katsura

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As várias vidas de Katsura Kyoto é uma cidade fascinante por que justamente se esconde. O costume de fugir do dia a dia e encontrar refúgio na cerimônia do chá é milenar. Não se trata apenas de um encontro fortuito para uma conversa passageira, nestas reuniões nobres e samurais deveriam abandonar suas espadas e encontrar um ambiente minuciosamente preparado para o deleite estético: utensílios de valor histórico cuidadosamente são escolhidos em aposentos destinados à contemplação da natureza. A espiritualidade japonesa se tece nesta relação com a natureza, seja mediante manifestações dos espíritos ou kamis do xintoísmo, seja na busca de uma comunhão budista entre indivíduo e universo. Para tanto, os monges muitas vezes buscavam, assim como os nobres, refugio nas montanhas. 1

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As várias vidas de Katsura

Kyoto é uma cidade fascinante por que justamente se esconde. O costume de fugir do dia a dia e encontrar refúgio na cerimônia do chá é milenar. Não se trata apenas de um encontro fortuito para uma conversa passageira, nestas reuniões nobres e samurais deveriam abandonar suas espadas e encontrar um ambiente minuciosamente preparado para o deleite estético: utensílios de valor histórico cuidadosamente são escolhidos em aposentos destinados à contemplação da natureza.

A espiritualidade japonesa se tece nesta relação com a natureza, seja mediante manifestações dos espíritos ou kamis do xintoísmo, seja na busca de uma comunhão budista entre indivíduo e universo. Para tanto, os monges muitas vezes buscavam, assim como os nobres, refugio nas montanhas.

A vila Katsura, construída no começo do século XVII está situada em um lugar privilegiado para se a admirar a lua, costume comum entre os nobres do período Edo. Aqui pode se testemunhar o ápice do refinamento estético japonês. Os pavilhões são meticulosamente construídos no intuito de se estabelecer uma relação de epifania com as

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estações. As portas e fusumas (painéis) são modulados a fim de propiciar uma visão privilegiada para exterior. Tudo é feito basicamente com madeira, tatames,papel de arroz, casca de arvore (para o telhado) e um revestimento de gesso ou terra batida para as paredes.

Seu aspecto moderno salta imediatamente aos olhos, principalmente se pensarmos que neste momento predominava o Barroco e o Rococó na Europa. A vila Katsura logo se tornou uma espécie de paradigma para todo o modernismo: Bruno Taut, Le Corbusier e Gropius, que chegou a visitar a vila em 1954, exaltaram sua elegância e austeridade. Seu principio de construção por módulos, espaços abertos com paredes móveis e amplas “janelas” de fato se tornaram básicos para a arquitetura modernista.

Um lugar tão belo não requer pinturas, as existentes nos fusumas são utilizadas para pontuar o espaço. Se devemos celebrar a comunhão com a natureza é preciso diminuir ao máximo os artifícios alegóricos. Não há espaço para a virtualidade da perspectiva renascentista, com sua concepção metafisica inerente. No Japão a imagem aparecia como um elemento a mais para celebrar a passagem do

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tempo, estava e atrelada a diversos rituais como a cerimônia do chá, ao emaki – pintura em rolo -que será colocado ocasionalmente para celebrar a estação da vez. Neste caso, pode ser tanto uma imagem ou um poema com bela caligrafia.

Se compararmos com os célebres afrescos romanos da casa de Lívia, 30-20 A.C podemos de imediato notar uma relação totalmente diversa da arquitetura com a imagem. Os afrescos, que resistiram a força do tempo estão justamente nos recintos mais fechados, enclausurados, num espaço sem janelas. Se a relação com o mundo exterior é bloqueada, cabe ao pintor criar uma paisagem ideal, um espaço virtual, para o olhar. Justamente o contrário acontece em Katsura, onde arquitetura e natureza são continuamente moldados em perfeita harmonia, mesmo que isto signifique redesenhar a paisagem a cada instante.

A presença de um arbusto situada ao final de uma viela é significativa, pois lá está justamente para impossibilitar uma visão completa da paisagem, que deve ser desvendada pouco a pouco. À medida em que se caminha o observador vislumbra paisagens sempre mutantes, pois a folhagem, carpas no lago, musgo, pedras se transformam a cada

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instante. Talvez por este motivo é que os japoneses dão tamanha importância para a ponte, que está situada sempre como elo entre duas geografias distintas. Não é a toa que Monet vai se inspirar nestas paisagens para combater o paradigma italiano da veduta ideal, que parte do principio que vemos sempre a mesma natureza a partir de um só golpe de vista.

Se a vila Katsura de fato foi um paradigma para o modernismo, este por sua vez, na sua versão comercial, especulativa, em muito contribuiu para aumentar o contraste urbano na cidade. Após sairmos da vila e nos depararmos de volta a cidade vemos com desgosto como Kyoto pode ser tão bela e tão feia ao mesmo tempo: anomalias arquitetônicas invadem o centro da cidade, seja na forma de conjuntos habitacionais revestidos de um azulejo cinzento, seja pelo novo-riquismo que resultou em prédios horrendos na avenida Oike. Não temos a beleza mórbida de Veneza, que por ser tão bela por inteiro parece estar sob ameaça do mundo externo. Em Kyoto a ameaça vem de dentro, corroída pela especulação, rios, parques, palácios, vilas, templos são verdadeiros oásis. Tanto o templo dourado, solar, como o templo prateado, com sua paisagem lunar, tem no cume de seus telhados

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uma fênix que viaja para sempre no tempo e no espaço, resistindo à incêndios, terremotos, bem como a recente especulação imobiliária.

MARCO GIANNOTTI, ESPECIAL PARA O ESTADO / KYOTO,

MARCO GIANNOTTI É PROFESSOR DE PINTURA NA ESCOLA DE COMUNICAÇÃO, E ARTES DA USP, PROFESSOR VISITANTE DA KYOTO UNIVERSITY OF FOREIGN STUDIES DURANTE O PERÍODO LETIVO DE 2011-2012

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