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TAMARA PEREIRA DE SOUZA KAIRÓS E O TEMPO RITUAL SAGRADO EM EDMUND LEACH Uma Investigação à Luz dos Significados do Mito de Kairós MESTRADO EM CIÊNCIAS DA RELIGIÃO PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA SÃO PAULO 2015

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TAMARA PEREIRA DE SOUZA

KAIRÓS E O TEMPO RITUAL SAGRADO EM

EDMUND LEACH

Uma Investigação à Luz dos Significados do Mito de

Kairós

MESTRADO EM CIÊNCIAS DA RELIGIÃO

PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA

SÃO PAULO – 2015

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TAMARA PEREIRA DE SOUZA

KAIRÓS E O TEMPO RITUAL SAGRADO EM

EDMUND LEACH:

Uma Investigação à Luz dos Significados do Mito de

Kairós

PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA

SÃO PAULO – 2015

Dissertação desenvolvida no Programa de Estudos Pós-

Graduados em Ciências da Religião - Área de concentração:

Fundamentos das Ciências da Religião - Apresentada à

banca examinadora da PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE

CATÓLICA DE SÃO PAULO, como exigência parcial para

obtenção do título de Mestre em Ciências da Religião, sob

orientação do Prof. Dr. Eduardo Rodrigues da Cruz.

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BANCA EXAMINADORA:

_________________________

_________________________

_________________________

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Ao meu querido pai, Iran, em cujo amor

encontrei o acolhimento e a força

necessários para ir em busca de meus

sonhos e realizar meu caminho.

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Sobre Deuses e Homens

Enquanto Chronos corre, Kairos, salta. Quando

Chronos, pára, Kairos, é velocidade. Quando

Chronos recomeça Kairos, é imobilidade. Filhos

de Aion, o receptivo e o ativo invertem-se em

perpétua transformação. Experimentando os

ciclos do tempo, corre o homem, salta a lebre,

vive o sentido e pensa a razão. Contudo, cala-se

o “Pai da Verdade” quando o homem perde a

alma; estreita a “visão”.

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AGRADECIMENTOS

Ao Prof. Dr. Eduardo Rodrigues Cruz por sua valiosa orientação,

disponibilidade e contribuições em todas as fases deste trabalho, o meu muito

obrigada.

Ao Prof. Dr. Sillas Guerriero por sua preciosa contribuição no Exame de

Qualificação e em vários momentos de elaboração e avaliação deste trabalho, o

meu muito obrigada.

Ao Prof. Dr. Ênio da Costa Brito pelo acolhimento e carinho, pelas

grandes lições aprendidas durante as aulas e nos “corredores” do Programa de

Estudos Pós-Graduados em Ciências da Religião, o meu muito obrigado.

A todos os Professores Drs. do Programa de Estudos Pós-Graduados

em Ciências da Religião da PUC, por abrirem as portas do conhecimento e

contribuírem de uma forma ou outra para a realização deste trabalho, o meu

obrigada.

À Profa. Dra. Valéria Silva Dias por ter valorizado o tema do “tempo” no

grupo de pesquisa do departamento de Física na UNESP – Guaratinguetá, pela

confiança e amizade bem como pela valiosa contribuição que se configurou em

um verdadeiro “rito de passagem” tendo em vista o meu ingresso na vida

acadêmica, o meu muito obrigada.

Ao Prof. Dr. Fernando de Campos por seu carinho e disponibilidade,

apoio e orientação durante o período em que participei do grupo de pesquisas no

Departamento de Física da UNESP- Guaratinguetá.

A todos os colegas do grupo de estudos da Física na UNESP-

Guaratinguetá, pelas discussões “acaloradas”, motivação e contribuições que

concorreram com o meu ingresso no Programa de Estudos Pós-Graduados em

Ciências da Religião, muito obrigada.

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À Profa. Dra. Suzana Ramos Coutinho por suas valiosas contribuições e

olhar atento ao processo de discussão e avaliação deste trabalho, muito obrigada.

À estimada Andréia Bisuli secretaria do Programa de Estudos Pós-

Graduados em Ciências da Religião por seu apoio e permanente disposição em

oferecer uma palavra de incentivo e apoio e principalmente, por seu

profissionalismo, meu muito obrigada.

Aos Funcionários da Biblioteca da PUC-SP pelo encontro e

disponibilidade em sanar dúvidas quando elas “saltavam” das fileiras de livros, o

meu muito obrigado.

A todos os Funcionários da PUC-SP pelo encontro salutar nos corredores

da PUC, durante o período do curso de mestrado, o meu muito obrigada.

À Maria Alice Buono Vieira por sua contribuição na revisão deste

trabalho, muito obrigada.

A Geraldo Guedes por sua contribuição nas traduções, muito obrigada.

Aos grandes amigos Adelina Serafim e Antonio Augusto Nascimento

por sua presença constante em minha vida e por respeitarem minhas escolhas e

decisões, o meu muito obrigada.

À Cilene Favaro pelo carinho e apoio incondicionais e pela acolhida na

“cidade grande” durante o curso de Pós Graduação, o meu muito obrigada.

Às queridas companheiras de jornada Sirley Aparecida, Silvana Dias,

Eliana Valle, Patrícia e Dalva Marques por sua presença e carinho e por

respeitarem minha ausência durante o período da Pós Graduação, o meu muito

obrigada.

Aos queridos Vera Lúcia e Alécio o meu muito obrigada. Sem o apoio de

ambos, eu certamente não teria conseguido finalizar este trabalho.

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À minha querida mãe Tatjana, pelo incentivo e apoio principalmente,

durante a fase final deste trabalho e por compreender meus momentos de

ausência, o meu muito obrigada.

Ao querido Djampo por seu companheirismo e fidelidade durante os

momentos mais críticos desta jornada, o meu muito obrigada.

A CAPES e à FUNDASP pela bolsa concedida, muito obrigada.

Finalmente, a todos que direta ou indiretamente compartilharam comigo de

mais esta etapa de minha vida,

o meu muito obrigada.

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RESUMO

Nos últimos anos, mais especificamente, desde a era moderna os fenômenos rituais, tem sido objeto de formação de conceitos tanto no contexto de estudo das Ciências da Religião, quanto das Ciências Sociais. Dentro desta perspectiva Edmund Leach propôs um modelo de tempo ritual em que cada intervalo de festividades rituais, situado entre períodos da vida social, representa uma mudança da ordem Normal-Profana da existência para a ordem Anormal-Sagrada e, assim, retroativamente. Contudo, ao abordarmos o intervalo de Tempo Sagrado, em Leach concebido como uma zona tabu, marginal, do outro mundo, identificamos que este representa um domínio insuficientemente estudado pelo mesmo autor que interpretou este domínio ritual exclusivamente, a partir de elementos mitológicos associados à noção de Cronos, levando-nos a supor que algumas questões ficaram “escondidas”. Neste sentido e, tomando como referência a crença adotada por algumas tradições da Grécia antiga, de que Cronos e Kairos, representavam dois aspectos do tempo, distintos e em oposição embora, de mesma natureza nossa investigação centrou-se em uma interpretação do intervalo de Tempo Sagrado, em Leach à luz de Kairos. Esta investigação que foi desenvolvida tendo por base o método bibliográfico de pesquisa alcançou resultados indicando que o intervalo de Tempo Sagrado, em Leach interpretado à luz do mito de Cronos, manifesta-se como parte de uma sequência linear que conjuga repetições e paradas entre Tempo Sagrado e Tempo Profano enquanto este mesmo intervalo ritual associado ao tempo kairológico, denota não uma parte do tempo, mas, sua origem ou, uma irrupção da eternidade no tempo que pulsando entre velocidade (continuum) e imobilidade, segue um curso irreversível e unidirecional quando o tempo retrocede e pára. Espera-se a partir dos resultados desta pesquisa contribuir com o contexto das Ciências da Religião, Ciências Sociais e Psicologia a respeito do conhecimento do Tempo Sagrado, em Leach, bem como com referenciais de futuros pesquisadores que tenham a intenção de abordar e aprofundar o tema. Palavras-Chave: Edmund Leach - Cronos - Ritual - Tempo Sagrado - Kairos - Ciências da Religião.

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ABSTRACT

In recent years, more specifically since the modern era, the phenomena rituals have been object of formation of concepts both in the context of the studies of Sciences of Religion, as well as of the social sciences. Within this perspective, Edmund Leach proposed a model of time ritual where in each intermission of ritual festivities, situated between periods of social life, represents a change from the normal order-profane existence to the unusual order-sacred and thus retroactively. However, when addressing the knowledge about the intermission of Sacred Time, in Leach configured in his own time ritual proposal and conceived as a taboo area, marginal, from another world, we have identified that this represents an area insufficiently studied by the same author who interpreted this ritual domain exclusively, from mythological elements associated with the notion of Cronus, leading us to assume that some issues have been "hidden". .In this respect, and taking as a reference that, for some traditions of ancient Greece, the time was designed from a dual perspective, our research focused on an interpretation of Sacred time interval, in Leach in the light of Kairos. This research which was developed based on the bibliographical research method, reached results indicating that while the time interval, in Leach interpreted in the light of the myth of Cronus, manifests itself as part of a linear sequence which combines switchovers and stops between Sacred Time while this same interval ritual associated with kairological time, denotes not a part of time, but its origin or an outburst of eternity in time pulsing between speed (continuum) and immobility, follows an irreversible and one-way course when time rewinds and stops. It is expected from the results of this research to contribute to the context of the Sciences of Religion, Social Sciences and Psychology regarding the knowledge of the Sacred Time in Leach as benchmarks for future researchers who intend to discuss and deepen the theme.

Keywords: Edmund Leach - Cronus - Ritual - Sacred Time - Kairos -

Sciences of Religion.

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SUMÁRIO

INTRODUÇÃO 14 1. FACES DO TEMPO 23

1.1. A Entrada do Tempo na História da Humanidade 25 1.2. As Faces do Tempo em Culturas Tradicionais 29

1.2.1. Egito Antigo 29 1.2.2. Suméria e Babilônia 34 1.2.3. Índia 37 1.2.4. Os Maias 40 1.2.5. China 42

1.3. As Faces do Tempo na Grécia Antiga 45 1.3.1. A Natureza do Tempo entre os Gregos 45 1.3.2. Chronos e Kairos 48 1.3.3. As Três Temporalidades Cósmicas 56

1.4. A Natureza de Kairos 61 1.4.1. Os Dois Instantes Cruciais 61 1.4.2. Faces de Cronos 63

2. A TEORIA DO TEMPO RITUAL EM LEACH 72

2.1. Edmund R. Leach (1919-1989): Uma Antropologia de Fronteira 74 2.1.1. Da Formação Familiar 74 2.1.2. Produção Intelectual: Versatilidade Teórica 79 2.1.3. Contribuições à Antropologia Social 82

2.2. A Ordenação Simbólica do Mundo 86 2.2.1. A Percepção Primária do Mundo 87 2.2.2. Um Mundo Descontínuo: As Categorias Sociais 92

2.3. Repetição e Não Repetição: A Flecha do Tempo 102

2.4. As Metáforas do Tempo em Cronos 105

2.5. O Mito de Cronos e a Criação do Tempo 110

2.6. O Culto à Cronos 113 2.7. O Modelo de Tempo Ritual em Leach 119

2.8. Liminaridade e Tempo Sagrado: Antecedentes 123

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3. O TEMPO RITUAL SAGRADO EM LEACH À LUZ DE KAIROS 128 3.1. O Fluxo Unidimensional do Tempo Sagrado 130 3.2. A Imagem Primária do Tempo 131

3.3. O Processo de Ordenação Humano 136

3.4. A Experiência Ritual: Velocidade e Imobilidade 143

3.5. O Ciclo “Morte-Vida-Renascimento”: Repetição e Entropia 151

3.6. As Quatro Fases Rituais à luz de Kairos 158

CONSIDERAÇÕES FINAIS 157 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS 165

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ÍNDICE DE FIGURAS

Figura 1 Ilustração da Ouroborus 34

Figura 2 Ilustração da esteira ou “Árvore Sagrada da Vida” 41

Figura 3 Ilustração de Cronos devorando um de seus filhos 50

Figura 4 Ilustração de Kairos, deus da mitologia grega 55

Figura 5 Ilustração da prova do arco e dos doze machados 65

Figura 6 Ilustração esquemática do binário proposto em Leach 87

Figura 7 Ilustração geométrica do contínuo na natureza 90

Figura 8 Ilustração esquemática “daquilo” que é nomeado na natureza 91

Figura 9 Ilustração esquemática do relacionamento entre tempo contínuum

e descontinuidades sociais 96

Figura 10 Ilustração esquemática do relacionamento entre ambigüidade e coisas

tabu 97

Figura 11 Ilustração esquemática do tempo ritual em “zigue-zague” 109

Figura 12 Ilustração esquemática do modelo de tempo ritual proposto em

Edmund Leach 121

Figura 13 Ilustração esquemática da imagem primária do tempo à luz do

tratamento de Kairos 134

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ÍNDICE DE QUADROS

Quadro 1 Elementos mitológicos associados às noções do tempo em Cronos e

Kairos 156

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INTRODUÇÃO

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“Perguntei a mim mesmo: ‘Que mito você está vivendo? e

descobri que não sabia. Por isso... decidi conhecer o ‘meu

mito’ e considerei esta como a maior das tarefas... Eu

simplesmente tinha de saber que mito inconsciente pré-

consciente estava me moldando.”

Carl Gustav Jung

Como psicóloga junguiana vislumbrei a possibilidade de que uma

investigação a respeito do intervalo de tempo ritual sagrado em Leach à luz dos

elementos mitológicos associados à noção de Kairos, pudesse contribuir com a

reflexão a respeito de como construímos desde tenra idade, mitos, que excluídos

de um exame consciente moldam nossas atitudes e ações no âmbito da

sociedade e da cultura bem como .

Para o antropólogo social Edmund Ronald Leach o intervalo de tempo ritual

sagrado interpretado pelo mesmo autor, exclusivamente, a partir do ponto de vista

do tratamento de Cronos é parte de uma sequência linear em que cada instante

“pode ser considerado indiferentemente ponto de partida de um futuro ou ponto

de chegada de um passado” (PIETRE, 1997: 84).

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Mas o que nos revela o intervalo de tempo ritual sagrado considerado pelo

mesmo autor como um ambiente tabu, do outro mundo, quando associado ao

instante kairológico, que de acordo com alguns autores não denota um instante

no tempo e sim, sua origem? A que tipo de mito, crenças e comportamentos

rituais estamos condicionados desde o processo de socialização que ocorre na

primeira infância e, como tal condicionamento contribui para influenciar o modo

como ordenamos o mundo? Se conforme sustenta Edmund Leach somos

condicionados a erguer fronteiras artificiais na natureza que separam o tempo

ritual sagrado do tempo profano, então, como se opera o processo de ordenação

do mundo à luz do tratamento de Kairos?

Estas indagações que encontram suas raízes em uma jornada pessoal em

busca de entendimento a respeito da natureza do tempo sagrado, já conta

aniversários de longa data em minha história de vida.

Contudo foi somente na década de 70, ao concluir minha primeira

formação de nível superior, em Design Industrial, na PUC do Rio de Janeiro,

quando minhas observações encontravam-se mais voltadas para uma descoberta

objetiva do mundo que meu interesse a respeito do tempo sagrado, ganhou maior

consistência na medida em que meu processo de investigação centrava-se nas

diversas formas de comportamentos sociais.

A estas observações da realidade que me chegavam à percepção como

representações de instantes profanos e sagrados situadas no tempo e no espaço,

seguiram-se estudos literários e filosóficos que me conduziram a descoberta do

filósofo Immanuel Kant (1724-1804), bem como contribuíram para sustentar

minha natural inclinação e desejo de aprofundar o conhecimento a respeito dos

mistérios de Chronos e, das inúmeras possibilidades e caminhos para que eu

conseguisse abordá-lo.

Nessa época a especulação assistemática a respeito das teorias físicas

cuja investigação focava a natureza e a estrutura do tempo me conduziu à leitura

de autores como Stephen Hawking (1942 - ), Fritjof Capra (1939 - ) e Albert

Einstein (1879-1955), que aos poucos foram me esclarecendo que o

conhecimento científico a respeito do tempo, não era prerrogativa de uma única

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disciplina. Ao contrário, o tempo se impunha em diversas áreas do conhecimento

sem ser apanágio de nenhuma.

Com o encerrando desse ciclo de conhecimentos que me orientou no

sentido de um campo alternativo de investigação culminando com minha

formação em psicologia analítica, passei a consagrar meus estudos

subseqüentes, ao entendimento dos símbolos e mitos associados a

temporalidade da psique humana, esperando com essa decisão que a

cosmovisão concebida pelo psiquiatra suiço Carl Gustav Jung (1875-1961),

pudesse contribuir com minha compreensão do tempo sagrado.

Em 2011 adotando como uma de minhas mais profundas crenças a ideia

de que erguemos “fronteiras” cognitivas no continuum da natureza, dei por

“encerrada” minha busca assistemática a respeito do tempo sagrado tendo em

vista, o firme propósito de ingressar no Programa de Estudos Pós-Graduados em

Ciências da Religião na Pontifícia Universidade de São Paulo.

Nesta mesma época, e com a intenção de aprofundar o conhecimento a

respeito das noções de Chronos e Kairos à luz das ciências naturais, ingressei em

um grupo de estudos no departamento de Física da Universidade Estadual

Paulista em Guaratinguetá, no qual tive a oportunidade de participar

assiduamente durante o período de dois anos. Após este período em que também

concluí alguns “ritos preparatórios” para o meu ingresso no mestrado, finalmente

atravessei a “soleira da porta” do Programa de Estudos Pós-Graduados em

Ciências da Religião.

Com o objetivo ultimo de aproximar experiências que resultaram tanto da

prática clínica analítica bem como do meu contato com a Física e a História e

Filosofia da Ciência, passei a explorar um novo campo do conhecimento

secundado por disciplinas e pela experiência acadêmica de professores do curso

de mestrado bem como, a transitar entre abordagens e aportes teóricos que

paulatinamente, foram me orientando a como reunir estes fragmentos num tema

conciso de investigação que envolvesse meus dois focos de interesse: a natureza

do tempo e o âmbito do sagrado.

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Vale a pena ressaltar que essa necessidade que norteou um processo de

pesquisa a respeito do tempo sagrado e estendeu-se durante alguns bons meses

do curso de mestrado foi fundamental contribuiu para que eu pudesse

desconstruir a ideia de uma temporalidade única e reconstruir bases teóricas que

pudessem acomodar um objeto de estudo alicerçado em uma investigação

sistemática.

Por patrocinar uma antropologia considerada “de fronteira”, por sua

“versatilidade e originalidade teóricas” por sua “curiosidade intelectual” (DA

MATTA, 1983:19) e principalmente, por suas reflexões a respeito do tempo

sagrado, Edmund Ronald Leach foi classificado como “um caso único” (Ibidem),

entre os antropólogos que contribuíram para o desenvolvimento da antropologia

social inglesa por ter desenvolvido em seu campo disciplinar “os interesses que

valorizava” (SIGAUD, 1996: 12).

Considerando o perfil versátil e inovador desse antropólogo em seu

contexto disciplinar e já tendo contactado os dois ensaios clássicos do mesmo

autor, intitulados respectivamente “Cronos e Chronos” e “Tempo e Narizes

Falsos” adotamos Leach como referencial teórico do presente estudo a partir de

uma decisão conjunta firmada entre esta orientanda e o prof. Dr. Eduardo

Rodrigues da Cruz, orientador desse processo de investigação.

Como indicado Leach toma como referência os elementos mitológicos

associados à noção de Cronos, para desenvolver sua concepção de tempo ritual

caracterizando o intervalo ritual de tempo sagrado não só como um continuum, o

outro mundo ou um intervalo ritual tabu, mas, como parte de uma sequência linear

de fluxo total do tempo em que alterna-se o status da pessoa moral de Normal-

Profano para outro Anormal-Sagrado e assim retroativamente.

Contudo, embora a sequência de fluxo total do tempo em Leach atenda a

concepção durkheimiana de mundo vinculada a compreensão do jogo de

polaridades e sequências duais em que distinguem-se “dois círculos de estados

mentais” (DURKHEIM, 2003[1912]:218), um profano e outro sagrado o

conhecimento a respeito do intervalo ritual de tempo sagrado foi insuficientemente

aprofundado por Leach que o concebeu exclusivamente a partir do ponto de vista

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do tratamento de Cronos. Em decorrência disso, esse intervalo de tempo ritual foi

caracterizado por esse mesmo Leach simplesmente, como uma dimensão do

tempo ritual que encontra-se em oposição ao intervalo de tempo profano.

Isso posto, o principal objetivo deste trabalho visa uma investigação do

intervalo ritual de tempo sagrado em Leach à luz dos significados associados à

noção de Kairos, tendo-se em vista que para algumas antigas tradições da Grécia

antiga Cronos e Kairos, eram considerados dois aspectos distintos e ao mesmo

tempo interrelacionados do mesmo princípio cósmico.

Com a delimitação de nosso objeto de estudo foram realizados

levantamentos bibliográficos e estudos exploratórios em obras de referência de

Leach bem como examinados diversos periódicos científicos, teses e dissertações

que abordavam a teoria do tempo ritual proposta por esse mesmo autor.

No processo de investigação de nosso objeto de estudo sustentamos as

seguintes hipóteses preliminares:

Quando associado ao instante kairológico o intervalo ritual de tempo

sagrado em Leach não é caracterizado como parte de uma

sequência linear de fluxo total do tempo em oposição ao intervalo de

tempo profano. Em outras palavras não é parte da dimensão linear

do tempo.

À luz do tratamento de Kairos, o intervalo ritual de tempo sagrado

em Leach não é separado do domínio do tempo profano por

fronteiras artificiais como ocorre quando interpretado do ponto de

vista do tratamento de Cronos.

À luz dos elementos mitológicos associados ao instante kairológico o

intervalo ritual de tempo sagrado não é separado do intervalo de

tempo profano e neste sentido, não somos regulados socialmente

por um nível cognitivo inconsciente como ocorre quando este

intervalo ritual é interpretado do ponto de vista exclusivo de Cronos.

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Com o propósito de nos aproximarmos de nosso objeto de estudo

examinamos os principais textos de Leach buscando destacar a noção de tempo

ritual que engajamos aos seguintes comentadores: Alfred Gell (2014) que

abordando em detalhes os dois ensaios clássicos de Leach a respeito do tempo

ritual em sua obra A Antropologia do Tempo: Construções Culturais de Mapas e

Imagens Temporais contribuiu com sugestões e especulações a respeito do

tempo sagrado ritual.

Roy Rappaport (2001), que aprofundou os estudos a respeito do tempo

ritual nos forneceu apontamentos seminais para o escopo deste trabalho que

denotam ser uma extensão do referencial teórico apresentados por Leach

referente ao intervalo de tempo sagrado.

Destacando nuances e comentando passagens que denotam aspectos

importantes da trajetória acadêmica de Leach, Roberto da Matta (1983) contribuiu

com seu testemunho requintado, principalmente com relação à estruturação do

contexto biográfico de Leach. As contribuições de Marisa Peirano (2014) e Lígia

Sigaud (1996 foram seminais para configuração desse contexto.

Os comentários de Yasumasa Sekine (1985) contribuiram com nosso

entendimento a respeito do processo de ordenação do mundo de acordo com a

perspectiva de Leach bem como os comentários de G. A. J. Platemkamp (1979)

que nos auxiliaram no processo de compreensão dos dois níveis de cognição –

um consciente e outro inconsciente - envolvidos no processo de socialização e

ordenação do mundo em Leach.

Importante acrescentar que muito embora Alfred Gell (2014:41) assinale

que Edmund Leach vem “exercendo uma influência considerável no tratamento do

tempo em antropologia social”, consideração que confere à Leach uma posição

de destaque na discussão contemporânea a respeito do tempo, raros foram os

estudos que envolviam o tema do tempo ritual sagrado em Leach.

Dentre eles destacamos os textos de Sekine (1985), que discutem as

implicações da teoria da liminaridade quando associada a estudos relacionados a

poluição, a pureza e ao sagrado bem como, os textos de Platemkamp (1979) cujo

interesse encontra-se voltado para a análise estrutural de sistemas de

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classificação animal baseados em termos tabu ou seus eufemismos em

comunidades de pescadores na Escócia.

Isso posto, a redação desse processo de investigação encontra-se

configurada em três etapas distintas, a saber: o primeiro capítulo traz uma breve

contextualização de como desde os primórdios da humanidade o homem, no

intento de explicar as próprias origens, já sentia a necessidade de elaborar

modelos distintos do Universo. Na sequência do capítulo tivemos a preocupação

de abordar algumas cosmologias tradicionais associadas a algumas culturas da

antiguidade, com o objetivo de sumarizar a forma como esses povos se

mobilizaram para desenvolver abordagens únicas a respeito do tempo ritual

sagrado e do cosmos. Em seguida, o capítulo explora as concepções associadas

a noção de tempo na Grécia da antiguidade bem como contextualiza as três

temporalidades cósmicas descritas pelo filósofo Hesíodo em Os Trabalhos e os

Dias, cujo intento foi relatar como configurou-se a condição atual da raça humana

e sua necessidade de trabalho mostrando as temporalidades associadas a esse

processo.

O segundo capítulo tem como finalidade explanar a respeito das influências

e contribuições familiares e acadêmicas que marcaram o processo de formação

da persona do antropólogo social Edmund Ronald Leach tendo em vista um maior

entendimento dos fatores psico-socioculturais que concorreram para que o autor

estruturasse sua concepção de tempo ritual. Na sequência do mesmo capítulo,

fizemos uma revisão dos principais conceitos e resultados teóricos do trabalho de

pesquisa de Leach, a respeito da teoria do tempo ritual, tendo em vista uma

contextualização do intervalo ritual de tempo sagrado interpretado por esse

mesmo autor à luz dos elementos mitológicos associados à noção de Cronos. Ao

final desse capítulo sumarizamos como alguns antropólogos britânicos da década

de 70, conceberam o intervalo ritual de tempo sagrado.

No terceiro e ultimo capítulo da dissertação apresentamos uma discussão

e analise a respeito do tempo ritual sagrado em Leach à luz dos elementos

mitológicos associados à noção de Kairos. Para tanto, focamos nossa atenção em

três questões consideradas fundamentais, pelo mesmo autor, dentro da teoria do

tempo ritual: o intervalo de tempo ritual sagrado considerado por Leach como um

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tempo de continuum; o processo de ordenação do mundo que segundo o

antropólogo social ocorre no período de socialização, na infância separando o

tempo ritual sagrado do tempo social profano; o ciclo “vida-morte-renascimento”

associado segundo Leach ao intervalo de festividades rituais.

Este trabalho que visa uma investigação do intervalo ritual de tempo

sagrado em Leach à luz dos elementos mitológicos associados à noção de

Kairos, pode vir a contribuir com a teoria do tempo ritual concebida por esse

mesmo autor na medida em que privilegia uma modalidade de tempo, distinta e

ao mesmo tempo interrelacionada a temporalidade associada a Cronos.

Uma vez que identifica-se uma lacuna epistemológica, neste processo de

investigação esse estudo pode contribuir para ampliar o horizonte de discussão

teórica entre a antropologia social e as ciências da religião na medida em que,

ambas as disciplinas oferecem premissas e métodos para o desenvolvimento de

novas pesquisas a respeito do intervalo ritual de tempo sagrado cujo campo tem

privilegiado novas tendências necessidades.

Nesse sentido este trabalho deixa certamente em aberto, várias lacunas

que poderão ser preenchidas por novos pesquisadores que tenham como

propósito no futuro aprofundar o conhecimento a respeito do intervalo ritual de

tempo sagrado em Edmund Leach.

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1. FACES DO TEMPO

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Introduzindo a temática, o primeiro capítulo desta dissertação explana a

respeito de como o tempo “entra” na história da humanidade, contextualizando na

sequência alguns modelos cosmogônicos adotados por antigas civilizações,

destacando-se entre outras, o Egito antigo, a Suméria e a Babilônia, a Índia, a

China e a cultura dos Maias com o objetivo de apresentar ao leitor como alguns

povos da antiguidade organizaram-se em torno de crenças, valores e

comportamentos rituais bem como articulavam as relações entre um domínio de

tempo social e outro que denotava ao que tudo indica, um tempo sagrado. Em

seguida, o capítulo apresenta como algumas tradições da Grécia antiga

concebiam a natureza do tempo, bem como defendiam a ideia de que a história

da raça humana encontrava-se associada à três temporalidades distintas,

relativas à três fases cósmicas. Ao final, o capítulo explora uma série de

concepções que caracterizam a modalidade do tempo em Kairos, cujos critérios

serão adotados na discussão e análise de resultados do presente estudo que visa

uma investigação do intervalo ritual de tempo sagrado em Leach, à luz dos

elementos mitológicos associados à noção de Kairos.

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1.1. A Entrada do Tempo na História da Humanidade

O tempo veste um traje diferente para cada papel que desempenha em nosso pensamento.

John Wheeler

Com o olhar voltado para o firmamento, o homem, desde os primórdios da

humanidade, sentiu necessidade não só de contemplar o céu noturno para contar

as estrelas como, principalmente, de explicar a origem, estrutura e evolução do

mundo em que vivia.1

Para Kellen Skolimoski e João Zanetic, a ânsia por desvendar os mistérios

na natureza se traduz, no ser humano, como uma necessidade que “perpassa

qualquer empreendimento científico, considerado como uma busca pelo

entendimento de quem somos, de onde viemos e para onde vamos”

(SKOLIMOSKI; ZANETIC, 2012 :406).

Na introdução da obra Uma Breve História do Tempo, escrita pelo físico

britânico Stephen Hawking (1988), o cientista estadunidense, Carl Sagan, grande

divulgador das ciências, tece uma alusão a perguntas fundamentais, que desde a

infância da humanidade 2 fomentam o espírito humano. Nas palavras de Sagan:

[...] Vivemos o dia-a-dia sem entendermos quase nada do mundo. Pouca atenção damos ao mecanismo que gera a luz do Sol e possibilita a vida; à gravidade, que nos cola a uma Terra que, de outra forma, nos lançaria em rotação pelo espaço; ou aos átomos de que somos feitos e de cuja estabilidade dependemos fundamentalmente. Com exceção das crianças (que não sabem o suficiente para fazer nada mais que perguntas importantes), poucos de nós gastamos muito tempo considerando porque a natureza é do jeito que é; de onde surgiu o cosmo, ou se ele sempre existiu; se o tempo algum dia voltará para trás, fazendo os efeitos antecederem as causas; ou ainda se existem limites máximos para o conhecimento humano. Há até mesmo crianças – eu conheci algumas delas – que querem saber como é o buraco negro; qual é a menor porção da matéria; por que nos lembramos do passado e não do futuro; como se explica, se houve um caos primordial, que agora haja

1 A cosmologia é um ramo da astronomia que lida com a estrutura em grande escala do universo e as

questões de sua origem e evolução. A capacidade de o homem ver o cosmos cresceu e, paralelamente, sua capacidade de raciocinar com base em evidências científicas também cresceu; o assunto passou por uma transformação. Ela deixou de ser um exercício particularmente especulativo e filosófico para se transformar num importante esforço científico no qual fatos e teorias andam de mãos dadas (NARLIKAR, 2012:1).

2 Estas perguntas encontram-se presentes em alguns livros de divulgação científica sobre Cosmologia, como em Asimov (1977), Hawking (1988; 2009).

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ordem (pelo menos, aparentemente); e por que existe um universo. (SAGAN apud HAWKING, 1988).

Certamente que a tendência de o ser humano indagar a respeito do

desconhecido poderia ser mantida a vida inteira, caso o homem não deixasse de

fazer perguntas ou de olhar para o céu em busca de respostas. No que diz

respeito à Leach tudo indica que interessava-se por estas questões consideradas

fundamentais para o conhecimento humano.

Em “Tempo: Esse Velho Estranho Conhecido”, de André Ferrer Martins e

João Zanetic (2002), encontramos um comentário de Platão (427-347 a. C.),

sinalizando a importância de nos mantermos conectados à misteriosa linguagem

da natureza que nos concede diversas pistas acerca do mundo em que vivemos:

[...] Se nunca tivéssemos visto as estrelas, o sol e o céu, nenhuma das palavras que pronunciamos sobre o Universo teria sido dita. Mas a visão do dia e da noite, e dos meses, e as revoluções dos anos, criaram um número e nos deram uma concepção de tempo e o poder de indagar sobre a natureza do Universo. (MARTINS; ZANETIC, 2002:41).

Entretanto, não foi apenas a necessidade de entender as próprias origens

no intento de explicar o mundo em que vivia que levou o homem a investigar

modelos distintos do Universo. A ideia da morte, concebida como a transição de

uma fase da vida à outra, e as mudanças na natureza, consideradas repentinas e

dramáticas, induziram-no, desde o início dos tempos, a introduzir num mundo

evanescente o elemento da permanência (WHITROW, 1993 [1988]: 36).

Em um pequeno trecho destacado da obra O Tempo na História:

Concepções de Tempo da Pré-História até Nossos Dias, 1993, tradução

precedida por uma edição inglesa de 1988, G. J. Whitrow ressalta como as

formas cambiantes na natureza serviram de base a uma interpretação fabulosa do

universo, contribuindo para que o homem desenvolvesse uma investigação

racional do mundo. Segundo o mesmo autor:

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[...] A natureza era vista como um processo de luta entre forças cósmicas e forças caóticas demoníacas, da qual os seres humanos não eram meros expectadores: cabia-lhes desempenhar, agindo em plena consonância com a natureza, um papel ativo que auxiliaria a promoção dos fenômenos necessários. (WHITROW, 1993 : 38).

Essa busca de fatores permanentes, subjacentes ao padrão sempre

mutante dos eventos, levou o homem, a ”avaliar a significação do tempo”

(Ibid.:99) e, naturalmente, a desenvolver o instrumental necessário para mensurá-

lo.

Aprendendo aos poucos sobre as fases da lua, o movimento do Sol, das

estrelas, a recorrência do dia e da noite e antevendo a época das enchentes, da

semeadura e das colheitas, o homem passou a medir os grandes intervalos de

tempo através de calendários e outros instrumentos de medição.

Martins e Zanetic (2002) concordam que a ideia do fluir do tempo, e o

desenvolvimento dos primeiros processos e instrumentos de medição, estiveram

conosco desde o início dos tempos. Os autores sinalizam a respeito desse

assunto que:

[...] isso deve ter ocorrido no período paleolítico quando, devido à necessidade de produzir mais alimentos, provocada pela concentração de grupos humanos, surgem nas terras férteis encontradas às margens dos grandes rios as civilizações da Mesopotâmia, Egito, Suméria, entre outras. Ao lado das benesses oferecidas pelos rios, essas populações sofriam quando ocorriam inundações que tinham terríveis consequências. [...] Aos poucos essas populações foram aprendendo a associar o ciclo da fertilidade do solo, fundamental para a nascente agricultura, ao movimento cíclico dos corpos celestes. (MARTINS; ZANETIC, 2002:41).

De acordo com Ramdas Lamb, “historicamente, vários povos foram se

organizando e desenvolvendo abordagens únicas, sob a forma de sistemas de

crenças, valores e comportamentos” (LAMB, 2009: 1259, tradução nossa), com o

objetivo de aprender a lidar com a sucessão de fenômenos e fases, de mudanças

naturais. Em decorrência dessas experiências que interpretavam e davam uma

“forma” ao tempo, o homem elaborou os primeiros modelos cosmológicos,

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lineares e cíclicos, que ofereciam na vida diária respostas a respeito do mundo

natural.

O texto de Lamb (2009) nos esclarece a respeito destes dois aspectos do

tempo, que ao longo da história foram sendo incorporados ao sistema de valores

e crenças de diferentes civilizações e culturas. O mesmo Lamb explicita que em

muitas culturas tradicionais e sistemas de crenças:

“[...] o aspecto linear do tempo é importante, pois, explica distinções, crescimento e mudança. Ao mesmo tempo, ele é visto como sendo simplesmente, uma parte de uma dimensão maior, cíclica ou circular, muito mais abrangente e que pode ser divisada na rotação diária da Terra, no ciclo lunar, nas estações do ano, na migração dos animais, e assim por diante. Desde a infância e, ao longo de sua vida o ser humano testemunha e vivencia os ciclos do tempo, tanto na natureza quanto em si mesmo. Para sobreviver, os primeiros seres humanos tiveram de adaptar-se a esses ciclos, percebendo-se como parte deles; esta adaptação foi maior entre os povos rurais, cujo trabalho dependia dos ciclos naturais e da integração entre homem e natureza, na vida diária.” (LAMB, 2009: 1259, tradução nossa).

Ao que tudo indica, embora a “carruagem do tempo” 3 tenha sido percebida

por determinadas culturas como um tempo que “avançava”, isto é, de um ponto

de vista linear ainda assim o aspecto cíclico do tempo, parece ter norteado maior

parte dos processos de adaptação e sobrevivência do ser humano, desde a

infância da humanidade. De acordo ainda com Leach “em algumas comunidades

primitivas, não sofisticadas” (LEACH, 1974:195) o processo do tempo não era

percebido como um “seguir sempre e sempre na mesma direção” (Ibidem), ou um

“girar, girar em uma mesma roda” (Ibidem) mas, como oscilações repetidas

Segundo Lamb (2009), o aspecto do tempo que provavelmente mais

marcou a experiência humana na interação com a natureza foi o da

impermanência dos eventos. O mesmo autor acrescenta que:

3 A expressão “carruagem do tempo” empregada pelo antropólogo Edmund Leach, para expressar a sensação

de passagem do tempo ou de que o tempo “avança”, pode ser encontrada no ensaio desse mesmo autor intitulado “Dois Ensaios a Respeito da Representação Simbólica do Tempo”. In: Repensando a Antropologia. São Paulo: Editora Perspectiva. 1974:204.

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“[...] o tempo cíclico ou, o tempo circular, não requer um começo ou um fim. Assim é que, aqueles cuja crença se sustenta no tempo cíclico, não precisam conceituar um final de tempo, para a humanidade e a existência. Ao contrário, a tendência é imaginar uma realidade que simplesmente sempre foi e sempre continuará. Isso não significa dizer que as criações não ocorrem, mas sim, que de um modo geral, elas fazem parte dos ciclos, assim como todos os aspectos da realidade.” (LAMB, 2009: 1259, tradução nossa).

Defendendo a ideia de que Heráclito (535 - 475 a. C.), o filósofo grego, “foi

o primeiro a considerar a inevitabilidade da mudança e a necessidade de se

compreender sua natureza”, Betty A. Gard, que pesquisa cosmologias cíclicas,

nos oferece em “Cosmology, Cyclic” (2009), um panorama histórico dos

processos de mudança que abarcaram o pensamento ocidental, no que diz

respeito à perspectiva cíclica do tempo. (GARD, 2009: 223, tradução nossa).

Para essa mesma autora, a perspectiva ocidental a respeito do tempo

favoreceu as cosmologias cíclicas, até o momento em que a interpretação cristã

do Livro do Génesis substituiu a crença nos ciclos pela ideia de progresso; apesar

disso, sustenta Gard (2009), o ser humano não desvinculou-se das teorias

cíclicas, que continuam a emergir no âmbito das ciências. Ilustrando esta questão

Gard (2009) contextualiza que:

“[...] no Século XVIII, James Hutton, considerado o fundador da geologia moderna, referiu-se ao processo recorrente de destruição e renovação do ‘grande ciclo geológica’. No final do século XIX, o filósofo alemão Friedrich Nietzsche desenvolveu a teoria de que, dada a natureza ilimitada do tempo, os eventos deveriam inevitavelmente, recorrer. Vários modelos cíclicos que não resistiram ao teste do tempo foram propostos entre 1920 e 1930 pelo cosmólogo Richard C. Tolman, entre outros. Mais recentemente, os cosmólogos Paul J. Steinhardt e Neil Turok introduziram um modelo cíclico do universo, descrevendo a teoria do ‘Big Bang’4, ressaltando ambos, ser esta a teoria dominante nos últimos 40 anos.” (GARD, 2009: 223-224, tradução nossa).

4 Na perspectiva do físico teórico, Stephen Hawking (2009), a descoberta da expansão do universo foi uma

das maiores revoluções intelectuais, do século XX. Para o autor, essa descoberta não foi apenas surpreendente no meio científico como alterou completamente a discussão da ciência em torno da origem do universo. Defendendo a ideia de que o início do universo deve ser compreendido com base na ciência, Hawking, sustenta que “o universo começou em um ‘Big Bang’, um ponto em que todo o universo e tudo dentro dele estavam comprimidos em um único ponto, de densidade infinita.” (HAWKING, 2009: 79).

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Como é possível constatar, o aspecto da recorrência dos ciclos, continua

acompanhando o imaginário humano, quando se trata do desenvolvimento de

concepções alternativas, sobre modelos distintos do universo. Muito embora a

teoria do tempo ritual apresentada por Leach enfatize a natureza não cíclica do

tempo de acordo com Alfred Gell é “a propriedade da ‘recorrência’ dos eventos

repetidos” (GELL, 2014:41) que importa para aquele autor caracterizando-se o

processo da recorrência, em oposição à ocorrência simples dos eventos, como

um aspecto relevante no que diz respeito a dimensão do tempo ritual.

1.2. As Faces do Tempo em Culturas Tradicionais

1.2.1. Egito Antigo

Não existe um mito único que possa descrever como os antigos egípcios

entendiam a estrutura do universo (SKOLIMOSKI e ZANETIC, 2012: 411).

Segundo Rogério Ferreira de Souza, autor de “O Imaginário Simbólico da Criação

no Antigo Egito”, inúmeros textos da antiguidade, que contextualizam relatos

acerca do processo de criação do universo, mostram-se “diversificados e repletos

de contradições.” (SOUZA, 2006: 314-315).

Para Souza (2006), isto ocorre devido às inúmeras leituras e reinter-

pretações dos mitos egípcios mais antigos, que resultam em uma “lenta justa-

posição de imagens e símbolos”, ao longo dos milênios, derivando esse processo

numa diversidade de versões a respeito da criação do mundo. Em vista disso, a

maior parte dos textos antigos “redigidos no interior das pirâmides do rei Unas

(2375-2345 a. C.), e dos faraós da VI dinastia (2345-2181 a. C.)” raramente,

apresenta um relato “organizado e completo” (Ibidem). Apesar disso, o que se

constata é que os egípcios interpretavam o universo em função de um imaginário

simbólico, “inesperadamente coerente e até uniforme.” (Ibidem).

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Um comentário de Asclépius III (25), extraído dos “Textos Herméticos”, e

identificado na obra Cosmologia Egípcia: o Universo Animado, do escritor Moacyr

Gadalla (2003), ressalta que, subjacente a todas as ações imanentes dos

egípcios, encontrava-se um imaginário simbólico, que refletia uma ordem e um

equilíbrio cósmicos. O mesmo Gadalla afirma que:

[...] no Egito, todas as ações das forças que governam e atuam nos céus

foram transferidas para a Terra [...] deve-se dizer que todo o cosmos

habita no Egito, como em seu santuário. (GADALLA, 2003: 21).

Em se tratando dessa conexão entre eventos sociais e forças naturais, que

acreditavam os egípcios irmanava Céu e Terra, Corrine W. Koepf (2009)

acrescenta ainda que dentro do sistema de crenças dessa antiga civilização a

concepção de tempo era considerada uma parte vital da experiência social.

Segundo a mesma autora os egípcios:

“[...] acreditavam que todas as coisas se encontravam conectadas em um ciclo contínuo, de vida, morte e renovação sendo esta crença uma resposta natural aos fenômenos observados por eles, ao redor do mundo. [...] Tudo ao redor dos egípcios comprovava que os ciclos de vida tinham uma continuidade. Tal ideia levou os egípcios à comungarem com a crença de que o mundo havia sido criado em um estado de perfeita ordem e que esta nunca seria desfeita. Eles adoravam a deusa Maat, que representava ordem, equilíbrio, justiça e igualdade. Essa reverência à deusa Maat, conduziu esta civilização em direção ao dsenvolvimento de um código da chamada moral Maat, que serviu como um guia para todos, começando pelo faraó e estendendo-se até o pessoas comuns.” (KOEPF, 2009:223-225, tradução nossa, grifos do autor).

Como indicado, para os antigos egípcios, que “concebiam o tempo como

uma sucessão de fases recorrentes e tinham muito pouco sentido de história”

(WHITROW, 1993 [1988]: 38), os incidentes históricos não passavam de “pertur-

bações superficiais” da ordem estabelecida considerada por esta civilização como

“estática e imutável” (Ibidem).

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Consideramos ser relevante contextualizar um breve trecho registrado por

Souza (2006), que ilustra não apenas o mito egípcio da criação, como nos fornece

uma base do imaginário simbológico desta civilização que percebia como pilares

da criação quatro regiões do universo: Céu, Terra, Mundo Inferior e Caos

(SOUZA, 2006: 315). Nas palavras do próprio Souza (2006), o mundo anterior à

criação era percebido pelos antigos egípcios:

[...] como um oceano primordial, o Nun, cujas águas caóticas continham, em potência, toda a criação. Na religião egípcia, o papel das águas do Nun, era ambivalente e revestia-se de um significado simultaneamente negativo e positivo. À semelhança da cheia que submergia tudo mas fertilizava o solo do Egito, o Nun, infinito, sem forma, caótico e insondável era também a fonte de regeneração do mundo e continha em potência todas as possibilidades da criação5. [...] Foi desse mundo informe que emergiu um elemento essencial das cosmogonias egípcias que assinalava o início da criação: a colina primordial. [...] De uma forma geral, a colina primordial ilustrava as duas faces latentes na Mônada inicial: por um lado possuía uma dimensão ctônica, associada aos poderes regenerativos da terra, por outro, revestia-se de uma dimensão solar, já que era desta colina que o deus Sol, na forma de uma criança, emergira e iniciara a criação do mundo (Ibidem, grifos do autor).

Como indicado por Souza (2006), para os antigos egípcios todo o

dinamismo da criação originava-se a partir do Num, o oceano primordial e

informe, a partir do qual ocorria uma espécie de separação prototípica, entre uma

dimensão ctônica e outra celeste. Em outras palavras e de acordo com o mesmo

Souza, ocorria um processo de “diferenciação sexual” (Ibid.: 317) em que

separavam-se os princípios masculino (Céu) e feminino (Terra) sendo, ambos,

dois aspectos distintos do mesmo princípio básico, universal (Num).

Importante sinalizar que esse dinamismo cósmico encontra uma certa

ressonância com o processo de ordenação do mundo em Leach a partir do qual

uma criança, antes de distinguir “o mundo como sendo composto por um grande

número de coisas separadas” (LEACH, 1972:47 apud PLATENKAMP,1979:174)

percebe o mundo como algo informe, contínuo, constituindo-se essa continuidade

na natureza uma espécie de “substância generativa” (ONIANS,2010[1951]: 248,

tradução nossa) como acreditavam algumas tradições da Grécia antiga.

5 Cf.: Notas sobre TOBIN, «Creation Myths», em REDFORD, Oxford Encyclopedia of Ancient Egypt, Vol. II, p. 469 (SOUZA, 2006: 317).

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Souza (2006) acrescenta ainda em relação ao mito egípcio da criação que

a diferença entre:

[...] o caos primordial e a criação, era expressa através do contraste entre a unidade e a multiplicidade, o qual foi traduzido numericamente na oposição entre o “um” e o “dois”. Na numerologia sagrada, a unidade exprimia a inércia do caos anterior à criação, ao passo que “duas coisas” exprimiam a diversidade da criação. 6 (SOUZA, 2006, 317).

Para os antigos egípcios havia um interjogo entre opostos aos quais eles

denominavam Shu e Tefnut, o primeiro par de oposições exprimindo a diversidade

da criação que originava-se a partir de um princípio cósmico criador (Num ou

Atum). De acordo com Gadalla (2003) essa trindade representada por Atum, Shu

e Tefnut, ilustrava o papel metafísico do número três ou a triangulação da criação

que era expressa na seguinte equação: “cada unidade é uma força tripla e tem

uma natureza dupla.” (GADALLA,2003: 45).

Como não é difícil observar, para os antigos egípcios a numerologia

sagrada e a linguagem simbólica desempenhavam um papel importante na cons-

tituição de sua cosmologia.

Isto parece ficar explicitado na obra Aproaches to the Study of Time in the

History of Religions, em que o historiador das religiões, Michael Stausberg, afirma

que “a noção de temporalidade, expressa na linguagem semito-hamítica dos

egípcios, enfatizava a crença em um sistema bipartido do universo”

(STAUSBERG, 2003: 249, tradução nossa). O mesmo Stausberg assinala que os

egípcios estabeleciam uma distinção entre um tempo de “perfeição” e outro, que

denotava “imperfeição” (Ibidem), ocorrendo essa diferenciação a partir da

estrutura da linguagem.

Vale a pena assinalar que Leach também enfatiza e adota em sua

concepção de tempo ritual o sistema de crenças de algumas tradições da antiga

Grécia, que concebiam o tempo como um princípio cósmico que abarcava

opostos. Como será também explanado mais adiante em Leach é através do

6 Cf.: Textos dos Sarcófagos, II, 396 b; III, 383 a.C., citado em SOUZA (loc.cit.).

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processo de socialização, na infância, que emerge do contínuum na natureza a

noção de um tempo social, descontínuo; diferenciação que processa-se a partir

da estrutura da linguagem.

Retomando o tema da temporalidade entre os antigos egípcios

assinalamos a contribuição do arqueólogo e egíptólogo, Jan Assmann (1983),

citado na obra de Stausberg (2003) ao argumentar que para esta antiga

civilização existiam:

“[...] duas palavras às quais, dependendo do contexto, eram traduzidas como ‘tempo’ ou ‘eternidade’, respectivamente: neheh e djet. Estas duas palavras, eram naturalmente, bastante disputadas em Egiptologia. [...] neheh seria uma espécie de aspecto ‘virtual’ do tempo, enquanto djet, um aspecto que resultaria do tempo ‘virtual’. De acordo com os textos egípcios (“the Egyptinas” como Assmann faz referência) por exemplo, neheh é contextualizado como ‘amanhã’ e djet como ‘hoje; entretanto, isso não representa uma noção de futuro ou de presente e sim refere-se a noção de uma potencialidade virtual que significa eventualmente materializar uma situação de fato. [...] Em egípcio não há um termo genérico para ‘tempo’ além da dualidade de neheh e djet. Ao invés, a palavra ‘tempo’ que inclui eternidade representa o conjunto da interação entre ‘neheh’ e ‘djet’.” (STAUSBERG, 2003: 250, tradução nossa).

Como assinalado por Stausberg (2003), o par de opostos neheh e djet,

representa, dentro do código simbólico da antiga civilização egípcia, o aspecto

dual do “tempo”, cuja concepção integra tanto um aspecto virtual, potencial, do

tempo quanto um outro, denotando um tempo manifesto.

Ao adotarmos um paralelo entre esse aspecto dual do tempo segundo a

crença dos egípcios e os dois aspectos do tempo ritual - profano e sagrado -

propostos em Leach e configurados em sua concepção de um fluxo total do

tempo ritual talvez possamos levantar uma suposição de que “neheh” e “djet”” em

interação, denotavam um tempo eterno, que a tudo abarca (kairológico) enquanto

“djet” denotava o tempo social, profano, e nesse sentido um tempo manifesto

(cronológico).

Gadalla (2003) acrescenta em relação ao mesmo assunto que o par de

opostos, “perfeição” e “imperfeição”, ou “neheh” e “djet” ou, como tudo indica

eternidade e tempo, exprimia para os antigos egípcios “a natureza dualista

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equilibrada de todas as coisas” (GADALLA, 2003: 39), representando, cada

elemento da díade, um aspecto distinto embora interrelacionado do mesmo

princípio cósmico fundamental.

Segundo a perspectiva adotada por Stausberg (2003), para essa antiga

civilização “todas as coisas encontravam-se inclusas no simbolismo do

Ouroborus7, a serpente que morde e engole a própria cauda” (STAUSBERG,

2003: 250).

Figura 1: Ilustração da Ouroborus Fonte: http://www.arthurimiller.com (Acesso em 27/01/15)

7 A Ouroborus ou Urobóros, que na linguagem simbólica representa a “serpente que morde a própria cauda”,

denota segundo Alain Gheerbrant e Jean Chevalier (1997),“um ciclo de evolução encerrado em si mesmo”. Contendo simultaneamente as ideias de movimento, autofecundação, continuidade e, em consequência, de eterno retorno, este símbolo deu lugar a uma interpretação adicional: a união do mundo ctônico, figurado pela serpente, com o mundo celeste, figurado por um círculo. (GHEERBRANT; CHEVALIER, 1997 [1982]: 922). Esta simbologia que de acordo com os mesmos autores representa “a união de dois princípios opostos, a saber, o Céu e a Terra, o bem e o mal, o dia e a noite, o Yang e o Yin chinês, e todos os valores que estes opostos comportam”, não somente “rompe com uma evolução linear e marca uma transformação de tal natureza que parece emergir para um nível de ser superior, o nível do ser celeste ou espiritualizado” (Ibid.: 923). Ao girar em torno de si mesma, a Ourobóros evoca imagem da dinâmica universal, cujo movimento é infinito. Frequentemente representada na forma de uma corrente retorcida, cria o tempo, como a vida em si mesma. Desempenha um papel dialeticamente positivo entre os gregos, onde cumpre-se o ciclo perpétuo de regeneração. (Ibid.: 814-825).

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Concebido pela simbologia sagrada dos antigos egípcios como o “símbolo

mais proeminente da imagem de tempo contínuum” (Ibidem), a Ouroborus,

representava para esta civilização o movimento circular de eterno fluxo da

existência a conjugar os aspectos virtual e manifesto do tempo (Ibidem).

Em outras palavras, dentro do código simbólico dos antigos egípcios havia

um princípio cósmico, circular, coordenando as dimensões manifesta e virtual do

tempo, o que nos leva a presumir que em Leach as dimensões profana e sagrada

que integram o fluxo do tempo ritual são também coordenadas por um princípio

cósmico universal como concebiam algumas tradições da Grécia antiga. De

acordo com Whitrow, para os antigos gregos:

[....] o mundo era baseado numa única substância viva que ocupava

todo o espaço, a partir da qual todas as coisas se teriam desenvolvido

espontaneamente, pelo interjogo de processos opostos como os de

separação e combinação, ou rarefação e condensação. (WHITROW,

1993 [1988]:53).

Em “Calendar Egyptian”, Robert Bollt, sumariza este mesmo assunto não

sem ressaltar que “os egípcios viam a si mesmos como passando por um único

continuum, ainda que dentro de uma experiência temporal cíclica, na qual se

manifestavam dois aspectos distintos: um temporal e outro eterno” (BOLLT, 2009:

127, tradução nossa).

A título de complementação, e segundo o mesmo autor, a “fórmula que

integrava ‘neheh’ e ‘djet’, como um tempo único, de continuum, era empregava

apenas, quando se fazia referência ou se desejava vida eterna ao faraó” (Ibidem).

Ao que tudo indica, assim como os antigos egípcios concebiam um aspecto

temporal e outro eterno que encontravam-se interrelacionados também Leach

adota em sua teoria do tempo ritual, um aspecto temporal denominado de tempo

profano - representado pelo tempo social, descontinuo – bem como outro, eterno,

- representado pelo tempo continuum ou intervalo ritual tabu de tempo sagrado –

sendo ambos distintos embora interrelacionados.

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1.2.2. Suméria e Babilônia

O que se sabe a respeito dos antigos sumérios e babilônios é que viveram

em regiões da Mesopotâmia cujas planícies abundavam em terras férteis,

localizadas entre os rios Tigre e Eufrates.

Dentre as civilizações mais antigas, a cultura mesopotâmica do século IV a.

C. em diante foi a primeira a registrar os movimentos do Sol e dos planetas; e o

fizeram com tal engenhosidade que esse esforço acarretou o desenvolvimento de

um sofisticado e sistematizado conhecimento acerca do universo.

Com relação a noção de tempo, associada à esta civilização, tudo indica

que as investigações astronômicas que eram as mais proeminentes deviam-se às

observações da lua, uma vez que o calendário dos babilônios era baseado em

ciclos lunares. Além de inventores dos primeiros calendários, deve-se também a

esta antiga cultura a primazia de terem identificado o “zodíaco”, o cinturão ao

redor do céu, onde se encontravam alinhados os planetas e os astros

(WHITROW, 1993 [1988]: 46-47).

Segundo Whitrow (1993 [1988]), o céu da antiga Babilônia era projetado

por uma atmosfera mítica que refletia a mentalidade “supersticiosa” desses povos

mesopotâmicos (Ibidem) o que nos leva a considerar que para os antigos

babilônios e sumérios a atividade de observar o panorama celeste não tinha

qualquer função eminentemente prática, que visasse o aperfeiçoamento, por

exemplo, de seus calendários. Ao invés, o conhecimento referente aos períodos

de lunação e a contemplação dos astros, tinha como principal meta identificar

sinais e presságios no céu, para que pudessem nortear a vida em sociedade.

Com este propósito, babilônios e sumérios conferiam uma atenção especial

aos períodos de sete dias, associados às fases lunares, já que dentro de seu

sistema de crenças, ao término deste período predizia-se um “dia maligno” (Ibid.:

47). Neste sentido, não nos parece inadequado presumir que os antigos povos

mesopotâmicos interagiam constantemente com o universo e, com os sinais

presentes na natureza, apenas com o intento de tentar predizer os rumos da vida

social.

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Isso também significa dizer que apesar dessa constante interação com os

fenômenos naturais e do elaborado conhecimento matemático desenvolvido no

processo de observação dos astros, tanto os sumérios quanto os babilônios não

construíram um modelo cosmológico que concorresse para explicar as próprias

origens ou dar um sentido ao universo observado (SKOLIMOSKI; ZANETIC,

2012: 409).

Consideradas as mais adiantadas da época, as habilidades astronômicas

destas ambas as civilizações, que superavam inclusive, aquelas desenvolvidas

pelos egípcios, derivavam ao que tudo indica não de um “interesse científico, mas

sim, místico” (Ibidem).

Uma passagem identificada no conhecido épico, A Epopéia de Gilgamesh

ilustra essa tendência mística dos antigos povos mesopotâmicos, mostrando que

no sistema de valores e comportamentos dessas antigas civilizações havia uma

uma crença na influencia dos astros sobre o destino dos homens. (WHITROW,

op. cit.). A passagem que ilustra tal tendência é expressa do seguinte modo:

[...] Não há permanência. Construímos uma casa para se manter para sempre, selamos um contrato para vigorar por todo o tempo? Irmãos dividem uma herança para guardá-la eternamente, o tempo do rio das cheias perdura? [...] Desde os velhos tempos não há permanência (SANDERS, 1960 apud WHITROW, 1993 [1988]: 44).

Ao que tudo indica para os povos mesopotâmicos a ideia de um progresso

linear excluía a possibilidade de que a história fosse portadora de qualquer

sentido. Isso se devia ao fato destas civilizações não atribuirem qualquer tipo de

significado ou importância aos eventos sociais, já que seu sistema de valores e

crenças apoiava-se na idéia de que os eventos profanos não sobreviviam à

influência “devastadora”8 dos ciclos, sempre impermanentes na natureza (Ibidem).

O mito da criação conhecido como Enuma Elish, que remonta a cerca de

4.000 anos, considerado o épico mais importante para compreensão da

8 De acordo com Whitrow (1993 [1988]), os habitantes da antiga Mesopotâmia eram obrigados, a “enfrentar

variações climáticas, ventos cortantes, chuvas torrenciais e enchentes devastadoras que escapavam ao controle” dessa civilização. Em função disso, a mentalidade dos povos mesopotâmicos era marcada por crenças que reproduziam “esse elemento de força e violência da natureza” (WHITROW, 1993 [1988]: 43).

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cosmovisão babilônica, ilustra a crença desses povos mesopotâmicos na ideia de

“impermanência” de todas as coisas, estreitamente vinculada, segundo Martins

(1994), citado por Skolimoski e Zanetic (2012: 410), à percepção de passagem e

mudança dos ciclos naturais.

O texto abaixo destacado, de Skolimoski e Zanetic (2012), descreve em

relação a este mesmo assunto que existiam apenas:

[...] dois deuses primordiais que eram um tipo de água primitiva, Apsu, o pai, que representava as águas abaixo da terra e Tiamat, a mãe, que representava o mar. Dessas águas vão surgindo diversos deuses, filhos de Apsu e Tiamat, mas logo em seguida os deuses primordiais se arrependem de sua criação e decidem matar todos os deuses. Mas, Apsu é morto por um de seus filhos. Tiamat, reúne um exército de feras e bestas contra eles, ela é derrotada, em uma batalha épica por Marduk9, o criador dos céus, da terra, dos homens e de todas as outras coisas (SKOLIMOSKI e ZANETIC, 2012: 410).

Como não parece difícil perceber, reaparece no contexto cosmogônico dos

povos mesopotâmicos a crença em um sistema cósmico defendendo a ideia de

que a natureza da realidade é dual (“Apsu” e “Tiamat”), sendo representada por

dois princípios distintos e interrelacionados: um masculino (o pai) e outro feminino

(a mãe), respectivamente.

Para esses povos emerge a imagem primordial do tempo, como uma

totalidade que reúne ambos os princípios no processo de criação do mundo. Esse

aspecto também pode ser identificado na teoria do tempo ritual em Leach, para

quem a imagem primaria do tempo encontrava-se associada a metáfora do coito

sexual entre Céu e Terra, representantes dos princípios masculino e feminino,

respectivamente, a partir dos quais emerge todo o processo de criação do mundo.

Whitrow acrescenta a este assunto que com o objetivo de marcar a

passagem do tempo e manter “a harmonia entre Terra e Céu” (WHITROW, op.

cit.: 45), os povos mesopotâmicos celebravam intervalos de festividades rituais,

9 Marduk, embora não fosse o mais antigo dos reis babilônios, personificava uma divindade específica,

associada à Babilônia, cuja supremacia sobre outros deuses tinha a finalidade de assegurar um propósito teológico-político. Quando o Enuma Elish, o épico da criação, era recitado liturgicamente, por sacerdotes babilônios, o nome de Marduk não aparecia representando uma divindade do passado e sim um deus do presente cuja intenção era afirmar sua supremacia na Terra (WHITROW, 2005 [1972]: 20).

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que ocorriam com a chegada do Ano Novo, restabelecendo a fertilidade da terra e

afirmando a “a vitória sobre o caos” (Ibidem), melhor dizendo, a vitória da ordem

social sobre o caos identificado na natureza. A respeito destes intervalos de

festividades rituais, nós os identificamos na teoria do tempo ritual em Leach e

sobre eles, falaremos mais adiante no segundo capítulo dessa dissertação.

1.2.3. Índia

Em “Time in Religions”, Ramdas Lamb (2009) argumenta que embora

exista “uma variedade de conceitos hindus a respeito do tempo, incluindo

cosmogonias e escatologias” ainda assim “todos se encaixam no conceito de uma

realidade cíclica” (LAMB, 2009:1103, tradução nossa) refletindo o processo cíclico

de “criação e destruição periódicos, do universo” em que acreditavam estes povos

indianos. (Ibidem). Nas palavras do mesmo Lamb:

“[...] A mais antiga escola de filosofia propõe que o conceito de tempo, Sãmkhya, representa uma dualidade eterna e atemporal: Purusha (masculino) e Prakriti (feminino). O primeiro conceito (Purusha), é visto como uma consciência imutável que sustenta toda a existência, enquanto o segundo (Prakriti), representa a realidade material sempre em mudança. [...] Os Purunas, uma série de textos antigos, considera que cada um [referindo-se aos conceitos de tempo, nas várias escolas filosóficas] possui sua própria cosmologia, mas todos tendem à configuração acima [referindo-se ao ciclo de criação e destruição do universo.” (LAMB, 2009: 1103, tradução e interpolação nossa).

Como é possível se perceber na exposição de Lamb, para o pensamento

hindu, a natureza do tempo era representada a partir de dois princípios básicos,

eternos e atemporais: Purusha, o princípio masculino, que sustentava a existência

e, Prakriti, o princípio feminino, sempre em transformação. Ainda, Lamb

prossegue ressaltando que na crença desta antiga civilização boas ações:

“[...] conduzem a resultados positivos, e ações ruins, a resultados ne-gativos. Embora o conceito pressuponha causa e efeito, a orientação para essa meta dentro de um período de tempo linear encontra-se em

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total acordo com o conceito cíclico, presente nestas tradições.” (LAMB, 2009: 1102, tradução nossa).

Ao que tudo indica, parece ser um traço geral do pensamento hindu a

crença em uma realidade que nada mais representa “senão existências

momentâneais semelhantes aos sucessivos fotogramas de um filme” (WHITROW,

1993 [1988]: 104), e cujo fundamento, no que diz respeito às relações causais,

apoia-se na noção de que é “natural começar com o efeito e remontar à sua

causa.” (Ibid.: 105-106).

Whitrow (1993) acrescenta na mesma pauta que tal noção mostra uma

tendência de se eliminar o tempo, uma vez que efeito e causa são ambos

concebidos como copresentes na mente do indivíduo. De acordo com o mesmo

Whitrow, nessa maneira de se pensar o tempo pode:

[...] ser contrastada com os processos de pensamento da ciência ocidental, em que se considera que a marcha dos fenômenos tem uma direção temporal definida e única, da causa ao efeito (WHITROW, 1993 [1988]: 105-106).

Como sugere esse autor, enquanto a ciência ocidental apoia-se na ideia de

que a flecha do tempo avança, no sentido do “progresso”, para o pensamento

hindu, a flecha do tempo, retrocede, uma vez que todo efeito retrocede à sua

causa. Veremos mais adiante que em Leach o tempo profano avança e e o tempo

sagrado “ou seja o tempo dos rituais de restauração do mundo quando o tempo

retrocede a fim de devolver-nos para o inicio de tudo.” (GELL, 2014:39) para,

colocando em cheque a noção de tempo ocidental bem como flecha do tempo

dos hindus.

Whitrow (1993) argumenta ainda em relação ao sistema de crenças dessa

antiga civilização que, de acordo com a “teoria da momentaneidade de todas as

coisas” (WHITROW,1993[1988]:104-105), formulada pelas tradições dos

sautrânkitas, uma seita budista que surgiu por volta do século II ou I a. C.:

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[...] o conceito de entidade que aparece apenas por um instante e depois desaparece era usado pelos budistas para provar que tudo é mera aparência e que a realidade absoluta escapa ao domínio do intelecto [...] Já no século VI a. C., no tempo em que Buda e Mahavira viveram [...] as especulações filosóficas referentes ao tempo formavam a parte essencial de uma filosofia indiana particular, conhecida como kalavada [...] o termo kala era originalmente empregado pelos hindus no Rigveda10, para denotar “o momento certo” em conexão com o ritual sacrificatório. Mais tarde, passou a denotar “tempo” em geral e foi usualmente empregado neste sentido em textos sânscritos. No período védico, a ideia abstrata de tempo era considerada o principal princípio do universo, mas não se sabe se o tempo foi transformado num Deus. A palavra kala foi associada entretanto, a kali, “a Negra”, uma das formas da esposa do deus Siva. O tempo era visto como negro e associado à Siva, deus da destruição, por ser duro e impiedoso (Ibidem).

Ao que tudo indica os indianos não tinham tanto interesse pela medição do

tempo segundo uma perspectiva social. Isto parece ficar claro ao identificarmos

que muito mais interessados em formular elaborados “ciclos cósmicos de vastas e

terrificantes proporções” (Ibid.: 105), quando os “eventos passageiros eram

considerados” sem “significação real” (Ibidem), desconsideravam a associação

entre eventos sociais e datas exatas como é usual, marcarmos no ocidente. Nesta

direção, a realidade social do ponto de vista do antigo pensamento indiano era

considerada uma grande ilusão, já que o tempo, era tido como um fator que

ludibriava a visão humana para a busca de bens materiais.

Embora não possamos considerar que a teoria do tempo ritual em Leach

denote momentaneidade como sustenta a filosofia dos hindus, para esse mesmo

Leach o tempo não possui qualquer profundidade histórica, sendo o passado

apenas o oposto do presente.

1.2.4. Os Maias

De todas as culturas conhecidas, a civilização dos maias era considerada a

mais obcecada pela ideia de tempo, embora tenha sido destinada a permanecer

10 As fontes mais antigas, que tratam da cosmologia indiana, encontram-se nos textos sagrados do livro Rig

Veda e estudos voltados para esta área, estimam que esse livro seja anterior a 3110 a. C. O fato é que no Rig Veda já existem referências astronômicas que remontam a eventos ocorridos no terceiro ou quarto milênios a. C. (SKOLIMOSKI e ZANETIC, 2012: 412).

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totalmente isolada tanto da Europa quanto da Ásia, até muito depois de seu

declínio (WHITROW, 1993 [1988]: 109). Isto significa dizer que esta antiga

civilização desenvolveu seu próprio sistema de valores e crenças não sofrendo a

noção de tempo, quaisquer influências vindas do exterior.

Esta cultura que surgiu por volta do ano 1800 a. C., na região da

Mesoamérica, e teve seu apogeu entre 600 e 900 d. C. e corresponde

atualmente, ao sudeste da cidade do México, Belize, Guatemala e das partes

setentrionais de Honduras incluindo a cidade de El Salvador desenvolveu

segundo Skolimoski e Zanetic, interesses astronômicos, que tiveram um caráter

muito mais religioso que científico ou filosófico (SKOLIMOSKI; ZANETIC, 2012:

408).

De acordo com Whitrow (1993), enquanto na antiguidade europeia os dias

da semana eram considerados submetidos à influência dos principais corpos

celestes – dia de saturno, dia do sol, dia da lua e assim por diante - para os

maias, cada dia era representado por um deus sendo as divisões do tempo,

representadas, segundo o mesmo autor:

[...] por cargas transportadas por uma hierarquia de carregadores divinos que personificavam os números pelos quais se distinguiam os diferentes períodos de tempo: dias, meses, anos, etc. [...] A despeito de sua constante preocupação com os fenômenos temporais, os maias nunca atingiram a ideia do tempo como a viagem de um único carregador com seu fardo. Sua concepção do tempo era mágica e politeísta. [...] Dias meses, anos, e assim por diante, eram todos membros de equipes de revezamento, avançando ao longo da eternidade. [...] A hierarquia de ciclos para cada divisão de tempo levou os maias a dedicarem maior atenção ao passado que ao futuro. [...] Assim, na visão de mundo maia não havia nenhum sentido de progresso, mas apenas uma mistura de passado, presente e futuro que tendiam todos a se tornar uma só coisa. (WHITROW, 1993 [1988]: 105-6).

Grattan-Guiness (1997), e D. Nichols (1975), citados por Milton Rosa e

Daniel Clark Orey (2004), sustentam que a cultura maia fazia uso de uma série de

padrões simbólicos e numéricos que contribuíam com a configuração de sua

cosmologia. Esse simbolismo, veiculado através de inúmeros padrões

geométricos, era transmitido de geração em geração, tornando-se ao longo do

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tempo uma herança sagrada, cultuada no seio desta civilização (OREY; ROSA,

2004: 31).

Um padrão simbólico fundamental, constantemente identificado nos

registros deixados pela cultura dos maias, era representado pela serpente

Crotalus durissus, encontrada em diversas regiões habitadas por esta civilização.

Associada ao nascimento, às mudanças existenciais e à morte, as serpentes

personificavam segundo a simbólica dos maias, o movimento do tempo, que era

interpretado como um “caminho” por onde as serpentes rastejam (Ibid.: 32).

Outro padrão considerado fundamental dentro da simbólica da cultura

maia, era denominado de “esteira” ou “Árvore Sagrada da vida” por simbolizar e

portar “os valores mágicos e sagrados dos números” (Ibid.: 32). Essas esteiras

eram vinculadas aos deuses, aos períodos temporais e números sagrados,

podendo ser identificados em artefatos e em monumentos construídos por esta

antiga civilização. Cabe acrescentar que, na configuração geométrica dessa

simbologia via de regra, encontravam-se estampadas pinturas e esculturas que

denotavam a crença dessa cultura, no aspecto sagrado, em que figuravam

interligados os quatro pontos cardeais do mundo, conectando no centro, passado,

presente e futuro.

Na seqüência, apresentamos a imagem da “esteira sagrada da vida” que

ilustra essa interação:

Figura 2: Ilustração da Esteira ou “Árvore Sagrada da Vida” Fonte: ROSA; OREY, 2004:34

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Como descrito acima, divindades temporais eram estampadas no centro de

cada esteira, personificando o princípio criador universal que representava uma

unidade ao mesmo tempo que, uma tétrade simbólica, exprimindo as relações

entre unidade e multiplicidade ou, entre o micro e macrocosmos.

Em Leach encontramos uma certa correspondência com a antiga filosofia

da cultura maia uma vez que, para esse mesmo autor o tempo ritual era

concebido como um fluxo, uma totalidade, que exprimia a relação entre unidade e

multiplicidade ou, entre continuum e descontinuidades.

1.2.5. China

O conceito filosófico de tempo, na China, influenciado pela escola moísta11,

criada por “seguidores do filósofo Mo Ti, no século V a. C”, tendia ao atomismo12

temporal conjugado à idéia de contínuo, muito embora a hipótese do atomismo

material nunca ter desempenhado qualquer papel significativo dentro do

pensamento chinês (WHITROW, 1993 [1988]: 109). Em consequência dessa base

filosófica, a concepção da cultura chinesa era a de que o universo era concebido

como:

[...] um amplo organismo submetido a um padrão cíclico de alternância, com a predominância ora de um ora de outro componente, sendo a ideia de sucessão subordinada à de interdependência. Assim como o espaço

11 O Moísmo foi uma escola da filosofia chinesa desenvolvida pelos seguidores de Mozi ( 470 -391 a.C.), que

tentaram elaborar uma lógica fundamental científica . O conceito mais conhecido na filosofia moísta, era o amor incondicional ou união universal. Acreditava-se que todos eram iguais perante o céu, e por isso mesmo deviam viver de forma equânime, de acordo com as leis que regiam este mesmo céu. A máxima adotada pela filosofia moísta é o desprendimento material (PINHEIRO, 2011: 10).

12 O atomismo surgiu na Grécia, diante da impossibilidade de o mundo ser explicado a partir das teorias disponíveis. Embora pouco se saiba da história do filósofo Leucipo de Abdera (500-450 a. C.), foi ele quem propôs que o constituinte básico da matéria seria formado por partículas minúsculas e indivisíveis, que denominou átomos (do grego, a-negação, tomos-partes). Em sua teoria, Leucipo apresentou o mundo composto apenas por átomos e pelo vazio. Os átomos formavam as substâncias, infinitas em número e forma, e seriam extremamente pequenos, por isso não poderiam ser divididos. O átomo seria a menor quantidade de matéria existente na natureza. Um átomo era imutável, mas um conjunto de átomos, arranjado de maneiras diferentes, poderia formar vários tipos de matéria (Ibid.: 9).

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se decompunha em regiões, o tempo se dividia em eras, estações e épocas. (WHITROW, 1993 [1988]: 109).

Como é possível divisar embora na concepção da filosofia chinesa a noção

de tempo estivesse associada à ideia de decomposição em eras e regiões, a

percepção que predominava era a de coexistência entre partes e todo de forma

análoga a teoria do tempo ritual em Leach que concebia continuum e

descontinuidades como uma realidade, considerada pelo mesmo Leach como “um

todo único em interação.” (LEACH, 1978: 12).

Extraímos, de Skolimoski e Zanetic (2012), um breve comentário que

descreve o mito da criação do mundo segundo a cosmovisão da antiga cultura

chinesa, cuja data aproxima-se do século 3 a. C.. O texto contextualiza que no

início do mundo:

[...] existia uma nuvem em forma de ovo e os céus e a terra eram um só. O primeiro ser a existir foi Pangu, que dá origem ao universo. Ele separa os céus e a terra fazendo com que a porção mais leve (Ying), se desloque para cima e a mais pesada (Yang) para baixo, gerando assim a terra e o firmamento. Quando Pangu morreu seu corpo deu orígem a montanhas, rios, vegetação e tudo o mais. Os chineses acreditavam que um tipo de vento ou vapor sustentava todos os objetos celestes observados por eles, e que um arrasto viscoso gerado pela terra fazia sol e lua se movimentarem em sentido contrario. (SKOLIMOSKI e ZANETIC, 2012: 413).

Presumimos com esta exposição dos autores que, na filosofia chinesa “o

não ser”, que representa o a conjunção invisível entre “Céu e da Terra”, é

“considerado aquele que dá origem ao cosmos, à natureza e à lei da dualidade”

(MACEDO, 2005: 60), derivando daí os princípios Yin e Yang, expressões desta

lei unitaria, à qual todos os seres, singulares, estão submetidos (Ibidem), inclusive

Pangu, o primeiro “ser” manifesto.

Em Leach identificamos essa mesma conjunção ou o coito sexual

personificado pelo “fluxo e refluxo da essência sexual entre Céu e Terra” (LEACH,

1961:127 apud RAPPAPORT, 2011:270) a partir do qual inicia-se, com a

separação prototípica, o devir do tempo. Pode-se dizer que em Leach é a partir da

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separação metafórica inicial entre Céu e Terra, reproduzida no processo de

socialização na infância, que ordena-se o mundo.

Acrescentando ao mesmo assunto o teólogo e filósofo alemão Richard

Wilhelm (2000), citado em “Reflexões sobre a Mística do Dao De Jing” (Tao te

King13), 2005, de Cecília Cintra Cavaleiro de Macedo, salienta que devemos

interpretar a oposição “não ser” e “ser” a partir da perspectiva que adota a vida

mental chinesa, diga-se de passagem, completamente diferente daquela adotada

pelo indivíduo ocidental. Em relação a essa questão Wilhelm argumenta que de

acordo com a concepção chinesa:

[...] ser e não ser são opostos, mas não contraditórios. Comportam-se, de certo modo, como os sinais positivo e negativo na matemática. Nesse sentido, o não ser também não é uma expressão puramente privativa; muitas vezes poderia ser mais bem traduzida por “ser para si mesmo”, em oposição a “existir”. (WILHELM, 2000:28 apud MACEDO, 2005:60,

aspas da autora)

Na mesma pauta, o autor acrescenta que o “ser”:

[...] deve ser entendido como existir, como o manifesto, e não como ser em si, e o “não ser” como a essência fundamental, e não o “nada”. Mas vale ressaltar que ambos já estão sujeitos à temporalidade, a partir do momento em que são nomeados. [...] “Pela origem, ambos são uma coisa só, diferindo apenas no nome”. [...] O conjunto do manifesto e do não manifesto forma a unidade [...] O Dao está acima de todo o existente. Ele transcende o próprio conceito de Um [...] com ele vêm o tempo, a possibilidade do nome. “O Um gera o dois” - “Ser” e “não ser”, em separado, a lei da dualidade, o Céu e a Terra, Yin e Yang, a potencialidade do oculto e do manifesto – o espaço. “O dois gera o Três” – Após a separação entre o ser e o não ser, a possibilidade do mundo manifesto, reconhecido por nós como existente, surge. (WILHELM, 2000: 28 apud MACEDO, 2005: 60-61, aspas da autora).

Como não é impossível perceber através do comentário de Wilhelm, no

pensamento chinês, a partir do momento em que Céu e Terra são separados,

13 O Tao Te Ching ou, Dao De Jing, também conhecido como O tratado do caminho e da Virtude, é um texto

clássico chinês, que foi traduzido por Wu Jyh Cherng e publicado em 1996, pela Editora Ursa Maior. Segundo a tradição ele foi escrito por volta do século 6 a. C., pelo sábio e patriarca taoísta, Lao Tzu ou, Lao Tsé, eminente representante do pensamento chinês, cuja biografia confunde-se entre o filósofo, o personagem mítico, o personagem religioso ou, mesmo uma mistura desses vários personagens da história e também, do folclore e religião chineses. Está escrito no Tao Te king: “Sem nome é o princípio do Céu e da Terra; Com nome é a mãe das dez mil coisas.” (TSÉ, 2011: 2).

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surge o mundo das coisas nomeadas, o mundo manifesto, e também o tempo;

dito de outro modo, para a antiga civilização chinesa, o universo era concebido

como uma unidade, o Dao (Tao), que em sua manifestação “desdobrava-se” num

sistema bipartido, de opostos, o Yin, ou o Céu, e o Yang, ou a Terra, surgindo, a

partir desse desdobramento, o tempo.

Ao que tudo indica a filosofia da antiga cultura chinesa vai de encontro a

concepção de tempo ritual desenvolvida em Leach para quem o mundo se ordena

a partir do instante em que Céu (Urano) e Terra (Geia) são separados, como

indicado anteriormente. Em Leach encontramos o tempo ritual como uma

totalidade, que de acordo com ponto de vista de Cronos, cria três categorias

distintas; “Zeus, os opostos polares de Zeus e um falo material” (LEACH,

1974:201).

Acrescentando a esta mesma pauta, Marianne Sydow, destaca em “Taoism

Daoism” uma passagem que contextualiza aproximações entre as noções de

intemporalidade e temporalidade, vida e morte, alma material e alma imortal,

presentes no ciclo de criação chinesa. De acordo com Sydow (2009):

“[...] a crença taoista na imortalidade busca a transformação e o fortalecimento da alma espiritual, uma vez que a alma imortal ainda vive em uma parte isolada do mundo. [...] No taoísmo, pouca importância se confere ao tempo habitual. Isto torna-se evidente na falta de crônicas e eventos históricos registrados pelo taoístas. Abaixo [do Céu] estão todos os eventos mundanos [...] O objetivo dos taoístas é transcender o fluxo desses eventos mundanos para tornar-se ‘Um’ com a intemporalidade subjacente. A dimensão de tempo e espaço têm de ser deixada para trás para a alma entrar na eternidade.” (SYDOW, 2009: 1219, tradução nossa, aspas e grifo da autora).

Como assinala Sydow (2009), no pensamento da antiga China, o aspecto

temporal do mundo material, de pouca importância na ótica desta civilização é

concebido como uma realidade mundana, ou profana, que deve ser transcendida

para que o ser (o manifesto; o existente), possa desfrutar de outra ordem de

realidade, subjacente, intemporal, eterna, fonte de todo o ser e não ser, cuja

representação é o Dao (ou Tao).

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Em outras palavras, Sydow (2009) nos instiga a pensar que ao transcender

as descontinuidades sociais o participante ritual talvez possa entrar em contato

com uma outra ordem de realidade – o continuum – que segundo Leach interage

constantemente conosco, embora num nível cognitivo, inconsciente.

1.3. As Faces do Tempo na Grécia Antiga

1.3.1. A Natureza do Tempo entre os Gregos

De acordo com Whitrow (1993) por volta do ano 1200 a. C., a fase final da

civilização da Idade do Bronze de Micenas - que dominara o mundo Egeu desde a

destruição de Cnosso - entra em colapso, cerca de 300 anos antes, por efeito da

invasão dos gregos dóricos, vindos do norte da Grécia. A primitiva Idade do Ferro

que se seguiu, durou até cerca de 800 a. C., quando emergiram as primeiras

Cidades-Estados. Segundo o mesmo Whitrow, este foi um tempo sombrio, similar

à chamada idade das trevas vividas pela Europa ocidental após a derrocada do

Império Romano.

Preservado oralmente, o passado miceniano permanecia presente na

memória do povo grego, tendo seu ápice nas epopeias do poeta e filósofo

Homero, que viveu e morreu no século VIII a. C.. (WHITROW, 1993 [1988]: 52).

Desse modo a única certeza a respeito do homem:

[...] era sua mortalidade, e esta restrição temporal era o fator decisivo a distinguí-los dos deuses. Considerando o passado miceniano uma “Idade de Ouro” de deuses e heróis, os gregos tendiam a conceber a história como um declínio desse estado ideal e não como uma ordem básica da realidade. (WHITROW, 1993 [1988]: 52).

Em função dessa crença, o tempo, para os gregos, não era considerado

um deus, e sim “a vida propriamente dita e seu mistério divino.” (VON-FRANZ,

1997: 5).

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Na aurora da literatura grega, embora diferentes pensadores tivessem

diferentes concepções a respeito da natureza do tempo, prevalecem duas visões

contrastantes: a de Homero e a de Hesíodo (c. 750 a 650 a. C.).

Com efeito, enquanto Homero não estava interessado na origem das

coisas, e não tinha qualquer cosmogonia, além da ideia mitológica de que

“Oceanus, o rio que cerca o disco do mundo” (Ilíada, xiv. 246), (WHITROW, op.

cit.: 53), e abarca o universo em forma de torrente circular ou serpente que morde

a própria cauda, era a origem de todas as coisas, para Hesíodo, o “tempo era

visto como um aspecto da ordenação moral do universo” (Ibidem).

De acordo com o mitógrafo grego, Ferécides (c. 450 a 400 a. C.), citado em

The Origins of European Thought: About The Body, The Mind, The Soul The World Time,

and Fate, por Richard Broxton Onians, “a substância básica do universo era o

tempo (Cronos), a partir da qual se produziam o fogo, o ar e a água.” (ONIANS,

2010 [1951]: 248, tradução nossa). Assim, o Oceano-Cronos, “criador e destruidor

de tudo” (Ibidem), era considerado, ao menos em algumas antigas tradições

gregas, uma “substância generativa” (Ibid.: 249),ou uma espécie de alma

primordial do mundo. Como tudo indica e, de acordo com a crença dos antigos

gregos “este fluido continuava existindo após a morte, quando tomava a forma de

uma serpente.” (VON-FRANZ, 1997: 5; ONIANS, 2010: 206).

Este tempo generativo considerado nos tempos helenísticos, como Aion-

Crono, o “tempo extensivo, primariamente designado como um longo período de

tempo” (BROWN; COENEM, 1983 [1967]: 558), era identificado com o deus

iraniano, Zurvan Akaran, o tempo infinito, e Zurvan Dareghochvadhata, o tempo

de longo domínio, considerados deuses pessoais e não princípios abstratos.

(WHITROW, 1993; VON-FRANZ, 1997).

Extraído de “Aion, Kronos and Kairos: On Judith Butler’s Temporality”,

2007, um breve comentário de Honkanen (2007), acrescenta a este tema que

Aion, implicava para os gregos, em uma “experiência de transformação pessoal

que chegava ao fim com a morte do indivíduo.” (HONKANEN, 2007: 4, tradução

nossa). Por representar uma clara “imagem do aspecto dinâmico da existência”

(VON-FRANZ, 1997:6), Aion, segundo Marie Louise Von-Franz, foi identificado:

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[...] por vezes, não apenas com o deus solar, que evidentemente é o grande indicador das medições temporais [mas, também] com diversos aspectos de Rá, deus solar egípcio, que era o regente do tempo. [...] os egípcios também personificavam o tempo infinito num deus específico, Heh, de cujo braço direito pende Anj, o símbolo da Vida. Da mesma forma que na Grécia, no Egito a serpente também foi relacionada com o tempo. Representava a vida, a saúde, e cada indivíduo estava protegido por uma “serpente do tempo da vida”, que era o espírito do tempo e da sobrevivência depois da morte [...] Na Índia, está presente o mesmo simbolismo arquetípico do tempo, não apenas como divindade suprema mas também como torrente incessante de vida e de morte (VON-FRANZ, 1997: 6).

Como indicado Aion, era considerado um tempo extensivo, ou uma espécie

de primigênia alma do mundo, representando para algumas tradições da antiga

Grécia um princípio cósmico que abarcava opostos como vida e morte, sendo um

de seus aspectos mais evidenciados o ciclo perpétuo de regeneração. Aion, ao

que tudo indica representava o grande princípio cósmico autofecundante,

simbolizado pela imagem da Ouroborus ou Oceanus, o rio, que segundo os

gregos, cercava o disco do mundo. Por representar o grande princípio cósmico

autofecundante, Aion, pode também ser identificado ao que tudo indica, a imagem

primaria do tempo em Leach, quando a união entre Céu e Terra denota o fluxo e

refluxo da essência sexual entre ambos num continuum.

Passados dois séculos ou mais, no século VI a. C., os primeiros filósofos

pré-socráticos, continuamente circulando em derredor do fenômeno do tempo,

especulam sem invocar a mitologia, sobre o modo como o mundo fora gerado.

Para estes ultimos:

[...] o mundo era baseado numa única substância viva, que ocupava todo o espaço, a partir da qual todas as coisas se teriam desenvolvido espontaneamente, pelo interjogo de processos opostos como os de separação e combinação, ou rarefação e condensação. A primeira formulação explícita na literatura grega de que, embora as coisas individuais sejam sujeitas à mudança e à degradação, o mundo em si mesmo é eterno, parece ter sido feita pelo filósofo Heráclito por volta de 500 a. C. Segundo ele, a mudança perpétua de opostos era a lei fundamental que governava todas as coisas – visão que sintetizou em seu aforismo: “Não se pode jamais tomar banho duas vezes no mesmo rio”. Acreditava também que há uma luta perpétua de opostos: quente e frio, molhado e seco, e assim por diante, são, cada um, completamente necessários do outro, e seu eterno conflito é o próprio fundamento da existência. Esse mundo de mudança e conflito não é, entretanto, mero caos, sendo governado ao longo do tempo por um princípio de equilíbrio

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dos opostos, que os mantém em seus devidos limites. (WHITROW, 1993 [1988]:53).

Reafirmando as palavras de Whitrow, Jaa Torrano (1981) assinala na obra

Teogonia: Origem dos Deuses, que: “a oposição é reunidora, e das desuniões

surge a mais forte harmonia no mundo: através do conflito é que tudo vem a ser.”

(TORRANO, 1981: 61).

Tal concepção, que sem dúvida deriva da crença dos gregos “no ciclo das

estações, com seu conflito alternante” (Ibid.: 54), repousava na ideia de que:

[...] cada um deles [ciclos], promove uma agressão “injusta” “à custa” de seu oposto, que então cumpre pena, retirando-se antes do contra-ataque deste, sendo a finalidade do ciclo em seu todo manter o equilíbrio da justiça. O pressuposto básico era que o tempo sempre descobrirá e vingará qualquer ato de injustiça. (WHITROW, op.cit.: 54, interpretação nossa).

Dessa forma, para os gregos da antiguidade, a natureza surgia como um

mundo de corpos em movimento em que o tempo denotava ser o “pai da

Verdade.”14 A noção de que “é necessário tempo, para que alguma realidade,

como culpa ou mérito do homem, torne-se conhecida” (ARMSTRONG, 1956: 212,

tradução nossa), cuja máxima pode ser expressa como: “tudo tem o seu tempo

determinado, e há tempo para todo propósito debaixo do céu” (Eclesiastes 3: 1

apud SMITH, 2002: 47), traduzia, de acordo com John E. Smith, autor do ensaio

“Time and Qualitative Time”, a crença da civilização grega, em uma

temporalidade cíclica, denominada “Kairos, o tempo oportuno.” (SMITH, 2002:

47).

1.3.2. Chronos e Kairos

14 O “tempo onividente” era visto pelos gregos “como um tipo de juiz que traz tudo à luz (Sóf., Aj.: 648-5;

Frag.: 832). O tempo revela a verdade (Píndaro, OT.: 10,55), especialmente no que diz respeito ao valor de um homem (Sóf., OT 606 e segs.)” (COENEM; BROWN, 1983 [1967]: 572).

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Conforme ressalta Honkanen, esta concepção cíclica do tempo era

considerada pelos antigos gregos como “a alternativa mais conhecida de

temporalidade, oferecida em oposição à cronologia.” (HONKANEN, 2007: 8,

tradução nossa). De acordo ainda com essa mesma autora, é como se para os

gregos a ideia de ciclicidade aderisse não apenas “aos ritmos dos dias, meses e

anos, mas também aos corpos” dos gregos, denotando ser algo “natural e

autêntico” (Ibidem).

Marie Louise Von-Franz, contribui com essa questão, ao sinalizar em um

comentário extraído de Mistérios do Tempo: Mitos, Deuses, Mistérios, 1997, que:

[...] Cronos era denominado o “elemento redondo” assim como o “doador de medidas”. Macróbio escreve: “Até ao ponto que se trata de uma medida fixa, o tempo deriva das revoluções celestes. O tempo começa ali e acredita-se que Crono [tempo cronológico], que é Cronos, nasceu no céu. Este Cronos-saturno é o criador do tempo” (VON-FRANZ, 1997: 11, interpolação nossa, aspas da autora).

Isso posto vale contextualizar uma passagem extraída do Dicionário de

Símbolos: Mitos, Sonhos, Costumes, Gestos, Formas, Figuras, Cores, Números,

em que Alain Gheerbrant e Jean Chevalier(1997 [1982]) compartilham algumas

percepções a respeito de Cronos (o pai e vítima de Zeus) e Chronos (o tempo

cronológico, personificado).

De acordo com os autores, o deus Cronos é muitas vezes confundido com

Chronos, o tempo cronológico do qual tornou-se uma personificação para os

antigos intérpretes da mitologia grega. (CHEVALIER; GHEERBRANT,1997

[1982]: 307). Além disso, embora a etimologia popular vigente, no período

helenístico e na Renascença, tenha relacionado Κρόνος, Krónos (Cronos), com

Χρόνος, Khrónos (Chronos), o tempo cronológico, tal aproximação não faz

qualquer sentido do ponto de vista linguístico segundo os mesmos autores pois,

em grego, as duas palavras são foneticamente bastante distintas (Ibidem).

Entretanto, estima-se que tal aproximação tenha sido influenciada pela

ideia de o deus Cronos ter reinado em “priscas eras”, o que fez dele sinônimo de

um passado incomensurável, associado à idéia de Chronos, o tempo, que tudo

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“devora” e cuja inspiração encontra suas raízes no mito em que o deus Cronos

devora os próprios filhos (Ibidem). Deriva daí que, apesar de não haver qualquer

relação etimológica entre o deu Cronos, da mitologia, e Chronos, ambos “têm o

mesmo papel do tempo.”(Ibidem): ambos devoram, tanto quanto engendram;

destróem suas prórias criações e estancam as fontes de vida.” (Ibidem). Neste

sentido, ambos os conceitos são semelhantes, embora etimologicamente

diferentes o que dificulta algumas vezes estabelecer uma distinção entre ambos

os termos. (BRANDÃO, 2012).

O mito olímpico da criação relatado por Robert Graves (2004:13-15)15,

contextualiza que o deus Cronos era filho do Titã Urano (o Céu), e de Geia (a

Mãe-Terra). Segundo o mesmo Graves, após ter atirado os filhos ao Tártaro,

Urano (o Céu) é destronado por Cronos, o mais jovem de seus sete filhos; o mito

descreve que armado com uma foice de pedra, Cronos castra o pai, atirando sua

genitália ao mar.

Dando continuidade ao mito Graves relata que a partir da insurreição do

filho de Urano (Céu), os titãs, são libertados do Tártaro, junto aos Cíclopes,

concedendo a soberania sobre a terra a Cronos, que desposa sua irmã, Réia, à

qual o carvalho é consagrado. Mas, segundo o mesmo autor a Mãe-Terra havia

profetizado que assim como o moribundo Urano, fora destronado por seu filho,

Cronos, este, também seria destronado por um de seus filhos (Zeus), repetindo-

se a história de insurreição.

Temeroso quanto a previsão do oráculo de Delphos e a perda de sua

soberania, Cronos passa a devorar seus filhos, conforme nascem: primeiro

Héstia, depois Deméter e Hera, em seguida Hades e Poseidon. Indignada com a

atitude de Cronos, Réia, ao dar à luz ao seu terceiro filho, Zeus, cujo nome

significava “o grande espírito” esconde-o do titã, no interior da caverna de Dicte,

no Monte Egeu, onde Zeus é criado pela ninfa do freixo, Adrasteia, crescendo

sem ser encontrado no Mar, na Terra ou, no Céu.

15 O mito Olímpico da Criação, como foi denominado por Robert Graves (2004), encontra-se na íntegra no

segundo capítulo deste estudo, por contextualizar metáforas a respeito do tempo, que podem complementar as explicações e argumentos de Leach a respeito do tempo ritual, segundo os detalhes mitológicos de Cronos.

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Figura 3: Ilustração de Cronos devorando um de seus Filhos Fonte: http://principiosdoviver.blogspot.com.br/2010/04/na-mitologia-grega-

chronos-ou-khronos.html

O mito relata que acreditando engolir o pequeno Zeus, Cronos, engole uma

pedra enrolada em cueiros, embrulhada na Arcádia e oferecida por Réia à

Cronos, como se fosse um de seus filhos. No entanto, Zeus cresce e torna-se

homem em Lictos, na cidade de Creta. Já adulto e aconselhado por Réia, Zeus

vinga-se de Cronos misturando a seu néctar uma poção emética que sua mãe

recebera das mãos de Métis, que leva o titã a vomitar todos os seus irmãos.

Bebendo-a em excesso, Cronos vomita primeiro a pedra e então, os irmãos e

irmãs mais velhos que Zeus, considerado na mitologia o deus “que pesa a vida

dos homens e informa o destino de suas decisões” (Ibid.: 15). Após tal desfecho

Zeus lidera uma guerra contra seu pai acessorado por seus irmãos. Cronos, é

então destituído do poder e atirado ao Tártaro por Zeus, repetindo-se a façanha

anterior em que Cronos insurje contra Urano.

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O relato de Graves (2004) nos mostra como são recorrentes alguns

episódios dentro do contexto do mito Olímpico da Criação, o que vai de encontro

à concepção de Leach a respeito do tempo ritual, para quem as repetições

denotam um modo de o ser humano perceber a passagem do tempo.

Afora o personagem mitológico de Cronos descrito por Graves (2004),

Lothar Coenem e Colin Brown, acrescentam que entre algumas tradições da

antiga Grécia, havia a presença de dois grupos etimológicos associados a

Chronos e a kairos, para o conceito de tempo. De acordo com ambos kairos

denotava:

[...] períodos ou pontos de tempo individuais, que podem ser efetuados por decisões humanas (kairos) ‘tirados’ do decurso do tempo, cujo progresso independe de qualquer possível influência humana (Chronos). [...] É com o pano de fundo da rápida passagem do tempo (Chronos) que o ponto do tempo que exige a ação, ponto este que é dado pelos deuses ou pelo destino, obtém sua importância (BROWN; COENEM, 1983 [1967]: 566-567, grifos e aspas dos autores).

Como é possível observar, para os gregos da antiguidade o tempo possuía

dois aspectos distintos e ao mesmo tempo interrelacionados. Chronos, que repre-

sentava o fluxo do tempo e configurava uma espécie de “pano de fundo” a partir

do qual emergia Kairos, em decorrência de uma decisão humana. Isso nos leva a

presumir que o fluxo total de tempo ritual em Leach, em que cada instante é parte

de uma sequência linear, representa como tudo indica, uma espécie de “pano de

fundo” a partir da qual presumimos, Kairos é “tirado”.

Afirmando que Kairos denotava um instante sagrado, ou afortunado, pois

“dado pelos deuses ou pelo destino” (Ibidem), os autores sugerem que para

“despertar”, esse ponto “adormecido” na consciência do homem exige uma

decisão humana.

Não identificamos em Leach do ponto de vista do tratamento de Cronos,

qualquer alusão à esse instante kairológico a não ser uma referência feita a um

determinado “centro” que não representa um centro geométrico, mas ocupa uma

“posição intermediária” (LEACH, 1982:10) em “uma linha contínua imaginária”

(Ibidem) da sequência linear que tem como pontos todos os números

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compreendidos entre -1 e +1, no binário apresentado por esse mesmo autor. De

acordo com o mesmo Leach este “centro” tem “uma natureza diferente.” (Ibidem).

Rigoberto Lasso Tiscareño (2009: 227) contribui com esta questão

aprofundando nosso entendimento a respeito das noções de Chronos e Kairos.

Segundo este autor:

“[...] Chronos representava o tempo linear, aquele que nos consome e nos conduz até a morte [...] É o tempo da viagem que nos conduz do nascimento à morte e marca também, o início e o fim de cada lapso de nossas vidas sem importar-se se tais fragmentos temporais são plenos de tempo, ou são somente percebidos em sua passagem. Trata-se de um tempo quantitativo. Kairos, por outro lado [...] simboliza o momento de felicidade, de mudança, de inovação ativa, de oportunidade [...] pode ser visto, também, como uma experiência interior dos seres humanos, de distenção anímica.”(TISCAREÑO, 2009: 226, tradução nossa).

Do ponto de vista de Tiscareño (2009), Kairos, personificava para os

antigos gregos uma experiência subjetiva, qualitativa, no interior de cada ser

humano enquanto Chronos, ao contrário, denotava um tempo objetivo,

quantitativo, indiferente as mudanças, oportunidades, à felicidade ou à dor do ser

humano.

De acordo com o mesmo Tiscareño (2009), em seu aspecto dual, Chronos

e Kairos apresentam uma riqueza conceitual que se subverte em vários outros

pares de opostos:

“[....] tempo sucessivo do antes e do depois e tempo coexistente de passado-presente-futuro; tempo newtoniano e tempo relativo; tempo simétrico e tempo assimétrico; todos postulados como não disjuntivos, podendo inclusive ser dialéticos.” (TISCAREÑO, 2009: 233, tradução nossa).

Ao tomarmos como referência as palavras de Tiscareño (2009), podemos

perceber que para os antigos gregos, Kairos representava um tempo em que

coexistíam num único instante passado, presente e futuro. Neste sentido

denotava hipotéticamente, um tempo oposto à modalidade do tempo em Chronos,

cujo instante “pode ser considerado indiferentemente, ponto de partida de um

futuro ou ponto de chegada de um passado” (PIETRE, 1997: 84).

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Como indicado anteriormente, a sequência de fluxo total do tempo em

Leach do ponto de vista do tratamento de Cronos, adota a perspectiva de que o

intervalo ritual de tempo sagrado representa tanto um ponto de partida para o

tempo profano quanto um ponto de chegada do tempo profano para o tempo

sagrado, em que o participante ritual, segundo Leach “morre” para o tempo social.

Na obra Tratado da Eficácia (1996), o sinólogo François Jullien, acrescenta

ainda em relação as noções de Chronos e Kairos:

[...] nasceram dois adversários, Cronos e Kairos, implacáveis entre si, mas ambos filhos de Aion, o Tempo Eterno. [Kairos] não é um tempo regular como o da ciência – tempo dócil, nem muito menos um tempo acidental, como o que está aberto à ação – tempo rebelde, mas um tempo regulado que mantém o equilíbrio através da transformação e permanece coerente não deixando de inovar [...] Com efeito, é porque seu desenvolvimento é regulado que o estratega sabe prever e pode esperar (prever o tempo que há de vir e esperar que ele melhore). (JULLIEN, 1999: 99).

O autor acrescenta:

[...] Combinando ao mesmo tempo, conhecimentos relativos aos princípios psicológicos, estratégico, político [...] o trabalho do espírito na Grécia [consistia em]: através dessa arte da previsão racional (pronoia), delegar ao estratega grego as condições para ultrapassar as aparências e atingir o “mais verídico” do qual se sabe também ser “o menos visível” ( alethesta/aphanestaton; e aí ainda, a procura ocidental é a da “verdade” oculta sob o véu, do Ser escondido). (JULLIEN, 1996:99).

Ao considerar Kairos um “adversário” de Cronos, Jullien (1996)

provavelmente refere-se ao fato de que Kairos e Cronos, denotarem dois

aspectos do mesmo principio cósmico em oposição, embora interrelacionados. O

autor sublinha que Kairos, não representa um tempo regular nem caótico, mas um

tempo regulado enquanto a modalidade do tempo segundo Cronos ou, em

Chronos, denota um tempo de aparências. O mesmo Jullien (1996) nos inicita a

pensar que o instante kairológicos não só possui uma natureza diferente daquela

de Chronos, como denota uma modalidade de tempo, que revela-nos o que é

essencial.

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Leach argumenta a respeito deste suposto “centro” de natureza diferente,

que nele, conectam-se continuum e descontinuidades quando então o participante

ritual “salta” alterando seu status em sociedade. De acordo com o mesmo Leach

este “centro” - que presumimos denotar um instante kairológico - representa “um

intervalo de indefinição social.” (LEACH, 1978:45).

Referindo-se ao instante kairológico Jullien (1996) afirma que, “esperar é o

corolário de prever” (Ibidem), caracterizando Kairos, como um tempo de revelação

em que a “verdade” oculta sob o véu pode ser descortinada. O sinólogo

acrescenta:

[...] Quando o mundo é plano, sem saliências onde pegar, sem fissuras a penetrar, a estratégia mantêm recolhido e espera a ocasião (GGZ, cap. 4 “Di xi”): esta primeira ocasião da fissuração que se abrirá mais tarde em brechas e permitirá enfim, no momento certo lançar-se num ápice contra a posição adversa [...] Uma vez mais a arte da guerra não faz mais que corroborar com a diplomacia: no princípio, é preciso ser como uma “virgem”, discreta e reservada, até que o adversário “abra a porta”; depois, estando esta aberta, precipitar-se por ela com a celeridade da lebre, e “o inimigo fica sem condições de resistir.” (Ibid.: 98).

As metáforas empregadas pelo autor nos permitem observar que em

Kairos há um instante inicial, que aponta para uma tendência ou um desfecho do

momento ritual. No entanto, para que tal tendência possa se configurar é

necessário um momento de espera da parte do participante ritual que precisa

guardar uma espécie de recolhimento quanto encontra-se no intervalo de tempo

sagrado. A partir das palavras de Jullien (1996), presumimos que com tal atitude o

participante ritual pode prever o momento que há de vir possibilitando com esta

ação a ocorrência de uma ocasião oportuna, propícia para que ocorra sua

transformação.

Ao que tudo indica, depois desse momento de espera em que preserva-se

uma atitude de discrição e reserva, a consciência ordinária do participante ritual

encontra-se preparada para penetrar no âmago de uma situação que torna-se

flagrante, “visível”. Em outras palavras, o estratega aprofunda o instante em que o

tempo coincide com uma ação ou decisão sua, oportuna para a ocasião. Vale

mencionar que em Leach não há qualquer menção do ponto de vista do

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tratamento de Cronos, ao modo como se realiza o processo de transformação do

participante ritual no intervalo de tempo sagrado.

Jullien (1996) nos instiga a supor que o tempo em Kairos denotava para os

antigos gregos um intervalo de tempo sagrado, já que uma ocasião afortunada

ofertada pelos deuses ou pelo destino, em que era possível ocorrer uma

transformação da consciência ordinária. Entretanto, para que isso ocorresse, a

consciência ordinária do participante ritual atingida por Kairos, precisava aguardar

por uma abertura ou passagem, no mundo plano (que presumimos denotar o

“pano de fundo” de Chronos), para nela poder “penetrar” indo de encontro à uma

ocasião oportuna como indicado.

O mesmo autor levante a ressalva de que esta “ocasião corre o risco de

ser inapreensível” (JULLIEN, 1996: 88) caso o participante ritual não encontre-se

em condições de tornar “visível” o momento oportuno que como indicado torna-se

“visível” - ou não - em função de uma decisão individual. Com o objetivo de

esclarecer esta questão Jullien (1996) acrescenta ainda que o instante kairológico

comporta dois instantes cruciais. O autor argumenta:

[...] Com efeito, temos de enfrentar não um, mas dois instantes cruciais (i. e, no início e no fim da transformação): este terminal, onde caímos sobre o inimigo com o máximo de intensidade, a ponto de este ficar de imediato desfeito; e aquele, inicial, onde começou a operar-se a clivagem a partir da qual o potencial oscilou progressivamente para um dos lados. Tal como no estágio terminal a ocasião tornou-se tão flagrante, também no estágio inicial ela é quase imperceptível; mas é desta primeira demarcação que é decisiva, uma vez que é nela que começa a capacidade de efeito e de que a ocasião final não é, no fim das contas, mais que a conseqüência. (JULLIEN, 1996: 92).

Como indicado, na concepção do sinólogo o instante em Kairos configura-

se como um processo em que há um momento inicial - um momento de espera

em que há uma tendência, demarcando o desfecho da situação ritual - bem como

um momento terminal, que tende a tornar-se flagrante - ou não - conforme a

atitude ou decisão do participante ritual. Jullien (1996) nos leva a suposição de

que o potencial da situação depende da decisão ou, da ação do participante ritual

em seu estado embrionário. Ou seja, desde o início do processo ritual já existe

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uma tendência na consciência do participante ritual convergindo para que este

obtenha - ou não - uma transformação.

Jullien (1996), sugere na mesma pauta que perante o instante kairológico

ou, diante da possibilidade de o momento oportuno ser divisado - instante propício

para que ocorra a transformação do participante ritual - “o raciocínio já não tem

influência, a determinação muito menos e, o raciocínio, reconhece seus limites”

(JULLIEN, 1996:109), nos levando a presumir que à luz do tratamento de Kairos,

o processo de transformação no intervalo ritual de tempo sagrado só ocorre se

houver uma interação entre os aspectos divino e humano o que depende de uma

escolha individual e de um momento dado pelos deuses.

Personificando esse “tanto de irracional de tudo” (Ibidem) o Ocidente teve

de inventar uma mitologia da ocasião; Lísipo esculpiu-a (no tempo de Aristóteles),

e Poseidipes celebrizou-a. Para apreendermos um pouco mais a respeito da

natureza de Kairos, devemos transitar no período mítico dos Deuses Olimpicos,

em que Zeus, o pai da maioria dos deuses, teve Kairos como seu ultimo filho,

descrito como um belo jovem, calvo, que tinha um cacho de cabelos quedado na

testa embora atrás seu crânio fosse totalmente calvo, o que denotava a

dificuldade de o ser humano apreendê-lo, após sua rápida passagem. Carregando

uma balança em uma das mãos e na outra, uma navalha o jovem deus grego

personificava o tempo subjetivo, pessoal e irredutível à homens e deuses, oposto

ao tempo de Chronos (SABÓIA, 2007:15).

Filho de Zeus e Tykhé, a divindade da fortuna e da prosperidade, Kairos,

simbolizava a oportunidade agarrada, já que tinha asas nos calcanhares e ombros

o que contribuía para que transitasse em uma velocidade vertiginosa por todo o

mundo, de forma aleatória, sendo possível apreendê-lo sómente a partir de uma

ação estratégica e desse modo, oportuna. Dono de uma agilidade incomparável,

Kairós resplandecia como a flor da juventude. Sempre sem roupas, corria

rapidamente portando uma balança nas mãos podendo ser alcançado sómente

quando agarrado de frente, pois, depois que ele passava, era impossível

persegui-lo, pegá-lo ou trazê-lo de volta. Na sequência a imagem de Kairos:

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Figura 4: Ilustração de Kairos Fonte: http://www.kairosgroup.ch/kairos

Kairos não personificava um tempo regular como o de Chronos, o tempo da

ciência e do conhecimento; “muito menos” podía ser considerado “um tempo

acidental” (JULLIEN, 1996, 100). Ao contrário, o jovem deus denotava “um tempo

regulado” (Ibidem), em que podía-se prever o tempo que havería-de-vir.

Considerado indomável, Kairos personificava, entretanto, uma ocasião “com a

qual se podía contar” (Ibidem), embora não se repetisse. A ocasião oportuna,

única, sem precedente ou reedição.

De acordo com Jullien (1996:106), por tornar-se “visível”, o jovem deus

Kairos simbolizava um instante oportuno no “tempo” em que estabelecia-se “uma

“intersecção” (Ibidem) com a modalidade de tempo em Chronos, substituindo a

habitual “disjunção crônica” (Ibidem) ditada, como assegura Leach, pelo

condicionamento advindo do processo de socialização na infância do ser humano.

Diante disso, o momento oportuno ou a ocasião oportuna denota “a graça que

vem reparar a dilaceração” que nada mais representa que “o fato de existir”

(Ibid.:105).

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Na exposição da teoria do tempo ritual em Leach, que ocorre no segundo

capítulo dessa dissertação vamos encontrar algumas referências a essa mesma

questão quando Leach sublinha que no processo de socialização, na infância,

segmentamos a continuidade na natureza. O autor ressalta também por diversas

vezes, que segmentamos o contínuo em função de um condicionamento social e

que, não percebemos como o tempo contínuum e as descontinuidades sociais

possuem uma estreita interconexão. Aprofundaremos o entendimento do leitor a

respeito desse assunto no segundo capítulo.

Sumarizando as concepções de tempo associadas a algumas tradições da

Grécia antiga, o que podemos dizer é que o tempo denotava um princípio16

cósmico e dinâmico (Aion), cuja natureza dual (Chronos e Kairos), abarcava toda

a existência num ciclo incessante de regeneração denotando que a oposição

entre opostos era reunidora e o tempo, percebido como um tribunal defensor de

verdades.

1.3.3. As Três Temporalidades Cósmicas

Assim como não havia entre os gregos uma ideia única a respeito do

tempo, a história da raça humana apresentava-se aos olhos da civilização grega

sob várias formas. Além das visões cíclica e progressiva do tempo, como indicado

na seção anterior, havia a importante tradição referente à denominada Idade do

Ouro, cuja descrição, encontra-se na obra Os Trabalhos e os Dias, do filósofo

Hesíodo, que lançou mão desse recurso tendo como meta relatar como se

configurou a condição atual da realidade humana e sua necessidade de trabalho

(WHITROW, 1993 [1988]: 64), bem como mostrar as temporalidades, associadas

a este processo.

Torrano (1981) contribui com este assunto explicando que:

16 Em “Tempo e Alma nos Quatro Quartetos de T.S. Elliot” Barcellos (2008), citado por Carina Servi Santos em

“Experiências do Tempo: Reflexões sobre Tempo e Alma”, reflete sobre o tempo cíclico, diante do ultimo quarteto de Elliot – Little Gidding que diz: “O que chamamos de principio, é quase sempre o fim; e alcançar um fim é alcançar um principio; fim é o lugar de onde partimos” (SANTOS, 2010: 20). Este trecho reflete a dinâmica autorreguladora da Ouroborus, em que começo e fim convergem para um mesmo ponto; o ponto de saída é o mesmo da chegada.

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[...] a configuração do mundo em sua ordem atual, completou-se através de três diferentes momentos que, embora associados às três fases cósmicas, não se devem confundir com elas [...] Cada uma dessas fases distinguem-se entre si por uma temporalidade qualitativamente diversa não havendo, portanto um horizonte temporal uno e único que, ao reuni-las num mesmo plano, estabeleça entre elas uma rigorosa relação de anterioridade e posteridade. (TORRANO, 1981: 63).

De acordo com o mesmo autor integrantes da denominada raça de ouro,

os “súditos de Cronos”, (GRAVES, 2004 [1981]: 13), apresentavam-se à visão de

Hesíodo, como partícipes da relação de oposição entre homens e deuses, a partir

da qual “se determinava a área de atribuições e atributos de cada um dos dois.”

(TORRANO, op. cit.: 59).

Uma vez que a presença de um deus coincidia com o âmbito de seu

domínio, toda transgressão ao domínio de um deus implicava para ele “numa

ofensa ao seu timé, um apequenamento de sua grandeza, um enfraquecimento

na expressão de seus poderes em suma, uma diminuição do seu Ser” (Ibid. 61).

A este respeito o mesmo Torrano (1981) explana que:

[...] muitas das atribuições que hoje por nós são entendidas como meramente humanas, os contemporâneos de Hesíodo as entendiam como previlégios da Divindade, inacessíveis aos mortais - o que na moderna perspectiva cristã se cinge exclusivamente, ao Divino, os gregos arcaicos o compartilhavam em sã consciência com os seus deuses (TORRANO, 1981: 59).

Tendo-se em vista a natureza enantiológica do panteão grego, configurada

a partir desse “jogo de forças, que no mútuo confronto se determinavam a si

mesmas” (Ibid.: 61), não é difícil entender como o conceito de fatalidade se deu à

visão grega, ao modo de uma partilha ou lote.

Aqui, cabe a ressalva de que, embora neste estudo nosso interesse não

esteja centrado especificamente na análise das partilhas envolvidas nas três

fases cósmicas, descritas por Hesíodo, a saber: a proximidade das Orígens (1ª.

fase); o Reinado de Cronos (2ª. fase), e o Cosmo de Zeus (3ª. e última fase),

interessa-nos, contudo identificar, a partir da interpretação de Hesíodo, as

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temporalidades relativas a cada fase cósmica, tendo em vista aprofundar nosso

entendimento a respeito de como os antigos gregos percebiam o tempo, uma vez

que Leach desenvolveu a teoria do tempo ritual segundo a noção de

temporalidade associada a antigas tradições gregas.

De acordo com Torrano (1981), a primeira fase cósmica alude à:

[...] proximidade das Origens. Num universo ainda informe, prevalece a força fecundante do Céu, que ávido de amor e com inesgotável desejo de cópula, frequenta como macho a Terra de amplo seio. [...] Nesta fase original, o Céu desempenha as mesmas funções que, enquanto Céu, sempre terá: 1) Cobrir toda a Terra ao redor e, 2) ser para os deuses venturosos assento sempre seguro (Cf.: vv. 127-128). Cobrir a Terra é fecundá-la hireogamicamente através da chuva-sêmen; ser o assento dos deuses é dar-lhes origem e fundamento, fundar-lhes a existência. Nesta primeira fase a Proximidade das Origens é tão forte e impõe-se tanto em sua unificante força de coesão, que ambas as funções do Céu se desempenham no único e mesmo movimento [...] A Terra está constantemente prenhe, o Céu está em constante desempenho de suas funções [...] A temporalidade dessa primeira fase é marcada por [...] pletora de Vida e por procriante superabundância que constituem as Origens no sentido de um início cronológico [...] Assim, são fontes a Terra e seu igual (ison, v. 126), o Céu, a força do Amor que une e seu contrário, o Caos, cuja força é a da negação e da cisão. (TORRANO, 1981: 63).

Como assinalado por Torrano (1981), “esta é a fase da insurreição de

Cronos, que interfere na fecundação da Terra pelo Céu”.

Vale acrescentar que, para Hesíodo, a insurreição de “Cronos-Astúcia”

(Ibid.: 64-65) sobre o “Céu-instinto” (Ibidem) impõe “um limite a esta fase em que

seres divinos nascem diretamente do seio da Terra, fecundada pelos sêmeles

celestes” (Ibidem), criando-se em função desta separação, “um novo âmbito ou

um campo em que são vividos os riscos das potências guerreiras” (Ibidem).

Dessa separação emerge a necessidade de equilíbriação entre pólos

contrários - Céu e Terra - que manifesta-se por intermédio de reações

compensatórias17 (Ibidem). Essa “tensão enantiológica” aduzida pela “visão aguda

17 De acordo com o poeta oral da antiguidade grega, Hesíodo, Cronos representa uma forma de inteligência

sinuosa que age de modo oblíquo na medida em que, tendo em vista ferir seu pai, coloca-se de tocaia. Assim, enquanto Urano (Céu), entregava-se “inadvertido” e “desenfreado” a sua atividade puramente vital sem conhecer regra alguma ou reflexão que fosse, a respeito de “conveniências” e “conseqüências” o flexuoso Cronos, o confronta e, impõe um

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da unidade dos opostos, penetra e perpassa” toda a Teogonia, todo mito e

religião gregos (Ibid.: 25).

Dando sequência à descrição das partilhas, Torrano (1981) prossegue

apresentando a segunda fase cósmica, o reinado de Cronos, cujo poder expressa

o “seu curvo”18 pensar, “sempre de atalaia” e sempre se ocultando (Ibid.: 65). De

acordo com Torrano (1981):

[...] Cronos sabia, pela Terra e o Céu constelado, que, apesar de toda a sua força, era seu destino por desígnios do grande Zeus, ser dominado por um filho (vv. 463-465). [...] Se, ao reinar, o Céu por sua atividade se define como fecundo (thalerón, v. 138), Cronos, enquanto rei é o vigilante sempre à espreita (dokéuon, v. 466). Tocaiar e engolir seus filhos recém-nascidos são os expedientes com que ele toma o poder e procura preservá-lo. [...] O segundo momento da partilha das honras é o da dominação de Cronos por Zeus e o catastrófico movimento que constitui a titanomaquia. [...] Nessa disputa por decidir-se em quem se centra a realeza universal [...] a Totalidade Cósmica parece reingressar nas Origens donde proveio: Céu e Terra parecem fundir-se desabando-se um no outro [...] forças que são da violência e da desordem, não são compatíveis com o tempo regular, organizado e cíclico que sob o nome de Horas (= Estações), Zeus gerou [...] Esses inimigos são degredados e essas regiões ônticas, cuja temporalidade amorfa e confusa condiz com a natureza deles.[...] Zeus se mostra rei e seus inimigos se fazem prisioneiros. (TORRANO, 1981: 66-67, grifos do autor).

Como sustenta Torrano, o estatuto temporal dos inimigos de Zeus, que em

grego significa “o grande espírito” - o irrelaxável estado de alerta (Ibid.: 68), - não

pertence mais à atual fase do mundo; e se não pertence, encontra-se no “além-

mundano, o que se situa na distância além do círculo do Oceano, ou nas

profundezas abissais do Tártaro” (Ibidem). Os inimigos vencidos, “forças que são

da violência e da desordem”, incluindo-se Cronos, estão excluídos do “lúcido e

bem ordenado tempo de Zeus” vivendo em outras fases do mundo, i. é., em outro

Kósmos, outra Ordem, que não a de Zeus (Ibidem).

limite que regra a força fecundante do pai. Em outros termos “ a inteligência que impõe limites ao instinto, encontra neles também os seus limites, impostos pelo ins-tintoTorrano, 1981:65).

18 O modo de Cronos, pensar é dito “curvo” porque “ele só age obliquamente e sob ardil” e nessa atitude, está ao mesmo tempo, sua arma mais eficaz (o curvo pensar, a foice curvada, o ocultar-se e o engolir), e seu irremediável limite, uma vez que o “ocultar-se e o engolir não impõem sua presença real como uma soberania, nem atingem a matriz donde provém a ameaça à sua realeza” É com essa arma que Cronos é aba- tido e depois, derrotado (TORRANO, 1981:65).

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Torrano descreve o tempo instaurado por Zeus como “regular, orgânico,

bem ajustado e cíclico” (Ibid.: 70), próprio para que:

[...] nele os homens se empenhem com recompensada diligência no culto do(s) Deus(es) e no cultivo da(s) Terra(s) – não é de modo algum o único compatível com a vivência da Ordem, nem o melhor e o mais feliz dentre os muitos tempos divinos e humanos. (TORRANO, 1981: 70).

O mesmo autor sugere ainda que são muitas as temporalidades a serem

vivenciadas no cosmo de Zeus, quando completa-se a configuração definitiva de

ordenação do mundo, estabelecida “por meio das diversas núpcias do novo

soberano, com potestades primordiais” (Ibidem).

Torrano explica:

[...] para assegurar que seu poder não será superado e que o domínio que ele [Zeus] exerce sobre seu pai [Cronos] não será por sua vez dominado, Zeus recorre a núpcias que são alianças políticas. Zeus, ao iniciar seu reino, desposa uma divindade de natureza aquática, Métis, e uma de natureza terrestre, Thémis. Com esses dois casamentos inaugurais, Zeus garante o seu controle sobre esses âmbitos, donde provieram as potências sob as quais Cronos se viu dominado e su-perado [...] Como filha do rio que circunvolve a totalidade da Terra, Métis representa a presciência oracular e prática que abarca a totalidade dos recursos do espírito. Ela é “a que mais sabe dentre deuses e mortais” (v. 877). E uma vez que ela é incorporada a Zeus, não há mais recurso ao espírito que não seja circunscrito pela consciência de Zeus, nem recurso do espírito que não esteja contido no espírito de Zeus. Nenhum logro pode ser tramado sem que se dê ao conhecimento de Zeus. [...] Tal como o rio Oceano cinge com suas correntes circulares a totalidade da Terra [...] o Metíeta Zeus cinge com sua grande percepção a totalidade

do que é. (TORRANO, 1981: 75-76, interpolação nossa).

A partir de Torrano (1981) podemos presumir que o cosmo de Zeus, divino

e simultaneamente humano - ambíguo portanto - denota uma totalidade em que

os opostos Céu e Terra, divino e humano, vida e morte interagem. Em Leach essa

totalidade caracteriza-se como a continuidade na natureza; o tempo continuum.

Segundo o mesmo Torrano (1981), Zeus incorpora recursos à própria

consciência assegurando seu “domínio sobre o imprevisível, o instável, o

cambiante” (Ibid.: 76), o temporal, caracterizando uma temporalidade associada a

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terceira fase cósmica de ordenação do mundo em que encontram-se integrados

os “reinos de Cronos e do Céu” completando-se e firmando-se desse modo, uma

Totalidade Cósmica (Ibid.: 79).

Torrano (1981), conclui ao final de seu relato que, enquanto o reinado de

Cronos:

[...] tem, por seu próprio ser e natureza, um âmbito restrito, que se curva em torno de si mesmo e assim se delimita [...] o reinado de Zeus é o mandálico centro da Totalidade Cósmica porque ele é o único cujo centro se dá como a mais plena manifestação do espírito. [...] Zeus se caracteriza pela vontade centrada no espírito. (epi-phona boulén, v. 896);

(TORRANO, 198: 81).

Tendo o cosmo de Zeus completado a Grande Partilha das Honras, apre-

senta-se à visão de Hesíodo como um centro mandálico, como “a grande

percepção” (mégas nóos) (Ibid.: 68), diante da qual nada permanece oculto

levando-nos à suposição de que tal centro, assemelha-se ao instante kairológico

em que a vontade centrada no espírito assegura o domínio sobre o instável, o

cambiantepermitindo que o que encontra-se oculto torne-se “visível”.

Em vista disto, não parece incorreto supor que a entrada no reinado de

Zeus, assemelha-se a uma “passagem estreita”, limitada, uma vez que no

contexto das três fases que expressam a Grande Partilha Cósmica, Zeus denota

a vontade centrada no espírito, a ação regulada e firme que abarca atributos do

Céu e da Terra.

Como indicado anteriormente, Zeus personifica um reino mandálico

sugerindo tal simbologia uma totalidade. Importa ressaltar que embora não

houvesse na Teogonia de Hesíodo, o termo Kairos, os atributos que caracterizam

a temporalidade de Zeus, vão de encontro a abordagens do tempo kairológico,

adotada por alguns aportes a partir das quais, presumimos tal associação. Após

apresentarmos uma breve explanação a respeito das três temporalidades

cósmicas exploramos na sequência algumas dessas abordagens.

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1.4. A Natureza do Tempo em Kairos

1.4.1. Os Dois Instantes Cruciais

Em Tratado da Eficácia, François Jullien declara: “o acaso de um lado, a

arte de outro: entre tuche e techné, interpõe-se um terceiro termo para pensar a

ação – a ocasião: Kairos” (JULLIEN, 1996: 87).

A partir desta afirmação, Jullien (1996) assinala que, quer se trate da

navegação, da medicina, da política ou da estratégia, entre o que por um lado

releva da for- tuna ou, da “divindade” e, do outro, o que é “nosso”, a técnica, a

ocasião operaria a junção de onde provém a eficácia, pois:

[...] graças a ela, a nossa ação está em condições de se inserir no curso das coisas, já não produz mais estragos, mas consegue inserir-se nela, aproveitando a sua causalidade e sendo secundada. Graças a ela o plano concertado consegue encarnar-se, este a propósito dá-nos oportunidade, assegura a nossa maestria [...] Fim-ação-ocasião: o esquema doravante está completo, a ocasião vem ajustar um assistir ao outro (JULLIEN, 1996: 88).

O autor caracteriza a ocasião oportuna como um momento em que a ação

humana está madura para inserir-se numa nova ordem de coisas, não só em

função de um processo de amadurecimento facultado por experiências no tempo

profano, mas, também, por uma oportunidade que nos é facultada por um instante

divino, sagrado. Em ultima análise, a oportunidade para uma ação ou decisão

regulada aparece no momento propício (Fim-ação-ocasião).

O mesmo autor prossegue:

[...] Por conseguinte, a última coordenada a ter em conta para pensar a ação eficaz é a do tempo. É que a ocasião é esta coincidência da ação e do tempo, que faz com que o instante súbito se transforme numa oportunidade, que o tempo então está propício, que parece vir ao nosso encontro, occurrit, é uma ocorrência. Tempo oportuno que conduz ao porto “oportuno”, mas tempo também fugaz; tempo mínimo ao mesmo tempo em que ótimo, que se inquieta entre o ainda não e o já agora, e que é preciso apanhar para se ter sucesso (Ibidem, grifos do autor).

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Como tudo indica este tempo que segundo Jullien, transita entre o “ainda

não e o já agora”, representa o instante súbito do agora, que é o momento

presente, prenhe do “ainda não e do já agora”; momento em que “a oportunidade

se torna visível” (Ibidem).

Contudo, é preciso um olhar atento para se ter acesso a esse ponto fugaz

no tempo, que oscila entre o “ainda não já agora”, transformando o curso do

próprio tempo.

Ainda nas palavras do mesmo autor:

[...] Enquanto a ciência assenta sobre o eterno (o que é sempre idêntico e se pode demonstrar; sempre o ideal dos matemáticos), o útil é iminentemente variável, reconhece Aristóteles: uma vez que “este é útil hoje, mas não será amanhã” (Grande Moral, I, 1197, a 38). “Face ao fim que é necessário” convém precisar da forma que é preciso e quando é preciso [...] A importância da ocasião - Kairos - não é menos afirmada de um extremo a outro da nossa Antiguidade. “Nada vale mais que conhecê-la” (Píndaro) “ela é o melhor dos guias em todo o empreendimento humano” (Sófocles), a sua “onipotência é firmada” (Ibid.: 88-89, grifos e aspas do autor).

Como visto na citação acima, em Aristóteles, a ocasião oportuna não se

repete. Píndaro privilegia a ocasião oportuna como um guia para a existência e

Sófocles alerta-nos a respeito da onipotência deste momento.

1.4.2. Faces de Kairos

Phillip Sipiora (2002) sublinha em um breve comentário extraído de

“Introduction: The Ancient Concept of Kairos” que apesar:

“[....] da atenção dada a Kairos, por historiadores do século XX, não se oferece uma articulação sistemática de sua importância e influência nas tradições pré-socráticas e, no processo de desenvolvimento do pensamento grego antigo.” (Ibid.: 2, tradução nossa).

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O autor parece sinalizar que Kairos “personifica um conceito seminal na

antiga cultura grega” (Ibid.:1), tendo em vista sua “dominância, penetração e

influência na literatura, filosofia e retórica, bem como na numerologia e artes

médicas” (Ibid.:2).

Relembrando que na Grécia antiga, na cidade de Olympia, foi construído

um estádio em homenagem a Zeus, no local em que foi realizada a primeira

olimpíada, em 776 a. C., o mesmo autor relata que neste local “abrigam-se dois

santuários: um ofertado a Hermes, dos Jogos, e outro ofertado à Oportunidade”

(Ibid.:1, grifos do autor) este ultimo, representando o deus Kairos. Vale ainda

mencionar que dentre outros empregos do termo tais como: “simetria”,

“ocasião”, “justa medida”, Kairos refere-se ainda de acordo com Sipiora, “à noção

de logos.” (Ibidem).

Na sequência, destacamos em O Novo Dicionário Internacional de Teologia

do Novo Testamento, 1983 [1967], alguns empregos associados à temporalidade

de Kairos:

[...] Kairos descreve um “tempo apropriado”, o “momento certo” (e. g. Sóf, El, 1292), um “momento favorável” [...] As seguintes palavras são derivadas de kairos: [...] eukairos (pela primeira vez em Sóf. OC, 32), “apropriado”, “oportuno” [...] e proskairos (e. g. Estrabo 7, 3, 11), “de pouca duração”, “passageiro”, “momentâneo”, “inconstante” [...] Sinônimo de nyn é o adv. Temporal arti (desde Píndaro; raiz ar; cf.: Lat.). Artus, “apertado”, “perto”, “agora”, “nesse momento”, “imediatamente” (e.g. Hipócrates, Epidemie 9, 2). Com as preposições heõs, “até” e apo, “fora de”, arti (chama a atenção do momento presente para o passado ou o futuro). (BROWN; COENEM, 1983 [1967]: 566-567, grifos e aspas dos autores).

Na perspectiva de Onians (2010), que caracteriza a modalidade do tempo em

Kairos a partir das traduções de Eurípedes (480 a. C. a 406 a. C):

“[...] Kairós significou algo como ‘marca, alvo’. Isto não poderia ter surgido de ‘justa medida’ ou ‘oportunidade’. Por outro lado, embora o termo ‘marca’ (mark), possa explicar o uso aproximado dos termos ‘justa medida’, ‘longe de alcançar’ wideofthemark), ‘foram longe demais’ (overshootthemark), etc., não explicará nem ‘oportunidade’, nem o uso pelo qual Eurípedes se refere a uma parte do corpo, onde a arma pode penetrar a vida em seu âmago como um Kairós, (acima de tudo, na

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cabeça), falando de um homem como [...] atingido em um Kairós.” (ONIANS, 2010 [1951]: 344, tradução nossa, grifo e aspas do autor).

De acordo com o mesmo Onians (2010), em Eurípedes, a palavra “alvo”

denota uma parte do corpo onde a arma pode penetrar a vida, em seu âmago. E

adianta, na sequência, que um homem atingido em um Kairos, é um homem

atingido, acima de tudo na cabeça. Não seria então um homem atingido em um

Kairos, um homem atingido em sua consciência ordinária? Em Onians, isso não

fica claro.

O autor prossegue:

“[...] Com relação a esta descrição dos lugares onde a penetração era mais fácil, os romanos parecem ter traduzido literalmente, se não muito inteligentemente, para a palavra tempus, que era o significado comum de Kairós, em seu tempo; daí o nosso ‘templo’ (temple). Este uso de Kairós exemplificado em Eurípedes parece ser mais velho do que o uso comumente traduzido por ‘oportunidade’ ou ‘justa medida’.”

E complementa:

“[...] Kairós descrevia o lugar em que uma arma poderia fatalmente penetrar e aquilo para o qual os arqueiros apontavam na prática. Mas o que seria este último se omitirmos os pássaros e as feras? Para onde os arqueiros apontavam na grande competição de tiro pela mão de Penélope? Para o que Ulisses apontava em outras ocasiões? ‘Para um orifício penetrável, uma abertura, uma passagem através do ferro de um machado, ou melhor, de 12 machados distribuídos a certos intervalos, em uma linha reta’.” (ONIANS, 2010: 344, tradução nossa, interpolações e grifo nossos, aspas do autor).

Como é possível perceber, Onians (2010), associa o tempo em Kairos, a

uma abertura ou, um orifício cuja penetração atravessava o ferro de doze

machados distribuídos em linha reta, sugerindo o mesmo autor que este orifício

penetrável é “tirado” de um arranjo linear.

Entretanto, apesar de Onians (2010), não aprofundar o conhecimento a

respeito dessa metáfora apresentamos na sequência um desenho esquemático

que tenta reconstituir graficamente, a “prova do arco e dos doze machados”

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proposta pela sensata Penélope, rainha de Ítaca, à seus pretendentes, como

contextualiza o mito de Odisseu.

No esquema abaixo ilustramos o modo como os doze machados eram

distribuídos em intervalos, numa sequência linear, tendo no centro de cada um

deles, orifícios ou aberturas, conforme assinala Onians (2010), que perpassavam

em linha reta toda essa cadeia linear. De acordo com a mitologia grega para

atingir o alvo, o arqueiro deveria concentrar-se e atirar sua flecha através desses

orifícios em cadeia.

Figura 5: Ilustração da Prova do Arco e dos Doze Machados

Fonte: TORRANO, (1981:94)

Ao ressaltar que o tempo em Kairos “enfatiza quebras, rupturas” e “rompe a

cadeia da cronologia” (HONKANEN, 2007:9, tradução nossa), Kattis Honkanen,

contribui com essa mesma pauta nos levando a supor que na modalidade de

tempo em Kairos, há uma dimensão transversal que rompe com nosso

entendimento de um tempo uniforme, linear. Onians (2010) e Honkanen (2007),

parecem comungar quanto ao fato de que o instante kairológico atravessa a

cadeia linear rompendo com nossa idéia de de um tempo cronológico.

Honkanen sustenta, que a modalidade de tempo em Kairos “assemelha-se

ao tempo ‘do agora’ em que cada ‘agora’ encontra-se em um processo de tornar-

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se um novo ‘agora’, embora permaneça sempre presença e nele-mesmo.” (Ibid.:

10, tradução nossa). Neste sentido, Kairos assemelha-se ao instante presente

que “abarca de uma vez” (Ibid.: 9) diferentes tempos, como um processo:

“[...] infinitamente em curso, como um mecanismo de construção de sentidos [...] um presente expandido [...] como uma ideia que traz todos os sentidos e ‘tempos’ para o curso do agora, em que não há um significado de ‘antes’ já que o tempo é sempre ‘de uma vez.’” (HONKANEN, 2007: 10, tradução nossa).

Embora a “concepção ocidental de tempo seja sumariamente entendida

como um fluxo uniforme de tempo, que encaminha-se de um movimento anterior

para um posterior” (LINDROOS, 1998:12 apud HONKANEN, 2007: 5, tradução

nossa) e, cuja “estrutura temporal assemelha-se a um começo, meio e fim”

(Ibidem), a autora nos leva a considerar que existe uma temporalidade

caracterizada como um “um fluxo de ágoras.” (Ibid.: 6).

Na obra intitulada Kairos: Exploraciones Ocasionales en Torno a Tiempo y

Destiempo, Manfred Kerkhof (1997) explicita um comentário que nos esclarece a

respeito da modalidade de tempo em Kairos, bem como nos oferece sua

concepção do que considera o instante kairológico.

Na perspectiva deste mesmo autor:

“[...] os grandes momentos da vida podem converter-se em algo quase intemporal: o instante interpretado não como ‘parte do tempo’, senão como sua origem, se faz em tais ocasiões em lugar da irrupção da eternidade no tempo [...] o instante, determinado como ponto de partida, ou culminância de ações ou decisões, constitui algo qualitativamente distinto do agora, medido em segundos; e, de fato, tal instante possui, segundo seu ‘conteúdo’, mais ou menos peso, mais ou menos importância, mais ou menos duração.” (KERKHOF, 1997: 2, tradução nossa).

Em Kerkhof, o instante kairológico denota um instante-origem no tempo

que é simultaneamente, início e culminância de ações ou decisões qualitativas.

Em outras palavras o autor atribui à Kairos, uma ambigüidade, que em Leach

caracteriza o intervalo ritual de tempo sagrado.

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Kerkhoff (1997) ressalta ainda, que em função de seu conteúdo” o instante

kairológico terá maior ou menor peso e importância, maior ou menor duração,

sugerindo que esse instante pode ser experimentado de diferentes formas pelo

ser humano. Ao que tudo indica, no que diz respeito ao instante kairológico

algumas experiências rituais podem não só durar mais que outras mas, também

ter maior relevância o que vai de encontro ao pensamento de Leach a respeito do

intervalo ritual de tempo sagrado, refletindo segundo o mesmo Leach o modo

como cada indivíduo irrompe a experiência do continuum.

Ao considerar Kairos como um instante qualitativo Kerkhoff (1997) assinala

ainda que:

“[...] tal receptividade anula a indiferença dos instantes quantitativamente iguais; o tempo, como parece, muda de qualidade em seu curso irreversível e unidimensional, copiando o tipo de movimento dos organismos com diversas dimensões de ‘profundidade’ ou ‘altura’, com oscilações entre um curso acelerado e certa imobilidade.” (Ibidem).

O autor é bastante claro ao expor que o instante kairológico muda de

qualidade na medida em que aprofunda seu curso entrópico, irreversível, que

muda de qualidade a semelhança dos organismos vivos. Em Leach também

encontramos uma alusão à esse curso irreversível, entrópico, nos seres humanos

quando o autor sinaliza a entropia, como um das três formas de o ser humano

experimentar a passagem do tempo. Kerkhof (1997) considera, nessa mesma

pauta, que o instante em Kairos assemelha-se a uma experiência visceral,

diferente da experiência temporal ordinária do ser humano, associada ao tempo

linear, quantitativo.

Como o próprio kerkhoff (1997) acrescenta, o instante kairológico

manifesta-se com diversas dimensões de profundidade ou altura oscilando entre

um curso acelerado e uma certa imobilidade, sugerindo nessa passagem, que a

dimensão de tempo em Kairos possui uma natureza pulsante que alterna-se entre

velocidade e paradas.

Metafóricamente falando, essa velocidade parece estar representada na

fugacidade do deus Kairos, como indicado no mito grego, enquanto a imobilidade

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associada ao instante kairológico, provavelmente, encontra-se relacionada ao

instante culminante em que, em decorrência de uma ação ou decisão qualitativa,

o ser humano agarra o jovem deus grego pelas madeixas de cabelo,

manifestando-se nesse momento uma oportunidade. No contexto do mito grego,

este seria o momento em que o deus Kairos cessa de saltar, parando o tempo,

para pesar com sua balança a vida dos homens, informar-lhes o destino e o novo

rumo de suas decisões (GRAVES 2004: 15).

Ressaltando que o tempo em Kairos denota um princípio receptivo,como

indicado o autor nos leva a considerar que, em oposição a modalidade de tempo

em Kairos, Cronos, a modalidade oposta denota um princípio ativo. Kerkhof

(1997) acrescenta que há um instante vivido associado ao tempo kairológico, que

não faz distinção alguma entre “sujeito e objeto, começo e fim” (KERKHOF, 1997:

2), “antes e depois” (Ibidem) reconhecendo apenas o “agora” (Ibidem), o instante

presente que transcende dicotomias e, “pulsa incessantemente, entre o devenir e

o perecer regulando nossa consciência.” (Ibidem). Em outras palavras, e como

sinalizado pelo mesmo autor, na modalidade de Kairos o tempo ou, o instante,

pulsa entre velocidade e imobilidade, vida e morte, sagrado e profano.

No que diz respeito à essa “distinção fundamental entre profano e sagrado

que as grandes autoridades do campo das Ciências da Religião reconhecem

como válida” Kerkhof (1997) argumenta ainda que:

“[...] também devemos enfrentar a possibilidade de que longe de tratar-se de uma categoria universal, aplicável, o sagrado talvez não exista senão somente na mente analítica e secularizada do observador eurocêntrico.” (KERKHOF, 1997: 104, tradução nossa,).

Sugerindo que os “conceitos são secularizados” (Ibid.: 105), o autor parece

sinalizar que a distinção entre o sagrado e o profano resulta de uma operação de

nosso pensamento metonímico que a tudo separa o que vai de encontro à

concepção de Leach a respeito de tempo ritual. Para este ultimo autor o

pensamento metonímico encontra-se em oposição ao pensamento metafórico que

integra tudo o que está separado.

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Kerkhof (1997) assegura em relação ao mesmo assunto que:

“[...] o fenômeno que a investigação empírica tem descoberto é precisamente que esta distinção não deve ser sustentada: praticamente tudo pode ter um aspecto sagrado e outro profano; não parece haver nada que seja sempre profano.” (KERKHOF, 1997: 105, tradução nossa)

A argumentação do autor não parece estar pautada no ponto de vista

cartesiano, que a tudo segmenta para classificar e categorizar. Ao afirmar que a

distinção entre o profano e sagrado deve ser transcendida, o autor nos leva a

considerar que os aspectos sagrado e profano podem abarcar todo tipo de ação

ou temporalidade social como também sustenta o antropólogo social Edmund

Leach.

Ao que tudo indica Leach e Kerkhof, comungam uma mesma opinião no

que diz respeito a questão da distinção categorial já que ambos concordam que,

qualquer tipo de ação social denota tanto um aspecto profano quanto outro

sagrado.

Já Kerkhof (1997) acrescenta que:

“[...] ao final, praticamente tudo, sem exceção, pode converter-se de sagrado a profano e ao revés, uma vez que, depois de certo tempo, a dependência diante do extraordinário, se subverte em um controle parcial.” (KERKHOF, 1997: 107).

De acordo com Kerkhof (1997) por denotar “a presença de uma força

desconhecida” que gera “insegurança, angústia, assombro e curiosidade”, (Ibid.:

106, tradução nossa), o extraordinário, ou o sagrado, tendem a personificar o

“anônimo”, o tabu, que “causa estranheza e paralisa” (Ibidem). Contudo, o mesmo

autor nos leva a crer que todo fenômeno ou evento que de início mostra-se

extraordinário pode institucionalizar-se na medida em que deixa - com o passar

do tempo - de ter certa ascendência sobre a consciência ordinária. Se tomarmos

como referência esse posicionamento do autor podemos presumir que, em Leach

a dependência do tempo continuum, considerado tabu, do outro mundo, como um

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intervalo ritual de tempo sagrado, pode vir a subverter-se em um controle parcial

transformando o extraordinário, o tabu, em uma dimensão profana.

Kerkhof (1997) sustenta nossa hipótese ao argumentar que os dois

aspectos - repulsivo e atrativo - que caracterizam o extraordinário, via de regra,

denotam uma ambivalência “que rege os termos do ‘mana’ e do ‘tabu.’” (Ibidem).

Isso nos leva a presumir que em Leach, o tempo contínuum, considerado tabu é

tanto atrativo quanto repulsivo.

O autor acrescenta ainda que no intento de reconstruirmos uma

kairomitologia, associamos o instante kairológico à uma incidência tabu. Contudo

para ele:

“[...] está claro que, o intento de reconstruir uma “kairomitologia” ocidental deve parecer como uma recaída na superstição astrológica ou regressão ao ocultismo; mais acertado seria então, segundo esta perspectiva de superioridade, reabilitar um oportunismo, moralmente suspeito, embora não menos moderno.” (KERKHOF, 1997: 104,).

De acordo com Kerkhof (Ibid:103), o tempo em Kairos, que denota o

tempo vivido na consciência, não encontra quaisquer equivalências com a

astrologia, o ocultismo ou o oportunismo. Ao contrário, o instante vivido ou, o

instante kairológico que presumimos caracterizar o intervalo ritual de tempo

sagrado, pode ser percebido:

“[...] como um ‘lugar’, um possível momento de decisão, que traz uma probabilidade de liberdade, e nos propicia uma abertura em direção a algo que se encontra em uma dimensão transversal, em relação ao meio usual em que transcorre o tempo; em outras palavras: o instante é como um ponto de partida de uma ação ou decisão, situando-se em uma dimensão ‘vertical’, típica, de tudo o que tem origem, nasce, cresce, e se distingue da dimensão ‘horizontal’ do transcorrer do tempo; como o saltar e o correr.” (KERKHOF, 1997: 2, tradução nossa, interpolação nossa, aspas do autor, grifo nosso).

Como sustenta Kerkhof (1997), o instante kairológico personifica um tempo

originário cuja dimensão é transversal ao tempo linear, horizontal, de Chronos

como indicado anteriormente por Onians (2010) e Honkanen (2007). O mesmo

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Kerkhoff (1997) nos fornece ainda, duas imagens metafóricas a respeito do

tempo: segundo o mesmo autor o instante kairológico “salta” (dimensão vertical)

enquanto o instante cronológico “corre” (dimensão horizontal).

O pensamento de Kerkhoff (1997) a respeito do instante kairológico denota

possuir uma certa ressonância com a concepção de Leach sobre o intervalo ritual

de tempo sagrado ou o tempo continuum, uma vez que, de acordo com o mesmo

Leach o indivíduo alterna seu status em sociedade a partir de “saltos”. Dito de

outra forma, quando o indivíduo passa de um status social à outro ou é transferido

do intervalo de tempo profano para o intervalo ritual de tempo sagrado, ele “salta”

para uma temporalidade cuja dimensão é vertical.

Estes “saltos” atribuídos ao instante kairológico podem também ser

divisados na metáfora do arqueiro grego que, segundo Onians (2010) “lança” sua

flecha em direção a uma abertura “saltando” na direção do alvo. Entretanto, de

acordo com a perspectiva de Onians (2010):

“[...] Tal abertura é limitada [...] diz Píndaro. A flecha que erra a abertura (i.e., que vai...) ou atinge o ferro ao seu redor, ou, no caso do corpo, atinge algo contra o qual ele é ineficaz, não terá efeito nenhum.” (ONIANS, 2010 [1951]: 345, tradução nossa, aspas do autor).

Como indicado anteriormente, a consciência ordinária atingida em um

Kairos penetra uma abertura que mostra-se limitada e rompe com nossa

concepção habitual de linearidade, caracterizando nesse sentido, uma ação de

risco para o participante ritual. Onians (2010), é ainda explícito ao assinalar que

caso a flecha do arqueiro não atinja o alvo, perder-se-à uma oportunidade. Em

outras palavras, existe uma meta a ser alcançada pelo participante ritual quando

no intervalo de tempo sagrado; entretanto caso sua atitude não seja eficaz não

haverá efeito algum desse instante sobre sua consciência, não ocorrendo

qualquer processo de transformação.

Isso posto, concluímos o presente capítulo sumarizando que a partir de

Onians (2010), Honkanen (2007) e Kerkhof (1997), dentre outros aportes, vimos

que o instante kairológico é percebido grosso modo, como um instante originário,

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um fluxo de “agoras”, divino e ao mesmo tempo humano, que não só rompe com

a cadeia da linearidade em que os fenômenos “correm” numa sequência causal,

como aprofunda-se em uma dimensão vertical, transversal a dimensão horizontal

de Chronos, “saltando” e copiando o movimentos dos organismos vivos que

seguem um curso unidimensional e irreversível (entrópico), em direção à própria

morte.

Quando confrontado com a noção ocidental de tempo cronológico, o

instante kairológico, pode nos propiciar uma investigação aprofundada do

intervalo ritual de tempo sagrado em Leach uma vez que o próprio Leach

assegura que este intervalo de tempo contínuum possui uma natureza diferente

daqueles instantes quantitativos, causais, associados ao tempo cronológico

exigindo o intervalo ritual de tempo sagrado à luz do tratamento de Kairos, um

outro tipo de explicação.

Apresentamos na sequência o segundo capítulo dessa dissertação em que

contextualizamos inicialmente, a biografia do antropólogo social Edmund Leach

para, em seguida, apresentarmos o modo como esse mesmo autor concebeu um

modelo de tempo ritual caracterizando o intervalo ritual de tempo sagrado, à luz

dos elementos mitológicos associados à noção de Cronos, como tabu, do outro

mundo.

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2. A TEORIA DO TEMPO RITUAL EM LEACH

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Este capítulo apresenta os principais conceitos e resultados do trabalho de

Edmund Leach, que constituem o referencial teórico do presente estudo, bem

como o parecer de comentaristas que contribuíram para o enriquecimento desse

estudo. Como indicado, o capítulo sumariza inicialmente, a biografia de Leach

contextualizando passagens que tiveram certa influência no processo de sua

formação pessoal e acadêmica bem como em sua produção intelectual. Na

sequência, o capitulo ilustra como Leach concebia o processo de ordenação

simbólica do mundo a partir da lógica do pensamento binário e retrata como

diferentes povos da antiguidade tendiam a pensar o tempo, como uma repetição.

O capítulo explana em seguida sobre as metáforas do tempo que fundam as

bases do tempo ritual em Leach trazendo ao final, uma versão do mito de Cronos,

cuja descrição aproxima-se daquela apresentada pelo mesmo autor em “Dois

Ensaios a Respeito da Representação Simbólica do Tempo”. Com a

apresentação do modelo de tempo ritual concebido por Leach e, a partir de uma

breve exposição de conceitos a respeito do intervalo ritual de tempo sagrado,

desenvolvidos por uma geração de antropólogos simbólicos, encerramos o

presente capítulo.

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2.1. Edmund Ronald Leach (1919-1989): Uma Antropologia de Fronteira

“Uma biografia válida de minha persona antropológica teria que começar muito antes [...] tudo isso [Malinowski, Cambridge] foi trivial quando comparado às influências de minha família e origem de classe que são muito mais duras de explicar.” (LEACH, 1983: 2).

Como tudo indica, Edmund Leach ganhou notoriedade nos círculos

antropológicos, não apenas em função de suas disposições contestarias

(SIGAUD, 1996: 12), dirigidas às ortodoxias reinantes, consideradas por ele como

destituídas de criatividade, mas, também, por protagonizar uma antropologia

“intermediária” (DA MATTA, 1983: 13) que, segundo o mesmo autor estaria

situado entre a tradição empirista (funcionalismo) e o racionalismo

(estruturalismo), prototipicamente representada pelo trabalho de Lèvi-Strauss

(1908-2009), e alguns dos últimos trabalhos de Evans-Prtitchard (1902-1973)

(LEACH, 1978: 12).

Isso quer dizer que na concepção de Leach, teorias antropológicas

consideradas rivais (pode-se dizer, em oposição), não passavam de partes de um

único todo em interação que se transformavam umas nas outras, em um contexto

dinâmico. É em relação a este caráter transicional, liminar, que nos referimos ao

atribuir à antropologia protagonizada por Leach como sendo “uma antropologia de

fronteira”.

2.1.1. Da Formação Inicial

Na introdução da obra Edmund Leach: Antropologia, Roberto Da Matta,

qualifica Edmund Ronald Leach como “um caso único” (DA MATTA, 1983: 19)

entre os antropólogos que contribuíram para o desenvolvimento da antropologia

social inglesa, se considerada a “diversidade de sua experiência de campo e a

amplitude de sua curiosidade intelectual” (Ibidem).

Entretanto, essa versatilidade e originalidade teóricas não foram marcadas

pela adesão de Leach a uma escola filosófica de pensamento em particular o

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funcionalismo ou o estruturalismo como se poderia supor (DA MATTA, 1983; apud

PEIRANO, 2014).

Ao contrário, o que os dados amealhados pela antropóloga Lígia Sigaud,

sinalizam na apresentação da obra Sistemas Políticos da Alta Birmânia, é que

Leach, nascido em Sidmouth-Devon, Inglaterra e “originário de família rica”

(SIGAUD, 1996: 11-12), já manifestava desde a mais tenra idade sinais de ser um

menino audacioso e “intelectualmente brilhante” (Ibidem).

Apesar disso, a incômoda posição de “terceiro e último filho” (Ibid.:12) na

hierarquia familiar parece ter contribuído para aflorar em Leach certa disposição à

contestação e à crítica, cujas tendências somente seriam amenizadas pelas

atenções da mãe, Mildred Brierley, que contribuiu para que ele “desenvolvesse os

interesses que valorizava” (Ibidem).

Ao sumarizar episódios relativos a infância e juventude de Edmund Leach,

Sigaud analisa alguns destes aspectos afetivos decorrentes da convivência desse

mesmo Leach com a família de origem, que teriam não só contribuído para que

ele desenvolvesse sua autonomia, mas também para que se esmerasse em

abrilhantar sua capacidade intelectual. Vejamos a seguir o relato em que a autora

descreve as primeiras experiências vividas por Leach no ambiente doméstico que

suscitou, em Sigaud, um olhar mais aprofundado a respeito do assunto:

[...] Edmund nasceu na Inglaterra e não na Argentina, como a irmã, o irmão e a maioria dos primos patrilaterais, todos mais velhos do que ele. Não compartilhava das experiências vividas pelos outros, não falava espanhol e sentia-se uma espécie de outsider em relação à sua geração (Hugh-Jones, 1989: 8). Esta posição no interior do grupo familiar parece tê-lo marcado: aos 76 anos Leach ainda julgava importante relatar a saga familiar na Argentina e enfatizar que jamais conhecera esse país, ao contrário dos outros (Kuper, 1986: 375). Dado o desinteresse intelectual dos Leaches, os incentivos de Mildred [mãe] aos seus “dotes” só podem ter contribuído para singularizar ainda mais sua posição na família e acentuar o “sentimento de exclusão”. Confrontado com esta situação, certamente dolorosa para uma criança, Leach tratou de geri-la cultivando sua diferença, via investimento no “brilhantismo intelectual” e contrapondo-se ao mundo do qual sentia-se excluído. (SIGAUD, 1996: 13, grifo e aspas do autor).

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Com certa propriedade, Sigaud considera, descreve e esclarece diferenças

entre Leach e os “outros” da família, que evidenciam a posição singular do an-

tropólogo entre aqueles de sua própria geração e familiares. Com o mesmo tra-

tamento e cuidado, Sigaud destaca a indiferença familiar que teria suscitado em

Edmund um “sentimento de exclusão” com a finalidade de sugerir ao leitor que,

desde cedo, o antropólogo inglês já assimilava, ao mesmo tempo em que discri-

minava informações que seriam mais tarde alinhadas com os ideais fomentados

por sua mãe e mentora intelectual.

De acordo com Sigaud (1996), fragmentos autobiográficos de Leach per-

mitem que se perceba que, em criança ele sentia-se bastante próximo à mãe

Mildred Brierley e distante do pai, relembrado por ele, em uma entrevista dada a

Adam Kuper, em 1986, como “um homem paciente e obstinado, leal e corajoso e,

no entanto ausente” (FIRTH, 1989: 12-18 apud SIGAUD, 1996: 12). Do pai de

Leach, o que se sabe é que era um aficionado pelo esporte de cricket, que tinha

13 irmãos e concluiu seus estudos em Marlborough Scholl, uma public school,

dedicada na época à formação dos filhos da elite inglesa (Ibid.: 12).

Em consonância com os relatos de Roberto da Matta (1983) e Marisa

Peirano (2014), um breve comentário de Sigaud (1996) descreve o tipo de vínculo

que unia Leach a Mildred, explicitando como esta mulher “prática e realista”

motivava e inspirava o futuro antropólogo a uma “espécie de busca” (DA MATTA,

1983: 19), cuja meta era “atingir a perfeição” (SIGAUD, 1996: 15), e a

“originalidade teórica” (PEIRANO, 2014: 1).

Eis o comentário de Sigaud:

[....] Ela [Mildred] era, na visão do filho, uma mulher apaixonada e emotiva, descontrolada e curiosa, prática e realista, para quem não existiam meias medidas; a pessoa que lhe ensinara que todos podem atingir a perfeição e que é preferível visar alto e fracassar a contentar-se com a mediocridade. Leach sentia-se muito inspirado por esta mulher e acreditava que ao seu lado podia conquistar o mundo. (SIGAUD, 1996: 15).

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Adepta de posturas socialmente marcadas, a mentora intelectual de Leach

não se mostrava afeita à mediocridade, ou ao fracasso. Ao contrário, motivava o

futuro antropólogo para que se engajasse numa “espécie de busca anti-

proustiana”19 cuja meta era alcançar uma “genuína originalidade” (DA MATTA,

1983: 19).

Ao sumarizar alguns detalhes do relacionamento entre Leach e sua mãe,

Sigaud sugere que ambos compartilhavam um mesmo tipo de inclinação

“apaixonada, emotiva e descontrolada” (PEIRANO, 2014:1) pela vida que em

Leach traduzia-se na conquista de novos horizontes. Como explicita Peirano

(2014), ousar criativamente, “contestando e expandindo novos horizontes”

(Ibidem) teria sido ao que tudo indica uma das características mais marcantes de

Leach.

Uma passagem que daria provas da indignação juvenil de Leach diante de

contradições amealhadas pela saga dos Leaches reporta-se ao período em que

cursava a universidade em Cambridge e é expressa em uma carta datada de

1931. Carta endereçada a uma amiga de mesma condição social e ligada à sua

família por laços estreitos firmados em Marlborough Scholl: Rosemary Upcott.

De acordo com Sigaud, Leach formula, na ocasião, uma crítica à fortuna da

família, valendo-se de uma metáfora do cricket, cujos recursos financeiros, devia-

se segundo ele a um “tipo de exploração às expensas da ‘infeliz população’ de

Lancashire” (SIGAUD, 1996: 14). Ao classificar “ironicamente” a saga do pai e dos

tios, na Argentina, “como a realização do espírito desse esporte” (Ibidem), Leach

expressa-se na época do seguinte modo:

“[...] um jogo que requer uma extraordinária paciência, no qual se desenvolve o espírito de equipe e a teoria completamente equivocada de que um aluno de uma public school inglesa é um cavalheiro [gentleman]

19 Segundo Roberto Da Matta, essa busca “não é de um tempo perdido”. O comentarista justifica essa

afirmação não só fazendo uma referência à ânsia de Leach “por um espaço social específico” onde os homens pudessem “exercer sua liberdade e nesta viagem fossem realizando uma série de reflexões intrigantes e, às vezes, fundamentais para o desenvolvimento da Antropologia Social”. Da Matta relaciona esta busca de Leach com “a liberdade de questionar, essa liberdade que, quando é bem intencionada e utilizada, acaba invariavelmente se transformando em genuína originalidade”. Cf.: Notas a respeito em DA MATTA, Roberto. (Org.) Edmund Leach. Antropologia, Coleção Grandes Cientistas Sociais. São Paulo: Editora Ática, 1983. [1958]: 19.

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em qualquer parte do mundo” (LEACH, 1983: 13-14 apud SIGAUD,

1996: 14, grifo e aspas do autor).

Ao contestar de forma criativa a atitude contraditória dos Leaches, Edmund

denota que suas disposições já expressavam na ocasião “um elevado grau de

exigência” (Ibid.:14) passando sua autoestima pelo “desempenho intelectual”

(Ibidem). Não é demais relembrar que durante o período de sua formação na

Marlborough school, antes de sua passagem por Cambridge, Leach já contestava

modelos sociais estabelecidos, mostrando com suas atitudes uma inclinação por

novas conjunções sociais e produções acadêmicas originais (DA MATTA, 1983:

21).

Fragmentos de correspondências, que aludem ao período universitário,

posterior à Marlborough School, quando Leach usufruiu de uma bolsa de estudos

no Clare College, em Cambridge (1923-1932), descrevem que, na época, ele iria

associar-se aos estudantes considerados mais “intelectualizados e politizados”

(Ibid.:13) da universidade, tornando-se, como eles, “meio comunista” (Ibidem).

Neste ambiente politizado, familiarizou-se com a chamada “vanguarda intelectual”

(Ibidem) da época - Sigmund Freud, Alfred Adler, Carl Gustav Jung e Bronislaw

Malinowski - cuja leitura era obrigatória para aqueles que cursavam Cambridge.

Desfrutando do reconhecimento da academia por conseguir realizar o

“ideal de perfeição” (que a mãe lhe inspirara), e almejava atingir em Cambridge,

Leach recebe o First Class Honours Degree, ao graduar-se em 1932 no curso de

Engenharia20 (SIGAUD, op.cit.: 14).

Entre 1947 e 1948 Leach conclui o doutorado em antropologia social na

London School of Economics sob a orientação de Raymond Firth, onde passa a

lecionar até o ano de 1953, retornando após este período à Cambridge, onde

serve como Lecturer, de 1953 a 1958 (DA MATTA, 1983: 18).

20 De acordo com Sigaud (1996:14), Edmund Leach se formou em Engenharia, curso para o qual se transferiu

após cursar um ano, Matemática. Concluiu o curso com um First Class Honours Degree, considerada a mais elevada distinção da Universidade, conferida a muito poucos universitários.

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2.1.2. Produção Intelectual: Versatilidade Teórica

Ao sumarizar as obras de Leach, as lentes de Da Matta (1983), não deixam

de ilustrar no curso de sua exposição o “horizonte extremamente variado”

(Ibidem) que cobre a produção acadêmica do antropólogo, cuja singularidade,

confirma Peirano, “comprova que não há limites à inquirição da antropologia ao

mundo” (PEIRANO, 2014: 1). Além de capturarem a diversidade, ao mesmo

tempo que a singularidade dos estudos abordados por Leach, essas mesmas

lentes nos permitem focar a sensação evocada pelo comentarista, que

impressiona-se diante da extensão e volume que consolidam e caracterizam a

produção intelectual do antropólogo de Lancashire.

O texto a seguir ilustra a amplitude intelectual Leach, apreendida ainda

pelas lentes de Roberto da Matta, que ressalta:

[...] Poucos antropólogos sociais escreveram tanto quanto Edmund Leach.[...] São cerca de duzentas recensões de livros (algumas se constituindo em verdadeiros ensaios polêmicos); cerca de trinta artigos de comentários tão ao gosto do mundo intelectual inglês [...] dezenas de artigos e ensaios sobre política, relações raciais, “simbolismo” (análise de mitos, rituais e símbolos), incluindo alguns trabalhos pioneiros sobre calendários, a ideia de tempo e magia; vários ensaios sobre tecnologia primitiva, compreendendo artigos a respeito de agricultura e agricultura de irrigação, tenência e propriedade da terra, herança, etc. Destacam-se também trabalhos sobre castas, minorias étnicas, Filosofia da Ciência, uso de modelos em Biologia e Antropologia e estética tribal; ensaios sobre Frazer, Malinowski e Lèvi-Strauss. E, finalmente, três monografias originais, baseadas em trabalho de campo do próprio Leach, sobre três sociedades altamente diferenciadas entre si em termos de língua, cultura e posição geográfica: os curdos de Rovanduz do Irã Ocidental, os Kachin das montanhas do norte da Birmânia e os camponeses cingaleses da zona árida do norte do Ceilão (DA MATTA, 1983: 20, aspas do autor).

A par dessa produção que resultou de suas pesquisas de campo Edmund

Leach elaborou ainda:

[...] uma obra de caráter geral sobre o mundo moderno, A Runaway World? (1968), que reúne suas Conferências Reith na BBC, pronunciadas em 1967; coleções reunindo seus trabalhos mais significativos na área da organização social, simbolismo e estudos de religião (Rethinking Anthropology, que já foi traduzido para o português em 1974, e Genesis as myth, publicado em 1969). E finalmente dois

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livros sobre a perspectiva estruturalista que são como que duas faces da mesma moeda. O volume sobre Lèvi-Strauss (Cf.: Leach, 1970; em português, 1977), que revela como a análise estrutural caminha com seu inventor. E um volume de “introdução ao uso da análise estrutural”, intitulado Comunicação e Cultura: A Lógica pela qual os Símbolos estão ligados (1978), que personaliza o método estrutural, mostrando o outro lado da moeda, ou seja: como o estruturalismo opera à la Leach. (DA MATTA, 1983:20, grifos do autor).

Como parece ficar evidente, a produção intelectual de Leach configura-se

como um horizonte versátil, provavelmente forjado não só por sua inclinação em

conhecer novos fatos culturais, mas principalmente por seu estilo “criativo e

polêmico” (PEIRANO, 2014:1), responsável pela criação de “novas combinações”

teóricas (Ibidem).

Roberto da Matta (1983) ressalta que, em Leach, estas combinações

criaram uma antropologia “intermediária” (DA MATTA, 1983: 12), como indicado

no início desse trabalho o que possibilitou ao antropólogo um trânsito entre os

pontos de vista de James Frazer (1845-1941) e de Bronislaw Malinowski (1884-

1942), ambos considerados, inclusive por Leach, como dois “paradigmas do

comportamento antropológico” (Ibidem). E, nesse sentido, “balizadores” de

posições teóricas “bem marcadas” no campo da disciplina (Ibid.: 15).

Reconhecido pela academia britânica como um pensador original e bri-

lhante, agressivo e provocador ao mesmo tempo em que um “crítico e destruidor

de ortodoxias”21 (SIGAUD, 1996: 10), atribuía-se à Leach certa ambivalência

teórica. Leach citado por Roberto da Matta (1983) argumenta que:

[...] os empiristas afirmam que a tarefa básica do antropólogo no campo é registrar comportamentos face a face, diretamente observados, de membros de uma comunidade local interagindo uns com os outros em suas atividades diárias. [...] Neste caso o que é descrito como “estrutura social” do sistema é uma derivação de conjuntos de tais transações diretamente observadas. [...] a questão da “estrutura das ideias corrente dentro de uma sociedade” [é considerada] uma abstração de segunda ordem, não observável, inventada por teóricos. [...] Devido a seu interesse nas ideias em oposição aos fatos objetivos, os antropólogos racionalistas tendem a se preocupar mais com o que é dito do que com que é feito. [...] dão maior importância à mitologia [...] a realidade social “existe” mais nas afirmações verbais do que no que acontece. (LEACH, 1978: 10-11, aspas do autor).

21 Cf.: Notas a respeito em SIGAUD, 1996: 11.

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Concluindo, Leach expõe ainda que:

[...] ambos os pontos de vista aceitam o dogma central do funcionalismo, que os detalhes culturais sempre devem ser vistos em contexto, já que todas as coisas estão ligadas. [...] A esse respeito, as duas abordagens, a empirista [funcionalista] e a racionalista [estruturalista] são antes complementares do que contraditórias uma é a transformação da outra. [...] digo que meu próprio trabalho inclui exemplos de monografias de ambos os tipos. Leach (1954) é racionalista no estilo; Leach (1961) é empirista. (LEACH, 1978: 12, interpolação nossa).

Como visto, Leach defendia a ideia de que a realidade é regida “pelo

princípio da reciprocidade” (Ibid.: 12), por isso, deve ser observada como “um

todo único em interação” 22 (Ibid.: 9), como sinalizado anteriormente. O fato de

discriminarmos e darmos nomes às coisas, pessoas e situações não invalidava

sua proposição de que, ainda assim, todas as coisas permanecem de algum

modo interligadas.

Ao expressar pontos de vista inovadores, distintos daqueles que até então

prevaleciam no campo da antropologia social inglesa, Leach deu provas de uma

“liberdade intelectual e uma audácia” (SIGAUD, 1996: 10) notáveis. Longe de

exprimir uma persona antropológica predisposta a “criar rótulos” (PEIRANO, 2014:

1), ao contrario, Leach se comprazia em distinguir novas formas de organizar o

mundo, dialogando e expandindo fronteiras teóricas. Dito de outra forma, Leach

propôs modos alternativos e inovadores de se pensar “velhos”23 problemas

tratados pela antropologia social, atitude que concorreu para que consolidasse

“um nome” (SIGAUD, op. cit.: 10) sendo este, considerado por Pierre Bourdieu

(1984),24 “o bem de maior valor no mundo acadêmico” (Ibidem).

Mantendo-se constantemente “em diálogo aberto, seu estilo predileto”

(PEIRANO, op. cit.: 3), Leach engajou-se com alguns personagens emble-

22 Leach (1978) faz uma referência a essa interação entre o todo e as partes ao se referir a um ensaio de

Mary Douglas (1972), em que ela alude a um famoso trabalho sobre a vida sazonal dos esquimós, publicado no início do século, por Mauss e Beuchat, em 1906. Neste trabalho os autores conferem uma “ênfase especial” ao princípio de que estamos a todo tempo lidando com um todo único que interage. Cf.: Notas a respeito do assunto em LEACH, Edmund R. Cultura e Comunicação: A Lógica pela Qual os Símbolos estão Ligados. Uma Introdução ao Uso da Análise Estruturalista em Antropologia Social. Rio de Janeiro: Editora Jorge Zahar, 1978 [1976]: 9.

23 Grifo nosso. 24 Cf.: Notas a respeito em SIGAUD, op. cit.: 10.

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máticos no campo da disciplina, destacando-se Radcliffe-Brown, Evans-Pritchard,

Raymond Firth, Bronislaw Malinowski e Lèvi-Strauss, “ora para oferecer

alternativas, ora para se situar e marcar posição frente a eles” (Idem). Entretanto,

e apesar de sua contribuição à disciplina, foi também tratado por seus pares como

um “herético” (Ibidem), por se contrapor a catedráticos e, principalmente, por

lançar duras críticas a seu mestre Bronislaw Malinowski, considerado (inclusive)

pelo próprio Leach como um modelo emblemático no campo da disciplina (DA

MATTA, 1983: 12).

Ao assinalar que “nossas classificações indicam o modo como procuramos

organizar o mundo” (PEIRANO, 2014: 1), Marisa Peirano justifica de certo modo a

atitude crítica de Leach diante de seus interlocutores argumentando que o

antropólogo adotava uma postura crítica e contestadora quando considerava que

as ideias de colegas e antigos mestres “impediam a criatividade” (Ibidem), ao que

Sigaud (1996: 22) acrescenta: Leach “tinha de inovar no plano das ideias”. É

conveniente, ainda, salientar que desde a época de sua formação na Marlborough

School, o antropólogo já contestava ortodoxias e modelos sociais estabelecidos,

alimentado por “seu apetite pantagruélico [...] por novos fatos culturais” (DA

MATTA, 1983: 21), novas conjunções sociais e produções acadêmicas originais.

Segundo o mesmo Da Matta, nessa época o interesse de Leach se

desdobra em ensaios a respeito de mitos e ritos: “O Gênesis enquanto um mito”

reproduzido em Repensando a Antropologia, 1974; “Nascimento Virgem”, 1957a,

1961a, 1966, 1969; “Melquisedek”, 1972; “Cronos e Chronos”, 1953, republicado

em 1974, e outros (Ibidem).

2.1.3. Contribuições à Antropologia Social

Em seguida, Leach parte para Londres, onde permanece por um ano

(SIGAUD, 1996:15). Passado este período, aceita a oferta da empresa Butterfield

& Swire e parte, com ela, em 1933, para a China, onde se estabelece nos quatro

anos seguintes. Viajando “extensamente nas férias, onde inclui-se uma visita à

ilha de Botel Tobago” (PEIRANO, 2014: 2), Leach vai familiarizando-se aos

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poucos com a prática dos antropólogos, retornando à Inglaterra em 1937. No

final desse mesmo ano inicia-se nos estudos em antropologia social, disciplina

que lhe confere o reconhecimento da academia. Graças às contribuições dadas

por Bronislaw Malinowski e Raymond Firth (SIGAUD, 1996: 16), Leach ascende

na carreira acadêmica.

No ano de 1938, Leach passa algumas semanas entre os curdos na região

do Irã Ocidental, mas tem a pesquisa frustrada e abortada às vésperas da crise

dos Sudetos, que eclode em Munique em 1939 (PEIRANO, 2014 apud DA

MATTA, 1983).

Servindo como oficial do exército birmanês, de 1939 a 1945, e sentindo-se

um “antropólogo frustrado”, Leach visita várias regiões da Birmânia (hoje

Myanmar), e pouco antes do início da Segunda Guerra Mundial, em 1939, realiza

sua pesquisa, lá permanecendo até o final da guerra (PEIRANO, 2014: 7). Na

condição de oficial birmanês, viaja extensivamente pelos territórios Kachin, Assam

e Yunnan, o que resulta em uma pesquisa de campo, diferente da considerada

então (e mesmo hoje) convencional (Ibidem). Nesse período, Leach é removido

para Calcutá, onde passa por um tratamento de saúde e, no pós-guerra, elabora

na Índia sua monografia sobre a população kachin, construindo seu texto a partir

da própria memória e de fatos históricos, devido à perda da maioria de suas

anotações de campo (Ibidem).

Peirano ressalta alguns detalhes presentes na monografia de Leach que se

reportam à conduta ritual da população Kachin e contribuem com nosso

entendimento a respeito da teoria de tempo ritual desse mesmo autor. A respeito:

[...] das noções de rito e mito (que atingiriam seu auge na década seguinte), [...] Leach se posiciona a favor de vê-los [Kachin] em ação: a comunicação entre diferentes grupos que habitavam a região se fazia pelas variações de dialeto, vestimenta, adornos, ornamentos e outros sinais definidos como “rituais”. O ritual é, assim, um aspecto presente em qualquer tipo de ação; ele “diz” alguma coisa sobre os indivíduos em contato. Da mesma forma, os mitos são analisados em termos dinâmicos, indicando que são manipulados pelas pessoas de acordo com seus interesses. (PEIRANO, 2014: 7, aspas do autor).

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Publicada em 1954, a obra Sistemas Políticos da Alta Birmânia: Um Estudo

da Estrutura Social Kachin, tornou-se uma das monografias clássicas da

antropologia social por sua “contribuição teórico-etnográfica duradoura” (Ibid.:8);

uma delas, a proposta de Leach de que pudessem ser considerados rituais todos

os aspectos comunicativos das relações sociais (Ibidem).

Segundo a perspectiva de Sigaud (1996), nesse momento de sua

trajetória, Leach já se:

[....] situava no interior daquilo que Pierre Bourdieu trata como “o espaço dos possíveis”: aquele espaço que “tende a orientar a pesquisa, definindo o universo dos problemas, de referências, de posicionamentos intelectuais [...] para entrar no jogo” (Ibid. 21).

A autora acrescenta à mesma pauta que a partir de sua inserção no “jogo”

da antropologia social inglesa, Edmund Leach passa a contribuir com uma forma

original de se pensar o conhecimento. Vejamos o que a autora nos esclarece a

este respeito:

[...] para participar do “jogo” dos antropólogos sociais, Leach escolhe trabalhar sobre o parentesco, o tema que estava se tornando altamente prestigioso, e usa os dados kachin para se posicionar diante de um dos problemas que animavam os debates da época: a relação entre a terminologia de parentesco e os comportamentos sociais [...]. Com esse texto que só veio a ser publicado em 1948, Leach já oferecia à antropologia outro ponto de vista a respeito do modo de produzir conhecimento [...] (SIGAUD, 1996: 22, aspas e grifo do autor).

Grosso modo, Leach se insere no jogo da antropologia social inglesa a

partir de uma perspectiva empirista apropriada para caracterização de seus

estudos de campo na Birmânia, muito embora como já indicado tal abordagem

teórica não fosse exclusiva dentro de seu ponto de vista (DA MATTA, 1983: 22).

De junho a dezembro de 1954 e, em agosto de 1956, Leach realiza

pesquisas no Centro-Norte do Ceilão, estudando os camponeses de língua

cingalesa, investigação que deriva na obra Pul Eliya, a Village in Ceylon, editada

em 1961. Nesta obra revolucionária e, intelectualmente intensa, Leach recusa-se

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explicitamente em “considerar o parentesco ‘como uma coisa em si’ (‘a thing in it

self’)”, avaliando que, “em Pul Eliya, não era a descendência, mas a localidade,

que formava a base dos grupos corporados” (PEIRANO, 2014: 8).

Na década de 60, encantado com a obra de Lèvi-Strauss, cujo impacto é

“visível em sua produção” (PEIRANO, 2014:10), Leach “movimenta-se” em

direção ao estruturalismo, ao mesmo tempo em que procura expandir novas

ideias e interpretações a respeito desta nova abordagem (Ibidem).

Segundo dados amealhados por Lígia Sigaud (1996), isto pode ser

avaliado na obra Sistemas Políticos da Alta Birmânia em que Leach apresenta

estudos a respeito da sociedade kachin, contextualizando que, em um sistema

estrutural “as inconsistências são mais significativas que as uniformidades”

(SIGAUD, 1996: 38).

Evidenciando “o material que demonstra o quanto o conflito é propulsor de

mudanças” (Ibid.: 35), Leach não só reivindica para si o “mérito de ter descrito a

estrutura” de um sistema que não se encontrava em equilíbrio (Ibid.: 39), como

explicita uma crítica às interpretações antropológicas nas quais “os fatos eram

utilizados para serem ajustados a modelos ideais de sociedades humanas”

(Ibidem).

Tomando como base o material etnográfico extraído de sua convivência

com a sociedade kachin, e estimulado pelos estudos de Arnold Van Gennep,

Èmile Durkheim e Radcliffe-Brown, Edmund Leach produz, nesta mesma década,

dois pequenos ensaios sobre as relações entre ritual e categoria do tempo,

“Cronus and Chronos” [Cronos e Chronos] e “Time and False Noses” 25 [Tempo e

Narizes falsos], que tornaram-se clássicos na antropologia social. No primeiro, a

etnografia Kachin conduz Leach a uma reflexão a respeito da mitologia grega e,

no segundo, o mesmo autor examina a marcação do tempo, em função das

festividades rituais (PEIRANO, 2014: 11).

25 Os dois artigos foram publicados em 1953 e 1955, respectivamente, em Toronto, no periódico canadense

Explorations, e se tornaram conhecidos como os ensaios finais da obra de Leach Repensando a Antropologia (1961) sob o título de “Dois Ensaios a Respeito da Representação Simbólica do Tempo” (PEIRANO, 2014:11).

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Entretanto, foi com a apresentação de um breve texto intitulado

“Ritualization in Man”, em 1966, em um seminário interdisciplinar, que Edmund

Leach explicitou de forma clara e direta sua abordagem ao ritual embora, segundo

Peirano (2014), ritual não tenha sido um tema a que Leach se dedicou, “mas uma

dimensão fundamental de sua arquitetura teórica” (Ibid.: 10).

Neste mesmo ano, Leach “torna-se Preboste de um dos colégios mais

importantes da Universidade de Cambridge, o King’s College”, recebendo em

1972, “a cátedra de Professor de Antropologia Social, por méritos pessoais” (DA

MATTA, op. cit.: 18). Ascendendo cada vez mais na carreira acadêmica, Leach

recebe inúmeros prêmios de prestígio, na Inglaterra e nos Estados Unidos, sendo

agraciado no ano de 1975, em meio a distinções e honrarias, com o título de Sir

(DA MATTA, 1983: 18; PEIRANO, 2014: 2).

De acordo com Da Matta (1983: 18), Leach viveu em Cambridge,

aposentado de seus deveres acadêmicos oficiais, embora tenha dado

continuidade à promoção de novas ideias e contribuído com a formação de jovens

antropólogos26. Depois de longa doença, Edmund Ronald Leach faleceu em

Cambridge, a 6 de janeiro de 1989, vítima de um tumor cerebral (PEIRANO, 2002:

517).

2.2. A Ordenação Simbólica do Mundo em Leach

[....] Peço desculpa por começar com uma explicação abstrata tão alarmante, mas o problema que está subentendido é extremamente geral e de importância fundamental para todos nós. Como é que as descontinuidades do tempo e do espaço que encontramos num nível se ligam com as continuidades que experimentamos noutro? (LEACH, 1982: 11). [...] O princípio de que estamos o tempo todo lidando com um todo único que interage é facialmente esquecido (LEACH, 1978:9).

26 Em 1978, enquanto membro ativo do King’s College, na qualidade de visiting scholar do Centre for Latin

American Studies, o antropólogo Roberto da Matta travou um conhecimento pessoal com Edmund Leach, ou “Edmund” como era chamado por todos os seus colegas, tendo gravado na memória a impressão suscitada por este encontro e o entusiasmo de Leach. Segundo Da Matta: “Pude então observar a olho nu seu entusiasmo irrestrito por novas ideias e linhas de trabalho, sua generosidade para com a promoção de jovens pós-graduados e desenvolvimento da Antropologia Social. Cf.: Edmund Ronald Leach: Antropologia. (Org. Roberto da Matta). São Paulo: Editora Ática, 1983: 18.

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2.2.1. A Percepção Primária do Mundo

Na perspectiva de Edmund Ronald Leach a teoria binária é não apenas

considerada “muito simples” como também eficiente, na medida em que é

utilizada “em vários ramos da matemática” (LEACH, 1982: 10). Para Leach esta

teoria:

[....] pode resumir-se, dizendo que a relação entre os três símbolos +, - e 0 se pode representar como um triângulo: + e - formam um par binário, são simétricos em todos os aspectos, mas também inseparáveis, uma vez que nenhum deles pode ser entendido sem conhecer o outro. Mas o “0” que não está no “centro”, numa posição intermediária, tem uma natureza diferente. E, no entanto, se nos deslocarmos ao longo de uma linha contínua imaginária, tendo como pontos todos os números entre -1 e +1, um deles, necessariamente, terá de passar pelo ponto 0, que não é nem positivo nem negativo, mas as duas coisas simultaneamente. (LEACH, 1982: 10, aspas do autor).

Leach ilustra sua explanação com o seguinte diagrama:

0

-1 +1

Figura 6: Ilustração Esquemática do Binário Proposto em Leach Fonte: LEACH, 1982:10.

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Como é possível observar no diagrama elaborado por Leach, há um

relacionamento entre os “extremos” binários -1 e +1 e o ponto intermediário entre

ambos, que não representa como assinala o mesmo autor, um centro geométrico.

Nesse relacionamento, a progressão é sempre do tipo contínuo-descontínua,

representada pela sequência -1, 0, +1, em que os eventos que encontramos no

tempo e no espaço, como descontinuidades (sequências como passado e futuro;

antes e depois, por exemplo), conectam-se à continuidade na natureza (nem

antes nem depois, ou ambos), que experimentamos num outro nível (Ibid.: 11).

O mesmo princípio pode ser aplicado “ao progresso do indivíduo27 através

da totalidade de sua existência” (LEACH, 1978: 45). A partir de uma série de

saltos descontínuos, o indivíduo fragmenta o fluxo contínuo da experiência física,

alternando seu status em sociedade. Assim, a criança altera o seu status social

quando “salta” para a vida adulta; o solteiro, quando “salta” para a vida de casado;

o vivo quando “salta” para o status de morto, e o doente para o status de saúde, e

assim por diante.

De acordo com Leach:

[...] A ocupabilidade de cada status constitui um período de tempo social de duração social, mas o ritual que marca a transição puberdade, casamento, funeral, ritual de cura - é um intervalo de indefinição social (LEACH, 1978: 45, grifo do autor).

Grosso modo, Leach contextualiza que o indivíduo fragmenta o fluxo

contínuum da experiência física criando períodos com duração social, ao mesmo

tempo em que atravessa intervalos ou transições, que não possuem uma

definição social. Para “transformar o contínuum visual em objetos que tenham

27 De acordo com Edmund Leach, na linguagem da antropologia social um indivíduo é um ser animal biológico

que nasce, cresce, envelhece e morre enquanto a pessoa é o conjunto de cargos e papéis que ela desempenha socialmente e que se ligam ao indivíduo em qualquer época de sua vida. Entretanto, embora alguns comportamentos do indivíduo sejam idiossincráticos, maior parte de suas atividades derivam dos “direitos e obrigações recíprocas que lhe são atribuídas em virtude dos papéis que desempenha como pessoa social” (LEACH,1982:143-144). Assim, adotamos neste trabalho a palavra indivíduo. Cf.: Notas a respeito em LEACH, Edmund Ronald. A Diversidade da Antropologia. Rio de Janeiro: Edições 70 Ltda, 1982.

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99

significado e em pessoas que preencham papéis distintos” (Ibid.: 44), ordenando

o mundo à sua volta, o indivíduo toma posse da estrutura da linguagem.

Citado por Marisa Peirano (2014), em “Biografia de Edmund Leach”, Leach

acrescenta à esta questão que a linguagem em si mesma já é “uma forma de

ritual” (PEIRANO, 2014: 11). Ressaltando a importância da linguagem como um

canal de comunicação o mesmo Leach (1989) explana em “Natureza e Cultura”:

[...] A língua não é apenas um instrumento de comunicação intersubjetivo extraordinariamente sensível, mas permite, também, o plasmar das ideias do espírito. Por meio destas duas operações [decodificar e codificar] é possível elaborarem-se, acerca de um futuro imaginário, hipóteses capazes de se tornarem depois um ponto de referência para atos de criação, como a elaboração de um instrumento ou a elaboração de um ritual. (LEACH, 1989: 12, interpolação nossa).

Para Leach, a linguagem não é apenas um canal de comunicação mas um

instrumento de comunicação intersubjetivo a partir do qual moldamos nosso

espírito e, em decorrência disso, ordenamos a realidade.

Extraído de “Out of Mind, Out of Sight: Suppression and Taboo in the

'Leach-Theory’”, 1979, um comentário de Leach contextualizado por Josephus D.

M. Platenkamp, esclarece como se opera esse processo de ordenação do mundo

circundante:

“[...] O ambiente físico e social de uma criança é percebido como um contínuum. Ele não contém quaisquer ‘coisas’ intrinsecamente separadas. A criança, no momento oportuno, é ensinada a impor sobre o ambiente uma espécie de grade discriminatória, a partir da qual, distingue o mundo como sendo composto de um grande número de coisas separadas, sendo cada uma rotulada com um nome. Este mundo é uma representação de categorias da linguagem, e não vice-versa.” (LEACH, 1972: 47 apud PLATENKAMP, 1979: 174, tradução nossa, grifo

do autor).

Ao que tudo indica, enquanto não utilizamos a estrutura da linguagem para

distinguir classes de coisas, ou ações no mundo ao nosso redor, nossa percepção

repousa num continuum, em que não percebemos lacunas no mundo físico.

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Entretanto e de acordo com Leach temos necessidade de distinguir28 classificar e

categorizar - com nitidez e sem ambiguidades - o nosso eu do “Outro”, o alto do

baixo, o novo do velho, este mundo do outro mundo e assim por diante, como se

pudéssemos recortar a natureza. Em síntese, Leach considera que, para que

possamos perceber “coisas” e, a partir delas, ordenar o mundo, necessitamos

antes, treinar nossa percepção para o reconhecimento “de um ambiente

descontínuo” (LEACH, op. cit.: 178).

Na sequência apresentamos um diagrama elaborado por Leach que

representa esquematicamente a percepção primária do indivíduo na infância. A

partir de um ponto de vista geométrico - uma linha contínua e ininterrupta - Leach

procura demonstrar que, na infância, não existe ainda na consciência ordinária do

indivíduo “quaisquer brechas no mundo físico” (LEACH, 1970: 23).

Figura 7: Ilustração Esquemática do Contínuo na Natureza Fonte: LEACH, 1970:23

Segundo o mesmo Leach, percebemos o tempo, na infância, como um

fluxo contínuo e homogêneo que nos chega à percepção sem lacunas,

passagens, brechas ou orifícios no mundo físico. Isso significa dizer que

extraímos todas as “coisas” do continuum para ordenar e organizar o mundo ao

nosso redor.

28 Na intenção de verificar a proposição de Leach a respeito do ambiente psicológico inicial, da criança,

encontramos em Edward F. Edinger (1995) um comentário em que o autor assinala: “Nascemos num estado de inflação. Na mais tenra infância, não existe ego ou consciência. Tudo está contido no inconsciente. O ego latente encontra-se completamente identificado ao Si-Mesmo. O Si-Mesmo nasce, mas o ego é construído; e, no princípio, tudo é Si-Mesmo. [...] Como o Si-Mesmo é o centro e a totalidade do ser, o ego – totalmente identificado ao Si-Mesmo – percebe-se como divindade. Podemos descrever a situação nesses termos, retrospectivamente, embora o recém-nascido não pense desta forma. Na verdade, ele nem pode pensar. Mas seu ser e suas experiências totais estão ordenados em torno de uma suposição a priori de que ele é uma divindade” (EDINGER,1995:27). Cf.: Notas a respeito em EDINGER, Edward F. Ego e Arquétipo: Uma Síntese Fascinante dos Conceitos Psicológicos Fundamentais de Jung. São Paulo: Cultrix, 1995.

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Destacado de “Natureza e Cultura”, um comentário do mesmo autor

explicita que para os antigos gregos esse continuum na natureza, ou a physis, era

representado como um “princípio espiritual” organizador do mundo, cuja função

principal era o “desenvolvimento da organização e do movimento ‘interno’ das

coisas” (LEACH, op. cit.: 2). Simbolizada como uma “totalidade em constante

devir” (Ibidem), a natureza representava “algo vivo” (Ibidem) cuja mola era a

“vitalidade ou a alma” (Ibidem). Como é possível perceber para alguns gregos da

antiguidade, o mundo não só era concebido como algo “vivo”; era, também,

dotado de uma “ ordem própria, de uma inteligência” (Ibidem) que comportava-se

como um “grande animal racional, com um espírito próprio” (Ibidem).

Na sequência expomos o diagrama esquemático, em que Leach procura

ilustrar, a partir de um ponto de vista geométrico, a percepção secundária

desenvolvida pelo indivíduo, na infância, durante o processo de socialização a

partir da qual passamos a distinguir o mundo como sendo composto de um

grande número de coisas separadas.

Figura 8: Ilustração Esquemática “daquilo que é nomeado na natureza” Fonte: LEACH, 1970:23

Como é possível observar, em Leach “aquilo que é nomeado” (Ibidem) na

natureza contrasta com “aquilo que não é nomeado” na natureza. Desse modo,

evidencia-se na Figura 8 uma espécie de “alternância” entre figura-fundo que

pode ser identificada na teoria da Gestalt 29 em que as partes se determinam

mutuamente.

29 Na teoria da Gestalt é de suma importância a disposição em que são apresentados à percepção do individuo

os elementos unitários que compõem o todo. Uma de suas formulações bastante conhecidas é a de que "o todo é diferente da soma das partes". Ou seja, a percepção que temos de um todo não resulta de um processo de simples adição das partes que o compõem. A indissociabilidade da parte em relação ao todo permite que quando vemos o fragmento de um objeto ocorra uma tendência à restauração do equilíbrio da forma, proporcionando assim o entendimento do que foi percebido (BOCK, 2004: 50-57).

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Como sustenta o mesmo Leach, “coisas nomeadas” são recortadas do

continuum, iniciando-se com esta separação prototípica um processo de distinção

entre as coisas profanas e as coisas sagradas, o alto e o baixo, a vida e a morte e

assim por diante.

2.2.2. Um Mundo Descontínuo: As Categorias Sociais

Após retomar a distinção feita pelo filósofo francês Èmile Durkheim (1858-

1917),30 entre o sagrado e o profano Leach trata de reformulá-la, adequando

ambos os conceitos à sua concepção de tempo ritual. Sigaud (1996) é quem

contextualiza a concepção de Leach que:

[....] apresenta a ideia de que as ações sociais se situam num contínuo entre o sagrado e o profano; num extremo estão aquelas [ações] estritamente técnicas, no outro as estritamente sagradas; entre os dois polos figuram a maioria das ações humanas, parcialmente sagradas e parcialmente profanas. Profano e sagrado não denotam tipos, mas aspectos de quase todas as ações. (SIGAUD, 1996: 31, interpolações nossas).

Como indicado, Edmund Leach não era adepto de posições extremas.

Observando que as categorias da linguagem adequam-se, via de regra, a

referenciais absolutos, Leach considerava que na prática, era “extremamente

difícil” (LEACH, 1989: 14) não aplicarmos às categorias da linguagem este tipo de

distinção conceitual embora para o mesmo autor, profano e sagrado denotassem

aspectos de quase todas as ações sociais.

Conforme o ponto de vista do mesmo Leach, ações profanas e sagradas

eram articuladas dentro de um sistema de conceitualização mais amplo, em que a

realidade podia ser percebida como “um todo único em interação” (LEACH, 1978:

30 De acordo com Leach, os antropólogos sociais ingleses, em sua maioria, seguiram Durkheim, ao dividir as

ações sociais em duas grandes classes, permanecendo o pressuposto “de que situações de algum modo sagradas e profanas são distintas como totalidade” (LEACH,1996 [1964]):74). Ao que tudo indica, Leach não concordava com a ênfase que Durkheim colocava na “dicotomia absoluta entre o sagrado e o profano” (Ibidem), elaborando a partir daí uma teoria própria a respeito dos mitos e dos ritos. Cf.: Notas em LEACH, Edmund Ronald. Sistemas Políticos da Alta Birmânia: Um Estudo da Estrutura Social Kachin. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 1996 [1964].

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12), já que estamos a todo momento tratando com categorias opostas.

Incorporado à estrutura de maior parte dos sistemas míticos, esse padrão

polarizado, inerente ao pensamento humano, aparece de forma recorrente em O

Gênesis enquanto um mito, obra publicada por Leach, em 1962, sendo bastante

significativa no escopo desta investigação a afirmação do autor, de que “a

unidade do outro mundo31 torna-se a dualidade neste mundo” (DA MATTA, 1983:

159), denotando que o outro mundo é o oposto deste mundo. A partir de tal

afirmação Leach nos esclarece que enquanto o tempo social, profano, é

caracterizado como dual - categorias sociais em oposição - o intervalo de tempo

sagrado caracteriza-se como uma unidade.

Em “Pollution’, ‘Purity’ and ‘Sacred’: The Ideological Configuration of Hindu

Society”, Leach citado por Yasumasu Sekine sublinha que, desde muito cedo,

experimentamos “a unidade do outro mundo”, como tabu, justificando que se “a

linguagem oferece-nos os nomes para segmentarmos as coisas, o ambiente tabu

inibe o reconhecimento destas referidas partes do contínuo, que separam as

coisas” (LEACH, 1972 [1964]: 47 apud SEKINE, 1985: 489, tradução nossa,

aspas do autor).

Como visto em Leach, a estrutura da linguagem é adotada como um

instrumento social, intersubjetivo, que nos condiciona a estabelecer distinções

entre este e o outro mundo, o aspecto sagrado e o profano, o social e o tabu. O

próprio tempo, segundo o mesmo autor, é utilizado “como unidade de medida”

(LEACH, 1989: 25), na sociedade mas não antes de o indivíduo “considerá-lo

descontínuo e fragmentado” (Ibidem), como requer este mundo.

Além disso, e, como tudo indica, somos condicionados a reconhecer desde

muito cedo que o outro mundo, tabu, representa tudo aquilo que a estrutura da

linguagem não consegue medir e classificar ou, dito de outro modo,

31 Em Leach, a oposição entre o sagrado e o profano recebe uma designação especial. O sagrado é

considerado pelo jargão antropológico como o anormal, especial, do outro mundo, real, tabu, doente enquanto o

profano é representado pelo normal, quotidiano, deste mundo, plebeu, permitido, saudável (DA MATTA, 1983: 159, grifos do autor). Naturalmente, o cotidiano, o normal, o deste mundo, enfim, são as ”coisas nomeadas”, classificadas, categorizadas; e, ao que é categorizado segundo Leach, atribui-se a lógica do pensamento binário (bom-mal; alto-baixo; e assim por adiante). Em síntese, o domínio sagrado é representado em Leach como um aspecto associado ao outro mundo, enquanto o domínio profano é representado pelos contrastes deste mundo (as categorias). Isso é importante o suficiente para que seja incorporado ao texto.

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institucionalizar. Assim, quando não conseguimos representar em nosso espírito

um fenômeno ou um evento social nós o delegamos ao ambiente tabu, ao outro

mundo, permanecendo este delimitado por fronteiras artificiais que erguemos na

natureza.

Um breve texto extraído de Leach (1983) pode contribuir para aprofundar

nosso conhecimento a respeito do outro mundo ou do domínio do tempo ritual

sagrado, considerado por Leach como um intervalo marginal, tabu, em oposição

ao mundo social em que as coisas são nomeadas. Leach é claro ao sublinhar que

somos desde cedo condicionados a:

[...] somente perceber o ambiente como composto de coisas separadas pela supressão de nosso reconhecimento das “não-coisas” que enchem os interstícios então, é claro que aquilo que é suprimido se torna especialmente interessante. À parte o fato de que toda pesquisa científica se devota a “descobrir” aquelas partes do ambiente que jazem nas fronteiras do que é “conhecido”, temos o fenômeno que é descrito tanto por antropólogos quanto por psicólogos, no qual tudo o que é tabu é foco não só de interesse especial, mas também de ansiedade. Tudo o que é tabu é sagrado, valioso, importante, poderoso, perigoso, intocável, imundo, infando. [...] Primeiro, as exsudações do corpo humano são universalmente objeto de intenso tabu – em particular as fezes, urina, sêmen, sangue menstrual, mechas de cabelo, pedaços de unha, sujeira corporal, saliva, leite materno32. [...] Tais substâncias são ambíguas da maneira mais fundamental. O problema inicial e permanente da criança, é determinar a fronteira inicial. “O que sou eu, em oposição ao mundo?” “Onde estão meus limites?” [...] (LEACH, 1983: 181, aspas do autor).

Como é possível observar, o próprio Leach sinaliza que no processo de

ordenação do mundo, ao determinar a fronteira inicial, a criança suprime o

reconhecimento das “não coisas”. Isso significa que, se por um lado aprendemos

através da estrutura da linguagem “linear e segmentada” (LEACH, 1989: 14), a

recortar o contínuum impondo limites entre “coisas nomeadas e não nomeadas”

percebendo-as separadamente, por outro, não aprendemos a observar como

todas as coisas “estão relacionadas” (LEACH, 1982: 84) num continuum.

32 Da Matta ilustra que, em Leach, uma exceção a esse catálogo são as lágrimas porque segundo o autor elas

não são tidas como sujas ou contaminadoras do mesmo modo que outras exsudações Cf.: Notas em DA MATTA, Roberto. (Org.) Edmund Leach. Antropologia, Coleção Grandes Cientistas Sociais. São Paulo: Editora Ática, 1983. [1958]: 180.

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Uma breve passagem contextualizada na obra Ritual y Religion en

Formación de la Humanidad, por Roy Rappaport, contribui com o nosso

aprofundamento dessa questão. Segundo o mesmo autor “cada um de nós

irrompe a experiência do contínuo de modo distinto” (RAPPAPORT, 2001: 259,

tradução nossa), o que nos leva a presumir que é justamente esse irromper que

difere de um indivíduo para outro, o elemento chave que contribui para

composição da diversidade e riqueza cultural.

Leach acrescenta ainda que esta “variedade” de experiências culturais que

representam as “diferentes maneiras que os seres humanos escolhem para

irromper as continuidades das suas experiências” (LEACH, op.cit.: 84), deriva de

“uma percepção no interior de todo ser humano cujo âmbito é mais ou menos

limitado” (Ibidem). Para melhor elucidar esta questão Leach afirma que, se temos:

[...] um conceito A, considero necessariamente, a possibilidade de seu oposto não-A. Consequentemente, o verdadeiro “elemento do pensamento” não é apenas A, mas também “tanto A quanto não-A” e tem-se a impressão de que há “uma luta contínua no intelecto” tentando aquele que pensa conceitualizar simultaneamente A como uma coisa em si, distinta de qualquer outra (o que leva à ideia de que o mundo como um todo é feito de um número infinito de “coisas” discretas) e reter a ideia de que tanto “A quanto não-A” se combinam numa unidade (o que leva a conhecer o mundo como um campo contínuo em perpétua transformação). (LEACH, 1989: 21, aspas do autor).

Conforme a argumentação do mesmo autor, as categorias binárias A e

não-A determinam-se mutuamente, combinando-se numa unidade. Assim, e

tomando como referência o pensamento de Leach, pode-se dizer que existe uma

correlação não disjuntiva entre o domínio de tempo sagrado (não-A) e o domínio

do tempo profano (A), o que leva a conhecer o mundo como uma unidade,

representada por um campo contínuo, em constante transformação.

Leach sugere que isto é o mesmo que dizer que o “cultural e o natural

encontram-se intimamente ligados” (LEACH, 1989: 25). Ao afirmar que o

“processo real de envelhecimento biológico” (Ibidem) no ser humano representa

um continuum na natureza, e que do ponto de vista da sociedade e da cultura “o

indivíduo progride ‘ao longo de uma sequência de graus descontínuos’: bebê,

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criança, adolescente, adulto e velho” (Ibidem), o mesmo Leach nos oferece um

ótimo exemplo, da interação entre contínuum e descontinuidades.

Na sequência e, com o propósito de ilustrar o argumento de nosso autor,

apresentamos um diagrama em que Leach demonstra esse relacionamento entre

descontinuidades e contínuum. Segundo Yasumasu Sekine (1985), o diagrama

“deriva de uma redução direta do modelo de Arnold Van Gennep” 33 (SEKINE,

1985: 490, tradução nossa):

«coisas nomeadas»

partes tabu do relacionamento «não-coisas»

Figura 9: Ilustração Esquemática do Relacionamento entre Continuum Descontinuidades.

Fonte: LEACH 1972 (1964) apud SEKINE, (1984:489).

Visualizando a Figura 9, é possível observar como os interstícios, ou os

intervalos tabu, “situados” entre o domínio das “coisas-nomeadas” (períodos da

vida social), não entram em relação direta uns com os outros, uma vez que entre

períodos e intervalos rituais erguem-se fronteiras artificiais e ambíguas, que

delimitam o ambiente tabu, ou o domínio ritual do tempo sagrado.

33 De acordo com Roberto da Matta, Arnold Van Gennep (2011) foi o primeiro antropólogo a estabelecer uma

classificação das sequências cerimoniais que acompanham a passagem de uma situação social à outra, e de um mundo cósmico a outro. Para esse autor, os denominados Ritos de Passagem, quando submetidos à análise, se decompõem em três estágios: ritos pré-liminares (de separação), ritos liminares (de margem) e ritos pós-liminares (de agregação). Cf.: Notas a respeito em VAN GENNEP, Arnold. Os Ritos de Passagem. Rio de Janeiro: Editora Vozes, 2011 [1909]: 30-31.

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O mesmo tipo de argumento pode ser adotado na figura 10, em que Leach

apresenta o mesmo relacionamento entre coisas nomeadas e não coisas, a partir

de um diagrama de Venn34, simplificado, no qual empregam-se apenas dois

círculos, como pode ser abaixo observado:

Não-p

Sobreposição tabuA sobreposição é simultaneamente e p não-p

p

Figura 10: Ilustração Esquemática do Relacionamento entre Ambigüidades eTabu

Fonte:LEACH 1972 (1964): 48 apud SEKINE, (1985:489]

Na configuração da Figura 10, há um círculo p, que representa uma

categoria verbal e é entrecortado por outro círculo não-p, que representa o

ambiente do qual se quer distinguir p. Dito de modo diferente, em Leach p e não-p

representam descontinuidades, separadas entre si, por um interstício ou intervalo

de continuum, cuja delimitação define um ambiente ambíguo, o domínio ritual do

tempo sagrado em que p e não-p se sobrepõem.

34 Designam-se por diagramas de Venn os diagramas usados em matemática para simbolizar graficamente

propriedades, axiomas, e problemas relativos aos conjuntos e sua teoria. Estes diagramas foram elaborados por John Venn (1834-1923), um matemático inglês licenciado na Universidade de Cambridge, que no século XIX ampliou e formalizou desenvolvimentos anteriores de Leibniz e Euler. Na década de 60, eles foram incorporados ao currículo escolar de matemática. Cf.: Notas a respeito em a extraída do site http://pt.wikipedia.org/wiki/Diagrama_de_Venn em 04/02/2015.

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De acordo com Leach se por uma ficção impusermos um tabu, sobre

qualquer consideração da área em que p se sobrepõe a não-p, como a ambos os

círculos, “então deveremos estar prontos a nos persuadirmos de que p e não-p

são completamente distintos, e a lógica da discriminação binária será satisfeita.”

(LEACH, 1982: 179).

Com o objetivo de ilustrar esta explicação, extraímos da obra Cultura e

Comunicação: A Lógica pela Qual os Símbolos estão Ligados, um breve texto

sumarizando que:

[...] um limite separa as duas zonas de espaço-tempo social que são normais, de tempo marcado, definidas, centrais, seculares, mas os marcos espaciais e temporais que realmente servem como limites são anormais, sem tempo marcado, ambíguos, marginais, sagrados. [...] Existe sempre uma incerteza sobre quando a margem da categoria p transforma-se na margem da categoria Não - p. (LEACH, 1978: 45-46).

Como pode ser observado, embora estes limites de fronteira não tenham

uma dimensão “é da natureza dessas marcas fronteiriças que elas sejam

implicitamente ambíguas e uma fonte de conflitos e ansiedade” (Ibid.: 44). Em

Leach estas marcas de fronteira impedem que os participantes rituais entrem no

ambiente tabu sem uma prévia preparação. Daí os denominados ritos de

separação, que antecedem a entrada no domínio ritual de tempo sagrado e os

ritos de reagregação, que antecedem a entrada no domínio de tempo profano. A

este respeito falaremos mais adiante, quando na apresentação do modelo de

tempo ritual em Leach. O mesmo autor sublinha, ainda, que a princípio:

[...] uma fronteira não tem dimensão. Meu jardim confina diretamente com o do vizinho [...] Mas se a fronteira deve ser marcada no chão, a própria marca ocupará espaço [...] O princípio de que todos os limites são interrupções artificiais do que é naturalmente contínuo e de que a ambigüidade implícita no limite é por si só fonte de ansiedade aplica-se ao tempo e ao espaço. O fluxo biológico da experiência é contínuo; estamos “todo tempo” ficando mais velhos. Mas, a fim de dar uma dimensão a esta experiência temporal, temos que idealizar relógios e calendários, que dividirão o continuum em segmentos – segundos,

minutos, horas, dias semanas (LEACH, 1978: 44).

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Em seu sentido básico, este intervalo sem duração social, domínio interdito

que representa, segundo Leach “uma categoria marginal” (DA MATTA, 1983: 15),

é considerado pelo mesmo autor não apenas um domínio que integra a totalidade

de nossa experiência temporal, como também, e ao que tudo indica, um domínio

que interliga duas “durações”: uma anterior à zona tabu e outra posterior a ela o

que nos leva a presumir uma sequência linear em que há um antes e um depois.

Em síntese, este intervalo ritual “sem duração” social interliga “dois períodos com

duração” social o que nos leva a considerar sua importância.

Em “Natureza e Cultura” identificamos uma breve passagem que explana a

respeito de nossa resposta cultural ao ambiente tabu, ambíguo, sem duração, do

outro mundo, anônimo. A passagem diz o seguinte:

[...] A resposta cultural à ambiguidade da sensação foi universalmente a imposição de tabus: as ambiguidades da experiência sensorial são interditas e excluídas do exame consciente. [...] Tal pode ser ilustrado. Não é necessário um grande conhecimento etnográfico para compreender como e qualquer coisa relacionada com a sexualidade é suscetível de se tornar ponto de incidência de tabu. [...] Aqui, não só os elementos sensoriais não são segmentáveis, o que torna essa experiência um protótipo de confusão, como também o contexto que a define faz com que a distinção categorial primária macho-fêmea se desagregue tornando-se evidente que a díade macho-fêmea é uma unidade. (LEACH, 1989: 29).

Como é possível observar, a incidência tabu, em Leach, recai sobre as

sensações humanas, ambíguas e confusas que não são segmentáveis pela

linguagem. E, segundo o mesmo autor, o que não é segmentável é suprimido e

permanece provavelmente num nível perceptivo “nem totalmente consciente, nem

totalmente inconsciente” (LEACH apud DA MATTA, 1983: 38), o que parece ter

uma lógica, pois se não fosse assim como poderiam estas sensações suscitar

“confusão”?

Defendendo a ideia de que é inerente ao processo de socialização um nível

de cognição inconsciente, J. Platemkamp (1979) argumenta que:

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“[...] os controversos conceitos de ‘consciente’ e ‘inconsciente’ não podem ser evadidos deste contexto [...] Parece ser inerente ao processo de socialização e, nele localizado, um nível cognitivo inconsciente [...]” (PLATEMKAMP, 1979: 176, tradução nossa, aspas do autor).

Ao defender a ideia de que parte das ações sociais deriva de cognições

conscientes e parte de cognições inconscientes35 o autor contribui com o nosso

entendimento de que a realidade integra tanto um nível consciente, de cognição,

quanto outro não tão consciente e, de acordo ainda com o mesmo autor, o

conhecimento a respeito deste nível inconsciente não é aprofundado na teoria

tabu em Leach. Em vista disso, Platemkamp é categórico ao afirmar que a teoria

tabu em Leach traz inconsistências, já que Leach “recusa-se a manter uma

distinção consistente entre os níveis consciente e inconsciente” (Ibid.: 176), que

integram o processo da cognição social ou, socialização.

Contudo, em Cultura e Comunicação: A Lógica pela Qual os Símbolos

estão Ligados, o próprio Leach é enfático ao afirmar que “precisamos pensar mais

sobre a noção de fronteira” (LEACH, 1978: 44), aludindo provavelmente ao fato

de que limites fronteiriços por estarem associados a um nível de percepção

inconsciente possuem um “valor especial” (Ibidem). Apesar disso, Leach furta-se

de um maior aprofundamento do assunto. Se tomarmos como referência um

comentário proferido pelo mesmo autor citado por Da Matta, em que assinala que,

à parte do que pode ser diretamente observado no contexto social, é

“seguramente inútil indagar o porquê um conjunto de simbolizações é empregado

preferencialmente a outro” (DA MATTA, 1983:148, grifo do autor), então a crítica

de Platemkamp (1979), procede, e deve ser examinada.

De fato se, por um lado a ideia de Platemkamp merece toda a atenção, por

outro, não podemos negligenciar um comentário na obra A Diversidade da

Antropologia, 1982, em que o mesmo Leach defende a ideia de que “o

35 Na perspectiva de Leach, a posição de Devereux (1969) foi muito mais longe que a posição freudiana

ortodoxa que afirma que “o inconsciente contém, por um lado algo que nunca foi consciente (a representação psíquica dos instintos) e, por outro lado, algo que foi outrora consciente e a seguir reprimido (traços mnêmicos de experiências, emoções, fantasias, estados corporais, defesas e grande parte do Superego)”. Em Devereux, o “inconsciente étnico” é definido como a “parte do inconsciente individual compartilhada pela maior parte dos membros do grupo e que cada geração é ensinada pela anterior a negar”. Em outras palavras, e do ponto de vista adotado em Leach “toda a cultura consente que certos impulsos, etc. se tornem e permaneçam conscientes, mas exige que outros sejam reprimidos” (LEACH, 1983: 35).

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relacionamento entre descontinuidades e continuum deve ser examinado mais

detalhadamente” (LEACH, 1982: 11). Isso denota, em outras palavras, um desejo

do autor em aprofundar o conhecimento a respeito das relações entre tempo

profano e tempo sagrado. Entretanto, do ponto de vista de Sekine (1985):

[...] Leach não pode nos oferecer este desenvolvimento e nós não podemos descobrir em sua teoria quaisquer considerações a respeito do outro mundo, além da ideia de que representa uma oposição a este mundo. Isto significa que a teoria de Leach possui somente o ponto de vista do lado das categorias verbais, ou o lado deste mundo. A este respeito, quando imaginamos que o ambiente tabu aflora em domínios rituais ou religiosos manifestando a relação entre Deus e o homem, entre este e o outro mundo, constatamos que a Teoria Tabu, deste mundo, em Leach, possui limitações decisivas, apesar de sua aparente plausibilidade (SEKINE, 1985: 490-491, tradução nossa, grifo nosso).

Sekine parece ter certa razão ao explicitar que o domínio ritual do tempo

sagrado não deveria ser investigado apenas a partir do referencial das categorias

verbais associadas ao domínio do tempo profano, uma vez que essa tendência

sugere que:

[...] a Teoria da Liminaridade de Leach, inconscientemente, funde-se com o ponto de vista ideológico dominante, que muitas vezes estabelece uma clara distinção entre as coisas ou pessoas tabu e os não tabu, o que acaba por justificar os sistemas hierárquicos da sociedade. (SEKINE, 1985: 490).

Embora o comentário de Sekine (1985) esteja parcialmente correto, uma

vez que pessoas, coisas e situações são discriminadas e classificadas como tabu,

atendendo algumas vezes ao que a ordem social, que separa o que é agradável

do que é desagradável - do ponto de vista social - exige, o autor nos remete a

duas questões: que a teoria tabu em Leach carece de maior profundidade e que

explicar o domínio ritual do tempo sagrado, tomando como referência exclusiva o

ponto de vista deste mundo, acaba por afirmar a “diferença como distância”36

36 Ao contextualizar nessa obra, que o discurso temporal da antropologia, foi decisivamente concebido sob o

paradigma do evolucionismo, sob o qual repousava, uma concepção de tempo, que não era apenas secularizada e naturalizada mas, também, especializada, Fabian , utiliza esta expressão, com o propósito de assinalar que os “esforços da antropologia em estabelecer relações com o seu Outro por meio de mecanismos temporais, sugeriam uma afirmação da diferença como distância” (FABIAN, 2013:52).

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(FABIAN, 2013: 52) como sustenta Johannes Fabian, em sua obra O Tempo e o

Outro: Como a Antropologia Estabelece seu Objeto.

Ao que parece, tudo o que não é institucionalizado e é percebido como

uma “não coisa”, ou, uma “coisa” extraordinária, diferente, anormal, do outro

mundo, apresenta como sustenta Leach, e indicado por Kerkhoff (1997) certo

poder sobre a consciência humana; por ser ambíguo, o intervalo ritual de tempo

sagrado tanto fascina quanto nos traz medo e insegurança. Leach nos oferece um

bom exemplo, a respeito de como a realidade desagradável é suprimida do ponto

de vista da sociedade:

[...] a ordem exige que o corpo vivo e o cadáver seja percebido como “coisas” completamente separadas: a realidade desagradável que faz com que o ser vivo se torne morto deve por isso, ser reprimida (LEACH, 1989: 29-42, grifo do autor).

A clareza apresentada em certos argumentos de Leach contribui para que

possamos perceber como para este autor a noção da ordem encontra-se

associada à sensação de segurança e à este mundo enquanto a realidade da

morte, imbrincada com sensações que via de regra não conseguimos “segmentar”

em nossa percepção, ao contrário, encontra-se associada ao outro mundo ao

domínio ritual tabu. Se tomarmos ainda em conta que este mundo encontra-se

associado à ordem, o outro mundo, em oposição, encontra-se associado, ao que

tudo indica, à desordem. Daí deriva que o aspecto tabu das ações humanas

estaria de algum modo, em Leach associado a sinais de desordem.

Vimos nesta seção que, em Leach o processo de ordenação do mundo

denota uma interação constante entre continuum e descontinuidades, percepção

primária e percepção secundária, ambiente social e ambiente tabu encontrando-

se estes pares binários separados por fronteiras artificiais consideradas pelo

mesmo autor como anormais, sem tempo marcado, ambíguos, marginais,

sagradas. Além disso, vimos também que o processo de socialização, que ocorre

a partir da linguagem denota um aprendizado em nível consciente por parte dos

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indivíduos ficando uma parte desse processo suprimida e delegada à um nível de

cognição inconsciente.

2.3. Repetição e Não Repetição: A Flecha do Tempo

Interrogando-se no contexto de “Cronus and Chronos” a respeito de como

o ser humano articula a categoria verbal, tempo, em relação às experiências do

cotidiano, Leach propõe que nossa moderna noção de tempo deriva de “duas

experiências básicas, distintas e contraditórias” (LEACH, 1974: 193). É Gabriela

Vargas Cetina, autora de Tiempo y Poder: La Antropologia Del Tiempo, quem

contextualiza a partir de um breve texto que, em Leach:

“[...] certos fenômenos na natureza se repetem [e] que as mudanças são irreversíveis em nossas vidas, ou seja, nada se repete. Ainda que as sociedades ‘sofisticadas’ como a Inglaterra de seu tempo coloque o acento na segunda forma de experiência do tempo, a religião coloca o acento na noção de tempo como repetição. Esta segunda forma de viver o tempo é a que caracteriza o senso comum [...] A religião e a psicologia humana, em geral, repudiam a ideia da morte porque necessariamente, pressentem o tempo como uma sequência que retorna, substituindo a ideia de morte pela de constante repetição.” (CETINA, 2007: 46, tradução nossa, interpolação nossa).

As palavras de Cetina (2007) nos esclarecem que para Leach diferentes

sociedades, e mesmo a religião, tendem a pensar o tempo como algo que se

repete. Contudo, ao contrário de exprimir uma limitação cognitiva, esse modo de

pensar representa uma maneira de o ser humano defender-se e de certa maneira

racionalizar a sensação de angústia e impotência diante da contemplação de

finitude do universo e proximidade da morte. Nessa direção, é o preconceito

religioso que trata eventos repetitivos e não repetitivos, como sendo “afinal de

contas, os mesmos” (LEACH, 1974: 194).

Rappaport acrescenta em relação a esse mesmo assunto que, do ponto

de vista da racionalidade repetição e não repetição, por serem correlatos

dialéticos, “não se distanciam atendendo à sua natureza” (RAPPAPORT,

2001:271, tradução nossa). O autor, que comunga com as ideias de Leach ilustra

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114

esta pauta, esclarecendo que “a história, assim como a vida, são compostas até

certo ponto de sucessões de detalhes, sendo irreversível por natureza” (Ibidem).

E acrescenta na sequência que:

“[...] Lèvi-Strauss afirmou, ao comparar o que ele denominava ‘tempo estatístico’ e ‘tempo mecânico’, que ‘uma evolução que levar a nova sociedade italiana contemporânea de volta aos tempos da República Romana é tão impossível de conceber como a reversibilidade dos processos atribuídos a segunda lei da termodinâmica’. Destas palavras se deduzem duas direções aparentemente tão opostas como o norte e o sul em que pode-se apontar a flecha do tempo. Por um lado, está o progresso e, por outro, a entropia [...] decadência, morte e decomposição são algumas associações de irreversibilidade, no mínimo tão poderosas e notáveis como progresso, crescimento e prosperidade.” (Ibidem,

tradução nossa, aspas do autor).

Como visto, do ponto de vista de Rappaport, a flecha do tempo se move

tanto em direção ao progresso quanto em direção à entropia e segundo o mesmo

autor, do ponto de vista do progresso, associado à ordem secular, percebe-se a

entropia como decadência e morte. Em outras palavras, o tempo profano, social é

entendido como representante do progresso enquanto o intervalo de tempo

sagrado ou o tempo continuum é percebido do ponto de vista da entropia.

Cabe ressaltar em relação a este assunto que em Leach o conceito de

entropia representa um dos três modos de como nós experimentamos a

passagem do tempo: o autor cita a repetição, que define “os intervalos de tempo,

as durações que sempre começam e terminam com a ‘mesma coisa’” (LEACH,

1974: 205); a entropia, associada ao envelhecimento e ao destino irreversível de

todos os organismos vivos e a velocidade, que diz respeito aos processos

biológicos e às sensações a eles engrenadas, o que denota que “a regularidade

do tempo não é uma parte intrínseca da natureza” (Ibidem).

No sentido inverso, do ponto de vista da entropia, percebemos,

crescimento e prosperidade (repetição). Como sugere o mesmo Rappaport

(2001), a dinâmica temporal encontra-se subordinada a um constante trânsito

entre progresso e entropia, repetição e irreversibilidade do tempo.

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Identificamos contextualizado por Alfred Gell, na obra A Antropologia do

Tempo: Construções Culturais de Mapas e Imagens Temporais, um comentário

de Leach sugerindo um relacionamento entre o tempo que retrocede nos rituais

de restauração e o conceito de entropia. De acordo com Gell, em Leach:

[...] há uma distinção básica entre tempo secular ou “profano” quando o tempo avança, e o tempo “sagrado”, ou seja, o tempo dos rituais de restauração do mundo quando o tempo retrocede a fim de devolver-nos para o início de tudo. (GELL, 2014: 39).

Conforme sinaliza Gell, em Leach, no que diz respeito à alternância entre

tempo profano e tempo sagrado, existe um duplo movimento da flecha do tempo,

pois, enquanto o intervalo ritual de tempo sagrado, ou, no domínio do tempo

continuum, o tempo retrocede, a fim de devolver-nos para o início de tudo

(denotando um processo entrópico), no tempo profano, secular, o tempo avança

no sentido do progresso, como assinalado por Rappaport (2001), caracterizando

um processo repetitivo.

Em síntese, para Leach o tempo entra em nossa experiência como uma

totalidade, em que a flecha do tempo tanto avança em direção ao progresso

quanto retrocede em direção à entropia. Tal qual um processo de respiração em

que ocorre dois movimentos contrários e opostos embora interrelacionados.

Em uma breve passagem da obra Antropología del Tiempo: El caso

Mocoví, Gonzalo Iparraguirre (2011), contextualiza que em Leach o tempo entra

na experiência como:

“[...] algo descontínuo, como uma repetição de inversões repetidas, como uma sequência de oscilações entre polos opostos; uma descontinuidade de contrastes repetitivos: dia-noite, inverno-verão, seca-inundação, jovem-velho, vida-morte, etc. Desta maneira, o passado carece de profundidade histórica (espacialização própria da temporalidade hegemônica), e assim o passado é somente o oposto do presente.” (IPARRAGUIRRE, 2011: 38, tradução nossa, parêntesis do autor).

Ao que tudo indica o movimento de alternância entre polos contrários em

Leach encontra-se associado à experiência da sucessão, em que o intervalo ritual

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de tempo sagrado é ponto de chegada do tempo profano, ao mesmo tempo em

que ponto de saída para um tempo profano renovado. Isso ocorre num mesmo

eixo linear, e Leach afirma que passado e futuro não tem profundidade alguma já

que apenas opostos um do outro.

Em relação a isso Gell (2014) acrescenta que, este tipo de tempo, “em que

o passado não tem profundidade”37(GELL, 2014: 38), como sustenta Leach

envolve “a propriedade lógica da ciclicidade” (Ibidem), assim como presume um

“eixo de tempo linear” (Ibidem), uma vez que “é apenas com relação a um eixo de

tempo linear assim que poderíamos dizer que qualquer evento pode se repetir”

(Ibid.:41). Como visto, não parece impossível perceber que para Gell (2014) este

tipo de tempo presume ao que tudo indica, uma ciclicidade, ocorrendo num eixo

linear; em outras palavras o autor atribui ao tempo proposto em Leach, um

formato espiralado.

2.4. As Metáforas do Tempo em Cronos

Edmund Leach confere um lugar especial às metáforas macho-fêmea, vida-

morte, segundo ele, associadas “às oscilações do tempo por analogia com as

oscilações da alma” (LEACH, 1974: 196). De acordo com o mesmo autor é

basicamente a metáfora do coito sexual, da união entre macho e fêmea, “entre

homem e mulher” (Ibidem) que nos “fornece a imagem primária do tempo”

(Ibidem). Em outros termos, para Leach a imagem primária do tempo é expressa

a partir de uma união entre os princípios masculino e feminino que manifestam-se

como uma oscilação: no plano objetivo como um falo (princípio masculino) e, no

plano metafísico como a alma (princípio feminino).

37 Segundo Silvia M. S. Carvalho, que apresenta em “Quando o Tempo se Torna Linear” um estudo sobre

caçadores-coletores e sua representação de espaço e tempo a partir da concepção de tempo, em Leach, é natural que o caçador saiba, tanto quanto nós, que não é mais ele, mas seu filho, que repetirá, com o passar dos anos, os ciclos vindouros, pois, subjacente ao esquema circular do périplo do território, o movimento pendular (da morte-vida, vida-morte) imprimirá sempre, por mais insignificante que se afigure, uma certa profundidade: a representação do fluxo do tempo que será sempre um tanto espiralada (CARVALHO, 1986-1987:164).

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Cabe ressaltar que é em função da ordem social, que exige a diferença

entre passado e futuro, vida e morte, homem e mulher e assim por diante, que

deve-se postular um “terceiro elemento, móvel e vital” (Ibid.:200), que separa e

oscila entre os contrários. Nas palavras do próprio Leach, o que:

[...] diferencia o macho da fêmea é o falo masculino, e o que, no plano metafísico, diferencia o vivo do morto é o conceito de “vida” como uma coisa em si própria. E é deste modo que encontramos em todo o mundo, quase universalmente, a equivalência simbólica: “falo masculino=vida” (LEACH, 1989: 29-42, grifos do autor).

Tomando como referência elementos associados aos detalhes da mitologia

de Cronos, Leach acrescenta que para alguns gregos da antiguidade:

[...] este terceiro elemento na forma concreta e explícita do sêmem masculino [...] Hermes, o mensageiro dos deuses – que leva as almas para o Hades, e traz de volta a alma dos mortos – é ele simplesmente um falo e uma cabeça e nada mais. [...] A lógica disto parece clara. Na representação pictórica crua, é a ausência ou presença de um falo que distingue o homem da mulher. Assim, se o tempo é representado como uma inversão de papéis, “fazem sentido” as histórias de castração ligadas com a noção de um falo trapaceiro que balança de um lado para outro da dicotomia. (LEACH, 1974: 200, aspas do autor).

Como indicado, é a partir do movimento de alternância entre os contrários

que tem início o processo de oscilação na natureza, representado

metaforicamente, em Leach, por Hermes38, o falo trapaceiro, o mensageiro que

vai e volta do outro mundo, para esse mundo e vice-versa. Leach sinaliza que o

tempo ou a alma é o terceiro elemento móvel e vital que avança e retrocede,

avança e retrocede denotando a caminhada de Hermes entre o tempo profano

(tempo de progresso) e o intervalo de tempo sagrado (tempo de entropia).

38 Hermes, o deus grego, possuía segundo Wilkinson Philip (2010), característica de um ambiva-lente

trapaceiro, o que denota seu caráter transicional. A importância dos trapaceiros (trickster), na mitologia grega, repousa no reconhecimento cultural de que a vida, no fundo, é um paradoxo e uma brincadeira. Isso fica evidente, por exemplo, entre o comportamento dos palhaços heyokas dos lakotas, uma nação do meio oeste americano. Os heyotas são pessoas que, tendo sonhado com um pássaro mitológico chamado Pássaro-trovão, passam a fazer tudo ao contrário. Usam roupas ao avesso, caminham para trás e falam usando antônimos (WILKINSON; PHILIP, 2010: 24).

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Neste ponto, cabe aqui uma ressalva: de acordo com Leach, “em qualquer

sistema mítico, encontraremos uma sequência persistente de discriminações

binárias do tipo humano/sobre-humano, mortal/imortal, masculino/feminino,

legítimo/ilegítimo, bom/mau” (LEACH, 1983: 62) e assim por diante, seguidas de

uma mediação para cada par de categorias assim discriminadas. Esta mediação é

sempre alcançada com a introdução de uma terceira categoria, que é “anormal”

ou “anômala” em termos de “categorias ‘racionais’ comuns” (Ibidem). Por isso os

mitos estão cheios de monstros fabulosos, deuses encarnados, mães virgens.

Este meio termo anormal, não-natural, sagrado é tipicamente o foco de todas as

práticas de tabu e rituais.

A noção de um falo trapaceiro, que oscila entre as dicotomias, aplica-se ao

intervalo de tempo ritual e, ao conceito abstrato de separação “intrínseco a uma

grande parte do ritual” (LEACH, 1983: 158), uma vez que:

[...] quando o indivíduo é “tornado sagrado” tem que ser separado de suas primeiras qualidades profanas; quando ele é “tornado profano” novamente a condição perigosa de santidade tem que ser afastada. Pensando desta forma [...] há outro aspecto para esta dicotomia sagrado-profano (castrado-não castrado). O ato de separação (castração) não cria somente duas categorias de pessoas, cria também uma terceira entidade, a coisa que é ritualmente separada, o “próprio genital castrado.”( Ibid.: 159) parênteses e aspas do autor).

Como é possível perceber, o tema da distinção categorial primária

reaparece no ato da “castração”, em que o indivíduo, ou o grupo, separa-se da

moral social ordinária para experimentar uma moral às avessas, extraordinária, no

intervalo ritual de tempo sagrado. Uma vez separado do “próprio genital castrado”

- símbolo do falo trapaceiro - o indivíduo separa-se do tempo ordinário, des-

contínuo, para vivenciar um tempo extraordinário, marginal, tabu, reproduzindo,

ao que tudo indica o movimento dialético não disjuntivo, entre continuum e

descontinuidades. Importante sinalizar, que as fronteiras artificiais que delimitam o

intervalo ritual de tempo sagrado são representadas como indicado em Leach por

ritos de separação (castrado) e ritos de reagregação (não castrado), como já

sinalizamos em seção anterior.

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Aprofundando nosso entendimento a respeito das metáforas do tempo, o

próprio Leach, citado por Rappaport (2001), assinala que o fato de os antigos

gregos conceberem as oscilações do tempo, por analogia, como oscilações da

alma, fortalecia a crença de que estavam adotando uma metáfora concreta para a

ideia de tempo. Tal questão tratava:

“[...] basicamente, da metáfora do coito, do fluxo e refluxo da essência sexual entre o Céu e a Terra (com a chuva como sêmen), entre este mundo e o submundo (com tutano-gordura e se- mentes vegetais como sêmen) entre o homem e a mulher. [...] No ato da cópula o macho concede um pedaço de sua alma-vida à fêmea; ao dar à luz, ela o restitui. O coito é considerado, neste caso, como uma espécie de sacrifício mortal para o macho; dar à luz, uma espécie de sacrifício mortal para a fêmea.” (LEACH, 1961: 127 apud RAPPAPORT, 2011:270,

tradução e interpolação nossa, aspas e parêntesis do autor).

Leach aprofunda nosso entendimento a respeito das metáforas do tempo

adotadas por antigas tradições da Grécia, ao assinalar que enquanto o macho

“concede” parte de sua alma à fêmea, ela o restitui ao “dar à luz” (LEACH, 1974:

200). Assim, retomando as metáforas do macho e da fêmea, Leach parece indicar

que, na totalidade do fluxo temporal, interagem dois aspectos de temporalidade:

um masculino (ativo) e outro feminino (receptivo). Como o próprio autor sugere,

há um princípio ativo, o que “concede” (o tempo) e outro receptivo, aquele que

recebe e “restitui” (o tempo).

Assim, embora o proprio Leach não tenha aprofundado o conhecimento a

respeito das metáforas do tempo, tudo parece indicar que, concebia o tempo,

como uma unidade em que coexistíam dois princípios fundamentais: um ativo e

outro receptivo ou, um masculino e outro feminino. Quando unidos, Céu (Macho)

e Terra (Femea) representam uma unidade que se auto-fecundava e uma vez

separados representavam o interjogo entre opostos.

Recorrendo à filosofia em Fédon, de Platão, na qual “os contrários não

nascem senão dos seus próprios contrários”(PLATÃO, 1991: 126), Leach

contextualiza: “na morte a alma sai desse mundo para o submundo; no

nascimento, a alma volta do submundo para este mundo” (LEACH, 1974.: 196),

levando-nos a presumir que esse trânsito entre morte e vida, precede toda a

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reflexão sobre o mundo em que toda a existência se cria e renova. De acordo

com Leach para os gregos da antiguidade:

[...] a alma era considerada como sendo de uma substância material que consistia do tutano da espinha e da cabeça formando uma espécie de essência concentrada do sêmen masculino. Na morte quando o corpo era colocado na sepultura esse tutano coagulava-se, transformando-se numa cobra viva (Ibid.: 196).

Como é possível observar, Leach adota a concepção dos antigos gregos

para quem a alma era bem material, sendo ao mesmo tempo essência sendo que

ao ganhar a matéria, tal essência coagulava-se e transformava-se em uma cobra

viva. Leach não aprofunda esta questão e nem faz qualquer referência ao

simbolismo da cobra.

Por fim, pautado na filosofia de Fédon, Leach reduz toda esta

argumentação a respeito da criação de contrários a um esquema geométrico,

elaborando um diagrama39 em “zigue-zague” ilustrando ao que tudo indica o modo

como os antigos gregos tendiam a conceber o processo da inversão temporal,

entre contrários, que ía de uma geração à outra e, supostamente o movimento

que aludia ao simbolismo da cobra.

Para Leach esse processo de inversão temporal que denotava a “criação

de contrários” (Ibid.: 201); do “homem e da mulher não como irmão e irmã, mas

como marido e esposa” (Ibidem) e representava segundo o filósofo Heráclito “o

intervalo entre a procriação de um filho por seu pai e a procriação de um filho do

filho, pelo filho” exemplificado a seguir: A.1_____B.1____A.2____ (FRANKEL,

1955: 251-252 apud LEACH, 1974: 202) era expresso no mito do deus Cronos.

39 No diagrama da Figura 7, Leach apresenta sua tese, ao defender a ideia de que para os gregos da

antiguidade o processo temporal tinha a forma de um “zigue-zague”. O diagrama figura a separação inicial da unidade Céu-Terra e o devir do tempo, como já explicitado. O autor contextualiza na mesma pauta que o diagrama ilustra o argumento de Radcliffe-Brown, em que os A e os B - embora sejam opostos ligados - representam “as gerações alternadas de uma linhagem”. Notas a respeito (RADCLIFFE-BROWN, 2013: 98-107). Leach acrescenta que, do ponto de vista de Claude Lèvi-Strauss, os A e os B representam “as pessoas de sexo masculino de grupos rivais de parentes, aliados pelo intercâmbio de mulheres” (LEACH, 1974: 202).

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121

A.1

A.2

B.1

B.2

Figura 11: Ilustração Esquemática do Processo Temporal

em “Zigue-Zague”

Fonte: LEACH, 1974:202

Para o nosso autor, todas as metáforas associadas ao tempo, advindas da

Grécia antiga, lançam uma luz a respeito desse personagem considerado o “mais

enigmáticos da mitologia grega”: Cronos, o pai de Zeus, que segundo Aristóteles

(384 a. C.-322 a. C) “era uma representação de Chronos”, o “tempo eterno”

(GELL, 2014: 38).

Embora advertindo uma vez mais o leitor que, do ponto de vista

etimológico, não existe conexão alguma entre Cronos e Crono (Chronos), o tempo

personificado, Leach assegura que:

[...] o fato de que, em um determinado período, Cronos tenha sido considerado o símbolo do Tempo, deve certamente implicar que existia alguma coisa no caráter mitológico de Cronos que era apropriado ao caráter de um Tempo personificado. (LEACH, 1974: 197).

Em seus dois ensaios sobre as representações simbólicas a respeito do

tempo o mesmo Leach não aprofunda o conhecimento acerca das diferenças

entre Cronos e Crono (Chronos), o tempo cronológico. Supondo implicações entre

o tempo personificado (Chronos) e o caráter mitológico de Cronos (deus da

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mitologia grega), apenas considera que o mito de Cronos “é um mito da criação”,

como indicado e “não uma história do começo do mundo, mas uma história do

começo do tempo, do começo do devir” (Ibid.: 201-202).

2.5. O Mito de Cronos e a Criação do Tempo

Dentre as inúmeras versões que contextualizam a mitologia de Cronos,

identificamos na obra Mitos Gregos, de Robert Graves (2004), a versão que mais

se aproxima dos três relatos apresentados por Leach, em “Dois Ensaios a

Respeito da Representação Simbólica do Tempo”. Essa versão, denominada por

Graves de “o mito olímpico da criação”, descreve que no princípio de todas as

coisas:

[...] a Mãe-Terra (Geia), emergiu do caos e deu à luz seu filho Urano (Céu), enquanto dormia. Olhando-a carinhosamente de cima das montanhas, ele derramou a chuva fértil sobre suas rachaduras secretas, e ela deu á luz a grama, as flores e as árvores, com os animais e pássaros próprios a cada uma. Essa mesma chuva fez os rios correrem, e assim as marés e os lagos começaram a existir (GRAVES, 2004: 12).

Graves (2004) prossegue o relato sobre a mitologia de Cronos,

descrevendo a insurreição desse deus mitológico:

[...] Urano (Céu), foi pai dos titãs junto com a Mãe-Terra (Ge), após ter atirado seus filhos rebeldes, os Cíclopes, no Tártaro, um lugar sombrio no Mundo Subterrâneo, que é tão longe da terra quanto a terra do céu; a uma bigorna, seria preciso uma queda de nove dias para chegar até o fundo [...] Para se vingar, a Mãe-Terra persuadiu os titãs a atacarem seu pai; eles o fizeram liderado por Cronos, o mais jovem dos sete, que ela armara com uma foice de pedra. Eles surpreenderam Urano durante o sono: com a foice de pedra o impiedoso Cronos o castrou, segurando sua genitália com a mão esquerda (que desde então se tornou a mão dos maus presságios); atirou-a, então ao mar, no cabo Deprano. Mas, gotas de sangue do ferimento caíram sobre a Mãe-Terra que deu à luz Três Érínias, fúrias que vingam crimes de parricídio e perjúrio [...] Os titãs, então, libertaram os Cíclopes do Tártaro e concederam a soberania sobre a terra a Cronos (GRAVES, 2004: 13).

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Segundo Leach a maioria dos comentadores do mito de Cronos observa

que “Cronos separa o Céu da Terra” (LEACH, 1974: 200), entretanto, na ideo-

logia discutida pelo mesmo autor, “a criação do tempo envolve mais do que isto”

(Ibidem), pois é a partir da cisão da unidade inicial, da unidade prototípica Céu-

Terra, também representada pela metáfora macho-fêmea, que distinguem-se os

primeiros pares de opostos, iniciando a partir dessa diferenciação o devir do

tempo.

Como é possível observar, essa separação prototípica já indicada ante-

riormente, entre Urano (Céu) e Geia (Terra), corresponde por analogia, à segmen-

tação do continuum, na infância, quando a criança passa há usar o tempo como

unidade de medida, no processo de ordenação do mundo. Isso significa que

reproduzimos no processo de socialização o mesmo tipo de distinção prototípica

que ocorre no mito da criação do tempo.

Dando prosseguimento ao relato do mito do deus Cronos, Graves (2004)

descreve como se instauram seu reinado, e também, o contexto a partir do qual

Zeus, filho de Cronos, cresce poupado de ser devorado, como ocorre com os

irmãos.

Segundo as palavras de Graves (2004):

[...] Cronos se casou com sua irmã Réia, à qual o carvalho é consagrado. Mas a Mãe-Terra profetizou, assim como seu moribundo pai, Urano, que um de seus filhos o destronaria. A cada ano, assim, ele devorava os filhos que Réia lhe dava: primeiro Héstia, depois Deméter e Hera, em seguida Hades e Poseidon. Réia se enraivecia. Deu à luz Zeus, seu terceiro filho homem, no cair da noite no monte Liceu, na Arcádia, onde nenhuma criatura projeta sombra e, tendo-o banhado no rio Neda, deu-o à Mãe-Terra que o levou à Lictos, em Creta, e o escondeu na caverna de Dicte, no Monte Egeu. A Mãe-Terra ali o deixou para que fosse criado pela ninfa do freixo, Adrastéia, e sua irmã Io, filhas de Mélidaseu, e pela ninfa-cabra Amaltéia. Seu alimento era o mel, e ele bebia o leite de Amaltéia, com Pã, seu irmão de criação. Junto ao berço de ouro do pequeno Zeus, que ficava pendurado em uma árvore (dessa forma, Cronos não podia encontra-lo nem no céu, nem na terra, nem no mar), ficavam os Curetes, filhos de Réia, armados. Eles batiam suas lanças contra seus escudos e ber- ravam, para esconder o barulho do choro dele, para que Cronos não o pudesse ouvir de longe, pois Réia embrulhara uma pedra em cueiros e a dera à Cronos no Monte Taumásio, na Arcádia; ele a engoliu acreditando engolir o pequeno Zeus (GRAVES, 2004: 14-15).

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De acordo com Leach, no contexto do mito Zeus, representa o “deus da

chuva” (LEACH, 1974:201), que se opõe às cinco divindades (seus irmãos),

nomeadas (Héstia, Deméter, Hera, Hades e Poseidon), engolidas por Cronos.

O titã Cronos, que separa no mito o Céu (Urano) da Terra (Geia), e em

consequência disso, os princípios contrários, prototípicos (Ibid.: 200), é também,

separado por seu filho Zeus, de Réia sua esposa. Ao que tudo indica, e como

veremos mais adiante, as metáforas simbolizam transformações de uma ordem

tempo- ral em outra, num ciclo permanente.

Como sublinha o próprio Leach, a atividade de Cronos, “engolindo e

vomitando” os filhos, cria três categorias separadas: “Zeus, os opostos polares de

Zeus e um falo material” (Ibid. 201), estabelecendo-se no mito, uma imagem

mitológica de “contrários inter-relacionados”(Ibidem) cujo princípio é o de que “é

das coisas contrárias que nascem as coisas contrárias”(Ibidem).

Na sequência, Graves (2004) relata como o astuto Zeus instaura seu

reinado ao promover o destronamento do instintivo deus Cronos.

[...] Zeus tornou-se homem entre os pastores do Ida [...] procurou então a titanesa Métis, que vivia além do Oceano. Seguindo seu com- selho, ele visitou sua mãe Réia e pediu-lhe para ser o copeiro de Cronos. Réia prontamente o ajudou em sua vingança; arranjou para ele a poção emética que Métis aconselhara misturar ao néctar de Cronos. Este, tendo bebido em excesso, vomitou primeiro a pedra e, então, os irmãos e irmãs mais velhos de Zeus. Eles estavam intatos e, por gratidão pediram a ele [Zeus] que liderasse em uma guerra contra os titãs [...] pois Cronos já não estava em seu apogeu. [...] Cronos e todos os titãs [...] exceto Atlas, foram confinados no Tártaro e vigiados pelos gigantes de Cem Mãos (GRAVES, 2004: 14-15).

Como não é difícil perceber, a partir do momento em que ocorre a

separação entre o Céu (Urano)/A e Terra (Geia)/B, cria-se a seta inicial do devir,

que segue de A em direção a B (do nascimento para a morte), e de volta

novamente (GELL, 2013 [1992]: 41), indo “do pai para a mãe, da mãe para o pai,

repetidamente” (LEACH, 1974: 199). Deriva daí, um princípio cósmico (unidade

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Céu-Terra/Zeus), os opostos correlacionados quando o Céu é separado da Terra

(os opostos de Zeus) e as oscilações da alma ou do devir do tempo entre ambos.

Em síntese, a concepção de tempo ritual que em Leach apresenta uma

ressonância com o tempo mítico implica numa tríade interrelacionada: uma

unidade (o tempo continuum ou o intervalo de tempo sagrado), os opostos polares

(as descontinuidades associadas ao tempo profano) e um falo material (as

oscilações da alma do ponto de vista metafísico). Vale ainda relembrar que em

Leach o tempo ritual recebe um tratamento exclusivo do ponto de vista do mito de

Cronos.

2.6. O Culto a Cronos

Na perspectiva de Edmund Leach, para quem “em toda parte do mundo os

homens marcam seus calendários através de festivais” (LEACH, 1974: 203),

muito pouco sabemos a respeito do culto ao deus Cronos, embora, segundo o

mesmo autor, ocorresse no primeiro mês do ano, em Athenas, na Grécia, um

festival conhecido como “Kronias”, em que celebravam-se a época das colheitas e

a aproximação do Ano Novo.

Leach acrescenta que estes festivais gregos guardavam certa semelhança

com as chamadas “Saturnais”, dos romanos40, cujo principal aspecto “parece ter

sido uma inversão ritual de papéis” - os senhores atendendo os escravos e assim

por diante (Ibid.: 198).

Extraído da obra O Ramo de Ouro, versão de 1982, um breve relato de Sir

James George Frazer, citado por Leach em “Dois Ensaios a Respeito da

Representação Simbólica do Tempo”, ilustra como ocorriam as inversões de

papéis sociais no contexto das festividades rituais, cujos hábitos observavam um

período anual de liberdade de costumes em que as restrições habituais da lei e da

moral eram postas de lado.

40 Segundo Leach, o deus Cronos, cultuado na Grécia, e o deus Saturno, romano, foram considerados “mais

tarde” idênticos (LEACH, 1974: 198), sendo esta menção alusiva, provavelmente, ao período em que deu-se a fusão entre ambas as culturas, após a conquista da Grécia, pela República Romana.

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Para Frazer (2003), que “explicava tais comportamentos como

sobrevivências da magia primitiva” (FRAZER, 1982: 203), toda a população

entregava-se à alegria, aos divertimentos e, às paixões mais sombrias uma vez

que:

[...] encontrava um escoadouro que jamais lhe seria facultado no curso mais estável e sóbrio da vida ordinária. Essas explosões das forças represadas da natureza humana, que muitas vezes degeneravam em orgias desenfreadas de lubricidade e crime, ocorriam mais comumente no fim do ano, e estavam, com frequência, associadas [...] a uma das estações agrícolas, especialmente à época da semeadura ou da colheita. Ora, de todos esses períodos de suspensão das restrições, o mais conhecido, e que nas línguas modernas deu seu nome aos demais, é o das Saturnais. Essa famosa festa caía em dezembro, último mês do ano romano, e, ao que se acreditava, comemorava o alegre reinado de Saturno, o deus da agricultura [...] A escravidão e a propriedade privada eram igualmente desconhecidas: todos os homens tinham todas as coisas em comum [...] A distinção entre as classes livres e as classes escravas era temporariamente abolida. O escravo podia vituperar seu senhor, embriagar-se como seus donos, sentar-se à mesa com eles, e nenhuma palavra de reprovação lhe era dito por um comportamento que, em qualquer outra ocasião, poderia ter sido punido com açoites, prisão ou a morte. (FRAZER, 1982: 466-469).

Embora Leach considerasse o posicionamento de Frazer (1982), não

abraçava o argumento de que tais comportamentos eram remanescentes de

magia primitiva uma vez que, para o mesmo Leach não era suficiente “explicar um

fenômeno mundial em termos de crenças particulares localizadas e arcaicas”

(LEACH, 1974: 204).

O que se conhece a respeito do assunto é que para alguns povos da

antiguidade a temporalidade envolvida nas Saturnais romanas41 não era como

tendemos a considerá-la na atualidade: “um tempo comumente concebido como

41 A título de complementação selecionamos um texto que contextualiza as festividades saturnais, ilustrando

diferenças no tratamento dado a Cronos, tanto por gregos quanto pelos romanos. Como segue, “Enquanto na concepção dos gregos, Cronos era o representante do caos e da desordem uma vez que era um titã mal-intencionado, os romanos tinham uma visão mais positiva dessa mesma divindade. Associado ao deus Saturno, Cronos era bem mais favorecido pelos romanos do que pelos gregos. Sob a influencia romana, o personagem de Saturno tornou-se mais inócuo. A associação com a Idade do Ouro conferiu a Cronos o atributo de ser um “tempo humano”, que podia ser referenciado a calendários, às estações do ano e, às colheitas anuais. Além disso, enquanto os gregos negligenciavam-no, em grande monta por ser um deus intermediário entre Urano e Zeus, o deus Saturno tornou-se, ao contrário, indispensável no contexto da mitologia e religião romanas. O festival público denominado saturnália foi dedicado em sua honra. sendo celebrado no templo de Saturno. Assim como ocorria nas Kronias, em Athenas, a ordem social era subvertida temporariamente, durante as celebrações de Saturno quando então, invertiam-se os papéis sociais. Como consequência da importância delegada a Cronos, pelos romanos, Saturno teve uma forte influência na cultura ocidental. (Fonte: http://www.newworldencyclopedia.org/entry/Kairos. Acesso em Fevereiro, 2015, tradução nossa ).

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linear em constante movimento indo do passado através do presente para o

futuro” (LAMB, 2009: 1273, tradução nossa), que nos chega “como uma

experiência cotidiana cuja forma e sentido nos parecem naturais” (CETINA, 2007:

42, tradução nossa). Ao contrário, grande parcela de povos da antiguidade

“considerava o tempo como indo para trás e para frente” (LEACH, 1974: 206).

Conforme indicado por Frazer (1982) para certos povos da antiguidade, o

tempo era percebido como uma sucessão de alternâncias e paradas marcadas

por intervalos de celebração ritual, que preenchiam dentre várias funções, uma

muito importante: “a ordenação do próprio tempo” (Ibid.: 207).

Dada esta noção do tempo como uma oscilação e, uma vez que em Leach

“no ponto final de qualquer tipo de oscilação tudo se inverte” (Ibid:199) não

apenas a ordem da vida social se invertia sendo renovada como o próprio tempo

se reiniciava de modo ordenado.

Apreciando quão claramente as festividades rituais contribuíam com o

processo de ordenação do tempo, Leach ressaltava ainda que o intervalo entre

dois festivais sucessivos do mesmo tipo denotava um “período”:

[...] geralmente um período que tem nome, por exemplo, “semana”, “ano”. Sem os festivais, tais períodos não existiriam e toda a ordem sairia da vida social. Falamos na medida do tempo, como se o tempo fosse uma coisa concreta à espera de ser medida: mas de fato nós criamos o tempo através da criação de intervalos na vida social. Até que tivéssemos feito isto não havia tempo para ser medido. (LEACH, 1974: 207, grifo e aspas do autor).

Ao afirmar que o “tempo é fabricado pelo homem” (Ibid.: 206), através da

criação de intervalos da vida social, Leach ressalta a interdependência entre

intervalos rituais, períodos da vida social e ritmos humanos.

Extraído da obra Ritual y Religion en Formación de la Humanidad, uma

breve passagem contextualizada por Rappaport, assinala que o “tempo necessita

sempre ser construído” (RAPPAPORT, 2001: 258) pelo homem e que “as

culturas fazem uso de uma série de ciclos naturais durante o processo de

construção temporal” (Ibidem). Entretanto, é o próprio Rappaport quem considera:

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“[...] Ainda que o tempo possa estar baseado em processos naturais (o ciclo das estações, as fases da lua, o dia e a noite) não se estabelece à mercê desses últimos. O único ciclo natural que parece ser significativo de maneira universal é o dia e a noite” (Ibid.: 258, tradução nossa, grifo

do autor).

Ao sinalizar que o ciclo dia e noite é provavelmente o único ciclo

significativo do ponto de vista universal, Rappaport (2001) sugere que o ciclo dia e

noite expressa o único processo natural a partir do qual o tempo se estabelece.

Com o propósito de ilustrar como o homem religioso das culturas arcaicas,

vivenciava as inversões temporais, ao final de cada ciclo anual, destacamos da

obra O Sagrado e o Profano, um breve texto em que Mírcea Eliade relata que:

[...] para o homem religioso das culturas arcaicas o Mundo renova-se42 anualmente, isto é, reencontra a cada novo ano a santidade original, tal como quando saiu das mãos do Criador. [...] Ora, a vida cósmica era imaginada sob a forma de uma trajetória circular e identificava-se com o Ano. O Ano era um círculo fechado, tinha um começo e um fim, mas possuía também a particularidade de poder “renascer” sob a forma de um Ano Novo. A cada Ano Novo, um tempo “novo”, “puro” e “santo” porque ainda não usado – vinha à existência. Mas o tempo renascia, recomeçava, porque, a cada Novo Ano, o Mundo era criado novamente [...] para o homem religioso das culturas arcaicas toda criação, toda existência começa no Tempo. [...] toda criação é imaginada como tendo ocorrido no começo do Tempo, in princípio (ELIADE, 1992: 41, aspas do autor).

42 De acordo com Mírcea Eliade ( 1907-1986), o significado dessa regressão periódica do mundo a uma

modalidade caótica representava, na concepção dos povos anímicos, o seguinte: “todos os ‘pecados’ do ano, tudo o que o tempo havia manchado e consumido era aniquilado, no sentido físico do termo. Participando simbolicamente do aniquilamento e da recriação do Mundo, o próprio homem era criado de novo; renascia, porque começava uma nova existência. A cada Ano Novo, o homem se sentia mais livre e mais puro, pois se libertavaa do fardo de suas faltas e seus pecados. Restabelecera o tempo fabuloso da Criação, portanto um Tempo sagrado e ‘forte’: sagrado porque transfigurado pela presença dos deuses; ‘forte’ porque era o tempo próprio e exclusivo da criação mais gigantesca que já se realizara: a do Universo”. [...] Não é difícil compreender os motivos que levavam o homem arcaico, a obcecar pelo desejo de voltar a unir-se, de tempos em tempos, in illo tempore, aos deuses, cujos poderes se manifestavam ao máximo. Em Eliade, o homem religioso é sedento de real e por isso, esforça se, por todos os meios, para instalar-se na própria fonte da realidade primordial, quando o mundo estava in statu nascendi. De acordo ainda com o mesmo autor dois elementos merecem nossa atenção: “(1) pela repetição anual da cosmogonia, o tempo era regenerado, ou seja, recomeçava como um Tempo sagrado, pois coincidia com o illud tempus em que o Mundo viera pela primeira vez à existência; (2) participando ritualmente do ‘fim do Mundo’ e de sua ’recriação’, o homem tornava-se contemporâneo do illud tempus; portanto, nascia de novo, recomeçava sua existência com a reserva de forças vitais intacta, tal como no momento de seu nascimento” (ELIADE, 1992: 43-44).

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A contribuição oferecida por Eliade (1992) ilustra segundo a terminologia

adotada pelo mesmo autor como para o homem arcaico o mundo vinha à

existência toda vez que o tempo se reiniciava a cada novo ciclo anual.

De acordo com Christiane Barth (2013), a interpretação que Elíade “extrai

de contos tradicionais, estórias e mitos documentados por antropólogos forma a

base do entendimento deste autor a respeito do autêntico significado da mitologia

arcaica” (Barth 2013: 61, tradução nossa). No entanto, segundo Richard Reschika

citado pela mesma Barth, se por um lado o exame da mitologia arcaica tem

crucial importância na medida em que nos esclarece acerca de “como as estórias

tradicionais transmitem eventos hierofânicos”, por outro, não denota “situações

históricas que permitam ao homem definir sua posição no cosmo” (RESCHIKA,

1997: 58 apud BARTH, 2013: 61, tradução nossa).

Referindo-se aos pressupostos ontológicos e teológicos da pesquisa de

Eliade, Leach é enfático ao sinalizar em um comentário extraído de “Sermons

From a Man on a Ladder”:

“[...] A ‘história’ que ele [Eliade] persegue não adequa-se as sequências cronológicas ou a análise de causas e conseqüências de eventos particulares; adequa-se bastante com o desenvolvimento do pensamento humano através de vastas regiões do tempo e espaço” (LEACH, 1966: 279, tradução nossa).

Embora possamos contrastar as abordagens de Eliade e Leach, a crença

de que a repetição anual da cosmogonia inverte a ordem temporal regenerando o

mundo e reordenando o ciclo vital, do homem arcaico, parece ser comum a

ambas, além de que na concepção de Leach a lógica subjacente ao tempo

“rotativo” é “a noção religiosa do eterno retorno” (GELL, 2014: 41, grifo e aspas do

autor).

Apesar disto, e num esforço de ressaltar a natureza não cíclica do tempo,

Leach assinala que em certas “comunidades primitivas, não sofisticadas”, as

metáforas de repetição adquirem matizes muito mais domésticos (LEACH, 1974:

195) como pode ser constatado no breve texto abaixo discriminado:

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[...] o vômito, por exemplo, ou as oscilações da lançadeira de um tecelão, ou as sequências das atividades agrícolas, ou mesmo as trocas rituais de uma série de casamentos interligados. [...] em algumas sociedades primitivas, o processo do tempo não é sentido como uma “sucessão de durações de época”; não existe nenhum sentido de seguir sempre e sempre na mesma direção, ou girar, girar em uma mesma roda. (Ibid.:

195).

Como indicado pelo próprio Leach, em certas comunidades primitivas o

tempo é percebido através da repetição das atividades econômicas e culturais

(atividades agrícolas, a lançadeira do tecelão), dos intervalos de festividades

rituais (trocas rituais de casamentos interligados), bem como através dos ritmos

biológicos humanos (vômito), que podem mostrar-se recorrentes.

Gell (2014:41) assinala em relação ao mesmo assunto que, do ponto de

vista de Leach é “a propriedade de ‘recorrência’ dos ‘eventos repetidos” que

importa embora “essa seria exatamente a propriedade que os eventos não teriam

se o tempo fosse topologicamente cíclico ou ‘rotativo’ no sentido que Leach dá à

palavra” (Ibidem).

Na concepção de Gell (2014), a recorrência dos eventos repetidos, em

oposição à sua ocorrência simples, pressupõe “uma série ordenada” (Ibidem). O

autor explica:

[...] a ocorrência do evento e, seguida no tempo por sua primeira recorrência como evento e’, seguida por sua segunda recidiva como evento e’’, seguida por sua terceira como evento e’’’ e assim por diante, infinitamente, ou até que o ciclo seja concluído pela última vez [...] uma progressão linear do nascimento à morte – “como se fosse uma oscilação dia-noite dia-noite dia-noite etc., depende crucialmente da propriedade da “recorrência” dos sinais repetitivos que, por sua vez, depende crucialmente da indexação de eventos espalhados ao longo de um eixo de tempo linear. (Ibid. 41, aspas do autor).

Conforme assinala o mesmo Gell, para Leach inferir que as metáforas de

repetição que servem de base ao pensamento do homem religioso transformam:

[...] eventos não recorrentes (como, por exemplo, o nascimento e a morte), [em] eventos recorrentes (sucessivos amanheceres e entardeceres), ele precisa presumir um eixo de tempo linear, porque é

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apenas com relação a um eixo de tempo linear assim que poderíamos dizer que qualquer evento pode se “repetir.” (Ibidem, interpolação nossa).

Ao assegurar que o fluxo de tempo ritual em Leach, pode ser entendido

como uma série ordenada em que a recorrência dos sinais43 repetitivos (dia e

noite, por exemplo) ocorre num mesmo eixo linear, Gell (2014) nos leva a

presumir que a recorrência do tempo profano e do intervalo ritual de tempo

sagrado é simultaneamente, cíclica e alternativo, definindo-se nesse processo

uma sucessão ordenada. Em outras palavras, os “zigue-zagues” metafóricos do

tempo, que alternam o tempo profano em intervalo ritual de tempo sagrado e vice-

versa ocorrem em forma de série ordenada.

Conforme é possível observar, Leach e Rappaport parecem considerar que

para alguns povos da antiguidade o culto à Cronos, envolvia a ordenação do

tempo que ia para frente e para trás, levando o participante ritual a vivenciar uma

inversão de papéis sociais no contexto das festividades rituais. Isto também

significava que para alguns povos arcaicos havia uma interdependência entre

intervalos rituais, ritmos da vida social, ritmos humanos e os ciclos dia e noite no

processo de “fabricação do tempo.” Vejamos na sequência como Leach

interpretou este processo traduzindo-o esquematicamente num modelo de tempo

ritual.

2.7. O Modelo de Tempo Ritual em Leach

No ensaio intitulado “Time and False Noses” [Tempo e Narizes Falsos44],

Leach propõe um modelo de fluxo geral do tempo baseado em uma combinação

43 Em Leach qualquer “ocorrência de comunicação” se constitui numa “unidade de comunicação” sendo

sempre, diádica, ou seja, possui duas faces em pelos menos dois sentidos: 1) deve haver sempre dois indivíduos, um emissor, que porta a mensagem e, um receptor que interpreta o produto da ação expressiva; 2) a própria ação expressiva, que transmite a mensagem possui dois aspectos: de um lado existe a própria ação ou seu produto e, por outro lado existe a mensagem, que é codificada pelo emissor e decodificada pelo receptor (LEACH, 1978: 18-19). Quando A (emissor), indica B (a mensagem), temos o que Leach chama de índice; por exemplo, fumaça é um indício de fogo; quando A causa B por uma resposta encadeada temos o que Leach, chama de sinal; por exemplo, a repetição do ciclo dia - noite, desencadeia uma série ordenada, o ciclo anual.

44 Do ponto de vista de Leach o assunto dos “Narizes Falsos” representa, academicamente falando, o assunto da inversão de papéis sociais, no processo ritual (LEACH, 1974: 208).

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da ideia de tempo repetitivo com as generalizações, a respeito dos ritmos da vida

social, inicialmente propostas por Henry Hubert (1872-1927), Marcel Mauss

(1872-1950), e Arnold Van Gennep (2011[1909]). Leach desenvolve tal modelo

baseado na concepção de Gennep, que defendia a ideia de que a metáfora vida-

morte-renascimento funda as bases da dinâmica temporal bem como do modelo

de três estágios de ritos de passagem.

Com relação as generalizações propostas pelos autores acima citados,

Leach considera que possuem uma “validade amplamente disseminada” (LEACH,

1974:205) uma vez que o rito como um todo encaixa-se nas seções: “uma morte

simbólica, um período de reclusão ritual, um nascimento simbólico” (Ibidem).

Pautado na crença de alguns povos da antiguidade, Leach considera em

relação à identificação vida-morte-rensacimento que “o único quadro do tempo

que pode tornar esta identificação” (Ibid.: 205-206) plausível é “um conceito do

tipo pendular em que o tempo oscila, indo para frente e para trás” (Ibidem). O

mesmo Leach ressalta ainda que, “com uma visão do tempo pendular a

sequência das coisas é descontínua” e “o tempo é uma sucessão de alternações

e paradas.” (Ibid.: 206).

D D D

B

A A CC

B

Figura 12: Ilustração Esquemática do Modelo de Tempo Ritual Proposto em Leach

Fonte: LEACH, 1974:207

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O diagrama acima retrata a concepção de Leach a respeito do tempo ritual

traduzida em um modelo esquemático no qual, o fluxo total do tempo ritual

configura-se como uma sucessão de alternâncias e paradas:

Como é possível observar no modelo de fluxo total do tempo ritual, entre

alternâncias e paradas, o tempo avança no sentido do progresso (tempo

profano/D) bem como retrocede no sentido da entropia (intervalo de tempo ritual

sagrado/B) como indicado anteriormente.

No modelo de tempo ritual proposto em Leach é possível distinguirmos

quatro fases ou “estados da pessoa moral” (Ibidem), a saber:

Fase A: O rito de sacralização ou separação. A pessoa moral é transferida do mundo Secular-Profano para o mundo Sagrado; ela “morre”. Fase B: O estado marginal: A pessoa moral está numa condição sagrada, uma espécie de animação em suspensão. O tempo social, ordinário, parou. Fase C: O rito de dessacralização, ou agregação. A pessoa moral é trazida de volta do mundo Sagrado para o Profano; ela é “renascida”, o tempo secular começa de novo. Fase D: Esta é a fase da vida secular normal, o intervalo entre festivais sucessivos (Ibid.: 207,

aspas do autor).

Leach associa a quatro fases, três tipos distintos de comportamento

ritual45. Quando considerados conjuntamente dois comportamentos denominados

por Leach de formalidade e mascarada formam um par de opostos, contrários,

que correspondem ao contraste entre as fases A e C. O terceiro comportamento

que Leach denominou inversão de papel corresponde à Fase B, configurando-se

esta fase na “simbólica da transferência completa do secular para o sagrado; o

tempo normal parou; o tempo sagrado é representado às avessas, a morte é

convertida em nascimento” (Ibid: 209).

45 Leach distingue três espécies de comportamentos rituais, “aparentemente contraditórios”: há comportamentos em que “a formalidade é aumentada; os homens adotam um uniforme formal, as diferenças de status são, precisamente, demarcadas por vestimenta e etiqueta e, as regras morais, são rigorosa e ostensivamente obedecidas” (LEACH, 1974:208). Em contraste direto com este comportamento, encontramos as “celebrações do tipo festa a fantasia, mascaradas, folias” (Ibidem). Neste segundo tipo de comportamento ritual, ao invés de o indivíduo “enfatizar sua personalidade social e seu status oficial” (Ibidem), ele busca disfarçá-lo; o mundo se mascara e as regras da vida ordinária são esquecidas. E por final, no terceiro tipo de comportamento ritual, “relativamente raro”, os participantes atuam socialmente como se fossem o oposto do que “eles na verdade são; homens atuam como mulheres, mulheres como homens, reis como mendigos” (Ibidem), e assim por diante.

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Como é possível averiguar, a Fase B que representa o intervalo de tempo

ritual sagrado, ( em que o tempo encontra-se às avessas), é o ponto de chegada

da Fase A, quando a pessoa moral é transferida do mundo secular-profano para o

outro mundo, sagrado bem como representa simultaneamente, o ponto de partida

da Fase B para a Fase C, em que a pessoa moral é trazida de volta do outro

mundo, sagrado, para o mundo secular-profano sendo considerada “renascida”.

Assim sendo, a Fase B é considerada por Leach um intervalo de tempo

ritual sagrado, tabu, anormal, do outro mundo, sem duração social que configura-

se como um momento de passagem entre as Fases A e C e, um intervalo em que

ocorre um processo de transformação do participante ritual..

Por ser um intervalo em que o tempo encontra-se representado às

avessas, Leach não exclui a possibilidade de que na Fase B ocorram “eventuais

descontinuidades” cuja fenomenologia encontra-se “para além da experiência

humana normal” (Ibid.: 25). O autor acrescenta que por não ser totalmente distinto

do domínio sobrenatural, o intervalo ritual de tempo sagrado é habitado por

deuses e espíritos imortais que derivam da “combinação na imaginação de

elementos díspares, extraídos do mundo da experiência empírica” (Ibid.: 17).

Assegurando que a consciência ordinária pode expandir-se neste intervalo

de tempo ritual, Rappaport contribui com essa questão advertindo-nos que neste

domínio ritual é possível ocorrerem alterações da consciência considerada

habitual:

“[...] Usando a denominação que Rudolfo Otto cunhou em 1923, [estes estados alterados de consciência] podem ser chamados “numinosos”. Em tais estados, a razão discursiva pode ser que não desapareça em sua totalidade, mas a representação metafórica, o pensamento do processo primário e a forte emoção adquirem cada vez mais importância” [...] (RAPPAPORT, 2001: 314, tradução nossa, aspas do autor).

Embora do ponto de vista da psiquiatria tradicional, estes estados

numinosos sejam via de regra considerados como expressões de uma

consciência dissociada, em Rappaport, ao contrário, tais estados exprímem um

processo de “reassociação” (Ibid.: 315) de partes da psique que encontravam-se

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“separadas e podem ser unidas, ou melhor, dizendo, tendo em conta a natureza

recorrente do ritual reunidas” (Ibidem).

Como não é impossível perceber, Leach propõe um modelo de tempo ritual

cuja função principal é a ordenação do fluxo do tempo social. Neste modelo

alternam-se o tempo secular-profano e o intervalo ritual de tempo sagrado,

modificando a consciência ordinária do participante ritual muito embora o próprio

Leach não aprofunde o conhecimento a respeito de como ocorre esse processo

de transformação durante a permanência do indivíduo na Fase B, em que o

tempo é continuum.

2.8. Liminaridade e Tempo Sagrado: Antecedentes

Na obra Entre Cronos e Kairós: Las Formas del Tiempo Sociohistórico,

destacamos um comentário em que Guadalupe Valência Garcia (2007) assinala

que para Èmile Durkheim “qualquer interrupção do fluxo contínuo do tempo é

produto de uma necessidade humana fundamental de estabelecer assim como

alternar, a diferenciação entre vários domínios existenciais.” (GARCIA, 2007:IX).

A autora prossegue:

“[...] a necessidade desta alternância tem sido, provavelmente, o que tem levado o homem a introduzir na continuidade e homogeneidade da duração, certas distinções e diferenciações que a duração não possui naturalmente”. A ‘ruptura da continuidade’ mais significativa identificada por Durkheim foi aquela entre os domínios sagrado e profano e, coextensivamente, entre a vida e a morte, a juventude e a velhice, etc. Ibidem).

Para Durkheim, que concebia o mundo a partir de uma perspectiva dualista

o entendimento da categoria universal46 do tempo vincula-se a uma compreensão

do jogo das polaridades e sequências duais, em que distinguem-se dois “círculos

46 Durkheim, sustenta na introdução da obra As Formas Elementares da Vida Religiosa, 1961[1915], que o

tempo, enquanto uma categoria universal, noção essencial que domina toda nossa vida intelectual e que, nos parece quase inseparável do funcionamento normal do espírito, impregna nosso juízo das coisas e nossa percepção do mundo. Cf.: Notas a respeito em DURKHEIM, Èmile. Introdução In.: As Formas Elementares da Vida Religiosa. 2003 [1912].

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de estados mentais” (DURKHEIM, 2003 [1912]: 218), representados por dois

aspectos, ou “domínios fixos e mutuamente exclusivos” (Ibidem), o sagrado e o

profano.

Cabe mencionar que, para um verdadeiro durkheimiano essa passagem

considerada como uma fase de indeterminação social geralmente tem em seu

período intermediário a representação de um risco como indicado em Leach. Ou

seja, ao transitar de uma condição à outra da existência o participante ritual não

se encontra nem no estado que antecede ao seu processo de transformação nem

em um estado em que já ocorreu sua transformação.Nesse sentido, encontra-se

em trânsito; nem lá nem cá.

Ao explicitar a distinção durkheimiana entre o sagrado e o profano, Garcia

(2007) enfatiza que Durkheim, “nunca restringiu sua noção de ‘sagrado’ ao

domínio relativamente estrito da religião institucionalizada, senão referindo-se de

modo amplo a tudo aquilo que se encontra fora do ordinário” (GARCIA, 2007: 9,

tradução nossa).

Garcia assegura em relação ao mesmo assunto que foi Henry Hubert que:

“[...] o precedeu na investigação pioneira a respeito da natureza dos ritmos da vida social, apontando que os ritmos sociais são basicamente produtos da interação entre quaisquer dias considerados ‘críticos’ (não necessariamente religiosos), e os intervalos entre eles.” (Ibidem).

Contudo, são também inegáveis as contribuições advindas do modelo de

três estágios de ritos de passagem concebido por Van Gennep que, de acordo

com Terence Turner “embora não tenha sido um estudante de Durkheim nem

mesmo um membro do círculo Annèe Sociologique” (TURNER, T., 2006: 211,

tradução nossa) compartilhou, segundo o mesmo autor, “muito das ideias do

sociólogo francês relativas ao ritual e ao sagrado.” (Ibidem).

Ainda de acordo com o mesmo Turner, Van Gennep apresenta seu modelo

formal “como uma série linear de movimentos” (Ibid.: 212, tradução nossa) em

que os ritos compõem sucessivos estágios ou etapas definidos do ponto de vista

puramente funcional. Enquanto na primeira etapa ocorre:

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“[....] a separação da temporalidade da vida social profana [na] segunda etapa, que Van Gennep chamou de ‘marginal’ ou fase liminar marca-se a transição entre a primeira fase e a fase final consistindo esta ultima em ritos de ‘agregação’ ou de ‘reinserção’ na sociedade.” (Ibidem).

Ainda de acordo com o mesmo Turner, o estágio intermediário denominado

por Gennep de “liminar” não consiste em ritos da mesma ordem daqueles que

compreendem as fases inicial e terminal, “sendo constituído por operações que

transformam as relações sociais” (Ibidem). Contudo, Gennep, assim como Leach

não aprofundam nosso conhecimento a respeito de quais sejam estas operações

que modificam as relações sociais, conferindo um novo significado o tempo

seculra-profano.

Turner (2006) adianta ainda que após a apresentação do modelo tripartido

de Van Gennep:

“[...] uma nova geração de antropólogos britânicos orientou-se, nas décadas de 1960 e anos 70, para um envolvimento mais intenso com as ideias do Annèe Sociologique e, de Gennep, em relação à classificação ritual simbólica. [...] Mary Douglas, Rodney Needham, Edmund Leach e, um pouco mais livremente, Victor Turner e Louis Dumont, para citar apenas os membros mais conhecidos do grupo, produzíram uma série de obras influentes que tentaram sintetizar a herança do Annèe Sociologique referente ao simbolismo e à classificação ritual (por exemplo, o duplo sistema de classificação tal como oposição entre as zonas esquerda e direita, espaços sociais e naturais, elementos anômalos ou ambíguos em classificação e estruturas rituais, como os estágio liminar em ritos de passagem.” (Ibid: 225, tradução nossa).

Ao que tudo indica, embora tenha sido “Edmund Leach quem

provavelmente mais se aprimorou na reformulação da teoria durkheimiana do

tempo” (GARCIA, 2007: IX) apontando a supremacia de nossa experiência de

temporalidade como algo “descontínuo” (Ibidem), uma recorrência de “contrastes

repetidos” (Ibidem), não se pode negar a contribuição e “o interesse particular” de

Mary Douglas e Victor Turner:

“[....] na forma como os elementos ‘liminares’ transgrídem a separação normativa e a lógica implícita das categorias binárias tornando-se em função disso imbuídas socialmente de um poder criativo, mágico e perigoso.” (TURNER, 2006: 226).

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Esse aspecto liminar anômalo, que encontra-se via de regra associado ao

extraordinário, integra os ritmos da vida social e, como visto, constitui a essência

da teoria tabu em Leach, pode ser também divisado nas teorias de Mary Douglas

e Victor Turner como veremos adiante.

Na obra de Douglas intitulada Pureza e Perigo: Ensaio Sobre a Noção de

Poluição e Tabu, identificamos uma passagem em que a autora assinala: “o

sagrado e o impuro são polos opostos.” (DOUGLAS, 1996: 10). Douglas

argumenta em relação a ambos, justificando:

[...] não podemos confundi-los como não poderíamos confundir a fome com a saciedade, o sono com a vigília e, contudo, parece que é característico das religiões primitivas não distinguir claramente o sagrado do impuro. Se isto for verdade, existe um grande abismo entre os nossos antepassados e nós, entre nós e os primitivos contemporâneos. (Ibidem).

Assegurando que “a impureza é uma ofensa contra a ordem” (Ibid.: 6), e

que ao eliminar a impureza “não fazemos um gesto negativo; ao contrário,

esforçamo-nos positivamente para organizar o nosso meio” (Ibid.:7), a autora

ressalta no entanto que:

[...] se é verdade que a desordem destrói o arranjo dos elementos, não é menos verdade que lhe fornece os seus materiais. Quem diz ordem diz restrição, seleção dos materiais disponíveis, utilização de um conjunto limitado de todas as relações possíveis. Ao invés, a desordem é, por implicação, ilimitada; não exprime nenhum arranjo, mas é capaz de gerá-lo indefinidamente. É por isto que aspirando à criação de ordem, não condenamos pura e simplesmente a desordem. Admitimos que esta destroi os arranjos existentes; mas também que tem potencialidades. A desordem é, pois, ao mesmo tempo, símbolo de perigo e de Poder. O rito reconhece estas potencialidades da desordem. Na desordem do espírito, em sonhos, desmaios, no delírio, o oficiante busca as forças, ou verdades, que nunca se poderiam obter por meio de um esforço consciente (Ibid.: 72).

Como é possível observar embora para Douglas, o sagrado represente o

oposto de impureza, de desordem e perigo de outro lado, a autora defende a

ideia de que na impureza existem potencialidades, que carregam verdades da

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alma humana. Daí podemos presumir que ao vivenciar o intervalo ritual de tempo

sagrado o participante ritual pode buscar em sonhos, delírios, desmaios ou

alterações da consciência conforme assinala Rappaport (2001), as forças ou

verdades da própria alma que nuca conseguiria obter através da consciência

ordinária.

Uma outra questão a ser mencionada é o fato de que em Leach o intervalo

de tempo ritual sagrado, considerado tabu, do outro mundo, encontra-se

associado à tudo o que a ordem considera desagradável, do ponto de vista social,

contudo o mesmo Leach não explicíta se em sua concepção de tempo ritual o

desagradável é considerado impuro.

Em Victor Turner (2013), encontramos uma concepção de societas

(sociedade) que supõe uma correlação entre estrutura e não estrutura, similar

àquela existente entre figura e fundo existente na teoria da Gestalt e que,

segundo esse autor não simboliza apenas uma “distinção familiar entre ‘mundano’

e ‘sagrado’, ou aquela existente por exemplo, entre política e religião.” (TURNER,

2013: 99).

Para Turner (2013), a estrutura social e a experiência da communitas

(derivada da antiestrutura) são mutuamente determinantes o que significa dizer

que “a communitas, unicamente pode ser apreendida por alguma de suas

relações com a estrutura” (Ibid.: 14). Na obra O Processo Ritual, Turner explica

melhor este relacionamento:

[...] Se o componente constituído pela communitas é impreciso, difícil de fixar, isto não quer dizer que seja sem importância [...] A communitas, com seu caráter não estruturado, [...] pode ser representada pelo “vazio do centro” [...] A estrutura por outro lado, tem qualidade cognoscitiva conforme observou Lévi-Strauss; [...] A communitas tem também um aspecto de potencialidade [...] irrompe nos interstícios da estrutura, na liminaridade; nas bordas da estrutura, na marginalidade; e por baixo da estrutura, na inferioridade. Em quase toda parte a communitas é considerada sagrada ou “santificada”, possivelmente porque transgride ou anula as normas, as relações estruturadas ou institucionalizadas [...] (TURNER, 2013: 124, grifos e aspas do autor).

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Ao conceber a communitas, cuja essência pressupõe o domínio liminar

sagrado, o “difícil de fixar” ou, ainda, o “vazio do centro”, como uma oposição à

estrutura, Turner confere a communitas um poder temporal não apenas capaz de

transgredir normas e relações sociais estruturadas como de anulá-las. O mesmo

Turner acrescenta à mesma pauta que:

[...] Durante o período “liminar” intermediário, as características do sujeito ritual (o “transitante”), são ambíguas; passam através de um domínio cultural que tem poucos, ou quase nenhum, dos atributos do passado ou do estado futuro. Na terceira fase (reagregação ou incorporação) consuma-se a passagem. [...] o sujeito ritual seja ele individual ou coletivo, permanece num estado relativamente estável (Ibid.: 98).

Como visto, o intervalo ritual de tempo sagrado em Turner alude a um

intervalo temporal intermediário (difícil de fixar) associado à experiência da

communitas. Segundo esse mesmo autor, esse domínio liminar é representado

pelo “vazio do centro” e é ele quem possibilita ao participante ritual o compartilhar

com os integrantes do grupo, percepções, de que na natureza não existem

fronteiras ou de que, no mínimo, são artificiais no sentido de erguidas pelo

homem. Essa questão parece ir de encontro à concepção de fronteiras artificiais

presente na teoria do tempo ritual em Leach para quem erigimos fronteiras em

função de um dado condicionamento social, que inicia-se na infância.

Vimos sumariamente nesta seção como uma nova geração de

antropólogos britânicos mobilizou-se, nas décadas de 1960 e anos 70 no sentido

de desenvolver uma série de conceitos que propunham-se a caracterizar o

intervalo liminar ritual de tempo sagrado. Entretanto, apesar desses aportes terem

investigado diferentes aspectos desse domínio ritual ainda assim, todos

conceberam-no exclusivamente, a partir do ponto de vista do tratamento de

Chronos ou seja, tendo como referencial a estrutura e a ordem, associadas ao

aspecto secular, ao tempo profano.

Desse modo, e segundo o ponto de vista de Chronos, este intervalo ritual

liminar que se situa entre dois períodos da vida social é concebido como parte de

uma sequência linear referenciada a uma ordem de sucessão: como indicado é

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via de regra, ponto de chegada de um período da vida social, profano, e ponto de

saída para um período da vida social, renovado, configurando-se como uma zona

intermediária em que a temporalidade é considerada extraordinária.

Entretanto, nenhum desses aportes aprofundou o conhecimento a respeito

da temporalidade vigente no intervalo ritual liminar, tendo como referencial para

tal investigação o próprio tempo “extra-ordinário” (e não a temporalidade linear

associada à Chronos) cuja manifestação ocorre tanto na communitas, proposta

por Turner quanto no dominio liminar sagrado, caracterizado por Douglas e

Durkheim e ainda no intervalo ritual tabu, proposto em Leach.

Tendo identificado esta lacuna epistemológica em estudos a respeito do

intervalo ritual de tempo sagrado, damos sequência ao terceiro capítulo da

dissertação que propõe-se a uma análise desse intervalo de tempo ritual à luz do

tratamento de Kairos.

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3. TEMPO RITUAL SAGRADO EM LEACH À LUZ DE KAIROS

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Este capítulo apresenta os comentários e discussões relativos aos

resultados obtidos no presente estudo que visou uma investigação do intervalo

ritual de tempo sagrado em Leach à luz dos elementos mitológicos associados à

noção de Kairos. inicialmente, o capítulo explana a respeito do intervalo ritual de

tempo sagrado ou, o tempo continuum que à luz dos elementos mitológicos

associados à noção de Kairos, é representado não como parte do tempo, mas,

como um ponto originário que segue um curso unidimensional e irreversível em

direção às origens ou, às camadas inconscientes da psique humana

denominadas de primordiais na psicologia analítica, irrompendo a dimensão

horizontal linear do tempo. O capítulo avança explicando a metáfora de Hermes

(LEACH, 1974: 200), personificada em Leach como a imagem primária do tempo,

e examina na sequência, como ocorre o processo de ordenação humano à luz do

tratamento de Kairos. Em seguida explora os dois instantes considerados cruciais

(aceleração e imobilidade do tempo) do ponto de vista do instante kairológico

contextualizando na sequência como ocorre o ciclo “vida-morte-renascimento”

que integra repetição e entropia, Cronos e kairos, vida e morte. O capítulo encerra

sumarizando como configuram-se as quatro fases rituais em Leach do ponto de

vista do tratamento de Kairos, que concorrem para o processo de transformação

da consciência ordinária do participante ritual.

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3.1 O Fluxo Unidimensional do Tempo Sagrado

[...] Na ótica da transformação, a ocasião (kairos) não é mais que o resultado de um desenvolvimento, e a duração (Chronos), preparou-a; de onde, longe de sobrevir de improviso, ela é o fruto de uma evolução que é preciso agarrar no seu ponto de partida, logo que se manifesta. (JULLIEN, 1996:93).

Vimos no Capítulo 2 que o intervalo ritual de tempo sagrado em Leach

concebido a partir dos elementos mitológicos associados à noção de Cronos,

representa “um intervalo de indefinição social” (LEACH, 1987:45), um domínio

ritual em que o tempo é continuum sendo caracterizado como um ambiente tabu,

ambíguo, marginal, do outro mundo, em oposição a este mundo; também que, à

luz do tratamento de Cronos esse intervalo ritual é parte de uma sequência no

tempo em que cada instante pode ser considerado como “ponto de partida de um

futuro ou ponto de chegada de um passado” (PIETRE, 1997:84).

De acordo com os resultados obtidos no presente estudo o intervalo ritual

de tempo sagrado em Leach à luz dos elementos mitológicos associados à noção

de Kairos, pode ser “interpretado como ‘origem’ (KERKHOF, 1997:2) e não como

parte de uma cadeia causal a partir de onde ocorre a irrupção da eternidade no

tempo” (Ibidem) que segue num curso unidimensional e irreversível “entre um

curso acelerado e certa imobilidade (HONKANEN, 2007:9) numa direção vertical

pulsando, promovendo “quebras”,“rupturas” e rompendo com a “cadeia da

cronologia” (Ibidem).

Quando associado ao instante kairológico como denominado por Kerkhof

(1997), o intervalo ritual de tempo sagrado ou, o tempo continuum em Leach, não

só rompe com a cadeia da cronologia como “salta” no sentido vertical, transversal

a dimensão horizontal do “correr” habitual do tempo, comportando-se como uma

“substância generativa” (ONIANS, 2010[1951], 249) ou, “uma espécie de alma

primordial” (Ibidem), do mundo que, de acordo com a antiga tradição pré-socrática

“continuava existindo após a morte quando tomava a forma de uma serpente”

(ONIANS, 2010 [1951]; VON-FRANZ, 1997; LEACH, 1974:196).

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Assegurando que esta substância generativa coagulava-se por

condensação (WHITROW, 1993 [1988]: 53), na hora da morte, os antigos

filósofos gregos concebiam-na como um tipo de “caminho” (OREY; ROSA,

2004:32), em forma de torrente circular ou serpente que mordia a própria cauda

(Ilíada, XIV. 246), (WHITROW, op.cit. 53) cujo significado denotava na

perspectiva do filósofo Hesíodo, “um aspecto da ordenação moral do universo.”

(Ibidem).

Esta “substância básica do universo” (ONIANS, 2010 [1951]: 248) que

propiciava uma “experiência de transformação pessoal” e “chegava ao fim com a

morte do indivíduo” (HONAKEN, 2007: 4) caracterizava-se como o “próprio

fundamento da existência” (WHITROW, 1993[1988]: 53) não devendo ser

caracterizada entretanto, como “mero caos”, pois, “governada ao longo do tempo

por um princípio de equilíbrio de opostos” (Ibidem) atendia a finalidade de

estabelecer a “harmonia do mundo.” (TORRANO, 1981:61).

Representada dentro do código simbólico de algumas antigas tradições da

Grécia e da extinta civilização egípcia, como um “movimento circular de eterno

fluxo da existência” (STAUSBERG, 2003:250) “encerrado em si mesmo”

(GHEERBRANT; CHEVALIER, 1997[1982]: 922), esta substância também

denominada de Ouroborus encontra-se associada ao que tudo indica à imagem

primária do tempo, em Leach ou, à Hermes, “o mensageiro dos deuses” (LEACH,

1974:200), personificado na antiga Grécia como “simplesmente um falo e uma

cabeça e nada mais” (Ibidem).

3.2 A Imagem Primária do Tempo

Isso posto se à luz de Cronos, Hermes, representa o “elemento móvel e

vital” (LEACH, 1974: 200) ou, o fluxo de movimento da alma que num “constante

devir” (LEACH, 1989: 2) oscila entre dicotomias, evocando a dinâmica universal a

partir da “transmutação perpétua” entre “morte e vida” (GHEERBRANT;

CHEVALIER, 1997[1982]: 814-825) quando interpretado à luz dos elementos

mitológicos ligados à noção de Kairos, Hermes, não simboliza um falo que oscila

entre dicotomias, mas um instante-orígem que pulsa “hierogamicamente”

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(TORRANO, 1981:63) e manifesta-se ora como uma cabeça (um ponto originário)

e ora como uma “chuva-sêmen” (Ibidem), ou um falo.

Tendo em vista esta metáfora não parece difícil presumir que, se à luz do

mito de Cronos, Hermes, oscila entre tempo profano e tempo sagrado numa

“dimensão horizontal” (KERKHOF, 1997:2) à luz de Kairos, Hermes, pulsa numa

“dimensão vertical” (Ibidem) ora como um ponto originário e ora como um falo; ora

como o ciclo de Kairos e ora como o ciclo de Cronos, num curso que segue em

direção as origens.

Hermes, o mensageiro, que representa em Leach do ponto de vista

metafórico a união entre macho (Céu) e fêmea (Terra) ou, entre os princípios ativo

(masculino) e receptivo (feminino) do tempo quando associado ao instante

kairológico denota o elemento móvel que pulsa ora como Céu ora como Terra

num ritmo encerrado sobre si mesmo.

À luz de Kairos, Hermes expressa “um único e mesmo movimento” (Ibidem)

que “constitui as origens no sentido de um início cronológico” (Ibidem) e tal como

a imagem da Ouroborus, que engole a própria cauda “conectada em um ciclo

contínuo, de ‘vida-morte-renovação’” (KOEPF, 2009:223-225), “encerra as noções

de movimento, autofecundação e continuidade” (GHEERBRANT; CHEVALIER,

1997[1982]: 922) bem como de eterno retorno (Ibidem) assemelhando-se

segundo Phillip Sipiora (2002:1) à “noção de logos”.

Daí deriva que, à luz dos elementos mitológicos ligados à noção de Kairos,

a “distinção fundamental entre profano e sagrado que as grandes autoridades do

campo das ciências da religião reconhecem como válida” (KERKHOF, 1997:104)

não pode ser sustentada porque como indicado anteriormente, o “curso” do

instante kairológico associado ao intervalo de tempo sagrado é vertical,

“irreversível e unidimensional” (Ibid. 2). Enquanto à luz de Cronos, Hermes, o

mensageiro dos deuses, “corre” (KERKHOF, 1997:2), na dimensão horizontal “do

transcurso do tempo” (Ibidem), transitando entre Céu e Terra, entre este e o outro

mundo à luz de Kairos, ele salta em uma velocidade vertiginosa, em direção às

origens, em que “são fontes, a Terra e seu igual o Céu” (TORRANO, 1981:63) tal

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como um “falo masculino” (LEACH, 1989:29) que simbolicamente devolve-nos

“para o início de tudo” (GELL, 2014:39).

Reconhecendo apenas o instante presente, que “pulsa incessantemente

entre o dever e o perecer” (KERKHOF, 1997:105). Hermes manifesta-se ora como

um aspecto sagrado ora como um aspecto profano atendendo a um mesmo

princípio cósmico.

Do ponto de vista do binário apresentado em Leach (Cf.: Figura 5), isto

significa dizer que, quando o transitante ritual “torna-se castrado” e é transferido

para o intervalo ritual de tempo sagrado, ao invés de deslocar-se “ao longo de

uma linha contínua imaginária tendo como pontos todos os números entre -1 e

+1” (LEACH, 1982:10) experimenta o ponto “0” que não é nem positivo nem

negativo, mas, “as duas coisas simultaneamente” (Ibidem).

Enquanto do ponto de vista do tratamento de Cronos, o participante ritual

experimenta o continuum como parte de uma “sequência de inversões” (LEACH,

1974:200) que ocorrem no plano da linearidade à luz dos elementos mitológicos

associados à noção de Kairos, o participante ritual experimenta o tempo

continuum ou, o instante kairológico como um “ponto do tempo” (BROWN;

COENEM, 1983[1967]: 566).

Ao transcender dicotomias tais como: “sujeito e objeto, começo e fim”

(KERKHOF, 1997:2) este mundo e outro mundo e, seguir num curso

unidimensional, irreversível em direção às origens, a consciência ordinária do

participante ritual (quando associada ao instante kairológico no intervalo ritual de

tempo sagrado), copia o tipo de movimento dos organismos vivos com diversas

dimensões de ‘profundidade’ ou ‘altura’ (Ibidem) com oscilações entre um “curso

acelerado e certa imobilidade” (Ibidem).

Isso posto, cabe aqui uma observação: quando Kerkhof (1997) afirma que

a natureza do instante kairológico copia o mesmo tipo de movimento dos

organismos vivos oscilando entre um curso acelerado e uma certa imobilidade isto

parece não adequar-se a perspectiva de Kairos e sim a de Cronos; pois, como é

possível o autor falar em oscilações quando o curso unidimensional do instante

kairológico, é representado por um ponto-orígem que apenas pulsa?

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Entretanto, ao tomarmos emprestadas as palavras do próprio Kerkhof,

situando “o instante vivido” (KERKHOF, 1997:2), que o autor associa ao tempo

kairológico, como um ‘lugar’ (Ibidem) “em uma dimensão ‘vertical’ típica de tudo o

que tem origem nasce, cresce, e se distingue da dimensão ‘horizontal’ do

transcorrer do tempo” (Ibidem), não é difícil presumir que para o mesmo autor o

instante kairológico, simplesmente pulsa centrado nele mesmo (origem). Isso

parece ficar claro em Kerkhof (!997), para quem o instante kairológico é tanto

“ponto de partida” quanto de “culminância” (1997:2) sugerindo o mesmo autor que

o instante kairológico aprofunda-se em si mesmo, como veremos mais adiante.

Contudo, por hora, basta entendermos que, quando associado ao instante

kairológico, o intervalo ritual de tempo sagrado, representa um “lugar” em que o

curso do tempo é unidimensional, irreversível e segue em direção às origens.

Hermes, o mensageiro dos deuses que em Leach personifica a imagem primaria

do tempo quando interpretado à luz de Kairos, pulsa neste fluxo continuum do

tempo ora no mundo divino ora no mundo humano. Isso posto, apresentamos na

sequência o diagrama que reduz Hermes ou, a imagem primária do tempo

continuum a uma forma geométrica:

Figura 13: Ilustração esquemática da Imagem primária do tempo (Hermes) Fonte: adaptação de Leach (1972:48)

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Como indicado, e, é possível observar na ilustração da figura 13, o tempo

eterno irrompe verticalmente, no sentido transversal à dimensão horizontal em

que situa-se a cadeia cronológica criando uma “intersecção” (JULLIEN, 1996:106)

entre o eterno e o temporal. Ao que tudo indica esta intersecção representa

simbolicamente Hermes, ou o instante Kairológico, o ponto no tempo que “chama

atenção do momento presente para o passado ou para o futuro” (BROWN;

COENEM, 1983[1967]: 566-567). O ponto no tempo e no atemporal que

representa ambigüidades; porisso circula entre este e o outro mundo; entre uma

dimensão divina e outra humana.

Este “tempo regulado que mantém o equilíbrio” (JULLIEN, 1996:99) entre

uma dimensão divina e outra humana, ou seja, que vem “reparar a dilaceração”

(Ibid. 105) ente duas cronologias distintas é representado como uma “marca” ou

“alvo” (ONIANS, 2010[1951]: 344) que “pode penetrar a vida em seu âmago”

(ibidem), já que aprofunda-se em “diversas dimensões de ‘profundidade’ ou

‘altura’” (KERKHOF, 1997:2) no sentido das origens.

Não é demais acrescentar em relação a este assunto que, em 1916, Carl

Jung apresentou uma palestra para a Associação da Psicologia Analítica

intitulada “A estrutura do inconsciente” em que “diferenciava duas camadas do

inconsciente” (SHANDASANI, 2005[1962]: 253): a primeira ele chamava de

“inconsciente pessoal, que consistia em elementos adquiridos ao longo da vida da

pessoa” (Ibidem) e a segunda que distinguia-se da primeira em função de seus

conteúdos ele chamava de “inconsciente impessoal ou psique coletiva” (Ibidem),

sendo constituída por um material filogenético herdado, que “continha toda a

herança mental ou espiritual da evolução da humanidade” (Ibid.259).

Esta concepção de um inconsciente filogenético que “descendia

diretamente dos conceitos propostos pelos teóricos da memória orgânica” (Ibid.

254), tinha como seu conteúdo mais importante as “imagens primordiais” (Ibid.

253) que Jung definiu como “o pensamento e o viver místicos” (Ibid. 254). Neste

sentido, os conteúdos do inconsciente coletivo constituíam “formas estruturais

atemporais” (Ibid.: 259), que representavam “o eterno retorno da história da alma”

(Ibidem).

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Tendo em vista o acima exposto, se Jung estiver na direção correta

podemos presumir que Hermes, personificado em Leach como uma imagem

primaria do tempo ou da alma, penetra o âmago da vida pulsando ora entre as

camadas atemporais mais profundas e primordiais da psique humana, ora no

tempo ordinário. Quando interpretado à luz da modalidade do tempo em Kairos,

Hermes, é o mensageiro dos deuses divino e humano que pulsa entre os ciclos

de vida e morte; entre este e o outro mundo..

A partir do exposto apresentamos na sequência como ocorre o processo de

segmentação e ordenação do mundo em Leach à luz dos elementos mitológicos

associados à noção de Kairos.

3.3 O Processo de Ordenação Humano

Embora tenha considerado o continuum ou, o outro mundo como uma

espécie de matriz ou “princípio espiritual” (LEACH, 1989:2) a partir do qual

aprendemos a ordenar e a distinguir “o mundo como sendo composto de um

grande número de coisas separadas” (LEACH, 1972 [1966]: 47), bem como

ressaltado sua relevância defendendo a ideia de que habituados a lidar com

coisas separadas não aprendemos a observar como todas as coisas “estão

relacionadas” (LEACH, 1982:84), Leach não aprofundou como já indicado o

conhecimento a respeito do continuum, além do ponto de vista das “categorias

verbais ou, o lado deste mundo” (SEKINE, 1985:490-491).

Com relação às categorias verbais bastante exploradas por Leach vimos

no Capítulo 2, o quanto somos condicionados desde a primeira infância a

“somente perceber” (LEACH, 1983:181), descontinuidades e a delegar ao

ambiente tabu tudo o que não é reconhecido pela ordem social. Dito de outro

modo, vimos a partir desse mesmo Leach como a “ordem exige” (LEACH,

1989:29) que este mundo profano e o outro mundo sagrado “sejam percebidos

como ‘coisas’ completamente separadas” (Ibidem).

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Vimos ainda que a partir da “distinção categorial primária” (LEACH,

1989:29), entre macho e fêmea, Céu e Terra, descontinuidades e continuum, o

indivíduo é levado a reconhecer em sua percepção de mundo que o tempo

encaminha-se “de um movimento anterior para um posterior” (LINDROOS,

1998:12 apud HONKANEN, 2007:5). E embora a realidade seja considerada por

Leach como “um campo contínuo” em constante transformação (LEACH, 1989:21)

o tempo é percebido como estando separado por fronteiras apesar de

“interrupções artificiais do que é naturalmente contínuo” (LEACH, 1978:44).

Isso posto não é difícil reconhecer que à luz de Cronos, o processo de

ordenação do mundo em Leach denota um processo de fragmentação perceptiva

em relação ao qual, grosso modo “toda a cultura consente que certos impulsos se

tornem e permaneçam conscientes” (LEACH, 1983: 35) ao mesmo tempo em que

“exige que outros sejam reprimidos” (Ibidem) permanecendo estes últimos,

inconscientes.

Como ressalta G.A.J. Platemkamp (1979), “parece ser inerente ao

processo de socialização e, nele localizado um nível cognitivo inconsciente”

(PLATEMKAMP, 1979:176). Contudo, apesar desse mesmo autor enfatizar que

Leach recusou-se em “manter uma distinção consistente entre os níveis

consciente e inconsciente” (Ibidem) no que se refere ao processo de socialização

isto não significa que Leach não tenha considerado tal distinção.

De fato, embora Leach não nos ofereça o desenvolvimento de uma

investigação do continuum (SEKINE, 1985: 490) durante a exposição de sua

teoria tabu, ainda assim ressalta várias vezes a necessidade de aprofundarmos “o

relacionamento entre descontinuidades e continuum” (LEACH, 1982:11), bem

como a necessidade de refletirmos em maior profundidade “sobre a noção de

fronteira” (LEACH, 1978: 44) que por serem ambíguas, possuem para esse autor

um valor especial.

Tudo indica que, ao ressaltar sobre estas questões Leach comunica-nos

não apenas o seu próprio interesse em examinar mais detalhadamente o

conhecimento a respeito destas duas zonas neutras – o continuum e as marcas

de fronteira consideradas tabu - mas também, sua preocupação em sinalizar à

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outros pesquisadores que, por serem artificiais, ambíguas, anormais, sagradas,

estas zonas marginais requerem uma investigação mais refinada uma vez que

são “interditas e excluídas do exame consciente” (LEACH, 1989:29).

Durante a explanação de sua teoria do tempo ritual Leach insiste em

enfatizar que “o princípio de que estamos o tempo todo lidando com um todo

único que interage é facialmente esquecido” (LEACH, 1978:9) ressaltando que a

percepção do indivíduo habitua-se ao que a ordem exige e esquece de considerar

que o “verdadeiro elemento do pensamento” (LEACH, 1989:21) combina numa

unidade, não disjuntiva, o continuum na natureza e as descontinuidades sociais.

Em outro momento dessa explanação em “Dois Ensaios a Respeito da

Representação Simbólica do Tempo” quando remete-se à lógica do pensamento

binário o mesmo Leach afirma que, o “0” que não está no “centro” geométrico e

nem “numa posição intermediária” entre opostos simétricos, “tem uma natureza

diferente” (Ibidem).

Ora, se de acordo com algumas tradições da Grécia antiga “a alternativa

mais conhecida de temporalidade oferecida em oposição à cronologia”

(HONKANEN, 2007: 8) era Kairos, que possui uma natureza diferente, em

oposição aquela de Cronos, será que Leach não considerou a possibilidade de

examinar o instante kairológico no processo de investigação do tempo continuum

ou, do intervalo ritual de tempo sagrado? O fato é que embora Leach considere a

necessidade de examinar em maiores detalhes o tempo continuum não o faz e

muito menos, menciona o instante kairológico como uma possibilidade viável, de

aprofundar tal conhecimento.

Em função dessa lacuna ficamos sem uma resposta para uma questão que

emerge nesse contexto e nos instiga: ainda que Leach não tenha mencionado o

instante kairológico em oposição ao instante cronológico será que considerou

essa modalidade de tempo em sua teoria do tempo ritual, ao conceber o tempo

continuum? Ao que tudo indica, Leach tinha consciência - a partir dos gregos -

que o relacionamento entre continuum e descontinuidades denotava por analogia,

o mesmo relacionamento entre o instante Kairológico e o instante Cronológico.

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Ao sinalizar no contexto de sua teoria do tempo ritual, por exemplo, que a

entropia representa um dos três modos de experimentarmos o tempo (LEACH,

1974: 205), tudo indica que o mesmo Leach referia-se a um dos aspectos que

caracterizam o instante Kairológico, irreversível, em oposição ao fenômeno da

repetição, associado à ordem secular de Chronos e ao progresso como assinala

Rappaport (2011:271).

Em síntese, e apesar de não mencionar a modalidade de tempo em Kairos

na exposição sua teoria, o autor combina a entropia, associada ao intervalo de

tempo ritual sagrado à repetição, associada ao tempo profano, fundando um

modelo de fluxo total do tempo em que Chronos (repetição) e Kairos (entropia)

encontram-se interrelacionados.

Tal como assinala Tiscareño, a interdependência entre os ciclos de

Chronos, o “tempo quantitativo” (TISCAREÑO, 2009:226) “sucessivo do antes e

do depois”, “simétrico” (Ibid.: 223) e Kairos, o “tempo qualitativo” de “mudança de

inovação ativa de oportunidade” (Ibid.: 226) é tácita sugerindo esse mesmo autor

que Chronos e Kairos não são disjuntivos.

Dito de outra forma apostamos na hipótese de que Leach não “camuflou”

seu conhecimento a respeito do aspecto dual do tempo, pois, trata dos dois

domínios: o profano e o sagrado embora tenha de fato, se “recusado” a

estabelecer uma conexão de ambos os aspectos do tempo ritual com os ciclos de

Chronos e Kairos.

Presumir que a noção do tempo em Kairos, encontra-se associada ao

intervalo ritual de tempo sagrado ou ao tempo continuum e portanto, ao interdito

ao tabu, a um nível de cognição inconsciente contribui para nos esclarecer a

respeito de porque a atenção dada a Kairos “não tem oferecido uma articulação

sistemática” (SIPIORA, 2002:2).

Se o desenvolvimento de uma kairomitologia ocidental como sustenta

Kerkhof (1997) denota erroneamente não só “uma recaída na superstição

astrológica”, mas, também, uma espécie de “regressão ao ocultismo” (KERKHOF,

1997:104), ressaltando segundo o mesmo autor uma “perspectiva de

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superioridade” (Ibidem) não é impossível entender o porque de uma investigação

a respeito de Kairos ser negligenciada.

Tendo em vista a argumentação de Kerkhof (1997), o que podemos inferir

é que a teoria do tempo ritual em Leach desenvolvida à luz do tratamento de

Cronos nos possibilita a reabilitação de Kairos, não a partir de uma superstição

astrológica ou um misticismo. Ao contrário, na medida em que tomamos como

referência a crença dos antigos filósofos pré-socráticos para quem havia um

princípio cósmico e dinâmico (Aion) cuja natureza era dual (Chronos e Kairos) a

reabilitação de Kairos emerge a partir do próprio Cronos.

Em outras palavras, ao desenvolver uma concepção unilateral a respeito

do tempo ritual - a partir da ótica exclusiva dos gregos e de Cronos - Leach

contribui para que possamos reabilitar Kairos. Mais que isto, o mesmo autor

contribui para que no processo de investigação da modalidade de tempo em

Kairos, possamos aprofundar o conhecimento a respeito do intervalo ritual de

tempo sagrado.

Diante do acima exposto, cujo propósito era alcançar um melhor

entendimento do processo de ordenação humano em Leach já que este trata do

relacionamento entre continuum e descontinuidades ou, entre os ciclos de Kairos

e de Chronos talvez não seja incorreto presumirmos que ao impor “sobre o

ambiente uma espécie de grade discriminatória” (LEACH, 1972: 47 apud

PLATENKAMP, 1979:174) com o propósito de ordenar o mundo à criança

suprime e delega ao nível inconsciente uma face da realidade cuja representação

terá depois que resgatar. E o indivíduo o faz quando torna-se castrado ao

adentrar no intervalo ritual de tempo sagrado.

Cabe aqui relembrar que à luz de Cronos, o processo de ordenação do

mundo em Leach ocorre com a segmentação do continuum “em objetos que

tenham significado e em pessoas que preencham papéis distintos” (Ibid.: 44)

quando então, aprendemos a erguer fronteiras artificiais na natureza. Como

assinala o próprio Leach o “problema social e permanente” do indivíduo durante

as primeiras etapas de sua infância é determinar “a fronteira inicial” (LEACH,

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1983:181). Uma vez determinada este processo é reproduzido durante toda a

existência do indivíduo.

O próprio Jung nos esclarece que a “natureza determinada e dirigida da

consciência é uma aquisição extremamente importante” da humanidade (JUNG,

1971:2). Contudo, “o processo dirigido se torna necessariamente unilateral”

(Ibidem) ainda que o julgamento racional pareça “plurilateral e despreconcebido”

(Ibidem). Aquilo que nos parece irracional do ponto de vista social “está de

antemão fadado à exclusão” (Ibid. 3).

O psiquiatra suíço nos alerta ainda que “quanto mais capazes formos de

nos afastar do inconsciente por um funcionamento dirigido (racional), tanto maior

é a possibilidade de surgir uma forte contraposição” (Ibidem) a qual “quando

irrompe pode ter consequências desagradáveis” (Ibidem). Com isso, Jung,

pretende nos mostrar que, quanto mais delegamos o que a ordem social suprime

a um nível de cognição inconsciente maior será a necessidade do indivíduo de

resgatar o que foi excluído da consciência ordinária.

Isso posto, embora Leach considere - como indicado - a representação da

realidade como “um campo contínuo em perpétua transformação” (LEACH,

1989:21) em que o ambiente social profano (descontínuo) e o ambiente sagrado

(continuum) estão em constante interação o que parece ser relevante não é o fato

de que existe tal interação e sim, o modo como cada indivíduo estabelece tal

interação e em conseqüência, o modo como ergue as fronteiras artificiais. Dito de

outra forma, embora na perspectiva de Leach estas fronteiras sejam consideradas

artificiais pois, erguidas pelo humano são elas que regulam nossas ações e

decisões no mundo; o que é tabu e o que não é. São elas que em ultima análise

determinam a amplitude do profano e do sagrado. Isto significa também dizer que:

[....] à parte o fato de que toda pesquisa científica se devota a ‘descobrir’ aquelas partes do ambiente que jazem nas fronteiras” (Ibidem) “do que é ‘conhecido’ temos o fenômeno que é descrito tanto por antropólogos quanto por psicólogos no qual tudo o que é tabu” (Ibidem) é considerado “sagrado, valioso, importante, poderoso”, mas, principalmente, “perigoso, intocável, imundo e infando.” (Ibidem).

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Resulta daí que, à luz do tratamento de Cronos, ações sociais são ao que

tudo indica reguladoras uma vez que reproduzimos num nível cognitivo

inconsciente a segmentação prototípica, inicial, da infância. Ou seja, delegamos

ao domínio tabu, tudo aquilo que mostra-se desagradável diante da exigência da

ordem social.

Ao contrário, à luz de Kairos, o processo de ordenação humano não

comporta esse mesmo processo de segmentação do continuum na natureza. Em

consequência disto, não há necessidade alguma de erguermos fronteiras

artificiais na natureza mesmo porque a modalidade de tempo kairológico é

unidimensional e porisso, abarca o fluxo do “agora” em que ambigüidades estão

reunidas.

Como indicado, quando associado ao instante kairológico o intervalo ritual

de tempo sagrado, configura apenas esse fluxo unidimensional e irreversível do

“tempo” que segue em direção a origem (ponto de partida e culminância)

interconectando o atemporal (vertical) e o tempo (horizontal), a partir de um

plano que intersecciona ambas. Imposta pela natureza ou pelo destino, mas

regulada pela ação humana esta fronteira natural “pulsa incessantemente, entre o

devenir e o perecer regulando nossa consciência” (KERKHOF, 1997:2).

Daí segue que à luz de Kairos, as ações sociais não são reguladas pelo

modo como segmentamos o continuum que vimos, varia de um indivíduo para o

outro; ao que tudo indica ações sociais resultam de “períodos ou pontos de tempo

individuais, que podem ser efetuados por decisões humanas” (BROWN;

COENEM, 1983 [1967]: 566-567). O instante kairológico requer ações humanas

para tornar-se visível e neste sentido, são ações individuais que contribuem para

deflagrar oportunidades qualitativas do ponto de vista social.

À luz dos elementos mitológicos associados à noção de Kairos, o processo

de ordenação humano depende de decisões humanas. Configurada como uma

abertura dada pelos deuses “localizada” entre as dimensões divina e humana

“cujos marcos espacial e temporal” (LEACH, 1978:45) podem ser definidos como

“anormais, sem tempo marcado ambíguos, marginais, sagrados” (Ibidem), esta

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fronteira natural uma “exige a ação” humana (BROWN; COENEM, op.cit.: 566-

567) para regular o momento e, só a partir desta “obtém sua importância” (Idem).

Por denotar o interdito, o tabu essa abertura, ponto original no tempo que

permanece no ser humano num nível inconsciente parece tornar-se “visível”

(JULLIEN, 1996: 88) ou consciente sómente, a medida em que sua “onipotência é

firmada” (Ibid.: 88-89) por uma decisão humana, reguladora; e isso apenas pode

ocorrer durante a experiência do participante ritual nos intervalos de festividades

anuais como veremos mais adiante.

Quando isto ocorre, denotando um encontro entre a dimensão divina

(eternidade) e a humana (o tempo) “abre-se a porta” (Ibid. 98) “de pouca

duração”, “apertada” (BROWN; COENEM, 1983 [1967]: 566-567) para que o

participante ritual possa viver a ousadia do risco, viver a liberdade de aventurar-se

e lançar-se ao desconhecido.

Vimos nesta seção como o processo de ordenação do mundo em Leach do

ponto de vista de Cronos, independe de uma decisão consciente por parte do

indivíduo, já que ele simplesmente reproduz durante toda sua vida social o modo

como aprendeu a segmentar o contínuo na natureza cujo objetivo era estabelecer

a fronteira inicial entre o “Eu” e o “mundo”.

Vimos ainda, que à luz de Kairos, o processo de ordenação requer o

humano para regular o instante vivido. Desse modo, o que era um processo de

ordenação do mundo em Leach à luz de Cronos, passa a ser um processo de

ordenação humano, à luz de Kairos que possibilita uma fronteira natural, divina e

humana, para que possa se realizar uma ação reguladora do participante ritual,

transformando seu status em sociedade.

Mas como ocorre este processo? È inevitável este encontro entre o divino e

o humano ou depende do tipo de ação empreendida pelo participante ritual. É o

que veremos adiante ao explanarmos a respeito do momento vivido pelo

participante das festividades anuais no intervalo ritual de tempo sagrado,

configurado como sustenta Jullien (1996), por dois instantes cruciais.

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3.4 A Experiência Ritual: Velocidade e Imobilidade

À luz dos elementos mitológicos associados à noção de Kairos, o intervalo

ritual de tempo sagrado, comporta “não um, mas, dois momentos” (JULLIEN,

1996: 92), considerados “cruciais” (Ibidem), para o participante ritual após sua

transferência “do mundo Secular-Profano para o mundo Sagrado”, quando o

indivíduo “morre” (LEACH, 1974:207).

Considerado um estágio inicial de transformação da consciência ordinária

do participante ritual esse primeiro momento, no intervalo ritual de tempo sagrado,

manifesta-se à luz de Kairos, como um tempo extraordinário em que a velocidade

da passagem do tempo, possui de acordo com Kerkhof, um “curso acelerado”

(KERKHOF, 1997:2).

Nesse instante inicial em Kairos apreendido pelo participante ritual como

“um conjunto de elementos sensoriais não segmentáveis” (LEACH, 1989:29),

“engrenados” (LEACH, 1974: 204), aos “processos biológicos” (Ibidem), o que

torna cada momento representa um “protótipo de confusão” (LEACH, op.cit. 29).

Isto significa dizer que a sensação de velocidade de passagem do tempo

que vimos, varia de indivíduo para individuo dependendo das “diferentes

maneiras” (LEACH, 1982:84), como cada um irrompe “as continuidades das suas

experiências” (Ibidem), permite que cada participante ritual vivencie

qualitativamente sua própria experiência interior constatando que, em se tratando

de festividades rituais a “regularidade do tempo não é uma parte intrínseca na

natureza” (Ibid.: 205).

O próprio Kerkhof sugere em relação a este mesmo assunto que cada

instante vivido no intervalo ritual de tempo sagrado, associado ao tempo

kairológico, pode conter em função de “seu ‘conteúdo’ mais ou menos peso, mais

ou menos importância, mais ou menos duração” (KERKHOF, 1997:2); em suma

pode variar de acordo com a percepção de cada indivíduo.

Neste estágio inicial em que o fluxo do tempo manifesta-se acelerado

denotando ao que tudo indica, o tempo contínuum, inapreensível pela consciência

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ordinária e, em que cada momento vivido pelo participante ritual é como um

“instante súbito” (JULLIEN, 1996:109) tal como se Kairos avançasse “na ponta

dos pés” sempre “a voar” (Ibidem), os “instantes quantitativamente iguais”

(KERKHOF, 1997: 2), são em parte anulados propiciando ao indivíduo um retorno

à percepção primária da infância, em que segundo Leach não existiam ainda

“quaisquer brechas no mundo físico” (LEACH, 1970:23).

Como sustenta Rappaport nesse momento em que o participante ritual

vivencia no intervalo ritual de tempo sagrado, o curso acelerado do tempo:

“[....] a razão discursiva pode ser que não desapareça em sua totalidade, mas a representação metafórica, o pensamento do processo primário e a forte emoção adquirem cada vez mais importância.”(RAPPAPORT, 2001:314).

Cabe acrescentar que por “abarcar de uma vez” (HONKANEN, 2007: 9),

diferentes temporalidades como um “presente expandido” ou, um “agora” (Ibidem)

sempre em vias de “tornar-se um novo ‘agora’” (Ibidem), em diversos níveis de

profundidade, cada instante vivido permanece na “presença e nele mesmo” (Ibid.

10). Ao que tudo indica a autora sugere uma vivência no instante presente

embora um instante expandido.

Importante ressaltar na mesma pauta que esta “experiência interior”

(TISCAREÑO, 2009:226) singular, em que ocorre a coexistência entre passado,

presente e futuro (Ibid. 233), e em que “todos os sentidos e ‘tempos’”

(HONKANEN, op.cit. 10) convergem para “o curso do agora” (Ibidem) já que “o

tempo é sempre de uma vez” (Ibidem) é apreendida pelo participante ritual como

um “fluxo de agoras” (Ibidem) que muda qualitativamente no decurso

unidimensional do tempo (Kerkhof, 1997:2), tal como “um mecanismo de

construção de sentidos” (Ibid. 10).

Embora não tenha aprofundado o assunto o próprio Leach aparentemente

questiona-se ao abordar a questão da não regularidade do tempo ritual uma vez

que não há nada para sugerir que a velocidade do tempo passe como um fluxo

constante para todos os indivíduos; O mesmo Leach pergunta-se: “porque o

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160

tempo não deveria diminuir parar ocasionalmente ou mesmo retroceder” (LEACH,

1974:205).

Presumimos a partir deste questionamento do autor, que ele considerava a

possibilidade de o tempo retroceder e parar. Ora, se o instante kairológico

associado ao intervalo ritual de tempo sagrado, possui um curso acelerado,

unidimensional e irreversível de velocidade de passagem do tempo orientando-se

em direção a origem num sentido transversal ao decurso horizontal do tempo

cronológico, podemos inferir que esse curso denota um processo de entropia.

Alfred Gell, confirma a hipótese sustentada por Leach ao afirmar que “o

tempo dos rituais de restauração do mundo” “retrocede a fim de devolver-nos para

o início de tudo” (GELL, 2014:39).

Ao constatar que no interior do intervalo ritual de tempo sagrado, as

“mudanças são irreversíveis” (CETINA, 2007:46) o participante ritual pode concluir

que “decadência, morte e decomposição” são “no mínimo tão poderosas e

notáveis” como o “progresso o crescimento” e a “prosperidade” (RAPPAPORT,

2001:271).

Kerkhof acrescenta em relação ao instante kairológico que, por manifestar-

se como um fluxo de “agoras”, unidimensional e irreversível o tempo

extraordinário gera naturalmente no indivíduo “insegurança, angústia, assombro e

curiosidade” (KERKHOF, 1997:106) causando-lhe a sensação de “estranheza”

(Ibidem) diante do anônimo do poderoso e inusitado. O mesmo autor esclarece-

nos ainda em relação ao fluxo acelerado do tempo (o continuum) que esse

representa para o participante ritual um “objeto” de incidência tabu já que possui

certa ascendência sobre a consciência ordinária.

Contudo, assegura o mesmo autor, depois de “certo tempo, a dependência

diante do extraordinário, se subverte em um controle parcial” (Ibid.: 107), podendo

“ao final, praticamente tudo, sem exceção”, “converter-se de sagrado a profano”

(Ibidem).

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161

Tais considerações nos levam a concluir que “quando o mundo é plano

sem saliências onde pegar sem fissuras a penetrar” (JULLIEN, 1996: 98),

metáfora esta que personifica o que é interdito socialmente ou, o ambiente tabu, a

atitude do participante ritual deve ser a princípio comedida e regulada, no sentido

de adequar-se ao momento presente sendo também “secundada” por ele (Ibid.

88).

Deste modo e, graças a esta decisão ou ação inicial do participante ritual o

instante presente acaba promovendo as “condições” (ibidem) necessárias para

inserir-se “no curso das coisas” (Ibidem).

Referindo-se aos dois momentos cruciais que marcam a experiência do

participante ritual no intervalo de tempo sagrado, Jullien ressalta que neste

instante inicial em que a velocidade do tempo é vertiginosa a ocasião oportuna

pode apresentar se a princípio “quase imperceptível” (Ibid. 92), para o participante

ritual embora, seja a partir “desta primeira demarcação” (Ibidem), que surge, por

conseguinte, “a última coordenada a se ter em conta para pensar a ação eficaz

que é a do tempo” (Ibid. 88).

Talvez não seja demais acrescentar que, em Onians (2010[1051]) esse

primeiro estágio refere-se à metáfora do “orifício” que é “penetrável” por uma

arma (ONIANS, 2010 [1951]: 344) permitindo que flecha do arqueiro, no caso,

atravesse o arranjo linear em que “doze machados estão” “distribuídos a certos

intervalos em uma linha reta” (Ibidem).

Como indicado no Capítulo 1, esta passagem simbólica denota

provavelmente o momento oportuno em que Ulisses o protagonista épico da obra

Odisseia, de Homero, aguarda (sugerindo um instante de concentração) para

lançar sua flecha em direção a um alvo.

Ao que tudo indica, quando se trata da vivência no instante kairológico,

associado ao intervalo ritual de tempo sagrado, parece dar-se como um fluxo

continuum vertiginoso, de passagem do tempo em que o participante ritual deve

ter uma atitude regulada tal com a de Ulisses, que antes de lançar a flecha em

direção ao alvo concentra-se e espera. E “esperar” é segundo Jullien, “o corolário

de prever” (JULLIEN, 1996:99).

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162

A passagem sugere que, no intervalo ritual de continuum a consciência

ordinária deve aprender a esperar por um momento oportuno. Enquanto ele não

torna-se visível, a concentração no alvo a ser alcançado deve ser firmada.

Dito de outro modo, quando se trata de uma vivência no intervalo de tempo

sagrado em que o participante ritual encontra-se em meio ao fluxo unidimensional

do tempo que segue de modo irreversível em direção as origens a atitude

adequada é a de uma espera centrada no “alvo” a ser “atingido”.

Fazendo uma referência a metáfora do arqueiro grego, Onians, ressalta

nesta mesma pauta que, para acertar o “alvo” um homem atingido em um Kairos

(na consciência) “precisava apontar não apenas corretamente, mas com força ou

sua flecha apesar de entrar não penetraria o alvo” (ONIANS, 2010[1951]: 345).

Ao que tudo indica, Onians (2010) sugere que, além da concentração do

participante ritual no instante decisivo do “agora” faz-se necessária uma dose de

determinação para que o “alvo” possa ser de fato atingido ou, como é o caso para

que o processo “vida-morte-renascimento” seja efetivamente concluído; parece

plausível dizer que não basta nesse instante crucial não basta apenas a

presença do indivíduo diante do sagrado. Ao que consta Onians é claro ao

sinalizar que o participante ritual deve estar maduro o que requer uma atitude de

espera e atenção centrada no alvo a ser atingido para que o ciclo de

transformação seja concluída. Em vista disto, e como assegura Mac Armstrong “é

necessário tempo” para que qualquer “realidade” “torne-se conhecida”

(ARMSTRONG, 1956:212).

Por configurar um instante no tempo que exige a ação humana como

indicado o participante ritual deve aprender a “prever” e a “esperar” “o tempo que

há de vir e esperar que ele melhore” (JULLIEN, 1996:99) ainda que correndo o

risco de perder o momento oportuno para sua transformação.

Considerando que a ocasião oportuna ou o momento em que

metaforicamente o deus Kairos é apreendido é “inconstante” “passageiro” e tem

“pouca duração” (BROWN; COENEM, 1983[1967]: 566-567) cabe ao participante

ritual prever o momento oportuno que não encontra-se visível enquanto o curso

do tempo é continuum.

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163

Como o próprio Jullien assinala, diante deste tempo “fugaz” (JULLIEN,

op.cit.: 88) “que se inquieta entre o ainda não e o já agora” é preciso que o

participante ritual aprenda a prever o momento adequado para obter “sucesso”

(Ibidem); o momento em que “a oportunidade se torna visível” (Ibidem).

Neste sentido o instante vivido no intervalo de tempo sagrado é apreendido

em seu estágio inicial como um tempo “rebelde” (Ibid. 100) que necessita ser

regulado pelo participante ritual para que ele possa manter “o equilíbrio através da

transformação” (Ibidem). Para tanto precisa “estar em condições de ultrapassar as

aparências” (Ibid. 109) do instante presente (inicial), o que pode ser conseguido

através da “arte da previsão racional” (Ibidem).

Em síntese, embora o tempo extraordinário denote o fluxo da eternidade

irrompendo de uma vez na consciência ordinária temporal do participante ritual

levando seu raciocínio a “já não ter muita influência” e o “espírito” (Ibid. 109) a

“reconhecer seus limites” (Ibidem) denota simultaneamente, um “tempo

onividente” (COENEM; BROWN, 1983 [1967]: 572) oportuno, portanto, que pode

revelar-se ao participante ritual mediante as condições apropriadas.

Desse modo o participante ritual “faz com que o instante subido transforme-

se numa oportunidade” (JULLIEN, 1996:88) quando então o “tempo está tão

propício” que parece vir ao seu “encontro” (Ibidem).

Como indicado no Capítulo II, por tratar-se de uma zona neutra que

representa o “tempo às avessas”, Leach não exclui a possibilidade de que no

intervalo de tempo sagrado ocorram “eventuais descontinuidades” cuja

fenomenologia segundo ele encontra-se “para além da experiência humana

normal” (LEACH, 1989: 25).

Assinalando que há uma aproximação entre o continuum e o domínio

sobrenatural habitado por deuses e espíritos imortais deriva do segundo, ele da

“combinação na imaginação de elementos díspares extraídos do mundo da

experiência empírica” (Ibid.:17) Leach parece sugerir que estas descontinuidades

qualitativas ao que tudo indica decorrem de uma associação significativa entre

certa predisposição mental do participante ritual e, um instante divino “doado” (no

sentido de merecimento do participante ritual) pelos deuses ou o destino.

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164

Ao que tudo indica é provável que estas descontinuidades tenham alguma

ressonância com os “estados alterados de consciência” (RAPPAPORT, 2001:314)

também denominados de estados “numinosos” (Ibidem) se usarmos a

terminologia adotada por Rudolfo Otto.

Como estas descontinuidades qualitativas parecem resultar de uma

coincidência significativa entre a ação do participante ritual e um instante divino

no tempo, conforme já assinalamos, talvez não seja incorreto inferir que esta

ocorrência entre um evento interno (ação do participante ritual) e outro externo (o

tempo dado pelos deuses ou pelo destino) denota um fenômeno que costuma ser

chamado no corpo da psicologia analítica de sincronicidade47

Tendo em vista o objetivo a que se propõe esta investigação não

examinaremos mais detidamente a natureza destas descontinuidades qualitativas

ou, nos termos da psicologia analítica destes fenômenos ditos “sincronísticos”

embora não haja mal algum em assinalar que na concepção de Jung quando “em

determinadas circunstâncias “o tempo e o espaço parecem reduzido quase a

zero” (JUNG, 1971:23) “também a causalidade desaparece com eles”) dando

vazão a uma “conexão entre fatores significativamente coincidentes”, concebidos

como as causais (ibidem) (em que os eventos significativamente coincidentes não

estão ligados no espaço e no tempo).

Se levarmos em consideração que enquanto sujeitos sociais estamos todos

habituados vivenciar eventos no espaço e no tempo parece-nos bastante

assustadora vazão a experiências em que o tempo e o espaço parecem anulados.

Diante do acima exposto talvez se justifique o fato de que à luz dos elementos

associados a noção de Chronos, parece ser suficiente a pessoa moral somente

transferir-se da ordem normal-profana da existência para a ordem anormal-

sagrada (LEACH, 1974: 206) e retroativamente para que seja considerada

47 Os acontecimentos sincronísticos repousam segundo Carl Gustav Jung, na simultaneidade em

que ocorre a conexão entre fatores significativamente, coincidentes. Como a causalidade esta ligada à existência do espaço e do tempo e às mudanças físicas do corpo, pois consiste basicamente em uma sucessão de causas e efeitos em princípio os fenômenos de sincronicidade não podem ser associados a qualquer conceito de causalidade sendo necessariamente concebidos como acausais. Em determinadas circunstâncias o espaço e o tempo parecem reduzidos quase a zero, conforme mostra a experiência (JUNG, 1984:23).

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165

“renascida” (Ibid.:207) o que não ocorre à luz dos elementos mitológicos

associados à noção de Kairos.

Como visto, para que seja concluído o processo de transformação e

renascimento do transitante ritual no domínio, do intervalo de tempo sagrado faz-

se necessária a vivência destes dois instantes crucial: um instante inicial decisivo

(velocidade acelerada de passagem do tempo) que denota um momento de

espera, pois “é nele que começa a capacidade de efeito” final (JULLIEN, 1996:92)

bem como a “ocasião final que não é no fim das contas mais que a consequência”

(Ibidem) de um encontro entre uma ação ou decisão humana e um instante divino,

em que o tempo para (imobilidade) ao transporta-se para a eternidade.

Na sequência, apresentamos como ocorre este encontro entre o divino e o

humano no instante das festividades rituais, que é considerado em Leach um ciclo

de morte-vida e renascimento.

3.5 O Ciclo “Morte-Vida-Renascimento”: Repetição e Entropia

Vimos na seção anterior, como à luz dos elementos mitológicos associados

à noção de Kairos requer-se duas condições (espera e concentração na meta a

ser atingida) da parte do participante ritual para que o ciclo “vida-morte-

renascimento” possa concluir-se possibilitando um processo de transformação da

consciência ordinária. Contudo, falta ainda explanarmos a respeito de como

ocorre o encontro entre a dimensão divina e a humana no interior do intervalo

ritual de tempo sagrado.

Por conjugar eventos irreversíveis associados ao curso unidimensional do

tempo bem como eventos reversíveis “associados a uma progressão linear do

nascimento à morte como se fosse uma oscilação dia-noite-dia-noite-dia-noite

etc.” (GELL, 2014:41) que por sua vez, “depende crucialmente da indexação de

eventos espalhados ao longo de um eixo de tempo linear” (Ibidem) o intervalo

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166

ritual de tempo sagrado, pressupõe ao que tudo indica “uma série ordenada”

(Ibidem).

Essa série ordenada é também representada pela metáfora do coito sexual

e considerada por Leach como a imagem primaria do tempo a partir da qual,

ocorre como visto, o ”sacrifício mortal” (LEACH, 1961: 127 apud RAPPAPORT,

2011:270), em que macho e fêmea interagem de modo recorrente como dois

princípios opostos e complementares: um ativo (macho) que “concede” parte de

sua alma ou do tempo e, outro receptivo (fêmea) que “restitui” o tempo, ao dar à

luz (LEACH, 1974:200).

Quando unidos macho (Céu) e fêmea (Terra) denotam uma unidade ou um

princípio cósmico hierogamico, autofecundante, como indicado pelos antigos

gregos; De outro lado esta hierogamia manifesta-se não sem promover como

sustenta J.G.Whitrow, “uma agressão ‘injusta’ a custa de seu oposto”

(WHITROW, 1993[1988]: 54) que então “cumpre pena” “retirando-se antes do

contra-ataque” de seu oponente.

Ou seja, se de um lado ocorre à união entre os princípios feminino e

masculino, ativo e receptivo, de outro, esta não ocorre sem o sacrifício de ambos

os princípios. Desse modo, ao considerarmos que existe nesse processo uma

série ordenada levaremos em conta que, enquanto um dos dois princípios vigora

o outro “cumpre pena”.

Essa questão parece ficar clara com relação ao tempo social, profano que

em Leach cessa, quando o participante ritual encontra-se no intervalo ritual de

tempo sagrado e torna-se “castrado”. Sabemos a partir desse autor que ao

vivenciar o tempo continuum considerado “marginal” (LEACH, op.cit.: 207) o

tempo social, ordinário pára. O próprio Durkheim vinculava a categoria universal

do tempo à dois “círculos de estados mentais” (DURKHEIM, 2003 [1912]:218)

como indicado. Sob o efeito de um deles o indivíduo excluía de acordo com o

sociólogo francês, o outro.

Isso posto, ao considerarmos nessa mesma pauta que a modalidade de

tempo em Chronos, representa o princípio ativo enquanto na modalidade em

Kairos, o tempo denota um princípio receptivo como indicado no capítulo 1,

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167

podemos presumir que, à luz de Kairos o intervalo ritual de tempo sagrado em

Leach pode ser concebido como uma totalidade ou uma série ordenada em que

eventos “não recorrentes” (GELL, 2014:41) são representados em uma dimensão

vertical, transversal a dimensão horizontal do decurso linear do tempo que segue

em direção as origens bem como “eventos recorrentes” (Ibidem), associados ao

ciclo de Chronos, ocorrem como “sucessivos amanheceres e

entardeceres”(Ibidem) (sinais repetitivos dia-noite-dia-noite) em um eixo de tempo

linear.

A essência do assunto a ser aqui demonstrada não é outra senão que, o

ciclo “vida-morte-renascimento” requer o encontro entre uma dimensão divina e

outra humana no interior do intervalo ritual de tempo sagrado, para que possam

interagir num fluxo temporal total, em “zigue-zague” (LEACH, 1974:202) o

reversível e o irreversível manifestando-se a partir dessa interação uma série

ordenada em que alternam-se o profano e o sagrado.

Desse modo, presumimos que quando ocorre a união sacrifical em que

Chronos, o tempo secular social serve de “pano de fundo” (BROWN; COENEM,

1983 [1967]: 567) para que emerja Kairos, o participante ritual regula a própria

consciência equilibrando em sua constituição os princípios ativo e receptivo,

masculino e feminino, em decorrência como indicado de uma previsão racional e

uma ação diretiva que outro efeito não comportam senão, um desenvolvimento

psicológico e uma evolução espiritual. Como assegura o próprio Leach “sem os

festivais, tais períodos não existiriam e toda a ordem sairia da vida social”

(LEACH, 1974:207).

Cabe relembrar que neste ciclo de “vida-morte-renascimento” a consciência

ordinária do participante ritual passa por estados alterados que exprimem um

processo de “reassociação” (RAPPAPORT, 2001: 315) de partes da psique que

encontravam-se antes separadas e que podem ser re-unidas, tendo-se em conta

“a natureza recorrente do ritual (Ibidem).

Isso posto, apresentamos a seguir as quatro fases rituais que exprimem o

encontro entre o divino e o humano regenerando a consciência ordinária do

participante ritual nos intervalos de festividades rituais que como indicado,

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168

participa de um ciclo ourobórico, encerrado em si mesmo, cuja totalidade

manifesta-se como uma série ordenada: “eventos não recorrentes” (como por

exemplo, o fluxo de tempo que vai do nascimento à morte) interagem com

eventos recorrentes (como por exemplo, os ciclos repetitivos do dia e da noite em

que ocorrem alguns rituais).

Em ultima análise talvez possamos inferir que, ao vivenciar no interior do

intervalo ritual de tempo sagrado, o tempo como uma repetição (os ciclos dia-

noite), e simultaneamente, como entropia (morte simbólica) em que a velocidade

de passagem do tempo tanto pode estar acelerada quanto anulada ( a imobilidade

do tempo em Kairos), o participante ritual cria a possibilidade de transformar a

própria consciência retornando à vida em sociedade, renovado.

3.6 As Quatro Fases Rituais

Como indicado no Capítulo 2, Leach defende a ideia de que à luz do

tratamento de Cronos, a “simbólica da transferência completa do secular para o

sagrado” (LEACH, 1974:209) ocorre na Fase B, configurada na sequência de

fluxo do tempo ritual, muito embora o mesmo autor não apresente quaisquer

argumentos que possam demonstrar “o modo como” esta transferência se opera

nesse intervalo de tempo ritual restringindo-se a assinalar “três espécies de

comportamentos rituais” (LEACH, 1874:208) já descritos neste trabalho no

capítulo 2.

Em vista disto e com o propósito de sumarizar o acima exposto a respeito

do intervalo ritual de tempo sagrado em Leach concebido à luz do tratamento de

Kairos, apresentamos na sequência as quatro fases distintas, que denotam o

movimento do participante ritual nos intervalos de festivais anuais.

Naturalmente, tomamos como referência as fases apresentadas por Leach

em “Dois Ensaios a Repeito da Representação Simbólica do Tempo”; para

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169

efeitos didáticos a fase B foi subdividida em dois instantes distintos como segue

na explanação abaixo.

Fase A: O participante ritual cumpre os ritos de sacralização ou separação

sendo “transferido” para o intervalo ritual de tempo sagrado que é origem, ponto

de partida de um processo de transformação. Ele morre.

Fase B (início): Tendo se “tornado castrado” o participante ritual encontra-

se numa espécie de “animação ou suspensão” (LEACH, 1974:207) e vivencia o

estágio inicial de transformação em que a velocidade do tempo denota uma

aceleração. O tempo social ordinário pára e “retira-se”. Kairos, o tempo fugaz

rebelde e inapreensível pela consciência ordinária, vigora (contra-ataca). O

participante ritual vivencia uma “distensão anímica” (TISCAREÑO, 2009:226),

guardando e prevendo o tempo oportuno que há de vir. O curso do instante é

irreversível. O tempo social parou. O tempo acelerado de Kairos retrocede em

direção ao inicio de tudo.

Fase B (a ocasião oportuna): De acordo com Jullien (1996), a busca do

participante ritual é pela ‘verdade’ oculta sob o ‘véu’ (JULLIEN, 1996:99) da

consciência linear, ordinária. Combinando “conhecimentos relativos aos princípios

psicológicos, estratégico, político” (Ibidem) e adotando uma atitude em que

mantém-se tal “como uma ‘virgem’” (Ibidem), discreto e reservado o participante

ritual “ultrapassa as aparências” (Ibidem) (provavelmente, o autor alude aos

instantes em que a consciência ordinária encontra-se alterada) até que, o jovem

deus Kairos, falando metafóricamente, possa ser agarrado na “madeixa de

cabelos que cai-lhe sobre a testa” (Ibid.:109). Quando isso ocorre, o instante

presente torna-se flagrante, visível. O deus Kairos neste instante manifesta-se

imóvel, parado quando então e ao que tudo indica “abre-se a porta” para o eterno.

De acordo com o próprio Leach, nesse instante o transitante ritual pode vivenciar

inclusive, uma descontinuidade qualitativa.

Fase C: O participante ritual torna-se “renascido”. Tendo passado pelos

ritos de dessacralização ou agregação é novamente inserido ou “transferido” para

o tempo secular, profano em que vivenciará provavelmente, suas próprias ações

como “parcialmente sagradas e parcialmente profanas” (SIGAUD, 1996:31). À luz

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170

de Kairos, o participante ritual “agarrou” o instante que possibilitaria sua

transformação a partir de uma decisão que regulou o momento de transformação.

Tendo apresentado as quatro fases rituais que configuram o processo de

transformação e renascimento do participante ritual no intervalo ritual de tempo

sagrado à luz de Kairos, expomos na sequência, um quadro explicativo que

sumariza aspectos associados tanto ao ciclo de Cronos quanto de Kairos

explanados nesta secção:

Quadro 1: Elementos Mitológicos Associados às Noções de Tempo

em Cronos e Kairos.

No presente capítulo. vimos como configura-se o intervalo ritual de tempo

sagrado à luz dos elementos mitológicos associados à modalidade do tempo em

Kairos bem como, explanamos a respeito de como opera-se o processo de

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171

ordenação humano nesta configuração. Dando sequência ao tema apresentamos

as quatro fases rituais associadas à este processo em que vigora o ciclo “vida-

morte-rensacimento” expondo ao leitor o que ocorre ao que tudo indica, na

consciência ordinária do participante ritual quando no interior do intervalo de

tempo ritual. Mostramos nesta passagem como o processo de transformação da

consciência ordinária do participante ritual depende de uma ação sua, regulada,

que apreende o deus Kairos, em sua fugacidade; se o participante ritual cria tal

oportunidade o encontro entre o divino e o humano acontece podendo daí, advir

uma hierofania.

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CONSIDERAÇÕES FINAIS

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173

Com esta dissertação nos propusemos ao desafio de contribuir com os

estudos desenvolvidos por Edmund Leach em antropologia social bem como

contribuir com alguns apontamentos nas áreas da psicologia social e ciências da

religião. Tomamos como objeto de investigação o intervalo ritual de tempo

sagrado, em Leach à luz dos elementos mitológicos associados a noção de

Kairos, tendo em vista que o mesmo autor interpretou esse intervalo de tempo

ritual à luz exclusiva do tratamento de Chronos ou, simplesmente, como uma

dimensão ritual em oposição ao domínio de tempo profano.

No capítulo 1 explanamos em primeiro plano como desde os primórdios da

humanidade o homem tem se mobilizado para refletir a respeito de distintos

modelos do universo não só como uma forma de explicar as próprias origens e o

mundo em que vive mas, principalmente para tentar lidar com as transições na

natureza e porque não dizer, em sua própria natureza além da ideia da finitude do

universo e da morte.

Como sustenta o próprio Leach a partir das palavras de Gabriela Vargas

Cetina, a religião e a psicologia humanas “repudiam a ideia da morte porque

necessariamente pressentem o tempo como uma sequência que retorna,

substituindo a idéia de morte pela de constante repetição” (CETINA, 2007:46).

Em outras palavras, enquanto a ordem social exige que a temporalidade de

Chronos, permaneça como paradigma da sociedade e da cultura porque a

constante repetição “protege” a sociedade e os indivíduos do angustiante

encontro com a finitude eistencial Kairos, a temporalidade negligenciada do ponto

de vista social é suprimida do exame da consciência ordinária e delegado a um

domínio tabu, podendo entretanto, ser resgatada através das festividades rituais

anuais.

Durante esta explanação mostramos ainda como “historicamente, vários

povos foram se organizando e desenvolvendo abordagens únicas sob a forma de

sistemas de crenças, valores e comportamentos” rituais (LAMB, 2009:1259), com

a finalidade de ilustrar que, “os primeiros seres humanos tiveram de adaptar-se”

(LAMB, 2009:1259), aos ciclos na natureza aprendendo através deles que, à

passagem do tempo deviam associar-se os ciclos “da fertilidade do solo,

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fundamental para a nascente agricultura ao movimento cíclico dos corpos

celestes” (MARTINS; ZANETIC, 2002:41). Nessa trajetória crescemos e

evoluimos.

Dito de outro modo, é provável que ao vivenciar os ciclos do tempo no

cotidiano o homem fosse aos poucos “percebendo-se como parte deles” (LAMB,

2009:1259), ao mesmo tempo que aprendendo a testemunhar a respeito desses

mesmos ciclos de vida e fertilidade em sua própria natureza.

Isso posto, é também bastante provável que por meio desta “participation

mystique” com os ciclos naturais que nada mais representa que um

relacionamento inconsciente entre todos os homens, o ser humano de modo

geral, tenha se “sentido como um povo inteiro” ou, como parte de uma grande e

prazeirosa unidade através da qual podería formar grupos e reproduzir

experiências que possibilitassem à comunidade, experiências de transformação

coletiva.

Na sequência deste mesmo capítulo vimos por fim, como algumas

cosmologias da antiguidade concebiam um princípio cósmico, circular e, a partir

deste, um sistema bipartido do universo. Vários exemplos acerca desta

concepção cíclica do universo foram citados; dentre eles, destacamos a

cosmologia do antigo Egito em que o “tempo” que incluía a noção de “eternidade”

(STAUSBERG, 2003:250), era representado como um par de opostos que

denotava a manifestação de um mesmo princípio fundamental cuja ressonância

nos remete ao ciclo “vida-morte-renascimento” em Leach a ser vivenciado pelo

participante ritual, caso este possibilite através de uma decisão sua, o encontro

entre as temporalidades de Chronos e Kairos. Do profano e do sagrado.

Como não parece impossível perceber certos aspectos simbólicos

associados a cosmologia desta antiga civilização parecem aproximar-se de certos

aspectos associados à simbologia empregada por Leach no contexto de sua

teoria do tempo ritual traduzindo-se, ao que tudo indica, o corpo simbólico de

ambos os modelos cósmológicos em que oposições são regidas “pelo princípio da

reciprocidade” (LEACH, 1978: 12), como “um todo único em interação” (Ibid.: 9).

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Entretanto enquanto esta antiga civilização parece ter experimentado um

tempo kairológico em que de fato, havia uma interação entre tempo profano e

tempo sagrado pois, como sustenta Robert Bollt, os antigos egípcios “passavam

por um único continuum, ainda que dentro de uma experiência temporal cíclica”

(BOLLT, 2009 : 127), o modelo de tempo ritual proposto por Leach retrata-nos a

face exclusiva do deus Cronos através da qual, essa experiência de “interação”

entre tempo sagrado e tempo profano é ainda percebida pelo indivíduo como

inexistente. O domínio ritual sagrado é concebido por Leach e alguns aportes da

antropologia simbólica como tabu, anormal, marginal.

Como acrescenta Marianne Sydow, que nos ofereceu algumas

contribuições a respeito da cosmologia tradicional chinesa para os taoístas, esta

interação entre o eterno e o tempo é possível sim; desde que o indivíduo consiga

“transcender o fluxo desses eventos mundanos para tornar-se “Um” com a

intemporalidade subjacente” (SYDOW, 2009:1219). Dito de outro modo para os

taoístas, cuja crença encontra-se alicerçada na imortalidade da alma a

possibilidade de uma vivência que denote a interação - de fato - entre tempo

profano e tempo sagrado depende de uma ação ou atitude individual que

transcenda uma realidade, caracterizada por estes últimos, como ilusória.

Para transformar-se e tornar-se “Um” com o contínuum ou, com o

intemporal faz-se necessário ao que tudo indica o indivíduo transcender, quando

no intervalo ritual de tempo sagrado, o fluxo descontínuo da experiência habitual

para que possa alcançar a meta desejada que é a transformação da consciência

ordinária.

Como indicado no capítulo 3, na ótica da transformação o momento de

encontro entre o tempo e eternidade (quando o deus Kairos, pára criando a

ocasião oportuna), não é mais que o resultado do desenvolvimento das ações e

atitudes do indivíduo preparado pela duração (Chronos). Desse modo, “longe de

sobrevir de improviso” (JULLIEN, 1996:93) tal encontro é “fruto de uma

evolução”(Ibidem) que inicia-se segundo o mesmo autor antes mesmo, do

momento ritual, de fato; Ao que tudo indica Chronos, representa este momento de

preparação.

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Em síntese para que o participante ritual possa efetivamente entrar na

eternidade quando vivencia o intervalo de festividades rituais, faz-se necessário

que a dimensão de tempo e do espaço habituais seja “deixada para trás”; que a

fragmentação interna do indivíduo condicionada pelo processo de socialização

possa ser circunstancialmente, transcendida e, principalmente, ressignificada e

que o desejo de unir-se novamente, às origens (ao “Um”), seja para o

participante ritual a meta a ser alcançada tendo em vista o anseio de ser

“fertilizado” pela serpente Ouroborus também denominada neste estudo de

Hermes ou ainda “série ordenada,” dos ciclos de Chronos e Kairos.

Exploramos ainda ao final deste primeiro capítulo as temporalidades

associadas as três fases cósmicas, conforme supunham os gregos da antiguidade

além das diversas concepções sobre as noções de Chronos e Kairos, que

aprofundaram nosso conhecimento a respeito das distinções bem como da

complementaridade existente entre essas duas modalidades de tempo.

No segundo capítulo sumarizamos inicialmente os dados biográficos de

Leach e em seguida, trabalhamos os principais conceitos e resultados relativos a

teoria do tempo ritual proposta pelo mesmo autor que dialogou exclusivamente

com elementos simbólicos associados à noção do tempo em Cronos, suas

metáforas e implicações.

Importante contextualizar que a partir de momento em que entramos em

contato com os dados biográficos de Leach percebemos que embora este autor

tenha apresentado desde tenra idade sinais de ser uma criança “intelectualmente

brilhante” (SIGAUD, 1996: 11-12), foi em função da influência materna como tudo

parece indicar, que Leach desenvolveu certa disposição para uma “espécie de

busca” (DA MATTA, 1983: 19), por “originalidade teórica” (PEIRANO, 2014.: 1),

cujo mandato subliminar arrogava que: “é preferível visar alto e fracassar a

contentar-se com a mediocridade” (SIGAUD, 1996:15).

Isso posto, estamos sugerindo que Leach desenvolveu um estilo assertivo

e bastante particular de fazer antropologia alicerçado em convicções teóricas

muito próprias o que deve ter contribuido para que desenvolvesse uma teoria a

respeito do tempo ritual que colocou em cheque o tempo cronológico.

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Uma outra questão que nos parece relevante contextualizar é que em

conseqüência de sua formação familiar Leach possivelmente desenvolveu uma

tendência de lidar com a “singularidade e a imprevisibilidade de cada ocasião”

(SMITH, 2002: 6), com certo desembaraço. Este aspecto presente na persona

deste mesmo autor nos leva a suposição de que, muito embora Leach não tenha

aprofundado o conhecimento a respeito do tempo continuum – o tempo ritual

extraordinário, imprevisível, tabu, anormal - não apresentava quaislquer

dificuldades em sua persona que o impedissem de explorar o outro mundo,

considerado por ele como tabu e por Kerkhof (1974) como extraordinário.

No que diz respeito a teoria do tempo ritual desenvolvida e concebida por

Leach à luz dos elementos associados exclusivamente à mitologia de Cronos,

parece as vezes “descansar sobre uma base um tanto duvidosa” (GELL,

2014:38), como também sugerem Platemkamp (1979) e Sekine (1985), já que

Leach não aprofundou certos argumentos que pudessem oferecer ao leitor uma

maior consistência às suas afirmações.

Cito uma vez mais o intervalo ritual de tempo sagrado em Leach, ou o

intervalo de tempo contínuum cujo estudo apresenta uma “lacuna”

epistemológica. Outra questão que também pode denotar essa mesma

inconsistência refere-se ao fato de Leach ter abordado e adotado a crença dos

antigos gregos a respeito do tempo para desenvolvimeto de seu trabalho a

respeito do tempo ritual e, em momento algum ter explicitado neste contexto a

“imagem do aspecto dinâmico da existência” (VON-FRANZ, 1997:6), que

comporta segundo os gregos, a temporalidade de Kairos, como “adversário”

(JULLIEN, 1999:99) ou pólo oposto da temporalidade em Cronos ou Chronos. Tal

questão parece ser infundada pois, toda a teoria de tempo ritual concebida por

este mesmo autor encontra-se alicerçada em uma base que defende a idéia do

interjogo e mútuo confronto entre polaridades.

No terceiro e último capítulo deste trabalho desenvolvemos uma

investigação do intervalo de tempo ritual sagrado em Leach à luz dos elementos

mitológicos associados à noção de kairos, tendo em vista um exame aprofundado

deste domínio considerado pelo autor simplesmente como o outro mundo, em

oposição a este mundo das categorias verbais.

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Estabelecendo aproximações entre o intervalo ritual de tempo sagrado em

Leach e diversos conceitos associados a interpretação do instante kairológico

apresentados no primeiro capítulo, refletimos acerca de possibilidades,

implicações e possíveis contribuições à teoria de Leach, propondo ao final uma

definição conceitual desse intervalo de tempo ritual a luz dos elementos

mitológicos associados a noção do tempo em Kairos.

Nessa direção a configuração adotada segundo vários aportes, para o

intervalo ritual de tempo sagrado, em Leach à luz de Kairos, presume o tempo

nesse intervalo ritual não como parte de uma cadeia linear causal mas, como

ponto de partida ou culminância a partir do qual, ocorre a “ irrupção da eternidade

no tempo” (Ibidem). Essa irrupção que segue em direção as orígens “entre um

curso acelerado e uma certa imobilidade (HONKANEN, 2007:9), pulsa no sentido

da dimensão vertical, promovendo “quebras”, “rupturas” e rompendo com a

“cadeia da cronologia” (Ibidem) e como a concebemos.

Esse processo que vai de encontro ao modo a como é feita a ordenação do

mundo em Leach à luz do tratamento de Cronos, mostra-nos que ao invés de o

indivíduo ser regulado socialmente em suas ações e atitudes, na medida em que

ele simplesmente reproduz em sociedade um nível cognitivo inconsciente, a

separação prototípica do continuum temporal ele próprio é o instrumento que

regula os aspectos profano e sagrado das ações sociais. E pode fazê-lo de modo

consciente ao adentrar no espaço ritual sagrado.

Neste sentido podemos dizer que à luz de Cronos, estamos condenados a

ordenar o mundo através da repetição ritual (social) que denota na raíz essa

segmentação prototípica entre Céu e Terra cuja conseqüência é o

estabelecimento de fronteiras artificiais entre o “Eu” e o “Outro”, uma ação

profana e outra sagrada.

Contudo, no que refere-se ao processo de ordenação humano que apenas

pode ocorrer à luz do tratamento de Kairos vimos que, não comporta essa mesma

segmentação do continuum na natureza já que, o próprio conceito de instante

kairológico encontra-se intimamente vinculado à um curso unidimensional de uma

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temporalidade que a tudo abarca como um presente expandido. Ação profana e

ação sagrada encontram-se ambas imbrincadas nesse fluxo temporal de “agoras.”

Em vista disto e como já indicado no terceiro capítulo, à luz de Kairos, não

há necessidade de serem erguidas fronteiras artificiais na natureza quando no

processo de ordenação da vida em sociedade; o deus kairos, sugere que o

conhecimento a respeito da natureza humana opera-se a partir de duas vias ou

momentos cruciais no interior do intervalo ritual de festividades anuais: o instante

em que o continuum é velocidade, com a aceleração da passagem do tempo e o

instante, em que o deus Kairos, pode vir a transportar-nos para a eternidade caso

possa ser regulado ( apreendido portanto) por uma ação humana.

Se assim ocorre, ao invés de erigirmos fronteiras artificiais no continuum da

natureza é a própria natureza (ou, são os deuses ou, ainda o destino) quem nos

requisita para uma ação regulada no intervalo ritual de tempo sagrado, a partir da

qual, possibilitamos uma abertura ou, uma fronteira natural cujo transito possibilita

a passagem não só de Hermes, o mensageiro dos deuses, entre as dimensões

divina e humana, mas ao que tudo indica, também do participante ritual que

poderá vivenciar inclusive uma hierofania ou, segundo Leach uma

descontinuidade qualitativa.

Esta fronteira natural que “pulsa incessantemente, entre o devenir e o

perecer regulando nossa consciência” (KERKHOF, 1997:2), e representa à luz

dos elementos mitológicos associados a noção de Kairos, o interstício que

possibilita a conexão entre eventos sociais (humano) e forças naturais (divino),

regula a consciência ordinária do transitante ritual além de possibilitar a promoção

efetiva de sua transformação no intervalo ritual de tempo sagrado.

Com este ápice, encerra-se a experiência no interior intervalo ritual de

tempo sagrado que denota o ciclo “vida–morte-renascimento” do participante ritual

que vivencia internamente, o ciclo ourobórico em sua própria consciência. Ciclo

este, em que repetição e entropia encontram-se em estreita conexão.

Isso posto, talvez não seja inadequado inferirmos por fim que, a

possibilidade de o participante ritual ir de encontro a esse ponto intermediário em

que o que encontra-se acima é igual ao que encontra-se abaixo (ambigüidades),

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esta fronteira natural (em oposição as fronteiras artificiais) pode condizi-lo à

vivência da communitas, concebida por Victor Turner (2003) e porque não dizer

ao mesmo ciclo ourobórico, que encerrado em si mesmo, irmanava - tal como

concebiam os antigos egípcios - Céu e Terra ou, o domínio do tempo sagrado e o

domínio do tempo profano.

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REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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Page 188: KAIRÓS E O TEMPO RITUAL SAGRADO EM EDMUND LEACH...O TEMPO RITUAL SAGRADO EM LEACH À LUZ DE KAIROS 128 3.1. O Fluxo Unidimensional do Tempo Sagrado 130 3.2. A Imagem Primária do

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