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25 a 27 de maio de 2010 – Facom-UFBa – Salvador-Bahia-Brasil KIJEMES: Arquiteturas Indígenas Pataxós da Resistência ao Espetáculo. Fábio Macêdo Velame 1 Resumo: Este ensaio visa realizar uma análise sobre o processo de mercantilização dos índios, em suas transformações em mercadorias e ferramentas publicitárias para alimentar o desenvolvimento da indústria cultural, e da indústria turística, o Turismo Étnico. O Turismo Étnico vem paulatinamente agenciando nas últimas décadas na Bahia grupos étnicos diversos, outrora perseguidos pelo Estado, num processo de agenciamento-folcrorização-espetacularização de suas manifestações culturais. O Turismo Étnico torna-se uma potente ferramenta da indústria cultural para a edificação de uma diferença das cidades na competitividade global. Para tanto serão trabalhados os agenciamentos dos índios da étnia Pataxó na construção da imagem publicitária do ‘’Jardim do Éden Terrestre’’, a cidade de Porto Seguro no Extremo Sul da Bahia. Palavras-chave: Índios Pataxós; Cultura; Cidade; Mercantilização. 1 Professor Assistente do Departamento I da FAUFBA - Faculdade de Arquitetura da Universidade Federal da Bahia. E-MAIL: [email protected]

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25 a 27 de maio de 2010 – Facom-UFBa – Salvador-Bahia-Brasil

KIJEMES: Arquiteturas Indígenas Pataxós da Resistência ao Espetáculo.

Fábio Macêdo Velame1

Resumo: Este ensaio visa realizar uma análise sobre o processo de mercantilização dos índios, em suas transformações em mercadorias e ferramentas publicitárias para alimentar o desenvolvimento da indústria cultural, e da indústria turística, o Turismo Étnico. O Turismo Étnico vem paulatinamente agenciando nas últimas décadas na Bahia grupos étnicos diversos, outrora perseguidos pelo Estado, num processo de agenciamento-folcrorização-espetacularização de suas manifestações culturais. O Turismo Étnico torna-se uma potente ferramenta da indústria cultural para a edificação de uma diferença das cidades na competitividade global. Para tanto serão trabalhados os agenciamentos dos índios da étnia Pataxó na construção da imagem publicitária do ‘’Jardim do Éden Terrestre’’, a cidade de Porto Seguro no Extremo Sul da Bahia.

Palavras-chave: Índios Pataxós; Cultura; Cidade; Mercantilização.

1 Professor Assistente do Departamento I da FAUFBA - Faculdade de Arquitetura da Universidade Federal da Bahia. E-MAIL: [email protected]

KIJEMES: Arquiteturas Indígenas Pataxós da Resistência ao Espetáculo.

Este ensaio visa realizar uma rápida reflexão sobre um processo que se

apresenta de forma marcante na Bahia, a mercantilização dos índios, em suas

transformações em mercadorias e ferramentas publicitárias para alimentar o

desenvolvimento da indústria cultural, do entretenimento, e, principalmente, da

indústria turística, em sua nova roupagem, o Turismo Étnico. O Turismo Étnico

potencializa a importância da cultura no cenário atual da dinâmica do capitalismo de

acumulação flexível na pós-modernidade, viabiliza estratégias de governabilidade do

estado na periferia do sistema, assim como contribui na construção das imagens

publicitárias das cidades na competitividade global e no manejo dos conflitos sociais.

O Turismo Étnico vem paulatinamente agenciando nas últimas décadas na

Bahia grupos étnicos diversos, outrora perseguidos pelo Estado, num processo de

agenciamento-folcrorização-espetacularização de suas manifestações culturais, no que

tange suas festas e arquiteturas, para a sua reprodução e, notadamente, desempenhando

um papel central na construção das imagens nacionais e internacionais das cidades onde

estão inseridas, realimentando e potencializando todo o processo de mercantilização. O

Turismo Étnico torna-se uma potente ferramenta da indústria cultural para a edificação

de uma diferença das cidades na competitividade global.

Para tanto serão trabalhados os agenciamentos dos índios da étnia Pataxó na

construção da imagem do ‘’Jardim do Éden Terrestre’’, a cidade de Porto Seguro no

Extremo Sul da Bahia. Nesse desafio de desvelar o processo de transformação dos

corpos negros e índios em fetiches mercadorias, tendo como cenários suas arquiteturas,

foram lançados sobre a luz dos conceitos e sistemas de pensamento da filosofia política

de Hannah Arendt, Michel Foulcault e de Gilles Deleuze, e a antropologia hermenêutica

de Clifford Geertz. Em Hannah Arendt serão abordadas as características da sociedade

de massa, as relações entre cultura e entretenimento, e os objetos culturais e

mercadorias. Em Foulcault os jogos de saberes e poderes, das disciplinas dos corpos, o

bio-poder, e os processos de resistência que suscitaram. Em Gilles Deleuze os processos

de desterritorialização, reterritorialização, espaços lisos e estriados, e os agenciamentos

máquinicos dos corpos. Em Geertz serão utilizados seus conceitos de símbolos e de

cultura. ‘’Jardim do Éden Terrestre’’, assim como é conhecido o município de Porto

Seguro localizado na região do Extremo Sul da Bahia, a 707km de Salvador, com uma

população atual de 122.896 hab2.

Com suas belezas naturais, praias paradisíacas, belas paisagens; suas vilas

famosas e charmosas Arraial D´Ajuda, Trancoso3 e Caraíva freqüentadas por badalados

artistas nacionais e internacionais, oasis dos empresários do sudeste do país; com um

rico patrimônio arquitetônico e artístico, com várias áreas de proteções ambientas e

reservas indígenas; lugar de entretenimentos e prazeres diversos com grandes estruturas

para eventos e festas, morada da liberdade irrestrita, constitui um dos principais destinos

turísticos do nordeste4. Porto Seguro, ‘’Jardim do Éden Terrestre’’, incorpora a celebre

frase ‘’não há pecado abaixo do Equador’’, todavia, lá ‘’também não há perdão’’.

Por detrais dos cartões postais, desvelando as máscaras das propagandas,

caminhando pelo jardim emerge uma outra cidade, cujos jardins são de espinhos. O

município apresenta um desemprego sazonal é um recorrente na cidade cujos empregos

temporários concentram-se na alta estação (janeiro, fevereiro e julho) apresentando altos

índices de desemprego no resto do ano; altas taxas de violência5, notadamente vinculado

ao pesado tráfego de drogas e a assaltos na baixa estação; arrastões e assaltos a turistas

nos hotéis, resortes e ônibus; exploração sexual escancarada e vergonhosa de crianças e

adolescentes, ocorrendo de forma ampla até na Praça do Relógio no Centro da Cidade;

forte processo de segregação sócio espacial entre a cidade formal dos cartões postais e

os bairros da cidade informal, a Porto Seguro escondida, os bairros do Areião, Paraguai

e, principalmente, o Baianão6; paulatina queda do fluxo turístico e concentração de

mercado pela operadora CVC.

2 IBGE – Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística, 2009. 3 Trancoso, distrito de Porto Seguro, foi citada na seleta lista do The New York Times, em 10/01/2010, como um dos 31 destinos para se ir em 2010 (A TARDE, 07/02/2010). 4 Constitui o quarto destino turístico do Nordeste atrás de Salvador, Recife e Fortaleza. 5 O número de homicídios em Porto Seguro em 2008, segundo dados da Coordenação de Documentação e Estatística Policial (Cedep), foi de 109 pessoas, de janeiro a novembro de 2009 foram 69 pessoas (A TARDE, 24/02/2010). Esses homicídios em sua maioria estão relacionados ao trafego nacional e internacional de drogas. 6 O Baianão é um bairro que concentra quase a metade da população da área urbana de Porto Seguro, surgiu no final da década de 1990, como um loteamento aberto como promessa de campanhas eleitorais municipais, rapidamente se desenvolveu absorvendo a população excedente da lavoura cacaueira da região sul (Itabuna-Ilhéus) e do êxodo rural dos municípios do Extremo Sul com a implantação das fábricas de celulose. Localiza-se em um platô a noroeste da cidade, antes do aeroporto, sem nenhuma infra-estrutura urbana e precárias condições de moradias (casas de madeira agreste e lonas).

O município de Porto Seguro apresenta ainda uma alta rotatividade

populacional (imigrantes estrangeiros - italianos, e de outros estados do país); maciça

migração da população da lavoura cacaueira decadente da região sul (Itabuna-Ilhéus)

alojando-se nos bairros periféricos; êxodo da população rural dos municípios do

Extremo Sul com a implantação das fábricas de celulose (VERACEL, Vera Cruz

Celulose) que desestruturou a base econômica da região, comprando e/ou arrendando as

pequenas e médias propriedades rurais para plantar o deserto verde, a floresta de

eucaliptos7; disputas constantes entre posseiros, grileiros, índios, sem terras, fábricas de

celulose e hoteis criando grandes tensões no município; e o preconceito e a violência

contra os autóctones, os gentis, os índios da étnia Pataxó.

No ano 2000 o município passou por grandes investimentos governamentais

tanto da esfera federal quanto da estadual, no auge da política neo-liberal no país, para

as comemorações dos 500 Anos do Descobrimento do Brasil. O município teve seu

centro urbano requalificado (Av. Getúlio Vargas e Av. dos Navegantes), sua orla

urbanizada, seu centro histórico restaurado, seu aeroporto internacional e hospital

ampliado, suas estradas vicinais pavimentadas e construções de estruturas voltadas para

o turismo de massa, o Parque Aquático, a Ilha dos Aquários, Arena do Axé Moi, megas

barracas de praia (Barramares, Tô a Toa, Axé Moi), o Centro de Convenções, o

Memorial do Descobrimento com uma replica em escala natural da Nau Capitania de

Cabral, o Museu do Povo Brasileiro (Índio, Negro e o Português) na Casa de Câmara e

Cadeia. Teve também e, principalmente, estruturas para a visibilidade e mercantilização

do índio – Estatua da índia Ináia, Museu do Índio, Shooping do Índio, Alameda do

Índio, Reserva Indígena da Jaqueira, e um pequeno estádio para as Olimpíadas

Indígenas, fundamentais para a construção da imagem do paraíso tropical.

Em 2007 existia na Região do Extremo Sul da Bahia 18 aldeias da étnia Pataxó

que totalizam 12.755 índios agrupados em 2.230 famílias que correspondem a 52,00%

da população indígena do Estado da Bahia. Segundo um novo levantamento, apenas na

Bahia há atualmente cerca de 25 mil índios espalhados por cerca de 14 tribos: Arikoé,

Atikum, Botocudo, Kaimbé, Kantaruré, Kariri, Kiriri, Kiriri Barra, Pankararé,

Pankarari, Pataxó, Pataxó HãHãHãe, Tupinambá, e Tuxá. Entre 1993 e 1994, a

estimativa era de 22 mil. Os números que apontam um crescimento de 13,6% no 7 As plantações de Eucaliptos, o Deserto Verde, das fábricas da Veracel e da Vera Cruz Celulose estendem-se pela área central do Extremo Sul da Bahia indo de Itapebi, passando por Eunapolis e Texeira de Freitas atingindo o norte do Espírito Santo, atualmente está indo em direção ao litoral na Costa das Baleias, notadamente no município de Prado e em direção ao Sudoeste do Estado.

período são do Departamento de Antropologia e Etnologia da Universidade Federal da

Bahia (UFBA), obtidos por meio do Programa de Pesquisa sobre os Povos Indígenas do

Nordeste Brasileiro (Pineb), que a 34 anos realiza estudos sobre os hábitos das

comunidades indígenas da região, particularmente do estado da Bahia.

O levantamento do Pineb teve como pano de fundo estatísticas do Instituto

Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), nas quais a população indígena passou a

representar, em 2000, 4,1% da população. Em 1991, o índice era de apenas 0,2%.

Foram utilizadas ainda informações da Fundação Nacional de Saúde (FUNASA) e da

Fundação Nacional do Índio (FUNAI). “Os contatos violentos da colonização européia

não conseguiram destruir a população indígena no Brasil e hoje o crescimento

populacional é uma tendência geral dos índios brasileiros”, disse a coordenadora do

PINEB, Maria Rosário de Carvalho. A pesquisadora explica que a queda demográfica

acentuada foi registrada até o final da década de 1960, desde então observando-se

tendência inversa de expansão. A população indígena Pataxó encontra-se distribuída em

quatro municípios que fazem limites entre si: Santa Cruz Cabrália, Porto Seguro, Prado,

e Itamaraju. Conforme a tabela abaixo (Fig. 01):

TABELA DAS ALDEIAS INDIGENAS PATAXÓS NO EXTREMO SUL DA BAHIA

Aldeias Ano de Fundação*

Município

Número de Famílias

Número de Pessoas

Barra Velha 1861 Porto Seguro 315 3.000 Imbiriba 1920 Porto Seguro 58 294 Águas Belas 1953 Prado 55 270 Mata Medonha 1960 Santa Cruz de

Cabrália 40 200

Coroa Vermelha 1973 Santa Cruz de Cabrália

950 5.000

Boca da Mata 1976 Porto Seguro 172 850 Meio da Mata 1987 Porto Seguro 45 250 Trevo do Parque 1988 Itamaraju 40 90 Corumbauzinho 1998 Prado 52 312 Aldeia Velha 1999 Porto Seguro 138 564 Guaxuma 2000 Porto Seguro 43 190 Aldeia Nova 2000 Porto Seguro 20 85 Pé do Monte 2000 Porto Seguro 15 70 Cahy 2000 Prado 180 1.050 Alegria Nova 2000 Prado 22 85 Tibá 2003 Prado 40 210 Pequi 2003 Prado 24 120 Craveiro 2003 Prado 27 115 População Pataxó do Extremo Sul da Bahia 2.230 12.755 *Ano de aldeamento ou retomada do território tradicional.

Fonte: CIMI Eunápolis, Profs. Indígenas, Lideranças Pataxós, Funai/2006, ANAI-CESI. Data: 2007.

Os Pataxós são índios de língua Patxohã, do grupo linguístico Macro-Jê, que

ocupavam até o século XVIII a região que vai do extremo sul da Bahia ao norte de

Minas Gerais e Espírito Santo, fazendo divisa com os Tupinambás do litoral baiano.

Com o processo de extermínio paulatino dos Tupinambás do litoral, os Pataxós

passaram a ocupar também essa área a partir do final do século XVIII. Eram povos

nômades, viviam transitando nessas áreas atrás de caças e coletas de frutas e raízes, para

tanto usavam uma arquitetura móvel, portátil, de grande engenhosidade, conforme as

suas rotas de sobrevivência, no espaço liso que era a natureza.

Eram construções cônicas com estruturas de madeiras roliças e cobertas com a

borra da palmeira Piaçava, com grande flexibilidade de montagem-desmontagem, as

chamadas ‘’Choças’’, sendo substituídas posteriormente por outra arquitetura, a partir

Fig 01:Localização das aldeias indígenas Pataxó no Extremo Sul da Bahia. Fonte: ALMEIDA, Ivaneide; CAMUSO, Carla; VELAME, Fábio. Relatório

Técnico de Viabilidade de Implantação do Curso de Licenciatura Intercultural Indígena. IFBA, Porto Seguro, 2008.

.

da década de 1940, quando o aparelho de estado brasileiro começou a criar reservas

indígenas no Extremo Sul, estriando o espaço liso indígena, confinando-os em espaços

ásperos a sua sobrevivência, e, posteriormente em reservas ambientais, onde é proibido

as atividades de pesca, caça e a derrubada de árvores para a confecção de roças.

Os Pataxós (re)significaram8 a sua arquitetura e criaram os ‘’Kijemes’’, a sua

arquitetura sedentária. São construções circulares, hexagonais, ou octagonais, feitas de

pilares de madeiras e fechamentos laterais em taipa-de-mão, o supapo sobre uma grade

de madeira, tendo um telhado cônico coberto com palha de palmeiras (Fig. 02),

possuindo geralmente duas portas, uma funcionando como rota de fuga a incursões da

polícia, em batidas eventuais a índios desordeiros. Essa porta, linha de fuga, foi uma

medida tomada pelos Pataxós depois do ‘’Fogo de 1951’’ quando policiais de Porto

Seguro e de Prado, atrás de índios criminosos alvejaram a tiros, num fogo cruzado, a

reserva indígena de Barra Velha, a chamada aldeia mãe localizada atualmente no Parque

Nacional de Monte Pascoal nas proximidades de Caraíva, matando mulheres, crianças e

jovens Pataxós, ateando fogo nos Kijemes, destruindo a aldeia indígena.

O valor do Kijeme, enquanto arquitetura estava instrisecamente vinculado ao

ritual de passagem do neófito indígena da fase infantil a fase adulta. O termo Kijeme 8 Teoria Antropológica da Reintepretação de Herkovits, que no Brasil foi traduzida para Resignificação, onde os elementos simbólicos de uma dada cultura são atualizados em outras formas materiais, seus sustentáculos, em função de adaptações sociais, econômicas e ou políticas em virtude de contatos com outras culturas, ou seja, a continuidade de símbolos culturais de um dado grupo étnico em outras formas.

Fig 02: Kijeme Pataxó. Fonte: VELAME, Fábio. Porto Seguro, 2008.

não deriva da língua Pataxó, o Patxohã, ela deriva do rito de passagem dos jovens

índios. O neófito Pataxó para se tornar um adulto tinha que passar por três rituais: 1ª. o

neófito tinha de apresentar uma caça de grande porte na aldeia para demonstrar que

teria condições de sustentar a família; 2ª o neófito tinha de atravessar toda a aldeia

carregando uma tora de madeira nos ombros para demonstrar que teria condições de

socorrer os membros da família; e 3ª. o neófito tinha de construir sozinho a sua casa, o

seu Kijeme, para demonstrar a tribo que teria condições de abrigar a sua futura família.

Rituais vinculados a esfera da reprodução e sustentação da vida.

Depois desses três rituais de passagem o agora índio adulto poderia desposar uma

jovem Pataxó, que durante a noite de núpcias, na primeira relação sexual, a faria gemer

daí o termo Kijeme, ou seja, a casa que geme na noite de núpcias Pataxós. Essa

arquitetura aparentemente simples incorpora esse ritual de passagem, são objetos

culturais, cuja excelência se dá por sua qualidade e capacidade de suportar o processo

vital do tempo. São pertences eternos do mundo. Os Kijemes constituem a cultura (o

cultivar, habitar, tomar conta, criar e preservar) Pataxó, tornando-se um fenômeno do

mundo. Entendendo a cultura como:

‘’[...] um padrão de significados transmitidos historicamente, incorporados em símbolos, um sistema de concepção herdadas expressas em formas simbólicas por meio das quais os homens comunicam, perpetuam e desenvolvem seu conhecimento e suas atividades em relação à vida.’’ (GEERTZ, 1978, p. 103). E os símbolos como: ‘’qualquer objeto, ato, acontecimento, qualidade ou relação que serve como vínculo a uma concepção – a concepção é o ‘’significado’’ do símbolo’’. (GEERTZ, 1978, p. 105).

O Turismo Étnico em suas estruturas de exposição nos museu, shooping e

alameda dos índios agenciando as manifestações materiais e imateriais das dimensões

simbólicas dos Pataxós, transformam os objetos culturais em objetos sociais, que

circulam e são moeda de troca corrente na lógica do sistema.

O Kijeme, enquanto objeto cultural, simbólico, como vínculo de uma concepção

de etapas de vida, de passagem é um fenômeno do mundo, com seus respectivos

códigos de representação são alterados, transformados, deturpados tornando-se apenas

um invólucro, uma casca sem conteúdo e significados, até reinventados e

reinterpretados para o consumo cada vez mais voraz e pertinente aos códigos de

recepção da sociedade de massa. Os Kijemes são agenciados-folclorizados-

espetacularizados em formas gigantescas, em uma escala compatível a sociedade de

massa, sem nenhum vinculo ritual de outrora, meros palcos para o espetáculo e

consumo da cultura.

Nesse viés, o Museu do Índio em Coroa Vermelha (Fig. 03, 04, 05, 06),

município de Santa Cruz Cabrália, enquanto arquitetura é um enorme simulacro de

Kijeme, apresentando uma forma circular com pátio central, cobertura de palha e

estrutura de madeira, com os espaços de exposição compartimentados apresentando,

como num mercado, a variedade das nações indígenas do país de norte a sul, de leste a

oeste, seus aspectos culturais mutilados e descontextualizados, fragmentos de culturas

exóticas e diferentes, pratos cheios a necessidade do homem hedonista pós-moderno,

que vê nos banhos de cultura, no consumo de um estilo de vida, uma forma de se

diferenciar. Entram no hall dos seus símbolos de status, é um fenômeno da vida, e o

museu o satisfaz vendendo capital simbólico.

Fig 03: Museu do Índio. Fonte: VELAME, Fábio. Coroa Vermelha, 2008.

Fig 04: Museu do Índio. Fonte: VELAME, Fábio. Coroa Vermelha, 2008.

Fig 05: Museu do Índio. Fonte: VELAME, Fábio. Coroa Vermelha, 2008.

Fig 06: Museu do Índio. Fonte: VELAME, Fábio. Coroa Vermelha, 2008.

Da mesma forma o Shopping do Índio também localizado em Coroa Vermelha

constitui em um outro simulacro de Kijeme, apresenta também forma circular todo em

madeira, entretanto, tendo no pátio central uma réplica de um Kijeme na mesma escala

das aldeias onde são encenados, espetacularizados, as festas ao Pai Sol e a Mãe Terra

realizadas tradicionalmente nas noites de lua cheia nas aldeias Pataxós, tendo ainda em

seu centro uma estatua de madeira de um índio Pataxó (Fig. 07, 08, 09 e 10). O

Shopping do Índio possui diversas lojas onde são vendidos cocais, arcos, flechas, lanças

de madeira para caça e pesca, gamelas, pilões que a muito deixaram de ser usados no

dia-a-dia das aldeias, camisas, pulseiras, colares e pinturas corporais. As lojas

constituem à pilhagem, transformam os símbolos Pataxós literalmente em fetiche

mercadoria, suvinis, meros produtos vestidos e maquiados com os apetrechos do exótico

e do diferente que oferece ao turista com fome de consumo de cultura, ao observador

distraído um produto valorizado e legitimado pelo reconhecimento e proteção do estado.

Fig 07: Shopping do Índio. Fonte: VELAME, Fábio. Coroa Vermelha, 2008.

Fig 08: Shopping do Índio. Fonte: VELAME, Fábio. Coroa Vermelha, 2008.

Fig 09: Shopping do Índio. Fonte: VELAME, Fábio. Coroa Vermelha, 2008.

Fig 10: Shopping do Índio. Fonte: VELAME, Fábio. Coroa Vermelha, 2008.

Articulado ao Shopping do Índio, que o conecta a Praça do Cruzeiro onde

ocorreu a Primeira Missa do Brasil, há a Alameda dos Índios, onde os índios que não

possuem recursos para alugar um box no shopping se amontoam e disputam na calçada

os olhares dos turistas, e nesse espaço o próprio corpo Pataxó é mercantilizado, não

enquanto espetáculo, mas como imagem, onde as crianças e jovens índios Pataxós

vestidos a ‘’caráter’’ cobram as turistas pelo privilégio de serem fotografados com eles.

A Reserva Indígena Pataxó da Jaqueira constitui o ápice desse processo no seio

do Turismo Étnico em Porto Seguro, pois resgata o imaginário do índio ‘’puro’’, no

ideário do ‘’Bom Selvagem’’ de Rosseau, central na composição da paisagem do

‘’Jardim do Éden Terrestre’’, da idéia do purismo, do imaculado, do paraíso intocado.

A Reserva localiza-se em Porto Seguro na divisa com Santa Cruz Cabrália, dista

1,5km da costa e 10Km da sede municipal. Esta inserida na RPPN´s da Mata Atlântica

da Costa do Descobrimento. A criação da Reserva Indígena Pataxó da Jaqueira ocorreu

em 1997 por um grupo de índios oriundos da maior aldeia Pataxó da região, a de Coroa

Vermelha, com o apoio da Secretaria Municipal de Meio Ambiente e da FUNAI

(Fundação Nacional de Apoio ao Índio), com a demarcação e homologação da posse de

1.492ha, dentro dos quais 827ha são de Mata Atlântica.

Em janeiro de 1998 foi criada pelos índios a ASPECTUR, a Associação Pataxó

de Ecoturismo, com o objetivo de administrar a reserva e implementar os projetos

turísticos na reserva. Atualmente a reserva possui 90 índios trabalhando, de forma direta

e indireta, e recebe em média 7mil turistas por ano.

A Reserva Indígena Pataxó da Jaqueira constitui um grande cenário, distinta

tanto em morfologia quanto em arquitetura das demais 18 aldeias Pataxós da região.

Uma grande invenção, simulacro de um imaginário do exótico, do diferente, um museu

a céu aberto, onde turistas nacionais, e, notadamente, estrangeiros vão ávidos conhecer

os índios ‘’encontrados por Cabral em 1500, congelados no tempo e no espaço’’.

A reserva é composta de duas partes: a ‘’aldeia’’; e a trilha ecológica. Na aldeia

existem inúmeros simulacros de Kijemes com várias funções. Há os Kijemes

residenciais, onde nenhum índio mora, quase totalmente industrializadas, com todo o

madeiramento (estrutura, grade para a taipa, e a cobertura) feito de madeira de eucalipto

aparelhada, tratada e fornecida pela VERACEL, onde o ritual de passagem do neófito

Pataxó caiu no abismo do esquecimento, apresentando em seu interior um mobiliário e

utensílios rústicos desprovidos de suas funções na esfera do cotidiano, mera matéria

morta. Existem os Kijemes restaurantes onde são vendidas a iguarias Pataxós,

notadamente, o Peixe frito na folha da Patioba. Há um grande Kijeme onde são

vendidos os artesanatos pataxós, roupas e suvinis.

E no centro, a o maior Kijeme da aldeia, apresenta as laterais abertas, também

com estruturas de madeira de eucalipto industrializadas. Nesse Kijeme são realizadas

diversas palestras proferidas pelos índios sobre meio ambiente e desenvolvimento

sustentável; festa, história, costumes, culinária, pintura corporal e cultura Pataxó,

notadamente, a história de resistência ao Fogo de 1951; e, finalmente, uma encenação,

um espetáculo de um ritual a Mãe Terra onde os índios Pataxós devidamente vestidos

com suas indumentárias, cocais, pinturas corporais e saias de palha até os joelhos, com

colares, pulseiras e instrumentos musicais dançam em círculo no meio do Kijeme

entoando os cânticos a Mãe Terra na língua Patxohã convidando, em seguida, os turistas

a participarem do espetáculo, onde a cultura é rebaixada a folclore, e o sagrado, a Mãe

Terra, vira um mero palco ao entretenimento (Fig. 11, 12).

Na trilha ecológica a uma sucessão de quatro espaços. No primeiro há os jogos e

esportes Pataxós, onde os turistas se divertem no arco e flecha. No segundo existe um

viveiro com mudas de plantas medicinais, onde os índios explicam aos turistas os

principais remédios dados pela natureza e acumulados pelo saber ancestral,

apresentando, ainda, diversas mudas de árvores, destacando-se as mudas de Pau-Brasil,

que também são vendidas como relíquias, como um fetiche aos turistas, que em êxtase

sentem-se como os primeiros exploradores do Brasil.

No terceiro há as trilhas no meio da Mata Atlântica, um museu com as várias

armadilhas de caça a animais de médio e grande porte, demonstrados pelos índios e

experimentados pelos turistas. E por último, no final da trilha um grande terreiro

Fig.11: Reserva Indígena Pataxó da Jaqueira. Fonte: IFBA - CAMUSO, Carla; ALMEIDA,

Ivaneide; VELAME, Fabio. Porto Seguro, 2008.

Fig.12: Reserva Indígena Pataxó da Jaqueira. Fonte: IFBA - CAMUSO, Carla; ALMEIDA,

Ivaneide; VELAME, Fabio. Porto Seguro, 2008.

circular com um Kijeme ao fundo onde são realizadas as danças tradicionais, o Awê

(Festa), com os índios dançando em roda entoando o Patxohã (Fig. 13, 14).

Reserva Indígena Pataxó onde não se caça, não se colhe frutas e raízes, não se

pesca, não se planta, e não habita-se. Apenas simula-se existência, um simulacro do

Brasil ‘’puro’’ dos anos do descobrimento, uma viagem imaginária no tempo, para o

ano de 1500.

A sociedade de massa tem como uma das características básicas serem ávida por

entretenimento, pelo lazer e diversão, amante do consumo do diferente, da novidade, do

exótico, e do cultural. O entretenimento é uma necessidade da sociedade de massa, é um

fenômeno da vida, do terreno da necessidade, onde os objetos culturais, que são um

fenômeno do mundo, com seus respectivos símbolos, concepções, códigos de

representação e transmissão são alterados, transformados, deturpados tornando-se

apenas um invólucro, uma casca sem conteúdo e significados.

Os objetos culturais são reinventados e reinterpretados para o consumo cada vez

mais voraz e pertinente aos códigos de recepção da sociedade de massa. Os objetos

culturais, em sua forma de mercadoria, são devorados, pois alimentam o processo vital

da sociedade, pois ajudam a matar e passar o tempo, um tempo voltado para a diversão.

Os euros e dólares dos turistas ávidos pelo exótico e o diferente agenciados pelo

Turismo Étnico fazem girar a roda do capitalismo de acumulação flexível da

contemporaneidade na periferia do capital. Moedas que cintilam e giram juntas com as

rodas do Awê (festa) Pataxó, com as rodas das danças em celebração a memória dos

Fig.13: Reserva Indígena Pataxó da Jaqueira. Fonte: IFBA - CAMUSO, Carla; ALMEIDA,

Ivaneide; VELAME, Fabio. Porto Seguro, 2008.

Fig.14: Reserva Indígena Pataxó da Jaqueira. Fonte: IFBA - CAMUSO, Carla; ALMEIDA,

Ivaneide; VELAME, Fabio. Porto Seguro, 2008.

ancestrais indígenas, com as rodas das festas ao Pai Sol e a Mãe Terra sob a luz da lua

cheia, com as rodas dos Kijemes.

Rodas que são as engrenagens do Turismo Étnico e ferramentas de

governabilidade para a construção das imagens do ‘’Jardim do Éden Terrestre’’, a

cidade de Porto Seguro no Extremo Sul da Bahia, assim como instrumento de

administração das massas e controle social através das concessões a reconhecimentos

culturais, uma verdadeira panacéia a democracia cultural, onde todos terão o ‘‘direito’’

de existir e de se expressar, extremamente lucrativos para um sistema de acumulação de

capital flexível baseado na exploração de bens culturais. Segundo Otilia Arantes:

‘’Tudo é passível de associações simbólicas, possui referências práticas e tradições locais – valores esquecidos e reativados por essa nova voga cultural, que parece querer a todo custo devolver aos cidadãos cada vez mais diminuídos nos seus direitos, materialmente aviltados e socialmente divididos, sua ‘’identidade’’, mediante o reconhecimento de suas diferenças’’. (Arantes, 1998, p. 152).

Na dança dos corpos índios, em suas rodas, rodam a cobiça desenfreada de um

sistema que outrora explorou a força de seus corpos, suor e sangue, e agora a sua

cultura, depositada em seus corpos dançantes, que em seus palcos, suas arquiteturas,

constroem imagens de cidades que se vangloriam de suas diferenças e as utilizam como

ferramenta de publicidade na competitividade global. Parafraseando uma música de

Chico Buarque, ‘’...roda mundo, roda gigante, roda moinho, roda pião, o mundo girou

num instante, as voltas...’’, do capital.

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