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Ipotesi: revista de Estudos Literários, Juiz de Fora, vol. 1, nº 2 - p. 23 a 42 Letícia Malard 24 amostra do que foi o antropólogo Gonçalves Dias, reproduzindo o capítulo V de O Brasil e a Oceania, obra rara que está a merecer nova edição e da qual inexplicavelmente não foi incluída sequer uma linha na mais completa publicação das obras de Gonçalves Dias, a da Editora Aguilar. Esse capítulo foi o escolhido por Sotero para ilustrar sua Lição LXXXVI. Ela vai aqui transcrita integralmente, com estabelecimento do texto, comentários e notas de minha autoria. O segundo objetivo é revelar ao leitor as características do ensino de Literatura no Brasil do século XIX, ou mais precisamente, no período de 1866 a 1873, quando Sotero foi professor no Instituto de Humanidades da Província do Maranhão. Suas 102 Lições encontram-se reunidas no Curso de literatura portuguesa e brasileira, em cinco volumes in 8.º. Tanto o texto de Herculano quanto o de Sotero são importantes para a elaboração da história da recepção dos textos de uma das figuras mais representativas da literatura brasileira do século XIX — Antônio Gonçalves Dias (1823-1864). E mais: Publicados em épocas nas quais nossa historiografia literária dava os primeiros passos, esses documentos, que só pertencem ao acervo historiográfico lato sensu, e num período em que esse acervo começava a formar-se, são imprescindíveis para a compreensão do conhecimento que se tinha e que se transmitia da literatura a partir da segunda metade daquele século. O mencionado Capítulo V, onde Gonçalves Dias trata dos caracteres físicos dos índios tupis, me parece fundamental como fonte para a literarização do indianismo, quer para o próprio autor, quer para outros escritores românticos que tematizaram o indígena e, segundo a historiografia corrente, o erigiram em cavaleiro da Idade Média no Novo Mundo. Obra erudita, recheada de rodapés de citações dos maiores especialistas americanos e europeus do tempo, O Brasil e a Oceania serve de corolário da obra poética indianista do autor cujo pioneirismo de divulgação abalizada coube a Herculano. Para escrever a obra, o maranhense fez viagens visando a observações in loco. Se hoje ela perdeu o valor científico, mantém-se como documento importante para se conhecer o que então se sabia ou que se acreditava saber sobre os primeiros habitantes da América e, confrontado esse conhecimento com as criações literárias pertinentes, compreender as fronteiras entre o real e o ficcional na literatura de então. Gonçalves Dias inicia o capítulo branqueando os Aimoré, talvez numa tentativa ideológica de igualá-los ao colonizador. Além de altos, são quase tão brancos como os portugueses, de pele brilhante e macia como cetim, dentes belos e regulares. É possível que esse branqueamento explique poemas amorosos de Gonçalves Dias onde o problema da diferença racial não se coloca, como por exemplo «O canto do índio», em que um cacique («branco»?) se apaixona à primeira vista por uma mulher loura ao vê-la banhando-se no rio. Em O Brasil e a Oceania o mito da eterna juventude leva o autor a considerar a inexistência da velhice entre os índios, mito

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Ipotesi: revista de Estudos Literários, Juiz de Fora, vol. 1, nº 2 - p. 23 a 42

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amostra do que foi o antropólogo Gonçalves Dias, reproduzindo o capítuloV de O Brasil e a Oceania, obra rara que está a merecer nova edição e da qualinexplicavelmente não foi incluída sequer uma linha na mais completapublicação das obras de Gonçalves Dias, a da Editora Aguilar. Esse capítulofoi o escolhido por Sotero para ilustrar sua Lição LXXXVI. Ela vai aquitranscrita integralmente, com estabelecimento do texto, comentários e notas deminha autoria. O segundo objetivo é revelar ao leitor as características do ensinode Literatura no Brasil do século XIX, ou mais precisamente, no período de1866 a 1873, quando Sotero foi professor no Instituto de Humanidades daProvíncia do Maranhão. Suas 102 Lições encontram-se reunidas no Curso deliteratura portuguesa e brasileira, em cinco volumes in 8.º.

Tanto o texto de Herculano quanto o de Sotero são importantes paraa elaboração da história da recepção dos textos de uma das figuras maisrepresentativas da literatura brasileira do século XIX — Antônio GonçalvesDias (1823-1864). E mais: Publicados em épocas nas quais nossahistoriografia literária dava os primeiros passos, esses documentos, que sópertencem ao acervo historiográfico lato sensu, e num período em que esseacervo começava a formar-se, são imprescindíveis para a compreensão doconhecimento que se tinha e que se transmitia da literatura a partir dasegunda metade daquele século.

O mencionado Capítulo V, onde Gonçalves Dias trata dos caracteresfísicos dos índios tupis, me parece fundamental como fonte para aliterarização do indianismo, quer para o próprio autor, quer para outrosescritores românticos que tematizaram o indígena e, segundo a historiografiacorrente, o erigiram em cavaleiro da Idade Média no Novo Mundo. Obraerudita, recheada de rodapés de citações dos maiores especialistasamericanos e europeus do tempo, O Brasil e a Oceania serve de corolárioda obra poética indianista do autor cujo pioneirismo de divulgação abalizadacoube a Herculano. Para escrever a obra, o maranhense fez viagens visandoa observações in loco. Se hoje ela perdeu o valor científico, mantém-secomo documento importante para se conhecer o que então se sabia ou quese acreditava saber sobre os primeiros habitantes da América e, confrontadoesse conhecimento com as criações literárias pertinentes, compreender asfronteiras entre o real e o ficcional na literatura de então.

Gonçalves Dias inicia o capítulo branqueando os Aimoré, talvez numatentativa ideológica de igualá-los ao colonizador. Além de altos, são quasetão brancos como os portugueses, de pele brilhante e macia como cetim,dentes belos e regulares. É possível que esse branqueamento expliquepoemas amorosos de Gonçalves Dias onde o problema da diferença racialnão se coloca, como por exemplo «O canto do índio», em que um cacique(«branco»?) se apaixona à primeira vista por uma mulher loura ao vê-labanhando-se no rio. Em O Brasil e a Oceania o mito da eterna juventudeleva o autor a considerar a inexistência da velhice entre os índios, mito

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aliás reduplicado de estudiosos e viajantes europeus, como é o caso deJean de Léry, citado por Gonçalves Dias, ao afirmar que, além de teremsaúde perfeita, eles vivem mais de cento e vinte anos.

Endossado pelo maranhense, esse viajante francês alia o mito daeterna juventude ao da força hercúlea, declarando que os indígenassuplantam os melhores arqueiros europeus. Daí à construção do heróimitológico é um passo: lascam com a mão leques de palmeiras (lembre-se,a título de exemplo, o final de O Guarani, de José de Alencar, em que oíndio Peri arranca uma palmeira no tapa, para servir de embarcação quesalvaria a amada — figura que se superpõe à Virgem Maria no romance),nadam dias inteiros, são incansáveis nas caminhadas, têm os sentidosextremamente aguçados, não engordam nem adoecem. Em suma: não sãoapenas a reencarnação do cavaleiro medieval codificado, que não perseguemo cálice sagrado nem a eterna bem-avanturança, mas a «eternidade» docorpo, em muitos aspectos superior ao do branco. São sobretudo verdadeirosatletas da Antigüidade, para não dizer figuras do Olimpo. Neles se casam,miticamente, cristianismo e paganismo.

Do exposto rapidamente e a título de introdução, algumas conclusõesparciais poderiam ser tiradas. A idealização do índio no romantismobrasileiro, que tem em Gonçalves Dias um epígono, foi, antes de mais,fundamentada nas Ciências Humanas do tempo, no estágio que elas poderiamalcançar e na observação direta, do que na simples imaginação criadoravinculada a um nacionalismo ufanista, de valorização idealista do autóctone.Muito mais do que o bom selvagem da filosofia rousseauniana, do que oser exótico para a cultura européia e do que o elemento genuinamentenacional, nosso índio literário é o homem mais perfeito sobre a face daterra. E, em sendo perfeito, «divino», é livre. E, em sendo livre, os métodospara trazê-lo à civilização (cristã) devem passar pela Educação pautada noprincípio de bem entendida liberdade, para usar a expressão de GonçalvesDias. Assim, em sua perspectiva, o índio é o ser livre por excelência, nostermos do código da liberdade romântica. Transposto para a literatura, elecontinua livre, exceto naquilo em que a escravidão se constitui em condiçãosine qua non, no código da literatura romântica: o amor. É o que deseja ocacique do poema mencionado: ser escravo de sua paixão. É o que praticaPeri, na mais completa servidão a sua dama Cecília e, por tabela, ao fidalgoAntônio de Mariz, pai da amada.

Passemos ao texto de Sotero dos Reis sobre O Brasil e a Oceania.A Lição se constitui toda ela de elogios hiperbólicos ao conterrâneo: mesmosendo genial, escrevendo prosa tão bem quanto poesia — fato raro segundoSotero — estudou a língua-pátria a fundo. Em seguida, passa a elogiar OBrasil e a Oceania como obra literária, uma verdadeira riqueza para anossa literatura, considerando-a a mais completa que possuímos sobre osusos e costumes dos aborígenes do Brasil, tendo o autor consultado tudo

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ou quase tudo o que se escreveu sobre o assunto, estudado a língua tupi e visitadocomunidades indígenas. Graças aos estudos de português e tupi empreendidospor Gonçalves Dias, continua Sotero, a obra revela um português castiço e de leie explica muitos termos indígenas sem cujo perfeito conhecimento não épossível saber bem nem a geografia nem a história do País.

Por outro lado, Sotero se admira pelo fato de que a obra não tenhasido então publicada pelo Instituto Histórico e Geográfico, onde o autor aleu, inclusive na presença do Imperador do Brasil. Mas não comenta essafalha da Instituição. Depois de elogiar o valor do autor, e do texto sob oaspecto do conteúdo e da redação, Sotero aborda-o pelas condições do estilo— fácil, corrente, castigado, nobre — e da prosa — harmoniosa e cheia.Demonstrando em Gonçalves Dias expressividade e harmonia na escrita,conclui com entusiasmo tratar-se de um escritor versado nos clássicos. Retomaalguns trechos para ilustração e dá por concluída a análise da forma da obra,para usar sua palavra. Finalmente, e em um parágrafo, vai focalizar vagamentea sua essência. Esta se constitui sobretudo nas reflexões judiciosas, na verdadedo colorido das descrições e nas comparações factuais.

Nessa sumarização da Lição LXXXVI destacamos aqueles elementosque nos parecem fundamentais para caracterizar uma aula de literatura(brasileira) no Brasil (região Nordeste) nos anos 60 e 70 do século XIX. Aprimeira questão que se põe relaciona-se ao próprio conceito de literatura,distanciada de seu caráter ficcional. Se, por um lado, Sotero reconhece queO Brasil e a Oceania é literatura de gênero didático e filosófico, por outrolado reconhece também que é o estilo - o bem escrito e bem redigido - queadquire o estatuto de prosa literária. Resta pesquisar em que medida esseera o conceito corrente na época e, por conseqüência, como eram tratados,regra geral, pela instituição escolar, os romances e contos.

A segunda questão deriva-se da primeira: não estando a prosa literáriasubordinada à categoria de ficção, o romance e o conto brasileiros não têmlugar nas aulas do professor, professor aliás muito mais interessado emensinar a literatura portuguesa do que a brasileira, pois desta se ocupa emapenas um volume. E mais: a literatura brasileira está em segundo lugar apartir do próprio título da obra, e o seu ensino, nessa secundariedade, sedava havia mais de 40 anos da independência política!

2 A justificativa

deduz-se da introdução do primeiro tomo do Curso de literatura portuguesae brasileira, assim comentada por Jomar Moraes:

2Aliás, essa secundariedade comparece em outros historiadores do XIX. Lembro J.M. Pereira da Silva,que em 1880 ministrou na Escola Pública da Glória, Rio de Janeiro, um curso de história danacionalidade, língua e literatura de Portugal e Brasil, perante S. M. o Imperador e numerosíssimoconcurso de espectadores. O Brasil aí também comparece en passant, conforme se pode verificar napublicação desse curso: SILVA, J. M. Pereira da. Nacionalidade, língua e literatura de Portugal eBrasil. Paris : Guillard, Aillaud e Cia, 1884. 410 p. As citações nesta nota são tiradas da nota introdutóriados editores ao volume.

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Em muitas passagens da obra (...) volta sempre a referir-se aoperíodo de Camões e João de Barros, autores que teriam dado, napoesia e na prosa, o aperfeiçoamento máximo à língua portuguesa,fixando-a. Nesse estágio «a língua se fixou, e a arte foi levada aoseu auge», não relutando Sotero em considerar degenerescência todaa evolução posterior.

3

E que autores comparecem a suas aulas, além do poeta conterrâneoGonçalves Dias? Autores de várias espécies literárias, menos romancistase contistas. Autores que, embora brasileiros, são tidos por ele comoclássicos, isto é, vinculados à tradição portuguesa. Os prosadores maisdistintos, na opinião de seu filho Américo Vespúcio, que publicoupostumamente o último volume da obra, exatamente o dedicado à literaturabrasileira, são, além de Gonçalves Dias: o Marquês de Maricá das Máximas,o sermonista Monte Alverne, o biógrafo e amigo Antônio Henriques Leal eo historiador João Francisco Lisboa, biografado por Leal. Em que pese ofato de Sotero ter declarado que só estudava com seus alunos os autoresmortos e apesar de ter aberto exceções, lembre-se de que, enquantolecionava no Instituto de Humanidades, já estavam mortos Manuel Antôniode Almeida (1861), bem como o poeta e contista Álvares de Azevedo (1852).Para não falar do teatrólogo Martins Pena (1848), uma vez que o gênerodramático só é brindado na parte brasileira do Curso... com a peça Boabdil,de Gonçalves Dias.

As exceções abertas aos vivos o foram, sintomaticamente, paraAlexandre Herculano e para Antônio Henriques Leal — o biógrafo,publicista e historiador literário de sua geração. Estas não atingiriam aromancistas do porte de um Joaquim Manuel de Macedo nem de um Joséde Alencar, por exemplo, autores já consagrados e que escreviam numalíngua pretensamente «brasileira», portanto desclassicizante. No final dascontas, a escolha dos brasileiros (mortos) para assunto das aulas de Soteroparece passar por certo provincianismo — via privilegiamento de figurasde seu estado natal, aí abrindo exceção para um intelectual vivo — e pelopreconceito purista disfarçado em cronologismo — através do estudo daobra de pessoas de «estilo clássico», pelo viés de um conceito equivocadode classicidade já em sua época. O fato de o professor escolher figuras lo-cais como objeto de seu ensino seguramente não passaria, como hoje, poruma atitude consciente de valorização da literatura regional. Ainda maisporque nem mesmo conceitos de literatura nacional são operacionalizadospor Sotero. Como o ensino da literatura brasileira não estava sistemati-

3MORAES, Jomar. Apontamentos de literatura maranhense. São Luís- Maranhão: Sioge, 1997. p. 97.

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zado — nem pela via da historiografia nem pela composição curricular —o cânon era estabelecido de forma aleatória pelo docente. Assim, em termospráticos, Sotero acabou por transformar seu curso de literatura brasileiraem curso de literatura maranhense.

A terceira questão liga-se à noção de que o estudo da literaturaenquanto trabalho com a linguagem se limita às qualidades estilísticas, àmoda do antigo Quintiliano, estudo esse que, entre nós, entrou pelo séculoXX afora. Se, por um lado, o exame da lição em causa revela certapreocupação em dar aos alunos conhecimento do texto (literário) atravésde exemplos textuais longos, que jamais caberiam numa antologia, poroutro lado revela também a pobreza de sua análise, quer devido aoscomentários superficiais sobre o estilo, quer por observações parafraseantessobre o conteúdo do texto.

A quarta e última questão é a constante retomada dos mesmosexemplos, fato aliás presente em todas as Lições. Isso poderia indiciarmetodologia didática para gravação na memória dos estudantes; contudo,dá mais a impressão de que o professor não tinha matéria suficiente parapreencher todo o tempo da aula, e ficava «ensebando», como diriam osalunos de hoje.

No mais, deixemos que, tanto o texto de Gonçalves Dias quanto o deSotero dos Reis sobre ele, falem por si mesmos. No de Gonçalves Dias, oleitor terá a oportunidade de conhecer, como se disse, um belo e quasedesconhecido documento-fonte sobre o índio para a compreensão da vertenteindianista na literatura e na cultura brasileiras. No de Sotero dos Reis, osleitores terão um bom exemplo de como acontecia o ensino da Literaturadurante o segundo quartel do século XIX, em uma província brasileiradistante da Corte. Será que, na Corte propriamente dita, o ensino erasignificativamente distinto?

No estabelecimento do texto, para distinguir as notas e referênciasbibliográficas de Gonçalves Dias dos comentários feitos por mim, fizpreceder as dele da expressão Em G, Rodapé: — onde G significaGarnier, pois no Curso... não há notas ao texto, e na edição da Garnierelas existem. Meus comentários são antecedidos das iniciais LM. Con-frontou-se o texto transcrito por Sotero com o da Garnier.

4 As diferenças

encontradas vão registradas e antecedidas também da expressão Em G.Essas diferenças, se não têm importância para o leitor versado em literaturaou em ciências sociais, poderão tê-la para os interessados em filologia,lingüística ou genética textual. Daí, a minúcia dos registros, que deixamo texto preparado para futuros estudos de diversa natureza.

4OBRAS PÓSTUMAS DE A. GONÇALVES DIAS: O Brasil e a Oceania. Paris: Garnier, 1909. p. 83-96.

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Lição LXXXVI

Depois de haver apreciado o nosso ilustre comprovinciano AntônioGonçalves Dias como poeta,

1 tanto nas suas obras em verso, como no seu

drama Boabdil, que é uma tragédia escrita em prosa, passarei hoje a aquilatá-lo como prosador da língua portuguesa naquelas de suas obras que se devemreputar verdadeira prosa, quer na forma, quer na essência.

Este singular engenho, o maior sem contradição que produziu o Brasilem nossos dias, não se limitou unicamente a ser o primeiro de nossos poetasem mais de um gênero;

2 mereceu também lugar distinto entre nossos

prosadores, reunindo assim duas qualidades que nem sempre andam a paruma da outra, porque os grandes poetas não são de ordinário grandesprosadores. Não admira, porém,

3 que Gonçalves Dias se exprimisse tão

bem na linguagem das Musas, como na dos homens, porque,4 sobre haver

sido privilegiado pela natureza com aquilo que se chama gênio, tinha feitoum árduo e especial estudo da língua portuguesa, como o atestam as suasinimitáveis Sextilhas de Frei Antão.

5

D entre as suas obras em prosa, a mor parte inéditas, escolherei paraobjeto de minha análise a que se intitula O Brasil e a Oceania, que éincontestavelmente uma das melhores. O autor em sua modéstia deu-lhesimplesmente o nome de Memória, mas merece certamente outro, porque éa obra mais completa que possuímos sobre os usos e costumes dos aborígenesdo Brasil, sendo que compreende tudo que se refere às suas tradições,migrações gerais de Norte a Sul, migrações parciais de Sul a Norte, raçasdiversas e estado físico, moral e intelectual, quando os primeiros colonosportugueses começaram a povoar o Brasil; e isto comparativamente com oestado físico, moral e intelectual dos aborígenes da Oceania. Quanto sepode desejar sobre a história tradicional, constituição orgânica, modos devida, hábitos, índole, paixões, crenças religiosas, superstições, governo,milícia, e artes nascentes de nossos indígenas, acha-se com muito esmeroconsignado nesta obra, que é o fruto de um longo e indefesso

6 estudo. O

autor consultou tudo, ou quase tudo que se tem escrito sobre os índios daAmérica e da Oceania: mas não contente com isso, estudou cuidadosamentea língua tupi

7 e v isitou diversos pontos do Brasil, em que se podia achar

em contacto imediato com os nossos indígenas, a fim de tornar mais completaa primeira parte do seu trabalho que versa sobre estes.

1Dias, como poeta

2gênero,

3admira porém

4porque

5sextilhas de Frei Antão.

6LM: sinônimo: incansável.

7tupi,

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A obra, pois,8 tem a nosssos olhos o dobrado mérito de resumir

com escolha e critério tudo quanto se tem escrito a tal respeito, e deconter, com especialidade na primeira parte, as mais judiciosas obser-vações, filhas da experiência e estudo especial do autor,

9 fei to sobre os

próprios lugares10

em que se deram e dão os fatos que menciona. Eis oprograma dado para ela pelo Instituto Histórico e Geográfico do Brasil,coligido da própria introdução do autor: «Descrever o estado físico,moral e intelectual dos indígenas do Brasil, no tempo em que pelaprimeira vez se acharam em contacto com os seus descobridores; e verque probabilidade ou facilidade ofereciam nessa época à empresa dacatequese ou da colonização, — eis a primeira parte do problema quedevo desenvolver.» O que admira, porém, é que,

11 te ndo sido este

trabalho tão completo lido no Instituto em presença de S. M. Imperial, eseguramente com o aplauso que merece, o não mandasse o Institutoimprimir,

12 co mo importava à propalação dos conhecimentos sobre

nossas cousas, sendo que,13

o duplo interesse que inspira a quem desejainstruir-se, compensaria em aproveitamento científico toda e qualquerdespesa que com isso se fizesse.

O Brasil e a Oceania é uma obra no gênero histórico, didático efilosófico, que nada deixa sem solução e desempenho, nem na maneira porque o autor encarou a questão, e a elucidou, nem na linguagem em que éescrita, que é português castiço e de lei,

14 co ntra o que se observa em

algumas de nossas obras modernas aliás não destituídas de mérito. É umpoderoso auxiliar para difusão das luzes,

15 já sobre o estado da raça primitiva

da América, quando começou a ser povoada pelos europeus, já sobre oprogresso da ciência em geral, porque,

16 al ém da justa apreciação dos fatos

que contém, dá-nos a explicação de muitos termos indígenas, sem cujoperfeito conhecimento não é possível saber bem nem a geografia

17 ne m a

história do País. Trabalhos tais são uma verdadeira riqueza para a nossaliteratura, que não possui outros da mesma natureza, nem tão completosnem tão bem escritos.

18

Constando a obra de um volume in-fólio e compreendendo duas partesou dois tomos, não cabe no tempo ler-vos dela mais que um capítulo

8obra pois

9autor

10lugares,

11admira porém é que

12imprimir

13que

14lei

15luzes

16porque

17geografia,

18natureza nem tão completos,

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destacado. Assim passarei a ler-vos o capítulo 5º da primeira parte, ou umdos menores, e por ele ajuizareis do mérito do autor como prosador dalíngua portuguesa.

Capítulo V19

Tratando dos caracteres físicos genéricos dos tupis, não nosocuparemos do que diz respeito à fisiologia geral do homem americano:não entraremos numa discussão que seria sem dúvida interessante para aciência, mas para a qual não estamos preparados, e que de mais não seprende senão muito remotamente ao nosso programa. Contentando-nos, pois,de descrever os caracteres,

20 nã o entraremos na explicação dos fatos:

deixamos isso aos mestres das ciências e àqueles que, por seus estudosespeciais e por observações próprias, puderem esclarecer a questão.

21

Acreditou-se por muito tempo que a cor da pele americana era umae uniforme em todas as tribos de todas as partes da América, — quaisquerque fossem as influências da latitude, da elevação e da natureza dos lugaresque habitassem.

22

Esta cor dizia-se ser tirante a cobre, até que Humboldt23

as severouque semelhante designação de cor vermelha, cor de cobre, aplicada aosindígenas da América,

24 nã o poderia ter tido princípio na América Equinoxial.

19LM: Reiterando o que se disse na Introdução, confrontou-se este texto com o publicado pela Garnier,em 1909, único a que se teve acesso. As modificações encontradas vão registradas em rodapé,antecedidas de Em G . Na edição da Garnier, ao número do capítulo segue-se o título «Caracteresfísicos», e, a este, o subtítulo «Tupis».

20Contentando-nos poisEm G, caracteres

21ciências, e àqueles que por seus estudos especiais e por observações próprias puderem esclarecer aquestão.

22LM: Em G, ao contrário da transcrição de Sotero dos Reis, há notas de rodapé, numeradas por página.Optou-se por transcrevê-las na íntegra, atualizando-se a ortografia e fornecendo explicaçõesesclarecedoras sempre que possível.Rodapé: (1) Ulloa. - Notícias americanas. T. 3, p. 278: «Visto un indio de cualquier región, se puededecir que se han visto todos en cuanto el color y contestura.» (Orb. 1 - 72.) Robertson. Hist. of. Am.L 4. Cieca (sic) de León. «Crónica del Perú.» p. 1, cap. 19.LM: Orb. é abreviatura de Orbigny (Alcide Dessalines d’Orbigny - 1802-1857). Paleontólogo francêsque em 1826 esteve no Paraná, onde realizou estudos de etnologia. Juntamente com Darwin éconsiderado um iniciador dos estudos sobre fósseis mamíferos na América do Sul. Sobre isso escreveua Voyage dans l’Amérique Méridionale (1839-1842).Robertson. Alusão a Willian Robertson (1721-1793), historiador escocês e ministro presbiteriano, autorda History of America (3 vols.), que, em 1788, alcançara cinco edições. A América, no caso, é a do Sul.Cieca de León. Alusão a Pedro de Cieza de León (1518-1560), soldado espanhol e cronista do Peru. Aparte 1 da obra aqui referida, Crónica del Peru, trata da geografia e da antropologia da região, e foipublicada em Sevilha em 1553. Em 1864 saiu a primeira tradução inglesa, por Sir Clements R. Markham.

23Em G, Rodapé: (1) T. 3, p. 278.LM: Alusão a Alexander Humboldt (1769-1859), naturalista e viajante alemão, que esteve no NovoMundo e escreveu trabalhos científicos sobre ele.

24América

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D’Orbigny,25

re jeitando igualmente tal qualificação para os homensda América Meridional, nem admite a uniformidade neste caráter, nem acor de cobre que Ulloa foi o primeiro a qualificar tal; quer antes aqueleautor que, em nenhuma outra parte do mundo,

26 va ria tanto a cor do homem

de intensidade.Foi também opinião por muito tempo que a maior intensidade da cor

da pele dependia da maior força do calor solar;27

e, guiando-se por estesprincípios,

28 Bu ffon

29 pe nsava que os habitantes do vale dos Andes eram

os mais alvos, quando,30

de todas as tribos que se grupam sob a raça ando-peruana,

31 é exatamente ali que se nota a cor mais carregada. Sem querer

negar o efeito do sol sobre a cor, efeito que não é senão temporário, dever-se-ia atribuir antes, como pretende d’Orbigny,

32 a sua mais ou menos

intensidade à maior ou menor umidade a que se achassem expostos, à demoramais ou menos dilatada em países regados por chuvas abundantes

33 e onde

vastas florestas interceptem os raios do sol.34

As tribos tupis estavam colocadas como no centro das duas raçasdos pampas e peruanos — ambas da América Meridional. A sua cor erabaça com um longe de vermelho.

35 Os Tapuia que, quanto a nós, descendem

dos Goitacás, ou ao menos provêm da mesma origem, tinham com poucadiferença a mesma cor,

36 ex cetuando os Aimoré e restos seus que para o

Norte encontramos, alguns dos quais, segundo os primeiros viajantes, eramquase tão brancos como os portugueses. Tanto nuns como nos outrosobserva-se a manifestação de sensações vivas na coloração instantânea dosistema dermóidal,

37 ma s,

38 po r efeito da cor mais carregada da pele, o

fenômeno era neles menos ostensível do que nos homens da raça branca.

25Em G, Rodapé: (2) L’Homme américain.

26que em nenhuma outra parte do mundo

27Em G, solar, ; Rodapé: (3) Paw. Recherches sur les américains, p. 227, 236, 237.

28Em G, e guiando-se por estes princípios

29LM: Alusão ao naturalista francês Georges Louis Leclerc Buffon (1707-1788), autor da Histoirenaturelle.

30quando

31raça - ando-peruana -

32Em G, d’Orbigny

33Em G, abundantes,

34Em G, Rodapé: (4) A esta última causa atribuem os historiadores o fato de serem os Aimoré maisclaros do que os Tupi. Gumilla - Hist. de le Crenoque - diz também que os habitantes das selvas sãoquase brancos e os das planícies, trigueiros. ( Sem vírgula depois de «planícies»)

35Em G, Rodapé: (1) D’Orbigny (1839), falando dos Guarani, nome sob o qual compreende os Tupi,diz que têm uma cor amarelada (jaunâtre) e acrescenta: «Il y a plus ou moins de mélange au rougeâtretrès pâle, ou au brun, selon les nations et même selon les tribus.» L’Hom. Américain. T.1 - p. 74.

36Em G, cor

37Em G, Rodapé: «Toute aussi vive et non moins énergique que dans la race blanche.» Ob. cit. Orb.T.1 - 383.

38mas

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3 3

A pele,39

lo nge de ter a aspereza que Ulloa40

lhe quis atribuir,41

émuito mais macia que a dos europeus e homens do antigo mundo: é lisa,polida, brilhante e macia como cetim, sem oferecer portanto desigualdadealguma,

42 qu alidade que em seu máximo grau se apresenta nas tribos que

habitam a zona tórrida.43

Q uanto à estatura44

dá -se o mesmo fato que se observa nas dimensõesdos mamíferos, quando não sujeitos ao estado de domesticidade, isto é, adiferença é tão exígua entre os extremos que o máximo e o mínimo muitopouco discrepam do médio;

45 as sim, entre os homens da mesma tribo,

46 é

muito pouco sensível a desigualdade do tamanho. Os Tupi, na estatura comona cor,

47 er am o ponto intermédio entre as duas outras raças, inferiores aos

pampas e superiores aos peruanos, fazendo-se ainda distinção dos Aimoré,que,

48 as sim como eram os mais claros, eram também os mais altos entre os

brasílio-guaranienses, e semelhantes aos pampas. É certo que d’Orbignydá tanto para os Tupi quanto para os Tapuia a mesma estatura; mas esteescritor não teve ocasião de observar senão um indivíduo desta últimafamília, e só fala por esta observação isolada. O fato, no entanto,

49 é

confirmado por todos os que têm tratado dos indígenas do Brasil, e foi porisso um dos caracteres que procurei estabelecer como diferentes entre osTupi e os Tapuia.

50

Quanto às formas gerais, longe de haverem degenerado comopretende Paw, apresentam todos os caracteres que atribuímos à força. Cabeçaantes grande que pequena comparada ao resto do corpo, tronco largo erobusto, peito arqueado, espáduas largas, quadris pouco salientes. Aindaque os seus membros sejam algumas vezes curtos, comparados ao resto do

39pele

40Em G, Rodapé: (3) Notícias americanas, 1772. p. 313.

41atribuir; em G, atribuir,

42Em G, Rodapé: (4) Biet. Voyage dans la France Exinoxiale, p. 352 - diz dos Caraíba: - Leur chairest basanée et fort douce, il semble que ce soit du satin, quand on touche leur peau. ( Orb. p. 86.)

43Em G, Rodapé: (5) Orbigny, ob. cit. 87.

44Em G, Rodapé: (6) Para não termos de repetir as mesmas citações, consignamos aqui quais os diferentescaracteres físicos dos Tupi, segundo lemos descritos em vários autores. - Vide nota no fim deste capítulo.

45médio,

46assim entre os homens da mesma triboEm G, tribo,

47Em G, cor

48que

49o fato no entanto

50entre os Tupi e Tapuia.Em G, entre tupis e tapuias.Rodapé: (1) Dos Botocudo são tão brancos alguns como os portugueses «Not. cur. e neces.» São ( diza Not. do Bras.) da mesma cor que o outro (gentio) (no que está este autor quase em unidade) mas sãode maiores corpos, mais robustos e forçosos. Dos Goitacás, diz ela « têm cor mais branca». DosGoianás “ é gente de bom corpo.”LM: Not. do Bras. é abreviatura de Notícia do Brasil ou , conforme a edição, Tratado descritivo doBrasil em 1587, do senhor de engenho Gabriel Soares de Sousa (1540?-1591).

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3 4

corpo, são sempre repletos, arredondados e musculosos: as extremidadessuperiores nunca magras, bem desenhados os braços artisticamente falando,ainda que algumas vezes grossos demais, e as mãos pequenas em relação aeles. As extremidades inferiores são bem proporcionadas, e nas belas formas,raras vezes magras, e os pés pequenos, posto que largos. São, portanto,

51

as suas formas menos belas do que hercúleas. Assim também nas mulheres,acostumadas a uma vida livre, exercendo as forças desde a infância, semnenhum obstáculo ao desenvolvimento de suas forças e de seus membros,têm tudo quanto poderiam desejar para o gênero de vida a que são destinadas:assim,

52 b em que sejam raras vezes esbeltas e graciosas, porque são muito

robustas para serem bem feitas, são próprias para o trabalho, e sadias: têmpartos fáceis, filhos vigorosos desde a infância, e nunca defeituosos.

53 En tre

homens e mulheres, ainda na velhice, raros são os fatos de obesidade.A classificação que se quisesse fazer dos americanos em relação aos

outros povos, deduzida da consideração da forma que os seus crâniosapresentam, não nos poderia levar a nenhum resultado seguro; porque,

54

me smo entre as raças do antigo mundo, talvez menos confundidas, e comcerteza melhor estudadas do que esta, tomando-se de qualquer delas, excetoa negra, um milheiro de crânios, acham-se alguns que pelos seus caracteresse assemelham a todas as outras.

Ora, entre os americanos as formas da cabeça variam por tal modoque Prichard

55 re jeita a designação de forma americana, que alguns

anatômicos quiseram achar, observando os crânios das diferentes raças,distinção inadmissível, diz ele, porque não é senão uma generalizaçãoerrônea

56 à qual chegaram, considerando como universais os caracteres

fortemente pronunciados que lhes apresentam algumas tribos particulares.57

Lawrence58

considera o crânio americano como análogo pela suaforma ao do mongol, posto que seja menor que o deste (Orbigny, p. 118).

51São portanto

52assim

53Em G, Rodapé: (1) Robertson. H. of. A. L. 4. - Gumilla, p. 234. - Trecho Hist. Parag. - atribuemo fato ao costume de destruírem todos os filhos que mostrassem disposições de saírem do estadonormal. Não se lê semelhante cousa em viajante algum. D’Orbigny não os viu defeituosos nem mesmoentre os peruanos, que amam e querem os filhos talvez mais que os europeus, e então explica o fatopela educação toda física que recebem, auxiliados e favorecidos pela boa organização dos pais. Humbold(sic) notou a mesma carência de diformidade (sic) entre os Muisica, Mexicano e Caraíba. T. 3. p. 291.LM: Hist. Parag. - Possivelmente abreviatura da obra do Padre Guevara - Historia del Paraguay.

54porque

55Em G, Rodapé em «modo»: (1) L’aspect des indigènes et l’inpection d’un grand nombre de crânes,que nous avons vu, nous ont convaincus, qu’en Amérique ils varient non seulement selon les races etles nations, mais encore d’individu dans un même peuple. Orb. T.1, p. 119.LM: Prichard - alusão a James Cowles Prichard (1786-1848), médico e filólogo inglês, especialistaem estudos sobre as raças humanas.

56errônea,

57Em G, Rodapé: (2) T. 2. p. 74.

58Em G, Rodapé: (3) Lectures on physiology, zoology, and natural history of the man.

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Admitida a diferença de tamanho que este fisiólogo quer estabelecer,conviria ter-se em vista as curiosas observações de Parchappe

59 sobre a

relação que há entre o volume do crânio e o desenvolvimento das facul-dades: delas se colige que,

60 nã o só a forma do crânio é pouco importante

para as faculdades, como também que o seu volume nada influi sobreelas.

61 Não obstante, tendo ele medido alguns crânios, achou que o volume

da cabeça americana, pelo contrário do que diz Lawrence, é superior aodas cabeças da raça malaia.

Eis como d’Orbigny62

de screve os caracteres gerais da raçabrasílio-guaraniense

63 ou tupi. «Cor amarelada com mistura de ver-

melho muito desbotado, estatura de 1.620 mm.,64

fo rmas maciças, frentenão inclinada, rosto cheio e circular, nariz estreito e curto, ventas es-treitas. Boca mediana e pouco saliente, lábios delgados, olhos oblíquose sempre repuxados para o ângulo exterior como os dos mongóis, ossosda face pouco salientes, feições de mulher, fisionomia doce.» A istoacrescentamos,

65 pois que os procuramos comparar com os indígenas da

Oceania, cabelos negros, corredios e consistentes,66

barba tardia, nãofrisada, e pouca,

67 apenas na extremidade do lábio superior e do queixo,

dentes belos, regulares, quase verticais, persistentes, e em que dificilmen-te dá a cárie.

68

Sendo muito vigorosa a sua compleição, resistem tanto aos maisduros trabalhos, que Ulloa os chama insensíveis pela coragem com quesuportam os sofrimentos,

69 em outra parte

69ª o s denomina animais, porque

são robustos e não os incomodam muito as fadigas e as intempéries.Sofrem por muito tempo, sem o demonstrarem, a sede e a fome, e rarasvezes adoecem, bem que afrontem a umidade, o calor e o frio, sem toma-rem precauções contra moléstias. A prova mais contundente da sua ótimaconstituição é o costume que têm as mulheres indígenas de, paridas,

70

59Em G, Rodapé: (4) Recherche sur l’encéphale, etc.

60que

61Em G, Rodapé: (5) «La différence de volume entre les individus sains d’esprit, et les têtes des aliénés,serait à l’avantage des insensés.» Parchappe, p. 28. Vd. as 34, 35 e 45.

62Em G, Rodapé: (1) Ob. cit. T.2.

63brasílio-guaraniense,

64estatura um metro 620 milímetros,

65acrescentamos

66Em G, Rodapé: (2) Dos cabelos da raça americana diz d’Orbigny, p. 128: «Ils ne tombent jamaischez elle, même dans la vieillesse la plus avancée.» T. 2º Marcgraff. L. 8, c. 5: « Neque facile canescuntnisi in decrepita oetate.»

67Em G, Rodapé: (3) Paw.T. 2, p. 184, e Robertson. H. of. A L. 4, negam-lhes inteiramente. Marcgraff.L. 8, p. 269: Bar. am raram aut. nullam Multi tamen dantur qui habent barbas nigras.

68Em G, Rodapé: (4) Nous avons vu un grand nombre de vieillards dont les dents étaient usées jusqu’àla racine par la mastication, sans que leur en manquât une seule. Orb. p. 128.

69Em G, Rodapé: (5) Notícias americanas, p. 314. D’Orbigny. T. 2, p. 137.

69Em G, Rodapé: (6) Ulloa, ob. cit. p. 230.

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lavarem-se logo em água corrente, continuando no mesmo dia no seutrabalho como se nada lhes houvesse acontecido.

71

Os velhos ignoram os males da decrepitude, possuem o gozo dossentidos, como na mocidade, conservam os dentes intactos e os cabelosque não caem nem alvejam nunca,

72 têm a vista, o ouvido e o olfato finís-

simos, os movimentos desembaraçados, e o rosto pouco enrugado. Quantoà longevidade, d’Orbigny,

73 conhecendo a dificuldade de a determinar, dá-

lhes o máximo de 100 anos, observando, porém,74

que poucos passam alémdos 80. Dizem Lery e outros que chegam aos 120 e mais anos.

75

Com a sua educação alcançavam no geral um alto grau de agilidadee de força. Newied,

76 te ndo mandado os seus caçadores com alguns

botocudos, estes,77

pela ligeireza e rapidez da marcha, fatigados de os acom-panhar, ficaram atrás, deixando aqueles continuarem a sós a caçada. Lery

78

di z que os arcos dos do litoral eram tão compridos e fortes, que não tinhamcomparação com os que naquele tempo eram usados na Europa. Um europeu,longe de os poder vergar e pôr a tiro, devera dar-se por contente, vergandoo arco de um rapaz de 9 a 10 anos. E não é só que eram mui fortes os seusarcos: além da força que sem dúvida era precisa para os manejar, despediamdeles setas com tanta facilidade que, segundo o mesmo autor, os ingleses,os melhores arqueiros da Europa, no século XVI, não atirariam seis enquantoos Tupinambá teriam expedido o dobro ou mais.

70Em G, indígenas, de paridasLM: Piso - Alusão ao cronista viajante no Novo Mundo, citado por comentaristas das literaturasde viagem.

71Em G, Rodapé: (1) Foeminae mire fecundae, facili negotio pariunt, rarissime abortientes... plaeraquepuerperae statim post partum, nemine obstetricante, surgant aut obambulent; imo ad fluvium vicinumcorpus ablutum properent victumque hinc inde conquirant. Piso, de Medicina. L. I. p. 7.

72Em G, Rodapé: (2) Laet. « Ficam muito velhos sem cãs nem calvas.»

73Em G, d’Orbigny

74Em G, idem: observando, porém,

75Em G, Rodapé: (3) « Tais há deles que chegam a viver 120 e mais anos.» Vida do Padre. J. d’Almeida,cap. 5, n. 8. O mesmo diz Marcgraff. L. 8, cap. 5.Premature pubescunt, tarde senescunt incolae... supra centesimum aetatis annum, viridi et longevasenecta. Piso, L. I. Longevi sunt admodum, ibidem.LM: Marcgraff - Alusão ao cronista viajante no Novo Mundo Marcgrav, citado por comentaristas dasliteraturas de viagem.

76NewiedLM: Alusão a Maximiliano de Neuwied, autor de Voyage au Brésil.

77estes

78LM: Alusão a Jean de Léry (1534-1611), autor de Narrativa de uma viagem à terra do Brasil,também dita América, contendo a navegação e coisas notáveis vistas no mar pelo autor: a condutade Villegagnon naquele país, os estranhos costumes e modos de vida dos selvagens americanos;com um colóquio em sua língua e mais a descrição de muitos animais, plantas e demais coisassingulares e absolutamente desconhecidas aqui, cujo sumário se verá dos capítulos no princípiodo livro. Tudo colhido no próprio lugar por Jean de Léry, natural de La Margelle, Saint-Sene,ducado de Bourgogne. (1578).Utilizamos a tradução de Sérgio Milliet, intitulada Viagem à terra doBrasil. São Paulo: Martins, 1941. A referência de G. Dias encontra-se no cap. VIII, onde o autorfala sobre os habitantes da América.

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Em todos estes e nos demais exercícios corporais primavam osindígenas. Daríamos para exemplos,

79 se fossem precisos, aquele índio que,

depois de encorrentado,80

salvou-se a nado na Baía de Niterói; E Sepé81

qu e,82

com as mãos atadas nas costas, fugiu dentre uma partida de cavaleirosespanhóis, que o escoltavam. À vista destes fatos poderá ser judiciosa aopinião dos que, como Virey, sustentam que aos povos meridionais nãoconvém outro regime senão o vegetal: negamos, porém,

83 que desta idéia se

deva logicamente concluir que a um selvagem não era possível combatercorpo a corpo com um europeu. Não obstante não lhes serem favoráveis asexperiências do dinamômetro sobre a sua força muscular, alguns se têmvisto lascar com a mão leques de palmeiras, mergulhar por largo espaço,nadar dias inteiros

84 e cansar os mais infatigáveis andarilhos.

Além do gênio belicoso que os levava a tornarem-se destros nestasartes, as suas festas tomavam às vezes

85 n ão o caráter do pugilato, mas o de

exercícios ginásticos, que nem sempre deixavam de ser rudes. Tal é o jogodo tiro do barrigudo, no qual enfiam um pau, que tomavam, correndo econtinuando a carreira até chegarem à extremidade marcada para limite,embora tivessem de atravessar com ele algum regato que desse nado. Emalgumas tribos do sertão conserva-se ainda hoje este jogo; mas reservam-no para as celebrações de matrimônio. Neste caso dá-se ao vencedor a moçaque chegou a ser núbil, reputando-se como o mais capaz de a salvar emocasiões de perigo.

Concluiremos este capítulo com algumas observações.Se quisermos por um momento considerar qual era o viver do Tupi,

os seus trabalhos, a sua organização em república, conjeturemos aproxi-madamente o grau de bem-estar e de energia que eles deveriam desfrutar, eteremos ao mesmo tempo a explicação desse estado de perfeição orgânica,que apenas se conhece na vida civilizada.

Nascidos de pais robustos e sadios, nunca ou raríssimas vezesafetados de enfermidades exceto no extremo quartel da vida, participavamem grande parte da organização de seus ascendentes. Enquanto no ventrematerno, as mães os não comprimiam nunca, como desgraçadamente usamem muitas partes as mulheres para ocultar ou disfarçar a gravidez: ostrabalhos e ocupações diárias a que se davam, não obstante o seu estado,

79Em G, exemplos

80que depois de encorrentado

81LM: Alusão ao índio Sepé, herói dos conflitos dos Sete Povos das Missões, Sul do Brasil,no século XVIII, imortalizado na literatura através do poema épico de Basílio da Gama(1741-1795) O Uraguai.

82Em G, que

83negamos porém; Em G, negamos, porém,

84inteiros,

85vezes,

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nem só lhes facilitavam os partos, como era também motivo para que osfilhos não saíssem aleijados ou defeituosos, nem com esses vícios de orga-nização, que nas cidades populosas tornam a infância doentia e miserável.Nasciam robustos e conservavam por toda a vida a robustez enquanto, poroutro lado,

8 6 os seus trabalhos os impediam de cair em obesidade. Deste

modo a força e saúde de uma geração era garantia da saúde e da força dasque se lhe seguiam.

Abrindo os olhos à luz, e vendo a seu lado um arco e frechas, omenino compreendia que a sua existência dependia da destreza, agilidade, ecoragem, que soubesse desenvolver; e que só por esse meio se podia tornarcélebre e respeitado mesmo pelos seus.Começavam desde logo a exercer assuas forças, pouco e pouco até a ponto de chegarem a manejar um daquelesgrandes arcos, que eram a inveja dos arqueiros europeus, e dos quais seserviam com maravilhosa destreza. Esta experiência lhes vi eu fazer.Firmando-se no pé esquerdo, avançavam o direito, e com o dedo grandeimprimiam um leve sinal na areia, recuando depois esse pé, mas conservandosempre o outro na mesma posição, atiravam ao ar, e a frecha vinha enterrar-seno rasto que lhes servia de alvo. Enfim uma espécie de ginástica natural — asubida de árvores, a carreira — a caça, a natação e manejo dos remos, aconfecção das armas, davam-lhes aos membros incrível elasticidade.

8 7

Descendentes de homens incomparavelmente mais guerreiros do queagrícolas, a sua educação era inteiramente militar;

8 8 a guerra era a sua vida —, e

só os feitos de armas e os atos de coragem os podiam enobrecer; só por elespoderiam ter entrada no ibaque

8 9 e assentar-se entre os guerreiros das

florestas eternas.Deviam saber vencer, mas como nem sempre a vitória é companheira

da coragem, era-lhes necessário também que soubessem padecer, afrontaros sofrimentos e mostrar-se tão impávidos no terreiro do inimigo, comodestemidos

9 0 no campo da batalha. Seus ornatos, suas pinturas, suas armas,

tinham por fim chamar sobre eles as vistas de todos. A compostura doguerreiro, que atraía as atenções, era também um incentivo para que asprocurassem merecer, e não praticassem nunca um ato de fraqueza. Durante

86robustez; enquanto por outro lado

87- Enfim uma espécie de ginástica natural - a subida de árvores, a carreira - , a caça, a natação, emanejo de remos, -

88Em G, militar:

89Ibaque,Em G, IbaqueRodapé: (1) Têm para si que somente as fêmeas e varões fortes, que nesta vida mataram e comeramem guerra muitos inimigos, depois que morrem se ajuntam a ter paraíso em certos vales, junto a unsouteiros, a que eles chamam «campos alegres» quase outros Elísios, e ali fazem grandes banquetes;porém os cobardes, que em vida não fizeram façanha, vão penar com os maus espíritos.» Vida doPadre J. d’Almeida, c.5, n. 7.

90Em G, destemido

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a mocidade estavam sujeitos a terríveis provações para serem admitidos nolugar dos combatentes, e poderem aspirar ao mando: estava aberto o campopara todos, e era legítima a ambição do esforçado e corajoso. Convinhaque o guerreiro soubesse suportar a dor com calma e sem demudar osemblante. Daqui provinham os tormentos da iniciação. Da relação de HansStaden

9 1 se deprende que os Tupi requeriam-se igualmente as provas que

dos seus guerreiros exigiam os Caraíba. Conta ele ter, durante o seu cativeiro,visto um índio que de noite percorria as cabanas com um dente de peixeaguçado com que rasgava as carnes das pernas dos mancebos, para queassim aprendessem a sofrer sem se queixar. Era isto o indício seguro de suavalentia, e a sua patente de guerreiro, que depois precisavam ilustrar com amorte dos inimigos. Os troféus que assim conseguiam, que traziam pendentesdo pescoço, ou arrumavam à entrada de suas cabanas, serviam-lhes deglorioso ornato.

Educados nas florestas com um tato de observação extremamentedelicado, adquiriam invejável perfeição de sentidos. No borborinho confusodas florestas, distinguem sons quase imperceptíveis, que lhes revelam apassagem de um animal

9 2 quebrando os ramos, ou a marcha cautelosa do

guerreiro que os evita. Pelas pegadas que viam impressas no chão,distinguiam a tribo que ali passara e, pelo olfato,

9 3 a direção que levava.

Olhos de lince, descobriam nas sombras das florestas o inimigo ou a presa,e com o arco despediam por entre as folhas a morte rápida e silenciosamente.

Em resumo,9 4

além dos caracteres físicos, que serviam para osdiferençar dos selvagens da Oceania, o tupi era sadio, robusto, hábil nofabrico de suas armas, destro em manejá-las, e com sentidos de extremadelicadeza. A sua vida toda guerreira, e de guerra selvática começava peloexercício de todos os sentidos, e rematava com o desenvolvimento de todasas qualidades que era mister ao guerreiro. Acostumados aos trabalhos,privações e sofrimentos de dor física, à luta e ardis de guerra incessante eimpiedosa, por meio deles chegavam à nomeada de guerreiros atrevidos echefes ardilosos.

Fortes e duros como os seus arcos, a força européia, impotente sobreeles, carecia para os curvar de jeitos e boa vontade, e sobretudo de esperarcom paciência que a experiência e bons ofícios os tornassem fáceis demanejar e tratar, antes de rompê-los brutalmente como arma inútil, e sem

91StadtLM: Alusão a Hans Staden, alemão que viajou duas vezes ao Brasil (em 1547 e 1550) e publicou suasimpressões de viagem, alcançando na época várias edições. A mais recente tradução em português -Duas viagens ao Brasil - é de Guiomar de Carvalho Franco. São Paulo/ Belo Horizonte: Universidadede São Paulo/ Itatiaia, 1974.

92animal,

93e pelo olfato

94Em G, resumo

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préstimo. Era preciso reformar os seus costumes começando pela educação,uni-los em vez de os separar, acostumá-los a uma vida pacífica, agrícola ouindustrial, em vez de os corroborar nos sentimentos e propensões guerreiras,opondo-os, para defesa própria, uns aos outros,

9 5 e por esta forma aniqui-

lando-os reciprocamente.Qualquer, porém, que fosse o sistema que para com eles se adotasse,

era de indeclinável necessidade que fosse baseado sobre o princípio debem entendida liberdade. Só dessa forma se poderia carear a vontade desseshomens acostumados a uma vida libérrima, e cujo caráter, como deles achoescrito e eles o confirmam todos os dias, era em último grau insofrido daescravidão. Ne utiquam jugum servitutis tolerantes.

Neste capítulo, em que são descritos os caracteres físicos do índioamericano, nada escapa à justa apreciação do autor, que ajuíza com muitocritério das opiniões alheias que cita, escreve com perfeito conhecimentodos fatos que tão diligentemente estudou, e dá às suas judiciosasobservações o completo desenvolvimento de quem se acha senhor doassunto. O estilo é fácil e corrente, como convém ao gênero didático efilosófico, mas castigado e nobre: a prosa harmoniosa e cheia, como a deum escritor clássico. Eis aqui, para demonstração do que digo, reproduzidoum trecho da mesma:

«Em todos estes e nos demais exercícios corporais primavam osindígenas. Daríamos para exemplos, se fossem precisos, aquele índio quedepois de encorrentado salvou-se a nado na Baía de Niterói; e Sepé,

9 6 que

com as mãos atadas às costas fugiu dentre uma partida de cavaleirosespanhóis, que o escoltavam. — À vista destes fatos, poderá ser judiciosaa opinião dos que, como Virey, sustentam que aos povos meridionais nãoconvém outro regime, senão o vegetal: negamos, porém,

9 7 que desta idéia

se deva logicamente concluir que a um selvagem não era possível combatercorpo a corpo com um europeu. Não obstante não lhe serem favoráveis asexperiências do dinamômetro sobre a sua força muscular, alguns se têmvisto lascar com a mão leques de palmeiras, mergulhar por largo espaço,nadar dias inteiros, e cansar os mais infatigáveis andarilhos.»

Neste trecho,9 8

com ser tão curto, e tomado quase ao acaso, conhece-se nada obstante tanto a mestria do escritor habituado a manejar a pena,como a ciência do profundo conhecedor da índole da língua. Não só aspalavras se acham colocadas com tal arte, mas ainda as proposições dispostas

95Em G, outros;

96Sepé

97negamos porém

98trecho

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Aulas de Literatura Brasileira no Século XIX

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em ordem tal, que,9 9

da colocação de umas e da disposição de outras, resultaa maior harmonia que se podia dar à frase para lisojear o ouvido, e fazer poreste meio calar melhor o sentido em nosso espírito. Os dois primeiros períodossobretudo são admiráveis no efeito de sua estrutura harmônica e expressiva.Pela disposição na ordem inversa das proposições que o comportam ecolocação das palavras em lugar próprio, denuncia-se logo o escritor versadona leitura dos clássicos, e iniciado nos segredos da composição numerosa. Aprosa tem o seu número, assim como a poesia tem o seu metro.

Basta deslocar algumas dessas palavras, ou colocar na ordem diretaalgumas das proposições

1 00 que se acham na inversa, para que desapareça

logo todo o efeito harmônico da frase. Façamos a experiência com a primeiraproposição, colocando-a na ordem direta: «Os indígenas primavam em todosestes e nos demais exercícios corporais.» A graça desaparece toda com onúmero que lhe soube dar o autor e fica unicamente prosa insossa. O númeroé a primeira qualidade pela qual se distingue o bom do mau prosador.

Assim, se os versos não atestassem o profundo estudo que GonçalvesDias tinha feito da língua portuguesa, bastaria a sua prosa evidentementesuperior à da mor parte dos escritores contemporâneos, seja no número dafrase, seja na pureza da dicção, para demonstrá-lo a todas as luzes. É, pois,

1 01

o grande poeta, autor dos primeiros, segundos e últimos cantos, um prosadortambém mui distinto, como o atestam os seus dramas

1 02 em prosa, e

sobretudo esta sua obra com que hoje me ocupo, trabalho de mais vulto, edigno de figurar entre o que há de mais bem escrito a tal respeito.

Passando, porém, da forma que reveste a obra ao que constitui a suaessência, chamarei a vossa atenção para as judiciosas reflexões

1 03 com que

o autor termina este capítulo, que são como a conseqüência necessária dosfatos mencionados, para a naturalidade e graça com que narra, para a verdadedo colorido com que faz sobressair as suas descrições, para a comparaçãodos fatos da ordem física e moral com outros análogos observados entre osmais povos, dando assim vigor, atrativo, nobreza e autoridade ao dizer, oqual é ponto essencial em toda e qualquer obra; pois, pela mestria do estiloque deve adaptar-se completamente ao assunto, se conhece logo a categoriado escritor. Sirva de exemplo disto toda a bela passagem que começa « — Sequisermos por um momento considerar qual era o viver do Tupi, os seustrabalhos, a sua organização em república, conjeturemos», etc.,

1 04 e que

não reproduzo por demasiadamente extensa.

99que

100proposições,

101É pois

102dramas,

103reflexões,

104conjeturemos etc.»

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Ipotesi: revista de Estudos Literários, Juiz de Fora, vol. 1, nº 2 - p. 23 a 42

Letícia Malard

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Por este capítulo podeis ajuizar do mérito dos outros, porque o autorguarda em todos a mesma maneira de escrever sem desigualdade notável, epor conseguinte do mérito de toda a obra, o qual é incontestável, ou seatenda ao seu alcance intelectual, ou à simples execução.

Tendo aquilatado o nosso exímio poeta Gonçalves Dias tambémcomo prosador, e dos mais distintos, passarei no seguinte discurso aapreciar outro notável prosador brasileiro, o Marquês de Maricá. Por hojeaqui faço ponto.

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