mar de fogo

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Dominic, um belo, rico e bon vivant jovem da nobreza inglesa vai ao Caribe para acompanhar o pai em negócios diplomáticos. Lá ele ouve sobre a fama do perigoso pirata Santiago, capturado recentemente pela marinha espanhola e condenado à forca. Porém, Santiago escapa, e Dominic não faz nada para impedir. Algo de que ele se arrependeria amargamente mais tarde, quando é feito prisioneiro justamente pelo pirata mais temido dos mares.

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MAR DE FOGO

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Mar de Fogo

Camila Mililika

EDIÇÃO RAYMARA IRIS

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SOBRE A AUTORA Um pouco anti-social. Caseira. Implicante. Risonha. Viciada em seriados. Viciada em leitura. Viciada em escrever. Escreve de tudo, ou tenta, mas prefere histórias leves com roman-ces água-com-açúcar. Manteiga derretida. Gosta de tentar escrever uma comédia, apesar de achar que falha miseravelmente neste quesito. Gosta de doces, mas não come tanto porque a balança é um objeto cruel. Crítica. Muito Crítica. Muita auto-crítica. Enfim, virginiana. Fala o que pensa, mas toma cuidado com as palavras. Odeia magoar, ou machucar alguém, mas às vezes sente vontade. Não sabe ser muito simpática, mas não é intencional. Distraída. Preguiço-sa. Desorganizada. Inveja daqueles divos como o George R.R Martin, Bernard Cornwell, J.R.R Tolkien ou J.K Rowling (como podem escrever tão bem, expliquem-me!? Contem-me seus segredos!). Mania de roer as unhas. Espinhas na cara, mesmo já não sendo mais adolescente. Desleixada com as roupas que usa (cadê dinheiro para comprar roupas legais?). Um pouco claustrofóbica (ônibus lotados, uma sina). Escreve para fugir, distrair, brincar, sorrir, chorar, viver outras vidas.

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SUMÁRIO

INFORTÚNIO

NEGAÇÃO

ORGULHO FERIDO

BRIGA

TORTUGA

PROVOCAÇÃO

PERCEPÇÃO

MORTE

O TERCEIRO ANEL

A FEITICEIRA

ALTO-MAR

CRIME

ESCOLHAS

TEMPESTADE

SEREIAS

ÍNTIMOS

LUNETA

EMBATE

01.

02.

03.

04.

05.

06.

07.

08.

09.

10.

11.

12.

13.

14.

15.

16.

17.

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Estava terrivelmente calor.

Eu sentia minhas roupas grudarem na minha pele enquanto o suor escorria de minha nuca e têmporas. Eu observava aquela imensidão azul do mar além da cidade de Hispaniola com um sentimento de extremo tédio.

Não havia nada para mim naquele lugar rústico, infestado de pescadores e pessoas co-muns, oficiais da marinha espanhola, casas de pedra, poeira e fedor de peixe. Porém meu pai, capitão da marinha da Inglaterra, recebera a missão de vir até o Caribe para cuidar de assuntos burocráticos, provavelmente relacionados com o tráfico de mercadorias e escravos, com o co-mandante da frota espanhola.

Eu não participaria das conversas diplomáticas que meu pai teria com o tal comandante; na verdade, eu era um completo inútil passeando pela cidade e crispando meus lábios para o povinho desgraçado que ali vivia, miseráveis, sujos e queimados pelo sol.

Meu pai me trouxera como um castigo pelas minhas libertinagens da Europa, meus gas-tos extravagantes com mulheres, festas, bebidas e jogos de azar. Mas, convenhamos, o que há para um jovem rico e nobre de dezoito anos fazer nos dias de hoje que não gastar o dinheiro inesgotável da família, enquanto brinca de ser poeta para as putas de um bordel? Obviamente meu pai não entendia que as finanças e os negócios da família não me interessavam e me trouxe nessa viagem estúpida com intuito de colocar algum juízo na minha cabeça.

Como se os enjôos que tive durante toda a viagem de navio fossem me curar de alguma coisa. Eu só continuei com vontade de vomitar, mesmo em terra firme. Com sorte hoje as últi-mas negociações acabariam e iríamos para a casa. Eu não via a hora de voltar a comer algo que não peixe e dormir decentemente em minha cama, com meus travesseiros de pena de ganso e lençóis de seda fina, acompanhado por alguma mulher de curvas generosas e, de preferência, pouca capacidade de articulação sonora. Gemidos eram bem vindos, contudo.

Capítulo I - Infortúnio

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Estava andando distraído pela área de comércio que havia perto do atracadouro de na-vios e parei observando com curiosidade um anel de caveira exposto em uma banca onde havia vários outros objetos suspeitos, como facas, colares de ossos, brincos de argola, bandagens e alguns outros enfeites tão feios que não entendi o que estavam fazendo à venda.

“Interessado no anel, Senhor?” Perguntou o dono na banca, um homem encurvado com sorriso de dentes amarelados e podres, alguns em falta, e rosto sujo enrugado pela idade. Ime-diatamente senti asco do velho, enquanto ele pegava o anel de caveira com uma mão trêmula de unhas pretas e estendia-o para mim.

O que me chamou atenção no anel foram os olhos da caveira. Eram pontinhos vermelhos e eu suspeitava que fossem feitos de rubis. Era meio hipnótico e, por mais que eu não desejasse aproximar um dedo sequer daquele homem, peguei o anel e analisei-o melhor. A prata já estava um tanto puída e enferrujada, mas os olhos brilhavam como se me desafiassem a comprá-lo.

“Vou levar.” Avisei, jogando um punhado de moedas de ouro para o homem. Ele ficou impressionado com as moedas e percebi que pagara bem mais do que ele estava cobrando, mas não me importei, três moedas a mais ou a menos não fariam diferença e quem sabe assim ele poderia comprar uns dentes novos, ou tomar um banho decente.

Coloquei o anel no bolso e voltei a caminhar, mas, após alguns passos, parei ao escutar uma conversa sibilada e nervosa entre duas mulheres. Parei porque ouvi a palavra pirata e, ad-mito, um dos meus temores naquela viagem era nosso navio ser abordado por um dos vários navios piratas que assolavam os mares do Caribe. O estúpido Rei da Inglaterra dera apenas três navios para meu pai e não uma frota; uma retaliação pelo último fracasso de Leroy em uma de suas missões, na qual eu também não tinha o mínimo interesse em saber qual fora e o que acontecera. Se meu pai queria se afundar sozinho pelo Atlântico, não era problema meu.

“Ele vai ser executado hoje no final da tarde...” Entreouvi a voz ladina da mulher de meia idade. “dizem que ele se entregou.”

“Mas como, o pirata mais perigoso se entregando, assim, sem mais nem menos? Só acre-dito vendo!” Retrucou a outra, espantada.

Eu me aproximei mais, fingindo olhar uma das bancas.

“Está no navio do comandante. Mas vão trazê-lo para terra para a execução.” Explicou a primeira, com um brilho entusiasmado nos olhos. No marasmo do lugar, acredito que a execu-ção de um pirata era uma ótima distração para aplacar o tédio.

“Só acredito vendo!” Repetiu a outra, e eu saí dali sem dar importância. Prestando mais atenção à minha volta, percebi que o assunto sobre a execução do pirata estava na boca do povo. Quando entrei no bordel rústico e fedorento da cidade, perguntei para o homem que

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trabalhava no bar sobre o tal pirata.

“É o pirata Santiago.” Rosnou ele. Era um homem grande e barbudo, com um olho leito-so e provavelmente cego e algumas cicatrizes espalhadas pelo rosto. Deveria ter uns cinqüenta anos, com fios brancos manchando a careca, mas parecia forte como um touro. Ele cuspiu antes de continuar. “Já fui pirata, garoto, e conheci a figura. Na época ele era novo, mas não é do tipo que se entrega fácil. Há algo nessa história, ouça o que estou falando.”

Dei de ombros. Pareceu-me óbvio que ele estava louco para que o tal pirata escapasse e ele pudesse falar um ‘eu não disse?’ para todos que frequentavam o seu bar, como se ele sou-besse da fuga desde o início; eu apenas pedi uma cerveja, coloquei uma puta no colo e pensei que estava louco para ir embora daquele clima sufocante do Caribe. Minhas roupas sujavam de areia e pó o tempo todo e eu mal conseguia respirar sem sentir-me asfixiado. Até a cerveja era ruim, azeda, forte demais e eu não resisti a fazer uma careta de desgosto depois do primeiro gole.

O dono do bordel riu com escárnio.

“Vocês estrangeiros, com essas roupas cheias de laços e enfeites, cabelos compridos iguais a das putas desse bar são mesmo cheios de frescura, nem cerveja forte conseguem beber feito homens.” Ele cuspiu, passando um pano sujo num copo. Larguei meu copo sobre a mesa, sem me importar com insultos vindos de um homem que mal deveria ter onde cair morto.

“O problema é que vocês não sabem fazer cerveja boa como nós estrangeiros.” Inclinei-me sobre a mesa. “E esses cabelos ruivos aqui?”Apontei. “As mulheres adoram.”

Sorri de lado assim que o homem balançou a cabeça em descaso e incredulidade, e a jovem em meu colo riu, passando os dedos por meus cabelos. Em Londres, eu era conhecido como um Don Juan e já quase apanhara por diversas vezes por levar filhas de nobres para mi-nha cama. Porém de santas essas garotinhas do papai nunca tinham nada, e eu não me sentia inclinado a apanhar por desonrar o que já estava desonrado.

Quando coloquei a mão no decote generoso da garota e mordi a linha que delineava o pescoço dela, meu pai entrou no recinto não parecendo nem um pouco feliz, nem mesmo com a quantidade de seios exposto no local.

“Dominic!” Ele exclamou, desgostoso, olhando para a minha mão enfiada no decote da jovem puta. “Procurei você por todo o lugar! Pensei que lhe tivesse dito que queria a sua pre-sença em nossa despedida formal.”

Eu tirei a garota do meu colo e dei um tapa estalado na bunda dela para que ela fosse procurar outro cliente, e encarei meu pai com um sorriso debochado.

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“E pensou certo, Senhor, meu pai.” Falei brilhantemente. “Mas pensei que não se impor-taria se eu me divertisse um pouquinho antes.”

Ele crispou os lábios, olhando com repulsa para tudo à sua volta, e eu precisava concor-dar, o lugar era deplorável.

“Vamos logo, o comandante já deve estar nos esperando.” Ele avisou, pegando-me pelo antebraço e arrastando-me para fora do recinto como se eu fosse um garotinho arteiro. Do lado de fora, empurrou-me para frente e avisou que subiríamos a bordo do navio do comandante, que, lembrei, era onde o tal pirata Santiago estava preso.

Empertiguei-me, alisando minhas vestes caras, e segui com ele em direção ao porto.

~ *~ * ~

Não foi nada diferente do que eu esperava. Depois de quase cochilar sentado na cabine do comandante - um homem alto, magro, de feições finas e olhos negros como a noite - eu dei uma desculpa qualquer e saí para o convés, caminhando a esmo pela grande e ostentosa estru-tura. O navio, chamado de Víbora do Mar, era enorme e imponente, com suas laterais cheias de aberturas para canhões, três velas gigantescas que se erguiam como se tentassem alcançar o céu, e a frente enfeitada com uma cobra que surgia da água e se contorcia até que sua cabeça cheia de dentes afiados estivesse no mesmo nível que a proa, olhando ameaçadora para o mar à sua frente. Totalmente desagradável.

Era quando eu estava inclinado sobre a borda do navio, olhando distraidamente para as águas que ondulavam calmas e ritmadas sob o sol ofuscante, que eu o vi. Ele saiu de uma aber-tura no convés, subindo as escadas com pressa e um sorriso matreiro no rosto. Usava apenas uma calça preta e uma camiseta branca aberta, amassada e suja de sangue. De fato, segurava uma faca ensangüentada numa das mãos e achei que ele iria me matar.

Mas ele apenas olhou para mim, sorriu enviesado e levou um dedo aos lábios, pedindo por silêncio. Ele era mais alto e forte do que eu, com a pele bronzeada brilhando, banhada pelos raios de sol, tanto quanto os olhos castanhos divertidos. Eu obviamente fiquei calado, com uma expressão perplexa. Ele piscou para mim, subiu na borda do navio e pulou, dando uma ponta na água. O cara era pirado.

Debrucei-me na borda, tentando encontrá-lo naquelas águas azuis escuras, quando um alarme soou.

“O pirata escapou!” Alguém gritou repetidamente, saindo pelo mesmo local de onde o pirata saíra havia alguns segundos. Os guardas que estavam pelo convés – todos distraídos – se agitaram, perplexos, e eu percebi que acabara de deixar um pirata perigoso escapar.

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E arregalei ainda mais os olhos, meu queixo pendendo para baixo, quando um navio monstruoso saiu de trás do rochedo que adornava um dos lados da baía. Um navio pirata.

Tinha também três mastros e era quase tão grande e ameaçador quanto o do comandan-te espanhol. Houve um rebuliço e uma gritaria na baía. Oficiais correndo de um lado para o outro, como baratas tontas, tentando alcançar os canhões a tempo. Uma bandeira preta, com a imagem de um crânio com olhos de rubi e duas espadas cruzadas foi hasteada no navio pirata e pensei ter visto o homem que pulara na água ser puxado para cima, enquanto tiros de canhão saíam com estrondos sinistros das aberturas laterais do navio.

Segurei-me com força na borda do navio quando um dos tiros atingiu o Víbora do Mar, fazendo-o balançar como se estivesse em meio às águas revoltas de uma tempestade. Meu pai e o comandante apareceram, ambos tão desorientados quanto o resto dos homens.

“Aquele desgraçado!” Exclamou o comandante, olhando furioso para o navio pirata. “Como ele conseguiu...?”

Não falei nada. Apenas olhei o navio afastar-se orgulhoso, sua bandeira com caveira ondulando e rindo da nossa cara, antes que os homens tivessem tempo de colocar algum dos navios do porto em movimento e ir atrás dele. Assim como meu pai, suspirei aliviado ao ver que o nosso navio, atracado a alguns metros do Víbora do Mar, estava ileso.

Poderíamos voltar para casa ainda naquele dia.

“Estranho ele ter se entregado e depois fugido.” Comentei, sem entender o que se pas-saria pela cabeça daquele homem. Lembrei do sorriso divertido dele enquanto fugia, como se tudo houvesse saído como ele planejara. Confesso que fiquei intrigado, mas sabia que logo esqueceria esse estranho episódio assim que estivesse outra vez na minha amada Londres com cheiro de esgoto.

O comandante, que se chamava Aguirre Stangel, resmungou palavrões cheios de ódio antes de se recompor e despedir-se de nós, desejando-nos uma boa viagem de volta. Pelo que pude entender, as negociações entre ele e meu pai saíram nos conformes e Leroy podia agora voltar para casa com boas notícias para nosso Rei. Ele estava tão animado com a perspectiva que não se importou em repreender-me por ter saído no meio da conversa entre ele e Stangel. O que foi ótimo, pois não vi nenhuma diferença entre eu estar lá ou não, uma vez que não fiz questão alguma de gastar minha saliva naquela ladainha cheia de formalidades.

Então, juntamos nossos homens, pegamos a prata, o ouro e as mercadorias que arreca-damos com a viagem, entre trocas, vendas e presentes oferecidos em nome da Espanha; embar-camos em nossos navios e navegamos de volta à Inglaterra.

~ *~ * ~

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Eu estava deitado na minha cama num dos poucos quartos decentes do navio, lendo um livro chamado “O asno e o Ouro” – para você ver o estado de insônia em que eu me encontrava – quando eu senti. Não é algo que você possa explicar, mas é aquela sensação de que há algo di-ferente no ar, mais pesado, mais perigoso e sombrio. Senti um arrepio percorrer minha espinha sem qualquer razão e olhei em volta, como se estivesse sendo observado, mas estava sozinho e o silêncio era assustador. Até mesmo as ondas do oceano pareciam ter se calado.

Levantei da cama e espiei pela janela, conseguindo distinguir apenas a escuridão densa da noite e o brilho da lua nas oscilações da água e, quando dei por mim, o navio já estava perto demais, quase engolindo o nosso com seu tamanho. E, minutos depois, minutos nos quais eu fiquei congelado, meu coração batendo frenético em meu peito, os gritos começaram.

Estávamos sendo atacados.

Larguei o livro e coloquei minhas botas e uma camiseta branca larga, peguei meu florete e corri para fora do quarto, subindo para o convés. Por que fiz uma coisa dessas se podia ficar escondido em segurança? Porque conhecia meu pai e sabia que ele estaria lá em cima, lutando contra os piratas. E, por mais que nossa relação não fosse das mais amorosas, eu não gostava da idéia de deixá-lo sozinho naquele caos para depois, talvez, encontrá-lo morto.

Contudo, não me parecia uma atitude corajosa subir para o convés, onde eu já ouvia o som das espadas se chocando, mas sim uma atitude estúpida. Eu não era dos melhores esgri-mistas, treinava pouco e sempre me sentia preguiçoso depois de menos de meia hora de exercí-cio, mas tentei não pensar nisso quando fui engolfado pelo vento fresco da noite e defendi-me do primeiro golpe de espada.

Eu procurei mais desviar-me e fugir dos homens que tentavam me atacar do que real-mente enfrentá-los, enquanto procurava por meu pai. Eu arfava sem parar, meu sangue retum-bando em meus ouvidos e meus reflexos fazendo o serviço sozinho. Tudo parecia um grande borrão. Homens duelavam e eu conseguia ver que os piratas estavam ganhando. Eram mais numerosos, violentos, e o ataque surpresa lhes garantira grande vantagem. Vários oficiais mor-reram assim que subiram no convés, pegos desprevenidos, e eu me senti sortudo por ainda estar vivo. E foi quando me defendi de um golpe que quase arrancou meu florete de minha mão que vi meu pai duelando com um pirata na proa, perto do leme do navio. Dei um jeito de correr do pirata com quem eu duelava, mas antes de alcançar as escadas escorreguei numa poça de sangue, caí de bunda e deslizei alguns centímetros. Quando levantei, recebi um corte no braço.

“Hei, boneca, aonde vai com tanta pressa?” Perguntou o pirata. Fiquei com tanta raiva que nem sei como ele acabou no chão, com a ponta de meu florete fincada em sua barriga ma-gra. Boneca! Qual o problema desses energúmenos, burros e ignorantes, com homens de cabe-los ruivos? Soltei um sibilo de desgosto (nunca havia matado uma pessoa antes e não me senti nada bem com a experiência) e um líquido ácido subiu pela minha garganta. Senti-me enjoado

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e perplexo, mas voltei a correr, subindo pelas escadas laterais que levavam até a proa.

Meu pai estava caído no chão, segurando o abdômen sangrento (porém, o corte não pa-recia profundo), enquanto o pirata apontava a espada para ele.

“Mande seus homens se renderem e poderemos resolver isso diplomaticamente.” Falou o pirata, num tom debochado, balançando a ponta da espada em direção a meu pai.

Leroy cuspiu, seu rosto contorcido pelo ódio, seus cabelos ruivo-escuros grudando no rosto e pescoço devido ao suor.

“Negociar com um pirata!” Ele exclamou, como se a idéia soasse-lhe ridícula. E, de fato, soava. Aqueles piratas não iriam negociar, iriam matar todos que não se rendessem e rouba-riam todas as riquezas em nosso navio. O que o homem oferecia era algumas mortes a menos.

“Você pediu por isso, velho.” Falou o pirata, como se lamentasse, e quando ele fez o pri-meiro movimento da espada, eu gritei:

“Pai!” Foi estúpido, mas o homem parou o ataque, sua espada paralisada no ar, e eu avan-cei, colocando-me entre ele e Leroy.

E então eu o reconheci. Olhos castanhos enegrecidos pela noite, os cabelos curtos, espe-tados, o maxilar forte e os ombros largos, a pele morena tingida pelo sol. Era o pirata Santiago. Os olhos dele brilharam por um momento e achei que ele também me reconhecera.

“Você!” exclamei, obviamente surpreso. O homem que eu poderia ter impedido de esca-par, agora atacava meu navio. A vida pode ser uma vadia irônica quando quer.

“É seu filho, velho?” Ele perguntou a meu pai, aquele mesmo sorriso de quando ele pu-lara no mar brincando em seus lábios. Ele avançou como uma fera da noite em minha direção, tão rápido que não consegui acompanhar seus movimentos e, no instante seguinte, eu estava desarmado e ele me segurava preso em seus braços, a lâmina afiada de sua espada roçando meu pescoço, desejosa do meu sangue.

“Dominic, seu idiota!” Exclamou meu pai. Eu fora até ali para salvá-lo e olhe como aca-bei. Lamentável. Fiz uma anotação mental para treinar mais com a espada se saísse vivo daque-la situação.

“Mande seus homens se renderem agora ou corto a garganta do seu filho.” Disse Santia-go, forçando mais a lâmina contra meu pescoço e eu soltei um gemido baixo de medo e fechei os olhos com força. Santo Jesus Cristo, eu tinha certeza que a minha hora chegara.

Mas Leroy gritou que seus homens se rendessem, e Santiago para que os piratas os pren-

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dessem no lugar de matá-los. Eu gostaria de saber onde diabos estavam os outros dois navios de nossa comitiva e cheguei a cogitar a hipótese de que Santiago já cuidara também deles.

Homens subiram na proa e amarraram meu pai, levando-o em seguida para o convés. Eu me remexi, ainda preso no abraço do pirata. Ver meu pai sendo humilhado daquela maneira despertou um ódio como lava ardente dentro de mim. Leroy sempre fora um homem orgulho-so, respeitado e temido; aquilo não era certo. Estremeci de raiva e Santiago deve ter pressentido que eu estava prestes a fazer algo estúpido, porque aproximou os lábios do meu ouvido e mur-murou:

“Um movimento em falso, garoto, e você morre.” A voz saiu suave como a brisa, mas era uma ameaça que eu não podia ignorar. Resignei-me.

Eles nos pilharam. Meu pai foi obrigado a revelar onde estava escondida a prata e o ouro, enquanto meu pescoço continuava à mercê de Santiago. Eles passaram tudo de valor para o navio deles e amarraram todos os nossos homens.

“Não iremos matá-los... sinto-me estranhamente misericordioso hoje,” Ele sorriu para sua tripulação, que soltou risadinhas desdenhosas. “mas não posso correr o risco de você atirar com seus canhões enquanto nós nos afastamos ou de sermos perseguidos pelos seus três navios por vingança.” Declarou Santiago, e então me soltou, jogando-me em direção a outro pirata tão forte e grande quanto ele. “Vou levar o seu filho.” Ele falou e eu arregalei meus olhos, procuran-do pelos de meu pai.

Leroy me olhou com preocupação.

“Não vou atacá-lo-“ Ele tentou dizer, mas Santiago dispensou suas palavras com um ace-no de mão.

“É o que todos dizem. Vou levar seu filho e, se tentar alguma coisa, se eu ver o seu navio no horizonte, depois que o sol nascer, perseguindo-me, vou matá-lo,” Ele apontou a espada para mim. “antes que você tenha a chance de resgatá-lo.”

Eu pensei que ele iria me matar de qualquer forma e meu pai deve ter pensado o mesmo, porque seu semblante perdeu toda a compostura e ele começou a implorar; algo que eu nunca o imaginei fazendo, ainda mais por mim, seu filho baderneiro e boa-vida.

“Não, não, por favor, eu prometo que não vou fazer nada, mas não leve meu filho, não, Dominic!” Meu pai gritou meu nome antes que Santiago batesse com o cabo da espada em sua cabeça.

“Pai!” Gritei, ao ver Leroy caindo desmaiado, então encarei Santiago cheio de fúria. “Seu desgraçado, filho da puta, não precisava fazer isso!” Exclamei. Estava com as mãos atadas às

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costas e um dos piratas segurava-me pelo antebraço.

“Precisava.” Riu Santiago. “E se você não calar a boca, faço pior com você.” Ele caminhou até mim e, com a maior naturalidade do mundo, colocou-me em seu ombro. “Homens! Voltar para o navio!”

Eu estava perplexo, sentindo-me como uma donzela raptada e em apuros. Todos pula-ram de volta para o navio, e fui carregado junto. Os homens começaram a comemorar a vitória assim que o navio voltou a deslizar pelas águas negras da noite, extasiados com a quantidade de prata, ouro e mercadorias que haviam roubado.

Santiago caminhou até uma cabine e me jogou dentro dela, ainda com os pulsos amarrados.

“Vou deixá-lo aqui até decidir o que faço com você.” Ele falou. Abri a boca para xingá-lo, mas ele foi mais rápido, agachando-se e me segurando pelo queixo, seus olhos perfurando os meus. “É melhor pensar duas vezes antes de abrir a boca para me xingar, garoto. Não tenho paciência com prisioneiros desbocados.”

O tom perigoso e ameaçador dele fez com que eu me calasse, mas o fitei cheio de ódio e escárnio. Eu estava apavorado por dentro, mas sempre fui bom em olhar os outros com despre-zo. Ele riu da minha cara, como se eu não fosse mais do que um rato indignado em seu convés, e saiu da cabine, abandonando-me no escuro.

E eu nunca me senti tão azarado e ferrado na vida.