kant observações sobre o sentimento do belo e do sublime

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 Observações sobre o sentimento do belo e do sublime; Ensaio sobre as doenças mentais Emmanuel Kant Estudo Filosofia Este livro foi digitalizado para uso exclusivo de deficientes visuais. Seu uso e reprodução são proibidos para pessoas dotadas de visão normal. KANT OBSERVAÇOES SOBRE O SENTIMENTO DO BELO E DO SUBLIME ENSAIO SOBRE AS DOENÇAS MENTA IS PAPIRUS EMMANUEL KANT, nascido e f alecido em Kõnigsberg, Alema nha (1724-1804). Praticamen te nunca deixou sua cidade natal, onde ensinou na universidade. Teve um ritmo de vida com absoluta regularidade, afligida somente em duas oportunidades: pela publicação do CONTRATO SOCIAL (1762) e pelo anúncio da Revolução Francesa. OBRA FILOSóFICA 1770 - Dissertação sobre a forma e os princípios de mundo sensível e inteligível;

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Observaes sobre o sentimento do belo e do sublime; Ensaio sobre as doenas mentais Emmanuel Kant Estudo Filosofia Este livro foi digitalizado para uso exclusivo de deficientes visuais. Seu uso e reproduo so proibidos para pessoas dotadas de viso normal. KANT

OBSERVAOES SOBRE O SENTIMENTO DO BELO E DO SUBLIME ENSAIO SOBRE AS DOENAS MENTA ISPAPIRUS EMMANUEL KANT, nascido e falecido em Knigsberg, Alemanha (1724-1804). Praticamente nunca deixou sua cidade

natal, onde ensinou na universidade. Teve um ritmo de vida com absoluta regularidade, afligida somente em duas oportunidades: pela publicao do CONTRATO SOCIAL (1762) e pelo anncio da Revoluo Francesa.OBRA FILOSFICA

1770 - Dissertao sobre a forma e os princpios de mundo sensvel e inteligvel;

1781 -Crtica da razo pura; 1783 - Prolegmenos para toda metafsica futura que se apresenta como cincia; 1785 - Fundamentos da metafisica da moral; 1788 - Crtica da razo prtica; 1793 - A religio dentro dos limites da mesma razo; 1797 - A metafisica da moral; 1798 - Antropologia do ponto de vista pragmtico. Autor de inmeros trabalhos sobre cincia, fsica, matemtica, etc.

Outros ttulos da PAPIRUS: A Dobra - Leibniz e o barroco Gilles Deleuze Aulas de filosofia Simone Weil Heidegger ru - Ensaios sobre a periculosidade da filosofia Zeijko Loparic Lies sobre a analtica do sublime Jean-Franois Lyotard Limited lnc. Jacques Derrida Merleau-Ponty na Sorbonne Resumo de cursos Psicossociologia e Filosofia Maurice Merleau-Ponty O eu e seu crebro Karl R. Popper John C. Eccies Primado da percepo e suas conseqncias filosficas (O) Maurice Merleau-Ponty Si-mesmo como um outro (O) Paul Ricoeur Transparncia do mal (A) Jean Baudriliard - 2~ ed. Solicite catlogo Caixa Postal 736 13001-970 - Campinas - SPN

OBSERVAOES SOBRE O SENTIMENTO DO BELO E DO SUBLIME ENSAIO SOBRE AS DOENAS MENTAIS1 i

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O que pensa um filsofo antes de ter elaborado a filosofia que viria a ter seu nome? As opinies de Kant sobre a loucura, a diversidade de carter, os aspectos estticos da vida moral, a diferena entre sexo e raas, seriam por acaso mais interessantes que de outras pessoas? Nesta obra, a faculdade de desejar no claramente distinguida do sentir do prazer ou da punio. As verdades morais so examinadas do ponto de vista de seu aspecto esttico, de seu carter de beleza ou sublimao.

99 99P A P 1 R U S E 1) 1 T O R A

OBSERVAES SOBRE O SENTIMENTO DO BELO E DO SUBLIMEENSAIO SOBRE AS DOENAS MENTAIS

EMMANUEL KANT

Traduo Vinicius de Figueiredo

OBSERVAES SOBRE O SENTIMENTO DO BELO E DO SUBLIMEENSAIO SOBRE AS DOENAS MENTAIS

htungenber das GefuhIdesSchnen undErhabenen -ber de Krankheiten des Kopfes i de Eminanuel Karn - Vol.11) ; Grficas ei Rotta Gomide ais de Catalogao na Publicao (CIP) Brasileira do Livro, SP, Brasil) iel, 1724-1804 sobre 6 sentimento do belo e do sublime; is doenas mentais 1 Emirianuel Kant; :ius de Figueiredo. SP : Papirus, 1993. ofia 2. Doenas mentais 3. Esttica 1. Tftulo. 11. Ttulo: Ensaio s mentais. CDD- 193 s para catlogo sistemtico: ilosofia alem 193 ,ant : Obras filosficas 193

5 PARA A UNGUA PORTUGUESA:)ne: (0192) 31-3534 e 31-3500 36 - CEP 13001-970 - Campinas ie: (011) 570-2877 - So Paulo - Brasil parcial por qualquer meio de impresso, em forma em lngua portuguesa ou qualquer outro idioma. SUNIRIO INTRODUO ....................................................................................... PRIMEIRA SEO DOS DIFERENTES OBJETOS DO SENTIMENTO DO SUBLIME E DO BELO SEGUNDA SEO DAS QUALIDADES DO SUBLIME E DO BELO NO HOMEM EM GERAL TERCEIRA SEO, DA DIFERENA ENTRE O SUBLIME E O BELO NA RELAO DOS SEXOS ............................................ QUARTA SEO ................................................................ . 25

-47DOS CARACTERES NACIONAIS NA MEDIDA EM QUE RESIDEM NO SENTIMENTO DIFERENCIADO DO SUBLIME E DO BELO ..............................

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ENSAIO SOBRE AS DOENAS MENTAIS ........................................................................

INTRODUO NOTA DA TRADUO Nesta introduo, referimo-nos paginao da primeira edio quer das Observaes sobre o sentimento do belo e do sublime (doravante: Observaes), quer do Ensaio sobre as doenas mentais (doravame Ensaio) ambos reproduzidos in: Beobachtungen ber das Ge .fiihl des Schnen und Erhabenen - Versuch ber die Krankheiten des Kopfs da obra de Emmanuel Kant, volume 11, de 1764, reproduzida em 1977, que utilizamos para traduo. A numerao entre barras no corpo do texto e a italizao de termos em portugus, principalmente na Quarta Seo das Observaes, referem-se, tambm, verso original da obra.1 4 i

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Quando, em 1764, apareceram As observaes sobre o sentimento do belo e do sublime e o Ensaio sobre as doenas mentais, Kant completava quarenta anos. J ento lecionava na Universidade de Knigsberg, cidade onde nasceu e, como costume lembrar, da qual nunca saiu. Por essa poca, j era uma figura marcante para seus alunos, como tambm j dispunha de certo reconhecimento no meio universitrio alemo. O jovem Kant, como os demais estudantes de sua gerao, formou-se em um ambiente que ainda buscava se acomodar diante do impacto causado pela obra de I-eibniz. Desde 1747, data em que publicou um estudo sobre a importncia da noo de fora viva na mecnica, toda sua investigao de juventude nos situa no debate entre, de um lado, as diretrizes leibnizianas, divulgadas na Alemanha por Wolff e Baumgarten, e, de outro, tendncias externas que, oriundas da Frana ou Inglaterra, disputavam a proeminncia no cenrio filosfico europeu. O cartesianismo, mas, sobretudo, o impacto dos Princpios de Newton, exilevado a desconfiar que as contradies aparentemente insolveis da filosofia eram motivadas, na verdade, por questes mal resolvidas de mtodo. Em 1762, num texto com o qual concorre a um prmio da Academia de Cincias de Berlin, afirma que o fim da disputa entre as seitas filosficas depende do estabelecimento de um mtodo slido em metafisica, capaz de agregar a todos, como ocorrera no campo da fsica com o surgimento da cincia experimental de Newton. Tambm em sua correspondncia, o tema comum: aos poucos, Kant vai se dando conta de que os erros que assolam a metafsica so, em certa medida, inevitveis, pois resultavam de um encaminhamento equivocado, a partir do qual os filsofos insistiam em iniciar suas investigaes. Muito embora durante os anos 60 Kant j se volte para a busca de um solo seguro, sobre o qual a metafsica poderia firmar as bases de sua edificao, ser apenas em 1770 que se apresentaro as diretrizes bsicas daquilo que, aps mais outros onze anos de trabalho intensivo, encontraremos formulado na Crtica da razo pura. Qual a importncia das Observaes e do Ensaio sobre a certeza nesse desenvolvimento? Aparentemente, nenhuma. A abordagem antropolgica que caracteriza esses dois textos no parece contribuir em nada para a emancipao progressiva de Kant diante da filosofia moderna, e, particularmente, diante de Leibniz. A forma literria na qual so apresentados, tambm refora sua distncia da 8 i7 1

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preocupaes mais sublimes, o prprio Kant nunca deixou de reconhecer suas dvidas em relao a autores que, decididamente, no se encaixavam no "modo dedutivo de filosofar alemo" (expresso de E. Cassirer). Diz o anedotrio que apenas duas vezes em sua vida adiantou a hora habitual (trs da tarde, para sermos precisos) de seu passeio dirio: uma vez, quando lhe chegou a encomenda do Contrato social, de Rousseau, e outra, quando saiu rua em busca de notcias sobre a Revoluo Francesa. Verdade ou no, o fato que Kant foi, antes de mais nada, um excelente leitor - e no somente de Rousseau, de quem j se afirmou ter sido o nico discpulo no sculo XVIII, como, igualmente, da filosofia inglesa que lhe foi contempornea. No ele o primeiro a confessar ter sido Hume quem o acordou do sono degmtico? Certamente, o "kantismo" no teria sido o que foi sem a familiaridade que Kant possua com as preocupaes de ordem moral, filosfica e epistemolgica que perpassaram todo o sculo XVIII, e que, obviamente, no se reduziam s premissas do debate alemo. Por isso, preciso resistir leitura tradicional que subestima a potencialidade desses dois textos pelo simples fato de que no enunciam, de maneira explcita, questes de uma problemtica que s ir aflorar com clareza para o prprio Kant mais de quinze anos depois da data de suas publicaes. Como primeiro prmio dessa leitura de resistncia, possvel aludir ao fato de que o carter antropolgico que 9

muito cedo, chamaram sua ateno. Dentre eles, veremos, encontra-se a reflexo que o move tanto nas Observaes quanto no Ensaio sobre as doenas mentais. Costumou-se ver na composio heterognea das Observaes um sinal de estilo, sem dvida, mas, igualmente, de leviandade filosfica. O prprio Kant nos avisa, no primeiro pargrafo, que ir privilegiar o olhar do observador em relao ao do filsofo. As quatro sees nas quais se divide o texto versam sobre os mais variados assuntos, reforando a impresso de arbitrariedade em abordlos, o que, naturalmente, no condiz com a preciso analtica que se espera da filosofia. Todavia, uma leitura mais atenta do texto revela certas escolhas conceituais que balizarn as observaes de Kant. Logo de incio, o texto realiza uma clivagern em duas instncias de tudo o que nos apraz: de um lado, o prazer meramente sensvel (por exemplo, quando dizemos que o vinho agradvel); de outro, o que qualificado como sentimento refinadofeines Gefh1. Essa noo central ao longo do livro, pois, reportando ao refinamento os sentimentos do belo e do sublime, Kant os distingue daquilo que diz respeito apenas s sensaes do indviduo, restritas 101

que nos referimos, assim, qualifica-se como um tipo de investigao que se debrua sobre as implicaes sociais contidas nas aes humanas. Lembremo-nos que a sociologia uma inveno do sculo passado; no sculo XVIII, mais de um autor descobriu em categorias estticas o expediente mais apropriado para tematizar as formas de sociabilidade que no apenas impregnavam a experincia cotidiana das sociedades europias, como tambm eram relatadas por todos aqueles que, de uma ou de outra forma, participaram da gigantesca expanso comercial que fincava definitiva mente suas amarras nos cinco continentes do globo. No caso de Kant, e, particularmente, das Observacoes, isso bastante claro: o par sublime-belo se configura nelas como uma espcie de oposio estruturante, que delimita graus de sociabilidade desde a mais absoluta solido (o sublime terrvel, ilustrado pelo sonho de Carazan) completa insero na vida algo frvola dos sales. Por sua vez, essa etnologia dos comportamentos humanos, ainda que Kant procure manter -se fiel a seu estatuto descritivo, no neutra: sublime e belo so, antes de qualquer outra coisa, categorias valorativas, das quais derivam modelos de expectativa e, inversamente, critrios de precauo contra condutas que no coadunem com o que socialmente aceitvel segundo os ndices de aprovao estabelecidos por elas. Eis-nos aqui diante do primeiro elo de interesse entre as Observaes e o contexto mais abrangente da filosofia 11

Essa argumentao tem por premissa o carter eminentemente social do gosto. Por sua vez, com essa inflexo antropolgica sinalizada pelo olhar do observador, a doutrina da moralidade anteriormente elaborada por Kant adquire um novo estatuto. Nas Observaes, Kant aborda o que, j na tratadstica escocesa, fora cunhado com a designao de sentimento moral nioralisches Gefh1. O termo, que traduz o moral sense de Shaftesbury e Francis Hutcheson, empregado primeiramente por Kant no Ensaio sobre a certeza dos princpios da teologia natural e da moral, redigido em 1762, mas publicado apenas no ano seguinte. Apesar de certa continuidade temtica, a diferena de enfoque entre este texto e as Observaes fundamental. Com efeito, em 1762, o sentimento moral evocado como solo dos princpios materiais da idia de obrigao: "faze o bem, evita o mal",Ionge de ser um imperativo vazio, torna-se operante justamente porque o sentimento moral faz cada um de ns capaz de vislumbrar, diante de cada circunstncia particu lar, qual deva ser a ao que se ajusta ao princpio formal da obrigao. Nas Observaes, o sentimento moral , na maior parte das vezes, associado conduta do homem justo, o que j assinala o privilgio da perspectiva antropolgica em relao quela da tica propriamente dita, que considera os homens como seres dotados de razo e de vontade, sem, porm, considerar as diferenas empricas entre eles. Ora, nas Observaes, interessam justamente a 12 qual todos os convidados tossem absolutamente nonestos!) Kant. chega mesmo a afirmar que, para o bem pblico, vantajoso constiturem minoria aqueles que se guiam com base nos princpios da justia, visto freqentemente errarem em suas boas intenes, provocando a conseqncias estarrecedoras. No que Kant tenha se tornado um revisionista de sua prpria doutrina tica, estabelecida em suas diretrizes bsicas em 1762; trata -se to-somente de uma manobra tpica de Kant, pela qual o enfoque sobre algo d lugar a outra abordagem possvel. Desta feita, a doutrina da virtude elaborada em 1762 se v subordinada a uma crtica da cultura - como dissemos, norteada pelas variaes que o sentimento refinado assume na multiplicidade de formas das interaes humanas. A suspenso temporria da perspectiva tica propriamente dita tem, portanto, um nobre motivo: o de favorecer a descrio erriprica de nossas condutas. Essa descrio no imediata, e tem seus pressupostos prprios. Faz-se necessrio, antes de mais nada, aceder a um ponto de vista capaz de captar "o grande quadro de toda natureza humana" (Observaes, A45). Apenas a o observador ganha a imparcialidade diante dos engajamentos terrenos, tornando-se capaz de vislumbrar, na multiplicidade de condutas humanas, o vetor que lhes confere uma unidade francamente positiva. A sentena proferida no quadro desse providencialismo 13

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nas Observaes pela idia de que as prticas que se manifestam na comunidade so capazes de um ajuste interno, que converte as virtualidades negativas do indivduo em benesses coletivas. O carter coercitivo que a expectativa do meio imprime ao indivduo, entretanto, pode ser objeto de um diagnstico bem menos otimista que aquele das Observaes. A grandiosidade de Kant, alis, consiste em ele ter sido capaz de elaborar uma abordagem inversa quela das Observaes num espao de tempo to pequeno como o que as separa do Ensaio sobre as doenas mentais. Nas Observaes, com efeito, o excedente produzido pela sociedade considerado positivamente: antdoto contra a indolncia, o gosto (que representa esse excedente) dinamiza as relaes de troca, assegurando as condies requeridas pelo progresso no Estado moderno. Nessa tica, liberdade e civilidade reforam -se mutuamente, pois a ordem pblica pressupe o polimento das inclinaes que movem os agentes. O sentimento, a, a faculdade pela qual os valores se esta bilizam e se tomam compartilhveis. Sua implicao poltica bvia: na medida em que, por meio do gosto, atua como princpio unificante da comunidade, dispensa quer a coer14 que Rousseau articulou sua radical objeo sociedade? O desenvolvimento das cincias e das artes, desse ponto de vista, apenas aprofunda a desigualdade entre os homens, mal disfarada por um simulacro pblico de virtude, que cabe ao escritor comprometido com a liberdade denunciar. Basta lermos o primeiro pargrafo do Ensaio sobre as doenas mentais para atestarmos ser essa a posio de Kant nesse texto. Assim, aquilo que nas Observaes aparecia como uma cultura orientada para a crtica se converte, no Ensaio sobre as doenas mentais, numa crtica moralista da cultura (a expresso de R. Jauss). Artifcio, convenes, aparencia - todas essas formas inerentes ao domnio social continuam reclamando uma reflexo que ordene suas manifestaes numa economia de motivaes, a partir da qual, agora, Kant conclui por uma avaliao bem menos otimista da natureza social do homem: a sociedade, insinua agora em coro com Rousseau, o lugar da queda. Desse novo ponto de vista, muito distante do que pensavam os escoceses, a natureza opera como categoria central, a permitir um recuo crtico a partir do qual elaborada a denncia das perversidades da sociedade pre sente. Note-se, contudo, que Kant se move inteiramente no quadro inaugurado pelas Observaes. No por acaso, a conceitualizao das perverses mentais inteiramente cli vada pela oposio entre natureza e civilizao. No estado de natureza, o homem encontra-se numa tal aderncia ao 15

es, porem num sentido inverso: caso no ultrapassssemos o plano do que meramente comum aos homens como espcie em favor do que se agrega neles como cultura, sequer haveria matria-prima para a classificao das perverses que freqentemente aderem s condutas humanas. Sob essa exigncia, repousa a mesma oposio vigente nas Observaes entre um tipo elementar de satisfao, inofensivo ("as satisfaes simples da vida", dir o Ensaio), e um prazer refinado que, deslocado para o quadro das doenas mentais, expe o entendimento humano ao risco das alucinaes. Como se v, o refinamento reafirmado como instituio social. Afinal, o que comum aos homens como espcie no assegura o discernimento do que ou no normal, j que a "normalidade" exige uma dupla considerao pela qual o que saudvel (Observaes) ou no (Ensaio sobre a certeza) equivale sempre ao que socialmente aceitvel. No de estranhar, assim, que o Ensaio sobre as doenas mentais erija sua terapia sobre essa solidariedade entre organismo e sociedade. bem verdade que "o que sofre em primeiro lugar o corpo", e que, se algum se tornou orgulhoso, porque "em algum grau j se encontrava perturbado, e no que se perturbou porque era orgulhoso" (Ensaio, A 30). Entretanto, Karit no deixa dvidas de que, em seu entender, a doena s se manifesta socialmente. Em funo disso, o recurso origem biolgica da perverso 16 moral e a abordagem cultural das Observaes e do Ensaio sobre as doenas mentais. Esta apenas enuncia a diferena entre o que correto eticamente e o que til coletivamente. Por volta de 1768, entretanto, quando comea a lecionar cursos de direito natural, Kant desenvolve toda uma abordagem poltico-jurdica, em cujo quadro o par naturezalsociedade, antes central na hermenutica da cultura, adquire um significado absolutamente indito. Com efeito, do ponto de vista jurdico, a natureza se define como privao do direito; do ponto de vista das Observaes e do Ensaio sobre as doenas mentais, presta-se como recurso que permite a Kant investigar os contedos engendrados pela civilizao. Entre esses dois momentos, os resultados so fundamentalmente diferentes. De um lado, a sociedade pensada do ponto de vista legal, conforme o qual pouco importam os valores que guiam nossas prticas cotidianas, visto encontrarem-se agora submetidos ao formalismo que circunscreve nossos direitos e deveres a partir de uma ins tncia simbolizada pelo tribunal, que transcende os indivduos. A lei no se define justamente por valer para todos, sem nenhuma distino? Tanto nas Observaes quanto no Ensaio sobre as doenas mentais, porm, o social objeto de uma investigao que v na civilizao progresso ou retrocesso, tomando por base desse diagnstico apenas a economia dos motivos que regem as interaes no interior da comunidade. A premissa central dessa perspectiva a de que o 17

pusermos o encaminhamento que essas questes suscitaram a Karit no terreno antropolgico para o que, na Crtica da razo pura, costurnou-se interpretar como restrito epistemologia, veremos que, entre esses dois planos, a distncia bem menor do que poderia parecer primeira vista. A uni-los, pode-se evocar um adgio do prprio Kant, quando afirma que o Esclarecimento a poca da crtica.1

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DO SENTImENTO DO SUBLIME E DO BELO

As diferentes sensaes de contentamento ou desgosto repousam menos sobre a qualidade das coisas externas, que as suscitam, do que sobre o sentimento', prprio a cada homem, de ser por elas sensibilizado com prazer ou desprazer. Provm da as satisfaes de alguns homens por aquilo de que outros tm asco, a paixo amorosa, que freqentemente um enigma para todos, ou mesmo a intensa repugnncia que algum sente por algo de todo indiferente a outra pessoa. O campo de observaes dessas particularidades da natureza 121 humana estende-se a perder de vista, e oculta ainda descobertas to agradveis quanto instrutivas. Aqui lano meu olhar, mais de observador do que de filsofo, apenas sobre alguns pontos que parecem apresentar-se como relevantes nessa rea. Visto que um homem s se sente feliz na medida em que satisfaz uma inclinao, certamente no pouca1. Sentimento (GeOti) distingue-se de sensao (Empfindung). Empfindung, tambra traduzida por sentimento, ser, numa ou noutra passagem, vertida por sensao, quando o contexto for mais afim s premissas sensualistas de Hutcheson, vez por outra sugeridas por Kant.(NT)

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coisa o sentimento que o habilita a gozar de grandes satisfaes, sem para isso carecer de talentos excepcionais. Gente corpulenta, para quem o autor mais espirituoso o prprio cozinheiro e para quem as obras do gosto refinado 1 encontram-se na prpria adega, ter, nas obscenidades comuns e em um gracejo inconveniente, alegria to intensa quanto aquela da qual tanto se orgulham pessoas de nobre sentimento. Um homem acomodado, que ama a leitura dos livros porque o induz ao sono; o negociante, a quem todas as satisfaes parecem triviais, exceto aquela de que goza um homem astuto quando calcula os seus ganhos; aquele que ama o outro sexo/31 apenas enquanto o toma entre as coisas de que se pode desfrutar; o amante da caa, cujas presas sejam moscas, como as de Dorniciano 3~ ou animais selvagens, como de A... : todos estes tm um sentimento que, sua maneira, os torna aptos a gozar de satisfaes, sem que invejem as de outros ou sequer faam idia delas. Aqui, porm, no dispensarei nenhuma ateno a isso. H ainda um sentimento de espcie mais refinada, assim qualificado, quer porque se pode desfrut-lo mais demoradamente sem saciedade e extenuao, quer porque, por assim dizer, pressupe uma sensibilidade 4 da alma, que igualmente a torna apta a movimentos virtuosos, quer porque indica talentos e qualidades do entendimento, como que em oposio queles primeiros sentimentos, que podem ocorrer mesmo na completa ausncia de pensamento. O que2. Gosto refinado, Jeiner Geschmack: segundo A. Baeurrfler (Das Irrationalittsproblem in der sthetik und Logik des 1& Jahi,hunderts bis zur Kritik der Urteilskraft, 1923, p. 260), "fein" a traduo alem do francs "dlicat", cuja matriz latina -gustus (sapor) delicatus- fora introduzida na Alemanha por Bautrigarten. A opo refinado, enn lugar de delicado, deve-se ao fato de Kant, pensando no aperfeioamento da

sociabilidade, atribuir ao sentimerito urna funo teleolgica que ressoa na idia de refinamento. (NT)3. Domiciano, 122 imperador de RornaffiT) 4. Reizbark-eit, aqui traduzida por sensibilidade, foi primeiramente empregada por A. v. Haller (Elementa Physiologiae), cuja fisiologia tomava como as duas caraciersticas principais da animalidade a irritabilidade (Reizbarkeit) e a sensibilidade (Ffflbarkeit) (apud H. Vaihinger, Cominentar zu Kants Kritik der reinen Vernunft, I, p. 175). No contexto das Observaes, Reiz ope-se em geral a R~g, comoo, como o belo

ope-se ao sublime. Em vista do carter moral e antropolgico que Reiz e suas variantes assumem aqui, ainda, por encanto.(NT)

20por vezes o traduzimos mais livremente por estmulo, ou

desejo considerar um aspecto desse sentimento. Excluo aqui, todavia, a inclinao que se liga a vises elevadas do entendimento, e o enlevo de que um Kepler era capaz, o qual, pelo que nos relata Bayle, no trocaria nenhuma de suas descobertas por um principado. Esse sentimento por demais refinado para fazer parte do/41 presente projeto, que se restringir quela espcie que mesmo as almas mais comuns so capazes de sentir. O sentimento refinado, que ora queremos considerar, sobretudo de dupla espcie: o sentimento do sublime e do belo. A comoo produzida por ambos agradvel, mas segundo maneiras bem diferentes. A vista de uma cordilheira, cujos cumes nevados se elevam acima das nuvens, a descrio de uma tempestade furiosa ou a caracterizao do inferno, em Milton, provocam satisfao, porm com assombro; em contrapartida, a vista de um prado florido, vales com regatos sinuosos, com rebanhos pastando, a descrio do Elsio, ou o que conta Homero do cinturo de Vnus, tambm despertam uma sensao agradvel, que porm alegre e jovial. Assim, para que aquela primeira impresso possa se produzir em ns com a devida intensi dade, precisamos ter um sentimento do sublime; e, para bem desfrutar corretamente da ltima, de um sentimento do belo. Grandes carvalhos e sombras isoladas num bosque sagrado so sublimes; tapetes de flores, pequenas cercas de arbusto e rvores talhadas 151 em figura so belos. A noite sublime, o dia, belo. Na calma quietude de uma noite de vero, quando a luz trmula das estrelas rompe a escurido da noite que abriga uma lua solitria, almas que possuem um sentimento do sublime sero pouco a pouco despertadas para o mais alto sentimento de amizade, de desprezo ao mundo, de eternidade. O dia resplandecente infunde um fervor ativo e um sentimento de jovialidade. O sublime comove [rhrt], o belo estimula [reiztl. O rosto de um homem que experimenta integralmente o sentimento do sublime srio, por vezes rgido e perplexo. Em contrapartida, a intensa sensao do belo anuncia-se por uma irradiante 21

satisfao nos olhos, por traos sorridentes e, freqentemente, por uma perceptvel jovialidade. O sublime, por sua vez, possui outro feitio. Seu sentimento por vezes acompanhado de certo assombro ou tambm de melancolia, em alguns casos apenas de uma calma admirao e, noutros, de uma beleza que atinge uma dimenso sublime. O primeiro deles denomino sublime 161 terrvel, o segundo, nobre, e o terceiro, magnfico. A solido profunda sublime, mas de maneira terrvel 1. Da as vastas 171 extenses desertas, como o colossal deserto de Chamo, na Tartria, propicia rem sempre a ocasio de povo-las de sombras medonhas, duendes e fantasmas. 18/ necessrio ao sublime ser sempre grande, o belo tambm pode ser pequeno. O sublime precisa ser simples [einfdltig], o belo pode ser adornado e amaneirado. Uma altura elevada to sublime quanto uma profundaS. Quero dar apenas um exemplo do nobre assombro que a descrio de uma completa solido pode inspirar, e, com esse fim, cito alguns passos do sonho de Carazan, do Magazin de Bremem, IV, p. 539 e ss. medida que suas riquezas aumentavam, esse rico avaro fechava o corao compaixo e ao amor. Todavia, quanto mais esfriava nele o amor pelos homens, maior a assiduidade de suas oraes e prticas religiosas. Aps essa confisso, ele assim prosseguiti: Numa noite, quando fazia minhas contas e calculava os benefcios de meu negcio, adormeci. Vi ento o anjo da morte aproximar -se de mim como um turbilho; e, antes que pudesse evitar, golpeou-me terrivelmente. Fiquei petrificado to logo percebi que minha sorte estava para sempre lanada, e que a todo o bem que praticara nada mais poderia ser acrescido, e que, de todo mal que perpetrara, nada poderia ser subtrado. Fui levado diante do trono daquele que habita o terceiro cu. Assim me falou o brilho, que ardia diante de mim: Carazan, teu culto a Deus abjeto. Fechaste 171 o corao ao amor pelos homens e defendeste teus tesouros com mo de ferro. Viveste somente para ti mesmo e, por isso, devers tambm na eternidade vindoura viver s, privado de toda comunidade com a Criao. Nesse instante, fui arrebatado por uma fora invisvel e transportado pelo edifcio reluzente da Criao. Logo deixei inumerveis mundos s minhas costas. Quando me aproximei do limite ltimo da natureza, percebi que as sombras do vazio ilimitado precipitavam-se no abismo que havia diante de mim. Um reino medonho de eternosilncio, solido e trevas. Esse espetculo infundiu enimintuinterror inexprimvel. Pouco a pouco, ia perdendo de vista as ltimas estrelas, e, finalmente, o ltimo vestgio faiscante de luz extinguiu -se na mais absoluta escurido. O medo desesperado da morte aumentava a cada momento, como a cada momento multiplicava a distncia do ltimo mundo habitado. Com uma intolervel angstia no corao, pensava que, se por cem milhes de anos me levassem para alm das fronteiras de todo o universo, teria ainda e para sempre meu olhar mergulhado no abismo imensurvei das trevas, sem auxilio 181 nem esperana de regresso. Nesse atordoamento levei a mo com tal veemncia aos objetos da realidade, que despertei. Ento aprendi a respeitar os homens; pois, naquele deserto terrvel, mesmo o mais nfimo deles, ao qual eu soberbamente fechara a porta, teria sido de longe prefervel a todos os tesouros de Golconda.(NA)

22 depresso, s que a esta acompanha uma sensao de assombro, quela de admirao; por esse motivo a primeira sensao pode ser a do sublime terrvel, a segunda, do sublime nobre. Como nos reporta Hasselquist 1, a vista de uma pirmide egpcia comove muito mais que qualquer descrio que dela possamos imaginar, porm sua construo simples e nobre. A igreja de So Pedro, em Roma, magnfica. Nesse projeto, grande e simples, a beleza - o ouro, os mosaicos etc - to profusa que o sentimento do sublime a atua no limite, /91 e o objeto denominado magnfico. Um arsenal deve ser nobre e simples, um palcio residencial magnfico, e o de vero, belo e amaneirado. Uma longa durao sublime. Caso pertena a um tempo passado, nobre; antevista num futuro imprevisvel, possuir em si qualquer coisa de terrvel. Uma construao remanescente da antiguidade remota digna de venerao. A descrio de Haller 1 sobre a eternidade vindoura infunde um doce assombro, a da eternidade passada uma inflexvel admirao.6. Friedrch Hasselquist, Reise nach Palffstina in denJahren 1749-1752, Rostock, 1762. (NT) 7. Albrecht von Hafier (1708-1777), mdico suo que teve suas poesias publicadas em 1732.(N-n r

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SEGUNDA SEO DAS QUALIDADES DO SUBLINIE E DO BELO NO HOMEM EM GERAL

O entendimento sublime, o engenho [ Witz] belo. A ousadia sublime e elevada; a astcia, pequena, porm bela. Cautela, disse Cromwell, virtude de burgornestre. Sinceridade e probidade so simples e nobres; gracejo e adulao amvel, delicados e belos. Gentileza a beleza da virtude. A solicitude desinteressada 1101 nobre, a polidez (poltsse) e a cortesia so belas. Qualidades sublimes infundem alto respeito; as belas, porm, amor. Pessoas, cujo sentimento tende preferencialmente ao belo, s procuram amigos honestos, constantes e srios quando esto necessi tados; para o entretenimento, elegem companhias agradveis, gentis e graciosas. Quando se aprecia demais a algum, torna-se impossvel am-lo. Embora suscite admirao, est por demais acima de ns para que ousemos nos aproximar dele com a intimidade do amor. Aqueles que combinam ambos os sentimentos descobrem que a comoo do sublime mais poderosa que a do belo, s que, sem se alternar com esta ou ser por ela acompanhada, cansa, e no pode ser desfrutada por muito 25

tempo'. Os sentimentos profundos 1111, aos quais por vezes se eleva uma conversao em seleta companhia, devem ser intercalados por gracejos alegres, e as satisfaes jocosas devem formar um belo contraste com o rosto srio e comovido, permitindo que as duas modalidades de sentimento se alternem sem constrangimento. A atnizade possui em si, sobretudo, o trao do sublime, o ainor pelo outro sexo, porm, o trao do belo. Ternura e profundo respeito do a este ltimo certa dignidade e sublimidade, enquanto o gracejo encantador e a intimidade elevam, nesse sentimento, o colorido do belo. Em minha opinio, a tragdia distinguese da coindia principalmente nisto, que na primeira o sentimento suscitado pelo sublime, na segunda pelo belo. Naquela, mostram-se o magnnimo sacrifcio pelo 1121 destino alheio, a audaz resoluo diante do perigo e a irrestrita lealdade. Ali o amor melanclico, terno e muito respeitoso; a desventura de outrem move no ntimo do espectador sentimentos condolentes, e faz seu corao magnnimo bater pela sorte alheia. Ser docemente comovido, sentindo a dignidade de sua prpria natureza. J a comdia representa intrigas sutis, confuses bizarras e tipos engenhosos que sabem delas se desvencilhar, tolos que se deixam burlar, situaes divertidas e caracteres risveis. O amor, aqui, menos triste; jovial e confiante. Porm, tanto neste quanto noutros casos, o nobre e o belo podem, num certo grau, encontrar-se unidos. Mesmo o vcio e as fraquezas morais freqentemente implicam alguns traos do sublime ou do belo, ao menos na maneira em que se apresentam a nosso sentimento sensvel, sem passarem pelo crivo da razo. A clera de um homem temvel, como a de Aquiles na llada, 8. As sensaes do sublime intensificam as foras da alma e, por isso, a esgotam mais cedo. Poderemos ler seguidamente por mais tempo um poema pastoral do que o Parao Perdido, de Milton, e de Ia Bruyre por mais tempo do que Yotitig. Contudo, parece-me um equvocoqueeste ltimo, comopoeta moral,1111 persevere monotonamente no sublime, pois a fora sugestiva s pode ser renovada por meio do contraste com passos mais suaves. No belo, nada cansa mais do que o artifcio trabalhoso que se deixa perceber. O desejo de interessar [reizen] toma-se penoso e experimentado com estorvo. (NA)

26 sublime. De modo geral, o heri de Homero terrivelmente subliine, o de Virglio, ao contrrio, 1131 nobre. A vingana intrpida de uma grande injria possui em si algo elevado, e, por mais que transgrida o que permitido, sua narrativa provoca assombro e satisfao. Segundo o que nos conta Hanway9. o x Nadir, defendendo-se desesperadamente de conspiradores em sua tenda durante a noite, depois de ferido, gritou: Piedade! Meu desejo perdoarvos a todos! E nisto, erguendo o sabre, um dentre eles respondeu: Tu no inostraste nenhuma piedade, e tanipouco inerece algunia. A resoluta temeridade demasiado perigosa num pcaro e, todavia, sua narrativa comovente; e, mesmo quando este arrastado a uma morte ignbil, se v, de certa forma, enobrecido por ela, visto afront-la com brio e desprezo. Por outro lado, um plano inventado com astcia, mesmo se tem em vista uma patifaria, possui em si algo sutil e faz rir. A inclinao ao cortejo (coquetismo), em sua acepo mais fina, isto , o desejo de mostrar -se simptico e agradar, talvez condenvel numa pessoa demasiadamente dcil 1141, porm certamente bela e normalmente prefervel compostura respeitosa e sria. O aspecto de pessoas que agradam pela aparncia exterior pertence ora a uma, ora a outra espcie de senti mento. Uma estatura elevada conquista considerao e respeito, a pequena, mais intimidade. A cor castanha e os olhos escuros aparentam-se mais ao sublime, os olhos azuis e a cor clara, ao belo. A uma idade algo avanada convm melhor as caractersticas do sublime; juventude, porm, as do belo. O mesmo se aplica diferena de condio, e, em todas essas relaes mencionadas, preciso que as vestimentas tambm correspondani aos diferentes sentimen tos. Pessoas grandes precisam ater-se simplicidade ou, no mximo, solenidade nos trajes; pessoas pequenas podem se vestir de modo enfeitado e adornado. Ao idoso convm cores sbrias e unifonnidade do traje; a juventude brilha9. Jonas Hanway (1712-1786) publicou relatos de suas viagens Rssia e Prsia, e uma biografia do rei persa Nadir Chah, em 1754.

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em peas de vesturio claras e vivas. Entre as posies sociais de igual riqueza e nvel, o eclesistico aquele que deve apresentar a maior simplicidade, o homem pblico a maior suntuosidade 1151. O chichisbu poder se enfeitar como quiser. Tambm nas circunstncias exteriores da fortuna h algo que, ao menos na presuno dos homens, pertence a esses sentimentos. Diante do nascimento e do ttulo, os homens se inclinam comumente ao respeito. Riqueza, ainda que sem mrito, estimada mesmo por aqueles que no se interessam diretamente por ela, possivelmente porque associam sua representao projetos de grandes aes, que poderiam ser realizados por meio dela. Ocasionalmente, esse respeito recai sobre com velhacos abastados, que jamais realizaro tais aes e que tampouco possuem alguma idia do nobre sentimento unicamente capaz de tornar estimvel tal riqueza. O que piora o mal da pobreza o menosprezo, que no pode ser vencido - ao menos aos olhos da maioria - nem mesmo atravs do mrito, seno quando a condio social e o ttulo servem para enganar esse rude sentimento, iludindo -o, em parte, para a vantagem do pobre. Na natureza humana, jamais se encontram qualidades louvveis sem que, ao mesmo tempo, suas anomalias nos conduzam, atravs de infinitas variaes, at 116/ a mais manifesta imperfeio. A qualidade do sublime terrvel, quando inteiramente inatural, extravagante 10. As coisas no naturais, na medida em que nelas se presume o sublime, embora encontrado em pouca ou nenhuma escala, so caricaturas. Quem ama o extravagante e nele cr, um fantasioso; a inclinao caricatura constitui o excntrico. Por outro lado, o sentimento do belo degenera, se lhe falta inteiramente nobreza, e ento o chamamos trivial. Um indivduo com essa qualidade, quando jovem, chama-se simplrio; se de meia-idade, passar por umjanota. Visto ser o sublime indispensvel idade avanada, um velho janota a cria10. Na medida em que a sublimidade ou a beleza ultrapassam a mdia conhecida, costume cham-las romanescas [romanhaffi.~)

28 tura mais desprezvel na natureza, assim como um jovem excntrico a mais antiptica e insuportvel. Gracejo e viva cidade pertencem ao sentimento do belo. Todavia, pode a transparecer entendimento bastante e, nessa medida, podem ser mais ou menos aparentados 1171 ao sublime. Aquele em cuja vivacidade no se nota essa combinao, tagarela. O tagarela constante um estpido. Nota-se facilmente que mesmo pessoas espertas vez por outra tagarelam, requerendo-se no pouco esprito para demover momentaneamente o entendimento de seu posto, sem se deixar enganar. Aquele, cuja fala ou aes no agradam nem comovem, um maante. O maante, quando se ocupa em obter ambos os efeitos, um insi)gido ". O inspido, quando cheio de si, um tolo. Atravs de exemplos, tornarei mais compreensvel /181 essa estranha compilao das fraquezas humanas. Afinal, quem carece do cinzel de Hogarth precisa substituir, pela descrio, o que incapaz de exprimir com o desenho. Arriscar -se temerariamente pelos nossos direitos, pelos da ptria, pelos nossos amigos, sublime. As cruzadas, a antiga arte da cavalaria, eram extravagantes; os duelos, msero resqucio daquele mundo a partir de uma inverso no conceito de honra, so caricaturas. Distanciar-se melancolicamente do rumor do mundo, em virtude de um bem fundado tdio, nobre. A solitria devoo dos antigos eremitas era extravagante. Quiosques e claustros para aprisionar santos vivos so caricaturas. Dominar as paixes por meio de princpios sublime. Mortificaes, votos e11. ~eschmacAl, literalmente: "privado-de-gosto". Na Lgica (A 83), publicada por Jaesche em 1800, Kant afirma que algum que insiste em sustentar um absurdo contra todas as tentativas de persuadi -lo um abgeschpjzack-t, um inspido. O insipido, acrescenta, se mostra indigno (unwrdig, termo que possui uma conotao moral importante para Kant) de toda e qualquer ateno.(NT) 12. Nota-se com facilidade que essa honrada sociedade divde-se em duas lojas, a dos cismticos e a dos janotas. Um janota instrudo ser discretamente chamado de pedante. Caso tome o ar arrogante da sapincia, como osDunse de antigamente e de hoje, lhe cair bem o gorro e o guizo. No grande mundo, encontra-se com maior freqncia a classe dos janotas. , talvez, melhor que a dos primeiros. H muito que ganhar e se divertir com eles. Nessa caricatura, cada um faz a imitao do outro, golpeando com a cabea vazia aquela de seu confrade.(NA)

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muitas outras viriucies monasiicas sao caricaruras. ussadas, madeira sacra e todas as peas desse tipo, sem exceo dos excrementos sagrados do grande Lama do Tibete, so caricaturas. Entre as obras do engenho e do sentimento refinado, as histrias picas de Virglio e Klopstock incorrem no nobre, as de Homero e Milton no extravagante. As metamorfoses de Ovdio so caricaturas, os contos de fada da insensatez francesa, 1191 as caricaturas mais infelizes que algum j forjou. Os poemas anacrenticos geralmente esto muito prximos do trivial. As obras do entendimento e da perspiccia, na medida em que contm algo para o sentimento, tambm participam das mencionadas diferenas. A representao matemtica da imensurvel grandeza do universo, as consideraes da metafsica sobre a eternidade, a providncia, a imortalidade da nossa alma, todas contm uma certa sublimidade e dignidade. Em contrapartida, a filosofia tambm se v desfigurada em razo de sutilezas vazias, e a aparncia de solidez que as quatro figuras do silogismo apresentam no impede que meream ser contadas entre os exerccios caricatos da escola. Entre as qualidades morais, apenas a verdadeira virtude sublime. Todavia, h boas qualidades morais que so louvveis e belas, e, na medida em que se harmonizam com a virtude, so igualmente vistas como nobres, embora a rigor no possam ser includas no carter virtuoso [tugendhafte Gesinnung]. A esse respeito, o juzo sutil e complexo. Certamente no se pode denominar virtuosa a disposio de nimo 1201 que a fonte de aes com as quais a virtude poderia coincidir apenas com base num princpio que ocasionalmente concorda com elas, embora por sua natureza tambm possa freqentemente contradiz-la em suas regras universais. Uma certa ternura, que se v facilmente tomada por um caloroso sentimento de compaixo, bela e louvvel, pois revela uma benvola participao no destino de outros homens, qual tambm levam os princpios da vir30 tude. S que essa compaIXa0 benigna e, toaavia, iraca, e sempre cega. Pois, supondo que esse sentimento vos conduza a ajudar um necessitado com vossos esforos, sereis em dbito com um terceiro, privando-vos, assim, da condio de cumprir o estrito dever da justia. Logo, tal ao evidentemente no pode proceder de nenhum propsito virtuoso, pois um propsito de tal espcie jamais vos incitaria a sacrificar uma obrigao superior quele cego encanto. Se, ao contrrio, a benevolncia universal para com o gnero humano tornou-se em vs o princpio ao qual subordinais todas as /211 vossas aes, o amor pelo necessitado permanece, porm, inserido, de um ponto de vista superior, na verdadeira relao com a integralidade de vosso dever. A benevolncia universal um fundamento de compadecimento com sua desgraa, mas tambm, e ao mesmo tempo, da justia, cujos preceitos vos obrigam a renunciar a essa ao. Portanto, to logo esse sentimento alado a sua devida universalidade, torna -se sublime, porm tambm mais frio. Afinal, no possvel que nosso corao se encha de ternura diante de cada homem, e tampouco que mergulhe em tristeza toda vez que depare com a misria alheia. Fosse este o caso, o virtuoso, continuamente enlariguescido, como Herclito, em lgrimas de compaixo, apesar de toda essa benevolncia, no passaria de um indolente preguioso 11. 1221 A segunda espcie de sentimento benvolo que, embora belo e louvvel, no chega a formar a base de uma verdadeira virtude, a ainabilidade - inclinao a tornarse agradvel atravs da afabilidade, do consentimento aos desejos e da conformao de nossa conduta ao carter dos outros. Esse princpio de uma encantadora sociabilidade 13. Atravs de um exame mais atento se descobre que, por mais amvel que possa ser a qualidade da compaixo, no possui em si a dignidade da verdadeira virtude. Uma criana sofrendo, uma mulher infeliz e afvel enchem-nos o corao de tristeza; ao mesmo tempo, com frieza que recebemos a notcia de uma grande batalha na qual, como facilmente se supe, uma parte 1221 considervel do gnero humano, sem nenhuma culpa, obrigada a sucumbir s mais terrveis desgraas. Muitos prncipes, que por tristeza desviaram o olhar de uma nica pessoa infeliz, ao mesmo tempo, e por motivos geralmente fteis, declararam guerras. No havendo nenhuma proporo nos resultados, como se pode ento dizer que a causa seja o amor universal pela humanidade? (NA)

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belo, e a docilidade de um tal corao e de boa inciole. o que no nenhuma virtude, de modo que, se princpios superiores no lhe impem limites, atenuando-a, todos os vcios podem dela se originar. Essa amabilidade para com aqueles com os quais nos relacionamos , no mais das vezes, uma injustia com um terceiro que se encontra fora desse pequeno crculo; ademais, um homem, se for guiado apenas por esse impulso, poder possuir todos os vcios, 1231 no por uma inclinao imediata, mas por viver agradando aos outros. Graas a esta amvel sociabilidade, tornarse- um mentiroso, um indolente, um brio etc, pois no age conforme as regras que concernem ao bom comportamento, mas segundo uma inclinao, que, embora em si bela, quando seguida sem medida e sem princpios, trivial. A verdadeira virtude, portanto, s pode ser engendrada em princpios que, quanto mais universais, a tornam tanto mais sublime e nobre. Tais princpios no so regras especulativas, mas a conscincia de um sentimento que vive em cada corao humano, e que bem mais vasto do que os fundamentos particulares da compaixo e da amabilidade. Creio resumir tudo o que foi dito quando afirmo que esse sentimento o sentiniento da beleza e da dignidade da natureza huniana. O primeiro um fundamento da benevolncia universal, o segundo do respeito universal, e se num corao humano tal sentimento se apresentasse na mais alta perfeio, esse homem tambm amaria e aprecia ria a si mesmo, mas apenas na medida em que um dentre /241 aqueles aos quais se estende seu vasto e nobre sentimento. Apenas quando se subordina a inclinao particular a essa outra to ampla, que se podem empregar os bons impulsos com equilbrio, atingindo o nobre decoro, que a beleza da virtude. Em vista das fraquezas da natureza humana e do exguo poder que o sentimento moral universal capaz de exercer sobre a maior parte dos coraes humanos, a providncia colocou em ns, como suplementos da virtude, 32 tais instintos de solidariedade, que, se levam alguns a praticar belas aes tambm sem princpios, ao mesmo tempo podem conferir um maior enlevo e um impulso mais forte a outros, que so por eles regidos. Compaixo e condescendncia so fundamentos de belas aes, que talvez fossem inteiramente sufocadas mediante a preponderncia de um egosmo demasiadamente rude; s que, como observamos, no so fundamentos imediatos da virtude, no obstante adquiram seu nome, visto se enobrecerem devido ao parentesco com ela. Posso, por isso, cham-las virtudes de adoo; j a outra, que repousa sobre princpios 1251, virtude genuna [echte Tugend]. As primeiras so belas e atraentes, apenas a ltima sublime e digna de venerao. Denominamos um boni corao a mente regida pelas primeiras sensaes, e bondoso o homem de tal espcie; ao contrrio, ao virtuoso por princpios atribui-se com direito um corao nobre, chamando-o porm de honzem justo. Essas virtudes de adoo possuem, no obstante, grande afinidade com as verdadeiras virtudes, na medida em que contm o sentimento de um prazer imediato com aes boas e benvolas. O bondoso, em razo da sua imediata amabilidade, agir pacfica e atenciosamente convosco, sem outro propsito, e sentir uma sincera condolncia pela misria alheia. Contudo, visto que essa simpatia moral no ainda suficiente para incitar a indolente natureza humana a aes para o bem pblico, a providncia tambm ps em ns um certo sentimento refinado, que nos pe em movimento, ou pode contrabalanar o rude egosmo e a luxria vulgar. Este o sentiniento de honra [Ehre] e sua conseqncia, o pudor. A opinio que outros podem ter de nosso 1261 valor e o juzo deles sobre nossas aes um fundamento-deao de grande importncia, que nos induz a muitos sacrifcios; e aquilo que boa parte dos homens jamais faria, nem por uma disposio que surge imediatamente da bondade, nem por princpios, termina freqentemente acontecendo apenas por causa da aparncia exterior, a uma quimera, que, apesar de muito superficial em si mesma, deveras 33

til, como quando o juizo de outrem determina o valor de ns mesmos e de nossas aes. O que provm desse impulso no de modo algum virtuoso, razo pela qual tambm todo aquele que deseja ser assim considerado oculta cuidadosamente o desejo de honra como fundamento de sua ao. Essa inclinao no est to prxima da virtude genuna quanto a bondade, pois no pode ser despertada pela beleza das aes, mas apenas pelo decoro efmero refletido nos olhos alheios. Visto que o sentimento de honra um sentimento refinado, posso denominar a qualidade que se assemelha virtude, e aquilo que da se origina, cintilamento de virtude [Tugendschimmerj. 1271 Se compararmos os estados de esprito dos homens, na medida em que um desses trs gneros de sentimento neles domina, determinando o carter moral [inoralischer Charakterj, veremos que cada um deles se aparenta muito com uma das divises habituais dos temperamentos 14~ mas de maneira que uma maior falta de sentimento moral deva ser atribuda ao fleumtico. No porque a marca principal do carter desses diferentes estados de esprito dependa dos traos citados - pois de maneira alguma consideramos neste ensaio o sentimento rude, por exemplo, do egosmo, da luxria vulgar etc, apesar de que, nas classificaes que geralmente se fazem dessas inclina es, comparecem em primeiro plano - mas antes porque os refinados sentimentos morais que mencionei acima podem se ligar mais facilmente com um ou outro desses tempera metos e, na maior parte das vezes, a eles se encontram efetivamente ligados. Um ntimo sentimento para a beleza e a dignidade da natureza humana, alm de autodomnio e vigor da mente como fundamento universal ao qual se refiram todas as aes, srio, e no se associa bem com 1281 uma alegria volvel nem tampouco com a inconstncia de um leviano.14. Kant recorre aqui - como tambm parcialmente no Ensaio sobre as doenas mentais - diviso dos quatro temperamentos, corrente na tratadstica psico-fisiolgica renascentista.(NT)

34 Aproxima-se mesmo da melancolia, de um sentimento brando e nobre, na medida em que se funda sobre aquele assombro que sente uma alma limitada, quando, tomada de um grande propsito, v os perigos que tem a vencer, tendo diante dos olhos o difcil, porm grande triunfo da auto-superao. Portanto, a virtude autntica a partir de princpios possui em si algo que parece condizer mormente com a constitui o melanclica da mente, em sentido atenuado. A bondade, que a beleza e a refinada sensibilidade do corao de ser em certos casos comovido com compai xo ou benevolncia, dependendo da ocasio, muito sujeita mudana das circunstncias e, dado que o movimento da alma no repousa sobre um fundamento universal, facilmente assume configuraes cambiantes, conforme os objetos ofeream um ou outro aspecto. E, como tal inclinao se reporta ao belo, aparenta ligar-se o mais naturalmente quela disposio de esprito denominada sangunea, que volvel e dada aos prazeres 1291. Nesse temperamento deveremos buscar as qualidades apreciadas que denominamos virtudes de adoo. O sentimento de honra costumeiramente tomado como um trao da compleio colrica; a descrio de um tal carter nos fornecer a ocasio de investigar as conseqncias morais desse sentimento refinado, que, no mais das vezes, visa apenas brilhar. Um homem jamais inteiramente desprovido de vestgios do sentimento refinado. Porm, uma maior ausncia dele - coisa que, por comparao, denomina-se tambm insensibilidade - ocorre no carter dofleumtico, que se v privado tambm dos mbeis mais grosseiros, como a avidez de dinheiro etc; em todo caso, porm, podemos conceder-lhe esta e outras inclinaes semelhantes, visto de modo algum pertencerem a nosso plano. Seja-nos permitido agora observar mais de perto os sentimentos do sublime e do belo, sobretudo na medida em

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que so morais, luz da classificao dos temperamentos por ns adotada. 1301 Aquele cujo sentimento pertence ao melanclico no assim chamado por privar-se das alegrias da vida, por afligir-se numa sombria melancolia, mas porque seus sentimentos, caso ultrapassem um determinado grau ou tomem uma direo equivocada em funo de certas razes, se reportam mais facilmente quele estado que a outros. Ele possui sobretudo um sentimento do sublime. Mesmo a beleza, da qual sem dvida possui o sentimento, precisa no apenas estimul-lo, mas antes, visto que ao mesmo tempo lhe inspira admirao, tambm deve comov lo. Embora desfrute de contentamentos com mais austeridade, no o faz de maneira inferior, Todas as comoes do sublime possuem em si mais encanto do que as atraes volteantes do belo. Seu bem-estar consistir mais em felicidade que em alegria. Ele constante. Para isso, subordina seus sentimentos a princpios. Aqueles so tanto menos submetidos inconstncia e mudana quanto mais universal o princpio ao qual se subordinam e, portanto, quanto mais abrangente o sentimento elevado, que compreende em si os sentimentos inferiores. Todos os fundamentos particulares /311 das inclinaes encontram-se submetidos a muitas excees e modificaes, caso no sejam derivados de um tal princpio superior. O bem dis posto e amistoso Alceste diz: Amo e aprecio minha mulher, poi bela, carinhosa e esperta. Como, porm, ain -la, se fosse desfigurada pela doena, se tomasse rabujenta com a idade, e, depois de passado o primeiro momento de admirao, no parecesse mais esperta do que qualquer outra? O que pode resultar da inclinao, quando o fundamento j no est presente? Tornai, em contrapartida, o benevolente e firme Adrasto, que diz a si mesmo: Dispensarei amor e respeito a essa pessoa, pois minha mulher. Esse carter nobre e generoso. Seja l como for que se modifiquem os atrativos de ocasio, ela permanece sempre sua mulher. Mantm-se o fundamento nobre, sem que esteja submetido 36 inconstncia das coisas exteriores. Tal a natureza dos princpios em comparao com as disposies que nos exal tam apenas em ocasies especiais, e assim o homem de princpios, oposto quele acidentalmente impulsionado por um movimento bondoso e amoroso. Se, porm, a voz secreta de seu /321 corao sussurar: "Preciso ajudar aquele homem, pois ele sofre; no porque seja meu amigo ou conhecido, ou porque saiba ser ele capaz de retribuir com gratido ao benefcio. No hora de raciocinar e se demorar em perguntas: ele um homem, e o que acontece a um homem tambm me diz respeito". Nesse caso, seu comportamento tem por base o mais elevado fundamento da benevolncia na natureza humana, e sumamente sublime, quer por sua inalterabilidade, quer pela universalidade de sua aplicao. Prossigo com minhas observaes. O homem com uma disposio de nimo melanclica pouco se preocupa com o que outros julgam bom ou verdadeiro, tomando por base apenas a prpria convico. Porque nele os fundamentos-de-ao assumem a natureza de princpios, no fcil inculcar-lhe outros pensamentos. Sua firmeza, ocasionalmente, tambm degenera em teimosia. V a mudana das modas com indiferena, e seu brilho, com desprezo. A amizade sublime e, por isso, prpria para seu sentimen to. Ele pode talvez perder um amigo 133/ volvel; este, porm, no o perde to facilmente. Mesmo a recordao de uma amizade passada lhe digna de venerao. A conver sao bela, o silncio pensativo sublime. Sabe muito bem guardar segredos, seus ou alheios. A sinceridade sublime, e ele odeia mentiras ou fingimento. Possui um elevado sentimento da dignidade da natureza humana. Aprecia a si mesmo, e tem o ser humano como criatura que merece respeito. No tolera nenhuma subservincia abjeta, e seu nobre corao respira a liberdade. Todas as correntes, das douradas que se carregam na corte aos pesados ferros das galeras de escravos, lhe so abominveis. um severo juiz de si prprio e dos outros, e no raramente se v enfastiado do mundo. 37

Quando esse carter degenera, a seriedade tende melancolia, a devoo exaltao, o zelo pela liberdade ao entusiasmo. A ofensa e a injustia incitam-no ao desejo de vingana. Tais ocasies o tomam um homem a ser seria mente temido. Desafia o perigo e despreza 134/ a morte. Graas corrupo de seu sentimento e falta de uma razo serena, recai na extravagncia de inspiraes, aparies, tentaes. Se seu entendimento ainda mais fraco, rebaixa-se ao caricaturesco de sonhos significativos, punies, desgnios maravilhosos. Corre o perigo de se transformar num sonhador, ou num excntrico. Aquele cuja constituio de nimo sangunea possui um sentiniento predominante para o belo. Por isso, suas satisfaes so jocosas e intensas. Quando no est contente, encontra-se insatisfeito, desconhecendo quase inteiramente o contentamento sereno. A diversidade bela, e ele ama a mudana. Busca a alegria em si e em tomo de si, apraz aos outros e um bom companheiro em sociedade. Possui grande simpatia moral [ntoralischer Syiipathie]. A alegria alheia o satisfaz, o sofrimento alheio o enternece. Seu sentimento moral 15 belo, s que sem princpios, e sempre depende imediatamente da impresso momentnea que os objetos produzem sobre ele. amigo de todos os homens, ou, o que quer dizer o mesmo, no amigo de ningum, apesar 1351 de ser bondoso e benevolente. No dissimula. Hoje vos entreter com sua amizade e boas maneiras; amanh, se vos encontrar doentes ou em des graa, sentir verdadeira e honesta condolncia, porm, afastar-se- pouco a pouco, at que as circunstncias tomem outro rumo. No pode jamais ser juiz. Os princpios parecem-lhe geralmente muito severos e se deixa corromper pelas lgrimas. um pssimo santo, jamais verdadeira mente bom nem verdadeiramente ruim. Freqentemente excede e vicioso, mais por complacncia que por inclinao. generoso e benfazejo, porm um mau pagador de15. Sepaimergo mora4 sinfiches GeffiN, traduz em Kant o moral sense, de Sliaftesbury e de Hutcheson.(NT)

38 seus prprios dbitos, pois, embora possuindo forte sentimento para o bem, quase desprovido daquele para a justia. Ningum como ele possui uma impresso to boa de seu prprio corao. Mesmo se no o estimais, sereis constrangidos a am-lo. Na maior queda de seu carter, rebaixa-se ao trivial, tornando-se ftil e pueril. Caso a idade no lhe atenue a vivacidade ou no lhe traga mais entendimento, corre o perigo de se tornar um velho janota. /361 Aquele que se designa sob a qualidade de nimo colrica possui um sentimento predominante para a forma de sublime que se pode denominar inagnifica. Ela , a bem dizer, apenas o cintilamento da sublimidade e uma cor de forte contraste que oculta o contedo interno, talvez apenas ruim ou comum, das coisas ou pessoas e que, mediante a aparncia, engana e comove. Assim como uma construo que, com uma falsa fachada de pedras talhadas, produz uma impresso to nobre como se realmente fosse feita delas, e assim como comijas e pilastras coladas do a idia de firmeza, muito embora tenham pouca consistncia e nada suportem, da mesma maneira resplandecem virtudes impuras, o ouropel da sabedoria e o mrito forjado. O colrico considera o prprio valor e o de suas coisas e aes segundo o decoro ou aparencia sob a qual observado. Em vista da qualidade interna e do fundamentode-ao que o objeto contm em si prprio, frio, e no se aquece pela verdadeira benevolncia, ou tampouco se comove16

/38/ mediante o respeito . Seu comportamento artificial. Precisa saber adotar diversos pontos de vista, a fim de julgar seu decoro segundo a posio diversa do espectador, visto perguntar-se menos pelo que ele do que pelo que parece ser. Por isso, precisa conhecer o efeito e as diferen tes impresses que seu comportamento exterior ir produzir sobre o gosto geral. Visto nessa astuciosa observao necessitar de sangue frio, no podendo permitir que seu corao seja ofuscado pelo amor, compaixo e simpatia, ele igual16. Ele se considera feliz apenas enquanto supe que outros o considerem como tal.(NA)

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mente escapa de muitas tolices e aborrecimentos que afligem o sanguneo, enfeitiado por seu sentimento imediato. Por isso, amide parece mais inteligente do que de fato o . Sua benevolncia cortesia, seu respeito, cerimnia, seu amor, uma forjada adulao. sempre cheio de si mesmo quando faz as vezes de amante ou de amigo, jamais sendo verdadeiramente um /381 ou outro. Busca brilhar por meio da moda; porm, porque nele tudo artificial e produzido, torna-se engomado e deselegante. Muito mais do que o sanguneo, que movido apenas por meio de impresses ocasionais, age segundo princpios; porm no princpios de virtude, mas sim de honra, e no possui o sentimento da beleza ou do valor das aes, mas sim do juzo que o mundo poderia exprimir sobre elas. Dado que para o bem pblico sua conduta - na medida em que no se atenta para a fonte da qual provm - de resto quase idntica da prpria virtude, ele adquire aos olhos do vulgo a mesma considerao que o virtuoso, embora se dissimule cuidadosamente ante olhares mais penetrantes, pois bem sabe que, uma vez descobertos seus mbeis secretos de avidez de honra, ver -se- privado de todo respeito. Por isso, dedicase dissimulao, hipcrita na religio, bajulador em sociedade, e, na poltica, verstil conforme as circunstncias. Aceita, com prazer, tornar-se um escravo dos grandes, a fim de com isso tiranizar os pequenos. A ingenuidade, essa nobre e bela simplicidade 1391 que traz consigo o selo da natureza e no do artifcio, lhe totalmente desconhecida. Por isso, quando seu gosto degenera, seu brilho tornase gritante, isto , assume uma jactncia repugnante. Incorre, ento, tanto no estilo quanto nas maneiras, em galimatias (o exagerado), espcie de caricatura que est para o mag nfico, como o extravagante ou o excntrico est para o sublime solene. Submetido a ofensas, recorre a duelos ou processos, e, nas relaes sociais, a genealogias, precedn cias e ttulos. Enquanto apenas vaidoso, isto , busca honra e se esfora por manter-se em evidncia, ainda pode ser tido como suportvel; porm, se inteiramente despro40 vido de traos e talentos efetivos, revelando-se presunoso, torna-se aquilo pelo que menos desejaria ser tomado, nomeadamente, um estpido. Dado que, na mistura fleuintica, no costumam entrar ingredientes do sublime ou belo num grau singularmente notvel, essa qualidade da mente no pertence ao conjunto de nossas ponderaes. 1401 Qualquer que seja a espcie, bela ou sublime, dos refinados sentimentos at agora mencionados, possuem todavia por destino comum o fato de que parecem sempre corrompidos e disparatados ao juzo daquele que privado de um sentimento afinado com eles. Um homem cuja ati vidade seja tranqila e egosta no possui, por assim dizer, sequer os rgos para experimentar o nobre trao num poema ou numa virtude herica; prefere ler um Robinson a um Grandison ", e tem Cato por um tolo obstinado. Da mesma forma, aquilo que interessante a uns parece trivial a pessoas que se caracterizam por um estado de esprito srio, e a despretensiosa ingenuidade de uma ao pastoral lhes inspida e infantil. E os graus de sensibilidade variam muito mesmo para uma mente no de todo desprovida do sentimento refinado e apropriado, e de se notar que algum acha nobre e honesto aquilo que a outro aparece como grande, mas extravagante. As oportunidades que se apresentam para espreitar o sentimento alheio atravs de questes no-morais /41/ podem nos oferecer a ocasio de concluir tambm, com grande probabilidade, acerca de seu senti mento no que concerne s qualidades superiores da mente, e mesmo s de seu corao. Quem se aborrece com uma bela msica refora bastante a suposio de que tampouco as belezas de estilo e os refinados encantamentos do amor tero algum efeito sobre ele.17. Dartiel Defoe, Robinson Cruso(1719); Samuei Richardson, The history ofsir Charles Grandison (1753-1754), parodiado em alemo por K.A. Musus, Grandison 11 (1760-1762).(NT)

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H um certo esprito de bagatela (esprit des bagatelles) 11 que demonstra uma espcie de sentimento refinado, concemindo, porm, justamente ao oposto do sublime. Um gosto por algo em virtude de sua grande artificialidade e esforo, por versos, que podem ser lidos ao avesso, enigmas, relgios em anis, correntinhas para pulgas etc. Um gosto por tudo o que calculado e ordenado de maneira minuciosa, embora sem qualquer utilidade, como, por exemplo, livros cuidadosamente enfileirados na estante, e uma cabea vazia, que, contemplando-os, se alegra, ou cmodos adornados como receptculos ticos, absolutamente limpos, juntamente com o dono inspito e rabujento que neles habita 142/. Um gosto por tudo o que raro, sobretudo se tem, em si mesmo, um valor nfimo: a lanterna de Epiteto, uma luva do rei Carlos XII. De certo modo, a numismtica entra nessa categoria. Freqentemente tais pessoas encontram-se sob a suspeita de ser, nas cincias, sonhadoras e excntricas; em moral, porm, inteiramente desprovidas de qualquer sentimento do que livremente belo ou nobre. Fazemos injustia uns aos outros, quando nos desembaraamos de algum que no v o valor ou beleza daquilo que nos comove ou atrai, alegando que no o compreende. Casos como este dependem menos do que o entendimento compreende, do que daquilo que o sentimento experimenta. Ao mesmo tempo, as faculdades da alma possuem tal conexo, que freqentemente se toma possvel, a partir da manifestao da sensao, concluir acerca dos talentos intelectuais. Pois estes seriam dados em vo a algum que, tendo muitos mritos intelectuais, no possusse, concomitantemente, um forte sentimento para o nobre ou belo verdadeiro, que devem ser os mbeis /431 na aplicao boa e regular daqueles dons da alma `1.18. Em francs no original.(NT) 19. Nota-se tambm que um certo refinamento no sentimento passa por mrito. Que um homem possa fazer unia boa refeio base de carne ou doces, e que durma incomparavelmente bem, isso interpretado como sinal de um bom estniago, mas no como mrito. Em contrapartida, aquele que sacrifica uma parte de seu repasto audio de uma msica, ou que, diante de uma pintura, capaz de absorver -se numa agradvel distrao, ou que l com prazer coisas engenhosas, mesmo que sejam

42 comum denominar-se til apenas quilo que pode satisfazer nosso rude sentimento, quilo que excede em comes e bebes, no luxo do vesturio e moblia, nos desperdcios em festas contnuas, embora, de minha parte, no veja porque tudo o que diz respeito a meu sentimento mais intenso no seja contado entre as coisas teis. Todavia, se se toma tudo por essa medida, aquele no qual /441 predomina o interesse prprio um homem com o qual no se deve jamais raciocinar acerca do sentimento refinado. Sob esse ponto de vista, uma galinha certamente melhor que um papagaio; uma panela, mais til que uma loua de porcelana; todas as cabeas engenhosas do mundo juntas no valem um campones, e o esforo em descobrir a dis tncia das estrelas fixas pode ser deixado de lado, at que estejamos de acordo quanto melhor maneira de conduzir o arado. Que asneira, porm, meter-se num conflito - no qual impossvel que todos cheguem a sensaes unssonas - porque o sentimento no , de maneira nenhuma, unssono! Contudo, mesmo o homem provido do sentimento mais rude e vulgar poder perceber que aqueles estmulos e proveitos da vida, que parecem ser os mais dispensveis, pedem nossa maior considerao, e que nos sobrariam poucos mbeis para tantos esforos, se quisssemos exclu-los. Ao mesmo tempo, ningum to rude que no sinta que uma ao moral, ao menos aos olhos do prximo, comover tanto mais quanto mais distante estiver do interesse prprio, e quanto mais nela emergirem aqueles nobres impulsos. 1451 Quando observo, alternadamente, o lado nobre e o lado fraco dos homens, reprovo a mim mesmo por no conseguir adotar aquele ponto de vista, a partir do qual esses contrastes apresentam-se, por assim dizer, de forma comovente como o grande quadro de toda natureza humana. Pois de bom grado me resigno a aceitar que, na medida em que pertencem ao projeto da grande natureza, essas situaapenas bagatelas poticas, adquire aos olhos de todos o ar de um homem refinado, do qual se possui uma opinio mais favorvel - para ele, mais honrosa.(NA)

es grotescas no podem resultar seno numa nobre expresso, apesar de sermos muito limitados para nos dar conta delas sob esse aspecto. Mas, a fim de lanar um rpido olhar nisso, penso poder fazer as seguintes consideraes. Entre os homens, so bem poucos aqueles que se compor tam de acordo com princpios, coisa que, em geral, igualmente boa, visto poder ocorrer facilmente de errarmos nesses princpios, e, nesse caso, o prejuzo que da resulta tanto maior quanto mais universal for o princpio e quanto mais constante for a pessoa que o prope para si mesmo. Aque les que agem a partir de inipulsos benevolentes so bem mais numerosos, o que, alis, excelente, muito embora pessoa no se possa atribuir individualmente nenhum mrito /46/ excepcional. Pois, ainda que por vezes esses instintos virtuosos estejam ausentes, em geral tambm obedecem o grande desgnio da natureza [die grosse Absicht der Naturj, como os instintos restantes, que, de forma to regular, movem o mundo animal. Aqueles que tm fixo diante de si o prprio e amado eu como nico ponto de referncia de todos os seus esforos, e que buscam fazer girar tudo em volta do interesse prprio, como em volta de um grande eixo, constituem a inaioria. Nada tambm poderia ser mais vantajoso, pois estes so os mais assduos, ordeiros e prudentes; do aprumo e solidez ao todo, na medida em que, mesmo despropositadamente, tornam-se teis ao bem pblico, provendo as necessidades exigidas e oferecendo a base sobre a qual almas delicadas podem propagar beleza e harmonia. Finalmente, todos os coraes humanos, embora em pores diferentes, foram infundidos pelo anior honra, que deve dar ao todo uma beleza atraente, prxima do maravilhamento. Pois, ainda que o desejo de honra seja uma tola quimera, na medida em que se presta como regra sob a qual se ordenam as inclinaes restantes, toma-se extremamente vantajoso como um impulso que as acompanha. Afinal, visto que 1471, no grande palco, cada um executa suas aes de acordo com suas inclinaes dominantes, ele ao mesmo tempo levado, por meio de um impulso secreto, 44 a adotar em pensamento um ponto de vista exterior a si mesmo, a fim de apreciar o decoro de sua conduta, tal como ela aparenta e se apresenta aos olhos do espectador. Com isso, os diferentes grupos ligam-se num quadro de magnfica expresso, onde, em meio a uma grande multiplicidade, sobressai a unidade, e o todo da natureza moral mostra, em si, beleza e dignidade.

TERCEIRA SEO DA DIFERENA ENTRE O SUBLIME E O BELO NA RELAO DOS SEXOS

Aquele que primeiramente conceituou a mulher com o nome do belo sexo, talvez quisesse ser corts, mas foi mais feliz do que provavelmente ele mesmo imaginou. Pois, 1481 mesmo no considerando que, diante do sexo masculino, sua figura geralmente mais refinada, seus traos, mais sutis e suaves, e seu rosto mais expressivo e atraente na expresso da alegria, do gracejo e da afabili dade; sem tampouco esquecer o que deve ser atribudo ao poder mgico e secreto graas ao qual fazem nossa paixo inclinar-se a um juzo favorvel sobre elas, sobretudo no carter espiritual desse sexo que residem traos prprios a ele, que o distinguem claramente do nosso, tornando-o identificvel principalmente atravs da marca do belo. De nossa parte, poderamos pretender denominao do sexo nobre, caso tambm no se exigisse de um carter nobre recusar ttulos de nobreza, sendo melhor atribu-los que aceit-los. No se quer dizer, com isso, que a mulher carea de qualidades nobres, ou que o sexo masculino deva ser inteiramente privado da beleza; espera-se, ao contrrio, que 47

cada sexo rena a ambos, de tal maneira que em uma mulher todos os outros traos devam estar ligados 1491 a fim de elevar o carter do belo, que seu ponto de referncia especfico; e que, por oposio, dentre as qualidades masculinas sobressaia nitidamente o sublime, como a marca de seu gnero. A isso devem referir-se todos os juizos sobre ambos os gneros, tanto os de louvor quanto os de censura; toda educao e instruo deve ter isso diante dos olhos, assim como todo esforo no sentido de promover a perfeio moral de um ou outro sexo da espcie humana, a menos que se queira ignorar a estimulante diferena instituda entre eles pela natureza. Pois aqui no basta imaginar que se est diante de seres humanos; preciso ao mesmo tempo no esquecer o fato de que estes no so de um nico tipo. A mulher possui um forte sentimento inato por tudo o que belo, gracioso e ornado. J na infncia gosta de se enfeitar, e se compraz em se ornamentar. Tem esmero, sendo muito sensvel a tudo o que pode produzir asco. Ama o gracejo, e pode se entreter com futilidades, conquanto sejam alegres e divertidas. Desde muito cedo possui 1501 em si mesma um sentido de decncia, sabendo aparentar um decoro delicado e autodomnio; e isso numa idade em que nossa boa juventude masculina ainda intratvel, deselegante e embaraada. Ela dispe de muitos sentimentos piedosos, de bondade e compaixo, prefere o belo ao til, e com prazer economiza o que sobra das despesas doms ticas, a fim de despend-lo em brilho e enfeite. Seu sentimento acusa a menor ofensa, e extremamente aguada em notar a mnima falta de ateno e respeito para consigo. Em resumo, ela quem dispe, na natureza humana, do fundamento essencial do contraste entre as qualidades belas e nobres, tornando mais refinado mesmo o sexo masculino. Espero estar dispensado da enumerao das qualidades masculinas, na medida em que so paralelas quelas, bastando considerar a ambas apenas confrontando-as. O 48 belo sexo possui tanto entendimento quanto o sexo masculino; trata-se, porm, de um belo entendimento, enquanto o nosso deve ser um entendimento profundo, 1511 expresso que significa o mesmo que um entendimento sublime. Pertence beleza de todas as aes sobretudo demonstrar em si leveza, parecendo ser efetuadas sem qualquer esforo penoso; em contrapartida, esforo e obstculos superados suscitam admirao, e pertencem ao sublime. Meditao profunda e uma longa contemplao so nobres, porm difceis, e no convm a uma pessoa na qual os estmulos espontneos no devem mostrar outra coisa que uma bela natureza. O estudo laborioso ou a especulao penosa, mesmo que uma mulher nisso se destaque, sufocam os traos que so prprios a seu sexo; e, no obstante dela faam, por sua singularidade, objeto de uma fria admirao, ao mesmo tempo enfraquecem os estmulos por meio dos quais exerce seu grande poder sobre o outro sexo. A uma mulher que tenha a cabea entulhada de grego, como a senhora Dacier, ou que trave disputas profundas sobre mecnica, como a marquesa de Chtelet 11 6 pode mesmo faltar uma barba, pois com esta talvez consigam exprimir melhor o ar de 1521 profundidade a que aspiram. O belo entendimento elege como objeto tudo aquilo que muito aparentado com o sentimento refinado, e abandona especulaes ou conhecimentos abstratos - teis, porm ridos - ao entendimento diligente, slido, profundo. Por isso, a mulher no aprender geometria; e, do princpio de razo suficiente ou das mnadas, saber apenas o quanto for necessrio para perceber o sal das stiras cristalizado pelos pensadores superficiais de nosso sexo. O belo sexo pode deixar Descartes sempre a girar seus vrtices, sem se afligir com isso, mesmo se o galante Fontenelle 21 queira fazer-lhe companhia entre20. Arme Dacier (1654-1720) tomou-se clebre por seus comentrios e tradues de clssicos greco-romanos, alm de participar da Querelle desAnciens et des Modernes. Gabrielle Emilie, marquesa de Chtelet (1704-1749), traduziu e comentou os Principia de Newton; era intimamente ligada a Voltaire.(NT) 21. Racionalista e precursor das Luzes, Bemard Le Bovier de Fontenelle (1657-1757) publicou obras de vulgarizao cientfica como as clebres Entretiens sur Ia pluralit des mondes (1686). (NT)

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as estrelas vagantes; e a atrao de seu encanto nada perde em poder, mesmo no caso de desconher inteiramente aquilo que Algarotti 22 se esforou em apontar, para o bem dele, acerca das foras de atrao da matria bruta, tal como a concebeu Newton. No aprendizado da histria, no encher a cabea com batalhas, e, no de geografia, com fortalezas; pois a plvora dos disparos lhe convm to pouco 1531 quanto o alinscar convm aos homens. Parece obra de uma maliciosa astcia masculina querer conduzir o belo sexo a uma tal inverso do gosto. Pois embora sejam bem conscientes de sua fraqueza diante da atrao natural da mulher, e de que se encontrem em maior embarao graas a um simples olhar zombateiro do que mais complicada das questes escolsticas, os homens se consideram de uma resoluta superioridade to logo a mulher se envereda por esse gosto, com a grande vantagem - que dificilmente obteriam por outro meio - de socorrer, com generosa indulgncia, as fraquezas da vaidade feminina. O contedo da grande cincia feminina , antes, o ser humano, e, dentre os seres humanos, o homem, e sua filosofia no consiste em raciocinar, mas em sentir. Se se quiser dar a elas a oportunidade de desenvolver sua bela natureza, preciso sempre ter em conta esta circunstncia. Buscar -se- alargar nelas o sentimento moral em seu conjunto, no a memria, e isso no por meio de regras universais, mas por meio de certos juzos 1541 acerca da conduta que observam ao redor. Os exemplos, que emprestamos de outras pocas, a fim de demonstrar a influncia exercida pelo belo sexo nos destinos do mundo, as diferentes relaes em que se encontrava diante do homem noutros tempos ou pases, o carter de ambos os sexos, na medida em que se deixa explicar desse modo, e o gosto instvel pelos prazeres, tudo isso o que constitui sua histria e geografia. belo que a vista de uma carta geogrfica, representando ou toda a crosta terrestre ou as partes principais do mundo, seja agradvel a uma mulher. Isso ocorre apenas quando se mostra22. Francesco Algarotti, Newtonismo para damas, 1737. (NT)

50 a carta com o nico propsito de lhe descrever os diversos caracteres dos povos que o habitam, as diferenas de gosto e sentimento moral, sobretudo com vista ao efeito que possuem sobre as relaes entre os sexos, acrescentando algumas explicaes fceis sobre o clima, a liberdade e a escravido. Pouco importa que conheam as divises principais, os ofcios, o poder e o soberano desses pases. Tampouco do 1551 universo devero conhecer mais do que lhes for necessrio para se comoverem com a contemplao do cu num belo entardecer, conquanto de alguma maneira tenham compreendido que ainda existem outros mundos e, neles, outras belas criaturas. O sentimento para pinturas expressivas e para a msica, no na medida em que exprimem artifico, mas sentimento, tudo isso refina ou eleva o gosto desse sexo, e sempre possui alguma ligao com as disposies morais. Isso jamais ocorre por meio de um ensino frio e especulativo, mas sempre por meio de sensaes, sobretudo as que permanecem o mais prximo possvel do comportamento prprio a seu sexo. Porque exige talentos, experincia e um corao cheio de sentimento, essa instruo deveras rara, bem podendo a mulher dispensar qualquer outra, visto geralmente educarse muito bem por si mesma, ainda que na falta daquela. A virtude da mulher bela [schne Tugendl "; a do sexo masculino 1561 deve ser nobre (edle Tugend). Ela evitar o mal no por ser injusto, mas por ser repulsivo; aes virtuosas significam para ela as que so moralmente belas. Nada de deveres, necessidades ou obrigaes; a mulher intolerante com todo comando e obrigao inoportuna. S faz algo porque assim lhe agrada, e a arte, aqui, consiste em fazer que lhe seja agradvel o que bom. Parece difcil acreditar que o belo sexo seja capaz de princpios, e, com isso, espero no ofend -lo, pois tambm so muito raros no sexo masculino. Em compensao, a providencia pos em seu peito sensaes bondosas e benvolas, um refinado23. Acima, essa virtude foi, com rigor, nomeada virtude de adoo; aqui, visto merecer ser interpretada favoravelmente, chama-se, em geral, uma bela virtude.(NA)

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sentimento de honestidade e uma alma solcita. No se exijam delas sacrifcios e uma generosa abnegao. Jamais um homem deve dizer mulher que ele arrisca parte de sua fortuna por um amigo. Por que lhe represaria a vivaz loquacidade, incomodando-lhe a mente com um importante segredo que apenas a ele mesmo cabe guardar? Mesmo muitas de suas fraquezas so, por assim dizer 1571, belos erros. Ofensa ou desgraa impelem sua alma sensvel melancolia. O homem jamais deve derramar lgrimas, seno pela gran deza de sua alma; aquelas que verte por dor ou felicidade o tomam desprezvel. A vaidade, que to freqentemente reprovamos no belo sexo, visto ser, nele, um erro, apenas um belo erro. Pois os homens, que to prazeirosamente adulam a mulher, intensificam-lhe efetivamente o charme, sem falar que ficariam contrariados caso esta no se inclinasse a receb-los. Essa inclinao um impulso em mostrarse receptiva e bem observar o decoro, em dar livre jogo a seu engenho vivaz, e tambm em brilhar por meio das invenes volveis da moda, elevando sua beleza. Nisso no h nada de ofensivo a terceiros; alis, se feito com bom gosto, to gracioso, que contest-lo com repreenses rabujentas revela pouca educao. Uma mulher que seja nisso demasiado volvel e leviana chama-se uma tola; expresso esta que no possui um significado to forte como quando, mudando de desinncia 1581, aplica -se ao homem, visto que, se bem nos entendemos, freqentemente tambm pode revelar uma brincadeira familiar. Se a vaidade um erro que, na mulher, merece perdo, sua presuno no apenas censurvel, como no ser humano em geral, mas deforma inteiramente o carter de seu sexo, pois essa qualidade , de modo geral, estpida e repugnante, e oposta ao charme simptico e modesto. Ademais, uma tal pessoa encontra -se numa situao delicada: apreciar ser julgada severamente e sem nenhuma indulgncia, pois quem almeja grande estima convida todos censur-lo. Toda descoberta de um erro, mesmo nfimo, proporciona a todos verdadeira alegria, e a palavra tola perde, aqui, seu sentido atenuado. Deve-se 52 sempre distinguir a vaidade da presuno. A primeira busca o aplauso e, em certa medida, honra aquele que por ele tanto se esfora; a segunda pensa j se encontrar na posse completa desse aplauso, e, na medida em que no se empenha em adquiri-lo, tampouco ganha algum. 159/ Se alguns ingredientes da vaidade de modo algum comprometem uma mulher aos olhos do sexo mas culino, sem dvida servem para desunir o belo sexo, e tanto mais quanto mais perceptveis forem. Julgam-se umas s outras com grande severidade, porque uma parece obscurecer o charme das outras; e, com efeito, aquelas que dispem de fortes pretenses conquista raramente so amigas, no verdadeiro sentido da palavra. Nada to oposto ao belo quanto o asco, assim como nada conduz to abaixo do sublime quanto o ridculo. Da nenhuma afronta ser mais tocante a um homem que a de ser chamado de tolo, e, a uma mulher, que cham-la de asquerosa. O Espectador ingls ` sustenta que no pode haver censura mais ultrajante a um homem que a de ser considerado um mentiroso, e mais cida a uma mulher do que tom -la por impudica. Na medida em que isso julgado conforme o rigor da moral, no me atenho a seu valor. Mas aqui no se trata daquilo que, em si mesmo, merece maior censura, mas, antes, daquilo que efetivamente se sente como o mais 160/ penoso. E por isso pergunto a cada um dos leitores se no concordar com minha opimo ao ter em mente o caso que se segue. A senhorita Ninon Lenclos no possua a menor pretenso honra da castidade, e, no obstante, ficaria inevitavelmente ofendida caso um de seus amantes chegasse a ponto de dizer isso dela; sabido o cruel destino de Monaldeschi, graas a uma ultrajosa expresso desse gnero acerca de uma princesa que certamente no queria passar por Lucrcia. No cometer o mal sequer por uma vez, ainda que se queira, intolervel, visto que tambm deixar de comet-lo sempre somente uma virtude bastante ambgua.24. Trata-se do magazine "ne spectator".("

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A fim de afastar-se o quanto possvel do que asqueroso, o asseio - que, alis, cai bem em qualquer pessoa - est entre as virtudes primordiais do belo sexo, nele se tornando dificilmente excessivo, ao passo que, no homem, por vezes chega ao exagero, tornando-se ridculo. 16110 pudor um segredo da natureza que estabelece limites a uma inclinao demasiadamente impetuosa, e que, tendo consigo a voz da natureza, parece sempre acordar-se com as boas qualidades morais, mesmo quando delas se desvia. Da ser profundamente necessrio como suplemento dos princpios, pois, em nenhum outro caso a inclinao oferece ao sofista a inveno de princpios complacentes. Ao mesmo tempo, porm, o pudor serve para estender uma misteriosa cortina diante dos fins mais convenientes e necessrios da natureza, para que uma familiaridade vulgar com esses mesmos fins no favorea o asco ou, ao menos, a indiferena em relao aos desgnios lti mos de um impulso no qual esto inscritas as inclinaes mais adequadas e intensas da natureza humana. Essa qualidade pertence prioritariam ente ao belo sexo, bem lhe convindo com o decoro. tambm uma grossa e odiosa impertinncia pr em apuros ou indispor sua delicada honestidade, por meio de gracejos indecentes, denominados obscenidades. Todavia, visto que, por mais que se queira tergiversar o mistrio 1621, o impulso sexual repousa, em ltima anlise, como fundamento dos estmulos restantes; e visto que uma mulher, na qualidade de mulher, sempre o objeto agradvel de uma conversao de bons costumes, talvez se possa a partir da explicar por que homens alis, de boa educao - por vezes tomam a liberdade de deixar transparecer, por meio das pequenas malcias de seus gracejos, sutis aluses, que fazem com que sejam chamados inaliciosos e libertinos; e tambm por que, apesar de no intentarem ofender com olhares indiscretos ou tampouco ferir o respeito, se acham no direito de chamar de pedante pela probidade a pessoa que os acolhe com indignao e frieza. Digo isso apenas porque geralmente considerado um trao 54 algo ousado da bela sociedade, tendo-se j de fato empregado muito engenho a esse respeito; no que porm concerne ao juzo com base no rigor moral, disso no trato aqui, j que me incumbi apenas de observar e elucidar as manifestaes no sentimento do belo. As qualidades nobres desse sexo - as quais, porm, como j dissemos, nunca 1631 devem sobrepor-se ao sentimento do belo - no se anunciam de maneira mais clara e segura do que por meio da modstia, espcie de nobre simplicidade e ingenuidade em meio a grandes traos. Dela transparece uma serena benevolncia e respeito pelos outros, juntamente com uma certa nobre autoconflana, ligada quela justa auto-estima sempre encontrada em espritos elevados. Na medida em que ao mesmo tempo atrai por charme e comove por respeito, essa refinada mistura pe todas as demais qualidades cintilantes em segurana contra a malcia, a repreenso e a stira. Pessoas com esse temperainento tm um corao propenso amizade, coisa que jamais pode ser suficientemente avaliada numa mulher, pois, alm de muito rara, extremamente encantadora. Visto que nosso intento o de julgar acerca de sentimentos, no ser inconveniente, quando possvel, conceitual izar as diferentes impresses que a figura e o semblante do belo sexo produzem sobre os homens. Todo esse encan tamento permeia, na realidade, o /641 impulso sexual. A natureza persegue seu grande intento, e todos os refinamentos que a isso se associam, por mais que da paream se distanciar, no so seno ornamentos, e, no fim das contas, tiram seu encanto da mesma fonte. Um gosto saudvel e rude, que sempre se mantm muito prximo desse impulso, ser pouco tocado pelo encanto do decoro, da fisionomia, dos olhos etc de uma mulher; e, visto orientar-se apenas para o sexo, considera o mais das vezes os refinamentos alheios como namoricos inteis. Embora um tal gosto no seja refinado, nem por isso deve ser desprezado. Afinal, por seu intermdio que 55

a maior parte dos seres humanos observa, de maneira bem simples e segura, a grande ordem da natureza 1-5. Por meio dele se 1651 consuma a maioria dos matrimnios, e, na verdade, das partes mais ativas do gnero humano; e, na medida em que no tem a cabea cheia de gestos encanta dores, de olhares lnguidos, de condutas nobres etc, o homem tampouco entende algo de tudo isso, tornando -se, assim, tanto mais atento s virtudes domsticas, parcimnia, ao dote etc. No que concerne ao gosto mais refinado, em funo do qual seria necessrio fazer uma distino entre os encantos exteriores da mulher, o gosto prende-se quilo que inoral ou anzoral na figura e expresso do rosto. Em vista dos agrados da ltima espcie, dir-se- que uma mulher bonita. Uma estatura equilibrada, traos regulares, a cor dos olhos e do rosto que se destaca com elegncia consti tuem meras belezas que aprazem tambm num ramo de flores, e que no merecem mais do que um frio aplauso. O rosto, mesmo que seja bonito, por si nada diz, e no fala ao corao. Aquilo que, na expresso dos traos, dos olhos e do rosto, concerrie ao que moral, incide ou sobre o sentimento do sublime ou 166/ do belo. Uma mulher, na qual as amenidades que condizem com o sexo feminino deixam sobressair principalmente a expresso do sublime, chama-se bela em sentido prprio; aquela, cujo perfil moral, como notado no semblante e nos traos faciais, anuncia as qualidades do belo, agradvel, e, quando em grau elevado, fascinante. A primeira, sob um semblante sereno e um nobre decoro, deixa transparecer, por olhares modes tos, o brilho de um belo entendimento, e, na medida em que retrata em seu rosto um sentimento terno e um corao benevolente, apodera-se tanto da inclinao quanto da estima de um corao masculino. A segunda mostra vivacidade e engenho em olhos risonhos, certa malcia sutil, um gosto pelo gracejo e uma travessa fragilidade. Esta encanta, enquanto25. Como todas as coisas no mundo tambm possuem seu lado ruim, igualmente h de deplorvel nesse gosto que, mais facilmente que qualquer outro, decai na libertinagem. Pois, porque o fogo que unia pessoa desperta pode ser apagado por uma outra qualquer, no existem obstculo