada a uma forma de dependência dos indivíduos em relação aos outros4.

As análises desenvolvidas sobre as rupturas e revoltas dos séculos XVIII e XIX apresentaram diversas interpretações para como se constituiu a cidadania no Ocidente. De um lado, Marx considerava que a cidadania era uma forma de alienação burguesa, ao centrar-se nas suas formas legais e políticas de participação, o que ocultaria verdadeiras formas de exclusão. Por outro lado, Tocqueville considerava que o surgimento do cidadão era uma conseqüência da “compulsão” pela igualdade manifesta pela sociedade, como um fenômeno universal, duradouro e não controlável pelo poder humano. Já Weber concebia o desenvolvimento da cidadania como um resultado de processos históricos que afirmaram a autonomia das cidades medievais e a modificação dos meios de fazer a guerra.

Uma nova era para o conceito de cidadania e conquista de direitos foi demonstrado por Thomas H. Marshall (1967). Sua análise foi diretamente influenciada pela realidade do pós-guerra na Inglaterra, e revelava a crença no modelo do Estado de Bem-Estar social. Sua abordagem rompeu com a noção clássica de cidadania política, que dava destaque ao voto como elemento fundamental da participação dos indivíduos nos processos de poder.

Para Marshall, a cidadania está vinculada ao estabelecimento de direitos, em especial, aos direitos civis, que representavam a sua base formal. Os direitos civis correspondem aos direitos fundamentais à vida, à liberdade, 3 Baseou-se em estudos comparativos das instituições e estudos psicossociais, voltados para análises das atitudes humanas (Valladadres & Kant de Lima, 2000).4 Esta representação não pode ser associada ao modo pelo qual se entende a noção de liberdade como ausência de limites, comum na sociedade brasileira.

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à propriedade, à igualdade perante a lei. Seus desdobramentos se manifestam nas garantias de ir e vir, de manifestar o pensamento, de se organizar, da inviolabilidade do lar e das correspondências, de não ser preso a não ser pela autoridade competente e de acordo com as leis, e de não ser condenado sem processo legal regular. A sua essência é a liberdade individual.

Os direitos políticos se referem à participação do indivíduo no governo da sociedade. Seu exercício é limitado a partes da população que são capazes de fazer demonstrações políticas, de organizar partidos, de votar e ser votado.

Segundo este modelo é possível haver direitos civis sem direitos políticos, mas os direitos políticos para ter sentido necessitam dos direitos civis, ou seja, para que o voto não seja mera formalidade, é necessária a liberdade de opinião e organização. O seu fundamento é a idéia de auto-governo.

Assim, os direitos civis garantem a vida em sociedade, os direitos políticos asseguram a participação no governo da sociedade, restando aos direitos sociais a função de garantir a participação na riqueza coletiva. A garantia dos direitos à educação, saúde, aposentadoria, trabalho e remuneração justa depende da existência de uma eficiente máquina administrativa. Quando isso não ocorre, pode até haver alguns direitos sociais, mas não se pode alcançar o objetivo da redução de desigualdades e garantia do bem-estar. A base dos direitos sociais é a idéia de justiça social.

Ao analisar o estabelecimento do estado de bem-estar social, Marshall expressava uma visão evolutiva e cumulativa de que o capitalismo seria transformado pela distribuição de direitos sociais. Porém, reconhece que a existência do estado de bem-estar social daria substância a noção de direitos, garantindo aos indivíduos a condição de ser sujeito de direitos.

Marshall não se preocupou com a questão da consciência dos cidadãos sobre seus direitos, tampouco valorizou a questão da educação popular como um pré-requisito para a expansão dos direitos.

O modelo de análise desenvolvido por Marshall sobre a construção da cidadania na Inglaterra corresponde a um esquema cronológico e a uma seqüência lógica, onde primeiro surgiram os direitos civis (séc. XVII), depois os direitos políticos (séc. XIX), e por fim, os direitos sociais (séc. XX). Porém, esse ideal da cidadania plena não se configurou da mesma forma nas sociedades.

Se Marx via a cidadania como uma forma de alienação burguesa, Marshall considerava o desenvolvimento da cidadania uma seqüência

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evolutiva entre tipos de direitos, que era conseqüência da fragmentação institucional característica da modernidade. Assim, Marshall preocupou-se em analisar as instituições que garantiriam o acesso à cidadania, dividindo-as em três dimensões: as instituições civis, representadas pelo tribunal; as instituições políticas, representadas pelo parlamento e pelos partidos políticos; e as instituições sociais, que deveriam garantir a universalidade ao cidadão como sujeito de direitos.

Mais recentemente, uma discussão crítica sobre a noção de cidadania realizada por Evelina Dagnino (2004) ressaltou a relação do conceito com uma concepção de justiça redistributiva5, e o fato de que a cidadania traz implícita a idéia de um processo civilizatório. Para superar este problema, a autora defende a necessidade de que sejam qualificadas contextualmente o que significa as noções de direitos, a relação público/privado, a representação e de sociedade civil. Assim, a contextualização da cidadania enfatiza sua dimensão histórica e cultural, definida por conflitos reais.

2. Da adesão irracional à transformação das relações de poder

Até o início do século XX, o conceito de movimentos sociais contemplava apenas a organização e a ação dos trabalhadores em sindicatos. Ao longo do século XX diversas teorias foram desenvolvidas, das quais salientamos as abordagens da sociologia americana e a teoria dos novos movimentos sociais.

A abordagem da sociologia norte-americana sobre os movimentos sociais está diretamente associada ao próprio desenvolvimento inicial da sociologia naquele país, com recortes distintos, mas tendo como eixo articulador a teoria da ação social e a busca da compreensão do comportamento coletivo.

Os autores analisavam os movimentos em termos de ciclos evolutivos em que seu surgimento, crescimento e propagação ocorriam por intermédio de um processo de comunicação que abrangia contatos, rumores, reações circulares, difusão das idéias etc. As insatisfações que geravam as reivindicações eram vistas como respostas às rápidas mudanças sociais 5 Juhn Rawls (1981) iniciou um debate contemporâneo sobre filosofia política ao propor sua teoria de justiça, que delineou um arcabouço teórico ao Estado de Bem-estar Social, reintroduzindo a discussão sobre eqüidade e justiça social, debatendo em que medida o estado deve interferir na sociedade ára corrigir desigualdades sociais consideradas injustas.

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e à desorganização social subseqüente. A adesão aos movimentos seriam respostas cegas e irracionais de indivíduos desorientados pelo processo de mudança que a sociedade industrial gerava. Nessas abordagens dava-se, portanto, grande importância à reação psicológica pelos indivíduos diante das mudanças, reação considerada como comportamento não-racional ou irracional.

Assim, os comportamentos coletivos eram considerados pela abordagem tradicional norte-americana como fruto de tensões sociais. A idéia da anomia social estava sempre muito presente, assim como explicações centradas nas reações psicológicas às frustrações e aos medos, e nos mecanismos de quebra da ordem social vigente. Estes elementos, aliados às ideologias homogeneizadoras, eram precondições importantes para a emergência dos movimentos sociais.

A progressiva delimitação dos movimentos sociais como campo de estudo pela Sociologia contemporânea (Lallement, 2004; Lechte, 2003), principalmente a partir da década de 60, contribuiu para aprimorar os conceitos analíticos que, embora ainda permanecessem imprecisos, assumiram uma consistência teórica que se pode delimitar em diferentes abordagens, das quais se destacam:

1) A Teoria da Mobilização de Recursos que rejeitou o paradigma tradicional centrado nas condições de privação material e cultural dos indivíduos como a motivação para participação em movimentos sociais, propondo que as ações coletivas deveriam ser entendidas mediante explicações comportamentalistas organizacionais. Esta visão predominou nos Estados Unidos, na década de 60, e definia os movimentos sociais como grupos de interesses. O seu enfoque exclusivamente econômico provou diversas críticas à abordagem voluntarista e individualista.

2) A Teoria da Mobilização Política que se constituiu nos Estados Unidos, nos anos 70, em oposição à Teoria da Mobilização de Recursos, e procurou destacar o desenvolvimento do processo político, da cultura e a interpretação das ações coletivas foi enfocada como processo. Esta abordagem reintroduziu a psicologia social como instrumento de compreensão dos comportamentos coletivos, seu enfoque se aproximou das teorias européias denominadas Novos Movimentos Sociais.

A importância de seu estudo nos dias atuais tem dois motivos: como memória histórica das primeiras teorias dos movimentos

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sociais e ações coletivas; e como busca das referências e matrizes teóricas de vários conceitos que foram retomados nos anos 90 pelo próprio paradigma norte-americano.

Na Europa, depois de 1960, a abordagem marxista, que priorizava a análise pela categoria de luta de classes, passou a ser criticada pelos acionalistas, representados principalmente por pensadores como Alain Touraine6, e pelos neomarxistas, tendo como um dos principais representantes, Manuel Castells.

A corrente dos Novos Movimentos Sociais se destacou principalmente com a obra de Alain Touraine (1973), para quem os movimentos sociais seriam o próprio objeto da Sociologia. O sociólogo francês foi profundamente afetado pelos eventos de maio de 1968, e considerava que a ação política estudantil não era apenas reativa, mas possuía uma postura transformadora. A partir das análises sobre o movimento estudantil e de trabalhadores, Touraine desenvolve a idéia de que a ação contra o sistema social é o conceito-chave dos movimentos sociais, visando demonstrar que tal ênfase não leva ao voluntarismo ou ao individualismo. Sua visão foi considerada uma critica à teoria de Parsons sobre o sistema social que, embora explicasse a ação social como uma construção intencional, via as mudanças provocadas pela ação social como disfuncionais. Do mesmo modo, buscou diferenciar-se de uma visão do determinismo econômico marxista.

Nos anos 70, Touraine ainda considerava que a sociologia era o estudo da sociedade, mas diferentemente de Durkheim, acreditava que a sociedade seria um sistema capaz de se transformar. Posteriormente, questionou essa idéia e defendeu que a sociologia deveria tornar-se o estudo da mudança, levando em consideração o fato de que uma ação só assume seu verdadeiro significado em relação à estrutura.

Touraine analisou as mudanças sociais a partir da caracterização de três formas de conflito social:

•um comportamento coletivo defensivo e reativo, em que uma reforma específica pode ser exigida, por exemplo, quando uma ação coletiva é voltada para exigir que diferenças salariais entre pessoas com qualificações iguais sejam abolidas;

6 Ver também Gadea & Scherer-Warren (2005).

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•as lutas sociais cujo objetivo é modificar decisões, nesse caso, os trabalhadores estariam buscando um papel maior na tomada de decisões;

•os movimentos sociais que constituem uma força ativa, voltados para a transformação das relações sociais de poder, seja na fábrica, seja na sociedade.

Para ele, a sociedade não poderia ser reduzida a um sistema de regras e seu funcionamento, sendo necessário, portanto, compreender como os atores são influenciados por intenções, orientações culturais e relações sociais. Nesse sentido, Touraine buscou compreender como os movimentos sociais se constituem em lutas pelo controle da “historicidade”, ou seja, a luta contra as estruturas e as formas culturais da vida social, visando à transformação do sistema de ação.

Um exemplo seria o movimento feminista que não reage apenas às diferenças existentes, mas busca uma mudança de normas e valores da vida cultural e social, e cuja luta transcende a política partidária.

Touraine acreditava também que a emergência dos movimentos sociais coincidia com a transformação de sociedades hierárquicas e altamente estratificadas, o que não significa que o princípio da igualdade tenha se implantado totalmente, mas que a industrialização e o crescimento da classe média no Ocidente estariam alterando a estrutura social.

As análises desenvolvidas por diversos pensadores que são incluídos no grupo dos Novos Movimentos Sociais possuem em comum a crítica à abordagem clássica marxista e um intenso debate com as teorias norte-americanas contemporâneas da ação coletiva. Apesar disso, há uma grande divergência entre os trabalhos. Merece destaque o fato de que essas abordagens (re) valorizaram temas geralmente minimizados pelas esquerdas tradicionais, como os movimentos por direitos civis, significando uma reconfiguração da idéia de democracia como um espaço de criação para novos direitos.

Enquanto Touraine realiza uma análise macrossocietal, a abordagem do italiano Alberto Melucci (apud Gohn, 2004)

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se volta à análise de estruturas micro, tendo um enfoque mais psicossocial, combinando a análise da subjetividade à análise das condições político-ideológicas. O ponto de partida de sua obra é a teoria da ação coletiva, entendida como a união de vários tipos de conflitos baseados no comportamento dos atores num sistema social.

Melucci considera que o movimento social é uma construção analítica e não um objeto empírico ou um fenômeno observável, e que a mera existência de um conflito não é suficiente para qualificar uma ação como movimento social. Para o autor, o conflito não é algo imanente à natureza humana, só podendo ser considerado em face das relações sociais. Destaca ainda o caráter relacional, ou seja, de criação de identidade coletiva dos atores em relação ao movimento.

Um outro enfoque dado aos movimentos sociais tem sido chamado de neomarxista ou pós-marxista, que se caracteriza por uma releitura do marxismo ortodoxo, feita por historiadores, tais como Eric Hobsbawn, Edward P. Thompson e George Rudé, que enfatizam a necessidade de compreensão da vida social e cultural, em detrimento do eixo econômico. Para Hobsbawn, o que produziria a consciência dos trabalhadores seria o estilo de vida no meio urbano. Sua contribuição à análise dos movimentos sociais está na distinção entre os que possuem uma dimensão reformista, cujo foco é o aperfeiçoamento da estrutura social, e os revolucionários, cujo foco está na transformação da estrutura.

Uma outra abordagem neomarxista segue a teoria crítica iniciada pela Escola de Frankfurt. Claus Offe (apud Gohn, 2004) priorizava a análise das articulações entre o campo político e o sociocultural, ou seja, o autor busca combinar as perspectivas macro e micro na análise dos movimentos sociais. Contesta a tese da irracionalidade dos movimentos sociais, sustentando que os mesmos são um modo de atuar politicamente racional em resposta a um conjunto específico de problemas. Os movimentos sociais seriam a base de constituição de uma nova ordem, cujos atores intervêm na esfera pública e na esfera privada, mas ressalta a dificuldade de continuidade dos movimentos.

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As diferentes abordagens conceituais trouxeram críticas aos modelos vigentes de regulação social, voltando o foco à identificação de outras formas de opressão que não estavam restritas as relações de produção capitalista, destacando os temas relacionados ao reconhecimento de direitos, tais como, o meio ambiente, o combate às discriminações de gênero e de raça. Outro paradigma que foi estabelecido, contemporaneamente, diz respeito ao enfoque dado à qualidade de vida. Nesse sentido, as reivindicações dos movimentos sociais não podem visar somente as necessidades básicas, mas a transformação social emancipatória, que permita alterar as relações de poder desigual em relações de autoridade partilhada.

Nesta ótica, os direitos não correspondem às garantias inscritas nas leis e nas instituições, e sim ao modo pelo quais as relações sociais se estruturam7. O abandono da perspectiva formal do direito não representa a negação de seu papel de garantidor da cidadania e da democracia. O que se pretende é reforçar o papel dos movimentos sociais na construção de espaços de ampliação e democratização estatal.

3. A construção de sujeitos de direitos e a busca por democratização do Estado

O associativismo predominante dos anos 90 não deriva de mobilização de massas, tradicionalmente composta a partir de núcleos de militantes que se dedicam a uma causa, mas sim de processos de mobilizações pontuais, realizados a partir do atendimento a um apelo feito por alguma entidade, fundamentada em objetivos humanitários.

O novo associativismo, também chamado de participação cidadã, é mais propositivo e menos reivindicativo, sendo baseado numa concepção ampla de cidadania, que não se restringe ao direito ao voto, mas constrói o direito da vida do ser humano como um todo. Baseia-se numa concepção de cultura cidadã, fundada em valores éticos universais e

7 No caso brasileiro, as relações sociais expressam uma grande confusão entre direitos e privilégios. Ver Kant de Lima (2004)..

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impessoais e também, numa concepção democrática radical que visa fortalecer a sociedade civil para a construção de uma realidade social sem exclusões de qualquer natureza. Envolve também direitos e deveres do cidadão (diferentemente da concepção neoliberal de cidadania que exclui os direitos), onde os deveres se articulam à idéia de civilidade.

Nos anos 90, observou-se também a construção de novos conceitos, tais como, cidadania planetária, sustentabilidade democrática, etc., que preconizavam o respeito às diferenças culturais e foram gerados dentro de outros movimentos sociais, como a “Ética na Política”8.

O desenvolvimento que o conceito movimentos sociais teve nos últimos anos não produziu um consenso sobre seu significado entre os pesquisadores, o que sinaliza para a necessidade de uma maior discussão acerca da validade conceitual do termo, mesmo porque ele vem sendo utilizado indiscriminadamente para classificar qualquer tipo de associação civil.

Para Maria da Glória Gohn (2004), é necessário discutir o itinerário histórico-conceitual dos diferentes paradigmas, que devido a suas peculiaridades influenciam as análises sobre os movimentos sociais. A autora analisa as características dos movimentos sociais latino-americanos9 e destaca que, embora tenha havido uma mobilização massiva, há pouca produção acadêmica sobre o tema. Salienta que este cenário tem se alterado no Brasil, no México, na Argentina e no Chile, que têm desenvolvido um número crescente de

8 A Ética na Política foi um importante movimento ocorrido nos anos 90, no Brasil, e que chegou a depor um Presidente da República por suspeita de envolvimento em atos de corrupção.9 No Brasil, o final da década de 70 e parte dos anos 80 foram marcados por movimentos sociais contra o regime militar, dos quais destaco os comitês de anistia, as entidades de familiares dos desaparecidos na ditadura, as Comissões de Justiça e Paz, a Ordem dos Advogados do Brasil e a Associação Brasileira de Imprensa. A partir de 1990, começaram a surgir outras formas de organização popular mais institucionalizadas, como Fóruns de luta pela moradia, pela reforma urbana. Outros movimentos que surgiram foram os de mulheres, homossexuais, afro-brasileiros, jovens, indígenas, funcionários públicos e ecologistas.

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pesquisas sobre o comportamento destes movimentos10.Para a autora, o debate foi marcado nas décadas de 60

e 70 por estudos que compreendiam a América Latina como uma realidade dual, dividida em uma face moderna e outra atrasada, cuja ótica era o estudo das elites e dos processos de desenvolvimento. Por outro lado, havia uma visão anti-estado nos movimentos sociais, devido às lutas contra o regime militar.

É na década de 80, que começa a se intensificar a produção acadêmica sobre os movimentos sociais no Brasil, que coincide com o que Ruth Cardoso (2004) chama de período da institucionalização dos movimentos. O contexto político da “redemocratização” possibilitou o estabelecimento de novas formas de relação entre os movimentos, as agências públicas e os partidos políticos.

Um outro fator importante para a compreensão dos movimentos sociais no Brasil estava relacionado com a influência da Teologia da Libertação, que mobilizou e engajou camadas pobres da população na luta por justiça social.

Há que se considerar que os movimentos sociais podem trabalhar para a construção de uma agenda emancipatória e transformadora, que estimule o desenvolvimento de práticas democráticas, que possibilitam a construção de uma nova noção de cidadania, ou seja, cidadania como estratégia política.

É com esta perspectiva que José Murilo de Carvalho (2003) analisa o Movimento dos Sem-Terra (MST) como um avanço que resultou da redemocratização do país, pois representou a incorporação à vida política de uma parcela da população tradicionalmente excluída pela força do latifúndio. Embora reconheça que os métodos utilizados, invasão de terras públicas ou não cultivadas, podem tangenciar a ilegalidade, José Murilo de Carvalho acha que os mesmos devem ser considerados legítimos em função da lentidão histórica dos governos em resolver o problema agrário no país. O pensador aponta ainda o surgimento de organizações não-governamentais como um processo de democratização das relações entre sociedade e Estado, porque provocaram a ampliação da participação social no diagnóstico, encaminhamento e solução de problemas sociais. Neste processo é possível 10 Ver também Alvarez et al (2000).

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se observar o desenvolvimento de estratégias de “empoderamento” que levam os atores da sociedade civil organizada a se perceberem como sujeitos sociais, ou seja, é na busca por mecanismos que possibilitem que a cidadania se enraíze nas práticas sociais.

Portanto, é pela mobilização da sociedade civil organizada que se poderá pensar numa conquista de direitos, e não de privilégios, o que representará a ressignificação das relações público-privado, que levarão à superação do padrão oligárquico, autoritário e patrimonialista, que têm marcado a cultura brasileira. A existência dos movimentos sociais não conservadores pode favorecer a emergência de uma idéia de cidadania como um direito a ter direitos, que se conquista de baixo para cima e transforma as relações sociais, estabelecendo um padrão de sociabilidade que rompe com o autoritarismo.

O desafio não é pequeno, tendo em vista que no caso brasileiro há diversos obstáculos a serem superados, dos quais destaco:

• a superaração da perspectiva de que direitos sejam apenas garantias inscritas na lei e nas instituições;

• a reestruturação do Estado brasileiro, com a transformação de sua tradição de patrimonialismo e clientelismo;

• a revisão do papel do cidadão, que cada vez mais se torna um mero consumidor, afastado de preocupações políticas e dos problemas coletivos;

• a inadequação dos órgãos encarregados da segurança pública e da justiça para o cumprimento de sua função;

• o fim da divisão em classes no que se refere a garantia dos direitos civis: os de primeira classe (doutores); os de segunda classe (os cidadãos simples) – que estão sujeitos aos rigores e aos benefícios da lei; e os de terceira classe (os “elementos”), ou ignoram seus direitos ou os têm sistematicamente desrespeitados por outros cidadãos, pelos governos e pela polícia.

Há que se considerar que se não há a garantia da igualdade jurídica dos cidadãos (Kant de Lima et al, 2005), não há como se pensar em direitos civis no Brasil, e enquanto vigorar a idéia de que há uns que são mais iguais que outros, não será possível se pensar na construção democrática de uma ordem pública no Brasil, que seja fundada na representação plural dos interesses.

Um outro processo pode ser relacionado a diversas experiências de aprofundamento e inovação democrática, de

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ampliação do campo da política e construção da cidadania que vem se desenvolvendo mais recentemente. Para Olvera (2006), este campo de experiências tem possibilitado a renovação do debate sobre a democracia, que se divide em dois discursos parecidos do ponto de vista teórico, mas que são distintos no campo da prática.

O primeiro seria os projetos democráticos participativos, que funcionam como forma de assegurar a governabilidade.

O segundo se refere ao projeto neoliberal de privatização de amplas áreas, tradicionalmente vinculadas a políticas públicas, que vem acompanhado por um discurso participacionista e de revalorização simbólica da sociedade civil, entendida como o terceiro setor11. Muitas vezes incorporam o discurso técnico-gerencial e suas estratégias de despolitização. Uma visão homogênea e amorfa do terceiro setor contribui para difundir a idéia dicotômica de que este se constitui num pólo de virtude, em oposição ao Estado, como um inimigo a ser enfrentado.

Evelina Dagnino (2002) tem demonstrado em suas pesquisas que a sociedade civil está formada por uma diversidade de atores, o que inclui os conservadores, com formatos distintos (sindicatos, associações, redes, etc.), e uma pluralidade de práticas e projetos políticos, com várias formas de relação com o Estado.

Nesse sentido, é preciso pensar as demandas por direitos num cenário complexo, como a América Latina e o Brasil, onde as diferentes tradições políticas têm gerado modos peculiares de combinar elementos participativos e autoritários. Assim, é possível compreender como as políticas populistas foram capazes de impulsionar grandes mobilizações populares, abrir espaço para as classes trabalhadoras e implantar alguns direitos sociais, ao mesmo tempo em que proporcionava a subordinação da classe trabalhadora, de modo clientelista, às elites políticas.

Olvera destaca também o modo pelo qual uma parte da esquerda, com múltiplas correntes e expressões, contribuiu para criar uma cultura política autoritária, em função da idéia leninista da centralidade dos partidos como instâncias dirigentes das organizações sociais, bem como a transformação de algumas pautas reivindicatórias em assuntos sem importância, em especial, a demanda por direitos civis de grupos minoritários.

11 Para uma discussão sobre o papel do terceiro setor, ver Santos (2006).

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Fenômeno inverso é observado na Igreja Católica, que teve grande influência entre os movimentos sociais com a Teologia da Libertação, em especial no Brasil, Peru, El Salvador, Guatemala e Nicarágua, fundando as bases de um projeto democrático de mobilização, principalmente, em áreas rurais. Atualmente, observa-se a emergência de correntes fundamentalistas e conservadoras.

Trata-se, então, de pensar que o fenômeno associativo é multidimensional, o que obriga a privilegiar sua dimensão microssocial para observar como são construídas as formas de intervenção capazes de desenvolver dimensões cívicas e democráticas, colocando em cheque posturas clientelistas ou corporativas.O desafio que se coloca para os movimentos sociais no séc. XXI

(Gohn, 2003; Leher & Setúbal, 2005; Santos, 2006) é o de ampliar as redes que possibilitarão uma nova estratégia de articulação dos atores, visando a luta pela defesa das culturas locais em oposição às conseqüências da globalização, a luta pela ética na política, a valorização da esfera pública como o espaço da institucionalidade das ações coletivas. No Brasil, observa-se a organização dos movimentos sociais, no início do século XXI, em torno dos seguintes eixos principais:

• Lutas e conquistas por condições de habitabilidade na cidade;

• Mobilização e organização popular em torno de estruturas institucionais de participação na estrutura político-administrativa da cidade;

• Mobilização de movimentos de recuperação de estruturas ambientais e físico-espaciais;

• Movimentos contra o desemprego;• Movimentos de solidariedade e apoio a programas

com meninos de rua, portadores de HIV e deficiências físicas;• MST e suas vias de articulações com as cidades;• Movimentos étnico-raciais;• Movimentos de mulheres e homossexuais;• Movimentos rurais péla terra, reforma agrária;• Contra políticas neoliberais e os efeitos da

globalização.O movimento antiglobalização nega a forma como a ordem

capitalista instituída vigente se reproduz e não a ordem em si. É

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movido pela busca de soluções alternativas aos problemas sociais e à própria preservação da vida no planeta. Suas ações são motivadas pela solidariedade e não pelo ódio.

Um dos principais pontos do movimento antiglobalização é a crítica que ele faz à cultura do lucro, considera-se que esse tipo de cultura deve ser substituído pela cultura do ser humano pleno, com direito à vida e uma sociedade ética com respeito aos direitos humanos fundamentais.

Diferentemente das lutas sociais da década de 80, o movimento antiglobalização une as causas daquelas lutas às causas objetivas dadas pela estrutura econômica e imposições do mercado numa economia globalizada. Com isso, os conflitos ganham caráter universal e o movimento social retoma as antigas polaridades: dominantes X dominados, ricos X pobres e etc.

Os movimentos antiglobalização trouxeram uma série de novidades que contribuíram muito para os movimentos sociais do novo milênio. Suas ações deveriam servir como exemplo aos movimentos que anseiam por uma sociedade sem desigualdades com justiça social.

O ideal básico parece ser a criação de um sujeito social, que redefine o espaço da cidadania, portador de um sentimento de uma tripla exclusão relativa - econômica, política e cultural -, mais do que o desejo de participar das decisões. As reivindicações, portanto, são assumidas como direito, tomados como auto-evidentes. Derivam daí formas de desobediência civil para enfrentar decisões autoritárias do Estado, na tentativa de deslegitimá-lo.

No plano estatal, observa-se um processo de ampliação e tentativa de democratização da gestão por meio de instâncias, tais como fóruns, conselhos, câmaras setoriais, voltados para a inclusão da participação popular, visando uma maior transparência e publicidade de políticas públicas.

Boaventura de Sousa Santos (2006) chama de “Estado-novíssimo-movimento-social”, a concepção de reforma do Estado que propõe uma articulação privilegiada entre os princípios de Estado e da comunidade, voltadas para atender a quatro bens públicos (a legitimidade, o bem-estar social e econômico, a segurança, a identidade social)12 visando a democratização interna dos agentes

12 Boaventura S. Santos ressalta que o Relatório sobre o Desenvolvimento

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estatais e não estatais. Seu objetivo é lançar os fundamentos de uma nova cultura política, que permita pensar e desejar a transformação social e emancipatória, ou seja, o conjunto de processos econômicos, sociais, políticos e culturais para transformar as relações de poder desigual em relações de autoridade partilhada. Deste modo, a luta pelo princípio da igualdade seja conduzida de par com a luta pelo reconhecimento do princípio da diferença, transformando as práticas institucionais.

Em termos da tradição política brasileira, os conselhos de políticas públicas são arranjos institucionais inéditos, uma conquista da sociedade civil para imprimir níveis crescentes de democratização às políticas públicas e ao Estado, que em nosso país têm forte trajetória de centralização e concentração de poder. Os conselhos, nos moldes definidos pela Constituição Federal de 1988, são espaços públicos com força legal para atuar nas políticas públicas, na definição de suas prioridades, de seus conteúdos e recursos orçamentários, de segmentos sociais a serem atendidos e na avaliação dos resultados13.

A composição plural e heterogênea, com representação da sociedade civil e do governo em diferentes formatos, caracteriza os conselhos como instâncias de negociação de conflitos entre diferentes grupos e interesses, portanto, como campo de disputas políticas, de conceitos e processos, de significados e resultantes políticos. Os conselhos são canais importantes de participação coletiva, que possibilitam a criação de uma nova cultura política e novas relações políticas entre governos e cidadãos.

Muitos desses desafios atuais estão relacionados ao contexto adverso em que diversos conselhos foram implantados no Brasil - de esvaziamento das responsabilidades públicas do Estado, de desqualificação das instâncias de representação coletivas, de fragmentação do espaço público e de despolitização da política -

de 1997 do Banco Mundial marcou uma mudança de paradigma do que se considera a reforma do Estado, rompendo a visão de que o potencial de fracasso e de dano do Estado só pode ser reduzido com a diminuição do tamanho e do âmbito do Estado, reconhecendo ainda que o capitalismo global não pode dispensar a existência de um Estado Forte.13 Cabe ressaltar que a existência de Conselhos Comunitários de Segurança nos estados e do Conselho Nacional de Justiça ainda não foi analisado de forma a compreender suas dinâmicas de funcionamento.

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processos que fragilizam a capacidade de a sociedade civil exercer pressão direta sobre os rumos da ação estatal. Outras dificuldades decorrem da própria lógica de estruturação das políticas públicas na sociedade e da natureza da intervenção estatal nesse campo.

Desse modo, a transformação dos movimentos sociais por meio de novas práticas políticas, engendradas por outras transformações de ordem econômica, política e social, coloca uma questão: diante desses processos recentes, a ação coletiva não se organiza em torno de dois pólos identificados e visíveis, mas difusos, fragmentados, cuja diversidade não é apreensível em apenas um conceito como o de movimentos sociais.

A complexidade e diversidade destas instituições levantam a necessidade de compreensão de como, na prática, estes espaços se constituem em lócus de debates que permitem um efetivo exercício de cidadania e a construção de sujeitos de direitos.

4. Referências Bibliográficas

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O SENTIMENTO (AÍSTHESIS) DE IGUALDADE E A IGUALAÇÃO CONCEITUAL

Leonardo Mees

Quando o todo houver sido afinal dividido igualmente, então as partes litigantes dirão que têm aquilo que lhes pertence – isto é, quando elas houverem obtido o que é igual (tò íson). Aristóteles

1. Introdução

O art. 5°, caput, de nossa Constituição Federal de 1988 enuncia a igualdade de todos perante a lei, “sem distinção de qualquer natureza”. Ressoa aqui o acorde fundamental de introdução no capítulo dos “direitos e deveres individuais e coletivos” e, como tal, evoca a tônica de resolução harmônica dos diversos encadeamentos e até das possíveis dissonâncias que compõe a fuga legal deste capítulo inaugural e indispensável em uma carta magna de declaração de direitos. No entanto, a tradição do regime liberal, rica na consagração de privilégios e distinções, não tem dado tanta atenção à igualdade. “Por isto, – diz José Afonso da Silva – é que a burguesia, cônscia de seu privilégio de classe, jamais postulou um regime de igualdade tanto quanto reivindicara o de liberdade”. 1 Além da “igualdade” ser entoada aqui em sentido jurídico-formal, como consideração abstrata sobre o plano isonômico da lei, há ainda uma vibração programática de “igualação material” dos desiguais, por atribuição de direitos sociais indispensáveis. A distinção entre “isonomia material e formal” tornou-se a ferramenta usual de superação do plano da interpretação meramente literal do caput do art. 5º. Ao passo que o propósito de aproximação das divergências entre estes dois tipos de isonomia tem sido a orientação prática dos tribunais nos casos concretos de discriminação e de desigualação injusta dos iguais perante a lei2.1 SILVA, José Afonso da. Curso de Direito Constitucional positivo. São Paulo: Malheiros Editores, 2002, p. 210. 2 Cf. O “princípio da isonomia” foi inclusive recentemente o “fundamento”

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Apesar de sabermos que a igualdade proposta pela Constituição “se configura como uma eficácia transcendente”3, abone as desigualdades incompatíveis com sua proposta programática, também sabemos que não é legítima a afirmação de que, desde a entrada em vigor desta garantia constitucional de igualdade, as formas injustas de desigualação perante a lei e o direito tenham sido abolidas, sem se falar ainda das radicais desigualdades econômico-sociais. Todas desigualdades na aplicação do Direito revoltam! Por vezes, infelizmente até alguns membros do Judiciário são coniventes com a existência destas desigualdades, ao concederem liminares a empresários caçadores de níqueis e a prenderem pobres mendicantes da “moedinha do tio”.

Mas aqui não vamos tratar das muitas razões históricas e sociológicas que corroboram com a manutenção deste estado de desigualdades materiais em nosso país. Também não vamos comentar os diversos dispositivos legais, quiçá bem escritos e altissonantes, que deveriam por si mesmos ser suficiente para “transformar a sociedade”. Não vamos convocar os “companheiros” a uma luta juridicamente municiada contra as desigualdades e os privilégios processuais dos mais ricos nem vamos propor “reformas” nos diversos sistemas jurídicos existentes. Não! Mudemos de direção! Nossa proposta é mais modesta, limitada, finita: acessível a qualquer um que queira, segundo Kant, “sair de sua menoridade”, que queira “servir-se de si mesmo” e pensar (sapere aude!)4. Pensar com auto-nomia significa assumir seu próprio não-saber, investigar com sua própria ignorância (docta ignorantia), deixando se conduzir pelos vestígios de uma questão relevante para si mesmo... Esta mudança de direção do pensamento “transcende o plano meramente normativo, para questionar o critério de justiça adotado nas normas jurídicas”5. Mas, ao assumir seu próprio não-saber acerca do fundamento do direito e da justiça, a Filosofia do Direito não se delimita

alegado pelo pedido do Habeas Corpus, feito ao Ministro Gilmar Mendes, do Supremo Tribunal Federal, pelos presos na “Operação Navalha” da Polícia Federal, contra o pedido de prisão preventiva, expedido pela Ministra Eliana Calmon, do Superior Tribunal de Justiça. Vide Méd. Caut. em Habeas Corpus 91.524-8 Bahia. 3 Vide MORAES, Alexandre de. Direito Constitucional. São Paulo: Atlas S.A., 2003, p. 66.4 Cf. KANT, Immanuel. Resposta à pergunta: Que é “Esclarecimento” (Aufklärung). In: Textos Seletos, Petrópolis: Vozes: 2005, p. 63.5 NADER, Paulo. Introdução ao estudo do Direito. Rio de Janeiro: Forense, 2001, p. 11.

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apenas com a questão pelo “quid jus”, uma vez que a investigação supera a objetividade da res de cada quid e se lança no empenho de assinalar o quis do projeto genético de todo mundo de sujeitos e objetos 6. Isto porque o pensamento é sempre pobre em reificação, não consegue dizer que o querer (quaere) da sua questão (quaestio) seja uma “coisa” (res) ao lado de outras tantas coisas, já dadas e conhecidas. Pensar na Filosofia do Direito significa perceber-se implicado no próprio questionamento, acompanhar e investigar o querer da própria questão, de modo a deixar renascer e a recriar o próprio conceito pesquisado. Por isto, todo pensamento jusfilosófico é genético, i.é, compartilha da constituição dos conceitos de direito e justiça.

Vamos então tentar pensar a constituição genética da “igualdade” na convivência humana. Por que? Porque normalmente entendemos a igualdade apenas segundo duas orientações: a igualdade formal e a igualdade material. Ou as coisas são “realmente” iguais materialmente, i.é, têm idênticas constituições físicas e atômicas... Ou as coisas são pretensamente “representadas” como iguais segundo uma forma, i.é, segundo uma categoria ou classificação abstrata. Mas, as ciências físicas modernas destroem o nosso conceito de igualdade material, nos ensinam o que já diz uma canção: “tudo na vida passa... nada é igual a nada não” (The Fevers – Elas por elas). Na natureza não há igualdade e os fenômenos físicos precisam ser subsumidos como iguais para serem estudados e controlados7. Só resta então acreditar que a “igualdade” decorre de um processo de representação da realidade, diga-se: de um processo essencialmente humano, pois, somente sob a ótica finita da perspectiva humana as coisas podem ser consideradas como “materialmente iguais”.

Então nos perguntamos: como podemos “assegurar” que um juiz possa julgar com “igualdade” aquilo que cientificamente é desigual? E, em termos de “segurança jurídica”, como garantir que a sentença do juiz

6 M. Garcia Morente nos ensina que o questionamento radical não consegue definir com propriedade o ser em questão, apenas assinala o “quem” de sua autenticidade. “Esta variação de ‘quem’ em vez de ‘que’ nos faz ver que esta segunda pergunta tende não a definar, mas a assinalar o ser para podê-lo intuir diretamente e sem definição nenhuma”. MORENTE, M. Garcia. Fundamentos de Filosofia. São Paulo: Mestre Jou, 1967, p. 59.7 Cf. HEISENBERG, Werner. Más allá de la física. Madrid: Biblioteca de Autores Cristianos, 1974, p. 134: “Pero como prácticamente no se da jamás en los fenómenos la igualdad completa, establecemos la igualdad específica a través del proceso de abstracción”...

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tomou partido, em seu processo de julgamento, no princípio da isonomia? Naturalmente que aqui não estamos falando apenas das garantias objetivas e legais de igualdade, que podem ser argüidas, em tempo oportuno dentro do processo e por meio de recursos, pelas partes lesadas, pois “formalmente”: perante a lei todos somos iguais. Em questão está o tratamento igualitário que depende subjetivamente do próprio juiz, ou seja, queremos pensar sobre o “sentido e a sensibilidade” que fundamenta o juízo isonômico. O princípio da “igualdade” no Direito é um mandamento de neutralidade subjetiva? Será que o juiz somente é “justo” quando se mantém insensível, distante, alheio, burocrata, no sentido pejorativo? Será que a sensibilidade do juiz só passa a ser influenciada pelo processo quando para ele é “um peso e um enfado ter de julgar” coisas tão vis e desprezíveis?! O magistrado aposentado e doutor em Direito, João Batista Herkenhoff, tem uma outra visão da sensibilidade do juiz:

Vejo o juiz como um poeta, alguém que morre de dores que não são suas, alguém que vive o drama dos processos, alguém capaz de descer às pessoas que julga, alguém que capta os sentimentos as aspirações da comunidade, alguém que incorpora na sua alma e na sua vida a fome de justiça do povo a que serve. 8

A analogia estabelecida por Herkenhoff entre o juiz e o poeta não nos parece despropositada, pois destaca aquilo sobre o que pretendemos tratar aqui: “a constituição humana do sentimento de da igualdade”. Compreendemos existencialmente o que seja “igualdade”, quando a vivenciamos numa experiência de comunidade, mas ao tentar conceituá-la acabamos abandonando o solo deste fenômeno. E assim, nos ocorre o mesmo que a Santo Agostinho, com o seu conceito de tempo: “se ninguém me perguntar, eu sei; se quiser explicar a quem me fizer a pergunta, já não sei”9.

A “igualdade” depende exclusivamente dos sentidos humanos, trata-se de uma consideração tipicamente baseada na sensibilidade humana. Assim, 8 HERHENHOFF, João Batista. A formação dos operadores jurídicos no Brasil. In: ARRUDA SAMPAIO, Plínio et alii (org.). Ética, Justiça e Direito. Reflexões sobre a reforma do judiciário. Petrópolis: Vozes, 1997, p. 178. 9 SANTO AGOSTINHO. Confissões. Petrópolis: Vozes, 1988, p. 278.

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para nos lembrarmos da força de significação que tem a “igualdade” dentro da convivência humana e sobre a qual se erige o princípio de isonomia jurídica, percorreremos duas etapas reflexivas: 1. Nietzsche lançará por terra nossa ingênua crença na “realidade” da palavra igualdade, seremos reconduzidos ao inter-esse fundante da igualação comunitária: a relação afetiva do homem com o mundo; 2. Com Aristóteles veremos que nossa sensibilidade sustenta nossa comunicação e que sente o mundo de forma diferente dos demais animais. A linguagem simboliza o sentimento comum de justiça, na origem de toda igualação feita pela linguagem habita um sentimento de justiça.

Seguindo este percurso pretendemos chegar à simples conclusão: a igualdade não consiste num mandamento heteronômico, imposto pela lei sobre nossa subjetividade, mas no “sentimento (aísthesis) fundamental de nossa humanização”. No entanto, este sentimento de igualdade requer sempre uma experiência individual, uma participação concreta na comunidade. Nosso objetivo será somente enfocar a relevância da retomada do sentimento originário de criação das igualdades na convivência social, ou seja, somente a experiência e o sentimento concreto de gênese de uma estrutura social pode reconhecer e justificar a igualdade. Sabe o “que” ou “quem” é a igualdade aquele sente e experimenta numa comunidade o que significa ser homem!10

1. A igualação dos conceitos

Quando Nietzsche vira a terra batida dos conceitos filosóficos, com o seu arado crítico (Pflugschar), ele procura “iluminar a história da gênese desse mundo de representação”11. Mas, um dos grandes defeitos dos filósofos e dos eruditos em geral, segundo Nietzsche, consiste em não compreender que o mundo, tal como vemos e representamos com nossos conceitos, não existe

10 A questão da “igualdade” é multifacetada. Aqui somente abordamos o sentido filosófico da igualdade instauradora da comunidade humana, vale dizer, a igualdade genética do ser humano. Ficam como dica de leitura das várias outras faces do problema os livros de DWORKIN, Ronald. A virtude soberana: a teoria e a prática da igualdade. São Paulo: Martins Fontes, 2005 e BOBBIO, N. , MATTEUCCI, n. E PASQUINO G. (orgs.). Dicionário de política. Vol. I, Brasília: Ed. UNB, 1998, p. 597-605. 11 NIETZSCHE, F. Humano, Demasiado Humano. Trad. Paulo César de Souza, São Paulo: Companhia das Letras, 2004, p. 27 (§ 16): “O que agora chamamos de mundo é o resultado de muitos erros e fantasias que surgiram gradualmente na evolução total dos seres orgânicos...”

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independente de nossa relação com ele. O mundo não caiu do céu, como uma estrela cadente. Foram as crenças, estruturadas pela relação afetiva do homem com seu entorno, que interpretaram e constituíram as “verdades” dos conceitos. Nenhuma crença em verdades lógicas se estabeleceu fora de um processo relacional do homem com o seu mundo em constituição: “Mas tudo veio a ser, não existem fatos eternos: assim como não existem verdades absolutas”12. Escrever a “história da gênese deste mundo” não significa procurar atrás dos fenômenos a “coisa em si” ou a verdade das aparências. A descrição genética do conhecimento lógico e dos conceitos não pode servir-se de conceitos já constituídos. Precisa “conceituar” novamente, ou seja, interpretar e apropriar-se da própria gênese da conceituação sensível.

Entre as gêneses descritas no terceiro livro de “A gaia ciência”, encontramos um ensaio de Nietzsche sobre a “origem do lógico” (§ 111). Nietzsche propõe remeter a origem dos conceitos lógicos a um processo de reconhecimento da “igualdade, no tocante à alimentação ou aos animais”. Trata-se de um processo de determinação das “probabilidades de sobrevivência”. Numa determinada situação limite o homem se vê às voltas com as desigualdades do desconhecido e com as semelhanças do já conhecido.

Quem, por exemplo, não soubesse distinguir com bastante freqüência o “igual”, no tocante à alimentação ou aos animais que lhe eram hostis, isto é, quem subsumisse muito lentamente, fosse demasiado cauteloso na subsunção, tinha menos probabilidade de sobrevivência do que aquele que logo descobrisse igualdade em tudo o que era semelhante. Mas a tendência predominante de tratar o que é semelhante como igual – uma tendência ilógica, pois nada é realmente igual – foi o que criou todo fundamento para a lógica. 13

Nesta situação, quem não reconhece o semelhante como igual sucumbe, quem demora a reagir diante dos perigos fracassa... A igualdade é um instrumento prático que amplia as probabilidades de sobrevivência. Para 12 Idem, p. 16. 13 NIETZSCHE, F. A gaia Ciência. Trad. Paulo César de Souza, São Paulo: Companhia das Letras, 2004, p. 139.

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Nietzsche o caráter fundamental do mundo não é a igualdade, o ser, mas as divergências e as contradições: o devir. No processo de sensibilização do prazer e da dor surge a igualação daquilo que originariamente não é igual. As afeições travam contato com a realidade do mundo e são mais originárias que as igualações das representações. “Todo pensar, julgar, perceber, enquanto comparação, tem como pressuposto o ato de ‘pôr-em-igualdade’ (Gleich-setzen), e antes ainda o ato de ‘fazer-igual’”14. A afetividade configura as crenças do conhecimento e põe-se a par das contradições reais do devir, mediando uma igualação conceitual das contradições aparentes15. A contradição aparente consiste tipicamente em uma contradição lógica, baseada no princípio de não-contradição, concebido por Parmênides e desenvolvido por Aristóteles 16. As contradições lógicas não são reais, i.é, não carregam em si o caráter de contradição da realidade, estão baseadas na gramática, em palavras, em conceitos. O arrazoado lógico somente se faz possível quando já se apresentou um nome, uma palavra, quando já se deu uma direção de posicionamento (Hinstellung) ao processo, quando já se vislumbrou “linhas no horizonte”17.

A igualação é necessária, sob determinadas perspectivas, para a “conservação da vida”, a “vontade de poder” da vida ordena e manda que se siga o semelhante e evite o desigual, para efetivação de determinadas configurações de poder. A crítica de Nietzsche não se dirige exclusivamente ao processo humano de conceituação da realidade não-igual, ele sabe que esta igualação é um recurso necessário da vida. Nietzsche critica, em verdade, o absolutismo e o esquecimento desta “falsificação originária”. Quando a

14 NIETZSCHE, F. Kritische Studienausgabe. Berlim/Nova York: De Gruyter, 1999, vol 12, p. 209.15 O estudioso da obra de Nietzsche, Wolfgang Müller-Lauter, criou a distinção entre contradições reais e aparentes na filosofia de Nietzsche. As contradições lógicas não são reais, i. é, não carregam em si o caráter de contradição da realidade, porque estão baseadas na gramática, em palavras, em conceitos e, como conceitos, “tornam igual o não-igual”. Cf. MÜLLER-LAUTER, Wolfgang. Nietzsche: his philosophy of contradictions and the contradictions of his philosophy. Urbana/Chicago: University of Illinois Press, 1999, p. 23-40.16 “É impossível que a mesma coisa, ao mesmo tempo, pertença e não pertença a uma mesma coisa, segundo o mesmo aspecto”. ARISTOTELES. Metafísica. Trad. Giovanni Reale. São Paulo: Loyola, 2002, p. 145, (1005 b 19-21).17 NIETZSCHE, F. Kritische Studienausgabe. Opus cit., vol 12, p. 185.

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contradição aparente predomina sobre a real contradição, as palavras (“as linhas do horizonte”) passam a ser tomadas como pontos firmes e imóveis. Por isto, para compreendermos o conceito de igualdade na convivência humana precisamos suspender a eficácia da lógica, precisamos aprender a não tomar as palavras e os conceitos como “sinônimos” de realidade. A experiência afetiva (impulsos, paixões e afetos) é muito mais originária do que as palavras e os conceitos. Não recuperamos o sentido do conceito de igualdade, p. ex., nos reportando a outros e outros conceitos, fugindo da relação direta com o devir da realidade. Na experiência singular da sensibilidade ganhamos, segundo Nietzsche, um acesso imediato ao “sentido” da realidade enunciada. Feitas estas ressalvas, surge a questão: será que a igualação é apenas um recurso de sobrevivência do homem, mas se for isto, que tipo de humanidade queremos que sobreviva? A função exclusiva e única da igualação nominal consiste em ser “sinal” dos perigos do devir? Qual a diferença da comunicação humana para os gritos de alerta dos demais animais?

2. A comunicação do sentimento de justiça

Nietzsche nos desafia a abandonarmos o flatus vocis do círculo vicioso das palavras e conceitos, nos lança de volta à experiência concreta do mundo cheio de paixões e desejos: “quem não acredita em si mesmo mente sempre”. Ter vergonha de comprometer-se e engajar-se na corporalidade de uma situação concreta significa caluniar a origem de toda igualdade e todo conhecimento18. O juiz que se acomoda a ler papéis, sem ouvir e dialogar com as partes, não acredita em si mesmo, tem medo de seus próprios sentimentos: desumaniza-se, torna-se uma máquina de sentenças... Neste sentido, Nietzsche foi um crítico ferrenho da erudição estéril e do funcionalismo burocrata na Alemanha do séc. XIX. Para “voltarmos ao fenômeno mesmo” da igualdade precisamos aprender a escutar a linguagem primordial da sensibilidade humana.

Aristóteles, no livro “Da Interpretação” (Perí hermenéias), nos diz que: “Os sons emitidos pela fala são símbolos das paixões da alma, [ao passo] que os caracteres

18 Cf. neste sentido os textos “Do imaculado conhecimento” e “Do pálido criminoso” em: NIETZSCHE, F. Assim falou Zaratustra. Trad. Mário da Silva, Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 1989, p. 134 e 54.

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escritos [formando palavras] são os símbolos dos sons emitidos pela fala.”19

Nossa fala (lógos) simboliza (semaínein) as paixões da alma (pathémata thês psikhés) 20. Estas paixões são nossa forma original de sentir o mundo. Quando falamos revelamos quais são os nossos sentimentos em relação a alguém ou a alguma coisa, ainda mesmo quando tentamos esconder ou disfarçar. A linguagem é a forma tipicamente humana de mostrar e revelar o mundo. A simbologia da fala contém a totalidade das nossas relações com o mundo. Diferente dos gritos e gemidos dos demais animais, a nossa fala não se restringe a simbolizar recursos de sobrevivência biológica e “animal”. A fala humana, segundo Aristóteles, não se prende exclusivamente a simbolizar os perigos ou as vantagens para a “conservação da espécie”. Ou melhor, a fala humana já está sempre marcada pela definição do que seja conveniente ao homem. Ao falarmos estamos nos dizendo o que convém e o que não convém ao “homem”, i.é, estamos preservando o que entendemos como verdadeira espécie humana.

“A característica específica do homem em comparação com os outros animais é que somente ele tem o sentimento do bem e do mal, do justo e do injusto e de outras qualidades morais, e é a comunidade de seres com tal sentimento que constitui a família e a cidade.”21

O “pano que rende manga” em nossas conversas é sempre o “sentimento de justiça”, ou seja, falemos bem ou falemos mal disto ou daquilo, deste ou daquele outro, estamos sempre às voltas com nosso “sentimento de justiça”. Nosso sentimento (aísthesis) de justiça vem à tona e se revela à medida que falamos. O que constitui uma comunidade, segundo Aristóteles, é o “sentimento de justiça”, ele sempre “vai junto” (sym-ballei) de nossa linguagem. Mas, o que é esta “justiça” para Aristóteles?

19 ARISTÓTELES. Da Interpretação. Trad. Edson Bini, Bauru: EDIPRO, 2005, p. 81.20 Novas reflexões sobre a doutrina da “sensibilidade” e da “estética” em Aristóteles têm destacado recentemente alguns aspectos diferentes. Cf. WELSCH, Wolfgang. Aisthesis: Grundzüge und Perspektiven des Aristotelischen Sinneslehre. Stuttgart: Klett-Cotta, 1987.21 ARISTOTELES. A Política. Trad. Mario Gama Kury, Brasilia: UNB, 1997, p. 15.

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No livro V da “Ética a Nicômacos”, encontra-se o famoso tratado de Aristóteles sobre a justiça, onde ele apresenta a distinções de justiça (distributiva e comutativa), com a função corretiva desempenhada pela equidade (epieikéia). No entanto, poucos leitores desta obra se dão conta que estas distinções de justiça decorrem da exposição sobre o significado de justo (díkaios) como “igual” (ísos). Pois estas distinções não se referem ao significado de justo legal, aquele que segue a lei, mas àquele que é ísos em seus atos. “O justo, então é aquilo que é conforme a lei e correto (ísos), e o injusto (adikós) é o ilegal e iníquo”22. O significado de justiça conforme a lei (vómimon) é fácil de entender e óbvio, segundo Aristóteles, “basta obedecer e praticar os atos prescritos pela lei”. O interessante é perceber que o problema da justiça encontra-se justamente na determinação do ísos, do igual. O que nos leva a crer que a compreensão da “isonomia” é decisiva para a compreensão das espécies da justiça aristotélica. Mas, isto já seria tema para outra reflexão.

Retomando nossa reflexão, podemos dizer, com base nestas considerações, que o sentimento de justiça, que se anuncia e denuncia na linguagem, corresponde no grego de Aristóteles, ao “sentimento de isonomia”. Sentir a justiça então significa sentir a igualdade constitutiva do homem. Ocorre que este sentimento não é passível de novas “simbologias” de falas e palavras...– precisa ser experimentado diretamente na relação e na convivência humana. Lembrando uma outra consideração de Nietzsche: “Não basta empregar as mesmas palavras para se fazer entender: a mesma palavra empregada deve também estar referida ao mesmo gênero de vivências íntimas, deve-se, enfim, ter uma experiência em comum com o outro.”23

O que constitui a humanidade do homem não é originariamente a sua capacidade de raciocínio lógico e conceitual, esta decorre a posteriori de suas afeições e sentimentos em relação ao mundo, aos outros e a si mesmo. Do sentimento de isonomia decorrem todos os discursos que promovem o bem e o mal em comunidade. Somente porque experimentamos sensivelmente o outro como alguém “igual” a nós mesmos que somos capazes de viver em comunidade, fundar cidades, civilização e cultura. A experiência de 22 ARISTOTELES. Ética a Nicômacos. Trad. Mario Gama Kury, Brasilia: UNB, 1985, p. 92. Aristóteles usa a palavra “ísos” (igual) para determinar o segundo sentido de justo. Em grego: Tó mèn díkaion ára tò vómimon kaì tò íson, tò d’ ádikon to parávomon kaì tò ávison. 23 NIETZSCHE, F. Além do Bem e do Mal. Trad. Heloisa da g. Burati, São Paulo: Rideel, 2005, p. 228, (§ 268).

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humanidade está diretamente relacionada com a nossa capacidade de sentir igualdades...

João Batista Herkenhoff estava correto (ísos) quando viu uma semelhança entre o juiz e o poeta, porque o princípio da isonomia aproxima os dois. A isonomia convoca o juiz a sentir e experimentar, para além das palavras e dos conceitos jurídicos, a igualdade que funda a justiça na comunidade humana. Tal como o poeta, que está antenado com sua delicada sensibilidade, para revelar nas palavras os sentimentos da alma humana, o juiz está antenado para, partindo das palavras, acolher e retornar ao sentimento de igualdade que constitui a con-vivência humana. Encontrando a igualdade para as partes no caso concreto, o juiz não só encontra também a justiça, mas a própria humanidade de seus iguais. Somente assim uma “sentença” ganha e faz “sentido”.

O juiz então restabelece a igualdade (epanísoi)... Quando o todo houver sido afinal dividido igualmente, então as partes litigantes dirão que têm aquilo que lhes pertence – isto é, quando elas houverem obtido o que é igual (tò íson). 24

4. Referências Bibliográficas

ARISTÓTELES. Da Interpretação. Trad. Edson Bini, Bauru: EDIPRO, 2005. _________. A Política. Trad. Mario Gama Kury, Brasilia: UNB, 1997._________. Ética a Nicômacos. Trad. Mario Gama Kury, Brasilia: UNB, 1985. HERHENHOFF, João Batista. A formação dos operadores jurídicos no Brasil. In: ARRUDA SAMPAIO, Plínio (et alii orgs.). Ética, Justiça e Direito. Reflexões sobre a reforma do judiciário. Petrópolis: Vozes, 1997.MORAES, Alexandre de. Direito Constitucional. São Paulo: Atlas S.A., 2003. NADER, Paulo. Introdução ao estudo do Direito. Rio de Janeiro: Forense, 2001.

24 ARISTOTELES. Ética a Nicômacos. Trad. Mario Gama Kury, Brasilia: UNB, 1985, p. 98.

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NIETZSCHE, F. Humano, Demasiado Humano. Trad. Paulo César de Souza, São Paulo: Companhia das Letras, 2004. _________. A gaia Ciência. Trad. Paulo César de Souza, São Paulo: Companhia das Letras, 2004._________. Kritische Studienausgabe. Berlim/Nova York: De Gruyter, 1999. _________. Além do Bem e do Mal. Trad. Heloisa da g. Burati, São Paulo: Rideel, 2005.SANTO AGOSTINHO. Confissões. Petrópolis: Vozes, 1988.SILVA, José Afonso da. Curso de Direito Constitucional positivo. São Paulo: Malheiros Editores, 2002.

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O CONTROLE DO PODER E A IDÉIA DE CONSTITUIÇÃO1*

Pedro de Oliveira Coutinho

3. Introdução

Os revolucionários franceses fizeram constar de sua Declaração Universal dos Direitos do Homem e do Cidadão que uma sociedade onde não haja a separação de poderes e não se estabeleçam garantias dos direitos não tem Constituição.2 Essa visão histórica, que veio a ensejar o dogma da separação dos poderes, representava uma tomada de posição firme contra o absolutismo, por meio de uma atitude “iluminista anti-historicista” que procurava romper com a tradição.3 Foi preciso ter sob a ótica uma determinada concepção de constituição, que se pode dizer substancial.

A idéia que se defende nesse texto tem uma origem diversa dessa herança voluntarista, aproximando-se das idéias inerentes à tradição do constitucionalismo inglês e norte-americano. Sem pretender estabelecer um novo dogma, nos inspiramos nessa máxima revolucionária para estabelecer que no constitucionalismo contemporâneo a idéia de uma Constituição só tem sentido quando ela estabelece um sistema de controle do poder.

Para apresentar as bases de tal pensamento, é preciso antes fixar premissas que possam delimitar o objeto da assertiva, e assim evitar eventuais incongruências e contestações. Tais premissas referem-se ao estabelecimento do tipo de constituição de que se está a tratar, qual o poder que se pretende controlar, e, finalmente, o que vem a significar o controle desse poder. Só 1 * Trabalho apresentado no curso de Mestrado em Direito Público da Universidade do Estado do Rio de Janeiro na disciplina Teoria da Constituição, ministrada pelo professor Paulo Braga Galvão.2 Art.16. “Toda sociedade na qual não não esteja assegurada a garantia dos direitos nem determinada a separação dos poderes não tem constituição” Apud in CAETANO, Marcelo. Direito Constitucional, vol. I. Rio de Janeiro: Forense. 1977, p.238. 3 PALOMBELLA, Gianluigi. Filosofia do Direito. São Paulo: Martins Fontes. 2005, p. 38.

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então será possível atentar para as formas com que se estabelece esse controle na Constituição, em especial na Constituição Brasileira.

2. Definindo algumas premissas

2.1 A constituição como Lei Fundamental do Estado Contemporâneo

Para estabelecer nosso conceito de Constituição é preciso afastar o termo dos vários sentidos possíveis do vocábulo, situando-o no campo do Direito4. Ainda assim, existe uma genérica compreensão jurídica do fenômeno Constituição que é empregada quando se afirma que todo Estado possui Constituição, entendido o Estado como a sociedade politicamente organizada. Assim é que o professor Charles Howard McIlwain trata do constitucionalismo antigo e moderno, examinando experiências da Antigüidade.5 Essas concepções enxergam a constituição como o “conjunto institucional do Estado, a sua forma, o seu governo, em suma, todo o complexo normativo e costumeiro referente ao poder político organizado de uma determinada nação.”6 McIlwain assim se refere à expressão grega politeia:

Significa sobre todo el estado como es en la realidad. Es un término que comprende todas las innumerables características que determinam la naturaleza peculiar de un estado, incluyendo el conjunto de su estructura económica y social, así como lo referente a las cuestiones de su gobierno,

4 Cf. SILVA, José Afonso da. 23ª ed. Curso de Direito Constitucional. São Paulo, Malheiros, 2004, p.37, onde constam outros sentidos da palavra constituição, como compleição do corpo humano ou o conjunto de elementos essenciais de alguma coisa; V. também MCILWAIN, Charles Howard, Constitucionalismo Antiguo y Moderno, Madrid: Centro de Estúdios Constitucionales, 1991, p.41.5 Op. cit. Existe, contudo, uma visão do constitucionalismo antigo como aquele que teria se formado desde fins da Idade Média até o século XVIII, sem incluir a Antigüidade. Cf. CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Direito Constitucional e T eoria da Constituição. 2 ed. Coimbra: Almedina. 1998. p.46.6 FRANCO, Afonso Arinos de Melo. Direito Constitucional: Teoria da Constituição. As Constituições do Brasil. Rio de Janeiro: Forense. 1976. p. 113.

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en el sentido moderno más estricto en que hoy las entendemos. Se trata de un término puramente descriptivo, comprensivo en su significado de las mismas cosas que incluímos en la palabra ‘constitución’, cuando hablamos en términos generales de la constitución de un hombre o de la matéria.7

Essa é a noção de constituição no sentido material, assim definida pelo professor J. H. Meirelles Teixeira:

Em sentido material, vimos que o Estado se manifesta como unidade de poder, e que este deve ser exercido por alguém, segundo certas regras ou métodos, com determinados limites, tendo em vista fins preestabelecidos. Donde todo Estado existir de um certo modo, assumir uma certa fisionomia, uma certa forma, características próprias, e a esse modo de ser de cada Estado denominamos ‘Constituição’. Nesse sentido, todo Estado terá sua Constituição.8

7 Op. cit. p.45-46. Em tradução livre: “Significa sobretudo o estado como é na realidade. É um termo que compreende todas as inumeráveis características que determinam a natureza peculiar de um estado, incluindo o conjunto de sua estrutura econômica e social, assim como o referente às questões de seu governo, no sentido moderno mais restrito em que hoje as entendemos. Se trata de um termo puramente descritivo, compreensivo em seu significado das mesmas coisas que incluímos na palavra ‘constituição’, quando falamos em termos gerais da constituição de um homem ou da matéria”. Uma outra distinção importante pode ser acrescentada: “Portanto, parece justificado afirmar que, no mundo antigo, a Constituição não tem o status formal que passa a ter nos Estados modernos. Isso não é falso na medida em que ela não é a norma superior do direito público do Estado e, como tal, fundadora e produtora de outras normas jurídicas destinadas a regular a vida política, mas o próprio ser da existência e do funcionamento da Cidade-Estado: sua substancialidade própria.” GOYARD-FABRE, Simone. O que é Democracia. Trad. Claudia Berliner. São Paulo: Martins Fontes. 2003. p. 45.8 TEIXEIRA, J. H. Meirelles. Curso de Direito Constitucional. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1991, p. 42. No mesmo sentido: BONAVIDES, Paulo. Curso de Direito Constitucional. 9 ed. São Paulo: Malheiros, 2000. p. 63. Corresponde, assim, à constituição real e efetiva de que trata Ferdinand Lassale ao tratar da existência dos fatores reais do poder, cf. in A Essência da Constituição. 3 ed. (sem indicação de tradutor) Rio de Janeiro: Líber Juris, 1995. p.47. Com idêntico sentido, mas denominando esse conceito como formal e

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Definitivamente, não é dessa Constituição que nós estamos tratando quando investigamos a sentença posta no início desse trabalho. Interessa-nos o estudo da Constituição já sob o influxo do fenômeno do constitucionalismo,9 ou constitucionalismo moderno, que caracteriza o movimento surgido no século XVIII e que veio a tornar possível o conjunto de constituições do mundo ocidental contemporâneo. Pois foi justamente por meio dos ideais do liberalismo político, caracterizado pela busca de contenção do poder absoluto do soberano – não o liberalismo econômico10 -, que o fenômeno constitucional ganhou expressão na Europa e nas Américas. A Constituição não será apenas a forma de organização do Estado, mas a sua limitação em favor dos direitos do povo.11

Se é verdade, como afirma Nelson Saldanha, que na Idade Média abstrato: ENTERRÍA, Eduardo García de. La Constitucion como Norma y el Tribunal Constitucional. 3 ed. 3 reimp. Madrid: Civitas. 1994. p.43; já sob a denominação de conceito “empírico-descritivo”: CANOTILHO, J. J. Gomes. Direito Constitucional e Teoria da Constituição. 2 ed. Coimbra: Almedina, 1998. p.1003. Apresentando versões ampla, média e restrita de constituição material, sendo a ampla aquela aqui referida: MIRANDA, Jorge. Teoria do Estado e da Constituição. Rio de Janeiro: Forense, 2002. pp.214. Uma visão bem distinta é apresentada em KELSEN, Hans. Teoria Pura do Direito. 6ª ed. São Paulo: Martins Fontes, 1998. p. 247: “A Constituição é aqui entendida num sentido material, quer dizer: com esta palavra significa-se a norma positiva ou as normas positivas através das quais é regulada a produção das normas jurídicas gerais.”9 TEIXEIRA, J. H. Meirelles. Op. cit. p. 444: “Evidentemente, e como bem acentua Valle Pascual, o que denominamos hoje ‘constitucionalismo’ é uma fase histórico-política, a fase moderna do Direito Constitucional, pois só o Estado moderno, após a Revolução Francesa e norte-americana (já, portanto, em fins do século XVIII), apresenta-se como Estado constitucional. Melhor, portanto, a seu ver, chamá-lo ‘Estado liberal’, ou ‘Estado de direito’, para caracterizá-lo como reação contra o absolutismo.” No mesmo sentido: BINENBOJM, Gustavo. A Nova Jurisdição Constitucional. Rio de Janeiro: Renovar, 2001. p. 15.10 O liberalismo político está preocupado com a garantia dos direitos e liberdades fundamentais, enquanto que o econômico preocupa-se basicamente com a não intervenção do Estado na área econômica. Cf. SOUZA NETO, Cláudio Pereira de. Teoria constitucional e democracia deliberativa: um estudo sobre o papel do direito na garantia das condições para a cooperação na deliberação democrática. Rio de Janeiro: Renovar, p. 21.11 Entendido o termo aqui em um sentido restrito, dado que nesse período havia escravidão, as classes trabalhadoras praticamente não tinham direitos e as mulheres não gozavam de situação de igualdade.

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o poder foi sempre limitado, repartido,12 o fato é que a experiência política da época não conhecia os direitos fundamentais nem havia regras institucionalizadas de divisão de poderes. Foi após o surgimento dos Estados modernos, com unidade política e concentração de poder na figura do soberano,13 que surgiu na Europa um conjunto de idéias pregando a contenção desse poder político, com a elaboração de um documento escrito capaz de submeter não só o povo como também o soberano às leis de uma nação. Ou, nas palavras de Canotilho:

Numa outra acepção –histórico-descritiva – fala-se em constitucionalismo moderno para designar o movimento político, social e cultural que, sobretudo a partir de meados do século XVIII, questiona nos planos político, filosófico e jurídico os esquemas tradicionais de domínio político, sugerindo, ao mesmo tempo, a invenção de uma nova forma de ordenação e fundamentação do poder político.14

O próprio Nelson Saldanha esclarece a distinção entre simples divisão de tarefas públicas e a divisão dos poderes:

Em qualquer Estado, incluindo os despotismos do Oriente antigo, verifica-se a existência de um processo de divisão de atribuições, a partir das do monarca (no caso dos absolutismos régios) com os ‘magistrados’ de determinada espécie, que ditam normas ou dirimem querelas, ou assessoram decisões; mesmo nos casos de extrema concentração ou ‘enfeixamento’ de funções nas mãos do autocrata, tais funções são passíveis de diferenciação, ainda que não se encontrando legalmente distribuídas entre titulares específicos.

12 Formação da Teoria Constitucional. 2 ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2000. p. 17.13 FIGUEIREDO, Fran. Metodologia Constitucional. Brasília: Itamarati, 1987. p.7.14 CANOTILHO, J.J. Gomes. Op.cit.,p. 46.

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No ocidente moderno, o clamor liberal contra o governo onipresente e o clamor democrático contra o absolutismo dominante levaram a exigências muito definidas no sentido de uma reorganização do esquema do poder governamental: seria preciso distribuir, entre titulares distintos, as tarefas governamentais.15

Assim, chegamos ao conceito de constituição no Estado moderno, aquele decorrente do movimento liberal-democrático que procura instituir um governo com base na soberania da nação ou do povo, limitado pelos direitos do homem, com a proteção das liberdades civis e políticas por meio de técnicas instrumentais.16 É a Constituição como uma espécie de “certidão de nascimento do Estado Moderno”,17 capaz de qualificá-lo como Estado Constitucional.

Podemos definir a Constituição assim estabelecida como:

[...]conjunto de normas fundamentais que regulam a atribuição e o exercício do Poder político, definindo a competência dos seus órgãos, as funções específicas destes e os direitos dos indivíduos e das sociedades primárias com força obrigatória para todos os poderes constituídos e vinculativa de seus atos.18

Veremos mais adiante que ainda não se pode satisfazer a indagação do início deste trabalho com a definição acima. Será necessário qualificá-la como Constituição do Estado de Direito Democrático Social para que se

15 O Estado moderno e a separação dos poderes. São Paulo: Saraiva, 1987. p.86.16 TEIXEIRA, J. H. Meirelles. Op. cit. p. 43.17 FIGUEIREDO, Fran. Op. cit. p. 1. No mesmo sentido: “Superando, não sem dificuldades, a equivocidade do termo ‘direito’, a filosofia do direito orientou a reflexão sobre o Poder para uma concepção constitucionalista que realmente construiu o pórtico do estado moderno.” GOYARD-FABRE, Simone. Os Princípios Filosóficos do Direito Político Moderno. Trad. Irene A. Paternot. São Paulo: Martins Fontes, 1999. p.100.18 CAETANO, Marcelo. Op cit. p.397.

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possa admitir que toda constituição tem em seu núcleo, necessariamente, um sistema de controle do poder. Far-se-á uso, então, da constituição em sentido normativo, que deve ter um “conteúdo específico”, formando um corpo de normas jurídicas que vinculam o corpo político, estabelecendo limites ao poder, informadas por “princípios materiais fundamentais”, como o “princípio da separação dos poderes” e o “controle político e/ou jurídico do poder”, entre outros.19

2.2 O conceito de poder

Não são poucos os estudiosos que afirmam que o fenômeno do poder parece ser irredutível, podendo ser analisado pelos mais diversos ângulos das Ciências Sociais e Econômicas. Mas o âmbito deste trabalho não comporta digressões sobre as diferentes visões dessa categoria, limitando-se aqui ao estudo sob a ótica político-jurídica.20

Marcelo Caetano define o poder como sendo “a possibilidade de, eficazmente, impor aos outros o respeito da própria conduta ou de traçar a conduta alheia” 21 deixando evidente a característica dual do poder, ou seja, a presença do elemento subjetivo vontade e do elemento objetivo capacidade.22

19 CANOTILHO, J. J. Gomes, Op. cit. p. 1004.20 Segundo Diogo de Figueiredo de Moreira Neto, podemos definir assim o mesmo fenômeno: “no sentido antropológico: o poder é visto como um diferencial de capacidade entre os seres humanos, que habilita a vontade a produzir efeitos que não ocorreriam espontaneamente. No sentido sociológico, o poder é a energia social que se transfunde na instituição para instituição para articular a vida coletiva. No sentido político, o poder é o elemento essencial da relação comando/obediência, como energia inter-relacional que move os indivíduos e as coletividades para a realização de suas respectivas finalidades: individuais, grupais, nacionais e metanacionais.” V. Poder, Organização Política e Constituição: as relações de poder em evolução e seu controle. In: TÔRRES, Heleno Taveira (coord.), Direito e Poder: Estudos em Homenagem a Nelson Saldanha. São Paulo: Manole, 2005. p.258. Segundo o autor, foi o polonês Ludwig Von Gumplowicz o primeiro a estudar o fenômeno do poder de forma sistemática e distinta no âmbito da teoria política, dando início ao que se denominou de Cratologia. O tema recebe maior desenvolvimento na sua obra Teoria do Poder: sistema de direito político. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1992.21 Op. cit. p. 17.22 MOREIRA NETO, Diogo de Figueiredo. Op. cit. p. 259.

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Há sempre, pois, uma relação polarizada.23 Essa possibilidade se consubstanciaria na imposição a outros da própria vontade, sem resistências, ou na obrigação de condutas alheias.24 Essa também parece ser a definição do professor Carl Joachim Friedrich quando sustenta que “alguém tem poder político sobre outro ou outros desde que eles sejam vistos seguindo suas preferências e fazendo aquilo que lhes é mandado em lugar do que fariam por vontade própria”,25 para, logo a seguir, destacar que o uso habilidoso do poder permite a conversão da coação em consentimento.26

Na medida em que o ser humano vive em sociedade, onde são formados diversos grupos sociais, surge o que se pode denominar de poder social, que é assim definido por Marcelo Caetano:

O exercício do poder social consiste, portanto, em definir normas de conduta dos indivíduos nas suas relações entre si ou com a coletividade e fazer observar essas normas aplicando determinadas sanções previstas para os desobedientes, e em determinar a ação do grupo, nas relações com outras coletividades e com os próprios membros.27

Sendo o Estado o grupo social máximo, a princípio tem ele também o seu poder, que pode ser denominado de político ou estatal, e que representa um poder superior ao dos demais grupos sociais existentes em seu interior, justamente o que vem a caracterizar a soberania.28 Assim, exerce o Estado o poder político “no desempenho de suas funções, e atuando sobre os membros

23 SALDANHA, Nelson. O Estado Moderno e a Separação de Poderes. São Paulo: Saraiva, 1987. p. 81.24 Idem. Ibidem. Bobbio vê o poder como a “capacidade que um sujeito tem de influenciar, condicionar, determinar o comportamento de um outro sujeito” Cf. BOBBIO, Norberto. (org. por Michelangelo Bovero) Teoria Geral da Política. Rio de Janeiro: Campus. 2000, p. 216.25 Uma Introdução à Teoria Política. Trad. Leônidas Xausa e Luiz Corção. Rio de Janeiro: Zahar Editores, 1970. p.131. Contudo, reservaremos o qualificativo político ao poder que é exercido pelo Estado.26 Idem. Ibidem.27 CAETANO, Marcelo. Op. cit. p. 18.28 SILVA, José Afonso da. Op. cit. p.107.

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da população para cumprimento de seus fins”.29

Bobbio vale-se justamente dos meios utilizados para que se obtenham os efeitos desejados como forma de distinguir o poder político como aquele que se vale da força. Diz o pensador italiano: “Uma vez que o poder político se caracteriza pelo uso da força, ele é o sumo poder ou o poder soberano, cuja posse distingue, em toda sociedade organizada, a classe dominante”.30

Mas é a dependência exclusiva da força que torna esse poder político um mero poder de fato, enquanto que o poder legítimo seria aquele que se baseia no reconhecimento daqueles a quem é dirigido.31 Quem nos fornece uma clara diferenciação entre o poder de fato e o poder legítimo é o professor Paulo Bonavides:

Se o poder repousa unicamente na força, e a Sociedade, onde ele se exerce, exterioriza em primeiro lugar o aspecto coercitivo com a nota da dominação material e o emprego freqüente de meios violentos para impor a obediência, esse poder, não importa sua aparente solidez, ou estabilidade, será sempre um poder de fato.Se, todavia, busca o poder sua base de apoio menos na força de que na competência, menos na coerção do que no consentimento dos governados, converter-se-á então num poder de direito.32

Não se pode imaginar um sistema de controle de poderes fora do exercício do poder legítimo, por isso que a Constituição caracteriza o Estado Democrático de Direito. Afinal, o sistema democrático ergue-se em torno de dois princípios básicos: legitimidade dos governantes e a limitação de sua autoridade.33 E ao poder é reconhecida uma característica inevitavelmente dinâmica, que conduz a uma destinação natural de expansão que é preciso conter, sob pena de instauração de um governo autoritário.34

29 DINAMARCO, Cândido Rangel. A Instrumentalidade do Processo. 4 ed., São Paulo: Malheiros, 1994. p.85, nota de rodapé nº 14. 30 Op. cit. p.221.31 CAETANO, Marcelo, Op. cit. p. 1732 Ciência Política. 12 ed., São Paulo: Malheiros. 2006, p.115.33 FRANCO, Afonso Arinos de Melo. Op. cit. p.133.34 MOREIRA NETO, Diogo de Figueiredo. Op, cit., p.261.

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Do contrário, ter-se-ia uma Constituição meramente formal, ou mesmo uma Constituição-mito, que é desligada da realidade social em mutação, passando a ser um símbolo, cuja finalidade é a de frear o progresso humano, impedindo ou retardando a transformação social.35

Vale aditar, ainda, que ao se destacar o controle do poder político não se está a olvidar a existência das demais manifestações do poder no mundo moderno, em especial o poder econômico, que muitas vezes também restringe a liberdade do indivíduo. Há apenas uma limitação do foco do estudo com vistas a demonstrar a evolução do pensamento político como forma de assegurar a liberdade.36

2.3 Sentido de controle do poder

A palavra controle tem origem francesa, “designando inicialmente um registro formado de uma lista em duas vias: o rol e o contra-rol (rôle

35 FRANCO, Afonso Arinos de Melo. Op. cit. p.117. Para o autor, duas seriam as possíveis conseqüências de sua imposição: ou a revolução, ou o predomínio do regime que impôs a constituição, com a conseqüente supressão da liberdade. Essa concepção se aproxima daquela desenvolvida por Marcelo Neves, denominada Constituição simbólica, que numa de suas vertentes se configura como Constituição álibi, ou seja, aquela cujo texto não apresenta eficácia normativa e vigência social, sendo suas normas reiteradamente violadas pelo aparato estatal, mas que desempenha um papel político-ideológico relevante, eis que serve ao discurso dominante para diminuir as tensões sociais e imunizar o sistema contra alternativas políticas. V. “A constitucionalização simbólica: uma síntese.” Boletim da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra. 20 anos da Constituição de 1976. Coimbra: Coimbra Editora, p.99-131, 2000.36 Salienta LARENZ, Karl que: “El Estado de Derecho, que ha adoptado como línea diretriz de su própia construción el princípio de control y de limitación del poder, no puede dejar de procurar la vigencia de este principio quando en outro campo se edifica un poder que por su magnitud amenaza la libertad de los demás.” Derecho justo....p. 162.

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e contre-rôle).”37 Assume então um sentido de verificação.38 Levado ao idioma inglês, o verbo decorrente do substantivo passa a apresentar três acepções fundamentais: 1) investigar, testar ou verificar; 2) censurar; 3) exercer um poder decisório sobre alguém, regulando suas ações.39

Tem-se da conjugação desta origem tanto um sentido forte de dominação, como um sentido mais atenuado de fiscalização ou verificação. A palavra foi logo incorporada aos demais idiomas europeus, inclusive o português, sempre com sentidos próximos ao que acima foi assinalado, embora com bastante diversificação, como domínio, revisão, intervenção, inspeção, vigilância, freio, preponderância, etc.40

Admitindo, então, que a Constituição que nos serve é aquela característica do Estado de Direito Democrático Social, onde é preciso realizar plenamente o conteúdo das normas constitucionais,41 pode-se afirmar que o sentido de controle é o de um veículo pelo qual se fazem efetivas as limitações do poder.42 Esse sentido é unívoco, na mesma medida em que

37 COMPARATO, Fábio Konder; SALOMÃO FILHO, Calixto. O Poder de Controle na Sociedade Anônima. 4 ed. Rio de Janeiro: Forense, 2005. Já Giannini indica a apropriação do termo latino contra rotulum, que indicaria “o exemplar do rol dos contribuintes, dos tributos, dos censos através do qual se verifica a operação do exator.” Apud MEDAUAR, Odete. Controle da Administração Pública. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1993.38 Já era utilizada com esse sentido por Montaigne nos seus famosos Ensaios, como anota COMPARATO, Fábio Konder. Op. cit., p.27, nota de rodapé n 4.39 Idem. p. 27.40 ARAGON, Manuel. Constitución y control del poder. Buenos Aires: Ciudad Argentina, 1995. p.69-70; COMPARATO, Fábio K. Op. cit. p. 29, que indica, nas páginas seguintes, vários diplomas legislativos nacionais onde o termo teria sido utilizado nas versões forte ou atenuada.41 “No entanto, a proclamação do ideal constitucionalista só se tornou relevante para a cidadania onde a Constituição se fixou como um padrão (parâmetro) para a jurisprudência, isto é, onde a Constituição foi incorporada à prática do Poder Judiciário ou, ao menos, de um tribunal especializado na verificação dos atos normativos (do Legislativo e do Executivo) ao direito constitucional vigente.” LOPES, Júlio Aurélio Vianna. A Invasão do direito: a expansão jurídica sobre o Estado, o mercado e a moral. Rio de Janeiro: FGV, 2005. p. 45-46.42 ARAGON, Manuel. Op. cit. p.69.

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unívoco é o sentido de Constituição que adotamos.43 Ou seja, todas as formas em que se expressa o controle do poder trazem em si o sentido de evitar os abusos do poder, realizando o princípio do equilíbrio do governo, tal como previsto na Constituição. E, assim, não se pode entender uma Constituição democrática sem o controle do poder político.

Contudo, se existe um sentido de fácil percepção, as possíveis formas em que venha a se institucionalizar, assumindo distintas significações, são inúmeras, como se vê no controle de constitucionalidade das leis, no controle de legalidade da Administração Pública ou no controle de oportunidade e conveniência dos atos discricionários, no controle sobre a relevância e urgência na edição de medidas provisórias, no controle exercido pelos Tribunais de Contas e pelo Ministério Público, no controle sobre a indicação de pessoas para ocupar cargos da cúpula dos poderes, e até mesmo no controle da sociedade sobre o poder público. Ou seja, a pluralidade de meios e agentes que realizam o controle, bem como a diversidade de atividades estatais submetidas a controle impedem a conformação de um único conceito de controle do poder, sendo correto afirmar que há vários conceitos de controle no âmbito constitucional.44

É importante consignar, ainda, que mesmo que existam diversos conceitos de controle do poder previstos na Constituição, não se pode confundir o controle com outros termos bastante próximos, todavia distintos, como o são a garantia e a limitação.

Para Aragon, a limitação dos poderes estabelecida na Constituição - como ocorre na limitação do poder de tributar, no princípio da reserva legal, na previsão de direitos fundamentais imunes até certa medida à interferência estatal - não é suficiente para garantir o governo democrático, por essa razão são necessárias técnicas de controle que tornem efetivas essas limitações. Assim, podemos vislumbrar no constitucionalismo do século XIX formas distintas de limitação do poder, mas que justamente pela ausência ou debilidade de sistemas de controle contribuíram para a crise do modelo liberal de Estado de Direito. No Estado Democrático de Direito, porém, para que se cumpram as limitações faz-se necessário a existência de um efetivo controle dessa limitação. No mesmo sentido a opinião de Karl Larenz: “Para limitar el poder en la medida necesaria existen los controles del poder, porque sin estos controles existe de añadidura el peligro del abuso de poder. Limitación

43 Idem. p. 68.44 ARAGON, Manuel. Op. cit., p.72.

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y control del poder se coordinan mutuamente.”45

Para limitações não institucionalizadas do poder haveria sistemas correlatos de controle, exercidos pelo povo, pelos grupos de pressão da sociedade civil, pela imprensa, enfim, são controles difusos. Já para as limitações institucionalizadas, os controles também seriam institucionalizados, ou seja, atribuídos a órgãos próprios para exercê-lo.46

Entendido dessa forma, tem-se que o controle é uma garantia das limitações estabelecidas no sistema político de cada país, plasmadas na Constituição rígida. Mas deve-se resguardar o termo garantia constitucional para incluir também outras formas de assegurar o respeito à Constituição.47 Nesse sentido, podemos citar a regulação do Estado de Sítio e Estado de Defesa.

3 Evolução do pensamento político sobre a separação de poderes

A influência da experiência constitucional britânica

Desde o século XVI desenvolvia-se na Europa a idéia de equilíbrio, girando em torno de um contrapeso de forças opostas, que ia da relação entre exportações e importações até o conhecimento científico.48 De fato, a idéia de poder como uma força e do campo social como campo de forças que se opõem é apropriada pelos pensadores dos séculos XVI e XVII a partir 45 Derecho Justo: fundamentos de etica juridica.Trad. Luis Díez Picazo. 1 ed., reimp. Madrid: Civitas, 1993. p. 159. Em livre tradução: “Para limitar o poder na medida necessária existem os controles do poder, porque sem estes controles existe de complemento o perigo do abuso de poder. Limitação e controle do poder se coordenam mutuamente.”46 ARAGON, Manuel. Op. cit. p. 81-82.47 Idem. p.85-86. Não se confundam aqui as garantias constitucionais com as garantias dos direitos individuais, de que são exemplos os remédios constitucionais do mandado de segurança e do habeas data, entre outros, já que as primeiras envolvem ainda outros institutos destinados a assegurar a efetividade como um todo do texto constitucional.48 SCHMITT, Carl. Teoria de la Constitución. 1 ed. 2 reimp. Madrid: Alianza, 1996. p. 187. No mesmo sentido: SALDANHA, Nelson. O Estado Moderno... p. 87. Para a idéia de equilíbrio no campo da política externa e conseqüente ausência de um único Estado dominante, V. WATSON, Adam. A Evolução da Sociedade Internacional. Brasília: Universidade de Brasília, 2004. p.282-284.

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de uma noção da mecânica física, que tem grande desenvolvimento a partir do Renascimento e da Reforma, e que pode ser comprovada pelas idéias desenvolvidas por Hobbes no Leviatã.49

Para além dessa influência científica sobre o pensamento político, o certo é que a filosofia política inicialmente preocupada com uma repartição das funções do Estado tem início na Inglaterra, onde desde a Idade Média vinham se desenvolvendo institutos e instituições que limitavam o poder político do soberano. Assim, o modelo dos denominados check and balances surge entre os pensadores políticos a partir da própria experiência política inglesa de governo equilibrado, com o firme propósito de assegurar a liberdade, ou seja, como mecanismo destinado a permitir a liberdade civil. Realmente, os modos de controle do poder são nesse contexto engrenagem instrumental necessária para permitir o equilíbrio do exercício do poder.50

Assim é que o desenvolvimento das instituições políticas inglesas permitiu a formação de uma concepção da lei como regra geral, que obriga a todos,51 e também uma concepção plural do poder.52 Essa concepção envolvia a participação de outros atores além do soberano no exercício do poder político, antes demonstrando uma confusão que uma verdadeira separação de poderes.53 De toda forma, o fato é que tal característica do exercício do poder impunha algum tipo de controle ao poder político, e que vai pouco a pouco se transformando, durante o século XVIII, de modo a atingir o que se convencionou chamar de constituição bem equilibrada, onde se organiza o funcionamento de um governo bem equilibrado.54

O primeiro autor a tratar de forma mais direta da questão da

49 DELACAMPGAGNE, Christian. A Filosofia Política Hoje. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2001. p.52. No mesmo sentido: BASTOS, Celso Ribeiro. Curso de Teoria do Estado e Ciência Política. 5 ed. São Paulo: Celso Bastos Editor, 2002, p.151/152; LOWENSTEIN, Karl. Teoria de la Constitución. Barcelona: Ariel, 1976. p. 54.50 ARAGON, Manuel. Op. cit. p. 21.51 “La distinción más importante y fundamental que resulto de ahí fue la distinción de la Ley como uma norma permanente, obligatoria para todos, incluso para el proprio legislador, y, por lo tanto, general, que no puede quebrantarse para un caso particular, respecto de las restantes ramas de la actividad de voluntad estatal.” SCHMITT, Carl.. Teoria de la Constituición... p.186.52 ARAGON, Manuel. Constitucion... p.16-17.53 Idem. p. 18.54 Idem. p.18-19.

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separação dos poderes foi John Locke, que publica seu Segundo Tratado sobre o Governo Civil55 em 1690, onde o autor distingue três tipos de poder: o legislativo, o executivo e o federativo, sendo o último relativo aos aspectos externos do Estado, relacionados com a celebração de tratados e alianças.56 Dada a evidente ligação entre os dois últimos, fato reconhecido por Locke, e a negação da existência do Judiciário como poder autônomo, tem-se em verdade uma bipartição do poder.57

Ao apenas sugerir que os poderes legislativo e executivo fiquem separados,58 sem advogar tal necessidade, e também por olvidar a situação do poder judiciário, Locke não foi capaz de apresentar uma teoria da separação dos poderes que pudesse ser plenamente aplicada aos demais países da Europa.

Na Inglaterra, quem efetivamente divulga uma teoria do equilíbrio do poder baseada em controles recíprocos é Bolingbroke, que assinalou, ao longo da primeira metade do século XVIII, o que se convencionou chamar de sistema de freios e contrapesos, check and balances.59

55 Assinala Marcelo Caetano que a obra originariamente tinha a denominação Two Treatises of Government sendo acrescentada a expressão Civil a partir de uma edição de 1884, como forma de afastar o tema do governo eclesiástico. Op. cit. p. 232.56 DELACAMPAGNE, Christian. Op. cit. p. 50. Karl Lowenstein sublinhou que a obra de Locke quebrou para sempre o poder do Estado. Op.cit. ,p. 60.57 BOBBIO, Norberto. Locke e o Direito Natural. 2 ed. Brasília: Ed. Universidade de Brasília, 1997. p. 233 e 234. Segundo o autor italiano, para Locke a imparcialidade dos juízes seria garantida pela generalidade das leis, que afetam a todos de modo uniforme, por essa razão seria o Legislativo o garantidor dessa imparcialidade, confundindo-se nele o Judiciário. Tanto o legislador como o juiz seriam os responsáveis pelo estabelecimento do direito. Op. cit. p. 232. Interpretação contrária foi feita por Paulino Jacques, para quem, em função da natureza das coisas, Locke compreendia o poder judicial inserido no poder executivo. Curso de Direito Constitucional. 5 ed. Rio de Janeiro: Forense, 1967. p. 110.58 LOCKE, John. Segundo Tratado sobre o Governo. São Paulo: Abril Cultural, 1978. p.91. (Coleção Os Pensadores)59 ARAGON, Manuel. Op. cit. p.19; BONAVIDES, Paulo, Ciência ..., p.150. Rosah Russomano aponta a primazia de Harrington, no seu Curso de Direito Constitucional apud BASTOS, Celso Ribeiro. Op. cit. p.183. Contra: SALDANHA, Nelson. O Estado Moderno... p.95, que, com apoio em George Sabine, afirma que o pensamento de Harrington se aproximava mais ao esquema

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A consagração do tema na obra de Montesquieu

Foi sem dúvida Montesquieu o grande divulgador da idéia de uma divisão dos poderes políticos entre o Executivo, o Legislativo e o Judiciário60, estabelecendo uma “repartição horizontal” decorrente da diferenciação funcional.61 Influenciado pela experiência política britânica e sem dúvida pela leitura de Locke, entre outros teóricos, Montesquieu desenvolveu sua doutrina no livro Do Espírito das Leis, de 1784, ao tratar da Constituição da Inglaterra, no capítulo VI do Livro Décimo Primeiro. É ilustrativa de sua doutrina a seguinte passagem:

Tudo estaria perdido se o mesmo homem ou o mesmo corpo dos principais, ou dos nobres, ou do povo, exercesse esses três poderes: o de fazer leis, o de executar as resoluções públicas e o de julgar os crimes ou as divergências dos indivíduos.62

E a idéia de equilíbrio entre os poderes é logo depois esboçada da seguinte forma:

Eis, assim, a constituição fundamental do governo de que falamos. O corpo legislativo sendo composto de duas partes, uma paralisará a outra por sua mútua faculdade de impedir. Todas as duas serão paralisadas pelo poder executivo, que o será, por sua vez, pelo legislativo.

Estes três poderes deveriam formar uma pausa ou inação. Mas como, pelo movimento necessário das coisas, eles são obrigados a caminhar,

organizatório das cidades-Estado gregas.60 SILVA, José Afonso da. Curso de Direito Constitucional Positivo. 23 ed. São Paulo: Malheiros, 2004. p.109. No mesmo sentido: BASTOS, Celso Ribeiro. Curso de Teoria do Estado e Ciência Política. 5 ed. São Paulo: Celso Bastos Editor, 2002. p.180. Com opinião contrária ao ensino tradicional, Christian Ruby afirma que Montesquieu limitava-se a pregar a proibição do acúmulo de funções jurídicas do Estado. Introdução à Filosofia Política. 1 ed., 1ª reimp. São Paulo: Unesp, 1998. p.82.61 CANOTILHO, J. J. Gomes. Op. cit. p. 498.62 MONTESQUIEU, Barão de La Brède e de [Charles Louis de Secondat]. Do Espírito das Leis. São Paulo: Abril Cultural, 1973. p.157. (Coleção Os Pensadores).

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serão forçados a caminhar de acordo.63

Somente os governos moderados, como o da Inglaterra, seriam capazes de garantir a liberdade política, o que só se obtém pela via do controle recíproco entre os poderes políticos. Cada poder tem, assim, tanto a faculdade de estatuir sobre as matérias de sua competência como a faculdade de impedir que os outros poderes pratiquem atos exorbitantes, quer dizer, que violem a lei ou o equilíbrio constitucional.64 De fato, a conexão entre as atividades dos poderes políticos divididos é parte importante de sua doutrina65 mas, para alguns críticos, aparentemente ele não percebeu toda a complexidade do sistema de controles recíprocos existente na Inglaterra, que não se limitava à mera faculdade de impedir, mas exigia interconexões obrigatórias para o desempenho das funções estatais.66 Essa crítica feita a Montesquieu pode ser atribuída, em parte, ao fato de que na época em que conheceu de perto a experiência política inglesa, entre 1729 e 1731, o regime político da ilha já caminhava para o sistema de gabinete, não comportando perfeita distinção entre Parlamento e Executivo, mas sim caracterizando um sistema de colaboração de poderes, fato que não teria sido percebido por

63 Idem. Ibidem. p. 161. É interessante observar que a passagem transcrita não esclarece de que forma o Poder Judiciário participaria desse sistema de controles, embora isso soe implícito. Montesquieu afirma, algumas linhas antes, que o Poder Judiciário é um poder nulo, o que soa misterioso para Carl Schmitt. Op. Cit. p. 188. Uma resposta sobre essa definição de poder nulo é-nos fornecida por Albert Calsamiglia, quando trata de definir a metodologia de julgamento dos casos difíceis criada por Ronald Dworkin. Segundo o professor espanhol, ao pretender retirar toda a discricionariedade judicial na resolução dos problemas são resolvidos pelos juízes, eles submetem-se à lei e ao direito, e, portanto, não exercem poder político, quer dizer, o poder político é nulo. Ensayo sobre Dworkin. Prólogo a DWORKIN, Ronald. Los derechos em serio. Trad. Marta Guastavino. 1 ed., 3 reimp. Barcelona: Ariel, 1997. p.21.64 CAETANO, Marcelo. Op. cit. p. 236.65 “O equilíbrio constitucional dos poderes não é apresentado por Montesquieu como o princípio decisivo da democracia, mas como condição sine qua non de uma política de liberdade. [...]A distinção dos poderes legislativo, executivo e judiciário, necessária para sua colaboração equilibrada, cria um obstáculo, explica Montesquieu, para o autoritarismo que, seja a forma que adote – o da massa ou de um chefe -, afeta a liberdade devido a sua inevitável arbitrariedade.” GOYARD-FABRE, Simone. O Que é Democracia... p. 138.66 ARAGON, Manuel. Op.cit.,, p. 22-23.

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Montesquieu.67 Entretanto, Montesquieu jamais pregou a absoluta separação entre os poderes, como mais tarde chegou-se a proclamar em França.68

A separação de poderes e a divisão de poderes

Nesse momento, parece oportuno consignar o que vem a distinguir, portanto, a separação de poderes e a divisão de poderes, já que nem todos os autores fazem essa distinção.69 Assim, a divisão de poderes significa a atribuição de funções governamentais a órgãos diferentes, de modo a evitar a concentração de poderes70, enquanto que a idéia de separação de poderes não admitiria, em tese, interferências recíprocas. Quer dizer, são as funções em que se divide o exercício do poder que são primordialmente afetadas a um determinado órgão, caracterizando o que se pode denominar de “especialização funcional”, sendo certo que cada um desses órgãos deverá ser estruturado de maneira que venha a desempenhar sua função de modo independente, ou seja, sem subordinação a algum dos demais poderes, ainda que sujeitando-se a controles, fato esse que vem a caracterizar a “independência orgânica.”71 Sob esses dois fundamentos ergue-se a forma de organização jurídica do poder político do Estado moderno.

Nenhuma das idéias, porém, significa a efetiva quebra das características básicas do poder político, quais sejam, a unidade, a indivisibilidade e a indelegabilidade, pois essas retratam apenas formas de

67 BONAVIDES, Paulo. Ciência Política... p.147. No mesmo sentido: LOWENSTEIN, Karl. Op.cit. 60.68 Nesse sentido assevera GOYARD-FABRE, Simone: “Esse esquema constitucional, segundo o qual ‘o poder pára o poder’, tem como conseqüência o controle mútuo e recíproco dos poderes legislativo, executivo e judiciário. Essa autolimitação é própria de um ‘governo moderado’, o único que pode aplicar uma política de liberdade.” O Que é Democracia...p.139.69 Por exemplo, TEIXEIRA, José Horácio Meirelles. Op. cit., p. 572.70 SILVA, José Afonso da. Curso.... p.108. Com visão diversa, Carl Schmitt sustenta que a separação significa um isolamento completo, que serve de ponto de partida para posterior organização e regulação dos poderes, admitindo, então, algumas vinculações recíprocas, enquanto a divisão seria uma distinção dentro de um dos poderes, como se deu na divisão do Legislativo americano entre Senado e Câmara dos Deputados. Teoria...p.188 e 189.71 SILVA, José Afonso da. Op. cit. ,p. 109.

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exercício das funções do Estado.72

A Constituição norte-americana e o sistema de freios e contrapesos

No Federalista, Madison reconheceu a enorme influência da obra de Montesquieu na elaboração da Constituição dos Estados Unidos da América de 1787. De outro lado, ao referir-se à Constituição inglesa que inspirara o autor francês, identifica ele a ausência de uma total separação de poderes.73

Se é certo que a Constituição de Massachussetts de 1780 chegou a prever expressamente uma separação rígida dos poderes, fato inédito até então, o mesmo texto trazia formas de controle recíprocos que afastavam a idéia que inicialmente se poderia formar.74

Como se procurou demonstrar acima, não há incompatibilidade, portanto, entre a afirmação da influência das idéias de Montesquieu sobre os constituintes norte-americanos e a mesma influência advinda da história constitucional inglesa, que definira o sistema de controles recíprocos como necessário para um bom governo, aquele que assegura a liberdade política. Assim é que a Constituição Federal elaborada em 1787 veio a consagrar o sistema de freios e contrapesos, esboçado pelo constitucionalismo inglês, adaptando-o ao novo regime republicano estabelecido, com a adoção do bicameralismo, e obrigando a colaboração entre os poderes. Esse sistema logo veio a ser reforçado com a adoção explícita do controle de constitucionalidade das leis, a partir do julgamento pela Suprema Corte do caso Marbury vs. Madison, em 1803, cuja doutrina foi elaborada pelo Chief Justice Marshall.75

Jefferson definia o sistema de freios e contrapesos como “aquele em que os poderes estão de tal forma repartidos e equilibrados entre os diferentes órgãos que nenhum pode ultrapassar os limites estabelecidos pela Constituição sem ser eficazmente detido e contido pelos outros.”76

72 SILVA, José Afonso da, Op. cit. p.107.73 BONAVIDES, Paulo. Ciência Política... p.148 e MADISON, James et alli., Os Artigos Federalistas. Rio de Janeiro: Nova Fronteira. 1993, p. 331, 332 e 333.74 ARAGON, Manuel. Op. cit. p. 28.75 Trecho do julgamento pode ser encontrado na coletânea elaborada por SWISHER, Carl Brent. Decisões Históricas da Corte Suprema. Rio de Janeiro: Forense, 1964. p.9-14.76 Apud CAETANO, Marcelo. Op. cit. p. 237.

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Em resumo, assim se comporta o sistema:O Legislativo rejeita o ‘veto’ do Executivo, procede por

impeachment contra o executivo e aprecia as indicações do Executivo para provimento de altos cargos públicos; o Legislativo, ainda, fixa o número de membros do Judiciário, limita a sua jurisdição, e procede por impeachment contra os altos magistrados; o Executivo, à sua vez, veta resoluções do Legislativo, e nomeia os membros do Judiciário; e, por fim, o Judiciário declara a inconstitucionalidade dos atos do Legislativo e a ilegalidade dos do Executivo.77

Assegurava-se, desse modo, que a divisão de poderes significava interdependência de poderes, não sendo suficiente o controle do povo sobre os governantes para permitir o gozo da liberdade.78

Cerca de 100 anos após a elaboração da constituição americana, assim era definida a separação de poderes ali vigente:

[...] é uma máxima na ciência política que, para conseguir o legítimo reconhecimento e proteção dos direitos, os poderes do governo devem ser classificados segundo a sua natureza, e que para tal execução cada classe de poder deve ser confiada a um diferente departamento do governo. Esta disposição dá a cada departamento uma certa independência, que opera como um freio sobre a ação dos outros que poderiam usurpar os direitos e a liberdade do povo, e torna possível o estabelecer e o reforçar as garantias contra quaisquer tentativas de tirania. Por isto, temos os freios e os contrapesos do governo, supostos como essenciais à liberdade

77 JACQUES, Paulino. Op, cit. p. 113, com grifos no original. No mesmo sentido, com alguns acréscimos: BONAVIDES, Paulo. Ciência Política...p. 151 e 152. Rejeita-se aqui, portanto, uma visão que equipara a doutrina dos freios e contrapesos à teoria da separação dos poderes, como se vê em TEMER, Michel. Elementos de Direito Constitucional. 11 ed. São Paulo: Malheiros, 1995. p. 113. Apontando um denominador comum, qual seja, a luta contra o arbítrio, mas a distinção das duas noções: SALDANHA, Nelson. O Estado Moderno e a Separação de Poderes. São Paulo: Saraiva, 1987. p.96.78 CAETANO, Marcelo. Op. cit. p. 29.

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das instituições.79

E não foi diferente ao longo do século XX e início deste novo século, a demonstrar que para o constitucionalismo norte-americano a idéia de controle do poder é um elemento inseparável do conceito de Constituição.80

3.5 A Revolução Francesa e a teoria da separação dos poderes

O ataque ao absolutismo na França inspira-se numa leitura de Montesquieu81 e de outros pensadores, especialmente Jean-Jacques Rosseau, que termina por privilegiar um acentuado destaque para a distinção dos poderes do Estado, com raras interferências recíprocas, que veio a caracterizar o princípio da separação de poderes na forma indicada no art.16 da Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão.

Os revolucionários adotaram a concepção de lei como fruto da vontade geral, considerando o Direito como produto imediato da decisão do povo ou de seus representantes. Adicionando-se a isso a previsão de respeito aos direitos individuais, tal como prevista na Constituição de 1791, tem-se uma forma específica de Estado que se qualifica como fundada na soberania popular, democraticamente estabelecida, com tríplice limitação do poder político: material, pela proteção dos direitos, funcional, pela divisão dos poderes, e temporal, pela previsão de eleições periódicas.82

Cabe anotar, porém, que a noção de soberania popular desenvolvida por Rousseau não leva a sustentar o regime democrático como aquele que deve caracterizar o governo. Ele distingue a soberania popular do regime de governo, como enfatiza Goyard-Fabre:

Nesse sentido, para retificar o erro corrente que faz de Rousseau, à luz da Revolução Francesa, o porta-voz do regime democrático, é preciso primeiro lembrar que, na problemática política

79 COOLEY, Thomas M.. Princípios Gerais de Direito Constitucional nos Estados Unidos da América. Campinas: Russel, 2002. p. 51.80 ARAGON, Manuel. Op.cit. p. 30.81 A atribuição a Montesquieu do desenvolvimento de um modelo teórico extremamente rígido de separação de poderes foi denunciada por diversos autores do século XX como um mito. CANOTILHO, J. J. Gomes. Op. cit. p. 108.82 ARAGON, Manuel. Idem. p. 24 e 25.

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que ele formula e examina, a soberania do povo é o fundamento de toda sociedade política e não o critério do governo democrático.[....]Com efeito, o contrato social faz nascer a sociedade civil, que, por isso, enraíza-se sempre na vontade geral do povo. Mas embora a soberania do povo conote assim o critério de todo Estado ou República, ele não determina por si só nenhum modelo de governo.83

De fato, ao proclamar a lei como produto direto da vontade popular, como verdadeiro dogma, pois fruto da razão soberana, não se permitia o estabelecimento de um sistema de freios e contrapesos, restando a limitação de poderes apenas na medida em que a própria Assembléia Popular assim o definisse, ou seja, apenas se admitia a auto-limitação do poder político.84 Afinal, se a soberania é indivisível, os poderes são soberanos, e não se faz possível a interferência de um sobre a atividade do outro. O perigo que tais idéias podem trazer para a liberdade política foi bem apreendido por Cláudio Pereira de Souza Neto:

Interpretado hobbesianamente, contudo, o contrato social de Rousseau pode ser entendido em termos de impossibilidade de se restringir o princípio majoritário. Vale dizer, qualquer que seja o conteúdo do texto legal, desde que tenha resultado da vontade da maioria, deve ser obedecido e aplicado pelo judiciário. No limite, até mesmo as leis do terror deveriam ser consideradas como legítimas, já que decorrentes da vontade geral.85

83 GOYARD-FABRE, Simone. O Que é Democracia. p.154 e 156.84 ARAGON, Manuel. Op. cit. p.25.85 Jurisdição Constitucional, Democracia e Racionalidade Prática. Rio de Janeiro: Renovar. 2002, p. 26. Vendo na concepção de Rousseau sobre a vontade geral uma imagem totalitária: LOWENSTEIN, Karl. Op. cit. p. 61. Ainda assim, suas idéias tinham um profundo caráter contestatório do regime da época, como deixam ver as vicissitudes da obra: “Impressa em Amsterdam em abril de 1762, proibida na França em maio seguinte, condenada pelo Parlamento de Paris em

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Sabe-se que a desconfiança nutrida em relação aos juízes do Antigo Regime, por servidão aos interesses reais, e a concepção da atividade jurisdicional como mera aplicação mecânica da lei86 contribuíram para a forte aversão dos franceses ao controle judicial da constitucionalidade das leis.87

Na Constituição jacobina de 1793, a idéia de que o poder supremo pertence ao povo é levada a extremos, e já não se tem verdadeiramente uma separação rígida dos poderes, pois em seu lugar prevalece a força da Assembléia única, capaz de impor sua vontade, o que termina por desnaturar a idéia aparentemente democrática inicial, levando a um governo forte e sem controles.88

A prática demonstrava, assim, que a concepção francesa de separação de poderes, ainda que admitindo certo grau de limitação, não oferecia garantias suficientes para impedir que a ação do poder político viesse a macular as liberdades políticas.89

O século XIX e a crise da idéia de controle do poder

As marcantes influências que a Revolução Francesa trouxe para o pensamento político europeu do século XIX foram vitais para a consagração da teoria da separação dos poderes, influenciando a elaboração das novas cartas políticas no velho continente, inclusive sendo adotadas nas constituições das nações que se libertaram do colonialismo no continente 9 de junho, queimada no dia 11, queimada de novo no dia 19 em Genebra,...” V. DELACAMPAGNE, Christian. Op. cit., p.60.86 O próprio Montesquieu afirmava: “Porém, se os tribunais não devem ser fixos, os julgamentos devem sê-lo a tal ponto, que nunca sejam mais do que um texto exato da lei. Se fossem uma opinião particular do juiz, viver-se-ia na sociedade sem saber precisamente os compromissos que nela são assumidos.” Cf. Op. cit. p.158. Parece evidente que o perigo da conseqüência afirmada não conduz necessariamente à premissa adotada.87 ARAGON, Manuel. Op. cit.,p. 25. Esse fato vem aos poucos se transformando, a partir dos últimos 20 anos, por meio da proteção aos direitos fundamentais, consubstanciando o que se convencionou chamar de doutrina Badinter. Cf. LOPES, Júlio Aurélio Vianna. A Invasão do Direito: A Expansão Jurídica sobre o Estado, o Mercado e a Moral. Rio de Janeiro: FGV, 2005. p.49.88 CAETANO, Marcelo. Op. cit. p. 239.89 ARAGON, Manuel. Op. cit. p.25 e 26.

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americano.90 Por outro lado, a versão filosófica então predominante entre os teóricos foi essencial para o desprestígio da idéia de controle de poderes como forma de obtenção do equilíbrio do governo.

Esse período é bem sintetizado pelo jusfilósofo Palombella:

À luz da evolução histórica e filosófica subseqüente, a equação lei-direitos tenderá a ser desenvolvida em sentido unilateral, ou seja, com uma perda do caráter originário da questão dos direitos, bem como com sua passagem à posição secundária em relação à tutela da instituição Estado e da lei como fonte globalizante do direito. Em todo o continente europeu permanecerá substancialmente axiomática a submissão do juiz à lei, sendo indireta a referência aos direitos, e haverá uma tendência progressiva à atenuação do aspecto de garantia em favor do estatalismo. Assim o problema da ordem institucional, como pressuposto da própria afirmação dos direitos, prevalecerá sobre a exigência apresentada pelo jusnaturalismo, ou seja, a prioridade dos direitos.91

Na França, em especial, verificava-se uma ausência de amarras tanto dos atos do Executivo, livre do controle por parte do Judiciário sobre os atos políticos, e mesmo de boa parte dos administrativos,92 como também do Legislativo, dada a ausência de controle de constitucionalidade das leis.93 A única forma admitida de controle de tais poderes tinha por base a

90 Afirma CANOTILHO que o princípio “transformou-se mesmo em ratio essendi da Constituição.” Op. cit.,p. 498. Na mesma linha segue Nelson Saldanha, para quem no século XIX formou-se “uma espécie de entusiasmo pelo constitucionalismo como fórmula política, como atitude e como mentalidade.” Formação da Teoria...p.156.91 PALOMBELLA, Gianluigi. Op. cit. p. 42, onde, a seguir, o autor esclarece que o fenômeno não atingia a Inglaterra, onde prevalecia o entendimento de que a organização do poder não era suficiente para a garantia dos direitos.92 ARAGON, Manuel. Op. cit. p. 31. Aqui o autor sustenta-se na lição de Hariou.93 Nesse sentido a lição de FAVOREAU, Louis: “A partir da Revolução

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vontade popular, já que as eleições seriam, para muitos teóricos, a garantia de ausência de um governo absoluto ou despótico.94 Esse grau de imunidade vai se verificar ao longo dos ciclos constitucionais que a França irá viver ao longo do século XIX.

A exceção que confirma a regra consiste na teoria de Benjamin Constant, que continha a previsão de um poder neutro, o pouvoir royal, capaz de impor o equilíbrio entre os demais poderes, representado pela figura do soberano. Obviamente, esse poder teria de sobrepor-se aos demais, como forma de impor o equilíbrio desejado.95 Esse poder, porém, não passou da fase de teorização na França, embora tenha servido de inspiração para a instituição do Poder Moderador na Constituição Brasileira de 1824.96

Na Alemanha, de outro lado, ante a fragmentação política então vivida e a série de eventos tormentosos ocorridos no início do século XIX, desenvolveu-se uma teoria que atribuía ao rei a titularidade da soberania, identificando o Parlamento como um órgão limitador dessa soberania. Tal idéia impunha um frágil controle político e um praticamente inexistente controle jurídico do Executivo.97

Por outro lado, alguns teóricos passaram a identificar a soberania com a figura do Estado, não de seu monarca, onde a liberdade só seria possível no interior do Estado, donde decorre a existência dos direitos individuais pelo reconhecimento estatal dos mesmos, e apenas na extensão em que são de 1789, ao longo do século XIX e início do século XX, o dogma rousseauniano da infalibilidade da lei se impôs e raramente foi posto em dúvida.” As Cortes Constitucionais. São Paulo: Landy. 2004, p. 20.94 ARAGON, Manuel. Op. cit. p. 32 e 33.95 MORAES FILHO, José Filomeno. “Separação de poderes no Brasil pós-88: princípio constitucional e práxis política.” In: SOUZA NETO, Cláudio Pereira, et al. Teoria da Constituição: estudos sobre o lugar da política no Direito Constitucional. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2003. p. 157. No mesmo sentido: SALDANHA, Nelson. O Estado Moderno... p.100. Veja-se que a função de solucionar conflitos entre outros poderes, como um árbitro, é atribuída ao tribunal constitucional alemão pela Lei Fundamental de Bonn, assim como ao tribunal constitucional italiano pela respectiva constituição, mas sem que em nenhum dos casos isso represente qualquer supremacia. Cf. LOWENSTEIN, Karl. op. cit. p. 321, que assinala os perigos dessa atuação, por ele denominada de judicialização da política.96 SILVA, José Afonso da. Op. cit. p. 75; BONAVIDES, Paulo. Ciência Política .... p. 156.97 ARAGON, Manuel Op. cit. p. 34.

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reconhecidos.98 Nesse panorama, Ihering desenvolve o entendimento de que é preciso que o Estado seja controlado pelo direito, ainda que ele venha a ser criado pelo Estado. Na esteira dessa afirmação, Jellinek vai desenvolver a teoria da autolimitação do Estado, dizendo que a atividade do Estado é limitada pelo Direito, que ele próprio estabelece voluntariamente, na medida em que constitui-se em uma pessoa jurídica, e, para manter-se como tal, deve obrigatoriamente submeter-se ao Direito.99 A idéia de divisão e equilíbrio do poder está ausente da teoria jurídica estatal então desenvolvida.

Esse panorama vai engendrar a noção de uma Constituição como mera ordenação do Estado, sem qualquer força normativa,100 aproximando do conceito de constituição material afastado no início deste trabalho. Nesse contexto se compreende a constatação de Jellinek no alvorecer do século XX:

El desarollo de las Constituciones muestra, a pesar de que todavia no se aprecie suficientemente, el enorme significado de esta enseñanza: que las proposiciones jurídicas son incapaces de dominar, efectivamente, la distribuición del poder estatal. Las fuerzas políticas reales operan según sus propias leyes que actúan independientemente de cualquier forma jurídica.101

Crítica à separação de poderes e o retorno à idéia de controle98 Nessa época, a expressão Estado de Direito chega a ser tida como pleonástica, pois haveria uma identificação entre Estado e Direito. SOUZA NETO, Cláudio Pereira de. Teoria Constitucional...p.38.99 FARIAS, José Fernando de Castro. A Teoria do Estado no Fim do Século XIX e no Início do Século XX. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 1999. p.52-53. Segundo o autor, além dessa forma de legitimação formal, Jellinek atribui ao Estado uma finalidade, qual seja, desenvolver a civilização, cf. p. 54.100 ARAGON, Manuel. Op. cit. p.35.101 JELLINEK, Georg. Reforma y Mutacion de la Constitucion. Madrid: Centro de Estúdios Constitucionales, 1991. p.84. Em tradução livre: “O desenvolvimento das Constituições mostra, apesar de que ainda não se aprecie suficientemente, o enorme significado deste ensinamento: que as proposições jurídicas são incapazes de dominar, efetivamente, a distribuição do poder estatal. As forças políticas reais operam segundo suas próprias leis que atuam independentemente de qualquer forma jurídica.”

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Contra essa noção rígida e isolada da divisão funcional do Poder Político que caracterizou o positivismo102 emerge uma gama de críticas no início do século XX, fruto de novas idéias político-jurídicas que respondem a diversas mudanças sociais, econômicas e culturais que afetavam o Ocidente.103

Kelsen, que propõe um positivismo renovado104, já que pretende se distanciar do modelo anterior, que se pode denominar como conceptualismo,105 anota com precisão:

O conceito de ‘separação dos poderes’ designa um princípio de organização política. Ele pressupõe que os chamados três poderes podem ser determinados como três funções distintas e coordenadas do Estado, e que é possível definir fronteiras separando cada uma dessas três funções. No entanto, essa pressuposição não é sustentada

102 No campo jurídico, vale transcrever a seguinte observação: “A Escola da Exegese revela, assim, através do culto da lei, uma grande influência do pensamento liberal, em especial da teoria da separação dos poderes, sobre a metodologia positivista. A doutrina da separação dos poderes demarcava a separação entre política e direito, que resulta na neutralização política do poder judiciário.[...] Está sempre contida nessas formulações a noção de que uma metodologia jurídica restrita aos termos legais se coaduna com a idéia de governo limitado ou moderado.” Cf. SOUZA NETO, Cláudio Pereira de. Op.cit. p. 82 e 87.103 Sobre o assédio crítico ao liberalismo político nesse período, Nelson Saldanha aponta os fenômenos do irracionalismo, do pessimismo, do militarismo e da massificação. Cf. O Estado Moderno...p. 102.104 Afirma-se que o modelo dinâmico do direito apresentado por Kelsen caracteriza-se como sistema normativista, pois passa a existir uma preocupação com a produção das normas jurídicas. Cf. SOUZA NETO, Cláudio Pereira de. Op. cit. p.110.105 Característica do período racionalista do século XIX é a contundente afirmação de HEGEL: “Só o conceito pode conduzir a esse conhecimento, devendo abster-se de participar nas discussões todos aqueles que têm a divindade por inconcebível e o conhecimento da verdade por vã tentativa. Não poderá aspirar à consideração filosófica o que diga em seus discursos indigestos e edificantes com os seus sentimentos e os seus entusiasmos.” Cf. Princípios da Filosofia do Direito. Lisboa: Guimarães, 1990. p.252.

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pelos fatos.[...]É impossível atribuir a criação de Direito a um órgão e a sua aplicação (execução) a outro, e modo tão exclusivo que nenhum órgão venha a cumprir simultaneamente ambas as funções.[...]Portanto, foi um erro descrever o princípio fundamental da monarquia constitucional como ‘a separação de poderes’. As funções originariamente combinadas na pessoa do monarca não foram ‘separadas’, mas antes divididas entre o monarca, o parlamento e os tribunais. [...] A significação histórica do princípio chamado ‘separação dos poderes’ encontra-se precisamente no fato de que ele opera antes contra uma concentração que a favor de uma separação de poderes.106

Sua grande contribuição para o estabelecimento de mecanismo de controle do poder será o desenvolvimento do controle concentrado de constitucionalidade, resultante do projeto de Constituição da Áustria, de 1920.107 De fato, se a Constituição regulava não só a produção das normas gerais, como também o conteúdo das futuras normas jurídicas,108 tinha de contar com um método de controle da produção destas mesmas normas jurídicas, sob pena de tornar-se inútil.109 A sugestão da criação de um Tribunal Constitucional tem por objetivo ver “garantida efetivamente”110 a

106 KELSEN, Hans. Teoria Geral do Direito e do Estado. 2 ed. 1 reimp. São Paulo: Martins Fontes, 1995. p. 263 e 274.107 FAVOREAU, Louis. Op. cit. p.17, que acrescenta ser este o modelo europeu de controle de constitucionalidade das leis. Cabe reconhecer, contudo, que um esboço da idéia de um Tribunal Constitucional que realizasse o controle de constitucionalidade das leis já fora sugerida por Emmanuel Joseph Sieyès, durante o período revolucionário. V. BINENBOJM, Gustavo. Op. cit. p.24.108 KELSEN, Hans. Teoria Pura...p.249.109 Manuel Aragon aponta, porém, para a construção do sistema não como forma de estabelecer um limite ao poder do Estado, mas sim pela lógica inerente ao seu sistema normativo. Op. cit. p. 37.110 KELSEN, Hans. Teoria Geral…p. 158.

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aplicação das regras constitucionais à legislação:O órgão legislativo considera-se, na realidade, um criador livre do

Direito e não um órgão de aplicação do Direito, ligado à Constituição, quando na verdade o é apenas teoricamente, ainda que em medida relativamente restrita. Não é portanto com o Parlamento que podemos contar para conseguir sua subordinação à Constituição. É a um órgão diferente dele, independente dele, e conseqüentemente também a uma autoridade estatal, que é preciso encarregar da anulação dos atos inconstitucionais – isto é, uma jurisdição ou tribunal constitucional.111

Parece evidente que um controle não só de procedimento mas também de fundo implicava na atribuição de uma tarefa não só jurídica mas também política a tais tribunais,112 o que permitiria o ataque a tal ideal via defesa da separação de poderes. Kelsen pretendeu afastar tal crítica com a teoria do legislador negativo, segundo a qual o Tribunal Constitucional, ao anular a legislação inconstitucional, impõe uma lei, mas sem o caráter de livre criação que caracteriza a ação do Legislativo, pois totalmente determinada pela Constituição.113

Karl Lowenstein afirmava que somente o liberalismo constitucional identificava a separação dos poderes com a liberdade individual, e que essa idéia de separação dos poderes apenas expressava a necessidade de distribuir e controlar o exercício do poder político, fruto que foi da técnica de representação da vontade do povo.114

Após a experiência do combate aos regimes totalitários na 2ª Guerra Mundial, as práticas destinadas a estabelecer algum tipo de efetivo controle

111 Apud. FAVOREAU, Louis. Op.cit. p.24.112 Nesse sentido a afirmativa de CAPPELLETTI, Mauro. O Controle Judicial de Constitucionalidade das Leis no Direito Comparado. Porto Alegre: Sérgio Antônio Fabris, 1984. p.114.113 FAVOREAU, Louis. Op. cit., p.24. Assim enuncia Kelsen sua tese: “Se a afirmação, corrente na jurisprudência tradicional, de que uma lei é inconstitucional há de ter um sentido jurídico possível, não pode ser tomada ao pé da letra. O seu significado apenas pode ser o de que a lei em questão, de acordo com a Constituição, pode ser revogada não só pelo processo usual, quer dizer, por uma outra lei, segundo o princípio lex posterior derogat priori, mas também através de um processo especial, previsto pela Constituição.” Teoria Pura....p. 300. Sobre o tema da legitimidade da jurisdição constitucional, objeto de alguns estudos recentes na doutrina brasileira consulte-se a obra já citada de Gustavo BINENBOJM.114 Op. cit. p. 56, 58 e 59.

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do poder passam a ganhar maior dimensão, e se restabelece a busca pelo governo moderado, qualificado por restrições e limites regulares, capazes de permitir o pleno desenvolvimento das liberdades individuais e sociais. Seja através de previsão expressa nas Cartas Constitucionais surgidas nesse período, como a Lei Fundamental de Bonn, seja através da construção prática dos operadores jurídicos, ergue-se um verdadeiro sistema de restrições efetivas ao poder, dando início ao que se convencionou chamar de Estado Democrático e Social.115

Além da triste influência das conseqüências do fascismo, foi no pós-guerra que os Estados ocidentais passaram a desempenhar grande número de atividades até então excluídas de seu campo de competência pelas restrições do Estado liberal, com intervenção no domínio econômico, incremento das ações de assistência social, regulação do jogo do mercado, entre outras características do chamado Welfare State. Esse incremento das ações estatais exigia que se estabelecessem novos métodos de controle para evitar o abuso das autoridades, com interferências ilegítimas na seara da liberdade dos cidadãos, ainda mais em um contexto de democracia pluralista.116

Os controles frágeis do estado liberal não serviam para essa finalidade. Além de revigorar e criar novos modos de controles recíprocos de poderes, era necessário ampliar as possibilidades de controle social do poder, realizado através de sindicatos, imprensa, associações profissionais, igrejas, etc.117

4. Uma nova função estatal: a função de controle

Foi tamanha a relevância que os mecanismos de controle passaram a ter para a realização da força normativa da Constituição, que surgiu uma teoria de que além das tradicionais três funções dispostas na obra de Montesquieu - a que há muito já se somara uma quarta, resultante da divisão da função executiva entre função de governo e administrativa118 -, haveria 115 ARAGON, Manuel. Op. cit. p.39-40.116 Idem. Ibidem. p. 40. Igualmente Bachof, Otto. Jueces y constitución. Trad. Rodrigo Bercovitz Rodriguez-Cano, 1 ed., reimp. Madrid: Civitas, 1987. p. 58: “En el Estado Social moderno, el caráter necesario que en general tiene el Estado para el hombre, la casi total dependencia de éste frente al aparato estatal exige correlativamente un control total de este aparato.”117 BASTOS, Celso Ribeiro. Op. cit. p. 186.118 SILVA, José Afonso da. Op. cit. p. 108.

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uma função específica de controle. O principal teórico desta teoria foi Karl Lowenstein, que tratou do tema de forma sistemática ainda na década de 50 do século passado.

Comentando a famosa sentença proferida por Lord Acton, que afirmava que o poder tende a corromper e o poder absoluto tende a corromper absolutamente, Lowenstein demonstra a importância que a idéia de controle do poder tem para sua teoria:

Con el fin de evitar esse peligro siempre presente, que es inmanente a todo poder, el Estado organizado exige de manera imperativa que el ejercicio del poder político, tanto en interés de los detentadores como de los destinatarios del poder, sea restringido y limitado. Siendo la naturaleza humana como es, no es de esperar que dichas limitaciones actúen automaticamente, sino que deberán ser introducidas en el proceso del poder desde fuera. Limitar el poder político quiere decir limitar a los detentadores del poder; [...] Un acuerdo de la comunidad sobre uma serie de reglas fijas que obligan tanto a los detentadores como a los destinatarios del poder, se há mostrado como el mejor médio para dominar y evitar el abuso del poder político por parte de sus detentadores.119

Após apontar para a superação do dogma da equiparação entre o

119 LOWENSTEIN, Karl. Op. cit. p.29. Em tradução livre: “Com o objetivo de evitar esse perigo sempre presente, que é imanente a todo poder, o Estado organizado exige de maneira imperativa que o exercício do poder político, tanto no interesse dos detentores como dos destinatários do poder, seja restringido e limitado. Sendo a natureza humana como é, não é de se esperar que ditas limitações atuem automaticamente, senão que deverão ser introduzidas no processo do poder desde fora. Limitar o poder político quer dizer limitar os detentores do poder [...] Um acordo da comunidade sobre uma série de regras fixas que obrigam tanto aos detentores como aos destinatários do poder, se mostrou como o melhor meio para dominar e evitar o abuso do poder político por parte dos detentores do poder.”

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constitucionalismo e a separação dos poderes,120 Lowenstein afirma que é preciso então substituir este “esquema mental” enraizado no pensamento político por uma nova análise da dinâmica do exercício do poder, e propõe uma nova divisão tripartida: 1º) a decisão política fundamental, onde são eleitos o sistema político a vigorar em uma nação; 2º) a execução da decisão fundamental, repartida pelas funções legislativa, executiva e judicial; e 3º) o controle político.121

Sobre esta última função, que constituiria o núcleo da nova divisão,122 Lowenstein afirma que seu mecanismo mais eficaz é justamente a atribuição de diferentes funções estatais a diferentes órgãos do Estado, o que termina por obrigá-los a cooperar para atingir as metas governamentais que lhes são atribuídas, ao mesmo tempo que a cada um desses órgãos é reconhecido o poder de controle sobre os demais 123 o que, em suma, caracteriza o sistema de freios e contrapesos.

Além da repartição de funções, a função de controle do poder incluiria formas de controle em que o controlador atua com independência e discricionariedade, como seriam o voto de desconfiança do parlamento sobre o governo, ou o direito do governo parlamentar dissolver o parlamento, o direito do eleitorado de afastar uma lei aprovada pelo legislativo em plebiscito, o veto presidencial a um projeto de lei, etc..124

Para que o sistema de controle do poder se faça eficaz, garantindo um governo responsável125 é preciso consagrar as técnicas de controle na própria Constituição, agora elevada à condição de supremacia sobre o ordenamento jurídico.126 Afinal, instituições destinadas a controlar o poder não nascem e operam pos si mesmas.127

Para verificar a existência de um Estado Democrático Constitucional seria preciso apreciar a existência da distribuição do poder por diferentes órgãos, submetidos cada um deles a um efetivo sistema de controle, sendo que a principal ferramenta de controle reside na possibilidade do controle popular, já que, afinal de contas, é no povo que reside o fundamento do poder 120 Idem. p. 54.121 Idem. p. 62, 63, 66,67.122 Idem. p. 68.123 Idem. p.68-69.124 Idem. p.70.125 Idem. p.71.126 Ibidem.127 Idem. p. 149.

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político.128 Tratando especificamente dos controles do poder, Lowenstein divide

os controles como sendo inter-órgãos e intra-órgãos, ambos incluídos no controle horizontal do poder, enquanto o controle vertical se aplicaria no sistema federativo. Como formas de controles inter-órgãos o autor aponta as respectivas influências recíprocas que existem entre os quatro detentores do poder, que ele afirma serem o governo, o parlamento, os tribunais e o eleitorado. Já o controle intra-órgãos se daria dentro da esfera de um dos três órgãos estatais detentores de poder.129

Ainda que se rejeite o abandono da teoria da separação de poderes proposta pelo autor, embora mitigada sob a forma de uma divisão dos poderes, sem uma rígida distância entre eles, o fato é que não se pode negar a proeminência dos diversos mecanismos de controle do poder político no constitucionalismo dos últimos 70 anos, estabelecidos como forma de assegurar a eficiência de um sistema democrático de governo, de que foi exemplo a criação em larga escala das cortes constitucionais na Europa Ocidental do pós-guerra, e como vem ocorrendo nas últimas décadas na Europa do Leste. No Brasil, além da existência de diversos mecanismos de controle recíproco, foram aperfeiçoadas instituições dotadas de certa independência que visam a garantir a efetiva atuação dos sistemas de controle.130 Em resumo, não há instituição integrante dos poderes que integram o Estado que não exerça alguma forma de controle, e, portanto, que não desempenhe, ao lado de suas funções típicas, também a função de controle.

5 A teoria da separação de poderes hoje

A doutrina dos últimos 40 anos é unânime em apontar para a fragilidade da idéia de uma rigidez de separação de poderes. Afinal, a prática demonstrara ser inteiramente inviável essa separação absoluta entre os poderes131 pois nenhum deles é em si mesmo soberano132 tendo se verificado, 128 Ibidem.129 Idem. p. 232. Para uma crítica da inclusão do controle exercido pelo eleitorado como característico de um controle inter-órgãos, v: ARAGON, Manuel. Op. cit. p. 83, nota de rodapé nº 33, cujo argumento será desenvolvido no item 5.130 Como ocorreu com o Ministério Público e o Tribunal de Contas.131 CAETANO, Marcelo. Op. cit. p. 245.132 BASTOS, Celso Ribeiro. Op.cit. p. 184.

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ao longo da história constitucional, uma “perda gradativa da pureza de cada uma das funções do Estado”,133 do que constituiriam exemplos mais relevantes a prática parlamentarista, em que há uma “simbiose” dos poderes Legislativo e Executivo,134 bem como os casos em que um dado poder do Estado é incumbido de desempenhar tarefas tradicionalmente da competência de outro poder, como ocorre com as atividades administrativas instrumentais desempenhadas pelo judiciário e pelo legislativo, ou com a atribuição de competência legislativa ao Executivo, em decorrência da necessidade de rapidez e tecnicidade na normatização de determinados assuntos.135

Realmente, não se observou o abandono puro e simples da doutrina da divisão dos poderes por nenhum dos Estados ocidentais, pelo menos do ponto de vista formal.136 As três “funções clássicas continuam insubstituíveis”, o que se verifica facilmente pelo histórico constitucional brasileiro.137

Desse modo, o princípio da separação dos poderes, recebido apenas como divisão das funções do Estado, apresenta-se como um “princípio organizatório fundamental”, não consubstanciando um “dogma de valor atemporal”, mas sim como princípio “histórico”.138 Vislumbra-se, assim, um “movimento de acomodação da teoria clássica a novas realidades”.139 Diz mesmo Marcelo Caetano que o problema de saber quais ou quantos devam ser os órgãos ou sistemas de órgãos em que se reparte o poder político do 133 Idem. Ibidem.134 LOWENSTEIN, Karl. Op. cit. p.55.135 Esse fenômeno complexo vem recebendo a denominação de deslegalização, com variantes em função do quadro constitucional dos países, podendo ocorrer via atos regulamentares autônomos ou por atos com força de lei.136 Basta lembrar que durante o último período autoritário brasileiro, que se estende de 1964 a 1985, o Legislativo funcionou, assim como o Judiciário, ainda que sob rígido controle do Executivo, sujeitos ambos, a qualquer tempo, a medidas coercitivas e punitivas. A manutenção do princípio nesse período foi justamente qualificado como homenagem do vício à virtude por MORAES FILHO, José Filomeno. Op. cit., p.153.137 BASTOS, Celso Ribeiro. Teoria...p. 186. Interessante sugestão é lançada por Nelson Saldanha, para quem a formulação de um esquema organizacional geométrico do poder político, isto é, sob a forma tripartite, teria origem nas tradições culturais que vêm desde as primeiras civilizações, e a tendência para as trilogias, como ocorre com a trindade teológica. V. O Estado Moderno e... p. 109.138 CANOTILHO, J. J. Gomes. Op. cit. p. 499. Christian Delacampagne denomina-o de princípio regulador. Op. cit. p.56. 139 BASTOS, Celso Ribeiro. Teoria...p. 187.

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Estado passa a ser mera questão de “arte política”, que varia de acordo com critérios concretos de cada ordenamento constitucional.140

Nesse sentido, a divisão de poderes soa mais técnica do que a separação de poderes. Mas ao reconhecer-se o caráter instrumental do princípio, admitindo-se o seu emprego mesmo em regimes autoritários, onde a divisão se faz meramente formal com o pretexto de manutenção de aparências, em busca de alguma legitimidade externa, fica evidenciado que sem um mecanismo de reforço do sistema, capaz de assegurar a efetiva independência funcional e orgânica de cada um dos poderes, não se pode pretender a realização do Estado Social Democrático de Direito.

Por essa razão se impõe como essencial à consecução de uma Constituição característica do Estado Democrático de Direito a efetiva conjugação da divisão dos poderes com a previsão e a atuação concreta de mecanismos diversos de controle do poder. Só assim será possível empregar a fórmula da divisão dos poderes no sentido atribuído pelo Tribunal Constitucional alemão (Bundesverfassungsgericht), quando se definiu que o seu significado “reside na distribuição de funções, na interdependência dos três poderes, e no equilíbrio do poder resultante dessa interação.”141

No Brasil, o princípio da separação de poderes vem previsto na Constituição Federal de 1988, mantendo a tradição das constituições anteriores, inclusive na fórmula prevista no art. 2º, que afirma que os três poderes são independentes e harmônicos entre si.142 A independência, como já se viu,143 pressupõe ausência de subordinação tanto funcional como orgânica, de modo a que um dos poderes não fique juridicamente submetido a qualquer dos outros.

Já a harmonia pode ser definida em dois sentidos: tanto no respeito às prerrogativas de cada um dos poderes, importando no dever de não invadir competências alheias, como também pela existência do sistema de freios

140 Op. cit. p. 244. No mesmo sentido: SALDANHA, Nelson. O Estado Moderno...p.123. V. ainda: BACHOF, Otto. Op. cit., p. 58: “No existe ningún esquema patenteado de divisíón de poderes que pueda funcionar em todas las épocas y bajo los más diversos supuestos sociales.”141 KIMMINICH, Otto. “Jurisdição constitucional e princípio da divisão de poderes”. Revista de Direito Público, São Paulo, n. 92, 1989, p.22.142 O professor J. H. Meirelles Teixeira chega mesmo a utilizar a expressão “harmonia e independência dos poderes” como sinônimo de divisão ou separação de poderes. Op. cit., p. 572.143 V. item 3.3 supra.

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e contrapesos. Há mesmo quem afirme a existência de um princípio da harmonia, que assim pode ser conceituado:

[...],que não significa nem o domínio de um pelo outro nem a usurpação de atribuições, mas a verificação de que, entre eles, há de haver consciente colaboração e controle recíproco (que, aliás, integra o mecanismo), para evitar distorções e desmandos.144

Nesse contexto é que se deve interpretar o princípio da separação de poderes estabelecido na Constituição Federal, ou seja, não como a já combalida versão rígida do princípio da separação de poderes, mas sim como uma divisão de poderes que admite, em prol da segurança jurídica dos indivíduos e da viabilização do exercício da democracia, um sistema complexo de controles recíprocos.

Por isso, a previsão contida no art.60, §4º, inciso IV da Constituição Federal, que tornou a separação de poderes cláusula pétrea, não se admitindo proposta de emenda constitucional com tendência a abolir esse sistema, tem como pressuposto o fato de que os poderes estatais já sofrem uma série de limitações e controles estabelecidos no próprio texto constitucional. Pode-se afirmar, portanto, que a idéia central do princípio reside na contenção do arbítrio, e menos na idéia de uma garantia de competências exclusivas para cada órgão do Estado, permitindo-se a edificação de um sistema em que se preveja a “interpenetração de funções estatais”, como forma de impor a cooperação dos órgãos políticos do Estado.145 Vale aqui transcrever a precisa lição do professor Otto Kimminich:

O controle recíproco, a limitação e moderação do poder do Estado dele resultantes não têm por escopo o enfraquecimento ou a incapacitação do Estado para o cumprimento de suas funções, mas visam, sobretudo, à proteção do indivíduo e à preservação de seus direitos e interesses no complexo emaranhado de normas e dos órgãos incumbidos de sua aplicação.146

De outro lado, forçoso reconhecer a vinculação da separação dos poderes com o princípio da legalidade, já que apenas com um Legislativo independente será possível submeter a todos por meio da lei, e apenas um 144 SILVA, José Afonso da. Op. cit. p. 111.145 SOUZA NETO, Cláudio Pereira. Teoria Constitucional...p. 31-32.146 Op. cit. p. 23.

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Judiciário imparcial pode assegurar a defesa dos direitos legalmente situados frente ao poder político ou social.147 Ou seja, é preciso que além de um “governo das leis” tenha-se também um governo submetido às leis.148

6 As formas de controle do poder na Constituição

Podemos distinguir três grandes formas de exercício do controle do poder nas constituições: o controle social, o controle político e o controle jurídico.

A classificação de Manuel Aragon enquadra como controle jurídico aquele que seria exercido com caráter objetivado e fundado em razões jurídicas, de modo sempre necessário, cujo desempenho é atribuído a um órgão independente e imparcial, dotado de competência técnica para resolver questões jurídicas. Já o controle político seria fundado em critérios subjetivos, em que haja uma relação de hierarquia entre o controlador e o controlado, de modo voluntário.149

Assim, no controle político a limitação é imposta pelo próprio controlador, como no caso do controle do Parlamento sobre o governo do primeiro-ministro. Já no controle jurídico a limitação vem da norma abstrata, elaborada pelo legislativo, e a atividade de controle seria apenas o exercício da atualização dessa limitação pré-estabelecida, como ocorre com o controle da legalidade dos atos da Administração Pública pelos tribunais.150 Isso não esconde o fato de que essas limitações impostas pelas normas jurídicas trazem em si relações de poder, portanto, questões políticas. Mas é justamente a forma do exercício do controle que diferencia as hipóteses. Nega-se, assim, que a simples regulação de uma forma de controle torne o exercício desse controle um controle jurídico. O direito, pois, limita-se a traçar o procedimento e definir as competências do exercício do controle político, na sua função de garantia institucional, mas não entra no cerne do substrato utilizado para o controle em si.

6.1 Controle jurisdicional como modelo de controle jurídico

147 Essa associação é feita expressamente em SALDANHA, Nelson. O Estado Moderno e ...p.112.148 SOUZA NETO, Cláudio Pereira. Teoria Constitucional ...p.35.149 Op. cit., p.82-83.150 Idem. p. 84.

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Desenvolvendo o tema, Aragon afirma que o controle jurisdicional do poder é um controle jurídico justamente porque seus parâmetros são retirados do sistema normativo pré-existente, que não fica à disposição do julgador para decidir se deve ou não aplicá-lo. Afinal, as limitações já estão postas pelo sistema normativo, não são criadas pelo órgão de controle. Será exercido esse controle com base em razões jurídicas, por isso a possibilidade de sua verificação e reforma por órgãos judiciais superiores. Verificando-se a infração à ordem jurídica, terá o controlador de impor a sanção prevista, ainda que seja a de inconstitucionalidade do ato submetido a controle.

Ganha especial relevância o caráter jurídico-normativo da Constituição, em que o texto constitucional é encarado não mais como mero programa político, e sim como um sistema normativo que é perfeitamente aplicável pelos magistrados na resolução dos casos concretos, ou seja, torna-se o centro de toda a ordem jurídica, e, para que se mantenha o caráter objetivado do controle jurídico, é preciso desenvolver critérios objetivos de interpretação da Constituição.

São essas características que levam o professor espanhol a afastar de tal classificação o controle administrativo, ou seja, aquele exercido pela própria Administração Pública sobre a sua atividade, pois estariam ausentes a objetividade e a imparcialidade das decisões de controle.151

Concorda-se parcialmente com tal assertiva, na medida em que o controle administrativo parece insuficiente para assegurar o respeito à legalidade, ou para garantir a defesa dos direitos fundamentais, enfim, permitir o efetivo controle do poder público, sem que, contudo, isso importe em afastar a atividade de controle administrativo de mais próxima legalidade e imparcialidade possível. De outro lado, e sem pretender aqui estender-se sobre o tema, haverá sempre um limite ao controle jurídico da atividade administrativa, por razões diversas, e aqui o controle administrativo revelará toda a sua importância, pois incidirá onde o juiz não tem condições de agir.152

O objeto desse controle jurídico incluiria todo o tipo de ato praticado pela administração pública, para aferir sua conformidade com o direito, em um sentido amplo a ponto de abranger até mesmo a produção de normas jurídicas, incluindo o controle de constitucionalidade das leis, e até das reformas constitucionais através de emendas. Assim, fica demonstrado que o que se controla não são os órgãos públicos, ou as pessoas que desempenham 151 Op. cit. .p.94.152 O próprio Manuel Aragon não chega a enquadrar o controle administrativo como forma de controle político.

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funções públicas, mas os próprios atos praticados por tais agentes.153

Outra questão interessante diz respeito aos controles prévios de constitucionalidade das leis, exercidos por algum órgão estatal, podendo mesmo ser denominado de Tribunal Constitucional, como ocorre na França, em que o objeto de controle é ainda um projeto de lei, e, assim, um ato que não produz efeitos jurídicos, e o seu resultado não será a nulidade do ato, mas o impedimento à produção de efeitos. Isso permite afastar a qualificação dessa função como jurisdicional.154 O que importa, porém, não é se a função é tipicamente jurisdicional, e sim se o controle é jurídico, o que pode ser afirmado ante o exercício do controle por razões de ordem jurídica, sobre um ato estatal juridicamente relevante, ainda que não produza efeitos, com base no sistema normativo anteriormente fixado, praticado por um órgão independente e imparcial, especializado nessa tarefa, apresentando como resultado um efeito sancionatório.155

6.2 O controle parlamentar como modelo de controle político

A principal característica do controle político consiste no fato de que a limitação é posta pelo próprio controlador, podendo se afirmar que tratar de um controle de oportunidade, já que não há um cânone fixo, e sim um parâmetro disponível para o controlador. São razões de conveniência política que vão fundamentar a decisão do controlador, pois, como afirma Aragon: “el órgano o el sujeto controlante es libre para ejercer o no el control y que, de ejecerse, el resultado negativo de la valoración no implica, necessariamente, la emissión de uma sanción.”156

É preciso lembrar, porém, que se trata de um controle institucionalizado, diferenciando-se do controle social, razão pela qual há de haver expresso reconhecimento pela ordem jurídica de tal competência controladora.157 Por se tratar de uma forma de controle externo, essa competência deverá ser definida na própria Constituição.

Assim, dotados de competência juridicamente fixada, exercerão 153 Op. cit. p.94-95.154 Op. cit. p. 97. O autor propõe a denominação de função consultiva.155 Op. cit. p.98.156 Idem., p.92. Em livre tradução: “[...] o órgão ou o sujeito controlador é livre para exercer ou não o controle, e que, de exercer-se, o resultado negativo da valoração não implica, necessariamente, a emissão de uma sanção.”157 Idem. p. 145.

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órgãos e agentes sua atividade de controle político, submetendo a controle não exatamente os atos dos controlados, mas os próprios órgãos e agentes a eles submetidos, ainda que o controle se realize eventualmente de forma indireta, através dos atos por eles produzidos.

A liberdade de exercício do controle, como antes afirmada, significa que ainda que se faça referência a normas constitucionais ou infra-constitucionais, não há critérios próprios de aferição da interpretação lançada pelo controlador. Tem-se como exemplo claro o controle parlamentar sobre a urgência e relevância das medidas provisórias. A interpretação que prevalece no Supremo Tribunal Federal é a de que cabe exclusivamente ao Congresso Nacional, e hoje também às Assembléias Legislativas, definir se tais espécies normativas preenchem ou não o critério constitucional. Vejamos a conclusão do professor espanhol:

En resumidas cuentas, en el control político, aun en los supuestos en que el ordenamiento se refiere a un canon normativo de comprobación, la libertad de valoración de ese canon, las razones de oportunidad que la presiden, la liberdad de decisión (política) mediante la cual el control se manifiesta, hacen que el parâmetro sea enteramente disponible para el agente del control. Se trata siempre, pues, de una decisión política basada en razones políticas.158

O controle parlamentar representa o paradigma desse tipo de controle, pois a simples submissão de atos estatais ao seu exame já configura o controle político. Nesse campo, o direito e a política se associam de forma quase a confundir-se. Como antes afirmado, para que haja o exercício do controle político é necessário que haja norma prevendo essa atividade, mas isso não transforma o controle político em um controle jurídico. Ou, por

158 Op. cit. p. 152. Em livre tradução: “Em resumo, no controle político, ainda nas hipóteses em que o ordenamento se refere a um cânone normativo de comprovação, a liberdade de valoração desse cânone, as razões de oportunidade que a presidem, a liberdade de decisão (política) mediante a qual o controle se manifesta, fazem que o parâmetro seja inteiramente disponível para o sujeito do controle. Trata-se sempre, pois, de uma decisão política baseada em razões políticas.”

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outras palavras, a juridicização desse controle não transforma sua natureza.159 O que há, de fato, é a regulação da competência, do procedimento, dos instrumentos de controle político.

6.3 Controle social como atividade não institucionalizada

Seguindo o critério aqui adotado, o controle social retrata o controle dos poderes políticos efetuado de forma não institucionalizada. A sua operação se dá de maneira difusa, por meios e modos diversos, incumbindo ao direito, em especial à Constituição, prever garantias que permitam o seu livre exercício. Tal se dá, primordialmente, pela tutela dos direitos fundamentais, já que a liberdade do cidadão, e aqui o termo é tomado em seu sentido material, é pressuposto necessário para a própria existência do controle social.

Constituem formas de controle social do poder político a atividade da imprensa livre e a manifestação da opinião pública, incluindo os grupos organizados por interesses específicos, ou seja, manifestações da sociedade organizada por meios protegidos pelo direito, mas não amplamente regulados, como ocorre no estabelecimento das competências dos controles antes analisados.160

7 Conclusão

A Evolução do pensamento político-jurídico foi capaz de construir um sistema em que a necessária repartição de tarefas públicas, presente em qualquer forma de organização política estatal, impunha a distinção entre órgãos dotados de poder político, cada um titular de competências específicas, determinando diferentes formas de composição e formação de seus quadros, para evitar a concentração de poder. Mas a simples divisão de poderes demonstrou ser insuficiente para garantir a liberdade dos indivíduos, implicando o isolamento das diversas esferas públicas, além do

159 Idem. p. 159.160 Tais formas de controle constituem o que Charles Cadoux denomina de contra-poderes, destinados a conter a tendência monopolizadora da ação governamental. Apud CASTRO, Flávia Viveiros de. O Princípio da separação dos poderes. In: Manoel Messias Peixinho, Isabella Franco Guerra e Firly Nascimento Filho (orgs). Os Princípios na Constituição de 1988. 2 ed., Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2006. p. 144-145.

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distanciamento entre o governo e a sociedade. Esse caráter instrumental da separação de poderes, funcionando como critério estruturante do moderno Estado ocidental, foi capaz de conviver com diferentes formas históricas de organização política,161 algumas delas hoje francamente inaceitáveis pela consciência política ocidental. É preciso superar essa mera exigência formal de divisão dos poderes.

Um sistema de controle do poder, como forma de tornar efetivas as limitações impostas na Constituição, parece ser hoje inerente ao Estado Democrático de Direito, onde se pretende garantir as liberdades individuais, num regime político que visa a assegurar um mínimo de igualdade social, sem a qual as liberdades formais não passam de peça ilustrativa. Assegurar, assim, a intervenção e regulação exercidas pelo Estado para cumprir suas tarefas no mundo atual exige que haja permanente controle de todos os detentores do poder político, ainda que os modelos de controle diferenciem-se em razão do poder que se exerce e do órgão que exerce o controle. De fato, as modificações do Estado decorrentes do fenômeno da globalização e a conseqüente diminuição do poder de conformação das instâncias estatais exigem mudanças no aparelhamento e no desempenho das funções estatais, sem que se possa, contudo, abdicar do permanente controle dos poderes políticos. A eficiência exigida pelos mercados e pelo controle democrático dos agentes públicos há de conjugar-se com a juridicidade, sob pena de perder-se toda a herança de conquistas advindas desde o estabelecimento do Estado de Direito. Como afirma Cláudio Pereira de Souza Neto, a imposição de cooperação e a previsão de interpenetração de tarefas na Constituição não desvirtua a separação de poderes, antes a incrementa, na medida em que as limitações entre os poderes são aprofundadas. A noção a preservar-se, portanto, é a de que:

Não há, portanto, uma separação estanque das funções estatais, mas uma ampla e intrincada rede de implicações recíprocas, a qual tem como objeto evitar o arbítrio, eventualmente decorrente de uma concentração excessiva do poder.162

Mudanças legislativas ou constitucionais que visem a aprimorar tal sistema são bem-vindas, como foram os casos do Conselho Nacional de Justiça e do Conselho Nacional do Ministério Público, ainda que, na atuação prática recente de tais instituições seu trabalho possa ser criticado. Afinal, a organização dos poderes imposta na Constituição Federal é uma obra 161 CASTRO, Flávia Viveiros de. Op. cit., p. 134.162 SOUZA NETO, Cláudio Pereira. Teoria constitucional...p.33.

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humana, que merece retoques em decorrência da exposição da fórmula à realidade dos fatos.

Resta reconhecer, por fim, que o sistema de controle do poder, não obstante a variabilidade que pode assumir nos diferentes sistemas jurídicos nacionais, também não se constitui em uma fórmula mágica, capaz de assegurar as liberdades, a democracia e a igualdade. De fato, a simples previsão normativa de um sistema de controle das instituições políticas não assegura, por si só, o resultado aqui propugnado. Parece hoje a única possibilidade técnica de se garantir o funcionamento justo de uma democracia, mas boa parte de seu funcionamento dependerá que quem governa o país, de quem exerce o controle do poder, o que inclui a própria sociedade. Vale citar, pois, o que escreve Christian Delacampagne: “Mas as estruturas legais, por melhores que sejam, nem sempre bastam para proteger a democracia. É preciso, ainda, que os homens queiram jogar o jogo.”163

Se essa afirmação pode nos levar a um sentimento de frustração, em virtude da realidade da política brasileira dos últimos anos, há que se reconhecer, de outro lado, os enormes avanços do país no campo institucional, consolidando um sistema de eleições confiável, a liberdade de imprensa, a amplitude do poder de investigação das polícias e também do Ministério Público, um progressivo amadurecimento dos Tribunais de Contas, sucessivas instalações de comissões parlamentares de inquérito, e até a formação de grupos de pressão na sociedade para exigir ações públicas especificas, o que demonstra que o poder político hoje é controlado em nosso país, e se há defeitos – e ainda existem muitos – a solução é a continuação da caminhada institucional. É preciso afastar a idéia de soluções simplistas e voluntaristas, que sob o manto da justiça social ou da transformação das estruturas termina por violar as liberdades individuais e desmerecer o próprio processo democrático, esfacelando qualquer veio de legitimidade. Para isso, parece necessário o aperfeiçoamento da legislação, possíveis emendas constitucionais pontuais, e, sobretudo, contínua prática democrática, na medida em que, como ressalta Nelson Saldanha, as realizações culturais de um povo não correspondem apenas a vocações e intenções, mas também a chances e necessidades164 e a construção de uma sociedade justa e igualitária, com democracia e liberdade, exige um processo contínuo, com avanços e recuos, e com um destino aberto a opções políticas consistentes com a deliberação democrática.163 Op. cit., p. 58. 164 O Estado moderno...p. 91.

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Assim como a idéia de uma divisão de poderes já passou a integrar o conceito de uma constituição na contemporaneidade, a ela se associa - de forma complementar, mas necessária - a idéia de um sistema de controle das limitações do poder, pois se existe uma verdade que as diversas críticas ao liberalismo político não conseguiram afastar é a de que o funcionamento da democracia exige o pleno exercício das liberdades dos cidadãos, o que, por sua vez, só pode se verificar com um permanente sistema de controle do poder.

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ESTADO PÓS-NACIONAL E AMPLIAÇÃO DA LIBERDADE DO CIDADÃO NA EUROPA CONTEMPORÂNEA

Daniel Machado Gomes

« Je ne suis “libre” ni d’échapper au sort de ma classe, de ma nation, de ma famille, ni même d’édifier ma puissance ou ma fortune, ni de vaincre mes appétits les plus insignifiants ou mes habitudes ». 1

Se fora do organismo político, qualquer que seja, não há significado nem dignidade para o homem, como defende Hannah Arendt, é preciso que esta vivência política não se converta em totalitarismo, garantindo a liberdade e a pluralidade de valores na sociedade. O Estado, como organização política, deve estar estruturado de maneira a tutelar a liberdade do homem. Hoje, vê-se um enfraquecimento do modelo do Estado-nação. Por um lado, há desafios que ultrapassam a possibilidade de uma solução nacional, como nas áreas da segurança e da economia. Por outro, há os anseios a uma liberdade que desconheça fronteiras territoriais e se materialize através de uma cidadania transnacional. Ganha revelo, assim, a idéia de um novo modo de organização política desvinculada do nacionalismo, capaz de potencializar a liberdade - o Estado pós-nacional.

O espaço político apresenta-se sob variadas maneiras no decorrer da História. Nações e Estados são contingenciais, e a congruência dos dois conceitos não é um imperativo necessário, como pretende o nacionalismo. A crise do Estado-nação evidencia-se pela tendência de formação de blocos políticos e econômicos, destinados a cuidar de matérias que o Estado nacional já não pode enfrentar isoladamente – direitos humanos, crimes contra a ordem econômica, tráfico de entorpecentes e pessoas - ou mesmo matérias concernentes ao comércio, subsídios agrícolas, ou às telecomunicações. A “questão nacional”, como chamada pelos marxistas, refere-se à intersecção de política, tecnologia e fatores sociais. A nação, um dos elementos formadores do Estado, pela teoria clássica, o é de um tipo de Estado, ligado a um estágio específico do desenvolvimento econômico. Na 1 SARTRE, Jean Paul. L’Etre et le Néant, coll. Tel, éd. Gallimard, pp. 538-539.

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era do pós-industrialismo, com um capitalismo globalizado, o Estado assume uma feição pós-nacional. A União Européia é o mais bem sucedido exemplo de cooperação e integração entre Estados. Na visão de Jean Marc Ferry, insinua-se hoje um Estado europeu. Para o autor, a unificação da moeda no espaço europeu, a integração dos sistemas militares, a cooperação judiciária e policial, uma certa coesão quanto à política externa assinalam mais do que uma união política européia, indicando a emergência de um Estado, em moldes diversos dos Estados nacionais, cujo processo de formação é igualmente diverso.

O anseio a uma liberdade, materializável através de uma cidadania transnacional, é próprio do homem modular. O homem modular – como Gellner chama – é capaz de combinar-se a associações e instituições, sem que estas lhe sejam totais, porém estabelecendo múltiplas ligações. Ele pode desligar-se de uma associação, sem ser acusado de traição, de apostasia, porque é altamente variável em suas atividades, executando tarefas diversificadas num mesmo código cultural. A mobilidade do homem modular manifesta-se através da homogeneidade cultural, da capacidade de comunicação livre de contexto, da padronização da expressão e da compreensão, que, paradoxalmente, contribui tanto para formação da sociedade nacionalista, quanto da sociedade civil. Por isso, as mesmas forças que produziram a modularidade, produziram o nacionalismo, ambos opondo-se ao Estado absolutista barroco. Para Gellner, essas duas forças – modularidade (individualismo) e nacionalismo - entraram em colisão, porque o liberalismo do homem modular, levado às últimas conseqüências, não pode suportar o culto à comunidade. A aversão do homem modular a imposições sociais faz com que ele aspire pela condição de cidadão cosmopolita. A nacionalidade, determinante de status jurídico de cidadão, é opressora e totalitária para um homem que decide as associações a que pertence. A condição jurídica do homem modular nasce da sua humanidade. A cidadania não pode estar subordinada a um território onde se nasça, nem a uma linhagem à qual se pertença, mas deve decorrer da própria condição de ser humano, transbordando assim, as fronteiras do nacional.

A idéia de um Estado pós-nacional é passível de analogia com a visão kantiana da Paz Perpétua. Em ambos há a postulação de conquista da liberdade, através da criação de uma estrutura jurídica que não é o direito interno, tampouco o direito internacional, mas um direito cosmopolita. Kant não propõe um super-Estado, mas sim uma associação de Estados, evitando o problema da soberania estatal. Kant pretende a transplantação do

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ideário iluminista da lei como geradora de liberdade individual, e do Direito conquanto instrumento pacificador das relações entre os povos, por força do desenvolvimento de uma associação dos Estados nacionais. O Estado pós-nacional possui exatamente essa leveza, coexistindo com a estrutura nacional, superando-a porém, em alguns aspectos, mas sem a pretensão de ser uma força totalizante e absoluta. O substrato ético da teoria kantiana da paz perpétua é o mesmo de um Estado pós-nacional, pois a condição de cosmopolita deve-se ao fato de que todos os homens possuem o direito de entrar em sociedade com seus semelhantes, em virtude da posse comum originária de toda a superfície da terra.

A implementação de um modo de organização política como o Estado pós-nacional é a implementação de uma liberdade internacionalizada, que desconhece o fracionamento territorial, materializando-se na cidadania cosmopolita cuja fonte é o próprio humanismo. Estruturar o funcionamento de uma ordem política dessa natureza é um desafio para a ciência jurídica, que requer respostas quanto à sua operacionalização. Para tanto, é preciso delimitar alguns conceitos que se referem ao novo modelo de organização política: a começar pela auto-certificação do conceito de estado pós-nacional; passando pela aplicação desse conceito à Europa unificada de hoje; para, finalmente, especular sobre os efeitos de uma ordem política pós-nacional na cidadania.

1. Como entender a expressão Estado Pós-Nacional?

Habermas, em estudos sobre a modernidade e a pós-modernidade, refere-se ao prefixo pós como prefixo de negação do termo subseqüente, assim a pós-modernidade deve ser entendida como a negação da modernidade. Por Estado pós-nacional, portanto, deve-se entender, utilizando-se a explicação de Habermas, a negação do elemento nacional como um dos componentes do ente público. Essa idéia apresenta dois problemas correlatos: a exata compreensão do significado dessa negação, e o modo de estruturação jurídica dessa nova forma de Estado.

A negação ao elemento nacional não deve ser entendida como negação da existência da nação, enquanto objeto em si mesmo. Ao contrário, o Estado pós-nacional não se preocupa em discutir a espontaneidade da nação, antes desvincula-se dela, reconhecendo a maior pluralidade possível de nações dentro da sua estrutura. Não se trata da negação à existência da nação ou da nacionalidade, mas do esvaziamento do conteúdo jurídico das

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categorias de nacional ou estrangeiro, que passam a representar o mesmo em face do Estado. Desse modo, a cidadania independe da nacionalidade no Estado pós-nacional. A condição jurídica de todos os homens está igualada, e a idéia de nação fica desprovida de qualquer significado jurídico, reduzida a um elemento cultural, na pluralidade da vida pública.

A estruturação desse Estado dá-se pela associação das nações, convivendo pacificamente, sob um espaço político comum, onde os fundamentos sejam a democracia e um direito cosmopolita, que se aplique a todos os povos. Isso implica na necessidade de um poder centralizador para impor as normas jurídicas, o que colide com a teoria clássica da soberania nacional, soberania que tem sua máxima expressão na nação. Surge então a importância de se analisar a possibilidade de um soberania compartilhada ou a legitimidade de uma transferência da soberania nacional ao ente supra-nacional.

Tanto uma cidadania cosmopolita, quanto uma organização política supra-nacional demandam um direito renovado, e fundado em bases comuns a todos os povos. A superação da nação não significa a padronização, a planificação totalitária da cultura, significa sim a co-existência das diferentes expressões culturais num mesmo espaço político, verdadeiramente democrático, onde todos possuam a mesma condição perante o ente público. Trata-se, naturalmente, de um modelo ideal, e o presente artigo pretende analisar como essa estrutura jurídica seria mais condizente com o nosso tempo, e ainda as possibilidades de se considerar a Europa como um Estado pós-nacional.

2. É possível uma organização política que não seja o Estado-nação?

Na nação reside o substrato da soberania do Estado, segundo a visão rousseauniana do contrato social. Nessa perspectiva, ela deve ser entendida como um a priori, um conceito pré-político que antecede a formação do Estado. Surge então, a indagação sobre a forma (no sentido aristotélico) da nação, ou seja, aquilo que faz com que uma nação seja uma nação. A partir da resposta a essa indagação pode-se estabelecer a relação entre nação e Estado, para então determinar-se a possibilidade de uma estruturação política desvinculada desse conceito.

Dois posicionamentos se apresentam em relação à nação. O primeiro une teóricos marxistas e liberais, para quem a nação é uma construção artificial, não podendo, portanto, ser conhecida senão a posteriori, depois de

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formado o Estado. Benedict Anderson, marxista que dedicou-se ao estudo da questão nacional, vê a nação como uma comunidade imaginária, uma criação política para legitimar o Estado e a empresa industrial. O segundo posicionamento é esposado por teóricos de caráter contratualista, que vêem a nação como um grupo aspirando, naturalmente, por independência, e existindo em si mesmo. De acordo com essa visão, a nação, através da constituição, transfere a soberania ao Estado, conferindo-lhe legitimidade para o exercício do poder. Nesse segundo grupo de teóricos, sobressai a figura de Ernest Renan, que dedicou-se a definir o conceito de nação. Renan, em conferência proferida na Sorbonne, menciona a teoria francesa do direito das nações (de cunho liberalista) e a teoria alemã organicista (baseada no elemento étnico), concluindo por uma concepção eletiva de nação, adotando o argumento voluntarista, segundo o qual, a nação é uma escolha incessantemente renovada de seus membros.2

Durante o século XX, um dos autores que mais dedicou-se à análise da relação entre nação e Estado foi Ernest Gellner. Ele analisou o fenômeno político moderno sob a perspectiva do que chamou nacionalismo, termo que utiliza para designar a necessária congruência entre nação e Estado. A política, segundo ele, necessita de uma justificação de autoridade, uma legitimação3 que nas sociedades industriais dá-se pela capacidade de produzir e conservar uma riqueza generalizada, assim como, por uma cultura comum entre governantes e governados. A teoria de Gellner sobre o nacionalismo passa exatamente pela satisfação dessas condições. Ele critica a idéia de que o nacionalismo seja um fenômeno natural, demonstrando que ele não se origina das nações, sendo muitas vezes a origem delas. O nacionalismo é o substrato legitimador do Estado moderno, determinando um sentimento de lealdade e identificação da população em relação às unidades políticas. A nação, portanto, normalmente interpretada como fruto de um protonacionalismo popular tendente à formação de um Estado, nada mais é do que uma criação do próprio Estado. Basta pensar que, antes da alfabetização generalizada na Europa, não havia nenhuma língua nacional4. A consolidação da educação serviu também para a consolidação de uma divisão do trabalho, que é peculiar à industrialização e ao Estado nacional.

Uma vez apresentadas as correntes teóricas que se referem à questão

2 Idem, p. 61.3 GELLNER, Ernest. Nacionalismo e democracia. p. 444 HOBSBAWM, Eric. Nações e Nacionalismo. p.69

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nacional, dá-se o desdobramento das interpretações supramencionadas quanto à soberania, a qualidade do poder do Estado. Para a teoria clássica, a nação é o substrato da soberania entendida como um poder uno, indivisível, imprescritível e inalienável. Cada nação deve corresponder a um Estado soberano na visão de Mazzinni, intelectual italiano responsável pelo embasamento teórico do Rissurgimento. Dessa maneira, atingindo-se a soberania do Estado atinge-se diretamente a nação, pois a qualidade de soberania depende do elemento nacional. Partindo-se, portanto, da idéia de que a nação não é um referencial a priori, a soberania, enquanto qualidade intocável, fica fragilizada, ou melhor, pode ser repensada para além das fronteiras nacionais.

O Estado moderno sustenta-se na relação com a nação, mas o enfraquecimento desta, da função e da idéia que ela encarnava é um fenômeno atual5. Partindo-se da não congruência entre esses dois conceitos, surge a possibilidade de um modo de organização política diverso do Estado nacional. Na medida em que essa nova forma de estar na vida pública desvincula o poder da nação, insinua-se o Estado pós-nacional, no qual o substrato de legitimidade é o homem pelo simples fato de ser homem.

3. Em que medida a União Européia pode ser considerada como um Estado?

A União Européia possui uma estrutura executiva, legislativa, e jurisdicional, através de instituições comunitárias, cujas normas e decisões têm aplicação imediata nos Estados membros. Trata-se de uma estrutura supranacional, onde o direito vigente não é internacional, mas comunitário. A definição de supranacionalidade é controvertida, apesar disso, a integração européia encontra-se sobre ela estruturada. O significado da supranacionalidade pode ser entendido de duas maneiras: como uma soberania compartilhada, e como uma transferência da soberania dos Estados membros.

Jean Marc Ferry analisa a Europa unificada como um Estado de povos unidos, o que na sua leitura configura a maior revolução política da história contemporânea.6 Trata-se de uma nova forma de Estado, um Estado cosmopolita, pós-nacional, com uma estrutura jurídica de base que

5 LEFORT, Claude. Nação e soberania In A Crise…, p. 586 FERRY, Jean Marc. La Question de l’État Européen. P. 10.

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estabelece uma certa liberdade para relações jurídicas de ordem privada – contratar, residir, trabalhar – e com normas de direito público. Para ele, a União Européia instituiu um descompasso entre a comunidade moral e a comunidade legal, citando os termos empregados pelo pensador americano Michael Walzer. Por comunidade moral entenda-se a comunidade de crenças, valores, idéias de indivíduos que compartilham um mesmo espaço cultural, num mesmo momento histórico. Comunidade legal deve ser entendida como a aplicabilidade de políticas públicas oponíveis a uma coletividade sob mesma jurisdição. O Estado tradicionalmente apresenta-se como a união dessas duas formas de comunidade, embora, cada vez mais, elas dissociem-se nas sociedades atuais. Segundo Ferry, esse rompimento é uma tendência no interior das nações ocidentais, que valorizam o multiculturalismo. Assim, surge a crise da idéia de que comunidade moral e legal devam, necessariamente, caminhar juntas.

É possível porém, analisar a União Européia como um organismo sui generis, que altera o funcionamento dos velhos Estados europeus, mas não lhes retira a soberania. Jellinek serve de embasamento a este posicionamento, pois defende que embora o Estado precise de poder para desempenhar funções, este poder não é, necessariamente, soberano (Estado medieval, por exemplo). Para ele, a soberania surgiu conjuntamente com o Estado moderno, para justificar a reunião de poderes nas mão dos monarcas, não se confundindo, portanto, a soberania com os poderes do Estado. Na visão de Jellinek, o Estado sobrevive, mesmo se integrado a uma estrutura supranacional, que exerça poderes peculiarmente estatais.

Não é simples determinar uma solução à questão do Estado Europeu. A matéria, todavia, merece ser apreciada sob uma ótica renovada, pois trata-se de um novo paradigma de Estado, capaz de conviver com um alto grau de autonomia das nações que o compõe. A supranacionalidade difere-se da federação e da confederação, requer novos e criativos métodos para análise. O Estado Europeu é um Estado pós-nacional, na medida em que supera o elemento nacional, concedendo um novo tipo de cidadania, diferente daquela vinculada à nação. Por outro lado, não é uma organização centralizadora, nem apóia-se nos mesmos elementos vinculantes do tradicional Estado nacional, ele representa a morte do Estado no sentido universalizante de até então. O Estado Europeu destrói o universalizante e o absoluto, e abre-se à realidade do pluralismo da própria Europa.

4. Uma organização política do tipo “Estado” separada do elemento

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nacional é um fator de ampliação da liberdade individual?

Estado pós-nacional é um modo de organização política que amplia a liberdade individual, na medida em que é um modo de organização da vida pública onde se privilegia a pluralidade. Isso ocorre porque nele a condição de cidadão está dissociada da nacionalidade, enquanto no Estado moderno, a fronteira territorial é também uma fronteira ao exercício da liberdade. Trata-se de uma outra concepção de democracia, na qual os indivíduos apresentam-se como sujeitos de direitos, independentemente das qualificações.

A cidadania pode ser entendida segundo duas orientações, ambas com origem no século XVIII. Para uns, sob uma perspectiva liberal, a cidadania representa sobretudo a liberdade individual e a propriedade privada. Segundo essa visão, a cidadania é uma vitória da burguesia sobre o Ancién Regime, sem preocupação com a socialização desta conquista. Outros vêem a cidadania, sob uma ótima mais progressista, pois analisam o homem no meio social e econômico, enfatizando não apenas a importância da liberdade, mas também da igualdade. É basicamente a visão da III República, que se manifesta através da laicização do Estado, e da universalização do estudo, com a alfabetização em massa. Na visão de Dollinger, a cidadania tem caráter adicional, político, que faculta às pessoas certos direitos políticos.7 Para Hannah Arendt cidadania é o direito a ter direitos, cujo exercício é o meio criador do espaço público que torna possível a liberdade. Cidadania, enfim, é uma prerrogativa de liberdade que envolve aquisição e gozo de direitos de todas as ordens – direitos civis, individuais, sociais e políticos.

Não se deve, contudo, interpretar essa conquista liberal meramente como um meio para se alcançar um modelo econômico. A razão de ser desse novo Estado é a autonomia democrática, que exige uma economia igualmente democrática, onde compartilhem-se os bens livremente entre os povos. Um Estado pós-nacional amplia a liberdade individual por ter como substrato liberdade, especialmente no que tange à circulação. Ele não se afirma apelando ao dever cívico, à lealdade, à identidade, à dívida de pertencer a um grupo determinado. Ao contrário, a cultura do pós-nacional é a cultura do pluralismo por excelência, é o meio político da diversidade, onde o fator que conta é a liberdade do indivíduo e sua opção de escolha. Nada, além da própria escolha, pode ser determinante da condição de sujeito de direitos em face do ente político ou de qualquer outro ente.

Na era do Estado-nação, a prerrogativa da cidadania está interligada 7 DOLINGER, Jacob. Direito Internacional Privado. p.155.

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à condição de nacional, pois a nação é o fundamento desta forma de Estado, ela constitui um fato natural anterior à cidadania. O Estado pós-nacional, ao contrário, é uma forma de organização que dissocia a cidadania da nacionalidade, e esvazia o conteúdo jurídico desta para conceder a todos a condição de cidadão pelo simples fato de pertencerem à condição humana. A base desta nova cidadania está na erosão do elemento nacional e extensão das vantagens individuais e sociais, pois um dos princípios norteadores do Estado pós-nacional é a livre circulação, seja ela de bens, seja de pessoas. Essa é a característica mais visível dessa nova forma de Estado, que relaciona-se com o grande mercado global e as exigências de mobilidade e de uma economia mundializada.

7. O Estado pós-nacional pode ser entendido como o modelo kantiano de associação de Estados da Paz Perpétua?

Kant escreveu a A Paz Perpétua sob a forma de um tratado internacional. Para tanto, baseou-se em quatro pontos principais: 1) os Estados, no que concerne às suas relações externas, vivem num estado jurídico provisório; 2) o estado de natureza é um estado de guerra, portanto injusto; 3) por ser injusto, os Estados devem fundar uma federação de Estados, uma espécie de contrato social; 4) essa federação é uma associação de Estados e não um superestado. Para se alcançar esse estado de paz, Kant apresenta três artigos definitivos: 1) a constituição de qualquer Estado deve ser republicana; 2) o direito internacional deve fundar-se numa federação de Estados livres; o direito cosmopolita deve ser limitado às condições de uma hospitalidade universal. Interessa-nos o terceiro artigo definitivo quando o autor trata do direito cosmopolita. Passemos agora a analisar a proposta de Kant em face do ideário de um Estado pós-nacional.

A primeira objeção à analogia com a proposta kantiana é fato de Kant não propor a formação de um Estado, mas de uma associação de Estados. Preliminarmente, é preciso compreender o conceito de Estado, segundo a visão kantiana. O Estado para Kant é uma criação através da qual o povo deixa sua liberdade externa para retoma-la novamente como membro de um corpo comum, ou seja, como membros do povo enquanto Estado.8 Nesse sentido, o Estado kantiano é um Estado liberal, cujo objetivo é permitir o desenvolvimento da liberdade individual. Portanto, mesmo o que

8 KANT. Metafísica dos Costumes. P. 502

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Kant chama de associação de Estados pode ainda ser interpretado como um Estado, visto que também reúne prerrogativas de soberania, especialmente no que concerne ao direito cosmopolita. Em sentido contrário, vem o fato de Kant referir-se à aplicação de um direito internacional, concomitantemente, a um direito cosmopolita, entre os povos. Quanto a isso, a proposta de um Estado pós-nacional vai além da idéia kantiana, pois extingue a aplicação das normas internacionais entre as nações que o compõe. Não se trata, pois, de uma federação como nós conhecemos, tampouco de um organismo nacional, mas de uma estrutura intermediária, que pode ser considerada como a morte do Estado, se a premissa da análise for o Estado tal qual se apresenta atualmente. Nesse caso, trata-se sim da morte do Estado. Todavia, morte aqui não significa o fim do Estado, mas simplesmente a morte da possibilidade de uma universalização absoluta de poder soberano através da divisão de atribuições e competências com células políticas menores. O Estado pós-nacional é o ente soberano tão somente quanto à concretização da sua finalidade: a liberdade individual, que se dá através de uma cidadania supranacional de todos os homens, independentemente do povo a que pertença.

O direito cosmopolita kantiano é a prerrogativa do estrangeiro não ser tratado com hostilidade no território de um outro Estado. A proposta pós-nacional é uma concretização dessa prerrogativa, por extinguir as categorias jurídicas de estrangeiro e de nacional. Segundo essa ótica, todos são de todos os lugares, o que se justifica na premissa kantiana do direito de todos os homens de entrar em sociedade com seus semelhantes, em virtude da posse comum originária de toda a superfície da terra. O direito cosmopolita, portanto, se materializa no constituição de uma cidadania supranacional, regida por um ente estatal pós-nacional.

A filosofia política kantiana baseia-se na liberdade individual, finalidade do Estado pós-nacional, que promove a paz mundial, em conseqüência de um sentimento de fraternidade independente das diferenças culturais, da nacionalidade. A analogia entre o Estado pós-nacional e a associação de Estados kantiana funda-se ainda, no fato de ambos preverem uma união de povos estruturada em um princípio comum, regida por um direito que não possa ser definido como internacional, nem como nacional – o direito cosmopolita. O Estado pós-nacional porém, vai além da idéia kantiana na medida em que supera as qualificações de nacional e estrangeiro, rompendo a necessidade do direito internacional, embora não impeça a coexistência de autoregulação dos povos que o compõe, desde que esta não

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implique limitação à liberdade dos demais membros do ente público.

8. Referências Bibliográficas

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GELLNER, Ernest. Nations and Nationalism. Ithaca: Cornell University Press, 1983.

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_____. Nacionalismo e Democracia. Trad. de Vamireh Chacon e outros. Brasília: universidade de Brasília, 1981.

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Soberania. Rio de Janeiro: Renovar, 2004.

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_____Curso de Direito Internacional Público. 15 ed. 2004. 2V.

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UMA ANÁLISE REINTERPRETATIVA DO SUJEITO PASSIVO NA PARTICIPAÇÃO DE SUICÍDIO-

Márcio Riski

1. Prólogo

Não raras as práticas estatais propagadoras do autocídio1 e, curiosamente, espalhadas pelas mais diferentes culturas do globo. Este artigo não se propõe, primacialmente, analisar os fatores2 sociais ensejadores deste tipo de conduta; ao contrário, utiliza-os tão somente para demonstrar que certos bens jurídicos – dentre os quais a vida assume o ápice das condições existenciais – têm seu valor relativizado em culturas variáveis.

Também nessa ordem de idéias, devemos concentrar o alcance das normas penais incriminadoras da propagação do suicídio e não das práticas suicidas, propriamente ditas. Ao contrário das culturas ocidentais, percebemos sua apologia propagada exatamente pelos responsáveis na imposição da pena, ou melhor, pelo próprio Estado. Citamos, a título de

1 O vocábulo suicídio advém do latim sui, significando de si, que somado ao sufixo caedere – matar – gera o entendimento do ato praticado com o intuito de dar morte a si próprio. Alguns estudiosos procuram definir o suicídio como um ato pelo qual o indivíduo procura voluntariamente a morte e, levando-se em conta que tal prática, segundo a experiência, tenha sua reiteração em culturas absolutamente distintas, na mesma proporção observa-se a variação das causas que levam a sua execução.2 Segundo os estudiosos, os motivos aparentemente comuns na prática do autocídio são a culpa, a vergonha, auto-acusação, o ressentimento, a vingança etc. Aqui citam os autores os fatores peculiares, pois há povos adoradores dessa conduta em decorrência de estímulos meramente espirituais, como ocorre na maioria das culturas orientais. Nestes casos, aqueles que a apreciam não avaliam a morte como uma pena aflitiva, e sim como um grande galardão para ao plano metafísico.

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ilustração, a moral islâmica3, a cultura bélica japonesa4 representada pelos tão conhecidos Kamikazes5, sua execração pelo pensamento cristão6 e, 3 Islam, do árabe, “submissão à vontade divina”, é o termo mulçumano ou muslim que tem como tradução aquele que se submete à verdadeira fé. Essa doutrina preconiza um monoteísmo rigoroso, surgido a partir do século VII na Arábia, em contraposição a um número extenso de comunidades pagãs com diversos deuses não personificados ou associados a plantas e árvores, muito embora houvesse várias tribos esparsas adeptas do Judaísmo e do Cristianismo.A origem da civilização islâmica dá-se através de Muhammad – latinizado para Maomé. Conhecido como o último apóstolo de Deus, Maomé lutou contra uma oligarquia mercantil exploradora dos pobres e oprimidos, localizada na cidade de Meca. Convertendo a maioria das tribos Árabes, impôs-lhes uma série de leis morais e civis, codificadas no livro sagrado do Alcorão, cujo sentido literal prometia aos bons e corajosos o paraíso. Os infiéis - assim chamados quando não seguem com rigor a palavra sagrada - sofrem sérias discriminações pelos adeptos fundamentalistas. Estes extremistas interpretam os ensinamentos com excesso de rigor literal e gramatical, afastando-se de seus aspectos teleológicos. Entre suas condutas radicais, estaria o incentivo ao suicídio em nome das sagradas escrituras. Trata-se de atitude extrema, mas que, segundo revelam os mais radicais, torna-se o meio mais heróico de se atingir o paraíso.4 Ainda no século XII, dominavam no Japão os comandantes denominados sei – tai – xogum, termo que significava “generalíssimo para subjugação dos bárbaros”. Deste originou-se o vocábulo xogum cuja função – conta a real história – era a implantação de um governo paralelo ao comando do imperador. Desse modo, o chefe do trono se mantinha no poder sem, no entanto, governar, favorecendo o poder central do xogumanto.Um dos fatores que contribuiu para a centralização do poder foi a ameaça invasora dos mongóis, cujas tropas eram demasiadamente superiores às japonesas. Como, então, enfrentar a total desproporção bélica? Inesperada e misteriosamente, fenômenos naturais, como maremotos e tempestades, destruíram as tropas mongólicas, precisamente em batalhas consideradas decisivas.5 As forças armadas nipônicas criaram, durante a segunda guerra mundial, os combatentes Kamikazes. Alertam os escritos para a origem do termo “kamikaze”, cuja tradução literal apontaria para o significado “vento divino”. tal denominação justificar-se-ia na homenagem aos pilotos suicidas, os quais, nos mesmos moldes das tempestades e furacões devastadores dos mongóis no século XII, surgiriam como última opção na consecução dos objetivos bélicos japoneses.6 Segundo o Concílio de Arles, realizado no ano 452, o suicídio era inspiração diabólica. A própria religião judaica – pré-cristã – condenava o suicídio no Deuteronômio, quinto livro do Pentateuco. A propósito, um dos mandamentos da lei mosaica determinava ao servo de Deus o amor para com seu criador, como

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curiosamente, afastando qualquer fórmula de que tais práticas fossem oriundas da ignorância científica e de sua acepção racional, o pensamento grego7. Ocupam essas linhas, portanto, da intelecção do leitor na constatação, regra geral, do envolvimento das forças estatais na instigação do suicídio, ainda que sua motivação ocorra por motivos patrióticos. Destarte, rompe-se com a imaginação de que tais medidas extremas sejam praticadas, em sua totalidade, influenciadas por dogmas religiosos.

Não seria absurdo descartar a conclusão tomada pelo ilustre mestre Paulo Lúcio Nogueira8, quando afirma estarem todas as concepções religiosas contrárias ao autocídio:

Como se vê, todas as religiões são contra o suicídio, por se tratar de crime contra a vida, que é dádiva de Deus e que só por Ele pode ser tirada. Mesmo nos sofrimentos mais atrozes a criatura recebe do seu criador forças necessárias para

para consigo mesmo.Ainda na linha cristã, o codificador da doutrina espírita – Alan Kardec – salientava não haver pior crime do que o suicídio, devido à interrupção da evolução espiritual do indivíduo. Distanciando-se da análise punitiva do mundo espiritual, e analisando as fontes formais de punição do Direito Canônico daquela época, depara-se com certas curiosidades jurídicas do cristianismo oficial, tais como, a proibição de se fornecer aos mortos suicidas sepulturas religiosas. Muitas dessas sanções prescindiam de sentenças declaratórias, uma vez comprovada a notoriedade do fato. Modernamente, acreditamos não mais perdurar este tipo de castigo, mesmo porque os cemitérios foram transformados em propriedades privadas.7 No cerne da filosofia grega, havia o grupo de pensadores contrários ao espírito otimista de que as coisas mudariam com o pensamento critico da época. Em uma civilização dominada por dogmas religiosos e ignorância cientifica, os adeptos da racionalidade deparavam-se com o ínfimo incentivo à cultura e às artes existentes em quase todos os setores sociais das comunidades ditas “civilizadas”. Surge, então, a escola de pensadores pessimistas, corrompendo todo ideal ligado ao livre-arbítrio humano. Para os pensadores gregos dessa época o suicídio não deveria ser punido; ao contrário, era mérito para quem o aconselhasse, levando-se em conta que, seguindo a razão da época, para o homem, o melhor seria jamais ter nascido. 8 NOGUEIRA, Paulo Lúcio. Dos Crimes Contra a Vida. Saraiva, 1995, p. 126.

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enfrentar suas dores e vencer esses momentos de elevação e provação. A cada ser Deus saberá dar forças necessárias para superar as dificuldades. Aliás, Ele sabe o que podemos ou no suportar. Por isso, não se pode desanimar e, por pior que seja a crise, o homem não tem o direito de pôr fim à sua própria vida.

Sem a necessidade de se aprofundar no estudo dos costumes religiosos, facilmente percebe-se que muitas são as concepções fundamentalistas a incentivar o confisco da própria vida. Ademais, a conduta em questão era, da mesma forma, privilégio do pensamento laico, tal como demonstramos no pessimismo racional grego. Finalizando, não somente as ciências culturais do homem, mas também as ciências naturais apontavam – como bem frisou Charles Darwim em sua teoria evolucionista das espécies – suicídios em algumas sociedades de animais, forçando, por conseqüência, a aceitação do fenômeno como decorrência do equilíbrio natural.

Ultrapassada essa observação comportamental, forçoso concluir que, ao contrário do que pensavam os jusnaturalistas, os direitos fundamentais – tais como a vida e a liberdade - consagrar-se-iam na medida de sua gradativa incorporação aos ordenamentos jurídicos dos Estados. Não obstante a aceitação dos direitos fundamentais como inspiração dos direitos naturais e do cristianismo, não se pode olvidar que os mesmos adeptos da corrente jusnaturalista já não mais impõem resistência a influência dos fatores reais ou históricos; ou como bem salienta o Professor José Afonso da Silva9:

Não é uma nova observação correta essa de atribuir, ao surgimento de uma nova idéia de direito, tão profundamente revolucionária, inspiração de natureza basicamente ideal, sem levar em conta as condições históricas objetivas, que, na verdade, constituem a sua fundamentação primeira. As doutrinas e concepções filosóficas têm relevância enorme no processo. Mas elas próprias são condicionadas por aquelas condições

9 SILVA, José Afonso da, Curso de Direito Constitucional Positivo, 22ª edição, São Paulo, Malheiros Editores, 2002, p. 172.

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materiais. Surgem precisamente para ordena-las numa compreensão ideológica coerente [...].

Através da historicidade – característica inafastável das prerrogativas fundamentais do homem -, observa-se a redução da importância de certos bens jurídicos no sistema normativo de vários Estados, uma vez que tais direitos ainda não obtiveram, ao longo de sua evolução histórica, a imposição em seu sistema de normas. Suas próprias ordens jurídicas excluem a antijuridicidade do fato, supostamente criminoso, através de causas legais; ao revés, é a mesma ordem a incentivar o extermínio da vida em situações de ameaça ao status quo.

Desse modo, torna-se fácil concluir que o sistema de normas de determinada sociedade política é estabelecido segundo uma escala de importância dos bens jurídicos considerados relevantes para o Estado. Toma-se a dimensão de cada um desses bens de acordo com os fatores ideológicos – subjetivos, portanto – influenciando, desse modo, o respectivo legislador, conciliados a elementos objetivos ou históricos, como já salientamos. Assim, por exemplo, um Estado, ao prescrever, em sua Carta Política, diversos preceitos e garantias democráticas, deverá promover a preferência pelos direitos fundamentais do homem em detrimento de interesses estatais mesquinhos e oligárquicos. Aliás, essa intelecção não conduz a uma concepção individualista frente ao Estado, mas sim, como bem frisou Pérez Luño10, “limitação imposta pela soberania popular aos poderes constituídos do Estado que dela dependem”.

Insistindo nas linhas do respeitoso José Afonso da Silva11, concluímos pela necessidade de se conciliar os aspectos ideológicos, filiados à corrente jusnaturalista, com sua gradativa incorporação nas Cartas Políticas de cada Estado de origem democrática, revelando que “Ao situarmos sua fonte na soberania popular, estamos implicitamente definindo sua historicidade, que é precisamente o que lhes enriquece o conteúdo e os deve pôr em consonância com as relações econômicas e sociais de cada momento histórico”.

É justamente por ter acolhido o agente do Poder Constituinte, em sua Carta Magna, a necessidade de se conciliar o Estado republicano brasileiro com os preceitos do regime democrático, que o órgão da função judicante

10 PÉREZ-LUÑO, Antônie Enrique. Los derechos humanos, significación, essatuto jurídico y sistema, Universidad de Sevilla, 1979, pp. 23 e 24.11 Op. cit. p. 179.

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deverá fornecer aos dispositivos infraconstitucionais a maior extensão possível a fim de efetivar os direitos fundamentais, sempre compreendidos em sua acepção social. Com inteira razão, portanto, Mauro Capelletti12 quando afirma “que o Estado só atingirá o ápice democrático quando o Judiciário puder dar a efetividade social aos direitos fundamentais”. É que, para o citado autor, os direitos fundamentais são perfeitamente declaráveis; árdua, no entanto, seria a tarefa em sua concretização.

É nessa ordem de idéias, de real procura na efetivação dos direitos fundamentais do indivíduo frente ao Estado, num constante embate para lograr a paridade de armas, é que buscaremos interpretar a norma penal incriminadora em tela. A priori, devemos, contudo, salientar que o lúcido regime democrático prevê não só a realização das vontades majoritárias, mas, antes de tudo, a conciliação dos princípios gerais do direito com o fator decisivo da soberania popular. Melhor explicando, não podemos entender democracia como a desenfreada realização da maioria apenas do ponto de vista aritmético; à frente dessa retrógrada posição, poderíamos, sem medo, afirmar que não haverá democracia sem a tutela também dos direitos das minorias, além da preservação e realização da ordem jurídica legitimada na vontade de ambos.

E é, enfatizando essa compreensão sobre os direitos fundamentais do homem, que pretendemos reinterpretar a norma penal em questão, lembrando sempre dois princípios de hermenêutica Constitucional: o da taxatividade da norma constitucional e o da presunção de constitucionalidade das normas infraconstitucionais. O primeiro dispõe que a regra da constituição deve ser sempre interpretada, limitando-se o âmbito de incidência ao explicito desejo do legislador constituinte. O segundo diz respeito à presunção relativa de que toda norma infraconstitucional ingressa na ordem jurídica com a qualidade de ser, presumidamente, compatível com a Constituição.

Ora, se toda lei ordinária nasce com presunção de constitucionalidade (segundo princípio acima relacionado), presume-se também que o legislador comum observe, constantemente, a vontade do constituinte originário, antes de promulgar qualquer ato legislativo, caso contrário, deveria ser expurgada do sistema normativo pelos mecanismos de controle de constitucionalidade. Da mesma forma em que a norma constitucional deva ser interpretada nos limites da vontade do legislador constituinte originário (primeiro princípio),

12 CAPPELLETTI, Mauro; GARTH, Bryant. Acesso à justiça. Trad. de Ellen Gracie Northfleet. Porto Alegre: Fabris, 1988, p. 31.

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mais ainda exige-se que a regra infraconstitucional seja compreendida de acordo com aquela mesma vontade. Caso contrário, deparar-nos-íamos com um verdadeiro paradoxo. Por essa ótica, nota-se ser imprescindível atentar para a Carta Política, para, só então, extrair julgamento de mérito de uma norma ordinária de conteúdo incriminador.

Do mesmo modo, qualquer norma infraconstitucional em exame deve possuir coerência geral com o sistema punitivo de normas, sob pena, por exemplo, de se ter que condenar o agente criminoso, ao mesmo tempo em que fosse imprescindível isentá-lo da mesma condenação.

Iniciamos, para tanto, com a seguinte indagação: qual o alcance do termo “alguém” prescrito no caput do artigo 122 do Código Penal?

2. Em busca da extensão do tipo penal e harmonização do sistema punitivo de normas

Observemos o que dispõe o caput do artigo 122 do Código Penal pátrio: “induzir ou instigar alguém a suicidar-se ou prestar auxílio para que o faça”.

Antes de expressar qualquer juízo de mérito, atente-se para as palavras de Fernando de Almeida Pedroso ao citar o Ministro Ari Franco:

A esse respeito, diz muito bem o Ministro Ari Franco que o induzimento ou a instigação devem ser feitos a determinada pessoa, pois o preceito legal emprega o termo alguém, não bastando, pois, induzimento ou instigação de caráter geral, chamada pelos tratadistas de sugestão literária de suicídio. Inexiste, por conseguinte, ação de induzir ou instigar in incertam personam.

Com a máxima vênia, discordamos da posição pacífica da doutrina, quando se posiciona nitidamente de forma tecnicista e literal, olvidando uma reflexão mais apurada. A despeito daquilo que consideramos mais próximo dos ideais de justiça, os ilustres penalistas priorizam, no caso em tela, outro critério de hermenêutica jurídica, o qual, acreditamos, não estar amoldado aos postulados do Estado Democrático e, portanto, à vontade do Titular do Poder Constituinte. Não há duvida de que a nossa ilação não é constatada na opinião do ilustre magistrado quando reduz o termo “alguém” a pessoa

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determinada, filiando-se, por isso, a um critério de interpretação, segundo o resultado que visa obter, declarativa.

Não significa que devamos rechaçar, em todas as hipóteses, essa espécie de revelação normativa. Ao contrário do que imaginam os falsos interpretes, uma vez obscurecidos por preconceitos doutrinários, a interpretação declarativa faz-se necessária em vários tipos penais explicativos e incriminadores, sob pena de se imputar ao magistrado conduta abusiva em seu poder interpretativo. Observa-se, por exemplo, o artigo 141, III, do Código Penal brasileiro, ao se referir a uma causa especial de aumento de pena por ter o agente ofendido a honra de alguém na presença de “várias” pessoas. Extraindo o real sentido da regra citada, não árduo concluir que sua norma revela se tratar de mais de duas pessoas, não importando fixar uma quantidade precisa delas. Caso o legislador desejasse referir-se a, por exemplo, apenas três ouvintes, teria de fazê-lo expressamente, evitando com isso arbitrariedades de julgamento.

Todavia, a interpretação de natureza precisamente declaratória merece alguns cuidados ou, intempestivamente, os falsos reveladores da norma a utilizariam como instrumento de vingança. Na causa majorante referente ao delito de injuria, buscou-se obter um resultado que pudesse evitar um excesso de interpretação, levando-se em conta que tal critério conduziria a um resultado injusto. Caso, a título de ilustração, estivessem presentes apenas três testemunhas quando da prática da ofensa, e se utilizasse o julgador de uma interpretação ampliativa (entendendo, por exemplo, que “várias” revela o sentido de quatro indivíduos ou mais), estaria o magistrado decidindo além de sua discricionariedade. Logo, desatenderia a um dos fins dessa norma jurídica, qual seja, a de aumentar a punição do delinqüente, considerando que a vítima teve sua dignidade aviltada na presença de três observadores. Por que razão majorar a pena se estivessem presentes cinco testemunhas e não apenas quatro?

Fez-se, em face desse raciocínio, a opção por dois critérios de hermenêutica visando a justa entrega da prestação jurisdicional. O primeiro deles revela o melhor caminho na obtenção de nossos anseios diante do caso concreto: a interpretação literal; o segundo nada mais é do que desdobramento do primeiro, buscando, com isso, extrair-se da interpretação declarativa o melhor resultado na revelação da vontade da lei, não estendendo ou restringindo o sentido da regra majorante.

Pelo exposto, qual seria o melhor método de interpretação objetivando extrair o melhor sentido para termo “alguém”, previsto no art. 122, caput, do

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Código Penal? A posição pacífica, sabe-se, é a de que não se pode conceber o vocábulo em questão fora de seu conteúdo literal. Com efeito, forma-se a intelecção de que somente pessoa determinada seria vítima da participação do suicídio, vedando-se as induções de caráter geral. Trata-se de isentar de pena os autores de obras literárias famosas, segundo palavras do saudoso Mestre Mirabete13:

É indispensável para a ocorrência do crime em estudo que a vitima seja pessoa determinada. A conduta deve ter como destinatário uma ou várias pessoas certas, não ocorrendo o ilícito quando se trata de induções ou instigações de caráter geral e indeterminado. Não há crime quando, por exemplo, um autor de obra literária leva leitores ao suicídio, pela influencia das idéias de suas personagens, como ocorreu após a publicação de Werther, de GOETHE, e René, de CHATEAUBRIAND. Na mesma situação encontra-se recente obra em que se expõem os vários métodos para a eliminação da própria vida.

Fernando de Almeida Pedroso14 compartilha do mesmo pensamento, aliás, como o faz a totalidade da doutrina a respeito do tema em questão: “As ações incriminadas em tela, por conseguinte, devem endereçar-se a pessoa determinada, ou a um grupo determinável de pessoas”.

O método interpretativo acima, parece, a priori, incontestável, uma vez que busca excluir do pólo passivo da infração indivíduo ou grupo indeterminado. A justificativa dos autores estaria, a priori, no tipo subjetivo, ou melhor, na vontade direta de induzir, instigar ou auxiliar pessoa ou grupo certo ao cometimento de suicídio, sendo o resultado “morte” mero elemento subjetivo do próprio tipo. Assim, a vontade do autor estaria tão-somente na indução, instigação ou auxilio, e não no confisco da vida, elemento secundário na caracterização dessa infração. Propõe-se, com efeito, o sujeito

13 MIRABETE, Júlio Frabini. Manual de Direito Penal. Atlas, São Paulo, 1991, Vol. 2, p. 62.14 PEDROSO, Fernando de Almeida. Dos Crimes Contra a Vida. Aide, 1996, p. 204.

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ativo a induzir determinada pessoa ou coletividade, ainda que não se logre o objetivo final mais gravoso. Embora não seja este o objeto central de nosso debate, não podemos aceitar tal raciocínio. Quando alguém demonstra o desejo de participar da autoquiria, traz, ínsito em sua conduta, o pensamento de produzir o resultado morte. Outra conclusão não se pode extrair.

Por via de conseqüência, não se conceberia a idéia de estar o autor do delito responsável pelos resultados produzidos in incertam personam, uma vez tendo desejado atingir alguém de forma voluntária e espontânea. Observa-se, portanto, ser inoportuna a discussão sobre a existência ou não da morte como dolo especifico.

A despeito do que se demonstra pacificado, é-nos permitido, embora sem a pretensão de rechaçar o pensamento unânime de consagrados juristas, ao menos, alertar para certa incongruência normativa, acreditamos, nunca antes alertada. O que se propõe neste trabalho é a demonstração de serem descabidos, na melhor reflexão sobre quem possa ser o sujeito passivo na participação de suicídio, os métodos interpretativos literal e declarativo. Acreditamos não estarem filiados tais critérios, diante da análise especifica dessa infração, aos ideais de justiça. Passamos a justificar, neste momento, nossa inconformidade.

Insistir no critério já assentado, puramente literal de revelação do sentido da norma, contribuiria por produzir não apenas a incoerência dessa regra diante do conjunto normativo penal, mas também a desproporção entre a fruição das liberdades individuais constitucionais. Senão vejamos: qual seria o crime praticado pelos criadores de obras propagadoras do autocídio? Após o uso da intelecção estritamente gramatical, responderíamos: nenhum, pois a conduta em questão não se amolda a descrição de qualquer figura típica na lei penal incriminadora. Ao leitor estaria dada a permissão de rebater nossa pretensão indagando: não configuraria tal ação apologia de crime, levando-se em conta que o autor agiu publicamente, tal como se afigura no art. 287 do Código Penal brasileiro? Responderíamos negativamente, uma vez que o suicídio, de per si, não é tipificado na lei penal. Como responsabilizar o autor por propagar um fato, o qual, ontologicamente, sequer constitui infração delituosa? Ora, se excluirmos a hipótese de enquadrar a referida conduta no tipo “participação em suicídio”, e se, do mesmo modo, incluíssemos sua inserção no tipo “apologia de crime”, concluiríamos pela atipicidade do ato. Quanto a essa constatação não haveria qualquer absurdo, uma vez que nem todo fato ilícito é, inexoravelmente, criminoso.

Tal assertiva não acarretaria, de nossa parte, qualquer insurgência,

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não fossem as conseqüências paradoxais geradas pela doutrina dominante. A sugerida contradição estaria, acreditamos, na irreflexão ou, pelo menos, na necessidade premente de se proteger, a todo custo, a liberdade individual de expressão.

Quando os ilustres autores priorizaram os métodos literal e declarativo geraram a absurda situação de punir o responsável pela morte de uma ou de poucas pessoas determinadas, isentando de culpa, em contrapartida, aqueles que apregoaram a morte de muitos, embora indeterminados. Ademais, é notório o fato de que, quando se atua assumindo o risco de produzir determinado resultado, não se indaga quais ou quantas pessoas imaginava-se atingir. Basta observarmos o exemplo do motorista relapso. Este, embora confiante de suas habilidades, ainda assim não se importa com a deflagração final do evento. O referido resultado, embora previsto quanto ao tipo de lesão, pode estender-se a uma, poucas ou várias pessoas, em escala não invariável, porquanto imprevisível quanto ao número de lesados.

Buscando a coerência deste raciocínio, basta que se relembre o art. 121 do CP, quando sanciona, com pena de reclusão, o agente disposto a matar “alguém”. Em nenhum momento a doutrina quis excluir da interpretação do termo em destaque um número indeterminado de pessoas. Basta imaginarmos a conduta de um terrorista decidido a fazer implodir uma bomba-relógio em praça pública. Não poderíamos afirmar que sua ação estivesse dirigida a certas pessoas ou, pelo menos, a um grupo determinável delas, uma vez que o número de vítimas produz-se através de uma margem de variação indefinida.

Caberia, diante da ilustração, concluir pela absurda hipótese da não imputação do agente terrorista pelas várias mortes, apenas pelo fato de que o tipo penal do homicídio faz alusão ao vocábulo “alguém”? Absolutamente. Seria como se permitir o homicídio simples e tornar impunível o homicídio qualificado. A propósito, o próprio CP refere-se à qualificadora do homicídio em situação que possa causar perigo comum (art. 121, §2º, III, in fine). Ora, se a lei incrimina o perigo comum (circunstância menos grave) - sabendo-se que o termo “comum” não se vincula a um número determinável de pessoas -, não iria incriminar o próprio assassinato de indeterminada quantidade de indivíduos? Por que razão, então, não nos seria permitido usar do mesmo critério na interpretação do sujeito passivo no crime previsto no art. 122? Ademais, não prevê a lei penal a majoração da punição para casos em que uma única ação é cometida com resultados lesivos vários? Diante do que restou patente, seria o agente responsável pelo molestamento capaz de direcionar sua conduta a um ou vários indivíduos previamente determinados?

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Embora não se possa apontar, categoricamente, a incoerência da doutrina na utilização de critérios distintos na busca pela definição do sujeito passivo nos tipos “participação em suicídio” e “homicídio”, pode-se afirmar, sem temor, que a doutrina estabeleceu critérios desiguais quanto à punição de fatos lesivos da mesma gravidade. Basta que se observe, conforme descrevemos, a absoluta atipicidade do fato para aqueles que propagam, genericamente, o autocídio. Aliás, o próprio legislador tem demonstrado sua incoerência ao punir a tentativa do indutor apenas quando, não obtida a morte, o induzido sofrer lesões corporais graves.

Quando se busca utilizar a interpretação extensiva ou restritiva, demonstra-se a insatisfação entre o resultado da interpretação lógica e o da gramatical, ampliando ou encurtando o seu sentido final. Se até mesmo a exegese demonstrou-se insatisfeita com a revelação literal do vocábulo “alguém” no tipo homicídio, estendendo seu alcance para além das vítimas determináveis (quando se refere ao perigo comum), não seria sensato usar do mesmo critério para as vítimas da indução ou instigação do autocídio? Mesmo não desejando diretamente a morte de várias pessoas, não estaria assumindo o risco de produzir mais de um evento lesivo, ainda que a um grupo de quantidade indeterminável delas?

Acrescentamos a essas linhas o não-esquecimento da mesma Lei Penal, positivando punição para resultados obtidos pelo concurso formal. Recordemos o exemplo do terrorista ao detonar uma bomba na entrada de um prédio militar. Mesmo desejando confiscar a vida de militares em quantidade determinável, não estaria se importando com a morte de quantidade indeterminável de civis que ali transitavam. Utilizar-se-ia o mesmo raciocínio para aquela hipótese de um eletricista experiente que não fizesse os reparos necessários na fiação elétrica de um prédio público. Mesmo acreditando na razoável probabilidade de ocorrência de um incêndio, o citado profissional não conduz seus atos na prevenção do acidente. Não esperava sinceramente que tal infortúnio não ocorresse, porquanto imaginou ser muito provável o resultado fatal. Pelo exposto, deixaria o meliante de responder, em concurso formal, pelas mortes inesperadas, embora não desejadas diretamente? Haveria, neste último exemplo, a expectativa de se atingir pessoas determinadas ou determináveis? Parece cristalina uma resposta negativa. Caso pudéssemos apontar uma quantidade determinável, por que, então, não o faríamos com relação às vítimas das citadas obras literárias?

Poder-se-ia questionar nossa discordância, sob a argumentação

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de que a lei previu, para o tipo penal “homicídio”, a necessidade de se demonstrar a direta intenção em matar pessoa certa ou várias delas em quantidade determinável. O mesmo raciocínio não seria coadunável com os autores de obras literárias de incentivo ao suicídio, devido à não realização de qualquer ato executivo capaz de produzir o evento morte. Tudo porque os livros de Goethe e Chateaubriand seriam mera demonstração da liberdade artística e científica, não se cogitando, especificamente em números precisos, da expectativa gerada pelo alcance de suas linhas, uma vez que nem todos estariam forçados à aquisição de seu conteúdo. Desse modo, diversamente do que ocorre como homicídio, cujas vítimas, mesmo indeterminadas, não podem escolher pela sobrevivência, a influência para o cometimento do autocídio sugere opção pela discordância do conteúdo das obras mencionadas. O leitor teria a opção, portanto, de reagir às pressões fantasiosas de um autor literário, separando a ficção da realidade, preferindo a vida - decorrência do extinto natural - à morte.

Data vênia, torna-se prudente, mais uma vez, discordar. Analisando o tipo objetivo do art. 122, observam-se os verbos induzir e instigar, mesmo antes da colaboração material com o suicida, traduzida essa na forma de auxílio. Como já enfatizado, o dolo é a vontade direta em induzir, instigar, além de, materialmente, colaborar para sua realização e não, necessariamente, conseguir o resultado morte, embora essa esteja ínsita no tipo subjetivo. De fato, as vítimas de homicídio com dolo eventual têm resistência quase nula diante do fato absolutamente inesperado, o mesmo não sucedendo com a participação em suicídio. No entanto, justamente por ser o homicídio fato mais gravoso em suas conseqüências, é que o legislador estabeleceu, na mesma proporção, sanções mais graves. Da mesma forma, não questionamos o enquadramento dos autores literários no delito de homicídio, mas sim na participação de suicídio.

Outros poderiam edificar críticas à nossa posição, acusando-a de utilização de analogia em prejuízo do acusado. Recusamos, do mesmo modo, tal argumento, pelo simples motivo de não acolhermos, entre os nossos propósitos, a integração de norma mais grave (homicídio) na norma de maior brandura (participação em suicídio). Mesmo porque, em nenhum momento, questionamos a quantidade dessa pena. A reivindicação vincula-se a não-extensão do termo “alguém” – contido no preceito primário dessa norma - àqueles excluídos insistentemente pela doutrina. Rejeita-se, igualmente, o pensamento de que seria inviável o uso da interpretação extensiva em prejuízo do acusado, restrição imposta apenas à analogia,

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espécie de integração normativa. Como bem salientou o saudoso Hermes Lima15, a interpretação extensiva

[...] corrige a má expressão ou redação que, embora procurando estabelecer regra geral, diminui-lhe a extensão do pensamento, como, no caso da designação da espécie por gênero. Reintegradora do pensamento legislativo, a interpretação extensiva, adverte Ferrara, aplica-se a todas as normas, mesmo às de caráter excepcional ou penal.

Nosso objetivo volta-se para a permuta do critério interpretativo, e não para, contrariando os preceitos constitucionais democráticos, o beneficio do método integrativo-analógico in malem partem. Todavia, não se deve conceber, aleatoriamente, a ampliação do termo estampado na regra. Justificar-se-ia este artifício sempre que o resultado extraído do critério puramente declarativo demonstrasse incoerência com os resultados obtidos pela interpretação de outras regras dotadas de características semelhantes. Desse modo, por que, em caso de homicídio, responsabilizar seu autor por quantidade indeterminada de mortes, uma vez que agiu com dolo eventual, e não fazê-lo com relação à participação em suicídio, tendo este tipo subjetivo se caracterizado da mesma forma?

Consideramos não convincente o atual pensamento doutrinário, pelo motivo de vincular-se a um critério puramente literal-declarativo. Como demonstramos, essa ilação excluiria, de modo incompreensível, eventuais vítimas do incentivo a autoquiria, pela simples razão de não constituírem o fito preliminar do suposto agente delituoso. Não nos pareceu convincente tal raciocínio, bastando recordar as várias hipóteses de homicídios praticados com dolo eventual em concurso formal. Nessas situações, o responsável pelas mortes agiu segundo um contexto de previsibilidade, tendo também previsto o evento lesivo, mas que, embora confiando em suas habilidades, demonstrou-se indiferente para as conseqüências irremediáveis de sua conduta. A tese de que o responsável pelo dolo eventual, embora não querendo diretamente o resultado, pudesse prever quais ou quantas pessoas poderia alvejar, entre nós, não encontra respaldo. E insistimos: no exemplo

15 LIMA, Hermes. Introdução à Ciência do Direito. Freitas Bastos, 23ª ed, 1973, p. 154.

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citado, embora o sujeito ativo possa prever, numa escala de variação precisa, quais os eventos possíveis a se concretizarem (mortes, lesões, danos), o mesmo não se permitiria afirmar do número de destinatários de sua conduta. Isso se justificaria por ser inviável sua estimação dentro de uma escala de limites mínimos e máximos. Quantas seriam as vítimas de um atentado terrorista, mil, mil e quinhentas, duas mil e duzentas? Ainda assim, nega-se a aplicação da regra do art. 121 do CP, cujo tipo descreve a conduta “matar alguém”? Obviamente que não. Por que, então, não utiliza a doutrina do mesmo critério para os autores de obras literárias? Não seria facilmente cognoscível o resultado morte, não obstante imprevisível, dentro de uma escala de variação precisa, o número de atingidos?

Em verdade, o principal motivo pela ampliação ou restrição do conteúdo de um texto normativo está na necessidade precípua de se harmonizar as normas de um sistema. Seria, desse modo, defeso ao intérprete revelar o conteúdo de norma específica sem atentar para o contexto em que se insere, sob pena de tornar incoerente a aplicação das demais normas. Há, o que se observa em doutrina, uma certa disparidade entre o mens legis e o verba legis, podendo o jurista aumentar o alcance do dispositivo ou contraí-lo. Como exemplo, embora distante da esfera criminal, podemos citar o art. 175 da Constituição de 1967, a qual afirmava ser o casamento indissolúvel, quando o próprio sistema normativo autorizava a dissolução do matrimônio – e isso ocorreria inexoravelmente – com a morte. Foi preciso, então, que se restringisse o alcance da norma para não tornar, de um lado, indissolúvel o matrimônio e, de outro, permitir sua anulação ou sua extinção. Na realidade, não se pode afirmar, diante desse exemplo, ter havido contradição de intenções por parte do legislador originário. Firmou-se, por isso, a determinação de uma regra geral visando a proteção do casamento contra as hipóteses arbitrárias contidas em pactos antenupciais e, por conseqüência, não recepcionáveis pela Carta Política, sem que, para tanto, excluísse as exceções enquadradas nessas exigências.

Há, ao revés, a necessidade de se ampliar o alcance do termo empregado na regra, evitando, com efeito, paradoxos jurídicos, tais como punir por fato menos grave e não puni-lo por conduta mais gravosa. Observa-se, para tanto, o delito de bigamia, o qual, por mera revelação lógica, atinge não somente aquele que contraiu o segundo matrimônio, mas também o que permitiu celebrar vários casamentos. Assim como salientou Mirabete16,

16 Opus cit, p. 52.

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“Deve-se concluir, por exemplo, que o artigo 235 se refere não só à bigamia, como também à poligamia”.

Seguindo a mesma ordem de idéias, podemos cogitar da necessidade de estendermos o sentido do termo “alguém”, previsto no tipo do artigo 122, para além de sua acepção literal ou gramatical. Evitar-se-ia, com efeito, a incoerência do sistema punitivo de normas, uma vez que em outros preceitos primários não se exclui a punição do agente criminoso pela lesão a um número indeterminável de vítimas. O que é plausível – e sobre isso não há questionamentos - é a previsibilidade sobre quais bens jurídicos são passíveis de molestamento. Mesmo tendo agido com vontade direta e contra vítimas determinadas (ou determináveis), extrai-se da própria inteligência do conjunto normativo a exigência de não se permitir impunidades quando o bem jurídico for diverso daquele que se pretendia atingir. Destarte, observa-se o mesmo Código Penal em seus artigos 73 e 74. O primeiro (erro na execução) busca incriminar o agente que, mesmo por erro ou acidente, atinge pessoa diversa que pretendia ofender. Tal dispositivo veda a impunidade do autor do fato, uma vez que, em conjugação com o art. 20, § 3º, proíbe a isenção de pena do “erro quanto à pessoa”, mesmo levando em conta as qualidades de quem se desejasse atingir. No segundo (resultado diverso do pretendido), apesar de referir-se à punição apenas na forma culposa, demonstra o legislador o desejo de não tornar qualquer fato impunível, a não ser no caso de imprevisão legal. Denota-se a preocupação da parte geral na criação de princípios aplicáveis à parte especial e, com efeito, não tornar impune fato previsível, ainda que oriundo de erro ou acidente.

Poder-se-ia afirmar que, em ambos os casos, se a vontade do autor não estivesse dirigida a pessoa(s) determinada(s), pelo menos previsível seria a ofensa vítima ou grupo determinável. Destarte, seguindo essa intelecção, não se pode estender o número de ofendidos para além daquilo que permitem as circunstâncias existentes no caso concreto. Quem atira, por exemplo, contra determinado indivíduo visando matá-lo no meio de multidão, assume o risco de ferir ou confiscar a vida de outras pessoas em valor apreciável; ou melhor, somente aqueles transeuntes podiam enquadrar-se na esfera de previsibilidade do autor (donde valor determinável).

Todavia, é-nos permitido relembrar uma ou outra situação em que a previsibilidade quanto a um número determinável de atingidos torna-se impotente. Imaginemos a premeditação (dolo direto) de homicídio contra determinada pessoa através de transmissão de doença infecto-contagiosa, mas que só produziria resultado letal após algum tempo. Na fase de

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instrução foi demonstrado que o autor, embora não desejando diretamente resultados letais, assumiu o risco de que tal contaminado pudesse transmitir, involuntariamente, a enfermidade aos habitantes de sua comunidade, previsão infelizmente concretizada. Por conseguinte, foi constatado que os moradores de regiões vizinhas e, posteriormente, de regiões mais afastadas já haviam sido atingidos pela moléstia. Diante do que foi descrito, questiona-se sobre qual crime a ser tipificado contra o transmissor principal da doença. Há quem diga homicídio em concurso formal com delito de epidemia (art. 267). Outros talvez afirmassem, com fundamento no dolo eventual, haver vários homicídios em concurso formal. Considerando que o autor conhecia o caráter letal de sua conduta, parece mais viável a conclusão de que sua vontade direta era a de matar e não a de propagar a epidemia. Ademais, o citado autor deve ser responsabilizado pelas mortes ulteriores, porquanto, além de se tratar de fato previsível e inexorável (a doença era letal), não se importou sinceramente em evitá-las.

Como está patente, acreditamos não vingar o pensamento de que o autor dirigia seu comportamento a vítimas certas ou determináveis, vez que tal análise escapa da invariabilidade quantitativa. Não podemos, desse modo, afirmar que sua conduta pudesse estar destinada a efeitos letais numericamente precisos, porquanto não há que se apontar quantos, mesmo na busca de dados prováveis ou termos percentuais, seriam os atingidos. Observa-se, portanto, enorme variação a não se permitir afirmar, dentro de uma escala aceitável, quantos seriam os sujeitos passivos.

Persistimos com o fulcro de nossa idéia e formulamos várias indagações, até o momento, não satisfatoriamente solucionadas: por que não estender o mesmo raciocínio para a responsabilização daqueles que instigam e induzem o suicídio em caráter geral? O artigo 122 do CP também não vincula a conduta do agente instigador ao termo “alguém”? Ao instigar ou induzir, não estaria o autor, embora não desejando diretamente o resultado, assumindo o risco de produzir diversas mortes? Na suposição de certos casos de homicídio, cujo bem juridicamente tutelado é a vida, fácil foi a ampliação do termo legal “alguém” para além das hipóteses de vítimas determinadas ou determináveis.

Na busca pela simetria, não se pode olvidar – e isso tem se demonstrado notório - que os verbos previstos no artigo 122 contêm, de forma ínsita, a previsão da morte. Isso tanto se corrobora quando a própria doutrina entende só haver a punição – reclusão, de dois a seis anos – quando da ocorrência letal ou havendo, no mínimo, lesão corporal grave. Fez questão de salientar

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a doutrina que só o fato de instigar, induzir ou auxiliar não constituem, por si só, o delito em tela, bastando observar, para tanto, o preceito secundário da norma. Na observação dessa ilação, a priori, parecendo tratar-se de apenas mais uma minúcia, é que estaria um dos fundamentos de nossa posição. O propósito estabelecido pelo legislador de só incriminar o autor quando realizados os resultados morte ou lesão grave, já traz ínsita a idéia de fornecer a este tipo penal as mesmas características inerentes ao homicídio ou a sua tentativa. Um único elemento dá-lhe colorido especial, porquanto o participante depende de atitude positiva própria de sua vítima na execução do autocídio, embora acreditamos estar revestido da mesma roupagem do crime mais grave.

A peculiaridade do delito de participação em suicídio não constituiria, tão somente, fator capaz de isentar, em todos os casos, o autor de obras ou intelecções supostamente artísticas. Todavia, fazemos questão de atentar para a necessidade de se amoldar nosso posicionamento a cada caso concreto, rechaçando qualquer fórmula de conteúdo genérico. Tornar-se-ia meritória nossa idéia apenas quando estivessem alinhados todos os fatores necessários para a composição da infração. Enfim, não é de nosso alvitre a edificação de um embate contumaz a todo tipo de manifestação intelectual que, de forma imaginativa, pudesse estar promovendo a autoquiria.

Seguindo semelhante critério e buscando renegar fórmulas jurídicas de natureza condenatória (não é este o propósito deste artigo), faz-se mister uma atenta reflexão sobre os elementos que, uma vez coexistentes, fazem eclodir o delito. O que não nos afigura mais objeto de discussão é o fato de não se poder responsabilizar o autor pelo número indeterminável ou de variação indeterminada de vítimas. Essa, para nós, tornou-se posição inaceitável, diante do que restou patente na teoria do dolo eventual. Todavia, assim como repudiamos fórmulas incriminadoras, também o fazemos com relação a fórmulas descriminadoras.

Neste momento procura-se demonstrar que a simples exposição do pensamento a citar o suicídio como saída única para uma realidade irreversível, por si só, não é suficiente para a incriminação. Deve o intérprete, antes da adesão imediata a posições pacíficas ou meramente discordantes, refletir, com austeridade, sobre os elementos que compõem a conduta, tais como o subjetivo, objetivo e o normativo. A posteriori, deverá questionar, de modo inevitável, se tal conduta de expressão intelectual foi elemento diretamente responsável na consecução do suicídio, caso contrário haveria fato atípico.

No intuito de ampliar a compreensão do leitor quanto ao propósito

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de nossas linhas, citamos um caso, recentemente noticiado, sobre a suposta influência de novela televisiva intitulada “A Viagem” no cometimento de vários suicídios. A citada produção artística relatava, de forma fictícia, os problemas do cotidiano envolvendo um grupo de pessoas em sua relação de interdependência, buscando, em contrapartida, conciliá-las através dos mandamentos espíritas kardecistas. Em determinada fase da trama, certo personagem de um criminoso comete a autoquiria, uma vez não resistindo às mazelas do cárcere. Seguindo os princípios que norteiam a filosofia espírita, o responsável pelo confisco da própria vida deveria, após seu desencarne, continuar experimentando o sofrimento, agora mais intenso pela prática de um crime cujas conseqüências seriam, a priori, irremediáveis. Num segundo momento, demonstra a obra constituir o arrependimento meio para suprir qualquer ato errôneo, ainda que inicialmente incorrigível, na obtenção do perdão divino e, por conseguinte, seu envio ao paraíso.

Argumentando sob essa ótica final, parentes das vítimas clamaram pelo enquadramento dos autores da novela no tipo do art. 122, posição que merece absoluto desprezo de nossa parte. Como salientamos, não se trata de discordar da posição dominante buscando, a todo custo, responsabilizar qualquer manifestação intelectual cujo conteúdo esteja, direta ou indiretamente, relacionado ao suicídio. Considerando este relato, seria, no mínimo, espalhafatosa a conclusão de que o intelectual, neste caso, devesse ser punido; ao revés, a simples exposição na mídia das idéias já codificadas desde o século XVIII não é suficiente para o enquadramento do fato tipo penal em questão.

A alegação de que tal agente seria responsável pela suposta existência de previsibilidade do fato, sua previsão especifica e a aceitação do resultado mais grave, mesmo não o desejando diretamente, não seria aceitável diante da insuficiência dados na narrativa; isso porque não se constatou um lastro mínimo de provas que pudessem caracterizar o dolo eventual. Extrair conclusão que possa, irracionalmente, ensejar a condenação seria consagrar, em outros termos, a teoria de responsabilidade objetiva, adversativa ao Estado democrático brasileiro. Atente-se para o detalhe de que nossas idéias não têm respaldo neste tipo de imputação, porquanto nem sempre haveria, conforme salientamos, a responsabilização dos autores de obras artísticas ou intelectuais. A propósito, essa é a inteligência do art. 19 do Código Penal brasileiro, quando dispõe que “Pelo resultado que agrava especialmente a pena, só responde o agente que o houver causado ao menos culposamente”.

No caso do exemplo citado, não se permitiu vislumbrar uma relação

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direta entre a manifestação intelectual do autor da arte e as mortes que, supostamente, dela teriam decorrido, porquanto não estaria ínsita na doutrina espírita qualquer propagação ao autocídio; muito pelo contrário, suas idéias condenam, de modo impetuoso, tal tipo de procedimento. Com o intuito de se elaborar tese contrária e, portanto, incriminadora, dever-se-ia certificar que a conduta do agente estivesse diretamente ligada ao propósito de, embora não demonstrando o desejo o resultado fatal, colaborar intensamente na sua consecução e, em face dela, não se importar com um resultado mais grave. Isto seria facilmente constatável, por exemplo, diante do apontamento de métodos ou substâncias indolores, do incentivo insensato ao pessimismo, da distorção de textos religiosos incentivando a revolta e as soluções ultra-radicais etc.

Enfatizamos nosso desprezo pela edificação de uma teoria de imputação objetiva. Cremos que as ilustrações feitas, até aqui, em nada podem ser comparadas àquelas situações em que se tentou incriminar, por exemplo, o fabricante de armas de fogo, as quais, em perfeito estado, serviram para práticas de homicídio. Como se permite notar, nosso posicionamento alude a questões que de alcance mais extenso.

3. A Ótica do Critério Evolutivo: em busca da delimitação do sujeito passivo da incitação de obras literárias.

Advogando contra pacificado pensamento, alertamos para outro tipo de questionamento: até que ponto tais obras literárias não estariam voltadas na vulneração de pessoas certas ou um número determinável delas?

Buscando analisar o problema sob nova ótica, tratamos de, neste momento, anuir a posição da doutrina no estabelecimento de um sujeito passivo determinado ou determinável. O raciocínio de que as obras intelectuais não aspiram consumidores determinados ou em quantidade determinável, tornou-se efêmero diante dos fatos sociais que envolvem a indústria literária, agora muito mais voltada a questões mercadológicas do que propriamente artísticas ou científicas. Como já salientado, várias obras são redigidas em razão da estreiteza de seu objeto junto ao mercado de consumo. Dessa forma, não árdua é a evidência de que muitas delas já estão previamente destinadas a um público alvo, este, a cada dia, adquirindo maior grau de precisão. As liberdades negativas, notadamente, as de expressão intelectual, artística ou científica eram exercidas conforme o contexto histórico e social em que estivessem imersas. O marco histórico de sua conquista – período

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das Revoluções Liberais do século XVIII – propiciou o uso e o gozo dessas prerrogativas de acordo com uma realidade diversa da que possa entrever-se em dias atuais. Desse modo, as obras literárias, em tempos modernos, visam não mais atingir um público desmesurável. Fundamenta-se essa assertiva na evolução da estatística, o aperfeiçoamento das técnicas de publicidade e sua conciliação ao crescente acesso à informação do mundo globalizado.

É fato notório que, em tempos modernos, quase toda atividade artística vincula-se ao dever de corresponder às necessidades mercadológicas. De fato, o que se busca atingir numa sociedade altamente consumista, em nada está relacionado ao amor pelas artes ou pelo semelhante. Não se pode negar os altos investimentos dispensados por gravadoras e editoras na busca por vendagens espetaculares, sem que possa discutir, em tempo, a ausência dos seus componentes éticos. Considerando que tais atividades visam atingir um público alvo, ainda que este não seja o único, sempre se estará buscando um grupo determinado de indivíduos, não obstante não se possa mensurar aqueles ao qual pertencem.

Isso é por demais verídico, quando se atenta para o fato de que as próprias editoras encomendam pesquisas mercadológicas sobre a mensurabilidade dos leitores a serem alcançados. Um livro de auto-ajuda, por exemplo, tem sido, comumente, veículo de consumo de adolescentes. Outro sobre doenças cardíacas afetará uma classe, também em sua maioria, composta de fumantes e/ou obesos. Exceto no caso de obras literárias já absorvidas pelo patrimônio histórico-cultural, tal qual ocorre com a Bíblia, quase a totalidade delas envolvem um grupo determinado, ou, pelo menos, determinável de leitores. Imaginemos uma vítima de tentativa de homicídio e que, em decorrência de execrável conduta, tenha ficado tetraplégico. A partir deste panorama desalentador, decidiu contar em obra escrita seu suplício, indicando profunda depressão e vontade de aniquilar sua própria vida, além de apontar mecanismos na realização da autoquiria. Pergunta-se: embora não se possa apontar, com exatidão, quantos seriam os portadores dessa doença, não constituiriam os tetraplégicos, facilmente, um grupo determinável de pessoas? Cremos afirmativamente.

Pretendemos, pelo exposto, asseverar que o pensamento doutrinário dominante estaria vendo sua gradual relativização. Tal mudança deve-se à necessidade de readaptação da norma em face de nova realidade histórica. Aliás, eis aí o destino das técnicas de hermenêutica, qual seja, o de possibilitar que a vontade da regra – e não a do legislador – seja apreciada de acordo com o momento social que o inspira a disciplinar. Nesse contexto surge,

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aliado aos demais critérios de interpretação indispensáveis na discussão do presente tema, o elemento histórico. Como já salientado, não se compreende o conjunto de direitos fundamentais tão-somente na acepção do direito natural, tornando, por conseguinte, forçosa sua incorporação ao ordenamento jurídico de cada Estado.

Pois bem, sendo essa característica – historicidade - elemento fatal para a compreensão e a eficácia de um direito fundamental, forçosa também se tornou a revelação de seu sentido conforme a realidade histórica em que se insere. É, neste seguimento, que devemos buscar a atual compreensão do sujeito passivo na participação de suicídio. Nossa intenção, nessa parte do artigo, não é mais trabalhar com a hipótese de se permitir a incriminação do agente que tiver molestado vítimas em quantidade indeterminável, punindo-o pelo dolo eventual. A fim de submeter o pensamento doutrinário moderno a mais uma crítica, agora de natureza histórica, indaga-se o porquê de sua imutabilidade. Para a obtenção de solução convincente e, por conseqüência, permitir o afastamento da posição dominante é que, hipoteticamente, passa-se a aceitar a tese de que o sujeito passivo devesse ser vítima determinada ou grupo determinável. Mantém-se a apreciação da norma na busca pelo seu melhor resultado, porém, através de outra circunspeção. E seguindo essa nova perspectiva, deparar-nos-emos com a mesma necessidade de não se deixar impune o colaborador intelectual da autoquiria. Por este prisma, na adesão da communis opinio doctorum, filiou-se à interpretação declarativa como forma de não permitir a extensão do termo “alguém” para além das vítimas determinadas ou determináveis. Todavia, mesmo na manutenção deste método, faz-se necessária outra crítica, agora voltada ao fator premente de se reavaliar o citado termo em consonância com a realidade em que se situa o intérprete. Bem como salientou Miguel Reale17, “Feita a lei, ela não fica, com efeito, adstrita às suas fontes originárias, mas deve acompanhar as vicissitudes sociais. É indispensável estudar as fontes inspiradoras da emanação da lei para ver quais as intenções do legislador, mas também a fim de ajusta-la às situações supervenientes”.

Da mesma forma posiciona-se Hermes Lima18, quando ao citar Ferrara, afirma que

17 REALE, Miguel. Lições Preliminares de Direito. Saraiva, 17ª ed., 1990, p.278.18 Opus cit p. 153.

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[...] a ratio legis pode mudar com o tempo. O intérprete examinando uma norma de há um século não está incondicionalmente vinculado a procurar a razão que norteou o legislador de então, mas qual é o fundamento racional de agora. Assim, pode acontecer que uma norma ditada para certo fim adquira função e destino diverso. A ratio legis é uma forca vivente móvel que anima a disposição acompanhando-a em toda sua vida e desenvolvimento; é como a linfa que sempre mantém verde a planta da lei e faz brotar novas flores e novos frutos. A disposição pode, dessa maneira, ganhar com o tempo um sentido novo e aplicar-se a casos novos. Sobre este principio baseia-se a chamada interpretação evolutiva. A ratio legis, acentua Ferrara, é objetiva e atual, não podendo, portanto, ser confundida com a vontade do legislador.

Aliás, como bem salientaram Peces e Barba, qualquer direito deve ser interpretado de acordo com sua historicidade, na medida em que a mesma noção de Direito merece ser devidamente adaptada às mutações a que é submetido o Estado, na mesma proporção em que este, inexoravelmente, sofre as influências dos fatores reais de poder:

A relação da qual, hoje, nos ocupamos, é produzida entre o Direito moderno e o Estado moderno. (...) Neste primeiro problema que enfrentamos na indignação do conceito do Direito, já nos defrontamos com um elemento que perpassará por toda a reflexão jurídica, sua historicidade. Por se tratar de um produto cultural, a variante do tempo deverá, quase sempre, ser levada em conta19.

19 GREGORIO, Peces; BARBA, Martínez. Introducción a la Filosofia del Derecho, Madrid: Debate, 1983, p. 30 a 32: “La relación que hoy nos ocupa se produce entre el Derecho moderno y el Essado moderno (...) En este primer problema que afrontamos en la indagación del concepto del Derecho, nos encontramos ya con un elemento que será permanente en toda la reflexión jurídica,

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A utilização dessa exegese permitiria a punição do instigador literário, pois, conforme se advertiu, o sujeito passivo ver-se-ia, a cada dia, mais delimitado em face do avanço das técnicas de pesquisa mercadológica e da própria tecnologia, ambas propiciando um estreitamento do público alvo. Em prol dessa conclusão, a incriminação do colaborador ficaria na dependência do objeto da obra literária, a forma como foram expostas as opiniões do autor, os caracteres pessoais do público que se visou convencer etc. Ademais, não se deve perder de vista a necessidade de se realizar minuciosa análise dos elementos que compõem o crime, pois, conforme se frisou, o exercício da liberdade de expressão, por si só, não induz a caracterização da infração.

Faz-se alusão, por exemplo, a certos autores de páginas na internet que divulgam, gratuitamente, técnicas de autocídio. Ao propagarem este tipo de conduta, o fazem, geralmente, sob o pretexto da liberdade de expressão intelectual. Observa-se, no entanto, que vontade do falso pensador está cada vez mais próxima de grupos facilmente determinados pelo objeto de sua manifestação intelectual: tetraplégicos, portadores de doenças raríssimas, fanáticos religiosos etc. Reciclando o pensamento dominante que, por décadas, tem permanecido estático, torna-se fácil observar a semelhança que essas modernas apologias possuem com as antigas seitas de propagação do suicídio, tendo, por isso, responsabilizado seu líderes. Pode-se citar a seita “Templo do Povo”, liderado por Jim Jones, responsável por levar a morte 912 pessoas; a seita do líder cego vietnamita Can Van Liem, tendo propagado a morte simultânea de 53 pessoas.

4. Realizando a Vontade do Constituinte Originário.

Em última análise, não poderíamos preterir discutir o assunto sob a ótica do constitucionalismo. Pleiteamos, neste momento, questionar sobre a efetiva realização da vontade do Titular do Poder Constituinte Originário, uma vez que o posicionamento pacífico da doutrina (e a nosso ver um tanto quanto acomodado) reflete a perfeita desproporção dos princípios jurídicos acolhidos na Carta Política. É de aceitação pacífica pela doutrina a idéia de que não há como se beneficiar uma liberdade individual preterindo, abusivamente, liberdades públicas alheias. Estão as liberdades constitucionais individuais, su historicidad. Al tratarse de un producto cultural la variable del tiempo debe, casi siempre ser tenida en cuenta”.

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como insistem os renomados juristas, contaminadas de uma dimensão social. Com efeito, não podemos conceber a idéia de que a liberdade de expressão, seja qual for o conteúdo de seu exercício (artístico, científico, religioso etc.) possa ser utilizada com prejuízo das liberdades constitucionais alheias.

Não está em nosso propósito chamar a atenção apenas da tão preconizada restrição às liberdades individuais, embora essa tenha sido essencial à consagração do Estado Liberal. Indiscutível é o mérito do Liberalismo na formulação do conceito de restrição às liberdades públicas. Não obstante não se possa negar as limitações das prerrogativas fundamentais20, não se concebe um Estado Democrático apenas diante da existência dessas limitações. Embora tenham o liberais grande parcela de mérito na conquista das liberdades-impedimento, muitas, inclusive, responsáveis pela edificação de uma teoria de direitos subjetivos, tal realidade nem sempre esteve em harmonia com os preceitos de ordem democrática. Basta observar que nem todos os filósofos e pensadores do século XVIII eram, em absoluto, democráticos. Norberto Bobbio21, em excelente trabalho sobre Teoria Política, ratifica essa opinião ao extrair o real conteúdo do termo “liberdade” perfilhada na obra de Kant. Ora, o referido autor alemão, considerado por muitos como um propagador dos ideais da democracia, não seria, segundo Bobbio, um pensador, em absoluto, democrático. A opção do jurista italiano estaria fundamentada nos dois sentidos que poderiam ser revelados a partir do conceito de “liberdade”:

[...] a liberdade na qual se inspira a sua concepção de direito, Estado e de história, não é a liberdade democrática, mas a liberdade liberal. Essa conclusão tem também por objetivo confirmar, através da análise de um texto célebre, a existência e a coexistência das duas noções fundamentais de

20 ALEXY, Robert. Teoria de los derechos fundamentales. Madri: Centro de Estudos Constitucionales, 2001, p. 268. Melhor obra sobre o tema, o autor procura demonstrar, ao contrário do que pensa Fr. Klein, a existência de restrições aos próprios direitos fundamentais.21 BOBBIO, Norberto. Teoria geral da política: a filosofia política e as lições dos clássicos. Rio de Janeiro: Ed. Campus. 2000, p. 113. Para maiores detalhes, vide a distinção feita pelo autor quando se refere aos dois tipos de liberdade de Kant: a primeira traduzida como autodeterminação individual; a segunda, como autodeterminação coletiva.

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liberdade, e de mostrar a necessidade de mantê-las bem distintas. De um lado, a obra de Kant é uma prova de validade daquela distinção; de outro, a distinção revela-se, no exame do pensamento de Kant, útil como critério de compreensão histórica e de avaliação crítica22.

A distinção entre a liberdade no Estado Liberal e a liberdade no Estado Democrático tem a anuência dos filósofos contemporâneos, propiciando, por conseguinte, sérias conseqüências de natureza jurídica. Com efeito, a mera restrição às liberdades públicas não conduz, integralmente, à realização do Estado Social. A simples restrição, v.g, ao exercício da propriedade não traduz, de per si, a tentativa de contextualizar esse direito em sua acepção social.

Buscam os falsos intelectuais, em face de um panorama tipicamente liberal, tão somente suprir os desalentos e as necessidades psicológicas de um mundo gasto e destituído de referências éticas e morais. A premente conjuntura social não consente outra saída para os inescrupulosos senão fomentar o abuso da ingenuidade humana diante de suas carências afetivas. Isso é facilmente denotado quando as influências sugestivas tendem por desmandar a principal e universal característica dos direitos fundamentais, qual seja, sua indisponibilidade. O Estado Liberal ultracapitalista, filiado a um regime democrático apenas aparente, cuida por gerar pactos contratuais que extrapolam a dignidade da pessoa humana. O pacta sunt servanda, agora mais intenso do que nunca nas sociedades políticas subdesenvolvidas, sobrepõe-se aos caracteres universais dos direitos fundamentais, até mesmo nos países que já obtiveram sua incorporação através da historicidade.

Na verdade, a instigação de atos antijurídicos sob o pretexto de uso de liberdade intelectual, senão constitui crime, torna-se prática ainda mais proibitiva quando instiga ou induz a renúncia a direitos indisponíveis. Não se pode conceber o exercício de uma prerrogativa constitucional quando hostil aos postulados democráticos e, principalmente, à vontade do constituinte originário. Extrai-se essa inferência de vários dispositivos da Carta Federal de 1988, os quais, direta ou indiretamente, alertam para o inafastável acatamento dos caracteres dos direitos fundamentais, a citar: “A União não intervirá nos Estados nem no Distrito Federal, exceto para:

22 Op. cit., p. 218.

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(...) assegurar a observância dos seguintes princípios constitucionais: (...) direitos da pessoa humana” (Art.34, VII, b); ou “Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes: (...) ninguém será submetido à tortura nem a tratamento desumano ou degradante” (Art. 5º, caput c/c III); ou “a lei punirá qualquer discriminação atentatória dos direitos e liberdades fundamentais” (Art. 5º, XLI).

Não se trata de perfilhar, conforme antes certificamos, teoria oposta a todo tipo de manifestação intelectual envolvendo, direta ou indiretamente, conteúdo apologético ao suicídio. Conforme foi exposto, o exercício da atividade científica ou artística encerra responsabilidades para com a vontade contextual do titular do poder constituinte. Tais deveres consistem, inicialmente, em restrição temporária do exercício dessas atividades após sua fruição, pois, conforme salientou Alexandre de Moraes:

A censura prévia significa o controle, o exame, a necessidade de permissão a que se submete, previamente e com caráter vinculativo, qualquer texto ou programa que pretende ser exibido ao público em geral. O caráter preventivo e vinculante são o traço marcante da censura prévia, sendo a restrição à livre manifestação de pensamento sua finalidade antidemocrática.23

Num segundo momento, abstraindo-se os ideais individualistas dos liberais burgueses, as atenções do Estado Democrático estariam voltadas a atitudes positivas do Poder Público em conferir contornos sociais ao exercício dessa prerrogativa. Manoel Gonçalves Ferreira Filho ratifica este pensamento, ao estampar críticas às declarações individualistas:

Essa evolução se inicia com a crítica logo feita pelos socializantes ou socialistas ao caráter “formal” das liberdades consagradas nos documentos individualistas. Essas liberdades seriam iguais para

23 MORAES, Alexandre de. Direito Constitucional. São Paulo: Atlas, 15ª ed., 2004, p. 81.

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todos, é certo; para a maioria, porém, seriam sem sentido porque a ela faltariam os meios de exercê-las. De que adianta a liberdade de imprensa para todos aqueles que não têm os meios para fundar, imprimir e distribuir um jornal? – perguntavam esses críticos. (...) Destarte, a atribuição em realidade para todos do direito de exercer esses direitos fundamentais implicaria uma reforma econômico-social, ou, ao menos, uma intervenção do Estado para que o mínimo fosse exercido24

5. Conclusão

Diante do exposto, arrogamos autoridade para concluir que, de modo precípuo, a norma penal incriminadora deverá, uma vez respeitando os preceitos gerais do direito penal, avocar o critério interpretativo que melhor corrobore com os caracteres essenciais dos direitos fundamentais. Atente-se para o detalhe de que nem sempre tal preferência conduz a realização do interesse coletivo, ou melhor, da maioria. Mister torna-se, conforme muito bem dispôs Gustavo Binenbojm:

[...] embora consagrando a democracia e o princípio da soberania popular, as Constituições modernas dispõem sobre a forma a ser observada para a manifestação da vontade majoritária e sobre conteúdos mínimos que devem ser respeitados pelos órgãos representativos dessa vontade, sem, no entanto, suprimi-la. Assumindo a democracia como um jogo, a Constituição seria o manual de regras e, os jogadores, os agentes políticos representantes do povo. À Jurisdição constitucional, nesse contexto cumpre o papel de ser o árbitro do jogo democrático25.

24 FERREIRA FILHO, Manoel Gonçalves. Curso de Direito Constitucional. São Paulo: Saraiva, 22ª ed., p. 249.25 BINENBOJM, Gustavo. Tensões entre democracia e constitucionalismo: a legitimidade democrática da jurisdição constitucional. In: A Nova Jurisdição

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Eis aí a grande missão do Estado Democrático de Direito: manter o equilíbrio dos princípios constitucionais de forma a promover a coexistência entre a vontade da maioria, inserta no principio de soberania popular, e a realização dos princípios jurídicos gerais que tutelam os interesses das minorias. Estará, portanto, excluída de nosso pensamento, qualquer teoria que possa, a todo custo e de forma antidemocrática, subverter os interesses daqueles que se manifestam através de suas obras literárias.

Em prol de uma análise de conteúdo estritamente criminal, a preferência pelo critério ampliativo na interpretação do termo “alguém”, previsto no art. 122, justificou-se pela tentativa de harmonização da citada regra ao conjunto normativo. Seguindo esta linha de julgamento, concluímos pela existência do dolo eventual contra vítimas em quantidade indeterminada; ou melhor, inviável sua estimação de um número de vítimas dentro de uma escala de limites mínimos e máximos. Em outra oportunidade, buscamos acolher critério que pudesse justificar a expectativa dos autores de trabalhos escritos no aviltamento de um número determinável de pessoas, o que seria facilmente aceito pela doutrina moderna, segundo palavras de Fernando de Almeida Pedroso (vide nota 15, p. 8). Naquele momento, perfilhamos o critério de interpretação evolutiva, porquanto permitiria adaptar a norma em questão às mudanças de comportamento influenciadas pela indústria da informação. Diante deste segundo critério, procuramos demonstrar que, a cada dia, novas técnicas surgem na tentativa de se delimitar o destinatário da informação.

Como se pode denotar, foram propostas, preliminarmente, idéias à luz dos postulados gerais do Direito Penal, norteando a construção de um posicionamento original. Todavia, algo mais convincente tratou de melhor inspirar nossas conclusões: a busca pela revelação da real vontade do legislador constituinte originário. Concluímos que, se não se pudesse a traduzir esta vontade inicial, antes de um estudo analítico da norma penal em questão, de forma a estabelecer, com razoabilidade, quais os valores, bens ou princípios constitucionais que devam preponderar diante do caso concreto, realizar-se- i apenas o desejo do legislador constituinte vigente a época de elaboração da norma infraconstitucional. Enfatiza-se, entretanto, que tal vontade não objetiva expurgar os postulados gerais do Direito Criminal, tampouco satisfazer a todo custo os desejos da maioria; ao contrário, sua missão destina-se à harmonização de ambos.Constitucional. Rio de Janeiro: América Jurídica, 2002, p. 48.

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Em nosso próximo artigo, apresentaremos discussão sobre uma possível teoria de presunção de inimputabilidade da vítima, quando de sua instigação, auxílio ou induzimento ao suicídio. Essa permitiria, uma vez desfigurada a figura típica da participação em suicídio, a construção da idéia de que todo colaborador àquela conduta seja indiciado, inicialmente, por homicídio. Tal idéia partiria da necessidade de se reinterpretar a resistência do sujeito passivo diante da evolução médica na identificação das patologias que levam ao suicídio. Evidentemente que tal ilação conduziria, de antemão, o aviltamento de certos postulados gerais já consagrados, como, por exemplo, o do favor rei e o da presunção de inocência. Seguindo os mesmos critérios, utilizaremos, inicialmente, o critério evolutivo de interpretação. A posteriori, faremos profunda reflexão sobre limites de atuação dessa ferramenta diante das técnicas de harmonização entre a democracia e o constitucionalismo. Excluída estará, igualmente, qualquer idéia tecnicista de construção de fórmula perfeitamente amoldável a todos os casos concretos.

Todos os argumentos que até aqui utilizamos, acreditamos ter sido fruto de uma verdade sistematicamente apreendida, fornecendo, desse modo, contornos científicos a essa singela obra. Discordamos daqueles que pensam estarem nossas proposições voltadas à formação de uma teoria de imputação objetiva, uma vez que, de nossa parte, não haveria a tentativa de se incriminar a divulgação do pensamento sem a demonstração do dolo ou culpa. Como ao leitor não é infenso retirar seu próprio ajuste definitivo, nossa defesa remonta às nossas mesmas linhas.

6. Referências Bibliográficas

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FAMILIARES, VÍCTIMAS Y DERECHOS HUMANOS: LA POLÍTICA Y TRADICIÓN JURÍDICA

Omar Darío Heffes

1. Introducción

Las fotos de los familiares muertos han invadido las calles. Desde hace aproximadamente treinta años hay un reclamo continuo por la vida y la justicia, un reclamo por estas víctimas. Distintos han sido los perpetradores y distintas han sido las víctimas, sin embargo, hay algo en común que los une a todos.

Ese lazo son los familiares. Los familiares han hecho un esfuerzo magnífico para que sus reclamos pudieran ser escuchados, para conseguir el esclarecimiento de los crímenes, la obtención de una declaración verdadera de lo sucedido y principalmente el juicio y castigo a los culpables.

Se ha formalizado, entonces, un pedido claro hacia uno de los poderes del Estado. Claramente la institución judicial se tuvo que enfrentar en estos últimos treinta años a un requerimiento por parte de los familiares.

Durante estos treinta años el papel del Estado ha variado de manera significativa. El Estado ha propiciado, de manera explícita muchas veces, estas respuestas por parte de los grupos familiares. El Estado, en general, por intermedio de la agencia judicial, no siempre ha respondido de la misma manera. En ciertos casos ha aportado algunas soluciones, tal vez no demasiado claras y en otros no ha podido aportar la solución que han requerido los familiares.

Lo que han buscado los grupos familiares ha siempre tenido en mira al Derecho Penal como marco para lograr su cometido y sin embargo, en general, el Derecho Penal no ha podido aportar soluciones claras a los problemas.

En este trabajo intentaremos ver cual ha sido el papel de la víctima en la sociedad argentina, la vinculación y la posibilidad de una respuesta política por parte de la víctima, y a su vez, si la posición de la víctima y de los familiares no ha sido originada en parte por nuestra tradición jurídica. Como corolario intentaremos ver si la actuación de los familiares y la forma de reacción jurídica no pueden traer aparejada un problema con los derechos

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humanos.Este trabajo parte del presupuesto de que la política en Occidente

ha puesto en juego la vida. Claro ejemplo de esta puesta en juego fue el autodenominado “Proceso de Reorganización Nacional” que con un estado de excepción permanente implicó la muerte organizada y dirigida. A esta puesta en juego, la única respuesta que apareció como posible fue la salida de los familiares a la calle con un discurso que conllevaba discutir en el espacio de la nuda vida, en la cifra misma de la política, imposibilitando una solución que permita una mejora de la condición de víctima y un respeto generalizado de los derechos humanos.

Si bien este movimiento, tiene como momento de inicio a las Madres de Plaza de Mayo, no quiero manifestar con esto que dicho grupo familiar haya propiciado en forma alguna esta imposición discursiva. Lo que si destaco del movimiento de las Madres es la clara preparación para el terreno de esta forma de participación que dio a luz a esta manifestación.

Las Madres tomaron, como lo harían otros grupos, la Plaza de Mayo como lugar fundamental de expresión, este lugar dentro de la historia política argentina tiene una gran trascendencia, entonces la permanencia en ese lugar pareciera implicar un accionar político1.

1 “La disputa que mantenían con otros sectores del movimiento de derechos humanos y, particularmente, entre los grupos de familiares y afectados por la represión, ahora se volcaba a su favor porque demostraban que la presencia en la Plaza era eficaz para la denuncia. Eso era, al menos, lo que ellas incansablemente repetían cuando invitaron a otras madres a que las acompañaran aquel jueves. El número aumentó levemente, pero ya habían logrado consolidar un grupo de más de cien familiares dispuesto a pelear con el cuerpo por la Plaza. Y ese día iban a volver a ponerse a prueba.“La policía empezó a tratar de alejarlas del lugar. Las empujaban y si encontraban resistencia, empezaban a golpearlas. Ellas esquivaban el enfrentamiento, pero no se iban. ‘Le peleamos. Nos sacaban y volvíamos a entrar. Nos hacían ir y volvíamos. A veces no lográbamos mucho. Yo viajaba desde La Plata para, a lo mejor, estar un minuto en la Plaza. Pero igual íbamos. Nos habíamos dado cuenta de la importancia de pelear ese lugar’ – cuenta Hebe” GORINI, U.; La rebelión de las madres. Historia de las Madres de Plaza de Mayo. Tomo I (1976-1983), Buenos Aires, Norma, 2006, pp. 101-102“Mucha gente se pregunta por qué habiendo otros organismos las madres fuímos a la Plaza, y por qué nos sentimos tan bien en la Plaza. Y esto es una cosa que la pensamos ahora, no la pensamos ese día; y cuanto más hablo con la gente que sabe más que nosotros, más nos damos cuenta por qué se crearon las Madres. Y nos

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La pregunta por el carácter político de las actividades de los grupos de familiares puede tener una respuesta sencilla. Su contestación depende pura y exclusivamente por como se defina la acción política, pero además, teniendo en cuenta que cualquier respuesta puede estar condicionada por los hechos que hacen que los familiares salgan a la calle entreviéndose, también, como una respuesta política no tradicional.

A pesar de ello, trataremos de esbozar una definición, pero que, desde ya, no implica desaprovechar conceptos o alternativas a la misma, incluso puede ser mejorada más allá del esbozo que presento aquí. Intentaré entonces esa definición a partir de algunos textos de Arendt para establecer un concepto posible de política.

Para esta autora la acción y el discurso, siguiendo en su razonamiento a Aristóteles, es lo que define la política2, y para ello se debe tener presente que

[...] la pluralidad humana, básica condición tanto de la acción como del discurso, tiene el doble carácter de igualdad y distinción. Si los hombres no fueran iguales, no podrían entenderse ni planear y prever para el futuro las necesidades de los que llegarán después. Si los hombres no fueran distintos, es decir, cada ser humano diferenciado de cualquier otro que exista, haya existido o

creamos porque en otros organismos no nos sentíamos bien cerca; había siempre un escritorio de por medio, había siempre una cosa más burocrática. Y en la Plaza éramos todas iguales. Ese “¿qué te pasó?”, “¿cómo fue?”. Éramos una igual a la otra; a todas nos había llevado hijos, a todas nos pasaba lo mismo, habíamos ido a los mismos lugares. Y era como que no habría ningún tipo de distanciamiento. Por eso es que la Plaza agrupó. Por eso es que la Plaza consolidó” De la conferencia pronunciada el 6 de julio de 1988 en Liber/Arte por la presidenta de la Asociación Madres de Plaza de Mayo publicado en AA.VV.; Historia de las Madres de Plaza de Mayo, Buenos Aires, Editorial La Página, 1995, p. 11.2 “La acción… sólo es política si va acompañada de la palabra, del discurso. Y ello porque, en la medida en que siempre percibimos el mundo desde la distinta posición que ocupamos en él, sólo podemos experimentarlo como mundo en común en el habla. Sólo hablando es posible comprender, desde todas las posiciones cómo es realmente el mundo. El mundo es pues lo que está entre nosotros, lo que nos separa y nos une” BIRULÉS, F.; Introducción en ARENDT, H.; ¿Qué es la política?, Barcelona, Paidos, 1997, pp. 18-19

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existirá, no necesitarían del discurso ni la acción para entenderse3.

En forma resumida una vía interpretativa del concepto de política habla necesariamente de una acción y un discurso que se tiene en un ambiente de pluralidad4.

En esa instancia la existencia constante de diferentes grupos familiares ha conllevado la perpretación de la nuda vida en el discurso político, no ya como un efecto deseado o buscado, sino simplemente por ser en parte la forma de discutir o el terreno disponible para hacerlo, siendo entonces un arma de doble filo político que implica un doble mecanismo de control: a) una homogeneidad discursiva y b) una disposición a la participación directa y constante del Estado a nivel represivo. Pero a su vez, se puede ver, en forma genealógica, que esta homogeneidad discursiva depende también de la forma en que las agencias judiciales pueden responder a este problema. La imposibilidad de una verdad construida dentro del ámbito judicial coloca a las víctimas fuera de ese lugar propiciando una confusión entre política y ética inescindible, impidiendo conseguir su participación y finalmente alguna solución definitiva para sus casos.

Por intermedio de este trabajo trataremos tres cosas a partir de la salida de los grupos familiares: a) cual es la respuesta posible por parte de la agencia judicial b) si los grupos familiares desarrollan algún tipo de política, y c) tomando el lugar apolítico y el afuera de la agencia judicial como una nueva construcción de una forma de “verdad” que homogeneiza el discurso y que conlleva un discurso limitado de los derechos humanos.

2. El lugar de la tradición jurídica

Toda la segunda mitad de la Edad Media asistirá

3 ARENDT, H.; La condición humana¸ Buenos Aires, Paidos, 2003, p. 200.4 “Todas las actividades humanas están condicionadas por el hecho de la pluralidad humana, por el hecho de que no es un hombre, sino los hombres en plural quienes habitan la tierra y de un modo u otro viven juntos. Pero sólo la acción y el discurso están conectados específicamente con el hecho de que vivir siempre significa vivir entre los hombres, vivir entre los que son mis iguales” ARENDT, H.; Labor, trabajo y acción. Una conferencia en ARENDT, H.; De la historia a la acción, Buenos Aires, Paidos, 2005, p.103. Este resumen va más allá de las características de la acción que veremos más adelante.

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a la transformación de estas viejas prácticas y a la invención de nuevas formas de justicia, de prácticas y procedimientos judiciales. Formas que son absolutamente capitales para la historia de Europa y el mundo entero, en la medida en que Europa impone violentamente su yugo a toda la superficie de la tierra. (…) En el derecho de esa época se inventó una determinada manera de saber, una condición de posibilidad de saber. En el derecho de esa época se inventó una determinada manera de saber, una condición de posibilidad de saber cuya proyección y destino será capital para Occidente. Esta modalidad de saber es la indagación […].5

Estas nuevas formas de justicia que se desarrollan en parte de occidente tienen que ver con el derecho romano y la mezcla con el derecho germánico dando lo que hoy conocemos como tradición continental o tradición civil. En ésta tiene validez una forma particular de ejercer tanto el poder como la justicia. Esta forma que es contraria a la otra tradición occidental del common law podría resumirse de la siguiente manera: “The criminal procedure in the civil law tradition is ‘inquisitorial’, while that in the common law tradition is ‘accusatorial”6

Esta división entre sistema inquisitorial o acusatorio tiene como clara diferencia la participación posible que se da en la justicia por parte de los individuos. Es una clara diferencia de procedimiento que origina una diferencia fundamental en esa participación. En el caso de la forma acusatoria las partes resuelven el daño que una le ha infringido a otra7, en

5 FOUCAULT, M.; La verdad y las formas jurídicas, Barcelona, Gedisa, 2005, p. 75.6 MERRYMAN, J. H.; The civil law tradition. An introduction to the legal systems of Western Europe and Latin America, Stanford, Stanford University Press, 1969, p. 134.7 This same right of accusation is soon extended to his relatives, and as conception of social solidarity and the need for group protection develops, the right of accusation extends to all members of the group. A presiding officer is selected to hear evidence, decide, and sentence; he does not, however, have the power to institute the action or to determinate the questions to be raised or the evidence to

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cambio en la forma inquisitorial hay un intermediario que toma para sí la ofensa, se hace cargo de ella y busca una compensación por el daño. Esa otra parte es el Estado:

A partir del momento en que el soberano o su representante, el procurador, dicen: ‘Yo también he sido lesionado por el daño’, resulta que el daño no es solamente una ofensa de un individuo a otro, sino también una ofensa que infringe un individuo al Estado, al soberano como representante del Estado, un ataque no al individuo sino a la ley misma del Estado. […] La infracción no es un daño cometido por un individuo contra otro, es una ofensa o lesión de un individuo al orden, al Estado, a la ley, a la sociedad, a la soberanía, al soberano. La infracción es una de las grandes invenciones del pensamiento medieval. Se ve así como el poder estatal va confiscando todo el procedimiento judicial, el mecanismo judicial, el mecanismo de liquidación de los litigios entre individuos de la alta Edad Media.8

En este mecanismo de liquidación de los litigios entre individuos se podrá ver una explicación posible del drama familiar y la imposibilidad de encontrar una respuesta dentro de la agencia judicial9. Esto es así ya que la construcción de la verdad dentro del espacio inquisitorial no está dada por

be introduced, and he has no inherent investigative powers. These matters are in the hands of the accuser and the accused. The criminal trial is a contest between the accuser and the accused, which the judge as a referee. Typically the proceeding takes place publicity and orally, and is not preceded by any official investigation or preparation of evidence” MERRYMAN, J. H.; op. cit., p. 135.8 FOUCAULT, M.; op. cit., pp. 79-80.9 “Una justicia que no es más pleito entre individuos y libre aceptación de estos individuos de ciertas reglas de liquidación sino que, por el contrario, se impondrá a individuos, oponentes, partidos. Los individuos no tendrían en adelante el derecho de resolver, regular o irregularmente sus litigios deberán someterse a un poder exterior a ellos que se les impone como poder judicial y político” FOUCAULT, M.; op. cit., pp. pp. 78-79.

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la participación de las partes, sino y muy por el contrario por la decisión de un tercero imparcial que determina quien ha probado tener la razón10. En nuestro sistema judicial el juez, tal y como es la tradición de civil law, “podrá ordenar la reconstrucción del hecho para comprobar si se efectuó o pudo efectuarse de un modo determinado”.11 Concordante con esto también es el artículo 239 del Código Procesal Penal de la Nación Argentina establece que “el juez interrogará a toda persona que conozca los hechos investigados, cuando su declaración pueda ser útil para descubrir la verdad”12

Por el lado contrario, las víctimas no les basta con esta construcción judicial, que entre otras cosas impone límites a la investigación, límites que tienen origen con defensa de derechos relacionados con el acusado, cuestión que debe ser puesta en evidencia y que de se debe prestar crucial atención pero que impide lograr el objetivo deseado por los familiares. Se debe tener 10 A exposição de motivos introduz o texto do Código de Processo Penal explicita ser objetivo do processo judicial criminal a descoberta da “verdade real”, ou material, (...). Por isso, o juizes podem e devem tomar a iniciativa de trazer aos autos tudo o que pensarem interessar ao processo, ex officio, para formar o seu “livre convencimento” examinando a “prova dos autos”. (...) Como se vê, a ênfase está depositada no interesse público – aqui compreendido como aquele definido pelos funcionários do Estado – servindo o processo para incrementálo, acima dos interesses individuais, ou mesmo coletivos. KANT DE LIMA, R., “Direitos civis e direitos humanos. Uma tradição judiciária pré-republicana?” en São Paulo em Perspectiva, 18 (1), 2004, p. 52. Si bien el autor se refiere a la justicia brasileña, nuestra tradición jurídica es la misma y exige en el derecho penal la formación de la verdad material.“En el proceso penal se necesita certidumbre con grado de apodíctica – que la conclusión es así y no puede ser de otro modo – para sustentar una sentencia de condena” D’ALBORA, F. J.; Código Procesal Penal de la Nación. Anotado, comentado, concordado, Buenos Aires, Abeledo Perrot, 2003, Tomo I, p. 453.11 Ese es el texto del artículo 221 del Código Procesal Penal de la Nación Argentina, si bien dicho texto tiene origen recién en el año 1994, es notorio que dicho código ha tenido intención de incorporar una faz acusatoria al proceso penal argentino, sin embargo se mantiene la principal función judicial que es la construcción de lo que ha sucedido verdaderamente. 12 También se debe recordar el artículo 240 que establece que “toda persona tendrá la obligación de concurrir al llamamiento judicial y declarar la verdad de cuanto supiere y le fuere preguntado, salvo las excepciones establecidas por la ley”. Estas excepciones están relacionadas con por ejemplos secretos profesionales que impiden develar la verdad del asunto, pero es claro que el llamamiento a decir la verdad funciona como necesario para la consecución del proceso.

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en cuenta que todos los casos de familiares en la calle no han sido iguales, en algunos casos claramente el Estado argentino pretendió imponer una sombra y un manto de olvido en la investigación judicial propiciando, justamente, la imposibilidad para los peticionarios, imposibilidad generada también por cuestiones procesales que tienen su origen también en nuestra tradición jurídica.13

Los familiares precisan, desde su reclamo ético, una verdad, una historia que concuerde con haber roto su familia, la verdad debe permitirles ser familia, desarrollar lo que se ha roto. La pregunta por la muerte del familiar no importa tanto como fue realizada, sino el como pudo ser posible, y en algunos casos sólo importa la existencia del cuerpo para poder dar un entierro definitivo al ser querido, y, definitivamente, lograr el status familiar póstumo. De esta manera, las víctimas desde su reclamo están solicitando un lugar claro que le permita rearmar su verdad, una verdad que finalmente les permita volver a sus casas.

Pero justamente, una cuestión que no se puede resolver por la tradición jurídica es algo que en el modelo acusatorio está resuelto de otra forma, en ese tipo de juicios la verdad se construye y las partes tiene una actuación directa que les permite construirla, en cambio en la tradición civil esto no ocurre ya que lo inquisitorial busca la “verdad real”, tal y como vimos, una imposibilidad en la cual se termina condenando a los familiares a un único camino, a una única posibilidad que no puede ser llevada a cabo por el poder judicial y tampoco fuera de él. El familiar pretende construir algo imposible dentro de la agencia judicial, pretende finalmente que una declaración pueda liberarlo de la falta.

De esta manera tenemos a los familiares solicitando claramente por alguna verdad que los permita construirse como familia, intentando reclamar políticamente sin lograrlo, discutiendo por la nuda vida y teniendo un reclamo ético cuyo lugar de realización está cerrado porque esa verdad no puede ser construida y lo que puede ser construido nunca puede ser suficiente, siempre requiere de algo más que les permita participar, que les permita poder ser los protagonistas de esa construcción, de esa realización. Sin embargo, eso parece ser imposible. Entonces hay un nuevo armado que tiene que ver con 13 Recordemos los casos de violaciones perpetradas contra los derechos humanos que con leyes tales como la “Obediencia debida” y ley de “Punto final” establecían cortapisas para la investigación. En un caso era por cuestiones de relaciones jerárquicas dentro del ejercito y en el segundo caso se trataban de cuestiones relacionadas con plazo para la prescripción.

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la posición del último e irreductible lugar de los derechos. Los familiares parecen decir, y exacerban su discurso en ello, que los derechos conculcados son los de ellos, los únicos posibles de ser conculcados, y, por ende, los únicos posibles de ser revindicados. Esos deben ser los únicos por encima de todos los demás14.

3. Los lugares de la familia

En el año 1977 los familiares de desaparecidos firmaron una solicitada que afirmaba:

A la Junta Militar del Gobierno de las Fuerzas Armadas. Los Familiares de Desaparecidos y Detenidos vemos nuestros hogares destrozados por la angustia y la incertidumbre al no saber dónde o cómo están nuestros seres queridos, hasta cuándo sufrirán detención sin causa o cuál será la pena para los acusados. Somos partidarios del dialogo, estamos empeñados en lograr un país avanzado, próspero y feliz. Para que todas las familias puedan contribuir a realizar este objetivo necesitamos PAZ y la PAZ no es posible sin el amparo de la JUSTICIA.

14 “Cuerpos asesinados en el marco de un mismo delito: el secuestro. Secuestros separados por 25 años. Secuestros separados por un abismo: matar desde el terrorismo de Estado y matar por robar. El resabio violento de secuestrar y matar que 21 años de democracia no pudieron borrar. El secuestro seguido de muerte, desde el Estado hasta los márgenes de la sociedad. Siempre bajo un mismo paraguas: la impunidad”. GUAGNINI, L.; Blumberg en el nombre del hijo, Buenos Aires, Sudamericana, 2005, p. 111. Así se establece una extraña línea entre terrorismo de Estado y delincuencia común. Esta línea peligrosa termina aunando incluso grupos de diferente orientación política e ideológico, volviendo terrible las consecuencias de los pedidos definitivos. Pareciera, entonces, que lo político no importa, lo importante es que el lugar es indiscutible, la pérdida del hijo hace imposible que el lugar sea indiscutible y dando una vuelta de tuerca más a la relación entre terrorismo de Estado y delincuencia común nos damos cuenta que la sociedad construida, sólo es una sociedad de víctimas que sufren la disolvente actuación de los perpetradores, mejor aún la delincuencia común termina siendo tan terrible como el terrorismo de Estado.

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Por ello, PETICIONAMOS: - La búsqueda de los ciudadanos desparecidos. – La aparición de los ciudadanos detenidos. – La liberación de los detenidos sin causa y/o proceso y/o la opción Constitucional para salir del país. – El juzgamiento de acuerdo con la Constitución Nacional y las leyes de los que tuvieron causa y/o proceso.15

Ante lo terrible, ante la terrible constatación, los familiares de desaparecidos hicieron y utilizaron todos los medios que tenían a su alcance a fin de saber algo sobre sus seres queridos16.

El camino que deben seguir los familiares es tortuoso, caminos que los alejan de sus lugares de familia, esos lugares que se van esparciendo y cambiando de forma. Encontrándose con una nueva forma de familia pública, una nueva familia que está instalada en la arena política y que por consiguiente reconstruye su lugar desde la ausencia y desde el lugar público. “Quedamos solos, nosotros solos. Desde ese momento, mis amigos y mi familia fueron las Madres de Plaza de Mayo”17

En apariencias el lugar de la familia ha sido siempre delimitado al lugar del hogar, al lugar de la casa. Así es que Giorgio Agamben, siguiendo a distintos autores, hace un raconto sobre la diferencia entre el oikos y la pólis, lugares en el que se desarrollan distintos tipos de actividades y que tienen distintas finalidades, en el oikos, lugar de la familia, se pretende conservar la vida como el simple hecho de vivir y en el segundo se pretende una vida

15 Solicitada publicada el día 3 y el 28 de septiembre de 1977 en el Diario La Prensa, firmada por aproximadamente 400 firmas citado por GORINI, U.; op. cit., pp. 120-121. 16 “Madres, así no conseguimos nada. Nos mienten en todas partes, nos cierran todas las puertas. Tenemos que salir de este laberinto infernal que nos lleva a recorrer inútilmente despachos oficiales, cuarteles, iglesias y juzgados. Tenemos que ir directo a la Plaza de Mayo y quedarnos allí hasta que nos den una respuesta. Tenemos que llegar a ser cien, doscientas, mil madres hasta que nos vean, hasta que todos se enteren y el propio Videla se vea obligado a recibirnos y darnos una respuesta”. Extracto de la arenga de Azucena Villaflor de Vincenti, citado por GORINI, U.; op. cit., p. 63.17 Bonafini, Hebe; “Pariendo espacios nuevos. Primera clase de la materia Historia de las Madres de Plaza de Mayo”, en América Libre, 17 de octubre de 2000, p. 150, citado por GORINI, U.; op. cit., p. 83.

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calificada18.La presencia inicial de la Madres de Plaza de Mayo tenía la intención

primera de exigir – antes que acusar – a quien se erigía como autoridad máxima de la Nación que respondiera por la suerte de los desaparecidos. Era un camino para salir del laberinto infernal de intrincados pasillos oficiales, judiciales, antesalas de políticos y religiosos que terminaban frustrando la denuncia de los crímenes, y para interpelar directamente al poder político19

En concreto, el primer objetivo de las Madres, y se reiterará en los otros movimientos familiares, es la concreta denuncia de los hechos que motivaron su salida a la calle.

[…] La desaparición es un vacío, un agujero, una tormenta, un ciclón que destruye, que se lleva todo, que arrastra todo y que una tiene que tratar de contener, de conservar y de sostener. No es fácil cuando el hijo no está más ni en la casa, ni en el trabajo, ni en la mesa, ni en la cama. […] Desde esta ingenuidad de la pregunta, de esta ingenuidad política, inocencia o ignorancia salimos las Madres a buscar a los hijos20.

Esa salida primigenia y fundamental esta relacionada directamente con el mantenimiento de la familia y de la vida de sus miembros.

Este mantenimiento, y todos los mecanismos para aferrarse a ella, son parte de la labor en términos de Arendt. “Por medio de la labor, los hombres producen lo vitalmente necesario que debe alimentar el proceso de la vida del cuerpo humano. Y dado que este proceso vital, a pesar de conducirnos en un progreso rectilíneo de declive desde el nacimiento a la muerte es en si mismo circular, la propia actividad de la labor debe seguir el

18 AGAMBEN, G.; Homo sacer. El poder soberano y la nuda vida, Valencia, Pre-textos, 1998, pp. 9-10. Por ese motivo Aristóteles habla de un “vivir bien”, este tiene el agregado de “bien” ya que se está hablando de una vida calificada.19 GORINI, U.; op. cit., p. 65.20 Bonafini, Hebe; “Pariendo espacios nuevos. Primera clase de la materia Historia de las Madres de Plaza de Mayo”, en América Libre, 17 de octubre de 2000, p. 150, citado por GORINI, U.; op. cit., p. 82.

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ciclo de la vida”21.Por eso es que justamente los reclamos que tienen como eje a la

vida se deben explícitamente a una búsqueda de su mantenimiento, sin aditamentos, como el simple hecho de vivir.

El pedido por la vida simple tiene directa relación con la categoría animal laborans que utiliza Arendt. “El animal laborans es sólo uno, a lo sumo el más elevado, de la especie animal que puebla la tierra”. Este lugar esta dado justamente por la dependencia con la necesidad, dada esta última por “lo que los hombres compartían con la otras formas de vida animal”22

La productividad del poder de la labor sólo produce objetos de manera incidental y fundamentalmente se interesa por los medios de su propia reproducción puesto que su poder no se agota una vez asegurada su propia reproducción, puede usarse para reproducción de más de un proceso de vida, si bien no ‘produce’ más que vida23.

Vida como el simple y acotado hecho de vivir, vida relacionada con el proceso vital que va desde el nacimiento hasta la muerte y que es garantizada por la labor y dentro del oikos, como el lugar en donde la familia se encuentra.

Tiene 22 años y marcha sin cesar desde hace 78 semanas, cuando mataron a su tío durante un robo: marchó en los tribunales, en la comisaría, en el Ministerio de Justicia y en la cuadra de Adrogué donde fue el crimen. ‘Al principio éramos 100, luego 20, después 8, hasta que en las noches de invierno quedamos cinco. Y las cinco estamos acá. Me encanta que venga toda esta gente. Pero

21 ARENDT, H.; Labor, trabajo y acción. Una conferencia en De la historia a la acción, Buenos Aires, Paidos, 2005, p. 93. Así Aristóteles sitúa esta tarea en la casa relacionándola con la procreación (Política, 1253 b). A eso mismo se refiere Aristóteles, cuando cita a Carondas y a Epiménides de Creta, haciendo una expresa referencia a la comida como cosa compartida en el seno familiar. 22 ARENDT, H.; La condición humana¸ Buenos Aires, Paidos, 2003, p. 10023 ARENDT, H.; op. cit., p. 103

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se tiene que mantener’, pide. Y agrega: ‘En Argentina, la inseguridad mató más gente que la guerra de Irak. Muchos de los que vinimos somos gente sin papá, sin hermano, sin tío’. Los que no llegaron a la marcha por sus muertos, llegaron por los muertos del vecino, o por el miedo. El miedo de ser el próximo24.

Al pasar la calle el contacto con la gente fue intenso. Hobert recordaría: ‘Ahí nos dimos cuenta que estábamos en la Plaza de la Víctimas del Silencio. Todos habían perdido a alguien. A cada paso que dabas la gente te quería agarrar diciendo: ‘Me mataron un hijo, a mi papá, violaron a tal…’. En el camino nos afanaron a todos, tardamos como media hora hasta llegar’.25

Los familiares han salido a reclamar entre otras cosas su derecho a ser familia, su derecho a formar parte de una familia que por diversas razones ha sido rota, ha sido descompuesta. Este reclamo conlleva también el mantenimiento de la familia como un grupo en donde la vida se manifiesta en su más estricto sentido, en el “simple hecho de vivir”26, en el grupo que impone a partir de sus normas de mantenimiento de la vida la forma en que esta vida se conserva, un grupo que tiene sus costados politizados y que está a su vez imposibilitado de salir de este umbral en dónde se pone en juego lo

24 “Vinimos muchos sin papá, sin hermano, sin tío” en Clarín, 2 de abril de 2004 (consultado de la edición digital en http://www.clarin.com/diario/2004/04/02/g-735370.htm). Esta forma de concebir el miedo de ser el próximo es absolutamente hobbesiano en donde lo que se encuentra en total peligro es la propia vida y por eso tiene sentido el Leviatán. Hobbes expresamente hace una introducción de la vida en la política, politiza el simple hecho de vivir. “La gran metáfora del Leviatán, cuyo cuerpo está formado por todos los cuerpos de los individuos, ha de ser leída a esa luz. Son los cuerpos, absolutamente expuestos a recibir la muerte, de los súbditos los que forman el cuerpo político de Occidente” Agamben, Giorgio; op. cit., p. 159. Las negrillas son del original25 GUAGNINI, L.; Blumberg. En el nombre del hijo…, p. 165.26 AGAMBEN, G.; op. cit., p. 9.

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privado y lo público27.En ese punto la denuncia, con esa pretensión, pierde valor de la

acción política, ya que busca la simple restitución de una situación o la compensación de la misma, y esta es la tarea posible del Poder Judicial (lugar por excelencia de la denuncia), pero además porque justamente con la relación que termina teniendo la denuncia con la esfera de la labor lo único que se puede desarrollar es la simple reproducción de la vida pero justamente desde un ámbito indefinido, imposible de determinar ya que los familiares intentan perpetrar la familia en la arena pública, o sea publicitan actos privados, actos domésticos que no pueden ni siquiera tener la trascendencia de la propia acción y del discurso.

“La familias se fundan como albergue y fortificación en un mundo inhóspito y extraño en el que uno desea establecer parentescos. Este deseo conduce a la perversión fundamental de lo político[…]”28

La idea del pedido de justicia está basado en un restablecimiento a condiciones anteriores, de ser posible, y sino a una directa compensación ya sea aplicando una pena o estableciendo un valor monetario al daño inflingido.29 Desde ese punto de vista la práctica de la denuncia, o el pedido de justicia jamás pueden ser una acción de la pluralidad sino el simple mantenimiento del ciclo vital.

Creo que uno de los requisitos para que esa justicia exista en un país tan golpeado es que, como insistentemente reclaman las Abuelas de Plaza de Mayo, los nietos secuestrados e ilegalmente adoptados bajo el amparo de la dictadura militar sean restituidas a las legítimas familias. […] Largas e intensas conversaciones con médicos, psicólogos, jueces y con los parientes de los niños desaparecidos me convencieron de que, casi sin excepciones, la restitución de esas criaturas no sólo tiene su fundamentación ética en el reclamo

27 Para esto, para la delimitación de este umbral en dónde hecho y derecho se ponen en juego ver lo sostenido por Agamben en la Parte Primera de Homo sacer en dónde habla de la “Paradoja de la Soberanía”. (Op. Cit., pp. 27-44)28 ARENDT, H.; ¿Qué es la política?..., p. 46.29 La idea de este opúsculo no es establecer una discusión sobre el fin de la pena sólo tomo los rasgos generales de una posible intervención judicial.

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de justicia es también el más sano de los destinos que la sociedad puede ofrecerles.30

4. La imposibilidad del disenso

La familia, para los antiguos, era un conjunto de relaciones desiguales que estaban naturalizadas. Esto era así porque el lugar de la casa, del oikos, es el lugar de la necesidad. Esta necesidad está íntimamente relacionada con el consumo, con ese consumo que no deja nada tras de sí31.

El problema que justamente conlleva una relación familiar entonces al ser publicitada, al exponerse al campo público es que deriva de por sí sus condiciones, sus “títulos”. Una madre en el ámbito público no varía, sino que publicita justamente algo que es privado, que debe permanecer oculto y que al tener trascendencia pública impone las propias reglas de su status32.

El ejemplo de las Madres de Plaza de Mayo es paradigmático. Las Madres son iguales entre sí, pero no iguales con el contexto que las rodea. Se sienten iguales ellas mismas y por eso pueden unirse y reconfortarse.33

30 Theo Van Boven, ex director de la División de Derechos Humanos de las Naciones Unidas en HERRERA, M. – TENENBAUM, E.; Identidad despojo y restitución, Buenos Aires, Abuelas de Plaza de Mayo, 2001, p. 11.31 “En la Plaza, las Madres se contaban sus historias que, en realidad, eran fragmentos de un mismo dolor. Por fin encontraban un lugar donde podían hablar y no sentirse rechazadas, como les ocurría en la mayoría de los sitios donde iban, e incluso muchas veces, en sus propios hogares” GORINI, U., op. cit., p. 83. “A veces me mostraban planchas con siete cuerpos, uno para un lado, de cabeza, y otros para el otro lado, de los pies; estaban todos baleados, algunos con las manos cortadas, me decían que era para identificarlos. Era horrible. Y sin embargo, yo no les tenía asco ni impresión, los hubiera abrazado a todos” (Testimonio de Beatriz Ascardi de Neuhaus citado por GORINI, U., op. cit., p. 78.32 “Y en la Plaza éramos todas iguales. Ese ‘¿qué te pasó?’, ‘¿cómo fue?’. Éramos una igual a la otra; a todas nos había llevado hijos, a todas nos pasaba lo mismo, habíamos ido a los mismos lugares. Y era como que no habría ningún tipo de distanciamiento. Por eso es que la Plaza agrupó. Por eso es que la Plaza consolidó” De la conferencia pronunciada el 6 de julio de 1988 en Liber/Arte por la presidenta de la Asociación Madres de Plaza de Mayo publicado en AA.VV.; Historia de las Madres …, p. 11.33 “En esta forma de organización [organizaciones políticas a partir de la familia], efectivamente, tanto se disuelve la variedad originaria, como se destruye la igualdad esencial de todos los hombres. En ambos casos, la ruina de la política

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Por eso hay una imposibilidad de establecer una organización política que esté basada en la familia o que tenga a la familia como centro. Las relaciones desiguales impiden el ejercicio de una acción y un discurso en un ámbito de pluralidad de iguales y diferentes.34

Lo que existe es la creación de un discurso que delimita los lugares posibles. Este discurso dispone a la vida, a la nuda vida, como su objeto fundamental y lo relaciona justamente con su puesta en protagonismo que debe ser defendida explícitamente. Sino es así, en apariencias, se abandona a la nuda vida, el discurso de los familiares se explicita para no abandonar a la vida desnuda, pero aún más se la pone en evidencia. Este discurso tiene como centro a la víctima que aún más queda victimizada en este lugar. Este mecanismo entrampa también a los familiares colocándolos en casi una disyuntiva imposible35.

Pero a su vez, en este discurso, dentro del proceso de salida de la familia, está ligado con una especie de liturgia de la víctima y que efectivamente tiene que ver con la vulnerabilidad de los familiares36, tiene su centro y su solución en perpetrar esta vulnerabilidad y como solución posible es perpetrar esa vulnerabilidad37.

resulta del desarrollo de cuerpos políticos a partir de la familia”ARENDT, H.; ¿Qué es la política?, p. 46.34 Un ejemplo claro puede ser el Petitorio “Blumberg” (esto es más allá de las ideas que puede tener su propiciador). Este petitorio planteaba un montón de medidas que en apariencias facilitaban una mayor protección a las posibles víctimas de los delitos, pero planteaban medidas que crean una vigilancia tan extrema que terminan consiguiendo una vida pormenorizada, puesta en peligro, controlada y controlable. (Petitorio publicado en Clarín, 2 de abril de 2004)35 “Esa sensación de historia repetida en el dolor materno de más de tres décadas fue sintetizado por la actriz Gabriela Toscano: ‘El nuestro parece un país que tiende a que nuestros hijos desaparezcan; me de escalofríos pensarlo, pero la injusticia se repite de diferentes maneras’.” “En su Día, las madres piden justicia” en Clarín, 15 de octubre de 2005 (extraído de la edición de internet de ese matutino en http://www.clarin.com/diario/2005/10/15/sociedad/s-06201.htm - negrilla en el original). 36 Quizás se podría analizar lemas tales como “Aparición con vida”, no discuto bajo ningún punto de vista su importancia, pero se puede entender que perpetua la vulnerabilidad de esa vida desnuda, nunca la deja en paz, nunca la termina dejando y siempre renueva su estigma.37 Foucault desarrolla en El orden del discurso los sistemas de exclusión

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Justamente por eso el lugar que cumple la tradición jurídica en promotor de un espacio afuera del Poder Judicial es fundamental, se condena a los familiares a ser familia afuera de su ámbito privado y también afuera del ámbito judicial. El Poder Judicial pareciera decir que la verdad construible ya se encuentra construida imposibilitando a los peticionarios terminar de construir su historia. Esto es claro ya que la imposibilidad de enfrentarse con los acusados a fin de obtener alguna razón, algún retazo de pista por parte de ellos fue propiciado por la agencia judicial. Por consiguiente, este lugar familiar nos representa a todos, termina siendo el último bastión de la dignidad construyendo otra nueva verdad, y esta vez absolutamente incontrovertible.

La verdad del familiar es la verdad más íntima la verdad del sufrimiento, ante eso la “liturgia de la víctima” finaliza una construcción fina y definitiva, este sufrimiento es la razón por la cual el familiar debe ser respetado y es también indiscutible política y éticamente.

Esta liturgia crea a partir del lugar de la denuncia un lugar único que está ligado a la legitimidad del hablar. Sólo puede hablar el que ha sido víctima, sólo puede hacerlo el que ha sabido el dolor sufrido, y sino es así, sólo está autorizada la persona que comulga con este dolor y se alía con la víctima y sostiene sus consignas.38

Esto quiere decir que cuando no hay relación de igualdad, puede haber una imposición directa del discurso que se debe producir, imposibilitando así la realización básica de la política que es acción más discurso. Si el discurso es uno solo, por consiguiente, no se permite la pluralidad. Por consiguiente, se fuerza a la sociedad, en forma capilar, a que comparta las consignas de los grupos familiares39

de los discursos. “En una sociedad como la nuestra son bien conocidos los procedimientos de exclusión. El más evidente, y el más familiar también, es lo prohibido. Se sabe que no se tiene derecho a decirlo todo, que no se puede hablar de todo en cualquier circunstancia, que cualquiera en fin, no puede hablar de cualquier cosa. Tabú del objeto, ritual de la circunstancia, derecho exclusivo o privilegiado del sujeto que habla…” (FOUCAULT, M.; El orden del discurso, Barcelona, Tusquets, 1992, 4º edición, pp. 11 y 12).38 De esta manera consignas tales como “Por la vida de nuestros hijos” o “para que no se repita” funcionan como una cortapisa mínima en la cual no se puede estar en desacuerdo.39 El caso de los teléfonos celulares (Vease, Petitorio publicado en Clarín, 2 de abril de 2004). Así por ejemplo las declaraciones aparecidas en el mismo medio “Para Blumberg, ‘de qué sirve que tengamos nuevas leyes y por otro lado están los

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No estoy diciendo con esto que la Madres hayan pretendido imponer un discurso único, pero si que el lugar de la víctima se recrea y está exacerbado en los nuevos movimientos, lugares de palabras absolutas y prescripciones de carácter total. Como ejemplos se puede recordar el llamado Petitorio “Blumberg”, que más allá de sus dislates jurídicos solicitaba prescripciones legales de dudosa amplitud y que podían ir claramente en contra de la privacidad.40

También es clara esta imposición en el caso de Cromañon. Cuando el ex Jefe de Gobierno fue sobreseído esto trajo una molestia generalizada por parte de los padres de las víctimas muertas.

El fallo fue repudiado por familiares de víctimas y por sobrevivientes del desastre. ‘Con su decisión la jueza consagra la impunidad. El jueves presentaremos una apelación’, dijo el abogado querellante José Iglesias, padre de un joven que murió en el incendio. Otros parientes se mostraron más intransigentes. Poco después del mediodía alrededor de 30 familiares se movilizaron a Tribunales para protestar contra el fallo. De ahí marcharon hasta la Jefatura de Gobierno de la Ciudad, dónde, según un cable de la agencia DyN arrojaron una bomba incendiaria contra la puerta

jueces a favor de los delincuentes’”. El lugar para el disenso casi es nulo e ínfimo.“‘Queremos entrar para controlar cómo votan y cómo fundamentan sus votos los legisladores’, explicó Nilda Gómez, madre de Mariano Benitez (20), otra víctima del incendio. Y agregó: “Todos los padres tenemos el mismo derecho de ingresar a la sesión. Por eso, no vamos a aceptar que algunos de nosotros ingresen y otros no. O entramos todos o no entra ninguno’.” (negrilla mía) “Los familiares afirman que el lunes entrarán ‘todos o ninguno’” en Clarín, 12 de noviembre de 2005, http://www.clarin.com/diario/2005/11/12/elpais/p-00401.htm. “‘Este es un movimiento del dolor, no un movimiento político’, subrayó una madre, al coincidir con otros padres para que las agrupaciones políticas de izquierda ocuparan el fondo de la columna”. “Diez cuadras de dolor incontenible por los 194 chicos de Cromañón” en Clarín, 31 de diciembre de 2005. Sitio Web http://www.clarin.com/diario/2005/12/31/sociedad/s-05201.htm.40 “La Justicia sobreseyó a Ibarra por la tragedia de Cromañón” en Clarín, 8 de agosto de 2006. Sitio web http://www.clarin.com/diario/2006/08/08/sociedad/s-03001.htm

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principal del edificio41. (Negrilla en el original)El lugar de la víctima posiciona a la denuncia casi como única práctica

posible, siendo esta una forma de expresión que no puede ser política, ya que no pretende en ningún momento obtener poder o definir lugares de poder, sino que directamente está orientada a evitar el suceso denunciado, pero desde el dolor y la reprobación moral. Además la importancia que tiene la vulnerabilidad de los hijos antedicha incrementa que el lugar de los padres sea incuestionable políticamente o éticamente y por consiguiente hay una eximición de responsabilidad porque basta con haber sufrido.

Este desarrollo de esta liturgia de la víctima no es nuevo, pero aparece con más fuerza durante los últimos 20 años. Se podría decir que la lucha que inician las Madres de Plaza de Mayo posibilita que esta respuesta sea la única claramente posible.

Hasta hace poco tiempo, la respuesta estándar del sistema a esta crítica era que los intereses de las víctimas estaban subsumidos en el interés público y que, en definitiva, las políticas correccionalista del Estado funcionarían en interés tanto del delincuente como del público. […] Ya desde los años ochenta, la policía, los fiscales y los jueces han comenzado a asegurarse de que las víctimas sean adecuadamente informadas, que sean tratadas con mayor sensibilidad, que se les ofrezca asistencia y que se les dé una compensación por los daños sufridos.[…] Se les ha reconocido a las víctimas una serie de derechos y se les ha dado participación en el proceso penal.42

Esta transformación termina siendo fundamental, posibilitando que este fenómeno perdure y se manifiesta de manera constante, y que, por sobre todas las cosas se establezca como la única solución posible dentro de los reclamos ante el poder judicial y ante el poder político.

La figura simbólica de la víctima ha cobrado vida 41 GARLAND, D.; La cultura del control. Crimen y orden social en la sociedad contemporánea, Barcelona, Gedisa, 2005, pp. 206-207.42 GARLAND, D.; op. cit., p. 242.

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propia y juega un papel clave en el debate político y en la argumentación en torno a las políticas públicas. […] la víctima del delito es ahora, en cierto sentido, un personaje representativo cuya experiencia se supone común y colectiva, en lugar de individual y atípica. El sufrimiento de la víctima (frecuentemente una mujer) se representa con el lenguaje inmediato y personalizado de los medios masivos de comunicación y se dirige directamente a los miedos y la ira de los espectadores, produciendo efectos de identificación y reforzamiento que luego son usados política y comercialmente43

Pero la consecuencia fundamental de esta homogeneidad discursiva que actúa como englobadora y representativa del discurso social tiene que ver con la despolitización. Como vimos el lugar de la familia y sus relaciones no son políticos pero tampoco lo será su discurso que tiene en su nudo fundamental los derechos humanos como centro, discurso ético fundamental que impide la concreción de un reclamo político.

Žižek explica que la despolitización del Holocausto es un acto político de absoluta manipulación44. Se puede entender que lo mismo ocurre con la prédica de los derechos humanos. Los derechos humanos se transforman en el grado cero de la discusión, lo imposible de discutir45. Si se transforma al discurso de los derechos humanos en lo pre-político entonces los derechos humanos no tienen que ver con la acción tal y como la entendía Arendt, sino por el contrario con el ámbito de la labor que había sido retraducido por el ámbito social y utilizado de una forma totalmente diferenciada y que

43 ŽIŽEK, S.; ¿Quién dijo totalitarismo? Cinco intervenciones sobre el (mal) uso de una noción, Valencia, Pre-Textos, 2002, pp. 83-84.44 “Far from being pre-political, ‘universal human rights’ designate the precise space of politicization proper; what they amount to is the right to universality as such—the right of a political agent to assert its radical non-coincidence with itself (in its particular identity), to posit itself as the ‘supernumerary’, the one with no proper place in the social edifice; and thus as an agent of universality of the social itself”. ŽIŽEK, S.; “AGAINST HUMAN RIGHTS”, en New Left Review 34, July-August 2005 p. 131.45 IGNATIEFF, M. (et al.); Human Right as politics and idolatry, New Jersey, Princenton Universtity Press, 2001. pp. 56-57.

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tiende por consiguiente a poner más en riesgo la vida que reproducirla. Los derechos humanos se presentan como la protección última en que los seres humanos son respetados y defendidos en su accionar:

A human rights abuse is something more than an inconvenience, and seeking human rights redress is distinct from seeking recognition. It is about protecting an essential exercise of human agency. […] Human rights matter because they help people to help themselves. They protect their agency.46

De esta manera queda remarcado que los derechos humanos están para proteger de manera constante y permitir el accionar humano, más aún para permitir que las personas sean ellas mismas. Por eso mismo, el discurso de los derechos humanos se presenta como lo apolítico por antonomasia, como el estado preexistente al cuerpo político y de una pureza total.

Es así que, desde el lugar de la familia esta puesta en entredicho la nuda vida y por ello cualquier contra-discurso pareciera afectar aún más a la víctima. Esto complementado con la denuncia conlleva la comprensión del hecho desde un lugar de inseguridad sin objetivos políticos concretos, transformándose en síntoma de una mirada ética.

De esta manera la cuestión encierra una terrible paradoja, la víctima se victimiza doblemente en la petición de sus derechos humanos, sin embargo sigue con su prédica. De esta manera, todo pareciera volverse vulnerable demostrando que cualquier prédica por los derechos humanos pareciera ser cerrada y dejando a varios afuera.�

5. Conclusiones

46 “Finalmente, nesse quadro, é possivel comprender as agruras da internalização de uma idéia de Direitos Humanos e, mais ainda, de sua implementação como política pública. Os direitos, em nossa tradição, são sempre particularizados, e explica-se assim, que cada categoria reivindique competitivamente os “seus” direitos humanos: das vitimas, das policiais, dos agressores, etc., como se a “concessão” desses direitos a uns excluísse automaticamente os outros de fruí-los, como tem sido constantemente explicitado por nossos interlocutores, no campo” KANT DE LIMA, R., “Direitos civis e direitos humanos..., p. 58.

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La primera de ellas, tiene directa relación con el papel que cumplen los familiares en la calle, con su labor y con la impronta de sus movimientos. La actuación realizada por los familiares es una conducta ética que no funciona nunca como accionar político. Esto lo condiciona y lo dirige directamente a peticionar siempre para el juzgamiento de las conductas ajenas. Su referente siempre es la agencia judicial o medidas relacionadas con el castigo, con el juzgamiento.

El reclamo está destinado casi de manera excluyente al Poder Judicial, dando una preponderancia a este durante los últimos años en la Argentina, de esta manera, también pareciera que gran parte de las peticiones que antes se desarrollaban en la arena política y que implicaban solicitar a los poderes políticos alguna actuación en particular, hoy han sido trasladadas al Poder Judicial como el único que puede aportar alguna solución.

A pesar de este papel del Poder Judicial, los familiares son “expulsados” del lugar jurídico teniendo que construir su “verdad” afuera. La imposibilidad de solución de la agencia judicial, de una solución que termine por satisfacer a los familiares tiene una íntima relación con nuestra relación jurídica, como esta fue construida y como esta actúa hoy.

De ahí surgirán una serie de interrogantes que es necesario contestar para ver la eficacia política de este tipo de movimientos y también para poder saber, como ya se dijo, si este direccionamiento tiene alguna otra incidencia que no pueda ser reconocible a simple vista. En concreto se puede entrever que la existencia de los grupos familiares en la calle ha servido, en cierta forma, para el establecimiento directo de una red en dónde quedan entrampados los mismos familiares. En esta red que es de un entramado finísimo no se puede estar en contradicción con el grupo familiar, sólo se puede estar con ellos de manera directa, de manera única, y por ende, hay un rechazo manifiesto a la contradicción y a la oposición.

En segundo plano, se debe tratar de ver que la conducta de los grupos familiares, especialmente en los últimos años, pretende fortalecer el papel punitivo del Estado. Lo peticionado por los familiares, la forma de la petición condiciona entonces su logro. Condiciona, también, la respuesta estatal. Intenta establecer una imposibilidad en la oposición. Nadie puede estar en desacuerdo con lo reclamado por los grupos familiares. De manera directa su prédica es la nuestra y es imposible que sea obviada.

Esta homogeneización está acompañada por una despolitización debido al discurso que pretende sostener. El discurso que se utiliza es el de los derechos humanos que de por sí se halla despolitizado, que no puede tener

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costado político ya que no puede ser motivo de participación o discusión.Ser familia, por ende, sigue siendo un instrumento disciplinador de

manera total y social, impidiendo cualquier escape a este y a sus relaciones desiguales naturalizadas. En este punto, las últimas oleadas de grupos familiares han aportado, con claridad, en este establecimiento de la denuncia como único móvil posible, como único medio posible que todo lo puede y que todo lo consigue y que siempre es para “que no se repita” y para todos.

6.Materiales y fuentes

AA.VV.; Historia de las Madres de Plaza de Mayo, Buenos Aires, Editorial La Página, 1995

AGAMBEN, G.; Homo sacer. El poder soberano y la nuda vida, Valencia, Pre-textos, 1998

ARENDT, H.; ¿Qué es la política?, Barcelona, Paidos, 1997.

___________La condición humana¸ Buenos Aires, Paidos, 2003.

___________De la historia a la acción, Buenos Aires, Paidos, 2005.

CLARÍN. Edición electrónica del diario fecha. En http://www.clarin.com.ar

D’ALBORA, F. J.; Código Procesal Penal de la Nación. Anotado, comentado, concordado, Buenos Aires, Abeledo Perrot, 2003

FOUCAULT, M.; La verdad y las formas jurídicas, Barcelona, Gedisa, 2005

______________El orden del discurso, Barcelona, Tusquets, 1992

GARLAND, D.; La cultura del control. Crimen y orden social en la sociedad contemporánea, Barcelona, Gedisa, 2005

GORINI, U.; La rebelión de las madres. Historia de las Madres de Plaza de Mayo. Tomo I (1976-1983), Buenos Aires, Norma, 2006

GUAGNINI, L.; Blumberg en el nombre del hijo, Buenos Aires,

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Sudamericana, 2005

HERRERA, M. – TENENBAUM, E.; Identidad despojo y restitución, Buenos Aires, Abuelas de Plaza de Mayo, 2001

IGNATIEFF, M. (et al.); Human Right as politics and idolatry, New Jersey, Princenton Universtity Press, 2001

KANT DE LIMA, R., “Direitos civis e direitos humanos. Uma tradição judiciária pré-republicana?” en São Paulo em Perspectiva, 18 (1), 2004

MERRYMAN, J. H.; The civil law tradition. An introduction to the legal systems of Western Europe and Latin America, Stanford, Stanford University Press, 1969

REPÚBLICA ARGENTINA, Código Procesal Penal de la Nación Argentina

ŽIŽEK, S.; ¿Quién dijo totalitarismo? Cinco intervenciones sobre el (mal) uso de una noción, Valencia, Pre-Textos, 2002

“AGAINST HUMAN RIGHTS”, en New Left Review 34, July-August, 2005.

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BLIGACIONES Y RELACIONES DE INTERCAMBIO EN EL ÁMBITO DE LA JUSTICIA PENAL

María José Sarrabayrouse Oliveira

Licenciada en Ciencias Antropológicas.Doutoranda em Ciencias Antropológicas – Faculdade de Filosofia e

Letras, Universidad de Buenos Aires (UBA)Integrante da Equipe de Antropología Política e Jurídica. Instituto

de Ciências Antropológicas. Faculdade de Filosofia e Letras. Universidad de Buenos Aires (UBA)

1. Artículo

Trabajos clásicos de la antropología han reconocido a las relaciones de intercambio como producto de obligaciones constitutivas de las relaciones sociales. Contra aquello que podría observarse desde una mirada superficial, las obligaciones, producto de las relaciones de intercambio, no atañen exclusivamente a las llamadas sociedades “primitivas” o propias de la antropología más tradicional, sino que se despliegan con toda su fuerza en espacios pertenecientes a las sociedades modernas en los que actúan como sostén de las relaciones sociales que allí se constituyen. A partir de este planteo inicial intentaré analizar un caso seleccionado que, en su calidad de extraordinario, permite entrever las relaciones que estructuran a la agencia judicial.

Hace ya varios años que estoy trabajando sobre el funcionamiento y las prácticas del poder judicial, particularmente en el ámbito de la justicia penal. El trabajo de campo desarrollado en este tiempo me ha permitido observar –al principio de un modo casi intuitivo- la importancia que poseen las relaciones de intercambio en el funcionamiento cotidiano de los agentes judiciales y el lugar fundamental que ocupan las obligaciones que las mismas acarrean. Poco se puede comprender sobre cómo se producen en la justicia los ingresos, los ascensos y el desarrollo cotidiano y rutinario de las relaciones entre los sujetos si no apelamos a las relaciones de intercambio.

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Esta “dificultad” en la comprensión puede llevarnos a caer en el error de una acusación moral que se centre en el “cómo deberían ser” las cosas y no en el conocimiento cabal del funcionamiento de la justicia penal.

En la tesis de doctorado que estoy realizando he planteado como objetivo general analizar el funcionamiento del poder judicial durante la última dictadura militar en la Argentina. Como parte de este trabajo he propuesto analizar la tramitación de algunas causas judiciales presentadas en aquellos años. Una de las causas seleccionadas es la que se conoció tanto en los pasillos de tribunales como en los organismos de derechos humanos como “causa de la morgue judicial”, y su elección se debe –entre otros motivos- a que la misma presenta un hecho singular –desarrollado a lo largo de su tramitación- que permite focalizar en las obligaciones existentes entre los actores que integran el poder judicial1. El hecho al que hago referencia

1 Este expediente posee dos caras a ser analizadas. Por un lado, la causa se presenta como un caso excepcional en la medida en que queda en evidencia la colaboración de algunos burócratas judiciales con el terrorismo de estado. Asimismo, la actuación de los funcionarios judiciales -tanto en los hechos investigados como en la posterior tramitación del expediente-, permite develar la malla de relaciones sobre las que se estructuran sus prácticas. ( ) Por otra parte, en la causa también aparece lo que se podría denominar una punta de lanza de la investigación jurídica: un hecho que en líneas generales- representa lo cotidiano en los tribunales de aquellos años. Se trata de un expediente iniciado por privación ilegítima de la libertad donde se investiga la desaparición de un médico a fines de 1976, cuyo nombre era Norberto Gómez. Esta causa -como tantas otras- hubiese terminado arrumbada en el archivo de algún juzgado, si una cantidad de hechos fortuitos y no tanto- no hubiese ocurrido. Esto que denomino lo cotidiano permite reconstruir la trama administrativa de la violencia o, en otros términos, el crimen de oficina (Yan Thomas, 1999) ( ) Entiendo que lo excepcional y lo cotidiano no se deben visualizar como hechos antagónicos, sino que deben ser entendidos como fenómenos que se retroalimentan. En otras palabras, la causa de Gómez lo cotidiano- permitió llegar a la causa de la morgue lo excepcional-, y a partir de esta última

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es la presentación de las excusaciones2 realizadas por un conjunto de jueces al momento de intervenir en la causa en cuestión, donde lo que estaba en discusión era la actuación de varios de sus colegas con respecto a la complicidad en la utilización irregular, por parte de las fuerzas armadas, de las instalaciones de la morgue judicial3.

Las excusaciones presentadas en la causa de la morgue nos hablan de algo más que de figuras jurídicas. Son casos que permiten desentrañar la malla de relaciones sobre la que se sostiene la institución judicial y que permiten comprender con mayor profundidad el comportamiento de los individuos. En este sentido, podría incluir el caso que aquí voy a analizar entre los llamados “casos excepcionales, o los llamados casos contrarios [que] tienen la virtud de exponer a la luz aquello que permanece a la sombra en los análisis centrados sobre las normas y construidos por medio de modelos que, al no cuestionar aquello que en ellos no encaja, terminan por producir visiones simplificadas y empobrecidas del mundo social, como si su funcionamiento fuese simple y mecánico, como si en la realidad las cosas no fuesen fluidas, como insistían Max Weber y Edmund Leach (cf. Leach 1961; Weber 1965)” (Sigaud, 2004:133)4

se pusieron en evidencia todas esas relaciones sociales que hacen posible que esas prácticas cotidianas, burocráticas y asépticas condensadas en la causa de Norberto Gómez- tengan lugar. (Sarrabayrouse Oliveira, 2003:13-14)2 La excusación es una figura jurídica a la que pueden apelar los funcionarios cuando consideran que no pueden actuar libremente en la tramitación y resolución de una causa debido a la existencia de una relación de parentesco, amistad, enemistad o de tipo económico con alguna de las partes implicadas.3 Hacia 1976 los únicos juzgados que podían hacer uso de la morgue judicial sin tramitar ningún pedido específico ante la superioridad, eran los juzgados penales. Los que pertenecían a otros fueros debían realizar una solicitud especial para utilizar las instalaciones de la misma ante la Cámara del Crimen, la cual resolvía en un plenario -es decir, en una reunión extraordinaria en la que participan todos los integrantes de las distintas salas de la Cámara y donde resuelven situaciones de carácter administrativo o jurídico- si hacía o no, lugar al pedido. Demás está decir que ninguna otra oficina del estado podía hacer uso de la morgue sin la intervención del poder judicial con la consecuente iniciación de un expediente.4 Sin lugar a dudas es necesario dar cuenta de la configuración sociohistórica (Sigaud, 2004: Elías, 1996) en el que está inserto este caso. Poco

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Así, en este artículo pretendo analizar las excusaciones presentadas por los distintos magistrados a la luz de la problemática de intercambio para, de esta manera, reconstruir no sólo los distintos tipos de relaciones existentes –que exceden claramente las de tipo funcional- sino los “bienes” que circulan así como los grupos que intervienen en los actos de intercambio. En otras palabras, poder analizar “más allá” de las normas jurídicas reconociendo la existencia de otras normas que están operando a la hora de analizar la conducta de los individuos. Como plantea Sigaud (1996), es necesario evitar el error de algunos cientistas sociales que “como si estuvieran contaminados por el sesgo de los juristas, tienden a aislar las conductas y a examinarlas preocupándose sólo por sus implicaciones en términos de cumplimiento o no cumplimiento de las normas jurídicas. Esto es lo que se observa, por ejemplo, en buena parte de los estudios sobre temas en boga relacionados con el derecho, como son los que toman por objeto la “violencia” o la “ciudadanía”. Al proceder así no consiguen rescatar de forma positiva los comportamientos que están examinando y ni siquiera consiguen comprenderlos, sino sólo constatar que no se corresponden con lo que sería “deseable”. Si lograsen asumir una postura de mayor distanciamiento con respecto a los “problemas sociales” que presenta la relación de los individuos con el cumplimiento de las normas jurídicas –que no son sino nada más que cuestiones prácticas para los interesados en el orden jurídico- podrían percibir que tales normas no poseen un mana5 que justifique por sí mismo el interés en que ser respetadas, y sobre todo, podrían identificar otras normas con las cuales los individuos de carne y hueso están vinculados en sus relaciones con otros individuos6” podremos comprender si no consideramos la bisagra histórica que se estaba viviendo (el paso de una dictadura militar a un gobierno democrático) en articulación con las continuidades propias de la justicia (quién se va, quién se queda, qué favores se deben pagar y qué nuevas obligaciones se crearán)5 La palabra mana es empleada aquí en el sentido de poder mágico, cualidad mágica, a partir del análisis de Mauss y Hubert sobre hechos de la Melanesia (1991: 101-115). Creer en el poder de las normas jurídicas no se distingue de la creencia en el poder de las cosas.6 La dificultad de los cientistas sociales en asumir en sus análisis una posición de distanciamiento ante los problemas de las sociedades en las que viven son reales y provienen de su participación en los conflictos de su tiempo, como lo destacaba Elías (1993: 23-30). El efecto de la ausencia de distanciamiento se expresa en los temas que se escogen para estudiar –los temas “calientes”- y en las preguntas formuladas, que muchas veces no son más que preguntas del sentido común. Reconocer la existencia de tales dificultades es condición necesaria para

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(Sigaud,1996:2-3)

2. El caso

Los primeros pasos de la causa de la morgue

En noviembre de 1982 –faltando poco menos de un año para la caída de la última dictadura militar en la Argentina-, el Centro de Estudios Legales y Sociales (CELS)7 inició tanto una causa judicial8 como una presentación ante la Corte Suprema de Justicia de la Nación, en las que se solicitaba se investiguen las irregularidades advertidas en el funcionamiento de la Morgue Judicial entre los años 1976 y 1980. En ambos escritos se denunciaba que la morgue judicial había efectuado autopsias, solicitado certificados de defunción al registro civil y realizado inhumaciones de cadáveres NN sin dar intervención al juez competente, sino a solicitud de las fuerzas armadas. De acuerdo a la información que poseía el CELS, las irregularidades habían ocurrido, por lo menos, con respecto a seis cadáveres pero “los elementos analizados (permitían) sospechar que tal procedimiento (había sucedido) en un mayor número de casos” (fs. 1vta.) y que, incluso, era una práctica habitual en el período aludido9.

A medida que la investigación judicial avanzaba –a pesar del contexto político en el que esto ocurría- comenzó a develarse la colaboración

poder, de alguna forma, controlarlas. Pero es preciso ir más allá e ejercer todo el tiempo una vigilancia redoblada sobre los problemas de estudio que se están construyendo y sobre los hechos que se están tomando para analizar.7 Organismo de derechos humanos creado en 1979, en plena dictadura militar.8 La causa judicial se inició tomando como una de las pruebas el expediente presentado a raíz de la desaparición, en 1976, de un médico llamado Norberto Gómez. En esa causa original existía un parte remitido por la Policía Federal en el que constaba que Gómez había fallecido en un “enfrentamiento” (eufemismo utilizado por las fuerzas armadas y de seguridad para referirse a los fusilamientos) y que su cadáver, junto con el de otros tres NN, había sido remitido a la morgue judicial “por orden de las fuerzas conjuntas” (fuerzas armadas) sin intervención del juez competente.9 Algunos integrantes del CELS poseían esta información hacía ya varios años, sin embargo hasta el momento no se había presentado el momento político propicio que permitiese la tramitación efectiva del expediente.

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de diversos funcionarios judiciales para con las fuerzas armadas y empezó a extenderse un manto de sospecha sobre aquellos funcionarios y empleados que habían desempeñado tareas y habían firmado resoluciones durante aquellos años.

Claro ejemplo de este hecho es lo sucedido a comienzos de 1983 cuando los abogados del CELS presentaron, en nombre de los familiares de las víctimas, un recurso de apelación ante la Cámara en lo Criminal a fin de que resolviese su pedido para ejercer el rol como parte querellante10 en la causa11. Como la mayoría de los integrantes de la Cámara que debía resolver este conflicto, había desarrollado funciones en ese organismo entre el 24 de marzo de 1976 y diciembre de 1980, los abogados denunciantes decidieron recusar12 a los camaristas, argumentando que existían

[...] pruebas concretas de comunicaciones cursadas entre el Cuerpo Médico Forense y la Cámara del fuero donde fueron planteadas consultas relacionadas con la utilización del servicio de la Morgue que se venía efectuando en ese entonces por las Fuerzas Armadas (...) Con la documentación que oportunamente acompañáramos con nuestra denuncia, acreditamos que la Cámara tenía conocimiento de estos hechos irregulares (...) Este conocimiento de ilícitos y la participación de miembros y funcionarios de la Cámara lleva a la fundada sospecha sobre el conocimiento que de los mismos tenían todos los integrantes del cuerpo durante el período comprendido entre el 24 de marzo de 1976 y diciembre de 1980, quienes

10 El que acusa o reclama ante un juez o tribunal competente por violación de sus propios derechos.11 Este pedido incluía una discusión tácita entre las partes acerca del tipo de delito que se estaba investigando: los denunciantes sostenían que el delito en cuestión era homicidio; los jueces, un delito de orden público, es decir que afectaba a la administración pública. De acuerdo a esta última posición, no era lógico que los familiares de Gómez se presentasen como querellantes. Es por ello que el CELS decidió apelar a la Cámara del Crimen para que resolviese la disputa.12 Pedir el alejamiento de los jueces que intervienen en una causa por verse comprometidos con alguna de las partes.

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por acción u omisión, al no haberse opuesto a los hechos denunciados pueden tener interés en la causa. (Fs.26 vta.)13

Uno a uno, los miembros recusados del tribunal –en total eran veinte- fueron “inhibiéndose” de intervenir en la causa. Entre los que habían formado parte de la Cámara en los años en cuestión, algunos se excusaron mencionando, simplemente, que estaban comprendidos dentro de los términos de la recusación por haber sido designados como camaristas en aquella época; otros, manifestaron su abierta disconformidad con la presentación ya que alegaban “un total desconocimiento” -por aquellos años- de los hechos que se denunciaban.

Finalmente se conformó una sala con camaristas “no recusados”, la cual resolvió aceptar como parte querellante a los familiares de las víctimas. De esta manera, habiendo transcurrido varios meses, la causa “volvió” a la primera instancia (el juzgado de instrucción) donde se estaba realizando la investigación. Sin embargo, para ese momento quien había sido titular de ese juzgado ya no se encontraba en su cargo y en su lugar había sido designado un nuevo juez, Fortich Baca. Ante el panorama anteriormente descrito, donde se comprometía14 y se pedía la recusación de una importante cantidad de funcionarios, el magistrado no encontró otro mejor camino que el de la excusación15.13 También se presentó como sostén del pedido de recusación, una resolución de la Cámara del Crimen, que databa de octubre de 1977, en la cual los miembros de una de las salas declaraban la incompetencia de la justicia civil para intervenir en el caso de un detenido-desaparecido y derivaban el expediente a la justicia militar. Como parte de esta presentación se solicitó el nombre de los camaristas firmantes para que se los cite a prestar declaración indagatoria y para que, a su vez, se remitan los antecedentes de los mismos a la Corte Suprema de Justicia. Este caso –como tantos otros- permite descubrir y describir las prácticas judiciales que habitualmente llevaban a cabo los funcionarios tribunalicios durante la dictadura.14 Mario Pena, presidente de la Cámara del Crimen entre 1976 y 1980, había sido procesado por las irregularidades ocurridas en la morgue judicial (la morgue judicial depende del Cuerpo Médico Forense el que a su vez depende de la Cámara del Crimen). Como ser verá en los próximos apartados, muchos de los magistrados estaban vinculados con Mario Pena por relaciones de distinta índole. 15 Cuando se presenta una excusación, el juez que se excusa debe presentar su resolución ante un nuevo magistrado (el que le sigue en orden de turno) el cual

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3. El largo camino de la excusación o la obligación de devolver. Dones y contradones

Entre los argumentos utilizados para fundamentar su alejamiento de la causa, el novel magistrado apeló –como sus colegas- a la amistad íntima que lo unía con algunos jueces sospechados, amistad que databa de sus inicios en la justicia, y a la “deuda” hacia quien había posibilitado su ingreso y progreso en la carrera judicial. No se trataba meramente de una relación funcional sino de un vínculo que atravesaba los más diversos ámbitos sociales, deportivos, académicos y familiares. Así decía Fortich Baca en su excusación:

[...] El ingreso del suscripto en la Justicia del Crimen como meritorio se produjo el 2 de octubre de 1969 en el juzgado de Sentencia letra “C”, secretaría Nº 6, entonces a cargo del Dr. Néstor Nicolás Gómez, quien, más tarde, lo promueve en el escalafón administrativo en la Fiscalía nº 16 de la que fue titular; finalmente, en noviembre de 1982, el proveyente es designado Secretario de la Sala III del Excma. Cámara, integrada también por le Dr. Gómez (…) Así, además de la amistad ya existente entre el Dr. Gómez y familiares del declarante –desempeñábase desde tiempo atrás en la secretaría nº 6 el hermano de mi padre-, se forjó a través de esa dilatada relación funcional una amistad que puedo calificar como íntima, en los términos del art. 75, inc. 12º, del Código de Procedimientos en materia penal, además de lo cual existe de parte de quien ahora debe decidir el natural agradecimiento hacia quien posibilitó en gran medida su progreso en la carrera judicial (…) Respecto del Dr. Mario H. Pena existe, además, concreta imputación en el dictamen producido por

puede seguir distintos caminos: rechazar la excusación y hacer que vuelva al juez original; aceptarla y tomar la causa o aceptarla pero excusarse de intervenir y derivarla a otro juez.

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el Dr. Severo Caballero ante la Corte Suprema de Justicia de la Nación, recogida en la resolución del Alto Tribunal que en su consecuencia se dictó (…) En cuanto a dicho magistrado, la relación amistosa y cordial que me une proviene, trascendiendo el marco de lo estrictamente funcional, de la conformación de un grupo de camaradería por ambos integrado, que semanalmente se reúne con fines sociales y deportivos, además de la íntima existente y su hijo Héctor, con quien compartiera en su oportunidad el honor de desempeñarse como Secretarios del Juzgado de Instrucción nº 14, del Dr. Oscar Mario R. Ocampo, y aún hoy pertenecen ambos a la cátedra de Derecho Penal parte especial del Dr. Spolansky, en la Universidad de Belgrano (fs.937 vta.)

El juez que recibió esta primera excusación – Mugaburu- le hizo lugar, y paso seguido presentó la propia. En ella sostenía su alejamiento de la causa aduciendo que:

[...] entre esos magistrados se encuentra el Dr. Néstor N. Gómez, por intermedio de quien logré ingresar en la Justicia de Instrucción en el año 1971; el Dr. Miguel Angel Almeyra, actual titular de la Cátedra de Derecho Procesal en la que me desempeño como profesor adjunto; el Dr. Vicente E. Andereggen, de quien soy discípulo en razón de haber sido alumno suyo mientras cursé el bachillerato (1964), pudiéndolo mencionar asimismo como una de las personas que despertaron en mí la vocación por el derecho; el Dr. Julio C. Ledesma, con quien compartí durante varios años, la cátedra universitaria; el Dr. Carlos Guardia, con quien me une una relación de amistad. Destaco asimismo que durante años he tenido trato frecuente a través de la actividad judicial (…) con la mayoría de los afectados, entre

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los que señalo [enumera una larga lista] algunos de los cuales fueron mis superiores jerárquicos (…) Por último menciono al Dr. Miguel Ángel Madariaga, quien siendo titular de la cátedra de derecho procesal penal en la UBA me honró al proponerme como adjunto, siendo la persona que el día de mi juramento como magistrado me puso en posesión del cargo” (Causa penal 40.357/82, fs. 1051-1051vta.)

Longobardi fue el tercer juez que recibió la causa y –como sus antecesores- la rechazó, presentando una nueva excusación:

[...] entre los imputados a quienes está dirigida esta acción, se encuentran magistrados y ex magistrados con los cuales el proveyente mantiene y ha mantenido vínculos de amistad íntima y de frecuencia de trato [...] Tal es el caso del Dr. Mario H. Pena, a quien me une una amistad íntima, prolongada e ininterrumpida desde el año 1956 [...] Asimismo, con el Dr. Carlos Alberto Tavares, me une una relación de amistad y frecuente trato desde hace veinticinco años aproximadamente, lapso en el cual pude seguir toda su carrera en el Poder Judicial quien además en algunos momentos y cuando más lo necesitaba, me brindó su apoyo espiritual […] Por último con el Dr. Raúl Noailles, si bien no me une un vínculo estrecho de amistad, existe un trato frecuente y muy cordial por ser colega de la Facultad de Derecho y Ciencias Sociales de la Universidad Nacional de Buenos Aires y, cuando se desempeñaba el proveyente como funcionario de la Caja Nacional de Ahorro y Seguro, en varias oportunidades hube de gestionarle la obtención de préstamos personales […] Todo lo expuesto precedentemente crea en el ánimo del suscripto un grado de violencia moral que me lleva a considerar el apartamiento de esta

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causa por las causales de excusación (Causa penal 40.357/82, fs. 1057-1057vta.)

Siguiendo con el mismo procedimiento, la excusación de Longobardi fue aceptada por Lafitte quien a su vez también se inhibió de actuar en la causa en cuestión:

[…] con los Dres. Miguel Ángel Almeyra y Guillermo Rivarola me une una larga amistad que data desde comienzos de la década de 1960 en la que fuimos compañeros de trabajo en el fuero federal, vínculo que nos ha unido desde entonces, existiendo gran familiaridad y frecuencia de trato, lo que se ha visto fortalecido con el transcurso del tiempo. Lo dicho se halla ratificado por las públicas manifestaciones vertidas por el Dr. Almeyra, laudatorias y de profundo cariño hacia mi persona, en ocasión de ponerme en posesión del cargo que detento, respondiendo a la invitación que le formulara, para que fuera él, por las circunstancias de amistad, antedichas, que presidiera tal ceremonia (Causa penal 40.357/82, fs. 1060-1060vta.)

El quinto y último juez en intervenir en la “carrera excusatoria” fue Oliveri, quien distanciándose del proceder de sus colegas rechazó la excusación y redactó una resolución en la que daba cuenta de todas estas relaciones -que parecen estar enfrentadas con el mundo de las prácticas y normativas jurídicas- pero, marcando una diferencia con sus predecesores, las rechazó como argumento para la no intervención en el expediente judicial:

También resulta notoria la homogeneidad de los argumentos esgrimidos por los excusados, conformantes de una verdadera “familia judicial”, fruto de una imbricada red de relaciones funcionales y –mayoritariamente- extrajudiciales que liga a las magistrados y ex magistrados del fuero, desde los más antiguos camaristas

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hasta los flamantes colegas del suscripto (...) Quienes hemos pasado buena parte de nuestra existencia labrando en el azaroso servicio de la administración de justicia, nos conocemos -en mayor o menor medida- y es razonable predicar sobre la atmósfera de cordialidad subyacente en cada saludo, en cada encuentro casual y –aún- en ocasión de enfrentar asuntos judiciales conexos. ¿Quién no ha estrechado alguna vez la mano de otros funcionarios o magistrados del fuero, o se ha sentado junto a ellos en una cena de camaradería, o – por el contrario- ha resultado sancionado por cuestiones de superintendencia? [...] Mas no parece atinado concluir que esa interferencia de conductas inhabilite para el conocimiento y decisión de un caso en el que aparezca implicado otro miembro del Poder Judicial, aunque perteneciere al mismo fuero que el del juzgador” (Causa penal 40.357/82, fs. 1063/1064)

La resolución de Oliveri culminó con un rechazo de la excusación de Lafitte, quien apeló la decisión ante la Cámara del Crimen. Finalmente y luego de varias presentaciones de los distintos funcionarios judiciales como de la querella –que no hacen al interés en este trabajo- la causa quedó en manos del último juez, Oliveri.

3. Obligaciones y valores morales

Toda relación social conlleva obligaciones, es decir, deberes que los individuos sienten poseer en su relación con otros individuos. La existencia y el cumplimiento de estas obligaciones sociales vinculan a los individuos entre sí.

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La vida social implica una permanente circulación de cosas16 (Mauss, 1979; Sigaud, 2004). Como planteaba Mauss en su clásico “Ensayo sobre el don”, “(…) lo que se intercambia no son exclusivamente bienes o riquezas, muebles e inmuebles, cosas útiles económicamente; son sobre todo gentilezas, festines, ritos, servicios militares, mujeres, niños, danzas, ferias en las que el mercado ocupa sólo uno de los términos de un contrato mucho más general y permanente” (1979:160). Las personas participan de un constante intercambio y al hacerlo están obligados a cumplir con determinadas pautas. Por ello y considerando que el intercambio constituye la punta del iceberg de las relaciones sociales, a las cuales expresa, es que podemos decir que el intercambio interesa más por lo que muestra del mundo social que por lo que es en sí. En otras palabras, al hablar de intercambio nos importa ver quiénes intervienen, qué es lo que se da, qué es lo que se devuelve.

Por eso, el análisis de las excusaciones permite poner en foco las obligaciones que son producto de las relaciones establecidas entre los miembros del poder judicial. Relaciones sociales que, como se dijo anteriormente, se expresan en el intercambio. Pero para ello debemos ir más allá de lo que la reglamentación y la normativa dicen, romper con el constreñimiento propio de aquellas miradas que tienden a aislar las conductas de los individuos, limitándose a indagar si las mismas se condicen o no con la regla. Más allá de las prohibiciones que puedan surgir de la normativa jurídica, si analizamos los comportamientos a la luz del marco más amplio de relaciones sociales en el que están insertos los actores, podremos observar que determinadas conductas sólo se explican por la existencia previa de relaciones (sostenidas en el intercambio) que atrapan a los individuos en un circuito de deudas y favores, donde valores como la gratitud y la lealtad dan cuenta de las obligaciones que se deben cumplir so pena de romper la relación17.

Las excusaciones presentadas por los distintos jueces se sostienen recurriendo al argumento de la existencia de determinadas relaciones que –16 “(…) todo, alimentos, mujeres, niños, bienes, talismanes, tierra, trabajo, servicios, oficios, sacerdotales y rango son materia de transmisión y rendición. Todo va y viene como si existiera un cambio constante entre los clanes y los individuos de una materia espiritual que comprende las cosas y los hombres, repartidos entre las diversas categorías, sexos y generaciones” (Mauss, 1979:170-171)17 Faltar a las obligaciones es señal de que algo está sucediendo en ese vínculo. En una situación extrema esto puede implicar la ruptura de la relación.

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según lo planteado por los actores en el marco de la lógica jurídica- deberían mantenerse al margen de las relaciones funcionales. Las relaciones en cuestión abarcan un amplio espectro que incluye la amistad -propia o de familiares- (“me une una amistad íntima, prolongada e ininterrumpida desde el año 1956”); el parentesco; la conformación de grupos de camaradería (“semanalmente se reúne con fines sociales y deportivos”); el compañerismo surgido por el desempeño laboral tanto en el poder judicial como en la universidad (“con quien compartiera en su oportunidad el honor de desempeñarse como Secretarios del Juzgado de Instrucción nº 14, del Dr. Oscar Mario R. Ocampo, y aún hoy pertenecen ambos a la cátedra de Derecho Penal parte especial del Dr. Spolansky, en la Universidad de Belgrano”); la subordinación (“algunos de los cuales fueron mis superiores jerárquicos (refiriéndose a los funcionarios imputados)”. Conforme el supuesto desde el que parto para la elaboración de este artículo, estas relaciones que según la normativa jurídica deben mantenerse apartadas del desempeño funcional de los individuos,18 constituyen -en realidad- la malla sobre la que se configura el poder judicial19. Paradójicamente, es mediante la denuncia de la existencia de estas relaciones “prohibidas” que los actores implicados defienden la continuidad de las mismas.

Pero para comprender el interés que presentan los individuos en la continuación de estas relaciones es necesario conocer –mínimamente- cómo es el modo de incorporación de los agentes al poder judicial20.

El ingreso a tribunales, el comienzo de la denominada “carrera judicial” implica -la mayoría de las veces- el pedido de designación de una persona –generalmente un estudiante de derecho-21 por parte de algún 18 Estas relaciones son fuertemente negadas, ocultadas o disimuladas por los miembros de la justicia. Permanentemente parecen necesitar, para un eficaz desempeño, de la simulación de una distancia que por la práctica misma se hace casi imposible. Así lo decía en una entrevista una jueza de un tribunal oral: “(...) está muy incorporado al personaje tribunalicio que cuando hay una persona de «afuera» -aunque te tutees con el superior-, para dar la imagen de respeto o algo por el estilo, delante de una persona ajena, no lo tuteas (...) es muy natural que pase eso, casi como que pertenece a la forma de trabajo” (Juez Tribunal Oral)19 Al menos en el caso de Argentina.20 Sobre los modos de ingreso y el reclutamiento de agentes en la justicia ver Sarrabayrouse Oliveira (2004)21 El primer escalón en lo que se conoce como la “carrera judicial” es el cargo de meritorio. Este cargo no consta en el escalafón administrativo y, por

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familiar o conocido o -en ciertos casos- el ingreso a partir del patrocinio de algún profesor de la facultad de derecho. Este pedido original puede ser parte de un circuito de intercambios preexistente o puede inaugurar uno nuevo, en otras palabras, puede reforzar lazos sociales preexistentes o crear nuevos:

Mi tío entró de pinche a Tribunales. Después del último pinche, no lo conocía nadie. Pero bueno, un vecino, un conocido de la familia cuando se enteró que iba a estudiar derecho le preguntó si quería entrar a trabajar en Tribunales, y con la carrera le venía bien y encima eran unos mangos porque no tenían plata...estaban en Pampa y la vía; de manera que empezó a estudiar y empezó a trabajar. Fue haciendo su carrera en Tribunales...Se recibió, primero fue secretario, después fue juez...Fue fiscal también, por cierto. Entonces, fue secretario, fue fiscal, después fue juez de sentencia en el A -en el juzgado A- y después lo ascendieron a la Cámara […] Cuando él era camarista, uno de sus secretarios había ascendido a juez y se le produjo un interinato, una vacante interna -un empleado que se fue con licencia por una beca, qué sé yo- y yo estaba estudiando derecho, yo estaba bastante avanzada en la carrera. Entonces él me preguntó si yo tenía ganas de trabajar en Tribunales (!). Yo le dije que sí (!), además, viste, me interesaba por la práctica...Entonces entré como interina, seis meses. Y después la vacante se produjo efectiva y me quedé, por supuesto (!). De ahí hasta aquí.” (Jueza de Tribunal Oral).

Al decir de Mauss, el don instituye una doble relación entre el que dona y el que recibe: por un lado, una relación de solidaridad en la medida en que el acto de compartir aproxima a las personas, por el otro, una relación lo tanto, no se trata de una función remunerada. Como lo indica la palabra, el meritorio debe hacer mérito para lograr un lugar como empleado “oficial” en el poder judicial.

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de superioridad, ya que aquél que recibe un don contrae en ese mismo acto una deuda con quien donó, convirtiéndose el primero en deudor del segundo. Muchas veces esta diferencia puede transformarse en jerarquía y si la misma ya existía, el don no hace otra cosa que representarla y legitimarla.

Con lo cual la relación social creada por el don estará expresada en la deuda. El reconocimiento de la misma implica entrar en la lógica de la retribución de dones, en un círculo de relaciones de intercambio en el que están inmersos los actores. Las demostraciones de lealtad son parte de los bienes que circulan en el intercambio.

Al analizar el acto de donar como un encadenamiento de tres obligaciones (dar, recibir y devolver) una de las preguntas que Mauss se hacía era ¿por qué se dona? La respuesta se encontraba en el hecho de que donar, obliga:

[…] tanto negarse a dar, como olvidarse de invitar o negarse a aceptar, equivale a declarar la guerra, pues es negar la alianza y la comunión. Se da porque se está forzado a dar, ya que el donatario goza de una especie de derecho de propiedad sobre todo lo que pertenece al donante. Esta propiedad se manifiesta y se concibe como una especie de lazo espiritual (1979:169-170).

Ahora bien, Mauss también –y fundamentalmente- se preguntaba por la obligación de devolver. Para ello apelaba –recurriendo al derecho maorí- a la existencia de un espíritu de la cosa que obliga a que ésta vuelva a su donante, “el regalo recibido, cambiado y obligado no es algo inerte. Aunque el donante lo abandone, le pertenece siempre. Tiene fuerza sobre el beneficiario del mismo modo que el propietario la tiene sobre el ladrón […] el hau acompaña a la cosa, quien quiera que sea su detentador” (1979:167)22. Ahora bien, si partimos de la idea de que las relaciones sociales implican derechos y obligaciones y que el intercambio es el modo en el que se expresan las mismas, podríamos sostener –al igual que Sigaud- que al faltar a una obligación –la de devolver- se corre el riego de romper el vínculo que

22 Para una clara síntesis de las múltiples discusiones surgidas en torno al lugar otorgado por Mauss a la categoría maorí del hau en su “Ensayo sobre el don”, ver Sigaud (1999).

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me une a esa persona, esa “especie de lazo espiritual”23.Como planteé en párrafos anteriores, los actores, si bien atrapados

en la dinámica de esas relaciones, tienen un claro interés en la continuidad de las mismas “[…] el interés de las dos partes en recrear las relaciones de intercambio es la principal garantía del futuro de esas relaciones, más que cualquier tipo de garantía jurídica” (Sigaud, 1996:8, nota al pie 23).

Como plantea Leach (1996), el intercambio de regalos (en el caso planteado aquí se trata de favores, reconocimientos) es en realidad lo que uno ve, lo que en realidad subyace es el sentimiento de deuda, las obligaciones morales. Deuda que actúa como una suerte de “cuenta de crédito que asegura la continuidad de la relación. Existe, pues, una especie de paradoja en que la existencia de la deuda pueda significar no solamente un estado de hostilidad, sino también un estado de dependencia y amistad” (op.cit.:175)

La lectura de las excusaciones permite sacar a la luz aquellas connotaciones morales que funcionan como la argamasa que sostiene las relaciones entre los individuos. Así, aparecen valores morales como la gratitud hacia quien facilitó el ingreso, ascenso u otorgó otro tipo de favor. (“hacia quien posibilitó en gran medida su progreso en la carrera judicial”; “por intermedio de quien logré ingresar a la justicia”; “quien siendo titular de la cátedra (…) me honró al proponerme como adjunto”) y su contracara, la vergüenza (olvidar que existe una deuda original). El agradecimiento se expresa a través de la lealtad, la cual aparece a su vez como elemento propio y característico de la amistad y el compañerismo (“me une una relación íntima de amistad y frecuente trato, desde hace veinticinco años aproximadamente, lapso en el cual pude seguir toda su carrera en el poder judicial, quien además en algunos momentos, y cuando más lo necesitaba, me brindó su apoyo espiritual”).

Es interesante ver también como la obligación surgida por la deuda (Leach, 1996)24 de un pariente es en parte heredada y pasa a formar parte de

23 Con respecto al cumplimiento de las obligaciones por parte de los individuos que están trabados en una relación de intercambio, Leach sostiene que “(…) la tradición establece las normas de lo que es correcto. Pero el principio de sustitución hace posible que cualquier hombre evite cumplir la letra de sus obligaciones, si así lo elige; sin embargo, si un individuo no paga lo adecuado, pierde “cara” (prestigio) y corre el riesgo de una pérdida general de estatus de clase” (1996:170)24 En su trabajo sobre los kachin, Edmund Leach sostiene que –salvo excepciones-“(…) se considera que las deudas existen entre linajes más bien que

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la propia deuda (“Así, además de la amistad ya existente entre el Dr. Gómez y familiares del declarante –desempeñábase desde tiempo atrás en la secretaría nº 6 el hermano de mi padre-, se forjó a través de esa dilatada relación funcional una amistad que puedo calificar como íntima (…) además de lo cual existe de parte de quien ahora debe decidir el natural agradecimiento hacia quien posibilitó en gran medida su progreso en la carrera judicial”). Deuda que se traduce –un vez más- en expresión de un vínculo.

Los actores recurren al relato de sus propias carreras judiciales, para dar cuenta de las relaciones consideradas “inhabilitantes” y es en ellas donde se pueden detectar lealtades, pertenencias e identidades, así como la creación de obligaciones a partir de los “favores” donados. Los verbos utilizados para referirse a las relaciones entre los funcionarios –“me une”, “le debo”, “me honró”- y la calificación de esas relaciones –“de quien soy discípulo”, “por intermedio de quien logré ingresar”-, permiten descubrir el tipo de lazos que se establecen entre los miembros de la “familia judicial”, ya sean éstos de horizontalidad (amistad, camaradería, compañerismo) o verticalidad (sea ésta ascendente o descendente).

En síntesis, pensar en términos de intereses y dependencias recíprocas25 entre los socios de los intercambios sociales, permite romper con las lecturas que ven estas relaciones como la realización mecánica del principio de reciprocidad (Sigaud, 1996). De esta manera podemos reconocer el carácter dual de la deuda o, como plantearía Leach, la flexibilidad de un sistema que en apariencia se muestra rígido: “Cualquier persona que recibe un regalo se ve por eso colocado en deuda con el dador. Durante algún tiempo el receptor goza de la deuda (la tiene, la bebe: lu), pero el dador es

entre individuos. Cualquier deuda sin pagar puede traspasarse de generación en generación” (1996:175). Con respecto al intercambio entre grupos recordemos el planteo de Mauss cuando sostiene que “(…) no son los individuos, sino las colectividades las que se obligan mutuamente, las que cambian y contratan; las personas que están presentes en el contrato son personas morales: clanes, tribus, familias, que se enfrentan y se oponen, ya sea en grupos que se encuentren en el lugar del contrato o representados por medio de sus jefes o por ambos sistemas” (1979:160-161)25 No debemos olvidar que ese acto supuestamente desinteresado de donar pero sin embargo “obligatorio e interesado” (Mauss, op.cit) funciona para quien dona como fuente de prestigio “(…) el poseedor de objetos valiosos gana mérito y prestigio fundamentalmente gracias a la publicidad que obtiene desembarazándose de ellos” (Leach, op.cit.:163)

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el propietario de la deuda (la gobierna: madu). Por tanto, paradójicamente, aunque el individuo de alto estatus se define como el que recibe regalos (v.g., “jefe comedor de muslos”), constantemente está sometido a la coacción social de dar más de lo que recibe. De otra manera será tenido por tacaño y un individuo corre el riesgo de perder su estatus” (op.cit.:184)26

4. Conclusiones

Las relaciones y obligaciones sociales de las que he intentado dar cuenta a lo largo del artículo están inscriptas en una configuración socio-histórica determinada. Como planteé al comienzo, el hecho de que la causa de la morgue judicial se haya tramitado hacia fines de la dictadura militar y comienzos de la democracia, implica trabajar con un momento bisagra, en el que la situación político-institucional se presenta plagada de incertidumbres y reacomodamientos. Es un momento fundamental para pagar parte de las deudas27 y generar otras nuevas abonando estas dependencias recíprocas o “redes de interdependencia” (Elías, 1996) en las que están insertos los actores.

Pensar en términos de configuraciones permite indagar acerca de la autonomía y la dependencia relativa de los hombres en sus relaciones28, evitando, de esta manera, aislar las conductas al analizarlas dentro de sus cadenas de interdependencias recíprocas. Así, como plantea Elías, figuras que se “destacan” en sus acciones y obras personales, pueden tener un campo de acción mucho más amplio gracias a la posición social ocupada dentro del sistema de poder. En otras palabras, es necesario analizar la relación 26 Sobe el interés en el intercambio y la importancia de la generosidad como fuente de honor y prestigio, ver también Malinowski, Bronislaw: Los argonautas del Pacífico Occidental27 Saldar la deuda completamente implicaría cerrar la relación. Los presentes son formas parciales de saldar la deuda, de entretener.28 “Mientras un hombre vive y está sano posee, aunque sea prisionero o esclavo, una cierta autonomía, un campo de acción dentro del cual puede y debe tomar decisiones. Por el contrario, aun la autonomía, aun el campo de acción del rey más poderoso tiene límites fijos; está implicado en una red de dependencias cuya estructura puede definirse con gran exactitud (...) Sobre esta base, se puede mostrar fácilmente que al ampliarse el campo de acción de un determinado individuo o de un grupo determinado de individuos, puede quedar reducida la “libertad” de otros individuos” (Elías, 1996:48)

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establecida entre persona individual y posición social. Por ello en el análisis del funcionamiento del poder judicial durante la última dictadura es preciso considerar las relaciones propias del desempeño funcional de los individuos (aquellas que están sujetas al escalafón y que establecen las jerarquías internas del poder judicial) atravesadas por todas esas “otras” relaciones surgidas de la vida social ampliada de los sujetos, que se encuentran regidas por “otras normas” que no son las jurídicas. Todo esto en el contexto puntual de una dictadura, donde los límites y elasticidades para la acción personal presentan más limitaciones. No estamos hablando de hombres sueltos sino de sujetos que pertenecen a determinados grupos y que poseen intereses e identidades compartidas. Las redes de interdependencia otorgan una fuerza particular a las acciones de los sujetos y, a su vez, les marcan límites estrictos que “como los de la elasticidad de un muelle de acero, se hacen sentir tanto más fuertemente, cuanto su detentor, por la orientación individual de su conducta, pone más en tensión y a prueba la elasticidad de su posición social” (Elías, 1996:33).

Entonces hablar en términos de configuraciones sociales en conjunción con la lógica de los intereses que sustentan los individuos, permite dar cuenta de las estrategias desplegadas por lo sujetos en el manejo de la “deuda”, estrategias que, como se sostuvo en párrafos anteriores, permiten flexibilizar el mundo social del que forman parte. Ahora bien, no se trata sólo de las estrategias desarrolladas por los individuos para la devolución de la deuda sino de la generación de la misma como una estrategia de poder que permite la creación de aliados.

Otro elemento que es necesario incorporar al análisis es la dimensión temporal. En las excusaciones se puede observar la recurrente mención del tiempo en la descripción de las relaciones entre los individuos (“me une una larga amistad que data de los comienzos de la década de 1960”; “cabe destacar que existe con ambos una relación de amistad, que se manifiesta a través de la frecuencia en el trato que mantengo con ellos desde aproximadamente quince años”; “a quien me une una amistad íntima, prolongada e ininterrumpida desde el año 1956”). Bourdieu plantea que el intervalo temporal29 entre el obsequio y el contraobsequio cumple un papel determinante, ya que “(…) prácticamente en todas las sociedades, está tácitamente admitido que no se devuelve de inmediato lo que se ha recibido –lo que equivaldría a rechazarlo.” (2002:161). Esto permite que dos actos perfectamente simétricos (dar 29 El planteo de que la devolución del presente no puede ser inmediata, debe estar diferida en el tiempo ya fue planteada por Malinowski (2001) y Leach (1996).

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y devolver) parecieran actos únicos, no vinculados. De esta manera se colabora con el ocultamiento del interés que en realidad existe en ese acto supuestamente generoso y desinteresado que es el dar, ya que si se rompiese ese acuerdo tácito entre los que participan en el juego de los intercambios se correría el riesgo de acabar con el juego. Por otra parte, la incorporación de la dimensión temporal genera incertidumbre (siempre existe el riesgo –por nimio que éste sea- de que el don no sea devuelto) y la posibilidad de que los individuos desarrollen estrategias para garantizar el retorno del presente. Y es a través del desarrollo de diferentes estrategias que los actores manipulan las reglas.

En este sentido, y para finalizar, me gustaría destacar el caso de Oliveri - el juez que “corta” la cadena de excusaciones-, ya que es quien echa luz sobre los intereses que permiten que se produzca ese juego de los intercambios, poniendo en discusión el juego mismo. Cuando Oliveri se refiere a los excusados como “conformantes de una verdadera “familia judicial”, fruto de una imbricada red de relaciones funcionales y –mayoritariamente- extrajudiciales que liga a las magistrados y ex magistrados del fuero, desde los más antiguos camaristas hasta los flamantes colegas del suscripto (...)”, se coloca en una postura más jurídica y universalista que sus pares, haciendo caso omiso de las “otras” normas, a las que reconoce pero a las que sin embargo coloca en un segundo plano. En otras palabras, mediante la resolución por la que rechaza las excusaciones de sus pares, Oliveri admite la existencia de esas relaciones que están por fuera de las relaciones funcionales, reconoce las obligaciones que esos vínculos conllevan pero las rechaza como argumento, restituyéndole peso a la normativa jurídica. Así, a través de ese procedimiento produce una doble operación en la que, reconociendo las relaciones y obligaciones de los otros pero invalidándolas como argumento, se libra de explicitar sus propias relaciones y obligaciones.

Es importante destacar que en el momento en el que se produce este conflicto, el hecho de haber develado la existencia de esas otras relaciones fue visto y tomado por determinados sectores –sobre todo aquellos vinculados a los organismos de derechos humanos- como un acto de denuncia que ponía en evidencia la “trenza en la justicia”. Se podría arriesgar que si el intercambio de favores opera como una forma de crear vínculos y, por lo tanto, de generar aliados, la resolución de Oliveri lo coloca integrando un sector que irá cobrando fuerza en las nuevas configuraciones que se comenzaban a delinear en la justicia, con la vuelta a un estado democrático.

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5. Bibliografía

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LEACH; Edmund: Sistemas políticos de la Alta Birmania. Barcelona, Anagrama, 1996.

MALINOWSKI, Bronislaw: Los argonautas del Pacífico Occidental. Barcelona, Península, 2001.

MAUSS, Marcel: “Ensayo sobre los dones. Motivo y forma del cambio en las sociedades primitivas”. En: Sociología y Antropología. Ed. Tecnos, 1979.

SARRABAYROUSE OLIVEIRA, María José: Cuaderno nº 4. Memoria y dictadura “Poder judicial y dictadura. El caso de la morgue judicial”. Facultad de Filosofía y Letras y Defensoría del Pueblo de la Ciudad de Buenos Aires, 2003.

-------------------------------------------- “La justicia penal y los universos coexistentes: Reglas universales y relaciones personales”. En: Sofía Tiscornia (comp.): Burocracias y violencia. Ensayos sobre Antropología Jurídica. Buenos Aires. Antropofagia, 2004.

SIGAUD, Lygia: “Armadilhas da honra e do perdão: Usos sociais do direito na mata pernambucana”. Em: Maná, Estudos de Antropologia Social. Vol. 10 (1) Río de Janeiro, 2004.

--------------------“As vicissitudes do ´Ensaio sobre o dom`”. Em: Maná, Estudos de Antropologia Social. Vol. 5 (2), Río de Janeiro, 1999.

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