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1 LEI E AGIR HUMANO NA FILOSOFIA DO DIREITO DE MARSÍLIO DE PÁDUA CAMPAROTTO, Peterson Razente (UEM) 1 ARNAUT DE TOLEDO, Cézar de Alencar (UEM) 2 O presente estudo parte da obra Defensor pacis (O Defensor da Paz) de Marsílio de Pádua (1280-1343?), filósofo, teólogo e jurista que construiu a sua filosofia política por meio de uma original relação entre a legalidade e o agir humano. A análise se inicia no plano do Direito privado, permeando a organização da vida social, para transcender o plano do Direito Público, a partir do qual o pensador paduano antecipou conceitos modernos da ciência do Direito Internacional Público e das Relações Internacionais. O conceito de Direito, na filosofia do Direito marsiliana, pode ser aferido por meio da ressignificação do termo “lei” efetivada por ele. Ao modo escolástico, ele trata do vocábulo sob dois aspectos: “primeiro, tomado em si mesmo, enquanto revela somente o que é justo ou injusto, útil ou nocivo, e, como tal, é chamada doutrina ou ciência do direito.” Numa segunda acepção, a lex marsiliana leva em conta um preceito coercivo que impõe como recompensa ou castigo a ser atribuído “nesse mundo”, conforme a finalidade do seu cumprimento, ou, ainda, na medida em que é dado mediante tal preceito. Segundo ele, assim considerada, denomina-se lei e de fato o é no sentido mais correto. (DP I, X, § 4) 3 . Entretanto, na filosofia política marsiliana, a sociedade civil foi concebida como resultante de um processo evolutivo natural de organização das partes em relação ao todo, partindo das formas mais imperfeitas para as mais aperfeiçoadas. Tal organicidade, cujo substrato seria fomentado pela cooperação social, operacionalizar-se-ia pelo conceito de civilização. Tal ideia de civilização concebe a sociedade civil como resultante de causas naturais, mais o aprimoramento necessário da razão e da arte, “graças às quais o gênero 1 Advogado radicado em Maringá/PR. Direção eletrônica: [email protected] 2 Doutor em educação e professor do Departamento de Fundamentos da Educação da Universidade Estadual de Maringá. Direção eletrônica: [email protected] 3 Et sic accepta lex dupliciter considerari potest: uno modo secundum se, ut per ipsam solum ostenditur quid iustum aut iniustum, conferens aut nocivum, et in quantum huiusmodi iuris sciencia vel doctrina dicitur. Alio modo considerari potest, secundum quod de ipsius observacione datur preceptum coactivum per penam aut premium in presenti seculo distribuenda, sive secundum quod per modum talis precepti traditur; et hoc modo considerata propriissime lex vocatur et est.

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LEI E AGIR HUMANO NA FILOSOFIA DO DIREITO

DE MARSÍLIO DE PÁDUA

CAMPAROTTO, Peterson Razente (UEM)1

ARNAUT DE TOLEDO, Cézar de Alencar (UEM)2

O presente estudo parte da obra Defensor pacis (O Defensor da Paz) de Marsílio de

Pádua (1280-1343?), filósofo, teólogo e jurista que construiu a sua filosofia política por meio

de uma original relação entre a legalidade e o agir humano. A análise se inicia no plano do

Direito privado, permeando a organização da vida social, para transcender o plano do Direito

Público, a partir do qual o pensador paduano antecipou conceitos modernos da ciência do

Direito Internacional Público e das Relações Internacionais. O conceito de Direito, na

filosofia do Direito marsiliana, pode ser aferido por meio da ressignificação do termo “lei”

efetivada por ele. Ao modo escolástico, ele trata do vocábulo sob dois aspectos: “primeiro,

tomado em si mesmo, enquanto revela somente o que é justo ou injusto, útil ou nocivo, e,

como tal, é chamada doutrina ou ciência do direito.” Numa segunda acepção, a lex marsiliana

leva em conta um preceito coercivo que impõe como recompensa ou castigo a ser atribuído

“nesse mundo”, conforme a finalidade do seu cumprimento, ou, ainda, na medida em que é

dado mediante tal preceito. Segundo ele, assim considerada, denomina-se lei e de fato o é no

sentido mais correto. (DP I, X, § 4)3.

Entretanto, na filosofia política marsiliana, a sociedade civil foi concebida como

resultante de um processo evolutivo natural de organização das partes em relação ao todo,

partindo das formas mais imperfeitas para as mais aperfeiçoadas. Tal organicidade, cujo

substrato seria fomentado pela cooperação social, operacionalizar-se-ia pelo conceito de

civilização. Tal ideia de civilização concebe a sociedade civil como resultante de causas

naturais, mais o aprimoramento necessário da razão e da arte, “graças às quais o gênero

1 Advogado radicado em Maringá/PR. Direção eletrônica: [email protected] 2 Doutor em educação e professor do Departamento de Fundamentos da Educação da Universidade Estadual de Maringá. Direção eletrônica: [email protected] 3 Et sic accepta lex dupliciter considerari potest: uno modo secundum se, ut per ipsam solum ostenditur quid iustum aut iniustum, conferens aut nocivum, et in quantum huiusmodi iuris sciencia vel doctrina dicitur. Alio modo considerari potest, secundum quod de ipsius observacione datur preceptum coactivum per penam aut premium in presenti seculo distribuenda, sive secundum quod per modum talis precepti traditur; et hoc modo considerata propriissime lex vocatur et est.

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humano vive” (DP I, V, § 2).4 O emprego da razão e da arte sobre a natureza, no contexto da

sociedade civil, propiciou a construção de técnicas “para conservar em equilíbrio as atividades

e paixões humanas quanto aos elementos e efeitos que exercem exteriormente sobre nós” (DP

I, V, § 6).5 Uma das maiores invenções da humanidade, que compõe o rol de tais artes, é a

própria lei.

Pode-se notar que a lei é um dos paradigmas do modelo político-social preconizado

pelo pensador paduano, cujas reverberações se fazem sentir ainda na Modernidade Jurídica.

Não há que se pensar no “agir humano” destituído da “forma legal”, nos termos do conceito

de lei marsiliano. Trata-se do princípio da legalidade, na sua acepção jurídica mais estrita. A

ação humana, na filosofia do Direito marsiliana, possui um quesito epistemológico: a lei.

Nesse ponto, faz-se necessário discutir sobre a divisão do agir humano desenvolvida por

Marsílio de Pádua na Secunda Dictio do Defensor Pacis (DP II, VIII). Pode-se constatar que

tal “sistema” de classificação dos atos humanos consistiu na matriz ontológica das

codificações jurídicas da Modernidade (ARNAUT DE TOLEDO E RAZENTE

CAMPAROTTO, 2008). Na filosofia política de Marsílio de Pádua, os atos humanos podem

ocorrer, ou não, sob o concurso da razão e da vontade. Por um lado, dentre os não submetidos

a tal controle, temos o conhecimento, a afeição, os prazeres e as afecções da alma em geral.

Por outro, os atos humanos controlados são subdivididos em atos imanentes e atos transitivos.

Os primeiros são assim denominados porque “permanecem” no próprio agente. A segunda

modalidade de atos humanos controlados, os transitivos, ou transeuntes, consubstancia aquele

conjunto de ações praticadas por órgãos externos, o que os tornam praticamente o oposto dos

primeiros atos. Dentre os atos transitivos, destacam-se os positivos e os negativos. Os atos

humanos voluntários controlados transitivos positivos ocorrem por uma ação propriamente

dita. Já os atos humanos voluntários controlados transitivos negativos se perfazem por meio

de uma omissão. Os atos humanos voluntários controlados transitivos, por sua vez, podem se

aperfeiçoar sem prejuízo a outrem, como os donativos, as peregrinações ou a auto-flagelação.

No entanto, os mesmos atos podem ocasionar prejuízos a outrem, como os crimes, por

exemplo.

Pode-se perceber que o ponto de intersecção entre o ato humano e a lei, no sentido

estrito do termo na filosofia do Direito marsiliana, concretiza-se por meio dos atos humanos

4 [...] quibus hominum genus vivit [...] 5 Ad moderandas vero acciones et passiones nostri corporis ab hiis que nos extrinsecus continent elementis et ipsorum impressionibus [...].

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voluntários controlados transitivos negativos e, principalmente, positivos. Estes últimos, por

sua vez, são responsáveis pela interferência humana na natureza, no mundo, consumando-se

na manifestação da própria vida dos homens! Os atos humanos voluntários controlados

transitivos se exteriorizam nas relações materiais de sobrevivência humana, no contexto da

interação entre os grupos sociais na sociedade civil. Os atos humanos, na teologia política

marsiliana, baseiam-se no suporte conceitual do livre arbítrio. Na filosofia política marsiliana,

há uma conexão entre o livre arbítrio humano e o livre arbítrio divino, sendo Deus a origem

de todo poder. Assim, a manifestação da vida humana na civitas marsiliana implica

necessariamente na exteriorização de atos humanos voluntários controlados transitivos, sejam

eles negativos ou positivos, o que significa dizer que a vida consiste na própria manifestação

do poder inerente ao agir humano. Isto se deve às faculdades cognitiva e volitiva, inerentes ao

livre arbítrio, respectivamente, atividades e paixões são geradas nos seres humanos (DP I, V,

§ 4). Em razão disso, os atos humanos, mediante forças que agem conforme o lugar, podem

produzir excessos na inteligência e na vontade que compõem a espécie de ação voluntária

controlada transeunte ou transitiva, o que deve ser controlado pela lei.

A lei representa a razão humana, primeira componente do livre arbítrio, coletivamente

projetada no plano social pelo processo legislativo, o que lhe confere status de símbolo da

inteligência política, corolário da prudência política. A lei, na filosofia política marsiliana, é

coletivamente construída nas teias das relações sociais inerentes ao processo legislativo, tendo

em vista que a “lei é um olho constituído por inúmeros olhos” (DP I, XI, § 3).6 O Poder, por

sua vez, possui origem remota no livre arbítrio divino. No entanto, a teologia marsiliana

aponta para uma exegese neotestamentária que corrobora a vontade de Jesus Cristo em efetuar

a translatio do poder temporal aos governantes, momento histórico este em que haveria

abdicado ao governo do mundo em favor do Caesar Romano. A esse respeito, o jurista

paduano ponderou:

Cristo, no entanto, separou o ofício dos bispos ou presbíteros daquele outro exercido pelos príncipes. Mas, se Ele tivesse querido, poderia ter exercido simultaneamente o cargo de príncipe e o de sacerdote, e igualmente poderia ter ordenado que os Apóstolos também fizessem isso, mas esse não foi o seu desejo, pelo contrário, Jesus, que efetivamente organizou tudo da melhor maneira, quis que esses ofícios fossem distintos em essência e nas pessoas de seus titulares, pois essa era a organização mais apropriada.

6 [...] lex sit oculus ex multis oculis [...]

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Na verdade, Jesus veio à terra para ensinar a humildade e o desprezo pelo mundo ou pelos bens materiais, e fez isso, tanto pelo exemplo que deu, quanto pelos ensinamentos que proferiu. Ele veio a este mundo numa condição de extrema humildade e de desapego pelos bens temporais, sabendo muito bem que se ensina aos homens com muito mais eficácia pelas ações ou exemplos, que Ele próprio legou, do que pelas palavras (DP II, XI, § 2) 7.

A vontade, segunda componente do livre arbítrio, consiste no conteúdo do Poder

propriamente dito, pois, de acordo com as analogias feitas por ele, o poder ou calor consiste

em uma energia que se propaga desordenadamente, e deve ser controlada pela lei humana (DP

I, XV, § 5 s). Esse poder ou calor, quando irradiado pelo organismo ou corpo civil, incluindo

suas partes constitutivas, denomina-se-lhe espírito. Assim, o Poder político consiste na ficção

jurídico-política da somatória da energia de todas as vontades individuais dos cidadãos

consensualmente entabuladas numa espécie de contrato social. Houve, no Defensor pacis, a

antecipação da concepção de soberania popular do conceito de um poder de ordem pública

que impera sobre cada cidadão individualmente considerado. Na filosofia política marsiliana,

os atos humanos voluntários controlados transitivos seriam responsáveis pela exteriorização

do poder, pois “ele [o poder] é exercido através da exteriorização desses atos, como a posse,

por exemplo” (ARNAUT DE TOLEDO E RAZENTE CAMPAROTTO, 2003). Em termos

teóricos, trata-se de uma ficção, mas, na prática, exterioriza-se material e coletivamente, pois,

os dois grupos encarregados de manter a paz no Regnum marsiliano são os sacerdotes (DP I,

V, § 11) e o exército (DP I, V, § 8). A exteriorização material e coletiva do poder se

operacionaliza pelo uso das artes mecânicas por parte do exército. Segundo ele, para

proporcionar o equilíbrio das atividades e paixões humanas quanto aos elementos e efeitos

que exercem exteriormente sobre os homens, produziram-se alguns tipos de artes mecânicas,

como por exemplo, a lanificação, o curtimento, a sapataria, a edificação, e em geral todas

aquelas outras em função da existência da cidade, de maneira mediata ou imediata, e ainda,

não só aquelas atividades que regulam o tato e o paladar, mas também os demais sentidos,

7 No original: Separavit autem Christus presbyterorum seu episcoporum officium ab eo quod principum, cum tamen potuisset ipse, si voluisset, statum principis et officium sacerdotis exercere, et apostolos idem facturos similiter ordinasse. Sed sic noluit, imo tamquam conveniencius, qui simpliciter melius cuncta disposuit, hec officia supposito et racione distingui voluit. Quia enim humilitatem et huius seculi contemptum Christus docere venerat, tamquam viam meriti salutis eterne, ut prius humilitatem et mundi seu rerum temporalium contemptum tam exemplo quam verbo doceret. In summa quidem humilitate ac termporalium contemptu hunc mundum ingressus est, sciens ipse, quod non minus, imo magis opere seu exemplo docentur homines quam sermone.

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propensos ao bem a ao prazer, como é o caso da pintura e semelhantes que não se reduzem ao

que é necessário à sobrevivência [...] (DP I, V)8.

Assim, a fim de debelar os excessos dos atos produzidos pela inteligência e pela

vontade, mediante forças que agem conforme o lugar, o exército, para controlar tais “atos

excessivos”, em prejuízo de outrem, denominados crimes, “materializou” as suas ações para

controlar os atos humanos voluntários controlados transitivos, pois estes se realizam

principalmente por movimentos de órgãos externos. Destarte, o exército fez uso das artes

mecânicas, pois nelas prevalece o princípio da causalidade, isto é, a relação causa-efeito na

natureza. Desse modo, as relações materiais de sobrevivência na civitas marsiliana se

realizam principalmente por meio dos atos humanos voluntários controlados transitivos, pois,

por representarem o próprio poder de manifestação da vida humana, justificam a sua

essencialidade conceitual. A combinação, variedade e complexidade desses atos, no espaço e

no tempo configurar-se-ia doravante no desafio para o Direito, pois, dada a amplitude das leis,

a inteligência política não consegue potencializar a prudência política a ponto de prever exata

e totalmente todas as condutas legalmente estatuídas no contexto de determinada comunidade

política. Assim, a razão jurídica da lei, símbolo da inteligência política, que representa “um

olho constituído por inúmeros olhos” deve ser substituída pelo olhar único do julgador,

escolhido em razão de sua prudência notória, por meio de um juízo de eqüidade ou epiquéia.

Pode-se perceber que a acepção própria do conceito marsiliano de lei, ao estipular um preceito

coercivo como castigo em face de determinadas condutas, apresentaria as bases do moderno

princípio da proporcionalidade entre os delitos e as penas, pois, segundo ele, a lei leva em

conta um preceito coercivo que impõe um castigo “conforme a finalidade do seu

cumprimento, ou, ainda, na medida em que é dado mediante tal preceito (DP I, X, § 4).”9

O Direito marsiliano é uma ciência empírica, ou seja, baseada na experiência do agir

humano voluntário controlado transitivo no plano temporal. Segundo Marsílio de Pádua, o

Direito é uma “ciência a respeito dos assuntos externos, quer dizer, a dos atos civis” (DP II,

V, § 2)10. Pode-se perceber que o Direito é, segundo ele, uma ciência a serviço da

8 Ad moderandas vero acciones et passiones nostri corporis ab hiis que nos extrinsecus continent elementis et ipsorum impressionibus, inventum fuit genus mechanicarum, quas Aristoteles 7º Politice, capitulo 6º vocat artes, sicuti lanificium, coriaria, sutorie et omnes domificative species, et universaliter omnes alie mechanice aliis subservientes officiis civitatis, mediate aut immediate; nec solum moderative tactus aut gustus, verum eciam aliorum sensuum, que magis sunt ad voluptatem et bene vivere, quam ad vite necessitatem, velut pictoria cum sibi similibus, de quibus Aristoteles [...]. 9 [...] sive secundum quod per modum talis precepti traditur [...] 10 [...] et qui exteriorum rerum scienciam, id est actuum civilium [...]

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sobrevivência humana, destinada, enquanto técnica, a debelar as contingencialidades

materiais do plano temporal, este já dissociado do plano espiritual do agir, pois

pode-se perceber aqui a ruptura gnosiológica entre Direito e Teologia à medida em que se diferenciaram os aspectos humanos do agir em atos humanos voluntários controlados imanentes e transitivos. Os atos humanos voluntários controlados imanentes seriam necessariamente regidos pelas virtudes teológicas, inerentes à Lei evangélica, ao passo que os atos humanos controlados transitivos seriam regidos pelo Direito humano. (ARNAUT DE TOLEDO E RAZENTE CAMPAROTTO, 2008)

Esse aspecto do agir humano, o voluntarismo controlado transitivo, seja ele negativo

ou positivo, passou a ser fato gerador da sociedade civil por meio dos hábitos anímicos,

inteligências e vontades dos homens, manifestos através de seus pensamentos e aspirações,

considerados individual ou coletivamente, pouco importam as circunstâncias, no tocante às

causas eficientes, em sentido aristotélico, dos ofícios ou cargos públicos. Mas a causa

eficiente dos ofícios públicos enquanto constituem os grupos sociais da cidade, na maior parte

das vezes, é o legislador humano (DP I, VII, § 3). No capítulo XV, o pensador paduano

referenciou o legislator humanus como governo ou príncipe e, a esse respeito, disse:

Ademais, o príncipe agindo conforme a lei, a citada força, e autoridade que lhe foi confiada, deve estabelecer e precisar os demais grupos sociais ou ofícios da cidade, a partir da matéria conveniente, quer dizer, as pessoas dotadas com essas ou aquelas aptidões ou hábitos específicos para exercê-los, visto os indivíduos se constituírem na matéria imediata dos mesmos ofícios existentes no interior da cidade, de acordo com o que expusemos no capítulo 7º desta Parte do tratado (DP I, XV, § 8)11.

O pensamento jurídico-político tardo-medieval, a partir de teóricos baixo-medievais

como Marsílio de Pádua, apresentou coloração humanística. Os pré-humanistas,

principalmente de origem italiana, não tergiversaram à lição clássica de que “o homem é a

medida de todas as coisas”. A consideração do homem enquanto ser ou organismo autônomo

ou independente capaz de realizar movimentos a partir de órgãos externos (agir humano

voluntário controlado transitivo), enquanto manifestação anímica do Poder, projetou-se no

11 Adhuc autem secundum iam dictam virtutem legem scilicet, auctoritatemque sibi datam distinguere debet principans atque statuere partes et officia civitatis ex convenienti materia, hominibus siquidem habentibus artes seu habitus ad officia convenientes. Sunt enim tales propinqua matéria parcium civitatis, quemadmodum dictum est 7º huius.

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modelo de sociedade política que Marsílio de Pádua teorizou, pois, subsidiado pelo seu

conceito de Poder, idealizou um “organismo político”, com status de “pessoa jurídica”,

portanto, dotado de capacidade jurídica, possuindo direitos e deveres. Tal “corpo político”,

detentor de Poder, também possui a “faculdade” de exteriorizar atos humanos voluntários

controlados transitivos, pois, a essência das vontades que compõem a sua natureza é

propriamente humana, por assim dizer. Tendo-se em vista a “dualidade” de projeção jurídico-

política do Poder proveniente do livre arbítrio humano, pergunta-se: trata-se de um homem-

Estado ou de um Estado-homem? Tal indagação, sob certos aspectos, corresponderia à

polêmica discussão em torno da relação entre as esferas privada e pública tanto no Direito

quanto na Política. Eis o paradoxo da Modernidade para o Direito e para a Política.

O impacto dessa teoria jurídico-política, no século XIV, representou a relativização do

universalismo legado pela igreja e pelo Império Romano que se institucionalizou no Sacro

Império Romano Germânico. Nesse particular, Marsílio de Pádua merece uma ponderação

histórica, pois, ostentou o cargo de conselheiro político do Imperador do Sacro Império

Romano Germânico, Luís IV, da Baviera, em exercício de 1314 a 1347, o que lhe rendeu

perseguição eclesiástica e acusação de heresia. Havia uma clara disputa em torna da plenitudo

potestatis entre o Imperador e o Sumo Pontífice João XXII, cujo papado se caracterizou pelo

nepotismo e pela marcante presença francesa no colégio cardinalício. Assim, ao mesmo

tempo em que Marsílio de Pádua defendeu a sua tese de um Regnum, nas palavras de Berti, “

como um meio termo entre a doutrina aristotélica da pólis e a idéia moderna de Estado”

(BERTI, 1979, p. 181), não se dispensou de fazer apologia ao Imperador do Sacro Império

Romano Germânico, a quem, decididamente, dedicou a obra Defensor pacis (O Defensor da

Paz). Segundo Weckmann (WECKMANN, 1993), tanto a emergência de teorias medievais

que prefiguraram o nascimento do Estado Moderno quanto a relativa manutenção do

universalismo, oriundo de elementos teológico-cristãos da Igreja Católica e do Império

Romano, no caso de Marsílio de Pádua, sob os auspícios do Sacro Império Romano

Germânico governado por Luís IV, o Bávaro, ofereceram sustentabilidade teórica para a

origem do Direito Internacional, bem como as teorias acerca das Relações Internacionais em

voga na Modernidade. Entretanto, há que se frisar que Marsílio de Pádua não defende a ideia

de um governo universal, pois, em que pese seu apoio ao imperador bávaro, o pensador

paduano alertou que não seria útil um governo mundial, tendo-se em vista as especificidades

da geografia, da linguagem, dos costumes e dos hábitos (DP I, XVII, § 10).

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A partir dessas considerações, faz-se mister a explanação sobre o mecanismo jurídico-

político de manifestação do agir inerente à “pessoa” jurídica integrante do modelo estatal

preconizado por Marsílio de Pádua. Ainda segundo as analogias desenvolvidas por ele, a lei é

uma força universal de causalidade que deve controlar o poder quando este se irradia por todo

o organismo civil, quando é denominado “espírito”. Tal se dá pelo conceito de Poder, mas,

Marsílio inova quando se utiliza da instrumentação conceitual da chamada “unidade

quantitativa de ação” que está relacionada à unidade numérica do Reino e à unidade de

comando inerente ao mandatário supremo do governo de uma sociedade politicamente

organizada. Pode-se perceber a influência do aristotelismo na formulação do conceito de

poder marsiliano, pois, a partir de sua formação escolástica, utilizou-se de um instrumental

caro aos medievais: a abstração. Eis que ele abstraiu o caráter numérico da unidade do

Regnum, pois, assim, ao mesmo tempo em que consolidava a unidade politicamente soberana,

também preservava as individualidades da parte preponderante (valentior pars). Trata-se de

consolidar o Poder, em âmbito público, sem desconsiderar a sua origem no âmbito privado

(ser humano individualmente considerado). Assim, há uma conexão entre os poderes privado

e público, o que sugere, correlatamente, o mesmo nexo entre as esferas do Direito Privado e

do Direito Público. A parte preponderante é maior que o indivíduo em quantidade e

qualidade. Há momentos em que a quantidade (maioria) prepondera, no entanto, em outras

circunstâncias, o individualismo (qualidade) é fundamental. Acerca disso, ele afirmou:

Trata-se efetivamente de uma unidade de ordem, não de uma unidade absoluta, quer dizer, de muitos homens considerados um ou de um conjunto de pessoas que afirma constituir algo único quantitativamente. Isto não significa, porém, que elas sejam uma pessoa formalmente, sob determinado aspecto, mas de fato o são, consideradas em relação a uma unidade relativa ao número, isto é, o governo por quem são organizadas (DP I, XVII, § 11)12.

Pode-se notar que o corolário de tal concepção abstrata de organização administrativo-

governamental se refletiu no conceito de personalidade jurídica estatal, o que indica uma

antecipação da moderna gênese teórica da chamada formação da “vontade de Estado”. Assim,

Marsílio de Pádua antecipou as bases da ciência do Direito Internacional Público Moderno e

12 [...] quoniam hec unitas est ordinis, non simpliciter unitas, sed pluralitas aliquorum, que uma dicitur; vel qui aliquid unum dicuntur numero, non propter hoc quod unum numero vere dicuntur, propterea quod ad unum numero sunt et dicuntur, principatum scilicet, ad quem et propter quem ordinantur et gubernantur.

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das Relações Internacionais quando laicizou um modelo teórico de Estado soberano,

materialmente autônomo, assim como libertou o Direito Civil (ou Direito Comum) das

amarras eclesiásticas, quando o separou da Teologia. No plano interno, com o Estado e o

Direito laicizados, o conceito de personalidade jurídica estatal estaria teoricamente

aperfeiçoado. No plano externo ou internacional, Marsílio de Pádua, enquanto intelectual a

serviço do imperador do Sacro Império Romano Germânico, também antecipou as teorias

acerca da comunidade internacional, da esfera pública internacional e da ordem internacional.

Ao sistematizar as doutrinas conciliaristas formuladas pelos canonistas, defendeu a tese de

que a plenitudo potestatis, reinvindicada pelo papa para o governo do mundo, não passaria de

um poder hiperbólico e adverso à paz. Desse modo, Marsílio de Pádua laicizou, no plano

externo ou internacional, o governo universalista do Sacro Império Romano Germânico, cuja

titularidade se personificava no princeps Luís IV, da Baviera, no contexto histórico-medieval

da célebre batalha dos dois gládios: o temporal e o espiritual. Tal processo de laicização foi

aperfeiçoado por meio de outro conceito importante de Direito Internacional Público

teorizado por Marsílio de Pádua: a concepção de paz. Tal constructo teórico não se restringiu

a “um simples e intelectualmente cômodo estado de “ausência de guerra” (ARNAUT DE

TOLEDO E RAZENTE CAMPAROTTO, 2008). Pode-se perceber que esse conceito laico de

universalismo, proveniente da filosofia jurídico-política marsiliana, figuraria como as origens

conceptuais da moderna noção de comunidade internacional e de ordem internacional.

Referências

ARNAUT DE TOLEDO, C. A.; RAZENTE CAMPAROTTO, P. O Conceito de Poder na Filosofia Política de Marsílio de Pádua. Acta Scientiarum. Maringá, v. 25, n.2, p. 267-276, 2003. ARNAUT DE TOLEDO, C. A.; RAZENTE CAMPAROTTO, P. A contribuição de Marsílio de Pádua à separação entre Teologia e Direito. Revista Brasileira de História das Religiões. Maringá. Ano II, n.4, p. 1-13, 2008. Disponível em: http://www.dhi.uem.br/gtreligiao/pdf/st12/Toledo,%20Cezar%20de%20Alencar%20Arnaut%20de.pdf. Acesso em: 03/09/2009. ARNAUT DE TOLEDO, C. A. ; CAMPAROTTO, P. R. O Conceito de Paz na Filosofia Política de Marsílio de Pádua. In: OLIVEIRA, T.; PEREIRA MELO, J. J. Pesquisas em Antigüidade e Idade Média: olhares interdisciplinares. São Luís: Ed. UEMA, 2008, vol. II, p.49-62.

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BERTI, E. Il “Regnum” di Marsílio tra la “polis” aristotélica e lo “stato” moderno. Medioevo: Rivista di Storia della Filosofia Medievale. Padova, Ed. Antenore, v.5, n.5, p. 165-181, 1979. MARSÍLIO DE PÁDUA. O Defensor da Paz. Petrópolis: Vozes, 1995. MARSÍLIO DE PÁDUA. Defensor pacis. Hannover: Hahnsche, 1932, 2 v. WECKMANN, L. El pensamiento político medieval y los orígenes del derecho internacional. 2. ed. México: Fondo de Cultura Económica, 1993.