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EM BUSCA DE UMA SUSTENTABILIDADE SOCIOAMBIENTAL URBANA proposição para o bairro Serviluz Simbólico

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O trabalho faz uma análise critica do atual projeto proposto para a comunidade do Serviluz, Aldeia da Praia, apontando incoerências com a legislação vigente e as reais necessidades da comunidade. Como contraponto, elaboro, a partir de minha análise crítica um projeto alternativo que tem o foco em mitigar as precariedades mais latentes da ocupação, atender os desejos dos moradores relacionados a lazer, e minimizar as remoções previstas, com aproveitamento das potencialidades locais. Espero que esse trabalho possa ser uma ferramenta útil para contribuir nas lutas sociais pelo direito à cidade e à moradia digna.

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  • 1. EM BUSCA DE UMA SUSTENTABILIDADE SOCIOAMBIENTAL URBANA p ro p osio p ara o b airro Ser viluz Simbli co

2. EM BUSCA DE UMA SUSTENTABILIDADE SOCIOAMBIENTAL URBANA:PROPOSIO PARA O BAIRRO SIMBLICO SERVILUZLara Barreira de Vasconcelos Orientadora: Clarissa Figueiredo Sampaio FreitasUniversidade Federal do Cear Departamento de Arquitetura e Urbanismo Trabalho Final de Graduao Fortaleza maio/ 20133 3. 4 4. EM BUSCA DE UMA SUSTENTABILIDADE SOCIOAMBIENTAL URBANA: PROPOSIO PARA O BAIRRO SIMBLICO SERVILUZLara Barreira de VasconcelosBANCA EXAMINADORA:________________________________________________ Profa. Dr. Clarissa Figueiredo Sampaio Freitas (orientadora) Universidade Federal do Cear________________________________________________ Prof. Dr. Luis Renato Bezerra Pequeno Universidade Federal do Cear________________________________________________ Prof. Dr. Maria gueda Pontes Caminha Muniz Secretaria de Urbanismo e Meio Ambiente de FortalezaFortaleza, 16 de maio de 20135 5. 6 6. Agradecimentos Em primeiro lugar, gostaria agradecer a toda a minha famlia que me apoiou sempre, oferecendo, todos esses anos, as condies necessrias para que eu pudesse me dedicar minha formao de maneira responsvel e engajada com os valores que acredito e que tambm me foram passadas na convivncia do seio familiar. Sou grata tambm por todo amor que recebi e recebo todos os dias que, sem dvida, contribuem de forma decisiva para e pessoa que me tornei. Sobretudo merece todos os agradecimentos a minha me pela dedicao carinhosa despendida na criao minha e da minha irm. Tambm ofereo minha imensa gratido Associao Boca do Golfinho, ao Carlos Alexandre e Denise Lima que me acolheram durante vrios dias em sua casa, me mostraram o Serviluz e me colocando em contato com outros moradores. Desse contato, nasce uma amizade que desejo que possa permanecer para alem da realizao desse trabalho. Gostaria de parabenizar e expressar meu sentimento de admirao a todos queles que fazem parte, ou contribuem de alguma forma, com a Associao Boca do Golfinho pelo trabalho social e educativo realizado com os jovens da comunidade atravs da prtica esportiva do surf e capoeira, e dos momentos de formao cidad e tica atravs dos filmes e conversas em sala. Agradeo tambm meu companheiro Gustavo Fernandes que alem de ter me colocado em contato com a comunidade, pacientemente me passou seus conhecimentos de sociologia atravs de conversas e literatura indicada para que eu pudesse elaborar a metodologia e realizar as entrevistas com os moradores do Serviluz. Sendo essa etapa essencial para que a proposta projetual pudesse estar o mais prximo possvel das reais necessidades e anseios da populao. Alem das trocas intelectuais, sou grata tambm compreenso e pacincia que teve durante todo o tempo que precisei estar ausente durante os ltimos meses. Gostaria de registrar o meu imenso muito obrigada a todos os moradores do Serviluz que foram entrevistados, que se disponibilizaram a ceder uma parte do seu tempo corrido para dividir comigo um pouco de suas percepes acerca das questes do bairro. No posso deixar de agradecer tambm a todos aqueles que se tornaram minha segunda famlia durante os ltimos anos: todos os mestres e colegas do curso de Arquitetura e Urbanismo que com a convivncia diria tive a oportunidade de aprender e compartilhar um momento muito especial da minha vida que, sem dvida, ficar guardado com todo o carinho em minha memria. Agradeo de corao a pessoa que, durante todo o trabalho, me incentivou, encorajou e apontou caminhos para que pudesse seguir em frente com segurana e embasamento em todos os impasses e dvidas surgidos no percurso. O meu muito obrigada profa. Clarissa Freitas. Expresso minha gratido tambm quele que me mostrou uma realidade urbana que me fez repensar meus caminhos acadmicos e com seu exemplo de comprometimento profissional em passar conhecimentos que possam ser capazes de transformar uma realidade urbana posta, despertou em mim a crena de que posso contribuir para essa mudana. Grata ao prof. Renato Pequeno. Sou muito feliz e agradecida por fazer parte da turma que em minha gerao ficou conhecida como sendo a mais unida da faculdade e, pelos professores, como uma das mais comprometidas. Aprendi a gostar e admirar todos os meus colegas, cada7 7. um com sua forma de ser, inclusive aqueles que no eram da turma e foram adotados como sendo parte dessa nuvem de cumplicidade e carinho que nos envolveu nesses anos de convivncia. Tive a oportunidade de fazer grandes amizades que ultrapassaram o coleguismo e se tornaram pessoas essenciais na minha vida. Obrigada pelos risos, e aperreios compartilhados. Por todo o aprendizado de nossas longas conversas que permeavam vida pessoal e construo de um mundo melhor atravs de nossa possvel atuao da cidade, na arquitetura e no design. Minha enorme admirao e gratido a Ana Virgnea, Beatriz Rodrigues, Isabel Cavalcante e Sofia Carvalho. O meu muito obrigado tambm ao colega e amigo Jos Otavio que me auxiliou nas ultimas semanas com a edio das perspectivas ilustrativas do projeto. s meninas do Pet-arquitetura que tiraram minhas dvidas de arcGIS para o desenvolvimento dos mapas do diagnostico. E a todos meus outros amigos, professores e familiares que contriburam direta ou indiretamente com a concluso desse trabalho.8 8. Sumrio Introduo..............................................................................................................................................111.Referencial Terico Referencial Terico....................................................................................131.1. E essa tal sustentabilidade? ............................................................................................................15 1.2. A sustentabilidade no debate Urbano .........................................................................................20 1.3. Diversos Sentidos Atribudos Cidade Sustentvel.....................................................................23 A representao tcnico-material das cidades cidades ecolgicas.......................23 Cidade como espao da qualidade de vida urbanidade. .......................................26 Cidade como espao de legitimao das polticas urbanas. ....................................36 Afinal, o que seria ento a cidade sustentvel? .......................................................39 1.4. A (in)sustentabilidade das Cidades Brasileiras ..........................................................................42 Dinmica da cidade formal.........................................................................................42 Dinmica da cidade informal......................................................................................45 1.5. Por Que Estamos Diante de um Momento Histrico Oportuno e Urgente? .............................52 Breve histrico da ocupao irregular e das polticas habitacionais no Brasil.........52 Momento atual............................................................................................................56 1.6. O Caso da Cidade de Fortaleza........................................................................................................61 Presses imobilirias...................................................................................................65 2.Diagnstico Participativo..................................................................67 Diagnstico Participativo2.1. O objeto de estudo: O Serviluz......................................................................................................69 2.2. Metodologia do Diagnstico Participativo..................................................................................72 Pesquisa social Qualitativa. ........................................................................................72 2.3. Contexto Urbano............................................................................................................................79 2.4. Histria e Pertencimento..............................................................................................................83 2.5. Criminalidade e Violncia...............................................................................................................93 2.6. Precariedades da Ocupao..........................................................................................................98 Saneamento bsico ineficiente...................................................................................98 Precariedade por tamanho reduzido de lote............................................................99 Precariedade por coabitao....................................................................................100 Precariedade por acesso............................................................................................102 Precariedade por risco de soterramento..................................................................103 2.7. Vitalidade e Mobilidade das Ruas...............................................................................................1089 9. 2.8. Legislao Referente rea........................................................................................................120 Plano Diretor Participativo de Fortaleza...................................................................120 Patrimnio..................................................................................................................127 2.9. Planejamento para a rea em estudo..........................................................................................129 Projeto Orla................................................................................................................129 Descrio do Projeto Aldeia da Praia........................................................................133 Anlise do Projeto Aldeia da Praia............................................................................1383. Proposta Projetual Proposta projetual.................................................................................. 1513.1 . Zoneamento de Aplicao dos Instrumentos dos Instrumentos do Estatuto da Cidade........153 3.2 Plano de Reestruturao Viria...................................................................................................156 3. 3. Plano de Remoes e Reassentamentos...................................................................................178 Remoo por reestruturao viria..........................................................................178 Remoo por proximidade do mar menor que 15 metros......................................179 Remoo por precariedade por tamanho................................................................179 Remoo por obstruo do patrimnio histrico Farol Velho................................180 Remoo em terreno de reassentamento................................................................181 3. 4. Tipologias Habitacionais Propostas para Reassentamento.....................................................183 Tipologia A Unifamiliar sobrado.............................................................................188 Tipologia B Unifamiliar trrea acessvel..................................................................191 Tipologia C Apartamento 2 quartos com ampliao.............................................193 Tipologia C acessvel...............................................................................................195 Tipologia D Kitinete com ampliao......................................................................196 3. 4. Implantao dos reassentamentos............................................................................................198 Blocos Multifamiliares...............................................................................................198 Blocos de unidades Unifamiliares.............................................................................199 Implantao geral nos terrenos................................................................................199 3. 5. Plano de Espaos Livres e de Lazer.............................................................................................213 3. 6. Praa Campo do Paulista..............................................................................................................216 3. 7. Praa do Jangadeiro.....................................................................................................................2224. 5.Consideraes Finais ......................................................................... 229 Consideraes FinaisReferncias Bibliogrficas ............................................................. 233 Referncias Bibliogrficas10 10. Introduo Esse trabalho foi dividido em trs etapas complementares: Referencial Terico, Diagnstico Participativo e Proposta Projetual. Embora na sistematizao aqui exposta essas etapas sejam separadas e bem delimitadas, a elaborao real do trabalho foi um processo rizomtico, em que as etapas estiveram sobrepostas durante vrios momentos. A primeira etapa correspondeu construo do Referencial Terico. Essa foi uma fase de muita leitura e amadurecimento conceitual. O tema sustentabilidade urbana j havia sido previamente definido, por uma afinidade pessoal. Embeber-me de vrios autores na tentativa de definir, ou pelo menos apontar caminhos, para o que viria a ser a cidade sustentvel, havia se tornado uma necessidade pessoal que surgira em meados do curso de arquitetura e urbanismo, em um momento em que, at ento, meus interesses acadmicos haviam se voltado ao estudo da arquitetura sustentvel e bioclimtica. No momento em que as disciplinas de urbanismo me apresentaram uma realidade brasileira desigual, injusta, e, contraditoriamente, cheia de vida, a bolha da classe mdia em que eu habitava teve que ser rompida para que eu pudesse ser apresentada ao mundo da cidade informal. Senti-me atrada por aquela realidade espontnea e diversa, ao mesmo passo que entendi que jamais poderia existir sustentabilidade sem justia social. Esse foi um momento de inquietude e redefinio dos meus interesses acadmicos. Eu j havia entrado em contato amplamente com conceitos de sustentabilidade no ponto de vista mais tradicional e divulgado, mas agora a questo era: e no Brasil que um pas extremante desigual? Separar o lixo, aproveitar a gua da chuva, utilizar energia solar, andar de bicicleta, de que tudo isso adiantaria se grande parte da populao urbana brasileira vive sem saneamento bsico? Por vezes sem casa, sem lazer? Em outros casos, vivendo em alguma condio de precariedade ou risco? Foi minha necessidade latente de desatar esse n que motivou a construo do referencial terico desse trabalho. E essa tal sustentabilidade? a temtica que abre o meu texto. A partir desse mote houve um trabalho de reviso bibliogrfica sobre o tema sustentabilidade urbana, dando embasamento ao modo como eu direcionaria o diagnstico e a proposta projetual. A escolha do objeto de estudo e interveno a comunidade do Serviluz , se deu principalmente por dois motivos. O primeiro se relaciona ao momento em que essa comunidade se encontra como alvo de diversas propostas e transformaes. O segundo est relacionado a uma convenincia pessoal, pois essa era uma comunidade em que havia previamente uma possibilidade de aproximao atravs do conhecimento e acessibilidade a uma associao educativa dentro da comunidade: a Associao Boca do Golfinho. Dessa forma, a segunda fase do trabalho foi o diagnstico. Nessa etapa foram considerados tanto dados secundrios como dados primrios coletados in loco. Buscou-se entender a realidade local a partir dos depoimentos EM BUSCA DE UMA SUSTENTABILIDADE SOCIOAMBIENTAL URBANA: PROPOSIO PARA O BAIRRO SIMBLICO SERVILUZ11 11. de moradores locais comuns, complementado a coleta de dados atravs de documentos, anlise cartogrfica e trabalhos acadmicos referentes rea. O contato com a Associao Boca do Golfinho foi de fundamental importncia para viabilidade dessa metodologia que ser explicada com detalhes mais adiante, dento do capitulo referente ao diagnstico. Denominei esse processo de diagnstico participativo. Como o carter do trabalho e o tempo disponvel para realiz-lo impossibilitavam que a elaborao da proposta projetual acontecesse de forma participativa, tentar chegar perto da comunidade na fase do diagnstico foi a forma que encontrei de driblar, pelo menos em parte, essa limitao. A proposta projetual buscou levar amplamente em considerao o que foi refletido durante a fase do diagnstico. Dessa forma, o contato com a comunidade antes e durante a elaborao do projeto foi de extrema importncia para que a proposta buscasse ao mximo atender as reais demandas locais, mitigando precariedades e ampliando a qualidade de vida no local, tudo isso em consonncia com os anseios da populao local. A limitao, j mencionada, referente realizao da proposta de forma participativa, fez-me encarar a proposta projetual como um estudo preliminar. Dessa forma, assumo de antemo, que o que estar aqui exposto no pretende ser uma verso final de projeto. O projeto aqui apresentado se coloca como uma primeira proposta que deveria ser levada a avaliao pela comunidade do Serviluz. A ideia que a partir de uma primeira proposio possam surgir criticas e sugestes que sejam capazes de lanar uma proposta final construda coletivamente. A importncia aqui colocada participao popular ser mais adiante detalhada dentro do referencial terico, que define o processo participativo como um dos pr-requisitos da construo da cidade sustentvel.12 12. 1.Referencial TericoEM BUSCA DE UMA SUSTENTABILIDADE SOCIOAMBIENTAL URBANA: PROPOSIO PARA O BAIRRO SIMBLICO SERVILUZ13 13. 14 14. 1.1.E essa tal Sustentabilidade ?Esse tema to discutido, divulgado, criticado e, sobretudo, vendido, j vem fazendo parte do vocabulrio da sociedade contempornea h algumas dcadas. O conceito de sustentabilidade surgiu como uma crtica propositiva ao modelo moderno do crescimento sem limites, desconsiderando a capacidade de suporte dos recursos naturais existentes. Atualmente se percebe a ocorrncia de uma certa prostituio do termo, conforme atesta Leonardo Boff: A maioria daquilo que vem anunciado por sustentvel, geralmente, no . uma etiqueta, um discurso que agrega valor. (BOFF, 2012, p.09) Vale, para comear essa anlise, entender o surgimento do conceito, sua crtica e suas novas perspectivas para reflexes atuais e futuras. Quando de sua origem, o conceito de sustentabilidade estava relacionado primordialmente s questes ambientais frente explorao da sociedade capitalista industrial. Somente em abordagens mais contemporneas, as questes da justia social e da equidade ganham espao de destaque, propondo um conceito mais abrangente denominado responsabilidade socioambiental. Esse movimento questionador do modelo de produo e desenvolvimento moderno de carter fortemente industrial se inicia no final da dcada e 1960, comeo da dcada de 1970 a partir dos primeiros indcios das mudanas climticas e da crise do petrleo. Em 1968, um grupo internacional de intelectuais constitui o chamado Clube de Roma, o qual, em 1972, viria a publicar uma forte crtica ao modelo econmico dos pases industrializados. Elaborado por uma equipe do Massachusetts Institute of Tecnology (MIT), sob encomenda do referido Clube de Roma, o relatrio intitulado Os limites do crescimento trouxe tona a necessidade de associar a natureza ao desenvolvimento econmico. A publicao pioneira vendeu mais de trinta milhes de cpias, em trinta idiomas, tornando-se o livro sobre meio ambiente mais vendido da histria. A publicao alarmante colocou a questo no centro das discusses da ONU (Organizao das Naes Unidas), que, no mesmo ano de 1972, promoveu a Primeira Conferncia Mundial sobre o Homem e o Meio Ambiente em Estocolmo. Na ocasio, foi constatada a necessidade da criao do PNUMA (Programa das naes Unidas para Meio Ambiente). Uma outra conferencia, realizada em 1984, deu origem CMMAD (Comisso Mundial sobre Meio Ambiente e Desenvolvimento), com objetivo de criar uma agenda global para mudana de postura global em relao ao meio ambiente. Em 1987, um relatrio intitulado Nosso Futuro Comum foi publicado pela primeira-ministra norueguesa Gro Haarlem Brundland como resultado dos trabalhos dessa comisso. Foi nesse relatrio que o termo desenvolvimento sustentvel, to difundido at os dias atuais, foi definido pela primeira vez. A Sra. Brundland definiu desenvolvimento sustentvel como aquele que atende as necessidades das geraes atuais sem comprometer a capacidade das geraes futuras de atender suas necessidades e aspiraes. (Comisso Mundial sobre Meio Ambiente e desenvolvimento, 1988, p.9 apud COMPANS, 2009, p.121) EM BUSCA DE UMA SUSTENTABILIDADE SOCIOAMBIENTAL URBANA: PROPOSIO PARA O BAIRRO SIMBLICO SERVILUZ15 15. Nesse momento inicial, as preocupaes e os debates estavam mais diretamente relacionados questo ambiental e econmica. A constatao da degradao ambiental e das mudanas climticas provocadas pelo modelo econmico vigente apontava para a necessidade de uma forma de desenvolvimento que minimizasse os danos ambientais. Foi somente na dcada de 1990 que a questo social passou a ser includa dentro da noo de desenvolvimento sustentvel. Apesar de tal incluso ter ocorrido h cerca de duas dcadas, observamos que, em diversas abordagens da mdia e do senso comum, e at em trabalhos acadmicos contemporneos, o termo sustentabilidade ainda utilizado de modo a remeter apenas ou primordialmente a questes ecolgicas e econmicas. A difundida noo de desenvolvimento sustentvel ligada preocupao com os trs pilares econmico, social e ambiental surgiu no ano de 1990, idealizada pelo britnico John Elking, fundador da ONG SustainAbilility. O conceito chamado de Triple Botton Line ou principio dos trs Ps: Profit, People, Planet. (BOOF, p.44, 2012) Outra conferncia internacional da ONU de grande relevncia histrica ocorreu em 1992, no Rio de Janeiro, tendo ficado conhecida como Eco-92. Esse evento teve grande repercusso nacional e mundial, divulgando e consolidando a necessidade de uma mudana de postura no conceito de desenvolvimento. Um dos produtos mais importantes dessa conferncia foi a Agenda 21: um abrangente plano de ao a ser implementado por governos, agncias de desenvolvimento, a Organizao das Naes Unidas (e suas agncias especializadas) e grupos setoriais independentes em cada rea. O mencionado documento representa o primeiro esforo de sistematizao de um amplo programa de ao para a transio rumo ao alcance do desenvolvimento sustentvel. A agenda 21 confirmou e consolidou a noo de desenvolvimento sustentvel ligado a preocupaes tanto ambientais como sociais. Trs de seus captulos foram dedicados a questes eminentemente sociais: Captulo 3 - Combate a Pobreza, Captulo 6- Proteo e promoo das condies de sade humana, Captulo 7- Promoo do desenvolvimento sustentvel dos assentamentos humanos. Dessa forma, hoje j existe uma clara diferena conceitual entre a abordagem ecolgica, que pretende albergar uma responsabilidade e respeito ao meio ambiente; e a abordagem sustentvel, entendida como uma postura que almeja integrar o desenvolvimento econmico a uma responsabilidade socioambiental. Aps essa marcante Conferencia (ECO-92), em que parecia haver um consenso mundial das naes quanto necessidade de uma tica poltica em que todos devem cooperar em um esprito de parceria global a fim de se alcanar o desenvolvimento sustentvel, houve uma progressiva perda desse esprito de cooperao e comprometimento nas conferncias a seguir. Em 1997, na Rio+5, constatou-se que muitas das metas e compromissos assumidos pelas naes no estavam sendo cumpridos. Em 2000, em Haia, na Holanda, a conferncia sobre mudanas climticas terminou em fracasso. Houve um impasse sobre a questo da diminuio de emisso dos GEE (Gases Efeito Estufa). O compromisso acordado anteriormente no Protocolo de Kyoto, em 1997, foi questionado pelos Estados Unidos pas mais16 16. poluente - que argumentaram a possibilidade de os pases industrializados concederem ajuda financeira a outros pases para que estes reduzissem sua emisso de GEE. A Unio Europeia insistiu que os prprios pases industrializados deveriam reduzir suas emisses e, portanto, no houve acordo. Depois desse ocorrido histrico, em que se acirrou o clima de disputa de poder entre as grandes potncias, ficava cada vez mais evidente que os interesses econmicos corporativos se sobrepunham ao sentido de sustentabilidade. O sonho do desenvolvimento sustentvel comea, ento, a ser colocado em cheque. Para Leonardo Boff (2012, p.45), o prprio termo desenvolvimento sustentvel contraditrio e incoerente em seu principio, pois, segundo ele, desenvolvimento e sustentabilidade atendem a duas lgicas opostas e incompatveis. Enquanto o desenvolvimento (capitalista) obedece a uma lgica linear, individualista, da acumulao, da explorao da natureza e do homem, gerando profundas desigualdades riqueza de um lado, pobreza de outro; a lgica da sustentabilidade circular, holstica, includente, valoriza a cooperao, a coevoluo, a interdependncia de todos com todos, busca a o equilbrio dinmico dos ecossistemas. Nesse sentido, na viso do autor, no possvel alcanar a sustentabilidade dentro do atual paradigma de produo e consumo. Argumenta que o principal defeito de todas as definies dos organismos da ONU colocar o homem acima da natureza, no como parte dela. Boff reconhece o valor de algumas medidas e posturas que foram tomadas em prol do desenvolvimento sustentvel, como produo em nveis de mais baixo carbono, utilizao de energias alternativas, reflorestamento de regies degradadas e criao de melhores sumidouros de dejetos, mas afirma que tudo realizado desde que no afetem os lucros. No seu ponto de vista, a utilizao da expresso desenvolvimento sustentvel possui uma significao poltica importante: representa uma maneira hbil de desviar a ateno para os reais problemas como a injustia social e o aquecimento global crescente, por exemplo. Em concluso, no modelo de desenvolvimento que se quer sustentvel, o discurso da sustentabilidade vazio e retrico. (BOFF, 2012, p. 47) Leonardo Boff (2012) defende um avano face compreenso convencional de sustentabilidade, prope a reflexo sobre a criao de um novo paradigma que entenda Terra/humanidade/desenvolvimento como um nico e grande sistema. Para isso ele menciona a necessidade da criao de um novo software mental, um design diferente da nossa forma de pensar e ler a realidade. No seria o mesmo pensamento que nos trouxe at a situao atual que nos vai tirar dela. Segundo o autor, para alm da razo intelectual, preciso inteligncia emocional e cordial que nos faa perceber que fazemos parte de um todo, que estamos conectados com os demais seres. Boff menciona ainda um aspecto subjetivo que, para ele, essencial para a verdadeira sustentabilidade: o cuidado essencial. (...) Entendemos cuidado no como uma virtude ou uma simples atitude de zelo e de preocupao por aquilo que amamos ou com o qual nos sentimos envolvidos. Cuidado tambm isso. Mas fundamentalmente configura um modelo de ser, uma relao novaEM BUSCA DE UMA SUSTENTABILIDADE SOCIOAMBIENTAL URBANA: PROPOSIO PARA O BAIRRO SIMBLICO SERVILUZ17 17. para com a realidade, a Terra, a natureza e o outro ser humano. Ele comparece como um paradigma que se torna mais compreensvel se o compararmos com o paradigma da modernidade. Este se organiza sobre a vontade de poder, poder como dominao, como acumulao, como conquista da natureza e dos outros povos. O cuidado o oposto do paradigma da conquista. Tem haver como j dizamos anteriormente, com um gesto amoroso, acolhedor, respeitador do outro, da natureza e da Terra. Quem cuida no se coloca sobre o outro, dominando-o, mas junto dele, convivendo, dando-lhe conforto e paz. (BOFF, 2012, p. 93)O autor faz um elogio tica de vida dos povos andinos que vo desde a Patagnia at o norte na Amrica do Sul e do Caribe. O ideal de vida desses povos o bem-viver (sumak kawsay ou suma qamaa). Diferente do nosso do conhecido conceito de qualidade de vida, o bem viver visa tica da suficincia para toda a comunidade, no apenas do individuo. Busca o caminho de equilbrio com Pacha (energia universal) que se concentra na Pachamama (Me Terra). Pressupe uma viso Holstica e integradora do ser humano inserido na grande comunidade terrena que inclui, alm do ser humano, o ar, a gua, os solos, as montanhas, as rvores e os animais. No restam dvidas de que a abordagem de Boff tem sua parcela de idealismo comparado ao modo de vida e organizao das sociedades atuais, mas a reflexo sobre os princpios com base nos quais estamos construindo nossa sociedade e sobre de que forma nos relacionamos com o mundo bastante relevante, sobretudo no contexto em que estamos vivendo atualmente. Momento em que o sonho do desenvolvimento sustentvel comea a se mostrar invivel diante da atual lgica do capitalismo-industrial; em que os interesses econmicos se impem de forma esmagadora diante da tentativa de semear outros valores. Momento tambm em que (desde 1998) grande parte dos pases desenvolvidos e industrializados passam por uma assoladora crise financeira mundial decorrente do prprio sistema capitalista (insustentvel). Recentemente, mais uma vez a cidade do Rio de Janeiro, Brasil, foi palco de uma Conferncia das Naes Unidas sobre Desenvolvimento Sustentvel (CNUDS). Tambm conhecido como Rio+20, o evento ocorreu entre os dias 13 e 22 de junho de 2012. O documento oficial resultante da conferncia - O Futuro que Ns Queremos reafirma os compromissos anteriores, como a Agenda 21, por exemplo; define quais so os prximos desafios; e reconhece o pouco avano em algumas reas. interessante perceber que a ideia dos trs pilares (econmico, social e ambiental) apresenta-se muito forte em todo o texto do documento, sendo essa definio de desenvolvimento sustentvel a mais aceita atualmente. Outro dado relevante do documento que as questes sociais esto sendo colocadas com destaque cada vez maior. No tpico Nossa Viso Comum, os dois primeiros enunciados demonstram claramente isso: 1. Ns, os chefes de Estado e de Governo e os representantes de alto nvel, tendo nos reunido no Rio de Janeiro (Brasil) do dia 20 a 22 de junho de 2012, com a plena participao da sociedade civil, renovamos nosso compromisso em favor do desenvolvimento sustentvel e a promoo de um futuro sustentvel desde o ponto de vista econmico, social e ambiental18 18. para nosso planeta e para as geraes presentes e futuras. 2. A erradicao da pobreza o maior problema que afronta o mundo na atualidade e uma condio indispensvel de desenvolvimento sustentvel. (CMMAD, 2009, p. 01)Em trecho do prprio documento - O Futuro que Ns Queremos perceptvel que foi dada uma grande liberdade aos Estados-Membros, enfatizando que cada um deve buscar o desenvolvimento sustentvel dentro de suas possibilidades e objetivos internos. A nfase dada foi aos conceitos, que por vezes se tornavam vagos por no indicar parmetros ou metas concretas, havendo, dessa forma, uma menor cobrana de responsabilidades e prazos. Talvez essa tenha sido uma estratgia de promover um evento que voltasse a trazer a esperana da sustentabilidade, sem bater de frente com os interesses opostos de algumas naes, em um contexto de tantos acordos no cumpridos e conflitos de interesses dos ltimos anos. Vejamos como essa falta de objetividade se reflete no texto do documento: 247. Tambm resaltamos que os objetivos do desenvolvimento sustentvel devem estar orientados a ao, ser concisos e fceis de comunicar, limitados em seu nmero e ambiciosos, ter um carter global e ser universalmente aplicveis a todos os pases, levando em considerao as diferentes realidades, capacidade e nveis de desenvolvimento nacionais e respeitando as polticas e prioridades nacionais. Tambm reconhecemos que os objetivos devem guardar relao com ambitos prioritrios para alcanar o desenvolvimento sustentvel, e focar neles, segundo as orientaes do presente documento final. Os governos devem impulsionar trabalhos relacionados, com a participao ativa de todos os interessados, conforme apropriado. (CMMAD, 2009, p. 53) Apesar de toda a crtica, o atual secretrio geral da ONU, Ban Ki-moon, considerou o evento muito bem sucedido por ter conseguido equilibrar a viso de 193 Estados-Membros, reconhecendo a pobreza como principal desafio para o bemestar econmico, social e ambiental; e a necessidade de ir alem do PIB como medida de progresso, identificando a economia verde como um caminho de incluso social, crescimento econmico e preservao ambiental. (NAES UNIDAS, 2012) Aparte todos os impasses e criticas acerca do tema desenvolvimento sustentvel, ou apenas sustentabilidade, importante entender que essa uma discusso contempornea, simboliza a constatao de que o modelo em que vivemos necessita de mudanas, representa a esperana da construo de algo novo que possa promover um futuro desejvel. Em um sentido mais amplo, vale considerar que o conceito de sustentabilidade uma construo social, passvel de evoluo, de diferentes interpretaes e, tambm, de apropriaes inadequadas do termo. Segundo Henri Acselrad (2009, pp.44-45), sustentabilidade um principio em evoluo, um conceito infinito. Mas como definir algo que no existe? (idem) E que ao existir ser uma construo social passvel de diversas interpretaes e praticas que se pretendem legitimas, reivindicando em seu nome? Para o autor, existe uma disputa pela expresso, pois aquelas prticas que se legitimem como sustentveis sero entendidas como compatveis com a qualidade futura postulada como desejvel. (idem) Considerando a abordagem de Herri Acselrad, entendemos que o debate sobre sustentabilidade vlido justamente por representar aquilo que ser compreendido como positivo para o futuro de nossa sociedade. Tambm por entender que a maquina do capital ter interesse sobre esse termo justamenteEM BUSCA DE UMA SUSTENTABILIDADE SOCIOAMBIENTAL URBANA: PROPOSIO PARA O BAIRRO SIMBLICO SERVILUZ19 19. por ele legitimar aquilo que a sociedade e as lideranas mundiais consideram como desejvel. preciso colocar em pauta o que ser esse desejvel, buscando uma coerncia com o motivo pelo qual todo esse debate se iniciou: a percepo que o modelo atual de desenvolvimento, que visa o crescimento sem limites e que coloca interesses da avassaladora busca pelo lucro acima de todos os outros valores, acaba por gerar um ambiente desarmnico e contraditrio com inmeros impactos ambientais e desigualdades sociais. Avanaremos mais nessa discusso enfocando nosso objeto de estudo, as cidades.1.2.A Sustentabilidade no Debate UrbanoDesde que se iniciaram os debates acerca do desenvolvimento sustentvel nas convenes e eventos internacionais, em grande parte fomentados pela ONU, vem sendo colocado em pauta tambm o conceito de cidades sustentveis. Influenciado pelas proposies da Agenda 21, o conceito de cidade sustentvel comea a ser elaborado com a perspectiva de dar durabilidade ao desenvolvimento urbano. Assim, de acordo com Sanchez (2009), a imagem de cidade-modelo difundida internacionalmente prpria da virada do sculo associa os ingredientes de competitividade e sustentabilidade a um mesmo ideal de cidade globalizada. Essa relao de cidade sustentvel associada cidade global e competitiva est fortemente ligada ao que chamamos de city marketing, ou seja, a sustentabilidade tida como uma qualidade essencial para as cidades serem bem vistas no mercado internacional, atraindo investimentos e autopromovendo sua imagem. Nesse contexto, o sentido de sustentabilidade est relacionado mais fortemente modernizao ecolgica das cidades, neutralizando a crtica ambientalista e deixando de colocar em pauta as contradies sociais das grandes cidades. O professor da UFRJ Henri Acselrad traduz muito bem esse cenrio: (...) Uma tendncia forte, nesse debate, procura circunscrever a questo de durabilidade das cidades simples necessidade de um ajuste ecolgico dos fluxos urbanos. visvel o esforo de reduzir os grandes desafios urbanos s possibilidades da chamada modernizao ecolgica das cidades, processo pelo qual as instituies polticas procuram conciliar o crescimento urbano com a resoluo dos problemas ambientais, dando nfase adaptao tecnolgica , celebrao da economia de mercado, crena na colaborao e no consenso. Tal abordagem , em essncia, compatvel com o chamado pensamento nico urbano que exige das cidades que se ajustem aos propsitos tidos por inelutveis na globalizao financeira. A chamada insero competitiva , neste iderio, evocada para pression-las a se transformarem em espaos autnomos em disputa inclusive pela via da afirmao de seus atributos ambientais por investimentos nos mercados internacionalizados. A cidade do pensamento nico , consequentemente, a cidade do ambiente nico o ambiente dos negcios. (ACSELRAD, 2009, p.38)20 20. Assim como o conceito de desenvolvimento sustentvel vem passando por uma crise ideolgica, o termo cidades sustentveis colocado desta maneira tambm vem passando por diversos questionamentos. Para Acselrad (2009), o discurso puramente ambiental desconsidera a complexidade social e a dimenso poltica do espao urbano. O pensamento do ambiente nico prope uma postura supraclassista: como o meio ambiente de interesse de todos, devemos dar as mos para proteg-lo. No entanto, a sociedade socialmente fragmentada, e ser a poltica de uma classe dominante que ditar as regras. A legitimao de polticas urbanas que utilizam o conceito de cidade sustentvel como instrumento do marketing city para promover as cidades no mercado mundial, muitas vezes, tende a acentuar a segregao scio-espacial. Isso acontece em parte porque os benefcios desses investimentos internacionais privilegia predominantemente a classe dominante, as grandes empresas; em parte porque o esforo das cidades para se tornarem atraentes ao capital mundial demanda grandes investimentos, e acabam por reduzir os recursos que deveriam ser direcionados para resolver os seus problemas mais graves: a segregao scio-espacial, e a falta de infraestrutura da cidade informal. A meu ver, a crtica cidade sustentvel possui a mesma raiz do questionamento do desenvolvimento sustentvel e fazem parte de um mesmo momento histrico de parada para reflexo acerca do sonho da sustentabilidade. A literatura mais recente a respeito do tema - cidade sustentvel - reivindica uma abordagem mais abrangente, que envolva no apenas questes ambientais, mas tambm questes de bem estar e equidade social. Observemos a crtica propositiva de Henrique Rattner. O maior desafio de nossa civilizao urbano-industrial o de como transformar uma estratgia de crescimento econmico direcionada contra a maioria pobre da populao em um modelo de sustentabilidade baseado no bem-estar humano. Como, ento, podemos substituir o principio da competio por empregos, mercados, riqueza e poder imposto a populaes indefesas como condio de sobrevivncia pela cooperao, como principal pilar de sustentao? (RATTNER, 2009, p.10)Se analisarmos bem, possvel perceber um dilogo entre a viso de Rattner e o pensamento de Leonardo Boff colocado no item anterior (E essa tal sustentabilidade?- p.06 E 07). Outra critica que coloca em cheque a ambientalizao das cidades que desconsidera a dimenso social a percepo de que, na maioria dos casos, a origem da degradao do meio ambiente est diretamente relacionada a questes sociais. No caso brasileiro, essa relao se apresenta muito claramente. Por falta de alternativa do mercado formal, grande parte da populao acaba ocupando irregularmente terrenos urbanos para construir sua moradia. Como em terrenos de proteo ambiental no permitido haver construes licitamente, esses tornam-se, frequentemente, o alvo das ocupaes pelas populaes excludas. Trazendo maior gravame a tal panorama, esses assentamentos demoram, ou nem chegam a ter saneamento bsico e coleta de lixo, piorando ainda mais a situao ambiental e de salubridade. Para Acselrad, existe uma inseparabilidade analtica EM BUSCA DE UMA SUSTENTABILIDADE SOCIOAMBIENTAL URBANA: PROPOSIO PARA O BAIRRO SIMBLICO SERVILUZ21 21. entre justia e ecologia: A raiz da degradao do meio ambiente seria a mesma da desigualdade social. (2009, p.50) Maria Lcia Relinetti Martins faz uma tima descrio da situao brasileira colocando em pauta a globalizao, e as questes sociais e ambientais nas cidades brasileiras: (...) preciso reconhecer que o impacto da chamada globalizao no processo de empobrecimento das cidades tem suas razes nos ajustes fiscais, com recuo nas polticas pblicas sociais, aumento do desemprego e precarizao do trabalho e desregulamentao na ao do Estado priorizando o mercado privado. Ainda que nos ltimos anos esse quadro tenha apresentado alguma recuperao, e o acesso a bens de consumo pela populao mais pobre tenha significativamente ampliado, a maioria dos brasileiros, principalmente nas grandes cidades, no encontra oferta de soluo de moradia adequada, nem pelo mercado, nem pelos programas pblicos, acabando banida da condio de cidadania, tanto pela condio econmica, quanto pelas restries urbansticas e ambientais. A consequncia que a populao se instale em loteamentos irregulares, ocupaes informais e favelas, justamente nos lugares ambientalmente frgeis, protegidos por lei, portanto desconsiderados pelo mercado imobilirio formal assim como em edifcios que se tornam obsoletos, perdem valor de locao, terminam abandonados e se transformam em cortios e ocupaes com qualidade precria. (...) nesse quadro que cabe aprofundar sobre forma da cidade do sculo XXI, densidade e condies ambientais do assentamento nas grandes concentraes urbanas e desenvolver alternativas de desenho urbano que contemplem objetivos ambientais e sociais. (MARTINS, 2011, p. 144)At este ponto, fizemos um breve apanhado sobre quais so os principais questionamentos que o termo cidade sustentvel vem sofrendo. Esse conceito pode ter diversas interpretaes, e pode ser apropriado por diversos atores que buscam, sob o manto do termo sustentabilidade, conferir legitimidade s suas posturas. Porm, ainda no chegamos a definir em que propriamente consiste uma postura sustentvel para cidades, que aes e medidas isso envolve. Comeamos pela crtica para mostrar o quo disputado esse termo, para evidenciar que essa questo ultrapassa um conhecimento tcnico ou acadmico. Na realidade, esse um debate que envolve questes tambm polticas. Um debate no qual certo nmero de atores envolvidos na produo do espao urbano procura dar legitimidade as suas perspectivas. (ACSELRAD, 2009, p.53) Percebemos tambm que o termo sustentabilidade passa por um momento em que se almeja romper com a noo de que a sustentabilidade deve estar a servio dos interesses econmicos e tenta se implementar uma postura que aprofunde mais a complexa dinmica da sociedade. Coloca questes como equidade e bem estar social associadas necessidade de um meio ambiente equilibrado, ousando ainda propor que esses interesses devem estar frente do ideal de progresso ligado ao desenvolvimento econmico. Aprofundaremos agora quais so as posturas que acredito estarem efetivamente relacionadas cidade sustentvel. Primeiramente, precisamos ter em vista que, como sustentabilidade est relacionado com tudo22 22. aquilo que representa o que se considera desejvel para o espao urbano, existem diversas abordagens que se apropriam do termo. Para Herri Acselrad (2009, pp.54-64), existem trs diferentes sentidos aos quais se associa o conceito de cidade sustentvel: a representao tcnica material das cidades (relaciona-se noo de racionalidade ecoenergtica e equilbrio metablico das cidades), a cidade como um espao de qualidade de vida (relaciona-se noo de urbanidade, cidadania e patrimnio) e a cidade como um espao de legitimao das polticas urbanas (relacionase noo de eficincia e promoo da equidade pelo poder pblico). No prximo item, detalharemos esses conceitos considerando a abordagem de Acselrad e colocando tambm a viso de outros autores, na tentativa de enriquecer e aprofundar o estudo. Impende ressaltar que em todas essas abordagens existe um esforo tcnico-terico de repensar a cidades em que vivemos na tentativa de torn-las melhores e mais durveis, contudo, todos eles esto sujeitos a serem utilizados como legitimadores de uma ou outra postura de diferentes atores sociais.1.3.Diversos sentidos atribudos a cidade sustentvel.A representao tcnico-material das cidades cidades ecolgicas. Esse primeiro sentido atribudo cidade sustentvel est relacionado mais diretamente base fsica e material das cidades, em grande parte influenciado pelas primeiras conferencias internacionais sobre clima e mudanas climticas. Naquele primeiro momento, houve um processo de elaborao de estratgias urbanas com foco predominantemente na racionalidade ecoenergtica. Para Henri Acselrad (2009, p. 54), nesse aspecto, a cidade ser vista em sua continuidade material de estoques e fluxos. uma articulao que associa a transio para a sustentabilidade urbana com enfoque no ajustamento das bases tcnicas das cidades, a partir de modelos de racionalidade ecoenergtica ou de metabolismo urbano. Conforme registra Dominique Gauzin-Mller (2006,p.34), um dos primeiros a militar a favor da ecologia urbana foi o professor alemo Ekhart Hahn que, em 1987 mesmo ano de lanamento do relatrio Nosso Futuro Comum da Sra. Brundland -, publicou sua obra kologische Stadtplanungn (Planejamento Urbano Ecolgico). Aprofundou seus estudos atravs da investigao terica associada a estudos de caso, lanando, no inicio dos anos 1990, um informe intitulado kologischer Stadtumbau (Renovao Urbana Ecolgica). Essa obra aponta medidas para o planejamento sustentvel das cidades, dividindo-as em trs categorias: Concepo urbana e tcnicas urbanas; divulgao sobre ecologia e democracia local; e economia com ecologia. Vejamos como se organizavam essas medidas na tabela abaixo.EM BUSCA DE UMA SUSTENTABILIDADE SOCIOAMBIENTAL URBANA: PROPOSIO PARA O BAIRRO SIMBLICO SERVILUZ23 23. Concepo Urbana e tcnicas urbanasDivulgao sobre ecologia e democracia local Arquitetura e Ecologia na construo Participao e responsabilidade das pessoas envolvidas; Fornecimento de calor e de eletricidade; Informao e consulta sobre o meio ambiente; Gesto da gua; Gesto de deslocamentos; Reduo de resduos e reciclagem ecolgica; Zonas verdes e proteo da natureza; Clima urbano e qualidade do ar; Proteo do solo e da gua; Proteo contra rudo; Descentralizao de administrao e da tomada de decises;Economia e ecologia Imposto sobre a energia; Taxa sobre emisses contaminantes; Cobrana segundo consumo; Contabilidade ecolgica para empresas e instituies; Formao sobre o meio ambiente e programas sobre assistncia e qualificao; Adaptao das ferramentas de planejamento, de normatizao de edificao e das normativas sobre construo; Novos modelos de cooperativas e de promoo imobiliria Posta em marcha de medidas impulsionadoras e de ajuda econmica; Criao de ecocentros, centros culturais e de divulgao sobre ecologia descentralizados; Estratgias ecolgicas para as atividades artesanais, comerciais e industriais; Criao de agencias para a energia a gua e os resduos; Criao de centros de servios, comrcios e atividades ecolgicas; Novos modelos de habitao e de convivncia. Criao de postos de trabalho no setor da ecologia. Sade e alimentao. Tabela 01. Medidas para um planejamento sustentvel para a cidade em trs ambitos de interveno. (fonte: HAHN, Ekhart. kologischer Stadtumbau: Theorie und Konzept. 1992. appud GauzinMuller, Dominic. Arquitetura Ecologica. 2006.) Traduo da autora.Hoje esse modelo de interveno sofre intensas crticas de alguns autores (SANCHEZ, 2009; MOURA, 2009; ACSELRAD,2009) que consideram que essa abordagem supervaloriza a base material das cidades esquecendo a complexidade social urbana. Os projetos de revitalizao ou renovao urbana provocam um processo de valorizao do espao urbano aumentando o preo dos terrenos e, em grande parte das vezes, provocando um processo de gentrificao ou elitizao do espao. Intencionalmente ou no, esses projetos tm, por vezes, acentuado as desigualdades sociais e territoriais. Fernanda Sanchez faz uma forte critica aos projetos de revitalizao justificados pela sustentabilidade, fazendo uma associao direta desses projetos com o city marketing das cidades. Em nome da sustentabilidade e da competitividade, muitos desses projetos revitalizadores de regies da cidade demarcam novas fronteiras urbanas e desencadeiam processos de expulso social e de gentrificao, de converso de segmentos da cidade s exigncias e aos padres de uma nova geografia, uma recodificao das relaes sociais ao mesmo tempo inclusiva e excludente. Possivelmen-24 24. te a imagem esplendorosa do renascimento de uma rea promovida pelo city marketing no corresponda ao sentimento de espoliao por parte dos cidados que veem nas empreitadas revitalizadoras um sria ameaa sua forma de vida social e sua identidade urbana. Entretanto, os conflitos sociais gerados pela reestruturao e as questes trazidas por qualquer movimento de resistncia so rapidamente minimizados pela e esvaziados de seu contedo poltico na linguagem oficial sobre cidades. (SANCHEZ, 2009, p.179-180)Dominique Gauzin-Mller (2006, p.77) apresenta o projeto para o bairro GWL, Ansterdan bairro sem carros em uma zona industrial obsoleta como um bom exemplo de urbanismo sustentvel, entretanto, ao final da descrio do projeto, comenta que a ao teve por objetivo tambm atrair um novo pblico residente para uma regio anteriormente conhecida como uma das mais pobres de Amsterdam e admite que o projeto sofreu algumas criticas justamente por essa mudana de composio social induzida. A cidade de Curitiba no Paran, famosa como cidade - modelo de sustentabilidade e qualidade de vida, por possuir um sistema de transporte pblico e de espaos livres conhecido nacional e internacionalmente como exemplares, hoje sofre tambm diversas crticas. Rosa Moura (2009) denuncia que o modelo apoiado em uma poltica excludente e retrica com forte apelo de marketing. Segundo ela, a Curitiba com infraestrutura e servios modernos de qualidade est restrita a uma populao seleta, pois, alm de exercer um forte controle sobre o solo urbano dentro da cidade evitando ocupaes irregulares , no oferece alternativas habitacionais classe de menor renda e grande quantidade de migrantes. Dessa forma, essa populao acaba afastada para municpios vizinhos da regio metropolitana com legislaes flexveis, ocupando muitas vezes reas de mananciais. Essas cidades-dormitrio, no possuem arrecadao suficiente para prover condies de vida mnimas a seus habitantes. (MOURA, 2009, P. 240) (...) Nesse sentido, a sustentabilidade pretendida por Curitiba praticamente inatingvel, pois mesmo que a gesto local demonstre certa agilidade na satisfao das necessidades intramunicipais, a privao do entorno metropolitano aponta as fragilidades nos elos entre as polticas urbanas e o espao urbanizado sob abrangncia direta do polo. (MOURA, 2009, P. 240) Outra critica a abertura da Cidade Industrial de Curitiba (CIC) que atraiu empresas de alta tecnologia, no absorvedoras de mo de obra local, em um projeto em que o poder pblico ofereceu subsdios expressivos relativos oferta de terreno e isenes tributrias. Moura (2009, p.228) pondera que o projeto segue uma poltica agressiva de industrializao forjada pelas elites locais para concretizao dos interesses do capital industrial local. Assim, embora fortemente apoiado no discurso internacional, o modelo Curitiba mantm um envolvimento bastante seletivo dos diferentes atores urbanos no processo de planejamento e gesto. (MOURA, 2009, P. 241)A acrtica de que o argumento da sustentabilidade no pode legitimar a ampliao da segregao scio-espacial bastante coerente neste debate. Porem, nesse momento, faz-se vlida uma reflexo. Ser que as medidas tomadas por esses projetos to reconhecidos e elogiados pelas organizaes internacionais e por grande parte da populao no tem nenhuma validade?EM BUSCA DE UMA SUSTENTABILIDADE SOCIOAMBIENTAL URBANA: PROPOSIO PARA O BAIRRO SIMBLICO SERVILUZ25 25. A priorizao de pedestres, ciclistas e transportes pblicos em detrimento do carro; os aprofundados estudos sobre edificaes de energia passiva e de baixo impacto; a insero de reas verdes de lazer no espao urbano; nada disso significou nenhum avano na disciplina do planejamento urbano? A apropriao desse conhecimento por atores sociais no mbito pblico ou privado em prol de mecanismos de marketing, atrao de investimentos ou insero em mercados globais, ou ainda a gentrificao do espao urbano ocasionada por esse processo no significa dizer que os conceitos ecolgicos elaborados para as cidades tinham essa finalidade em sua essncia quando foram idealizados. Est claro que a mudana da base tcnico material das cidades no suficiente para produzir a realidade desejvel de Acserald, tampouco podemos desconsider-la como avano. Cidade como espao da qualidade de vida urbanidade. Uma nova matriz tcnica das cidades tambm pensada por razes de qualidade de vida componentes no mercantis da existncia cotidiana e cidad da populao urbana. (Acserald, 2009, p. 59). Essa abordagem da qualidade de vida resgata sentidos como cidadania, dilogo e patrimnio, tanto material (arquitetnico), como imaterial fortalecimento do sentimento de pertencimento dos habitantes que se relaciona tanto com a estrutura fsica como com a composio e dinmica social dos lugares da cidade. Um conceito que dialoga com esse debate a noo de urbanidade. Embora na literatura esse conceito no esteja normalmente vinculado ao termo sustentabilidade em si, os princpios de urbanidade se relacionam com a ideia de durao das cidades, manuteno de cidades boas de viver espaos urbanos vivos, com vitalidade representariam a imagem de urbanidade; e a destruio das cidades e morte dos espaos pblicos representam a imagem de desurbanidade. O desurbanismo, no se engane, uma estratgia de destruio de cidades. (FIGUEIREDO, 2010, p.21). Aprofundaremos o tema concernente urbanidade por consider-lo de grande relevncia para o estudo da qualidade de vida nos espaos urbanos. Porm, antes de adentrar conceitualmente em que praticas e formas urbanas consiste a urbanidade, proponho comear esse debate por uma dimenso simblica acerca o que seria o sentimento de urbanidade dos lugares. Andrade (2010) em ensaio Onde est a urbanidade: num bairro central de Berlim ou em uma favela Carioca descreve o sentimento que teve ao morar na cidade de Berlim: (...) a minha facilidade de adaptao cidade foi tal que, antes mesmo de eu conseguir pronunciar frases simples em alemo, j tinha desenvolvido um domnio sobre ela que me permitia viv-la como se estivesse na minha prpria ptria. Este sentimento de cidadania estava relacionado tanto ao espao fsico quanto ao social. Em outras palavras, eu me sentia acolhida por estas duas dimenses do espao berlinense, que me davam uma liberdade para a vida urbana que eu nunca tinha sentido antes. (Andrade, 2010, p. 3)Completa seu pensamento afirmando que jamais sentira isso em sua prpria cidade natal, o Rio de Janeiro, embora tenha morado l por maior parte de sua vida. Essa constatao a deixou surpresa. O sentimento de cidadania,26 26. liberdade e conforto no espao pblico de uma cidade se aproxima do que se entende hoje por urbanidade. Conquanto subjetivo, podemos afirmar que esse sentimento se relaciona diretamente com a arquitetura e o desenho urbano das cidades. Em que pese o conceito de urbanidade ter diversas definies, principalmente nesse ponto que reside o aprofundamento da temtica: pensar a cidade para ser boa e confortvel para as pessoas. Esse sentimento de urbanidade parece estar principalmente relacionado a algumas relaes criadas entre os indivduos e o espao: o quo as pessoas se sentem seguras (Jacobs, 2009 ; Andrade, 2010), o quo se sentem acolhidas pela escala dos lugares (Gehl, 2012) , o quo se sentem a vontade e convidadas a interagir socialmente no espao (Andrade, 2010; Jacobs; 2009) e o quo o espao pblico capaz de promover a convivncia passiva ou ativa de pessoas de diversos interesses, idades e origens sociais (Holanda, 2010; Figueiredo, 2010). Alcanar a qualidade dessas relaes por sua vez est vinculado a algumas caractersticas do espao urbano. Por exemplo, a constncia de pessoas transitando pelas ruas e caladas; a existncia de espaos livres bem estruturados e acolhedores, em lugares movimentados; e a facilidade e conforto da realizao de deslocamentos so colocados pela literatura como caractersticas que favorecem que esses sentimentos de conforto e bem estar sejam garantidos nas cidades. Mas a questo : como alcanar esses atributos para que as cidades sejam lugares bons de viver? A mistura de usos um quesito unnime dentre os estudiosos de urbanidade. A autora Jane Jacobs enfoca com muita propriedade essa questo em sua clebre obra Morte e Vida de Grandes Cidades, publicada ainda na dcada de 1960 foi pioneira ao estudar essas relaes da populao com o espao urbano. Embora no se refira ao conceito de urbanidade especificamente, talvez ainda inexistente naquele momento, tem suas ideias com grande aceitao e respaldo pelos atuais estudiosos do tema. Segundo ela (Jacobs, 2009), a presena de pessoas transitando pelas ruas e caladas em diversas horas do dia caracterstica fundamental para que os lugares sejam considerados seguros e a populao se sinta vontade de caminhar, interagir e desfrutar do espao urbano sem medo. Considera essa convivncia urbana benfica para todos, por criar uma atmosfera de confiana e identidade. Afirma que, por mais que os contatos urbanos sejam na maioria das vezes triviais, o resultado no nada trivial: resulta na compreenso da identidade pblica das pessoas, uma rede de respeito e confiana mtuos. (Jacobs, 2009, p.60) Para ela, a possibilidade de sempre haver pessoas presentes nas ruas a todas as horas do dia s pode ser alcanada atravs da diversidade de usos, pois haver as horas que pessoas estaro saindo ou chegando em casa ou no trabalho, horas que mes estaro levando filhos para tomar sol ou brincar, horas que os bomios estaro indo para um barzinho, enquanto apreciadores da arte estaro indo ver um bom espetculo ou exposio, e assim por diante, a mistura de usos (habitacional, comercial, servios, institucional, etc.) torna os espaos urbanos vivos e diversos. (...) Aparentemente despretensiosos, despropositados e aleatrios,os contatos nas ruas constituem a pequena mudana a partir da qual podeEM BUSCA DE UMA SUSTENTABILIDADE SOCIOAMBIENTAL URBANA: PROPOSIO PARA O BAIRRO SIMBLICO SERVILUZ27 27. florescer a vida pblica exuberante da cidade. (JACOBS, 2009, p.78).Dessa forma, a autora coloca a mistura de usos como principal qualidade a ser buscada no planejamento urbano: Se tivermos como meta que a mistura de usos seja suficientemente complexa para prover a segurana urbana, o contato do pblico e a interao de usos, ela precisa de uma quantidade enorme de componentes. Nesse caso, a primeira pergunta sobre planejamento urbano - a qual, acho eu que , de longe, a mais importante seria essa: como as cidades podem gerar uma mistura suficiente de usos uma diversidade suficiente -, por uma extenso suficiente de reas urbanas para preservar a prpria civilizao? (JACOBS, 2009, p.158)Lucas Figueiredo (2010) tambm defende a necessidade do espao pblico potencializar encontros, acrescentando ainda a importncia do carter democrtico que este deve assumir. Ele adota o conceito de co-presena, ou seja, a presena simultnea de pessoas de classes ou estilos de vida distintos para alcanar a verdadeira urbanidade: Deste modo, urbanidade, numa definio mais restrita, acontece quando o ambiente construdo e suas estruturas auxiliares, sistemas de transporte, dentre outros, permitem ou mesmo potencializam encontros e a co-presena entre pessoas de classes ou estilos de vida distintos em espaos legitimamente pblicos, dentro de um sistema probabilstico no qual essas pessoas, em suas rotinas, tendem a usar ou passar pelos mesmos lugares. (FIGUEIREDO, 2010, p.09)Alm da mistura de usos e do carter democrtico dos espaos pblicos, existem ainda outras caractersticas que proporcionam espaos pblicos de qualidade. Tais caractersticas tm sido denominadas estruturas facilitadoras de urbanidade. Destacaremos aqui algumas delas como a prioridade ao pedestre, ciclista e transporte pblico como meio de locomoo; a predominncia de quadras curtas; densidade suficiente; fachadas ativas das edificaes e promoo de espaos pblicos adequados e convidativos. O principio de prioridade ao pedestre, ciclista e transporte pblico como meio de locomoo vai na direo oposta histrica postura das cidades brasileiras que tm dado prioridade a polticas e investimentos favorecedores ao transito de carros particulares. Segundo Lucas Figueiredo (2010, p. 11-12) essa postura resulta em espaos urbanos opostos ao que se deseja segundo os princpios de urbanidade. Ao contrrio de ruas vibrantes com a presena de muitos pedestres, o uso crescente do automvel produz ruas engarrafadas, poludas e barulhentas. Alm disso, a presena de muitos automveis no produz a integrao social, pelo contrrio, as pessoas tendem a ficar isoladas. Alerta tambm para o fato de que as adaptaes que do prioridade ao uso do carro, na maioria das vezes, criam restries circulao de pedestres. O alargamento de vias muitas vezes significa o estreitamento de caladas; ao passo que vias de transito rpido funcionam como barreiras fsicas aos pedestres. Figueiredo completa seu pensamento afirmando que quanto mais se tente resolver os problemas de trnsito, continuandose a dar prioridade ao carro, o problema s tende a agravar em um ciclo28 28. vicioso continuo: O principal ciclo de realimentao do automvel conhecido: mais automveis circulando geram mais engarrafamentos, aumentando os tempos de viagem, o que resulta numa queda da qualidade do servio do transporte pblico; visto que o principal modal utilizado no Brasil o nibus. Por conseguinte, isto fora os usurios do transporte pblico a migrar para o automvel assim que possvel, realimentando o ciclo. Ao mesmo tempo, intervenes como a construo de novas vias ou viadutos tm efeito paliativo. Elas atraem mais trfego e logo h necessidade de novas intervenes outro ciclo vicioso. (FIGUEIREDO, 2010, p.12)O ponto de vista do autor afirma que o transporte pblico de qualidade, por sua vez, favorece o surgimento de ruas vibrantes, pois, alm de distribuir pessoas por vrios locais das cidades, o usurio de transporte pblico tambm um pedestre, pois caminha entre sua casa e a parada, e da descida at seu destino, contribuindo com a vida urbana desses pequenos trechos. (FIGUEIREDO, 2010, p.13) A preferncia pelo carro com a crena de que um meio de transporte mais rpido de locomoo uma armadilha de polticas pblicas elitistas, pois os engarrafamentos, que so comuns nas grandes cidades brasileiras, barram a capacidade de velocidade dos automveis tirando-lhe as vantagens ilusrias da velocidade e praticidade. Ademais, invariavelmente, o automvel particular um meio de transporte nada democrtico, pois apenas uma minoria da populao tem acesso a ele, enquanto a grande maioria fica a merc de um transporte pblico sem qualidade. Como no Brasil esse transporte , na maioria das vezes o nibus, que concorre com o espao dos carros particulares nas vias, os tempos de deslocamentos se tornam ainda mais demorados devido ao congestionamento causado principalmente por grande quantidade de carros particulares, na maioria das vezes com um ou dois passageiros. Jan Gehl um dos maiores defensores de que seja dada prioridade ao pedestre e a um eficiente sistema de ciclovias. Trabalhou durante muito tempo de sua carreira profissional na prefeitura de Copenhague, tendo vindo a ser um dos idealizadores e responsveis pelas mudanas realizadas no transito, atravs das quais foi implanto um sistema integrado de ciclovias, e importantes ruas da cidade tornaram-se exclusivas para pedestres. Hoje a cidade de Copenhague considerada a grande cidade europeia com menos congestionamento. Segundo entrevista dada revista especializada AU (Gehl, 2012), a convivncia com sua esposa psicloga, Ingrid Gehl, que sempre perguntava por que os arquitetos no pensam nas pessoas somente nos prdios, foi o que fez com que ele direcionasse sua carreira para o estudo de uma arquitetura e um urbanismo focado nas pessoas e na escala humana. Nessa mesma entrevista, fala da importncia de um sistema de ciclovias e transporte pblico eficiente e faz uma crtica s cidades sul americanas: Se todas as cidades desenvolverem um sistema de ciclovias e de transporte pblico eficiente, se reduzirem a nfase do transporte privado, conseguiro reduzir o trnsito. o que tem sido feito em Copenhague. Aqui houve muito sucesso em transformar o trnsitoEM BUSCA DE UMA SUSTENTABILIDADE SOCIOAMBIENTAL URBANA: PROPOSIO PARA O BAIRRO SIMBLICO SERVILUZ29 29. de carros em um trnsito de bicicletas. (...) Aqui em Copenhague, h 40 ou 50 anos podemos dizer que o dia seguinte ser sempre um pouco melhor do que foi o dia anterior. Porque temos uma boa poltica de trfego. Mas em muitas cidades sul-americanas, h mais e mais congestionamentos. Cada dia um pouco pior do que o dia anterior. Por anos e anos e anos. Para mim, muito importante alcanar uma situao em que tudo fique melhor a cada dia. Que haja um pouco menos de carros que ontem, e mais pessoas na rua, e mais trens, trams, metrs. No fcil. Mas muitas cidades j fizeram e isso pode ser feito (...) (GEHL, 2012 )Vamos, ento, ao quarto quesito proposto aqui nessa abordagem. A Urbanidade tambm parece depender de fachadas ativas, permeveis e com interfaces diretas entre o pblico e o privado (...). (Figueiredo, 2010, p 15). Jacobs (2009, p.35-43) descreve o papel da existncia dos olhos da rua, daqueles que esto dentro das edificaes com contacto visual direto com as ruas. O que d a sensao de segurana de uma lugar no exatamente o nmero estatstico de ocorrncias violentas, mas a sensao de espao deserto, sem vigilncia ou presena de outros olhos. O que caracteriza um espao que nos sentimos seguros a presena de movimento de pessoas que por sua vez se sentem seguros somente em espaos que tem a presena dos olhos das ruas presentes nas edificaes com fachadas ativas adjacentes. Um claro exemplo dessa relao o quanto ns nos sentimos inseguros em ruas com fachadas cegas ou muros extensos. natural que ruas assim sejam abandonadas e consideradas inseguras, pois ao mesmo tempo em que as fachadas cegas no atraem nenhum uso quele espao, as pessoas se sentem inseguras por no haver a vigilncia natural dos olhos das ruas. A tendncia que realmente espaos assim se tornem inseguros e marginalizados, pois a falta de movimento de pessoas e dos olhos da rua atraem para esses espao pessoas que tm interesse exatamente em realizar atividades que no devem ser vistas por ningum, como o uso de drogas, violncia e assaltos. Nem sempre esses espaos se tornam concretamente inseguros, mas ainda assim a imagem de insegurana permanece na mente da populao. Figueiredo (2010, p 15) considera as tipologias arquitetnicas que favorecem muros altos, torres e condomnios fechados como estruturas espaciais geradoras de desurbanidade. Afirma que o sentimento de insegurana compromete a liberdade das pessoas. De fato, se o espao urbano considerado um lugar hostil, no h possibilidade de haver urbanidade. (Figueiredo, 2010, p 15) Fachadas cegas, entradas afastadas ou reservadas, sem acesso direto rua; zoneamento estrito de usos; e escalas e espaos mais apropriados ao veculo do que ao pedestre, dentre outras caractersticas, parecem ir de encontro a todas as propriedades mais comuns das cidades tradicionais, produzindo espaos pblicos desrticos e desprovidos de vida. (FIGUEIREDO, 2010, p.09)Outra caracterstica fundamental para o florescimento de ruas vivas e diversas, fundamentais para a urbanidade, uma alta densidade urbana. muito simples deduzir que quanto maior o nmero de pessoas morando ou trabalhando em um lugar, mais provvel que as ruas sejam movimen-30 30. tadas e que haja demanda para o surgimento de um comrcio intenso e diversificado. Durante muito tempo, as altas densidades foram consideradas prejudiciais s cidades, por se ter a crena de que altas densidades significariam insalubridade. Todavia, atualmente sabemos que existe uma infinidade de formas de atingir altas densidades sem comprometer a sade das pessoas. (...) pessoas reunidas em concentraes de tamanho e densidade tpicos de cidades grandes podem ser considerados um bem positivo, na crena de que so desejveis fontes de imensa vitalidade e por representarem, num espao geogrfico pequeno, uma enorme exuberante riqueza de diferenas e opes, sendo muitas dessas diferenas singulares e imprevisveis e acima de tudo valiosas por existirem. Dado esse ponto de vista, segue-se que a presena de grande quantidade de pessoas reunidas em cidades deveria no somente ser aceita de braos abertos como um fato concreto. Elas deveriam ser consideradas um trufo, e sua presena, comemorada (...). (JACOBS, 2009, p.244)Ainda nesse tema, vale salientar o quo os vazios urbanos so prejudiciais urbanidade. Um vazio urbano dentro de uma rea com infraestruturas, alm de representar um desperdcio dos investimentos pblicos, tambm representa uma forte estrutura de desurbanidade. Ao contrrio da densidade, o vazio contribui para a destruio da vitalidade dos espaos, pois alm de no agregar nenhum uso ao espao, o que promoveria o movimento e a atrao de pessoas, ainda trata de repeli-las, por representar necessariamente uma fachada no ativa, gerando insegurana e aumentando o percurso dos pedestres. Quadras longas tambm aumentam os caminhos dos pedestres e bloqueiam o contacto de atividades complementares que podem at estar prximas fisicamente, mas se tornam distantes por conta daquelas, impedindo a formao de combinao razoavelmente complexas de usos urbanos cruzados (JACOBS, 2009, p.200). Quadras curtas so vantajosas por multiplicar a possibilidade de caminhos para os pedestres, possibilitando que mais pessoas com interesses diferentes possam passar pelos mesmos lugares; e multiplicando tambm as esquinas, lugares com grande potencial de pontos de encontro, surgimento de comercio ou de servios diferenciados.Figura 1.1 corte esquematico visibilidade da rua por pessoas em edificios altos. Fonte: GEHL, 2012 importante nos darmos conta de que densidade em grandes cidades pode ser atingida de vrias formas. Se olharmos Paris ou Barcelona, as duas tm grande densidade e no so cheias de edifcios altos. O segredo que, para fazer uma cidade com alta densidade e prdios baixos voc precisa ser um bom arquiteto. Se no um bom arquiteto, voc sempre pode fazer um edifcio mais alto. Torres altas so a resposta preguiosa densidade. Pode-se, sim, ter uma rea com grande densidade, e com cuidadoso desenho da cidade e dos edifcios.(GEHL, 2012)EM BUSCA DE UMA SUSTENTABILIDADE SOCIOAMBIENTAL URBANA: PROPOSIO PARA O BAIRRO SIMBLICO SERVILUZ31 31. Figura 1.2 Esquema quadras longas e quadras curtas. Fonte: JACOBS,2009, p. 198 - 199 A alta densidade defendida anteriormente tambm tem vantagens quando associada ideia de quadras curtas, pois, por maior que seja o nvel de ocupao do solo, a abertura de mais ruas proporciona clareiras e desobstruo visual. Quadras longas com alta ocupao do solo so opressivas. Ruas frequentes por serem aberturas na massa edificada, compensam o alto ndice de ocupao do solo volta delas. (JACOBS, 2009, pp.240) O desenho urbano que prioriza o uso do automvel naturalmente tende a possuir longas quadras, pois o maior nmero de cruzamentos no bem visto por aumentar o tempo de deslocamento. Porm, em lugares que seja realmente possvel e desejvel que pedestres e ciclistas sejam priorizados em detrimento dos carros, as quadras curtas so ideais para fazer brotar ainda mais vida e urbanidade nos lugares. Um ltimo ponto a ser abordado como crucial para a urbanidade das cidades a existncia de espaos pblicos adequados e de qualidade. O termo adequado no esta empregado aqui toa, existem muitos espaos pblicos que so inadequados para a urbanidade. As ruas e caladas, por exemplo, so encaradas na maioria das vezes como espaos estritamente de passagem. Segundo Jacobs (2009) esse um grande erro. Para ela, os espaos pblicos mais vitais de uma cidade so justamente as ruas e caladas. Ao pensar em uma cidade, o que lhe vm cabea? Suas ruas. Se as ruas de uma cidade parecem interessantes, a cidade parecer interessante; se elas parecem montonas, a cidade parecer montona. (JACOBS, 2009, p.29) Segundo a autora (JACOBS, 2009), um erro pensar as ruas e caladas como meros espaos de circulao de pedestres e veculos. O dimensionamento e desenho urbano das caladas devem considerar a funo social dessas de proporcionar encontros, conversas, jogos etc. As caladas devem ser tambm continuao das edificaes, permitindo colocao de mesas e cadeiras em frente a barzinhos, restaurantes, ou at a casas, sem32 32. que a circulao seja necessariamente prejudicada. O ideal seria que todas as caladas pudessem ter dimenso suficiente para proporcionar diversos outros usos, alm dos tradicionais usos de circulao, mas mesmo que no possam ser largas o suficiente para isso, importante que sejam lugares agradveis e bem estruturados para favorecer a urbanidade e a qualidade de vida da populao. Outro tipo de espao pblico muito importante so praas e parques. Esses espaos livres costumam ser sempre buscados e enaltecidos por planejadores urbanos, contudo Jane Jacobs (2009) alerta que existem algumas condies para que esses espaos sejam realmente benficos para a cidade. Segundo ela, se no houver uma mistura suficiente de usos nas proximidades desses espaos para promover a constante circulao de pessoas, esses tendem a se tornar espaos perigosos, abandonados e degradados, sendo, dessa forma, geradores de desurbanidade. Como a autora Jane Jacobs norte americana, tendo origem, portanto, em pas com clima temperado, alerta tambm para a importncia da localizao em relao massa edificada permitir a incidncia solar nos espaos livres, com o escopo de atraiam as pessoas mesmo nos meses de inverno. No nosso caso, tropical, acho de fundamental importncia considerar o raciocnio da autora para buscarmos exatamente o oposto. A existncia de sombras nos espaos abertos essencial para a permanncia de pessoas em praas e parques, mesmo durante o dia, e nos meses mais quentes. Para essa qualidade, a intensa arborizao, tanto de caladas quanto de praas, melhora o conforto trmico e fortalece o apelo visual e paisagstico, tornando os espaos mais interessantes e aconchegantes. Jacobs tambm considera inadequados projetos que consistem em imensos espaos livres desproporcionais com edificaes soltas, ou quando os espaos livres resultam apenas nas sobras de lotes. Afirma que deve ser clara a diferena entre o espao pblico e o privado; e que os espaos livres devem ter um espao bem delimitado, considerando que a existncia de construes a volta deles importante nos projetos. Elas os envolvem. Criam uma forma definida de espao, de modo que ele se destaca como um elemento importante no cenrio urbano, em aspecto positivo e no um excedente superfulo (JACOBS, 2009, p.115). Acrescenta que imensos espaos livres sem delimitao, ao invs de atrair as pessoas, acaba as repelindo, tornando-se espaos de mera contemplao, sem o uso e apropriao da populao. Parte dos espaos livres das cidades tende a buscar caractersticas de monumentalidade. Federico Holanda (2010, p.09-10) faz uma diferena entre a monumentalidade formal e a monumentalidade urbana. A formal, embora tenha seu valor por remeter ao sublime, ao magnificente, no promove urbanidade; no so espaos pensados para a convivncia das pessoas, mas para contemplao. Eles teriam sua existncia justificada apenas para criar grandes smbolos superestruturais da ordem social poltica ou ideolgica. Algumas das caractersticas desses espaos so: reas de grandes dimenses, edifcios soltos lidos como volumes claros na paisagem, e ausncia presena rotineira de habitantes. Exemplos desse tipo de monumentalidade so as Pirmides de Guiza (Egito antigo), o Mall (Washington), a Avenida dos Mortos (Teotihuacn, Mxico pr-Colombo),EM BUSCA DE UMA SUSTENTABILIDADE SOCIOAMBIENTAL URBANA: PROPOSIO PARA O BAIRRO SIMBLICO SERVILUZ33 33. o centro cerimonial de Uxmal (maya, Mxico pr-Colombo), a Cidade Proibida (Pequim, China) e a Esplanada dos Ministrios (Braslia). J a monumentalidade urbana, exemplificada por espaos livres como la Piazza San Marco (Veneza), Piazza della Signoria (Florena), Piazza del Campo (Siena), Cinelndia (Rio de Janeiro) e Praa Tiradentes (Ouro Preto). Esses espaos possuem caractersticas que permitem a convivncia entre monumentalidade e urbanidade. Essas praas incluem a vida rotineira da cidade, inclusive residncias; esto sempre cheias de pessoas, paradas ou em movimento; so pequenas clareiras cercadas pelo denso e secular tecido da cidade. (HOLANDA, 2010, p.09). Embora existam fortes criticas monumentalidade formal da Esplanada dos Ministrios de Lcio Costa por parte da literatura contempornea, Holanda (2010) a considera legitima por ser um lugar simblico por excelncia. Porm, devemos vislumbrar com clareza a diferena entre essas duas categorias de monumentalidade para no confundi-las, promovendo espaos de monumentalidade formal e esperando que deles brote espontaneamente a urbanidade. Vale observar que a ideia de monumentalidade urbana de Frederico Holanda condizente com as recomendaes de Jane Jacobs para que os parques e praas tenham sucesso. Ambos descrevem espaos bem delimitados, inseridos na malha urbana, funcionado como clareiras cercadas por usos e edificaes diversas. Grande parte dos estudiosos a respeito de urbanidade fazem fortes crticas ao movimento moderno. A setorizao da cidade separando os usos habitacional, comercial e institucional; o planejamento voltado para ao automvel; a implantao de tipologias habitacionais soltas no lote e as extensas quadras so alguns exemplos de prticas incentivadas pela teoria da arquitetura e urbanismo modernos que vo de encontro aos princpios de urbanidade j descritos anteriormente. Jan Gehl (2012) afirma que a escala humana foi perdida, isto , que se consolidou uma maneira de projetar tecnocrata que no produz cidades boas para viver: O que mais me incomoda na arquitetura modernista o fato de que uma arquitetura pensada de cima para baixo e no o contrrio, como devia ser. O exemplo de Braslia emblemtico tanto que costumo me referir a sndrome de Braslia quando vejo locais muito grandiosos e sem nenhuma conexo com as necessidades de seus habitantes. Braslia at impressiona vista de cima, da janela do avio, mas l embaixo, no nvel do olho humano, ela no cumpre nenhum dos critrios que fazem de uma cidade um lugar bom para viver. Alguns dos espaos em Braslia esto entre os piores que j vi na vida. A cidade monumental demais, desagradvel para caminhar. Nos anos 60, quando esse tipo de traado se popularizou, ningum sabia nada sobre a interao das pessoas com o espao que elas habitavam. O que se sabia era como planejar uma cidade tecnocrtica. O vis modernista, que prioriza o prdio e ignora o que est a sua volta, no produziu cidades boas para viver. (GEHL, 2012 In Revista Veja 29/08/2012, p.21)Jane Jacobs tambm faz cidas crticas ao movimento moderno. Afirma34 34. que o planejamento urbano ortodoxo (moderno) considera as ruas um lugar ruim para as pessoas, afastando as pessoas dos espaos pblicos e as colocando voltadas para dentro, para uma rea verde cercada. Caracteriza sua obra Morte e Vida de Grandes Cidades como um ataque aos fundamentos do planejamento urbano e da reurbanizao ora vigentes (...), uma tentativa de introduzir novos princpios no planejamento urbano e na reurbanizao, diferentes daqueles que hoje so ensinados em todos os lugares (JACOBS, 2009, p.01). Considera que Le Corbusier via as cidades como um brinquedo mecnico maravilhoso e que a influncia de suas ideias no planejamento urbano das cidades resultou em um impacto negativo: A cidade dos sonhos de Le Corbusier teve enorme impacto em nossas cidades. Foi aclamada deliberadamente por arquitetos e acabou assimilada em inmeros projetos, de conjuntos habitacionais de baixa renda a edifcios de escritrios. Alm de tornar pelo menos os princpios superficiais da Cidade-Jardim superficialmente aplicveis a cidades densamente povoadas, o sonho de Le Corbisier continha outras maravilhas. Ele procurou fazer do planejamento para automveis um elemento essencial de seu projeto, e isso era uma ideia nova e empolgante nos anos 20 e inicio dos anos 30. Ele traou grandes artrias de mo nica para transito expresso. Reduziu o nmero de ruas, porque os cruzamentos so inimigos do trfego. Props ruas subterrneas para veculos pesados e transportes de mercadoria, e claro, como os planejadores da Cidade-Jardim, manteve os pedestres fora das ruas e dentro dos parques. A cidade dele era como um brinquedo mecnico maravilhoso. (JACOBS, 2009, p.23)As cidades tradicionais, por sua vez, tendem a apresentar naturalmente as caractersticas de urbanidade. A obra de Jane Jacobs considerada um elogio s estruturas das cidades tradicionais. Seria ento o planejamento que promove a desurbanidade? Figueiredo (2010, p. 08-09) discorda dessa ideia. Admite que existe uma tendncia a pensar dessa forma, mas considera esta uma falsa ruptura: comum descrever cidades que cresceram de maneira orgnica ou no coordenada como geradoras de urbanidade, algo que as cidades planejadas no conseguiriam replicar. Essa, no entanto, um falsa ruptura. Os mesmos processos no coordenados que produzem lugares com urbanidade podem produzir desurbanidade. (FIGUEIREDO 2010, p.09)Complementa seu pensamento afirmando que as cidades brasileiras so exatamente o que deveriam ser de acordo com as decises polticas e de planejamento. Isto , se as decises forem diferentes, priorizando a urbanidade, o planejamento urbano pode sim produzir cidades cheias de vida e de urbanidade. Uma outra abordagem que articula muito bem conceitos de qualidade de vida e eficincia ecoenergtica na forma urbana a ideia de cidades compactas, que tem como principais atributos a alta densidade associada a usos mistos, argumentando a importncia de reduzir distncias de deslocamentos para aumentar a qualidade de vida e diminuir os gastos de energia e emisso de gases poluentes. (Acserald, 2009, p. 60). No nos deteremos a essa temtica por entendermos que o conceito de urbanidade,EM BUSCA DE UMA SUSTENTABILIDADE SOCIOAMBIENTAL URBANA: PROPOSIO PARA O BAIRRO SIMBLICO SERVILUZ35 35. j explorado, mais abrangente j tendo sido explorada a importncia das altas densidades e usos mistos. Entretanto, nem sempre as ideias relacionadas qualidade de vida esto vinculadas abordagem ecolgica. Gehl (2012) faz crtica cidade de Dubai por aparentemente dar prioridade a preocupao com o meio ambiente, porm de forma desvinculada com a preocupao de garantir a qualidade de vida para as pessoas: (...) O fato de uma cidade ter uma preocupao com o meio ambiente no , absolutamente, garantia de que ela esteja voltada para a necessidade de seus habitantes, que transcendem muito a questo ecolgica. Dubai, como j disse, retrata bem isso. Os edifcios de l foram quase todos erguidos para economizar energia, mas a cidade como um todo, no nada agradvel. No fundo, no nada verde. Faltam reas onde as pessoas possam caminhar, se esbarrar e se falar, produzindo aquela efervescncia tpica dos locais bons para viver. H, em Dubai, reas onde nem sequer existem caladas, o que fora as pessoas a usar o carro. No basta, portanto, adotar uma cartilha de regras ecologicamente corretas e achar que isso far um lugar mais agradvel. preciso ir muito alem disso ao pensar centros urbanos modernos. Eles devem ser como uma boa festa. (...) Se voc fica em uma festa por mais tempo do que planejava, porque se divertiu. Toda cidade deveria ser como aquela festa que d certo, em que as pessoas se sentem to bem e to a vontade que acabam ficando. (GEHL, 2012, p.21)Podemos observar que esses dois sentidos atribudos sustentabilidade urbana, tcnico-material e busca pela qualidade de vida, so abordagens conceitualmente diversas, mas que, na aplicao prtica, possuem algumas intersees. A abordagem da cidade compacta exemplo disso. Entraremos agora no terceiro sentido atribudo a sustentabilidade segundo Acserald, trata-se da concepo de que a cidade um espao de legitimao de polticas pblicas. Cidade como espao de legitimao das polticas urbanas. Esse ltimo sentido atribudo sustentabilidade urbana est relacionado com a capacidade dos governos de atender as necessidades de sua populao de forma equilibrada. A insustentabilidade exprime, assim a incapacidade de as polticas urbanas adaptarem a oferta de servios urbanos a quantidade e a qualidade das demandas sociais. (ACSELRAD, 2009, p.61) Acredita-se que quando o crescimento urbano no acompanhado por investimentos em infraestrutura, a oferta de servios urbanos no acompanha o crescimento da demanda. A falta de investimentos na manuteno dos equipamentos urbanos vir, por sua vez, acentuar o dficit na oferta de servios, o que se refletir espacialmente sobre forma de segmentao socioterritorial entre populaes atendidas e no atendidas por tais servios. Esse processo exprime-se sob forma de uma queda da produtividade poltica dos investimentos urbanos, incrementado os graus de conflito e incerteza no processo de reproduo das estruturas urbanas. (...) (ACSELRAD, 2009, p.62) A eroso da legitimidade das polticas urbanas pode fundarse assim, na insuficiente adeso racionalidade econmica, causa suposta do desperdcio da base de recursos, ou,36 36. alternativamente, na ausncia de priorizao de mecanismos distributivos do acesso a tais servios. (...) (ACSELRAD, 2009, p.63)Dessa forma, esse aspecto da sustentabilidade coloca em pauta a questo da equidade no plano urbano. Entende que dever de uma boa governana fornecer boas condies de vida para todos, colocando a proviso de servios e de infraestruturas urbanas de maneira justa e equilibrada como um quesito fundamental para alcanar a situao desejvel de sustentabilidade urbana. No panorama urbano brasileiro, onde grande parte das grandes cidades marcada por uma escandalosa segregao scio-espacial, caracterizada principalmente pelo contraste entre reas com infraestrutura e acesso a servios e outras completamente esquecidas pelo poder pblico, esse debate ganha especial importncia. Conceitos de grande relevncia para esse tema referente ao papel da equidade social na noo de sustentabilidade so as noes de justia ambiental e direito cidade. O movimento de justia ambiental nascido nos anos 1980, nos Estados Unidos, uma corrente do ambientalismo diferente do movimento ambiental preservacionista - que pensa na conservao dos ecossistemas virgens, e da ideia da ecoeficincia - que tenta tornar o modo de produzir e utilizar equipamentos humanos menos impactantes ambientalmente. A concepo de justia ambiental coloca o acesso a um meio ambiente equilibrado e com qualidade como um direito humano que todos devem poder usufruir. Seu debate coloca em pauta a questo de que muitas vezes a produo industrial e as dinmicas sociais e territoriais do sistema capitalista acabam por privar populaes do acesso e usufruto de ambientes fsicos saudveis e seguros de moradia ou de subsistncia. As reivindicaes por justia ambiental se fazem pertinentes tanto em ambientes rurais como urbanos. No primeiro, podemos exemplificar a luta de Chico Mendes contra o desmatamento da Floresta Amaznica, em defesa da criao de reservas extrativistas para subsistncia e permanncia de povos indgenas, seringueiros, castanheiros, quebradeiras de coco e populaes ribeirinhas. J no debate urbano, foco de nossa abordagem, podemos colocar a situao de precariedade ambiental que se encontram milhares de famlias que, em consequncia da segregao socioterritorial e da excluso do mercado imobilirio formal, vivem sob o risco de vida e doenas em encostas de morros, reas alagadias, proximidade de indstrias ou lixes txicos, e em locais sem saneamento bsico. Alier (2007) apresenta com muita propriedade os princpios desse movimento: O movimento pela justia ambiental (...) explicitamente incorpora uma noo distributiva da justia. Poderia ser argumentado que a justia ambiental potencialmente intui um aspecto existencial, qual seja, o de que todos os seres humanos necessitam de determinados recursos naturais e uma certa qualidade do meio ambiente para asseguraram sua sobrevivncia. Nessa perspectiva, o meio ambiente converte-se em um direito humano. (...) (ALIER, 2007, p.275) (...) O eixo principal dessa corrente no uma reverencia sagrada a natureza, mas, antes, um interesse material pelo meio ambiente como fonte de condio para a subsistncia; no em razo de uma preocupao relacionada com os direitos das fu-EM BUSCA DE UMA SUSTENTABILIDADE SOCIOAMBIENTAL URBANA: PROPOSIO PARA O BAIRRO SIMBLICO SERVILUZ37 37. turas geraes de humanos, mas, sim, pelos humanos pobres de hoje. (...) Sua tica nasce por uma demanda de justia social contempornea entre os humanos. (...) (ALIER, 2007, p.34)A grande importncia da abordagem da justia ambiental justamente unir princpios de incluso social lgica ambientalista. Segundo Clarissa Freitas (2004), quando o movimento ambientalista no se preocupa em entender a lgica da produo do espao, acaba por legitimar processos que beneficiam interesses particulares especficos e acentuam a segregao social. Isso ocorre porque, no raro, o mercado imobilirio e o poder pblico utilizam o argumento da preservao ambiental para legitimar aes e interesses que vo muito alm da mera preocupao ambiental. Exemplos dessa postura o excesso de cuidado ambiental em reas nobres, no por preocupaes eminentemente ecolgicas, mas como forma valorizar ainda mais os terrenos adjacentes, em contraposio com o descaso com a situao de famlias que sofrem todos os anos com enchentes. Este tipo de ambientalismo desconectado com a realidade social da m