leitura de nós

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l eituras de nó s c iberespaço e literatur a alckmar luiz dos santos

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Page 1: Leitura de nós

leituras de nós c i b e re s p a ç o e l i t e r a t u r a

alckmar luiz dos santos

Page 2: Leitura de nós
Page 3: Leitura de nós

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Page 4: Leitura de nós

Catalogação Itaú Cultural

Santos, Alckmar Luiz dos.Leituras de nós: ciberespaço e literatura. — São Paulo: Itaú Cultural, 2003.148 p. : il. – (Rumos Itaú Cultural Transmídia).

Índice OnomásticoISBN 85-85291-39-7

1. Arte e Tecnologia 2. Literatura e Tecnologia 3. Ciberespaço 4. Narrativa 5. I. Santos, Alckmar Luiz dos II. Título

CDD 700.105

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Page 5: Leitura de nós

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Page 6: Leitura de nós

Para DanielPara Ana Luíza

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M.C. Escher Bond of Union c 2003 Cordon Art B.V. - Baarn - Holland. Todos os direitos reservados

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Page 8: Leitura de nós

Uma das mais importantes ações do Itaú Cultural se evidencia no programa Rumos, de

apoio à produção artística brasileira, que contempla cada área com a qual a instituição

trabalha – artes visuais, cinema e vídeo, dança, literatura, mídia arte e música.

Fincado sobre o tripé formação, fomento e difusão, Rumos caracteriza-se pelo

mapeamento da nova produção em todo o território nacional.

Rumos é formação quando proporciona a artistas, curadores e pesquisadores a

possibilidade de participar de cursos, workshops e atividades que ampliem seus

horizontes intelectuais e profissionais.

Rumos é fomento porque abre espaço para a manifestação de novos artistas e

linguagens, fornecendo condições necessárias ao seu desenvolvimento.

Rumos é difusão, pois garante a circulação dessa produção – via exposições, exibições,

espetáculos, registros fonográficos e videográficos e publicações impressas e eletrônicas.

Formatado com base em editais de inscrição separados por área de expressão artística e

com características próprias que se coadunam com a política cultural da instituição,

Rumos já recebeu 7.007 projetos, dos quais 333 foram selecionados por equipes

compostas de profissionais especializados.

rumos itaú cultural transmídia

A primeira edição do Rumos Itaú Cultural Transmídia, ocorrida em 2002, baseou-se

no princípio de que arte tecnológica, arte eletrônica, arte digital e mídia arte são

conceitos, e não definições, de uma fronteira em contínuo movimento.

O programa privilegiou como campos de atuação ambientes imersivos, arte biológica,

arte telemática, computador como mídia, inteligência artificial, espetáculos multimídia

e instalações interativas. O objetivo do mapeamento foi detectar indícios da

incorporação dessas novas linguagens na produção artística. Entre 540 trabalhos

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inscritos, foram contempladas 13 produções e pesquisas sobre a convergência de

linguagens, mídias e tecnologias, de realizadores de São Paulo, Rio de Janeiro,

Pernambuco, Santa Catarina e Distrito Federal.

Os projetos foram selecionados por uma comissão independente, de acordo com três

modalidades: Produção, que apóia a execução de obras inéditas; Desenvolvimento

de Projeto, voltada à formatação de propostas; e Publicação de pesquisas já

realizadas. Nesta modalidade, foram contemplados Leituras de Nós: Ciberespaço e

Literatura, de Alckmar Luiz dos Santos; Arte Telemática: Dos Intercâmbios Pontuais aos

Ambientes Virtuais Multiusuário, de Gilbertto Prado; e A Dança dos Encéfalos Acesos,

de Maíra Spanghero.

A comissão foi formada por profissionais de renome nos campos de atuação acima

citados: André Lemos, professor da UFBA; Antonio Carlos Barbosa de Oliveira, diretor

executivo do Itaú Cultural; Arlindo Machado, professor do programa de pós-graduação

em comunicação e semiótica da PUC, São Paulo; Fernando Perez, diretor científico da

Fapesp; Jézio Gutierre, editor executivo da Editora da Unesp; Jimmy Leroy, diretor de

arte da MTV Brasil; Helena Katz, crítica de dança; Loop B, DJ e produtor de música

eletrônica; Lucia Santaella, professora do programa de pós-graduação em comunicação

e semiótica da PUC, São Paulo; e Suzete Venturelli, professora da UnB.

O ensaio Leituras de Nós: Ciberespaço e Literatura busca entender os caminhos da

criação poética em computadores e em redes, com base em um mapeamento dos

hipertextos, dos programas e das páginas que veiculavam poemas e criações

aparentemente literárias na internet. Acompanha o livro um poema a ser lido em

ambiente hipertextual de navegação e publicado em forma de CD-ROM.

Pós-doutorando na Université de Paris III (Sorbonne-Nouvelle), Alckmar Luiz dos

Santos é professor da Universidade Federal de Santa Catarina, vencedor do Prêmio

Redescoberta da Literatura Brasileira (revista Cult), do Prêmio Nacional de Poesia Visual

Joan Brossa (Espanha), e obteve segundo lugar no Prêmio Scortecci de Poesia.

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Prólogo, à guisa de advertência

Este livro contém uma série de reflexões sobre a criação poética em meio digital. Elas foram organizadas

em forma de ensaios, a que se quis impingir certo arremedo de ordem argumentativa. Daí o apelo à

silogística das premissas e das conclusões, que vão dando fio condutor à leitura de cada ensaio. Contudo,

estaria faltando um elemento importante, se, ao exercício do campo teórico, não se somasse a prática da

criação. Como resultado, se encontra anexo um cederrom contendo versos que foram dados à leitura em

espaço digital, com ferramentas de navegação fornecidas pela informática. O mais é exercício de ousadias

que cada leitor irá tratando de construir a seu modo, ao longo dos espaços que deixo abertos a suas

investidas e investigações.

O autor

Ilha de Santa Catarina, setembro de 2003

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Sumário

Introdução, à vera

Premissa Maior: A Multiplicação dos FragmentosProlegômenos a uma Ciência do Assim Chamado

Texto Literário em Meio Eletrônico 19Identidades e Subjetividades no Ciberespaço 24Saber o/no/do Ciberespaço 34Novas Estéticas Eletrônicas? 44

Premissa Menor: Espaços de EscritasUma Possível ou Pretensa Literariedade 59O Texto Eletrônico como Produtividade, ou as Relações entre Autor e Leitor 67Interferências e Dualidades 76

Conclusão Primeira: Novidade e Repetição 97

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Conclusão Segunda: Transbordos e Reformações do Texto EletrônicoExcesso e Excessivo 113Variações em Torno de um Tema Mesmo 116Resumindo: Dicotomias e Reversibilidades 119

Anexos

Bibliografia 138

Índice Onomástico 144

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“A vida é muito discordada.

Tem partes.

Tem artes (...)

e as vertentes do viver.”

João Guimarães Rosa, Grande Sertão: Veredas

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i n t r o d u ç ã o , à v e r a

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Viver é de sempre, e muito, perigoso.

E, entre os vários perigos que espreitam

essa nossa empreita de percursos poéticos

em ciberespaços, acrescentem-se dois:

um primeiro, o refúgio no passado, na comodidade

das tradições e dos pensamentos já feitos e refeitos;

um segundo, o encanto desmesurado com as

técnicas, os processos e as ferramentas.

Para escapar a ambos, a única possibilidade que se

vislumbra, do ponto e da situação em que escrevo,

é a de enveredar por um percurso de conhecimento:

conhecimento do ciberespaço através do poético,

do poético através do ciberespaço.

Lembrando sempre que “poético”, aqui, quer indicar

preferencialmente a poesia eletrônica.

Ou digital. Ou telemática.

Ou qualquer outro nome, que eles são legião.

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p r e m i s s a m a i o ra m u l t i p l i c a ç ã od o s f r a g m e n t o s

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“Ours is essentially a tragic age,

so we refuse to take it tragically.

The cataclysm has happened, we are among

the ruins, we start to build up new little

habitats, to have new little hopes.

It is rather hard work:

there is now no smooth road into the future:

but we go round, or scramble over the

obstacles. We’ve got to live,

no matter how many skies have fallen.”1

D. H. Lawrence, Lady Chaterley’s Love

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Prolegômenos a uma Ciência do Assim Chamado Texto Literário em Meio Eletrônico

Primeira cena: diante de uma tela, alguém imerso, o mais completamente que pode, em um ciberespaço

imenso e falsamente reconhecível, teclando dados, apagando datas, andando em círculos de raio infinito;

descrição de um apocalipse cotidiano e privado. Diante disso, podemos dizer: são tempos de deriva, estes

que vivemos. Vagamos à volta do próprio quarto como que percorrendo mundos e espaços e, após um dia

inteiro de estafante imobilidade, retornamos ainda mais enclausurados de uma jornada aos confins do

mesmo. Tempos de deriva e de vertigem. Tempos em que a vertigem do ser – aquela que nos individualiza

e nos funda como sujeitos ainda não intelectualizantes – cedeu lugar e palco à vertigem de ser, essa

voragem que nos multiplica e nos afunda em mero espetáculo. Tornamo-nos trama e drama de encenação

que pretensamente interessa a outros por interessar apenas a nós mesmos. Paradoxo dessa cena fechada

que é o dia-a-dia fingindo ser aberto. Apenas fingindo, pois, nos chats, nos canais de discussão pela

internete, nos imeios trocados e mal tocados, levemente roçados por alguma resposta mais consistente, na

busca de arquivos e programas sem nomes, mas talvez com marcas registradas, nessas fímbrias de sentidos,

nesses restos de significados, nesses vestígios de idéias, apenas catamos nossos pedaços espalhados pelo

mundo virtual. Pedaços largados aqui e ali, mas recolhidos ao final de cada dia, sem que tragam resquícios

ou interferências relevantes de outros. Passamos por cada dia, vivendo e morrendo e ressuscitando como

um Osíris que pudesse reunir suas partes que ele mesmo espalhou, mas sem aprender nada com isso, sem

avançar, nem mesmo um pouco que seja, para além dessa nossa tragediazinha cotidiana de aparecer-

desaparecer-reaparecer para nós próprios. Estamos entregues ao reino da fragmentação e do descaso.

Segunda cena: diante de uma tela, alguém imerso, nunca totalmente, em um ciberespaço indefinidamente

aberto, mas localmente mapeável pelo teclar seqüencial de dados, pelo elencar de datas, projetando

percursos de sentido incerto, mas definidos passos; narrativa de uma opera philosophorum dos tempos

atuais. Isso nos permite dizer: são mesmo tempos de deriva estes nossos, em que temos de improvisar

instrumentos com que esboçar rotas, com que evitar demasiados desvios, com que propor caminhos. Não

mais serviçais da fragmentação e do descaso, mas mestres da pluralidade e artífices do acaso. Tempos em

que podemos passear à volta de nosso quarto sem repetir o percurso de sempre, levando até mesmo esse

nosso quarto a outras pessoas, resgatando um sentido plural da vida, esse que aponta sempre para o outro

e que, em nós, é ausência e lacuna a suprir. Tempos em que a vertigem de ser é pretexto e motivo para

resgatarmos a vertigem do ser, para buscarmos nos outros, em seus restos, confundidos e misturados aos

nossos, uma alteridade, e mais uma, e ainda outra, impedindo-nos de ficar presos à rigidez de sermos

indefinidamente iguais a nós mesmos. Não mais um Osíris a recompor-se obsessivamente, igual a si próprio,

ao fim de cada dia, mas um Simorg reunindo em si cada vez mais presenças e ausências de outros, como

essas frases epigramáticas deixadas em rodapés de imeios, e que são retomadas e retramadas por outros, e

que podem um dia ou outro apresentar-se diante de nós, talvez até mesmo irreconhecíveis. Como um

“Recado do Morro”, em muito semelhante ao de João Guimarães Rosa, mas em que cada frase fosse

recolhida por uma pessoa diferente e cujo sentido total pudesse ser vislumbrado de diferentes modos, em

diferentes instâncias por cada uma das pessoas que, em algum momento, ajudaram em sua construção.

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* * *

É assim então que, entre a fragmentação e a pluralidade, se joga o sentido destes nossos tempos. Aliás, de

quaisquer tempos. Mas parece que estamos inseridos numa dialética de estranha fatura: escolher uma

pluralidade sem fragmentação comprometeria a própria pluralidade, pois ela não saberia nem poderia ser

multíplice; conformar-se com a fragmentação significaria confortar-se com o singular e o limitado que nos

cercam mas nada ensinam. Daí essa esdrúxula dialética sem síntese, em que, para que a pluralidade domine

a cena, exige-se a presença e o risco da fragmentação. E, nesse caso, argumentos e silogismos talvez não

convencessem ninguém, o que nos obriga a recorrer seja à covardia do exemplo empírico, seja à construção

de uma mitologia contemporânea. Vamos, então, a essa mitologia!

Imaginemos um oceano coalhado de ilhas, cada uma com seu náufrago habitando-a solitariamente; cada um

deles largando à deriva incontáveis garrafas, todas levando mensagens dentro. Mas seriam mensagens de

especial feitio, pois, tendo cada náufrago um estoque limitado de papel (ou de outro material qualquer que

sirva à escrita), ele produziria uma só e única longa mensagem, rasgando-a, a seguir, em tiras e colocando

cada pedaço em uma garrafa diferente. Nos anos que se seguissem, a cada ilhota chegariam velhas garrafas,

fatigadas e fartas de tanto oceano, carregadas de cracas e de marcas, mas ainda trazendo no interior, mesmo

precariamente, esses pedaços escritos. Como recompor, a partir disso, as mensagens inteiras que outros

escreveram? Como retomar até mesmo a própria mensagem que algum náufrago de uma dada ilha enviou,

ele mesmo, mas que com o passar dos dias acabou esquecendo em boa parte? E como entender o que os dias,

os sóis, as tempestades, as rochas, as umidades e os detritos modificaram nessas mensagens? Falei, não por

acaso, em Osíris (e, observem bem, não em Penteu). O deus despedaçado, que se torna senhor do reino dos

mortos, pode ser também aquele que ensina os caminhos da ressurreição. Ao ter seu corpo repartido e

espalhado, mostra como ele pode ser retramado e recosturado, tornando-se diferente e maior do que era.

Daí se poder afirmar que ele aponta, nessa perspectiva de agora, não para uma fragmentação insuperável e

inelutável, mas para uma pluralização de nós que nos resgata dessa primeira e necessária fragmentação.

Como se, para chegarmos à pluralidade, tivéssemos que passar obrigatoriamente por uma espécie de morte

alquímica, a obra a negro que é essa fragmentação. Osíris seria então, por outro viés, como que o texto dado

a tal leitor mítico, capaz de resgatar nesses pedaços esparsos e casuais um sentido que talvez (ainda) nem

estivesse na inteireza da mensagem quando ela foi feita, antes de ser fragmentada.

Mas há um detalhe importante a ser explorado: na tentativa de recompor alguma história, qualquer um

desses náufragos pode hesitar indefinidamente entre reescrever a própria história ou retomar a de outros.

Em outras palavras, ele pode escolher retramar uma das mensagens originárias e primeiras, a sua própria ou

a de outros. Nesse caso, ele só terá mesmo uma única história a contar: a de seu fracasso, pois, como já

admitia Bentinho, de D. Casmurro, “não consegui recompor o que foi nem o que fui. Em tudo, se o rosto é

igual, a fisionomia é diferente. Se só me faltassem os outros, vá um homem consola-se mais ou menos das

pessoas que perde; mas falto eu mesmo, e esta lacuna é tudo”. E o que falta é justamente a mensagem

primeira e primordial, perdida nessa auto-expulsão de seu paraíso particular. Ou a totalidade das mensagens

escritas por outros, mas que também não chegam nunca, inteiras, a sua ilha. O náufrago vai se sentir como

um outro Adão, terá de admitir uma queda que nenhuma narrativa mítica consegue, nem ao menos,

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substituir. O que sobra, então? Apenas um tartamudeio insolente, a encenação de um arremedo de

sabedoria, o contar de uma história, a única que ele considera possível ainda tecer, essa narrativa de como

foi incapaz de sair de seu círculo de idéias e métodos, de tentativas de leituras, de perspectivas de

interpretação. A narrativa de como ele, não tendo como voltar à origem das mensagens e dos tempos,

encerrou-se na contemplação narcísica de si próprio, justamente para não ver seu fracasso. Talvez, uns poucos

desses náufragos, aqui e ali, consigam vislumbrar uma estratégia diversa. Se não é possível essa reconstrução

da originalidade para sempre perdida, se não se consegue mais, como os caçadores de sonhos do Dicionário

Kazar, recompor o corpo inteiro do Adão Kadmon, se as narrativas míticas não fornecem mais nenhum mapa

de como voltar à origem das mensagens, das escritas e dos seres, o caminho a trilhar, então, é esse de tramar

uma mitologia do aqui e do agora. Esses náufragos terão, assim, de apossar-se dessas partes das histórias de

outros, chegadas ao sabor e ao acaso das marés e dos ventos; fazer delas partes da sua história e fazer da sua

pedaços das histórias de outros; propor uma narrativa multiforme, plural, em movimento, que não apague

sua individualidade, e também não se resuma a ela apenas. A partir daí, sua vida inteira muda de sentido:

não mais os sentidos outorgados e contados por uma mensagem original e primeira, mas os sentidos que eles

são capazes de inventar com os materiais, imagens, idéias e histórias que outros lhes dão, que eles tiram de

sua precária memória, nessa trama de nós e pontos infindáveis, prenhes de sentidos possíveis.

Tal é a empreita que aqui se intenta: ler esse hipertexto eletrônico e telemático em que nos inserimos cada

vez mais, com os gestos e os processos do poético, para espreitar formas e fôrmas de impor a ele e/ou

desencavar dele sentidos e significações (precárias que sejam). Mas, para isso, é necessário recortar algum

caminho nessa selva selvaggia de significantes e de percursos. É necessário que aprendamos como nos

mover por entre ligações e sítios, como prever percursos de um provedor a outro, de uma URL a outra. E

contamos talvez com alguns mapas, parciais sempre: a literatura, que se esgueirou, freqüentemente, por

vizinhanças próximas à ciência e à técnica, compondo e recompondo textualidades sem o conforto do

esperado e do reconhecido; especificamente a poesia, useira e vezeira em pluralidades e percursos nunca

definitivos de leitura. Daí nossa escolha em andar pelos caminhos da poesia eletrônica, essa que é feita,

desfeita e refeita no ciberespaço, apreendendo deste as nuanças da interatividade (homem-máquina,

homem-homem, máquina-máquina) e da iteravidade (essa retomada incessante de dados e rotinas que

deve exaurir o processo antes de cansar o usuário). Em outras palavras, propomos utilizar a perspectiva

literária para delimitar um objeto – a Rede – inserido em um novo campo de sentidos e de possibilidades –

o ciberespaço –, mapeando um objeto cultural não mais limitado necessariamente ao campo literário.

* * *

Jamais a literatura, a boa literatura ao menos, apostou na univocidade. Isso quer dizer que, entre

pluralidade e fragmentação, a criação literária sempre soube escolher uma ou outra, às vezes uma e outra.

A bem da verdade, o texto literário nunca fincou pé na permanência e na linearidade, ao contrário do que

muita gente tem afirmado (fruto, talvez, de leituras apressadas do S/Z, de Roland Barthes). Tal equívoco

parece decorrer de certa confusão entre texto literário e livro. Este tem sido, nos últimos séculos, o meio de

veiculação, a base material do texto, como já o foram a voz na literatura de tradição oral e os papiros,

pergaminhos e códices nos primórdios da tradição escrita. E o sucesso dessa base material – o livro – se

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explica por ela ter conseguido associar maneabilidade2 a permanência. O texto literário nunca saberia

permanecer idêntico a si próprio, já que sua objetividade não se confunde com uma materialidade que na

tradição impressa se assenta no livro. Assim, se este é linear (nem todos os livros, mas aceite-se a simplificação

em nome da imensa maioria), se o livro é então limitado e estável, o mesmo não pode ser dito do texto,

qualquer que seja ele, sobretudo o literário. O que ocorre com a mudança da base material, da página

impressa para o meio eletrônico, é que, em certo sentido, o livro se aproxima do texto, ele se deixa contaminar

pela fluidez, por determinada imprevisibilidade, pela não-linearidade que foram, sempre, as do próprio texto.

Aquilo que no texto é intertextualidade, no livro eletrônico encontra correspondência na pluralidade de

percursos e na heterogeneidade de materiais (associações de matéria verbal, imagens, sons etc.).

Uma possibilidade de ler essa multiplicidade de materiais, de significantes e de significações, estaria na provável

utilização de modelos combinatórios,3 que tenderiam a delimitar as inúmeras aproximações intratextuais assim

como a multiplicidade de referências e interferências entre um texto a ler e textos outros que compartilham

todos um mesmo campo de leitura. Mas essa tentativa encontra logo seus limites, sobretudo nos livros

impressos que apostam na multiplicação das intratextualidades.4 De fato, como trabalhar, por exemplo, com

alguma lógica de mundos possíveis (como propõe Umberto Eco), se é a própria possibilidade de mundos que se

encontra também em discussão? Nesses casos, a tática combinatória esbarra na impossibilidade de manipular

diretamente uma massa de significantes que escapa totalmente ao controle da leitura e até mesmo ao crivo da

memória. Além disso, a atual mudança do sistema literário não é apenas quantitativa, como ocorreu quando

do abandono dos códices em favor da imprensa. Ela é também qualitativa: o que testemunhamos é semelhante

ao ocorrido na passagem da tradição oral para a escrita, com uma significativa e radical alteração dos modos

de organização, de estruturação e de consulta do suporte da obra literária.5

Daí essa atração pelas ciências do caos e dos fractais que observamos não apenas entre os literatos, mas nas

ciências humanas em geral. À aparente desordem dos materiais e dos significantes, tenta-se responder com

ordens de nível superior, que descubram e esbocem um determinismo sem nenhuma previsibilidade.6

Isso parece ser útil quando associado a qualquer obra, mas também, e sobretudo, aos livros eletrônicos.

Nestes, se tentamos desvendar certa sistematização em suas articulações de sentidos e significações, é

preciso que, de um lado, se fuja do impressionismo das interpretações disparatadas e das navegações

disparadas; e, de outro, deve-se cultivar e apreciar o plural7 de que é feito esse livro eletrônico tanto quanto

o texto que dele se faz derivar. No caso, trata-se de articular uma correspondência de geometria variável

entre três elementos: um espaço de construção de sentidos – o ciberespaço –; uma base material – o livro

eletrônico –; e o próprio texto. Utilizar, então, essa aproximação fractalista da obra digital significa colocar

objetos n-dimensionais sob a batuta de operadores lógicos capazes de inseri-los numa ordem plural de

escritas e de leituras, em que os sentidos de ambas são sempre reversíveis. E que operadores seriam esses?

Como circunscrever e delimitar seu espaço de atuação? E, ainda, como estabelecer determinismos

cambiantes que, sem apontar para uma apreensão teleológica ou essencialista do texto, dêem conta das

aparências e das materialidades proteiformes do livro eletrônico? Questões, todas, que ao longo deste

ensaio, se não respondidas, deverão ser ao menos mais bem enunciadas. Questões que apontam certamente

para os saberes que se vão delineando, esboçando, construindo, colocando em dúvida, superando, dentro

dessas redes de nós e de todos nós, que é o ciberespaço.

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Albrecht Dürer Melancolia l, 1514 Rosenwald Collection, Image c 2003 Board of Trustees, National Gallery of Art, Washington

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Identidades e Subjetividades no Ciberespaço8

Talvez não seja inútil insistir que, neste espaço de escrita que aqui se desenha e se emenda, entende-se

ciberespaço como hipertexto ou texto eletrônico, que as diferenças entre eles não são, por vezes, mais do

que filigranas finórias e não muita profundidade acrescentariam à discussão. E, no caso de texto, temos

muito a dizer com base em uma experiência que, alçando o literário à ribalta, pode nos dar o direito de

resvalar para espaços outros de significações. Com isso, é a própria cena telemática do (hiper)texto que se

pode dar a (re)conhecer, partindo de um espaço que se quer literário, mas que permite ver rastros, vestígios

e contornos das subjetividades nele envolvidas. Há também uma suspeita de que do telemático pode-se

passar ao dramático, percebendo no ciberespaço uma instância que é produção textual, que é enunciação

significante e, ao mesmo tempo, encenação de seres e de linguagens. Mas isso é linha a ser tricotada mais

adiante e não vamos meter carros à frente de bois. No momento, concentremo-nos na maneira como se

pode ler (n)esse espaço habitado por sujeitos e processos telemáticos, aparentemente compartilhado por

pessoas e dispositivos informáticos.

Por paradoxal que pareça, uma experiência importante que podemos ter dos textos eletrônicos ocorre

justamente quando desligamos o computador e se apaga a tela. Nesse fundo opaco, que instantes atrás

eram brilhos e pixels, aparece uma figura esvanecente, nossa fisionomia, um pálido reflexo que somente se

mostra a partir do monitor desligado. Desligada a máquina, o que se vê ao fundo, precariamente refletida,

é então essa nossa imagem diante da tela, trazendo à tona e explicitando, talvez, o incômodo de uma

posição em que nos surpreendemos inquirindo subjetividades e perturbando identidades. É como se se

reproduzisse a difícil posição do indivíduo que na Procura da Poesia, de Carlos Drummond de Andrade, se

vê colocado diante da palavra, que “te pergunta, sem interesse pela resposta, / pobre ou terrível que lhe

deres: / Trouxeste a chave?”. Contudo, o que perturba e incomoda é que o inquisidor não é palavra alguma,

ele se parece muito conosco!

E o que essa imagem pediria, instigaria, exigiria, possibilitaria? De um lado, a busca de si, esse percurso que

aponta para o conhecer, mais ou menos exato, de quem ou de que seria tal reflexo precário, essa

individualidade que se vislumbra na tela do computador desligado. De fato, apresenta-se diante de nós a

possibilidade de reconstruir, ainda que parcialmente, nossa própria imagem, de recortá-la contra um fundo

indistinto e indiferente de vidro neutro e de recuperar a capacidade de uma reflexão primeira ou

primordial, quer dizer, recuperar um nosso olhar voltado para nós mesmos e para nosso próprio olhar (ou

para os traços e vestígios que de nós sobraram, uma vez suspensa a viagem pelo ciberespaço, terminada a

navegação dos hipertextos, esgotado o reconhecimento dos programas e dos aplicativos). Temos aí o

mesmo tipo de reflexão das mãos que se tocam tocando, do pensamento que se pensa pensando, em suma,

uma reversibilidade que não é necessariamente dialética e possibilita uma significação que vai além dos

discursos, das falas e das obras já envelhecidos e, portanto, reconhecíveis e manipuláveis. O que se presencia

é a primordialidade que está por trás de todo gesto significante, de toda expressão e, em síntese, de toda

linguagem. Mas é importante ressaltar que se trata de um trabalho de Sísifo (que, já se disse, é também

trabalho decisivo, ou incontornável), de perscrutar traços e vestígios à cata de fragmentos de nós que

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formem uma cadeia de precária coerência (mas, mesmo assim, de coerência). É inevitável trabalho e ao

mesmo tempo interminável, pois, sendo religado o computador, a interface gráfica do Windows® ou do

Macintosh® vem novamente justapor uma máscara de cores e de movimentos, escondendo nossos gestos e

intenções sob os deslocamentos céleres ou morosos do cursor sobre ícones, imagens e palavras, e sob as

transformações e as rotações das imagens. Daí a percepção de que nos perdemos no ciberespaço, de que

nossos vestígios e fragmentos se isolam, se desgarram e não nos entregam nada além de uma identidade

difusa e para sempre desfigurada. No entanto, se insistíssemos na lembrança de nossa fisionomia

perscrutando o fundo vítreo da tela desligada, poderíamos talvez justapor outro percurso aos rumos das

imagens, das ligações e dos sítios desfilando diante de nós, poderíamos impor outro ritmo à celeridade de

processamento de máquinas e redes.

Porém, essa não é a única possibilidade: nossa tênue imagem ao fundo do monitor desligado pode resultar

em outro percurso, em que não se vai além da reafirmação do mesmo, ou seja, de nós próprios. Como

resultado, não temos nada além do que o retorno a uma imagem nossa, tão plana e tão insignificante como

a tela do computador apagado. Em outras palavras, teríamos a concretização de um solipsismo que está

sempre rondando nossas navegações, do mesmo modo como espreita nossas reflexões e nossos projetos. E,

nesse caso, que conhecimento teríamos de nós? O que veríamos de nós, senão a confirmação de nossa

própria fisionomia inapelavelmente sobreposta às coisas e aos outros? De fato, em tudo e em todos

veríamos a mesma marca, os mesmos traços, a mesma feição. E que conhecimento poderia vir dessa

operação intelectual que, com efeito, seria apenas um arremedo de auto-reconhecimento? E como fundar

aí nossa identidade, pois entre nós e o mundo exterior não haveria justamente essa distinção originária e

fundadora que nos dá um mundo vivido e uma vida para habitá-lo? Parece que se retoma assim aquela

experiência de repetir uma palavra à exaustão até que ela se torne, pouco a pouco, estranha, impenetrável

e até mesmo hostil; por ser tantas vezes enunciada, ela deixa, aos poucos, de ser familiar e conhecida, ela

deixa de significar. Ao se tornar como que a única palavra a sobrar em um léxico esvaziado, ela perde toda

significação, justamente por ter-se afastado das outras palavras, por não ter mais como construir sua

significação na diferença recíproca que guarda com elas. Quando nos vemos reduzidos a nossa própria e

única contingência, nada podemos tirar senão a pobreza da análise, aquilo que não nos dá nada além do

que já havíamos aí colocado. Daí a sensação de que nossa imagem imposta à tela do computador pode

resultar em uma espécie de ausência nossa diante de nós mesmos, uma ausência sentida paradoxalmente

como presença, como uma volta melancólica a nós através de rastros, traços, vestígios e sinais que parecem

ser evidentemente nossos, mas que trazem a marca do estranhamento e da distância, do aparente

apagamento de nossas singularidades pelo desligar da máquina. E, se fôssemos apenas nós próprios e nossa

condição, nesse caso, nossa condição seria um papel frouxo e molhado em que tentaríamos manter

indeléveis os elementos e os vestígios de nossa presença, mas submetidos a uma perda de profundidade e

de perspectiva que os devolveria não mais como presença constante de nós no mundo, como dito acima,

mas como presença gasta e, assim, esvaziada de sentido e de qualquer identidade possível.

No outro lado desse espectro, está o computador ligado permanentemente à rede, está a saciedade

excessiva, o fastio cibernético de que, por vezes, não nos damos conta, senão depois de muito ter navegado

pelos mais diferentes sítios e endereços, entregues à volúpia de buscar um ícone, uma informação, um dado

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que sempre estarão, segundo se faz crer, no próximo percurso, que pretensamente se mostrarão disponíveis

no endereço que ainda aparecerá na tela. Mas eles não chegam nunca até nós, ou talvez até cheguem, mas

nos encontramos tão entorpecidos que já nem mesmo sabemos reconhecê-los, nem conseguimos reagir a eles.

No caso, as imagens, os gestos verbais, os ícones, os deslocamentos, os sons acabam se empanturrando de

possibilidades de significações, que se tornam, então, inúteis e impenetráveis. Trata-se de uma espécie de

presença ausente, de uma perda de sentido dos objetos dentro de seus próprios detalhes e vestígios. Mas, até

mesmo aí, não escapamos à fatal atração dessa contemplação melancólica de nós próprios, pois as imagens,

os gestos verbais, os ícones, os deslocamentos, os sons, ao se fartarem e se esvaziarem de sentidos, acabam por

se tornar inúteis, impenetráveis e vazios. E, nesse movimento, deslocam a contemplação para um outro vazio,

isto é, para a ausência de nós próprios, dotando-nos da mesma inutilidade e da mesma impenetrabilidade que

se exibem sobre a tela, à imagem dos belíssimos versos com que Mário de Sá-Carneiro fala de sua Dispersão:

“Perdi-me dentro de mim, / Porque eu era labirinto / E, hoje, quando me sinto, / É com saudade de mim”.

Estando ligado o computador, corremos sempre o risco de nos entregar ao desenfreado e ao desmesurado das

conexões multidirecionais, dos saltos abruptos e incessantes, das vizinhanças forjadas à força, experimentando

uma saciedade excessiva que guarda inesperada similaridade com aquela descrita acima, em que nos escondemos

atrás de um solipsismo fechado e redutor. Nos dois casos, há como que um estrangulamento das significações, já

que tanto a privação quanto o excesso terminam por nos fazer cair num vazio ou numa inutilidade dos

significantes. E ambos nos enredam em uma melancolia da significação, que é nossa e é também dos

significantes, melancolia que talvez somente possa ser superada por uma busca, por uma reafirmação, por uma

retomada, por uma recostura – extremamente trabalhosas, mas inevitáveis – da própria identidade. De fato, as

duas experiências – seja a da navegação descomedida e sem amarras; seja a do fechamento em sua própria

imagem – evocam um Narciso colocado diante de uma imagem de si que já não guarda mais unidade, que já não

lhe garante nem mesmo o eco de sua voz ou o reflexo do que conseguiria identificar como sendo seus próprios

traços ou vestígios espalhados pelo mundo que ele ainda pode ver diante de si.

No entanto, melancolia pode remeter a referências demasiadas, pode permitir ou exigir comentários infindos,

com o que praticamente cairíamos na situação descrita, indo da melancolia como assunto à melancolia como

situação. É assim que, para escapar a essa ditadura do melancólico (que, no caso, resultaria de uma angústia

do excesso de interpretação), vou-me permitir uma abordagem mais leve (sem que ela seja, por isso, leviana

ou superficial), tentando articular uma leitura do ciberespaço que seja também o esboço de uma saída dessa

situação de melancolia. No caso, uma das referências minhas preferidas está na gravura de Dürer justamente

intitulada Melancolia I, que acabei tomando como possível fio condutor de uma compreensão desses

mecanismos de significação, de subjetivações e de construção de identidades no ciberespaço. Vamos a ela!

Como se deu essa transposição da gravura de Dürer para o ambiente telemático? Utilizei-a como ponto de

partida, como inspiração, como catalisador de uma compreensão dessa melancolia do ciberespaço, talvez

agindo à maneira dos leitores do I-Ching, que se servem do casual para pretensamente chegar ao essencial.

Aos poucos, traços de semelhança e possibilidades foram surgindo e permitindo que eu me desvencilhasse

da gravura e entrasse mais e mais profundamente nas entranhas dos textos eletrônicos e do ciberespaço. O

que vou tentar fazer aqui, por conseguinte, é apenas um resumo desse percurso que partiu de uma visão

alegórica da gravura, passando por um trajeto exegético de seus elementos para chegar, finalmente, a uma

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compreensão direta e mais acurada de meu objeto de reflexão. Alguns poderiam, com todo o direito,

argumentar que a escolha de tal perspectiva de investigação – no caso, essa dada gravura – é tão (i)legítima

e (não) convincente quanto qualquer outra. O que apresento, então, como argumento é apenas um pedido

para que julguem essa escolha com base nos resultados da discussão, não condenando a priori os postulados

de onde parti. O que interessa não é o que a média das pessoas poderia associar à obra de Dürer, mas o que

eu quero ou pretendo ver como apoio a minha leitura do ciberespaço. De fato, é a coerência e a capacidade

de convencimento desta última que servirão para indicar o acerto (ou o fracasso) de minha estratégia.

Tomando então a gravura, podemos perceber nela uma multiplicidade de elementos que se acumulam

numa ordem que inicialmente dá a impressão de fugir a toda tentativa de sistematização: figuras

geométricas, objetos de uso diário, imagens carregadas de possíveis alegorizações, referências muito

provavelmente bíblicas etc. Todavia, essa multiplicidade parece escapar ao anjo – pretenso elemento central

a partir do qual seriam endereçados os olhares para os outros elementos. Ao menos a gravura se organiza

de modo a dar a impressão de que vários objetos e seres estão dispostos a sua volta, sem que ele consiga

apreender o sentido (ou os sentidos) dessa multiplicidade de coisas. Esta – a multiplicidade – torna-se para

ele legião (no sentido da legião de demônios que, no Novo Testamento, Jesus expulsava de um

energúmeno), e não pluralidade ou variedade do mundo vivido. Diante disso, não seria absurdo ou

despropositado falar de um anjo caído, de uma criatura divina, mas perdida na materialidade múltipla das

coisas. Ele não consegue apreender essa legião de existentes e de diversidades, já que se encontra

totalmente preso à busca de um princípio único causador (o vértice do compasso, o centro da eventual

circunferência a ser desenhada por ele, um centro tão excêntrico quanto o ponto de luz que, ao fundo, não

consegue ser foco nem origem do círculo que se recorta contra o horizonte). E esse princípio mostra-se

totalmente desvinculado da pluralidade efetiva e direta das coisas e dos seres.

Nesse sentido, a angústia da situação do anjo nasce do mesmo motivo primeiro que levou ao

desenvolvimento do pensamento grego, a oposição entre o uno e o múltiplo. Porém, o que, para os gregos,

foi impulso e incentivo para o conhecimento, para o anjo, mostra ser, ao contrário, peso e desalento: a

pluralidade de elementos não parece entrar no desenho que ele tenta esboçar, pois o olhar perdido ao

longe afasta do traço e do compasso a diversidade, sem chegar a encarar essa luz que ao fundo aponta para

as coisas, as ilumina e dá-lhes possibilidades de sentidos e de coerências. De fato, ele parece estar

concentrado unicamente na busca de uma totalidade inútil e distante, de uma totalidade que, com efeito,

obscurece e escamoteia o conjunto e a variedade dos objetos e dos seres. Entre essa luz que vem do fundo

(e que, na nossa leitura, não pode deixar de remeter a luzes e a cintilâncias de telas e de monitores) e o

olhar do anjo, situa-se toda uma coorte de coisas, uma materialidade múltipla que acaba, de fato, por se

esconder a ele e por esconder dele a própria totalidade (não revelada, mas que poderia ser encontrada,

reconhecida, aprendida nas coisas e em suas disposições, estivesse o anjo em outra posição). Em

conseqüência, é a visão de si próprio que fica escondida, ou perdida em meio à barafunda de uma variedade

tão sem sentido – para ele – quanto esse olhar melancólico e falto de perspectivas. E que variedade de

elementos seria essa, segundo a perspectiva do anjo? Uma escada que dá em nada ou lugar nenhum, inútil

escada em que a base terrena parece ter perdido o pé e desaparecido, escondida entre restos e ruínas, e em

que o topo não leva nem a transcendência, nem a entendimento, nem a paraíso algum, inútil escada de

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Jacó sem o menor traço da luta deste com um anjo (outro, claro!), esboçando na verdade e na aparência

(ou na verdade da aparência) uma inútil luta consigo mesmo.

Temos ainda figuras geométricas misturadas a figuras naturais (como o animal situado entre um poliedro e

uma esfera), acompanhadas de produtos artesanais (tecidos, balanças, sinos etc.), numa provável proposta

de conciliação entre as três esferas (abstração, criação e construção), ou num possível acordo entre espírito

de geometria e espírito de finesse. Trata-se de conciliação e de acordo que não são mesmo percebidos ou

compreendidos pelo anjo, perdido em meio ao que ele poderia considerar apenas despojos de si próprio. À

direita dele, encontra-se uma criança, ou melhor, um pequeno anjo de aparência infantil e despido de

auréola (a não ser pela circularidade de um dos pratos da balança que, acima de sua cabeça, proporciona

um arremedo de auréola; já o anjo, ele próprio, está ao menos coroado de louros). Logo abaixo dessa

criança-anjo, está um animal, repousando indiferente ao olhar e à atenção que ela parece dirigir-lhe. E o

conjunto de ambos, quando os destacamos em meio aos demais elementos, poderia indicar uma progressão

do animal ao anímico, mas, novamente, um conjunto e uma progressão que não se dão senão a nós que

estamos postados fora das perspectivas do anjo, que a ele nada disso se dá, nada disso se deixa ver. Temos,

talvez alegorizados, a origem temporal e o encaminhamento para o telúrico desse anjo, mas que, para ele,

não passam de fragmentos de uma identidade que parecem escapar a sua leitura, a seu entendimento. Ao

chão, encontra-se ainda o que pode ser visto como restos de uma construção iniciada mas não terminada,

como se fossem ruínas de si próprio, exposto que está a uma multiplicidade que ele não entende, não

percebe, não controla e não organiza.

E o que seria, então, esse anjo e esse espaço, essa disposição de coisas e essa balbúrdia de sentidos e de

significados possíveis? Muita coisa, possivelmente, mas todas elas, se propostas ou construídas a partir da

perspectiva intradesenho do anjo, remeteriam inapelavelmente a um centro de significações falho ou vazio.

Tendo a percepção embotada pela multiplicidade incompreensível (para ele!) das coisas do mundo, o anjo

afunda-se numa queda, que é busca inútil de uma ordem única para o mundo e, a fortiori, de uma

identidade absoluta para si próprio. Não há entre os objetos um espelho que lhe devolva, como imagem

coerente dele próprio, essa busca por sentidos e ordens. Como resultado, ele não percebe nem a unidade

de si, nem a real extensão da pluralidade das coisas, pois sua percepção se encontra embotada por uma

variedade de que ele não consegue dar conta. Se ele fosse apenas anjo, ainda guardaria a unicidade do

cosmos; se se tornasse tão-somente humano e material, seria capaz ao menos de perceber ou sentir ou,

mesmo, de viver a pluralidade da existência; sendo anjo e (de)caído, perdeu a primeira condição, sem

ganhar a segunda. Assim, é sua identidade que fica perdida em meio à multiplicidade de coisas, de

significantes, de possibilidades de sentidos. Algo parecido ao que pode ocorrer também com os leitores

desse texto-gravura: afinal, seu tom fortemente alegórico leva a uma acumulação de possibilidades

exegéticas, em tudo semelhante ao acúmulo de objetos cercando o anjo, o que pode causar um certo

cansaço de ler, de escrutinar e recensear significações possíveis e coerentes. Em decorrência, é a fadiga de

ler-se a si próprio que se instala, numa busca incessante, mas infrutífera pela própria identidade, partida e

repartida, esta, pela multiplicidade de coisas, de leituras, de possibilidades de significações e de desvãos

interpretativos em que se pode perder tanto o uno de si quanto o plural do mundo, ou vice-versa, a unidade

das coisas e a variabilidade de si.

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Essa busca pela própria identidade, em meio a fragmentos e ruínas e multiplicidades, não precisa ser

necessariamente melancólica. Assim como a exploração do ciberespaço não tem necessariamente que cair

nas duas formas de melancolia acima descritas: a da multiplicação indiscriminada e incontrolada de

informações e a do solipsismo e do fechamento individualista em si mesmo. De fato, há vários processos de

construção de identidades e de subjetividades no ciberespaço e nem todos devem levar necessariamente a

essa lacuna de si e a essa ausência de sentidos (seja pelo acúmulo indefinido e indiscriminado de

significantes, seja pela imposição de uma fisionomia única e redutora a todo e qualquer elemento

significante). Mas mesmo essas duas devem fazer parte de uma tipologia mais geral e mais abrangente que

tente dar conta das diferentes maneiras de o sujeito colocar-se diante de si e dessa teia de elementos

significantes que estamos chamando de ciberespaço. Em resumo, podem-se propor três tipos básicos de

processo de subjetivação: 1) uma identidade absoluta e além do sujeito; 2) uma identidade relativizada e

aquém do sujeito; 3) uma identidade provisória e não programática. E é claro que estaremos, de ora em

diante, fazendo pender discussões e pontos de vista para esta última, pois ela parece ser, diante das duas

outras, a única possibilidade de escapar à melancolia que vem da proliferação descontrolada do múltiplo

ou que resulta da repetição de si mesmo.

Tomemos então, primeiramente, essa identidade absoluta e além do sujeito. Ela parece se manifestar,

por exemplo, pelas próteses tecnológicas e/ou cibernéticas com que se dotam os corpos (e, em decorrência,

as próprias atividades humanas implicadas). Vale dizer que, quando nos referimos a humano, estamos

pensando naquilo que se encontra ainda aquém dos gestos e das intenções significantes e lhes serve de

ponto de partida: por trás da atitude de indicar um objeto ou uma direção, está o dedo que aponta, a mão

que o contém, o braço que o sustenta, o ombro que o ampara, o tronco de onde ele nasce, em suma, está

o corpo inteiro flexionado e fletido para dar a si e entregar ao mundo certa significação. Quando

escondemos nosso corpo com aparatos com que ele não nasceu, quando outorgamos a nossos gestos uma

origem externa ao espaço e ao alcance de nossos corpos, estamos naquela situação, criticada por Virilio, de

nos dotarmos de uma virtualidade realizada às expensas de nossa própria circunstância corpórea. Estamos,

também, na posição descrita (e exaltada) por Pierre Lévy, quando se refere ao duo pensante homem-

máquina. No caso do ciberespaço, trata-se da impressão de que nossa identidade não passaria mais pelo

reencontro de nós em nossos próprios gestos, no reconhecimento de nossa fisionomia no que fazemos e nas

significações que propomos às coisas e aos fatos, na maneira como visamos a um mundo de significações

que se instala a nossa volta. Nossa identidade estaria, dessa forma, não na extensão de nossos gestos e de

nossos corpos em direção a algum elemento significante que eventualmente construiríamos ou

perceberíamos ou para o qual apontaríamos, mas apenas e tão-somente no além de uma extensão

maquínica, de um processo cujo sentido e cujo alcance nunca tivessem feito parte de nossas intenções e

percepções diretas, de um processo, em suma, que viria até nós sem ser por nós produzido ou percebido.

Trata-se de uma identidade que poderíamos classificar como místico-tecnológica, pois consiste no

esvaziamento de nossa própria singularidade em proveito da exterioridade de uma tela, de um dado

endereço eletrônico, de ligações a endereços eletrônicos outros, de interações impostas por uma lógica de

leitura e de navegação estranhas a nossas expectativas e experiências, em resumo, de elementos

significantes que parecem surgir de uma exterioridade absoluta e além do sujeito. E por que místico?

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Porque ela exige uma negação de sua própria singularidade, com a conseqüente aceitação de uma

exterioridade absoluta e inelutável. Assim, o sentido do humano não estaria mais na maneira como nos

dotamos de um mundo que existe antes de nós (ou seja, no modo como habitamos essa reversibilidade

entre corpo e mundo), mas em como deixamos ferramentas e processos nos conduzir e nos instalar como

seres deles dependentes. É como se o preexistente, o já dado, fosse não o mundo ele próprio, mas certas

regiões dos objetos culturais, no caso, uma parte do espaço tecnológico. Ora, a falha dessa percepção

encontra-se exatamente em tomar o tecnológico como exterioridade absoluta a que somos –

paradoxalmente – convidados a entrar e a estar e a ser, dentro dela. Não seria absurdo afirmar que se trata

de uma retomada falha e esvaziada do mítico e do religioso: o re-ligare das religiões tradicionais funda-se

numa experiência em que se busca justamente uma dualidade (o sagrado e o profano) em que esses dois

campos extremos (o aquém, pelo ser humano, e o além, através do divino) se encontrariam e se dariam a

ver. No caso desse misticismo tecnificante, temos uma apenas aparente dualidade, uma dualidade que não

resiste às primeiras investidas dos processos automatizantes, já que eles acabam sempre reduzindo essa

duplicidade à simplicidade e à exterioridade de um mesmo campo (submetendo, no caso, o profano, o

humano a lógicas e movimentos e ritmos exclusivamente externos).

Como conseqüência, a identidade de si (ou um arremedo dela) passaria forçosamente por uma identificação

com instrumentos e com os processos de que se dispõe, abrindo mão de qualquer autonomia ou

espontaneidade próprias ao humano. Em suma, teríamos nada além da identificação de si próprio com uma

eficácia externa, o que seria, no máximo, simulacro ou ilusão de eficácia (assim como de identidade), pois a

performance do instrumento tecnológico não tem como ser totalmente assimilada a expressões ou gestos

humanos. A conseqüência direta dessa busca de identidade, através do além do tecnológico, não traz como

resultado senão exterioridade e platitude (ou, dito de outro modo, nada além de uma tecnomelancolia). Bem

diferente, em todo caso, de experiências místicas como as dos quietistas espanhóis do século XVII ou de San Juan

de la Cruz, que, de uma aniquilação de si próprios, insinuavam chegar a uma interiorização radical do sagrado.

O segundo tipo de identidade que se pode propor com base no ciberespaço é aquela que caracterizamos

como relativizada e aquém do sujeito. Ela está ligada diretamente à hiperinflação informativa, processo

em que, devido a um transbordamento de significantes, toda informação, todo dado, todo significado

inevitavelmente se transformam em ruído. Isso ocorre quando as informações desfilam e se desfiam na tela

do computador, demasiadamente rápido diante de nós, sem deixar nenhuma possibilidade de esboçarmos

certa fisionomia de organização, algum esforço de racionalidade, mesmo provisório e localizado, que

pudéssemos associar aos objetos significantes desfilando pela tela. É o caso em que o excesso de informação

deixa de ser informação para tornar-se ruído, perdendo totalmente qualquer conteúdo informativo. Mas

isso não é tudo. Esse ruído parece propiciar, inicialmente, uma paradoxal hipertrofia do sujeito, dando-lhe

a ilusão (ou é ele próprio quem assim se ilude) de que é ele quem está por trás de toda construção de

objetos significantes, que todo percurso de significação se submete ao arbitrário e ao relativo de suas

posições e gostos e disposições e gestos.

Assim, esse sujeito instala-se num ponto de enunciação falto de sentidos e sem horizonte de significações

possíveis tendo a impressão de que a ele compete ocupar todos esses espaços e ocupar-se de todos esses

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processos. Não lhe restaria outra posição senão a de instalar-se decididamente na ribalta dos significantes e

estabelecer-se, solitariamente, como horizonte de sentidos e de possibilidades de significação. Mas é aí,

justamente, que o processo se inverte e essa hipertrofia inicial (e, dizíamos, paradoxal) do sujeito se

transforma em atrofia. Ele não percebe que está, na verdade, limitando-se a pontos de vista passivos (e eles

se multiplicam, acentuando o esvaziamento de sua subjetividade) diante de uma celeridade de significantes

cada vez mais esvaziados. Com o que ele se reduz, afinal de contas, de forma gradual e inapelável a uma

lacuna num espaço então tornado definitivamente lacunar. Há como que uma homogeneidade entre o

vazio da informação multiplicada à exaustão e às raias da inutilidade e um sujeito rareificado que nem

mesmo percebe estar sendo excluído da cena dos objetos significantes.

Finalmente, resta discutir o terceiro tipo, a identidade provisória e não programática, em que a busca

de sentidos e de significações não se dirige nem para uma mistificação do tecnológico (além do eu), nem

para um transbordamento vazio de informações (aquém do eu). Essa terceira identidade se fundamenta no

que poderíamos descrever como uma costura de identidades (assim mesmo, no plural!) e de significantes,

em que internos e externos se conjugam, se entrelaçam, resultando num gesto expressivo que parece

lembrar o que Merleau-Ponty chama de quiasma ou reversibilidade.9 Em certo sentido, o que se propõe é

como que a busca de um apoio ou de complementaridade no outro, no que é provisoriamente diverso,

oposto ou externo. É, por exemplo, descobrir um outro lado no espaço e nos objetos da tecnologia,

rastreando neles a sedimentação do toque humano que revela o horizonte cultural de qualquer

instrumento, por mais eficiente que ele pretenda ser, de qualquer processo, por mais poderoso que ele

pareça. Na verdade, é justamente esse fundo de cultura que pode revelar o horizonte de sentidos e de

significados possíveis de qualquer instrumento ou processo. Com o que podemos mostrar, com toda a

evidência, que a finalidade do espaço tecnológico não está nele mesmo (como pareceria mostrar a primeira

identidade falha aqui discutida) nem num locus esvaziado de sentidos e de subjetividades (para onde

apontaria a segunda tentativa de identidade), mas na maneira como acomodamos ou alteramos seus

significantes e seus significados em direção ao sentido que queremos e podemos dar a ele. De fato, não há

nenhum sentido do tecnológico que se esgote nele mesmo, em sua própria instância. É o sujeito que lhe dá

o toque final e o sentido sempre provisoriamente definitivos.

Do mesmo modo, somente o olhar externo à gravura (portanto, não reduzido às limitações e aos limites da

perspectiva do anjo) é capaz de perceber algum sentido que vá além da melancolia daquele anjo perdido em

meio à multiplicidade do mundo e das coisas, e à ausência dele próprio. Daí esse percurso de reconhecimento

de si, que passa pela busca de uma interioridade do tecnológico e pela reafirmação de uma exterioridade do

eu diante da multiplicidade de significantes. Há aí, implícito, um projeto de sentido e de significações que

não se reduz a uma mera reafirmação da imagem mística do tecnológico. Trata-se da busca de uma

interioridade do tecnológico, da busca de teias e tramas de sentido que escapem à exterioridade absoluta, à

platitude constante e teçam, nesse tecnológico, significações além daquelas que vêm da perspectiva

(neo)positivista. E esse projeto de sentido e de significações também não poderia se reduzir à euforia cegante

e quase irreversível da hiperinflação informativa (cujo correlato é o esvaziamento eufórico do espaço da

subjetividade). É através dele que podemos escapar das duas formas melancólicas de subjetivação,

construindo uma identidade que se dê como percurso de si próprio, que se faça à custa e a despeito dos

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aparatos, dos aparelhos e dos processos (e também, claro, sobre eles todos). Uma das melhores imagens que

conheço para dar conta disso é a do personagem de uma charge que, em um monociclo sobre a corda bamba,

vai desenhando a lápis, logo à frente, a continuação da linha onde se equilibra precária e provisoriamente.

O centro de significações (ou a direção coerente tomada pelo artista mambembe e cartunista) está

justamente depositado nesse esforço de traçar uma linha que ainda não chegou a ponto algum, mas que não

deixa de se apoiar numa exterioridade projetada solidariamente pelo corpo e pelo gesto do equilibrista.

Uma conseqüência do que discutimos nos parágrafos anteriores refere-se ao tipo de leitura que se pode

propor no/do hipertexto, uma leitura que se coloca também como gesto e, conseqüentemente, como

expressão, empreendida com base na posição singular de um sujeito movente, de posições provisórias –

efêmeras, talvez –, mas construindo o possível de um percurso por entre fragmentos e multiplicidades

várias. E, no caso, voltamos ao papel das teorias do texto literário na compreensão do ciberespaço. É que,

se há texto, se há então leitura desse texto, se há um posição focal que cria (sempre) regiões de clareza

provisória e sombras passageiras nesse espaço de telemática opacidade, é possível propor a esse sujeito

leitor um percurso de leitura como marcas e bases de sua identidade, como testemunhos de sua

subjetividade. E tal leitura guarda uma especificidade, a de fundar e traçar significações, instalando-se tal

qual o equilibrista na solidez precária de uma linha que se apóia no quase nada para apontar, a partir daí,

para o muito, para a pluralidade das coisas e dos objetos significantes. O que procuro aqui, na verdade, é

levar adiante uma intuição, a de tomar a leitura do/no ciberespaço como uma espécie de performance que

realizamos às expensas de nossas limitações e das condições de contorno da tela do computador. Trata-se,

aparentemente, de um ato de criação e de tomada de posição diante de uma cena gerada desde o exterior

de imagens, ícones, movimentos e processos interativos, deslocamentos e cortes, acréscimos e

multiplicações, mas permitindo que nossa interioridade venha habitá-los todos com a compulsão dos

significados e a contenção dos sentidos.

Dizer que essa leitura é uma performance implica dizer que nos colocamos como hiperleitores, isto é, como

ativos organizadores do hipertexto, mas organizadores que se colocam bem em meio aos objetos

significantes, de forma que o processo de significação desses objetos acompanhe e circunde nosso processo

de subjetivação, em que nos explicitamos como leitores (de significantes, do ciberespaço onde estes se

desvelam, e de nós mesmos). Apresentamo-nos como atores de uma espetacularidade, mas que sabem

também postar-se do outro lado da cena, no aquém do palco (da tela) e no além de nossos próprios

movimentos e tomadas de decisão, tecendo uma identidade que nos coloca como subjetividade encenada

e dada à leitura de outros. E essa identidade telematicamente colocada, construída e, sobretudo, encenada

exibe-se como fingimento. Nessa via transversa, ela busca dar voz e vez a um verdadeiro dizer do real, por

meio desse fingimento que se pode exibir como máscara reveladora (e que é sempre uma possibilidade que

compete a cada um de nós efetivar ou não, sendo-nos dado a escolha do melancólico ou do sábio). Trata-

se de capturar na provisoriedade e na dramatização de falas, gestos, movimentos, comandos, aparências,

rastros e restos de ícones e de endereços, na tecedura movente e mole de significantes uma fisionomia de

efêmera permanência; ou também de propor uma possibilidade de espacializar reflexos e percursos em

cima dos quais balizamos a visão de nós mesmos e desse texto-mundo tecido em raias intermináveis e

circunferências de raio infinito.

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Page 35: Leitura de nós

Essa leitura de nós, de nossa inserção no ciberespaço (que é também leitura do próprio ciberespaço) pode

ser assim descrita como uma provisória mentira, uma encenação que permite expor honesta e abertamente

entranhas e hesitações de (ciber)espaços, de leitores e de leituras. É claro que há aí um paradoxo lógico em

que a sinceridade consiste em dizer que se está mentindo. Todavia, tal situação de “incômodo lógico” está

presente em qualquer forma de literatura, ou, para ser mais geral, em qualquer arte, em toda época. E não

é por causa da intensa tecnologização do ciberespaço que vamos escapar a esse gênero de contradição que

é base de qualquer experiência artística que se possa imaginar. Tanto quanto a voz poética da

Autopsicografia, de Fernando Pessoa, o hiperleitor finge que não sente o que na verdade está sentindo, e

os que lêem sua leitura vão sentir, ainda, outra coisa que nada tem a ver com o que esse hiperleitor chegou,

primeiramente, a sentir e, depois, a encenar.

Em outras palavras, o leitor do hipertexto assume a função de produtor ou organizador de uma

espetacularidade, de uma encenação, de uma topologização de significantes e de significações de que ele

não pode deixar de participar. De fato, não podemos ficar presos a uma mera especularidade do hipertexto

hiperinflacionado, nos colocando irremediavelmente presos a reflexos sem reflexões e que resultam de uma

algaravia de restos de idéias, de fragmentos de princípios, de vestígios de saber. Também não podemos

propor apenas um espetáculo que se contente em celebrar a ausência de nós próprios, o que seria o

resultado melancólico dos simulacros e das mistificações tecnologizantes.

De outro lado, é preciso levar ainda em conta a presença de uma platéia, de companheiros de rota e de

significações (de resto, nenhuma linguagem, por mais fundada em elementos estritamente tecnológicos,

pode existir sem essa armação intersubjetiva que sustenta e permite todo ato expressivo). Essa platéia (de

que fazemos parte, mesmo nos colocando à parte para poder falar dela), ainda que virtual, não deixa de

traçar vestígios, de possibilitar ornamentos e filigranas de significações ao (hiper)texto construído por nós,

leitores de nós de conexões, leitores de nós próprios, leitores do hipertexto e de outros leitores. E essa

platéia se faz presente e atuante não na indiferença das posições distantes e distintas do palco, mas

colocando-se em cena, bem ao lado dos percursos que assumimos e esboçamos, trazendo, aliás, para a

cena a posição e a cumplicidade de compartilhar um gesto expressivo comum. Em resumo, esse esboço de

leitor do ciberespaço mostra-nos como atores/organizadores que lêem, representam, atormentam,

desfocam, deformam e tocam adiante um texto que, vindo de outros leitores e loci, recebe inflexões e

significações de que talvez nem suspeitássemos. Construímos um texto tramado e tecido em um espaço

coletivo, um texto dado pela voz singular do ator/organizador à multidão que aplaude, vaia, contesta,

aceita, recolhe, mas participa sempre, evidentemente, dessa construção coletiva de significações e de

textos. A navegação pelo ciberespaço, vista como dramatização ou espetacularização de nós próprios, do

hipertexto e de outros leitores/atores, poderá mostrar um caminho efetivo em que, definitivamente, não

precisaremos mais nos curvar a essa melancolia de significações excessivas ou de mistificações

tecnológicas. Quem viver (e ler) verá (lerá).

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Page 36: Leitura de nós

Saber o/no/do Ciberespaço

Como pode ser possível alguma construção de saberes no ciberespaço baseada nas condições de contorno de

uma tradição de pensamento ainda fortemente ancorada no meio impresso? Para responder a isso talvez seja

útil discutir primeiro como vem ocorrendo a passagem de obras originalmente destinadas ao suporte

impresso para o meio eletrônico. Essa alteração envolve uma série de elementos que dizem respeito não

apenas à produção e à disseminação de textos. Ela é produzida num espaço híbrido de circulação de objetos

culturais – implicando um diálogo entre o meio telemático e o meio impresso – e está ligada, afinal de contas,

à estruturação de um saber que, na falta de melhor denominação, podemos já chamar internético, termo

que designaria a produção do conhecimento em redes telemáticas. De toda maneira, se ao final não ficar

convencido do acerto e validade desse arremedo de conceito – internético –, o leitor poderá ainda aproveitar

a inesperada sonoridade da palavra, que ao menos agradará, mesmo sem ter plenamente convencido.

Primeiramente, é importante explicitar os contextos e as referências da questão colocada para podermos

ver alguma coerência nesse saber internético. Nos últimos anos, o Núcleo de Pesquisas em Informática,

Literatura e Lingüística, Nupill, da Universidade Federal de Santa Catarina tem disponibilizado na rede

obras clássicas da literatura brasileira. E, diga-se de passagem, não é o único: projetos desse tipo têm

pululado e, entre eles, podemos destacar o trabalho desenvolvido pela Biblioteca Nacional. Em linhas

gerais, o que se tem pretendido, desde o início, é trazer para o meio eletrônico obras que foram concebidas

inicialmente para o meio impresso. Porém, o espaço das mediações e das trocas culturais é um sistema de

vasos comunicantes, e, claro, uma obra disponibilizada em formato eletrônico não teria como ficar

totalmente presa ao meio em que é inserida: é assim que textos eletrônicos, vindos do meio impresso, têm

retornado a ele; caso, por exemplo, da Carta de Pero Vaz de Caminha, que nos meses que antecederam a

comemoração dos 500 anos da chegada dos portugueses ao Brasil, no ano de 2000, foi amplamente

divulgada e, mais, publicada e impressa, em alguns casos, com base na versão eletrônica disponibilizada

pelo Nupill. Com isso, uma obra difundida durante séculos no meio impresso entra no espaço telemático

para, em seguida, ser levada de volta a seu leito original. É claro que nada ligaria a atual edição impressa

a sua origem eletrônica se não fosse a informação, mencionada pelos responsáveis das novas edições, de

que o Nupill era o responsável pela versão eletrônica da Carta.

No que se refere ao meio eletrônico, ainda quando disponibiliza obras originalmente concebidas para o

meio impresso, ele propõe outras ferramentas e, por conseguinte, outros paradigmas de leitura. Sem nos

alongarmos em demasia, basta pensar no comando localizar (find, nessa salada linguageira que assola a

rede), disponível tanto nos editores de texto quanto nos navegadores. Ele representa uma economia de

tempo considerável na localização de palavras ou expressões que, em caso contrário, seriam dificilmente

reencontradas pelo leitor. Com isso, é o tempo, o ritmo e mesmo a ordem de leitura que se podem

modificar, conforme ritmos e velocidades que resultam de um novo acordo, não mais entre nossas

contingências físicas e uma folha de papel impressa e dando-se apenas ao olhar, mas de uma combinação

entre as mesmas contingências físicas nossas e instrumentos de navegação e de leitura informáticos (que

são propostos e intermediados por um aparato eletrônico que inclui elementos como mouses e teclados,

imagens de cursores e de ícones, gestos e movimentos como cliques e ações de cortar/colar). Mas tudo isso,

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Page 37: Leitura de nós

claro, não impedirá nenhum leitor mais obstinado (e cioso de seus direitos de aferrar-se a práticas e espaços

já sobejamente conhecidos) de continuar lendo como sempre o fez e de percorrer com os olhos o espaço da

tela do computador como se estivesse diante de uma folha de papel impressa. Quero afirmar que, grosso

modo, os diferentes paradigmas de leitura continuam confluindo e o que hoje poderíamos chamar de

leitura eletrônica ainda se resolve e se desenvolve, mesmo parcialmente, segundo hábitos e preceitos

aprendidos e apreendidos com as práticas trazidas pelo meio impresso. Da mesma maneira, é legítimo

pensar que durante algum tempo, mesmo com o avanço da alfabetização, uma considerável quantidade de

leitores ainda percorriam seus caminhos de leitura carregados pelos ritmos e pelas imagens aprendidas (e

também apreendidas) por séculos e séculos de “leitura” oral, em que eram os ouvidos e não ainda os olhos

os responsáveis pela produção do texto.

Todavia, quanto mais insistirmos na leitura em meio eletrônico, mesmo aos trambolhões, trancos e

barrancos (como, aliás, parece ocorrer sempre que passamos por alterações mais bruscas nos paradigmas de

circulação de objetos culturais), mais estaremos aprendendo os ritmos e as restrições do espaço telemático

e também forçando-o a acomodar-se a nossos projetos, desejos, pensamentos e ao que acima chamei de

contingências físicas (como a acuidade visual, por exemplo). Em outras palavras, o que estou propondo é

discutir a necessidade e as estratégias de utilização de ferramentas informatizadas no armazenamento, na

manipulação e na leitura de obras (e não nos restringimos, claro, apenas às literárias, que todo tipo delas

suscita questões e possibilita reflexões semelhantes). Percebam bem que associei necessidade a

estratégias, buscando chamar a atenção para a importância de utilizarmos esse instrumental tecnológico

de modo a estabelecer com ele um diálogo em condições de igualdade. Dito de outra maneira, temos que

mapear os procedimentos informatizados e os processos telemáticos disponíveis antes de utilizá-los

intensiva e extensivamente, de forma que sejamos nós a nos servir da tecnologia e não a tecnologia (ou a

tecnocracia por trás dela) a se servir de nós.

Creio ser possível escapar, assim, a algumas das derivas do texto eletrônico, àquilo que tenho chamado há

algum tempo, e mesmo neste ensaio, de hiperinflação informativa. Explico melhor (talvez melhor do que o

fiz antes): um processo hiperinflacionário em economia corresponde à situação em que a moeda circula a

velocidade tão alta que os agentes econômicos já não têm nenhum controle sobre ela; em conseqüência,

ela acaba perdendo todo seu valor. O mesmo ocorre atualmente (e cada vez mais!) quando deixamos as

informações desfilarem, céleres, diante de nós e ao longo da tela do computador, sem nenhum percurso que

vá desenhando uma certa fisionomia, um esboço de racionalidade pontual que poderíamos impor às buscas

e aos hipertextos trazidos pelos cliques no mouse. No mais das vezes, ocorre de as pontas dos dedos estarem

mais ávidas de toques excitados do que a mente ansiosa por idéias passíveis de alguma orquestração. Como

conseqüência podemos, por exemplo, começar uma busca por pintura impressionista e, quando nos damos

conta, em algum raro momento de tomada de consciência, estamos diante de um improvável sítio de

torturas sexuais no Hindustão medieval. Aparentemente, seria um processo semelhante àquele descrito por

Paul Valéry em Poésie et Pensée Abstraite, em que a entrada em um universo poético tira-nos, sem que

percebamos, da consciência imediata do dia-a-dia, das noções e reflexões da cotidianidade. Assim, a entrada

nesse universo poético corresponderia à entrada em uma região de ritmos e de sons estrangeiros,

inesperados, correspondendo, de fato, a uma tomada de posse da palavra pelo revés da significação e do

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discurso. Todavia, a entrada nessa hiperinflação informativa desenfreada não traz revés algum, já que o seu

contrário é ela mesma. O trágico desse processo é que seu lado escondido é rigorosamente idêntico a si

próprio, isto é, uma região neutra e sem diferenças, o que vale dizer, sem significação alguma. De fato, o

excesso de informação, exatamente por ser excessivo, deixa de ser informação e torna-se ruído, perde seu

valor como no caso da hiperinflação monetária. Mas, à diferença desta, que é um processo coletivo, a

hiperinflação informativa é um fenômeno individual, podendo ser desligado a qualquer momento por uma

flexão no campo de interesses e de significações posto em movimento pelo leitor/navegador.

Dessa forma, antes de colocar em movimento um saber dentro do ciberespaço, esse saber que chamei de

internético, é preciso fazer o reconhecimento desse espaço e estabelecer como podemos, considerando suas

condições de contorno e de nossas contingências, construir algo como um percurso cognitivo. De início,

nunca é demais lembrar a etimologia de cibernética, termo cunhado com base no grego kybernetiké, que

remete por sua vez ao timoneiro, ao ato de dar um curso à navegação em meio às intempéries e às calmarias

(tanto quanto, hoje, nos movemos nesse ciberespaço chamado web, em meio a acúmulos de informações e

perdas de conexão com os servidores atacados de todo lado por vírus e piratas de variado jaez e feitio).

Trata-se não de buscar ou de encontrar, mas de construir uma orientação ao mesmo tempo que se avança

nesse processo cognitivo, e, se nada mais de útil pode vir dessa metaforização espacializante, ao menos ela

nos servirá para pensar o pensamento de uma maneira não habitual, associando a ele (e, em conseqüência,

ao próprio ciberespaço onde ele pode se desenvolver) os elementos e os procedimentos da topologia. Em

outras palavras, parece ser importante saber como orientar o pensamento em um espaço onde a cognição

ainda tateia, onde hipóteses ou outras formas de retórica argumentativa devem encontrar novos elementos

e novas axiomatizações. A esse respeito, algo interessante se encontra em um opúsculo publicado por Kant

no Berlinishe Monatsschrift, em outubro de 1786. Ele advertia que:

S’orienter signifie au sens propre du mot: d’après une contrée du ciel donnée (nous divisons

l’espace en quatre contrées de cette sorte), trouver les autres, notamment le levant. (...) Enfin, il

m’est possible d’élargir encore ce concept, du moment où il consisterait dans le pouvoir de

s’orienter non seulement dans l’espace, c’est-à-dire mathématiquement, mais dans la pensée, c’est-

à-dire logiquement.10

Importa, no caso, resgatar, segundo o filósofo alemão, a mesma operação de direcionamento para o que já

chamávamos a atenção quando apresentamos o termo cibernética. Kant fala dessa espacialização do

pensamento através das operações geométricas do espaço cartesiano, ainda submetido às injunções da

geometria de Euclides. Se quisermos estabelecer uma diferença com o que hoje, por meio do ciberespaço,

chamamos de topologização do pensamento, teremos talvez que apelar para as geometrias de Riemann ou

de Lobatchevski. E, se essa tal topologização pode ter algum interesse para nós, ele reside justamente na

possibilidade de nos fazer olhar e perceber o pensamento não como formas geometrificáveis provenientes

de alguma ordenação gestáltica, mas em termos de espaços e de vizinhanças n-dimensionais, traduzindo

justamente essa precariedade de domínios de validades e de imagens, chegando até as dimensões

fracionárias dos fractais. Assim, esse pensamento que se exercita no ciberespaço pode aparecer não como

uma atividade preestabelecida em caminhos sobejamente conhecidos, em rotas traçadas na direção

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unilateral de uma Grande Razão travestida de dogma ou de preconceito, mas como uma retomada

constante e provisória de uma racionalidade vivida corporalmente. Trata-se, em suma, de uma racionalidade

em movimento, capaz de estabelecer conexões insuspeitas entre hipóteses e deduções, ao ponto de umas

não mais se distinguirem facilmente das outras, como uma curva de Moebius retórica e argumentativa em

que interior/anterior e exterior/posterior colocam-se no mesmo plano. Trata-se, enfim, de uma

racionalidade não mais debitada à conta de um eu puro pretensamente encarregado de pôr uma ordem

transcendental na poeira de fatos, palavras e gestos com que habitamos nosso dia-a-dia.

E, no ciberespaço, a arquitetura conectivista pela qual ele se cristaliza e se dá à navegação talvez seja um

dos primeiros elementos dignos de nota. Essa propriedade, que pode ser descrita como a característica que

nos permite partir de qualquer nó e chegar a qualquer outro, acarreta duas conseqüências. A primeira delas

é a ilusão (e insisto nessa palavra, ilusão) de que todos os nós seriam, então, equivalentes, ou mesmo

homogêneos. Com isso, qualquer significação, no ciberespaço, seria definitivamente descartada, uma vez

que só se chega a algum significado quando um sistema significante se torna capaz de opor diferenças

relativas (e nunca absolutas) num horizonte de sentidos possíveis (esse, sim, o único absoluto em todo esse

esquema). Opor nós intrinsecamente homogêneos seria, então, o mesmo que dizer que o ciberespaço leva,

afinal de contas, a uma indistinção absoluta (e parece ser esse temor que está por trás das críticas de

Baudrillard). A segunda conseqüência dessa arquitetura conectivista está em outra ilusão: a de que, ao

contrário da homogeneidade a-significante (já descrita), o ciberespaço nos levaria a um saber total,

completo, todo-poderoso, talvez até mesmo infinito, a um conhecimento que seria a realização de todos os

otimismos tecnológicos dos dois últimos séculos. De fato, cria-se a impressão de que a extensão ilimitada e

a variedade das leituras beiram o infinito e arrastam consigo as potencialidades do pensamento. Não mais

um pensamento produto do espírito humano, mas pensamentos provenientes de próteses maquínicas que

dariam origem a uma nova união substancial – não mais aquele corpo-e-alma proposto por Descartes, mas

um corpo-e-máquina (que faz o horror de Paul Virilio e as delícias de um Pierre Lévy).

Se conseguirmos escapar a essas duas ilusões, teremos boas chances de entender como pode o pensamento

se inserir de maneira produtiva e não automatizante (ou até mesmo alienante) no ciberespaço.

Primeiramente, é fundamental esclarecer que a arquitetura conectivista não reduz as diferenças entre os

nós. E, no caso, é igualmente importante perceber o quão essenciais são essas diferenças entre cada um

desses nós, evitando que as diluamos em uma homogeneidade redutora e simplista. Em segundo lugar, isso

tudo implica, de certa forma, estabelecer limites para a razão, sobretudo para a razão que se exibe num

(ciber)espaço fingindo-se vocacionado para o infinito. Ora, boa parte da filosofia ocidental vem-se

construindo justamente na tentativa de desenhar os limites do saber, desde os pré-socráticos, passando por

Sócrates, pelo ceticismo de Pirro, chegando a Descartes (a dúvida sistemática é uma última e desesperada

tentativa de mapear as fronteiras possíveis do saber para escapar ao ceticismo de um mestre anterior,

Montaigne), a Kant (que buscava delimitar a razão para salvar a fé), sem contar ainda Nietzsche, Husserl,

assim como vários dos pensadores do século XX (Foucault, Derrida, Deleuze etc.).

Voltando ao ciberespaço, podemos dizer que, se suas possibilidades de conexão são praticamente infinitas

(e apenas a tentativa de esclarecer como seria essa infinitude das conexões já faria correr muita tinta) e se

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pode não haver um limite concreto e definitivo para esse desfilar de informações, há, certamente, um limite

para o saber. Aliás, saber sem limites está mais para desrazão (ou sua contrapartida, o irracionalismo) do

que para conhecimento. Como no caso do excesso de informação que se reduz a ruído, a não informação,

um saber pretensamente infinito, dotado de potências e possibilidades divinas, não seria jamais um saber.

Aparentemente, parece não haver lugar para Deus, mesmo no ciberespaço; ele se reduziria, aí, a um não

saber. Na verdade, sem querer propor um ateísmo tecnológico, o que pretendo é entender como o

conhecimento no ciberespaço só pode se construir com base nas precariedades dos indivíduos, da

provisoriedade de seus esquemas de racionalização, da efemeridade e, ao mesmo tempo, da necessidade

(da urgência, diria) de suas certezas. Isso talvez possa ser mais bem entendido se analisarmos o modo como

o tempo se insere e se insinua no ciberespaço e em suas navegações.

O ciberespaço parece proporcionar uma espécie de justaposição de várias temporalidades (resultando, em

parte, na efemeridade mencionada). Ele nos permite, por exemplo, num só golpe, perscrutar formas e

funções de telescópios direcionados para o fundo do universo (pensando nos sítios que oferecem imagens

de astros longínquos à comunidade científica e a quem mais se interessar). Com isso, consegue-se uma

curiosa conjunção de dois movimentos: o primeiro é esse que aponta para o futuro, que nos coloca no

vértice e no vórtice de uma máquina amplificadora do olhar e de sua imensa capacidade de processamento

de dados e de imagens; o segundo é o revés do primeiro, colocando diante de nós um passado absoluto, o

instante do big bang, nosso passado inaugural. Mas o efeito dessa conjunção pode ser perverso, eliminando

a diferença entre o direito e seu revés, na medida em que um e outro se homogeneizam, em que se reduz

um a outro, e se faz, imediatamente, do passado absoluto o futuro que permite vê-lo (o passado) através

de olhos e sensores de uma máquina das mais modernas. Com isso, passado e futuro igualam-se, perdem

suas diferenças recíprocas e reduzem ao absoluto de um presente que esteve no passado e estará no futuro

simplesmente por que está por trás de tudo.

Sempre vivemos em várias temporalidades; em qualquer época, essas diferentes temporalidades se tocam,

às vezes se confundem e se misturam. Nos diversos ritmos das sociedades agrárias, conviviam os diferentes

tempos das várias culturas, justapostos aos tempos das diferentes criações animais (incluídos os ritmos das

gestações e das gerações humanas). No entanto, nunca tivemos a experiência de reduzir as diferentes

percepções de cada uma dessas temporalidades a um presente homogêneo, absoluto e onipresente. Aí

parece residir a diferença desse tempo esboçado no/pelo ciberespaço. De fato, sempre nos espalhamos pelas

várias temporalidades, mas sempre nos foi dado, também, residir e resistir em uma delas. E foi justamente

isso que se esvaneceu, em parte, com a telematização dos espaços que habitamos e fazemos significar. A

escolha de uma dada temporalidade parece ter-se reduzido drasticamente a uma única escolha. Ao menos,

é essa a aparência da temporalidade homogênea que muitos associam ao ciberespaço. Ela vem a substituir

outras figuras que, ao longo dos séculos, caracterizaram a cultura ocidental: primeiramente, o tempo

circular das sociedades míticas, em que presente e futuro estavam sempre conjugados no passado, já que

retornavam incessantemente a um já-ocorrido; em segundo lugar, o tempo linear da ciência moderna, em

que passado e presente reduziam-se a um percurso que só encontrava sentido e explicação no futuro para

o qual apontavam, sempre e invariavelmente.

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A essas duas temporalidades opõe-se, assim, o eterno presente da contemporaneidade telemática, que não

aposta mais no passado mítico e tampouco no determinismo futurista das ciências modernas e positivistas.

Trata-se de um tempo espacializado, absoluto, marcando todo o território e, mais, toda possibilidade de des

e de reterritorialização. Aliás, a poesia de Alberto Caeiro acaba sendo uma das melhores figuras poéticas

desse tempo. E ainda: através dela é possível não apenas mapear (ver e habitar) esse presente espacializado,

mas encontrar uma maneira de escapar a suas limitações. Isso parece se dar por uma temporalização do

espaço, propiciada pelo próprio trabalho de poetização da escrita (processos que Caeiro desencadeia tão

bem em seu O Guardador de Rebanhos). Em conseqüência, se, por sobre esse presente absoluto e

espacializado do ciberespaço, não tentarmos ver um espaço temporalizado, vamos acabar nos submetendo

a uma ditadura do aqui e do agora, do circunstancial e do efêmero, do simulacro e do esvaziamento. Assim,

ao encarar o tempo apenas como espaço (com o que contribuem as lógicas conectivistas do ciberespaço),

corremos o risco de cair na tentação fácil dos espaços telematizados, perdendo toda perspectiva de

historicidade e chegando a um tempo que é enganação, subterfúgio, simulacro. Ao contrário, é justamente

essa des-absolutização do espacial que nos torna capazes de fugir ao relativismo e ao irracionalismo,

propondo um tempo que se dá a ver como espaço e, concomitantemente, um espaço que deve se dar a ver

como tempo (ou, talvez, como ritmização do espaço).

Em suma, fugir do presente absoluto do ciberespaço implica encontrar outros sentidos para essa sua

interconectividade intrínseca. Significa produzir o conhecimento também como um texto em rede, como

resultado da natureza essencialmente intersubjetiva de todo gesto, de todo pensamento, de toda

linguagem e, sobretudo, de toda linguagem que se textualiza num espaço telemático de n-dimensões. Em

outra ocasião, talvez possamos abordar mais de perto algumas das estratégias para a construção desse

conhecimento em/na rede. Por ora, é preciso deixar claro que se trata de um segundo estágio,

obrigatoriamente precedido por um primeiro, que consiste em despir-se de algumas das ilusões muito

freqüentes no ciberespaço. Entre elas – e que talvez seja a mais presente e ameaçadora de todas –, está a

que nos entrega um (ciber)espaço de que toda centralidade ou racionalização teria fugido. Junto com o

logocentrismo, com as metafísicas de essência, toda forma de racionalidade pareceria ter-se esvaído,

reduzindo toda significação e todo conhecimento a uma reacomodação ou a um mero jogo de significantes

vazios. No caso, saber equivaleria a discurso, o que reduziria todo percurso cognitivo a uma construção

sofística cuja complexidade já seria, imediatamente, seu valor de verdade. Em decorrência, qualquer

construção de sentidos e qualquer saber que se associassem ao ciberespaço pareceriam ser produzidos quase

que autonomamente, sem a intervenção de uma vontade operante, de uma racionalidade circunscrita a

certo domínio de validade e posta a funcionar pelas vizinhanças significantes dos objetos que aí aparecem.

Não parece ser outro o sentido dos conceitos de “ecologia cognitiva” e de “duo pensante homem-

máquina”, ou ainda o de “conhecimento por simulação”, de Pierre Lévy.11 Como todo espaço de sentidos,

em que objetos culturais se dão à produção e ao (re)conhecimento, o ciberespaço é um locus onde se

manifestam e se dão a (re)conhecer significações e subjetividades. Como espaço, ele não tem autonomia

nem para impor processos de produção de significações, nem espontaneidade para se fazer artífice solitário

de novas textualidades. Daí a necessidade de ele ser despido dessa máscara de operacionalidade

autocrática, dessa aparente capacidade de autonomia ou de espontaneidade que, distraída ou

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irresponsavelmente, lhe atribuem alguns de seus estudiosos. Por isso defendo uma posição diversa dessa do

sociólogo francês, em que justamente o saber seja produto de uma racionalidade circunscrita a certo

domínio de validade e posta a funcionar e a se articular pelas vizinhanças significantes dos objetos que aí

aparecem, pelo trabalho de significação de leitores. Quero dizer que o ciberespaço só vai adquirir

significações (sempre precárias e provisórias, nunca é demais lembrar) na medida em que nós, usuários,

leitores, (hiper)escritores, o fizermos repleto de sentido por uma decisão nossa, isto é, uma decisão de cada

um, mas que saiba buscar a presença dos outros, por meio dessa fímbria de alteridade que nos dá nossa

identidade, ao mesmo tempo que nos coloca em meio a outros, nos instala num centro que se desloca

constantemente para as margens, buscando incessantemente o aporte dos outros, que conferem

radicalidade e sentido a qualquer de nossos gestos e significados individuais.

Isso que descrevo é como uma fuga para a frente, quer dizer, uma marcha em que se avança sem que o ponto

de chegada esteja definido, uma navegação a que nos lançamos resolutamente, sem que o destino nos seja

dado. Na verdade, tanto ponto de chegada quanto destino acabam constituindo uma nova forma de

centralidade, não mais aquele centro das metafísicas ontológicas, mas um centro funcional que começou a se

esboçar desde as metafísicas gnoseológicas (a partir de Kant). E, no caso, uma das imagens mais felizes para

esse centro está na charge (de cuja autoria não me recordo e a quem, infelizmente, não posso dar os créditos)

do equilibrista de circo montado sobre um monociclo, desse saltimbanco que é também um desenhista e vai

rabiscando a linha sobre a qual se equilibra, com o lápis que ele segura e, à frente, vai traçando seu arame

bambo e seu caminho precário. Temos, então, um centro que se dispõe não ao meio da travessia,12 mas sempre

à frente, nunca alcançado, o que vale dizer que é como se ele estivesse servindo de fundo ou de horizonte a

todo o percurso sem que, por isso, tenha que determiná-lo inteiramente. Derrida insiste na importância do

centro não como um Ser, certo, mas como uma função que se torna absolutamente primordial:

“I didn’t say that there was no center, that we could get along without center. I believe that the center is a

function, not a being – a reality, but a function. And this function is absolutely indispensable”.13

E essa distinção é capital, sobretudo quando se trata de pensar o ciberespaço: entre o centro como essência

e o centro como função, é evidente que apenas esta última é capaz de descrever o modo consciente e

produtivo de nos apropriarmos do ciberespaço, de fazer dele uma região onde novos sentidos se somem

aos sentidos já sedimentados em forma de cultura e daí extraiam novos percursos e novas perspectivas

(mesmo indiretas) do mundo vivido. Com isso, evita-se a fossilização das percepções, o que constitui a pior

das mortes que se pode dar ao sujeito. Dessa maneira, tornamo-nos capazes de associar um sentido (mesmo

provisório) ao mundo, ainda que ele assuma essa precária aparência de cenários passageiros: paisagens,

elementos, objetos lingüísticos, memórias, imagens, tudo desfilando com maior ou menor celeridade diante

de nós, mas sem que percamos a capacidade de manter acesa sua espetacularidade, quer dizer, a

possibilidade de estarmos diante de suas significações e de as percebermos sem que, ao contrário, nos

tornemos um espetáculo vazio diante da tela do computador.14

Outras ilusões do ciberespaço parecem derivar, de uma forma ou outra, dessa primeira. Uma delas diz

respeito ao individualismo, que é uma das respostas possíveis ao espontaneísmo discutido (esse que propõe

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um ciberespaço homogêneo em que toda significação brotaria tão-somente de acentricidades e

desterritorializações, sem interferências de nenhuma subjetividade). Trata-se, na verdade, de tendência

ligeiramente oposta, em que justamente se tenta entender e estender toda significação como resultante de

uma decisão individual, produto de um voluntarismo que se confunde com o nó a que se reduz, nesses

casos, a subjetividade do leitor (e por trás de que ele se esconde). Ora, não se pode deixar de chamar a

atenção para as conseqüências algo desastrosas dessa atitude solipsista. Ela instaura um relativismo fechado

e redutor de que não se sai senão ao custo de uma negação de qualquer possibilidade de significação

intersubjetiva, o que corresponderia, na verdade, à negação de qualquer possibilidade de linguagem. Ela é,

aliás, parente próxima do solipsismo que marcou algumas das vertentes do cartesianismo, pois, afinal de

contas, quando se investigam os bastidores desse cogito fundado apenas no “Penso, logo existo”, toda a

certeza do conhecimento pareceria centrar-se numa identidade absoluta de si consigo mesmo, esquecendo

que ela não tem como alicerçar-se a não ser na existência do mundo vivido. Toda a certeza do conhecimento

só se estabeleceria, assim, a partir da arbitrariedade de uma consciência individual cuja substância é de

natureza diversa daquela que ela quer conhecer, o que, em decorrência, negaria qualquer possibilidade de

conhecimento. Esse individualismo, em suma, leva no limite à negação de qualquer linguagem e, por

extensão, também à de qualquer saber.

Essas ilusões todas que afetam e transtornam a presença do sujeito diante do ciberespaço não são

outra coisa senão um possível predomínio dos simulacros de que fala insistentemente Jean

Baudrillard. Eles aparecem, por exemplo, nessas erudições de puro exibicionismo,15 que permitem que

algumas pessoas se comprazam em multiplicar referências inesperadas e obscuras, impossíveis de

serem retomadas, reencontradas ou mesmo utilizadas sem ser por meio de sua orientação privilegiada

e de sua posição de saber de pretensos eruditos. E, quando se armam de informações a mancheias,

multiplicam referências cruzadas e arquitetam complexas figuras de percursos cognitivos,16 eles não

fazem, na verdade, mais do que produzir a hiperinflação informativa que já comentei. Um outro

simulacro liga-se ao tempo, ou melhor, à aparência de temporalidade que parece, então, esvaziada

pela celeridade desmedida das informações que não desfilam, mas escorrem pela tela, diante de nós.

E esse desenrolar frenético não possibilitaria nenhuma construção significativa, pois tudo se reduz à

homogeneidade de um presente talvez nem mesmo eterno, porém obsessivo, opressor, reduzindo

toda diferença significativa à platitude homogênea de sua onipresente figura fácil, em uma tela cheia

de pixels e vazia de significações.

Como resultado, temos um tempo espacializado, essa tentação fácil dos espaços telematizados em que se

perde toda perspectiva de historicidade. Chega-se a um tempo que é definitivamente enganação,

subterfúgio ou mesmo dissimulação. E, ainda, um último simulacro, que finge carregar a presença do outro

no rastro de seus gestos expressivos, como se o encontro de discursos verbais ou icônicos em chats ou ICQs

fosse capaz de resultar automaticamente na fundação de uma subjetividade transcendental (que, como diz

Husserl, é sempre intersubjetividade). Todavia, ao contrário da intersubjetividade, o que mais

freqüentemente se encontra na ponta do cursor, operado pelo mouse, quando se contrapõem discursos uns

a discursos outros, não é uma aproximação telemática que venceria distâncias e traria a presença do outro

até o sujeito de um dado discurso, mas sim a instauração de uma distância tecnológica tão terrível e

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opressora por se dar justamente no espaço limitado de uma tela de 15 polegadas. Com isso, confundem-se,

talvez até ingenuamente, metafísicas de aparência e metafísicas de essência, produzindo um platonismo às

avessas em que as presenças ideais (ou avatares) é que seriam capazes de produzir, a distância, as essências

do mundo exterior e as subjetividades dos outros.

* * *

Com base em tudo o que se afirmou anteriormente, podemos, talvez, fazer uma imagem desse saber

internético. Ele só se torna possível quando conseguimos escapar às ilusões e aos simulacros do ciberespaço.

Nesse caso, temos um conhecimento que se dá em rede ou, ainda, que se dá como rede textual (ou como texto

em rede), derivando diretamente da natureza intersubjetiva de todo gesto significativo, de todo projeto de

significação, de todo objeto significante. Somente esse saber pode dar à multiplicidade dos espaços telemáticos

n-dimensionais um sentido não unívoco, mas capaz de sedimentar e de possibilitar aquisições e doações de

significações. Daí, em princípio, a necessidade de assentar esse saber internético em alguns pressupostos:

1) Ele deve ter por trás o esforço constante de expandir a taxa de circulação motivada e bem-sucedida das

informações. Com isso, pode-se reduzir drasticamente o risco de uma hiperinflação informativa, seja pelo

modo como disponibilizamos na rede informações, conceitos, idéias, processos etc., seja pelo modo como nos

utilizamos das ferramentas telemáticas e das manipulações interativas e iterativas (vale dizer, repetitivas, a

grande velocidade). Nesse sentido, tal esforço retoma, ainda que parcialmente, o projeto iluminista de

democratizar o acesso a certos bens culturais, pela criação de aristocracias pontuais que, com base na intensa

mobilidade inerente à rede, podem espraiar-se incessantemente por outros nós e regiões outras. Com efeito,

trata-se de um saber que não se subordina mais a qualquer centralidade previamente instituída, mas faz de

seu movimento (ou percurso) de cognição a própria centralidade funcional de que falava Derrida.

2) Esse saber internético, por meio da interconectividade inerente ao ciberespaço, deve ser aquele capaz de

fazer-se concreta e verdadeiramente inter e transdisciplinar (de que tanto se tem falado, mas, de fato,

pouco viabilizado). Todavia, isso somente se obtém quando deixamos aflorar, explicitamente, a

intersubjetividade inerente a toda forma de linguagem, e fazemos dela a mediatriz de nossos percursos e

mapeamentos cognitivos do ciberespaço (quando aí produzimos e lemos objetos significantes). Em certo

sentido, trata-se de revestir de linguagem o exterior do ciberespaço, o que significa dar a ele uma

exterioridade, tirando-o do pedestal de forma absoluta e definitiva em que exterior e interior se

confundiriam. Entre muitos dos teóricos contemporâneos que se debruçaram sobre a internete, é comum

que a descrevam como um labirinto ou ainda como uma curva de Moebius, perdendo de vista que, na

verdade, apenas a linguagem pode ser metaforizada dessa forma com justeza e acerto. Em suma, se o

ciberespaço por vezes se finge de infindo ou interminável, compete a nós não cairmos nesse engodo e dar

a ele a medida e o alcance que lhe cabem e, sobretudo, não nos iludirmos com isso que é apenas aparência

ou simulacro (e pensar que podemos tudo conhecer instantaneamente). Entre a aparência e o

conhecimento verdadeiro há uma diferença fundamental, aquela mesma que podemos encontrar entre o

diletantismo e a erudição. Os primeiros (aparência e dilentatismo) não passam de admiração infértil e

narcísica por si mesmos; os segundos (conhecimento verdadeiro e erudição) apontam para uma

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humanização efetiva do saber, um saber concretamente compartilhado e que, por isso mesmo, parcela-se e

deslocaliza-se e pluraliza-se, incessantemente, ao mesmo tempo que num (apenas) aparente paradoxo deixa

de ser fragmentário.

3) Um verdadeiro saber internético implica o reaprendizado de uma nova paciência de aprender, ou seja, a

descoberta e a exploração de novos ritmos de conhecimento, em que o acesso e a utilização de instrumentos

tecnológicos venham dialogar com nossas contingências, acomodando-se a elas. E é claro que isso não

significa uma rapidez extrema em leituras ou na produção de informações no ciberespaço (o que

corresponderia a um otimismo tecnológico injustificável, a uma empolgação infrutífera e equivocada com

máquinas e maquinismos). Aliás, essa pressa não se justifica nem mesmo nas atualizações de programas e

de equipamento,17 quanto mais na construção de percursos cognitivos, mesmo quando baseados em

processos fortemente instrumentalizados. Ao contrário do que afirma Pierre Lévy,18 se priorizarmos a busca

de “velocidade e pertinência de execução, e, mais ainda, de rapidez”, encontraremos tão-somente uma

eficiência limitada às possibilidades e aos elementos de que já se dispõem, sem chegarmos àquele

conhecimento sintético que Kant opõe ao analítico. O saber internético, ao contrário, não deve ser

confundido com pressa, como também não pode ser confundido com totalidade ou infinitude: ele deve ser

capaz de gerar diferentes velocidades e sincronias, a partir das diversas pessoas envolvidas e apostando,

sobretudo, numa atitude em que são os instrumentos informáticos que se põem à nossa disposição e não

nós que nos colocamos à disposição deles.

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Novas Estéticas Eletrônicas?

Nunca é demais reafirmar que tudo que aqui se discute privilegia as perspectivas do campo literário; a ele

se dirige. Todavia, como arte que é também, a literatura nos permite apostar em algumas generalizações

que apontam para um campo artístico aberto, plural e multiexpressivo. Falamos, nesse caso, de artes que,

exatamente por serem artes, ainda sabem escapar aos inúmeros arquipélagos que as tendências, os

movimentos, os estilos, os instrumentos e os processos invariavelmente acabam criando. Vai aí, como ficou

evidente, uma visão do campo artístico que, exatamente por não ser platonizante, sabe fugir de todo e

qualquer essencialismo idealista. Ao mesmo tempo, não recusa o apoio das sistematizações, das

classificações e das ordenações. As reflexões que se seguem não vão certamente encontrar nem paralelo,

nem mesmo muito respaldo em boa parte das críticas e das teorias contemporâneas das artes plásticas e

visuais. É apenas (e como sempre) um olhar limitado que, jungido ao campo literário, ousa falar das artes

em geral. Olhar limitado, mas não limitante, é o que se espera.

* * *

Primeiramente, insista-se que se deve mencionar aqui “artes”, assim mesmo, no plural, multiplicadas que são

pelos meios e pelas estratégias de produção do objeto artístico. E mesmo as artes literárias, elas não deixam

atualmente de ser atingidas pela impermanência (constante) e pela obsolescência (eventual e relativa) dos

suportes, das linguagens, das estéticas. Daí a dificuldade (que vem, aliás, ganhando relevo desde o início do

século XX) de se definir estilos ou movimentos. Disso resulta que, no atual estágio das artes, tem sido mais

freqüente falar de utensílios ou de técnicas para definir ou descrever um objeto artístico ou um artista do

que apostar em invariantes que extrapolem o hic et nunc do objeto produzido e do gesto que o produziu

(nem se fale, então, de gêneros literários, aparentemente relegados em definitivo à vala comum do

esquecimento). Essa multiplicação de sensibilidades e de estratégias de produção dos objetos artísticos tem-

se escorado muito freqüentemente num discurso teórico paralelo ao objeto ou ao gesto artístico. Digo

paralelo, pois tais discursos, por mais que finjam, não conseguem jamais entrar completamente na esfera do

artístico: se assim o fizessem, deixariam de desempenhar justamente o papel para que foram criados, isto é,

o de exercer a função de um cinturão conceitual em torno do objeto artístico e apto a justificar cada

arbitrariedade, transformando, por vezes, improvisos ou fraquezas em algo digno de interesse. Os antigos

critérios de valor estético – enfraquecidos com justiça por seu caráter prescritivo – foram simplesmente

substituídos por uma argumentação sofística. Sofisticada, sim, às vezes, mas quase sempre sofística.

Em resumo, muitos dos objetos e dos gestos artísticos, faltos de qualquer inserção evidente e intencional

numa linha cronológica, temática, estética ou até mesmo ideológica – por que não? –, não têm outra

alternativa a não ser esta: desdobrarem-se, multiplicarem-se indefinidamente, numa espécie de fuga para

adiante que evite qualquer acerto de contas com outras produções e outros produtores. Com isso, obrigam-

se a se fazer acompanhar dessa coorte de textos teóricos e reflexivos que pretensamente justificariam sua

inserção no rol dos objetos artísticos. Mas não há discurso teórico ou “palavra pintada”19 que esconda

permanentemente o improviso e a falta de conhecimento, o recurso em última instância aos readymades,

que apenas revelam desesperada (ou desesperançada) falta de imaginação. O coletivo Wu-Ming, um dos

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mais instigantes grupos de intervenção midiática da atualidade, falando do experimentalismo nas

narrativas, afirma que ele é “accettabile solo ed esclusivamente se aiuta a raccontare meglio. Se invece non

è che il proverbiale dito dietro cui si nascondono mediocri o pessimi narratori, per quel che ci riguarda

possono ficcarselo nel culo”.20 Já não seria, talvez, escandaloso afirmar com os responsáveis do sítio Aleph21

que é “fin de juego para la herencia Duchamp”.22

* * *

Uma parte das instalações e dos gestos artísticos das últimas décadas (esses que não transitam resolutamente

no diálogo com as tecnologias contemporâneas), expostos em salas ou ao ar livre, ainda são delimitados por

nossa corporeidade: limitação da velocidade de processamento de dados e de justaposição ou alternância de

significantes; alcance máximo do campo perceptivo; quantidades definidas (e pequenas) de memórias de

curto, médio e longo prazos, exigidas na leitura do objeto etc. Em outras palavras, entre tais objetos e gestos

artísticos e o corpo do leitor não há ainda intermediários de monta e de importância, materialmente falando.

Veja, entre muitos outros exemplos, as criações do grupo catalão La Fura del Baus, em que a platéia é levada

a perambular pelos cenários e pelas performances junto com os artistas. De seu lado, as criações da ciberarte

erguem uma série de interfaces eletrônico-informáticas entre a instância perceptiva – a esfera de

corporeidade do leitor – e o que pareceria ser origem e matriz, o cerne do objeto virtual. E tais interfaces

começam por próteses ou aparelhagens várias (mouses, teclados, telas, máscaras de 3D etc.) ligadas

diretamente a nossas mãos, olhos, dedos, braços, ouvidos. Mas não se trata apenas de receber estímulos

sensoriais diretos, pois, imediatamente, somos levados a interagir com ícones, imagens, materiais verbais e

não verbais de toda espécie, que usam a aparelhagem mencionada para colocar em jogo nossa capacidade

de leitura e de manipulação de dados, nossa memória, nossas lembranças, nossa habilidade em associar

significantes de natureza diferente e que proporcionam um arremedo de geléia geral semiótica.

Mais um passo e avançamos para o espaço das lógicas de interatividade e de iteratividade, utilizando, no

caso das primeiras, nossos conhecimentos de sintaxes e semânticas ergonômicas das interfaces gráficas das

telas de computador; no caso das segundas, nossa pretensa habilidade em controlar a velocidade com que

o computador trata os processos e, ciclicamente, os expõe à nossa leitura e, depois, a nossas tendências,

decisões e interações. Nesse caso, é freqüente que precisemos até mesmo fazer uso ou expansão de nossos

conhecimentos técnicos, alterando configurações da máquina, instalando ou reinstalando plugins e patches.

Em seguida, podemos ser levados a intervenções no ambiente de trabalho do computador, alterando áreas

de atuação, alargando redes internas, disponibilizando redes externas. E, ao longo de todos esses processos,

estamos sempre sendo chamados, externamente, a possíveis ou necessárias entradas em outros sítios ou

endereços eletrônicos; ao mesmo tempo, internamente, estamos lançando mão de programas paralelos

(editores de imagens e de texto, gerenciadores de placas de vídeo e de áudio etc.) àqueles de que nos

servimos para entrar no ciberobjeto.

Cumpre, então, investigar mais detidamente esse processo, passeios ou idas e vindas por essa série de

interfaces que vão dos dispositivos eletrônicos aos programas todos instalados no computador, passando

pelas várias camadas das interfaces gráficas. Tal processo poderia até ser visto por alguns como um caminho

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de leitura privilegiado, um percurso de compreensão que levaria no limite, como as hipóstases do

neoplatonismo, à essência desse objeto ciberartístico. Contudo, entraríamos aí num jogo paradoxal:

multiplicamos interfaces, quando queríamos desvelar a unicidade do objeto ciberartístico, como que justapondo

cortinas para desnudar uma pretensa sua essência. Ao passarmos de uma interface a outra, podemos não fazer

mais do que multiplicá-las, por não se tratar de via de mão única – sempre em direção a um eidos do ciberobjeto

–, mas de um percurso que admite tanto a ida quanto a volta. Em suma, não avançamos para nenhuma essência

de qualquer objeto, apenas transitamos de um nível a outro do ciberespaço, sem que nenhum deles possa ser

tido e havido como definitivo ou primordial. Para melhor compreender tudo isso, talvez possamos tomar a

expressão “no limite” em seu sentido matemático: limite aí indicaria tão-somente uma aproximação assintótica.

Com isso, a essência ou verdade desse ciberobjeto não estaria colocada ao final do processo, como verdade

revelada ou descoberta. Seria possível tomar os códigos de programação do objeto (a página-fonte HTML de um

sítio; a codificação em Visual Basic ou C++ de um programa etc.) como a instância definitiva desse ciberobjeto?!

É claro que não! Se assim fosse, estaríamos diante de uma essência permanentemente à deriva, espalhada pelos

vários programas (sistemas operacionais, páginas de códigos de caracteres alfanuméricos etc.) associados àquele

que coloca em funcionamento nosso ciberobjeto. E tal essência estaria, assim, fragmentada para sempre, como

um Osíris adâmico que não se recuperaria jamais da queda, fadado a permanecer na esfera da imanência até o

final dos tempos ou das pilhas que alimentam os relógios dos computadores.

Por outro lado, esse jogo de interfaces semelha-se às várias camadas de significantes que, no dizer de Pierre

Emmanuel,23 caracterizariam o simbólico: para o autor de Considération de l’Extase, analisar

intelectualmente um símbolo seria como descascar uma cebola, camada a camada, tentando encontrar a

própria cebola. De maneira idêntica, nos três casos – da cebola, do símbolo e das interfaces telemáticas –

pode-se seguir sempre em frente, na crença de chegar à essência ou à verdade do objeto em análise, mas, no

final do processo, o que se tem nas mãos é apenas um vazio ou uma insignificância. Essa imagem proposta

por Pierre Emmanuel reforça o princípio de que o símbolo é, claro, também texto, ou seja, um certo arranjo

de significantes submetido à leitura, e não idéia originária, imagem correlata ou mesmo substância,

afirmação que também pode ser feita em relação aos objetos da ciberarte – assim como de qualquer objeto

artístico. Em todos esses casos, não se pode querer chegar a uma interpretação última e definitiva; o que

resta ao leitor é adiar indefinidamente o término do processo de leitura. De fato, quanto mais avançamos

nessas pretensas hipóstases da ciberarte, mais nos perdemos, a menos que, como dito acima, consideremos

o código-fonte em HTML de uma web criação o verdadeiro objeto artístico que buscávamos delimitar. E nessa

pretensa ou possível simbolização telemática assim como no processo simbólico descrito por Pierre

Emmanuel, o símbolo não se coloca como significante ou significado derradeiro a discernir, mas como esse

processo de composição e de decomposição das várias camadas de interpretantes. Só que se trata de uma

simbolização diversa daquela que, até o momento, nos foi permitido elaborar dentro da tradição oral, em

primeiro lugar, e da tradição escrita, em segundo. Enquanto nestas duas há uma estratificação hierárquica

das diferentes camadas significantes, que se vão sobrepondo indefinidamente, mas sempre em ordem

decrescente de entropia, na ciberarte, não há hierarquias necessárias na passagem de uma interface a outra,

como se o sistema em observação se mantivesse em um nível de entropia sempre estável e, talvez, máximo.

* * *

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No que se refere às artes contemporâneas, sobretudo as que se desenvolvem com base nas vanguardas do

século passado, e no que diz respeito à multiplicação de estratégias e de sensibilidades, podemos vislumbrar

no ciberespaço uma possibilidade concreta de escapar à insularização desenfreada e isolacionista que as

acomete. Freqüentemente, essas manifestações artísticas contemporâneas não constituem mais correntes

nem movimentos, mas espontaneísmos empíricos, ou até mesmo voluntarismos imediatistas. Ora, o meio

eletrônico pode permitir que rearranjemos e recosturemos, de modo sempre diverso, diferentes ciberobjetos.

As estratégias específicas de um conjunto de ciberobjetos podem ser atravessadas por outras estratégias,

estas agora de recortes e remontagens, de deslocamentos e de pluralizações. Não é preciso, então, que

fiquemos limitados à especificidade do gesto, nem à singularidade do objeto, muito menos ao individualismo

do criador; podemos, ao contrário, apostar nisso que Akenaton caracteriza como um “mélangeur, um mixeur

fantastique”,24 o próprio ciberespaço. É importante salientar que não se trata de misturar, de forma

apressada, improvisada e aleatória, diferentes gestos e objetos. Trata-se, isso sim, de pluralizar critérios de

justaposição e/ou de aglutinação de significantes e de percursos de leitura, o que poderá até mesmo nos

levar, finalmente, ao estabelecimento de juízos de valor (e parece ser mais do que tempo de encararmos essa

dificuldade e essa premência de estabelecer tais juízos de valor para as artes contemporâneas).

Uma discussão de certo interesse, acerca das condições de produção da ciberarte, está disponibilizada no

sítio Aleph, no manifesto anteriormente citado.25 Nele, são abordadas algumas questões relevantes para a

discussão que aqui tentamos fazer avançar. O ponto de partida de tal manifesto é a opção por uma

perspectiva “produtista” (para não confundir com “produtivista”) da arte: “No somos artistas, tampoco por

supuesto ‘críticos’. Somos productores (...) somos productores, sí, pero también productos”.26 Assim, de

autores ou artistas, os responsáveis pelo manifesto passam a se denominar produtores, revivendo talvez

uma comunhão do mesmo tipo daquela que nos séculos XV e XVI, na Itália renascentista, fez nascer uma

arte diretamente associada às técnicas de produção artesanal que estavam então surgindo.27 Sintonizado

com a efemeridade dos objetos telemáticos, o manifesto afirma não existirem obras de arte, mas práticas

artísticas.28 De fato, a nova denominação sugere que se mantenha a ruptura (inaugurada pelas vanguardas

do início do século XX) com a tradição das belas-artes, recusando toda aura ou originalidade para suas

criações, assim como para si próprios. Dessa forma, o termo “produtores” em lugar de “artistas” parece

pressupor um investimento muito maior na técnica e muito menor – diria praticamente nulo – no

artesanato. Contudo, tal empenho novidadeiro nem é tão novo assim: como já mencionado, ele se

manifestava nos saberes (ao mesmo tempo técnicos e artísticos) dos pintores e escultores do quatroccento.

Em relação às práticas artísticas, se elas tomam o lugar das “obras de arte”, isso significa que se coloca a

ênfase em três instâncias: 1) no gesto, na intervenção dos produtores; 2) nos meios e nos percursos de

circulação das práticas artísticas; 3) em “ciertos efectos circulatorios: efectos de significado, efectos

simbólicos, efectos intensivos, afectivos”.29 Não se privilegia o objeto concretamente considerado, ou seja,

alguma eventual materialidade que esteja diretamente ligada a uma dada prática artística. Isso, aliás, está

de acordo com a seqüência do manifesto: “Esa producción nunca debe confundirse con objeto o forma

alguna: es un operador que se introduce con eficacia en algún sistema dado, desestabilizando la ecuación

de equilibrio que lo gobierna”.30 Em suma, por trás desse discurso teórico, aparece o esforço de

desmaterialização do artístico ou, em outras palavras, o de privilegiar a efemeridade na produção das artes.

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Como conseqüência, ganham relevo quase exclusivo as condições de produção, os efeitos, as formas e

trajetórias de circulação do artístico. E não se pode deixar de notar a presença de uma retórica de aparência

teorizante, formatada ad hoc para dar conta dessa dada prática artística e que se sobrepõe ao objeto,

querendo escondê-lo também para garantir ou amplificar os efeitos acima mencionados. Caberia, no caso,

perguntar se esse esforço não seria paralelo a um outro, o de precarização dos conhecimentos estéticos e

históricos, relegados a segundo plano diante da premência de dominar certo conjunto de técnicas e de

processos. Em outras palavras, essa perda de importância da materialidade do artístico corresponderia ao

afrouxamento (e talvez também à desorganização) dos pressupostos teóricos e estéticos em sua produção

e em sua fruição. A finalidade disso talvez esteja nesse projeto de fazer com que a impessoalidade dos

instrumentos e dos processos técnicos participe mais intensamente da produção artística.

De fato, há de se recuperar (ou propor) as (novas) relações entre ferramentas e condições de produção, de

um lado, e o objeto produzido, de outro. Contudo, torna-se cada vez mais premente limpar o campo

conceitual desse simplismo que consiste em confundir materialidade com objetividade: se as práticas de arte

contemporâneas enveredam pela fugacidade do gesto, pela velocidade dos processos, pela transitoriedade

das redes e dos nós, isso não quer dizer que não haja aí nenhuma objetividade, o que acarretaria a

irrelevância das sistematizações estéticas. Ao contrário, isso significa apenas que a objetividade dada à

leitura é exatamente a dessas práticas desmaterializadas. Ora, essa confusão entre materialidade e

objetividade não parece ser, de modo algum, ingênua ou casual. Nem mesmo isenta de conseqüências.

Atenuando os elementos de apreensão artística do objeto (confundido, então, com sua materialidade),

enfraquecem-se também os critérios estéticos de análise. É aí que entram os discursos de aparência

teorizante que acompanham as práticas artísticas: na ilusão de que não se tem mais, pretensamente, de se

ocupar de qualquer objetividade específica, abre-se caminho para que tais discursos venham se sobrepor à

investigação criteriosa da obra de arte. Na verdade, ao se proclamar essa desobjetivação do artístico – como

se isso fosse conseqüência direta de sua desmaterialização –, o que se faz é, espertamente, intrometer de

contrabando uma objetividade envergonhada e que não se assume como tal.

Paradoxalmente, os produtores (ex-artistas, então) colocam-se também como produtos, ou seja, como

objetos. Será que, segundo tal perspectiva, estaria circunscrita a isso a objetividade do fazer artístico? À

reificação do artista, agora assumindo-se como produto? Na verdade, essa visão parece, mais do que tudo,

uma tentativa de dar relevo ao sujeito-despersonalizado, em oposição ao sujeito-individualizado.31 Nesse

caso, no que toca às técnicas, aos processos e aos instrumentos utilizados, eles penderiam claramente para o

lado da despersonalização, assim como os meios, os percursos e os efeitos dessas práticas; no que se refere

aos discursos teóricos que eventualmente acompanham as práticas contemporâneas (até mesmo na forma de

manifestos, como esse de Aleph ou aquele do grupo Wu-Ming), eles se tornam às vezes o último reduto do

sujeito-individualizado (do Je, tal como discute Couchot). É justamente a partir desse sujeito-individualizado

que se pode resistir ou aderir ao otimismo tecnológico. De fato, a individualidade, no que diz respeito às

práticas artísticas contemporâneas, tem-se resvalado muito freqüentemente para a estreita margem de

manobra dos manifestos e dos textos teorizantes. E, dependendo da opção que se faça (resistência ou adesão

à mitificação das técnicas), vai-se poder falar em invenção a partir de ou reprodução das técnicas. Essa

não é uma questão menor e está presente em alguns elementos abordados no manifesto de Aleph:

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“...las prácticas artísticas lograrán encontrar, en un proceso de transformación de las sociedades actuales

que tiende a convertirlas en meros instrumentos de legitimación – cuando no en triviales generadoras de

bibelots de lujo para las nuevas economías inmateriales – sus mejores argumentos de futuro, su más alto

desafío – o cuando menos una buena razón de ser en el siglo que ya comienza”.32

Eis o desafio das práticas artísticas das próximas décadas: evitar que se convertam em propagandistas das

empresas produtoras de softwares, construindo (mas não criando) objetos artísticos que são, na verdade,

meramente exercícios de possibilidades já previstas pelos conceptores responsáveis pelo programa.

* * *

Com base no que foi discutido, que estéticas seriam ainda possíveis para as artes eletrônicas, ou, especificamente

em que nos cabe aqui pensar, para as textualidades literárias em meio eletrônico? Sem meter de vez a mão

nesse vespeiro (de que não sairíamos mais), seria importante ao menos esboçar alguns elementos comuns a

essas estéticas. De início, temos de ter bem claro que não se pode trabalhar com classificações e tipologias

fechadas e definidas,33 sobretudo com aquelas anteriores ao meio eletrônico. No sítio Neogejo, por exemplo, os

leitores estarão em séria enrascada se tentarem definir qualquer dos objetos ali apresentados com base em

esquemas e axiologias definitivas, principalmente aquelas ainda ancoradas nos meios não eletrônicos. Nesse

sítio, por exemplo, a criação After Rendez-Vous du Dimanche 6 Février, by Marcel Duchamp and BBC News, é

literatura ou criação gráfica? E mesmo as criações eletrônicas não digitais não nos fazem avançar muito. Ela

poderia ser classificada como videoarte ou teríamos que tirar do colete alguma outra denominação?

Como ponto de partida, poderíamos talvez dizer que se trata simplesmente de prática artística, de acordo,

inclusive, com o que foi afirmado acima. Num segundo momento, será imperativo especificar, delimitar,

mapear, circunscrever – paulatinamente – o objeto artístico. Isso não significa que teremos necessariamente

de elencar suas características e componentes, mas sim que será possível e até mais fértil descrever as

condições de possibilidade de sua produção. Com isso, evitamos a tentação do vale-tudo e do simplismo –

conseqüências imediatas da exigüidade teórica que se deixa seduzir pela generalidade do rótulo práticasartísticas e dele não sai mais. A partir daí, se poderá invocar, então, o abrigo de algumas das possibilidades

aventadas (videoarte, literatura etc.). Pode ser que tal rótulo seja bastante adequado a artes que não

pendem mais para os lados da representação, mas que se lançam resolutamente na produção de processos

e de sentidos (talvez, na produção de processos de sentidos). Porém, isso não significa que devemos nos

obrigar também a escolher entre essência e presença (no caso, haveria uma correspondência entre

representação e essência, de um lado, e entre produção e presença, de outro). Trata-se, como em muitos

outros casos, de uma falsa dialética travestida de dicotomia. É certo que, como afirma o manifesto de Aleph:

“En las sociedades del siglo 21, el arte no se expondrá. Se producirá y difundirá”.34 Mas que não se deduza

daí que a desmaterialização das artes implicou sua des-objetivação.

Quando foi feita a descrição das condições de possibilidade de produção do objeto artístico, quis-se

enfatizar a produção simbólica no que diz respeito a seus processos de circulação, disseminação e

sedimentação de significantes, chamando esse sistema de “práticas de arte”. Mas é bastante diferente do

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modo como essas práticas vêm sendo descritas e entendidas nas últimas décadas. Para muitos, elas se

aproximariam da definição dada por Mário de Andrade ao conto.35 Como afirma Philippe Castelin:

Une ‘pratique d’art’, pour dire vite les choses, serait ainsi une activité créative non adressée

socialement mais réservée à un usage privé, et, en tout cas, délestée du souci de l’Art et de son

Histoire. Je puis faire de la cuisine avec un art et un raffinement infinis, si je n’invite que moi même

et quelques amis à goûter le résultat, ceci demeure une ‘pratique d’art’. Pour que je devienne

(hypothèse...) un artiste en ce domaine il faut que j’accepte de m’inscrire dans la compétition des

étoiles et des toques, que j’entre dans le circuit, que je m’adresse, potentiellement, aux juges,

arbitres et concurrents. Si la fin de l’Art a sonné depuis longtemps, il est possible que le web ouvre

une vaste perspective à pareilles ‘pratiques d’art’ et s’offre comme refuge pour tous ceux qui ont

décidé de ‘laisser tomber’...36

Tal definição teria duas desvantagens e, a rigor, nenhuma vantagem de monta. A primeira desvantagem seria

tornar o relativismo a única possibilidade de abordagem estética do objeto artístico; parente próxima da

primeira, a segunda corresponderia à ilusão de que não há proveito em inserir a apreciação de tais objetos

em qualquer perspectiva histórica. No caso, nunca é demais lembrar Marx: “Hegel fait quelque part cette

remarque que tous les grands événements et personnages historiques se répètent pour ainsi dire deux fois.

Il a oublié d’ajouter la première fois comme tragédie, la seconde fois comme farce”.37 Esquecer, então, a

perspectiva histórica é arriscar-se a repetir como farsa – e não como paródia ou pastiche – o que já foi antes

produzido, sem que esse tom farsesco faça, ao menos, parte da estratégia de produção do objeto. As práticas

de arte devem, por isso, escapar a tal exercício de singularização progressiva e fechada, abrindo-se para a

construção de campos e estratégias de disseminação e sedimentação em que seu objeto deixe, ao menos,

traços e rastros de uma fugaz presença. Com isso, evita-se o relativismo, tanto daquilo que se fecha para a

alteridade (objetiva e subjetiva) quanto desses processos que se instalam na ilusão de um eterno presente.

Assim, nossas práticas de arte contemporânea realizam-se não apenas como produção de materialidades

(como é o caso das artes plásticas tradicionais), mas sobretudo como produção de possibilidades de

produção de materialidades. Nesse caso, estas últimas se tornam cada vez mais tênues, efêmeras, deixando,

como já foi dito, apenas traços à semelhança das partículas elementares cuja presença, sempre indireta, fica

rapidamente esboçada por linhas nas câmaras de bolhas. Mas a expressão acima carrega algo de obscuro.

Em termos mais diretos, o que seria essa “produção de possibilidades de produção de materialidades”? Ela

está, por exemplo, nos sítios que à semelhança daqueles que dão à leitura os Cent Milles Milliards de

Poèmes, de Raymond Queneau, geram os instrumentos informáticos, os meios telemáticos e os processos

lógico-combinatórios para que o leitor venha, por sua vez, gerar as sucessivas combinações dos diferentes

sonetos. Aí, pelos aparatos e processos digitais, produzem-se não materialidades diretas, mas condições de

possibilidade de geração de materialidades; ao leitor, em seguida, competirá a criação dessas materialidades

transitórias que são as diversas e praticamente nunca repetidas versões do soneto. Estabelecem-se, então, e

sobretudo, contextos e situações de criação aberta e/ou coletiva: no caso dos Cent Milles Milliards de Poèmes,

a produção de uma dada combinação de versos (que, enfatize-se, praticamente nunca mais será repetida) só

se torna possível graças a uma rede de relações de causa e efeito que começam com o planejamento dessa

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fôrma literária por Queneau, passando, a seguir, à sua transformação em código por um programador, para

chegar enfim ao comando com que o leitor entra na página da web e dispara a produção de uma dada

seqüência de versos. Nesse caso, como em qualquer outro, não se confunda o conteúdo informativo (ou

semântico) do produto (a referida seqüência de versos) com o valor estético da produção.

Nas artes tradicionais, a produção simbólica desenvolvia-se nos significados do objeto produzido, o que

valia dizer que sua semantização era tomada diretamente como valor estético. Nas artes contemporâneas,

ela se instala na maneira como se dá a circulação dos significantes. Em outras palavras, as próprias técnicas,

os próprios processos e instrumentos também passam a ser inseridos em uma estratégia de simbolização.

Trata-se de trazer para a ribalta os objetos técnicos – colocados usualmente como coadjuvantes no processo

de produção artística. Mas atenção! É fundamental perceber que nessa situação eles funcionam de modo

diferente: não mais impõem sua lógica de produção em massa, sua exigência de eficácia máxima, pois estão

entrando em um espaço para o qual não foram planejados nem concebidos, espaço que vai impor-lhes

lógicas e estratégias específicas, diferentes, por certo, talvez até mesmo opostas às suas lógicas e estratégias

originais. De maneira muito semelhante, é o que ocorre com os cientificismos e filosofemas trazidos por

Augusto dos Anjos ao espaço poético: não se pode lê-los de modo algum como reproduções ou citações de

epistemologias ou metafísicas; é preciso entendê-los como elementos incorporados às estratégias de escrita

do poema, tão legitimamente como qualquer dos operadores poéticos tradicionais, como a rima ou o ritmo.

E é nesse fio de navalha que corre a criação artística em meio eletrônico, sobretudo essa da poesia digital.

Uma das questões mais importantes que a ela se coloca foi muito bem esboçada por Fabio Doctorovitch:

“Existe un hilo muy delgado que separa a la poesía tecnológicamente avanzada pero conceptualmente

tosca de aquella que verdaderamante rescata la esencia poética – que no se manifiesta a través de palabras

únicamente – y la expresa por medios tecnológicos, creando de esta manera nuevos conceptos y abriendo

caminos imposibles de andar de otra manera”.38

Trata-se, em suma, de encontrar confluências possíveis, zonas de simbolização mútua entre os novos

instrumentos/processos de produção e as linguagens artísticas que se busca desenvolver. E é exatamente

nessas zonas de confluência que se pode ancorar qualquer esforço de juízo e de valoração estética.

Habitualmente, deparamos com aparatos (processos de produção do objeto artístico mais os dispositivos

técnicos e ferramentas que o tornam possível) que no caso da poesia eletrônica, por exemplo, não resultam

em criações que primam pela linguagem verbal. Aparentemente, apenas se deu relevo e importância às

possibilidades de manipulação das técnicas – como é o caso do Générateur de Clés, de Eric Sérandour –, sem

que houvesse uma comunhão entre as linguagens das técnicas (incluindo aí as de seus manuais) e as

linguagens criativas das artes. Ora, não se pode fazer de conta que qualidade não nos interessa, quando ela

está o tempo todo por trás de toda e qualquer percepção que se tenha do objeto artístico. Assim, seguindo

o que insinua Loss Pequeño Glazier,39 um dos mais importantes poetas eletrônicos da atualidade, há uma

possibilidade de se aproximar o poeta do programador (sem identificá-los totalmente), a partir do

momento em que se aproximam o poema e o programa. Ou, dito de outra maneira, quando se realiza o

poema dentro e, também, apesar das possibilidades do programa.

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Claramente, o que se postula aqui é a submissão das técnicas e de suas lógicas de produção a interferências

e deslocamentos inerentes ao fazer artístico, para que possamos, em algum momento, construir de fato um

saber artístico (saber acerca do artístico e, mais importante, derivado do artístico). Expliquemos isso mais

detalhadamente. As lógicas do fazer técnico impõem a eficácia como valor de troca e de circulação de seus

objetos. Se um programa é menor e mais rápido que um outro que faz o mesmo, esse primeiro é certamente

melhor, segundo os critérios de valor e de produção das técnicas. Ora, isso tem como contrapartida a criação

de um mito moderno e contemporâneo, o da onipotência da tecnologia. E se encontra aí, justamente, uma

das portas de entrada para que o gesto transgressor das artes adentre o espaço das técnicas, transtornando

e transformando suas significações e sentidos, sobrepondo-lhes uma outra camada de simbolização (não

mais essa derivada de forma direta e simplista das mitologizações da produtividade técnica).

Aparentemente, essas transgressões são o que Grégory Chatonsky chama de “incidente”.40 Não

necessariamente o grande incidente de Paul Virilio,41 mas justamente essa descoberta de veios e jazidas de

sentidos inesperados e que estão sempre insertos às técnicas, escondidas e amalgamadas em suas

insignificâncias (e que, exatamente por serem insignificâncias, são escamoteadas da imagem pública que se

exibe das técnicas, desses seus mitos contemporâneos e tão-somente profanos):

“L’incident n’est plus dès lors une simple obstruction au régime fonctionnel de la technique. En le

désinstrumentalisant et en le refonctionnalisant dans un cadre esthétique on propose un comportement inédit

auquel aucun mode de lecture préexistant n’est (encore) adapté. C’est dans cette découverte de l’incident

comme refoulé de la technique qu’une imagination sans formations représentatives peut émerger”.42

E esses incidentes (sempre no plural, como defende Chatonsky),43 na verdade, não aparecem pelo fato de

os sistemas se desconectarem, de as redes se desgovernarem, de se intrometerem vírus e hackers. Não

temos, é claro, uma estetização imediata do espaço telemático. Digamos que tais incidentes constituem

justamente a condição de possibilidade de termos lógicas artísticas sobrepostas às das técnicas: sintomas de

inutilidades, incapacidades temporárias que se tornam duráveis ou mesmo permanentes, quebras na ordem

no esperado e na esfera do possível, tudo isso pode ser recuperado como novos mitos, esses do saber que

escolhe sempre as vias mais difíceis, os caminhos mais áridos, as propostas mais inúteis. Mas todas elas

irrepetíveis, criando sempre esse espanto original e originário. Aliás, à diferença do espanto com a técnica

(cujo modelo é o do ovo de Colombo, espanto que precede a repetição extremamente fácil), o espanto com

o artístico parece sempre impossível de ser reproduzido exatamente. Diante dele – e com ele –, estamos na

mesma situação descrita por Caeiro:

“Sei ter o pasmo comigo

Que teria uma creança se, ao nascer,

Reparasse que nascera deveras...”44

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Notas

1 [A nossa é, essencialmente, uma época trágica, e nos recusamos, então, a apreendê-la tragicamente. O cataclismo ocorreu, estamos entreruínas, começamos a construir novas pequenas moradias, a ter novas pequenas esperanças. É, na verdade, um trabalho duro: não hácaminhos fáceis para o futuro, mas nós contornamos ou pulamos os obstáculos. Temos que viver, não importa quantos céus tenham caído.]tradução do autor.

2 Reunindo uma série de técnicas que vão desde o estabelecimento de alguns tamanhos padrão (in-fólio, in-oitavo, in-quarto), passando pelascapas e contracapas, pela numeração de páginas, pela divisão e subdivisão em partes, pela construção dos diferentes tipos de índice etc.

3 Como propõe ABRIOUX, Yves. Géométrisation et dynamique textuelle: Thomas de Quincey, the english mail-coach. La Licorne, n. 28, p.163-4, 1994.

4 Podemos citar obras que vão do Dicionário Kazar, de Pávitch, a O Jogo da Amarelinha, de Cortázar, passando por Se um Viajante, numaNoite de Inverno..., de Calvino, entre outros.

5 CHARTIER, Roger. Du codex à l’écran: les trajectoires de l’écrit. éc/art S, Paris, n. 2, p. 42, 2000.

6 BOUTOT, Alain. La philosophie du chaos. Revue Philosophique de la France et de l’Etranger, Paris, n. 2, p. 173, avril/juin 1991.

7 BARTHES, Roland. S/Z. Paris: Seuil, 1970. p. 11.

8 Uma versão preliminar deste capítulo foi publicada em 2002, na revista Logos, da Escola de Comunicação da UFRJ.

9 É importante ressaltar que, se essa reversibilidade é essencial à linguagem ou à experiência do estar-no-mundo do sujeito, jamais poderiacaracterizar uma essência do ciberespaço, pois este aponta para uma instância derivada justamente daquelas duas experiências primeirase primordiais. Se pode ser associada alguma forma de reversibilidade ao ciberespaço, ela é como que outorgada pela linguagem e peloestar-no-mundo com que o sujeito reveste o ciberesepaço (e não o contrário).

10 KANT, Immanuel. Oeuvres philosophiques. Paris: Gallimard, 1980. v. 2, p. 521-545. (Bibliothèque de la Pléiade). [“Orientar-se significa,no sentido próprio da palavra: a partir de uma dada direção do céu (divide-se o espaço, dessa maneira, em quatro direções), encontrar asoutras, sobretudo o nascer do Sol. (...) Enfim, é possível, para mim, alargar ainda mais esse conceito, a partir do momento em que eleconsistisse no poder de orientar-se não apenas no espaço, quer dizer, matematicamente, mas no pensamento, quer dizer, logicamente”.]tradução do autor.

11 Ver, sobretudo, LÉVY, Pierre. Les technologies de l’intelligence: l’avenir de la pensée à l’ère informatique. Paris: Editions du Seuil, 1993. [Points].

12 Como no trecho em que se conta o início da peregrinação do poeta na Divina Comédia (e que se prende ainda às metafísicas ontológicasde que falamos):Nel mezzo del cammin di nostra vitami ritrovai per una selva oscuraché la diritta via era smarrita.Dante Alighiere (Inf., I, 1).

13 LANDOW, George P. Hypertext: the convergence of contemporary critical theory and technology. Baltimore: The Johns HopkinsUniversity Press, 1992. p. 13. [“Eu não disse que não havia centro, que poderíamos avançar sem centro. Eu creio que o centro é uma função,não um ser – uma realidade, mas uma função. E essa função é absolutamente indispensável”.] tradução do autor.

14 Como acontece freqüentemente, na internete, nesse sítios de exibicionismo mais ou menos explícito, em que indivíduos ou famílias seexpõem ao olhar do outro, olhar que é, no mais das vezes, um foco vazio por onde transita a própria vacuidade de quem crê se exibir demaneira transgressiva.

15 Que não são exclusivos do ciberespaço, mas atingem qualquer espaço de saberes institucionalizado, como as academias universitárias.De resto, essa situação configura o mesmo tipo de exibicionismo vazio já comentado na nota anterior.

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16 Já foi dito, ironicamente, que há páginas na internete cujas ligações internas e externas são mais embaraçadas do que um prato de espaguete.

17 Essa ânsia de substituição de nossas atuais versões de equipamentos e programas por outras sempre mais novas corresponde, de fato,àquela velha fetichização da mercadoria capitalista, tão bem estudada por Marx: quase sempre, essa substituição não corresponde nemmesmo a necessidades técnicas, mas serve tão-somente para manter em movimento dispendiosas estruturas de vendas das companhiasprodutoras de bens informáticos.

18 LÉVY, op. cit., 1993, p. 134-135, nota 10. “...le savoir informatisé ne vise pas la conservation à l’identique d’une société se vivant ou sevoulant immuable, comme dans le cas de l’oralité primaire. Il ne vise pas non plus la vérité, à l’instar des genres canoniques nés de l’écritureque sont la théorie ou l’herméneutique. Il cherche la vitesse et la pertinence de l’éxecution, et plus encore la rapidité...” [“...o saberinformatizado não visa à conservação idêntica de uma sociedade que vive ou que se quer imutável, como no caso da oralidade primária.Ele também não visa à verdade, como os gêneros canônicos nascidos da escrita, que são a teoria ou a hermenêutica. Ele busca a velocidadee a pertinência da execução, e, mais ainda, a rapidez...”] tradução do autor.

19 Cf. o opúsculo de mesmo nome, de WOLFE, Tom. The painted word. New York: Bantam Doubleday Dell Pub, 1999. Resenha interessanteestá disponível em: <http://www.brothersjudd.com>.

20 [“aceitável apenas e exclusivamente se ajuda a narrar melhor. Se, ao contrário, não é mais do que o proverbial dedo atrás do qual seescondem narradores medíocres ou péssimos, no que nos diz respeito, podem enfiá-lo no cu”.] tradução do autor.

21 Esse sítio tem se pautado por criações interessantes, acompanhadas de reflexões que, sem serem brilhantes, traduzem bastante bem ede modo pertinente as questões teóricas que mais freqüentam o debate contemporâneo.

22 [“fim de jogo para a herança de Duchamp”.] tradução do autor.

23 Citado, como epígrafe ao capítulo II, por DURAND, Gilbert. L’Imagination Symbolique. 4. ed. Paris: PUF, 1984.

24 AKENATON. Réponses à Marc Roudier. In: PURLIMPURE. Catalogue de l’exposition. Aix en Provence, 1999. [“misturador, umliquidificador fantástico”] tradução do autor.

25 Não deixa de ser curioso que, mesmo propondo mudanças substanciais nas relações dentro do sistema artístico, ainda se lance mão damesma estratégia discursiva, a dos manifestos.

26 http://aleph-arts.org/pens/redefinicion.html [“Não somos artistas; tampouco, claro, somos ‘críticos’. Somos produtores (...) somosprodutores, sim, mas também produtos”.] tradução do autor.

27 Para mais detalhes, consultar o excelente livro de ROSSI, Paolo. Os filósofos e as máquinas. Tradução de Federico Carotti. São Paulo:Companhia das Letras, 1989, especialmente o capítulo I. A despeito dos mais de 40 anos de sua primeira edição, essa obra continua sendoindispensável a quem quer que se dedique ao estudo das técnicas e do pensamento ocidental na virada para o Renascimento.

28 Proposta muito semelhante à das “práticas de arte” sugeridas por CASTELLIN, Philippe. Créer avec le web n’est pas mettre les chosesen ligne. Doc(k)s, Nice, série 3, p. 113-120, n. 21-24 de1999.

29 [“certos efeitos circulatórios: efeitos de significado, efeitos simbólicos, efeitos intensivos, afetivos”.] tradução do autor.

30 [“Essa produção nunca deve ser confundida com objeto ou forma nenhuma: é um operador que se introduz com eficácia em um dadosistema, desestabilizando a equação de equilíbrio que o governa”.] tradução do autor.

31 Retomo aqui a boa discussão proposta por Edmond Couchot, ao início do seu La technologie dans l’art (COUCHOT, Edmond. Latechnologie dans l’art. Nîmes: Editions Jacqueline Chambon, 1988), em que se discutem as diferentes posições dos artistas segundo umadicotomia entre ON e JE (em francês).

32 [“...as práticas artísticas conseguiram encontrar, em um processo de transformação das sociedades atuais que tende a convertê-las emmeros instrumentos de legitimação – quando não em triviais geradores de bibelôs de luxo para as novas economias imateriais –, seusmelhores argumentos de futuro, seu mais alto desafio – ou, ao menos, uma boa razão de ser, no século que já começa”.] tradução do autor.

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33 Na verdade, nunca se trabalhou realmente dessa maneira, mas há no ar um certo simplismo ao falar em estética que leva aconsiderações e comentários desse teor.

34 [“Nas sociedades do século XXI, a arte não será exposta. Ela será produzida e difundida”.] tradução do autor.

35 Segundo o poeta paulistano, conto é aquilo que seu autor diz que é conto.

36 CASTELIN, op. cit., 1999, p. 120, nota 27. [“Uma ‘prática de arte’, para resumir, seria assim uma atividade criativa não endereçadasocialmente, mas reservada a uma utilização particular e, em todo caso, livre de preocupações com a arte e com sua história. Posso cozinharcom uma arte e um refinamento infinitos, mas, se não convido ninguém, além de mim e de alguns amigos, para saborear o resultado, issoproduz uma ‘prática de arte’. Para que eu me torne (hipótese...) um artista nesse domínio, é necessário que eu aceite me inscrever nacompetição das estrelas e dos aventais, que entre no circuito, que me dirija, potencialmente, aos árbitros, aos juízes, aos concorrentes. Seo fim da arte já soou há muito tempo, é possível que a web abra uma ampla perspectiva a semelhantes ‘práticas de arte’ e se ofereça comorefúgio a todos que decidiram ‘deixar de lado’...”] tradução do autor.

37 [“Hegel faz em algum lugar a observação segundo a qual todos os grandes eventos e personagens históricos se repetem, por assimdizer, duas vezes. Ele esqueceu-se de acrescentar: a primeira vez como tragédia; a segunda, como farsa”.] tradução do autor.

38 DOCTOROVICH, Fabio. Hacia el dominio digital: poesía e informática en Argentina. Doc(k)s, Nice, série 3, n. 21-24, p. 147, 1999. [“Existeuma linha muito tênue separando a poesia tecnologicamente avançada, mas conceitualmente tosca, daquela que verdadeiramente resgataa essência poética – que não se manifesta apenas através de palavras – e a expressa pelos meios tecnológicos, criando, dessa maneira, novosconceitos e abrindo caminhos impossíveis de se percorrer de outra maneira”.] tradução do autor.

39 PEQUEÑO GLAZIER, Loss. ABC’s of coding. Doc(k)s, Nice, série 3, n. 21-24, p. 191,1999.

40 CHATONSKY, Grégory. [www.incident.net]. éc/art S, Paris, n. 2, p. 219, 2000.

41 VIRILIO, Paul. Cybermonde: la politique du pire. Paris: Les Editions Textuel, 1996.

42 CHATONSKY, op. cit., 2000, p. 214, nota 39. [“O incidente não é mais, a partir de então, uma simples obstrução ao regime funcional datécnica. Por desinstrumentalizá-lo e refuncionalizá-lo em um quadro estético, propõe um comportamento inédito ao qual nenhum modode leitura preexistente é (ainda) adaptado. É nessa descoberta do incidente como recalque da técnica que uma imaginação sem formaçõesrepresentativas pode emergir”.] tradução do autor.

43 CHATONSKY, op. cit., 2000, p. 215, nota 39.

44 CAEIRO, Alberto. Poema II. In: O guardador de rebanhos.

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p r e m i s s a m e n o respaços de escritas

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Uma Possível ou Pretensa Literariedade

Estabelecer critérios de literariedade nunca foi tarefa simples, em época alguma. E essa empreita torna-se

ainda mais espinhenta nestes nossos tempos de mudança dos paradigmas de escrita e, sobretudo, dos meios

de produção e de disseminação de textos. Supondo que saibamos minimamente o que vem a ser a escrita

em meio eletrônico, cumpre ainda determinar os processos e as condições de produção do literário.

Podemos examinar, a título de exemplo, um projeto que vem sendo desenvolvido há algum tempo, o

Litteraterra, de Artur Matuck. Como em muitos outros casos, um problema se impõe desde os primeiros

instantes: como lidar com os percalços técnicos que surgem freqüentemente – comandos de javascript que

não funcionam, ou mesmo comandos que simplesmente não são obedecidos, falhas no planejamento

ergonômico das telas, ligações que não levam a parte alguma etc.? No caso, há uma escolha a ser feita: ou

não levamos em consideração tais percalços, fazendo de conta que são simplesmente ruídos (como quando

encontramos livros com páginas faltando, ou com falhas na impressão), fadados a desaparecer num

exemplar ou numa versão a ser corretamente construída; ou entendemos essas interferências da técnica

como elementos inalienáveis que participam diretamente da produção do texto. Na tradição impressa, esses

problemas – gralhas, no jargão dos tipógrafos – foram vistos com interesse apenas pelos bibliófilos e pelos

estudiosos da crítica genética e da ecdótica. No mais das vezes e para a imensa maioria dos leitores, tratava-

se de uns poucos erros limitados a uma tipologia sobejamente conhecida – falta de trechos ou de palavras,

alterações ocasionais na seqüência de alguns significantes, desacordos com alguma norma ortográfica e/ou

gramatical –, erros a serem esquecidos (quando possível, caso contrário, providenciava-se a substituição do

livro). Na tradição eletrônica eles são mais freqüentes, muito mais numerosos e nada faz supor que se possa

estabelecer deles uma tipologia definitiva muito menos duradoura. De fato, dependendo da evolução dos

suportes, dos programas e dos recursos ergonômicos empregados, novos tipos de ruído podem surgir,

alguns até mesmo propositais – como as inserções publicitárias tipo geocities ou hpg.

Tirante os problemas mencionados, a obra de Matuck desperta algum interesse por sua capacidade de

propor uma conjunção entre os códigos de programação e os códigos lingüísticos. De fato, ela está no rol

das não muito numerosas criações que mencionam a palavra literatura já no título e conseguem ir além da

criação gráfica ou visual, trabalhando com alguns aspectos lexicais e morfológicos das línguas (latinas

principalmente). Todavia, o texto verbal apresentado por Matuck, inspirado na proposta da interlíngua,

aponta também para a tentativa de criação literária de uma língua universal feita por Umberto Eco nas falas

do personagem Salvatore, do romance O Nome da Rosa. Em resumo, temos, de um lado, essa escrita

salvatoriana ou interlingüística que joga com o código verbal, mas de forma permanente (trata-se de frases

escritas pelo autor a que os leitores, ao que tudo indica, não têm acesso nem interferência); de outro, um

dispositivo que permite aos leitores escrever uma expressão em um quadro específico, e que é, em seguida,

assimilada pelo sistema e exposta em outros locais da tela, sendo passível de alterações ao comando do

leitor por meio de botões intitulados dis-scriber. É possível participar da construção dessa espécie de

novilíngua ao entrar num sistema de acréscimo e descrição de vocábulos. De qualquer maneira, não há

pistas de que essas inserções possam ser manipuladas de forma mais direta pelos leitores que as propuseram.

É assim que o interesse incipiente que a criação verbal em Litteraterra desperta, à medida que vamos

avançando na exploração da obra, parece se resumir àquela fala salvatoriana, mas não salvacionista.

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* * *

Nesse ponto, duas perguntas ainda subsistem e devem servir de baliza para as reflexões que se fazem aqui

sobre criação literária e meio eletrônico: qual seria o real estatuto da criação verbal nesse meio? Como se

apropriar dos instrumentos e processos informáticos para construir uma ciberleitura que tenha como

correlato uma ciberescrita? Ao mesmo tempo que postulamos essas questões, queremos nos afastar de certo

simplismo que tem acometido os estudos literários há mais de uma década e procura ver literatura em toda

parte, numa espécie de macarthismo às avessas (tão insidioso quanto seu original). Aceitar o pressuposto de

que competiria apenas ao leitor individual a atribuição do estatuto de literário para um dado objeto não

significaria explicitar a evidente precariedade deste, mas, ao contrário, resultaria num leitor investido de

um autoritarismo quase absoluto. Por isso, quando indagamos qual seria o estatuto da criação verbal no

ciberespaço, estamos propondo o mapeamento de um sistema literário que já esteja abertamente (que

nunca será completamente) ancorado no meio eletrônico; estamos afirmando que não compete a leitores

nem a criadores definir, isoladamente, o que será produzido, lido, reproduzido e, portanto, definido como

literatura. E também estamos afirmando com todas as letras que escrita e leitura, por mais que se

desloquem, por mais que se renovem e se estranhem, por mais que se entranhem de elementos novos, não

poderiam ser reduzidas a um mesmo e único processo.

A julgar pelo que muitos críticos e teóricos têm dito nas últimas décadas, parece que o campo da

literariedade vem incorporando novos objetos, novos processos, novos materiais e, claro, novas temáticas.

E essa expansão ocorre também quando se toma uma perspectiva sincrônica. David Reynolds,1 por exemplo,

afirma que haveria uma escala ascendente em termos de complexidade semiótica, que vai do que ele chama

de “textos sociais” até chegar aos literários. Duas observações podem ser levantadas com base nisso. A

primeira diz respeito a uma identificação entre textualização e semiotização, o que parece um tanto

simplificador. A segunda – e que nos afeta diretamente – é essa pretensão de colocar o literário como ponto

culminante de um processo de textualização. Em outras palavras, quanto mais complexos, mais literários

seriam os textos. E, somando isso àquela identificação entre textual e semiótico, literariedade e

semioticidade seriam equivalentes: um grau elevado de uma corresponderia a um grau também elevado da

outra, o que nos levaria imediatamente à afirmação de que ambas corresponderiam a um mesmo processo.

Mas, se todo texto é imediatamente passível de uma descrição semiótica, todo texto é imediatamente

literário. Se tudo se torna literatura – como o próprio Reynolds observa –, “o relativismo crítico dominará

tudo e o lobby político tomará rapidamente o lugar da crítica responsável”.2 De outro lado, nem todo texto

literário, até mesmo complexamente literário – poderíamos dizer –, é também dotado de complexidade

semiótica. Ainda é Reynolds que afirma ser o texto literário “...a compact explosiveness of sign that occurs

because an unusually large variety of cultural idioms and voices are fused to create extreme density and

semiotic polyvocality”.3 A julgar por isso, teríamos que excluir um Nelson Rodrigues, um Dalton Trevisan da

boa literatura devido à exigüidade de ambos em matéria de variedade de “idiomas culturais”. Não há

mesmo como escapar à construção de um leque mínimo de critérios de literariedade, preferencialmente

provisórios (para que não se convertam em dogmatismo estético), na tradição impressa e,

conseqüentemente, no meio eletrônico. De fato, a indagação sobre o real estatuto literário de uma obra é

discussão que sempre permeou o debate crítico, coisa que se pode ver desde Aristóteles, Horácio e Longino.

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Teremos, talvez, chance de voltar a essas discussões mais tarde, em outros locais. Agora, interessa entender

como e por que a literatura da tradição impressa vem impregnar o meio eletrônico – sobretudo essa

literatura da última tradição impressa – com seus esforços de romper as barreiras do verbal em direção do

verbivocovisual, na expressão de seus próceres mais ilustres. Por isso não deve nos surpreender que o novo

campo da literariedade eletrônica ainda pague tributo a elementos e perspectivas da tradição impressa.

Dessa maneira, ao influenciar as perspectivas de produção e de disseminação dos textos, agora em meio

eletrônico, essa literatura da tradição impressa faz com que a própria noção de literariedade eletrônica

fique sujeita a certa hesitação, oscilando entre certezas e incertezas, já familiares, da tradição impressa e

novas e surpreendentes incertezas – somadas a umas poucas certezas – que vão surgindo nessas criações e

leituras no ciberespaço. Todavia, essa instabilidade pode ser benéfica, desde que não se converta num vale-

tudo em que (como já afirmado acima) artista ou leitor, cada um em seu canto, outorgue-se o papel de

legislador estético, definindo o que é ou não ciberliteratura. Essa instabilidade pode ser benéfica, sobretudo

se for usada por criadores e leitores para se deslocarem de seus campos habituais de atuação e

possibilitarem novas dinâmicas de produção e disseminação dos textos. É o que ocorreria com a criação no

Litteraterra, de Artur Matuck, se se tivesse introduzido ao menos um procedimento que permitisse uma

justaposição eficaz entre os escritos em interlíngua e os dispositivos de manipulação automática e aleatória

das expressões propostas pelos leitores.

Uma das características das obras literárias mais largamente exploradas nos últimos tempos, a

intertextualidade é uma das pontes mais evidentes (mas não obrigatoriamente mais importantes) entre a

tradição impressa e o meio eletrônico. Isso já se encontra documentado e exaustivamente discutido em

trabalhos sobre hipertextos, ao menos desde 1994, em ensaios cometidos por mim e em estudos de gente

como George P. Landow e outros. Assim, a literariedade das obras literárias eletrônicas, de início, herda

procedimentos e perspectivas da tradição do intertexto, sobretudo na maneira como o conceberam e o

descreveram Gérard Genette e Julia Kristeva. Tanto quanto os hipertextos eletrônicos, todo texto literário

deve ser lido “non pas comme des entités autonomes, ‘des touts organiques’, mais comme des constructions

intertextuelles: des séquences qui ont du sens en relation avec d’autres textes qu’elles reprennent, citent,

parodient, réfutent, ou, plus généralement, transforment...”4 Entre a tradição impressa e o ciberespaço,

então, se estabelece uma linha de comunicação pela multidimensionalidade textual que dá sentido às obras

aí produzidas. Mas, nesse caso, cumpre destacar uma primeira e importante diferença que aparece na

maneira como se dá a produção do texto com base no material significante colocado diante do leitor. No

caso da tradição impressa, o espaço de intertextualidades (ou mesmo hipertextualidades, se seguirmos a

nomenclatura proposta por Genette) é limitado pela capacidade de escritores e leitores manipularem

referências e textos outros (mesmo no caso de obras multirreferenciais, como os Cantos, de Ezra Pound). No

que toca ao ciberespaço, a capacidade do leitor de manipular dados e processos não rivaliza nem de longe

com a memória e a velocidade dos sistemas informáticos.

Nesse ponto, é importante ressaltar que essa diferença quantitativa acaba implicando diferenças

qualitativas na produção dos textos. O ciberespaço não propicia, de forma alguma, uma infinidade efetiva

de materiais, de referências diretas e indiretas. O que ocorre, na verdade, é que ele abre o campo dos

possíveis de maneira até então inimaginável, bem acima das capacidades de processamento do ser humano.

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Aliás, tal expansão já era evidente na escrita (a fortiori, na imprensa), que propiciou o armazenamento de

quantidades de signos verbais bem acima das possibilidades da memória do leitor (imprescindível até então

na tradição oral). Dito de outra maneira, o meio eletrônico abre duas direções fundamentais para o leitor:

de um lado, ele é instado a mapear um campo de sentidos possíveis, utilizando não apenas as linguagens

costumeiras (visuais, verbais, sonoras etc.), mas também e sobretudo os processos, procedimentos e

ferramentas informáticas. É como no caso do Litteraterra, em que o leitor se vê diante da tarefa de mapear

e de entender como funcionam as interações e os automatismos para interagir mais eficazmente com a

obra. De outro lado, com base nesse mapeamento, o leitor pode então passar para uma etapa posterior, a

de organizar significações a partir do material significante colocado diante de si. E novamente entram em

cena suas limitações físicas (de campo visual, de memórias de curto, médio e longo prazos): diante de uma

legião de possíveis que se abre na tela e ao toque dos dedos, ao alcance dos automatismos e das interações,

quaisquer interpretações deverão ser resultado de escolhas fundadas não apenas em coerências e

consistências das diferentes linguagens envolvidas, mas também em lógicas de edição e de construção de

espaços significantes multidimensionais. No caso da criação de Artur Matuck, isso se refere à justaposição

entre o verbal da tradição impressa (os escritos explicativos que se abrem aqui e ali) e o automático-iterativo

do meio eletrônico. E ressalte-se a necessidade de uma conjunção, e não de uma justaposição entre um e

outro, como parece indicar a lógica de construção dessa obra.

Talvez essa diferença entre conjunção e justaposição ajude a discernir melhor a maneira como se esboça,

então, uma linha que leva da literatura da tradição impressa a uma pretensa literatura eletrônica. Assim,

não se fala nem de continuidade, nem de ruptura radical, mas de sedimentações de processos textuais

variados, podendo colocar no mesmo saco o projeto do Livre, de Mallarmé, e propostas vanguardistas

propagandeando a própria extinção do livro. É por isso que falar da literariedade dos hipertextos

eletrônicos significa dar conta desse intrincado jogo que não pode mais ser resumido simplistamente a uma

escolha entre diacronia e sincronia. Como ocorre com todo objeto cultural, ambas se imbricam e se

entrelaçam numa conjunção que não tem como se socorrer com o abrigo cômodo e reconfortante de uma

dialética de feitio hegeliano. Bem examinadas, percebemos que há diacronias em qualquer recorte

sincrônico e vice-versa, sincronias em toda perspectiva diacrônica. De fato, esse processo permite perceber

que tais jogos e conjunções entre textos distintos também se tornam, de imediato, textos. E só o que evita

que caiamos no círculo fechado e vicioso da sofística (tal como acontece com alguns críticos e teóricos que

vêem em tudo apenas construção de significações) é o esforço de manter tal círculo em permanente

movimentação,5 o trabalho (sempre inútil, mas persistente) do leitor de se dirigir para fora do espaço das

textualidades, tentando inutilmente, como Sísifo, alcançar o espaço dos sentidos possíveis.6

De fato, é isso que permite a Fabio Doctorovich afirmar que “...viejas técnicas dejadas de lado por los poetas

tales como el teatro, el canto y la plástica están siendo reelaboradas a partir de las experiencias dadaístas y

futuristas de principios de siglo”.7 No caso da obra tomada como exemplo, Litteraterra, pode-se perceber

uma deficiência que é marcante na imensa maioria das criações da ciberliteratura: justamente a falta de

uma visão mais ampla e que permita contemplar e assimilar na criação da obra (e, de modo correspondente,

na leitura dela) algumas das distintas sedimentações que dão possibilidade e sentido ao objeto submetido

à leitura. São justamente essas sedimentações que vão, nelas e por elas, construindo esses textos que só

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assim podem existir. Doctorovich afirma que “en algunos casos las técnicas antiguas se funden con las

nuevas tecnologías, generando soportes mixtos que podríamos llamar postmodernos”.8 Mas talvez seja

melhor dizer que a novidade (estou entendendo assim o termo “pós-moderno”) não esteja propriamente

na fusão de técnicas antigas e novas tecnologias. Na versão escrita que Chrétien de Troyes propôs da

Demanda do Graal, técnicas da oralidade e da escrita já se misturavam de modo indestrinçável. A novidade

talvez esteja sobretudo no modo como as enormes quantidades e a grande velocidade do meio eletrônico

geram artifícios e processos de significação que correm paralelamente aos significantes tradicionais (verbais,

icônicos, sonoros, imagéticos etc.) sem se confundir com eles e sem os esconder, mas permitindo o

mapeamento de espaços heterogêneos e multidimensionais de produção de sentidos. É justamente nesses

espaços que o verbal é lido também (e principalmente) através e dentro do eletrônico; em que o eletrônico

se manifesta dentro dos limites e das operações possíveis da matéria verbal.

Dito de outro modo, as literariedades (talvez seja mesmo mais sensato falar assim, no plural) que se

esboçam nestes tempos de ciberespaço eletrônico permitem retomar, como indica Jean Clément,

“...un courant littéraire très ancien (...) qui s’oppose à la conception classique fondée sur la certitude que le

texte est la juste traduction de la pensée ou à celle, romantique, d’une littérature considérée comme reflet

de la sensibilité. Ce courant, que l’on peut suivre depuis les Grands Rhétoriqueurs jusqu’à Paul Valéry, est

moins attaché aux textes qu’à leur processus d’engendrement...”9

Mas, se apenas se retomasse essa construção lúdica da literatura, não se faria nada além de repetir, com

alguma maquiagem de novidade técnica, obras e processos produtivos que datam de séculos. Em criações

como Les Litanies de La Vierge, de Jean Meschinot, ou Der XLI. Libes-Kuß, de Quirinus Kuhlmann, o espaço

de significantes da obra já se desdobrava e se multiplicava, expandindo ou explodindo os possíveis do texto.

E, no caso dessas obras, elas são análogas de alguma maneira à Máquina de Turing: há uma descrição da

situação inicial, isto é, a seqüência de significantes já impressos no papel; todos eles remetem a signos

pertencentes ao léxico de uma dada língua, isto é, são signos de natureza verbal; e o poema é introduzido

por um conjunto de instruções que permitem a produção de novos espaços de significantes. Nesse sentido,

não há diferença essencial com relação ao poema de E. M. de Melo e Castro apresentado a seguir, a não ser

o fato de o poeta propor alguns exemplos de funcionamento de sua máquina de Turing poética, fazendo

com que certo número de leitores prefira a estratégia de não explorar seu aspecto computacional e passar

diretamente para a montagem de significações restrita aos significantes propostos pelo autor.

Tudo Pode Ser Dito num Poema

1) propõe-se o seguinte modelo

em presença

acaso A é B de A (ou de B, ou de C etc.)

na ausência

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2) A e B são um par de contrários

exemplos:

tudo - nada

bem - mal

alto - baixo

belo - feio

preto - branco

etc. etc.

3) A e B são substantivos ou pronomes

exemplos:

homem - deus

arma - braço

casa - fogo

amor - vento

eu - tu

tu - ele

etc. - etc.

4) C é aleatório

5) escolha as suas palavras e desenvolva o modelo segundo uma regra combinatória,

6) estude atentamente as proposições resultantes

7) não suspenda a sua pesquisa: tudo pode ser dito num poema

EXEMPLOS

acaso tudo é nada em presença de tudo

acaso nada é tudo em presença de tudo

acaso tudo é nada em presença do nada

acaso nada é tudo em presença do nada

acaso tudo é tudo em presença de tudo

acaso tudo é tudo em presença do nada

acaso nada é nada em presença de tudo

acaso nada é nada em presença do nada

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acaso tudo é nada na ausência de tudo

acaso nada é tudo na ausência de tudo

acaso tudo é nada na ausência do nada

acaso nada é tudo na ausência do nada

acaso tudo é tudo na ausência de tudo

acaso tudo é tudo na ausência do nada

acaso nada é nada na ausência de tudo

acaso nada é nada na ausência do nada

acaso tu és tu em presença de ti

acaso tu és tu na ausência de ti

acaso tu és ele na presença de ti

acaso tu és ele na ausência de ti

acaso ele é tu na presença de ti

acaso ele é tu na ausência de ti

acaso ele é ele na presença de ti

acaso ele é ele na ausência de ti

acaso tu és tu na presença dele

acaso tu és tu na ausência dele etc.

Nos três casos (os poemas de Meschinot, Kuhlmann, Melo e Castro), não temos em ação nenhuma máquina

propriamente dita, e sim uma série de procedimentos algorítmicos que só funcionam e têm, portanto,

algum sentido quando realizados por alguém chamado leitor. Em suma, não há verdadeiros maquinismos,

mas sim uma simulação deles, e a multiplicação de significantes em grande quantidade é devido ao trabalho

direto desse leitor colocado diante de uma quantidade imensa de significantes que ele mesmo produz e a

que deve atribuir significações. Tivesse Rábano Mauro notícias de maquinações semelhantes, mais motivo

teria ele ainda para restringir as interpretações possíveis dos textos (sagrados ou não) aos quatro níveis

propostos em sua teoria da interpretação. Pode-se imaginar o temor da intelectualidade eclesiástica se

tivesse que lidar com uma imensa legião de significantes que esse tipo de obra tornasse possível!

É importante também destacar que tais mecanismos poéticos, mesmo insertos ainda no espaço da tradição

impressa, já permitem ao leitor mapear um novo espaço de leitura (e que vem se somar a esse tradicional e

costumeiro, que busca estabelecer construção de significações a partir dos diferentes estratos dos mesmos

significantes, e que as sucessivas leituras vão identificando na obra). Trata-se da identificação e da leitura

dos procedimentos algorítmicos, baseados em mecanismos de escolhas de elementos e alterações de ordens

sintáticas e semânticas. Em resumo, é necessário passar por uma primeira leitura ainda antes dessa

articulação de significações a partir de um conjunto estável de significantes, pois, justamente, tais obras não

fornecem aos leitores esse conjunto estável de significantes (mesmo aparentando tal estabilidade). Vai ser

preciso, primeiramente, entender como funciona, ou seja, ler o sistema de geração de significantes antes de

passar a gerá-los e a lê-los. Se, tomando os poemas de Meschinot e de Kuhlmann, ou mesmo labirintos,

como um de Camões (anexo 1) poucos põem em dúvida a literariedade deles, talvez seja devido a esse

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evidente estrato (diria melhor, forma) literário, essa aparente estabilidade dos significantes que leva, de

imediato, a formas reconhecíveis da tradição literária: versos, estrofes, metrificação, ritmo etc.

O caso de Raymond Queneau e seus Cent Milles Milliards de Poèmes representa um avanço importante não

apenas quantitativo, mas também qualitativo.10 Se mantemos a analogia com a Máquina de Turing,

podemos dizer que no caso de Queneau uma máquina foi materialmente construída, à diferença dos

poemas mencionados. A edição em papel dos poemas implica uma leitura impossível, se tentamos usar os

processos de manipulação da tradição impressa. Não conheço leitor que tenha conseguido algum sucesso

diante da grande quantidade de tirinhas de papel que se obstinam em não permitir nenhum controle

efetivo de suas mãos e dedos. O líder do Oulipo realmente construiu uma máquina mecânica (e não

eletrônica) de multiplicação de significantes que, nos resultados numéricos, vai muito além das que

Meschinot e Kuhlmann propuseram. Trata-se de um máquina mecânica, sim, mas cujas possibilidades e

efeitos podem ser próprios e mais extensamente lidos no meio eletrônico.11 Isso tudo acaba colocando uma

grande distância entre os leitores e qualquer aparência de literariedade tradicional, como se observa ainda

nos poemas. Daí vem, talvez, a resistência de muitos críticos (ainda hoje) em atribuir qualquer valor literário

a essa obra de Queneau: afinal de contas, a materialidade de sua máquina, direta e ostensivamente dada à

manipulação do leitor, praticamente afasta qualquer leitura pelo viés tradicional, isto é, que reconheça a

forma do soneto e faça as costumeiras divagações e deambulações de significados e sentidos. Todavia, esse

dispositivo do escritor francês não esconde um ponto importante: tanto quanto os maquinismos virtuais de

Meschinot e Kuhlmann, ele é também espaço e forma significante, parte inalienável de qualquer percurso

de leitura que se faça dentro e a partir dele. Queremos dizer com isso que nem as máquinas virtuais de uns,

nem a máquina real do outro podem ser vistas apenas como meio por onde transitam os significantes, ou

mesmo como agentes construtores de significantes, mas colocados na exterioridade do texto.

Os dois tipos de máquina tomam parte no texto, e também são submetidos a um processo de leitura, isto

é, de estratificação, de categorização, de mapeamento de ligações sintáticas e semânticas. Daí a necessidade

de entender os maquinismos como simulacros. Em outras palavras, não estamos diante de um processo

industrial em que o maquinismo que produziu o objeto coloca-se fora de sua utilização por qualquer

usuário. Esses maquinismos de gerar significantes seriam, para usar a mesma analogia, como objetos

industrializados que, para serem usados, teriam de se fazer acompanhar de toda a fábrica, com suas

instalações e maquinários. Então chegamos a uma constatação importante: as máquinas de gerar

significantes, quando inseridas num processo de leitura, obrigatoriamente deixam de ser maquinismos para

se tornarem simulacros de maquinismos.

É assim que, no meio eletrônico, se torna imperioso entender e aceitar que a máquina é simulacro; que ela

não gera significações, mas significantes, sendo ela própria um significante. Se não se leva isso em conta,

caímos num embuste, nessa mitologia contemporânea das tecnologias que nos é imposta como se técnicas,

ferramentas e processos fossem objetos à parte do mundo cultural. Como se o computador não fosse parte

especial, diferenciada, com funções distintas de outros elementos, mas parte do texto que se produz

durante as leituras. Por isso não se pode colocar a máquina numa esfera de espontaneidade e identificá-la

aos sujeitos que participam do processo de produção do texto. Não há subjetividade na máquina, por isso

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não se pode falar de duo pensante homem-máquina. Quem pensa é o homem, e toda discussão sobre

inteligência artificial seria menos simplista se levasse isso em conta, se deixasse de confundir inteligência

com consciência artificial. Em resumo, as maquinações, jogos e permutações em Meschinot e Kuhlmann não

são partes ou extensões do autor, mas estratégias a serem lidas e que, portanto, também fazem parte disso

que chamamos simplesmente texto. Da mesma maneira, o computador não é uma entidade autônoma,

espontânea. Ele é um conjunto de elementos ligados por uma série de instruções e de condições de

contorno; portanto, é tanto texto quanto os significantes que ele próprio, em nível diferente, manipula,

processa, reordena, desorganiza e produz.

* * *

Se “apenas uma grande intuição pode servir de bússola, nos desertos da alma”, como afirma Pessoa,12 talvez

a palavra seja o instrumento para invocar essa intuição e estender caminhos e percursos nesse deserto

povoado de significantes que é o ciberespaço. Tomemos, por exemplo, a palavra deriva, utilizada no início

deste ensaio. Ela tanto indica o desvio, o distanciamento, a perda de rumo como nomeia um instrumento

náutico que serve justamente para evitar a perda da rota. Se são tempos de deriva e perda de rumo, estes

nossos são igualmente tempos de deriva e de navegação por instrumentos de cibernáuticas empreitas. A

palavra não foi arquitetada e tramada para o papel, para a folha escrita nem para a página impressa, mas

fez desse espaço sua morada e sítio quase como tivesse sido feita e inventada adrede para ocupar esse lugar.

A tal ponto de um artista como Fabio Doctorovich, com a sensibilidade inteligente que o distingue, ter

afirmado que “la palabra es probablemente el generador de significados más adecuado cuando se trata de

página impresa (aunque no tanto teniendo en cuenta a la poesía visual)”.13 Mas parece tropeçar quando

afirma, logo em seguida: “Sin embargo, esto podría no ser así en el dominio virtual de la WWW”.14 Mesmo

parecendo otimismo exagerado, ainda defendo que a palavra, a matéria verbal, vai encontrando sua hora

e vez, seu lugar nesses espaços de espaços, nessa multidimensionalidade que é o ciberespaço, e

conformando aí locais e instantes de literatura, ou melhor, de ciberliteratura. E é o espaço e as condições

de contorno na criação verbal que importa considerar. Não apenas no que ela recebe de especificidades e

limitações do meio eletrônico; também na maneira como o meio eletrônico pode ser redesenhado,

retramado e retrabalhado a partir da matéria verbal. A descrição de uma possível ou pretensa literariedade

eletrônica terá que dar conta, então, das torções e distorções que o uso da palavra traz para o ciberespaço,

em geral, e para o que, em particular, temos chamado de ciberliteratura. É o que vamos discutir na

seqüência deste ensaio. Basta fazer avançar as páginas!

O Texto Eletrônico como Produtividade, ou as Relações entre Autor e Leitor

Há coisa de dois anos, realizou-se em Paris, no Museu Carnavalet, uma exposição de imagens virtuais construídas

nos primórdios da invenção da fotografia. Em alguns casos, a espacialização em três dimensões era obtida a

partir da bidimensionalidade de duas fotos colocadas em distintos eixos de perspectiva. Com se dá até hoje, o

mecanismo de construção desse tipo de jogo óptico baseia-se num arranjo entre duas imagens que se colocam

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em perspectivas distintas, mas compartilham um mesmo espaço,15 forçando, por isso, a visão a buscar um

terceiro ponto de vista. Ora, posto numa situação em que ele oscilaria indefinidamente entre uma perspectiva

e outra, o olhar acaba criando uma terceira, que não é a mera soma ou justaposição das duas anteriores, mas

a criação de uma outra possibilidade de exercício da visibilidade. Com isso, até mesmo o tempo de observação

de uma ou outra das duas imagens reais é suprimido: de fato, ambas não podem ser vistas no mesmo instante,

o que vale dizer que elas isoladamente acabam não sendo vistas em instante nenhum. Daí termos algo como a

criação de um terceiro instante, de uma outra temporalidade, em que as duas não são mais vistas, mas

possibilitam a observação de uma terceira, essa que só existe numa perspectiva mediada pelo dispositivo óptico.

Isso me pôs a pensar em outro dispositivo, não mais óptico, mas visual:16 a tela do computador, e sua capacidade

de baralhar indefinidamente signos imagéticos e verbais, de lançar um segundo texto a partir de um primeiro,

de permitir ligações constantes com uma página sempre-a-vir, e ancoragens efêmeras nessa que acabou de ser

armazenada na memória. Há aí uma inesperada e possível afinidade com os dispositivos ópticos acima

mencionados. Em ambos os casos, um objeto convoca um outro a também ocupar um mesmo espaço. Mas há

uma diferença importante entre as duas situações. No caso das duas imagens bidimensionais, é como se nem

passássemos por elas, já instalados que estamos diante de uma pretensa terceira imagem (que só existe como

ilusão), essa, sim, aparentemente tridimensional na maneira como se apresenta ao olhar. Não nos cabe fixar a

atenção em apenas uma das imagens (atitude que, no mais das vezes, nem é possível), fazendo de conta que a

outra não existe. Não! Apenas nos é dado o vislumbre dessa terceira perspectiva. No texto eletrônico, passa-se,

às vezes celeremente demais, de um texto a outro sem que nos situemos, ainda que ilusoriamente, em face de

um terceiro texto. Na maior parte das situações, nos posicionamos apenas diante do segundo, daquele para

onde nos deslocamos. Mas há algumas nuanças nesse ciberespaço de eletrônicos e virtuais objetos.

Quando o segundo texto surge na tela, ele não inaugura um universo de sentidos e de possíveis significados

que seja completamente novo; de resto, como qualquer texto, ele não admite leitura ingênua, a ser construída

ab ovo. A maneira como vamos inseri-lo numa trama dinâmica de significados depende do grau de opacidade

com que vemos o texto anterior por meio desse texto segundo. É como se tivéssemos um palimpsesto cujo

fundo (isto é, o texto anterior) tivesse uma visualidade variável, de acordo com a maneira como queremos lê-

lo. Assim, podemos encontrar inumeráveis possibilidades entre um extremo e outro: num lado, o ler sempre

em todo texto aquele primeiro que deu início à navegação; no outro, o ler sempre o texto atual, querendo

apagar completamente rastros e vestígios daquele que veio antes. Entre um pólo e outro, situa-se uma gama

infinda de possibilidades em que se exerce o que Pedro Barbosa chamaria de escrileitura.17 Dessa maneira,

quando pensamos nesse trabalho de passar de um texto a outro, temos muito a aprender com aquela

construção de imagens tridimensionais. Temos que negar a escolha maniqueísta que nos coloca no dilema de

ler tão-somente o primeiro ou o segundo texto, escolher o grau de interferência entre um e outro, e que nos

dará então um texto terceiro. Assim, nosso esforço de leitura, parece-me, deve se dirigir radicalmente à

constatação e à construção dessa confluência de ambos, dessa terceira textualidade que, ao contrário das

imagens tridimensionais, temos de tirar a fórceps do nosso esquecimento, da nossa cegueira, até da nossa

indiferença a ele. E esse terceiro texto não seria nem um nem outro, nem um lido pelo outro, nem o acréscimo

de um a outro, mas o resultado de uma leitura que se quer e se arrisca a ser, a seu modo, também escrita

(mesmo sendo esta exercida em instâncias e com instrumentos distintos daquela realizada pelo autor).

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Trata-se, aí, de escolher um mapeamento, uma escrita de certa linguagem, em vez de mergulhar numa

improvável, interminável e mesmo impossível leitura da língua, colocando em relevo o texto como fenômeno e

não como objeto. Mas isso tudo pode estar ficando hermético demais. Examinemos melhor essas afirmações.

Esquecer que o texto segundo (como todo e qualquer texto) é já um palimpsesto e, no caso do meio eletrônico,

um palimpsesto concreto e imediato parece implicar uma fuga para a frente infindável, uma tentativa de chegar

ao todo da língua, fazendo avançar essa ilusão de que somos capazes de enunciar uma torá laica e eletrônica e

que teria a possibilidade de chegar ao término de um périplo não mais assimptótico. Em outras palavras, trata-

se da ilusão de que teríamos em nós a capacidade de produzir e, portanto, de apreender a totalidade da língua,

de tê-la à mão, como um objeto que se possui completamente, exposto inteiro ao olhar. É a ilusão que

compromete uma série de comentários exageradamente otimistas sobre a tecnologia eletrônica aplicada à

edição ou à escrita. Alguns, como Dierk Hoffmann, apregoam as vantagens do meio eletrônico, único capaz de

uma verdadeira “edição-rizoma”, que tornaria “imediatamente acessíveis todos os testemunhos textuais,

manuscritos, datiloscritos e impressões”, assim como “suas transcrições e interpretações”.18 Esse acesso imediato

à totalidade parece resultar mais de uma profissão de fé que de um ato de leitura (seja ela eletrônica ou não). E

mesmo as interpretações que o leitor pode associar a um elemento ou outro da obra, mesmo elas nunca estarão

todas à disposição de outros leitores, o que vale dizer que nunca se apaga a diferença entre informação e

interpretação. Ademais, uma grande quantidade de comentários, assumindo o estatuto de textos no mesmo

nível daquele primeiro texto, ao contrário do que afirma Hoffmann,19 é sempre o resultado de escolhas e recortes,

e não um encaminhamento à totalidade dos sentidos e da língua. E, ainda, esse alargamento constante dos

limites do texto lido, sendo sempre acrescido de outros e mais outros textos, esse pulular de significantes não nos

dá mais do que uma progressiva ilegibilidade (a hiperinflação informativa acima mencionada).

Assim, tomar um caminho oposto a esse “melhor dos mundos” advindo da tecnologia implica a escrita de uma

linguagem que elege certos caminhos de significação e não outros, perscruta os limites, as superfícies e os veios

do texto dado à leitura, indaga a ele o que ainda resta e o que pode ser inserto nele dos que o precederam.

Daí a utilidade de se tomar o texto como produtividade e não meramente como significação a ser proposta e

percorrida. Como já se percebia, por exemplo, nos poemas do cultismo barroco, o primeiro papel do leitor é

dotar-se de um texto a ler, não interpretá-lo: quando um poeta como Góngora, por exemplo, em um dado

poema usa a palavra neve em distintas situações, cumpre mapear essa multiplicação de imagens que pode

estar apontando para uma outra e única imagem (e que não é mais a neve), em vez de partir apressadamente

para a interpretação a/de cada caso. Trata-se, em outras palavras, de mapear a vizinhança de um estranho

atrator20 de significados, aproximar-se e afastar-se dele assimptoticamente, mais do que chegar diretamente

até ele para, depois, ir além. Reside aí a diferença entre tematização e produção textual, entre o texto lido

como referência e objetividade externa, e o texto visto como fenômeno, esse que se faz aparecer pela atenção

com que ele é lido.21 Em resumo, compete ao leitor dar traços e lineamentos da fisionomia que o texto assume

com sua leitura, operação que só é plausível se damos destaque à espessura fenomênica do texto lido.

Outro exemplo interessante dessas dinâmicas entre autor e leitor, ainda na tradição impressa, está num soneto

de autoria de Antônio de Oliveira, escritor do barroco brasileiro, da Academia dos Esquecidos. Para compor esse

poema, Oliveira buscou 14 decassílabos em Os Lusíadas, cuidando em dar-lhes coesão sintática e semântica,

além de chegar a um esquema de rimas tradicional dos sonetos barrocos (no caso, ABBAABBACDECDE).

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Soneto Achado no Poema do Príncipe dos Poetas Espanhóis

Canto Oitava Verso

Enchem-se os peitos todos de alegria 2 89 5

com tantas qualidades generosas, 1 74 6

que excedem as sonhadas fabulosas 1 11 6

as festas deste alegre e claro dia. 10 75 7

Eis aparecem logo em companhia 1 45 1

Musas de engrandecer-se desejosas, 1 11 4

que coroas vos tecem gloriosas 10 142 8

com mostras de devida cortesia. 1 56 4

Quanto pode de Atenas desejar-se 3 97 5

tudo o soberbo Apolo aqui reserva 3 97 6

no templo da suprema eternidade. 1 17 8

E de Helicona as Musas fez passar-se 3 97 3

o valeroso ofício de Minerva 3 97 2

ilustrado com a régia dignidade. 10 54 3

A pergunta que se pode fazer, então, é: quem seria o autor desse soneto? Camões, que escreveu os versos todos?

Ou Antônio de Oliveira, que os reuniu e deu-lhes a aparência e o ritmo do soneto, a coerência da forma e do

assunto? Na verdade, não há sentido em propor uma autoria exclusiva: devemos falar de zonas de autorias

compartilhadas. Se pensamos em autor em termos de estranho atrator como foi sugerido anteriormente,

podemos pensar que há um primeiro nó no autor de Os Lusíadas e um segundo em Antônio de Oliveira. Todavia,

é importante ressaltar que Oliveira não compôs propriamente um soneto, mas uma maneira de ler, reescrevendo

a epopéia camoniana. Ou seja, ele produziu de fato um processo de transformação do poema de Camões. Em

princípio, não seria fundamentalmente distinto do que faz, por exemplo, o próprio Camões com sonetos de

Petrarca; ou Gregório de Matos com poemas de Góngora e Quevedo. Mas, nesses casos, trata-se de transformações

a partir dos significantes originais e não com os próprios significantes originais, como ocorre com o processo

proposto por Oliveira e que pode ser também posto em prática por outros leitores. Nós mesmos poderíamos nos

comprazer em montar sonetos a partir d’Os Lusíadas, o que traria junto essa dúvida sobre a autoria dos poemas

resultantes. Quem seria o autor deles? Camões, que escreveu os versos? Oliveira, que inventou o método de

seleção e montagem? Ou nós próprios, leitores contemporâneos que produzimos os poemas com base em versos

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de um e fôrma de outro? O melhor a fazer, no caso, é abandonar a noção fechada e personalizada de autor e

pensar em termos de pólos (ou nós) de autoria, jogando agora com três estranhos atratores. Daí a possibilidade

de associar à criação de Antônio de Oliveira o comentário de Eric Sadin acerca da autoria no meio eletrônico:

“L’exigence de la démultiplication des compétences peut conduire – mais pas nécessairement – à encourager

une disparition de la figure de l’auteur, au profit de la constitution de dispositifs, non pas anonymes, mais

dans lesquels la signature prime moins que la nature des jeux relationnels, entendus comme une première

catégorie de procédures d’écriture...”22

Quanto a nós, temos apostado sempre nesse “não necessariamente” explicitado por Sadin, pois é justamente

aí que se encontra um outro espaço de autoria: esta não desaparece, mas se coloca quase inteira na construção

de dispositivos de leitura, como os de Oliveira e de Kuhlmann, na tradição impressa, ou na obra Exílio, de Tiago

Lafer, no meio eletrônico. À diferença que o aparelho de produção dos significantes é virtual nos dois primeiros,

e imediato e concreto, no terceiro. No caso desse Exílio, o autor propõe uma retomada – mais uma! – de alguns

versos da Canção do Exílio, de Gonçalves Dias, construindo um dispositivo muito simples: ao título da obra,

Exílio, segue-se a quarta e penúltima estrofe do poema do escritor maranhense, transcrita ipsis litteris. Mas, a

partir de um dado momento, dá-se início às intervenções das ferramentas de programação, fazendo com que,

paulatinamente, alguns trechos vão sendo suprimidos. Como resultado, aparecem sete poemas em seqüência:

1.

Minha terra tem primores,

Que tais não encontro eu cá;

Em cismar – sozinho, à noite –

Mais prazer encontro eu lá;

Minha terra tem palmeiras,

Onde canta o Sabiá.

2.

primores,

Que tais não encontro eu cá;

Em cismar – sozinho, à noite –

Mais prazer encontro eu lá;

Minha terra

canta.

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3.

primores,

não encontro eu cá;

– sozinho, à noite –

prazer encontro lá;

4.

não encontro eu

– sozinho, à noite –

lá;

5.

encontro eu

– sozinho –

6.

– sozinho –

7.

– –

Em princípio, parece não haver contradição alguma, em termos semânticos, entre os sete poemas. O que

chama a atenção é a rarefação das palavras, que vai aumentando pouco a pouco a intromissão progressiva

dos espaços vazios, o silenciamento paulatino do poema e atinge seu auge com os dois travessões

enfrentando-se, ameaçadores, numa mesma linha e metaforizando, mais visual que semanticamente, o lá e

o cá entre os quais oscila o poema todo de Gonçalves Dias, bem como suas paródias, pastiches ou

retomadas, na tradição impressa e, agora, nos meios eletrônicos. Assim, mesmo simplistamente, ainda que

não tenha feito maiores piruetas ou deslocamentos de significantes e significados, Lafer consegue nos dar

mais do mesmo, isto é, mais de Gonçalves Dias, mas em fôrmas outras, cada vez menores, até um poema

final que parece evocar apenas a autoria de Tiago Lafer. Ainda assim, podemos dizer que os poemas gerados

(de 2 a 7) não deixam de evocar as palavras ausentes nos espaços deixados vazios, ao menos para os leitores,

que sempre têm diante dos olhos a estrofe original inteira e recomposta. Usando a memória de curta

duração, podemos nos entregar ao exercício de preencher os vazios e recompor a originalidade (ou seria a

gonçalvidade?) perdida. Nesse caso, são dois processos autorais que se conjugam, mas em situação

hierarquizada:23 a preeminência cabe aos versos de Gonçalves Dias, claro!, e o que propõe Tiago Lafer é a

intromissão de uma zona sua de autoria na autoria primeira do poeta maranhense. No caso, ao leitor, não

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resta outra coisa a não ser acompanhar com os olhos essa interferência de autorias que se estabelece

progressivamente, até o apagamento aparentemente definitivo de uma – a de Gonçalves Dias – para a

entronização da outra – a de Lafer. Mas mesmo isso é provisório e precário, pois, logo de imediato, a estrofe

inteira do poeta maranhense ressurge e se impõe a nossos olhos, como que dizendo que a vitória, mesmo

fugaz, é sempre do escrito que subjaz no palimpsesto. Assim, o que se impõe de todo esse périplo é mesmo

o que pode ser chamado de conjunção de regiões de autoria, dinamicamente estabelecidas (mas nunca

estabilizadas) na tela do computador.

Com base no que foi discutido e apresentado, podemos concluir que de fato toda textualidade – como

construção de espaços de leitura e de significação, seja ela em meio impresso, seja em meio eletrônico – é

sempre hipertextualidade, à maneira como a entende, entre outros, Gérard Genette:

L’hypertextualité, à sa manière, relève du bricolage. (...) l’art de ‘faire du neuf avec du vieux’ a

l’avantage de produire des objets plus complexes et plus savoureux que les produits ‘faits express’:

une fonction nouvelle se superpose et s’enchevêtre à une structure ancienne, et la dissonance entre

ces deux éléments coprésents donne sa faveur à l’ensemble.24

E é justamente a esse conjunto, resultado da dissonância (e não da justaposição ou da mera adição), que

quisemos dar relevo quando falamos do jogo das duas fotografias, ou quando pensamos na ligação-

passagem de um texto eletrônico a outro. Saliente-se que essa passagem de um texto a outro, de uma

página a outra, não significa que tenhamos sempre o processo de hipertextualização instalado com toda a

pompa e circunstância. Para que isso ocorra, é preciso que o processo de autoria se desvista de sua

autoridade e associe ao autor, em definitivo, não uma pessoa empírica, mas uma função do texto. É o que

diz Philippe Bootz de suas Stances à Hélène: “...il ne s’agit pas d’un produit uniquement ‘orienté lecteur’,

de quelque chose ‘donné à la lecture’, mais d’un projet également ‘orienté auteur’, dans lequel l’acte de

lecture du lecteur, qui agit sur un leurre, participe à la représentation et fait, dans le point de vue de

l’auteur, partie de l’oeuvre”.25 Em certo sentido, parece se estabelecer entre as funções tradicionais de leitor

e autor26 a mesma interferência que havíamos observado entre as imagens que formavam a ilusão da

tridimensionalidade, ou ainda entre um texto e outro no espaço eletrônico. Não que esse permanente

processo de construção do texto seja uma responsabilidade compartilhada por ambos,27 mas parece indicar,

antes de tudo, uma nova acomodação entre eles (exigindo uma série de desdobramentos de seus espaços e

de suas temporalidades). A objetividade do hipertexto não se contenta de modo algum com campos

previamente demarcados com elementos definidos de antemão, atitude, aliás, que já encontrávamos em

toda boa literatura da era da imprensa. A incógnita, entretanto, é saber se esse critério ainda permite

estabelecer semelhante juízo de valor também para a produção artística realizada em meio digital. Creio

mesmo que tocamos aí em um dos pontos mais importantes para se pensar essas literariedades digitais.

Se na literatura impressa a estabilidade da base material da obra exigia dos autores interessados em

aprofundar o jogo literário uma série de astúcias para colocar em xeque as expectativas medianas do leitor,28

nessa ciberliteratura, a instabilidade da base material já coloca justamente como pressuposto essa

maleabilidade, essa indefinição fundadora. Aqui começa a se vislumbrar, talvez, a utilidade desse

mapeamento de interferências ou dissonâncias entre elementos distintos e agrupados dois a dois, como

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propusemos acima, entre autor e leitor. O que se quer é entender de que modo essa reversibilidade entre

eles não significa um vai-e-vem fechado e inócuo, nem parece se reduzir a uma síntese dialética no sentido

hegeliano, mas que permite, ainda assim, a criação do novo (do novo sentido, da nova leitura, da nova

escrita, da nova sensibilidade artística). O autor sempre foi aquela perspectiva que não permitia, de dentro

dela, interpretar o texto; mas, tomando alguma distância dela, era justamente o que possibilitava fazer

rodar a maquininha de associar significantes uns aos outros. Nesse sentido, o autor, até aqui, pôde ser

metaforizado como um estranho atrator em torno do qual os significantes eram instalados em um campo

de sentidos possíveis. Mas, no caso, esse estranho atrator não tinha como ser deslocado materialmente pelo

leitor (daí a afirmação de que não era possível entrar dentro dele para gerar interpretações do texto). Ora,

o texto eletrônico é justamente o tipo de objeto a ser lido que admite essa manipulação, esse deslocamento

material a que o leitor submete a posição do autor.

* * *

Na verdade, todas essas relações entre autor e leitor podem ser enxergadas de modo mais simples, se não

nos deixamos levar por certo passionalismo teórico. Se abrimos mão de opor totalmente escrita à leitura

(sem, é claro, identificar totalmente uma a outra), talvez consigamos entender como elas se desdobram e se

relacionam. Primeiramente, é preciso talvez enfatizar o óbvio e repetir, quantas vezes se fizerem necessárias,

que há uma primeira escrita na gênese da obra, e que ela é incumbência direta e exclusiva do autor. Contudo,

no caso das criações em meio eletrônico, temos de fato não uma, mas várias escritas, em que linguagens de

estratos e estratégias distintas são chamadas a dialogar (diálogos que apresentam resultados mais ou menos

harmônicos, ou até mesmo completamente desarmônicos). Nos chamados geradores automáticos de textos

literários, por exemplo, trata-se do diálogo entre linguagens verbais e linguagens de programação, em que

a escrita do autor adquire novas ferramentas, novos processos: escrever, agora, não significa apenas enfileirar

palavras, seguindo de perto ou de longe leis de retórica que se estabeleceram ao menos desde Aristóteles,

passando por Cícero e Quintiliano. De forma bastante distinta, trata-se de processos de escrita que implicam

a construção de bancos de dados, num primeiro momento, e, posteriormente, da construção de relações

possíveis e repetitivas entre elementos desses bancos. Tais elementos podem ter tamanhos variáveis e serem

agrupados segundo condições de contorno mais ou menos fechadas. E a escolha e a combinação de tais

elementos, por exigirem quantidades e velocidades acima da capacidade de processamento do cérebro

humano, devem buscar a capacidade de processamento dos sistemas informáticos.

É quando podemos ver, então, como as linguagens de programação deslizam para dentro do processo de

criação literária: elas devem estar adaptadas, de um lado, aos elementos que constituem os bancos de dados

e, de outro, à maneira como o autor entrevê os resultados possíveis de sua criação, o que inclui os modos

como os leitores vão lidar com o dispositivo de produção de significantes. E é também aí que o espaço da

autoria se enriquece e se torna mais complexo, com a interferência construtiva do programador. Mesmo

considerando os casos (raros, bastante raros) em que o criador domina a contento os processos e as

ferramentas de programação, mesmo aí, aparecem duas instâncias muito distintas de escrita. Uma delas é

justamente a da concepção artística ou literária (seja ela verbal, seja visual, seja sonora, separadas ou em

conjunto). O que se pretende com isso é gerar significantes por meio de sistemas e processos de

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manipulação que associam o espontâneo do escritor aos automáticos iterativos do sistema informático. Daí

a necessidade de que um programador venha a criar as condições de possibilidade de existência e de

funcionamento do dispositivo produtor de significantes. Num primeiro olhar, essa relação entre o

programador e o escritor não seria nada diferente da que se dá, por exemplo, entre o pintor e o artesão

construtor de telas, ou o químico produtor de tintas especialmente requeridas pelo próprio pintor. Sem os

dois, não haveria pintura. Mas é importante notar que, desde o início, a tela sempre fez parte do dispositivo

de pintura, ou melhor, ela sempre sustentou a maneira como o pintor dispôs e exibiu as possibilidades do

visível e da visibilidade, até a exploração de todas as suas características como dispositivo óptico no século

XX. Se, de um lado, era construída materialmente pelos artesãos, de outro, ela estava completamente

compreendida ou insinuada antes, na maneira como os pintores buscavam explorar o visível e a visibilidade.

Assim, os artesãos acabavam apenas realizando o projeto de um suporte já previsto pelas lógicas expressivas

da pintura. Porém, algo completamente distinto ocorre na ciberliteratura (e, claro, em toda a ciberarte). As

ferramentas de programação não são a simples materialização de um dispositivo de expressão previamente

elaborado ou idealizado que já faça parte das lógicas expressivas da literatura eletrônica. A bem da

verdade, essas ferramentas de programação dialogam com as várias linguagens (verbal, visual, gestual etc.),

de modo que não haja uma antecedência fechada de umas com relação às outras. Dito de outra maneira, a

conjunção das linguagens de programação com a linguagem verbal, por exemplo, pode fazer surgir uma

outra linguagem, um terceiro espaço expressivo, que, além de ser informático e verbal, é também

informático-verbal. E se falamos de uma preponderância do escritor com relação ao programador, isso

corresponde apenas e tão-somente ao fato de que buscamos ler no objeto artístico não os detalhes e as

peculiaridades da programação, mas seus (d)efeitos, entendidos agora como significantes inseridos não

mais em lógicas de produtividade lógica e tecnológica, porém recortados sobre um pano de fundo estético.

Trata-se de uma questão de foco.

Num segundo momento, esse dispositivo criado e concebido por escritor e programador é passado a um

leitor que pode, por exemplo, ser solicitado a manipular o dispositivo, para que este entregue na tela, como

resultado, uma cadeia de palavras ou expressões. Nesse caso, alguns vêem uma independência absoluta do

leitor; afirma-se comumente que se trata de uma leitura que é escrita e, mais, que é escrita absolutamente

desvinculada de qualquer escrita do criador do sistema. Com o que se decreta luto oficial pela morte do

autor tradicional, solapado em seu papel de criador por esse novo leitor – alforriado da submissão ao

escritor graças às tecnologias telemáticas, podendo então escrever e criar por sua própria conta e risco. Nada

mais enganoso, pois se esquece, em tal raciocínio, de levar em conta que essa escrita do leitor é na verdade

e sempre uma escrita segunda, que só pôde ocorrer graças às muitas interferências entre as linguagens do

programador e as linguagens várias do escritor. Então há ainda uma relação de dependência entre a escrita

deste e a escrita do leitor. Podemos dizer que a primeira é solidária da programação (quer dizer, que

estabelece um diálogo com esta). Já a segunda – a escrita do leitor –, mais do que solidária, é o resultado

da programação; ela é o próprio programado. Em outras palavras, essa escrita do leitor não pode

estabelecer nenhum diálogo com os resultados da programação, pois ela já é esses resultados. Todavia, não

se confunda programado com previamente determinado. Quando falamos que a escrita do leitor é aquilo

que foi programado, isso não significa que ela já esteja totalmente tramada antes de ser materializada; que

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seus limites e condições de contorno já sejam predefinidos pela conjunção entre as linguagens de

programação e as linguagens do escritor. Temos aí aquele mesmo determinismo sem previsibilidade de que

acima se falou acerca dos fractais e da ciência do caos: a escrita do leitor é planejada no sentido de ser

determinada por um aparato que conjuga linguagens de programação e linguagens de criação – estas, do

escritor; aquelas, do programador –, sem que se possa, contudo, prever (às vezes nem mesmo nos detalhes

mais grosseiros) seus resultados. Entre leitor e escritor, enfim, instala-se não a previsibilidade limitante dos

sistemas fechados, mas o determinismo aberto que toda leitura pode ter e deve assumir.

Interferências e Dualidades

Interferências, como a citada entre linguagens do programador e linguagens do escritor, podem remeter

àquilo que Merleau-Ponty, em Le Visible et l’Invisible, chama de reversibilidade. Talvez seja um dos conceitos

que possibilitem até mesmo melhor dar conta dessa confluência de textos, de páginas, de linguagens, de

códigos, que é a ciberliteratura. Em conseqüência, seja-nos permitido, nas linhas que se seguem, pensar essa

poesia eletrônica, sobretudo no que diz respeito ao diálogo entre verbal e visual, buscando apoio e

companhia nas reflexões do autor de Le Visible et l’Invisible. Em todo caso, tais questões permitirão mapear

não apenas os elementos envolvidos na conjunção verbal-visual, mas em várias outras.

Ao menos um dos pontos de partida de Merleau-Ponty para pensar a reversibilidade é a imagem (que ele

aprende com Husserl) do corpo próprio, de sua capacidade reflexiva: nele, as mãos se tocam e são tocadas

uma pela outra. Essa reflexividade corpórea é não só confluência do que toca ao que é tocado, mas, em

termos mais gerais, o entrelaçamento entre o corpo que percebe e o mundo objetivo dado à percepção. Os

movimentos próprios do corpo perceptivo são desenhados sobre o mundo que eles interrogam, e ambos –

corpo perceptivo e mundo das coisas percebidas – vêm dialogar numa mesma instância, sem que se reduzam

um a outro, como “as duas metades de uma laranja”.29 Por outro lado, mesmo a visão, ao contrário do que

a experiência empírica nos poderia sugerir, traz em si essa reflexividade corpórea. Ao que tudo indica, não

é possível nos ver vendo. Mas, no caso, um tal juízo derivaria de um aparelho analítico já superposto,

sutilmente, ao aparelho perceptivo corpóreo, impondo à reflexão corpórea o viés de uma análise

intelectualista, impedindo-nos de assimilar o fato de que “dès que je vois, il faut (comme l’indique si bien

le double sens du mot) que la vision soit doublée d’une vision complémentaire ou d’une autre vision: moi-

même vu du dehors, tel qu’un autre me verrait, installé au milieu du visible, en train de le considérer d’un

certain lieu”.30 Assim, o corpo, como visibilidade, seria uma espécie de condição incarnada das possibilidades

da existência. Não haveria, então, nem mundo exterior limitado às coisas, nem coisas colocadas à parte,

enfurnadas em sua região ôntica, mas uma só visibilidade que, como a poesia, torna visíveis os pensamentos

e as falas, faz com que o discurso do ser e o ser que o enuncia sejam os gestos e as poses de uma posse

inaugural do mundo vivido.

Desse ponto de vista, a reversibilidade não poderia seria entendida como essência das coisas, nem mesmo como

categoria generalizante. Reversibilidade aqui descreve a possibilidade nossa31 de nos dotarmos de objetos ao

mesmo tempo que nos instalamos (em que somos e estamos) em meio aos objetos. No caso do leitor da obra

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(seja ela composta ou não de uma pluralidade de linguagens e códigos) e da leitura, há alguns elementos a

serem considerados. Primeiramente, apre(e)ndo da reversibilidade a lição de que, como leitor, não tenho como

não dotar-me de uma pluralidade de leitores. Isso implica inspecionar o ato de leitura e ver nele o que antecede

tanto a organização do campo de sentidos possíveis, em primeiro lugar, quanto, em seguida, a elaboração de

significados. Com isso, apontamos, no campo de leitura, para aquilo que pela linguagem vem dos outros e pelos

outros; aquilo que, abrindo mão de uma origem mítica ou divina das línguas, desvela nossa participação em

uma esfera de intersubjetividade de que a linguagem é o sintoma mais evidente e primeiro.

Dessa maneira, a reversibilidade implica um textualizar-se: o leitor se coloca em meio aos objetos a serem

lidos e partilha desse disponibilizar-se à leitura. Uma conseqüência direta dessa textualização do leitor é o

fato de que ele constitui textos a serem dispostos no espaço dos sentidos possíveis e atravessados por

significações construídas na e pela leitura. Daí assumir ele, leitor, também o papel de autor; no caso, autor

de si próprio. Ao ler um texto, o leitor escreve, ainda que pouco, um tanto de sua história, de sua vida; ele

inscreve em seu ser algum ritmo de palavras, algum movimento de fala, alguma imagem verbalizada

(verbalizável). Daí não ser talvez apropriado falar de composição ou de justaposição, ou até mesmo de síntese

dialética, entre a leitura do texto e a leitura de si. Como afirma Merleau-Ponty,32 se queremos propor uma

figura metafórica para a relação entre uma e outra, pensemos em ambas como direito e avesso reversíveis,

como dois segmentos de um mesmo percurso circular, opostos mas também reversíveis; ou como os dois lados

da fita de Moebius que, de fato, fazem apenas um. A partir daí, pode-se falar com certeza de uma

reversibilidade entre leitor e autor. Não que um se reduza ao outro; ou que haja apenas leitores, mesmo

dispondo significantes verbais em uma cadeia própria de associações; ou que existam apenas autores,

alinhavando significações em seu campo de sentidos possíveis. Entre leitor e autor se estabelece uma

duplicidade anterior à materialização da linguagem em forma de escrita: o leitor que sou agora de um dado

texto busca, num primeiro momento, a perspectiva do autor que eu já era de minhas palavras; já o autor de

quem julgo receber o texto não é apenas o outro que produziu esse texto, mas é também uma dada maneira

de manifestar a originalidade com que me insiro na língua por meio desse texto e dessa linguagem.

Mas, se tocamos nas relações entre autoria e leitura (discutidas acima), foi apenas para aproximá-las de

algumas questões atinentes à reversibilidade e mostrar o interesse no emprego desse conceito. Voltando à

utilização do visual na criação de uma poesia eletrônica, é importante, nessa perspectiva da reversibilidade,

aprofundar ainda alguns elementos ligados à visão. Afirmamos anteriormente que não podemos nos ver

vendo diretamente, mas que podemos, assim mesmo, desvelar a situação de reversibilidade entre vidente e

visível quando nos damos conta da participação dos olhares de outros em nosso próprio olhar e, sobretudo,

da presença do visível das coisas em nossa visibilidade. Ora, talvez esteja justamente no ciberespaço uma

possibilidade imediata de simular concretamente tal situação. Nele, estaríamos em situação de arquitetar

uma ficção do perceptivo, essa que nos dá chance de encenar a situação de nos ver vendo, algo que vai

além do vivendo (esse viver inautêntico de que fala Heidegger). O ciberespaço pode, então, ser a

celebração ou a instauração de uma nova esfera mítica, possibilitando a produção de avatares que, no

exterior de nossa capacidade visual, criam perspectivas, objetos e esboçam tracejados em que nos

reconhecemos e até nos vemos vendo.

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Daí que essa reflexividade corpórea33 aponta para a possibilidade de uma comunhão motivada entre visual

e verbal, do mesmo tipo daquela que verificamos entre o tangível e o visível. Entre estes, também há mais

do que uma coincidência causal; há o liame efetivo de uma unidade construída no/pelo sujeito perceptivo:

“Il faut nous habituer à penser que tout visible est taillé dans le tangible, tout être tactile promis en quelque

manière à la visibilité, et qu’il y a empiétement, enjambement, non seulement entre le touché et le

touchant, mais aussi entre le tangible et le visible qui est incrusté en lui”.34 Além disso, essa relação entre o

tocar e o ver não se desprende de modo algum do pensar e do dizer, todos eles podendo ser entendidos

como gestos com que nos inauguramos para o mundo e, pelos quais, um mundo se nos inaugura. Então a

possibilidade de associar também a esses visíveis uma disposição que resvala tanto para a diacronia quanto

para a sincronia. É como Merleau-Ponty diz das cores percebidas: elas representam um certo nó na trama

do simultâneo e do sucessivo.35 Da mesma maneira, é um nó dessa espécie que buscamos, um nó entre o

simultâneo da imagem e o sucessivo da linguagem verbal, abrindo pontos de sucessividade no simultâneo

da imagem e, concomitantemente, brechas de simultaneidade no sucessivo das palavras. Nesse sentido, é

preciso que habitemos as imagens como quem lê uma cadeia de palavras, inaugurando correntes de

significantes e redes de sentidos, flexionando e conjugando cores, formas, aparências, buscando acima da

disposição física ou óptica das imagens um estado de dicionário e uma disposição sintática.

Realizar tais tarefas corresponde a propor um novo conjunto de retóricas para o texto eletrônico, à

semelhança do que foi feito, durante a Idade Média, para a escrita com base em retóricas clássicas.36 Essas

retóricas do escrito e do impresso desenvolveram elementos e processos que já materializavam, em instâncias

distintas, a sucessividade e a simultaneidade. De fato, não há dificuldades maiores para entender questão

bastante evidente: à sucessividade sem volta dos fonemas, como ocorria na oralidade, a técnica da escrita

fixou como simultâneos os significantes verbais, concretamente, colocando-os nas mãos do leitor ao longo

das páginas todas. A obra inteira já estava disponível desde o início e não havia necessidade de esperar nada

ou ninguém para chegar ao fim ou mesmo para atingir qualquer ponto dela.37 Porém, o processo de leitura38

ainda pagava tributo à seqüencialidade da fala, quer dizer, à impossibilidade de o leitor manipular os

significantes todos, seja pelos limites de seu campo visual, seja por sua reduzida capacidade de memória. Em

resumo, os significantes eram dados todos como simultâneos, mas os limites físicos do leitor impediam que

fossem tratados e tornassem disponíveis à leitura simultaneamente. Dessa maneira, a divisão em páginas, em

tamanhos que também não ultrapassaram nunca os limites do campo visual, acabou materializando uma

sucessividade na já materializada simultaneidade do impresso. Ora, no meio eletrônico, sucessividade e

simultaneidade parecem nunca estar materializadas de modo distinto, ou mesmo definitivo. Entre elas,

instala-se uma ligação imediata. Basta pensar em um exemplo muito simples: uma expressão sublinhada numa

dada página eletrônica, e que leva a uma outra, pode perfeitamente abrir esta segunda ao lado da primeira,

transformando por simples opção do leitor a sucessividade em simultaneidade, concretamente, o que caracteriza,

mais do que uma justaposição, uma possível conjunção imediata e direta entre uma e outra.

Cabe, então, no caso do espaço digital, examinar como funciona essa reversibilidade nas imagens e nas palavras,

ou melhor, na possibilidade de construir um duo imagem-palavra. O sentido deste pode estar imediatamente

apontado, desde o início da leitura, materialmente exposto e configurado pelas interatividades e comandos

associados a ele. O nó (ligação ou link) que remete concretamente a outros nós, estabelecendo sucessividades

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evidentes ou insuspeitas, pode já estar indicando, nesse mesmo nó, um outro, que se evidencia na trama do

simultâneo e do sucessivo. Todavia, para isso, não basta apenas tornar imagens e palavras correspondentes e

análogas (e clicáveis) entre si. É preciso que ambas intercambiem sua maneira própria de dar expressividade

(visual e verbal) às coisas e às pessoas envolvidas. Ou seja, temos que dispor palavras que levem tanto ao verbal

quanto ao visual; temos que expor imagens que remetam ao verbal e também ao visual. Nesse caso, a palavra

não pode ser apenas significações remetendo a sentidos, mas espessura, tactilidade, cor e sombras. É preciso que

ela – palavra – indique, para além dos ícones, as fisionomias e as aparências das coisas e das pessoas do mundo,

sem que seja necessariamente revestida ou ilustrada de cores, formas, ornada de imagens e figuras. E essa

palavra, assim muda ou emudecida precisamente por ser palavra, por ser significante, não saberia isentar-se da

expressividade, e poderia retomar processo semelhante àquele que, num Mallarmé ou num Góngora,

proporcionou a volta a um estado anterior às significações sedimentadas. Palavras que, então, falavam não de

idéias nem de argumentos, mas de gestos e horizontes de sentidos possíveis. Da mesma maneira, não se pode

admitir que a figura seja sempre e apenas uma certa relação entre forma e fundo. Mais do que se apresentar

como disposição e fisionomia, é preciso que ela vá além de uma inserção (sempre) parcial no campo visual. Mas,

para isso, não significa que a imagem deva começar necessariamente por travestir-se de alegoria, ou que remeta

necessária e invariavelmente a algum conteúdo lingüístico. É imperioso, ao contrário, que assuma ares, pompa

e circunstância de palavra, de léxico, de significação; que ela possa produzir campos de escolhas e de

combinações. E é assim então que o duo imagem-palavra deixa de ser palavra ilustrada por imagem, ou imagem

explicada por palavra, para tornar-se uma terceira coisa, ao mesmo tempo palavra vista (e não apenas visível) e

imagem verbalizada (e não só verbalizável).

* * *

Também dentro desses espaços de interferências, a dualidade entre linear e não-linear é das mais

freqüentes, o que talvez até explique parcialmente a quantidade de bobagens já ditas a esse respeito.

Eduardo Kac, por exemplo, talvez prejudicado pelos resquícios de português que ainda teimam em

perturbar seu inglês castiço, afirma que “the sequential structure of a line of verse corresponds to linear

thinking, whereas the simultaneous structure of a concrete or visual poem corresponds to ideographic

thinking”.39 Nem as leituras mais equivocadas do Discurso do Método conseguiriam reduzir a ordem do

pensamento à seqüência linear dos gestos corporais com que se percorre um dado objeto. Talvez nem as

mais desvairadas correntes empíricas proporiam tal aberração. Com efeito, mesmo a linha, como ente

geométrico, não pode ser reduzida a tal linearidade (desculpando-me pelo eventual paradoxo), pois o

infinito para onde ela aponta em suas duas extremidades já se encontra na quantidade de pontos dentro

de qualquer segmento finito que dela se escolha. Nesse tipo de pensamento – como o de Kac –, a leitura

ganharia foros de descontinuidade e de irregularidade apenas no meio eletrônico, graças à

descontinuidade e à irregularidade da base material dos textos criados para o ciberespaço. Ora, isso que se

diz, superficialmente, do texto eletrônico nunca deixou de ser verdade com relação às obras impressas: em

qualquer caso, a leitura nunca foi obrigatoriamente linear. Sobre seus holopoemas, Eduardo Kac diz que

eles devem ser lidos “in a broken fashion, in an irregular and discontinuous movement, and it will change

as it is viewed from different perspectives”.40 A linearidade e a rigidez por certo estão intimamente

associadas à base material do texto impresso, mas de modo algum são elementos essenciais a sua leitura e

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a sua escrita. Por outro lado, é certo que essa ciberescrita exige a apreensão de uma nova sintaxe, no que

Kac está rigorosamente correto,41 ainda que eu prefira falar em retórica e não em sintaxe.

Mas que sintaxe, ou melhor, que retórica é essa, como ela se desenvolve nesse campo eletrônico de

misturas semióticas, de baralhamentos de significantes, de clivagens e cristalizações de significados

heterogêneos? Que retórica da escrita eletrônica é essa, então, que ainda mal tenta se esboçar, mas de

que se exige resolver, materialmente, uma série de contradições (linear e não-linear, visual e verbal,

sincrônico e diacrônico etc.)? E, para ser mais específico, que gramática é essa que se anuncia nos

processos eletrônicos de interferência entre verbal e visual? Por certo, tal dissonância entre esses dois

materiais é das questões mais instigantes que se colocam para a assim chamada criação poética em meio

eletrônico. Entender como ambos podem interferir positiva ou negativamente,42 proporcionando um

espaço de significantes não mais subordinado exclusivamente a um ou a outro, eis o desafio e o

interesse dessas cibercriações, que, assim, poderiam finalmente ser classificadas como literárias. Todavia,

na imensa maioria dos casos, essas obras, criadas especificamente para o ciberespaço, ainda se obrigam

a uma disjunção redutora: ou investem na criação verbal, ou – o que é bem mais freqüente – entregam-

se apenas à ornamentação visual baseada nas capacidades dos programas de computadores disponíveis.

No caso, há um aprendizado a se fazer com certas tradições literárias contemporâneas da imprensa e

que se espalharam por épocas e regiões variadas: os calligrammes de Apollinaire, poemas de Tardieu, de

Cummings, de Butor, o Coup de Dés e as antecipações do Livre, de Mallarmé, os lipogramas e os

labirintos da literatura ibérica dos séculos XVI, XVII e XVIII, as carmina figurata (anexo 2) e os rébus43 da

tradição medieval etc.

Tudo isso está ligado, de alguma forma, a um antigo projeto de conciliar o alfabético e o figurativo, em

outras palavras, o verbal e o visual, fugindo a uma escolha excludente entre a figuração do ideograma e

a abstração do alfabeto.44 Todavia, em tempos de literatura impressa, tais oscilações da criação literária

eram submetidas a um rigoroso dispositivo de disseminação: uma vez escolhido o ponto de construção

da obra literária, nessa reta que vai do verbal ao visual, a colocação no espaço plano e imutável da folha

impressa impedia novas escritas, isto é, quaisquer modificações nesse contrato já firmado entre visual e

verbal. Fosse uma obra mais próxima do verbal, como a escrita ropálica (anexo 3) fosse uma criação

intermediária, como um labirinto (anexo 4) ou uma mais próxima do imagético, como um emblema

(anexo 5) sua localização a meio caminho entre o verbal e o visual, ou mais próxima de um ou de outro,

já estava definida desde sua impressão. Em tempos de ciberespaço e de ferramentas eletrônicas de leitura

e divulgação, o texto eletrônico pode deslocar-se continuamente entre um e outro dos dois pólos, como

afirma Fabio Doctorovich: “... los límites de la literatura se desplazan gradualmente al punto en que

deberíamos preguntarnos si la noción de literatura implica principalmente palabra escrita, o si esta

afirmación puede dejar de ser cierta en algún futuro cercano”.45

Mas há outros complicadores rondando essa história. Para introduzir as imagens na tela, faz-se uso de uma

série de operações permitidas pelas ferramentas de processamento, armazenagem e transmissão de dados.

Com isso, a ligação do visual com o verbal derivaria de uma potencialidade tecnológica impondo de

antemão seus significados oriundos de uma demiurgia maquínica (mas, parece, paradoxalmente propostos

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por um Deus ex machina). No caso, a criação literária deveria, então, insurgir-se contra esse determinismo

técnico, como única forma de resguardar-se como arte. Não se trata de advogar para o artista o papel do

Prometeu sacrificado em prol da humanidade; talvez a melhor figura seja a de um Sísifo muito contente de

sua brincadeira, essa de empurrar rochas morro acima e vê-las despencar morro abaixo, sem se deixar

esmagar por elas, para recomeçar tudo mais uma vez, incessantemente. A criação Abyssmo (Asz, módulo H-

An), que o autor, Fabio Doctorovich, insere no gênero “hiperpoesia”,46 parece tentar semelhante empreita.

Ela nos permite uma escolha inicial entre uma advertencia, uma teoría e la obra ela mesma, tudo isso para

que entremos, leitores ladinos e crianças sabidas, diretamente nesse hipertexto que espreita expectativas e

páginas. Todavia, parece que tanto a advertência quanto a abordagem teórica não se desprendem em

momento algum da navegação pelas páginas dessa criação de Doctorovich: mesmo que não se entre em

nenhuma das duas, a passagem de uma página a outra, de um evento a outro, de uma interação a outra

não abre mão jamais dessa precavida ligação com os significantes, todos eles submetidos a um exaustivo

inventário de operações que encontramos nos editores de texto ou de HTML, nos manuais de auto-

aprendizagem de Java® etc. E não ficamos seguros, em momento algum, de aceitar que uma pretensa

“repetitión ‘cuasimecánica’ como método compositivo visual”,47 invocada pelo autor, possa mesmo ser

considerada uma saída convincente para essa poesia eletrônica.

A despeito de algumas belas associações de imagens, os elementos verbais empregados por Doctorovich são

pobres e, dada sua estreiteza, não conseguem senão chamar a atenção para a utilização competente da

programação visual e dos programas de edição eletrônica. De toda maneira, temos alguns sintomas desse

processo que já foi chamado de “iconização do verbal”.48 E nem se pode afirmar que tal processo

testemunhe uma alteração nos referenciais epistemológicos, ou uma mudança nos padrões culturais, ou

mesmo um salto na complexidade dos dispositivos tecnológicos de armazenamento e circulação de

informações. Essa iconização do verbal tem representado, muito freqüentemente, apenas a subserviência

do verbal ao imagético, implicando um empobrecimento gritante no que supostamente é criação literária

ou poética, empobrecimento também advindo de um apagamento do verbal em detrimento do interativo,

do iterativo, do automático.

Se, como defende Sadin, estamos assistindo à emergência de uma “economia digital que desenvolve

tensões tipológicas por efeito de contigüidade”,49 é preciso dar a devida voz, espaço e ocasião a essas

contigüidades, sob pena de elas se transformarem rápida e inapelavelmente em formas já bem conhecidas

de submissão ou de reducionismo de uma linguagem a outra. Muito facilmente, essas tensões tipológicas

podem buscar o lenitivo reconfortante e redutor do imagético apenas, com o que essa pretensa “iconização

do verbal” se torna tão-somente iconização pura e dura. No caso, a linguagem verbal não encontra lugar

ou vez, sobretudo quando se instala não uma “circulação fluida” (como afirma Sadin) entre os códigos e os

objetos de diferente natureza, mas uma celeridade desenfreada ou uma vagareza regida totalmente pelos

instrumentos e processos informáticos. No contrapelo, isso que Sadin chama de gesto poético50 é o único

capaz de quebrar a rigidez autoritária com que a tecnologia nos mostra sua face e seus poderes. Talvez apenas

o poético seja a instância a que podemos fazer apelo para colocar em rotação os diferentes materiais

significantes, sem que eles carreguem hierarquias preestabelecidas ou imponham efeitos redutores como o

apontado acima. A bem da verdade, as únicas hierarquias admissíveis devem mesmo ser as do poético,

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incomodando velhos hábitos de decodificação e perspectivas preguiçosas de leitura. No caso das hiperficções,

por exemplo, é preciso encontrar uma estratégia de criação que saiba acomodar os jogos da interatividade e

as enganosas facilidades do imagético, aos prazeres da narração, ao contrário do que defende Jean Clément.51

Voltando ao principal, isto é, às dissonâncias e interferências entre visual e verbal na poesia eletrônica,

pode-se afirmar que as imagens devem aparecer na tela de forma a convocar ou permitir determinadas

perspectivas, desenhando certos traços de olhares, inclusive de outros. Habitando esse espaço de

visualidades várias, o leitor poderá, então, presenciar e perceber a instalação do verbal nas/como imagens.

Teremos, nesse caso, a conformação de um espaço de percepções (não apenas visuais) a que o corpo e até

mesmo os gestos do leitor são chamados e expostos à gestualidade das palavras. Dessa forma, é a própria

visibilidade que (se) abre (em) espaços e tempos para o verbal, permitindo inscrever uma semantização em

cada movimento de imagens, em cada deslocamento de ícones, em toda interação do leitor com a tela

através de teclado e mouse. É como se “partes mascaradas”52 da imagem revelassem finalmente uma

espessura verbal, um encadeamento de significantes e de sememas. De fato, impõe-se construir novas

retóricas de produção para essa ciberpoesia, como resposta à mudança do meio impresso para o meio

eletrônico. Explico melhor: a literatura da tradição impressa já apresentava sutilezas e complexidades

próprias a suas estratégias de produção, de disseminação e sedimentação dos textos. Parece simplismo

apenas dizer que “as formas clássicas da linguagem tornaram-se ineficazes”, ou afirmar que a complexidade

é apanágio apenas dos instrumentos e processos ligados às tecnologias telemáticas.53 Quando se passa do

meio impresso ao digital (coisa que, ouso crer, ocorre em toda transição de meios e modos de produção),

há uma espécie de inversão de papéis com respeito a alguns elementos. Vá lá o exemplo do trabalho com

o estrato sonoro nos poemas. Por menos sutil que seja um poema construído para o meio impresso, ele

sempre poderá guardar surpresas e efeitos inesperados, alguns de que o leitor nem mesmo se dá conta

explicitamente. A título de exemplo, tomemos uma criação minha e de Gilbertto Prado, Ponto, realizada no

longínquo ano de 1997. Naquele momento, o poema – isto é, a matéria verbal – era escrito por mim como

que para o espaço impresso, sem nenhuma estratégia aparente de criação eletrônica, coisa que era então

estabelecida a posteriori. No caso desse Ponto, no que diz respeito à criação verbal, produzi certo jogo

sonoro repetido em todos os dísticos: as palavras do primeiro verso, da primeira à última, faziam rimas

toantes com as do segundo verso, mas da última à primeira, como se pode perceber:

Quase tudo acaba bem

Sem adaga, mudo alarde

De fato, as rimas estão nas duplas quase-alarde, tudo-mudo, acaba-adaga, bem-sem. Com maior ou menor

fidelidade, esse efeito foi obtido nos sete dísticos do poema. Ora, na tradição impressa, a não ser nos casos

raríssimos em que o poeta inaugurasse um novo espaço de escrita, não caberia nenhum tipo de informação

ao leitor sobre as sonoridades e os efeitos, inclusive sobre os modos de leitura. Esse tipo de didascália

sempre ficou restrito ao espaço das artes cênicas, ou, ao menos, muito pouco foi utilizado na criação

poética. É assim que, para o leitor do poema, acabava restando a atividade de mapear no gesto da

declamação os jogos sonoros propostos pelo poeta, sem a muleta das explicitações ou das explicações. Havia

aí uma sutileza a permitir o prazer da descoberta, como que concedendo, quando da leitura, uma ligeira

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sensação de originalidade. Isso se dava também com respeito aos intertextos.54 Como resultado a leitura

podia ser às vezes interrompida, dependendo da bagagem do leitor, por inesperadas descobertas e

entusiasmos, descobertas mais fáceis – como a ligação entre Os Lusíadas e a Invenção de Orfeu, de Jorge de

Lima –, ou menos evidentes – como a filiação de O Cortiço, de Aluízio Azevedo, a L’Assomoir, de Émile Zola,

que necessitou da argúcia de mestre Candido para ser dada à luz. Mas, no meio impresso, essa explicitação

(ou des-sutilização) dos intertextos dependeu sempre da experiência, dos conhecimentos, da memória e até

mesmo da inventividade do leitor. É assim que, no caso dos versos compostos para Ponto, apenas alguns

mais argutos talvez percebessem as rimas toantes atravessadas de um lado a outro dos versos e da estrofe.

Quando passado para o meio eletrônico, e submetido a processos informáticos de tratamento e de

manipulação, o sutil jogo de sonoridades pôde ser evidenciado, exposto pela mudança de cor que vai, em

seqüência, destacando os pares de expressões que fazem a rima toante:

Quase tudo acaba bem

Sem adaga, mudo alarde,

Quase tudo acaba bem

Sem adaga, mudo alarde,

Quase tudo acaba bem

Sem adaga, mudo alarde,

Quase tudo acaba bem

Sem adaga, mudo alarde,

O meio eletrônico permite concretizar e expor diretamente os intertextos, como, aliás, foi feito neste

ensaio: ao início, há uma citação velada ao romance Voyage Autour de Ma Chambre, de Xavier de Maistre.

Numa leitura em papel, sem a interferência apelativa de uma nota de rodapé (mais uma!), muitos de meus

já poucos leitores passariam em branco pela referência. Todavia, num texto eletrônico, num arquivo word

por exemplo, pude facilmente colocar diante dos olhos do leitor a versão integral do romance. Da mesma

maneira, o meio eletrônico permitiu explicitar, em azul, as elucubrações sonoras de Ponto, tirando o prazer

de ler, ouvir e descobrir para, no lugar, pôr a diversão de ver. E a pergunta, inapelável, que surge é: quais

novas sutilezas viriam, então, habitar essa literatura eletrônica no lugar daquelas, perdidas, da tradição

impressa? Ou estaríamos nós condenados à evidência direta, à leitura imediata, a um mundo de

significações planas e de sentidos sem profundidade?! Parece-me que não, mas essa impressão, para que

ganhe foros de certeza, necessita de algum tempo, justamente o tempo que vai permitir a sedimentação de

processos de criação e de linguagens, que vai permitir às diferentes linguagens que dêem origem a um

mesmo espaço expressivo e façam surgir uma retórica do texto eletrônico, das poéticas digitais, dos

ciberpoemas. É apenas com o passar do tempo que os dispositivos, os objetos e os gestos expressivos – como

ocorre em todo espaço cultural – ganham profundidade, que se torna mais evidente sua complexidade original

e originária, que o processo de simbolização, inicialmente apenas possível ou latente, é trazido para a

exterioridade do processo de produção das significações. Apenas nesse momento, então, poderemos descortinar

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as sutilezas que se podem construir no ciberespaço nessa exploração de linguagens verbais no meio eletrônico.

Tentar definir qualquer coisa, antes disso, ainda me parece exercício de futurologia fadado ao fracasso.

Daí a proposta desse poema eletrônico Ponto, que quis justamente expor uma conjunção entre o ler e o ver, entre

o verbal e o imagético. As mudanças de cor das letras, de cinza para azul, interferem diretamente na apreensão

dos versos (que pode ser feita ainda dentro da tradição impressa). Mas tal leitura na tradição impressa é só

impressão inicial, pois o movimento cromático, por mais simples que seja, vem perturbar o costumeiro e o

automático da leitura dos versos. É um ruído que, inicialmente, apenas se insinua e incomoda, justamente por

não haver nenhuma simbolização direta ou indireta da cor azul. Posto diante de versos parados, como numa

folha, ao leitor se permite não apenas ler, mas também se exige que ele o veja. E, hesitando entre o ler e o ver,

ele pode ser tentado ainda a resolver o incômodo e o ruído apelando para a subordinação do visível ao legível,

procurando submeter a organização visual e movente do poema às lógicas expressivas e às retóricas da

linguagem verbal. Chegará algum momento em que perceberá que a criação verbal não perde nunca sua

capacidade expressiva, quando se abre para outras linguagens e se deixa influenciar por elas. Nesse Ponto, então,

surge pelo menos um novo recorte no espaço perceptivo trazido pelo poema: ao percurso de significação das

escritas ocidentais em que os versos foram compostos, novas possibilidades de recortes sintagmáticos e

paradigmáticos aparecem, pela maneira como proximidade e distância entre palavras e expressões são alteradas

pelos movimentos das cores. Daí, talvez, sutilmente, o poema deixe de ser visto como estando inserido em um

retângulo desenhado por palavras para assumir fisionomias mais complexas e transitórias, aqui uma fita de

Moebius, acolá uma sua parente, a lemniscata, mais adiante, um fractal de dimensão 1,93, e assim por diante.

* * *

Qualquer linguagem – verbal, visual, icônica, sonora, gestual e a lista não teria fim, pois o nome linguagem

é legião – é essencialmente intersubjetiva. Nos gestos corporais com que habito o campo dos sentidos

possíveis do mundo vivido, insiro significações que se conjugam a outros gestos, de outros indivíduos. Na

linguagem verbal, cada cadeia significante somente adquire capacidade expressiva por trazer em sua trama

e fisionomia outras significações, outros sentidos, de outras pessoas: se nem sempre dizemos ou escrevemos

para outro, necessariamente dizemos ou escrevemos com outros, sob pena de não termos linguagem

alguma.55 Da mesma forma, a linguagem visual explora diferentes perspectivas – quer dizer, distintas

manifestações da visibilidade – para compor nosso olhar específico de um dado objeto: sem as perspectivas

de olhares de outros, necessariamente distintas das minhas, eu não poderia distinguir objeto algum como

um volume no espaço. É mais ou menos o que afirma Maurice Benayoun, quando diz:

“Cette image (...) est composée en temps réel de la trace des regards multiples qui explorent des autres

images (les différents points de vue de l’exposition La Beauté). Sur internete et sur l’écran du Centre

Pompidou chacun peut découvrir la trace des regards des autres; chaque nouvelle trace intégrant les fragments

d’intérêt des uns et des autres dans un nouvel espace qui est à proprement parler un espace mémoire”.56

O que Benayoun descreve nesse trecho não diz respeito apenas aos objetos expostos no Beaubourg, na

exposição La Beauté. É da própria visibilidade que ele fala. O mesmo pode ser dito da obra Depois do

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Turismo, Vem o Colunismo, de Gilbertto Prado. Nesta, quando passávamos sob um portal, nossa imagem

acionava uma câmara digital ligada à rede, fazendo com que ela surgisse no sítio específico destinado à

obra. Já se encontrava aí um primeiro deslocamento de perspectivas – quase o mesmo da fotografia, aliás

–, pois nos víamos não sob nosso olhar, mas do ponto de vista proporcionado pela instalação. Contudo –

coisa que faz a diferença com respeito à fotografia –, nossa imagem era ainda associada aleatoriamente

a outras, oriundas de um banco de imagens sobre a antropofagia, a pop art, a cidade etc. É assim que

olhares de outros, ou melhor, mais olhares de outros (pois já havia a perspectiva da instalação, impondo

o ângulo e a distância com que era capturada nossa imagem sob o portal) se somavam a nosso olhar

estranhado em nós e por nós mesmos (ou melhor, nesse nós mesmos de alguns segundos atrás). É como

se nossa própria imagem já carregasse essas imagens outras, essas sobras de desenhos, essas perspectivas

alheias, mas parcialmente nossas, esses restos de impressões guardadas pelo corpo, mas nunca

inspecionadas pela razão. É como se o computador fosse uma bola de cristal capaz de espacializar o

tempo ao dispor em certas regiões da tela imagens do passado e do presente; capaz de temporalizar o

espaço, ao transformar em antes e depois nosso percurso, o dispositivo de captura de imagens e o espaço

eletrônico da internete. Mas, sobretudo, capaz, esse dispositivo de Gilbertto Prado, de materializar a

pluralidade de perspectivas que sempre carregam cada gesto, cada ato, cada expressão verbal, cada

imagem. Em certo sentido, tanto a instalação de Gilbertto quanto a exposição La Beauté revelam aquilo

que o próprio Benayoun chama de “partes ocultas da imagem”.57 Eu apenas alteraria “imagem” por

“visível”. Essas partes ocultas correspondem justamente à participação de olhares outros em nosso

próprio. O que queremos com toda essa discussão é estabelecer um apoio inicial e firme no conceito de

intersubjetividade. Ela está por trás da intertextualidade, que é inerente a toda obra literária (e,

portanto, verbal); ela aparece na maneira como os visíveis de qualquer objeto dialogam com o aparelho

perceptivo daqueles que dirigem seu olhar para ele. Ela explica por que nenhuma significação é

construída solitariamente por um único leitor; esclarece como qualquer objeto visível é também resultado

dos traços que olhares outros deixaram marcados em sua qüididade. De fato, é como diz Maurice

Benayoun:58 “La traçabilité de l’individu en réseau qui fait que personne n’est à l’abri du regard de l’autre

devient ici un élément déterminant dans la construction du sens”.

E, nessa ópera de desencontros e esbarrões entre verbal e visual, uma sugestão até interessante foi intuída

por Eduardo Kac: “In mathematics, being a fractal means roughly being between a given dimension and

the next higher or lower one. In art, being a fractal may mean, by analogy, being between the verbal and

the visual dimension of the sign”.59 Na matemática do caos, os fractais surgem como a descrição matemática

(e empobrecedora) dessa presença de dimensões outras numa dada dimensão; mas também de perspectivas

outras numa dada perspectiva; de linguagens outras em certa linguagem. No caso, os fractais podem ser

interessantes como metaforização (e não apenas visual, mas perceptiva, corpórea, talvez) dessa conjunção

entre gestos expressivos de natureza diferente. Se a dimensão fractal 2,39 está em algum lugar entre o

plano (dimensão 2) e o volume (dimensão 3) – mais próxima do primeiro que do segundo –, pode-se pensar

em linguagens intermediárias, como sempre foi, por exemplo, o caso da literatura escrita, que se move em

vários pontos numa trajetória situada entre o sonoro e o verbal. E, ressalte-se, o fato de ambas se colocarem

no mesmo espaço expressivo não significa que elas se resolvam num processo dialético de tese-antítese-

síntese. Trata-se de linguagens intermediárias, sim, mas também reversivas, pois de uma se vislumbra a

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outra, de uma se pode pôr a outra em movimento, de uma se pode chegar à outra sem que se anule ou

desapareça a primeira. Num certo sentido, faz-se necessário uma ideogramização da escrita poética para

que linguagens verbais e visuais não apenas compartilhem o mesmo espaço expressivo, mas para que elas

todas construam um mesmo espaço expressivo, de dimensão fracionária, intermediária entre visual e verbal,

sem ser exclusivamente uma ou outra, possibilitando que ambas compartilhem sentidos e significantes.

* * *

Agora mesmo, os poucos meus leitores talvez já estejam fazendo muxoxos de impaciência e pouco-caso, pois –

diriam eles – essas hesitações ou compromissos entre visual e verbal não são coisa nova nem discussão original.

Toda a reflexão crítica dos primeiros anos da poesia concreta, por exemplo, já carregava essa inquietação. Mas

há alguns pontos que eu gostaria de mapear, partindo de questões suscitadas pelos próprios concretos, para ver

que diferenças podem aparecer entre aquele momento – grosseiramente, os anos 50 do século passado – e este

nosso. Primeiramente, investiguemos o modo como se dão essas relações entre verbal e visual no caso da escrita,

buscando seguir um dos principais marcos teóricos do concretismo. De acordo com Ernest Fenollosa, uma

característica essencial dos ideogramas é o fato de que “two things added together do not produce a third

thing, but suggest some fundamental relation between them”.60 Ele fala de uma justaposição que não se

resolve por adição, por subtração, por multiplicação, ou por qualquer dialética que seja. Com base nisso – e

também em outros elementos –, o concretismo propôs uma criação poética verbivocovisual, em que a leitura

procederia não de um quarto elemento (além do verbal, do vocal e do visual), mas das relações entre os três.

Nesse caso – e tentando também seguir o raciocínio de Fenollosa –, poderíamos pensar em três dualidades

(verbo-visual, voco-verbal e voco-visual) que se resolveriam não pela produção de um tertius, de um terceiro

elemento, mas pela relação entre um e outro, sem que nenhum dos dois impusesse sua perspectiva de leitura.

Ora, um dos aspectos mais relevantes e menos comentados da poesia concreta, sobretudo em seus

desdobramentos e herdeiros, é o fato de que, em muitos casos, não se conseguiu chegar a uma criação

verdadeiramente verbo-visual, mas sim a poemas em que ou o visual estava subordinado ao verbal, ou o verbal

submetia-se ao visual. Talvez apenas a obra de Waldemir Dias-Pino, em sua totalidade, autorize falar numa

criação poética em que verbal e visual se confrontam e se conjugam num mesmo plano de expressão, colocando

na relação entre eles a única possibilidade de leitura, e possibilitando com isso o surgimento de uma terceira

via, de uma outra linguagem, de uma retórica não mais subordinada exclusivamente à visual ou à verbal. Trata-

se, talvez – ao contrário do que afirma Fenollosa –, de um terceiro elemento, não visual ou verbal, dependendo

da perspectiva adotada, mas visual e verbal, ou seja, verdadeiramente verbivisual.61

Em resumo, as experimentações verbo-visuais, em bom número, realizaram (e realizam ainda hoje) uma

poesia em que visual e verbal não foram absorvidos um pelo outro, mas mantiveram e mantêm uma

independência até bem evidente. O curioso é que, embora dizendo-se inspirada no concretismo e usando

sua teoria, uma parte da produção contemporânea aponta para caminhos e direções outras. A ambição de

uma obra “sintético-ideogrâmica”, em oposição a “analítico-discursiva”62 (expressões tiradas de manifestos

e ensaios teóricos dos próceres do Movimento Concreto), indicaria uma poética cujas criações estariam

justamente no rastro daquela terceira perspectiva de que se falou acima com respeito às fotografias em três

dimensões e às páginas eletrônicas. E é justamente tal síntese ideogrâmica que nos interessa, essa que

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produz um terceiro elemento não mais visual ou verbal, mas verbivisual. Nessa síntese – não

necessariamente dialética –, proximidade e semelhança, forma e fundo podem ser selecionados

(sincronicamente) e combinados (diacronicamente); da mesma maneira, seleção e combinação se fazem a

partir de relações de forma e fundo, de topologias de vizinhança e de similaridade.

Acima falamos, via Merleau-Ponty, das correspondências entre visível e tangível. O mesmo pode ser

associado à maneira como organizamos nossa apreensão do aspecto visual de uma criação poética – seja ela

do Movimento Concretista ou não. É claro que, num primeiro momento, na percepção de um objeto

qualquer, não distinguimos entre o reino do verbal e o primado do visual. As primeiras evidências de

qualquer objeto já o colocam inteiramente dentro do campo dos possíveis do corpo perceptivo, a partir do

qual observamos esse dado objeto sem nenhum recorte ou ordenamento analítico. É apenas num segundo

momento que podemos submeter essas percepções inaugurais a uma arquitetura e a uma hierarquia, isso

que chamamos leitura. E tal leitura não fica restrita a uma observação a distância, mas utiliza também algo

como uma inspeção táctil através do olhar, como que tocando tons, sentindo o contorno de luzes,

apalpando matizes. Assim vamos avançando com um olhar que escolhe caminhos, elege locais onde se

instalar, perscruta possíveis formas, tateia, titubeante, para então seguir em frente ou voltar atrás, ou

mesmo voltar-se para o lado, iniciando novas inspeções, abrindo outros flancos e caminhos na superfície do

visível. É assim que nesse segundo momento de apreensão, ou melhor, de compreensão do objeto, pode

instalar-se, por tentativa-e-erro, alguma teleologia de fundo reflexivo e analítico com que vamos mapeando

os possíveis que delineiam fôrmas da imagem. É como se, a cada percurso tentado e falhado, ainda assim

algo fosse esboçado da imagem – uma fímbria de contornos, uma réstia de luz e sombra, um quê de cores.

De outro lado, tais tateamentos – nos diversos sentidos do termo – também estão presentes na maneira

como se percorrem cadeias de significantes verbais, tecendo significações no possível dos sentidos: não

apenas aprendemos – analítica e reflexivamente – algo das palavras, mas, sobretudo, apreendemos a

fisionomia com que elas vêm habitar o espaço expressivo que lhes indicamos. E assim seguimos na leitura,

auscultando modulações de frases, inspecionando seqüências de parágrafos e conectivos entre os períodos,

identificando contornos de significações com suas tramas de lógicas às vezes variadas. Também por

tentativa-e-erro, vamos definindo as diversas posições dos sentidos e encastrando nelas ensaios de

significações; voltando atrás quando deparamos com os tropeços da obscuridade ou com o abismo da

incoerência. Esse método de tentativa-e-erro é justamente eleito por Haroldo de Campos como uma das

possibilidades de apreensão do poema concreto, numa perspectiva, segundo ele, derivada da gestalt: “Um

tópico da cibernética, correlato, deve ainda ser chamado aqui à cena: o método de solver problemas por

‘tentativa-e-erro’, que interessa do mesmo modo aos psicólogos da gestalt. Como assinala W. Slucktin, o

comportamento ‘tentativa-e-erro’ pode ser descrito em termos de ‘feedback negativo’.”63 Mas, como se viu

acima, não se trata de possibilidade exclusiva da poesia concreta, a não ser se a consideramos pelo viés da

gestalt, como aponta o próprio Haroldo de Campos.

Todavia, o que importa no momento é perceber que, colocados leitor e significantes diretamente um em

frente do outro, nada fica registrado desses tateamentos todos. Diante dos olhos, exposto aos sentidos, não

subsiste nenhum inventário concreto desses significantes, lista que elencaria todos os percursos tentados e

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deixados, ainda que não em definitivo. As tentativas-e-erros, aqui, ficam como horizonte ou pano de fundo,

contorno de imprecisões que apenas de longe e indiretamente imantam as significações atuais. Novas

tentativas-e-erros vêm ocupar esse lugar, para em seguida, por sua vez, serem também deixadas, numa fuga

para diante tanto infinda quanto inevitável. Coisa totalmente diversa ocorre quando estamos no

ciberespaço, intermediados por interfaces de ferramentas digitais. Afinal de contas, nele, esse inventário de

possíveis, de possibilidades, de tentativas, de erros e de acertos pode ser concretamente colocado à

disposição do leitor. E é por essas tentativas-e-erros, passíveis de serem registradas materialmente e

disponíveis para consulta a qualquer momento, que se podem (mesmo que de maneira redutora) simular as

percepções primeiras do objeto poético, aquelas em que visual e verbal ainda não se distinguiam um do

outro. Dessa forma, no caso do ciberespaço, podemos partir de simulações de leituras visuais e verbais, por

séries de tentativas-e-erros realizadas a grande velocidade e armazenando uma quantidade imensa de

informações para chegar a simulações outras, essas em que não se chega a essência alguma do objeto

poético, mas que permitem construir possíveis e possibilidades dele. É assim que uma retórica do meio

digital, ao propor condições e possibilidades de criação verbal e visual, não deve escamotear, nunca, esse

jogo de possíveis e de simulações – jogos de simulações possíveis – em que visual e verbal sejam propostos

e arquitetados de maneira seqüencial e interativa entre ambos (e não apenas entre objeto e leitor).

Quando tomamos a retórica clássica, especialmente a de Aristóteles, aprendemos que se deve partir de quatro

operações – inventio, dispositio, elocutio e actio – para a produção da obra. Sobretudo em relação às duas

primeiras, as simulações por tentativa-e-erro podem constituir um novo espaço de escrita e de leitura dentro do

meio digital, além de proporcionar uma ligação direta entre autor e leitor: de fato, tanto na criação quanto na

leitura há lugar para a seleção e a combinação dos significantes. E nas duas instâncias (criação e leitura) é

possível trazer para o verbal formas e fôrmas do visual e vice-versa, tramando no visual seqüências e camadas

do verbal, constituindo uma retórica nova em que a escrita ocorre tanto no momento primeiro de criação

quanto na leitura (também criativa, claro!). Dito de outro modo, o meio digital permite que as operações

retóricas de construção da materialidade da obra não estejam apenas nas ações realizadas pelo criador.

Também na leitura, elas podem ser retomadas, e as maneiras como se esboça o objeto derivam igualmente de

processos de inventio e dispositio, tanto no que diz respeito ao processo de construção de significantes verbais

quanto no tocante à arquitetura e à hierarquização dos elementos disponíveis. São operações desse tipo,

realizadas como leitura e não como escrita, que podem nos dar palavras dispostas num espaço simulando o

tridimensional; e também nos fazem ler nuanças, matizes, posições, disposições, formas, luzes etc., como se

pode ver numa criação chamada Cubo, concebida e desenvolvida por mim e por Gilbertto Prado. Elas nos

permitem imprimir outra dinâmica a nossos movimentos de leitura. Estes se tornam, na verdade, uma conjunção

entre nosso olhar e toda uma série de interfaces que podem incluir menus, cursores, mouses, teclados etc.

Com base nesses movimentos, podemos buscar organizá-los como inventio e dispositio, escolhendo

perspectivas, ângulos, percursos; experimentando associá-los de maneira repetitiva, retomando novos

trajetos em repetições que arremedam tentativa-e-erro. E esse processo avança até que seja construído do

objeto não um símile ou modelo, mas um campo de possibilidades e de realizações, de falhas e de

dissimilitudes, permitindo que se chegue não a uma série definida e fechada de tipos e gênero, mas a uma

dinâmica em que se produzam campos e gestos de leitura. Como já foi dito antes, ou a retórica do texto

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eletrônico será plural e aberta, ou não será. E tal abertura deverá incorporar necessariamente os processos

e procedimentos que traduzam a reversibilidade verbal-visual em conjunções entre palavras e imagens, em

ferramentas e percursos possíveis que saibam despertar em um dos espaços perceptivos as topologias e as

disposições do outro, sem que um imponha modos e gestos ao outro. Somente assim poderemos sonhar com

a possibilidade de sair desse simplismo em que a poesia dita eletrônica se encontra atualmente, de imagens

às vezes com alguma explicação verbal, ou de frases com meras ilustrações imagéticas.

Notas

1 REYNOLDS, David. Revising the american canon: the question of literariness. Canadian Review of Comparative Literature, v. 13, n. 28, p. 232, 1986.

2 REYNOLDS, op. cit., 1986, p. 231, nota 44.

3 REYNOLDS, op. cit., 1986, p. 231, p. 233, nota 44. [“...uma compacta explosividade do signo que ocorre devido a uma inaudita e amplavariedade de idiomas e vozes culturais, fundidas para criar extrema densidade e polivocalidade semiótica”.] tradução do autor.

4 HOFFMANN, Dierk. Edition-rhizome: a propos d’une édition historico-critique fondée sur le concept d’hypertexte et d’hyoermédia. Genesis,n. 5, p. 53, 1994. [“não como entidades autônomas, ‘totalidades orgânicas’, mas como construções intertextuais: seqüências que têm sentidoem relação a outros textos que elas retomam, citam, parodiam, refutam ou, de modo mais geral, transformam...”] tradução do autor.

5 Talvez à imagem do logos heraclitiano.

6 Mesmo sem pretender entrar em polêmicas anti ou pró-derridianas, seria interessante aprofundar essas diferenças entre produção designificações e mapeamento de sentidos.

7 DOCTOROVICH, op. cit., 1999, p. 146, nota 37. [“...velhas técnicas deixadas de lado pelos poetas, tais como o teatro, o canto e oartesanato, estão sendo reelaboradas a partir das experiências dadaístas e futuristas do princípio do século”.] tradução do autor.

8 [“em alguns casos, as técnicas antigas se mesclam a novas tecnologias, gerando suportes mistos que poderíamos chamar de pós-modernos”.] tradução do autor.

9 CLEMENT, Jean. Hypertextes et mondes fictionnels (ou l’avenir de la narration dans le cyberespace). éc/art S, Paris, n. 2, p. 73, 2000.[“...uma corrente literária bem antiga (...) que se opõe à concepção clássica fundada na certeza de que o texto é a justa tradução dopensamento, ou àquela, romântica, de uma literatura considerada reflexo da sensibilidade. Essa corrente, que se pode mapear dos GrandesRetóricos até Paul Valéry, é menos afeta aos textos que a seus processos de engendramento...”] tradução do autor.

10 Devo a Gilbertto Prado a clareza de ter entendido melhor essa questão.

11 Basta consultar os sítios que disponibilizam os Cent Milles Milliards de Poèmes e permitem, apenas eles, trabalhar com esse dispositivopoético que não tem realmente como ser lido na forma impressa.

12 PESSOA, Fernando. Obra poética. 6. ed. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1976. p. 197.

13 DOCTOROVICH, op. cit., 1999, p. 157, nota 37. [“a palavra é provavelmente o gerador de significados mais adequado quando se tratade página impressa (ainda que não levando muito em conta a poesia visual”.] tradução do autor.

14 [“Todavia, isso poderia não ser assim no domínio virtual da web”.] tradução do autor.15 Como até hoje ainda se pode ver em algumas salas de cinema de três dimensões. No caso, as duas diferentes perspectivas das fotos sãoacrescidas de um jogo com cores.

16 No sentido de que não se trata mais, aqui, de produzir uma ilusão, jogando com a visibilidade (como fazem os aparelhos de espelhos

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e as fotos mencionadas), mas de expor determinadas imagens à visualidade. No primeiro caso, cremos ver algo que não vemosefetivamente; no segundo caso, estamos certamente vendo alguma coisa.

17 BARBOSA, Pedro. Criação literária e computador. Lisboa: Argos, 1999.

18 HOFFMANN, op. cit., 1994, p. 55, nota 47.

19 HOFFMANN, op. cit., 1994, p. 56, nota 47.

20 No sentido da assim chamada “ciência do caos”. Para mais esclarecimentos, reportar-se a GLEICK, James. Caos: a criação de uma novaciência. Tradução Waltensir Dutra. São Paulo: Campus, 1989.

21 Isso nos faz lembrar um comentário de Merleau-Ponty sobre a atenção: “Le miracle de la conscience est de faire apparaître parl’attention des phénomènes qui rétablissent l’unité de l’objet dans une dimension nouvelle au moment où ils brisent. Ainsi, l’attentionn’est ni une association d’images, ni le retour à soi d’une pensée déjà maîtresse de ses objets, mais la constitution active d’un objetnouveau qui explicite et thématise ce qui n’était offert jusque là qu’à titre d’horizon indéterminé. En même temps qu’il met en marchel’attention, l’objet est à chaque instant ressaisi et posé à nouveau sous sa dépendance.” MERLEAU-PONTY, Maurice. Phénoménologie dela perception. Paris: Gallimard, 1989. p. 37. [“O milagre da consciência é fazer aparecer, pela atenção, fenômenos que restabeleçam aunidade do objeto em uma dimensão nova, no momento em que eles irrompam. Assim, a atenção não é nem uma associação de imagens,nem o retorno a si de um pensamento já senhor de seus objetos, mas a constituição ativa de um objeto novo que explicita e tematiza oque, até aí, era dado apenas como horizonte indeterminado. Ao mesmo tempo que coloca em marcha a atenção, o objeto é, a cadainstante, retomado e, novamente, colocado sob sua dependência”.] tradução do autor.

22 SADIN, Eric. Pratiques poétiques complexes et nouvelles technologies: la création d’une agence_d’écritures®. éc/art S, Paris, n. 2, p. 24,2000. [“A exigência de desdobramento das competências pode servir – mas não necessariamente – para encorajar uma desaparição dafigura do autor, em proveito da constituição de dispositivos, não anônimos, mas nos quais a assinatura tem menos relevância que anatureza dos jogos relacionais, compreendidos como uma primeira categoria de procedimentos de escrita...”] tradução do autor.

23 Não tem de ser sempre assim. Podem-se invocar exemplos em que os intertextos se colocam em pé de igualdade, como, por exemplo,os sonetos rimbaudianos gerados em computador por alguns dos membros do Oulipo – reunidos no subgrupo Alamo (Atelier deLittérature Aidée par les Mathématiques et les Ordinateurs).

24 GENETTE, Gérard. Palimpsestes: la littérature au second degré. Paris: Editions du Seuil, 1982. p. 451. [“A hipertextualidade, a suamaneira, deriva da bricolagem. (...) a arte de ‘fazer o novo a partir do velho’ tem a vantagem de produzir objetos mais complexos e maissaborosos que os produtos feitos ‘sob encomenda’: uma função nova se superpõe e se confunde com uma estrutura antiga, e a dissonânciaentre esses dois elementos co-presentes favorece o conjunto”.] tradução do autor.

25 BOOTZ, Philippe. Stances à Hélène. Autopsie d’un scandale. Alire, n. 11 (em cederrom). ...não se trata de um produto unicamente‘voltado ao leitor’, de alguma coisa ‘dada à leitura’, mas de um projeto igualmente ‘voltado ao autor’, no qual o ato (de leitura) do leitor,que age por um ardil, participa da representação e faz, do ponto de vista do autor, parte da obra”.

26 Aquelas cômodas ficções clássicas que fingiam ser atitudes exercidas em espaços e instantes distintos, incomunicáveis entre si,estabelecendo uma hierarquia rigorosa entre uma e outra.

27 Como defende DOCTOROVICH, op. cit., 1999, p. 148, nota 37.

28 Pensemos aí na complicação do narrador, como em D. Quixote e em Machado de Assis; na multiplicação de percursos de leitura, comonos labirintos poéticos dos séculos XVI e XVII etc.

29 MERLEAU-PONTY, Maurice. Le visible et l’invisible. Paris: Gallimard, 1988. p. 172. (Tel Quel).

30 MERLEAU-PONTY, op. cit., 1988, p. 172, nota 72. [“a partir do momento em que vejo, é preciso (como indica tão bem o duplo sentidoda palavra) que a visão se desdobre em uma visão complementar ou de uma outra visão: eu mesmo visto de fora, como um outro me veria,instalado no meio do visível, considerando-o a partir de um certo lugar”.] tradução do autor.

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31 Que o mesmo Merleau-Ponty, em outro local, designa pela expressão je peux.

32 MERLEAU-PONTY, op. cit., 1988, p. 172, nota 72.

33 Que está ainda aquém da reflexividade intelectual, é preciso salientar!

34 MERLEAU-PONTY, op. cit., 1988, p. 172, nota 72. [“É preciso que nos habituemos a pensar que todo visível é talhado no tangível, quetodo ser tátil é prometido, de alguma maneira, à visibilidade, e que há transbordamento, cavalgamento, não apenas entre a coisa tocadae quem toca, mas também entre o tangível e o visível incrustado nele”.] tradução do autor.

35 MERLEAU-PONTY, op. cit., 1988, p. 172, nota 72.

36 Mesmo estando elas ainda impregnadas pelos elementos e condições de contorno da tradição oral, num processo que culminou comas técnicas da imprensa.

37 E o mesmo continua valendo para obras segmentadas, como os folhetins de jornais, por razões que não caberia aqui discutir.

38 E, claro, também o de significação.

39 KAC, Eduardo. Holopoetry. éc/art S, Paris, n. 2, p. 298, 2000. [“a estrutura seqüencial de uma linha de verso corresponde a pensamentolinear, enquanto a estrutura simultânea de um poema concreto ou visual corresponde a pensamento ideográfico”.] tradução do autor.

40 KAC, op. cit., 2000, p. 299, nota 82. “numa maneira quebrada, num movimento irregular e descontínuo, e isso se alterará se visto emdiferentes perspectivas”.

41 “I never adapt existing texts to holography. I create works that develop a genuine holographic syntax.” KAC, op. cit., 2000, p. 299,nota 82. [“Eu nunca adapto textos já existentes à holografia. Eu crio obras que desenvolvem uma sintaxe holográfica genuína.”]tradução do autor.

42 Entendidos aí num sentido próximo ao da óptica física.

43 Como exemplo, um rébus da Igreja de Saint Gregoire-du-Vièvre, conforme <http://perso.club-internet.fr/Hdleboy/St_Gregoire_Vievre.htm>.

44 Como afirma LAPACHERIE, Jean-Gérard. De la grammatextualité. Poétique, v. 15, n. 59, p. 283-294, set. 1984.

45 DOCTOROVICH, op. cit., 1999, p. 147, nota 37. [“...os limites da literatura se deslocam gradualmente, a ponto de nos perguntarmos sea noção de literatura implica principalmente palavra escrita, ou se esta afirmação pode deixar de estar certa em algum futuro próximo”.]tradução do autor.

46 Aliás, essa invenção de gêneros, por si só, já daria muito pano para bastante manga. Em outros locais, o autor também classifica suaobra como “poesía visual”, cf. DOCTOROVICH, op. cit., 1999, p. 156, nota 50.

47 DOCTOROVICH, op. cit., 1999, p. 157, nota 37. [“repetição ‘quase-mecânica’...”] tradução do autor.

48 SADIN, op. cit., 2000, p. 20, nota 65.

49 SADIN, op. cit., 2000, p. 21, nota 65.

50 Idem.

51 “A la willing suspension of disbelief chère à Coleridge et qui gouverne notre approche de la fiction écrite s’est substituée unereprésentation visuelle d’un imaginaire virtuel dans lequel le plaisir du récit a cédé la place aux jeux de l’interactivité.” Em CLEMENT,op. cit., 2000, p. 77, nota. [“À ‘willing suspension of disbelief’, cara a Coleridge e que governa nossa abordagem da ficção escrita,substitui-se uma representação visual de um imaginário virtual no qual o prazer da narrativa cedeu sua vez aos jogos dainteratividade”.] tradução do autor.

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52 Cf. BENAYOUN, Maurice. Art Impact, la mémoire partagée à perte de vue. éc/art S, Paris, n. 2, p. 205, 2000: “L’interface utilisateurcomme surface de contact entre le visiteur et l’image permet un dialogue bi-directionnel. Elle permet de découvrir les parties masquéesde l’image en même temps qu’elle écrit la trajectoire du regard”. [“A interface utilizada como superfície de contato entre o visitante e aimagem permite um diálogo bidimensional. Ela permite descobrir as partes ocultas da imagem ao mesmo tempo que escreve a trajetóriado olhar”.] tradução do autor.

53 Como fazem ABENDROTH, Manuel; DECOCK, Jerôme; MESTAOUI, Naziha. Hypertextures. éc/art S, Paris, n. 2, p. 113, 2000.

54 Sempre tomados aí no sentido com que os empregam a teoria francesa do verso, essa de Kristeva e de Genette, como um texto que seorganiza e se produz a partir de outros, de modo mais ou menos evidente.

55 Diria que é o caso dos autistas. Esse fenômeno também tem dado as caras nas artes das últimas décadas, submetidas que estão, muitasobras, a certo processo de “autização”.

56 BENAYOUN, op. cit., 2000, p. 203, nota 94. [“Essa imagem (...) é composta, em tempo real, do traço dos olhares múltiplos que exploramoutras imagens (os diferentes pontos de vista da exposição La Beauté). Na internete e na tela do Centro Pompidou, cada um pode descobriro traço dos olhares dos outros; cada novo traço integra os fragmentos de interesse de uns e outros em um novo espaço que é,propriamente, um espaço de memória”.] tradução do autor.

57 BENAYOUN, op. cit., 2000, p. 205, nota 94.

58 BENAYOUN, op. cit., 2000, p. 205, nota 94. [“A traçabilidade do indivíduo em rede, que faz com que ninguém esteja ao abrigo do olhardo outro, torna-se, aqui, um elemento determinante na construção do sentido”.] tradução do autor.

59 KAC, op. cit., 2000, p. 298, nota 82. [“Em matemática, ser um fractal significa, grosso modo, estar entre uma dada dimensão e apróxima, para mais ou para menos. Em arte, ser um fractal significa, por analogia, estar entre a dimensão verbal e a visual do signo”.]tradução do autor.

60 Citado por FRANCHETTI, Paulo. Alguns aspectos da teoria da poesia concreta. 2. ed. Campinas: Editora da Unicamp, 1992. p. 34. [“duascoisas colocadas juntas não produzem uma terceira coisa, mas sugerem alguma relação fundamental entre elas”.] tradução do autor.

61 Isso talvez até explique por que Wlademir nunca se colocou voluntariamente como membro asssumido do concretismo.

62 Cf. FRANCHETTI, op. cit., 1992, p. 61, nota 102.

63 Cf. FRANCHETTI, op. cit., 1992, p. 65, nota 102.

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c o n c l u s ã o p r i m e i r anovidade e repetição

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Sei ter o pasmo comigo

Que teria uma creança se, ao nascer,

Reparasse que nascera deveras...

Sinto-me nascido

a cada momento

Para a completa novidade do mundo...

Alberto Caeiro, poema II, O Guardador de Rebanhos

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Mesmo nas discussões mais recentes sobre hipertextos eletrônicos, não é raro ainda encontrarmos

argumentos que defendem a absoluta novidade deles. Como foi insinuado e afirmado anteriormente, é

possível, sem maiores atropelos, mostrar como tal novidade pode ser vista também (ainda que não

apenas) como renovação ou desdobramento daquilo que a produção literária impressa e até a tradição oral

já traziam consigo. É nesse sentido que se pode compreender o comentário de George P. Landow, falando

de uma nova oralidade no meio eletrônico:

In a hypertext environment a lack of linearity does not destroy narrative. In fact, since readers

always, but particularly in this environment, fabricate their own structures, sequences, and

meanings, they have surprisingly little trouble reading a story or reading for a story (...) reading

hypertext fiction provides some of the experience of a new orality that both McLuhan and Ong

have predicted.1

Dessa forma, não se pode dizer que haja aí propriamente uma evolução, ao menos essa que daria ao tempo

um sentido acumulativo e positivo. Antes de tudo, há sim um re/des-dobramento – operação que consiste

em associar aos modelos atuais as marcas sedimentadas de modelos anteriores, como é o caso da tradição

oral. É mais ou menos o que diz Pound da poesia: nela, não haveria passado nem futuro, propriamente, mas

a instituição de um espaço expressivo que joga com o tempo e as tradições de modo não cumulativo e muito

menos evolutivo. Na verdade, nessa passagem do antigo ao novo, temos buscado ver menos um corte

epistemológico, uma solução de continuidade nos paradigmas, e mais um processo de sedimentação, no

sentido em que o termo já foi aqui utilizado. Explicando melhor, não se pretende retomar uma concepção

cíclica ou mítica da história, em que os novos sentidos remeteriam sempre a processos e a objetos

preexistentes; por outro lado, não se quer também propor uma concepção evolutiva (ou positivista) em que

a temporalidade, por si só, já traria novos sentidos e novas formas às obras. Antes, pretende-se ver, nisso

que estou chamando de sedimentação, as diferentes formas de ler as obras literárias e, ao mesmo tempo,

de ler a temporalidade através delas. Assim, a sedimentação passa a ser, concomitantemente, uma leitura

da obra e uma releitura do tempo que nos deu essa mesma obra. Em conseqüência, sedimentação, para nós,

quer significar a maneira como diferentes estratos de um mesmo objeto são justapostos ao próprio processo

de diacronização com que buscamos apreendê-lo.

A cada vez que um texto é lido, tornam-se possíveis outras releituras do processo de produção de suas

significações (o que traz as marcas indeléveis da temporalidade em que ele está inevitavelmente inserido).

Isso não significa que a sedimentação nos permitiria encontrar, a cada leitura, um sentido arbitrário para o

tempo, mas que é possível restabelecer (ou reencontrar, para aqueles que preferem pensar em uma

methexis, ou nexo de participação) uma linha de sentidos amarrando – ainda que de maneira frágil – uma

dada obra e o atual processo de produção de significantes e significações a obras e processos anteriores.

Daí se poder afirmar que, a despeito das interfaces e aparências tecnicizadas com que a criação literária em

computador se apresenta aos leitores, ela traz uma série de características que podem aproximá-la de

objetos ainda ligados a tradições outras, como a oralidade. E mesmo quando se levantam algumas

diferenças, elas não deixam de exibir pontos de contato ou de contraste entre si. No que se refere, por

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exemplo, ao trabalho intelectual em coletividade, os instrumentos telemáticos têm possibilitado espaços de

interação, de interferência e de construção de significantes que, mesmo ressalvadas as diferenças, lembram

algo das trocas culturais mediadas apenas pela fala. Pierre Lévy, a esse respeito, afirma que:

“Les collecticiels d’aide à la conception et à la discussion collective (...) aident chaque interlocuteur à se repérer

dans la structure logique de la discussion en cours en lui fournissant une représentation graphique du réseau

d’arguments. Ils permettent également la liaison effective de chaque argument avec les divers documents

auxquels il se réfère, qui le fondent peut-être et forment en tout cas le contexte de la discussion. Ce contexte,

contrairement à ce qui se passe lors d’une discussion orale, est ici totalement explicite et organisé.”2

E logo em seguida,

“Avec les collecticiels, le débat se ramène à la construction progressive d’un réseau argumentaire et documentaire

toujours présent aux yeux de la communauté, maniable à tout instant. Ce n’est plus “chacun son tour” ou “l’un

après l’autre” mais une sorte de lente écriture collective, désynchronisée, dédramatisée, éclatée, comme

croissant d’elle-même suivant une multitude de lignes parallèles, et pourtant toujours disponible, ordonnée,

objectivée sur l’écran. Le collecticiel inaugure peut-être une nouvelle géométrie de la communication”.3

Ambas as descrições enfatizam corretamente a principal característica de tais ambientes de trabalho

intelectual coletivo: a possibilidade de dispor dos dados de modo espacializado (“représentation

graphique du réseau”). Com efeito, para superar os simplismos que vêem em todo trabalho colaborativo

uma atividade “interdisciplinar” ou “transdisciplinar”, parece-me importante pôr o acento nessa eventual

articulação topológica da produção intelectual que as redes telemáticas tornam possível. Todavia, isso não

significa que a mera distribuição espacial dos participantes já produza esse efeito de topologização. Mais

do que isso, a construção de obras escritas (sejam elas, por exemplo, reflexões teóricas ou criações

artísticas) só se faz dentro de uma organização topologizada, justamente quando cada ponto de

enunciação, cada nó na rede de significantes, cada elemento de significação e de sentido se deixa imantar

pela presença individual e distância de todos os outros.4 E como essa organização topológica apontaria

para a oralidade? Nesta, por não se ter os significantes amarrados pela materialidade de um suporte

manuscrito ou impresso, cada elemento da cadeia de significantes orais é forçado a buscar apoio no

horizonte de sentidos que o envolve (tanto aquele específico, de seu contexto, quanto aquele mais geral,

da linguagem em que ele é produzido). Como resultado, o texto oral só se articula e se dá à compreensão

dos outros em virtude de sua fisionomia específica (isto é, sua especificidade significante) resultar

necessária e materialmente de uma interpenetração de outras falas.

É certo que também as obras impressas e manuscritas aparecem sempre como resultado de uma confluência

de outras, como as descrevem muito bem conceitos como o de palimpsesto de Gérard Genette, ou o de

intertextualidade de Julia Kristeva. E, se tais obras apregoam a quatro cantos e céus uma aparência de

autonomia, isso não passa de aparência ilusória. Temos aí, aliás, um paradoxo que parece ser essencial ao

processo de escrita e impressão: a escrita impressa (para diferenciar da escrita eletrônica) é o que é, por ser

a encenação de uma auto-suficiência, ela só existe como fingimento de uma autonomia impossível, aquela

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que a separaria completamente das outras obras escritas.5 De seu lado, o texto oral sempre se apóia numa

evidente dependência inaugural que tem com outros textos orais (não há simulação nem fingimento de uma

autonomia, essa encenação que dá origem a toda escrita). E, do mesmo modo que estes, os textos eletrônicos,

submetidos à força multiplicadora dos instrumentos telemáticos, também se mostram sempre abertos,

sempre dependentes das determinações provenientes de outros textos, de outros pontos de enunciação.

No comentário acima transcrito, Lévy aponta para a diferença entre o eletrônico e o oral, quando chama a

atenção para a possibilidade de manipulação imediata, completa e em tempo real dos dados envolvidos, o que,

na oralidade, se faz somente a posteriori. De fato, na tradição, ocorre oral como que uma depuração, por assim

dizer, uma espécie de decantação que está intimamente ligada à maneira como aí se produzem significantes e

significações. O texto oral se funda em uma espera de sentidos que, por si só, já é significante e empresta à

oralidade todo um ritmo, toda uma estratégia de produção de significações. O texto eletrônico substitui essa

espera por uma outra encenação: a de uma ubiqüidade de sentidos impossível, mas sempre reencetada (ou

reencenada ou, melhor ainda, simulada); é como se todos os outros textos eletrônicos estivessem, ao mesmotempo, disponíveis ao lado da tela. Mas isso é claramente simulação, fingimento que pode ser parente daquele

de Pessoa, ou enganação pura e simples. E o modo como esse fingimento vem orquestrar a cadeia de significantes

– a precariedade material com que ela aparece, se esboça, se desvanece para reaparecer depois ou alhures – é

que vai estabelecer a diferença entre um fingimento e outro, na verdade, entre fingimento e enganação.

Em suma, se o hipertexto se aproxima de formas anteriores – como as do texto oral –, pela maneira como

torna manifesta a pluralidade inerente a toda forma textual, ele se distancia delas pela maneira como essa

produção de significações se dispõe no tempo e, ainda, pela quantidade de dados que se dão a manipular

simultaneamente. O texto eletrônico acelera os tempos de concatenação e de justaposição das diferentes

obras que eventualmente compartilham um mesmo espaço de produção, alterando profundamente sua

apreensão (ou compreensão). Nesse caso, o tempo se reveste também de um caráter mais evidentemente

topológico, ao contrário do tempo da oralidade; ele se deixa surpreender não só como duração ou devir,

mas como encenação, como disposição e disponibilização ao olhar, à experiência do corpo (o que já estava

presente na notável intuição poética figurada por Alberto Caeiro, poeta que dispunha do tempo como mais

uma dimensão concreta do espaço do mundo vivido).

A assinalar, por último, a ilusão de que o contexto em que se insere o hipertexto seja “totalement explicite et

organisé”, como diz Lévy. Esse não parece ser jamais o caso. Na verdade, nada há que seja totalmente explícito e

organizado, nem no hipertexto, nem em seu contexto. Na medida em que o hipertexto abandona completamente o

fingimento da obra impressa e/ou escrita, essa encenação de autonomia, ele vai abrir cada vez mais a materialidade

de seus significantes para a arbitrariedade organizante e cúmplice do leitor. Por outro lado, exatamente da

mesma maneira que a obra impressa, o hipertexto eletrônico aponta para um contexto permanentemente em

recuo, fazendo com que o hiper- e o -texto fiquem sempre em situação de falta, de lacuna, de incompletude.

Com tudo que foi dito acima, coloca-se em xeque todo tipo de descrição evolutiva ou mesmo positivista dos

textos eletrônicos. Por mais disfarçado que seja, esse tipo de juízo aparece com incômoda freqüência. O

mesmo Lévy, por exemplo, menciona “trois pôles de l’esprit (...): pôle de l’oralité primaire, pôle de l’écriture,

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pôle informatico-médiatique”,6 num esquema que retoma muito de perto os três estágios da evolução da

sociedade propostos por Auguste Comte. Em outro trecho, ele ainda afirma que:

“...les catégories usuelles de la philosophie de la connaissance telles que le mythe, la science, la théorie,

l’interprétation ou l’objectivité dépendent étroitement de l’usage historique, daté et situé de certaines

technologies intellectuelles. Qu’on m’entende bien: la succession de l’oralité, de l’écriture et de l’informatique

comme modes fondamentaux de gestion sociale de la connaissance ne s’opère pas par simple substitution, mais

plutôt par complexification et déplacement de centre de gravité”.7

É certo que Lévy, sobretudo no segundo trecho acima, tenta escapar ao positivismo evolucionista que marca o

primeiro. Assim, se entendemos “complexification et déplacement de centre de gravité” como uma espécie de

suspensão/incorporação dos paradigmas anteriores (no sentido de uma Aufhebung hegeliana), é certo que

podemos fugir à simplificação positivista. Todavia, ao insistir em várias outras passagens (inclusive em outras

obras) numa tríade evolutiva autônoma, a complexificação e o deslocamento do centro de gravidade parecem

ficar em segundo plano, privilegiando de modo evidente uma linearidade evolutiva. Em lugar de uma

concepção de hipertexto que vê nas diferentes textualidades (da oralidade à imprensa e desta ao texto

eletrônico) o trabalho significante interno e autônomo (aí sim!) de uma sedimentação, de uma produção

coletiva incessante, com todas as suas hesitações, seus recuos, suas ambigüidades, Lévy parece colocar todo o

significado dessas alterações de paradigmas num contexto independente e externo, numa estrutura de sentido

alheia às diferentes textualidades. É como se apenas a escolha da perspectiva diacrônica já fosse capaz de

atribuir um horizonte de sentidos a qualquer atividade significante, a partir de um campo de verificação

empírico e obrigatoriamente externo ao texto, juízo que remete ao princípio positivista segundo o qual toda

significação só existe como resultado de uma verificação empírica. Com isso, fica difícil não pensar num certo

reducionismo nessas concepções de Lévy, na medida em que a verificação (isto é, a atribuição de um significado

às mudanças de paradigmas) está totalmente subordinada ao contexto empírico da experimentação (este, na

concepção positivista, é colocado no exterior de qualquer atividade de significação, como origem externa de

todo sentido).

* * *

Um outro possível ponto de aproximação entre textos eletrônicos e oralidade estaria na efemeridade das

poéticas digitais, isto é, na velocidade com que suas estruturas proteiformes se alteram, se perdem (às vezes, para

sempre), ou são retomadas. Ora, a efemeridade é uma característica que o hipertexto compartilha com qualquer

forma textual, desde que não confundamos a base material com a realização propriamente dita dos textos

(quando o significante é exposto ao leitor e permite a produção daquilo que pode ser aproximado do fenotextode Kristeva).8 De fato, a realização do texto resulta sempre da confluência de um leitor e da materialidade de

um aparelho de significações, sendo esta última nada mais do que os elementos significantes expostos à inspeção

dos sentidos (ou seja, as seqüências de letras, nas criações verbais; de cores e formas, nas visuais; de sons, nas

sonoras). Como resultado temos uma produtividade (ou seja, exatamente isso que vimos chamando de texto),

um fenômeno que se destaca da coisa-em-si, dessa materialidade específica que lhe serviu de base.

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E essa produtividade não se deixa prender, ela se desloca e se modifica continuamente, sobretudo a partir do

momento em que desaparece a instância fenomênica em que o texto constitui o leitor e é constituído por ele.

Assim como a obra eletrônica, pretensamente formada por zeros e uns, que desaparece ou se altera quando

o computador é desligado ou quando passa por algum processo eletrônico de transformação, a obra literária

impressa nunca subsiste da mesma forma. A cada releitura, é toda uma nova textualidade que se produz: como

afirma Barthes, em Proust, o prazer de cada releitura está no fato de que nunca pulamos as mesmas linhas.9

São, potencialmente, outros textos que se dão a ler, embora saibam guardar sempre uma mesma fisionomia,

derivada de uma mesma base material, isto é, da coerência concreta exposta na materialidade dos signos

verbais (no caso de Proust, as seqüências de palavras que formam os romances). Trata-se do que chamamos de

livro e que não pode ser confundido com seus textos possíveis.10 Esse é outro motivo pelo qual não se pode de

modo algum afirmar que o hipertexto constituiria uma categorização absolutamente original. Com efeito,

todo o aparato teórico desenvolvido por um Gérard Genette, por exemplo, por meio da imagem-conceito do

palimpsesto, nos mostra que esse tom provisório e fugaz acompanha a obra literária desde sempre, não

importando, aliás, se o seu suporte é a tela, o papel ou a oralidade.

E é necessário chamar a atenção para esse caráter não exclusivo do texto eletrônico, no que se refere à

efemeridade, na medida em que ela aparece de modo evidente em todo o conjunto das textualidades orais,

sendo uma das explicações possíveis para o modo como se desenvolveram, por exemplo, as técnicas de

versificação na poesia ocidental. No caso, os recursos fônicos do texto oral permitiram o surgimento da rima,

da métrica e do ritmo, assegurando a memorização (garantindo um mínimo de eficiência em sua

transmissão oral) e ao mesmo tempo constituindo a base de uma expressão poética autônoma. De modo

semelhante, é legítimo perguntar, com base nisso, como a efemeridade eletrônica do hipertexto poderá dar

origem a uma outra série de elementos poéticos, desta vez veiculados pelos meios informáticos. Como as

variações em torno de um mesmo tema (como as da métrica e da rima na poesia oral e na poesia impressa),

por exemplo, se darão em um ambiente informatizado? Que tipo de dispositivo semântico derivará da

multiplicidade concretamente disponível do hipertexto? Dito de outra maneira, a pergunta que temos de

nos fazer é como os elementos e os processos telemáticos do texto eletrônico poderão ser usados para dar

origem a uma série de recursos poéticos, numa retórica literária que venha a criar uma poética com base

nos ritmos e nas quantidades próprias do hipertexto.

Assim, seja nas poéticas digitais que trazem os multimeios e principalmente a interatividade com a

literatura, seja na geração informatizada de obras literárias, podemos encontrar mecanismos de circulação

culturais que reproduzem de alguma maneira, parcialmente, os percursos de produção e de assimilação

das literaturas orais. No caso, talvez seja relevante caracterizar com mais detalhes esses percursos no meio

digital, tentando surpreender neles especificidades até então insuspeitas. Pode-se dizer do hipertexto que

ele torna concreto o que antes, nas obras escritas/impressas, era referência indireta: os intertextos latentes

podem aparecer nele como ligações imediatas e simultâneas a outros pontos do hiperespaço de

significantes. De modo análogo, a produção e a circulação do hipertexto parecem se dar em aparente

simultaneidade, imbricando concretamente o trabalho do criador e o do leitor. Tal processo pode remeter a

formas embrionárias que já aparecem na tradição oral: nesta, a veiculação de uma obra confundia

transmissão e criação, devido ao trabalho criativo da memória individual de cada pessoa envolvida no

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percurso de disseminação dos textos orais (basta pensarmos na atividade dos segréis medievais, em oposição

aos menestréis). Todavia, no hipertexto, há que se levar em conta a velocidade e a amplitude desse processo,

que superam qualitativa e quantitativamente o fenômeno da transmissão oral, sobretudo no que se refere

ao papel ativo do público consumidor. Este é levado obrigatoriamente a interferir nas etapas e na

velocidade da produção hipertextual muito mais do que o público-ouvinte fazia com as peças cantadas

pelos trovadores ou improvisadas ainda hoje pelos repentistas.

Com efeito, o texto eletrônico justapõe à própria tecedura, à sua materialidade manipulável pelo monitor

uma trama complexa de relações em que ele é criado, lido, recriado, relido, incessantemente,

recursivamente. Isso significa que o hipertexto torna paralelos os tempos de produção e de circulação (ou

de recepção, se preferirem). Mais uma vez, temos uma encenação do tempo em que a temporalidade se

deixa surpreender como espacialização. Mas, ao contrário da poesia de Alberto Caeiro, em que apenas se

tenta insinuar ou apresentar a percepção de um tempo topologizado, o texto eletrônico não é nada sutil:

ele impõe, desde a superfície de seus significantes, sobre a tela onde ele se abre ao leitor, uma circularidade

inebriante, célere, em que os instantes de criação e de navegação parece quase se confundirem, dando

origem a um único trabalho de produção.

Em suma, na superfície da tela e na profundidade das ligações hipertextuais, os diferentes tempos da escrita

(que na tradição impressa corresponderiam ao início, ao meio e ao fim dos movimentos do escritor sobre o

papel) encenam uma ubiqüidade do impulso criador. É como se o hipertexto fosse surgindo, todo ele, ao mesmo

tempo, originário de um único movimento de escrita, não mais como queima um rastilho de pólvora, linear e

progressivamente, mas, sobretudo, como crescem cristais em solução saturada, em vários pontos do espaço,

simultaneamente. Não se trata de uma presentificação absoluta, como se o tempo fosse freado até a

imobilidade, mas de maneira de o hipertexto se organizar de forma a submeter o tempo à pluralidade do

espaço dos significantes. Daí essa impressão de que os tempos de concepção e de consumo se confundem no

clicar do mouse, como se criador e fruidor se confundissem inevitavelmente. Todavia, trata-se de uma

encenação do hipertexto, pois, de fato, essa circularidade, essa equiparação entre ambos não vai além da

materialidade dos significantes concretamente disponíveis na tela. A partir do momento em que ele é

percorrido pela leitura de alguém, em que se torna parte de um espetáculo (aquele em que o leitor se dá um

texto e, mais importante, se dá em texto), a materialidade do hipertexto cede lugar àquilo que Roman

Ingarden, com relação ao meio impresso, chamava de objeto intencional. E é justamente nessa intencionalidade

que se pode retomar a relação entre instância de criação e instância de fruição, ou de leitura. De fato, o

hipertexto parece confundir os trabalhos de criação e de fruição, no que diz respeito à materialidade dos

significantes que disponibiliza na tela, encenando essa ubiqüidade análoga à auto-suficiência da escrita

impressa. No entanto, a navegação hipertextual não precisa se submeter necessariamente às mesmas condições

de contorno de sua encenação. Em conseqüência, o leitor pode escolher outras posições para exercer seu olhar,

buscando não sobrepor-se ao criador, confundindo-se com ele, mas propondo um diálogo em que as diferenças

entre as duas posições possam ser reconstruídas com base nos vestígios de autoria que ainda (e sempre) restam

nos significantes e nos processos de significações que lhe são dados manipular.

* * *

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Para aprofundar, então, um pouco mais essas questões sobre novidade ou repetição, talvez seja interessante

tomar como ponto de partida mais algumas reflexões de Pierre Lévy, não apenas pelo modismo que muitos,

ingenuamente, ainda associam a seu nome e a suas idéias, mas pelo interesse de suas intuições teóricas

(ainda que ele não tenha conseguido dar-lhes conseqüência e retaguarda de modo mais convincente).

Vamos retomar outros três comentários seus:

“...les individus de culture écrite ont tendance à penser par catégories quand les gens de culture orale

appréhendent d’abord des situations...”11

“L’homme ‘nu’, tel qu’il est étudié et décrit par les laboratoires de psychologie cognitive, sans ses

technologies intellectuelles ni le secours de ses semblables, recourt spontanément à une pensée de type oral,

centrée sur les situations et les modèles concrets. La ‘pensée logique’ correspond à une strate culturelle

récente liée à l’alphabet et au type d’apprentissage (scolaire) qui lui correspond.”12

“... le savoir informatisé ne vise pas la conservation à l’identique d’une société se vivant ou se voulant

immuable, comme dans le cas de l’oralité primaire. Il ne vise pas non plus la vérité, à l’instar des genres

canoniques nés de l’écriture que sont la théorie ou l’herméneutique. Il cherche la vitesse et la pertinence de

l’éxecution, et plus encore la rapidité et l’à propos du changement opératoire.”13

As distinções entre uma sociedade da telemática e as sociedades da imprensa e da oralidade dizem respeito,

como se pode inferir do termo escolhido – sociedades –, a uma diferença entre formas, ritmos e meios de

circulação dos objetos culturais por elas produzidos, e não a formas distintas de humanidade. No caso, os

comentários de Pierre Lévy parecem se fundar numa visão já de há muito ultrapassada, ao menos desde

Lévy-Bruhl, o de um estado pré-lógico das sociedades humanas. E tal juízo parece remeter a uma concepção

estreita e simplista de “lógica”, na medida em que se descartam como ilógico, pré-lógico ou antilógico tudo

o que escapa a certa organização discursiva, herdeira das formas argumentativas tradicionais (silogísticas,

na maioria); como se essas organizações discursivas fossem capazes de encerrar toda a complexidade das

produções do pensamento; como se, finalmente, entre pensamento (sempre o “pensamento lógico”, claro!)

e expressão verbal houvesse uma subordinação desta última àquele primeiro. Aceitando as posições de

Pierre Lévy, chegaríamos a um percurso interessante: de um mal disfarçado indutivismo epistemológico, ele

salta para um positivismo quase panfletário, chegando, enfim, a um relativismo bastante afeito às

perspectivas pós-modernas. Primeiramente, creio que não se trata mesmo de mera coincidência o fato de

ele retomar o esquema tríplice de Auguste Comte. A evolução que este propõe para as ciências e o espírito

humano (passando sucessivamente pelas fases teológica, metafísica e positiva) não deixa mesmo de

corresponder ao que Pierre Lévy postula como progresso da cultura (dividida em oralidade, escrita impressa

e cibercultura). Nos dois esquemas, há a inequívoca defesa de uma evolução que é determinada pelos

elementos objetivos da experiência do homem. E o espírito humano? Ah! Este dedica-se a aprender de

acordo com o acaso criador que pode lhe dar (ou não) ferramentas com que se divertir e evoluir.

Assim, talvez seja mais justo explorarmos as distinções entre texto eletrônico e texto oral, a partir, por

exemplo, dos diferentes ritmos de produção, de decantação e de sedimentação, como propusemos acima: o

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texto oral se funda no que ali chamávamos de espera de sentidos, essa incompletude imediata na

articulação dos significantes. Quanto ao hipertexto, ele finge dar acesso a uma totalidade plural e

imediatamente disponível, simulando – apenas simulando – uma disponibilidade direta da infinitude

potencial da linguagem. E, com base nisso, podemos discernir outra diferença entre oral e eletrônico. Ela

estaria no modo como a temporalidade se dá a ver nas duas formas de armação textual, assim como na

quantidade de dados e de estratégias de produção textual, que são muito maiores no hipertexto, conforme

já se discutiu. É importante salientar que essa diferença quantitativa implica uma alteração qualitativa no

papel do leitor: ele não vai só ter que lidar com uma maior quantidade de informações e de inferências,

mas vai ter que desenvolver estratégias de construção de leitura(s) que concretize(m) esse plural do qual é

feito (agora concretamente) o hipertexto.

* * *

O desafio para o estudioso dos novos textos eletrônicos é, então, bem delimitar seu campo de estudo, de forma

a compreender como esse vínculo com tradições outras e meios outros, como o oral, pode aparecer dentro de

um paradigma tecnológico totalmente diverso das culturas não escritas. Em outras palavras, nossa empreita é

entender como a novidade se opõe e se associa ao antigo ao mesmo tempo. Para isso, torna-se necessário

pensar no texto – seja ele de que tipo for, qualquer que seja o meio em que ele é produzido – com base em

uma perspectiva geral, abrangente, inaugural, entendendo-o como produtividade. E mais, no que se refere

às diferentes produtividades textuais, ou seja, às especificidades de cada tipo de texto, com seu respectivo meio

de disseminação, pode-se falar de uma transtextualidade, no sentido de uma generalidade inaugural de todo

e qualquer texto. Contudo, tomando essa generalidade inaugural dos textos, esse grau zero da escrita que faz

possível toda textualidade (quer dizer o texto oral, o texto manuscrito, o texto impresso e, finalmente, o texto

eletrônico), a novidade deste último estaria, assim, não na inauguração de um novo horizonte de sentidos, mas

na maneira como esse horizonte aparece diante de nós indiretamente, por intermédio do texto eletrônico, e

sobretudo na maneira como ele se deixa refletir pela atividade específica de significação, intrínseca a todo

texto. No caso do hipertexto, trata-se de dois elementos centrais que lhe dão sua fisionomia própria, sua

capacidade de produzir significações: a velocidade de circulação e de desdobramento (vale dizer, de

sedimentação) das obras, com base em uma arquitetura de significantes até então impossível.

No que diz respeito a essa arquitetura, basta pensar na maneira como um mero ensaio teórico como este pode

ser redigido e, então, lido por meio de simples programas de edição de textos ou de HTML.14 As reflexões nele

propostas se podem dar a partir de ligações que levem a comentários que, por sua vez, extrapolam o antigo

espaço das notas de rodapé ou de final de capítulo, tão freqüentes na tradição impressa; esses comentários

podem estar diretamente associados a alguns termos de um texto-base, permitindo assim uma navegação

diferente do espaço impresso, eludindo a ordem linear e a seqüencialidade cronológica, até então habituais, das

partes sucessivas da escrita pré-eletrônica. De fato, a eventual numeração de cada comentário perderia qualquer

veleidade organizativa, servindo apenas de ligação entre o termo sublinhado e o comentário que se desenvolve

a partir dele. Em lugar de números, poder-se-ia colocar qualquer outro signo, pois a ordem de leitura não está

definida de antemão por uma progressão aritmética, mas por uma pluralidade (e não uma infinitude, ressalte-

se) de ordens possíveis, permitidas pelos instrumentos e pelas características próprias do hipertexto.

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Com isso, reafirma-se um dos princípios que organizam todas essas reflexões sobre o hipertexto: sua

novidade reside principalmente na materialidade de seus elementos e de seus processos de

significação, jamais na invenção de uma nova capacidade expressiva (como se os meios informáticos

fossem capazes, por si sós, de inventar uma linguagem). Ao contrário, somos nós que, incessantemente,

falamos através dos meios informáticos e inventamos, neles e com eles, novas linguagens. Mesmo os

insucessos, as panes são eloqüentes e nos introduzem justamente na esfera de significações dos

instrumentos tecnológicos, nos informando a participação humana na construção desses objetos, que

são, ainda e sempre, essencialmente culturais. Dito de outra maneira, não é uma nova humanidade que

é gerada pelo hipertexto,15 mas uma mesma humanidade que se desdobra continuamente, apoiando-

se em instrumentos tecnológicos sempre diferentes e, às vezes, materialmente mais complexos. Acima,

aliás, já foram se discutiram algumas dessas questões acerca da novidade representada pelo hipertexto.

É por isso que insisto em apresentar o hipertexto como um novo arranjo, um novo ritmo no processo

de produção textual. Sua novidade estaria sobretudo na maneira como as mesmas condições de

possibilidade das significações se manifestam de maneira diversa, e não na instauração de um outro

horizonte de sentidos para a linguagem verbal.

* * *

Como já ficou claro, uma das perspectivas teóricas que adotamos busca fundar a idéia de (hiper)texto

eletrônico no conceito geral de texto, em particular no literário, já amplamente discutido e explorado por

uma larga tradição que remonta a Aristóteles, passando pelos exegetas e cabalistas medievais, para chegar

à escola francesa da segunda metade do século XX. Então, na perspectiva que propomos, falar de texto oral,

texto eletrônico, texto impresso, cibertexto, hipertexto, texto corporal, texto pictórico etc. seria até

impróprio, pelo fato de todos eles serem manifestações de uma transtextualidade – como já dito antes –,

essa propriedade de as teias significantes associarem, por exemplo, a oralidade aos textos eletrônicos, ou de

traduzir, discutir e apresentar estes últimos através da superfície plana da escrita. Em outras palavras,

partimos do pressuposto de que todo tipo de texto (aí incluída a oralidade) pode ser combinado em uma

trama de textos, ou seja, em um texto de textos. Todavia, o texto da tradição oral só permite o acesso a

esse texto de textos como construção externa e posterior. Diferentemente, o texto eletrônico permite

colocar em circulação, em tempo real e sempre parcialmente, esse texto eletrônico de textos eletrônicos,

esse rizoma telemático, num intervalo de tempo que possibilita sua totalização e sua reinserção no processo

de produção textual de onde ele se originou.

Talvez essas questões – freqüentemente, abstratas demais – possam ser mais bem digeridas a partir de

algum exemplo concreto. Tomemos primeiramente um artefato chamado Sintext, um gerador de textos

concebido por Pedro Barbosa. Simplificando, podemos dizer que ele funciona com base em um banco de

dados, composto de uma lista de palavras escolhidas, aleatoriamente, para preencher uma fôrma sintática

predefinida. Uma vez que se dá início ao processo, o próprio programa seleciona as palavras e vai inserindo-

as numa seqüência previamente definida. À primeira vista, parece que Barbosa não iria nem um milímetro

além dos processos de escolha e combinação que estão e sempre estiveram na base de qualquer gesto

expressivo. Mas o que ele propõe – e torna possível – é um deslocamento dessas operações. Não temos aqui

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a retomada das tradicionais inventio e dispositio realizada pelo criador da obra; nem mesmo se trata de

escolhas e combinações realizadas pelo leitor a partir de elementos disponibilizados e de operações

possibilitadas por algum mecanismo proposto pelo escritor, como os labirintos literários dos séculos XVII e

XVIII (anexo 6) ou o de Camões, já mencionado. O dispositivo informático como que se torna uma máquina

retórica, exercendo ela mesma o papel de selecionar os elementos mínimos e de combiná-los segundo

regras e posições previamente estabelecidas. No caso de Sintext, o escritor (ou conceptor, ou criador)

também estaria de certa forma encarregado de perfazer a inventio e a dispositio, mas não mais no nível dos

significantes verbais, a partir de que se produziriam as cadeias de palavras dadas à leitura. O que ele faz,

na verdade, é abrir um outro nível de escolha e combinação, quer dizer, um outro espaço retórico, ao

selecionar e combinar programas, algoritmos e processos informáticos. Trata-se de uma retórica que exige

tanto a cumplicidade de programadores informáticos e visuais quanto o conhecimento dos limites e

possibilidades dos programas e das máquinas. E temos aí uma retórica que mescla indelevelmente os

significantes verbais aos elementos telemáticos, a expressão verbal ao processamento.

Porém, para que o leitor perceba esse deslocamento das operações retóricas por parte do autor da obra, é

preciso deslocar também a perspectiva de leitura. De fato, se mantemos a atenção presa apenas às palavras

que vão surgindo, a cada vez que reinicializamos o dispositivo, vemos surgir seqüências de significantes

verbais que se ligam de forma coerente, gramatical, mas mantendo certas semelhanças semânticas e

imensas similitudes sintáticas. Aparece aí o que já se convencionou chamar de “variações em torno de um

mesmo tema”, estrutura de criação tanto explorada na música quanto na literatura (mesmo que em

freqüência bem menor)16 e que, nessa perspectiva, traria de divertido apenas a verificação de que a máquina

imita mais ou menos bem o homem, conclusão que tanto pode ser pensada com indulgência quanto

afirmada com desdém. Por esse viés, o computador não seria nada além de um mantra tecno-místico,

desprovido de qualquer transcendência ou interesse. Para superar isso que parece ser uma espécie de

nostalgia da pátria impressa, é necessário que o leitor dê-se conta justamente desse deslocamento da

retórica. Ela não está mais circunscrita à seleção e à combinação dos significantes que irão diretamente para

o plano expressivo. Ela se desloca para outro plano, o da seleção e da combinação das operações que

permitirão, por automatismos maquínicos e/ou operações interativas realizadas pelo leitor, uma segunda

rodada de seleções e combinações. De forma muito semelhante, é o que se encontra tanto nos Cent Milles

Milliards de Poèmes, de Raymond Queneau, quanto em Litteraterra, de Artur Matuck.

* * *

O espaço telemático do texto eletrônico pode ser visto então como o exercício de uma intersubjetividade

direta em tempo real, à moda da oralidade, sem deixar de trazer esse elemento novo que é a quase-

simultaneidade da produção e da circulação do hipertexto (como já defendíamos acima). Mas que não se

escamoteiem as diferenças evidentes na dinâmica desse processo: no caso do meio eletrônico, as alterações

no campo de sentidos se fazem não diria instantaneamente, mas a tal velocidade que elas terminam por se

manifestar de modo evidente, exibindo aos participantes desse processo toda uma cadeia de produção,

assimilação, transformação e re-produção de sentidos e, claro, de textos. Por outro lado, a exibição desse

complexo textual adiciona à leitura linear uma série infinda de percursos outros, fazendo desses textos

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eletrônicos não apenas uma evolução seqüencial, serial e linear de significações e de significantes, mas uma

elaboração espacial (ou melhor, como já dissemos, topológica).

Em conseqüência, aquilo que na oralidade ainda era uma imposição do meio de circulação, isto é, a apreensão

seqüenciada, substitutiva e temporal dos elementos dos textos, torna-se agora uma possibilidade de leitura entre

outras, um recorte possível entre vários outros. Em suma, o texto eletrônico parece se colocar, com respeito à

tradição oral, mais no sentido de uma sedimentação e menos como uma Aufhebung hegeliana ou como

culminância de um processo evolutivo de teor positivista (essa, muito menos ainda!). Aliás, tal dicotomia entre oral

e telemático, inerente ao texto eletrônico, espelha outras dicotomias, ou melhor, outras reversibilidades, que

implicam sua aparência dinâmica, seu caráter não somente ambíguo, mas essencialmente indecidível: o texto

eletrônico, pelo fato de ser o que é, oscila sem cessar entre textual e hipertextual, virtual e concreto, leitura e

navegação, autor e leitor, linguagem verbal e multimeios, centros de significação e gênese rizomática, limite e

infinitude etc. Como conseqüência, altera-se o equilíbrio entre virtualidade e concretude no espaço hipertextual, se

o comparamos com o meio impresso. Não consigo compartilhar alguns dos juízos de um Baudrillard ou de Virilio,

de que o ciberespaço introduziria uma região de absoluta virtualidade (por mais paradoxal que seja a expressão)

na produção textual. Como pensar assim, quando aquilo que chamávamos até então de intertextualidade (nas

suas várias formas) se apresenta diretamente na tela, estabelecendo uma indistinção irredutível entre o fundo e

a superfície desse texto-palimpsesto eletrônico? Isso pode talvez ser mais bem esclarecido quando pensamos

em algumas das características que se atribuem com freqüência aos textos eletrônicos: de um lado,

fragmentação e multilinearidade (quase sempre mencionadas juntas); de outro, infinitude.

No que toca às primeiras, elas remeteriam ao que parece uma de suas características mais salientes ou, ao

menos, àquela que alguns teóricos mais se comprazem em descrever: associa-se a ambas toda a discussão

derridiana acerca de centro e descentramento, construção e desconstrução, a tal ponto que a própria matéria

do hipertexto parece ficar escondida debaixo de conceitos e preconceitos de toda ordem. Além disso, nenhuma

teoria do texto que se preze jamais emprestou ao texto uma imagem de linearidade estrita, de produção

monolítica e unívoca de significações. E todo o esforço teórico das últimas décadas apontou desde cedo para

esse constante ultrapassamento da leitura pelo texto (como aponta Barthes a respeito da obra de Proust, cujo

prazer de leitura estaria no fato de que, a cada retomada, deixamos de ler sempre linhas diferentes).

Finalmente, no que diz respeito a limite e infinitude, no ciberespaço, pense-se, por exemplo, na tradição

exegética medieval que tentou inutilmente impor amarras teológicas às interpretações dos livros bíblicos.

Os limites de cada texto não têm validade definitiva nem mesmo numa mesma leitura, que dirá em várias?!

No caso, é assaz eloqüente a imagem do poeta que não conclui seu poema, mas o abandona, mesma coisa

pode ser afirmada da leitura crítica de obras literárias, sempre entregue a uma provisoriedade ao mesmo

tempo exasperante e rica, trabalhosa e plural. A não limitação do texto eletrônico não corresponderia

jamais a uma infinitude de linguagem materialmente disponível na tela do computador, mas a uma

convergência assimptótica que vai da construção das significações ao horizonte dos sentidos possíveis que

as contornam. Isso não implicaria uma impossibilidade de ler, ao contrário: a infinitude potencial do texto

eletrônico se materializa por um recorte necessariamente finito na articulação dos significantes, no que ele

não se diferencia absolutamente de textos produzidos em outros meios.

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Notas

1 LANDOW, George P. Hypertext: the convergence of contemporary critical theory and technology. Baltimore: The JohnsHopkins University Press, 1992. p. 117. [“Num ambiente hipertextual, uma falta de linearidade não destrói a narrativa. De fato,desde que os leitores sempre – mas particularmente nesse tipo de ambiente – fabricam suas próprias estruturas, seqüências esignificados, eles têm, surpreendentemente, poucos problemas para ler uma história ou ler para uma história (...) a leitura deficção hipertextual proporciona algumas das experiências dessa nova oralidade que tanto McLuhan quanto Ong já haviamantecipado”.] tradução do autor.

2 [“Os programas de ajuda à concepção e à discussão coletivas (...) auxiliam cada intelocutor a se orientar na estrutura lógicada discussão em curso e lhe fornecem uma representação gráfica da rede de argumentos. Eles permitem igualmente a ligaçãoefetiva de cada argumento com os diversos documentos a que se referem, que o fundam, talvez, e formam, em todo caso, ocontexto da discussão. Esse contexto, ao contrário do que se passa em uma conversa, é totalmente explícito e organizado”.]tradução do autor.

3 LÉVY, op. cit., 1993, p. 74, nota 10. [“Com os programas de trabalho em grupo, o debate se volta para a construção progressivade uma rede argumentativa e documental sempre presente aos olhos da comunidade, manejável a qualquer instante. Não se tratamais do ‘cada um em sua vez’, ou do ‘um após o outro’, mas de uma espécie de lenta escrita coletiva, desincronizada,desdramatizada, explodida, como que crescendo a partir dela mesma, seguindo uma multiplicidade de linhas paralelas e, todavia,sempre disponível, ordenada, objetivada na tela. O programa de trabalho em grupo inaugura talvez uma nova geometria dacomunicação”.] tradução do autor.

4 O que remete à organização rizomática de que falam Deleuze e Guattari, sem a objetivação autonomizante que associam a ela; de outrolado, isso também envia à noção de “vizinhança” da topologia matemática e da álgebra linear.

5 O que lembra o fingimento poético de Pessoa: “O poeta é um fingidor. / Finge tão completamente, / Que chega a fingir que é dor / Ador que deveras sente”.

6 LÉVY, op. cit., 1993, p. 143, nota 10. [“três pólos do espírito (...): pólo da oralidade primária, pólo da escrita, pólo informático-mediático”]tradução do autor.

7 LÉVY, op. cit., 1993, p. 10, nota 10. [“...as categorias usuais da filosofia do conhecimento, tais como o mito, a ciência, a teoria,a interpretação ou a objetividade, dependem estreitamente do uso histórico, data e situação de certas tecnologias intelectuais.Que me entendam bem: a sucessão da oralidade, da escrita e da informática, como modos fundamentais da gestão social doconhecimento, não opera por simples substituição, mas, sobretudo, por complexificação e deslocamento do centro degravidade”.] tradução do autor.

8 KRISTEVA, Julia. Semeiotike: recherches pour une sémanalyse (extraits). Paris: Editions du Seuil, 1978. p. 217 e ss. [Points].

9 BARTHES, Roland. Le plaisir du texte. Paris: Editions du Seuil, 1973. p. 22. [Tel Quel].

10 A rigor, esta última expressão é uma tautologia, já que texto se define, em qualquer perspectiva, como um certo campo depossibilidades que se recorta num horizonte de sentidos.

11 [“...os indivíduos da cultura escrita têm tendência a pensar através de categorias, enquanto as pessoas de cultura oral apreendem,inicialmente, as situações...”] tradução do autor.

12 Ambos em LÉVY, op. cit., 1993, p. 105, nota 10. [“O homem ‘nu’, como ele é estudado e descrito nos laboratórios de psicologiacognitiva, sem suas tecnologias intelectuais nem o auxílio de seus semelhantes, recorre espontaneamente a um pensamento de tipo oral,centrado em situações e modelos concretos. O ‘pensamento lógico’ corresponde a um estrato cultural recente, ligado ao alfabeto e ao tipode aprendizagem (escolar) que corresponde a ele”.] tradução do autor.

13 LÉVY, op. cit., 1993, p. 134-135, nota 10. [“...o saber informatizado não visa à conservação idêntica de uma sociedade que vive

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ou que se quer imutável, como no caso da oralidade primária. Ele também não visa à verdade, como os gêneros canônicosnascidos da escrita, que são a teoria ou a hermenêutica. Ele busca a velocidade e a pertinência da execução, e, mais ainda, arapidez e o proposital da mudança operativa”.] tradução do autor.

14 Um exemplo disso está no trabalho que apresentei, no ano de 2000, no congresso da COMPÓS. Disponível em: <> Acesso em: 29ago. 2003.

15 Ao contrário do que afirma freqüentemente Pierre Lévy, a exemplo de um artigo publicado no suplemento Mais!, do jornal Folha deS.Paulo, de 18 de janeiro de 1998.

16 Um exemplo desse uso literário das variações são os Exercices de Style, de Raymond Queneau.

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c o n c l u s ã o s e g u n d atransbordos e reformações do texto eletrônico

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“... je découvre en moi une sorte de faiblesse

interne qui m’empêche d’êtreabsolument

individu et m’expose au regard des autres

comme un homme parmi les hommes ou au

moins une conscience parmi les consciences.”1

Maurice Merleau-Ponty, Phénoménologie de la Perception

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Excesso e Excessivo

Debordamentos e reformatações podem constituir a forma e a fôrma visíveis e jamais estáveis dos textos em

espaços eletrônicos de escrita e criação. Ao menos é o que se pode depreender das transformações sofridas

efetivamente pelos corpora textuais que, em espaços concretamente hipertextuais, são dados a ler, com

as conseqüentes transformações experimentadas em seus espaços perceptivos, pelos corpos que se colocam

em situação de leitores. Ora, é exatamente essa concretude hipertextual que começa a nos dar o alcance e

a experiência dos debordamentos e das reformatações, dos transbordos e das reformações. É como se a

espessura fenomênica de nosso corpo próprio, esse de leitores empiricamente colocados diante de telas e

de procedimentos interativos, encontrasse novas vizinhanças, inéditas superfícies, inauditos volumes em que

exercitar nossa capacidade expressiva. Em outras palavras, esses debordamentos e reformatações a que

somos chamados a habitar em nossas leituras traduzem a maleabilidade por vezes surpreendente e

inesperada dos textos eletrônicos, sua capacidade de acumular detalhes e minúcias, de amealhar pretensas

irrelevâncias, de absorver novas regiões, de solapar fronteiras, de permitir novas aparências e outros prazos.

Há, inicialmente, um excesso – isso a que chamamos debordamento – que acarreta duas conseqüências. Mas,

antes de falarmos delas especificamente, vamos percebê-las e – talvez melhor – apreendê-las com base na

obra Antologia Labiríntica. O que se lê nesses hipertextos, tais como essa Antologia de André Vallias? Como

o próprio autor indica, logo na abertura do seu hipertexto:

Para se ler ou talvez

leer (de laere, lari)

no alemão = vazio:

etimologicamente, aquilo

que de um campo ceifado

pode ser ainda recolhido

(aufgelesen): de lesen

= catar, separar,

ler... ou talvez

“Caminar: leer un trozo

de terreno, descifrar

un pedazo de mundo.

La lectura considerada

como un camino hacia...”

De um lado – e temos aí a primeira conseqüência –, essa leitura pode ser a acumulação do inútil: não um

“encaminhamento em direção à palavra” (e ao ser), como proporia um Heidegger, mas um caminho em

círculos e sem saídas, iluminando um pedaço muito exíguo do mundo, um rococó eletrônico, uma

justaposição de insignificâncias, uma exuberância de superficialidades. Ocorre que, ao pôr em relevo

justamente as superficialidades, perde-se toda e qualquer possibilidade de fazer desses debordamentos uma

complexificação das leituras e dos leitores. Essa manifestação do excesso, assim, não levaria a nenhum

aprofundamento do objeto a ser lido e do espaço em que se o lê, mas a um aumento inócuo e desordenado

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na extensão de um e de outro, e que se torna, de fato, mero arremedo de profundidade. Para retomar a

questão em termos mais simples (emprestados à lingüística tradicional), pode-se dizer que temos uma

multiplicação de significantes admitindo uma produção imediata, simplista e atropelada de significados,

sem que uns permitam deambular pelos outros, sem que se estabeleçam movimentos de significação que

sejam verdadeiramente plurais. Na verdade, é como se significados e significantes se ignorassem

mutuamente, multiplicando-se à exaustão, feito dois jogos de espelhos paralelos e independentes, sem

nenhuma possibilidade de formar uma terceira imagem, um local intermédio, um espaço de

reversibilidades. Esse excesso de significantes e significados remeteria então ao mesmo movimento, à

idêntica fôrma, à igual forma, a um ruído monótono e hipnótico, tantra desgastado de uma transcendência

falha e frágil, um nirvana eletrônico em que a consciência do todo não está nem prevista na lógica de

programação, nem pode ser inserta no horizonte de leitura. Ou ainda, como se os dois sistemas de espelhos,

embora independentes um do outro, marcassem a mesma data: a de um tempo vazio sem vida e sem

perspectivas, igualados apenas pela mão malévola de um malin génie ocupado em produzir ilusões e

simulacros. Mas é claro que não há malin génie algum, afora nossa tendência em ler torto, em ler pouco.

De outro lado – e temos aqui a segunda conseqüência –, esse excesso concreto e imediato do texto em

espaço eletrônico pode também estabelecer uma proliferação de significantes e de significados que não

impliquem uma fuga cega para diante. Teríamos então a alavancagem de significantes e de significados em

direção a novas possibilidades de expressão, trazendo para o espaço de leitura sempre outros níveis de

significação. Tal espaço de leitura pode se tornar, assim, ao mesmo tempo, o espaço de instalação de um

corpo de leitor e de um corpus de leitura, um remetendo ao outro, um lendo o outro. E é importante insistir

na concretude desses movimentos, tanto os dos textos abrindo percursos e multiplicando derivas quanto

aqueles do leitor, como que levantando ombros e esticando o pescoço em busca de estender a vista para

novos horizontes de significações. Com isso, são outros campos de sentidos que se entreabrem à construção

de distintos percursos de leitura, tal como se vê em Antologia Labiríntica, em que as ligações hipertextuais

pré-programadas não dão conta das possibilidades todas de leitura: de fato, nada nos impede de abrirmos

duas (ou mais) janelas do navegador, partindo da mesma URL inicial e seguindo em cada janela um percurso

diferente, mas sempre comparado, justaposto, inserido à primeira (neste instante, é obrigatório parar de ler

este texto e voltar-se para esse outro de que aqui se fala, o texto eletrônico acima citado como exemplo;

será possível ver que ao limitado – mesmo que numeroso – das ligações e dos caminhos pré-programados

pelo autor vêm-se somar as possibilidades – mesmo que limitadas – dos programas de hiperleitura, sem

contar o ilimitado dos gestos e das leituras que a todos nós, leitores, é dado).

Assim, essa imediatez entre os nós colocados um ao lado do outro (pela imposição das ligações

preestabelecidas na programação do hipertexto) pode-se perder e se alargar ao mesmo tempo: perde-se ao

se deixar guiar cega e exclusivamente por uma lógica de leitura rígida e imposta a priori na programação,

por um autor ex-machina; alarga-se pela descoberta de um exercício de pluralização que vem acompanhado

obrigatoriamente (para que seja pluralização) de um refinamento da leitura e do próprio leitor.2 Daí a

necessidade de fazermos uma distinção entre o excesso e o excessivo. Excesso seria justamente esse

transbordo de significantes e de significados, permitindo estabelecer significações coerentes e articuladas a

um percurso de leitura dotado de coerências e de lógicas. É o que se pode fazer com o texto eletrônico de

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André Vallias, quando se associa o Voltaire, surgido de repente em uma janela, à Ode a Age de Carvalho,

em outra, fazendo com que o “horrible danger de la lecture” do filósofo francês se justaponha às tabelas

de verdade da Ode, gerando uma posição de leitura e de enfrentamento com o texto eletrônico,

iluminando temas, buscando nos nós da tabela uma imagem a ser fisicamente seguida na seqüência de nós

outros e de ligações que se vão buscar e construir através desse hipertexto.

Excessivo, ao contrário, seria resultado dessa proliferação desarticulada de leituras, de percursos, de ligações

e de espaços, em que significantes e significados não remetem jamais a significações plurais e articuladas,

mas rendem-se à lógica única e exclusiva do ruído, ou seja, da não significação, da vertigem do ir-para-a-

frente. Seria, ainda tomando a Antologia Labiríntica, deixar-se cair no labirinto do arbitrariamente fácil,

crendo encontrar, por exemplo, nos valores “1” da tabela da verdade alguma indicação para ler o ensaio

atribuído a Voltaire. Exercício interessante, revelador, talvez, de um insuspeito ecletismo que faria a honra

e a vaidade de certos leitores, mas que nunca conseguiria ir além dos limites exíguos do espaço de leitura

em que apareceu e onde parece condenada a permanecer.

Excesso, por exemplo, poderia ser resultado da leitura que começasse com uma busca das reflexões de

Voltaire, numa página do Yahoo-France. Daí, chegaríamos a uma outra página, agora com o ensaio inteiro

do filósofo francês. Apenas a leitura em segundo (ou mesmo primeiro) plano desse texto ainda não seria

excesso, mas mera deriva (podendo cair rapidamente no excessivo). O excesso se daria, por exemplo, ao

confrontar a porção do ensaio de Voltaire citada por André Vallias com aquela que não o foi, e tentar

deslindar em outras janelas de Antologia Labiríntica algumas ordens ou lógicas paralelas a esse recorte. Ao

arbitrário e inequívoco do hipertexto, tal como programado e apresentado por seu autor, estaríamos nos

autorizando a estabelecer um recorte outro, um percurso distinto, uma leitura não mais submetida à

imediatez das ligações infindáveis, mas possibilitada por um excesso de significantes amarrado de modos

específicos a um excesso de significados.

Já o excessivo, esse pode estar em toda parte e em muitos gestos. Estaria, por exemplo, nesse fácil transitar

entre URLs, acreditando resolver um mistério (o hipertexto de André Vallias) criando um ainda maior. E um

outro ainda maior, chegando a uma leitura que não passa, paradoxalmente, de voracidade e de fastio

combinados de forma a resultar em ruídos sem apontar para quaisquer sentidos, caindo justamente no

vazio mencionado no extrato da obra acima apresentada.

Em resumo, nessa materialidade proteiforme e maleável que são os textos eletrônicos, é possível encontrar e

inscrever conjuntos de elementos significantes de modo que eles extrapolem limites, rompam fronteiras,

contestem seqüências, subvertam temporalidades, mas sempre buscando uma correspondência multívoca3 com

os significados que vão sendo provisoriamente estabelecidos. De fato, pode-se até falar de uma inscrição de

movimentos e de devires que vão além da aparência momentânea do texto eletrônico para situar-se, num

primeiro momento, ainda aquém do significado. Num segundo momento, seriam justamente esses

significados plurais que nos permitiriam reposicionar e multiplicar ainda mais os significantes. Nesse caso,

estaríamos já entrando no terreno das reformações, das distintas maneiras como vamos dando forma e fôrma

ao hipertexto, como que buscando novas maneiras de tecer significantes e formular leituras dentro do espaço

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eletrônico. De certa maneira, é como se transbordos e reformatações retomassem ou ecoassem a dicotomia

acima explorada entre significantes e significados. E, por seu lado, outras dicotomias, em diferentes níveis do

hipertexto, podem vir se juntar a essas duas propondo outros movimentos recíprocos (e, repita-se, multívocos):

tempo e espaço, real e virtual, obra eletrônica e obra impressa. É como se as formas e fôrmas do hipertexto

estivessem ligadas de alguma forma a sua inscrição no complexo espácio-temporal, à maneira como ele se

desenrola diante de nós e na circunstância de nossa leitura; ou ao modo como propõe imagens, simulações e

cópias; ou ao jeito como possibilita ligações e/ou linearidades no encadeamento dos significantes.

Variações em Torno de um Tema Mesmo

Reformações e reformatações constituem então algumas das dinâmicas de produção do texto eletrônico, tanto a

partir da mecânica própria de sua materialidade proteiforme e protendida quanto das distensões e deslocamentos

do leitor. Expliquemos isso melhor. Na produção de todo texto – qualquer que seja o meio em que ela se dê –,

delineia-se um espaço de funcionamento, que é parte virtual, parte concreta. Em outras palavras, parte dele chama

a presença de significantes imediatos, de estruturas identificáveis no nível dos próprios significantes, de significados

e referências diretas; outra parte remete a uma abertura das significações, ao esboço de uma fisionomia do campo

dos sentidos possíveis. Em ambas, com base na especificidade de seu autor, funda-se o que se chamou de estilo, essa

maneira de dispor (materialmente) significantes e, ao mesmo tempo, de fazer com que nos dirijamos de dada

maneira (virtualmente) ao campo geral da língua. Todavia, essa conjunção entre um e outro, quer dizer, entre o

material e o virtual do texto, se dá de maneira diferente, dependendo do meio – oral, impresso, eletrônico – em

que ele é produzido. No meio impresso, a obra literária pende para um texto em que as virtualidades acabam

assumindo a maior parte desse espaço de construção de significações. Já no texto eletrônico, tal espaço é povoado,

desde o início, pela evidência imediata e pouco sutil de ferramentas, de processos, de referências, de produtos

outros, a tal ponto que se poderia até cair na armadilha de dizer que o texto eletrônico é mesmo o primado do

imediato, do concreto, da presença. Nada disso! Esse incremento na presença de materialidades imediatas, de

significantes não implica necessariamente uma diminuição correspondente nas virtualidades do texto, isto é, na

maneira como ele permite olhar o campo dos sentidos possíveis. A bem da verdade, ambos os meios ainda

continuam a tecer suas malhas de maneira específica e própria ao autor e à obra, a dispor nós onde a leitura pode

ser parada por alguns momentos, e com base neles propor certos caminhos de leitura.

É assim que as reformas e reformatações do texto eletrônico, por resultarem de modificações em sua

própria base material, deslocam, de modo importante, isso que chamamos estilo. Nesse sentido, estilo deixa

de ser apenas o modo como se repetem, mais ou menos, as disposições de significantes e os percursos

possíveis de significações. Antes disso, estilo passa a ser também o modo como se produzem possibilidades

de geração de significantes, isto é, a maneira como as linguagens de programação fornecem bases e

caminhos para as linguagens outras (verbais, visuais, sonoras etc.). Se um soneto, por exemplo, gerado por

computador parece paupérrimo diante de um outro, cometido por um Vinícius de Morais ou por Victor

Hugo, é porque estamos comparando coisas incomparáveis. A título de exemplo, basta examinar os dois

poemas a seguir, tirados do sítio do grupo Alamo4 e gerados automaticamente por computador, sob certas

condições de contorno estabelecidas por seus criadores. Trata-se, na seqüência, de um soneto e de um triolé:

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Poema 1

Le Dormeur du Jardin

C’est un roi de chimère où passe une masure

Embrassant largement aux ombres des jardins

D’esprit; où le désir de la tristesse pure

Fond: c’est un poudreux jardin qui parle de parfum

Un enfant sombre, tête obscure, flamme fraîche

Et la nuque brillant dans le court étang blond

Rit; il est incliné dans l’ombre, sous la brèche,

Sombre, dans son roi droit où la ténèbre fond.

Les pieds dans les secrets, il rit. Sa tête pâle

Sortirait un bonheur placide, il souffre, il râle:

Nature, calme-le simplement: il sourit.

Les haillons ne font pas revenir sa bouteille;

Il rit dans le pâté, la chair sur sa merveille,

Placide. Il a cinq pieds calmes au regret gris.

Poema 2

Une seconde s’envolait

pour la minute d’une étreinte

et l’on s’étrangle en des goulets

Une seconde s’envolait

L’artiste rêve au chevalet

les voyelles tentent des feintes

Une seconde s’envolait

pour la minute d’une étreinte

Não quero, no momento, levantar nenhum juízo de valor sobre essas duas obras geradas automaticamente.

O que importa é chamar a atenção para o fato de que, freqüentemente, o estilo de seu autor se revela

muito pouco nesse nível apenas verbal. Ele se mostra muito mais clara e profundamente no modo como se

manipularam os significantes, reunidos em bancos de dados e, a seguir, combinados por bases de dados

especialmente desenvolvidas para essa obra específica. De fato, sua leitura, ou seja, a construção do texto,

passa a ocupar mais um espaço, em que são gerados seus possíveis sentidos, e não apenas (ou não mais) as

possibilidades de significações a serem desenvolvidas pelo leitor. Paul Ricoeur afirma que “fiction et poésie

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visent l’être, non plus sous la modalité de l’être-donné, mais sous la modalité du pouvoir-être.”5 No que se

refere às obras digitais, eu diria que ocorre uma conjunção entre ambas as esferas: o “être-donné” é

submetido a uma instância prévia do “pouvoir-être”, isto é, o espaço das variações possíveis vai além da

produção de significados e passa a ser uma instância determinante da materialidade da obra. O que ela é,

por si mesma, não deriva mais unicamente de uma seqüência predeterminada de significantes, mas se

manifesta no modo como ela já é, desde o início, um poder-ser-assim. De fato, o ciberespaço já foi descrito

inúmeras vezes como um espaço em simulação permanente, em que as diferenças entre simulação e

realidade imediata nem teriam mais lugar, devido a um pretenso predomínio avassalador daquela sobre esta.

O ser da obra está não apenas nas simulações, mas nos mecanismos com que se constroem espaços e

possibilidades de simulação. Em outras palavras, a realidade da obra não se funda em nenhuma configuração

material definitiva (isso não é mais essencial para delimitar o que seria seu ser), mas nos processos telemáticos

em que, por repetidas vezes, se retoma um mesmo ciclo de interações entre o leitor, as ferramentas de

programação e os resultados provisoriamente disponíveis na tela. De toda maneira, esses procedimentos não

são novidade alguma na literatura e já foram utilizadas na tradição impressa. Como afirma Jean Clément,

“La tentation de l’infini a toujours travaillé les écrivains, notamment sous les espèces de la combinatoire. Celle-ci

s’exprime d’abord dans la littérature orale par la prolifération des variantes et des versions. Elle se poursuit dans la

littérature médiévale avec la multiplication des cycles narratifs. Au XIXe siècle, elle est au coeur du projet balzacien”.6

A salientar, talvez, apenas o fato de que, se se trata de uma “tentação do infinito”, ela acaba configurando

um processo de multiplicação de significantes que, mesmo se inspirando no infinito, nunca tem como

chegar a ele. E, nesse caso, talvez o exemplo mais à mão sejam os 99 Exercices de Style, de Raymond

Queneau. Podem-se também citar as 15 variações produzidas por Georges Perec, a partir de Gaspar Hauser,

de Verlaine, utilizando o que Gérard Genette chama de “príncipe machinal”.7 De fato, se há, como afirma

o mesmo Genette, um caráter imprevisível nos resultados desse procedimento, saliente-se que a

imprevisibilidade diz respeito aos significantes produzidos, ou ainda, à maneira como estes se combinam, à

seqüência em que aparecem. Os processos de geração desses imprevisíveis não são, eles próprios, nem um

pouco imprevisíveis. No caso dos hipertextos eletrônicos, eles constituem um espaço em que se produzem

variações dos significantes, a partir dos mesmos procedimentos telemáticos, fundamentados nos mesmos

maquinismos e nos mesmos bancos e bases de dados.

Nesse ponto, é importante retomar a distinção, já abordada, entre materialidade e objetividade. Por ser o

que é, essa literatura em meio eletrônico se investe e se reveste de uma materialidade a ser (re)construída

incessantemente. Ora, isso não implica, de modo algum, que tenhamos diante de nós uma objetividade que,

por estar em constante mudança, não tem como ser delimitada e investigada. Em outras palavras, em lugar

da ilusão de uma obra pronta, acabada e estabilizada, é necessário mapear os processos de materialização

dessa obra, discutir o que seria sua objetualidade. Sobre esse ponto, Roger Chartier afirma que:

“La révolution du texte électronique (...) à la matérialité du livre, elle substitue l’immatérialité de textes sans

lieu propre ; aux relations de contiguïté établies dans l’objet imprimé, elle oppose la libre composition de

fragments indéfiniment manipulables...”8

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A retificar, talvez, a afirmação de que haveria aí uma livre composição de fragmentos. De forma alguma!

Os fragmentos, ou melhor, os fragmentos (de) significantes, são postos em circulação a partir de processos

maquínicos, procedimentos automatizados e automatizantes, todos eles perfazendo condições de

contornos e de produção de significantes que se somam às próprias condições de contorno que línguas e

linguagens sempre impõem à produção de quaisquer significações. Nessa perspectiva, então, não haveria

propriamente “livre composição de fragmentos”, mas uma conjunção de fragmentos guiada por lógicas e

retóricas próprias do meio eletrônico. Todavia, deve-se destacar a argúcia de Chartier, acentuando a

desmaterialização da criação eletrônica,9 sem que isso seja acompanhado do velho (e superficial) discurso

sobre perda de objetividade e desubjetivação das artes. E a maneira como são conjugados esses significantes

(termo mais apropriado e mais preciso que o de “fragmentos”) vai muito além do que sempre coube no

espaço da página manuscrita ou impressa. Pode-se falar de uma construção teleológica dos significantes na

tradição impressa, mesmo que ela não se faça acompanhar obrigatoriamente de uma (outra ou mesma)

teleologia na armação das significações encetada pelo leitor. No meio eletrônico, o leitor se desloca ao

mesmo tempo em que põe em rotação a ciranda dos significantes, e a leitura remete constantemente a esse

processo de avançar, retornar, retomar, seguidas vezes, embrenhando-se não apenas nas entrelinhas dos

significantes verbais, mas nos desvãos que as linguagens de programação deixam (propositadamente ou

não) para equívocos, acasos, erros premeditados, caminhos tortuosos, becos sem saída etc.

Como já deve ter ficado claro, a iteratividade é um processo que faz parte das lógicas e linguagens de

programação que estão na base de todo texto eletrônico. De fato, ela constitui o ponto central da Máquina

de Turing, procedimento fundamental que define tanto o funcionamento dos computadores quanto a própria

cibernética. Mas a iteratividade é também um processo que pode ser explicitamente incorporado ao espaço

de leitura de um certo tipo de texto eletrônico, isto é, aqueles que exigem repetições freqüentes para chegar

a resultados diferentes, a topologias de significantes ligeiramente distintas das anteriores. A obra Passage, de

Philippe Bootz, é um bom exemplo. Sem avançar muito em sua análise – coisa que preferimos deixar à

curiosidade de nossos muito poucos leitores –, podemos dizer que sua leitura se faz justamente na paciente

repetição de entradas e saídas do sistema. A cada passagem, nos diz seu autor, o sistema de programação

incorpora dados que alteram para sempre alguma variável da obra, de forma que a entrada seguinte traz para

o leitor uma outra topologia no processamento dos significantes. Em outras palavras, o acesso à armação dos

significantes verbais depende estreitamente dos significantes telemáticos (interações, programações e

processamentos). Assim, a leitura de Passage é um percurso múltiplo, parcialmente indefinido, infindo (mas

não infinito), em que as interatividades programadas pelo autor e executadas pelo leitor somente adquirem

sentido quando repetidas ad libitum, quase à exaustão, trazendo pequenas variações – muitas delas

imperceptíveis, mas ainda e sempre variações –, no percurso quase mesmo das leituras anteriores.

Resumindo: Dicotomias e Reversibilidades

Transbordos e reformações também se alimentam das dicotomias do ciberespaço, como aquelas entre real

e virtual, ou entre espaço e tempo. Mas, novamente, talvez melhor seja dizer reversibilidade em vez de

dicotomia, já que podemos discernir aí uma dupla operação de realização do virtual e de virtualização do

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real, de um lado, e de espacialização do tempo e de temporalização do espaço, de outro. Em linhas gerais, o

que se deve discutir a esse respeito é a maneira como a materialidade dos hipertextos eletrônicos se altera, se

desvanece e se permite percursos e desenhos de leitura e de navegação que colocam em xeque as fronteiras

habituais entre real e virtual, entre espacial e temporal. E, mais, para a criação literária (e para toda arte que

ainda vislumbra alguma chance de aprender com a literatura), essas possibilidades todas parecem apontar

para outro duplo movimento, o de versificação da prosa e de prosificação do verso, como indicaremos mais

adiante. São dicotomias ou reversibilidades que moldam a leitura no(do) espaço eletrônico, permitindo

entendê-lo sob a perspectiva de lógicas plurais e dinâmicas, sempre assentadas numa certa fisionomia sua, essa

do transbordo dos significantes e dos significados, mas sem reduzir-se a fórmulas prontas, a essências ideais,

ou mesmo a gestos desprovidos de temporalidade ou prenhes de relativismo. Tais duplicidades podem ser o

mais próximo a que se pode chegar de uma racionalidade plural a ser associada aos textos eletrônicos.

Cumpre, então, entender como essas diferentes reversibilidades – transbordamentos e reformatações, real e

virtual, espacial e temporal, eletrônico e impresso, chegando a poesia e prosa – podem se corresponder, se

imbricar, e dar margem a leituras que, não sendo aleatórias nem descontextualizadas, permitem ler, além dos

corpora textuais e dos corpos leitores, a própria leitura em espaço eletrônico.

Para falar brevemente de tempo e espaço, convém assinalar o fato de ter-se tornado comum, nas duas

últimas décadas, a referência a um tempo permanentemente presentificado, tornado disponível como um

mapa em escala 1:1, aquele dos cartógrafos de que falava Jorge Luis Borges, em Del Rigor en la Ciencia:

“Les nouvelles technologies nous transposent ainsi dans une zone intermédiaire, une zone de transit

devenue permanente, nous permettant d’être là et potentiellement partout dans un temps que l’on peut

enregistrer et stocker, un présent figé. Nous sommes donc dans un état ‘nomadique’ jouant avec le temps

et l’espace en glissant d’une ambiance-virtualité à l’autre.”10

Tais descrições de um eterno presente não são moeda corrente apenas quando se fala do ciberespaço. De

fato, parece mesmo lugar-comum disso que chamam de pós-modernidade. Todavia, falta alguma coisa a uns

e a outros, tanto aos arautos da pós-modernidade quanto aos estudiosos do ciberespaço: a percepção de que

também a experiência do espaço acaba sendo temporalizada, o que implica sua abertura ao fluxo, ao devir.

Espaço então não seria mais a condição de possibilidade de os objetos serem percebidos, mas uma seqüência

de loci em que se viaja, sempre adiante, sem condições de retornar a sua pretensa origem, uma vez que se

seguiu em frente, tendo chegado a outro nó na rede de significantes potencialmente infinita do ciberespaço.

Nesse caso, estaria confirmado esse estado nômade do sujeito que ainda se atreveria a ciberespaços, a

ciberpercursos, a ciberleituras. Sendo assim, o espaço perceptivo cederia vez e lugar ao espaço dos

significantes, dos automatismos, das interatividades mediadas pelas interfaces digitais. Em lugar dos corpos,

os corpora; em vez dos gestos que inauguram perspectivas do mundo, bancos e bases de dados. Mas a

pergunta que se faz é: até que ponto se pode abstrair a experiência do corpo próprio, quando nos colocamos

diante da tela? Em outras palavras, será que a hipertrofia do texto eletrônico e do ciberespaço implica

necessariamente a atrofia do sistema corpo-percepções-mundo? É o que se poderá entender, ao avançar um

pouco mais na discussão das relações entre virtual e real, por intermédio de nossa e muita ciberliteratura.

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A leitura de tais hipertextos eletrônicos – disso que ainda pode vir a ser, então, aí sim, com todas as letras, uma

ciberliteratura – parece implicar uma conjunção ou justaposição ou confronto entre a pluralidade do real e os

inúmeros simulacra de que se faz o virtual. Mas, freqüentemente, ocorre uma sutil infiltração destes naquele

outro, e a descrição metafórica dos simulacra contamina e limita os mapeamentos possíveis do real. Dito de

outra maneira, a metáfora pós-moderna de jogo11 – no caso, de texto ou escrita como jogo – vem sobrepor-se

às antigas metáforas de mundo como escrita e, conseqüentemente, como texto-a-ser-lido. E é importante

assinalar que não se trata de um avanço ou alteração no modo de perceber o mundo. Muito diferente disso,

trata-se de um deslocamento que poderíamos dizer ontológico: na verdade, não é a descrição metafórica de

uns – os simulacra – que vem enriquecer ou modificar a descrição metafórica de outro – o mundo das

pluralidades possíveis, vulgarmente chamado real –, ao contrário, é o próprio parecer dos primeiros que é

usado para descrever, qualificar e delimitar o ser do segundo. E essas reflexões param justamente aí, elas não

aceitam nem incluem o caminho de volta, essa reversibilidade de que tanto temos falado: não há condição

nem ocasião para que o ser de um venha envolver e iluminar o parecer dos outros, dando a estes, agora sim,

uma existência autônoma que vá além do arremedo e da aparência. Nesse caso, por mais que se multipliquem

os transbordos e as reformatações do texto eletrônico, este fica sempre a distância de ser alguma coisa,

acompanhando de longe algum objeto ou gesto ou expressão, como que carregando a vergonha de simular

ou repetir sem ser; sendo sempre outra coisa que não aquilo para que aponta, estando sempre onde não se

encontra, dirigindo-se constantemente para o outro lado do próprio movimento. É justamente nesse

multiplicar das aparências – operação levada muito longe pela capacidade de processamento do meio digital

– que nascem os equívocos no modo de compreender os simulacra. Quando se pensa na própria operação de

multiplicação, por exemplo, quando se faz 7 x 8, o resultado, 56, não é apenas um terceiro signo algébrico,

mas também uma pluralidade que carrega em si tanto o 7 e o 8 quanto o produto deles. É esse o caráter que

acima atribuíamos ao real: ele é múltiplo e é também plural (e ressalte-se que não se trata de sinônimos). No

caso dos simulacra, teríamos apenas um terceiro significante, o 56, tentando acompanhar de longe – mas

perdendo irremediavelmente – o 7 e o 8, fazendo de conta, ainda e sempre, que o produto remeteria de

alguma forma aos multiplicandos, sem estabelecer, no entanto, qualquer caminho que levasse até eles.

Assim, parece importante distinguir radicalmente as multiplicidades de significantes que se produzem no

ciberespaço, das pluralidades do sistema corpo-percepções-mundo. As primeiras resultam das

iteratividades e interatividades do meio eletrônico e apostam na repetição de simulacros como meio de

recriar de longe o real, apontando para ele, mas, cautelosamente, mantendo distância prudente (dele e

de si próprio), apoiando-se numa multiplicação de significantes que tenta simular ou arremedar as

pluralidades do real, sem atingi-las nunca. Já estas últimas apóiam-se diretamente, mais do que num ser

geral de tudo e de todos, no estar-no-mundo, nesse ato que é constitutivo de meu ser ao mesmo tempo

em que expressa minhas perspectivas do mundo vivido, em que enuncia minhas limitadas percepções desse

mundo e anuncia a pluralidade das outras, justamente essas pluralidades que tornam possíveis minhas

limitadas especificidades. O fato é que tais concepções que apontam para uma dissimulação completa do

real assentam-se numa compreensão limitada do mundo vivido, como se este correspondesse a uma parte

do espaço das linguagens, o das seleções e combinações experimentadas mais como jogo e menos como

gesto expressivo. Ou como se mundo fosse metáfora de linguagem – e não, ao contrário, percebendo que

linguagem é que é metonímia de mundo.

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Talvez caiba ainda uma crítica a essa compreensão linguageira, ou melhor, limitadamente linguageira do

mundo e das pessoas. Por trás dela, há um pressuposto já velho – da idade da sofística –, de que tudo seria

linguagem e nada poderia haver nem ser dito fora dela. Se o pressuposto parece correto, as conseqüências

que se tiram dele não o são necessariamente: se tudo é linguagem, isso não significa que tudo seja metáfora

ou jogo, como querem alguns arautos de pretensa pós-modernidade. Não se pode esquecer que toda

linguagem é não apenas jogo, mas também e sobretudo gesto expressivo e que, como tal, enuncia e

anuncia a inauguração do ser-no-mundo, a ligação direta entre o estar-no-mundo e a especificidade

irredutível de cada indivíduo. Nesse caso, não se pode apenas dizer que metáforas e jogos sejam elementos

que descrevem a totalidade do espaço das linguagens e, portanto, descreveriam também o funcionamento

do real. Esquece-se de que linguagens são gestos expressivos e que o resultado delas não está apenas num

certo modo de produzir, selecionar e combinar significantes. Há um resultado que já se coloca ainda antes

dessa produção de significantes e diz respeito justamente à fundação de um espaço expressivo, esse espaço

dos sentidos possíveis, essa fisionomia do mundo que eu, indivíduo, posso ver a partir de meu corpo próprio.

E o que ele me dá a ver é aquilo que nada ou ninguém me daria melhor. É como diz Caeiro:

“Mas o Tejo não é mais belo que o rio que corre pela minha aldeia

Porque o Tejo não é o rio que corre pela minha aldeia”.12

Todavia, sem a pluralidade das perspectivas dos outros – quer dizer, sem o Tejo distante, metonímia dos rios

outros e metáfora de todo e qualquer outro –, minha visão específica do real, meu estar-no-mundo não

teriam como estar, nem como aparecer, nem como ser expresso. É necessário, em suma, ir do ser e dos

sentidos gerais do sistema corpo-percepções-mundo – para onde apontam os gestos expressivos – ao

parecer dos simulacra, justamente para dar a estes algum sentido que vá além do mero jogo, da simples

simulação, da brincadeira inócua. É necessário dotar as iteratividades, quer dizer, a multiplicação de

significantes no ciberespaço, de um movimento que aponte para as pluralidades do mundo vivido. Não se

trata de resgatar as estéticas clássicas da mimese e espalhar a ilusão de que os simulacros são acesso indireto

mas inteiro a esse mundo vivido. Trata-se, isso sim, de resgatá-los da banalidade que os ronda e ameaça,

para fazer deles um dos modos de acesso às experiências e aos gestos expressivos, estes que nos colocam

em contato com o mundo diverso e plural das coisas e das pessoas outras.

Então, quando se pergunta – como o faz Marie-Laure Ryan – se haveria um mundo para cada texto, ou se um

dado texto projetaria um ou vários mundos,13 o que está por trás dessas questões é justamente a idéia de que

os simulacros associados a cada texto, ou derivados de cada leitura, serviriam para justapor camadas, níveis e

elementos significantes ao mundo vivido, e que essa seria a única maneira de ler e entender este último. O

resultado é que eles acabariam por escondê-lo quase que em definitivo, instalando no lugar da percepção a

simulação – não mais o mundo-como-ser, mas o mundo-como-parecer. E sabemos todos que, no meio

eletrônico, a capacidade de simular está diretamente ligada não só (ou muito menos) à capacidade de reiterar

significados, mas às possibilidades de repetir processos de produção de significantes. No caso, os textos

eletrônicos são vistos e, talvez, também concebidos como espaços de multiplicação e de transbordamentos de

significantes sem que se tome, muitas vezes, o cuidado de fazer com que espaços de leituras e significantes a

serem lidos sejam inseridos numa dinâmica de pluralização (e, repita-se, não apenas de multiplicação).

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Assim, é a partir dessas diferenças entre pluralização e multiplicação – conseqüências diretas dos embates ou

conjunções entre real e virtual –, que os textos eletrônicos podem ganhar mais relevo. A esse respeito, analisemos

a obra O Livro Depois do Livro, de Giselle Beiguelman. Já no que a autora chama de epígrafe, o plano de fundo e

o plano de escrita proporcionam uma algaravia de letras muitas e palavras algumas, apontando, desde esse início,

como diz Joan Brandt, para a “disrupção da função normalmente referencial ou mimética da linguagem”.14 E,

como diz ainda a mesma Joan Brandt, um eventual princípio unificador de um poema, mesmo na tradição oral ou

na escrita, não estaria, então, em qualquer relação entre o texto produzido na leitura e alguma referência concreta

e externa, mas nas relações entre esse texto que se lê e outros textos já lidos ou a serem lidos. No que se refere ao

meio eletrônico, e no caso específico dessa obra de Giselle Beiguelman, o título enfatiza justamente não um

mundo de coisas e gentes, que estaria depois ou no exterior do livro, mas para livros outros que estariam sempre

além (e, conseqüentemente, aquém) desse primeiro. No que toca à ligeira arbitrariedade desse princípio

unificador, ele não desaparece, claro, mas ganha contornos concretos e procedimentos imediatos: o prefácio da

obra mascara e confunde os significantes verbais, mas deixa materializado na tela o percurso que, levando de uma

página eletrônica a outra, pode resultar naquela terceira página de que falamos acima no capítulo O Texto

Eletrônico como Produtividade. De fato, em O Livro Depois do Livro, há alguns percursos e construções que

apostam nessa possibilidade. Após o prefácio, aparece uma seqüência de frases, uma espécie de discurso de

aparência teórica15 hesitando entre subordinação e coordenação, assim como vacila entre uma significação possível

ou desejável reunindo todas as frases e uma justaposição pouco discursiva entre cada uma delas. E talvez seja

justamente essa indefinição entre artístico e teórico,16 esse vai-e-vem entre discursivo e enumerativo que permite

tecer um espaço de leitura apontando para pluralidade e/ou multiplicidade. Mas ressalte-se que a partida não está

ganha por antecipação. Não é possível escolher um ou outro, ao menos no ponto de leitura em que me encontro,

ou nos espaços expressivos todos que se pode vislumbrar a partir dessa obra de Giselle Beiguelman.

Mas, continuando, pode-se perceber nesse seu movimento expressivo que O Livro Depois do Livro aponta

continuamente para espaços expressivos outros, mesmo que quase todos tenham como fio condutor esse

discurso fundado em frases de teor e feitio teórico, entremeadas, aqui e ali, por comandos e ícones da

informática. É assim que algumas das propriedades mais evidentes do meio eletrônico são sobrepostas aos

significantes (verbais e visuais): movimentos, cintilações, dissoluções etc., tudo resultando na sensação de

uma multiplicidade de objetos que ainda não nos dá a certeza (ainda não!) de estarmos nos encaminhando,

por meio desse Livro, para uma pluralidade de sentidos e significações em que os gestos expressivos do

leitor, mesmo sendo legião, não pululam necessariamente numa entropia maior ou menor. Aliás, os graus e

os modos com que diversos níveis textuais nele se podem esboçar, ao contrário do que indicaria a ambição

da autora – de fazer de seu livro a construção física e a constatação imediata do Libro de Arena, de Borges

–, ainda guardam as (inevitáveis!) limitações impostas pela situação imediata do leitor-em-leitura, limitações

que não teriam jamais como ser ultrapassadas. Ao virtual das codificações e das programações telemáticas

da hiperleitura vêm se conjugar as condições imediatas do leitor real. De fato, os mundos-lidos no e pelo

meio eletrônico não têm outros sentidos que não aqueles que lhes outorga o mundo-vivido. E, de forma

correspondente, sem a multiplicidade (iterativa ou de outro tipo) dos hipertextos eletrônicos, estaríamos

sempre submetidos ao assombro sagrado diante de uma pluralidade incompreensível.

* * *

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Enfim, sem que se instale uma verdadeira reversibilidade entre real e virtual, não se vai além da dicotomia, da

oposição entre um e outro. E, nesse caso, ao se tentar ir de um a outro – isto é, dos simulacros para o real –,

o que se faz, na verdade, é um percurso fechado em si próprio e vedado a tudo e a todos, limitado ao pior de

um e de outro (um relativismo que se torna absoluto), uma volta ao redor do quarto que nunca será viagem

para fora de si. Muito embora se possa cultivar a ilusão de que se avança no conhecimento do mundo, a partir

dos simulacros que se produzem dele em profusão, o que se tem, na verdade, é apenas um faz-de-conta que

somente convence alguns pela quantidade e pela velocidade com que vai produzindo significantes sem mais

significação possível, sem apontar para sentido algum, sem permitir nenhum espaço onde se exercitem e se

exerçam gestos expressivos compartilhados. Como se o tabuleiro – ou seja, o meio eletrônico, com suas

ferramentas e processos telemáticos – pudesse já representar todo o jogo, ou como se este se reduzisse às

peças e às regras, podendo passar perfeitamente sem os jogadores e as jogadas. Ou ainda, como se a repetição

incontrolável e quase automática de simulacros e simulações, nesse ciberespaço de telemáticas quantidades,

se impusesse per se. E, se volto à metáfora do jogo, é justamente para mostrar que até mesmo ela é tomada

e entendida de forma insuficiente e, no mais das vezes, simplista. É necessário – repito – exercer essa

reversibilidade entre um e outro, tornar os simulacros e a própria virtualidade uma das maneiras não de acesso

direto ao real, mas de expressão no/do real; do mesmo modo, é preciso fazer do real um movimento em que

se exercitem posições e perspectivas, mapeando significações, tentando sentidos, propondo significantes,

repetindo e alterando os dados e as posições de si, como nos processos de tentativa-e-erro, acima descritos, e

que não são nada mais nada menos do que o exercício de uma existência diretamente implicada no mundo e

com outras pessoas, o exercício de uma expressão que é vital e imediata, por ser plural, limitadamente plural.

Tais reversibilidades várias – como essas entre real e virtual – permitem chegar a outras dinâmicas de

elementos, expressões e categorias reversíveis. No espaço mais geral das textualidades – nosso campo

específico e privilegiado de investigação –, podemos tomar as categorias sugeridas por Genette para entender

e aprofundar melhor essa questão. É possível falar aí de uma textualização geral das instâncias metatextuais.

Em outras palavras, as categorias textuais seriam elas também objeto de interferências e reversibilidades. Os

diferentes tipos de transtextualidade se colocariam como nós dentro de um espaço mais geral, podendo ser

até mesmo chamado apenas de espaço das textualidades. O mesmo ocorreria também com os gêneros

literários, que não só mapeariam um seu espaço dos gêneros, obviamente, mas também permitiriam

correspondências, correlações e fisionomias de variada fatura e jeito – como ocorre sempre nessa

espacialidade que não se limita mais à geometria já bem conhecida das três dimensões e do tempo irreversível

–, dando a experimentar proximidades e vizinhanças até então insuspeitas ou improváveis, como aquelas

entre prosa e poesia. Tomando então o que diz o próprio Gérard Genette, podemos ler: “... il ne faut pas

considérer les cinq types de transtextualité comme des classes étanches, sans communication ni recoupements

réciproques. Leurs relations sont au contraire nombreuses et souvent décisives”.17 Na seqüência, ele cita quatro

dessas relações hipertextuais – hipertextos alógrafos; hipertextos autógrafos com hipotexto autônomo;

hipertextos autógrafos com hipotexto ad hoc; hipertexto com hipotexto implícito –, sem que nada nos impeça

de ir além e propor um segundo nível de relações, isto é, nas possíveis relações entre aquelas relações

primeiras. A partir disso, podemos pensar não apenas na produção de (ou na construção de referências a)

diversos e inúmeros hipotextos, a partir das ferramentas e processos que nos permite o meio eletrônico. É

igualmente legítimo conceber processos de geração de hipertextos (entendido este termo na acepção mais

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específica que lhe dá Genette), em que os objetos textuais – resultantes agora das diferentes interações

(homem-homem, homem-máquina, máquina-máquina) e das repetições em alucinante velocidade – sejam

usados não como textos, mas como maneiras de colocar significantes em rotação, produzindo textos.

Tentando esclarecer melhor isso, pensemos numa relação entre uma obra A e uma obra B, digamos, por

exemplo, os poemas de Baudelaire e os sonetos de Rimbaud. No caso, trata-se de ir além do que propuseram

os membros do Alamo, com a construção automática de sonetos de sintaxe rimbaudiana com um

vocabulário baudelairiano (ou vice-versa). E, para isso, pode-se pensar na eventualidade de a relação entre

uns (poemas de Baudelaire) e outros (sonetos de Rimbaud) ser ela própria uma relação hipertextual, de

forma que a construção do objeto textual seja mais complexa do que o cruzamento de vocabulário de um

autor com estruturas sintáticas típicas de outro. Assim seria possível imaginar a construção de um grande

banco de dados – claro que não a infinda Biblioteca de Babel de Borges, mas tão grande que apenas as

memórias dos computadores dariam conta desse jogo de interferências e de inferências. Nele, os elementos

de um e outro hipotexto seriam efetivamente compostos, de todas as maneiras possíveis, mas colocados

diretamente na memória do computador, sem acesso imediato do leitor (e nem este teria condições físicas

para armazená-los todos); num segundo nível de construção, o leitor poderia, então, usando ferramentas

de busca motivada, ter disponíveis na tela os poemas rimbaudianos que fossem dotados de uma certa

fisionomia predefinida, como uma dada fôrma (por exemplo, lipogramas casuais, ou seja, poemas que não

teriam em nenhum verso uma certa letra).

Outra possibilidade – essa, sim, fazendo uso da reversibilidade entre prosa e poesia – estaria na utilização de

grandes quantidades de significantes verbais, submetendo-os a operações de armazenamento, catalogação,

seleção e organização de que apenas as ferramentas telemáticas podem dar conta. O que sugiro é, por

exemplo, algum romance que tenha sido escrito (aparentemente) da maneira mais tradicional possível, ou

seja, seguindo pretensamente os ditames e limites da tradição impressa. Todavia, seu autor utilizou um dado

recurso de escrita que, mais do que um traço estilístico, pode tornar-se fio condutor de um trajeto de leitura

que não tem mais como ser realizado fora do meio eletrônico: várias passagens foram redigidas de forma

muito similar, algo entre um autopastiche e uma autocitação. É claro que a significação de cada uma delas vai

estar diretamente associada ao trecho do romance em que se encontra. Mas é claro que essa significação

também estará diretamente ligada à maneira como ela se relaciona às outras, às transformação que se podem

ver de uma a outra. Teríamos, então, várias possibilidades de leitura, aproveitando um recurso extremamente

simples e imediato, que é a exibição em estrutura de tópicos, como se encontra num processador de texto

como o Word®. Nesse caso, não estamos aqui propondo nada que se assemelhe aos poemas em prosa, de larga

tradição nas literaturas ocidentais ao menos desde Baudelaire. Nem é caso de se retomar certo tipo de

intertextualidade, como as que se verificam entre os poemas de Magma e alguns contos de João Guimarães

Rosa (espalhados em várias obras). O que se quis com esse exemplo foi propor um mecanismo de leitura que

traga para a prosa o paralelismo que marcou, desde a literatura medieval, nossa tradição de poesia no

Ocidente. Em outras palavras, o que se deseja é fugir da seqüência linear de significantes, mas sem cair no

casual ou no aleatório; é estabelecer no todo do romance uma espécie de ritmo longínquo, de baixíssima

freqüência, mas correspondendo, de alguma maneira, à alta freqüência dos versos que se sucedem em ritmo

vertiginoso num poema (mesmo quando se trata de versos mais extensos, como os alexandrinos).

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Em suma, ao vertiginoso do paralelismo da poesia, é agora possível pensar numa morosidade de um ritmo

romanesco. Não o ritmo da dicção do narrador, mas, agora, o ritmo com que sua prosa se dispõe ao leitor.

Todavia, este somente terá como detectá-lo, ou melhor, inseri-lo em algum campo de sentidos, para aí

construir significações plausíveis, se utilizar alguns dos instrumentos informáticos (nesse caso, a exibição em

forma de tópicos, estabelecendo diferentes níveis para a obra, com acesso visual, pelos próprios níveis, ou

pela ferramenta de busca). Por isso podemos dizer que tal mecanismo, se construído em papel, traria as

mesmas dificuldades (ou melhor, as mesmas impossibilidades) dos Cent Milles Milliards de Poèmes, de

Queneau. Ele necessitaria de tantas e tais dobraduras nas folhas que elas teriam de ser um origami em

quatro ou cinco dimensões para dar conta do que pode ser lido, montado, desmontado e remontado de

outra forma, na tela do computador. Apenas nosso trabalho de desmontar a lógica tecnicista e limitante

dos programas e das máquinas é que possibilitaria essa abertura de processos, de maquinações e de

dispositivos em direção à pluralidade dos sentidos. É apenas nesse caso que se ultrapassam verdadeiramente

as linguagens de programação, para constituirmos uma linguagem artística por excelência.

* * *

Enfim, uma conclusão, à vera, mesmo que não em definitivas palavras, é o que falta e o que resta a fazer.

Mas será sempre assim. Ou, então, que se volte ao início deste texto. Sendo início entendido por qualquer

ponto ou deriva passível de leitura.

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Notas

1 [“...descubro em mim uma espécie de fraqueza interna que me impede de ser absolutamente indivíduo e me expõe ao olhar dos outros,como um homem entre homens ou, ao menos, como uma consciência entre as consciências”.] tradução do autor.

2 Refinamento diretamente ligado a um conhecimento que só pode ser complexificação, no dizer de Bachelard.

3 Em oposição às correspondências biunívocas, que remetem à estrutura binária da linguagem de máquina.

4 “Atelier de Littérature Assistée par les Mathématiques et l’Ordinateur”, subgrupo surgido dentro do Oulipo e que propunha experiênciasde criação literária com computadores.

5 Cf. FITCH, Brian. L’appropriation littéraire: de Chladenius à Ricoeur. Revue de Littérature Comparée, v. 72, n. 3, p. 321, 1998. [“ficção epoesia visam ao ser, não mais segundo a modalidade do ser dado, mas segundo a modalidade do poder ser”.] tradução do autor.

6 CLEMENT, op. cit., 2000, p. 76, nota 52. [“A tentação do infinito sempre rondou os escritores, sobretudo sob as aparências dacombinatória. Esta se exprime, inicialmente, na literatura oral, pela proliferação das variantes e das versões. Ela continua na literaturamedieval, com a multiplicação dos ciclos narrativos. No século XIX, ela está no cerne do projeto balzaquiano”.] tradução do autor.

7 GENETTE, op. cit., 1982, p. 53, nota 67. [“princípio maquinal”] tradução do autor.

8 CHARTIER, op. cit., 2000, p. 44, nota 5. [“A revolução do texto eletrônico (...) à materialidade do livro, ela substitui a imaterialidade detextos sem local que lhes seja próprio; às relações de contigüidade estabelecidas no objeto impresso, ela opõe a livre composição defragmentos indefinidamente manipuláveis...”] tradução do autor.

9 Corolário da progressiva desmaterialização de boa parte dos objetos artísticos a partir do início do século XX.

10 ABENDROTH; DECOCK; MESTAOUI, op. cit., 2000, p. 112, nota 95. [“As novas tecnologias nos colocam assim em uma zona intermediária,uma zona de trânsito tornada permanente, nos permitindo estar lá e, potencialmente, em todo lugar, em um tempo que se pode registrare estocar, um presente congelado. Nós somos então em um estado ‘nomádico’, jogando com o tempo e o espaço, deslizando de umambiente e de uma virtualidade a outro”.] tradução do autor.

11 RYAN, Marie-Laure. “The Text as World Versus the Text as Game: Possible World Sematics and Postmodern Theory”, in Journal ofLiterary Semantics, v. 27, n. 3, 1998, p. 137. Sem contar as inúmeras referências a jogo nas reflexões de Jacques Derrida.

12 CAEIRO, Alberto. Poema XX. In: O guardador de rebanhos.

13 “The Text as World Versus the Text as Game: Possible World Sematics and Postmodern Theory”, in Journal of Literary Semantics, v. 27,n. 3, 1998, p. 139-140.

14 BRANDT, Joan. The theory and practice of a ‘revolutionary’ text: Denis Roche’s ‘Le mécrit’. Yale French Studies, v. 67, n. 67, p. 219, 1984.

15 No livro depois do livro / O texto se confunde com a noção de lugar / A imagem só se revela por uma inscrição textual / A visão agoraé um dado da escrita / Implode-se a referência do volume / A dimensão da página é o peso.

16 Que não me parece mais estar no mesmo nível, nem situada nos mesmos limites das vanguardas do início do século XX.

17 GENETTE, op. cit., 1982, p. 60-61, nota 67. [“...não é preciso considerar os cinco tipos de transtextualidade como classes estanques, semcomunicação nem recortes recíprocos. Suas relações são, ao contrário, numerosas e, com freqüência, decisivas”.] tradução do autor.

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a n e x o s

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Corre sem vela e sem leme

O tempo desordenado,

D'hum grande vento levado:

O que perigo não teme,

He de pouco exprimentado.

As redeas trazem na mão

Os que redeas não tiverão:

Vendo quanto mal fizerão

A cobiça e a ambição,

Disfarçados se acolhêrão.

A náo, que se vai perder,

Destrue mil esperanças:

Vejo o máo que vem a ter;

Vejo perigos correr

Quem não cuida que ha mudanças.

Os que nunca em sella andárão,

Na sella postos se vem:

De fazer mal não deixárão;

Do demonio hábito tem

Os que o justo profanárão.

Que poderá vir a ser

O mal nunca refreado?

Anda, por certo, enganado

Aquelle que quer valer,

Levando o caminho errado.

He para os bons confusão,

Ver que os máos prevalecêrão;

Que, posto se detiverão

Com esta simulação,

Sempre castigos tiverão:

Não porque governe o leme

Em mar envolto e turbado,

Que të seu rumo mudado,

Se perece grita e geme

Em tempo desordenado.

Terem justo galardão,

E dor dos que merecêrão,

Sempre castigos tiverão

Sem nenhuma redempção,

Postoque se detiverão.

Na tormenta, se vier,

Desespere na bonança,

Quem manhas não sabe ter:

Sem que lhe valha gemer,

Verá falsar a balança.

Os que nunca trabalhárão,

Tendo o que lhe não convem,

Se ao innocente enganárão,

Perderão o eterno bem,

Se do mal não s'apartárão.

Camões

[ 1 ]

Labyrintho, Queixando-se do Mundo

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Page 133: Leitura de nós

[ 2 ]

De Laudibus Sanctae Crucis - Poema 16 [detalhe], de Habranus Magnentius Maurus

c Biblioteca Apostólica Vaticana. Reg. Lat. 124, fol. 32v.

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[ 3 ]Exemplo de escrita ropálica, autor desconhecido, s.d.

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Page 135: Leitura de nós

[ 4 ]Exemplo de labirinto, autor desconhecido, s.d.

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[ 5 ]Exemplo de emblema, autor desconhecido, s.d.

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Page 137: Leitura de nós

i n u t r o q u e c e s a rn i n u t r o q u e c e s au n i n u t r o q u e c e st u n i n u t r o q u e c er t u n i n u t r o q u e co r t u n i n u t r o q u eq o r t u n i n u t r o q uu q o r t u n i n u t r o qe u q o r t u n i n u t r oc e u q o r t u n i n u t re c e u q o r t u n i n u ts e c e u q o r t u n i n ua s e c e u q o r t u n i nr a s e c e u q o r t u n i

[ 6 ]Anastácio Ayres de Penhafiel

Da Academia Brasílica dos Esquecidos, ca. 1728

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Page 138: Leitura de nós

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b i b l i o g r a f i a

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índice onomást ico

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Page 146: Leitura de nós

AKENATON 47

ANDRADE, Carlos Drummond de 24

ANDRADE, Mário de (Mário Raul de Morais Andrade) 50

ANJOS, Augusto dos (Augusto de Carvalho Rodrigues dos

Anjos) 51

APOLLINAIRE, Guillaume (Wilhelm Appollinaris de

Kostrowitzki) 80

ARISTÓTELES 60, 74, 88, 105

AROUET, François-Marie (ver VOLTAIRE)

AZEVEDO, Aluízio (Aluízio Tancredo Gonçalves de Azevedo) 83

BARBOSA, Pedro 68, 105

BARTHES, Roland (Roland Gérard Barthes) 21, 101, 107

BAUDELAIRE, Charles (Charles-Pierre Baudelaire) 125

BAUDRILLARD, Jean 37, 41, 107

BEIGUELMAN, Giselle 123

BENAYOUN, Maurice 84, 85

BOOTZ, Philippe 73, 119

BORGES, Jorge Luis 120, 123, 125

BRANDT, Joan 123

BUTOR, Michel 80

CAEIRO, Alberto (heterônimo de Fernando Pessoa) 39, 52,

99,102, 122

CAMINHA, Pero Vaz de 34

CAMÕES, Luís Vaz de 65, 70, 106

CAMPOS, Haroldo (Haroldo Eurico Browne de Campos) 87

CANDIDO, Antonio 83

CASTELIN, Philippe 50

CASTRO, E. M. de Melo e (Ernesto Manuel Geraldes de

Melo e Castro) 63, 65

CHARTIER, Roger 118, 119

CHATONSKY, Grégory 52

CÍCERO, Marco Túlio 74

CLÉMENT, Jean 63, 82, 118

COMTE, Auguste (Isidore-Auguste-Marie-François-Xavier

Comte) 100, 103

COUCHOT, Edmond 48

CUMMINGS, E. E. (Edward Eastlin Cummings) 80

DELEUZE, Gilles 37

DERRIDA, Jacques 37, 42

DESCARTES, René 37

DIAS, Gonçalves (Antônio Gonçalves Dias) 71, 72, 73

DIAS-PINO, Waldemir 86

DOCTOROVITCH, Fabio 51, 62, 63, 67, 80, 81

DUCHAMP, Marcel (Henri-Robert-Marcel Duchamp) 45, 49

DÜRER, Albrecht 26, 27

ECO, Umberto 22, 59

EMMANUEL, Pierre 46

EUCLIDES (Euclides de Alexandria) 36

FENOLLOSA, Ernest 86

FLACO, Quinto Horácio (ver HORÁCIO)

FOUCAULT, Michel (Michel Paul Foucault) 37

GENETTE, Gérard 61, 73, 98, 101, 118, 124

GÓNGORA, Luis (Don Luis de Góngora y Argote) 69, 70, 79

GUERRA, Gregório de Matos e (ver MATOS, Gregório)

HEIDEGGER, Martin 77, 113

HEGEL (Georg Wilhelm Friedrich Hegel) 50

HOFFMANN, Dierk 69

HORÁCIO (Quinto Horácio Flaco) 60

HUGO, Victor (Victor-Marie Hugo) 116

HUSSERL, Edmund 37, 41

INGARDEN, Roman 102

KAC, Eduardo 79, 80, 85

KANT, Immanuel 36, 37, 40, 43

KOSTROWITZKI, Wilhelm Appollinaris (ver APOLLINAIRE,

Guillaume)

KRISTEVA, Julia 61, 98, 100

KUHLMANN, Quirinus 63, 65, 66, 67, 71

LAFER, Tiago 71, 72, 73

LANDOW, George Paul 61, 97

LÉVY, Pierre 29, 37, 39, 43, 98, 99, 100, 103

LÉVY-BRUHL, Lucien 103

LIMA, Jorge de (Jorge Mateus de Lima) 83

LOBATCHEVSKI, Nikolai (Nikolai Ivanovitch Lobatchevski) 36

LONGINO, Cássio 60

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Page 147: Leitura de nós

MAISTRE, Xavier de 83

MALLARMÉ, Stéphane 62, 79, 80

MARX, Karl (Karl Heinrich Marx) 50

MATOS, Gregório de (Gregório de Matos e Guerra) 70

MATUCK, Artur 59, 61, 62, 106

MAURO, Rábano (Rabanus Magnentius Maurus) 65

McLUHAN, Marshall (Herbert Marshall McLuhan) 97

MERLEAU-PONTY, Maurice 31, 76, 77, 78, 87

MESCHINOT, Jean 63, 65, 66, 67

MOEBIUS (August Ferdinand Möbius) 37, 42, 77, 84

MONTAIGNE, Michel Eyquem de 37

MORAIS, Vinícius de 116

NIETZSCHE, Friedrich (Friedrich Wilhelm Nietzsche) 37

OLIVEIRA, Antônio de 69, 70, 71

ONG, Walter 97

PEQUEÑO GLAZIER, Loss 51

PEREC, Georges 118

PESSOA, Fernando (Fernando Antônio Nogueira Pessoa)

33, 67, 99

PETRARCA (Francisco Petrarca) 70

PIRRO (Pirro de Élida) 37

POUND, Ezra (Ezra Loomis Pound) 61, 97

PRADO, Gilbertto (Gilberto dos Santos Prado) 82, 85, 88

PROUST, Marcel 101, 107

QUENEAU, Raymond 50, 51, 66, 106, 118, 126

QUEVEDO (Francisco Gómez de Quevedo y Villegas) 70

QUINTILIANO, Marco Fábio 74

REYNOLDS, David 60

RICOEUR, Paul 117

RIEMANN, Georg Friedrich Bernhard 36

RIMBAUD, Arthur (Jean-Nicolas-Arthur Rimbaud) 125

RODRIGUES, Nelson (Nelson Falcão Rodrigues) 60

ROSA, João Guimarães 19, 125

RYAN, Marie-Laure 122

SÁ-CARNEIRO, Mário de 26

SADIN, Eric 71, 81

SÉRANDOUR, Eric 51

SLUCKTIN, W. 87

SÓCRATES 37

TARDIEU, Jean 80

TREVISAN, Dalton 60

TROYES, Chrétien de 63

TURING, Alan (Alan Mathison Turing) 63, 66

VALÉRY, Paul (Ambroise-Paul-Toussaint-Jules Valéry) 35, 63

VALLIAS, André 113, 115

VERLAINE, Paul 118

VIRILIO, Paul 29, 37, 52, 107

VOLTAIRE (François-Marie Arouet) 63, 115

ZOLA, Émile (Émile-Édouard-Charles-Antoine Zola) 83

145

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Page 148: Leitura de nós

Autor desconhecido, s.d.

“do Frontispício de Vozes saudosas da eloquencia, do espirito, do zelo e eminente sabedoria do Padre

Antônio Vieira, Lisboa Occidental, Na Officina de Miguel Rodrigues, MDCCXXXVI, publicado como volume

XV da edição facsimilar dos Sermões São Paulo, Anchieta, 1945.”

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Presidente de Honra

Olavo Egydio Setubal

Presidente

Milú Villela

Vice-Presidentes Seniores

Joaquim Falcão

Jorge da Cunha Lima

Vice-Presidentes Executivos

Alfredo Egydio Setubal

Ronaldo Bianchi

Diretores Executivos

Antonio Carlos Barbosa de Oliveira

Antonio Jacinto Matias

Cláudio Salvador Lembo

Malú Pereira de Almeida

Renato Roberto Cuoco

Superintendente Administrativo

Walter Feltran

Superintendente de

Atividades Culturais

Eduardo Saron

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Rumos Itaú Cultural Transmídia

Leituras de Nós:

Ciberespaço e Literatura

Autor

Alckmar Luiz dos Santos

Realização

Itaú Cultural

Núcleo de Artes Visuais

Coordenador

Marcelo Monzani

Produção

Sofia Fan

Núcleo de Comunicação

Assistente Cultural

Janaína Chaves da Silva

Design Gráfico

Sheila Ferreira

Yoshiharu Arakaki

Edição e Preparação de Textos

Celina Oshiro

Marco Aurélio Fiochi

Centro de Documentação

e Referência

Índice Onomástico e

Normalização Bibliográfica

Selma Cristina Silva

Josiane Mozer

Edson Alves Gomes

Digitalização e Tratamento

de Imagens

Humberto Pimentel

Jônatas Trombini

CD-ROM

Dos Desconcertos da Vida

Filosoficamente Considerada

[poema eletrônico]

Criação

Alckmar Luiz dos Santos

Programação

Sandro da Silva dos Santos

Agradecimentos

Á Capes, ao CNPq e ao

Instituto Itaú Cultural,

pelo apoio a este trabalho.

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