“fogo, vento, terra e mar: migraÇÕes, natureza e...

169
ANDRÉ AGUIAR NOGUEIRA “FOGO, VENTO, TERRA E MAR: MIGRAÇÕES, NATUREZA E CULTURA POPULAR NO BAIRRO SERVILUZ EM FORTALEZA (1960-2006)” MESTRADO – HISTÓRIA SOCIAL PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO SÃO PAULO 2006

Upload: lamdien

Post on 24-Dec-2018

215 views

Category:

Documents


0 download

TRANSCRIPT

Page 1: “FOGO, VENTO, TERRA E MAR: MIGRAÇÕES, NATUREZA E …livros01.livrosgratis.com.br/cp011195.pdf · formação e urbanização do Bairro Serviluz em Fortaleza. Comunidade localizada

ANDRÉ AGUIAR NOGUEIRA

“FOGO, VENTO, TERRA E MAR: MIGRAÇÕES, NATUREZA E CULTURA POPULAR NO BAIRRO SERVILUZ EM FORTALEZA

(1960-2006)”

MESTRADO – HISTÓRIA SOCIAL

PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO

SÃO PAULO 2006

Page 2: “FOGO, VENTO, TERRA E MAR: MIGRAÇÕES, NATUREZA E …livros01.livrosgratis.com.br/cp011195.pdf · formação e urbanização do Bairro Serviluz em Fortaleza. Comunidade localizada

Livros Grátis

http://www.livrosgratis.com.br

Milhares de livros grátis para download.

Page 3: “FOGO, VENTO, TERRA E MAR: MIGRAÇÕES, NATUREZA E …livros01.livrosgratis.com.br/cp011195.pdf · formação e urbanização do Bairro Serviluz em Fortaleza. Comunidade localizada

1

ANDRÉ AGUIAR NOGUEIRA

“FOGO, VENTO, TERRA E MAR: MIGRAÇÕES, NATUREZA E CULTURA POPULAR NO BAIRRO SERVILUZ EM FORTALEZA

(1960-2006)”

Dissertação apresentada a Banca Examinadora da pontifícia Universidade católica de São Paulo, como exiegência parcial para a obtenção do título de Mestre em História Social sob a orientação do Prof. Dr. Maurício Broinizi.

PUC/SP

2006

Page 4: “FOGO, VENTO, TERRA E MAR: MIGRAÇÕES, NATUREZA E …livros01.livrosgratis.com.br/cp011195.pdf · formação e urbanização do Bairro Serviluz em Fortaleza. Comunidade localizada

2

BANCA EXAMINADORA

_________________________

_________________________

_________________________

Page 5: “FOGO, VENTO, TERRA E MAR: MIGRAÇÕES, NATUREZA E …livros01.livrosgratis.com.br/cp011195.pdf · formação e urbanização do Bairro Serviluz em Fortaleza. Comunidade localizada

3

Dedidado especialmente à

minha mãe Francisca, ao meu pai Batista e aos meus irmãos:

Adriana, Andréia e Alex.

Page 6: “FOGO, VENTO, TERRA E MAR: MIGRAÇÕES, NATUREZA E …livros01.livrosgratis.com.br/cp011195.pdf · formação e urbanização do Bairro Serviluz em Fortaleza. Comunidade localizada

4

Agradecimentos

Uma pesquisa é sempre uma elaboração realizada em conjunto. Gostaria de agradecer

inicialmente a todos aqueles, que por qualquer motivo, sentiram seus nomes ausentes nesta

lista.

Agradeço muito especialmente ao meu parceiro e orientador Maurício Broinizi

Pereira. Agradeço igualmente ao corpo docente da PUC-SP, principalmente as professoras:

Yvone Avelino, Denise Bernusi Sant’Ana, Olga Brites, Vera Lúcia e Antonieta Antonacci.

Agradeço de todo o coração a querida Márcia Barros Valdívia, pessoa maravilhosa e

que muito contribuiu para a execução do presente trabalho.

Ao professor Eduardo Bonzato e ao amigo Antônio Luiz Macêdo pela disponibilidade

e inteligência na leitura desse texto.

Agradeço ao professor Janes Jandes e novamente a professora Yvone Avelino pelas

preciosas sugestões oferecidas na banca de qualificação.

Obrigado a Ana Karine, Alan, Beth, Emília, Mayara, Fernanda, Alice e a todos os

companheiros da minha turma de mestrado com os quais compartilhei as primeiras alegrias e

as tensões na confecção dessa dissertação.

Agradeço a ternura, o respeito e o acolhimento de Marcelo Farias, pessoa que muito

estimo e que me ensinou também os caminhos noturnos de Sampa.

Muito obrigado a Leandro Paschoarelli, companheiro e amigo, sua forte personalidade

certamente ajudou a tonar a vida mais bela e cadenciada em meio às loucuras da paulicéia.

Agradeço a Antônio Gilberto e a Wellington Júnior, amigos de Fortaleza, São Paulo e

sempre.

Agradeço ao Josberto e a Clarissa. Obrigado Kiko, Fábio e Rafael Caxilé.

Aos amigos Abel e Armando e Eliomar, dispersos, mas sempre queridos.

Tudo começou no PET História da UFC e lá se vão alguns anos. Agradeço aos

companheiros do Programa, e hoje amigos, Edson, Gustavo, Juliana, Viviane, Felipe, Eudes e

Silviana. Agradeço a “turma dos sete”: Idalina, Henrique, Lucília, Marla, Márcio e Zé da

Rocha, com os quais partilhei as primeiras angústias da pesquisa histórica. Obrigado ainda ao

Raimundo, Guilherme, Hermano e Eduardo.

Agradeço a todos os professores do curso de História da UFC, especialmente aqueles

com os quais, de algum modo, compartilhei essa pesquisa: Frederico de Castro Neves,

Page 7: “FOGO, VENTO, TERRA E MAR: MIGRAÇÕES, NATUREZA E …livros01.livrosgratis.com.br/cp011195.pdf · formação e urbanização do Bairro Serviluz em Fortaleza. Comunidade localizada

5

orientador e incentivador durante a graduação, Kênia Rios, Edilene Toledo, Verônica Secreto,

Adelaide Gonçalves, Eurípedes Funes, Régis Lopes, Frank Ribard e Ivone Cordeiro.

Um agradecimento especial à professora Simone Simões, antropóloga e amiga

querida.

Obrigado a professora Helena do Imparh pela competente e sugestiva revisão desse

texto.

A toda a galera do curso de História da UFC: Thiago, Daniel, Kerson, P. A, Carol,

Renata, Anna Carmem, Laninha, Liana, Edgar, Yassuo, Neto, Pedro, Henrique, Naná, Alê,

João Paulo, Josi, Engels, Gesner, Adalberto, Pereira, Rquel, Vitão.

A todos os colegas do primeiro semestre do ano 2000, especialmente a Túlio Muniz e

Camila Pagliuca.

A rapaziada do bosque: Capacete, Calixto, Carlos Jorge, Manoel Carlos, Tyrone,

Paulinho, Chicão, Gerardo e aos colegas do curso de Comunicação Social.

Agradeço sinceramente a inesquecível Lorena Lyse Lima Rodrigues.

À querida Nicinha e família.

A Karla, pela felicidade nesses dias preocupantes.

Esse trabalho não seria possível sem a participação dos moradores da comunidade do

Serviluz. Agradeço a todos aqueles que em algum momento me ajudaram, dando dicas

preciosas ou simplemente emprestando-me um pedaço de papel e uma caneta.

Agradeço especialmente a todos os que gentilmente concederam-me entrevista.

Agradeço aos amigos Clécio, Cleilson, Gleison, Jorge, Cláudio, Fábio, Gleisinho, Hélio,

Ilamar e a toda a galera do Titanzinho. Aos meninos do Paz e do Peleja. Ao David, vizinho,

historiador e amigo.

A todos os meus familiares.

Aos funcionários dos arquivos em que passei e que gentilmente atenderam-me.

Agradeço a CAPES pelo auxílio financeiro.

Agradeço de modo muito especial à população do Serviluz, pelas lutas, conquistas,

ensinamentos e pela feitura de uma história, sem dúvidas, dignas de ser narrada. Espero

sinceramente que este trabalho esteja à altura da grandeza de vocês.

Page 8: “FOGO, VENTO, TERRA E MAR: MIGRAÇÕES, NATUREZA E …livros01.livrosgratis.com.br/cp011195.pdf · formação e urbanização do Bairro Serviluz em Fortaleza. Comunidade localizada

6

RESUMO

Essa dissertação tem por objetivo central compreender o processo histórico de

formação e urbanização do Bairro Serviluz em Fortaleza. Comunidade localizada entre o

oceano Atlântico, o Porto do Mucuripe e um complexo industrial especializado no ramo de

gás e combustível, esse estreito pedaço de praia no extremo leste de Fortaleza foi ocupado por

um contingente bastante heterogêneo de trabalhadores. Pescadores, meretrizes, surfistas,

portuários, trabalhadores da indústria, pequenos comerciantes e, sobretudo, trabalhadores

informais misturam-se, configurando aspectos particulares de uma comunidade culturalmente

multifacetada e marcada por distintas experiências migratórias. Procura-se perceber ainda

como a comunidade convive com uma paisagem natural modificada pelo progresso e de que

modo às pessoas vivenciam suas sociabilidades.

Palavras-chaves: bairro, comunidade, natureza e cultura popular.

Page 9: “FOGO, VENTO, TERRA E MAR: MIGRAÇÕES, NATUREZA E …livros01.livrosgratis.com.br/cp011195.pdf · formação e urbanização do Bairro Serviluz em Fortaleza. Comunidade localizada

7

ABSTRACT

This dissertation has for central objective to understand the historical process of

formation and urbanization of the Serviluz district, in Fortaleza. Community located between

the Atlantic Ocean, the Port of the Mucuripe and an industrial complex specialized in the

production of gas and fuel, this narrow beach piece was occupied by a sufficiently

heterogeneous contingent of workers. Fishers, prostitutes, surfers, dock workers, industry

workers, small traders and, over all diligent informal, are together, configuring particular

aspects of a community culturally multifaceted and marked by distinct migratory experiences.

It is looked to perceive how the community coexists with a natural landscape modified by the

progress and which way the people had lived its sociabilities.

Key-words: district, community, nature, popular culture.

Page 10: “FOGO, VENTO, TERRA E MAR: MIGRAÇÕES, NATUREZA E …livros01.livrosgratis.com.br/cp011195.pdf · formação e urbanização do Bairro Serviluz em Fortaleza. Comunidade localizada

8

Sumário Introdução.................................................................................................................…...6

Capítulo I

1 O Mucuripe e o Serviluz - da aldeia de pescadores à moderna selva de

pedra...............................................................................................................................20

1.1 Os verdes mares bravios.........................................................................................20

1.2 Homens do mar, pés no chão..................................................................................30

1.3 A “tragédia” portuária............................................................................................41

1.4 A indústria de fogo..................................................................................................47

1.5 A Fortaleza do turismo e da especulação imobiliária..........................................52

Capítulo II

2 Migração, trabalho e a transformação do Serviluz em uma comunidade

multifacetada................................................................................................................57

2.1 Farol, os “de dentro” e os “de fora”.....................................................................58

2.2 A Praia Mansa........................................................................................................69

2.4 A crise na pesca e o surgimento de novos trabalhadores...................................75

2.3 A seca e a cidade.....................................................................................................80

2.5 A marginalidade e a imagem do medo.................................................................88

2.6 A comunidade .......................................................................................................95

Capítulo III

3 O homem e a natureza: os elementos para as

transformações.........................................................................................................109 3.1 As areias que voam.............................................................................................109

3.2 Da taipa ao tijolo.................................................................................................120

3.3 Surfe: o surgimento de uma escola local...........................................................131

Conclusão...................................................................................................................144

Relação de Siglas ......................................................................................................145

Relação de imagens anexas.......................................................................................146

Arquivos e Fontes......................................................................................................147

Bibliografia................................................................................................................150

Anexos .......................................................................................................................155

Page 11: “FOGO, VENTO, TERRA E MAR: MIGRAÇÕES, NATUREZA E …livros01.livrosgratis.com.br/cp011195.pdf · formação e urbanização do Bairro Serviluz em Fortaleza. Comunidade localizada

9

Introdução

O desejo de estudar a história do bairro Serviluz, litoral leste de Fortaleza, apesar de

um sonho antigo, somente começou a se concretizar quando ingressei na Universidade

Federal do Ceará, em 2001. Acredito que somente nesse momento foi possível conciliar os

instrumentos teóricos e metodológicos, gerados, sobretudo, a partir das reflexões da História

Social. Começava então a tomar corpo a idéia de produzir um trabalho historiográfico que

fundia a pesquisa acadêmica na minha vivência diária.

A presente pesquisa tem por objetivo central analisar o modo de vida dos sujeitos e as

relações sociais que estes estabeleceram na região industrial em torno do Cais do Porto do

Mucuripe, em Fortaleza. mais especificamente, esse estudo procura compreender o processo

histórico de formação e urbanização de uma faixa de praia que se convencionou chamar

popularmente de Bairro Serviluz.

Ocupação urbana recente, a formação desse núcleo habitacional está relacionada a

uma série de transformações ocorridas nos espaços da cidade no período contemporâneo,

sobretudo a partir da segunda metade do século XX. Minhas indagações visam principalmente

compreender quais foram as condições de trabalho e moradia dos migrantes que

experimentaram a vida nessa parte da cidade que se tornava metrópole.

A análise das condições de vida e das sociabilidades geradas entre as pessoas que se

estabeleceram nessa região só foi possível a partir da reconstrução de parte do processo de

ocupação, formação e consolidação dos primeiros núcleos habitacionais dessa parte de

Fortaleza. O cotidiano dos homens e mulheres que vivem no bairro Serviluz está diretamente

relacionado ao modo de viver dos pobres na periferia urbana, principalmente os das áreas

litorâneas, e inscrito nas mediações e contradições estabelecidas com as políticas públicas e

com a iniciativa privada da cidade.

A percepção das múltiplas dimensões da vida social dos trabalhadores que ocuparam

esse lugar necessitou de um entendimento da cultura como sendo algo pessoal e subjetivo e ao

mesmo tempo um processo de convívio coletivo. Resultado de ações concretas, os aspectos

culturais das classes trabalhadoras comportam a simplicidade do viver em família como

também refinados mecanismos de estratégias políticas, dentro dos quais se vivem tanto as

relações pessoais mais íntimas quanto as coletivas.

Situado entre o oceano Atlântico, o novo porto é um complexo industrial especializado

no ramo de gás e combustível, esse estreito pedaço de praia no extremo leste de Fortaleza foi

Page 12: “FOGO, VENTO, TERRA E MAR: MIGRAÇÕES, NATUREZA E …livros01.livrosgratis.com.br/cp011195.pdf · formação e urbanização do Bairro Serviluz em Fortaleza. Comunidade localizada

10

ocupado por um contingente bastante heterogêneo de trabalhadores. Ali, ainda hoje,

pescadores, meretrizes, surfistas, portuários, trabalhadores da indústria, pequenos

comerciantes e, sobretudo, trabalhadores do mercado informal, os ditos “biscateiros”,

misturam-se, configurando aspectos particulares de uma comunidade culturalmente

multifacetada e marcada por distintas experiências migratórias.

No Serviluz, milhares de famílias vivem em casas muito apertadas. Amontoadas, as

pequenas habitações formam ruas estreitas e labirínticas constantemente ameaçadas pela

invasão da areia, soprada pelos fortes ventos dessa parte do litoral. Geograficamente, o espaço

já foi apenas uma praia afastada, constituída por dunas de areias móveis e assolada pela ação

corrosiva da maresia. Quando as primeiras construções foram edificadas, o local, inóspito, era

praticamente inabitável. No lugar, não são raros os relatos de pessoas que tiveram suas casas

repetidas vezes derrubadas pelo vento ou pela água da chuva.

O avanço das marés, as cortinas de areia, a feroz ventania, e, posteriormente, o fogo da

indústria petroquímica foram elementos que se integraram à composição da paisagem social.

Essa mistura fazia sugerir a existência de uma relação orgânica, intensa e imediata entre

homem e natureza, entre natureza e cultura.

SERVILUZ era o nome do antigo Serviço de Luz e Força de Fortaleza, empresa

geradora de energia elétrica extinta no início dos anos 1960. Após a desativação da usina, esse

se tornou também o nome popular da favela que a circundava, sendo nessa denominação que

seus moradores passaram a se reconhecer. “Aqui é o Serviluz: de dia falta água e de noite

falta luz”, essa antiga anedota local parece indicar um dos primeiros elos de unidade entre os

moradores do bairro: a inexistência de energia elétrica, por longo tempo, nos domicílios que

se localizavam ao lado da usina.

Os números demográficos e a delimitação urbanística do bairro são bastante

imprecisos, mas segundo pesquisas populares, atualmente a população do bairro conta com

cerca de vinte mil habitantes1. Na distribuição administrativa municipal, o bairro e uma série

de outros núcleos populacionais aparecem sob a designação de Bairro Vicente Pinzón2. O fato

é que o bairro simplesmente não existe na configuração urbana oficial da cidade.

1 Pesquisa realizada por membros locais do Partido dos Trabalhadores (PT). 2 O Vicente Pinzón integra-se administrativamente a Secretaria Executiva Regional II (SER II) da Prefeitura Municipal de Fortaleza e engloba basicamente os bairros Serviluz, Castelo Encantado, Conjunto Santa Teresinha, Lagoa do Coração, Morro das Placas, parte da Praia do Futuro, entre outros. A dimensão geográfica, confusa, certamente não corresponde à totalidade da população que ali habita. Nas estatísticas oficiais, por exemplo, a região possui uma população de apenas 39.551 habitantes. Por sua vez, o Bairro Cais do Porto, comumente confundido também com o Serviluz, apresenta um quadro demográfico de 21.529 habitantes (Censo IBGE-2000). Para se ter uma idéia desse desacordo, enquanto o Mucuripe tem 11.990 moradores, o Grande Mucuripe, uma nomenclatura vaga, registra 203.220 habitantes (Censo IBGE-2000).

Page 13: “FOGO, VENTO, TERRA E MAR: MIGRAÇÕES, NATUREZA E …livros01.livrosgratis.com.br/cp011195.pdf · formação e urbanização do Bairro Serviluz em Fortaleza. Comunidade localizada

11

As primeiras ocupações do Serviluz e de boa da área leste da cidade foram efetivadas a

partir da construção do novo porto de Fortaleza e da transferência e instalação de um novo

ponto de meretrício na cidade em 1961, a zona do Farol do Mucuripe.

No fim dos anos 1970, com a intensificação do processo migratório para a capital

cearense em período de forte estiagem (1978-1982), e com o remanejamento para o local (ver

mapa) de uma comunidade de pescadores, antes fixada nas margens do cais portuário, a beira

de praia sobre a qual se ergueu o bairro já estava completamente tomada por tipos variados de

trabalhadores.

O crescimento demográfico e a diversidade de ocupantes refletiu-se nas subdivisões

internas que o bairro passou a comportar após o processo de ocupação3 (ver mapa). Além do

recorte espacial, uma dificuldade inicial da presente pesquisa foi ainda o estabelecimento de

um recorte temporal que abarcasse a ocupação inicial do bairro, nos anos 1960, e as

transformações desencadeadas no período atual. A chegada de grande leva de prostitutas,

trabalhadores do cais, pescadores e outras famílias fugidas das secas, sobretudo nos anos

1970/80, consolidaram uma população hoje com aspectos muticulturais.

Na tentativa de reconstituição desses eventos, a coleta, a sistematização e os

questionamentos lançados sobre as fontes, e principalmente a produção de entrevistas com

moradores do bairro, fizeram-me acreditar que seria imprescindível partir do momento atual,

do tempo da fala. Além disso, algumas vezes foi preciso recuar no tempo, mesclando uma

gama de temas diferentes que se mostravam essenciais ao entendimento do Serviluz como

resultado de um processo histórico complexo e ainda em andamento. Desse modo, procura-se

articular os diferentes momentos de ocupação do lugar, a produção de lutas pela organização

comunitária, as interações e as sociabilidades em constituição.

A escrita de uma história do tempo presente evidencia, entre outras especificidades, a

singularidade de estabelecer uma proximidade mais imediata com o objeto de estudo, o que

inevitavelmente acaba agregando pontos de vista, experiência pessoal, e ensejando

posicionamento e compromisso social do historiador.

Como pesquisador, foi de suma importância reconhecer o meu profundo envolvimento

com esse objeto de estudo com o qual mantenho estreitas relações de afinidade pessoal. No

trabalho, além do que foi encontrado nas fontes escritas e registrado nas fitas cassetes,

considerei igualmente importantes as incontáveis conversas informais, as frases de domínio

3 As divisões internas foram se estabelecendo no decurso do tempo e, geralmente, em função das migrações de grupos de trabalhadores para o local. A Estiva, o Farol, a Fronteira, a Favela, o Titanzinho, o Rastro, o Final da Linha, a Pracinha, e o Chespierre são partes localizadas, mas integrantes do mesmo bairro.

Page 14: “FOGO, VENTO, TERRA E MAR: MIGRAÇÕES, NATUREZA E …livros01.livrosgratis.com.br/cp011195.pdf · formação e urbanização do Bairro Serviluz em Fortaleza. Comunidade localizada

12

geral (citadas entre aspas), as observações de campo, as anotações das pequenas impressões e

a experiência de alguém que também migrou para aquela praia e nela reside há mais de quinze

anos. Sobretudo, deve-se creditar qualquer possível rigor científico deste estudo ao modo

transparente com o qual os documentos foram trabalhados.

No que concerne mais diretamente à metodologia com História Oral, Portelli4

observou que a relação social e pessoal entre os dois interloucutores também tem um papel

importante na produção das fontes de pesquisa. Trata-se de uma troca pessoal que se torna

uma declaração pública, uma performance que vira texto. A forma da entrevista depende

também do grau de familiaridade do entrevistador em relação à realidade sob investigação:

“os narradores pressuporiam que um historiador ‘nativo’ já conhece os fatos e fornecem em

substituição explicaçõoes, teorias e julgamentos”5.

Richard Hoggart foi taxativo ao enfatizar que um escritor tem obrigação de resolver

estes problemas como lhe for possível e durante o próprio processo de escrever, enquanto luta

por descobrir o que tem verdadeiramente para dizer: “Não me eparece possível que ele

consiga alguma vez atingir uma objetividade absoluta”6.

Sabendo de antemão dos perigos e das armadilhas decorrentes da proximidade com as

entrevistas, que exigiram um necessário “afastamento” metodológico, a singularidade de

conhecer mais de perto a realidade diária dessas pessoas me forneceu muitos elementos de

análise, capazes talvez, de apreender com maior riqueza de detalhes as dimensões mais

íntimas do cotidiano, da cultura e das identidades locais.

A praia do Mucuripe foi um conhecido reduto de jangadeiros e prostitutas que

recebiam, esporadicamente, visitantes de outras regiões encantados com aquela bela

paisagem. Com a construção do cais e o advento da indústria, alguns estivadores e indivíduos

de outras categorias somaram-se timidamente a esse contingente. Durante a estiagem de

quatro anos, no fim de 1970, novas favelas se espraiaram sobre as dunas dessa parte da

cidade.

Fortaleza é uma cidade cuja história é profundamente marcada pelo êxodo rural; ilhas

de prosperidade e bairros elegantes se constituíram em meio a periferias. De modo geral, os

núcleos habitacionais, ou favelas, que circundaram o complexo portuário, foram sendo

ocupados sobre as areias da praia de jangadeiros do Mucuripe desde a década de 1940, época

4 PORTELLI, Alessandro. História Oral como gênero. In: Projeto História: Revista do Programa de Estudos Pós-Graduados em História e do Departamento de História da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, nº. 22. São Paulo: EDUC, junho de 2001. 5 Op. Cit. PORTELLI, p. 21.

Page 15: “FOGO, VENTO, TERRA E MAR: MIGRAÇÕES, NATUREZA E …livros01.livrosgratis.com.br/cp011195.pdf · formação e urbanização do Bairro Serviluz em Fortaleza. Comunidade localizada

13

do término da construção da primeira etapa do porto e do início da montagem do parque

industrial na região.

É a partir do novo porto - elemento central no processo de expansão e reordenação

espacial da tradicional enseada de pescadores do Mucuripe - que a região vai experimentar

uma série de mudanças: nas suas reservas geográficas, no tipo de ocupação territorial e uso do

solo, na funcionalidade econômica, na expansão demográfica e na vivência social do seu

espaço.

Em Fortaleza, o projeto de industrialização correu, em determinado momento, em

paralelo à invenção de uma cidade turística diferenciada. No Mucuripe, as remoções iniciais

da população pobre, realizadas para o porto, foram continuadas com a construção da primeira

etapa da luxuosa Avenida Beira-Mar (1963), tornando esse espaço alvo privilegiado da

especulação imobiliária. A cidade das areias foi sendo cortada por asfalto. Em todas as

direções, bairros longínquos se integraram num curto espaço de tempo.

Essa é uma época caracterizada historicamente por grandes transformações, tanto na

paisagem quanto nos usos sociais dos espaços litorâneos brasileiros. Na Região Nordeste, a

velha imagem do semi-árido sofrido foi se intercalando com a idéia de um paraíso tropical,

belo e atrativo. Devido à “limpeza” urbana, algumas cidades nordestinas, como Fortaleza,

ganharam condições de disputar a atração de turistas nacionais e estrangeiros com os outros

lugares de visitação do país. O turismo tornou-se uma febre.

Assim, as modificações e intervenções do homem na natureza não alteraram apenas a

paisagem natural, mas também o convívio e a cultura. No Serviluz, após a ampliação de mais

um espigão de pedras e o aterramento de parte da orla, para que os pescadores da Praia Mansa

(ver mapa) fossem remanejados da área portuária, possibilitou-se a prática do surfe pela

garotada local. Inicialmente realizado sobre tábuas, o surfe na praia do Titanzinho (ver mapa)

emergiu como um tipo de trabalho e uma forma de promoção social. Os meninos da

comunidade logo ganhariam títulos e notoriedade, colocando a comunidade na mídia

esportiva nacional.

Nesta pesquisa procuro argumentar que, na pequena praia do Serviluz, um espaço

configurado historicamente por múltiplos territórios e personagens, em meio às adversidades,

proporcionadas tanto pela complicada relação estabelecida com a natureza quanto pelas

mediações mantidas com as políticas públicas excludentes da cidade, homens e mulheres

6 HOGGART, Richard. As utilizações da cultura. Aspectos da vida da classe trabalhadora, com especiais referências a publicações e divertimentos. Lisboa: Editora Presença, 1973. (Coleção Questões). P. 22.

Page 16: “FOGO, VENTO, TERRA E MAR: MIGRAÇÕES, NATUREZA E …livros01.livrosgratis.com.br/cp011195.pdf · formação e urbanização do Bairro Serviluz em Fortaleza. Comunidade localizada

14

aprenderam a compartilhar projetos e angústias, a redefinir valores, tornando-se agentes mais

ativos na construção de suas histórias de vida.

De modo geral, são escassos as pesquisas e os documentos sobre as regiões portuárias

cearenses. Apesar do rico patrimônio cultural dos habitantes das áreas praianas, também não

são muitos os trabalhos sobre a história dos moradores de seus bairros, principalmente os

formados em decorrência das migrações recentes para a capital. Em Fortaleza, algumas

regiões mais antigas incorporadas à malha urbana da cidade ainda na primeira metade do XX,

como Messejana e Parangaba, ou bairros mais antigos como Centro e Pirambu, foram temas

estudados e sobre esses lugares há uma documentação já catalogada.

Sobre o histórico vilarejo do Mucuripe, um dos berços habitacionais da cidade, existe

numerosa e variada documentação. Passagens sobre a história do lugar são encontradas em

antigos livros de História do Ceará, na literatura, em vários jornais e em reminiscências de

memorialistas. A praia foi ainda inspiração de músicas e poemas e recentemente passou a

contar com um acervo do bairro7.

No caso do Serviluz, encontrado muitas vezes nas fontes de pesquisa como sendo

apenas mais uma ramificação marginal do velho Mucuripe, minha primeira preocupação foi

realizar um levantamento de fontes sobre sua história. Aos poucos, reunindo informações

dispersas e cruzando diferentes tipos de documentos, acreditei se tratar de um processo

histórico instigante, em que um emaranhado de conflitos e resistências, intrigas e partilhas

podiam ser reconstruídos.

Na documentação do Estado, cujo principal arquivo consultado foi o Acervo Virgílio

Távora8, obtive numerosas informações sobre a seca e os municípios com ameaça de invasão

de trabalhadores no interior; o problema habitacional e a política social na periferia da capital;

os projetos de eletrificação e o processo de industrialização; a racionalização da agropecuária

no campo e o problema da falta de empregos na cidade. Mesmo sendo uma documentação de

cunho oficial, esse material foi imprescindível, pois nele foi preciso reconhecer como os

trabalhadores, citados sob a forma de estatísticas, participavam de ações políticas e da disputa

pelo poder local.

7 Arquivo criado na década de 1990. Reúne uma variada documentação, escrita e iconográfica, sobre a história do bairo. O acervo foi criado e é coordenado por uma antiga moradora do Mucuripe Vera Lúcia Miranda, a Verinha. 8 O acervo do ex-governador Virgílio Távora, organizado em 2003, está disponível no Arquivo Intermediário do Arquivo Público do Estado do Ceará. O acervo reúne documentos particulares e administrativos, mapas, fotografias, comendas, troféus, diplomas e objetos pessoais do político cearense. Cf. CEARÁ, Inventário do Acervo Virgílio Távora. Ceará. Secretaria da Cultura. Arquivo Público. Fortaleza: SECULT, 2005.

Page 17: “FOGO, VENTO, TERRA E MAR: MIGRAÇÕES, NATUREZA E …livros01.livrosgratis.com.br/cp011195.pdf · formação e urbanização do Bairro Serviluz em Fortaleza. Comunidade localizada

15

Nas páginas dos jornais da época, os destaques primeiros foram dados para o tímido

crescimento do mercado imobiliário, a emergência elegante dos bairros ilustres e dos clubes

de veraneio, o debate sobre as obras no porto, a abertura de novas estradas, as empresas que

resolveram migrar do Sul para o Nordeste e as disputas pela terra no sertão. Noutro momento,

a partir de meados dos anos 1970, as notícias davam conta do inchaço desordenado da cidade,

do saneamento urbano nas novas áreas de risco, das sucessivas crises econômicas e do tímido

anúncio da globalização. Num médio prazo, realizando uma leitura mais panorâmica dos

jornais, parece que o país foi do sonho eufórico da modernização operada nos anos 1950 ao

tenebroso pesadelo das sucessivas crises econômicas desencadeadas a partir da década de

1970.

Mas, nos cadernos dos diversos periódicos, não era difícil observar que a praticidade e

as benesses da vida moderna sempre se intercalavam ao cotidiano violento, criminoso e

desajustado das favelas que não paravam de crescer. Tratava-se de notícia dispersa que,

analisada em conjunto, indicava e atribuía formas e definições, emitindo juízos sobre

determinados assuntos.

Interessante observar como grande parte dos registros sobre a vida na periferia estava

escrita nas páginas policiais. De modo geral, essas fontes veiculam informações e produzem

representações que não correspondem à realidade vivida nesses espaços. Nas reportagens

divulgam-se, sobretudo, os dramas, as catástrofes e a política assistencialista do Estado, cada

vez mais disfarçada sob o lema da ampliação da cidadania.

A imprensa do Ceará no período contava com os seguintes jornais: O Povo, Correio do

Ceará, Unitário, Tribuna do Ceará e O Estado, além do jornal Diário do Nordeste, criado em

1982, e do jornal alternativo Mutirão (1977-1982). Na imprensa, guardadas as devidas

especificidades, a pesquisa sobre determinados espaços da cidade, como o Serviluz, foi

revelando que as informações vinham sistematicamente acompanhadas de adjetivos como

“perigoso” e “assustador”, e as coisas que dali provinham tinham quase sempre uma “origem

duvidosa”.

Por isso, ao utilizar esse material como fonte historiográfica, foi necessário considerar

o caráter do processo de produção da informação e a imprensa como constituinte de um certo

tipo de memória, que atende prioritariamente ao interesse de grupos sociais específicos.

Apesar da relevância das fontes de imprensa para os investigadores do período

contemporâneo, sabe-se que a grande maioria da população do bairro não tem acesso a esse

tipo de leitura.

Page 18: “FOGO, VENTO, TERRA E MAR: MIGRAÇÕES, NATUREZA E …livros01.livrosgratis.com.br/cp011195.pdf · formação e urbanização do Bairro Serviluz em Fortaleza. Comunidade localizada

16

Foi então preciso estabelecer uma metodologia de pesquisa na qual os critérios de

escolha e análise das fontes documentais possibilitassem a percepção da comunidade sob o

ponto de vista de seus moradores e não somente sob o epíteto de favelados. A meu ver,

analisá-los simplesmente, sob o prisma econômico, seria injusto e limitado em demasia.

Nesse contexto, foi importante considerar não apenas o que era dito sobre a

comunidade, mas principalmente o que fora produzido dentro da comunidade. Dessa

produção, os registros das associações de moradores mereceram reconhecido destaque. Nos

arquivos encontrei indícios mais concretos de experiências associativas e do aprendizado

político ali desenvolvido.

Nos arquivos das associações do bairro, porém, encontra-se uma documentação quase

sempre incompleta, cheia de lacunas e às vezes faltam elementos básicos como a data ou o

local da realização do encontro. As atas, por exemplo, são do tipo falada, algumas palavras

são anotadas com erros gramaticais, escritas às pressas em letras garrafais. O texto era escrito,

mas carregado de características da oralidade.

Esse discurso, embora elaborado numa linguagem própria e eivada de sentidos,

obviamente não corresponde à prática. E, por mais pormenorizada que seja uma ata, através

dela não seria possível identificar, por exemplo, o clima tenso ou alegre de uma reunião.

Outra consideração importante sobre tais registros é que, apesar de essa ser uma

produção realizada pelos próprios moradores da comunidade, muitas vezes somente os

membros da diretoria, os “sócios”, tinham direitos a voz e voto. Apesar de a finalidade social

dessa fonte estar relacionada basicamente à prestação interna de contas entre os associados,

possuindo efeito simplesmente comprobatório das ações do movimento, a documentação é

sempre permeada por relações de poder e se fundamenta em grande parte na hierarquia que

rege a instituição.

No Serviluz, assim como nos modelos organizacionais dos bairros adjacentes, é muito

relevante a opinião das lideranças comunitárias como formadoras de uma certa versão da

memória local. Se, por um lado, foi preciso reconhecer a importância dessas lideranças para o

desenvolvimento político da comunidade, por outro, não se podia esquecer que a altivez

dessas vozes ocultava a fala dos participantes anônimos do mesmo processo.

Disso resultou que, além das fontes escritas, a contribuição oferecida pela oralidade se

mostrou riquíssima, sobretudo porque muitos dos participantes ativos dessa trama ainda estão

vivos. Ademais, ainda teima em prevalecer ali a tradição viva da fala, da experiência verbal e

dos ensinamentos proverbiais dos mais velhos, gente que quase sempre consegue sobreviver

dispensando o mundo da escrita. Por isso, o diálogo com esses sujeitos é fruto não apenas da

Page 19: “FOGO, VENTO, TERRA E MAR: MIGRAÇÕES, NATUREZA E …livros01.livrosgratis.com.br/cp011195.pdf · formação e urbanização do Bairro Serviluz em Fortaleza. Comunidade localizada

17

necessidade de “dar voz” a essas pessoas, mas também porque esse é um universo em que a

oralidade sobrepõe-se à escrita nas construções e reconstruções da memória.

O trabalho com História Oral foi uma experiência rica e bastante singular. Um longo e

sinuoso trajeto foi percorrido das primeiras histórias de vida - timidamente colhidas diante do

gravador, objeto muitas vezes assustador - à convicção de que em cada depoimento havia uma

mensagem a ser transmitida e uma “verdade” a ser considerada; o contínuo retorno à infância

e a constante ressignificação das experiências passadas em função do tempo presente.

Basicamente, o processo de produção das entrevistas pode ser dividido, do ponto de

vista metodológico, em dois momentos distintos. No primeiro, os depoimentos orais foram

obtidos através de um prévio roteiro de perguntas e respostas mais diretas e que funcionaram

em essência como fonte de informação para a elaboração de subitens temáticos. Essa foi uma

fase relativamente simples, pois os próprios moradores da comunidade indicaram as pessoas

mais “sabidas” sobre a história do bairro. Com facilidade, estabeleci uma relação a meu ver

coerente.

Elaborei assim uma espécie de rede de entrevistas, estabelecendo, como critério

primordial de escolha dos depoentes, a tentativa de dialogar com diferentes membros da

comunidade. Líderes comunitários, pescadores, estivadores, trabalhadores da indústria, ex-

prostitutas, surfistas, donas de casa e trabalhadores informais foram ouvidos, perfazendo um

total de 11 (onze) entrevistas com durações de tempo variado.

Logo aflorou a deficiente formação profissional e a inexperiência acadêmica para

realização dessa atividade. A fragilidade metodológica inicial incluía desde o manejo com o

equipamento técnico até a falta de uma certa sensibilidade para lidar com a sutileza de

situações simples ocorridas no decurso do diálogo.

Já na primeira entrevista, depois de uns quinze minutos de conversa, o entrevistado,

bruscamente, interrompeu a gravação, desligando ele próprio o aparelho e pedindo-me para

que pulasse aquela pergunta. Eu o havia interrogado sobre uma possível participação sua nas

associações comunitárias do bairro. Ao fim da conversa, o entrevistado me contou que não

falara sobre aquele assunto porque “comunidade dava muita encrenca”.

Paradoxalmente, o gravador parecia ajudar tanto quanto atrapalhar. Eu mesmo não

gostava daquele objeto estranho entre duas pessoas no ato da entrevista. Aquele aparelhinho

tinha a incrível capacidade de inibir as pessoas que, ao saberem que tudo seria registrado,

tinham demasiada cautela no ato da fala. Por outro lado, muitos o aproveitavam e o utilizavam

como meio de soltar a falar e denunciar.

Page 20: “FOGO, VENTO, TERRA E MAR: MIGRAÇÕES, NATUREZA E …livros01.livrosgratis.com.br/cp011195.pdf · formação e urbanização do Bairro Serviluz em Fortaleza. Comunidade localizada

18

Optei então pelo uso de um rádiogravador portátil. Um pouco maior e com microfone

embutido no próprio aparelho, permitia captar o som numa distância mais longa, o que

possibilitou a eliminação física imediata do gravador. Além disso, para eliminar a tensão dos

primeiros instantes, comecei a ter também o hábito de ligar o rádio e ouvir música enquanto

preparava a gravação, o som poderia facilitar um possível relaxamento do depoente.

Num segundo momento da confecção das entrevistas, a dinâmica e a maleabilidade da

fonte oral exigiram uma redefinição dos critérios de escolha das pessoas e das questões a

serem feitas. Foi preciso, por exemplo, redimensionar a filtragem em função da profissão

exercida e a separação dos indivíduos em grupos, na medida em que essa divisão não

satisfazia a certos problemas e indagações da pesquisa em fase mais avançada.

Permanecia ainda a tentativa de dialogar com os múltiplos sujeitos do bairro, figuras

“representativas” de seus grupos e espaços, possibilitando assim a abertura de canais de

interação entre a diversidade ali existente. Segundo Ecléa Bosi “a memória oral é fecunda

quando exerce a função de intermediária cultural entre gerações”9.

Numa nova triagem, bem como no possível retorno a entrevistas anteriores, procurei

levar em conta não apenas o grau de conhecimento, a participação e o envolvimento político

do depoente, mas principalmente a forma e a capacidade de relembrar suas memórias. A idéia

não era mais saber apenas sobre a história do bairro em si, mas perceber como, no desenrolar

de cada narrativa individual, as pessoas reelaboravam suas experiências de coletividade. Não

interessava simplesmente constatar as participações mais efetivas, mas entender o sentido que

cada participação ou ausência teve na vida das pessoas.

Ao se trabalhar com História Oral, foi preciso aprender que o silêncio pode dizer

muito. Ao mesmo tempo, o fato de se saber da existência de certos constrangimentos sobre

determinados assuntos revelou a necessidade de se ter grande delicadeza para tratar certas

questões, ainda mais quando se mora na comunidade pesquisada.

Nos registros das associações do bairro, já apareciam denúncias de brigas e corrupção

entre os membros das entidades. O fato é que supostas fraudes, apropriações indébitas dos

equipamentos comunitários e os casos de brigas e ameaças passaram também a fazer parte da

luta por melhorias. Indicavam tanto os perigos decorrentes do exercício e manipulação do

poder no local, como a existência de uma tênue diferença entre o que é o espaço público e

aquilo que se torna particular. Existe um fluxo permanente e intenso de informações entre a

rua e o lar, a partir do qual ambos são constantemente modificados.

9 BOSI, Ecléa. Memória da Cidade: lembranças paulistanas. In: O Direito a Memória: Patrimônio Histórico e Cidadania. São Paulo: DPH, 1991. p. 146.

Page 21: “FOGO, VENTO, TERRA E MAR: MIGRAÇÕES, NATUREZA E …livros01.livrosgratis.com.br/cp011195.pdf · formação e urbanização do Bairro Serviluz em Fortaleza. Comunidade localizada

19

Se foi preciso respeitar a individualidade de cada entrevistado, foi possível observar

que no Serviluz muitos dramas e tragédias particulares se tornaram histórias de domínio

público. Há na verdade uma continuidade, entre as gerações, da transmissão dos casos mais

célebres que permeiam o imaginário e a memória social do bairro. Numa perspectiva

diferenciada das dos jornais, essas narrativas trazem geralmente situações dramáticas ao

extremo, crimes, mortes ou histórias de vidas que findaram tragicamente. A desgraça alheia,

nesse caso, vem sempre acompanhada de uma mensagem moralizante e exemplar.

Foi preciso ter em conta ainda que, apesar de o tema lidar com eventos históricos

contemporâneos, havia algumas distinções que se referiam à historicidade e à cultura dos

diversos grupos sociais, as quais precisavam ser consideradas.

No meretrício, por exemplo, era bastante difícil encontrar os personagens que viveram

nesse ambiente à época da inauguração dos prostíbulos do Farol, em 196110. No bairro, nessa

profissão o tempo de vida das mulheres é geralmente bem curto, quase todas faleceram ou

mudaram de endereço com a crise da “zona” nos anos 90. Muitas mulheres assumiram a nova

condição de dona de casa ao se casarem com pescadores ou estivadores mais prósperos que as

tiraram dos bordéis. Nesses casos, mesmo quando a mulher assumia desinibida o seu passado,

além da questão ética11 que perpassa todo o tema, restava ainda uma forte questão de gênero,

pois ela estava sendo entrevistada e falaria da sua vida íntima para um homem.

Já entre os surfistas, uma peculiaridade importante a ser considerada foi a pouca idade

dos praticantes desse esporte. Na localidade, mesmo os adeptos da primeira geração

dificilmente ultrapassam os 40 anos de idade. Nesse caso, não dialogava com os mais velhos,

fundamento básico no trato com história oral, mas com pessoas essencialmente jovens e que,

além disso, se expressam numa linguagem própria.

Outro fator relevante é que, apesar da pouca idade, esses adolescentes vão adquirindo,

ao longo de campeonatos, o hábito de aparecer na mídia esportiva promovendo seus

patrocinadores. Esse fato acaba propiciando a cristalização de certas falas e jargões entre os

competidores. Por outro lado, não foram raros os surfistas que preferiam não gravar o

depoimento, mas se mostrav Por isso foram utilizados alguns trechos das entrevistas

10 Cf.: ANJOS JUNIOR, Carlos Silveira Versiani dos. A serpente domada: um estudo sobre a prostituição de baixo meretrício. Fortaleza: Edições UFC, 1983. Foram utilizados alguns trechos das entrevistas realizadas por este autor. 11 Cf.: PORTELLI, Alessandro. Tentando aprender um pouquinho. Algumas reflexões sobre ética na História Oral. In: Projeto História: Revista do Programa de Estudos Pós-Graduados em História e do Departamento de História da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, nº. 15. São Paulo: EDUC, abril 1997.

Page 22: “FOGO, VENTO, TERRA E MAR: MIGRAÇÕES, NATUREZA E …livros01.livrosgratis.com.br/cp011195.pdf · formação e urbanização do Bairro Serviluz em Fortaleza. Comunidade localizada

20

realizadas por am totalmente disponíveis a cair n’água e pousar para lentes fotográficas. São

jovens que falam através do corpo e da gestualidade, expressam-se em movimentos

acrobáticos captados pelos holofotes da mídia.

Fonte construída através de um processo dialógico, recíproco e dinâmico, esse

material ajudou a desvelar a percepção do sentimento de pertencimento ao grupo, a

identificação das redes internas de solidariedade, a ajuda mútua, as discórdias, o

reconhecimento dos valores afetivos e a melhor compreensão dos mecanismos internos de

regulação da comunidade.

Através dos depoimentos orais, fui descobrindo que, além das associações de

moradores, que compuseram um quadro geral de organização popular nos bairros da cidade,

outros grupos também tiveram efetiva participação no coletivo local. Segundo o entrevistado

José Osmir Monteiro da Souza, filiado ao Partido dos Trabalhadores (PT), uma pesquisa do

seu partido no bairro identificou que o Serviluz “atualmente conta com aproximadamente

trinta tipos diferentes de associações populares”12.

Foi importante considerar que, durante grande parte do período de abrangência dessa

pesquisa, o país estava mergulhado numa ditadura militar. Apesar disso, os movimentos

sociais ganharam destacada notoriedade. Já havia algum tempo, comunidades e bairros se

organizavam. As manifestações artísticas e culturais que clamavam por liberdade de

expressão se intensificaram e, de modo geral, as camadas populares passaram a exercer maior

pressão sobre o Estado.

Os indícios apontam que os tipos de ação política praticada no bairro não estão

diretamente associados a instâncias tradicionais de luta do trabalhador, ainda que existam

conexões, mas espalhadas nos diversos núcleos de sociabilidades e culturas que se

constituíram. Afinal o bairro havia deixado de ser apenas o lugar onde as pessoas moravam,

para ser o lugar onde elas também viviam, encontravam-se, desenvolviam relações de união e

solidariedade, e onde acumulavam experiências de vivência comunitária e de resistência

coletiva.

Após os anos 1990, os movimentos associativos se multiplicaram no bairro. Ligas

esportivas mobilizavam centenas de jogadores de futebol em competições realizadas nos fins

de semana. Surfistas promoviam campeonatos e realizavam projetos sociais voltados à

preservação ecológica. Manifestações e festas católicas, como as tradicionais caminhadas em

procissões, eram realizadas pelas ruas escuras e violentas do bairro, as atividades nas pastorais

12 Entrevista concedida por José Osmir Monteiro de Sousa ao autor em 28/01/2003.

Page 23: “FOGO, VENTO, TERRA E MAR: MIGRAÇÕES, NATUREZA E …livros01.livrosgratis.com.br/cp011195.pdf · formação e urbanização do Bairro Serviluz em Fortaleza. Comunidade localizada

21

do pescador e da mulher eram igualmente freqüentes. Na Igreja Presbiteriana, missionários

ensinavam a ler e a escrever, enquanto na Pentecostal pastores socializavam jovens contra a

perdição das drogas. Nos muitos terreiros de macumba, mandingas e festas animadas eram

feitas para saudar a Rainha do Mar, Iemanjá. Nos cultos religiosos, emerge a diversidade e a

constituição de distintas memórias. Trata-se de uma comunidade marcada por uma enorme

efervescência política e cultural que faz surgir lampejos de autonomia entre seus moradores .

No primeiro capítulo desta pesquisa, procuro observar as transformações operadas na

tradicional enseada de jangadeiros do Mucuripe, percebendo como esse antigo reduto de

pescadores foi radicalmente modificado a partir da construção de um porto e das instalações

industriais. Paradoxalmente, o espaço foi se constituindo numa área de moradia e lazer das

elites e ao mesmo tempo se tornou um aglutinador de trabalhadores que chegaram à capital.

No segundo capítulo, abordo os vários deslocamentos que possibilitaram essas

mudanças e a ocupação do Serviluz por diferentes grupos populares em períodos distintos.

Analiso o bairro como sendo um espaço de múltiplos territórios: prostitutas, madames,

marinheiros; pescadores e empresários da pesca; surfistas, capoeiristas e jogadores de futebol

suburbano; estivadores e trabalhadores do gás; homens e mulheres convivendo numa

ambiência específica onde o trabalho tende a perder a forte interação que mantinha com o

meio.

No terceiro capítulo, descrevo um pouco da arquitetura do lugar, ruas de areia, becos

estreitos e pequenos quintais, um cenário onde se opera uma estranha lógica em que as casas

mais próximas da praia são as mais pobres e as mais ameaçadas pelas condições naturais.

Realizo uma breve discussão sobre a relação entre natureza e cultura, percebendo como estes

aspectos se cruzam no cotidiano da população e como nesse cruzamento os homens também

se transformam.

Page 24: “FOGO, VENTO, TERRA E MAR: MIGRAÇÕES, NATUREZA E …livros01.livrosgratis.com.br/cp011195.pdf · formação e urbanização do Bairro Serviluz em Fortaleza. Comunidade localizada

22

Capítulo I

1 O Mucuripe e o Serviluz: da aldeia de pescadores à moderna selva de

pedra

“As velas do Mucuripe vão sair para pescar

vou levar as minhas mágoas pras águas fundas do mar”

(Fagner e Belchior)

“O pescador que antes pisava descalço o chão de sua intimidade, já passeia sobre chinelos de plástico. Não

mais olha e vê as horas que são, pela posição das estrelas, mas pelos sinais digitais do relógio japonês de

pulso (...) a cabaça de ontem é a marmita de alumínio de hoje”

(Eduardo Campos)

“A gente mora numa bomba!”.

(Boi, morador do Serviluz)

1.1 Os “verdes mares bravios”

Os homens já não mais acordam ao cantar do galo, mas o hábito de cedo levantar

ainda permanece. Diferentemente do horário de trabalho na indústria, no qual os operários

devem estar à porta da fábrica ao toque da estridente sirene, os trabalhadores do mar não

batem o cartão de ponto. Na pequena pesca, o momento do trabalho depende quase sempre da

sazonalidade da maré.

Se o mar “tá pra peixe”, o mestre reúne os pescadores. A força de trabalho quase

sempre se compõe no momento exato de iniciar a pescaria, mas muitos homens se engajam no

decurso do processo de captura. Entre oito e dez homens, no mínimo, são necessários para a

realização da pesca com a rede de “três malhos” 13. Esse é um tipo de equipamento de pesca

destinado basicamente a pesca de sardinhas.

13 “O tresmalho, de origem portuguesa, era uma rede de emalhar composta pela superposição de três malhas de tamanhos diferentes. A rede de tresmalho era fabricada com fios de algodão pelos próprios pescadores, que passavam boa parte do tempo em contínuo conserto”. Cf.: DIEGUES, Antonio Carlos Sant’Ana. Pescadores, camponeses e trabalhadores do mar. São Paulo, Ática, 1983. P. 37.

Page 25: “FOGO, VENTO, TERRA E MAR: MIGRAÇÕES, NATUREZA E …livros01.livrosgratis.com.br/cp011195.pdf · formação e urbanização do Bairro Serviluz em Fortaleza. Comunidade localizada

23

O barco, ancorado na beira da praia, é arrastado pelos pescadores para a beira d’água,

sendo carregado sobre um eixo de ferro e sustentado por duas rodas de automóvel. Alguns

poucos barcos ainda fazem porto e ficam abrigados sob deterioradas cabanas na praia do

Serviluz. Ali, ainda é possível visualizar desgastados rolos de madeira enterrados na areia.

Dependendo do tipo de pesca a ser empreendido, no entanto, o barco, geralmente do tipo bote,

não parte da areia, mas precisa estar na água, à espera, já no escuro da madrugada.

Na tradicional pesca com a rede de “três malhos”, a pequena embarcação compõe-se

de uma superfície de madeira que mede geralmente quatro metros de comprimento por dois

de largura, essas dimensões, entretanto, são bastante variáveis. Sobre o barco, preparado

desde a pescaria anterior, é possível o equipamento básico a ser utilizado: uma rede14, dois

montes de corda, dois remos e uma longa vara de madeira.

Quando a embarcação e todo o equipamento já estão na superfície da água, a equipe

impulsiona, “faz força”, e o casco do barco desliza contra as ondas. Nesse instante, três ou

quatro homens sobem no barco enquanto os outros sustentam a corda em terra. A força de

trabalho se forma e se divide de acordo com as habilidades e a experiência profissional de

cada pescador15.

A maré nem sempre facilita o ingresso dos homens mar adentro, e vencer a

arrebentação das ondas, em algumas épocas do ano, consiste na etapa mais difícil e penosa de

todo o processo de captura. O risco da embarcação virar é imenso. Além disso, essa operação

pode levar horas ou pode simplesmente ser abortada devido à fúria indomável das águas.

Quando os chamados “homens de terra” já não conseguem mais avançar no mar, recuam com

a ponta da corda e começam a puxá-la lentamente; começa uma verdadeira batalha contra as

ondas. Na “voga”, o pescador mais experiente vai à frente do barco utilizando os dois remos

de que dispõe simultaneamente. As ondas quebram às suas costas e, como é ininterrupto o

balanço da maré, seu corpo é constantemente jogado para o centro do bote. À medida que o

14 A rede também apresenta uma grande variação de tamanho, em média, são confeccionados entre 80 e 120 metros de rede para cada embarcação. Basicamente, a rede compõe-se do “saco”, parte onde a malha é maior, e do “copo”, a parte mais estreita, o fundo da rede. Extremamente pesada, uma boa rede é tecida com uma média de: 80 quiilos de náilon, alguns pescadores utilizam linha de seda para baratear os custos; 500 quilos de chumbo, responsáveis pelo afundamento do material; 70 peças de isopor ou “abóias”, necessárias à flutuação da parte que fica sobre a superfície. O náilon, o chumbo e o isopor são distribuídos ao longo de uma imensa corda; esta, além da parte “entranhada” na rede, apresenta ainda mais uns 200 metros de corda solta, que delimita a distância que o barco se distanciará para lançar a rede. 15 Esse é um tipo de pesca que emprega pescadores “de terra” e “de mar”. O “vogador”, o “vareiro” e os “cordeiros” são os profissionais mais especializados, são eles que partem no barco para o lançamento da rede. Costumeiramente, o dono da embarcação não pesca, mas é possível que um arrendatário participe de modo direto de todo processo de trabalho.

Page 26: “FOGO, VENTO, TERRA E MAR: MIGRAÇÕES, NATUREZA E …livros01.livrosgratis.com.br/cp011195.pdf · formação e urbanização do Bairro Serviluz em Fortaleza. Comunidade localizada

24

barco se inclina, os homens tentam controlá-lo. Na “vara”, o pescador, em pé, impulsiona a

longa tira de madeira contra o chão, arremessando a embarcação para dentro d’água. Os

“cordeiros” vão aos poucos soltando a corda. Vale ressaltar que todas as tarefas são realizadas

em conjunto e calorosos gritos de orientação são pronunciados a todo instante. A fala é um

componente importante do processo de trabalho.

Vencida a arrebentação, o barco faz uma espécie de círculo, distribuindo a rede

cuidadosamente, realizando um tipo de cerco. No momento da distribuição da rede, aumentam

as precauções; “o mais perigoso é a rede cair em cima da gente”, afirmam muitos pescadores.

Por ser a rede grande e pesada, em caso de naufrágio, dificilmente o homem debaixo do

equipamento poderá subir de novo à superfície, já que estará com centenas de quilos sobre seu

corpo.

Quando o bote retorna à areia trazendo a outra ponta da corda, recomeça o trabalho

pesado em terra. Na areia, a embarcação é colocada em um lugar estratégico a fim de ser

imediatamente arrumada para uma nova pescaria. É chegada a hora de puxar as duas pontas

da corda de maneira coordenada e essa é quase sempre a etapa mais demorada do trabalho

(um lance completo demora em média duas horas). A eficácia dessa empreitada depende da

quantidade de homens disponíveis na ocasião. A corda é tão pesada que dificilmente poucos

homens conseguem arrastá-la; por esse motivo, é comum que alguns curiosos sejam aceitos

como complemento circunstancial da mão-de-obra. Assim, a composição da força de trabalho,

apesar de previamente definida, aumenta de acordo com o fluxo de pessoas na praia. Alguns

jovens, por exemplo, alternam a atividade de pesca com as partidas de futebol que acontecem

ao lado da pescaria.

Os primeiros metros da corda são arrastados para a terra e um pescador desata o nó,

destacando-a do resto da rede. O bote está numa posição privilegiada e todo o material vai

sendo gradativamente recolhido e disposto de modo a facilitar a organização da próxima

viagem. Puxados mais alguns metros de corda, dos dois lados da rede aparecem estacas de

madeiras, com cerca de dois metros cada, que demarcam o início da rede de náilon

propriamente dita. Trata-se de uma técnica de pesca de arrasto, por isso a madeira ou “calão”

precisa ser arrastada na posição vertical, a fim de facilitar a abertura e impedir a fuga do peixe

por baixo ou por cima da rede.

Os homens aceleram, empregam mais força, intensificam-se os gritos. Em meio à

gritaria, o esforço consiste em aproximar a rede o máximo possível das pedras do espigão,

onde a fertilidade natural e as pedras despejadas por tratores fazem concentrar um maior

volume de peixes.

Page 27: “FOGO, VENTO, TERRA E MAR: MIGRAÇÕES, NATUREZA E …livros01.livrosgratis.com.br/cp011195.pdf · formação e urbanização do Bairro Serviluz em Fortaleza. Comunidade localizada

25

No instante em que a rede se aproxima, uma pequena aglomeração de pessoas faz-se

nos arredores. Enquanto alguns se integram no arrasto da corda, outros, pequenos

atravessadores, comerciantes ou simples curiosos, esperam a certa distância o resultado da

pescaria. À medida que a rede se estreita, dois pescadores, certamente os mais habilidosos,

encarregam-se do desembaraço e coordenação da aproximação de cordas. A atenção e a

falação são redobradas. Quando a “abóia” sinaliza na rede a ponta do saco, já é considerável a

quantidade de pessoas em torno do pescado.

No momento da chegada da rede à areia, uma porção razoável de pequenos peixes

salta da armadilha, sendo imediatamente agarrados por mulheres e crianças. À medida que as

sardinhas menores escapam, pessoas de todas as idades vão agarrando-as e guardando-as em

sacolas plásticas ou mesmo nos bolsos da roupa. A quantidade de aproveitadores dessa sobra

de pesca oscila de acordo com o horário e o dia em que se dá a realização da pescaria; boa

parte dos moradores conhece os períodos de maior abundância, sabe-se que na fartura

dificilmente se nega uma sardinha a um vizinho.

A ida à praia depende, em boa medida, dos imperativos do tempo, das águas, dos

ventos, das condições apresentadas pela natureza. Dessa forma, algumas interações entre as

pessoas do lugar, os pescadores há tempos já não constituem a maioria da população,

condiciona-se, de certo modo, a forma como o meio ambiente se apresenta

circunstancialmente.

O fato é que, na atividade pesqueira, o passar do tempo não apagou antigas formas de

relação com um mundo natural, alguns modos de organização social e laços de solidariedade e

afeição que têm atravessado gerações.

Outro fato é que, apesar do cerco que os curiosos fazem nos “três malhos”,

dificilmente as pessoas que não participaram de forma direta da coleta do peixe ousam atacar

o saco com o pescado; os pescadores estão suados, ofegantes e inquietos. A aproximação tem

limites.

Entre os observadores, comerciantes locais ou possíveis atravessadores negociam a

produção que vai sendo rapidamente resgatada da rede. Realizada a transação, o produto é

transportado em bicicletas, em carrinhos-de-mão ou mesmo nos ombros, sendo de imediato

escoado para pequenas peixarias locais ou vendido de porta em porta nas ruas do bairro e de

regiões adjacentes.

Como a produção e a comercialização são realizadas na beira da praia, logo os

comerciantes desaparecem, correm imediatamente para a revenda, pois o peixe fresco tem

Page 28: “FOGO, VENTO, TERRA E MAR: MIGRAÇÕES, NATUREZA E …livros01.livrosgratis.com.br/cp011195.pdf · formação e urbanização do Bairro Serviluz em Fortaleza. Comunidade localizada

26

mais aceitação no mercado. O pescador permanece na praia, o próximo lance precisa ser

organizado. O aglomerado humano se desfaz.

A divisão do lucro desse tipo de pescaria obedece a parâmetros mais ou menos

regulares. O dono dos meios de produção abocanha geralmente 40% do resultado total, o

restante é dividido “meio a meio” entre a tripulação. Apesar do cálculo relativamente fácil, o

sistema de partilha nesse tipo de pesca é por vezes irregular e envolve fatores subjetivos

externos à ação de captura16.

A imprecisão na distribuição do pescado se dá pelo caráter de familiaridade e

vizinhança com que se desenvolve o processo produtivo. Não sendo essa uma modalidade

formal de trabalho, a mão-de-obra é por vezes dispersa, atividade é encarada como uma

espécie de “bico”17. Muitos homens se engajam nesse labor ocasionalmente, para garantir a

refeição do dia dos filhos, ganhando uma pequena parte da produção e não uma remuneração

em dinheiro. O resultado da produção, apesar do esforço organizado e coletivo empregado na

captura, é também distribuído por outros critérios de solidariedade ou como forma de

pagamento de pequenos favores prestados entre os moradores no cotidiano do bairro.

Na rede de pesca atual, muitos dos novos trabalhadores do mar não procuram mais os

grandes peixes. Os pescadores da pequena pesca no bairro preferem percorrer o náilon com os

olhos à procura de relógios, óculos, jóias, dinheiro, perfumes e outros objetos que passaram a

ser arrastados no fundo das redes. Artefatos da cultura material urbana, vestígios do turismo,

das oferendas a Iemanjá e dos excrementos residenciais, são artigos que passaram a compor o

cenário litorâneo contemporâneo da cidade.

“Aqui no Serviluz, meu filho, era tudo mar!”, comoveu-se dona Maria Zuleide, 56

anos, uma antiga moradora do bairro Serviluz18. Dona Zuleide relembrava emocionada,

durante a primeira entrevista, a enorme dificuldade que os moradores tiveram para levantar as

primeiras habitações naquele canto de praia vazio e assombrado, e seus olhos brilhavam como

se tivesse acontecido há poucos instantes. “Casas não, casebres no meio dos morros!”19.

No antigo cenário, hoje renovado pelas inúmeras habitações feitas de tijolo, as paredes

durante muito tempo foram edificadas à base de varas, entrelaçadas e enchidas a mão com

barro, eram as conhecidas casas de taipa, herança que remonta ao período colonial. Ali se

16 Entre a tripulação, é consenso que os pescadores “de mar”, pela especialização advinda da experiência, percebam uma remuneração maior que a dos pescadores “de terra”, que utilizam simplesmente a força braçal. Já o dono do equipamento, habitualmente, dispensa sua parte na produção quando essa é insuficiente, inclusive para ser repartida entre os trabalhadores. 17 Biscate, trabalho informal ou temporário. 18 Entrevista concedida por Maria Zuleide de Oliveira Moura ao autor em 01/01/2003. 19 Entrevista concedida por Maria Zuleide de Oliveira Moura ao autor em 01/01/2003.

Page 29: “FOGO, VENTO, TERRA E MAR: MIGRAÇÕES, NATUREZA E …livros01.livrosgratis.com.br/cp011195.pdf · formação e urbanização do Bairro Serviluz em Fortaleza. Comunidade localizada

27

morava em barracos improvisados; muitos deles eram erguidos com estruturas de lona

plástica, madeira e até mesmo papelão. Tempos difíceis eram aqueles em que o vento e a

areia, quando não derrubavam as casas, entravam nos olhos e nas panelas dos moradores

abrigados em casebres ainda esparsos.

A pobreza das habitações, no entanto, contrastava com a abundância encontrada nas

panelas suspensas sobre o fogo a lenha, quase sempre abarrotadas de peixe, alimento básico

na mesa das famílias praianas. Apesar das intensas transformações ocorridas na praia e na

economia pesqueira nas últimas décadas, boa parte da população que habitava o local ainda

conseguia sobreviver exclusivamente da atividade de pesca.

“A gente chegava a comer peixe até seis vezes por semana”20, afirmou, nostálgico, seu

Francisco Herton, nascido no início dos anos 1960, na praia do Serviluz. Para ele, o alimento

era fácil porque, além de ser reduzida a população que residia na praia à época, o acúmulo de

substâncias alimentícias atraía vários cardumes para as colunas de concreto e ferro,

construídas como base de sustentação para a edificação do porto.

Nos depoimentos orais, é fácil perceber como as crianças nascidas naquela época

cresciam na beira da praia e brincavam em torno do porto recém construído. Pulando sobre as

pedras dos espigões, nadando entre os barcos ancorados ou correndo na areia frouxa, a

garotada passava o dia todo se divertindo na orla. A lamparina ainda não havia sido

substituída pela lâmpada e, devido à ausência de uma vida noturna para os mais jovens, cedo

se dormia. A praia era praticamente o único espaço de moradia, trabalho e lazer daquela gente

e os jovens costumavam aprender, na beira da praia mesmo, algum tipo de ofício, as

habilidades surgiam quase sempre em meio à execução de pequenas tarefas necessárias às

viagens rumo ao mar; trabalho e lazer facilmente se confundiam.

A pescaria farta e as humildes choupanas dos pescadores, porém, deixaram de ser

características essenciais da conhecida praia de jangadeiros do Mucuripe. Da segunda metade

do século XX em diante, a praia estendeu-se por outros domínios e modalidades distintas de

trabalho e habitação passaram a coexistir no local.

Um breve olhar sobre a história da ocupação da praia do Mucuripe revela que esse foi

um lugar onde se desencadearam muitos fatos importantes para a História do Ceará. Durante

muito tempo, a memória desse antigo vilarejo de pescadores, núcleo populacional antigo, se

constituiu um lugar de natureza exótica, berço dos povos nativos cearenses que viviam

rusticamente.

20 Entrevista concedida por Francisco Herton Lima Rodrigues ao autor em 30/02/2002.

Page 30: “FOGO, VENTO, TERRA E MAR: MIGRAÇÕES, NATUREZA E …livros01.livrosgratis.com.br/cp011195.pdf · formação e urbanização do Bairro Serviluz em Fortaleza. Comunidade localizada

28

Resgatando uma polêmica histórica, Raimundo Girão afirmou categórico que foi no

Ceará, e mais especificamente na enseada do velho “Mocoripe”, onde “(...) o homem europeu

sentiu, a primeira vez, a terra e o céu brasileiros” 21. Ali, segundo Girão, fora o “Rostro

Hermoso”, ponta de mar em que as caravelas do navegador espanhol Vicente Pinzón

supostamente aportaram, antes mesmo do desembarque de Cabral em Porto Seguro, na

Bahia22.

Foi também nas praias do Mucuripe que ocorreram os primeiros contatos entre os

aborígines locais e o homem branco europeu. Na literatura cearense, na obra indianista

Iracema, o romancista José de Alencar descreveu fragmentos daqueles “verdes mares

bravios”, espécie de lugar mitológico onde o “bom selvagem” e o branco “civilizado”

viveram suas aventuras. O Mocoripe era um alto e belo morro de areia que tinha a alvura da

espuma do mar ou simplesmente o “morro da alegria”23, praia privilegiada para o descanso de

marujos aventureiros. Navegantes antigos, quando no Ceará aportavam, ancoravam nessa

parte da orla em busca de comida e água fresca, à sombra do arvoredo que outrora margeava o

riacho Maceió, agora soterrado.

A beleza e a exuberância da natureza selvagem naquelas terras, cantada em verso e

prosa, resistiram durante centenas de anos no Ceará, mas, desde meados do século XIX,

intensifica-se a idéia do “progresso” urbano. Nessa trajetória, a praia e os imensos areais da

virgem Iracema foram sendo gradativamente sufocados pelas pedras imponentes da

modernização.

A primeira edificação de maior envergadura nessa área foi a construção de um

pequeno forte onde se instalou um farol, por volta de 1840, quando a ponta de mar do

Mucuripe tratava-se ainda de um ponto estratégico de proteção da cidade24.

21 GIRÃO, Raimundo. Geografia Estética de Fortaleza. Imprensa Universitária do Ceará. Fortaleza, 1959. p. 19-27. 22 Segundo o Historiador Raimundo Girão, amparado nos estudos de Francisco Adolfo Varnhagen, o navegador espanhol Vicente Yañez Pinzón desembarcou na ponta do Mucuripe em janeiro ou fevereiro de 1500, antes, portanto, de Cabral ter chegado a Porto Seguro. In: GIRÃO, Raimundo Geografia Estética de Fortaleza. Também recentemente em Fortaleza, o jornalista Rodolfo Espíndola publicou o livro “Vicente Pinzón e a descoberta do Brasil”, onde chega a afirmar que “não se tem mais dúvida que o primeiro ponto do Brasil avistado e aportado por Pinzón foi a aponta do Mucuripe”, defendendo a construção de um monumento histórico no local. Cf.: Jornal O Povo 02/02/2004, p. 03. 23 No romance Iracema, de 1865, José de Alencar explica que o nome Mocoripe vem de corib (alegrar) e mo (partícula ou abreviatura do verbo fazer). In: ALENCAR, José de. Iracema: Lenda do Ceará, 26ª ed. São Paulo: Ática, 1992. p. 56. Raimundo Girão, entretanto, sugere que essa explicação seja por demais romantizada. 24 O farol era um antigo fortim construído para evitar as invasões estrangeiras. “O plano para a construção do farol do Mucuripe foi apresentado a D. Pedro I pelo presidente da província do Ceará, no dia 17 de agosto de 1826”. A construção só terminou em 1846, sendo reformada em julho de 1872, em comemoração do aniversário da Princesa Isabel. Cf.: Jornal O Povo, 12/07/1982, p. 29. O farol foi desativado nos anos 1950 e mais recentemente transformado em Museu do Jangadeiro. No museu, no entanto, não há qualquer referência aos

Page 31: “FOGO, VENTO, TERRA E MAR: MIGRAÇÕES, NATUREZA E …livros01.livrosgratis.com.br/cp011195.pdf · formação e urbanização do Bairro Serviluz em Fortaleza. Comunidade localizada

29

Em tempos mais recentes, moradores do Serviluz lembram-se das balas de canhão

encontradas nas areias da praia.

“Na época eu menino com idade de doze anos eu carreteava (escorregava) de taubinha naquele morro, aqui acolá a gente fazendo escavação achava aquelas balas de canhão, bola assim com peso de um quilo dois quilo, coisa antiga mesmo! Se fosse o caso de a gente vender hoje em dia, vendia como relíquia. A gente menino lá se lembrava disso...” 25.

A memória do Mucuripe como lugar de duelos e batalhas não se reduz aos vestígios

materiais e aos objetos esporadicamente encontrados na praia, há uma lembrança herdada e

compartilhada através das gerações, a vivência desse espaço é por vezes concebida como

sendo esse um lugar das partidas e das dispersões. Ali foram embarcados retirantes famintos

em diversas estiagens, foi lançada a sorte dos chamados “soldados da borracha”26 rumo aos

seringais da Amazônia e aconteceu o desembarque dos pracinhas cearenses que lutaram na

Segunda Guerra Mundial.

Como o Mucuripe foi um dos primeiros ancoradouros da Capitania, embarques e

desembarques de toda ordem se sucediam, havia tempos que lá desciam numerosas

embarcações abastecidas de mercadorias, alvo constante da pilhagem dos flibusteiros. Nessa

parte da província, funcionava um porto bem arcaico e diariamente circulavam gêneros

comerciais destinados à Capitania do Siará Grande, ainda subordinada administrativamente à

de Pernambuco. Com o Ceará independente, em 179927, a vila de Fortaleza assumiu a

hegemonia política e econômica da capitania, e suas riquezas, sobretudo a partir do rico

comércio do algodão, em detrimento da criação de gado, começaram a descer pelo litoral e

não mais pelos rios.

Nesse momento, principalmente em decorrência da distância de cerca de cinco

quilômetros que separava esse povoado da então sede do município, não foi no ancoradouro

do Mucuripe, mas na área da atual Praia de Iracema, que se iniciaram as obras do porto.

Rodolfo Teófilo, durante uma das maiores estiagens da história do Ceará, 1877,

afirmou:

jangadeiros, grande parte do antigo prédio é ocupada com informações do projeto de energia eólica, de tecnologia alemã, instalado na Praia Mansa, em1996. 25 Entrevista concedida por Francisco Herton Lima Rodrigues ao autor em 30/02/2002. 26 Sobre a migração dos “Soldados da Borracha” para a Amazônia cf., entre outros, BARBOSA, Edson Holanda Lima. Ida ao inferno verde: Experiências dos trabalhadores cearenses imigrados para a Amazônia (1942/1945). Dissertação de Mestrado da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, 2005. 27 Fortaleza somente ganharia ascensão administrativa de vila à cidade em 1823.

Page 32: “FOGO, VENTO, TERRA E MAR: MIGRAÇÕES, NATUREZA E …livros01.livrosgratis.com.br/cp011195.pdf · formação e urbanização do Bairro Serviluz em Fortaleza. Comunidade localizada

30

O presidente, acreditando ser devida à aglomeração de retirantes a alteração do estado sanitário da capital, resolve crear mais dous abarracamentos: um em Mocuripe e outro em Pajussara, a fim distribuir melhor a população adventícia. Os indigentes do Mocuripe se empregariam em quebrar pedras e os da Pajussara no fabrico de tijolos, destinados às obras que se estavam fazendo28.

Nas obras do governo, entre as quais a do porto de Fortaleza, os retirantes famintos e

cansados que chegavam à velha pedreira do “Mocuripe” trocavam o penoso trabalho de

carregar pedras de aproximadamente 15 (quinze) quilos às costas, sobre terrenos arenosos, por

um punhado de farinha e carne seca, ração distribuída pelos socorros públicos em épocas de

calamidade.

Rodolfo Teófilo, escritor e farmacêutico famoso por empreender campanhas de

vacinação contra epidemias entre a população mais pobre da capital, geralmente os moradores

dos areais, se opunha diretamente ao então governo provincial. Através de suas obras, não foi

possível perceber referências mais diretas sobre a possível fixação dos retirantes no local, o

que muito provavelmente aconteceu já que, à época da estiagem, era possível que “dois terços

do eleitorado da província estivessem deslocados, tivessem emigrado e carregassem pedras da

pedreira do Mucuripe”29. Em sua literatura naturalista, porém, o pacato vilarejo do Mucuripe

já começava a receber novos contingentes de trabalhadores e a ser palco de outros conflitos:

“A soldadesca açulada pela certeza da impunidade dos crimes, na mais infernal algazarra, na

mais estúpida zombaria, corria a galope em direção ao Mucuripe, enquanto mais de cem

infelizes gemiam deitados na areia da praia”30.

Desde o final do século XIX, configurou-se uma prática de isolamento em relação ao

trânsito dos flagelados, criaturas indesejáveis ao progresso que se fazia, pelas alamedas de

Fortaleza:

Os comboios despejavam os flagelados na parte da cidade que ficava mais próxima do mar, onde se localizavam as últimas estações férreas de Fortaleza. Muitos retirantes erguiam seus casebres na proximidades da praia. Esse aspecto ajuda a entender o processo de constituição das primeiras favelas de Fortaleza 31.

A população sertaneja que chegava a cidade representava também um numeroso

contingente de mão–de-obra gratuita utilizada na construção de obras públicas e no

melhoramento urbano, empreendimentos essenciais ao desenvolvimento comercial e

28 TEÓFILO, Rodolfo Historia da seca no Ceará (1878-1880). Rio de Janeiro: Imprensa Inglesa, 1922. p. 194. 29 Op. Cit. p. 84. 30 Op. Cit. TEÓFILO, p. 181. 31 Cf.: RIOS, Kênia Sousa. Campos de Concentração no Ceará: Isolamento e poder na seca de 1932. Fortaleza: Museu do Ceará/Secretaria da Cultura e Desporto do Ceará, 2001. p. 18.

Page 33: “FOGO, VENTO, TERRA E MAR: MIGRAÇÕES, NATUREZA E …livros01.livrosgratis.com.br/cp011195.pdf · formação e urbanização do Bairro Serviluz em Fortaleza. Comunidade localizada

31

industrial do Ceará. “O grande flagelo de 1932 possuía, assim, um claro objetivo: mostrar a

urgência de um novo porto em Fortaleza” 32.

O antigo porto de Fortaleza foi construído ainda no final do período imperial,

momento em que a cidade já tinha assumido a hegemonia econômica e administrativa da

província do Ceará. Com o advento da República e a emergência de novas forças sociais, a

capital centralizou ainda mais as decisões políticas do Estado; e as elites locais, além da

construção de equipamentos modernizadores como o Porto, a Estrada de Ferro e o Passeio

Público, também empreenderam um verdadeiro processo de remodelação, saneamento e

controle do espaço urbano33.

No Porto do Mucuripe, no entanto, as primeiras pedras só começaram a ser assentadas

por volta de 1940. Obra demasiadamente demorada, levou cerca de 25 anos para ser

concluída, período em que seus arredores foram sendo rapidamente ocupados por levas de

retirantes e por imponentes clubes de veraneio que se erguiam na cidade. Após o porto, a bela

praia do Mucuripe nunca mais seria a mesma.

O memorialista Blanchard Girão observou que nessa época:

O romântico e íntimo esconderijo de velhos homens do mar, fez-se caótica albergaria de gente doutras origens e de outros costumes. Em meio a essa desordem urbanística, implantou-se ali também a prostituição. Não se distinguia casa séria de casa ‘suspeita’. A pobreza e a promiscuidade nivelavam todos34.

Antiga aldeia indígena, a praia do Mucuripe se transformou num pequeno povoado de

pescadores e mulheres fazedoras de renda. Atualmente, com o avanço da especulação

imobiliária e do turismo, as alvas dunas da virgem Iracema constituem um dos metros

quadrados mais caros da cidade, lazer de estrangeiros e habitação preferida dos ricos da terra.

Antes do porto, os primeiros ocupantes dessa parte da cidade foram em boa parte

pescadores, migrantes de outras regiões praianas da longa costa cearense que, em distintas

épocas de calamidade, fugiram para a capital. Na cidade, optaram pela vida numa tradicional

região de pesca, dirigindo-se para as areias do Mucuripe e erguendo ali suas choupanas.

Até a primeira metade do século XX, aquela era ainda uma população cuja

organização era talvez mais tribal que urbana, com as jangadas, as choupanas e os botequins

barulhentos. Uma imensa floresta de cajueiros deu lugar a uma paisagem mais moderna e

32 Op. Cit. p. 26. 33 PONTE, Sebastião Rogério. Fortaleza Belle Époque: Reformas urbanas e controle social (1860-1930). 3° ed. Fortaleza: Edições Demócrito Rocha, 2001. 34 GIRÃO, Blanchard Mucuripe: De Pinzón ao Padre Nilson. Fortaleza: Fundação Demócrito Rocha, 1998. p. 32-33.

Page 34: “FOGO, VENTO, TERRA E MAR: MIGRAÇÕES, NATUREZA E …livros01.livrosgratis.com.br/cp011195.pdf · formação e urbanização do Bairro Serviluz em Fortaleza. Comunidade localizada

32

cosmopolita quando começou o tempo da indústria, da agitação imobiliária e dos arranha-

céus. “O Mucuripe tornou-se uma espécie de Copacabanazinha onde um palmo de terra, que

nada valia no tempo da aldeia de pescadores, custa agora um dinheirão”35.

2.2 Homens do mar, pés no chão

“A pouco e pouco, o tempo apaga hábitos e costumes, mas não os extingue completamente. Visíveis as choupanas

de palha de coqueiro, onde a indigência geme. Na frente, a sala da visita. Entre esta e a cozinha, de fogão

improvisado, a camarinha de amor discreto. E nos quatro cantos, na intimidade pouco ambiciosa, a rede e os

sonhos dos filhos que não param de nascer”

(Eduardo Campos)

Migrantes de praias distantes, os primeiros moradores do Bairro Serviluz viveram

durante muito tempo da atividade pesqueira. São tributários de costumes e modos de vida

com características seculares. Trata-se de uma cultura em que o sustento das famílias não

depende simplesmente da venda da força de trabalho, mas da interação direta entre o homem

e o seu meio natural. Diferentemente do tempo de trabalho industrial que se instalou

posteriormente, no mar o relógio é a lua, são os ventos, as tempestades e o tamanho das

marés.

Vida singela, desapego material, vestuário modesto caracterizam o modo de vida dos

pescadores, tidos costumeiramente como um povo simples, portadores de um estilo de vida

reproduzido à semelhança das antigas culturas indígenas. Algumas das comunidades de

pescadores fixadas na costa cearense ainda hoje apresentam hábitos e costumes desprovidos

do sentido acumulativo, característico da lógica capitalista dos centros urbanos. Nessas

comunidades, grande parte da população pesca exclusivamente para alimentar a numerosa

prole.

A simplicidade e a solidariedade entre esses trabalhadores, entretanto, se tornaram

hábitos que alimentaram a falaciosa idéia de ser esta uma gente preguiçosa, apolítica e

culturalmente atrasada. A idealização exacerbada dos pescadores produziu uma imagem

35 Op. cit., p. 127.

Page 35: “FOGO, VENTO, TERRA E MAR: MIGRAÇÕES, NATUREZA E …livros01.livrosgratis.com.br/cp011195.pdf · formação e urbanização do Bairro Serviluz em Fortaleza. Comunidade localizada

33

bastante distorcida, que enxerga grupos de trabalhadores estáticos no tempo e vê os homens

como uma espécie de prolongamento da paisagem natural.

Na célebre obra Os Trabalhadores do Mar, escrita por Victor Hugo em 1886, o

escritor francês já nos apresentava um quadro bem preciso das condições gerais dos homens

que ganhavam a vida na beira da praia:

Em todas as cidades, especialmente nos portos de mar, há abaixo da população, um resíduo (...) os vencidos do duelo social. Ali é bestial a inteligência humana. É o montão de imundícies das almas. Ajunta-se tudo aquilo a um canto, onde passa de quando em quando a vassoura policial36.

De modo geral, acredita-se que esses homens enraizam-se na miséria porque vivem

sempre para o dia de hoje, preocupando-se somente com as oscilações da maré do momento.

Raramente olham para o dia de amanhã; consomem logo o que pescam. Do resultado da

pescaria, separam um bocado do apurado para casa e o resto se esvai em farras e bebedeiras.

E nesse vaivém, não é de se admirar que a pobreza seja uma situação constante ao longo de

suas vidas, já que a própria existência de uma certa cultura do esbanjamento não lhes permite

fazer reservas nem mesmo em tempos de fartura no mar.

De fato, é fácil argumentar que essa sempre foi uma categoria profissional de homens

essencialmente pobres e desprovidos. A maioria não goza os benefícios da legislação

trabalhista; esses trabalhadores vivem essencialmente da pequena pesca e não possuem

carteira de trabalho assinada. Na cidade, os pescadores urbanos geralmente moram em

habitações consideradas precárias e insalubres, os mais velhos são precocemente acometidos

por várias doenças.

O esforço da lida diária nessa profissão produz corpos esculpidos, vigorosos e

bronzeados e que são, ao mesmo tempo, profundamente marcados pelo desgaste imperioso do

tempo.

Pode-se afirmar também que, além de fatigante, a pesca é uma atividade

extremamente perigosa. Tanto na chamada pesca embarcada como na pesca de caráter

artesanal, os perigos são consideráveis, ir ao mar é rumar para o desconhecido. Em sua

composição, o mar carrega energias incomensuráveis que tornam possíveis todo tipo de

cataclismo.

“A gente casou e com cinco dias ele foi pro mar, aí com cinco dias que ele tava no mar (...) ele tinha sumido, o barco tinha virado. A família dos outros pescadores tava tudo aí na beira da praia pedindo,

36 HUGO, Victor. Os Trabalhadores do Mar. Rio de Janeiro, Ediouro. p. 94.

Page 36: “FOGO, VENTO, TERRA E MAR: MIGRAÇÕES, NATUREZA E …livros01.livrosgratis.com.br/cp011195.pdf · formação e urbanização do Bairro Serviluz em Fortaleza. Comunidade localizada

34

esperando só o corpo né? Que a notícia tava aí (...). Aí com onze dias eles chegaram, a lancha que eles tavam tinha naufragado, perderam tudo. E ele foi um dos tais que chegou bastante doente, sem falar que ele não falava, todo ruído das baratas brancas que tem né? Todo ruído, eu tive que ir em casa pegar um lençol (...)”37.

Episódios semelhantes a este não são raros. As embarcações que saem pela manhã

para voltar à tarde, ou que vão num dia para voltar no outro, podem não retornar nunca mais.

Esse é um universo permeado de numerosas histórias de desaparecimentos e naufrágios

misteriosos, casos verdadeiros que se misturam às populares e desacreditadas histórias de

pescador. A pesca torna órfãos vários filhos do bairro.

Por outro lado, concebendo o mar como uma dádiva, esses trabalhadores contemplam

a natureza de modo singular, suas riquezas, detalhes e grandiosidade, o oceano parece

confirmar a magnitude do cosmo e a relativa impotência humana diante do universo. A pesca

apresenta assim uma certa aura mística, trata-se de uma atividade econômica marcada pela

influência decisiva do fator sorte. Cada partida faz-se repleta de superstições. O bom pescador

há de saber que o “mar não tem pé nem cabelo” e que numa tempestade, muitas vezes, “só

apega aos milagres de Deus”. Esse imaginário, que se alimenta continuamente de desastres e

narrativas épicas das façanhas dos povos do mar, nutre igualmente um arraigado sentimento

de religiosidade. As populações marítimas não desacreditam do diabo, tomam suas

precauções contra suas artes; faz-se preciso conhecer a dualidade que ronda as águas

oceânicas.

De modo geral, a idéia de uma vida religiosa, pacata e sem ambição pode por vezes

simplificar e tornar folclórica a existência de um modo de vida culturalmente rico e carregado

de especificidades que lhes confere identidade própria. Convém, então, não reforçar os

estereótipos que apresentam os pescadores e suas famílias como sendo um povo ignorante e

sem atuação política.

Tampouco cabe ratificar a doce e ilusória sensação de que a vida dos jangadeiros virou

canção romantizada. Mesmo com tendência generalizada de expulsão dos pescadores para

longe da praia, a jangada no Ceará não é apenas uma atração turística. Na propaganda

turística, aliás, as versões exóticas encobrem a dura realidade dos trabalhadores do mar e sua

penosa luta pela sobrevivência. Nos dias atuais, enquanto a agradável imagem do pescador

figura na mídia como elemento símbolo do estado do Ceará, marca registrada da cultura e do

povo cearense, na vida real o náilon continua a cortar suas mãos, o sal permanece a queimar

suas costas, o vento ainda lhe fustiga o rosto e o sol teima em cegar seus olhos.

37 Entrevista concedida por Maria da Conceição Alves dos Santos ao autor em 27/02/2003.

Page 37: “FOGO, VENTO, TERRA E MAR: MIGRAÇÕES, NATUREZA E …livros01.livrosgratis.com.br/cp011195.pdf · formação e urbanização do Bairro Serviluz em Fortaleza. Comunidade localizada

35

As versões românticas negligenciam o aprendizado político de gerações, a busca por

melhores condições de trabalho e inserção social, a obtenção de conquistas trabalhistas

importantes e a produção de significativas experiências associativas num ramo de atividade

que sofria intensas transformações.

A pesca é uma atividade tão antiga quanto o homem. Já durante a Idade Média, a

atividade pesqueira foi amplamente incentivada, o peixe era um alimento especial para os

cristãos, havendo um singelo aperfeiçoamento dos anzóis, das redes e dos equipamentos

rudimentares inventados na antiguidade.

À medida que a pesca se intensificou, foi preciso alcançar mares mais distantes e

implementar inovações da engenharia naval, o que gerou a necessidade de investimentos de

maiores volumes de capital. Da pesca rudimentar, passou-se ao barco a vapor.

O mar e o vento formam um composto de forças. O navio é um composto de máquinas. As forças são máquinas infinitas, as máquinas são forças limitadas. Entre os dois organismos, um inesgotável, outro inteligente, trava-se o combate que se chama navegação (...) Enquanto não se descobre a lei, prossegue a luta, e nessa luta a navegação a vapor é uma espécie de vitória perpétua que o gênio humano vai ganhando a todas as horas do dia em todos os pontos do mar. A navegação a vapor é admirável porque disciplina o navio. Diminui a obediência ao vento e aumenta a obediência ao homem38.

Mas a embarcação a vapor apresentava ainda a inconveniente necessidade de retornar

a terra para repor os estoques de carvão. Foi somente com o barco de motor a combustão que

se resolveu o grave problema dos longos deslocamentos e o homem se lançou aos desafios

dos grandes oceanos. Redes mais pulsantes, gelo para conservação e toda uma parafernália

técnica (máquinas, radiotransmissores e até ecossondas para detecção dos cardumes)

passaram a oferecer mais segurança e conforto a bordo das embarcações que podiam realizar

longas viagens e abrigar grandes tripulações.

Em extensa pesquisa, Diegues39 ressaltou que a introdução do barco motorizado na

Inglaterra aconteceu em meados do século XIX, dando início à fase inicial da Revolução

Industrial na pesca. Naquele país, a crescente divisão do trabalho nas embarcações e o

aumento da produção de caráter mercantil se deram com relativo atraso em relação aos outros

setores da produção, como a indústria têxtil. A exploração da força de trabalho dos

pescadores ingleses em pouco tempo não se diferenciava da dos trabalhadores das fábricas e

os pescadores tinham se transformado em verdadeiros proletários de convés.

38 Op. Cit. HUGO, Victor. Os Trabalhadores do Mar, p. 116. 39 DIEGUES, Antonio Carlos Sant’Ana Pescadores, camponeses e trabalhadores do mar. São Paulo: Ática, 1983.

Page 38: “FOGO, VENTO, TERRA E MAR: MIGRAÇÕES, NATUREZA E …livros01.livrosgratis.com.br/cp011195.pdf · formação e urbanização do Bairro Serviluz em Fortaleza. Comunidade localizada

36

A mecanização na pesca atingiu não somente o barco, mas também as tarefas nele

executadas. Incitou o surgimento de novos profissionais a bordo, maquinistas, foguistas,

cozinheiros e operadores de rádio. A crescente especialização alterou inclusive a tradicional

hierarquia que existia no barco, na medida em que introduz, por exemplo, o assalariamento e

sistema de remunerações diferenciadas entre os tripulantes40.

As alterações no mundo do trabalho, além disso, fizeram desaparecer muitas vilas de

pescadores pelo mundo, colocando a mão de obra à mercê das grandes unidades de produção.

Em muitos países, o declínio da pesca local ocasionou tanto a mudança no modo de vida

quanto o próprio deslocamento das famílias pesqueiras para os grandes centros urbanos, onde

passam a se engajar em atividades alternativas.

No Brasil o avanço da pesca em larga escala se fez concomitantemente à permanência

da pequena pesca41. Em certos ambientes, os pescadores locais possuem imensa capacidade de

adaptação à situação ecológica específica. Explorando nichos próximos à costa, onde não é

possível lançar grandes redes, desenvolvem técnicas precisas de recolhimento das redes

dependendo do fundo, ora rochoso, ora arenoso. Nesse caso a força de trabalho empregada é

eminentemente familiar e o pescador define seu ritmo de trabalho em função da safra da

época. Isso é o que acontece, por exemplo, no Nordeste, onde os cardumes de peixe de alto

valor no mercado, pargos e cavalas, apesar da abundância, são de difícil captura, dados os

fundos rochosos que dificultam a técnica do arrasto. Os jangadeiros localizam e guardam na

memória o bom ponto de pesca, sendo esse um dos principais segredos da profissão. Usam

um sistema de marcação através de uma triangulação visual em objetos fixos na praia,

operando uma espécie de divisão imaginária do mar. Muitos criam seus próprios bancos de

pesca, carregando para dentro d’água grandes objetos, como carcaças de automóveis, que

passam a servir de abrigo aos peixes.

40 Segundo Diegues, essas transformações alteram a condição natural do mestre: “É preciso se levar em consideração que a maestria é uma capacidade pessoal, um conhecimento raro que exige o conhecimento do mar e dos cardumes, padrões de migração dos peixes e localização dos melhores locais de pesca, além de certa capacidade em tratar com a tripulação em condições quase sempre difíceis e extenuantes. Além disso, a maestria só se consegue através de anos de experiência e é dificilmente adquirível através de cursos formais”. Op. cit. DIEGUES, p. 37. 41 “Daí serem a propriedade dos meios de produção, o controle do processo de trabalho, a dispersão dos meios de produção, a reduzida divisão do trabalho levando a um fraco desenvolvimento das forças produtivas, as principais características da pequena produção mercantil. Esta pode ser mais bem analisada se comparada com a produção capitalista. Nesta existe uma separação completa entre os trabalhadores e os meios de produção, que se instalaria com a presença de um não-trabalhador que impõe as condições de produção e reprodução pela extração da mais valia (...) Os mecanismos de extração da mais valia permitem ao não-trabalhador acumular novos capitais e se reproduzir enquanto classe dominante, e, ao mesmo tempo, levam a classe operária a vender sua força de trabalho e a se reproduzir como classe dominada”. Op. Cit. DIEGUES, p. 206.

Page 39: “FOGO, VENTO, TERRA E MAR: MIGRAÇÕES, NATUREZA E …livros01.livrosgratis.com.br/cp011195.pdf · formação e urbanização do Bairro Serviluz em Fortaleza. Comunidade localizada

37

Essa é uma situação diferente das encontradas nas regiões Sul e Sudeste, onde a

retirada de grandes cardumes, sardinhas, pescadas e camarões, foi favorecida pelo ambiente

físico, o que possibilitou a concentração das grandes empresas de pesca nessa região42.

A concentração das grandes empresas de pesca43 no litoral do Sul e do Sudeste foi

amplamente reforçada pelo Decreto-Lei 221, da Superintendência do Desenvolvimento da

Pesca, a Sudepe, criado em 1967. Com esse decreto, o governo brasileiro criou um programa

de incentivos fiscais que visava ampliar os investimentos privados e romper o ciclo de baixa

produtividade que ainda caracterizava o setor. Como ressaltou Diegues, a iniciativa do Estado

praticamente abandonava à própria sorte a pequena pesca. Enquanto os empresários

construíam barcos e fábricas com o fácil dinheiro do governo, os trabalhadores eram

pressionados pelo capital. A pesca tornava ainda mais precárias as condições do homem; as

intermináveis jornadas de trabalho e a permanência por meses no mar quase sempre se

traduziam em perdas de vidas humanas.

Curiosamente, apesar da centralização dos investimentos, cerca de 97% dos recursos

foram captados pelas regiões Sul e Sudeste; os próprios dados da Sudepe indicam que os

pescadores nordestinos aumentaram efetivamente sua participação na produção nacional entre

1950 e 1970. Recebendo algo em torno de 0,3% dos incentivos, o Nordeste elevou sua

produção para 24% da produção total brasileira. Assim, como se disse, pelas peculiaridades

físicas do litoral nordestino, fazia-se necessária a aplicação de um tipo de pesca particular.

Esse foi um dos fatores de as empresas recém-criadas na região terem sido instaladas próximo

às áreas de maior fertilidade, como o litoral do Rio Grande do Norte e do Ceará, onde eram

abundantes produtos valiosos como a lagosta, antes pescada em pequenos botes a remo e em

jangadas. Assim podiam também comprar a baixo preço a produção dos pequenos pescadores.

No Ceará, nesse período, talvez pela condição de miséria oferecida em terra, foi

consideravelmente crescente o número de homens que se lançaram ao mar. Em 1940 havia

4.801 pescadores registrados pela federação. Em 1970 já eram 14.215 os que pescavam de

forma legalizada. O estado praticamente dobrou sua participação no mercado brasileiro.

Esses números evidenciam como a descoberta da lagosta no Ceará atraiu vários

empresários para o estado; em 1961, pelo menos dez empresas do Sul do país solicitavam à

42 Até meados dos anos 80, cerca de 80% das indústrias pesqueiras estavam localizadas nessas regiões, mesmo as empresas criadas no Norte e Nordeste pertenciam a esses grupos econômicos. Nas regiões Sul e Sudeste, 68% da mão de obra era embarcada enquanto no Nordeste a pesca artesanal arregimentava cerca de 76% dos trabalhadores do setor. Cf.: DIEGUES, p. 111-134. 43 Esse é um tipo de indústria caracterizado pela completa integração do setor. O lucro dessas empresas é garantido não somente pela exploração da força de trabalho, mas também pelo beneficiamento e comercialização do produto.

Page 40: “FOGO, VENTO, TERRA E MAR: MIGRAÇÕES, NATUREZA E …livros01.livrosgratis.com.br/cp011195.pdf · formação e urbanização do Bairro Serviluz em Fortaleza. Comunidade localizada

38

Divisão de Caça e Pesca do Ceará permissão para instalação de suas usinas em Fortaleza44. A

“economia natural” da pesca artesanal começava a sofrer severos danos. A introdução da

pesca comercial inseria os pescadores num novo mercado e numa nova atividade,

eminentemente capitalista. Na pesca da lagosta, o “ouro do mar”, o período pós-1950 foi

caracterizado por um considerável ingresso de enormes embarcações motorizadas, pela

melhoria das técnicas de captura e por um elevado investimento em empresas de pesca.

Havia tempos, a tradicional jangada de piúba, amarração de troncos feita da típica e

resistente árvore do Pará, vinda de navio, tinha sido substituída pelas embarcações de

madeira, menores, mais frágeis e transportadas por carretas. Pouco a pouco, o pescado ficou

escasso e crescia assustadoramente o número de atravessadores. A corrida desenfreada por

esses produtos de alto valor no mercado de exportação parecia conter em si o germe de sua

própria destruição.

A atração de empresas e trabalhadores acabou resvalando na dinâmica ocupacional da

cidade de Fortaleza e na própria forma de organização das famílias pesqueiras. Como

ressaltou dona Maria da Conceição, “eram mais de duzentas mulheres, todas trabalhando de

carteira assinada”45. Como oferecem uma atividade verticalmente integrada, as “empresas

ricas” do setor pesqueiro passaram a empregar também numerosa quantidade de mão-de-obra

feminina no processo produtivo, na limpeza, na embalagem e no armazenamento do produto

destinado ao mercado externo. Os homens, ao se afastarem por tempo mais longo, acabaram

modificando a rotina familiar, transformando o papel desempenhado pela mulher no espaço

doméstico. Esse fator refletiu-se não apenas na mudança de comportamento e nas atribuições

que os membros da família passaram a ter, mas caracterizou o próprio padrão migratório

familiar dos que partiam de outras localidades rumo à capital.

Por outro lado, o pescador embarcado mantém pouquíssimo contato com seus

familiares; no mar, sua sobrevivência é garantida pela empresa que o contratou; sua família,

porém, dependerá do resultado da produção:

“Eles levavam de cinco, seis sacos de farinha, cinco, seis sacos de arroz, eles levavam muito, muito, então tinha uma dificuldade muito grande pra quem fica né! (...) Eu tenho certeza que se eu num corro eu tinha sido uma vítima dessas que ele foi, encontrou outra e num voltou mais sabe? (...)” 46.

44Jornal Unitário, 24/09/1961, p. 07. 45 Entrevista concedida por Maria da Conceição Alves dos Santos ao autor em 27/02/2003. 46 Idibem.

Page 41: “FOGO, VENTO, TERRA E MAR: MIGRAÇÕES, NATUREZA E …livros01.livrosgratis.com.br/cp011195.pdf · formação e urbanização do Bairro Serviluz em Fortaleza. Comunidade localizada

39

Como o pagamento pode ser mensal ou quinzenal, as mulheres em terra, encarregadas

da organização do novo orçamento familiar, são obrigadas a comprar os gêneros alimentícios

a prazo, fiado, endividando-se gradativamente no comércio local. Além disso, estão sujeitas a

humilhações e constrangimentos por parte das empresas.

“(...) é uma coisa difícil sabe (...) quando eles vão pro mar fica aquela situação, se é pela empresa você fica recebendo aquele dinheiro né? E tem que aceitar aquela humilhação ‘Ah! Seu marido num tá produzindo, o seu dinheiro vai atrasar e num sei o que’ sabe como é que é (...)”47.

As conseqüências da instalação da indústria pesqueira foram sentidas também na

mudança do cotidiano familiar. Introduziu-se um sistema de regulação da remuneração, em

função da produção, que podia incomodar sobremaneira os membros de um domicílio e que

facilitava ainda o abandono do lar por parte dos homens que passaram a pescar em portos

distantes.

Notadamente, em meio a essa desestruturação que sofreu a secular atividade

pesqueira, o pescador tornou-se também uma categoria muito ativa e não faltam na história

desse povo momentos de reconhecida participação política48.

Em 1941 a saga da jangada São Pedro virou notícia na imprensa nacional. Guiada por

quatro pescadores cearenses, a pequena embarcação de madeira demorou 61 dias para ir de

Fortaleza à cidade do Rio de Janeiro, então sede política da República. Ao falar pessoalmente

com o presidente Getúlio Vargas, os jangadeiros lutavam pela inclusão da categoria nos

direitos sociais da nova legislação trabalhista, protestando também contra a exploração dos

atravessadores que dominavam o mercado de peixe no Ceará.

Apesar de esse ter sido o episódio mais famoso, o Raid (denominação que a imprensa

da época passou a atribuir às tradicionais “corridas” das jangadas) de 1941, não foi a primeira

e nem tampouco a derradeira travessia marítima dos jangadeiros cearenses.

Os pescadores tinham como referência simbólica a figura de Francisco José do

Nascimento, o Dragão do Mar, jangadeiro cearense que simbolizou a primazia da abolição

dos escravos cearenses. Em 1881, durante um movimento grevista, o Dragão do Mar

pronunciou a célebre frase “no porto do Ceará, não se embarcam mais escravos”, da qual

surgiu a imagem do Ceará como sendo a Terra da Luz.

47 Entrevista concedida por Maria da Conceição Alves dos Santos ao autor em 27/02/2003. 48 As entidades associativas dos pescadores são bem antigas. Em 1922, o próprio Estado já havia criado as Colônias de Pesca, instituições obrigatórias às quais deviam pertencer, muitas vezes de modo compulsório, todos os pescadores formais. Entretanto, em sua trajetória, essas organizações se atrelaram aos industriais e passaram a exercer um certo controle sobre os pescadores. Na prática, não defendiam os interesses dos trabalhadores, mas funcionavam como distribuidores de pequenos benefícios sociais.

Page 42: “FOGO, VENTO, TERRA E MAR: MIGRAÇÕES, NATUREZA E …livros01.livrosgratis.com.br/cp011195.pdf · formação e urbanização do Bairro Serviluz em Fortaleza. Comunidade localizada

40

A prática de raids transformou-se numa forma recorrente de protesto e, com certa

freqüência, grupos de pescadores do Ceará, inclusive os da praia do Mucuripe em 1972, se

aventuraram nos mares turbulentos, em busca de melhores condições de vida e trabalho para

suas famílias. A prática dessas viagens consolidou-se como forma de tornar públicos as

necessidades e interesses dessa categoria. Em 1942, o Raid se tornou filme do cineasta norte-

americano Orson Welles, durante sua passagem pelo Brasil, suscitando grande debate na

imprensa local49.

No caso das filmagens de Welles, a questão central que pairava era o motivo de o

filme ter sido realizado no Mucuripe e não na Praia de Iracema, já que apenas um dos quatros

tripulantes da São Pedro, o mestre Jerônimo, era da colônia de pescadores (Z-2) do Mucuripe.

Ao que tudo indica, não era do interesse de Orson Welles focalizar outros equipamentos da

cidade, pois, para cumprir as intenções do filme em mostrar uma cidade natural e arcaica,

Fortaleza se resumia naquele momento à pacata comunidade do Mucuripe. Era uma imagem

de natureza apartada da realidade social e da cultura.

A idéia foi privilegiar o cenário natural do Mucuripe em contraposição à ostentação da

Praia de Iracema, então reduto da elite local. Em nome da Política da Boa Vizinhança, o filme

focalizou o mar, as dunas e o trabalho dos pescadores numa relação idealizada entre homem e

natureza, fundamentada numa relação harmônica e solidária que visava desconstruir a

imagem negativa do “nativo perigoso”50. Eram cenas que ocultavam os conflitos e

contradições que permeavam essa trama e que contrastavam, inclusive, com o sentido que os

jangadeiros atribuíram ao Raid como instrumento de luta contra a desigualdade e exploração

no ambiente da pesca.

A tendência à destruição da pesca costeira, no entanto, não foi fruto apenas da pesca

empresarial. Em Fortaleza, houve uma conjugação de outros fatores como o aparecimento de

serviços alternativos, por exemplo, a indústria e o turismo.

Apesar de ser uma tradicional região de pesca, a praia do Mucuripe foi sendo, na

mesma esteira desenvolvimentista que projetou o ambicioso projeto portuário e industrial,

descaracterizada como lugar de trabalhadores pobres. Os pescadores remanescentes nessa

região foram sendo cada vez mais encurralados para fora da praia, até serem desalojados

49 Sobre a viagem dos pescadores cearenses em 1941 e sobre as repercussões do filme de Orson Welles, cf. respectivamente: NEVES, Berenice Abreu de Castro. Do mar ao museu: A saga da jangada São Pedro. Fortaleza: Museu do Ceará, 2001; e SANTOS, Márcia Juliana. It’s all true e a construção das imagens do Brasil (1942-93). Dissertação de Mestrado em História Social da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, 2004. 30 Op. cit. SANTOS, p. 113.

Page 43: “FOGO, VENTO, TERRA E MAR: MIGRAÇÕES, NATUREZA E …livros01.livrosgratis.com.br/cp011195.pdf · formação e urbanização do Bairro Serviluz em Fortaleza. Comunidade localizada

41

quase definitivamente das areias do Mucuripe, transferindo-se para bairros longínquos ou se

espraiando por morros mais afastados.

Em âmbito histórico, os pescadores retirados compulsoriamente do Mucuripe

realizaram os primeiros deslocamentos humanos para a região, bastante erma, onde se formou

depois o Bairro Serviluz. Aos poucos, aos primeiros casebres, somar-se-iam numerosos outros

barracos. Iniciadas as operações no porto, começou uma corrente de sucessivas migrações que

marcou sobremaneira a história dos povos dessa região e que caracterizou esse espaço por sua

diversidade humana.

3 - A “tragédia” portuária

“Aqui, a natureza recuou ante o trabalho do homem, que modelou a pedra e redesenhou os

limites impostos por Deus ao oceano (...) o porto se apresenta como um lugar ambíguo,

inquietante e reconfortante. Espaço aberto para as riquezas e as ameaças do mundo evoca ao

mesmo tempo o abrigo, o refúgio e a fragilidade; combina as imagens da invasão e da evasão”.

(Alain Corbin)

“Porque o ‘progresso’ é um conceito sem significado ou pior, quando imputado como um

atributo ao passado”.

(E.P. Thompson)

O Cais do Porto do Mucuripe, somente depois de muito tempo, teve sua construção

efetivada no início da década de 1940, sendo sua primeira etapa concluída em 1946.

Construído gradativamente, o novo cais substituía o velho porto de Fortaleza, localizado na

Praia de Iracema.

Mesmo não sendo estático, o ritmo de vida dessa parte da cidade se alterou

profundamente após a vinda do complexo portuário. É possível afirmar que a região do

Mucuripe ainda não havia passado por transformações tão intensas e tão radicais quanto as

efetivadas a partir da execução dessa obra.

Page 44: “FOGO, VENTO, TERRA E MAR: MIGRAÇÕES, NATUREZA E …livros01.livrosgratis.com.br/cp011195.pdf · formação e urbanização do Bairro Serviluz em Fortaleza. Comunidade localizada

42

No Ceará, a intensificação do fluxo de pessoas, idéias e mercadorias, transportadas por

um número cada vez maior de embarcações, já há algum tempo exigia reformas capazes de

atender à crescente demanda comercial do estado. O novo porto, aliás, surgiu como uma

conjugação de esforços para solucionar o antigo problema portuário de Fortaleza, que, mesmo

já sendo havia tempos, o centro econômico do estado, não dispunha de um sistema portuário

de grande porte.

Um longo debate sobre uma solução para o problema do porto de Fortaleza ganhou

força ao longo dos anos 1930. Onde construí-lo? Distante do centro urbano da cidade, o

pequeno arrabalde do Mucuripe ficava a quilômetros do então centro comercial de Fortaleza e

eram bastante precárias as condições de transporte, a construção exigia a aplicação de

recursos financeiros bem mais elevados. Apesar do custo, a “solução Mucuripe” , como foi

divulgada na imprensa local, surgiu como alternativa definitiva, contrapondo-se, assim, ao

simples melhoramento das instalações do antigo porto de Fortaleza.

Finalmente em 1938, os jornais da capital noticiavam, num certo tom de empolgação,

a assinatura do contrato para o início das obras. Nas palavras do então interventor Francisco

Menezes Pimentel, não restava dúvida de que naquela hora estava “(...) se levantando um

clamor, no seio da população, em favor da construção em Mucuripe”51. Afinal vencia a

concorrência o projeto portuário do engenheiro Augusto Hor Meyill, “um técnico abalizado”,

cujo moderno projeto “tinha a vantagem de aproveitar um trabalho já realizado pela

natureza”.

Após o início do porto, o projeto econômico industrial se expandiu a passos mais

largos, era o prelúdio de um processo que resultou na remodelação da paisagem de toda a

região. Ataques cada vez mais sistemáticos e danosos foram sendo empreendidos contra o

ecossistema e a natureza local. Praticamente desfigurada após o início das obras portuárias, a

bela enseada, onde um recôncavo natural tornara o mar aprofundado, sofreu profundo impacto

ambiental.

Na orla de Fortaleza, pela magnitude dos espigões de pedra ali erguidos, mudaria boa

parte da paisagem litorânea. As transformações urbanísticas não afetaram somente a

população pobre da cidade que se deslocava constantemente em função das obras. A vistosa

Praia de Iracema, por exemplo, antigo cartão-postal da cidade, onde a beleza natural atraía

51 Jornal O Povo, em 28/05/1938, p. 08.

Page 45: “FOGO, VENTO, TERRA E MAR: MIGRAÇÕES, NATUREZA E …livros01.livrosgratis.com.br/cp011195.pdf · formação e urbanização do Bairro Serviluz em Fortaleza. Comunidade localizada

43

banhistas e curiosos, foi praticamente destruída com o avanço do mar, em virtude das obras

do Porto do Mucuripe52.

Apesar do inflamado desejo da elite local que começava a se firmar no ramo

industrial, a história do Porto do Mucuripe, assim como a própria história portuária da cidade

de Fortaleza, parece apresentar episódios repletos de inconstâncias e contradições. Não por

acaso, Raimundo Girão referiu-se ironicamente ao episódio da construção do porto de

Fortaleza no Mucuripe como sendo uma “tragédia portuária”. Apesar das críticas, parecia

notório o que o novo porto representava:

Não estaria mais a Capital cearense a revelar aquele bisonho retrato de Koster (viajante inglês) e ater à sua frente as humilhantes e dolorosas perspectivas de portos tentados e fracassados diante da fúria dos verdes mares tão decantados, mas por outro lado tão destruidores 53.

As contradições do porto, obviamente, não se reservam apenas à disseminação de

problemas ambientais. Afetou bastante as condições socioeconômicas de todo o lugar que o

circunda. O cais e a indústria estão diretamente relacionado não apenas à geração de novas

formas e oportunidades de trabalho, mas à própria ocupação dessa parte da cidade pelas

classes trabalhadoras.

Assim, o porto e todo o complexo industrial passaram a estabelecer uma relação de

intensa ambigüidade aos olhos da população, que passou a se estabelecer nos seus arredores.

Na comunidade do Serviluz, boa parte das pessoas enxerga essa obra como fundamental para

o crescimento do bairro.

“O cais do porto, ele ter sido construído ali, nossa comunidade só teve a ganhar. Toda mão de obra, todo serviço prestado ali dentro (...) na faixa de 60% de toda mão de obra ali dentro é daqui do bairro. É do Bairro Serviluz e de áreas circunvizinhas”54.

Na memória dos trabalhadores locais, o porto representa muitas vezes não somente

emprego direto dentro das docas, mas sobretudo a possibilidade de obtenção de pequenos

afazeres entre os homens que para lá rumam diariamente.

52 JUCÁ, Gisafran Nazareno Mota. Fortaleza: Cultura e Lazer (1945 – 1960). In: Uma nova história do Ceará. SOUZA, Simone de (org.). Fortaleza: Edições Demócrito Rocha, 2000. p.193. 53 GIRÃO, Raimundo. Geografia Estética de Fortaleza. Imprensa Universitária do Ceará. Fortaleza, 1959. p. 29. 54 Entrevista concedida por José Carlos da Silva ao autor em 08/03/2005.

Page 46: “FOGO, VENTO, TERRA E MAR: MIGRAÇÕES, NATUREZA E …livros01.livrosgratis.com.br/cp011195.pdf · formação e urbanização do Bairro Serviluz em Fortaleza. Comunidade localizada

44

Com os investimentos realizados na construção e ampliação do porto, a região do

Mucuripe se configurou como locus privilegiado de oportunidades e como possibilidade

concreta de inserção no mundo urbano do trabalho. Esse processo de atração se acentuou a

partir de 1965, com o encerramento das obras do porto e a chegada da energia elétrica

proveniente da Hidrelétrica de Paulo Afonso. Nesse instante, intensificava-se ainda mais a

montagem das indústrias que constituiriam o pólo industrial do Mucuripe, forte impulsionador

da mão-de-obra para o local.

De modo geral, a criação de órgãos como Dnocs, Sudene, Banco do Nordeste e da

Universidade Federal do Ceará acabou gerando um investimento mais sistemático no

desenvolvimento industrial da região nordestina55.

Para Roncayolo “dos lâmpiões a óleo às tochas, das candeias e das velas à pirotecnia,

a cidade sempre procurou dominar a luz, sinal de originalidade técnica do mundo urbano,

primeiro elemento, talvez, de sua ‘artificialidade’”56.

As transfigurações noturnas em Fortaleza ganham fôlego quando uma lei municipal de

1954 criou a autarquia municipal Serviço de Luz e Força de Fortaleza, o Serviluz, cuja

finalidade era produzir, transformar e distribuir energia elétrica no município de Fortaleza que

se expandia57.

A adoção da eletricidade no espaço público da capital pontificava mais um fundamental empreendimento com vistas à obtenção da modernização urbana. Ofilamento elétrico começava a prjetar uma luz esfuziante sobre o ar embaciado da noite (...) Nem a lua cheia nem a luz mortiça dos lampiões acompanhariam o esplendor da cidade moderna58.

No decurso do tempo, a inovação técnica permitiu, entre outras coisas, a substituição

dos velhos lampiões a gás, instalados no último quartel do século XIX e removidos em

meados da década de 1930, pela eletricidade, “ato inaugural de uma epopéia vertiginosa, que

paulatinamente daria ao homem urbano uma sensação de segurança e refúgio na luz

artificial”59.

55 Segundo Celso Furtado, não há dúvidas de que os anos 1950 foram a fase decisiva da industrialização brasileira. Cf.: FURTADO Celso. O Brasil pós-milagre. Rio de Janeiro: Paz e Terra, Coleção Estudos Brasileiros, v.54, 1983. p. 31. 56 RONCAYOLO, Marcel. Transfigurações noturnas da cidade: o império das luzes artificiais. In: Op. cit. Projeto História, nº. 18. p.97. 57 Sobre a eletrificação no Ceará Cf.: LEITE, Ary Bezerra História da Energia Elétrica no Ceará. Fortaleza: Fundação Demócrito Rocha, 1996. p. 170. 58 SILVA FILHO, Antonio Luiz Macêdo e. Paisagens do consumo: Fortaleza no tempo da Segunda grande Guerra. Fortaleza: Museu do ceará; Secretaria da Cultura e Desporto do Ceará, 2002. 59 Op. cit. p. 39.

Page 47: “FOGO, VENTO, TERRA E MAR: MIGRAÇÕES, NATUREZA E …livros01.livrosgratis.com.br/cp011195.pdf · formação e urbanização do Bairro Serviluz em Fortaleza. Comunidade localizada

45

A usina termelétrica do Mucuripe, além de suprir a demanda das indústrias da região,

também se apresentou como uma solução, ainda que paliativa, para o grave problema de

abastecimento de energia, que, durante muito tempo, assolou a capital cearense60. Na

perspectiva do Governo do Estado, depois de grande demora, o problema da energia elétrica

na capital caminhava para uma solução completa, que abriria as portas de Fortaleza para uma

industrialização até então impossível de ser realizada61.

Apesar disso, o problema de energia elétrica em Fortaleza não ficou resolvido apenas

com a instalação da usina. A exemplo da tragédia portuária, a história da eletricidade em

Fortaleza apresenta capítulos que denotam ambigüidades e a relativa incapacidade do sonhado

progresso.

O projeto do Mucuripe fora desenhado para utilizar a água do mar (...), mas quando ocorria a maré baixa, entravam nos referidos tubos areia, peixinhos, crustáceos, águas marinhas (...) ocasionando sua obstrução, prejudicando o resfriamento do condensador e o funcionamento normal da turbina, o que acarretava freqüentes interrupções do fornecimento de energia elétrica. O SERVILUZ teve que manter equipes de mergulhadores, que cumpriam o penoso serviço de limpeza e deslocamento das bombas de dragagem62.

Os problemas técnicos que freqüentemente paralisavam as turbinas e os altos preços

das tarifas foram alvos constantes de denúncias por parte da imprensa: “SERVILUZ ilumina

meia cidade e deve dinheiro a meio mundo”63. O artefato tecnológico carecia de uma certa

garantia na regularidade do serviço e, mesmo do ponto de vista econômico, a usina causava

prejuízos consideráveis ao comércio e à indústria.

Durante muito tempo, apesar dos rotineiros apagões, a energia elétrica ali produzida

iluminava quase toda a cidade, alimentava as indústrias, clareava a zona de meretrício ao lado,

mas não brilhava na comunidade do Serviluz. De modo geral, as luzes da modernidade e do

progresso clareavam apenas espaços pontuais da cidade.

Desde os anos 1950, haviam sido efetivados os primeiros esforços de consolidação de

uma política industrial de base e geração de energia no Mucuripe. No ramo de gás, um dos

60 Caberia, contudo, somente à Companhia Nordeste de Eletrificação de Fortaleza (CONEFOR) a recepção da energia elétrica da CHESF, instalada apenas em 1965. Em 1971 foi inaugurada a Companhia de Eletricidade do Ceará (COELCE). 61 IOC. A Eletrificação no Ceará: Pequeno histórico da vinda da energia de Paulo Afonso a Fortaleza. IOC - Imprensa Oficial do Ceará, 1965. P. 88. 62 Op. cit. LEITE. Ary Bezerra História da Energia Elétrica no Ceará. p. 172. 63 Jornal O Povo, em 07/01/1960, p. 06.

Page 48: “FOGO, VENTO, TERRA E MAR: MIGRAÇÕES, NATUREZA E …livros01.livrosgratis.com.br/cp011195.pdf · formação e urbanização do Bairro Serviluz em Fortaleza. Comunidade localizada

46

segmentos mais fortes, a empresa Gás Butano instalou sua fábrica na região em 1951 e logo

iniciou suas operações. Depois vieram as multinacionais64.

Curiosamente, as grandes empresas eram as que ameaçavam de forma mais direta a

natureza e as que menos empregavam os homens da região. Priorizam pessoas alfabetizadas e

requerem um quadro de funcionários altamente especializados.

“Essas empresas davam prioridade mais às pessoas que tinha alto grau de estudo. Porque as pessoas daqui a maior parte era pipoqueiro, pescadores. Área pobre mesmo! Acostumado ir pra Beira Mar vender sua bebidazinha no seu carrinho, pipoquinha, etc. Se essas indústrias dessem valor às pessoas que morassem aqui na favela, na área aqui seria muito bom”65.

Na fala dos moradores, percebe-se o abismo que por vezes parece existir entre o bairro

e a indústria ao lado. Os trabalhadores recrutados nas imediações desempenhavam serviços

essencialmente braçais, eram o pessoal do “baixo escalão”, enquanto a mão-de-obra mais

especializada provinha toda de fora da região.

É lógico que, numa região portuária, havia trabalhadores especializados como

operadores de guindastes e do maquinário moderno. E mais, pouco a pouco, disseminou-se a

cultura da especialização profissional e a do letramento escolar. A necessidade de

escolarização, sobretudo, advinha do premente desejo de uma capacitação técnica da mão-de-

obra. Nesse sentido, configurou-se tanto um quadro social de organização comunitária em

função do mercado de trabalho, até então restrito, quanto se operou intenso processo de

treinamento profissional dos jovens fora do bairro.

Prevalecia, porém, a admissão nos serviços de capatazia, de carregadores,

empilhadores e conferentes, bem como nas tarefas de vigilância, portaria, limpeza e

manutenção. Havia inclusive aqueles que eram empregados na venda e distribuição de

botijões de gás e latas de querosene nas poucas habitações onde o morador dispunha de fogão

ou podia comprar querosene em quantidade maior. Nesse caso, a mercadoria tinha de ser

transportada às costas, já que não era possível o tráfego de veículos sobre as areias ainda não

pavimentadas.

Além disso, as oportunidades traziam consigo os riscos inerentes à própria atividade

industrial. Isso significava na prática a ocorrência de inúmeros acidentes com o manuseio de

64 Segundo o Informativo da Companhia Docas do Ceará, as seguintes empresas são atendidas pelo Plano de Emergência no Mucuripe: Esso Brasileira de Petróleo, Petrobras (Lubnor), Petrobras (BR Distribuidora S.A.), Companhia Brasileira de Petróleo Ipiranga, Shell Brasil S.A., Texaco Brasil S.A., Companhia Ferroviária Nordeste (CFN), Agip Liquigás, Nacional Gás Butano, Locaequipe Serviços e Transportes (aeronaves), Grande Moinho Cearense, Moinho Fortaleza J. Macedo Alimentos S.A., além de outras empresas, como as de pesca, menores. 65 Entrevista concedida por Maria Zuleide de Oliveira Moura ao autor em 01/01/2003.

Page 49: “FOGO, VENTO, TERRA E MAR: MIGRAÇÕES, NATUREZA E …livros01.livrosgratis.com.br/cp011195.pdf · formação e urbanização do Bairro Serviluz em Fortaleza. Comunidade localizada

47

produtos e equipamentos de trabalho não habituais. Ali se instalara uma indústria moderna,

movimentada por uma tecnologia considerada de ponta e, no entanto, os acidentes se tornaram

rotina entre a classe trabalhadora, não acostumada ao maqunário moderno.

“Trabalho na plataforma, eu trabalho no grau máximo de ‘risco quatro’ né, eles chamam de ‘risco quatro’, quer dizer, que é uma área totalmente perigosa, inflamável e sem condições de expectativa de vida, a qualquer momento pode estar envolvido num acidente”66.

Também é perceptível a alteração na rotina diária de trabalho. José Osmir trabalha

como pintor industrial numa plataforma de petróleo. Ingressou num emprego em que era

necessária a realização de uma gama de cursos para obtenção de uma especialização formal:

“É preciso muita coragem, muita técnica, muita força e acima de tudo ser profissional!”67. O

entrevistado trabalha em um tempo específico; para receber um mês de salário, precisa passar

quinze dias no mar, podendo permanecer o restante do tempo em casa, e precisa estabelecer

um ritmo de trabalho diferenciado. Além das indispensáveis preocupações, há a exigência de

uma adaptação física singular, que possibilite a organização de uma vida à base de feituras

mecânicas sobre uma plataforma no meio do oceano..

Pelo ramo de atividade industrial do Mucuripe, altamente inflamável, os perigos se

acumulam no trabalho e no lar, o potencial de risco do bairro é certamente dos mais elevados

da cidade.

“Morreram três indivíduos (...) os caras foram tirar gasolina, olha como era fácil um acidente, uma tragédia. Porque o nosso bairro é cheio de gasoduto, sabe, nosso bairro é uma bomba mesmo (...) pra azar deles faltou energia na hora (...) os três rapazes morreram porque faltou energia na hora, e foi na hora que o navio mandou a carga de gasolina pelo gasoduto”68.

Nas narrativas, fica evidente que o imaginário do bairro está carregado de episódios

trágicos; em várias circunstâncias, vidas foram ceifadas, os incrementos do progresso e a

riqueza econômica se fizeram, muitas vezes, banhados no sangue dos trabalhadores locais.

“(...) o guincho, o guindaste, aquilo ali ele tava desativado há muito tempo, estava enferrujado então resolveram explodi-lo pra num ter risco de perigo, mas acabou tendo perigo porque no dia da explosão morreram quatro pessoas. Num sei se foi negligência ou sei lá, só sei que botaram dinamite lá e explodiram, foi pedaço de ferro pra todo lado. Nesse mesmo dia morreram quatro trabalhador”69.

66 Entrevista concedida por José Osmir Monteiro de Souza ao autor em 28/01/2003. 67 Ibidem. 68 Entrevista concedida por João Carlos Sobrinho ao autor em 27/02/2003. 69 Entrevista concedida por Francisco Herton Lima Rodrigues ao autor em 30/02/2003.

Page 50: “FOGO, VENTO, TERRA E MAR: MIGRAÇÕES, NATUREZA E …livros01.livrosgratis.com.br/cp011195.pdf · formação e urbanização do Bairro Serviluz em Fortaleza. Comunidade localizada

48

A indústria passa a sangrar os trabalhadores, a mutilar seus corpos. Muitos jovens

apresentam deformações físicas visíveis provocadas pela má utilização dos equipamentos

industriais; outros, após pouco tempo de serviço, são precocemente aposentados por

invalidez. O progresso tem na morte uma espécie de cara-metade70. As mortes no mar, os

naufrágios, os afogamentos somam-se às mortes em terra. A morte no mundo do trabalho,

aliás, é uma realidade que se somou ainda às mortes à bala, nitidamente sentidas nas

estatísticas da violência local. Nesse lugar pairava agora a idéia de que não se pode vacilar.

“(...) pescador que morreu afogado, teve pescador que morreu afogado. Aqui na construção do Titanzinho teve motorista que morreu também (...) que a caçamba ia jogar as pedras e vacilou, num saiu de dentro do carro e caiu com pedra e tudo. Eu num tô lembrado bem dos outros tipos de acidentes, mas tem. Morte de violência também existe, à bala. Eu já vi muita gente morrer também aqui, bala, faca e assim vai”71.

Com o advento de uma rede de eletricidade mais estável, novas empresas se

instalaram. Três grandes moinhos de beneficiamento de trigo passaram a funcionar a todo

vapor e novos armazéns para estocagem da farinha de trigo foram construídos no local.

Também na década de 60, durante o período áureo de captura da lagosta destinada à

exportação, foram construídas várias empresas de pesca de grande porte.

No desenrolar de toda a segunda metade do século XX, grupos de trabalhadores se

instalaram na região concomitantemente às empresas. Na comunidade do Serviluz, os

moradores mais antigos viram a tecnologia industrial se instalar no quintal de casa, com

máquinas e motores, tubulações e tanques. Os trens, os navios e os caminhões continuamente

carregados indicavam uma alteração importante no ritmo de vida local. Ainda que esses

elementos, característicos do progresso que se fazia concreto, apareçam nas narrativas

vinculados apenas à geração de emprego e renda na região, eles certamente assinalam novas

formas de vivência do tempo e novas modalidades de organização das culturas.

2.4 A indústria de fogo

No que concerne ainda ao processo de industrialização, é impossível esquecer que a

comunidade do Serviluz nasceu espremida entre as marés do litoral leste da cidade e um

70 “(...) é legítimo inferir que o desenvolvimento técnico tem no acidente mais que um simples desvio ou exceção à regra; este é parte constitutiva do próprio aparato técnico”. Cf.: SILVA FILHO, Op. cit. p. 22.

Page 51: “FOGO, VENTO, TERRA E MAR: MIGRAÇÕES, NATUREZA E …livros01.livrosgratis.com.br/cp011195.pdf · formação e urbanização do Bairro Serviluz em Fortaleza. Comunidade localizada

49

amontoado de empresas que lidam com materiais altamente inflamáveis. Os primeiros

casebres, de pobreza e fragilidade gritantes, foram erguidos sobre os morros de areia frouxa e

sobre as tubulações de gás, o que faz sugerir o perigo constante em que essas pessoas

viveram, e ainda hoje vivem. As terras do velho Mucuripe em pouco tempo se tornaram tão

belas quanto assustadoras.

A interação permanente com a natureza não constituía a única especificidade do lugar.

Algumas pessoas do bairro têm a clara convicção de que os principais motivos de a

especulação imobiliária não terem se apossado da praia são: o constante deslocamento da

areia, capaz de soterrar construções; e as empresas de gás e combustível, cujo fogo se tornou

uma ameaça. O homem moderno já tinha posto ali suas indústrias. O barulho das ondas do

mar se intercalava agora com a sirene das usinas; a intensa maresia da praia se misturava ao

forte cheiro de gás; bebia-se água com gosto de querosene. O fogo, a areia, o vento e a água

constituem elementos que denotam a especificidade do bairro na cidade e apontam também

para a construção de estratégias de sobrevivência e desenvolvimento de culturas intimamente

relacionadas às condições da natureza.

Mas, de modo geral, a natureza do litoral do Mucuripe não era mais apenas encanto e

poesia. A praia fora praticamente tomada de seus primitivos habitantes. Seus arredores

abrigavam os perigos dos terminais das distribuidoras de combustível e os riscos das

tubulações aéreas e subterrâneas de uma área pontilhada de contrastes. Notadamente o

Mucuripe se tornara belo e assustador.

De forma curiosa, as classes trabalhadoras conseguiram significativas infiltrações

urbanas no espaço almejado pela burguesia local. Pela quantidade de recursos aplicados, a

área leste da cidade, diferentemente da concentração operária da zona oeste, estava destinada

tanto à indústria petroquímica quanto à verticalização imobiliária. De modo geral, Fortaleza

caracterizou-se pela ausência de planejamentos urbanos mais amplos por parte da

municipalidade. Apresentando-se como uma cidade cujo crescimento econômico fez-se em

meio à formação de numerosas áreas de risco, abrigos compulsórios da população de baixa

renda, a cidade consolidou-se pontilhada de visíveis contradições sociais.

Mas o que significa exatamente morar nos arredores de um terminal de gás? No

primeiro grande incêndio, ocorrido em julho de 1980, as chamas chegaram a mais de 50

metros de altura, consumindo milhares de litros de combustíveis da empresa Shell. Todos os

esforços possíveis e imagináveis foram empregados no combate ao incêndio, que irrompeu

71 Entrevista concedida por Francisco Herton Lima Rodrigues ao autor em 30/02/2003.

Page 52: “FOGO, VENTO, TERRA E MAR: MIGRAÇÕES, NATUREZA E …livros01.livrosgratis.com.br/cp011195.pdf · formação e urbanização do Bairro Serviluz em Fortaleza. Comunidade localizada

50

em pelo menos sete tanques no terminal da Shell, localizado na Esplanada do Mucuripe, onde

estavam acumulados mais 10 milhões de litros de gasolina72.

Os jornais anunciavam com afinco o maior incêndio já ocorrido no Ceará. Uma

maratona de guerra se passava na região. Recrutas foram chamados às pressas, técnicos e

contingentes de apoio foram convocados do interior e de outros estados. Um avião Hércules

da Força Área Brasileira foi deslocado de Recife para combater o fogo que ameaçou também

as demais companhias petrolíferas. Durante os trabalhos, cinco soldados do Corpo de

Bombeiros foram internados no hospital da corporação, vítimas de intoxicação e queimaduras

causadas pelo enorme calor no local73.

Na Assistência Municipal, deu entrada uma criança, vítima de atropelamento ocorrido

quando o menor, em companhia da mãe, tentou atravessar uma rua nas imediações do

desastre. Havia sido justamente no momento em que muita gente correu ao ouvir a explosão

do segundo tanque de gasolina74.

A polícia militar isolou a área e o tráfego de transportes foi desviado. Caminhões-

tanques não conseguiram abastecer e a falta de gasolina afetou gravemente diversos setores da

cidade.

Pelo noticiário, a cidade de longe acompanhou que o retorno das famílias afastadas

não estava previsto, porque não se sabia quanto tempo se gastaria para debelar totalmente o

fogo que tomou as imediações75. Nos casebres localizados na área mais próxima à indústria, a

situação foi muito pior. Casas ficaram fechadas; algumas abandonadas às pressas e deixadas

abertas, foram alvo da pilhagem de aproveitadores. A polícia de plantão registrou pelo menos

cinco prisões76.

“O caso foi tão sério que após o primeiro dia de fogo aí a polícia montou um esquema de segurança, ficou fazendo ronda no bairro e alguns moradores ficaram tomando conta de suas casas (...) porque a população abandonou o bairro, porque foi um incêndio que assustava, a gente sentia a temperatura do fogo, uma quintura (...) assustava mesmo (...) muita gente foi robada levaram televisão, levaram som porque os ladrões aproveitaram (...) foi um dia mesmo de terror (grifo nosso) para a população do Serviluz”77.

72 Jornal O Povo, em 29/07/1980. p. 08. 73 Jornal Tribuna do Ceará, em 29/07/1980, capa. 74 Jornal O Povo, em 29/07/1980, capa. 75 Durante a pesquisa, foi comum ouvir referências de moradores de outros bairros da cidade sobre esse incêndio. Muitos citadinos tiveram como divertimento a contemplação do “espetáculo” de cores das labaredas de fogo que podiam ser focadas de longe. 76 Jornal Tribuna do Ceará, em 29/071980, p. 04. 77 Entrevista concedida por José Carlos da Silva ao autor em 08/03/2005.

Page 53: “FOGO, VENTO, TERRA E MAR: MIGRAÇÕES, NATUREZA E …livros01.livrosgratis.com.br/cp011195.pdf · formação e urbanização do Bairro Serviluz em Fortaleza. Comunidade localizada

51

Causador de pânico generalizado, o fogo aterrorizou milhares de moradores das zonas

adjacentes, que, apavorados, evacuaram suas casas por vários dias. Pela localização do Bairro

Serviluz, entre o fogo e o mar, tudo se tornou mais desesperador ainda. Experiência

traumática, esse episódio indicava o quanto custava aportar nesse lugar de oportunidades que

surgiu em Fortaleza.

O bairro não era mais o mesmo. Os perigos concretizaram-se, tornaram-se uma

realidade trágica. Em 1993, dessa vez na empresa Gás Butano, um segundo incêndio

irrompeu. Os moradores afirmaram que se viam botijões de gás voarem e os estilhaços

perderem-se de vista. As explosões provocavam barulhos ensurdecedores novamente, “você

jurava que o Serviluz ia todo pelos ares”78. No segundo sinistro, no entanto, não apenas a

força do fogo, mas também o susto dos moradores parecem ter sido menores. Dessa vez muita

gente optou por ficar em casa e utilizar a estratégia de somente abandonar o domicílio caso o

fogo passasse de uma empresa para outra. Treze anos após a primeira tragédia, os moradores

possuíam tanto a experiência anterior de abandono quanto, aparentemente, um pouco mais de

confiança no sistema de antifogo das empresas e do Corpo de Bombeiros.

Mas era impossível esquecer o local em que estavam instalados. Constantemente,

ainda hoje, ocorrem pequenos sustos, focos isolados, falsos alarmes que disparam e

simulações que se repetem. Devido ao fogo, muitas pessoas do bairro foram embora, o

incêndio na verdade aparece como ponto limite de uma contradição: aqueles que

conseguissem com o fogo conviver teriam um sono relativamente tranqüilo, pelo menos em

relação à ameaçadora especulação imobiliária.

O fato é que o conjunto industrial atraiu imenso contingente de migrantes a toda essa

região. Mesmo tendo a indústria uma demanda por mão-de-obra relativamente reduzida, a

possibilidade de conseguir emprego de carteira assinada ou mesmo um mero biscate em uma

grande empresa atraía muitas pessoas. Esses trabalhadores se instalavam de forma precária,

quase sempre nos muros das indústrias ou na beira da ferrovia.

Nessa atmosfera de projetos e relações sociais conflitantes, para certa elite política e

econômica de Fortaleza, devido, principalmente, ao investimento maciço de capital e recursos

externos, o espaço onde se operava a ação desses trabalhadores adquiriu grande importância.

Isso nos possibilita indagar sobre a existência de uma possível relação de “reciprocidade”,

ainda que bastante desigual, entre Estado, iniciativa privada e os imigrantes, na formação dos

núcleos habitacionais nos arredores do Porto do Mucuripe. Caso contrário, parece bastante

78 Entrevista concedida por José Carlos da Silva ao autor em 08/03/2005.

Page 54: “FOGO, VENTO, TERRA E MAR: MIGRAÇÕES, NATUREZA E …livros01.livrosgratis.com.br/cp011195.pdf · formação e urbanização do Bairro Serviluz em Fortaleza. Comunidade localizada

52

óbvia a expulsão dos pobres das chamadas áreas de risco, como ocorreu em muitos dos

grandes centros urbanos brasileiros.

Na cidade de São Paulo, Raquel Rolnik sugeriu que diante da desigualdade social e da

mutiplicidade cultural, urbana se constitui

(...) um pacto territorial paralelo à propria legislação, que admite que existam coisas irregulares, ilegais, e até destina determinados espaços da cidade – normalmente os espaços mais desqualificados, distantes, desurbanizados, longíncuos – para essas coisas ilegais acontecerem. E que esse é um pacto que, ao mesmo tempo, permite que a maior parte das pessoas resolva seu problema da moradia por sua própria conta e, ao assim fazer, não tensiona todo o esquema político de denominação79.

Ora, desde a concepção, a existência de um conglomerado habitacional, numa região

mais afastada daquelas áreas escolhidas pelas elites da capital e que, ao mesmo tempo, se

situava próxima às novas fábricas, parece uma evidência clara de que os empreendimentos

nesse espaço visavam tanto solucionar problemas urbanos decorrentes de nova espacialização

que se pretendia para Fortaleza quanto disponibilizar mão-de-obra fácil e barata.

O que o Estado e o capital privado não planejaram foi que, para essa parte da cidade,

sem um equacionamento urbano definido e num ambiente ecologicamente condenável,

convergissem pessoas com identidades e culturas tão diferenciadas. Por outro lado, devido ao

inchaço gerneralizado da cidade, o Bairro Serviluz acabou aproximando-se das áreas nobres

da cidade. Além disso, as zonas de praia de Fortaleza não mais eram vistas como espaços

desqualificados, mas como pontos revigorados pelo turismo em ascensão.

Envoltos nesse ambiente socialmente transformado, os moradores de beira de praia de

Fortaleza desenvolveram também a noção da mutabilidade sistemática da paisagem. Se o

homem remodela a seu bel-prazer a natureza, a certeza de que as coisas na cidade não são

estáticas torna-se muitas vezes uma condição, fazendo aflorar um homem capaz de mudar e se

transformar juntamente com a natureza.

2.5 A Fortaleza do turismo e da especulação imobiliária

79 ROLNIK, Raquel. Lei e política: a construção dos territórios urbanos. In: Op. cit. Projeto História, nº. 18. p. 140.

Page 55: “FOGO, VENTO, TERRA E MAR: MIGRAÇÕES, NATUREZA E …livros01.livrosgratis.com.br/cp011195.pdf · formação e urbanização do Bairro Serviluz em Fortaleza. Comunidade localizada

53

Durante um longo tempo, ignorou-se o encanto das praias e o prazer do banho de mar

em Fortaleza e somente muito tardiamente, de modo mais preciso no despontar do século XX,

a cidade abriu-se para o seu litoral.

Segundo o historiador francês Alain Corbin80, um conjunto de imagens repulsivas

associadas às águas oceânicas, construídas desde a gênese bíblica, impediu a emergência do

desejo da beira-mar no mundo ocidental. Não faltam episódios na mitologia e na literatura

clássica que reforçam a visão negativa do litoral como receptáculo dos excrementos do mar e

esconderijo dos monstros.

No entanto, é na própria teologia cristã que se inscreve uma nova noção apaziguadora

do litoral como espaço que tranqüiliza o homem, lugar onde Deus, em sua infinita bondade,

dispôs o oceano para o bem-estar das criaturas.

Assim, a partir do século XVII, operou-se uma mudança que veio possibilitar um novo

olhar sobre esse território, fazendo emergirem as figuras iniciais da admiração do mar que

motivarão, entre outras coisas, a prática da viagem turística.

Doravante as elites sociais buscam aí a ocasião de experimentar essa relação nova com a natureza; encontram aí o prazer até então desconhecido de usufruir um ambiente convertido em espetáculo (...) espera-se do mar que acalme as ansiedades da elite, que restabeleça a relação harmoniosa do corpo e da alma (...) que corrija os males da civilização urbana, os efeitos perversos do conforto, embora respeitando os imperativos da privacidade81.

Corbin observou com maestria como, desde o século XVIII, se operou uma espécie de

“invenção” da praia, que despertou o interesse pelo mar como um verdadeiro fenômeno

social. A partir desse momento, na Europa Ocidental, liberou-se uma paixão pelos panoramas

marítimos e os turistas passaram a experimentar a emoção de ver o mar.

Surgiu então uma íntima vinculação entre o estado de alma e a paisagem, a partir do

qual o espectador passa a viver a emoção provocada pelo sublime espetáculo da natureza.

Ocorre assim o alargamento dos modos de apreciação cenestésica do litoral que constitui um

acontecimento fundamental na história da sensibilidade. O equipamento turístico multiplica e

vulgariza uma experiência antes reservada às populações litorâneas, dando novas feições às

tradições mantidas secularmente nesses lugares.

No Ceará, o crescimento ganancioso do mercado da especulação imobiliária e o

inchaço demográfico desordenado propiciaram nas últimas décadas o acirramento dos

80 CORBIN, Alain. O território do vazio: a praia e o imaginário ocidental. São Paulo: Companhia das Letras, 1989. 81 CORBIN, Alain. O território do vazio: a praia e o imaginário ocidental. São Paulo: Companhia das Letras, 1989. p. 74.

Page 56: “FOGO, VENTO, TERRA E MAR: MIGRAÇÕES, NATUREZA E …livros01.livrosgratis.com.br/cp011195.pdf · formação e urbanização do Bairro Serviluz em Fortaleza. Comunidade localizada

54

enfrentamentos entre pobres e ricos pelas áreas litorâneas. Nesse sentido, as zonas de praia se

tornaram espaços conflituosos, marcados por duas lógicas distintas: uma representada pelos

usos tradicionais (o porto, a pesca e a habitação dos pobres); outra, pelas novas práticas

marítimas, notadamente os tratamentos terapêuticos da brisa, os banhos de mar e o veraneio82.

No mesmo período, a utilização do litoral para fins terapêuticos também induziu a

ordenação do banho de mar, bem como a regulamentação dos usos da praia. Em Fortaleza as

novas práticas marítimas, representativas dos hábitos europeus apropriados pelas elites locais,

suscitam um tímido movimento de urbanização das zonas de praia83. Na Praia de Iracema, a

partir dos anos 1920, ampliou-se a frequência de pessoas da elite que se deleitavam sob o sol

escaldante e que edificaram ali suas casas de veraneio.

Na cidade, por muito tempo, a praia foi um lugar desaconselhável para as pessoas de

bem. O mar era o lugar do porto e do transporte de mercadorias, suas praias serviam

basicamente de depósito de lixos e excrementos. O litoral, por isso, esperou longo tempo para

que suas areias fossem em definitivo incorporadas à realidade da vida urbana.

A partir dos anos 1970, com a intensificação do turismo, além das já referidas

transformações no mundo do trabalho pesqueiro, a especulação imobiliária também avançou

sobre o litoral de Fortaleza. Aquela primitiva aldeia de pescadores da enseada do Mucuripe

logo se transformou numa espécie de “selva de pedra” luxuosa onde jangadeiro pobre já não

podia mais morar.

A segregação espacial e a maquiagem no espaço urbano tornaram Fortaleza uma

cidade para inglês ver. À medida que foi chegando o turista, o pescador foi sendo obrigado a

sair. O resultado desse processo é a concretização de uma cidade que construiu espaços de

lazer e equipamentos de luxo para os turistas e as elites locais, mediante a destruição de

valores e tradições culturais há tempos sedimentadas, aumentando ainda mais a desigualdade,

a exclusão social e o avanço da degradação do meio ambiente já iniciado pela indústria.

O turismo tornou-se a nova vedete econômica do estado e os investimentos no setor

crescem ano após ano. Através do antigo Centro de Turismo, criado em 1975, e do atual

Programa de Desenvolvimento do Turismo do Ceará (PRODETUR-CE), em parceria com o

Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID) e com o Banco do Nordeste do Brasil

(BNB), o Governo do Estado tem gastado milhões em obras vultuosas e numa política de

marketing que visa divulgar uma suposta vocação turística do Ceará.

82 DANTAS, Eustógio Wanderley Correia. Mar à Vista: estudo sobre a maritimidade de Fortaleza. Fortaleza: Museu do Ceará, 2002. p. 57. 83 Op. cit. p. 46.

Page 57: “FOGO, VENTO, TERRA E MAR: MIGRAÇÕES, NATUREZA E …livros01.livrosgratis.com.br/cp011195.pdf · formação e urbanização do Bairro Serviluz em Fortaleza. Comunidade localizada

55

Dessa forma, a orla configura-se como locus privilegiado de visitações. O discurso

oficial fala de um turismo diversificado, visando garantir o desenvolvimento integrado e

sustentável da zona costeira cearense. A propaganda, no entanto, não consegue esconder a

fragilidade em que se encontram os atores locais diante do avanço desenfreado do turismo de

proporções globais, pois, ao invés de promover o crescimento econômico das localidades,

resulta em degradação ambiental, favelização, desemprego, decadência da pesca artesanal e o

desaparecimento das manifestações populares.

Nesse novo contexto de Fortaleza, não é preciso muito esforço para perceber que as

praias passaram a ter novas funções e novos freqüentadores. Na ponta do Serviluz, muitos dos

personagens que não interessavam no novo cenário, criado para as elites, logo foram

confinados aos casebres mais afastados da luxuosa Avenida Beira–Mar. Interessa aqui

registrar as conexões entre turismo e prostituição no bairro.

O investimento industrial, a energia elétrica de Paulo Afonso e a construção da nova

Avenida Beira-Mar não foram as únicas obras de grande porte em Fortaleza; o período foi de

grandes intervenções, tanto do Estado quanto da iniciativa privada, no processo de

reordenação espacial de uma cidade que aspirava a ares de grande metrópole urbana moderna.

A atividade turística ao que parece vem reforçar a idéia de uma cidade cosmopolita ,

ensejando mudanças na ordenação urbana que lhe permitisse a recepção do crescente fluxo de

visitantes. A partir da incorporação da faixa litorânea à dinâmica urbana, por exemplo,

salientou-se a transposição das funções hoteleiras do perímetro central da cidade rumo à

Avenida Beira-Mar84. No decorrer dos anos 70, iniciou-se o processo de verticalização fora da

região central de Fortaleza e pequenos edifícios de apartamentos foram construídos no Bairro

Aldeota.

O primeiro registro de ocupação em grande escala para o entorno do velho farol

ocorreu no início dos anos 1960, quando aproximadamente 1300 mulheres85 que “ganhavam”

a vida na antiga Rua da Frente, hoje Avenida Beira-Mar, foram remanejadas do seu local de

moradia e trabalho para as proximidades do antigo Farol do Mucuripe. O conflito dessas

mulheres na região era bem antigo:

84 O primeiro grande estabelecimento destinado a fins de hospedagem, o Excelsior Hotel, um suntuoso prédio de sete andares, foi inaugurado em 31 de dezembro de 1931 e situava-se ao lado da Praça do Ferreira no centro da cidade. Já no princípio da década de 1970, o prefeito Evandro Aires de Moura baixou um decreto estabelecendo a distância de 20 metros entre um edifício e outro, a fim de amenizar os efeitos da corrida imobiliária na Avenida Beira-Mar e preservar a circulação dos ventos marinhos em direção à cidade. O decreto foi revogado na administração posterior. 85 Op. cit. GIRÃO, Blanchard. p. 206.

Page 58: “FOGO, VENTO, TERRA E MAR: MIGRAÇÕES, NATUREZA E …livros01.livrosgratis.com.br/cp011195.pdf · formação e urbanização do Bairro Serviluz em Fortaleza. Comunidade localizada

56

Na zona portuária, no Mucuripe, começava a surgir a prostituição, e, por isso, em 1952, 600 mulheres foram ameaçadas de despejo pela Secretaria de Polícia, pois algumas famílias exigiram a transferência dos prostíbulos para outros lugares86.

A idéia era encurralar a prostituição de vários pontos da cidade, concentrada

principalmente na área central e nas proximidades do porto antigo, para as imediações do

farol abandonado “(...) onde não residiam famílias de classe média que pudessem ser

perturbadas com a vida noturna dos cabarés”87.

As prostitutas, grupo socialmente marginalizado, que faziam da orla o espaço para a

garantia da sobrevivência, naquele momento representavam, aos olhares obcecados pelo

progresso e pela moralidade, atraso e promiscuidade. A Avenida Beira-Mar (a primeira etapa

foi construída em 1963) tornou-se o novo cartão-postal da cidade, que construía espaços de

lazer e sociabilidade para as elites e se consolidava como pólo do turismo e da especulação

imobiliária por excelência.

Já na década de 1930, os prostíbulos davam um tom boêmio e violento às noites da

cidade, constituindo múltiplos conflitos entre seus personagens. Os prostíbulos faziam parte

de um cenário urbano específico, marcado por um tom boêmio, festivo e transgressor88.

De certa forma, a vinda de personagens que animam a vida numa zona de meretrício

para o Mucuripe passou a estigmatizar essa parte da cidade. Dentre esses personagens, foi

sobre as “raparigas do Farol” que recaíram os mais pesados fardos da vigilância moral e dos

abusos da violência policial. Na dinâmica do espaço urbano, as prostitutas foram obrigadas a

criar diversas estratégias de sobrevivência.

Na transferência para o Farol, apesar das pequenas indenizações, as mulheres não

receberam recursos suficientes que lhes permitissem melhorar suas precárias condições de

vida. O novo local era certamente bastante desprivilegiado. As condições encontradas pelas

“madames” no deslocamento inicial, em 1961, não foram as melhores:

(...) tal remoção não foi fácil, pois as ‘madames’ alegavam não ter um local disponível e adequado para seu tipo de negócio, sendo o Farol um local quase desértico e em péssimas condições. Não havia luz elétrica, água potável e calçamento, tornando bastante difícil o acesso ao local (...) A energia elétrica foi o único serviço prontamente instalado 89.

Mas foi com o meretrício que aconteceram os primeiros melhoramentos urbanos na

área. Água, luz e telefone chegaram a uma região até então praticamente inabitada. Surgiu ali,

86Op. cit. JUCÁ, p. 205. 87Op. cit. p. 206. 88 GUEDES, Mardônio. Pelas ruas e pensões: o meretrício em Fortaleza (1930-1940). In: Fortaleza: História e Cotidiano – Gênero. SOUZA, Simone e NEVES, Frederico de Castro (orgs.). Fortaleza: Ed. Demócrito Rocha, 2002. p. 53.

Page 59: “FOGO, VENTO, TERRA E MAR: MIGRAÇÕES, NATUREZA E …livros01.livrosgratis.com.br/cp011195.pdf · formação e urbanização do Bairro Serviluz em Fortaleza. Comunidade localizada

57

ampliando os limites do velho Mucuripe, a zona do Farol, o primeiro conglomerado humano

do Serviluz. Esse núcleo permaneceu aparentemente isolado por muito tempo, cerca de 300

metros formados de um lado e outro apenas por cabarés. Praticamente ilhado das áreas nobres

da cidade, o Farol, quando não havia clientes, era somente observado pelos parcos casebres de

pescadores.

Aos poucos, seguindo a expansão da cidade para suas áreas periféricas, as pessoas

foram se estabelecendo em direção ao antigo Farol do Mucuripe. Antes do porto, o farol era a

única edificação localizada no extremo leste da cidade. Foi exatamente nas proximidades do

farol que se formou o Bairro Serviluz.

89 Op. cit. ANJOS JÚNIOR, p. 25.

Page 60: “FOGO, VENTO, TERRA E MAR: MIGRAÇÕES, NATUREZA E …livros01.livrosgratis.com.br/cp011195.pdf · formação e urbanização do Bairro Serviluz em Fortaleza. Comunidade localizada

58

Capítulo II

2 Migração, trabalho e a transformação do Serviluz em uma

comunidade multifacetada

Bem antes do fim da construção do porto, Fortaleza já se caracterizava pela

intensificação do crescimento urbano acelerado, concretizado sobretudo pelo processo de

inchaço e favelização. Na área leste, mais especificamente na região de dunas compreendida

entre o atual Bairro Mucuripe e a Praia do Futuro, iniciou-se uma acentuada aglomeração de

pessoas oriundas de outros pontos da cidade e, principalmente, do interior do Ceará.

Após a ocupação de parte do litoral pelo porto e pelas fábricas, uma quantidade

maciça de trabalhadores começou a chegar. Empregando dinâmicas sociais múltiplas, pessoas

com distintas experiências de vida desenraizam-se, encontram-se, constroem projetos e

requalificam seus espaços. Naquilo que foi possível, tentou-se seguir os caminhos que esses

sujeitos trilharam para chegar ao local, bem como analisar as condições encontradas para a

construção da sociabilidade nesse espaço. A partir da origem e da trajetória de vida migrantes,

será possível dar sentido às diversas estratégias políticas para fixação na cidade, percebendo

como as pessoas foram construindo a luta pela sobrevivência e o modo como vivenciaram as

contínuas transformações urbanas.

No lugar onde se constituiu a comunidade do Serviluz, a natureza era um elemento

forte da vida urbana e, até o início dos anos 1960, a paisagem era praticamente formada de

morro e mar, quase não havia presença humana. Ao lado do cais recém-construído, era bem

reduzido o número de famílias que se alojavam além desses limites. Nos areais ao redor da

outrora Esplanada do Mucuripe, mesmo após o aterramento iniciado pelo porto, as dunas de

areia e as altas marés que antes revelavam a natureza exótica tornavam ainda o local

inadequado à moradia.

De modo um tanto grosseiro, é possível afirmar que a corrida humana, em larga

escala, para o Serviluz pode ser dividida em dois momentos distintos: o princípio da década

de 1960 e o início dos anos 80. No início dos anos 60, uma pequena área da praia já havia

sido tomada sorrateiramente por pescadores retirados da área do porto. Nessa época, iniciou-

se também o período áureo da pesca da lagosta, atividade econômica que arregimentou muitos

trabalhadores que chegavam à cidade para a região do Mucuripe. Aos que estavam em busca

Page 61: “FOGO, VENTO, TERRA E MAR: MIGRAÇÕES, NATUREZA E …livros01.livrosgratis.com.br/cp011195.pdf · formação e urbanização do Bairro Serviluz em Fortaleza. Comunidade localizada

59

de empregos na capital, o mar oferecia ganhos numa atividade tradicionalmente já exercida

por muitos desses migrantes. Além disso, a ocupação dessa área era facilitada devido à

interseção da Colônia de Pescadores junto à Capitania dos Portos, a fim de se conceder parte

do terreno de marinha para habitação dos pescadores; esta, aliás, tornou-se uma estratégia

eficaz de ocupação.

Ainda nesse período, as atividades portuárias criaram a necessidade de moradia para

os trabalhadores do cais. Na região do Serviluz, foi então disponibilizada uma pequena vila,

localizada bem próxima ao porto e que cresceu em paralelo à linha férrea desativada, a Estiva.

Apesar do volume de operários do cais residentes no bairro, a quantidade de trabalhadores do

porto que habitavam essa área é bastante imprecisa. Tudo indica que, pela precariedade das

habitações e pela ausência de serviços urbanos mínimos no período, os estivadores, com

razoável padrão aquisitivo, preferiram residir em áreas mais urbanizadas da cidade; muitos

continuaram morando nas proximidades do porto antigo.

Diferentemente das migrações ocorridas para o bairro em fins de 1970 e princípios de

1980, quando houve uma variedade bem maior de trabalhadores dedicados a profissões

urbanas, na década de 60, o Serviluz foi tomado sobretudo por pescadores e prostitutas. Essa

característica fundante do bairro foi tanto uma conseqüência da segregação espacial imposta

às camadas pobres da cidade quanto uma clara demonstração de que os pobres não foram

totalmente expulsos da praia, quando essa passou a ser economicamente valorizada.

2.1 Farol, os “de dentro” e os “de fora”

“Farol, designação inadequada para abrigar quem vive sem uma luz a indicar-lhe o futuro”.

(Blanchar Girão)

A tendência das elites urbanas de Fortaleza de escolherem determinadas áreas para se

resguardar das massas urbanas criou cidades diferenciadas dentro da mesma cidade. Esse não

era um processo novo. Desde os anos quarenta, novos bairros foram sendo criados com a

finalidade de abrigar as classes mais abastadas. No processo de divisão espacial da cidade, foi

significativo que a população de baixa renda também construiu seus abrigos em vários pontos.

A zona de meretrício do Farol foi um deles.

Page 62: “FOGO, VENTO, TERRA E MAR: MIGRAÇÕES, NATUREZA E …livros01.livrosgratis.com.br/cp011195.pdf · formação e urbanização do Bairro Serviluz em Fortaleza. Comunidade localizada

60

Diferente do Serviluz, o cenário do Mucuripe, apesar de abrigar um complexo

portuário e industrial, foi um franco alvo da especulação imobiliária, que cresceu

vertiginosamente à época. A praia não comportava mais somente as funções de carga e

descarga e o fluxo marítimo. A natureza foi apropriada pela sociedade de consumo sob a

forma de moradia de luxo. Naquela paisagem bucólica, a luz da Avenida Beira Mar indicava

que por ali havia passado o progresso. Mais que isso, as luzes vinham dar visibilidade a novos

tipos de sociabilidade que floresciam com a energia elétrica. As cenas arcaicas que o cineasta

norte-americano Orson Welles captara na enseada do Mucuripe não tinham mais sentido.

Nesse meio século de história, as jangadas e os homens do mar praticamente desapareceram

da praia e os coqueirais foram substituídos por imensos arranha-céus.

O cenário não comportava, sobretudo, a prostituição que, desde o início das obras

portuárias, havia se alojado nos arredores. A transferência da zona de meretrício para os

confins da esquina leste da cidade, escondida atrás do porto, indicava que nessa área

estigmatizada, devia-se isolar a pobreza e a prostituição. A prostituição exercida em bordéis,

nesse caso, configura-se como um tipo especifico de trabalho, diferente, por exemplo, do

meretrício praticado na rua.

São poucos os estudos que sistematizam a problemática do surgimento da prostituição

em Fortaleza. As cores da noite quase sempre são cobertas pelas imagens sombrias da

“podridão”, do mundo profano e da degradação moral dos “corpos sem lei”. A igreja, por

exemplo, condena essa prática porque fere a tradição familiar cristã. O sexo, assim, é

concebido exclusivamente como meio de reprodução humana, entre a esposa e o marido, e

não como um modo de trabalho90.

Espaços localizados, os bordéis foram, ao longo do tempo, alvos de campanhas

públicas por parte da vizinhança que exigia, desde a época do Mucuripe, o distanciamento

90 No pensamento moralizador ocidental, temas como a não virgindade, condição da prostituta, são condenados, fato que se reflete, inevitavelmente, no trabalho. “Nas leituras da Igreja Católica sobre a prostituição, o que se observa é a ênfase em um paradigma de prostituta como ‘tipo ideal’ para desenvolver o raciocínio baseado no pecado, na impureza, na devassidão, na podridão”. No entanto, “historicamente na nossa sociedade, o cabaré tinha como uma de suas principais funções a iniciação sexual do homem, preservando as ‘moças de família’, que deviam permanecer virgens até o casamento”. Cf.: SOUSA, Francisca Ilnar de. O Cliente: o outro lado da prostituição. São Paulo: Annablume; Fortaleza: Secretaria da Cultura e Desporto, 1998. p.114 e 41. 91 ANJOS JÚNIOR, Carlos Silveira Versiani dos. A Serpente domada: um estudo sobre a prostituição de baixo meretrício. Fortaleza: Ed. UFC, 1983, p. 24. Trata-se de um dos poucos trabalhos acadêmicos que enfocam o bairro. A pesquisa, no entanto, não é específica sobre a zona do Farol em Fortaleza, mas um estudo comparativo das características dessa com as zonas de baixo meretrício do “Posto Fiscal” em Brasília. O autor realizou a pesquisa de campo entre março e julho de 1980, privilegiando os dias de sexta a domingo devido à maior concentração de mulheres. Utilizou ainda a estratégia de entrevistar as prostitutas em outros dias da semana, sobretudo à tarde, nos quais, devido ao descontraimento das mulheres, era possível investigar melhor o cotidiano dos cabarés.

Page 63: “FOGO, VENTO, TERRA E MAR: MIGRAÇÕES, NATUREZA E …livros01.livrosgratis.com.br/cp011195.pdf · formação e urbanização do Bairro Serviluz em Fortaleza. Comunidade localizada

61

entre as casas de prostituição e as “famílias de bem”. As preocupações com a regulação da

conduta sexual e a discriminação social aumentam quando o trabalho prostituinte é

desempenhado numa zona especifica, onde o estigma pode ser geograficamente exercido.

A prostituição, contudo, nem sempre se opõe aos aspectos familiares vigentes; ao

contrário, pode inclusive reforçar a estrutura familiar tipo nuclear. Trata-se de uma atividade

que agrega, tanto quanto não dispersa, seus agentes. No bairro, as prostitutas eram mulheres

que cumpriam muitas vezes um duplo papel, materno e paterno, indo ao cabaré para preservar

(leia-se sustentar) boa parte da sua família. Nesse universo, acordos silenciosos podem ser

estabelecidos; “há prostitutas e prostitutas”.

Em pesquisa sobre a então nova zona de prostituição do Farol do Mucuripe, Versiani91

colheu 12 (doze) entrevistas, das aproximadamente 400 (quatrocentas) existentes à época,

com mulheres do Farol. Segundo o autor, uma das dificuldades da pesquisa de campo era a

predisposição negativa das mulheres em narrar suas histórias de vida, pois as prostitutas

estavam geralmente saturadas de enquetes do Serviço Social e de entidades filantrópicas.

Nesse sentido, além da cautela do pesquisador, o respeito para com as informantes mostrou-se

essencial no processo de aproximação das depoentes. O conhecimento do mundo da

prostituta, no entanto, dependia não apenas das informações extraídas diretamente das

prostitutas, mas envolvia uma gama de informações pertinentes a outros “atores coadjuvantes

no drama” que, apesar de pertencentes ao mundo “de fora”, partilhavam o espaço físico do

Farol. Isso se deu porque a população do Farol constituiu um “caleidoscópio” de

marginalidade urbana, mostrando profunda mistura entre casas de família e casas de

prostituição.

De acordo com Anjos Júnior, cerca de 90% das mulheres do Farol eram oriundas do

interior do estado ou de estados nordestinos vizinhos. Pelo tipo de profissão que exerciam,

muitas mulheres preferiam “ganhar a vida” fora do local de origem. Grande parte ingressava

nessa atividade após a experiência da perda da virgindade, antes do casamento, em lugares

onde essa prática é mais severamente condenada.

A atração de jovens migrantes e a freqüente renovação do contigente de prostitutas

ampliavam-se de acordo com o movimento na zona portuária. A permanência de

“estrangeiros” no cais aumentava significativamente o volume de dinheiro na zona e o ganho

das prostitutas. Comparando-se a outros serviços braçais, nos quais a remuneração é sempre

Page 64: “FOGO, VENTO, TERRA E MAR: MIGRAÇÕES, NATUREZA E …livros01.livrosgratis.com.br/cp011195.pdf · formação e urbanização do Bairro Serviluz em Fortaleza. Comunidade localizada

62

irrisória, os ganhos no Farol eram incomparavelmente maiores, sobretudo quando ocorria a

ancorada de navios no porto de Fortaleza.

Na instalação dos cabarés do Farol, foi grande a importância das madames

(proprietárias ou gerentes dos estabelecimentos) que negociaram diretamente com o prefeito a

transferência dos prostíbulos, tornando-se, durante o histórico de fixação, proprietárias das

casas. Mantendo importantes vínculos com a prostituta, em geral é a madame que viaja pelo

interior recrutando as mulheres para os bordéis; preferem jovens interioranas, consideradas

comportadas e fáceis de manipular pela pouca experiência. Além da mão-de-obra feminina, as

madames tinham o hábito de empregar homens no bar onde serviam, eventualmente, como

seguranças do estabelecimento92. À medida que a área foi ficando violenta, esses homens

passaram cada vez a ser contratados na própria localidade.

Em termos de equipamentos urbanos, o Farol era composto de cerca de 70 (setenta)

cabarés, que geralmente abrigavam entre quatro e seis mulheres cada. Ali eram oferecidos

serviços de bar, espaço dançante e aluguel de quartos93. Além das casas noturnas, nas

adjacências, era possível encontrar botecos que vendiam produtos para o consumo interno. No

entanto, era ainda mais comum a venda de produtos de casa em casa, onde eram oferecidos

alimentos, perfumes, cosméticos e roupas. Como os marítimos pagavam os serviços em dólar,

comerciantes e cambistas do local compravam o dinheiro estrangeiro e, aos poucos, o

comércio local começou a florescer.

O isolamento do Farol pretendido tanto pelas administrações municipais quanto pelos

ricos locais, entretanto, contrastava com a efervecência e a quantidade de visitantes que

freqüentavam regularmente o lugar.

“Nessa época os cabarés eram freqüentados só por estrangeiros, americanos, franceses. Tinha boate que só freqüentava americano, brasileiro não tinha vez (...) o Farol era um local que as mulheres tinham status, as mulheres viviam bem, vestidas, bonitas (...) quer dizer, ganhavam dinheiro, muitas aproveitaram, algumas fizeram pé-de-meia, casaram, umas foram morar na Alemanha, algumas ficaram aqui, sabe. Mas o Serviluz os cabarés eram freqüentados exclusivamente por gringos”94.

As cenas descritas pelos moradores escapam aos desígnios almejados pela segregação

espacial. Uma variedade de sons, cores e luzes nutria ali múltiplas relações. Tudo indica que

as visitações ao Farol não se davam apenas pelo movimento dos cabarés e toda sua boemia, a

92 Anjos Júnior afirma que os “gigolôs” no Farol, podiam ser contados cerca de 50 (cinqüenta) na década de 80, serviam como “leões de chácara” ou como protetores e/ou exploradores das meretrizes. 93 Ainda segundo Anjos Júnior, os cabarés principais recebiam denominações como Moulin Rouge, Estrela do Mar, Morning Light, A Deusa do Mar, Rastro, Corujão, Sumaré, Brisa Mar, Mocambo da Fafá, Discotec, Boite da Eunice etc. Op. cit. p.26. 94 Entrevista concedida por José Carlos da Silva ao autor em 08/03/2005.

Page 65: “FOGO, VENTO, TERRA E MAR: MIGRAÇÕES, NATUREZA E …livros01.livrosgratis.com.br/cp011195.pdf · formação e urbanização do Bairro Serviluz em Fortaleza. Comunidade localizada

63

praia pouco habitada apresentava ainda uma paisagem bastante convidativa. “A sociedade de

Fortaleza se divertia aqui”, enfatizou um entrevistado. Recebiam-se muitos turistas,

praticantes de esportes náuticos e pescadores de fim de semana, a praia foi um excelente

espaço de lazer.

No Serviluz, as lembranças do mundo da prostituição não se limita ao universo da

pobreza e da promiscuidade; ao contrário, apresenta sinuosas relações sociais que agregam

valores e criam territórios. A partir do Farol, no então reduzido povoado do Serviluz, deram-

se intensas negociações e disputas entre os de “dentro” e os de “fora” desse circuito.

A zona de prostituição levava o nome do farol desativado que foi transformado em

museu, e, mesmo sendo alvo de preconceito devido à sua localização, o Farol do Mucuripe foi

durante certo tempo um importante ponto de visitação turística da cidade. Nos depoimentos,

percebe-se que várias personalidades de Fortaleza e estrangeiros endinheirados se misturavam

alegremente às mulheres e aos pescadores que residiam nos arredores. O “acolhimento”

tornou-se uma prática econômica e cultural importante para a comunidade.

Altos funcionários das multinacionais em estadia na cidade, muitos dos quais também

estrangeiros, tinham nessa localidade a possibilidade de diversão e entretenimento ao lado da

empresa em que trabalhavam. Com toda essa movimentação, não apenas as casas noturnas

lucravam, o pequeno comércio local cresceu consideravelmente, “minha mãe comprava

dólares”95, e as pequenas mercearias foram se transformando para atender um público

exigente e diversificado.

De modo curioso, são igualmente comuns as lembranças dos episódios em que os

pescadores disputavam, em pé de igualdade, o direito de usufruir o comércio no Farol com

pessoas de elevado poder aquisitivo.

“Por incrível que pareça no passado o pescador tinha moral, porque ganhavam bem. A lagosta dava dinheiro. O pescador chegava no cabaré, a zona como nós falávamos na época, ele disputava pau a pau com os gringos, com o pessoal que vinha de fora que gastava em dólares, porque o dinheiro era fácil (...) o pescador, o pescador artesanal, também tinha muita aceitação porque naquela época o pescador ganhava muito dinheiro, a lagosta né? Tinha abundância”96.

Nesses depoimentos, ainda que essa tenha sido uma situação relativamente efêmera, a

condição do pescador figura bem diferenciada daquela tradicional imagem de pobreza, quase

indigência, a que já se referiu. A imagem do pescador podia, inclusive, emergir como a de um

95 Ibidem. 96 Entrevista concedida por José Carlos da Silva ao autor em 08/03/2005. 97 Depoimento de Lúcia, do Brisa Mar. Cf.: ANJOS JÚNIOR, p. 88-89.

Page 66: “FOGO, VENTO, TERRA E MAR: MIGRAÇÕES, NATUREZA E …livros01.livrosgratis.com.br/cp011195.pdf · formação e urbanização do Bairro Serviluz em Fortaleza. Comunidade localizada

64

“príncipe encantado”. Muitos homens do mar podiam proporcionar uma vida mais segura às

mulheres da zona e essa era, via de regra, a condição mais palusível para a fuga do meretrício.

“Se o cara é bom pra mim e me dá conforto e eu gosto dele, eu largo mão disto e vou ficá com ele. Mas eu prefiro se for pra casar, casá mesmo, de papel e juiz, porque aí a responsabilidade da coisa é bem maior. Aí eu posso cuidá dele, dos filhos, tudo que a mulher faz ... quando o homem gosta mesmo, ele casa” 97.

Nesse contexto, os pescadores ainda em boa situação financeira podiam usufruir os

serviços sexuais prestados na zona. Os “lagosteiros”, por exemplo, eram capazes de pagar o

alto preço das bebidas, das mulheres mais bonitas e dos quartos mais luxuosos, um conjunto

inacessível para a maior parte dos moradores do bairro. Apesar disso, notavelmente as

mulheres do Farol preferiam os marinheiros, considerados menos grosseiros e mais generosos

no pagamento dos serviços oferecidos.

Mas se o universo do bairro era, em certas circunstâncias, permeável ao cotidiano do

meretrício, também era forte o desejo de se resguardar do convívio de sua agitação.

“Daquela área pra lá depois das nove horas em diante não tinha mais possibilidade de pessoas de menor ir pra lá, entendeu? Não tinha. Oito horas, nove horas já não ia mais (...) e as mulheres casadas iam, mas o pessoal comentava muito. Eu nunca tive isso não, eu sempre ia porque onde meu marido tava, eu nunca tive medo de ir (...), mas era um negócio muito quente, muito quente, quente mesmo. Homens despidos, mulheres também, era uma... como é que se diz, uma... um lugar mesmo reservado, muito quente tá entendendo? (...) praticamente isolado (...), mas pra cá também eles num passavam, nem elas nem eles, eles num passavam né, era como assim um muro de Berlim (...)”98.

Há, de certo modo, nas entrevistas colhidas entre os moradores, uma tendência geral

ao apagamento da memória da prostituição no bairro. Isso implica reconhecer o Farol como

um espaço reiteradamente rejeitado e compreendido por alguns como uma espécie de mancha

negra na história do lugar. Em termos práticos diários, durante o dia era até comum que os

moradores andassem entre os cabarés, afinal foi em função do meretrício que energia elétrica,

telefone, farmácia, chafariz e outros serviços foram prontamente instalados no local. À noite,

no entanto, o espaço ganhava sons e agito, sendo quase sempre malvisto no seio da

comunidade.

Escolas, associações e outros núcleos comunitários que foram se formando no bairro

aconselhavam os pais a não permitirem que os filhos freqüentassem a zona de prostituição. Os

mais velhos lembram quando a Kombi do Juizado de Menores começou a vigiar de modo

mais acintoso a entrada de crianças na zona de prostituição. A violência desencadeada no

98 Entrevista concedida por Maria da Conceição Alves dos Santos ao autor em 27/02/2003.

Page 67: “FOGO, VENTO, TERRA E MAR: MIGRAÇÕES, NATUREZA E …livros01.livrosgratis.com.br/cp011195.pdf · formação e urbanização do Bairro Serviluz em Fortaleza. Comunidade localizada

65

Farol e a marginalidade crescente no seu entorno provocaram uma preocupação exacerbada

dos pais no que se refere à criação dos filhos. Quando o bairro foi crescendo em termos

populacionais, adolescentes começaram a quebrar a tradicional rotina familiar e a criar novas

formas e espaços de sociabilidade; o poder da juventude aumenta ao mesmo tempo em que

sobre ela recaem com mais força os discursos da Igreja e a ideologia do trabalho. A

prostituição, nesse contexto, constituía um péssimo exemplo.

O isolamento na zona de prostituição tornou-se também uma espécie de elemento de

identidade. Instaurou-se no bairro a possibilidade de ser “confundido” com o outro, com o

diferente, com o comportamento considerado imoral e por isso anormal.

“Naquela época existia um tabu. Por exemplo, uma moça, uma senhora casada não podia andar naquela área, porque se andasse naquela área era confundida (grifo nosso) com prostituta. Existia essa divisão. Aí foi justamente por causa disso que dividiram o Farol do Serviluz. Mas só que o Farol está contido no Serviluz e o Serviluz contém o Farol (...) pensavam que todas mulheres eram iguais. As mulheres casadas, as moças num podiam andar naquela área, principalmente à noite”99.

.

O forte isolamento mantido por alguns moradores locais e registrado na cidade como

um todo em relação a esse espaço não consegue silenciar as permutas e os intercâmbios

existentes. Havia um reconhecimento tácito de que, apesar das opções de vida das meretrizes,

estas tinham procedências semelhantes à maioria da população local e o ganho com a

prostituição, supostamente fácil, era uma condição necessária à sobrevivência.

“A maioria delas eram garotas que vinham do interior, chegava aqui não tinha trabalho e entrava nesse ramo de vida. É como diz o ditado a vida é fácil né? Na época tinha mulher que fazia quatro, cinco programas. Amanhecia o dia com muito dinheiro, muito dinheiro mesmo. E quando pegava um gringo ou marinheiro ganhava até em dólar ganhava”100.

O reconhecimento dessa atividade como um meio de sobrevivência cruel e doloroso

aparece como motivação central para uma eventual união entre mulheres dos bordéis e

pescadores nativos. Diferentes das mulheres que viajaram para lugares distantes, as mulheres

resgatadas por homens locais, ao serem levadas para o lar, acabam engendrando

transformações comportamentais importantes na própria comunidade. Passando a morar

muitas vezes na própria vizinhança, essas pessoas assumem quase sempre o papel de dona de

casa; criar filhos e cuidar do domicílio eram suas novas atribuições. Essa mistura

99 Entrevista realizada concedida por Francisco Herton Lima Rodrigues ao autor em 30/02/2002. 100 Entrevista realizada concedida por Francisco Herton Lima Rodrigues ao autor em 30/02/2002.

Page 68: “FOGO, VENTO, TERRA E MAR: MIGRAÇÕES, NATUREZA E …livros01.livrosgratis.com.br/cp011195.pdf · formação e urbanização do Bairro Serviluz em Fortaleza. Comunidade localizada

66

contingencial tende a transformar inclusive a vigente concepção de família, já que é a mulher

que passa a administrar a estabilidade do lar.

Para os moradores, inevitavelmente, o encontro nesse universo estava diariamente

colocado. Várias mulheres da noite, por exemplo, alugavam casas ou quartos no bairro para

descansar durante o dia, acontecia que muitas farras saíam dos prostíbulos e terminavam nos

botecos e até mesmo nas habitações locais. Esse intercâmbio possibilitou que turistas de

várias nacionalidades se casassem ou simplesmente fizessem laços de amizade com os

moradores. O desejo de conhecer o mundo claramente processou-se em função dessa

interação. Nesse caso, as oportunidades criadas no meretrício, obviamente, não eram visadas

somente pelas mulheres vistas na comunidade como mundanas.

Não sendo esse um estudo mais específico sobre as relações sociais estabelecidas no

meretrício, coube enfatizar a importância da constituição inicial de fronteiras invisíveis,

condições limites, a demarcar onde e que tipo de pessoas podiam circular, indicando assim os

usos sociais de determinados espaços. Existiam tanto barreiras quanto interações. Os termos

“de dentro” e “de fora”, por isso, são muitas vezes incapazes de comportar as mesclas

ocorridas no improviso cotidiano local.

O esforço de definição do “de fora” tomou ainda mais impulso com o aumento

demográfico e o surto de criminalidade no bairro. O tempo da caminhada tranqüila e do

dinheiro correndo fácil expirou. Até princípios dos anos 1980, a violência não era deliberada

e, apesar da generalizada discriminação, sobre esse lugar prevalecia ainda a fama da

hospitalidade, do acolhimento, da diversão. Estrangeiros que desciam do porto aproximavam-

se e misturavam-se às mulheres sob as luzes dos bordéis, a “Las Vegas” do Ceará. O bairro

cresceu, em parte, devido à renda proveniente dos freqüentadores.

Mas aos poucos se esvaiu aquela atrativa imagem de paraíso. Além dos clientes e

meretrizes, a entrada da polícia, antes somente acionada para solucionar pequenos conflitos e

desentendimentos no local, passou a ser rotineira. A Secretaria de Segurança Pública do

Estado expedia os alvarás de funcionamento dos prostíbulos, encarregando-se também da

manutenção da ordem.

Na zona do Farol, o destacamento policial age sobre as prostitutas de maneira indiscriminada, procurando em seus mínimos deslizes um motivo para espancá-las e confiná-las às grades (...) Não é raro que uma prostituta tenha que prestar, sob coação, serviços sexuais gratuitos para um policial a fim de obter determinados favores em situações criticas101.

Page 69: “FOGO, VENTO, TERRA E MAR: MIGRAÇÕES, NATUREZA E …livros01.livrosgratis.com.br/cp011195.pdf · formação e urbanização do Bairro Serviluz em Fortaleza. Comunidade localizada

67

O bairro cresceu desordenadamente e aquele reduto de pescadores passou a ser visto

como uma perigosa favela. As mudanças no perfil do bairro e o preconceito que este passou a

inspirar na cidade envergonhavam sobremaneira os moradores.

“(...) E pra lá a gente nem sabia quando acontecia uma morte, uma coisa, porque também era difícil, agora é muito mais fácil (...), mas brincavam por lá a vontade principalmente quando chegava navio, marinha né?, esses navios eram muito chegados aqui e... às vezes acontecia fato de matarem marinheiro, marinheiro desaparecia, isso pra gente aqui, a população ainda era pouca, isso pra gente era como se fosse uma coisa muito grande (...) teve uma época que mataram dois marinheiros, amanheceram mortos naquelas pedrinhas né? , dois corpos ali, vixe Maria! foi uma coisa quase que o bairro acaba, quase que aqui acaba, mas de violência não, de tristeza entendeu? (...)” 102. O Farol passou a ter uma rotina de assaltos e mortes que o levaram ao declínio quando

chegou à “época da marginalidade”. Sintomaticamente, a percepção dessa transformação

repentina no ritmo de vida local é com freqüência atribuída à zona, fazendo emergir daí uma

espécie de memória ressentida desse espaço.

A decadência do Farol está ainda relacionada ao surgimento de novas e sofisticadas

áreas de prostituição na cidade. À medida que os clientes preferenciais ausentaram-se, os

donos dos bordéis passaram a investir cada vez menos na contratação de garotas jovens e

formosas. Essas, por sua vez, procuraram novos lugares próprios à prostituição. O

aparecimento avassalador do vírus da aids também contribuiu para a diminuição generalizada

no mercado do sexo, pois a crescente preocupação com doenças e epidemias esvaziou

gradativamente os bares e quartos de aluguel.

Fatores externos à atividade da prostituição favoreceram o declínio do fluxo de

visitantes, como o surgimento de novas atrações turísticas na cidade e a diminuição dos

marinheiros descidos no porto. O sistema portuário moderno, de estivagem em contêineres,

por exemplo, passou a permitir um trabalho de carga e descarga mais veloz, diminuindo o

tempo de permanência do marítimo em terra. À medida que este trabalhador não mais

precisava permanecer quinze enfadonhos dias na cidade, alterou-se também a rotina dos que

lhes prestavam serviços, inclusive de prostituição. Por outro lado, se o volume de marítimos

da marinha mercante diminuiu, os transatlânticos de luxo carregados de passageiros

aumentaram, mas esses turistas não mais incluem o bairro como ponto a ser visitado. Ao

contrário, ao passo que o bairro foi tornando-se perigoso, as próprias autoridades portuárias

encarregaram-se de criar mecanismos a fim de evitar a ida dos turistas à praia do Serviluz.

101 Op. cit. ANJOS JÚNIOR. p. 35. 102 Entrevista concedida por Maria da Conceição Alves dos Santos ao autor em 27/02/2003.

Page 70: “FOGO, VENTO, TERRA E MAR: MIGRAÇÕES, NATUREZA E …livros01.livrosgratis.com.br/cp011195.pdf · formação e urbanização do Bairro Serviluz em Fortaleza. Comunidade localizada

68

Em meio à crise, tornar-se uma madame ainda era uma expectativa para muitas

mulheres, pois significava a diminuição do trabalho e o aumento do prestígio que extrapolava

os domínios da zona. A pressão no cabaré se manifestava, por exemplo, na chegada de navios,

quando os clientes eram esperados na entrada do cais, uma verdadeira batalha: “Aí, eu parti

pra cima dela. Ela tava com uma gilete no dedo e tão aqui os cortes (mostrando o pescoço e o

braço). A sorte dela é que ela já saiu daqui, senão eu tinha matado ela”103.

Na prostituição, conhecer as regras de convivência do meio, como a não delação, por

exemplo, é código fundamental para conseguir viver sem afrontas com as companheiras.

Também é comum que no ato do trabalho as mulheres utilizem “nomes de guerra” ou que não

se metam na briga entre duas pessoas do local, ao mesmo tempo; numa possível richa entre

um “de dentro” e um “de fora”, rapidamente se toma partido.

A concorrência deixa marcas no corpo, as agressões físicas com navalhas, giletes ou

garrafas quebradas visam principalmente partes do corpo como face ou seio, deixando

cicatrizes que marcam profundamente uma mulher, depreciando-a no trabalho devido à

dilaceração física visível.

Numa atividade cujo ganho advém do aluguel do corpo, os ganhos podem aumentar de

modo substancial segundo os jogos sexuais, propostos, quase sempre, pelo próprio cliente. A

prostituta precisa desenvolver a consciência de que o bom estado físico é fundamental, um

“cartão de visita” para fechar bom negócio; seu ganho diminui substancialmente à medida que

envelhece ou que aparenta desgaste físico.

De modo geral, o tempo hábil para o trabalho é bem curto. Nem sempre é possível

aplicar os necessários cuidados corporais e as preocupações com a saúde e com a estética são

comprometidos pelos desgastes contínuos e acelerados dos corpos. A alimentação deficiente,

a ingestão contínua de álcool e as noites em claro deixam marcas, claramente perceptíveis à

luz do dia.

Apesar das ambigüidades emanadas da prostituição, para alguns moradores foi uma

pena que o bairro não tenha tido estrutura suficiente para firmar-se como destino turístico,

nem mesmo no ramo de prostituição. Lamentam não ter aproveitado a grande movimentação,

o rico passado histórico, a bela natureza e a vocação hospitaleira do povo, não ter se

antecipado ao futuro que apontava para o turismo como grande projeto de Estado. Apesar da

desigualdade em que se encontravam socialmente o nativo e o visitante, boa parte da

população de baixa renda entende essa mistura com o pessoal “de fora” como um fator

103 Depoimento de Cleonice. Cf.: Op. cit. ANJOS JÚNIOR, p. 68.

Page 71: “FOGO, VENTO, TERRA E MAR: MIGRAÇÕES, NATUREZA E …livros01.livrosgratis.com.br/cp011195.pdf · formação e urbanização do Bairro Serviluz em Fortaleza. Comunidade localizada

69

positivo. Nos depoimentos, é significativo que os estrangeiros, bem mais que os ricos da terra,

eram vistos como alavancas, capazes de ajudar a superar as necessidades primárias do bairro.

Os turistas podiam ser vistos como promovedores de apadrinhamentos, amizades e outros

laços afetivos, práticas que parecem se perder quanto o tradicional hábito de visitação tornou-

se uma mercadoria.

2.2 A Praia Mansa

Como foi dito anteriormente, até os anos 60 e 70, o Serviluz era um pequeno

conglomerado de pescadores e prostitutas. Existia ainda uma pequena vila, a Estiva, sendo

esse espaço geograficamente integrado. Na primeira rua do bairro, a Zezé Diogo, onde

haviam sido instalados os cabarés, ficava também o Campo do Paulista, espaço de futebol e

lazer freqüentemente assolado por inundações. Como bem lembrou um morador, “o Serviluz

parecia uma cidadezinha” onde os morros de areias e uma fina grama verde, a salsa,

completavam o espaço. Pouca gente, pouca luz e pouco lixo.

Nas imediações do porto, a construção de novos espigões de pedra e o aterramento de

parte da orla, necessários à ampliação do complexo portuário, fizeram recuar o mar e

acalmaram o avanço das marés. Tornou-se habitável uma pequena faixa de praia, a chamada

Praia Mansa (ver mapa), que passou a abrigar casebres de pescadores e biscateiros

remanescentes da pesca. A partir da segunda metade da década de 1970, essa região foi sendo

lentamente tomada por várias famílias, muitas das quais já estabelecidas na capital e que viam

na praia a possibilidade de trabalho e ocupação de um terreno da Marinha.

Na ilha, criada artificialmente, as casas eram de madeira e cobertas de palha de

coqueiro, pois a Companhia Docas não permitia a edificação de alvenaria. Localizada ao lado

da antiga usina do Serviluz, a Praia Mansa pouco apresentava vestígios de ocupação, o local

era bastante preservado, pouco aparentando que, ao lado dos barracos, vultuosos

investimentos industriais tinham transformado a paisagem. Não havia água encanada e

tampouco energia elétrica. Sitiadas, as pessoas mais antigas lembram-se de uma única

televisão, alimentada por bateria, uma novidade do mundo urbano, ainda bem estranho àquela

realidade. A televisão, em preto e branco, fora uma aquisição de um morador da praia, um

mecânico de lanchas, e passou a servir de entretenimento à população. Nas casas, cheias e

Page 72: “FOGO, VENTO, TERRA E MAR: MIGRAÇÕES, NATUREZA E …livros01.livrosgratis.com.br/cp011195.pdf · formação e urbanização do Bairro Serviluz em Fortaleza. Comunidade localizada

70

apertadas, os novos espectadores eram obrigados a assistir à programação em pé, na frente da

janela.

No Serviluz, já existiam alguns poucos aparelhos de televisão, mas ao sair da Praia

Mansa, os moradores enfrentavam o incômodo percurso de ida e volta para casa, sobretudo à

noite, no escuro, tendo que atravessar o paredão de pedra que cercava o lugar. Nessa jornada,

o mar se jogava sobre as pedras e a maré banhava os transeuntes; em alguns horários, o banho

de mar era certo e o indivíduo corria o risco de ser arrastado pelas águas na escuridão.

Na praia funcionava um porto de barcos de pesca onde, segundo depoimentos,

chegavam a ancorar até 200 pequenas embarcações. Os moradores da praia, entretanto, já não

eram os proprietários das embarcações, mas mesmo os que não eram pescadores formais eram

constantemente recrutados para a realização de pequenos reparos. Empregava-se ali uma mão-

de-obra genuinamente familiar, “todos se conheciam”, “praticamente a mesma família”, pois

a maioria dos habitantes foi trazida pelos pescadores mais velhos em tempos de boa pescaria.

Mantinha-se ainda na Praia Mansa, quando tudo indicava o fim da atividade de pesca na

região, a tradição comunitária pesqueira. De modo bastante claro, configurou-se naquele

espaço a convivência de uma mutiplicidade de temporalidades históricas.

Vale novamente resssaltar que a idéia da fartura no mar, entre essa gente, contrastava

com a lembrança da calamidade sofrida em terra. O abrigo naquela praia foi para muitos uma

questão de sobrevivência, “a maioria dos que vieram do interior, vieram pra cá porque tavam

passando necessidade devido a uma seca que teve há uns tempos atrás”104. Calamidade e

prosperidade, entretanto, comumente intercalam-se: “Saíram de lá à procura de algo melhor

aqui e encontraram um canto tranqüilo lá na ilha”105.

A tranqüilidade da Praia Mansa, contudo, não era exatamente absoluta. Os moradores

estavam vivendo sobre uma natureza modificada e que por vezes se revoltava. Quando a maré

crescia muito, transbordava até as pedras de proteção e inundava os casebres, sem segurança;

as casinhas ficavam sempre na iminência de desabar, inclusive com a água da chuva.

Em 1977, mais um deslocamento maciço começou a ser executado nessa região. Dessa

vez, a comunidade de pescadores e pessoas incorporadas às atividades pesqueiras da Praia

Mansa foi retirada compulsoriamente dos seus casebres. As pessoas desocuparam aquele

canto de praia e foram, ao lado das prostitutas expulsas da antiga Rua da Frente, reinstaladas

no entorno do Farol abandonado.

104 Entrevista concedida por Mauro Sérgio Domingues ao autor em 18/05/2005. 105 Ibidem.

Page 73: “FOGO, VENTO, TERRA E MAR: MIGRAÇÕES, NATUREZA E …livros01.livrosgratis.com.br/cp011195.pdf · formação e urbanização do Bairro Serviluz em Fortaleza. Comunidade localizada

71

A comunidade da Praia Mansa, ou Titan, estava localizada praticamente dentro do

Porto do Mucuripe, em uma área de segurança da Companhia Docas do Ceará. Os casebres,

apesar de instalados ali havia já alguns anos, foram desalojados. Tudo indica que a

transferência foi devida a um suposto aumento das instalações portuárias. A Capitania dos

Portos, que já vinha há cerca de três anos ameaçando a derrubada das habitações, sem nenhum

tipo de indenização, concretizou as ameaças.

Esse foi um primeiro momento de intensa mobilização dessa comunidade. Através de

alguns vereadores, os moradores apresentaram seguidos requerimentos para que fossem feitos

apelos ao Governador do Estado, Adauto Bezerra, a fim de que este conseguisse, além de uma

ajuda financeira, um local onde aquelas pessoas pudessem fixar suas novas residências.

É importante salientar como, nas famílias desse nível social, era possível que cerca de

três mil pessoas conseguissem residir em aproximadamente 300 barracos, uma média de dez

indivíduos vivendo sob cada teto. É bem difícil precisar essa população em números, como no

caso das mulheres do Farol, porque as estatísticas quase sempre deixam escapar a realidade

fugidia de quem migra. O surto populacional foi um fenômeno que se repetiria no Serviluz

quando, mesmo com a área toda ocupada, a população não parava de crescer.

“Agora se desenvolveu por quê? Porque esses familiares a maioria são do Acaraú (município criado em 1849 e distante 238 km de Fortaleza), então começaram a construir suas casas, depois das casas construídas, aí vem um sobrinho, vem primo, vem irmão, vem cunhado e assim a população foi aumentando (...)”106.

O “resgate” silencioso dos familiares tornou-se uma prática recorrente. Na Praia

Mansa, na casa de alguns pescadores, habitavam até três famílias. Em alguns casos, era maior

que quinze o número de moradores em um mesmo domicílio, tudo isso se dava numa pequena

localização onde não existia nenhuma escola e nem energia elétrica. No limiar de 1980, esta

era uma população que ainda vivia a luz do candeeiro brabo.

Na transferência para o Serviluz, a Companhia Docas cedeu pequenas indenizações:

“A Docas planeou o terreno, loteou para cada família 12 (doze) metros de comprimento por 6 (seis) de frente. Esses 6 (seis) metros de frente nós fazia as casas de 5 (cinco) metros de casa e ficava meio metro de cada casa, pra num ficarem conjugadas (...) eles doaram vara, que não era de tijolo, barro, as madeiras e as telhas para cada morador”107.

106 Entrevista concedida por Francisco Herton Lima Rodrigues ao autor em 30/02/2002. 107 Entrevista concedida por Maria Ferreira Dias ao autor em 30/06/2006.

Page 74: “FOGO, VENTO, TERRA E MAR: MIGRAÇÕES, NATUREZA E …livros01.livrosgratis.com.br/cp011195.pdf · formação e urbanização do Bairro Serviluz em Fortaleza. Comunidade localizada

72

Os moradores construíram a mão suas próprias residências. Prevaleceram, portanto, as

habitações com o padrão de construção de taipa, um modelo arquitetônico usualmente

conhecido pelos sertanejos desde o período colonial, mas bastante rudimentar. Com o terreno

plano e limpo, enfiavam-se as varas no chão, entrelaçando-as e enrolando-as com náilon ou

arame até atingir a altura desejada, em geral as casas são baixas. Montado o esqueleto, as

paredes são cheias com o barro molhado, arremessado e modelado com as mãos. Prontas as

paredes, algumas casas recebem telhas; noutras o teto será de palha e o chão feito de terra

batida.

Tiveram que matar as dunas para construir as casas e os moradores perceberam de

imediato que a apropriação dessa área, cujas condições ambientais específicas eram

inadequadas, colocava-os em risco constante de morte. O perigo dos ventos, da areia, do mar

e do fogo tornou-se uma realidade ameaçadora. Nesse ambiente, uma simples queda de chuva

causava perigo porque levava o barro das paredes; os reparos nessas construções demoravam

somente até o próximo temporal. Nessas circunstâncias, aconteceu que muitos moradores da

praia foram morar em bairros mais afastados do grande Mucuripe.

A migração de caráter familiar da Praia Mansa refletiu-se diretamente no tipo de

sociabilidade que se instaurou no bairro. Nesse lugar portuário, aparentemente marcado pela

idéia da dispersão, o apego ao espaço e o convívio diário com a vizinhança se tornaram um

grande valor social.

“Pra ser sincero eu num troco esse bairro aqui por nenhum outro bairro da nossa capital não (...) essa rua que eu moro é só praticamente o pessoal que veio da Praia Mansa, praticamente a mesma família (grifo nosso)”108.

Nesse processo de ocupação, mantiveram-se solidariedades que conformaram uma

base identitária da comunidade sustentada pela noção de familiaridade. Tradições renovadas e

adaptadas aos novos sentidos que os aspectos de trabalho, domicílio e família passaram a

significar.

O episódio da transferência da Praia Mansa apresenta uma lacuna importante, mais

precisamente o porquê de a Capitania dos Portos naquele instante ter se comprometido a

proteger somente a categoria dos pescadores cadastrados e suas famílias. Isso indica tanto que

muitos moradores viviam praticamente de outros subempregos quanto a idéia da identificação

com a pesca como uma opção circunstancial. Esse detalhe da transferência suscita uma

108 Entrevista concedida por Mauro Sérgio Domingues ao autor em 18/05/2003.

Page 75: “FOGO, VENTO, TERRA E MAR: MIGRAÇÕES, NATUREZA E …livros01.livrosgratis.com.br/cp011195.pdf · formação e urbanização do Bairro Serviluz em Fortaleza. Comunidade localizada

73

questão, talvez reveladora, quando se pensa a utilização da falsa identidade de pescador como

meio de inserção nas áreas praianas de Fortaleza. Afinal, como foi que cerca de três mil

pessoas, pobres e subempregadas, dentre as quais nem todas eram trabalhadores da pesca,

conseguiram se infiltrar numa área tão restrita?

Transferida da ilha para o Serviluz, a comunidade continuou a viver num lugar cuja

localização geográfica provocava um grande e estranho incômodo. Ali os elementos da

natureza pareciam confluir, fazendo operar uma lógica de moradia, às avessas; quanto mais

próximo da água do mar se habitava, mais se estava sujeito à ameaça das areias e dos ventos;

na beira da praia, percebia-se mais nitidamente como as intempéries naturais podiam impor

sérias dificuldades à existência do homem. No Serviluz, principalmente nos meses de vento

forte, era na beira do mar que mais se sofria “com a chuva de areia que invade nossas casas e

tempera nossa comida”109.

No decorrer do processo histórico de ocupação do Serviluz, a praia do Titanzinho

correspondeu exatamente à faixa de praia que recebeu os pescadores oriundos da “barra

mansa”, ou Praia Mansa. Ocupou-se a borda de terra que margeia o mar, a esquina leste de

Fortaleza, onde as fileiras de casas foram estendidas sobre uma área de dunas aplainadas, a

praia do Titanzinho110, terreno conseguido junto à Marinha por ocasião da retirada daquela

população. Os pescadores, em condições de trabalho e moradia agora bastante diferenciadas

daquelas em que viviam nos tempos áureos da lagosta, permaneceram na orla, mas tiveram de

conviver mais diretamente com outras categorias de trabalhadores. Nessa região, instalou-se

assim uma variedade de modos de vida que possibilitava a hibridez de múltiplas culturas.

A migração em torno da pesca não se procedeu somente relacionada a laços familiares.

Inúmeras experiências individuais marcaram também a experiência retirante de homens e

mulheres fugidos para a cidade. Os deslocamentos a partir de estratégias familiares não

devem ocultar a vivência migratória solitária dos jovens que cedo partem rumo à capital e em

busca dos benefícios que esta supostamente oferece.

Deve-se ressaltar que para alguns a mudança para a metrópole significou exatamente o

rompimento, o desligamento familiar. Nesse meio, a quantidade desenfreada de filhos do

casal restringe sobremaneira as oportunidades de melhoria social, e mesmo a garantia da

sobrevivência no local de origem. Os mais moços, ao tentarem a sorte na cidade, acabam

109 Documento disponível no arquivo da Associação de Moradores do Titanzinho 110 O nome Titanzinho é uma alusão a um grande guindaste de fabricação alemão usado na construção do primeiro espigão, o Titan. A máquina descarregava as pedras, transportadas por maria-fumaça, e as alinhava no paredão. Conta-se que, após a desativação, o Titan foi destruído e que, durante sua explosão, quatro trabalhadores morreram vitimados pelos estilhaços.

Page 76: “FOGO, VENTO, TERRA E MAR: MIGRAÇÕES, NATUREZA E …livros01.livrosgratis.com.br/cp011195.pdf · formação e urbanização do Bairro Serviluz em Fortaleza. Comunidade localizada

74

dando início a um processo dispersivo que pode consolidar exatamente o esfacelamento da

família tipo nuclear.

Dona Conceição conta que chegou à cidade de Fortaleza em 1967, com quatorze anos

de idade.

“Então quando eu cheguei aqui eu encontrei uma dificuldade muito grande, porque ninguém dava apoio a gente ‘de menor’, crianças menores né? (...) não tinha condições, ninguém dava condições a ninguém, não tinha esse negócio. Hoje em dia tem! Você tem quatorze anos tem... um grupo tem uma coisa, você ganha uma coisa, ganha outra, hoje tem, mas nessa época não tinha” 111.

A certeza é a de que os tempos realmente mudaram. Como muitos jovens do bairro,

dona Conceição praticamente “descobriu a vida” na cidade. Dos dezoito filhos que sua mãe

teve, apenas dois permanecem vivos; foi criada pela avó e não se relaciona muito bem com a

única irmã.

Na experiência migratória, a aquisição da maioridade foi um momento especial. Há,

sobretudo na fala dos mais velhos, o entendimento da redefinição das condições de uma

criança em relação ao modo de vida deles. A criação diferenciada na contemporaneidade,

nesse caso, é via de regra percebida com lamentação: “Infelizmente hoje, não podemos criar

nossos filhos desse jeito, nem na educação, nem na fartura, nem no respeito dentro da casa da

gente”112. Nos lugares onde reina a miséria, a memória da infância, como o instante do brincar

e da diversão, alterna-se à do sofrimento; eram vivências precoces da rotina adulta,

experiências da migração e do trabalho como situações antagônicas e depreciativas do

homem.

2.3 A crise da pesca e o surgimento de novos trabalhadores

“Todo pescador tinha uma casa boa, tinha luxo, tinha carro, hoje não é mais assim. Pescador passa fome, passa necessidade (...) como a pesca praticamente acabou, ou seja, a pesca da lagosta, só tem o peixe. E hoje em dia se você for ver os pescadores do bairro sofrem. Hoje o que não saiu do ramo, hoje

111 Entrevista realizada concedida por Maria da Conceição Alves dos Santos ao autor em 27/02/2003. 112 Depoimento de Maria Ferreira Dias, dona Mariazinha, líder comunitário do Serviluz. Cf.: CEARAH, Periferia. Vivências, lutas e memórias: História de vida de lideranças comunitárias em Fortaleza. Fortaleza: Ed. Demócrito Rocha, 2002. p. 98.

Page 77: “FOGO, VENTO, TERRA E MAR: MIGRAÇÕES, NATUREZA E …livros01.livrosgratis.com.br/cp011195.pdf · formação e urbanização do Bairro Serviluz em Fortaleza. Comunidade localizada

75

passa uma necessidade enorme teve que mudar de profissão (...) porque a pesca em si hoje no nosso bairro não é mais... é um meio de sobrevivência para aqueles que não conseguiram nada” 113.

Em meio ao surgimento de uma miríade de ocupações, atividade pesqueira

permaneceu um dos principais meios de sobrevivência da população do Serviluz. A produção

reduzida, no entanto, impossibilita que atualmente os trabalhadores tenham um padrão de vida

compatível com o período anterior em que predominava a abundância na captura da lagosta.

Um indício da queda dos rendimentos na pesca pode ser observado no fato de somente os

mestres de barco, hoje, conseguirem patamares salariais equivalentes ao de outros

trabalhadores de terra, como os estivadores e os operários da indústria.

Apesar dos ganhos reduzidos, a pesca continuou tendo adesão entre os homens locais,

principalmente porque a execução dessa atividade depende da prestação de numerosos

serviços auxiliares. Emprega muitas pessoas, inclusive entre os que não possuem as

habilidades de um exímio pescador. Tomando como exemplo a já referida pesca da lagosta,

pode-se perceber que nesta empreitada se pode empregar praticamente toda a família.

Enquanto o pescador vai para o mar, sua esposa pode trabalhar na empresa de beneficiamento

do crustáceo. Os filhos em casa tecem o manzuá114. Com um ímã, o caçula recolhe as pontas

de arame que são arremessadas ao chão ao corte do alicate. Com certa quantidade apanhada,

busca-se vendê-las a peso na sucata que pagar o melhor preço. O filho mais velho pode ainda

trabalhar no corte e na amarra da madeira a ser envolvida pelo arame tecido. Todas essas

tarefas podem ser realizadas em casa, vigora um tipo de trabalho familiar coletivo. O dono da

lancha passa semanalmente entregando rodas de arame, recolhendo o trabalho realizado e

pagando pelo resultado da produção. Muitas vezes a soma da família gerada no lar é superior

à do homem no mar.

Esse é, no entanto, geralmente um tipo de trabalho que gera baixíssimos pagamentos.

Além disso, a produção das telas de manzuá exige um esforço físico considerado pesado, as

mãos e os dedos calejam-se do vaivém do arame deslizando sobre uma superfície de pregos

fincados em uma lâmina de zinco, o alicate e as pontas de arame constantemente machucam

as mãos. Diante de um pequeno cavalete, pouco acima da cintura, trabalha-se em pé,

permanecendo horas nessa labuta. Uma das principais conseqüências desse tipo de serviço

para o trabalhador é o desgaste violento.

113 Entrevista concedida por José Carlos da Silva ao autor em 08/03/2005. 114 O manzuá, geralmente construído nas comunidades de pesca, é uma espécie de gaiola feita de madeira e arame. Essas armadilhas são lançadas pelas embarcações no ato da captura.

Page 78: “FOGO, VENTO, TERRA E MAR: MIGRAÇÕES, NATUREZA E …livros01.livrosgratis.com.br/cp011195.pdf · formação e urbanização do Bairro Serviluz em Fortaleza. Comunidade localizada

76

A pesca intensiva, como se viu, foi responsável pela depredação marinha em escala

planetária, levando à prática extinção de algumas espécies, como a lagosta115. O “mar não é

mina”, o mar não é um bem inesgotável. A captura em larga escala fez com que, durante todo

o século XX, vários países adotassem tratados de proteção e preservação dos cardumes,

limitando a pesca de certas espécies em determinadas épocas do ano. É sabido ainda que o

sistema de assalariamento por produção desenvolveu o espírito competitivo entre os

pescadores; cada vez mais ávidos por ganhos maiores, embarcam em viagens que duram

vários dias.

No Serviluz o ecossistema possibilitou uma certa continuidade da pesca local. Mas

apresentou como resultado do declínio econômico desse ramo o surgimento dos chamados

pescadores-biscateiros116. Não conseguindo sobreviver apenas da renda proveniente do mar,

esses homens foram sendo obrigados a complementar o ganho familiar com trabalhos

auxiliares. Pescadores de praia e não de alto-mar utilizam linhas e pequenas redes, costumam

reunir parentes, vizinhos e amigos da própria comunidade. A produção nem sempre é

destinada ao mercado, servindo basicamente de alimentação aos familiares dos que pescam. A

partilha, como foi dito, nem sempre é exata e obedece a laços de solidariedade externos à ação

de captura. Trata-se de homens que se tornam “pescadores quando tem peixe”, porque, na

maior parte das vezes, o sustento vem da feitura de pequenas tarefas, já que a pesca tornou-se

um tipo de “bico”.

A conciliação entre pesca e atividades secundárias, como a agricultura, consiste numa

prática comum em muitas pequenas localidades pesqueiras do Ceará. De certa forma, essa foi

uma tradição que se manteve entre os pescadores que migraram para a cidade, sobretudo nos

lugares onde a pequena lavoura e o criatório de animais para consumo puderam ser

mantidas117.

Se a pesca continua arregimentando certa força de trabalho local, principalmente entre

aqueles que não se escolarizaram, sua prática foi aos poucos reduzida. A crescente pesca

115 De acordo com a Lei 9.605-98, o Instituto do Meio Ambiente (IBAMA) considera crime a pesca da lagosta com tamanho inferior a 13 centímetros, o tipo vermelho, e 11 centímetros para as espécies verdes. Além disso, no “período de defeso”, durante os meses de janeiro a abril, a pesca do crustáceo é proibida. 116 Pescadores ocasionais que conciliam a pesca à execução de outras atividades. 117 No Serviluz, apesar da reduzida fertilidade do solo arenoso, os quintais foram amplamente aproveitados com essas práticas. Nas residências, no fundo dos pequenos terrenos, frontais ao mar, porcos, galinhas e outros animais destinados ao consumo doméstico dividiam espaço com o plantio de algumas fruteiras e hortaliças. 118 Arquivo do Sindicato dos Portuários do Mucuripe. 119 Criada em 1965, com o fim da construção do porto, a Companhia Docas do Ceará foi a primeira sociedade de economia mista a administrar um porto no país.

Page 79: “FOGO, VENTO, TERRA E MAR: MIGRAÇÕES, NATUREZA E …livros01.livrosgratis.com.br/cp011195.pdf · formação e urbanização do Bairro Serviluz em Fortaleza. Comunidade localizada

77

industrial impunha novas exigências de mercado nesse ramo de trabalho; aos olhos dos jovens

do bairro, parecia não fazer sentido estudar para continuar pescando quando havia inúmeras

outras possibilidades profissionais nos arredores. Acrescenta-se ainda que os meninos da

comunidade, inseridos nos programas assistenciais criados pelo governo, ingressavam

automaticamente em novas áreas de trabalho, compatíveis com uma demanda por mão-de-

obra em setores da economia moderna, como a indústria, o comércio e o turismo.

No caso do operariado do porto e da indústria, a constatação inicial da ausência de

uma certa tradição sindical atuante no bairro não ocultava que a estiva e as fábricas

empregavam muitas pessoas. Esses sindicatos em Fortaleza dificilmente podem ser tidos

como instrumentos de emancipação dos trabalhadores. O Sindicato dos Portuários do Ceará,

porém, dentre várias categorias, é uma entidade que ainda presta “assistência” a mais de mil

trabalhadores em portos no estado do Ceará118.

Em 1996, data da última greve dos estivadores do porto do Mucuripe, a Companhia

Docas do Ceará praticamente impôs aos trabalhadores do porto um novo sistema de

contratação de mão-de-obra. Com a criação do Órgão Gestor de Mão-de-obra (OGMO), e sob

o discurso da racionalização do trabalho na estiva, os sindicatos cederam a administração da

contratação do trabalho no porto, de suma importância para a categoria, entregando essa tarefa

a um organismo sob a tutela direta da Companhia Docas119.

Em última análise, a movimentação portuária moderna subordina-se às oscilações

econômicas em escala mundial; ainda que os trabalhadores da estiva alcancem uma

estabilidade maior que os da pesca, seus ganhos são sempre relativos e dependentes do

número de navios que passam pelo porto. Fernando Silva120 observou que atualmente, em

meio a embates sobre questões como a “modernização” (leia-se privatização) e a eliminação

do chamado Closed Shop System121, os portuários continuam levando não só a carga, mas

também boa parte da culpa pelas mazelas da política implantada e pelos principais problemas

que concorrem para a ineficiência dos portos.

120 SILVA, Fernando Teixeira. A carga e a culpa. São Paulo: HUCITEC, 1995. p. 07. 121 No Closed Shop System ou simplesmente “monopólio de estiva”, a contratação da mão-de-obra nas operações de estivagem e desestivagem de cargas do porto fica a encargo do sindicato. De acordo com Gitahy, “não é de surpreender que os estivadores fossem um terreno fértil para a solidariedade em quase todos os portos do mundo e que tivessem criado sindicatos na base do Closed Shop para neutralizar a insuportável ameaça do mercado de trabalho no sistema ocasional de contratação”. Cf.: GITAHY, Maria Lucia Caira. Ventos do Mar: Trabalhadores do porto, movimento operário e cultura urbana. São Paulo: Unesp, 1992. p.114.

Page 80: “FOGO, VENTO, TERRA E MAR: MIGRAÇÕES, NATUREZA E …livros01.livrosgratis.com.br/cp011195.pdf · formação e urbanização do Bairro Serviluz em Fortaleza. Comunidade localizada

78

No caso do Mucuripe, o próprio porto hoje está em declínio. A partir da construção do

novo terminal portuário na praia do Pecém, novamente uma das “mais modernas instalações

portuárias do país”122, o estado do Ceará tem promovido esforços no sentido de retirar as

funções portuárias de carga e descarga da praia do Mucuripe. Sob a ótica do novo projeto

econômico, a enseada é muito mais interessante ao projeto turístico em andamento.

Os estivadores, apesar da reduzida expressividade em termos de organização sindical,

continuam uma categoria de reconhecido prestígio no bairro. Mesmo com as transformações

modernizadoras nos portos, um portuário regularmente escalado para o trabalho percebe

rendimentos consideráveis; em alguns casos, a realização de algumas poucas horas de

trabalho pode lhe valer uma remuneração que, em outras profissões, lhe custaria pelo menos

uma semana de trabalho. Mas há também no porto, sobretudo nos dias atuais, uma certa

inconstância. Além disso, essa é uma área cuja força de trabalho se renova muito lentamente.

Com a privatizaçãodo do recrutamento da força de trabalho, foi ainda revogada uma antiga

tradição portuária na qual o filho mais velho de um estivador tinha garantida a vaga do pai

aposentado.

Na verdade, não somente o trabalho no mar e na indústria tornaram-se escassos, mas

também o bairro foi invadido de tal maneira que dificilmente essas atividades seriam capazes

de garantir emprego para tantas pessoas. Por isso, forçosamente, adere-se a novas formas de

trabalho:

“(...) Eu já fiz tanta coisa já! Já trabalhei in hotel, trabalhei in banca de revista, trabalhei in restaurante, já trabalhei como vendedor ambulante, mas o que eu gostei mais foi de trabalhá in hotel. Eu trabalhava na recepção do hotel e eu tinha contato direto com os turistas e os hóspedes que vinham se hospedar no hotel. Um pessoal muito interessante de várias partes do Brasil, de várias partes do mundo (...) era muito interessante, você aprendia várias coisas novas, o costume das pessoa de outro estado, o jeito de ser das pessoas de outro estado (...) e ainda tinha as gorjeta que a gente ganhava dos hóspedes. Eu levava as bagagens e às vezes eles davam presente (...) eu consegui comprar alguma coisa pra mim quando eu trabalhava no hotel”123.

Se antes eram principalmente a pesca e a indústria que atraíam a mão-de-obra, aos

poucos os trabalhadores locais foram adentrando noutros setores da economia e exercendo

novas profissões. Com o crescimento do turismo no estado, o ramo de hotelaria, por exemplo,

passou a absorver uma fatia significativa da população, sobretudo entre os moradores de

praia. Garçom, barman, cozinheiro, recepcionista, camareira, seguranças e muitos outros

profissionais passaram a trabalhar em hotéis, bares e restaurantes cada vez mais entupidos.

122 Informativo Cearáportos, ano III, nº. 15, out./nov. de 2003. 123 Entrevista concedida por Mauro Sérgio Domingues ao autor em 18/05/2005.

Page 81: “FOGO, VENTO, TERRA E MAR: MIGRAÇÕES, NATUREZA E …livros01.livrosgratis.com.br/cp011195.pdf · formação e urbanização do Bairro Serviluz em Fortaleza. Comunidade localizada

79

Para os entrevistados, entre outras diferenças, esses novos postos de trabalho tinham a

vantagem da carteira de trabalho assinada. Esta oferecia garantias tanto quando se está

empregado quanto no momento do desemprego, já que o registro da experiência profissional

qualifica e facilita a aquisição de um novo emprego. À medida que aumentou a escolarização

e que melhoraram as condições de transporte, os jovens do bairro puderam ainda trabalhar no

comércio e noutros lugares que requeriam uma capacitação profissional razoável, acirrando

ainda mais a dispersão no universo do trabalho.

O próprio crescimento do bairro, motivado pela enxurrada migratória dos anos 80 em

diante, possibilitou também o aparecimento de novos trabalhadores, voltados para as

necessidades internas da comunidade que crescia. É o caso, por exemplo, dos padeiros, que

surgiram concomitantes ao surto demográfico, e dos pedreiros, que despontaram juntamente

com a ascensão da construção civil. Homens desempregados passaram a se profissionalizar

na edificação de casas de alvenaria, uma febre que assolou recentemente o bairro. Serviços

temporários para alguns, já que os “bicos” nem sempre aparecem; para outros, mais

especializados, os novos ramos de trabalho significavam emprego o ano inteiro. Além disso,

esse mercado informal também agrega uma série de tarefas para as quais não se exige quase

nenhuma qualificação profissional. No referido setor de construção, por exemplo, os

chamados “serventes” são pessoas sem escolaridade alguma e que desempenham, como

auxiliar de pedreiro, um trabalho inteiramente braçal.

Vale salientar que muitas vezes a sobrevivência da população pode ser garantida a

partir da inventividade criativa gerada com os recursos disponíveis na própria localidade,

como no caso da captura da sardinha, que, apesar de empregar uma força de trabalho

eminentemente masculina, pode despertar uma extensa cadeia produtiva (pesca, compra e

venda), capaz de envolver toda a família. Enquanto o homem pesca, em casa as mulheres

secam, espetam e fritam as sardinhas ou “piabas”. Por sua vez, os jovens conduzem os

espetinhos, consumidos como petiscos pelos turistas nas praias mais badaladas da cidade.

Assim, se as circunstâncias históricas gerais possibilitaram o advento do turismo, coube à

população praiana a capacidade inventiva de integrar a pesca ao turismo.

Esse potencial criativo pôde ainda ser canalizado para o esporte que também se tornou

um meio de sobrevivência para muitos jovens locais. O surfe, por exemplo, de esporte

marginalizado, emergiu à categoria de profissão de destaque, conquistando uma fatia

significativa de adeptos na comunidade. Na contramão das possíveis afirmações

profissionais, foi recorrente a noção da efemeridade no mundo do trabalho, das “profissões

curtas”. Mesmo em atividades como o surfe, que se caracterizam pela excelência no vigor

Page 82: “FOGO, VENTO, TERRA E MAR: MIGRAÇÕES, NATUREZA E …livros01.livrosgratis.com.br/cp011195.pdf · formação e urbanização do Bairro Serviluz em Fortaleza. Comunidade localizada

80

físico, a dedicação total ao esporte por parte dos competidores não possibilita que se tirem os

olhos de outros ramos de trabalho, nos quais eventualmente poderiam ingressar quando

findarem os patrocínios. É consenso: “tem uma época que a idade pesa”.

A mistura e as possibilidades postas no trabalho, de certo modo, impediam a análise

desses trabalhadores pela via exclusiva de uma suposta divisão de classes. A circularidade

permanente e a vastidão de tarefas que eclodiram nessa região configuravam uma realidade

mais abrangente, a força operária entendida como a “classe que vive do trabalho”.

2.4 A seca e a cidade

De modo geral, o deslocamento das classes proletárias para as “areias” e a

conseqüente construção da vida social da classe operária nesses espaços julgados “marginais”

perpassam vários momentos da história da cidade de Fortaleza. No fim da década de setenta,

porém, as migrações cresceram ainda assustadoramente; nesse período, as areias começavam

a desaparecer e uma pequena parte da cidade começou a experimentar o asfalto.

A ocupação do Serviluz, como observado antes, foi fruto tanto do deslocamento

compulsório de grupos sociais há tempos estabelecidos, em função das novas funções

econômicas da orla e do encarecimento da terra, quanto da chegada de muitos trabalhadores

numa época de grande estiagem no Ceará.

Em períodos de seca, a população do interior acredita mais veementemente que é na

capital que poderá melhorar de vida. Fortaleza nesse caso se apresenta não somente como o

delírio da mudança substancial das condições de vida, ela também seduz concretamente

através da sua relativa magnitude e soberba, comparando-se, bem entendido, com as

minimizadas perspectivas de vida dos vilarejos do interior do estado124.

No início de 1980, os ofícios do governo deixavam clara a certeza de nova estiagem e

de mais migração cearense em larga escala125. Segundo relatórios da secretaria do poder

executivo, o Governo Federal pretendia aproveitar pequena parte dessa corrente, orientando-a

124 SANTIAGO, Pádua. A Cidade como Utopia e a Favela como Espaço Estratégico de Inserção na Cultura Urbana (1856-1930). In: Trajetos. Revista do Programa de Pós-Graduação em História Social da Universidade Federal do Ceará. V.1, n° 2. Fortaleza, junho de 2002. p. 120. 125 Fundo Governador Virgílio Távora. Subsérie: Secretaria de Obras e Serviços públicos. Data: 1979/1982. Fortaleza-CE. Caixa 04.

Page 83: “FOGO, VENTO, TERRA E MAR: MIGRAÇÕES, NATUREZA E …livros01.livrosgratis.com.br/cp011195.pdf · formação e urbanização do Bairro Serviluz em Fortaleza. Comunidade localizada

81

para a construção da Transamazônica, em que supostamente os pioneiros teriam apoio para

que pudessem se fixar e progredir no Norte. Mas era preciso ainda dar confiança no futuro aos

outros milhares de trabalhadores que permaneceram em seu “torrão natal”126.

A situação de calamidade no estado se agravou nos anos seguintes. Em 1981, 123

escritórios de emergência foram criados nos municípios atingidos pela estiagem. Do total da

população economicamente ativa do Ceará, pouco mais de um milhão de pessoas, pelo menos

255 mil trabalhadores já haviam sido alistados nas frentes de serviço do governo127.

Sobre essa seca no estado, o historiador Frederico de Castro Neves ressaltou:

Em 1982, pela primeira vez, as denúncias de ‘genocídio’ alcançaram todo o país. (...) As cenas terríveis da luta pela vida no sertão seco foram mostradas pela televisão em campanhas de solidariedade que se organizaram para ajudar as vítimas do ‘flagelo’. A ‘seca’ novamente aparece com toda a sua força real e simbólica no cenário político nacional e mobiliza campanhas e projetos128.

Em tempos recentes, apesar do descaso e das antigas práticas assistencialistas

provisórias do Ceará, os retirantes que vinham para os bairros da capital chegavam em

circunstâncias bem diferentes. Ao longo dessa trajetória, aqueles núcleos de pobres da cidade,

a exemplo de ocupações mais antigas como a da favela do Pirambu, aprenderam a participar

de uma imensa luta pelo reconhecimento, pela integração espacial e pela inserção social de

seus moradores129.

O migrante confrontava-se com autoridades, ocupava espaços e remodelava

constantemente os traços da cidade. O espaço urbano configura-se também a partir do

pontilhado de pequenas lutas, dos embates sorrateiros, das tentativas fugazes de fixação e da

luta pela permanência definitiva.

Nesse processo, a construção de uma cidade diferenciada passa muitas vezes pelo

reconhecimento positivo da origem de quem migra: “A minha origem de um povo do sertão,

basicamente agricultores, na minha origem se plantava milho, feijão, essas coisas (...)”130. Para

muitos entrevistados, a gênese do entendimento da necessidade da luta pela moradia

conforma-se exatamente quando se reconhece orgulhosamente a origem comum da

vizinhança.

126 Idem. 127 Idem. 128 NEVES, Frederico de Castro. A seca na história do Ceará. In: Op. cit. Uma Nova História do Ceará. p. 100. 129 Op. cit. SANTIAGO, Pádua. p. 127. 130 Entrevista concedida por José Osmir Monteiro de Sousa ao autor em 28/01/2003.

Page 84: “FOGO, VENTO, TERRA E MAR: MIGRAÇÕES, NATUREZA E …livros01.livrosgratis.com.br/cp011195.pdf · formação e urbanização do Bairro Serviluz em Fortaleza. Comunidade localizada

82

Mas a cidade comporta diversas imagens e representações. O ato migratório, assim,

estabelece distintas relações com a terra natal. Para alguns, a cidade é entendida como lugar

de passagem efêmera no qual se busca apenas acumular para o necessário retorno. Para

outros, vigora a idéia do “nunca mais voltei”, da criação de novos laços afetivos definitivos

que ressignificam o local de origem como uma não referência, como um passado a ser

esquecido. Porém, de modo geral, essa população desloca-se para os centros urbanos,

trazendo como característica desse deslocamento o retorno, ainda que ocasional, para visitar a

família deixada para trás131.

Entre os que migraram para o Serviluz, após quatro décadas de luta pela fixação,

opera-se atualmente uma espécie de contrafluxo, indicando exatamente o retorno definitivo

das pessoas mais idosas ao seu lugar de origem, encerrando assim a trajetória na cidade.

Geralmente esses migrantes já conseguiram acumular dinheiro suficiente para estabelecer

pequenos negócios longe da metrópole; vendem ou deixam aos filhos os seus bens e partem

para o interior à procura de uma velhice mais tranqüila.

Esse contra fluxo é engrossado também pelos casos em que os pais enviam filhos

problemáticos, considerados “envolvidos com quem não presta”, para lugares mais afastados,

longe, portanto, das más companhias do mundo urbano. Ali tentam preservá-los das

travessuras da cidade. Pouco a pouco, esses deslocamentos fazem reproduzir pequenos

hábitos metropolitanos em lugarejos rurais, tornando comum o fluxo de idéias e de tendências

entre esses espaços.

As experiências díspares indicam que a própria condição do homem que migra deve

ser repensada nos tempos atuais. Aquela cruel imagem cristalizada da família flagelada se

deslocando em conjunto e peregrinando durante dias por longos percursos de chão rachado

pouco apareceu nas entrevistas. No imaginário dos habitantes do bairro, a migração é

majoritariamente compreendida como uma estratégia de aquisição de melhorias econômicas e

sociais, sendo muito pouco usual a lembrança do flagelo. As condições dos retirantes não

eram mais as mesmas das retratadas por Rodolfo Teófilo no passado. Havia novas rotas,

novos meios de transporte e os caminhos tinham melhorado bastante. Em veículos

motorizados correndo sobre estradas, levavam-se agora poucas horas para a locomoção de um

131 Sintomático desse retorno é a já tradicional prática de piqueniques com destino às localidades interioranas em festa. Anualmente, no carnaval, por exemplo, partem cerca de cinco ônibus lotados de passageiros que moram no Serviluz rumo ao município de Acaraú, no bairro é grande a quantidade de pessoas provenientes desse lugar.

Page 85: “FOGO, VENTO, TERRA E MAR: MIGRAÇÕES, NATUREZA E …livros01.livrosgratis.com.br/cp011195.pdf · formação e urbanização do Bairro Serviluz em Fortaleza. Comunidade localizada

83

ponto a outro, a possibilidade da partida e do retorno rápido tornaram-se uma realidade cada

vez mais plausível.

A facilidade de vir para “dá uma olhadinha” figura como um dos motivos da

recorrente feitura de breves reconhecimentos na cidade antes da mudança definitiva. Desse

modo, as redes sociais baseadas na família e nos laços comunitários de amizade constituíam-

se como fundamentais para os migrantes. O entrevistado José Osmir contou que o pai chegou

a Fortaleza em 1976, antecipando-se, portanto, em pelo menos dois anos em relação ao início

da estiagem. Enquanto o chefe do lar procura trabalho, os demais membros da família

permanecem no interior. Na cidade, o pai abrigava-se precariamente na casa de parentes ou

amigos ou arriscava-se em moradias provisórias nos lugares onde pareciam ser maiores as

oportunidades. Somente quando o pai arranja emprego, a família é chamada. Essa na verdade

foi a continuidade de uma antiga prática, o migrante vem e logo retorna ao lugar de origem,

prepara-se como pode e volta novamente para a cidade com o intuito de fixação definitiva.

Foi o que se percebeu também no depoimento de dona Zuleide: “Eu vim porque o

interior tava pouco chovido e a calamidade tava um pouco grande”132. Como já tinha o marido

residindo e trabalhando na cidade, vendeu tudo que tinha e comprou as passagens para

Fortaleza, onde esperava “formar meus filhos”. Observa-se nesse depoimento que a migração

pode ser vista tanto como um ato de desespero, de quem na estiagem espera garantir na capital

a sobrevivência, quanto uma atitude mais ou menos planejada, programada em família ou de

quem pretende na cidade grande constituí-la. Na maior parte dos casos, o deslocamento

significa o fracionamento provisório da família, pois a estratégia utilizada é migração

parcelar. Nesse sentido, os espaços dos bairros acabam assumindo contornos de pontos de

reencontro a partir da inserção no trabalho.

Na cidade o emprego quase sempre não é fácil. “Eu arrumei esse emprego com uma

dificuldade e até mesmo com uma briga com um juiz aqui de Fortaleza né?”133. Dona

Conceição falou que foi barrada em várias empresas; não conseguindo emprego, resolveu

procurar um juiz, pois sabia que precisava dialogar com uma “autoridade da cidade”. Nesse

depoimento, ficou evidente a importância do reconhecimento mínimo do funcionamento e

normas do mundo urbano. Mesmo sabendo que não tinha qualificação profissional para

exercer qualquer tipo de trabalho, dona Conceição foi veemente: “Tenho dois pés, duas mãos

e uma cabeça boa e uma grande vontade de aprender”. Sabia que naquele momento precisava

também recorrer à pessoa exata.

132 Entrevista concedida por Maria Zuleide do Oliveira Moura ao autor em 01/01/2003. 133 Entrevista concedida por Maria da Conceição Alves dos Santos ao autor em 27/02/2003.

Page 86: “FOGO, VENTO, TERRA E MAR: MIGRAÇÕES, NATUREZA E …livros01.livrosgratis.com.br/cp011195.pdf · formação e urbanização do Bairro Serviluz em Fortaleza. Comunidade localizada

84

“Leve essa carta, seu registro vai ser essa carta”134. Com a recomendação concedida

pelo juiz, dona Conceição conseguiu emprego, trabalhou durante sete anos na empresa de

pesca Ipecea, fazia o beneficiamento de vários tipos de pescado destinado à exportação. No

emprego ganhava, além do salário, uma gratificação pela quantidade de lagosta exportada:

“Nessa época eu tinha vinte anos, eu já tinha casa construída, já tinha minha casa com terreno

próprio, já tava bem”. Hoje, dona Conceição diz arrepender-se de ter deixado aquele emprego

de lado para casar e cuidar da casa, nostálgica, acredita que se “tivesse uma família

estruturada quem sabe hoje teria um negocinho”.

O conhecimento sobre a situação de moradia, a sabedoria prévia do potencial do

mercado de trabalho para as mulheres na área e o reconhecimento da importância da cultura

letradas nessa etapa da vida foram atributos essenciais. No espaço suburbano dos bairros,

ampliam-se as preocupações com as questões que permeiam a noção de cidadania. A

necessidade de ter um registro é quase sempre a primeira obrigação nessa empreitada, afinal

ser registrado é ser alguém que existe perante a lei. O registro é o pontapé inicial para a

retirada de toda documentação, em caso de engajamento no trabalho, ler e assinar contratos

são atividades básicas que servem como meio de proteção contra eventual exploração na

empresa.

No Serviluz, nos anos 80, as crianças do bairro passaram a ter seus registros expedidos

também pelas associações comunitárias locais. Aos poucos, disseminou-se a necessidade do

aprendizado da escrita e dos registros formais das relações associativas. Como a maior parte

dos pais da comunidade têm sua naturalidade em municípios fora da capital, lugares onde

pouco se necessitava desses papéis, documentos e letras podiam ser considerados

necessidades secundárias. Na cidade grande, porém, juízes, cartórios e outros mecanismos que

regulam a vida urbana tendem a assumir maior importância e a experiência do estudo na

escola passa a ser sistematicamente valorizada. Para os pais, incentivar esse aprendizado

tornou-se um elemento básico de inserção nas “regras” do jogo, condição da cultura urbana e

de quem nele pretende “vencer”.

No geral, o balanço da experiência migratória é visto como sinônimo de vitória.

Nessas memórias, no entanto, a trajetória vitoriosa parece fazer-se sempre em meio a soluços

de arrependimento e choro pela inexperiência no passado, a frustração de não ter sabido

aproveitar as oportunidades oferecidas na juventude; tratam-se de pessoas para as quais

assumir a família “saiu muito caro”.

134 Ibidem.

Page 87: “FOGO, VENTO, TERRA E MAR: MIGRAÇÕES, NATUREZA E …livros01.livrosgratis.com.br/cp011195.pdf · formação e urbanização do Bairro Serviluz em Fortaleza. Comunidade localizada

85

A vida na cidade certamente não diminui o prestígio pela vida familiar. Para muitos

depoentes, a idéia do “fui resgatando a minha família” aparece como um desejo realizado e

um motivo de profundo orgulho. O viver na cidade alimentou a necessidade de trazer os

parentes para perto. Quando isso não acontece, o mundo urbano da favela servirá de palco

para a construção de novos vínculos afetivos e para a formação de movimentos associativos

de toda ordem. Na periferia, a construção dos laços de união e a solidariedade acontecem em

meio à necessidade objetiva da ajuda mútua: “a gente foi construindo, eu trabalhei com eles as

noites, né? Botava meus filhos pra durmi e ia pra lá, ajudar a carregar tijolo e tal, a gente

construiu e eles vieram pra cá”135.

Na cidade a população pobre quase sempre mora em bairros afastados, lugares onde a

precariedade das habitações se confunde com as antigas moradias:

“Naquela época era muito bom a gente brincava de tudo, brincadeira natural, de pião, de pipa, de bila, carrinho de lata e assim passava o dia (...) a minha casa a gente abria o quintal lá o portão de casa e via o mar. Depois o bairro foi aumentando, aumentando e as casas aumentando também e hoje em dia o Serviluz tá do jeito que tá” 136.

Desprovidos das melhorias oferecidas noutros cantos da cidade, os habitantes dos

bairros suburbanos encontram características físicas que denotam carências de toda ordem.

Por isso o momento da constituição das grandes periferias urbanas e da formação de

movimentos de luta pela moradia foi também o da elevação da questão habitacional à

categoria de política pública emergencial, a partir principalmente da participação mais ativa

dos movimentos populares na cidade.

Quem migra quer casa. A problemática habitacional foi sem dúvida um dos grandes

problemas do governo brasileiro nesse período. O Banco Nacional de Habitação (BNH),

criado em 1964 e posteriormente transformado em Companhia de Habitação (COHAB), não

atendia à grande demanda por construção de casas populares decorrente da urbanização

acelerada137.

135 Entrevista concedida por Maria da Conceição Alves dos Santos ao autor em 27/02/2003. 136 Entrevista concedida por Francisco Herton Lima Rodrigues ao autor em 30/02/2003. 137 “O Estado, criando o BNH, enseja amplos benefícios ao capital financeiro e ao capital imobiliário (...) a política habitacional implantada beneficia também outros setores do capital industrial, na medida em que a mercadoria ‘casa’, principalmente os conjuntos habitacionais, convertem-se em grandes consumidores de produtos industriais das mais variadas linhas”. Cf.: SILVA, José B. da. Quando os incomodados não se retiram: uma análise dos movimentos sociais em Fortaleza. Fortaleza: Multigraf Editora, 1992. p. 79.

Page 88: “FOGO, VENTO, TERRA E MAR: MIGRAÇÕES, NATUREZA E …livros01.livrosgratis.com.br/cp011195.pdf · formação e urbanização do Bairro Serviluz em Fortaleza. Comunidade localizada

86

No Ceará, o Governador do Estado Virgílio Távora criou em 1979 o Programa de

Assistência às Favelas da Região Metropolitana de Fortaleza (PROAFA), coordenado pela

então primeira-dama Luiza Távora. O programa procurava, sem muita eficácia, amenizar o

problema do crescimento desenfreado da cidade. Em Fortaleza as favelas ganhavam espaço e

já ocupavam os entornos de obras públicas, as faixas de beira de praia, as areias das dunas e

as regiões de manguezal.

População do estado e do município de Fortaleza:

Ano Ceará Fortaleza

1970 4.491.590 857.980

1980 5.380.432 1.308.919

1990 6.401.245 1.763.546

2000 8.138.484 2.332.657 Fonte: Censo Demográfico IBGE.

População favelada do município de Fortaleza em 1980:

Nº de favelas 216

Nº de casas 62.660

Nº de famílias 68.456

População 342.280

Total 24% Fonte: Proafa.

Censo demográfico de bairros da zona leste:

Mucuripe 11.900

Cais do Porto 21.529

Vicente Pinzón 39.551

Grande Mucuripe 203.220

Fortaleza 2.332.657 Fonte: Censo Demográfico IBGE (2000).

Page 89: “FOGO, VENTO, TERRA E MAR: MIGRAÇÕES, NATUREZA E …livros01.livrosgratis.com.br/cp011195.pdf · formação e urbanização do Bairro Serviluz em Fortaleza. Comunidade localizada

87

Os números evidenciam o surto populacional pelo qual passou a cidade, que desde

1975 passou a ter mais da metade da população vivendo na sua área urbana. Para se ter uma

idéia mais precisa, das primeiras 26.820 unidades habitacionais construídas pelo Proafa,

25.000 foram distribuídas na área metropolitana de Fortaleza e apenas 1.800 no interior do

estado.

Como efeito decorrente da migração, operou-se a proliferação contínua e crescente das

chamadas áreas marginais, depois chamadas áreas de risco, onde a qualidade de vida era

extremamente comprometida. Nesses lugares, eram bem pouco perceptíveis os benefícios

oriundos da cidade grande.

O cenário marginal configura-se sobretudo por meio das estatísticas criminais, nas

quais esses espaços emergem como pontos de violência e marginalidade, suscitando a luta

política pela construção de novas imagens eivadas da própria comunidade.

2.5 A marginalidade e a imagem do medo

“Se alguém falar que é do Serviluz as pessoas se benzem, algumas pessoas não querem dá emprego. Se a pessoa é preto, pobre e mora no Serviluz é marginalizado total”.

“Uns foram pro cemitério e outros foram pra cadeia e quem ficou vivo serviu de exemplo”.

“Eu já cheguei a ver o seguinte: um colega nosso na época tava cursando a faculdade e o cobrador

do ônibus queria tomar a carteirinha dele, porque não acreditava que aqui no nosso bairro tinha

gente fazendo faculdade (...) uma amiga minha também ela sofria muito assim porque ela era classe

média e vinha pra cá, a mãe dela só faltava... batia nela, ela saía escondida pra vim surfar, porque a

mãe dela dizia que ela vinha pra cá e ia se envolver com drogas e ia se envolver com mil e uma

loucuras, aqui só tinha o que não prestava (...)” 138.

Por todas as transformações econômicas e sociais pelas quais passou historicamente o

Serviluz, o bairro passou a ser tido na cidade como espaço de miséria, medo e violência. A

delinqüência juvenil urbana no Serviluz e suas múltiplas facetas constituem importante

capítulo nesta pesquisa.

138 Entrevista concedida por João Carlos Sobrinho ao autor em 27/02/2003.

Page 90: “FOGO, VENTO, TERRA E MAR: MIGRAÇÕES, NATUREZA E …livros01.livrosgratis.com.br/cp011195.pdf · formação e urbanização do Bairro Serviluz em Fortaleza. Comunidade localizada

88

Com o passar dos anos, a marginalidade se transformou numa dura realidade que

afetou a convivência entre os moradores. O medo expulsou muitos dos antigos vizinhos e

passou a provocar acirrados isolamentos na comunidade. Tinha acabado a época em que se

podia dormir com a porta aberta, findara o tempo dos meninos que faziam as coisas

“direitinhas” e dos garotos “bem confiantes”.

A marginalidade que passa a caracterizar o lugar também suscitou a necessidade de

encontrar pequenas estratégias para enfrentar a rejeição, o descaso e, sobretudo, o perigo

iminente da morte. A população sentia na pele os vários efeitos da situação violenta do bairro.

“Muita gente quando vai procurar emprego não bota nem Serviluz no bairro que mora, bota Vicente Pinzón (...) Era muito triste a gente ir atrás de um emprego pra trabalhar, por a gente morar nesse bairro aqui as pessoas já de antemão já diziam que num tinha vaga pra gente”139.

O reconhecimento da “origem violenta” dos habitantes impedia o ingresso deles

inclusive nas empresas localizadas nas proximidades e as pessoas passaram a sentir vergonha

do bairro em que moravam. Em entrevistas de emprego, os jovens eram instruídos a mentir

sobre sua origem, impulsionados a dizer que moravam em regiões adjacentes, como Praia do

Futuro, ou a utilizar outros nomes pelos quais o bairro é conhecido, como Vicente Pinzón e

Cais do Porto, para não correrem o risco de ser eliminado antecipadamente.

A construção dessa memória negativa do bairro se reforçava em grande medida nos

programas policiais da mídia, onde passaram a ser freqüentes a presença de garotos locais, e

não foi uma criação realizada somente in loco. Na imprensa havia, de modo geral, um

conjunto de imagens depreciativas em que esse espaço aparecia marcado pelo preconceito e

pelo estigma.

Não somente os departamentos pessoais das empresas insistiam em renegar a

população. A rejeição por vezes beirava a totalidade. Um entrevistado afirmou revoltado que

bancos como a Caixa Econômica Federal e outros órgãos de crédito passaram a não mais

conceder empréstimos para reformas domiciliares a moradores da área. Uma das alegações

era a de que o bairro tinha a fama de fraudulento, pois era grande a quantidade de moradores

inadimplentes. O pior era que as pessoas não se importavam em ter o nome “sujo” no sistema

de crédito, por isso “morador do Serviluz não tinha mais empréstimo!”140.

139 Entrevista concedida por Mauro Sérgio Domingues ao autor em 18/05/2005. 140 Entrevista concedida por José Carlos da Silva ao autor em 08/03/2005. 141 Ibidem

Page 91: “FOGO, VENTO, TERRA E MAR: MIGRAÇÕES, NATUREZA E …livros01.livrosgratis.com.br/cp011195.pdf · formação e urbanização do Bairro Serviluz em Fortaleza. Comunidade localizada

89

“O pessoal já sabe que aqui aconteceu muita coisa”141. Há, na maior parte dos

depoimentos, a certeza de que os moradores do lugar precisam provar em dobro a sua

capacidade. No espaço do trabalho, por exemplo, foi necessária uma versátil mudança de

postura com vistas à adaptação ao sistema de competição industrial; foi preciso forçar as

empresas a valorizarem a experiência e a seriedade de pessoas simples e que, infelizmente,

estavam envoltas num universo considerado degradado do ponto de vista.

“Essa violência destruiu bastante o ramo de turismo, a rede de turismo aqui foi bastante destruída. Por quê? Por causa da violência! Nós temos aqui uma praia bastante bonita, temos um lindo pôr-do-sol, uma praia linda. Cadê turismo? Aqui não existe turismo. Por quê? Por causa da violência. Os vagabundos botaram os turista pra correr, queriam robar os turista (...)”142.

Entre os lamentos decorrentes da criminalidade, estava a perda do poder de atração

que o bairro tinha. Numa região a ser destinada ao turismo, o Serviluz se tornou um espaço

muito pouco visitado. Sendo uma praia contígua à badalada Praia do Futuro, a preferida pelos

visitantes, a praia dessa favela, no entanto, tornou-se um lugar desaconselhável, os que nela se

aventurassem possivelmente seriam assaltados. No porto, o viajante que antes tinha o Farol

como destino certo agora era avisado, pela própria Capitania dos Portos, dos perigos

existentes na vizinhança. Os turistas foram desviados para outros pontos da cidade, afastados

da convivência junto à população pobre da periferia.

Para grande parte dos moradores, porém, a violência é, antes de tudo, um fato real e

mortal, que incomoda e assusta. Nesse meio, onde a importância da família para os indivíduos

é algo basilar e onde os filhos são quase sempre a coisas mais importantes da vida, os

“tesouros” que o pobre tem, famílias inteiras estavam sendo drasticamente reduzidas.

“(...) Uma coisa que me deixa bastante angustiada é eu ver essa juventude, porque eu já tôu com vinte anos aqui, quer dizer é uma vida né? Tem pessoas aqui que eu vi crescer, que eu acompanhei e hoje eu vejo se acabando ai no crack, e eu sem puder fazer nada, isso me dá uma angústia tão grande (...) uma boa parte da juventude não tem uma perspectiva de futuro, é uma juventude que não sonha, que não tem vontade própria de crescer, de ser alguém na vida, mas eu acho que isso depende muito dos pais, da família”143.

A marginalidade entre os jovens de repente se entranhou com força e aquele núcleo

populacional, onde os meninos cresciam voltados para o trabalho e o lar, virou “lugar de

bandido”. Garotos começaram a partir cada vez mais cedo rumo à marginalidade, cresciam

praticando pequenos furtos e gerando o “terror” no bairro. Muitos morriam antes mesmo da

142 Entrevista concedida por Francisco Herton Lima Rodrigues ao autor em 30/02/2002. 143 Entrevista concedida por Maria da Luz Oliveira Ribeiro ao autor em 18/05/2005.

Page 92: “FOGO, VENTO, TERRA E MAR: MIGRAÇÕES, NATUREZA E …livros01.livrosgratis.com.br/cp011195.pdf · formação e urbanização do Bairro Serviluz em Fortaleza. Comunidade localizada

90

maioridade e nas ruas as imagens da morte se tornaram cenas cotidianas. Rotineiramente

crianças amanheciam e anoiteciam junto a corpos ensangüentados ou escutando notícias de

assassinatos.

“(...) Ele era um garotinho e tal, um menino simples e tudo, gente fina, surfava conosco. Esse garoto ele partiu pra marginalidade, né? O cara ficou assim o ‘terror’ (grifo nosso) do bairro (...) ficou, coitado, ficou sem cara porque atiraram por trás da cabeça dele e fizeram uns rombos na cara (...)”144.

A violência no bairro na verdade não é uma regularidade, mas tem seus períodos de

recrudescimento. Funciona como uma espécie de onda; em alguns momentos, aumenta

assustadoramente. Em certas épocas, a situação se torna mais inflamada e os nervos ficam à

flor da pele. Quando uma gangue rival invade o bairro ou quando morre algum criminoso

renomado, por exemplo, provavelmente revides sistemáticos acontecerão. Esses são

momentos de tensão que incomodam a todos, exigem certos cuidados especiais para circular

na área e produzem um prolongado estado de alerta. Nessas circunstâncias, tanto a polícia

quanto os que por ela são procurados passaram a impor constantes “toques de recolher” à

comunidade.

Nessa esteira, nas ruas e nos becos, aumentou a venda e o consumo de drogas;

adolescentes pediam ou tomavam dinheiro de quem passava, roubando e intimidando a

população. Em meio a esse clima, atravessar espaços pouco visíveis, como os becos estreitos

ou a beira da praia à noite, podia significar o fim trágico da vida. “Eu entrei no beco, se eu

fosse um rival, se tivessem me confundido, eu tinha morrido”145.

No bairro, corria-se agora o sério de risco de ser “confundido” e morto por uma

gangue. Em alguns lugares, era nítido o domínio de jovens encapuzados, desmascarando uma

triste realidade que amedrontava e envergonhava os moradores.

Ao som da música funk, bailes e festas agrupavam nuvens de jovens armados que

tomavam conta das ruas, promovendo “arrastões” por onde passavam. Nas noites de sábado,

os jovens do Serviluz se destacava facilmente entre as gangues de adolescentes da periferia de

Fortaleza, levando o nome do bairro ao topo desse circuito.

Para se ter uma idéia da situação, em alguns pontos de encontro ou passagem das

gangues, contavam-se inúmeros furtos, agressões e assassinatos, acontecidos em poucas

horas. No Serviluz não há, por exemplo, quem não se lembre do antigo Forró da Bala. Em

menos de quatro anos de funcionamento, o pequeno bar acumulava a incrível estatística de

144 Entrevista concedida por João Carlos Sobrinho ao autor em 27/02/2003. 145 Ibidem.

Page 93: “FOGO, VENTO, TERRA E MAR: MIGRAÇÕES, NATUREZA E …livros01.livrosgratis.com.br/cp011195.pdf · formação e urbanização do Bairro Serviluz em Fortaleza. Comunidade localizada

91

dezoito mortes ocorridas nele ou no seu entorno146. Um detalhe importante: localizava-se ao

lado da Delegacia de Polícia do Farol. A delegacia havia sido instalada no Farol a pedido dos

próprios moradores, quando o meretrício se deslocou para o bairro. Como observado, foi

precisamente na zona de prostituição que os jovens, juntamente com as mulheres, começaram

a realizar os primeiros furtos; o roubo, em princípio crime, de certa forma, tornou-se uma

prática local e passou a ser desenvolvida nos mais variados espaços da localidade.

A polícia assume nesse contexto um caráter bastante dúbio no seio da comunidade.

Tanto se solicita a sua intervenção nas contendas internas, quanto a sua presença pode indicar

a entrada de um corpo estranho, alheio aos membros desse organismo. O crescimento da

marginalidade, no entanto, ao mesmo tempo em que produziu a contradição e polarizou as

opiniões sobre a autoridade policial, fez emergirem múltiplas relações de negociação entre

essas partes.

Há, de modo geral, um temor das pessoas em relação ao uso da forca policial, do

poder da violência usado de forma legal: “Eu tenho mais medo dos policiais do que dos

vagabundos que moram aqui”, é uma afirmação recorrente entre os moradores. Para muitos, é

preferível encontrar numa madrugada um criminoso conhecido do que a proteção oferecida

pela polícia, já que são muitos os casos de policiais corruptos que extorquem e agridem

indiscriminadamente. Quando ninguém vê, são eles que mandam e desmandam, classificam

todos de bandido e agem indistintamente sobre os moradores.

Vale ressaltar que, nessa briga de mocinhos e bandidos, muitos policiais também

perderam a vida. Os membros da comunidade conhecem aqueles casos mais célebres, os

relatos das façanhas grandiosas do mundo do crime ecoam por gerações. É o caso do finado

Cabo Sérgio, temido policial do bairro, que foi misteriosamente assassinado e que ainda hoje

tem sua história passada de boca em boca. Após colecionar vários inimigos, o cabo foi

brutalmente atropelado por um veículo, o automóvel passou sobre seu corpo várias vezes

quando o policial saía de uma churrascaria da rua principal do bairro.

O mundo do crime se tornou um elemento tanto real quanto simbólico de exercício de

poder. Nas falas, esse universo assusta, mas também fascina. Se parecia complicado seguir

sem se perder nas drogas e no submundo do tráfico ou não acompanhar a tendência dos pais

146 A pesar da violência, os bares e os clubes dançantes do Serviluz são bastante freqüentados. Além dos antigos cabarés do Farol e das barracas de praia, alguns comerciantes locais também promoviam festas. O Bar do Surfe, o Forró do Joãozinho, O Som do Seu Pedro, o Pagode do Luiz, o Flórida Drinks, o Clube Jamaica e outros, de duração mais efêmera, se destacaram.

Page 94: “FOGO, VENTO, TERRA E MAR: MIGRAÇÕES, NATUREZA E …livros01.livrosgratis.com.br/cp011195.pdf · formação e urbanização do Bairro Serviluz em Fortaleza. Comunidade localizada

92

alcoólatras e das mães prostituídas, a adesão a esse mundo parece seduzir. Se difícil era evitar

o amargar da vida nos presídios da cidade ou afastar a morte que ronda diariamente os

habitantes da periferia, a participação nesses espaços ditos violentos produz uma espécie de

reconhecimento às avessas que encoraja e dá poder. Depois de alguns malefícios, deixa-se de

ser apenas mais um anônimo na multidão para ser um conhecido bandido da favela.

Parece existir aí, a exemplo do Farol, tanto uma triagem quanto uma mistura complexa

entre esses universos e a comunidade, de modo que a divisão simplória dentro e fora não

consegue abarcar. No dia-a-dia surgem pequenas interações, desenvolvidas em nível

microssocial, que precisam ser consideradas, pois estão na base da conformação das relações

de poder e solidariedade.

Quando se pensa, por exemplo, no turismo destruído pela marginalidade, percebe-se

que a visitação ao bairro não acabou. A não inclusão do bairro nos roteiros oficiais da cidade

turística indica não o fim, mas a criação de novos fluxos de visitação. A eliminação da

presença de pessoas endinheiradas não acabou com essa prática, mas renovou a permanência

da antiga tradição da boa acolhida voltada para “os iguais”. As territorialidades147 que o bairro

passou a abrigar criam novas formas de pensar a hospitalidade. Assumir ser do Serviluz com

orgulho é uma opção ainda hoje dúbia mesmo internamente, a imagem do medo ecoa e a

produção de uma postura valorativa desse espaço guarda sempre suas ressalvas. Mesmo

declarando o amor pelo lugar, um entrevistado lamentou que “pra vergonha nossa... assim

umas cinco a dez laranjas podres aqui do bairro tentam, insiste, em sujar a imagem do nosso

bairro”148.

Para muitas pessoas, o fim do circuito de visitação podia indicar o fim do sonho de

sobreviver dessa atividade no próprio bairro e o início de um processo de mudança que

revertesse a situação marginalizada.

“Porque chega! A gente tá fazendo o máximo pra que a área seja bem... sabe... bem vista por aí, pra que as pessoas possam vir pra comer um pouco pouquinho de areia conosco, fazer o surfe conosco, aí tem algumas pessoas que querem estragar (...)”149.

147 A noção de território pode ser compartilhada com Raquel Rolnik: “(...) território como uma idéia de espaço vivido; não só um espaço geográfico delimitado, mas um espaço apropriado e constituído por relações sociais, por relações culturais”. Cf.: ROLNIK, Raquel. Lei e política: a construção dos territórios urbanos. In: Op. cit. Projeto História, nº. 18. p. 137. 148 Entrevista concedida por João Carlos Sobrinho ao autor em 27/02/2003. 149 Ibidem.

Page 95: “FOGO, VENTO, TERRA E MAR: MIGRAÇÕES, NATUREZA E …livros01.livrosgratis.com.br/cp011195.pdf · formação e urbanização do Bairro Serviluz em Fortaleza. Comunidade localizada

93

No contexto de criminalidade, os presídios e as penitenciárias da cidade acabaram

tornando-se lugares cujos meandros são conhecidos pelos moradores do Serviluz. Suas

informações circulam entre as ruas, os parentes fazem visitas aos domingos e recebem cartas;

sabe-se quando um preso do local vai ser solto e quem está marcado com vingança neste

retorno. Em algumas rodas de conversa, reproduzem-se as gírias, os jargões e mesmo alguns

valores típicos da cadeia. O mundo do crime e o cotidiano das celas, de certa forma, também

são revividos dentro da comunidade. Entre os jovens, as penitenciárias nem sempre

significam a má sorte do sujeito; em alguns casos, estar preso indica exatamente o contrário,

significa estar guardado, ter alimentação gratuita e satisfatória paga pelo Estado. Diferentes

inclusive de muitos dos jovens que gozam a liberdade, os presidiários retornam por vezes

mais nutridos e fortes, mas, sobretudo, muito mais temidos e valentes devido a essa

experiência.

Em meio a essa atmosfera, a morte tende a se tornar um fato cotidiano, um

acontecimento que pode ocorrer várias vezes em um só dia. Se a morte é fato, o enterro dos

mortos passa a ser um ritual comum, uma cerimônia relativamente corriqueira. Nos funerais

mais célebres, geralmente bem freqüentados, esse se torna também um momento de revolta e

indignação com a pouca valorização da vida humana dentro da comunidade. Há a certeza de

que a morte precoce pode acontecer a qualquer pessoa, de que é preciso estar atento.

Sintomaticamente a morte guarda traços com a origem interiorana da população, a morte não

é exatamente uma estrangeira, mas uma parte ativa da vida. Anjinhos, finados, defuntos, bem

cedo se habitua a esses termos, porque a sabedoria popular indica que termos como estes

podem fazer compreender melhor a importância da vida.

É preciso pensar como a comunidade convive com esse cotidiano violento. Como em

certos momentos os próprios moradores do bairro utilizam-se dessa imagem amedrontadora

que paira sobre o lugar, para evitar que ele seja ainda mais invadido ou tomado pela

especulação imobiliária. Os moradores desenvolvem também mecanismos de autoproteção,

por vezes alheia à ação da polícia, regulação sem a qual seria impensável a vida social no

bairro. É o que se observa quando se impõe ou se cultiva a prática de não agressão dentro da

área.

Nesse contexto, a construção de novas imagens e a emergência de novas práticas

sociais no bairro se tornaram uma necessidade, passaram a fazer parte dos componentes da

identidade e da cultura local. Há nas entrevistas a certeza de que não é possível somente

admitir as definições da comunidade feitas do alheio. Do ponto de vista do pesquisador, seria

demasiado injusto perceber como se dá a vivência nesse espaço apenas do ponto de vista

Page 96: “FOGO, VENTO, TERRA E MAR: MIGRAÇÕES, NATUREZA E …livros01.livrosgratis.com.br/cp011195.pdf · formação e urbanização do Bairro Serviluz em Fortaleza. Comunidade localizada

94

socioeconômico. A cultura popular tem uma riqueza e uma racionalidade próprias, que não

podem ser alcançadas quando se olha para o bairro com a mesma lupa da cidade que o

recrimina.

2.6 A comunidade

“Aqui tinha muita areia nessa praia do Titan

ninguém podia comer com tanta poluição

a comunidade unida acabou com a situação” 150.

“Qualquer momento histórico é ao mesmo tempo resultado de processos anteriores e um índice na direção de

seu futuro” 151.

Ao assumir a paróquia do Mucuripe no distante dia 05 de maio de 1950, o padre José

Nilson afirmou que tinha encontrado ali uma comunidade miserável, que o encorajou à ação

missionária:

Sempre sonhei em trabalhar com os pobres. Era uma espécie de chamamento íntimo, muito forte, a me convocar para essa missão. E o Mucuripe, certamente era um lugar muito indicado para isso, pois aqui, naquele tempo e ainda agora, vive uma comunidade carente de tudo: de alimento, de moradia, de educação, de assistência médica, até mesmo de uma esperança melhor no dia de amanhã152.

A esplendorosa paisagem natural contrastava com a escuridão encontrada nas

condições humanas. O padre José Nilson, que já contava com a experiência adquirida noutra

comunidade de pesca, organizada sob a forma de colônia de pescadores, liderou no Mucuripe

um trabalho de cunho religioso e assistencial que ainda hoje permance .

Nas comunidades de pesca, é geralmente bem acentuada a tradição católica. Nas

paróquias e pastorais de localidades praianas, as festividades religiosas católicas, como a festa

150 “Trabalhos, lutas e conquistas de uma comunidade sofrida”. Cordel produzido por Maria Zuleide de Oliveira Moura. Disponível na Associação de Moradores do Titanzinho no Serviluz. 151 THOMPSON, E.P. A Miséria da Teoria ou um planetário de erros; uma crítica ao pensamento de Althusser. Zahar Editores. Rio de Janeiro, 1981. p. 58. 152 Palavras do Padre José Nilson, vigário da paróquia do Mucuripe. Cf.: Op. cit. GIRÃO, Blanchard. p. 193.

Page 97: “FOGO, VENTO, TERRA E MAR: MIGRAÇÕES, NATUREZA E …livros01.livrosgratis.com.br/cp011195.pdf · formação e urbanização do Bairro Serviluz em Fortaleza. Comunidade localizada

95

do padroeiro São Pedro e o culto a Virgem dos Navegantes, são sempre celebrações

importantes tanto do ponto de vista religioso quanto do convívio social. Sempre lotados, os

festejos são momentos de devoção e sociabilidade comunitária, sendo os padres figuras de

reconhecido destaque entre essa população. Essa experiência religiosa constituiu uma

importante matriz dos movimentos de caráter associativo no bairro.

O trabalho religioso no Serviluz teve início já na zona de prostituição. O Farol tornou-

se um excelente espaço para o desenvolvimento de ações filantrópicas; para muitos, a região

era vista como sinônimo de carência tanto material quanto espiritual. O Ninho Fortaleza,

grupo pioneiro com características de voluntariado no bairro153, procurou concentrar suas

atividades assistenciais basicamente sobre as prostitutas. Mas como no Farol era praticamente

impossível desvencilhar as mulheres do restante do espaço, o trabalho da Igreja Católica,

reforçado depois com a criação das pastorais da mulher e do pescador, ampliava-se a toda a

comunidade.

Os moradores da comunidade, por exemplo, freqüentavam os cursos

profissionalizantes oferecidos pelo Ninho. Mas como foi afirmado, a relação entre o bairro e a

prostituição é ambígua. Se o trabalho paroquial muitas vezes não atraía a prostituta, os

moradores atraídos a esse universo compartilhavam ao mesmo tempo em que promoviam

abaixo-assinados para a remoção da zona para longe do bairro154.

A capacidade de estabelecer entendimentos entre as diferenças cuturais que coabitam

o mesmo espaço constitui um aspecto basilar para a compreensão da gestação de experiências

e movimentos comunitários do bairro. Nas memórias sobre os primórdios da constituição das

ações de grupo, está também a necessidade primeira de acreditar no potencial dos sujeitos

envolvidos, “porque tem morador que quando vê uma instituição, uma pequena instituição

crescendo um pouco, pensa que é brincadeira, pensa que é brincadeira, más que funcionar

funciona”155.

153 O Ninho é uma entidade internacional que presta serviços de auxílio às prostitutas em vários países. “No Farol, (O Ninho) está sob condenação de uma equipe voluntária formada por dez mulheres, não importando, por principio, se exercem ou não a prostituição, mas que moram na área da zona, no bairro do Mucuripe e também em outros bairros da cidade”. Op. cit. ANJOS JÚNIOR, p. 54. 154 “No próprio Farol, um bairro totalmente pobre, residentes, que co-habitam o mesmo espaço estigmatizado pela sociedade envolvente, exerçam a discriminação e solicitem ao mesmo poder que também os domina, o confinamento das prostitutas para algum lugar ainda mais isolado”. Op. cit. p. 60. 155 Entrevista concedida por Maria Zuleide de Oliveira Moura ao autor em 01/01/2003. 156 Ibidem. 157 Entrevista concedida por Maria da Conceição Alves dos Santos ao autor em 27/02/2003. 158 Ata de reunião da Associação de Moradores do Titanzinho em 11/07/1982.

Page 98: “FOGO, VENTO, TERRA E MAR: MIGRAÇÕES, NATUREZA E …livros01.livrosgratis.com.br/cp011195.pdf · formação e urbanização do Bairro Serviluz em Fortaleza. Comunidade localizada

96

A rejeição, por exemplo, quase sempre dificultava a integração das prostitutas aos

outros moradores do bairro; o prestígio e a capacidade de liderança das proprietárias dos

cabarés, apesar de reconhecidos na comunidade, na maioria das vezes, restringiam-se aos

domínios dos prostíbulos. Entretanto, no processo de aprendizado político, as necessidades

comuns tendiam a criar permeabilidades e a impulsionar possíveis entendimentos, ainda que

significasse a total aceitação do outro.

“(...) eu só frequentava essa área aí quando era pra ajudar fazer algum enterro de alguma pessoa que morria, ou então ajudar a tocar em algumas celebrações, missas pra elas (...) não é porque fosse zona de pessoas errantes não, é porque num gosto de me misturar com essa classe não. Mas na hora que necessitava de um trabalho, eu sou comunidade (grifo nosso), eu tinha que agir, eu sou igreja”156

É com base nesse processo de flexibiliação e aceitação, negação e conflito, que

surgem as bases associativas do bairro e o sentimento comunitário. O socorro mútuo, nesse

caso, muitas vezes emerge como uma condição fundamental à própria existência dos

habitantes. A precariedade generalizada tornava necessária uma espécie de atitude de

salvação recíproca, quase initerrupta, entre essa população.

Problemas de toda ordem irrompiam a todo instante : “aí eu digo não. Num vai atolar

não: a gente vai deixar a criatura acolar na pista. Aí, peguei arranjei uma rede, botaram a

criatura pra dentro e levaram pra lá. Eu cansei dessas coisas assim né”157. A luta pela

sobrevivência dentro da comunidade, desse modo, produz tanto ações coletivamente

organizadas quanto é fruto da manifestação individual de solidariedade “(...) se todos nós

pegarmos mais gente, é melhor. Se o problema é igual, então vamos lutar com todo mundo.

Nós queremos solucionar o problema ou diminuir?”158.

A construção da identiadde cultural comunitária não emana apenas dos movimentos

com propósitos de reforma social. Hoggart159 diz que é preciso tê-la como algo mais

elementar, mais antigo que nasce talvez da própria convicção de que a união se torna

necessária caso se pretenda melhorar as condições de vida; essa convicção está na origem dos

159 HOGGART, Richard. As utilizações da cultura. Aspectos da vida da classe trabalhadora, com especiais referências a publicações e divertimentos. Lisboa: Editora Presença, 1973. (Coleção Questões). 160 Entrevista concedida por Maria Ferreira Dias ao autor em 31/06/2006. 161 BARREIRA, Irlys Alencar Firmo. O reverso das vitrines: conflitos urbanos e cultura política em construção. Rio de Janeiro: Rio Fundo Ed. 1992. p. 93

Page 99: “FOGO, VENTO, TERRA E MAR: MIGRAÇÕES, NATUREZA E …livros01.livrosgratis.com.br/cp011195.pdf · formação e urbanização do Bairro Serviluz em Fortaleza. Comunidade localizada

97

movimentos cooperativos. É antes fruto do saber feito de experiência, que ensina que o

indivíduo se encontra inevitavelmente integrado no grupo.

Entre os moradores, foi recorrente a conecção entre o princípio do processo de

organização política e a ação da Igreja no bairro. O trabalho comunitário, de acordo com os

entrevistados, começou com a união das mães em torno da distribuição de alimentos, roupas e

soro caseiro para as crianças.

“De lá pra cá a gente começou nessa luta né, a gente começou a se reunir nas ruas como um grupo de mães que já existia e começamos a lutar com os pescadores, pedindo esmola a um, pedindo esmola nas firmas e construímos a escola do Titanzinho, a São Pedro (...) e a gente botou o nome da escola de São Pedro porque São Pedro era pescador”160

Na observação da história das formações dos movimentos sociais urbanos, deve-se

ressaltar que tanto as práticas mobilizadoras de maior visibilidade quanto as isoladas em um

cotidiano de organização interna dos bairros tiveram a presença da Igreja como um de seus

principais mediadores. Como observou Irlys Bareira:

Nesses termos, pensar a Igreja como a força social significa atentar para sua ação, não só na formulação restrita de uma diretriz política, mas na veiculação de idéias ou discursos que implicam a formação de uma visão de mundo 161.

Na decada de 1970, contraposta a um certo egoísmo e comodismo, a Igreja passa a

incentivar a promoção de núcleos de ação comunitária, visando também libertar o homem das

injustiças sociais. O catolicismo, centrado na salvação individual e no conformismo político,

rumava em direção a um outro tipo de engajamento. Os discursos paroquiais passaram a

tentar conciliar fé, experiência cotidiana e luta pela justiça social.

Em Fortaleza, não era a primeira vez que os católicos se engajavam na

conscientização dos trabalhadores a partir da precariedade de suas condições de existência. Já

na década de 1950, um ex-viigário do Mucuripe deu início a um trabalho de caráter religioso

e social que se tornou um referencial. Na comunidade do Pirambu, o Padre Hélio despertou

um processo de mobilização política que culminou com a realização, a 1º de janeiro de 1962,

da Grande Marcha do Pirambu, cujas fileiras eram engrossadas por mais de vinte mil

moradores162.

162 “A Marcha representa para o Pirambú, no âmbito de sua identidade social, o principal evento que assinala a construção da memória coletiva da comunidade, fazendo nascer um sentimento, a partir da tentativa de torná-lo heróico, ou seja que represenasse um fenômeno coletivo e social dentro do movimento polular de Fortaleza, que pode ser considerado como um marco para a ação politica transformadora e histórica dos bairros pobres da

Page 100: “FOGO, VENTO, TERRA E MAR: MIGRAÇÕES, NATUREZA E …livros01.livrosgratis.com.br/cp011195.pdf · formação e urbanização do Bairro Serviluz em Fortaleza. Comunidade localizada

98

Eder Saber destacou que os novos personagens que emergiram na cena política

brasileira na década de 70 caracterizavam-se principalmente pela diversidade de matizes que

lhes serviam de referência. Movimentos de caráter fragmentado, de onde e quando ninguém

esperava, emergiam novas ações sujeitos coletivos, que criavam seus próprios espaços e

requeriam novas categorias para sua inteligibilidade: “não se trata de alguma suposta

identidade essencial, inerente ao grupo e preexistente às suas práticas, mas sim da identidade

derivada da posição que assume”163. A pretensão de captar a dinâmica dos movimentos sociais

e da cultura comunitária, somente através das condições materiais objetivas, evitando assim

uma análise mais específica de suas práticas, pode significar a perda do aprendizado diário

que os singulariza.

No Serviluz, o reconhecimento da diversidade de referências e matrizes se configurou

como uma realidade cada vez mais concreta e diferentes canais passaram a ser acionados em

benefício da coletividade.

Nesses cantos de praia, pratica-se não apenas o dito catolicismo oficial, não

desacreditando os jangadeiros do poder místico da natureza; a beira da praia serve também à

prática de ritos de bênçãos e manifestações de devoção à rainha e protetora do mar, Iemanjá.

Em algumas praias como a do bairro, manteve-se considerável a quantidade de terreiros de

macumba e candomblé.

Povo de origem sertaneja, essa população estabelece cotidianamente as mais distintas

relações com as forças do sagrado e o sobrenatural. Pairam crenças, por exemplo, nas quais a

realização de determinados rituais religiosos podem, também, acabar com os dramas da

vida164. Na condição urbana, o migrante não abandona sua fé e a experiência religiosa

configura-se como um instrumento na resolucão dos problemas do dia-a-dia.

No Serviluz a diversidade religiosa simboliza bem a multiplicidade de culturas que se

cruzaram no lugar. Em termos religiosos, nessa praia se adere atualmente a diferentes cultos,

sobretudo após a eclosão das igrejas protestantes e pentecostais na área. A Igreja, como

cidade”. Cf.: CAVALCANTE, Lídia Eugenia. Para onde os ventos sopram Pirambu: Memória e identidade social. Dissertação de Mestrado Interinstitucional em História da Universidade Federal do Rio de Janeiro, 2000. p. 116. 163 SADER, Sader. Quando novos personagens entraram em cena: Experiências, falas e lutas dos trabalhadores da grande São Paulo 1970-1980. São Paulo: Paz e Terra, 1988. p. 44. 164 “Realizar pocissões, promessas ou roubar a imagem do santo da Igreja e só devolvê-la com as chegadas das chuvas eram práticas de fudamental importância nas estratégias de combate à seca”. Cf.: Op. cit. RIOS, Kênia Sousa. p.76. 165 A Assembléia de Deus foi a primeira Igreja Evangélica instalada no bairro, em 1966. Aos poucos, tornou-se comum um conjunto de celebrações que se estendia as ruas e aos domicilios, principiando a conquista gradual de novos adeptos. O Serviluz conta atualmente com pelo menos 12 pequenas igrejas evangélicas.

Page 101: “FOGO, VENTO, TERRA E MAR: MIGRAÇÕES, NATUREZA E …livros01.livrosgratis.com.br/cp011195.pdf · formação e urbanização do Bairro Serviluz em Fortaleza. Comunidade localizada

99

fomentadora de organizações associativas no bairro, atualmente atravessa um processo no

qual as igrejas evangélicas vêm ganhando considerável terreno165. A idéia de comunidade no

bairro tem sua origem e força maior de expressão na religiosidade do povo.

Vale ressaltar que durante a pesquisa, ao utilizar os termos bairro e comunidade quase

indistintamente, foi preciso tecer algumas reflexões sobre este último conceito. Isso

aconteceu porque não era possível ocultar que no Serviluz a extensão das redes internas de

articulação, a distribuição de solidariedades, o crescimento demográfico repentino e a

diversidade cultural daí resultante atingiram tal dimensão que a ampliação do entendimento

da idéia de uma comunidade impunha-se.

Isso se deu uma vez que parecia preciso deslocar um certo caráter oficial e um certo

esvaziamento que ronda o conceito comunidade, com vistas a entendê-lo como experiência

concreta, como experiência histórica.

Identificado popularmente como Bairro Serviluz, ainda que as fontes administrativas e

os jornais prefiram o termo favela, esse conjunto, a meu ver, só se apresentava como uma

comunidade na medida em que se fundamenta na relação entre a diversidade que o compõe.

Somente sob circunstâncias específicas, os diferentes moradores desse bairro se sentem

partilhando de uma experiência comunitária e isso pode não significar a eliminação das

diferenças.

Em estudos sobre bairros operários e identidade cultural em São Paulo, Duarte166

observou que, numa sociedade do tipo capitalista, uma comunidade ou bairro só podem ser

entendidos como artefatos culturais, resultado do esforço humano coletivo e historicamente

construído, de tal modo que a unidade e a solidariedade, tanto quanto o discenso que

porventura eles expressem, resultam da ação humana dos seus membros. No intuito de

compreender e analisar o processo de formação de uma comunidade específica, ainda que

uma ampla região nos arredores do Mucuripe apresente características geográficas e históricas

convergentes, impõe-se a necessidadede da não homogeneização de um conjunto

culturalmente múltiplo. As interações culturais e a produção de experiências coletivas só se

dão através da ação social concreta desses sujeitos.

166 DUARTE, Adriano Luiz. Os sentidos da comunidade: notas para um estudo sobre bairros operários e identidade cultural. In: TRAJETOS, Revista do Programa de Pós-graduação em Historia Social e do Departamento de Historia da Universidade Federal do Ceará. v.1, n° 2. Fortaleza, junho de 2002. p.106.

Page 102: “FOGO, VENTO, TERRA E MAR: MIGRAÇÕES, NATUREZA E …livros01.livrosgratis.com.br/cp011195.pdf · formação e urbanização do Bairro Serviluz em Fortaleza. Comunidade localizada

100

No clássico estudo sobre costume e cultura na Inglaterra do século XVIII,

Thompson167 já nos alertava sobre a impossibilidade da utilizaçao desses conceitos de forma

generalizada ou ultraconsensual. Afinal, seria errôneo esquecer que o termo cultura é um

termo emaranhado e complexo, que, ao reunir tantas atividades e atributos em um só feixe,

pode na verdade confundir ou ocultar distinções que precisam ser feitas.

A comum experiência de migração, trabalho e moradia certa cria vínculos e elos

fundamentais de união, mas não é possível pensar esses aspectos como formadores de uma

solidariedade “natural”. A comunidade, nesse caso, deve ser concebida não apenas baseada na

idéia da harmonia geral, mas principalmente a partir dos múltiplos conflitos que nela são

engendrados: “a identificação automática entre bairro e comunidade pode ser enganosa (...)

não é o bairro que por si só torna-se comunidade, são as redes sociais construídas e articuladas

por seus moradores que podem construí-la”168.

No que se refere mais especificamente à moderna noção do termo comunidade,

também foi preciso reconhecer que, sobretudo no periodo posterior aos anos 1980, os

próprios programas oficiais assistencialistas do Estado brasileiro se apropriaram de uma

espécie de “poder mágico” que o termo comuniade passou a adquirir entre as classes

populares, como agregador de interesses comuns169.

Entramos numa nova era e em novos modos de fazer a política. Nesse novo contexto,

a sociedade organizada em associações e movimentos populares de todo tipo deixou de ser

algo marginal ou alternativo. Os poderes constituídos mudaram seus discursos sobre essas

práticas. Os grupos organizados deixam de ser vistos como opositores, passam a ser

conclamados como parceiros. Parceria com a comunidade será a nova técnica de órgãos

públicos até então assistencialistas, clientelistas ou diretamente repressores170.

Assim o Estado transfere sua responsabilidade para as comunidades organizadas, sob o

argumento de políticas participativas, deturpando desse modo o significado de comunidade

atribuída pelos sujeitos que a constroem.

Os movimentos populares criados a partir de ações da sociedade civil utilizaram o conteúdo político do termo comunidade para conferir sentido a uma nova cultura política que se esboçava, fundada no aprendizado de uma nova cidadania, em que a reveidicação em torno da noção dos direitos ocupava um lugar central171.

167 THOMPSON, E.P. Costumes em comum. São Paulo: Companhia das Letras,1988. p.22. 168 GOHN, Maria da Glória. Movimentos sociais e luta pela moradia. São Paulo: Edições Loyola, 1991. p.14. 169 Op. cit. GOHN. p. 12. 170 Op. cit. p. 14. 171 Op. cit.

Page 103: “FOGO, VENTO, TERRA E MAR: MIGRAÇÕES, NATUREZA E …livros01.livrosgratis.com.br/cp011195.pdf · formação e urbanização do Bairro Serviluz em Fortaleza. Comunidade localizada

101

Dona Mariazinha, líder comunitária do Serviluz, de modo simples e prático, assim

expressou sua concepção de comunidade:

“(...) A comunidade é nós, todo mundo junto. A comunidade que eu entendo, e é, a gente tem que trabalhar todo mundo junto, mãos dadas (...) você sabe que uma vara quebra, duas vara, três vara quebra, más quatro, cinco, seis ela já não quebra mais (...) isso é meu entendimento, a comunidade é nós tudo reunido, tudo unido, isso é é que é a comunidade”172.

A idéia de bloco, da reciprocidade e do trabalho conjunto está no seio do entendimento

local da noção de comunidade. Por outro lado, as culturas urbanas, pricipalmente a partir da

intesificaçao do fenômenos migratórios, desencadeados em escala mundial, têm exigido dos

pesquisadores contemporâneos a elaboração de novos instrumentos conceituais, sensíveis às

novas modalidades de organização das culturas.

Canclini173 observou que o termo “cultura urbana” se mostra inadequado para analisar

os cruzamentos culturais da atualidade. À medida que a vida na cidade tem impulsionado a

procura por formas mais seletivas de sociabilidade, nos bairros, por exemplo, as relações entre

seus moradores tendem a se firmar em estruturas microssociais, a partir das quais estes

elaboram suas identidades. Com a rápida hibridação de culturas, as fragmentações culturais

das metrópoles se tornam cada vez mais dificeis de precisar, pois estas já não se organizam

em grupos fixos ou em núcleos estáveis. A comunidade certamente faz-se e é feita com base

nessa maleabilidade cultural entre seus membros.

Esse racíocinio põe em dúvida a relação entre certas populações e um território capaz

de conferir comportamentos comuns ao grupo. Opera-se assim a insustentabilidade da velha

noção de comunidade, que apontava para a formação de vínculos mais intensos entre

membros de um mesmo grupo quando ajustados dentro do mesmo território. Uma

comunidade abriga múltiplos territórios.

No Serviluz, o estudo de uma comunidade fixada às margens de uma zona portuária,

lugar de trocas e passagens por excelência, e cuja composição social foi resultado do

acirramento de distintas migrações operadas na contemporaneidade, a proposta do

entendimento da cultura comunitária a partir das ideias de “circuitos” e “fronteiras” foi muita

sugestiva.

172 Entrevista concedida por Maria Ferreira Dias ao autor em 31/06/2006. 173 CANCLINI, Néstor Garcia. Culturas Híbridas. Estratégias para entrar e sair da modernidade. São Paulo: Edusp, 2000.

Page 104: “FOGO, VENTO, TERRA E MAR: MIGRAÇÕES, NATUREZA E …livros01.livrosgratis.com.br/cp011195.pdf · formação e urbanização do Bairro Serviluz em Fortaleza. Comunidade localizada

102

No bairro, os indícios mostram que os tipos de ação política praticada não estão

diretamente associados a instâncias tradicionais de luta do trabalhador, ainda que existam

conexões, mas espalhadas nos diversos núcleos de sociabilidades e culturas que se

constituíram. Afinal o mundo do bairro havia deixado de ser apenas o lugar onde as pessoas

moravam, passou a ser também o lugar onde desenvolviam-se relações de união e

solidariedade, onde acumulavam-se experiências de negociação, vivência comunitária e de

resistência coletiva.

Ainda no que concerne as matrizes dos movimento associativos, os trabalhadores dos

portos são geralmente enfatizados pela presença da categoria nas greves, pela organização

sindical e pela mobilização política dos estivadores. Todo padrão sindical parece possível na

região do porto e a mão-de-obra do cais é poderosa porque sua capacidade de fazer greve

também é poderosa, em geral, os sindicatos portuários têm uma forte tradição de militância174.

A presença dos portuários como categoria de um setor estratégico na vida do país

transformava-os, portanto, em freqüentes destinatários de uma vasta produção de discursos, o

que os tirava do anonimato do cais175.

Assim, esses sindicatos tendem a produzir uma ampla documentação que serve de

base à compreensão dos seus embates que, em grande medida, tem origem no próprio local de

trabalho. Mas no Serviluz, como foi observado anteriormente, o sindicato não constituiu foco

privilegiado de politização do trabalhador, sendo mais comum a referência à pesca e ao

trabalho da Colônia de Pescadores.

“O sindicato dos estivadores já está quase estinto (...) porque com a privatização dos

portos os sindicatos perderam a autonomia”, explica seu Natalee176. Para muitos moradores,

além da desestruturação sindical, a fadiga do trabalho constitui um grande empecílio, já que a

necessidade prática da profissionalização quase sempre limita a participação masculina nas

entidades do bairro:

“(...) O que falta meu amigo é o seguinte, o cara já chega cansado do trabalho, o trabalhador passa o dia no trabalho, chega cansado, o pescador passa três, quatro dia pescando, chega enfadado (...) então existe as reuniões lá no centro comunitário, mas o cara chega numa situação tão cansada que não tem ânimo para ir a reunião. Então existem muitos trabalhos a ser feito, más a pessoa nem toma conhecimento, os moradores, devido a tarefa do dia-a-dia”177

174 “De Santos a São Francisco, de Sidney a Liverpool, a ameaça de greve dos estivadores é ainda considerada extremamente séria”. Cf.: HOBSBAWM, Eric J. Trabalhadores. Estudos sobre a história do operariado. São Paulo: Paz e Terra, 1981. p. 209-210. 175 Op. cit. SILVA, Fernando Teixeira, p. 05. 176 Entrevista concedida por Natalee Ferreira de Sousa ao autor em 20/05/2005. 177 Ibidem.

Page 105: “FOGO, VENTO, TERRA E MAR: MIGRAÇÕES, NATUREZA E …livros01.livrosgratis.com.br/cp011195.pdf · formação e urbanização do Bairro Serviluz em Fortaleza. Comunidade localizada

103

Ao contrário do Seviluz, a concentração operária no Bairro do Pirambu, por exemplo,

permitiu uma certa articulação entre o bairro e os sindicatos da região. Por ser um bairro com

adensamento de indústrias, seus moradores participaram das mobilizações sindicais, criando

objetivamente uma ponta de ligação entre a luta pela moradia e a luta na fábrica, embora o

bairro não fosse totalmente constituído de operários.

Como observou o padre José Nilson, apesar da existência dos sindicatos, estes eram

pouco visíveis na comunidade e pouco se sabia sobre suas atividades.

Descia eu, certa tarde, do Morro do Farol Velho, onde distribuíra uma porção de remédios com as famílias mais carentes. Ao passar de fronte ao Pavilhão da Estiva, sede do Sindicato dos Estivadores, recebi a mais estrondosa vaia que um homem já tenha recebido. Havia, na época, um grupo radical de extremistas, de comunistas intolerantes, que resolveram me hostilizar gratuitamente. Afinal, eu não os agredia, não os combatia, nem se quer tomava conhecimento das atividades deles178.

O fato é que, à proporção que a questão da moradia se agravou, as favelas passam a se

constituir em focos permanentes de tensão. Entre os interlocutores dos movimentos

comunitários no bairro, os sindicatos têm aparecido geralmente com pouca expressividade.

Na atual redefinição do operariado e na consolidação dos movimetos sociais

contemporâneos, a empresa nem sempre é o lugar da formação política. O trabalho na verdade

não pode ser isolado dos outros espaços de reprodução do proletariado, como o espaço da

residência.

Em 1975, foi criada a Associação de Moradores da Comunidade do Titanzinho.

Pioneira, essa entidade inaugurou um novo tipo de organização social que marcaria

profundamente a luta comunitária daquelas pessoas. Nos arquivos, estatutos, livro de atas,

relatórios, projetos, recibos, certificados etc., encontram-se registros de uma gama de ações

produzidas coletivamente e que visavam a princípio solucionar as carências mais imediatas da

população. Nas pautas das reuniões, realizadas em salas durante muito tempo improvisadas,

passou-se a discutir questões relacionadas ao dia-a-dia: o problema do excesso de ratos, da

falta d’água, de como arranjar o trator para retirada da areia, se ia sair do leilão ou do bingo o

dinheiro para comprar as vasilhas da merenda na escola.

De acordo com os artigos do estatuto dessa associação, registrado em cartório somente

em 28 de fevereiro de 1986, essa entidade tinha entre outras finalidades: dar cobertura ao

movimento comunitário para o qual todos colaboram espontaneamente, com vistas à

organização e autonomia da comunidade; e unir os moradores através da afirmação de seus

178 Palavras do Padre José Nilson, vigário da paróquia do Mucuripe. Cf.: Op. cit. GIRÃO. p. 197

Page 106: “FOGO, VENTO, TERRA E MAR: MIGRAÇÕES, NATUREZA E …livros01.livrosgratis.com.br/cp011195.pdf · formação e urbanização do Bairro Serviluz em Fortaleza. Comunidade localizada

104

interesses de trabalhadores e cidadãos, visando o fortalecimento de suas lutas pela superação

de seus problemas e necessidades179. Segundo o mesmo estatuto, a associação, “sem fins

lucrativos”, funcionaria “desvinculada de qualquer atrelamento político-partidário”. Mas o

que podia significar a produção de um documento escrito e registrado num universo onde

tradicionalmente predominou a oralidade?

“Então o pastor Bill180, o (padre) José Nilson, as assistentes sociais e a Colônia de

Pescadores foram muito importantes para minha vida comunitária181. A organização dos

moradores do Serviluz em associações comunitárias difundiu-se amplamente. No Serviluz,

dona Mariazinha é um grande exemplo de liderança comunitária, constituída da diversidade

de matrizes que tomaram o bairro:

“Eu como liderança eu tenho contato com todo mundo. Eu tenho meu partido, mas eu não tenho que me atrelar em partido algum, eu tenho que trabalhar em benefício da comunidade (...) a minha reivindicação, eu tenho que pedir benefício pra comunidade (...) por isso eu tenho amizades com todos, o meu trabalho é comunitário, é pela associação, é pelo povo (...) aqui é aberto pra todo mundo” 182.

Dona Mariazinha acumula mais de quarenta anos de prática comunitária onde adquiriu

contato com diversos políticos, trabalha como responsável não apenas pelo Serviluz, mas

participa de diversos conselhos populares na cidade. Participou da fundação da Federação de

Bairros e Favelas de Fortaleza (FBFF), em 1980, e se tornou uma referência no movimento

popular no estado183.

De modo geral, a participação dos moradores na luta pela melhoria social é entendida

como uma forma de valorização do espaço comunitário. Para os participantes, o engajamento

correspondia a um momento-chave de participação pública em prol do bem comum:

“(...) Foi preciso fazer uma passeata, um evento assim, a gente tudo mal trajado, com roupa pior do que a gente já tinha né? E saimo numa caminhada (...) pegando mais gente. E nós saimo e a gente conseguiu fazer aquele posto ali né? Primeiro era uma salinha ... chegava um médico por semana, mas já era muito que ninguém tinha nada”184

179 Estatuto disponível no arquivo da Associação de Moradores do Titanzinho. 180 Pastor norte-americano que liderou a construção da Igreja Presbiteriana e tornou-se um dos pioneiros no trabalho assistencial e educativo no bairro. 181 Depoimento de Maria Ferreira Dias, a dona Mariazinha, líder comunitária do Serviluz. Op. cit. CEARAH, Periferia, p. 102. 182 Entrevista concedida por Maria Ferreira Dias ao autor em 31/06/2006. 183 Entre inúmeras viagens à Brasília e a participação em diversos conselhos comunitários de Fortaleza, dona Mariazinha é a atual presidente do Conselho das Entidades do Grande Vicente Pinzón, que congrega 36 associações de bairros da área. A reivindicação conjunta foi uma estratégia para o aumento da representatividade das comunidades que possibilitou a formação de parcerias importantes, como às desenvolvidas com a Petrobrás. 184 Entrevista concedida por Maria da Conceição Alves dos Santos ao autor em 27/02/2003.

Page 107: “FOGO, VENTO, TERRA E MAR: MIGRAÇÕES, NATUREZA E …livros01.livrosgratis.com.br/cp011195.pdf · formação e urbanização do Bairro Serviluz em Fortaleza. Comunidade localizada

105

O movimento pela aquisição da cidadania, num bairro repetidamente visto como

marginal, não se restringe a modelos formais de reivindicação, como as associações de

moradores, mas desenvolve-se quase sempre no improviso diante de situações contingentes.

A encenação da própria miséria como uma estratégia política carece de uma definição mais

abrangente de política. Nesse sentido, o campo da política ultrapassa o âmbito estritamente

institucional e os limites da presença e da ação do Estado, para colacar-se na multiplicidade

de formas de poder e nos canais de autonomia comunitária.

Se os eventos comunitários assumem grande importância, já que era através deles que

uma grande leva de despossuídos procurava amenizar suas carências básicas, a vivência

comunitária também enseja a mudança de comportamento e a construção de novos valores:

“(...) eu tenho essas coisas tudinho notado, tenho o dia que foi aberto a programação do posto (de saúde), tenho o dia que veio esses posto (de eletrecidade), tenho o dia da inauguração do chafariz ali na rua da frente”185.

Entre esses novos valores, está o reconhecimento da necessidade de registrar as

conquistas, de comemorar cada vitória e fazer da memória comunitária um referencial para as

futuras gerações. O processo de aprendizagem coletivo e a noção de cidade como uma

comunidade desenvolvem-se de modos variados, corroborando a diversidade de estratégias

criadas no meio.

“(...) Nós da comunidade do Serviluz vinhemos solicitar soluções para a retirada da areia que está nos atingindo bastante, já caiu casas, outras estão enterradas. A areia está causando doença, ninguém não consegue dormir, nem comer, diante das condições que estamos. Cada vez mais piorando ainda mais devido à época do vento” 186.

Entre os grupos comunitários do bairro, as associações de moradores constituíram

talvez o modelo mais acabado e mais estruturado de organização, mas não o único. A

visibilidade das associações ocorre porque, além do potencial de reivindicação, os seus

membros conseguiam assimilar a compreensão da cultura escrita, o que possibilitou a abertura

de novos canais de inserção.

“Devemos falar sem vergonha e sem querer falar bonito, mas sim falar o que sentimos

da maneira que sabemos”187. Surge vinculada à necessidade das letras, a idéia da participação

política como uma espécie de desempenho, já que todo documento grafado precisa também

185 Entrevista concedida por Maria da Conceição Alves dos Santos ao autor em 27/02/2003. 186 Ata de reunião da Associação de Moradores do Titanzinho em 10/11/1982. 187 Ibidem.

Page 108: “FOGO, VENTO, TERRA E MAR: MIGRAÇÕES, NATUREZA E …livros01.livrosgratis.com.br/cp011195.pdf · formação e urbanização do Bairro Serviluz em Fortaleza. Comunidade localizada

106

ser apresentado verbalmente e a forma da apresentação é as vezes tão importante quanto

aquilo que se apresenta.

Outra importante mudança comportamental observada nas associações refere-se à

participação efetiva das mulheres locais188. Nas atas de reuniões, as letras trêmulas das

assinaturas indicam a nítida supremacia da presença feminina. Ainda que nem todos

soubessem assinar, as mulheres superam freqüentam, como grande maioria, todas as reuniões.

Para se ter uma idéia, na ata de reunião em 11/07/82, entre as 17 pessoas que assinaram, havia

o nome de apenas um homem. Curiosamente, 12 das participantes chamavam-se Maria189.

Os estudos recentes têm como perspectiva procurar a história da mulher no âmbito

privado, nas relações cotidianas e nas redes de poderes informais190. No Serviluz, foi a partir

da investigação das práticas cotidianas das associações que se percebeu a quebra de

preconceitos, a superação de desafios, a elaboração de novos valores e a criação de novos

tempos e espaços.

188 Apesar disso, nos depoimentos, foram constantemente lembrados nomes importantes para as associações, como o do seu Manoel de Paula, mais conhecido como “galo velho”, e o do seu Francisco de Assis, recentemente falecido. Esses homens foram presidentes da Colônia de Pescadores do mucuripe e principiaram a gestão de parcerias entre a comunidade e as entidades de pesca. 189 Ata de reunião da Associação de Moradores do Titanzinho em 11/07/1982. 190 Cf.: DIAS, Maria Odila Leite da Silva. Quotidiano e Poder em São Paulo no século XIX. São Paulo: Brasiliense, 1990.

Page 109: “FOGO, VENTO, TERRA E MAR: MIGRAÇÕES, NATUREZA E …livros01.livrosgratis.com.br/cp011195.pdf · formação e urbanização do Bairro Serviluz em Fortaleza. Comunidade localizada

107

Capítulo III

3 O homem e a natureza: os elementos para as transformações

3.1: As areias que voam

“Cumpre saber que o vento é compósito. Acredita-se que o vento é simples; engano. Essa força não é

somente dinâmica, é química; não é somente química, é magnética. Tem alguma coisa que é

inexplicável (...) o vento é cheio de mistério. Do mesmo modo que o mar. Também ele é complicado;

debaixo de suas vagas de águas, que se vêem, há outras vagas de força, que se não vêem. Compõe-se

de tudo. De todas as misturas, a do oceano é a mais invisível e a mais profunda. Tentais conhecer

esse caos que vai ter ao nada. É o recipiente universal, reservatório para as fecundações, cadinho

para as transformações (...)”.

(Trabalhadores do Mar, Victor Hugo)

No presente capítulo, procura-se analisar as relações estabelecidas entre homem e

natureza, a fim de argumentar que os habitantes desse lugar não viveram a atmosfera que os

circundavam impunemente. Residindo sobre uma localização geográfica atípica, rica e

selvagem, desenvolveram a partir daí suas estratégias de sobrevivência, constituíram traços

culturais e organizaram o cotidiano. Dentro das possibilidades históricas, dadas pelo meio e

pela intervenção do homem na natureza, procuraram, quase sempre de maneira coletiva,

inventar formas dignas e agradáveis de sobreviver na ambiência na qual se relacionavam. O

espaço, desconsiderando possíveis determinismos geográficos, torna-se um elemento básico

da cultura.

De certa forma, os moradores do bairro fizeram operar uma lógica de vida

diferenciada, que, muitas vezes, contrastava com a racionalidade que se pretendia para o

espaço urbano do progresso. No trabalho, nas habitações e nos relacionamentos pessoais,

emerge a criatividade de sujeitos históricos entrelaçados ao meio. Em determinadas

circunstâncias, os habitantes do Serviluz e regiões adjacentes se apropriaram culturalmente

das condições naturais estabelecidas, preservando-as, modificando-as e utilizando-as em

benefício próprio. O homem é um animal social.

Page 110: “FOGO, VENTO, TERRA E MAR: MIGRAÇÕES, NATUREZA E …livros01.livrosgratis.com.br/cp011195.pdf · formação e urbanização do Bairro Serviluz em Fortaleza. Comunidade localizada

108

A carta abaixo apresentada foi remetida à cidade de São Paulo e endereçada ao

programa de televisão “Porta da Esperança” no dia 05 de março de 1990. Com ela, os

membros da Associação de Moradores do Titanzinho esperançavam obter reformas na Escola

Comunitária São Pedro, construída em 1978 e constituída durante anos de apenas três

pequenas salas de aula. Na luta comunitária do Serviluz, natureza e cultura se entrelaçavam.

Prezado Sr. Silvio Santos E com grande satisfação que estamos escrevendo a V. Sa. Em primeiro lugar, desejamos contar um pouco da história da nossa comunidade: Somos, aproximadamente, oito mil pessoas constituídas basicamente de pescadores e artesãos. Nós morávamos na praia da barra mansa no mucuripe de onde fomos retirados pela marinha e colocados aqui na praia do Titanzinho que é outra faixa de terreno, mais além, na beira do mar que fica no bairro Serviluz. Sofremos muito com a chuva de areia que invade nossas casas e tempera nossa comida. Há onze anos nos mudamos para esse local. Com grande sacrifício fixemos nossas casinhas. São muitas famílias e a terra e o dinheiro curtos, por isto fomos obrigados a fazer casinhas muito pequenas, na maioria com dois a três cômodos, muitas delas sem banheiro, onde vivem mais ou menos oito pessoas. Há dez anos estamos tentando organizar nossa comunidade com o propósito de enfrentarmos juntos a luta pela sobrevivência (...)”191.

A Associação do Titanzinho foi formada basicamente por mulheres de pescadores

expulsos da Praia Mansa. A comunidade tinha se fixado no Serviluz havia mais de dez anos e

as mobilizações políticas eram extremamente necessárias porque as dificuldades de habitação

continuavam enormes. Acompanhando uma tendência geral na cidade, a carência de escolas

havia se configurado como um sério problema para o bairro desde os anos 80. Segundo dados

da associação, em 1990, aproximadamente sessenta por cento da população era constituída de

crianças menores de quinze anos que, na maioria, não conseguiam ingressar nas escolas

públicas fora do bairro e ficavam “sujeitas à marginalização e ao jargão de menor

abandonado”192.

Apesar da não contemplação no programa de Sílvio Santos, os moradores do lugar, que

já haviam iniciado pequenas reformas no espaço, foram se engajando: “Eu fui olhar como era

o movimento! Um quartin!”193. A partir do envolvimento de novas pessoas, “olha começou a

andar, e hoje se encontra uma casa grande, dando capacidade a mais de trezentos alunos”194.

191 Carta disponível no arquivo da Associação de Moradores do Titanzinho. 192 Em 16 de agosto de 1990, foi celebrado um acordo entre o Fundo das Nações Unidas e a Associação de Moradores do Titanzinho, no qual se aprovava um pedido de ajuda financeira para a comunidade e seus projetos sociais. Via representação do Unicef no Brasil, passavam a fazer parte das “Entidades e Projetos Apoiados pelo Criança Esperança”. 193 Entrevista concedida por Maria Zuleide de Oliveira Moura ao autor em 01/01/2003. 194 Entrevista concedida por Maria Zuleide de Oliveira Moura ao autor em 01/01/2003.

Page 111: “FOGO, VENTO, TERRA E MAR: MIGRAÇÕES, NATUREZA E …livros01.livrosgratis.com.br/cp011195.pdf · formação e urbanização do Bairro Serviluz em Fortaleza. Comunidade localizada

109

O trabalho comunitário, sob a forma de associações, alcançava quinze anos de

experiência de luta quando a referida carta foi escrita, seus associados acumulavam e

partilhavam projetos. Parcerias e aprendizados foram se desenvolvendo com entidades de

outros bairros da periferia da cidade. A procura pela cidadania a partir da organização em

associações comunitárias tornou-se uma prática comum no Serviluz e marcou presença forte

em melhorias sociais.

Acontece que um dos pontos marcantes dos diferentes movimentos associativos que

foram se formando no bairro era a sabedoria em elaborar suas estratégias e reivindicações por

moradia e trabalho em função do tipo específico de paisagem no qual estavam inseridos.

É também em cima dessa sigularidade, que os moradores passam a cantar a história do

bairro:

A areia fazia funil, era uma assombração O feijão quando cozinhava, niguém podia comer não. Nesse tempo as criancinhas, viviam pra morrer e nós sempre cobrávamos, a força do Poder. Vinha gente dos órgãos, estudar a solução Mas só os que sofriam, trabalhavam feito uns cão, Retirando areia pesada que tirava tudo então.195

No Serviluz, por exemplo, na ampliação do pequeno espaço da escola, os moradores

daquela praia precisavam superar, além da falta de recursos para tocar a obra, um

enfrentamento desgastante com o tipo de solo sobre o qual estava a obra. As condições

adversas do meio ambiente se faziam presentes em muitos aspectos da vida, interferindo

diretamente no cotidiano. Os homens e mulheres situavam-se num ecossistema próprio, ativo,

e em dados momentos pareciam travar duelos contra gigantes, as forças da natureza.

Uma breve leitura dos projetos desenvolvidos na comunidade nos revelou que os

esforços dos grupos de moradores e outros núcleos sociais eram em boa medida canalizadas

na superação de problemas referentes às condições ambientais ou a elas relacionados. As

reuniões campais eram pautadas em temas como: o excesso de ratos; a poluição advinda do

lixo; a retirada de entulho dos becos e ruas; a constante falta de água encanada e energia

elétrica nas casas; o plantio de vegetação e a vinda do trator para amenizar o vôo das areias.

A carência material era generalizada nos bairros pobres da cidade; bairros da zona de

praia leste, como Pirambu e Barra do Ceará, apresentavam semelhanças geográficas às do

Serviluz, mas os prejuízos de moradia deste bairro, advindos da natureza, são severos. Os

Page 112: “FOGO, VENTO, TERRA E MAR: MIGRAÇÕES, NATUREZA E …livros01.livrosgratis.com.br/cp011195.pdf · formação e urbanização do Bairro Serviluz em Fortaleza. Comunidade localizada

110

ventos fortes varrem finas nuvens de areia que podem facilmente soterrar casas. Em alguns

meses do ano, principalmente de agosto a novembro, a areia deteriora bastante os prédios. É

senso comum na comunidade que a área do Serviluz tem a “segunda maior maresia do

mundo”, que a concentração dessa substância é voraz, devora eletrodoméstico, porque

rapidamente “a maresia penetra pra dentro dos móveis, enferruja geladeira, fogão e estraga

televisão e assim vai... ”196. Ali, objetos e corpos desgastam-se na contínua combinação dos

elementos da natureza.

No caso da reforma da Escola São Pedro, localizada à beira mar, o solo arenoso fazia

ceder as paredes, o vento quebrava as telhas e a movimentação das dunas progressivamente

soterrava a estrutura física da escola.

A luta contra as intempéries se amplia de modo sazonal, notadamente durante o

período das ressacas da maré, nas enchentes trazidas pelos meses de inverno e na época dos

ventos intensos, entre agosto e outubro. Se as manifestações da natureza são sazonais, os

dramas dos moradores contra seus efeitos podem ser vividos diariamente. Uma entrevistada,

cuja casa já havia desabado uma vez, observou que nas reuniões de ruas se lutava quase

ininterruptamente, a fim de se evitar a areia que caía nas casas. A preocupação novamente

recaía sobre as crianças, devido aos altos índices de mortalidade e doenças entre os meninos

do bairro; a areia podia anunciar a morte.

“Dava diarréia, pneumonia, vômito e chegaram a morrer. Vários caixõezinhos eu fiz devido essa crise de diarréia que aparecia nas crianças, uma calamidade muito grande! (...), olhe, era muito crítico, muito sofrido. Eu via calamidade das mães chorando, limpando os olhos dos filho direto, chei de areia tudo. Quando botava o feijão no fogo aqui, metade era areia. Às vezes minhas filhas: - Não, como isso não mãe que meus dente é tudo ringindo... Mastigando areia pura... Eu chorava. Às vezes botava um lençol por cima das cadeira e botava elas pra comer debaixo pra na hora do almoço não comer só areia” 197.

Dona Zuleide comprou sua casa, um pequeno “localzinho”, de um morador que não

mais agüentara o peso da areia e a poeira das pedras. A ameaça de desabamento deixava todos

em constante atenção. Além disso, a areia nos alimentos, o acúmulo de lixo na praia e os

poços artesanais cavados próximos às fossas propiciavam afecções de toda ordem. Entre os

moradores mais próximos do mar, fazia-se necessária a realização de pequenos improvisos

diários. “Aí o pessoal faz o quê? Descarrega areia com carrinho de mão, outros agoam, outros

195 Cordel produzido por Maria Zuleide de Oliveira Moura, disponível na Associação de Moradores do Titanzinho. 196 Entrevista concedida por Francisco Herton Lima Rodrigues ao autor em 30/02/2002. 197 Entrevista concedida por Maria Zuleide de Oliveira Moura ao autor em 01/01/2003.

Page 113: “FOGO, VENTO, TERRA E MAR: MIGRAÇÕES, NATUREZA E …livros01.livrosgratis.com.br/cp011195.pdf · formação e urbanização do Bairro Serviluz em Fortaleza. Comunidade localizada

111

bota planta, bota palha pra ver se diminui, mas todo ano a mesma coisa”198. A experiência

concreta com um meio natural que pode mostrar-se hostil torna também esse um espaço

marcado pela inventividade popular, capaz de amenizar os transtornos e reverter situações

adversas.

Diferentemente da ameaça proporcionada pelo fogo, o enfrentamento diário das águas,

dos ventos e das areias já existiam antes da chegada desse povo à região. A questão é que

estes elementos se transformaram em problemas comprometedores com a intervenção e

ocupação humana. A construção dos espigões e a edificação de novas habitações,

ecologicamente irregulares, evidenciaram também a força da natureza local. Para se ter uma

idéia da potência da ventania, vale lembrar que em 1996, na área da Praia Mansa, foi instalado

o equipamento para obtenção de energia através da força dos ventos199.

As dificuldades e aventuras envolvendo a natureza também emergem com certa

facilidade e entusiasmo nas narrativas dos moradores. Grande parte dessa população veio dos

longos 573 quilômetros de litoral cearense para “tentar a vida” em Fortaleza. Na cidade,

morar nos morros e na beira de praia para muitos não era exatamente uma novidade. Na nova

habitação urbana, exercia-se a permanência de práticas antigas, como o hábito de caminhar

longos trajetos ou cavalgar. Para subir a parte mais baixa de um morro, era preciso andar; em

alguns locais, a duna era tão alta e tão íngreme que praticamente impossibilitava a chegada à

porta de casa sem uma caminhada enfadonha.

Dona Conceição200 contou que, apesar de ter nascido em Camocim, onde a praia era

“bela” e a areia “bem grossa”, e não “fina” e “voadora” como a do Serviluz, nunca gostou de

morar no litoral. A entrevistada acredita que, somente por ironia do destino, ela agüentou não

apenas morar a vida inteira na praia como também, chegando à cidade, trabalhar em um

frigorífico com produtos marinhos durante sete anos, casando-se ainda com um pescador com

o qual teve três filhos.

“Sempre o destino me castigou com isso aí (...) olhe eu vou dizer: pra mim foi a necessidade, tá entendendo! pra mim foi muita necessidade que me deu muito a importância de eu resistir essa coisa que eu não queria (...)”201.

198 Entrevista concedida por Francisco Herton Lima Rodrigues ao autor em 30/02/2002. . 189 Entrevista concedida por Maria da Conceição Alves dos Santos ao autor em 27/02/2003. 199 Instalado pela Companhia Energética do Ceará (COELCE) em 1996, o Parque Eólico é composto de quatro geradores de 40m de altura e 300kw de potência cada. Cf.: Museu do Jangadeiro no Farol do Mucuripe 200 Entrevista concedida por Maria da Conceição Alves dos Santos ao autor em 27/02/2003. 201 Ibidem.

Page 114: “FOGO, VENTO, TERRA E MAR: MIGRAÇÕES, NATUREZA E …livros01.livrosgratis.com.br/cp011195.pdf · formação e urbanização do Bairro Serviluz em Fortaleza. Comunidade localizada

112

Há, nesse caso, o entendimento da condição praiana como uma experiência de suma

importância. Há também o desenvolvimento de certas sensibilidades que tornam os moradores

capazes de distinguir detalhes, aparentemente secundários, por exemplo, na composição do

solo. Se para alguém de fora a areia da praia pode aparentar ser tudo igual, para os que

convivem diariamente com seus efeitos, essa é uma observação no mínimo importante.

A questão é como as pessoas foram constituindo diferentes modos de apreciação da

natureza que as envolvem. Prazer ou obrigação, a condição de se relacionar de forma mais

direta com o meio na verdade é uma experiência já adquirida por boa parte dos migrantes que

chegaram ao Serviluz. Além dos antigos habitantes da Praia Mansa, muitos moradores do

bairro eram provenientes de morros ocupados nas proximidades202 e enfrentavam situações

como os riscos de erosão e o perigo decorrente da enchente das marés.

“Então essa área aqui começou porque o Titan Velho (Praia Mansa) foi invadido pelas águas, e o governo com medo, a Capitania com medo de o pessoal anoitecerem vivo e num amanhecerem que o mar tava crescendo muito, tomando os paredão (...) pra gente atravessar nas marés grandes era um sufoco. A gente ia enxuto e voltava molhado porque o banho era certo. Maior perigo! Então, aí eles mudaram o pessoal pra essa área, e foi se localizando, aumentando e duma família trazendo outra e assim sucessivamente (...)”203.

Quem chega a Fortaleza e se desloca para essa região precisa considerar como fatores

cruciais de moradia a situação ambiental, a localização, a natureza do espaço.

Tradicionalmente essa região foi de pesca e outras atividades, profissões que apresentavam

uma forte interação com o meio em que se trabalha. No Serviluz a prática do surfe deu uma

continuidade renovada a essa tradição em que natureza, trabalho e cultura se fundem.

A natureza transformada em selvagem, talvez pela maneira grosseira como foi

modificada, dificultou inclusive a montagem do porto e da indústria. No decurso das obras,

bem como no processo constante de manutenção, a natureza avaria sem tréguas os prédios e

equipamentos das fábricas, os elementos naturais impõem também os seus impasses à

modernização; muitas vezes, é o próprio ambiente alterado que expõe as contradições e furos

do processo modernizador.

Mas, contrariando as revoltas da natureza, o desejo industrial burguês se projeta sobre

os recursos naturais, transformando-os a serviço do sistema capitalista de exploração. A

enseada foi desastrosamente aproveitada por ocasião do porto. Nos anos cinqüenta, a

202 Castelo Encantado, Morro Santa Teresinha, Morro do Teixeira, Morro das Placas, Lagoa do Coração, Favela da Sardinha, Favela do Marrocos, Favela do Luxou, parte do Papicu e da Praia do Futuro, entre outras, são regiões de dunas ocupadas trabalhadores migrantes na parte leste de Fortaleza. 203 Entrevista concedida por Maria Zuleide de Oliveira Moura ao autor em 01/01/2003.

Page 115: “FOGO, VENTO, TERRA E MAR: MIGRAÇÕES, NATUREZA E …livros01.livrosgratis.com.br/cp011195.pdf · formação e urbanização do Bairro Serviluz em Fortaleza. Comunidade localizada

113

termelétrica SERVILUZ teve seu prédio construído à beira-mar do Mucuripe, exatamente

porque a usina se beneficiava da água mansa represada pelo quebra-mar.

O projeto de energia da época, aliás, fora desenhado para utilizar a água do mar, o que

só era possível com a manutenção permanente de equipes de mergulhadores. Eram os homens

das classes trabalhadoras que cumpriam o penoso serviço de limpeza e deslocamento das

bombas de dragagem da usina; eram eles, e não os donos das fábricas, que teriam seus corpos

mutilados pelo capital. Muitas vidas se perderam na disputa pela domesticação dos elementos,

a tentativa de submissão da natureza ao progresso foi por vezes bastante perversa.

Em tempos recentes, na construção do Porto do Pecém, diferentemente do

ancoradouro Mucuripe, anunciou-se a preocupação em reduzir os possíveis impactos

ambientais na orla: “Para a sua implantação, diversas variáveis ambientais, como ventos,

marés correntes e ondas foram monitoradas, de modo a reduzir possível impacto no local e na

sua área de influência”204.

Apesar do discurso de aproximação com a comunidade e da proteção ambiental, tanto

a preservação dos ecossistemas quanto a qualidade de vida da população dessa parte do litoral

do Ceará foram comprometidas com o deslocamento das pessoas que habitavam o local.

Escolha ou necessidade, o fato é que quem chegava ao Serviluz sabia que habitava um pedaço

de chão que até bem pouco tempo era água do mar. Antes do surto ocupacional em massa,

ocorrido no final dos anos 70, as marés beiravam os portões das indústrias, raras eram as

edificações. Parecia impensável a criação de um conglomerado humano que atualmente

apresenta um contingente de pelo menos vinte mil pessoas, um bairro inteiro erguido naquele

terreno irregular e arenoso, um lugarejo afastado onde o domínio visível da natureza parecia

representar a própria ausência da já anunciada civilização urbana.

Nas entrevistas os moradores comumente se remetiam “àquele tempo”, referindo-se ao

restrito povoado de pesca e ao meretrício estabelecido desde os anos sessenta. Relembram

claramente que nesse tempo nem todos os espaços podiam ser ocupados por casa, era preciso

muita coragem, pois na área prevalecia ainda uma intensa sensação de isolamento, sem

energia elétrica, entre dunas e matagais. Essa lembrança do lugar paradisíaco é quase sempre

uma referência especial do passado, mas não um passado nostálgico e idealizado, e sim uma

memória viva que denota com clareza como nos dias atuais a população mudou e para

melhor.

204 Informativos Cearáportos, ano III, nº. 15, out./nov. 2003.

Page 116: “FOGO, VENTO, TERRA E MAR: MIGRAÇÕES, NATUREZA E …livros01.livrosgratis.com.br/cp011195.pdf · formação e urbanização do Bairro Serviluz em Fortaleza. Comunidade localizada

114

O fato é que as condições naturais foram fundamentais no início da ocupação, e, pela

fragilidade da estrutura habitacional, muitos casebres da praia desabaram várias vezes,

soterrando o sonho da vida estável na cidade. Acrescente-se aos problemas de infra-estrutura

e à ausência de saneamento básico a incômoda sensação de não ser o dono da terra em que se

vive, já que oficialmente o terreno é pertencente ao Patrimônio da União. Sendo uma

concessão da Marinha, as casas não podiam ser compradas ou vendidas e a ocupação somente

era possível na condição de moradia de pescador, o que na prática não aconteceu.

Na cabeça de alguns moradores, a qualquer hora o espaço pode sofrer intervenção da

Capitania dos Portos, já que o terreno está sob sua jurisdição, e tornou-se ainda um dos alvos

favoritos da especulação e da indústria turística. “Esse boato corre há muito tempo: um dia o

Serviluz vai sair daqui”, são expressões que apontam a luta pela permanência como questão a

ser enfrentada de forma contínua.

“Essa área da praia eu sou contra dizer que vai sair alguém (...) porque existe a lei. Se

existe a lei pra gente não sair daqui, ela tem que ser cumprida”205. Os projetos de retirada da

população atravessam as gerações, há, porém, o consenso local de que “a praia do Serviluz é

uma praia dos pobres”206.

A luta inicial pela ocupação “naquele tempo” deu lugar aos embates pela continuidade

no hoje. Esse conflito ganha importância à medida que a comunidade se conscientiza da

importância da manutenção de homens e mulheres no espaço onde operam suas ações, onde

constroem suas culturas.

Um fato importante é que as pequenas casas do Serviluz só foram erguidas após a

construção de um grande espigão de pedras, capaz de fazer recuar e barrar as águas. Com o

mar “dominado”, os tratores e caçambas derrubaram morros e limparam o terreno. As pedras

foram alinhadas por locomotivas e então construídas as primeiras palhoças de taipa.

Rapidamente, protegido pelas rochas, aquele pedaço de terra até então ocupado por uma ou

duas ruas transformou-se num formigueiro humano impressionante.

As pedras há muito tempo tinham como destino o Mucuripe. Ali funcionou uma antiga

pedreira. Retirantes de outros tempos, desnutridos e famintos devido ao flagelo, somente

recebiam a ração distribuída nos socorros públicos do governo após arrastarem pedras de mais

de quinze quilos por quilômetros de distância, num percurso sobre areias. As pedras, antes

destinadas às obras do porto, passaram a ser empregadas na construção de imensas paredes de

proteção contra o mar e posteriormente nos alicerces das pequenas casas dos trabalhadores.

205 Entrevista concedida por Maria Ferreira Dias ao autor em 30/06/2006. 206 Entrevista concedida por Natalee Ferreira de Sousa ao autor em 20/05/2006

Page 117: “FOGO, VENTO, TERRA E MAR: MIGRAÇÕES, NATUREZA E …livros01.livrosgratis.com.br/cp011195.pdf · formação e urbanização do Bairro Serviluz em Fortaleza. Comunidade localizada

115

É importante observar como, mesmo após a construção de milhares de casas, as pedras

ainda guardam a sensação do isolamento. A exemplo dos areais antigos, pontos ermos em que

parecia impossível o advento da civilização, as pedras no Serviluz são hoje espaços

estigmatizados. Na literatura cearense, figurou a imagem das areias como lugar inóspito,

incômodo, desprovido do conforto da vida urbana; no bairro, porém, as pedras e as areias não

são lugares vazios, mas abrigam sociabilidades diferentes.

Apesar da vista belíssima, ali permanece a sensação de se viver sobre um espaço

pouco freqüentado, solitário e pouco visto no litoral de Fortaleza; é um espaço móvel, já que

mesmo as pedras sucumbem às pancadas do mar e à movimentação do solo. Quem ali sobe,

ainda que esporadicamente, vê que se tornou cada vez mais fácil escalar as pedras; a natureza

muda seus caminhos, as pessoas reaprendem a caminhar.

Imaginar que a longa pilha de pedras serve apenas como mecanismo de proteção

contra o avanço do mar é uma grande desatenção. Esse espaço soma-se a outros do bairro

onde a natureza e o tipo de arquitetura sobre ela empreendida foram definidos socialmente

pelos moradores como espaços proibidos. Lugares escuros à noite e de difícil acesso possuem

fronteiras sociais em que os espaços são transformados em territórios, considerados proibidos,

perigosos e não aconselháveis para muitos moradores da mesma comunidade. Os homens de

várias formas se apoderam e demarcam pedras, batizam mares e nomeiam ruas de areia.

Nas praias acontecem namoros proibidos; sobre as pedras, muitos jovens iniciam a

sexualidade, experimentam drogas, enlouquecem. Mortes, acidentes, traições matrimoniais e

toda uma gama de ações e atos escusos se desenvolvem sobre poeiras e paralelepípedos, mas,

entre os moradores, pode haver divergências gritantes sobre o gostar ou não da vida à beira-

mar. A praia quase sempre é tomada como ponto de encontro, da diversão e da amizade, pode

ser assim o melhor lugar para curtir uma boa “basquetada”207. A praia conserva a idéia da

dádiva, da fortuna, da fecundidade e do privilégio, mas também o pensamento do sufoco, da

maldição, da desgraça e da falta de sorte de ali habitar.

É preciso também considerar que ali se desenrolam variadas formas de sociabilidade,

afeto e lazer. Apesar do estigma, são espaços concebidos e utilizados por muitos moradores

como uma extensão da própria casa, ainda que para fazer coisas que não se faria na intimidade

do lar, porque é exatamente a condição, culturalmente criada, da pouca aceitação e

visibilidade noturna que faz do lugar atrativo ou repulsivo.

207 Brincadeira, lazer entre amigos geralmente regado a bebidas e comidas angariadas no coletivo.

Page 118: “FOGO, VENTO, TERRA E MAR: MIGRAÇÕES, NATUREZA E …livros01.livrosgratis.com.br/cp011195.pdf · formação e urbanização do Bairro Serviluz em Fortaleza. Comunidade localizada

116

Desse modo, da relação dos homens do local com a natureza emerge também a

desarmonia. Nas memórias surgem tanto as imagens do paraíso quanto as do inferno. A

ambiência perigosa tem como marca os constantes riscos e acidentes banais. Ao longo do

tempo, as histórias de garotos distraídos, vitimados em acidentes fatais, se espalharam. Bater a

cabeça ou escorregar numa ponta de pedra ao tomar banho não é fato raro. Sabe-se que é

preciso conhecer em pormenores os locais propícios para mergulhar, ter noção dos acessos

mais práticos, saber reconhecer as melhores “locas”208.

Se há controvérsias sobre os desígnios da natureza e as relações do homem com o

meio, há igualmente uma contradição sobre o valor econômico atribuído às casas da beira

mar. Nessa parte do litoral, operou-se uma lógica de ocupação em que as residências mais

próximas da praia são as mais vulneráveis às intempéries naturais e por isso menos

valorizadas comercialmente. Como não interessa aos trabalhadores de maior poder aquisitivo

morar diante do mar, as residências à beira da praia continuam sendo as mais rudimentares em

matéria de arquitetura e segurança domiciliar.

Mesmo nas casas das ruas principais, é comum que, para amenizar o cair da areia nos

cômodos, as telhas sejam forradas com um tipo de lona plástica. Mas nem o plástico elimina a

estranha sensação do cair da terra sobre o corpo, que sente facilmente a idéia de habitar um

lugar cuja natureza se revela ímpar.

Seja como local de moradia, seja como meio de trabalho, seja para fins de lazer, as

nuanças geográficas interferem diretamente no dia-a-dia da população, aguçando

sobremaneira as sensibilidades.

Do teto emplastificado sob o qual se dormia ao chão movediço sobre o qual se pisava,

os elementos naturais deixam suas marcas no cotidiano do lugar. Até há pouco tempo, as

areias das dunas infestavam de pulgas os pés das pessoas; quando se olhava para os dedos de

uma criança, notava-se que estes estavam repletos de buracos deixados por bichos-de-pé. As

pulgas migravam da areia, alojavam-se no corpo e penetravam na carne.

Em algumas falas, a deficiência socioeconômica devia ser superada pela própria

utilização racional do ecossistema, a mediação entre consciência dos valores humanos e a

natureza, o mutualismo com o ambiente, o aprendizado do espaço como impulsionador das

transformações sociais necessárias.

Nesse contexto, parte da juventude passa a expressar os problemas e a cultura local em

sua mutiplicidads, o entendimento de cultura pode não mais se restringir ao microcosmo do

208 Cavernas esculpidas entre as pedras, algumas conseguem abrigar cerca de oito pessoas.

Page 119: “FOGO, VENTO, TERRA E MAR: MIGRAÇÕES, NATUREZA E …livros01.livrosgratis.com.br/cp011195.pdf · formação e urbanização do Bairro Serviluz em Fortaleza. Comunidade localizada

117

bairro, ainda que o espaço contenha os elementos essenciais de sua formação, mas se baseia

na integração da comunidade ao planeta:

As folhas dos livros não dizem tudo que querem dizer. O fogo não queima tudo que tem para queimar. A água do mar não chegou onde quis. O homem impediu a natureza de se revelar e onde ele está? Vai ficar. A terra é fértil, é vida que brota de todo lugar. O homem parece que não entendeu a lição? (...) supérfluo, vil metais, estrato de uma conta gorda no Banco Cental. As coisas da vida ainda me dão prazer de viver, na beleza de ser. A vida quão longa é tão bela, que ainda dá para fazer o que dá para fazer. A terra e as coisas da vida é tudo um só e tudo gira em torno de você. E tudo isso é parte de você. Tudo, tudo.209

3.2 Arquitetura local: da taipa ao tijolo

“(...) Se propunham como objectivos não uma mera melhoria das condições materiais de vida dos

trabalhadores, mas sim a procura de satisfações mais elevadas, satisfações essas que se tornariam mais

acessíveis após a obtenção de um mínimo de condições materiais”.

(Richard Hoggart) “O bairro tem sua infãncia , juventude e velhice. Esta, como a das árvores é a quadra mais bela, uma

vez que sua memória se constituiu”.

(Ecléia Bosi)

Como observado anteriormente, as fortes agitações marítimas, os ventos, as dunas e

posteriormente os incêndios não facilitavam a fixação do homem na região do Mucuripe, e o

Serviluz permaneceu um local pouco habitado até o fim dos anos 70. As migrações para

Fortaleza, no entanto, provocaram uma acirrada disputa pelos espaços urbanos e as camadas

pobres da população procuravam se fixar mesmo em locais considerados inadequados e

insalubres para a habitação. Não sendo possível eliminar a imensa massa de trabalhadores que

no período tomava conta da cidade, os movimentos sociais pressionavam o governo a

participar mais ativamente da melhoria habitacional nas favelas, urbanizando-as.

209 Letra da música “Tudo” do cantor local Eduardo Lenda.

Page 120: “FOGO, VENTO, TERRA E MAR: MIGRAÇÕES, NATUREZA E …livros01.livrosgratis.com.br/cp011195.pdf · formação e urbanização do Bairro Serviluz em Fortaleza. Comunidade localizada

118

Nos anos 80, os levantamentos topográficos e os projetos de terraplanagem das dunas

empreendidos pelo Estado reafirmavam a dificuldade, há muito sentida na prática pelos

moradores da praia, de garantir condições mínimas de moradia sobre as areias. Esse trabalho

era extremamente problemático devido aos constantes escorregamentos e erosões da terra. O

trabalho exigia elevados recursos financeiros. Cuidados especiais precisavam ser aplicados na

execução de tarefas como o tráfego de equipamentos sobre pneus ou a fixação de cobertura

vegetal num terreno deslocado ininterruptamente pelo vento. Mesmo com o uso de uma terra

mais grossa e com a irrigação permanente, os desmoronamentos por vezes aconteciam. Além

disso, não era possível urbanizar as dunas sem destruir seus elementos naturais.

Já na edificação portuária, solicitava-se constantemente a intensificação do plantio de

maiores extensões de grama verde sobre os morros do Mucuripe, para que a areia não

soterrasse as construções. A necessidade de se resguardar contra os efeitos perversos dessa

paisagem natural alterada e o receio das conseqüências assustadoras do crescimento

demográfico que assolou a região provocaram uma verdadeira revolução, em termos de

moradia, no Serviluz. “(...) quando chegou o primeiro ônibus pra passar nessa linha aí, foi uma animação muito grande né (...) aí todo mundo foi lá pra pista pra comemorar. Aí o motorista sentiu-se muito feliz, um motorista mais feliz do que aquele ... Porque tiraram ele de dentro do ônibus nos braços sabe? Era os homens, pescadores, sabe pescador como é que é né? Eles se sentiam muito ruim quando chegavam do mar né, do porto do Mucuripe pra cá, de pés, no escuro. Quando chegava aqui num dava nem pra saber direito qual era a sua casa de tão escuro que era, só a zuada do mar. Aí quando veio o ônibus aqui foi uma festa uma coisa.... uma festa” 210.

Durante esta pesquisa, constatou-se que o Bairro Serviluz foi constituído em meio à

uma série de transformações urbanas. Esse espaço deixou de ser somente um povoado onde o

fogo significava luz. De modo curioso, a denominação do bairro popularmente quase não é

atribuída a usina de energia elétrica, usualmente, atribuí-se o nome do bairro ao letreiro do

ônibus. Se no plano industrial o Serviluz foi um projeto fracassado em termos de geração de

eletricidade, no plano cultural, essa comunidade fomentou experiências sociais bastante

iluminadas.

Ao tempo dos cadeeiros e velas, sobreveio à época dos refletores. A lua e as estrelas já

não iluminavam a contento os caminhos em terra, e a chama do fogo se tornou uma severa

ameaça. Com o passar dos anos, os postes de eletricidade já não eram suficientes somente nas

ruas e estabeleceu-se a necessidade da iluminação noturna na praia. Ali, se havia adquirido

uma certa sensibilidade para a luz elètrica e desenvolvido o gosto do uso noturno do espaço.

210 Entrevista concedida por Maria da Conceição Alves dos Santos ao autor em 27/02/2003.

Page 121: “FOGO, VENTO, TERRA E MAR: MIGRAÇÕES, NATUREZA E …livros01.livrosgratis.com.br/cp011195.pdf · formação e urbanização do Bairro Serviluz em Fortaleza. Comunidade localizada

119

O desejo do asfalto também se concretizou e as memórias das areias atualmente

misturam-se as lembranças da poeira da cidade asfaltada. Nos depoimentos, a imagem do

paraiso podia ser enganosa, e a agradável sensação dos pés afundando docemente na areia

macia da praia, ilusória. A caminhada daqueles tempos não mais fazia sentido e o transporte,

a pé e no escuro, agora oferecia riscos diante da quantidade de prédios e objetos postos sobre

as dunas. No dia-a-dia do trabalhador, o ônibus, e por consequência o asfalto, significavam

facilidades no trabalho e na sonhada educação dos filhos.

Por outro lado, a luta e a adesão dos moradores as melhorias urbanas, como o sistema

de transporte, possibilitou a difusão de trabalho, educação e novas amizades fora dos limites

do bairro, anunciando o multicuturalismo. Ao mesmo tempo, a aquisição de equipamentos

urbanos possibilitou que a comunidade ensaiasse lâmpejos de autonomia em relação à cidade.

O crescimento do comércio local, por exemplo, consolidou um sistema de compra e venda de

produtos que permitiu a fixação dos moradores, pois estes passaram a dispôr de serviços

básicos nos arredores da casa. “Quem conheceu o que era Serviluz e o que ele está agora, o

Serviluz virou uma cidade”211.

Sobre a transformação operada nas condições de habitação no bairro, há, de modo

geral, certo espírito de vitória na concepção da maioria dos moradores. A convicção era a de

que nos dias de hoje era indigno estabelecer a convivência dentro de frágeis choupanas de

madeira. Nas falas, o avanço do tempo e as mudanças materiais acarretadas nesse processo

trazem a sensação do sucesso, da permanência, da fixação de quem acompanhou a sistemática

melhoria das frágeis habitações de barro, madeira e plástico.

“Mas graças a Deus que quase todo mundo já tem o seu emprego digno, as condições de moradia tão melhor, ninguém mora mais em casa de tábua, todas são de tijolo. Vinte anos de conquista eu tô vendo o resultado”212.

Nas construções, aos poucos, os moradores passaram a não mais utilizar as mãos para

modelar o barro da taipa; entrou em cena o tijolo. Este passa a ser assentado com os braços e

os utensílios de trabalho do pedreiro, instrumentos de um profissional cada vez mais

requisitado na comunidade. No decorrer dos anos, substitui-se a madeira pelo tijolo e a pedra,

o barro pelo cimento e a cal, a palha pela telha, o chão de terra batida pelo cimento, frio e

úmido.

211 Entrevista concedida por Maria Ferreira Dias ao autor em 31/06/2006. 212 Entrevista concedida por Maria Zuleide de Oliveira Moura ao autor em 01/01/2003.

Page 122: “FOGO, VENTO, TERRA E MAR: MIGRAÇÕES, NATUREZA E …livros01.livrosgratis.com.br/cp011195.pdf · formação e urbanização do Bairro Serviluz em Fortaleza. Comunidade localizada

120

Não tardou muito e logo se começou a pisar em azulejos e cerâmicas, começaram a

aparecer casas com o teto forrado a ferro e concreto, ergueram-se as primeiras lajes, o duplex,

e as pessoas passaram a viver umas sobre as outras.

Sintomático do crescimento do ramo da construção civil no Serviluz passou a ser o

grande número de obras espalhadas pelas ruas. Em épocas como as de final de ano, e ainda

hoje, é notadamente difícil encontrar, entre as vielas estreitas, uma em que não se esteja

empreendendo qualquer tipo de construção ou reforma. Ruas e becos ficam interrompidos em

vários pontos, obstruindo o trânsito de carros e pedestres devido à exposição dos materiais de

construção à entrada das portas. Disso resultou ainda o crescimento da quantidade de furtos a

sobras de material deixado nas ruas. Ora, de certo tempo para cá, foram diminuindo os vazios

característicos dos quintais em função da necessidade de improvisar novos cômodos. À

medida que o terreno passou a ser todo construído, tornou-se difícil depositar objetos no

interior do espaço domiciliar bastante reduzido. O material a ser usado na obra do dia

seguinte, guardado fora da casa, passou a carecer de acirrada vigilância.

Mesmo com o bairro já tendo praticamente todo seu plano físico ocupado, a

reprodução das habitações não cessou. Novos barracos, outros “puxados”, e muros passaram a

separar terrenos cada vez menores. A terra foi se dividindo entre os membros mais jovens da

família, à medida que esta se multiplicava. As moradias se amontoavam. Novas frentes de

casas, onde antes “tudo era mar”, foram aparecendo e o bairro mudou significativamente suas

feições. Mas tal mudança não foi assim tão repentina.

Nas circunstâncias sociais e ambientais que o bairro apresentava, durante algum

tempo, pareceu pouco animador aos trabalhadores que alcançassem alguma sobra em seus

orçamentos e investissem seus parcos salários nesse espaço. Além disso, rondava o temor

permanente do desalojamento compulsório, não compensando melhorar o imóvel, já que, no

caso de uma possível indenização, o valor do barraco seria o mesmo.

Os problemas sanitários eram cruéis e os detritos das residências corriam a céu aberto.

Em épocas chuvosas, a areia acumulada à entrada da comunidade se tornava mais consistente,

formando uma barragem natural, impedindo o escoamento das águas da chuva, que ficavam

acumuladas, provocando o alagamento da área, o que aumentava ainda mais os riscos de

desabamento e o conseqüente agravamento do estado de saúde da população.

Com a chuva, o perigo vinha do céu e a calamidade se manifestava através das

enchentes. Em 1984, logo no primeiro grande inverno que sucedeu o longo período de

estiagem, entre 1978 e 1982, ocorreram vários desabamentos dos casebres de taipa. Muitas

famílias ficaram desabrigadas. Pouco tempo depois da chegada ao bairro, os moradores mais

Page 123: “FOGO, VENTO, TERRA E MAR: MIGRAÇÕES, NATUREZA E …livros01.livrosgratis.com.br/cp011195.pdf · formação e urbanização do Bairro Serviluz em Fortaleza. Comunidade localizada

121

uma vez empreenderam uma enorme batalha pela retirada da areia e reconstrução das casas.

Travou-se naquele momento uma longa peregrinação nos órgãos públicos: passeatas,

documentos, abaixo-assinados, denúncias nos jornais e na televisão.

Os documentos arquivados na Associação de Moradores do Titanzinho indicam que,

depois de acirrada luta, um projeto da Prefeitura de Fortaleza previa a reconstrução de 585

casas, a ser realizada progressivamente em quatro etapas, atendendo de imediato os casos de

maior urgência213. Apesar do projeto e do início das reconstruções, as obras emperravam

constantemente; em1985, um novo documento foi remetido à prefeita da cidade, solicitando o

recomeço imediato das obras. Novamente o inverno se aproximava e algumas famílias, a

serem contempladas nas últimas etapas do projeto, ainda permaneciam abrigadas em barracas

de lona, fustigadas pelo calor excessivo do sol durante o dia e pelo frio intenso à noite.

À exceção dos prédios destinados aos cabarés do Farol, essa foi certamente a primeira

grande invasão das casas de alvenaria sobre as areias do bairro. Inserindo-se nos projetos

habitacionais públicos, organizada em associações de moradores ou construindo sob o regime

do mutirão, a população angariava recursos de toda ordem; resistia, reedificava e procurava

viabilizar condições mínimas de segurança e salubridade no meio do areal, exigindo

habitações mais resistentes.

Visualizando o bairro através da conformação arquitetônica urbana, observa-se que,

até o início dos anos 90, mais precisamente em 1994, ano em que começaram as obras do

Projeto Sanear do Governo do Estado, ainda não havia calçamento nem esgoto214. Somente

nesse período as pedras, há tempos transportadas pelos retirantes, e o asfalto, há anos

produzido na fábrica localizada ao lado, começavam enfim a solidificar as ruas. Com as vielas

pavimentadas, muitos becos foram fechados, as residências receberam ligação domiciliar de

esgoto, a iluminação foi reforçada e um calçadão que ligava a orla do Serviluz à da Praia do

Futuro foi construído. No discurso do governo, a favela tornava-se bairro. Nos depoimentos, a

urbanização se fazia eivada de contradições:

“(...) tem rua asfaltada já hoje, quer dizer, é bom é não é né? Por um lado é bom, é bonito e tudo, mas ai já há o sofrimento da galera com o calor e aquele negócio todo, quintura, outros tipo de doença na pivetada (...) tem o Sanear também, muito bom o Sanear, mas só que os cara mete na goela, tu gasta quinze reais de água, gasta mais quinze de esgoto numa coisa que já tá ali, que não precisa fazer nada. A

213 Documento disponível no arquivo da Associação de Moradores do Titanzinho. 214 O Projeto Sanear foi iniciado na gestão de Ciro Gomes, com um discurso ‘mudancista’ seu governo introduziu consideráveis melhorias sanitárias em Fortaleza. A idéia do Sanear era a implantação de 1.025 km de rede de esgoto, cerca de 148 mil ligações domiciliares, que beneficiariam mais de 700 mil pessoas. Sobre atuação dos “Governos das Mudanças”, cf.: GONDIM, Linda Maria Pontes. Clientelismo e modernidade nas políticas públicas – Os “governos das mudanças” no Ceará (1987-1994). Fortaleza: Ed. UNIJUÍ, 1998.

Page 124: “FOGO, VENTO, TERRA E MAR: MIGRAÇÕES, NATUREZA E …livros01.livrosgratis.com.br/cp011195.pdf · formação e urbanização do Bairro Serviluz em Fortaleza. Comunidade localizada

122

coisa mais difícil é fazer a manutenção aqui, uma galera todinha pagando Sanear e mal vem o Sanear aqui desentupir um esgoto ”215.

Após a urbanização, não demorou muito e a areia tomou conta de tudo novamente, a

calçada sumiu e o tráfego de veículos nas ruas da praia já não era mais possível. Chegar à

beira da praia motorizado só acontecia se fosse sobre as rodas de um trator, a máquina

derrubava sistematicamente os morros, mas não adiantava, a “areia vem do mar”, acreditam

alguns moradores.

Nas ruas principais do bairro, algumas paredes haviam sido feitas de tijolo e, em

detrimento das ruas da praia, prevalecia a construção de alvenaria. No decorrer do tempo, a

população do bairro foi progressivamente melhorando seu poder aquisitivo e, mesmo nas ruas

consideradas secundárias, a casa ganhou reforço arquitetônico. Nos nomes das ruas (ver

mapas), misturam-se termos relacionados à natureza, homenagem a políticos importantes para

o bairro e a forte religiosidade do povo; nomes parecem revelar a própria diversidade que

compõe a história dessa ocupação.

A distribuição das casas entre essas ruas se deu de forma desordenada, becos estreitos

e vielas tortuosas eram a condição geral. A partir das obras do Sanear, correções foram feitas

e as transformações se espraiaram, mudando a fisionomia espacial do lugar.

Antes dessas intervenções, os becos dominavam como forma mais prática de acesso.

Era quase impossível não utilizá-los. Por eles se chegava mais rapidamente, cortava-se o

caminho para qualquer destino nos arredores; os que não os conheciam se perdiam facilmente

entre suas entradas e saídas. Pelos becos, ia-se da rua principal, que margeia os terminais de

gás do complexo industrial, em direção à beira da praia, atravessando e furando praticamente

todas as ruas do bairro. Seguindo através dessas pequenas passagens, secretas para os que não

dominavam a paisagem irregular, passava-se sem ser visto. O próprio delineamento físico do

beco transformou seus contornos em espaços singulares, conferindo-lhes múltiplos usos

sociais e ao mesmo tempo acentuando seu caráter de perigo e isolamento. Nesses lugares,

processavam-se nascimentos e óbitos.

Quando o projeto de urbanização foi implantado, porém, boa parte dos becos não

podia ser eliminada. O desenho original do projeto não previa que um só beco podia

comportar inúmeras famílias e que não era possível isolá-las completamente. Alguns

abrigavam dezenas de casas e o pequeno corredor continuava sendo o único caminho possível

para a rua.

215 Entrevista concedida por Raimundo Cavalcante Ferreira ao autor em 12/05/2006.

Page 125: “FOGO, VENTO, TERRA E MAR: MIGRAÇÕES, NATUREZA E …livros01.livrosgratis.com.br/cp011195.pdf · formação e urbanização do Bairro Serviluz em Fortaleza. Comunidade localizada

123

No Serviluz, não havendo exatamente uma regra geral em termos de arquitetura e

padrão habitacional, a não ser a da fragilidade comum, o bairro foi acontecendo e tomou

forma própria em períodos distintos. No tempo em que era reduzida a quantidade de

moradores, era normal que os casebres, exprimidos de ambos os lados por outros casebres,

tivessem entrada e saída para duas ruas diferentes. Era igualmente comum que as casas

fossem maiores em comprimento do que em largura, daí a infinidade de pequenas frentes.

Como o bairro cresceu de forma assustadora, a pressão demográfica se fez sentir mais

intensamente. A partir da década de 80, mesmo nos barracos já apertados ao extremo, foi se

tornando necessário aglomerar um número cada vez maior de pessoas convivendo sob um

mesmo teto.

Segundo Steven Johnson “a potencialidade dessa progressão geométrica não é

somente uma singularidade matemática – ela é essencial para a própria origem da vida”216.

Assim, o autor enfatiza como as favelas de uma cidade são fenômenos emergentes e

produtores de autonomia. “O espaço metropolitano habitualmente aparece como uma linha de

arranha-céus, mas a verdadeira magia da cidade vem de baixo”217.

Antes do inchaço que assolou o lugar, ocorria que, em apenas um dos lados do terreno,

se concentrava a área construída, dois ou três cômodos, e nesse lado da casa se fazia a frente

que dava para a rua. O outro lado do terreno estava geralmente destinado ao quintal. Nos

espaços dos quintais, prevalecia ainda o resquício da verde e abundante mata, outrora

encontrada na aldeia do Mucuripe; na areia frouxa dos morros, continuava a florescer uma

cobertura vegetal típica da região, árvores que cresceram em terras vazias nos anos em que as

dunas ainda não haviam sido ocupadas sequer por choupanas de palha. Mesmo sendo um

pressuposto básico da construção, a limpeza do terreno para fins de ocupação pelo homem

não eliminou, de imediato, a variedade vegetal praiana.

Como era muito importante nas condições de moradia da época, cabe detalhar um

pouco melhor essa vegetação, pois é sabida a sua utilidade diária. Da variedade de espécies,

destacava-se a permanência do coqueiro, planta que sempre teve uso variado entre a

população pobre que vive na costa, sobretudo entre as comunidades pesqueiras. Do coqueiro

tudo se aproveitava: com o coco raspado, faziam-se as tapiocas, os doces e o preparo do peixe

cozido com pirão; a água extraída era doce, tanto podia ser vendida gelada quanto utilizada na

hidratação de crianças doentes; com a casca seca, mantinha-se aceso o fogo das pequenas

216 JOHNSON, Steven. Emergência: a dinâmica de rede em formigas, célebros, cidades e softwares. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2003. p. 62. 217 Op. cit. p. 68.

Page 126: “FOGO, VENTO, TERRA E MAR: MIGRAÇÕES, NATUREZA E …livros01.livrosgratis.com.br/cp011195.pdf · formação e urbanização do Bairro Serviluz em Fortaleza. Comunidade localizada

124

embarcações e os fogareiros caseiros; das palhas vinha a proteção e a cobertura de casas,

fazia-se espeto para assar sardinhas, pipas e outros brinquedos populares; com o tronco,

erguiam-se alpendres e produziam-se rolos de madeira sobre os quais deslizavam as

embarcações mar adentro.

Permaneceram também algumas mudas de cana-de-açúcar e as conhecidas

castanholeiras218. Muitos quintais tinham ainda suas plantações de pião, utilizados nos rituais

de cura das benzedeiras. De algumas poucas árvores, esperavam-se os frutos; outras tinham

apenas função de produzir uma boa sombra. De modo geral, naquele tempo, via-se ali a

presença de uma grama rasteira e esverdeada onde não faltavam crianças a brincar; outrora,

era possível, entre o mato e a cerca caída, circular pelas várias propriedades vizinhas sem

precisar pôr os pés na rua.

O quintal também foi se tornando um espaço destinado ao trabalho. Pequenas tarefas

ou atividades complementares de renda podiam ser ali realizadas; em alguns casos, o fundo da

casa se transformou numa espécie de oficina caseira. Na época majestosa da pesca da lagosta,

por exemplo, famílias inteiras se reuniam à sombra de uma árvore ou sob um pequeno

alpendre de palha para tecer redes de arame ou náilon, destinadas à captura do marisco. Não

raramente, após o serviço, logo se acendia uma pequena fogueira com a madeira armazenada

no quintal e preparava-se ali a comida, talvez peixe assado. Mas esses hábitos remanescentes

foram aos poucos diminuindo. Cresceu o número de fogões alimentados a gás de cozinha, o

fogo se tornou menos uma necessidade e mais uma diversão esporádica entre amigos.

Nas ruas e quintais do bairro, era bastante comum a presença de animais. Cavalos e

burros faziam transporte humano ou carregavam mercadorias a serem vendidas de porta em

porta nas imediações. Aliás, não faltam narrativas afirmando que o aterramento das águas do

Mucuripe foi feito sobre o lombo de burros. No Serviluz, quando cresceu o comércio local,

esses animais foram largamente empregados. Ainda hoje pequenas carroças continuam

rodando sobre o asfalto recém-chegado.

A criação de galinhas, patos, porcos e outros bichos nas cercanias era prática comum.

Era um tipo de complemento da alimentação familiar, herança dos povos nativos que

pescavam, mas sabiam igualmente cultivar pequenas hortas e costumavam criar animais. Com

o passar do tempo, não apenas os hábitos alimentares e as noções de higiene modificaram-se,

mudou, inclusive, as referências que os mais velhos atribuíam aos bichos como parte

importante do cotidiano familiar.

218 Árvores típicas de praia que produzem pequenos frutos comestíveis, mas que são pouco apreciados. A sombra é sua maior utilização.

Page 127: “FOGO, VENTO, TERRA E MAR: MIGRAÇÕES, NATUREZA E …livros01.livrosgratis.com.br/cp011195.pdf · formação e urbanização do Bairro Serviluz em Fortaleza. Comunidade localizada

125

À medida que vai se diversificando o tipo de alimentação consumida entre a

população local, comerciantes começaram a lucrar com o abate e venda desses animais e a

criação de bichos no bairro se tornou um problema. “Porco comendo caroço de manga em

cima da minha casa”219, as reclamações aumentavam e a presença de animais solto nas ruas

deixava de ser fato corriqueiro diário. Em certo momento, a própria comunidade passou a

boicotar as carnes provenientes desses criatórios caseiros. Foram se tornando cada vez mais

constantes as denúncias e as reclamações vindas da vizinhança e listas de assinaturas coletivas

passaram a exigir o fechamento de chiqueiros e pocilgas nas imediações. O quintal já não

mais podia ser aceito como depósito de lixo ou como pequenos currais; sobre esses lugares a

vigilância sanitária começava a impor padrões de limpeza e higiene urbana. De modo que o

asseio pessoal impulsiona transformações também na satisfação das necessidades fisiológicas,

antes realizadas nos fundos da casa sob árvores e folhagens.

“Se o Serviluz hoje em dia tá sujo, eu sou ciente, não é por culpa da prefeitura, é

porque tem muito morador seboso”220. Na cidade, intensifica-se a necessidade com os

cuidados sanitários mínimos, porque “pobre porco sempre num falta nas favelas”221. De modo

geral, higiene e salubridade foram termos que passaram a acompanhar o crescimento

demográfico dos grandes centros urbanos. Curiosamente, é sempre na periferia que estão os

lugares mais propícios a se desenvolverem focos de epidemias e infecções de toda ordem.

A regulação das práticas de higiene se configura como uma mudança de postura, mas

os novos modos assépticos também encontram resistências. Diariamente as pessoas, ainda

hoje, correm para a beira da praia para jogar lixo ou mesmo despejos fecais. A luta pela

limpeza da praia, nesse sentido, passou a ser um embate fundamental na mudança de imagem

que os moradores procuraram empreender no lugar. Os habitantes passaram a encarar a

degradação do patrimônio ambiental como fator prejudicial a qualidade de vida e como um

modo de desvalorização do espaço.

Deve-se admitir que o inchaço e a mudança da fisionomia do bairro foram, em boa

medida, resultados da pressão habitacional imposta pelo crescimento desordenado da cidade.

As mudanças na melhoria das condições das habitações populares, no entanto, não devem ser

creditadam somente à política assistencialista do Estado. Antes, essa transformação deve ser

percebida através das necessidades, estratégias e possibilidades criativas que os moradores

desenvolveram nos espaços em que vivem. Estando os espaços da periferia submetidos a

219 Entrevista concedida por Maria Zuleide Moura de Oliveira ao autor em 01/01/2003. 220 Entrevista concedida por Francisco Herton Lima Rodrigues ao autor em 30/02/2002. 221 Entrevista concedida por Maria Zuleide Moura de Oliveira ao autor em 01/01/2003.

Page 128: “FOGO, VENTO, TERRA E MAR: MIGRAÇÕES, NATUREZA E …livros01.livrosgratis.com.br/cp011195.pdf · formação e urbanização do Bairro Serviluz em Fortaleza. Comunidade localizada

126

planejamentos urbanos excludentes, seus moradores forjam nesses espaços a participação

política prática; a seu modo, inventam e constroem uma cidade diferenciada dentro da

metrópole supostamente harmônica e racionalizada.

É preciso considerar que a transformação física pode incitar também uma mudança

cultural, novos materiais, novas conformações espaciais, novos valores domésticos. A

mudança material por vezes aguça e produz novos hábitos, comportamentos e sensibilidades.

Nesse sentido, a percepção da organização das vivências nesses pequenos espaços constitui

um aspecto fundamental da cultura. Afinal, a história humana não acontece somente entre

decretos administrativos e gabinetes, ela manifesta-se também entre becos e quintais, entre

plantas e animais.

Isso significa reconhecer a mão e o controle do Estado no desenho urbanístico dos

bairros e ao mesmo tempo problematizar sua ausência, reconhecendo aí à tendência à

autonomia das comunidades. Os próprios incrementos habitacionais induzem a transformação

das relações sociais internas, a tendência à generalização das relações de caráter

individualistas, entretanto não elimina por completo hábitos e costumes arraigados.

Cada contexto histórico parece guardar suas singularidades e, apesar da convivência

de múltiplas temporalidades, as paredes de tijolo podem fazer adormecer certas formas de

socialização, acesas à época da madeira.

No Serviluz, ao tempo das frágeis varas, sobreveio a época das pequenas fortificações.

Não foi apenas a resistência das casas que se acentuou; de certa forma, cresceu também a

resistência das pessoas que as habitam em relação às outras. Observa-se a esse respeito o

aumento do número de rixas e contendas entre vizinhos, à medida que os muros passaram a

substituir as cercas. Quando acabou, ou pelo menos se tornou menos comum, o contato visual

direto entre a vizinhança, curiosamente aumentou a intervenção da polícia para conter ânimos

e evitar agressões mútuas, porque ali se instaurou a noção da propriedade privada, tornou-se

preciso disputar por cada palmo de chão e a brigar por cada centímetro de terra.

Por outro lado, as brigas acontecem exatamente devido à permanência da preocupação

e da curiosidade para com o outro. Nas casas reformadas, ainda existia a possibilidade de

ouvir os mínimos movimentos dos vizinhos, o barulho dos móveis sendo arrastados, o quebra-

quebra entre irmãos e as brigas de casal. Quando o som de alguém está ligado, é possível

saber de onde ele ecoa quem o está escutando, se é alguém da casa ou se há o recebimento de

alguma visita naquele ambiente. Sabe-se pelo faro a hora do almoço e pelo cheiro se descobre

Page 129: “FOGO, VENTO, TERRA E MAR: MIGRAÇÕES, NATUREZA E …livros01.livrosgratis.com.br/cp011195.pdf · formação e urbanização do Bairro Serviluz em Fortaleza. Comunidade localizada

127

o cardápio e a mistura do dia. O cotidiano alheio pode ser inalado pelas frestas. Os vizinhos

acabam se responsabilizando mutuamente pelas moradias. Se não há ninguém em casa, é

preciso que um dos moradores mais imediatos esteja sabendo, deixá-lo atento e vigilante é um

ato de prudência.

Em alguns momentos, parece existir a necessidade de tornar público o conteúdo de

acontecimentos que se passam entre as quatro paredes de um domicílio. A alvenaria não

impediu exatamente a transmissão de informações entre a rua e o lar, entre aquilo que é

público e aquilo que deve ser privado.

O fato é que melhorar a condição de moradia passou a significar muito nesse contexto.

O próprio mercado imobiliário descobriu a necessidade que os operários tinham de realizar o

famigerado sonho da casa própria e a sofrida realidade encontrada nos lares de palha e barro

se tornou um prato cheio para determinados setores da construção civil. Ao mesmo tempo,

como foi dito, o dinamismo e as demandas desse mercado acabaram abrindo espaços para

novas profissões e ocupações entre as classes sociais de baixa renda. É um ciclo que não

parou de crescer.

As construções de alvenaria, no entanto, demoraram algum tempo para se impor como

a arquitetura principal do bairro. A não ser em situações em que se conseguiram doações,

como nos calamitosos episódios de enchentes e desabamentos, a renovação das habitações foi

um trabalho basicamente lento e familiar. Pequenos reparos, uma arrumadinha, de uma

população que passou a assimilar melhor as noções de acúmulo e criou a necessidade de

economizar, de guardar um pouquinho para mudar o lugar em que se vive.

Alguns fatores concorreram sobremaneira para tal mudança: a necessidade de se

firmar numa terra de propriedade da União Federal, afastando o fantasma do despejo pelas

ações do Estado ou da iniciativa privada; a diminuição dos transtornos ocasionados pela

natureza e a possibilidade de aumentar a fruição desta; a precisão de se resguardar do próprio

crescimento assustador do lugar que assumiu a rotina da criminalidade das ruas; e o desejo de

não apenas sobreviver, mas viver dignamente após anos de trabalho no mundo urbano.

A mudança material é somente uma aponta do ice berg, pois nesse espaço operou-se

também uma mudança cultural tão ou mais significativa. Uma mudança certamente lenta e em

permanente exeução. As atitudes básicas da população trabalhadora aparentemente se mantêm

sem grandes alterações. A diferença reside principalmente naquilo que Hoggarth classificou

como “mudanças de atitudes-para-com-as-atitudes”222. No Serviluz, as novas tendências e os

222 Op. cit. HOGGART, p. 81.

Page 130: “FOGO, VENTO, TERRA E MAR: MIGRAÇÕES, NATUREZA E …livros01.livrosgratis.com.br/cp011195.pdf · formação e urbanização do Bairro Serviluz em Fortaleza. Comunidade localizada

128

novos rumos da juventude denotam alterações significativas nos padrões local de

comportamento, o bairro passou a contar com uma diversidade práticas que marcou a

trajetória da comunidade.

O tempo foi passando agora pude entender, O que décadas passadas, deixou para você. A luz do farol, já não brilha mais, A luz que vem agora vem de lá dentro do cais. A luz que nos dá força, e a que conduz, Por isso, não é toa, que nos chamamos Serviluz. Tenho minha vida toda pra viver, Pois em décadas futuras, vou tá junto com você. Falando e expressando no meu vocabulário, Isso e pros cabeças, no Serviluz não tem otário223.

3.3 Surfe: o surgimento de uma escola local

Nesta parte da pesquisa, procura-se, através dos depoimentos orais de jovens da

comunidade e de publicações especializadas em surfe, enveredar pelos caminhos das águas,

deslizando nas histórias de adolescentes que descobriram novas formas de trabalho no mar,

inventando novos modos de ganhar a vida na arrebentação. Analisa-se o surgimento de uma

espécie de escola local de surfe entre os meninos da comunidade. Procura-se interrogar sobre

a possível constituição de um estilo de vida, próprio, a partir da introdução do surfe no bairro,

aumentando mais ainda o mosaico de misturas e a multiplicidade de influências na

conformação das culturas locais. Em meio às múltiplas culturas urbanas que convergiram

historicamente para o bairro, talvez entre os surfistas se perceba com maior ênfase a recente

hibridez cultural operada nesse espaço.

“Eu nasci aqui em Fortaleza e a maior parte da minha vida foi na beira da praia (...) Eu tenho um interesse muito grande por esse bairro porque é um bairro que ao chegar com onze anos de idade eu me apaixonei por esse bairro”224.

Uma primeira observação é importante: dentre os entrevistados na presente pesquisa, o

grupo envolvido com a prática do surfe mostrou-se especialmente preocupado em destacar a

223 Letra da música “Décadas Passadas” do grupo Farol RAP, do Serviluz. Autores: Gean Carlos Serafim, Tanqredo Alves Morais, Paulo Maurício de Oliveira e Jorge Rafael.

Page 131: “FOGO, VENTO, TERRA E MAR: MIGRAÇÕES, NATUREZA E …livros01.livrosgratis.com.br/cp011195.pdf · formação e urbanização do Bairro Serviluz em Fortaleza. Comunidade localizada

129

importância do mar para a sua vida. O fato de morar perto da praia entre os surfistas,

contrariando o senso comum do bairro, constituía um imenso privilégio. Os praticantes desse

esporte facilmente expressavam o amor pelo lar e a satisfação de ter à porta de casa um

espaço excelente para a prática do surfe.

Fala-se de uma geração que nasceu e cresceu num bairro litorâneo, mas, morando na

beira da praia, não desejou seguir a tradicional profissão dos pais. Diferentemente daqueles

que aderiram aos novos postos de trabalho que surgiam na região, continuaram optando pela

vida no mar. Não mais se arriscavam nas temerosas pescarias, mas desenvolveram o gosto

pela “adrenalina de estar dentro d’água competindo”225.

O gosto pelo mar no surfe se configura como uma condição fundamental. Na praia do

Titanzinho, no Serviluz, há entre aqueles que surfam o reconhecimento de que, ao chegar ao

bairro, se estabelece um contato muito intenso com a natureza, a natureza é concebida como

provedora de numerosos benefícios.

“Se o menino tá dentro d’água o que ele tá vendo dentro d’água! Tá vendo uma gaivota que tá passando, tá vendo um peixe que tá passando, uma tartaruga... ele já começa a ter assim noções de oceanografia, começa a observar mais os astros, sabe que na lua cheia e na lua nova a maré é mais cheia ou mais vazante e pode dá onda, qual a época do ano que tem a melhor onda, já começa a se preocupar com a onda assim... vai esperar o dia que o mar tá mais perfeito e tal pra surfar. Enfim, o moleque já começa a pensar mais na natureza, começa a ver o lado mais bonito do negócio se ele tiver dentro d’água”226.

Se alguns moradores destacavam as imposições da natureza e as deficiências sanitárias

do bairro, nutrindo o desejo de abandoná-lo, outros, apontavam que a realidade oferecida pela

natureza não constituía exatamente um problema. Ao contrário, faltava exatamente uma

relação mais equilibrada com o meio ambiente, a fim de se aproveitarem os benefícios que a

natureza podia proporcionar.

No surfe a fruição da natureza é uma prática contemplativa. Nesse recipiente,

experimentam-se os elementos e concebe-se a vida como um espetáculo ininterrupto de

metamorfoses. Se, isoladamente, cada elemento já impressiona, combinados eles produzem

efeitos ainda mais surpreendentes. Entre esses elementos, as ondas, fusões das forças das

águas e dos ventos, são os mais especialmente encantadores. As ondas são manifestações de

energia do vento que tomam formas nas águas do mar. Mas a complexidade da ondulação, se

deixa clara a onipotência da natureza, também possibilita enxergar a intromissão da mão

224 Entrevista concedida por João Carlos Sobrinho ao autor em 27/02/2003. 225 Entrevista com Lucinho Lima, In: Revista Hard Core, ano 15, edição, 182, outubro de 2004. 226 Entrevista concedida por João Carlos Sobrinho ao autor em 27/02/2003.

Page 132: “FOGO, VENTO, TERRA E MAR: MIGRAÇÕES, NATUREZA E …livros01.livrosgratis.com.br/cp011195.pdf · formação e urbanização do Bairro Serviluz em Fortaleza. Comunidade localizada

130

humana nesse espetáculo. Na praia do Titanzinho, a modificação da paisagem, acarretada pela

introdução da pedra, alterou também o desempenho dos jovens locais que sobre as ondas

passaram a imprimir também suas marcas.

É bem verdade que, mesmo entre aqueles que não praticam o surfe, vislumbravam-se

as águas marinhas como uma dádiva e o mar como uma benção, como sendo capaz de

fornecer a alimentação básica e garantir a sobrevivência.

“(...) ainda existe o pescado dos três malhos (próprio para capturar sardinhas) na área do Titanzinho porque é um meio de sobrevivência, do pobre procurar uma sardinha pra comer com seus filhos”227.

Antes dos surfistas, os pescadores constituíam costumeiramente o grupo de

trabalhadores que dependem de modo mais direto do mar como fonte de sobrevivência. A

pesca é influenciada, mais que qualquer outra atividade econômica, pelas forças da natureza.

Essa é a última e única atividade humana de caça de grandes proporções e a própria

mobilidade dos recursos pesqueiros no ecossistema marinho é marcada pela complexidade

dos fenômenos naturais, de modo que o conjunto de processos e condições naturais influencia

também nas relações entre os grupos sociais, tanto em termos de trabalho quanto de moradia.

A paisagem cultural gira em torno da disponibilidade dos recursos naturais.

Vale ressaltar então que, na pesca e no surfe, as relações entre homem e natureza se

apresentam de fundamental importância. A natureza nessas atividades não pode ser

considerada uma entidade estática, mas como uma série de processos maiores, alheios à ação

humana, sobre os quais o homem pode interferir. Natural e social se articulam.

Na região do Mucuripe, quando prevaleceram as comunidades de pescadores, eram

visíveis as imbricações entre a vida social e a produção do pescado228. Mas com a crise da

atividade pesqueira, os homens já não mais conseguiam manter a contento suas numerosas

proles. Como já foi dito a pesca de alto calado acarretou mudanças nas relações de trabalho e

a tendência à proletarização do pescador. A mudança nas condições de vida dos pescadores e

a alteração introduzida no meio ambiente diminuíram bastante a disponibilidade do peixe nas

proximidades da costa, assim os trabalhadores do mar foram sendo forçados a ingressar

noutros ramos de atividade.

227 Entrevista concedida por Maria Zuleide de Oliveira Moura ao autor em 01/012003. 228 Em sociedades que vivem diretamente da exploração natural, é mais perceptível a correlação entre reprodução social e reprodução natural.

Page 133: “FOGO, VENTO, TERRA E MAR: MIGRAÇÕES, NATUREZA E …livros01.livrosgratis.com.br/cp011195.pdf · formação e urbanização do Bairro Serviluz em Fortaleza. Comunidade localizada

131

No bairro boa parte dos jovens que surfam são filhos de pescadores. Cresceram na

beira d’água, ajudando os pais na lida diária da praia, geralmente limpando as embarcações,

consertando redes ou executando pequenos serviços de transporte, mas vários fatores

contribuíram para a decisão dos filhos de largar a profissão do pai.

Já foi analisado como a formação de um parque industrial nos arredores, em certo

momento passou a recrutar boa parte da mão-de-obra na vizinhança. Ao chegar à idade de

trabalhar, os jovens tinham que optar entre os trabalhos disponíveis, praticamente todos

braçais; a indústria podia oferecer uma razoável estabilidade e carteira de trabalho assinada,

garantias difíceis de serem obtidas na pesca.

O fato é que a industrialização promoveu ocupações e serviços cujo ritmo de trabalho

diferia muito do emprego nos ofícios tradicionais. O surfe, no entanto, apresentava ainda

muitas semelhanças com o modo de vida dos antigos jangadeiros, sobretudo no que concerne

à interação e ao apego do homem pelo seu espaço de trabalho.

Entre pesca e surfe, porém, afloram também distinções importantes. Uma diferença

considerável está na preocupação do surfista com a manutenção dos recursos naturais. A

idéia da criação de uma consciência ecológica de preservação da natureza produziu

interferências práticas no local onde se realizava o esporte. Ao que parece, a idéia da

preservação não foi enfaticamente posta no mundo da pesca, enquanto no surfe preservar

assume formas bastante contundente. Obviamente isso não significa que o velho homem do

mar não se sentiu incomodado com as mudanças físicas no meio ambiente, basta observar a

escassez do pescado no litoral, mas pouco procurou remediá-las. Se os sindicatos e demais

formas de associações dos pescadores não enfocaram a preservação ambiental como uma

bandeira de luta propriamente dita, isso aconteceu porque essa é uma questão relativamente

recente. A idéia de uma política ecológica, por sua vez, é contemporânea da explosão do surfe

no planeta.

Como o bairro serviluz é muito populoso, o uso da força transformadora da natureza

passou a preceder de um trabalho de limpeza da praia, de conscientização ecológica no

espaço. A idéia ativa de que a praia não é uma lixeira, mas um point para o surfe, surge como

pressuposto ao desenvolvimento das habilidades corporais no mar. É o que se observa no

manifesto do grupo S.O.S Titanzinho:

A praia do Titanzinho, situada na esquina leste de Fortaleza, é o berço dos melhores surfistas do Brasil, o melhor e mais constante point da cidade. Tema de música e famosa no mundo do surfe pela força de suas ondas e por seus famosos surfistas. Porém, esse paraíso está sofrendo com a poluição há muitos anos, resultado da falta de educação da maioria dos moradores e da falta de leis que punam verdadeiramente os poluidores, os quais jogam lixo na praia causando

Page 134: “FOGO, VENTO, TERRA E MAR: MIGRAÇÕES, NATUREZA E …livros01.livrosgratis.com.br/cp011195.pdf · formação e urbanização do Bairro Serviluz em Fortaleza. Comunidade localizada

132

sujeira, doenças e deformação do coral. O quadro é alarmante, basta olhar a praia e mergulhar para perceber o grande estrago causado ao meio ambiente. A água é suja e transmite micose, isso não pode continuar assim, pois é crime ambiental e prejudica a todos que têm no mar sua fonte de sobrevivência e lazer229.

No surfe, se é forte a preocupação ambiental, é pouco visível a organização social.

Enquanto existem fartas experiências históricas de organização e luta coletiva entre os

pescadores em torno da aquisição de melhores condições materiais de trabalho, parecem não

existir formas associativas que batalhem pelo surfe como uma modalidade de trabalho. Aqui,

diferentemente da pesca, tende a prevalecer o desempenho individual do atleta.

“Você não pode depender só de uma profissão que é curta, né? Se você tivé no auge, no topo você ganha (...) do salário mesmo você não faz um pé de meia, geralmente dos prêmios né? Se for profissional então o surfe é bom, mas é bom que os jovens que almejam ganhar tudo na vida com o surfe pense melhor né? Que só o surfe ele não vai ter uma vida estável não”230.

Nos depoimentos, nitidamente o esporte foi transformado numa modalidade de

trabalho. Apesar da possível instabilidade, o surfe se tornou uma realidade econômica

palpável na comunidade. Em recente edição, a Revista Veja exibiu o auto-retrato do jovem

surfista Pablo Paulino. Garoto pobre, Pablo foi criado no Titanzinho, em Fortaleza, e cedo se

consagrou um fenômeno no mundo do surfe ao ganhar o campeonato mundial na categoria

júnior. Aos dezessete anos de idade, desbancou australianos, havaianos e americanos,

melhores do mundo no esporte, faturando um prêmio de seis mil dólares. O jovem assinou

ainda um ótimo contrato com a grife Billabong, uma das maiores marcas de surfe do mundo,

que lhe garantia, além de um excelente salário, uma ampla estrutura que incluía técnico,

preparador físico, nutricionista e professora de inglês231.

A necessidade do idioma inglês acontece porque nesse esporte, além das viagens pelo

mundo, os praticantes precisam assimilar termos técnicos, muitos dos quais, têm origem em

outros países. Nas grifes, nas manobras e na comunicação diária entre os surfistas, variadas

expressões possuem uma matriz importada.

A cultura do surfe se integra ao mercado industrial de proporções globais. As marcas

se multiplicam e ganham tecnologia de ponta. Vende-se indumentária, lugares e toda a

parafernália que compõe um estilo de vida diferenciado. É um espaço privilegiado para o

lançamento de novidades e modismos entre o público jovem. As velhas vestes dos homens do

229 O grupo S.O.S Titanzinho foi criado por surfistas locais e procura despertar um censo de preservação ambiental no bairro. Documento disponível na Escolinha de Surfe do Titanzinho. 230 Entrevista concedida por José Carlos da Silva ao autor em 08/03/2005.

Page 135: “FOGO, VENTO, TERRA E MAR: MIGRAÇÕES, NATUREZA E …livros01.livrosgratis.com.br/cp011195.pdf · formação e urbanização do Bairro Serviluz em Fortaleza. Comunidade localizada

133

mar ganharam tecidos sintéticos. Nas águas, a manutenção do estilo de vida, entrelaçado ao

meio, ganhou nova roupagem, renovando uma tradição capaz de adaptar-se, ou recriar-se, em

função dos novos tempos.

O universo do surfe constitui-se a partir de palavras como estilo, ousadia,

originalidade e determinação. A própria história do surfe é narrada nas publicações

especializadas, através das grandes façanhas, dos recordes e das narrativas heróicas dos

grandes vultos enfrentando grandes ondas. A fama é um componente importante no “esporte

dos reis”232. De fato, descer em ondas com vários metros de altura faz desse esporte uma

prática bastante arriscada, há o perigo real dos corais de pedra ou mesmo o risco de acidentes

com o próprio equipamento. As marcas nos corpos novamente servem de testemunho.

Nas revistas especializadas nesse esporte, a radicalidade do surfe se concretiza no forte

apelo às imagens dos competidores. As páginas se compõem basicamente de fotografias, que

ocupam a quase totalidade (ou mais) de uma página. Destacam-se os movimentos bruscos e

velozes dos homens desafiando a natureza; o próprio espaço geográfico é uma peça

fundamental na composição da imagem. No surfe, o cenário pode, inclusive, definir o

desempenho dos atletas.

No Serviluz, esse esporte constituiu-se como propulsor de cultura e redes de

sociabilidades; o surfe também se caracteriza pelas territorialidades que o definem. É

justamente o que ocorre em certos espaços urbanos, como a praia do Titanzinho, os quais são

tomados por indivíduos, pelas relações específicas entre eles estabelecidas. Sendo essas

relações de disputa, conquista, poder e dominação, está criado o contexto em que o espaço se

torna um território a ser criado e disputado233.

Apesar da imagem, aparentemente equilibrada e saudável, o esporte ainda aparece

carregado de pesados preconceitos.

“(...)chegaram uns cara de fora aí, uns caras ai de São Paulo e disseram: - rapaz tem que tirar a galera do Titanzinho que a equipe tá muito favela. Vamo tirar a galera todinha do Titanzinho que a marca tá muito favela. E olhe que nessa época a gente tinha os melhores daqui e a gente tava levantando a marca”234. Mas a prática desse esporte na periferia urbana de Fortaleza emergiu como mais uma

possibilidade concreta de inserção social. E, à medida que se formou uma espécie de escola

231 Cf.: Revista Veja, 23 de fevereiro de 2005. p. 89. 232 Remete a origem mitológica do esporte, na qual o surfe teria nascido entre os reis das Ilhas da Polinésia, dando ao surfe um aspecto de ritual sagrado. 233 AZEVEDO, Diego Paula Pesssoa. Fora ‘haole’: um estudo sobre cultura e terrrtorialidade no surfe. Monografia do curso de Ciências Sociais da Universidade Federal do Ceará. Fortaleza: 2003. P. 25. 234 Entrevista concedida por Raimundo Cavalcante Ferreira ao autor em 12/05/2006.

Page 136: “FOGO, VENTO, TERRA E MAR: MIGRAÇÕES, NATUREZA E …livros01.livrosgratis.com.br/cp011195.pdf · formação e urbanização do Bairro Serviluz em Fortaleza. Comunidade localizada

134

local, muitos surfistas se profissionalizaram e ganharam dinheiro. No entanto, fora dessa praia

de sucesso, procurei também os depoimentos dos jovens da mesma comunidade que não

lograram êxito no esporte; na verdade, a maioria.

A partir do êxito de alguns competidores locais, os jovens do Titanzinho tornaram-se

figurinhas carimbadas em revistas e demais publicações especializadas no esporte. Uma

questão sempre recorrente nessas reportagens era o amargo reconhecimento do percurso

vitorioso desses atletas; na mídia ficava sempre a interrogação: como era possível um menino

chegar tão longe, vindo do lugar tão pobre e violento no qual ele nasceu? Na concorrida

disputa por títulos, parecia impossível que de um lugar tão precário pudessem sair tantos

talentos e estrelas.

“(...)tinha um cara que sempre fazia umas matérias e sempre colocava o Titanzinho lá em baixo. Só falando de porco, de praia suja e não sei o quê... Até camisa o cara fez pra vender com o nome do Titanzinho, ai tinha um porco e uma fese desenhada na camisa(...) ai por causa disso eu discutir com ele, bota um cara surfando, uma coisa melhor. Toda vida que você abria o jornal tava lá o cara falando mal do Titanzinho. A sociedade não vai ler isso aqui não, a sociedade vai vê se você botar uma manobra, um tubo”235.

A superação do preconceito e da desigualdade econômica exigia, porém, tanto um

severo treinamento quanto uma série de mudanças no estilo de vida da juventude, mescla de

velhos hábitos e novos comportamentos. Emergiu a necessidade e o desejo de elaborar novas

opções de vida, de vibrar com outras sensibilidades:

No futebol, se o cara não está jogando bem eles tiram e colocam outro. No surfe não, quem for mais bonitinho está com patrocínio. O cara dá um aéreo e fica com a prancha cheia de logotipo (...) Foi de repente, já competia enquanto meus amigos jogavam futebol. Sabia surfar e jogar bola, mas tive que escolher. Hoje vejo que através do surfe conheci outros países e estados, já meus colegas do futebol ainda não saíram do Titanzinho236.

A trajetória árdua é regra geral. No Serviluz, o surfe não teve um começo tão rico e tão

nobre. O surfe no início era marginalizado, hoje é uma profissão; muitos atletas sobrevivem,

outros somente sonham. Esse esporte também era extremamente caro, inacessível, para as

condições financeiras da população local.

Ao que tudo indica, o surfe explodiu do Havaí para o mundo no início do século XX,

chegando ao Brasil nos anos 1940, quando as pranchas eram ainda fabricadas de madeira oca.

Com a intensificação da sociedade de consumo e a adesão aos esportes de massa, o surfe se

235 Ibidem. 236 Entrevista com Lucinho Lima, In: Revista Hard Core, ano 15, edição, 182, outubro de 2004.

Page 137: “FOGO, VENTO, TERRA E MAR: MIGRAÇÕES, NATUREZA E …livros01.livrosgratis.com.br/cp011195.pdf · formação e urbanização do Bairro Serviluz em Fortaleza. Comunidade localizada

135

estabelece no Ceará nos anos 1970. Na década de 80, contudo, era restrito o acesso às novas

pranchas feitas de fibra.

“Aqui no Titanzinho então, meu, na década de oitenta não tinha prancha de fibra, tinham pranchas de fibra as pessoas ricas que tinham sua prancha e que de forma nenhuma emprestava, né?, não emprestava” 237

O acesso restrito e o elevado preço do equipamento constituíam um sério problema

para os meninos ingressarem nos “tubos”238. Como não tinha dinheiro, o campeão mundial

Pablo começou a surfar com um pedaço de prancha quebrada; somente aos oito anos de idade,

ganhou uma prancha da já consagrada surfista local Tita Tavares239. Essa foi a realidade inicial

para quase todos os atletas.

“Eu aprendi a surfar em cima de um pedaço de madeira como quase todos os garotos daqui. Aos trancos e barrancos eu pegava uma tábua, serrava e fazia uma prancha (...) a gente conseguia uma carteira de cigarro e ia prum prédio desses na Praia do Futuro ou lá no Náutico ali, e trocava por um pedacinho de tábua e aí fazia a gente fazia nossa pranchinha. Quando eles não dava a pranchinha pelo cigarro aí o jeito era a gente tirar essa tábua e sair correndo, ou então serrar a porta da casa da nossa mãe”240.

A prancha de madeira foi uma solução elaborada com um material fartamente

empregado no cotidiano e assim se iniciou a popularização do surfe no bairro.

“O começo com o surfe foi desde lá do Mucuripe (...) veio naquelas taubinhas que a gente chamava de sonrisal né? Na praia, jogava a tauba na beira da praia e pulava em cima. Naquela época no Mucuripe ninguém surfava de tauba na onda não. Na época, jogava no chão e pá... pulava em cima, saia deslizando na areia. Aí quando cheguei aqui no Titanzinho vi a galera surfando de tauba em cima da onda, aqui era mais desenvolvido, a galera do Titanzinho já surfava na onda mesmo”241.

Observa-se que deslizar sobre a madeira era inclusive o aprimoramento de uma antiga

prática da pesca, das embarcações que, para atingir a terra firme, precisam cruzar a

arrebentação das ondas. Nesse processo histórico, a habilidade em reutilizar os elementos do

dia-a-dia, constituiu um aprendizado fundamental, capaz de produzir emergências essenciais à

população.

237 Entrevista concedida por João Carlos Sobrinho ao autor em 27/02/2003. 238 Manobra em que o surfista fica dentro da onda. Cf.: Surfinário em anexo. 239 Surfista local ganhadora de vários títulos nacionais e uma das poucas atletas do país a participar do circuito internacional, o Word Championship Tour (WCT). Tita Tavares e Fábio Silva, detentor de vários títulos nacionais, são os mais renomados surfistas do bairro. 240 Entrevista concedida por João Carlos Sobrinho ao autor em 27/02/2003. 241 Entrevista concedida por Raimundo Cavalcante Ferreira ao autor em 12/05/2006.

Page 138: “FOGO, VENTO, TERRA E MAR: MIGRAÇÕES, NATUREZA E …livros01.livrosgratis.com.br/cp011195.pdf · formação e urbanização do Bairro Serviluz em Fortaleza. Comunidade localizada

136

No Titanzinho, antes mesmo do inchaço populacional, adeptos desse e de outros

esportes náuticos chegavam em seus carros àquela praia. Vindos de várias partes da cidade,

traziam consigo um mundo de novidades para a comunidade. A partir do relacionamento com

as pessoas de fora, os meninos do lugar começaram a conhecer pranchas, roupas,

equipamentos e acessórios que permeiam o universo do surfe. O surfe reforçou a idéia do

acolhimento, do bairro como espaço do lazer e da interação.

Durante certo tempo, os surfistas que chegavam ao bairro entravam na água muito

tranqüilamente. O lugar ainda guardava as características de um paraíso. Mas, no decorrer dos

anos 80, alguns fatores proporcionaram mudanças repentinas naquele lugar, até então

paradisíaco. As pessoas que chegavam viram nascer ali um bairro popular, uma favela, cujas

águas e areias a população passou a dominar. Era preciso, a partir de determinado momento,

negociar, entre outras coisas, o próprio direito de entrar e sair ileso do local. Constroem-se

também territórios sobre as águas.

Como conseqüência da crescente onda de violência, os grandes campeonatos

realizados na praia se afastaram do bairro a partir da década de oitenta. Em 1982, o Setembro

Surfe, importante competição estadual, anunciava entre as inovações daquele ano a

transferência do local da realização do evento: “O certame será deslocado da praia do

Titanzinho para o Icaraí, que oferece melhores condições técnicas para a promoção”242. O

crescimento do esporte acarretou o surgimento de novos adeptos e de novos espaços para sua

prática. No Serviluz, no entanto, a retirada das competições do Titanzinho está relacionada a

acontecimentos desencadeados no próprio lugar, pois tanto a marginalidade se acirrou como a

quantidade de esgotos e outros poluentes despejados na água da praia aumentaram

consideravelmente, à medida que novas casas foram sendo instaladas.

Os embates, dos quais podem vir o entendimento, entre homem com a natureza são a

tônica. A própria historicidade do lugar, tido como um reduto de esgoto e de pessoas

perigosas, tornava-o extremamente discriminado na cidade. As ondas nem sempre cobriam a

prostituição, a violência e a poluição perante os olhos da cidade. O próprio surfe era um

esporte discriminado por ser praticado nessa área.

A superação do preconceito social que recaía sobre a comunidade, para alguns

entrevistados, podia contar com o apoio quase incondiciona, da natureza. A prática do surfe se

projetou como uma possibilidade concreta de renda e inserção social. A prática do esporte

deve, no entanto, estar associada à imagem de uma juventude saudável, cristalizada nos

242 Jornal O Povo, em 22/08/82. p.07.

Page 139: “FOGO, VENTO, TERRA E MAR: MIGRAÇÕES, NATUREZA E …livros01.livrosgratis.com.br/cp011195.pdf · formação e urbanização do Bairro Serviluz em Fortaleza. Comunidade localizada

137

corpos torneados dos atletas locais, para se reverter a imagem denegrida do Serviluz,

sinônimo de mazela urbana, e faze-la flutuar em novas memórias.

O surfe, a exemplo de muitos outros projetos sociais ali desenvolvidos, era uma forma

de provar que o bairro não era somente feito de grandes problemas, de mostrar o nosso

potencial e deixar claro para os de fora do bairro que “aqui tem pessoas que prestam”243.

Essa reversão, no entanto, é entendida como um processo lento. Os garotos tinham

dificuldades em desenvolver essa prática, antes de tudo porque os pais não aceitavam a idéia.

Surfar, com efeito, era sinônimo de não estudar, da ociosidade e do vício. Durante muito

tempo, dentro da própria comunidade, esse era nitidamente um esporte carregado de

preconceitos sociais, coisa de bandido e vagabundo. Mas, aos poucos, a prática do surfe fez a

garotada alcançar sucesso, ir além daquilo que aparentemente estava colocado como limite da

vida na favela. E, desse modo, o surfe também surgia como válvula de escape à delinqüência

que assolava as ruas do bairro, “ele agarrou com unhas e dentes como sendo assim aquilo que

vai salvar a vida dele, que vai colocar ele num patamar mais elevado”244.

Para o entrevistado João Carlos, o “Fera”, “o Titanzinho é o celeiro do surfe

cearense”, principalmente “porque aqui é esquina leste de Fortaleza, aqui é onde o vento faz a

curva”, “aqui é um lugar maravilhoso”. Por isso a falta de preservação da praia era debilidade

do bairro. Para ele, sobretudo o combate à marginalidade juvenil exorbitante precisava se

intensificar, pois esta acarretava um dos grandes problemas do bairro: a falta de visitantes.

“Fera”, instrutor e técnico de surfe, entende que a discriminação do local perante a

cidade, ocasiona, entre outras coisas, a falta de emprego para os nativos. “Nós temos aqui a

água que pode trazer grandes benefícios para a molecada (...) tem bandidos, mas tem

ondas”245. Para superar tais problemas, colocava-se a necessidade premente de melhorar a

imagem do lugar, bastante temerosa na cidade. Em 1995, quando começou o projeto S.O. S

Titanzinho, entrevista afirma que o bairro Serviluz passava por uma situação difícil. O lugar

estava novamente abandonado e gangues rivais disputavam à bala a sua hegemonia, a

criminalidade produzia dados alarmantes e as mortes acabavam com famílias inteiras. O surfe

passou a ser entendido como uma força mutante, capaz de tirar as crianças da ociosidade e das

drogas, transformar corpos e mentes.

A vida dentro d’água como propulsora de outros aprendizados e criadora de novas

habilidades se tornou uma prática local. O desenvolvimento de movimentos rápidos, de

243 Entrevista concedida por João Carlos Sobrinho ao autor em 27/02/2003. 244 Entrevista concedida por João Carlos Sobrinho ao autor em 27/02/2003 245 Ibidem.

Page 140: “FOGO, VENTO, TERRA E MAR: MIGRAÇÕES, NATUREZA E …livros01.livrosgratis.com.br/cp011195.pdf · formação e urbanização do Bairro Serviluz em Fortaleza. Comunidade localizada

138

manobras radicais, a fluência na onda, tudo aquilo a ser captado numa plasticidade

fotográfica. No surfe, há a possibilidade de se estabelecerem boas relações com pessoas

vindas de outras partes da cidade, uma forma de ganhar a vida fora do pesado trabalho

industrial. São incontáveis os benefícios advindos do mar: saúde, harmonia com a natureza e a

paz espiritual de quem protagoniza um estilo de vida saudável e feliz. Existe, entre os

praticantes desse esporte, a concepção da natureza como uma espécie de força mutante, que

transforma mentes e corpos e que é capaz, por exemplo, de transformar crianças magricelas

em verdadeiros campeões mundiais de surfe.

Mas o surfe é também um ato de lazer na comunidade: “num surfo pra competir, só

pra brincar, tomar banho, pra relaxar a cabeça”. “Porque eu num sei viver longe do mar

não”246. O surfe é muitas vezes um ato de diversão que engloba homens e mulheres nas horas

de folga do trabalho. Cair na água é procurar esquecer os problemas do dia-a-dia, é reavaliar o

passado, o presente e o futuro: “Eu tenho trinta e seis anos, mas eu sou um irado, eu volto a

ser criança todas as vezes que eu surfo”247.

Entre os sufirtas, é mais nítida a idéia de cultura concebida como uma experiência

mutante.

“Cultura da pessoa é o jeito que você vive, o seu hábito de viver, de falar (...) a cultura ela muda de uma hora pra outra (...) você tá aqui e querendo outra coisa, fazer outra coisa, uma coisa diferente né? Você tá fazendo uma coisa que nem é do seu país, da cultura de outro país. Você tá fazendo aquilo ali e você gosta e vai desenvolver aquilo ali, as vezes até mesmo naturalmente (...) você troca porque alguma coisa te agradou né?”248.

A través de atividades como o esporte, novos grupos culturais tornaram-se uma

realidade para boa parte da juventude249. Como estratégia de inserção social, esses núcleos

vinheram somar-se aos outros centros comunitários já constituídos, como associações de

moradores, escolinhas de surfe, igrejas e terreiros de macumba. Observando essa

efervescência, dona Mariazinha foi enfática: “Nós estamos de parabéns, o Serviluz realmente

tem muita história pra contar”250.

Nos dias 28, 29 e 30 de abril de 2006, o bairro Serviluz esteve em festa. O projeto

Cultura em Movimento, da Secretaria de Cultura do Estado (Secult), armou sua tenda na

246 Entrevista concedida por Mauro Sérgio Domingues ao autor em 18/05/2005. 247 Entrevista concedida por João Carlos Sobrinho ao autor em 27/02/2003. 248 Entrevista concedida por Raimundo Cavalcante Ferreira ao autor em 12/05/2006. 249 Entre os novos grupos culturias destacam-se o Projeto de Artes do Serviluz (PAS) e o grupo Peleja. Formado por estudantes secundaristas, e alguns universitários, procuram conscientizar a juventude local através de intervenções artísticas e ambientais, em diferentes espaços do bairro. 250 Entrevista concedida por Maria Ferreira Dias ao autor em 31/006/2006.

Page 141: “FOGO, VENTO, TERRA E MAR: MIGRAÇÕES, NATUREZA E …livros01.livrosgratis.com.br/cp011195.pdf · formação e urbanização do Bairro Serviluz em Fortaleza. Comunidade localizada

139

comunidade251. No palco, dezenas de artístas locais revezavam-se em exibições que deixaram

o público atento e curioso. Filmes de curta metragem enfatizaram aspectos do cotidiano

violento do bairro; peças teatrais encenaram episódios dramáticos da dura vida na favela;

bandas de músicas cantaram, em ritmos variados, a história do bairro; poesias; espetáculos de

dança e balé; apresentações esportivas de capoeira e Kung Fu, expressaram corpos saudáveis

e alegres da comunidade.

Nessa pesquisa, tentou-se focalizar como as articulações das diferenças culturais, a

vivência das experiências intersubjetivas, o interesse comunitário e os valores culturais

coletivos são negociados e renegociados a nível local.

As transformações culturais, no entanto, não acontecem de modo espontâneo, como

colocou Homi Bhabha:

Os termos do embate cultural, seja através de antagonismos ou afiliações, são produzidos performaticamente (...) a articulação social da diferença, da perspectiva da minoria, é uma negociação complexa, em andamento252.

Essa perspectiva de cultura, forjadas no interior das contingências da vida, põe em

dúvida a questão econômica, a herança cultural e a tradição como fatores essenciais de

identificação entre os homens. Desse modo não há uma identidade original, uma forma

genuína ou uma tradição naturalmente recebida. Não havendo uma tradição cultural altêntica,

os projetos de comunidade e a formação das sociabilidades devem ser concebidos como

emergências e como hibridismos culturais que brotam no tempo do agora, e não como suave

transição em direção a um futuro melhor. Em meio a desenraizamentos contínuos, conflitos e

atos inssurgentes que marcam o tempo transitivo dos corpos em perfomance, as experiências

criativas redefinem o devir, supostamente dado pela racionalidade econômica e cutural

dominante.

A precária definição arquitetônica das ruas e as frentes pobres das habitações

escondem uma ampla rede de articulação entre universos distintos. A grande potência

comunitária reside na sua capacidade de produzir territórios menores, invisíveis, mas

conformadores de padrões de relacionamento e respeito.

Um bom observador notaria, sem surpresas, que numa ponta de rua pode-se abrigar

uma igreja católica, dois terreiros de macumba, vários moradores evangélicos, dois ou três

rezadores e possivelmente alguns ateus convictos. Ora, o que faz dessa mistura uma riqueza

251 Cultura em Movimento – Secult nos Bairros é um projeto do Governo do Estado do Ceará que patrocina apresentações cuturais intinerantes nos bairros da periferia de Fortaleza.

Page 142: “FOGO, VENTO, TERRA E MAR: MIGRAÇÕES, NATUREZA E …livros01.livrosgratis.com.br/cp011195.pdf · formação e urbanização do Bairro Serviluz em Fortaleza. Comunidade localizada

140

não é apenas a diversidade em si, mas principalmente a capacidade de articulação dessas

diferenças.

252 BHABHA, Homi K. O local da cultura. Belo Horizonte: Ed. UFMG, 1998. p. 20-21.

Page 143: “FOGO, VENTO, TERRA E MAR: MIGRAÇÕES, NATUREZA E …livros01.livrosgratis.com.br/cp011195.pdf · formação e urbanização do Bairro Serviluz em Fortaleza. Comunidade localizada

141

Conclusão

A tradicional ocupação da enseada do Mucuripe por jangadeiros pobres começou a ser

ameaçada quando empreendimentos capitalistas desenvolveram-se sobre essas areias. Da

segunda metade do século XX em diante, o porto e a indústria modificaram a paisagem

natural, deslocando homens e culturas, à medida em que a natureza da praia passou a ser

considerada habitação privilegiada.

Nesse processo, pescadores, prostitutas e outros trabalhadores pobres, vivendo em

condições insalubres, passam a construir lutas e solidariedades pela sobrevivência e pela

permanência. Em condições ambientais específicas, os moradores do bairro articulam

habilmente natureza e cultura.

Novas experiências no trabalho, mudanças de hábitos e a tomada de conciência para a

organização coletiva em âmbito local, marcaram a trajetória histórica dessa comunidade. A

trasformação na cultura material e nos padrões de comportamento da população se

disseminaram, e encontraram resistência, a partir da convivência dos múltiplos sujeitos,

conformando múltiplos territórios dentro do mesmo bairro.

Cabe ressaltar que a tentativa de captura dessas vivências, sobretudo a partir da técnica

metodológica que envolvia a oralidade, apontou a provisoriedade e a fugacidade das

interações culturais contemporâneas. Emergiu daí a necessidade de construção de um texto de

história, não restrito aos possíveis limites da disciplina, mas um texto tão vasto e fluído

quanto a própria experiência humana em construção.

Page 144: “FOGO, VENTO, TERRA E MAR: MIGRAÇÕES, NATUREZA E …livros01.livrosgratis.com.br/cp011195.pdf · formação e urbanização do Bairro Serviluz em Fortaleza. Comunidade localizada

142

Relação de Siglas

BID – Banco Interamericano de Desenvolvimento

BNB – Banco do Nordeste do Brasil

BNH – Banco Nacional de Habitação

CHESF – Companhia Hidrelétrica do São Francisco

COHAB – Companhia de Habitação

CONEFOR – Companhia Nordeste de Eletrificação de Fortaleza

DNOCS – Departamento Nacional de Obras Contra as Secas

FBFF – Federação dos Bairros e Favelas de Fortaleza

IBAMA – Instituto Brasileiro do Meio Ambiente

PAS – Projeto de Artes do Serviluz

PROAFA – Programa de Assistência as Favelas de Fortaleza

SECULT – Secretaria da Cultura do Estado

SUDEPE – Superintendência de Desenvolvimento da Pesca

SUDENE – Superintendência de Desenvolvimento do Nordeste

SER – Secretaria Executiva Regional

SERVILUZ – Serviço de Luz e Força de Fortaleza

Page 145: “FOGO, VENTO, TERRA E MAR: MIGRAÇÕES, NATUREZA E …livros01.livrosgratis.com.br/cp011195.pdf · formação e urbanização do Bairro Serviluz em Fortaleza. Comunidade localizada

143

Relação de imagens anexas

1. Ruas do bairro.

2. Imagem aérea da Praia do Mucuripe

3. Praia de Iracema em 1938.

4. Pescadores da Praia do Mucuripe em 1952.

5. Jangada do Mucuripe em 1952.

6. Vista do Porto do Mucuripe.

7. Pesca com a rede de “três malho”.

8. Praia do Titanzinho.

9. Praia do Serviluz.

10. Surfista do Serviluz.

11. Crianças do Serviluz.

Page 146: “FOGO, VENTO, TERRA E MAR: MIGRAÇÕES, NATUREZA E …livros01.livrosgratis.com.br/cp011195.pdf · formação e urbanização do Bairro Serviluz em Fortaleza. Comunidade localizada

144

Fontes e arquivos:

a) Fontes Escritas

1 - Jornais: O Povo, Correio do Ceará, Unitário, Tribuna do Ceará, O Estado (Setor de

Microfilmagem da Biblioteca Pública Menezes Pimentel. Jornal alternativo Mutirão

(Instituto da Memória do Povo Cearense -- IMOPEC).

2 - Revistas:Veja, Fluir e Hard Core (Ano e edições variados).

3 - Arquivos da Associação de Moradores do Titanzinho, da Associação de Moradores

do Serviluz e da Escolinha de Surfe do Titanzinho.

4 - Inventário do Acervo Virgílio Távora (Arquivo Público do Ceará - APEC).

5 – Arquivo e boletins informativos da Companhia Docas do Ceará, do Sindicato dos

Portuários e do Sindicato dos Pescadores do Ceará.

6 – Letras de músicas e cordéis de artistas locais.

b) Fontes Orais

1 Francisco Herton Lima Rodrigues. Essa entrevista foi realizada na casa do entrevistado,

em 30/02/2002. “Agente comia peixe até seis veszes por semana”, relembrou, nostálgico,

Francisco Herton, mais conhecido como “moço”. O depoente conta que já passou por

várias profissões, afirma que todo trabalho é digno desde que garanta a sobrevivência dos

filhos. Entre idas e vindas, lembra com saudades da irmã que há tempos foi para a Itália e

que somente nas férias pode rever.

2 Maria Zuleide de Oliveira Moura. “Pau pra toda obra”, foi assim que se autodefiniu

dona Zuleide, a entrevista realizada na sala de sua casa em 01/01/2003. Dona Zuleide

participou da primeira gestão da Associação de Moradores do Titanzinho. Através do seu

depoimento, tomamos conhecimento das dificuldades iniciais de construção de um espaço

de participação coletiva, dos projetos realizados, da morosidade burocrática e das fissuras

internas que permeiam o dia-a-dia das entidades.

Page 147: “FOGO, VENTO, TERRA E MAR: MIGRAÇÕES, NATUREZA E …livros01.livrosgratis.com.br/cp011195.pdf · formação e urbanização do Bairro Serviluz em Fortaleza. Comunidade localizada

145

3 José Osmir de Monteiro de Sousa. Jovem e disposto, Osmir sugeriu que a entrevista

fosse realizada, em 28/01/2003, sobre as pedras do paredão onde não “tinha

interferência”. A exemplo do pai, José Osmir é filiado ao Partido dos Trabalhadores (PT),

segundo o entrevistado: “atualmente nosso bairro conta com aproximadamente trinta

tipois diferentes de associações”. No Serviluz, são poucas as pessoas engajadas a política-

partidária, sobretudo aos partidos de sequerda.

4 João Carlos Sobrinho. Essa entrevista foi realizada na casa do depoente, em 27/02/2003,

com um grupo de quatro amigos (Camila, Idalina, Thiago e Pereira), durante uma

disciplina acadêmica. Mais conhecido como “Fera”, João Carlos é uma referência local

em termos de conscientização ecológica. Técnico e instrutor de surfe, afirma que é na

natureza que está o maior patrimônio cultural do bairro. Acredita que cabe principalmente

aos moradores criarem estratégias que viabilizem a visitação turística no bairro, e,

sobretudo, que essa interação com o pessoal de fora pode ser benéfica e produtiva.

5 Maria da Conceição Alves dos Santos. Contamos também com a participação dos quatro

colegas da Disciplina de Seminário de Leitura, ministrada pela professora Kênia Rios, na

realização dessa entrevista, em 27/02/2003. Na sala de sua casa, dona Conceição contou

que veio do Camocim, interior do Ceará, à procura do pai, já estabelecido na capital. Na

cidade, trabalhou como “classificadeira” numa empresa de pesca e exportação de lagosta:

“nós éramos 280 mulheres, todas trabalhando de carteira assinada”, relata, referindo-se

ao tempo em que era grande a quantidade de mulheres trabalhando na indústria.

6 José Carlos da Silva. Descontraído, o entrevistado concedeu seu depoimento na casa de

um amigo em 08/03/2005. José Carlos fala com muita naturalidade das transformações

ocorridas no bairro, então com “duas ruazinhas”, à época em que nasceu. “Minha mãe

comprava dólares”, afirma, relembrando os tempoa áureos da zona de prostituição do

Farol do Mucuripe.

7 Mauro Sérgio Domingues. “Serginho” , como é mais conhecido, falou sobre sua

experiência como morador do bairro em 18/05/2005, na sala de sua residência. O

entrevistado contou sobre as transformações fisicas do bairro desde a época da Praia

Mansa, tempo em que seu pai foi o primeiro morador da ilha a adquirir aparelho de

televisão. Mauro Sérgio, não seguindo no ramo de pesca, passou a trabalhar no setor

hoteleiro onde pensa ter descobertos novos aprendizados importantes para sua vida. 8 Maria da Luz Oliveira Ribeiro. Muito atenciosa, dona Daluz, como é mais conhecida,

falou ao gravador em sua casa em 18/05/2005. A entrevistada diz que começou a se

Page 148: “FOGO, VENTO, TERRA E MAR: MIGRAÇÕES, NATUREZA E …livros01.livrosgratis.com.br/cp011195.pdf · formação e urbanização do Bairro Serviluz em Fortaleza. Comunidade localizada

146

envolver no trabalho comunitário apartir do convívio e do incentivo do marido, seu

Francisco, que durante anos colaborou com a Colônia de Pescadores. Entre outras coisas,

dona Daluz lamenta o estado de abandono de muitos jovens do bairro e o crescimento

vertiginoso do consumo de drogas entre os adolescentes locais. 9 Raimundo Cavalcante Ferreira. Entrevista realizada na casa do depoente em

12/05/2006. “Raimundinho”, como é mais conhecido, ex-competidor, foi campeão

cearense de surfe amador em 1987. Apesar de apaixonado pelo esporte e um dos primeiros

do bairro a receber patrocínio, não conseguiu se firmar como profissional. Trabalha

ocasionalmente como instrutor e organizador de campeonatos de surfe, mas exerce outras

profissões. 10 Natalee Ferreira de Sousa. Essa entrevista foi realizada na casa do entrevistado em

20/05/2006. Estivador aposentado após trinta anos de serviço, seu Natalee demonstra uma

imensa compreensão do processo de trabalho portuário e entende o porto do Mucuripe

como ponto-chave da ocupação dessa parte da cidade. Leitor compulsivo procura sempre

o entendimento mais amplo dos fenômenos que envolvem a história do bairro. É enfático

ao firmar a necessidade premente de educar os mais jovens para otrabalho. 11 Maria Ferreira Dias. Dona “Mariazinha”, como é mais conhecida concedeu sua

entrevista na sede da Associação de Mortadores do Serviluz em 31/06/2006. A

entrevistada fala com entusiasmo da melhoria operada na comunidade e dos projetos que

ajudou a desenvolver com os moradores. Conta como começou a formação da primeira

associação de moradores no bairro, as viagens à Brasília e orgulha-se de ser reconhecida

como uma referência na luta comunitária inclusive fora Fortaleza: “me sinto

homenageda”, resume.

Page 149: “FOGO, VENTO, TERRA E MAR: MIGRAÇÕES, NATUREZA E …livros01.livrosgratis.com.br/cp011195.pdf · formação e urbanização do Bairro Serviluz em Fortaleza. Comunidade localizada

147

Bibliografia:

ALENCAR, José de. Iracema: Lenda do Ceará, 26° ed. São Paulo: Ática, 1992.

ANDRADE, Manuel Correia de. 1964 e o Nordeste: golpe, revolução ou contra-

revolução? São Paulo: Ed. Contexto, 1989.

ANJOS JUNIOR, Carlos Silveira Versiani dos. A serpente domada: um estudo sobre

a prostituição de baixo meretrício. Fortaleza: Edições UFC, 1983.

AZEVEDO, Kátia. Mutirão: jornal alternativo do Ceará. Fortaleza: Museu do Ceará,

2002.

BARREIRA, Irlys Alencar Firmo. Rio de Janeiro: Rio Fundo Ed. 1992

BARROS, Edgar de. O Brasil de 1945 a 1964.São Paulo: Ed. Contexto, 1999.

BHABHA, Homi K. O local da cultura. Belo Horizonte: Ed. UFMG, 1998.

BOSI, Ecléa. Memória da Cidade: lembranças paulistanas. In: O Direito a Memória:

Patrimônio Histórico e Cidadania. São Paulo: DPH, 1991.

CANCLINI, Néstor Garcia. Culturas Híbridas. Estratégias para entrar e sair da

modernidade. São Paulo: Edusp, 2000.

CEARÁ, Inventário do Acervo Virgílio Távora. Ceará. Secretaria da Cultura. Arquivo

Público. Fortaleza: SECULT, 2005.

CEARAH, Periferia. Vivências, lutas e memórias: Historia de vida de lideranças

comunitárias em Fortaleza. Fortaleza: Ed. Demócrito Rocha, 2002.

CORBIN, Alain. O território do vazio: a praia e o imaginário ocidental. São Paulo:

Companhia das Letras, 1989.

DANTAS, Eustogio Wanderley Correia. Mar à Vista: estudo sobre a maritimidade de

Fortaleza. Fortaleza: Museu do Ceara, 2002.

DIEGUES, Antonio Carlos Sant’Ana. Pescadores, camponeses e trabalhadores do

mar. São Paulo: Ática, 1983.

FURTADO, Celso. O Brasil pós-milagre. Rio de Janeiro: Ed. Terra e Paz, 1983.

(Coleção Estudos Brasileiros).

GIRÃO, Blanchard. Mucuripe: De Pinzón ao Pe Nilson. Fortaleza: Ed. Demócrito

Rocha, 1998.

GIRÃO, Raimundo. Geografia Estética de Fortaleza. Fortaleza: Imprensa

Universitária do Ceará., 1959.

Page 150: “FOGO, VENTO, TERRA E MAR: MIGRAÇÕES, NATUREZA E …livros01.livrosgratis.com.br/cp011195.pdf · formação e urbanização do Bairro Serviluz em Fortaleza. Comunidade localizada

148

GITAHY, Maria Lucia Caira. Ventos do Mar: Trabalhadores do porto, movimento

operário e cultura urbana. São Paulo: Unesp, 1992.

GOHN, Maria da Glória. Movimentos sociais e luta pela moradia. São Paulo: Edições

Loyola, 1991.

GONDIM, Linda Maria Pontes. Clientelismo e modernidade nas políticas públicas –

Os “governos das mudanças” no Ceará (1987-1994). Fortaleza: Ed. UNIJUÍ, 1998.

HABERT, Nadini. A década de 70: Apogeu e crise da ditadura militar brasileira. São

Paulo: Ed. Ática, 1996.

HOBSBAWM, Eric J. Era dos extremos: o breve século XX (1914-1991). São Paulo:

Companhia das Letras, 1998.

__________________ Sobre História. São Paulo: Companhia das Letras, 2001.

HOBSBAWM, Eric J. Trabalhadores. Estudos sobre a história do operariado. São

Paulo: Paz e Terra, 1981.

HOGGART, Richard. As utilizações da cultura. Aspectos da vida da classe

trabalhadora, com especiais referências a publicações e divertimentos. Lisboa:

Editora Presença, 1973. (Coleção Questões).

HUGO, Victor. Os Trabalhadores do Mar. Rio de Janeiro, Ediouro.

IOC. A Eletrificação no Ceará: Pequeno histórico da vinda da energia de Paulo

Afonso a Fortaleza. Fortaleza: Imprensa Oficial do Ceará, 1965.

JOHNSON, Esteven. Emergência: A dinâmica de rede em formigas, célebros,

cidades e softwares. Rio de Janeiro: Zahar Ed., 2003.

LEITE, Ary Bezerra. História da energia elétrica no Ceará. Fortaleza: Fundação

Demócrito Rocha, 1996.

NEVES, Berenice Abreu de Castro. Do mar ao museu: A saga da jangada São Pedro.

Fortaleza: Museu do Ceara, 2001.

NEVES, Frederico de Castro. A seca na história do Ceará. Uma nova historia do

Ceara. Fortaleza: Ed. Demócrito Rocha, 2000.

PONTE, Sebastião Rogério. Fortaleza Belle Époque: Reformas urbanas e controle

social (1860-1930). 3° ed. Fortaleza: Edições Demócrito Rocha, 2001.

PORTELLI, Alessandro. História Oral como gênero. In: Projeto História. Revista do

Programa de Estudos Pós-Graduados em História e do Departamento de História da

Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, nº. 22. São Paulo: EDUC, junho de

2001.

Page 151: “FOGO, VENTO, TERRA E MAR: MIGRAÇÕES, NATUREZA E …livros01.livrosgratis.com.br/cp011195.pdf · formação e urbanização do Bairro Serviluz em Fortaleza. Comunidade localizada

149

RIOS, Kênia Sousa. Campos de Concentração no Ceará: Isolamento e poder na seca

de 1932. Fortaleza: Museu do Ceará/Secretaria da Cultura e Desporto do Ceará, 2001.

RONCAYOLO, Marcel. Transfigurações noturnas da cidade: o império das luzes

artificiais. In: Projeto História, Revista do Programa de Estudos Pós-Graduados em

História e do Departamento de História da Pontifícia Universidade Católica de São

Paulo, nº. 18. São Paulo: EDUC, maio de 1999.

SADER, Sader. Quando novos personagens entraram em cena: Experiências, falas e

lutas dos trabalhadores da grande São Paulo 1970-1980. São Paulo: Paz e Terra,

1988.

SANTIAGO, Pádua. A Cidade como Utopia e a Favela como Espaço Estratégico de

Inserção na Cultura Urbana (1856-1930). In: Trajetos. Revista do Programa de Pós-

Graduação em História Social da Universidade Federal do Ceará. V.1, n° 2. Fortaleza,

junho de 2002.

SILVA, Fernando Teixeira. A carga e a culpa. São Paulo: HUCITEC, 1995.

SILVA FILHO, Antonio Luiz Macêdo e. Paisagens do consumo: Fortaleza no tempo

da Segunda grande Guerra. Fortaleza: Museu do ceará; Secretaria da Cultura e

Desporto do Ceará, 2002.

SILVA, José B. da. Nas trilhas da cidade. Fortaleza: Museu do Ceará, 2001.

_______________ Quando os incomodados não se retiram: uma análise dos

movimentos sociais em Fortaleza. Fortaleza: Multigraf Editora, 1992.

SOUSA, Francisca Ilnar de. O Cliente: o outro lado da prostituição. São Paulo:

Annablume; Fortaleza: Secretaria da Cultura e Desporto, 1998.

SOUZA, João Carlos de Souza. Na luta por habitação a construção de novos valores.

São Paulo: Educ, 1995.

SOUZA, Simone de (org.). Uma nova historia do Ceara. Fortaleza: Ed. Demócrito

Rocha, 2000.

TEÓFILO, Rodolfo Historia da seca no Ceará (1878-1880). Rio de Janeiro:

Imprensa Inglesa, 1922.

THOMPSON, Paul. A voz do Passado: História Oral. Rio de Janeiro: Ed. Paz e

Terra, 1992.

THOMPSON, E.P. Costumes em comum. São Paulo: Companhia das Letras,1988.

__________________ A miséria da teoria ou um planetário de erros. Uma crític ao

pensamenbto dse Althusser. Rio de Janeiro: Zahar Editores, 1981.

Page 152: “FOGO, VENTO, TERRA E MAR: MIGRAÇÕES, NATUREZA E …livros01.livrosgratis.com.br/cp011195.pdf · formação e urbanização do Bairro Serviluz em Fortaleza. Comunidade localizada

150

Teses e Dissertações:

BARBOSA, Edson Holanda Lima. A ida ao inferno verde. Experiências de

trabalhadores cearenses emigrados para a Amazônia: 1942-1945. Dissertação de

Mestrado em História Social da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, 2005.

CAVALCANTE, Lídia Eugenia. Para onde os ventos sopram Pirambu: Memória e

identidade social. Dissertação de Mestrado Interinstitucional em História da

Universidade Federal do Rio de Janeiro, 2000.

FONTES, Paulo Roberto Ribeiro. Comunidade Operária, migração nordestina e lutas

sociais: São Miguel Paulista (1945-1966). Tese de Doutorado do Departamento de

História do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas da Universidade Estadual de

Campinas, 2002.

PASCHOARELLI, Leandro. Quebra–quebra e imprensa, zona leste de São Paulo,

1980-1981. Dissertação de Mestrado em História Social da Pontifícia Universidade

Católica de São Paulo, 2000.

SANTOS, Márcia Juliana It’s all true e a construção das imagens do Brasil (1942-

93). Dissertação de Mestrado em História Social da Pontifícia Universidade Católica

de São Paulo, 2004.

VIEIRA JUNIOR, Antonio Otaviano. A Família na Seara dos sentidos: domicílio e

violência no Ceará (1780-1850). Tese de Doutorado em História Social do

Departamento de História da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da

Universidade de São Paulo, 2002.

Revistas

DHP. O Direito à Memória: Patrimônio Histórico e Cidadania. Secretaria

Municipal de Cultura. São Paulo: DPH, 1992.

Projeto História: Revista do Programa de Estudos Pós-Graduados em História e do

Departamento de História da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo. Nº. 10,

15, 18, 22 e 23.

TRAJETOS, Revista do Programa de Pós-graduação em História Social e do

Departamento de História da Universidade Federal do Ceará. v.1, n° 2. Fortaleza,

junho de 2002.

Page 153: “FOGO, VENTO, TERRA E MAR: MIGRAÇÕES, NATUREZA E …livros01.livrosgratis.com.br/cp011195.pdf · formação e urbanização do Bairro Serviluz em Fortaleza. Comunidade localizada

151

Anexos

1- Ruas do bairro (Fonte: Listel 2006).

Page 154: “FOGO, VENTO, TERRA E MAR: MIGRAÇÕES, NATUREZA E …livros01.livrosgratis.com.br/cp011195.pdf · formação e urbanização do Bairro Serviluz em Fortaleza. Comunidade localizada

152

2- Imagem aérea da Praia do Mucuripe (Fonte Geogle)

Page 155: “FOGO, VENTO, TERRA E MAR: MIGRAÇÕES, NATUREZA E …livros01.livrosgratis.com.br/cp011195.pdf · formação e urbanização do Bairro Serviluz em Fortaleza. Comunidade localizada

153

3- Praia de Iracema em 1938. (Fonte: Museu da Imagem e do Som (MIS).

Page 156: “FOGO, VENTO, TERRA E MAR: MIGRAÇÕES, NATUREZA E …livros01.livrosgratis.com.br/cp011195.pdf · formação e urbanização do Bairro Serviluz em Fortaleza. Comunidade localizada

154

4- Pescadores do Mucuripe em 1952 (Fonte: “Mucuripe”,fotos de Chico Albuquerque).

Page 157: “FOGO, VENTO, TERRA E MAR: MIGRAÇÕES, NATUREZA E …livros01.livrosgratis.com.br/cp011195.pdf · formação e urbanização do Bairro Serviluz em Fortaleza. Comunidade localizada

155

5- Jangada do Mucuripe em 1952 (Fonte: “Mucuripe”, fotos de Chico Albuquerque)

6- Vista do Porto do Mucuripe (Fonte: do autor)

Page 158: “FOGO, VENTO, TERRA E MAR: MIGRAÇÕES, NATUREZA E …livros01.livrosgratis.com.br/cp011195.pdf · formação e urbanização do Bairro Serviluz em Fortaleza. Comunidade localizada

156

7- Pesca com a rede de “três malho” (Fonte: do autor)

Page 159: “FOGO, VENTO, TERRA E MAR: MIGRAÇÕES, NATUREZA E …livros01.livrosgratis.com.br/cp011195.pdf · formação e urbanização do Bairro Serviluz em Fortaleza. Comunidade localizada

157

8- Praia do Titanzinho (Fonte: do autor)

9- Praia do Serviluz (Fonte: do autor).

Page 160: “FOGO, VENTO, TERRA E MAR: MIGRAÇÕES, NATUREZA E …livros01.livrosgratis.com.br/cp011195.pdf · formação e urbanização do Bairro Serviluz em Fortaleza. Comunidade localizada

158

10- Surfista do Serviluz (Fonte: do autor).

Page 161: “FOGO, VENTO, TERRA E MAR: MIGRAÇÕES, NATUREZA E …livros01.livrosgratis.com.br/cp011195.pdf · formação e urbanização do Bairro Serviluz em Fortaleza. Comunidade localizada

159

11- Crianças do Serviluz (Fonte; do autor)

Page 162: “FOGO, VENTO, TERRA E MAR: MIGRAÇÕES, NATUREZA E …livros01.livrosgratis.com.br/cp011195.pdf · formação e urbanização do Bairro Serviluz em Fortaleza. Comunidade localizada

160

Page 163: “FOGO, VENTO, TERRA E MAR: MIGRAÇÕES, NATUREZA E …livros01.livrosgratis.com.br/cp011195.pdf · formação e urbanização do Bairro Serviluz em Fortaleza. Comunidade localizada

161

Page 164: “FOGO, VENTO, TERRA E MAR: MIGRAÇÕES, NATUREZA E …livros01.livrosgratis.com.br/cp011195.pdf · formação e urbanização do Bairro Serviluz em Fortaleza. Comunidade localizada

162

Page 165: “FOGO, VENTO, TERRA E MAR: MIGRAÇÕES, NATUREZA E …livros01.livrosgratis.com.br/cp011195.pdf · formação e urbanização do Bairro Serviluz em Fortaleza. Comunidade localizada

163

Page 166: “FOGO, VENTO, TERRA E MAR: MIGRAÇÕES, NATUREZA E …livros01.livrosgratis.com.br/cp011195.pdf · formação e urbanização do Bairro Serviluz em Fortaleza. Comunidade localizada

164

Page 167: “FOGO, VENTO, TERRA E MAR: MIGRAÇÕES, NATUREZA E …livros01.livrosgratis.com.br/cp011195.pdf · formação e urbanização do Bairro Serviluz em Fortaleza. Comunidade localizada

165

Page 168: “FOGO, VENTO, TERRA E MAR: MIGRAÇÕES, NATUREZA E …livros01.livrosgratis.com.br/cp011195.pdf · formação e urbanização do Bairro Serviluz em Fortaleza. Comunidade localizada

Livros Grátis( http://www.livrosgratis.com.br )

Milhares de Livros para Download: Baixar livros de AdministraçãoBaixar livros de AgronomiaBaixar livros de ArquiteturaBaixar livros de ArtesBaixar livros de AstronomiaBaixar livros de Biologia GeralBaixar livros de Ciência da ComputaçãoBaixar livros de Ciência da InformaçãoBaixar livros de Ciência PolíticaBaixar livros de Ciências da SaúdeBaixar livros de ComunicaçãoBaixar livros do Conselho Nacional de Educação - CNEBaixar livros de Defesa civilBaixar livros de DireitoBaixar livros de Direitos humanosBaixar livros de EconomiaBaixar livros de Economia DomésticaBaixar livros de EducaçãoBaixar livros de Educação - TrânsitoBaixar livros de Educação FísicaBaixar livros de Engenharia AeroespacialBaixar livros de FarmáciaBaixar livros de FilosofiaBaixar livros de FísicaBaixar livros de GeociênciasBaixar livros de GeografiaBaixar livros de HistóriaBaixar livros de Línguas

Page 169: “FOGO, VENTO, TERRA E MAR: MIGRAÇÕES, NATUREZA E …livros01.livrosgratis.com.br/cp011195.pdf · formação e urbanização do Bairro Serviluz em Fortaleza. Comunidade localizada

Baixar livros de LiteraturaBaixar livros de Literatura de CordelBaixar livros de Literatura InfantilBaixar livros de MatemáticaBaixar livros de MedicinaBaixar livros de Medicina VeterináriaBaixar livros de Meio AmbienteBaixar livros de MeteorologiaBaixar Monografias e TCCBaixar livros MultidisciplinarBaixar livros de MúsicaBaixar livros de PsicologiaBaixar livros de QuímicaBaixar livros de Saúde ColetivaBaixar livros de Serviço SocialBaixar livros de SociologiaBaixar livros de TeologiaBaixar livros de TrabalhoBaixar livros de Turismo