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Lago dos Sonhos

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Lago dos

Sonhos

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O Arqueiro

Geraldo Jordão Pereira (1938-2008) começou sua carreira aos 17 anos,

quando foi trabalhar com seu pai, o célebre editor José Olympio, publicando obras marcantes

como O menino do dedo verde, de Maurice Druon, e Minha vida, de Charles Chaplin.

Em 1976, fundou a Editora Salamandra com o propósito de formar uma nova geração de

leitores e acabou criando um dos catálogos infantis mais premiados do Brasil. Em 1992,

fugindo de sua linha editorial, lançou Muitas vidas, muitos mestres, de Brian Weiss, livro

que deu origem à Editora Sextante.

Fã de histórias de suspense, Geraldo descobriu O Código Da Vinci antes mesmo de ele ser

lançado nos Estados Unidos. A aposta em fi cção, que não era o foco da Sextante, foi certeira:

o título se transformou em um dos maiores fenômenos editoriais de todos os tempos.

Mas não foi só aos livros que se dedicou. Com seu desejo de ajudar o próximo, Geraldo

desenvolveu diversos projetos sociais que se tornaram sua grande paixão.

Com a missão de publicar histórias empolgantes, tornar os livros cada vez mais acessíveis

e despertar o amor pela leitura, a Editora Arqueiro é uma homenagem a esta fi gura

extraordinária, capaz de enxergar mais além, mirar nas coisas verdadeiramente importantes

e não perder o idealismo e a esperança diante dos desafi os e contratempos da vida.

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K I M E DWA R D S

Lago dos

Sonhos

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Para minha família,

em especial meus pais,

John e Shirley.

Tudo conheço, oculto ou manifesto, pois a Sabedoria, artífi ce do mundo, me ensinou!

Sabedoria de Salomão, 7:21-22

A distância em linha reta não tem mistério. O mistério está na esfera.

Th omas Mann, José e seus irmãos

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prólogo

Embora já seja quase meia-noite, uma luz estranha se insinua por uma pequena fresta na lã, roçando seu braço como as penas de uma asa.

Seus pais dormem no quarto ao lado e o silêncio paira sobre o vilarejo escuro.Apesar de já estar deitada há muitas horas, não consegue dormir, então sai da cama, sentindo as tábuas ásperas do piso sob seus pés. Há semanas não se fala em outra coisa além do cometa: como seu rastro fará nuvens de vapores vene-nosos passarem pela Terra e o mundo poderá acabar. Ela tem 15 anos. Passou o dia inteiro ajudando o irmão a isolar a casa – janelas, portas, até mesmo a chaminé – com uma lã preta grossa e ouvindo os martelos baterem por toda parte enquanto os vizinhos faziam a mesma coisa.

O estreito triângulo de luz estranha a toca aqui e ali à medida que ela atra-vessa o quarto. Está usando o vestido azul que quase já não serve mais. A lã gasta tem uma textura macia em sua pele. Nesse quarto só dela, um espaço pequeno acima da ofi cina, a lã está presa à janela de forma frouxa e, quando ela puxa uma das pontas, o tecido se solta e a luz sutil do cometa invade todo o aposento. Ela abre a janela e respira: uma vez, depois outra, mais fundo. Nada acontece. Nenhum gás venenoso, nenhuma queimação nos pulmões – apenas a umidade da primavera, o cheiro das coisas fl orescendo e, ao longe, o mar.

E aquela luz estranha. Ela conhece as constelações tão bem quanto as linhas da palma de sua mão e não precisa procurar o cometa. Ele paira muito alto, uma joia cadente, dando voltas ao longo dos anos, emocionante e portentoso. Um cão late e as galinhas se agitam e começam a cacarejar. Vozes ecoam baixinho, a de seu irmão e uma outra, que ela também conhece. Seu coração dispara com um misto de raiva e desejo. Ela hesita. Não planejou esse instante – que será decisivo em sua vida. Mas tampouco é um impulso o que a leva até o peitoril da janela, os pés descalços balançando alguns metros acima do jardim. Afi nal de contas, ela já está vestida e deixou a lã da janela solta de propósito. Passou o dia inteiro sonhando com o cometa, sua beleza indomável e ardente, o que ele poderia signifi car e como sua vida poderia mudar.

As vozes fi cam mais altas e então ela pula.

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capítulo 1

Meu nome é lucy jarrett e, antes de saber sobre a menina da janela, antes de voltar para minha cidade natal, de deparar com os fragmen-

tos da história e começar a juntá-los, estava morando no Japão, em uma aldeia perto do mar. Havia sido uma primavera de pequenos terremotos e naquela noite acordei de sobressalto, arrancada de um sonho. Passos se afastavam na rua pavi-mentada de pedras e ouvia-se o ruído de trens distantes. Agucei a audição até conseguir distinguir o barulho do mar. Mas foi só. A mão de Yoshi repousava levemente em meu quadril, como se ainda estivéssemos dançando, coisa que fi zé-ramos mais cedo naquela mesma noite, a música do rádio ecoando suavemente pela cozinha escura e nossos passos fi cando cada vez mais lentos até pararmos por completo e fi carmos nos beijando em meio ao ar perfumado de jasmim.

Voltei a me deitar, curvando o corpo na direção do calor que emanava de Yoshi. No sonho, eu havia retornado ao lago onde crescera. Não queria ir, mas fui. O céu estava nublado e a cabana verde desbotada – que eu já vira antes, mas só durante o sono – estava bolorenta e coberta de árvores. Tinha as janelas racha-das, opacas de tanta poeira e neve. Passei por ela a caminho do lago e avan-cei pelo gelo grosso e translúcido. Andei até chegar aonde elas estavam. Havia muita gente ali, vivendo abaixo da superfície. Eu as via em fl ashes. Ajoelhei-me e pressionei as palmas das mãos na superfície vítrea – tão grossa, transparente e fria. Sabia que, de alguma forma, fora eu quem pusera aquelas pessoas ali, abandonando-as por muito tempo. Seus cabelos ondulavam com as correntes; seus olhos, ao encontrarem os meus, irradiavam uma melancolia semelhante à que eu sentia.

As persianas estavam balançando. Retesei o corpo, assustada com os terre-motos e o sonho, mas dessa vez era apenas um trem passando ao longe e su-mindo nas montanhas. Havia uma semana eu tinha o mesmo sonho todas as noites, provocado pela terra que se agitava, desencavando o passado. Ele me levou de volta à noite em que eu, aos 17 anos, rebelde e inquieta, desci da garupa da moto de Keegan Fall, os botões das fl ores de macieira pálidos como estrelas acima de nossas cabeças. Acariciei seu peito antes de ele ir embora, cortando a

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noite com o barulho do motor. Quando me virei na direção da casa, meu pai estava no jardim. O luar realçava o grisalho de seus cabelos curtos e a ponta de seu cigarro ardia. Os lilases e as primeiras rosas do ano fl utuavam na escuridão. Que gentileza você ter aparecido, disse meu pai. Desculpe tê-lo deixado preocu-pado, respondi. Silêncio. O cheiro da água do lago, de adubo e dos brotos verdes que rebentavam a terra escura. Então ele disse: Lucy, quer ir pescar comigo? Que tal? Já faz um tempão. Suas palavras soaram melancólicas e me lembrei de acordar antes do raiar do dia para encontrá-lo, penando para carregar a caixa de apetrechos enquanto atravessávamos o gramado até o barco. Eu queria ir pescar, queria aceitar o convite dele. No entanto, gostaria mais ainda de ir para o andar de cima e fi car pensando em Keegan Fall. Então lhe dei as costas e, com um tom de voz ríspido como conchas partidas, falei: Pai. Por favor. Eu não sou mais criança.

Essas foram as últimas palavras que lhe disse. Horas mais tarde, quando acor-dei com a luz do dia e vozes urgentes, desci a escada correndo e atravessei o gramado úmido de orvalho até a beira do lago, onde eles haviam retirado meu pai da água. Minha mãe estava ajoelhada na parte rasa e tocava o rosto do ma-rido com as pontas dos dedos. Os lábios e a pele dele estavam azulados. Havia restos de espuma no canto de sua boca e suas pálpebras estavam estranhas, iri-descentes. Parece um peixe, pensei, uma ideia louca, mas que pelo menos fez calar as outras, ainda piores, que nunca saíram da minha cabeça: Se eu tivesse ido com ele. Se eu estivesse lá. Se eu simplesmente tivesse dito sim.

Ao meu lado, no tatame, Yoshi deu um suspiro, se mexeu e sua mão escorre-gou do meu quadril. A luz da lua desenhava um retângulo no chão e as sombras estremeciam de leve no mesmo ritmo das ondas que batiam ao longe, no com-passo da brisa. Aos poucos, de forma quase imperceptível, o tremor foi aumen-tando. No início foi leve, suave como o ruído do trem momentos antes. Então minhas tigelas tibetanas dispostas no chão começaram a tocar sozinhas. Minha coleção de pedrinhas começou a cair da prateleira, batendo na palha das esteiras com um barulho que parecia de chuva. No andar de baixo, algo tombou e se estilhaçou. Prendi a respiração, como se, fi cando parada, pudesse imobilizar o mundo, mas o tremor foi fi cando cada vez mais violento. As prateleiras começa-ram a balançar com força, derrubando vários livros. Então, com uma convulsão fl uida, as paredes ondularam e o chão pareceu rolar, como se algum imenso animal houvesse despertado e se virado, como se a própria Terra estivesse viva e o chão fosse apenas uma pele, imprevisível.

De repente, o tremor parou. Tudo fi cou estranhamente silencioso. Ao longe, água pingava numa poça. A respiração de Yoshi era calma e regular.

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Virei-me e sacudi seu ombro. Ele abriu os olhos devagar. Pequenos terremo-tos nem o abalavam. Embora naquela temporada tivesse havido centenas de tremores, às vezes mais de 20 por dia, muitos eram tão suaves que só podiam ser registrados por medidores sísmicos. Outros, como esse último, eram fortes o bastante para me acordar.

– Terremoto? – balbuciou ele.– É, e dos grandes. Alguma coisa se quebrou lá embaixo.– Mesmo? Já passou. Está tudo bem, não está? Vamos voltar a dormir.Ele fechou os olhos e me puxou para junto de si. Sua respiração logo voltou

a fi car profunda e regular. Pela janela entreaberta, para além do telhado da casa do outro lado da rua, vi as estrelas espalhadas no céu.

– Yoshi? – chamei. Quando ele não respondeu, levantei-me da cama e fui até o andar de baixo.

O pé de babosa havia caído do peitoril da janela da cozinha e o vaso se estra-çalhara. Pus água para ferver e varri a terra, o vidro e os caules despedaçados espalhados pelo chão. Donas de casa japonesas provavelmente estavam fazendo a mesma coisa pela rua toda, o que me deixava incomodada e um pouco amar-gurada – era óbvio que já fazia tempo demais que eu estava sem emprego. Eu não gostava de depender de Yoshi, de não ter renda ou um trabalho signifi ca-tivo. Sou hidrologista – estudo o movimento das águas pelo mundo, tanto na superfície quanto sob a terra – e havia passado quase cinco anos fazendo pes-quisas para empresas multinacionais antes de conhecer Yoshi em Jacarta. Nós tínhamos nos apaixonado do jeito que às vezes acontece com as pessoas no exte-rior, isolados de tudo o que conhecíamos, de forma que o país em que vivíamos era na verdade uma invenção nossa e estava condicionado aos nossos próprios desejos. Este continente é o único que importa, costumava dizer Yoshi, passando as mãos pelo meu corpo. Este é o único mundo que existe. Fomos muito felizes por um ano, depois dois. Então nossos contratos acabaram e, antes que eu arru-masse um emprego, ele recebeu uma proposta para o que a princípio parecia a vaga de engenheiro dos seus sonhos. Foi assim que nos mudamos para o Japão, que havia se revelado um país inteiramente diferente da Indonésia.

Servi-me de uma xícara de chá e levei a bebida até a sala da frente, onde abri as persianas e janelas. O ar puro e frio da noite invadiu o cômodo. Ainda estava escuro, mas o bairro já se agitava: tanto perto dali quanto um pouco mais dis-tante, ouvia-se o barulho de água espirrando e pratos batendo. Do outro lado da rua estreita, vizinhos conversavam em voz baixa.

A casa estremeceu de leve com a arrebentação, então se aquietou. Fui me sentar diante da mesa de centro e fi quei bebendo meu chá, deixando os pensa-

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mentos vagarem para o dia que se iniciava e para nossa tão planejada viagem às montanhas. Na Indonésia, Yoshi e eu tínhamos falado de casamento e até de fi lhos, mas nessas fantasias eu sempre tinha um trabalho que me satisfazia, ou me contentava em estudar japonês, fazer arranjos fl orais e dar longas cami-nhadas solitárias. Não imaginava como o fato de não ter um emprego poderia me isolar, nem quanto tempo Yoshi iria acabar dedicando ao próprio trabalho. Ultimamente, andávamos um pouco tensos um com o outro, discutindo toda hora por nada. Eu também não havia percebido quão persistente o passado iria se revelar, exercendo sobre mim sua antiga força de atração assim que eu diminuísse o ritmo. Depois de três meses à toa no Japão, comecei a dar aulas de inglês só para preencher os dias com outras vozes que não a minha. Le-vava meus jovens alunos para passear e parava junto ao mar para lhes ensinar substantivos concretos: pedra, água, onda, com saudade dos dias em que havia usado essas mesmas palavras com desenvoltura no dia a dia profi ssional. Às vezes eu me pegava dizendo coisas mais ousadas, que tinha certeza que eles não entenderiam. Vocês sabiam que os dinossauros beberam essa água? A água avança eternamente em círculos; algum dia, pequeninos, seus netos talvez até bebam as lágrimas de vocês.

Agora, semanas mais tarde, eu começava a me perguntar se aquela seria mesmo a minha vida ou apenas um breve interlúdio na existência que eu havia imaginado.

Do outro lado do aposento, luzinhas piscaram no meu laptop. Levantei-me para checar meu e-mail e o brilho da tela tingiu de azul-claro minhas mãos e meus braços. Dezesseis mensagens: a maioria spam; duas de amigos no Sri Lanka; três de colegas de Jacarta com fotos de sua expedição pela selva. Li-as rapidamente, lembrando-me de um passeio que fi zera com essas pessoas, da lu-xuriante vegetação ribeirinha e dos chapéus que confeccionamos com ninfeias para nos proteger do sol inclemente, cheia de saudade da rotina que eu e Yoshi havíamos deixado para trás.

Em seguida havia três mensagens de casa. A primeira, enviada por minha mãe, me surpreendeu. Nós nos falávamos com frequência e eu tentava ir visitá--la uma vez por ano, mesmo que por pouco tempo, mas ela usava a internet do mesmo modo que a geração anterior à dela usava os telefonemas de longa dis-tância: de forma infrequente, sucinta e apenas para assuntos de certa importân-cia. Em geral, nos falávamos por telefone ou então trocávamos fi nas cartas azuis pelo correio, as de minha mãe postadas para onde quer que minha vida nômade houvesse me levado; as minhas indo aterrissar na caixa de correspondência em frente ao casarão no qual eu havia crescido, em uma cidadezinha chamada Lago dos Sonhos.

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Lucy, sofri um acidente, mas não foi nada grave e você não tem por que se preocupar. Por favor, fi que com um pé atrás se tiver notícias de Blake. É claro que as intenções dele são boas, mas está sendo superprotetor, o que me deixa maluca. Tenho quase certeza de que não quebrei o pulso, só luxei. O médico disse que a radiografi a vai confi rmar o que aconteceu. Não há necessidade alguma de você vir para cá.

Li a mensagem duas vezes, imaginando minha mãe sentada diante da solitária mesa de sua cozinha, machucada. Embora não fosse justo – já haviam se pas-sado quase 10 anos e todos tínhamos tocado nossas vidas, pelo menos aparente-mente –, senti-me transportada outra vez para o verão após a morte de meu pai. Havíamos conseguido atravessar os dias fazendo as coisas de sempre, tentando estabelecer uma ordem frágil. Preparávamos refeições em que mal tocávamos e andávamos pelos corredores sem nos falar. Minha mãe começou a dormir no quarto de hóspedes do térreo e, cômodo a cômodo, foi fechando o segundo andar. Todo o silêncio da casa girava em torno de seu luto e nos movíamos a seu redor com cautela, sem fazer barulho. Se eu me permitisse chorar ou ter um acesso de raiva, tudo poderia desmoronar, então aguentei fi rme. Desde então, todas as vezes que a visitei, tive a sensação de voltar a esses antigos padrões, a um mundo cercado pela dor.

O e-mail seguinte era mesmo de meu irmão e me deixou alarmada. Blake pas-sava os verões em seu veleiro, conduzindo passeios de barco que partiam do cais de Lago dos Sonhos a cada duas horas. Depois ia para St. Croix no inverno e fazia praticamente a mesma coisa. Ele era usuário do Skype e em duas ocasiões havia atravessado o mundo para me visitar, mas não gostava de e-mail e quase nunca escrevia. Em sua mensagem dava mais detalhes sobre o acidente – alguém havia avançado um sinal e, segundo ele, o carro de minha mãe tivera perda total –, mas não me pareceu superprotetor, apenas preocupado. Quem soava um pouco descontrolada era minha prima Zoe, mas ela era sempre assim. Nascera quando eu já tinha quase 12 anos e era tão mais jovem do que os outros primos que às vezes parecia ter crescido em uma família totalmente diferente. Joey, seu irmão mais velho, tinha mais ou menos a minha idade, era herdeiro do sobrenome e da fortuna da família e nós nunca nos demos muito bem. Mas Zoe, que agora tinha 15 anos e adorava a internet, achava minha vida incrível e exótica e escrevia com frequência para contar os acontecimentos dramáticos do ensino médio, embora fosse raro que eu respondesse.

Estava quase amanhecendo. Levantei-me e fui até a janela. Lá fora já era pos-sível ver o tom cinza das pedras do calçamento e casas de madeira emergiam

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da noite. Do outro lado da rua, um discreto bater de panelas seguido pelo ba-rulho de água correndo arrancou-me de meus pensamentos. A Sra. Fujimoro saiu para varrer a calçada. Fui até a varanda e lhe dei bom-dia com um meneio de cabeça. Suas vassouradas eram tão fi rmes que só reparei que a Terra havia recomeçado a rugir quando ela parou. No início, foi um rumor comum, uma grande onda batendo na praia ou um caminhão passando pela rua – mas não era só isso. Meus olhos encontraram os da Sra. Fujimoro. Ela segurou minha mão, enquanto o tremor fi cava mais forte.

Folhas estremeceram e a água de uma poça ondulou. Uma discreta rachadura surgiu abaixo da janela da cozinha dos Fujimoro e ziguezagueou pela parede até o chão. Fiquei segurando a mão da vizinha sem me mexer, pensando no aci-dente de minha mãe, no momento em que ela percebeu que não poderia fazer nada para impedir que o outro carro atingisse o seu, assim como não consegui-ria alterar os movimentos da Lua.

O tremor cessou. Uma voz de criança fez uma pergunta de dentro da casa. A Sra. Fujimoro respirou fundo, afastou-se de mim e fez uma mesura. Tornou a pegar a vassoura. Sua expressão, tão recentemente revelada, já estava de novo distante. Fiquei ali sozinha, sobre as pedras gastas do calçamento.

– Você desligou o gás? – perguntou ela.– Ah, sim! – garanti-lhe. – Sim, desliguei o gás! – Nós duas sempre tínhamos

esse diálogo. Era uma das poucas frases que eu sabia pronunciar perfeitamente em japonês.

Quando me virei, Yoshi já estava na soleira da porta, com os cabelos despen-teados e uma camiseta velha por cima do short de corrida. Tinha uma expressão gentil e fez uma ligeira reverência para a Sra. Fujimoro, que retribuiu o gesto e falou com ele em japonês, muito depressa. O marido dela tinha sido colega de escola do pai de Yoshi e o casal era nosso senhorio. Nas raras ocasiões em que os pais de Yoshi vinham de Londres para nos visitar – a mãe dele era bri-tânica –, fi cavam hospedados em outro apartamento dos Fujimoro, perto dali, dobrando a esquina.

– Sobre o que vocês estavam falando? – perguntei quando Yoshi fi nalmente fez outra mesura para a Sra. Fujimoro e tornou a entrar em casa. Ele tivera uma educação bilíngue e passava com fl uência e naturalidade de um idioma para o outro, o que me causava admiração e inveja.

– Ah, ela estava me contando sobre o grande terremoto de Kanto, nos anos 1920. Alguns parentes dela morreram na tragédia e ela acha que é por isso que tem tanto medo até de pequenos tremores. Tem pavor de incêndios. E sente muito se assustou você quando segurou sua mão.

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– Não tem problema – falei, seguindo-o até a cozinha e pegando minha xí-cara vazia no caminho. – Também tenho medo de terremotos. Não sei como você consegue fi car tão calmo.

– Bem, ou eles param ou não. Não há muito o que fazer, não é? Além do mais, olhe aqui – acrescentou, gesticulando em direção ao jornal que eu, claro, não conseguia ler. – Está na primeira página. Dizem que uma ilha está se formando debaixo d’água e que depois tudo vai melhorar. O que está acontecendo é só para liberar a pressão.

– Que ótimo. Grande alívio. – Eu o vi despejar água sobre as folhas de chá com movimentos desenvoltos, experientes. – Yoshi, minha mãe sofreu um acidente.

Ele levantou os olhos.– O que houve? Ela está bem?– Um acidente de carro. Não foi sério, eu acho. Ou foi, mas ela está bem

mesmo assim. Depende da versão que você ler.– Ah. Que chato. Você vai visitá-la?Não respondi imediatamente. Será que ele queria que eu fosse? Isso seria um

alívio?– Acho que não – acabei falando. – Ela disse que está bem. Além do mais,

tenho que arrumar um emprego.Yoshi me encarou com a expressão gentil que me atraíra no início e que agora

tantas vezes fazia com que me sentisse claustrofóbica: como se ele me compre-endesse, como se me conhecesse de cor.

– Você pode procurar emprego na semana que vem, no mês que vem.Olhei de relance pela janela da cozinha para a parede da casa ao lado.– Não, Yoshi. Não quero mais adiar isso. Acho que todo esse tempo livre está

me deixando meio louca.– Bem – disse ele num tom alegre, sentando-se à mesa –, isso eu não posso

negar.– Procurei muito – falei, séria. – Você não faz ideia. Yoshi estava descascando uma tangerina de um jeito hábil que deixava a

casca quase intacta, como uma lanterna vazia, e não levantou os olhos.– E aquela consultoria... aquele projeto chinês de represa no rio Mekong?

Você deu continuidade a isso?– Ainda não. Está na minha lista.– Sua lista... Lucy, qual é o tamanho da sua lista?Dessa vez respirei fundo antes de responder. Fazia muitas semanas que está-

vamos planejando aquela caminhada nas montanhas e eu não queria discutir.– Estou pesquisando a empresa – respondi, tentando me lembrar de que,

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poucas horas antes, nós dois estávamos dançando naquele mesmo aposento, no escuro, cercados por um ar perfumado.

Yoshi me ofereceu um gomo de sua tangerina. Aquelas pequenas frutas, co-nhecidas como mikan, cresciam nas árvores das colinas próximas e, quando maduras, pareciam enfeites brilhantes. Tínhamos visto várias delas no outono anterior, quando Yoshi acabara de aceitar o emprego e tudo parecia repleto de possibilidades.

– Lucy, por que você não tira uns dias e vai visitar sua mãe? Eu poderia en-contrar você lá depois da viagem de trabalho a Jacarta. Seria legal. Gostaria de conhecer sua mãe.

– Mas é tão longe...– Só se você estiver planejando ir a pé.Eu ri, mas Yoshi estava falando sério. Seus olhos cor de ônix, escuros como o

fundo de um lago, estavam fi xos em mim. Prendi a respiração, me lembrando da noite anterior, de como ele havia me encarado sem piscar enquanto seus dedos passeavam muito de leve pela minha pele. Yoshi estava sempre viajando a tra-balho – ele projetava pontes para uma empresa com fi liais em vários países – e aquela parecia apenas mais uma ausência a ser acrescentada a todas as outras. Que ironia se agora seu emprego virasse um jeito de nos reaproximarmos.

– Você não quer que eu conheça sua mãe nunca? – insistiu.– Não é isso. – E de fato não era. Peguei a casca vazia da tangerina, sentindo-a

leve na palma da mão. – Só não sei se é o momento. Além do mais, o estado dela não é crítico. Não se trata exatamente de uma emergência.

Yoshi deu de ombros e pegou outra tangerina na fruteira cor de cobalto.– Às vezes a solidão é uma emergência, Lucy.– Como assim?– Estou dizendo que nos últimos tempos você tem parecido muito triste e

sozinha, só isso.Desviei os olhos piscando, pois eles inexplicavelmente tinham se enchido de

lágrimas.– Ei. – Ele tocou minha mão, as pontas de seus dedos meladas. – Lucy, me

desculpe, está bem? Não vamos nos preocupar com isso. Vamos para as monta-nhas e pronto, conforme o planejado.

Então, fomos. O tempo no litoral estava abafado, mas, à medida que o trem subia pelas curvas fechadas da serra, o dia foi fi cando imponente, claro e enso-larado. Era início de primavera: ameixeiras e cerejeiras em fl or se destacavam na paisagem, cobrindo o chão com pétalas brancas, e minhas aulas de vocabulário pareciam poemas: árvore, fl ores, caindo, pétalas, neve. A estação já estava sufi -

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cientemente avançada para o arroz ter brotado nos alagados junto ao mar, mas nas montanhas a primavera se prolongava. As hortênsias apenas começavam a fl orir e seus tufos de pétalas verde-claras já tendendo para o lilás e o azul se amontoavam junto às janelas do trem.

Caminhamos até um museu a céu aberto sob um toldo de cedros e almoça-mos em uma aldeia serrana aos pés de um vulcão adormecido. Conversamos de um jeito fácil, descontraído e alegre, como em nossos melhores momentos juntos. Já estava quase escurecendo quando chegamos ao rotemboro, uma fonte de água quente ao ar livre, e nos separamos na entrada. O vestiário era todo feito de pinho claro e água corrente, calmo e relaxante. Estava praticamente vazio. Esfreguei-me cuidadosamente da cabeça aos pés, enxaguei o corpo com água morna e fui andando, nua, até a piscina de pedra. O ar estava fresco e a lua surgia no céu cor de anil. Duas outras mulheres descansavam recostadas nas rochas lisas, conversando; sua pele branca contrastava com as pedras cinzentas e, da cintura para baixo, seus corpos pálidos desapareciam dentro da piscina. O som de suas vozes e o fi lete de água que escorria da fonte eram ruídos suaves. Adiante, do outro lado do muro, vinham o barulho de água chapinhando e as vozes dos homens.

Entrei na piscina escaldante, imaginando os desenhos dos rios subterrâneos que alimentavam aquelas fontes, pensando em como tudo estava interligado e em como nossa vida ali havia surgido de uma decisão muito casual que eu tomara durante minhas primeiras semanas em Jacarta, mais de dois anos antes. Eu chegara cansada de uma semana de trabalho de campo inspecionando um sistema de canais e largara a mala no piso frio de mármore, sem pensar em nada além de uma ducha, um prato de nasi goreng e um drinque. A moça com quem eu dividia a casa, funcionária da embaixada da Irlanda, estava indo a uma festa e me convidou para ir junto, prometendo boa comida e música ainda melhor. De início recusei, mas no último instante mudei de ideia. Se não tivesse ido, Yoshi e eu nunca teríamos nos conhecido.

A festa era em uma casa grande tomada por música e risos. Usei um ves-tido justo de seda azul-escura que eu mesma fi zera. O caimento era perfeito e ele combinava com a cor dos meus olhos. Passei algum tempo percorrendo os cômodos da casa, rindo e conversando. Então vi uma varanda tranquila e, por impulso, saí para tomar um pouco de ar. Yoshi estava apoiado no parapeito, admirando o rio lá embaixo. Hesitei, pois alguma coisa em sua postura fez com que eu não quisesse incomodá-lo. Mas ele se virou, sorrindo daquele jeito que ele sabe, com o rosto todo iluminado, caloroso e acolhedor. Perguntou se eu queria me juntar a ele para admirar o rio.

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Aceitei. Atravessei o piso de cerâmica e me postei ao seu lado no parapeito. No início não falamos muito, fascinados pela correnteza veloz e lamacenta. Quando começamos a conversar, descobrimos que tínhamos muito em co-mum. Além de nosso trabalho e do amor por viagens, tínhamos a mesma idade e éramos alérgicos a cerveja. A conversa fl uiu tão bem que mal reparamos nas pessoas que chegavam e iam embora, em nossos copos vazios nem no céu que mudava de cor, até que a chuva da monção começou a cair com a imprevisibi-lidade e a intensidade características dos trópicos. Olhamos um para o outro e começamos a rir. Yoshi levantou as mãos para o céu. Como já estávamos en-charcados, não fazia sentido corrermos para dentro. Continuamos na varanda até a chuva parar tão subitamente quanto havia começado. Yoshi me acom-panhou até minha casa por ruas escuras e fumegantes. Quando chegamos à porta, ele passou as palmas das mãos em minhas bochechas para retirar a água e me beijou.

No início, foi fácil impedir que o relacionamento avançasse. Eu já tivera minha cota de casos passageiros a distância nos quais as pessoas que viajam muito sempre se envolvem. Então as chuvas recomeçaram. Chegaram cedo naquele ano e foram particularmente violentas, sobrecarregando os sistemas de canais abertos da cidade e alagando as ruas. Boa parte de Jacarta fi cava abaixo do nível do mar e era suscetível a alagamentos, e os bairros que surgiram a seu redor – em detrimento de árvores e áreas verdes – haviam deixado pouco espaço para absorver a chuva. A água foi subindo, subindo. Certa manhã, en-contramos peixes nadando em nosso gramado alagado e, ao meio-dia, já havia mais de 10 centímetros de água na sala. Eu e a garota que morava comigo vimos pela TV a enchente arrastar carros, fachadas de prédios e uma aldeia inteira com 143 habitantes.

Quando a água começou a baixar, Yoshi e dois colegas de trabalho dele or-ganizaram uma faxina num orfanato. Ele foi me buscar em uma caminhonete velha da Nissan que havia pegado emprestada e, juntos, atravessamos a cidade alagada e destruída. O orfanato estava tomado por lama e lixo. O lugar fedia. Passamos aquele dia e o seguinte trabalhando e Yoshi se desdobrou em inúme-ras atividades, retirando lama com uma pá e organizando os voluntários. Num determinado momento, parou ao lado de um menino que vestia uma camisa vermelha surrada e chorava de pé no meio da lama, pegou-o no colo e levou-o para dentro.

Quando ele me deixou em casa ao fi m do segundo dia, o céu havia voltado a clarear. Desci do carro correndo, procurando na bolsa a chave de casa, escorre-guei e tive de me agarrar a uma mangueira para não cair. Uma cascata de folhas

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e gravetos desabou da árvore, espalhando sementes, pólen e cascas secas. Eu já estava toda suja por causa da faxina. Yoshi segurou meu braço e entramos em casa cambaleando. “Você está tremendo”, disse ele. “Venha cá.” Deixamos nossas roupas caírem ao lado do chuveiro bem quente. “Feche os olhos”, falou, entrando no boxe atrás de mim, a água escaldante nos molhando. Então as mãos dele começaram a se mover nos meus cabelos, passando o xampu em cada fi o, acariciando meu couro cabeludo, massageando meus ombros, mandando em-bora o frio e a sujeira, minha tensão e minhas incertezas. Meus braços relaxa-ram sob o seu toque, ele segurou meus seios como se fossem duas fl ores e eu me virei.

E agora estávamos ali, tantos dias depois, a muitos quilômetros de distância. A voz de Yoshi, sua risada, fl utuavam por cima do muro que dividia a piscina natural. Afundei mais um pouco dentro d’água e descansei a cabeça nas pedras molhadas. Meus membros fi caram boiando, com um brilho fraco, e o vapor su-bia; as mulheres na minha frente conversavam baixinho. Eram mãe e fi lha, pen-sei, ou então irmãs com uma grande diferença de idade, pois tinham o mesmo tipo de corpo e os gestos de uma espelhavam os da outra. Tornei a pensar em minha própria mãe, sentada sozinha em sua casa.

“Ultimamente você tem parecido muito triste e sozinha.” O comentário ainda me incomodava, mas eu tinha de me perguntar se não seria verdade. Eu saíra de casa para a faculdade poucas semanas depois da morte de meu pai, anestesiada mas decidida a fugir do silêncio que havia se abatido sobre a casa como um fei-tiço sombrio. Keegan Fall tentara quebrá-lo em várias ocasiões, mas eu o havia dispensado com rispidez uma, duas, três vezes, até ele parar de ligar. Nos anos seguintes, tinha passado da graduação para a pós, mudado de empregos bons para outros melhores e vivido uma série de relacionamentos, deixando aquela tristeza para trás sem nunca me permitir diminuir o ritmo. Até agora, quando, desempregada no Japão, eu estava paralisada.

As mulheres saíram da piscina, fazendo a água pingar nas pedras e provo-cando pequenas ondas. Lembrei-me do sonho que tivera, dos rostos logo abaixo da superfície do gelo. Meu pai costumava me contar histórias nas quais eu sem-pre era a heroína e o fi nal, feliz. Nada havia me preparado para o choque de sua morte. Segundo a autópsia, ele havia caído, batido com a cabeça no barco e escorregado para dentro d’água: um acidente terrível que não tinha como ser totalmente explicado e que jamais poderia ser desfeito. Sua vara de pesca foi encontrada dias depois, enroscada nos juncos à beira do charco.

Saí da piscina e me vesti, mas Yoshi ainda não estava lá fora, então comecei a descer sozinha uma trilha de pedras, sem destino. As rochas margeavam um

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riacho estreito e iam dar em um laguinho redondo feito uma tigela e tingido de prata pelo luar. Parei na beira desse laguinho. No escuro do outro lado, algo se mexeu.

Não pela primeira vez naquele dia cheio de terremotos, prendi a respiração. Uma grande garça-azul estava em meio às sombras, as pernas compridas mer-gulhadas na água escura e as asas recolhidas junto ao corpo. O laguinho estava parado, cintilante como mica. Uma garça menor agitou-se ao lado da primeira. Pensei nas duas mulheres na piscina: era como se elas houvessem ido para ali e se transformado naquelas aves lindas e silenciosas. Então Yoshi chamou meu nome e as garças abriram suas grandes asas e levantaram voo graciosamente, lançando suas sombras sobre a água antes de sumir entre as árvores.

– Lucy – tornou a chamar Yoshi. – Se nos apressarmos, conseguiremos pegar o próximo trem.

O calor aumentava à medida que descíamos a montanha. Os botões de hor-tênsia junto às janelas se tornavam maiores e mais murchos, como se a lenta passagem da estação houvesse se concentrado em uma única hora. Quando chegamos à nossa parada perto do mar, as fl ores haviam desaparecido por com-pleto, deixando apenas uma folhagem lustrosa. Voltamos para casa a pé pelas estreitas ruazinhas de pedra. Cigarras cantavam e o chão estremecia de leve com o movimento das ondas. Por duas vezes, parei de andar.

– Isso é o mar? – perguntei.– Pode ser.– Não é um terremoto?Yoshi suspirou, um pouco cansado, achei.– Não sei. Talvez um bem pequeno.Um vaso de fl ores estava virado sobre a mesa. Vários livros haviam se espa-

lhado pelo chão. Sequei a água e catei as pétalas. Enquanto eu estava ali em pé, a terra tremeu uma única vez, de forma rápida e intensa, com tanta força que até Yoshi reagiu e me puxou para o vão da porta, onde passamos vários minutos em pé, novamente prestando atenção na terra, nos movimentos e tremores de sua existência. Eu estava muito cansada; temia a noite que estava por vir, com seus terremotos e sonhos. Também tinha medo do dia seguinte, de todos os peque-nos desentendimentos surgidos do nada e do silêncio que iria se fechar à minha volta quando Yoshi saísse para o trabalho. Pensei nas garças à beira do laguinho, abrindo suas asas escuras.

– Yoshi, acho que vou visitar minha família, sim.

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