lÁgrima de fogo

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No universo existem oito mundos paralelos, entre eles Agnitellure, conhecido como “a terra casta”. Durante vários milênios, todas as raças viveram em harmonia e prosperidade, mas mesmo neste lugar, a paz não durou para sempre. Quando anjos caídos e dragões decidem invadir o terceiro dos oito mundos, denominado “Terra”, os anjos da paz recebem ordens dos Quatro Grandes – criaturas ancestrais, protetoras de Agnitellure – para que levem ao seu mundo a mais mortal e perigosa criatura: os humanos. Agnitellure nunca mais foi a mesma. As criaturas mágicas passaram a se esconder. Uma nova guerra está para surgir. Profecias e lendas começam a criar vida. As árvores pararam de cantar ao som do vento, os mares estão agitados. Laços de sangue estão instáveis, os valores deturpados, e somente uma criança pode trazer a paz.

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S ã o P a u l o 2012

ANA MACEDO

coleção novos talentos da literatura brasileira

Lágrima de FogoLivro I

Mundo de Sombras

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Prólogo

Era uma noite fria e escura. A umidade se espalhava por toda a floresta, que estava mais quieta que o comum. Todos haviam escutado os boatos. Todos eles. Somente as sombras perambu-lavam pelos galhos tortuosos. Deixando a floresta ainda mais curiosa, pensou Draco. Ele se sentia confortável naquele lugar. Gostava do silêncio. Se ao menos as vozes parassem. Tentou bloquear as mentes assustadas que seus olhos não podiam ver, mas que sua intuição delatava. Encarou a floresta. Que diabos vim fazer aqui?

Draco olhou pesaroso para o céu. Sabia que este não era como os dos outros dias. O céu daquela noite não era escuro e azul como o mais profundo dos oceanos. Não. Aquele era vermelho como sangue velho e seco. Mesmo as estrelas pareciam querer fugir dessa doentia cor. Um leve tremor vinha das árvores. Suas raízes buscavam terra a vários metros abaixo do chão, naquele momento, não se importavam com o calor, ansiavam apenas por não serem extintas com a queda dos céus. Quanta tolice. Tal pro-fecia mortal nada dizia sobre Agnitellure, a terra casta.

As folhas verdes das árvores sussurraram entre si. A presença da criatura de cinco metros as amedrontava. Draco bufou sar-cástico. A queda dos céus deve ser realmente assustadora, pois: a simples presença de um dragão as apavora. Apesar de seus pen-samentos terem ecoado apenas em sua cabeça, o jovem pôde sentir a intensidade do pavor das folhas e de todas as outras criaturas ali presentes. A bufada mais lhes parecera com um rosnado nervoso que se tornou ainda mais assustador – porque

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a maior parte daquelas criaturas nunca estivera na presença de um dos representantes.

O que houve com o silêncio? O dragão estava começando a se incomodar quando uma sequoia gigantesca silenciou suas folhas e comunicou a um cipreste – de semelhante imensidão – para que fizesse o mesmo, e juntos, com um sussurro do vento, calaram toda a mata. A criatura sentiu-se grata e acenou com a cabeça para a antiga sequoia, e, de algum modo, Draco soube que esta se sentiu orgulhosa com tal aceno.

Havia uma profunda camada de folhas secas no chão. O agradável aroma de terra molhada e das folhas verdes nas árvo-res mesclava-se a um cheiro podre vindo do chão e o odor verti-ginoso vindo daquele céu grotesco... Como se a espessa neblina não fosse suficiente, o céu parecia tornar o ar ainda mais pesado. Draco tentava reconhecer o estranho cheiro daquele céu verme-lho quando sentiu outro aroma: era algo um pouco ácido, e ao mesmo tempo parecido com enxofre. Um cheiro acre. Só então, viu um anjo descer dos céus por entre as árvores, as vestes muito brancas contrastando com a escuridão, com um pequeno volume envolto em seus braços.

A criatura era fantástica. Asas longas e sinuosas, de um branco muito puro surgiam das costas de um humano quase comum. Os cabelos castanhos-claros, um pouco abaixo das orelhas eram desgrenhados, mas visivelmente macios. A pele branca ressaltava os olhos muito negros. Olhos de abismo. Olhos de uma alma que conhecera a felicidade verdadeira, e que sabia que nunca poderia tocá-la novamente. Em seu rosto, não havia expressão triste, mas sim esperançosa. Os enormes músculos da outra cria-tura se retraíram. O dragão pensou mais uma vez se realmente deveria estar ali. Era muita responsabilidade, e ele não sabia se

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estava preparado para assumi-la. Os boatos poderiam ser verda-deiros? Não aqueles sobre o desabamento dos céus, mas sobre a criança, e tudo mais. A criatura de vestes claras parecia exalar conforto e segurança. Draco deu-se por vencido. Não poderia negar um favor a um anjo. E aquele tinha uma aura maravilhosa, como se tivesse luz própria. Era magnífico.

Draco forçou a concentração. Deveria ser forte. O anjo estava quase a 5m do chão quando alcançou o nível do rosto dele; a criatura rugiu envergonhada por ter se distraído. Perguntou a si mesmo se era digno de tamanha confiança.

O anjo assentiu com a cabeça. Draco, imediatamente, lembrou-se que não era o único capaz de ler mentes. Mesmo com centenas de anos, não se acostumaria. Talvez aquilo fosse um pouco de presunção, ou apenas não estivesse acostumado a conviver com outras criaturas. Balançou a cabeça, afastando as ideias. Antes sereno, o anjo, com um sorriso torto no rosto, esquivou-se um pouco, e então um clarão de luz encheu a flo-resta. A imensa criatura deu lugar a um jovem de 1,90m, pele tão clara quanto a do anjo de cabelos negros – mais escuros que uma fria noite de inverno. Olhos azuis como o céu limpo de uma manhã de primavera, conquanto preocupados e até mesmo temerosos.

Sentou-se sobre uma pedra; um pé encostado no chão e o outro sobre a rocha, com o joelho perto do rosto, onde encos-tou um braço.

– Gabriel, Anael, Daniel... Seja lá qual for, veio anunciar-me que serei papai? – disse o jovem em tom de júbilo.

O anjo simplesmente riu. – Vai me caçar, depois de devorar a criança, Draco? – o anjo

havia alcançado o chão, e agora estava a apenas dois ou três passos

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do jovem, que se levantou sorrindo. – Sabe que outro anjo se ofenderia, não é?

– Imaginei que sim, mas ter um dragão como inimigo não seria exatamente conveniente para um anjo caído.

Os dois sorriram e se abraçaram. Tomando cuidado com o volume nos braços do anjo. Depois de um longo instante, Draco o olhou, sereno, mas muito preocupado, e então voltou sua atenção para o amigo.

– Micah, acredita mesmo que eu seja qualificado? Por que não uma ninfa? Um anão ou um elfo? Um unicórnio provavel-mente criaria muito bem um híbrido.

O anjo se mostrou assustado; porém, um instante depois, parecia estar se segurando para não cair na gargalhada.

– Você, criar a criança? – o anjo deixou escapar uma pequena risada. – Se eu quisesse matá-la, não me daria o trabalho de te chamar.

Draco sentiu-se ofendido com o tom de escárnio na voz do anjo, mas acabou por não dizer nada. Confiaria àquele anjo sua própria vida. Mais do que uma criatura mágica, pura, ele era seu amigo de longa data. Um sorriso tentou escapar pelos lábios do jovem de cabelos negros, mas fora repreendido pela expres-são de Micah, que continuou, assumindo agora uma voz grave e séria, depois de uma pausa que perdurou demasiadamente:

– Esta criança é fruto do pecado. Há muitas profecias que giram em torno dela. Possui uma alma pura e poderosa, e ainda assim corre grande perigo, principalmente por sua origem. Não sei dizer ao certo: quantas nem como, mas ela verá a morte muitas vezes.

Houve um momento de silêncio, Draco olhava o pequeno embrulho nos braços do anjo, tentando absorver a informação. Como uma criança pode correr tanto perigo? Era apenas um bebê

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inofensivo. Quem iria lhe querer mal? Os olhos do jovem volta-ram-se para os do amigo, que parecia pedir mais um momento de atenção. Draco sentia que nem mesmo Micah poderia expli-car-lhe, pelo menos não por completo, e sentiu-se nervoso com isso. Talvez tensão fosse a palavra certa.

– Pensei que a criança que ficaria sob minha guarda fosse apenas um híbrido. – Draco tentava amenizar um pouco este tenso momento, disfarçando seu próprio medo.

– Basicamente é – disse Micah num tom muito natural e distraído, mas certamente aliviado pela simplicidade da per-gunta do amigo.

– Então por que é um “fruto do pecado”?– Agora não importa. As viperias estão por perto, caçando-o.De repente Micah estava aflito, sua voz quase tremia. – Preste atenção, Draco: leve a criança para Lucinda, em

Noderclift, ao sul do Deserto de Aenis. Ela estará segura lá.– Noderclift, a terra das Ninfas da música? – o anjo assentiu. – O que você pretende, Micah? – disse Draco o interrompendo.– O cheiro das Ninfas e dos Aquilaoenges a protegerão.– Se quer proteção, mande-a para Flanaeirus. Ninguém a

protegerá melhor que os elfos de lá.Draco estava com medo. Sentia que algo estava terrivel-

mente errado, e Micah sabia disso. – Diferentemente de Noderclift, em Flanaeirus há muito

mais humanos do que Ninfas. – Micah colocou uma das mãos no ombro de Draco e o fitou.

– Uma guerra vai estourar entre os Elfos – Micah falou pau-sadamente, pronto para o choque que aquilo causaria em Draco. E assim se fez. Draco arregalou os olhos azuis, a voz faltou-lhe por um momento, e, quando se fez presente, estava trêmula.

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– Entre os Elfos? – ele pigarreou, recompondo-se. – Sempre ouvi dizer que o que eles mais prezavam era a honra!

Micah fechou os olhos, pesaroso, sua reação fora exatamente a mesma do amigo, mas teriam de se acostumar. Tempos difí-ceis estavam por vir.

– E os dragões, meu amigo? Não prezam a honra?Draco ficou sem reação. A guerra entre os seus já se estendia

por quase três milênios. Desde que os primeiros humanos, uns tais Gregos, vieram para Agnitellure, a paz terminara entre os dragões. Mas e entre os Elfos? Eram conhecidos por sua honra, lealdade e fidelidade. Viviam em paz desde suas primeiras lembranças.

As coisas seriam piores do que podia imaginar.– Quando chegar a hora, tudo se explicará. Por enquanto,

apenas deixe-a em segurança. Antes, porém, você precisa dar seu voto de proteção, é o único representante de Tiamat dos Quatro Grandes que pode fazê-lo. – Micah tentou mostrar-se firme, sem sucesso. Apesar de tudo, era um anjo, não sabia como mentir.

– Eu, um representante dos Quatro Grandes? – os incrédulos olhos azuis encararam Micah. – Não posso dar meu voto a esta criança – ele olhou, quase caindo em desespero, a pequena cria-turinha nos braços do amigo. – Foi você quem lhe deu a prote-ção do anjo? – indagou surpreso e quase orgulhoso pelo amigo.

– Não, não fui eu – disse Micah, suspirando –, mas Draco, você precisa fazê-lo. A história desta criança é muito mais com-plicada do que imagina. Viva, mantém a esperança; morta, a leva consigo. – Micah deu uma olhada nervosa em volta. – Draco, você precisa ir. Não há muito tempo. Dê-lhe a benção, deixe a criança com Lucinda e mantenha distância. As viperias sentem bem seu cheiro, ainda que não te conheçam.

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– Então são delas que vem este acre odor? Céus! Cheguei a pensar que a fralda da criança estava suja, ou sua roupa úmida e mal lavada.

O anjo pareceu ofendido.– Eu não a deixaria com fraldas ou roupas sujas. Além do

mais, um cheiro não se assemelha em nada ao outro. Annabelle cheira como um grande buquê de lírios e talvez algumas uvas.

As sombras, que antes perambulavam pelos galhos, estavam concentrando-se em um só lugar; a névoa parecia mais espessa e se as três criaturas ali fossem humanas, provavelmente teriam sido sufocadas pelo pesar que se corporificava. As nuvens car-regadas formavam uma grande espiral sobre a parte mais densa da floresta, que era justamente onde se realizava aquele furtivo encontro. Draco voltou-se, alarmado, para onde estavam se aglomerando as sombras.

– Estamos atrasados – disse Micah pesaroso. – As sombras poderão retardá-las, mas não por muito tempo. Tome – o anjo desenhou um círculo no ar e abriu a mão sob este; Draco viu uma pequena luz a aumentar, dando forma a uma tiara que – junto com um pedaço de pergaminho – foi colocado nas vestes da criança. – Assim, quando chegar a hora, Annabelle saberá quem realmente é.

Draco pareceu ainda mais confuso. Mesmo assim, tomou a criança dos braços de Micah, olhou-o firmemente e ambos assentiram com a cabeça. Provavelmente, não voltariam a se ver. Mas era necessário que fosse assim.

– Meu amigo, não se esqueça das consequências do voto. A criança não pode morrer.

Um poderoso trovão fez-se ouvir, e Draco não pôde escutar a última frase de Micah. Foi quando algo irrompeu das sombras.

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A Vida É Sonho

Anne

No céu, ambos estavam sobre mim, majestosos. O verde cuspiu uma chama azulada na fera de cor marrom, que se lan-çou em direção ao seu pescoço, abocanhando-o subitamente. A criatura rugiu, e um sangue escuro e viscoso espirrou pelo céu manchando ambas as criaturas. O verde tentou resistir. Debateu-se. Mas a besta marrom parecia maior, mais forte. Ainda assim, o primeiro não se daria por vencido. Voou numa velocidade inacreditável em direção ao chão, passando suas gar-ras – com toda força – ao redor do marrom e cravando-as de tal modo que este rugiu estrondosamente.

Tanto sangue...Eles não conseguiriam se separar, um não libertaria o outro.

Mas nenhum deles morreria sozinho. Nenhum deles aceitaria a derrota.

Eles se debatiam, tentando se ferir o máximo possível, enquanto voavam velozmente rumo ao chão. A colisão certa-mente aconteceria.

Então um forte vermelho-alaranjado tomou conta de minha visão, mas aquilo, definitivamente, não era sangue. O calor uniu-se

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à estranha cor e juntos geravam uma sensação desagradável, porém quase habitual em mim. E o desconforto forçou meu despertar.

Abri os olhos vagarosamente, tentando evitar o choque da luz cegando-os momentaneamente.

Em vão.Eu precisaria voltar a dormir em minha cama, caso quisesse

diminuir a dor causada em meus olhos pelo sol brilhante da manhã, mas, ao mesmo tempo, a sensação de ser acordada pelo calor provocava estranhos sentimentos de conforto e segu-rança... Era essencialmente calmo e sereno.

O céu estava claro e límpido, como era de se esperar. Um azul hipnotizador, enodoado vez ou outra por claras nuvens macias e acetinadas que se desvaneciam à medida que a leve brisa soprava mansa.

Sentei-me na rede, fechei meus olhos mais uma vez e respirei fundo o ar daquela manhã. Tanta coisa a ser feita. Estiquei-me em direção a um galho – um pouco mais alto e sem folhas – onde a lamparina de gás estava pendurada e apaguei a fraca chama. Alonguei meus braços para o alto. Ao espreguiçar-me, emiti um som semelhante a um ronronar e balancei levemente a rede. Aproveitei o impulso e, alegre, pulei no chão. Como sempre, ajoelhando-me para amortecer a queda.

Teria que arrumar um novo modo de ir para cama... Subir quase 6m numa grande árvore de poucos galhos baixos não estava sendo exatamente suficiente – ou prático –, mas a rede amarrada nesta altura da árvore e, na outra ponta, numa antiga árvore seca e tortuosa, me parecia a coisa mais segura fora da barraca em que eu, supostamente, deveria morar.

Caminhei alguns metros pela mata fechada, até encontrar uma clareira, e, bem no centro, a casa. Continuei andando em

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sua direção. Ao passar ao lado de um barracão ouvi relinchares, notavelmente maior que a cabana. Isso me fez sorrir. Devem estar famintos, precisaria passar ali em breve. Adentrei a casa, peguei a primeira jarra que estava ao meu alcance e saí nova-mente. Puxei um dos vestidos lavados do varal improvisado e me dirigi ao riacho mais próximo.

**

O céu permanecia sereno sobre minha cabeça. A solidão me parecia uma companhia maravilhosa. Os sons da água correndo vagarosamente e dos pássaros nas poucas árvores à beira do ria-cho eram tudo o que eu precisava para me sentir feliz.

Sabia que não haveria mais ninguém ali; porém, ainda assim, olhei cautelosamente ao meu redor antes de me despir.

A água estava límpida, quase cintilava com o reflexo do sol. Seu azul assemelhava-se ao do céu, e parecia tão calma que a julguei preguiçosa. Corria lenta, quase como se não quisesse se separar daquele lugar. Ajoelhei-me e lavei meu rosto. Senti a água fria escorrer pela testa e pelas bochechas, e depois o gote-jar em meu pescoço. Repeti o mesmo movimento duas ou três vezes, não me recordo bem, e voltei a ficar em pé. Fechei os olhos para sentir melhor a brisa bater em meu rosto, que pos-suía um típico e delicioso cheiro de orvalho da manhã, inspirei fundo aquele aroma, quase como se a natureza falasse comigo por meio dele. Se o fizesse, estaria com certeza sorrindo e dando--me um revigorante “bom-dia”.

Receosa, entrei na água fria, pé ante pé. E quando a água já batia em minha cintura, algo passou sobre minha cabeça. Mesmo que por alguns segundos, o sol havia sido bloqueado

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misteriosamente. Um arrepio percorreu minha espinha e o frio chegou antes do vento: uma lufada de ar gelado, extremamente forte, contrastando por completo com a brisa fresca e suave, quebrada pela luz quente.

Fiquei imóvel esperando aquilo tudo passar, e passou quase tão rápido como veio, deixando apenas o frio e um mau pres-sentimento, que ali permaneceram, e senti como se cada parte do meu corpo gritasse que havia algo errado. Não compreendia, naquele momento, que estava acontecendo.

Nem pude me banhar calmamente. Cada gota de água e todo sopro da brisa pareciam-me fora do lugar. Era como se me alertassem chamando minha atenção para alguma coisa estra-nha, que estava para acontecer. E eu tinha esse pressentimento. Lavei o vestido usado no dia anterior e, rapidamente, vesti o que estava seco; enchi a jarra que levara comigo, e caminhei para casa, tentando afastar de minha mente aquela sensação assustadora.

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