lara, angela mara. o papel do estado

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______________ * Mestre em Educação pela Universidade Estadual de Maringá; [email protected] ** Pós-Doutora em Educação pela Universidade Federal de Santa Catarina; Doutoraem Educação pela Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho; Mestrado em Educação pela Universidade Metodista de Piracicaba; Professora do Departamento de Fundamentos da Educação da Universidade Estadual de Maringá; Professora do Programa de Pós-graduação em Educação da Universidade Estadual de Maringá; Av. Colombo 5790, Jd. Universitário, Maringá, PR, 87020-900; [email protected] O PAPEL DO ESTADO EM DOCUMENTOS DE POLÍTICA EDUCACIONAL: A VISÃO DE AGÊNCIAS MULTILATERAIS Thaís Godoi Souza * Angela Mara Barros Lara ** Resumo: Este artigo visou analisar o papel do Estado em documentos orienta- dores de políticas educacionais elaborados por agências multilaterais do Siste- ma ONU. Investigou-se que papel é atribuído ao Estado nestes documentos no que compete à definição da agenda de reforma da educação para os países “em desenvolvimento” a partir de 1990. Parte-se do pressuposto de que as agências multilaterais atuam como força supranacional, que repercutem sobre os sistemas educativos nacionais e assumem importante papel na definição de agenda global- mente estruturada para a educação. As fontes analisadas foram os documentos do Banco Mundial (BM) e a Comissão Econômica para a América Latina e o Caribe (Cepal), respectivamente Prioridades y estrategias para la educación: examen del Banco Mundial (1996) e Educação e conhecimento: Eixo da transformação produtiva com equidade (1995). Pela análise realizada constatou-se que o papel atribuído ao Estado nos documentos orientadores visou à legitimação de processos de privatização, reorientações dos gastos públicos e desregulamentação da econo- mia, em prol de adequar a educação ao programa político de liberalização da eco- nomia mundial para garantir a rentabilidade do setor privado, bem como aparece como promotor da equidade na educação, com foco nas classes marginalizadas da 151 Roteiro, Joaçaba, v. 38, n. 1, p. 151-168, jan./jun. 2013

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  • ______________* Mestre em Educao pela Universidade Estadual de Maring; [email protected]** Ps-Doutora em Educao pela Universidade Federal de Santa Catarina; Doutoraem Educao pela Universidade Estadual Paulista Jlio de Mesquita Filho; Mestrado em Educao pela Universidade Metodista de Piracicaba; Professora do Departamento de Fundamentos da Educao da Universidade Estadual de Maring; Professora do Programa de Ps-graduao em Educao da Universidade Estadual de Maring; Av. Colombo 5790, Jd. Universitrio, Maring, PR, 87020-900; [email protected]

    O PAPEL DO ESTADO EM DOCUMENTOS DE POLTICA EDUCACIONAL: A VISO DE

    AGNCIAS MULTILATERAIS

    Thas Godoi Souza*Angela Mara Barros Lara**

    Resumo: Este artigo visou analisar o papel do Estado em documentos orienta-dores de polticas educacionais elaborados por agncias multilaterais do Siste-ma ONU. Investigou-se que papel atribudo ao Estado nestes documentos no que compete definio da agenda de reforma da educao para os pases em

    desenvolvimento a partir de 1990. Parte-se do pressuposto de que as agncias multilaterais atuam como fora supranacional, que repercutem sobre os sistemas educativos nacionais e assumem importante papel na definio de agenda global-mente estruturada para a educao. As fontes analisadas foram os documentos do Banco Mundial (BM) e a Comisso Econmica para a Amrica Latina e o Caribe (Cepal), respectivamente Prioridades y estrategias para la educacin: examen del Banco Mundial (1996) e Educao e conhecimento: Eixo da transformao produtiva com equidade (1995). Pela anlise realizada constatou-se que o papel atribudo ao Estado nos documentos orientadores visou legitimao de processos de privatizao, reorientaes dos gastos pblicos e desregulamentao da econo-mia, em prol de adequar a educao ao programa poltico de liberalizao da eco-nomia mundial para garantir a rentabilidade do setor privado, bem como aparece como promotor da equidade na educao, com foco nas classes marginalizadas da

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    sociedade, configurando-se em fator de coeso social, regulador para o capital e

    mnimo para as polticas sociais.Palavras-chave: Agncias multilaterais. Documentos de polticas educacionais. Estado.

    The states role in education policy documents: The vision of multilateral agencies

    Abstract: This article aimed to analyze the role of States in educational policy guidance documents prepared by multilateral agencies of the UN System. We in-vestigated what role is assigned to these documents State that competes in the definition of the education reform agenda for countries to developing since

    1990. It starts from the assumption that multilateral agencies act as a supranatio-nal force, which impact on national education system and play an important role in the definition of globally structured agenda for education. The sources were

    analyzed documents from the World Bank (WB) and the Economic Commission for Latin America and the Caribbean (ECLAC),respectively, Priorities and stra-tegies for education: review World Bank (1996) and Education and Knowledge:

    Axis of productive transformation with equity (1995). For the analysis found

    that the role of the State in guiding documents sought legitimization of privatiza-tion processes, reorientation of public spending and deregulation of the economy to ensure the profitability of the sector private. As well, appears as promoter equity

    in education, with a focus on marginalized classes of society, being a factor of cohesion, the regulator for minimum capital and social policies.Keywords: Multilateral agencies. Educational policy documents. State.

    1 INTRODUO

    O presente trabalho investigou o papel atribudo ao Estado na atuao e gesto das polticas educacionais para os pases-membros de agncias multila-terais do Sistema ONU. O objetivo mostrar o papel do Estado nos documentos orientadores do Banco Mundial (BM) e da Comisso Econmica para a Amrica Latina e o Caribe (Cepal), na dcada de 1990, referente definio da agenda de

    reforma da educao para os pases em desenvolvimento. Parte-se do pressupos-to de que as agncias multilaterais atuam como fora supranacional, que repercute

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    O papel do estado em documentos de poltica educacional: ...

    sobre os sistemas educativos nacionais e assume importante papel na definio de

    Agenda globalmente estruturada para a educao. (DALE, 2004).

    As fontes primrias analisadas foram os documentos do BM e Cepal/Unesco, respectivamente Prioridades y estrategias para la educacin: examen del Banco Mundial (1996) e Educao e conhecimento: Eixo da transformao produtiva com equidade (1995). A opo por estes documentos parte do contexto histrico que foram produzidos, isto , a dcada de 1990, e tambm, por sustenta-rem a proposta de reforma do Estado. A educao nesse perodo apontada pelos documentos orientadores como soluo para as desigualdades sociais, para o al-vio da pobreza, da melhoria da qualidade de vida, do crescimento econmico e do desenvolvimento de capacidades individuais e competncias.

    E, nesse cenrio, encontra-se o Estado que adere s polticas educa-cionais focalizadas propostas pelas agncias multilaterais e que tm por funo desenvolver e dar procedimento a essas reformas, entendidas como mudanas or-ganizacionais e de concepes pedaggicas no sistema educacional, descentrali-zao administrativa, nfase na avaliao, foco no desempenho, equidade, imple-mentao de contedos comuns e professor responsvel pela qualidade do ensino. O Estado intervm minimamente no financiamento educao, abrindo portas

    iniciativa privada e solidariedade da sociedade civil. Essas aes estas derivam das polticas orientadoras de agncias financeiras multilaterais, em especial o BM,

    que atua como ator poltico, intelectual e financeiro (PEREIRA, 2009).

    O papel atribudo ao Estado nos documentos orientadores visou legi-timao de processos de privatizao, reorientaes dos gastos pblicos e desregu-lamentao da economia, em prol de adequar a educao ao programa poltico de liberalizao da economia mundial para garantir a rentabilidade do setor privado.

    Para trilhar esse caminho, o estudo se caracterizou metodologicamente por uma pesquisa documental, a qual utiliza diversas fontes que j foram ou no analisadas e publicadas. As fontes documentais podem ser [...] tabelas estatsticas,

    jornais, revistas, relatrios, documentos adquiridos em escolas e instituies, as-sociaes, igrejas, hospitais, documentos oficiais, cartas, contratos, dirios, filmes

    e relatrios de empresas. (MATOS; VIEIRA, 2002, p. 41). As fontes escolhidas

    para o estudo se pautaram em documentos orientadores de educao de agncias das Naes Unidas. Referente abordagem dos documentos, Shiroma, Campos e Garcia (2005) declaram que h carncias de teorias que investiguem os documen-tos em uma articulao macro e micro de anlise. Para entender os sentidos que produzem e em quais condies so produzidos, preciso centrar-se no contexto

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    em que os textos foram criados. Por meio das anlises dos documentos procura--se refletir sobre as condies de produo e apreenso da significao dos textos.

    Para melhor visualizao do artigo, estruturamos o trabalho em dois momentos: no primeiro, abordamos questes sobre o Estado, apresentando sua es-trutura e funes referentes ao perodo analisado. No segundo e ltimo momento do desenvolvimento, apresentamos qual o papel atribudo ao Estado nos documen-tos orientadores para a educao das agncias multilaterais, bem como o reflexo

    dessas proposies ao campo educacional na dcada de 1990.

    2 O ESTADO E SUAS AES NA SOCIEDADE

    Esta seo se props a discutir o Estado, apresent-lo em sua estrutu-ra e nas relaes sociais que estabeleceu no perodo de 1990. O Estado, em sua estrutura, um conjunto de instituies permanentes que possibilitam a ao do Governo (HFLING, 2001). O Estado moderno essencial para a garantia e pro-teo permanente da produtividade do sistema capitalista. Ele se compe como nica estrutura corretiva compatvel com os parmetros estruturais do capital. Sua funo ajustar. [...] o Estado passa a existir acima de tudo, para poder exercer

    o controle abrangente sobre as foras centrfugas insubmissas que emanam de unidades produtivas isoladas do capital, um sistema reprodutivo social antagoni-camente estruturado. (MSZROS, 2002, p. 107).

    O Estado uma estrutura corretiva vivel para controlar as contradi-es do capital. Ele possui o papel vital de garantir e proteger as condies gerais da extrao da mais-valia, visto que nasceu da necessidade material da ordem social vigente. um instrumento de coeso social, media s relaes entre as clas-ses, entre capital e trabalho, servindo ao capital na busca da mais-valia. O Estado figura central no combate s contradies do sistema. A interveno estatal tem

    o fim de equalizar as desigualdades entre capital e trabalho (MSZROS, 2002).

    Referente s suas aes na sociedade, podemos citar a gesto das po-lticas pblicas., as quaisestas so de responsabilidade do Estado e todo o seu processo de desenvolvimento. Contudo, as decises partem da participao de r-gos pblicos, distintos organismos e agentes da sociedade civil. J as polticas sociais um padro de proteo social [...] implementado pelo Estado, voltadas

    em princpio, para a redistribuio dos benefcios sociais visando diminuio das desigualdades estruturais produzidas pelo desenvolvimento socioeconmico.

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    (HFLING, 2001, p. 31). A educao pode ser considerada [...] uma poltica

    pblica de corte social, de responsabilidade do Estado. (HFLING, 2001, p. 31). As intervenes do Estado com as polticas pblicas e sociais visam

    manter as relaes sociais da atual ordem social. Ele sempre estar atrelado ao modo de produo vigente e ter uma teoria e um projeto poltico que o orienta. As aes sociais do Estado a partir de 1990, centraram-se em polticas focalizadas, compensatrias que no mudaram as relaes sociais e de produo. Isso ocorreu em razo da reforma do Estado, que teve como ponto principal a minimizao de seu papel de conduzir os rumos da sociedade. Com a reforma, reduz ao mnimo a interveno social do Estado em diversas reas e o mercado passa a ser o regula-dor e o legitimador social. No contexto da reforma, h a defesa da privatizao de empresas pblicas e a implantao de polticas sociais.

    A justificativa para a implementao de polticas focalizadas a libe-rao de recursos por parte do Estado para atividades prioritrias, favorecendo a abertura de oportunidades ao setor privado. Esse processo se intensifica a partir da

    dcada de 1990, na Amrica Latina, tendo nas agncias financeiras multilaterais os

    grandes disseminadores da ideologia neoliberal (DEITOS, 2005). A recomendao da diminuio do papel do Estado no setor social par-

    tiu do Consenso de Washington, em 1989, o qual apresentou medidas econmicas e acordo amplo entre o Governo norte-americano e os principais atores [...] do

    complexo Washington-Wall Street: Departamento do Tesouro, o Banco Mundial, o FMI, o Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID), a USAID e outros think tanks estadunidenses. (PEREIRA, 2009, p. 190). O acordo estabelecido no Consenso de Washington focou reformas polticas e econmicas Amrica Latina e ao Caribe, para garantir a remodelagem do Estado e a rentabilidade dos negcios privados (PEREIRA, 2009).

    3 O PAPEL DO ESTADO NOS DOCUMENTOS DE AGNCIAS MULTILATERAIS: BM E CEPAL/UNESCO

    Nesta seo analisamos qual o papel atribudo ao Estado nos documen-tos orientadores, do BM e Cepal/Unesco, respectivamente, Prioridades y estrate-gias para la educacin: examen del Banco Mundial (1996) e Educao e conheci-mento: Eixo da transformao produtiva com equidade (1995).

    No ano de 1941 os Estados Unidos traava novos rumos ao cenrio

    internacional, no intuito de comercializao de suas mercadorias e abertura dos

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    mercados estrangeiros ao capital (PEREIRA, 2009). O nascimento da ONU este-ve articulado a um cenrio, no qual o Estado se reestruturava juntamente com as relaes internacionais, almejando impedir a volta do colapso que ameaara o ca-pitalismo na crise de 1929 e impedira o ressurgimento das rivalidades geopolticas que levaram Segunda Guerra Mundial, em 1939. A criao da ONU resultou da elaborao de propostas dos Estados Unidos para uma nova arquitetura econmica internacional, a qual surge na Conferncia Monetria e Financeira das Naes Unidas, em 1944, com a presena de 44 pases na cidade de Bretton Woods, a convite do Presidente Franklin Roosevelt (PEREIRA, 2009).

    O foco da referida Conferncia era construir um sistema que visasse estabilidade econmica, ao pleno emprego, ao livre comrcio e investimento internacional, [...] vistos como condies para a conquista e a manuteno da paz

    e da prosperidade entre as naes. (PEREIRA, 2009, p. 53). O resultado final de

    Bretton Woods representou a hegemonia norte-americana na reorganizao pol-tica e econmica internacional do segundo ps-guerra, com a criao do Banco Internacional para a Reconstruo e o Desenvolvimento (BIRD), do Fundo Mone-trio Internacional (FMI), da Unesco e do Sistema ONU como um todo. O BIRD organizao mais antiga e importante do Grupo do BM - e o FMI tiveram maior destaque, pois a misso essencial era garantir emprstimos para a reconstruo dos pases-membros afetados pela guerra (PEREIRA, 2009). Era necessrio encontrar um consenso entre Estado, mercado e instituies democrticas como forma de promoo da paz, incluso, bem-estar e estabilidade.

    Em 1960 o BM1 passa a investir no setor social, em razo do levanta-mento internacional sobre o aumento da pobreza em pases subdesenvolvidos e a consequncia que isso poderia acarretar economia dos pases centrais. Destarte, o BM priorizou o financiamento a grupos de risco. Fonseca (2001) alega que na

    dcada de 1970 que o banco se torna a maior fonte financivel do setor social, em

    especial, da educao.O papel atribudo ao Estado no referido documento do BM a orien-

    tao para que ele diminua seus investimentos no financiamento pblico a fim de

    permitir a eficincia e a equidade. De hecho, la mayora de los gobiernos inter-vienen mucho en todos los niveles de educacin, y esa actividad absorbe en mu-chos casos una porcin considerable del gasto pblico. (BANCO MUNDIAL, 1996, p. 58).2 Essa afirmao revela a defesa de um Estado que seja mais eficiente ao capital e gere um mnimo para o alvio da pobreza.

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    Segundo Fonseca (2001), o BM vincula os objetivos educacionais poltica de ajuste econmico, orientando o Estado a priorizar o investimento no ensino inicial, com o objetivo de diminuir os encargos financeiros do Estado. E os

    outros nveis de ensino passam a ser ofertados iniciativa privada. O BM declara que os investimentos em educao devem ser para os pobres, por dois motivos,

    [...] porque los pobres tienden a tener famlias numerosas de manera que las famlias pobres reciben un subsidio mayor que las ricas. En segundo lugar, porque los ricos pueden optar por obtener educacin privada, con lo que tambin aumenta la cantidad de subsidio que beneficia a los pobres. (BANCO MUNDIAL, 1996, p. 59-60).3

    Aqui, o Estado tem o papel de intervir na sociedade para promover a igualdade de oportunidades, j que no so todas as classes que podem financiar a

    educao. Assume que [...] no todos los grupos de la sociedad pueden pagar los costos directos e indirectos relacionados con la inversin en educacin, y el Esta-do deve intervenir por eso para promover la igualdad de oportunidades. (BAN-CO MUNDIAL, 1996, p. 60).4 Isso revela que o Estado deve priorizar a educao aos grupos vulnerveis socialmente, eliminando as polticas universais para toda a populao e assegurando a terceirizao de servios e privatizao. Essa passagem do BM alega que o Estado deve reduzir o gasto pblico, estimulando a entrada de capital privado, visando elevar a eficincia global da economia (PEREIRA, 2009).

    O documento do BM salienta que o investimento pblico deve ser desti-nado educao bsica (oito anos de ensino), ofertando, dessa forma, o mnimo de educao. J o Ensino Superior deve ser de responsabilidade da famlia e no dever do Estado. Consideramos que a igualdade de oportunidades uma retrica do BM, pois a classe burguesa pode frequentar at o Ensino Superior e os grupos vulnerveis se apropriam somente do ensino fundamental. A igualdade de oportunidades uma estratgia poltica que marca somente as diferenas entre as classes sociais.

    O gasto pblico deve ser prioritrio para as crianas de famlias po-bres; porque medida que se aumenta o nvel de ensino, o Estado retira-se da sua responsabilidade, transferindo o papel s famlias e ao setor privado (LAUGLO, 1997). No nada mais que pensar a educao como um investimento para o cres-cimento econmico, com base na Teoria do Capital Humano, na qual cada indi-vduo se apropria da educao e a investe posteriormente no mercado de trabalho por meio de suas competncias, aumentando sua produtividade. O BM argumenta que por meio da educao primria o crescimento j possvel, isto , [...] un

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    nvel mnimo de acumulacin del capital humano, por encima del cual es posible que el crecimiento de los pases se acelere. (BANCO MUNDIAL, 1996, p. 24).5

    Para alcanar essa meta, preciso investir na educao mnima das classes subalternas, possibilitando-as a adquirirem um conhecimento mnimo e responsabilizando-as pela sua ascenso, por meio da apropriao individual, re-sultado de uma aquisio de atitudes, aptides e acumulao de conhecimentos (BANCO MUNDIAL, 1996). Essa ideia reflete um dos tpicos do Consenso de Washington, a reorientao dos gastos pblicos, que prope o redirecionamento do gasto pblico para reas de alto retorno econmico e formao de capital humano; entre estas reas se encontram a sade, a educao e a infraestrutura.

    Silva (2003) contribui para o entendimento das orientaes do BM educao e mostra como elas mudam os rumos da educao. Suas orientaes e aes chegam por meio de programas, projetos e planos elaborados por seus re-presentantes inseridos nas escolas pblicas. um jogo poltico [...] em que h o

    predomnio concreto das naes avanadas, decididas a apropriar-se das riquezas sociais e ambientais dos pases devedores. O crescimento do capital e no do desenvolvimento humano e social. (SILVA, 2003, p. 297-298).

    O documento Prioridades y estrategias para la educacin (1996) propa-ga o discurso social, a teoria humanitria, da amenizao da pobreza, da equidade entre os cidados, marcando as diferenas entre as classes sociais. Incorpora o setor educacional ao processo de ajuste econmico que supe a diminuio do papel do Estado. Enfatiza a funo da educao formal primria, devendo esta ser obrigatria e de responsabilidade do Estado, no intuito de elevar a demanda das economias com uma quantidade mnima de educao s classes subalternas. Assim, os futuros traba-lhadores adquiriro conhecimentos para realizar trabalho simples. O Estado apre-sentado como responsvel apenas pelas primeiras sries do Eensino Ffundamental de forma universal, e o restante da escolaridade preciso abrir para a iniciativa privada, de maneira a diminuir os encargos financeiros do Estado.

    O documento Educao e conhecimento: eixo da transformao pro-dutiva com equidade (1995), produzido conjuntamente pela Cepal e pela Unesco, refere-se ao contexto latino-americano e caribenho. Nele, a questo central in-troduzir a reforma educacional regio latino-americana para adapt-la ao setor produtivo. Primeiramente, o documento analisa o desenvolvimento da Amrica Latina e Caribe do segundo ps-guerra at o incio da dcada de 1990. Com o diagnstico desse perodo, prope estratgias polticas para a transformao da educao, como [...] a criao de condies educacionais, de capacitao e in-

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    corporao do progresso cientfico-tecnolgico que tornem possvel a transfor-mao das estruturas produtivas da Amrica Latina e Caribe num referencial de progressiva igualdade social. (CEPAL/UNESCO, 1995, p. 197). A ideia central do documento incorporar e difundir o progresso tcnico, o qual permite o cres-cimento econmico e a justia social por meio da competitividade. H fatores que intervm no progresso tcnico, como fortalecimento da base empresarial, abertura economia internacional, formao de recursos humanos e meios que facilitam o acesso a novos conhecimentos.

    O documento assume que preciso criar condies [...] educacionais

    de capacitao e de incorporao do progresso cientfico-tecnolgico capazes de

    transformar as estruturas produtivas da regio, e faz-lo num marco de progres-siva eqidade social. (CEPAL/UNESCO, 1995, p. 4). Segundo a Cepal/Unesco

    (1995), isso ser alcanado por meio de reformas dos sistemas educacionais e capacitao de mo de obra da regio. necessrio desenvolver na Amrica La-tina e Caribe uma estratgia que adeque os sistemas educacionais construo da cidadania, democracia e competitividade internacional.

    O papel do Estado citado mltiplas vezes no documento, e uma de suas funes apoiar a base empresarial, promover a competitividade, estabelecer grau de igualdade entre os cidados e conservar o ambiente, para que se alcance a evoluo da Amrica Latina e Caribe no progresso cientfico e tecnolgico. O Es-tado sempre vem articulado ao investimento e deve assistir s classes mais pobres, pois so estas que devem se beneficiar dos investimentos da educao, argumento

    presente tambm no documento do BM. Os gastos pblicos devem ser para os mais pobres, ou seja, necessrio proporcionar o mnimo de educao a esse es-trato populacional, oferecendo de maneira universal somente a educao primria como responsabilidade do Estado.

    A Cepal e a Unesco (1995) declaram que o Estado deve ter a funo de compensador, de modo a destinar seus recursos para lugares com maiores necessi-dades, contribuindo para a igualdade social, bem como ter suas fontes alternativas de financiamento, participao crescente de recursos privados e descentralizador,

    no intuito de fortalecer a autonomia dos estabelecimentos de ensino. O Estado precisa [...] atuar no eixo da fixao de metas, da avaliao de

    desempenho, do uso de incentivos com o fim de aumentar a eficcia e a equidade

    do sistema, reforar a autonomia e a iniciativa dos centros educacionais. (CEPAL/UNESCO, 1995, p. 190). Isso se caracteriza pela nova relao entre o sistema edu-cacional, o Estado e a sociedade, no intento de alcanar as metas dessa estratgia.

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    Cabe ao Estado, tambm, orientar as instituies de ensino a formular, planejar e realizar pesquisas na esfera educacional, assegurando um ncleo forma-tivo em especial, no ensino primrio e mdio de disciplinas que contemplem [...]

    o acesso aquisio e uso dos cdigos culturais da modernidade, que constituem os pressupostos cognitivos da moderna cidadania, alm de elemento bsico para um desempenho eficaz no mundo do trabalho. (CEPAL/UNESCO, 1995, p. 237).

    Referente equidade, o Estado deve garantir a distribuio de oportunidades edu-cacionais de forma adequada, destinando os recursos pblicos a estudantes pobres, por meio de bolsas e emprstimos, recordando que a prioridade do financiamento

    pblico a educao primria.Notamos que o discurso das agncias multilaterais Cepal/Unesco est

    pautado no regime de acumulao sobre a dominncia do capital financeiro. E o

    Estado moderno, inserido nesse cenrio, torna-se parceiro indissocivel do capital, pois se caracteriza por uma estrutura indispensvel de proteo para a extrao de trabalho excedente e facilitador da expanso monopolista do capital. A educao para a Cepal/Unesco apenas um meio para atingir a meta de insero da regio no mercado internacional e ali-la ao setor produtivo.

    [...] cabe ao Estado garantir a eficincia do sistema educa-cional e seu conjunto. Como qualquer outro ele a soma de elementos que guardam mltiplas relaes entre si e com seu meio. As interaes entre os componentes do sistema educacional so fundamentais para assegurar-lhe a eficin-cia global a ausncia de continuidade em alguns de seus nveis, ou entre seus vrios patamares, por exemplo, dimi-nui o rendimento e compromete a equidade do investimento em educao. (CEPAL/UNESCO, 1995, p. 130-131).

    Observamos o reforo da teoria do capital humano, considerada a atividade que o indivduo realiza, resultando na sua produtividade futura. Ainda, nessa relao, incluem a famlia, empresrios, grupos sociais como meios de investimento na educao e acmulo de capital humano (CEPAL/UNESCO, 1995). O documento revela que a demanda do mercado educacional grande e, para satisfaz-lo preciso expandir a rede, abrindo espaos ao setor privado. Per-cebemos aqui a diminuio do papel do Estado, responsabilizando outros setores no estatais a dividirem a tarefa para a execuo da educao. O documento ainda aponta e orienta a poltica educacional para o mercado na tentativa de adaptar os sujeitos ao novo modo de organizao da produo.

    O Estado e as autoridades pblicas so responsveis por planejar e conduzir [...] a estratgia de desenvolvimento do sistema global de formao

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    O papel do estado em documentos de poltica educacional: ...

    de recursos humanos a longo prazo e, definir contedos da educao obrigatria

    e distribuir o material didtico de forma gratuita. (CEPAL/UNESCO, 1995, p. 212). E, tambm, garantir a compensao de grupos sociais, avaliar os resultados obtidos e estabelecer normas para o sistema educacional.

    Em sntese, a Cepal e a Unesco (1995) articulam a educao com o se-tor produtivo, a qual apontada para a equidade social, subordinada aos interesses econmicos e de mercado. Suas estratgias partem do princpio de combinar o per-fil educacional ao sistema produtivo. Propem reformas institucionais baseadas na

    descentralizao, autonomia e avaliao de desempenho na gesto educacional. Apresentam a educao como nica sada para as classes marginalizadas ascen-derem socialmente, o que representa o ocultamento das desigualdades sociais e impossibilidades de insero e absoro no mercado de trabalho. A insero no mundo do trabalho no deriva da incapacidade dos sujeitos, mas pelas causas do modelo econmico vigente que se pauta na explorao da fora de trabalho, pre-carizao do trabalho e aumento do exrcito de reserva, gerando excluso e desi-gualdade. O Estado, nesse documento, associado ao gerenciamento da equidade, com foco nos grupos vulnerveis, bem como procedimento de tarefas ao sistema educativo, propondo avaliaes para quantificar resultados. Seu dever financiar

    somente a educao primria.Como analisamos, o Estado, em ambos os documentos, aparece mini-

    mizado para prover polticas universais, resultado do projeto poltico e econmico estabelecido no Consenso de Washington. O acordo firmado nesse espao visou a

    reformas educacionais, particularmente nos pases da Amrica Latina e Caribe para auxiliar na reestruturao do capitalismo que passava por grandes crises desde a dcada de 1970. O capital entra em decadncia no incio dos anos 1970 e enfrenta mltiplos obstculos, como a queda da taxa de lucro, esgotamento do modelo taylo-rista/fordista de produo, crise do Estado do Bem-Estar Social ou Welfare State, hipertrofia da esfera financeira e aumento de privatizaes (ANTUNES, 2005).

    A crise do modelo de produo se caracterizou por uma crise estru-tural do capital, pela incontrolabilidade do sistema e pela sua lgica destrutiva. Em resposta a esta crise, [...] iniciou-se um processo de reorganizao do ca-pital e de seu sistema ideolgico e poltico de dominao, cujos contornos mais evidentes foram o advento do neoliberalismo, com a privatizao do Estado, a desregulamentao dos direitos do trabalho e a desmontagem do setor produtivo estatal. (ANTUNES, 2005, p. 31). Toda essa reestruturao, segundo o autor, gerou consequncias no mundo do trabalho e destruio da natureza em escala

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    global. A soma desses fatores abre espao para uma nova forma de organizao de produo, conhecida como Toyotismo, caracterizada pela produo determi-nada pela demanda e flexibilizao.

    As mudanas na organizao da produo e do trabalho se refletem na

    educao e em outras esferas da sociedade. Nesse contexto poltico, econmico e social em transformao, a educao aparece como redentora das desigual-dades sociais, vista como a chave para o desenvolvimento econmico, para a igualdade de oportunidades e para a reduo da pobreza. Discursos estes procla-mados pelas agncias financeiras multilaterais e dirigentes polticos e ministros

    da educao pblica de diferentes pases.As reformas educacionais na dcada de 1990 tiveram como marco a Con-

    ferncia Mundial sobre Educao para Todos: Satisfao das necessidades bsicas de aprendizagem, realizada em Jomtien na Tailndia em 1990. A educao, para os pases-membros presentes na Conferncia, permitiria que a sociedade como um todo enfrentasse problemas sociais com menos dificuldades. Para tanto, reconhece-ram [...] que uma educao bsica adequada fundamental para fortalecer os nveis

    superiores de educao e de ensino, a formao cientfica e tecnolgica e, por conse-guinte, para alcanar o desenvolvimento autnomo. (UNESCO, 1990).

    A Declarao de Jomtien enfatiza o direito de todos educao, referin-do-se aos grupos excludos, meninos e meninas de rua, trabalhadores, indgenas, minorias tnicas, deficientes fsicos, meninas e mulheres. Para alcanar os objeti-vos propostos, os representantes de Estado presentes nesta conferncia criaram um plano de ao para que servisse de referncia aos governos e queles comprometi-dos com a educao (UNESCO, 1990).

    Sob esse aspecto Scaff (2007) aborda a importncia do planejamento para o Estado moderno, que, para complementar o comando poltico do sistema, realiza o propsito de mant-lo. Portanto o Estado funciona como ferramenta de implantao de polticas de interesses hegemnicos. Nessa discusso, a autora de-clara que os pases centrais [...] com o fim da guerra, se preocupam em garantir a

    continuidade da acumulao capitalista. (SCAFF, 2007, p. 333). E, para esse fim,

    criam mltiplas agncias multilaterais,6 com a finalidade de auxiliarem os pases a retomarem o pleno desenvolvimento do modelo de acumulao capitalista.

    preciso mencionar tambm o Sistema ONU, o qual composto por vrias agncias, programas e fundos.7 A misso da ONU tentar solucionar pro-blemas mundiais por meio da cooperao internacional referente educao, pobreza, ao desemprego, s doenas e ao meio ambiente. As conferncias,

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    O papel do estado em documentos de poltica educacional: ...

    os encontros e as convenes propostos pelas agncias das Naes Unidas ou aquelas que no esto inseridas na ONU,8 so articulaes polticas e econmi-cas de interesses multilaterais e os documentos produzidos por ela demonstram a poltica do bom sentimento, velando, muitas vezes, a real inteno das relaes internacionais para a educao.

    Isto significa que a ideologia no visvel para os sujeitos da realidade

    social, pois ela determinada por sua estrutura que se mantm difusa aos agentes que nela vivem. Seu papel ocultar as contradies reais, fazer um discurso co-erente e dissemin-lo. Essa a ao que as agncias multilaterais realizam. Pro-duzem documentos orientadores para o sistema educacional de diversos pases, lembrando que no uma ordem vertical, um acordo consentido de ambos, tanto das agncias quanto dos chefes de Estado.

    Nos documentos orientadores do BM, Cepal/Unesco, a educao posta como elemento central da sociedade, visto ser fator de desenvolvimento social e garantia de estabilidade do sistema capitalista, utilizada como estratgia de regulao social, alvio da pobreza, equidade, sustentabilidade e ascenso das classes excludas. Os documentos de poltica educacional passaram a ser pensados pelo BM no fim da dcada de 1960, em razo do levantamento de dados interna-cionais sobre o aumento da pobreza nos pases perifricos (FONSECA, 2001). J a Cepal se preocupa com a temtica em 1980 no intuito de superar a dvida externa e ajustar a economia da regio latino-americana e caribenha. No limiar dos anos 1990, a agncia alia sua agenda de polticas de desenvolvimento ao contexto glo-bal e insere a educao nessa tica, para transform-la juntamente com o Estado.

    A falncia do Estado de Bem-Estar Social que controlava a produo, juntamente com a Teoria do Capital Humano, e a disseminao dos escritos de Hayek,9 Friedman10 e Schultz,11 contriburam para a nfase que foi dada educa-o pelas agncias multilaterais, durante os anos de 1970 a 1980. A educao foi percebida como motor de crescimento econmico, necessria para formar traba-lhadores do futuro, aptos a lidarem com as novas informaes e tecnologias, bem como focar o acesso universal da educao bsica a grupos vulnerveis para o alvio da pobreza e promover a equidade e o desenvolvimento social.

    preciso lembrar que existe uma agenda globalmente estruturada para a educao em todos os pases. um poder supranacional com metas, diretrizes e papis. As foras operam transnacionalmente ultrapassando as fronteiras do Es-tado-nao. A agenda global estabelecida pela economia mundial, para atender s necessidades do capital (DALE, 2004). A educao, nesse meio, utilizada

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    como algo instrumental e poltico, e apropriada pelas agncias multilaterais e pe-los discursos da nova sociedade neoliberal, moderna e democrtica trans-mutando suas caractersticas e incorporando termos, como autonomia, equidade, eficcia, participao, oportunidade, competitividade, qualidade e direito de todos.

    Por meio das anlises dos documentos, da dcada de 1990, constatamos que o papel do Estado no BM aparece como meio de promover a equidade (igualdade de oportunidades) na educao e deve ser responsvel pelas primeiras sries do ensino formal, bem como atentar o olhar para a populao mais pobre. A Cepal/Unesco alega que o Estado deve gerenciar a equidade, primar pela descentralizao na educao, orientar as instituies envolvidas no sistema educativo para que realizem avaliaes de desempenho, alm de focar os estratos marginalizados da sociedade.

    4 CONCLUSO

    Ressaltamos que a anlise proposta se ancora em dois documentos de agncias multilaterais de determinado perodo histrico, a dcada de 1990, o que significa que a abordagem realizada no presente artigo no contempla uma posio

    ampla e suficiente do campo educacional das agncias analisadas na atualidade,

    pois outros documentos foram publicados por essas instituies.Entretanto, o papel do Estado no se modificou; ele ainda conduz as re-

    formas estruturais necessrias para a adequao s exigncias do capital, incluindo dirigir e realizar a reforma da educao, conforme as necessidades do mercado. O Estado mediador do todo e das partes, fator de coeso social, regulador para o capital e mnimo para as polticas sociais. No entanto, no se pode reduzi-lo a um mero instrumento de classe, pois produto das relaes contraditrias entre estas.

    Nos documentos do BM e Cepal/Unesco, o Estado aparece como mni-mo para a educao e concede abertura ao setor privado e sociedade civil para a resoluo de questes relativas ao social, em especial, minimizao da pobreza. O mnimo oferecido pelo Estado presente nos documentos de poltica educacional uma neutralizao das relaes de classe. O papel atribudo ao Estado nos docu-mentos expressou tambm a legitimao de processos de privatizao, reorienta-es dos gastos pblicos e desregulamentao da economia, em prol de adequar a educao ao programa poltico de liberalizao da economia mundial para garantir acumulao capitalista, competitividade e rentabilidade do setor privado.

    As agncias aqui estudadas integram o Sistema ONU, as quais, no de-correr das mudanas estruturais do capital, adequaram-se s suas exigncias. Es-

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    tas agncias produzem documentos orientadores de educao e de outros setores sociais para os pases membros, em especial, aos pases perifricos. Os docu-mentos analisados reproduzem o discurso da educao para o desenvolvimento econmico e suas concepes esto pautadas na teoria do capital humano e no pensamento neoliberal ortodoxo. Apontamos tambm que estes documentos se inserem no contexto da reforma do Estado, sendo marcados pela poltica de des-centralizao e introduo da lgica empresarial na gesto da educao.

    Na comparao que estabelecemos entre os dois documentos referentes ao objetivo do artigo, na perspectiva do BM, o papel do Estado aparece como meio de promover a equidade (igualdade de oportunidades) na educao, e deve ser responsvel pelas primeiras sries do ensino formal, atentando o olhar para a populao marginalizada. A Cepal e a Unesco alegam que o Estado deve gerenciar a equidade, primar pela descentralizao na educao, orientar as instituies en-volvidas no sistema educativo, para que realize avaliaes de desempenho. Deve tambm focar os estratos marginalizados da sociedade. A linguagem do BM e da Cepal/Unesco se aproximam, tcnica e economicista, sempre associando a edu-cao ao sistema econmico e ao aumento da produtividade.

    Notamos que a reforma educacional ocupa lugar central na agenda pol-tica das naes e nos documentos apresentados, nas discusses internacionais rea-lizadas nas conferncias, reunies de cpula, comisses, entre outros encontros. Na dcada de 1990 a educao prioridade na estratgia de crescimento e desenvol-vimento econmico. Os documentos vo apresentar como soluo a oportunidade de acesso por meio da educao, para alcanar a ascenso social e a igualdade de oportunidades para a competio no mercado. Consideramos que no mediante a equidade, o acesso educao, que as diferenas sero suavizadas ou abatidas; preciso haver a distribuio de riquezas, a emancipao humana, a transformao social, a mudana das condies materiais dos seres humanos para obtermos uma vida digna, saindo do reino da necessidade e adentrando o reino da liberdade.

    Notas explicativas

    1 Quando utilizamos a expresso Banco Mundial (BM) nos referimos apenas ao BIRD e Associao Internacional de Desenvolvimento (AID). O Grupo Banco Mundial composto por sete organizaes: BIRD; AID; Corporao Financeira Internacional (CFI); Agncia Multilateral de Garantias de Investimentos (AMGI); Centro Internacional para Conciliao de Divergncias em Investimentos (CICDI); Instituto do Banco Mundial (IBM) e Painel de Inspeo. Para maiores detalhes ver Pereira (2009).2 Na verdade, a maioria dos governos intervm muito em todos os nveis de educao, e essa atividade absorve em muitos casos uma parte considervel do gasto pblico. (BANCO MUNDIAL, 1996, p. 58, traduo nossa).3 [...] porque os pobres tendem a ter famlias numerosas de maneira que as famlias pobres recebem

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    um subsdio maior que as ricas. Em segundo lugar, porque os ricos podem optar por obter educao privada, com o que tambm aumenta a quantidade de subsdio que beneficia os pobres (BANCO MUNDIAL, 1996, p. 59-60, traduo nossa).4 [...] nem todos os grupos da sociedade podem arcar com os custos diretos e indiretos relacionados com o investimento em educao, e o Estado deve intervir para promover a igualdade de oportunidades. (BANCO MUNDIAL, 1996, p. 60, traduo nossa).5 [...] um nvel mnimo de acumulao de capital humano, pode acelerar o crescimento dos pases. (BANCO MUNDIAL, 1996, p. 24, traduo nossa). 6 BM, Unesco, Cepal, FMI, entre outros. 7 Para mais informaes, ver organograma da ONU. Disponvel em: . Acesso em: 05 maio. 2011.8 Organismos internacionais que no integram o sistema ONU, a exemplo, Organizao dos Estados Americanos (OEA) e Organizao para Cooperao e Desenvolvimento Econmico (OCDE).9 Friedrich August Von Hayek, nascido em Viena em 1899, economista que foi adepto teoria neoclssica e posteriormente a criticou. Em desacordo com as ideias de Keynes, criou as bases para a doutrina neoliberal, caracterizada pelo mercado regulador e pelo Estado mnimo, impedindo este de exercer o papel de produtor.10 Milton Friedman (1912-2006), economista liberal, cidado estadunidense, atuou no Departamento de Economia da Universidade de Chicago, recebeu o prmio Nobel de Economia em 1976.11 Theodore William Schultz (1902-1998) foi Professor do Departamento de Economia da Universidade de Chicago, formulador da ideia de capital humano. Recebeu o prmio Nobel de Economia em 1979.

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    Recebido em 4 de setembro de 2012Aceito em 22 de feveriro de 2013