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1
UNIVERSIDADE FEDERAL DE SÃO PAULO -
ESCOLA DE FILOSOFIA, LETRAS E CIÊNCIAS HUMANAS -
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM HISTÓRIA
KAUAN WILLIAN DOS SANTOS
“PAZ ENTRE NÓS, GUERRA AOS SENHORES”: O INTERNACIONALISMOANARQUISTA E AS ARTICULAÇÕES POLÍTICAS E SINDICAIS NOS
GRUPOS E PERIÓDICOS ANARQUISTAS GUERRA SOCIALE E A PLEBE NASEGUNDA DÉCADA DO SÉCULO XX EM SÃO PAULO.
GUARULHOS - SÃO PAULO
2016
2
KAUAN WILLIAN DOS SANTOS
“Paz entre nós, guerra aos senhores: o internacionalismo anarquista e asarticulações políticas e sindicais nos grupos e periódicos anarquistas Guerra
Sociale e A Plebe na segunda década do século XX em São Paulo.
Dissertação apresentada à Banca Examinadorado programa de pós-graduação em História daUniversidade Federal de São Paulo, comoexigência parcial para a obtenção do título deMestre em História.
Área de concentração: Instituições, VidaMaterial e Conflito
Orientação: Profa. Dra. Edilene Teresinha
Toledo.
GUARULHOS– SÃO PAULO
2016
3
Kauan Willian Dos Santos.
“Paz entre nós, guerra aos senhores: o internacionalismo anarquista e as articulaçõespolíticas e sindicais nos grupos e periódicos anarquistas Guerra Sociale e A Plebe na
segunda década do século XX em São Paulo.
Profa. Dra. Edilene Toledo
______________________________________________________________________
Universidade Federal de São Paulo
Prof. Dr. Carlo Maurizio Romani
_____________________________________________________________________
Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro
Prof. Dr. Luigi Biondi
______________________________________________________________________
Universidade Federal de São Paulo
Prof. Dr. Denilson Botelho (Suplente Interno)
______________________________________________________________________Universidade Federal de São Paulo
Prof. Dr. Robert Sean Purdy (Suplente Externo)
______________________________________________________________________ Universidade de São Paulo
Dissertação apresentada à Banca Examinadorado programa de pós-graduação em História daUniversidade Federal de São Paulo, comoexigência parcial para a obtenção do título deMestre em História.
4
SANTOS, Kauan Willian dos.
“Paz entre nós, guerra aos senhores: o internacionalismo anarquista e as articulações políticas e
sindicais nos grupos e periódicos anarquistas Guerra Sociale e A Plebe na segunda década do
século XX em São Paulo./ Kauan Willian dos Santos. – 2016.
Dissertação (Mestrado em História) – Universidade Federal de São Paulo - Escola de Filosofia,
Letras e Ciências Humanas – Programa de Pós Graduação em História, 2016. 179 f.
Orientação: Profa. Dra. Edilene Teresinha Toledo.
“Peace among us, war on tyrants”: the anarchist internationalism and the political and
syndicalism joints in the groups and periodics Guerra Sociale and A Plebe in the second decade of
the twentieth century in São Paulo - Brazil.
1.Anarquismo 2. Internacionalismo. 3. Anti-imperialismo. 4. Sindicalismo Revolucionário.
5.Imprensa Operária – Primeira República. I. TOLEDO, Edilene (Edilene Toledo).
II.Universidade Federal de São Paulo – Escola de Filosofia, Letras e Ciências Humanas.
5
Em memória de Iracema e Ademir.
Para Marcela, Kaique, Cristiane, Beatriz,
Cleibe, Marcelo e Tatiana. Capas e escudos em
tempos chuvosos e atribulados.
Para todos aqueles que lutaram e aos que
lutam por um mundo mais justo e melhor.
6
AGRADECIMENTOS
Agradecer a todos que passaram nesse momento de aprendizado é muito difícil
em um espaço tão pequeno. Além dos espaços formais e acadêmicos, minha formação e
meu trabalho atual também levam em consideração minha vivência em múltiplos
espaços; com minha família, com meus amigos, nas ruas, na minha militância e em tudo
que acredito. Portanto, aqui, agradeço a todos que estiveram na linha de frente dessa
minha fase, mas sem nunca negligenciar todas as outras experiências:
À Capes, por meio da bolsa provinda do Programa de Demanda Social, me
mantendo sem ser necessário dividir as atividades acadêmicas e minha pesquisa com
outros trabalhos, garantindo a qualidade da minha formação.
Agradeço enormemente a minha orientadora, professora Edilene Toledo, sempre
me ajudando de forma humilde e paciente. É interessante salientar que embora
tenhamos algumas divergências sobre o objeto tratado na dissertação, a humildade e a
forma libertária em me tratar sempre estiveram na prioridade da professora, deixando à
livre escolha o meu tema, objeto e referências teóricas, apenas aconselhando e
debatendo de forma horizontal as possíveis divergências e encaminhamentos. É muito
proveitoso trabalhar com alguém que acredita em uma educação libertadora.
Ao professor Luigi Biondi, que acompanha minha pesquisa e minha trajetória
desde a graduação, ajudando, também de forma humilde e divertida, na minha formação
e aos caminhos que a atual pesquisa ganhou. Agradeço principalmente suas
considerações na banca de qualificação, na qual foram muito proveitosas as impressões
apresentadas e os debates levantados.
Ao professor Sean Purdy, do departamento de História da Universidade de São
Paulo, que contribuiu de forma imprescindível, tanto através de sua disciplina
“Trabalho, Classe e Política na História das Américas”, da qual tive o prazer de
participar, quanto das suas contribuições também na banca qualificação dessa pesquisa.
Uma grande sorte e prazer em contar com um professor que não está apenas militando
dentro da Academia mas nas ruas, com os trabalhadores e estudantes.
Ao professor Carlo Romani que gentilmente aceitou ler e contribuir à minha
dissertação e pesquisa, através da banca de defesa. Os mesmos generosos
agradecimentos ao professor Denilson Botelho, membro suplente da banca.
Agradeço também a todos os professores que participaram dessa minha formação;
Jaime Rodrigues, Wilma Peres Costa, Maria Rita Toledo e Fábio Franzini.
7
Aos funcionários do Arquivo Cedem-Unesp e do AEL-Unicamp, muito
prestativos e atenciosos em seus trabalhos.
Aos colegas que me acompanharam no decorrer do mestrado, importantes na
minha formação por meio das discussões nas salas de aula, mas também por meio de
conversas edificantes. Eu agradeço principalmente aos colegas e amigos com quem tive
o prazer de fundar e trabalhar na “Hydra: revista discente eletrônica da pós-graduação
em História da Universidade Federal de São Paulo”. Apesar das dificuldades,
mantivemos a alegria e a esperança de juntar nossas expectativas e visões de mundo a
uma revista de qualidade científica, esses foram: Gabriela, Arthur, André, Anita, Caio,
Carlos, Danillo, Diego, Elson, Larissa, Lucas, Maria Clara, Paula, Rafael e Victor.
Aos integrantes do “ITHA – Instituto de Teoria e História Anarquista”, da
“Coleção Estudos do Anarquismo” da Editora Prismas e do curso “Teoria e História do
Anarquismo” que ocorreu na EACH-USP, principalmente Felipe Corrêa e Rafael Viana,
com quem tive o prazer e felicidade de trabalhar nesse período. Além das contribuições
para a pesquisa, também enriqueceram meu arcabouço militante e crescimento como
indivíduo.
Agradeço aos amigos que ficaram ao meu lado mesmo em tempos atribulados:
Lucas, Guilherme, Gleison, Stefan, Luis Fernando, Thiago e Roberto,
À minha família que respeitou minhas opções e caminhos, me tratando com
respeito, amor e me ajudando sempre quando necessário. Agradeço ao Kaique, Marcela,
Cleibe, Marcelo, Cristiane, Beatriz e principalmente à Tatiana. À Iracema e Ademir, que
apesar de não estarem mais por meio da presença física, estão na minha memória,
moldando meus horizontes.
Agradeço minha experiência nos movimentos sociais junto aos trabalhadores,
estudantes e marginalizados, que construíram e constroem minhas visões de mundo,
expectativas e anseios na prática.
Termino esse espaço ressaltando que muito provavelmente, há não muito tempo,
uma pessoa de origem popular, como eu, não teria acesso à pós-graduação, ainda mais
estudando o tema da minha escolha com meus referenciais teóricos e com bolsa.
Vivemos em tempos em que essa possibilidade, que muito mais do que o avanço de um
partido, foi resultado da luta de personagens explorados, está sendo ameaçada. Urge a
necessidade de nos organizarmos contra os ameaçadores desses avanços, sempre tendo
em perspectiva que as vitórias devem vir de baixo. Esperança!
8
“Bem unidos façamos nesta luta final
Uma terra sem amos, A Internacional
Nós fomos de fumo embriagados
Paz entre nós, guerra aos senhores
Façamos greve de soldados
Somos irmãos, trabalhadores
Se a raça vil, cheia de galas
Nos quer à força canibais
Logo verás que as nossas balas
São para os nossos generais.” –
A Internacional (letra de Eugene Pottier
(1871), versão portuguesa do hino por Neno
Vasco. Revista Utopia. Rio de Janeiro,
1990.)
9
RESUMO: Os periódicos confeccionados e lidos pelas classes subalternas,
trabalhadores e militantes no contexto da Primeira República em São Paulo foram um
dos principais vetores de divulgação e mobilização política. Nesse sentido, é
evidenciado o papel que tiveram os grupos anarquistas, igualmente importantes na
configuração dos movimentos reivindicatórios nesse processo. Visando aprofundar o
tema em questão, o objetivo central nessa pesquisa é adentrar o estudo dos periódicos A
Plebe e Guerra Sociale e os seus grupos militantes em conjunto, buscando
compreender, de maneira mais ampla, a construção e a condução de estratégias políticas
e sindicais frente às mobilizações que ascenderam no contexto proposto, ressaltando
também suas conexões transnacionais e seus projetos internacionalistas. Diante disso,
será possível evidenciar o fortalecimento de diversas propostas que tais grupos estavam
desempenhando, tal como as que levavam em consideração os contextos internacionais,
que estavam influenciando o movimento operário na cidade - entre as quais a Primeira
Guerra Mundial e a Revolução Russa - as articulações e militância de orientação
sindical que visavam à união de diversas tendências políticas, regionais e de ofício e a
união dos grupos especificamente anarquistas, a chamada Alliança Anarquista. Para tal,
busco primeiramente compreender as condições que possibilitaram o surgimento das
estratégias e políticas anarquistas que serão reavaliados pelos grupos estudados e,
depois, percorro a construção e atuação dos periódicos mencionados a partir de seus
discursos e propostas bem como de práticas e as formações de seus militantes dentro de
condições materiais precisas e de eventos históricos condicionantes, entre elas a
conjuntura das greves e manifestações de 1917-1920, que tinham no sindicalismo
revolucionário seu principal vetor social, análise que se dá também comparando tais
práticas com suas influências teóricas e os debates e articulações internacionais
anarquistas.
Palavras-chave: Anarquismo. Internacionalismo. Anti-imperialismo. SindicalismoRevolucionário. Imprensa Operária – Primeira República.
10
ABSTRACT: The produced and read newspapers by the lower classes, workers and
militants in the context of the First Republic in São Paulo-Brazil was one of the main
vectors of dissemination and political mobilization. Therefore, it is evident the role that
had anarchist groups, equally important in shaping the claim movements in this process.
Aiming to examine the subject in question, the main objective in this research is the
study of the periodics A Plebe and Guerra Sociale and its militant groups, trying to
understand, more broadly, the construction and driving political syndicalists strategies in
the face of demonstrations that amounted in the proposed context, also highlighting
their transnational connections and their internationalist projects. Therefore, we can
show the strengthening of a number of policy proposals that such groups were
performing, such as that considered international contexts, which were influencing the
labor movement in the city, such as First World War and the Russian Revolution, the
very joints and militant syndicalism orientation aimed of various political tendencies,
and regional office and the union of the specifically anarchist groups, the Allianca
Anarquista. To do this, first seek the conditions that allowed the emergence of anarchist
strategies and policies that will be reassessed by the groups, and then I walk the
construction and operation of the journals mentioned from his speeches and proposals
and practices and the training of their militants within specific material conditions and
historical conditions events, including the situation of strikes and demonstrations of
1917-1920 who had revolutionary syndicalism its main social vector, analysis that gives
also compared these practices with their theoretical influences and debates and
international links anarchists.
Keywords: Anarchism. Internationalism. Anti-imperialism. Syndicalism. Working
Press – First Republic.
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LISTA DE SIGLAS
ADS Aliança da Democracia Socialista
AIT Associação Internacional dos Trabalhadores
CGT Confederação Générale du Travail ( Confederação General do Trabalho)
CDP Comitê de Defesa Proletária
CNT Confederación Nacional del Trabajo (Confederação Nacional do Trabalho)
COB Confederação Operária Brasileira
EUA Estados Unidos da América
FORA Federación Obrera Regional Argentina (Federação Operária Regional
Argentina)
FORJ Federação Operária do Rio de Janeiro
FORP Federación Obrera Regional del Perú (Federação Operária Regional do
Peruana)
FOSP Federação Operário de São Paulo
IWW Industrial Workers of the World (Trabalhadores Industriais do Mundo)
PSI Partido Socialista Italiano
UGT União Geral dos Trabalhadores
URSS União das Repúblicas Socialistas Soviéticas
USI Unione Sindicale Italiana (União Sindical Italiana)
12
SUMÁRIOINTRODUÇÃO..........................................................................................................….13
CAPÍTULO 1. “BEM UNIDOS FAÇAMOS, NESTA LUTA FINAL”: A CONSTRU-ÇÃO GLOBAL DO ANARQUISMO E A RECEPÇÃO DE IDEIAS E EXPERIÊN-CIAS EM SÃO PAULO NAS DUAS PRIMEIRAS DÉCADAS DO SÉCULO XX….33
1.1. A construção do anarquismo entre estratégias e táticas………………….……...…33
1.2. Anarquismo, anti-imperialismo e libertação nacional……..……………..…..……46
1.3. Imprensa, movimento operário e a circulação de ideias no movimento anarquistaem São Paulo.............................................................................................................….54
1.4. Sindicalismo e o internacionalismo anarquista entre a Primeira Guerra Mundial emovimento operário local..........................................................................................….68
CAPÍTULO 2. “PAZ ENTRE NÓS”: IDEOLOGIA, ESTRATÉGIA E PRÁTICA NACONSTRUÇÃO DOS JORNAIS E GRUPOS GUERRA SOCIALE E APLEBE...........................…..……..…….………….…………..…..………..….….…..………83
2.1.Guerra Sociale: o internacionalismo e a coesão militante em evidência............…..83
2.2 A Plebe: entre o internacional e o local nas lutas efetivas do operariado e osindicalismo revolucionário em disputa........................................................................103
Capítulo 3. “GUERRA AOS SENHORES”: NOS BASTIDORES DA MILITÂNCIAANARQUISTA FRENTE AOS MOVIMENTOS GREVISTAS EREVOLUCIONÁRIOS EM SÃO PAULO (1917-1922)………….…..………..……124
3.1. “Rajas do grande ciclone”: as articulações políticas e sindicais na greve geral de1917………....…........................………......…..…..……….….….……......…………124
3.2. A alma vermelha: bolchevismo em xeque, repressão e as novas definições domovimento anarquista no fim da década….…………………………………………..145
CONCLUSÃO...............................................................................................................160
BIBLIOGRAFIA.……………..….…………………………………..………..……...163
FONTES……..…….………………………..……..………..………….………….….171
ANEXO (IMAGENS)...................................................................................................172
13
INTRODUÇÃO
O anarquismo, movimento que emerge das lutas dos trabalhadores e dos grupos
subalternos desde as décadas finais do XIX, tanto a partir de sua teoria política quanto
na própria prática, sempre buscou construir e propor uma sociedade igualitária, uma
nova organização política e econômica, em contraposição ao avanço do sistema
capitalista de produção, das fronteiras nacionais, do centralismo estatista e do que
entendiam como uma alienação religiosa e cultural, consideradas como as condições
causadoras da desigualdade para os libertários. Entre suas propostas, como resposta,
estavam a descentralização do poder num nível federativo, a autogestão dos
trabalhadores e o fim da desigualdade social e econômica.1
O internacionalismo prático do movimento afetou grandes áreas, alastrando-se
também na América do Sul.2 No caso brasileiro, nos nascentes polos econômicos que se
expandiam rapidamente como em São Paulo e no Rio de Janeiro, tal ideologia política
condensou alguns anseios da classe da trabalhadora e subalterna que eram fortemente
exploradas pelas elites oligárquicas e pelos industriais que detinham essa força de
trabalho. Péssimas condições de vida e de trabalho acompanhavam esses personagens,
cada vez em maiores números, como atesta o historiador Uassyr de Siqueira:
O fluxo de ex-escravos e de imigrantes, atraídos pelos empregos oferecidospelas indústrias em expansão e também pelas possibilidades de trabalhoinformal – como vendedores ambulantes, cujo trabalho era essencial para oabastecimento urbano dava à cidade de São Paulo um novo perfil demográficoe social. Dessa maneira, a expansão econômica da cidade veio acompanhada deum aumento populacional. Se em 1872 possuía 31.385 habitantes, passaria acontar com 239.820 em 1900 e com 579.033 em 1920.3
Através de sua trajetória, o movimento anarquista representou, nesse período, a
reclamação da participação social e política de grande parte da população que era
1 O conceito de anarquismo a que me refiro é o denominado “socialismo libertário”, doutrina e práticaformulada e inserida a partir da segunda metade do século XIX. Magnani afirma que o anarquismo é uma:“(doutrina) que se insere no conjunto de ideias socialistas que se originaram das contradições inerentes àsociedade capitalista, onde a “organização política repousa sobre os princípios eternos da liberdade, daigualdade e da fraternidade, enquanto a vida social é dominada pela escravidão econômica, peladesigualdade social e pela luta de classes”. MAGNANI, Silvia Lang. O Movimento anarquista em SãoPaulo. São Paulo: Editora Brasiliense, 1982. p.562 Sobre o internacionalismo do movimento anarquista ver SCHMIDT, Michael; VAN DER WALT,Lucien. Black Flame: the revolutionary class politics of anarchism and syndicalism. Oakland: Ak Press,2009 e HIRSCH, Steven; VAN DER WALT, Lucien (orgs). Anarchism and Syndicalism in the Colonialand Postcolonial World, 1870-1940: The praxis of national liberation, internationalism and socialrevolution. Leiden, Brill, 2010.3 SIQUEIRA, Uassyr de. Entre sindicatos, clubes e botequins: identidades, associações e lazer dostrabalhadores paulistanos (1890-1920). Tese (Doutorado em História). Universidade Estadual deCampinas, São Paulo, 2008. p.11
14
excluída. Nesse sentido, a historiadora Edilene Toledo completa que
no contexto do Brasil da Primeira República, as reivindicações operárias,influenciadas, em parte, pelo anarquismo, eram também um esforço de criaçãode uma cultura de democracia, porque muitas vezes as lutas não visavamsomente melhorar salários e reduzir jornadas de trabalho, mas assegurar odireito à própria existência, ou seja, garantir condições de democracia e decivilidade onde o movimento e a organização dos trabalhadores pudessem serreconhecidos como um elemento legítimo na sociedade.4
Embora muito discutida e igualmente criticada por alguns personagens e
periódicos, especialmente, no caso brasileiro, pelo grupo redator do jornal La Battaglia,
a participação sindical com vias pela ação direta estiveram entre os principais meios de
manifestação do anarquismo. Sendo assim, alguns libertários criticavam a ação sindical
por supostamente reivindicar apenas melhorias de vida dentro do sistema capitalista e
ofuscar a revolução almejada. Outros anarquistas, no entanto, enxergavam o
sindicalismo como arma eficiente dos trabalhadores e adentravam nestes como uma
estratégia para disseminar tal projeto ideológico usando-o como seu principal vetor
social.5
Podemos observar, nas duas primeiras décadas do século XX, o fortalecimento e a
disseminação do anarquismo como movimento gradativamente mais solidificado que
buscava alavancar o movimento operário reunindo também outros grupos militantes.
Uma evidência disso pode ser encontrada na coluna assinada pelo militante Gigi
Damiani em 1919 no periódico A Plebe:
Será possível a concentração de todas as forças proletárias para um fim únicode imediato alcance? Anarquistas, socialistas, sindicalistas poderão constituirum único organismo revolucionário sem que haja na luta dispersão de energiasou esforço contraditório? […] Sim, é possível, desde que não haja equívocos.Ontem era lícito discutir sobre parlamentarismo, salários mínimos, propagandapelo fato, ação direta e insurrecionalismo. E era lícito, também traçar contornosindefinidos de uma sociedade longínqua. Hoje o problema é bem diverso.Passou-se a época dos discursos e chegou a hora dos fatos. Quem possuíraciocínio e não vive na lua, deve confessar a si mesmo que os fatos, na suamaturação, exigem uma concepção positiva do que se deve fazer[...].Anarquistas, socialistas, sindicalistas somos todos pela socialização imediatada propriedade. E se o somos todos hoje, não vamos agora discutir porque
4 TOLEDO, Edilene. “Trazemos o novo mundo em nossos corações: os anarquistas e o esforço deconstrução de uma cultura alternativa em São Paulo na Primeira República.” In: Anais do XXVI SimpósioNacional de História – ANPUH • São Paulo, julho 2011. p.15 Para Alexandre Samis o sindicalismo revolucionário seria o principal veículo ou intermediário entre asposições libertárias e as necessidades da classe operária. Ver SAMIS, Alexandre “Minha pátria é omundo inteiro”: Neno Vasco, anarquismo e as estratégias sindicais nas primeiras décadas do século XX .Tese (doutorado em História). Universidade Federal Fluminense, Rio de Janeiro, 2009. Desenvolveremosa posição e o papel do sindicalismo para as vertentes estratégias do anarquismo no decorrer dadissertação.
15
ontem não o éramos todos. Seria ocioso. Hoje há um ponto, e essencial, no qualanarquistas e socialistas (refiro-me aos socialistas que creem no socialismo enão nos cataplasmas em pernas de pau) encontramo-nos sob o mesmo ponto devista. 6
Entre os representantes dessa expressão organizadora estavam os periódicos
Guerra Sociale e A Plebe que tiveram papel relevante nas manifestações de 1917-1920
e nas campanhas anti-imperialistas do movimento operário desde 1915 na cidade de
São Paulo, como veremos nesta dissertação. De acordo com o trecho de Damiani,
militante anarquista atuante em ambos os periódicos, o estudo destes e dos grupos a
eles associados podem evidenciar o fortalecimento do organizacionismo7 anarquista
que foi construído não só por teorias, mas pela própria prática do movimento operário
em nível local e transnacional8. Resgatar a trajetória desses jornais e grupos pode
evidenciar a circulação de ideias e experiências nesse período, a construção e impulsão
de uma cultura política e revelar ainda como o anarquismo atuava em meio ao
movimento operário mesclando seus projetos ideológicos com os interesses de classe e
sua inserção e atuação no sindicalismo de intenção revolucionária.9
Evidentemente, o movimento anarquista bem como seus instrumentos comunica-
cionais, enquanto tema de pesquisa, foi comumente abordado pela historiografia brasi-
leira, principalmente envolvendo os temas do movimento operário, cultura proletária ou
trabalhista, imigração e mais recentemente sobre as amplas iniciativas educativas que os
militantes libertários disseminaram durante suas trajetórias no país.10Os primeiros auto-
res que se voltaram aos estudos da atuação libertária e sua ação entre os trabalhadores
foram os próprios militantes em períodos mais avançados de suas vidas. No início da
década de 1960, Edgard Leuenroth, buscando legitimar a importância do movimento
anarquista na configuração e na construção do movimento operário nas primeiras déca-
6 Leuenroth. “Rumo a revolução social”. A Plebe. N.1. P.1. 9 de junho de 1917. 7 São chamados organizacionistas, os anarquistas que visavam uniões estáveis com sindicatos eassociações trabalhistas. Ver SAMIS, Alexandre. Op.cit.,. p. 161.8 Ver LINDEN, Marcel van der. “História do Trabalho: O Velho, o Novo e o Global. In: Revista Mundosdo Trabalho, v.1, n.1. 2009.9 Estudos recentes apontam que tal estratégia não pode ser confundida com o anarcossindicalismo,espaço que teria uma unidade ideológica anarquista predominante. A maioria dos casos no período é aexistência daqueles que aceitavam o anarquismo como ideologia, mas, ao mesmo tempo, usavam naprática, o sindicalismo revolucionário, espaço que aceitaria a ideia da neutralidade política do sindicato.Esses militantes faziam parte das ligas e federações junto com sindicalistas, socialistas e outros,reconhecendo o sindicato como o espaço da unidade dos trabalhadores, que seria, para eles, táticafundamental para a disseminação do ideal revolucionário anarquista. Ver SCHMIDT , Michael ; VANDER WALT, Lucien. Op.cit.10Ver o balanço historiográfico do anarquismo no país em OLIVEIRA, Tiago. B. Anarquismos,sindicatos e revolução no Brasil (1906-1936). Tese (Doutorado em História). Universidade FederalFluminense, Rio de Janeiro, 2009.
16
das do século XX, buscou a origem do anseio libertador desde tempos remotos que su-
postamente estaria na essência dos homens e das sociedades. 11 Para o autor, o anarquis-
mo seria uma “dinâmica social” presente nas lutas contra “todas as manifestações de ti-
rania”.12 Essa visão marcou por muito tempo muitas narrativas que provinham de simpa-
tizantes do anarquismo, como Max Nettlau, autor austríaco, que relacionou o desenvol-
vimento do ideal anarquista com as reivindicações humanas que aspiravam pela liberda-
de durante a história. 13
Astrojildo Pereira, outro personagem ativo durante os anos que interessam a esta
pesquisa, que passou de militante e redator anarquista para as fileiras de orientação
comunista, apresentou outro discurso em sua análise e dividiu o movimento operário em
duas fases. A primeira, supostamente inconsciente e falha, marcada pela atuação dos
anarquistas, e outra, que, na visão deste, foi consequência do amadurecimento político
dentro da esquerda, que resultou no nascimento do Partido Comunista no Brasil.14 Nesse
sentido, enquanto o partido trouxe um marco para a atuação dos militantes progressistas
dentro da política nacional, contendo um projeto de sociedade seguro, o anarquismo
seria um movimento prematuro, com a ausência de alianças concretas e com um projeto
falho para o futuro dos trabalhadores. Como é possível observar, Pereira também
reproduz um discurso político pautado na visão de militantes e líderes comunistas como
Lenin, que atribuía ao anarquismo um caráter de “ideologia pequeno-burguesa” e
“individualista”. 15
Podemos constatar que embora tais pesquisas sejam consideradas pioneiras, elas
sofrem forte influência da memória de seus autores16, bem como a falta de
distanciamento destes com seu objeto de análise, resultando em considerações e
conclusões muito próximas às suas visões de mundo e aos seus interesses políticos.
Claudio Batalha, ao estudar a historiografia da classe operária, aponta nessa fase,
que marcou as análises até a metade do século XX, poderia ser classificada como de
caráter essencialmente militante e teria a função de legitimação de uma corrente política
ou mesmo de um partido. Nesse período também, tanto no país quanto em âmbito
internacional, a história das classes operárias foi confundida com a história do
11 LEUENROTH, Edgar. Anarquismo – roteiro da libertação social: antologia da doutrina, crítica,história, informações. Rio de Janeiro: Mundo Livre, 1963.12 Idem. p.8213 NETTLAU, Max. Historia da Anarquia: das origens ao anarco-comunismo. São Paulo: Hedra, 2008.14 PEREIRA, Astrojildo. Construindo o PCB (1922-1924). São Paulo: ed. Ciências Humanas, 1980.15 LENIN, Vladmir. O Estado e a Revolução. São Paulo: Expressão Popular, 2007.16 HALL, Michael. “História Oral: os riscos da inocência”. In.: O direito a memória: PatrimônioHistórico e cidadania. São Paulo: DPH, 1992. p. 157-160
17
movimento operário ou de alguma organização política, tendência que marcará
profundamente essa historiografia.17 O autor Georges Haupt aprofunda essas
considerações e reforça o argumento que as narrativas sobre a história do operariado
foram alvos de reflexões ligadas à determinada orientação política-ideológica, fato que
resultou na instrumentalização das análises para interesses de determinados grupos.
Nesse viés
[...] é a percepção que os partidos operários têm de si mesmos e arepresentação que querem dar que orientam seus discursos históricos. Controledas fontes, atitude voluntarista frente à história facilitam a tarefa e condicionamo esclarecimento: os fatos que correspondem às versões oficiais são destacadose considerados essenciais, aqueles que as contradizem ou não servem, napresente conjuntura, são considerados marginais e inoportunos. 18
Após a segunda metade do século XX, a historiografia brasileira visando os
trabalhadores sofreu grandes transformações. Na década de 1960, por exemplo, as
interpretações sociológicas penetraram esse campo de estudo. Embora esses trabalhos
sejam importantes para compreendermos o avanço das análises é perceptível a carência
na utilização ou citação dos documentos e fontes que esses autores apresentaram.
Alguns desses pesquisadores, como Juarez Lopes ao estudar a Sociedade Industrial no
Brasil, ocultaram inúmeros movimentos políticos ou contestatórios como o próprio
anarquismo ou os movimentos socialistas e sindicais.19 Uma vez que não se
encontravam incluídos em uma documentação considerada oficial, muitas informações
relevantes e personagens foram negligenciados. Além disso, o autor deu primazia para
uma organização sindical posterior ao período 1930, marco que não se sustentou com as
pesquisas posteriores que buscaram as origens do movimento sindical nos polos
industriais brasileiros.
Na década de 1970, no contexto da Ditadura Militar no Brasil e consequentemente
da repressão nos ambientes acadêmicos20, o tema da classe operária e especialmente
suas possíveis expressões políticas foram fortemente ocultados das pesquisas. Nesse
período, brasilianistas tomaram frente em pesquisar o tema trabalhista no Brasil. Um
17 BATALHA, Claudio. “A historiografia da classe operária no Brasil: trajetória e tendências”. In:FREITAS, Marcos Cezar de (org.). Historiografia Brasileira em Perspectiva. Bragança Paulista:Universidade São Francisco; São Paulo: Contexto, 1998.18 HAUPT, Georges. “Por que a História do Movimento Operário?”. In: Revista História e Perspectivas. v.23 n. 43, 2010. p. 5119 LOPES, Juarez Rubens. Sociedade Industrial no Brasil. Rio de Janeiro: Centro Edelstein de PesquisasSociais, 200820 SORJ, Bernardo. A construção intelectual do Brasil: da resistência à ditadura ao governo FHC. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2001.
18
desses, Eric Gordon, se atentou especialmente para a prática do movimento anarquista
entre os trabalhadores.21 O autor construiu uma nova abordagem, influenciada pelos
estudos culturais e antropológicos, destacando o próprio cotidiano operário e as formas
variadas de participação dos militantes libertários neste. Desse modo, o autor apontou a
presença de personagens em comícios, periódicos, na Escola Moderna e em centros de
cultura, evidenciando a possibilidade de estudos amplos sobre o tema.
No final da década de 1970, o interesse de pesquisadores acadêmicos sobre a
classe trabalhadora no país tomou novo fôlego, principalmente pelo ressurgimento de
uma nova força sindical no cenário da reabertura política que resultou também em
novos estudos do movimento operário e trabalhista.22 Nesse sentido, um salto na
historiografia que visou os libertários foi a obra de Silvia Magnani, publicada em
1978.23 Recusando algumas interpretações anteriores que explicavam a razão do
surgimento do anarquismo em terras brasileiras devido à intensa onda imigratória24, a
autora trabalhou com tal ideologia como uma das expressões do movimento de classe
intimamente ligado às condições socioeconômicas e políticas.25 Para Magnani, o
movimento de orientação anarquista entre os trabalhadores em São Paulo não
apresentou um caráter exótico ou estanque do operariado mas foi resultado de uma
conjuntura que excluía os trabalhadores dos debates e da representação política. Porém,
o viés do seu trabalho também foi muito criticado posteriormente, uma vez que destacou
e deu importância em primazia à militância dos anarquistas junto à organização dos
trabalhadores, excluindo outras expressões de resistência trabalhista. Sua contribuição,
na verdade, foi identificar e separar notavelmente os trabalhadores em geral, e uma
parcela organizada destes, movidos por uma orientação política.
Em contrapartida, historiadores ou cientistas políticos, voltando-se ao movimento
operário no Brasil no período proposto, também realizaram críticas à presença dos
militantes libertários. Um exemplo dessa perspectiva encontra-se na obra de Boris
Fausto preocupado em esclarecer os possíveis motivos para a debilidade do movimento
21 GORDON, Eric Arthur. Anarchism in Brazil: theory and practice, 1890-1920. Louisiana, 1978.22 SADER, Eder. Quando novos personagens entraram em cena: experiências e lutas dos trabalhadores da grande São Paulo 1970-1980. São Paulo: Paz e Terra, 2001.23 MAGNANI, Silvia. Op.cit.,24 Para um debate bibliográfico específico das relações entre imigração e movimento operário verBIONDI, Luigi. “Imigração Italiana e Movimento Operário em São Paulo: Um Balanço Historiográfico”.In: CARNEIRO, Maria Luiza Tucci; Croci, Federico; Emilio Franzina (Orgs.). História do Trabalho eHistórias da Imigração: Trabalhadores Italianos e Sindicatos no Brasil (séculos XIX e XX). São Paulo:Editora da Universidade de São Paulo: Fapesp, 2010.25 Ver MARAM, Sheldon. L. Anarquismo, imigrantes e o movimento operário brasileiro: 1890-1920. Riode Janeiro: Paz e Terra, 1979.
19
operário na Primeira República e seu fracasso político que não alcançou vitórias
significativas.26 Para o autor, existiram fatores essenciais para essa suposta derrota,
começando pela própria posição secundária da indústria para o Estado brasileiro, mas
também da exclusão dos trabalhadores da organização política partidária. Nesse sentido,
Fausto argumenta que esse último fator provinha, além da formação desigual da
sociedade brasileira, da influência do movimento anarquista entre o movimento operário
que se baseava em críticas morais e não propunha táticas avançadas de alianças, não
compreendia o papel do Estado e se distanciava da política representativa e eleitoral,
fatores que contribuíram para o isolamento do proletariado estrangeiro, aumentando o
poder das classes dominantes no período. É interessante notar que Trabalho Urbano e
Conflito Social foi uma das primeiras obras nacionais a contar com uma ampla gama de
documentação, tanto oficial como da imprensa operária ou das organizações
reivindicatórias.27 No entanto, o autor pareceu ainda tomar como referência certa
concepção ideológica e política supostamente mais correta para os trabalhadores se
organizarem (a formação de um partido político) e, ao invés de se atentar para os
motivos históricos e sociais que levaram essa classe a exprimir determinado
comportamento organizativo, inferiorizou determinada ação por não se encaixar no
modelo previsto.
Apesar dos avanços historiográficos e do rigor metodológico e teórico, uma visão
partidária ou militante que imprimia juízo de valor à determinada estratégia política
parecia marcar ainda as interpretações. Mais tarde, pesquisadores como Michael Hall e
Paulo Sérgio Pinheiro, contestaram interpretações como a de Fausto, afirmando que tais
pesquisas pressupõem um modo ideal de como a classe operária deveria se comportar e
consequentemente distorcem a possível experiência real e prática que os trabalhadores
possuíam durante o contexto analisado28. Em resposta, os autores propõem
o esboço de uma interpretação, que ao invés de culpar as vítimas ou privá-lasda capacidade de ação autônoma, procure dar conta da história da classeoperária e do movimento operário como resultado de lutas concretas. Enquantoa história da burguesia brasileira foi objeto de considerável pesquisa nos anosrecentes, o foco da bibliografia continua ser sua relação com o Estado: as lutascom os operários são geralmente tratadas fugazmente, se muito.29
26 FAUSTO, Boris. Trabalho urbano e Conflito social: 1890- 1920. São Paulo: Difel, 1977.27 Ver PETERSEN, Sílvia Regina Ferraz. “Trabalho Urbano e conflito social (1890-1920): Economia eEstado nas origens do movimento operário brasileiro.” In: GOMES, Ângela de Castro (org.). Leiturascríticas sobre Boris Fausto. Belo Horizonte: Editora UFMG; São Paulo: Perseu Abramo, 2008. p. 5328 HALL, Michael; PINHEIRO, Paulo. “Alargando a História da Classe Operária: Organização, Lutas e Controle.” Coleção Remate de Males . n 5, 1985. p. 96-120. p. 96-12029 Idem. p. 111
20
Assim, quando estes autores adentraram as próprias fontes deixadas pelos
trabalhadores como periódicos operários, resoluções de congressos, comícios e muitos
outros documentos, observaram a grande complexidade do tema que ainda estava para
ser analisada e revista historicamente, que foi muitas vezes subvertida por posições
políticas.
Ao findar a década de 1980, podemos observar a consolidação do estudo das
classes trabalhadoras. O historiador inglês Edward Thompson, na sua célebre obra A
Formação da Classe Operária Inglesa publicada primeiramente em 1963 na Inglaterra,
o autor contextualiza a noção de classe, que nessa interpretação, não é o resultado
natural do desenvolvimento de forças produtivas ou de uma economia funcionalista.
Para Thompson, a formação da classe operária inglesa deve ser vista como resultado de
sua própria experiência particular e de seus embates, que ressignificavam e adaptavam
culturas anteriores em relação às forças produtivas e à economia. Nesse sentido, o autor
ressalta os próprios agentes históricos e elementos como a cultura popular na construção
da classe e nas próprias lutas e resistências que esta pudesse possuir. 30 Sidnei Munhoz
argumenta que
ao “refazer” a história do primeiro proletariado inglês, Thompson desenvolveuum percurso próprio, objetivando penetrar nos meandros do que ele denominouo “fazer-se” da classe operária inglesa. Tanto seu objetivo quanto suas fontesforam abordados de forma pouco convencionais. O estudo não se restringia asindicatos e organizações socialistas, mas abrangia um vasto campo quecompreendia a política popular, tradições religiosas, rituais, conspirações,baladas, pregações milenaristas, ameaças anônimas, cartas, hinos metodistas,festivais, danças, listas de subscrições, bandeiras, etc. 31
Nas décadas de 1980 e 1990, a historiografia do tema parecia perceber que o
estudo das classes trabalhadoras ainda estava ressaltando apenas uma movimentação
política dos trabalhadores e negligenciando outras culturas de classe como lazer,
cotidiano, alimentação, elementos propostos por autores como Thompson. Desse modo,
se intensificaram de maneira considerável pesquisas que tiveram como foco expor a
formação da classe operária para além dos espaços considerados políticos. Aqueles que
assinalaram a organização partidária do comunismo ou de associações como o
30 THOMPSON, Edward. A Formação da Classe Operária Inglesa. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1987. 3 Ed.31 MUNHOZ, Sidnei. “Fragmentos de um possível Diálogo com Edward Palmer Thompson e com alguns de seus críticos”. Revista de História Regional. Vol.2, n.2, 1997 . p. 157
21
anarquismo e o socialismo apenas representavam uma pequena parcela desse mundo
operário. Dessa maneira, Batalha nos informa que desde então, houve significativos
avanços visto que
Os temas tratados pela história do trabalho já não privilegiam esse ou aqueleaspecto, tendem a ter mais atenção com a diferença e com a complexidade darealidade. A história do trabalho tradicional preocupava-se essencialmente comos aspectos que unificavam os trabalhadores; sem abandonar essa dimensão es-sencial para a compreensão da ação classista, está cada vez mais atenta àquiloque os divide (origens étnicas, diferenças de ganhos e de status social, crenças,etc.). Certas dicotomias que prevaleceram durante algum tempo nesse campo,opondo, por exemplo: trabalho e lazer, organização e cotidiano, militância etrabalhadores não-organizados; agora têm pouco espaço. 32
Mas se de um lado, uma vertente da história da classe operária brasileira e
internacional tem demonstrando sua heterogeneidade cultural e étnica33, suas formas de
associação recreativa, de outro, autores preocupados com a invasão do pós-
estruturalismo na historiografia e a fragmentação política, tem defendido a relevância de
se centrar nas formas de organização e expressão ideológica do operariado, legitimando-
as com os novos debates teóricos e metodológicos. Esses autores afirmam que apesar
dos avanços em se compreender as expressões classistas, sob o viés que inclui
etnicidade, cultura e representação, as interpretações que visaram os trabalhadores
foram tomadas também por proposições sem objetivos e metodologia claros. Isso já se
tornava evidente quando alguns pesquisadores se apropriaram, de forma controversa, de
autores da nova história do trabalho como o próprio Thompson. No caso brasileiro,
Marcelo Badaró Mattos nos informa que o fato de ressaltarem apenas o suposto
culturalismo de Thompson mas negligenciarem suas preocupações nos embates e
construções classistas e na ampliação do marxismo são fatores marcantes e
preocupantes quando pensamos na recepção do autor na historiografia brasileira. 34
Nesse aspecto, Marcel Van der Linden forneceu informações significativas para a
construção de uma história dotada dessa perspectiva. O autor mostra que a “Nova
História do Trabalho” trouxe importantes contribuições para o estudo dos trabalhadores,
não apenas evidenciando a história da perspectiva dos comuns, mas também por incluir
32 BATALHA, Claudio. “Os desafios atuais da História do Trabalho”. Anos 90, Porto Alegre, v. 13, n. 23/24, p.87-104, jan./dez. 2006.33 Ver KIRK, Neville. “Cultura: Costume, Comercialização e Classe.” IN: BATALHA, Claudio; SILVA, Fernando Teixeira da; FORTES, Alexandre(orgs). Culturas de classe: identidade e diversidade na formação do operariado. Campinas: Editora da Unicamp, 2004.34 Ver MATTOS, Marcelo Badaró. “E.P. Thompson no Brasil.” Outubro. N.14, 2006. p. 83-110.
22
gênero, etnia e raça em suas interpretações, porém, não rompeu de forma plena com
alguns pressupostos de uma antiga linha que visava os trabalhadores. Essa vertente,
muitas vezes, continuou dando prioridade ao estudo nos países de capitalismo avançado,
principalmente no desenvolvimento Europeu e quando muito, sobre esse viés,
projetavam a história do capitalismo, em outras regiões fora desse eixo, como resposta
natural e evolutiva do processo visto no Atlântico Norte. Para o autor, essas visões
evidenciavam a combinação do “nacionalismo metodológico” e do “eurocentrismo”. 35
De acordo com Linden, a historiografia, apesar de seus avanços significativos,
abordou a formação da classe operária inglesa ou francesa, por exemplo, a partir de
processos fechados em si mesmo, usando pouco as conexões e as influências fora do
continente europeu e, quando usaram, a Europa parecia o centro das relações. É
evidente que muitos historiadores já haviam se voltado para além das fronteiras
nacionais europeias, mas a abordagem
Permaneceu monadológica: o mundo europeu “civilizado” foi visto como umconjunto de povos que se desenvolveram mais ou menos na mesma direção,ainda que cada qual em um ritmo diferente. Uma nova nação foi vista comomais avançada que a outra, e é por isso que as nações mais atrasadas poderiamver o futuro, em maior ou menor medida, refletido nas nações avançadas. 36
Para o autor, essa concepção começou a ser enfraquecida quando autores de
outros países fora do Atlântico Norte como no Brasil e na África do Sul, incorporando
os debates da “Nova História do Trabalho”, mas deixando suas impressões e
considerações sobre os casos particulares do movimento operário ou da escravidão,
impulsionaram o desgaste do eurocentrismo analítico. O enfoque do surgimento do
capitalismo e das resistências apresentadas nesse, enfocados apenas no caso europeu ou
norte-americano, pareciam não se sustentar com o entrecruzamento dessas pesquisas.
35 Sobre esse processo que uniu esses conceitos da História do Trabalho, Van der Linden nos mostra: “Ocampo de estudos emergente de história do trabalho na Europa do século XIX e, pouco depois, naAmérica do Norte, foi caracterizado, de início, por uma combinação de“nacionalismo metodológico” – ainvenção deste conceito é, até onde sei, devida a Anthony D. Smith – e eurocentrismo; uma combinaçãoque apenas recentemente tornou-se um tema para debate. O nacionalismo metodológico funde sociedadee Estado e, conseqüentemente, considera os diferentes estados nacionais como espécies de “mônadasleibnizianas” para a pesquisa histórica. O eurocentrismo é a ordenação mental do mundo do ponto devista da região do Atlântico norte: sob este ponto de vista, o período “moderno” tem início na Europa e naAmérica do Norte e se estende, aos poucos, para o restante do mundo; a temporalidade desta “regiãocentral” determina a periodização dos desenvolvimentos do restante do mundo. Historiadoresreconstruíram a história das classes trabalhadoras e dos movimentos operários na França, Grã-Bretanha,Estados Unidos etc. como desenvolvimentos separados. À medida que passaram a prestar atenção àsclasses e movimentos sociais na América Latina, África ou Ásia, estes foram interpretados de acordo comas perspectivas do Atlântico Norte.” LINDEN, Marcel Van der. Op.cit. p.1536 Idem. p.15.
23
Essas perspectivas formam a proposta de Marcel van der Linden que apresenta a
“História do Trabalho Global” como uma “área de interesse” crescente, que visa
interpretar a história do capitalismo e dos trabalhadores a partir de conexões e o
alargamento de limites cronológicos, conceituais e de espaço.37
Pegando o mote sobre essas considerações, para entendermos a construção do
anarquismo bem como dos periódicos e grupos que atuaram em São Paulo na Primeira
República, é preciso primeiramente analisar os fatores históricos que resultaram na
própria disseminação desses ideários bem como o lugar destas nos embates entre
classes. Esse fenômeno não pode ser visto como prematuro ou como gênese de outra
ideologia já que os personagens inseridos nesse período não tinham consciência de seu
futuro. É necessário, portanto, realizar uma história de discursos e desejos que podem
ter sido vencidos, mas é necessário serem desvendados em sua dimensão histórica, uma
vez que temos como objetivo elucidar aspectos dessa realidade.
Sobre esse aspecto, autores vêm destacando as formas e nuances das estratégias
políticas encontradas no seio dos trabalhadores e na própria formação da classe
operária. Esse é o intuito dos autores sul-africanos Michael Schmidt e Lucien van der
Walt que afirmam apresentar um estudo empírico do movimento anarquista e suas
articulações em âmbito internacional na obra Black Flame: the revolutionary class
politics of anarchism and syndicalism. Os pesquisadores coletaram documentos e
informações de diversas organizações e práticas, concentrados em reavaliar o papel
desse movimento nos espaços sindicais e políticos. Dessa forma, foi possível observar
práticas mais usuais e hegemônicas entre os grupos, a partir de uma comparação
internacional, mas também especificidades, quando contrastados com propostas
minoritárias. Schimidt e Van der Walt, inspirados por um prisma sociológico e histórico,
tentaram buscar as origens do movimento e defendem que:
o termo anarquismo deve ser reservado a um tipo particular, racionalista erevolucionário, de socialismo libertário que surgiu na segunda metade doséculo XIX. O anarquismo era contra a hierarquia econômica e social, assimcomo a desigualdade – e especificamente, do capitalismo, do poder dosproprietários de terra, e do Estado – e defendia uma luta de classesinternacional e uma revolução vista de baixo por uma classe trabalhadora e umcampesinato auto-organizados, com o objetivo de criar uma ordem socialautogerida, socialista e sem Estado. Nesta nova ordem, a liberdade individualestaria em harmonia com as obrigações comuns por meio da cooperação, datomada de decisões democrática e da igualdade econômica, social e acoordenação econômica aconteceria por meio de formas federais. Os
37 Ver LINDEN, Marcel van der. Trabalhadores do Mundo: Ensaios para uma história global do trabalho. Campinas – São Paulo, Editora da Unicamp, 2013.
24
anarquistas enfatizaram a necessidade de meios revolucionários (organizações,ações e ideias) para prefigurar os fins (uma sociedade anarquista). 38
Concordando com os autores, sendo um movimento que se construiu através de
redes transnacionais e pelo constante fluxo migratório, o anarquismo deve ser analisado
levando em conta sua envergadura global e quando sua prática foi fundida a uma teoria
de forma dialética. Nesse caso, os autores estavam se referindo ao início da
sistematização e atuação do movimento anarquista que pode ser encontrado na atuação
da Aliança da Democracia Socialista (ADS), que teve representantes como Mikhail
Bakunin, Charles Perron e James Guillaume, dentro de discussões e organismos
trabalhistas de caráter internacional como a Associação Internacional dos Trabalhadores
(AIT). A partir de 1868, tais ativistas, no interior dessa associação, retomaram o
federalismo dos mutualistas proudhonianos, mas a partir de experiências anteriores, nas
manifestações populares, extremaram seu caráter revolucionário de forma nunca
avaliada anteriormente, figurando a entrada dos chamados coletivistas socialistas na
associação, que mais tarde se reconheceriam como anarquistas.39
Antes de sua participação na Internacional, Bakunin, bem como outros militantes
de sua orientação condensavam uma vasta experiência transnacional prática. O ativista
citado, por exemplo, havia participado dos movimentos populares na Rússia, Áustria,
Alemanha, Itália, perpassando também países como Japão e Estados Unidos,
participando de insurreições e barricadas, sendo constantemente detido, inclusive
passando por experiências prisionais e de exílio.40 Essa vivência possibilitou o repensar
de um socialismo descentralista levando em considerações realidades ainda distantes
dos casos dos polos industriais europeus, como na Rússia, com a presença ainda
marcante de monarquias czaristas ou das regiões italianas com sua tardia unificação e
grandes áreas ainda camponesas e rurais.41
Essa tradição internacionalista continuava com o passar o passar dos anos, A ADS
possuía representantes na Inglaterra, Rússia, Itália, França, Espanha, Suécia, Noruega,
Dinamarca, Bélgica e outras regiões.42 Para além disso, em consonância com o trabalho
mais sistemático e programático dos aliancistas, jornais contendo as ideias anarquistas,
38 SCHMIDT, Michael; VAN DER WALT, Lucien. Op.cit., 2009. p.71.Tradução nossa.39 ENCKELL, Marianne. “A AIT: a aprendizagem do sindicalismo e da política.” In: COLOMBO, Eduardo (Org.). História do Movimento Operário Revolucionário. São Paulo: Imaginário, 2004.40 SAMIS, Alexandre. Negras Tormentas: o federalismo e o internacionalismo na Comuna de Paris. São Paulo: Hedra, 2011. p.35-44.41 Ver HOBSBAWM, Eric. Era das revoluções: Europa 1789-1848. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1977.42 Idem. p.33-60.
25
mesmo de forma controversa, se expandiram em proporções avassaladoras; em 1885, a
Argentina presenciava o periódico militante Questione Sociale, que contava com
articulações internacionais;43 na década de 1890, os primeiros jornais contendo ideias
anarquistas no Brasil, Gli Schiavi Bianchi, La Bestia Umana e L’Asino Umano,
marcavam sua presença.44Na Itália, na década de 1880, ativistas importantes como
Errico Malatesta e Pietro Gori impulsionavam fortes movimentos contestatórios,
disseminando o anarquismo entre os artesãos e os pequenos comerciantes subalternos e
também sob a forma de associações com respaldo social.45Além disso, a presença das
ideias anarquistas chegava nas regiões da África meridional e do sul desde o final do
século XIX,46 a partir de insurreições marcantes, nos EUA47. Em questões de décadas,
organizações operárias de orientação libertária se formaram também no Pacífico e no
continente asiático.48O desenvolvimento do anarquismo, teórico e prático, levou em
conta necessidades e experiências internacionais, e “de baixo para cima”49 como
salientado por seus representantes, fatores imprescindíveis para a construção de sua
cultura política e seu sucesso, em um primeiro momento. Paradoxalmente, de outro
lado, essa poderosa disseminação transformaria sua recepção e suas metamorfoses, de
caráter transnacional, incontroláveis.50 Não obstante, sem hesitar, os ativistas
anarquistas tentavam produzir uma linguagem e um corpo téorico-ideológico para
43 COLOMBO, Eduardo. “A FORA. O finalismo revolucionário”. In: COLOMBO, Eduardo (org). Op.cit. p.7944 LEAL, Claudia. Pensiero e Dinamite: Anarquismo e repressão em São Paulo nos anos de 1890. Tese (Doutorado em História). Universidade Estadual de Campinas, São Paulo, 2006. p.149-204.45 ROMANI, Carlo. Oreste Ristori: Uma aventura anarquista. Dissertação (Mestrado em História). Universidade Estadual de Campinas, São Paulo, 1998. p. 15.46 Ver VAN DER WALT, Lucien. “Negro e Vermelho: anarquismo, sindicalismo revolucionário e pessoasde cor na África Meridional nas décadas de 1880-1920.” Revista Mundos do Trabalho, vol. 2, n. 4, p.174-218, 2010.47 PORTIS, Larry. “Os IWW e o internacionalismo”. In: COLOMBO, Eduardo. (org.). Op.cit. p.55-6048 Ver HWANG, Dongyoun. “Korean Anarchism before 1945: a regional and transnational approach.” In:HIRSCH, Steven; VAN DER WALT, Lucien (org.). Op.cit. p.95-130.49 Bakunin debatendo com os socialistas centralistas afirmava que “a organização política e econômicada vida social deve partir, por consequência, não mais como hoje, de cima para baixo e do centro àcircunferência, por princípio de unidade e de centralização forçada, mas de baixo para cima e dacircunferência ao centro, por princípio de associação e de federação livres.” BAKUNIN, Mikhail.Catecismo Revolucionário: Programa da Sociedade da Revolução Internacional. São Paulo: Imaginário/Faísca, 2009. p.20 50 É preciso marcar as diferenças entre “internacionalismo” e “transnacionalismo” usados em muitaspesquisas de forma indiscriminada. O Internacionalismo se refere aos movimentos, aqui dentro dosdebates socialistas, que consideraram a importância de participação de diferentes grupos em conjunto,nacionais e étnicos, para a construção da sociedade igualitária. Mas, como Benedict Anderson alerta, esseintuito não descartou a influência do ideário étnico ou nacional na circulação de ideias e experiênciasrevolucionárias. Em alguns casos, no processo transnacional, o nacionalismo, por vezes, impregnava osdiscursos internacionalistas, adaptando os movimentos como o socialismo, anarquismo e o sindicalismorevolucionário. Para o estudo de casos particulares ver. ANDERSON, Benedict. Under three Flags:anarchism and the anti-colonial imagination. London: Verso, 2005 e LINDEN, Marcel van der.. Op.cit.,2013.
26
salvaguardar e conservar aspectos políticos próprios, construindo igualmente o
compartilhamento de símbolos, referências e princípios norteadores para os membros de
suas redes militantes. Nesse sentido, o autor Clayton Godoy afirma que
A circulação de ideias, de artefatos culturais, de notícias, de formas de ação ede modelos organizacionais, bem como a mobilidade constante de ativistas,indicam o compartilhamento da noção de pertencimento a um mesmo projetotransnacional, produzindo laços entre organizações e ativistas de vários países,alimentando redes que sustentavam o movimento e criando ligações simbólicasentre episódios políticos ocorridos em diferentes localidades do globo.51
Tomando alguns desses debates, em outra oportunidade de pesquisa, reduzimos a
escala de observação no periódico anarquista A Plebe, tido como o principal periódico
noticiador e organizador da greve geral de 1917, propondo percorrer sua trajetória no
interior do movimento operário bem como suas próprias falas e correntes estratégicas
durante os anos de efervescência grevista (1917- 1920).52 No estudo sistemático de suas
colunas e da trajetória de seus redatores é possível constatar o fortalecimento do
anarquismo organizacionista53. Nesse sentido, foi percebido que embora o jornal em
questão representasse tal tática em seu ápice, era fruto também de uma experiência e um
debate maior entre os círculos anarquistas e sindicalistas do período, inclusive em plano
internacional, alavancado com o início dos conflitos mundiais. Ou seja, o objetivo
inicial pautado em entender melhor a trajetória e ação de um periódico e sua relação
com os trabalhadores, acabou inevitavelmente desembocando em questões que visam
compreender a experiência anarquista em redes mais amplas.
Antes da criação do jornal A Plebe pelo militante Edgard Leuenroth, que havia tido
uma rica experiência em outros periódicos de vertente sindicalista, foi observado que
tais discussões referentes à aproximação e ação dos anarquistas entre os espaços
sindicais, no período de greves, eram comuns e assíduas em torno do grupo responsável
pela edição do periódico Guerra Sociale.54 De fato, tal posição não era exclusiva, mas
no objetivo de analisar o anarquismo organizacionista, talvez tal jornal possa ser
51 GODOY, Clayton. Ação Direta: transnacionalismo, visibilidade e latência na formação do movimentoanarquista em São Paulo (1892-1908). Tese (Doutorado em Sociologia) - Universidade de São Paulo,2013. p. 28.52 “O jornal A Plebe: militância e estratégias de propaganda anarquista no movimento operário em SãoPaulo (1917 a 1920).” Monografia de graduação, Universidade Federal de São Paulo, 2013 e “A liberdadeimpressa: os periódicos anarquistas A Lanterna e A Plebe e sua ação entre os trabalhadores em São Paulo(1911-1919).” Iniciação científica Pibic, 2012-2013, ambos orientados pela Profa Dra Edilene Toledo. 53 Nesse sentido, foi possível perceber tanto a tática de dualismo organizacional, posição mais evidenteno periódico, mas também da estratégia que visava o sindicalismo autodeclarado anarquista.54 Ver BIONDI, Luigi. La stampa anarchica in Brasile: 1904-1915. Tese de Laurea defendida junto aoDepartamento de História Contemporânea da Universitá di Studi di Roma “La Sapienza”, 1993-1994.
27
ignorado na medida em que era descendente de um grupo de redatores (La Battaglia –
La Barricata – La Propaganda Libertaria) que considerava predominantemente o
levante espontâneo das massas e sempre criticou a associação entre anarquistas e os
sindicatos, representando o chamado antiorganizacionismo. 55 Mas o fato que desperta
atenção é notar que, nesse momento preciso, ambos os grupos apostavam na união das
tendências anarquistas, a fim de adentrarem no meio operário, vislumbrando um levante
contra o sistema de dominação.56 O jornal Guerra Sociale foi bastante influente entre os
trabalhadores italianos ou filhos destes, uma vez que era escrito em sua língua de
origem, mesclado diversas vezes com a língua portuguesa.57 Os redatores envolvidos
com o periódico, em 1915, antes da efervescência das reivindicações, mas influenciados
pelos novos debates anarquistas diante das guerras nacionais, tomaram a iniciativa de
juntar as tendências anarquistas em São Paulo e propuseram uma aliança a fim de:
...reunir numerosos camaradas que se encontravam dispersos por todoo país, vivendo na mais completa apatia por falta de coesão, derelações de solidariedade que deveriam existir perenemente, demaneira ativa e eficaz entre homens que sentem as mesmas aspirações,professam os mesmos princípios e lutam pelo mesmo ideal.58
É interessante notar a rara existência de trabalhos que analisaram o periódico
Guerra Sociale minuciosamente59. Algumas pesquisas que o abordaram e encararam sua
vertente como antiorganizacionista, ignoraram sua participação na tentativa de
organização dos grupos libertários (como sua associação no período com o grupo
redator de A Plebe) ou mesmo dos trabalhadores em geral.60Ainda, estudos que
buscaram as origens da propaganda do anarquismo organizado61 e do dualismo
55 Idem. p.306-360.56 Ver BIONDI, Luigi. “Na construção de uma biografia anarquista: os últimos anos de Gigi Damiami noBrasil”. In: DEMINICIS, Rafael; FILHO, Daniel Aarão Reis (orgs.). História do Anarquismo no Brasil(volume um). Rio de Janeiro: MAUAD, 2006. p. 169.57 Ver LOPREATO, Christina. O Espírito da Revolta: a greve geral anarquista de 1917. São Paulo: Tese(Doutorado em História). Universidade Estadual de Campinas, São Paulo, 1996. p. 60-73.58 “Alliança Anarquista”. Guerra Sociale. P1. 30 de setembro de 1916. Citado em LOPREATO, ChristinaRoquette. Op.cit. p. 61.59 Exceto nas seguintes interpretações: Luigi Biondi afirma que embora o periódico em questão fossedescendente de um grupo militante que desconfiava da aproximação entre anarquistas e sindicatos e dasgreves parciais, no período (1915-1920) era clara sua atuação nos meios operários. BIONDI, Luigi Op.Cit. 1993-1994 e Cristina Lopreato onde analisa a greve geral de 1917 pela ação de militantes anarquistasno movimento operário, nesse caso sobre os grupos envolvidos com os periódicos A Plebe e GuerraSociale. LOPREATO, Christina. Op. Cit.60 Alguns trabalhos ainda tentaram separar anarcossindicalismo versus anarcomunismo, sendo o GuerraSociale uma vertente deste último. Ver SFERRA, Giusepina. Anarquismo e Anarcossindicalismo. SãoPaulo: Ática, 1982.61 O anarquismo organizado se refere aos programas anarquistas que buscam coesão militante frente ao sindicalismo. Um exemplo desses é a FAU (Federación Anarquista Uruguaya) analisada pelo historiador
28
organizacional no Brasil mencionam sempre a Aliança Anarquista do Rio de Janeiro em
191862 descartando a Alliança Anarquista proposta pelo Guerra Sociale em São Paulo,
iniciada em 1915.
Podemos entender previamente a chamada Alliança Anarquista como uma
campanha proposta pelo grupo redator do periódico Guerra Sociale que buscava a união
de todos os grupos anarquistas em São Paulo a fim de realizarem uma ação política
dentro dos órgãos de resistência, imprensa e sindicato para disseminarem um ideal de
revolução organizado. Tal proposta foi certamente muito influenciada pelos escritos de
anarquistas como Mikhail Bakunin e Errico Malatesta que buscavam um programa para
a ação de orientação anarquista nos sindicatos e no movimento operário, mas também
foi a expressão prática dos anarquistas frente ao momento de organização intensa pelo
qual o movimento operário passava no contexto particular das mobilizações grevistas e
do contexto agravante da Primeira Guerra Mundial, nos quais necessitavam de uma
coesão militante.
Outro objetivo desta dissertação se refere à atuação dos anarquistas na greve geral
de 1917 e suas formas de disputa e instrumentalização do sindicalismo revolucionário.
Nesse sentido, Christina Lopreato afirma que os anarquistas estiveram na dianteira em
impulsionar o evento, o qual não aconteceria com tanta amplitude se não fosse por suas
articulações, anos antes.63 Problematizando tal análise, o historiador Luigi Biondi
assinala que embora a presença dos anarquistas tenha sido relevante é necessário
observar também o tipo de contexto favorável em que estavam inseridos bem como a
movimentação do próprio movimento operário que não dependia de um grupo limitado
de indivíduos. O pesquisador também afirma que os socialistas tiveram presença notável
na organização do evento em questão e que foram imprescindíveis para a organização e
o seu encaminhamento. De fato, como observado por Biondi, o ano de 1917 foi
marcado por muitos movimentos reivindicatórios no mundo, como a greve de Turim na
Itália e a Revolução Soviética na Rússia.64 No entanto, como ressalta o pesquisador, um
fator ainda pouco explorado pela historiografia que visa o movimento operário nesse
período se refere ao caráter internacionalista presente na atuação dos próprios militantes
Ricardo Rugai. Ver RUGAI, Ricardo. Um partido anarquista: o anarquismo uruguaio e a trajetória da FAU. São Paulo, Ascaso, 2012.62 Ver SAMIS, Alexandre. “Pavilhão Negro sobre Pátria Oliva: Sindicalismo e Anarquismo no Brasil.” In: COLOMBO, Eduardo (Org.). Op.cit., p.125-19063 Ver Lopreato, Christina. Op.cit.,64 BIONDI, Luigi. Classe e Nação: trabalhadores e socialistas italianos em São Paulo, 1890-1920. Campinas- São Paulo: Editora da Unicamp, 2011. p.219-220
29
do período. Os conflitos internacionais e as pressões econômicas avaliadas por muitos
pesquisadores também não passaram totalmente despercebidas pelos agentes inseridos
nesse contexto e foram mobilizados como propaganda política entre os trabalhadores
para sua atuação e articulação nas manifestações e paralisações locais. Muitos
personagens envolvidos nas greves, e, nesse caso, buscamos comprovar a hipótese
segunda a qual os anarquistas estavam nessa dianteira, tinham conhecimento dos
acontecimentos internacionais e locais no desenrolar do evento e buscavam a harmonia
entre essas duas esferas (local e internacional) em sua atuação política, almejando
mobilizar seus ouvintes e leitores.
Assim, acreditamos que tais debates podem ser enriquecidos e elucidados com uma
análise sistemática e minuciosa da construção política e das estratégias e táticas no
interior do Guerra Sociale, descendente de um grupo redator e militante que usava a
estratégia antiorganizacionista, mas que estavam relacionados empiricamente com o
desenrolar do movimento operário em São Paulo, e A Plebe, derivada de outro grupo
que defendia a estratégia organizacionista e o impulso de organizações sindicais entre
os trabalhadores. No contexto de efervescência das reivindicações operárias do fim da
segunda década do século XX, os dois grupos se articularam e buscaram programas
políticos comuns como a Alliança Anarquista, as propagandas anti-imperialistas, a
disputa do sindicalismo revolucionário, e outros diversos tipos de táticas e estratégias
que veremos a seguir.
Visto isso, tivemos como objetivo inicial nessa dissertação nos concentrar nos
debates ideológicos que construíram as táticas e estratégias anarquistas e depois nas
condições materiais que deram consistência para a recepção e a construção do
movimento na cidade, avaliando como tais propostas estavam sendo apropriadas a partir
das necessidades reais dos trabalhadores no contexto proposto, a quem os militantes e
redatores pretendiam obter conquistas e como suas táticas e estratégias influenciaram a
construção da cultura política nos jornais analisados. Em seguida, percorremos a
publicação dos jornais e a trajetória militante65 no interior destes através dos debates e
articulações para sua confecção durante os anos de publicação de 1915 a 1920, período
que corresponde respectivamente ao início das publicações do Guerra Sociale, seguido
do nascimento do periódico A Plebe em sua primeira fase, que tinha como corrente
majoritária, os defensores da mobilização grevista na conjuntura das greves de 1917-
65 Para isso contamos com um conjunto de obras que já resgataram boa parte das informações de algunsmilitantes redatores desses jornais. Ver BIONDI, Luigi. Op. Cit. 1994, _____. Op. Cit. 2011;LOPREATO. Op.cit
30
1920. Por último, veremos como essa construção e essa prática teve resultado nas
transformações da cultura política e militante do anarquismo desde a conjuntura da
greve até as novas remodelações políticas do ramo da esquerda, como o nascimento do
Partido Comunista do Brasil em 1922.
Para a efetivação do trabalho, pretendi compreender e analisar a cultura política
dos periódicos e grupos propostos na perspectiva lembrada por Heloísa Cruz e Maria
Peixoto quando afirmam que
não adianta simplesmente apontar que a imprensa as mídias “tem umaopinião”, mas que em sua atuação delimitam espaços, demarcam temas,mobilizam opiniões, constituem adesões e consensos. Mas ainda, trata-setambém de entender que em diferenças conjunturas a imprensa não só assimilainteresses e projetos de diferentes forças sociais, mas muito frequentemente é,ela mesma espaço privilegiado da articulação desses projetos. 66
Como entendemos tais instrumentos comunicacionais como espaços privilegiados
de articulação de projetos políticos, foram necessárias primeiramente a leitura e análise
das obras que deram consistência para a ideologia e o movimento referido, como
também do contexto social, político e econômico nos quais foram gerados. Depois,
cruzamos com a análise de outros periódicos que mantinham contato com esses grupos,
correspondências de militantes, boletins operários, evidenciando suas propostas
políticas, relacionando-os com os dados existentes para problematizar as biografias
sobre os militantes, de um modo que permitiu a compreensão do movimento anarquista
e dos periódicos analisados como o conjunto da ação dos personagens que o
compuseram.67
Os debates de pesquisas como estas, que abordaram grupos até então ignorados ou
negligenciados, evidenciam a questão apresentada pelo historiador Giovanni Levi. O
autor considera que a proposta da redução na escala de observação não deve
negligenciar aspectos econômicos, sociais e culturais e necessitam estar preocupados
em preencher lacunas deixadas pelas análises estruturais e conjunturais. Por sua vez,
essa narrativa deve ter cautela em não se apropriar dos exemplos minoritários e
transformá-los em generalizações, nem deve ocultar outras possíveis experiências.68
66 CRUZ; Heloisa de Faria; PEIXOTO, Maria do Rosário. “Na oficina do historiador: conversas sobre História e imprensa.” Projeto História. São Paulo, n.35, p. 253-270, dez. 2007. p.258-259.67 Entre os exemplos que podemos citar previamente estão Gigi Damiani, Angelo Bandoni, Oresti Ristori, Edgard Leuenroth, Neno Vasco, Isa Rutti, Benjamin Mota e Astrojildo Pereira Ver TOLEDO, Edilene. Op.cit. 1993.68 LEVI, Giovanni. “Sobre a micro-história”. In: BURKE, Peter. A escrita da história: novasperspectivas. São Paulo: Editora da UNESP, 1992. p. 133-161.
31
Nesse sentido, embora tenhamos a necessidade de propor um recorte espacial
definido, aqui compartilhamos as proposições de Marcel Van der Linden quando
evidencia a importância do estudo das experiências classistas bem como suas
manifestações ideológicas e políticas, em uma perspectiva que ultrapasse fronteiras
locais e nacionais.69 Assim, entendemos a construção dos grupos que visamos estudar
intimamente relacionada com a circulação de ideias e experiências entre cidades e entre
países no período, impulsionados principalmente pelas migrações e pela circulação de
ideias e experiências.
Por fim, embora o anarquismo não esteja dentro do parlamentarismo político ou
das forças de poder no interior das decisões do Estado, podemos compreendê-lo, em um
plano maior, como um tipo de cultura política70 visto que carrega um sistema de
valores, crenças e sistemas próprios diante de uma realidade social e propõe uma
intervenção política nesta. O autor Serge Berstein nos mostra que uma cultura política
não tem sua formação pré-concebida ou natural, mas também é um processo histórico e
suas razões de surgimento não são acidentais ou deslocadas da conjuntura social. O
autor continua:
Como e por que nasce a cultura política? A complexidade do fenômeno implicaque o seu nascimento não poderia ser fortuito ou acidental, mas quecorresponde às respostas dadas a uma sociedade face aos grandes problemas eàs grandes crises da sua história, respostas com fundamento bastante para quese inscrevam na duração e atravessem as gerações. 71
No primeiro capítulo abordamos a construção do movimento anarquista nas duas
primeiras décadas do século XX, evidenciando algumas das condições ideológicas e
sociais que possibilitaram sua disseminação, bem como a penetração dessa ideologia no
movimento operário na cidade estudada, fatores que deram caráter para a construção das
estratégias politicas nos referidos periódicos e grupos que foram analisados
posteriormente. No primeiro tópico, examinamos a construção das estratégias e táticas
políticas dos anarquistas em plano internacional comparando com alguns casos
brasileiros, identificados durante a análise dos documentos ou da bibliografia
consultada. No tópico seguinte, avaliamos os significados e a dimensão das lutas de
libertação nacional e anti-imperialistas, ideários que foram redimensionados pelos
grupos analisados posteriormente. No terceiro tópico, demos atenção para a relação
dessa circulação das ideias no caso da cidade de São Paulo, avaliando a inserção do
69 Ver LINDEN, Marcel Van der. Op.cit., 2009.70 Ver RÉMOND, René (org). Por uma História Política. Rio de Janeiro, Editora UFRJ, 1996.71 BERSTEIN, Serge. “A Cultura Política”. In: RIOUX, Jean-Pierre; SIRINELLI, Jean François. Para uma história cultural. Lisboa: Estampa, 1998. p.355
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anarquismo no movimento operário e dos jornais políticos em seu interior que
apareciam nesse período, revelando com isso, o próprio desenvolvimento da ideologia
libertária. Na quarta parte afunilamos nossa observação para as mudanças dos debates
anarquistas, a partir dos seus principais grupos, e do movimento operário que se deram
no refluxo econômico nos primeiros anos da segunda década e também com o início da
Primeira Guerra Mundial. Algumas táticas e reformulações de estratégias, nesse
contexto, adiantam as razões da construção do tipo de política abordada pelos
periódicos analisados.
Analisamos e mapeamos essa cultura política dos jornais e grupos no segundo
capítulo, onde os abordamos tanto a partir de suas práticas quanto a partir de sua
ideologia. Na primeira parte, a atenção é dada para as articulações propostas e
difundidas pelo periódico e grupo Guerra Sociale, principal articulador, nessa hipótese,
para a discussão anti-imperialista do movimento operário no período. O periódico
também avança nas discussões sobre raça e nacionalismo e sobre as políticas de
organização anarquista. Na segunda parte adentramos o jornal e grupo em torno de A
Plebe, evidenciando suas formas políticas e sindicais bem como sua importância. Nesse
sentido, o periódico apresenta inúmeras táticas para construir sua estratégia sindicalista
impulsionando o organizacionismo anarquista, como a continuação dos projetos
políticos anarquistas, as campanhas anti-imperialistas, as discussões de gênero e as
formas de apoio e instrumentalização da Revolução Russa.
No terceiro capítulo, abordamos como seus discursos e suas propostas políticas
eram elaborados a partir de necessidades reais e sobre as nuances dos contextos. Na
primeira parte, observamos a infiltração das propostas anarquistas e de suas articulações
perante a greve geral de 1917 bem como seus desdobramentos nos dois anos seguintes,
nos quais tentaram lidar com as questões do movimento operário e da repressão posta
sobre eles. No segundo tópico, analisamos os bastidores desses mesmos grupos em
meio aos motivos para o início da queda da influência do anarquismo nos espaços
operários bem como a mudança e adaptações de suas táticas, mais uma vez, sobre essas
novas articulações políticas como o incremento da repressão e a criação do Partido
Comunista do Brasil. Por fim, apresentamos uma conclusão que versa sobre os
resultados obtidos na nossa investigação.
33
CAPÍTULO 1.
“BEM UNIDOS FAÇAMOS, NESTA LUTA FINAL”: A CONSTRUÇÃOGLOBAL DO ANARQUISMO E A RECEPÇÃO DE IDEIAS E EXPERIÊNCIAS
EM SÃO PAULO NAS DUAS PRIMEIRAS DÉCADAS DO SÉCULO XX.
1.1. A construção do anarquismo entre estratégias e táticas.
Nos últimos dias, tem-se manifestado no ambiente libertário um certodespertar. Esperemos que não seja um entusiasmo passageiro, e as intençõeslouváveis para se dar tudo para uma propaganda ativa são duráveis indo alémda Maggiolata72. Sem dúvida sobre questões de método, nós anarquistas, nuncaseremos todos da mesma opinião, mas permanece o fato de que entre asdiscussões e críticas todos podem tirar proveito.73
No dia primeiro de maio de 1916, o grupo do jornal Guerra Sociale lançou um
número especial destinado às comemorações do dia do trabalhador. Nessa ocasião, além
de reafirmarem sua íntima posição e lugar nos ambientes operários, os redatores
aproveitavam para impulsionar campanhas que visavam uma ação militante conjunta,
acompanhado de discussões no âmbito político, desde que fora da esfera parlamentar.74
Como evidenciado, se havia pontos de convergência e símbolos comuns que faziam os
anarquistas se reconhecerem enquanto família política em detrimento de outras, com
certeza, como em qualquer outro movimento, havia também nuances em suas atuações.
Tais divergências fizeram os redatores também apelarem para a reunião não só de outras
ideologias que existiam entre as classes trabalhadoras e subalternas, mas no interior do
próprio anarquismo. Portanto, para uma análise profunda sobre os veículos
comunicacionais e políticos dos militantes anarquistas e seus grupos, teremos que
aprofundar sua própria construção ideológica, antes mesmo de sua recepção e revisões
na cidade estudada.
No Brasil, como em outros países, essas diferenças chamaram a atenção de
diversos autores que analisaram o movimento libertário. Nesse aspecto, a suposta
heterogeneidade do movimento e seu discurso descentralista resultou em certa confusão
em boa parte dos estudos que analisaram o movimento anarquista e até operário,
principalmente os que versaram sobre o recorte da Primeira República.75 Para
72 Termo que estava se referindo às ondas de agitações e de sensibilidade entre os militantes nos eventoscomemorativos de primeiro de Maio. 73 “Risveglio”. Guerra Sociale, primeiro de maio de 1916. p.2. Tradução nossa.74 Para acompanhar as formas de propaganda anarquista e sua relação com os eventos comemorativosdos trabalhadores ver LEAL, Claudia. Anarquismo em verso e prosa: literatura e propaganda naimprensa libertária em São Paulo (1900-1916). Dissertação (Mestrado em Teoria Literária). UniversidadeEstadual de Campinas, São Paulo, 1999. p.59-62. 75 Para acompanhar a crítica dessa historiografia ver CORRÊA, Felipe. Rediscutindo o anarquismo: uma
34
Giuseppina Sferra, existia a diferença de duas posições anarquistas nesse período, o
anarcocomunismo, defendido pelo jornal La Battaglia, e o anarcossindicalismo
presente no jornal A Terra Livre. Essa interpretação, como muitas outras, afirmou que a
primeira vertente, o anarcocomunismo, estaria em oposição às associações sindicais,
com receio da aproximação de organismos políticos fixos e acreditaria em uma
insurreição efetiva guiada por uma mobilização através da imprensa e de outros vetores
comunicacionais. O anarcossindicalismo, por sua vez, estaria próximo dos organismos
de resistência dos trabalhadores, acreditando em uma sociedade pós-capitalista de
matriz sindical descentralista e foi efetivo, no contexto da Primeira República, em
construir um sindicalismo de orientação anarquista com objetivos claros e definidos.76
Muitos autores como essa, trataram as correntes estratégicas dos anarquistas como
ideologias diferentes e até mesmo concorrentes em muitos casos. Importante salientar
que nesse estudo, já influenciado pelos debates de uma história voltada aos personagens
sem voz na narrativa oficial, não se incorre no equívoco de avaliar o anarquismo como
ideologia prematura ou individualista, mas em outra influência derivada dessa, que
desconhece as propostas anarquistas, a partir de suas próprias teorias e práticas. Nesse
caso, como demonstraremos, confrontando algumas estratégias e táticas analisadas na
pesquisa com o anarquismo em nível mundial e as trajetórias dos ativistas, observamos
que esses rótulos e contrapontos não explicam de nenhuma maneira as nuances no
interior do anarquismo, encontrados nos documentos.
Para Felipe Corrêa, conforme dissemos anteriormente, esses equívocos provêm do
erro na utilização de conceitos para entender ideologias políticas bem como os
movimentos sociais ligados a essas. Para o autor, existe uma diferença substancial entre
“ideologia – conjunto de ideias e valores expressos em princípios políticos ideológicos –
e a estratégia – a escolha dos meios adequados para se atingir determinados fins.”77 A
estratégia, assim, uma visão mais ampla e sistemática para alcançar os objetivos
reclamados, foi construída pelo conjunto de práticas mais usuais, a partir da própria
experiência e de táticas também diversas. Dessa forma, os anarquistas tiveram sempre
aspectos ideológicos comuns, a defesa de uma sociedade igualitária, autogestionária,
anti-hierárquica, eram contrários ao avanço do capitalismo industrial e à formação do
Estado Nacional, bem como da política fundada nesse processo. Para tal, como em
abordagem teórica. Dissertação (Mestrado em Mudança Social e Participação Política). Universidade de São Paulo: EACH, São Paulo, 2012. p.26-55.76 SFERRA, Giuseppina. Anarquismo e Anarcossindicalismo. São Paulo: Ática, 1982.77 CORRÊA, Felipe. Ideologia e Estratégia: Anarquismo, movimentos sociais e poder popular. São Paulo: Editora Faísca, 2011. p.30.
35
qualquer grupo político, debatiam propostas, meios e táticas para conseguir alcançar
seus objetivos, transformando algumas práticas mais comuns em estratégias e tradições
de luta.
No caso paulista, de fato, observamos que existiram diferenças bem nítidas, mas
estas estavam muito mais no nível tático e estratégico de organização para se alcançar a
revolução do que ideológico. Uma primeira estratégia que pode ser observada entre
alguns desses militantes era muitas vezes chamada de antiorganizacionista78. Os
aderentes desse meio partilhavam a ideia do caráter reformista ou supostamente ilusório
dos sindicatos que, ao se cristalizarem ou ao proporem ganhos materiais, emperrariam a
insurreição efetiva e a quebra com o sistema econômico capitalista. Em resposta,
criavam grupos de ativismo não orgânicos e esparsos, incentivavam paralisações nas
fábricas e manifestações coletivas mas se esforçando em ligá-las sistematicamente com
a quebra do sistema econômico e político. Essa estratégia estava em relação simbiótica
com o grande número de imigrantes italianos e suas redes de sociabilidade étnicas que
começavam a compor grande parte do trabalho agrícola e industrial. Portanto, não
rompendo completamente com esses ideários, mas apresentando considerável inserção
nos movimentos trabalhistas e subalternos, essa forma de luta circulava entre os
ativistas redatores do difuso periódico La Battaglia que contou com personagens que
formaram posteriormente os periódicos La Barricata, Germinal, La propaganda
Libertária e o Guerra Sociale.79Esse primeiro órgão começava a ser redigido em 1904,
escrito em língua italiana, que chegou a oferecer uma tiragem de cinco mil exemplares,
número surpreendente para qualquer jornal do período. O grupo em torno do jornal era
composto por anarquistas de atuação incisiva entre a classe trabalhadora da cidade,
entre eles Oreste Ristori, Alessandro Cerchiai, Gigi Damiani, Angelo Bandoni e Lucas
Máscolo. Sua empreitada também tentava articular e mobilizar a população rural para
que reagisse contra os graves problemas das condições em que se encontravam.80 Assim,
dentro de uma tradição que, de forma prática e teórica, também incluía e se desenvolvia
entre os camponeses, esses anarquistas tensionavam a suposta imobilidade destes,
atribuída por outros grupos políticos.81
A estratégia e as táticas buscadas pelo grupo podem ter provido pela primeira
78 Organizacionismo e antiorganizacionismo são discutidos pelos autores CORRÊA, Felipe. Op.cit., 2011. p.50-51 e SAMIS, Alexandre. Op.cit., 2009.79 BIONDI, Luigi. Op.cit.,1994. p.70-77. 80 LEAL, Claudia. Op.cit., 1999. p.47.81 Michael Hall e Paulo Sérgio Pinheiro mencionam uma grande greve no campo citada pelo jornal La Battaglia. Ver HALL, Michael; PINHEIRO, Paulo. Op.cit. p. 98-99.
36
flexibilização da tradição anarquista, após o colapso da Primeira Internacional,
encontrada nas mesmas últimas décadas do século XIX, principalmente nas regiões
onde os anarquistas encontraram pouco espaço de atuação nos ambientes classistas, seja
por suas convicções e tradições locais ou pela falta de estrutura sindical.82 Esses
ativistas constituíram o anarquismo em meio aos movimentos insurrecionais que
usavam como tática principal a “propaganda pelo fato”83, através da própria ação dos
movimentos, acreditando que práticas de boicote ou o uso da violência ocasionariam
uma possível ação revolucionária.84 Para Schmidt e Van der Walt
esses defendiam a adopção generalizada de táticas de corrosão e ataquecontínuo através da ação direta da classe trabalhadora. Embora essas táticaspoderiam resultar em algumas reformas, este era meramente incidental: overdadeiro objetivo era promover uma crescente revolta proletária contra asinstituições existentes, resultando na expropriação violenta da classe dominantena revolução social violenta.85
Esse foi o caso de Malatesta e Kropotkin, em uma primeira fase, posição
defendida no Congresso Anarquista de Londres em 1881.86 Os adeptos dessa orientação
desconfiaram dos ambientes sindicais, perigosos por possivelmente tenderem ao
82 É interessante notar que as estratégias e as formas de atuação dos anarquistas não podem ser resumidasaos fatores estruturais econômicos existentes em suas realidades locais. Como observado em diversosestudos, por vezes, a atuação dos anarquistas dependerá também da inserção em sua articulação políticalocal e internacional, na recepção de leituras e no caminhar de sua própria atuação política. No entanto,nesse caso, da estratégia antiorganizadora, não podemos excluir por completo a realidade socioeconômicados ambientes onde essa tática floresceu. Carlo Romani nos mostra que “em uma região onde a indústriaainda é muito incipiente (o desenvolvimento industrial na região de Empoli deslanchará somente após1890), o proletariado urbano é pouco desenvolvido e as ideias anárquicas penetravam basicamente emdois grupos sociais distintos: o dos trabalhadores diários e dos artesãos e entre pequenos comerciantesempobrecidos. É do encontro de interesses entre esses dois grupos que nasce uma proposta de açãorevolucionária, antiorganizadora e socialista libertária”. ROMANI, Carlo. Op.cit. p.1583 Citação de Malatesta e Kropotkin utilizando tal estratégia em CORRÊA, Felipe. Op.cit, 2012 p.17784 Para adentrar as especificidades dos anarquistas insurrecionalistas ver SCHMIDT, Michael; VAN DERWALT, Lucien. Op.cit. 128-129.85 Idem. 129. Tradução nossa86 Uma ampla disseminação da propaganda pelo fato e das ações violentas podem ser entendidas aoobservar o andamento do congresso em questão, que tinha representantes de várias partes do globo, alémde apresentar diversos tipos de ações propagandistas ou violentas. Alexandre Samis nos informa que o“Congresso Anarquista de Londres (de 14 a 20 de julho de 1881), no ano seguinte à fórmula defendidapor Kropotkin, com representações da América, Alemanha, Inglaterra, Bélgica, Egito, Espanha, França,Holanda, Itália, Rússia, Sérvia, Suíça e Turquia, aprovaria, na sua segunda sessão, como tática para sealcançar a Revolução Social, a “propaganda pelo fato” e a ação ilegal, em oposição às disputasparlamentares e a apatia diante dos avanços da burguesia. Os meios de ação, entretanto, ficaram cindidosem duas vertentes: uma que via na ilegalidade, pura e simples, uma forma de fazer ruir o edifíciocapitalista e outra que, com o apoio da técnica e da ciência, em particular da química, era possívelmobilizar espíritos e produzir “artefatos” em favor da causa revolucionária. Esta última, em particular,seria responsável pela imagem, muitas vezes estereotipada, do anarquista como sendo sempre uma figuraexótica, um tanto misantropo, sempre com o rosto parcialmente coberto, trazendo no bolso ou nas mãosuma bomba. Deste Congresso, que consagraria o individualismo tático, a propaganda escrita e pelo“fato”, ficaria tributário o anarquismo até o fim do século. Neste colóquio libertário, a era dos atentadosencontrava o seu marco cronológico mais definido ou mesmo formal” SAMIS, Alexandre. Op.cit., 2009.p.67
37
reformismo, ou à cristalização de entidades que impediam a ação direta.87 Um expoente
importante na justificação teórica dessa orientação, inclusive de seu ideário
antissindicalista, foi Luigi Galleani, ativista que transitou na Itália e EUA, no fim do
século XIX e começo do XX, que afirmava:
Esse é o seu negócio: as reformas permanecem - e devem permanecer - umapreocupação e uma função da classe dominante, não dos anarquistas, nem dossocialistas ou, se estão sinceramente convencidos de que a expropriação daclasse dominante é uma inevitável condição de sua emancipação econômica.Consequentemente, os anarquistas acreditam que ao invés de curto alcance econquistas ineficazes, as táticas de corrosão e ataque contínuo devem serprioritários, que a demanda de greves de caráter abertamente revolucionáriomais do que a redução de horário ou de aumentos de salários irrisórios; queprocura, ao contrário, a experiência de uma solidariedade mais ampla e umaconsciência cada vez mais profunda, como uma condição indispensável para arealização da greve econômico geral de um comércio geral, de todos oscomércios, a fim de obter, por meio do uso inevitável da força e da violência, arendição incondicional das classes dominantes.88
Semelhantes discursos podem ser encontrados no jornal El Perseguido na
Argentina em 1890,89 e no Brasil, no La Battaglia, a partir de 1904.90 O difuso jornal La
Barricata de 1912, continuação do último jornal referido, reafirmou sua posição:
O sindicalismo nada tem de comum com o anarquismo, ou melhor, tem demais:o caráter efetivo de ação do sindicalismo é a negação do anarquismo. [...] Opartidão sindicalista é uma vasta armadilha em que foram colocados osprincípios fundamentais do socialismo e da anarquia para enjaular o elementoproletário e lança-lo em seguida à gloriosa conquista do sagrado aumento dedois vinténs para o dia de trabalho.91
É necessário salientar que o grupo em torno do jornal La Battaglia-La Barricata
era avesso às ações violentas e por esse mesmo motivo é necessário marcar uma
diferença entre algumas táticas antiorganizacionistas desse caso e dos demais grupos
insurrecionalistas, embora, em outras partes do mundo, os militantes que aderiam a
ambas estavam bem próximos. Contudo, enquanto alguns grupos acreditavam que sua
propaganda se dava nos próprios ataques e boicotes, incluindo ações violentas, o
primeiro acreditava que os boicotes, igualmente fora do espectro sindical ou em grupos
87 SCHMIDT, Michael; VAN DER WALT, Lucien. Op.it, p.123. 88GALLEANI, Luigi. The end of anarchism? Cienfuegos Press, Sanday, Orkney, U.K, 1982. p.24. Tradução nossa.89 COLOMBO, Eduardo. “A FORA e o “finalismo” revolucionário”. In: ______ (org.). Op.cit. p. 8190 BIONDI, Luigi. “Anarquistas italianos em São Paulo. O grupo do jornal anarquista 'La Battaglia' e a sua visão da sociedade brasileira: o embate entre imaginários libertários e etnocêntricos.” Cadernos Arquivo Edgard Leuenroth, Campinas – São Paulo, v. 5, n.8/9, p. 117-147, 1998.91 “Sindicalismo e Anarchismo”. La Barricata, 16/03/1913. Citado em: TOLEDO, Edilene. TravessiasRevolucionárias: ideias e militantes sindicalistas em São Paulo e na Itália (1890 – 1945). Campinas:Unicamp, 2004. p.32.
38
estáticos, estaria ligado também a um tipo de conscientização propagandística, oral e
escrita, não necessariamente violenta, inclusive ocupando o interior dos espaços
operários e subalternos. Fatores esses que já apontam certas nuances entre a própria
fileira de orientação antiorganizadora dentro do anarquismo.92
De todo modo, a escolha da associação fora do espectro sindical, as campanhas
incisivas contra as autoridades, contestando formas arbitrárias de governabilidade e o
emprego de boicotes, tentando mobilizar a população contra os abusos no ambiente de
trabalho também refletiam a posição do toscano Oreste Ristori, um dos seus principais
redatores. O militante havia chegado ao Brasil em 1904, depois de sua passagem na
Argentina e Uruguai.93 Na sua trajetória, que teve início nas regiões toscanas da Itália na
década de 1880, aderiu a diversas práticas insurrecionais e ligou-se a personagens de
também orientação individualista, aderindo, em suas estratégias, a atentados e roubos,
motivo pelo qual foi detido e encarcerado diversas vezes, inclusive em regiões
destinadas aos exílios. Também ficou conhecido pelas autoridades e pelas redes ativistas
como agitador de diversas manifestações, participando de círculos com diversidades
ideológicas, entre eles republicanos, anarquistas, socialistas e radicais em geral.94 Pela
sua intensa circulação, teve contato com anarquistas com forte influência dos
movimentos trabalhistas como Luigi Fabbri, defensor das táticas sindicais e da
organização anarquista, estabelecendo contato também, já na metade da década de 1890,
com o jornal L’agitazione de Ancona, que defendia posições próximas às de Errico
Malatesta, em sua fase organizacionista. Sem desconhecer, portanto, os debates
anarquistas dentro dos sindicatos, no entanto, Ristori preferia optar pela estratégia
antiorganizacionista, aderindo a táticas propagandísticas em grupos não solidificados,
acreditando alcançar, de sua maneira, uma sociedade autogerida, mesma posição
encontrada em outros grupos que também tiveram contato posteriormente como o jornal
L’Avvenire de Buenos Aires.95
Essa estratégia foi debatida e tensionada pela posição majoritária, em nível global,
92 Para Lucien Van der Walt e Michael Schmidt, os antiorganizacionistas (no caso dos anarquistas demassas antissindicalistas) e os anarquistas adeptos das estratégias insurrecionalistas tiveram algumarelação e podem ser confundidos, a primeira “aceitou lutas no local de trabalho, mas rejeitou os sindicatoscomo tal; alguns, como Hatta, trabalhou com os sindicatos, apesar de não ver estes como potencialmenterevolucionários [...]”. Já, os “insurrecionalistas salientaram a ação armada e a propaganda pela ação comomeio de evocar um levante revolucionário espontâneo, em conjunto com propaganda comum da palavra,que enfatizou a necessidade de revolução.” SCHMIDT, Michael; VAN DER WALT, Lucien. Op.cit,p.134. 93 Para adentrar as posições e trajetória de Oreste Ristori ver ROMANI, Carlo. Op.cit.94 Idem. p.17-40.95 Ibidem. p.40-47.
39
entre os anarquistas, que justamente visavam à introdução de sua ideologia no interior
dos ambientes de associação dos trabalhadores de intenção sindical. A estratégia de
massas ou organizacionista, levada adiante no início do desenvolvimento da cultura
política foi também fortemente impulsionada majoritariamente no século XX,
acompanhando e alimentando o avanço das entidades sindicais no mundo.96 Esses
ativistas acreditavam que a nova sociedade se construiria através das lutas e conquistas
dos movimentos com suporte popular e social.97 Devemos notar que esses anarquistas
sempre consideraram as ações e movimentos insurrecionais e revolucionários como
instrumentos necessários para a transformação social. Schmidt e Van der Walt assinalam
que a diferença entre as duas concepções
não é necessariamente a violência em si, mas o lugar em sua estratégia: para oanarquismo insurrecionalista, a propaganda pelo fato, levada por anarquistasconscientes, é vista como meio de gerar um movimento de massas; para maiorparte do anarquismo de massas, a violência opera como um meio de autodefesade um movimento de massas existente.98
Em São Paulo, esse método cresceu em torno do grupo O Amigo do Povo que
tinha como redatores Edgard Leuenroth, Neno Vasco e Benjamin Mota também
participantes de importantes grupos e periódicos A Terra Livre, A Lanterna e A Plebe.99
Tais personagens tentavam inflamar movimentos de caráter revolucionário, mas
consideravam ganhos de curto alcance nas lutas e conflitos econômicos e sociais,
exercitando a atividade de associação, elementos necessários, na concepção desses
personagens, para a obtenção da sociedade anarquista. Esse tom pode ser percebido
também nas falas do anarquista ucraniano Nestor Makhno, assíduo militante nas
primeiras décadas do século XX no leste europeu:
Libertamo-nos, na prática, de tal verborreia inconsequente, tão nociva à nossacausa, e pensamos exclusivamente em conduzir a luta até a vitória completa.No entanto, esta exige do anarquismo revolucionário, que gostaria de ocuparconscientemente seu lugar e desempenhar sua tarefa ativa nas revoluçõescontemporâneas, tensões imensas de caráter organizacional, tanto na formaçãode suas fileiras quanto na definição de seu papel dinâmico quando dosprimeiros dias da revolução, amíude abordados às cegas pelas massaslaboriosas.100
Ao contrário do que pensavam os adeptos da estratégia e das táticas
96 SCHMIDT, Michael; VAN DER WALT, Lucien. Op.cit, p.149-170.97 CORRÊA, Felipe. Op. cit. 2011 p.52-53.98SCHMIDT, Michael; VAN DER WALT, Lucien. Op. cit. p.20. Tradução nossa.99 SAMIS, Alexandre. Op.cit., 2009. p.89-92. 100 MAKHNO, Nestor; SKIRDA, Alexandre; BERKMAN, Alexandre. Nestor Makhno e a RevoluçãoSocial na Ucrânia. Imáginário/ Tesão – A Casa da Soma/ Nu-Sol, 2001. p.39-40
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antiorganizacionistas ou insurrecionais, era a participação dos anarquistas nos
sindicatos e não sua fuga que barraria o reformismo nos ambientes operários. Os
envolvidos com essa forma de luta mostravam que os problemas da não organização,
que poderia desfragmentar os próprios movimentos sociais e associações, esses
essenciais, nessa visão, para o alcance da revolução definitiva. Dessa forma, entendiam
o ativismo anarquista ligado também aos ganhos trabalhistas econômicos de curto
alcance, evidenciando progressivamente questões políticas. Malatesta, no início do
século XX, também pontuava sua posição:
Quaisquer que sejam os resultados práticos da luta pelas melhorias imediatas,sua principal atitude reside na própria luta. É por ela que os trabalhadoresaprendem a defender seus interesses de classe, compreendem que os patrões eos governantes têm interesses opostos aos seus, e que não podem melhorar suascondições, e ainda menos se emancipar, senão unindo-se entre si e tornando-semais fortes do que os patrões. Ganharão mais, trabalharão menos, terão maistempo e força para refletir sobre as coisas que os interessam; [...] Se nãoobtiverem êxito, serão levados a estudar as causas de seu fracasso [...] ecompreenderão, enfim, que para vencer, segura e definitivamente, é precisodestruir o capitalismo. [...] Da luta econômica deve-se passar à luta política,contra o governo.101
Os ativistas organizadores, tanto no mundo como nas cidades de São Paulo e Rio
de Janeiro, apresentaram também inúmeras formas, visões e táticas sobre a atuação
dentro dos sindicatos ou associações trabalhistas, inquirindo também sobre os limites
dessa.102 Um primeiro grupo entendia que a fusão do anarquismo e sindicalismo deveria
ser ideológica e prática, esses almejavam criar sindicatos com princípios prévios
libertários (anarcossindicalismo) que minariam, nessa visão, com melhor eficácia, a
tentativa de reformismo dentro desses ambientes. Esse é o caso da Confederación
Nacional del Trabajo (CNT) na Espanha, fundada em 1910, ou da experiência da
Federación Obrera Regional Argentina (FORA) a partir de 1905, que usavam as
posições declaradamente anarquistas como meio sindical primordial.103 No Brasil, João
Crispim, na segunda década do século XX, defendia tal tática por meio de assíduos
debates. Para ele:
O sindicalismo anarquista, precisamente por ser anarquista, trata de banir deseu seio todos os dogmas, todas as regulamentações, todos os egoísmos, ehierarquias entre as classes operárias, para que os sindicatos ou a ação operária,
101 MALATESTA, Errico. Escritos revolucionários. São Paulo: Imaginário, 2008. p.71-72. 102 Ver Corrêa, Felipe. Op.cit., 2011. 103 MADRID, Francisco. “Anarquismo e organização na Espanha. “Solidariedad Obrera” e as origens da CNT”; COLOMBO, Eduardo. “A FORA e o “finalismo” revolucionário”. In: COLOMBO, Eduardo (org.). Op.cit. p. 45-54; p.75-124.
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sejam, a par da resistência, a escola da aprendizagem, da liberdade e dasolidariedade..104
Outro caso foi a constituição do dualismo organizacional105, que reconstituiu, em
parte, a tradição de atuação encabeçada pela ASD na Primeira Internacional, discutida
anteriormente. Esses militantes acreditavam que os trabalhadores deveriam se organizar
através do sindicalismo revolucionário, um organismo de caráter especialmente
econômico106, no qual paulatinamente garantiriam direitos básicos para a vivência dos
trabalhadores, estimulando a resistência classista e possivelmente também alguma
consciência política de forma progressiva. A desvinculação explícita com o rótulo
anarquista mostrava ser uma estratégia a fim de reunir todos os trabalhadores em causas
comuns, almejando, em uma ótica encabeçada por ativistas como Mikhail Bakunin, ser
essencial para a transformação da sociedade. Acreditando ser o sindicalismo apenas uma
parte de seu trabalho, os defensores desse tipo de ativismo construíram grupos de
militância estruturados, muitas vezes até nomeados como partidos ou alianças, que se
voltariam para o norteio interno das propostas e táticas ideológicas a serem mobilizadas
pelos seus membros no interior dessas associações, mas também de movimentos sociais
e grupos de propaganda, figurando também, além dessa organização de classe para a
resistência econômica, uma organização política e ideológica.107 Nos ambientes
trabalhistas, potencializaram os debates e formas de atuação do sindicalismo, a fim de
nortear sua função revolucionária. Tal tática tomava formas e posições mais firmes nos
debates entre Errico Malatesta e Pierre Monatte no Congresso de Amsterdã em 1907.108
Malatesta defendia que
Os anarquistas devem reconhecer a utilidade e a importância do movimentosindical, devem favorecer seu desenvolvimento e fazer dele uma das alavancasde sua ação, esforçando-se em fazer prosseguir a cooperação do sindicalismo edas outras forças do progresso numa revolução do sindicalismo e das outrasforças do progresso numa revolução social que comporte a supressão dasclasses, a liberdade total, a igualdade, a paz e a solidariedade entre todos os
104 CRISPIM, João. “Modalidades do sindicalismo”. A Rebelião. 1 de maio de 1914, n.1. In: Anarquistasno Sindicato: um debate entre Neno Vasco e João Crispim. São Paulo: Biblioteca Terra Livre; Núcleo deestudos libertários Carlo Aldegheri, 2013. p.91105 Ver CORRÊA, Felipe.“Questões organizativas do anarquismo”. Espaço Livre, vol. 8, num. 15, p.33-48, 2013. 2013. p.35106 Necessidades econômicas ou materiais que, em um longo prazo, exercitará a ação direta e astransformações e petições políticas. Posições encontradas no desenvolvimento da cultura políticaanarquista em Proudhon, Bakunin e Malatesta, como mostrado anteriormente.107 Sobre a proposta de Bakunin e da ADS seguida pelos anarquistas organizacionistas ver Côrrea,Felipe. Op.cit, 2012. p.170-172.108 OLIVEIRA, Tiago. Anarquismos, sindicatos e revolução no Brasil (1906-1936). Tese (Doutorado em História). Universidade Federal Fluminense, Rio de Janeiro, 2009. p.67-68.
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seres humanos. Mas seria uma ilusão funesta acreditar, como muitos o fazem,que o movimento operário resultará por si mesmo, em virtude de sua próprianatureza, em tal revolução. Bem ao contrário: em todos os movimentosfundados sobre interesses materiais e imediatos (e não pode estabelecer-sesobre outros fundamentos um vasto movimento operário), é preciso o fermento,o empurrão, a obra combinada dos homens de ideias que combatem e sesacrificam com vistas a um futuro ideal. Sem esta alavanca, todo movimentotende fatalmente a se adaptar às circunstâncias, engendra o espíritoconservador, o temor pelas mudanças naqueles que conseguem obter melhorescondições. Freqüentemente, novas classes privilegiadas são criadas,esforçando-se por fazer tolerado, por consolidar o estado de coisas quedesejaria abater. Daí a urgente necessidade de organização propriamenteanarquista que, tanto dentro como fora dos sindicatos, lutam pela realizaçãointegral do anarquismo e procuram esterilizar todos os germes da corrupção eda reação.109
Como evidenciando, para muitos anarquistas como Malatesta, o sindicato teria um
destino reformista, e por mais que fosse necessário para garantir condições mínimas aos
trabalhadores, necessitava de complementos para alimentar seu caráter insurreto.
Porém, a posição majoritária provinda da tradição anarquista organizacionista,
apostou sempre na desvinculação explícita entre anarquismo e sindicalismo, o
sindicalismo revolucionário, mas sem o norteio interno político do anarquismo. Muitas
vezes, essa prática era resultado da própria dificuldade na construção da militância
dualista. A ativista Emma Goldman, nascida na Lituânia e que atuou em diversos pontos
da Europa ocidental e oriental participando também de movimentos dos Estados
Unidos, e Neno Vasco, militante no Brasil e Portugal, parcialmente nesse prisma, mas
ainda quando não constituídos de organismos sólidos politicamente anarquistas,
adentraram, muitas vezes, pessoalmente nos sindicatos e associações trabalhistas,
norteados pelas discussões anarquistas globais e através de redes militantes locais,
acreditando ser importante alavancar as lutas de massas mesmo antes de uma construção
política, uma vez que o movimento operário, nesse período, crescia potencialmente.110
Essa foi uma poderosa tendência seguida pelos militantes nas primeiras décadas do
século XX, os quais, em uma observação empírica, estavam envolvidos com a
construção do sindicalismo revolucionário em muitos casos no mundo, até o fim da
Primeira Guerra Mundial.111Paralelamente, algumas interpretações e coligações
militantes, como de Pierre Monatte afirmavam que “o sindicalismo se basta a si
próprio”112 e, por isso, não só tinham dificuldades em aderir uma luta política específica
anarquista mas começaram a apostar propositalmente em uma luta essencialmente
109 Malatesta, Errico. Op.cit., 163-164. 110 CORRÊA, Felipe. Op.cit. 2012. p.179111 SAMIS, Alexandre. Op.cit. 2009. p.260-261112 MONATTE, Pierre. Em Defesa do Sindicalismo. Citado em SAMIS, Alexandre. Op.cit., 2009. p.136
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econômica. Alguns desses personagens acreditavam que o sindicalismo revolucionário e
sua ação prática, através das greves, ou pela própria estrutura sindical, encabeçaria uma
revolução e organizariam uma sociedade futura. Para esses, o sindicalismo
revolucionário além de ser uma organização de classe para a reclamação econômica se
transformava, na prática, em uma organização também política e ideológica.
Nesse caso, o discurso extremo de suposta desvinculação com o anarquismo
começou a atrair diversos militantes, que iniciaram um movimento de disputa ou
apropriação da tática de luta mencionada. A construção de sindicatos revolucionários,
fora de projetos anarquistas, circularam em torno de personagens como Alceste de
Ambris, militante socialista que atuou na Itália e na cidade de São Paulo. Esse também
parece ser o caso de alguns discursos encontrados nas resoluções da Confederação
Générale du Travail (CGT) em 1875 e no sindicalismo extraído do interior da Unione
Sindicale Italiana (USI), surgida em 1912, cuja construção sindical tentava se
diferenciar das propostas libertárias. Para a autora Edilene Toledo, o sindicalismo
revolucionário brasileiro, principalmente a partir das resoluções encontradas no
Primeiro Congresso Operário em 1906, estaria vinculado a uma experiência
transnacional que o desenvolveria como discurso e prática independente das ideologias
libertárias, embora anarquistas participassem deste. 113
Para Carl Levy, no entanto, a história do sindicalismo e das associações operárias
italianas devem ser vistas através das culturas políticas no interior dos movimentos
sociais e trabalhistas anteriores à construção destes. Nessa perspectiva, mesmo a
edificação do sindicalismo revolucionário como dissidência do Partido Socialista
Italiano (PSI), não anulou as influências do anarquismo na Itália, que desde a segunda
metade do século XIX, esteve fortemente presente, oferecendo importantes símbolos,
tradições e linguagens para a constituição dos organismos classistas. Esse sindicalismo
absorveu propostas de ação direta ligadas inevitavelmente ao anarquismo que via a
resistência econômica sobre associações como impulsionadora de movimentos sociais e
insurreições.114 Nesse aspecto, seguido por Tiago Oliveira, a experiência sindical no
Brasil, em 1906, no Primeiro Congresso Operário, assim como a CGT na França,
representaram o sucesso da influência das estratégias políticas libertárias, visto que
conseguiram disseminar um sindicalismo apartado do reformismo e do clericalismo, a
113 Ver TOLEDO, Edilene. “Teoria, Prática e História do Sindicalismo Revolucionário”; “Alceste deAmbris”. In: TOLEDO, Edilene.Travessias Revolucionárias: ideias e militantes sindicalistas em SãoPaulo e na Itália (1890 – 1945). Campinas: Unicamp, 2004. p. 73-162; 163-267.114 Levy, Carl. “Italian Anarchism, 1870-1926.” In: GOODWAY, David (org). For Anarchism: History, Theory, and Practice. London: Routledge, 1989. p.26-49.
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partir de evidentes influências da autogestão com base ideológica nas posições
anarquistas.115 Revendo o andamento das propostas e táticas dos anarquistas no interior
da construção dos organismos de coordenação sindical no Brasil, o autor mostra que
pelo menos do ponto de vista dos anarquistas que o propagavam, osindicalismo revolucionário foi muito mais um método de ação do quepropriamente uma corrente política autônoma. Os anarquistas o viram comomeio para manterem-se atuantes no meio para conseguir adeptos e combaterseus adversários. Um método que, se não exclusivo, foi instrumentalizado a talponto de ser apresentado como o método em contraposição aos métodos“maliciosos” de seus adversários.[...] A intensidade da defesa dos princípios dosindicalismo revolucionário pelos anarquistas, pelo menos no que tange àneutralidade política, deveu-se, assim, a uma estratégia de sobrevivência doanarquismo na organização sindical dos principais centros em industrializaçãodo país (e aqui talvez caiba uma analogia às avessas da “planta exótica), quepermitiu sua ampliação e também sua identificação com o sindicalismorevolucionário.116
Se no começo do século XX, como observado pelos autores, a tendência e a
prática sindicalista revolucionária estavam intimamente ligadas ao ativismo anarquista,
é facilmente perceptível a disseminação de projetos e discursos paralelos, nesses
ambientes, que tentavam se diferenciar dos libertários.117 O jornal O Carpinteiro, em
1905, refletindo sobre a construção de ligas de resistência e sindicatos que lutavam
pelas oito horas de trabalho, no caso brasileiro, publicou:
As organizações operárias, pelos métodos em que são baseadas, pelos fins quese estabelecem, devem necessariamente, indiscutivelmente, ficar autônomas. ALiga de Resistência é o resultado direto da luta de classe e seu valor está emrelação com a sua força numérica. [...] De fato, elas não seriam abertas senãopelos socialistas, pois a adesão à Liga teria por consequência a adesão, mesmoindireta ao partido... 118
Percebendo essa possível movimentação, alguns anarquistas mostravam os limites
dessa atuação, revelando a importância de ativismo e propaganda em âmbitos e locais
diversos, considerando o sindicalismo, mesmo sendo empiricamente seu principal vetor
social, apenas como uma ferramenta.119 Dessa posição, um dos militantes de destaque
foi Gregório Nazianzeno de Vasconcelos, nome verdadeiro de Neno Vasco, citado
anteriormente. Nascido em Portugal no ano de 1878, veio, com oito anos de idade, para
115 OLIVEIRA, Tiago. Op.cit. p.79-90.116 Idem. p.31-32.117 Van der Walt e Steven Hirsch assumem que os casos que isso aconteceram foram também“substanciais” de forma global. Ver HIRSCH, Steven; VAN DER WALT, Lucien (org). Op.cit. p.xxxvi118 “A Coluna das perguntas – O amigo do Carpinteiro”. O Carpinteiro. 1 de junho de 1905. Citado emToledo, Edilene. Op.cit, 2004. p.284119 SAMIS, Alexandre. Op.cit., 2009 p.95
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São Paulo com sua família. Voltou para seu país de origem para concluir seus estudos
como bacharel em direito. Após isso, em 1900, começou a se envolver com atividades
militantes denunciando as arbitrariedades da polícia e a escrever em diversos periódicos,
entre eles os republicanos. Com seu retorno a São Paulo em 1901, firma seu contato
com militantes anarquistas e estabelece íntimas relações com o movimento operário da
cidade. Após intensos debates com grupos políticos variados, e também no interior do
anarquismo, sobre o alcance dos ganhos efetivos, Vasco passou a apoiar o sindicalismo
como tática importante para a construção de uma nova sociedade.120 Para Vasco, o
sindicato, era
Um terreno admiravelmente predisposto para a sementeira das nossas ideias –ideias da emancipação dos oprimidos e abolição das classes, expressão dasnecessidades populares e consequência lógica do movimento operário; masachamos imprescindível essa semeadura, a ação de uma minoria revolucionáriaconsciente e ativa dentro da organização sindical.121
Como inclinação indispensável, o anarquismo deveria, para o militante,
estabelecer formas de organização interna entre os grupos, mas, ao mesmo tempo, se
associar com as entidades trabalhistas a fim de congregá-los contra as contradições do
sistema social, referências consonantes também com as propostas anarquistas com
recostos no sindicalismo em várias partes do globo.122
Contando com métodos diversos, principalmente sobre a questão do sindicalismo
e as formas de atuação neste, os anarquistas, no geral, mantiveram estreita relação e
tentavam manter aspectos ideológicos comuns por meio de debates, campanhas e até
mesmo a escrita de um jornal para o outro, fazendo circular intensamente as próprias
táticas e estratégias entre os grupos. O próprio Ristori definiu seu jornal aberto às
tendências táticas, sendo um polo catalisador de várias iniciativas derivadas do
movimento libertário na cidade de São Paulo, por exemplo.123 Do mesmo modo, O
Amigo do Povo, embora com posições majoritárias, recebia os debates e orientações de
militantes ligados a táticas e estratégias divergentes, como Angelo Bandoni, Giulio
Sorelli e o próprio Oreste Ristori.124
Na pesquisa de Antoniette Oliveira é possível perceber a flexibilidade dos
120 Para entender a trajetória e posições de Neno Vasco ver SAMIS, Alexandre. Op.cit., 2009.121 VASCO, Neno. “Os anarquistas no movimento operário”, A Voz do Trabalhador, 1915, n.66. In:Anarquistas no Sindicato: um debate entre Neno Vasco e João Crispim. São Paulo: Biblioteca TerraLivre; Núcleo de estudos libertários Carlo Aldegheri, 2013. p.111. 122 Ver SCHMIDT, Michael ; VAN DER WALT, Lucien. Op.cit.123 ROMANI, Carlo. Op.cit., p.159124 SAMIS, Alexandre. Op.cit., 2009. p.96.
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militantes que atuavam em jornais e grupos diversos. Para a autora, houve a existência
de personagens que mantiveram relações estáveis com seus principais grupos de
afinidades ou posições mais ou menos fixas, mas também existia uma poderosa
mobilidade nas construções e desconstruções dos grupos libertários e na utilização de
seus métodos sociais e políticos. Assim,
os mesmos princípios de um [grupo] circulavam entre os diversos outrosgrupos e organizações. Tal constância dos fundamentos básicos dos gruposlibertários se dava, muitas vezes, devido a esta mobilidade dos seusparticipantes. Isto esclarecido, percebe-se, de antemão, que havia um fio decontinuidade e, sem dúvida, de força.125
Apesar de diferenças e tensões, os militantes libertários assíduos se reconheciam
dentro de uma mesma família política, esta que, por sua vez, não se constitui apenas de
táticas, mas também de símbolos, festas, ideários e, não obstante, pela tensão de
estratégias diversas. Foram essas e seus respaldos na realidade, principalmente em cada
região onde essa ideologia se instalou, que davam potência para a disseminação da
cultura política anarquista.126
1.2. Anarquismo, anti-imperialismo e libertação nacional.
A inserção anarquista, em cada cidade ou país, mesclando considerações obtidas
pelo seu movimento globalmente mas também de suas próprias considerações
particulares geravam a construção de ideários que serão rebuscados e revistos pelos
aderentes do anarquismo de forma transnacional. Em 1917, o jornal A Plebe,
denunciava os efeitos da Primeira Guerra Mundial:
Cidades destruídas. Campos devastados. Museus e escolas incendiados. Popu-lações inteiras desaparecidas. Tudo isto praticado em nome do estúpido e odio-so preconceito patriótico. Eis ao que a canalha burguesa e governante reduziuquase toda a Europa. Crime sobre crimes. Em toda a parte tem sido esse o pa-pel das classes dominantes. [...] Façamos também a nossa guerra, a única hu-mana e justa. Queimemos os nossos cartuchos, não contra os proletários de ou-tros países, mas contra os velhacos exploradores que nos infelicitam, roubam eoprimem. Derrubemos as atuais instituições, causa dos males que acabrunhama humanidade sofredora.127
125OLIVEIRA, Antoniette. (Des) fazer-se, (Re) viver... a (des)continuidade das organizaçõesanarquistas na Primeira República. Dissertação (Mestrado em História). Universidade Federal deUberlândia, Minas Gerais, 2001. p.51.126 Interpretação também de GODOY, Clayton. Op.cit.127 ABRANCHES, Antônio. “A Grande Guerra.” A Plebe, 4 de agosto de 1917. p.2.
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Mesmo não fazendo parte de um país que foi afetado pelas grandes destruições
desse evento é interessante notar como os anarquistas partilhavam uma noção de inter-
nacionalismo, buscando ligações para fortalecer sua militância local bem como suas re-
des em outros países. Nessa articulação política, o ideário anti-imperialista, próprio dos
libertários, teve seu desenvolvimento. É importante adiantar que nenhum dos nossos
personagens ou grupos analisados participaram de qualquer processo de libertação colo-
nial ou algo parecido. Mas, como veremos, a forte busca de um internacionalismo práti-
co para conter o avanço dos conflitos nacionais, contidos nos jornais Guerra Sociale e A
Plebe, na segunda década do século XX, tinha muita influência, além das suas próprias
demandas específicas e conjunturas, que iremos adentrar adiante, algumas concepções
geradas décadas antes pelo anarquismo, na construção de ideários e práticas dentro de
suas estratégias e cultura política.
Esse tipo de atuação, ao abordar o anarquismo, que sempre reivindicou o interna-
cionalismo político, não é tão óbvia como parece. Para o cientista político Benedict An-
derson, que considera o anarquismo, seja na militância ou mesmo na influência indireta,
uma das maiores forças contra o avanço da dominação nacional, principalmente das na-
ções europeias desde o século XIX, a história dessa participação foi amplamente ofusca-
da ou negligenciada por muitas pesquisas até recentemente.128
De fato, se pensarmos na literatura sobre o socialismo, muitos estudos se centra-
ram principalmente no papel que a Revolução Russa teve no combate às forças imperia-
listas em seu território, no período da Primeira Guerra Mundial e depois, através da in-
fluência, a partir do contato com outros partidos comunistas no mundo, alavancando
igualmente as lutas contra os movimentos fascistas.129 Não queremos ignorar ou negli-
genciar esses trabalhos e muito menos minimizar a força e a importância do papel da
emergência do bolchevismo e depois na implementação da União das Repúblicas Socia-
listas Soviéticas (URSS) nesse processo. Não obstante, como ainda aponta Anderson,
antes mesmo do início do primeiro conflito mundial e da própria revolução soviética,
uma força anti-imperialista internacionalista já moldava muito das perspectivas de anar-
quistas e sindicalistas no mundo.130
Como Michael Schmidt e Lucien Van der Walt notam, existe uma ampla tradição
anarquista preocupada com a libertação de grupos étnicos ou nacionais dos poderes de
128 ANDERSON, Benedict. Op.cit., 2005. p.1-8. 129 Para adentar esse debate ver SCHMIDT, Michael; VAN DER WALT, Lucien. Op.cit. 23-26. 130 Ver ANDERSON, Benedict. “Preface.” In: HIRSCH, Steven; VAN DER WALT, Lucien (org.). Op.cit., 2010. p.xiii-xxxi
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grandes potências ou de economias e políticas opressoras. Nesse sentido, o ativista Mik-
hail Bakunin tinha uma “forte simpatia por qualquer levante nacional contra todas as
formas de opressão, afirmando o direito de todo povo autodeterminar-se [...e que] nin-
guém tem o direito de impor seus costumes, seus hábitos, suas línguas e suas leis.”131
Como adiantamos, realmente, Bakunin e seu órgão político, a ADS, imaginaram o anar-
quismo sendo alastrado das regiões periféricas para as centrais dando voz para os gru-
pos minoritários. Nesse caso, esses militantes não imaginavam as lutas de libertação
como construção consequente de outro nacionalismo, mas de um embate que unia as es-
pecificidades e necessidades locais com um ideário internacionalista que visava alastrar
potencialmente a revolução após a destruição da opressão regional ou nacional.
Mesmo com essa atuação, que influenciava os rumos políticos do anarquismo, é
necessário salientar que não foram todos os anarquistas que receberam ou construíram o
ideário anti-imperialista e muito menos participaram de qualquer processo de libertação
nacional. Muitos ativistas, por exemplo, ao perceber que as lutas de libertação dos esta-
dos dominados por outras potências, levaria, na visão desses, a um tipo de nacionalis-
mo, preferiram atuar em suas redes transnacionais não orgânicas, ou através de uma luta
extremante regionalista e federativa, através dos grupos de propaganda ou criando mo-
vimentos insurrecionais, tentando desconstruir, através da divulgação de suas ideias ou
por essas lutas, qualquer imagem nacionalista de ambos, ocupados e dominadores.132
Outros, em um extremo oposto, enxergaram os conflitos nacionais declarados como
agregadores de forças contra outras potências econômicas e políticas e, ignorando a teo-
ria anarquista que visa proteger os grupos minoritários dentro das unidades nacionais,
apoiaram algum lado do conflito. Esse foi o caso, para o historiador Woodcock, dos per-
sonagens Jean Grave, Piotr Kropotkin, Charles Malato e Paul Reclus declarando apoio
aos Aliados, especialmente na França, depois de vislumbrarem o aumento das mortes de
seus conterrâneos durante o conflito e a suposta ineficácia de suas propagandas antimili-
taristas nesse período.133 Do mesmo modo, a USI e a CGT, também contando com a for-
131 Bakunin citado por SCHIMIDT, Michael; VAN DER WALT, Lucien; Op.cit., p. 309.132 Faltam estudos que sistematizam os grupos que tiveram essa posição. Mas pelo que tudo indica, comoapontamos, os antiorganizacionistas ou os anarquistas aderentes da estratégia insurrecionalista tinhamextrema desconfiança dos organismos mais formais ou a aderirem a construção do sindicalismo e dosorganismos trabalhistas mais sólidos. Nesse caso, embora muitos participassem de campanhas anti-nacionalistas ou contrárias aos sistemas oligárquicos (como o caso dos jornais La Battaglia e Elperseguido), tinham dificuldade na associação e na construção de alianças que pudessem fortalecer, navisão destes, um tipo de autoritarismo ou solidificação de poder. Ver SCHMIDT, Michael; VAN DERWALT, Lucien. Op.cit, 123-143, Levy, Carl. Op.cit., TOLEDO, Edilene. Op.cit., 2004. p.27-73 eANDERSON, Benedict. Op.cit., 2005. p.69-91. 133 Woodcock. Op.cit. Volume2: o movimento. p.99.
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te presença de sindicalistas pragmáticos e socialistas, tiveram alas e conselhos que apoi-
aram seus respectivos países, numa forma de rebater, para eles, “o militarismo austríaco
e alemão, para uma futura revolução contra a reação.”134
Todavia, em uma comparação global, os anarquistas, principalmente fora da Euro-
pa ocidental e nas regiões afetadas, seja das colônias apoderadas desde o final do século
XIX, quanto durante os efeitos das grandes guerras, participaram amplamente de uma
posição anti-imperialista construindo táticas e práticas enraizadas nas estratégias anar-
quistas (insurrecionalistas ou de massas). Os autores Michael Schmidt e Lucien van der
Walt notam ainda que existiram dois tipos de abordagens em relação a essa atuação:
Um tipo de abordagem anarquista e sindicalista foi a de apoiar correntes nacio-nalistas acriticamente, considerando suas lutas como um passo na direção cor-reta. Para alguns, isso significava apoiar a formação de pequenos Estados, quelhes eram preferíveis aos grandes, perspectiva rejeitada pela maioria dos anar-quistas. [...] A mais sofisticada abordagem foi a de participar das lutas de liber-tação nacional buscando moldá-las, vencer a batalha de ideias e afastar o nacio-nalismo, promovendo uma política de libertação nacional por meio da luta declasses, e dando às lutas de libertação nacional um sentido revolucionário. Nes-se tipo, considera-se que o nacionalismo é apenas uma corrente nas lutas de li-bertação nacional ou anti-imperialistas, e não necessariamente a corrente domi-nante, e que as lutas de libertação nacional podem ter vários resultados. Paraalguns daqueles que compartilham esta posição, a classe dominante nacionalemergente é incapaz de romper, de fato, com o poder dos imperialistas; paraoutros, há possibilidades de ela realizar esta ruptura, mas os resultados frustra-riam uma genuína libertação popular, que abarcasse a massa do povo.135
De acordo com os autores, de fato, alguns anarquistas participaram das libertações
nacionais apenas no intuito de destruírem os poderes dominantes no momento, não
criticando, no interior das lutas e de seus ativismos, qualquer crescimento ou formação
de nacionalismos ou de políticas excludentes. Assim, muitos consideravam uma etapa
necessária um tipo de libertação colonial e a formação de seus contornos culturais e
políticos para depois a necessidade de sua desconstrução. Esse parece ser o caso das
Filipinas e Cuba, estudado por Benedict Anderson, nos quais o nacionalismo absorveu
as demandas e influências socialistas e anarquistas, mas se sobressaindo com potencial
emergência, com pouca tensão dos membros desses últimos, não só pelas suas
convicções uma vez que existiam frentes antinacionalistas nesses países, mas também
pelo tipo de aliança construída ou pelas dificuldades apresentadas diante o processo.136
Outra posição, no qual podemos citar Bakunin e depois Nestor Makhno, Errico
134 ANTONIOLI, Maurizio. “A USI: O Sindicalismo Revolucionário Italiano.” In: COLOMBO, Eduado (org.). Op.cit., p.191-205. p.200. 135 SCHMIDT, Michael; VAN DER WALT, Lucien. Op.cit. p.310-311. Tradução nossa.136 ANDERSON, Benedict. Op.cit., 123-189.
50
Malatesta, Emma Goldman e Luigi Fabbri e nos nossos casos, Gigi Damiani, Edgard
Leuenroth e Florentino de Carvalho, mesmo em níveis diferentes, defendia que os
envolvidos nessas lutas devem tentar barrar “todas as vaidades, pretensões, invejas e
hostilidades nacionais, devem fundir-se [...] no único interesse comum e universal da
revolução, que assegurará a liberdade e a independência de cada nação, pela
solidariedade de todas137.” Tais militantes aderiram às lutas nacionais, ou pelo menos
imaginaram os ganhos da classe trabalhadora dentro dessa demarcação política e
econômica, mas sempre se opondo às atitudes contrárias ao desenvolvimento do
socialismo libertário, do apoio mútuo e da solidariedade horizontal. Nesse intuito,
embora, em diversos desses casos, aliados com republicanos e socialistas das demais
vertentes, buscavam barrar, no interior do movimento, a construção de um Estado
centralista que resultaria em outro nacionalismo potencialmente excludente. A estratégia
era alavancar a revolução desses grupos em consonância com os sindicatos e federações
desembocando no internacionalismo revolucionário.
Um ótimo exemplo desse caso foi a construção do Movimento Makhnovista na
história da Revolução Ucraniana entre 1918 e 1921. Uma longa tradição por lutas de
independência na Ucrânia já fazia parte do ideário político da população contra os
poderes aristocráticos e monárquicos, a qual, em 1918, foi cedida também ao poderio e
à ocupação militar, política e econômica do governo austro-alemão, aumentando, dessa
forma, a exploração imperialista. Já, no início desse processo, era criado o Movimento
Revolucionário de Camponeses na Ucrânia, contando fortemente com trabalhadores
camponeses em oposição aos poderes instalados. Mais tarde, no sul do país, quem
garantiu a unificação dessa luta foi o Movimento Makhnovista que tinha o ativista
Nestor Makhno um dos seus principais articuladores.138 Tal movimento, apesar de ser
bastante estratificado e contar com uma forte frente de batalha, tinha amplo respaldo da
população e apostava, em seus manifestos e práticas, na transformação do território em
unidades autônomas, sobre a base do agrupamento revolucionário eautogestinário sócio-econômico dos trabalhadores, na via da construção de umanova sociedade. Assim [para os maknovistas] compreendendo esta palavra deordem, os camponeses a fizeram sua [revolução], aplicaram-na,desenvolveram-na e defenderam-na contra os ataques dos socialistasrevolucionários da direita, dos cadetes e da contra-revolução monarquista.139
137 BAKUNIN, Mikhail. Op.cit., 2009. p.65.138 Ver SHUBIN, Aleksandr. “The Makhnovist Movement and the National Question in the Ukraine, 1917-1921.” In: HIRSCH, Steven; VAN DER WALT, Lucien (org). Op.cit. p.147-193. 139 MAKHNO, Nestor. “O grande outubro na Ucrânia.” In: MAKHNO, Nestor; SKIRDA, Alexandre;BERKMAN, Alexandre. Op.cit., p.22.
51
Ou seja, ao contrário dos caminhos tomados pelos sovietes e bolcheviques em
outras regiões que formariam a URSS, os anarquistas na Ucrânia se juntaram às
demandas da população, já dentro de tradição anti-imperialista, contrários tanto ao
poder dos antigos donos de terras ou monarquistas mas também das novas instituições
que estavam sendo instaladas, propondo, em resposta, a auto-organização dos
trabalhadores e impedindo a formação de outro Estado centralizador. Nesse caso,
mesmo diversas vezes aliados aos exércitos socialistas russos contra os imperialistas e
agrários, criticavam, julgando-os de “revolucionários de direita”, também o tipo de
encaminhamento das lutas na Revolução Russa que, na visão deles, desembocariam na
construção de poderes que não seriam essencialmente populares. E, por esses mesmos
motivos foram massacrados com o endurecimento do regime que levava os soviéticos a
caçarem ideologias divergentes nos territórios que almejam anexar ao seu Estado. Desse
modo, para o autor Felipe Corrêa, é possível considerar a política proposta nesse caso
num
tipo de movimento socialista e revolucionário, que reivindicada a socializaçãonão somente da propriedade privada, mas também do poder político. Em seuprojeto político mais amplo, a propriedade privada e o Estado deveriam sersubstituídos por conselhos autogestionários de trabalhadores. Os meios paratanto deveriam se apoiar na participação e na luta generalizada e voluntária decamponeses e operários, na independência em relação aos partidos políticos ena construção, pela base, das próprias mobilizações desses trabalhadores. Essesprincípios deveriam pautar a conformação, durante esse processo, dos germesda nova sociedade que se desejava construir.140
Além do combate às opressões que afligiam minorias étnicas e nacionais, como
nesse caso, um claro antimilitarismo já estava nas decisões dos congressos
internacionais dos anarquistas. No Congresso de Amsterdã, em 1907, além dos debates
e decisões sobre a atuação dos anarquistas nos sindicatos, como evidenciamos
anteriormente, foi declarada também uma forte posição contrária a qualquer conflito
militar e igualmente à formação de exércitos nacionais.141
Embora alguns sindicalistas e anarquistas, como destacamos, tenham declarado
apoio aos seus países depois da eclosão da Primeira Guerra Mundial, outros que nestes
participaram e que aderiram as decisões do referido congresso combatiam o militarismo
140 CORRÊA, Felipe. “A Prática Revolucionária da Makhnovitchina.” Instituto de Teoria e HistóriaAnarquista, p.1-21, 2015. p.4 Disponível em: https://ithanarquista.files.wordpress.com/2015/01/felipe-correa-a-prc3a1tica-revolucionc3a1ria-da-makhnovitchina-1918-1921.pdf. 141 WOODCOCK, George. WOODCOCK, George. Historia das ideias e movimentos anarquistas. Porto Alegre: L&PM, 2007. 97-99.
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e o imperialismo, através de seus grupos e jornais, tanto de ativistas no interior desses
ambientes, quanto das campanhas dos Estados-Nacionais que incentivavam a população
apoiarem tais conflitos. Na Itália, militantes como Errico Malatesta, Luigi Fabbri,
Libero Merlino e Luigi Bertoni continuavam suas propagandas e atuações incisivas nos
ambientes trabalhistas, influência refletida também na greve geral na cidade de Ancona,
em 1914, acompanhando intensas manifestações exprimindo caráter antimilitarista e que
foram amplamente reprimidas, conhecidas como a “Semana Vermelha.” Conseguindo
fugir, Malatesta, um dos ativistas presentes no evento e que neste contava com um órgão
da estratégia do dualismo organizacional (Partido Anarquista de Ancona), continuou sua
militância em diversos países, contrário à postura intervencionista ou militarista que
apoiava qualquer lado, lançando campanhas como o Manifesto Anarchico
Internazionale sulla guerra, publicado em 1915 na cidade de Londres.142
Essa posição refletia e ao mesmo tempo influenciava as posições dos militantes
anarquistas nas regiões do Atlântico Sul, que além das demarcações nacionais, tiveram
que combater o racismo presente na construção do processo colonialista e imperialista.
Esses ativistas, junto à população, sofriam as consequências da expansão dos Estados
dominadores, seja de maneira mais direta, como o caso de diversos países do continente
africano e da América Latina através da dominação política e econômica, quanto das
repercussões dos conflitos nacionais europeus, pressionando a economia de tais
regiões.143
Essa mesma tendência, no intuito de construir um ideário multiétnico também
teve seu papel influente no Peru, principalmente em Lima e Callao. Mesmo com um
fraco desenvolvimento industrial e pouco fluxo de imigrantes estrangeiros comparados
aos casos do Brasil e da Argentina, Steven Hirsch mostra que as ideias anarquistas
penetraram no país, já a partir de 1890, quando capitalistas nativos e estrangeiros
criaram novas instituições financeiras baseadas na exportação, aumentando
consideravelmente a população de trabalhadores urbanos (manuais e fabris). É de se
notar, nesse caso, que o anarquismo foi inicialmente introduzido por uma minoria de
intelectuais do país, principalmente das elites locais dissidentes contrários à exploração
colonial, como Manuel González Prada, um membro da classe alta que se converteu ao
anarquismo ao ser exilado na França e na Espanha. O mesmo personagem fundou, em
1904, o jornal Los Parias, a primeira publicação anarquista na região com considerável
142 Ver GIULIETTI, Fabrizio. Gli Anarchici Italiani dalla Grande Guerra al Fascismo. Milano: Franco Angeli Edizioni, 2015. p.15-51. 143 Ver HIRSCH, Steven; VAN DER WALT, Lucien (org). Op.cit. p.xxxi-xxix.
53
regularidade e amplitude. Não obstante, a recepção da ideologia logo se alastrou,
criando e divulgando campanhas para unir uma população extremamente heterogênea.
Nesse intuito, os movimentos de orientação libertária posteriores foram muito eficazes
e, até a década de 1930, acompanharam intensas manifestações, greves e conquistas
trabalhistas. Nos próprios anos seguintes da publicação de Los Parias, surgiram
inúmeros periódicos como La Roja Simiente, El Hambriento, Humanidad e El
Oprimido, influentes até 1910. Na segunda década do século XX, uma clara tendência
sindicalista e organizacionista - nesse caso, de maneira explícita, o anarcossindicalismo
- penetrou e impulsionou as organizações e demandas trabalhistas das demais vertentes
de ofício e origem étnica, incluindo boa parte da população descentes de indígenas, a
partir da Federación Obrera Regional del Perú (FORP) com fortes paralelos e
solidariedade com a Federación Obrera Regional Argentina (FORA).144
No Brasil, especialmente em São Paulo, com o grande fluxo de imigrantes nas
regiões agrícolas e industriais, o anarquismo esteve presente fornecendo um tipo de
ferramenta para a reclamação social e política onde esses eram extremamente excluídos
da política oficial do Estado.145 Esse caráter, e a atenção aos seus contatos e círculos de
afinidade étnica transnacional, possibilitaram o forte intercâmbio de grupos entre a
Itália, Espanha e Portugal, e igualmente nos próprios vínculos do movimento na
América do Sul, como as constantes formas de solidariedade e diálogos entre militantes
no Uruguai e Argentina. Evidentemente, esse foi apenas um fator para a penetração do
anarquismo na cidade e no país, que ainda era aderido fortemente por sua população
local, que misturava a nova ideologia com as tradições das antigas lutas, como o
abolicionismo.146 Essa constante mediação, entre o contato internacional, inclusive com
fortes redes com os próprios países vizinhos, e a realidade local possibilitaram a
construção de articulações políticas e sindicais, incluindo um ideário anti-imperialista
particular que era usado, inclusive, para impulsionar as lutas e demandas de classe. São
esses condicionamentos, além propriamente da construção global do anarquismo, que
construíram os jornais Guerra Sociale e A Plebe e, por isso, adentraremos com mais
detalhes nos próximos tópicos.
144 Ver HIRSCH, Steven. “Peruvian Anarcho-Syndicalism: adapting transnational influences and forgingcounterhegemonic practies, 1905-1930.” In: HIRSCH, Steven; VAN DER WALT, Lucien (org). Op.cit.p.227-272. 145 Ver TOLEDO, Edilene; BIONDI, Luigi. “Constructing Syndicalism and Anarchism Globabally: thetransnational making of the syndicalism movement in São Paulo, Brazil, 1895-1935.” In: : HIRSCH,Steven; VAN DER WALT, Lucien (org). Op.cit. p.363-394.146 Ver OLIVEIRA, Tiago. Op.cit.
54
1.3. Imprensa, movimento operário e a circulação de ideias no movimento
anarquista em São Paulo.
Logo, quem trabalha não ganha dinheiro porque o lucro é todo do patrão e opobre não é um vadio, é apenas a vítima lastimável de uma péssima edetestável organização social. Em São Paulo, são conhecidas as origens dasgrandes fortunas. As que não provém de heranças foram obtidas à custa do suordo escravo, do colono ou do operário, ou, o que é ainda mais provável, à custado envenenamento do povo...147
Além dos debates ideológicos e estratégicos que construíram os grupos e
periódicos anarquistas na cidade, foi, como os redatores do jornal A Plebe citavam, a
própria “organização social” que definiu como o movimento libertário se traduziu às
condições concretas da realidade, condicionando muitos dos seus rumos e, por isso,
também digno de análise detida.
No caso, como evidenciado, mesmo no final da segunda década de XX, as
condições ainda não eram nada boas para um morador dos bairros operários. Longe de
ser culpa desses próprios residentes, é possível perceber no desenvolvimento da
imprensa operária como diversos empecilho eram colocados aos menos favorecidos por
parte dos detentores do capital, do trabalho e da política institucional:
Amarga os ânimos menos dados ao pessimismo o espetáculo que oferece opovo brasileiro, vegetando na ignorância, pugnando trabalhosamente poremancipar-se do peso de um Estado que asfixia todas as energias individuaisentregues ao saque da burguesia que fia da eventualidade, da usura, dassinecuras, o problema da vida [...].148
Assim, para muitos personagens inseridos em diversas regiões brasileiras no início
do século XX, principalmente as que estavam atraindo potencialmente a mão de obra
para o trabalho, eram desanimadoras as condições impostas para grande parte da
população. Os redatores do jornal O Amigo do Povo, criado em 1904, o primeiro
periódico anarquista da cidade de São Paulo em língua portuguesa149, citando “o
problema da vida”, afirmavam que as classes proletárias e subalternas sofriam com as
condições precárias de moradia e trabalho, acompanhados por mecanismos repressivos
por parte das autoridades e pela exclusão das decisões do desenvolvimento político
147 MOTA, Benjamin. “O pobre é um vadio?.” A Plebe, 9 de junho de 1917. p.1 148 Salvador Sapateiro. “Pobre povo Brasileiro”. O Amigo do Povo, 27 de dezembro de 1903. 149 Para acompanhar a trajetória do jornal O Amigo do povo ver TOLEDO, Edilene. Amigo do Povo:grupos de afinidade e a propaganda anarquista em São Paulo nos primeiros anos deste século.Dissertação (Mestrado em História). Universidade Estadual de Campinas, São Paulo, 1994.
55
institucional, que para estes estariam na mão de pequenos grupos ligados à produção
industrial e agrícola, fatores que barravam as tentativas de transformação dessas
contradições.150
Nesse período, no Estado paulista, é possível notar que as áreas rurais ainda
representavam a grande maioria da concentração dos trabalhadores.151 Não obstante, o
avanço industrial, atrelado à grande recepção de pessoas nesses ambientes, resultava o
rápido crescimento dos centros urbanos. Longe de ser harmônico, tal processo, que
ocasionava a rápida construção de bairros operários e das habitações populares,
próximos às áreas férreas como Água Branca, Barra Funda, Brás, Bom Retiro e Luz ou
próximos aos rios, como Pari, Belenzinho, Penha e Mooca, foi marcado por uma clara
distinção social em relação a outras regiões de moradia, como Higienópolis, no qual se
concentravam a população com maiores rendimentos, que apresentava melhores
instalações, inclusive de saneamento básico.152
A população subalterna, no interior dos espaços com tais habitações precárias, era
composta por muitos trabalhadores, muitos deles ex-escravizados ou descendentes de
famílias com um passado de iguais péssimas condições que atravessaram outros
períodos do país, como a anterior Monarquia, que tinha recentemente sido abolida mas
que permeava medidas autoritárias e excludentes à população, fato que pode ser
exemplificado com a tomada de poder dos militares à presidência e passada depois aos
representantes do jogo oligárquico do país.153
A população local era somada ao grande fluxo de imigrantes que chegavam ao
país. Muitos destes últimos foram atraídos por discursos que reverberavam na forma de
propagandas em cidades europeias, tentando convencê-los a viajarem, sem conhecer as
verdadeiras condições impostas, com esperanças para construir uma vida melhor.154
150 Godoy revela que a “instalação do regime de trabalho livre de forma generalizada de relação deprodução, sob uma massa de trabalhadores imigrantes e ex-escravos, foi objeto de regulamentaçãorepublicana, indicando que ao controle político se conjuminaram formas de controle social. O CódigoPenal de 1890 praticamente celebrou a obrigatoriedade do trabalho, ao estabelecer prisão celular contra os“vadios” (artigo 399). O mesmo código também criminalizou a greve (artigos 204 ao 206), determinou osusos ilegais “das artes tipográficas” (artigos 382,383 e 387) e a ocorrência de crimes políticos “contra asegurança interna da República”, como os de conspiração (artigo 115), de ajuntamento ilícito (artigo 119)e de formação de “sociedades secretas” (artigo 382). À exceção dos usos ilegais das “artes tipográficas”,para os quais estava prevista a aplicação de multas varáveis, a totalidade dos demais crimes seria punidapor “prisão celular” ou por esta acrescida de uma multa. Estes dispositivos foram contextualmentemanobrados pelas autoridades públicas para perseguir e coibir manifestações reivindicativas de variadosmatizes, principalmente das classes populares nos meios urbanos.” GODOY, Clayton. Op.cit., p.70-71.151 WELCH, Clifford Andrew. A semente foi plantada: as raízes paulistas do movimento sindicalcamponês no Brasil, 1924-1964. São Paulo: Expressão Popular, 2010. p.47-91. 152 GODOY, Clayton. Op.cit. p.73.153 SIQUEIRA, Uassyr de. Op.cit., p.11-20 e FAUSTO, Boris. Op.cit.,154 Ver TRENTO, Angelo. Do outro lado do Atlântico: Um século de imigração italiana no Brasil. São
56
Esses planos, frustrados na chegada desses personagens, logo revelavam algumas causas
reais do evento: a falta de condições básicas de uma grande população em potencial
avanço na Europa, a necessidade de um novo tipo de mão de obra para garantir o
sucesso dos detentores da produção e as intenções políticas de um povoamento a partir
de uma população europeia.155 Nessa empreitada, o historiador Uassyr de Siqueira
mostra que “pouco após a Abolição, em 1892, foram 92 mil os imigrantes que chegaram
no Estado, número que, inserido entre os anos de 1880 e 1920, resultou em 1,5
milhões.” 156
A recepção de imigrantes europeus que estava nos planos dos grupos ligados à
produção agrícola e industrial, tinha relação com a crescente economia baseada na
exportação de café, que almejavam substituir os antigos escravos, a partir do
abastecimento de uma dinâmica, que se moldava a partir do trabalho dito livre e
remunerado Além dos contratos e subsídios feitos direto com os donos de terra, a
imigração também fez parte de diversas iniciativas governamentais colocadas em voga
desde as décadas finais do século XIX, seja para garantir a viagem desses imigrantes
visando, além do trabalho, o povoamento de terras marginais, ainda não usadas ou
ocupadas, como Lei Glicério de 1890157, mas também, influenciados por uma retórica
cientificista que pregava a superioridade racial, a vinda de tal população caucasiana,
traria suposto progresso ao povo brasileiro, marcado pela mestiçagem negra e indígena,
consideradas inferiores por alguns discursos médicos e políticos.158
Essas intensas transformações que assinalaram tanto a esfera institucional quanto
a própria construção das cidades em seus âmbitos sociais, ocasionaram profundas
reformulações nos próprios tipos e linguagens de resistência dos personagens menos
favorecidos ao lidarem com essa realidade. Novas ideias que circulavam com esse
grande fluxo se juntavam a antigas e novas tradições de luta que eram potencialmente
disseminadas graças aos avanços dos meios de comunicação, principalmente a ascensão
da tipografia e da imprensa, que eram usados por variados grupos sociais ou políticos
para seus interesses particulares. Um deles, o gênero da imprensa operária, nascido
nesse ínterim, especialmente as que difundiam ideários revolucionários, diferia muito de
Paulo, Nobel, 1988. p.19-27.155 No caso italiano, majoritário no período, para adentrar o conjunto de “fatores de atração” e os “fatores de repulsão” ver Idem. p.18-44.156SIQUEIRA, Uassyr de. Op.cit,. p. 12.157Sobre a Lei Glicério e outras iniciativas governamentais ver TRENTO, Angelo. Op.cit., p.18-30.158 Ver SOBRINHO, Afonso Soares. “São Paulo e a Ideologia Higienista entre os séculos XIX e XX: a utopia da civilidade.” Sociologias, Porto Alegre, n.52, 2015, p.210-235.
57
outros ramos como a imprensa lucrativa, também comuns naquele período. Apesar de
ambas vertentes estarem ligadas aos avanços das tecnologias industriais, o discurso da
imprensa operária “constituía verdadeiro contraponto à visão educadora do progresso
(do projeto progressista desde o final do século XIX) oferecida pelas revistas de
variedade”159, nascendo, portanto, no “bojo do desenvolvimento industrial, fruto da
necessidade de defesa dos interesses dos trabalhadores frente aos padrões de exploração
imperantes.”160
De acordo com Heloisa Cruz, a cultura letrada e a imprensa, acompanhando a
grande difusão de ideias e transformações sociais, “começaria decididamente a avançar
para além das elites tradicionais.”161 Para a autora, no contexto da formação da nação
brasileira, a imprensa assumiu um papel fundamental, inclusive de articulação e
legitimação de projetos políticos e de processos e práticas culturais. A imprensa de
bairro ou operária continuou com esses aspectos, mas desta vez, aproximando o
“jornalismo do cotidiano da vida urbana.”162
Tal circulação passava de discursos e acompanhava ou mesmo refletia o avanço
das sociedades de socorro mútuo e dos sindicatos, esses últimos que cresciam
potencialmente nesse período. Para o historiador Claudio Batalha, proibidos pela
Constituição de 1824 de construir qualquer associação sindical, os trabalhadores no
século XIX se organizavam a partir das sociedades de socorro mútuo, aquelas que
uniam os contribuintes, através da reunião étnica, de região ou de ofício, ajudando os
associados, caso fossem prejudicados pela falta de leis e condições trabalhistas, como
desemprego e doenças. Essas entidades, muitas vezes, também foram responsáveis por
greves, assumindo a função combativa. No século XX, com as mudanças da
Proclamação da República, os sindicatos puderam avançar em consonância com as
entidades anteriores, mas, dessa vez, aumentando o caráter econômico de resistência.
Nesse sentido, existiram três tipos de sindicato,
[....] as associações pluriprofissionais, reunindo operários de diferentes ofíciose diferentes ramos industriai; as sociedades por ofício, reunindo unicamenteoperários de determinado ofício e, quando muito, de alguns ofícios similares; e,por último, os sindicatos de indústria ou ramo de atividade. Havia, ainda, casosde sindicatos de empresas , reunindo exclusivamente trabalhadores de uma
159 COHEN, Ilka. “Diversificação e segmentação dos impressos.” MARTINS, Ana Luiza; LUCA, Tânia Regina. História da Imprensa no Brasil. São Paulo: Contexto, 2008.p.120160Idem. 161 CRUZ; Heloisa de Faria. São Paulo em papel e tinha: periodismo e vida urbana -1890-1915. São Paulo: EDUC, FAPESP, 2000. p.25 162Idem. p.71
58
empresa específica, mesmo que pertencentes a diferentes ofícios.[...] Ossindicatos por ofício constituem a base da organização na Primeira República,sendo o tipo de organização predominante e tendendo a ser a forma priorizadapelo movimento operário, pelo menos até a segunda metade dos anos 1910.163
Aproveitando o crescimento da imprensa e dos espaços trabalhistas, já usados por
outros setores políticos e sociais, também servia muito bem para os anarquistas.
Propositalmente ou não, migrando por necessidade ou pela vontade de disseminar suas
ideias, essas ferramentas serviam para disseminação de ideários e símbolos de sua
família política, também como órgão aglutinador de grupos e redes militantes e,
igualmente, tentavam convencer as classes subalternas para a adesão de seus princípios
e estratégias revolucionárias ou simplesmente organizavam os movimentos e
associações com o caráter de resistência.164
Portanto, a intensa disseminação de ideários políticos se chocava com o próprio
anseio internacionalista do movimento que acabou afetando grandes áreas se alastrando
também na América do Sul.165 Todavia, longe de ser harmônico, o choque com outros
projetos políticos e com as próprias culturas expressas nas diferentes origens que se
misturavam, trouxeram alguns impasses, mesmo em um primeiro momento, para a
efetivação do anarquismo no país. Alguns personagens em torno do periódico anarquista
La Battaglia, composto por personagens provindos de diversas regiões italianas, por
exemplo, eram atuantes em diversos tipos de mobilizações e não foram raras as vezes
que puderam organizar ou impulsionar boicotes nos ambientes trabalhistas na cidade,
defendendo a destruição das condições que consideravam desiguais. Contudo, seus
recostos nas uniões de tendência étnicas, derivadas de sua própria inserção em
ambientes compostos por imigrantes deixavam suas claras marcas. Ao tentar comparar,
por vezes, os processos reivindicatórios dos lugares de origem para sua situação local,
anexavam discursos de segregação, julgando a população nativa como passiva, assim
como a rede política institucional do Brasil atrofiada ou retrógrada166:
Deixemos de lado o proletariado nacional, este é ainda em formação e com eleninguém nunca pode contar. É um rebanho de eleitores a bom preço. Falta apreparação histórica, talvez também o próprio ambiente econômico com o qualpossa se formar um proletariado indígena. Temos bons companheirosbrasileiros, operários ou profissionais, mas, por favor, não vamos procurar o
163 BATALHA, Claudio. O Movimento Operário na Primeira República. Rio de Janeiro: Jorge Jahar, 2000. p.16-17.164 Para um estudo de caso ver KHOURY, Yara Aun. “Edgard Leuenroth, anarquismo e as esquerdas no Brasil.” In: FERREIRA, Jorge; REIS, Daniel Aarão. Op.cit.165 Ver HIRSCH, Steven; VAN DER WALT, Lucien (orgs). Op.cit.,166 Idem. p.76-100.
59
socialismo, o sindicalismo e o anarquismo nas sociedades operárias indígenas,organizadas com fins políticos, de vulgar política.167
O grupo em torno do periódico em questão, adeptos da estratégia
antiorganizacionista, já desconfiavam, por esse motivo, dos ambientes mais sólidos de
resistência, mas esse também pode ter sido um caso de como o tipo de associação
étnica, a partir da imigração, apontado anteriormente, apesar de contribuir com a rápida
disseminação de projetos políticos dentro de grandes grupos imigrantes, em
contrapartida, algumas vezes, dificultava a implementação efetiva destes entre
trabalhadores nativos criando empecilhos para uma ação conjunta.
É necessário ainda salientar que mesmo marcadas por essa tendência, as
associações étnicas não eram uma particularidade do movimento anarquista. Para o
historiador Luigi Biondi, as sociedades de socorro mútuo, ligas sindicais e grupos
políticos comumente se associavam com membros que se reconheciam através de locais
de origem ou língua comum. Alguns bairros tinham uma presença marcante e até
esmagadoramente majoritária de imigrantes. Estes, por sua vez, se viam isolados,
juntamente com boa parte da população, da política institucional brasileira, resultando
no florescimento de uma ligação imaginária étnica e, nesse sentido, tal tendência
facilitava os processos de organização política e sindical, em um primeiro momento. De
fato, em outros casos, esse ideário pode ter emperrado movimentos de resistência mais
amplos, levando em conta a heterogeneidade do composto dos trabalhadores em outras
regiões. No entanto, tal caráter, como mostra o pesquisador, na prática não
necessariamente excluía outros tipos associações, como de ofício, contando com uma
forte resistência classista, tendência que foi reforçada nas décadas seguintes, na cidade,
acompanhando as estratégias anarquistas.168 Os próprios personagens ligados ao La
Battaglia apresentavam diversas vezes também uma clara posição de classe, refletindo o
próprio ambiente no qual se desenvolviam:
Essa classe média nunca experimentou a pobreza, a conhece apenas por umquadro deixado para trás como eles escreveram, para apenas falarem sobreisso, se sentem atacados por emoções de horror. Fieis ao seu gordo salário, seapresentam a partir de lições presas aos jornais conservadores contratados,discutem política, mas apenas alegações de defeitos de ministros e algunsdiplomatas, mas sempre dizendo bem do trabalho do governo. Ai se você falarcom eles de ideias progressistas, do socialismo, da anarquia!169
167 "Parliamoci chiaro". La Battaglia, 21 de julho de 1912. Citado em BIONDI, Luigi. Op.cit., 1998. p.143.168Ver BIONDI, Luigi. Op.cit., 2011. p.386169 Roberto Tubertini. “Perché vi sono dei ricchi e dei poveri?”. La Battaglia, 22 de abril de 1908.
60
Apresentando um ideário étnico particular, um outro filtro de agregação passava
pela posição das classes sociais e, portanto, dos seus próprios embates. Ao recusar a
junção dos seus interesses com as classes mais abastadas, os ativistas em torno do grupo
revelavam o seu próprio lugar e também seus objetivos.170 Desse modo, se as ligações
étnicas e a disseminação de movimentos exteriores eram, de fato, inegáveis tendências,
esse caráter não cancelou por completo a recepção desses ideários por movimentos
anteriormente existentes ou por embates entre posições sociais constituídos anos
anteriores que também os usariam quando assim fosse preciso. O autor Marcelo Badaró
Mattos, afirma, no caso específico do Rio de Janeiro, que não foram raros os casos de
indivíduos, ligados anteriormente aos movimentos abolicionistas ou republicanos que se
juntaram na construção dos organismos trabalhistas de relevo, inclusive de intenção
socialista ou revolucionária. Para Mattos,
os trabalhadores assalariados, que compartilhavam espaços de trabalho e devida urbana com os escravizados, atuaram coletiva e organizadamente pela sualibertação, demonstrando que este tipo de solidariedade na luta pela liberdadeera parte do arsenal de valores da nova classe em formação. Tipógrafosabolicionistas, tipógrafos republicanos, tipógrafos socialistas. [...]Taistrajetórias e seus cruzamentos foram possíveis porque trabalhadoresescravizados e livres partilharam formas de organização e de luta, gerandovalores e expectativas comuns, que acabariam tendo uma importância centralpara momentos posteriores do processo de formação da classe.171
É evidente que no Rio de Janeiro a demanda de ex-escravizados foi
particularmente maior. Não obstante, tais sugestões podem evidenciar que o movimento
sindical e suas respectivas orientações políticas não eram exógenos ou estanques da
realidade dos movimentos sociais no Brasil. Esse caso, com certeza, estava relacionado
com a construção de jornais como O Amigo do Povo, que aglutinava imigrantes e
brasileiros em sua composição e realizava esforços de adentrar nos movimentos de
respaldo popular na cidade de São Paulo. Para os redatores,
Devemos favorecer todas as lutas por liberdades parciais: na luta aprende-se alutar e quem começa a saborear um pouco de liberdade acaba por querê-la toda.Estejamos sempre com o povo, procuremos ao menos que pretenda alguma
Tradução nossa. Citado em Leal. Op.cit., 1999. p. 43.170 Para Claudia Leal era evidente o destino de suas propagandas para o segmento social de classe baixa. Ver Leal. Op.cit., 1999. p.44.171 MATTOS, Marcelo Badaró. “Trajetórias entre fronteiras: o fim da escravidão e o fazer-se da classe trabalhadora no Rio de Janeiro.”. Revista Mundos do Trabalho, Santa Catarina, vol.1, n. 1, 2009. p. 61-64
61
coisa e que esse pouco ou muito que queira, o queira conquistar por si mesmo.(...) Contra o governo, que tem exércitos e polícias, não se faz guerra deargumentos, que o não convencem: a luta é toda física, material. (...)172
Esse grupo, a partir de sua própria concepção política (estratégia organizacionista
ou de massas), e de sua própria experiência concreta, buscava desde o início de suas
publicações se fundir com movimentos sociais e reivindicatórias existentes, tentando
potencializar suas demandas e anexando as suas tentativas particulares de transformação
social e política.173Assim, os ideários étnicos começavam a ser diluídos pelos grupos
através do próprio contato entre imigrantes e brasileiros e de suas experiências, a partir
de necessidades comuns.
Para essa implementação, não podemos ignorar a presença de atores dotados de
intensa mobilidade entre esses espaços que podem ter sido responsáveis pela confecção
de uma cultura política e militante que, embora com influências anteriores, possuía
relação particular com os problemas reais da cidade. Nesse caso, os “mediadores
espaciais”, ou seja, personagens que, inseridos na mesma estrutura econômica, portanto
convivendo com ideários de insegurança típicos da formação do capitalismo, mas que
foram privilegiados em transitar em diversos países e cidades agregando e mediando
traços culturais, ideológicos, portanto tendo contado com diversas e típicas estratégias
de contraponto, podem “vir ter a um papel chave na geração de formas de mobilização
política.”174
A historiografia biográfica ou especializada sobre impressos anarquistas
evidenciam que foram importantes, de fato, para esse advento, os ativistas que detinham
grande capacidade de mobilidade.175 Entre eles estavam o português Neno Vasco, os
italianos Oreste Ristori, Ângelo Bandoni, Gigi Damiani, Isabel Cerruti e Luigi
Magrassi, o espanhol Everardo Dias e também outros nascidos no país como Benjamin
Mota, Edgard Leuenroth e João Crispim. Tais militantes, mesmo alguns marcados pela
sua origem étnica, participaram das atividades de reivindicação na cidade, denunciando
a exploração da mão de obra nas fábricas e fazendas e incentivando a organização sobre
o espectro da ação direta, estabelecendo conexões entre diversas associações como as de
172 “O que queremos IV.” O Amigo do Povo, 7 de junho de 1902; Citado em OLIVEIRA, Antoniette. Op.cit., 33.173 Para adentrar nas posições do anarquismo organizacionista presente entre o grupo ver SAMIS, Alexandre. Op.cit., 2009. 94-97.174 SAVAGE, Mike. “Classe e História do Trabalho.” In: BATALHA, Claudio; SILVA, Fernando Teixeira; Fortes, Alexandre (org). Op. cit. p.42175 Como os casos de SAMIS, Alexandre. Op.cit., 2009, ROMANI, Carlo. Op.cit., 1998 e TOLEDO, Edilene. Op. cit., 1994.
62
São Paulo e do Rio de Janeiro e outras partes do mundo, como Argentina, Itália,
Espanha e Portugal.176
Atrelado a essa tendência, a partir de 1900, uma grande onda de grupos
anarquistas, de várias tendências e estratégias como grupos de teatro, de propaganda, ou
de orientação sindical, agiam construindo redes de afinidades para formar uma atuação
política de orientação libertária na cidade. Entre estes estavam Filhos da Era Anarquista,
Centro Feminino Jovens Idealistas, Grupo Filodramático Libertário, Pensiere e Azione e
um número crescente de periódicos em torno desses como Grito do Povo, Palestra
Social, A Lanterna, Germinal, La Nuova Gente, O Livre Pensador, Azione Anarchica, O
Amigo do Povo, La Battaglia, A Terra Livre, Guerra Sociale e A Plebe que expandiam
suas atividades consideravelmente.177
As práticas que acompanhavam tais grupos começavam a influenciar e
acompanhar o próprio desenvolvimento do movimento operário na cidade. Muitos
desses ativistas, mesmo divergindo, em seus discursos e algumas práticas, sobre a
posição do sindicalismo e seus usos, atuavam, com suas respectivas posturas, em
importantes organismos trabalhistas. Esse caráter foi demonstrado na construção da
Confederação Operária Brasileira (COB), iniciativa altercada no Primeiro Congresso
Operário Nacional, principalmente pela experiência das associações sindicais do Rio de
Janeiro, entre eles a Federação Operária do Rio de Janeiro (FORJ), herdeira da
Federação Operária Regional.178 A COB, com limitações para se constituir
nacionalmente, se esforçava para coordenar e ligar as associações trabalhistas de várias
regiões do Brasil, como São Paulo, Distrito Federal, Rio Grande do Sul, Ceará e
Pernambuco e de diferentes orientações e funções, como as de ofício ou
pluriprofissionais. Para a autora Edilene Toledo, a confederação “era formada por
federações nacionais de indústria ou de ofício, uniões locais e estaduais de sindicatos,
sindicatos isolados em locais onde não existiam federações ou de indústrias e ofícios
não federados.”179
Estiveram presentes no congresso quarenta e três delegados e vinte e oito
176 Ver TOLEDO, Edilene; BIONDI, Luigi. “Constructing Syndicalism and Anarchism Globally: thetransnational making of the syndicalist movement in São Paulo, Brazil 1895-1935.” In: HIRSCH, Steven;Walt, Lucien van de. (Org.). Op.cit., 389-416.177 Para uma constatação da criação, desenvolvimento e metas dos grupos e jornais ver OLIVEIRA,Antoniette. Op.cit., p.30-34.178SAMIS, Alexandre. Op.cit., 2009. p.113-119.179 TOLEDO, Edilene. “Para a união do proletariado: a Confederação Operária Brasileira, o sindicalismoe a defesa da autonomia dos trabalhadores no Brasil na Primeira República.” Perseu: história, memória e política. n.10, Ano 7, p.11-32, Dezembro 2013. p.14.
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associações que apresentavam, no seu interior político, ativistas de orientações diversas,
entre esses reformistas, socialistas e também muitos sindicalistas que não assumiam
uma posição política.180 Igualmente, não é difícil perceber a forte movimentação de
personagens com clara posição libertária. Representando São Paulo e Rio de Janeiro,
por exemplo, estavam presentes Edgard Leuenroth, Astrojildo Pereira, João Crispim,
Luigi Magrassi, Giulio Sorelli, Motta Assunção e outros, exercendo posições relevantes
como organizadores.181 A confederação também, dessa maneira, estreitava as ligações de
militantes no interior de famílias políticas, como os anarquistas de diversas regiões.
Essa mesma sombra da atividade anarquista pairava sobre as publicações do jornal A
Voz do Trabalhador, escolhido como porta-voz desse organismo.182
Os antiorganizacionistas anarquistas, ainda céticos em relação às entidades
pragmáticas, acompanharam as decisões e caminhos tomados, do contrário, não seria
possível a formulação de duras críticas encontradas nas palavras de Oreste Ristori em
La Battaglia sobre o referido congresso.183 Consequentemente, os aderentes dessa
estratégia deixavam seus rastros, mesmo minoritários, e igualmente, absorviam práticas
e intenções para sua bagagem militante. Como o historiador Carlo Romani nos mostra,
nesse período, Ristori também participava da própria construção do movimento operário
ao não se opor
sistematicamente às greves parciais enquanto forma de luta de uma ou maiscategorias. Em muitos casos, além de abrir espaço a cada edição, para oacompanhamento dos movimentos grevistas em andamento, envolvia-sediretamente em sua articulação e difusão. O próprio Oreste viajou várias vezesao interior, particularmente a Santos, entre maio e junho de 1907, participandoativamente da organização da greve geral pela jornada de oito horas.” 184
Em muitos projetos e iniciativas, algumas diferenças entre várias vertentes
estratégicas, mas também entre famílias políticas diferentes, eram deixadas de lado para
compor consensos comuns, na esperança de criar um movimento que aglutinasse e
garantisse alguns direitos para os trabalhadores. Nas resoluções da COB, o projeto
articulado e discutido por variadas redes militantes tinha entre os objetivos principais:
[...] promover a união dos trabalhadores para a defesa de seus interessesmorais, materiais, econômicos e profissionais; estreitar laços de solidariedadeentre o proletariado organizado, dando maior força e coesão a seus esforços;
180Idem. p.17.181SAMIS, Alexandre. Op.cit., 2009. p.114.182Idem. p.116.183Posição do grupo La Battaglia pode ser encontrada em ROMANI, Carlo. Op.cit., p.153-154.184Idem. p.158.
64
estudar e propagar os meios de emancipação do proletariado e defenderpublicamente as reivindicações econômicas dos trabalhadores, através de todosos meios e especialmente através do jornal A Voz do Trabalhador; reunir epublicar dados estatísticos e informações exatas sobre o movimento operário eas condições de trabalho em todo o país. 185
Dessa forma, personagens ligados ao sindicalismo revolucionário, até mesmo os
socialistas que o apoiavam, garantiam também seus interesses, em um planeamento, que
aparentava possibilitar ganhos e vantagens para todos os lados que aderiam às posições
revolucionárias em detrimento das intenções reformistas.186
Para os anarquistas essa resolução parecia encaixar perfeitamente em uma
tendência levada adiante e tencionada por diversos de seus pensadores e militantes no
período. Não defendendo um vínculo explícito com a ideologia anarquista, a maioria
dos ativistas presentes apostava na ideia de um sindicato livre de conceitos partidários,
com clara adesão à ação direta, autogestão e federalismo, muito parecida com as
resoluções da CGT francesa.187 Tal posição, análoga a de Malatesta, como apontado,
encontrada posteriormente no Congresso Anarquista de Amsterdã em 1907, tinha como
intenção agregar trabalhadores de ofícios, regiões e ideologias diversas, transformando
os organismos de coordenação sindical especialmente para a luta econômica, e por
consequência, em um excelente espaço de propaganda ou mesmo possibilitando a
infiltração, por meio de redes e articulações, dos anarquistas.188 Como vimos, esses
anarquistas também acreditavam que o sindicato seria um dos ambientes a serem
seguidos pelos seus grupos libertários. Da mesma forma, não negavam sua tendência ao
reformismo, mas acreditavam, por essa mesma razão, sob o prisma da estratégia
organizacionista, que era imprescindível o trabalho anarquista nos sindicatos, onde
defendiam seu caráter pela luta material imediata, mas ao mesmo tempo tencionavam
outras ideologias que também se infiltravam. Ou seja, esse tipo de sindicato pelos
anarquistas era uma formidável estratégia para garantir alguns de seus interesses e sua
penetração no movimento operário que estava sendo construído.189
Os mesmos encaminhamentos, que englobavam diversos projetos, mas que
185 Resoluções do Primeiro Congresso Operário Brasileiro. Citado em TOLEDO, Edilene. Op.cit., 2013. p.14. 186 TOLEDO, Edilene. Op.cit., 2013. 187 Para Samis “via-se aí, não apenas o fracasso das pretensões reformistas, como também a permanênciadas teses defendidas por Bakunin na Internacional. O assistencialismo, marca do reformismo, caíaderrotado; as presidências eram substituídas por comissões administrativas, também na discussão sobre a“organização”; no quesito “ação operária” a luta pelas oito horas se sobrepunha à do aumento salarial.”SAMIS, Alexandre. Op.cit., 2009. p.115.188 Ver MALATESTA, Errico.Op.cit., 189Ver Oliveira, Tiago. Op.cit., p.79-90.
65
revelavam a consequente presença dos anarquistas, deram-se na constituição da
primeira tentativa de construção da Federação Operária de São Paulo (FOSP) em 1905.
Essas práticas possibilitaram uma junção com os eventos reivindicatórios, como as
greves incitadas nas comemorações do primeiro de maio em 1907.190 Nesta data, a partir
do dia 4 de maio, os metalúrgicos da Companhia Lidgerwood ao protestarem por
melhores condições e a jornada de oito horas, foram conectados por outras categorias
como pedreiros, sapateiros, tecelões, gráficos, possibilitando considerável amplitude
reivindicativa. Os anarquistas, sobre uma meta internacional, encaminhavam
sistematicamente as lutas pelo direito às oito horas de trabalhado. Esses, além de sua
posição no interior da FOSP, ofereceram discussões e disseminaram notícias através de
diversos jornais, entre eles o Germinal, La Battaglia e O Amigo do Povo.191Algumas
categorias saíram vitoriosas, pelo menos durante algum tempo, em que vigoraram os
diretos requeridos. Não obstante, a repressão policial, como era comum sobre os grupos
ativistas, caiu sobre a FOSP, dissolvendo o organismo e prendendo seus líderes e
militantes. 192
A forte disseminação dos grupos anarquistas, especialmente em São Paulo e no
Rio de Janeiro, teve evidentes paralelos com a construção do movimento operário nestas
cidades, que obviamente apresentavam dificuldades e bloqueios, seja pela própria
heterogeneidade de ideologias nesses espaços, pelas diferentes estratégias dentro de sua
família política e igualmente pela intensa repressão, resultando o repensar constante de
suas estratégias.
Todavia, a necessidade constante para reconstruir ou impulsionar os órgãos de
prioritária reclamação econômica, como os sindicatos, fizeram muitos dos anarquistas
gastarem muitos dos seus esforços na dianteira desses ambientes, restando pouco espaço
para o norteio interno de sua ideologia. Se levarmos em conta, como a historiadora
Edilene Toledo defende, que “o anarquismo era somente uma das correntes de uma
panorama político bastante variado”193, no qual precisava flexibilizar táticas de ação
para intercalar tanto suas demandas entre o gradiente ideológico dos trabalhadores nesse
período quanto dar força às lutas de caráter econômica, essa era uma atitude necessária
mas ao mesmo tempo bem arriscada. A autora salienta que desde o começo do século,
190 ROMANI, Carlo. Op.cit., p.153.191 LOPREATO, Christina. Op.cit., p.12.192 Idem.193 TOLEDO, Edilene. “A trajetória anarquista no Brasil na Primeira República”. In: FERREIRA, Jorge; REIS, Daniel Aarão. A formação das tradições (1889- 1945). Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2007.p.62.
66
os anarquistas, ao escolherem a opção do sindicalismo revolucionário entre seus meios,
contava com a disputa de outros grupos nos arredores dessa tática. Nesse caso,
personagens de fileiras diversas como Alceste de Ambris, socialista mas intimamente
relacionado no desenvolvimento do sindicalismo em São Paulo, Giulio Sorelli,
anarquista que passava para o pragmatismo da luta material autossuficiente nas páginas
do periódico Il Libertario e Edmondo Rossoni, sindicalista que aderiria, mais tarde,
também as ideias fascistas, evidenciavam como esse terreno se tornava, com o passar do
tempo, bastante complexo e heterogêneo na cidade.194
Nesse caso, também, enquanto boa parte dos anarquistas, como era o caso de
Errico Malatesta pregarem que a luta econômica apenas faria parte de uma das esferas
de preocupação para os militantes que deveriam estar envolvidos com uma
transformação social, moral e consequentemente política, muitos dos outros aderentes
do sindicalismo revolucionário supervalorizavam a primeira, vinculando a “autonomia
operária à ação [estritamente] sindical.”195Esse caráter, para Alexandre Samis, garantiu
um lugar privilegiado ao anarquismo na construção do movimento operário em várias
regiões do Brasil. Embora concordando também que o anarquismo foi apenas uma das
orientações políticas entre os trabalhadores, nesse período, o autor sustenta que seus
representantes no geral, quando não ancorados nas redes móveis e
antiorganizacionistas, apostaram incisivamente na militância de caráter sindicalista, o
“vetor social”, construindo ou potencializando de maneira considerável tais órgãos de
resistência, fato que pode ser evidenciado no andamento dos três primeiros congressos
operários no país, nos quais os libertários tiveram extrema ligação.196 No entanto, essa
íntima relação poderia mostrar claros desgastes, uma vez que não eram os únicos nessa
empreitada. Nesse sentido, diferente dos socialistas, por exemplo, que usavam suas
referências do PSI para nortear algumas de suas propostas, alguns “anarquistas haviam
entendido a ação diurna nos sindicatos como a única e principal tarefa do militante.”197
Evidentemente, os próprios militantes anarquistas percebiam com astúcia essa
problemática e apresentavam propostas. Entre os anos de 1913 e 1915, Neno Vasco e
João Crispim realizavam um caloroso debate por meio de colunas do periódico A Voz do
194 Ver Edilene, Toledo. Op.cit., 2004. p.163-383. 195 Idem. p.31. 196 SAMIS, Alexandre. “Pavilhão negro sobre pátria Oliva: Sindicalismo e Anarquismo no Brasil.” In: COLOMBO, Eduardo (org.). Op.cit.,. p.125-181.197 SAMIS, Alexandre. “Anarquismo, “Bolchevismo” e a crise do sindicalismo revolucionário.” In:ADDOR, Carlos; DEMINICIS, Rafael. História do anarquismo no Brasil (volume dois). Rio de Janeiro:Achiamé, 2009. p.47
67
Trabalhador. O primeiro, como sabemos, acreditava que, embora sendo uma tarefa
primordial dos libertários, não era possível um vínculo explícito entre sindicalismo e
anarquismo. Vasco, temeroso que os rótulos ideológicos pudessem dividir interesses,
defendia que os libertários deveriam favorecer as lutas imediatas dos trabalhadores
levando “o proletariado a uma concepção revolucionária da luta de classes, à
compreensão da solidariedade proletária frente da classe patronal”198. João Crispim, por
sua vez, defendia que exatamente essa desvinculação era perigosa porque não
combateria com eficácia as ideologias contrárias às demandas classistas que adentravam
no movimento operário. Para ele, o anarcossindicalismo não forçaria alguém a se tornar
previamente um aspirante dos ideais libertários, mas mostraria uma inclinação favorável
às liberdades coletivas e individuais, pois “quando se ocultam as tendências,
obedecendo a uma tática, a do silêncio, e ainda mais a da negação [...] cai-se num
confucionismo lamentável, confucionismo e negação que favorecem as correntes
contrária à emancipação dos trabalhadores.”199 Mas, de acordo com Neno Vasco, não
existiria nenhum tipo de negação, desde que os anarquistas dentro do sindicalismo
revolucionário agissem como uma “minoria atuante e propulsora”200 organizados
internamente tanto para favorecer os ganhos imediatos quanto para radicalizar esses
atos, transformando em possíveis ocasiões revolucionárias.
Conquanto, se esse caráter emperrava um desenvolvimento ideológico local sendo
sacrificado para o funcionamento do movimento operário em si, ambas as discussões e
experiências pelo menos eram reverberadas em suas redes transnacionais possibilitavam
fios de continuidade ou de aprendizado com outros pontos da América do Sul ou do
continente europeu. A COB, por exemplo, utilizava a influência de projetos exteriores,
como a CGT na França e a Confederação Geral do Trabalho na Itália,201 Não obstante,
com a língua de seu contexto e demandas particulares, criava outras performances e
propostas específicas que abriam discussões sobre o andamento do movimento operário
em âmbito global, inclusive com conexões, por exemplo, na Argentina e Portugal,
lugares onde as estratégias do sindicalismo revolucionário também se faziam
presentes.202 Sobre esse último caso, Neno Vasco, nesse intuito, ao retornar para as
198 Trechos de Neno Vasco (A Terra Livre) em Anarquistas no sindicato: um debate entre Neno Vasco eJoão Crispim. São Paulo: Biblioteca Terra Live/ Núcleo de estudos libertários Carlo Aldegheri, 2013.p.42. 199 João Crispim (A Terra Livre) em Idem. p.48. 200 Ibidem. p.42. 201 Ver TOLEDO, Edilene. Op.cit., 2013. p.13.202 De acordo com Romani, estreita relação a FORA e o grupo de La Protesta tinham com os militantesanarquistas do Brasil. ROMANI, Carlo. Op.cit., 153. No caso de Portugal, Alexandre Samis análise as
68
regiões lusitanas a partir de 1911, encaminhava as perdas e ganhos do movimento em
que participou no Brasil, afirmando que
Agora, os fatos devem forçar a CGT a fazer-se , sem se tornar confessional ousectária, seja animada pelo espírito de liberdade e autonomia e se inspire nosverdadeiros interesses gerais do proletariado. Se tal fizer, como é bemprovável, terá em torno as organizações sindicalistas da Inglaterra, da Itália, daEspanha, de Portugal, da América do Norte e de toda a América do Sul, beloreservatório de energias futuras.203
Dessa vez o militante não estava se referindo à tentativa de inserção de partidos
dentro dos sindicatos, mas também estava preocupado com os danos que Primeira
Guerra Mundial trouxe a entidades como a CGT na França, dividindo e contrapondo os
militantes através de suas respectivas nações de nascimento e assim se tornar “sectária”.
Dessa forma, através de sua trajetória, Vasco incluía, como muito importante, a
participação e a experiência dos organismos sindicais também das regiões do Atlântico
Sul, em um espectro anti-imperialista e contrário aos conflitos nacionais, atitude que
também refletia as fortes ligações de continuidade organizativa, de forma prática tanto
para sua família política quanto para o desenvolvimento dos movimentos trabalhistas
em âmbito global.204
Com certeza, com o início dos conflitos mundiais, essa atitude não foi isolada.
Tentaremos mostrar adiante que foi a partir da segunda metade do século XX, mesmo
com a queda do fluxo migratório na cidade, que algumas experiências se fortificaram na
tentativa de mediação entre o internacionalismo político e as redes militantes locais.
Nesse sentido, estratégias unificadoras ou aglutinadoras, de caráter social ou iniciativas
de núcleos políticos fixos, foram fortemente solidificadas, deixando fortes traços na
cultura militante e política anarquista na cidade para a construção dos jornais Guerra
Sociale e A Plebe.
1.4. Sindicalismo e o internacionalismo anarquista entre a Primeira Guerra
Mundial e o movimento operário local.
No início da segunda década do século XX é possível perceber ainda uma forte
conexões na militância envolvida sindical envolvida com Neno Vasco, ativista luso-brasileiro. VerSAMIS, Alexandre. Op.cit., 2009.203 VASCO, Neno. “De porta da Europa: Uma nova Internacional”. A Lanterna, 3 de outubro de 1914.p.1 204 SAMIS, Alexandre. Op.cit., 2009 p.173-183.
69
tendência política e sindical na cidade de São Paulo, incluindo a participação por parte
dos anarquistas nesses espaços. Impulsionados por uma tradição existente desde o início
do século, com ascensões e quedas em suas redes ativistas, mas agregando experiências
do sindicalismo e das greves, os militantes libertários intensificaram sua propaganda nos
centros associativos dos trabalhadores, tentando tornar evidentes as contradições do
capitalismo industrial e as formas de atuação da política institucional brasileira, sobre
suas avaliações particulares.205
Entre os anos de 1911 até 1913 algumas greves no setor de construções eclodiram,
acompanhadas de iniciativas reivindicativas também em outras regiões, como em
Ribeirão Pires em abril e maio de 1913. Em 1912, em São Paulo, uma paralisação
parcial no setor de calçados conseguiu ser ampliada para uma grande mobilização de
dez mil trabalhadores onde os militantes tentavam adentrar sob a forma de notícias ou
continuando seus esforços de coordenação.206
Para alguns autores, esse comportamento mudou bastante nos quatro anos
posteriores, antes das intensas agitações de 1917. Sheldon Maram defende que o
movimento operário sofreu um declínio evidente, resultado da repressão contínua da
polícia às manifestações e organizações juntamente com o constante desemprego que
varria os centros industriais, causando instabilidade na vida da população e, por
consequência, a dificuldade de sindicalização pelas constantes demissões e mobilidade
dos trabalhadores. A mencionada repressão, por sua vez, teve alguns amparos legais em
1907 criadas pelo Congresso, ao visualizar o potencial perigo das agitações para o
projeto republicano, sancionadas pelo então presidente Rodrigues Alvez:
o primeiro obrigava os sindicatos a depositarem seus estatutos em cartórios,acompanhados da lista de nomes dos membros da diretoria. Por ele, ficavaproibida a participação sindical de estrangeiros que não tivessem, pelo menos,cinco anos de residência no país. O segundo, também conhecido como LeiAdolfo Gordo, regularizava a expulsão dos estrangeiros residentes no Brasilque, por qualquer motivo, comprometessem a segurança nacional ou atranquilidade pública.207
A partir de 1912, depois da eleição do militar Hermes da Fonseca dois anos antes
e de outras articulações políticas dos grupos conservadores, as leis para a permanência
de estrangeiros no país também ficaram mais rígidas, assim como o aumento de
tentativas de expulsão.208 É difícil saber com precisão os efeitos dessas medidas e leis, já
205 OLIVEIRA, Tiago. Op.cit., p.55-90.206 BIONDI, Luigi. Op.cit., 2011, p. 284-285.207 LEAL. Op.cit., 1999. p.52-53.208 OLIVEIRA, Tiago. Op.cit., 224.
70
que a primeira, por exemplo, teve poucos efeitos sobre a militância mais assídua, já que
a maioria dos principais personagens nesse período já estava no país desde o começo do
século. Não obstante, é necessário salientar que em vários momentos atitudes arbitrárias
das autoridades policiais eram colocadas em prática empastelando jornais ou entidades
sindicais, principalmente quando paralisações e manifestações eram planejadas ou
realizadas.209
Essas medidas se somaram posteriormente a uma grande crise econômica,
decorrente dos efeitos das guerras balcânicas seguidas da Primeira Guerra Mundial, no
período de 1913-1916, inflacionando os preços de produtos de necessidade básica que
afetou diversas partes do mundo causando severos danos também no mercado de
trabalho paulista.210
Mesmo com esses fatores que possivelmente causaram a redução das atividades
grevistas e do avanço dos sindicatos de orientação revolucionária, outros indícios
evidenciam que essa desaceleração não significa a inércia do movimento militante na
cidade, inclusive se levarmos em consideração que as agitações posteriores não podem
ser creditadas simplesmente à continuidade das pressões econômica.211 Para Marcel Van
der Linden, as greves e reivindicações evidentemente dependem das condições
materiais para serem realizadas, mas também da motivação subjetiva dos personagens
que as compõem que vão “recorrer a uma vasta gama de estratégias”212 e nem sempre
dentro dos sindicatos. De fato, como apontado por Maram, houve uma queda da
organização sindical exatamente pela forma móvel dos trabalhadores constantemente
mudando de locais de emprego e de ofício, reduzindo também seu poder de barganha
pelo excedente de força produtiva. Não obstante, uma insegurança estrutural sempre
existiu na realidade desses personagens e, portanto, ligar a redução da atividade sindical
à suposta apatia do movimento operário no quesito militante não é um exercício
totalmente certeiro, já que esses não cessaram suas atividades mas sim, como veremos,
reinterpretaram suas táticas a partir das dificuldades encontradas.
De todo modo é fato que as reivindicações tinham diminuído em comparação com
os anos anteriores. Se nas primeiras décadas do século XX o objetivo de muitos dos
anarquistas, bem como de outros grupos, era criar uma mínima organização inicial
especialmente econômica (sindical) para a reclamação de direitos sociais, o começo da
209 Idem. p.55-58210 MARAM, Sheldon. Op.cit.,211 Adentraremos essa questão no terceiro capítulo. Para mais ver BIONDI, Luigi. Op.cit., 2011. p. 315-376212 LINDEN, Marcel van der. Op.cit., 2013. p. 195.
71
década posterior, com as novas dificuldades e transformações decorrentes dessa, foi um
momento de pensar novas articulações e maneiras de mobilização, e talvez por isso, de
fato, um período refratário, mas não ineficaz. Por trás da suposta inércia dos
movimentos reivindicatórios e da construção de sindicatos, alguns militantes estavam
envolvidos nos bastidores dos ambientes trabalhistas, repensando estratégias e táticas.
Nesse caminho apontado, experiência interessante circulou no periódico A
Lanterna, órgão “anticlerical e de combate”213 que teve como redatores o advogado e
livre pensador Benjamin Mota. 214 Na primeira publicação do periódico, no dia 7 de
março de 1901, A Lanterna apresentou a surpreendente tiragem de dez mil exemplares,
com a qual prosseguiu aos sábados com quatro páginas e seis colunas. É possível notar
que sua primeira fase, de 1901 a 1904, a partir das críticas ao abuso moral e financeiro
das autoridades religiosas faziam com que muitos anticlericais em geral, como maçons,
espíritas, socialistas e simpatizantes lessem e participassem do periódico. Observe o tom
de sua crítica a seguir:
É na exploração dos crentes, é na opressão das classes, é na especulação, é noataque às liberdades públicas e é no obscurantismo que ela encontra os maissólidos alicerces de seu poder: os seus representantes fazem da Igreja umnegócio e do altar um balcão.215
Durante esse período, o periódico em questão foi atraindo progressivamente
adeptos variados, aumentando as cópias vendidas e ampliando sua propaganda contra os
abusos cometidos pelos clérigos.
Intrigante, em um primeiro olhar, notar que tal jornal também que teve
personagens anarquistas de relevo para o movimento e de orientação organizativa como
Edgard Leuenroth e Neno Vasco, que se uniram com essa gama variada de leitores e
redatores. A participação nesse órgão foi apontada posteriormente como essencial entre
os próprios ativistas tanto é que, mais tarde, na criação do periódico A Plebe, no calor
das manifestações de 1917, os redatores notavam:
A Plebe como facilmente se verifica é uma continuação da A Lanterna, oumelhor dizendo, é a própria A Lanterna que atendendo a excepcionaisexigências do momento gravíssimo, como nova feição hoje ressurge paradesenvolver a sua luta emancipadora em um esfera de ação mais vasta, de mais
213Subtítulo apresentado nas publicações de A Lanterna. 214 Ver FIGUEIRA, Cristina Aparecida. O cinema do povo: um projeto de educação anarquista (1901-1921). Dissertação (Mestrado em História). Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, São Paulo,2003.215“A Lanterna em Jacarehy”. A Lanterna. São Paulo, 6 de agosto de 1910. p.03.
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amplos horizontes, com um integral programa de desassombrado combate atodos os elementos de opressão que sujeitam o povo deste pais, como o de todaa terra, a odiosa sociedade vigente, alicerçada por toda a sorte de misérias e deviolências.216
Apesar das diferenças, entre uma empreitada “mais vasta”, que se referia à ação
sindical e uma campanha especificamente anticlerical, essa ligação que os militantes
faziam entre os dois jornais pode evidenciar uma longa trajetória de associação entre os
anarquistas e demais grupos nos espaços operários na cidade e na reformulação, nesse
período, de muitas de suas táticas.
É fato que os personagens anarquistas ligados ao jornal A Lanterna aproveitavam
o espaço para contra-atacar os principais fundamentos dogmáticos e práticos da Igreja,
que consideravam responsável, juntamente com o capitalismo e com o Estado
autoritário da Primeira República, pela desigualdade social, fator que possibilitava
ideologicamente esse tipo de associação. Além disso, a propaganda conjunta de tais
grupos e o interesse dos libertários nesse pode ter sido uma resposta à repressão
ideológica que alguns grupos tentavam exercer sobre os mais desprovidos na própria
cidade. A imprensa liberal, nesse sentido, tentava comparar movimentos sociais como o
anarquismo ao banditismo e usava os argumentos cientificistas e higienistas para
declarar menosprezo ao mundo operário.217 Outro discurso que permeava diversas
classes era o religioso que, por vezes, através dos organismos clericais, tentavam conter
eventos insurrecionais dos trabalhadores no contexto da Primeira República. É evidente
que, em muitos casos, personagens ligados ao catolicismo estavam envolvidos em
atividades sindicais, sendo inclusive responsáveis pela reclamação de direitos dos
trabalhadores em diversas oportunidades, especialmente em períodos posteriores.218
Porém, de acordo com Rodrigo Rosa da Silva, esse fato não excluiu a forte inclinação
para o conservadorismo a que as entidades clericais estavam propensas, contrários,
portanto, às transformações revolucionárias. Nesse sentido,
Por mais tensas que possam ter sido, as relações entre o Estado e a Igreja emalguns períodos posteriores de nossa história, principalmente nos primeiros
216 Leuenroth. “Rumo a revolução social”. A Plebe. n.1. p.1. 9 de junho de 1917. 217 Como Chalhoub atesta, “as classes pobres não passaram a ser vistas como classes perigosas apenasporque poderiam oferecer problemas para a organização do trabalho e a manutenção da ordem pública.Os pobres ofereciam também perigo de contágio. Por um lado, o próprio perigo social representado pelospobres aparecia no imaginário político brasileiro de fins do século XIX através da metáfora da doençacontagiosa: as classes perigosas continuaram a se reproduzir enquanto as crianças pobres permanecessemexpostas aos vícios de seus pais.” CHALHOUB, Sidney. Cidade Febril: Cortiços e Epidemias na CorteImperial. São Paulo: Companhia das Letras, 2006. p.29.218 WELCH, Clifford. Op.cit. p. 419-139.
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anos após a proclamação da República, o clero sempre procurou a acomodaçãocom o Estado. Defendendo a obediência, a subserviência e o respeito àhierarquia, aliados a suas práticas sociais paternalistas e à sua atuação no meiosindical, a Igreja colaborou no processo de exclusão da Primeira República, econseguiu reconquistar alguns de seus privilégios [...].219
Todavia, acompanhando essa resposta ao clericalismo, o verdadeiro intuito dos
anarquistas organizacionistas em torno de A Lanterna, estava condensado na trajetória
de Edgard Leuenroth, e se referia exatamente a uma rearticulação das táticas
sindicalistas. Em 1909, o militante, já membro da FOSP, retoma as publicações do
periódico passando a ser o diretor central de A Lanterna. Continuando as críticas
anteriores, ampliou as notícias de pautas operárias transformando a ação direta e a
orientação grevista como principal orientação dessa nova fase. De um lado, continuando
algumas posturas, não distanciava os anticlericais em geral da leitura, de outro,
aproveitando que A Lanterna tinha bom alcance, ampliava sua propaganda política pela
causa operária, esperando educar seus leitores, a partir de seus princípios.220
Leuenroth se dividia entre a tipografia e o movimento operário. Nasceu em 1881
na cidade de Mogi Mirim, interior de São Paulo, filho de um farmacêutico e imigrante
austríaco. Aos cinco anos de idade, após o falecimento de seu pai, mudou-se com sua
mãe e irmãos para a capital. Passando por dificuldades financeiras, abandonou os
estudos para trabalhar na cidade, onde obteve contato com as atividades ligadas à
tipografia. Com quinze anos, iniciou sua trajetória como jornalista para o periódico O
Comércio de São Paulo onde noticiava e observava os problemas sociais das regiões
paulistanas. Um ano depois, fundou seu primeiro jornal chamado O Boi, anticlerical e
que apoiava o livre pensamento. Mais tarde, em substituição deste, fundou A Folha do
Brás, ampliando suas críticas aos problemas envolvendo os trabalhadores no bairro
onde residia. Foi também fundador de diversas entidades vinculadas à imprensa como o
Centro Typographico de São Paulo, a União dos Trabalhadores Gráficos, a Associação
Paulista de Imprensa e a Federação Nacional da Imprensa. Através dessa inserção nos
ambientes operários, assim, o personagem teve contato com as ideologias presentes
nesses, no qual estreitou relações com os militantes anarquistas com quem publicava
vários periódicos como O Alfa, A Terra Livre, A Lucta Proletária, A Guerra Social, O
219 SILVA, Rodrigo Rosa da. “As ideias como delito: a imprensa anarquista nos registros do Deops-SP (1930-1945)”. In: DEMINICIS, Rafael; FILHO, Daniel Aarão Reis (orgs.). História do Anarquismo no Brasil (volume um). Rio de Janeiro: MAUAD, 2006. p.119.220 SANTOS, Kauan Willian dos. “Anticlericalismo e militância sindical: o periódico anarquista A Lanterna e sua ação entre os trabalhadores em São Paulo (1901- 1914)”. Revista Eletrônica Discente História.com, Cruz das Almas-Bahia, v. 2, p. 116-130, 2013.
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Povo, A Capital, e outros.221
A trajetória de Leuenroth sob a própria prática do movimento operário resultou no
contato com personagens assíduos como Neno Vasco, adepto da estratégia de
organização anarquista numa experiência transnacional. Com efeito, portanto,
Leuenroth tinha certo conhecimento empírico dos problemas dos trabalhadores em suas
pautas de reivindicações, dos problemas sociais da cidade, e das propostas dos
anarquistas naquele momento.222
Para tal, no jornal A Lanterna, Leuenroth e Benjamin Mota, esse último que
passava também para as fileiras anarquistas, criaram a coluna “Vida Operária” em 1911,
transformada mais tarde em “Mundo Operário”, mesmo título apresentado no jornal A
Plebe posteriormente. Esta era destinada a discutir e noticiar os problemas envolvendo
trabalhadores bem como suas pautas em greves e reivindicações. Tal fato fez com que o
periódico ganhasse mais importância em meio ao operariado. Observe o tom de
urgência que Leuenroth expõe na nova fase do periódico:
Urge, portanto, que os interessados, os trabalhadores e o povo em geral seagitem em defesa dos seus interesses, única maneira de serem respeitados osseus direitos à vida. […] É necessário agir prontamente, vir à praça públicaprotestar contra este insustentável estado de coisas.223
De 1911 até 1913, mesmo com altos índices da expansão da economia brasileira,
jornais de várias tendências e posições sociais denunciavam os graves problemas de
moradia e trabalho,224 no qual A Lanterna tinha considerações contundentes. Outra
importante ação destinada à causa operária, nessa fase, garantindo também redes com
movimentos trabalhistas de outros países, era a coluna “De porta da Europa” assinada
por Neno Vasco por correspondência de Portugal. As notícias do movimento operário na
Europa chegavam com uma perspectiva revolucionária:
Os grevistas falam francamente em guerra de trabalho; e com igual franquezaos diretores da indústria declaram não ceder por uma questão de princípio.Estamos chegados – proclama um deles – a um momento, na história dahumanidade como na das nações, em que não é possível continuar no sistema
221 Para adentrar a biografia de Edgard Leuenroth ver NOBRE, Freitas. “Leuenroth - personagem que escreve.” In: _____. A organização dos jornalistas brasileiros - 1908-1951. São Paulo: Com Arte, 1987. P.110-120. E KHOURY, Yara Aun. “Edgard Leuenroth, anarquismo e as esquerdas no Brasil”. In: FERREIRA, Jorge; REIS, Daniel Aarão. Op.cit.,222 SANTOS, Kauan. Op.cit., p. 125-127.223 A liga popular contra a carestia de vida. “Contra a carestia da vida”. A Lanterna. 19 de abril de 1913.p.3.224 FAUSTO, Boris. FAUSTO, Boris. Trabalho urbano e Conflito social: 1890- 1920. São Paulo: Difel, 1977. p.150.
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das concessões, mas sim entregarmo-nos à sorte das grandes batalhas.225
Nesse caso, é interessante observar em sua nova fase a gradativa inserção da luta
sindicalista do periódico:
E afirmando os seus direitos, como membros uteis e produtivos da sociedade, auma existência mais equitativa, dirigem um caloroso apelo a toda a classeoperaria para que se organize com o fim de defender os seus direitos econquistar a sociedade onde todos trabalhem para que seja garantida a todos e acada um dos membros da coletividade humana o necessário à sua existência.226
Tal coluna foi assinada por sindicatos operários de ofício, pela União de
Chapeleiros, pelo Centro Socialista Internacional, pelo jornal Avanti!, pelo Centro
libertário de São Paulo, Grupo Libertário da Lapa e o periódico anarquista La
propaganda Libertária. Tal fato é uma clara evidência de que o jornal A Lanterna, a
partir dessa nova fase, não se resumia à crítica religiosa específica, mas apresentava
uma militância operária paulatinamente evidente e com associações de orientações
políticas diversas e experientes entre os trabalhadores.
Sua atuação passava das propagandas propriamente ditas para níveis de ativismo
prático e incisivos, como podemos observar no Congresso Internacional da Paz em
1915. Esse evento era resultado das ações entre as entidades sindicais e os militantes em
torno da COB que, a partir das observações dos acontecimentos internacionais, como o
irrompimento da Primeira Guerra Mundial, propuseram também o Congresso
Anarquista Sul-Americano. Os dois congressos que se realizaram no Rio de Janeiro
faziam clara frente ao avanço dos conflitos mundiais propondo garantir a força sindical
para além das fronteiras nacionais. Não obstante, apresentavam diferenças nas suas
intenções. Enquanto o segundo congresso citado foi proposto especificamente pelos
militantes anarquistas no interior da confederação, tentando atingir outros núcleos ou
grupos de propaganda libertária do continente sul-americano, visando um tipo de
programa para a atuação de sua família política no interior dos espaços trabalhistas, o
outro tentava garantir a junção com grupos ideológicos (socialistas, anarquistas) e
sindicais (de ofício ou regionais) de várias partes do globo, visando a união das forças
de origem proletária para tencionar especialmente as decisões dos estados nacionais no
desenrolar da Primeira Guerra Mundial.227
225 VASCO, Neno. “Da porta de Europa”. A Lanterna. 16 de setembro de 1911. p.1.226 LEUENROTH, Edgard. A Lanterna, 22/ 8/1914. 227 Para adentrar os referidos congressos e a trajetória dos anarquistas entre a Primeira Guerra Mundial ver OLIVEIRA, Tiago. Op.cit., p.210-232.
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Nos dois casos os anarquistas que estiveram presentes tentaram estreitar relações
com outros órgãos e militantes, alguns evidentemente conhecidos pela própria
experiência transnacional, onde transitaram em países como Argentina, Uruguai, Itália e
Portugal. Do mesmo modo, também tentavam barrar a possível desfragmentação do
movimento operário almejando uma força específica contra o avanço do militarismo,
que, para os libertários, era resultado do próprio funcionamento do capitalismo
industrial:
Aos socialistas, sindicalistas, anarquistas e organizações operárias de todo omundo. A pressão exercida pelos governos das nações beligerantes sobre ogoverno espanhol, obrigando a este a proibir a reunião, em Ferrol, doCongresso Internacional da Paz, marcado para 30 de abril próximo passado, éuma prova de que os governos da burguesia temem que os proletários domundo inteiro cheguemos a combinar esforços e, unidos todos, façamos cessara horrorosa matança [...]. Beligerantes e neutrais, sofremos as mesmasconsequências do atual estado de coisas, - uns dando a sua vida nos campos debatalha, em holocausto ao deus do capital, os outros, por efeito da criseindustrial e comercial, morrendo de fome e de miséria, sem que uns e outrostenhamos um gesto de rebeldia para sublevar-nos contra os causantes de tãomonstruoso crime de lesa-humanidade.228
Na chamada feita pela COB em 1915, para o Congresso Internacional da Paz,
percebemos que o evento era percebido como resultado da proibição de outro congresso
que aconteceria na Espanha, fato que atesta o laço de continuidade transnacional
contido entre os militantes anarquistas presentes, mas também do internacionalismo
operário que era fortalecido por meio desses. Do mesmo modo, é possível notar a
preocupação em construir ações para impedir o enfraquecimento do movimento
operário diante dos acontecimentos.
O grupo em torno do jornal A Lanterna, que tinha representantes na própria COB,
como é o caso de Edgard Leuenroth, não tardaram em assinar sua adesão e ação prática
nesses eventos. As redes dos ativistas garantiram notícias e adesões de outros grupos
anarquistas como o Centro de Estudos Sociais do Rio de Janeiro, Centro Feminino
Jovens Idealistas de São Paulo, Grupo Anarquista Renovação de Santos, La Protesta e
La Rebelion da Argentina, União Anarquista Comunista de Portugal, Grupo Educacion
Anarquista da Espanha e outros nos quais estreitavam relações.229 Mesmo nível de
inserção garantiam também as adesões de entidades sindicais e trabalhistas do país,
entre elas as federações operárias do Rio Grande do Sul e de Alagoas, bem como de
228 Ver Comissão Organizadora. Congresso Internacional da Paz. Arquivo Astrojildo Pereira: CEDEM. 229 Ver “Adesões” e “Correspondências”. Congresso Internacional da Paz. Arquivo Astrojildo Pereira: CEDEM.
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diversos sindicatos, incluindo de trabalhadores fora do espaço especificamente fabril
como a Associação de Resistência dos Cocheiros, Carroceiros e Classes Anexas e a
União dos Empregadores Barbeiros e Cabeleireiros, que também garantiam seus
próprios interesses pela luta material progressiva. As adesões conseguiram ser
estendidas de forma internacional entre diversas organizações de caráter econômico ou
político como a União de Classe Operários Tecelões e a União das Juventudes
Sindicalistas de Portugal, o Ateneo Sindicalista Ronda e o Grupo de Educacion
Anarquista da Espanha, a Confederação de Sindicato Obrero de la Republica Mexicana,
a Unione Sindicalista Italiana e o Partido Socialista da Argentina.230
Os dois congressos tentavam criar um órgão para garantir essa união de forma
estável a partir de uma Confederação Operária Sul-Americana, que não se concretizou
nos anos seguintes. Com certeza havia inúmeras dificuldades para esses projetos que
visavam um organismo transnacional de ação comum, entre estas os próprios
empecilhos empíricos em unir personagens ou associações com nuances em suas
performances, tanto ideológicas ou mesmo por disparidade regional, a falta de adesão de
demais grupos não fixos e a intensa reação desencadeada pelos aparatos repressivos nos
referidos países. Não obstante, para Oliveira, “se a tão esperada Confederação Operária
Sul-Americana não se efetuou, por outro lado concretizaram-se uma série de atividades
de solidariedade, pelo menos por parte do Brasil e Argentina.”231 Dessa forma, os laços
de continuidade, o intercâmbio e as propostas de solidariedade que acompanhavam
notícias sobre a atuação dos grupos eram trazidos para a própria militância local na
cidade.
Depois dessas tentativas, o grupo de A Lanterna, que acompanhava o desenrolar
dos movimentos operários em diversas partes do mundo e observavam os seus próprios
dilemas, nos anos posteriores, propuseram o “Comitê de Agitação contra a Carestia de
Vida” tentando agrupar os organismos sindicais e outros grupos militantes inflamando
possíveis movimentos reivindicatórios e denunciando as condições de vida da
população.232
Anos depois, o periódico ainda desejava rebuscar os efeitos da COB:
Há, pois, que reanimar, que revivificar a nossa obra. É agora, mais que nunca,se torna necessário intensificar e estender a ação da COB, a COB, sois vós sãoos vossos sindicatos, as vossas associações. Em vós, todos, portanto, está a
230 Idem. 231 OLIVEIRA, Tiago. Op.cit.,2009. p.223. 232Ver A Lanterna. 09 de junho de 1912.
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potencia capaz de lhe dar o vigor indispensável. E assim que vos dirigimos estacircular, apelando para vossa boa vontade, para o vosso dever sindical, nosentido duma colaboração metódica e energética na vida da COB. Trabalhaidentro da vossa associação, agitai a vossa classe, animai o movimento nessalocalidade, e deste modo é que contribuirei eficazmente para o bom andamentodos trabalhos da COB.233
O autor estava se referindo à suposta apatia que os movimentos sindicais, bem
como os grupos militantes estariam sofrendo na metade da segunda década do século
XX, pelas pressões econômicas derivadas dos conflitos mundiais juntamente pela
repressão constante dos grupos do aparelho estatal ligados aos detentores da produção
industrial.234 Tentando novamente aglutinar o conjunto dos trabalhadores para lutas
primeiramente de caráter econômico, podemos concluir que o tipo de associação
sindical que A Lanterna se propunha não era o anarcossindicalismo ou uma associação
explícita como anarquista. A proposta majoritária se referia ainda a um tipo de sindicato
que priorizava e julgava mais eficaz a união de diferentes orientações para a construção
de uma força operária, como a apresentada na COB, mesmo correndo o risco de ser
tragada ou até mesmo constituída de outros projetos políticos.
A visão particular dos anarquistas, desse modo, ao se associarem com o periódico,
não estava apenas em garantir sua crítica aos fundamentos religiosos, uma vez que
tinham seus próprios jornais para isso. Observando a própria prática dos espaços
urbanos e operários, os anarquistas no início da segunda década do século XX estavam
repensando estratégias e ocupando lugares em potencial para garantir seu ativismo entre
diversos grupos. Nada melhor, nesse intuito, do que um jornal que seria lido por uma
ampla rede, estes que estavam familiarizados com tons de crítica e denúncia.
Esse tipo de atuação se mostraria uma faca de dois gumes para os militantes
anarquistas. A própria urgência em repensar estratégias e táticas, bem como reerguer os
organismos econômicos, fariam com que os anarquistas gastassem novamente todos os
seus esforços nessa empreitada, restando pouco espaço para a construção de grupos com
princípios internos anteriormente figurados, bem com pregavam Edgard Leuenroth e
Neno Vasco que acreditavam no dualismo organizacional, como mostrado em suas
trajetórias. A prática de propaganda dentro e fora dos sindicatos e a proposta dual como
tentada na existência de dois congressos existia, mas sofria um desequilíbrio. As
circunstâncias, iniciadas desde o começo do século XX, como evidenciamos, fizeram
233“Mundo operário”. A Lanterna. 27 de fevereiro de 1915. p.3234 Veremos alguns desses fatores no próximo capítulo. Para mais ver MARAM, Sheldon. Op.cit., p. 127-158.
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com que os esforços fossem para a construção e propaganda desses organismos
sindicais, sobrando pouco espaço e tempo para o norteio de suas estratégias internas
como anarquistas, que eram deixadas apenas em colunas em seus jornais.235
Apesar disso, a própria circularidade das estratégias entre os grupos e as redes
ativistas anarquistas possibilitou a existência de outras propostas que eram influenciadas
pelo mesmo contexto. Nesse ínterim, vinha a iniciativa do grupo de Alessandro
Cerchiai, Ângelo Bandoni, Gigi Damiani, para a publicação do jornal La propaganda
Libertaria, iniciado em 12 de julho de 1913, contendo quatro páginas em suas edições.
O jornal teve uma breve experiência de dois anos e sofreu diversas interrupções e
dificuldades de se manter financeiramente, mostrando uma queda evidente de leitores
em comparação com outros jornais nos quais o grupo estava envolvido, como o La
Battaglia.
Como apontado, os personagens ligados ao periódico estavam sendo influenciados
pelo contexto de grande repressão econômica e também pelo refluxo do movimento
operário no período. De fato, posições da estratégia antiorganizionista e das táticas
antissindicalistas estavam ainda presentes no grupo, pois para estes
a questão não é saber se o sindicalismo pode ou deve proclamar-se anarquista.[...] A verdadeira questão é saber se eles devem ou não, os anarquistas, castrar-se castrar para os belos olhos de sindicalismo. [...] ninguém nega a razão e alegitimidade da força do movimento operário. O que eu nego e que muitos dosnossos camaradas rejeitam, é que o anarquista deve calar a boca porque umpróspero movimento, que não é o seu próprio, declara que se abstenha a prioride considerar a doutrina anarquista, no cumprimento das suas agitações. Euacho isso: os anarquistas, onde quer que eles vão, devem fazer valer as suasopiniões, exercer a sua proclamação crítica como sua peça ideal, nãoimportando se a palavra é perturbar-lhes o bom desempenho das greves decategoria [...].236
Céticos em relação ao sindicalismo, mas abertos às possíveis críticas e discussões
nesses ambientes, o referido grupo, pela própria condição emergente, tentava atuar em
diversos organismos e círculos militantes, mesmo que assinalando suas considerações
contundentes. Em várias empreitadas, como na tentativa da reanimação da COB, era
destacada sua atuação e associação com outros grupos como o Centro Socialista
Internacional, que tentava reunir os diversos grupos anarquistas, e com os redatores de
235 Essa tendência acompanhou muitos grupos anarquistas no Brasil. Ver SAMIS, Alexandre.“Anarquismo, bolchevismo e a crise do sindicalismo revolucionário.” In: ADDOR, Carlos; DEMINICIS,Rafael. Op.cit.,p.37-50. 236 Gigi Damiani. “Contro L’equivocazione sindacaiula”. La Propaganda Libertaria, 5 de outubro de 1913. p.3. Tradução nossa.
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A Lanterna, incentivando movimentos classistas e internacionalistas.237 Buscando
entender os motivos da apatia do movimento operário, reafirmaram sua busca pelos
eventos e debates socialistas, sindicais internacionais e locais, no qual começavam a
tentar mediar as duas esferas:
Eis a grandiosidade do programa dos revolucionários mexicanos, que, aofundo, é bem o programa dos anarquistas de todo o mundo! [...] Enquantodezenas e dezenas de milhares de homens e mulheres põem em prática asideias que animam a revolução, outras dezenas e dezenas de milhares depessoas continuam a percorrer todos os cantos do México para propagar eproclamar bem alto os princípios de Terra e Liberdade para Todos!238
Além de tentar trazer eventos internacionais para a possível mobilização e ação dos
militantes e dos trabalhadores na cidade, a propaganda também começou a ser dirigida
contra os conflitos nacionais em outros países que, além de ocasionarem grandes danos
às classes baixas, para os redatores, “o início das guerras dos estados balcânicos contra a
Turquia”239 marcariam o poder dos estados nacionais ligados aos detentores dos meios
de produção já que esses últimos seriam “acionistas das grandes fábricas de armas e
munições, bem como fornecedores dos exércitos e dinheiro.”240
Os redatores mostravam os problemas nas regiões balcânicas, evidenciando os
abusos dos danos estruturais ou supostamente morais, que os conflitos causavam nas
populações.241 Nesse intuito, ao fazer referência a outros grupos anarquistas e à teoria,
assinalam sua posição contrária à guerra e antimilitarista:
Mau grado os hinos patrióticos, os arroubos da eloquência nacionalista, e osentusiasmos cívicos, percebe-se entre a bruma dessa propaganda,aparentemente desinteressada, o fato real e sensível que nos demonstra ser oexército uma instituição ao serviço dos grandes capitalistas, servindo degarantia à exploração e à expoliação por eles exercida de uma formadesenfreada, repelindo, à baioneta e à bala, as reclamações dos explorados. [...]Lutemos titanicamente em prol da vitória da nossa causa, que é a causa daliberdade, da justiça e da civilização.242
237 Composição e ligações do periódico La Propaganda Libertaria em OLIVEIRA, Antoniette. Op.cit., 96-97.238 Luca Másculo. “A Revolução Mexicana”. La Propaganda Libertaria, 15 de novembro de 1913. p.4. Tradução nossa.239 “L’independenza delle nazioni”. La Propaganda Libertaria. 12 de julho de 1913. p.2. Tradução nossa.240Idem. 241 O conflito mencionado se referia à formação da Liga Balcânica pela Grécia, Sérvia, Bulgária eMontenegro, que discursava reivindicando melhor tratamento aos cristãos na Macedônia turca, porémcom objetivo claro de conquista territorial, contra a Turquia, alvo também, nesse processo, da Itália. Paraadentrar o evento ver HOBSBAWM, Eric. Era dos Impérios: 1875-1914. São Paulo: Paz e Terra, 2002. p.417-452.242 SOARES, Primitivo. “O sorteio militar obrigatório”. Guerra Sociale. 20 de setembro de 1916. p.3.
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Com o avanço dos conflitos mundiais, incluindo a eclosão da Primeira Guerra
Mundial, essa postura foi progressivamente levada a cabo, ocasionando a busca de um
internacionalismo de intenção federalista contrários, portanto, aos projetos da expansão
do capitalismo industrial e do Estado Nacional.
Em 1915, novamente reformulando suas táticas, o grupo lançou um novo jornal
intitulado Guerra Sociale, ainda contendo quatro páginas e conseguindo, dessa vez, ter
regularidade semanal ou quinzenal. Com a direção de Angelo Bandoni, o nome apostava
incisivamente na propaganda contra os conflitos internacionais que estavam chamando a
atenção dos mais variados grupos sociais. Ao mesmo tempo, assumiam posições que
haviam levado desde o início de suas trajetórias, como a preparação para a revolução
anticapitalista, contrários igualmente à exploração nas fábricas e aos poderes estatais.
Nesse novo jornal, além da percepção que essa mediação constante era necessária,
os militantes interpretaram que uma postura política minimamente definida e explícita
com esse caráter entre os grupos ativos anarquistas era também imprescindível:
Somos chamados, pela confiança dos companheiros, para a direção destejornal, forte pela colaboração infalível de escritores conhecidos por nós,confiando na ajuda de todo o material dos anarquistas conhecidos de São Pauloalém dos vários destinos do interior, seguimos determinados a bandeira de 'aGuerra Social’.243
Ainda sobre os evidentes efeitos do refluxo do movimento operário, mas tentando
mediar sua propaganda com outros ativistas, o grupo, composto inicialmente também
por Gigi Damiani e Florentino de Carvalho, entende, nesse momento, que para além das
propagandas e da união operária internacional, era necessário unir também sua própria
família política, já que se reportavam especificamente aos anarquistas, buscando um
tipo de atuação que garantisse seu caráter especificamente libertário e minimamente
condensado nos ambientes trabalhistas e igualmente nas campanhas anti-imperialistas
visto que
Os anarquistas residentes de São Paulo e localidades dos Estados vizinhos,considerando o excepcional momento histórico causado pela conflagraçãoEuropeia, cujas consequências hão de provocar acontecimentos sociais deordem econômica e política em todos os países, acontecimentos que devemos equeremos determinar num sentido libertário e revolucionário [...].244
243 La Redazione. “Agli Anarchici”. Guerra Sociale, 11 de setembro de 1915. p.1244“Alliança Anarquista”. Guerra Sociale, 30 de setembro de 1915. p.1.
82
Nessa empreitada, influenciados também pela trajetória do Centro Socialista, que
anteriormente tentava esse tipo de união, é esse grupo que lança, em 1916, a chamada
para a Alliança Anarquista, chamada também de Alliança Anarchista ou na língua de
muitos dos seus ativistas Alleanza Anarchica, que tinha como objetivo principal:
[...] a união dos libertários em grupos ou centros de ação e propaganda, e aorganização dessas entidades numa vasta federação, com o fim de estreitarrelações e tornar possível a nossa ação simultânea, são bastante poderosos paradespertar o interesse, provocar a adesão e a atividade de todos os que sintamrealmente o ideal libertário e saibam agir de acordo com seus sentimentos eideias.245
O grupo, então, passava de suas considerações propagandísticas e antiorganizadoras
para a adesão de táticas fortemente enraizadas na estratégia e na tradição organizacional
e de massas do anarquismo246 e que garantiu uma militância expressiva e incisiva nas
manifestações posteriores a 1917, que teve, justamente entre seus adeptos, os jornais
Guerra Sociale e A Plebe.
Desvendar a cultura política e a construção desses jornais, através de suas propostas
e práticas, acompanhando a trajetória de seus principais redatores, pode revelar as
maneiras de atuação sindical e política desses grupos, que influenciaram tanto o
desenrolar das manifestações posteriormente, quanto reformularam a cultura militante
anarquista na cidade.
245 Idem. 246 Iremos adentrar o tipo de dualismo organizacional proposto pelo grupo no capítulo seguinte. Paraadentrar os tipos de organização propostos pelos anarquistas ver CORRÊA, Felipe. Op.cit., 2013. p.33-48.
83
CAPÍTULO 2.
“PAZ ENTRE NÓS”: IDEOLOGIA, ESTRATÉGIA E PRÁTICA NACONSTRUÇÃO DOS JORNAIS GUERRA SOCIALE E A PLEBE.
2.1. Guerra Sociale: o internacionalismo e a coesão militante em evidência.
Em setembro de 1916, um ano após o início das publicações do periódico Guerra
Sociale, os redatores apresentaram uma chamada intitulada “Per la nostra guerra e per la
nostra pace247” através de uma página anexa.248 A função da nota era sistematizar e
reafirmar posições apresentadas durante a trajetória do jornal até aquele momento. Os
militantes anarquistas com o mote “Guerra Alla Guerra249” mostravam que eram
necessárias atitudes incisivas por parte dos trabalhadores e dos grupos subalternos
contra os responsáveis pelos conflitos nacionais e suas consequências em âmbito global.
Ao fazerem isso, explicavam que tais conflitos não eram uma “maldição de um deus
maligno, agora cínico e feroz, mas de uma ordem social.”250 Para os personagens
envolvidos com o periódico, portanto, as evocações nacionalistas e militaristas
provinham dos “interesses do capital: a rivalidade, o apetite dos diferentes grupos
financeiros, o expansionismo colonial, o estatismo, o nacionalismo, todas as suas
instituições e toda a sua moral, com base na violência [...].”251
Interpretando que os embates de caráter nacionalista provinham dos projetos
ligados aos grupos detentores dos meios de produção industrial, influenciando os rumos
políticos, os envolvidos com a fundação do jornal, majoritariamente provindos das
regiões italianas, começaram a tensionar a posição etnocêntrica que alguns militantes,
anos antes, haviam apresentado. Sobre outra campanha visando “Ai Lavoratori di tutti
paesi, Austriaci o turchi, francesi o russi, sassoni o iberici, neri o bianchi – lavoratori,
fratelli nostri: ascoltate!” 252 o jornal mostrava:
[...] nós vivemos sob uma parte da terra a que chamamos de Brasil, que possuium presidente, ministros, deputados, empregados e soldados. Pois bem, évizinho dele um outro país chamado Argentina, que por sua vez também possui
247 “Pela nossa guerra e pela nossa paz”248 “Pela nossa guerra e pela nossa paz.” Ver Guerra Sociale. 20 de setembro de 1916. Tradução nossa.249 “Guerra à Guerra”250 “Per la nostra guerra e per la nostra pace.” Guerra Sociale, 20 de setembro de 1916. p.1. Traduçãonossa.251 Idem. tradução nossa.252 “Para os trabalhadores de todos os países, austríacos ou turcos, franceses ou russos, saxões ouibéricos, negros ou brancos - os trabalhadores, os nossos irmãos: ouçam!” Ver Guerra Sociale. 1 de maiode 1916. Tradução nossa.
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um presidente, ministros, deputados, empregados e soldados, é vizinho desteum outro chamado Chile, vizinho deste outro chamado Perú, etc., etc., que sãopartes componentes da América e do mundo – em todos estes países vivemhomens formados igualmente a nós, com um nariz, uma boca, olhos e orelhas,homens que não nos conhecem e não nos querem fazer mal, e aos quais, pornossa vez, não desejamos mal.253
Muito mais do que propagar apenas um suposto valor de igualdade, a forte
retomada do internacionalismo, a partir de uma visão libertária e classista, resultou
também na busca de elementos históricos que poderiam comprovar os motivos dessas
desigualdades entre grupos diferentes, desde que dentro de uma “ordem social”:
As aspirações que animaram os combatentes pela extinção da escravatura doshomens de cor foram grandes e generosas, mas, em realidade a malditaescravidão das massas proletárias ainda não foi abolida. Com efeito, os homensde cor continuam a ser considerados como escravos, como bestas. Hoje diz-seentre a gente burguesa ‘quem escapou de branco é preto e preto não é gente’. Oódio da raça perdura em toda a sua intensidade, voltando-se aos homens de coro mais profundo desprezo. E não somente os ex-negreiros, os padres e osfuncionários públicos declaram que os homens de cor não têm espírito ouinteligência, mas até os pseudocientistas sustentam que a raça negra e a mestiçaconstituem espécies ou variedades incapazes de evoluir. Neste rol são tambémcompreendidos os indígenas, habitantes dos sertões, os quais são vítimas daferocidade dos negreiros nacionais ou estrangeiros, tipos sem entranhas, quecom o auxílio dos capangas e das forças legais massacram essa pobre gente[...].254
É interessante perceber que esses ativistas entendiam que o ideário racista era
compartilhado por boa parte da população, destacando as classes médias e altas, mas
que provinha de diversas esferas de dominação (econômico, social e ideológico), a
partir de resquícios históricos e de discursos contemporâneos. Não obstante, para uma
atuação efetiva, mostravam que, no momento, era necessária a destruição completa dos
grupos ligados à economia vigente em consonância com os poderes estatais, pois além
de reinterpretarem tais ideários para seus interesses, como era o caso dos conflitos
nacionais, sublinhado pelo jornal, esses
Vivem da mentira, do crime da exploração e da violência, escravizandobarbaramente as classes laboriosas, roubando iniquamente o produto do nossotrabalho, detentando a terra e os outros instrumentos de produção, os quaisconstituem o patrimônio da humanidade. [...] Escravos modernostrabalhadores, somos os mais uteis, constituímos pelo número e pelo valor averdadeira humanidade. É chegada a hora de iniciar uma nova cruzadaredentora. Surjam pois os novos campeões, os novos propagandistas daabolição – do regime capitalista, do Estado e de todas as iniquidades sociais[...].255
253 “A’s mãis”. Guerra Sociale. 1 de maio de 1916. p.2.254 “13 de Maio: aos escravos modernos.” Guerra Sociale, 20 de maio de 1916. p.3255 Idem.
85
De acordo com os redatores, portanto, a exploração entre diferentes classes ainda
seguia e, portanto, era necessária a unificação das lutas sociais para um único fim e
objetivo. A partir dessa experiência e de suas propostas, reconhecendo que havia
diferenças históricas e sociais que deveriam ser superadas levando em conta
necessidades especiais de cada grupo étnico, era ainda preciso unificar a classe
produtora ou oprimida entre suas diferentes demandas, já que tais pensamentos de
segregação seriam instrumentalizados pela classe dominante com o intuito de separar a
classe produtora e emperrar a própria luta pela igualdade. Nesse sentido, apesar de
assumirem que seus leitores eram majoritariamente estrangeiros ou filhos destes, essa
era uma boa oportunidade para incluir colunas em outras línguas, com o objetivo de
agregar o conjunto desses trabalhadores ou explorados:
A necessidade de uma edição portuguesa da “Guerra Sociale” cada dia se fazmais sentida. Renunciar, porém, à edição italiana é impossível e por razõeseconômicas, visto serem italianos a maior parte dos nossos assinantes etambém porque é indispensável, num estado onde a imigração italiana constituímais da metade da classe proletária ter um órgão que neutraliza a propagandanacionalista e de outras tendências, feitas em italiano, a um público italiano.Por outra parte, está desaparecendo a indiferença do elemento indígena sobreos assuntos sociais e já “Guerra Sociale” conta com avultado número deassinantes brasileiros, os quais reclamam uma colaboração em português maisdesenvolvida. [...] Convidamos portanto os companheiros que sabem escrevero português [...], a colaborar com perseverança para a nossa atual sessãoportuguesa, que se hoje não sai mais ampla é porque faltam colaboradores. [...]Nacionalizar a propaganda anarquista, não é fazer nacionalismo; mas é dar-lheuma base positiva, ajudando o desenvolvimento de elementos locais que nãopodem estar sujeitos, como nós estamos, às eventualidades de uma qualquer leide expulsão.256
Não sabemos se essa atitude, visando não só estender o jornal para diversos
círculos étnicos da cidade, mas também solidificar uma militância anarquista em âmbito
nacional, aumentou o número de cópias do periódico, mas é possível notar que tal
iniciativa agregou mais colaboradores e militantes, de origens diversas, portugueses,
espanhóis e brasileiros, como João Crispim, Rafael Esteve, Neno Vasco e Florentino de
Carvalho. Fato que acabou amentando o número de colunas do jornal, anteriormente
contendo quatro páginas, mas que dobrou seu tamanho e também estabeleceu
regularidade semanal. Portanto, não deixa de ser uma atitude imprescindível para os
rumos que os redatores, no período, almejavam dar para o jornal.
Como percebido pelo trecho, de fato, a situação dos trabalhadores não era a
mesma de anos atrás. Embora, como notado, boa parte da população, nos centros
256 Guerra Sociale. 27 de janeiro de 1917. p.1. recorte nosso
86
industriais da cidade, possuía suas raízes de nascimento no continente europeu, a
vivência destes com os brasileiros ou com outros imigrantes se tornava mais comum
com o passar dos anos. O contexto da Primeira Guerra Mundial que dificultava o fluxo
da vinda de imigrantes para o país, assim como barrava a tentativa destes de retornar
para sua terra natal, foi somado à grande migração das áreas rurais para o centro
industrial, condições que resultaram o surgimento de um ideário de fixação que levava
em consideração “construir uma vida em São Paulo sem pensar mais em voltar.”257 Fato
que, para alguns autores, como Sheldon Maram, significou, mesmo com a continuação
da instabilidade na vida dos residentes dos bairros operários, se ater mais incisivamente
à luta classista em sua região.258
Outra preocupação dos redatores se referia às atitudes repressivas, comuns por
parte do aparelho estatal republicano, na tentativa de conter reivindicações de suposta
influência exterior, como já sublinhado anteriormente.259 Na contramão, tentando fincar
o movimento anarquista na cidade, os militantes em torno do Guerra Sociale
mostravam sua intenção em aderir comportamentos que os legitimassem e fossem
eficazes para a população brasileira, alertando que esta atitude estava longe de “fazer
nacionalismo”. Dessa forma, destacando a heterogeneidade étnica entre seus leitores e
militantes e apelando para importância de sua união, os redatores afirmavam não aceitar
“a guerra de raças, pois que essas não existem, os interesses é que estão divididos, os
interesses é que são opostos entre os homens; portanto, queremos a guerra de
classes.”260
Essas iniciativas colocadas pelo jornal também eram resultados da ascensão
militante do anarquista Gigi Damiani, um dos principais colaboradores do periódico.
Sua trajetória política começou na década de 1890 na cidade de Roma, onde obteve
contato inicial tanto com a ideologia anarquista, principalmente através dos rastros de
Errico Malatesta, mas também com os principais debates estratégicos sindicais na
região. Após uma fuga por razões políticas de perseguição, Damiani migrou para São
Paulo, onde permaneceu no período entre 1897 e 1902 e entre 1909 e 1919. O militante
também atuou de maneira considerável no movimento operário em Curitiba entre esses
anos.261
257 BIONDI, Luigi. Op.cit., 2011. p.326 258 MARAM, Sheldon. Op.cit., p.56-57.259 Para adentrar o início e o caráter da repressão aos anarquistas estrangeiros ver LEAL, Claudia Baeta.Op.cit., 2006. 94-106. 260 “O que os anarquistas querem”. Guerra Sociale, 30 de dezembro de 1916. p.1 261 BIONDI, Luigi. Op.cit., 2006. p.160-161.
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De fato, em São Paulo, esteve ligado fortemente aos personagens de seu círculo
étnico como Oreste Ristori, Alessandro Cerchiai e Angelo Bandoni, aderentes da
estratégia antiorganizacionista. Mesmo assim, Damiani constantemente incentivava
debates com militantes de inspirações ideológicas ou estratégicas diversas, entre
socialistas, anarquistas e sindicalistas, e até mesmo debates e cooperações de âmbito
transnacional. Dessa forma, atuou em difusos periódicos como o La Battaglia e O
Amigo do Povo, colaborando com grupos do Rio de Janeiro e do interior de São Paulo, e
se ocupando também de atividades essencialmente trabalhistas como na União dos
Artífices em Calçados e outras de caráter cultural, como o grupo Filodramático
Libertário, por exemplo.262
Sua atuação foi estendida na cidade, especialmente a partir de 1911, ano que
Damiani se une aos redatores Edgard Leuenroth e Benjamin Mota na publicação de A
Lanterna, onde também continuava suas relações entre militantes internacionalistas e
organizacionistas como Neno Vasco.263 Na segunda década do século XX, o militante
também estava envolvido com os periódicos A Plebe e Alba Rossa, com intensos
debates com jornais sindicalistas e socialistas como o Avanti! e, igualmente, com
diversas manifestações e greves. Para Luigi Biondi, sua íntima relação com
o ambiente industrial paulistano o leva a definir a greve como arma necessária.Brás, Mooca, Barra Funda já não são mais bairros de pequenas oficinas, comoele os conheceu ao chegar ao Brasil. Fábricas de médias e grandes dimensõessurgiram, e as casas modestas da década de 1890, menos densamentepovoadas, foram substituídas por conjuntos de prédios e cortiçoes lotados,semelhantes às edificações de San Lorenzo, onde ele começou suamilitância.264
Gigi Damiani representava, de maneira exemplar, um personagem que transitava
entre os militantes das mais variadas estratégias, dos ambientes sindicais e com respaldo
social de diversos níveis, absorvendo experiências e práticas transnacionais e
acumulando uma trajetória que o deixava, no momento, em posição especial de
articulação e mediação.
O Guerra Sociale, assim, estava atento às muitas nuances do movimento operário,
seja em âmbito geográfico ou ideológico, o que possibilitava construir-se através de
experiências de movimentos e órgãos de outras regiões, de forma verossímil às
condições locais:
262Ver OLIVEIRA, Antoniette. Op.cit., p. 114-130.263 BIONDI, Luigi. Op.cit., 2006. p.164264 Idem. p. 163
88
O Conselho Geral da USI discutindo as ideias que informam a atitudeespecífica em futuros trabalhadores internacionais, decide estabelecer-se com ofim de evitar as tentações do utopismo democrático, constituído umaconsagração acadêmica de princípios que valorizam conquistas se não forempela superação do estado e do sistema capitalista: assim, a paz entre os povos,da liberdade nacional, a Federação dos Estados.[...] A classe operária - dotadosde poderes delegados, de forma respeitosa, relativos a cada um, se tornaria arealidade de grupos étnicos, grandes e pequenos, fracos e fortes, cuja soluçãoestá contida na total libertação do proletariado da sociedade capitalista - parareafirmar que seu Internacionalismo nega o Estado, considerando oinstrumento específico do hoje, o antagonismo gerado pelo desequilíbrio doregime capitalista...265
Ou seja, usando as posições da USI266 e suas especificidades sindicais,
sublinhando problemas comuns ao operariado paulista como “a realidade de grupos
étnicos, grandes e pequenos”, os anarquistas no periódico aproveitavam para
reafirmaram suas posições contrárias à ascensão do nacionalismo num prisma
anticapitalista bem como sua recusa à participação parlamentar, enfatizando, em
resposta, a importância da mobilização da classe operária.
Nesse advento, sob a coluna “Movimento revolucionário internacional”, eram
comuns trocas de informações, correspondências ou notícias provindas da Argentina,
Itália, França, Espanha, Holanda, Rússia, Estados Unidos. Os redatores buscavam para
incentivarem o movimento operário práticas de diversas regiões:
Cerca de quinhentas mulheres, reunidas no City Hall Park, irromperam emmanifestações hostis, protestando contra o serviço militar. [...] Três mulheresforam presas. Logo depois, reunira-se de novo nas ruas próximas ao City HallPark, já então em número muito mais elevado [...].267
Além da articulação exterior, trazendo frequentemente diversas iniciativas e novas
táticas de luta, nesse presente caso, da importância feminina nas reivindicações, a busca
de aliados, visando à resistência econômica e à reclamação de direitos políticos na
cidade, estava presente, almejando uma conexão prática para uma articulação comum
entre os grupos militantes:
265 “Per la nuova Internazionale! I Postulati dell’Unione Sindicale Italiana”. Guerra Sociale. 20 desetembro de 1916. p.2. tradução nossa.266 A USI, fundada em 1912, não era autodeclarada anarquista e continha em seu interior militantessocialistas ou que usavam o sindicalismo revolucionário como instrumento principal. No entanto, aescolha por essa estratégia revelava influências de anarquistas de diversas partes do globo, como notadotambém no caso paulistano. Para adentrar o debate ver Levy, Carl. “Italian Anarchism, 1870-1926.” In:_____. GOODWAY, David (orgs). For Anarchism: History, Theory, and Practice. London: Routledge,1989. p.26-49 e TOLEDO, Edilene. Op.cit., 2004. p.27-162.
267 “Movimento Revolucionário Internacional.” Guerra Sociale, 23 de junho de 1917. recorte nosso
89
268
Mesmo marcando suas posições políticas e ideológicas, preocupação em diversos
momentos do jornal, no qual fazia intensos debates sobre o suposto falso alcance do
socialismo parlamentar, que na visão desses ativistas, estaria servindo como “obstáculo
a luta de classes e à luta social, evitando o atrito entre elementos antagônicos”269, é
perceptível a chamada de comícios, principalmente visando outras orientações políticas,
inclusive com os socialistas e sindicalistas de diversas posições:
Trabalhadores! não se deixem enganar, não se deixem agitados pelos jornais delucro! - Esta guerra não cessará, salvo depois de ela ter desorganizadocompletamente o trabalho, devastando a riqueza social. [...] Preparem-se parauma ação conjunta e pela reivindicação de defesa. O momento histórico queestamos atravessando apresenta características, sem dúvidas, de agitação socialmuito profundas...As condições econômicas da sociedade capitalista nãorespondem mais às necessidades humanas.270
268 “Conferência pública em debate. Quarta-feira, 21 de junho às 19:30 da tarde. No salão “Italia Fausta.”Rua Florêncio de Abreu, 45. O nosso companheiro A. Bandoni explicará o tema “Postulados e propósitosrevolucionários das várias escolas humanitárias: cooperativistas, sindicalistas, socialistas e anarquistas.Aceitar-se-á o debate. A entrada é livre.” La Guerra Sociale, 17 de junho de 1916. Tradução nossa269 CARVALHO, Florentino de. “Mentiras do Socialismo”. Guerra Sociale. 20 de setembro de 1916. p.3270 Damiani, Gigi. “Maggio di trepidante aspettativa”. Guerra Sociale. 22 de abril de 1916. p.1. Traduçãonossa.
90
Voltando a colocar um peso considerável nos conflitos internacionais, os redatores
mostravam a importância da organização reivindicativa. A menção aos conflitos
internacionais, de fato, foi a maior preocupação dos militantes envolvidos com esse
periódico, deixando claro, paulatinamente suas orientações ideológicas:
Está paz deve ser imposta pela revolução. Até agora, houve ausência de forçaou a habilidade para tal. E então só há um remédio: para fazer melhor nofuturo. [...] pregar a expropriação da propriedade privada e a destruição dosestados como o único meio de garantir a fraternidade entre os povos e justiça eliberdade para todos...271
Argumentando que a revolução pelas vias libertárias deveria ser a solução para
acabarem os conflitos e a discrepância entre as classes, os anarquistas, se reportando
também à teoria e à prática de militantes reconhecidos como Errico Malatesta, bem
como os debates de outras regiões, reforçavam suas posições. Nesse caso, tentavam
explicar que os danos militares foram consequência da expansão nacionalista, estas
conectadas principalmente com o avanço capitalista que, para os redatores, deveriam ser
superados em consonância. Com essas medidas, reviam suas posições sobre os ganhos
materiais progressivos, se aproximando, dessa maneira, da estratégia organizacionista:
A greve geral no comercio de Santos é um fato; no Rio de Janeiro já deve aestas horas ter estalado um movimento de revolta e em outras localidadescogita-se de realizar movimentos de protesto e de resistência contra os novosimpostos. Nesta emergência os trabalhadores e especialmente os anarquistasnão podem permanecer na indiferença; o protesto contra os impostos, contra alei e o Estado deve surgir do peito de todos os subversivos. O momento é assásexcelente para iniciar uma campanha de crítica contra as instituiçõeseconômicas e políticas do regime capitalista.272
Como visto, para os militantes no jornal era necessário se organizar e reivindicar
melhores condições de vida, nesse caso, citando os impostos e a inflação dos gêneros de
necessidade básica, visando, no decorrer deste, uma ótima oportunidade para a crítica
que passava do funcionamento econômico para o político. Nesse intuito, além de
acompanhar as entidades trabalhistas e sindicais na cidade, e em outros pontos como no
Rio de Janeiro e em Santos, as resoluções dos congressos internacionais eram utilizadas
para os leitores como bagagem militante e igualmente para a apropriação da população
paulista:
271 MALATESTA, Errico. “Anarchi favorevoli al governo”. Guerra Sociale. 22 de maio de 1916. p.1.Tradução nossa.272 CRISPIM, João. “A propósito da agitação contra os novos impostos.” Guerra Sociale. 13 de janeirode 1917. p.1.
91
Após o Congresso de Zimmerwald, que tinha o objetivo de dar nova vida à'International’, os jornais anarquistas que ainda estão sendo publicados emnosso querido país, O Libertário de Spezia e o L'avennire Anarchico de Pisa,apareceram escritos polêmicos e artigos críticos, dessa conferência e sobre osrelatórios de exemplo que poderia correr entre anarquistas e socialistas.273
Sobre os comentários do Congresso Socialista de Zimmerwald, no qual pareciam
ter contato com militantes que participaram dos debates desse evento, o jornal citava
também as considerações de militantes influentes como Luigi Fabbri, que propunha
associações de caráter trabalhista na tentativa de criar um projeto parecido com a
Primeira Internacional dos Trabalhadores. Nesse caso, os redatores sublinhavam que
não houve motivos, no atual momento, de cisões dentro do movimento operário como
se deu na expulsão dos anarquistas no desenvolvimento das chamadas “Internacionais”.
No ano de 1915, o manifesto de Zimmerwald, na Suíça, proposto por lideranças
socialistas de relevo como Leon Trotsky, apelava para uma ação conjunta entre os
grupos de esquerda contra as ações da guerra.274 Essas decisões também eram pontuadas
pelos redatores do jornal, que defendiam:
[...] existe um terreno comum de ação em que o acordo é possível. Algunsanarquistas têm visto. Bem sabemos que não se pode pedir para seguir-los noterreno eleitoral ou no parlamentarismo [...] Nós e eles, no entanto, podemoster compartilhado a ação negativa apenas contra a situação atual das coisas, e apropaganda contra as razões que tornaram possível a criação desse estado deespírito que vale apena pará-lo. [...]275
Reafirmando suas posições como a recusa da luta parlamentar, mas aceitando
coligações políticas, os anarquistas de Guerra Sociale acompanhavam o andamento do
movimento operário em diversos pontos do globo. Nesse caso, são notáveis as conexões
principalmente com grupos residentes nas regiões da Itália, exatamente pela facilidade e
contato de antigos militantes dessas regiões que ainda possuíam laços com tais.276
273 “I Cugini... D’Italia”. Guerra Sociale. 1 de maio de 1916. p.3. Nossa tradução.274 Ver ROSMER, Alfred. Il movimento operaio durante la prima guerra mondiale: da Zimmerwald allarivoluzione russa. Milano: Jaca book, 1983. 275 “I Cugini... D’Italia”. Guerra Sociale. 1 de maio de 1916. p.3 Nossa tradução.276 Tudo indica que personagens dotados por partilharem símbolos que uniam afinidades ideológicas eétnicas e nacionais como os militantes italianos, tinham mais pré-disposição, ao passar dos anos de suavivência, a buscar órgãos e experiências internacionais. Para adentar como funcionavam as redesmilitantes transnacionais, principalmente italianas ver BERTONHA, João Fábio. “TrabalhadoresImigrantes entre Fascismo, Antifascismo, Nacionalismo e Lutas de Classes. Os Operários Italianos emSão Paulo entre as Duas Guerras Mundiais”; FRANZINA, Emílio. “Festas proletárias, Imigração Italianae Movimento Operário na Argentina e Brasil entre os séculos XIX e XX. In: CARNEIRO, Maria LuizaTucci; Croci, Federico; Emilio Franzina (orgs.). História do Trabalho e Histórias da Imigração:Trabalhadores Italianos e Sindicatos no Brasil (séculos XIX e XX). São Paulo: Editora da Universidade deSão Paulo: Fapesp, 2010. p.65-84; p.205-222.
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Se essas afinidades foram imprescindíveis para a construção do próprio jornal,
com o seu desenvolvimento e a atuação do grupo, essas ligações começavam a serem
alargadas para além desses círculos mais usuais. A busca por órgãos internacionalistas e
os congressos e eventos referentes à aproximação de grupos latinos ou sul-americanos
para a luta anti-imperialista resultou também na procura de movimentos dentro do
próprio país. Nesse caso, seus novos colaboradores como Florentino de Carvalho
realizavam excursões para o interior de São Paulo, e a partir disso relatavam suas
experiências:
Em Araraquara, com o auxílio dos companheiros, realizei uma conferência nolocal da S. de Mutuo Soccorso, gentilmente cedido para esse fim. [...] Algunssimpatizantes manifestaram o desejo de que eu realizasse outra conferência,mas, como a minha demora poderia prejudicar a vida do jornal, continueiminha viagem, chegando em poucas horas a Itápolis, onde, depois de tervisitado os camaradas, segui para Candido Rodrigues. Nesta localidade respira-se um ambiente de camaradagem e de idealismo que deixa em nossos coraçõesuma impressão emocionante e duradoura.277
Florentino de Carvalho, pseudônimo de Primitivo Raymundo Soares, nasceu em
1883 na Espanha. Com dez anos de idade se instalou, junto com sua família, em São
Paulo, onde mais tarde iniciou sua trajetória na Força Pública do Estado.
Provavelmente, seu contato com a cultura letrada dentro dessa instituição, o fez ter
contato com obras políticas, entre elas as anarquistas, que a partir de então, juntamente
com sua interpretação da realidade, moldaram suas atividades posteriores. Deixando a
carreira militar, sua militância teve início nas docas de Santos, locais onde também
trabalhou com os estivadores, experiência que possibilitou a mediação entre a prática e
sua teoria. No início da segunda década do século XX, o militante já era um tipógrafo
assíduo, fundando o jornal santista A Revolta, escrevendo para o Germinal! e, mais
tarde, colaborando com os difusos Guerra Sociale e A Plebe, nos quais estabeleceu
contato com personagens de destaque no movimento operário como Edgard Leuenroth e
Gigi Damiani.278
Seu biógrafo, o autor Rogério Nascimento, informa que Florentino de Carvalho
usava táticas diversas no intuito de alcançar a revolução, como na organização de
greves, no impulso de ações educativas além da participação em congressos e palestras.
Na verdade, suas práticas também refletiam suas passagens pela Argentina, onde fugiu
277 CARVALHO, Florentino de. “Excursão de propaganda: odisseia dos colonos – a loucura religiosa – a sementeira libertaria”. Guerra Sociale, 30 de setembro de 1916. p.2. 278 Ver NASCIMENTO, Rogério. Florentino de Carvalho: pensamento social de um anarquista. Rio de Janeiro: Achiamé, 2000. p.21-32.
93
por motivos de perseguição policial, obtendo conhecimento das práticas sindicais desse
país.279 Seu retorno, o faz pensar também em alargar as próprias redes libertárias,
buscando não só táticas, mas também outras regiões e ambientes, no intuito de
fortalecer o anarquismo perante a repressão.
No trecho destacado, que revela sua importante colaboração com o grupo do
jornal Guerra Sociale, percebemos que, de fato, o personagem estava interessado em
propagar os ideais libertários, atitude comum entre os militantes, adentrando em
diversos espaços operários, nesse caso, em uma sociedade de socorro mútuo. Todavia, é
possível perceber também que a mesma atitude estreitava as ligações com os grupos
especificamente anarquistas, que são tratados com especial afeto pelo redator.
É interessante notar que as viagens e a correspondência com as cidades do interior
sempre foram táticas presentes entre os militantes envolvidos com o periódico. Oreste
Ristori, desde o início do século, “movia-se basicamente ao longo das linhas ferroviárias
da Mogyana, da Paulista e da Sorocabana, indo também com bastante frequência ao
porto de Santos”280, atitude que foi reverberada nos próximos anos, quando em “1909
alcançaria o sul de Minas Gerais e o Estado do Rio de Janeiro.”281 O historiador Carlo
Romani ainda afirma que tal método foi, para o próprio desenvolvimento do periódico
La Battaglia, a “principal forma de se conseguir novos adeptos, novas assinaturas e
manter a publicação”282. E para além da própria atuação do jornal, Angelo Bandoni
esteve envolvido na criação de escolas racionalistas nas cidades do interior, como na
fazenda Crespi em Taquaritinga, antes de iniciar suas publicações no periódico Guerra
Sociale.283
Através do jornal, nesses espaços, trabalhistas ou especificamente educativos,
tanto para aproximar sua família política quanto para mobilizar seus leitores, eram
usados trechos de obras teóricas que eram editadas na forma de colunas. No intuito de
resgatar aspectos mais objetivos de luta, inclusive, eram trazidas algumas obras não
anarquistas, como foi o caso da referência de Louis Blanc. Mesmo sabendo da
discordância de muitos objetivos e métodos propostos pelos blanquistas, desde a
Primeira Internacional, os redatores mostravam que a necessidade de associação e
solidariedade, inclinação de ambos os grupos, tinha como intuito propor uma sociedade
em que o trabalho seja prazeroso, “de forma proporcional a satisfação das necessidades
279 Idem. 280 ROMANI, Carlo. Op.cit., p.129. 281Idem. 282Ibidem. 283Ver BIONDI, Luigi. Op.cit., 1994. p.148.
94
do homem na sociedade.”284
Caso semelhante foi o uso dos exemplos da trajetória de Vladimir Lênin (ou
Lénine), um revolucionário socialista em ascensão naquele período na Rússia, que era
usado como exemplo de luta para a população, especialmente para os militantes:
Lénine tem atrás de si mais de 25 anos de trabalho, de abnegação de luta contraa opressão, e não é esse extremo extremista que há de transigir com umimperialismo qualquer [....]. Lénine não quer que a revolução russa estacione,pretende empurrá-la para a frente e acha que foi um erro terem os operáriosterem deixado os operários deixado que a burguesia liberal se apoderasse dopoder: o operariado devia ter ido desde logo até o fim, ter ficado inteiramentesenhor da situação, sem esperar pela Assembléia Constituinte.285
Nesse caso, a atenção era dada não pelas suas propostas políticas finalistas em si,
mas pelas suas atitudes e inclinações frente ao avanço das forças que os anarquistas
também queriam minar, como o imperialismo e os grupos nomeados como a burguesia
liberal. Interessante notar, igualmente, como mobilizavam textos bem estanques de sua
rede ideológica, incluindo autores da literatura. Certa vez, tentando mostrar que até
mesmo o autor Olavo Bilac, cronista nacionalista e defensor do trabalho do alistamento
militar obrigatório, apontava desigualdades na forma de aplicação das leis para essas
atividades, os redatores usavam suas próprias falas a partir da crônica “O Pau Furado”:
Sem cuidar dos muitos defeitos do projeto, basta, para julgá-lo e condená-lo,que pensamos nisso: ele isenta do serviço obrigatório os padres e frades, oshomens diplomados, e os funcionários públicos. [....] De modo que a classeúnica, que vão empurrar o pau furado e fazer a faxina, e apanhar soalheiras echuvaradas, e “aprender a morrer”, é a classe dos humildes, dos pobres, dostrabalhadores que penam muito e ganham pouco, - a classe das eternas bestasde carga.286
É importante destacar que algumas aproximações de Bilac com ideias socialistas,
mesmo de maneira bem vaga, já se davam pela influência e contato com os círculos
letrados e militantes, como era o caso de sua relação com o ativista Alceste de
Ambris,287 fato que atesta a intensa circularidade de ideias, mesmo no desenvolvimento
de culturas políticas divergentes, cada qual com suas atribuições particulares às
informações e falas.
Assim, como estamos salientando, as atribuições e usos dos militantes às
referências e textos um pouco mais longínquos de sua rede política, não eram tão cegas
284 BLANC, Louis. “Il Lavoro Piacevole.” Guerra Sociale, 3 de junho de 1916. p.2 285 “Lénine.” Guerra Sociale, 26 de julho de 1917. p.3 286BILAC, Olavo. “O Páo Furado”. Guerra Sociale, 14 de dezembro de 1916. p.3. 287Ver TOLEDO, Edilene. Op.cit., 2004. p.163-266.
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assim. Antes, eram usados e instrumentalizados pontos que objetivavam sanar ou
explicitar determinado ponto. Esses usos eram limitados já que, em outros casos, muitas
críticas eram feitas a outras ações e propostas nos ambientes operários, principalmente
com os socialistas em torno do periódico Avanti!, que começavam a debater a
necessidade de representatividade eleitoral, para além da presença nos sindicatos:
Estamos profundamente convencidos de que essa tática é prejudicial,contraditória e que influência diretamente na sua forma nova e sui generisconcepção do socialismo; porque vemos através da conquista do Estado, porconsequência lógica, o socialismo de Estado, que já não é o socialismo, e comovemos os socialistas, sacrificando o final com o método... nós lutamos e vamoscombatê-los, hoje e sempre, não o seu socialismo, mas o seu ... eleicionismo288
As críticas aos debates de inserção nas eleições, que passavam também para o
pessimismo em relação aos objetivos que visavam a tomada das forças do Estado, eram
feitas visando não somente contrapor os métodos de seus companheiros socialistas, mas
para reafirmarem sua própria concepção política. Para isso, ainda, rebuscavam as
referências, às vezes diretas, mas muitas vezes encarnadas nas falas de seus redatores
incluindo a realidade local, dos anarquistas promissores nos debates classistas do
período. As maiores influências aos novos debates organizacionistas e ao combate
contra o imperialismo, que os redatores estavam usando, se referiam majoritariamente
ao militante Errico Malatesta, passando também por algumas propostas de Luigi Fabbri.
Quando confrontados com o refluxo do movimento operário no contexto da Primeira
Guerra Mundial, fato que resultou na busca de debates anarquistas internacionais nos
espaços sindicais bem como na maior influência de personagens aderentes das táticas de
organização, uma articulação mais objetiva com sua rede de sociabilidade, se tornou
imprescindível para os militantes do periódico, pois era necessário
...reunir numerosos camaradas que se encontravam dispersos por todo o país,vivendo na mais completa apatia por falta de coesão, de relações desolidariedade que deveriam existir perenemente, de maneira ativa e eficaz entrehomens que sentem as mesmas aspirações, professam os mesmos princípios elutam pelo mesmo ideal.289
Essa justificava, que se referia à fundação da Alliança Anarquista, dessa vez, não
tinha como intuito simplesmente conhecer os grupos anarquistas em lugares mais
288 “Replicando All’ Avanti!.” Guerra Sociale, 3 de junho de 1916. p.2. 289 “Alliança Anarquista”. Guerra Sociale, 30 de setembro de 1916. p.1. Citado em LOPREATO,Christina Roquette. Op.cit. p. 61.
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distantes, pois isso já havia sido feito em boa parte da trajetória dos anarquistas, pelo
menos nas regiões paulistas. A proposta provinda exatamente da união dos grupos
anarquistas, na capital e no interior, que tentavam se alargar de forma nacional,
começava gradativamente a apostar na unificação de determinados princípios e
estratégias, sob a bandeira do “mesmo ideal” que poderiam ser efetivas no momento:
Os anarquistas residentes no Estado de S.Paulo e localidades dos Estadosvizinhos, considerando o excepcional momento histórico causado pelaconflagração europeia, cujas consequências hão de provocar acontecimentossociais de ordem econômica e política, em todos os países, acontecimentos quedevemos e queremos determinar num sentido libertário e revolucionário.290
Se opondo às táticas individualistas, e buscando meios práticos entre os grupos,
ou na palavra dos próprios redatores, “um sentido”, a base de acordo, ainda determinava
suas funções:
A Aliança fomentará, por todos os meios ao seu alcance, a propaganda contraas causas fundamentais da conflagração atual e de todos os males sociais quetem como origem o Estado e a propriedade individual, de instituiçõesparticulares e públicas [....] A Aliança combaterá a propaganda eleitoral equalquer partido político estatal, mesmo o que se propunha reformar e, portanto, consolidar a atual organização política e econômica, ou qualquer outraque se assenta sobre as aberrações nacionalistas e patrióticas. [...] Com relaçãoao movimento de classe, a Aliança favorecerá o desenvolvimento dasorganizações econômicas de resistência dos operários das cidades e dostrabalhadores rurais ou colonos, provocando-as, mesmo, onde não existam,elaborando, para este fim um programa especial, subordinado, porém, a suaintervenção e ação à propaganda integral do anarquismo.291
A Alliança Anarquista, portanto, apostava em uma forma dupla de organização.
De um lado, visava à luta gradual pela melhoria material dos grupos trabalhistas ou
subalternos, adentrando e impulsionando os movimentos destes, desde que dentro do
espectro internacionalista e classista e fora da esfera parlamentar ou estatal. E, ao
mesmo tempo, defendida a própria organização dos anarquistas a partir de bases
internas, definindo métodos para suas atuações nos respectivos ambientes
essencialmente econômicos, transformando esses, ocasionalmente, em instrumentos
também de reclamação política, através de insurreições.
Como apresentado, longe de ser uma nova corrente, esse tipo de proposta havia
sido defendido por alguns militantes libertários em âmbito global, e possivelmente
circulava entre os membros da família política anarquista. O autor Felipe Corrêa
290 Idem. 291 “A Alliança Anarquista”. Guerra Sociale, 14 de outubro de 1916. p.3.
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defende que muitos princípios do dualismo organizacional, ou seja, a intenção que “tem
por base comum um regulamento interno e um programa estratégico, os quais
estabelecem, respectivamente, seu funcionamento orgânico, suas bases político-
ideológicas e programático-estratégicas, forjando um eixo comum para a atuação
anarquista”292, estavam presentes desde a atuação da ADS que tinha como participantes
Mikail Bakunin, desde fins do século XIX, como analisamos anteriormente. Alguns
debates anarquistas dentro da esfera sindical, reformularam ou adaptaram essa
estratégia, tal como foi no Congresso Anarquista de Amsterdã de 1907, no qual Errico
Malatesta, afirmando que a luta sindicalista por melhorias materiais, embora fosse
imprescindível, se isolada, estava fadada ao reformismo e portanto era necessária
também a organização “propriamente anarquista que, tanto dentro como fora dos
sindicatos, lutam pela realização integral do anarquismo e procuram esterilizar todos os
germes da corrupção e da reação.” 293
Luigi Fabbri, que foi citado em algumas colunas do periódico, também defendia
propostas de organização anarquista. O militante nasceu no ano de 1877 em Ancona, na
Itália, mas teve sua ação envolvida no movimento operário em diversas regiões, como
na França e Suíça e depois da década de 1920 no continente sul-americano. Nesses,
Fabbri participou de eventos e reuniões, muitas vezes de envergadura internacional
como o Congresso Anarquista de Amsterdã de 1907.294 O ativista defendia que o vínculo
explícito entre o anarquismo e o sindicalismo (anarcossindicalismo) não seria eficaz
pois levaria à divisão dos interesses da própria classe, pois se essa última
não quiser ser sectária, dogmática e autoritária, deve evitar toda afirmaçãoideológica que possa dividir a massa proletária em função de preocupações departido, conservar o conteúdo solidário de todos os trabalhadores contra ocapitalismo. Se levamos [aos sindicatos] a preocupação partidária, inclusive aanarquista, isso significa romper a solidariedade operária e fazer uma atividadeantilibertária [...295
A ideia de Luigi Fabbri não era abandonar os sindicatos e muito menos isolar-se,
mas justamente tornar eficaz a participação dos libertários aos órgãos de resistência
trabalhistas e/ou populares. Para tal, longe de realizar essa obra pessoalmente, os
anarquistas deveriam criar grupos sólidos que norteariam suas funções dentro e fora
292 CORRÊA, Felipe. Op.cit., 2013. p.37. 293 Malatesta, Errico. Op.cit., 163-164. 294 RAGO, Luiza Margareth. “Luigi e Luce Fabbri: uma ética de liberdade.” Política & Trabalho: Revista de Ciências Sociais, Paraíba, n. 36, 2012. p.155-168.295 Luigi Fabbri citado por CORRÊA, Felipe. Op.cit., 2012. p.171.
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desses ambientes a fim de criar elementos possivelmente sólidos na intenção de
inflamar essas atuações ou mesmo se defenderem quando necessário:
Por organização, entendemos a união dos anarquistas em grupos e a uniãofederal dos grupos entre si, sobre a base de ideias comuns e de um trabalhoprático comum a realizar. Tal organização deixará naturalmente a autonomiados indivíduos nos grupos e dos grupos na federação, com plena liberdade dosgrupos e federações para se formar em segundo as oportunidades ecircunstâncias, por ofício, por bairro, por província ou por região, pornacionalidade ou por língua, etc.(...) A organização é um meio de sediferenciar, de se precisar um programa de ideias e de métodos estabelecidos,um tipo de bandeira de reunião para se partir ao combate sabendo-se com quemse pode contar e tendo-se consciência da força que se pode dispor.(...)Dizemos, por exemplo, partido anarquista, entendendo simplesmente por isso oconjunto de todos aqueles que combatem pela anarquia. Quando dizemosfederação socialista-anarquista, pensamos na união preestabelecida dosindivíduos e grupos aderentes que, em determinada localidade, puserem-se deacordo em torno de um programa de ideias e métodos.(...)296
Não sabemos, fora as próprias posições do jornal Guerra Sociale, se a Alliança
Anarquista de São Paulo definia seus métodos em conjunto ou como prefigurava
maneiras de organizar as estratégias anarquistas, após a adesão dos demais membros.
É possível notar também, nesse sentido, que iniciativas para tais atos não
faltavam, pois os ativistas defenderam frequentemente programas de atuação e reunião
para debates. Projetos esses que eram transformados em grandes chamadas no qual
tentavam sistematizar algumas posturas básicas, tanto para sua família política quanto
para população em geral:
A Alliança Anarquista, à qual aderiram mais de trinta organizações libertáriase de classe, além de um grande número de companheiros não organizados eque conta com a solidariedade de outros grupos anarquistas existentes nosEstados da Federação Brasileira, faltaria à sua missão se nesta hora angustiosapara todos, em que trágicos acontecimentos se anunciam, esquecesse que é nosmomentos históricos que os partidos e os homens de ideias devem, a todo otranse, assumir a responsabilidade dos próprios atos e proclamar semvacilações, nem tibiezas, o que pensam e os ideais que professam, quedefendem e pelos quais se batem. [...] Não sabemos se este manifesto será bemaceito pela maioria do povo brasileiro numa hora de entusiasmo e exasperação,como ignoramos se o nosso gesto irá provocar perseguições e repressões paranós e para os nossos amigos. Mas temos um dever a cumprir e o cumpriremossejam quais for as consequências que este ato de hombridade e de sinceridadenos possa acarretar.297
Diante do fragmento, que revela uma incisiva aposta por partes dos anarquistas
em torno do jornal Guerra Sociale de disseminarem seu projeto organizador, evidencia-
296 FABBRI, Luigi. A Organização Anarquista. Excertos. São Paulo: Editora Faísca, 2013. 297 “A Alliança Anarquista ao Povo.” Guerra Sociale, 1 de maio de 1917. p.4.
99
se igualmente a recepção dos demais grupos libertários, de diversas partes do Brasil,
para tal proposta. Os anarquistas confederados à aliança, nesse sentido, teriam a função
de encarnar responsabilidades políticas bem como disseminar suas visões de
transformação, provavelmente através de seus vetores sociais, em defesa das classes
exploradas, principalmente com o alongamento dos conflitos nacionais. Outra questão
interessante é que, mais uma vez, o “povo brasileiro” aparecia no periódico, ou seja,
uma preocupação em estender uma militância nacional coesa com as particularidades do
país estava sendo levada a cabo.
Através ainda das evidências referentes à Alliança Anarquista é possível encarar
duas linhas de investigação historiográficas que atravessam esse período. A primeira diz
respeito ao recorte geográfico que a maioria dos autores atribuiu à formação do
movimento operário no Brasil. Nesse sentido, a autora Silvia Petersen destaca que
existiu uma valorização das regiões do sudeste, como o Rio de Janeiro e São Paulo.
Essa ligação entre desenvolvimento industrial mais avançado e atividade militante ou
mesmo da construção de movimentos trabalhistas ocasionou frequentes generalizações
desses casos para o restante do país, além de minarem o desenvolvimento de outras
interpretações que visaram outros estados para a compreensão da formação da classe
operária e do próprio processo de industrialização.298
De fato, percebemos, pelo menos do ponto de vista da organização ativista
libertária, que o movimento sempre estava tentando alargar suas fronteiras e estabelecer
contato com militantes de diversas regiões, o que revela não só a presença ativa de
grupos dispersos em todo o país, mas também a importância desses para a própria
reformulação de suas concepções. Em todo o caso, é importante salientar que muitos
estudos estiveram limitados às suas fontes ou mesmo pela bibliografia de referência e,
nesse caso, algumas regiões deixaram mais vestígios do que outros, como é o presente
caso. E mesmo relativizando, com toda a certeza, a exclusividade do movimento
operário nas cidades do Rio de Janeiro e São Paulo, é impossível negar seu caráter,
naquele período, no qual, de fato, atraiam uma grande força de trabalho e
consequentemente de pessoas e de ideias. Condições obviamente que não eram únicas,
mas que deixavam tais cidades como ambientes de articulação, mesmo ocasionais ou
restritas, de alguns programas ou de grandes órgãos sindicais, portanto não passiveis de
desconsiderações ainda nos estudos futuros.
298 PETERSEN, Silvia Regina. “Cruzando Fronteiras: as pesquisas regionais e a história operária brasileira.” Anos 90, Porto Alegre, n.3. p.129-153, 1995.
100
Outra hipótese que deve ser tensionada, essa mais especificamente em relação às
pesquisas que se voltaram ao anarquismo, afirma que a própria falência do movimento,
no período republicano, foi resultante prioritariamente de suas próprias estratégias. Alex
Bonomo, por exemplo, ao tentar analisar as razões que levaram o declínio do
movimento libertário nas décadas seguintes, afirma, entre outras considerações, que tal
debilidade pode ter provindo de suas supostas concepções e práticas comparadas a
outros grupos anarquistas em outros países. Para o autor, os anarquistas no Brasil eram
contrários às sistematizações de programas mais amplos que abrangeriam toda a
sociedade e “não tinham uma organização política própria, que desse resguardo para
atividades militantes”.299 Para o autor, esse fato também se deveu às suas próprias
influências, falhando em desenvolver um anarquismo minimamente organizado fora
simplesmente de redes móveis e informais.
Tais afirmações quando confrontadas por diversos casos, como na construção da
Alliança Anarquista, podem ser refutadas. Não só programas específicos e outros
amplos foram propostos pelos anarquistas, em determinados contextos, como suas
atuações estavam ancoradas no próprio desenvolvimento do movimento operário em
que viviam. Suas influências e estratégias anarquistas também eram bastante diferentes,
mas usavam suas estratégias e táticas, inclusive as de caráter de profunda organização,
quando assim o contexto e suas interpretações sobre este exigiam, figurando um tipo de
cultura política.300
Não objetivamos adentrar as considerações do autor, pois o mesmo elenca
inúmeros fatores que foram determinantes para a queda da influência do movimento
anarquista após o período da Primeira República, como a intensa repressão, e as
dificuldades de criar órgãos de resistência propriamente políticos, para além dos
sindicatos, que também serviriam em momentos de refluxo, uma demanda existente no
seio organizacional do anarquismo. De certo, como já foi demonstrado, realmente houve
empecilhos para a implementação de órgãos políticos especificamente anarquistas, mas
como vimos, os motivos estavam muito mais ligados às condições da construção do
movimento operário, com muitas outras demandas ideológicas e práticas, do que pelas
propostas e debates dos militantes libertários.
299 BONOMO, Alex Buzeli. O Anarquismo em São Paulo: as razões do declínio (1920-1935). Dissertação (mestrado em História). São Paulo: Pontifícia Universidade Católica, 2007. p.414 300 Para Antoniette Oliveira, “o fato de os anarquistas não terem se constituído em um partido político,enquanto local privilegiado de luta, não deve significar que os mesmos não possuíssem uma culturapolítica” já que os mesmos encaminhavam outras propostas de transformação social. OLIVEIRA,Antoniette. Op.cit., p.28.
101
Nesse caso, o autor Rafael Viana da Silva, que estuda o movimento anarquista
após a segunda metade do século XX, argumenta que alguns contextos políticos e
econômicos como as transformações do movimento operário dificultaram e
enfraqueceram tal ideologia entre a classe operária, mas não foram raras as ocasiões em
que os militantes libertários tentaram novos tipos de organização oferendo e adentrando
em eventos de caráter reivindicativo, fatos que podem ter sido obscurecidos por uma
análise parcial dessa militância após a década de 1930. Longe de ter desaparecido, como
um fenômeno pré-político, o movimento anarquista não só sobreviveu para além do
período republicano, como seus debates dentro dos espaços trabalhistas e operários
continuaram sendo prioritários em seus objetivos. Nesse intuito, ainda de mobilizar a
classe operária e propor formas de transformações sociais, os anarquistas difundiram
estratégias cobradas por autores como Bonomo, entre elas as de funções organizativas.
E longe de serem propostas novas, sem ligação com a trajetória anarquista anterior, para
Silva,
esses anseios estão inscritos numa trajetória militante que, como vimos, podeser alargada até as primeiras décadas da militância anarquista no Brasil. Essesdilemas não correspondem apenas aos labirintos políticos e sindicaisinaugurados pelas modificações na conjuntura nacional e da realidadeinternacional, mas possuem estreita conexão com uma temporalidade própriada militância anarquista que atravessa as décadas.301
Concordando com o autor, não é possível ignorar totalmente as estratégias e
formas de atuação antigas, para entender as atitudes que compuseram as reformulações
da cultura política anarquista, dentro de uma maior duração. Tais projetos e iniciativas
talvez tenham continuado a ser minoritários ou foram vencidos por seus adversários ou
pelas condições opostas, mas que talvez deixaram rastros e elementos, tanto para o
movimento anarquista posterior, quanto para a utilização desses instrumentos pelas
classes exploradas, quando estas assim interpretaram necessário.
Todavia, voltando para o caso abordado, um dos argumentos elucidados por
Bonomo, como adiantado, parece fazer sentido. Pela sua própria influência anterior, de
fato, diversos anos ancorados nas redes móveis de caráter antiorganizador, na prática, a
Alliança Anarchista realmente tenha ficado somente como um fio condutor para
impulsionar certas medidas, incluindo a arrecadação de fundos para o incentivo de
301 SILVA, Rafael Viana da. Elementos Inflamáveis: organizações e militância anarquista no Rio deJaneiro e São Paulo (1945-1964). Dissertação (Mestrado em História). Universidade Federal Rural doRio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2014.p.22.
102
reunião e criação de outros grupos, se distanciando, portanto, de outros debates
organizadores no período, que defendiam, além dessa medida de aproximação,
orientações fixas, ideológicas e táticas, entre os demais membros. Os ativistas em
questão, mesmo propondo anteriormente programas, ainda temerosos de qualquer
discurso que pudesse soar autoritário, alegavam que esta seria uma organização
[...] em grupos autônomos, ligados por uma simples comissão decorrespondência, com o fim essencial de anuar esforços para um trabalhoextenso e prático de propaganda e de ação tendente à emancipação econômica,social e moral de cada indivíduo e da humanidade em geral. [...] Os gruposaderentes à Aliança gozarão da mais ampla autonomia, e, se houver uma caixaúnica, esta será exclusivamente para auxiliar os perseguidos por questõessociais.302
Assim, os próprios discursos em torno da Alliança Anarquista se desencontravam,
ora defendendo a junção de uma federação anarquista para fins estabelecidos, mas
encarando-a, por vezes, apenas como uma simples comissão. Além disso, nas suas
resoluções aparecem apenas as bases de acordo iniciais bem como notícias dos grupos
que foram aderidos ao projeto. De toda maneira, sabemos que a proposta, pelo menos
personificava a junção do grupo com o movimento operário e anarquista no país, de
forma verossímil às suas respectivas diversas nuances, fato que pode ser comprovado
com a própria organização dos seus principais membros:
A Comissão de correspondência é resultado da composição dos seguintescompanheiros [...]: Rafaele Esteve, Joaquim Santos e Silva, Roberto Feijó,Lucas Masculo, Galileo Sanchez, Gigi Damiani. O secretário da comissão [...]assim estabelece: para a correspondência em língua portuguesa: Roberto Feijó;para a correspondência em língua espanhola: Galileo Sanchez; para acorrespondência em língua italiana: Gigi Damiani.303
Nos meses finais de 1916, tanto a Alliança Anarquista, quanto o periódico Guerra
Sociale, estavam alicerçados sobre práticas e objetivos coerentes à organização sindical
e militante, preocupação que passava desde os idiomas falados nos espaços operários,
mas também revelava a união estável com militantes assíduos do movimento anarquista,
propondo meios de organização nos dois níveis citados (sindical ou trabalhista e
especificamente militante). Fatores que resultaram em diversas adesões, que vinham
desde o interior de São Paulo pelas cidades de Sorocaba, Bauru, Ribeirão Preto, dos
coletivos e apoiadores do estado de Minas Gerais pelas cidades de Guaxupé e Poços de
302 “Alliança Anarquista”. Guerra Sociale, 30 de setembro de 1916. p.1. 303 “Alleanza Anarchica”. Guerra Sociale, 14 de outubro de 1916. p.1.
103
Caldas, do Rio de Janeiro, e das regiões do nordeste como no Belém do Pará.304
Essa ampliação de suas articulações, se não desencadeava ainda para o grupo em
torno do jornal Guerra Sociale um agrupamento especificamente político, ganhava
imenso respaldo entre os grupos anarquistas ligados mais pragmaticamente com as
associações sindicais bem como o anarquismo de caráter organizador, e que gastavam a
maioria dos seus esforços nisso. Um órgão de militância que estava se tornando eficaz
em coordenar esforços libertários para uma atuação nacional sobre o espírito
internacionalista logo foi aderido pelos militantes de tradição organizacionista como
Edgard Leuenth e Neno Vasco que o impulsionavam sob o periódico A Plebe. Esse
último, pelo seu caráter pode ter expresso, as articulações necessárias para a infiltração
da Alliança Anarquista nos espaços sindicais em São Paulo no período grevista, embora,
como veremos estava diante de outras disputas estratégicas, táticas e políticas.
2.2. A Plebe: entre o internacional e o local nas lutas efetivas do operariado e osindicalismo revolucionário em disputa.
O jornal A Plebe teve sua primeira edição em nove de junho de 1917 e foi
encerrado oficialmente em 1949. Era publicado aos sábados e continha quatro páginas
na maioria de seus números, se estendendo em ocasiões especiais. Apesar de contar com
uma grande distribuição, chegando a uma tiragem de dez mil exemplares no período
grevista, viveu uma história atribulada, apresentou dificuldades financeiras por ser
produto da ação de voluntários e além disso era alvo constante de perseguições
policiais.
Para Rodrigo Rosa da Silva, o periódico A Plebe era intensamente perseguido
justamente pela sua grande influência entre os trabalhadores e os movimentos que se
ampliavam no período em que foi fundado. Os personagens em torno de sua
organização conseguiram transformá-lo no “porta-voz dos operários e arautos em suas
reivindicações.”305 O autor ainda mostra que sua influência foi repercutida anos depois,
quando o Departamento de Ordem Política e Social (DEOPS), na década de 1940,
considerava crime possuir ou apenas ler o referido jornal.
Essa influência com certeza foi o resultado do esforço prático de seus editores e
colaboradores, inclusive recebendo o apoio financeiro de diversas regiões do interior,
304 Ver “Il Bolletino dell’Alleanza Anarchica.” Guerra Sociale, 18 e 30 de novembro de 1916. p.4. 305 SILVA, Rodrigo Rosa da. “As ideias como delito: a imprensa anarquista nos registros do DEOPS-SP(1930-1945). In: DEMINICIS, Rafael; FILHO, Daniel Aarão Reis (orgs.). Op.cit., p.119.
104
sendo distribuído em toda a cidade. Mas, como estamos acompanhando, também refletia
ou desembocava novas atuações no movimento operário, e em consonância com esse,
das estratégias e táticas anarquistas que estavam sendo reformuladas desde o início dos
conflitos mundiais. Os próprios redatores mostravam a urgência das medidas que
estavam levando a cabo desde “a conflagração horrorosa a que a burguesia vai
arrastando, uma a uma, todas as nações, convulsionando o mundo.”306
Os militantes em torno da redação do jornal eram bastante assíduos nos espaços
operários, além de especialmente defenderem, dentro do anarquismo, a estratégia
organizacionista. Seu principal editor era Edgard Leuenroth que contava com
colaboradores bastante frequentes em outros periódicos como Benjamin Motta, Isabel
Cerutti, Astrojildo Pereira, Florentino de Carvalho, João Penteado, Andrade Cadete,
Maria Valeska, Gigi Daminani e Neno Vasco. No primeiro número, as colunas
apresentadas chamavam atenção pelos seus apelos às mobilizações bem como sua
grande recepção entre os movimentos grevistas e sindicais do período. Em uma dessas,
sobre a chamada “Ação obreira: O operariado de São Paulo parece despertar para a
luta”, tais ativistas defendiam as estratégias que pretendiam seguir:
Alguns movimentos grevistas já se manifestaram, ao mesmo tempo que se vaitratando de constituir associações de resistência e de acentuada luta social. [...]Os trabalhadores nesse sentido prosseguem e é de esperar que, no mais brevetempo possível, o proletariado de S. Paulo possa dispor de uma potenteorganização de luta para fazer frente com vantagem aos miseráveis [...].307
É interessante notar que desde o início da trajetória de participantes frequentes
desse período, entre eles Neno Vasco, já era defendido o impulso das ações de caráter
sindical, para o próprio interesse da classe trabalhadora e sua “potente organização”,
bem como do desenvolvimento do movimento anarquista nesse. Ainda assim, o mesmo
militante se queixava frequentemente da falta de organização política anarquista no
interior desses espaços, que se organizavam prioritariamente nos jornais e entravam
pessoalmente no sindicato. Em A Plebe, o projeto que era pretendido inicialmente
tentava incluir uma reformulação dessa atuação:
[...] a Alliança Anarchista, constituída, não há muito tempo em S. Paulo com ofim de servir de traço de união entre as nossas diversas agrupações e oscamaradas dispersos por ali além. São bons sintomas de um necessário eurgente despertar. Entretanto, muito mais se poderá conseguir, se todos os
306 “Rumo à Revolução Social. A Plebe, 9 de Junho de 1917. p.1 307 “Ação obreira: O operariado de São Paulo parece despertar para a luta”. A Plebe, 9 de junho de 1917. p.4.
105
libertários que são bastante numerosos, se dispuserem a fazer algo, desenvolverum pouco mais de atividade.308
A Alliança Anarquista, que tentava, em alguns casos, construir uma rede política
sólida, tinha seus militantes inseridos em diversos grupos de caráter prioritariamente
econômico (na visão dos anarquistas dualistas) como o Comitê Popular de Agitação, o
Comitê de Defesa Proletária e a FOSP (Federação Operária de São Paulo), reerguida
nesse período. Nesse intuito, o principal tema fundamentador e que dava a consistência
ao jornal era o incentivo e a cobertura às greves e comícios. O apelo às greves era o
tema central e comum a todos os números de A Plebe durante o ano de 1917 e até
mesmo depois. Um dos seus redatores Primitivo Raymundo Soares, sob o conhecido
pseudônimo de Florentino de Carvalho explicava a situação naquele momento:
O operariado realiza, portanto, uma obra justiceira conquistando pela greve ououtros meios de ação direta tudo quanto lhe é extorquido, roubado legal ouilegalmente. E não devem perder esta ocasião favorável em que os colocou oincremento do trabalho, que evita em parte a concorrencial de braços. Omovimento deve generalizar-se a todas as classes, alastrar-se por todo o país,afim de que as conquistas sejam mais rápidas e radicais.309
Os redatores do periódico enxergavam as reivindicações de classes como justas e,
no momento, como “ocasião favorável”310, apelavam para que todos os trabalhadores
participassem desta, inclusive em âmbito nacional.
Mas, conforme foi defendido em outras oportunidades que se seguiram no
desenvolvimento do jornal, tentando levar a cabo a própria aliança, era preciso
fortalecer também uma clara consistência anarquista de revolução para tentar
transformar tais greves em um instrumento para a queda do sistema vigente. Ideologia
que era defendida a partir dos próprios atos repressivos que eram cometidos contra os
ativistas anarquistas:
Nascidos aqui ou além, estrangeiros em todas as pátrias, somos inimigos detodos os governos, de todas as classes privilegiadas e amigos de todos ospovos, defensores de todas as vitimas. Devido, portanto, a essa mentalidadenova, inteiramente liberta de preconceitos, graças ao caráter essencialmenteuniversal da doutrina professada, os anarquistas, submetendo os própriossentimentos ao império da razão, refletida e serena, falam da guerra e dascausas que a provocaram como das responsabilidades diretas que na mesmatem os governos, sem se deixar arrastar por simpatias ou antipatias, que, dadosos preconceitos ambientes e um exame superficial dos acontecimentos, podemparecer legitimas e de cuja sinceridade nem sempre é licito duvidar. [...]Aconteça o que acontecer, não devemos esmorecer, nem deixar-nos arrastar novendaval que parece ameaçar a integridade e solidez da nossa construção
308 “Vida libertária.” A Plebe, 9 de junho de 1917. p.2. 309 CARVALHO, Florentino. “O porquê das greves”. A Plebe, 9 de Julho de 1917. p.1310 Idem.
106
doutrinária Se há quem proclame a falência de nosso ideal e de todas asaspirações que o personifiquem, a verdade é que esta guerra traduz a derrocadade todas as doutrinas burguesas, morais, religiosas, sociais.311
Ao tentar explicar os motivos da perseguição ao movimento anarquista, o redator
rebuscava alguns princípios políticos que constituíram esse. Ao ler o periódico é
perceptível explicações sobre o alcance e importância do desenvolvimento interno
anarquismo, em tópicos como “A Alliança Anarquista ao Povo” ou simplesmente
chamado de “Anarquismo”.
O periódico contava com essa estratégia fundamental, os redatores usavam como
tática de propaganda, colunas com notícias do movimento operário de forma
politicamente neutra (a luta essencialmente econômica e material), mas sem deixar de
apresentar no mesmo número, a teoria anarquista para organizar os eventos e guiar a
revolução almejada.
Não obstante, mais uma vez, como em seu antecessor A Lanterna, na prática
houve um desequilíbrio dessa mediação. O periódico destinava, em quase todos os
números, uma página intitulada “Mundo Operário” no qual eram reunidas notícias,
denúncias e conselhos dentro das ações que envolviam os trabalhadores no Estado de
São Paulo:
Convidamos, portanto a todos os operários e operárias adultos e menores e aopovo em geral a comparecer ao grande comício a realizar-se domingo, 24 docorrente, às 6 horas da tarde no largo São José (Belenzinho) para demonstrarque os operários grevistas não estão sós, que podem contar com o concurso detodas as classes trabalhadoras, de todas a população proletária. Companheiros:Este comício, com a presença de todos, deve ser um verdadeiro expoente dasolidariedade operaria, de todos os que tem sentimentos de justiça e aspiraçõesde liberdade. Viva a solidariedade operaria! Vivam as reivindicações populares!A Comissão Organizadora.312
A coluna apresentada provavelmente foi a mais influente na trajetória do periódico
em questão, articulando o desenrolar das ações grevistas, informando os locais de
manifestação e unindo órgãos de resistência. O tom percebido nessa seção, que
aumentava progressivamente até o fim da conjuntura grevista, como é possível observar,
apelava prioritariamente para a “solidariedade operária”, ou melhor, para a organização
do operariado e das “reivindicações populares.”
É certo que outros autores, como mostram Steven Hirsch e Lucien van der Walt,
que dentro de uma análise sistemática durante o final do século XIX e as primeiras
311 Leuenroth, Edgard. “A Alliança Anarquista ao povo”. A Plebe, 23 de junho de 1917. p.4 312 Leurenroth, Edgard. “Mundo operário”. A Plebe, 23 de junho de 1917. p.3
107
décadas do próximo, empiricamente, o sindicalismo de intenção revolucionária e suas
derivações foi muito mais uma estratégia de luta anarquista do que uma ideologia,
embora concordem que fosse revogado entre personagens de orientação políticas
diversas.313 Levando em conta essa disputa, em maior ou menor grau, dessa maneira, os
anarquistas em torno do jornal A Plebe estavam diante de uma tarefa bem árdua,
impulsionar, através do seu jornal muitas das ações essencialmente de classe, como
assim faziam, utilizando, frequentemente, uma linguagem aparentemente neutra de
aproximação com diversos grupos que se sentiam próximos das causas trabalhistas.
Porém, corriam o risco de uma diluição de sua ideologia nessas causas bem como a
instrumentalização das suas estratégias na militância de outros grupos.
Assim, os debates dos militantes que já haviam sido travados por outros
personagens no desenvolvimento da cultura política anarquista podem ter vindo à tona
por um problema que começava a ser cada vez mais recorrente no período. Por detrás de
um suposto confronto de métodos especificamente anarquistas, podemos perceber que
os militantes denunciavam a mesma tendência, o enfraquecimento do movimento
sindical pelas pressões econômicas e políticas do período, passando pela
instrumentalização de outros grupos em torno dessa estratégia, bem como o perigo de
seu desmembramento pelas escolhas e métodos utilizados até então e, por isso, tentavam
achar o melhor método para a inserção dos libertários nesse.
Como será evidenciado na próxima parte do trabalho, a Alliança Anarquista, um
projeto essencialmente político anarquista, como sugeriu Neno Vasco, foi importante
para favorecer e impulsionar as lutas materiais bem como coordenar os grupos
libertários e seus aliados nesse intuito. Todavia, se estavam construindo esse órgão
tardiamente, precisavam de outro, pela própria urgência, para representar
essencialmente uma luta para o melhoramento de vida da população e mesmo alertados
sobre isso, se abrindo, portanto, majoritariamente aos interesses desses, disputando o
sindicalismo revolucionário mais uma vez.
Para essa disputa e o encabeçamento de greves efetivas, além das táticas de
organização interna que ainda necessitavam de força, os anarquistas precisavam de uma
última saída, tanto para conservar mínimos aspectos ideológicos próprios quanto para
reerguer e impulsionar as lutas provindas do movimento operário. Nesse viés, as
estratégias internacionalistas, reforçadas entre os militantes no período dos conflitos
313 Ver HIRSCH, Steven; WALT, Lucien Van der. “Rethinking Anarchism and Syndicalism: the colonialand postcolonial experience.” In: _____ (orgs). Op.cit., p.xxi-lxxiii.
108
mundiais, podem ter sido outro importante fator para entendermos tanto a reorganização
do anarquismo no período, bem como suas estratégias de sobrevivência e de adaptação à
realidade, fatores condensados no desenvolvimento do periódico A Plebe.
Nesse intuito, as campanhas anti-imperialistas e antimilitaristas mostravam ainda
serem poderosas ferramentas de mobilização. Para os redatores, essa luta ainda deveria
ser demanda legítima mesmo com a “perseguição aos anti-militaristas” 314 no qual “a
polícia é grandemente auxiliada pela imprensa burguesa.” 315 Ainda, longe de ser um
combate longínquo sem reflexões no país, os militantes libertários reafirmavam que tal
conflito evidenciava o caráter predatório do próprio desenvolvimento capitalista, pois
Na agitação anti-guerreira tomam parte estudantes das escolas superiores, asclasses proletárias, os socialistas e os anarquistas. Estes últimos fazem hoje apropaganda antimilitarista da mesma forma por que o faziam há um, dois,cinco, dez anos. Sempre foram contrários à guerra e, para serem coerentes comos seus princípios, devem combate-la com muito maior razão nesse momentoque estão ameaçados daquilo que, com a propaganda de muitos anos, procuramevitar: a guerra contra todos os seus horrores.316
Elencando que tal ideário fazia parte de alguns grupos progressistas, assim como
era típico do anarquismo havia alguns anos, e tentando mostrar que tal evento era
resultado ainda da ordem social e política estabelecida, os redatores do jornal tentavam
desconstruir as pretensões militares-nacionalistas que poderiam estar presentes entre os
trabalhadores e classes subalternas:
O soldado é do povo e com o povo sofre as consequências da má organizaçãosocial. Vemo-lo no comprimento de suas tristes atribuições, obediente esubmisso, sofrer os rigores das intemperes enquanto no seu lar a misériadomina, mantendo seus filhos mal educados e faltos na necessária educação.[...] Urge intensificar a propaganda libertadora entre os que vestem farda, sendode grande proveito à organização de grupos, com o fim de, por meio demodicas contribuições mensais, fazer no seu meio larga e constantedistribuição das nossas publicações. Se assim se proceder, conseguiremosformar uma consciência livre no soldado, apressando a vitória de nossasaspirações. Só então nos veremos livre, desta atmosfera de vilanias, deopressão e de crime em que nos mantém o capitalismo, estabelecendo umregime de felicidade para todos.317
Uma das campanhas dos militantes, portanto, era tentar desconstruir o militarismo
entre os próprios oficiais, mostrando que a defesa da guerra e a do nacionalismo faziam
parte de planos de outros grupos, em torno das classes abastadas e do estado. Para os
314 “Notas Internacionais.” A Plebe, 28 de julho de 1917, p.4 315 Idem.316 Ibidem. 317 Isabel Cerruti. “A propósito da atitude do grande órgão”. A Plebe, 4 de agosto de 1917, p.2.
109
anarquistas que aderiram essa tática, ao contrário de ser um oponente, o trabalhador
fardado também estava sendo explorado por interesses contrários à sua condição e suas
necessidades.
Entre as principais personagens envolvidas com essa preocupação estava Isabel
Cerruti. Existem poucas referências ao seu local de nascimento ou quando veio ao
Brasil, mas tudo indica que acompanhou o processo migratório junto com sua família,
certamente italiana, a julgar pelo seu nome, se instalando na cidade de São Paulo pelas
razões de trabalho. No início da década de 1910, é possível observar sua associação com
jornais assíduos das táticas organizacionistas do anarquismo, como sua passagem no
órgão A Terra Livre e posteriormente sua importante participação em A Plebe. Além das
campanhas antimilitaristas que aderiu ao participar do movimento libertário, Isabel
compunha um orgão muito importante para seu gênero junto à luta classista, o Centro
Feminino Jovens Idealistas que se justificava:
Considerando que a emancipação da mulher constitui uma necessidade para aliberdade dos povos e que essa emancipação só se conseguirá mediante ainstrução racional e científica e pela luta consciente em prol dos seus direitos ereivindicações, este Centro propõe:1º - Reunir em seu seio o maior númeropossível de pessoas do sexo feminino; 2º - Manter nas mais estreitas eamistosas relações com todas as pessoas que tenham aspirações de liberdade ecom as instituições cujos fins tendam à emancipação da Humanidade; 3º -Trabalhar no sentido de instituir e educar as mulheres para assim elevar-lhes ocaráter e torná-las apta a conquistar a sua emancipação; Para este fimempregará os seguintes meios: a)- Criar escolas gratuitas para as jovens emeninas que desejem instruir-se; b)- Fundar bibliotecas, editar publicações depropaganda de educação e regeneração social; c)- Organizar conferências,festivais instrutivos e recreativos, etc.; 4º - Combater todos os males sociaisassim como as causas que as originam, e aderir a todas as iniciativas quetiverem esse fim.318
É claro que desde o início da disseminação do anarquismo no país, os militantes
tentavam agregar as mulheres às lutas contra a formação do Estado-Nacional e o
sistema econômico vigente, mas pouco faziam ainda para criticar a própria posição da
mulher na família ou de sua posição em relação ao homem, provavelmente pela própria
predominância de homens no movimento, envolvidos ainda com seus privilégios de
gênero. Vindo preencher essa lacuna, foram as próprias mulheres ao aderirem o
anarquismo que foram responsáveis pela reformulação desses preceitos no movimento
libertário na cidade.319 O órgão proposto reunia mulheres assíduas no movimento
318 “Bases de Acordo do Centro Feminino Jovens Idealistas”. In: OLIVEIRA, Antoniette. Op.cit., p.152-153. 319 Ver MENDES, Samanta Colhado. As mulheres anarquistas na cidade de São Paulo (1889-1930).Dissertação (Mestrado em História). Universidade Estadual Paulista, Franca – São Paulo, 2010.
110
operário, como a Maria Valeska e Emma Mennochi320, para debaterem suas demandas
especificas, assim como incentivar a instrução e atuação da população feminina operária
e subalterna. E mais do que isso, o Centro Feminino Jovens Idealistas tentava se anexar
aos eventos e órgãos trabalhistas inflamando progressivamente um caráter
revolucionário, como em sua participação no Congresso Internacional da Paz em 1915 e
sua associação com os sindicatos presentes nesse evento, sobre o caráter transnacional.
Os militantes anarquistas em torno de A Plebe também acharam essencial a participação
desse grupo na formação de seu jornal e, no encaminhamento de suas discussões, pela
libertação conjunta de homens e mulheres. Nesse intuito, a própria Isabel Cerruti
tentava mostrar que além da importância em reunir mulheres para debaterem problemas
específicos, depois disso, para a luta material e o embate contra o sistema político
vigente, era necessária a união de ambos os gêneros:
A emancipação da mulher não está na igualdade desta perante o homem, nasprerrogativas políticas, de mando e de trabalho, mas sim na emancipação dahumanidade da tutela política e na igualdade econômica e social de todo gênerohumano. [...] Igualá-la aos homens é ficar onde estamos. Nós devemos é lutarao seu lado e junto aos homens para que a emancipação da mulher seja umfato, não para a mulher, ou para o homem, mas para todas as pessoas (inclusivecrianças e adolescentes) para a humanidade, porque os dois sexos se integram ese completam.321
Mais do que garantir a igualdade da mulher e homem perante as leis, a luta das
mulheres, para a ativista, deveria se ocupar também das atividades que envolviam a
transformação da realidade, trazendo homens como aliados, quando necessário, para a
destruição de qualquer ideário, além da esfera política e econômica, que pudesse
reproduzir alguma forma de desigualdade entre o gênero humano como um todo.
Para a ativista, ao fazer menção contra o imperialismo e militarismo, como
apontando uma de suas principais preocupações em A Plebe, se referia não somente às
campanhas contra os conflitos mundiais, mas passaria primeiramente pela luta no
interior do movimento operário e depois, de forma complementar, a um tipo particular
de educação ou conscientização que combateria as desigualdades de forma horizontal.
Uma grande parte dos anarquistas nesse jornal também seguia esse tipo de
atuação, enxergando a luta sindicalista como apenas uma das tarefas, e imbricando
320 Esta última conhecida por atuar também ao lado de seu companheiro Gigi Damiani. Ver BIONDI,Luigi. Op.cit., 2006. 321 Isabel Cerruti. Discurso de inauguração (Centro Feminino de Educação). In: MENDES, SamantaColhado. Op.cit., p.209.
111
também a educação integral e racionalista entre a população.322 Nesse caso, o
anarquismo na cidade, desde seus primórdios, tentava criar ações educativas nos bairros
operários através de conferências, palestras, bibliotecas, peças de teatro, escolas
racionalistas, bem como o letramento da população mais desprovida. Logicamente,
muitos ativistas estavam sendo influenciados pelos ideários iluministas, também
presentes nas ideias positivistas e republicanas, que julgavam a falta de letramento um
dos motivos do atraso moral e político das sociedades.323 Todavia, para os anarquistas,
pelo menos nesse presente caso, essa estratégia tinha particularidades muito próprias.
Defendendo uma escola racionalista, libertária e operária, os anarquistas justificavam:
Que a escola racionalista é a escola do futuro não resta dúvida. Basta ver ofuror com que os governantes clericais e jesuíticos desta terra investiram contraas Escolas Modernas aqui existentes, mandando-as fechar como prejudiciaisdas altas camarilhas de comerciantes, industriais e governantes jesuíticos,reacionários, ultraconservadores e apoucados de juízo e de previsão social! E,fato curioso, havendo uma Liga Nacionalista com o escopo de matar oanalfabetismo nesta terra de bandeirantes, ninguém deu fé que dita instituiçãoprotestasse contra o ato abusivo e prepotente dos governantes mandandoencerrar escolas numa terra de analfabetos, onde a maioria da população nãosabe ler, o que é considerado o maior flagelo que aflige o Brasil. E que todos,gregos e troianos, como bons burgueses que se prezam de ser, entendem que aescola é muito boa só quando tem o fim de fortalecer o pedestal da exploraçãoburguesa. A não ter a escola esta missão, acaba-se com a escola. [....] Eis aí aquestão que o ponto está. Os trabalhadores tudo têm de fazer por seu impulsopróprio. Nada têm de esperar dos governos, os quais nada farão que concorrapara sua queda e para a libertação do operariado.324
Assim, os redatores em A Plebe reconheciam que havia projetos paralelos ligados
à educação em curso, mas que fundados a partir de interesses opostos aos trabalhadores
nunca poderiam alcançar seus objetivos, pois apenas reproduziriam uma educação para
garantir a posição das classes. Nesse caso, tanto as escolas clericais, responsáveis por
criarem uma espécie de dominação a partir de mitos e crenças particulares estando nas
mãos de indivíduos detentores desse poder, nem as escolas republicanas ou nacionais
envolvidas com a ascensão dos grandes proprietários da produção e dos políticos
parlamentares, poderiam resolver o problema do analfabetismo no país. Portanto,
322 Esse ímpeto viria também pela própria interpretação anarquista do que seriam as classes exploradas.Muito mais do que simplesmente os trabalhadores que exerciam funções nas fábricas, os libertáriosreconheciam, como evidenciado anteriormente, a necessidade de libertação dos grupos subalternos,aqueles que viviam sobre condições de pobreza ou de exploração semelhante, como os assalariados emgeral, camponeses, moradores de rua e autônomos que compartilhavam essas condições. Ver SCHMIDT,Michael; WALT, Lucien Van der. Op.cit., p. 5-26 e LEAL, Claudia. Op.cit., 1999. p.45-53.323 Sobre os projetos educativos dos anarquistas ver PERES, Fernando Antônio. Revisitando a trajetóriade João Penteado: o discreto transgressor de limites. São Paulo: 1890-1940. Tese (Doutorado emEducação). Universidade de São Paulo, São Paulo, 2010. 324 “A Escola Moderna ou racional.” A Plebe, 28 de fevereiro de 1920. p.4.
112
somente a escola fruto da própria iniciativa do proletariado e de sua organização
constituiria uma considerável mudança. Para os redatores e militantes de A Plebe, era
necessária a criação de entidades educativas ligadas às lutas contra a ordem social
estabelecida, uma clara referência e influência de ativistas e teóricos como Piotr
Kropotkin que, sobre o assunto, havia pensado:
Em nossa escola atual, formada para criar a aristocracia do saber, e dirigida atéo presente por essa aristocracia dirigida clérigos, o desperdício do tempo écolossal, é absurdo. [...] Em toda a parte a história na escola é tempoabsolutamente perdido para aprender nomes, leis incompreensíveis para ascrianças, guerras, mentiras... convencionais... e em cada área o desperdício detempo alcança proporções vergonhosas. E último termo haverá de se recorrerao ensino integral; ao ensino que por por exercício da mão sobre a madeira, apedra e os metais fala ao cérebro e o ajuda a desenvolver-se. Chegará a ensinar-se a todos o fundamento de todos os ofícios, o mesmo que todas as máquinas,trabalhando (segundo certos sistemas já elaborados) sobre o banco e o torno,modelando a matéria bruta, fazendo por si mesmo as partes fundamentais detodas as coisas e máquinas, o mesmo que as máquinas simples e astransmissões de força a que se reduzem todas as máquinas. Dever-se-á chegar àintegração do trabalho manual com o trabalho cerebral [...], e então se verá aimensa economia de tempo e de pensamento que se realizará com os jovens.[...] O campo de cultivo no ensino é tão extenso que se necessita o concurso detodas as energias livres das brumas do passado e inclinadas ao porvir; todosencontrarão nele uma imensa tarefa a realizar.325
Os dizeres de Kropotkin refletem o que pensavam muitos dos anarquistas sobre o
ensino. Este deveria estar preocupado com o desenvolvimento das capacidades humanas
ligadas à prática, vinculando o trabalho manual e intelectual de forma complementares.
Essa mesma educação desenvolveria um tipo de consciência social, que estaria
preocupada com o melhoramento da vida coletiva, fatores que desencadeariam
condições tanto para que os trabalhadores pudessem realizar a vislumbrada revolução
quanto para manter o novo sistema proposto.
Além das influências ideológicas, como demonstrado, os redatores tentavam
evidenciar o exemplo das escolas inspiradas no pedagogo racionalista Francisco Ferrer
como a Escuela Moderna de Barcelona que funcionou entre 1901 e 1906326 ligada à
325 KROPOTKIN, Piotr. “Uma carta de Kropotkin”. In: KROPOTKIN, Piotr; RÉCLUS, Élisée. Escritossobre educação e geografia. São Paulo: Biblioteca Terra Livre, 2014. p.77-78.326 Francesc Ferrer i Guàrdia, nascido em 1859 em Allela na Espanha, foi uma das principais referênciaspara os projetos educativos dos anarquistas. Embora não seja declaradamente anarquista e cominfluências racionalistas diversas, suas propostas incluíam o antipatriotismo, antimilitarismo e oantiestatismo, fatores que agregavam os libertários para a defesa de suas concepções. Depois da acusaçãode envolvimento com os eventos reivindicativos de 1909 em Barcelona, Ferrer foi executado, causandouma intensa onda de mobilizações nas redes anarquistas no mundo, incentivando suas propostas. VerSILVA, Rodrigo Rosa da. Anarquismo, Ciência e Educação: Francisco Ferrer y Guardia e a rede demilitantes e cientistas em torno do ensino racionalista (1890-1920). Tese (doutorado em Educação).Universidade de São Paulo, 2013. p.105-145.
113
CGT na Espanha que tinha entre seus projetos instituir não só um espaço com moldes
racionalistas para o ensino infantil mas também garantir o próprio desenvolvimento dos
trabalhadores mais velhos, criando um comitê composto de constantes reuniões para o
aprendizado geral e igualitário. Dessa forma, destacavam que o projeto educacional
deveria ser estendido mundialmente e estava intimamente ligado à melhoria de vida dos
grupos desfavorecidos. Os detalhes sobre a escola também eram fornecidos pelo
periódico:
327
O estabelecimento das escolas modernas estava sendo consolidado no início da
327 A Plebe, 9 de julho de 1917. p.4.
114
segunda década do século XX. Em 1912 contava com um espaço físico em um bairro
operário na capital de São Paulo. A escola, como é possível observar, tinha como diretor
um dos próprios redatores dos jornais A Plebe e Guerra Sociale, Florentino de
Carvalho, também envolvido com o ativismo sindical, mais um indício do caráter da
instrução integral, a aliança entre educação e o ativismo material e político.
Outro importante educador e militante anarquista envolvido com o jornal era João
Penteado, nascido em Jaú, interior de São Paulo em 1877. As atividades do personagem,
que desde a infância ajudava seu pai nos trabalhos como carteiro, possibilitaram seu
contato e envolvimento com a disseminação do fenômeno do letramento no país e com a
circulação de ideias. Mais tarde, Penteado trabalhou como educador em escolas de sua
região e no estado de Minas Gerais e como tipógrafo, primeiramente ligado aos grupos
das religiões espíritas. O radicalismo racionalista de alguns desses, como os escritos de
Allan Kardec, garantiram aproximações entre os núcleos anticlericais, nos quais,
possivelmente, obtinha contato com jornais envolvendo os anarquistas, caso de A
Lanterna. João Penteado, assim, através do contato com as ideias de transformação
libertarias, incluindo sua aproximação com temas que já lhe eram comuns, passou para
as fileiras anarquistas trabalhando com ativistas de relevo como Gigi Damiani, Edgard
Leuenroth e Florentino de Carvalho. Em 1912, o militante estava envolvido com as
ações educativas na cidade de São Paulo, onde se mudava e estreitava sua relação com
os bairros operários.328 Nesse advento, à medida que aumentava suas ações a favor das
lutas imediatas e revolucionárias acompanhadas das transformações sociais e políticas,
João Penteado deixava sua marca a partir de suas influências educativas no movimento
no qual aderia, incluindo a formulação do jornal A Plebe.
Para além do essencial apoio aos centros educativos e à Escola Moderna, as
iniciativas educativas do jornal estavam atreladas à sua própria construção.
Constantemente poemas com os temas da vida cotidiana dos trabalhadores ou mesmo
pregando o ideal anarquista era um recurso comum, proveniente, é evidente, da tradição
de outros jornais libertários da década anterior, mas que levavam a cabo neste momento.
Outro recurso se refere às imagens e desenhos usados pelo grupo de militantes. Estas
eram trazidas para representar os temas tratados, facilitando a elucidação ou fixação das
propostas:
328 Para adentrar a biografia de João Penteado e suas influências racionalistas ver PERES, Fernando. Op.cit.
115
329
De modo frequente, as imagens eram repetidas acompanhando a necessidade de
abordar questões recorrentes aos leitores. No caso, o retrato fazia alusão ao militarismo
e o alargamento dos conflitos mundiais, processo que, para os redatores, causava danos
materiais e morais às famílias da classe trabalhadora no país.
Os redatores também propunham diversas leituras que evidenciavam suas
referências políticas mais comuns como Élisée Reclus, Errico Malatesta, Pierre Joseph-
Proudhon e Piotr Kropotkin mas também de obras socialistas em geral, entre eles
Francis Delaisi e Von J. Novicow. Ocasionalmente, uma tabela, nomeada “Obras que os
operários devem lêr” ou “Nossa Biblioteca”, sistematizava a lista de obras que os
militantes julgavam importantes:
329 A Plebe, 19 de julho de 1919. p.4
116
Os temas e títulos mais assíduos gravitavam em torno da legitimação histórica e
ideológica do anarquismo, através dos textos de Piotr Kropotkin, Elisé Reclus,
Proudhon e Errico Malatesta bem como do surgimento e da prática dos movimentos
socialistas, incluindo as propostas da social-democracia, através dos textos de Jean
Jaurès e Gustavo Landener. O anticlericalismo, acompanhando os textos racionalistas,
também tinham bastante espaço na rede de leituras propostas, como podemos observar
através dos títulos Ensaio de crítica Racionalista, Almanaque de O Livre Pensador, A
Educação religiosa e A Inquisição. Uma grande preocupação, assim, era a proposta de
escritos que tinham proximidade com as ideias cientificistas ou educativas, importantes
para os libertários, no combate contra a dominação religiosa ou mística, como nas
referências de Charles Darwin em A Origem das Espécies.
Como é possível notar, a literatura também era incentivada, ressaltando autores,
em forma de poema ou prosa, que versavam sobre o cotidiano das classes mais baixas
330 “Obras que os operários devem lêr”. A Plebe, 21 de outubro de 1917. p.4.
117
ou que incentivavam as reivindicações, como Leon Tolstoi. Interessante é perceber
algumas indicações de escritores conhecidos pelas lutas de libertação nacional, como no
caso de José Rizal331, autor influente nas lutas de independência nas Filipinas contra o
domínio espanhol.
Evidentemente, muitas dessas obras, eram também instrumentalizadas por outras
classes, inclusive para legitimar posições de segregação social, no caso dos textos de
Charles Darwin, por exemplo, foram frequentemente usados para a disseminação do
racismo em diversos âmbitos sociais, inclusive em alguns círculos científicos e
políticos.332 Do mesmo modo, os textos anti-coloniais foram utilizados posteriormente
para a legitimação de ideários nacionalistas, como no próprio caso das Filipinas após
seu processo de independência.333 Porém, devemos nos ater ao fato que, naquele
momento, tais referências pareciam importantes para os projetos educativos que, longe
de serem isolados, para os militantes, apenas fariam parte de uma esfera de aprendizado,
que seria complementado com a própria prática no trabalho e no movimento de
contestação à ordem estabelecida.
Assim, devemos reconhecer que as escolhas e a ordem da leitura, mesmo para nós
sendo algumas exógenas dos preceitos libertários que os personagens analisados
pregavam, não eram nadas ingênuas ou equivocadas, mas abarcavam textos que, ao
serem instrumentalizados e complementados por outras ações e leituras, incentivavam a
mobilização dos seus leitores, tanto para desconstruir preceitos que os militantes
anarquistas julgavam equivocados ou para a própria prática de ação direta. Os textos
racionalistas, por exemplo, não estavam propostos no mesmo intuito que outras classes
mais abastadas davam, mas na desconstrução da influência religiosa ou mística nas
decisões políticas e sindicais. Do mesmo modo, os textos nacionalistas serviam,
possivelmente, para atrair e divulgar suas campanhas anti-imperialistas, muito
importantes para a reformulação das táticas e estratégias anarquistas nesse período,
como estamos acompanhando. Tudo isso estava em conformidade com as práticas e
teorias socialistas e operárias que incluía o anarquismo um dos seus proponentes.
331 Para adentrar as concepções de José Rizal e sua influência ver ANDERSON, Benedic. Op.cit., p.56-65;p.147-149.332 O historiador Sidney Chaloub atesta que desde o século XIX no Brasil, várias iniciativas políticascom aparatos médicos acreditavam que a vinda de Europeus e hábitos considerados mais civilizados numprisma eurocêntrico traria certa civilidade à nação. Esses também precisaram sofrer um tipo dehigienização através do fechamento de cortiços, na abertura de vias públicas e na separação, nos bairrosdas cidades, de determinados grupos sociais. Nesse sentido, tais discursos e práticas também estavamengendrados em interesses econômicos dos novos detentores dos meios de produção que visavam umamodernização mas sem mudanças na estrutura econômica e social. Ver CHALHOUB, Sidney. Op.cit. 333 Ver ANDERSON, Benedict. Op.cit.
118
As táticas educativas e didáticas foram reiteradas no período de 1919, após a
constante repressão que fechou o jornal no ano anterior, pela sua participação incisiva
nas manifestações de 1917.334 Nessa empreitada, além das campanhas contra a
perseguição e prisão dos ativistas envolvidos, como foi o caso de Edgard Leuenroth,
outras medidas tentavam mostrar que os militantes conheciam a vida cotidiana dos
bairros operários e, para além das greves propriamente ditas, propunham ações diversas
no intuito tanto de melhorar a vida dos personagens que compunham essas regiões
quanto para garantir suas tiragens e inserção nos ambientes populares, incluindo as
palestras já mencionadas, mas também apresentações teatrais e festas:
Essa mesma solidariedade também tinha seu caráter internacionalista já que os
anarquistas nesse jornal traziam notícias de manifestações ou eventos de origem
operária para seus leitores. Uma das principais campanhas foi o apoio à Revolução
Russa:
Na Rússia triunfou o princípio, a ideia, demonstrando ao mundo o que se podefazer quando há uma vontade ao serviço da justiça. Não se apagou na Rússia ofogo sagrado, símbolo de reivindicações. Estrela fulgurante, raio vivíssimo deluz, porque os lutadores o alimentaram com a sua liberdade e com a sua vida,oferecendo o belo exemplo de serem mártires espontâneos. Um povo em
334 Sobre os atos de repressão ao grupo em torno de A Plebe ver LOPREATO, Christina. Op.cit., 164-218. 335 A Plebe, 20 de março de 1919. p.4.
119
revolta é um povo forte que nada e ninguém pode abater, sim as suasaspirações se baseiam nos princípios da equidade social.336
Conforme notado, o exemplo da Rússia, que depois se alastraria por várias regiões
do leste europeu, parecia exemplar para mostrar que as ações dos trabalhadores podiam
ter resultados efetivos. É interessante notar que os anarquistas, nesse caso, apoiavam um
evento que se desenvolveu com claras referências ideológicas marxistas, refletindo as
propostas centralistas que também estavam nas discussões socialistas desde o final do
século XIX. Esses projetos, como o uso do Estado, que seria tomado e usado pela classe
trabalhadora para estabelecer a igualdade social, sempre foram criticadas desde as
formulações iniciais do anarquismo enquanto movimento e o mesmo aconteceu com o
marxismo, criticando os libertários, inclusive barrando suas participações nas
conhecidas Internacionais.
Na prática, em diversas partes do mundo, anarquistas, socialistas e sindicalistas
estabeleceram contatos necessários para a construção do movimento operário ou mesmo
para criarem movimentos reivindicativos mais instantâneos. Em São Paulo e Rio de
Janeiro, por exemplo, várias iniciativas, como a construção da Confederação Operária
ou mesmo na prática do sindicalismo, aglutinavam essas vertentes.337 Do mesmo modo,
mesmo pautando sempre suas críticas às estratégias do grupo Avanti!, órgão paulista
homônimo do PSI, diversos grupos anarquistas sempre mostravam a necessidade de
possíveis alianças práticas a fim de obterem conquistas imediatas.338
Para Michael Schmidt e Lucien van der Walt, no estabelecimento dos sovietes (os
conselhos operários), desde o início do século XX na Rússia, criados com o intuito de
regularem as desigualdades dos trabalhadores por região, assim como organizarem
greves e negociações desse intuito, foram também compostos por anarquistas que viam
o potencial de auto-organização nesses órgãos. De acordo com os autores, houve
libertários que desconfiaram quando perceberam a ascensão das alas marxistas, no
processo de revolução, mas outros viram a oportunidade de radicalizarem os
movimentos trabalhistas e, exercitando sua experiência nos conselhos, tinham a
esperança de desencadear uma insurreição de caráter libertário. Nesse caso, viram o
processo bem parecido com a “esquerda da antiga Internacional dos Trabalhadores”339,
enxergando a aliança como necessária, fato que pode ser atestado também em outras
336 Leurnroth. “A alvorada da esperança”. A Plebe, 28 de julho de 1917. p.1. 337 TOLEDO, Edilene. Op.cit., 2013. 338 BIONDI, Luigi. Op. cit., 2004. 339 SCHMIDT, Michael; WALT, Lucien Van der. Op.cit., 101. Tradução nossa.
120
regiões do globo, nesse período, nos quais os anarquistas usavam nomenclaturas com
referências ao “comunismo” mas tinham o intuito bem diferente dos socialistas que
almejavam criar a ditadura supostamente transitória do proletariado.340
No caso do periódico A Plebe, percebemos que o grupo em torno de sua
construção e divulgação viu o processo revolucionário como uma possível saída, no
momento, contra a hegemonia capitalista industrial e a formação do estado-nação, diga-
se de passagem, os principais oponentes dos militantes anarquistas, antes de qualquer
grupo provindo das alas de esquerda. Esse apoio, que foi bastante pregado pelo menos
até 1920, não era um desvio ideológico. Entre as colunas, algumas calorosas, que
tentavam convencer os trabalhadores a repetirem o exemplo da revolução em questão,
também eram realizadas críticas aos métodos realizados pelas fileiras marxistas:
É evidente que o período revolucionário reconstrutivo será longo e espinhoso,cheio de perigos. Daí a necessidade da ditadura proletária: do terror vermelho,segundo os burgueses. Mas se o terror vermelho será uma triste necessidadesalutar, a ditadura proletária pode vir a ser uma triste necessidade prejudicial,tanto mais que ela poderá ser exercida por um restrito povo de indivíduos, pelogoverno do povo. Portanto, será bom que a concentração, possível e útil, nãochegue a eliminação dos partidos. O anarquismo, no movimento socialista emesmo no seio da sociedade atual, representou uma força propulsora, mesmona sua parte negativa. O anarquismo é dinamismo social. Foi-o ontem e sê-lo áamanhã, mesmo vigorando a república dos sovietes. Isto não nos impede quehoje nos irmanemos, anarquistas e sindicalistas para fazer a revolução esocializar a propriedade.341
Nas palavras do redator, o apoio dado ao processo revolucionário soviético era
essencial, no momento, para uma conquista da classe trabalhadora efetiva, “a
socialização da propriedade”, também meta dos anarquistas. Contudo, mesmo visto com
entusiasmo, o novo sistema estabelecido seria infeliz ao instalar a chamada ditadura do
proletariado e consequentemente acabar com os demais partidos, ou melhor, outras
correntes políticas e estratégias presentes entre os trabalhadores e o movimento
operário. A mesma estagnação poderia cessar o dinamismo social, referência indireta à
ação direta e o federalismo, essenciais, na visão do personagem, para a manutenção
progressiva da igualdade. Nesse caso, a união proposta pelo militante, não era se
transformar ou abraçar completamente a corrente política que se sobressaiu na
Revolução Soviética, o bolchevismo, mas incentivava o ataque contra o sistema vigente
e, desde que participantes do processo revolucionário, impediriam também uma possível
ditadura ou a estratificação de poderes a partir do processo de burocratização.
340 Ver Idem. p.100-105. 341 DAMIANI, Gigi. “Pela concentração dos partidos operários.” A Plebe, 29 de março de 1919. p.4
121
É certo que esse apoio seria revisto quando vazaram as notícias das atitudes
repressivas, que assolavam também ativistas anarquistas, antes mesmo do
estabelecimento da União Soviética. Na sua visita à Rússia, entre 1919 e 1921, Emma
Goldman, uma das principais ativistas anarquistas no período, realizou críticas
contundentes aos caminhos tomados pelos revolucionários, que transformaria seus
projetos em uma prática que “acorrentou a Revolução, bloqueando a participação do
povo, centralizando o poder na máquina do partido, instaurando a repressão.”342 No
Brasil, A Plebe assumia sua posição definitiva em 1922, veiculando um manifesto que
reiterava sua simpatia ao movimento de caráter operário mas, dessa vez, expondo com
clareza sua cisão entre as alianças de anarquistas e maximalistas343, pois estes últimos
tinha adotado uma “engrenagem administrativa e política centralista, impondo
autoritariamente as suas ordens à coletividade pela força o desenvolvimento das
tendências federalistas libertárias.”344
Nesse período, a partir desse e de outros problemas à vista, as estratégias dos
anarquistas se ramificaram consideravelmente. Outros, de fato também mudaram suas
perspectivas revolucionárias aderindo completamente marxismo, como evidenciaremos
adiante.345 Por enquanto, é necessário salientar que o apoio contido no periódico
analisado, especificamente no ano de 1917, ao processo instaurado na Rússia e
posteriormente em outras regiões do continente Europeu, para boa parte dos redatores,
representava uma estratégia essencial para a luta e os ganhos locais. Os libertários
estavam atentados aos debates mundiais socialistas e usavam as práticas de caráter
operário para mobilizarem seus leitores:
A greve está arrefecida mas não extinta. A alma coletiva está de atalaia. Dentreem breve o seu grito soará bem alto. Os direitos do povo hão de prevalecer. Agreve é tão necessária no mundo social como os vulcões no mundo físico. [...]Reintegrar o homem nos seus direitos afrontados pela tirania, proclamar aigualdade moral, política e econômica de todas as criaturas racionais, expungirda face da terra todos os privilégios odiosos, é o que cumpre fazer.346
342 GOLDMANN, Emma. “Dos anos em Rússia – Diez artículos publicados en The Workd”. In: LOBO,Elizabeth. “Emma Goldman – Revolução e Desencanto: do Público ao Privado.” Revista Brasileira deHistória, São Paulo, v.9, n.18, p.29-41, 1989. p.34. 343 Nomenclatura associada aos aderentes das estratégias bolcheviques. 344 “Os anarquistas no momento presente.” A Plebe, 18 de março de 1922. 345 Adentramos as estratégias anarquistas a partir de 1919 e sua relação com a emergência do comunismono terceiro capítulo da dissertação. Para estudar o rompimento das ligações entre anarquistas e comunistasver SAMIS, Alexandre. “Presenças indômitas: José Oiticica e Domingo Passos.” In: FERREIRA, Jorge;REIS, Daniel Aarão (orgs). Op.cit., p.89-112. 346 “A Revolução Avança.” A Plebe, 1 de setembro de 1917, p.2.
122
Ao usar o nome da coluna como “A Revolução Avança”, é possível perceber que
os redatores tinham o intuito de instrumentalizar os ideários revolucionários que
estavam sendo em voga por várias partes do globo, no período, como no exemplo da
Rússia, que tentava “reintegrar o homem nos seus direitos afrontados” para apoiar as
medidas locais, no caso as greves impulsionadas pelo periódico. Os militantes em A
Plebe criaram ou reforçavam um internacionalismo operário, mesmo imaginário, para
alavancar os movimentos surgidos nesse período. Nesse intuito, também utilizavam a
experiência essencial do movimento operário de outros estados brasileiros, num
movimento duplo, de um lado, incentivando-os, a partir dos exemplos das
manifestações desencadeadas na capital paulista, e por outro, destacando seus
respectivos ganhos para incentivar igualmente a população local:
O memorável movimento geral do operariado de S. Paulo, que produziu umbenefício despertar da massa obreira desse Estado, serviu também de estímulopara os trabalhadores de outras partes do Brasil. No sul, as sociedades operáriascomeçam a agitar-se. A Federação Operária de Porto Alegre promoveu umaassembleia geral de todas as agremiações daquela capital, tendo ficadoconstituída a Liga de Defesa Popular, que está promovendo comícios. OSyndicato dos Pedreiros, Carpinteiros e Classes Annexas poz-se logo ematividade, parando diversas obras, por terem os pedreiros abandonado oserviço.347
Na mesma coluna, intitulada “Movimento Obreiro”, o jornal destacava a criação
de movimentos em regiões nordestinas, nos estados da Paraíba e Pernambuco, e também
no interior paulista, dentre as quais Sabaúna e Piracicaba. As notícias eram estendidas
na tentativa de evidenciar as especificidades de alguns movimentos sindicais e
trabalhistas como as ações da União dos Pedreiros e Serventes em Actividade, a
constituição da União Geral dos Ferroviários e as paralisações dos canteiros. Todas
essas notícias e incentivos também eram colocadas como exemplo para futuros
movimentos, que deveriam ser transformados e usados para fins revolucionários:
Camaradas! Estreitemos nossos lações de solidariedade, corramos aossyndicatos, cultivemos a nossa mente, a fim de que, com a breviedade possível,tenhamos a potência suficiente para arrancar os nossos exploradores e verdugosos nossos direitos, tudo quando nos pertence.348
Os esforços constantes de mediações e ligações, desde teorias, ideários e projetos
revolucionários internacionalistas, mas também de entidades e movimentos de níveis
347 “Movimento Obreiro: Imponente despertar do operariado da Paz.” A Plebe, 4 de agosto de 1917. p.3348Idem.
123
translocais, que estavam intimamente relacionadas com as ações de propulsão do
movimento operário paulista (organizados pelo Comitê de Defesa Proletário e a
Federação Operária de São Paulo), possivelmente foram umas das principais razões de
A Plebe se transformar em um periódico essencial e central no movimento operário
nesse período. Para este feito, os envolvidos com a sua construção tentavam anexá-lo a
necessidade dos trabalhadores em geral, portanto, se abrindo aos interesses desses, mas
tentavam intercalar com suas propostas específicas de transformação social, derivadas
do anarquismo, embora outras referências fossem também usadas para argumentar em
favor das concepções políticas libertárias.
Pela necessidade dos ganhos efetivos e pela centralidade que tomou em alguns
debates, os redatores e militantes deixariam de lado seu segundo intuito de levar a cabo
órgãos de orientação especificamente anarquista. Mas, no intuito de conservar alguns
aspectos ideológicos, o internacionalismo e suas redes de sociabilidade foram essenciais
para um tipo sobrevivência mínima interna até o próximo debate organizacional que
viria à frente, já em 1919, quando alguns anarquistas lançavam o Partido Comunista-
Anarquista.349 O mesmo internacionalismo também favorecia sua prática atuante e
incisiva na cidade como suas principais armas para imbricar o movimento anarquista
aos movimentos operários ou de respaldo popular na região.
Para isso, além das estratégias que eram formuladas ou praticadas entre os
interesses que os jornais foram desenvolvendo, essas eram reverberadas em práticas que
permeavam os ativistas para o desenvolvimento dos eventos grevistas frente à realidade.
Nesse sentido, através de rastros e indícios deixados nesses e confrontados com outros
documentos ou com outros estudos, adentremos adiante, com mais cuidado, como os
militantes nos periódicos Guerra Sociale e A Plebe e de seus grupos associados
anexavam suas diversas estratégias à prática e como mediavam e se relacionavam, além
da própria organização dos seus órgãos comunicacionais, com o impulso dos eventos
reivindicativos de 1917 em diante. Táticas que merecem um olhar detido para
avaliarmos suas próprias nuances, bem como suas adaptações posteriores.
349 Grupo político que ainda tinha efeitos do apoio à Revolução Russa mas que também pode ser vistocomo um novo tipo de proposta organizacional da trajetória libertária na cidade como a AlliançaAnarquista. Para Cleber Rudy é necessário “lembrar que dentro das perspectivas anarquistas, comunismo(ou socialismo) e anarquismo eram denominações agrupáveis, desde que aparadas na defesa da liberdadee eximidas de atributos autoritários.” Ver RUDY, Cleber. “Utopias anarquistas no frenesi da RevoluçãoRussa: experiências e anseios do movimento libertário brasileiro.” O Olho da História, Salvador, n.11,2008. p.9.
124
CAPÍTULO 3.
“GUERRA AOS SENHORES”: NOS BASTIDORES DA MILITÂNCIAANARQUISTA FRENTE AOS MOVIMENTOS GREVISTAS E
REVOLUCIONÁRIOS EM SÃO PAULO (1917-1922).
3.1. “Rajas do grande ciclone”: as articulações políticas e sindicais na greve geralde 1917
É possível que os exploradores consigam por algum tempo maisdesviar o bom povo da acertada rota, distraí-los das suas fecundas enobres aspirações. Isto, porém, se se der, será por breves momentos.As primeiras rajas do grande ciclone, que há de deitar por terra asvelhas e carcomidas instituições, apresentam-se com caracteresinconfundíveis. Hoje aqui, amanhã acolá, depois mais além, por todoscom manifestações intermitentes, mas sucessivas [...].350
Esse tom de esperança e ao mesmo tempo de certeza marcava, ocasionalmente, as
publicações de A Plebe, acompanhando as manifestações de 1917 na cidade de São
Paulo. Talvez essa tenha sido uma das maneiras para animar ou tentar convencer os
leitores, a maioria deles trabalhadores e também os marginalizados dos bairros operários
da cidade, a considerar as lutas pela melhoria parcial de vida, atividade que, para tais
personagens em torno do jornal, representaria também uma possível oportunidade para a
criação de um novo sistema, numa clara referência ideológica que os precedia, mas que
levavam a cabo nesse momento. A coluna também tentava dar destaque à inserção do
anarquismo no país, talvez tentando passar despercebido, na realidade, que tal
movimento nunca foi majoritário, pelo menos em expressão numérica. Mas, embora
fossem exceções, suas táticas e estratégias apresentaram contrapontos ameaçadores às
iniciativas e influências citadas. Nesse caso, mesmo que marcados por discursos de
inevitabilidade revolucionária, em um olhar mais atento, os militantes libertários em
suas trajetórias, até aquele momento, nunca deixaram de se envolver nas situações
cotidianas dos pares que os circulavam bem como na construção de vetores sociais e
políticos reclamando melhores condições de suas realidades.351
Ao se debruçar sobre a greve geral de 1917, a autora Christina Lopreato revela que
um possível indício de sua relevância pode provir exatamente da memória construída
anos depois de sua realização. O evento aparece marcado nas falas de militantes, em
poemas e cantigas de origem operária, décadas depois.352 Para a autora, a greve ainda
350 SANCHEZ, Galileu. “Prenúncios de liberdade.” A Plebe, 9 de junho de 1917. p.3.351 CAMPOS, Cristina Hebring. O Sonhar Libertário: movimento operário nos anos de 1917 a 1921.Campinas-Sâo Paulo: Editora da Universidade Estadual de Campinas, 1988. 352 Para Lopreato “A greve geral de julho de 1917 já foi cantada em prosa e verso. No poema os grevis -tas Os Grevistas, Sylvio Figueiredo ressaltou a luta operária pelo direito à vida. Em tom ficcional, as ma-
125
reverberou anos depois nos discursos de jornais operários e também das classes médias
seja para evocar a vitória de determinadas conquistas ou para noticiar ou alertar sobre
alguns eventos catastróficos que ocorreram no desenvolvimento do evento.
De fato, o ano de 1917 foi marcado por um intenso fôlego grevista que tomou
conta da cidade de São Paulo. As paralisações de duas fábricas têxteis do Cotonifício
Rodolfo Crespi, buscando melhores condições de trabalho e salário, somado ao caráter
repressivo das autoridades aos movimentos reivindicatórios urbanos que dariam fim à
vida do militante anarquista e sapateiro José Martinez, representavam o início de uma
onda reivindicativa de grande proporção. Na semana de nove a dezesseis de julho, tais
paralisações acompanhadas de intensas manifestações revelavam uma intensidade
inédita, se alastrando posteriormente para cidades do interior paulista e outras regiões
como o Rio de Janeiro e o Rio Grande do Sul.353
O episódio demonstrou a força prática dos sindicatos que se multiplicavam de
maneira considerável nas últimas décadas anteriores, com certos momentos de refluxo e
outros de ápice, mas apresentando sempre a presença militante, resultando em formas de
atuação que propiciavam o crescimento combativo entre os trabalhadores na cidade.
Tais organizações tentavam ser articuladas sobre a COB que também na segunda década
do século XX reforçou o anseio para a coordenação do movimento operário em nível
nacional sobre a forma de correspondência política com as federações locais.354 Esse
caráter de combate marcava as falas dos personagens assíduos no interior desse
movimento, experiência que foi condensada na criação do jornal A Plebe, escrito
durante as reivindicações de julho de 1917:
O clarim da liberdade ressoa por toda a parte chamando a postos os defensoresda causa libertaria, da causa do povo. Do norte ao sul do Brasil, o movimentooperário está em plena atividade, cresce o número de sindicatos e associaçõesde classe, bem como o número de aderentes. São frutos das últimas agitações.[...] Proletários! Uni-vos, agrupai-vos todos sob a mesma bandeira, certos deque a união vos dará a força e a vitória com a qual podereis quebrar parasempre a grilheta da miséria que nos escraviza355
O periódico afirmou que a referida greve seria o resultado de eventos locais e
conjunturais, como o crescimento das organizações sindicais a partir do início século
XX - ações que tentavam se articular nacionalmente - e o aumento dos grupos militantes
nifestações grevistas ficaram registradas nos romances A Greve de Eduardo Maffei e Sonata da ÚltimaCidade, de Renato Modernell. LOPREATO, Christina. Op.cit.,. p.16.353 Idem. p.20-38.354 TOLEDO, Edilene. Op.cit., 2007. p.63-64355 SOUZA, Vieira de. “O proletariado”. A Plebe, 11 de agosto de 1917. p.2
126
nesses, bem como a adesão de boa leva dos trabalhadores aos movimentos e associações
que foram criadas. Interessante perceber também que o apelo visava à união “sob a
mesma bandeira” ressaltando, mais uma vez, medidas emergenciais e a união de
militantes de diversas orientações para a construção de um movimento operário
consistente.
De acordo com os próprios libertários, os objetivos que visavam anexar o
movimento operário a partir de várias regiões e pontos brasileiros estavam na
perspectiva de militantes sindicalistas mais pragmáticos, socialistas e anarquistas desde
o início do século XX, aumentando potencialmente na conflagração dos conflitos
nacionais. Não obstante, como demonstraremos, foram esses últimos, pela sua forma de
inserção no movimento operário, através da reformulação de estratégias e de suas
mediações, que possibilitaram levar a referida greve a uma efetividade sem
precedentes.356 É evidente que sem as respectivas alianças militantes bem como o
contexto favorável não seria possível a radicalização das manifestações e paralisações
em uma greve geral. Nesse sentido, o debate, portanto, não cabe indagar qual era a
posição maioral entre os trabalhadores nesse período, mas como estas, que nunca foram
majoritárias, comparadas aos discursos e influências de tradições e ideários dominantes,
conseguiram se articular e, por vezes, garantir direitos.
No caso dos anarquistas, a tentativa de intercâmbio, fora das existentes redes
militantes de outros países (sul-americanos e europeus), mas refletindo também, dessa
vez, numa tentativa de união nacional, era resposta de suas adaptações e revisões de
estratégias desde a segunda década do século XX, conforme analisado no capítulo
anterior. Mas é necessário sublinhar que tal decisão era uma resposta aos conflitos
nacionais e ao medo que os militantes tinham da entrada no país na guerra, ao mesmo
tempo em que tentavam se blindar contra a repressão que aumentava com o passar dos
anos. A historiada Christina Lopreato, também ensaiando sobre essa hipótese, afirma
que
Na avaliação dos anarquistas, a indecisão política quanto à participação doBrasil no conflito europeu requeria dos trabalhadores uma ação urgente eefetiva entre em defesa dos seus interesses. Com a entrada dos norte-americanos na guerra, no mês de abril de 1917, e o consequentementealargamento da conflagração europeia, os libertários prenunciaram que osbrasileiros não tardariam a “engolfar-se no conflito”.357
356 Ver SANTOS, Kauan Willian. “Derrubando fronteiras: a construção do jornal A Plebe e o internacio-nalismo operário em São Paulo (1917-1920).” História e Cultura, v. 4, p. 122-139, 2015.357 LOPREATO, Christina. Op.cit., p.91.
127
O medo e a insegurança que os militantes anarquistas sentiam provinham das
medidas e discursos dos grupos mais abastados no país. Em 1916, por exemplo, foi
constituído, no Rio de Janeiro, a Liga da Defesa Nacional liderada e composta por
intelectuais e políticos como Olavo Bilac e Venceslau Braz, exaltando o nacionalismo
brasileiro e a participação de voluntários para o Exército e a Marinha. Essas posturas,
para o historiador John Dulles, faziam parte também das medidas institucionais
provenientes do aparelho estatal e governamental (o nacionalismo oficial358 ):
O Presidente Venceslau Brás e o ministro da guerra, Caetano de Faria,presidiram uma série de cerimônias de incorporação e juramento à bandeira, decentenas de jovens reservistas do Exército, inclusive vindos de navio do Estadodo Espírito Santo. Umas dessas cerimônias de juramento, em que se fezpresente grande número de dignitários, entre os quais o Embaixador dosEstados Unidos, foi descrita como “tendo despertado o entusiasmo patrióticode uma grande parte de nossa população.”359
Era nesse contexto que os grupos militantes dos jornais Guerra Sociale e A Plebe
faziam frente contrária às campanhas militaristas, propondo, em resposta, a organização
dos trabalhadores que pressionaria o sistema econômico e político vigente, esse último
sendo o motivador, para os militantes, das atuais causas. Percebendo o começo das
agitações no ano de 1917, tais agentes indagavam e advertiam:
Como é interessante tudo isso. Os governos contraem as dívidas? O povo queas pague! Os governantes declaram guerras? O povo que morra! E quando forpreciso, que se forneçam também ao governo soldados e policiais para queespingardeiem o povo no dia em que achar que tudo isso vai mal. [...] E entreos conselhos que damos ao povo, o primeiro é este: não se deixe arrastar porpolitiqueiros, que o mandarão à chacina, para que eles possam substituir nopoder os atuais dominadores. [....] Reflita porém que num ou noutro caso, antesou depois, ele deverá, por si ou por outros, vir à rua, revoltar-se e bater-se peladefesa dos seus interesses ou daqueles que lhe farão crer que são os seus.Como hoje, no dia em que tiverem lugar acontecimentos graves, nós voltamosa dizer que, em vista de a luta ser fatal, inevitavelmente, saiba o povoenfrentá-la por conta própria, a fim de conquistar para si a pátria brasileira,este rico pedaço do mundo que pode dar pão e felicidade a quantos não odeiamo trabalho. E nesse dia estaremos a seu lado. Ao lado dos politiqueiros e doscomerciantes é que nós, os anarquistas, nunca marcharemos.360
358 O autor Benedict Anderson mostra que o nacionalismo oficial embora também tenha influência deuma demanda cultural possibilitada desde as revoluções da comunicação e transporte e das migrações emmassa desde fins do século XVII, esse primeiro instrumentaliza as ideias nacionalistas de forma muitoagressiva e reacionária. Ver ANDERSON, Benedict. Comunidades Imaginadas: reflexões sobre a origeme a difusão do nacionalismo. São Paulo: Companhia das Letras, 2008. p.127-162.359 DULLES, John. W. F. Anarquistas e Comunistas no Brasil (1900-1935). Rio de Janeiro: Nova Fron-teira, 1977. p.40360 “Os anarquistas ao povo.” Guerra Sociale, 27 de janeiro de 1917.
128
É revelador perceber como os próprios anarquistas mobilizavam e
instrumentalizavam os imaginários nacionalistas para fazerem frente ao anti-
imperialismo e aos conflitos nacionais. Ao sublinharem “pátria brasileira”, os ativistas
reconheciam que, no momento, a evocação de uma ideia de pertencimento estava
crescendo, já que estava no discurso de intelectuais e até mesmo das campanhas
oficiais. Não obstante, ao destacarem também que os reais ganhos dependiam das lutas
“por conta própria”, evocavam e incentivavam a luta unida da nação, mas fora do
ambiente parlamentar e do lado dos interesses das classes consideradas exploradas. O
intuito, portanto, era usar uma ideia de nação para encorpar e garantir um embate
efetivo, disputando tal nomenclatura e ideário. O sucesso da nação e a felicidade dos
seus habitantes, nessa visão, não deveria ser dada a partir de rivalidades nacionais, mas
de fazer frente, de forma unida, contra os supostos causadores dessas calamidades, os
governantes, que também estavam ligados, nesse pensamento, a interesses econômicos e
políticos.
Na construção dos jornais analisados um tipo de anti-imperialismo gerido dentro
da cultura política anarquista era rebuscado e instrumentalizado pelos militantes. Em
diversas regiões, desde o século XIX, ocupadas pelos governos europeus em forma de
colônias ou na própria destruição e desolação causadas pelas guerras nacionais nas
décadas seguintes, os anarquistas se uniam e impulsionavam grupos a partir de junções
nacionais, étnicas ou territoriais resistindo aos ocupadores e dominadores. A intenção,
como apontado, era a independência da região bem como a destruição do sistema
econômico implantado, visando à autogestão. Nesse processo, muitos libertários
criticavam, no próprio interior da luta, mesmo sendo necessária na ocasião, a construção
de outro nacionalismo, que poderia acarretar em novos tipos de dominação após a
libertação que estava sendo requerida. Outros achavam que tal desconstrução deveria
acontecer após o processo, sendo sua luta mais pragmática e menos crítica. De todo
modo, como estamos analisando também no caso brasileiro, ainda não especificamente
dentro de algum poder imperial ou ocupado pelas guerras nacionais, os militantes
libertários utilizavam um ideário anti-imperialista, contando com todos os recursos
possíveis para uma luta dos órgãos de resistência trabalhistas, acompanhando o
movimento anarquista, nesse período, como uma “força gravitacional entre os
nacionalismos militantes em todo o planeta.”361
No caso especial dos jornais Guerra Sociale e A Plebe, também, sua associação ao
361 ANDERSON, Benedict. Op.cit., p.2. Tradução nossa.
129
nacionalismo era bem crítica manifestando também limites da esfera parlamentar,
incluindo a social-democracia e também o socialismo, como na dura crítica intitulada
“Mentiras do Socialismo”:
Já vimos também, que as finalidades do chamado socialismo democrático estãoimpregnadas de todos os vícios do regime burguês, e prometem ainda agravaros males sociais. Instaurada uma única propriedade, a propriedade do Estado,os funcionários públicos os proprietários REAIS da riqueza social. Umarevolução pacífica ou violenta, inspirada por essas finalidades não seria umarevolução econômica ou social, seria apenas uma revolução política, quedeterminaria simplesmente uma mudança de governantes, de amos e apassagem de umas para outras mãos.362
Para alguns anarquistas, como Florentino de Carvalho, autor do artigo em questão,
existiriam limites nas coligações militantes, se essas estivessem esperando a
instrumentalização do Estado, mesmo em âmbito socialista.
É interessante perceber que algumas medidas locais também influenciavam a
construção dos próprios jornais e de seus grupos. Além dos congressos internacionais,
tentando buscar caminhos sólidos dentro do movimento operário na América Latina, o
Segundo Congresso Operário, realizado pela COB no Rio de Janeiro entre oito e onze
de setembro de 1913, refletia e influenciava muito das decisões que estavam em
andamento e que seriam tomadas ou levadas nos anos seguintes em algumas regiões
brasileiras, em especial a partir de programas que vinculavam a ação direta como
perspectiva para as associações sindicais. Dessa vez, o congresso contava com a
representação da Federação Operária Regional Argentina, da Federação Operária
Regional Uruguaia e também decidiu levar representantes para as sessões sindicais
franceses no intuito de divulgar as decisões tomadas bem como denunciar a repressão
do estado para as entidades do movimento operário em outras partes do mundo.
Participaram cinquenta e nove associações, políticas e econômicas, sendo divulgado e
debatido principalmente pelos jornais A Lanterna, O Trabalho e o reativado A Voz do
Trabalhador.363 Entre os anarquistas assíduos nos nossos jornais analisados e influentes
estavam Edgard Leuenroth e Astrojildo Pereira. As decisões tomadas ainda estavam
dentro do sindicalismo revolucionário, um ambiente supostamente neutro das políticas
partidárias e que garantia a resistência econômica dos trabalhadores. De acordo com
Alexandre Samis, os debates derivados deste foram:
362 CARVALHO, Florentino de. “Mentiras do Socialismo”. Guerra Sociale. 20 de setembro de 1916. p.3.destaque do periódico.363 SAMIS, Alexandre. Op.cit., 2009. p. 201-203.
130
o “antimilitarismo”, “a atitude do proletariado diante da guerra”, “a lei dedeportação”, “meios de empregar a propaganda”, “meios de ação”, “educaçãoda classe”, “anticlericalismo”, “mão-de-obra imigrante”, temas claramenteengajados nas premissas libertárias; até outros como: “federação deassociações beneficentes”, “salário mínimo”, “bolsas de trabalho”, “pagamentoem dia”, “higiene e segurança nas fábricas”, “cooperativismo” e a “propagandacontra o alcoolismo”, sem uma direta vinculação à esfera revolucionária.Entrementes, o primeiro tema, que consistia nos caminhos da nova sociedade,polarizava a discussão da seguinte forma: “os da propriedade privada e os daautoridade ou os do socialismo anarquista?”364
Para o autor, dessa maneira, apesar das resoluções não apontarem para a revolução
propriamente dita e muito mais para caminhos imediatos do movimento operário pelos
ganhos concretos e de alianças efetivas entre outros grupos militantes, é evidente, por
outro lado, como a escolha do sindicalismo revolucionário também fazia parte da
influência de anarquistas tentando barrar um tipo de sindicalismo reformista, garantindo
também suas propagandas antimilitaristas e internacionalistas. Outro indício da presença
anarquista e de suas tentativas de articulações relevantes foi a participação da Federação
Operária Local de Santos que, assim como a FORA, encaminhava, pela primeira vez
com mais incisão, um projeto de vínculo explícito entre a COB e o anarquismo, o
anarcossindicalismo. Mesmo não aprovada, incluindo por muitos anarquistas como
Neno Vasco que debatia suas posições do sindicalismo revolucionário contra as
propostas do anarcossindicalismo de João Crispim, “ela se torna sintomática ao nos
revelar como o anarquismo era amplamente debatido nos meios sindicais.”365
Além das decisões e debates, os anarquistas, presentes nos ambientes trabalhistas,
perceberam com astúcia a nova movimentação econômica do país. Com o
prolongamento dos conflitos nacionais, a busca de matérias-primas e dos gêneros
alimentícios em diversas partes do mundo ocasionaram uma enorme inflação nos preços
desses produtos. O historiador John Dulles assinalou que “em 1916, subiram os preços
por atacado de diversos produtos, como o feijão e a farinha de mandioca. O trigo
tornou-se escasso e caro. Embora fossem exceção os casos do arroz, do açúcar e do
milho, seus preços já haviam subido verticalmente em 1915.”366
Diante disso, a prática e inserção dos militantes nesse contexto também
ocasionaram especificidades em suas formas de atuação e táticas de luta transcendendo
364 Idem. p.203365 Núcleo de Estudos Libertários Carlo Aldegheri; Biblioteca Terra Livre. “Apresentação.” In: Anar-quistas no Sindicato. Op.cit., p.12366 DULLES, John. Op.cit., p.39.
131
alguns debates e decisões dos congressos anteriores, embora as questões estratégicas,
como a ação direta, permanecessem. Na capital de São Paulo, antes da grande greve,
percebendo um refluxo dos ambientes sindicais após as manifestações de 1913-14, os
militantes anarquistas e socialistas instituíram as associações por ligas de bairro, criando
a União Geral dos Trabalhadores. Dessa maneira, as associações já existentes por ofício
e por federações, das cidades ligadas à COB, seriam substituídas ou integradas às
particularidades das uniões por região de seu bairro. Esses organismos descentralizados,
desde que atuantes, ajudariam a ligar as greves e manifestações de grupos e gêneros
trabalhistas por região, coordenados pela FOSP, reerguida nesse período, alastrando-os
por toda a cidade, ocasionando a possibilidade de uma greve mais ampla e
significativa.367 Para os militantes, de orientações políticas diversas, as reivindicações
não ficariam tão dependentes das decisões dos grupos sindicais, prontos para serem
desmembrados em momentos de refluxo econômico ou da repressão estatal. A decisão
era pontuada e estimulada pelo jornal Guerra Sociale:
Damos a seguir as bases de acordo da União Geral dos Trabalhadores que estãosendo adotadas pelas ligas Operárias de Bairro. [...] Fins imediatos: a)Combater todos aqueles que, por meio do açambarcamento, de trusts, ou deoutros criminosos manejos comerciais, conseguem elevar os preços dosgêneros alimentícios assim como mover a guerra contra os seus falsificadores.b) Sustentar um constante e vivo movimento de protesto contra os impostos eas tarifas alfandegárias, assim como contra as tributações ferroviárias, queconcorrem para tornar mais penosas as condições do povo; c) Lutar pelobarateamento dos alugueis das habitações, exigindo que estas ofereçam todasas condições de higiene; d) Fazer com que os operários não sejam forçados aexecutar serviços excessivos e brutais e que os lugares de trabalho ofereçamtodas as necessárias condições de segurança, de higiene e de conforto paraevitar os acidentes e as moléstias hoje tão habituais e que determinam oagravamento da penúria operária. e) Exigir da parte dos patrões, empreiteiros,encarregados, gerentes, mestres e contra-mestres a mais completa urbanidade arespeito para com os operários. f) Lutar pela igualdade dos salários dasmulheres aos dos homens, e que lhes sejam garantidos os mesmos, quando, noúltimo período da gravidez ou após o parto, forem obrigados a deixar detrabalhar g) Impedir que sejam ocupadas no trabalho as crianças menores de 14anos ou de físico deficiente, permitindo que somente os homens sejamconfiados os serviços que, pela sua índole, exijam maior robustez e resistência.[....] i) Firmar a jornada de 8 horas, com a completa abolição do trabalhoextraordinário; [...] m) Tratar por todos os meios de suprimir o trabalhonoturno, salvo nos vapores hospitais ou outros estabelecimentos em que esteseja de absoluto necessidade pública.368
O historiador Luigi Biondi assinala que a criação da UGT era o resultado das
coordenações da Liga de Bairro do Belenzinho, já incisivas desde o início de 1917, com
367 Sobre a implantação das ligas de bairro ver LOPREATO, Christina. Op.cit., 95-99.368 “Estão ressurgindo as sociedades operárias.” Guerra Sociale, 26 de maio de 1917. p.1
132
essa forma de atuação, principalmente nas fábricas têxteis da região, ligadas aos
militantes sindicalistas, anarquistas e socialistas. Em maio do mesmo ano, foi criada a
Liga Operária da Mooca, sendo decisiva para uma mobilização ampla dos trabalhadores
entre nesses grandes bairros operários. Para o autor, mais do que uma medida
especificamente anarquista contra um pragmatismo excessivo do sindicalismo, essa
seria o resultado de uma medida prática que respondia “à exigência do momento de
organizar de forma mais dinâmica grupos diferentes de trabalhadores.”369
De fato, concordamos que tais decisões faziam parte de uma exigência prática e
concreta, inclusive pelos militantes de estarem inseridos e atentos às nuances do
movimento operário e por serem aceitas e impulsionadas por grupos não anarquistas.
Não obstante, como observamos na resolução e no andamento dos grupos em torno dos
jornais Guerra Sociale e A Plebe, a mudança de tática favorecia igualmente os aspectos
ideológicos e estratégicos do anarquismo e sua inserção no movimento operário e
sindical da cidade, inclusive aquelas ainda reiteradas pelos congressos, como a adoção
da ação direta como tática de luta. Além das medidas e resultados nomeados como “fins
imediatos”, como a luta pela jornada de oito horas, as melhorias das condições de
trabalhado e de moradia, a igualdade de salários entre homens e mulheres, o fim do
trabalhado infantil e das longas jornadas noturnas, os agrupamentos regionais também
deveriam aderir ao antimilitarismo, ao anticapitalismo, à ação direta e aos horizontes da
luta de classes, objetivando o fim do sistema político e econômico vigente. Para os
aderentes da UGT, as ligas deveriam:
[…] servir-se-á unicamente, para o trabalho de propaganda e educação dostrabalhadores e sua luta contra o capitalismo, dos meios próprios de açãodireta, tais como a greve parcial e geral, a boicotagem, a sabotagem, o label, amanifestação pública, etc., variáveis, segundo as circunstâncias de lugar e domomento. [...] A Liga Operária do..., sem abandonar a defesa, pela ação direta,dos rudimentares direitos políticos de que necessitam as organizaçõeseconômicas, não pertence a nenhuma doutrina estatal ou religiosa, não podendotomar parte coletivamente em eleições, manifestações religiosas, nem podendoqualquer sócio servir-se dessa qualidade para se manifestar. [....] Sendo a lutaao capitalismo a sua ação essencial, a Liga Operária do... não permitirá em seuseio qualquer obra de beneficência, mutualismo ou cooperativismo, cujosencargos pesam sempre sobre os poucos recursos dos trabalhadores, desviando-os do seu único objetivo, que é trabalhar pela emancipação.370
Como é possível notar, as medidas mesclavam os interesses econômicos de classe
369 BIONDI, Luigi. “A greve geral em São Paulo e a imigração italiana: novas perspectivas.” CadernosAEL: imigração, v.15, n.27, p.259-310, 2009. p.288.370 “Estão ressurgindo as sociedades operárias.” Guerra Sociale, 26 de maio de 1917. p.1
133
em geral, mas dentro dos objetivos e táticas políticas libertárias de ação direta, da
emancipação humana e do emprego de boicotes e sabotagens contra os detentores dos
meios de produção. Assim, ao mesmo tempo, barravam ideários reformistas, religiosos,
cooperativistas ou mesmo um possível pragmatismo econômico do sindicalismo
revolucionário. A medida, assim, fazia parte de um conjunto de táticas a fim de disputar
os ambientes trabalhistas, que via tanto uma solução para os possíveis refluxos
posteriores, mas também para a cristalização dos ambientes sindicais, tentando infiltrar
nestes os “direitos políticos de que necessitam as organizações econômicas.”
Evidentemente, bem como nas agrupações por ofício ou regionais, os militantes
necessitavam de coligações políticas diversas e de momentos favoráveis para construir
eventos reivindicativos bem como negociar os interesses de classe quando necessário.
Dessa maneira, a disputa ideológica continuava mesmo que, no momento, os interesses
estavam designados para construir uma força operária conjunta visando interesses
econômicos.
Percebendo a questão, os anarquistas continuavam a propelir seu órgão político, a
Alliança Anarquista, proposta anos antes para reunir grupos anarquistas na cidade e no
país, visando uma ação coesa entre os libertários. A aliança, nesse caso, também era
uma forma de tentar resguardar aspectos ideológicos frente a um possível
desmembramento de projetos essencialmente políticos em relação à militância sindical
ou mesmo regional. Em meio às agitações operárias, o periódico A Plebe, em 1917,
reiterava o projeto proposto pelo grupo em torno do jornal Guerra Sociale:
[...] Há fatos que nos autorizam a acreditar que uma modificação no bomsentido se vai operando. Fundaram-se alguns grupos em várias cidades,havendo outros em formação. Já não é raro aparecer, em ocasiões oportunas,boletins e manifestos bem orientados. Começa-se, enfim, a agir um pouco portoda a parte sem aguardar o sinal de pontífices. E o que mais constitui motivode animação é o apoio que vai recebendo, embora lentamente, como é natural,devido às causas acimas expostas, a Alliança Anarchista, constituída, não hámuito tempo, em São Paulo, com o fim de servir de traço de união entre asdiversas agrupações e os camaradas diversos por aí além.371
A coluna continuava fazendo propaganda da aliança, ao mesmo tempo em que
tentava convencer os leitores a continuarem fundando e seguindo as organizações
operárias, sendo uma campanha favorável tanto aos anarquistas quanto à classe operária
e subalterna. Nessa tentativa de inserção dualista, a Alliança Anarquista tentava reunir
grupos políticos anarquistas e ao mesmo anexá-los aos de classe e sindicais e, nesse
371 “Vida Libertária.” A Plebe, 9 de junho de 1917. p.2
134
procedimento, tinha bastante respaldo entre diversos grupos do interior de São Paulo, do
nordeste e sul do país
Após os desdobramentos das manifestações de 1917, não é possível visualizar os
encaminhamentos e o desenvolvimento da Alliança Anarquista, fato que leva a pensar
na diluição do projeto pelos próprios libertários em razão de suas participações nos
eventos e a necessidade de impulsionarem entidades e agrupamentos classistas e
econômicos, de tal forma que não sobrou energia para um resguardo político.
Ainda assim, esse encaminhamento, intercalando propostas políticas com as
essencialmente econômicas, que se davam meses antes das grandes manifestações,
garantiram posições de destaque ao anarquismo no movimento operário na cidade, fato
que pode ser exemplificado na criação do Comitê de Defesa Proletária, um importante
órgão para o impulso e as negociações das reivindicações em 1917, no qual os
anarquistas participaram junto com os socialistas.
Tal organismo é visto como resultado das reuniões entre militantes anarquistas,
socialistas e sindicalistas para organizar e negociar os eventos grevistas que
funcionariam também a partir das decisões das comissões grevistas de sindicatos e dos
subcomitês das Ligas Operárias de Bairro. No dia onze de julho, após o enterro de José
Martinez, militante morto pela repressão da polícia, o organismo se constituiu lançando
seu manifesto destinado aos representantes do Estado e também aos grandes industriais,
que foi desde a petição imediata para o fim dos processos políticos contra manifestantes
e militantes bem como a libertação desses, se estendendo para reclamar a abolição do
trabalho aos menores de quatorze anos e do trabalho noturno para mulheres menores de
dezoito, o aumento de salário de 25% a 35% dependendo do caso, sendo 50% para
trabalhos extras, e a jornada garantida de oito horas diárias de trabalho.372
Para além disso, o Comitê de Defesa Proletária seguia o rastro e as tradições de
outras organizações reivindicativas de classe que estavam acompanhando o movimento
operário nesse contexto e que foram debatidas anteriormente pelos projetos políticos
anarquistas. Entre os principais militantes nos bastidores desse órgão estavam Gigi
Damiani e Edgard Leuenroth, atestando mais uma vez a participação e a presença
anarquista na greve, e que estavam envolvidos com outros projetos e associações. O
grupo em torno do jornal Guerra Sociale e a Alliança Anarquista, desde março,
impulsionava o Comitê Popular de Agitação contra a exploração de crianças, lançando
um manifesto incisivo sobre as condições de trabalho desses nas fábricas e requerendo a
372 Manifesto do Comitê de Defesa Proletária, 12 de julho de 1917. In: Lopreato. Op.cit., p.41-43.
135
proibição dessa prática pelos empregadores. O projeto veio do êxito extraído de um
debate político dos militantes para ser usado e construído também pela própria classe
operária e subalterna:
O êxito da agitação que contra a exploração de menores vem desenvolvendo-seestá superando a expectativa dos seus iniciadores. O entusiasmo que esteprotesto desperta entre o povo, aumenta dia a dia, e, a cada momento, chegamnovas adesões de entidades populares ou de pessoas que se apresentamdispostas a prestarem seu concurso material e moral. Por sua vez, o ComitêPopular de Agitação, coerente com o caráter da sua constituição e dos fins quese tem em vista, procurou que este movimento, genuinamente popular, nãofosse desvirtuado pelos interesses de qualquer partido, ou por especulaçõesmais ou menos políticas e legalitárias, tendentes a prestigiar os profissionais daexploração eleitoral. Neste sentido, o Comitê elaborou um programa de açãoexclusivamente popular e direta, o qual em numerosa assembleia de delegadosdas entidades aderentes foi aprovado com entusiasmo. Delegados de váriasassociações, apesar da diversidade de princípios que as separam, manifestaram-se justificando a sua aprovação do programa apresentado pelo Comitê.373
De acordo com os redatores, mostrando o resultado das primeiras impressões de
tal comitê, o órgão mais uma vez seguia os princípios da estratégia do sindicalismo
revolucionário, não aceitando o vínculo explícito com algum partido político e adotando
a ação direta como principal tática. Além disso, se desenvolvia através de várias
associações, de classes políticas e populares, mostrando sua relevância no movimento
operário na cidade sendo importante até julho de 1917, quando conseguiu inserir suas
demandas no interior do CDP, sendo, portanto, um rastro de continuidade organizativa
entre os vários organismos.
É evidente, conforme o próprio jornal evidenciava quando citava a “diversidade
de princípios”, o organismo tinha a presença incisiva de socialistas, sindicalistas e
republicanos italianos, mas foi criado e proposto inicialmente pelos anarquistas,
especialmente desse grupo374, o que atesta, se não sua força em estar na dianteira em
algumas ações de classe, uma profunda forma de percepção das nuances dos ambientes
classistas na cidade.
Outra importante associação, de emergência nesse período, e que atesta a
relevância anarquista para a impulsão das ações econômicas de classe era o Centro
Feminino Jovens Idealistas. O organismo começava a tomar forma desde o início da
segunda década do século e reunia mulheres de tradições de luta, especialmente
sindicais, chamando outras, da população em geral, para debaterem suas demandas e
373 CARVALHO, Florentino de. “Continua com êxito a campanha contra a revoltante exploração de me-nores.” Guerra Sociale, 31 de março de 1917. p.1374 Ver BIONDI, Luigi. Op.cit., 2009. p.284-285
136
problemas de gênero e como poderiam anexar tais fatores à luta classista, o que
resultava em práticas concretas como sua participação nos congressos internacionais e
nacionais.375Conforme observado nas suas chamadas, contidas no jornal A Plebe, o
Centro Feminino almejava buscar a adesão de mulheres independente de orientação
ideológica e que exerciam todas as funções; trabalhadoras das fábricas, ruas ou
domésticas, o que revela seu intuito para alavancar as lutas pela melhoria das condições
de vida dessas.
Conquanto, um atento olhar para suas lideranças revela como as militantes
anarquistas estavam em posição de destaque na organização de tal organismo bem como
foram responsáveis em deixar evidente essa militância na greve geral. Esse centro foi
criado e organizado principalmente pelas ativistas Emma Mennocchi - conhecida por
ser tão assídua quanto seu companheiro Gigi Damiani, atuando no movimento operário
de Curitiba e São Paulo e Isabel Cerruti, uma das principais militantes libertárias
organizacionistas do momento que já havia colaborado com os jornais A Terra Livre e
O Amigo do Povo. As personagens haviam constituído e participado de outras
associações classistas e de gênero em suas militâncias, juntando seus aparatos
ideológicos com as demandas econômicas. No início da década, por exemplo, Emma
Mennochi havia fundado o grupo Associazione Femminile, que reunia as mulheres de
origem ou descendência étnica italiana, tentando incentivá-las à ação direta. As mesmas
ativistas possivelmente ainda transitavam entre a Liga de Resistência das Costureiras, a
União das Costureiras de São Paulo e outras muitas associações com o mesmo caráter,
embora ainda não sistematizadas por nenhum estudo, que foram criadas nesse
período.376 Para a historiadora Samanta Mendes, ainda que fossem ambientes claramente
de luta econômica, inspirados por um sindicalismo apartidário, nesses ambientes, eram
discutidos “assuntos da atualidade e acerca do anarquismo”377, evidenciando a
penetração dessa ideologia, uma vez que pregavam a auto-organização das
trabalhadoras, sua independência moral e sexual bem como a desconstrução de ideários
opressores, de classe ou nacionalistas, todos com íntimo contato com os pensamentos
libertários. Para a autora ainda, essa tradição garantiu amplo respaldo na greve geral de
1917, sendo responsável, pela amplitude do evento. Completando o argumento pela
narrativa e análise de Luigi Biondi, nesse período,
375 Como evidenciado no segundo capítulo, o Centro Feminino Jovens Idealistas estava presente noCongresso Internacional da Paz e também aliado aos grupos sindicais associados ao jornal A Lanterna.376 Para analisar a criação dos grupos e associações com presença das mulheres anarquistas ver MEN-DES, Samanta. Op.cit.377 Idem, p.198.
137
Na noite de 2 de Junho de 1917, a União dos Operários em Fábricas de Tecidosconvocou os trabalhadores do setor para uma assembleia na sede da entidade,na rua da Mooca, 292. Nos dias subsequentes, as reivindicações de aumentopreencheram a pauta de várias reuniões. Assim começou a greve geral de 1917,envolvendo homens, obviamente, porém, em muito maior quantidade,mulheres e crianças. A polícia os meteu na cadeia, indistintamente, após umapasseata organizada por anarquistas e socialistas defronte à Crespi. [...] EmmaMennocchi, integrante do Centro Feminino Jovens Idealistas, tem participaçãoativa: grita contra os tiras que espancam as mulheres e as detêm. Os militantesanarquistas se organizam para levar comida às que erguem barricadas eresistem no interior da fábrica de tecidos.378
Conforme citado, esse intenso destaque dos militantes libertários, homens e
mulheres, era respondido com uma intensa onda de repressão durante a semana trágica
em São Paulo e inclusive após as negociações. Atitudes repressivas já antecediam o
evento, sendo motivo para os militantes usarem tais atos como motivos para a
população incentivar as manifestações. No dia treze de junho, a Quinta Delegacia
Auxiliar, localizada no Brás, resolveu interferir mais incisivamente para desmantelar a
organização da greve de forma mais sistemática, possivelmente temerosos que as
negociações entre operários e patrões reconfigurassem o sistema de trabalho da
cidade.379 Para a historiadora Christina Lopreato, nesse sentido, a polícia “assumiu o
papel de guardiã dos interesses dos industriais.”380
Nas semanas seguintes, o delegado Everardo Toledo de Mello ordenou a prisão
dos ocupadores das fábricas e os agitadores das ruas criando medidas para encontrar os
principais organizadores da greve geral e, em sua investigação, muitos anarquistas
apareceram em destaque, numa visão que já era usada pela polícia no país associando o
anarquismo à baderna ou desordem.381
Após as negociações diretas entre patrões e militantes e o fim da greve, a
repressão continuava nos meses seguintes, e, em setembro, o Centro Feminino Jovens
Idealistas e outras organizações por meio de A Plebe denunciava as atitudes
consideradas arbitrárias:
Fazemos então constar o nosso veemente protesto contra as arbitrariedades dapolícia que, em sua sanha bestial, desconhece até o respeito devido ao pudornatural de mulheres honradas a quem a polícia insultou, penetrando altas horasda noite em seus aposentos e arrancando-lhes a roupa com que se cobriam. A
378 BIONDI, Luigi. Op.cit., 2006. p.172. Citado por MENDES, Samanta. Op.cit., 192.379 LOPREATO, Christina. Op.cit., 111-126.380 Idem. p.111. 381 Para adentrar o estudo sobre o ideário construído pela polícia e por organismos governamentais emrelação ao anarquismo ver LEAL, Claudia Baeta. Op.cit., 2006.
138
ação da polícia, praticando essas monstruosidades, foi tão covarde, tão infame,tão suja que não achamos palavras capazes de exprimir nossa indignação. [...]O Centro Feminino Jovens Idealistas do qual fazem parte algumas parentas dosoperários presos e escolhidos pela polícia, para servirem de vítimas, nos quaispossa saciar o ódio que contra o povo nutre, só pede aos trabalhadores de S.Paulo, por enquanto, uma coisa: que permaneçam unidos e firmes no seupropósito de fazer imperar a Liberdade e a Justiça, e de estarem atentos àprimeira voz de alarme.382
As invasões às casas, nas quais a polícia procurava os militantes e participantes
das greves, eram denunciadas, revelando não só o fato em si, mas o desrespeito e o
tratamento a que os moradores, no caso citado as mulheres, eram submetidas nessa
abordagem. O trecho também revela que algumas mulheres dessa associação se
queixavam de ter seus conhecidos e companheiros presos, de forma “escolhida”, ou
seja, sem uma acusação com provas concretas. Essa arbitrariedade policial aumentou
depois do pronunciamento do próprio Delegado Geral da cidade que criava medidas no
intuito de abortar o “processo revolucionário em curso”383 usando a força do aparelho
policial de todas as formas para conter outras possíveis manifestações, fato que atesta
que a força da militância sindical apresentava uma grande ameaça para vários setores da
sociedade vigente no momento. Casas foram invadidas, jornais como A Plebe tiveram
tentativas sistemáticas de desmantelamento e a sede da FOSP, foi, mais uma vez,
destruída. Os próprios redatores narravam, a partir de suas visões, tais acontecimentos,
tentando fazer propaganda aos seus leitores para não acreditarem nos discursos das
autoridades:
Na Lapa, no Ipiranga e na Mooca, a série de arbitrariedades foi infinita.Prenderam-se a êsmo operários por distribuírem boletins referentes à greve;espaldeiraram-se mulheres e crianças por fazerem causa comum com seusmaridos, pais e irmãos vítimas da sanha dos bull-dogs policiais; invadiram-seassociações onde os trabalhadores se reuniam com o fim de tratarem deassuntos que somente a eles interessavam; finalmente, o direito à greve, aliberdade de associação e de pensamento foram torpemente, ferozmenteespezinhados à ordem daqueles mesmos senhores que ainda há bem poucodeclararam ser isso de lei e de justiça384
Muitos militantes foram presos de acordo com o relato e, ainda, numa tentativa
desesperada, o aparelho policial também buscava, dentro da lei de expulsão de Adolpho
Gordo, e de incrementos a esse do aparelho estatal tanto provindas do recém prefeito da
cidade Washington Luís e do presidente Venceslau Brás, medidas para conter os
382 “Manifesto do Centro Feminino Jovens Idealistas ao povo trabalhador de S. Paulo.” A Plebe, 22 desetembro de 1917. p.2.383 Declaração e citação do Delegado Geral citado por LOPREATO, Christina. Op.cit., p.169.384 A guerra às organizações operárias: tem a palavra o povo!.” A Plebe, 30 de setembro de 1917.
139
militantes tentando forçá-los a sair do país. Evidentemente, agentes de orientações
ideológicas sofreram a repressão citada, mas o forte ataque ao anarquismo, tido pelas
autoridades como uma das principais ideias responsáveis pela greve foi, muitas vezes,
mais direto e mordaz. Tal fato refletiu no julgamento de Edgard Leuenroth, um dos
presos políticos nesse contexto. Acusado de incitar o roubo de mantimentos em um
estabelecimento enquanto uma manifestação acontecia, o militante foi preso em
setembro de 1917 e depois colocado em processo até março do ano seguinte. Para
Lopreato, a própria polícia considerava o tipógrafo e militante, além dessa acusação,
como um dos principais articuladores da greve e responsável pelo evento, liderando um
dos principais jornais noticiadores da greve por participar do Comitê de Defesa
Proletária. Apesar das duras tentativas da promotoria em ligar sua ação militante com a
acusação de roubo e desordem, o réu absolveu o jurado por unanimidade, fato que foi
noticiado por vários jornais, inclusive da grande imprensa, como o Fanfulla e A
Gazeta.385
As propagandas do jornal A Plebe, que continuava ativo até o fim de 1917, mesmo
com a invasão de seu espaço físico na rua Conselheiro Chrispiniano, se focaram em
campanhas para convencer os leitores a apoiarem a causa de Edgard Leuenroth, bem
como dos presos políticos e dos deportados. Grande parte dessas chamadas
aproveitavam para incentivar o apoio ao próprio periódico, por meio de ajuda e doações
de todos os tipos. Nesse sentido, os militantes tentando convencer seus leitores que o
periódico era um grande intercâmbio entre os trabalhadores e o movimento operário e,
portanto, imprescindível:
Também pelas 10 horas de quinta, quando se apeava dum bonde, foi preso, noBrás, o nosso camarada Edgard Leuenroth, diretor deste hebdomadário.Compreende-se o objetivo dos seus captores: imaginaram eles, os podengos,que com a prisão do nosso amigo A Plebe morreria. Que ilusão! Aconteça oque acontecer, nunca A Plebe deixará de circular. Ela é precisa, é indispensável,porque os destinos da classe trabalhadora andam ligados aos seus.386
O tema da repressão e as tentativas de salvar o periódico buscando evidenciar sua
íntima relação com o movimento operário continuou muito forte no jornal, quando, ao
contrário da previsão do relato, é interrompido no ano de 1918 e fica sem publicações
até o início do ano seguinte. O mesmo acontece com o periódico Guerra Sociale, que
cessa em definitivo suas publicações no fim do ano, após a grande greve.
385 Ver LOPREATO, Christina. Op.cit., 209-218.386 “As violências.” A Plebe, 15 de setembro de 1917. p.1
140
Não só o empastelamento dos locais físicos usados para as confecções dos
periódicos eram empecilhos para as publicações, mas, dessa vez, a intensidade em que
essa foi aplicada, tentando prender os principais organizadores do jornal e percorrendo
as redes ativistas, invadindo casas e sedes operárias, foram os motivadores para que um
jornal de grande força e com número considerável de leitores cessasse as publicações. O
próprio jornal A Plebe, quando retorna em 1919, ainda mantém uma forte postura para
denunciar tais atitudes, tanto em torno do seu grupo, mas também dos ambientes
trabalhistas e subalternos:
Urge, pois, desenvolver uma intensa agitação em prol da libertação doscompanheiros presos. E caso não sejamos atendidos, se não conseguirmos detera sanha reacionária dos nossos inimigos, devemos levar a luta até as últimasconsequências, não nos restando outro recurso senão pregar a greve geral.387
Se o jornal, nesse ano, ainda menciona a repressão de forma sistemática é bem
possível que estas ainda estavam muito presentes no cotidiano da população. Outra
característica que pode ser encontrada nas linhas que tratam do assunto é a ocupação e a
energia que tais ativistas gastaram para lidar com esse contexto. Muitos militantes
libertários, ao estarem em posição de relevo nos ambientes trabalhistas e, de fato, na
organização da greve, usaram muitos dos seus esforços e recursos nessa empreitada e
gastaram muito mais ao lidar com a repressão no intuito não apenas de sobreviver ou
escapar, mas de reerguer, mais uma vez, a tentativa de “greve geral”, ou seja, de
fomentar o próprio movimento operário. Nesse sentido, A Plebe também retornava
incentivando e noticiando os novos movimentos grevistas do período, na cidade em
outros pontos, através ainda da coluna “Mundo operário” ou “Movimento Operário”:
Para muitos trabalhadores do período, a greve geral foi vencedora já que saía com
promessas de industriais e governantes, como o prefeito Washington Luís, que
garantiam a melhoria das relações de trabalho como a promessa de fazer cumprir as leis
para regulamentação das atividades de mulheres e crianças em todos os
estabelecimentos. Muitos industriais também concederam aumento de salário e alguns
passaram a estabelecer, por algum tempo, as oito horas de trabalho como plano da
jornada de atividades. Tudo isso foi mediado e redigido pela Comissão de Imprensa, no
qual participava vários jornais da grande mídia, cobrindo tais promessas e exigências, o
que deixava muitos da população com uma sensação ainda mais de vitória.388 No
387 “Defendendo nossos camaradas presos.” A Plebe, 5 de abril de 1919. p.1388 Ver LOPREATO, Christina. Op.cit., p.127-228.
141
entanto, para os militantes libertários, os ganhos foram muito mais morais e só valeriam
se a luta se estendesse para uma ruptura com o sistema vigente. Os anarquistas
mostravam que embora as promessas do Estado e dos representantes das fábricas
fossem cumpridas, não demoraria muito tempo para que alguns locais voltassem a
exercer o trabalho exploratório de mulheres e crianças e aumentarem novamente a
jornada de trabalho, condições que só acabariam definitivamente com uma revolução
proletária a partir da reunião novamente das forças operárias. Voltando a fazer uma
campanha contra o trabalho de crianças nas fábricas no ano de 1919, os militantes
mostravam que
A exploração de menores nas fábricas é tanto mais ignominiosa e revoltantequanto é certo refletir ela uma das maiores iniquidades praticadas pela cupidezcapitalista. Não basta obrigar-se a trabalhar de sol a sol toda essa legião defilhos da miséria, cuja idade orça entre os 9 e os 14 anos; não basta dar-se-lhesuma remuneração irrisória e mesquinha, que nem chega para o pão com que sealimentam; não basta esgotarem seu vigor físico no lapso de tempo em quedeviam frequentar a escola; não basta todo o desconforto e provação a que ossujeitam o rigor férreo e a disciplina violenta das bastilhas laboriosas. […]Portanto, ó pais, ó mães, ó todos vós que sofreis o peso do jugo capitalista,reivindicai a liberdade de vossos filhos, de vossos entes queridos, em idadeimprópria para o trabalho e ide depois procurar também o vosso lugar à mesado bródio social. O melhor caminho para alcançar esse objetivo é a associação.Associai-vos, uni-vos, congregai-vos como um só corpo, porque assim sereisfortes e invencíveis.389
Seguindo a proposta desse trecho, os anarquistas aderentes da estratégia
organizacionista, tanto alguns provindos do periódico Guerra Sociale, quanto oriundos
do jornal A Plebe, se condensam e acumulam seus esforços agora nesse último e
continuam a escrever a coluna “Mundo Operário” e a incentivar a organização constante
dos organismos sindicais e trabalhistas. Visando comemorar o primeiro de maio de
1919, é possível ver a força que os militantes ainda tinham para impulsionar os
organismos de reivindicação:
Efetuou-se, domingo último, na sede da Liga dos Padeiros e Confeiteiros, aanunciada reunião dos delegados das associações, grupos de propaganda ejornais operários, a qual correspondeu plenamente à expectativa. Estiverampresentes as seguintes coletividades: União dos Artífices em Calçado, Uniãodos Chapeleiros em Geral, Liga dos Padeiros e Confeiteiros, Liga dosOperários da Construção Civil, Liga Operária do Brás, União dos Empregadosem Padarias, União dos Canteiros em Cotia, União dos Canteiros de RibeirãoPires, Círculo Socialista Internacional, Grupo Libertário, Grupo “OsSemeadores”, Centro de propaganda “Os Rebeldes”, Grupo editor da “AlbaRossa”, Grupo editor d “A Vanguarda” e o Grupo editor da “A Plebe.” Depois
389 “Mundo Operário: Uma grande causa proletária – pela infância proletária.” A Plebe, 5 de abril de1919. p.3
142
de varia discussão à margem de diferentes alvitres formulados, assentou-se emrealizar um grande comício no Teatro de S. José, que para esse fim solicitado àrespectiva empresa. […] Também ficou resolvido lançar um apelo aooperariado paulistano para que no dia primeiro de Maio não compareça nasfábricas nem nas oficinas, de modo a dar à manifestação projetada um altosignificado moral que faça ver a disposição em que o mesmo se acha de lutarno sentido de deixar de ser mais burro de carga. Por último, constitui-se umcomitê executivo para impulsionar e realizar os trabalhos que se tornamnecessários.390
Tais indícios contestam interpretações que julgaram a greve geral de 1917 e as
reverberações em torno dessa como resultado de pressões essencialmente econômicas.
Boris Fausto, por exemplo, ao rever os condicionamentos envolvidos pelo evento, não
negligenciou a militância em torno dessa, mas atribuiu seu maior peso aos
condicionamentos econômico-sociais, impulsionada pela Primeira Guerra Mundial
desde 1914, primordial, nessa interpretação, para a eclosão do episódio em São Paulo.391
A historiadora Christina Lopreato, por sua vez, relativizou o suposto caráter espontâneo
do evento, atribuído por pesquisas como essa. Na contramão, a autora adentrou os
discursos e articulações políticas presentes na greve, revelando a agência de
personagens que impulsionaram o desenrolar do evento. Nesse sentido, Lopreato afirma
que é impossível negar a atuação marcante de militantes no interior do movimento
operário desde o início do século XX, principalmente do movimento anarquista, que
apresentou substância e concretude de articulação muito maior, em relação às outras
ideologias e movimento políticos no período, no intuito de organizar os trabalhadores
contra os detentores dos meios de produção.392 Já o historiador Luigi Biondi afirma que
o evento foi resultado de múltiplos fatores e não pode ser visto nem como resultado
direto de uma pressão econômica nem pela ação isolada dos indivíduos que
participaram desse processo, mas pela mediação das duas instâncias.393 A greve geral
estaria intimamente ligada, de fato, com o contexto internacional econômico causando
inflação nos gêneros de necessidade básica, influenciado pela Primeira Guerra Mundial.
Não menos importante pela ação política de determinados grupos, que não podem ser
compreendidas de maneira isolada, mas através das alianças entre anarquistas,
sindicalistas e socialistas, com suas propagandas conjuntas e a construção de
organismos trabalhistas mais sólidos, encaminhando o desenvolvimento das
manifestações, essas últimas, em consonância com suas avaliações e interpretações
390 “A comemoração em S.Paulo do 1º de Maio: Uma importante reunião proletária.” A Plebe, 19 deabril de 1919. p.3391 Ver FAUSTO, Boris. Op.cit.392 LOPREATO, Christina. Op.cit., p.1-20393 BIONDI, Luigi. Op.cit., p.315-326
143
particulares sobre os eventos mundiais que eram transformadas em propaganda política
através de seus jornais.
Conforme é possível notar com o desenvolvimento dos grupos nos bastidores da
referida greve e depois de seus desdobramentos, mesmo com certo refluxo e o contexto
não favorável após o ano de 1917, as greves e manifestações ainda eram realizadas nos
anos seguintes, tanto com o apoio de trabalhadores que ainda não se sentiam
contemplados pelas novas medidas, quanto pelo esforço de organização dos militantes,
revelando, dessa maneira, que um tipo de organização transcendia os aspectos
econômicos, mesmo que esses fossem importantes para favorecer alguns contextos. Para
tal, muito importante para os personagens era instrumentalizar os ideários anti-
imperialistas e os eventos internacionais, como a Revolução Russa, tendo como base
alavancar a almejada revolução:
Enquanto nos estados capitalistas do resto do mundo, nas monarquiasagonizantes, nas repúblicas desmoralizadas, na Espanha, na América do Norte,na Inglaterra, na França, na Itália, as greves tomaram proporções cada vez maisameaçadoras, na razio direta provocada pelos açambarcadores e profitteura394
da guerra enquanto, em redor de nós, o regime burguês da exploração dohomem pelo homem, vai-se desmoronando fragorosamente na Rússia, ocomunismo se firma, apesar da campanha feroz que lhe movem os parasitasque não se resolvem a aceitar o artigo 18 da Constituição da RepúblicaFederativa dos Soviétes Russos.395
Uma tática de propaganda que vinha desde os antecedentes da grande greve geral
e continuava efetiva era tentar convencer os leitores que as manifestações e paralisações
poderiam ter resultados concretos e longínquos e, no meio das notícias que poderiam
causar pessimismo, como os efeitos da guerra ou a própria repressão em solo nacional,
eram sempre postas ações internacionais de ganhos do movimento operário, no qual o
caso soviético parecia exemplar. Nesse sentido, além dos inúmeros comícios e
manifestações existentes após o ano de 1917, os libertários ligados a outros grupos
militantes e com as associações operárias transformavam tais notícias para favorecer e
criar movimentos locais, como no caso do grande boicote à empresa de bebidas
Antárctica, em 1919:
Em 1917, quando explodiu o grandioso e inesquecível movimento proletáriocontra a carestia de vida e as degradantes condições morais e econômicas detodos nós os que produzimos, já a Companhia Antárctica demostrou dumamaneira palpável e frisante que não reconhecia aos operários de S.Paulo odireito de propugnarem pelos seus interesses, vindo à praça pública estadear amiséria e o sofrimento em que se debatiam. Tendo-se organizado a União dos
394 Termo que parece vir de profiteur que, em francês, significa aproveitador.395 “O segundo aniversário da Revolução Russa.” A Plebe, 22 de novembro de 1919. p.2
144
Operários das Fábricas de Bebidas, com sede na Mooca, a Antárctica não podelevar a bem esse gesto emancipador dos seus escravos e tratou logo de sevingar. Essa vingança foi confiada a polícia. A U.T.F.B sofreu incontinente umafrontoso assalto dos beleguins, os quais não só se assenhorearam de todos oshaveres sociais como ainda cerraram as suas portas, dissolvendo a associação eperseguiram numerosos trabalhadores. […] Iniciadas estas, tudo parecia correràs maravilhas quando a Antárctica esbarrou num obstáculo insuperável: eranecessário para que cessasse a boicotagem readmitir na fábrica, nas sessões depintura e marcenaria os companheiros que foram os melhores elementos dapropaganda associativa dentro dela. A Antárctica, entretanto, não se quisconformar com isso. E, intrincheirando-se nesta opiniã, desistiu de ultimar asbases de acordo – o mesmo fazendo a Federação Operária que, por essa razão,ordenou o prosseguimento da boicotagem até os prejuízos da Antárctica sejamtais que ela ponha de lado, duma vez para sempre, a sua obstinada teimosia. 396
Conforme é possível observar, mesmo com a repressão e a diluição da União dos
Operários das Fábricas de Bebidas pela associação entre os industriais e a polícia, a
ação militante conseguia favorecer uma campanha para a população operária e
subalterna boicotarem a empresa.
Assim, ao acompanhar a trajetória dos grupos anarquistas em torno das
manifestações, é possível perceber que a orientação sindical, dentro de um viés
internacionalista e revolucionário, nunca saiu de seus horizontes, sendo eficazes ainda
em muitas manifestações e paralisações. A teimosia dos militantes libertários, na
realidade, revela que o movimento sindical de orientação revolucionária estava
intimamente ligado aos desdobramentos do movimento anarquista e que sua incisão e
profundidade para ligar os ganhos de curto prazo com a radicalidade revolucionária,
mesmo acompanhando outros grupos ideológicos e com os contextos que incentivavam
as manifestações, foram imprescindíveis para a construção desse contexto grevista e
seus desdobramentos que foram até o fim da década.
Obviamente, ao se inclinar quase totalmente aos ambientes trabalhistas e ao apoio
a projetos disputados por outras correntes políticas (como no caso da Revolução Russa),
possivelmente enxergando que uma insurreição se aproximava, os mesmos militantes
deixavam, mesmo de forma inconsciente, adiar ou ignorar seus projetos e organizações
essencialmente políticas que necessitavam de transformações em novos contextos, mas
não eram debatidos. As novas definições de outros grupos políticos e a transformação
do ambiente sindical após a grande greve ocasionaram as novas rearticulações políticas
anarquistas que se iniciaram no fim da década, essas que analisaremos com mais
cuidado na próxima parte.
396 “A boicotagem contra a Companhia Antárctica Paulista: Porque o proletariado declarou guerra semtréguas contra a odiosa empresa.” A Plebe, 9 de setembro de 1919. p.1
145
3.2. A alma vermelha: bolchevismo em xeque, repressão e as novas definições do movimento anarquista no fim da década.
A maioria dos anarquistas italianos, porém, sem se recusar, a prestar seu apoioa um movimento maximalista, faz suas reservas sobre a questão daconstituinte, e à ditadura proletária opõem a propaganda pela constituição dasComunas Libertárias. Essas reservas são lógicas e ponderadas. A ditadura,mesmo com fim revolucionário, é exclusivista e opressora e tende fatalmente aexercer funções de conservação.397
No dia vinte e seis de janeiro de 1919 é lançado, na capital paulista, o primeiro
número do periódico Alba Rossa. Seus redatores, como Angelo Bandoni, provinham de
uma tradição militante antiorganizacionista, mas que passavam por um momento
profundo de necessidade de organização nos últimos anos e com inserção considerável
nos ambientes sindicais e trabalhistas. Após a intensa repressão desencadeada com a
onda grevista de 1917 e a desintegração de uma aliança pela necessidade de impulsionar
os órgãos de massa, alguns anarquistas interpretavam ser necessário voltar para suas
táticas propagandísticas, restaurando a estratégia insurrecionalista em grupos móveis no
intuito de tentar se proteger dos ataques provindos das autoridades, conservando
aspectos ideológicos caso o movimento sindical continuasse sendo danificado.
O periódico, que continha quatro páginas, era escrito majoritariamente em idioma
italiano com algumas colunas em português, sendo voltado aos grupos e bairros étnicos
de predominância desse primeiro idioma na cidade. Apesar disso, longe ser um jornal
isolado sem extensão, apresentou um debate impetuoso e emergente para os grupos
anarquistas do período. Assim como o difuso A Plebe, ainda o principal periódico
anarquista da cidade, continuava noticiando informações das condições de vida dos
menos favorecidos, do movimento operário em geral e a apoiar o processo
revolucionário soviético. Conquanto, diferente do grupo em torno desse último, que se
voltava progressivamente quase inteiramente à organização sindical local e sua
articulação nacional, as campanhas de Alba Rossa apostavam novamente em suas redes
internacionais, tentando reconstruir uma luta anti-imperialista. Assim como nos jornais
La propaganda Libertaria e Guerra Sociale, as notícias do movimento operário
mundial e seu contato íntimo com as redes anarquistas de outros países, principalmente
italianas, eram refletias sob a forma de colunas para os debates locais como
397 “Dittadura Proletaria o Comune Libertaria?” Alba Rossa, 8 de março de 1919. p.1
146
“Movimento Operaio Internazionale”398, “Per la Pace Nel Mondo”399 e “Guerra e
Revoluzione.”400 Essa índole e inclinação levou o grupo a realizar uma crítica que já
chegava em outras partes do mundo, sendo debatida pelos grupos anarquistas, o possível
caráter autoritário dos caminhos da Revolução Russa.
Para esses anarquistas, como visto, tal processo revolucionário ainda era exemplar
em todo o mundo, mas era necessário expor seus caminhos e debater se as táticas e
estratégias desempenhadas por esses revolucionários seriam efetivas no movimento
local e para os aspectos ideológicos do anarquismo. No caso, por exemplo, da tomada
do Estado, os redatores mostravam que
podem objetar-nos que foi ela que salvou a revolução russa, mas nós pensamosque os comunistas russos, se quiserem chegar à prática integral do socialismo,devem derrubá-la, não consentindo que um período de transição passe a seestabelecer como solução definitiva. Caso contrário será a fossilização, oretrocesso.401
No caso de A Plebe, até o ano de 1922, no qual o grupo em questão assumiu
abandonar o bolchevismo, as táticas seguidas eram bem diferentes, embora o debate era
considerado frutífero. Até esse período, o periódico preferia instrumentalizar as ações
dos soviéticos para favorecer os órgãos trabalhistas e as reivindicações na cidade, no
qual apontava “com imenso jubilo, o alastrar-se do movimento maximalista”402. Para
esses militantes, era necessário se ater aos movimentos sociais e revolucionários em
geral, assim como o bolchevismo, alavancando de muitas formas uma transformação
tanto gradual quanto drástica, uma vez que no momento as medidas repressivas e as
grandes greves pareciam bem próximas. Sendo anarquistas, defenderiam seus princípios
básicos ,mas, naquele momento, o apelo era:
Lembrai-vos que separados somos fracos e que somos fortes bem unidos e queda nossa fraqueza e separação é que nossos inimigos se prevalecem para nosespoliar e subjugar. […] Reuni-vos em vossos sindicatos, prestigie e apoietodas as reivindicações justas, aprestai-vos para as conquistas generosas e parao triunfo dos elementos ideais. Não vem longe o dia da grande derrocadaburguesa. E, se a quereis apressar, fortificai-vos em vossas organizaçõesoperárias e grupos sociais, estudai, lutai, melhorai-vos, dignificai-vos, tomaiconsciência de vossa força, da justiça que vos assiste e da necessidade datransformação social que se aproxima.403
398 “Movimento Operário Internacional.”399 “Pela paz no mundo.”400 “Guerra e Revolução.”401 “Dittadura Proletaria o Comune Libertaria?” Alba Rossa, 8 de março de 1919. p.1402 “O Maximalismo alastra-se” A Plebe, 29 de março de 1919. p.3403 “Primeiro de Maio, pela paz e pela justiça: aos trabalhadores em geral.” A Plebe, 26 de abril de 1919.
147
Refletindo essa linha de ação e pensamento, em 1919 ainda, outra medida foi a
criação do Partido Comunista do Brasil. A proposta foi orquestrada primeiramente no
Rio de Janeiro através de conferências e reuniões e era propagada pelo grupo em torno
do jornal Spartacus que reunia os ativistas Astrojildo Pereira e José Oiticica e, em São
Paulo, seu apoiador e principal membro era Edgard Leuenroth. É certo que tal órgão,
para autores como João Mateus404, foi o resultado dos debates de organização interna do
anarquismo que já havia proposto alianças nas duas cidades e, portanto, não
representava um desvio ideológico, uma vez que seu programa repudiava, por exemplo,
o parlamentarismo e o autoritarismo do Estado, e ,como podemos observar em seu
manifesto, difundia a autogestão:
Socialização de todas as indústrias, agricultura, meios de transporte, e decomunicação, que serão administrados pelas respectivas associações de classe edirigidas por profissionais competentes em cada ramo de produção deatividade. Os indivíduos encarregados de dirigir a produção e a atividade socialexercerão apenas funções de organização e administração, mas nunca demando.405
Para os militantes em questão, o “Partido, sem fins eleitorais, vinha preencher uma
lacuna organizativa que não cessava de crescer com a ampliação das atividades de
militantes libertários no meio operário”406, na análise do historiador Alexandre Samis.
Não obstante, mesmo favorecendo aspectos ideológicos libertários, o próprio uso do
título “Comunista” em detrimento de “Anarquista” ou “Libertário” na nomenclatura do
órgão, é um indício que tais militantes também consideravam expandir sua tentativa de
aglutinação de forças militantes para além dos anarquistas. É evidente que o termo em
questão, no período, era evocado por todos os ramos socialistas que consideravam ter
uma “alma vermelha” mas, exatamente por isso, sem desconhecer tal questão, os
militantes abriram seus critérios de ingresso que antes, na Alliança Anarquista, eram
apenas de núcleos e grupos anarquistas já atuantes, passando para qualquer um que se
reivindicasse comunista:
1- Podem fazer parte do Partido todos os homens e mulheres residentes doBrasil que estejam de acordo com o seu programa e meios de ação. 2 – Oingresso como sócio do Partido vale por um compromisso pessoal de defender
404 MATEUS, João Gabriel da Fonseca. Escritos sobre a imprensa operária da Primeira República. Mi-nas Gerais: VirtualBooks, 2013. p.134-152.405 “Está constituído o Partido Comunista do Brasil.” A Plebe, 12 de Abril de 1919. p.3406 SAMIS, Alexandre. Op.cit., 2004. p.138
148
e propagar o programa aceito. […] A ação do Partido consiste na propagandasistemática, por todo o país, do socialismo integral ou comunismo e naarregimentação e educação do proletariado em geral para posse dos poderespúblicos – único meio pelo qual poderá realizar o seu programa.407
De acordo com os redatores de A Plebe, era necessário unir a maior força de
militantes para alavancar os movimentos de massa, mesmo socialistas de orientações
ideológicas e estratégicas diversas. Esse dualismo organizacional possivelmente,
portanto, na prática era um pouco diferente das alianças anteriores. De um lado, visava
organizar militantes diversos através de um programa coeso, mas geral e aglutinador,
construindo uma força significativa para lidar com o refluxo do ativismo nas cidades,
visando erguer novamente os movimentos sociais que estavam danificados, desde que
ancorados em algumas propostas básicas libertárias, e de outro, pessoalmente e através
desse órgão e outros, alavancar os movimentos populares instrumentalizando qualquer
ideário desde que fossem minimamente progressistas ou revolucionários.
Assim, enquanto alguns interpretavam que um retorno à estratégia
insurrecionalista ou ao antiorganizacionismo conservaria o anarquismo além de
favorecer um debate mais cuidadoso das coligações militantes que estavam sendo feitas,
outros anarquistas apostavam no incremento da organização favorecendo “tal qual na
Rússia, a constituição de alianças com outras correntes políticas que se diziam
propugnadoras de uma sociedade nova.”408 Essa última estratégia, aponta ainda o autor
Frederico Bartz, tinha uma variação tática, enquanto alguns anarquistas pensavam essa
união como pragmática e apenas tática, como Gigi Damiani em A Plebe, outros,
principalmente no periódico Spartacus, pensavam o maximalismo como uma nova
estratégia a ser usada como o sindicalismo.409
Esses diferentes caminhos e interpretações, como analisado, tinham seus motivos
particulares e locais mas também podem ser comparados com o andamento de outros
grupos anarquistas no mundo, principalmente sobre a complexa questão da Revolução
Soviética. Sobre esse último ponto, na pesquisa de Andreas Doeswijk sobre os
anarquistas na região rioplatense, são apontadas três fases distintas dos militantes
libertários nesse período diante do evento em questão. A primeira consistiu no apoio
majoritário de todos os anarquistas diante da Revolução Russa e do bolchevismo,
407 “Está constituído o Partido Comunista do Brasil.” A Plebe, 12 de Abril de 1919. p.3408 OLIVEIRA, Tiago. Op.cit., p.129409 Ver BARTZ, Frederico. Movimento Operário e Revolução Social no Brasil: ideias revolucionárias eprojetos políticos dos trabalhadores organizados no Rio de Janeiro, São Paulo, Recife e Porto Alegre en-tre 1917 e 1922. Tese (Doutorado em História). Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Rio Grandedo Sul, 2014. p.36
149
acreditando que o evento era exemplar contra o sistema capitalista, minando também as
práticas imperialistas dos conflitos mundiais. Nesse período, os libertários, que
circulavam em torno dos jornais La Protesta e Tribuna Proletária, já conheciam a
existência de debates sobre o centralismo estatista, mas acreditavam que o apoio
anarquista poderia desviar esse intuito. Na segunda fase, a partir de maio de 1919 em
diante, foi iniciado um questionamento em alguns grupos anarquistas sobre a ditadura
proletária e o caráter do Partido Comunista, fato que acompanhou o Tribuna Proletária,
diversamente dos grupos Bandera Roja e La protesta que até criticavam o primeiro
jornal, chamando-o de purista. Nesse período, o autor aponta que não havia informações
seguras sobre a configuração desse Estado, julgado maléfico por alguns anarquistas.
Isso mudou a partir de 1921, na terceira fase, que após a volta de alguns anarquistas do
Leste Europeu e a repressão na Ucrânia, foi realizado um intenso debate e até medidas
contra os apoiadores do bolchevismo entre o anarquismo e no movimento operário, fato
que pode ser exemplificado nas articulações militantes para a perpetuação do caráter
anarquista dentro da FORA.410
Não temos documentos sobre uma possível ligação entre esse caso e o analisado,
porém a intensa preocupação dos anarquistas em estar próximo às suas redes
internacionais são indícios que tais atitudes semelhantes não foram mera coincidência.
Como apontado, o periódico Alba Rossa, descendente, em parte, de alguns redatores de
Guerra Sociale, em 1919, intimamente preocupado em reestabelecer um poderoso laço
internacionalista com outros grupos anarquistas foi o primeiro a se manter mais
cauteloso ao apoio dado aos bolcheviques, embora não faltasse em suas colunas o apoio
a esse processo revolucionário. Análogo ao Tribuna Proletária, o jornal ainda fez
algumas ponderações sobre a construção do Partido Comunista que estava sendo
altercado em São Paulo e Rio de Janeiro:
Outro ponto que se presta a equívocos graves é aquele em que se proclama a“arregimentação e educação de proletariado, em geral, para a conquista dopoder pelo público - único meio pelo qual poderá realizar o seu programa” -conquista revolucionária, você vai dizer, e bem, nós concordamos. Mas, qual éo fim desta conquista? Para superar o poder? Para a divisão pública da Comunae dos Sovietes? [...] Mas, se em vez disso, o que não acredito, como confiarãoter escrito a execução do seu programa, como a única maneira, para a conquistado poder, então não era realmente necessário estabelecer um novo partido: hásocialistas suficientes que pregaram o mesmo diferindo unicamente no método,
410 Ver DOESWIJK, Andreas. Entre camaleões e cristalizados: os anarco-bolcheviques rioplatenses,1917-1930. Tese (doutorado em História). Universidade Estadual de Campinhas, São Paulo – Campinas,1998. p. 62-65.
150
por ser parlamentar.411
Para alguns redatores de Alba Rossa, como o personagem João Calixto, o
programa não tinha a menor proximidade com os ideais anarquistas já que os mesmos
não deixavam claro, por exemplo, se a conquista do poder seria nos moldes soviéticos e
do processo revolucionário socialista ou através de divisão autogestionária, pensada
pelos anarquistas. Assim, alguns dos próprios militantes libertários do período
questionavam se tal órgão e programa era um resultado dos debates de organização
anarquista ou mesmo como qualquer partido socialista, resultado do vislumbre do
processo revolucionário soviético. De todo modo, pensando num vínculo mais íntimo, mais flexível ou mais crítico
com o bolchevismo, fato que também estava em discussão como já apontamos,
percebemos que os anarquistas no geral nunca se distanciaram dos ambientes e órgãos
sindicais e trabalhistas, mesmo que seu refluxo tenha produzido esses novos debates.
Como antes, a preocupação grevista, que visava melhorias graduais exercitando uma
prática revolucionária continuava nos horizontes dos militantes libertários atuantes na
cidade. A Plebe noticiou, entre 1919 e 1922, dezenas de greves, manifestações e
boicotes na capital e no interior, que aumentavam suas organizações operárias
potencialmente, através da criação de órgãos sindicais e trabalhistas apoiados e
impulsionados pelos anarquistas. Em 1920, uma greve significativa na fábrica de
tecidos Crespi, na Móoca, terminou com o acordo favorecendo a luta dos trabalhadores,
por razão dos patrões não terem acatado as negociações anteriores. Longe de noticiar
apenas os resultados dessa negociação, os militantes tentavam inflamar o caráter
revolucionário da União dos Operários em Fábricas de Tecidos:
Vencendo todas as dificuldades que lhe são opostas pela resistência dosgrandes capitalistas da indústria têxtil, bem como os manejos infames dacanalha clerical que se esforça para arredar do seu seio os trabalhadores eprincipalmente os operários e os menores ainda inconscientes, a U.O.F.Tprossegue vitoriosamente no trabalho de organização e educação associativa danumerosa classe que agremia, desenvolvendo nesse sentido uma atividadecujos resultados benéficos são evidentes.412
Como demonstrado, os redatores tentavam mostrar que os ganhos da entidade
estavam barrando preceitos e medidas dos grupos conservadores e que deveriam, para
411 CALIXTO, João.“A proposito del manifesto comunista: due parole ai nostri amici de P.C.B.” AlbaRossa, 12 de abril de 1919. p.1. Tradução nossa.412 “Mundo Operário – União dos Operários em Fábricas de Tecidos.” A Plebe, 28 de fevereiro de 1920.p.3
151
esse fim, continuar seu caráter de organização. Essa perpetuação dos ativistas
libertários, mesmo em período de intensa repressão, evidencia o resultado de sua
inserção prática durante toda a década nos espaços trabalhistas e subalternos. Do mesmo
modo, as palestras acompanhadas de festas para arrecadação de dinheiro para os grupos
militantes e sindicais, para a população dos bairros operários, ainda continuavam ativas
por parte dos anarquistas, mostrando sua força organizativa:
413
Angelo Bandoni nasceu no ano de 1868 em Livorno, na região da Toscana. Nos
lugares por onde passou, na Itália e Argélia, adentrou aos movimentos radicais e
inúmeras vezes foi preso acusado de roubo e falsificação de dinheiro. Em 1900, após ser
libertado, viajou para o Brasil onde rapidamente fundiu sua experiência subalterna com
o desenvolvimento do anarquismo nas colônias italianas. O ativista, bem assíduo no
movimento operário de São Paulo, participou de difusos jornais como La Battaglia, La
Protesta Humana e Germinal, criando grupos militantes e bibliotecas na capital e em
suas viagens às regiões interioranas, portanto, apresentando uma militância com
413 Alba Rossa, 8 de março de 1919. p.4
152
inúmeras referências para a causa revolucionária.414 De acordo com a chamada, a
conferência que seria realizada pelo personagem, no dia dezoito de março, comemoraria
a Comuna de Paris e versaria sobre a possibilidade de transformação da sociedade pelos
trabalhadores contra o “desastre da sociedade capitalista.” Um indício que tais ativistas
também instrumentalizavam outros símbolos revolucionários, além dos novos e
emergentes para sua propaganda e ação, já que estavam tão íntimos e familiarizados, em
suas trajetórias, a inúmeros eventos, notícias e temas usados em prol de suas
propagandas. As medidas como a criação do Partido Comunista e as notícias da
Revolução Soviética, portanto, faziam parte de medidas e táticas, muitas vezes
complementares, embora essenciais no período, ao caráter de organização. Estamos
afirmando, portanto, que essa essência, íntima aos ambientes proletários e subalternos
apoiando ou não o bolchevismo, possibilitou a perpetuação do anarquismo mesmo
quando, em 1922, A Plebe, análogo à terceira fase dos anarquistas na região rioplatense,
declararam seu repúdio ao processo revolucionário soviético e ao caráter autoritário que
estava em desenvolvimento:
Aceitando o comunismo-anárquico, negação de todo o princípio de autoridadee expressão mais completa das aspirações de liberdade porque vem lutando ahumanidade através os séculos, e sendo seu objetivo extinguir a divisão dacoletividade humana em classes antagônicas, fonte de todas as lutas queensanguentam a história, não podemos concordar que a ditadura docapitalismo, origem de toda a tirania, se oponha a ditadura de outra classe,embora essa classe seja o proletariado, porque isso seria fazer com que arevolução faltasse ao seu fim, deixando sobreviver o germe das disputas queperturbam a normalidade da vida social.[...] Não concordamos com oestabelecimento da ditadura do proletariado, repelimos, com muito mais razão,a ditadura de um partido, ainda que esse partido se apresente como a elite doelemento revolucionário e como a vanguarda da classe trabalhadora, poisjulgamos que a missão dos organismos políticos -sociais deve ter por objetivoconseguir dar à organização obreira a indispensável eficiência de coesão, decapacidade administrativa, técnica e revolucionária.415
Como é possível perceber, os libertários ainda evocavam o “comunismo”, mas
divulgavam que não era possível, para a realização da igualdade, uma ditadura
instaurada por um grupo político, pois esses perpetuariam e reproduziriam tipos de
tiranias que supostamente eram derivadas do sistema capitalista, pois se transformariam
em novas elites, ao contrário de dar apenas impulso ao processo revolucionário,
verdadeiro caráter dos partidos para os redatores. Como resposta, propunham, em parte,
a organização sindical internacionalista com base na ação direta, a partir de um apoio
414 Para adentrar a biografia de Angelo Bandoni ver BIONDI, Luigi. Op.cit., 1994. p.73-75.415 “Os anarquistas no momento presente” A Plebe, 18 de março de 1922. p.4
153
ideológico e político, como já haviam praticado na cidade:
Para ser alcançado esse objetivo, julgamos que a Internacional sindical,independente da política, deve reunir todas as organizações sindicalistas deacordo com as bases federativas, constituindo, assim o expoente da forçaorganizadora do proletariado mundial em sua luta contra o salariato e opatronato. Com o mesmo critério, encaramos a organização da Internacionalpolítica, em cujo seio julgamos que devem ser reunidos federativamente ospartidos políticos-sociais revolucionários de todos os países, respeitando aautonomia de cada um no desenvolvimento de seus programas específicos eestabelecendo-se um programa geral para a luta contra o domínio docapitalismo.416
É interessante perceber nesses trechos que os redatores reconheciam, como outros
socialistas, a importância e a necessidade de uma organização política, e outra, social,
através das organizações sindicais e subalternas de reclamação econômica atuando
conjuntamente, porém, com “autonomia de ação, sem dependência uma da outra.”417
Essa citação faz referência direta à importância que tais ativistas estavam dando para a
necessidade ainda de formar partidos ou alianças anarquistas para atuar nas duas
esferas. Porém, revela também a existência de um novo dilema que os militantes
libertários encontravam no movimento operário. A partir de então, os anarquistas tinham
que disputar espaço com um concorrente que eles mesmos ajudaram a alimentar nesses
anos, o próprio comunismo, através de um partido orgânico, atuando nesses dois níveis
e com inserção considerável que, para os redatores, pelo próprio traço do bolchevismo,
poderia sobrepor o nível ideológico e partidário ao social.
O Partido Comunista do Brasil, agora de clara orientação marxista, foi altercado
após o Primeiro Congresso do PCB entre vinte e três e vinte e cinco de março de 1922
no Rio de Janeiro. Esse evento reuniu nove delegados, representando setenta e três
militantes e seguia um programa muito parecido com o Partido Comunista da Argentina.
É certo que essa criação era o resultado da própria convergência dos grupos comunistas
no país, que ganhavam força com a influência do bolchevismo, como a União
Maximalista de Porto Alegre, fundada em 1919, que tinha militantes como Abílio de
Nequete, principal articular do Partido. Não obstante, também apresentava militantes de
relevo com tradição de profunda organização militante, provinda do anarquismo, como
Astrojildo Pereira.418 Assim, enquanto alguns libertários usavam sua inserção no
416 Idem.417 Idibem.418 Para adentrar a história do PCB ver ROIO, Marcos Del. “A gênese do Partido Comunista (1919-29)”.In: FERREIRA, Jorge; REIS, Daniel Aarão. Op.cit., p. 223-248.
154
movimento operário para garantir a mínima influência do anarquismo nos espaços
trabalhistas e subalternos, mesmo longe do bolchevismo, alguns usavam essa mesma
tradição para que, na sua travessia revolucionária – dessa vez mudando de ideologia e
não de estratégia – garantisse expressão considerável nesses ambientes de sua nova
roupagem e órgão político. Esse Partido, portanto, já tinha uma base considerável
construída pelas próprias articulações de esquerda construída desde 1917, como estamos
observando.
Desse modo, embora os anarquistas estivessem nos ambientes operários visando
sua autogestão com visão libertária desde sempre, seu apoio à Revolução Russa, muitas
vezes, mais visando seu efeito como propaganda do que analisando as condições e
caráter do próprio evento, foi uma tática arriscada e agora mostrava seus frutos. No
entanto, analisando suas articulações políticas e sindicais mesmo antes da criação de um
órgão especificamente bolchevique e marxista, essa ligação era menos ingênua do que
se possa pensar. Entre os dias vinte e três e trinta de abril de 1920, na sede da União dos
Operários em Fábricas de Tecidos do Rio de Janeiro, aconteceu o Terceiro Congresso
Operário Brasileiro, como estava previsto na resolução do último congresso, que
contava com cento e trinta e dois delegados representando treze estados. O número de
sindicatos e associações ligados à entidade também crescia verificando que “a repressão
da polícia, as deportações e o trabalho sistemático dos grupos reformistas e
cooperativistas vinham produzindo resultados desfavoráveis às organizações
revolucionárias.”419 Os delegados discutiram questões pertinentes que aconteceram
desde a última reunião, como os efeitos da Primeira Guerra Mundial, o aumento da
repressão e a constituição de órgãos políticos dentro do movimento operário. Um dos
elementos em destaque é que, dessa vez, a sindicalização partiria por ramos de indústria
e não por ofício, em uma tentativa de aglutinar mais membros para as associações.
Outro ponto interessante, embora o evento tenha comemorado os avanços dos soviéticos
e saudado a Internacional Comunista, os partidos formados deveriam ter apenas um
caráter de apoio e não de sobreposição ao sindicalismo revolucionário, como destacou
Neno Vasco para os trabalhadores que quisessem fundar um sindicato:
1- Os fins do sindicato, que ao nosso ver devem ser: a) imediatos, omelhoramento das condições presentes, a propaganda associativa, a educação,b) a emancipação integral do trabalhador. 2 – A não participação no sindicatona luta de um partido político.420
419 SAMIS, Alexandre. Op.cit., 2004. p.139.420 VASCO, Neno. “A Fundação do Sindicato.” Atas do Terceiro Congresso Operário Brasileiro, 1920.
155
Para os militantes, um partido poderia ajudar a luta de um sindicato ou associação
trabalhista mas nunca o contrário, já que esses últimos eram ambientes de melhoria
imediata para o trabalhador exercitando, com o apoio da militância política, ocasiões
revolucionárias. Essas articulações poderiam minar o suposto e possível perigo dos
nascentes órgãos políticos sobreporem à luta material, fato que parecia estar prevenido.
Porém, o atraso na construção ou no reerguimento de órgãos políticos especificamente
anarquistas, já que os partidos comunistas foram revogados pelos marxistas, poderiam
causar danos ao movimento libertário caso houvesse novas medidas repressivas, como
atestam os próprios militantes mais assíduos no país, como José Oiticica:
O congresso de Berlim tratando da organização anárquica para a luta contra aburguesia, prescreve o federalismo dos grupos autônomos, processo grato oslibertários de todos os tempos, mas debalde procuro nas resoluções dessecongresso um meio de tornar esse federalismo eficiente de arregimentar asfederações de tal modo que possam levar a combate decisivo as massastrabalhadoras. Como dar unidade e união às federações? Como conseguir umcorpo de militantes verdadeiramente de vanguarda, à prova de fogo e bonsguias? Exemplo dessa falta encontramo-la nós aqui. O Segundo CongressoOperário proclamou o federalismo, mas não soubemos efetivar as federaçõesanárquicas dentro dos sindicatos.421
O militante nasceu em 1882 na cidade de Minas Gerais, filho de Francisco de
Paulo Leite e Oiticica, que foi senador e deputado da república posteriormente. Em uma
família próxima às letras e à academia, cursou medicina e direito, não concluindo
nenhum dos cursos, se aproximando da filologia e da educação, participando de
iniciativas educacionais como a fundação do Colégio Latino-Americano no Rio de
Janeiro. Ainda liberal e patriota, frusta-se com os acontecimentos políticos da década de
1910, principalmente a eleição de Hermes da Fonseca à presidência, que parecia não
findar o militarismo e o autoritarismo em detrimento da democracia liberal, tal qual
defendia. Seu distanciamento com o Estado e seu contato com outros escritores,
professores e jornalistas o faz conhecer o anarquismo, ao qual adere o movimento de
forma enérgica, participando de jornais fincados no movimento operário em São Paulo e
no Rio de Janeiro, como A Lanterna, A Plebe, Spartacus e Ação Direta, participando dos
debates nacionais e internacionais do anarquismo.422 Pela sua trajetória, é importante
notar que Oiticica achava importante estar atento aos debates teóricos e ideológicos do
421 OITICICA, José. A Pátria, 22 de junho de 1923. Citado em SAMIS, Alexandre. Op.cit., 2009. p.37422 Para adentrar a trajetória de José Oiticica ver SAMIS, Alexandre. “Presenças indômitas: José Oiticicae Domingos Passos.” In: FERREIRA, Jorge; REIS, Daniel Aarão. Op.cit., 2007. p.89-100.
156
anarquismo, por sua proximidade com a leitura, e construir, ao mesmo tempo, um
anarquismo organizado que pudesse ser eficaz em todo o país de forma homogênea. O
evento citado pelo personagem se referia à Conferência Internacional do Sindicalismo
Revolucionário, realizada em Berlim no ano de 1922, no qual os militantes anarquistas e
os aderentes da estratégia desse instrumento se reuniam tanto para definir seus rumos
após os conflitos nacionais quanto para marcar sua ruptura definitiva com o
bolchevismo. Para os anarquistas presentes, além da necessidade de manter o
sindicalismo como a principal ferramenta contra o capitalismo era necessário se
organizar politicamente. Para o historiador Alexandre Samis, algumas condições que,
como apresentamos até aqui, estavam muito mais atreladas às condições históricas e
articulações militantes do que simples influência ideológica-estratégica ou escolhas
individuais, criaram uma “simbiose entre a militância libertária e o posicionamento
radical do trabalhador sindicalizado em geral.”423 Para José Oiticica, faltava, como em
outras regiões e em outros momentos no próprio país, uma organização federalista “para
além dos sindicatos” e dos grupos de afinidade e propaganda, que pudesse se proteger
em momentos de refluxo ou impulsionar movimentos, de forma coesa e conjunta, sob
momentos de fluência do movimento operário.
Ademais, se até esse período, a repressão e o avanço do reformismo nos
ambientes operários foram pouco prejudicais à reconstrução do movimento operário
após os eventos de 1917, uma vez que os militantes de várias tendências estavam unidos
em um único objetivo, a disputa por hegemonia política, com o anarquismo
desmembrado e voltado para manter a força dos sindicatos, a forte emergência dos
partidos comunistas e de outros movimentos, somado às novas ações repressivas seriam
danosas ao funcionamento do sindicalismo revolucionário e do próprio anarquismo.
Nesse sentido, em 1921 foi instituído o decreto 4.247 que além de regular a entrada
de estrangeiros no país também abria margem para confiscar a imprensa, se considerada
subversiva. Um ano depois, foi criada a Quarta Delegacia Auxiliar, durante o mandato
do presidente Arthur Bernardes, instituição específica na busca e apreensão de
militantes, dentre eles a maioria anarquistas, já que eram considerados pelas autoridades
os maiores responsáveis pelas greves e manifestações até o momento.424 Desde então,
tais militantes tiveram muita dificuldade em se manter de maneira fixa em algum órgão
sindical ou político e aprofundar debates, sendo necessário apostar em redes móveis
423 Idem. p.38424 TOLEDO, Edilene. Op.cit., 2007. p.83 ; SAMIS, Alexandre. Op.cit., 2004. p.146.
157
para a sobrevivência ideológica e prática.
O sindicalismo, nesse contexto, teve a presença progressivamente mais forte do
reformismo ou, como os militantes anarquistas se referiam, o “sindicalismo amarelo”,
que mesmo defendendo muitos interesses dos trabalhadores, para os libertários, ao se
inclinarem mais às lutas graduais e com as negociações antes dos boicotes e greves, sem
uma perspectiva revolucionária, seriam ineficazes e conservadores do sistema
capitalista.425
Tentando também barrá-los, os comunistas fizeram ações significativas pela
hegemonia dos sindicatos, mas sua estratégia de minar as ideias reformistas e
reformadoras desse ambiente era criar um vínculo explícito ou próximo com a ideologia
marxista e com o Partido, consequentemente excluindo outras variantes ideológicas
desses ambientes como a anarquista, saindo das bases do sindicalismo revolucionário.
Os anarquistas, evidentemente, disputavam ainda boa parte dos organismos sindicais da
cidade, porém, como atesta Tiago Oliveira, seriam muitos esforços gastos num período
em que a “repressão contra o anarquismo acentuou-se, ao mesmo tempo em que se
modificavam as bases das relações políticas, com a presença de novos movimentos.”426
Para o autor, esse período era o resultado de mudanças nas décadas anteriores que agora
mostravam resultados:
De um lado encontravam-se os movimentos de setores médios, que até entãosempre de beneficiaram do jogo oligárquico e do apadrinhamento político.Mudanças iniciadas ainda nos anos 1910, tais quais o crescimento urbano, osurgimento de um movimento patriótico pelo qual discutia-se uma noçãoincipiente de sentimento nacional, a aproximação do Brasil com os EstadosUnidos na I Guerra, além do histórico da influência positivista, impulsionavamum sentimento por alterações de caráter democrático nas instituições públicas,pelo menos na medida em que permitiam maior mobilidade de ascensãopolítica desses setores minimamente ilustrados pelos padrões de civilidade daépoca. Isso implicava mudanças no regime de acesso à máquina administrativae à representação política por meios que fugiam ao controle dos tradicionaismeandros clientelísticos.427
425 Estamos defendendo aqui que o avanço do sindicalismo reformista, que tinha muitas variantes ideo-lógicas desde o socialismo reformista ao trade-unionismo, que, na realidade, já era muito expressivo emcidades como no Rio de Janeiro, enfraqueceu o sindicalismo revolucionário e o anarquismo. Porém, épreciso salientar que a visão dessa vertente sindical como uma falsa consciência de classe ou como pele -guismo provém da visão dos militantes anarquistas e comunistas, refletindo em muitos estudos do movi-mento operário posteriormente. Como salienta Cláudio Batalha, a classe trabalhadora também usou esseinstrumento, como o sindicalismo intervencionista da década de 1930 para garantir seus interesses. Por-tanto, “o sindicalismo reformista no Brasil da Primeira República não é um fenômeno introduzido de forada classe e estranho à consciência de classe.” BATALHA, Cláudio. “Uma outra consciência de classe? Osindicalismo reformista na Primeira República. Anais do 13 encontro Anual da ANPOCS. Minas Gerais,1989. 426 OLIVEIRA, Tiago. Op.cit., p. 153.427 Idem.
158
Esses novos grupos e movimentos, que emergiam com o declínio do pacto
oligárquico, reinterpretados a partir das tradições e condicionamentos existentes, não só
disputavam a política partidária do país, mas passaram também a ocupar e
instrumentalizar espaços que sempre foram derivadas das camadas mais baixas como o
sindicalismo e as próprias manifestações e greves, fato que pode ser atestado nas
reivindicações de tenentes e das classes médias, anos depois, de caráter bem radical. Por
outro lado, a cena militante anarquista sofreu com os novos ataques incisivos nessa
terceira década, quando em 1924, ao reprimir uma revolta de grande proporção em São
Paulo inciada pelos chamados tenentistas mas apoiada por várias camadas da população,
o aparato estatal aproveitou para prender muitos ativistas libertários de relevo,
mandando alguns para as colônias de exílio na região norte do Brasil.428
Necessário salientar que todos os movimentos e grupos políticos e sociais, dessa
vez, fora o anarquismo, visavam à tomada ou a disputa do Estado e estavam
desenvolvendo um tipo poderoso de ideário nacionalista. Mesmo quando esses estavam
em outros espaços, como o sindical, levaria esse pensamento como forma de objetivo a
ser perseguido.429 Porém, tanto a classe trabalhadora e subalterna, quanto suas ideologias
internas que não acreditavam que a emergência dos novos discursos nacionais ou a
tomada e disputa do Estado seriam efetivas, não desapareceram e foram usadas quando
essas primeiras interpretaram ser necessário. Nesse sentido, o anarquismo que nunca
perdeu seu intuito de adentrar e impulsionar a luta sindical, trabalhista ou
revolucionária, pelo seu próprio caráter e enraizamento, enfrentou novos dilemas e teria
que se reformular em novos períodos, mas nunca saiu de cena ou se fincou apenas em
iniciativas culturais. Para os militantes de A Plebe, jornal que foi empastelado em junho
de 1924, mas retornava em 1927, o caráter grevista e sindical, a partir de uma visão
federalista, ainda era seu principal foco, tentando reconstruir uma Confederação
Operária de caráter revolucionário e longe dos caminhos nacionalistas ou estatistas:
Impõe-se, portanto, um ativo, e ininterrupto trabalho de organização de toda aclasse operária. Urge que os trabalhadores que já tem associações de suasprofissões a eles se unam com entusiasmo, comparecendo às suas reuniões eassembleias, tomando parte ativa em todos os trabalhos associativos, e que
428 Ver ROMANI, Carlo. “A revolta de 1924 em São Paulo: uma história malcontada.” In: ADDOR, Car-los; DEMINICIS, Rafael. Op.cit., 2009. p.51-68.429 Tiago Oliveira afirma que “com exceção do anarquismo, que permanece com sua ogeriza ao Estado,todas as outras correntes políticas elegem a conquista do Estado como condição essencial para efetuar asmudanças almejadas. O fortalecimento dessas correntes não ocorre apenas simultaneamente ao enfraque-cimento do anarquismo […]. mas também em seu detrimento, uma vez que a efervescente cultura políticadesses anos fortalece a noção de necessidade do Estado.” OLIVEIRA, Tiago. Op.cit., p.155
159
eles, que ainda estão desorganizados tratem imediatamente de construir as suassociedades de resistência. […] Que as organizações de uma mesma localidadese reúnam em federações locais, reunindo-se estas em federações estaduais etodas reunidas, com as federações das uniões de industriais, reconstituir-se aConfederação Operária do Brasil – que há de ser o baluarte poderoso de nossacausa – a causa da redenção dos trabalhadores do domínio odioso daburguesia.430
Interessante notar que apesar da constante perseguição, o grupo em torno desse
periódico foi muito atuante nos meios operários nas décadas posteriores. Os libertários,
como na fala dos próprios redatores atestado por pesquisas empíricas recentes,
estiveram, em maior ou menor medida, resistindo, junto à classe subalterna e
trabalhadora, mesmo nos espaços onde os pensamentos e a ideologia dominante se
tornaram majoritários e muito difíceis de se combater.431 O principal foco foi tentar
construir uma mínima base que tornasse possível se contrapor tanto ao Estado-nação
quanto seu vínculo com o sistema econômico capitalista, que se fortificaram. Organizar-
se politicamente para esse fim e manter ou retornar à inserção social a partir também de
órgãos de reclamação econômica com um forte peso internacionalista local e nacional,
que os libertários tinham durante essa segunda década, será um dilema constante da
bandeira negra no país.
430 “Mundo operário – A classe trabalhadora do Brasil.” A Plebe, 12 de fevereiro de 1927. p.4431 Para examinar as pesquisas que mostrar os debates e a inserção do anarquismo nos espaços trabalhis -tas no Brasil após esse período ver SILVA, Rafael Viana da. Elementos Inflamáveis: organizações e mili-tância anarquista no Rio de Janeiro e São Paulo (1945-1964). Dissertação (Mestrado em História). Uni-versidade Federal Rural do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2014 e AZEVEDO, Raquel de. A ResistênciaAnarquista – uma questão de identidade (1927- 1937). Imprensa Oficial: São Paulo, 2002.
160
CONCLUSÃO.
A partir de uma análise densa e sistemática dos periódicos Guerra Sociale e A
Plebe e seus grupos, personagens bem como a trajetória e contexto social em que foram
criados foi possível perceber e captar algumas características do próprio movimento
anarquista e sua relação com o movimento operário e revolucionário na segunda década
do século XX em São Paulo.
Primeiramente foi possível perceber que os jornais e grupos analisados eram
frutos de experiências iniciadas desde o começo do século, quando o anarquismo foi
enraizado à classe operária e subalterna, articulando vetores sociais, como o
sindicalismo revolucionário, na própria constituição dessas classes na cidade. O
movimento anarquista, embora constantemente perseguido e também sofrendo com os
refluxos do movimento operário em períodos de crise, tentava criar uma militância em
que fosse possível agregar as experiências gerais dos grupos explorados ao radicalismo
revolucionário. A criação do periódico A Lanterna, unindo diversos grupos contra o
clericalismo, ao mesmo tempo em que tentava intercalar a orientação grevista e
revolucionária nesses foi um claro exemplo desse tipo de articulação.
Com o irrompimento da Primeria Guerra Mundial, fechando as fronteiras
nacionais, o crescimento da população somado à grande migração das áreas rurais para
os centros industriais resultou no incremento de uma luta classista unindo a prática e a
teoria internacionalista anarquista – praticada em alguns congressos no país e em
regiões vizinhas na América do Sul - à sua experiência classista na cidade, contexto no
qual foi gerido o grupo e periódico Guerra Sociale. Embora alguns anarquistas, em
outras partes do globo, tenham declarado apoio aos aliados, acreditando estar em um
lado certo e mais humano do conflito, os anarquistas imigrantes – que antes tinham
apresentado ideários étnicos – rebuscaram em sua ideologia práticas e traços, como as
lutas anti-imperialistas e os congressos internacionais, que pudessem beneficiar seu
ativismo local, agora num país fora da Europa, onde estavam se desenvolvendo e
atuando. Esses militantes foram contra os conflitos nacionais, acreditando que os
possíveis causadores desses eventos, a classe burguesa e detentora dos meios de
produção, deveria ser combatida pelos povos, internacionalmente e também
nacionalmente. Nesse último aspecto, os anarquistas perceberam que um sentimento de
nação estava sendo potencializado no país e usavam esse ideário para tentar construir
um movimento operário coeso às condições do país. Desse modo, tal grupo e periódico
161
foi responsável por abrir um debate importante no movimento operário e no movimento
anarquista, tanto para aumentar a difusão da sindicalização no país, através dos seus
vetores sociais principalmente de resistência econômica e também adquirir uma força
política anarquista militante, através de alianças e partidos. A Alliança Anarquista, desse
modo, representava esse anseio, resultado tanto de seus debates na cidade e no país, que
tentava dar organicidade ao anarquismo militante, quanto da prática internacional
anarquista, que havia proposto esse tipo de órgão e forma ativista.
A inserção nos movimentos revolucionários e no movimento operário em dois
níveis, político-ideológico: através da tentativa de reunião entre os anarquistas da cidade
e do país e social: através da organização de massas preferencialmente para a resistência
econômica, na nossa hipótese, é que levaram o anarquismo a estar na dianteira nos
movimentos grevistas iniciados a partir de 1917. Como evidencia alguns indícios
apresentados nessa pesquisa, esses primeiros possivelmente foram os responsáveis por
elevar algumas manifestações ao um radicalismo nunca visto antes, interligando as
associações existentes e noticiando as greves e manifestações da cidade. Esse contexto
criava o grupo e jornal A Plebe, órgão tido pelas autoridades, militantes e por muitos
trabalhadores, o mais importante no evento referido. O sucesso de sua empreitada estava
exatamente em continuar e desenvolver os debates de organização política, como a
Alliança Anarquista, em consonância com as organizações e atividades da própria
classe operária e subalterna, como as sindicais, recreativas, culturais e educativas.
Porém, pela própria repressão desencadeada e pelo seu papel nesses movimentos, esse
nível de atuação não se concretizou, as iniciativas especificamente políticas tiveram que
se diluir nas de massas e majoritariamente econômicas, que foram incrementadas,
acreditando estarem próximos à revolução almejada, gastando muitos de seus esforços
militantes nessa empreitada já que alicerçavam muito do próprio movimento operário.
Assim, após a Primeira Guerra Mundial, embora a cultura política anarquista da cidade
tendia para o dualismo organizacional, na prática e pelo próprio encaminhamento do
anarquismo na cidade, se efetivava o organizacionismo que visava somente a
organização de massas com base na estratégia do sindicalismo revolucionário.
Não obstante, para resguardar alguns aspectos ideológicos do anarquismo, os
ideários revolucionários internacionalistas também eram usados dando densidade ao
movimento operário local embora eventos e grupos não anarquistas eram também
instrumentalizados. A Revolução Russa, nesse último caso, parecia ser um exemplo
excelente provindo da própria classe trabalhadora a ser seguido e, por isso, era
162
instrumentalizado como bagagem militante para inflamar as reivindicações e
paralisações locais. A partir da tradução desse evento em um contexto de intensa
repressão após a onde grevista de 1917, foi necessário, para os anarquistas, além de
sustentarem boa parte do movimento sindical na cidade criar uma coligação política de
variadas redes e grupos revolucionários, de maioria anarquista porém mais flexível aos
socialistas e sindicalistas pragmáticos, através do Partido Comunista de 1919, no intuito
de conservar a própria militância no movimento operário que estava sofrendo ataques
brutais. Mais uma vez, a organização política especificamente anarquista teve que ser
adiada. Essa atitude foi uma via de mão dupla para os anarquistas que após sua
desvinculação do projeto bolchevique teve que lidar com uma organização comunista,
de 1922, que unia essa nova orientação revolucionária, poderosa em influência
internacional - pela própria expansão de sua ideologia – e local, uma vez que também
foi construída também a partir da própria tradição organizadora do anarquismo, este
último que se desgastou para tentar sustentar o movimento operário. No fim da segunda
década, os libertários tiveram que disputar espaço novamente nos espaços sindicais e
lidar com os novos movimentos sociais e políticos sem uma organização política
concreta, ao contrário dos comunistas.
Tentar construir uma força operária e uma política anarquista totalmente adaptada
às novas transformações do país e manter seu internacionalismo seria uma meta bastante
difícil para os anarquistas que, daquele momento em em diante, teriam que enfrentar as
bruscas transformações do Estado e do nacionalismo que marcariam profundamente a
divisão da classe operária e a consequente desorientação da resistência contra a
expansão do capitalismo, fenômeno igualmente global.432 Nesse caso, as conexões,
embates e transformações do anarquismo e dos movimentos socialistas frente ao
nacionalismo não foram completamente estudados e merecem um exame aprofundado
numa próxima oportunidade.
432 Para examinar as relações entre movimento operário, socialismos e nacionalismo ver LINDEN, Marcel van der. Op.cit., 2013. p.289-318.
163
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Operária Brasileira
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- Boletim do Terceiro Congresso Operário de São Paulo (08-1920)
- Guerra Sociale (1915-1917)
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Edgard Leuenroth. Cedem-Unesp. Sem data.
Neno Vasco. Cedem-Unesp. Sem data
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A Plebe. 09/06/1917
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