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608 LETRA DE PROFESSORA: A EDUCAÇÃO BRASILEIRA OITOCENTISTA NOS ESCRITOS DE NISIA FLORESTA E NAS CARTAS DE INA VON BINZER TAFNES DO CANTO FAP-PR [email protected] Nas últimas décadas, uma variada gama de fontes como materiais didáticos, cadernos, cartas e relatos de professores tem contribuído para que a história da educação preencha as lacunas que estudos estritamente focados na pena da lei e nos tratados pedagógicos deixaram sobre a educação oitocentista. Na esteira destes trabalhos, este texto socializa o resultado da analise comparativa entre as produções de duas educadoras do século XIX: Nísia Floresta e Ina Von Binzer. As cartas de Binzer e os escritos de Nisia, relatos bastante pessoais, constituem em fonte para identificarmos como o ensino era praticado e percebido por estas educadoras à época. A análise comparativa dos escritos referem-se as percepções e avaliações de uma brasileira e de uma estrangeira sobre a educação brasileira no decorrer do século XIX. AS PROFESSORAS A escolha dos textos de Nísia Floresta e das cartas de Ina Von Binzer para este estudo comparativo deve-se ao propósito de confrontar a experiência de duas mulheres, uma brasileira e outra estrangeira, uma nascida no princípio do século XIX e outra em meados do mesmo. A brasileira Nísia Floresta, nascida em 1810, na cidade de Papari, Pernambuco, foi uma escritora, fundadora, diretora e educadora do Colégio Augusto no Rio de Janeiro, que se manteve constantemente preocupada com a condição feminina. A aproximação mais evidente que podemos traçar entre a visão da brasileira e da estrangeira Ina, especificamente sobre este aspecto, é a indignação em relação a educação dada às meninas brasileiras.

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LETRA DE PROFESSORA: A EDUCAÇÃO BRASILEIRA OITOCENTISTA NOS ESCRITOS DE NISIA FLORESTA E NAS CARTAS DE INA VON

BINZER

Tafnes do CanTo

[email protected]

Nas últimas décadas, uma variada gama de fontes como materiais didáticos, cadernos, cartas e relatos de professores tem contribuído para que a história da educação preencha as lacunas que estudos estritamente focados na pena da lei e nos tratados pedagógicos deixaram sobre a educação oitocentista. Na esteira destes trabalhos, este texto socializa o resultado da analise comparativa entre as produções de duas educadoras do século XIX: Nísia Floresta e Ina Von Binzer. As cartas de Binzer e os escritos de Nisia, relatos bastante pessoais, constituem em fonte para identificarmos como o ensino era praticado e percebido por estas educadoras à época. A análise comparativa dos escritos referem-se as percepções e avaliações de uma brasileira e de uma estrangeira sobre a educação brasileira no decorrer do século XIX.

AS PROFESSORAS

A escolha dos textos de Nísia Floresta e das cartas de Ina Von Binzer para este estudo comparativo deve-se ao propósito de confrontar a experiência de duas mulheres, uma brasileira e outra estrangeira, uma nascida no princípio do século XIX e outra em meados do mesmo.

A brasileira Nísia Floresta, nascida em 1810, na cidade de Papari, Pernambuco, foi uma escritora, fundadora, diretora e educadora do Colégio Augusto no Rio de Janeiro, que se manteve constantemente preocupada com a condição feminina. A aproximação mais evidente que podemos traçar entre a visão da brasileira e da estrangeira Ina, especificamente sobre este aspecto, é a indignação em relação a educação dada às meninas brasileiras.

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Nísia Floresta produziu um total de quinze obras que se detêm em temas como o indianismo, o abolicionismo e o nacionalismo. Neste estudo nos interessou, especialmente, a obra Opúsculo Humanitário, selecionada por versar sobre educação. Para Peggy Sharpe Valadares, a escolha do título pode ser relacionada à obra Opúsculos de Filosofia Social, da autoria do positivista Augusto Comte:

É improvável que seja mera coincidência a repetição do termo no título Opúsculo Humanitário de Nísia Floresta. Com efeito, já por volta de 1851 se havia estabelecido a familiaridade da autora com Comte quando, durante sua primeira permanência de três anos em Paris, havia assistido a uma das conferências do filósofo francês sobre ‘A história da humanidade’. (1989, p. 23)

Porém, a influência do positivismo não se restringiu ao nome da obra. Também a teoria positivista não foi a única corrente filosófica a permear os escritos de Floresta. Além desta, o utilitarismo deixou sua contribuição. Valadares explica que dessas duas correntes é que Nísia incorpora algumas ideias para sua crítica: “por exemplo, a ideia de utilidade, o conceito de ser a natureza feminina igual à do homem, a da atuação da mulher na esfera pública, e a de desenvolver e aproveitar a habilidade intelectual da mulher para edificar uma sociedade melhor e fortalecer as relações familiares”. (1989, p. 28)

A intensidade da escrita de Floresta, bem como o propósito maior que a motivava, ficam estampados já nas primeiras linhas de Opúsculo Humanitário: “Enquanto pelo velho e novo mundo vai ressoando o brado – emancipação da mulher – nossa débil voz se levanta, na capital do império de Santa Cruz, clamando: educai as mulheres!” (1989, p.2) Proclamar e reivindicar a educação feminina é o propósito principal desta e de tantas outras obras e artigos seus.

A estrangeira Ina Von Binzer foi uma jovem alemã que, contando vinte e dois anos de idade, desembarcou no Brasil nos idos de 1881 permanecendo aqui até 1884. Enquanto esteve em terras tupiniquins trabalhou em um colégio de meninas e para famílias abastadas do Império. Sua experiência como professora e suas impressões da sociedade brasileira ficaram registradas nas cartas que enviava a sua amiga Grete – residente na Alemanha – e que foram reunidas na obra chamada Os meus romanos: alegrias e tristezas de uma educadora alemã no Brasil, publicada pela editora Paz e Terra.

Na referida obra, o humor inteligente e o senso crítico desta jovem chamam a atenção, bem como as dificuldades que encontrou para entender determinados atitudes das crianças brasileiras que estiveram sob sua orientação.

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Duas mulheres, duas professoras, duas visões a respeito da educação oitocentista no Brasil. Elas que viveram a realidade excludente para as mulheres no século XIX, podem ser consideradas exceções à regra e angariaram um merecido espaço na história da educação brasileira. Hoje, podemos contar com suas produções para melhor compreender esse período histórico.

O DISTANCIAmENTO DE DISCURSO

Ao comparamos os escritos destas professoras, levamos em conta a maturidade de Nísia Floresta ao publicar Opúsculo Humanitário, em oposição a juventude de Ina Von Binzer ao escrever suas cartas. Outra grande diferença apresenta-se no fato de a educação ser a causa defendida por Nísia Floresta em toda a sua vida, enquanto Ina Von Binzer ao voltar para a Alemanha optou pela escrita de romances.

Durante as leituras dos escritos das professoras Nísia Floresta e Ina Von Binzer, foi possível identificar uma divergência no que diz respeito à metodologia ideal para o ensino das crianças oitocentistas. Nísia Floresta era ferrenha defensora do método individual e da educação doméstica, por permitir procedimentos de atendimento e avaliação individualizados aos estudantes. Enquanto Ina Von Binzer, como professora familiarizada com a educação doméstica apontou numerosas dificuldades para o bom desempenho dessa modalidade de ensino nas casas brasileiras, como a condescendência dos pais com as travessuras das crianças e as inúmeras distrações e barulhos típicos de uma vida no campo.

Pelos relatos das professoras, comparados à historiografia recente e fontes literárias evidenciamos que a educação doméstica não era só uma preferência de Nísia Floresta, mas da elite, que assim garantia o controle exercido pela Casa1, e tardavam o expirar do sistema patriarcal. Pois, nesta modalidade de ensino, as mães, filhos, escravos e empregados – como professores particulares e preceptores – encontravam-se sob a autoridade senhorial. A autonomia do professor era diminuída já que eram os próprios pais que escolhiam o currículo e normatizavam os horários das aulas, mais motivos pelos quais a professora alemã desaprovava o referido método. Quanto aos horários ela observava:

Aqui, as aulas são das sete às dez; depois vem o almoço quente, pelo qual Madame Rameiro nos faz esperar inutilmente até as dez e meia, de maneira

1 O conceito de Casa utilizado é apropriado do texto O tempo da saquarema de Ilmar Mattos, a qual en-tende este espaço como o domínio dos senhores patriarcais, escravocratas e proprietários de latifúndios, que exerciam controle sobre as coisas e as pessoas que estavam sob sua área de atuação

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que não posso mais sair, porque, logo após o último bocado, tenho de voltar às aulas. Prosseguimos até a uma hora, quando então temos trinta minutos para o lanche; à uma e meia começam as aulas de piano que vão até as cinco, quando servem o jantar. (2004, p. 31)

Assim, a mais evidente diferença no discurso de Floresta e Von Binzer está relacionado à preferência dos métodos pedagógicos. Porém, mesmo com a diferença etária e de nacionalidade, que justificariam um maior distanciamento nos discursos dessas professoras, seus escritos se aproximam em muitos sentidos, como a preocupação com a educação feminina, a participação dos estrangeiros como docentes no Brasil e as conseqüências da escravidão na formação das crianças brasileiras.

AS APROxImAÇõES DE DISCURSO

A própria história de vida de Nísia Floresta e Ina Von Binzer permitiriam comparações como o fato de aos seus vinte e poucos anos estarem experimentando marcos de sua existência, a primeira com a publicação de Direito das Mulheres e Injustiça dos Homens e a segunda com sua viagem ao Brasil, que lhe renderia mais tarde a publicação de Os meus romanos.

Tinham em comum, além dos gostos pelas viagens, o fato de Nísia ter, assim como Ina, um olhar europeizado pelos muitos anos passados no Velho Continente. Mesmo que Nísia criticasse o encantamento dos brasileiros pela Europa, ela, por muitas vezes, utilizou a educação européia como exemplo e parecia apreciar a vida além mar. No entanto, sabemos que suas viagens também foram consequência da resistência com que seu discurso e sua posição na defesa da educação feminina eram recebidos no Brasil

No entanto, não é o propósito da pesquisa histórica encontrar essas coincidências, mas, analisar comparativamente seus escritos e suas premissas sócio-educativas. Também era nosso objetivo - a partir da noção de representação que “permite vincular estreitamente as posições e as relações sociais com a maneira como os indivíduos e os grupos se percebem e percebem os demais” (CHARTIER, 2009, p. 49) - encontrar a versão de cada uma delas da realidade brasileira oitocentista no que tange à educação. Assim, esperando acrescentar mais algumas páginas à história da educação oitocentista no Brasil.

As aproximações dos discursos dessas duas professoras rendem uma profícua reflexão, a começar pela educação feminina. Aliás, a vida de Nísia Floresta foi dedicada a esta causa. Era seu intuito divulgar e inspirar discípulos a escreverem e fomentarem a

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discussão da escuridão intelectual à qual eram expostas as moças da sociedade oitocentista brasileira. Era seu desejo ver essa realidade transformada. Se o objetivo maior da existência feminina à época era o de cumprir o papel social de esposa e mãe, Nísia reivindicava que a instrução contribuiria para a formação das meninas, tornando-as mais capazes para desenvolverem esta tarefa. Um pensamento revolucionário para um contexto em que as competências morais eram consideradas suficientes para as mulheres.

Ina Von Binzer se deparou com esta realidade ao chegar às terras brasileiras e escandalizou-se ao se encontrar na posição de professora de meninas que tinham a sua idade. Além de estarem aquém da bagagem intelectual de Von Binzer– que já havia se formado como professora – não demonstravam “nenhum prazer no estudo”. Mais ainda! Com os seus 19, 21 e 22 – as três primeiras alunas de Ina, as quais ela costumava chamar em suas cartas de Santa Inquisição – para a sociedade da época, eram quase solteironas. “Com os meus 22 anos, isso muito me espantou” (2004, p. 23), afirmou a jovem professora.

Ao trabalhar no colégio para meninas, a aflição de Ina, quanto à situação da educação feminina não foi diferente: “Grete, fiquei completamente consternada e sem, saber o que fazer no primeiro momento. E essas cenas se repetem muitas vezes. As melhores famílias não mandam absolutamente as filhas para os colégios” (2004, p. 79)

Não era de se admirar que a educação feminina tivesse pouquíssimo valor em um período histórico que até mesmo o direito de ir e vir lhe era negado. Ina Von Binzer percebeu apenas a presença de estrangeiras circulando nas ruas, as mulheres brasileiras deveriam permanecer no espaço privado da casa, como ela relata:

“(...) o que me aconteceu de mais típico passou-se outro dia, num salão de cabeleireiro, onde entrei para mandar ondular meu cabelo, cortado curto. Não sabia, que já por mim, chamava a atenção, pois nenhuma senhora brasileira sai sozinha à rua , nem de maneira alguma vai pentear-se fora de casa” (2004, p. 80)

Ambas as professoras perceberam que a vida nos idos de oitocentos reservava poucos espaços para a participação feminina. Somente no decorrer do século, as questões econômicas como a entrada do modelo capitalista de produção, com a chegada das indústrias, de uma vida mais urbana, de uma valorização das mulheres e crianças enquanto consumidoras, com o respeito ao conhecimento médico-científico e os ideais românticos, a condição feminina no Brasil paulatinamente se alterou. Nem Nísia Floresta, nem Ina Von Binzer estavam aqui para assistir as conquistas femininas que viriam pela frente.

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Outro tema que aparece nos escritos destas professoras é a participação de estrangeiros na educação brasileira. Havia uma preferência dos pais por contratar professoras e preceptoras estrangeiras na educação doméstica da elite brasileira. Por argumentos distintos, ambas duvidavam da capacidade dos estrangeiros em bem educar as crianças brasileiras.

Valadares explica que Nísia Floresta era categórica nesta questão,

“mais perigosa ainda, na opinião da educadora, era a ameaça representada por estrangeiros que abandonaram seu país de origem para abrir colégios no Brasil e eram recebidos por uma sociedade enamorada de qualquer coisa da Europa, sem consideração sobre a qualidade. (1989, p. 11)

Nísia Floresta espantava-se com a hospitalidade do brasileiro com o europeu, visto que, para ela, os erros cometidos por professores e colégios regidos por eles eram mais tolerados do que os dos nacionais. A professora justifica sua posição, ao duvidar da competência dos forasteiros:

Muitas dessas pessoas aportam às nossas praias com o fim de especularem no comércio. Vendo depois frustrados os seus planos de interesse nessa carreira, lançam mão do ensino, e ei-los metamorfoseados, de negociantes e até mesmo artesãos, em preceptores da mocidade brasileira, afetando para com os pais de família uma distinção e sabedoria que nem a natureza nem a educação lhes deram, mas cuja reputação aparatosas casas, enfáticos anúncios e pretensiosas promessas sustentam e propagam. (1989, p. 79)

Apesar do fundamento da argumentação de Nísia, existiram professoras formadas como Ina Von Binzer que migravam para terras distantes com o intuito de viver novas experiências. É a própria professora alemã que relembra seu espírito aventureiro à sua amiga Grete, “como você sabe, onde há qualquer coisa para se ver, podem contar comigo.” (2004, p. 47)

Mas Nísia tinha arguição para estes casos também, para ela, mesmo que alguma situação levasse um estrangeiro competente nas letras da Europa ao Brasil, logo abandonaria a ideia de aqui permanecer dada as boas oportunidades existentes no Velho Mundo:

Vivemos algum tempo na Europa e sabemos que as pessoas ali reputadas de letras e habilidades para o magistério têm sempre em que se empreguem com mais ou menos vantagem. A ideia de deixarem o seu país para virem instruir

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a nossa mocidade jamais lhes ocorreu. E se por imperiosas circunstancias alguma a concebe, para logo a abandona (...) (1989, p. 79)

De fato, Ina Von Binzer, que se enquadra no perfil descrito por Nísia, residiu no Brasil por poucos anos, de 1881 a 1884, voltando para sua terra natal a fim de dedicar-se à profissão de escritora. A partir de sua experiência docente no Brasil, ela concluiu que o país necessitava de uma pedagogia própria e que a linguagem e a cultura do estrangeiro dificultavam a relação aluno-professor e por assim dizer, todo o processo de ensino-aprendizagem.

Mais uma aproximação pode ser encontrada nos discursos de Floresta e Von Binzer, ambas incomodavam-se com a questão da escravidão no Brasil e percebiam que a influencia do modelo escravista ultrapassava as questões econômicas para atingirem a esfera social e até mesmo a educação das crianças, como enfatizou Nísia Floresta.

Talvez pela maturidade da escrita, pelos anos de experiência passados até a escrita de Opúsculo Humanitário e por mais tempo de Brasil, os escritos de Nísia Floresta alcançaram reflexões que não poderíamos exigir de Ina Von Binzer aos seus 20 e poucos anos de idade e da escrita memorialística e informal de suas cartas.

Mesmo assim, a jovem Ina possuía uma sagacidade e uma percepção invejável do contexto histórico que presenciou no tempo que viveu no Brasil. Sobre a escravidão ela refletiu:

Todo o trabalho é realizado pelos pretos, toda a riqueza é adquirida por mãos negras, porque o brasileiro não trabalha, e quando é pobre prefere viver como parasita em casa dos parentes e de amigos ricos, em vez de procurar ocupação honesta. (...) gostaria de saber o que fará essa gente, quando for decretada a completa emancipação dos escravos. Na nossa Europa muito pouco se sabe a respeito da lei referente a este assunto, e imaginávamos que a escravidão fora abolida. Mas não é assim. (2004, p. 40)

O questionamento de Ina só viria a ser respondido por ocasião da abolição do trabalho escravo, substituído pela mão de obra branca e assalariada, enquanto nenhum artigo da lei foi previsto para conter o impacto sócio-econômico do grande contingente de ex-escravos que não receberam nenhum cuidado do Estado.

Von Binzer também percebeu a influencia da escravidão no cotidiano das crianças brasileiras, porém, diferentemente de Nísía Floresta, tratou o tema de forma leviana e com o bom humor de quem conta mais um fato pitoresco das terras tupiniquins:

Um desses domingos estava sentada num dos bancos desse jardim paradisíaco, embaixo de uma imponente mangueira, e sonhava- ach! Grete! – com carvalhos

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alemães, quando de repente, olhando para cima, vi uma horrenda criaturinha preta que me apavorou, devolvendo-me aos trópicos. (...) parece que me sobressaltei de tanto susto, porque detrás de um arbusto, surgiu imediatamente Leonila que me disse, acalmando-me com ar meio protetor: N’ayez pás peur, Mademoiselle, c’est Jacob2; mas, vendo depois que meu rosto não exprimia ainda grande entusiasmo pela honra de travar conhecimento com o santo pai da Igreja, acrescentou meio indignada, meio elucidativa: est à moi; grand`maman mèn fait cadeou à mon jour de fête3. Asseguro-lhe que era cômico; essa jovem senhora de escravos, olhando orgulhosa para aquele presente vivo, e sua horrorosa pequena propriedade rindo-se de satisfação diante daquela declaração de posse, mais por adivinhá-la do que por entendê-la, fizeram-me dar uma gargalhada gostosa. Aliás, essa atitude de superioridade, assumida até pelas próprias crianças, devido à escravidão aqui existente, apresenta geralmente um aspecto humorístico. (2004, p. 24)

Este aspecto social da escravidão nas casas brasileiras e sua influencia sob as crianças, além de estar registrado em tom humorístico nas cartas de Ina Von Binzer, foram narrados pela literatura. A atitude de superioridade das crianças foi representada por literatos como Machado de Assis, a exemplo da obra “Memórias Póstumas de Brás Cubas”, na qual o narrador-personagem, um filho de senhores de escravos, fala de si mesmo:

Desde os cinco anos merecera eu a alcunha de “menino diabo”; e verdadeiramente não era outra cousa; fui dos mais malignos do meu tempo, arguto, indiscreto, traquinas e voluntarioso. Por exemplo, um dia quebrei a cabeça de uma escrava, porque me negara uma colher do doce de coco que estava fazendo, e, não contente com o malefício, deitei um punhado de cinza ao tacho, e, não satisfeito da travessura, fui dizer à minha mãe que a escrava é que estragara o doce “por pirraça”; e eu tinha apenas seis anos.

O pequeno e travesso personagem de Machado de Assis, narra as peripécias que aplicava em uma criança escrava da casa:

Prudêncio, um moleque de casa, era o meu cavalo de todos os dias; punha as mãos no chão, recebia um cordel nos queixos, à guisa de freio, eu trepava-lhe ao dorso, com uma varinha na mão, fustigava-o, dava mil voltas a um e outro lado, e ele obedecia, - algumas vezes gemendo, - mas obedecia sem dizer palavra, ou, quando muito, um -”ai, nhonhô!” - ao que eu retorquia: -”Cala a boca, besta!” - Esconder os chapéus das visitas, deitar rabos de papel a pessoas graves, puxar pelo rabicho das cabeleiras, dar beliscões nos braços das matronas, e outras muitas façanhas deste jaez, eram mostras de um gênio indócil, mas devo crer que eram também expressões de um espírito robusto, porque meu pai tinha-me em grande admiração; e se às vezes me repreendia à vista de gente, fazia-o por simples formalidade: em particular dava-me beijos. (ASSIS, 2009, p. 97)

2 Não se preocupe, senhorita, é Jacó.3 É meu, vovó me deu como um presente pelo meu aniversário.

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Em oposição à narrativa Machadiana e as cartas de Ina Von Binzer que tratam o tema de forma cômica, Nísia Floresta na obra Opúsculo Humanitário discute as influencias da escravidão na educação com a seriedade de quem se imbuiu de uma missão. Para ela, as crianças eram criadas em uma casa onde todos os serviços eram feitos por pessoas que estavam desmoralizadas pela ausência de liberdade e assistiam aos castigos e maus-tratos recebidos pelos escravos. Sobre o impacto na educação das meninas, ela denuncia:

Não é raro ver ela (com horror dizemos) infligir o mais cruel tratamento à própria ama que a amamentou, a qual é alguma vez indiferentemente vendida ou alugada como um fardo inútil (...). Essa revoltante ingratidão é um dos mais detestáveis exemplos dados à menina, que, tendo um dia de ser mãe, o transmite por seu turno a seus filhos. (1989, p. 96).

Ao final da tratativa desta temática, Nísia Floresta exorta as mães, que como cristãs, não exponham, nem incentivem suas filhas a proferir injúrias e aplicar castigos corporais aos escravos, pois, estavam na condição de semelhantes.

Ainda se pode inferir a respeito da citação de Floresta que a mesma confere destaque a figura da mãe na educação dos filhos e na transmissão de valores.

Na segunda metade do século XIX, embora o papel da mulher tenha permanecido ligado à esfera doméstica e aos assuntos privados, a figura de mãe passou a ser muito valorizada devido aos avanços da psiquiatria e da psicologia. Assim, houve uma racionalização de sua atuação no âmbito familiar, e sua responsabilidade agora seria prioritariamente, a de zelar pelo bem-estar físico e emocional do marido e dos filhos. Assim, com o aumento do conhecimento médico-científico, a mulher passou a ser entendida como a mãe e nutriz. Para intelectuais como Nísia Floresta, estas alterações tiveram, “naturalmente, uma grande repercussão, pois, “vislumbraram aí, a possibilidade de as mulheres adquirirem status e poder diante da opinião pública” (DUARTE, 2006, p. 161)

Nísia Floresta não estava equivocada nesta ideia publicada em 1853 no seu Opúsculo Humanitário pois, a partir da segunda metade dos oitocentos, tendo a mulher sido elevada ao papel social de mãe e nutriz, a ela coube “as funções de zelar pela vida doméstica, o governo da casa e a criação dos filhos. Sua educação e instrução se tornaram condições básicas para que pudesse concretizar a tarefa para a qual tinha vindo ao mundo” (MUAZE, 2008, p. 166)

A historiografia recente apura que além do aumento do conhecimento médico-científico, outros fatores, corroboraram para uma maior valorização do papel social

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desempenhado pelas mulheres:

A urbanização, a europeização de valores, o romantismo, (...) e a ascensão do individuo são processos que, juntos, cada um em sua medida, deram novos contornos a família. E auxiliaram na retirada da mulher do confinamento doméstico, liberando-a para o convívio social, a instrução e o consumo de bens. Contudo, seu principal papel social continuou circunscrito ao âmbito privado: a maternidade. A esta mãe higiênica, amante dos filhos, aliada da medicina e do ensino, se opõem as figuras sociais da prostituta e da mulher mundana. (MUAZE, 2008, p. 137)

Enquanto essas mudanças paulatinamente ampliavam seus efeitos sobre a sociedade brasileira, na opinião de Nísia Floresta, as meninas dos oitocentos “aprendiam tudo, menos o que pudesse torná-la digna, mais tarde, de ser colocada na ordem de mulher civilizada” (1989, p. 67). Para uma jovem proveniente do sistema patriarcal os conhecimentos mais importantes estavam relacionados as atividades manuais leves, como a costura e o bordado, saber um pouco de língua estrangeira mas, não de sua literatura, bem como a língua materna. Como explica Muaze, “a mesma educação que libertava a mulher também a atrelava às tarefas ligadas ao governo da casa. Estas comportavam desde as responsabilidades pela administração do lar até aquelas relacionadas à maternidade e educação dos filhos. (MUAZE, 2008, p.137)

Por ocasião da instituição do Colégio Augusto, Floresta construiu um currículo diferenciado deste tradicional modo de instruir as meninas,

cujo programa de estudos incluía disciplinas tais como Latim, Caligrafia, História, Geografia, Religião, Matemática, Português, Francês, Italiano, Inglês, Música, Dança, Piano, Desenho e Costura. Nessa experiência educacional, Nísia empregou novos métodos de ensino, desconhecidos pelos mestres brasileiros e que, ainda hoje, seriam considerados inovadores e pedagogicamente sólidos. (VALADARES, 1989, p. 9)

Valadares faz esta audaciosa afirmação, pois, parece ter sido utilizado no Colégio Augusto o “método direto” para o ensino de língua estrangeira. Nesta forma de ensino, não há interferência da língua materna, as conversações na sala de aula eram exclusivamente no segundo idioma. Este é o principal método em uso nas mais variadas escolas de idiomas da atualidade.

Assim, Nísia – reforça as fontes que comprovaram a diferença entre as disciplinas ministradas aos meninos e as meninas. Estas, segundo a mentalidade da época, não necessitavam dos mesmos ensinamentos, nem do mesmo tempo de educação formal para

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exercerem o papel social de mãe. No entanto, os discursos como o de Nísia Floresta defendiam uma maior igualdade. Já nas cartas de Ina Von Binzer as menções ao currículo são indiretas, aparecendo especialmente ao descrever seu cotidiano como professora de alemão, francês, inglês e piano.

Os escritos de Nísia Floresta e as cartas de Ina Von Binzer também denunciam as condições das escolas brasileiras, mesmo as particulares, onde ambas tiveram experiências, eram consideradas por elas mal administradas e pelas denúncias de Ina, em péssimas condições físicas. Nísia, neste caso, acrescenta que por vezes, as escolas tinham bela aparência para conquistar a clientela, mas pouco conhecimento pedagógico para garantir uma educação adequada.

CONSIDERAÇõES FINAIS

Assim, o quadro pintado por estas professoras da educação oitocentista é bastante caótico, e procurava mostrar o quanto havia para crescer nesse aspecto. Carecia o Brasil de políticas públicas voltadas para a educação formal da população, o que só poderia chegar com uma mudança de mentalidade, a qual o tempo e as necessidades se encarregariam de transformar até certo ponto.

Através da letra destas professoras percebemos a profunda identificação que podemos encontrar com seus anseios e desafios. Que a análise dos escritos das professoras Nísia Floresta e Ina Von Binzer tragam luz a história da educação brasileira oitocentista e que para além de uma visita a tempos remotos, estes textos nos façam refletir sobre as questões e necessidades educacionais para a construção da história do tempo presente.

REFERêNCIAS BIBLIOgRáFICAS

BINZER, Ina Von. Os meus romanos: Alegrias e tristezas de uma educadora alemã no Brasil. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2004.CHARTIER, Roger. A história ou a leitura do tempo. Belo Horizonte: Autêntica, 2009.

DUARTE, Constance Lima. Nísia Floresta Brasileira Augusta: uma ilustre escritora potiguar. Revista da FARN, Natal, v. 4, n1/2. Dez/Jan 2006, p. 157 a 166.

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FLORESTA, Nísia. Opúsculo humanitário. São Paulo: Cortez, 1989.

MUAZE, Mariana. As Memórias da Viscondessa: família e poder no Brasil Império.Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2008.

VALADARES, Peggy Sharpe. Introdução. In: FLORESTA, Nísia. Opúsculo humanitário. São Paulo: Cortez, 1989