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25 Leitura e estudos culturais Carlos Magno Gomes * RESUMO: Este artigo propõe reflexões sobre a importância dos estudos culturais para uma leitura crítica. A leitura literária demanda uma formação do leitor tanto esteticamente quanto culturalmente. Dentro dos estudos comparados, exploramos conceitos como recepção crítica e paródia para uma prática de leitura interdisciplinar. Partimos do conceito de intertextuali- dade para explorar a paródia como roteiro de leitura, pois ela possibilita ao leitor reconhecer as opções estéticas como ques- tionamentos de conflitos sociais. Por ser dual, a paródia traz um diálogo com o passado cultural e seu autoquestionamento, por isso é um gênero textual que exige um movimento de leitura para fora e para dentro do texto. Metodologicamente, usamos o conceito de “leitor estético”, de Umberto Eco, e de paródia, de Linda Hutcheon. Além de debater as contribuições dos estudos culturais, propomos a leitura como um exercício comparativo em que as peculiaridades da literatura são defendidas como fundamentais. PALAVRAS-CHAVE: leitura, paródia, estudos culturais, intertex- tualidade. ABSTRACT: This essay analyses the importance of cultural studies for a critical reading. We understand that the literary reading calls for a formation of reader as aesthetically as culturally. Then, we explore concepts such as critical reception and parody as possibilities to an interdisciplinary reading. We take the concept of intertextuality to explore the parody as script reading, because it allows the reader to recognize in the aesthetic elements several questionings of social conflicts. Because the ambiguity that the parody brings, a dialogue with the past and its self-question, it is a textual gender that requires a move of reading out and into the * Prof. Adjunto da Universidade Federal de Sergipe (UFS). Doutor em Literatura pela UnB (2004), com pós-doutorado em Letras Vernáculas pela UFRJ (2007).

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Leitura e estudos culturais

Carlos Magno Gomes*

resumo: Este artigo propõe reflexões sobre a importância dos estudos culturais para uma leitura crítica. A leitura literária demanda uma formação do leitor tanto esteticamente quanto culturalmente. Dentro dos estudos comparados, exploramos conceitos como recepção crítica e paródia para uma prática de leitura interdisciplinar. Partimos do conceito de intertextuali-dade para explorar a paródia como roteiro de leitura, pois ela possibilita ao leitor reconhecer as opções estéticas como ques-tionamentos de conflitos sociais. Por ser dual, a paródia traz um diálogo com o passado cultural e seu autoquestionamento, por isso é um gênero textual que exige um movimento de leitura para fora e para dentro do texto. Metodologicamente, usamos o conceito de “leitor estético”, de Umberto Eco, e de paródia, de Linda Hutcheon. Além de debater as contribuições dos estudos culturais, propomos a leitura como um exercício comparativo em que as peculiaridades da literatura são defendidas como fundamentais.

palavras-chave: leitura, paródia, estudos culturais, intertex-tualidade.

abstract: This essay analyses the importance of cultural studies for a critical reading. We understand that the literary reading calls for a formation of reader as aesthetically as culturally. Then, we explore concepts such as critical reception and parody as possibilities to an interdisciplinary reading. We take the concept of intertextuality to explore the parody as script reading, because it allows the reader to recognize in the aesthetic elements several questionings of social conflicts. Because the ambiguity that the parody brings, a dialogue with the past and its self-question, it is a textual gender that requires a move of reading out and into the

* Prof. Adjunto da Universidade Federal de Sergipe (UFS). Doutor em Literatura pela UnB (2004), com pós-doutorado em Letras Vernáculas pela UFRJ (2007).

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text. Methodologically, we use the concept of “aesthetics reader”, by Umberto Eco, and parody, by Linda Hutcheon. Beyond to debate about the contributions of cultural studies, we suggest the reading as a comparative exercise in which the peculiarities of the literature are defended as fundamental.

keywords: reading, parody, cultural studies, intertextuality.

Considerações iniciais sobre a literatura e o leitor

O espaço da literatura tem ganho, neste início de sécu-lo, diferentes reflexões nos meios acadêmicos. Isso porque ele está diminuindo na escola e na vida social pela força das novas mídias entre os jovens. Tentando reverter essa situação, muitos pesquisadores destacam o fortalecimento do ensino de literatura como uma saída para a formação de novos leitores. Todavia, não há um consenso sobre qual o melhor caminho para essa formação: se teórico ou prático. Tzvetan Todorov, na obra A literatura em perigo, argumenta que a capacidade estética deve ser desenvolvida para formar um leitor preocupado em articular o dentro e o fora do texto em oposição às “construções abstratas” da crítica literária (TODOROV, 2009, p. 28). Ele defende o contato do leitor com a obra literária e questiona as aulas baseadas na história da recepção desses clássicos.

O debate em torno da recepção crítica tem nos mo-tivado a experimentar diferentes metodologias de ensino de literatura. Partindo dessa constatação, este artigo traz algumas reflexões sobre um método interdisciplinar de ensino de literatura a partir das contribuições da literatura comparada e dos estudos culturais. Da literatura compara-da, exploramos o conceito de paródia, de Linda Hutcheon (1989), e leitor-modelo, de Umberto Eco (2003). Dos estudos culturais, exploramos o conceito de identidade, proposto por Stuart Hall (2000), e de recepção feminista, argumentado por Nelly Richard (2002). No primeiro mo-mento, trazemos algumas reflexões teóricas sobre leitor,

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paródia, estudos de gênero para, no segundo, explorarmos tais conceitos na leitura do conto A moça tecelã, de Marina Colasanti.

Opondo-se às leituras tradicionais e à concepção de que o texto literário vale apenas por sua expressividade estética, este artigo traz algumas reflexões sobre uma prá-tica interdisciplinar de leitura em que a intertextualidade literária e cultural não pode ficar de lado nas interpretações contemporâneas. Assim, o propósito é mostrar o quanto a leitura literária ganha relevância quando se apropria das duas formas de interpretação: a estética e a cultural. Sem essa afinidade entre forma e conteúdo, como nos ensina a boa tradição de Antonio Candido, os estudos literários correm o risco de se aprisionar em dois campos específicos: de um lado, os literários voltados para a coleção de textos, e, do outro, os culturais que perdem contato com o texto literário para privilegiar os produtos da cultura de massa. Para romper com essa dicotomia, defendemos a leitura interdisciplinar como uma saída. Assim, o como o texto foi feito passa a ser lido como um elemento cultural, como uma crítica ou uma reflexão social, e deixamos as discussões teóricas de lado para nos preocuparmos com o mais caro para nossas pesquisas: criar diferentes formas para explo-rarmos os sinuosos significados do texto literário.

Na perspectiva dos estudos culturais, a leitura se torna eficiente quando acrescenta aos elementos estéticos o de-bate de uma prática inclusiva e de aceitação da diferença e da diversidade cultural (HALL, 1999). Daí a importância da memória cultural como um elemento fundamental no processo de leitura. O leitor passa a ser um co-autor quando aplica às representações literárias as novas abordagens de pertencimento das identidades como seu caráter fluido e flexível, como defendem Bauman (2005) e Hall (1999).

Partindo dos estudos culturais, damos destaque ao papel do leitor, pois pensamos em desenvolver uma dis-cussão em torno da leitura como um processo de formação da cidadania, incluindo as novas abordagens culturais sem perder as especificidades do texto literário. Nesse processo,

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em que leitura e sociedade não podem ser desvinculadas, a literatura assume um papel fundamental, pois, a partir do contato com o texto, o gosto pela leitura pode ser despertado como uma prática de reflexão social. Assim, o convite à reflexão social pode ser uma das saídas para associar leitura, prazer e formação da consciência crítica do leitor. Nesse sentido, as ideias defendidas aqui se vinculam a uma prática de leitura na qual os elementos estéticos sejam lidos como ideológicos.

A falta de leitor para o texto literário é uma preocu-pação mundial. Para alguns, a forma como a literatura está sendo explorada nas escolas está distanciando o leitor em formação do texto literário. Como moderador, o professor tem o papel fundamental de aplicar os aspectos teóricos a uma proposta de ensino interativa e não pode deixar que a teoria sufoque a curiosidade do leitor. Nessa moderação, o professor deve valorizar tanto os elementos estruturais quantos os referenciais para a construção de uma leitura mais complexa. Na proposta interdisciplinar, valoriza-se o sentido do texto literário, sem deixar de fora “fatos da história literária” nem “alguns princípios resultantes da análise estrutural” para se concentrar em um trabalho de conhecimento que priorize “o sentido da obra, que é o seu fim” (TODOROV, 2009, p. 31).

No Brasil, a crítica cultural não tem buscado novas formas para fortalecer a exploração do texto literário. Nos últimos anos, temos, de um lado, análises culturalistas que deixam de explorar os aspectos estéticos do texto; do outro, uma tradição que, em vez de valorizar o texto literário, fala da crítica de determinado autor ou da história da recepção de uma obra, como acontece com a expressiva fortuna crítica de Machado de Assis. O jovem de hoje conhece mais os comentários sobre o texto do mestre do que sua literatura.

Todorov nos chama a atenção para essa questão. Para ele, o professor bem preparado deve trabalhar o texto literário por meio de diferentes abordagens estéticas e sociais, com o cuidado de “interiorizar o que aprendeu na

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universidade, mas, em vez de ensiná-lo, fazer com que esses conceitos e técnicas se transformem numa ferramenta invi-sível” (TODOROV, 2009, p. 41). Também, o professor não deve se restringir às receitas já prontas, pois corre o perigo de enrijecer e esvaziar a interpretação da literatura.

Rumo a uma pedagogia da provocação, a leitura interdisciplinar leva o aluno a pensar seu espaço social a partir das subjetividades do tecido literário, pois a recepção de um texto pode ser vista como uma produção cultural de diferentes épocas, “podendo significar a possibilidade concreta de acesso ao conhecimento e agudização do po-der de crítica por parte do público leitor” (ZILBERMAN e SILVA, 2005, p. 112-113).

Esta proposta destaca a importância da agudização crítica na formação do leitor. Isso se torna fundamental, pois o debate em torno da leitura interdisciplinar pede uma postura politizada por parte de professores e alunos. Mas, antes de ser politizado, o leitor deve ser capaz de entender as especificidades do texto literário. Para esse tipo de ensi-no, prioriza-se a questão de “como” os elementos culturais estão representados na ficção. Assim, estamos falando de um leitor politizado, de um leitor que é consequência de uma pedagogia inclusiva, de uma pedagogia que privilegia a formação cultural do leitor.

Para Umberto Eco, o “leitor estético” vai além do que “foi narrado no texto” para valorizar “como foi narrado o texto” (2003, p. 208). Para nós, o leitor estético analisa como os problemas sociais foram representados artisti-camente. Nesta proposta, a leitura interdisciplinar é o exercício em que o leitor inclui questões de pertencimento identitário no roteiro de sua interpretação para identificar a camada ideológica explorada pelo autor. Em diálogo com a proposta de Eco, privilegia-se o ato de ler como um exercício de comparações artísticas e culturais.

Para uma maior criticidade, acrescentamos a leitura paródica como uma prática provocativa de análise de textos. Nessa proposta, a intertextualidade se mostra um recurso indispensável para a formação do leitor crítico, pois

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o diálogo e a oposição entre os textos e a sociedade devem ser levados em conta. Mesmo sem ser guiado pelo princípio da originalidade, o texto paródico traz uma atualização do tema como uma revisão artística.

Para uma leitura paródica, o conhecimento de outros textos estéticos e culturais possibilita o desenvolvimento da habilidade de contrastar do leitor. Tal foco interdisciplinar pode ser explorado pelo reconhecimento de que um texto paródico é plurivocal e apresenta aspectos polifônicos na estrutura e no estilo (HUTCHEON, 1989, p. 93). Por isso, a versão paródica pode ser vista como um exercício de iden-tificação da polifonia do texto analisado. Isso possibilita um alargamento estético do que foi experimentado para a construção do texto. Esse duplo movimento de leitura amplia a capacidade do leitor de desenvolver habilidades de comparação e avaliação estética de um texto literário.

Além disso, ao identificar o status paródico de um texto, o leitor estético está possibilitando diversas leituras, como o diálogo com outros textos e contextos históricos e a autocrítica que o texto paródico carrega. Um texto paródico é dual, pois “imitando a arte mais que a vida, a paródia reconhece conscientemente e autocriticamente a sua própria natureza” (HUTCHEON, 1989, p. 40). Outra marca importante do texto paródico é sua concepção oposi-tiva. Ele se opõe a ser uma simples repetição, agindo como um contraestilo, pois “a paródia foge ao jogo de espelhos denunciando o próprio jogo e deslocando as coisas fora do seu lugar ‘certo’” (SANT’ANNA, 2001, p. 29).

Além de explorar o estatuto paródico, para o sucesso de uma leitura interdisciplinar, não podemos “desconsi-derar as experiências prévias e imagens de leitura e de literatura” que cada leitor carrega (LAJOLO, 2005, p. 96). Assim, a exploração do conceito da paródia proporciona um jogo entre o campo social e o artístico. Em busca de uma atividade de leitura dinâmica, a paródia passa a ser uma leitura menos hermética e menos emotiva para construir uma “prática de instauração de significados” (LAJOLO, 2005, p. 96-97). Com isso, a leitura, vista como uma prática

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social, possibilita a compreensão do próprio conceito de literatura e suas tradições culturais.

Pertencimento identitário e leitura

Na perspectiva dos estudos culturais, a leitura se torna eficiente quando passa a ser uma prática inclusiva e de aceitação da diferença e da diversidade nas representações culturais e literárias. Nesta proposta, tanto a memória cultural como a recepção do leitor crítico são abordados como partes do processo de leitura. O leitor passa a ser um co-autor quando aplica às representações literárias as novas abordagens de pertencimento das identidades pós-modernas. O pertencimento é um dos conceitos que perpassam as reflexões sobre identidade e inclusão, pois “a ideia de ‘identidade’ nasceu da crise do pertencimento e do esforço que esta desencadeou no sentido de transpor a brecha entre o ‘deve’ e o ‘é’ e erguer a realidade ao nível dos padrões estabelecidos pela ideia – recriar a realidade à semelhança da ideia” (BAUMAN, 2005, p. 26).

A leitura literária como uma prática social possibilita uma pedagogia da inclusão em que o estético e o social não são separados. Por isso, a leitura paródica explora de forma mais intensa as interpretações ideológicas em que os espaços vazios do texto também são usados como opções estéticas.

Com a inclusão de alguns aspectos culturais, sabemos que a literatura pode se tornar um espaço de reflexão social, pois o leitor precisa fazer diversas inter-relações entre o texto e a sociedade, o presente e o passado, o imaginário individual e o coletivo. O debate em torno dessa prática de leitura pede uma postura politizada por parte do leitor. Mas, antes de ser politizado, o leitor deve ser capaz de entender as especificidades do texto literário. Para esse tipo de leitura, que prioriza a questão de “como” os ele-mentos culturais estão representados, o conceito de “leitor estético” torna-se fundamental, pois o texto necessita de uma leitura que interprete os significados estéticos como

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sociais e relacione o texto lido a suas heranças culturais. Tais heranças são fundamentais para que o leitor explore uma perspectiva comparativa entre o texto lido e o pas-sado cultural, já que “cada obra cultural é a visão de um momento, e devemos justapor essa visão às várias revisões que ela gerou” (SAID, 1995, p. 105).

Tal leitor também pode analisar como as identidades estão representadas e que significados elas carregam no jogo ficcional. Assim, estamos falando de um leitor politi-zado, de um leitor que é consequência de uma pedagogia inclusiva. Para Eco, o “leitor estético” vai além do que “foi narrado no texto” para valorizar “como foi narrado o texto” (2003, p. 208). Para nós, o “leitor cultural” analisa como a identidade dos personagens foi representada esteticamente no texto selecionado, levando em conta questões de gêne-ro, de classe, de raça ou de orientação sexual.

Metodologicamente, o leitor vai incluindo/excluindo posições de pertencimento identitário para chegar a um ponto de referência central do texto. Ele parte da análise do roteiro de opções estéticas para identificar a camada ideológica explorada pelo autor. Em diálogo com a proposta de Eco, vamos privilegiar o ato de ler como um exercício de comparações artísticas e culturais.

Assim, além da questão ideológica, a leitura interdis-ciplinar demanda um leitor atento aos artifícios do jogo narrativo para melhor desfrutar do banquete de citações sociais e culturais que todo texto literário traz. Quando o leitor vai executando sua leitura, o que está sendo lido pode ser interpretado a partir dos códigos culturais e ar-tísticos que foram usados para a construção da narrativa. Dessa forma, a questão da identidade pode ser explorada como um jogo, visto que ela é “construída multiplamente ao longo dos discursos, práticas e posições que podem se cruzar ou ser antagônicas” (HALL, 2000, p. 108).

Esta proposta pede atenção aos diversos elementos que fazem parte de uma leitura mais elaborada, visto que não só o leitor tem vez, mas o autor e o próprio texto, já que se trata de um pacto coletivo e social, pois o texto traz

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sempre as heranças de uma coletividade. Nessa dinâmica, “participam, em papéis, e perspectivas diferentes, todos os que, em dados contextos, interagem com o texto literário” (LAJOLO, 2005, p. 92). Dessa forma, o texto literário é, antes de qualquer leitura, um espaço plural, um espaço de confronto de linguagens e de memórias.

Partindo dessas reflexões, reconhecemos a “política das identidades” (HALL, 1999) como ponto de partida para o leitor desenvolver sua capacidade de inclusão e de aceitação da diferença. A “política das identidades” prega o reconhecimento dos diferentes pertencimentos do sujeito moderno, seja por questões referentes ao gênero, à classe, à orientação sexual, à raça ou à etnia. Nesse sentido, a leitura interdisciplinar traz para o texto literário problemas culturais atuais, como a questão da alteridade. De quem é a voz que está narrando e que significados as opções estéticas podem ter esteticamente e culturalmente.

No campo metodológico, sabemos que o problema não é tão simples, pois a leitura apresenta “articulações” e “contradições” que podem ser exploradas para o aprimo-ramento da técnica (cf. ZILBERMAN e SILVA, 2005, p. 16). O foco interdisciplinar reconhece a multiplicidade de discursos que o texto literário apresenta. Entender os conflitos desses discursos é o papel do leitor que usa os estudos culturais como base para suas reflexões acerca do pertencimento identitário.

Com a aplicação de conceitos referentes ao leitor e à leitura, articulamos um método de leitura que valorize a experiência do leitor como cidadão. O leitor precisa desenvolver uma consciência crítica que reconheça as fronteiras identitárias e passe a produzir o saber de um lugar atual. Ele deve deixar para trás as velhas performances preconceituosas de identificação social para legitimar a diferença como prática de aprendizagem contínua. Assim, o lugar da leitura é um espaço para a formação de cidadãos conscientes da diferença como uma possibilidade cultural de relacionamento.

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Os estudos culturais nos dão base para o questio-namento da identidade e, sobretudo, para incluirmos a alteridade como uma necessidade para o leitor se situar no espaço. Todo pertencimento identitário sugere uma exclusão, pois se trata de uma opção pessoal ou coletiva. O leitor precisa também estar atento ao reconhecimento das outras vozes sociais presentes no texto, tanto as explícitas como as negadas, e seguir a perspectiva de que a identidade está sempre em movimento (BAUMAN, 2005).

Tais movimentos, por exemplo, fazem parte do pro-jeto ideológico de identidades coletivas como propostas pelas feministas, pelos gays ou pelos negros, entre tantas outras. Isso quer dizer que as identidades não são fixas, elas se movimentam conforme os interesses desses grupos em diferentes contextos históricos e sociais. No caso da literatura de autoria feminina, a inclusão dos elementos culturais torna a leitura mais rica e atual.

Para a sociologia atual, a identidade unificada e coe-rente passou a ser uma fantasia, já que os sistemas de sig-nificação e representação cultural se multiplicam e exigem do sujeito o confronto com a multiplicidade desconcertante de identidades possíveis com as quais pode se identificar, apesar de temporariamente (HALL, 2000, p. 108).

Nesse sentido, é indispensável reconhecer que a identidade descentrada é fruto de uma repetição, de uma performance corporal. Ela não é dada, nem brota biologi-camente do ser. Pelo contrário, ela é consequência de um longo processo de identificação e de escolha que envolve rejeição e aceitação. Esse processo de “pertencimento” identitário (BAUMAN, 2005) deve ser explorado pelo leitor cultural, que tanto retoma questões ideológicas do contexto original da obra como de sua recepção atual.

Assim, cabe ao leitor fazer uma releitura dessas repre-sentações a partir da interseção entre o estético e o político, uma vez que a literatura é polissêmica e nunca é simples-mente mimética e transparente. Na esteira de uma leitura interdisciplinar, fugir do binarismo tradicional é reconhecer o fato de que qualquer identidade é uma construção feita

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por meio das diferenças e de significações suplementares (HALL, 2000, p. 108-110). Assim, é importante reconhe-cer que a identidade é uma construção e um resultado de um ato de naturalização.

Da contribuição dos estudos feministas, interessa-nos a postura de questionamento da identidade patriarcal. Daí a importância dos estudos de gênero como uma contri-buição para os avanços teóricos em torno das identidades de gênero. Pertencer a uma identidade é tão diversificado quanto à cultura e ao contexto social nos quais os indi-víduos circulam. Nesse sentido, a identidade de gênero vai além dos limites dicotômicos, pois “o gênero pode ser entendido somente através de um exame detalhado dos significados de ‘masculino’ e ‘feminino’ e das consequências de ser atribuído a um ou outro gênero dentro de práticas concretas” (FLAX, 1992, p. 230).

A crítica feminista pode ser vista como um respaldo para os estudos culturais. A forma como a feminista anali-sou e criticou o processo de naturalização por trás de uma identidade foi tida como referência para o questionamen-to de diversas identidades marginalizadas, como as dos negros, gays, latinos, asiáticos e tantas outras na cultura pós-moderna. Ao fazer uma leitura interdisciplinar pelo viés dos estudos de gênero, as opções estéticas podem ser vistas como um lugar de resistência ao patriarcado. Nesse sentido, parte-se da premissa de que as relações de gênero são construções culturais e que “devemos ser capazes de investigar barreiras tanto sociais quanto filosóficas para a compreensão das relações de gênero” (FLAX, 1992, p. 236). Por isso, tanto o estético quanto o social devem ser colocados em tensão na leitura.

Como nos afirma Constância Lima Duarte (2007), a literatura de autoria feminina brasileira, a partir da década de 1960, se aproxima das questões políticas como as críti-cas ao patriarcado e à ditadura militar. Clarice Lispector, Lygia Fagundes Telles, Nélida Piñon são escritoras que, se não optaram por uma estética panfletária, deixaram a resistência feminista como uma marca do romance femini-

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no contemporâneo. Duarte associa as mudanças do texto literário dessas escritoras aos avanços sociais da mulher. Essa abertura da literatura para internalizar problemas culturais dá uma particularidade ao romance pós-moderno feminino, pois forma e conteúdo se renovam na tradição do romance que aborda “o feminino em tensão com o marco da intertextualidade cultural e não como uma dimensão que deve se manter isolada, ausente dos processos de nor-mativização da cultura” (RICHARD, 2002, p. 136).

Um modelo cultural de leitura

A narrativa feminina é paródica e pós-moderna quan-do brinca com o passado cultural. A partir dos anos 1970, a escritora brasileira passa a incorporar aspectos da arte pós-moderna quando passa a privilegiar, entre outros re-cursos estéticos, a metanarratividade, a polifonia de vozes, a consciência hiperbólica e o caráter paródico (COUTI-NHO, 2005, p. 171-172). Reconhecendo que o texto da escritora brasileira pode ser mais bem analisado a partir de sua contribuição cultural, vamos explorar, na sequência, uma leitura do conto “A moça tecelã”, de Marina Colasanti, a partir de suas opções estéticas e ideológicas. As opções estéticas dessa narrativa mostram uma “desnaturalização” da família patriarcal, quando se descreve uma mulher en-cantada que questiona o universo masculino. Dentro da tradição literária, o conto “A moça tecelã” pode ser lido como uma versão paródica dos contos de fadas. Conside-ramos o texto paródico das representações tradicionais da família quando a escritora desenvolve um ritmo estético de zombaria do sistema patriarcal.

No caso de “A moça tecelã”, a leitura interdisciplinar pode ser feita a partir do momento em que as opções esté-ticas do conto podem ser lidas como femininas. No conto, temos o enfoque em uma tecelã que vive feliz sozinha, mas com a chegada do marido sua vida se torna uma prisão. A protagonista do conto tem poderes especiais para criar tudo a sua volta. Com seu tear, sua arte, ela constrói um mundo

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particular repleto de delicadeza e sensibilidade: “bastava a moça tecer com seus belos fios dourados, para que o sol voltasse a acalmar a natureza” (p. 44)1.

A ideia de paródia pode ser identificada na atmosfera da narrativa. Na forma como ela tece o céu, o vento, a chuva, há uma alusão à origem do mundo. Ela vivia sozinha e tudo que a cercava era tecido por ela. Isso determina que seu pertencimento é comandado pela própria tecelã, uma mulher livre. Tecer é controlar e reger seu pertencimento. Para que a leitura crítica seja explorada, o leitor precisa incluir o texto cultural que fará parte do processo de leitura paródica. Nesse caso, exploramos o universo dos contos clássicos, por exemplo, Branca de neve, A bela adormecida ou A gata borralheira, nos quais a felicidade da mulher depende da companhia do príncipe. A estrutura desses contos defende a chegada do príncipe como uma saída para a infelicidade da princesa. No conto de Marina Colasanti, isso é bem diferente, a artista vivia feliz, entretanto sua “dor de cabeça” começa com a chegada desse príncipe.

Depois de muitos dias felizes e à frente de tudo, ela passa a se sentir solitária: “ela própria trouxe o tempo em que se sentiu sozinha, e pela primeira vez pensou seria bom ter um marido ao lado” (p. 44). Com esse jogo, entre ter e não ter um marido, esse texto traz o privilégio de deixar todas as possibilidades de construção da identidade feminina no campo da subjetividade. Para Stuart Hall, as identidades surgem da narrativização do eu e do processo de pertencimento imaginário, que negocia com nossas rotas, raízes, por isso “em parte, construída na fantasia ou, ao menos, no interior de um campo fantasmático” (HALL, 2000, p. 109). No campo fantasístico do conto, a constru-ção da identidade feminina testa os velhos fantasmas que assombram a mulher moderna.

A relação entre forma e conteúdo é primorosa em suas opções estéticas. A beleza do conto está no ritmo das frases, no uso das cores claras que nos remetem a um dia iluminado ou no uso das tonalidades que informam a chegada das nuvens, da noite, ou do escurecer. Tais “es-

1 Doravante, usar-se-á o número da página nas citações de “A moça tecelã”, de Marina Colasanti.

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pessuras dos signos” (ECO, 2003, p. 205) nos possibilitam um olhar para além do texto artístico, uma vez que esses signos nos remetem a uma cadeia de significados religiosos e sociais. Assim, explorar o sentido social do conto passa pela valorização do lugar de fala da escritora, “que observa e compreende o mundo em que vive antes de encarnar esse conhecimento em histórias, personagens, encenações, imagens, sons” (TODOROV, 2009, p. 91).

No conto, da alegria ao sentimento de solidão, o tem-po é armado como um sensor emocional da tecelã. Cada detalhe da narrativa denuncia uma preocupação estética com o universo feminino. Para o leitor crítico, essa carac-terística passa a ser lida também como um conteúdo social. A leitura paródica proposta pela intertextualidade dessa narrativa “reflete sobre o que se está contando e talvez convide o leitor a compartilhar de suas reflexões” (ECO, 2003, p. 199). Nessa leitura, exploramos a habilidade da autora de tecer uma desconstrução do universo patriarcal a partir da subjetividade feminina.

Justamente a partir dessas associações, a leitura inter-disciplinar pode ser mais bem explorada. O que é estético passa a ser visto como social e os recursos paródicos como opções ideológicas. Confortar e comparar estética e histori-camente passa a ser uma função do leitor crítico. Do título do conto à metáfora da tecelã, percebemos uma estrutura literária polifônica e plurivocal.

Até o surgimento do marido, as opções da tecelã in-dicavam que se tratava de uma narrativa tradicional, mas o leitor atento aos detalhes pode notar que não é bem isso que o texto propõe. A forma como o homem assume o comando da casa denuncia um tom irônico da narra-tiva: “[ela] nem precisou abrir. O moço meteu a mão na maçaneta, tirou o chapéu de pluma, e foi entrando na sua vida” (p. 45). O detalhe da forma como a porta foi aberta já nos dá resquícios do quanto ele invade o espaço dela. Assim, identificamos uma intertextualidade que prega a repetição de um texto como uma prática não inocente. Isso fica mais visível por se tratar de uma paródia anunciada do

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conto de fada, pois toda repetição está carregada de uma intencionalidade, que tanto pode dar continuidade quanto ser subversiva (CARVALHAL, 2003, p. 54).

A subversividade desse conto é apontada quanto o narrador destaca que, em vez de ser companheiro, o homem resolve explorar a capacidade de produção da tecelã: “Mas se o homem tinha pensado em filhos, logo os esqueceu. Porque, descoberto o poder do tear, em nada mais pensou a não ser nas coisas todas que poderia lhe dar” (p. 45). Esse homem logo se distanciou do padrão que a tecelã ideali-zou e sua identificação com o tão desejado marido passa a ser oposta a sua posição inicial. A relação entre texto e contexto revela o quanto o conto pode ser visto como um objeto pós-moderno no qual sua a autoconsciência, sua condição de arte dentro do arquivo, pode ser lida como um texto que tanto é histórico como literário (HUTCHEON, 1991, p. 165).

O leitor nota que o conto sofre uma profunda modi-ficação quando o homem passa a explorar a mulher. Com essa mobilidade, observa-se que o pertencimento identitá-rio da mulher é um dado que o texto recria e transforma, produzindo cortes e intervalos entre corpo, posições de gênero, traços subjetivos e figurações textuais (RICHARD, 2002, p. 161).

Tal opção de descrever o companheiro autoritário à frente do comando mostra-nos uma crítica aos valores pa-triarcais, pois até o momento a mulher estava à frente das ações e era feliz. Por apontar sua consciência paródica, esse conto opõe-se a ser uma simples repetição, agindo como um contraestilo e, por isso, é paródico, pois ele “foge ao jogo de espelhos denunciando o próprio jogo e deslocando as coisas fora do seu lugar ‘certo’” (SANT’ANNA, 2001, p. 29). A norma foi quebrada, com o ruído anunciado.

Para amarrar as diversas posições de leitura com uma questão de gênero, partimos da ideia de que toda leitura é um espaço de reflexão sobre a identidade de gênero, pois o espaço artístico pode ser analisado como “um locus de reprodução de gênero” (LAURETIS, 1994, p. 225). Ora,

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a própria maneira de a narrativa privilegiar a focalização interna na personagem feminina sugere que questões de gênero foram usadas como estruturantes do texto. Assim, o leitor precisa identificar tais sutilezas da construção textual para produzir sua leitura crítica. O espaço feminino, até então descrito como perfeito, com a chegada do marido, começa a ser descrito sem harmonia para a mulher.

Com essa realidade, a mulher passa a rejeitar aquele universo que o marido lhe impõe: “Dias e dias, semanas e meses trabalhou a moça tecendo tetos e portas, e pátios e escadas, e salas e poços” (p. 45). Ela vai se decepcionando cada vez mais com o marido e “pela primeira vez pensou como seria bom estar sozinha de novo” (p. 45).

No processo paródico apontado até aqui, o jogo com a desconstrução do marido é mais agressivo e fica longe da sensibilidade presente nas primeiras linhas do texto: “Desta vez não precisou escolher linha nenhuma” (p. 45). Depois de muito pensar sobre sua condição de oprimida, a mulher resolve eliminar o marido, que “não teve tempo de se levantar. Ela já desfazia o desenho escuro dos sapatos, e ele viu seus pés desaparecendo, sumindo as pernas” (p. 45-46). Com esse jogo, o leitor pode perceber o tom de desconstrução que atravessa a narrativa, nem esperou que o homem ficasse de pé, a mulher estava determinada a reconstruir sua vida e tomar a dianteira na escolha de suas opções. Vale destacar que o conto se coloca na contramão de uma cultura hegemônica, pois se apropria de elementos de diversas culturas, já que abusa do intercâmbio cultural e se distancia da “utopia de uma memória mítica de uma identidade coletiva única” (BHABHA, 1998, p. 63).

Além dessa complexa rede de textos culturais presen-tes no conto, destacamos a importância do gênero textual como uma pista para essa leitura, já que o trabalho com o texto deve partir de como o gênero é trabalhado, pois a adequação do leitor depende da “inteligibilidade do material” e da “maturidade e disponibilidade do sujeito” (ZILBERMAN e SILVA, 2005, p. 113). Assim, nesta proposta, o “como” o texto foi feito (ECO, 2003) é tão

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importante quanto a formação cultura e ideológica do leitor para executar a leitura interdisciplinar.

A leitura crítica que valoriza esses contextos extrali-terários dinamiza a interpretação do texto. Tal forma de colocar diversos contextos históricos e artísticos lado a lado não é fruto de uma simples colagem. Daí a importância da contextualização desses espaços da recepção crítica da autora de uma tradição herdada. A autora se apropria de diversos elementos extraliterários para melhor situar sua versão dos contos de fada. Como nos ensina a literatura comparada, “o ‘diálogo’ entre os textos não é um processo tranquilo nem pacífico, pois, sendo os textos um espaço onde se inserem dialeticamente estruturas textuais e ex-tratextuais, eles são um local de conflito” (CARVALHAL, 2003, p. 53). Com a inclusão da crítica no mundo dos contos de fadas, a autora proporciona uma irreverência estética que passa a ser parte do seu estrato cultural.

Observamos que o pertencimento identitário da protagonista não é completo, pois parece que sempre fica faltando algo. Ela está em busca do melhor para si. Esse pertencimento é um processo de articulação e de sobre-determinação do que há demasiado ou do que há muito pouco em sua identidade. Esse parâmetro é importante, pois nunca há um ajuste completo ou uma totalidade de uma identidade (cf. HALL, 2000, p. 106).

Quanto às questões de gênero, o conto se coloca como um espaço crítico que reconhece a identidade de “gênero, como representação e como auto-representação”, por isso não pode ser mais vista de forma fixa. Essa identidade “é produto de diferentes tecnologias sociais, como o cinema, por exemplo, e de discursos, epistemologias e práticas ins-titucionalizadas, bem como das práticas da vida cotidiana” (LAURETIS, 1994, p. 208). A protagonista tem um final que se opõe ao dos contos de fada.

A partir dessa prática social da leitura, podemos destacar que o leitor cultural, se seguir a proposta do descentramento de gênero, está se estimulando a tolerar e interpretar a ambivalência e a subjetividade que fazem

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parte das identidades masculinas e femininas, visto que não há força ou realidade fora das relações sociais e atividades que livre o homem ou a mulher de parcialidade e diferenças (FLAX, 1992, p. 249).

Com isso, enfatizamos que o leitor crítico deve reco-nhecer que a liberdade de um termina quando os direitos do outro entram em jogo. Assim, aprender a ouvir a voz do outro é fundamental como exercício de cidadania. Dessa forma, a questão da alteridade passa pelo reconhecer a voz do outro e deve ser um exercício de educação e ética permanente que não pode ficar de fora de uma leitura politizada. Portanto, enfatiza-se o quanto os contos de fada ganham um olhar feminista, já que, na sua releitura, a premissa da dependência da obra original vai por água abaixo, pois a originalidade de sua recriação enfatiza que “se dívida há, é do texto anterior com aquele que provoca sua redescoberta” (CARVALHAL, 2003, p. 65). A opção da mulher de viver sem seu príncipe denuncia a contes-tação cultural.

Além disso, podemos perceber que a personagem feminina se projeta fora do espaço tradicional e aponta a subjetividade da arte como um espaço de questionamento do androcentrismo. Como nos ensinam os críticos cultu-rais, optamos nesta metodologia por “vincular as estruturas de uma narrativa às ideias, conceitos e experiências em que ela se apoia” (SAID, 1995, p. 105). Assim, nossa proposta de leitura interdisciplinar deixa bem mais interessantes a leitura a partir do que fica nas margens do texto, pois o texto remete o leitor para fora da estrutura narrativa. Esse convite só se torna interessante se o leitor estiver a fim de investigar “os perfumes de outros textos que precedem aquela tradição” (ECO, 2003, p. 218). No conto, os textos culturais possibilitam essas diversas leituras.

Com a inclusão do tema do pertencimento identitário, o leitor cultural vai aos poucos percebendo que o texto literário traz diferentes abordagens dos problemas sociais que devem ser historicamente situados, mas que, princi-palmente, devem ser comparados e problematizados com a

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situação do leitor atual. Com isso, pensamos em uma leitura que explore as contribuições dos estudos culturais e da recepção crítica para tornar o ato de ler um ato social.

Dessa forma, a contribuição teórica dos estudos cul-turais só pode ser mais bem explorada quando contextua-lizada a partir das especificidades do texto literário. Além do mais, a literatura nos proporciona novas experiências que nos trazem uma dimensão mais ampla da humanidade, pois “mais densa e mais eloquente, a literatura amplia o nosso universo, incita-nos a imaginar outras maneiras de concebê-lo e organizá-lo” (TODOROV, 2009, p. 23). A partir da análise paródica do conto, o leitor pode desfrutar do movimento duplo do texto que olha para o presente questionando o passado cultural. Com esse movimento, no modelo selecionado, identificamos uma representação da mulher feita por meio de um olhar artístico que se opõe a dogmatizar o feminino, pois expõe sempre os resíduos e as rupturas de formar suplementar (RICHARD, 2002, p. 167).

Referências

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