lefebvre, henri_ da ciencia a estrategia urbana

25
H H E E N N R R I I L L E E F F E E B B V V R R E E D DA CIÊNCIA À ESTRATÉGIA URBANA TRADUÇÃO PEDRO HENRIQUE DENSKI E SÉRGIO MARTINS

Upload: jacks-quintana

Post on 03-Jul-2015

480 views

Category:

Documents


33 download

TRANSCRIPT

Page 1: LEFEBVRE, Henri_ Da Ciencia a Estrategia Urbana

HHHHHHHHEEEEEEEENNNNNNNNRRRRRRRRIIIIIIII LLLLLLLLEEEEEEEEFFFFFFFFEEEEEEEEBBBBBBBBVVVVVVVVRRRRRRRREEEEEEEE

DDDDDDDDAAAAAAAA CCCCCCCCIIIIIIIIÊÊÊÊÊÊÊÊNNNNNNNNCCCCCCCCIIIIIIIIAAAAAAAA ÀÀÀÀÀÀÀÀ EEEEEEEESSSSSSSSTTTTTTTTRRRRRRRRAAAAAAAATTTTTTTTÉÉÉÉÉÉÉÉGGGGGGGGIIIIIIIIAAAAAAAA UUUUUUUURRRRRRRRBBBBBBBBAAAAAAAANNNNNNNNAAAAAAAA

TTRRAADDUUÇÇÃÃOO PPPPPPPPEEEEEEEEDDDDDDDDRRRRRRRROOOOOOOO HHHHHHHHEEEEEEEENNNNNNNNRRRRRRRRIIIIIIIIQQQQQQQQUUUUUUUUEEEEEEEE DDDDDDDDEEEEEEEENNNNNNNNSSSSSSSSKKKKKKKKIIIIIIII EEEEEEEE SSSSSSSSÉÉÉÉÉÉÉÉRRRRRRRRGGGGGGGGIIIIIIIIOOOOOOOO MMMMMMMMAAAAAAAARRRRRRRRTTTTTTTTIIIIIIIINNNNNNNNSSSSSSSS

Page 2: LEFEBVRE, Henri_ Da Ciencia a Estrategia Urbana

LEFEBVRE, Henri. Da ciência à estratégia urbana. Trad. Pedro Henrique Denski e Sérgio Martins (do original: De la science à la stratégie urbaine. Utopie, Paris, n. 2 et 3, p.57-86, mai. 1969).

1

IIIIIIII........ OOOOOOOO FFFFFFFFEEEEEEEENNNNNNNNÔÔÔÔÔÔÔÔMMMMMMMMEEEEEEEENNNNNNNNOOOOOOOO UUUUUUUURRRRRRRRBBBBBBBBAAAAAAAANNNNNNNNOOOOOOOO a) Como hipótese teórica, propomos aqui que se possa nomear “sociedade urbana” a sociedade

que se forma no mundo moderno, caracterizando-se assim sua realidade e sua tendência – que

se tenha o direito de preferir essa denominação a qualquer outra (sociedade industrial,

sociedade técnica, sociedade de consumo ou de lazeres etc.). Nos grandes países modernos a

produção agrícola perdeu toda autonomia; não é mais que um setor da produção industrial,

subordinado a seus imperativos e constrangimentos. Crescimento econômico e industrialização

estendem seus efeitos ao conjunto dos territórios nacionais e regionais. O agrupamento

tradicional próprio à vida camponesa (a aldeia), absorvido em unidades mais vastas, integra-se à

indústria e ao consumo dos produtos dessa indústria. A concentração do povoamento

acompanha a dos meios de produção. Aglomerações pequenas e médias encontram-se tomadas

pelo tecido urbano, com exceção das zonas estagnantes ou decadentes, que colocam problemas

distintos e específicos. Para os produtores agrícolas – os “camponeses” – esboça-se a agrovila, a

aldeia em desaparecimento. Disso resulta que uma hipótese e uma possibilidade se impõem

como ponto de chegada dos conhecimentos adquiridos e ponto de partida de um novo estudo e

de um novo projeto: a urbanização totalmente concluída. Através, ou melhor, no seio da

sociedade burocrática de consumo dirigido, a sociedade urbana está em gestação. Esta hipótese

não poderia desconsiderar nem a existência de modalidades diferentes de urbanização, segundo

certas características da sociedade considerada (neo-capitalista ou socialista, em via de

crescimento ou já altamente industrial), nem a diferença entre o crescimento econômico

quantitativo, de um lado e, de outro, o desenvolvimento social qualitativo. Ao contrário, esses

traços passam ao primeiro plano na análise do processo global.

b) A extensão do tecido urbano e a concentração urbana fizeram explodir a Cidade que data de

épocas pré-industriais e pré-capitalistas. Para substituir-lhe o quê? Esta questão logo coloca em

toda sua amplitude a problemática concreta, aquela do fenômeno urbano, e do conhecimento

desse fenômeno urbano, termos preferíveis ao termo “cidade”, que parece designar um objeto

definido e definitivo, enquanto a démarche teórica exige uma crítica desse “objeto”.

IIIIIIIIIIIIIIII........ AAAAAAAA CCCCCCCCOOOOOOOOMMMMMMMMPPPPPPPPLLLLLLLLEEEEEEEEXXXXXXXXIIIIIIIIDDDDDDDDAAAAAAAADDDDDDDDEEEEEEEE DDDDDDDDOOOOOOOO FFFFFFFFEEEEEEEENNNNNNNNÔÔÔÔÔÔÔÔMMMMMMMMEEEEEEEENNNNNNNNOOOOOOOO UUUUUUUURRRRRRRRBBBBBBBBAAAAAAAANNNNNNNNOOOOOOOO a) Atualmente, ele surpreende por sua enormidade, que ultrapassa os meios do conhecimento e

da ação prática. Ele depende de métodos descritivos (ecológicos, fenomenológicos, empíricos),

que evidenciam certos traços do fenômeno urbano, especialmente a complexidade. Tais

Page 3: LEFEBVRE, Henri_ Da Ciencia a Estrategia Urbana

LEFEBVRE, Henri. Da ciência à estratégia urbana. Trad. Pedro Henrique Denski e Sérgio Martins (do original: De la science à la stratégie urbaine. Utopie, Paris, n. 2 et 3, p.57-86, mai. 1969).

2

métodos permitem conhecê-lo? A partir de um certo ponto, a descrição, mesmo minuciosa,

mesmo refinada, não é mais suficiente. Os limites da morfologia são alcançados. Ir mais longe na

mesma direção, significa eludir a problemática, evitando colocar certas questões (por exemplo,

a do centro urbano e da centralidade, ratificando a tendência à degradação ou à desaparição de

determinados centros); significa portanto substituir uma ideologia à descrição, e isso

inadvertidamente. É preciso passar da fenomenologia à análise. O fenômeno urbano se

apresenta como realidade global (ou, caso se prefira assim falar: total), colocando em questão o

conjunto da vida social, teórica e praticamente. Não se pode apreender essa globalidade

imediatamente; convém proceder por análise avançando em direção a ela. Démarche difícil. A

cada passo é preciso assumir riscos evitando obstáculos e sinuosidades. Tanto mais que a cada

tateamento, a cada avanço surge uma interpretação ideológica que logo se transforma em

prática redutora e parcial. Um bom exemplo dessas ideologias que correspondem a práticas

mutilantes se encontra nas disposições do espaço econômico e do ordenamento que fazem

desaparecer o espaço urbano específico absorvendo o desenvolvimento social no crescimento

industrial, subordinando a realidade urbana à planificação geral.

b) Cada ciência especializada recorta no fenômeno urbano um certo “campo”, um “domínio”, o

seu. Ela o ilumina à sua maneira. Não se trata de escolher entre a tese do recorte e a da

iluminação, ao menos por enquanto. Ademais, cada ciência parcelar fragmenta-se em disciplinas

especializadas ao segundo grau. Na sociologia entram a sociologia política, a sociologia

econômica, a rural e a urbana, a sociologia religiosa etc. As ciências parcelares e especializadas

operam portanto analiticamente; elas resultam de uma análise e procedem a análises. No que

concerne ao fenômeno urbano considerado globalmente, a geografia, a demografia, a história, a

psicologia, sem esquecer a sociologia, aportam portanto os resultados de um procedimento

analítico. Não sem alguma injustiça, deixamos de lado os aportes do biólogo, do médico, do

psiquiatra. Assim como os do romancista e do poeta. A geografia estuda sobretudo o sítio da

aglomeração e sua situação num território regional, nacional, continental; associados ao

geógrafo, o climatólogo, o geólogo, o especialista da flora e da fauna, também aportam

informações indispensáveis. A demografia estuda a população, sua origem, a “sex ratio”, a taxa

de fertilidade, as curvas de crescimento etc. Que estuda o economista, seja especialista da

realidade urbana, seja interessado nos fenômenos gerais de crescimento? Não lhe faltam

objetos: produção e consumo no quadro urbano, repartição dos rendimentos, camadas e

classes, tipos de crescimento, estrutura da população (ativa ou passiva, “secundária” ou

“terciária”), custos de produção, aí incluída a produção do conhecimento, da cultura etc. O

Page 4: LEFEBVRE, Henri_ Da Ciencia a Estrategia Urbana

LEFEBVRE, Henri. Da ciência à estratégia urbana. Trad. Pedro Henrique Denski e Sérgio Martins (do original: De la science à la stratégie urbaine. Utopie, Paris, n. 2 et 3, p.57-86, mai. 1969).

3

historiador se preocupa com a gênese de tal aglomeração, dos acontecimentos e das instituições

que a marcaram. E assim por diante. Sem as démarches progressivas e regressivas (no tempo e

no espaço) da análise, é impossível conceber a ciência do fenômeno urbano.

c) Cada descoberta nas ciências parcelares permite uma análise nova do fenômeno total. É

possível que a partir da teoria das interações hierarquizadas (homeostase), definam-se certas

realidades urbanas, substituindo-se assim o velho organicismo e seu finalismo ingênuo para

conceitos racionais. A partir da teoria formalizada dos grafos e dos programas por

computadores, é possível elaborar modelos de espaço urbano1. Recentemente a linguística deu

saltos à frente. O que permitiu evidenciar uma noção, a de sistema de signos (e de significações).

Nada impede considerar o fenômeno urbano com esse método e nessa perspectiva. Que a

cidade e o fenômeno urbano constituem um sistema (definível por signos, apreensível a partir de

tal modelo linguístico, o de Jakobson, o de Hjemslev, o de Chomsky), é uma tese dogmática. De

um lado, o conceito de sistema de signos não recobre o fenômeno urbano; se há uma linguagem

da cidade (ou linguagem na cidade), se há uma palavra e “escrita” urbanas, portanto

possibilidade de estudos semiológicos, a cidade e o fenômeno urbano não se reduzem nem a

uma linguagem, nem a uma escrita, nem a uma semiologia. A prática urbana ultrapassa esses

conceitos parciais. De outro lado, não há, sem dúvida, na cidade e no fenômeno urbano atuais

um (único) sistema de signos e significações, mas vários, a vários níveis: aquele das modalidades

da vida cotidiana (signos e significações do habitar e do habitat, dos comportamentos e gestos de

cada dia); aquele da sociedade urbana no seu conjunto (semiologia do poder, da potência, da

cultura considerada globalmente ou na sua fragmentação); aquele do espaço urbano

particularizado (semiologia dos traços próprios a tal cidade, de sua paisagem, de sua

especificidade). As noções de isotopia e de heterotopia, que podem servir na análise do espaço

urbano, vêm da linguística (a u-topia e o tópico provêm da filosofia). Além disso, não é possível

para o conhecimento deixar os níveis e as dimensões exteriores uns aos outros, justapostos ou

superpostos. Quaisquer que sejam os limites da semiótica aplicada à realidade urbana, não é

menos notável que os passos adiante de uma ciência dependem dos aspectos novos dessa

realidade.

IIIIIIIIIIIIIIIIIIIIIIII........ MMMMMMMMIIIIIIIITTTTTTTTOOOOOOOOSSSSSSSS EEEEEEEE NNNNNNNNEEEEEEEECCCCCCCCEEEEEEEESSSSSSSSSSSSSSSSIIIIIIIIDDDDDDDDAAAAAAAADDDDDDDDEEEEEEEE DDDDDDDDAAAAAAAA CCCCCCCCOOOOOOOOOOOOOOOOPPPPPPPPEEEEEEEERRRRRRRRAAAAAAAAÇÇÇÇÇÇÇÇÃÃÃÃÃÃÃÃOOOOOOOO DDDDDDDDAAAAAAAASSSSSSSS CCCCCCCCIIIIIIIIÊÊÊÊÊÊÊÊNNNNNNNNCCCCCCCCIIIIIIIIAAAAAAAASSSSSSSS FFFFFFFFRRRRRRRRAAAAAAAAGGGGGGGGMMMMMMMMEEEEEEEENNNNNNNNTTTTTTTTÁÁÁÁÁÁÁÁRRRRRRRRIIIIIIIIAAAAAAAASSSSSSSS a) Essa complexidade torna indispensável uma cooperação “interdisciplinar”. O fenômeno

urbano, tomado em sua amplitude, não depende de nenhuma ciência especializada. Mesmo

Page 5: LEFEBVRE, Henri_ Da Ciencia a Estrategia Urbana

LEFEBVRE, Henri. Da ciência à estratégia urbana. Trad. Pedro Henrique Denski e Sérgio Martins (do original: De la science à la stratégie urbaine. Utopie, Paris, n. 2 et 3, p.57-86, mai. 1969).

4

quando se coloca como princípio metodológico que nenhuma ciência renuncie a si própria, e

que, ao contrário, cada especialista deve levar até ao limite a utilização de seus recursos para

alcançar o fenômeno global, nenhuma dessas ciências pode pretender esgotá-lo. Nem regê-lo.

Isto admitido ou estabelecido, as dificuldades começam. Entre os interessados, quem pode

ignorar as decepções e fracassos proporcionados pelas reuniões ditas “inter” ou “pluri-

disciplinares”? As ilusões da pesquisa assim designada e sua mitologia têm sido vividas e

denunciadas. Ora diálogos de surdos, ora pseudo-encontros, sem lugares comuns, seu primeiro

problema é o da terminologia. Noutros termos, o da linguagem. Raramente os participantes se

entendem sobre as palavras e termos de seu discurso, mais raramente ainda sobre os conceitos.

Quanto às teses e teorias, descobre-se em geral suas incompatibilidades. Confrontos e

enfrentamentos passam por êxitos. Na maioria dos casos, as discussões se situam aquém de

controvérsias. Supondo-se que se chegue a definir “objetos”, quase nunca é seguida a regra bem

conhecida: substituir a definição pelo definido, sem falha lógica. A dificuldade metodológica e

teórica aumenta quando se constata, no curso de tais encontros, que cada um busca a síntese e

se pretende “homem de síntese”. A verdade é que o fenômeno urbano, enquanto realidade

global, exige de maneira urgente e decisiva os conhecimentos fragmentados. Os especialistas não

concebem essa síntese senão no seu terreno, a partir de seus dados, de sua terminologia, de

seus conceitos e teses. Portanto, assiste-se regularmente à reaparição do imperialismo

científico, aquele da economia, da história, da sociologia, da demografia etc. Cada um

representa as outras “disciplinas” como suas auxiliares, suas vassalas, suas servas. Oscila-se entre

o particularismo e o chauvinismo científico, de um lado, e, do outro, a confusão, o “babelismo”.

No decorrer dos encontros ditos interdisciplinares, rapidamente se torna impossível manter as

especificidades sem separação ou a unidade sem informes misturas. Detém-se em

compromissos medíocres, por cansaço: porque é preciso se deter, e porque as jornadas de

colóquios ou seminários, assim como os créditos, são limitados. A convergência, como se diz,

afasta-se a perder de vista. E é uma ideologia que intervém na “síntese”, para preencher os

vazios entre os fragmentos de conhecimentos.

b) O fenômeno urbano (tanto ou mais que a “indústria”, o trabalho social ou a “sociedade”

inteira) manifesta sua universalidade. O que bastaria para justificar a criação de uma universidade

para seu estudo analítico. Observamos, de imediato, que não se trata de reivindicar para este

estudo uma prioridade absoluta sobre as outras pesquisas e disciplinas já institucionalizadas:

1 Cf. os trabalhos de Christopher Alexander, “Arquitetura, movimento, continuidade”, 1967, n°1.

Page 6: LEFEBVRE, Henri_ Da Ciencia a Estrategia Urbana

LEFEBVRE, Henri. Da ciência à estratégia urbana. Trad. Pedro Henrique Denski e Sérgio Martins (do original: De la science à la stratégie urbaine. Utopie, Paris, n. 2 et 3, p.57-86, mai. 1969).

5

letras e artes, ciências diversas. Basta conceber uma Faculdade reagrupando em torno da análise

do fenômeno urbano todas as disciplinas existentes, das matemáticas (estatística, mas também

teoria da informação e cibernética) à história, à linguística, passando pela psicologia e pela

sociologia. Essa concepção requer uma modificação das ideias admitidas sobre o ensino para

conseguir que uma Faculdade se institua não a partir de um saber adquirido (ou pretensamente

tal), mas em torno de uma problemática.

Por outro lado, o estatuto de uma tal instituição não se define claramente. O projeto pode

seduzir, mas essa sedução não poderia dissimular alguns obstáculos. Numa instituição, corre-se

o risco de reproduzir o que acontece nos encontros ocasionais. Como conseguir que

especialistas suplantem sua terminologia, seus léxicos, sua sintaxe própria, sua disposição de

espírito, seu jargão e suas deformações profissionais, sua tendência ao esoterismo e sua

arrogância de proprietários de um domínio? O imperialismo permanece a regra. O que se

percebe atualmente com a linguística e a etnologia, como ontem com a economia política!

Como fazer com que os especialistas não queiram obter para sua especialidade, ou seja, para

eles, os postos de comando? Sabe-se bem que aquele que não manobra com habilidade tática

passa despercebido, se vê reduzido ao silêncio e subjugado! O projeto de uma Faculdade de

urbanismo (ou de “urbanologia” ou de “politologia”, neologismos horrorosos) não implica ceder

aos mitos do interdisciplinar. Uma tal pesquisa não faz milagres. Não basta instituí-la para que

haja análise exaustiva do fenômeno urbano. E, ademais, pode haver análise exaustiva desse

fenômeno? Ou de uma realidade qualquer?

IIIIIIIIVVVVVVVV........ AAAAAAAA PPPPPPPPRRRRRRRROOOOOOOOBBBBBBBBLLLLLLLLEEEEEEEEMMMMMMMMÁÁÁÁÁÁÁÁTTTTTTTTIIIIIIIICCCCCCCCAAAAAAAA UUUUUUUURRRRRRRRBBBBBBBBAAAAAAAANNNNNNNNAAAAAAAA a) Não se pode afirmar de cada ciência particular que, quanto mais ela faz avançar sua análise,

mais ela põe em evidência um resíduo? Esse resíduo lhe escapa. Ele se revela essencial; ele

depende de outros métodos. Assim, o economista se encontra diante de “algumas coisas” que

lhe escapam; para ele, isso é o residual. Ora, essas “coisas” dependem da psicologia, da história

etc. Mais geralmente, os números e enumerações explicitam dramas, que não lhes pertencem.

Nem a psicologia, nem a sociologia, nem a história, que fixam os olhares nesses dramas, os

esgotam, nem os reduzem a um saber definido e definitivo, a conceitos conhecidos e

classificados. Isso já seria verdade para o trabalho social, para a atividade produtora na indústria,

para a racionalidade e a irracionalidade políticas. Seria ainda mais verdadeiro para o fenômeno

urbano, número e drama.

Page 7: LEFEBVRE, Henri_ Da Ciencia a Estrategia Urbana

LEFEBVRE, Henri. Da ciência à estratégia urbana. Trad. Pedro Henrique Denski e Sérgio Martins (do original: De la science à la stratégie urbaine. Utopie, Paris, n. 2 et 3, p.57-86, mai. 1969).

6

Sim, mas se cada “disciplina” torna manifesto um residual, prontamente ela se proclama

irredutível em relação às outras. A diferença vai coincidir com a irredutibilidade. O que põe em

questão a convergência. Ou se afirmará a irredutibilidade do fenômeno urbano em relação ao

conjunto das ciências fragmentárias, como também à do “homem” ou à da “sociedade”. O que

não ocorre sem riscos. Ou se identificará o homem (em geral), a sociedade (em geral) ou o

fenômeno urbano com o conjunto residual. O que tem seu interesse teórico, mas não ocorre

sem outros riscos: irracionalidade etc. O problema permanece: “Como passar dos saberes

fragmentários ao conhecimento total? Como definir essa exigência de totalidade?”

b) Pode-se também supor que a complexidade do fenômeno urbano não é a de um “objeto”.

Essa noção de objeto (de uma ciência) resiste ao exame atento? Pode-se perguntar.

Aparentemente mais precisa, mais rigorosa que as noções de “domínio” ou de “campo”, ela

desencadeia temíveis complicações. O objeto se dá ou é dado como real, diante do e para o

estudo. Nada de ciência sem objeto, nada de objeto sem uma ciência, dir-se-á. Mas pode-se

afirmar que a economia política explora ou possui um objeto isolável, ou a sociologia, ou a

história? Pode-se dizer que a economia urbana tem seu objeto, e a sociologia urbana, e a história

da cidade? É possível conceber que o conhecimento do fenômeno urbano – ou do espaço

urbano – consiste numa soma ou coleção de objetos, da economia, da sociologia, da história

especializada, sem esquecer a demografia, a psicologia e as ciências da natureza tais como a

geologia etc.? A noção de objeto científico, cômoda e fácil, não se conduz sem uma vontade

simplificadora que esconde, talvez, uma outra vontade. Um objeto se isola, mesmo quando se o

concebe como um sistema de relações e quando se lhe restituem, em seguida, suas relações

com outros sistemas. Não seria a vontade de sistema que se dissimula sob o conceito

aparentemente “objetivo” de objeto científico? O sistema procurado constitui seu objeto

constituindo-se. Após o que o objeto constituído legitima o sistema. Atitude tanto mais

inquietante quanto o sistema considerado pode se querer prática. De tal modo que o

conhecimento parcial e a ação resultante funcionam como redutores da realidade e das

possibilidades. O conceito de cidade não corresponde a um objeto social. Portanto,

sociologicamente é um pseudo-conceito. Contudo, a cidade tem uma existência histórica,

impossível de desconsiderar. Uma imagem ou representação da cidade pode se prolongar,

sobreviver às suas condições, inspirar uma ideologia e projetos urbanísticos. Noutras palavras, o

objeto sociológico é aqui a imagem e a ideologia.

Page 8: LEFEBVRE, Henri_ Da Ciencia a Estrategia Urbana

LEFEBVRE, Henri. Da ciência à estratégia urbana. Trad. Pedro Henrique Denski e Sérgio Martins (do original: De la science à la stratégie urbaine. Utopie, Paris, n. 2 et 3, p.57-86, mai. 1969).

7

Atualmente, a realidade urbana aparece mais como um caos e uma desordem – que sem dúvida

encobrem uma ordem a descobrir – que como objeto. Qual é o alcance, qual é o papel disso que

se denomina o urbanismo? Existem urbanistas, originários ou não do corpo dos arquitetos. Se

eles já conhecem a ordem urbana, não têm necessidade de uma ciência. Seu urbanismo já

contém esse conhecimento; ele apreende o objeto e o encerra no seu sistema de ação. Se eles

não conhecem a ordem urbana, velada ou em formação, têm necessidade de uma ciência nova,

baseada na cooperação de todas as ciências. Mas então, que é o urbanismo? Uma ideologia?

Uma prática incerta e parcial que se pretende global? Um sistema que implica elementos

técnicos e confia em sua autoridade para se impor? É conveniente perguntar. O urbanismo,

atualmente, com seus diferentes aspectos (ideologia, racionalidade limitada pretendendo-se

definida e definitiva, prática da aplicação) não seria uma simples superestrutura do período

industrial, anterior à problemática e à prática urbanas?

c) Mais que a de um objeto dado, a realidade do fenômeno urbano seria portanto a de um objeto

virtual? Se existe conceito especificamente sociológico, trata-se sem dúvida do de “sociedade

urbana”. E, contudo, ele não depende somente da sociologia. Situação paradoxal: qual urbanista,

qual urbanismo elaboraram essa noção? A sociedade urbana, com sua ordem e sua desordem

específicas, forma-se. Essa realidade envolve um conjunto de problemas: a problemática urbana.

Para onde vai esse fenômeno? Em direção a quê o processo de urbanização arrasta a vida social?

Qual nova prática social ou quais práticas novas ele implica? Como dominar o processo e

orientá-lo? Em direção a quê? Tais são as questões que se colocam e que às vezes o urbanista

coloca aos especialistas. Os quais não podem responder, ou só respondem pelo abuso de

linguagem.

d) A prática social, para se tornar global, para superar suas incoerências, exige já, “hic et nunc”, a

síntese. Efetivamente, a prática industrial adquiriu um alto grau de coerência e de eficácia: a

planificação, a programação. A prática urbanística quer segui-la. Porém, a pesquisa

interdisciplinar, procedendo analiticamente, deveria proibir-se as imprudências e os excessos

sobre essa via da síntese. Em termos precisos: as extrapolações. Insistentemente se (quem? Os

teóricos e os práticos, os conceituadores e os utilizadores) reivindica o homem de síntese. Que

não se perca nenhuma ocasião para repetir que essa síntese não pode ser a obra nem do

sociólogo, nem do economista, nem de nenhum especialista. A verdade é que, pretendendo

escapar, enquanto práticos, do imperialismo de uma especialidade, o arquiteto e o urbanista

pretendem esse título e esse papel. Por quê? Porque eles desenham, porque eles executam os

Page 9: LEFEBVRE, Henri_ Da Ciencia a Estrategia Urbana

LEFEBVRE, Henri. Da ciência à estratégia urbana. Trad. Pedro Henrique Denski e Sérgio Martins (do original: De la science à la stratégie urbaine. Utopie, Paris, n. 2 et 3, p.57-86, mai. 1969).

8

planos e projetos. Pretensão abusiva. De fato, eles recaem na situação mencionada

precedentemente. O imperialismo do desenho e do desenhista equivale àquele do economista

ou do demógrafo, para não falar dos sociólogos. Quanto à pretensão de extrair uma síntese

desta ou daquela técnica ou prática parcial (a circulação de veículos, por exemplo, ou a de

mercadorias, ou a de informações), basta formular essa ambição tecnocrática para que ela

desmorone enquanto teoria como enquanto prática.

e) Vamos passar pelos computadores todos os dados do problema? Por que não? Contudo, a

máquina só utiliza dados provenientes de questões às quais se responde por “sim” ou por “não”.

Ela própria só responde às questões que se colocam por “sim” ou por “não”. Quem ousará

pretender que todos os dados foram reunidos ou são conhecidos? Quem legitimará esse

emprego da totalidade? Quem provará que a “linguagem da cidade”, na medida em que exista

uma, coincide com o algol, o syntol ou o frotran, linguagens das máquinas, e que essa tradução

não é traição? Ademais, a máquina não corre o risco de se tornar um instrumento nas mãos de

certos grupos de pressão, de certos políticos? Ela já não é uma arma para as pessoas no poder e

para os servidores dos políticos?

Poder-se-ia confiar a síntese a uma pesquisa prospectivista. Entretanto, a prospectiva extrapola a

partir de fatos, de tendências, de uma ordem já conhecida. Porém, o fenômeno urbano se

caracteriza atualmente por uma situação crítica na qual não se discernem claramente nem

tendências definidas, nem uma ordem. Sobre o que fundar a prospectiva, ou seja, um conjunto

de investigações concernindo ao futuro, após terem escapado os elementos de previsão? O que

uma tal pesquisa aportaria para a hipótese precedentemente formulada, a da eventual

urbanização completa, hipótese que designa justamente o ponto crítico da situação na qual nos

encontramos? Que dirá a prospectiva de mais preciso e de mais concreto que a perspectiva que

mostraria no horizonte o encontro das linhas separadas pela ciências parcelares?

f) Desses conhecimentos fragmentários (especializados) sabemos que tendem ao global,

pretendem-no abusivamente, e que suscitam práticas parciais, que se pretendem também

globais (por exemplo, o urbanismo de circulação). Ora, esses conhecimentos fragmentários

resultam da divisão do trabalho. A divisão do trabalho no domínio teórico (científico e ideológico)

tem as mesmas funções e os mesmos níveis que na sociedade. Uma diferença se impõe entre a

divisão técnica do trabalho, racionalmente legitimada pelos instrumentos e pelo ferramental, pela

organização da atividade produtora – e a divisão social, que faz surgir dessa organização funções

Page 10: LEFEBVRE, Henri_ Da Ciencia a Estrategia Urbana

LEFEBVRE, Henri. Da ciência à estratégia urbana. Trad. Pedro Henrique Denski e Sérgio Martins (do original: De la science à la stratégie urbaine. Utopie, Paris, n. 2 et 3, p.57-86, mai. 1969).

9

desiguais, privilégios, hierarquias. Não sem conexões com a estrutura de classe das relações de

produção e de propriedade, das instituições e das ideologias.

A divisão técnica do trabalho, no conhecimento, transforma-se em divisão social, isto é, em

instituições (científicas, culturais) com seus quadros e aparelhos, suas normas e valores, as

hierarquias correspondentes. Essas instituições mantêm compartimentações e confusões. Assim,

os conhecimentos dependem de institutos distintos, e também de uma entidade, a Cultura.

Nascidas da/na divisão social do trabalho, essas instituições a ela retornam servindo-a; elas a

adotam ou a adaptam, segundo o caso. Literalmente, elas trabalham para e na divisão social do

trabalho intelectual, que elas dissimulam sob as exigências “objetivas” da divisão técnica,

transformando em hierarquia de prestígio e de rendimentos, em funções de gestão e de direção,

as relações “técnicas” dos setores e domínios, dos procedimentos e métodos, dos conceitos e

teorias. Essa vasta operação se funda nas separações que ela acentua consagrando-as. Como,

em tais condições, alcançar e mesmo visar a totalidade? Certamente, o funcionamento dessas

instituições científicas e culturais ultrapassa a satisfação das necessidades imediatas do mercado

e da demanda (por técnicos, especialistas etc.). Mas sua “criatividade” não pode sair muito do

domínio das ideologias ligadas a esse mercado, ratificando-a ou às vezes contestando-o. Que são

as ideologias? Como as instituições, superestruturas elaboradas ou construídas durante um

período determinado, a saber, a industrialização nos quadros sociais igualmente determinados.

Anteontem, o capitalismo concorrencial procurava adaptar superestruturas marcadas pelo longo

predomínio da produção agrícola, à vida camponesa. Ontem e atualmente, o neo-capitalismo

continua essa tarefa que ultrapassa a urbanização da sociedade. Ocorre que, levando a ilusão e a

aparência ao limite, tal instituição quer arrogar a totalidade para si, ao passo que ela ratifica as

separações e só as reúne na confusão babélica. A filosofia clássica e o humanismo tradicional

tiveram essa ambição mantendo-se aquém da divisão do trabalho (técnica e social), da

fragmentação em saberes parcelares, assim como dos problemas inerentes a essa situação

teórica. Quanto à Universidade, durante vários séculos ela propôs assumir a universalidade, em

ligação com a filosofia clássica e o humanismo tradicional. Ela não pode mais conservar essa

“função” na medida exata em que ela institucionaliza a divisão social do trabalho, nela

preparando-se, nela organizando-se, nela se inserindo. O que a ameaça de explosão. Não é essa

a função que atualmente se reserva à Universidade, a de adaptar a produção especializada dos

intelectuais à divisão social do trabalho, e a divisão técnica e social dos conhecimentos às

exigências do mercado? A ciência torna-se (como a realidade urbana) meio de produção.

Page 11: LEFEBVRE, Henri_ Da Ciencia a Estrategia Urbana

LEFEBVRE, Henri. Da ciência à estratégia urbana. Trad. Pedro Henrique Denski e Sérgio Martins (do original: De la science à la stratégie urbaine. Utopie, Paris, n. 2 et 3, p.57-86, mai. 1969).

10

Quanto à filosofia nascida do tempo da separação do trabalho material e do trabalho intelectual,

e mais tarde consolidada contra essa separação, ela ainda pode querer ser e se conceber total?

Situação difícil. O pensamento abstrato parecia ter atravessado as piores provas e delas sair-se

bem; ele parecia ressuscitar nas ciências após a Sexta-feira Santa especulativa e a morte do

Logos encarnado na filosofia clássica. É ainda mais surpreendente admirar, no momento de seu

Pentecostes, a intelligentsia especializada receber o dom das línguas, desde que a linguística

tomou o papel da ciência das ciências, abandonada pela filosofia que acreditava ela própria ter

suplantado a religião. É nesse momento que, sob essa cobertura, uma certa prática industrial

impõe suas coações.

VVVVVVVV........ PPPPPPPPAAAAAAAAPPPPPPPPEEEEEEEELLLLLLLL DDDDDDDDOOOOOOOO FFFFFFFFIIIIIIIILLLLLLLLÓÓÓÓÓÓÓÓSSSSSSSSOOOOOOOOFFFFFFFFOOOOOOOO........ DDDDDDDDAAAAAAAA FFFFFFFFIIIIIIIILLLLLLLLOOOOOOOOSSSSSSSSOOOOOOOOFFFFFFFFIIIIIIIIAAAAAAAA ÀÀÀÀÀÀÀÀ MMMMMMMMEEEEEEEETTTTTTTTAAAAAAAA--------FFFFFFFFIIIIIIIILLLLLLLLOOOOOOOOSSSSSSSSOOOOOOOOFFFFFFFFIIIIIIIIAAAAAAAA a) Não é inútil sublinhar que o positivismo se opõe à filosofia clássica, a seus prolongamentos

especulativos. O positivista adere fortemente aos fatos que dependem de sua ciência, de sua

metodologia. Ele se agarra às constatações e avança prudentemente nos conceitos; ele desconfia

das teorias. Há um positivismo físico, um positivismo biológico, econômico ou sociológico,

noutros termos, um fisicalismo, um biologismo, um historicismo, um economismo, um

sociologismo etc. O pensamento positivista não se pergunta se as constatações às quais ele

procede resultam de um recorte ou de um esclarecimento, se diante dele há ou não um

“objeto”. Existem fatos, classificados e especificados como relevantes para tal ciência. Ora, a

tendência positivista jamais impediu o salto do empirismo à misticidade e da linguagem precisa

ao jargão (mais ou menos esotérico). Ademais, essa tendência, segundo a qual a filosofia não tem

mais ou nunca teve sentido, não é incompatível com um sólido imperialismo. O especialista

afirma a validade exclusiva de sua ciência; ele afasta as outras “disciplinas” ou as reduz à sua. É

assim que o imperialismo lógico-matemático quer impor a todas as ciências modelos

matemáticos, recusando os conceitos específicos dessas ciências. O economismo exclui todo

nível de realidade outro que aquele que depende da economia política, modelos de

crescimento, cálculos, previsões. Assiste-se, desde algum tempo, a um entusiasmo pelos

modelos linguísticos, como se só houvesse um modelo definitivamente adquirido por essa

ciência, como se esse modelo pudesse ser transportado para fora de seu lugar original para

conferir a outras “disciplinas”, a psicologia ou a sociologia, um estatuto epistemológico rigoroso.

Como se a ciência das palavras fosse a ciência suprema, porque tudo se diz e se escreve com

palavras!

Page 12: LEFEBVRE, Henri_ Da Ciencia a Estrategia Urbana

LEFEBVRE, Henri. Da ciência à estratégia urbana. Trad. Pedro Henrique Denski e Sérgio Martins (do original: De la science à la stratégie urbaine. Utopie, Paris, n. 2 et 3, p.57-86, mai. 1969).

11

b) De fato e de direito, uma tal interpretação se situa no terreno preparado pela filosofia. Desde

agora, ou ainda, ela está na filosofia, se bem que não esteja mais no sentido da filosofia clássica.

Desde que o positivista quer estender sua propriedade (seu domínio próprio) e sua atividade

operatória, desde quando ele ameaça ou invade outros territórios, ele passa da ciência à

filosofia. Ele utiliza, sabendo ou não, o conceito de totalidade. Ele deixou o fragmentário, o

parcelar, em suma o analítico. Desde que ele reivindica a síntese e a totalidade, prolonga-se a

filosofia clássica separando-se seus conceitos (totalidade, síntese) dos contextos e das

arquiteturas filosóficas nas quais ganharam nascimento e forma. O mesmo ocorre com os

conceitos de sistema, de ordem e de desordem, de realidade e de possibilidade (virtualidade),

de objeto e de sujeito, de determinismo e de liberdade. Sem omitir a estrutura e a função, a

forma e o conteúdo. Transformados pelos conhecimentos científicos, essas noções podem se

separar de toda sua elaboração filosófica?

c) A filosofia sempre visou o total. Desde quando o filósofo quis alcançar ou realizar unicamente

por suas forças a totalidade, ele falhou. Ele fracassou, perdendo-se entre as abstrações

especulativas. E, entretanto, é ele quem aporta essa orientação e essa visão. É dele que outros

emprestam esse conceito quando extrapolam a partir de um saber mais ou menos adquirido,

que eles acreditam definitivo e do qual querem tirar uma regra para todo saber. O filósofo e a

filosofia não podem nada sozinhos; mas que se pode sem eles? Não seria partindo-se da filosofia

inteira, mas tendo-se em conta todos os conhecimentos científicos, que convém interrogar o

fenômeno urbano? que se pode examinar seu processo, seu trajeto, seu horizonte,

especialmente no que concerne ao “ser do homem”, sua realização ou seu fracasso na

sociedade urbana que se anuncia? Não é impossível que a própria filosofia e sua história não

apareçam de outro modo, nesse trajeto, como projeto (de quem? do “ser humano”). A filosofia

não surgiu já assim, iluminada sob um novo dia pela indústria e pela prática industrial em

formação? Essa meditação não se situa aquém da filosofia, nem na filosofia, mas além da filosofia

como atividade ela própria especializada, constituída e instituída. O que define a metafilosofia.

d) O objetivo não é o de reconduzir o antigo humanismo, comprometido desde que Marx e

Nietzsche o submeteram à mais dura crítica. A sociedade dita industrial, capitalista ou não,

tendo desmentido o antigo humanismo, a questão é de saber se a sociedade urbana autoriza a

elaboração de um novo. É possível que a interrogação, colocada a partir da filosofia pela

meditação metafilosófica, desemboque na constatação de um novo fracasso. A problemática

Page 13: LEFEBVRE, Henri_ Da Ciencia a Estrategia Urbana

LEFEBVRE, Henri. Da ciência à estratégia urbana. Trad. Pedro Henrique Denski e Sérgio Martins (do original: De la science à la stratégie urbaine. Utopie, Paris, n. 2 et 3, p.57-86, mai. 1969).

12

urbana não pode recusar antecipadamente essa eventualidade, sem reincidir nas categorias da fé

e do desafio, na extrapolação.

e) O que o espírito da filosofia aporta? De início, uma crítica radical das ciências fragmentárias

enquanto tais. Esse espírito refuta todo dogmatismo, tanto os empreendimentos das ciências

parcelares e a pretensão de cada uma a tudo apreender - como o recuo de cada uma sobre um

“objeto”, um “setor”, um “domínio”, um “sistema” considerado como propriedade privada. A

crítica radical define assim um relativismo metodológico e teórico, um pluralismo epistemológico.

Os “objetos” (aí incluído o corpus constituído por e para tal estudo particular) são atingidos por

esse mesmo relativismo. E os modelos, sempre provisórios. Nenhum método assegura uma

“cientificidade” absoluta, teórica ou prática. Sobretudo em sociologia (urbana ou não). Nem as

matemáticas, nem a linguística garantem uma démarche perfeita e definitivamente rigorosa.

Existem “modelos”; nenhum dentre eles é acabado, nem plenamente satisfatório; nenhum pode

ser generalizado, ser transportado, ser exportado ou importado sem as maiores precauções,

fora do “setor” no qual foi construído. A metodologia dos modelos retoma e talvez aperfeiçoa

aquela dos conceitos. Existem conceitos específicos, próprios a cada ciência parcial; nenhum

determina completamente um “objeto” delimitando-o, traçando seus contornos, dele

aproximando-se ou apreendendo-o; a realização efetiva de um tal “objeto” comporta grandes

riscos; mesmo se o analista constrói “objetos”, eles são provisórios e resultam de uma redução.

Existem, portanto, múltiplos modelos e conceitos, que não compõem um conjunto coerente e

acabado. A ciência, ou melhor, as ciências avançam como se constroem estradas, ou como se

conquista terreno ao mar. Como haveria um “corpus” científico (corpus scientiarum)

definitivamente adquirido? e mesmo núcleos imóveis? Isso significa confundir a pesquisa

experimental e teórica, empírica e conceitual, utilizando hipóteses (verificáveis, e por

conseguinte falsificáveis2, portanto revisáveis, comportando uma parte de ideologia) com a

formalização e a axiomatização. Ora, o que parece fixado pela demonstração se transforma,

aparece e aparecerá de outro modo, inclusive os axiomas e mesmo as formas que a reflexão

esclarece na sua pureza. A crítica radical revela, cedo ou tarde, uma ideologia em cada modelo e

talvez na própria “cientificidade”!

Nos dias de hoje o espírito da filosofia permite destruir o finalismo. Vindo da filosofia, e mais

especialmente da metafísica, o finalismo tradicional se esboroa sob os golpes da crítica que

destaca o aporte da filosofia. Para o devir histórico e diante da ação, não há meta definida, pré-

2 Cf. R. Boudon “A quoi sert la notion de structure?” p.191 et sq.

Page 14: LEFEBVRE, Henri_ Da Ciencia a Estrategia Urbana

LEFEBVRE, Henri. Da ciência à estratégia urbana. Trad. Pedro Henrique Denski e Sérgio Martins (do original: De la science à la stratégie urbaine. Utopie, Paris, n. 2 et 3, p.57-86, mai. 1969).

13

fabricada, portanto atingida de antemão, por um deus ou em seu nome, por uma ideia ou por

um espírito absoluto. Nada de objetivo posto como um objeto (desde agora real ou realizável).

Inversamente, nada de impossibilidade por conta de uma meta, por conta de um “objetivo”

declarado como sentido da ação e do futuro. Nada de síntese realizada de antemão. Nada de

totalidade original e final em relação à qual toda situação e todo ato e todo momento relativos

seriam alienados-alienantes. Inversamente, nada que desminta a exigência, a vontade e a

concepção do total, senão a atitude alienante-alienada que fecha o horizonte, que decreta a

existência teórica e prática de uma coisa. De quem e do que pode nascer a totalidade? De uma

estratégia e de um projeto que prolongam num plano novo a antiga filosofia. Assim, o filósofo

(ou melhor, o “metafilósofo”) não pretende mais proporcionar a finalidade, a síntese, a

totalidade. Ele recusa a filosofia da história e da sociedade da mesma maneira que recusa a

metafísica e a ontologia clássicas. Ele intervém para lembrar a exigência de totalidade, a

impossibilidade de aceitar a fragmentação e a separação. Ele critica radicalmente o finalismo em

geral, mas também os finalismos particulares, o economismo, o sociologismo, o historicismo. A

filosofia tornada metafilosofia não mostra mais uma realidade já realizada ou extraviada, “o

homem”. Ela designa uma orientação. Se ela fornece alguns instrumentos conceituais para abrir a

estrada para esse horizonte, ela não é mais o terreno no qual se realiza a marcha do tempo. Ela

mostra a amplitude da problemática e suas contradições imanentes, no primeiro plano das quais

a relação entre a racionalidade que se afirma, se desenvolve, se transforma – e a finalidade que se

esboroa. Ora, a racionalidade parece implicar o finalismo e o implica efetivamente nas

concepções especulativas do universo. Se a racionalidade deve se elevar da especulação à

prática racional global, da racionalidade política à racionalidade social, da racionalidade industrial

à racionalidade urbana, é resolvendo essa contradição imanente. A meta? O fim? Eles se

concebem; eles se declaram e só podem predominar se eles permitem a estratégia mais

compreensiva. Eles não se separam da constituição de uma práxis (prática social), o que supõe

intervenções práticas, aquelas das forças sociais e políticas. Disso resulta que outras forças

podem intervir, deter o processo, como, por exemplo, decretar atualmente que só importa a

organização da indústria, da empresa e da produção industrial.

f) As discussões sobre o homem, o humano e o humanismo retomam, em termos contestáveis,

os argumentos de Marx e de Nietzsche contra a filosofia clássica e suas implicações. O critério

proposto no curso dessas controvérsias, o da coerência, que substituiria o da harmonia e da

“escala humana”, corresponde sem nenhuma dúvida a uma necessidade. Sua suficiência não é

por isso demonstrada. A estrada que se abre é a da reconstrução de um humanismo na, para e

Page 15: LEFEBVRE, Henri_ Da Ciencia a Estrategia Urbana

LEFEBVRE, Henri. Da ciência à estratégia urbana. Trad. Pedro Henrique Denski e Sérgio Martins (do original: De la science à la stratégie urbaine. Utopie, Paris, n. 2 et 3, p.57-86, mai. 1969).

14

pela sociedade urbana. A esse “ser humano” em formação, portanto fato e valor, a teoria abre o

caminho. Esse “ser” tem necessidades, já constatáveis ou contestáveis. Uma analítica da

necessidade e do desejo é indispensável. O que não quer dizer que se possa elaborar uma

filosofia da necessidade reivindicando-se do marxismo, da sociologia, da psicologia, da

racionalidade industrial. Ao contrário. A pretensa teoria das necessidades é tão-somente uma

ideologia da necessidade, consagrando as coações de um período determinado e limitado, o da

práxis industrial. Mais que um estudo “positivo” das necessidades visando a constatá-las e

classificá-las, tais como são, como objetos, esse conhecimento poderia se constituir através da

análise dos erros, dos fatores inadequados na prática arquitetural e na ideologia urbanística. Um

método indireto e negativo não seria mais pertinente que o positivismo sociológico? Se existem

necessidades funcionalizáveis, também há o desejo, e os desejos, antes e além das necessidades

inscritas nas coisas. O funcionalismo da necessidade completa muito bem a ideologia

funcionalista. As necessidades não são classificadas senão em função de imperativos econômicos

e de normas sociais. Classificação e denominação têm um caráter contingente. Em particular, as

representações do habitat e do habitar funcionalizados (institucionalizados), aquelas que

concernem às necessidades individuais e sociais não podem passar por necessárias e absolutas.

Antes das necessidades se situa antropologicamente a “Pulsão”, global e confusa, impulsão, elã,

energia vital, pulsão, como se verá. Além delas, funcionam os filtros e controles sociais:

linguagem, normas e valores, repressões. Porque não enunciar esses diferentes níveis em

termos de “id”, de “ego”, de “superego” social? Todavia, corre-se o risco de reincidir na filosofia

da necessidade e na ontologia do desejo.

De uma maneira próxima da experiência e do discurso cotidianos, constatamos que o ser

humano é de início criança, depois adolescente, depois adulto que envelhece. Esse prematuro,

esse imaturo tende para a maturidade e isso é seu fim. Ele acaba assim e lá. Sua maturidade o

detém e essa é a parada de morte. Uma tal concepção rejeita (enfim) o finalismo filosófico,

aquele da ascensão humana sem contradições dilacerantes, aquele da harmonia preestabelecida,

finalismo que sobrevive nos nossos dias nalgumas visões confortáveis: o marxismo oficial, a

doutrina teilhardiana, a teologia humanista. Já se sabe que a lenta maturação do ser humano, que

o faz depender da família, do habitat e do habitar, da vizinhança e do fenômeno urbano, tem por

implicação a educabilidade e por consequência uma plasticidade sempre surpreendente. Há,

nesse “ser” que cresce e se desenvolve desigualmente, necessidades urgentes e necessidades

diferidas. Sua miséria faz sua grandeza; suas desarmonias e suas disfunções o empurram para a

frente. Ele nunca abandona a ambiguidade. O caráter dramático e conflitual das necessidades e

Page 16: LEFEBVRE, Henri_ Da Ciencia a Estrategia Urbana

LEFEBVRE, Henri. Da ciência à estratégia urbana. Trad. Pedro Henrique Denski e Sérgio Martins (do original: De la science à la stratégie urbaine. Utopie, Paris, n. 2 et 3, p.57-86, mai. 1969).

15

desejos tem portanto um alcance antropológico. Essa ciência ainda incerta só pode se constituir

dialeticamente. O ser humano tem necessidade de acumular e de esquecer; ele tem necessidade

simultânea e sucessivamente de segurança e de aventura, de sociabilidade e de solidão, de

satisfações e de insatisfações, de desequilíbrio e de equilíbrio, de descoberta e de criação, de

trabalho e de jogo. A casa, a moradia, o alojamento e o apartamento, a vizinhança, o bairro, a

cidade, a aglomeração responderam, respondem ainda ou não respondem mais, a tal ou qual

dessas necessidades fundamentais. As teses do “ambiente” familiar, do “ambiente” de trabalho,

do “quadro funcional” ou do “quadro espacial”, oferecidas a essas necessidades, são todas

simplesmente monstruosidades dogmáticas, que ameaçam fabricar monstros a partir das larvas

humanas que se lhes entrega.

A realidade atual (social e urbana) revela algumas necessidades fundamentais, não diretamente,

mas através do que as controla repressivamente, as filtra, as oprime ou as desvia. Elas se

desvelam retrospectivamente e se reencontram no passado que se conhece a partir do

presente, em vez do presente a partir do passado. O que confere lugar legítimo à história, a uma

historicidade sem historicismo. Uma antropologia dialética se elabora a partir da problemática

urbana. Por sua vez, esse conhecimento aporta dados à problemática. Ele não pode pretender

nem colocar, nem resolver por si mesmo o conjunto dos problemas. Ele entra nas disciplinas

tomadas em consideração, sem outro privilégio que o de nascer ao mesmo tempo em que a

problemática vislumbrada.

Uma tal antropologia reúne alguns elementos ou aspectos ligados à antiga filosofia. O que ela

ensina? que há uma espécie de “matéria humana”, com leis (biológicas, fisiológicas), mas sem

forma preexistente ao nível da realidade dita social ou humana. Ela tem por apanágio uma

extraordinária plasticidade, uma educabilidade e uma adaptabilidade notáveis. Formas aparecem,

concebidas e desejadas, capazes de modelar essa matéria segundo possibilidades diversas. Essas

formas atuam a diferentes níveis. Na atualidade e no horizonte do possível, a sociedade urbana

não propõe uma forma?

Os especialistas mais decididos a se proclamar integralmente cientistas não desdenham apelar à

racionalidade. Eles ignoram que essa noção geral não pode se conceber sem a filosofia, mesmo e

sobretudo se a razão filosófica não é senão um momento ou elemento da racionalidade?

Proclamando-se a racionalidade sem contexto, no absoluto, fixa-se-a mutilando-a. Para sustentar

as controvérsias sobre esse ponto decisivo, eis o quadro das formas sucessivas da razão. À razão

lógica, formulada pelo pensamento grego (Aristóteles), sucede a razão analítica (Descartes e a

Page 17: LEFEBVRE, Henri_ Da Ciencia a Estrategia Urbana

LEFEBVRE, Henri. Da ciência à estratégia urbana. Trad. Pedro Henrique Denski e Sérgio Martins (do original: De la science à la stratégie urbaine. Utopie, Paris, n. 2 et 3, p.57-86, mai. 1969).

16

filosofia europeia), em seguida a razão dialética (Hegel e Marx, em seguida a pesquisa

contemporânea). Cada forma critica as precedentes sem destruí-las, mas não sem problemas.

Do mesmo modo, à razão filosófica, elaborada por toda a tradição ocidental, sucede a razão

prática industrial (Saint-Simon, Marx etc.), que domina, nos nossos dias, a racionalidade urbana,

em formação. No plano não mais mental mas social, a racionalidade de opinião deu lugar à

racionalidade de organização, que não pode prescindir de colocar as questões de finalidade e de

sentido, dependendo da racionalidade de realização. Nesse plano, o da finalidade, um humanismo

abstrato (liberal e clássico) não pôde se manter como ideologia sem passar pela prova do

humanismo crítico; por seu turno, este faz nascer o humanismo concreto, prático, desenvolvido

(portanto visando o total). À primeira etapa do humanismo corresponde a imagem do ser

humano, seu projeto abstrato apresentado e representado pelos filósofos. Ao segundo

momento corresponde a contestação fundamental da orientação, do sentido. No terceiro

momento elaboram-se a concepção e a vontade de uma plenitude (finita, relativa, mas “total”).

Papel do filósofo

Razão e racionalidade

lógica filosófica opinião

analítica industrial organização

dialética urbana realização

Humanismo

humanismo abstrato imagem e projeto

humanismo crítico contestação

humanismo desenvolvido finalidade

Certamente não é o espaço (social, urbano, econômico, epistemológico, o diabo que seja) que

pode aportar a forma, o sentido, a finalidade. Entretanto, vê-se despontar de todos os lados essa

tese: o espaço como regra, norma e forma superior em torno do qual se poderia realizar um

“consenso” dos cientistas, senão um “corpus” das ciências. Ora, o espaço é tão-somente um

medium, ambiente e meio, instrumento e intermediário. Mais ou menos apropriado, ou seja,

favorável ou patógeno. Ele nunca teve existência “em si”, mas remete a algo de outro. A quê?

Ao tempo, existencial e simultaneamente essencial, ultrapassando essas determinações

filosóficas, ao mesmo tempo subjetivo e objetivo, fato e valor. Porque “bem” supremo dos que

Page 18: LEFEBVRE, Henri_ Da Ciencia a Estrategia Urbana

LEFEBVRE, Henri. Da ciência à estratégia urbana. Trad. Pedro Henrique Denski e Sérgio Martins (do original: De la science à la stratégie urbaine. Utopie, Paris, n. 2 et 3, p.57-86, mai. 1969).

17

vivem, bem ou mal. Porque fim ao mesmo tempo que meio. Mas não se trata mais do tempo

dos filósofos. Nem daquele dos cientistas – físicos, biólogos, historiadores, sociólogos. A

articulação “tempo-espaço” torna-se objeto para o conhecimento; é um objeto na acepção

admitida, isolável, com contornos definidos? Certamente não. Seria um objeto sociológico?

Talvez, mas de início negativamente enquanto fator de inadequação. A relação entre o tempo e

o espaço, conferindo absoluta prioridade ao espaço, se revela relação social inerente a uma

sociedade na qual predomina uma certa forma de racionalidade. Assim, a ideologia e a ciência se

misturam. Essa relação faz parte de um mundo invertido. Ela também precisa ser “posta sobre

seus pés”.

g) Retornemos às relações das ciências fragmentárias. Como concebê-las? Várias hipóteses se

apresentam:

i) Convergência. Mas onde? Em qual ponto? Na proximidade? É a esperança e o mito dos

encontros interdisciplinares. Acredita-se definir a convergência num terreno próximo, como um

cruzamento de estradas. Ora, esse cruzamento se define mal e jamais se alcança. Se há

convergência, é no horizonte, em perspectiva, senão em projeção no infinito. Ainda é preciso

determinar o “panorama”. Aqui e agora, por exemplo, nos orientamos não em direção “ao

homem” tradicional, mas para “o ser humano” reconsiderado e reconstruído, o da sociedade

urbana que se forma.

ii) Integração (dos fragmentos definidos pelas disciplinas parcelares). Mas a quê? A uma das

disciplinas, promovida a dominante? Inadmissível. A uma práxis? Mas nessa acepção o conceito

de práxis cai sob os golpes da crítica radical. É um recurso, um prazo vencido. Um provável

fracasso. Sobretudo em razão de um deplorável precedente: o fracasso do economismo,

ideologia e prática baseadas numa concepção fragmentária.

iii) Pragmatismo. Ou seja, utilização de informes, de informações dadas aqui e ali, por este ou

aquele (sociólogo ou outro). É o que se passa frequentemente. A cientificidade se transforma

em seu contrário: ausência de critério rigoroso.

iv) Operacionalismo. Variante do pragmatismo, cobre-se de uma ideologia, a da tecnocracia, com

seus mitos já denunciados. Vê-se tão-somente conceitos operatórios. A validade dos conceitos

não se demonstra mais. Limita-se a lhes demandar uma capacidade classificatória.

v) Hierarquização. Sim, mas em nome de quais valorizações? Quem decreta que o sociólogo vale

mais que o geógrafo ou o demógrafo? As normas serão aquelas das instituições e de suas

Page 19: LEFEBVRE, Henri_ Da Ciencia a Estrategia Urbana

LEFEBVRE, Henri. Da ciência à estratégia urbana. Trad. Pedro Henrique Denski e Sérgio Martins (do original: De la science à la stratégie urbaine. Utopie, Paris, n. 2 et 3, p.57-86, mai. 1969).

18

rivalidades, últimos traços da concorrência. Os cientistas entregarão aos políticos as chaves da

cidade científica. Estes decidirão; declararão o normal e seu oposto, o anômico (anormal,

patológico), segundo sua vontade e seu arbítrio. Essa tese pode argumentar a partir da noção

(metodológica) de nível. Mas se cada especialista ocupa um nível numa hierarquia, as questões

de prioridade e de precedência tornam-se essenciais. O que parece pelo menos perturbador.

vi) Experimentalismo. Interação de campos parciais, de setores? Concepção “inter-setorial” de

trocas ideológicas e científicas? O analista recortaria provisoriamente “objetos” abstratos, os

estudaria com o auxílio de disciplinas diferentes, os confrontaria com as experiências no terreno.

Talvez, mas abandonando-se com a totalidade, a meta, o sentido e a finalidade e sem dúvida a

própria coerência. Oscilar-se-á entre a utopia abstrata e o realismo imediato, entre o

utilitarismo e a irracionalidade.

Nenhuma dessas opções pode passar por satisfatória, racionalmente falando. Uma única

aquisição: impossível reunir os especialistas em torno de uma mesa na qual se coloque um

“objeto” ou uma coleção de objetos; impossível fazer a soma de conhecimentos especiais,

enunciados em vocabulários diversos, a partir de “pontos de vista” particularizados e limitados.

VVVVVVVVIIIIIIII........ PPPPPPPPOOOOOOOORRRRRRRR UUUUUUUUMMMMMMMMAAAAAAAA EEEEEEEESSSSSSSSTTTTTTTTRRRRRRRRAAAAAAAATTTTTTTTÉÉÉÉÉÉÉÉGGGGGGGGIIIIIIIIAAAAAAAA UUUUUUUURRRRRRRRBBBBBBBBAAAAAAAANNNNNNNNAAAAAAAA a) Atualmente a situação teórica pode-se comparar, numa certa medida, àquela que Marx

conheceu. A crítica radical já abria a via ao pensamento, como à ação. Marx partiu, como cada

um sabe, da filosofia alemã, da economia política inglesa, da reflexão francesa sobre a ação

revolucionária e seus objetivos (o socialismo). A crítica do hegelianismo, da ciência econômica,

da reflexão sobre a história e seu sentido, lhe permitiu conceber a sociedade capitalista ao

mesmo tempo como totalidade e como momento de uma transformação total. Da negatividade

crítica saía uma positividade nova. Para Marx, a negatividade da crítica radical coincidia, teórica e

praticamente, com a do proletariado revolucionário. Ele abria o caminho, ele desbloqueava a via

para uma prática nova, aquela da indústria com suas exigências, com sua racionalidade. A teoria

elaborava e dava forma a uma prática, o pensamento indo da prática em formação à teoria. A

totalidade entrevista e prevista não era, para Marx, outra que essa práxis da indústria com suas

exigências: informação, planificação, racionalidade à escala da sociedade inteira. Ele subordinava

a ela os conhecimentos parcelares, as atividades parciais, a resolução das contradições da

sociedade burguesa. As diferenças entre essa situação e a da segunda metade do século XX

aparecem imediatamente. À crítica da filosofia, da economia e da ideologia políticas (a religião

dependendo da filosofia, pois segundo Marx a filosofia implica a crítica da religião e assim a

Page 20: LEFEBVRE, Henri_ Da Ciencia a Estrategia Urbana

LEFEBVRE, Henri. Da ciência à estratégia urbana. Trad. Pedro Henrique Denski e Sérgio Martins (do original: De la science à la stratégie urbaine. Utopie, Paris, n. 2 et 3, p.57-86, mai. 1969).

19

crítica da filosofia alcança duplamente a religião), convém acrescentar, atualmente, a crítica

radical das ciências especializadas. Só essa crítica permite destacar o aporte de cada uma delas à

totalidade em formação, a sociedade e a racionalidade urbanas; o acesso à totalidade passa por

essa via e não pela soma ou pela justaposição de resultados “positivos” dessas ciências. Tomada

isoladamente, cada uma delas se perde na fragmentação ou na confusão, no dogmatismo ou no

niilismo. De todos os lados, chegamos ao problema da ideologia, e de sua relação com a prática

à qual é preciso, agora, abrir caminho: a prática urbana.

A crítica das ciências especializadas não pode avançar sem crítica das políticas especializadas, dos

aparelhos e de suas ideologias. Cada grupo político, e sobretudo cada aparelho, se justifica por

meio de uma ideologia que ele sustenta: nacionalismo e patriotismo, economismo ou

racionalismo de Estado, filosofismo, humanismo liberal (clássico). O que, entre outros

inconvenientes, tem por resultado mascarar alguns problemas essenciais: aqueles da sociedade

urbana e da mutação nesse sentido (ou da transformação, ou da revolução se ela se produz).

Essas superestruturas ideológicas e institucionais provêm do período da industrialização e do

racionalismo industrial, assim como da divisão dos trabalhos intelectuais nesse contexto. Cabe às

forças sociais e políticas agir para realizar a prática urbana, e não aos homens e às ideologias

políticas. Introduzindo-se (sem dela abusar) a noção metodológica de nível, de maneira a

distinguir o tático do estratégico, pode-se formular algumas proposições:

1. Ao nível dos projetos e dos planos, sempre há uma distância entre a elaboração e a execução.

Nesse trajeto intervém a reivindicação e a contestação, que frequentemente são confundidas.

Na contestação se manifestam as ideologias próprias aos grupos e às classes que intervêm,

inclusive a ideologia ou as ideologias dos que contribuíram para a elaboração dos projetos, o

urbanismo ideológico. A possibilidade de contestação faz aparecerem essas ideologias e permite

sua confrontação, o que dimensiona o grau de democracia urbana. A prática urbana concreta,

aquela dos grupos e das classes, ou seja, sua maneira de viver, a morfologia da qual eles dispõem

e tendem a modificar, não pode se confrontar com a ideologia urbanística senão nessa via.

2. Ao nível que se pode chamar epistemológico, se coloca a questão do saber, adquirido ou não.

Na problemática assim definida, não parece que se possa tentar constituir um “corpo” de

conhecimentos adquiridos. A problemática domina a cientificidade. Noutras palavras, a ideologia

e o saber se misturam e seu discernimento é uma tarefa sempre recomeçada. Contudo, uma

ciência não pode se considerar como parte interessada no conhecimento do fenômeno urbano

Page 21: LEFEBVRE, Henri_ Da Ciencia a Estrategia Urbana

LEFEBVRE, Henri. Da ciência à estratégia urbana. Trad. Pedro Henrique Denski e Sérgio Martins (do original: De la science à la stratégie urbaine. Utopie, Paris, n. 2 et 3, p.57-86, mai. 1969).

20

senão sob duas condições: quando ela aporta conceitos específicos e quando renuncia ao

imperialismo, exigência que implica uma crítica e uma autocrítica permanentes.

No que concerne à sociologia, incontestavelmente ela aporta um lote de conceitos específicos.

Aquele de ideologia, entre outros, com suas implicações. Aqueles de instituição e de anomia,

com seu alcance crítico. Esta lista não é limitativa e só a exemplaridade crítica desses conceitos

lhes vale o primeiro posto. Pertence a uma discussão aprofundada decidir se alguns conceitos

elaborados por G. Gurvitch (aquele de conduta efervescente, por exemplo, ou aquele de

pluralidade de tempos) podem ser retidos e utilizados na análise do fenômeno urbano. O que se

pode estimar. Em contrapartida, nem mesmo as noções e representações de centralidade, de

tecido e de espaço urbanos parecem depender unicamente da sociologia.

3. Ao nível teórico mais elevado, é preciso conceber a mutação (ou transformação ou

revolução) pela qual a sociedade dita industrial se modifica em sociedade urbana. Mutação que

determina a problemática, ou seja, o caráter problemático do real. Pode-se afirmar que os

fenômenos ligados à industrialização em tal quadro global (institucional, ideológico) foram

ultrapassados pelos fenômenos urbanos? que estes se subordinam àqueles? Não. A sociedade

atual se situa na transição. Mas os fenômenos e implicações da indústria começam a declinar. A

esse nível, constata-se que os países “socialistas” têm, antes de mais nada, transformado suas

instituições para responder às exigências da produção industrial: racionalidade modificada,

planificação, programação. Nessa via, os países “capitalistas” os têm alcançado até um certo

ponto. A problemática urbana é mundial; a maneira de abordá-la depende da estrutura

econômica, social, política, dos países, assim como das superestruturas ideológicas.

O conhecimento do fenômeno urbano não pode se constituir como ciência senão na e pela

constituição de uma práxis urbana global, suplantando com lentidão ou rapidez a práxis industrial

presentemente realizada, com sua racionalidade própria. Os resultados científicos, ideológicos,

institucionais desse período (a industrialização) não bastam mais. Sem dúvida, eles começam a se

deteriorar. É nesse processo complexo que a análise recorta “objetos” ou constrói “modelos”,

todos provisórios, revisáveis, criticáveis. O que supõe, em primeiro lugar, a confrontação

mencionada entre a ideologia urbanística e a prática urbana dos grupos e das classes sociais; em

segundo lugar, a intervenção das forças sociais e políticas; em terceiro lugar, a liberação das

capacidades de invenção, sem excluir o utopismo mais próximo do imaginário “puro”.

Não percamos a ocasião de sublinhar a inversão ou reviravolta das perspectivas habituais.

Geralmente, representa-se a urbanização como uma simples consequência da industrialização,

Page 22: LEFEBVRE, Henri_ Da Ciencia a Estrategia Urbana

LEFEBVRE, Henri. Da ciência à estratégia urbana. Trad. Pedro Henrique Denski e Sérgio Martins (do original: De la science à la stratégie urbaine. Utopie, Paris, n. 2 et 3, p.57-86, mai. 1969).

21

fenômeno dominante; a cidade e a aglomeração (megápolis) entram portanto no exame do

processo de industrialização e o espaço urbano no espaço de ordenamento geral. A inversão

consiste em considerar a industrialização como uma etapa da urbanização, como um momento,

um intermediário, um instrumento. De modo que no processo duplo (industrialização-

urbanização) o segundo termo tende a se tornar dominante após um período no qual o primeiro

o arrastava. Não se trata mais de um “pensamento da cidade” que se limitava seja a deplorar a

alienação humana na sociedade atual (pelo individualismo atomizante ou pela superorganização),

seja por aspirar pelo retorno à antiga comunidade citadina, grega ou medieval. Esses pretensos

modelos de conhecimento crítico são apenas variantes da ideologia urbanística, a rejeitar

simultaneamente.

A crítica da vida cotidiana recebe, nessa perspectiva, um papel que poderá surpreender. Ela não

poderia passar por um aspecto menor da sociologia. Não é tal “objeto” que ela estuda de

maneira crítica, nem tal “sujeito”; ela não tem um domínio delimitado. Ela se serve tanto da

economia e de análises econômicas quanto da sociologia, da psicologia, da linguística.

Reciprocamente, ela não entra em nenhuma dessas classificações. Certamente, ela não cobre o

conjunto da práxis da época industrial, mas dela retém resultados essenciais. Essa démarche

comporta a crítica dos objetos e sujeitos, dos setores e domínios. Mostrando como as pessoas

vivem, a crítica da vida cotidiana ergue o ato de acusação contra as estratégias que conduzem a

esse resultado. A reflexão crítica transgride os limites entre as ciências especializadas da

realidade humana. Ela ilumina os empregos práticos dessas ciências. Ela indica a emergência e a

urgência de uma prática social nova, que não será mais aquela da “sociedade industrial”, mas a

da sociedade urbana. Desse modo e nesse sentido, a crítica da vida cotidiana (crítica perpétua,

incessante, às vezes autocrítica espontânea, às vezes crítica formulada conceitualmente) retoma

o essencial do estudo dito “sociologia” dos países industriais. Confrontando o real e o possível

(ele também “realidade”) ela tira daí conclusões, sem por isso exigir um “objeto” ou um

“sujeito”, um “sistema” ou um “domínio” fixos. Nessa orientação, pode-se mesmo vislumbrar

que a sociologia urbana receba um dia um estatuto definível: através da crítica das

“necessidades”, das “estruturas”, das ideologias e das práticas existentes.

O urbanismo, enquanto ideologia, dissimula estratégias. A crítica do urbanismo tem esse duplo

aspecto: crítica das ideologias urbanísticas, crítica das práticas urbanísticas (enquanto práticas

parciais e estratégias de classe). Essa crítica lança luz no que se passa realmente na prática

Page 23: LEFEBVRE, Henri_ Da Ciencia a Estrategia Urbana

LEFEBVRE, Henri. Da ciência à estratégia urbana. Trad. Pedro Henrique Denski e Sérgio Martins (do original: De la science à la stratégie urbaine. Utopie, Paris, n. 2 et 3, p.57-86, mai. 1969).

22

urbana: os esforços desajeitados ou lúcidos para pôr e para resolver alguns problemas da

sociedade urbana.

b) A reflexão sobre o fenômeno urbano, prolongando num plano novo a filosofia e se servindo,

através da crítica radical, de todas as ciências, pode definir uma estratégia. Nessa perspectiva se

definem racionalmente o horizonte e o ponto que reúne linhas aparentemente separadas.

Essa estratégia apresenta-se duplamente, sem que essa disjunção possa ocultar uma unidade

fundamental, provindo disso que o conhecimento inteiro, unitário, torna político na acepção

forte desse termo: ciência da realidade política (urbana). De maneira relativa, a estratégia se

desdobra em estratégia do conhecimento e estratégia política. Sua coerência reúne a teoria e a

prática. Não se trata, aliás, nem de um sistema considerado existente (“real”), nem da teoria de

um tal sistema. Se houve sistema da cidade e da realidade urbana, foi somente nesta ou naquela

época histórica: talvez no Oriente, com o modo de produção asiático, talvez na idade média

europeia. Esse sistema, sabe-se, explodiu. Mais que um sistema, a reflexão tem diante dela um

vasto processo com graus variáveis de coesão. Objetivos e verificações, apreensão de conteúdos

e formalizações, repartem-se no tempo e não despontam num espaço esquemático

representado como atual.

c) A ciência do fenômeno urbano deveria responder às exigências pragmáticas, às injunções

imediatas? Planificadores, programadores, utilizadores pedem receitas. Por que fazer? Para

tornar as pessoas felizes. Para lhes ordenar que sejam felizes. Curiosa concepção da felicidade. A

ciência da cidade e do fenômeno urbano não pode responder sem o risco de ratificar os

constrangimentos vindos de alhures: da ideologia e do poder. Ela se constitui lentamente,

servindo-se de hipóteses, de experiências, assim como de conceitos e de teorias. Ela não pode

passar sem a imaginação, ou seja, a utopia. Ela deve ter em conta, no percurso, múltiplas

situações. Aqui, a demografia domina a realidade e, por conseguinte o conhecimento; o que não

provoca a dominação do demógrafo, mas o autoriza a tomar a palavra por um certo lapso de

tempo, sem que tenha por isso o direito e o poder de fixar o futuro. Ali, é o econômico, o que

comporta a intervenção do planificador, mas o expõe prontamente à crítica radical, certamente

incômoda para ele, mas útil. E singularmente fecunda. Ademais, a sociologia e o sociólogo têm

sua palavra a dizer. Não está, aliás, excluído que as pesquisas sobre a cidade e o fenômeno

urbano não permitam a construção de “modelos” ao nível macrossociológico. Talvez seja no

curso desse processo (estrategicamente orientado) que a sociologia em geral e a sociologia

urbana, levadas a reconsiderar suas categorias e conceitos, poderão se constituir em

Page 24: LEFEBVRE, Henri_ Da Ciencia a Estrategia Urbana

LEFEBVRE, Henri. Da ciência à estratégia urbana. Trad. Pedro Henrique Denski e Sérgio Martins (do original: De la science à la stratégie urbaine. Utopie, Paris, n. 2 et 3, p.57-86, mai. 1969).

23

“disciplinas” científicas. Aconteça o que for, em nenhum caso e em nenhuma parte o meio deve

se sobrepor o fim, nem o parcial o global, nem a tática a estratégia. A tática de tal ou qual

especialidade será criticada severamente desde que ela se pretenda estratégia ao nível global, ou

seja, imperialismo.

d) A estratégia do conhecimento não pode se isolar. Ela visa à prática, ou seja, em primeiro

lugar, uma confrontação incessante com a experiência, e, em segundo, a constituição de uma

prática global, coerente, a da sociedade urbana (a prática da apropriação pelo ser humano do

tempo e do espaço, modalidade superior da liberdade).

Entretanto, até nova ordem a prática social pertence aos políticos. Ou melhor, eles dela se

apoderam por meio de instituições e de aparelhos. Mais exatamente, os políticos especializados

bloqueiam o caminho à constituição de uma racionalidade superior, a da democracia urbana,

que corresponderia à prática nessa sociedade. Eles se movem no interior de quadros

institucionais e ideológicos, quando se trata precisamente de ultrapassá-los. O que ocorre torna

a situação mais difícil. A estratégia do conhecimento se encontra diante de uma dupla obrigação.

Ela não pode prescindir de estratégias políticas. Ela tem necessidade de conhecê-las. Como ela

afastaria do conhecimento esses “objetos”, esses sistemas e esse domínio? A sociologia política,

aquela da administração e da burocracia, tem aqui muito a dizer, com a condição de não

considerar “positivos” e somente “positivos”, o que serve aos interesses das pessoas em

questão, grupos de pressão e aparelhos. Entre as ações estratégicas entram portanto proposições

aos políticos, homens de Estado, tendências, partidos. O que não quer dizer que o

conhecimento crítico abdique e confie nos políticos especializados. Ao contrário. Como lhes

apresentar projetos e programas sem renunciar à análise crítica das ideologias e das realizações?

Como persuadi-los ou coagi-los respondendo às suas pressões por pressões opostas? O que não

é seguro, nem fácil. Contudo, o abandono, pelo conhecimento, de seu direito de crítica sobre as

decisões e as instituições ser-lhe-á fatal. Após a abdicação, um processo dificilmente reversível

se põe em marcha.

e) A estratégia comporta um artigo essencial: o emprego ótimo e máximo das técnicas (de todos

os meios técnicos) na solução das questões urbanas, ao serviço da vida cotidiana na sociedade

urbana. O que abre a possibilidade de transformar essa vida cotidiana tal como a conhecemos. E

isso pelo uso racional de máquinas e técnicas. Artigo essencial. De um conjunto de experiências

contemporâneas, resulta que as previsões econômicas e os poderes estatistas entrevêem

raramente essa utilização ótima dos recursos da técnica e dos meios proporcionados pelas

Page 25: LEFEBVRE, Henri_ Da Ciencia a Estrategia Urbana

LEFEBVRE, Henri. Da ciência à estratégia urbana. Trad. Pedro Henrique Denski e Sérgio Martins (do original: De la science à la stratégie urbaine. Utopie, Paris, n. 2 et 3, p.57-86, mai. 1969).

24

ciências. Eles só os empregam impelidos e coagidos pela opinião, pela urgência, pela crítica

(desde que ela possa se exercer). Por quê? Por motivos orçamentários e financeiros, ou seja,

“econômicos”. Nesse domínio, realizam-se facilmente economias. Os motivos escondem razões

mais profundas. Os poderes têm suas estratégias, os aparelhos têm seus interesses, que muito

frequentemente relegam ao segundo plano essas questões.

O recurso à filosofia não implica em nada a nostalgia do passado. Ao contrário. Aqui toma

sentido e alcance a distinção entre pensamento filosófico e metafilosófico. É para perceber em

toda sua amplitude a “problemática” atual – isto é, a atualidade como problemática – e para

abrir o horizonte que se pode apelar à meditação filosófica. Especificando que se passa assim da

filosofia clássica à metafilosofia.

f) A totalidade? Dialeticamente falando, ela está lá, aqui e agora. E não está. Em todo ato, e

talvez desde a “natureza”, encontram-se todos os momentos: trabalho e jogo, conhecimento e

repouso, esforço e gozo, alegria e dor. Mas esses momentos exigem uma “objetivação” na

realidade e na sociedade; eles aguardam uma formalização que os elucide e os proponha.

Próxima nesse sentido, a totalidade encontra-se portanto igualmente distante: imediatidade

vivida e horizonte. A sociedade urbana transcende a oposição cavada pela ideologia da época

industrial entre a natureza e a cultura.