lair de oliveira - o pensamento de roberto lyra filho
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UNIVERSIDADE METODISTA DE PIRACICABA
FACULDADE DE DIREITO
PROGRAMA DE PS-GRADUAO
MESTRADO EM DIREITO
O PENSAMENTO JUSFILOSFICO DE ROBERTO LYRA FILHO: DESCRIO HISTRICO-POLTICA E APLICAO
AO DIREITO PENAL
Lair Gomes de Oliveira
PIRACICABA 2008
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UNIVERSIDADE METODISTA DE PIRACICABA FACULDADE DE DIREITO
PROGRAMA DE PS-GRADUAO MESTRADO EM DIREITO
O PENSAMENTO JUSFILOSFICO DE ROBERTO LYRA FILHO: DESCRIO HISTRICO-POLTICA E APLICAO
AO DIREITO PENAL
Lair Gomes de Oliveira
Dissertao apresentada Banca Examinadora do Programa de Ps-Graduao em Direito, da Faculdade de Direito UNIMEP, como exigncia para a obteno do ttulo de Mestre em Direito. Ncleo de Estudos de Direitos Fundamentais e da Cidadania. rea de Concentrao:
Orientador: Prof. Dr. Everaldo Tadeu Quilici Gonzalez
PIRACICABA 2008
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O PENSAMENTO JUSFILOSFICO DE ROBERTO LYRA FILHO: DESCRIO HISTRICO-POLTICA E APLICAO
AO DIREITO PENAL
Lair Gomes de Oliveira
Banca Examinadora
_________________________________________
Prof. Dr. Everaldo Tadeu Quilici Gonzalez Presidente/Orientador
_________________________________________
Prof. Dr.Victor Hugo Tejerina-Velzquez 1 membro
_________________________________________
Prof. Dr. Joo Ribeiro Junior 2 membro
Dissertao apresentada e aprovada em
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Oliveira, Lair Gomes de. O pensamento jusfilosfico de Roberto Lyra Filho:
descrio histrico-poltica e aplicao ao direito penal. Piracicaba, 2008.
165p.
Orientador: Prof. Dr. Everaldo Tadeu Quilici Gonzalez
Dissertao (Mestrado) Universidade Metodista de Piracicaba. Curso de Mestrado em Direito.
1. CRTICA JURDICA 2. SOCIOLOGIA JURDICA 3. HUMANISMO DIALTICO 4. CRIMINOLOGIA E DIREITO PENAL 5. DIREITOS HUMANOS.
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Dedicatria
Para Henrique e Patrcia, do pai que ama vocs.
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Agradecimentos
Devo gratido, pela orientao segura e pelo apontar do caminho que me aproximou de Roberto Lyra Filho, ao Professor Doutor Everaldo Tadeu Quilici Gonzalez; Devo gratido, aos que me apoiaram sem me conhecer, com o oferecimento de bibliografia: Professor Doutor Jos Geraldo de Souza Junior e Professor Mestre Joo Carlos Galvo Junior; Devo gratido aos que me apoiaram por me conhecer: Advogada Ceclia Pessoa Guerra de Siqueira; Devo gratido aos membros da banca pelo privilgio de receber suas lies: Professores Doutores Victor Hugo Tejerina-Velzquez e Joo Ribeiro Junior; Devo gratido aos Professores do Mestrado que aplainaram o caminho deste trabalho, durante dois anos; Devo gratido esposa que me suportou nestes meses do desafio acadmico: Professora Psicloga Liliane Maria Calderan Gomes de Oliveira; muito obrigado!
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RESUMO
A presente dissertao intenta realizar uma abordagem sobre o pensamento de Roberto Lyra Filho. Sabe-se que o ponto de vista crtico do jurista, falecido em 1986, cultivou uma originalidade reconhecida mesmo internacionalmente. Ele cuidou por trazer para o ambiente jurdico, aportes terico-filosficos novos. Quando pergunta sobre o que o Direito, ele quer propor uma nova ontologia que encontra a essncia do Direito longe da norma imutvel e fixa. Da releitura hegeliano/marxista, Lyra Filho colhe as bases para o humanismo dialtico, que afirma a possibilidade de um pluralismo jurdico. Estes so pontos presentes no trabalho e que resultam na revalorizao do Direito, para alm do Direito estatal expresso na lei. Por rejeitar o jusnaturalismo e o positivismo jurdico como solues acabadas para o Direito, Roberto Lyra Filho oferece um outro caminho para revitalizar o Direito. Assim que, torna-se fundamental compreender que o Direito se d na histria. Compreender a histria de forma dialtica significa observar as relaes humanas repletas de conflitos. As conseqncias dessa abordagem para o Direito Penal conduzem a uma reflexo tambm crtica sobre a criminologia e o Sistema Penal. Reconhece na crise de paradigma daquela rea sua face ideolgica. Por meio da anlise da realidade criminal, identifica determinada tendncia em se criminalizar condutas, de determinada classe social. O Direito se torna meio de controle social a favor da classe hegemnica. Lyra Filho procura enxergar, ento, a legitimidade de uma ordenao jurdica diferente da produzida pelo Estado. E encontra nas lutas sociais a efetivao dos Direitos Humanos.
PALAVRAS-CHAVE: CRTICA JURDICA SOCIOLOGIA JURDICA HUMANISMO DIALTICO CRIMINOLOGIA E DIREITO PENAL - DIREITOS HUMANOS.
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ABSTRACT
The objective of the present dissertation is to approach the thoughts of Roberto Lyra Filho. It is known that the critical point of view of the jurist, deceased in 1986, cultivated an originality recognized even internationally. He was responsible for bringing new theoretical-philosophical contributions to the juridical environment. When asking what Law is, he wants to offer a new ontology that finds the essence of Law far from a firm and immutable norm. From a Hegelian-marxist rereading, Lyra Filho obtains the bases for dialectical humanism that asserts the possibility of a juridical pluralism. These are arguments present in his work, resulting in the revalorization of Law, over and above state Law expressed in norms. By rejecting jusnaturalism and juridical positivism as complete solutions for Law, Roberto Lyra Filho offers another way to revitalize Law. In that way it is fundamental to understand Law in History. Understand history in a dialectical way means to observe human relationships replete of conflicts. The consequences of this approach for Criminal Law lead to an equally critical reflection on criminology and the Penal System, i.e., to recognize in the paradigm crisis of this area its ideological aspect, and through the analysis of criminal reality, identify the tendency of criminalizing conducts of a certain social class. Law becomes a way of social control in favor of the hegemonic class. Lyra Filho tries to discover, therefore, the legitimacy of a juridical arrangement different from that produced by the State, finding in social struggles the enactment of Human Rights and the achievement of Law.
KEYWORDS JURIDICAL CRITIQUE JURIDICAL SOCIOLOGY - DIALECTICAL HUMANISM CRIMINOLOGY AND CRIMINAL LAW HUMAN RIGHTS
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SUMRIO
INTRODUO..........................................................................................
CAPTULO I ASPECTOS METODOLGICOS DA PESQUISA E DO PENSAMENTO LYRIANO..............................................
CAPTULO II ORIGENS DO CENTRALISMO BRASILEIRO ..............
1 Colnia e Imprio: cpias de um modelo.............................
2 O Direito e a lei na Repblica.................................................
3 A formao da sociedade civil brasileira..............................
4 O esprito das reformas e das revolues brasileiras.....
CAPTULO III A ESTEIRA DO PENSAMENTO DE ROBERTO LYRA FILHO ...............................................
1 O perodo da Ditadura Militar no Brasil ................................
2 Breve retrospecto do Direito Penal Brasileiro .....................
CAPTULO IV O PENSAMENTO JURDICO DE ROBERTO LYRA FILHO ..............................................
1 Crtica: a palavra de ordem no pensamento jurdico brasileiro....................................................................
a. crtica jurdica de perspectiva sistmica..............................
b. crtica jurdica de perspectiva dialtica................................
c. crtica jurdica de perspectiva semiolgica..........................
d. crtica jurdica de perspectiva psicanaltica.........................
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2 A escolha pela crtica dialtica humanista de Roberto Lyra Filho..................................................................
3 Quatro fundamentos crticos de Roberto Lyra Filho...........
a. A nova ontologia do Direito, proposta por Lyra Filho............................................................................
b. O humanismo dialtico.......................................................
c. O Direito no exclusivo do Estado...................................
d. A confuso positivista entre lei e Direito e, entre Direito e justia..........................................................
4 A rediscusso da criminologia e o Direito penal................
1. A crtica do princpio da legalidade no direito penal.................
2. Sobre prises e violncias.......................................................
3. A proposta da criminologia crtica dialtica..............................
4. A Nova Escola Jurdica e o movimento do Direito achado na Rua...................................................
CONSIDERAES FINAIS .....................................................................
REFERNCIAS BIBLIOGRFICAS ........................................................
ANEXOS ..................................................................................................
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INTRODUO
O pensamento jurdico brasileiro esteve, durante muito tempo, preso acriticamente tarefa de constituir, junto com outros campos da estrutura social, o suporte necessrio para a configurao da ordem social. Essa ordem foi capaz, em
nome do Estado, de gerir e centralizar os interesses de grupos que se tornaram
hegemnicos durante o Imprio foi a elite agrria e, na Repblica, a burguesia
comercial e industrial.
Essa meada na histria da construo jurdica brasileira, alvo ainda de muitas questes, foi o resultado da coexistncia de diversas teorias jurdicas, durante os sculos XIX e XX, e que se alternaram na afirmao do
desenvolvimento da cincia jurdica. Dois campos, aparentemente opostos, agruparam o pensamento jurdico brasileiro: o jusnaturalismo e o positivismo jurdico.
A partir de 1960, entretanto, enquanto a histria poltico-social brasileira
assistiu o desenrolar de um conturbado processo, que culminou com a implantao
de um regime poltico de exceo, alterava-se de forma decisiva o modo de
produo com a adoo de um novo paradigma econmico. Durante os anos de
ditadura coexistiram no Brasil, a fora coercitiva de um Estado totalitrio e o
dinamismo do desenvolvimento fruto da acumulao do capitalismo.
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A urbanizao das relaes sociais que acompanhou o modo de
produo capitalista fez surgir demandas na organizao da sociedade civil. Aos
poucos, atribuiu-se ao Estado, por meio da normatizao do Direito, o papel de
exercer o controle social das populaes urbanas. Observa-se, ento, o
desenvolvimento da criminologia e do Direito Penal que auxiliam a conteno dos
conflitos. O Direito passa a existir para o Estado, da mesma forma que, a lei para a
sociedade.
A construo do pensamento crtico-jurdico de Roberto Lyra Filho, ento, deduziu a limitao ideolgica do Estado enquanto produtor do Direito. Ao
reduzir o Direito legalidade da norma o Estado esgotou o valor da norma na
coero. Ento, pergunta Lyra Filho: Qual a essncia daquele Direito? ele realmente o Direito? Sua resposta ir considerar o Direito como algo que, vindo
da prpria sociedade mantm-se em constante renovao e mudana, e desta
forma, no cr ser possvel se achar a essncia do Direito.1 Porm, ao
questionar a norma como a essncia do Direito, posto que a norma fixa, enquanto
o Direito se renova, surge outra pergunta: como relacionar essas duas ordens de
coisas na sociedade?
Roberto Lyra Filho prope como soluo para essas e outras questes, a
compreenso dialtica humana. dialtica porque no prescinde do conflito entre o que renova e o que mantm. humana, porque fruto das relaes sociais; histrica e afirma a necessidade do Direito como propositor da dignidade humana.
Com a chegada ao Brasil, em fins da dcada de 60, ganha impulso com
as contribuies das Teorias Crticas. Desta forma, a crtica jurdica alcanava o Direito Penal no meio da crise de legitimidade do Estado, durante a ditadura militar.
1 LYRA FILHO, Roberto. O que Direito. Coleo Primeiros Passos. So Paulo : editora
brasiliense. 1981. pg
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O movimento de descentralizao jurdica, que considera a possibilidade de a lei vir a ser produzida legitimamente em outros espaos fora do Estado, tornou-se,
desde ento, um dos pressupostos do pensamento de Roberto Lyra Filho.
A presente dissertao objetiva pesquisar a atualidade da contribuio do pensamento lyriano, especialmente, em torno do debate contemporneo sobre
a criminologia e o Direito Penal. Quer verificar a necessidade de se afirmar os
Direitos Humanos como balizador do Direito. Nas palavras de Lyra Filho:
E por isso que tanto enfatizo os limites jurdicos de qualquer Poder institudo e da prpria prxis revolucionria. Esses limites, entretanto, no so os que ditar a lei (salvo por muito auspiciosa coincidncia), mas os que se vo condensando em Direitos Humanos, segundo o estado presente do processo mesmo de libertao isto , o Direito vivo, produto de lutas sociais e cuja eficcia se mede na prxis.2
Os captulos da dissertao buscam acompanhar certa intencionalidade
de mtodo, tambm advindo do pensamento lyryano. Essa intencionalidade afirma,
principalmente, a importncia do contexto histrico, poltico e social para o Direito
e, o conflito jurdico que emerge dialeticamente desse contexto, que faz a sntese e d a vida ao Direito.
A contribuio de Roberto Lyra Filho fruto de sua prpria vida, que est
colocada dentro da histria brasileira. Impossvel destacar semente to frtil sem
olhar para a terra onde esteve plantada.
Portanto, no bastaria para Lyra Filho uma biografia ao estilo tradicional,
mesmo porque, no pretende ser esta a direo da dissertao, isto , realizar uma
biografia ou historiografia sobre o jurista. Ainda assim, pode-se, resumidamente, mencionar-se que Roberto Lyra Filho nasceu no Rio de Janeiro (RJ) a 13 de
2 FILHO, Roberto Lyra. Desordem e Processo: um Posfcio Explicativo. In: Desordem e Processo
Estudos sobre o Direito em homenagem Roberto Lyra Filho. Org: Doreod Arajo Lyra. Porto Alegre : Sergio Antonio Fabris editor, 1986. pgs. 326-327.
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outubro de 1926. Filho do famoso jurista brasileiro, Roberto Lyra e de Sofia Lyra. Diplomou-se em Letras (1943) e em Direito (1949). Foi poeta, crtico, advogado penalista, conferencista, professor universitrio alm de tradutor. Lecionou tanto na
graduao quanto na ps-graduao; primeiro na Faculdade de Direito do Rio de
Janeiro at 1960, quando se transferiu para Braslia abandonando a advocacia e
dedicando-se exclusivamente carreira acadmica nas reas de Direito Penal,
Direito Processual Penal, Criminologia, Filosofia Jurdica, Sociologia Jurdica e
Direito Comparado. Foi titular da cadeira de Criminologia da UnB. Colaborou em
diversos peridicos. Faleceu em 11 de junho de 1986.3 Lyra Filho resolve de maneira criativa o dualismo construdo entre o
jusnaturalismo e o positivismo jurdico. E o faz, considerando a necessria contribuio da filosofia e da sociologia do Direito. A abertura multidisciplinar que
resulta do seu pensamento desloca a auto-suficincia e o dogmatismo jurdicos do centro do Direito.
Razo pela qual, no primeiro captulo, pretende-se descrever alguns
pressupostos metodolgicos necessrios no apenas para apoiar esta dissertao,
mas principalmente, para adequar as intenes desta pesquisa com o roteiro
metodolgico, presente no pensamento lyriano.
E se h um roteiro sobre o qual este pensamento pode,
antecipadamente, ser expresso , exatamente, aquele presente no ttulo do livro da
homenagem que lhe foi feita, por ocasio de seu 60 aniversrio, com participao
de vrios de seus admiradores, ou seja: desordem e o processo. Um curto pargrafo de seu posfcio, da sentido ao roteiro:
3 Sua bibliografia vasta e ampla. Para consult-la, ver o sitio coordenado por Joo C. Galvo Jr
em Acesso em 03 de outubro de 2008.
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Falo em desordem, ao revs e principalmente, para assinalar que nenhuma ordem pode eternizar-se, mas alguma ordem permanece, a cada etapa, como resduo do processo desordenador.4
A citao interessante por conter a base epistemolgica de sua
produo jurdica, o sentido poltico de seu pensamento, alm de pressupor a metodologia, base de seu humanismo dialtico.
No segundo captulo procura-se descrever a moldura, que essencial,
histrica, poltica e socialmente na dialtica de Lyra Filho. Brota da a importncia
do Direito compreendido no seu modo mais ampliado, ou seja, Direito que histrico, fruto da realidade humana. Com Lyra Filho descobre-se o encontro da
realidade poltica, social e econmica, com a jurdica. a histria que seduz para as decises polticas e move as pessoas para a ao. E o Direito tambm recebe
os reflexos das opes polticas.
Sem o Direito que determina os contedos e formas legtimas da prxis poltica e sem a Poltica, onde se determina e viabiliza o modelo de estruturao jurdica da interveno do processo, no so apenas Direito e a Poltica os que perdem a dignidade; o prprio socialismo que degenera em fetiche doido, lanado pra l e pra c, entre ondas alternadas de anarquismo e tirania estatal.5
Interessa nesse captulo, a forma como, o jusnaturalismo e o positivismo jurdico se expressaram na histria poltica do Brasil, e alimentaram o centralismo jurdico do Estado. Almeja-se compreender a formao do Estado republicano brasileiro, influenciado primeiro, pelos interesses dos produtores rurais e depois,
pela burguesia industrial.
No terceiro captulo, os precedentes da perspectiva crtica lyriana so
apresentados pela descrio do golpe de Estado, em 1964.
4 FILHO, Roberto Lyra. Desordem e Processo: um posfcio explicativo. In: Desordem e Processo.
Op. cit. pg. 264. 5 FILHO, Roberto Lyra. Karl, meu amigo: dilogo com Marx sobre o Direito. Porto Alegre :
Sergio Antonio Fabris editor e Instituto dos Advogados do RS, 1983. pg. 94
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A converso acadmico-filosfica de Lyra Filho nasce da sua militncia
contra a ditadura militar. Nas palavras de Leonel Severo Rocha, Roberto Lyra
Filho foi um dos poucos juristas crticos a manter uma atitude coerente frente ao emaranhado de eventos que alteraram profundamente o Direito brasileiro.6
Ainda no terceiro captulo, inicia-se uma aproximao da compreenso
do pensamento lyriano e o Direito Penal. Ora, se no Direito Penal onde a fora
coercitiva da norma mostra sua face mais violenta; se ali onde o Estado exerceu,
com maior visibilidade, sua funo de controle social atravs da norma, ser
oportuno, incluir uma breve histria do Direito Penal brasileiro para verificar,
posteriormente, a atualidade da proposio lyriana.
O quarto captulo rene o pensamento terico de Lyra Filho. Destaca-se,
da vasta contribuio de Roberto Lyra Filho, seus elementos mais importantes. A
dialtica de Hegel e o marxismo, por exemplo, encontram com Lyra Filho, uma
releitura original.
Procurou-se ali, percorrer o pensamento de Lyra Filho, recuperando os
principais aspectos de sua contribuio. Diante da importncia que a dialtica
adquiriu no contexto lyriano, houve a necessidade de reconstruir, a partir da outras
bases ontolgicas onde o Direito se apie. A partir da crtica dialtica, o campo do
Direito Penal e da criminologia surgem com critrios de legitimidade diferentes. O
conflito fruto das relaes humanas deixa de ser evitado para adquirir significao.
Importante observar nesse captulo, que o lugar da crtica lyriana, a
negao do Direito, que para Lyra Filho o Anti-Direito, pressupe desde o
comeo, o momento da sua superao, atravs da negao da negao.
6 ROCHA. Leonel Severo. O Avesso do Direito. In: Desordem e Processo. Op. cit . pg. 132.
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No final do captulo, considerou-se o projeto de Lyra Filho, ainda hoje sendo realizado: o Direito Achado na Rua. Os traos tericos e prticos do
pensamento lyriano esto demarcados no projeto, que assumiu caractersticas de curso distncia.
Nas consideraes finais, buscou-se revisar os problemas apresentados
e a verificao das hipteses levantadas sobre a atualidade do pensamento
lyriano, que aparecem no primeiro captulo, e suas relaes com a afirmao dos
Direitos Humanos. Propugna-se, finalmente, por um pluralismo jurdico, que considere a totalizao do Direito enquanto produo humana. O Direito adquire
nesta concepo um significado novo diante da defesa dos Direitos Humanos.
Desta forma, a pesquisa inscreve-se dentro da linha de pesquisa e do Ncleo de
Estudos de Direitos Fundamentais e da Cidadania do Ps-Graduao.
A metodologia utilizada a da reviso bibliogrfica. Observe-se que de
toda a produo de Roberto Lyra Filho, foram escolhidas cinco obras para anlise
e, portanto, compor as referncias bibliogrficas. Utilizou-se o critrio cronolgico
para a escolha, e por isso, considerou-se o tempo em que ele assumiu sua teoria
crtica e escreveu Criminologia Dialtica (de 1972); depois, Carta aberta a um jovem criminlogo (de 1982)7, Karl, meu amigo: Dilogo com Marx sobre o Direito (de 1983); do mesmo tempo, a terceira: O Que Direito (de 1983) e, por fim, Desordem e Processo (de 1986). Esta ltima, um psfcio, publicado aps a sua morte em 11 de junho de 1986.
7 de se destacar que, por gratuidade do Prof Joo Galvo Jr., obteve-se cpia do exemplar n 1
deste texto, com anotaes de punho do prprio Lyra Filho, corrigindo o texto.
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CAPTULO I ASPECTOS METODOLGICOS DA PESQUISA E
O PENSAMENTO LYRIANO
Definir uma metodologia apropriada para o estudo do pensamento de um
autor, com mtodo e perguntas procedentes problematizadas sobre o objeto e o levantamento de hipteses que contribuam para a devoluo do tema realidade,
remete necessidade de identificar a metodologia utilizada por sua abordagem.
Especialmente em Roberto Lyra Filho, esta tarefa se torna bsica, pois a
problematizao acerca do Direito presente em seus escritos no segue uma linha
reta. H certa sinuosidade em sua construo, na qual os temas no se sucedem
numa ordem pelo trajeto mais curto. Isso representa, no pensamento lyriano, uma abertura para se repensar o Direito, para se alargar seus referenciais. , tambm, uma possibilidade que se oferece para a proposio de muitas questes. Sua
construo histrica e o lugar de seu aparecimento, suas influncias e seus
pressupostos constituem o caminho para a compreenso da obra do jurista. Lyra Filho parece ter se mantido fiel a uma determinada metodologia
crtica, desde sua converso, a partir do fim da dcada de 60. Porm, a sua
maturidade possibilitou o aprofundamento de seu pensamento na medida em que
seus escritos se ampliavam em vida e, com sua morte, ele trouxe a seus leitores
um desafio de interpretao.
Em sua metodologia realiza-se a afirmao, de Paul Bruyne sobre a
metodologia em cincias sociais:
A metodologia a lgica dos procedimentos cientficos em sua gnese e em seu desenvolvimento, no se reduz portanto a uma metrologia ou tecnologia da medida dos fatos cientficos. Para ser fiel a suas promessas, uma metodologia deve abordar as cincias
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sob o ngulo dos produtos delas como resultado em forma de conhecimento cientfico mas tambm como processo como gnese desse prprio conhecimento.8
Ao adotar uma posio preocupada com a afirmao de uma prxis que
no seja acrtica, o pensamento lyriano tenta resolver o distanciamento entre o Direito e a realidade social, sem os dogmatismos predominantes no Direito. Tenta
humaniz-lo opondo, com a metodologia, o pensamento tradicional da criminologia
e do Direito Penal. Prope as bases de uma filosofia jurdica dialtica, valendo-se, tal e qual ferramenta, da contribuio hegeliana e do marxismo histrico
materialista, para escapar do idealismo do jusnaturalismo e dos dogmas do positivismo jurdico.9
8 BRUYNE, Paul. Dinmica da pesquisa em cincias sociais: os plos da prtica metodolgica. Rio
de Janeiro : F. Alves editora, 1991, pg 29. 9 A respeito do positivismo, mesmo e apesar das necessrias diferenas entre o comteano e o
tomado no sentido jurdico, como se ver adiante, Lyra Filho procura argumentar que, levado s ltimas conseqncias, o termo resulta com diferenas sutis, devido ao seu contedo conservador. Em A Criminologia Radical, Acesso em 3 de fevereiro de 2009, Lyra Filho afirma: O positivismo criminolgico, entretanto, se tinha as mesmas razes classistas do positivismo legalista da cincia jurdica burguesa (Lyra Filho, 1980: 19 ss. e passim), cedendo as mesmas convenincias, influentes na teoria social da intelligentzia reinante, no pactuava, sem mais, com os procedimentos de exegese, presos ao dogma da lei e do Estado e seus entes jurdicos abstratos. Ao contrrio, os positivistas criminolgicos nutriram a sua polmica de argumentos at certo ponto antidogmticos, ao menos na fase inicial da Escola Positiva, substituindo a viso do crime, como criao legislativa, pela noo da criminalidade, como fato humano e social; e desencadearam, assim, as tcnicas de defesa da sociedade, no plano das medidas substitutivas, com a preveno especial do delito e os processos de reeducao do delinqente. Est visto que tal deslocamento apenas trocava a idia de controle social classstico, mediante formalismos jurdicos, pelo controle mais requintado e porventura (foi a iluso) mais eficaz, no abandonando o vezo ideolgico de enxergar, na engrenagem do Poder e na atuao da classe dominante, o veculo (assim disfaradamente legitimado) da reao contra toda conduta discrepante. No positivismo criminolgico avultava a influncia de Augusto Comte, seus discpulos e sucessores (Lyra Filho, 1972A: 14-19; 35-37). E o pensamento de Comte no era menos centrpeto e conservador. Em ltima analise, vinha a assegurar o processo de dominao burguesa. Comte foi uma espcie de Napoleo da Filosofia, para a definitiva ordem (instituda) e progresso (dentro dessa ordem e segundo seus parmetros e teleologias) (Lyra Filho, 1972A: 37). Assenta ele o cientificismo burgus. Por isto mesmo, a rebeldia superficial da Scuola Positiva logo se acomodou, atravs de expedientes eclticos. De Florian a Grispigni, perdeu at o nome, pois este ltimo j preconizava um novo endereo tcnico-cientifico, de quase pura dogmtica e total capitulao ao legalismo. Bem se percebe, deste modo, que os dois positivismos legalista e naturalista comteano eram conciliveis, no seu teor bsico. Juristas e criminlogos do positivismo amalgamado poderiam, conseqentemente, manejar, como alternativas, as medidas do tecnicismo jurdico e do naturalismo criminolgico. Assim nasceu o duplo binrio, chegando ao disparate de certas solues, como a de, primeiro, castigar o doente e, depois, tentar cur-lo (Fragoso, 1980:
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Esta observao, apresentada como princpio cientfico, no se esgotaria, entretanto, no idealismo dos conceitos (positivismo lgico), nem dos fatos brutos (positivismo naturalista), porque Marx rejeitou todo e qualquer positivismo, opondo ao que chamou cruamente de merda comteana a superioridade, em conjunto, de Hegel e da sua dialtica.10
Sua preocupao, porm, no apenas com o Direito como objeto cientfico sobre o qual a metodologia indicar o caminho de uma teoria crtica em
seu sentido formal. Sua crtica pressupe o referencial dialtico. A escolha da
dialtica como mtodo indica um compromisso interno com o objeto. Pode-se entender, ento, que a dialtica no apenas um aporte ao seu contedo, razo
pela qual sua metodologia se confunde com o mtodo. Pode-se afirmar que sua
crtica dialtica, no sentido apontado por Paul Bruyne.
Dialtica, ento, nada mais significa do que a tentativa de conceber a cada momento a anlise como uma parte do processo social analisado e como sua conscincia crtica possvel. Isso implica que se renuncie a supor entre os instrumentos analticos e os dados analisados [uma] relao externa puramente contigente.11
No por acaso que, exatamente, a palavra processo importante no
pensamento lyriano, no somente como a observao do contedo do objeto, o Direito, mas antes como pressuposto metodolgico dialtico.
Alm do mais, esta metodologia que se compromete com o seu
contedo, por ter uma conscincia crtica do processo analisado, no se detm
na teoria abstrata e especulativa. Para isso, vir uma objetividade aprofundada, a que Lefebvre procurou dar expresso, reinterpretando a ao circular, entre teoria
206/7). De qualquer forma, o elemento repressivo continuava a funcionar, seja na punio, seja nos provimentos curativos e reeducativos. No toa a Criminologia Crtica irm gmea da Antipsiquiatria. 10
LYRA FILHO, Roberto.Karl, meu amigo: dilogo com Marx sobre o Direito, Op. cit. pg. 14. 11
BRUYNE, Paul. Idem pg. 68 APUD HABERMAS, J. Zur Logik der Sozialwissenschaften, Frankfurt am Main, Suhrkamp Verlag, 1970, p. 9.
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e prxis e denunciando as antinomias abstratas e lgicas do idealismo e realismo
puros, sem correspondncia na realidade da ao e da cognio humanas.12
Certamente, o desafio de seguir os passos de Lyra Filho no ser mais o
de reproduzir, com fidelidade, o seu pensamento. E isto se deve ao pressuposto
que cerca a sua obra, isto , os compromissos pessoais tericos e prticos sem os
quais a prpria dialtica ficaria reduzida a hermenutica vazia. Somente com esta
conscincia que se deve aproximar da obra de Lyra Filho. Sua proposio terica
prtica. Pressupe certo lugar de onde se pode compreend-la em sua dimenso
histrica e terica.
Por no admitir relativismos, no h meios de tomar-lhe o terico sem
seus compromissos polticos. Nesse sentido, o artigo de Arajo Costa admitiu, com preciso, o engajamento terico de Lyra Filho:
Ao desenvolver sua teoria dialtica do Direito, Roberto Lyra Filho buscou engaj-la em um projeto de mudana social e tentou caracterizar a gradual implantao dos valores socialistas como o caminho atualmente aberto para a realizao do sentido da Histria, que ele descreveu como um processo que segue no sentido inexorvel (embora turbulento) rumo emancipao do homem.13
E concluiu mais adiante:
Assim, aqueles que decidem elaborar suas construes sobre a base de Lyra devem estar previamente engajados no projeto poltico socialista, pois ele que inspira o humanismo dialtico.14
Se isso oferece boas razes para a deciso de acompanh-lo, produz,
por outro lado, muitos incmodos, especialmente naqueles que no esto
dispostos a reconhecer no socialismo histrico, defendido por Lyra Filho, alguma
viabilidade poltica.
12 LYRA FILHO, Roberto. A Criminologia Dialtica. Op. cit. Pg.49.
13 ARAUJO COSTA, Alexandre. Humanismo Dialtico: a filosofia jurdica de Roberto Lyra Filho In:
Captulo 5- Anlise crtica: os pressupostos da teoria lyriana. In: ARCOS Boletim informativo. pg. 1. Acesso em 19 de dezembro de 2008. 14
Idem. pg 3.
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A crtica presente no artigo de Arajo Costa insinua que esta viabilidade poltica uma limitao, entre outros, do pensamento lyriano. Acusa-o de construir,
em nome de valores meta-histricos15, vinculados ao idealismo, um cabide
metafsico no qual pendurou as suas prprias crenas ideolgicas, realizando uma
mistura entre a realidade objetiva e suas crenas pessoais, que ele pressupunha no-idealistas e no-ideolgicas, porque resultantes de uma anlise dialtica.16
Certamente, a crtica dialtica uma tarefa difcil. Ao receber, por
correio eletrnico, o mesmo artigo com aquelas crticas, Joo Galvo Jr.17, do
Ncleo de Pesquisa Lyriana do Rio de Janeiro, estudioso do pensamento de Lyra
Filho, respondeu:
a questo est diretamente vinculada a Hegel, lembrando que antes de tudo, do movimento do Direito Achado na Rua (vis marxista...). O Roberto Lyra Filho era um hegeliano... isso fica bem claro na obra "Karl Meu Amigo..."
15 Valores meta-histricos so aqueles idealizados e irrealizveis na histria humana. O termo se
refere investigao e determinao das leis que regem os fatos histricos e o lugar desses fatos, numa viso explicativa do mundo. MORA, Jos Ferrater. Diccionrio de Filosofia. Vol. 3-K/P Madrid-Espanha : Alianza Editorial, S.A.., 1990. pg. 2211. Lyra Filho, esclarece que preciso observar tambm que as utopias mesmas constituem fatos histricos, e no meta-histricos, apesar do seu teor aparentemente desligado das preocupaes realistas. Elas desempenham a funo capital de inspirar a prxis, embora no devam ser encaradas como pr-viso duma sociedade a efetivar-se e, sim, conforme assinalei, duma estrela condutora, marcando a direo geral dos esforos de reestruturao dos padres assentes.(Desordem e Processo, 1986. pg. 268). Mesmo no sendo o tema desta pesquisa, de se observar que o tratamento de Lyra Filho para a filosofia da histria, se aproxima do movimento de crtica da histria, que tambm ocorria entre as dcadas de 70 a 90. Um dos expoentes dessa corrente de crtica histrica Hayden White que, inclusive, possui um livro intitulado Meta-histria onde afirma no existirem diferenas entre o discurso histrico e o ficcional. Em entrevista com Jos Geraldo de Souza Junior, em 1 de fevereiro de 2009, teve-se a informao de que Lyra Filho no conheceu as idias do crtico literrio. Entretanto, observe-se que Lyra Filho tenha se empenhado em seu Posfcio Explicativo por esclarecer a maneira como ele pensava a histria humana. evidente a preocupao dele com o tema, fazendo ressaltar, por exemplo, que O discurso do historiador pressupe, assim, uma expressa ou implcita Filosofia da Histria, sem a qual ele se torna simplesmente invivel. O que e porque aconteceu co-implica o que de relevante aconteceu, pois o historiador, como dizia Lucien Febvre, no e um trapeiro, que vai jogando tudo o que encontra num surro promscuo...( Desordem e Processo, 1986. pg. 281). Sobre Hayden White cf. MENDONA, Carlos Vincius Costa de. Os Desafios Tericos da Histria e da Literatura, In: Revista Histria Hoje, So Paulo, n 2, 2003, ISSN 1806.3993. 16
ARAUJO COSTA, Alexandre. Humanismo Dialtico: a filosofia jurdica de Roberto Lyra Filho Captulo 5- Anlise crtica: os pressupostos da teoria lyriana. In: ARCOS Boletim informativo. Op. cit. pg. 7. 17
Joo Carlos Galvo Junior. coordena o Ncleo de Pesquisa Lyriana no Rio de Janeiro.
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Depois de Hegel, vrios pensadores tentaram "acabar com a dialtica", os mais conservadores (como Carl Schmitt, defendendo outro mtodo do complexio oppositorum), assim como os mais crticos (como Deleuze).18
Joo Galvo Jr., lembrou ainda o comentrio de Michael Hardt para o
estudo de Deleuze sobre Nietzsche a respeito da construo de uma oposio
dialtica hegeliana. Assim, afirma Hardt:
A estratgia de Deleuze de desenvolver uma oposio total dialtica acompanhada por uma outra estratgia: afastar-se da dialtica, esquecer a dialtica. (...) O desenvolvimento de uma oposio total dialtica parece ter sido uma cura intelectual para Deleuze: esse desenvolvimento exorcizou Hegel e criou um plano autnomo para o pensamento, um plano que no mais hegeliano, mas que, muito simplesmente esqueceu a dialtica.19
Mencionou tambm Schopenhauer como um dos maiores crticos da
dialtica em "A arte de ter razo". Ali a dialtica rgo da maldade humana natural, instrumento indispensvel para enfrentar as discusses com sucesso e,
assim, poder satisfazer a natural prepotncia humana, em suma, a vontade de
obter razo, independentemente do fato de t-la: para Schopenhauer, a dialtica
isso, e nada mais.20
Na concluso de sua resposta, Joo Galvo Jr. foi incisivo ao afirmar a
dificuldade de todas essas crticas porque quando voc critica a dialtica, j cai no discurso dialtico...21
H tambm quem prefira a simples zombaria, por no conseguir
qualificar o incmodo que sentem diante do engajamento terico lyriano. o caso
18 Correio eletrnico de 7 de janeiro de 2009, endereado por Joo C. Galvo Jr. ao autor desta
pesquisa. 19
HARDT, Michael. Gilles Deleuze: um aprendizado em filosofia. So Paulo : editora 34, 1996. pg. 97. 20
SCHOPENHAUER, Arthur. A arte de ter razo: exposta em 38 estratagemas. Traduo de Alexandre Jrug e Eduardo Brando So Paulo : Martins Fontes, 2001. pg. 103. 21
Em correio eletrnico de 7 de janeiro de 2009 remetido particularmente ao autor desta pesquisa.
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do articulista de uma revista de atualidades, Reinaldo Azevedo22. Sem contedo
terico para compreender, prefere ficar na crtica ideolgica mida.
Recentemente23, porm, numa aparente reao do STF hipertrofia do
rgo diante dos outros poderes da Repblica, o Ministro Gilmar Mendes desferiu a
seguinte frase aos jornalistas, que o perguntavam sobre a aplicao da lei e as pautas da Instituio, cada vez mais absorvidas por temas polmicos com carter
nitidamente poltico: O Direito deve ser achado na lei, no na rua. Isso demonstra
que mesmo depois de sua morte, o pensamento de Lyra Filho ainda fermenta. V-
se, que o problema se do Direito e a lei se apresenta de forma viva.24
Identificada na construo lyriana a metodologia crtica e a dialtica
histrica como fundantes, no h como desviar-se desse referencial na presente
dissertao. O desafio se coloca em fazer corresponder a metodologia presente no
autor estudado quela utilizada aqui.
De tudo o que possvel receber de Lyra Filho, interessam trs
aspectos, que parecem poder orientar esta pesquisa e se colocam ao mesmo
tempo como problemas a resolver: a) observar e descrever na histria da Repblica no Brasil o desenvolvimento poltico ideolgico do jusnaturalismo e do positivismo jurdico. Com isso, pretende-se dar concretude histrica a esses marcos jurdicos, percebendo sua matriz nica, ainda que se pretendam opostos. Este trabalho segue o que o prprio Lyra Filho j havia feito em Criminologia Dialtica. L, ele realizou a anlise histrica, mas com nfase em seus aspectos
22 A revista a que se refere a VEJA, em sua edio n 2075 de 27 de agosto de 2008, onde se v
o artigo com o ttulo: O Direito s pode ser achado na lei. Cf. edio eletrnica em: Acesso em 6 de janeiro de 2009. 23
O episdio deu-se no dia 6 de agosto de 2008. 24
Entrevista realizada com Jos Geraldo de Souza Junior em 1 de fevereiro de 2009, perguntado sobre a questo, ele afirmou que o Ministro referia-se especificamente questo do uso de algemas por presos consequentemente uma questo tcnica , mas ressaltou a tenso que, obviamente, o tema criara por se referir s teses de Roberto Lyra Filho; o que comprova a repercusso, ainda presente, que o pensamento lyriano suscita.
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filosfico-jurdicos; aqui, a preocupao histrica com o poltico-jurdico; b) observar e divisar, em seguida, o leito em que surgiu e percorreu o pensamento de
Lyra Filho. O ambiente histrico-poltico, fruto da ditadura militar, foi, sem dvida,
decisivo para o mundo acadmico. Se Lyra Filho afirma a limitao de seu trabalho
jurdico-filosfico, por reconhecer o carter historicamente contingente de sua contribuio. Nem por isso desprezou a preocupao com o fazer cincia. Seu
pensamento encontra-se espalhado por diversas publicaes em artigos, revistas e
livros. Ainda assim, possvel perceber-lhe o norte a orientar sua teoria construda
de forma sistmica; c) finalmente, recuperar o sentido de conjunto desse sistema e verificar sua contemporaneidade, seus desafios, sua crtica e sua validade para o
mundo jurdico, especialmente para a criminologia e o Direito Penal.
Estas so as contribuies que se espera alcanar neste trabalho. Ainda
que se tenha adotado uma metodologia descritiva, que se ope em seus
fundamentos proposta dialtica do autor estudado, sua simples compreenso j oferece recursos para verificar as possibilidades que se abrem para o estudo do
Direito na atualidade. Alm disso, o estudo de Roberto Lyra Filho com sua dialtica
humanista oferece alento para a apreenso do Direito, sem os dogmas do
tecnicismo burocrtico. Por fim, o presente estudo encaminha-se na direo de dar
concretude ao tema dos Direitos Humanos e preocupao com sua eficcia.
Apesar de seus crticos, no por acaso que as teses propostas por
Roberto Lyra Filho tm adquirido novos defensores na atualidade25. Por isso, uma
das hipteses desta dissertao a de que a crise vivida pelo Judicirio
atualmente, especialmente na rea da criminologia e do Direito Penal, revitaliza a
importncia do pensamento lyriano. A perda de efetividade das teorias criminais e
25 Um dos mais prximos Boaventura Santos. Alm dele contam-se tambm Jos Geraldo de
Souza Junior, Roberto A. R. de Aguiar, Juarez Cirino entre outros.
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prticas penais hodiernas tem sido alvo de reflexes que evidenciam as
abordagens crticas.
Algumas dessas reflexes podem ser vistas em artigos publicados em
revistas especializadas. A crise conceitual do bem jurdico diante das teorias de preveno dos riscos sociais26, a crise do paradigma constitucional da interveno
mnima27 e a crise do sistema penitencirio28, apenas para ficar com alguns poucos
exemplos, so amostra do descalabro que transforma problemas sociais em
problemas criminais.
Outra hiptese a ser verificada a da relao da crtica dialtica
humanista com a afirmao dos Direitos Humanos e os Direitos de Cidadania. Ao
que parece, em torno da crtica lyriana, ficam mais evidentes a contingncia
necessria das Declaraes de Direitos e a necessidade de incorporar conquistas
para que o Direito no as perca.
A perenidade de uma contribuio terica possvel de ser constatada
atravs de suas contribuies no tempo e no apenas pela lgica epistemolgica
ou o valor de suas certezas demonstrveis. Roberto Lyra Filho, com a teoria
humanista dialtica, contribuiu para uma epistemologia afirmativa dos Direitos
Humanos. Por isso, sua demonstrabilidade ultrapassou o seu tempo e perdura
ainda agora nas abordagens crticas encontradas no movimento do Direito Achado
na Rua.
26 BECHARA, Ana Elisa. Delitos sem bens jurdicos? In: Boletim IBCCRIM Ano 15 n 181,
dezembro de 2007, pg. 4. 27
ARRUDA, lcio. Interveno Mnima: um princpio em Crise. In: Boletim IBCCRIM Ano 16 n 192, novembro de 2008, pg. 13. 28
Editorial. Mulheres Encarceradas e a banalizao da barbrie. In: IBCCRIM Ano 15 n 182, janeiro de 2008, pg.1.
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CAPTULO II ORIGENS DO CENTRALISMO BRASILEIRO
O pensamento jurdico no Brasil foi construdo a partir de diversos aspectos que delimitaram as possibilidades da cincia e da prtica jurdicas. Seu nascedouro, no Brasil Colonial e seu desenvolvimento durante o Imprio e a
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Repblica mostram o reflexo de um tempo histrico para alm mar, influenciado
pela legislao unitria e centralizadora de Portugal.
II. 1. Colnia e Imprio: cpias de um modelo
Durante o perodo do Brasil Colonial29, houve a tendncia de reunir,
pelas legislaes existentes, sob o poder do rei, toda a idia esparsa de governo.
O primeiro sistema de governo foi o de capitanias hereditrias que, segundo
Mocellin, era experincia bem sucedida das ilhas atlnticas.30 A implantao do
Governo Geral, no extinguiu o sistema de capitnias, mas inclui-o:
A tabela31 acima mostra a estrutura administrativa, bastante simples,
aplicada ao Brasil colnia entre 1549 e 1572. Em 1572, o Brasil foi dividido em dois
governos, mas logo em 1578 voltou a ser reunificado e os governos gerais
passaram a ser chamados de Vice-Reis. Havia dois tipos de juzes: os ordinrios
29 Tomou-se como critrio para definir o perodo colonial, o intervalo, de 1500 (descobrimento) at
1822 (independncia) e o perodo imperial, de 1822 at 1889 (proclamao da Repblica). 30
MOCELLIN, Renato. A Histria Crtica da Nao Brasileira. So Paulo : Editora do Brasil S/A, 1987. pg. 38. 31
Tabela retirada de MOCELLIN, Renato. Op. cit. pg. 40.
Capitanias Hereditrias e reaisCapitanias Hereditrias e reaisCapitanias Hereditrias e reaisCapitanias Hereditrias e reais
REIREIREIREI
OUVIDOROUVIDOROUVIDOROUVIDOR----MOR MOR MOR MOR Justia
PROVEDORPROVEDORPROVEDORPROVEDOR----MORMORMORMOR Finanas
CAPITOCAPITOCAPITOCAPITO----MORMORMORMOR Defesa
Governador GeralGovernador GeralGovernador GeralGovernador Geral
Municpios e Cmaras MunicipaisMunicpios e Cmaras MunicipaisMunicpios e Cmaras MunicipaisMunicpios e Cmaras Municipais
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(que no eram formados em Direito) e os de fora (nomeados pela coroa e bacharis em Direito).
de se notar a preocupao do governo monrquico no Brasil, especialmente, com a desintegrao da Monarquia e a centralizao do governo, a
manuteno das terras conquistadas com a conseqente unidade do poder e a
manuteno do modelo econmico da metrpole europia.
Uma discusso interessante surge ao se perguntar sobre o modo de
produo exercido no Brasil colonial; se escravista, feudal ou um esboo de
capitalismo. A discusso tem defensores em torno de todas as posies.32
Este modelo perdurou durante diversos ciclos de extrativismo que o
Brasil conheceu: extrativismo da madeira, do ouro, da cana, do acar e do caf.33
Outras produes ganharam destaque no sculo XVIII: o algodo, o arroz, o fumo
e a pecuria. Durante este perodo a questo do povoamento numa extensa rea
geogrfico foi sempre um desafio enfrentado de diversas formas, sempre mediadas
por muita violncia e conflito.
O sculo XVIII foi marcado na Europa pela Revoluo Industrial que
modificou o cenrio de relaes entre as naes europias. Hobsbawn fala com
cuidado de uma crise geral anotando a complexidade do perodo.34 Certamente,
32 MOCELLIN chama a ateno a respeito dessa discusso para as posies de Nelson Werneck
Sodr (escravismo), Alberto Passos Guimares (feudalismo) e Cai Prado Junior (esboo capitalista). No ser o caso de aprofundar a discusso aqui, mas apenas anota-la. Em HOORNAERT, Eduardo. e outros. Histria da Igreja no Brasil Ensaio de interpretao a partir do povo. Primeira poca 2 ed. Petrpolis : Editora Vozes Ltda, 1979. pg. 252, v-se uma boa argumentao da tese capitalista. A posio de Mocellin que o modo de produo foi uma conjuno de todas essas influncias, resultando em algo muito definido e particular. MOCELLIN, Renato. Op. cit. pg. 42. 33
O sistema foi interrompido entre 1580 e 1640, poca em que Portugal e suas colnias ficam sob o domnio da Espanha. O sistema foi extinto em 1808 com a chegada da corte portuguesa ao Brasil. Sobre esses dados ver , Acesso em 2 de fevereiro de 2009. 34
HOBSBAWN, Eric. As Origens da Revoluo Industrial. So Paulo : Global editora e distribuidora Ltda, 1979. pg. 9.
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este ambiente de mudanas redundou em reflexos para a estrutura social,
econmica e poltica do Brasil colnia.
Mas no apenas o plano econmico recebeu da Revoluo Industrial na
Inglaterra o sentido da mudana. As Revolues na Frana e nos Estados Unidos
influenciaram o ambiente propcio para que a filosofia iluminista, liberal se tornasse
o exemplo de mudanas.
Finalmente, as guerras napolenicas no sculo XIX, empurraram o rei de
Portugal para o Brasil. Sob a proteo dos ingleses toda a corte portuguesa
desembarcou na ex-colnia e trouxe junto a dependncia lusitana da Inglaterra. Uma nova estrutura administrativa fez-se necessria, prenncios da
substituio do sistema colonial. Foi nesse perodo que se criou a primeira
Faculdade de Direito, em 11 de agosto de 182735. A Academia de So Paulo e a
Faculdade de Olinda (depois Recife) surgiram no meio de uma discusso que retratava a nova tendncia regionalizadora, mas ainda com cunho centralizador.
Conta a histria que houve sria divergncia a respeito da escolha das cidades
que recepcionariam tais cursos.36 Sobre isso, Machado Neto relata:
A tradio jusnaturalista iniciada entre ns pela figura singular de Toms Antnio Gonzaga ir prosseguir, aps a independncia, com a criao por D. Pedro I das duas Faculdades de Direito a de Olinda (depois Recife) e a de S. Paulo como resultado da produo cientfica e didtica dos professores das primeiras ctedras de Direito Natural, que tiveram no s o empenho como o dever de redigir seus cursos em forma de livro-texto para uso de seus alunos.37
35 HIRONAKA, Giselda Maria Fernandes Novaes e MNACO, Gustavo Ferraz. Passado, Presente e
Futuro do Direito. As arcadas e sua contribuio para o ensino do Direito no Brasil. In: 180 anos de Ensino Jurdico no Brasil, Organizadores: Daniel Torres Cerqueira, Anglica Carlini e Jos Carlos de Arajo Almeida Filho. Campinas, SP : Millenium Editora, 2007. pg. XXX. 36
Em HIRONAKA, Giselda Maria Fernandes Novaes e MNACO, Gustavo Ferraz. Op.cit expem-se os argumentos e os critrios utilizados pela Assemblia Constituinte de 1823 para a criao dos dois primeiros cursos. 37
MACHADO NETO, A.L.. Histria das Idias Jurdicas no Brasil. So Paulo : Editorial GRIJALBO Ltda. 1969, pg. 18.
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Nesse perodo existia carncia de quadros para compor a administrao
pblica com formao e viso poltica prpria do Imprio.38 Este dado demonstra a
precariedade com que o poder unificado mantinha a centralidade. A defesa da
centralidade do poder monrquico devia-se a idia de conhecimento universal e
absoluto que criava uma lei nica, fundada em Deus e na certeza do monarca
como o provedor deste poder em nome da Igreja.39 Ao mesmo tempo, resume as origens de nossa deficincia administrativa descentralizadora e do tipo de
positivismo que viria a seguir.40
A abdicao de D.Pedro I ao trono, em 1831, refletiu o perodo de
conturbao poltica e jurdica vivido no Brasil. Os diversos levantes de tropas e revoltas41, bem como o aparecimento de posies contrrias aos regentes trinos
mostram que o pas vivia momentos difceis, caracterizados pelo endividamento
externo e sucessivas crises polticas e de ordem pblica que apontavam tambm
38 HIRONAKA, Giselda Maria Fernandes Novaes e MNACO, Gustavo Ferraz. Op.cit, nota 6,
pg.XVI. 39
Discutindo a hegemonia do Direito Natural jusnaturalista no sculo XVIII, Machado Neto cita Lies de Direito Natural sobre o Compndio do Sr. Conselheiro Autran: A lei ou princpio do justo cuja realidade temos demonstrado, por isso mesmo que existe para os homens em razo de sua natureza, e que lhes congnita, deve, na sua mais elevada expresso, ser como esta universal e invarivel, independente dos tempos e climas, superior e anterior, como a princpio dissemos, a quaisquer regras arbitrrias ou convencionais que na sociedade com os seus semelhantes os mesmos possam impor-se. MACHADO NETO, A.L.. Op.cit. pg. 20. 40
Joo Ribeiro Junior, autor de O Que Positivismo, e membro da banca da presente dissertao observou na qualificao a necessidade de se diferenciar o positivismo comteano e o positivismo jurdico. Ele observou em nota sobre essa seo que no se deve confundir positivismo enquanto mtodo de conhecimento aplicado ao Direito e enquanto saber, com o positivismo que qualifica o Direito dominante de determinado tempo histrico; isto , enquanto realidade e prtica produtora e reprodutora do Direito contemporneo. Se os dois conceitos so relativamente contemporneos, e se os dois acompanham o processo de solidificao da ascenso burguesa, h alguma diferena entre eles. Enquanto positivismo comteano refere-se ao saber, o segundo, kelseniano diz respeito a um fenmeno social e poltico chamado Direito. A referncia neste pargrafo e em outros lugares sem a referncia ao termo no seu sentido jurdico dir respeito ao positivismo comteano que se ops ao idealismo, concebedor do poder monrquico, como resultado do poder de Deus. 41
A noite das garrafadas em maro de 1831, foi um primeiro levante importante do perodo. A partir da destacam-se em 1835, houve a Revoluo Farroupilha e a Cabanagem; em seguida, a Sabinada (1837), e a Balaiada (1838). Aps 1840, aconteceram a Revolta dos Liberais (1842), a Revoluo nas Alagoas (1844) e a Revoluo Praieira (1848). Aps a proclamao da Repblica, os conflitos continuaram: Revoluo Federalista (1893), Guerra do Contestado (1912) e, mais tarde, as Revolues de Copacabana, do Rio Grande do Sul e de So Paulo, a Revoluo Constitucionalista de So Paulo em 32 e a Revoluo Comunista em 35; todas fundadas no jargo descentralizador em oposio s polticas centralizadoras do Estado Constitudo. MOCELLIN, Renato. Op. cit. pgs 88, 109, 123, 145, 174, 176, 217.
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para a recomposio de foras, entre vrios interesses representados pelos grupos
dominantes.42 Mostram tambm que esta disputa entre foras que defendiam a
centralizao do poder poltico e as que defendiam sua descentralizao seria o
estopim do movimento republicano.43
O primeiro Cdigo Criminal, publicado em 16 de dezembro de 1830,
inscreveu-se naquela legislao de cunho descentralizador. Regulamentou o
hbeas corpus e o tribunal do jri, e alargou as atribuies dos juzes de paz, eleitos e no nomeados, dando-lhes funes de polcia.44 Obviamente, contam-se
desvios de sua prtica. Os tais juzes de paz acabaram tornando-se provocadores de exageros e violncia em nome do controle social e seus poderes foram
restringidos em 1841.
No perodo Imperial, no entanto, pode-se entrever o incio de certo
cuidado nacional regionalista, firmando-se, porm, ainda na figura do Imperador as
razes para manter-se a unidade poltica. A tentativa, presente no Cdigo de
Processo de 1832 e o Ato Adicional, em 183445, que propugnaram pelo
municipalismo e provincialismo, culminaram na reao conservadora em 1840 com
o movimento golpista que instituiu a maioridade do Imperador Pedro II. O
movimento, latente no Imprio que se opunha centralizao e propugnava por
42 MOCELLIN, Renato. Op. cit. pgs. 109-110.
43 Amostra do nimo que pairava no meio da sociedade civil contra a instituio da Regncia pode
ser vista no jornal Nova Luz Brasileira, editado por adeptos do federalismo que definia insurreio como o justo levantamento do povo contra os que atacam o contrato social e usurpam os Direitos do mesmo povo, ou nao (...) justa revoluo para destruir a tirania de um pas. O mesmo jornal pregava: os bravos que uma vez arrostaram com a morte para expulsar do trono um tirano cercado dos prestgios da realeza (...) ho de sempre reunir-se para acabar com quantos tiranos projetem escravizar o Brasil. (...) Se a mxima dos tiranos dividir para reinar, seja a mxima dos brasileiros unir para resistir.DANNEMANN, Fernando Kitzinger, Op.cit. 44LOPES, Jos Reinaldo de Lima. Curso de Histria do Direito. Jos Reinaldo de Lima Lopes, Rafael Mafei Rabelo Queiroz, Thiago dos Santos Acca. So Paulo: Mtodo, 2006. pg. 347. 45
O Ato Adicional criou a Assemblia Legislativa Provincial e lhe atribuiu diversas competncias, retirou poderes das Cmaras municipais e do Governo Geral. Ver LOPES, Jos Reinaldo de Lima. Op.cit. pg. 452.
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uma constituio liberal, no resistiu proximidade ainda influente dos tempos
monrquicos.46
Esta talvez seja uma das razes que fizeram nascer, antes da Constituio de 1891, quase toda a estrutura jurdica do governo federal, como nos informa Jos Reinaldo de Lima Lopes:
O fato de o STF e a Justia Federal terem sido criados antes mesmo da Constituio (Dec. 848 de 11 de outubro de 1890) d bem a medida do quanto eram vistos como inerentes nova organizao poltica do Brasil. No por acaso que ao primeiro cabia, por exemplo, revisar decises das justias estaduais contrrias aplicabilidade de leis federais ou legitimidade do exerccio de qualquer autoridade da Unio (art.9); para alm dos Direitos dos cidados, ao Supremo cabia resguardar a unidade do Direito federal em face da autonomia poltica dos Estados.47
Com a Constituio de 1891, criou-se a Federao, marcada por sua
aspirao democrtica, fortemente inspirada pela dos Estados Unidos da Amrica,
descentralizadora, e oferecendo grande autonomia aos municpios e s antigas
provncias, agora denominadas Estados. Permitia, inclusive, que esses Estados
se organizassem de acordo com suas peculiaridades. Consagrou a instituio de
trs poderes independentes entre si e aboliu o Poder Moderador. Os membros do
legislativo e executivo seriam eleitos pelo voto direto, sem direito reeleio.
46 Por ser obra produzida ao final do perodo da ditadura militar, o livro intitulado Conjuntura, poltica
nacional: O Poder Executivo & Geopoltica do Brasil, de Golbery do Couto e Silva, ganha importncia para a elaborao deste trabalho, especialmente porque boa parte do pensamento de Roberto Lyra Filho foi moldado durante o perodo da ditadura militar e amadureceu durante a reabertura do Brasil para a democracia. Ao descrever retrospectivamente a preocupao histrica em torno da unidade do poder, Golbery revela todo o ardil dos militares em torno da idia pendular que separava a preocupao com a democratizao do pas e a inevitvel descentralizao do poder que, segundo ele, tem origem no Imprio. Assim, afirma ele, durante a colnia o grande problema seria o de uma conciliao: a conciliao entre o princpio de uma unidade do governo e a tendncia regionalista e desagregadora, oriunda da extrema latitude da base geogrfica, em que se assenta a populao, e, o que ainda mais grave, um mximo absoluto de base fsica com um mnimo absoluto de circulao social e poltica. (SILVA, Golbery do Couto e. Conjuntura Nacional: o Poder Executivo & Geopoltica do Brasil. Rio de Janeiro: J. Olympio, 1981. pg. 7) 47
LOPES, Jos Reinaldo de Lima. Op.cit. pg. 484
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Na obra de Tobias Barreto o debate poltico entre centralismo e
descentralismo ganha contornos jurdicos. Ainda que muitos afirmem, com razo, seu gosto pela metafsica, Tobias Barreto no desconsiderava o carter autnomo
do Direito.
Convenamo-nos portanto: o Direito um instituto humano; um dos modos de vida social, - a vida pela coaco(sic), at onde no possvel a vida pelo amor; o que fez Savigny dizer que a necessidade e a existncia do Direito so um conseqncia da imperfeio de nosso estado.48
A histria da construo jurdico-constitucional do pas continha uma evidente contradio entre o ideal do positivismo jurdico advindo de pequenos crculos jurdicos prximos ao poder e a prtica social ainda bastante influenciada por uma cultura escravista e metafsica, esta sim, disseminada na maioria da
populao. A Constituio de 1891 abortou, pelo menos durante a Repblica
Velha49, o clamor social pela descentralizao do poder, represado nas camadas
ilustradas baixas da sociedade. O meio termo nesta questo, propugnado por
Paulino Jos Soares de Souza, o Visconde do Uruguai50, nunca existiu.
Aqui, contudo, diferentemente dos Estados Unidos da Amrica do Norte,
a federao no se criou pelo desejo de Estados independentes por um poder poltico comum. No Brasil, o federalismo foi criado pelo desejo do Estado em manter sua autonomia diante de disputas que pretendiam sua diviso e
questionavam seu poder central.
Instalou-se, entretanto, no poder, a oligarquia agrria que havia se
beneficiado da posse das terras, especialmente no nordeste brasileiro, durante o
48 BARRETO, Tobias. Estudos de Direito. 1892 In: LOPES, Jos Reinaldo de Lima. Op.cit. pg. 421.
49 O perodo da chamada Repblica Velha vai de 1889 a 1930.
50 LOPES, Jos Reinaldo de Lima. Op.cit. pg. 413.
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Imprio. Esta oligarquia detinha no somente a posse, mas tambm, o controle
sobre os interesses econmicos, caracterizado por uma agricultura exportadora.51
Mesmo assim, desaguou na Constituio de 1891, boa parte da
influncia contida nas discusses advindas da Europa e que no Brasil se
caracterizavam pela novidade e pelo vanguardismo, s vezes paradoxal.
E o que vemos uma coexistncia de orientaes, muitas vezes antagnicas, como o monismo evolucionista de Haeckel e Noir, o materialismo de Buchner e Vogt, o individualismo de Stuart Mill, de Laboulaye e Lastrria, o positivismo dissidente de Littr e Taine, as concepes polticas e sociais aplicadas psicologia de Le Bon, o determinismo de Fouylle e de Buckle, as teorias do governo constitucional de Guizot, o experimentalismo de Leon Donnat, o federalismo de Pi y Margal, as concepes do Estado Nacional de Bluntschli, os programas liberal-democrticos de Tocqueville, os novos mtodos de pesquisa sociolgica de Lilienfeld, as teorias sociolgicas de Roberty.52
A estes, podem ser acrescentados o pensamento de Hobes e Locke, de
Rousseau, Montesquieu, Kant e Hegel, como tambm os ideais das grandes
Revolues Inglesa, Francesa e norte-americana, reclamadas pelos liberais da
poca.
De Augusto Comte veio a virulncia acusatria aos jusnaturalistas europeus por fazer leis, quando a cincia no as faz, mas sim as descobre.53 O
mundo jurdico sofreu os ataques dessa onda positivista e o alvo, no Brasil, foi a formao oferecida pela Escola do Recife e pela Academia de So Paulo. O autor
das crticas, Pereira Barreto, positivista convicto, dizia sobre o jusnaturalismo da famosa Academia: com as bases atuais do nosso sistema de ensino a
51 Muito provavelmente, a queda de Rui Barbosa em janeiro de 1891, como Ministro da Fazenda,
tenha sido o resultado da recomposio das oligarquias cafeeiras no poder, defendendo o modelo de Estado agrrio exportador. Sobre isto ver MOCELLIN, Renato. Op. cit. pg. 155ss. 52
JUNIOR. Joo Ribeiro. O Que Positivismo. Col. Primeiros Passos. So Paulo : Editora Brasiliense, 1982. pg. 62-63. 53
MACHADO NETO, A.L... Op.cit., pg. 48
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Academia um pomposo clise54 de jato contnuo derramando anualmente sbre o pas uma onda calculada de saber falso, de virtudes falsas e de anarquia certa.55
Sob os auspcios de uma Inglaterra industrial, os ltimos anos do Sculo
XIX foram tambm marcados por uma forte influncia industrial fazendo surgir no
Brasil uma pequena burguesia.56
Depois da primeira dcada do sculo XX, a influncia inglesa foi sendo
pouco a pouco substituda pela presena norte-americana. Os dados coletados por
Heitor Ferreira Lima, mostram como os investimentos norte-americanos no Brasil
tornaram-se relevantes entre 1912 e 1929 com a abertura de diversas sociedades
mercantis.57 O fim da Primeira Guerra Mundial confirmou essa mudana do
panorama econmico social mundial e o Brasil percebeu esses reflexos. Tudo isso
tambm contribuiu para a imagem de um novo Direito.58
A insero do Brasil na nova economia global levou, em primeiro lugar, a uma mudana no cdigo de valores sociais, que se alinhou ao novo centro da economia mundial, dando origem a um novo ethos que misturava o conservadorismo arejado e a cupidez material (Sevcenko 2003). A cupidez material vinha na forma do arrivismo, da busca pelo lucro rpido e fcil: (...) A ostentao tornou-se regra, e boa parte das relaes sociais orbitava em torno da riqueza pessoal.59
54 Clise. Segundo o Dicionrio Michaelis : sm (gr klsis) 1 Med Introduo de grandes quantidades
de lquido no corpo, comumente para substituir o perdido (por hemorragia, disenteria ou queimaduras), para fornecer nutrientes ou para manter a presso sangnea. 2 Lavagem de uma cavidade. 3 Aplicao de clister. Queria dizer com isso que, a chegada de bacharis de Direito anualmente na sociedade, dava-se simplesmente, como para repor os que da se retiravam, sem acrescentar nada de novo. MICHAELIS: moderno dicionrio da lngua portuguesa / So Paulo : Companhia Melhoramentos, 1998. pg. 518. 55
MACHADO NETO, A.L.. Op.cit. pg. 48. 56
DREIFUSS, Ren Armand. 1964: A Conquista do Estado. Petrpolis : VOZES. 1981. pg. 21. 57
FERREIRA LIMA, Heitor, Histria Poltico-Econmico e Industrial do Brasil, Companhia Editora Nacional, pgs.342-343 APUD. MOCELLIN, Renato. Op. cit. pg. 198. 58
MARTINS-COSTA, Judith. Diretrizes Tericas do Novo Cdigo Civil Brasileiro. So Paulo: SARAIVA. 2002. Prefcio da obra por Miguel Reale. pg. IX. 59
LOPES, Jos Reinaldo de Lima. Op.cit., pg. 485.
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Em 1916, foi sancionado o Cdigo Civil60 que refletiu a necessidade de
reforma para adequar o Direito s demandas do capitalismo individualizado, ainda
fortemente europeizado. A abolio da escravatura oferecia desde algum tempo
certa importncia ao trabalho livre, que ganhava visibilidade na teia social,
iniciando-se ento a sua regulamentao. Por outro lado, o caf, carro chefe na
economia do perodo, promoveu os proprietrios de latifndios que enriqueciam
com uma mo-de-obra sada da escravido e, portanto, entregue miserabilizao
dos parcos salrios.
O sistema do Cdigo de 1916 era fechado, contendo apenas as disposies que interessavam classe dominante, que atribuiu a si prprio o poder de dizer o Direito, e assim o fazendo delimitou com uma tnue mas eficaz lmina o Direito do no-Direito. Em assim fazendo, deixa margem os institutos que no quer ver disciplinados, dentre os quais as relaes indgenas sobre a terra; o modo de apropriao no exclusivo dos bens; a vida em comunho que no seja a do modelo dado.61
No seria diferente o que ocorreria no restante das reas jurdicas. Estas, desde o incio, estiveram sempre afinadas com a idia da centralizao.
Foi nesse perodo que surgiu, tambm, alguma regulao de empregos,
todos entendidos como locao de servios. Eli Chaves62, apresentou em janeiro de 1923, o Decreto 4682, que considerado, at hoje, o marco inicial da Previdncia Social.
Na rea criminal, expressava-se com maior clareza a prtica de uma
cincia colocada a servio do controle social manejado pelo Estado e dissendida
60 LEI n 3.071, de 1 de janeiro de 1916. Cdigo Civil - 1916. 51 edio. So Paulo : Saraiva,
2000. (Legislao brasileira) 61DALLALBA, Felipe Camilo. Os trs pilares do Cdigo de 1916: a famlia, a propriedade e o contrato.In:
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entre liberais e conservadores a defender e atacar a autoridade das instncias
locais.63
A consolidao do positivismo criminal no Brasil foi facilitada pelo fato de esta doutrina fornecer um timo ponto de partida para um controle social seletivo a postulao da desigualdade entre homens bons e criminosos , sobretudo em uma sociedade que, por sua recente memria escravista, era acostumada a discriminar.64
Com estas observaes, limitadas em sua descrio histrica, mas
necessrias para o desenvolvimento do tema, retorna-se a uma das teses inscritas
no livro de Golbery do Couto e Silva, que a existncia de uma sntese entre o
movimento centralizador e o descentralizador. Observa o autor que este
movimento irrompe o perodo do Imprio e o incio da Repblica para se tornar um
movimento permanente de sstoles e distoles, prprio da vida dos Estados e,
em especial, do Estado brasileiro.65
Como se ver adiante, este movimento permanente teve outros
componentes que o caracterizaram como movimento e como permanente e, ao
contrrio de serem sstoles e distoles, foram, na verdade, grandes arranjos para manter a centralizao do poder.
II. 2. O Direito e a lei na Repblica
O positivismo jurdico, defendido no Brasil a partir dos ideais republicanos, auxiliou a chegada dos liberais burgueses ao poder. Entretanto, s
cristalizou-se aps a dcada de vinte, com o fim da Repblica Velha.
O caf, principal produto de exportao, alcanou naquela dcada
patamares de produo que passaram a exigir medidas legais de proteo contra
63 LOPES, Jos Reinaldo de Lima. Op.cit., pg. 340.
64 Idem. pg. 487
65 SILVA, Golbery do Couto e, Op.cit. pg. 5ss.
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os preos em queda livre. Legislar era defender os interesses dos produtores
rurais.
A Cmara Federal aprovou, em 1929, uma elevao parcial de tarifas alfandegrias, pleiteada e formulada em projeto defendido por Manoel Villaboim, lder da bancada do PRP.66
Por outro lado, antes tanto quanto depois de 30, a burguesia emergente
evitou conflitos com a elite agrria; pelo contrrio, recebeu dela muitos valores. Os
dois grupos convergiam em muitos aspectos, apesar dos interesses econmicos
diversos. Enquanto a elite agrria67 preocupava-se com ambiente favorvel para a
exportao de sua produo, a burguesia, industrial, calculava meios para
promover uma abertura que facilitasse a entrada de mquinas e investimentos para
a produo. evidente que havia um claro favorecimento no exterior para as iniciativas dos industriais, principalmente aps a dcada de 20.68
A diferena entre os dois grupos, ruralistas e burgueses nacionais,
parava a. Possuam o mesmo esprito conservador e centralizador quando se
tratava da defesa de seus interesses diante do Estado em constituio e da frgil
sociedade tambm em formao. Porm, a oligarquia agrria manteve-se no poder
o quanto pde, dificultando as iniciativas comerciais e industriais.
A chegada de Getlio Vargas ao poder, na Revoluo de 30, pode ser
considerada um marco para os industriais, no tanto pelas iniciativas de Getlio a
66 GORENDER, Jacob. A Burguesia Brasileira. Coleo Tudo Histria-29. So Paulo : editora
brasiliense, 1986. pg.61. 67
O termo elite agrria mencionado algumas vezes neste texto, por isso, sente-se a necessidade de explicar o que seria esta elite. Lencio Basbaum afirma que eram cem mil os grandes proprietrios de terras, herdeiros do perodo colonial. Em 1920, contavam cerca de 64 mil. Note-se, portanto, a razo por que eram uma elite, j que figuravam no universo de algumas dezenas de milhes de habitantes. Seu comportamento senhorial informa Basbaum completava o contorno de uma classe insensvel s transformaes que se operavam nas cidades e no resto do mundo: senhores de engenho, estancieiros, fazendeiros de caf, eram todos os mesmos senhores de terras, dos imensos latifndios que cobriam o vasto territrio, a dominar agora, uma enorme populao que vivia, ou melhor simplesmente existia, distribuda pelas terras-do-sem-fim. BASBAUM, Lencio. Histria Sincera da Repblica. Vol. 2. So Paulo : editora Alfa-mega, 1975-76. pg. 145. 68
MOCELLIN, Renato. Op. cit. pg.215.
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favor destes, mas por se considerar que a burguesia industrial reconheceu a
impossibilidade de chegar ao poder por meio de atritos com os conservadores
ruralistas. Mesmo porque, a antiga disputa entre liberais e conservadores parecia
estar superada na histria da constituio dos Estados. Lima Lopes explica como
as experincias liberalizantes cediam espao em todo o mundo para modelos
antiliberais.
A primeira metade do sculo XX assistiu a um movimento mundial de contestao s formas liberais de Estado. Estas haviam causado descontentamentos um pouco em toda parte, levando ascenso de concepes alternativas de Estado que, tendo em vista seus objetivos e forma de atuao, podem ser agrupadas sob a rubrica de intervencionistas.69
Essa complicada rede de interesses deu origem ao Estado Novo. Ren
Armand Dreifuss chamou de estado de compromisso, erigido para organizar os
interesses dos dois grupos econmicos.
O estado de compromisso, forjado no processo scio-poltico do incio da dcada de trinta, foi ento remodelado a partir das experincias de um novo Estado traduzido pelas formas corporativistas de associao e apoiado por formas autoritrias de domnio.70
Toda essa conjuntura refletiu-se na formao da Constituio de 1934. O setor industrial dependia do setor agrrio, pois era dele que vinha a receita do
exterior para a acumulao que movimentava o setor industrial nacional. O
discurso nacionalista dos industriais no passava de retrica, j que tentavam aproximao com os centros industriais norte-americanos e europeus.
Alm disso, havia uma discusso jurdica, colocada no fundo da discusso poltico-econmica, alimentada pela cincia do Direito e que dizia
respeito formao do Estado proposto no jusnaturalismo e no positivismo jurdico.
69 LOPES, Jos Reinaldo de Lima. Op.cit.pg. 599.
70 DREIFUSS, Ren Armand. Op.cit. pg. 22.
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O primeiro, decadente, abandonado pela burguesia liberal e ainda defendido pelas
oligarquias herdeiras do monrquismo. Na Europa, logo depois que passou a
ocupar o poder na Revoluo Francesa, este pensamento foi substitudo pelo
positivismo jurdico, muito mais afinado com os ideais das revolues industriais a desdenhar do poder dos monarcas.
O segundo, fincado na racionalidade, transformou e substituiu a idia de
justia no Direito, pela fora incondicional da lei. Esta lei que nada devia legitimidade dos reis por sua representao de Deus na terra, passou a representar
os ideais de um Estado Republicano acima das classes; no apenas poltico e
administrador, mas controlador da vida social por sua neutralidade.
O bloco ruralista, mais afeito ao pensamento jusnaturalista, foi hegemnico durante toda a dcada de vinte. A partir de ento, a crescente
urbanizao e o desenvolvimento do comrcio, da estrutura bancria e industrial
passaram a exercer presso sobre o controle estabelecido pela oligarquia rural.
Por guardar certa memria da monarquia, a Repblica Velha
representava para os defensores do positivismo comteano o estado metafsico em
contraste com o ideal positivista. Nesse sentido, o controle do Estado significava a
disponibilizao no apenas do aparato burocrtico, mas tambm do aparato
jurdico destinado a reorganizar a economia nos moldes racionais capitalistas.71
Desse modo, no caminho da centralizao, a burguesia industrial chegou
ao poder na dcada de 30 e na Constituio de 1934 mostrou seu
conservadorismo. Extinguiu o cargo de Vice-Presidente, limitou a garantia de
71 LOPES, Jose Reinaldo de Lima, Op.cit. pg. 601.
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hbeas-corpus, instituiu a Justia do Trabalho72, criou o salrio mnimo, a jornada de oito horas dirias, reorganizou o domnio, pela Unio, das riquezas minerais.
No sentido inverso da centralizao, a Constituio manteve a federao
com eleio direta para presidente, ainda que o primeiro eleito o tenha sido pela
Assemblia Constituinte. A eleio dos candidatos aos Poderes Executivo e
Legislativo passava a ser feita mediante o voto secreto dos eleitores. As mulheres
adquiriram o Direito de votar. Entretanto, continuavam sem Direito ao voto:
analfabetos, mendigos, militares at o posto de sargento e pessoas judicialmente declaradas sem Direitos polticos. Criava-se uma Justia Eleitoral independente
para zelar pelas eleies.73
Obviamente, a questo da descentralizao ou centralizao do Estado
dizia respeito construo de uma burocracia, inclusive jurdica, que se supunha necessria para o Estado.
Pode se perceber que a preocupao com a centralizao poltico-
administrativa era importante, j que o Estado funcionou, durante grande parte do sculo XX, como o meio para a implantao dos interesses privados no Brasil.
O Estado Novo (1937-1945) passou a ser pensado como aquele capaz de desempenhar o papel de sustentar a burguesia comercial e industrial, que, at
aquele momento, no havia sido capaz de administrar a mediao do poder com a
oligarquia rural.
Em nota, Ren Dreifuss afirma:
72 A criao da Justia do Trabalho e a regulamentao de Direitos tais como o salrio mnimo, ao
contrrio do que parece, teve cunho bastante conservador. A Justia do Trabalho passava a controlar toda a relao de emprego no pas, algo essencial para o desenvolvimento industrial. J o salrio mnimo, fixado num teto bastante baixo, padronizava a despesa com mo-de-obra, especialmente nas regies sul e sudeste, alvo principal da regulao e onde a indstria comeava a se instalar. Tinha, portanto, carter centralizador. 73
MOCELLIN, Renato. Op. cit. pg. 223.
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A burguesia industrial e os novos interesses ligados ao desenvolvimento empresarial precisavam de uma fora nova o Estado Novo independente de qualquer compromisso ou condio anteriores, fora esta que se tornaria o poder tutelar da nao. No se esperava que o Estado Novo fosse o rbitro das classes j mencionadas, mas sim o supervisor de um bloco histrico liderado pela burguesia, no qual os interesses agrrios tradicionais e outros fatores de presso fossem acomodados. O Estado aparentemente colocado acima e alm das classes e diferenas regionais, tornou-se o partido de todo o bloco dominante. Contudo, o apelo burgus quanto a uma soluo burocrtico-militar para os problemas sociais e econmicos da industrializao no significava que os industriais e banqueiros se voltariam para uma apatia poltica. A burguesia no estava satisfeita com a exclusiva dominao de seus interesses. Ela queria que seus prprios elementos e idias governassem. Consequentemente, durante o Estado Novo (1937-1945) e mesmo aps, figuras empresariais tiveram posies-chave no Executivo. 74
Assim, o Estado no Brasil foi aos poucos sendo moldado; ora mais
centralizador, ora fazendo algumas concesses descentralizadoras, porm nunca
permitindo o afrouxamento das rdeas que manteria o rumo da explorao
burguesa. Sua configurao foi poltica, jurdica e econmica desconsiderando os aspectos relacionados vontade da sociedade civil. Talvez porque a discusso em
torno do tamanho e do papel do Estado tenha se detido apenas no seu carter
econmico-administrativo, sem se importar com o comportamento e a vontade da
inspida sociedade civil poca; talvez porque no processo de formao do
Estado, o liberalismo brasileiro, tornado burguesia industrial, tenha ocupado o
Estado e adotado a tese do unitarismo poltico75; talvez porque seja este o destino das revolues no Estado moderno, ou seja, travestir-se em totalitarismo reformando o Estado para entreg-lo parcela da sociedade que o representa.
74 DREIFUSS, Ren Armand. Op.cit. nota 22 pg. 40.
75 Segundo o dicionrio Michaelis o sistema poltico que defende a necessidade de um nico
governo de cpula. MICHAELIS: moderno dicionrio da lngua portuguesa / So Paulo : Companhia Melhoramentos, 1998. pg. 2158.
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Das alternativas aventadas, pelo menos a ltima tem precedentes na
histria europia.76 preciso, entretanto, certa cautela para que no se infira juzos de valor e se esquea da historicidade da histria.
O processo de construo da cincia e prtica jurdicas no Brasil (e no mundo!) est fundado sobre as demandas humanas e sua capacidade de resolv-las. nesse sentido que Srgio Resende de Barros trata o que chamou de a era dos Direitos.77
Refletindo as necessidades e sobre as necessidades que os afligem no curso da histria, os seres humanos se fixam fins, que se tornam valores, que enformam deveres, que sustentam poderes. Estes nascem, assim, com o dever de atender s necessidades que lhes deram origem, por fora e na medida das quais eles so poderes-deveres; e no poderes arbitrrios.78
II. 3. A formao da sociedade civil brasileira
At aqui, o olhar lanado sobre o pensamento jurdico brasileiro foi balizado pela conformao da idia de Estado. Porm, ao mesmo tempo em que a
matriz jurdica se dirigia consolidao de um projeto de Estado, compreendido como o governo constitudo e organizado, moldava-se o projeto de sociedade civil. Em algumas partes anteriores, j foram feitas aluses configurao social da poca79, porm importante e necessrio observar os vnculos entre a constituio
do Estado brasileiro e a organizao da sociedade civil brasileira no sculo XX.
Afirmar que ambos os processos estavam, certamente, determinados
pelo seu tempo pode parecer algum tipo de concluso apressada. Porm, esta
76 Ver LEFORT, Claude. Pensando o Poltico: ensaios sobre democracia, revoluo e
liberdade. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1991. pgs. 79ss; sobre a priso de Danton e os novos rumos dados Revoluo Francesa no caminho da centralizao e a manuteno do regime de terror por Robespierre, que, ao final, se voltaria contra ele prprio. 77
BARROS, Srgio Resende de. Direitos Humanos: Paradoxo da Civilizao. Belo Horizonte : Del Rey. 2003. pg.2. 78
Idem. pg.2. 79
Ver pginas 28 e 35.
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afirmao introduz a exigncia de uma explicao mais cuidadosa acerca das
vrias possibilidades de uso do termo sociedade civil em relao a cada tempo que
se tome.80
As variaes do termo dependem do momento e da conjuntura histrica. At o sculo XVIII, com Hobbes, Locke, Rousseau, Ferguson, Smith, Montesquieu
e Hume, houve grande preocupao para apresentar um novo modo de vida em
sociedade, distinguindo-se o Estado de natureza, propenso a guerras e violncia
humana, de um Estado civil, baseado no contrato entre o indivduo e seu
governante mediante a instituio de leis. O termo sociedade civil equivaleria,
ento, ali, ao Estado-poltico.
A idia de um estgio pr-estatal da humanidade inspira-se no tanto na anttese sociedade/Estado quanto na anttese natureza/civilizao.81
O Estado de natureza significava a situao humana sem governo. J a
sociedade civil era a sociedade poltica. Os dois modos eram idealizados. No
primeiro, a natureza humana condicionava sua vida em grupo e no segundo, sob a
tutela do Estado mediador82, a natureza humana se submetia civilidade, s
regras de conduta e s leis instituidoras dos pactos. Para Hobbes Quando se diz
que um Monarca recebe seu Poder de um Pacto, se d provas de no
compreender a simples verdade: que os Pactos, no passando de palavras ao
80 Paulo Sergio Pinheiro, num interessante artigo, disponvel na internet, intitulado: O Conceito de
Sociedade Civil, afirma existir importncia em definir o conceito, j que nenhuma definio neutra. Toda definio contingencial e histrica, de onde se retira a necessidade de uma definio crtica como a que se tem dado aqui para os contedos histrico-jurdicos. PINHEIRO, Paulo Sergio. O Conceito de Sociedade Civil. Certificao Digital PUC-Rio n 0310315/CA. acesso em 25 de agosto de 2008. pgs.75-76 81
BOBBIO, Norberto. O conceito de sociedade civil. Rio de Janeiro :Edies Graal, 1982.pg. 27. 82
O Estado como sociedade racional, afirma Bobbio, fruto das teorias jusnaturalistas de Hobbes a Rousseau e Kant, que estatiza a Razo, vindo a se tornar a razo de Estado. Hegel dilui o Estado no seu idealismo, mas tambm o realiza, tornando-o no apenas uma proposta, mas uma exigncia da realidade. O Estado hegeliano contm a sociedade civil. BOBBIO, Norberto. Op. cit. pgs. 20-21.
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vento, no tm fora para obrigar, dominar, constranger ou proteger ningum, a
no ser pela fora Pblica83 Desta forma se reduz a vontade de muitos uma s
vontade. Locke e Rousseau parecem receber as contribuies de Hobbes, mas
separam-se tanto daquele quanto entre si, para lidar com o tema da capacidade de
propriedade do indivduo em sociedade.
Se Locke foi apontado como defensor do individualismo possessivo,
afirmando que A maneira nica em virtude da qual uma pessoa qualquer renuncia
liberdade natural e se reveste dos laos da sociedade civil consiste em concordar
com outras pessoas em juntar-se e unir-se em comunidade para viverem com segurana, conforto e paz umas com as outras, gozando garantidamente das
propriedades que tiverem e desfrutando de maior proteo contra quem quer que
no faa parte dela84; Rousseau foi um crtico bastante realista da propriedade
privada, ao afirmar que O que o homem perde pelo contrato social a liberdade
natural e um direito ilimitado a tudo quanto aventura e pode alcanar. O que com
ele ganha a liberdade civil e a propriedade de tudo o que possui85
Esta discusso tornou-se acalorada especialmente porque o pensamento
de Locke expressava o incio de uma idia que gravitava em torno da agricultura
comercial, fortemente influenciada pelas idias econmicas no sculo XVIII.86
Com Adam Ferguson, Adam Smith e Karl Marx e a ascenso da
burguesia, marcada por certa independncia da economia agrria, proprietria,
altera-se, porm, o centro do debate para o mais novo meio de produo (as
83 HOBBES, Thomas. LEVIAT ou a matria, forma e poder de um Estado Eclesistico e Civil.
So Paulo : cone, 2000. pg. 128. 84
LOCKE, John. Segundo tratado sobre o governo.(Os pensadores) 3 ed.- So Paulo : Abril Cultural, 1983. pg.71. 85
ROUSSEAU, Jean-Jacques. Do Contrato Social. (Os Pensadores) - 4 ed. So Paulo : Nova Cultural, 1987. pg. 36. 86
PINHEIRO, Paulo Sergio. Op.cit. pg.78.
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mquinas e a fora de trabalho). Separa-se terminantemente a concepo de sociedade civil da de Estado poltico e fortalece-se o pensamento de que os
interesses do Estado se opunham aos interesses dos indivduos organizados em
sociedade produtiva. Da at conclurem pela necessidade do controle burgus do
Estado pela sociedade dos indivduos trabalhadores, foi s mais um passo. Do
mesmo modo, rapidamente se colocaram no caminho de identificar a sociedade
civil com o mercado capitalista.87
Com Hegel, o termo ganhou, finalmente, a caracterstica de ser um
espao associativo dos indivduos. Para ele, o Estado deveria manter o seu papel
controlador, exatamente porque, ao contrrio de Locke, a sua finalidade ltima no
assegurar o bem-estar do indivduo, mas lev-lo a cumprir o seu destino
enquanto ser racional que a vida em sociedade, ou seja, viver no universal.88 Assim, Hegel identificou a concretude da sociedade civil realizada na
relao dos indivduos. Entretanto, trs elementos indicavam a expresso dessa
concretude:
Contm a sociedade civil os trs momentos seguintes: A A mediao da carncia e a satisfao dos indivduos pelo seu trabalho e pelo trabalho e satisfao de todos os outros: o sistema de carncias; B A realidade do elemento universal de liberdade implcito neste sistema a defesa da propriedade pela justia; C A precauo contra o resduo de contingncia destes sistemas e a defesa dos interesses particulares como algo de administrao e pela corporao.89
Com Hegel a propriedade torna-se o meio para se alcanar a liberdade
individual. Em Hegel, a liberdade se desloca do idealismo para o concreto, o
87 Idem. pg.76-77.
88 GILES, Thomas Ransom, Op. cit. pg. 202.
89 HEGEL, Georg Wilhelm Friedrich. Pincpios da Filosofia do Direito. So Paulo : Martins Fontes,
1997. pg. 173. De maneira mais explcita poderia-se entender os trs elementos como: a economia, o Direito e a polcia.
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realizado. O primeiro elemento, a necessidade, constri os laos entre os se